O contato com o desenho e as ilustrações - Fundação Catarinense ...
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+ cultura indígena + dança + documentário + teatro + tradução<br />
fundação catarinense de cultura (fcc) | número 74 | 2011<br />
“O <strong>contato</strong> <strong>com</strong> o <strong>desenho</strong> e <strong>as</strong> <strong>ilustrações</strong><br />
em relevo nos livros infantis dá acesso<br />
de maneira lúdica e prazerosa aos códigos<br />
de representação d<strong>as</strong> cois<strong>as</strong> do mundo...”<br />
mÁrcia cardeal, ilustradora
editorial<br />
2<br />
Escuta da<br />
intimidade<br />
Diários de campo. Crônic<strong>as</strong> da cidade. <strong>as</strong> narra-<br />
tiv<strong>as</strong> de Ô catarina! descobrem o menino cego<br />
que tateia a superfície da ilustração em Braille<br />
sem reconhecer a figuração da árvore e soletram<br />
o menino que, de olhos vendados, visita o mun-<br />
do fora do espaço, m<strong>as</strong> dentro do tempo, tocado<br />
apen<strong>as</strong> pelo tato. Registram o estudo e a arte de<br />
márcia Cardeal na conclusão de que para o cego<br />
de n<strong>as</strong>cença os objetos do mundo necessitam<br />
traduzir-se em form<strong>as</strong> simples — linha, círculo,<br />
quadrado —, sem mimese, sem detalhes.<br />
Outr<strong>as</strong> narrativ<strong>as</strong> dão voz a Kuaray Papa — gua-<br />
rani de morro dos Cavalos que lamenta, no lito-<br />
ral, a falta de terra “boa” para o plantio — e a<br />
seu ademir moranesi, de Saudades, que indica,<br />
n<strong>as</strong> terr<strong>as</strong> vazi<strong>as</strong> do Oeste catarinense, a falta<br />
de plantio por esc<strong>as</strong>sez de gente. Conhecemos<br />
o relato de Deise Mendonça, a bailarina filha de<br />
carteiro que atravessou o sul (Criciúma) e o nor-<br />
te (Joinville) para ganhar o reconhecimento em<br />
Santiago do Chile, e descobrimos o Erro, teatro<br />
de intervenção, e atravessamos Buenos aires <strong>com</strong><br />
o extraordinário Roberto arlt e o humaníssimo<br />
prazer de vadiar.<br />
Narrativ<strong>as</strong> pessoais que se jogam <strong>com</strong>o cart<strong>as</strong> da<br />
memória coletiva, página a página, <strong>com</strong>o a co-<br />
bra-coral de Schwanke que se distende na leitura<br />
do tempo e do espaço. Históri<strong>as</strong> da intimidade.<br />
Relatos pessoais. Escut<strong>as</strong>. n<br />
expediente<br />
17 DE<br />
NOVEMBRO<br />
DE 1889<br />
GOvernadOr dO estadO<br />
de santa catarina |<br />
João raimundo<br />
colombo<br />
vice-GOvernadOr |<br />
eduardo Pinho Moreira<br />
secretáriO de estadO de<br />
turisMO, cultura e esPOrte |<br />
cesar souza Junior<br />
ô catarina! | número 74 | 2011<br />
Presidente | Joceli de souza<br />
diretOra de difusãO artística | Mary Garcia<br />
diretOra de PreservaçãO dO PatriMôniO cultural |<br />
andréa Marques dal Grande<br />
diretOr adMinistrativO e financeirO | silvio Hencke<br />
cOnsultOr JurídicO | rodrigo Goeldner capella<br />
cOnsultOr de PrOJetOs esPeciais | Marco anselmo<br />
v<strong>as</strong>ques<br />
<strong>as</strong>sistente da Presidência | Mônica silva Prim<br />
<strong>as</strong>sessOra de cOMunicaçãO | Marilene rodrigues<br />
correia<br />
Gerente OPeraciOnal | saulo da silva<br />
Gerente de adMinistraçãO, finanç<strong>as</strong> e cOntabilidade |<br />
victor Knoll Zoschke<br />
acontece<br />
n PrÊmio marcantonio Vilaça no m<strong>as</strong>c<br />
“qual é o lugar do pequeno<br />
gesto de um artista de uma<br />
região periférica sem mercado?<br />
(...) qual o lugar daquilo<br />
que não se reduz à condição<br />
de mercadoria ou daquilo que<br />
se produz num lugar geográfico<br />
sem galeria?”, questiona o<br />
curador Paulo Herkenhoff, no<br />
livro “Já! emergênci<strong>as</strong> contemporâne<strong>as</strong>”<br />
(ed. edufPa,<br />
2008). situado fora do circuito<br />
“paulistocêntrico”, o lugar<br />
dos pequenos gestos é o Museu<br />
de arte de santa catarina,<br />
que abriga, até 12 de fevereiro<br />
de 2012, <strong>as</strong> exposições de aline<br />
di<strong>as</strong>, Julia amaral, raquel<br />
stolf e traplev, concebid<strong>as</strong><br />
especialmente para o espaço<br />
e adquirid<strong>as</strong> para o acervo do<br />
museu <strong>com</strong> recursos do Prêmio<br />
de artes Plástic<strong>as</strong> Marcantonio<br />
vilaça/2009, concedido pela<br />
funarte/Minc.<br />
“ficar de pé n. 2”, a exposição<br />
de aline di<strong>as</strong>, é formada pel<strong>as</strong><br />
instalações “colun<strong>as</strong> de papel”<br />
e “traç<strong>as</strong>”, a série de fotografi<strong>as</strong><br />
“Mofos” e o livro de <strong>desenho</strong>s<br />
“empilhamentos”. <strong>com</strong>o<br />
obsessivos e precários arranjos<br />
formais, “traç<strong>as</strong>” consiste na<br />
coleta e concentração de c<strong>as</strong>ulos<br />
vazios n<strong>as</strong> dependênci<strong>as</strong> do<br />
museu pela sua própria equipe<br />
técnica, o que estabelece um<br />
paradoxo: poucos c<strong>as</strong>ulos indicariam<br />
a <strong>as</strong>sepsia do espaço,<br />
m<strong>as</strong> impediriam a visibilidade<br />
da obra, a coleção de traç<strong>as</strong>.<br />
uma série de <strong>desenho</strong>s de fême<strong>as</strong><br />
de elefante <strong>com</strong> expressões<br />
de sonolência e cansaço<br />
originou “Menin<strong>as</strong>-elefante são<br />
blocos inseguros”, de Julia amaral,<br />
que se desdobra no inflável<br />
que ocupa desproporcionalmente<br />
o espaço expositivo. a falta<br />
de equivalência entre o volume<br />
enorme e a sua ausência de<br />
peso (porque a matéria é o ar)<br />
discute a subversão d<strong>as</strong> proprie-<br />
Gerente de lOGística e eventOs culturais / PrOJetOs |<br />
ivan carlos schmidt filho<br />
Gerente de lOGística e eventOs culturais / MarKetinG |<br />
luís carlos enzweiler<br />
Gerente de PatriMôniO cultural | Halley filipouski<br />
Gerente de Pesquisa e tOMbaMentO | elizangela<br />
cristina Oliveira<br />
Gerente d<strong>as</strong> Oficin<strong>as</strong> de arte | H<strong>as</strong>san felix de souza<br />
adMinistradOra dO Museu de arte de santa catarina |<br />
lygia Helena roussenq neves<br />
adMinistradOr dO Museu da iMaGeM e dO sOM | ronaldo<br />
dos anjos<br />
adMinistradOra dO Museu HistóricO de santa catarina |<br />
vanessa borovsky<br />
adMinistradOr da c<strong>as</strong>a dOs açOres Museu etnOGráficO |<br />
valério carioni<br />
adMinistraçãO dO Museu naciOnal dO Mar | fundação<br />
catarinense de cultura<br />
adMinistradOra da c<strong>as</strong>a de caMPO dO GOvernadOr HercíliO<br />
luZ | Marilóide da silva<br />
adMinistradOra dO teatrO álvarO de carvalHO | soraya<br />
fóes bianchini<br />
adMinistradOra da bibliOteca Pública dO estadO de santa<br />
catarina | Patrícia Karla firmino<br />
adMinistradOra dO centrO inteGradO de cultura | iara<br />
rosalina da silva<br />
adMinistradOra da escOlinHa de arte | alessandra<br />
Ghisi Zapelini<br />
adMinistradOr da c<strong>as</strong>a da alfândeGa | valério carioni<br />
secretária executiva dO cOnselHO estadual de cultura |<br />
Marita balbi<br />
editOres | dennis radünz e Jayro schmidt<br />
cOOrdenadOra | Mary Garcia<br />
cOnselHO editOrial | Jayro schmidt, Mary Garcia,<br />
Onor filomeno e Péricles Prade.<br />
revisãO | denize Gonzaga e Marcos Karro<br />
PlaneJaMentO GráficO e arte | ayrton cruz<br />
iMPressãO | Imprensa Oficial do Estado de Santa<br />
catarina (ioesc)<br />
tiraGeM | 8 mil exemplares<br />
distribuição gratuita<br />
Publicação da fundação<br />
catarinense de cultura<br />
aPOiO |<br />
entre em <strong>contato</strong><br />
dades físic<strong>as</strong>, reflexão recorrente<br />
na poética da artista.<br />
“<strong>as</strong>sonânci<strong>as</strong> de silêncios”, de<br />
raquel stolf, reúne os trabalhos<br />
“coleção”, série de silêncios gravados<br />
em diversos ambientes,<br />
“caixa de escuta”, dispositivo e<br />
experiência de imersão e sobreposição<br />
na audição individual<br />
de silêncios numa caixa branca<br />
suspensa, e “sala de escuta”,<br />
uma cabine audiométrica<br />
branca no espaço do M<strong>as</strong>c, <strong>com</strong><br />
isolamento acústico de 40 decibéis.<br />
a exposição do artista traplev,<br />
“Planos, validades e frustrações<br />
— sala 5”, é uma nova<br />
sala-dispositivo que <strong>com</strong>pleta<br />
<strong>as</strong> plataform<strong>as</strong> de dispersão,<br />
chamad<strong>as</strong> traplev Orçamentos.<br />
O trabalho discute a “permissividade<br />
do circuito” <strong>com</strong> a abordagem<br />
de “prátic<strong>as</strong> específic<strong>as</strong><br />
acerca dos processos de negociações”,<br />
segundo o artista.<br />
Para amaral, di<strong>as</strong>, stolf e traplev<br />
a política habitual de formação<br />
de acervos públicos, b<strong>as</strong>eada em<br />
doações esporádic<strong>as</strong> e na incorporação<br />
de obr<strong>as</strong> premiad<strong>as</strong> por<br />
salões de arte, está superada,<br />
sendo que o conjunto d<strong>as</strong> exposições<br />
premiad<strong>as</strong> no Marcantonio<br />
vilaça aponta para um novo modelo,<br />
no c<strong>as</strong>o, o da aquisição por<br />
meio da concepção de obr<strong>as</strong> específic<strong>as</strong><br />
para o acervo do M<strong>as</strong>c.<br />
Pequenos gestos para <strong>com</strong>por<br />
um novo museu.<br />
onde | Museu de arte de<br />
santa catarina (avenida irineu<br />
bornhausen, 5.600. agronômica<br />
— florianópolis). quandO: de<br />
28 de outubro de 2011 a 12 de<br />
fevereiro de 2012, <strong>com</strong> visitação<br />
de terça a sexta, d<strong>as</strong> 10 às 20h, e,<br />
nos sábados, domingos e feriados,<br />
d<strong>as</strong> 11 às 17h. conversa <strong>com</strong><br />
Paulo Herkenhoff no dia 19 de<br />
janeiro de 2012, às 15h, no M<strong>as</strong>c.<br />
infOrMaçÕes: (48) 3953-2324/<br />
3953-2319 ou .<br />
fundaçãO catarinense de cultura<br />
av. Governador irineu bornhausen,<br />
5.600 — agronômica — ceP 88025-202 —<br />
florianópolis — santa catarina<br />
E-mail | ocatarina@fcc.sc.gov.br<br />
fOne | (48) 3953-2312<br />
SitE | www.fcc.sc.gov.br
quando tudo ainda é schwanke<br />
liVro “Percurso do círculo” reúne documentos Pessoais, reflexões<br />
e obr<strong>as</strong> inédit<strong>as</strong> do extraordinÁrio artista do “cubo de luz”<br />
monique Vandresen<br />
conheci luiz Henrique schwanke (1951-1992) quan-<br />
do trabalhei na editoria de cultura do jornal “O esta-<br />
do”, no final da década de 1980. De vez em quando<br />
me chegavam envelopes gordos, em que os endereços<br />
eram escritos <strong>com</strong> uma caneta qu<strong>as</strong>e roxa, de ponta<br />
muito fina, geralmente <strong>com</strong> um último lembrete rabiscado<br />
depois que a carta já havia sido selada. dentro,<br />
nos catálogos, nos textos, e em pequenos bilhetinhos,<br />
tudo era schwanke. nenhum espaço em branco era perdoado.<br />
O livro “Percurso do círculo: schwanke — séries,<br />
múltiplos e reflexões” é mais um desses envelopes.<br />
Organizado por Kátia Klock, ivi br<strong>as</strong>il e vanessa<br />
schultz, o livro tem edição bilíngue — português/inglês<br />
—, foi realizado <strong>com</strong> recursos do edital de cultura<br />
elisabete anderle e está sendo distribuído gratuitamente<br />
às bibliotec<strong>as</strong> de santa catarina. lido <strong>com</strong> prazer,<br />
“Percurso” é o perfil de um criador múltiplo e que<br />
foi referência n<strong>as</strong> artes visuais br<strong>as</strong>ileir<strong>as</strong>. e dentro<br />
da contracapa há a primeira surpresa: um dvd <strong>com</strong> o<br />
belo documentário “À luz de schwanke”, de ivi br<strong>as</strong>il<br />
e Maurício venturi.<br />
estão em “Percurso” a repetição de form<strong>as</strong>, a paixão<br />
por caravaggio, os “linguarudos”. textos pessoais<br />
deixados em cadernos e diários questionam a relatividade<br />
do conhecimento. “arte é ‘qualquer coisa’, dependendo<br />
apen<strong>as</strong> dos mecanismos do processo mental<br />
O documentário “espírito de porco” (52 minutos,<br />
2009), de chico faganello e dauro ver<strong>as</strong>, aborda<br />
meio ambiente e <strong>com</strong>portamento humano a partir<br />
da insuspeitada ótica do suíno. Esse e outros filmes<br />
“de fronteira” de faganello, <strong>com</strong>o o longa-metragem<br />
“Muamba” (78 min., 2010), estão disponíveis em .<br />
Os filmes podem ser baixados<br />
gratuitamente ou vistos em linha (streaming), <strong>com</strong><br />
acesso por meio de cad<strong>as</strong>tro simples. seis curt<strong>as</strong><br />
infantis — <strong>com</strong>o “O mistério do boi de mamão”, de<br />
luiza lins — são acessados no canal Mostra infantil,<br />
<strong>com</strong>pletando a relevante proposta de democratização<br />
da produção audiovisual catarinense.<br />
em processar ‘qualquer coisa’ no <strong>as</strong>pecto da sensação<br />
(...)”, afirma Schwanke, na página 44, respondendo<br />
a enquete sobre a arte em santa catarina. Obr<strong>as</strong><br />
inédit<strong>as</strong> revelam um desconhecido e retomam a<br />
discussão em torno da poética do artista. O recorte<br />
de “schwankes” pesquisados em diários,<br />
cart<strong>as</strong> e cadernos é a maior riqueza desse livro<br />
de arte. Há um vínculo entre a sua arte e a<br />
espiritualidade que, acredito, esteja sendo<br />
explorado pela primeira vez aqui.<br />
além dos textos do artista, “Percurso”<br />
apresenta ensaios e artigos de agnaldo fari<strong>as</strong>,<br />
frederico Morais, fabio Magalhães<br />
e néri Pedroso que vão desenhando —<br />
para quem entra em <strong>contato</strong> <strong>com</strong> a<br />
obra do joinvillense pela primeira<br />
vez — os caminhos de schwanke<br />
na história da arte br<strong>as</strong>ileira. algum<strong>as</strong><br />
abordagens desvendam <strong>as</strong><br />
<strong>as</strong>sociações elucidativ<strong>as</strong>, especialmente<br />
do ponto de vista da filosofia<br />
da arte. O volume traz ainda um<br />
delicioso texto do escritor e crítico Harry<br />
laus (1922-1992), publicado no “diário catarinense”,<br />
em 1988, quando “br<strong>as</strong>ilidade” propunha<br />
“uma irônica desmistificação do monumento” e garantia<br />
a presença do artista no x salão nacional de artes<br />
Plástic<strong>as</strong>, no rio de Janeiro. n<br />
“a chave do tamanho”, de Monteiro lobato, e<br />
“a verdadeira história dos três porquinhos”, de Jon<br />
scieszka, estão entre <strong>as</strong> 84 publicações resenhad<strong>as</strong><br />
por colaboradores do Prolij (Programa institucional<br />
de literatura infantil e Juvenil da universidade univille),<br />
n<strong>as</strong> categori<strong>as</strong> infantil, juvenil, infanto-juvenil,<br />
narrativa visual e teoria literária. Organizado por<br />
alencar schueroff e sueli de souza cagneti, “livro<br />
dos livros” teve a 2. a edição lançada <strong>com</strong> recursos do<br />
fundo Municipal de incentivo à cultura de Joinville.<br />
d<strong>as</strong> rar<strong>as</strong> obr<strong>as</strong> de referência para <strong>as</strong> literatur<strong>as</strong> infantil<br />
e juvenil. informações em .<br />
“cObra cOral”, PlásticO e<br />
cabO de açO, 30 MetrOs. Obra<br />
MOntada nO JardiM dO Museu<br />
de arte de JOinville, eM 2008<br />
texto | monique vandresen<br />
é jornalista, professora do curso de Moda e diretora de ensino do<br />
ceart/udesc.<br />
imagens | gill konell<br />
filmes que voam livro dos livros portal catarina<br />
uma realização do nupill — núcleo de Pesquis<strong>as</strong><br />
em informática, literatura e linguística da ufsc —,<br />
o “Portal catarina” é o maior acervo digital da literatura<br />
produzida em santa catarina. O banco de<br />
dados reúne informações sobre 1.399 obr<strong>as</strong> de 311<br />
autores dos séculos xix e xx e inclui coleção rara<br />
de 2.937 documentos de acervos pessoais de escritores<br />
e 95 textos integrais em domínio público. coordenado<br />
pelo poeta e professor alckmar luiz dos<br />
santos, disponibiliza os acervos de cruz e sousa (obra<br />
<strong>com</strong>pleta), araújo figueredo, virgílio várzea, ernani<br />
ros<strong>as</strong>, entre outros, e pode ser acessado em ou .<br />
artes visuais<br />
3<br />
ô catarina! | número 74 | 2011
ilustração tátil<br />
4<br />
desenhar o invisível<br />
POntilHadO nO cOntOrnO<br />
da fiGura nãO revela aO<br />
ceGO <strong>as</strong> fOrM<strong>as</strong> dO MundO<br />
conclusões da Pesquisa “Ver <strong>com</strong> <strong>as</strong> mãos”, de mÁrcia cardeal,<br />
se traduzem n<strong>as</strong> <strong>ilustrações</strong> tÁteis da mostra “mãos Para Ver”<br />
Patrícia galelli<br />
ô catarina! | número 74 | 2011<br />
O livro colorido estava <strong>com</strong> Márcia<br />
quando a menina, miúda demais para<br />
os seus oito anos, o toma d<strong>as</strong> mãos.<br />
ela p<strong>as</strong>seia os dedos pela capa — ali,<br />
decifra título, nome da autora e do<br />
ilustrador, enquanto os olhos de Márcia<br />
procuram lógica no labirinto de pontos<br />
minúsculos, codificado por Louis Braille<br />
há mais de um século. a habilidade<br />
d<strong>as</strong> crianç<strong>as</strong> ceg<strong>as</strong> para ler o amontoado<br />
de pontos esculpidos no papel sempre<br />
a impressionou.<br />
M<strong>as</strong> quando, ao abrir o livro, a menina<br />
p<strong>as</strong>sa <strong>as</strong> mãos sobre o <strong>desenho</strong> em<br />
relevo sem entender o que significam<br />
aquel<strong>as</strong> linh<strong>as</strong> pontilhad<strong>as</strong>, Márcia se<br />
dá conta do que <strong>as</strong> separa: “entra-se<br />
numa zona de desconforto, quando,<br />
habituados a tod<strong>as</strong> <strong>as</strong> referênci<strong>as</strong> visuais<br />
da ilustração, pensamos numa<br />
imagem para a criança sem acesso à visualidade”,<br />
diz. <strong>com</strong> o livro n<strong>as</strong> mãos,<br />
a menina insiste, tentando obter na<br />
ponta dos dedos uma resposta. diante<br />
do silêncio do papel, diz que não sabe<br />
que forma é aquela.<br />
a ilustradora Márcia cardeal, de<br />
brusque, analisou o reconhecimento<br />
d<strong>as</strong> figur<strong>as</strong> em relevo de publicações<br />
considerad<strong>as</strong> inclusiv<strong>as</strong> no decorrer<br />
da pesquisa “ver <strong>com</strong> <strong>as</strong> mãos — a<br />
ilustração tátil em livros para crianç<strong>as</strong><br />
ceg<strong>as</strong>”, realizada para o mestrado<br />
em artes visuais no ceart/udesc, de<br />
2007 a 2009, a convite da orientadora,<br />
professora Maria lúcia batezat<br />
duarte. Os livros infantis pesquisados<br />
foram “a bruxa mais velha do mundo”<br />
e “Firirim Finfim”, de Elizete Lisboa<br />
— ilustrados por José carlos aragão<br />
e anna raquel, respectivamente —,<br />
“um presente muito especial”, de Patrícia<br />
engel secco, <strong>com</strong> <strong>ilustrações</strong> de<br />
edu a. engel, e “um mundinho para<br />
todos”, escrito e ilustrado por ingrid<br />
bellinghausen.<br />
Para encontrar respost<strong>as</strong>, Márcia fez<br />
a análise da verbalização de crianç<strong>as</strong><br />
ceg<strong>as</strong> expost<strong>as</strong> à experiência tátil <strong>com</strong><br />
<strong>as</strong> <strong>ilustrações</strong> em relevo, categorizou e<br />
interpretou os resultados. “na seleção<br />
dos participantes [da pesquisa], du<strong>as</strong><br />
característic<strong>as</strong> restritiv<strong>as</strong> foram necessári<strong>as</strong><br />
para garantir eficácia na investigação:<br />
a faixa etária e o diagnóstico<br />
bateria e cavaquinHO <strong>as</strong>suMeM Outr<strong>as</strong> fOrM<strong>as</strong> nO desenHO da Menina ceGa<br />
clínico (cegueira precoce, sem resíduo<br />
de memória visual).”<br />
desse estudo, e a convite do serviço<br />
social do <strong>com</strong>ércio de santa catarina<br />
(sesc/sc), surgiu o processo prático/<br />
experimental para aplicar a conclusão<br />
da pesquisa por meio da mostra itinerante<br />
“Mãos para ver”, que circulou por<br />
blumenau, brusque, concórdia, criciúma,<br />
itajaí, Jaraguá do sul, rio do sul,<br />
tubarão e xanxerê. três textos de Malu<br />
batezat, a orientadora, foram ilustrados<br />
por Márcia: “a família enroladinha”,<br />
“O sonho redondo de Manu” e “a c<strong>as</strong>a<br />
quadrada”. cada história de batezat<br />
inspirou cinco <strong>ilustrações</strong> pintad<strong>as</strong> em<br />
tela e expost<strong>as</strong> <strong>com</strong> a transcrição em<br />
braille ao lado d<strong>as</strong> representações táteis<br />
dos <strong>desenho</strong>s.
menino vendado fora do espaço<br />
O menino vê. sai da escola para vi-<br />
sitar a exposição, na <strong>com</strong>panhia da pro-<br />
fessora e dos coleg<strong>as</strong>. O menino chega<br />
à galeria de arte e é barrado. antes de<br />
entrar, uma venda envolve sua cabeça<br />
e ele perde a noção do espaço. agora<br />
está apen<strong>as</strong> no tempo. ergue os braços<br />
finos e v<strong>as</strong>culha o vazio. Cuidadosamente,<br />
tenta encontrar a mão do outro. ele<br />
sente a mão alheia num dos ombros e<br />
estende a sua ao colega da frente. O<br />
monitor avisa: “nesta exposição, é permitido<br />
tocar n<strong>as</strong> obr<strong>as</strong>.”<br />
ao fechar os olhos e se lançar, receoso,<br />
a esse lugar de cois<strong>as</strong> desconhecid<strong>as</strong>,<br />
o menino aprende um mundo em<br />
sequência. estritamente temporal, o<br />
reconhecimento tátil é fragmentado<br />
e mais lento. “Percebe-se que a <strong>com</strong>provação<br />
da presença do objeto acontece<br />
apen<strong>as</strong> enquanto ele puder ser<br />
ouvido ou tocado”, <strong>com</strong>enta Márcia na<br />
pesquisa, “ao p<strong>as</strong>so que, para os que<br />
enxergam, a imagem vista é sempre totalizadora,<br />
instantânea, espacial e integradora”.<br />
enquanto toca <strong>as</strong> obr<strong>as</strong>, nos<br />
pontos esculpidos em branco, o menino<br />
não vê — e surgem na escuridão imagens<br />
bagunçad<strong>as</strong>, que ele cria a cada toque<br />
ou tentativa de leitura do que está conhecendo<br />
pel<strong>as</strong> mãos.<br />
desvendamento<br />
da linha<br />
a família enroladinha (texto de maria<br />
lúcia batezat duarte e <strong>ilustrações</strong><br />
de márcia cardeal) — era uma vez uma<br />
família enroladinha que morava em um<br />
saquinho de pano. era uma família<br />
de três irmãs bem iguaizinh<strong>as</strong>.<br />
dona enrola, dona rola e<br />
dona bola...<br />
O mundo de quem não enxerga<br />
também é povoado por imagens. “el<strong>as</strong><br />
vão se formando através de múltiplos<br />
caminhos. Ora são <strong>as</strong> impressões táteis,<br />
no <strong>contato</strong> direto <strong>com</strong> o objeto.<br />
Outr<strong>as</strong> vezes são <strong>as</strong> informações, abstrações<br />
que vão se processando e se<br />
acumulando. M<strong>as</strong> ess<strong>as</strong> imagens também<br />
se formam simplesmente a partir<br />
da capacidade inventiva que há em<br />
cada ser humano”, afirma a escritora<br />
elizete lisboa, autora de “firirim finfim”,<br />
cega desde os nove anos.<br />
a coordenação entre tato e audição<br />
é necessária para a criança cega estruturar<br />
imagens e conceitos. não é possível<br />
dar substancialidade às cois<strong>as</strong> apen<strong>as</strong><br />
pelo som. “<strong>as</strong> qualidades táteis dos<br />
objetos, <strong>com</strong>o textura, temperatura,<br />
contorno, tamanho e peso necessitam<br />
ser aprendid<strong>as</strong>”, aponta Márcia. são informações<br />
que chegam pelo toque, pelo<br />
som, pelo cheiro e pela soma de todos<br />
esses sentidos.<br />
da experimentação de não ver, o<br />
menino fala mais — de sobressalto e<br />
curioso, quer saber o que a mão tentou,<br />
m<strong>as</strong> também não viu: “o que é?”.<br />
O monitor desata a venda — <strong>as</strong> form<strong>as</strong><br />
colorid<strong>as</strong> d<strong>as</strong> <strong>ilustrações</strong> se espelham na<br />
retina e ele retorna ao espaço-tempo.<br />
MOstra “MãOs Para ver” — É PerMitidO tOcar n<strong>as</strong> Obr<strong>as</strong><br />
“A coordenação entre tato e audição<br />
é necessária para a criança cega<br />
estruturar imagens e conceitos.<br />
Não é possível dar substancialidade<br />
às cois<strong>as</strong> apen<strong>as</strong> pelo som.”<br />
ilustraçãO de Márcia (nO altO) É lida PelO ceGO nO esqueMa GráficO (aciMa) que rePete sua fOrMa, liMPa e seM detalHe<br />
ilustração tátil<br />
5<br />
ô catarina! | número 74 | 2011
ilustração tátil<br />
6<br />
ô catarina! | número 74 | 2011<br />
ceGa de n<strong>as</strong>cença, criança Pesquisada nãO recOnHece<br />
árvOre na ilustraçãO eM relevO<br />
forma estranha<br />
ao corpo da palavra<br />
O menino não reconhece macaco,<br />
sol e nuvens nem por adivinhação. na<br />
bate-papo, que provavelmente para ele<br />
ainda não possuía um significado concre-<br />
página do livro, a copa de uma árvore to”, observa Márcia.<br />
n<strong>as</strong>ce dos pontos em relevo semeados Para elizete lisboa, é <strong>com</strong>um o cego<br />
aleatoriamente em seu contorno — uma precisar de ajuda para entender uma<br />
copa de pontos. O menino toca a figura, ilustração em relevo. M<strong>as</strong> há de se con-<br />
m<strong>as</strong> recorre ao texto em braille. ele se siderar que não b<strong>as</strong>ta criar relevo nos<br />
arrisca a dizer: “ah, é um bate-papo, contornos da figura. “As perspectiv<strong>as</strong><br />
isso daqui é um bate-papo!”, depois de são a grande barreira, às vezes intrans-<br />
ter lido o texto: “e todos foram juntos poníveis, sobretudo para quem nunca<br />
bater papo no recanto, lá onde o rio enxergou.” O fato é que a ajuda para<br />
<strong>com</strong>eça.” ele é uma d<strong>as</strong> treze crianç<strong>as</strong> identificar um <strong>desenho</strong> não tira o prazer<br />
ceg<strong>as</strong> de n<strong>as</strong>cença, entre oito e dezes- de vê-lo <strong>com</strong> <strong>as</strong> mãos. “eu nunca pude<br />
seis anos, que participaram da pesquisa esquecer o rato e o papagaio que esta-<br />
de campo da ilustradora Márcia cardeal. vam desenhados no primeiro livro que li,<br />
a palavra “bate-papo”, até então vazia<br />
de sentido para o menino, recebeu<br />
um significado — tem a forma do relevo<br />
da copa de árvore. “Pressupomos<br />
que talvez ele tenha encontrado<br />
em braille”, lembra elizete.<br />
uma solução para conceituar, ao<br />
mesmo tempo, du<strong>as</strong> cois<strong>as</strong>: a<br />
primeira, aquela forma ainda<br />
estranha para ele, que não<br />
decifração<br />
do círculo<br />
conseguiu relacionar a nada<br />
o sonho redondo de manu — manu<br />
que conhecesse; a outra foi estava muito cansada. tinha jogado bola<br />
dar corporeidade à palavra de dia, de noite, de madrugada. então<br />
foi dormir e sonhou um sonho redondo<br />
<strong>com</strong>o sua bola...<br />
esculpir o branco,<br />
eis a questão<br />
charles barbier e valentin Haüy adaptaram, no século xix, os métodos<br />
táteis usados em treinamentos militares noturnos, para ensinar alunos do instituto<br />
de cegos de Paris a ler e a escrever. um deles, o francês louis braille,<br />
cego desde os três anos, sistematizou a técnica de esculpir o branco, a hoje<br />
conhecida escrita em relevo. são seis pontos, <strong>com</strong> os quais é possível fazer 63<br />
<strong>com</strong>binações — podem representar letr<strong>as</strong> simples ou acentuad<strong>as</strong>, pontuações,<br />
números, sinais algébricos e not<strong>as</strong> musicais. braille enfrentou cerca de vinte<br />
anos de resistência para que sua forma de escrita fosse aceita e oficializada.<br />
O instituto francês recebeu alunos cegos do mundo todo. entre eles, o poeta<br />
br<strong>as</strong>ileiro álvares de azevedo, que trouxe a técnica para o br<strong>as</strong>il. <strong>com</strong> o apoio<br />
de d. Pedro ii, foi criada no país, em 1858, a primeira escola para cegos, o<br />
instituto benjamin constant.
decodificação<br />
do quadrado<br />
a c<strong>as</strong>a quadrada — manu e ariel estavam<br />
brincando no sítio, no meio do<br />
bambuzal. encontraram dona rola, seu<br />
marrabo e a coelha corelha, todos muito<br />
atarefados, sem tempo para conversar...<br />
todo <strong>desenho</strong> é diferente da “coisa”<br />
a menina cega de n<strong>as</strong>cença tem 14<br />
anos e gosta de música. ela desenha. ela<br />
disse que um <strong>desenho</strong> é bem diferente<br />
da “coisa”. É difícil para a menina reconhecer<br />
a forma de qualquer coisa que<br />
tenha pegado pouc<strong>as</strong> vezes n<strong>as</strong> mãos. O<br />
prato do lado esquerdo seria um círculo;<br />
um risco desce, é o pedal; a caixa também<br />
é um círculo, o bumbo é outro, e o<br />
surdo também. Há muitos círculos numa<br />
bateria. “<strong>com</strong> certeza, eu não iria saber<br />
que é uma bateria, a de verdade tem<br />
mais cois<strong>as</strong>”, ela conclui. (ver página 4)<br />
M<strong>as</strong> a menina conhece a diferença<br />
entre a forma tridimensional do objeto<br />
e a representação gráfica, planificada e<br />
bidimensional. “ela relaciona a forma<br />
da bateria e do cavaquinho a uma figura<br />
geométrica e em seu vocabulário há um<br />
repertório gráfico adquirido provavelmente<br />
n<strong>as</strong> aul<strong>as</strong> de <strong>desenho</strong>, o que a<br />
possibilita situar, conhecer, <strong>com</strong>parar,<br />
nomear form<strong>as</strong> e <strong>com</strong>preender melhor<br />
o que a cerca, apesar de não ver”, explica<br />
Márcia.<br />
a experiência <strong>com</strong> o <strong>desenho</strong> é um<br />
dos elementos facilitadores para a leitura<br />
tátil d<strong>as</strong> <strong>ilustrações</strong> em relevo. O<br />
outro é a esquematização da forma, ou<br />
seja, quanto mais simples e redundante<br />
for, maior é o grau de reconhecimento<br />
pelo tato. Para Malu batezat, conforme<br />
sua pesquisa <strong>com</strong> <strong>desenho</strong> para crianç<strong>as</strong><br />
ceg<strong>as</strong>, “o esquema gráfico é qu<strong>as</strong>e uma<br />
palavra, um nome, a identificação desenhada<br />
de um objeto. não é arte nem<br />
poesia. É o substituto mais direto para a<br />
visualidade desse objeto”.<br />
resultado da pesquisa “ver <strong>com</strong> <strong>as</strong><br />
mãos”, Márcia cardeal também constatou<br />
que a legibilidade tátil da imagem<br />
está relacionada <strong>com</strong> a configuração da<br />
forma, ou seja, a leitura melhor se realiza<br />
quando a linha de contorno é <strong>com</strong>ple-<br />
“A leitura tátil melhor se realiza<br />
quando a linha de contorno<br />
é <strong>com</strong>pleta e quando a forma<br />
se repete e é simplificada, limpa<br />
e sem detalhes.”<br />
ta, quando existe a repetição da forma<br />
e, também, quando a forma é simplificada,<br />
limpa e sem detalhes.<br />
Por outro lado, <strong>as</strong> form<strong>as</strong> muito<br />
grandes, que não cabem na mão, <strong>as</strong> em<br />
perspectiva ou de contorno irregular, ou<br />
<strong>as</strong> <strong>com</strong> espaços entre os pontos, dificultam<br />
a identificação dos <strong>desenho</strong>s pelos<br />
sentidos de quem tem mãos para ver.<br />
<strong>com</strong>o conclui a pesquisadora, “o<br />
<strong>contato</strong> <strong>com</strong> o <strong>desenho</strong> e <strong>as</strong> <strong>ilustrações</strong><br />
em relevo nos livros infantis dão acesso<br />
de maneira lúdica e prazerosa aos códigos<br />
de representação d<strong>as</strong> cois<strong>as</strong> do<br />
mundo, que, apesar de fazerem parte<br />
de um contexto dominado pela visualidade,<br />
sempre estarão presentes no co-<br />
Márcia cardeal ensina desenHO Para<br />
crianç<strong>as</strong> nO JardiM dO MeMOrial<br />
attiliO fOntana, cOncórdia<br />
tidiano d<strong>as</strong> crianç<strong>as</strong> ceg<strong>as</strong>”. Ou, talvez,<br />
<strong>com</strong>o escreveu José saramago, “só num<br />
mundo de cegos <strong>as</strong> cois<strong>as</strong> serão o que<br />
realmente são”.<br />
Para Márcia cardeal, que ilustrou o<br />
primeiro livro aos 16 anos e experimentou<br />
desde a infância o prazer de ler e o<br />
alumbramento da conjugação de texto<br />
e imagem, “desenhar se tornou a principal<br />
ponte para o outro”. Pontes de <strong>desenho</strong>,<br />
<strong>com</strong>o olhos para tocar o menino<br />
que experimenta um mundo em que <strong>as</strong><br />
cop<strong>as</strong> de árvore querem dizer bate-papo,<br />
ou mãos para ver a menina miúda<br />
que p<strong>as</strong>sa os dedos no relevo e <strong>com</strong>eça<br />
a conhecer o mundo por detrás, dentro<br />
e através d<strong>as</strong> linh<strong>as</strong> pontilhad<strong>as</strong>. n<br />
textos | patrícia galelli<br />
é escritora e jornalista.<br />
imagens | patrícia galelli e divulgação<br />
ilustração tátil<br />
7<br />
ô catarina! | número 74 | 2011
cultura indígena<br />
8<br />
ô catarina! | número 74 | 2011<br />
À MarGeM da br-101 sul,<br />
c<strong>as</strong>a dO artesanatO exPÕe<br />
cultura ancestral<br />
guaranis do Morro dos cavalos<br />
escultura em madeira e cestaria são Vitais<br />
na identidade da aldeia indígena em Palhoça<br />
marliese Vicenzi<br />
É conhecida por todos a imagem d<strong>as</strong> mulheres guarani vendendo<br />
artesanato n<strong>as</strong> ru<strong>as</strong> do centro de florianópolis, a<strong>com</strong>panhad<strong>as</strong> de su<strong>as</strong><br />
crianç<strong>as</strong>. Para os meninos e menin<strong>as</strong> guarani, aprender a fazer artesanato<br />
faz parte dos processos de educação indígena. a seleção e a coleta de<br />
material na mata, o aprendizado d<strong>as</strong> técnic<strong>as</strong> e a produção do artesanato<br />
fazem parte do cotidiano da aldeia em Palhoça e envolvem saberes ancestrais<br />
ligados à religião, à saúde e aos rituais de p<strong>as</strong>sagem.<br />
“antigamente, os índios faziam artesanato não pra vender, m<strong>as</strong> pra<br />
ele utilizar, agora fazem pra vender porque a gente precisa de dinheiro<br />
pra <strong>com</strong>er, porque não temos mais terra boa pra plantar”, explica Kuaray<br />
Papa, jovem guarani do Morro dos cavalos. e são <strong>as</strong> mulheres que na cidade<br />
buscam a subsistência vendendo seu trabalho e de seus familiares.<br />
enquanto, na aldeia, mulheres e homens guarani vivem e transmitem uma<br />
cultura material e simbólica herdada de seus antep<strong>as</strong>sados, na cidade são<br />
vistos <strong>com</strong>o “os guarani que estão perdendo sua cultura”. Refletir sobre<br />
essa problemática abre nov<strong>as</strong> perspectiv<strong>as</strong> acerca da invisibilidade dess<strong>as</strong><br />
mulheres e desses homens produtores de arte e de cultura. n
“Os Guarani atuais chegaram ao litoral do Br<strong>as</strong>il no início do século XX,<br />
provenientes do interior da américa do Sul (Paraguai, argentina e do estado<br />
br<strong>as</strong>ileiro do Mato Grosso do Sul), forçados pela inv<strong>as</strong>ão de su<strong>as</strong> terr<strong>as</strong> por<br />
colonizadores, por conflitos <strong>com</strong> outros autóctones, e, principalmente, em busca<br />
de Yvy mara ey, a “Terra sem Mal”, um paraíso mítico localizado além do oceano.”<br />
aldo litaiff, Phd em antropologia.<br />
cultura indígena<br />
texto e imagens | marliese vicenzi<br />
é arte-educadora, cientista social e trabalhou junto aos guarani de Morro dos cavalos,<br />
<strong>com</strong>o membro do núcleo de estudos dos Povos indígen<strong>as</strong> (nePi) do departamento de<br />
antropologia/ufsc. 9<br />
ô catarina! | número 74 | 2011
documentário<br />
10<br />
ô catarina! | número 74 | 2011<br />
c<strong>as</strong>semiro Vitorino<br />
e ilka goldschmidt<br />
Onde mora a solidão<br />
Pegar a estrada. fazer o caminho<br />
inverso ao de muitos jovens. O ca-<br />
minho da roça. O caminho<br />
escolhido pela moça da<br />
cidade que decidiu<br />
c<strong>as</strong>ar <strong>com</strong> um agri-<br />
cultor. era entar-<br />
decer de setembro<br />
quando a noiva pe-<br />
gou a estrada rumo à<br />
linha barão do triunfo.<br />
Pela janela do carro, os<br />
verdes campos, apesar da<br />
poeira levantada rumo à<br />
igreja. uma mistura de sonhos<br />
que contrapõe a realidade<br />
de muit<strong>as</strong> <strong>com</strong>unidades<br />
rurais do interior<br />
do Oeste catarinense,<br />
onde c<strong>as</strong>amentos custam<br />
acontecer. <strong>as</strong> moç<strong>as</strong><br />
vão para a cidade,<br />
não voltam. Os rapazes<br />
ficam.<br />
O documentário<br />
“celibato no campo”<br />
(2010, 52 minutos)<br />
<strong>com</strong>eça <strong>com</strong> um ca-<br />
samento para falar de solidão. a história<br />
se p<strong>as</strong>sa no campo, lugar de paisagens<br />
e de sons relaxantes, m<strong>as</strong> onde a rotina<br />
é dura e o trabalho, árduo. rotina que<br />
parece não mudar, pelo menos não o<br />
suficiente para fazer querer ficar. Três<br />
verbos são precisos. será? nem tão preciso,<br />
nem todos querem ir, m<strong>as</strong>, <strong>com</strong>o<br />
diz a música: “O que dizer se alguém<br />
quis sonhar e aqui não ficou / Saudades<br />
vai, saudades vem / e eu aqui dentro<br />
de mim / É bom estar só, m<strong>as</strong> é melhor<br />
ter alguém.”<br />
a trilha sonora de “celibato no campo”,<br />
de autoria dos músicos Márcio Pazin<br />
e carol Pereyr, mais do que <strong>as</strong> históri<strong>as</strong><br />
do documentário, traduz a trilha<br />
que seguimos em busca do filme que<br />
sonhamos fazer. Afinal, a vida que vale<br />
a pena é feita de sonhos, e para chegar<br />
até lá, pegar a estrada, foi preciso um<br />
misto de razão e de fé, <strong>com</strong>o diz a letra<br />
da música. um tema, um projeto, um<br />
edital. três substantivos precisos. sim,<br />
se não fosse a existência de um edital<br />
— o Prêmio cinemateca catarinense/<br />
fundação catarinense de cultura, que<br />
selecionou esse projeto na edição de<br />
2008 — que destina recursos públicos<br />
para a produção, esse documentário dificilmente<br />
existiria. Não <strong>com</strong> a aborda-<br />
gem des<strong>com</strong>prometida da percepção de<br />
instituições públic<strong>as</strong> que já trabalham<br />
<strong>com</strong> a agricultura.<br />
de linha em linha, costuramos o cotidiano<br />
de famíli<strong>as</strong> de agricultores do Oeste<br />
de santa catarina. Produtores de leite,<br />
de milho, de suínos. Homens e mulheres<br />
que discutem política e sabem exatamente<br />
porque os jovens não querem ficar na<br />
roça, m<strong>as</strong> dificilmente são ouvidos. Linha<br />
são valentin (no município de seara), linha<br />
coxilha (saudades) e linh<strong>as</strong> barão<br />
do triunfo e serra alta (formosa do sul).<br />
nesses lugares, tão distantes d<strong>as</strong> grandes<br />
capitais, <strong>as</strong> pesso<strong>as</strong> têm muito a dizer e<br />
por isso não foi difícil entrar em su<strong>as</strong> vid<strong>as</strong><br />
e descobrir seus sonhos e frustrações.<br />
Personagens dispostos a falar e uma equipe<br />
decidida a ouvir.<br />
encontramos homens que falam da<br />
solteirice, da falta de moç<strong>as</strong> para c<strong>as</strong>ar,<br />
do sonho em constituir família. Homens<br />
que lavam a roupa, cozinham, cuidam do<br />
pai e da mãe, não se sentem constrangidos<br />
em deixar mostrar a solidão e reconhecer<br />
que “não é fácil, m<strong>as</strong>...”. sabíamos,<br />
desde o momento em que entramos<br />
na c<strong>as</strong>a dess<strong>as</strong> pesso<strong>as</strong>, que a nossa estada<br />
não deveria alterar a vida del<strong>as</strong>, m<strong>as</strong> o<br />
filme poderia. Como seria encarar na tela<br />
grande a sua própria história?<br />
almoço mudo | Jandir<br />
e avelinO, Os irMãOs<br />
bOllis, cOnviveM n<strong>as</strong><br />
sOlidÕes GeMinad<strong>as</strong> da<br />
linHa sãO valentin<br />
diretores do documentÁrio “celibato no camPo” refazem os caminhos de quem<br />
ficou no silÊncio de formosa do sul, seara e saudades, no oeste catarinense<br />
a história de homens que querem<br />
ficar na roça, m<strong>as</strong> não têm perspectiva<br />
de c<strong>as</strong>ar para dar continuidade à agricultura<br />
familiar. sem família, sem agricultura,<br />
sem sonhos. M<strong>as</strong>, e quem sonha<br />
e sai. O que dizer? E quem fica e sonha?<br />
não poderíamos julgar, não queríamos<br />
machucar e nem iludir. difícil? nem tanto,<br />
afinal, quem parecia <strong>com</strong>plicar éramos<br />
nós. Para os personagens de “celibato”<br />
tudo parecia mais fácil, talvez<br />
por isso o sorriso seja tão frequente...<br />
os c<strong>as</strong>agranda e os moranesi<br />
foi <strong>com</strong> sorrisos e não lamentos que<br />
pensamos em expor ess<strong>as</strong> históri<strong>as</strong>.<br />
Dois jovens ainda c<strong>as</strong>am e podem ficar<br />
na roça, dividir a c<strong>as</strong>a e morar <strong>com</strong> os<br />
pais, cuidar deles e da propriedade adquirida<br />
<strong>com</strong> sacrifício. quem é da roça<br />
sabe bem do que falamos, e do que<br />
fala fábio c<strong>as</strong>agranda, o noivo, quando<br />
se refere à noiva: “até que por ser da<br />
cidade ela é uma pessoa boa, ela me<br />
ajuda no trabalho...”. a certeza de que<br />
na cidade não se trabalha tanto <strong>com</strong>o<br />
na roça.<br />
O trabalho é diferente. quem o<br />
diga Seu Moranesi. Ele criou sete filhos<br />
e hoje, <strong>com</strong> 70 anos, conta apen<strong>as</strong>
moça da cidade | Graciela vOlta<br />
aOs MundOs de MilHO, leite e suínOs<br />
Para c<strong>as</strong>ar cOM fábiO c<strong>as</strong>aGranda<br />
<strong>com</strong> a esposa, dona rosa, para cuidar<br />
de toda a propriedade. em seu desaba-<br />
fo ele diz: “tem muita terra vazia que<br />
poderia estar produzindo, se tivesse<br />
um filho, né. Eles não querem trabalhar<br />
na agricultura, eles acham mais fácil ir<br />
pra cidade, embora ganhe menos.” É o<br />
olhar de quem já viu e viveu muito, foi<br />
para a frança e conheceu lá famíli<strong>as</strong> em<br />
que o homem toca a roça e a mulher<br />
trabalha na cidade.<br />
<strong>as</strong> moç<strong>as</strong>, <strong>com</strong>o rafaela ternus, 18<br />
anos, vão para cidade em busca de liberdade.<br />
el<strong>as</strong> querem ganhar seu próprio<br />
dinheiro. em c<strong>as</strong>a, trabalham, m<strong>as</strong><br />
não recebem salário e por isso não querem<br />
repetir a história de vida de su<strong>as</strong><br />
mães. uma história de submissão, de<br />
trabalho duro e baixa autoestima.<br />
não foi necessário nenhum especialista<br />
ou autoridade para dizer o que<br />
parece óbvio. uma conversa <strong>com</strong> os jovens<br />
da <strong>com</strong>unidade de coxilha revelou<br />
que eles sabem do que precisam. a renda<br />
é importante, m<strong>as</strong> não é só isso. eles<br />
querem estudo, cultura e lazer. uma<br />
<strong>com</strong>unidade organizada, <strong>com</strong> igreja, ginásio,<br />
campo de futebol.<br />
di<strong>as</strong> iguais de são Valentin<br />
na linha são valentin, em seara,<br />
futebol é coisa do p<strong>as</strong>sado. no campo,<br />
o mato cresce à vontade. Os jogos de<br />
futebol são difíceis de acontecer: impossível<br />
reunir 22 homens para montar<br />
dois times. Há poucos jovens. Jogo só<br />
mesmo o de cart<strong>as</strong> na sede da <strong>com</strong>unidade.<br />
nessa localidade, encontramos<br />
os irmãos bollis: Jandir, 51, avelino, 53.<br />
ficaram sozinhos na propriedade depois<br />
que a mãe morreu. na cozinha, os irmãos<br />
preparam a refeição. na parede, a<br />
única presença feminina: o retrato pintado<br />
da irmã que faleceu quando ainda<br />
eram jovens. O silêncio durante o almoço<br />
é o retrato da solidão.<br />
ainda na linha são valentin está a<br />
propriedade dos scussel. na c<strong>as</strong>a encontramos<br />
Clair, 35 anos, o filho mais novo<br />
de oito irmãos, que ficou para cuidar dos<br />
pais. ele gosta do que faz e não quer ir<br />
para a cidade. O pai de clair o a<strong>com</strong>panha<br />
na lida, m<strong>as</strong> não tem mais força para<br />
encarar o pesado. alimenta <strong>as</strong> vac<strong>as</strong> e<br />
cuida d<strong>as</strong> ovelh<strong>as</strong>. Há um porco sendo<br />
alimentado, um bicho enorme. Para seu<br />
luiz scussel, pai de clair, se paga muito<br />
pouco pelo que o agricultor produz. O<br />
porco sairia por no máximo r$ 500,00.<br />
informação no ato contestada pela esposa:<br />
“Ma que quinhentos pila!”. uma reação<br />
que simboliza a autenticidade dos<br />
personagens do filme.<br />
entre muit<strong>as</strong> cui<strong>as</strong> de chimarrão,<br />
ordenh<strong>as</strong>, pão e cuc<strong>as</strong> feit<strong>as</strong> em forno<br />
a lenha, entre muit<strong>as</strong> picad<strong>as</strong> de mosquito,<br />
pés inchados e pern<strong>as</strong> cansad<strong>as</strong><br />
de subir e descer morros, entre carro<br />
quebrado, atolado, e terra arada <strong>com</strong><br />
carro de boi, festa de c<strong>as</strong>amento e silagem,<br />
noss<strong>as</strong> históri<strong>as</strong> ganhavam rosto,<br />
nome, sobrenome e expectativ<strong>as</strong>. Ao final<br />
d<strong>as</strong> gravações, tínhamos 24 hor<strong>as</strong> de<br />
material. n<strong>as</strong> despedid<strong>as</strong>, promess<strong>as</strong> de<br />
voltar, de mostrar o filme. Os rostos, os<br />
apertos de mãos, os abraços. sorrisos,<br />
sempre. O adeus e a volta para c<strong>as</strong>a.<br />
<strong>com</strong>eçamos a viver o dilema dos documentarist<strong>as</strong>:<br />
<strong>com</strong>o transformar 1.440<br />
minutos em 52, sem decepcionar? e a<br />
relação construída <strong>com</strong> <strong>as</strong> pesso<strong>as</strong> que<br />
transformamos em personagens? certo<br />
é que apen<strong>as</strong> uma pequena parte de<br />
su<strong>as</strong> vid<strong>as</strong> caberia na tela. e el<strong>as</strong> estavam<br />
preparad<strong>as</strong> para isso? e nós, prontos<br />
para cortar? não estávamos. foi preciso<br />
nos af<strong>as</strong>tar do projeto, d<strong>as</strong> imagens e<br />
depoimentos captados para ressignificar<br />
nossa relação <strong>com</strong> aquel<strong>as</strong> pesso<strong>as</strong>.<br />
lençÓis brancos <strong>com</strong>o tela<br />
filme pronto. era preciso, mais uma<br />
vez, pegar a estrada. a expectativa era<br />
outra, m<strong>as</strong> a intenção de ouvir continuava.<br />
Afinal, o que os “personagens”<br />
iriam achar do filme pronto? Depois do<br />
lançamento em chapecó, no dia 11 de<br />
novembro de 2010, o “celibato no campo”<br />
foi exibido na linha são valentin,<br />
em seara. O “evento” reuniu toda a co-<br />
“teM Muita terra vaZia que<br />
POderia estar PrOduZindO,<br />
se tivesse uM filHO [aqui<br />
na rOça]. eles nãO quereM<br />
trabalHar na aGricultura,<br />
eles acHaM Mais fácil ir Pra<br />
cidade, eMbOra [lá] GanHeM<br />
MenOs” — ademir, o seu<br />
moranesi<br />
munidade. a projeção foi na parede da<br />
sede, onde fica a cancha de bocha.<br />
Antes do filme, mulheres na cozinha<br />
e homens na churr<strong>as</strong>queira preparavam<br />
o jantar. Os irmãos bollis e clair já tinham<br />
dado entrevista para a imprensa<br />
local e até para a folha de s.Paulo.<br />
Nossos personagens estavam ficando<br />
“famosos”. O filme estava mudando a<br />
rotina deles. clair recebera recados de<br />
mulheres de todo o país, pront<strong>as</strong> para<br />
c<strong>as</strong>ar. rimos muito antes da exibição.<br />
durante, silêncio, risos. depois, o olhar<br />
enigmático e o sorriso. sempre, o sorriso.<br />
Um dia para sair da rotina e ficar na<br />
história da <strong>com</strong>unidade.<br />
desde então, a trajetória do documentário<br />
tem sido <strong>as</strong> tel<strong>as</strong> improvisad<strong>as</strong>.<br />
Porém, antes de percorrer outros<br />
espaços de exibição, era importante<br />
saber dos personagens o que eles acharam<br />
do filme. No salão <strong>com</strong>unitário de<br />
barão do triunfo, mais de 80 pesso<strong>as</strong><br />
se reuniram para <strong>as</strong>sistir ao documentário.<br />
entre os personagens, os noivos<br />
<strong>com</strong>emoravam a novidade: a chegada<br />
do herdeiro.<br />
De qualquer forma, por onde o filme<br />
tem p<strong>as</strong>sado, o debate é caloroso. em<br />
muitos lugares <strong>as</strong> pesso<strong>as</strong> têm se identificado<br />
<strong>com</strong> <strong>as</strong> históri<strong>as</strong> e a conversa<br />
vai longe. a experiência de exibir o documentário<br />
em lugares onde um lençol<br />
branco se transforma em tela de cinema<br />
<strong>com</strong>prova que há público e espaço para<br />
<strong>as</strong> produções locais e independentes.<br />
<strong>as</strong>sim, na linha coxilha, em saudades,<br />
a mesma igreja que serviu de cenário<br />
reuniu a <strong>com</strong>unidade para a sessão<br />
de estreia. enquanto os rostos estavam<br />
fixos na tela, nosso olhar identificava a<br />
reação da plateia. O burburinho, o silêncio<br />
e <strong>as</strong> gargalhad<strong>as</strong> nos deixavam<br />
surpresos: teríamos conseguido contar<br />
su<strong>as</strong> históri<strong>as</strong>? n<br />
texto | c<strong>as</strong>semiro vitorino e ilka goldschmidt<br />
são jornalist<strong>as</strong> e dirigiram “celibato no campo” <strong>com</strong><br />
recursos do edital cinemateca catarinense/fcc,<br />
2008.<br />
imagens | divulgação<br />
documentário<br />
11<br />
ô catarina! | número 74 | 2011
teatro<br />
ErroG rupo<br />
esvio<br />
12<br />
ô catarina! | número 74 | 2011<br />
um teatro de inv<strong>as</strong>ão<br />
interVenções do erro gruPo leem o esPectador<br />
Pelo toque e leVam o estranhamento às ru<strong>as</strong><br />
marco V<strong>as</strong>ques<br />
e rubens da cunha<br />
O teatro feito para ser apresenta-<br />
do na rua qu<strong>as</strong>e sempre tem o caráter<br />
de divertir, de alegrar, de envolver o<br />
p<strong>as</strong>sante através do clown, da burla,<br />
da fábula. É bom lembrar que já no<br />
século vi a.c. o mítico ator téspis fazia<br />
apresentações em um carro, no<br />
meio do mercado de aten<strong>as</strong>, o que<br />
equivale dizer que o teatro n<strong>as</strong>ceu<br />
na rua. apesar de sua origem, a ideia<br />
principal de teatro ligou-se a um lugar<br />
específico, uma grande construção<br />
em que <strong>as</strong> pesso<strong>as</strong> vão para “<strong>as</strong>sistir”<br />
ao teatro. <strong>com</strong> o p<strong>as</strong>sar dos séculos,<br />
a rua, o “desconforto” da rua, já não<br />
parecia ser mais digno do teatro.<br />
no livro “espaço e teatro: do edifício<br />
teatral à cidade <strong>com</strong>o palco”, organizado<br />
por evelyn furquim Werneck<br />
lima, o diretor andré carreira colabora<br />
<strong>com</strong> o ensaio “teatro de inv<strong>as</strong>ão:<br />
redefinindo a ordem da cidade”, em<br />
que afirma que “tradicionalmente o<br />
teatro de rua aparece <strong>com</strong>o um modo<br />
espetacular relacionado a uma vontade<br />
de abandono do recinto teatral,<br />
que responderia ao desejo de levar<br />
o teatro a um público sem acesso ao<br />
teatro. isso implicaria também o desejo<br />
de produzir um impacto sociopolítico<br />
direto, de tal forma que se entrelaçariam<br />
a interpretação cultural<br />
e <strong>as</strong> manifestações culturais”. dessa<br />
forma, a origem do teatro se torna<br />
uma espécie de ferramenta de ruptura,<br />
de confronto <strong>com</strong> o status quo.<br />
O teatro de rua, para além da condição<br />
de submodalidade da cultura<br />
popular, é algo <strong>com</strong>plexo que, segundo<br />
carreira, é uma espécie de fala da resistência<br />
que ocupa o espaço urbano, uma<br />
busca por ressignificações dos sentidos<br />
da rua e, <strong>com</strong> isso, consegue interferir<br />
no sentido d<strong>as</strong> cidades, na lógica da contínua<br />
espetacularização da vida. além<br />
disso, se se levar em consideração que os<br />
ritos tribais/míticos anteriores a téspis<br />
estão imbuídos da atitude cênica, conforme<br />
Julia Kristeva, confirma-se o caráter<br />
público e mundano da arte teatral. É<br />
bom alertar, ainda, que divertir e alegrar<br />
são qualidades — de acordo <strong>com</strong> brecht<br />
— e não defeitos, sobretudo quando<br />
apresentam outr<strong>as</strong> camad<strong>as</strong> de leitur<strong>as</strong>.<br />
O erro Grupo, de florianópolis, tem<br />
<strong>com</strong>o b<strong>as</strong>e d<strong>as</strong> su<strong>as</strong> pesquis<strong>as</strong> dos últimos<br />
dez anos justamente o teatro de<br />
rua e a intervenção no ambiente urbano.<br />
Muitos dos trabalhos tratam da morte do<br />
espírito lúdico, da ausência de espontaneidade,<br />
da mecanização d<strong>as</strong> ações, da<br />
petrificação da carne, da coisificação do<br />
homem, da sexualidade, d<strong>as</strong> disput<strong>as</strong> infundad<strong>as</strong>,<br />
da banalização do jogo e da<br />
institucionalização dos sentidos.<br />
Não precisamos chegar a filósofos<br />
<strong>com</strong>o Johann Huizinga, Jean baudrillard<br />
e Michel foucault, que norteiam o trabalho<br />
do grupo, porque podemos p<strong>as</strong>sar<br />
antes pelos mitos gregos, romanos e<br />
cristãos, sade e rimbaud. sob essa ótica,<br />
os espetáculos do erro levam os transeuntes<br />
à estupefação, ao prazer e ao<br />
estranhamento, porque leem os espec-<br />
tadores pelo toque, pela provocação,<br />
pela brincadeira, pela ranhura na pele<br />
e pelo convite à análise (física e psíquica)<br />
d<strong>as</strong> ações que desencadeia no<br />
ambiente, na paisagem e nos homens.<br />
fazer Parte do esPanto<br />
É do espanto platônico que vive<br />
o teatro de ocupação do erro Grupo.<br />
O espanto de quem se identifica, de<br />
quem percebe que a encenação não<br />
fala de ninguém distante, m<strong>as</strong> do<br />
próprio sujeito espectador. <strong>as</strong> históri<strong>as</strong><br />
trazid<strong>as</strong> para <strong>as</strong> ru<strong>as</strong> são <strong>as</strong><br />
própri<strong>as</strong> históri<strong>as</strong> dos p<strong>as</strong>santes que<br />
tomam parte na encenação porque<br />
pertencem à cidade, à <strong>com</strong>unidade.<br />
dessa forma, o espanto faz <strong>com</strong> que<br />
o espectador perceba que é parte de<br />
uma história, ou parte da História. O<br />
espanto que o erro provoca no espectador<br />
traz a marca do tempo.<br />
É na órbita do desvio, nome de um<br />
dos espetáculos do grupo, do estranhamento,<br />
da surpresa, da ocupação/<br />
posse do ambiente, do deslocamento,<br />
da fratura e da ação crítica, política e<br />
poética que <strong>as</strong> apresentações do erro<br />
Grupo se situam. el<strong>as</strong> transitam entre<br />
os conceitos de presença do ator,<br />
conforme o pensamento de richard<br />
schechner e o teatro in/visível de augusto<br />
boal.<br />
É na formulação do discurso que a<br />
teia dess<strong>as</strong> ações reverbera. entrar no<br />
jogo dos seus espetáculos é vagar na<br />
linha tênue entre o real e o ficcional.<br />
E é aqui oportuno indicar o filme “Noviembre”<br />
(espanha, 2002), de achero<br />
Mañ<strong>as</strong>, que apresenta a história de<br />
esPetáculO “desviO”<br />
(2008-2011) PrOvOca O<br />
enfrentaMentO entre O<br />
ficciOnal e O real<br />
fOTO RAfAEL SCHLICHTING<br />
um grupo de teatro de rua e desvela os<br />
seus procedimentos. Há muita relação<br />
entre o filme e o teatro de ocupação<br />
exercido pelo erro Grupo. “a arte é uma<br />
arma carregada de futuro”, diz um dos<br />
personagens. e é <strong>as</strong>sim que o grupo usa<br />
sua estética: <strong>com</strong>o arma para o futuro.<br />
a prática do erro propõe o deslocamento<br />
do público, uma “navegação”<br />
que é muito favorecida pela possibilidade<br />
de escolha do lugar onde o espectador<br />
pode ficar. O espaço cênico é constantemente<br />
modificado pelo público,<br />
no vai e vem dos que estão <strong>as</strong>sistindo e<br />
daqueles que estão somente de p<strong>as</strong>sagem.<br />
toda essa encenação em torno da<br />
encenação afeta a percepção, o espanto,<br />
e é sempre muito bem utilizada n<strong>as</strong><br />
apresentações do erro Grupo. trata-se<br />
de um teatro descontaminado de teatro,<br />
contudo teatralidade pura. É um teatro<br />
de ironia refinada que ilumina sobre a<br />
luz, <strong>com</strong>o diz diógenes.<br />
carGa viva” (2002) PrOvOca estranHeZa<br />
eM flOrianóPOlis...<br />
fOTO ANA PAULA CARDOZO
“As históri<strong>as</strong><br />
trazid<strong>as</strong> para<br />
<strong>as</strong> ru<strong>as</strong> são<br />
<strong>as</strong> própri<strong>as</strong><br />
históri<strong>as</strong> dos<br />
p<strong>as</strong>santes que<br />
tomam parte<br />
na encenação<br />
do Erro<br />
Grupo, porque<br />
pertencem à<br />
cidade.”<br />
... enquantO “enfiM, uM líder” (2008)<br />
OcuPa a rua eM laGes<br />
fOTOS JULIA AMARAL<br />
Form<strong>as</strong> de Brincar<br />
riscar no outro a parte mais feia<br />
três mulheres, numa praça pública,<br />
<strong>com</strong> roup<strong>as</strong> que representam cultur<strong>as</strong><br />
distint<strong>as</strong>, se apresentam: el<strong>as</strong> fazem<br />
uma espécie de exibição d<strong>as</strong> su<strong>as</strong> crenç<strong>as</strong>.<br />
não se toleram. ao término da<br />
exibição, tiram su<strong>as</strong> roup<strong>as</strong> e entram<br />
numa luta corporal. M<strong>as</strong> não é uma luta<br />
corporal qualquer, porque se agridem<br />
a partir dos símbolos de su<strong>as</strong> raízes,<br />
se mutilam <strong>com</strong>/pelo símbolo. após<br />
a cena de violência e de intolerância,<br />
<strong>as</strong> três mulheres se dirigem ao público<br />
<strong>com</strong> lápis n<strong>as</strong> mãos e travam uma luta<br />
pela correção do corpo. sim! O pedido<br />
é para que o público vá a alguma d<strong>as</strong><br />
atrizes-mulheres e risque a “parte mais<br />
feia da outra”.<br />
no espetáculo “form<strong>as</strong> de brincar”<br />
ocorre uma espécie de julgamento e de<br />
sacrifício em público. enquanto isso, os<br />
atores Michel Marques e Juarez nunes<br />
brincam o jogo popular d<strong>as</strong> cinco Mari<strong>as</strong>.<br />
contudo, o jogo, que tem na sua origem<br />
o <strong>as</strong>pecto puramente lúdico, p<strong>as</strong>sa por<br />
uma disputa monetária que interfere intertextualmente<br />
n<strong>as</strong> ações d<strong>as</strong> atrizes. O<br />
público é tomado pelos múltiplos jogos<br />
ofertados. <strong>as</strong> atrizes usam seus corpos e<br />
tomam de empréstimo vários corpos de<br />
espectadores que p<strong>as</strong>sam a fazer parte<br />
da cena, p<strong>as</strong>sam a atuar e saem da condição<br />
tradicional de p<strong>as</strong>sividade. e, em<br />
alguns momentos, o público se torna o<br />
centro da ação cênica.<br />
“form<strong>as</strong> de brincar” é tomado de<br />
uma ironia acerba e de um niilismo nietzschiano<br />
capazes de tatuar, para sempre,<br />
um desconforto na vida-rotina de<br />
quem vive e entra em su<strong>as</strong> perversidades<br />
brincantes. numa sociedade em que<br />
tudo é mensurado pela matéria, pela<br />
posse, pelo poder, por títulos e categorizações,<br />
o espetáculo apresenta, ao<br />
final, uma votação pública <strong>com</strong> intuito<br />
de premiar a performance d<strong>as</strong> atrizes. a<br />
vencedora receberá um troféu: a caveira<br />
de um gado. É na linguagem e na fala/<br />
mito (roland barthes) que reside a força<br />
conceitual do trabalho do erro Grupo.<br />
temos que entrar na vida de “form<strong>as</strong> de<br />
brincar” <strong>com</strong>o se entra na leitura de “O<br />
jogo da amarelinha” (1963), romance de<br />
Julio cortázar, isto é, olhar a multiplicação/fragmentação<br />
de todos os todos.<br />
desde os espetáculos “À margem”<br />
(2001) e “carga viva” (2002), estamos<br />
diante de um grupo de experimentos<br />
radicais que coloca em questão não só<br />
a p<strong>as</strong>teurização social, m<strong>as</strong> a própria<br />
prática do teatro. Há nessa estética a<br />
minimização de elementos tradicionais<br />
do teatro — dramaturgia, cenário, iluminação<br />
— e uma apropriação dos espaços<br />
urbanos: praç<strong>as</strong>, prédios, ru<strong>as</strong>, c<strong>as</strong><strong>as</strong>.<br />
a cidade é envolvida organicamente<br />
na cena, a ponto de toda ela se tornar<br />
cenário e ação teatral em si. <strong>as</strong>sim foi<br />
<strong>com</strong> “Enfim, um líder” (2007), “Desvio”<br />
(2008) e “escaparate” (2009), espetáculos<br />
que, <strong>as</strong>sim <strong>com</strong>o “form<strong>as</strong> de brincar”<br />
(2010), propõem uma vida teatral<br />
fora do discurso d<strong>as</strong> ações tradicionais,<br />
embrutecid<strong>as</strong> e coisificad<strong>as</strong>. Temos um<br />
teatro de coragem, de enfrentamento<br />
e de desnudamento dos <strong>as</strong>pectos mais<br />
escrotos da falsa sanidade que nos cerca.<br />
“form<strong>as</strong> de brincar” é brutal, terno<br />
e capaz de in<strong>com</strong>odar até o mais obtuso<br />
dos homens que, seguramente, será<br />
apanhado pela garganta. n<br />
desviO na fOrMa de brincar |<br />
cultur<strong>as</strong> se acusaM e uMa vOtaçãO<br />
Pública encerra cOM PreMiaçãO eM OssO<br />
texto | marco v<strong>as</strong>ques e rubens da cunha<br />
são poet<strong>as</strong> e editores da revista de literatura e<br />
artes Osíris. Praticam crítica teatral e literária<br />
em http://revistaosiris.wordpress.<strong>com</strong> e http://<br />
revistaosirisliteratura.wordpress.<strong>com</strong><br />
imagens | rafael schlichting, ana paula<br />
cardozo e julia amaral<br />
teatro<br />
13<br />
ô catarina! | número 74 | 2011
dança | perfil<br />
14<br />
ô catarina! | número 74 | 2011<br />
o carteiro e a bailarina<br />
deise mendonça Parte de criciúma e JoinVille<br />
Para o reconhecimento em santiago do chile<br />
Joel gehlen<br />
<strong>com</strong>o <strong>as</strong> heroín<strong>as</strong><br />
dos grandes balés clás-<br />
sicos, a história da me-<br />
nina deise se confunde <strong>com</strong><br />
<strong>as</strong> dos contos de fad<strong>as</strong>.<br />
<strong>com</strong>o num enredo<br />
de fábula, no<br />
dia em que<br />
c o m p l e t o u<br />
dez anos, dei-<br />
se Mendonça<br />
ganhou o presen-<br />
te que mais desejava: visitar em<br />
Joinville a recém-instalada escola do<br />
teatro bolshoi do br<strong>as</strong>il. a mãe, Maria<br />
aparecida, lhe preparou a surpresa e a<br />
inscreveu para a prova seletiva da pri-<br />
meira turma de b<strong>as</strong>e da escola. <strong>as</strong>sim,<br />
além de conhecer <strong>as</strong> sal<strong>as</strong> de ensaio,<br />
os espelhos e <strong>as</strong> barr<strong>as</strong>, a menina fez<br />
todos os testes de admissão. e, <strong>com</strong>o<br />
nos encantamentos de fada-madrinha,<br />
ela foi aprovada.<br />
quando chegou a Joinville, em<br />
2001, vinda de criciúma, onde cursara<br />
um ano de dança na c<strong>as</strong>a da cultura,<br />
deise trazia ainda a feição de menina<br />
do interior, retraída e franzina. Os cabelos<br />
longos amarrados em feixe para<br />
trás ressaltavam-lhe um rosto de Modigliani,<br />
<strong>com</strong> nariz pequeno e dois grandes<br />
olhos penetrantes. Para arrematar<br />
o quadro, o sorriso simples e <strong>as</strong> fortes<br />
pincelad<strong>as</strong> de uma pureza trigueira lhe<br />
confirmavam o futuro carisma.<br />
bem ao gosto dos libretos românticos,<br />
além da sua aplicação n<strong>as</strong> lições<br />
de balé, logo chamou atenção o fato<br />
de ser filha de um carteiro, José Carlos<br />
Mendonça. Ocorre que na época<br />
a escola bolshoi tinha <strong>com</strong>o principal<br />
patrocinador a empresa br<strong>as</strong>ileira<br />
de correios e deise, ao lado do pai,<br />
foi peça de divulgação dessa parceria<br />
cultural. virou cartão-postal, seu<br />
rosto estampou camiset<strong>as</strong>, jornais e<br />
revist<strong>as</strong>, foi paparicada por ministros<br />
e atores. <strong>com</strong>o em qualquer conto<br />
de fad<strong>as</strong> que se preze, a protagonista<br />
flerta <strong>com</strong> o triunfo, m<strong>as</strong> antes do êxito<br />
final, tem de batalhar um bocado.<br />
apesar da fama, nunca descuidou da<br />
preparação corporal, sustentando na<br />
barra os exercícios praticados exaustivamente.<br />
nos oito anos de formação,<br />
viveu muitos papéis, <strong>com</strong> regularidade<br />
suficiente para fazer sua condição de<br />
promessa se tornar realidade.<br />
uma vez formada, deise foi d<strong>as</strong><br />
primeir<strong>as</strong> a ser contratada pela cia.<br />
Jovem do bolshoi. M<strong>as</strong> ainda faltava o<br />
momento de cisne, em que o porte e a<br />
performance se enlaçaram na irresistível<br />
audácia da beleza. reencontrei-<br />
-a em Goiânia, Goiás, em fevereiro de<br />
2010, dançando na inauguração do teatro<br />
escola b<strong>as</strong>ileu frança. deise, que<br />
há dez anos era ainda a tímida filha<br />
devaneiOs de la MancHa —<br />
catarinense vive a rainHa d<strong>as</strong><br />
dríades eM “dOM quixOte”<br />
do carteiro, teve entrad<strong>as</strong> de grande<br />
artista, especialmente <strong>com</strong>o a maviosa<br />
rainha d<strong>as</strong> dríades, contracenando<br />
<strong>com</strong> dom quixote em seu instante de<br />
devaneio. sua dança “arr<strong>as</strong>tava meu<br />
olhar <strong>com</strong>o um ímã”, <strong>com</strong>o na canção<br />
de caetano veloso.<br />
em julho de 2010, <strong>com</strong>emorando<br />
dez anos da escola no br<strong>as</strong>il, a cia. Jovem<br />
do bolshoi apresentou “Giselle”,<br />
numa montagem do mitológico vladmir<br />
V<strong>as</strong>iliev. Na oc<strong>as</strong>ião, fiz o seguinte<br />
registro: “chama atenção a qualidade<br />
da dança de deise Mendonça. Mesmo<br />
em papéis menos visíveis, os seus<br />
movimentos demonstram a fluidez,<br />
a continuidade, a musicalidade e um<br />
acabamento reservados aos grandes<br />
talentos. ela alcança uma sutileza que<br />
é o próprio âmago do balé.”<br />
três meses depois foi contratada<br />
pela <strong>com</strong>panhia do teatro Municipal de<br />
santiago do chile. aos 20 anos, na terra<br />
de “O carteiro e o poeta”, de skármeta/neruda,<br />
deise chega ao reconhecimento<br />
que deve levar aquela primeira<br />
surpresa, a da menina de dez anos, a<br />
centen<strong>as</strong> de palcos em que remeta a<br />
sua arte a milhares de destinatários. n<br />
texto | joel gehlen<br />
é jornalista e editor em Joinville e<br />
autor do livro de crônic<strong>as</strong> “Outono<br />
do meu tempo” (editora letradágua,<br />
2006).<br />
imagens | divulgação
o prazer de vadiar<br />
roberto arlt<br />
Tradução de Eleonora frenkel<br />
<strong>com</strong>eço por declarar que acho que pra<br />
vadiar são necessári<strong>as</strong> condições excepcio-<br />
nais de sonhador. Já dizia o ilustre Macedo-<br />
nio fernández: “nem tudo é vigília <strong>com</strong> os<br />
olhos abertos.”<br />
digo isso porque há vadios, e vadios. en-<br />
tendamo-nos. entre o “perebento” de bot<strong>as</strong>,<br />
de cabeleira ensebada e pelanc<strong>as</strong> <strong>com</strong> mais<br />
gordura que um balcão de açougue, e o vagabundo<br />
bem vestido, sonhador e cético, há<br />
mais distância que entre a lua e a terra. a<br />
menos que esse vagabundo se chame Máximo<br />
Gorki, ou Jack london, ou richepin.<br />
antes de mais nada, pra vadiar é preciso<br />
estar <strong>com</strong>pletamente livre de preconceitos<br />
e, depois, ser um tantinho cético, cético<br />
<strong>com</strong>o esses cães que têm o olhar faminto<br />
e que quando chamados, balançam o rabo,<br />
m<strong>as</strong> ao invés de se aproximar, se af<strong>as</strong>tam,<br />
interpondo entre seu corpo e a humanidade,<br />
uma respeitável distância.<br />
claro está que nossa cidade não é d<strong>as</strong><br />
mais apropriad<strong>as</strong> para a modorra sentimental,<br />
m<strong>as</strong> que se há de fazer?!<br />
Para um cego, desses cegos que têm<br />
<strong>as</strong> orelh<strong>as</strong> e os olhos bem abertos inutilmente,<br />
não há nada para se ver em buenos<br />
aires, m<strong>as</strong>, em <strong>com</strong>pensação... que grandes,<br />
que chei<strong>as</strong> de novidades estão <strong>as</strong> ru<strong>as</strong><br />
da cidade para um sonhador irônico e um<br />
pouco acordado! quantos dram<strong>as</strong> escondidos<br />
nos sinistros cortiços! quant<strong>as</strong> históri<strong>as</strong><br />
cruéis nos semblantes de cert<strong>as</strong> mulheres<br />
que p<strong>as</strong>sam! quanta canalhice em outr<strong>as</strong><br />
car<strong>as</strong>! Porque existem semblantes que são<br />
<strong>com</strong>o o mapa do inferno humano. Olhos que<br />
parecem poços. Olhares que fazem pensar<br />
n<strong>as</strong> chuv<strong>as</strong> de fogo bíblico. tontos que são<br />
um poema de imbecilidade. vigarist<strong>as</strong> que<br />
mereceriam uma estátua por fura-vid<strong>as</strong>.<br />
<strong>as</strong>saltantes que meditam su<strong>as</strong> trampolinagens<br />
atrás dos vidros turvos, sempre turvos,<br />
de uma bodega.<br />
diante desse espetáculo, o profeta se<br />
indigna. O sociólogo constrói indigest<strong>as</strong> teori<strong>as</strong>.<br />
O panaca não vê nada e o vagabundo<br />
se farta. entendamo-nos. se farta diante da<br />
diversidade de tipos humanos. Pode-se construir<br />
um mundo a partir de cada um. tanto<br />
aqueles que trazem escrito na testa tudo o<br />
que pensam, quanto aqueles que são mais<br />
fechados que um tijolo, mostram seu pequeno<br />
segredo... o segredo que os move pela<br />
vida <strong>com</strong>o fantoches.<br />
Por vezes o inesperado é um homem que<br />
pensa se matar e que o mais gentilmente<br />
possível oferece seu suicídio <strong>com</strong>o um espetáculo<br />
admirável no qual o preço do ingresso<br />
é o terror e o <strong>com</strong>promisso na delegacia de<br />
polícia. Outr<strong>as</strong> vezes o inesperado é uma senhora<br />
aos tap<strong>as</strong> <strong>com</strong> sua vizinha, enquanto<br />
franciscO de GOya, “disParate aleGre”, sÉrie disParates, núMerO 12; 1819-23<br />
um coro de pivetes remelentos se agarra d<strong>as</strong><br />
sai<strong>as</strong> dess<strong>as</strong> fer<strong>as</strong> e o sapateiro da esquina<br />
bota a cabeça pra fora da porta de seu covil<br />
pra não perder o prato cheio.<br />
Os extraordinários encontros d<strong>as</strong> ru<strong>as</strong>. <strong>as</strong><br />
cois<strong>as</strong> que se podem ver. <strong>as</strong> palavr<strong>as</strong> que se<br />
escutam. <strong>as</strong> tragédi<strong>as</strong> que se pode chegar a<br />
conhecer. e de repente, a rua, a rua lisa que<br />
parecia destinada a ser uma artéria de tráfego<br />
<strong>com</strong> calçad<strong>as</strong> para os homens e pavimentos<br />
para <strong>as</strong> best<strong>as</strong> e os carros, se transforma<br />
em uma vitrine, ou melhor, num cenário grotesco<br />
e pavoroso em que, <strong>com</strong>o nos cartões<br />
de Goya, os endemoniados, os enforcados,<br />
os enfeitiçados, os enlouquecidos, dançam<br />
sua sarabanda infernal.<br />
Porque, na verdade, quem foi Goya, se<br />
não um pintor d<strong>as</strong> ru<strong>as</strong> da espanha? Goya,<br />
<strong>com</strong>o pintor de três aristocrat<strong>as</strong> beberrões,<br />
não interessa. M<strong>as</strong> Goya, <strong>com</strong>o animador da<br />
canalha de Moncloa, d<strong>as</strong> brux<strong>as</strong> de sierra divieso,<br />
dos frades monstruosos, é um gênio. e<br />
um gênio que dá medo.<br />
e viu tudo isso vagabundeando pel<strong>as</strong><br />
ru<strong>as</strong>.<br />
a cidade desaparece. Parece mentira,<br />
m<strong>as</strong> a cidade desaparece para se transformar<br />
num empório infernal. <strong>as</strong> loj<strong>as</strong>, os<br />
cartazes luminosos, <strong>as</strong> chácar<strong>as</strong>, tod<strong>as</strong> ess<strong>as</strong><br />
bel<strong>as</strong> aparênci<strong>as</strong> animador<strong>as</strong> dos sentidos,<br />
se esfumam para deixar flutuando no<br />
ar ácido <strong>as</strong> nervur<strong>as</strong> da dor universal. e se<br />
af<strong>as</strong>ta do espectador o afã de viajar. ainda<br />
mais: cheguei à conclusão de que aquele<br />
que não encontra todo o universo contido<br />
n<strong>as</strong> ru<strong>as</strong> de sua cidade, não encontrará uma<br />
só rua original em nenhuma outra cidade<br />
do mundo. e não vai encontrá-la porque o<br />
cego em buenos aires é cego em Madri ou<br />
em calcutá.<br />
lembro perfeitamente que os manuais<br />
escolares pintam os senhores ou cavalheirinhos<br />
que perambulam pel<strong>as</strong> ru<strong>as</strong> <strong>com</strong>o futuros<br />
perdulários, m<strong>as</strong> eu aprendi que a escola<br />
mais útil para o entendimento é a escola<br />
da rua, escola azeda, que deixa no paladar<br />
um prazer agridoce e que ensina tudo aquilo<br />
que os livros não dizem jamais. Porque,<br />
desgraçadamente, os livros são escritos por<br />
poet<strong>as</strong> ou por tontos.<br />
entretanto, ainda vai p<strong>as</strong>sar muito tempo<br />
até que <strong>as</strong> pesso<strong>as</strong> percebam a utilidade de<br />
perambular e tomar uns banhos de multidão.<br />
M<strong>as</strong> no dia em que aprenderem, serão mais<br />
sábios, e mais perfeitos e mais indulgentes,<br />
principalmente. sim, indulgentes. Porque<br />
mais de uma vez pensei que a magnífica indulgência<br />
que fez eterno a Jesus, provinha<br />
de sua contínua vida pela rua. e de sua <strong>com</strong>unhão<br />
<strong>com</strong> os homens bons e maus, e <strong>com</strong><br />
<strong>as</strong> mulheres honest<strong>as</strong> e também <strong>com</strong> <strong>as</strong> que<br />
não o eram. n<br />
texto | roberto arlt<br />
buenos aires, el Mundo, 20/09/1928.<br />
tradução | eleonora frenkel<br />
crônica/tradução<br />
15<br />
ô catarina! | número 74 | 2011
semiótica<br />
16<br />
ô catarina! | número 74 | 2011<br />
nunca se cala o calado<br />
e sempre o calado, fala<br />
calado que não se cala,<br />
nunca se cala o calado,<br />
calado sem ser calado,<br />
calado que é tão falado...<br />
nunca se cala o calado<br />
e sempre o calado, fala. n<br />
CRUZ E SOUSA, triolé publicado em “O Moleque”, 1885.<br />
CONVERGÊNCIAS<br />
no meio do caminho tinha uma pedra<br />
tinha uma pedra no meio do caminho<br />
tinha uma pedra<br />
no meio do caminho tinha uma pedra.<br />
nunca me esquecerei desse acontecimento<br />
na vida de minh<strong>as</strong> retin<strong>as</strong> tão fatigad<strong>as</strong>.<br />
nunca me esquecerei que no meio do caminho<br />
tinha uma pedra<br />
tinha uma pedra no meio do caminho<br />
no meio do caminho tinha uma pedra... n<br />
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE, poema publicado na Revista Antropofágica, 1928.<br />
imagens | edson bettanin