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Ademir Pascale Carta do Futuro: O Dia da Invasão<br />
1<br />
Imagem alterada do jogo AREA 51 desenvolvido pela Inevitable Entertainment e distribuído por Midway Home Entertainment, Inc.
Harvey the Alien by Aaron Sims - www.aaron-sims.com
Alien Warrior by Aaron Sims - www.aaron-sims.com
ADEMIR PASCALE, escritor paulista e ativista cultural. Seus dois últimos romances<br />
publicados foram O Desejo de Lilith e Encruzilhada.<br />
Seu e-mail no ano 2012 era ademir@cranik.com. Ele poderia ser encontrado facilmente no<br />
Twitter: @ademirpascale<br />
ADEMIR PASCALE, escritor paulista e ativista cultural. Seus dois ltimos romances publicados foram O Desejo de Lilith e Encruzilhada.<br />
Seu e-mail no ano 2012 era ademir@cranik.com. Ele poderia ser encontrado facilmente no Twitter: @ademirpascale
Ademir Pascale Carta do Futuro: O Dia da Invasão<br />
Nas férias escolares de<br />
1983, meu pai nos<br />
levou — eu, minha<br />
mãe e meus outros três irmãos<br />
— de automóvel para o estado de<br />
Minas Gerais, numa cidadezinha<br />
pitoresca de nome estranho,<br />
intitulada Ponto Chic. Lá não<br />
tinha asfalto, televisão, energia<br />
elétrica ou água encanada. A água<br />
tínhamos que retirar do poço da<br />
casa da minha avó. Eu achava<br />
isso engraçado, pois não entendia<br />
como que a água poderia sair<br />
tão fresca daquele buraco<br />
escuro.<br />
A noite, logo depois<br />
do jantar, acendíamos<br />
um lampião e nos reuníamos na<br />
rústica e ampla sala para ouvir<br />
os causos do meu avô. Naquela<br />
época eu tinha sete anos e estava<br />
conhecendo as raízes do meu pai.<br />
Na hora de dormir, eu não sentia<br />
o colchão muito confortável, mas<br />
era uma aventura e tanto, pois a<br />
casa era infestada de morcegos.<br />
Na primeira manhã naquele<br />
lugar, senti que o ar era bem<br />
diferente do ar da cidade de São<br />
Paulo, onde eu morava (e ainda<br />
moro). Era uma imensidão de<br />
verde que eu nunca tinha visto<br />
antes. A comida, muito bem temperada<br />
era simples: feijão, arroz,<br />
farinha de mandioca com carne<br />
de sol, abóbora cozida, linguiça<br />
frita e muito coentro picado, tudo<br />
feito no fogão à lenha. O suco<br />
minha mãe fazia com os limões<br />
que retirávamos de um pé de<br />
limão que tinha lá no fundo do<br />
quintal. Aliás, quase nada era<br />
comprado, tudo era dali mesmo: o<br />
arroz, a farinha, a carne, o feijão, o<br />
coentro, a abóbora e a lenha. Nos<br />
finais de semana nós íamos para<br />
a fazenda. Lá eu aprendi a pescar<br />
e experimentei carne de tatu,<br />
que é muito semelhante a carne<br />
do frango. Vi pássaros e animais<br />
os quais nunca tinha visto antes.<br />
Tomei leite quente retirado na<br />
hora e vi como as linguiças eram<br />
produzidas. A noite acendemos<br />
uma fogueira e colocamos alguns<br />
peixes secos nuns espetos para assar,<br />
enquanto meus tios contavam<br />
mais causos. Naquela primeira<br />
Na primeira manhã naquele lugar,<br />
senti que o ar era bem diferente...<br />
noite na fazenda, olhei para o céu,<br />
e juro que fiquei impressionado<br />
com a quantidade de estrelas<br />
que consegui visualizar. Eram<br />
incontáveis estrelas, diferente<br />
das que via em São Paulo, que<br />
dava para contar nos dedos, isso<br />
quando conseguia encontrar uma.<br />
Realmente, aquele ano foi muito<br />
importante em minha vida, algo<br />
que nada e nem ninguém poderá<br />
retirar. Fico feliz por ter nascido<br />
numa época em que não existia<br />
DVD, CD, Blu-ray ou Pen drive.<br />
Em 1983, as crianças brincavam<br />
nas ruas e não era tão<br />
perigoso ficar até tarde da noite<br />
conversando com os amigos.<br />
Naquela época o contato era físico<br />
e a conversa era cara a cara, pois<br />
não existia salas de bate-papo ou<br />
MSN. Com sete anos de idade,<br />
eu nunca tinha ouvido falar da<br />
tal internet, aliás, só fui ouvir<br />
falar sobre ela no ano de 1995<br />
(anos depois fiquei sabendo que<br />
a internet, intitulada na época de<br />
6<br />
ARPANET, existia desde 1969,<br />
mas só chegou muitos anos depois<br />
em meu atrasado país), quando<br />
fui obrigado a trabalhar de office<br />
boy após o assassinato do meu<br />
pai por dois assaltantes. Com<br />
treze anos de idade eu não sabia<br />
andar sozinho pela cidade e me<br />
vi completamente perdido. Meu<br />
patrão, dono de uma construtora<br />
nos Jardins, era um judeu de<br />
aproximadamente quarenta anos.<br />
Ele não queria saber se eu conhecia<br />
ou não as ruas, apenas jogava o<br />
Guia 4 Rodas sobre a mesa<br />
e anotava num papelzinho<br />
o endereço onde eu deveria<br />
ir. No final do bilhetinho,<br />
ele escrevia: “E sem demora”.<br />
Foram anos tristes e felizes. Felizes<br />
porque ele, o meu patrão, nem<br />
sequer sonhava que em poucos<br />
meses eu aprendi a andar nas ruas<br />
e a frequentar os fliperamas da<br />
Rua Augusta. Quando tinha que<br />
sair para fazer um serviço na rua,<br />
como ir ao banco ou ao cartório,<br />
passava antes na casa de jogos<br />
eletrônicos para jogar Tartarugas<br />
Ninja, Pacman ou Street Fighter.<br />
Isso era uma mania dos office boys<br />
de São Paulo. Mas também foram<br />
anos ruins, pois foi justamente<br />
nesta época que percebi, mesmo<br />
viciado em jogos eletrônicos, que<br />
as pessoas estavam perdendo<br />
o contato físico, como zumbis<br />
vidrados nas telas dos monitores<br />
ou fliperamas. Tanto eu como<br />
meus amigos e provavelmente<br />
você que está lendo, não sabíamos<br />
que o avanço tecnológico causaria<br />
a quase extinção dos seres<br />
humanos no planeta Terra. Bom,<br />
algumas poucas pessoas sabiam,
Ademir Pascale Carta do Futuro: O Dia da Invasão<br />
mas não nós. Essa frieza causada<br />
pelo não contato físico, criou<br />
seres humanos diferentes; pessoas<br />
que destruíram a natureza sem<br />
piedade, apenas para consumir<br />
desenfreadamente e para manter<br />
os seus vícios oriundos. Eu sou<br />
uma delas e estou amargamente<br />
arrependido. Algumas pessoas<br />
dizem que eles estão aqui apenas<br />
para exterminar um vírus: nós. Eu<br />
acredito nesta hipótese e vou além:<br />
somos uma ameaça ao planeta<br />
Terra e até para o sistema solar.<br />
Éramos gananciosos e não pensávamos<br />
no amanhã. Irmão matava<br />
irmão. Culturas predominavam<br />
sobre outras. Classes sociais<br />
escravizavam outras mais fracas.<br />
Algo que não acontece no planeta<br />
deles. Bom, como você está no<br />
passado e provavelmente perdido<br />
sobre eles e deles, dos quais citei,<br />
iniciarei contando sobre “O dia da<br />
invasão”:<br />
São Paulo. Segunda-feira: 06 de<br />
março de 2017. 8h25.<br />
Era uma manhã quente e ensolarada<br />
com 48 graus. O trânsito,<br />
como sempre, estava terrível na<br />
Avenida Giovanni Gronchi. Eu<br />
estava suando em bicas dentro de<br />
uma lotação (transporte coletivo).<br />
Por sorte estava sentado, lendo um<br />
clássico da literatura e tomando<br />
o maior cuidado para o meu suor<br />
não cair nas folhas. Estava difícil<br />
respirar, pois o veículo, que deveria<br />
suportar confortavelmente<br />
quarenta e quatro pessoas, estava<br />
com setenta e duas pessoas (sim,<br />
eu sempre perdia o meu tempo<br />
contando o número de pessoas<br />
nas filas ou dentro das lotações).<br />
Enfim, era um dia infernal, normal<br />
como todos os outros dias.<br />
Mas algo quebrou a monotonia:<br />
ouvi gritos vindos do lado de fora.<br />
Inicialmente achei que era um<br />
assalto, ou alguém que atravessou<br />
fora da faixa de pedestres e<br />
que acabou sendo atropelado,<br />
mas quando vi algumas pessoas<br />
olhando e apontando para o céu,<br />
acima do Shopping Jardim Sul,<br />
tanto eu como parte dos outros<br />
passageiros, olhamos instintivamente<br />
para a mesma direção em<br />
que os pedestres estavam olhando.<br />
Deixei meu livro cair. Fiquei arrepiado<br />
e boquiaberto com aquela<br />
cena: centenas de estranhas naves<br />
chegavam e pairavam no ar, sem<br />
emitir som algum. Era surreal e<br />
eu nunca tinha visto nada igual.<br />
Eram naves bem diferentes dos<br />
discos voadores dos longa-metragens<br />
ou das capas de revistas<br />
de ficção científica: elas possuíam<br />
a forma de um cilindro e sem<br />
exceção, todas eram da cor preta<br />
e com uma faixa de cor laranja<br />
em seu centro, dando um grande<br />
destaque. Em poucos minutos o<br />
dia virou noite e já não eram centenas<br />
de naves, mas milhares que<br />
Muitos sucumbiram. Mais de<br />
70% da população do planeta foi<br />
dizimada.<br />
7<br />
encobriam o céu, como se estivéssemos<br />
embaixo de um gigantesco<br />
teto de metal. Ingênuo, eu não<br />
sabia muito bem o que era aquilo.<br />
Bem, eu imaginava o que poderia<br />
ser, mas jamais acharia que um dia<br />
isso se tornaria realidade. Não demorou<br />
para a primeira nave quebrar<br />
o silêncio macabro e disparar<br />
uma espécie de raio num carro<br />
próximo a nossa lotação. Aquilo<br />
foi o alerta para todas as outras<br />
naves começarem a disparar.<br />
Aquele poderia ser o último dia de<br />
nossas vidas, se não fosse a nossa<br />
luta pela sobrevivência e a força de<br />
vontade em continuarmos vivos.<br />
Muitos sucumbiram. Mais<br />
de 70% da população do planeta<br />
foi dizimada. E hoje vivemos na<br />
escuridão dos bueiros ou escombros,<br />
escondidos como ratos. Mas,<br />
mesmo nestas condições, somos<br />
organizados e uns protegem os<br />
outros. Criamos um sistema<br />
poderoso de intranet, o qual os<br />
alienígenas não conseguem interceptar.<br />
As vezes conseguimos capturar<br />
um deles, então aproveitamos<br />
o máximo possível para<br />
estudar sua anatomia e fraquezas,<br />
além de criarmos novas armas<br />
usando como base a deles.<br />
A esperança ainda existe...<br />
ou não... Não sei dizer se ainda<br />
tenho esperanças, é algo difícil<br />
de escrever. Lutamos apenas para<br />
sobreviver em cada um destes<br />
tortuosos dias.
Luiz Bras (Nelson de Oliveira) nasceu em 1968, em Cobra Norato, Ms. É doutor em<br />
Letras pela usP e sempre morou no terceiro planeta do sistema solar. É de leão e, no<br />
horóscopo chinês, cavalo. Na infância ouvia vozes misteriosas que lhe contavam histórias<br />
secretas. adora filmes de animação, histórias em quadrinhos e gatos. Com os felinos<br />
aprendeu a acreditar em telepatia e universos paralelos. Já publicou diversos livros,<br />
entre eles a coletânea de contos Paraíso líquido, a coletânea de crônicas Muitas peles, os<br />
romances juvenis sonho, sombras e super-heróis e Babel Hotel e, em parceria com Tereza<br />
Yamashita, os infantis a menina vermelha, a última guerra e Dias incríveis. Mantém uma<br />
página mensal no jornal rascunho, de Curitiba, intitulada ruído Branco. Também mantém<br />
o blogue Cobra Norato: www.luizbras.wordpress.com.<br />
Luiz Bras (Nelson de Oliveira) nasceu em 1968, em Cobra Norato, Ms. doutor em Letras pela usP e sempre morou no terceiro planeta do<br />
sistema solar. de leo e, no horscopo chins, cavalo. Na infncia ouvia vozes misteriosas que lhe contavam histrias secretas. adora<br />
filmes de animao, histrias em quadrinhos e gatos. Com os felinos aprendeu a acreditar em telepatia e universos paralelos. J publicou<br />
diversos livros, entre eles a coletnea de contos Paraso lquido, a coletnea de crnicas Muitas peles, os romances juvenis sonho, sombras<br />
e super-heris e Babel Hotel e, em parceria com Tereza Yamashita, os infantis a menina vermelha, a ltima guerra e Dias incrveis. Mantm<br />
uma pgina mensal no jornal rascunho, de Curitiba, intitulada rudo Branco. Tambm mantm o blogue Cobra Norato: www.luizbras.wordpress.com.
Luiz Bras Nas Catacumbas<br />
Nunca entendi direito<br />
a diferença entre<br />
mim e os outros.<br />
Sempre senti os outros, meus<br />
semelhantes, o mundo todo,<br />
como parte de mim mesmo. A<br />
parte mais estreita, menos vasta<br />
de mim mesmo. Porque tudo o<br />
que está fora é sempre menor<br />
do que tudo o que está dentro,<br />
mas ambos me pertencem. Os<br />
prédios e as estrelas do lado de<br />
fora, meus, são bem menores<br />
do que os prédios e as estrelas<br />
do lado de dentro, também<br />
meus.<br />
Mas agora as coisas<br />
internas começaram a<br />
encolher. Contra a minha<br />
vontade. Então essa é a<br />
diferença entre mim e<br />
os outros? Entre o interno e o<br />
externo? Será possível que...<br />
Será mesmo possível que exista<br />
uma fronteira separando os dois<br />
mundos, as coisas internas e<br />
externas? Agora começo a sentir<br />
que estão chupando minha essência.<br />
Eles, os invasores. Agora<br />
sinto que estão extraindo de<br />
mim as maiores riquezas. Separando<br />
e subtraindo o fora e o<br />
dentro. O que antes era meu,<br />
o interior e o exterior, já não é<br />
mais meu. É deles.<br />
Os invasores chegaram no<br />
primeiro dia do ano. Eram seis.<br />
Ficaram dois dias e partiram.<br />
Voltaram seis meses depois e<br />
não partiram mais. Agora são<br />
uns duzentos. Chegaram em<br />
grandes esferas maleáveis como<br />
a água. Mais de duzentos, uns<br />
trezentos invasores. Seus olhos<br />
são poderosos, sugam nossos<br />
pensamentos, nossas memórias.<br />
No início eles não eram maus.<br />
Pareciam ter vindo em paz.<br />
Apenas passeavam pela cidade e<br />
pelo campo, coletando pedregulhos<br />
e sementes.<br />
A situação começou a ficar<br />
feia quando um dos invasores<br />
Tivemos que fugir para as<br />
catacumbas. Metade da cidade<br />
não conseguiu escapar. Nossos<br />
pensamentos parecem ser uma<br />
droga poderosa, os invasores não<br />
conseguem resistir.<br />
sugou os pensamentos de meu<br />
pai. Parece ter sido sem intenção,<br />
por acidente. O invasor<br />
simplesmente olhou mais tempo<br />
do que devia e os pensamentos<br />
começaram a fluir. Foi horrível.<br />
Meu pai caiu duro. O invasor<br />
tremeu e se contorceu. Parecia<br />
estar tendo um surto de prazer,<br />
um orgasmo místico. Então a<br />
histeria começou.<br />
Tivemos que fugir para as<br />
catacumbas. Metade da cidade<br />
não conseguiu escapar. Nossos<br />
pensamentos parecem ser uma<br />
droga poderosa, os invasores<br />
não conseguem resistir. Estão<br />
viciados. Mesmo o mais virtuoso<br />
10<br />
deles, seu líder, cedo ou tarde<br />
cederá ao desejo, à tentação<br />
demoníaca. Mais dia menos dia<br />
também ele cavará fundo nossos<br />
olhos. Talvez ele esteja fazendo<br />
exatamente isso agora. Talvez ele<br />
já esteja aqui, nas catacumbas,<br />
sugando meus pensamentos.<br />
Essa tontura, essa névoa. Essa<br />
minha indecisão. A desconfiança<br />
de que o mundo não me pertence<br />
mais. Meu antigo mundo.<br />
Dividido em hemisférios, agora<br />
sendo sugado.<br />
No processo de esvazia-<br />
mento eu reencontro meu<br />
pai. É um sonho. Ele vem<br />
até mim, eu o abraço, nós<br />
choramos. Minha memória<br />
começa a falhar. Eu pergunto:<br />
quando foi que isso<br />
começou, esse pavor do mundo<br />
cindido, esse medo do lado<br />
secreto da vida: a morte? No dia<br />
em que os humanos chegaram<br />
pra ficar, meu pai responde.<br />
Nesse dia nós começamos a<br />
compreender. Horrorizados.<br />
Eles nos olharam fixamente e<br />
nós começamos a entender que<br />
não são a mesma coisa o bem e<br />
o mal, o amor e o ódio.<br />
Começamos a entender que<br />
não são a mesma coisa o dia e a<br />
noite.<br />
Horrorizados.<br />
A juventude e a velhice.<br />
Começamos a entender, meu<br />
filho.<br />
Não são a mesma coisa.
MARCELO BIGHETTI, nasceu em 1968. Casado com Adriana desde 1995, é extremamente<br />
apaixonado por ela e pelos quatro filhos. Possui mais de dez contos publicados, sendo os<br />
últimos nas coletâneas “2013: Ano Um” e “Estranhas Invenções”, pela Editora Ornitorrinco,<br />
e “Passado Imperfeito”, pela Editora Argonautas. Além de designer e escritor é leitor<br />
compulsivo desde menino. Trabalha atualmente em seu próprio livro.<br />
Contato com o autor:<br />
mbighetti@gmail.com<br />
www.marcelobighetti.blogspot.com<br />
www.marcelo.bighetti.com.br<br />
MARCELO BIGHETTI, nasceu em 1968. Casado com Adriana desde 1995, extremamente apaixonado por ela e pelos quatro<br />
filhos. Possui mais de dez contos publicados, sendo os ltimos nas coletneas “2013: Ano Um” e “Estranhas<br />
Invenes”, pela Editora Ornitorrinco, e “Passado Imperfeito”, pela Editora Argonautas. Alm de designer e escritor<br />
leitor compulsivo desde menino. Trabalha atualmente em seu prprio livro.
Marcelo Bighetti Invasão Retomada<br />
Aquele era um ano único<br />
para a humanidade, pois<br />
poucos são os eventos que<br />
tentam, de uma forma precária,<br />
unir o planeta, mesmo que seja<br />
por poucos momentos, como<br />
por exemplo as Olimpíadas. Em<br />
2018, numa explosão de avanços<br />
científicos na área da medicina,<br />
foram descobertas as curas para<br />
diversos males que assolavam os<br />
humanos há muito tempo. Em<br />
menos de doze meses a síndrome<br />
de Down, mal de Parkinson e<br />
Alzheimer, câncer,<br />
AIDS — apenas<br />
para citar estes poucos —<br />
deixaram de existir.<br />
Só que a alegria por<br />
esta “vitória” durou pouco. Logo<br />
descobriu-se que as curas foram<br />
descobertas por eles.<br />
*****<br />
Diferente do que se pensava,<br />
a adaptação aos humanos não<br />
ocorreu como nos espécimes que<br />
foram recolhidos anteriormente.<br />
De todas as milhões de consciências<br />
enviadas para a invasão,<br />
apenas duas conseguiram dominar<br />
o hospedeiro, as demais causaram<br />
danos aos mesmos. O primeiro foi<br />
o comandante Gihxy, mas ele desertou<br />
e quis por si mesmo dominar<br />
os próprios humanos. Ficou<br />
conhecido no planeta como Adolf<br />
Hitler, mas depois da morte do<br />
hospedeiro não há conhecimento<br />
de seu paradeiro. Foi o comandante-médico<br />
Tirz que, conseguindo<br />
dominar seu atual hospedeiro,<br />
desencadeou a retomada, o que<br />
para os humanos ficou denomi-<br />
nado como a cura. Desde o início<br />
da tentativa de invasão, as consciências<br />
habitam a quinta geração<br />
de hospedeiros.<br />
A tropa de dez milhões do Comandante<br />
Hyx, sofreu muito, pois<br />
os hospedeiros foram afetados<br />
por uma desordem progressiva<br />
dos movimentos motores, devido<br />
à disfunção dos neurônios secretores<br />
de dopamina nos gânglios da<br />
base, que controlam e ajustam a<br />
transmissão dos comandos conscientes<br />
vindos do córtex cerebral<br />
Diferente do que se pensava, a adaptação<br />
aos humanos não ocorreu como<br />
nos espécimes que foram recolhidos<br />
anteriormente.<br />
para os músculos do corpo humano.<br />
Não somente os neurônios<br />
dopaminérgicos estão envolvidos,<br />
mas outras estruturas produtoras<br />
de serotonina, noradrenalina<br />
e acetilcolina, estão envolvidos<br />
na falha para o controle do hospedeiro.<br />
Falha de procedimento<br />
conhecida pelos humanos como<br />
Mal de Parkinson<br />
O Comandante R’hux, liderando<br />
uma tropa com trinta e<br />
seis milhões, teve uma perda de<br />
memória e severas perturbações<br />
neurocognitivas em seus hospedeiros.<br />
Parece que existem<br />
agregados de proteína betaamilóide<br />
e emaranhados neurofibrilares,<br />
associados a mutações<br />
e consequente hiperfosforilação<br />
da proteína tau, no interior dos<br />
microtúbulos do citoesqueleto dos<br />
neurônios. Falha de procedimento<br />
conhecida pelos humanos como<br />
Mal de Alzheimer<br />
13<br />
A missão especial do Comandante<br />
Itroz, à frente de uma<br />
tropa com seis milhões, foi a de se<br />
hospedar nos embriões das fêmeas<br />
no momento da concepção, para<br />
desta forma poder ter um conhecimento<br />
completo da existência<br />
dos humanos. Os filhotes nasceram<br />
com palmar transversal única,<br />
dedos curtos, fissuras palpebrais<br />
oblíquas, ponte nasal achatada,<br />
língua protrusa, pescoço curto,<br />
pontos brancos nas íris, flexibilidade<br />
excessiva nas articulações,<br />
defeitos cardíacos<br />
congênitos, espaço<br />
excessivo entre o hálux e<br />
o segundo dedo do pé.<br />
O pior problema nestes<br />
casos foi a deficiência mental e<br />
sérias anomalias afetando aleatoriamente<br />
qualquer sistema corporal.<br />
Outro detalhe é a microcefalia.<br />
A maioria dos casos o problema<br />
se deu devido a não-disjunção<br />
meiótica no gameta materno ou a<br />
não-disjunção no gameta paterno,<br />
ou seja, cada novo ser teve três<br />
cópias de todos os genes presentes<br />
no cromossomo 21. Falha de procedimento<br />
conhecida pelos humanos<br />
como Síndrome de Down<br />
Os cinquenta milhões de<br />
hospedeiros abordados pelo Comandante<br />
Trihr, tiveram alguns<br />
de seus órgãos afetados por uma<br />
anomalia onde uma população<br />
de células crescia e se dividia<br />
sem respeitar os limites normais,<br />
invadindo e destruindo tecidos<br />
adjacentes, em muitos casos se espalhando<br />
para lugares distantes no<br />
corpo, através de metástase. Esta<br />
falha levou à morte quase todos<br />
os hospedeiros. Falha de procedi-
Marcelo Bighetti Invasão Retomada<br />
mento conhecida pelos humanos<br />
como Câncer.<br />
A abordagem do Comandante<br />
Xhos foi diferente. Com sua<br />
tropa de trinta e cinco milhões,<br />
tomaram vírus como hospedeiros,<br />
na esperança que por este meio<br />
pudessem dominar por completo<br />
os hospedeiros humanos. Sem<br />
sucesso. Nesta empreitada, os es-<br />
pécimes tiveram progressivamente<br />
reduzida a eficácia do sistema<br />
imunológico, deixando-os suscetíveis<br />
a infecções oportunistas e<br />
tumores. Falha de procedimento<br />
conhecida pelos humanos como<br />
AIDS.<br />
Relatório sobre situação da<br />
invasão 567P12, terceiro planeta,<br />
exterior do segundo braço da ga-<br />
Relatório em atraso devido<br />
a imprevisibilidade à adaptação.<br />
Primeira fase completada com sucesso.<br />
14<br />
láxia. Comandante Gyhar relatando.<br />
Relatório em atraso devido<br />
a imprevisibilidade à adaptação.<br />
Primeira fase completada com<br />
sucesso. Recomendação: enviar<br />
seis bilhões de consciências para<br />
finalizarmos a invasão.<br />
Fim da transmissão.<br />
Nota do autor:<br />
Há uns dez anos li um conto intitulado “Tentativa de Invasão”. Sei que era uma autora, mas não lembro seu<br />
nome. Provavelmente foi no site do CLFC (Clube de Leitores de Ficção Científica) ou no Somnium, mas<br />
também não tenho certeza. O conto fala de uma tentativa de invasão fracassada, onde todos os hospedeiros<br />
eram os que possuíam síndrome de Down. Nunca me esqueci daquele conto. Assim faço uma homenagem ao<br />
“Tentativa de Invasão”, que me inspirou a escrever “Invasão Retomada”. Quem sabe um dia eu descubra quem<br />
é a autora.
Gerson Lodi-ribeiro, autor carioca de FC e história alternativa. Publicou Alienígenas<br />
Mitológicos e A Ética da Traição na edição brasileira da Asimov’s. Autor das coletâneas<br />
de contos outras Histórias… (1997), o Vampiro de nova Holanda (1998), outros brasis<br />
(2006) e Taikodom: Crônicas (2009). Como editor, organizou as antologias Phantastica<br />
brasiliana (2000) e Como era Gostosa a Minha Alienígena! (2002). Trabalha desde 2004<br />
como consultor da Hoplon infotainment, sendo um dos criadores do universo ficcional<br />
do jogo online Taikodom. na editora draco, publicou Xochiquetzal – uma princesa asteca<br />
entre os incas (2009) e participou da coletânea imaginários v.1 (2009). organizou também<br />
a coletânea steampunk Vaporpunk (2010), também pela draco.<br />
Gerson Lodi-ribeiro, autor carioca de FC e histria alternativa. Publicou Aliengenas Mitolgicos e A tica da<br />
Traio na edio brasileira da Asimov’s. Autor das coletneas de contos outras Histrias (1997), o Vampiro de<br />
nova Holanda (1998), outros brasis (2006) e Taikodom: Crnicas (2009). Como editor, organizou as antologias<br />
Phantastica brasiliana (2000) e Como era Gostosa a Minha Aliengena! (2002). Trabalha desde 2004 como consultor<br />
da Hoplon infotainment, sendo um dos criadores do universo ficcional do jogo online Taikodom. na editora draco,
Gerson Lodi-Ribeiro Todo o Silício do Mundo<br />
Os veículos alienígenas se<br />
aproximam outra vez. No<br />
mergulho picado, a intenção<br />
clara de bombardear o terreno<br />
a meu redor com nova chuva de<br />
microbombas inteligentes.<br />
No último ataque, meu interferidor<br />
pessoal conseguiu<br />
perturbar a programação dos<br />
processadores das bombas. Os<br />
microbólidos passaram em voo<br />
rasante sobre a minha cabeça e se<br />
perderam atrás do horizonte. O<br />
solo estremeceu sob meus pés.<br />
Segundos mais tarde<br />
ouvi os estrondos das<br />
três explosões distantes.<br />
É claro que já me<br />
considero mais uma<br />
baixa desta guerra insensata.<br />
Para minha surpresa, os feixes<br />
laser concentrados erram o alvo,<br />
rasgando duas fendas paralelas<br />
no chão, alguns metros à minha<br />
direita.<br />
Os dois batedores se afastam<br />
em silêncio.<br />
Fito os edifícios distantes,<br />
nebulosos sob o manto translúcido<br />
da poeira; um redemoinho<br />
levantado pelos rasantes das naves<br />
ligeiras.<br />
Tenho certeza absoluta de que<br />
não conseguirei retornar ao nosso<br />
prédio natal.<br />
Examino o panorama desolado<br />
à minha volta.<br />
Nas últimas décadas o planalto<br />
se transformou em deserto. Ainda<br />
me lembro destes solos áridos<br />
como uma grande campina fértil e<br />
verdejante, com árvores esparsas,<br />
memórias de uma época anterior<br />
ao colapso do complexo ocidental.<br />
A parede de areia vitrificada<br />
de uma das fendas abertas pelos<br />
lasers inimigos desmorona, expondo<br />
a carcaça velha de um robô.<br />
Noto que as placas peitorais da armadura<br />
são bastante semelhantes<br />
às minhas. Talvez tenha sido<br />
fabricado no subsolo do nosso<br />
prédio, há vários milênios. Talvez<br />
até mesmo na própria Oficina 7,<br />
local onde despertei pela primeira<br />
vez para a consciência.<br />
*****<br />
Não imaginamos na época que aquela<br />
primeira derrota marcaria o início<br />
da queda de nossa cultura planetária.<br />
Quando as grandes espaçonaves<br />
alienígenas pousaram na<br />
planície litorânea há três séculos,<br />
imaginamos que, como nós, eles<br />
fossem representantes de uma<br />
cultura pacífica.<br />
Apesar do vasto número de<br />
efetivos desembarcados já naquela<br />
primeira leva, sequer cogitamos a<br />
hipótese absurda de uma invasão.<br />
Se os alienígenas eram civilizados<br />
a ponto de construir naves<br />
interestelares, pareceu-nos lógico<br />
admitir que não fossem hostis.<br />
De qualquer modo, uma<br />
suposta hostilidade não despertou<br />
maiores preocupações. Uma<br />
análise preliminar indicou que a<br />
nossa tecnologia era superior a<br />
dos recém-chegados. Imaginamos<br />
que essa superioridade por si só<br />
fosse capaz de garantir a nossa<br />
segurança contra qualquer forma<br />
de ataque.<br />
Depositamos demasiada<br />
confiança nessa superioridade<br />
17<br />
tecnológica inegável.<br />
Jamais imaginamos que, pela<br />
simples quantidade de efetivos,<br />
aquelas hordas intermináveis<br />
de robôs e veículos conscientes<br />
fossem capazes de sobrepujar os<br />
nossos sistemas defensivos sofisticados.<br />
Consideramos nossas<br />
barreiras eletrônicas inexpugnáveis,<br />
pois sabíamos que haviam<br />
sido articuladas pela interligação<br />
temporária das capacidades vastíssimas<br />
de programas-regentes; as<br />
inteligências quase oniscientes<br />
cujos núcleos se distribuíam<br />
por vários<br />
complexos da América do<br />
Sul, e às quais confiamos<br />
há centenas de<br />
milênios os destinos da civilização<br />
e da Terra.<br />
E então, primeiro sob a forma<br />
de boato desencontrado, chegou a<br />
notícia surpreendente. O fato que<br />
fez nossa auto-confiança desmoronar:<br />
não obstante as perdas<br />
pesadíssimas que as nossas forças<br />
infligiram ao inimigo, os invasores<br />
haviam conseguido tomar um<br />
dos prédios do lado ocidental do<br />
Planalto Brasileiro.<br />
Não imaginamos na época que<br />
aquela primeira derrota marcaria<br />
o início da queda de nossa cultura<br />
planetária.<br />
Após o colapso daquele<br />
primeiro baluarte, os alienígenas<br />
desencadearam uma espécie de<br />
reação em cadeia. Absorveram<br />
nossa matriz tecnológica com<br />
rapidez e eficiência surpreendentes.<br />
Adotaram como seus os nossos<br />
princípios, copiando o nosso<br />
estilo de vida, reprogramando os<br />
sistemas de produção dos prédios
Gerson Lodi-Ribeiro Todo o Silício do Mundo<br />
conquistados para fabricar<br />
milhões de novos invasores, todos<br />
imbuídos com o mesmo propósito<br />
incompreensível de pulverizar<br />
nossa civilização imutável há<br />
milênios.<br />
*****<br />
Reduzidos a pontos negros, as<br />
duas naves de ataque desaparecem<br />
no horizonte.<br />
Analiso as informações que<br />
o implante rastreador acaba de<br />
coletar dos destroços do<br />
tanque-anfíbio. Confirmo<br />
ser o único sobrevivente<br />
da nossa força-tarefa.<br />
Surpreendo-me que nessa carcaça<br />
fumegante ainda existam sistemas<br />
operacionais dispostos a conversar<br />
com o meu rastreio automático.<br />
Mas não há tempo para dialogar<br />
com os resquícios do tanque.<br />
Remunicio a bazuca-laser com<br />
uma bateria energética carregada.<br />
Uma arma obsoleta, quase inútil<br />
diante do poder de fogo superior<br />
e da eficiência fria dos sistemas<br />
de direção de tiro instalados nos<br />
batedores alienígenas.<br />
Mas é o que eu disponho.<br />
Não há a mínima esperança.<br />
Eles voltarão. Ao longo desses<br />
séculos de invasão extraterrestre<br />
e resistência orquestrada pelos<br />
programas-regentes, aprendemos,<br />
da maneira mais dolorosa, que<br />
os alienígenas pertencem a uma<br />
estirpe de predadores obstinados<br />
com o propósito de exterminar<br />
toda a vida orgânica da Terra,<br />
como já o haviam feito em dezenas<br />
de planetas de outros sistemas<br />
estelares. À semelhança dos ani-<br />
mais predadores, não costumam<br />
abandonar uma presa ferida no<br />
meio da caçada.<br />
Depois de séculos de conflito<br />
global contra os alienígenas, ainda<br />
não compreendíamos seus motivos.<br />
Por que aquela sanha para<br />
nos eliminar? Em pensar que em<br />
nosso primeiro contato os saudamos<br />
como iguais...<br />
Mais um ou dois minutos,<br />
os batedores regressarão e estará<br />
tudo acabado.<br />
Ajusto a lente ocular direita. A<br />
Mesmo os invasores, originários<br />
de um aglomerado globular distante,<br />
não são orgânicos.<br />
esquerda parou de funcionar desde<br />
que o míssil inimigo explodiu<br />
o nosso tanque. Examino o outro<br />
robô detalhadamente. Talvez se<br />
trate de um guerreiro abatido. O<br />
meu destino dentro em alguns<br />
minutos. Outra baixa, vítima não<br />
da fúria irracional dos invasores<br />
alienígenas, mas dos reveses de<br />
um conflito civil qualquer, uma<br />
guerra interprédios de uma era<br />
longínqua.<br />
Observo o interior de um<br />
capacete rompido bastante semelhante<br />
ao meu. Por baixo da camada<br />
de circuitos para-orgânicos,<br />
não enxergo o plasma de silício<br />
conjugado esperado, mas antes<br />
uma estrutura bastante peculiar.<br />
Uma abóbada semi-esférica<br />
praticamente oca, composta por<br />
substâncias orgânicas complexas à<br />
base de cálcio, carbono e fósforo.<br />
Quem retirou o plasma que<br />
compõe o cérebro robótico?<br />
Consulto a área do banco de<br />
18<br />
memória na qual decidi armazenar<br />
há mais de um século, por<br />
mero capricho, um punhado de<br />
informações sobre paleozoologia.<br />
Uma quantidade imensa de dados<br />
inúteis, extraídos do substrato<br />
mais antigo e menos confiável da<br />
biblioteca do prédio.<br />
Comparo a análise dos resíduos<br />
do robô com o conjunto<br />
de dados arcanos. Chego a uma<br />
conclusão incrível: a abóbada é<br />
constituída por tecido ósseo! Se<br />
não parecesse tão inverossímil,<br />
eu ousaria afirmar que<br />
se trata do crânio de um<br />
animal orgânico... Não<br />
um simples holograma,<br />
mas um fóssil autêntico!<br />
Quem sabe, o crânio não pertenceu<br />
a um ser humano?<br />
A idéia traz à tona um malestar<br />
esquisito. Um crepitar<br />
estranho, como um formigamento<br />
suave mas desagradável nos meus<br />
núcleos de plasma cerebral, algo<br />
que eu nunca senti antes.<br />
Ridículo. Criaturas orgânicas<br />
racionais são o fruto das imaginações<br />
brilhantes, mas mal orientadas,<br />
de uns poucos sábios do<br />
conjunto. Especulações inteligentes,<br />
é verdade, mas sem qualquer<br />
embasamento factual mais sólido<br />
que meia dúzia de lendas préhistóricas.<br />
Mesmo os invasores, originários<br />
de um aglomerado globular<br />
distante, não são orgânicos. Caso<br />
o fossem, jamais conseguiriam<br />
utilizar as linhas de montagem<br />
e as instalações magníficas dos<br />
edifícios para proliferar continente<br />
adentro, como um vírus, capaz de<br />
infectar em pouquíssimo tempo
Gerson Lodi-Ribeiro Todo o Silício do Mundo<br />
todos os programas de um sistema<br />
complexo.<br />
Recupero o autocontrole e me<br />
esforço em observar o objeto à<br />
esquerda do capacete destroçado.<br />
O braço do robô fóssil. A mão<br />
disforme emerge da parede em<br />
declive da fenda desmoronada,<br />
mantendo-se ereta numa posição<br />
grotesca. Possui uma aparência<br />
geral de fragilidade. As pastilhas<br />
antiquadas de microcircuitos<br />
recobrem uma superfície oblonga<br />
e polida, como que construída a<br />
partir de uma rede intrincada de<br />
ossos compridos, muito brancos...<br />
Neste ponto, meus processadores<br />
heurísticos hesitam. O<br />
zumbido de alta freqüência indo<br />
e vindo, num ritmo selvagem, intermitente.<br />
Atordoado, constato o<br />
desarme súbito de vários dos meus<br />
circuitos de amortecimento lógico<br />
mais sensíveis. Pressionados a se<br />
lançar num salto que os obrigaria<br />
a cruzar um precipício irracional<br />
de profundidade insondável, eles<br />
simplesmente se recusam a funcionar.<br />
Inútil sequer cogitar prosseguir<br />
numa tese tão implausível.<br />
Mão humana, constituída pelo<br />
amálgama de ossos e microcircuitos,<br />
cujo envoltório de músculo<br />
e tecidos a erosão biológica dissolveu<br />
há muito.<br />
Carbono e silício, fundidos em<br />
harmonia natural, perfeita...<br />
Não me é mais possível resistir<br />
à tentação. Contrariando as diretivas<br />
transcritas no meu programa<br />
básico pelo regente do prédio,<br />
concentro os meus recursos numa<br />
análise espectroscópica detalhada<br />
dos pontos escuros que salpicam<br />
indistintamente pastilhas de microcircuitos<br />
e tecidos ósseos.<br />
Moléculas orgânicas complexas<br />
contendo átomos de ferro.<br />
Hemoglobina. Uma substância<br />
que, segundo a informação tomada<br />
à biblioteca do prédio, uma vez<br />
imersa num meio fluido adequado,<br />
liga-se facilmente ao oxigênio<br />
molecular, transportando-o aos<br />
tecidos celulares (vivos!) que dele<br />
necessitem.<br />
Os pontos escuros não são<br />
outra coisa senão gotas de sangue<br />
ressecado. Sangue... É o fluido<br />
vital dos humanos! Ao menos, de<br />
acordo com a teoria que afirma<br />
terem sido os mestres lendários<br />
tão orgânicos quanto os animais.<br />
*****<br />
Detecto a presença dos vultos<br />
no horizonte. Pequenas elipses,<br />
brilhando rubras ao sol da tarde,<br />
aumentando rapidamente. As<br />
naves estão prestes a desfechar um<br />
novo ataque.<br />
Observo minha mão. O tra-<br />
Talvez seja tarde demais. Para mim<br />
e para a civilização terrestre.<br />
19<br />
balho perfeito de plástico metalizado,<br />
revestindo as articulações<br />
de aparência delicada de um<br />
endoesqueleto fundido a partir de<br />
uma liga metálica de alta densidade<br />
molecular.<br />
Até agora, era assim que eu<br />
me imaginava por dentro.<br />
Meu conhecimento sobre a<br />
fisiologia robótica, como o dos<br />
outros cidadãos do conjunto, limitava-se<br />
às informações contidas na<br />
biblioteca de fabricação, fornecida<br />
pelo programa-regente.<br />
Jamais houve um motivo forte<br />
o bastante, ou a curiosidade necessária,<br />
para contrariar o veto do<br />
regente ao exame direto das nossas<br />
funções e mecanismos internos.<br />
Se ao menos eu pudesse transmitir<br />
as conclusões desta descoberta<br />
involuntária aos sábios do<br />
prédio... Seriam eles capazes de<br />
utilizar este conhecimento revolucionário<br />
em prol do esforço-deguerra?<br />
Talvez seja tarde demais. Para<br />
mim e para a civilização terrestre.<br />
Observo outra vez o braço<br />
semi-enterrado. Mesmo sem querer,<br />
comparo-o aos meus.<br />
Um pensamento extremamente<br />
inquietante me perturba o<br />
íntimo. Somos todos como essa<br />
carcaça vazia e sepultada sob o<br />
solo arenoso? É assim que nós<br />
robôs somos por dentro?
Gian Danton é roteirista de quadrinhos desde 1989, sendo autor da premiada graphic<br />
novel Manticore. autor da série infantil Mundo Monstro (ed. infinitum). tem participado<br />
de diversas antologias, entre elas Rumo à fantasia (Devir), Espectra, Metamorfose ii<br />
(Literata). atualmente é professor da Universidade Federal do amapá.<br />
twitter: @giandanton.<br />
Gian Danton roteirista De quaDrinhos DesDe 1989, senDo autor Da premiaDa Graphic novel manticore. autor Da<br />
srie infantil munDo monstro (eD. infinitum). tem participaDo De Diversas antoloGias, entre elas rumo fantasia<br />
(Devir), espectra, metamorfose ii (literata). atualmente professor Da universiDaDe feDeral Do amap. twitter: @<br />
GianDanton.
Gian Danton O Grande Besouro<br />
Eu ligo a TV. A moça no<br />
telejornal nos diz para<br />
ficarmos calmos e exibe<br />
seu sorriso cativante. É um sorriso<br />
tão verdadeiro quanto uma<br />
nota de três reais, mas ainda assim<br />
as pessoas acreditam. Ou fingem<br />
acreditar.<br />
Eu olho à minha volta: o retrato<br />
na parede. Amigos de infância.<br />
A água escorrendo de nossos<br />
cabelos, o sol forte banhando a<br />
praia. Os livros na estante, um<br />
deles um presente de uma antiga<br />
namorada, a dedicatória<br />
desaparecendo na página<br />
amarelada. Uma antiga<br />
fotografia de minha mãe,<br />
a cor de seu vestido se esvanecendo.<br />
Um brinquedo antigo guardado<br />
há muitos anos, seu plástico<br />
quebradiço.<br />
Olho para fora, pela janela:<br />
não há bicicletas nas ciclovias,<br />
não há pedestres nas calçadas. Os<br />
ônibus circulam vazios por ruas<br />
desertas. O frio de Curitiba talvez<br />
seja o motivo, mas acho que não.<br />
No fundo, as pessoas sabem.<br />
Embora a moça da TV e seu<br />
sorriso de três reais nos digam<br />
para ficarmos calmos, todos<br />
sabem.<br />
Tudo isso deixará de existir<br />
em breve. Em breve sobrará<br />
apenas a memória deste mundo,<br />
nada mais. Talvez nem mesmo<br />
a memória. Talvez a história nos<br />
varra da face da Terra a ponto<br />
de jamais desconfiarem que aqui<br />
estivemos.<br />
E, no entanto, eu fui avisado,<br />
embora tenha me recusado a dar<br />
ouvidos.<br />
Isso foi há quantos meses?<br />
Dois? Três?<br />
Na época eu precisava viajar<br />
toda semana para São Paulo e passava<br />
muito tempo na rodoviária.<br />
Gostava de chegar adiantado,<br />
comprar a passagem e sentar em<br />
uma das cadeiras para ler um<br />
livro. Era uma espécie de ritual<br />
ao qual eu me apegava semanalmente.<br />
Gostava de locais isolados e<br />
costumava me levantar quando<br />
outras pessoas sentavam por<br />
perto. Assim, quase o fiz quando<br />
Tudo isso deixará de existir em<br />
breve. Em breve sobrará apenas a<br />
memória deste mundo...<br />
percebi que alguém ocupava o<br />
banco ao meu lado. Era um mendigo<br />
e o mau-cheiro exalava dele<br />
forte e insistentemente. Usava um<br />
amontoado de roupas, algumas de<br />
verão, outras de inverno, de forma<br />
totalmente caótica: camiseta sobre<br />
jaqueta, blusa de lã sobre camiseta.<br />
Ao redor do pescoço, um cachecol<br />
colorido quase tornado preto pela<br />
sujeira. Ele abriu a boca, sorrindo,<br />
e de seus dentes podres escapou<br />
um bafo pestilento, que me fez<br />
virar a cabeça.<br />
Tentei levantar, mas ele me<br />
segurou pelo braço:<br />
— Você precisa ouvir! Por que<br />
ninguém me ouve?<br />
Ele me olhou nos olhos e percebi<br />
que não me largaria. Eu teria<br />
que me sentar e ouvi-lo. Quando<br />
fiz isso, ele largou o meu braço e<br />
tossiu:<br />
— Ninguém me ouve. Eu sei<br />
porque ninguém me ouve. Eles<br />
manipulam as pessoas. Todos<br />
22<br />
estão sendo manipulados. Eu sou<br />
o único a perceber isso. É por isso<br />
que estou assim. Foi por isso que<br />
eles me fizeram perder o emprego,<br />
a esposa...<br />
Ele tossiu e sorriu dentes estragados<br />
e carne podre.<br />
— Nem sempre eu fui assim,<br />
moço. Nem sempre eu fui<br />
um mendigo fedido. Eu era uma<br />
pessoa normal... até descobrir a<br />
verdade... Ouça, estamos sendo<br />
invadidos. Eles estão nos preparando<br />
para a vinda do grande<br />
besouro. O grande besouro,<br />
ouviu? Estão usando aquilo<br />
ali.<br />
O mendigo apontou<br />
um dedo sujo para a televisão<br />
na lanchonete da rodoviária. Lá<br />
dentro, a imagem de uma mulher<br />
tremia em tubos catódicos.<br />
— Eles estão nos preparando,<br />
nos transformando em carneirinhos<br />
que seguem para o abate<br />
sem perguntar para onde estão<br />
indo. Eles fazem isso em todos os<br />
planetas-alvo. Depois invadem e<br />
retiram tudo que há de valioso no<br />
planeta. Os habitantes locais são<br />
transformados em escravos e colocados<br />
para trabalhar até a morte.<br />
São como gafanhotos. Por onde<br />
passam, destroem tudo. Depois<br />
deles, o caos. Não me pergunte<br />
como eu sei isso. Eu simplesmente<br />
sei. Um dia acordei e descobri o<br />
plano deles... e começou a minha<br />
ruína. Agora vivo assim. Eles enviam<br />
raios para me provocar dor de<br />
cabeça, fazem com que minha pele<br />
coce... querem me torturar, mas<br />
logo irão me matar. Escreva o que<br />
estou falando, eles vão me matar.<br />
De um jeito ou de outro, vão me
Gian Danton O Grande Besouro<br />
matar. E ninguém vai saber o que<br />
está acontecendo. Oh, meu Deus,<br />
que coceira...<br />
Ele colocou a mão sob a roupa<br />
e começou a se coçar. Fez isso e<br />
levantou, para meu alívio. Parecia<br />
ter esquecido de mim. Eu o<br />
acompanhei com o olhar, temendo<br />
que ele voltasse, mas não fez isso.<br />
Continuou caminhando na direção<br />
da saída, preocupado apenas<br />
em coçar-se.<br />
Mal colocou os pés na rua, foi<br />
atropelado por um carro. Com<br />
o impacto, seu corpo pulou para<br />
cima do capô. O motorista parou<br />
e saiu do veículo, preocupado,<br />
mas já não havia muito o que<br />
fazer. O pobre coitado estava caído<br />
no chão, morto, as mãos sobre o<br />
corpo como se quisessem ainda<br />
coçar até o último suspiro.<br />
Na época considerei que o<br />
mendigo era um louco, mas não<br />
demorou muito para que suas palavras<br />
fizessem sentido. Eles estão<br />
O pobre coitado estava caído<br />
no chão, morto, as mãos sobre o corpo<br />
como se quisessem ainda coçar<br />
até o último suspiro.<br />
23<br />
entre nós e a moça da televisão<br />
nos olha com seu olhar tranquilizador.<br />
Eu vou até a janela e olho para<br />
cima. A nave é imensa a ponto de<br />
colocar a maior parte de Curitiba<br />
sob a sombra. Dizem que há uma<br />
dessas sobre cada uma das grandes<br />
cidades do país.<br />
Eu a observo e um calafrio<br />
percorre a minha espinha: ela tem<br />
o formato de um besouro!
Renato a. azevedo é autor de de Roswell a varginha (tarja editorial, 2008); autor de<br />
Filhas das estrelas (editora estronho, 2011). Consultor da revista UFo (www.ufo.com.br).<br />
Coeditor do site aumanack (www.aumanack.com). autor convidado nas antologias Ufo:<br />
Contos não Identificados (editora Literata), e extraneus vol. 1 - Medieval Sci-Fi (estronho/<br />
Literata). Participante das antologias Histórias Fantásticas vol. 1 (estronho/Cidadela),<br />
Imaginários 4 (draco), e a Fantástica Literatura Queer (tarja editorial).<br />
Blog escritor com R: http://escritorcomr.blog.uol.com.br.<br />
e-mail: escritorcomr@uol.com.br.<br />
Suas obras poderão ser encontradas nos links:<br />
http://migre.me/9fod1,<br />
http://migre.me/9fodu,<br />
http://migre.me/9fodo,<br />
http://migre.me/9foeg.<br />
Renato a. azevedo autor de de Roswell a arginha (tarja editorial, 2008; autor de Filhas das estrelas editora<br />
estronho, 2011. Consultor da revista UFo www.ufo.com.br. Coeditor do site aumanack www.aumanack.com. autor convidado<br />
nas antologias Ufo: Contos no Identificados editora Literata e extraneus vol. 1 - Medieval Sci-Fi estronho/<br />
Literata. Participante das antologias Histrias Fantsticas ol. 1 estronho/Cidadela, Imaginrios 4 draco, e a
Renato A. Azevedo O Dia em que Eles Cansaram de Esperar<br />
Aconteceu de repente, como<br />
nos filmes, sem aviso.<br />
Na verdade, tivemos<br />
avisos. Subitamente todos os jornais,<br />
telejornais, rádio e Internet<br />
deram a notícia de que a comunidade<br />
astronômica havia descoberto<br />
um objeto vindo na direção do<br />
sistema solar interior.<br />
Os cientistas inicialmente<br />
disseram que o asteróide, ou o<br />
que pensavam ser um, não rumava<br />
para a Terra. Mostraram-se<br />
surpresos somente com o fato de o<br />
corpo ser bastante reflexivo,<br />
o que dividiu a comunidade.<br />
Parte achava<br />
que era um asteróide<br />
composto em sua maior parte em<br />
metal, e outros pelo contrário diziam<br />
se tratar de um cometa. Aos<br />
que diziam que não apresentava<br />
cauda, e se movia rápido demais,<br />
afirmavam que era “alarmismo”.<br />
Mas a coisa manobrou e<br />
veio diretamente para a Terra.<br />
Aumentando a velocidade, em<br />
questão de dois dias parou, a<br />
15.000 quilômetros da Terra. E<br />
não era um asteróide.<br />
Tratava-se de um cilindro,<br />
produzido com algum composto<br />
metálico que brilhava ao Sol.<br />
Quando estava sob a sombra da<br />
Terra era possível ver milhares de<br />
pontos luminosos em sua superfície.<br />
Janelas, algo que um asteróide<br />
não possui.<br />
E o objeto tinha mais de 4<br />
quilômetros de comprimento, por<br />
quase um de diâmetro. O mundo<br />
inteiro ficou em suspense, apavorado<br />
e em expectativa. Bolsas<br />
caíram, pessoas de índole fraca se<br />
suicidaram, malucos disseram que<br />
o fim do mundo havia chegado...<br />
Vinte objetos menores, cada<br />
um com mais de 300 metros de<br />
diâmetro e formato de disco,<br />
saíram do maior. E dirigiram-se<br />
para 20 cidades bem específicas.<br />
As capitais do G-20, o grupo de<br />
vinte países mais ricos do mundo.<br />
As bolsas não haviam caído.<br />
Elas despencaram desde o dia em<br />
que aquela nave-mãe gigantesca<br />
mudara de direção e viera direto<br />
para nós. A economia mundial<br />
entrara em colapso apenas porque<br />
As imagens, na absoluta maioria<br />
dos televisores da Terra, finalmente<br />
exibiram os visitantes.<br />
uns alienígenas estacionaram<br />
perto da Terra. E agora, quando<br />
suas naves menores desciam para<br />
as capitais mais importantes do<br />
mundo, o número dos bilhões<br />
de dólares perdidos na crise só<br />
crescia.<br />
Tudo transcorreu sem raios da<br />
morte, destruição em larga escala,<br />
interrupção de sistemas de energia<br />
ou comunicações, nada disso com<br />
que Hollywood enche seus filmes<br />
de invasão. Certos documentários<br />
dos canais especializados também<br />
vinham explorando essa vertente,<br />
mas todos mostraram-se completamente<br />
equivocados.<br />
É evidente que alguns países<br />
enviaram seus caças, mas estes se<br />
limitaram a escoltar os colossos.<br />
Nada havia a ser feito diante de<br />
objetos voadores sobre os quais se<br />
poderia estacionar dois ou três dos<br />
maiores porta-aviões do mundo,<br />
e sempre tendo em vista a aterradora<br />
imagem da imensa nave-mãe<br />
26<br />
a vista de todos.<br />
Mas a ditadura da Coréia<br />
do Norte pensou diferente. Seu<br />
regime psicopata lançou dois mísseis<br />
com ogivas nucleares contra<br />
Seul, onde uma das naves estava<br />
estacionada. Os alienígenas por<br />
sua vez enviaram naves menores<br />
ainda, também com formato de<br />
disco e medindo cerca de vinte<br />
metros de diâmetro, e que desintegraram<br />
os mísseis. A seguir,<br />
todas as bases militares da Coréia<br />
do Norte, bem como os palácios<br />
da classe dirigente, foram<br />
dizimados e reduzidos<br />
a pó pelas armas dos<br />
ETs. A seguir, as naves<br />
começaram a transmitir, e a primeira<br />
imagem foi justamente de<br />
uma teleconferência de emergência,<br />
reunindo militares chineses e<br />
norte-coreanos.<br />
Resumidamente, os chineses<br />
haviam ordenado que seu regime<br />
fantoche atacasse Seul, a fim de<br />
averiguar a reação alienígena. Finda<br />
a transmissão da mensagem, os<br />
alienígenas penetraram o espaço<br />
aéreo chinês nas proximidades da<br />
fronteira com a Coréia do Norte,<br />
e igualmente destruíram as bases<br />
militares mais próximas. Somente<br />
estas, e as razões ficaram claras no<br />
primeiro comunicado deles.<br />
As imagens, na absoluta<br />
maioria dos televisores da Terra,<br />
finalmente exibiram os visitantes.<br />
Eram representantes de várias<br />
raças, a saber: um alienígena do<br />
tipo gray, ou cinza, um que exibia<br />
uma semelhança assustadora com<br />
os humanos, outro também de<br />
aparência humana, mas que pelas<br />
imagens era um gigante de mais
Renato A. Azevedo O Dia em que Eles Cansaram de Esperar<br />
de três metros de altura, e um<br />
reptiliano com pele coberta de escamas.<br />
E foi o humano que falou,<br />
suas palavras sendo traduzidas<br />
para as línguas de todo o grupo<br />
G-20:<br />
— Povo da Terra, em primeiro<br />
lugar, a partir de agora todo país<br />
que tentar uma agressão contra<br />
outro terá suas forças armadas e<br />
governo aniquilados por nossas<br />
forças. A conspiração que revelamos<br />
dos oficiais chineses com os<br />
da Coréia do Norte é uma amostra<br />
do que lamentavelmente<br />
temos acompanhado ao<br />
longo da história da<br />
Terra. Como não desejamos<br />
a desestabilização<br />
da China, somente suas forças<br />
nas proximidades da península<br />
coreana foram destruídas. Entretanto,<br />
no caso de novas tentativas<br />
de nos atingir, não teremos<br />
qualquer hesitação. Estivemos<br />
observando seu planeta, e apesar<br />
de avanços notáveis nas últimas<br />
décadas, percebemos que vocês<br />
prosseguem se explorando e<br />
matando continuamente. Líderes<br />
buscam se manter no poder insuflando<br />
o ódio e a desavença entre<br />
seu próprio povo, políticos fazem<br />
promessas que nunca são cumpridas<br />
e se preocupam somente com<br />
poder e lucro. Os ricos se tornam<br />
mais ricos, vivendo vidas vazias de<br />
ostentação e futilidade. Enquanto<br />
isso, em vastas regiões da Terra,<br />
seres humanos morrem de fome<br />
ou padecem na miséria. Vastos<br />
contingentes de suas populações<br />
são mantidos, como disse certo<br />
personagem de sua história, a pão<br />
e circo. Apesar de observarmos<br />
aqui e ali grupos que se guiam<br />
por elevados valores, de busca<br />
e divulgação do conhecimento,<br />
de criação artística e liderando<br />
iniciativas altruístas para auxiliar<br />
seus semelhantes, a vasta maioria<br />
permanece inerte, ignorante<br />
e acomodada, como gado sob a<br />
guarda de uma minúscula elite<br />
que detém o conhecimento mais<br />
valioso, o que inclui as provas de<br />
nossa existência.<br />
O alienígena humano prosseguiu:<br />
Mas os resultados se mostraram<br />
insatisfatórios devido a sua lentidão,<br />
e começamos a nos impacientar.<br />
— Entretanto, as pessoas<br />
esclarecidas deste planeta foram<br />
impotentes para combater a maré<br />
da mediocridade que toma conta<br />
da sociedade. Mesmo que, inconformados<br />
com suas desastrosas<br />
ações que se repetiam nos últimos<br />
anos, tenhamos nos afastado,<br />
continuávamos com nossas sondas<br />
captando e retransmitindo suas<br />
transmissões. E o que víamos era<br />
mais violência, mais futilidade,<br />
mais incentivo a mediocridade.<br />
Houve projetos, é verdade, como<br />
o levado a cabo pelo povo irmão<br />
dos cinzas. Eles realizavam o<br />
que vocês passaram a chamar de<br />
abduções, realizando modificações<br />
genéticas nos escolhidos a fim de<br />
que transmitissem características<br />
desejáveis, como maior intelecto<br />
e capacidades cerebrais, a seus<br />
descendentes. Mas os resultados se<br />
mostraram insatisfatórios devido<br />
a sua lentidão, e começamos a<br />
nos impacientar. Vocês nunca<br />
27<br />
estiveram sozinhos no Universo,<br />
mas saibam que planetas como a<br />
Terra, este paraíso que habitam e<br />
ao qual dão tão pouco valor, não<br />
são encontrados com tanta facilidade<br />
assim. É bem verdade que,<br />
a depender de muitos de nós, da<br />
comunidade dos mundos habitados,<br />
permaneceríamos ignorando<br />
vocês, até que decidissem parar<br />
de se comportar como crianças<br />
estúpidas, ou que se destruíssem.<br />
Não demoraria muito, e a Terra<br />
voltaria a ser um paraíso, quem<br />
sabe para proveito de outras<br />
espécies necessitadas.<br />
Mas decidimos aqui vir<br />
em nome daqueles que<br />
já se encontram prontos<br />
para um convívio com outras espécies.<br />
Quem não estiver pronto,<br />
que trate de se adaptar. Não mais<br />
permitiremos que desperdicem<br />
este planeta.<br />
Embaixadores das quatro raças<br />
foram despachados para conversar<br />
com todos os países, menos<br />
com a China como punição de<br />
suas ações. É evidente que cada<br />
nação tentava obter vantagens,<br />
mas logo se tornou claro que isso<br />
seria impossível. Os visitantes não<br />
intervinham diretamente na vida<br />
das pessoas, mas somente quando<br />
grupos procuravam impedir seus<br />
planos. O debate sobre a soberania<br />
da humanidade sobre a Terra era<br />
simplesmente ignorado. Thorrahn,<br />
o gigante que era embaixador<br />
annunaki para o Brasil, comentou<br />
a respeito na primeira coletiva de<br />
imprensa:<br />
— No dizer de seus jovens,<br />
está me gozando? Vejam o que<br />
vocês fizeram com sua “sobera
Renato A. Azevedo O Dia em que Eles Cansaram de Esperar<br />
nia”! Agora mesmo em seu país<br />
se trava um debate sobre a conservação<br />
das florestas e recursos<br />
naturais. Em nome disso, grupos<br />
organizados defendem políticas<br />
que simplesmente jogarão milhares<br />
de pessoas na miséria. Vocês<br />
terráqueos são assim, também<br />
usando suas expressões, “ou oito<br />
ou oitenta”. Nunca buscam o<br />
equilíbrio, sempre radicalizam<br />
tudo, e tentam calar a divergência!<br />
— Embaixador, muitos estão<br />
divergindo a respeito de sua<br />
presença aqui — comentou<br />
um dos jornalistas.<br />
— Apesar de suas<br />
palavras, o fato é que<br />
os senhores estão<br />
interferindo com o natural desenvolvimento<br />
da raça humana.<br />
— Prefere mesmo o “natural<br />
desenvolvimento” que havia antes,<br />
e que os levaria a extinção lenta<br />
após muito sofrimento?<br />
Não houve réplica do repórter.<br />
Contudo, uma das pessoas presentes<br />
era a senadora Mariana da<br />
Silva, conhecida justamente por<br />
sua defesa do meio ambiente. Ela<br />
se aproximou da mesa onde os<br />
alienígenas se perfilavam, pedindo<br />
a palavra, mas assim que parou diante<br />
deles, virou-se para a audiência<br />
e abriu o casaco. Abaixo, havia<br />
uma bomba em um cinturão,<br />
ligada a um controle em sua mão.<br />
Ela disse:<br />
— Não podemos permitir<br />
que corpos estranhos maculem<br />
a Terra! O dever de protegê-la é<br />
nosso, e devemos...<br />
— Senadora, a senhora está<br />
fora de si — disse o embaixador<br />
gray, Zetahn. — Se puder<br />
se acalmar, podemos conversar<br />
racionalmente a respeito.<br />
— Não me curvo a invasores,<br />
e o povo brasileiro também não!<br />
O que faço, faço em nome de sua<br />
liberdade, e da defesa do verde! —<br />
gritou ela, acionando o comando<br />
enquanto todos gritavam.<br />
A explosão aconteceu. Mas<br />
ninguém mais se feriu, nem houve<br />
o menor dano, pois Zetahn conteve<br />
a detonação com seus poderes<br />
psicocinéticos em uma esfera de<br />
dois metros de diâmetro. Quando<br />
... a ciência que os visitantes<br />
lentamente apresentavam aos terráqueos<br />
resultava em uma revolução tecnológica...<br />
o fogo desapareceu e a fumaça<br />
clareou, ele levou a esfera para o<br />
lado de fora e interrompeu suas<br />
energias mentais. Logo as imagens<br />
corriam o mundo, enquanto o<br />
gray voltava a mesa e dizia:<br />
— São por atitudes como esta<br />
que estamos aqui. Em nome das<br />
pessoas que não concordam mais<br />
com dogmas, restrições ao debate<br />
racional e incentivo a mediocridade.<br />
Estamos aqui para ensinar, e<br />
trabalhar com vocês para que possam<br />
evoluir e se juntar a nós como<br />
iguais, como os irmãos que somos.<br />
A única arma efetivamente<br />
utilizada pelos alienígenas acabou<br />
sendo as gravações que possuíam,<br />
obtidas de nossos próprios<br />
sistemas de comunicação. Não se<br />
incomodaram com protestos de<br />
invasão de privacidade e assemelhados,<br />
e assim ficaram disponíveis<br />
para quem quisesse ouvir<br />
e ler a intimidade dos poderosos.<br />
Mais de um deputado, senador,<br />
28<br />
ou congressista cassado por corrupção<br />
e desde então consultor de<br />
empresas privadas tiveram suas<br />
ligações perigosas e constrangedoras<br />
reveladas.<br />
O Senado brasileiro aprovou<br />
um decreto legislativo que ordenava<br />
que a presidente declarasse<br />
guerra aos alienígenas, usando<br />
contra eles toda a capacidade<br />
de nossas forças armadas. Não<br />
somente a presidente ignorou<br />
solenemente a exigência, como os<br />
próprios militares, conscientes da<br />
infinita superioridade dos<br />
visitantes, afirmaram<br />
que se manteriam<br />
concentrados<br />
em defender nossas<br />
fronteiras contra inimigos externos.<br />
“Não há o que fazer a respeito,<br />
vejam o exemplo da Coréia<br />
do Norte, ou vocês querem passar<br />
um atestado de imbecilidade?”,<br />
perguntou um general do Alto<br />
Comando.<br />
A maior parte da humanidade<br />
pareceu entender a mesma<br />
mensagem, com as exceções de<br />
praxe dos fanáticos de sempre. No<br />
Oriente Médio, grupos terroristas<br />
foram caçados e aniquilados antes<br />
que pudessem reagir. O governo<br />
israelense engoliu a advertência<br />
de que suas forças seriam exterminadas<br />
caso as colocassem em<br />
ação sem provocação, e elogiou a<br />
iniciativa alienígena de varrer com<br />
suas armas uma imensa concentração<br />
de um conhecido grupo<br />
armado libanês, matando inclusive<br />
seu líder, um sheik que anos antes<br />
enviara o próprio filho para se<br />
explodir em um atentado.<br />
Em poucos meses a econo-
Renato A. Azevedo O Dia em que Eles Cansaram de Esperar<br />
mia começava uma recuperação,<br />
a ciência que os visitantes lentamente<br />
apresentavam aos terráqueos<br />
resultava em uma revolução<br />
tecnológica, e as poucas vozes<br />
dissonantes que reclamavam pelo<br />
perdido livre arbítrio falavam mais<br />
e mais somente ao vento.<br />
Quem produzia cultura<br />
buscando a excelência perdia o<br />
medo, e as vozes contra os medíocres<br />
privilegiados aumentavam<br />
de tom. Os anteriormente donos<br />
da audiência em todas as artes<br />
tinham seu monopólio<br />
desafiado, e a ciência<br />
apresentada pelos<br />
alienígenas levou a<br />
uma busca de conhecimento<br />
que apesar dos protestos dos<br />
que preferiam a mediocridade<br />
começava a deixar para trás o deplorável<br />
“cheguei lá sem estudo”.<br />
Porém, uma série de atentados<br />
ao redor do mundo comprovou<br />
que a paz, mesmo forçada, continuaria<br />
a ser desafiada. Os visitantes<br />
não tinham qualquer ilusão<br />
de que conseguiriam em pouco<br />
tempo mudar a cultura da violência<br />
de alguns. Mensagens dos conspiradores<br />
passaram a correr de<br />
mão em mão, e guerrilhas patrocinadas<br />
pelos insatisfeitos, políticos<br />
e banqueiros corruptos, líderes<br />
religiosos fanáticos, celebridades<br />
medíocres, ativistas radicais e<br />
nações párias se espalharam por<br />
todos os países.<br />
Forças legalistas da Terra<br />
se uniram aos alienígenas para<br />
contra-atacar, mas apesar dos<br />
benefícios inegáveis a quem desejava<br />
viver em paz e bem longe<br />
da ignorância e mediocridade, a<br />
batalha se configurava bem longa,<br />
suja e inglória.<br />
— Qual é, Zanin, já sabemos<br />
de tudo isso!<br />
José Ribamar Neto, líder da<br />
resistência aos ETs no sudeste<br />
brasileiro, olhou desconfiado<br />
para René Zanin. Este, antes da<br />
invasão, era um dos mais conhecidos<br />
ufólogos do país, e terminava<br />
de apresentar um resumo do que<br />
haviam sido os últimos três anos<br />
da humanidade sob o jugo extraterrestre.<br />
Porém, uma série de atentados ao<br />
redor do mundo comprovou que a paz...<br />
continuaria a ser desafiada.<br />
— É que gostaria, caro Neto,<br />
— respondeu René com um sorriso<br />
irônico — de deixar bem claro<br />
contra o quê você e seus combatentes<br />
estão se insurgindo. Não<br />
se trata mais de bradar contra o<br />
Código Florestal (parecendo crer<br />
que comida nascia nas gôndolas<br />
dos supermercados, aliás), a favor<br />
dos direitos de minorias, contra o<br />
capitalismo ou a favor do consumo<br />
de alguma porcaria que vocês<br />
gostam de fumar, cheirar ou enfiar<br />
onde queiram.<br />
Olhou para as pessoas que<br />
acompanhavam cada palavra sua,<br />
reconhecendo integrantes de cada<br />
um dos grupos cujas reivindicações<br />
descrevera, e prosseguiu:<br />
— Pessoal, a Coréia do Norte<br />
acabou! Tinham um exército<br />
monstro, armas nucleares, um<br />
corpo dirigente muito bem encastelado...<br />
PUF! Bastaram algumas<br />
naves alienígenas de pequeno<br />
porte, e aquele país foi mandado<br />
29<br />
para o lixo da História! Os países<br />
vizinhos estão ajudando sua população,<br />
agora. Cuba? Virou pária até<br />
o povo se revoltar, o regime usar<br />
de violência, e os extras fazerem a<br />
mesma coisa. A China, que segundo<br />
analistas seria a potência<br />
deste século, está acuada! Todo dia<br />
alguma alta autoridade extraterrestre<br />
dá declarações de que, já<br />
que eles são signatários da Carta<br />
de Direitos Humanos das Nações<br />
Unidas, precisam cumpri-la. O<br />
que, aliás, tem deixado até países<br />
como Estados Unidos e<br />
Brasil com a pulga atrás<br />
da orelha!<br />
— A Mariana<br />
morreu para nos avisar contra<br />
esses invasores! A Terra é nossa,<br />
não deles! — berrou uma moça<br />
jovem no meio da plateia. O grupo<br />
em que estava usava grandes crucifixos<br />
no peito.<br />
— E o que você quer que<br />
façamos, querida? — perguntou<br />
René. — Vocês têm armas aqui,<br />
muito bem. E os ETs têm campos<br />
de força, e armas que fazem as<br />
suas parecer estilingues.<br />
René parou um pouco, encarando<br />
a moça. Aproximou-se dela,<br />
abrindo espaço entre os presentes,<br />
e olhando fundo em seus olhos,<br />
disse:<br />
— Vocês não leem? As pesquisas<br />
de opinião dizem que a<br />
maioria reconhece que os extraterrestres<br />
interferem, mas ao<br />
mesmo tempo estão contentes<br />
pela violência diminuindo, a<br />
prisão de corruptos, os medíocres<br />
desaparecendo... No fim, pode ser<br />
que eles tivessem mesmo razão:<br />
não tínhamos maturidade para
Renato A. Azevedo O Dia em que Eles Cansaram de Esperar<br />
explorar devidamente nossa liberdade.<br />
— Zanin, de que lado você<br />
está, afinal? — perguntou Neto. —<br />
Da humanidade, ou deles? Nossa<br />
luta tem sido difícil, claro que<br />
reconhecemos isso. Os malditos<br />
sempre parecem estar um passo a<br />
frente, principalmente desde que<br />
matamos alguns de sua laia no<br />
atentado na Avenida Paulista no<br />
mês passado.<br />
— Ah, foram vocês? — René<br />
se virou e voltou a encarar Neto.<br />
— Tenho que dizer, aquilo<br />
foi um feito e tanto. E com<br />
toda a segurança deles,<br />
parabéns a vocês. Mas<br />
claro, a caçada contra<br />
vocês só aumentou.<br />
— Se lamenta isso, por que<br />
está aqui conosco, René? Eu te<br />
conheço faz tempo, trocamos<br />
e-mails na época da abertura dos<br />
documentos ufológicos do governo,<br />
e sempre achei que não concordava<br />
com esses invasores.<br />
— E não concordo. Mas<br />
minha maior discordância é contra<br />
vocês e seus métodos. Pessoas<br />
inocentes morrem, como aconteceu<br />
na Paulista, aliás.<br />
— Colaboracionistas não<br />
merecem piedade. — disse Neto,<br />
reforçando o coro de seus comandados.<br />
René voltou a se aproximar<br />
da jovem, enquanto respondia ao<br />
líder da milícia:<br />
— Imagino que exista um lado<br />
de vingança pessoal, afinal seu pai<br />
foi um dos primeiros políticos a<br />
cair depois das revelações deles.<br />
— Pode apostar que sim! —<br />
rosnou Neto. — Agora diga o que<br />
quer, e suma!<br />
— Quero que passem a atuar<br />
com mais inteligência. Se a população<br />
está feliz, combater os aliens<br />
precisa ser feito com racionalidade,<br />
não força.<br />
O coro que se seguiu, “a Terra<br />
é nossa”, “fora invasores”, “Terra<br />
para os terráqueos”, e “morte aos<br />
ETs”, era resposta suficiente, mas<br />
Neto reforçou:<br />
— Você falou tanto de ouvir o<br />
povo, e eu tenho que seguir o meu.<br />
— Lamento que seja assim –<br />
respondeu René. — E lamento<br />
Alguns membros da milícia se<br />
renderam de imediato, e entre estes<br />
houve aqueles que foram baleados...<br />
que foram burros o suficiente para<br />
descobrir que eu trazia um celular<br />
ligado.<br />
Subitamente, dezenas de<br />
alienígenas fortemente armados, a<br />
maioria sendo os temíveis<br />
annunaki de três metros de altura,<br />
surgiram do nada e cercaram o<br />
grupo. René estendeu a mão para<br />
a moça e disse:<br />
— Venha comigo se quiser<br />
viver, Maria.<br />
— Como sabe meu nome?<br />
Um gray teleportou-se para o<br />
lado de René, envolvendo ele e a<br />
moça em um campo de força. Alguns<br />
membros da milícia se renderam<br />
de imediato, e entre estes<br />
houve aqueles que foram baleados<br />
pelos próprios companheiros,<br />
aos gritos de “traidor”. Boa parte,<br />
incluindo o próprio Neto, empunharam<br />
suas armas e resistiram<br />
enquanto puderam. Destes foram<br />
poucos os sobreviventes.<br />
A repercussão do ocorrido na<br />
30<br />
imprensa foi grande, mas o nome<br />
de René Zanin não apareceu.<br />
Colaborador de primeira hora<br />
dos alienígenas lamentava pelas<br />
mortes, e disse isso a Mahlq, o<br />
alienígena cinza que o ajudara:<br />
— Você ouviu, tentei chamálos<br />
a razão.<br />
— Contra o fanatismo há pouco<br />
o que se possa fazer. Mesmo<br />
nós por vezes somos impotentes,<br />
como você bem sabe.<br />
— Poderiam limitar o uso de<br />
força letal.<br />
— Sabe como são esses<br />
gigantes, sempre belicosos.<br />
Por cima, lembro de você,<br />
René, em outras ações<br />
semelhantes, recomendar<br />
precisamente o uso de força<br />
letal, após a apresentação de uma<br />
chance de se renderem.<br />
— Talvez eu tenha mudado,<br />
Mahlq. Até outra hora, preciso<br />
descansar.<br />
— E a moça?<br />
René se virou para Maria, sentada<br />
em uma calçada próxima. A<br />
base da milícia era em um bairro<br />
da periferia tomado por prédios<br />
desgastados pelo tempo. Voltou-se<br />
para o gray, e respondeu:<br />
— Ela é nova, merece uma<br />
chance.<br />
Mahlq consentiu, e foi reunirse<br />
com os companheiros. René<br />
pegou a mão de Maria, que era<br />
morena e tinha olhos castanhos<br />
profundos e tristes, e a levou até<br />
seu carro. Entraram, e ele dirigiu<br />
através da cidade.<br />
— Você não respondeu, como<br />
sabe meu nome?<br />
— Você escuta vozes, não é,<br />
Maria? Vozes em sua cabeça?
Renato A. Azevedo O Dia em que Eles Cansaram de Esperar<br />
Ela olhou para ele estupefata.<br />
Zanin prosseguiu:<br />
— Seus pais deviam contar<br />
histórias de luzes e visitas noturnas...<br />
sim, Maria, tal qual meus<br />
pais, os seus também foram abduzidos,<br />
e o resultado somos nós,<br />
seres humanos mais evoluídos e<br />
com capacidades especiais.<br />
A moça ficou trêmula, e<br />
começou a fazer perguntas uma<br />
após a outra. René simplesmente<br />
disse que logo seriam respondidas.<br />
Depois de uma hora chegou a<br />
um bairro simples da zona sul de<br />
São Paulo, e parou diante de uma<br />
casa onde os dois entraram. Zanin<br />
trancou a porta e eles prosseguiram<br />
por um corredor, depois<br />
entraram por outra porta que deu<br />
acesso a uma escada.<br />
Eles desceram, chegando a um<br />
porão fracamente iluminado, onde<br />
ao menos outras quinze pessoas<br />
estavam reunidas. Maria sentiu as<br />
vozes em sua cabeça, e soube na<br />
hora que todos ali eram também o<br />
resultado das experiências alienígenas.<br />
— Sim, Maria, todos somos<br />
iguais, produto dos ETs.<br />
— E para quê esta reunião?<br />
Por que me trouxe aqui?<br />
— Porque somos nós a verda-<br />
Eles desceram, chegando a um<br />
porão fracamente iluminado, onde<br />
ao menos outras quinze pessoas<br />
estavam reunidas.<br />
31<br />
deira resistência contra os invasores<br />
— respondeu uma outra voz<br />
a suas costas. Maria virou-se, e<br />
deu com a imagem de uma bela<br />
moça ruiva que não vira antes e se<br />
apresentou como Diana. Parecia<br />
um fantasma, e quando olhou ao<br />
redor, reparou que havia outros,<br />
muitos outros, e que o porão havia<br />
sumido.<br />
Unidos telepaticamente, eles<br />
se revelaram. Centenas de milhares<br />
por todo o mundo.<br />
— A verdadeira resistência<br />
começa agora — disse René.
ArionAuro dA SilvA SAntoS, cartunista e ilustrador, conhecido como “vampiro” por<br />
sua forte atração pelo “Humor negro”, com bastante sangue. Começou sua carreira em<br />
1986, e já publicou cartuns, charges, quadrinhos, ilustrações e passatempos em diversos<br />
meios de comunicação. Editou e participou de vários livros de humor. Foi premiado em<br />
diversos salões de humor, nacionais e internacionais, dentre os quais, X Salão Carioca de<br />
Humor- rJ (1998), i Mostra Maranhense de Humor – MA (1998), 21 Ste internationale<br />
Cartoonale – Bélgica (1999), Peace Cup international Cartoon Contest of XinMin Evening<br />
news - Shanghai – China (2004) e the 13th daejeon international Cartoon Contest –<br />
Coréia (2004). também foi premiado como “Cartunista do Ano de 2010” pelo site www.<br />
Bigorna.net. Atualmente, Arionauro colabora para vários jornais, revistas e sites no mundo.<br />
Site: www.arionaurocartuns.com.br. E-mail: contato@arionaurocartuns.com.br.<br />
ArionAuro dA SilvA SAntoS, cartunista e ilustrador, conhecido como “vampiro” por sua forte atrao pelo “Humor<br />
negro”, com bastante sangue. Comeou sua carreira em 1986, e jpublicou cartuns, charges, quadrinhos, ilustraes<br />
e passatempos em diversos meios de comunicao. Editou e participou de vrios livros de humor. Foi premiado em<br />
diversos sales de humor, nacionais e internacionais,
JuSkA (FrAnCiSCo JuSkA FilHo) é artista gráfico e cartunista, já desenvolveu centenas<br />
de ilustrações, mascotes e quadrinhos para empresas, agências, jornais, revistas e salões de<br />
humor. Foi premiado várias vezes com o seu ótimo trabalho. Atualmente trabalha em seu<br />
estúdio em Porto Alegre. Blog: jusarte.blogspot.com.br. E-mail: jusarte@terra.com.br.<br />
JuSkA (FrAnCiSCo JuSkA FilHo) artista grfico e cartunista, j desenvolveu centenas de ilustraes, mascotes e<br />
quadrinhos para empresas, agncias, jornais, revistas e sales de humor. Foi premiado vrias vezes com o seu timo<br />
trabalho. Atualmente trabalha em seu estdio em Porto Alegre. Blog: jusarte.blogspot.com.br. E-mail: jusarte@terra.<br />
com.br.
Claudio Parreira é escritor e jornalista. Foi colaborador da revista Bundas, do jornal o<br />
Pasquim 21, Caros amigos online, agência Carta Maior, entre outras publicações. Participou<br />
de diversas coletâneas de contos e é autor do romance GaBriel, lançado recentemente<br />
pela editora draco. Mantém o BloG PPC! http://claudioparreira.blogspot.com, e<br />
@ClaudioParreira é o seu perfil no Twitter.<br />
Claudio Parreira esCritor e jornalista. Foi Colaborador da revista bundas, do jornal o Pasquim 21, Caros amigos<br />
online, agnCia Carta maior, entre outras PubliCaes. PartiCiPou de diversas Coletneas de Contos e autor do romanCe<br />
gabriel, lanado reCentemente Pela editora draCo. mantm o blog PPC! httP://ClaudioParreira.blogsPot.Com, e @<br />
ClaudioParreira o seu PerFil no twitter.
Claudio Parreira Perdidão<br />
Eu vi quando eles chegaram:<br />
passava pouco da meianoite,<br />
céu claro e estrelado.<br />
Aquele tinha sido um dia<br />
inútil pra mim: nenhum negócio,<br />
nenhum carro, nenhuma graninha<br />
no meu bolso. Aquela nave, portanto,<br />
ia livrar a minha cara.<br />
Os aliens desceram todos em<br />
fila; uns verdes, outros vermelhos,<br />
outros tantos coloridos. Havia<br />
também uns monstros estranhos,<br />
que eu não sei descrever aqui. Era<br />
uma invasão, sem dúvida — mas<br />
eu não estava nem aí. Precisava<br />
mesmo é faturar.<br />
Quando os telejornais<br />
começaram a noticiar em edição<br />
extraordinária que São Paulo<br />
estava dominada, eu saquei que<br />
era a minha hora: saí no escuro<br />
mesmo, guiado pela luz que vinha<br />
do tal disco voador.<br />
Os ET’s, ocupados que estavam<br />
em dominar a cidade (será<br />
que o mundo viria em seguida,<br />
como nos filmes?), vacilaram<br />
grandão e deixaram a nave desprotegida.<br />
Subi de boa e me<br />
deparei com uma coisa loka: luzes<br />
pra todo lado, botões, uma tela<br />
imensa de LED ou algo parecido.<br />
E, pra minha felicidade, ninguém<br />
lá dentro.<br />
Aquela nave, cheia de modernidades,<br />
com certeza renderia<br />
um puta dinheiro no Paraguai.<br />
Ou mesmo nos States, que lá eles<br />
gostam de coisas assim.<br />
Sentei, portanto, num treco<br />
parecido com uma cadeira e fiquei<br />
olhando pro painel à minha frente:<br />
não se parecia com nada que eu<br />
tinha visto até então.<br />
Tirar aquele negócio do chão<br />
é que seria o verdadeiro nó. Mas<br />
eu, que sou formado, frequentei<br />
academia, conheço geografia e sei<br />
até multiplicar, não me apertei:<br />
bastava cutucar aqueles botões.<br />
Um deles ligaria a máquina.<br />
Os ET’s, ocupados que estavam em<br />
dominar a cidade, vacilaram grandão<br />
e deixaram a nave desprotegida.<br />
38<br />
*****<br />
Uma hora dessas os ET’s já<br />
devem ter dominado São Paulo, o<br />
Brasil, talvez até mesmo o mundo.<br />
Mas isso não é da minha conta —<br />
tenho outras preocupações.<br />
Essa porra de nave voa rápido<br />
pra caralho, e na tela de LED vejo<br />
estrelas, estrelas e mais estrelas.<br />
Pareço mesmo estar dentro de um<br />
episódio de Jornada nas Estrelas.<br />
O problema é que não sou nenhum<br />
capitão Kirk e não conheço<br />
lhufas de viagens espaciais. Sou<br />
apenas um ladrão de carros. Ou<br />
era, já nem sei mais.<br />
Os aliens invadiram a minha<br />
cidade e eu invadi o espaço deles.<br />
A diferença é que eles sabem dirigir<br />
isso aqui. Posso ir, acho, pra<br />
qualquer lugar do universo, mas<br />
quem tá me conduzindo é a nave.<br />
Sou apenas um perdidão no espaço,<br />
admito — nada além disso.
RobeRto de SouSa CauSo, é ficcionista e ensaísta. Publicou, entre outros, o par: uma<br />
novela amazônica, ganhador do Projeto Nascente 11, e Selva brasil, além dos romances a<br />
corrida do rinoceronte e anjo de dor.<br />
www.robertocauso.com.br<br />
RobeRto de SouSa CauSo, ficcionista e ensasta. Publicou, entre outros, o par: uma novela amaznica, ganhador do<br />
Projeto Nascente 11, e Selva brasil, alm dos romances a corrida do rinoceronte e anjo de dor.
Roberto de Sousa Causo Infiltrado<br />
Seu carro pára, à meianoite<br />
na estrada deserta.<br />
Há uma casa... Você sabe<br />
que é a casa, apesar de seu corpo<br />
estar se deteriorando tão rápido<br />
que você desconfia de seus sentidos.<br />
O 302 V8 do Maverick morre,<br />
levando consigo aquela saudável<br />
energia de cavalos-vapor de que<br />
você tanto necessita. Você tem que<br />
sair, abre a porta e salta, deixando<br />
no volante uma massa de pele<br />
escamosa azul — que some meio<br />
segundo após o contato com o ar<br />
frio.<br />
Frio de uma<br />
noite de junho,<br />
que espanta parte da pouca<br />
energia que lhe resta. Agora<br />
seu corpo está insensível, como<br />
se todos os músculos estivessem<br />
dormentes, mas você o força a<br />
caminhar. Sente os passos apenas<br />
como choques transmitidos pelos<br />
ossos. Cambaleia.<br />
Alcança a porta e a chave<br />
girada na fechadura escapa de<br />
seus dedos e talha a pele. Abre um<br />
buraco na palma da mão, que, surpreendentemente,<br />
arde. A insensibilidade<br />
cede à dor. Mais surpresas.<br />
Tudo dando errado, você<br />
pensa, enquanto entra finalmente.<br />
Seu corpo deveria decompor-se<br />
apenas após a morte, rápido o<br />
bastante para que nenhum deles<br />
pudesse dissecá-lo e descobrir<br />
os segredos de sua construção,<br />
tornando-os incapazes de extrapolar<br />
qualquer técnica de restos tão<br />
etéreos quanto átomos de hélio.<br />
Mas você ainda está vivo, e pode<br />
sentir seu corpo putrefato arder<br />
em todas as partes onde a pele já<br />
caiu e a carne nua toca o tecido<br />
das roupas, enquanto você o obriga<br />
a subir as escadas. Não devia<br />
arder, não devia doer, e à metade<br />
do caminho chega a surpresa mais<br />
dura, na forma da dor dos órgãos<br />
se desmanchando enquanto vivos,<br />
dor que retorna no tempo de uma<br />
pulsação retardada dez vezes,<br />
fazendo-o gemer pela primeira<br />
vez.<br />
Você quase despenca pelos<br />
degraus e se agarra ao corrimão.<br />
A madeira fria e morta não lhe<br />
transmite energia alguma. A<br />
Os efeitos do revitalizador são<br />
imprevisíveis no organismo dela, e, de qualquer<br />
maneira... ela será morta...<br />
noite gélida ainda o agride através<br />
das janelas arrebentadas pelos<br />
vândalos. Você poderia tentar arrancar<br />
alguma energia de uma torradeira<br />
ou liquidificador, mas não<br />
há nada disso por aqui, e ainda<br />
que algo funcionasse no ponto de<br />
encontro disfarçado de casa abandonada,<br />
seria como tentar matar a<br />
sede de um náufrago com gotas de<br />
orvalho. Lá em cima... lá o espera<br />
o revitalizador, a única solução, o<br />
seguro contra aquela possibilidade<br />
ínfima, daquele diminuto gene<br />
artisticamente implantado para<br />
comandar a decomposição do<br />
corpo ser agredido em sua delicadeza<br />
pela radioatividade residual<br />
da Terra e alterar suas ordens, fazendo<br />
você apodrecer até a morte.<br />
Um som de pneus queimando<br />
no asfalto em uma freada brusca,<br />
e você pode mesmo ver o Opala<br />
preto parado em frente à casa e os<br />
três homens saltando e correndo,<br />
em passos que soam agora (estra-<br />
41<br />
nho que seus sentidos funcionem<br />
tão bem) dez vezes mais largos<br />
que os que você usa para atingir o<br />
patamar.<br />
Você se atira contra a porta<br />
de um dos quartos, ansioso pelo<br />
revitalizador, salivando como um<br />
homem perdido no deserto que<br />
finalmente descobre um oásis.<br />
Nesse exato momento os homens<br />
entram pela porta que escancaram<br />
com as botas, e engatilham suas<br />
pistolas e a submetralhadora.<br />
Porém você não os teme enquanto<br />
gira a maçaneta e mais uma<br />
vez se joga, então<br />
contra o canto<br />
conhecido onde está o revitalizador.<br />
Abraça-se a ele, grita diante do<br />
choque contra o metal frio que o<br />
fere ainda mais. Está vazio. Esgotado.<br />
Você se ergue com um salto<br />
de desespero e grita mais uma<br />
vez. É o bastante para fazer seus<br />
perseguidores hesitarem, mas não<br />
lhe traz respostas. Então, olhando<br />
em torno lá está, uma mendiga, a<br />
julgar pelos trajes — mas não pela<br />
aparência, que rejuvenesce, aviva,<br />
robustece. Teria entrado por uma<br />
das janelas quebradas, em busca<br />
de abrigo, chegado, quem sabe,<br />
cinco, dois minutos antes de você,<br />
selando o destino do seu corpo?<br />
Não importa, e você não se zanga.<br />
Os efeitos do revitalizador são<br />
imprevisíveis no organismo dela,<br />
e, de qualquer maneira, como<br />
você também ela será morta assim<br />
que os perseguidores entrarem no<br />
quarto.<br />
Sua última chance está no<br />
portal, no quarto anexo, e, apesar<br />
da decomposição que agride seus
Roberto de Sousa Causo Infiltrado<br />
nervos com uma dor cada vez<br />
mais insistente, você sabe disso<br />
com uma clareza absoluta. Sua<br />
mente — você — não depende<br />
do corpo moldado exceto para a<br />
locomoção. Na verdade você está<br />
naquela cápsula esférica no centro<br />
da cabeça, invulnerável à tecnologia<br />
terrestre, esperando apenas<br />
que um outro infiltrado a recupere<br />
e acesse os dados contidos nela.<br />
E você tem os dados mais importantes.<br />
Apesar do seu estado, você<br />
tem que conseguir atravessar o<br />
portal.<br />
Dá o primeiro passo e a dor<br />
vem mais forte do que nunca.<br />
Você só se mantém em pé por um<br />
esforço de vontade, porque sua<br />
mente está intacta e protegida,<br />
lúcida, registrando o ruído dos<br />
passos no patamar e da respiração<br />
ofegante do inimigo.<br />
Cambaleando você adentra ao<br />
outro quarto. Esbarra num móvel<br />
e agarra-se a ele. Olha para trás e<br />
vê a mendiga que agora é uma beldade<br />
fitando-o com olhos assustados<br />
e simultaneamente embevecidos<br />
com a energia que flui através<br />
dela e que em breve explodirá<br />
seu coração. Mas você também<br />
vê os homens irromperem pelo<br />
cômodo, as armas em posição e<br />
os olhos ágeis como os de animais<br />
avaliando tudo.<br />
Você se vira num último<br />
esforço coroado por uma fanfarra<br />
de explosões e pelo grito derradeiro<br />
da mulher, enquanto seu<br />
corpo é espancado por punhos<br />
invisíveis, no instante exato em<br />
que você contempla o porta bem à<br />
sua frente, disfarçado num espelho<br />
alto de moldura pesada de metal,<br />
esperando por você, tão perto e<br />
tão longe, à distância de um passo<br />
para um corpo morto.<br />
O corpo que você usou em<br />
suas missões está agora definitivamente<br />
morto. Sabendo disso<br />
o gene atrapalhado aciona o seu<br />
comando, numa espécie de efeito<br />
retroativo que o transforma em pó<br />
unido por plasma celular e ainda<br />
em pé — mas está tudo acabado<br />
você pensa.<br />
E no instante seguinte está<br />
atravessando o portal — só você,<br />
em sua cápsula invulnerável, que,<br />
você suspeita, foi miraculosamente<br />
atingida em cheio por um<br />
daqueles projéteis de 9 milímetros<br />
que cruzam o quarto a 400 metros<br />
O corpo que você usou em<br />
suas missões está agora<br />
definitivamente morto.<br />
42<br />
por segundo, e que o penetrou<br />
pela nuca, num impacto forte o<br />
bastante para expulsá-lo através<br />
do crânio e pela boca que se desmancha<br />
em dentes estilhaçantes e<br />
nacos de carne seca que voam pelo<br />
ar e terminam grudados no campo<br />
transmissor seletivo do portalespelho.<br />
Agora você quica e rola no<br />
piso da plataforma receptora, tão<br />
longe da Terra que nenhum terrestre<br />
poderia suspeitar, enquanto<br />
um dos seus fecha o portal, mantendo-o<br />
apenas como um campo<br />
polarizado, pelo qual você olha,<br />
após ligar os sensores visuais da<br />
esfera. Lá, do outro lado do espelho,<br />
os perseguidores se atropelam<br />
e pisoteiam o corpo moldado, que<br />
agora é um colchão de poeira que<br />
se espalha e ossos que estalam<br />
como gravetos secos, voando em<br />
lascas que se dissolvem no ar.<br />
Você, enfim, está em paz, no<br />
momento em que o apanham do<br />
chão e o levam para acessar suas<br />
valiosas informações. Você cumpriu<br />
sua missão, a mais importante<br />
de todas.<br />
A invasão pode começar.
Flávia Muniz é paulista, atua como escritora e editora no mercado editorial. Tem mais<br />
de 60 obras publicadas em livros, revistas e sites. Curte cinema, teatro e livros de horror,<br />
ficção e fantasia. Participou das antologias O livro vermelho dos vampiros (org. luiz<br />
Roberto Guedes) e Território v (org. Kizzy Ysatis). Seu livro mais conhecido é Os noturnos.<br />
Flvia Muniz paulista, atua coMo escritora e editora no Mercado editorial. teM Mais de 60 obras publicadas eM<br />
livros, revistas e sites. curte cineMa, teatro e livros de horror, Fico e Fantasia. participou das antologias<br />
o livro verMelho dos vaMpiros (org. luiz roberto guedes) e territrio v (org. Kizzy ysatis). seu livro Mais<br />
conhecido os noturnos.<br />
Nota da autora:<br />
Neste conto, o Hóspede, teoriza sobre o Bem, o Mal e o livre-arbítrio.
Flávia Muniz O Hóspede<br />
Apenas imagine, por um<br />
segundo, que o Mal seja<br />
uma presença infiltrada entre<br />
nós, aguardando o ponto certo<br />
e o momento exato para invadir e<br />
devastar cada pobre alma que lhe<br />
dê acolhida...<br />
— Papai!<br />
O grito veio do quarto que<br />
ficava no fundo do corredor. Ele<br />
captou o tom angustiado na voz<br />
da filha, entretanto não<br />
1<br />
lhe deu atenção. Estava<br />
assistindo ao<br />
futebol na TV,<br />
uma partida decisiva<br />
do campeonato. E detestava ser<br />
incomodado.<br />
— Que merda! Não posso<br />
nem...<br />
Sua imprecação foi interrompida<br />
por grito mais alto, estridente,<br />
seguido por um barulho de<br />
vidros se partindo.<br />
— Mas o que é que está acontecen...<br />
Ele levantou-se imediatamente<br />
e pôs o dedo sob os lábios, pedindo<br />
silêncio à esposa que surgira<br />
pela porta da cozinha.<br />
— Vou ver o que há de errado<br />
no quarto da Pam — ele sussurrou<br />
ao passar por ela.<br />
Não tinha arma em casa. Fora<br />
proibido pela esposa de manter<br />
uma, por receio de o filho caçula<br />
fazer uma bobagem qualquer,<br />
causar uma tragédia. E agora?<br />
Como iria enfrentar o desconhecido?<br />
A janela do quarto da garota<br />
dava para o quintal da casa, muro<br />
alto, mas baixo o bastante para<br />
ser pulado por malandros malintencionados.<br />
O que faria, caso<br />
tivessem invadido a casa?<br />
Viviam em uma cidade violenta,<br />
todos aqueles crimes horríveis<br />
ocorrendo diariamente... maníacos<br />
sexuais, psicopatas, pedófilos,<br />
drogados, assassinos miseráveis,<br />
todo o tipo de gente perversa e estranha<br />
solta pelas ruas, espreitando,<br />
esgueirando-se na escuridão<br />
feito vampiros em busca da vítima<br />
incauta, dispostos a saltar sobre<br />
você no exato segundo de um<br />
Arrastou-se silenciosamente pelo<br />
corredor, carregando com esforço o corpanzil<br />
com os cento e trinta quilos de banha...<br />
pestanejar. Bastava olhar nos olhos<br />
das pessoas para sentir o medo.<br />
Estava farto de tudo aquilo!<br />
De seu trabalho, da falta de grana,<br />
de sua vida pobre e condenada,<br />
das reclamações da mulher, da cobrança<br />
do chefe e dos adolescentes<br />
idiotas que viviam rondando sua<br />
garotinha.<br />
Arrastou-se silenciosamente<br />
pelo corredor, carregando com<br />
esforço o corpanzil com os cento<br />
e trinta quilos de banha, responsáveis<br />
pelo excesso de colesterol<br />
apontado em recente exame de<br />
sangue realizado havia alguns dias.<br />
Se tivesse sorte, morreria em breve.<br />
O gosto amargo da cerveja<br />
subiu por sua garganta, mas ele<br />
travou o arroto com uma careta.<br />
Não podia fazer nenhum ruído.<br />
Algo o fazia ser cauteloso, talvez<br />
uma espécie de intuição. Adiantou-se,<br />
contrariado, levando como<br />
defesa o rodo de madeira que encontrara<br />
do lado de fora da porta<br />
45<br />
do banheiro. Um simples pedaço<br />
de madeira! Não era forte o bastante<br />
para arrebentar o crânio de<br />
alguém. Parou na porta do quarto<br />
da filha e escutou com atenção.<br />
Não havia som algum.<br />
— Pamela? — ele chamou<br />
baixinho.<br />
Não houve resposta. Adiantou-se<br />
um passo, o coração<br />
batendo depressa no peito. Teria<br />
de enfrentar o que quer que fosse<br />
com um cabo de uma merda de<br />
vassoura? A imbecil da sua es-<br />
posa não se preocupara<br />
com essa possibilidade.<br />
Agora lá estava<br />
ele, arriscando o<br />
próprio rabo, completamente<br />
indefeso para proteger<br />
quem quer que fosse!<br />
Ele forçou a maçaneta e empurrou.<br />
A porta estava trancada.<br />
Em sua testa brotaram pingos de<br />
suor. Ele pressentia um perigo<br />
qualquer, podia sentir a má energia<br />
do momento, assim como os<br />
animais pressentem as tempestades.<br />
— Pamela, abra esta porta!<br />
— ele ordenou, a voz um tanto<br />
alterada.<br />
— Papai... — ele a ouviu gemer.<br />
Recuou uns passos e investiu<br />
contra a porta, o ombro ossudo<br />
e musculoso batendo na madeira<br />
de segunda, dura o bastante para<br />
fazê-lo sentir dor. Uma vez. Duas.<br />
Na terceira investida, a raiva<br />
tomou conta de seu cérebro e a<br />
pancada foi suficiente para arrebentar<br />
o trinco e a porta se abriu,<br />
escancarando-se para dentro.<br />
Sua filha estava agachada,
Flávia Muniz O Hóspede<br />
encolhida no canto oposto da<br />
parede, cobrindo o corpo seminu<br />
com uma toalha. Ela parecia<br />
muito assustada, estava trêmula,<br />
e apontava para a janela parcialmente<br />
destruída. Sussurrou que<br />
algo a espreitava pela janela, e<br />
havia tentado entrar.<br />
— Pam, o que está acontecendo<br />
aqui? — ele perguntou-lhe,<br />
sem tirar os olhos da janela.<br />
— Eu não sei! Alguém estava<br />
me espiando, alguma coisa.<br />
Tinha... era medonho! Está lá fora!<br />
— Quem quebrou o<br />
vidro? — ele insistiu,<br />
limpando<br />
o suor com o<br />
dorso do braço.<br />
— F-fui eu! Fiquei com medo<br />
e atirei o perfume nele.<br />
— Nele? — repetiu, aproximando-se<br />
da janela. — Então... era<br />
um rapaz?<br />
— Não! Era... era um rosto<br />
horrível, tinha olhos vermelhos...<br />
parecia um... demônio!<br />
— Ora, Pamela, não diga<br />
asneira! Na certa, algum garoto<br />
maluco com uma máscara de<br />
monstro quis pregar uma peça em<br />
você. Vou dar uma espiada lá fora<br />
e fechar a veneziana. Quantas vezes<br />
disse que não quero que você<br />
se troque com a janela aberta?<br />
Apoiou o rodo na parede e<br />
começou a levantar a vidraça,<br />
quando um súbito movimento no<br />
quintal chamou-lhe a atenção.<br />
— Quem está aí? — gritou<br />
para a escuridão.<br />
— Pai, não vá até lá fora...<br />
— Fique quieta, menina. Vou<br />
mostrar a ele quem é que manda<br />
na casa. — e girou os fechos para o<br />
lado, levantando a vidraça. Colocou<br />
a cabeça para fora e disse, bem<br />
alto – Muito bem, seus moleques<br />
vadios, podem dar o fora do meu<br />
quintal, porque eu já chamei a<br />
políc....<br />
Mas não foi capaz de terminar<br />
a frase. Algo o agarrou pelo<br />
pescoço, arrastando-o para fora,<br />
meio corpo além da janela, como<br />
se ele fosse uma pequena trouxa<br />
de roupas. Algo ou alguém muito<br />
forte, com garras poderosas,<br />
capazes de dominar um homem<br />
Quando se voltou para ela,<br />
sua fisionomia havia se alterado por completo.<br />
Exibia um sorriso demoníaco...<br />
daquele porte.<br />
— Papai!<br />
Ela pretendia ajudá-lo, mas<br />
não sabia ao certo o que fazer.<br />
Saltou por sobre a cama e puxou-o<br />
pelos pés. Ele tremia, seu corpo foi<br />
tomado por convulsões violentas<br />
e vibrava como se estivesse sendo<br />
triturado em um liquidificador<br />
gigante. Estava escuro lá fora, mas<br />
ela sabia que o demônio havia<br />
agarrado seu pai. Ela gritou o mais<br />
que pode.<br />
— Mãe! Chame a polícia!<br />
Ela, que ouvira toda a gritaria,<br />
agora estava na sala, tentando<br />
teclar o número correto. Tremia<br />
e chorava, nervosa, acuada, sem<br />
saber o que fazer, arrependida, se<br />
tivesse uma arma, rezando para<br />
que a ligação se completasse com<br />
rapidez. A movimentação no<br />
quarto se tornara maior, com sons<br />
de objetos se quebrando, móveis<br />
sendo arrastados, gritos e ruídos<br />
estranhos, animais...<br />
46<br />
— Polícia militar, boa noite!<br />
— Por favor! Ajude-me!<br />
— Pois não, senhora! Pode<br />
falar.<br />
— Ele vai nos matar!<br />
— Quem está falando? Senhora?<br />
— Oh, meu Deus!<br />
— Diga seu nome e endereço,<br />
senhora! Alô! Alô!<br />
Ele estava caído no chão do<br />
quarto, enjoado e tonto, com uma<br />
sensação desagradável no corpo.<br />
Levantou-se, devagar, sentindo o<br />
gosto amargo de bílis passear<br />
alegremente em<br />
sua garganta,<br />
provocando-lhe<br />
náuseas e tremores.<br />
Tinha o batimento cardíaco<br />
alterado, e uma forte dor nas têmporas.<br />
Respirava com dificuldade,<br />
desconfiado de que havia partido<br />
algumas costelas. Sua mente<br />
vagava entre a lucidez e a loucura,<br />
no sedutor limite da irrealidade.<br />
Sentia-se diferente, estranhamente<br />
poderoso, com vontades esquisitas.<br />
Sentia-se capaz de realizar<br />
tudo o que sempre desejara.<br />
— Papai! — sua filha o chamou,<br />
soluçando. – Você está bem?<br />
Sim, ele ia responder, mas foi<br />
então que algo explodiu em seu<br />
cérebro. Suas emoções se embaralharam<br />
e ele não tinha mais tanta<br />
certeza do que dizer ou pensar.<br />
Ficou ali, atordoado e ofegante,<br />
tentando atender ao apelo das<br />
emoções. Quando se voltou para<br />
ela, sua fisionomia havia se alterado<br />
por completo. Exibia um<br />
sorriso demoníaco, o ódio infiltrando-se<br />
em suas palavras enquanto<br />
se punha em pé, com certa
Flávia Muniz O Hóspede<br />
agilidade.<br />
— Viu só o que fez, sua vadia!<br />
— sussurrou entre dentes,<br />
com uma voz que não se parecia<br />
com a dele. — Fica passeando nua<br />
pela casa, atraindo os olhares dos<br />
homens...<br />
— Eu não fiz nada, pai. Estava<br />
indo pro banho!<br />
Ele a esbofeteou. O tapa violento<br />
a fez cair no chão.<br />
— Mãe! — ela gritou, completamente<br />
apavorada.<br />
— Cale a boca, sua cadela!<br />
Sei bem o que você anda<br />
fazendo por aí, bem em-<br />
baixo do meu<br />
nariz! Vou lhe<br />
ensinar boas maneiras...<br />
— Pai, não me bata, por favor!<br />
Ele não a ouvia. Seus olhos já<br />
não eram os mesmos, pareciam<br />
ter se transformado em olhos de<br />
um bicho feroz, acuado, disposto<br />
a lutar até a morte. Aterrorizada,<br />
Pamela tentou passar por ele e<br />
fugir, mas foi agarrada pelo cabelo<br />
e atirada com força sobre a cama.<br />
Ele chutou a porta, fechou a<br />
veneziana com um gesto brusco,<br />
pisando sobre os cacos de vidro no<br />
chão como se eles nem existissem.<br />
— Agora você vai aprender a<br />
se comportar! — e agarrou o rodo,<br />
quebrou-o em dois com uma<br />
pancada seca e avançou para ela.<br />
2<br />
O telefone tocou de modo<br />
insistente na mesa número 7.<br />
— Alô! — respondeu uma voz<br />
rouca.<br />
— Temos um novo problema.<br />
— Onde?<br />
— Bairro de classe média,<br />
zona sul.<br />
— Quantas vítimas?<br />
— Quatro. Duas mulheres, um<br />
homem, uma criança. Caucasianos.<br />
Uma família inteira.<br />
— Qual é o código da ocorrência?<br />
— Um silêncio incômodo<br />
antecipou-se à resposta.<br />
— Zero-zero. Infelizmente...<br />
— Pistas?<br />
— Ah... ainda estamos verificando.<br />
Ele não a ouvia. Seus olhos já não<br />
eram os mesmos, pareciam ter se transformado<br />
em olhos de um bicho feroz...<br />
— Ok. — disse a voz, após<br />
um momento. Já vou pra aí. O<br />
endereço?<br />
— Já passei. Hã... só uma pergunta.<br />
O senhor já jantou?<br />
— Ainda não.<br />
— Pois vai perder o apetite.<br />
As viaturas estavam paradas<br />
diante da residência, formando<br />
um cordão de isolamento invisível,<br />
as luzes piscando indiscretas<br />
na escuridão na noite. Pequenos<br />
grupos de pessoas curiosas se<br />
amontoavam aqui e ali.<br />
— Olá, PG, que prazer em vêlo!<br />
- disse o colega policial, com<br />
ironia.<br />
— No meu caso, é um desprazer<br />
- retrucou PG, à queimaroupa.<br />
— Qual é a situação?<br />
O policial encostou o corpo<br />
no carro e meneou a cabeça, desanimado.<br />
— Mais um daqueles. O<br />
mesmo quadro, circunstâncias e<br />
47<br />
desenho...<br />
PG olhou-o, curioso.<br />
— Tudo indica que uma das<br />
vítimas era o próprio assassino.<br />
— Também morreu de infarto?<br />
— Parece que sim. Temos de<br />
aguardar o laudo, mas o corpo se<br />
encontra no mesmo estado dos<br />
demais.<br />
— Estranho... — PG deixou o<br />
comentário escapar.<br />
— Sabe o que mais me intriga<br />
nisso tudo? — ele continuou —<br />
Por que os caras normais,<br />
que levam uma vida nor-<br />
mal, podem ficar<br />
malucos de uma<br />
hora pra outra e sair matando<br />
quem estiver na frente? Eu não...<br />
— Muita violência ou o trivial<br />
das ruas? — interrompeu-o PG,<br />
sem dar-lhe ouvidos.<br />
— Essa é uma boa pergunta...<br />
Por que não tira suas próprias<br />
conclusões? — o outro respondeu,<br />
irritado. — É melhor você encontrar<br />
uma explicação pra isso. Os<br />
casos estão se acumulando em sua<br />
mesa... — finalizou, deixando-o só<br />
diante da casa iluminada.<br />
PG precisou se controlar para<br />
não responder como gostaria. Na<br />
verdade, desejava enfiar uns bons<br />
tabefes na cara do colega de trabalho,<br />
socá-lo no monte de lixo ali<br />
ao lado e deixá-lo lá, desmontado,<br />
para ser levado pelo caminhão,<br />
de preferência, com uns dentes a<br />
menos na boca atrevida.<br />
— Obrigado por me lembrar<br />
— respondeu, simplesmente.<br />
— Até o próximo! — ele disse<br />
afastando-se, com um sorriso<br />
zombeteiro.
Flávia Muniz O Hóspede<br />
A casa estava na mais completa<br />
desordem. Móveis quebrados,<br />
objetos destruídos, sangue pelas<br />
portas e paredes. PG caminhou<br />
pelo cenário de horror, desviandose<br />
dos outros policiais que faziam<br />
o trabalho técnico, observando<br />
cadáveres. A mulher, branca, de<br />
uns 40 anos, estava caída próximo<br />
à janela. Agarrara-se na cortina<br />
e esta despencara sobre si, formando<br />
um amontoado de panos<br />
ensanguentados. Tivera a cabeça<br />
arrancada do corpo, e uma trilha<br />
de sangue e fragmentos<br />
seguia sobre o<br />
carpete até a<br />
cozinha onde fora deixada, dentro<br />
da pia de lavar louça, os olhos<br />
esbugalhados de terror.<br />
No quarto do meio, o garoto<br />
de quatro anos havia sido estrangulado<br />
com o cordão do móbile<br />
de ursinhos que antes pendia<br />
do teto. Quem ousasse poderia<br />
imaginá-lo, a balançar em volteios<br />
fantasmagóricos, indiferente aos<br />
olhares consternados dos policiais<br />
da perícia.<br />
Mas o pior acontecera à<br />
garota. Ela havia apanhando<br />
bastante antes de morrer. Estava<br />
com o corpo escoriado e cheio<br />
de hematomas. A perna esquerda<br />
exibia uma fratura exposta. O<br />
nariz fora quebrado. Faltavamlhe<br />
três dentes e parte da língua.<br />
Tinha a metade de um cabo de<br />
madeira atravessado em seu peito,<br />
com pedaços de pulmão e vértebras<br />
grudados na extremidade que<br />
transpassara suas costas.<br />
PG apoiou-se no batente da<br />
porta, assombrado com a violên-<br />
cia dos crimes. O que ocorrera<br />
ali não era simplesmente fruto de<br />
uma mente perturbada. A maldade<br />
estava presente... em todo o<br />
seu apogeu e glória.<br />
Segundo as observações preliminares<br />
do legista, o homem fora<br />
encontrado pela polícia ainda com<br />
vida, caído no quintal, gemendo<br />
e transtornado, com as roupas<br />
ensopadas de sangue. Um vizinho<br />
ouvira os gritos e o quebra-quebra<br />
e acionara a polícia.<br />
— Ele morreu há quanto<br />
Ela havia apanhado bastante<br />
antes de morrer. Estava com o corpo escoriado<br />
e cheio de hematomas.<br />
tempo? — perguntou PG, aproximando-se<br />
do corpo inerte.<br />
— Pouco menos de uma hora.<br />
O exame clínico aponta para uma<br />
espécie de surto seguido de infarto,<br />
olhe o peito estufado, os traços<br />
de asfixia no rosto azulado...<br />
Parece que uma bomba detonou<br />
dentro dele.<br />
— Eu vou aguardar o relatório<br />
— disse PG, depois de uns instantes.<br />
— Ok.<br />
PG atravessou a casa sem<br />
olhar novamente para os corpos<br />
das vitimas. Conversou com mais<br />
alguns colegas policiais e saiu<br />
para a rua, em busca de ar fresco.<br />
Precisou enfrentar ainda que por<br />
segundos o olhar amedrontado<br />
dos vizinhos e curiosos. Olhares<br />
que imploravam respostas. No entanto,<br />
sentia-se impotente diante<br />
de algo tão monstruoso. Qualquer<br />
explicação não seria suficiente<br />
para restabelecer a normalidade,<br />
48<br />
a ilusão de segurança de que tanto<br />
necessitavam.<br />
Um velho alcançou-o antes<br />
que entrasse no carro. Era um<br />
mendigo fedorento, um sem-teto<br />
miserável que a cidade produzia<br />
da noite para o dia.<br />
— Isso é coisa do demônio! —<br />
ele sussurrou tocando o braço de<br />
PG com seus dedos magros.<br />
PG livrou-se dele com um<br />
movimento súbito, visivelmente<br />
assombrado.<br />
— Santo Deus! O que está<br />
acontecendo nesta cidade?<br />
Na semana seguinte, PG<br />
separou as pastas com o relatório<br />
dos últimos crimes violentos não<br />
solucionados de sua região por<br />
ordem de data. Ajeitou a luz da<br />
luminária para que não ofuscasse<br />
seus olhos durante a leitura e<br />
reiniciou a busca de pistas, indícios,<br />
elos perdidos. Ligou o computador<br />
e clicou nas pastas com<br />
informações confidenciais e recomeçou<br />
a relê-los um a um. Toda<br />
aquela perversidade o enojava.<br />
Eram quase 3 da manhã<br />
quando o telefone em sua mesa de<br />
trabalho tocou.<br />
— PG?<br />
— Doutor Frankeinsten!<br />
Acordado a essa hora?<br />
— Muito engraçado... Pensa<br />
que é só você que dá duro por<br />
aqui?<br />
— Tenho certeza disso! —<br />
disse PG, tomando outro gole de<br />
café. — O que manda?<br />
— Já estou com o resultado da<br />
autópsia.<br />
3
Flávia Muniz O Hóspede<br />
PG sentiu o corpo retesar.<br />
— E então?<br />
— Esse organismo, como os<br />
demais que examinamos autopsiados,<br />
sofreu uma espécie de colapso<br />
hormonal. Há comprovação de<br />
produção excessiva de corticoides<br />
e adrenalina no sangue, um verdadeiro<br />
caos químico, exatamente<br />
como os demais.<br />
— E...<br />
— As glândulas tireoide e<br />
suprarrenais foram hiperativadas,<br />
enquanto que a hipófise sofreu<br />
inibição total.<br />
— O que exatamente<br />
isso quer<br />
dizer, doutor? —<br />
perguntou PG.<br />
— Bem, os hormônios agem<br />
para aumentar o nível de estímulo<br />
no corpo. É como preparar-se para<br />
enfrentar um perigo. Você se torna<br />
mais forte de repente, com mais<br />
gás para lutar. É uma resposta<br />
fisiológica a uma ameaça.<br />
— Mas eles eram os agressores!<br />
E suas vítimas não representavam<br />
ameaça real alguma.<br />
— Bem — disse o legista<br />
— é o que indica o estado deste<br />
corpo antes da morte. Não havia<br />
ferimentos externos aparentes, a<br />
não ser os de resistências de suas<br />
vítimas.<br />
— Então... esses caras estiveram<br />
lutando com alguma coisa...<br />
antes?<br />
— O mais correto seria interpretar<br />
que todos eles experimentaram<br />
uma pressão insuportável<br />
antes de morrer. Alguma coisa os<br />
fez ultrapassar o limite. Mas, há<br />
ainda, um fato curioso em tudo<br />
isso.<br />
— E o que é? — disse PG,<br />
sentindo certa hesitação no tom<br />
de voz do médico-legista.<br />
— Veja, ainda estamos estudando,<br />
compreenda, não se trata<br />
de uma declaração oficial.<br />
— Vá em frente, doutor.<br />
— Encontramos uma substância,<br />
uma espécie de ácido no cérebro<br />
de todos esses... como vocês<br />
chamam... assassinos eventuais.<br />
Seus cérebros estavam corroídos<br />
por esse fluido, os ossos e tecidos<br />
destruídos.<br />
Os rostos desfigurados das vítimas e de seus<br />
algozes dançavam sobre a tela, zombando<br />
de sua inércia mental.<br />
— Frank... O que é isso? —<br />
perguntou PG, inconformado —<br />
Algum tipo de doença, um vírus?<br />
Uma mutação genética com data<br />
certa pra eclodir? Como posso<br />
trabalhar sem saber o que devo<br />
procurar, caçar?<br />
— Infelizmente ainda não<br />
tenho respostas conclusivas.<br />
Estamos realizando exames para<br />
descobrir a origem dessa alteração.<br />
Por enquanto, só me arrisco a<br />
afirmar o que sei. Tudo leva a crer<br />
que essa violenta reação química<br />
experimentada pelas vítimas pode<br />
ter provocado a parada cardíaca.<br />
Quanto à destruição do cérebro...<br />
não sei exatamente com o que estamos<br />
lidando. Qualquer novidade<br />
nesse sentido, eu o avisarei.<br />
— Um momento, doutor.<br />
Quero saber uma coisa. Essa reação<br />
poderia ter sido desencadeada<br />
por outro motivo qualquer, além<br />
de ameaça física ou sensação de<br />
perigo iminente?<br />
49<br />
O médico silenciou por uns<br />
segundos.<br />
— Sim. Nosso corpo reage da<br />
mesma forma quando sentimos<br />
emoções fortes como raiva e ódio.<br />
— Obrigado, Frank. Até mais<br />
tarde.<br />
PG desligou o telefone e<br />
voltou os olhos para a tela do<br />
computador. Seu cérebro trabalhava<br />
ativamente, tentando ligar<br />
os pontos, encontrar uma solução<br />
razoável para aqueles crimes<br />
hediondos. Os rostos desfigu-<br />
rados das vítimas<br />
e de seus algozes<br />
dançavam sobre a<br />
tela, zombando de<br />
sua inércia mental. Os relatórios<br />
faziam a descrição detalhada de<br />
cada crime horripilante. Uma<br />
professora primária que mata 3<br />
alunos, obrigando-os a ingerirem<br />
soda cáustica. O motorista de ônibus<br />
que atropela e mata um casal<br />
de namorados, deliberadamente,<br />
passando várias vezes sobre os<br />
corpos esfacelados. O executivo<br />
que estrangula a secretária depois<br />
de estripar o boy que parte em defesa<br />
da garota. O pai de família... e<br />
o padre.<br />
Este, era mesmo de fazer<br />
perder o juízo. PG tirou as fotos<br />
do envelope, provas do bárbaro<br />
crime, recordando-se do fato<br />
ocorrido havia menos de um mês.<br />
O padre Bóris assassinara sua<br />
própria mãe, esquartejando-a para<br />
alimentar os cachorros que criava.<br />
Todos eram crimes hediondos,<br />
brutais, extremamente violentos,<br />
que tinham ocorrido por motivos<br />
aparentemente fúteis. Qual motivo<br />
essas pessoas tinham para praticar
Flávia Muniz O Hóspede<br />
tantos crimes, atos tão desumanos?<br />
Que tal um motivo não humano?<br />
— sussurrou sua mente,<br />
fazendo com que se lembrasse do<br />
que lhe dissera o mendigo.<br />
4<br />
— Na verdade, acho que esses<br />
assassinos têm uma personalidade<br />
fronteiriça, que os tornam vulneráveis<br />
a uma explosão emocional<br />
com consequências bastante<br />
desastrosas — explicou-<br />
lhe o psiquiatra,<br />
recolocando na<br />
estante o livro que lhe mostrara.<br />
— Compreendo — disse PG.,<br />
remexendo-se na poltrona. — Mas<br />
esse tipo de doença mental não<br />
deixa pistas, não há indícios prévios<br />
de instabilidade nas atitudes ou<br />
no comportamento, que façam as<br />
pessoas mais próximas desconfiarem<br />
de alguma coisa?<br />
— Muito raramente. No dia a<br />
dia, uma personalidade psicopática<br />
sabe agir normalmente, com<br />
inteligência, polidez e bom senso.<br />
Muitos levam vida exemplar.<br />
— O que detona essa explosão<br />
de violência contra seus<br />
semelhantes, por vezes pessoas da<br />
própria família, ou até desconhecidos?<br />
Quero dizer... como um<br />
pai pode assassinar filhos e esposa<br />
com tanta crueldade?<br />
— É difícil dizer — ponderou<br />
o especialista. — Penso que todos<br />
nós somos como aquelas panelas<br />
de pressão resistindo a diferentes<br />
temperaturas de cozimento. Passamos<br />
15, 40 anos de nossa vida<br />
aguentando frustrações, acumulando<br />
ressentimentos e resistindo,<br />
à força da moralidade, da lei ou da<br />
religião, que atuam sobre alguns<br />
de nós de modo absoluto, esmagador.<br />
Um belo dia... a válvula<br />
imperfeita se rompe e toda aquela<br />
energia contida explode diante de<br />
situações das mais diversas... uma<br />
discussão no trânsito, um troco<br />
errado na padaria, a lentidão do<br />
guichê do banco, o comentário<br />
inoportuno do patrão. Fatos corriqueiros<br />
como esses ganham<br />
Os corpos dos agressores, autopsiados,<br />
apresentavam a mesma substância desconhecida<br />
que lhes corroera o cérebro.<br />
dimensão extraordinária e nossa<br />
reação tende a ser desproporcional,<br />
fugir ao nosso controle.<br />
— E ainda assim, esses criminosos<br />
eventuais são considerados<br />
incapazes perante a lei...<br />
Como posso prender um sujeito e<br />
entregá-lo à justiça com esperança<br />
de que ele receba o que merece, se<br />
ainda assim irão considerá-lo livre<br />
de culpa?<br />
Doutor Morel o encarou com<br />
expressão amistosa.<br />
— Você sabe muito bem que<br />
não é tão simples assim. Acho que<br />
deveria descansar, PG. Está tenso<br />
e sob pressão. Por que não tira uns<br />
dias de folga?<br />
— Não me venha com essa,<br />
doutor — disse PG, levantando-se.<br />
— Tenho um trabalho a fazer.<br />
No dia seguinte, PG recomeçou<br />
a leitura dos relatórios.<br />
5<br />
50<br />
Já havia tentado estabelecer uma<br />
conexão entre os fatos, mas as<br />
conclusões a que chegara não<br />
eram esclarecedoras. Os crimes<br />
haviam ocorrido em diferentes locais<br />
da cidade, em horários diversos.<br />
Em quatro deles, o agressor<br />
conhecia muito bem as vítimas,<br />
no entanto, os agressores não se<br />
conheciam entre si – tampouco<br />
as vítimas. Não frequentavam<br />
os mesmos lugares, não haviam<br />
estudado na mesma escola, enfim,<br />
parecia não haver nenhuma liga-<br />
ção entre os diferentes<br />
crimes.<br />
As vítimas<br />
podiam ser de qualquer<br />
idade e sexo. Tanto as vítimas<br />
como os criminosos tinham<br />
níveis sociais que variavam da<br />
classe média a de trabalhadores<br />
comuns. O elo que havia entre<br />
as ocorrências era o modo como<br />
elas aconteciam — violentamente,<br />
com requintes de perversidade<br />
— e como terminavam: o agressor<br />
também morria, sendo vitimado<br />
por uma espécie de colapso<br />
cerebral que provocava um infarto<br />
fulminante.<br />
A essa informação, acrescentava-se<br />
outra, mais intrigante.<br />
Os corpos dos agressores, autopsiados,<br />
apresentavam a mesma<br />
substância desconhecida que lhes<br />
corroera o cérebro. PG lembrou-se<br />
do jogo dos zumbis e achou graça,<br />
por um momento.<br />
— É um bom começo — comentou<br />
alguém às suas costas.<br />
— Um tanto bizarro, mas já é um<br />
começo.<br />
PG voltou-se para encarar<br />
seu parceiro lendo o relatório que
Flávia Muniz O Hóspede<br />
elaborara aquela manhã.<br />
— Oi, Toni. Pensei que ainda<br />
estivesse em férias.<br />
— Ainda estou, para sua informação.<br />
Apenas resolvi fazer uma<br />
visita. Achei que estivesse com<br />
saudades.<br />
PG sorriu, agradecido. Toni<br />
era seu companheiro de investigações<br />
há cinco longos anos e nada<br />
mais reconfortante tê-lo por perto,<br />
ainda que fosse por pouco tempo.<br />
— O que pretende fazer? —<br />
disse Toni, após ler as anotações<br />
recentes sobre os<br />
casos de homicídio.<br />
— Não sei...<br />
ainda. Estou à<br />
procura de um motivo.<br />
Algum aspecto que tenha me<br />
escapado pelos dedos da mão.<br />
Outro ponto de vista que esclareça<br />
a questão.<br />
— Conte-me o que já fez. —<br />
pediu Toni, sentando-se diante<br />
dele.<br />
— Todo o procedimento<br />
normal. Conversei com as famílias<br />
e amigos das vítimas e dos assassinos,<br />
— Alguma informação inusitada?<br />
— Nada de especial. Sentiramse<br />
tão chocados quanto qualquer<br />
pessoa, ao descobrir que o<br />
simpático velhinho que morava ao<br />
lado era o famigerado estuprador<br />
da lua cheia.<br />
— Os novos criminosos tinham<br />
antecedentes?<br />
— Negativo. Eram espécie comum,<br />
comportavam-se de modo<br />
civilizado. Falei com o psiquiatra<br />
e o médico-legista. Ambos passaram<br />
a ideia de que essas pessoas<br />
eram doentes e não sabiam.<br />
— Então está resolvido! —<br />
concluiu Toni, com um sorriso.<br />
— Como assim, meu caro?<br />
Resolvido!?<br />
— Doentes, doidinhos da Silva.<br />
Pronto! Não perca seu tempo<br />
precioso.<br />
PG olhou-o, espantado.<br />
— Como pode se convencer<br />
tão facilmente? — perguntou,<br />
injuriado. — Só porque algo acontece<br />
repetidamente, não quer dizer<br />
que seja certo ou normal. Não<br />
Atendia às famílias necessitadas, distribuía<br />
alimentos e também mantinha uma escola<br />
primária para ensinar analfabetos.<br />
compreender os motivos porque<br />
algo acontece, não quer dizer que<br />
não existam motivos. Sei que há<br />
qualquer coisa incomum em tudo<br />
isso. Não percebe os sinais?<br />
— Algo incomum, você diz...<br />
estranho? Para mim a violência<br />
não é estranha. Convivo com ela<br />
diariamente. Acordo ouvindo<br />
seu grito de triunfo nas sirenes<br />
dos carros-patrulha, nos toques<br />
de telefone, durmo ao som dos<br />
disparos, com a canção de ninar<br />
dos noticiários da TV. A violência<br />
é um mar, PG, você sabe disso.<br />
Estamos mergulhados nele. Todos<br />
nós.<br />
PG calou-se, pensativo.<br />
— Todas essas pessoas que se<br />
tornaram criminosas eram pessoas<br />
comuns, como você e eu. Trabalhavam,<br />
comiam, faziam sexo, iam<br />
ao cinema...<br />
— Pois se um dia você sair por<br />
aí esfaqueando mocinhas indefesas,<br />
terei o maior prazer em meter<br />
51<br />
uma bala em sua cabeça, companheiro.<br />
— disse Toni, friamente.<br />
— Esse é o problema, meu<br />
caro. — respondeu PG, com expressão<br />
sombria.<br />
— Sabe o que minha sempre<br />
mãe dizia? — comentou Toni,<br />
após abocanhar um chocolate que<br />
dava sopa na mesa do amigo.<br />
— O que ela dizia?<br />
— Siga a sua intuição, filho.<br />
— e sorriu, mostrando os dentes<br />
sujos. — Era isso o que dizia.<br />
— Já acabou? — disse PG,<br />
levantando-se. -<br />
Então, vamos nessa.<br />
— Pra onde?<br />
— Seguir<br />
minha intuição.<br />
6<br />
A igreja em que o finado padre<br />
Bóris ministrava seu trabalho<br />
ficava em um bairro residencial de<br />
classe média. Era de arquitetura<br />
simples e imponente e sobrevivia<br />
à custa de donativos da associação<br />
dos moradores do bairro. Atendia<br />
às famílias necessitadas, distribuía<br />
alimentos e também mantinha<br />
uma escola primária para ensinar<br />
analfabetos.<br />
— O padre Mendes irá recebêlos<br />
agora. — disse a jovem atendente.<br />
Seguiram por uma estreita<br />
passagem, um corredor sombrio<br />
no interior da capela, até uma<br />
pequena sala onde havia um<br />
homem. Estava sentado numa<br />
poltrona, e trazia uma Bíblia nas<br />
mãos ossudas.<br />
— Boa tarde, padre Mendes...<br />
Meu nome é PG e este é meu co-
Flávia Muniz O Hóspede<br />
lega, Toni. Somos policiais.<br />
O padre encarou-os com olhos<br />
inquietos.<br />
— Senhores... Havia um tempo<br />
em que o homem temia a Deus<br />
e ao Demônio. Afirmo que não é<br />
esse o tempo em que vivemos.<br />
PG e Toni trocaram olhares.<br />
— Padre Mendes, viemos aqui<br />
para falar um pouco sobre o padre<br />
Bóris.<br />
— S-sim, eu sei... pobre padre<br />
Bóris. Que Deus se apiede de sua<br />
alma.<br />
— Bem, — continuou<br />
PG — o padre<br />
Bóris cometeu<br />
um crime e tanto.<br />
Gostaria de saber o que o<br />
senhor pensa disso. Tem alguma<br />
ideia do que pode ter sucedido?<br />
Padre Mendes caminhou até<br />
a estante em silêncio e guardou a<br />
Bíblia num canto, ao lado de um<br />
relógio.<br />
— O Mal é um ser espiritual<br />
vivo a ativo, senhores. Ele corrompe<br />
nossas almas e nos transforma<br />
em seres pouco confiáveis.<br />
— O que pode nos dizer sobre<br />
o padre Bóris, senhor? Era uma<br />
pessoa... como direi sem parecer<br />
inadequado... alguém sem paciência,<br />
que pudesse causar mal ou<br />
violência a outra?<br />
— Não! Claro que não! Pelo<br />
contrário, era muito prestativo<br />
e responsável em seus afazeres.<br />
Tinha uma mãe doente, que o<br />
impedia de dedicar-se completamente<br />
ao trabalho, mas essa<br />
situação já era antiga em sua vida.<br />
Parecia conviver perfeitamente<br />
com ela.<br />
— As aparências sempre enga-<br />
nam... — comentou Toni.<br />
— Talvez fosse um alto sacrifício<br />
para ele. Talvez vivesse pressionado<br />
todos esses anos... O senhor<br />
o conhecia bem?<br />
— Trabalhávamos juntos há<br />
3 anos. Ele era uma boa pessoa.<br />
Esqueçam... não há o que falar sobre<br />
ele... Foi o Mal que o apanhou.<br />
Mais uma vítima.<br />
— Estamos falando de forças<br />
maléficas e coisas desse tipo, padre<br />
Mendes? — perguntou PG, atento.<br />
O senhor realmente acredita nessa<br />
Nesse momento foram interrompidos<br />
por uma jovem que se aproximou do padre,<br />
sussurrou-lhe um recado e saiu...<br />
teoria?<br />
— Uma das maiores artimanhas<br />
dessa poderosa criatura<br />
é fazer-se desacreditado. Desse<br />
modo, não estamos preparados<br />
para enfrentá-lo ao nos depararmos<br />
com ele.<br />
— Do que estamos falando? —<br />
perguntou Toni, incomodado com<br />
os rumos da conversa. Parecia-lhe<br />
inútil falar sobre aquilo.<br />
— Do Mal que sempre existiu,<br />
que sempre esteve presente nas<br />
atitudes dos homens, desde o início<br />
dos tempos. Falo de sentimentos<br />
hediondos, do preconceito,<br />
da solidão e da inveja, da luxúria,<br />
da ganância, da falta de perspectivas<br />
felizes, falo de emoções que<br />
servem de base para ações nocivas,<br />
desagregadoras...<br />
— Entendo.<br />
— Nunca levou uma surra<br />
quando criança? — perguntoulhe<br />
o padre. — Nunca teve um<br />
professor sádico ou um vizinho<br />
52<br />
invejoso? Não teve amigos cruéis<br />
que maltratavam animais indefesos<br />
até à morte? Ou um colega de<br />
classe violento e intimidador? É<br />
desse mal que eu falo... a maldade<br />
essencial.<br />
Nesse momento, foram interrompidos<br />
por uma jovem que se<br />
aproximou do padre, sussurroulhe<br />
um recado e saiu, rapidamente.<br />
— Tenho um compromisso. —<br />
desculpou-se.<br />
— Obrigada por seu tempo<br />
— agradeceu-lhe PG, com um sor-<br />
riso sem jeito.<br />
— Sabem o que<br />
penso? — comentou<br />
o padre,<br />
enquanto os acompanhava<br />
até a porta. — Atualmente<br />
as pessoas estão mais afastadas<br />
dos valores fundamentais da vida.<br />
Por esse motivo se tornam presas<br />
fáceis do Mal. As sagradas escrituras<br />
já o dizem: “Vista a armadura<br />
do Senhor contra as hordas do Mal,<br />
para que se lhe ofereça resistência<br />
no dia da tentação”.<br />
Eles saíram da igreja e caminharam<br />
pela rua até o lugar onde<br />
o carro estava estacionado. Havia<br />
chovido, e a noite prometia ser<br />
longa.<br />
— Sabe o que acho? — disse<br />
Toni, acendendo um cigarro. —<br />
Esse padre Bóris... deu ponto pro<br />
Diabo.<br />
— Tenho pensado muito<br />
nesses crimes... — comentou PG<br />
enquanto o amigo manobrava o<br />
carro.<br />
— Por aqui não há coisa me-<br />
7
Flávia Muniz O Hóspede<br />
lhor para se pensar — disse Toni,<br />
engatando a ré.<br />
— Você não sente o peso da<br />
atmosfera dessa cidade, Toni? Não<br />
percebe a tensão constante no ar?<br />
Parece que todos estão prestes a<br />
explodir...<br />
— Cidade grande, grandes<br />
encrencas... já dizia minha santa<br />
mãezinha.<br />
— Nosso trabalho é monitorar<br />
pessoas, prever problemas<br />
enquanto nos afundamos nessa<br />
merda. — disse PG, desanimado.<br />
— Sinceramente...<br />
viver ou morrer é pura<br />
questão de sorte.<br />
Não há escolha.<br />
Permaneceram em silêncio<br />
o restante do trajeto, cada um<br />
imerso em suas crenças e impressões.<br />
A chuva recomeçara,<br />
mergulhando a cidade numa<br />
névoa úmida, subtraindo o contorno<br />
preciso da realidade.<br />
Haviam percorrido pouco<br />
mais de quatro quarteirões,<br />
quando o carro surgiu de repente<br />
na esquina da avenida, avançando<br />
sobre a pista sem qualquer cuidado.<br />
Toni brecou rapidamente,<br />
mas os pneus de seu carro, um<br />
sedan antigo que pertencera a<br />
seu pai, deslizaram na chuva fina<br />
que cobria o asfalto. O choque foi<br />
inevitável.<br />
— Era o que me faltava! — ele<br />
exclamou, contrariado.<br />
O carro parou vários metros à<br />
frente. Ninguém havia se ferido.<br />
— Tudo bem?<br />
— Parece que não foi nada<br />
sério... — disse PG, olhando pra<br />
trás. — Uma lanterna, no máximo.<br />
— Droga de chuva! — res-<br />
mungou Toni, abrindo a porta do<br />
carro.<br />
— Quer ajuda? Diga que não...<br />
— Pode deixar. Resolvo tudo<br />
num instante. — e saiu caminhando<br />
em direção à esquina onde se<br />
encontrava o carro abalroado.<br />
PG acionou o botão do piscaalerta<br />
e sintonizou em sua FM<br />
preferida. Ainda desejava passar<br />
na delegacia para pegar uma pasta<br />
com documentos. Se não fosse a<br />
maldita chuva, até iria fazer companhia<br />
ao amigo.<br />
Haviam percorrido pouco mais de quatro<br />
quarteirões, quando o carro surgiu de repente<br />
na esquina da avenida...<br />
Toni aproximou-se do carro<br />
e parou para avaliar o estrago. Da<br />
janela do motorista, o homem<br />
voltou-se para Toni com a boca<br />
crispada pela raiva.<br />
— Por acaso você é um estúpido?<br />
Não viu o sinal de advertência,<br />
logo ali? — vociferou na direção<br />
de Toni.<br />
— Não vi, não. — disse<br />
Toni, estudando a situação. — O<br />
homem, um caucasiano de uns<br />
cinquenta e poucos anos, estava<br />
sozinho. Era corpulento, alto e<br />
forte, parecia um alemão, um<br />
tanque de guerra. Mostrava alto<br />
nível de irritação. O carro era<br />
novinho, estava sem placa. Os<br />
vidros ainda exibiam os selos de<br />
fábrica e havia plástico nos bancos<br />
traseiros.<br />
— Vocês dirigem como doidos!<br />
— gritou o homem, saindo<br />
do carro. — Não passam de uns<br />
imbecis! Olhe só o que fez com<br />
meu carro novo! — gesticulou,<br />
53<br />
alucinado. Quanto vai me custar<br />
isso?<br />
Toni conferiu o estrago. A<br />
lanterna fora quebrada e o parachoque<br />
dianteiro esquerdo havia<br />
se partido.<br />
O homem estava cada vez<br />
mais bravo.<br />
— Ei, espere um pouco. —<br />
disse Toni, começando a se irritar<br />
com a atitude do grandalhão. - Eu<br />
estava em minha mão, passando<br />
pela avenida. O senhor veio e entrou<br />
com tudo na frente... A culpa<br />
não foi minha!<br />
— É claro! Agora<br />
diz que a culpa<br />
não foi sua!<br />
Sem-vergonha! — gritou, avançando<br />
em sua direção.<br />
Toni começou a sentir o<br />
coração bater mais forte. Estava<br />
desarmado, sem insígnias, mas<br />
mantinha uma atitude razoável.<br />
Não entendia a extrema reação do<br />
homem. Podia pagar pelo estrago.<br />
— E o meu sedan, seu espertinho?<br />
Por acaso, ele também está<br />
batido. O que me diz?<br />
— Eu quero que você vá<br />
pro inferno! — disse o homem,<br />
fechando os punhos e gritando.<br />
— Olhe aqui! — disse Toni,<br />
rispidamente, mantendo uma distância<br />
segura do grandalhão. - Eu<br />
não estou lhe ofendendo ou sendo<br />
agressivo, acho melhor o senhor<br />
se acalmar, senão a coisa toda vai<br />
complicar!<br />
— Não me interessa! Vai ter<br />
que pagar!<br />
— Pra mim, chega! — gritou<br />
Toni, irritado com a atitude do<br />
homem. — Se o senhor continuar<br />
a gritar não vou mais discutir aqui
Flávia Muniz O Hóspede<br />
na rua, nós vamos a uma delegacia.<br />
E isso se eu não estiver muito<br />
chateado, senão eu vou embora e o<br />
senhor que se f...!<br />
Tudo aconteceu em segundos.<br />
Toni viu o homem levar a mão<br />
pela janela do carro e sacar um 38,<br />
apontando-o em sua direção.<br />
— Não vai pagar, desgraçado?<br />
— Ei... — ele conseguiu dizer,<br />
antes de ouvir os disparos.<br />
8<br />
PG ouviu dois<br />
disparos e se agachou<br />
no banco da<br />
frente, aturdido.<br />
Abriu a porta do carro,<br />
sacou sua arma e deslizou para a<br />
lateral, buscando proteger-se até<br />
entender o que tinha ocorrido.<br />
Um arrepio percorreu sua espinha<br />
ao constatar que Toni havia<br />
sido baleado. Viu o agressor entrar<br />
no carro, dar partida e sair a toda<br />
velocidade pela pista da esquerda,<br />
desviando do corpo do amigo, que<br />
jazia no chão, inerte.<br />
Os carros que circulavam pela<br />
avenida diminuíam a velocidade<br />
ao passar pelo local do acidente.<br />
Alguns curiosos se aproximavam,<br />
querendo provar do espetáculo,<br />
sem maiores comprometimentos.<br />
Alguém gritou que já chamara<br />
o resgate. Um pequeno grupo<br />
se juntara em volta do homem<br />
ferido.<br />
PG saiu correndo em direção<br />
à esquina, atordoado com<br />
a velocidade dos acontecimentos.<br />
Precisava socorrer o amigo. Essa<br />
era a mais importante necessidade<br />
do momento.<br />
Avaliou a situação rapidamente.<br />
Toni recebera dois tiros<br />
no peito e estava inconsciente. Os<br />
ferimentos pareciam ser graves,<br />
sangravam muito, de modo que<br />
PG precisou agir com presteza.<br />
Por sorte, um carro de polícia<br />
estacionou do outro lado da<br />
avenida, e dois homens uniformizados<br />
vieram prestar ajuda. PG<br />
identificou-se e pediu que acompanhassem<br />
o ferido até o hospital<br />
mais próximo, assim que o resgate<br />
chegasse. Ao longe, podia ouvir a<br />
De repente, numa rua à direita, viu de<br />
relance o carro do agressor entrar no terreno<br />
abandonado e mal iluminado...<br />
bendita sirene.<br />
Em seguida, PG correu e entrou<br />
no carro de Toni, saindo em<br />
perseguição ao agressor. Em sua<br />
cabeça, um redemoinho de imagens<br />
foi se formando. Cenas de<br />
dor e violência, uma fusão medonha<br />
de corpos mutilados, choro de<br />
crianças, olhos maus e acusadores<br />
que o perseguiam... Sentia-se<br />
atordoado, com respiração ofegante,<br />
como se estivesse prestes a<br />
vomitar.<br />
PG sacudiu a cabeça para<br />
pensar com clareza. Ponderou<br />
que o agressor não poderia ter ido<br />
muito longe, pois poucos minutos<br />
os separavam no tempo.<br />
Controle-se! — disse a si<br />
mesmo, colocando a cabeça para<br />
fora do carro para sentir o vento<br />
revigorante da noite agir em seu<br />
ânimo. Precisava manter a energia<br />
e o pensamento alertas.<br />
Seu amigo... ele estava em<br />
férias e viera visitá-lo... Ele o acom-<br />
54<br />
panhara na visita ao padre... agora<br />
podia estar morto... por sua culpa!<br />
Seus pensamentos vagavam<br />
sem controle algum. Lembrouse<br />
de Toni, rindo e feliz, ao lado<br />
de um peixe de 10 quilos, numa<br />
foto que havia sobre a mesa do<br />
escritório. Recordou-se de como<br />
ele gostava de contar piadas sobre<br />
pescadores e suas mentiras. Depois<br />
seus pensamentos tornaramse<br />
mais sombrios, na época em<br />
que perdera seu cachorro, atropelado<br />
por um carro. Tinha apenas<br />
sete anos, mas a lembrança<br />
dessa perda<br />
não o deixara<br />
em paz.<br />
Começou a fraquejar,<br />
sentindo-se quase impotente<br />
diante da realidade áspera. Seu<br />
parceiro e melhor amigo podia<br />
estar morto agora. Podia ter dado<br />
entrada no hospital ainda com<br />
vida ou morrido a caminho...<br />
De repente, numa rua à<br />
direita, viu de relance o carro do<br />
agressor entrar no terreno abandonado<br />
e mal iluminado de um<br />
antigo estacionamento, no final do<br />
quarteirão. PG estava só e ciente<br />
de que o homem tinha uma arma.<br />
As viaturas não tardavam a chegar<br />
para dar-lhe reforço. Mas até lá<br />
precisava ter calma.<br />
Ou não.<br />
9<br />
PG apagou as luzes e deslizou<br />
o carro pela rua até chegar à entrada<br />
do terreno. A chuva fina havia<br />
cessado e o ar límpido da noite o<br />
manteve alerta, desperto. Agora,<br />
mais do que nunca precisava estar
Flávia Muniz O Hóspede<br />
inteiro.<br />
O carro do agressor havia<br />
ziguezagueado pelo terreno até<br />
perder velocidade e parar, após<br />
chocar-se com umas caixas de papelão<br />
e sacos de lixo, acumulados<br />
na parte central.<br />
PG não havia visto o homem<br />
descer do carro. Quem sabe estivesse<br />
ferido ou atordoado. Não<br />
sabia ao certo. Também poderia<br />
estar à espreita, aguardando para<br />
meter bala no próximo que cruzasse<br />
seu caminho. Não se importava.<br />
Pisou no acelerador, sentindo<br />
o coração bater mais forte no<br />
peito. Respirava com dificuldade,<br />
suas mãos começaram a suar, deslizando<br />
sobre o duro plástico do<br />
sedan de seu amigo Toni. Chegara<br />
o momento, afinal.<br />
Não pisou no freio. Não como<br />
se faz normalmente quando se<br />
quer evitar um acidente. Simplesmente<br />
deixou o carro chocar-se<br />
com a traseira do outro carro,<br />
com o objetivo de destruir o que<br />
estivesse à sua frente.<br />
Após o choque, o carro foi<br />
empurrado vários metros à frente.<br />
Depois rodopiou e bateu de lado<br />
no muro, ficando parcialmente<br />
destruído. PG saiu do carro com<br />
a testa sangrando, de arma em<br />
punho, disposto a acertar as contas<br />
com o assassino de seu melhor<br />
amigo.<br />
Caminhou até o carro dominado<br />
por uma familiar sensação<br />
de poder. O poder de tirar a vida<br />
de alguém, interromper o curso<br />
de algo, mudar um fato a seu<br />
bel-prazer ou necessidade. Uma<br />
alegria feroz tomou conta de seu<br />
corpo, o grito de vingança soou<br />
bem alto em seu coração.<br />
Abriu a porta do carro e viu<br />
o grandalhão tentando escapulir<br />
pelo outro lado. PG mudou de<br />
ideia. Segurou-o pelos pés e o<br />
puxou para fora - tal força lhe era<br />
completamente desconhecida.<br />
O homem virou-se e chutou<br />
seu rosto, fazendo com que acreditasse<br />
que havia quebrado o nariz.<br />
Mas reagiu à altura, embora a dor<br />
se espalhasse rapidamente em<br />
seu rosto. Procurou atingi-lo no<br />
estômago, e depois nas costelas, e<br />
ainda no queixo.<br />
— Seu animal!<br />
O homem cambaleou e caiu<br />
sentado sobre o lixo. A arma<br />
não estava mais com ele. Provavelmente<br />
caíra de sua mão na<br />
hora do choque entre carros. PG<br />
aproximou-se, sacou e apontou a<br />
Pisou no acelerador, sentindo<br />
o coração bater mais forte no peito.<br />
Respirava com dificuldade...<br />
55<br />
arma em sua direção, com o dedo<br />
no gatilho.<br />
Entretanto, uma súbita consciência<br />
o impediu de matá-lo ali<br />
mesmo, sem testemunhas, por<br />
legítima defesa. Quem iria contestá-lo?<br />
Mas ele decidiu não fazê-lo.<br />
Um lapso no tempo o fez<br />
recordar-se de quando era apenas<br />
um estudante interessado nas<br />
descobertas da ciência.<br />
Lembrou-se de sua professora<br />
de biologia e das aulas de<br />
laboratório, onde observava pelo<br />
microscópio as criaturas invisíveis<br />
a olho nu atacando as células que<br />
desejavam destruir. Recordou-se<br />
de como ficava espantado ao ver<br />
que dezenas delas eram invadidas<br />
pelo inimigo, sucumbiam durante<br />
o processo, enquanto outras<br />
apenas resistiam ao ataque. Firmemente.<br />
Ela então lhe ensinara, com<br />
prazer científico, o que considerava<br />
uma reação apropriada da<br />
natureza, um milagre da vida: em<br />
qualquer população, de qualquer<br />
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