HELÂNIA CUNHA DE SOUSA CARDOSO A POESIA ... - Educadores
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<strong>HELÂNIA</strong> <strong>CUNHA</strong> <strong>DE</strong> <strong>SOUSA</strong> <strong>CARDOSO</strong><br />
A <strong>POESIA</strong> <strong>DE</strong> JOÃO CABRAL <strong>DE</strong> MELO NETO E AS ARTES<br />
ESPANHOLAS<br />
BELO HORIZONTE<br />
FACULDA<strong>DE</strong> <strong>DE</strong> LETRAS<br />
2007
<strong>HELÂNIA</strong> <strong>CUNHA</strong> <strong>DE</strong> <strong>SOUSA</strong> <strong>CARDOSO</strong><br />
A <strong>POESIA</strong> <strong>DE</strong> JOÃO CABRAL <strong>DE</strong> MELO NETO E AS ARTES<br />
ESPANHOLAS<br />
BELO HORIZONTE<br />
FACULDA<strong>DE</strong> <strong>DE</strong> LETRAS<br />
2007<br />
Tese apresentada à Faculdade de<br />
Letras da Universidade Federal de<br />
Minas Gerais – UFMG, como<br />
requisito parcial para a obtenção do<br />
título de Doutor em Estudos Literários<br />
(Área de Concentração: Literatura<br />
Brasileira; Linha de Pesquisa: Poéticas<br />
da Modernidade)<br />
Orientadora: Professora Doutora<br />
Maria Ester Maciel de Oliveira Borges<br />
2
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)<br />
C268p Cardoso, Helânia Cunha de Sousa.<br />
A poesia de João Cabral de Melo Neto e as artes espanholas / He-<br />
lânia Cunha de Sousa Cardoso. – Belo Horizonte: [s.n.], 2007.<br />
231 f. il.<br />
Orientador: Maria Ester Maciel de Oliveira Borges.<br />
Tese (doutorado) – Universidade Federal de Minas Gerais, Facul-<br />
dade de Letras.<br />
1. João Cabral de Melo Neto. 2. Artes Espanholas. 3. Artes Vi-<br />
suais. I. Título.<br />
CDD: 709.46<br />
3
AGRA<strong>DE</strong>CIMENTOS<br />
A Deus, que me concedeu sabedoria para conduzir esta pesquisa e serenidade para<br />
enfrentar os desafios que a cada passo se postavam no meu percurso.<br />
A meus pais, Edson Ramiro de Sousa e Ana Cunha de Sousa; meus irmãos, Heliana,<br />
Ernando e Edriana, que sempre me apoiaram e me incentivaram em todos os meus projetos,<br />
fazendo-me acreditar na possibilidade da realização de meus sonhos.<br />
Ao meu marido, Pedro Cardoso Filho, e minhas filhas, Ana Cecília e Thaís, pelo<br />
incentivo, pela compreensão nos meus momentos de prolongadas ausências.<br />
À professora Dra. Maria Ester Maciel de Oliveira Borges, que acompanhou de<br />
forma atenta e cuidadosa toda a pesquisa e elaboração do texto.<br />
Aos professores Dra. Melânia Silva de Aguiar, Dra. Lucila Nogueira Rodrigues,<br />
Dra. Marli de Oliveira Fantini Scarpelli, e Dr. Antônio Carlos Secchin, que se dispuseram a<br />
participar de minha banca avaliadora, dividindo comigo suas experiências e conhecimentos.<br />
Às professoras Dra. Maria Zilda Cury e Dra. Sueli Maria Coelho, por aceitarem o<br />
convite para compor a suplência de minha banca.<br />
A todos os professores do Curso de Pós-graduação em Letras, área de Estudos<br />
Literários, pelo convívio intelectual e afetivo durante os quatro anos de UFMG.<br />
4
À Fundação Educacional de Patos de Minas, na pessoa de seu Pró-Reitor de<br />
Planejamento, Administração e Finanças, Prof. Ms. Milton Roberto de Castro Teixeira,<br />
pelo fomento à minha pesquisa.<br />
À Secretária de Estado de Educação, professora Vanessa Guimarães Pinto, por me<br />
liberar das atividades docentes nos quatro anos de pesquisa.<br />
À Diretora da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Patos de Minas,<br />
professora Neusa Helena de Queiroz Borges, pela confiança e pelo apoio que me dispensou<br />
ao longo desses quatro anos de curso.<br />
Ao poeta Francisco Bandeira de Mello e aos professores, Dra. Graciela Ravetti, Ms.<br />
Marcos Antônio Caixeta Rassi, Ms. Roberto Carlos dos Santos, Altamir Fernandes de<br />
Sousa, pelas conversas sobre João Cabral de Melo Neto e os espanhóis.<br />
Aos professores Ms. Mônica Soares de Araújo Guimarães, Ms. Carlos Roberto da<br />
Silva, Ms. Geovane Fernandes Caixeta, Ms. Helena Maria Ferreira, Dr. Luís André<br />
Nepomuceno, Ms.Sidnei Cursino Guimarães Romão, Moacir Manoel Felisbino,<br />
bibliotecária Dione Cândido Aquino, estagiários, amigos da Rede Arte na Escola e da<br />
Escola Estadual “Professor Antônio Dias Maciel”, pelo incentivo e pela confiança ao longo<br />
deste percurso.<br />
A todos aqueles que, direta ou indiretamente, contribuíram para a realização deste<br />
trabalho e cujos nomes possam ter sido, injustamente, olvidados.<br />
5
RESUMO<br />
O presente trabalho propõe a leitura da poesia de João Cabral de Melo Neto a partir<br />
de suas relações com as artes espanholas.Buscou-se evidenciar os modos de estruturação da<br />
linguagem cabralina em comparação com formas e articulações estruturais utilizadas nas<br />
linguagens da arquitetura, da literatura, da pintura, da dança e da música espanholas. Para a<br />
consecução dos objetivos propostos, o texto foi dividido em duas partes, sendo que a<br />
primeira trata dos modos de construção do visível, no contexto da modernidade, e a<br />
segunda recai sobre as formas de intercurso entre a poesia de João Cabral e as obras de<br />
alguns artistas espanhóis. Os resultados obtidos explicitam as variadas realizações desses<br />
diálogos, os quais favorecem a leitura do texto cabralino.<br />
PALAVRAS-CHAVE: João Cabral de Melo Neto. Diálogo. Artes Espanholas.<br />
6
ABSTRACT<br />
This work proposes a reading of João Cabral de Melo Neto's poetry comparing<br />
it to its connection with the spanish arts. It was tried to show the ways of structuring the<br />
cabralina language if compared to figures and structural articulation used on the<br />
language of the spanish architecture, literature, painting , dance and music. To achieve the<br />
proposed goals, the text was separated in two parts, and the first part deals with the ways<br />
of visible construction, taking into account the modern context, and the second part deals<br />
with the interdiscourse between João Cabral's poetry and some pieces of art of some<br />
Spanish artists. The results obtained set out a variety of realizations of these dialogues,<br />
which favour the reading of cabralino’s text.<br />
KEYWORDS: João Cabral de Melo Neto.Dialogue. Spanish Arts.<br />
7
LISTA <strong>DE</strong> FIGURAS<br />
Figura 1 - Les Demoiselles d’Avignon-1907......................................................................226<br />
Figura 2 - Homenagem a Picasso -1912-...........................................................................226<br />
Figura 3 - Retrato de unaniña - 1918-1919 ......................................................................227<br />
Figura 4 - Retrato de bailarina espanhola - 1921............................................................. 227<br />
Figura 5 - La masovera -1922-1923....................................................................................228<br />
Figura 6 - Retrato de Mrs. Mills - 1929.............................................................................228<br />
Figura 7 -. Caracol, mulher, flor e estrela -1934 ............................................................. 229<br />
Figura 8 - Mulheres rodeadas pelo vôo de um pássaro - de 1941....................................229<br />
Figura 9 - Mulher e pássaros ao amanhecer - 1946..........................................................230<br />
Figura 10 - Mulher e pássaro à noite - 1968.....................................................................230<br />
Figura 11 - Mulher e pássaro diante do sol - 1972............................................................231<br />
8
SUMÁRIO<br />
CONSI<strong>DE</strong>RAÇÕES INICIAIS .......................................................................................11<br />
1ª PARTE: A BUSCA <strong>DE</strong> PLASTICIDA<strong>DE</strong> EM LITERATURA................................21<br />
CAPÍTULO 1: MODOS <strong>DE</strong> CONSTRUÇÃO DO VISÍVEL.........................................21<br />
1.1 A imagem visual como exigência da arte moderna........................................................27<br />
1.2 A atualização do modelo cartesiano................................................................................49<br />
1.3 A estética do visível como proposta de testemunho da realidade...................................52<br />
1.4 O racionalismo estético de João Cabral de Melo Neto...................................................53<br />
CAPÍTULO 2: A ESTÉTICA CABRALINA EM EXERCÍCIO...................................66<br />
2.1 Pedra do sono e a organização do texto figurativo na busca da visibilidade..................66<br />
2.2 O exercício cubista em Os três mal-amados...................................................................78<br />
2.3 A fase construtiva do discurso: a visibilidade geométrica e os indícios de um futuro<br />
diálogo com os espanhóis......................................................................................................81<br />
2ª PARTE: JOÃO CABRAL <strong>DE</strong> MELO NETO EM DIÁLOGO COM AS ARTES<br />
ESPANHOLAS....................................................................................................................86<br />
CAPÍTULO 3: OS NÍVEIS DO INTERCURSO <strong>DE</strong> LINGUAGENS...........................86<br />
3.1 A citação por epígrafes....................................................................................................87<br />
3.2 As alusões diretas a nomes ou a processos de criação artística......................................94<br />
3.3 A recorrência a mitos, a temas e a espaços espanhóis..................................................105<br />
CAPÍTULO 4: PRESENÇA DA PINTURA ESPANHOLA EM JOÃO CABRAL ..115<br />
4.1 O cubismo de Picasso....................................................................................................119<br />
4.2 A técnica de Juan Gris...................................................................................................127<br />
9
4.3 O trânsito estético-crítico entre Cabral e Miró..............................................................134<br />
4.3.1 A estética do vivo em Juan Miró................................................................................136<br />
4.3.2 O movimento na poética de João Cabral Melo Neto.................................................140<br />
CAPÍTULO 5: MÚSICA, DANÇA, ARQUITETURA E LITERATURA EM<br />
DIÁLOGO........ ................................................................................................................144<br />
5.1 O cante jondo e seu aproveitamento na poética cabralina............................................147<br />
5.2 A dança flamenca na poética cabralina........................................................................157<br />
5.2 A arquitetura e a poesia.................................................................................................170<br />
5.3 A mulher como espaço sevilhizado na poesia de João Cabral......................................173<br />
5.4 Entre Recife e Sevilha: modernidade, espaço urbano e João Cabral de Melo<br />
Neto.....................................................................................................................................182<br />
CONSI<strong>DE</strong>RAÇÕES FINAIS...........................................................................................195<br />
REFERÊNCIAS ...............................................................................................................201<br />
ANEXOS............................................................................................................................213<br />
10
CONSI<strong>DE</strong>RAÇÕES INICIAIS<br />
O permanente exercício de João Cabral de Melo Neto em torno do ofício da escrita<br />
tem suscitado, ao longo dos anos, estudos de naturezas teórico-críticas diversas. Na maioria<br />
das vezes, tem-se tomado a imagem do poeta pela vertente da inventiva racional, sem se<br />
atentar para a preocupação do autor com a recepção de sua poesia. Foi por perceber, na<br />
linguagem literária de seu tempo, a intransitividade e o hermetismo que João Cabral se<br />
esforçou por apresentar uma poesia dinâmica, não congelada na figura de objeto acabado,<br />
mas impulsionadora de inovacões técnicas, identificando-se como um autor que tenta se<br />
adaptar aos novos tempos, com vistas a atingir o seu leitor.Dentre as inovações propostas<br />
por João Cabral, está o modo como propõe o intercurso com outras formas de linguagens<br />
artísticas.<br />
Isso posto, o objetivo principal desta tese é mostrar como são estabelecidos esses<br />
diálogos interartísticos em sua poesia e quais são os possíveis precursores do poeta nesse<br />
processo. O estudo parte dos poemas, ensaios, depoimentos e casos narrados de viva voz<br />
pelo poeta, bem como de textos pertencentes à sua fortuna crítica.<br />
A relevância da pesquisa está na possibilidade de aprofundar o entendimento sobre<br />
os processos de organização da poética cabralina em sua relação com textos pertencentes a<br />
outros sistemas semióticos, além do literário, como os da pintura, da arquitetura, da música<br />
e da dança espanholas. Até onde pudemos chegar em nossas investigações, observamos<br />
que a hipótese de aproximação de João Cabral aos espanhóis já foi defendida por alguns<br />
estudiosos, os quais propõem, sobretudo, relações entre textos pertencentes ao mesmo<br />
sistema semiótico da literatura, isto é, à linguagem verbal.<br />
11
Por outro lado, esses estudos procuram evidenciar as fases da poesia cabralina em<br />
que tais diálogos acontecem 1 , como é o caso de João Gaspar Simões (1964, p.342) o qual<br />
observa que João Cabral, depois que sai do Brasil, busca na Espanha, “mesmo sem querer,<br />
a ‘razão matemática’ que igualmente rege seus versos em substituição do discursivo<br />
inerente ao romance peninsular.”<br />
Assim, de acordo com o crítico, o interesse do poeta brasileiro pelos espanhóis<br />
surge em decorrência da postura metalingüística assumida na “primeira fase” de sua<br />
trajetória poética. O nome citado nesse contexto é o do poeta espanhol Jorge Guillén (1893-<br />
1984) 2 que, à maneira de um Paul Valéry (1871-1945) 3 , também cultiva a poética do rigor,<br />
como será mostrado adiante.<br />
César Leal (1964, p.4) também admite que a influência da tradição ibérica dá à<br />
poesia cabralina uma nota de austeridade, de contenção. Através do romancero, o poeta<br />
brasileiro passa a dar o sentido e a ordem que sua poesia mais caracteristicamente<br />
1 Em relação às fases da poesia cabralina, João Cabral de Melo Neto, ao publicar o livro Duas águas, em<br />
1956, propõe a seguinte divisão: uma fase construtiva e outra participante. A primeira fase é formada pelos<br />
poemas experimentais, arquitetônicos, feitos para poetas e que versam sobre o próprio fazer poético. A fase<br />
participante volta-se para a problemática social do homem do nordeste e é formada por obras como O cão sem<br />
plumas (1950) e O rio (1953), que são poemas longos sobre os miseráveis habitantes dos manguezais do rio<br />
Capibaribe. Essa última fase, apesar do mesmo rigor estético das obras construtivistas, atinge com mais<br />
facilidade o leitor comum, pois lida com problemas universais do ser humano: a fome, a miséria, as diferenças<br />
sociais. A despeito dessa divisão proposta por João Cabral, em depoimento dado à TV Cultura, por ocasião<br />
do documentário Duas águas, o escritor e ensaísta Décio Pignatari observa que tal critério “é reducionista e<br />
prejudica o entendimento da obra de João Cabral. O pessoal da Academia de Letras e os acadêmicos da<br />
Universidade se contentam com esta divisão e acham que ela explica tudo. Mas não é bem assim. João Cabral<br />
sustenta uma enorme crise, um debate que nunca se resolve, entre a obra de arte em si e a obra de arte<br />
enquanto instrumento de melhoramento e aperfeiçoamento social. Ele mantém esta contradição<br />
constantemente, e isto impregna toda a obra dele. O conflito é rico e é muito mais entranhado." Disponível em<br />
www.tvcultura.com.br/aloescola/literatura/joaocabral/joaocabral3.htm - 23k -<br />
2 Jorge Guillén é um dos importantes poetas da chamada Generación del 27, grupo que inclui nomes como os<br />
de Pedro Salinas, Gerardo Diego, Dámaso Alonso, Federico García Lorca, Luis Cernuda, Vicente<br />
Aleixandre, Rafael Alberti, Emilio Prados, Manuel Altolaguirre, Juan José Domenchina. Dentre outras<br />
propostas, os poetas dessa geração renovaram os estudos de Luis de Góngora y Argote (1561-1627).<br />
3 Poeta-crítico francês pertencente à linhagem dos poetas-críticos nos quais predomina a disciplina no<br />
processo de criação artística.<br />
12
nordestina merece.<br />
Já Eduardo Portella (1956) divide a obra de João Cabral em três períodos<br />
diferentes, ao se referir a Duas águas. O primeiro período, “de espírito francês, valeryano”,<br />
apresenta uma preocupação esteticista, um rigor formal a ponto de afastar o leitor; o<br />
segundo, é o período “espanhol”, ou seja, “quando o poeta reconhece que o exercício<br />
formal não deve ser uma atitude intransitiva e que aos anos de elevação técnica tem de<br />
suceder uma fase de extensão, fase em que a maior preocupação é recuperar o leitor. O<br />
popular, a linguagem falada revaloriza-se então.”(PORTELLA, 1956) Com a intenção de<br />
recuperar o seu leitor, o poeta procura adequar a sua linguagem.Já o último período, na<br />
opinião do crítico, é o da “compenetração dos dois momentos anteriores”(Ibidem), em que<br />
a temática, as formas e as expressões nacionalizam-se. É a fase de Morte e vida severina<br />
(1955-1955).<br />
João Cabral, de certo modo, confirma a observação de Portella ao afirmar que, se<br />
não tematizou o Nordeste antes, foi porque entendia que ainda “não tinha descoberto a<br />
linguagem adequada para falar do Brasil”(MELO NETO, 1968) 4 . Para o poeta, a linguagem<br />
adequada viria, sobretudo, a partir do conhecimento da literatura espanhola:<br />
A Espanha deu-me um afastamento suficiente, não excessivo, para poder escrever<br />
sobre o Nordeste e a carreira [diplomática] libertou-me do provincianismo de<br />
muitos dos meus contemporâneos. (MELO NETO, 1968)<br />
E quando cheguei à Espanha, eu comecei a estudar sistematicamente a literatura<br />
espanhola. Foi uma coisa que me libertou dessa influência francesa que eu tinha<br />
através do Willy Lewin e ao mesmo tempo abriu horizontes para mim enormes.<br />
4 Os depoimentos de João Cabral são extraídos dos livros Correspondência de Cabral com Bandeira e<br />
Drummond., de Flora Sussekind (2001), Idéias fixas de João Cabral de Melo Neto, de Félix de Athayde<br />
(1998) e Civil Geometria – bibliografia crítica, analítica e anotada de João Cabral de Melo Neto 1942-1982,<br />
de Zila Mamede (1987). No corpo do texto, indicamos o ano em que tais depoimentos foram proferidos e nas<br />
referências finais, indicamos, na ordem em que são citados, os nomes dos entrevistadores, seguidos dos<br />
nomes das revistas ou dos jornais onde foram publicados.<br />
13
Porque o espanhol, apesar de ser o povo da Inquisição, o povo católico, o<br />
espanhol tem a literatura mais realista do mundo. Isso foi outra coisa da maior<br />
importância para mim, para eu me reforçar no meu anti-idealismo, no meu antiespiritualismo,<br />
no meu materialismo.(MELO NETO, 1990)<br />
Esses depoimentos demonstram que há, em João Cabral, o desejo de identificação<br />
de sua arte com os padrões europeus, principalmente espanhóis, com os quais conviveu por<br />
treze anos 5 . Em cartas enviadas aos poetas Manuel Bandeira e Carlos Drummond de<br />
Andrade, na época em que morava em Barcelona, João Cabral revela um contato intelectual<br />
muito grande com os escritores da Espanha, tornando-se, diante de seus conterrâneos, uma<br />
espécie de porta-voz da literatura espanhola daquele momento (CARVALHO, 2002).<br />
Aventada, então, a possibilidade de relacionar a poesia de João Cabral à literatura<br />
espanhola, principalmente no que concerne ao aspecto formal da organização da<br />
linguagem, fomos instados a retornar aos depoimentos do poeta pernambucano, com o<br />
propósito de delimitar o nosso tema.<br />
Em entrevista concedida a Antônio Carlos Secchin (1999), em novembro de 1980,<br />
ao ser questionado sobre aspectos que julga mal ou insuficientemente analisados em sua<br />
obra, João Cabral observa:<br />
Acho errado ver Uma faca só lamina exclusivamente como arte poética. Também<br />
ainda não se enfatizou o grande predomínio dos substantivos, adjetivos e verbos<br />
5 João Cabral é transferido como vice-cônsul para o Consulado Geral de Barcelona em 1947.Em 1950, é<br />
transferido para o Consulado Geral de Londres. O poeta retorna ao Brasil em 1952, quando é acusado de<br />
subversão, a fim de responder a inquérito. Colocado em regime de disponibilidade pelo Itamaraty, fica no<br />
Brasil até 1956, ano em que é nomeado cônsul-adjunto em Barcelona. Em 1958, é transferido para o<br />
Consulado-Geral em Marselha. Em 1960, volta à Espanha, como primeiro-secretário da Embaixada, em<br />
Madri. Em 1961, volta ao Brasil, mas, no mesmo ano, retorna à Embaixada em Madri.Em 1962 é transferido<br />
para Sevilha. Em 1964, segue para Genebra. Em 1966, transfere-se para a Embaixada em Berna, no cargo de<br />
ministro-conselheiro. Em 1967, é nomeado cônsul-geral em Barcelona. Em 1968, é eleito para a vaga de<br />
Assis Chateaubriand na Academia Brasileira de Letras, tomando posse em 1969, quando é removido para a<br />
Embaixada em Assunção.Em 1972, é nomeado embaixador do Brasil no Senegal .Em 1979, transfere-se para<br />
o Equador. Em 1981, é nomeado embaixador em Honduras. Em 1982, é removido para Portugal. Em 1987, é<br />
transferido para o Rio de Janeiro, aposentando-se como embaixador em 1990.Em 1992, representa o Brasil<br />
em Sevilha, por ocasião das comemorações do Sete de Setembro.<br />
14
concretos nos meus textos. Sim, porque adjetivos e verbos admitem essa<br />
categoria. Por exemplo: o adjetivo sublime é abstrato, como tristeza. Maçã é tão<br />
concreto quanto o adjetivo torto. A literatura espanhola usa preponderantemente<br />
o concreto, e por isso me interessou. As literaturas primitivas me interessam.<br />
Parece que a linguagem começou pelas palavras concretas. (SECCHIN, 1999, p.<br />
333)<br />
Como podemos observar, o significado da palavra “concreto” para João Cabral<br />
difere do uso do termo situado no contexto de vanguarda brasileira, e em parte daquele<br />
formulado pelo grupo Noigrandes, de São Paulo, apresentado por um artigo de outubro<br />
de 1955, por Augusto de Campos:<br />
Em sincronização com a terminologia adotada pelas artes visuais e, até certo<br />
ponto, pela música de vanguarda (concretismo, música concreta), diria eu que há<br />
uma poesia concreta.Concreta no sentido em que, postas de lado as pretensões<br />
figurativas da expressão (o que não quer dizer: posto à margem o significado), as<br />
palavras nessa poesia atuam como objetos autônomos. Se, no entender de Sartre,<br />
a poesia se distingue da prosa pelo fato de que para esta as palavras são signos<br />
enquanto para aquela são coisas, aqui essa distinção de ordem genérica se<br />
transporta a um estágio mais agudo e literal, eis que os poemas concretos<br />
caracterizar-se-iam por uma estruturação ótico-sonora irreversível e funcional, e,<br />
por assim dizer, geradora da idéia, criando uma entidade todo-dinâmica,<br />
‘verbivocovisual’ – é o termo de Joyce – de palavras dúcteis, moldáveis,<br />
amalgamáveis, à disposição do poema. (CAMPOS, apud TELES, 1979, p.178)<br />
Observamos que a idéia de “concreto” formulada pelo poeta pernambucano não<br />
coincide com o dos concretos, embora apresente certos traços valorizados por eles, como a<br />
exploração da materialidade da linguagem, em sua dimensão plástica e sonora. Ou seja, o<br />
conceito cabralino, por não se circunscrever ao culto da palavra como um objeto autônomo,<br />
é mais amplo e matizado que o do concretismo brasileiro, aproximando-se mais da proposta<br />
dos teóricos da análise do discurso 6 , os quais observam que a idéia de “concreto” não se<br />
restringe apenas aos substantivos, mas estende-se aos adjetivos e verbos, como “vermelho”<br />
6 Referimo-nos aos preceitos de Jean-Michel Adam (1987), traduzidos por Francisco Platão Savioli e José<br />
Luiz Fiorin (1996).<br />
15
e “abanar-se”, palavras que contêm um grau de concretude maior do que as palavras<br />
“tolerante” e “invejar”, por exemplo. Nesse sentido, eles entendem que concreto e abstrato<br />
não são dois pólos absolutamente opostos. Assim, no tocante à opinião de João Cabral, o<br />
interesse pela literatura espanhola advém do modo como tenta redimensionar o uso do<br />
vocábulo concreto.<br />
Nesse contexto, João Cabral cita nomes que vão desde a vertente realista e objetiva<br />
que surgiu na Espanha com a literatura épica primitiva – principalmente o romancero e a<br />
novela picaresca – no período anterior ao chamado Século do Ouro espanhol, até poetas<br />
da Geração de 27, como Miguel Hernández, García Lorca e outros, em que se percebe a<br />
preponderância do uso de uma linguagem plástica, concreta.<br />
Por outro lado, além do visível interesse pelo uso do concreto, João Cabral chama a<br />
nossa atenção também para os possíveis diálogos entre as literaturas portuguesa, espanhola<br />
e brasileira pela valorização da cultura popular:<br />
A literatura espanhola é grande porque é, sobretudo, a mais realista do mundo. É<br />
a que tem bases mais profundamente populares. Até mesmo nos clássicos, como<br />
Cervantes, Quevedo, mesmo em Góngora, se encontra a presença do povo, do<br />
popular. Em Góngora, observamos bastante o realismo, por vezes rude, áspero<br />
[...] o espanhol é o povo do concreto. (MELO NETO, 1952)<br />
Sim, eu creio que uma das coisas formidáveis que nós latinos, ibéricos e iberoamericanos<br />
temos é a tradição de um teatro visceralmente popular, desde Gil<br />
Vicente e Lope Rueda, até Lope de Vega, Calderon e Tirso de Molina. Quanto a<br />
mim, essa tradição tem uma vitalidade extraordinária e pode ajudar muito todos<br />
aqueles que pretendem criar um teatro e um tempo moderno e popular. Não só no<br />
teatro. O verso camoniano e garciliano, à exceção dos decassílabos, é popular. Os<br />
nossos grandes utilizaram indistintamente formas eruditas e não eruditas de<br />
expressão. O seu verso subsiste ainda na literatura popular de Portugal, Espanha e<br />
Brasil. (MELO NETO, 1966)<br />
Sobre o tipo de realismo que João Cabral valoriza na literatura espanhola,<br />
acreditamos que seja aquele resultante de um processo criativo que demanda uma atitude<br />
16
vigilante do autor diante do ato da escrita, com vistas a alcançar um tipo de objetividade ou<br />
de realismo distintos da objetividade e do realismo que concebe a literatura como uma<br />
técnica para a imitação direta da aparência das coisas. Nessa perspectiva, em conformidade<br />
com as teorias da arte contemporânea 7 que tratam do sentido da palavra mímesis, João<br />
Cabral nega a concepção que defende a idéia de reflexo ou reprodução da realidade.<br />
Portanto, de acordo com os depoimentos do poeta em estudo, as maiores qualidades<br />
da literatura da Espanha são o uso da palavra concreta, tomada, sobretudo, em sua<br />
dimensão plástica; o realismo da linguagem, considerando a linguagem como realidade<br />
primeira do homem, usada no seu caráter popular.<br />
Sob este ponto de vista, esse fascínio de João Cabral pelos espanhóis poderia ser<br />
visto como “uma ânsia coletiva de afirmar componentes europeus de nossa formação”,<br />
conforme propõe Antonio Candido (2000, p. 110) ao se referir ao intelectual brasileiro. A<br />
nosso ver, no entanto, esse parece não ser o caso de João Cabral, já que o aproveitamento<br />
da temática popular e da técnica de versejar espanhola é mais visível nas obras escritas na<br />
Espanha. Acreditamos que, longe de casa, em contato com uma cultura que valoriza o<br />
prosaico, ecoa com mais nitidez a voz do povo nordestino que se dá a ver num ritmo<br />
áspero e contundente.<br />
O passo seguinte, então, foi verificar se os traços da literatura espanhola destacados<br />
pelo poeta brasileiro são reconhecidos pelos críticos de arte daquele país. Para nossa<br />
surpresa, entre os nomes mais tradicionais da Espanha, observamos que há um consenso<br />
acerca de algumas constantes que marcam as obras produzidas pelos artistas espanhóis.<br />
7 De acordo com Herbert Read (1991, p.72), desde o Filebo, última obra de Platão, há o abandono definido da<br />
teoria da mimese como imitação direta da aparência das coisas.<br />
17
Apontam como marcas tradicionais o uso da palavra concreta, a ininterrupta adesão aos<br />
ideais nacionais e a vigência da tradição local em suas manifestações artísticas.<br />
Na concepção de Ramón Menéndez Pidal (apud LÓPEZ, 1957, p.404), por<br />
exemplo, as tendências mais significativas da literatura espanhola na Idade Média são o<br />
gosto pelas formas de expressão mais sóbrias e espontâneas ou a aversão a tudo quanto se<br />
supõe que sejam artifícios ou complicações excessivas; a inclinação para um tipo de arte<br />
realista, oposta tanto ao fantástico, quanto às vagas impressões abstratas. Reforçando essa<br />
tendência da literatura espanhola em objetivar o texto, José García López (1957) observa<br />
que muitos escritores espanhóis tendem a eliminar todo tipo de retórica desnecessária,<br />
oferecendo-nos um tipo de lírica mais objetiva, mais concreta.<br />
Diante dessas informações relevantes para a delimitação de nosso objeto de<br />
pesquisa, surgiu a dúvida quanto ao corpus literário que seria utilizado, já que a presença<br />
espanhola parece marcar a produção de João Cabral em todas as suas fases. A fim de evitar<br />
a exaustiva análise de todos os livros do poeta, como tradicionalmente tem acontecido,<br />
penamos em priorizar as obras publicadas a partir de A escola das facas (1975-1980). No<br />
entanto, percebemos que, desde o primeiro livro, João Cabral já indicia, na busca de uma<br />
linguagem visual, a possibilidade de inter-relação com outras artes. Assim, a nossa tarefa<br />
foi selecionar poemas que evidenciam os modos como acontecem esses diálogos; se no<br />
plano estrutural dos textos, através do aproveitamento da técnica de composição dos versos;<br />
se na organização sintática do discurso; ou se apenas através da recorrência a temas<br />
comuns.<br />
Nesse contexto, o método escolhido foi o da análise de textos em seus vários níveis,<br />
partindo de autores que propõem os fundamentos da arte visual no contexto da<br />
modernidade e daqueles que discutem as possibilidades de relações intertextuais.<br />
18
Admitimos que não conseguimos manter a coerência que desejávamos na escolha desses<br />
nomes. Em parte, porque, como o nosso objetivo inicial foi articular procedimentos<br />
estéticos, entendemos que o poema e sua escritura deviam ser prioridade no momento da<br />
interpretação; e em parte porque a nossa postura interpretativa variou de acordo com a<br />
temática abordada em cada poema: ora nos ativemos à análise do discurso poético, ora<br />
inter-relacionamos processos de criação artística, ora procuramos mostrar como esses<br />
processos derivam de circunstâncias socioeconômicas ou ideológicas.<br />
Essa variação está refletida na estrutura de nossa tese: embora esteja divida em duas<br />
partes, cada parte teve que ser subdividida em capítulos, nos quais acabamos tratando de<br />
questões teóricas e análises de textos ao mesmo tempo.<br />
Desse modo, para efetivar o estudo proposto, empreendemos inicialmente uma<br />
pesquisa bibliográfica e analítica, visando a estabelecer os principais fundamentos da<br />
proposta estética do poeta em estudo. Mostramos, na primeira parte, a ênfase na<br />
plasticidade da linguagem, como princípio norteador da escrita do poeta, sendo que, no<br />
primeiro capítulo, discutimos a perspectiva visual da arte contemporânea e buscamos as<br />
principais vertentes desse pensamento em arte, a fim de recuperar o tipo de racionalidade<br />
proposta pelo poeta em seu discurso teórico-crítico. No segundo capítulo, aprofundamos as<br />
nossas análises de textos das duas primeiras obras de João Cabral, com o intuito de<br />
evidenciar os recursos utilizados pelo poeta na primeira fase de sua produção artística, se de<br />
natureza estrutural, sintática ou semântica.<br />
Na segunda parte de nosso estudo, tentamos estabelecer os diálogos entre literatura<br />
e outras artes, sem perder de vista o grau de sugestionabilidade dos textos cabralinos e a<br />
identificação de seus níveis de intercurso com outras linguagens artísticas. A segunda parte<br />
19
foi dividida em três capítulos. No primeiro, tentamos explicitar os modos pelos quais a<br />
poética cabralina dialoga com as artes espanholas. Nos dois últimos capítulos, propusemos<br />
a leitura de poemas em suas relações com essas artes, atentando para as teorias que<br />
fundamentam esses trânsitos inter-semióticos.<br />
Por fim, nas considerações finais, pontuamos as principais questões discutidas ao<br />
longo dessa pesquisa, bem como as conclusões a que chegamos no final de uma acurada<br />
reflexão.<br />
20
1ª PARTE<br />
A BUSCA <strong>DE</strong> PLASTICIDA<strong>DE</strong> EM LITERATURA<br />
CAPÍTULO 1<br />
MODOS <strong>DE</strong> CONSTRUÇÃO DO VISÍVEL<br />
João Cabral de Melo Neto lança seu primeiro livro de poesia em 1942, depois de<br />
consolidado o modernismo brasileiro e de redefinida a nossa cultura. Esse papel coube às<br />
gerações de 1922 e de 1930, como observa Antonio Candido (2000). Aos poetas de 1940<br />
em diante, coube a realização de pesquisas formais 8 e psicológicas na poesia, ou então<br />
abdicaram do papel de escritores e se tornaram especialistas em propagandas e panfletos<br />
políticos. O aumento gradativo do número de leitores nos primeiros decênios do século XX,<br />
o surgimento de numerosas editoras, a concorrência de meios de comunicação mais<br />
expressivos, como o rádio, o cinema, o teatro etc., são alguns dos fatores que justificam as<br />
inovações formais em literatura nesse período.<br />
No caso de João Cabral, percebemos que é consensual a idéia de que o poeta<br />
pernambucano apresenta uma proposta artística que, desde a primeira fase, problematiza<br />
um tipo de lirismo cristalizado na tradição da poesia brasileira, ao condenar o<br />
sentimentalismo e o emocionalismo e ao postular um novo tipo de objetividade para a<br />
poesia. Não há dúvidas de que essa nova objetividade é marcada pela ênfase na pesquisa<br />
estética, sem a preocupação com o engajamento político-social do texto, como reza a<br />
8 Neste estudo, empregamos o termo forma e seus correlatos de acordo com a concepção clássica definida<br />
por Herbert Read como “uma certa relação harmônica ou proporcional das partes com o todo e umas com as<br />
outras que pode ser analisada e finalmente reduzida a número.” (READ, 1967, p.98)<br />
21
geração de 30, ou seja, visando à literatura de testemunho da realidade. Como acentua<br />
Antônia Torreão Herrera (1995),<br />
sua questão é como não dizer esse Nordeste, já todo ele mediatizado pela<br />
interferência do ficcional de excessivo peso conteudístico, semantizado<br />
sentimentalmente numa ilusão mimética que imagina o signo transparente e capaz<br />
de fazer por ele falar o real como um dado a priori. Resta ao poeta instaurar uma<br />
nova linguagem como novo modo de ver – uma “forma fecunda em idéias”, que<br />
possa dar a ver nela a realidade -, e que não se propõe a dizer. (HERRERA, 1995,<br />
p.151)<br />
Nessa perspectiva, de acordo com os textos críticos de João Cabral, o poeta<br />
moderno tem necessidade de repensar a função da poesia de seu tempo e introduzir em sua<br />
obra pelo menos uma das seguintes atitudes mentais: “captar mais completamente os<br />
matizes sutis, cambiantes, inefáveis, de sua expressão pessoal” e “apreender melhor as<br />
ressonâncias das múltiplas e complexas aparências da vida moderna”.(MELO NETO, 1998,<br />
p.97) 9<br />
Em face do nosso desejo de discutir o sentido da objetividade pensada pelo poeta<br />
pernambucano e de observar quem são os seus precursores, buscamos todas as afirmações<br />
que João Cabral faz acerca da idéia de hermetismo, linguagem, lirismo, literatura, poesia,<br />
forma, e termos afins. Na maioria das vezes, percebemos que é enfatizada a idéia de um<br />
escrever claro:<br />
(...)Eu, quando escrevo, o meu esforço não é escrever harmonioso, não é escrever<br />
bonito, é escrever claro. Não me dar a entender como a linguagem matemática,<br />
mas dar a ver aquela coisa da maneira mais clara. No poema não só há uma<br />
obrigação moral do poeta ser claro, como também eu tenho a impressão de que o<br />
esforço mais fecundo que ele pode fazer é procurar ser claro. (MELO NETO,<br />
1989)<br />
9 Essa é a tese do poeta, ao tratar da função moderna da poesia, em 1954.<br />
22
Sob esse aspecto, escrever claro, dar a ver a realidade não significa simplesmente<br />
organizar o texto dentro de uma lógica matemática, geométrica, ou como rezam algumas<br />
propostas de objetividade que antecedem a produção poética de João Cabral, sobretudo no<br />
Brasil 10 , mas usar palavras concretas.<br />
Por isso, ao se referir aos três tipos de poesia propostos por Erza Pound, o poeta<br />
afirma que as poesias portuguesa e brasileira são “preponderantemente melopéia e<br />
logopéia” (MELO NETO, 1958), ou seja, poesia de sugestão auditiva e poesia que<br />
transmite uma idéia, respectivamente. A poesia cabralina é vista por ele mesmo como uma<br />
poesia de “fanopéia”, isto é, aquela que apresenta uma realidade visual ou visualizável. Este<br />
tipo de poesia, a fanopéica, ao sugerir uma maçã, por exemplo, cria um símbolo, um objeto<br />
concreto, que pode ser lido tanto pelo escritor, como pelo leitor, por dar a ver o que o<br />
escritor quer dizer. Desse modo, a comunicação entre os dois se estabelece prontamente,<br />
porque quando se lê maçã, não se lê o conceito de maçã. Ao passo que melancolia, cada<br />
um lê de um jeito. Para João Cabral a palavra concreta, porque muito mais sensorial, é<br />
sempre mais poética do que a palavra abstrata, pois a palavra concreta é a palavra entendida<br />
pelos sentidos e a palavra abstrata é a palavra que se atinge pela inteligência. (MELO<br />
NETO, 1989)<br />
Em virtude dessas afirmações, perfilamos a racionalidade cabralina à vertente que<br />
pretende a organização de um tipo de linguagem literária que corporifica a palavra, a fim de<br />
que esta seja percebida pelo leitor e se encarne como algo que produza uma nova e<br />
10 Na seqüência deste primeiro capítulo, tentaremos evidenciar as diferenças que existem entre o projeto de<br />
objetividade de João Cabral e as propostas que marcaram as gerações que precederam o poeta, sobretudo a<br />
geração de 30, de acordo com os estudos de Flora Sussekind (1984)<br />
23
diferente ordem significativa 11 , isto é, numa perspectiva fenomenológica 12 . Nesse sentido,<br />
devemos observar que o ato de corporificar o pensamento como imagem vai além da<br />
simples preocupação com o fazer artístico, pois visa a alcançar as sensações dadas pela<br />
natureza do objeto.O próprio poeta tenta explicar esse processo, ao falar da influência de<br />
Murilo Mendes em sua poética:<br />
Pois bem: creio que nenhum poeta brasileiro me ensinou como ele a importância<br />
do visual sobre o conceitual, do plástico sobre o musical (a poesia dele, que tanto<br />
parecia gostar de música, é muito mais de pintor ou cineasta do que de músico).<br />
Sua poesia me ensinou que a palavra concreta, porque sensorial, é sempre mais<br />
poética do que a palavra abstrata, e que assim a função do poeta é dar a ver (a<br />
cheirar, a tocar, a provar, de certa forma a ouvir: enfim, a sentir) o que ele quer<br />
dizer, isto é, dar a pensar. (MELO NETO, 1976)<br />
Além de Murilo Mendes, percebemos que essa tendência em estruturar um tipo de<br />
linguagem que alcance a forma do objeto pela sua concretude também advém de outras<br />
leituras do poeta. Graciliano Ramos, por exemplo, é o nome citado por João Cabral, no<br />
momento em que a temática do texto problematiza a propensão formal e social da<br />
linguagem literária, ou seja, quando tenta articular o “fazer e o dizer” no seu canto “A palo<br />
seco” 13 :<br />
11 Chamamos a atenção para o perigo de confundirmos potencialidade significativa da linguagem de João<br />
Cabral com ambigüidade discursiva, recurso marcado pelo poder de sugestão, que permite o mistério, a<br />
indefinição do texto. A priori, tal efeito ofuscaria a clareza da expressão, embora o próprio poeta tenha<br />
admitido essa ambigüidade em alguns de seus depoimentos: “Agora eu sinto que apesar de todo meu esforço<br />
de não ser hermético, eu sou um poeta hermético, disso não tenho dúvida.” (In: 34 Letras. Rio de Janeiro, nº<br />
03, março, 1989, p.44)<br />
12 Partimos das concepções de percepção fenomenológica apresentadas por Marilena Chauí (2002), na obra<br />
Convite à Filosofia.Para a autora, em nosso século, a Fenomenologia e a Gestalt alteraram bastante as<br />
teorias do conhecimento apresentadas pelas tradições empirista e intelectualista, conforme observaremos ao<br />
longo de nosso estudo.<br />
13 Para evitar a transcrição de todos os textos no corpo da tese, aqueles que repetem aspectos já analisados ou<br />
que não sejam analisados verso a verso, serão apresentados sob a forma de anexos ou fragmentados. Os<br />
anexos serão numerados de acordo com o capítulo a que se referem.Por exemplo: capítulo 01, consultar anexo<br />
01.<br />
24
A palo seco existem<br />
situações e objetos:<br />
Graciliano Ramos,<br />
desenho de arquiteto,<br />
as paredes caiadas,<br />
a elegância dos pregos,<br />
a cidade de Córdoba,<br />
o arame dos insetos.<br />
(MELO NETO, 1986, p.164)<br />
Ciente da impossibilidade de dizer o real, de Graciliano Ramos o poeta aprende a<br />
direcionar o seu canto para a linguagem do objeto, por isso recorre a recursos de construção<br />
da imagem que possam dar a ver uma realidade contida na imagem mesma.<br />
Tentando esclarecer essas questões de maneira mais objetiva, alguns anos mais<br />
tarde, em fevereiro de 1970, em entrevista a Ruiz Nestosa 14 , João Cabral volta a falar sobre<br />
a função da poesia na era moderna, lembrando que à poesia não se pode atribuir a função<br />
de outros gêneros literários. O poeta brasileiro alega que a poesia e a arte devem ter algum<br />
comprometimento, mas que isso não pode ofuscar a personalidade do artista.João Cabral,<br />
nesse contexto, refere-se, sobretudo, ao realismo socialista praticado pelos espanhóis nos<br />
14 [...] la poesia cumple una gran función en la sociedad contemporánea. Pero es la misma función que cumple<br />
toda la actividad intelectual, y no hay buscarle, de ningun modo, una función especial y diferente. No hay por<br />
qué atribuirle una función específica como pretenden muchos, y com ella se puede hacer todo lo que se puede<br />
hacer con todos los otros géneros. La única función de la poesia es decir la verdad. No mentir, como todo el<br />
arte. Y la única obligación del intelectual es para con la verdad [...] Para mí, el viejo y contravertido tema del<br />
intelectual y el compromiso, se reduce a lo que decía: compromiso com la verdad. El artista no debe<br />
comprometerse com ninguna ideologia, aun cuando algunos creen que deben comprometerse con un partido<br />
político. Es cierto que la verdad no es algo absoluto.Pero la obrigación del artista es decir aquello que él cree<br />
es verdad, la verdad de cada uno. Si el artista se compromete con un partido político, pierde su libertad ya que<br />
ese partido le impone una línea, y no se puede hablar entonces, com sinceridad, de una verdad que se le<br />
impone a uno[...],/De todos modos, creo que lo mas importante para un artista es conocerse de manera<br />
exhaustiva para no hacer algo para lo qual él no está habilitado. Y esto es importante, pues el artista tiene<br />
muchísimas más posibilidades de equivocarse por que es muy sensible a la moda. [...]/ Pero la literatura es<br />
algo pendular. Hoy los jóvenes se reúnem alrededor de mi poesia y no se acuerdan de Schmidt. Mañana se<br />
reunirán de nuevo alrededor de él y se olvidarán de mi. Y asi sucesivamente[...].<br />
25
anos 40, começo dos 50, segundo Joan Brossa (1919-1998). 15 O poeta pernambucano<br />
discorda do realismo espanhol, considerando que aquele tipo de literatura inibe a força<br />
individual. Para João Cabral, a força individual, aquilo que é do artista, não pode ser<br />
oprimido por nenhuma ideologia. Sua idéia é que a poesia deve indicar um caminho de<br />
crítica social, mas sem jamais se submeter a qualquer teoria.<br />
Portanto, nos dois momentos em que fala da função da poesia, temos a impressão de<br />
que João Cabral tenta desarticular o fazer poético do poeta moderno da questão político-<br />
social, como se a poesia estivesse acima de qualquer intenção ideológica ou partidária.<br />
Dizer a verdade em poesia não significa, para o autor, converter a literatura em testemunho<br />
da realidade, mas em oferecer uma das possibilidades de apreensão dessa mesma realidade.<br />
Luiz Costa Lima (1967), em entrevista, foi um dos primeiros críticos a chamar a<br />
atenção para o tipo de realismo cabralino, alegando que,<br />
na consciente traição à poética mallarmeana, a obra de João Cabral nos tem<br />
proposto a possibilidade de repensarmos não só nossas idéias sobre o discurso<br />
poético, e sua maneira de realização, como, e de maneira drástica, de pormos em<br />
cheque o conceito de realismo. Na verdade, se confundirmos, como é freqüente,<br />
realismo e expressão testemunhal ou seremos obrigados, neste caso, a desprezar o<br />
conceito por sua estreita utilidade, ou não entenderemos o alcance da lição<br />
cabralina, forçando-a por senda descabida. Pois em Cabral madura e se condensa<br />
a tensão que notávamos desde Manuel Bandeira: a de fazer da palavra mais que<br />
indício do real, a de construir pelo próprio tipo das relações de palavra a palavra,<br />
de frase a frase, de verso a verso, um realismo de linguagem.[...] Com João<br />
Cabral chega a seu tempo a fase criadora do modernismo.[...](LIMA,1967)<br />
Desse modo, talvez na tentativa de explicitar esse novo tipo de realismo, em outro<br />
momento o poeta tenta definir o tipo de literatura que deseja alcançar:<br />
15 De acordo com o escritor catalão, os escritores espanhóis viviam “muito limitados durante o franquismo e<br />
ele [João Cabral] abriu novas perspectivas para nós com suas idéias. Cabral vivia a sua época e a gente não.”<br />
Em entrevista publicada nos Cadernos de Literatura Brasileira, 1998, p. 16.<br />
26
Literatura não é só o ato de captar na obra literária uma determinada coisa: há a<br />
contraparte, que é a capacidade de comunicar a coisa captada.(...)... o critério para<br />
saber se a coisa foi bem expressa é justamente a possibilidade de que ela tenha<br />
sido comunicada a outras pessoas além do artista.(MELO NETO, 1953)<br />
De acordo com essa definição, João Cabral não “sacrifica ao bem da expressão a<br />
intenção de comunicar” (MELO NETO, 1998, p.99), como alguns individualistas<br />
exacerbados de seu tempo, mas preocupa-se também com o poder de comunicação de sua<br />
linguagem e com os modos de recepção de seus textos. Assim, a objetividade do projeto<br />
cabralino está pautada em uma reflexão crítica acerca do fazer poético, ao mesmo tempo<br />
em que tenta resgatar a comunicação com o leitor, visto por ele como “contraparte essencial<br />
à atividade de criar literatura.” (MELO NETO, 1998, p.67).<br />
Com o intuito de aprofundar nossas reflexões, passamos a investigar as razões de<br />
a lírica moderna em geral, e em especial, a lírica cabralina, estarem atentas ao aspecto da<br />
organização de “um instrumento mais maleável e de reflexos imediatos”(MELO NETO,<br />
1998, p.97), como diz João Cabral, ao se referir à poesia que a modernidade exige.<br />
1.1.A IMAGEM VISUAL COMO EXIGÊNCIA DA ARTE MO<strong>DE</strong>RNA<br />
Para João Cabral, embora a poesia de seu tempo “seja uma coisa multiforme<br />
demais” (MELO NETO, 1998, p.97), há a possibilidade de se encontrar nela um<br />
denominador comum: o espírito de pesquisa formal, já que esse aspecto “tem caracterizado<br />
as diversas gerações que se vêm sucedendo no período dito moderno, ainda que não se<br />
possa afirmar seja a pesquisa da forma o motivo nodal da criação poética de cada uma<br />
27
dessas gerações.” (Ibidem)<br />
Atentando para o sentido que João Cabral dá para a necessidade de uma constante<br />
pesquisa em arte e para o modo como o poeta brasileiro inova a sua poesia, encontramos,<br />
em seus depoimentos, referências a algumas vertentes artísticas, as quais privilegiam a<br />
imagem visual como possibilidade de atualização e modernização do discurso literário, em<br />
consonância com a vida moderna, a despeito de terem surgido antes ou depois de João<br />
Cabral.<br />
No que concerne à arte de seu tempo, como já mostramos, João Cabral fala da<br />
importância do visual sobre o conceitual no momento da organização do texto que, segundo<br />
ele, tem que atingir a realidade exterior, a qual se tornou mais complexa e exigente nos<br />
tempos atuais, em face da concorrência dos meios de comunicação.Nesse contexto, o poeta<br />
pernambucano reconhece que a imagem determina ou é determinada pelo texto. Em razão<br />
disso, em muitos momentos, o poeta confessa o seu interesse por estéticas ligadas ao visual:<br />
Ficando nos modernos, eu confesso que o Cubismo, para mim, é da maior<br />
importância. Não só o Cubismo como pintura, mas também como teoria artística. E<br />
também toda a pintura abstrata construtivista. Não a pintura abstrata chamada<br />
lírica; mas a abstrata geométrica, construtivista me interessa muito. (MELO NETO,<br />
1986)<br />
O interesse de João Cabral não só pelas artes, mas também pelas teorias cubistas e<br />
construtivistas demanda o estudo dessas duas correntes estéticas, já que o nosso propósito é<br />
articular o discurso cabralino a tendências visuais da modernidade.<br />
Em relação ao Cubismo, interessa-nos a classificação proposta por alguns<br />
estudiosos, a fim de que possamos observar se o poeta pernambucano filia-se a uma única<br />
vertente cubista. De acordo com os fundamentos de Herbert Read (1991), por exemplo, há<br />
28
duas escolas cubistas: a rígida e a liberal. Os liberais são representados por Braque e Juan<br />
Gris. Levam sua abstração para um fim decorativo. Apresentam pinturas discretas em tom,<br />
“cuidadosamente trabalhadas, plasticamente efetivas, relacionadas em seu efeito total com a<br />
harmonia de natureza morta de Chardin. Parecem trazer consigo alguma sugestão do<br />
mundo orgânico, uma nota dos processos vitais”(READ,1991, p.80) Já a corrente rígida de<br />
um Léger, um Metzinger, um Duchamp ou um Duchamp-Villon suprime toda a<br />
sensibilidade orgânica, segundo Read. Para esses artistas, vale a sensibilidade mecânica<br />
sugerida pela máquina.<br />
Considerando essa classificação, acreditamos que João Cabral aproxima-se de<br />
ambas, já que está mais preocupado com os mecanismos da linguagem cubista, os quais<br />
exigem um trabalho intelectual rigoroso no momento da produção da arte, do que em<br />
privilegiar uma tendência como a melhor possibilidade de apreensão visual da realidade.<br />
Ressaltamos as palavras de Antonio Candido (1999) que, em 1943, no artigo de<br />
apresentação do livro Pedra do sono (1942), observa em João Cabral a propensão a um tipo<br />
de “cubismo de construção (...) sobrevoado por um senso surrealista de poesia” 16 . Em uma<br />
entrevista sobre Pedra do sono, João Cabral confirma a leitura de Antonio Candido, ao<br />
afirmar que o crítico “notou que minha poesia aparentemente surrealista, no fundo era a<br />
poesia de um cubista.”(MELO NETO, 1975) Na verdade, tudo isso leva a crer que João<br />
Cabral, ao longo de sua trajetória como intelectual e poeta, está sempre pesquisando formas<br />
de linguagem que possam resolver o problema da comunicação com o seu leitor.<br />
Além disso, é importante lembrar que o poeta pernambucano convive com outras<br />
formas de organização estética, além do Cubismo e do Surrealismo, pois retorna ao cenário<br />
16 Conferir “Poesia ao norte”. O texto foi reproduzido no Caderno Especial da Folha de São Paulo, São Paulo,<br />
11 out. 1999, por ocasião da morte de João Cabral.<br />
29
asileiro 17 , no momento em que o país funda museus de arte moderna (1948-49) e<br />
inaugura a I Bienal de São Paulo (1951), os quais abrem caminho para a<br />
internacionalização de linguagens artísticas, como propõe Maria Alice Milliet (2005).<br />
Nesse contexto, ainda segundo Milliet, “o acesso à informação, por meio da vinda de<br />
mostras e artistas estrangeiros, favoreceu a adesão de jovens artistas à arte de raiz<br />
construtivista” (MILLIET, 2005, p.08).<br />
Na concepção de Read, o Construtivismo ambiciona “a criação de uma nova<br />
realidade, o produto de uma atividade que usa apenas os elementos absolutos de espaço e<br />
tempo – até renunciaram à cor como meio pictórico por causa de sua natureza<br />
‘acidental’.”(READ, 1981, p.87) Para o crítico, essa tendência artística mantém a<br />
significação humanística em suas atividades, já que “as imagens visuais criadas pelo artista,<br />
embora independentes da ciência e tecnologia, ‘têm um efeito na psicologia humana<br />
comum e transferem os sentimentos do artista aos sentimentos dos homens em geral’.”<br />
(READ, 1981, p.87)Portanto, não negam totalmente a subjetividade.<br />
Já para Aaron Scharf (2000, p.116), o artista do Construtivismo acreditava que<br />
“podia contribuir para suprir as necessidades físicas e intelectuais da sociedade como um<br />
todo, relacionando-se diretamente com a produção de máquinas, com a engenharia<br />
arquitetônica e com os meios gráficos e fotográficos de comunicação”.<br />
Nesses termos, o objetivo das novas estéticas, sobretudo daquelas de natureza<br />
construtivista, é o da socialização da arte. Os construtivistas propunham que os artistas<br />
“deviam libertar-se das excrescências ornamentais e das algemas acumuladas da arte do<br />
17 Como já observamos anteriormente, o poeta é transferido como vice-cônsul para o Consulado Geral de<br />
Barcelona em 1947, mas retorna ao Brasil em 1952, quando é acusado de subversão, a fim de responder a<br />
inquérito.<br />
30
passado. Advogavam o edifício nu, a pureza inerente nas formas elementares.” (SCHARF,<br />
2000, p.117) Em outras palavras, libertar a arte das “excrescências ornamentais e das<br />
algemas acumuladas” possibilitaria a organização lógica da sociedade, ao mesmo tempo em<br />
que atribuiria à arte uma significação utilitária, uma vez que o artista tomaria problemas<br />
concretos como ponto de partida de suas criações. Assim, o “movimento, no seu significado<br />
original, repudia o conceito de ‘gênio’: intuição, inspiração, auto-expressão.”(Ibidem,<br />
p.121) A ordem, o equilíbrio e a clareza construtivistas aproximam artista e espectador, já<br />
que há a possibilidade deste articular esse tipo de arte às suas experiências cotidianas. Em<br />
síntese, o que podemos afirmar acerca do Construtivismo é que é uma estética que se<br />
organiza em função do destinatário e do consumo de suas produções, por isso interessa a<br />
João Cabral.<br />
Além do interesse em conhecer essas novas tendências estéticas, em 1938, João<br />
Cabral fez parte de um grupo de intelectuais interessados em literatura, que se reunia em<br />
Recife. Essa “roda literária” circulava no Café Lafaiete e se reunia em torno do poeta Willy<br />
Lewin e do pintor Vicente do Rego Monteiro.<br />
A Willy Lewin, João Cabral dedica o primeiro livro e depois escreve um poema<br />
póstumo 18 , em Museu de tudo (1966-1974), referindo-se ao amigo como sendo “o fantasma<br />
/que prelê o que faço,/e de quem busco tanto o sim e o desagrado.” (MELO NETO, 1997,<br />
p.72). De acordo com o poeta, Lewin era “um homem informadíssimo, com um<br />
conhecimento estupendo da literatura moderna francesa”.(MELO NETO, 1991) Era dono<br />
de uma biblioteca onde, durante a guerra, os poetas do grupo de Pernambuco obtinham<br />
informações sobre arte. Lewin dava especial atenção aos surrealistas e incentivava os<br />
18 Conferir anexo 01<br />
31
jovens escritores para que lessem novos autores, principalmente os franceses. Ainda<br />
segundo João Cabral, Lewin via nos surrealistas “os sujeitos iluminados, os videntes, no<br />
sentido de Rimbaud”(MELO NETO, 1990), enquanto João Cabral preferia Mallarmé. É<br />
importante lembrar que o primeiro livro, Pedra do sono (1940-1941), de feição<br />
“surrealista” para muitos críticos, é dedicado a Willy Lewin e a epígrafe é um verso de<br />
Mallarmé.<br />
Para o pintor pernambucano Vicente do Rego Monteiro (1899 - 1970), João Cabral,<br />
na obra O engenheiro (1942-1945), escreve dois poemas. Em um deles, o poeta descreve<br />
um dos quadros do pintor 19 :<br />
A paisagem zero<br />
(pintura de Monteiro, V. do R.)<br />
A luz de três sóis<br />
ilumina as três luas<br />
girando sobre a terra<br />
varrida de defuntos.<br />
Varrida de defuntos<br />
mas pesada de morte:<br />
como a água parada,<br />
a fruta madura.<br />
Morte a nosso uso<br />
aplicadamente sofrida<br />
na luz desses sóis<br />
(frios sóis de cego);<br />
nas luas de borracha<br />
pintadas de branco e preto;<br />
nos três eclipses<br />
condenando o muro;<br />
no duro tempo mineral<br />
que afugentou as floras.<br />
E morte ainda no objeto<br />
(sem história, substância,<br />
sem nome ou lembrança)<br />
abismando a paisagem,<br />
janela aberta sobre<br />
o sonho dos mortos.<br />
(MELO NETO, 1986, p. 342)<br />
19 Embora tenhamos feito uma pesquisa sobre a obra do pintor, não conseguimos identificar o quadro descrito<br />
por João Cabral.<br />
32
No início do texto, são ressaltadas figuras como sóis, luas etc., motivos que se<br />
tornam inspiração para grande parte das obras do pintor, devido ao seu interesse pelas<br />
lendas e costumes da Amazônia. Todavia, ao longo do poema, João Cabral privilegia em<br />
sua descrição o modo como o pintor trata esses elementos na tela, remetendo-nos a um dos<br />
depoimentos de Vicente do Rego Monteiro:<br />
Eu planejo como um arquiteto. Eu uso cálculos sucessivos até achar a linha para a<br />
construção definitiva. Eu acho que o quadro, vou usar essa palavra, o quadro se<br />
fabrica, se constrói como uma casa. Esse negócio de falar de inspiração, de<br />
improvisação, só no tachismo e impressionismo, onde o artista vai com o corpo e<br />
a cara, com tudo, improvisa. Mas eu acho que o artista, depois do cubismo,<br />
constrói o seu trabalho. Para mim a linha é tão importante. A linha é exatamente<br />
o continente, e a cor, o conteúdo. A cor dá luz e sombra mas a linha é que define.<br />
(MONTEIRO, 1969) 20 .<br />
No outro texto do mesmo livro dedicado ao pintor, há a referência à vida pessoal do<br />
artista plástico:<br />
A Vicente do Rego Monteiro<br />
Eu vi teus bichos<br />
mansos e domésticos:<br />
um motociclo<br />
gato e cachorro.<br />
Estudei contigo<br />
um planador,<br />
volante máquina,<br />
incerta e frágil.<br />
Bebi da aguardente<br />
que fabricaste<br />
servida às vezes<br />
numa leiteira.<br />
Mas sobretudo<br />
20 Depoimento à Walmir Ayala e Ricardo Cravo Albim, para o Ciclo de Artes Plásticas do Museu da Imagem<br />
e do Som do Rio de Janeiro, em 27.10.1969, publicado posteriormente no livro Vicente do Rego Monteiro:<br />
pintor e poeta. Rio de Janeiro: 5ª Cor, 1994. p.254-255, 270, 272.<br />
33
senti o susto<br />
de tuas surpresas.<br />
E é por isso<br />
que quando a mim<br />
alguém pergunta<br />
tua profissão<br />
não digo nunca<br />
que és pintor<br />
ou professor<br />
(palavras pobres<br />
que nada dizem<br />
de tais surpresas);<br />
respondo sempre:<br />
_É inventor,<br />
trabalha ao ar livre<br />
de régua em punho,<br />
janela aberta<br />
sobre a manhã.<br />
(MELO NETO, 1986, p.357)<br />
No poema supracitado, o poeta refere-se aos atributos do pintor em relação ao seu<br />
ofício cotidiano. Assim, do aprendizado com Vicente do Rego Monteiro, pintor que em<br />
1919 realizou, em Recife, sua primeira mostra individual, João Cabral destaca a<br />
inventividade geométrica e concisa. De acordo com os biógrafos do pintor, Vicente foi<br />
professor de pintura sucessivamente na Escola de Belas-Artes de Recife e na de Brasília,<br />
sendo que só pouco antes de falecer desfrutou algum prestígio maior em sua terra natal. As<br />
principais características de sua arte são “a plasticidade, a sensação volumétrica que se<br />
desprende dos planos, a textura quase imaterial, de tão leve, o forte desenho, esquematizado<br />
e a ciência da composição, que o torna um clássico, preocupado com a construção das<br />
formas.” 21<br />
Outra questão importante acerca de Vicente do Rego Monteiro é que, em março de<br />
1930, o pintor levou para o Recife uma exposição de obras dos principais representantes da<br />
chamada Escola de Paris, entre os quais destacamos Picasso, Léger, Miró e Braque. O<br />
21 Conferir dados no endereço http://www.pitoresco.com/brasil/viremon/viremon.htm, captados em 15 de<br />
novembro de 2006.<br />
34
evento, segundo Moacir dos Anjos Junior e Jorge Ventura Morais (1998), apesar da<br />
qualidade intrínseca das obras, encontrou uma alta dose de incompreensão.<br />
Outro pintor pernambucano que mereceu um poema de João Cabral foi Joaquim do<br />
Rego Monteiro (1903 - 1934), irmão de Vicente. Embora o texto tenha sido publicado em<br />
Museu de tudo (1966-1974), obra que vai reunir os poemas que o autor nunca conseguiu<br />
encaixar na arquitetura de nenhum livro anterior, destacamos a referência ao aspecto<br />
cromático das telas do pintor:<br />
Joaquim do Rego Monteiro, pintor<br />
Esse recifense em Paris<br />
taquigrafou (como Miró)<br />
o magro e o nu, o inexcessivo<br />
de onde nasceu e se exilou;<br />
e essa parca caligrafia<br />
de recifense soube apor<br />
aos verdes podres do alagado,<br />
traduzindo o que é lama em cor.<br />
(MELO NETO, 1997, p.66)<br />
É interessante ressaltar a força expressiva do contraste visual estabelecido no<br />
poema, no momento em que João Cabral se refere aos “verdes podres do alagado” e à<br />
“lama”. Além da forte plasticidade do poema, João Cabral também recorta o tom<br />
taquigráfico das imagens aprendido na geografia do seco e do úmido de Recife. Os<br />
trabalhos de Joaquim do Rego Monteiro, segundo Gilberto Freyre (1979, p. 369), “são<br />
todos paisagens e marinhas. Assuntos ingênuos: recantos de bairros quietos com as suas<br />
lojitas de telhado vermelho; trechos de cais batidos de sol; pedaços de ruas meio tristonhas<br />
onde habitam e negociam petits bourgeois morosos e bons.”<br />
Apesar do interesse por pintores que valorizam o aspecto plástico de seus quadros,<br />
pelas estéticas cubistas, construtivistas e pelos surrealistas em primeira instância, ou da<br />
35
provável influência de Baudelaire e Mallarmé, em meio à efervescência de novas idéias em<br />
arte, João Cabral diz que são os ensaios críticos de arquitetura de Le Corbusier e de Paul<br />
Valéry que mais o influenciam:<br />
(...) do nosso grupo participavam jovens arquitetos que tinham o livro do Le<br />
Corbusier, outra grande influência da minha vida, talvez até maior que a de<br />
Valéry. Porque se o pensamento de Valéry me interessava até o último ponto, a<br />
poesia era uma coisa que eu sempre achei um pouco perfumada, um pouco<br />
preciosa e que não me interessava muito. Ao passo que Le Corbusier foi um<br />
sujeito que me revelou a importância da criação intelectual. (MELO NETO,<br />
1990)<br />
Portanto, de acordo com o poeta brasileiro, Le Corbusier (1887 - 1965), ou Charles-<br />
Édouard Jeanneret, é o nome que mais influencia o pensador e intelectual João Cabral de<br />
Melo Neto. Le Corbusier, com sua concretização audaciosa de teorias arquitetônicas<br />
avançadas, curou-o do Surrealismo, definido como arte fúnebre. De Le Corbusier o poeta<br />
recorta a expressão “machine à émouvoir”, que vai servir de epígrafe ao livro O engenheiro<br />
(1942-1945) Embora o poeta não tenha localizado o artigo de onde retirou essa citação 22 e<br />
de ter alegado tratar-se da descrição de um quadro, ela é reiterada em vários ensaios do<br />
arquiteto franco-suiço sobre a arquitetura moderna 23 , publicados parcialmente na Revista<br />
L’Esprit Nouveau, posteriormente reunidos no livro Vers une architecture (1923), obra que<br />
consagrou Le Corbusier.<br />
Os ensaios que compõem o livro, de acordo com os organizadores da edição<br />
brasileira 24 , definiram na Europa “toda uma certa maneira de pensar o problema plástico.”<br />
22 O poeta diz em entrevista que leu um artigo de Le Corbusier em uma revista de pintura, mas não sabia<br />
localizar tal artigo. (Conferir entrevista a Mário César Carvalho, Folha de São Paulo, Folha Ilustrada, São<br />
Paulo, 24 maio 1988)<br />
23 Na tradução em português encontramos o mesmo trecho em três artigos sobre Arquitetura: “1. A lição de<br />
Roma”, pág. 105; “2. A Ilusão das Plantas”, pág. 125; “3. Pura Criação do Espírito”, pág. 145.<br />
24 Conferir a capa da 4ª edição publicada pela Editora Perspectiva, São Paulo, 1989.<br />
36
Nesse sentido, as idéias contidas, “neste vigoroso livro-manifesto”, são “em defesa de um<br />
meio ambiente construído com vistas não apenas ao homem empreendedor mas<br />
principalmente ao homem estético.” Desse modo, as palavras citadas por João Cabral<br />
pertencem ao contexto da descrição de uma experiência estética em arte, como podemos<br />
observar no trecho a seguir:<br />
Vocês usam pedra, madeira e concreto, e com esses materiais constroem casas e<br />
palácios, isso é construção.A inventividade está em ação. De repente, porém,<br />
vocês tocam meu coração, fazem-me bem; fico feliz, e digo: “Isso é bonito”. Isso<br />
é Arquitetura. Existe a participação da arte. Minha casa é prática. Agradeço a<br />
vocês, como poderia agradecer aos engenheiros ferroviários ou ao serviço<br />
telefônico. Vocês não tocaram meu coração.Mas suponhamos que as paredes se<br />
elevem aos céus de um modo que me deixe emocionado. Percebo suas intenções:<br />
seus estados de espírito foram gentis, brutais, encantadores ou nobres. É o que me<br />
dizem as pedras que vocês erigiram. Vocês me fixam no lugar e meus olhos o<br />
contemplam. Eles vêem algo que expressa uma idéia. Uma idéia que se manifesta<br />
sem som ou palavra, mas unicamente através de formas que mantêm uma certa<br />
relação mútua. Essas formas são tais que se revelam claramente à luz. As relações<br />
entre elas não têm, necessariamente, nenhuma referência àquilo que é prático ou<br />
descritivo. São uma criação matemática que a mente de vocês gerou. São a<br />
linguagem da Arquitetura. Com o uso de materiais inertes e partindo de<br />
condições mais ou menos utilitárias, vocês estabeleceram certas relações que<br />
despertaram minhas emoções. Isso é Arquitetura. (LE CORBUSIER, apud<br />
FRAMPTON, 1997, p.179)<br />
Antes de descrever essa experiência, em outro ensaio intitulado “Roteiro”, Le<br />
Corbusier discorre sobre a estética do engenheiro, contrapondo-a à estética do arquiteto. Ele<br />
observa que a estética do engenheiro nos põe em acordo com as leis do universo,<br />
atingindo a harmonia, uma vez que se inspira na lei de economia e é conduzida pelo<br />
cálculo. Já o arquiteto, por ordenar formas,<br />
realiza uma ordem que é uma pura criação de seu espírito; pelas formas afeta<br />
intensamente nosso sentidos, provocando emoções plásticas; pelas relações que<br />
cria, ele desperta em nós ressonâncias profundas, nos dá a medida de uma ordem<br />
que sentimos em consonância com a ordem do mundo, determina movimentos<br />
diversos de nosso espírito e de nossos sentimentos; é então que sentimos a beleza.<br />
(LE CORBUSIER, 1989, p.XXIX)<br />
37
Portanto, ao anunciarmos o fragmento de Corbusier como sendo o relato de uma<br />
experiência estética, pensamos nas palavras de Ralph Roos (apud DONDIS, 1997, p.23), o<br />
qual observa que a arte existe quando “produz uma experiência do tipo que chamamos de<br />
estética, uma experiência pela qual passamos, quando nos encontramos diante do belo e<br />
que resulta numa profunda satisfação.”<br />
Além do mais, lembramos que a experiência estética existe a partir da contemplação<br />
do objeto e, antes de qualquer coisa, desperta emoções naquele que contempla, como<br />
ressalta Le Corbusier: “Com o uso de materiais inertes e partindo de condições mais ou<br />
menos utilitárias, vocês estabeleceram certas relações que despertaram minhas emoções”.<br />
(LE CORBUSIER, apud FRAMPTON, 1997, p.17)<br />
Diante dessas observações, acreditamos que a identificação de João Cabral com Le<br />
Corbusier não pode ser vista somente em função do geometrismo ou da racionalidade do<br />
arquiteto. Mesmo porque, segundo Frampton (1997), por ser o primeiro trabalho teórico de<br />
Le Corbusier sobre Arquitetura, o texto em tela revela uma atitude mental “dialética” diante<br />
da arte. Essa atitude dialética do arquiteto é devida, por um lado, às suas origens albigenses,<br />
de resto calvinista e à sua visão maniqueísta meio esquecida, mas latente. Por outro lado,<br />
por ter experimentado várias escolas (na Suíça, em Paris, na Alemanha), a trajetória de Le<br />
Corbusier é marcada por influências extremamente variadas e intensas, destacando-se o<br />
Cubismo em pintura e a estética mecânica do Purismo 25 . O arquiteto franco-suíço, com seu<br />
Purismo de feição neoplatônica, desejava “abranger todas as formas de expressão plástica,<br />
da pintura de salão ao design de produtos à arquitetura”.(FRAMPTON,1997, p.182)<br />
25 O seu lado cubista é observado por João Cabral em entrevista a André Pestana, O que eles pensam, Rio de<br />
Janeiro, Tagore, 1990. Já as suas idéias estéticas de purismo em arte, segundo Frampton, foram reunidas em<br />
um ensaio intitulado Le Purisme, que foi publicado em 1920, no quarto número da revista artística e literária<br />
L’Esprit Nouveau.<br />
38
Acreditamos que essa concepção dialética da forma, introduzida por Le Corbusier<br />
principalmente no ensaio “Estética e Arquitetura do Engenheiro” seja a maior lição<br />
aprendida por João Cabral, sobretudo quando este observa que “(...) a maior influência que<br />
sofri foi a de Le Corbusier. Aprendi com ele que se podia fazer uma arte não com<br />
o mórbido, mas com o são, não com o espontâneo, mas com o construído.”(SECCHIN,<br />
1999, p.327)<br />
Nesse sentido, devemos lembrar ainda que a dialética do arquiteto francês, em<br />
Arquitetura, é visível no jogo onipresente de opostos em suas obras. Nelas são percebidos<br />
os contrastes “entre o sólido e o vazio, luz e sombra, Apolo e Medusa”.<br />
(FRAMPTON,1997, p.179). Já nos ensaios do livro Vers une architecture, o dualismo<br />
conceitual do arquiteto é visto “em sua necessidade imperiosa de atender às exigências<br />
funcionais através da forma empírica” e no “impulso de usar elementos abstratos de modo a<br />
atingir os sentidos e nutrir o intelecto.” (Ibidem, p. 182)<br />
Quanto a Paul Valéry (1871-1945), a nosso ver, a lição aprendida por João Cabral<br />
está nos ensaios do poeta-crítico francês, sobretudo em Eupalinos ou o Arquiteto, publicado<br />
pela primeira vez em 1921. Nesse livro, conforme veremos no capítulo referente às relações<br />
entre a poesia cabralina e a Arquitetura, Valéry, através do arquiteto Eupalinos de Mégara,<br />
define a Arquitetura como sendo a arte que possibilita a ordenação entre o corpo e o<br />
espírito:<br />
O corpo e o espírito, esta presença invencivelmente atual e esta ausência criadora<br />
que disputam o ser, e que é preciso enfim compor; este finito e este infinito que<br />
trazemos em nós mesmos, cada qual segundo sua natureza, cumpre agora que se<br />
unam em uma construção ordenada. E, queiram os deuses, se trabalharem de<br />
acordo, trocando conveniência e graça, beleza e solidez, movimentos contra<br />
linhas e números contra pensamentos, terão enfim descoberto sua verdadeira<br />
relação, seu ato. Que se combinem, que se compreendam através da matéria de<br />
minha arte! Pedras e forças, perfis e massas, luzes e sombras, agrupamentos<br />
artificiais, ilusões de perspectiva e realidades da gravidade, estes são os objetos<br />
39
de seu comércio; e seja lucro a incorruptível riqueza que chamo Perfeição.<br />
(VALÉRY, 1996, p.69)<br />
Talvez tentando ilustrar esse pensamento de Valéry, principalmente no que diz<br />
respeito à necessidade de controle do artista no momento de criação, em um dos poemas de<br />
seu terceiro livro, O engenheiro (1942-1945), o poeta escreve:<br />
A Paul Valéry<br />
É o diabo no corpo<br />
ou o poema<br />
que me leva a cuspir<br />
sobre meu não higiênico?<br />
Doce tranqüilidade<br />
do não-fazer; paz,<br />
equilíbrio perfeito<br />
do apetite de menos.<br />
No início do poema a Valéry, percebemos que a tranqüilidade do eu-lírico advém da<br />
consciência de conseguir retirar da matéria poética todos os resíduos de sua própria<br />
experiência interior, em função de um tipo de arte objetiva e clara.Atinge o “equilíbrio<br />
perfeito”, ao se negar enquanto subjetividade ao poema.Começa aí a poesia do “não”, a<br />
face antilírica do poeta.<br />
Na seqüência do texto, João Cabral reforça essa tranqüilidade alcançada, por<br />
petrificar seu discurso, isolar “fugas, evaporação,/febre, vertigem”, enfim todos os<br />
“líquidos da vida”, que poderiam comprometer o discurso da objetividade:<br />
Doce tranqüilidade<br />
da estátua na praça<br />
entre a carne dos homens<br />
que cresce e cria.<br />
Doce tranqüilidade<br />
40
do pensamento da pedra,<br />
sem fuga, evaporação,<br />
febre, vertigem.<br />
Doce tranqüilidade<br />
do homem na praia:<br />
o calor evapora,<br />
a areia absorve,<br />
as águas dissolvem<br />
os líquidos da vida;<br />
e o vento dispersa<br />
os sonhos, e apaga<br />
a inaudível palavra<br />
futura, - apenas<br />
saída da boca,<br />
sorvida no silêncio.<br />
(MELO NETO, 1986, p.359)<br />
Do ponto de vista sintático, no texto, percebemos que a tranqüilidade do eu-lírico é<br />
reforçada pela repetição do verso “Doce tranqüilidade” e do paralelismo observado no uso<br />
constante de adjuntos adnominais do termo repetido. Também o ritmo binário sugere essa<br />
mesma paz e tranqüilidade que a semântica das palavras impõe ao texto.<br />
Também em Agrestes (1981-1985), na parte intitulada “Linguagens alheias”, através<br />
do poema “Debruçado sobre os cadernos de Paul Valéry”, João Cabral destaca os<br />
pressupostos teóricos do poeta-crítico francês:<br />
Quem que poderia a coragem<br />
de viver em frente da imagem<br />
do que faz, enquanto se faz,<br />
antes da forma, que a refaz?<br />
Assistir nosso pensamento<br />
a nossos olhos se fazendo,<br />
assistir ao sujo e ao difuso<br />
com que se faz, e é reto e é curvo.<br />
Só sei de alguém que tenha tido<br />
a coragem de se ter visto<br />
nesse momento em que só poucos<br />
41
são capazes de ver-se, loucos<br />
de tudo o que pode a linguagem:<br />
Valéry – que em sua obra, à margem,<br />
revela os tortuosos caminhos<br />
que, partindo do mais mesquinho,<br />
vão dar ao perfeito cristal<br />
que ele executou sem rival.<br />
Sem nenhum medo,deu-se ao luxo<br />
de mostrar que o fazer é sujo.<br />
(MELO NETO, 1997, p.252)<br />
Ao revistar o poeta, muitos anos depois, João Cabral reconhece o projeto estético<br />
do autor francês, descrevendo, verso a verso, cada etapa do audacioso fazer de Valéry.<br />
Ressaltamos que, de acordo com os estudos críticos, Valéry surge na poética de João Cabral<br />
na mesma época em que foi construída a primeira grande obra cívica da arquitetura<br />
moderna brasileira, o prédio do Ministério da Educação, de Le Corbusier, de Niemeyer, dos<br />
irmãos Roberto e de Lúcio Costa, ou seja, nos anos 1936-1942.<br />
Fábio Lucas (1990) é um dos críticos que, em conformidade com o poeta<br />
pernambucano, atesta o pertencimento de Valéry ao grupo dos poetas-críticos do rigor e da<br />
disciplina:<br />
Daí a sua luta para fazer do poema uma construção mental. Em carta a seu amigo<br />
Louÿs, de 1890, já definia o caráter voluntário de seu desígnio poético: "Sonho<br />
com uma poesia curta - um soneto - escrita por um visionário requintado que<br />
seria ao mesmo tempo um agradável arquiteto, um algebrista sagaz, um<br />
calculador infalível do efeito a produzir.”A disciplina que buscou nas ciências<br />
ofereceu-lhe uma propensão ao método exato e uma preferência por uma arte<br />
quase matemática, por uma expressão obtida pela química verbal. Enfim, Valéry<br />
se empenhou na busca de um método destinado a fazer da criação poética uma<br />
obra de precisão. O lirismo para ele não ia além do "desenvolvimento de uma<br />
exclamação” (LUCAS, 1990, p. 09).<br />
Portanto, de Valéry, João Cabral recorta a preocupação com “um método” de<br />
construção artística como “direção axial comum a todas as atividades”, já que este<br />
42
afirma escrever mediante a organização de um roteiro estabelecido previamente. Nada<br />
mais interessa a João Cabral, como alerta Costa Lima :<br />
do mesmo modo que a sombra de Mallarmé se projeta sobre a obra de Cabral,<br />
sem que, por isso, ele seja mallarmeano, de igual forma ele recebe Valéry para<br />
transgredir seu rumo. Deste mantém o poeta nordestino o rigor no trato da<br />
palavra, o ideal do poema como construção. No mais, restam diferenças.(LIMA,<br />
1968, p.279)<br />
No entanto, o lado arquitetônico do poeta brasileiro não advém somente da<br />
influência de intelectuais estrangeiros. Ainda no Recife, João Cabral aperfeiçoa o gosto<br />
pela Arquitetura, por intermédio de um grupo de arquitetos com os quais conviveu,<br />
principalmente através da amizade com Joaquim Cardozo (1897-1978), poeta do<br />
Capibaribe, a quem João Cabral dedica o livro O cão sem plumas (1949-1950): “Eu era<br />
muito amigo de Joaquim Cardozo que era o calculista de cimento armado de Oscar<br />
Niemeyer e tudo isso me encorajou muito a levar a poesia para esse lado arquitetônico." 26<br />
No mesmo livro dedicado a Le Corbusier, no qual João Cabral escreve também a<br />
Valéry, há um texto dedicado a Joaquim Cardozo:<br />
A Joaquim Cardozo<br />
Com teus sapatos de borracha<br />
seguramente<br />
é que os seres pisam<br />
no fundo das águas.<br />
Encontraste algum dia<br />
sobre a terra<br />
o fundo do mar,<br />
o tempo marinho e calmo?<br />
Tuas refeições de peixe;<br />
teus nomes<br />
26 Depoimento dado à TV Cultura, por ocasião do documentário Duas águas, direção e roteiro de Cristina<br />
Fonseca, disponível em www.tvcultura.com.br/aloescola/literatura/joaocabral/joaocabral3.htm-23k-<br />
43
femininos: Mariana; teu verso<br />
medido pelas ondas;<br />
a cidade que não consegues<br />
esquecer<br />
aflorada no mar: Recife,<br />
arrecifes, marés, maresias;<br />
e marinha ainda a arquitetura<br />
que calculaste:<br />
tantos sinais da marítima nostalgia<br />
que te fez lento e longo.<br />
(MELO NETO, 1986,p.356)<br />
No poema a Joaquim Cardozo fica evidente a referência ao ofício do poeta-arquiteto<br />
homenageado. Essa referência, no entanto, não acontece apenas no plano semântico, na<br />
escolha das palavras que pertencem ao mundo de Joaquim Cardozo. Percebemos que o tom<br />
apelativo do discurso, transposto no recurso da interrogação, sugere o questionamento das<br />
dificuldades do ofício do amigo arquiteto dos edifícios e da geografia de Recife.<br />
Também nos livros Museu de tudo (1966-1974), A escola das facas (1975-1980) e<br />
Crime na Calle Relator (19885-1987), João Cabral dedica poemas ao amigo arquiteto:<br />
A luz em Joaquim Cardozo<br />
Escrever de Joaquim Cardozo<br />
só pode quem conhece<br />
aquela luz Velásquez<br />
de onde nasceu e de que escreve.<br />
A luz que várzeas da Várzea<br />
onde nasceu, redonda,<br />
vem até o ex-Cais de Santa Rita<br />
que viveu: luz redoma,<br />
luz espaço, luz que se veste,<br />
leve como uma rede,<br />
e clara, até quando preside<br />
o cemitério e a sede.<br />
(MELO NETO, 1997, p. 48)<br />
No segundo poema, João Cabral observa que consegue escrever sobre o amigo<br />
44
depois de conhecer a luz de Velásquez, pintor barroco da corte espanhola do século XVII e<br />
um dos maiores artistas de todos os tempos. Vale lembrar que o pintor espanhol, mesmo<br />
vivendo em meio aos fidalgos cortesãos, não deixou de inspirar-se em figuras populares<br />
para compor seus magníficos quadros, os quais se tornaram representação viva da<br />
sociedade castelhana daquele tempo.<br />
Cardozo”:<br />
Outro poema escrito a Joaquim Cardozo, em Museu de tudo é “Pergunta a Joaquim<br />
É que todo o dar ao Brasil<br />
de Pernambucano há de ser nihil?<br />
Será que o dar de Pernambuco<br />
é suspeitoso porque em tudo<br />
sintam a distância, o pé atrás,<br />
insubserviente de quem foi mais?<br />
(MELO NETO, 1997, p.87)<br />
No texto, a pergunta é feita ao companheiro que, do mesmo modo que o autor, tenta<br />
dar a ver a sua realidade ao Brasil, a partir de seu lugar de origem, ou seja, a partir do que é<br />
Pernambuco.Ao falar do poeta do Capibaribe, João Cabral diz que “Cardozo era<br />
pernambucano de corpo e alma, sua linguagem era regional, seu espírito, atento.”Além<br />
dessas características, João Cabral observa que admirava Cardozo pela sua teimosia em<br />
falar das coisas de Pernambuco “com os pés plantados no chão.”(MELO NETO, 1984)<br />
Daí, talvez, a perspectiva de uma arte nihil, incompreendida pela maioria daqueles<br />
que não convivem com a realidade do povo nordestino. Em A escola das facas, aparecem<br />
mais dois poemas dedicados ao amigo. O primeiro é “Na morte de Joaquim Cardozo”, no<br />
qual João Cabral mais uma vez ressalta o valor do poeta que deveria ser “comido” pela sua<br />
terra, como dizia Joyce:<br />
45
Creio que Joyce é que dizia<br />
que a Irlanda dele se comia<br />
comendo os filhos, como a porca<br />
que as crias melhores devora.<br />
Estamos tão desenvolvidos<br />
que já podemos esses estilo<br />
De fazer Dublin, Irlanda, Europa?<br />
e um novo imitá-las, em porca?<br />
(MELO NETO, 1997 p.122)<br />
Já no poema “Joaquim Cardozo na Europa” 27 o poeta pernambucano descreve o<br />
amigo como sendo aquele que percorreu os grandes centros da Europa como quem anda em<br />
Pernambuco, ou seja, não como “um turista ou visitante”, mas como alguém que “viveu-as<br />
de dentro, habitante”. (MELO NETO, 1997, p.133)<br />
Finalmente no livro Crime na Calle Relator aparece o último texto dedicado ao<br />
arquiteto pernambucano “Cenas da vida de Joaquim Cardozo” 28 .É um poema longo,<br />
dividido em quatro partes, nas quais João Cabral recorda episódios vividos pelo<br />
conterrâneo no Nordeste, durante o ofício da escrita, nos momentos em que visitava outras<br />
regiões nordestinas e durante a viagem à Europa e depois. Em todo o texto, João Cabral<br />
ressalta em Joaquim Cardozo o poeta que poucos leram.<br />
Por fim, ao enumerar os seus precursores em relação ao uso da imagem visual, João<br />
Cabral lembra o contato que teve com a literatura inglesa, especialmente com a poesia dos<br />
imagistas Eliot e Auden. Mas, em virtude da delimitação do nosso campo de pesquisa, não<br />
discutiremos a presença desses dois poetas.<br />
Voltando para o contexto em que viveu João Cabral, devemos ressaltar ainda que,<br />
27 Conferir anexo 01.<br />
28 Conferir anexo 01.<br />
46
preocupado com os caminhos da poesia no Brasil, no início dos anos 50, o poeta<br />
pernambucano publica quatro artigos sobre os poetas da geração de 45. 29 Contemporâneo<br />
dessa geração, João Cabral foi um poeta dissonante, por estar mais afinado com as estéticas<br />
construtivistas da vanguarda internacional 30 e por ter recuperado a matéria prosaica e a<br />
prosificação do verso proposta pela tradição de 22, no sentido de “assegurar uma dicção<br />
corrente e precisa”, como lembra Benedito Nunes (1971, p.30). Ainda em relação aos<br />
poetas de 45, Nunes observa que “Bem outra será a posição de João Cabral, que oporá o<br />
princípio da clareza ao de pureza e o controle reflexivo da elaboração poética à sondagem e<br />
ao aprofundamento das vivências”(NUNES, 1971, p.31)<br />
Ainda tratando de teorias que pressupõem o tipo de arte exigida pela modernidade,<br />
destacamos o nome de Italo Calvino (1990), o qual apresenta “seis propostas para o<br />
próximo milênio”: leveza, rapidez, exatidão, multiplicidade, visibilidade e consistência. A<br />
visibilidade é a proposta que nos interessa, por duas razões: primeiro porque Calvino<br />
reconhece a prioridade da imagem visual, no momento de formar o imaginário, numa época<br />
em que a literatura já não mais se refere a uma autoridade ou tradição que seria sua origem<br />
ou seu fim, mas visa à novidade, à originalidade, à invenção. A segunda razão é porque<br />
acreditamos que o termo visibilidade aproxima-se do conceito de visualização, proposto<br />
por Luiz Costa Lima (1968) em relação ao projeto de João Cabral, como sendo “uma forma<br />
de criação poética, que implica na relação dialética entre percepção e imaginação.”<br />
(SOARES, 1978, p.46), conforme mostraremos no segundo capítulo de nossa tese.<br />
29 Referimo-nos aos quatro artigos sobre a Geração de 45, publicados no Diário Carioca, em 1952.<br />
30 João Cabral sempre fez questão de afirmar que não pertencia à Geração de 45, pois, no momento em que<br />
essa geração consegue se projetar no cenário artístico brasileiro, ele já estava na Espanha, como vice-cônsul,<br />
desde 1947: “No Brasil, nunca participei de política literária nenhuma. Sou da Geração de 45 porque todos os<br />
que se consideram assim são meus contemporâneos.”(MELO NETO, 1969)<br />
47
Para Italo Calvino (1923-1985), há dois processos imaginativos: “o que parte da<br />
palavra para chegar à imagem visiva e o que parte da imagem visiva para chegar à<br />
expressão verbal.”(CALVINO,1990, p.99) O primeiro deles está articulado à recepção da<br />
obra literária e do cinema, por “projetar imagens em nossa tela interior.” Já o segundo<br />
relaciona-se ao ato da produção artística, uma vez que cabe ao autor da obra a “escolha<br />
entre várias imagens que ‘chovem’ na fantasia”. (Ibidem, p.102)<br />
Partindo da sua experiência como escritor, Calvino observa que, quando começou a<br />
escrever histórias fantásticas, ainda não se colocavam problemas teóricos, “a única coisa de<br />
que estava seguro era que na origem de cada um de meus contos havia uma imagem<br />
visual.” (Ibidem, p.104).<br />
Diante dessa proposta de Calvino, observamos que tanto Calvino quanto João<br />
Cabral revelam preocupações semelhantes quanto à arte da modernidade, época da<br />
“civilização da imagem”, na qual o indivíduo corre o risco de “perder a faculdade humana<br />
fundamental: a capacidade de pôr em foco visões de olhos fechados, de fazer brotar cores e<br />
formas de um alinhamento de caracteres alfabéticos negros sobre uma página branca, de<br />
pensar por imagens” (Ibidem, p.108).<br />
Para alcançar esse olhar, Calvino sugere uma espécie de “pedagogia da<br />
imaginação”, através da qual o indivíduo aprende a controlar a própria visão interior sem<br />
sufocá-la e sem, por outro lado, deixá-la cair num confuso e passageiro fantasiar, mas<br />
permitindo que as imagens se cristalizem numa forma bem definida, memorável, auto-<br />
suficiente, ‘icástica’.”(Ibidem).<br />
Os dois autores compartilham o mesmo pensamento quanto aos passos para se<br />
formar a parte visual da imaginação literária: partem da observação direta do mundo real<br />
antes de verbalizar o pensamento. Por isso a tese cabralina de que a “poesia é dar corpo, dar<br />
48
imagem ao pensamento, à idéia”(MELO NETO , 1980), ou a de Calvino ao afirmar que<br />
todas as “realidades” e as “fantasias” só podem tomar forma através da escrita, na<br />
qual exterioridades e interioridade, mundo e ego, experiências e fantasia<br />
aparecem compostos pela mesma matéria verbal; as visões polimorfas obtidas<br />
através dos olhos e da alma encontram-se contidas nas linhas uniformes de<br />
caracteres minúsculos ou maiúsculos, de pontos, vírgulas, de parênteses; páginas<br />
inteiras de sinais alinhados, encostados uns aos outros como grãos de areia,<br />
representando o espetáculo variegado do mundo numa superfície sempre igual e<br />
sempre diversa, como as dunas impelidas pelo vento do deserto.(CALVINO,<br />
1990, p.114)<br />
Apesar de Calvino ressaltar as fantasias e as interioridades no seu fazer artístico, é<br />
pela valorização da imagem visual que aproximamos os dois artistas. O que podemos<br />
depreender é que devemos rever a visibilidade da poesia de João Cabral, articulando essa<br />
tendência à preocupação do poeta em tornar mais próximos de nossa compreensão os<br />
significados que essa poesia traz.<br />
1.2. A ATUALIZAÇÃO DO MO<strong>DE</strong>LO CARTESIANO<br />
No momento em que discutimos os fundamentos teóricos da objetividade cabralina,<br />
temos que considerar dois modos distintos de inteligência: a chamada inteligência<br />
cartesiana, proposta por Descartes, “o primeiro filósofo a separar o raciocínio de uma<br />
dependência sensória das coisas (penso, logo existo)” (READ,1967, p.169) e a inteligência<br />
estética, “que mantém contato com o mundo sensório em todas as fases de seu raciocínio<br />
(sinto, logo existo:a realidade é uma criação de meus sentidos)”, postulada pelos filósofos<br />
da fenomenologia da percepção.<br />
No que diz respeito à possibilidade de atualização do racionalismo cartesiano em<br />
João Cabral, sabemos que o poeta impõe, no momento de organização de seus textos, um<br />
49
olhar matemático, com o propósito de organizar um tipo de linguagem que possa dar a ver<br />
o seu objeto como uma realidade concreta. Esse procedimento justifica a tendência da<br />
crítica de articular a poesia cabralina, principalmente os livros da primeira fase, à<br />
concepção da inteligência de linhagem aristotélica, que se pauta no preceito horaciano do<br />
limae labor e que obedece aos princípios da ordem, simetria e determinação.<br />
A despeito de revelar o lado arquiteto/engenheiro do poeta em tela, essa concepção<br />
do fazer literário de João Cabral pressupõe a imagem de um escritor que escreve poesia<br />
“como ‘trabalho intelectual’” e que se expressa através de uma linguagem lógica,<br />
raciocinante, que deve ser “compreendida, mais do que assimilada em termos de emoção”,<br />
como propõe Wilson Martins (1999).<br />
Por outro lado, presume que o desejo de ver claro, leitmotiv da poesia cabralina<br />
coloca na feitura de sua poesia uma lógica que, de tão rigorosa, se torna difícil de<br />
compreender, apresentando versos que “são pedras, paralelepípedos deixados ao acaso<br />
(propositadamente) na estrada da sua poesia para que o leitor pare, questione, analise e<br />
possa, assim, atingir o conhecimento da mesma. Não de uma forma emocional, mas<br />
racionalmente”. (AFONSO, 1995, p.31)<br />
Mediante essas afirmações, acreditamos que considerar a proposta de objetividade<br />
cabralina apenas como um projeto concebido em consonância com os princípios da<br />
inteligência cartesiana poderia dificultar a fruição estética dessa poesia, já que, como<br />
observa Edla Van Steen (1980), esse tipo de crítica, contraditoriamente, pode servir de<br />
obstáculo à leitura, entendimento e compreensão viva do texto de João Cabral, uma vez que<br />
cria, “em cima da obra do autor de O cão sem plumas, plumas de gesso e camadas de<br />
granito senão intransponíveis ao menos duras de roer.” Ou então acentuar a metalinguagem<br />
50
como a principal característica dos textos, admitindo que esta poética caminha para a<br />
“esterilidade da forma pura”. 31<br />
A nosso ver, em se tratando de um fenômeno de índole estética, não podemos<br />
relacionar a recepção dessa poesia apenas a uma das conotações da palavra compreender,<br />
ou seja, “alcançar com a inteligência”. Nessa concepção, de acordo com o dicionário, o ato<br />
da compreensão é entendido como o ato de apreender com a mente um conteúdo racional,<br />
enquanto que a obra de arte que nos é apresentada exige um tipo de percepção que vai<br />
muito além disso.Portanto, em se tratando de poesia, temos que trabalhar o sentido de<br />
compreender enquanto “perceber ou alcançar as intenções ou o sentido de” (FERREIRA,<br />
1986, p.442) O significado conceitual de um produto literário é menos importante do que a<br />
sua capacidade de significar, como lembra José García López (1957).<br />
Por outro lado, lembramos que o racionalismo cartesiano, ao articular a arte com a<br />
realidade, aproxima-se do chamado realismo testemunhal, que marca várias gerações da<br />
literatura brasileira, de acordo com os estudos de Flora Sussekind (1984). Com o propósito<br />
de não confundirmos a racionalidade cabralina com realismo testemunhal, como sugere<br />
Costa Lima, na seqüência, evidenciamos os principais pressupostos teóricos dessa tradição<br />
estética.<br />
31 Lauro Escorel (1973) discorda das leituras que aplicam a fórmula “esterilidade da forma pura”, ao se<br />
referirem à fase construtiva da poesia cabralina: “Só um preconceito sociológico, de nenhuma validade,<br />
poderá falar de ‘esterilidade da forma poética pura’ , a propósito dos poemas da primeira fase do poeta<br />
pernambucano.” (1973, p.49) Escorel defende a tese de que toda palavra empregada por Cabral até Psicologia<br />
da composição é “psicologicamente significativa” e traduz “estados de consciência profundos e autênticos,<br />
tão objetivos na sua interioridade como os mais concretos objetos e paisagens de que mais tarde lançará mão<br />
para expressar-se.” (Ibidem) O crítico propõe uma abordagem psicológica da poesia de Cabral, à luz da<br />
psicologia junguiana e dos ensinamentos de Charles Mauron.<br />
51
1.3. A ESTÉTICA DO VISÍVEL COMO PROPOSTA <strong>DE</strong> TESTEMUNHO DA<br />
REALIDA<strong>DE</strong><br />
Flora Sussekind, em obra prefaciada por Luiz Costa Lima, 32 assinala que a marca<br />
da tradição da chamada literatura realista brasileira é a “obsessão pela visibilidade”. De<br />
acordo com a pesquisadora, quando o discurso literário “tenta ocultar sua própria<br />
ficcionalidade em prol de uma maior referencialidade, talvez os seus grandes modelos<br />
estejam efetivamente na ciência e na informação jornalística, via de regra consideradas<br />
paradigmas da objetividade e da veracidade.” (SUSSEKIND,1984, p.37)<br />
Nesse contexto, como lembra a pesquisadora 33 , autores e leitores são levados a<br />
obedecer a uma “estética do visível”, ou seja, ao “desejo irresistível de ver,” no texto<br />
literário, aspectos caracterizadores da nação, da cultura, do povo brasileiros. Para alcançar<br />
essa visibilidade, a autora observa que, em tais obras, é “dominante a correlação da<br />
atividade literária com as ações contidas em verbos como ‘retratar’, ‘ver’, ‘olhar’,<br />
‘enxergar’.”(SUSSEKIND, 1984, p.101)<br />
Sussekind ressalta ainda que esse tipo de procedimento exige do literário e daquele<br />
que o escreve a negação do “trabalho com a e na linguagem para que o leitor, dominado por<br />
um ‘desejo irresistível de ver’, pareça estar em contato direto com ‘o’ real.”(Ibidem) Dessa<br />
maneira, o escritor se torna uma espécie de “película virgem em busca de impressões reais,<br />
assim como da opacidade da literatura simples transparência”, para que o público possa<br />
32 Trata-se do livro Tal Brasil, qual romance? – uma ideologia estética e sua história: o naturalismo,<br />
originalmente apresentado como dissertação de Mestrado em Literatura Brasileira, na PUC do Rio de Janeiro.<br />
Luiz Costa Lima foi um dos componentes da banca de Sussekind.<br />
33 A autora faz referências a alguns textos representativos do Realismo/Naturalismo do final do século XIX,<br />
do Neo-Realismo da década de 30 e do Romance-reportagem dos anos setenta.<br />
52
“ver o acontecido sem nenhuma barreira e sem as ambigüidades próprias do ficcional”<br />
(SUSSEKIND, 1984, p.101).<br />
Entendemos que, embora o poeta pernambucano seja obcecado pela organização<br />
lógica do poema, pela precisão geométrica de seu discurso e eleja os “olhos”, desde os seus<br />
primeiros poemas, como o sentido privilegiado no processo de percepção da realidade, não<br />
há em sua poesia o objetivo de fixar, sem ambigüidades, impressões que pareçam ‘tais e<br />
quais’ às concepções do leitor de nação, cultura e verdade, como confirma Sussekind em<br />
relação à vertente naturalista brasileira.Como ressalta Herrera, o universo poético de João<br />
Cabral “é, pois, construído no intuito de dar a ver uma realidade que nela mesma está<br />
contida” (HERRERA, 1995, p.157), remetendo-nos às palavras de Tzvetan Todorov<br />
(1986):<br />
Não se deve ceder à ilusão representativa que, durante muito tempo, contribuiu<br />
para ocultar esta metamorfose: não há, em primeiro lugar, uma determinada<br />
realidade, e depois a sua representação pelo texto. O dado é texto<br />
literário.(TODOROV, 1986, p.42)<br />
Em virtude disso, já em Pedra do sono (1940) 34 , parece haver uma perspectiva<br />
fenomenológica na construção das primeiras imagens poéticas apresentadas, como<br />
mostraremos no segundo capítulo desta tese. Por essa razão, tentamos relacionar a<br />
objetividade de João Cabral também à perspectiva da inteligência estética.<br />
1.4. O RACIONALISMO ESTÉTICO <strong>DE</strong> JOÃO CABRAL <strong>DE</strong> MELO NETO<br />
Tomando depoimentos de João Cabral, desde o início da publicação de sua obra e os<br />
seus ensaios críticos, percebemos que a concepção que o autor tem de objetividade em arte<br />
34 Primeira coletânea em que João Cabral reúne poemas escritos em sua adolescência em Pernambuco.<br />
53
ultrapassa a visão racionalista cartesiana. Consciente do seu papel de poeta-crítico, o autor<br />
não se atém somente ao princípio da auto-referência e do autoquestionamento da sua<br />
linguagem. Como vimos, o discurso literário e crítico do poeta é marcado pela preocupação<br />
com o leitor e pela comunicabilidade dos poemas.<br />
Ao tratar do processo de composição em poesia, por exemplo, João Cabral propõe a<br />
discussão acerca das idéias opostas de “inspiração” e “trabalho artístico” que marcam sua<br />
geração. Sabemos que João Cabral sempre negou todo tipo de lirismo que se vincula à idéia<br />
de “inspiração”, ou seja, aquela escrita em linguagem corrente, resultante de pouca<br />
elaboração, cuja essencialidade está no tom<br />
É através do tom, de suas qualidades musicais, e não qualidades intelectuais ou<br />
plásticas, que ela [a poesia] tenta reproduzir o estado de espírito em que foi<br />
criada. Muitas vezes, mais do que pelas palavras é pela entonação que o autor<br />
penetra em sua atmosfera. É uma poesia que se lê mais com a distração do que<br />
com a atenção, em que o leitor mais desliza sobre as palavras do que as absorve.<br />
Vagamente, para captar das palavras, sua música. É uma poesia para ser lida mais<br />
do que para ser relida.(MELO NETO, 1998, p.59)<br />
Na concepção de João Cabral, a poesia de “inspiração” vale-se da musicalidade, da<br />
entonação, ou do tom, para alcançar o leitor. Percebemos que a palavra tom refere-se tanto<br />
ao modo de expressar-se, à inflexão da voz, como, no contexto da música, à altura de um<br />
som na escala geral dos sons. Desse modo, a palavra tom está ligada ao sentido da audição,<br />
à capacidade de ouvir.<br />
De acordo com os estudos sobre os sentidos apresentados por Jacob Bronowski<br />
(1997), a audição é um tipo de apreensão do mundo limitada, que não leva o leitor a uma<br />
experiência estética completa, uma vez que o ouvido é usado amplamente para o<br />
estabelecimento de contato com outras pessoas ou com outras coisas vivas, a fim de se<br />
obter informações dessas outras pessoas ou coisas no mundo.<br />
54
Já para Marilena Chaui (1988, p.47), “ouvir, volta-nos para dentro, ver, lança-nos<br />
para fora.” A pesquisadora observa, no entanto, que mais importante do que pensar essa<br />
diferença é considerar a afirmação platônica de que a verdadeira causa pela qual recebemos<br />
a audição e a vista é estarmos destinados ao conhecimento. Por estar voltada para o interior,<br />
“a audição nos faz começar ali onde todo saber deve começar, interpretação socrática do<br />
oráculo de Delfos: ‘conhece-te a ti mesmo’.”(Ibidem)<br />
Nessa perspectiva, João Cabral neutraliza a poesia de “inspiração”, levando-nos a<br />
presumir que esta seja um tipo de texto que não proporciona ao autor/leitor a verdadeira<br />
fruição estética. O poeta considera que, por não se constituir como uma atividade limitada,<br />
aplicadora de regras, ou posterior à inspiração, a tendência de se trabalhar o projeto artístico<br />
é convertida em exercício estético desde o momento da criação. Essa seria a forma de<br />
realização artística: o poeta torna-se leitor de si mesmo, crítico de seu fazer, inventor de<br />
“novo tipo de dicção”. Por isso, de acordo com João Cabral:<br />
Não é o olho crítico posterior à obra. O poema é escrito pelo olho crítico, por um<br />
crítico que elabora as experiências que antes vivera, como poeta.(...) Não é de<br />
estranhar que muitas vezes esqueçam essa experiência, como tal, e que ela, ao<br />
ressuscitar, venha vestida de outra expressão, diversa completamente. (MELO<br />
NETO, 1998, p.65)<br />
O poder sugestivo da linguagem cabralina está mais pautado “nos truques da escrita do<br />
que na sonoridade melódica de seus versos”, como lembra Herrera (1995, p.152). Desse<br />
modo, essa nova dicção, embora possa ser confundida com uma nova lei criada pelo poeta,<br />
não toma a forma de “catecismo para uso privado, um conjunto de normas precisas que ele<br />
se compromete a obedecer” (MELO NETO, 1998, p.66). Ao contrário, o único ponto de<br />
referência que o poeta teria ao escrever seria a sua consciência, “a consciência de dicções<br />
55
de outros poetas que deseja evitar.”(Ibidem) 35 Essas outras dicções 36 , marcadas por modos<br />
de expressão “pouco vivas”, “escrita sem fala”, precisariam ser abandonadas, uma vez que<br />
a experiência estética pressupõe um tipo de arte provocadora de sensações diversas, como<br />
um canto “a contrapelo, esfolado”:<br />
como o que não adormece:<br />
o mais contrário do embalo<br />
e do canto emoliente.<br />
Na Andaluzia esse canto<br />
insonífero se atende:<br />
a contrapelo, esfolado,<br />
arrepiando a alma e o dente.<br />
(MELO NETO, 1997, p.63)<br />
O “canto a contrapelo” do poeta, provocador de sensações, abre mão do tom<br />
harmonioso, do ritmo embalador, em nome de um timbre cortante, áspero que arrepia “a<br />
alma e o dente”. Nesse sentido, temos que admitir que o tipo de racionalidade proposta pela<br />
escrita cabralina implica também um ato reflexivo fenomenológico, na perspectiva da<br />
fenomenologia da percepção, uma vez que,<br />
o conhecimento inteiro e o pensamento inteiro vivem de um fato inaugural cuja<br />
expressão é: senti. Senti: alcancei com esta cor, ou com qualquer outro sensível<br />
em questão, uma existência singular que interrompia de chofre meu olhar, e, no<br />
entanto, prometia-lhe uma série indefinida de experiências, concreção de<br />
possíveis desde sempre reais nas faces escondidas da coisa, lapso de duração<br />
dado numa vez”.” (MERLEAU-PONTY, 1975, p. 437/438)<br />
José Guilherme Merquior (1965) e Luiz Costa Lima (1968) são os primeiros a<br />
destacarem a “impregnação fenomenológica da obra de João Cabral” (LIMA, 1968, p..40),<br />
35 Muitas dessas dicções estão “Linguagens alheias”, do livro Agrestes (1981-1985).<br />
36 Conferir os poemas “Encontro com um poeta” de Paisagens com figuras; “O sim contra o sim”, de Serial<br />
(1959-1961),; “A Pereira da Costa” ,“O pernambucano Manuel Bandeira”, “Murilo Mendes e os rios”, de<br />
Museu de tudo (1966-1974); “Tio e sobrinho”, de A escola das facas(1975-1980), “The return of the native”<br />
de Agrestes, dentre outros.<br />
56
aseados nos pressupostos teóricos de Edmund Husserl (1859-1938) e de Maurice Merleau-<br />
Ponty (1908-1961). Diante dessa possibilidade, podemos inferir que emoção intelectual ou<br />
“poesia que se dirige à inteligência, através dos sentidos”(MELO NETO, 1985), como quer<br />
o poeta, implica poesia de natureza plástica, cuja linguagem é clara, concreta. Desse modo,<br />
o projeto lírico do poeta pressupõe o desenvolvimento de uma capacidade intelectual<br />
decorrente de um treinamento para criar e compreender as mensagens numa perspectiva<br />
visual. Acreditamos que esse é o papel de uma arte que pretenda engajar-se nas atividades<br />
ligadas à comunicação que a sociedade moderna exige, uma vez que esta dispõe de meios<br />
de comunicação que apresentam e reproduzem a vida quase como um espelho, além de<br />
favorecerem um processo de inter-relação de linguagens artísticas.<br />
Em virtude disso, discutimos a poética cabralina enquanto uma produção artística<br />
que tenta fixar e tornar possível, ao leitor, simultaneamente, a visão da realidade que nos<br />
circunda em sua perenidade e permanência. Algumas observações de Maurice Merleau-<br />
Ponty (1975), no ensaio A dúvida de Cézanne, sinalizam para esse tipo de produção<br />
artística:<br />
O que motiva um gesto do pintor não pode residir unicamente na perspectiva ou<br />
na geometria, em leis da decomposição de cores ou em qualquer outro<br />
conhecimento. Para todos os gestos que pouco a pouco fazem um quadro só há<br />
um motivo, a paisagem em sua totalidade e em sua plenitude absoluta - a que<br />
Cézanne justamente chamava “motivo”. Começava por descobrir as bases<br />
geológicas. Não mais se movia depois, e, olhos dilatados, contemplava, relatava<br />
Mme. Cézanne. Ele “germinava” com a paisagem.Tratava-se, esquecida toda a<br />
ciência, de recuperar por meio destas ciências a constituição da paisagem como<br />
organismo nascente. (...) A arte não é uma imitação, nem, por outro lado, uma<br />
fabricação segundo os votos do instinto e do bom gosto. É uma operação de<br />
expressão. (MERLEAU-PONTY, 1975, p.309)<br />
57
É nessa direção que entendemos a proposta da poesia de João Cabral, já que o poeta<br />
tenta “pintar” uma realidade de um modo que ainda não foi pintado pela nossa tradição<br />
lírica 37 , privilegiando a expressividade do texto.<br />
Na mesma conferência em que trata do problema da composição poética, o poeta<br />
reafirma a questão do perigo da incomunicabilidade da arte, já que o trabalho artístico,<br />
voltado apenas para a pesquisa formal da linguagem, pode tornar-se uma violência contra si<br />
mesmo. Em cada novo livro há a preocupação em se cortar mais do que em se acrescentar<br />
ao que já está feito, em nome do que não se sabe. Nesse sentido, o poeta corre o risco de<br />
produzir uma obra de arte que passa a valer por si, matando um certo tipo de comunicação<br />
com o leitor:<br />
Seria a morte da comunicação, e nela esse tipo de poesia iria se encontrar com a<br />
outra incomunicação, a do balbucio, que, por outros caminhos, estão também<br />
buscando os poetas do inefável e da escrita automática.(MELO NETO, 1998,<br />
p.67)<br />
Morta a comunicação, surge uma espécie de desprezo pelo leitor, resultando um<br />
processo criativo o qual funda as bases do hermetismo na poesia. Há o perigo de o poeta<br />
falar sozinho “de si mesmo, de suas coisas secretas, sem saber para quem escreve. Sem<br />
saber se o que escreve vai cair na sensibilidade de alguém com os mesmos segredos,<br />
capaz de percebê-los” (MELO NETO, 1998, p.68)<br />
Com esse argumento, João Cabral mostra a relevância do leitor no momento da<br />
criação do poema. Essa nova poesia demanda um novo tipo de leitor. Que leitor seria<br />
37 Em entrevista a Marques Gastão, em 1958, Cabral diz que: “Um crítico brasileiro disse que eu sou o poeta<br />
mais estranho e distante da tradição do lirismo português e brasileiro. (...) O que limita as duas poesias, a<br />
portuguesa e a brasileira, é serem excessivamente líricas e, como tais, exclusivamente subjetivas. E, como<br />
subjetivas, correm o perigo de cair no sentimentalismo”<br />
58
esse? Percorrendo também os depoimentos e os poemas de João Cabral, algumas<br />
características desse leitor podem ser encontradas: um leitor que, a priori, identifica-se<br />
com o texto lido, que tem desejo e prazer em lê-lo:<br />
(...) A leitura é, para mim, a coisa mais importante. Quando me perguntam o que<br />
aconselharia a um jovem para ler, eu digo que, para ler, é preciso ter prazer.<br />
Quem tem esse prazer vai descobrindo o que quer ler. As escolas deviam ensinar<br />
aos jovens o prazer da leitura. Infelizmente, não e o estão fazendo. Noto que cada<br />
dia se lê menos. A TV está tirando das pessoas o hábito da leitura. Mas, me<br />
pergunto: como alguém pode ser um bom médico ou um bom físico sem ler? A<br />
leitura é cada dia mais necessária e cada dia se lê menos. (MELO NETO, 1986).<br />
Nesses termos, o leitor cabralino ideal experimenta inicialmente uma relação de<br />
prazer com o texto, a fim de descobrir a experiência da leitura. Do prazer de ler, surge o<br />
novo leitor, sujeito ativo, crítico, paciente, que penetra na complexidade do texto de<br />
modo a contemplar, a perceber sensível e cognitivamente todo o seu significado.<br />
Encontramos, em alguns poemas de João Cabral, esse tipo leitor, sujeito que assume o<br />
papel de tradutor, de porta-voz dos seus semelhantes, como o garoto de a “Descoberta da<br />
literatura”, do livro A escola das facas (1975-1980), que lia para os trabalhadores do<br />
engenho:<br />
Descoberta da Literatura<br />
No dia-a-dia do engenho,<br />
toda a semana , durante,<br />
cochichavam-me em segredo:<br />
saiu um novo romance.<br />
E da feira do domingo<br />
me traziam conspirantes<br />
para que os lesse e explicasse<br />
um romance de barbante.<br />
Sentados na roda morta<br />
de um carro de boi, sem jante,<br />
ouviam o folheto guenzo,<br />
a seu leitor semelhante,<br />
com as peripécias de espanto<br />
preditas pelos feirantes.<br />
Embora as coisas contadas<br />
59
e todo o mirabolante,<br />
em nada ou pouco variassem<br />
nos crimes, no amor, nos lances,<br />
e soassem como sabidas<br />
de outros folhetos migrantes,<br />
a tensão era tão densa,<br />
subia tão alarmante,<br />
que o leitor que lia aquilo<br />
como puro alto-falante,<br />
e, sem querer, imantara<br />
todos ali, circunstantes,<br />
receava que confundissem<br />
o de perto com o distante,<br />
o ali com o espaço mágico,<br />
seu franzino com o gigante,<br />
e que o acabassem tomando<br />
pelo autor imaginante<br />
ou tivesse que afrontar<br />
as brabezas do brigante.<br />
(E acabaria, não fossem<br />
contar tudo à Casa-grande:<br />
na moita morta do engenho,<br />
um filho-engenho, perante<br />
cassacos do eito e de tudo,<br />
se estava dando ao desplante<br />
de ler letra analfabeta<br />
de corumba, no caçanje<br />
próprio dos cegos de feira,<br />
muitas vezes meliantes.)<br />
(MELO NETO, 1997, p.129/130)<br />
A descoberta da literatura acontece em decorrência do envolvimento dos<br />
ouvintes. Embora já soubessem da história narrada, a qual variava “em nada ou pouco”,<br />
como diz o poeta, toda a densa tensão pressentida pelo leitor, contagia os ouvintes, na<br />
medida em que percebem a mágica das palavras que os imanta ao texto.<br />
Por outro lado, percebemos, no texto, o lugar do leitor. Filho-engenho que se<br />
coloca perante cassacos do eito e divide com eles o conhecimento que é restrito à Casa-<br />
grande. Se no plano semântico é possível ver a realidade nordestina, com todas as suas<br />
gritantes diferenças sociais e econômicas, no plano da organização estrutural e sintática<br />
do texto, somos remetidos ao canto da letra analfabeta, que marca as feiras de<br />
60
Pernambuco. Desse modo, João Cabral fala do leitor ao leitor analfabeto, mesmo com o<br />
objetivo de levá-lo apenas a experimentar o prazer da descoberta da literatura.<br />
Apesar de o poeta brasileiro manifestar preocupação como leitor, Donis A.<br />
Dondis (1997) observa que ainda há muito o que fazer quanto à recepção da arte da era<br />
tecnológica:<br />
A arte e o significado da arte mudaram profundamente na era tecnológica, mas a<br />
estética da arte não deu resposta às modificações.Aconteceu o contrário: enquanto<br />
o caráter das artes visuais e sua relação com a sociedade modificaram-se<br />
dramaticamente, a estética da arte tornou-se ainda mais estacionária. O resultado<br />
é a idéia difusa de que as artes visuais constituem o domínio exclusivo da<br />
intuição subjetiva, um juízo tão superficial quanto o seria a ênfase excessiva no<br />
significado literal. Na verdade, a expressão visual é o produto de uma inteligência<br />
extremamente complexa, da qual temos, infelizmente, em conhecimento muito<br />
reduzido. (DONDIS, 1997, p.27)<br />
De acordo com a pesquisadora, a estética da arte visual ainda não desenvolveu um<br />
sistema estrutural e uma metodologia que permita o ensino e o aprendizado de como<br />
interpretar visualmente as idéias. O leitor ainda não educou o seu olhar para a visão das<br />
coisas. As pessoas tendem a fazer leituras impressionistas, intuitivas do objeto artístico,<br />
limitando as possibilidades de sentidos a que tal objeto pode remeter. No que tange à<br />
literatura em geral, ainda persiste o olhar impressionista do leitor comum. Nesse contexto,<br />
encontra-se o leitor comum. O poeta tenta caracterizá-lo:<br />
[Eu defendia] uma poesia que chegasse ao povo. Eu achava que a poesia estava<br />
fechada demais e tentei abri-la um pouco mais. Mas depois eu vi que era um<br />
negócio muito difícil por essa coisa de que o leitor no Brasil é a elite, de forma<br />
que você, queira ou não queira, acaba escrevendo para essa elite. Como é que<br />
você vai escrever para o sertanejo, que não sabe ler? (MELO NETO, 1994)<br />
Percebemos, por essas palavras, que há uma preocupação constante do poeta com o<br />
leitor analfabeto e com o leitor comum. Essa é uma atitude que merece a nossa atenção,<br />
61
quando tratamos da produção poética de João Cabral, pois não acreditamos que o poeta, ao<br />
se referir ao leitor que não sabe ler, ou àquele que tem dificuldades em alcançar o sentido<br />
de sua lírica, tenha a pretensão de exigir um domínio teórico dos processos construtivos do<br />
texto. João Cabral é um dos poetas da literatura de língua portuguesa que mais se<br />
preocupou em produzir uma poesia visível para o seu leitor, valendo-se de estratégias<br />
discursivas que caracterizam textos pertencentes ao contexto da arte popular, como o metro<br />
da literatura de cordel, o tom didático das fábula etc.<br />
Lembramos que o reconhecimento da preponderância do aspecto visual das imagens<br />
sobre o aspecto conceitual, além de exigir a concretização da palavra, para oferecê-la ao<br />
leitor de forma clara, implica também falar “numa ‘forma’ familiar ao leitor”, já que “cada<br />
povo tem determinadas formas ou gêneros de poesia que lhe são familiares.” (MELO<br />
NETO, 1954) 38 Nessa perspectiva, a clareza dessa poesia está articulada tanto ao processo<br />
de percepção sensorial, quanto à capacidade de o escritor dar tratamento poético às formas<br />
artísticas familiares ao leitor.<br />
A partir do exposto, podemos afirmar que a busca do visível é o traço fundamental<br />
do lirismo de João Cabral, o qual marca a linguagem cabralina de Pedra do sono (1942) a<br />
Andando Sevilha (1987-1989), ou seja, de um tipo de Cubismo, de Surrealismo ou<br />
Construtivismo inicial, marcado pela pesquisa e planejamento, até chegar a um tipo de<br />
realismo social, contribuindo para uma percepção mais humana das populações nordestinas<br />
e do viver sevilhano. Nas palavras de George Rudolf Lind (1970),<br />
a arte sóbria e severa de João Cabral, racionalmente clara apesar dos seus<br />
artifícios estilísticos gongóricos, esta arte não apela ao nosso sentimento, não<br />
conta com o nosso entusiasmo; mas, se assumirmos a atitude que ela exige de<br />
38 Conferir depoimento publicado na obra de Félix de Athayde (1998, p. 34), sem referência à fonte direta.<br />
62
nós, a contemplação lúdica do mundo exterior e interior, ela recompensa o nosso<br />
esforço pela alta satisfação estética que nos oferece o espetáculo dum mundo<br />
rigorosamente ordenado em palavras, do mundo nosso re-feito e renovado,como<br />
apenas um autêntico poeta é capaz de fazer. (LIND, 1970, p.25)<br />
João Cabral é um poeta que exige a postura contemplativa do leitor, pelo fato de,<br />
conforme João Palma Ferreira (apud MAME<strong>DE</strong>,1987, p.312), conseguir “induzir o leitor à<br />
percepção de um estranho e novo conceito de todas as possibilidades da palavra e a<br />
faculdade de por meio da palavra transmitir remotos aspectos sensoriais que a poesia tem<br />
desprezado ultimamente.”<br />
Desse modo, acreditamos que o projeto lírico do poeta, desde a sua fase inicial,<br />
pressupõe a existência de um leitor que desenvolva a sua capacidade intelectual decorrente<br />
de um treinamento do olhar para criar e compreender as mensagens, inicialmente nos seus<br />
aspectos sensoriais, sem nenhuma intenção intelectiva ou de projeção psicológica, em<br />
outras palavras, para viver uma experiência estética. Por isso, primeiro o leitor percebe a<br />
imagem do objeto como algo vivo, propulsor de significações, que o leva a uma experiência<br />
de prazer jamais esquecida. Dessa maneira, ousamos rever a sua Psicologia da composição,<br />
na perspectiva da recepção do texto, já que o leitor é a contraparte essencial nesse processo<br />
de composição, no qual também o autor tende a ser leitor de si mesmo:<br />
VI<br />
Não a forma encontrada<br />
como uma concha, perdida<br />
nos frouxos areais<br />
como cabelos;<br />
não a forma obtida<br />
em lance santo raro,<br />
tiro nas lebres de vidro<br />
do invisível;<br />
mas a forma atingida<br />
como a ponta do novelo<br />
que a atenção, lenta,<br />
63
desenrola,<br />
aranha; como o mais extremo<br />
desse fio frágil,que se rompe<br />
ao peso, sempre, das mãos<br />
enormes.<br />
(MELO NETO, 1986, p.330)<br />
A forma do poeta não seria encontrada no isolamento das palavras do texto e nem<br />
em impressões subjetivas ou juízos superficiais, mas na apreensão lenta de cada imagem,<br />
respeitando o “fio frágil” dos significados que se rompem a cada manejo técnico da leitura.<br />
Depois dessa apreensão, viriam as análises, as classificações e as projeções propriamente<br />
ditas. Pressupõe, portanto, o que Merleau-Ponty chama de “atitude natural do eu inocente,<br />
ingênuo” (1975, p.434), atitude prévia à reflexão, despojada de predicados, juízos e<br />
proposições.<br />
Ao final desse capítulo, podemos inferir que o sentido de modernidade proposto<br />
pelo poeta em estudo sinaliza para a necessidade de se pesquisarem meios expressivos<br />
pertencentes não só aos sistemas verbais, mas também aos modos de comunicação visual,<br />
já que na modernidade prevalecem os meios de expressão visual e a pesquisa do poeta não<br />
pode perder de vista a comunicação com o seu leitor. Tendo em vista o leitor, vale a<br />
utilização de outros subgêneros textuais, tais como a anedota, canções populares, poesia<br />
satírica, poesia narrativa etc., os quais têm uma função social. Além do mais, há que se<br />
considerar também a estrutura da imagem, do verso da palavra, na notação da frase.<br />
Não temos dúvida de que os ensaios citados condenam um tipo de lirismo intimista<br />
e individualista, provocador de um abismo entre poesia e leitor. Mostram a necessidade do<br />
poeta considerar os aspectos da vida moderna, a fim de que se possa diminuir esse<br />
abismo.Poesia e leitor, nesse sentido, adquirem vida, movimento, provocados pelo trabalho<br />
64
perceptivo do poeta. Na tentativa de alcançar seus objetivos, como o poeta trabalha esses<br />
fundamentos teóricos e estéticos? Na seqüência, vamos aprofundar nossas leituras dos<br />
poemas em que há o uso de recursos de linguagem, na tentativa de alcançar a plasticidade<br />
das imagens.<br />
65
CAPÍTULO 2<br />
A ESTÉTICA CABRALINA EM EXERCÍCIO<br />
Nesta parte da pesquisa, adotamos um procedimento predominantemente<br />
hermenêutico, com vistas a evidenciar que, em Pedra do sono (1940-1941) e em Os três<br />
mal-amados (1943), João Cabral já organiza a sua linguagem no sentido de obter a clareza<br />
e a plasticidade em poesia, sobretudo, através do uso enfático da palavra concreta, traço que<br />
marca a produção futura do autor, como anunciamos no primeiro capítulo desta tese.<br />
Por outro lado, são obras que estabelecem um diálogo explícito com o poeta Carlos<br />
Drummond de Andrade, não só pela dedicatória e pela variação em torno do poema<br />
“Quadrilha”, de Drummond, mas no que se refere à procura de um conceito de poesia. 39<br />
Além disso, é perceptível o diálogo com Murilo Mendes, sobretudo na primeira obra,<br />
devido à ênfase ao aspecto plástico das imagens.<br />
2.1. PEDRA DO SONO E A ORGANIZAÇÃO DO TEXTO FIGURATIVO NA<br />
BUSCA DA VISIBILIDA<strong>DE</strong><br />
Pedra do sono (1940-1941), livro de estréia do poeta pernambucano, apresenta um<br />
verso de Mallarmé, como epígrafe, e já tende ao construtivismo visual, através de um olho<br />
que observa o real e o surreal, adotando a mesma postura analítica e depuradora em relação<br />
a esses dois planos.<br />
39 Em um de seus artigos sobre a Geração de 45, João Cabral diz que os poetas mais jovens parte de um poeta<br />
mais antigo, com o propósito de definir um conceito de poesia, a partir do qual realizará sua própria poesia.<br />
Conferir: MELO NETO, 1998, p. 77.<br />
66
A despeito de sua tendência surrealista, largamente justificada pela crítica devido ao<br />
uso de termos correlatos à idéia do onírico, do noturno, do líquido e do inconsistente, a obra<br />
em estudo, contrapõe real e irreal, através do encadeamento 40 , no plano sintático de sua<br />
organização, de situações diurnas e noturnas, concretas e abstratas, obedecendo à lógica de<br />
um único olhar que observa. Acreditamos que não seja gratuita a opção pela forma<br />
discursiva em primeira pessoa, já que, na condição de observador da cena, o eu-lírico<br />
recorta e concatena imagens advindas do sonho, da memória e do mundo real. O resultado<br />
alcançado com esse processo define o tipo de texto apresentado, como sendo de natureza<br />
predominantemente figurativa.<br />
De acordo com Francisco Platão Savioli e José Luiz Fiorin (1996), o texto<br />
figurativo é aquele em que predominam os termos concretos, em oposição ao texto<br />
temático, em que há o predomínio de termos abstratos. O texto figurativo apresenta mais<br />
elementos concretos, porque são estes tipos de elementos que se referem às “figuras”, isto<br />
é, às representações do mundo e das ações do homem, a algo presente no mundo natural,<br />
entendendo como natural os mundos criados pela linguagem.<br />
Ainda de acordo com esses autores, conforme mostramos na introdução desta tese, o<br />
conceito de concreto estende-se também aos adjetivos, contrariando os pressupostos de<br />
algumas gramáticas, pois “formam um contínuo que vai do mais concreto ao mais<br />
abstrato.”(SAVIOLI e FIORIN, 1996, p.51) Do mesmo modo, João Cabral nos ensina a<br />
distinguir o sentido da palavra concreto, como mostramos na introdução desta tese:<br />
Ainda não se enfatizou o grande predomínio dos substantivos, adjetivos e verbos<br />
concretos nos meus textos.Sim, porque adjetivos e verbos admitem essa<br />
categoria. Por exemplo: o adjetivo sublime é abstrato, como tristeza. Maçã é tão<br />
40 Usamos o termo encadeamento, no sentido em que é dado Carlos Reis e Ana Cristina M. Lopes (1988), no<br />
Dicionário de teoria da narrativa, ou seja, como o ato de concatenar linearmente unidades narrativas<br />
mínimas.<br />
67
concreto quanto o adjetivo torto. (SECCHIN, 1999, p.333)<br />
Outro aspecto importante que deve ser ressaltado como critério de classificação dos<br />
textos em figurativos e temáticos é a noção de narratividade do texto. Para Reis e Lopes,<br />
“narratividade é o fenômeno de sucessão de estados e transformações, inscrito no discurso e<br />
responsável pela produção de sentido” (REIS e LOPES, 1988, p.69). Envolve relações<br />
temporais de concomitância, anterioridade e posterioridade. Desse modo, a narratividade do<br />
texto pode ser percebida pelo uso de verbos em tempos verbais variados e pelo uso de<br />
advérbios.<br />
Diante dessas breves considerações teóricas, podemos considerar os vinte poemas<br />
de Pedra do sono, como sendo de natureza figurativa, uma vez que em todos eles somos<br />
remetidos a figuras que se referem a objetos e ações do homem no mundo natural e há a<br />
narratividade, ou seja, ocorre mudança de estado durante o texto. Podemos ilustrar todos<br />
esses aspectos, analisando o primeiro poema do livro:<br />
Poema<br />
Meus olhos têm telescópios<br />
espiando a rua,<br />
espiando minha alma<br />
longe de mim mil metros.<br />
Mulheres vão e vêm nadando<br />
em rios invisíveis.<br />
Automóveis como peixes cegos<br />
compõem minhas visões mecânicas.<br />
Há vinte anos não digo a palavra<br />
que sempre espero de mim.<br />
Ficarei indefinidamente contemplando<br />
meu retrato eu morto.<br />
(MELO NETO, 1986, p.375)<br />
68
Inicialmente observamos que as imagens que nos são apresentadas surgem a partir<br />
da perspectiva de um “eu” que contempla o mundo natural ou imaginado. Embora<br />
tenhamos a impressão de que esse “eu” se encontre numa atitude permanentemente<br />
passiva diante do mundo, ele espia o que existe e o que não existe. Voltando ao<br />
dicionário, espiar refere-se ao ato de “observar secretamente; procurar descobrir, com o<br />
fim de fazer danos, as ações de; espionar.” Ou “olhar, observar furtivamente,<br />
disfarçadamente”. (FERREIRA, 1986, p. 704) Portanto, a passividade do eu-lírico pode<br />
ser vista também como disfarce, tentativa de engodo, daquele que sabe de seu<br />
propósitos, mas teme anunciá-los explicitamente na obra de estréia. De modo que, na<br />
situação de observador do mundo, João Cabral nos remete ao gauche de Carlos<br />
Drummond de Andrade. As referências aos temas, imagens e até palavras do poeta<br />
mineiro constituem o começo de um poeta que ainda não definiu o seu timbre.<br />
No entanto, a possibilidade de anunciar o tipo de texto que deseja alcançar<br />
também se confirma no uso enfático do gerúndio, que nos remete à idéia de ação<br />
duradoura, pesquisa constante, persistente, minuciosa, traço que marca o fazer poético<br />
do autor em tela.<br />
Nesse sentido, ressaltamos ainda a idéia de que o eu-lírico se vale de olhos que<br />
“têm telescópios” e que compõem “visões mecânicas” do universo natural ou<br />
imaginado. Os olhos telescópicos, então, tornam a realidade ou os objetos mais<br />
próximos, mais completos, mais visíveis, a ponto de ganharem corpo, isto é, a ponto de<br />
tornarem-se palpáveis, concretos. Essa operação de aproximação da imagem, de chegá-<br />
la a si, para transmitir-lhe uma nova vida e fazer dela uma realidade perceptível de<br />
forma dinâmica, viva e integral é vista por Luiz Costa Lima (1968) e Angélica Maria<br />
69
Santos Soares (1978) como o princípio da visibilidade, ou o mecanismo da visualização-<br />
concreção: “Visualização não deve ser confundida com visão, pois enquanto esta é<br />
apenas um dos sentidos da percepção humana, aquela se refere a uma forma de criação<br />
poética, que implica na relação dialética entre percepção e imaginação.” (SOARES,<br />
1978, p.46) 41 Por isso, no segundo poema intitulado “os olhos”<br />
Todos os olhos olharam:<br />
o fantasma no alto da escada,<br />
os pesadelos, o guerreiro morto,<br />
a girl a forca o amor.<br />
Juntos os peitos bateram<br />
e os olhos todos fugiram.<br />
(Os olhos ainda estão muito lúcidos).<br />
(MELO NETO, 1986, p. 375)<br />
Portanto, na mesma direção do texto anterior, estes são olhos que têm condições de<br />
precisar as imagens observadas, tomá-las nos seus aspectos físicos, geográficos, enfim,<br />
corporificá-las através do mesmo procedimento, mesmo que pertençam ao campo da<br />
imaginação, pois “Os olhos ainda estão muito lúcidos”. Nessa perspectiva, os olhos<br />
possibilitam enxergar a realidade a partir do que é menos visível ao olho comum.Assim,<br />
mesmo que o eu-lírico não seja sujeito das ações que observa, percebemos que ele dá a ver<br />
a realidade de forma lúcida, figura o real, através do registro predominante de imagens, de<br />
situações e de ações concretas:<br />
Poema deserto<br />
Todas as transformações<br />
todos os imprevistos<br />
se davam sem o meu consentimento.<br />
Todos os atentados<br />
41 Lúcia Santaella e Winfried Nöth (2005, p. 36), observam que “essa dualidade semântica das imagens como<br />
percepção e imaginação se encontra profundamente arraigada no pensamento ocidental.”<br />
70
eram longe de minha rua.<br />
nem mesmo pelo telefone<br />
me jogavam uma bomba.<br />
Alguém multiplicava<br />
alguém tirava retratos;<br />
nunca seria dentro de meu quarto<br />
onde nenhuma evidência era provável.<br />
Havia também alguém que perguntava:<br />
Por que não um tiro de revólver<br />
ou a sala subitamente às escuras?<br />
Eu me anulo me suicido,<br />
percorro longas distâncias inalteradas,<br />
te evito te executo a cada momento e em cada esquina.<br />
(MELO NETO, 1986, p. 375/376)<br />
Como no primeiro poema, aqui também se trabalha a idéia de distanciamento do eu-<br />
lírico, que não “consente” as ações de terceiros. No entanto, tais ações existem e o registro<br />
delas obedece a seqüências temporais diversas, em lugares distintos, de diferentes modos,<br />
permitindo a idéia de narratividade do texto.<br />
A visibilidade ou visualização, como processo basilar da criação poética de João<br />
Cabral, também pode ser observada em vários outros poemas de Pedra do sono, como em<br />
“Os manequins”:<br />
Os sonhos cobrem-se de pó.<br />
Um último esforço de concentração<br />
morre no meu peito de homem enforcado.<br />
Tenho no meu quarto manequins corcundas<br />
onde me reproduzo<br />
e me contemplo em silêncio.<br />
(MELO NETO, 1986, p.376)<br />
Neste poema, o eu-lírico materializa-se nos manequins de seu quarto, mantendo-se,<br />
no entanto, na mesma atitude contemplativa. A narratividade persiste no texto, uma vez que<br />
é visível a idéia de mudança, de transformação.<br />
71
Na seqüência do livro, aparecem dois poemas “Dentro da perda da memória” 42 e<br />
“Noturno”, nos quais as imagens vêm a partir de um processo de letargia do eu-lírico. As<br />
figuras, nesse contexto, são dadas a ver, obedecendo a uma desordem típica dos estados de<br />
inconsciência. Por outro lado, “Noturno” explora predominantemente o campo semântico<br />
da noite e os estados e/ou situações noturnas:<br />
Noturno<br />
O mar soprava sinos<br />
os sinos secavam as flores<br />
as flores eram cabeças de santos.<br />
Minha memória cheia de palavras<br />
meus pensamentos procurando fantasmas<br />
meus pesadelos atrasados de muitas noites.<br />
De madrugada, meus pensamentos soltos<br />
voaram como telegramas<br />
e nas janelas acesas toda a noite<br />
o retrato da morta<br />
fez esforços desesperados para fugir.<br />
(MELO NETO, 1986, p. 377)<br />
“Dentro da perda da memória” refere-se também a “(dois olhos dois seios dois<br />
clarinetes)/ que em certas horas do dia/ cresciam prodigiosamente”. Aqui é a perda da<br />
memória que provoca a desordenação das figuras. Por essa desorganização do discurso em<br />
consonância com a idéia de perda da memória, paradoxalmente, os poemas primam pela<br />
sua clareza e concretude. Esse modo de escrever, o poeta toma emprestado de Murilo<br />
Mendes, seu mestre na organização plástica das imagens, do qual adota a mesma<br />
perspectiva surrealista. Do mesmo modo, percebemos os versos de “Infância”. São<br />
organizados em consonância com o jeito desordenado do pensamento infantil, ao mesmo<br />
42 Consultar anexo 02.<br />
72
tempo em que recupera elementos pertencentes ao universo da criança, como “anjo da<br />
guarda”, “hélices”, “aviões”, “locomotivas” “carrosséis” etc.:<br />
Infância<br />
Sobre o lado ímpar da memória<br />
o anjo da guarda esqueceu<br />
perguntas que não se respondem.<br />
Seriam hélices<br />
aviões locomotivas<br />
timidamente precocidade<br />
balões-cativos si-bemol?<br />
Mas meus dez anos indiferentes<br />
rodaram mais uma vez<br />
nos mesmos intermináveis carrosséis.<br />
(MELO NETO, 1986, p. 377)<br />
“A poesia andando”, “Poema de desintoxicação”, “Poesia” e “Composição” 43<br />
complementam, resguardadas as suas particularidades, a mesma reflexão metalingüística<br />
observada nos primeiros poemas do livro:<br />
43 Consultar anexo 02.<br />
A poesia andando<br />
Os pensamentos voam<br />
dos três vultos na janela<br />
e atravessam a rua<br />
diante de minha mesa.<br />
Entre mim e eles<br />
estendem-se avenidas iluminadas<br />
que arcanjos silenciosos<br />
percorrem de patins.<br />
Enquanto os afugento<br />
E ao mesmo tempo que os respiro<br />
Manifesta-se um trovoada<br />
Na pensão da esquina.<br />
E agora<br />
Em continentes muito afastados<br />
os pensamentos amam e se afogam<br />
em marés de águas paradas.<br />
(MELO NETO, 1986, p. 379)<br />
73
Há o uso da primeira pessoa em todos eles; o encadeamento de imagens do<br />
mundo real e do mundo surreal: “Eu penso o poema/ da face sonhada,/ metade de flor/<br />
metade apagada” (MELO NETO,1986, p.378); a oposição dia/noite; a narratividade do<br />
discurso, enfim, são predominantemente textos figurativos.<br />
Já os poemas “Canção” e “Marinha” 44 retomam o estado de estaticidade do eu-lírico<br />
pelo fato de a corporificação das figuras ser estabelecida pelo pensamento, pela<br />
imaginação, ou pelo sonho:<br />
Canção<br />
Demorada demoradamente<br />
nenhuma voz me falou.<br />
Eu vi o espectro do rei<br />
não sei em que porta ele entrou.<br />
Meus sofrimentos cumpridos<br />
que o sono os arrebatou?<br />
Mas por detrás da cortina<br />
que gesto meu se apagou?<br />
(MELO NETO, 1986, p.380)<br />
Outro aspecto que devemos ressaltar, nesses poemas, é o uso da interrogação. De acordo com<br />
Antônio Carlos Secchin (1999, p.21), o uso explícito da interrogação surge seis vezes em Pedra do<br />
sono. Apesar de usadas, na maioria das vezes, associadas “ao clima de mistério e transcendência”,<br />
como observa o crítico citado, tal recurso não deixa de conferir ao discurso um tom reflexivo e<br />
questionador:<br />
44 Conferir anexo 02.<br />
Os homens e as mulheres<br />
adormecidos na praia<br />
que nuvens procuram<br />
agarrar?<br />
(MELO NETO, 1986, p.380)<br />
74
Já em “A Porta” e “Janelas”, percebemos a luta do poeta no sentido de buscar<br />
a palavra exata, a imagem desvestida do véu que a encobre. O poema “Porta” é o primeiro a<br />
evocar essa idéia de procura:<br />
Procuravam a esquecida chuva<br />
de inverno em sua boca<br />
de onde alguém soprara as<br />
palavras de fora do poema.<br />
Como interrogassem sobre a...(?)<br />
a mulher falando no escuro:<br />
levitações elefante até-logo,<br />
o sol na fronte não desaparecia.<br />
Houve porém outro alguém<br />
(deste só a cabeça<br />
e o número da casa)<br />
que se esqueceu entre o véu e o assalto.<br />
(MELO NETO, 1986, p.381)<br />
O contraste entre escuro/sol volta ao poema, reafirmando a idéia de tensão, de luta<br />
do poeta.Repetindo as palavras de Marta de Senna (1980),<br />
sua luta é já aqui uma luta para enxergar para além do véu que encobre as coisas.<br />
A palavra é ainda véu (cf. “Janelas”, vs. 9-11) que oblitera o real ao invés de<br />
revelá-lo. É preciso rasgar o véu, domar a palavra, ultrapassar a pedra – a<br />
superfície plana e opaca que impede a visão das coisas que estão por detrás –,<br />
vencer o sono – esse inimigo que se insinua sub-repticiamente para intensificar a<br />
opacidade da pedra, para turvar qualquer tentativa de ver claro. (SENNA, 1980,<br />
p.03)<br />
A porta, segundo Jean Chevalier e Alain Gheerbrant (1997) “simboliza o local de<br />
passagem entre dois estados, entre dois mundos, entre o conhecido e o desconhecido, a luz<br />
e as trevas, o tesouro e a pobreza extrema” (1997, p.734). Por outro lado, esses autores<br />
lembram que a porta tem um valor dinâmico, de travessia, “pois não somente indica uma<br />
passagem, mas convida a atravessá-la”, para que saiamos do “domínio profano para o<br />
domínio sagrado”. (Ibidem, p.735)<br />
75
Já a palavra janela, na sua simbologia, remete “ao oriente, ao sul e ao ocidente, que<br />
são as três estações do Sol.(...) Enquanto abertura para o ar e para a luz, a janela simboliza<br />
receptividade.”(Ibidem, p.511). No poema, percebemos a alusão a diferentes situações<br />
humanas:<br />
Janelas<br />
Há um homem sonhando<br />
numa praia; um outro<br />
que nunca sabe as datas;<br />
há um homem fugindo<br />
de uma árvore; outro que perdeu<br />
seu barco ou seu chapéu;<br />
há um homem que é soldado;<br />
outro que faz de avião;<br />
outro que vai esquecendo<br />
sua hora seu mistério<br />
seu medo da palavra véu;<br />
e em forma de navio<br />
há ainda um que adormeceu.<br />
(MELO NETO, 1986, p.381)<br />
O paralelismo sintático dos verbos sinaliza para um estado comum de todos os homens<br />
apresentados: encontram-se desnorteados, perdidos, “sonhando”, “fugindo”, “esquecendo” de<br />
alguma coisa. Portanto, todos eles procuram a luz, por isso o poema recebe o título de “janelas”, ou<br />
seja, diante da necessidade de cada um há a possibilidade de visualizar a luz.<br />
Quanto aos poemas “O poeta”, “Homenagem a Picasso” e “A André Masson” 45 ,<br />
percebemos que o que está em discussão é o ato da escrita. No primeiro texto, o poeta ainda<br />
se debate entre o mundo onírico e a idéia do dia, prefigurada nas imagens surrealistas das<br />
“vozes sem cabeça”, do “telefone com asas”, das “nuvens” que povoam a “noite do poeta”,<br />
em oposição ao “relógio” que “marcava horas” e dos “olhos, vistos por fora”.(MELO<br />
NETO, 1986, p.383)<br />
45 Conferir anexo 02.<br />
76
O segundo texto, “Homenagem a Picasso”, acentua a plasticidade da obra do pintor<br />
espanhol, como teremos a oportunidade de discutir na segunda parte desta tese, enquanto o<br />
terceiro texto, dedicado a André Masson (1896-1987), revela a simpatia de João Cabral<br />
pelo aspecto construtivista e abstratizante da técnica surrealista, através da alusão a temas e<br />
aos modos de organização “sintática” das telas do pintor dessa geração.<br />
Finalmente em “Espaço jornal”, o poeta, mais uma vez, recorre a Drummond, na<br />
perspectiva irônica do discurso (duas últimas estrofes):<br />
No espaço jornal<br />
a sombra come a laranja<br />
a laranja se atira no rio,<br />
não é um rio, é o mar<br />
que transborda de meu olho.<br />
No espaço jornal<br />
nascendo do relógio<br />
vejo mãos, não palavras,<br />
sonho alta noite a mulher<br />
tenho a mulher e o peixe.<br />
No espaço jornal<br />
esqueço o lar o mar<br />
perco a fome a memória<br />
me suicido inutilmente<br />
no espaço jornal.<br />
(MELO NETO, 1986, p.384)<br />
O livro em estudo termina com “O poema e a água”, no qual “as vozes líquidas do poema”<br />
convidam para um devaneio de “mentação surrealista”, como observa Costa Lima:<br />
As vozes líquidas do poema<br />
convidam ao crime<br />
ao revólver.<br />
Falam para mim de ilhas<br />
que mesmo os sonhos<br />
não alcançam.<br />
O livro aberto nos joelhos<br />
o vento nos cabelos<br />
77
olho o mar.<br />
Os acontecimentos de água<br />
põem-se a se repetir<br />
na memória.<br />
(MELO NETO, 1986, p.385)<br />
Embora essa “mentação surrealista” venha nas duas primeiras estrofes, de acordo<br />
com o crítico, “tal identificação não deixará de chocar ao leitor familiarizado com a obra de<br />
Cabral a partir de O engenheiro. É certo que a alucinação surrealista não toca em sua<br />
lucidez” (LIMA,1968, p.244), já que, nas duas últimas estrofes, o livro se mantém aberto e<br />
as imagens líquidas “põem-se a se repetir” no espaço da “memória”.<br />
A título de conclusão, percebemos que o primeiro livro de João Cabral apresenta os<br />
“olhos”, ou as ações correlatas ao ato da visão, de uma maneira distinta da tradição<br />
observada por Sussekind, por permitir que a realidade ganhe corpo, torne-se dinâmica, viva,<br />
palpável, concreta. Desse modo, João Cabral parece conceber a percepção como resultante<br />
de uma relação do sujeito com o mundo exterior e não uma reação físico-fisiológica de um<br />
sujeito físico-fisiológico a um conjunto de estímulos externos (como suporia o empirista),<br />
nem uma idéia formulada pelo sujeito (como suporia o intelectualista).A relação dá sentido<br />
ao percebido e ao percebedor, e um não existe sem o outro. Se o eu-lírico do poema utiliza-<br />
se de olhos telescópicos, ou de “visões mecânicas”, é para enxergar a realidade a partir do<br />
que é menos visível ao olho comum e não para reduplicar a realidade do senso comum.<br />
2.2. O EXERCÍCIO CUBISTA EM OS TRÊS MAL-AMADOS<br />
A visualização-concreção, como processo de criação poética, como propõe Costa<br />
Lima, ou a percepção fenomenológica pode ser observada também no segundo livro do<br />
78
poeta, Os três mal-amados (1943), no qual João, Raimundo e Joaquim apresentam suas<br />
amadas através de processos perceptivos que acontecem em diferentes circunstâncias. Em<br />
vista disso, observamos que a relação entre o sujeito e o objeto amado é mediada por um<br />
movimento do olhar que ora aproxima, ora distancia observador e observado:<br />
João:<br />
Raimundo:<br />
Joaquim:<br />
Olho Teresa. Vejo-a sentada aqui a meu lado, a poucos centímetros de<br />
mim. A poucos centímetros, muitos quilômetros. Por que essa impressão<br />
de que precisaria de quilômetros para medir a distância, o afastamento em<br />
que a vejo neste momento?<br />
Maria era a praia que eu freqüentava certas manhãs. Meus gestos<br />
indispensáveis que se cumpriam a um ar tão absolutamente livre que ele<br />
mesmo determina seus limites, meus gestos simplificados diante de<br />
extensões de que uma luz geral aboliu todos os segredos.<br />
O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu<br />
minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu<br />
meus cartões de visitas. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu<br />
escrevera meu nome.<br />
(MELO NETO, 1986,p.365)<br />
Constatamos que, no primeiro caso, Teresa surge a partir do olhar de João, sujeito<br />
que ora aproxima, ora distancia a personagem de seu foco de visão, sem entender a razão<br />
desse procedimento. É um sonhador que não consegue alcançar o seu objeto de desejo,<br />
numa quase alusão à figura feminina inatingível de um romântico como Álvares de<br />
Azevedo:<br />
João:<br />
Olho Teresa como se olhasse o retrato de uma antepassada que tivesse vivido em<br />
outro século. Ou como se olhasse o vulto em outro continente, através de um<br />
telescópio. Vejo-a como se a cobrisse a poeira tenuíssima ou o ar quase azul que<br />
envolvem as pessoas afastadas de nós muitos anos ou muitas léguas.(...) Posso<br />
dizer dessa moça ao meu lado que é a mesma Teresa que durante todo o dia de<br />
hoje, por efeito de gás do sonho senti pegada a mim?(MELO NETO, 1986,<br />
p.365/366)<br />
79
No caso de Raimundo, Maria é oferecida ao leitor como uma presença já<br />
experimentada, reconstituída no texto de maneira lúcida e clara, sem a interferência direta<br />
do olhar do observador. O modo de ver Maria dinamiza sua figura, tornando-a uma imagem<br />
viva:<br />
Raimundo:<br />
Maria não era um corpo vago, impreciso. Eu estava ciente de todos os detalhes de<br />
seu corpo, que poderia reconstituir à minha vontade. Sua boca, seu riso irregular.<br />
Todos esses detalhes não me seria difícil arrumá-los, recompondo-a, como um<br />
jogo de armar ou um prancha anatômica (...) Maria era também o sistema<br />
estabelecido de antemão, o fim onde chegar. Era a lucidez que, ela só, nos pode<br />
dar um modo novo e completo de ver uma flor, de ler um verso. (MELO NETO,<br />
1986, p.367/372)<br />
Já Joaquim está totalmente envolvido pelo sentimento amoroso. Homem do passado,<br />
surge como uma espécie de mediador da causa dos “mal-amados”, já que se entrega por<br />
inteiro a emoção que “devora” a sua pessoa. Aniquilado pelo amor, não lhe resta nem o<br />
tempo futuro enquanto “grande poeta”. Nessa perspectiva, como lembra Secchin, mostra<br />
que “’amor’ e ‘poesia’ são inconciliáveis”(1999, p.32) Costa Lima, por sua vez, lembra<br />
que o poeta pernambucano não disfarça em Joaquim a presença de Drummond, voz que soa<br />
como um eco na poética do jovem poeta.<br />
Por fim, em um texto que se mescla à prosa 46 , encontramos três formas distintas de<br />
concepção da imagem dos “mal-amados” e de suas amadas. No entanto, nenhuma das três<br />
formas dá a ver a realidade, se tomadas isoladamente, pois se por um lado há a interferência<br />
da subjetividade (enunciação em primeira pessoa) e da emoção (o amor é o sujeito das<br />
46 Em entrevista ao poeta Felipe Fortuna, João Cabral observa que nunca se entusiasmou pelo poema em<br />
prosa. Alega que Os três mal-amados não é um poema em prosa, mas “uma peça de teatro” que não foi<br />
concluída. (MELO NETO, 1987)<br />
80
ações) de olhares que observam, por outro há a tentativa de neutralização da perspectiva do<br />
observador (enunciação em terceira pessoa).Tomadas em conjunto, percebemos as seis<br />
“faces” de um mesmo cubo, ou seja, da realidade de sujeitos “mal-amados”. Esse aspecto<br />
remete claramente ao Cubismo.<br />
2.3. A FASE CONSTRUTIVA DO DISCURSO: A VISIBILIDA<strong>DE</strong> GEOMÉTRICA<br />
E OS INDÍCIOS <strong>DE</strong> UM FUTURO DIÁLOGO COM OS ESPANHÓIS<br />
Na tentativa de aprimorar a plasticidade anunciada nas primeiras obras, o poeta<br />
propõe, no livro O engenheiro (1942-1945), um projeto geométrico de construção para os<br />
seus poemas, evidenciando a objetividade e a clareza como procedimentos ideais no ato da<br />
concretização de sua linguagem. Como já observamos, nesta obra, acentuam-se os diálogos<br />
com nomes como de Le Corbusier, Joaquim Cardozo, Vicente do Rego Monteiro e outros,<br />
cujas obras reforçam a perspectiva de um fazer artístico modulado pela busca da<br />
visibilidade. Por outro lado, ressaltamos que, nesses poemas, há o propósito simultâneo de<br />
alcançar o potencial expressivo da linguagem e de esclarecer a perspectiva do discurso,<br />
através da proposição de que o entendimento do poema depende da lógica de sua<br />
composição. Essa lógica, lembramos, não se limita apenas à simetria do texto ou à<br />
depuração do subjetivismo, mas se estabelece no uso enfático de palavras concretas para<br />
corporificar o pensamento, convertê-lo em imagem viva, pois, segundo ele, “é muito mais<br />
fácil eu dar a ver com palavras concretas, que se dirigem aos sentidos, do que usando<br />
palavras abstratas.”(MELO NETO, 1989) O final do poema “A lição de poesia” explicita a<br />
lógica pretendida:<br />
81
A luta branca sobre o papel<br />
que o poeta evita,<br />
luta branca onde corre o sangue<br />
de suas veias de água salgada.<br />
A física do susto percebido<br />
entre os gestos diários;<br />
susto das coisas jamais pousadas<br />
porém imóveis – naturezas vivas.<br />
E as vinte palavras recolhidas<br />
nas águas salgadas do poeta<br />
e de que se servirá o poeta<br />
em sua máquina útil.<br />
Vinte palavras sempre as mesmas<br />
de que conhece o funcionamento,<br />
a evaporação, a densidade<br />
menor que a do ar.<br />
(MELO NETO, 1986, p.355)<br />
As vinte palavras recolhidas darão sentido à objetividade do poeta na medida em<br />
que darão corpo ao seu pensamento, tornando vivas as suas percepções. Nesse sentido, a<br />
base do racionalismo cabralino pressupõe um tipo de experiência estética que fratura o<br />
modelo da tradição realista brasileira, uma vez que, segundo Angélica Soares (1978), o<br />
exercício da visualização em Cabral é levado às últimas conseqüências, até que o aspecto<br />
plástico se sobreponha ao discursivo na poesia desse autor. Costa Lima, antes disso, já tinha<br />
alertado para o fato de que o aspecto pictórico da poesia cabralina “importa ser considerado<br />
à medida que indica um elo mediatizador com a realidade.” (1968, p.260).<br />
Com o receio de repetir aspectos já discutidos à exaustão pelos críticos acerca dos<br />
livros que compõem a fase construtiva da poética cabralina, assinalamos, de forma sucinta,<br />
que livros seguintes, como Psicologia da composição com a Fábula de Anfion e Antiode<br />
(1946-1947), Uma faca só lâmina (1955), Serial (1959-1961) A educação pela pedra<br />
(1962-1965): e A escola das facas (1980) são textos que, resguardadas as suas diferenças,<br />
82
confirmam a trajetória de João Cabral, enquanto aquele poeta que continuamente pesquisa<br />
processos de construção poética que possam dar a ver o seu objeto, sem se limitar apenas<br />
ao rigor formal ou à geometrização do discurso, mas que aprende as quatro lições da pedra:<br />
a de dicção, a de moral, a de poética e a de economia, como ressalta João Alexandre<br />
Barbosa (1975, p.227):<br />
Uma educação pela pedra: por lições;<br />
para aprender da pedra, freqüentá-la;<br />
captar sua voz inenfática, impessoal<br />
(pela dicção ela começa as aulas).<br />
A lição de moral, sua resistência fria<br />
ao que flui e a fluir, a ser maleada;<br />
a de poética, sua carnadura concreta;<br />
a de economia, seu adensar-se compacta:<br />
lições de pedra (de fora para dentro,<br />
cartilha muda), para quem soletrá-la.<br />
Depois de aprendidas as quatro lições da pedra, somos levados a articular as<br />
relações existentes entre essas quatro lições e o espaço-sertão onde a pedra se instala:<br />
Outra educação pela pedra: no Sertão<br />
(de dentro para fora, e pré-didática).<br />
No Sertão a pedra não sabe lecionar,<br />
e se lecionasse, não ensinaria nada;<br />
lá não se aprende a pedra: lá a pedra,<br />
uma pedra de nascença, entranha a alma.<br />
(MELO NETO, 1986, p.11)<br />
Por se encontrarem em “um território ostensivamente mineral”, como lembra<br />
Secchin (1999, p. 236), as imagens apresentadas no poema são solidificadas pela<br />
linguagem, confundidas com ela. No entanto, é preciso lembrar que, O cão sem plumas<br />
(1949-1950) e a maioria dos livros publicados depois, foram escritos fora do Brasil.<br />
Advindas de outros espaços, as imagens cabralinas organizam-se também em conformidade<br />
83
com esses espaços, como em “Tecendo a manhã”, também de A educação pela pedra<br />
(1962-1965):<br />
Um galo sozinho não tece uma manhã:<br />
ele precisará sempre de outros galos.<br />
De um que apanhe esse grito que ele<br />
e o lance a outro: de um outro galo<br />
que apanhe o grito que um galo antes<br />
e o lance a outro; e de outros galos<br />
que com muitos outros galos se cruzem<br />
os fios de sol de seus gritos de galo,<br />
para que a manhã, desde uma teia tênue,<br />
se vá tecendo, entre todos os galos.<br />
2.<br />
E se encorpando em tela, entre todos,<br />
se erguendo tenda, onde entrem todos,<br />
se entretendendo para todos, no toldo<br />
(a manhã) que plana livre de armação,<br />
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo<br />
Que, tecido, se eleva por si: luz balão.<br />
(MELO NETO, 1986, p. 19)<br />
Inicialmente é importante lembrar que a imagem do grito, trabalhada na primeira<br />
estrofe, é revista pelo poeta em vários poemas, como Auto do frade (1984) “Ocorrências de<br />
uma sevilhana” e “A entrevistada disse, na entrevista” 47 , do livro Agrestes (1985). Nos<br />
quatro momentos, está relacionada à medida de distância, como reza a cultura espanhola.<br />
No dizer do poeta: “Talvez eu tenha me repetido porque achasse que não tinha sido ainda<br />
explorada completamente essa metáfora, essa imagem”(MELO NETO, 1989). Assim, no<br />
poema em estudo, o grito sugere a marcação do espaço entre os galos, possibilitando ao<br />
leitor a configuração geométrica dos fios do sol, da teia tênue, da tela e da tenda/toldo, da<br />
manhã.<br />
Além desse aspecto, ao atentarmos para as estratégias de composição do poema,<br />
observamos que o texto resulta de um intenso trabalho intelectual. O poeta afirma que<br />
47 Conferir anexo 02.<br />
84
gastou dez anos para concluí-lo. Na sua rigorosa elaboração, percebemos uma articulação<br />
de diferentes planos de percepção do real e de representação de valores a partir de<br />
metáforas sinestésicas que envolvem o olhar, a audição e o tato, as quais nos remetem a<br />
dimensões de espaço e tempo em poesia.<br />
Nesse caso, o uso de palavras concretas corporifica a idéia de um amanhecer, ou<br />
seja, dá corpo a uma imagem abstrata. A concretude da manhã é sugerida inicialmente pelo<br />
verbo usado no título do poema: Tecendo a manhã. O ato de tecer é tátil, depende das mãos<br />
daquele que tece. Além do mais, sugere uma marcação temporal, pois exige paciência e<br />
cuidados, é lento.<br />
Quanto à representação de valores, quando um galo tece, ele adota o mesmo<br />
princípio produtivo de uma aranha, isto é, implica um trabalho que enreda outros seres,<br />
outros galos, que ao final, entram e se entretendem todos no toldo da manhã. A sonoridade<br />
do canto conjunto dos galos também é ouvida na aliteração do fonema /t/, que aparece nos<br />
últimos versos do poema, reforçando essa idéia de coletividade.<br />
Sem a pretensão de esgotar a leitura do poema em estudo, lembramos que todas<br />
essas observações são importantes na medida em que esclarecem os processos de<br />
composição do poeta e revelam as formas de intercurso dessa literatura com outras<br />
linguagens artísticas.<br />
No sentido de evitar análises exaustivas de poemas pertencentes a todos os livros de<br />
João Cabral, neste capítulo selecionamos alguns textos, nos quais tentamos evidenciar os<br />
fundamentos do projeto visual de João Cabral e os seus modos de organização diante das<br />
exigências da vida moderna. Nos capítulos seguintes, continuamos delimitando nosso<br />
corpus, restringindo nossas análises apenas aos poemas que, de algum modo, explicitam os<br />
diálogos da poesia cabralina com tendências artísticas espanholas.<br />
85
2ª PARTE<br />
JOÃO CABRAL <strong>DE</strong> MELO NETO EM DIÁLOGO COM AS<br />
ARTES ESPANHOLAS<br />
CAPÍTULO 3<br />
OS NÍVEIS DO INTERCURSO DAS LINGUAGENS<br />
Como vimos na primeira parte desta tese, em João Cabral, há a citação constante,<br />
numa perspectiva metalingüística, de artistas que, frente à realidade cultural de suas épocas,<br />
dedicaram-se à criação de “novas escrituras”, a despeito de serem ou não serem bem<br />
recebidos por seus “leitores”. Dentre eles 48 , além dos franceses Mallarmé, Le Corbusier e<br />
Paul Valéry, destacamos os espanhóis Pablo Picasso, Juan Miró, Gonzalo de Berceo, Jorge<br />
Guillén, Juan Gris, Joan Brossa, Miguel Hernández, Pedro Salinas, Rafael Alberti e<br />
Federico García Lorca com os quais o poeta dialoga em seus textos teórico-críticos e<br />
literários. Esses diálogos vão se caracterizar ora pela idéia de aproximação estética, ora<br />
pelo distanciamento em relação aos artistas mencionados.<br />
Ressaltamos que, além da alusão 49 a outras vozes artísticas, não podemos esquecer<br />
que o poeta brasileiro conviveu com a cultura espanhola durante treze anos e procurou, ao<br />
48 Nomes como de W. H. Auden, Marianne Moore, Gertrude Stein, W. B. Weats, Cesário Verde, Afonso<br />
Arinos, Augusto dos Anjos, Manuel Bandeira, Vinícius de Moraes, Luís Jardim, Augusto Frederico<br />
Schmidt, irmãos Campos, Ledo Ivo, José Lins do Rego, Marly de Oliveira dentre outros citados ou não ao<br />
logo de nossa tese atravessam o discurso cabralino.<br />
49 De acordo com Massaud Moisés (1982) alusão é “toda referência, direta ou indireta, propositada ou<br />
casual, a uma obra, personagem, situação etc., pertencente ao mundo literário, artístico, mitológico etc., e que<br />
seja do conhecimento do leitor.” (1982, p.18)<br />
86
longo desse tempo, aprofundar seus conhecimentos sobre essa cultura, através de leituras,<br />
contatos diretos com artistas, visitas a exposições de arte etc. Portanto, o realismo, o caráter<br />
popular e a plasticidade da arte espanhola não passaram despercebidos ao autor<br />
pernambucano.Dadas essas incursões desse poeta pela arte dos espanhóis, somos levados a<br />
observar em que medida isso acontece.<br />
3.1. A CITAÇÃO POR EPÍGRAFES 50<br />
Em Psicologia da composição com a Fábula de Anfion e Antiode (1946-1947) e O<br />
rio (1953), a presença dos poetas espanhóis faz-se através do uso de epígrafes de Jorge<br />
Guillén (1893-1984) e Gonzalo de Berceo (1180?-1247), respectivamente. No primeiro<br />
caso, João Cabral retira o verso inicial do poema El horizonte do livro Cántico, de Jorge<br />
Guillén, publicado pela primeira vez em 1928, dentro do chamado conceptismo conceitual<br />
de certas vanguardas européias:<br />
Riguroso horizonte,<br />
Cielo y campo, ya idénticos,<br />
Son puros ya: su línea,<br />
(GUILLÉN, apud BARBOSA,1975, p.58)<br />
O livro foi reeditado com ampliações em 1936, 1945 e 1950. 51 Na edição de 1936,<br />
o poema figura na segunda parte, Las horas situadas. Em entrevista a Mário Chamie<br />
50 Ainda de acordo com o Dicionário de Termos Literários, de Massaud Moisés, epígrafe designa “os<br />
fragmentos de textos que servem de lema ou divisa de uma obra, capítulo ou poema”. (1982, p.189)<br />
51 Em carta a Manuel Bandeira, em 1947, João Cabral diz que conhecia as reedições de 1937 e de 1939 e que<br />
compraria para Bandeira a nova edição que o poeta preparava. Acreditamos tratar-se da edição de 1945 e não<br />
de 1950, conforme observa Flora Sussekind. Conferir SUSSEKIND, 2001, p.47<br />
87
(1979), João Cabral observa que o poeta-crítico espanhol ajuda-o a definir o aspecto<br />
formal do poema:<br />
De fato, descobri Jorge Guillén em 1947, quando fui morar na Espanha. Tenho a<br />
impressão de que devo muito de minha obsessão pela simetria e do meu<br />
intelectualismo à poesia de Jorge Guillén, até a reunião de sua obra no livro<br />
Cântico [...] O curioso dessa influência é que há uma diferença essencial entre<br />
mim e Jorge Guillén. Sinto que ele é um poeta muito mais abstrato do que eu e<br />
que uma das chaves da compreensão de minha poesia decorra, talvez, da<br />
diferença que aprendi, na escola primária entre vocábulo concreto e vocábulo<br />
abstrato. Vocábulo concreto é aquele que você pode apreender por um dos<br />
sentidos; vocábulo abstrato é aquele que não pode ter essa apreensão. (MELO<br />
CHAMIE, 1979, p.39)<br />
João Alexandre Barbosa (1975, p.58) confirma a opinião do poeta brasileiro,<br />
observando que, ao explorar, nos três poemas anunciados pela epígrafe de Guillén, “o<br />
silêncio e a negação como possíveis metáforas para uma definição de sua poética”, João<br />
Cabral recorta do poeta espanhol o desejo de obter a clareza e o equilíbrio necessário ao ato<br />
da escrita, a qual também pretende alcançar a perfeição e a comunicação com o mundo,<br />
conforme propõem os últimos versos do texto de Guillén:<br />
Perfección! Se da fin<br />
A la ausencia del aire,<br />
De repente evidente.<br />
Pero la luz resbala<br />
Sin fin sobre los límites<br />
Oh perfección abierta!<br />
Horizonte, horizonte<br />
Trémulo, casi trémulo<br />
De su don inminente!<br />
Se sostiene en un hilo<br />
La frágil, la difícil<br />
Profundidad del mundo.<br />
Ya el espacio se comba<br />
Dócil, ágil, alegre<br />
Sobre esa espera, mía.<br />
(GUILLÉN, apud BARBOSA, 1975, p.59)<br />
88
Ainda de acordo com Barbosa, a referência aos versos do poeta espanhol se justifica<br />
pelo fato de João Cabral desejar, nos três longos poemas de sua Psicologia da composição,<br />
alcançar “o espaço a ser construído por uma linguagem que, atraída pelo silêncio, busca,<br />
não obstante, ‘La frágil, la difícil/Profundidad del mundo.’” (1975, p. 59).<br />
Já Luiz Costa Lima (1968) alega que a presença de Jorge Guillén, em João Cabral,<br />
dá-se, inicialmente, pela negação, uma vez que ao “sensualismo intelectualizado” da obra<br />
Cântico, do poeta espanhol, João Cabral opõe o “realismo fenomenológico”, ou seja, “o<br />
contínuo perguntar-se não só pelas coisas, como pelas próprias imagens que<br />
utiliza.”(LIMA, 1968, p.292).Atento à diferença apontada por Cabral, ou seja, à perspectiva<br />
abstrata da linguagem de Guillén, Costa Lima, na análise do livro O cão sem plumas (1949-<br />
1950), afirma que o poeta brasileiro trabalha a temática do rio de forma lúcida, tentando<br />
“introduzir o leitor na idéia de visualização” (LIMA, 1968, p.296), ou seja, negando a idéia<br />
de transposição da paisagem ou da natureza nordestina, como acontece nos textos do<br />
espanhol. Ainda no sentido de contestar a aproximação entre os dois poetas, o crítico<br />
brasileiro observa que as imagens cabralinas não apresentam nenhuma exaltação, como faz<br />
Guillén em seus textos: “Prosaicas nada têm de familiar, todavia à descrição de um<br />
rio.Tornam-se precisas e restritas como as econômicas palavras de um<br />
telegrama”.(LIMA,1968, p.29)<br />
Quanto à epígrafe de O rio, “Quiero que compongamos yo e tú una prosa”, o texto é<br />
tomado a Gonzalo de Berceo e, segundo Torres, remonta à lição do século XII espanhola,<br />
“a buscar o concreto, o essencial, o substantivo, o realismo e toda a sorte de antídotos<br />
contra o vago e o abstrato.”(TORRES, apud FERRAZ, 2002, p. 112). Já o poeta afirma que<br />
uma das influências recebidas na parte técnica do texto advém da descoberta da literatura<br />
89
primitiva espanhola, uma vez que os versos são em arte mayor, com os versos ímpares<br />
fixos e os versos pares variáveis, como podemos observar no trecho abaixo:<br />
Sempre pensara em ir<br />
caminho do mar.<br />
Para os bichos e rios<br />
nascer já é caminhar.<br />
Eu não sei o que os rios<br />
têm de homem do mar;<br />
sei que se sente o mesmo<br />
e exigente chamar.<br />
Eu já nasci descendo<br />
a serra que se diz do Jacarará,<br />
entre caraibeiras<br />
de que só sei por ouvir contar<br />
(pois, também como gente,<br />
não consigo me lembrar<br />
dessas primeiras léguas<br />
do meu caminhar).<br />
(MELO NETO, 1986, p.273)<br />
Ainda de acordo com João Cabral, “todos os versos pares terminam em toante<br />
espanhola, pois a contagem dos versos em espanhol é diferente da nossa.” 52 No que diz<br />
respeito ao autor da epígrafe, das poucas informações disponíveis sobre a vida de Berceo,<br />
sabemos que foi um clérigo do monastério de San Millán de la Cogolla. Escreveu três vidas<br />
de santos, a saber: San Millán, Santa Oria e Santo Domingo de Silos, e uma coleção de<br />
vinte e cinco narrativas agrupadas sob o título de Miraclos de Nuestra Señora.<br />
De acordo com a maioria dos críticos, Gonçalo de Berceo talvez seja o nome<br />
espanhol que mais tenha influenciado João Cabral de Melo Neto. Para Helton José<br />
Gonçalves de Souza (2004), há três aspectos que marcam o diálogo entre Berceo e o poeta<br />
pernambucano: “(a) o uso regular do quarteto, em JCMN; (b) a alusão ao quadrivium; e (c)<br />
o modo como JCMN homenageia o poeta medieval espanhol, no poema intitulado<br />
52 Entrevista a Jorge Laclette, 21 jun. 1953.<br />
90
“Catecismo de Berceo”, do livro Museu de tudo.” (SOUZA, 2004, p.69)<br />
Em relação à cuaderna via, definida por João Alexandre Barbosa (2001) como “um<br />
tipo de estrofe usada principalmente nos séculos 13 e 14 e composta de quatro versos<br />
alexandrinos de uma só rima” (BARBOSA, 2001, p.59), é apontada como o recurso formal<br />
mais utilizado nos textos de raízes populares de João Cabral.<br />
Por outro lado, Berceo é visto como um escritor culto que está preocupado com a<br />
comunicabilidade de seus textos. Escrevia seus poemas de catequese, na língua falada de<br />
seu tempo, dirigindo-se a pessoas de origem humilde. No entanto, não menosprezava as<br />
qualidades estilísticas de seu discurso:<br />
Pero esta falta de originalidad temática no rebaja, sin embargo, la personalidad de<br />
Berceo como poeta. El autor modifica, amplifica y enriquece sus modelos,<br />
vistiéndolos con rasgos de las costumbres cotidianas de la región. Su propósito<br />
es dar cercanÍa a lo que cuenta para aproximar el árido texto latino a las gentes<br />
sencillas; se esfuerza por ser gráfico y familiar, y recurre a comparaciones<br />
prácticas de labriegos, locuciones campesinas, a nombres de utensílios<br />
domésticos, a refranes. Así es como los temas de su tiempo, adquieren em sus<br />
manos sabor de inmediata realidad, de paisaje habitual, de familiar localización.<br />
El mundo que captaban sus ojos desde el tranquilo claustro de su monasterio,<br />
salta a sus páginas poeticamente tansmutat. (ALBORG, apud SOUZA, 2004,<br />
p.70)<br />
Na opinião de Alborg, a qualidade da linguagem de Berceo está sobretudo no uso<br />
de palavras e comparações ligadas ao cotidiano das pessoas, o que faz com que haja a<br />
visualização por parte dos leitores do contexto religioso que pregava. Na verdade,<br />
através desses recursos de linguagem, o poeta conseguia concretizar o “árido texto<br />
latino” junto a pessoas simples que viviam no campo. Portanto, todo o rigor da<br />
linguagem de Berceo visava à comunicação de suas teses.<br />
Juan Antonio Ruiz Domingues (apud SOUZA, 2004, p.76) afirma que “convertir<br />
en lenguaje poético lo que era fría prosa, constituye la labor de nuestro escritor.” Além<br />
91
de Domingues, Jorge Guillén foi outro leitor de Berceo que reafirma o poder<br />
comunicativo dos poemas do clérigo.<br />
Atento ao aspecto temático de Berceo e à forma de organização de seus textos, João<br />
Cabral nos oferece o “Catecismo de Berceo”, poema que vai reforçar todas as<br />
considerações feitas anteriormente:<br />
1.<br />
Fazer com que a palavra leve<br />
pese como a coisa que diga,<br />
para o que isolá-la de entre<br />
o folhudo em que se perdia.<br />
2.<br />
fazer com que a palavra frouxa<br />
ao corpo de sua coisa adira:<br />
fundi-la em coisa,espessa, sólida,<br />
capaz de chocar com a contígua.<br />
3.<br />
Não deixar que saliente fale:<br />
sim, obrigá-la à disciplina<br />
de preferir a fala anônima,<br />
como a todas de uma linha.<br />
4.<br />
Nem deixar que a palavra flua<br />
como rio que cresce sempre:<br />
canalizar a água sem fim<br />
noutras paralelas, latente.<br />
(MELO NETO, 1997, p.59)<br />
Através do uso reiterado de verbos no infinitivo com valor de imperativo, o poeta<br />
evoca o discurso catequético de Berceo, ao mesmo tempo em que teoriza os princípios do<br />
uso da palavra concreta em poesia.<br />
Além do poema em tela, João Cabral vai praticar os ensinamentos de Berceo no livro<br />
Quaderna (1956-1957), no qual o poeta nos oferece uma espécie de fotografia da região<br />
nordestina, de seu povo e de seus costumes, apelando para imagens sensoriais<br />
92
“transformando palavras-coisas em imagem concreta de coisa-arquitetura, com o<br />
instrumento metodológico (ou ‘via’, entendida objetivamente como ‘caminho’)”, como<br />
lembra Souza (2004,p.74)<br />
Essas primeiras observações acerca do estilo de Berceo são suficientes para<br />
discutirmos a presença do poeta espanhol na literatura cabralina. Mais de uma vez o poeta<br />
fez questão de afirmar a importância do realismo espanhol para a sua prática poética,<br />
conforme vimos no início desta pesquisa.<br />
Desse modo, a escola de Berceo e dos épicos castelhanos, além de colaborar para a<br />
aproximação entre o poeta e o contexto nordestino, favorece a inserção de gêneros<br />
populares na poética cabralina. Como exemplo de composições em que João Cabral<br />
procura adequar a linguagem dos poemas à realidade de que trata, com o objetivo de<br />
alcançar a comunicação, com o leitor, citamos os livros O rio (1953) e Morte e vida<br />
severina (1954-1955). Nessas duas obras, o poeta brasileiro tenta flagrar a vida sertaneja,<br />
recorrendo ora à ausência de “adornos” para falar da realidade do rio e de sua espessura,<br />
ora à sua “forma cartográfica”, ou então ao “auto de natal”, cuja base está na literatura<br />
popular nordestina.<br />
Portanto, o uso da palavra concreta em João Cabral, bem como o aproveitamento de<br />
temas populares são consolidados durante a convivência com os espanhóis. Devemos<br />
lembrar, mais uma vez, que a fase em que o poeta se dedica à poesia social, de cunho<br />
popular é justamente a fase em que passa a conviver com a cultura e com o povo espanhol.<br />
Por fim, o que podemos presumir acerca desse diálogo de João Cabral com a literatura<br />
de Berceo é que trabalhar o objeto de arte, dominar técnicas de composição não implica<br />
produzir uma obra difícil de ser lida, estranha ao contexto da literatura vigente. Podemos<br />
93
pensar, como pretendia Berceo, que o labor do artista tem relação com o seu desejo de ser<br />
lido, entendido pelos seus leitores.<br />
3.2.AS ALUSÕES DIRETAS A NOMES OU A PROCESSOS <strong>DE</strong> CRIAÇÃO<br />
ARTÍSTICA<br />
Além das epígrafes, outra forma de incursão pelas artes espanholas se dá através da<br />
dedicatória de poemas a artistas espanhóis, de citações, de recorrências ou de alusões a<br />
nomes e a processos de criação desses artistas, como em “Homenagem a Picasso”, de<br />
Pedra do sono;“Fábula de Joan Brossa” e “Encontro com um poeta”, o qual remete a<br />
Miguel Hernández, de Paisagens com figuras (1954-1955); partes do poema “O sim contra<br />
o sim”, de Serial (1959-1961), em que há alusão ao fazer artístico de Juan Gris; “Fábula de<br />
Rafael Alberti”, de Museu de tudo (1966-1974) e a referência a mais dois poetas da<br />
Generación del 27, Pedro Salinas e Jorge Guillén, em “Dois Castelhanos em Sevilha”, de<br />
Andando Sevilha (1987-1989).<br />
A primeira referência direta a um artista espanhol é feita em um poema dedicado a<br />
Pablo Picasso (1881-1973), na obra Pedra do sono (1942), como já comentamos<br />
anteriormente. No texto em homenagem ao pintor espanhol, João Cabral faz alusão à<br />
técnica de Picasso, assumindo uma postura “coloquial-irônica” em relação ao uso de<br />
recortes de jornais pelo pintor.<br />
No caso de Juan Gris (1887-1927), um dos mais famosos e versáteis pintores e<br />
escultores cubistas espanhóis, João Cabral destaca a técnica de aproximação e de<br />
afastamento de imagens, a fim de que o artista possa chegá-las a si, apreendê-las e, a seguir,<br />
adquirir o distanciamento estético para melhor transmiti-las. Os modos como o poeta vai<br />
94
aproveitar as lições de Picasso e de Gris serão enfatizados no capítulo referente às relações<br />
entre pintura e literatura.<br />
Já a relação entre João Cabral e o poeta dramaturgo e artista plástico Joan Brossa<br />
(1919-1998), visto atualmente como um clássico catalão, começa na época em que o poeta<br />
brasileiro morava em Barcelona. Os dois artistas mantinham constantes conversas sobre<br />
poesia, no apartamento de João Cabral. Segundo Brossa, eles discutiam estéticas e falavam<br />
sobre a poesia dos outros.Ainda de acordo com o poeta catalão, não há semelhanças entre o<br />
seu projeto artístico e o projeto de João Cabral: “a minha tem muitas imagens e é mais<br />
sensitiva. A influência de João Cabral veio de outra parte, da maneira de expressar a<br />
preocupação social na arte. Até hoje sigo algumas de suas sugestões e incorporei o<br />
elemento crítico no meu trabalho.” 53<br />
Como podemos ver, ao contrário do que temos mostrado, no caso de Brossa, é João<br />
Cabral quem lhe serve de modelo. Além disso, o poeta brasileiro publica o primeiro livro<br />
do espanhol.Por outro lado, João Cabral dedica um poema ao amigo, intitulado “Fábula de<br />
Joan Brossa”:<br />
Joan Brossa, poeta frugal,<br />
que só come tomate e pão,<br />
que sobre papel de estiva<br />
compõe versos a carvão,<br />
nas feiras de Barcelona.<br />
Joan Brossa, poeta buscão,<br />
as sete caras do dado,<br />
as cinco patas do cão<br />
antes buscava Joan Brossa,<br />
místico da aberração,<br />
buscava encontrar nas feiras<br />
sua poética sem-razão.<br />
Mas porém como buscava<br />
onde é o sol mais temporão,<br />
pelo Clot, Hospitalet,<br />
53 Conferir o texto “O amigo revisitado – três depoimentos sobre a relações do escritor, tipógrafo e intelectual<br />
engajado João Cabral de Melo Neto com seus contemporâneos”, Cadernos de Literatura Brasileira, Instituto<br />
Moreira Sales, p.15 nº 01,mar 1996.<br />
95
onde as vidas de artesão,<br />
por bairros onde as semanas<br />
sobram da vara do pão<br />
e o horário é mais comprido<br />
que fio de tecelão,<br />
acabou vendo, Joan Brossa,<br />
que os verbos do catalão<br />
tinham coisas por detrás<br />
eram só palavras, não.<br />
Agora os olhos. Joan Brossa<br />
(sua trocada instalação),<br />
voltou às coisas espessas<br />
que a gravidez pesa ao chão<br />
e escreveu um Dragãozinho<br />
denso, de copa e fogão,<br />
que combate as mercearias<br />
com ênfase de dragão.<br />
(MELO NETO, 1986, p.251)<br />
Observamos que, no texto, João Cabral propõe um retorno às “coisas espessas/que a<br />
gravidez pesa ao chão”, tanto no aspecto semântico como sonoro da linguagem, através das<br />
rimas pobres em “ão”. Ao mesmo tempo, na perspectiva ideológica do discurso, há uma<br />
troca da “poética sem-razão”, aquela que se distancia de seu objeto, dobrando-se sobre si<br />
mesma por uma que “combate as mercearias/com ênfase de dragão”, que consegue alcançar<br />
a comunicabilidade com o seu leitor.<br />
Esses aspectos observados em relação ao poema dedicado ao escritor espanhol<br />
corroboram a leitura de João Alexandre Barbosa (1975, p.129), o qual postula que<br />
Paisagens com figuras é um livro que “marca o momento de enlace entre duas experiências<br />
fundamentais do poeta (a nordestina e espanhola)”. Nesse sentido, à primeira vista,<br />
percebemos a tendência de João Cabral a buscar as imagens concretas do imaginário<br />
espanhol que estão perfiladas aos motivos da dureza da realidade em que vive o povo<br />
nordestino. Já na opinião de Nicolás Extremera Tapia (2004),<br />
Paisagem com figuras é um livro que inaugura esse diálogo permanente entre as<br />
96
duas culturas a que estamos aludindo. Dos dezoito poemas que o compõem, oito<br />
estão dedicados a Pernambuco e dez a Espanha, repartidos estes últimos do<br />
seguinte modo: dois à paisagem de Castela, três à paisagem de Catalunha, um ao<br />
poeta Joan Brossa, um ao poeta Miguel Hernández, um aos toureiros, um a<br />
Andaluzia, que Cabral ainda não conhece físicamente, representada pelo cante e<br />
os touros, e finalmente um de que compartilham Catalunha e Pernambuco.<br />
Quanto ao poeta Miguel Hernández (1910-1942), a homenagem é feita no poema<br />
“Encontro com um poeta”. Como nos lembra Barbosa (1975), é a paisagem que vem<br />
participar de sua definição. Assim, o lugar diz o poeta, sua linguagem, seu modo de<br />
escrever os espaços onde viveu:<br />
Em certo lugar da Mancha<br />
onde mais dura é Castela,<br />
sob as espécies de um vento<br />
soprando armado de areia,<br />
vim surpreender a presença,<br />
mais do que pensei, severa,<br />
de certo Miguel Hernández,<br />
hortelão de Orihuela.<br />
A voz desse tal Miguel,<br />
entre palavras e terra<br />
indeciso, como em Fraga<br />
as casas o estão da terra,<br />
foi um dia arquitetura,<br />
foi voz métrica de pedra,<br />
tal como cristalizada,<br />
surge Madrid a quem chega.<br />
(MELO NETO, 1986, p.255-256)<br />
De Hernández, portanto, João Cabral toma as paisagens nativas, bem como o jeito de<br />
metrificar. Vale lembrar que, segundo a crítica espanhola 54 , Miguel Hernández foi um<br />
poeta deslumbrado pelo jogo barroco de Góngora e dos gongoristas de seu tempo, como<br />
Rafael Alberti. Escreveu conforme os preceitos bucólicos de Garcilaso e de "las furias y<br />
penas" de Quevedo, além de obedecer à simbologia ascética e conceptual de Calderón.<br />
54 Conferir site da Fundação Cultural Miguel Hernández, disponível em<br />
http://www.miguelhernandezvirtual.com/obra/obra.htm.<br />
97
Desse modo, ao atualizá-lo, João Cabral revista muitos clássicos da literatura de língua<br />
espanhola.<br />
Acerca de Rafael Alberti (1902-1999), em Museu de tudo, João Cabral dedica duas<br />
versões de uma outra “fábula”. A primeira versão é de 1947:<br />
Do anjo marinheiro<br />
(asas azuis a gola<br />
da blusa azul, bolsa<br />
de azul do mar);<br />
do anjo teológico,<br />
não em ovo gerado,<br />
puros frutos de ar<br />
como maçãs de vento;<br />
do anjo venenoso,<br />
serpente emboscada<br />
no tufo das palavras<br />
o fluido jogo abandonou.<br />
Fez o caminho inverso:<br />
do vapor à gota de água<br />
(não, da vida ao sono,<br />
ao sonho, ao santo);<br />
Foi da palavra à coisa,<br />
Seja dolorosa à coisa,<br />
Seja áspera, lenta, difícil<br />
a coisa.<br />
(MELO NETO, 1997, p. 87)<br />
Nesta “fábula”, são apresentados os modos do fazer do poeta-pintor. João Cabral<br />
destaca as etapas do aprendizado de Alberti, da pintura à poesia, até o momento em que<br />
alcança a escrita concreta, “da palavra à coisa”. Em conformidade com os críticos<br />
espanhóis 55 , a lírica albertiana apresenta cinco fases: a primeira fase está ligada ao<br />
movimento andaluz chamado “Neopopularismo”, do qual fez parte Federico García Lorca,<br />
e outros poetas de 27. O “Neopopularimso” surgiu em oposição ao elitismo da linguagem<br />
55 Conferir site da Fundação Rafael Alberti, disponível em http://www.rafaelalberti.es<br />
98
modernista espanhola, bem como ao “Ultraísmo”, movimento que propunha “atirar uma<br />
pedra no olho da Lua símbolo do sentimentalismo romântico”(GIBSON, 1989, p.112) e que<br />
se empenhava em implementar na literatura uma revolução temática, léxica e tipográfica.<br />
Nos poemas publicados nesta fase sob o título de Marinero en tierra, percebemos<br />
sua paixão pelo mar nativo e sua nostalgia do paraíso da infância.De acordo com o crítico<br />
Ian GIBSON (1989), o primeiro amor de Alberti foi pela pintura, mas quando conheceu<br />
Lorca, de quem foi muito amigo, já tinha se decidido pela poesia.<br />
A segunda fase de Alberti é marcada pela influência do barroquismo de Góngora. Já<br />
na terceira fase, Alberti adota a perspectiva surrealista em sua poesia. As duas últimas fases<br />
do poeta espanhol vão ser caracterizadas pelo sentimento nacionalista, em decorrência de<br />
sua adesão aos movimentos revolucionários de seu tempo. Atento às etapas da poética<br />
albertiana, em 1963, o poeta pernambucano reescreve a mesma “fábula”, fazendo-lhe<br />
algumas alterações:<br />
Do anjo marinheiro<br />
(asas azuis a gola<br />
da blusa azul, enfunada<br />
de azul do mar);<br />
do anjo teológico,<br />
(não em ovo gerado,<br />
frutos virgens, do ar,<br />
castas maçãs de vento);<br />
enfim do anjo venenoso,<br />
(cobra má, enroscada<br />
no mato dicionário)<br />
- o jogo aéreo abandonou.<br />
Fez o caminho inverso:<br />
Não foi da coisa ao sonho,<br />
Ao nome, à sombra;<br />
foi do vapor de água<br />
à gota em que condensa;<br />
foi da palavra à coisa,<br />
árdua que seja,<br />
ou demorada, a coisa<br />
seja áspera ou arisca,<br />
em sua coisa, a coisa<br />
seja doída, pesada,<br />
99
seja enfim coisa a coisa.<br />
(MELO NETO, 1997, p. 88)<br />
Embora mantenha o mesmo plano imagético, na segunda versão, João Cabral acentua<br />
mais a idéia do concreto em Alberti. Em outros momentos da poesia cabralina, há alusão ao<br />
poeta espanhol, sobretudo quando João Cabral se refere à província de Cádiz, região onde<br />
nasceu Alberti. Segundo Gibson, o poeta era andaluz, de Puerto de Santa María.<br />
O outro grande expoente da Generación del 27 citado na poética cabralina é o poeta<br />
Pedro Salinas (189-1951). No último livro de João Cabral, Andando Sevilha (1987-1989), o<br />
poeta pernambucano alude ao professor Pedro Salinas. O espanhol lecionou em várias<br />
universidades européias, além de fazer conferências na América, onde viveu desde 1936.<br />
Na verdade, João Cabral destaca o modo de ensinar do poeta:<br />
Dois Castelhanos em Sevilha<br />
Fio o Convento dos Jesuítas<br />
e mais tarde a Universidade,<br />
onde um tempo Pedro Salinas<br />
ditava aos gritos suas classes;<br />
mais gritava dos que ditava<br />
e gritava de tal maneira<br />
que tinha alunos não inscritos,<br />
sérios, nas calçadas fronteiras.<br />
Na seqüência do poema, reaparece Jorge Guillén. Deste último, João Cabral também<br />
revê a postura didática, já que o espanhol saiu da Espanha em 1938, para estabelecer-se nos<br />
Estados Unidos como professor de várias universidades americanas:<br />
Depois veio Jorge Guillén;<br />
porém como falava baixo<br />
100
e não o podiaa escutar,<br />
foram-se os imatriculados.<br />
Imagino-o soprando as aulas,<br />
como soprou sempre a poesia<br />
que fez, com régua e com esquadro.<br />
Dura mais a voz menos viva?<br />
Como seja, se não chegava<br />
sequer às calçadas fronteiras,<br />
foi mais longe o fio dessa voz.<br />
entre os guarda-fronteiras.<br />
(MELO NETO, 1997, p.376)<br />
Diante do intercurso de João Cabral por nomes representativos da poesia espanhola,<br />
sobretudo da Geração de 27, notamos que, a despeito de se considerar um poeta marginal<br />
em relação à tradição da literatura brasileira, devido ao seu antilirismo, ele não rompe<br />
totalmente com essa tradição, no momento em que visa à comunicação com o leitor. Há<br />
uma idéia de continuidade em relação à vertente que se articula ao aproveitamento do<br />
romancero e da poesia primitiva da Espanha. Em entrevista, João Cabral afirma: “Talvez<br />
meu interesse pela cultura espanhola esteja no parentesco dela com a cultura luso-<br />
brasileira”.(MELO NETO,1987)<br />
Além da referência a nomes de pintores e de poetas pertencentes ao contexto cultural<br />
espanhol, na poesia cabralina, também encontramos alusões a outros tipos de ofícios: a arte<br />
de cantar, de dançar, de tourear e de fundir o ferro. Os dois primeiros casos serão tratados<br />
nos capítulos que se seguem. Já quanto à arte de tourear, destacamos o poema “Alguns<br />
Toureiros”, dedicado a Antonio Houaiss:<br />
Eu vi Manolo Gonzáles<br />
e Pepe Luís, de Sevilha:<br />
precisão doce de flor,<br />
graciosa, porém precisa.<br />
Vi também Julio Aparício,<br />
de Madrid, como Parrita:<br />
101
ciência fácil de flor,<br />
espontânea, porém estrita.<br />
Vi Miguel Báez, Litri,<br />
dos confins da Andaluzia,<br />
que cultiva uma outra flor:<br />
angustiosa de explosiva.<br />
E também Antonio Ordóñez,<br />
que cultiva flor antiga:<br />
perfume de renda velha,<br />
de flor em livro dormida.<br />
Mas eu vi Manuel Rodríguez,<br />
Manolete, o mais deserto,<br />
o toureiro mais agudo,<br />
mais mineral e desperto,<br />
o de nervos de madeira,<br />
de punhos secos de fibra<br />
o da figura de lenha<br />
lenha seca de caatinga,<br />
o que melhor calculava<br />
o fluido aceiro da vida,<br />
o que com mais precisão<br />
roçava a morte em sua fímbria,<br />
o que à tragédia deu número,<br />
à vertigem, geometria<br />
decimais à emoção<br />
e ao susto, peso e medida,<br />
sim, eu vi Manuel Rodríguez,<br />
Manolete, o mais asceta,<br />
não só cultivar sua flor<br />
mas demonstrar aos poetas:<br />
como domar a explosão<br />
com mão serena e contida,<br />
sem deixar que se derrame<br />
a flor que traz escondida,<br />
e como, então, trabalhá-la<br />
com mão certa, pouca e extrema:<br />
sem perfumar sua flor,<br />
sem poetizar seu poema.<br />
(MELO NETO, 1986, p.258-259)<br />
102
Dando continuidade ao seu aprendizado com as imagens no livro Paisagens com<br />
figuras, João Cabral retira da arte de tourear a lição do controle e do equilíbrio no momento<br />
da elaboração do texto poético. O poeta pernambucano retorna à imagem da “flor”, já<br />
explorada e desmetaforizada no poema Antiode, a fim de relacionar o ato de poetar e o ato<br />
de tourear. Em ambos os casos, o trabalho é feito pelas mãos, rigorosamente controladas,<br />
dos sujeitos das ações. Como lembra Barbosa, “’lendo’ a tourada, João Cabral aprende,<br />
pela linguagem do poema, a sua linguagem de precisão e anti-ilusionismo.” (1975, p.133)<br />
O jeito preciso e comedido de Manolo Gonzáles tourear é retomado em Andando Sevilha,<br />
no poema que leva o nome do toureiro. 56 Além de destacar a técnica de Gonzáles, João<br />
Cabral relaciona a tourada ao perigo da morte.Também o perigo da tourada é ressaltado no<br />
poema “Miguel Baez, ‘Litri’” 57<br />
Já em Museu de tudo, no poema El toro de lídia, João Cabral explora a imagem do<br />
touro, comparando-o com o rio:<br />
56 Conferir anexo 03.<br />
57 Conferir anexo 03.<br />
Um toro de lídia é como um rio<br />
na cheia. Quando se abre a porta,<br />
que a custo o comporta, e o touro<br />
estoura na praça, traz o touro a cabeça<br />
alta, de onda, aquela primeira onda<br />
alta, da cheia, que é como o rio,<br />
na cheia, traz a cabeça de água.<br />
Tem então o touro o mesmo atropelar<br />
cego da água; mesmo murro de montanha<br />
dentro de sua água; a mesma pedra<br />
dentro da água de sua montanha como um rio,<br />
na cheia, tem de pedra a cabeça de água.<br />
(MELO NETO, 1997, p.71)<br />
103
O outro texto em que há o aproveitamento do contexto espanhol relacionado ao<br />
ofício do fazer poético é o poema “O Ferrageiro de Carmona”, do livro Crime na Calle<br />
Relator (1985-19870):<br />
Um ferrageiro de Carmona<br />
que me informava de um balcão:<br />
“Aquilo? É de ferro fundido,<br />
foi a fôrma que fez, não a mão.<br />
Só trabalhando em ferro forjado<br />
que é quando se trabalha ferro;<br />
então, corpo a corpo com ele,<br />
domo-o, dobro-o até o onde quero.<br />
O ferro fundido é sem luta,<br />
é só derramá-lo na fôrma.<br />
Não há nele a queda-de-braço<br />
e o cara-a-cara de uma forja.<br />
Existe grande diferença<br />
do ferro forjado ao fundido;<br />
é uma distância tão enorme<br />
que não pode medir-se a gritos.<br />
Conhece a Giralda de Sevilha?<br />
De certo subiu lá em cima<br />
Reparou nas flores de ferro<br />
dos quatro jarros das esquinas?<br />
Pois aquilo é ferro forjado.<br />
Flores criadas numa outra língua.<br />
Nada têm das flores de fôrma<br />
moldadas pelas das campinas.<br />
Dou-lhe aqui humilde receita,<br />
ao senhor que dizem ser poeta:<br />
o ferro não deve fundir-se<br />
nem deve a voz ter diarréia.<br />
Forjar: domar o ferro à força,<br />
não até uma flor já sabida,<br />
mas ao que pode até ser flor<br />
se flor parece a quem diga.”<br />
(MELO NETO, 1997, p.288-9)<br />
Inicialmente percebemos que as aliterações em “f” ferem o ouvido do leitor,<br />
remetendo-o ao ofício do ferreiro, marcado pela “fôrma”, pelo “ferro”. Nesse contexto,<br />
104
sabemos que o trabalho existe e que o sujeito consegue domar e dobrar o ferro a seu<br />
modo. Portanto, mesmo que não seja a mão controladora do poema anterior que forja o<br />
ferro, a ação de “forjar” por si só já é domadora. Por isso, nas duas últimas estrofes, o<br />
poema assume o tom didático de ensinamento dos outros textos. Se antes a lição foi<br />
aprendida pela pedra, no espaço-sertão do Nordeste; ou pelo toureiro, pressionado nas<br />
arenas espanholas; agora a lição vem do ferrageiro, que ensina o poeta a fazer a sua flor.<br />
3.3. A RECORRÊNCIA A MITOS, A TEMAS E A ESPAÇOS ESPANHÓIS<br />
Quanto à recorrência a mitos, a temas ou a espaços espanhóis, a obra que inaugura<br />
esses modos de intercursos com a Espanha é novamente Paisagens com figuras. O segundo<br />
poema do livro, “Medinaceli” recupera a “Terra do provável do autor anônimo do Cantar<br />
de Mio Cid”, como anuncia o poeta entre parêntese, antes da primeira estrofe do poema.<br />
Através da descrição, os versos das cinco estrofes iniciais localizam a cidade, no tempo em<br />
que eram celebradas as suas conquistas:<br />
Do alto de sua montanha<br />
numa lenta hemorragia<br />
do esqueleto já folgado<br />
a cidade se esvazia.<br />
Puseram Medinaceli<br />
bem na entrada de Castela<br />
como no alto de um portão<br />
se põe um leão de pedra.<br />
Medinaceli era o centro<br />
(nesse elevado plantão)<br />
do tabuleiro das guerras<br />
entre Castela e o Islão,<br />
entre Leão e Castela,<br />
entre Castela e Aragão,<br />
105
entre o barão e seu rei,<br />
entre o rei e o infanção,<br />
onde engenheiros, armados<br />
com abençoados projetos,<br />
lograram edificar<br />
todo um deserto modelo.<br />
No ritmo da marcha dos exércitos, o reino de Castela se esvaía na paisagem das<br />
guerras que modelaram o deserto-cidade. Já as últimas estrofes do poema focalizam a<br />
situação presente da cidade:<br />
Agora, Medinaceli<br />
É cidade que se esvai:<br />
mais desce por esta estrada<br />
do que esta estrada lhe traz .<br />
Pouca coisa lhe sobrou<br />
senão ocos monumentos,<br />
senão a praça esvaída<br />
que imita o geral exemplo;<br />
pouca coisa lhe sobrou<br />
se não foi o poemão<br />
que poeta daqui contou<br />
(talvez cantou, cantochão),<br />
que o poeta daqui escreveu<br />
com a dureza de mão<br />
com que hoje a gente daqui<br />
diz em silêncio seu não.<br />
(MELO NETO, 1986, p.247)<br />
Outro aspecto do texto que realça o lado rude e pobre da cidade e daquele que nela<br />
habita é o jogo das anáforas, o qual sugere a monotonia da existência de um povo que vive<br />
da memória de seus heróis, sem nenhum desejo ou perspectiva de mudança.<br />
Vale ressaltar, neste momento, que o Poema del Cid ou Cantar de Mio Cid é o<br />
primeiro texto citado por João Cabral, no qual percebemos a fidelidade dos espanhóis a<br />
suas tradições nacionalistas. O poema é o mais antigo canto de gesta da literatura<br />
106
espanhola, em que aparece o mais popular dos heróis castelhanos, cuja figura audaz, leal,<br />
perseverante, serena e paciente inspira poetas de todos os tempos. Segundo Pedro<br />
Henríquez Urena (1968), o texto foi composto em 1140, antes de completarem os cinqüenta<br />
anos da morte do herói, Rodrigo Diaz de Vivar, o qual nasceu por volta de 1043 e morreu<br />
em 1099. Apesar de o texto basear-se em fatos históricos comprovados pelos historiadores<br />
espanhóis, ao longo do tempo foi modificado pela fantasia de alguns nomes que o<br />
reescreveram. A versão mais antiga que temos é a que foi reconstituída por Ramón<br />
Menéndez Pidal, o qual conservou a ortografia antiga, modernizando apenas a acentuação<br />
das palavras e a pontuação dos versos. Já a versão moderna mais conhecida é a de Pedro<br />
Salinas, um dos maiores poetas da modernidade espanhola.<br />
Imaginamos que, na Espanha, o poeta brasileiro deve ter tido acesso à versão do<br />
poema escrito em Castela, na região compreendida entre Medinaceli e Luzón, no caminho<br />
entre Burgos e Valência. Nessa versão, além da descrição da campanha do herói e de seus<br />
feitos, há dados concretos sobre a região onde este viveu e lutou.<br />
Por outro lado, lembramos que, conforme depoimentos e entrevistas de João Cabral,<br />
é na poesia espanhola que o poeta encontra a linguagem que corresponde aos seus<br />
propósitos de escrever claro para alcançar o leitor: “eu recebi mais da poesia espanhola. O<br />
que esse pessoal me mostrou, e me impressionou muito, é que não vale a pena escrever para<br />
o povo sem usar a forma que ele usa. É por isso que eu utilizo a forma narrativa.”(MELO<br />
NETO, 1966)<br />
Nessa perspectiva, o poeta brasileiro vai priorizar o metro popular do romancero<br />
espanhol.O romancero, no seu sentido geral, como observa Massaud Moisés (1982, p.460),<br />
“designa a atividade poética luso-espanhola, de caráter épico e lírico, anônima, transmitida<br />
107
por via oral, durante a Idade Média, configurada nos romances, ou a sua compilação em<br />
volume, integral ou antológico” Na outra acepção, a palavra refere-se ao Romancero<br />
General, nome dado em castelhano à estampa em 1600. João Cabral descobriu o<br />
romancero em Barcelona, quando lá esteve pela primeira vez em 1947:<br />
[...] Foi assim que a poesia espanhola me foi revelada.Especialmente a poesia<br />
anterior ao Século do Ouro que me marcou profundamente do ponto de vista<br />
rítmico e não métrico. O poema do Cid está no centro dessa revelação. É claro<br />
que, depois, eu passei a conhecer a poesia antiga ou primitiva de outros países.<br />
Em todas eu constatei a predominância do vocábulo concreto sobre o abstrato. Na<br />
poesia espanhola, em particular, verifiquei que essa predominância é uma<br />
característica que atravessa toda a sua história, exceto durante o regime de<br />
Franco. (CHAMIE, 1979, p. 39)<br />
Sobre essa literatura, José García López (1957) lembra que<br />
Los poemas épicos castellanos ofrecen una ecactitud histórica muy superior a la<br />
de los franceses. Ello se debe a que el espíritu castellano, siente un fuerte despego<br />
hacia lo fantástico y maravilhoso, y a que los poemas fueron escritos poço<br />
después de haber ocurrido los hechos reales.(LÓPEZ, 1957, p.409)<br />
Assim, comparado às técnicas das gestas francesas, o Poema del Cid é considerado<br />
mais espontâneo e mais sóbrio. Segundo García López,<br />
Vivo, rápido e intensamente dramático, el arte del Cantar castellano se nos<br />
muestra rico en elementos afectivos. Los más diversos recursos son utilizados por<br />
el juglar, que parece querer mantener en tensión la atención de su auditório,<br />
haciendo vibrar sucesivamente todas las cuerdas de su sensibilidad, en constantes<br />
variaciones de tono. Dentro de esta misma sencillez expresiva, el estilo tiene una<br />
magnífica gama de matices que van desde lo más delicado hasta lo más robusto,<br />
desde lo más sutilmente irônico a lo más gravemente dramático. (LÓPEZ, 1957,<br />
p.412)<br />
Como pudemos observar através da análise do texto do Poema del Cid,<br />
provavelmente João Cabral tenha recortado o ritmo, o sangrento e impressionante realismo<br />
com que são descritas as cenas de guerra, bem como a expressividade envolvente, que<br />
assegura a atenção do leitor.<br />
108
Além da cidade do autor anônimo do Cantar de Mio Cid, em Paisagens com<br />
figuras, no texto “Campo de Tarragona” 58 , há referências a uma das propriedades do pintor<br />
espanhol, Joan Miró, localizada em uma província vizinha a Barcelona. Em “Paisagem<br />
Tipográfica” 59 é a vez do impressor catalão Enric Tormo. Outra geografia espanhola<br />
também é introduzida no livro, em “Outro rio: o Ebro”:<br />
Vou quase sempre entre gesso<br />
do esqueleto do animal<br />
que veio cair de sede<br />
nestas terras de Aragão.<br />
O gesso também perece,<br />
não morde mais como a cal.<br />
Dir-se-ia que até a pedra<br />
morreu de sede e de sol.<br />
A partir das duas primeiras estrofes, percebemos a aproximação entre o rio e o<br />
contexto desértico do espaço-sertão nativo do poeta. O mesmo ocorre nos últimos versos do<br />
poema:<br />
58 Conferir anexo 03.<br />
59 Idem.<br />
Disponho de um leito largo<br />
como cama de casal,<br />
mas é pouco deste leito<br />
que cubro com meu lençol.<br />
Pois assim mesmo tão fraco<br />
no duro chão mineral,<br />
só veia regando ainda<br />
curtido couro animal,<br />
sou destas terras ossudas<br />
líquida espinha dorsal<br />
e até mesmo fui trincheira<br />
(quando do front de Aragão).<br />
(MELO NETO, 1986, p.267-8)<br />
109
Como observou Barbosa em relação ao conjunto de poemas do livro em estudo, “a<br />
identificação entre paisagens e a figura que a habita é um momento no processo mais<br />
profundo de singularização da miséria através do qual o homem é percebido”(1975, p. 139)<br />
Desse modo, ao articular paisagens e pessoas, geografias e ofícios, João Cabral tenta<br />
apreender pela linguagem a forma e as condições da existência de cada pessoa e de cada<br />
lugar.<br />
A partir de então, nas obras seguintes, vão se confirmando nessa poética paralelos<br />
entre a realidade nordestina e a paisagem acidentada da Espanha e de seus habitantes<br />
ciganos etc. Assim acontece em Quaderna (1956-1959), dedicado a Murilo Mendes, em<br />
que o poeta opõe a mensagem e o discurso à imagem e plasticidade, conforme veremos no<br />
capítulo referente à música e à dança flamencas. Também em A educação pela pedra<br />
(1962-1965), livro escrito “na base da dualidade”, segundo João Cabral, há alusões a<br />
figuras humanas e à geografia nordestinas e espanholas.<br />
Já o livro Museu de tudo (1966-1974), de certa forma, difere dos textos citados<br />
anteriormente. A coleção de poemas apresentada, “compondo uma espécie de quadros, ou<br />
uma série de quadros”, como observa o crítico português Oscar Lopes 60 , aborda diferentes<br />
temas de diferentes culturas, dentre eles, a música da Andaluzia, pintores, escultores,<br />
escritores de várias nacionalidades, futebol etc. No entanto o mesmo procedimento de<br />
Paisagens com figuras é adotado pelo poeta no sentido de dar a ver essas figuras.Há o<br />
mesmo registro das impressões de um eu-lírico que recolhe paisagens, ofícios e pessoas,<br />
sendo que os atributos de uns cruzam-se com os dos outros.<br />
Em A escola das facas (1975-1980) e em outras obras que se seguem, embora o<br />
60 Numa entrevista a Mário Pontes, João Cabral concorda com a leitura desse crítico, declarando que se “trata<br />
de uma coleção de coisas reconstruídas e arrumadas conforme um plano de disposição.” (MELO NETO,<br />
1980)<br />
110
poeta retome temas típicos da tradição lírica brasileira, como as reminiscências da infância<br />
em Pernambuco, a exaltação aos heróis da pátria, a morte etc., marcados pelo “afastamento<br />
suficiente” de sua terra, como assinala o poeta em entrevista citada, tais motivos são<br />
tratados segundo os moldes das outras linguagens, como veremos nos capítulos que se<br />
seguem.<br />
O livro Auto do frade (1984), por exemplo, é um “auto para vozes”, como afirma<br />
Cabral, “coisa muito visual, conseqüência daquela minha primeira impressão de que os<br />
últimos momentos do frei Caneca dariam um bom filme, e é estranho, um auto feito para<br />
teatro, não para cinema.” (ATHAY<strong>DE</strong>, 1998, p.117)<br />
O poema “Ocorrências de uma sevilhana”, do livro Agrestes (1981-1985), introduz<br />
outras vozes nos poemas, como no texto em prosa, embora ainda não haja as marcas do<br />
discurso direto:<br />
Me confiava uma sevilhana<br />
sem norte na grande Madrid:<br />
Nem sei de que lado é que vivo;<br />
só sei que é a três gritos daqui.<br />
(MELO NETO, 1997, p.231)<br />
Já no poema “Crime na Calle Relator” 61 , do livro de mesmo nome, constituído de<br />
poemas narrativos, ou de histórias ouvidas pelo poeta, o uso das aspas tem um valor<br />
semântico e uma eficácia importante para o entendimento do texto, pois implica a inserção<br />
da fala de uma jovem, uma bailarina de flamenco, que conta a sua história. É o relato de<br />
uma “história autêntica”, segundo João Cabral, e que merece, no plano da organização do<br />
discurso, um processo que atribui à personagem a responsabilidade da fala, ou seja,<br />
61 Conferir anexo 03<br />
111
aproxima-se das artes cênicas:<br />
“Achas que matei minha avó?<br />
O doutor à noite me disse:<br />
Ela não passa desta noite;<br />
Melhor para ela, tranqüilize-se.<br />
À meia-noite ela acordou;<br />
não de todo, a sede somente;<br />
e pediu: Dáme pronto, hijita,<br />
una poquita de aguardiente.<br />
(MELO NETO, 1997, p.281)<br />
Com o propósito de dar mais visibilidade ao relato, o poeta transcreve as falas da<br />
mocinha espanhola e de sua avó. Acreditamos que João Cabral tenha adotado essa forma de<br />
escrever por acreditar que essa é a forma que atinge o leitor 62 .<br />
As últimas obras publicadas pelo poeta, Sevilha andando (1987-1993) e Andando<br />
Sevilha (1987-1989), parecem acentuar o trânsito dessa poética pela cultura espanhola em<br />
suas diferentes linguagens, sobretudo a partir das figuras das bailarinas do flamenco, que<br />
voltam aos poemas com toda a sua expressividade visual e auditiva. Como já anunciamos,<br />
nos capítulos seguintes, tentaremos mostrar os modos pelos quais o poeta propõe esses<br />
intercursos de linguagens em seus dois últimos livros.<br />
Por outro lado, percebemos, na estruturação das imagens femininas que compõem<br />
toda a obra, uma inter-relação com a linguagem da Arquitetura, uma vez que a mulher é<br />
tomada como espaço a ser habitado, vivido pelo seu contemplador, conforme veremos no<br />
estudo relativo às relações entre poesia e Arquitetura. Os diálogos são tão fortes nos<br />
poemas de Sevilha, que o poeta chega a propor o “Viver Sevilha”, através do intercurso<br />
62 Em entrevista a Augusto Massi, o poeta afirma que os poemas narrativos apresentados são casos que<br />
aconteceram com ele ou que lhe contaram em Sevilha.<br />
112
estético:<br />
1<br />
Se dás voltas a uma escultura,<br />
o corpo é que a envolve, livre;<br />
se penetra em qualquer pintura<br />
como janela que se abrisse;<br />
se pode boiar numa música,<br />
nos pauis doentes de que consiste;<br />
se pode ir em fins de semana<br />
a romances que tenham o “habite-se”.<br />
2<br />
Mas só a arquitetura é total,<br />
não virtual, ao corpo que a vive,<br />
ainda mais se essa arquitetura<br />
numa cidade se urbanize;<br />
como em Sevilha, a mais regaço<br />
de toda cidade que existe,<br />
pois nela vamos e nos vai,<br />
num vai e vem que ir-se e vir-se.<br />
3<br />
Só em Sevilha o corpo está<br />
com todos os sentidos em riste,<br />
sentidos que nem se sabia,<br />
antes de andá-la, que existissem;<br />
sentidos que fundam num só:<br />
viver num só o que nos vive,<br />
que nos dá a mulher de Sevilha<br />
e a cidade ou concha em que vive.<br />
4<br />
Uma mulher sei, que não é<br />
de Sevilha nem tem lá raízes,<br />
que sequer visitou Sevilha<br />
e que talvez nunca a visite,<br />
mas que é dentro e fora Sevilha,<br />
toda a mulher que ela é, já disse,<br />
Sevilha de existência fêmea,<br />
A que o mundo se sevilhize.<br />
(MELO NETO, 1997, p.337)<br />
Além dos poemas citados neste capítulo, a obra cabralina apresenta, na sua fase<br />
final, uma infinidade de textos que confirmam a hipótese de que a poesia de João Cabral<br />
113
configura-se por diálogos entre diferentes possibilidades artísticas e culturais, na medida<br />
em que conjugam o entrelaçamento de linguagens distintas, num processo dinâmico de<br />
inter-relação dos signos propiciadores de novas leituras e novos sentidos. São textos que<br />
propõem a alteração da linguagem poética em função da expressividade, visando a uma<br />
melhor comunicação com o leitor, pois entre texto e leitor tem que haver “intimidade”,<br />
talvez a mesma “Intimidade do flamenco”:<br />
O flamenco quer intimidade,<br />
assim no cante que no baile.<br />
Aquele fazer de mais dentro,<br />
se quer de quem faz pôr-se ao centro,<br />
centrar-se, viver seu caroço,<br />
e a partir dele dar-se todo,<br />
esse cante ou baile é monólogo<br />
que se funciona para o próximo,<br />
quer um próximo conivente<br />
capaz de centrar-se igualmente.<br />
Não quer um palco que o dissolva,<br />
seu fazer se faz boca a boca.<br />
(MELO NETO, 1997, p.383)<br />
Na seqüência deste estudo, aprofundaremos a leitura dos processos de construção do<br />
texto de João Cabral em suas relações com outras linguagens artísticas, partindo de<br />
pressupostos teóricos que aventam essas possibilidades. Começamos pela pintura.<br />
114
CAPÍTULO 4<br />
PRESENÇA DA PINTURA ESPANHOLA EM JOÃO CABRAL<br />
As relações entre literatura e artes plásticas são histórica e teoricamente<br />
fundamentadas por um paralelo que, desde a Antigüidade até o século XVIII, permaneceu<br />
na fórmula ut pictura poesis, proposta por Horácio na sua Ars Poética. Desde então, pintura<br />
e literatura são colocadas em situação de conformidade ou de equivalência, embora haja<br />
entre essas duas linguagens artísticas uma relação de concorrência hierárquica, já que de<br />
acordo com Simonides, a poesia é uma pintura falante e a pintura, uma poesia muda.<br />
(MUHANA, 2002)<br />
Vale lembrar, no entanto, que a era renascentista recupera o ut pictura poesis,<br />
invertendo o sentido da expressão, uma vez que na teoria assegurada pelos tratados<br />
iconográficos ou didáticos os grandes gêneros retóricos e as grandes divisões dos discursos<br />
moldam os procedimentos da pintura.<br />
Como exemplo, pode ser citado o texto de Leon Battista Alberti (1999), Da Pintura,<br />
redigido em duas versões: a latina, em 1435 e a vernácula ou vulgar, “em língua toscana”,<br />
em 1436. O texto de Alberti é considerado o primeiro documento da literatura artística a<br />
constituir a pintura como objeto de teoria e doutrina sistematizadas. Foi referência de<br />
investigação de importantes pintores, como Leonardo da Vinci, e de muitos tratados do<br />
século XVI. Com Alberti, estabelecem-se cabalmente contatos diretos entre a pintura<br />
contemporânea e as tradições clássicas da arte, da história e da literatura. Há inúmeros<br />
115
estudos que salientam e ilustram o quanto as teorias e a estrutura do De pictura dependem<br />
das tradições poéticas e retóricas.<br />
Na verdade o tratado de Alberti vai além do paralelismo de seus antecessores, pela<br />
singularidade de seu discurso ao conceituar arte e artista. O autor elabora seus preceitos e<br />
conceitos a partir, principalmente, das retóricas de Cícero e Quintiliano.<br />
A pintura, retórica traduzida, constitui-se não apenas como tomadora de temas, mas,<br />
basicamente, como articulação: as cinco partes canônicas da retórica, a saber, invenção,<br />
disposição, elocução, ação e memória, operam no discurso albertiano. Porém não há uma<br />
aplicação mecânica dessas partes, pois na pintura de Alberti temos três momentos:<br />
circunscrição, composição e recepção de luzes. O paralelismo ocorre também na<br />
composição, segunda etapa da pintura. As partes da composição – superfície, membros,<br />
corpos – compõem-se segundo a divisão gramatical, letras, sílabas, dicções. Alberti postula<br />
que os jovens pintores devem agir como os jovens que aprendem a escrever:<br />
Ensinam-lhes em primeiro lugar e separadamente todas as formas de letras, que<br />
os antigos chamavam elementos, depois ensinam as sílabas; a seguir, ensinam a<br />
compor todas as palavras. Os nossos alunos deviam seguir esse método na<br />
pintura. Primeiramente deveriam aprender a desenhar bem os contornos das<br />
superfícies; a seguir, deveriam aprender cada forma distinta de cada membro e<br />
confiar à memória toda a diferença que possa existir em cada membro.<br />
(ALBERTI, 1999, p. 141)<br />
Quanto ao pintor, Alberti observa que é um homem moralmente bom e culto em<br />
muitas coisas, conquista fama e fortuna certa na sociedade, parecido com o modelo de<br />
orador-cidadão de Quintiliano. Nessa perspectiva, as artes plásticas são liberadas do<br />
menosprezo que pesava sobre elas, desde Platão, “iniciador do longo reino do logos”,<br />
“supremo inimigo da imagem”, como observa Solange Ribeiro de Oliveira (1993, p.14).<br />
116
Alberti observa ainda que, além de saber geometria, o pintor deve andar na<br />
companhia de poetas e oradores, pois estes<br />
têm muitos recursos em comum com os pintores; dotados de vasto conhecimento<br />
sobre muitas coisas, serão de grande ajuda para uma bela composição da história,<br />
cujo maior mérito consiste na invenção que, como veremos, costuma ser de tal<br />
força, que mesmo sem a pintura, agrada por si mesma. (ALBERTI, 1999, p.139)<br />
Assim, pintor e escultor abandonam a companhia de artesãos e operários e começam<br />
a integrar a dos poetas.<br />
Nos meados do século XVIII, 1776, na Alemanha, o paralelismo entre as duas artes<br />
é revisto por Gothhold Ephraim Lessing (1964) o qual também busca fundamentos estéticos<br />
para propor os limites entre as artes plásticas e a literatura:<br />
A pintura, em suas imitações, emprega meios ou signos totalmente diversos dos<br />
da poesia - figuras e cores no espaço - enquanto a última utiliza sons articulados<br />
em ordem temporal: como, indiscutivelmente, os signos usados devem ter uma<br />
relação precisa com o objeto representado, segue-se que os signos dispostos lado<br />
a lado podem expressar apenas temas que, no conjunto ou em suas partes,<br />
existam dessa forma, enquanto os sinais que se sucedem no tempo podem<br />
expressar apenas aqueles que, no todo ou em parte, sejam sucessivos. (LESSING,<br />
1964, p.55).<br />
De acordo com Oliveira, esse pronunciamento antecipa posições modernas<br />
contrárias à tradição ut pictura poesis. Apoiadas precisamente na diferença de meios<br />
empregados pelas diversas artes – e não nas semelhanças temáticas – essas posições<br />
deduzem daí a impossibilidade de comparar poesia e artes plásticas.<br />
Na verdade, a contribuição de Lessing está na necessidade de distinguir dois<br />
critérios para a comparação entre uma obra literária e outra plástica. Um dos critérios é o da<br />
semelhança do assunto ou motivo representado. Outro, a semelhança de estilo. Estudos<br />
revelam que grande parte da comparação feita nos séculos XVII e XVIII tinha como base a<br />
117
semelhança de assunto, que a crítica contemporânea considera irrelevante, já que os estudos<br />
atuais valorizam a semelhança estilística. Diante de tais colocações, algumas contrárias<br />
outras favoráveis à tradição ut pictura poesis, observa-se que ela perpassa os tempos.<br />
No contexto da literatura brasileira, do período colonial à era contemporânea,<br />
encontramos, sobretudo na poesia, diálogos explícitos entre a literatura e a pintura.<br />
Deparamos com procedimentos composicionais que vão da simples alusão a um quadro, até<br />
incorporação de processos de composição das linguagens visuais.<br />
José Américo de Barros (1993) lembra que é bem conhecido o fato de que uma<br />
escultura de Brecheret, a “Cabeça de Cristo”, encontre-se na origem da obra Paulicéia<br />
desvairada, de Mário de Andrade. Igualmente conhecido é o fato de que o movimento da<br />
Antropofagia, liderado por Oswald de Andrade, teve, entre os acontecimentos que o<br />
determinaram, uma tela, o Abaporu, de Tarsila do Amaral.<br />
Na década de cinqüenta, como já observamos, temos o movimento da poesia<br />
concreta que tomou ao campo das artes plásticas a palavra que o designa e a idéia de<br />
autonomia da arte que lhe é correlata. Portanto, a busca de novas técnicas e formas de<br />
expressão é uma preocupação constante na evolução das artes. Nessa perspectiva, surgem<br />
estudos que têm como referência as combinações de signos verbais e não-verbais.<br />
Diante do exposto, tentaremos agora ilustrar alguns desses possíveis procedimentos<br />
composicionais que aproximam a poesia de João Cabral e a pintura espanhola. Seguimos,<br />
desse modo, a vertente dos estudos que destacam a precedência que as artes plásticas<br />
tiveram sobre a literatura. Contrariando um pouco a postura de Alberti, observamos que tais<br />
procedimentos são desenvolvidos primeiramente no campo da expressão plástica, como<br />
lembra João Cabral em seu poema “A lição de Pintura”:<br />
118
Quadro nenhum está acabado,<br />
disse certo pintor;<br />
se pode sem fim continuá-lo,<br />
primeiro, ao além de outro quadro<br />
que, feito a partir de tal forma,<br />
tem na tela, oculta, uma porta<br />
que dá a um corredor<br />
que leva a outra e a muitas outras.<br />
(MELO NETO, 1997, p.77)<br />
Acreditamos que o contato com um tipo de arte vigorosa, a pintura espanhola,<br />
marcada pelo “jogo das fibras musculares”, pelos “tendões prestes a romper-se” ou pelas<br />
“ossaturas visíveis sob a pele morta ou ressequida”, como assinala Élie Faure (1991), talvez<br />
tenha impressionado bastante o poeta pernambucano, sujeito oriundo de uma realidade<br />
moldada pela mesma trágica existência.<br />
4.1.O CUBISMO <strong>DE</strong> PICASSO<br />
Quanto aos pintores espanhóis, a poesia de João Cabral, desde o primeiro livro, cita<br />
nomes das artes espanholas. No livro Pedra do sono (1942), como já vimos, João Cabral<br />
faz uma “homenagem” a Picasso, valorizando as técnicas com que o pintor espanhol recorta<br />
suas imagens:<br />
Homenagem a Picasso<br />
O esquadro disfarça o eclipse<br />
que os homens não querem ver.<br />
Não há música aparentemente<br />
nos violinos fechados.<br />
Apenas os recortes dos jornais diários<br />
acenam para mim com o juízo final.<br />
(MELO NETO,1986,p.383)<br />
Através dessa homenagem, percebemos que Picasso é o primeiro pintor espanhol a<br />
119
ser citado pelo poeta por se utilizar da “disciplina da forma e o severo silêncio da<br />
composição, que o esquadro domina e os violinos fechados garantem” (ESCOREL,1973,<br />
p.19), ou seja, por uma espécie de pintura mais conceitual, disciplinada e geométrica. João<br />
Cabral, ao se referir ao pintor, observa que Picasso fez quadros porque estudava os espaços,<br />
os volumes.<br />
Insatisfeito com a perfeição formal e linear de suas primeiras pinturas, o pintor<br />
espanhol buscou na força da escultura bárbara, ibérica e celta, os motivos e as formas para<br />
os seus quadros. Diante dessa ruptura brusca e radical, é um artista que transcendeu todos<br />
os movimentos estéticos de seu tempo, segundo John Golding (2000).<br />
A mudança de tema e estilo do pintor é importante para a pintura do início do século<br />
XX, uma vez que rompe com a perspectiva matemática e científica adotada pelos artistas<br />
desde o início da Renascença italiana. Para Golding, antes de Picasso, “o artista via o seu<br />
modelo ou objeto de um único ponto de vista estacionário”. (GOLDING, 2000, p.40) Em<br />
relação ao pintor espanhol, era como se ele “tivesse andado 180 graus em redor do seu<br />
modelo e tivesse sintetizado suas sucessivas impressões numa única imagem”. (Ibidem)<br />
A tela que marca o período de transição da obra de Picasso é Les Demoiselles<br />
d’Avignon-1907(Fig.01), que foi pintada em duas etapas. O quadro nos apresenta algumas<br />
garotas de um prostíbulo de Barcelona, o Bordel de Avignon, situado no “calle Avignon”.<br />
Na opinião de Esníder Pizzo (1997), a composição do quadro é bem elaborada e<br />
“completamente subvertida pela introdução, intensa e plena de vitalidade, dessas figuras<br />
femininas.” (PIZZO,1997, p.03) Ainda de acordo com o crítico, a vitalidade das imagens<br />
deve-se à arte negra. Picasso teria entendido que a vitalidade da obra de arte independe do<br />
“grau de imitação de uma realidade preestabelecida”, mas dependeria da “reconstituição<br />
de uma realidade absolutamente obediente aos instintos e impulsos mais originais.”<br />
120
(PIZZO, 1997, p.03)<br />
Já para o citado crítico Herbert Read (1991, p.93), Picasso é um artista de muitas<br />
faces. No entanto, fundamentado nos estudos de E. M. Zervos, o crítico postula que a<br />
principal marca do estilo do pintor é a subjetividade, pois seus métodos são dominados<br />
pela angústia. Este sentimento é o que “o capacita a derrubar todas as suas barreiras,<br />
deixando o campo do possível livre para ele e abrindo-lhe perspectivas.” (ZERVOS, apud<br />
READ, 1991, p.93)<br />
Devemos ressaltar também que os estudos sobre as origens da pintura de Picasso<br />
que apontam para a influência da escultura negra sinalizam para a plasticidade das figuras,<br />
surgida em conseqüência da decomposição dinâmica em planos, marcados por traços rudes,<br />
que envolvem os personagens e criam uma nova organização espacial.<br />
Portanto, a visualidade da obra do pintor seria condicionada pela arte negra. É o<br />
momento em que o pintor concebia a forma cubista “em termos escultóricos” (GOLDING,<br />
2000, p.41), ou seja, no seu período “negróide”, Picasso dizia que a figura era facilmente<br />
compreendida em termos esculturais.<br />
Para Apollinaire (PIZZO,1997, p.05), “Picasso estuda um objeto como um cirurgião<br />
disseca um cadáver”, isto é, o pintor analisa a realidade, inicialmente, a partir de seus<br />
aspectos formais, como se fosse um corpo estático. No momento seguinte, descoberta a sua<br />
estrutura interna, depois de apreendida em relação aos seus fenômenos múltiplos, tal<br />
realidade seria representada como um conjunto orgânico de diversos elementos.<br />
Esse olhar cirúrgico e escultural de Picasso nos remete a Francis Ponge, a quem<br />
Cabral também dedica alguns de seus versos 63 :<br />
Francis Ponge, outro cirurgião,<br />
63 Trata-se de parte do poema “O sim contra o sim”, do livro Serial (1959-1961).<br />
121
adota uma outra técnica:<br />
gira-as nos dedos, gira<br />
ao redor das coisas que opera.<br />
Apalpa-as com todos os dez<br />
mil dedos da linguagem:<br />
não tem bisturi reto<br />
mas um que se ramificasse.<br />
Com ele envolve tanto a coisa<br />
que quase a enovela<br />
e quase a enovelando,<br />
se perde, enovelado nela.<br />
E no instante em que até parece<br />
que já não a penetra,<br />
ele entra sem cortar:<br />
saltou por descuidada fresta.<br />
(MELO NETO, 1985, p.59)<br />
Observando o poema, percebemos que tanto o pintor espanhol quanto o escritor<br />
francês mereceram a atenção do poeta pernambucano pelo desejo de alcançarem todas as<br />
formas do objeto tratado, possibilitando maior visibilidade na percepção de suas imagens.<br />
Por outro lado, não podemos nos esquecer de que, a partir de 1908, o pintor<br />
espanhol começa a depurar suas telas da vitalidade mágica e do grotesco selvagem dos seus<br />
primeiros quadros, concentrando-se na objetividade da imagem e na sua construção formal:<br />
“assim, as deformações selvagens e impetuosas são substituídas por sínteses planejadas da<br />
forma que tendem a uma simplificação geométrica da realidade.”(PIZZO, 1997, p.04) A<br />
nosso ver, esse é o primeiro aspecto que Cabral destaca, ao homenagear o pintor, em<br />
“Homenagem a Picasso”.<br />
Outro processo da pintura de Picasso que pode ser observado na poética de Cabral é<br />
o processo da colagem, através do qual os cubistas incorporavam tiras de papel e outros<br />
fragmentos de materiais às suas pinturas e desenhos. Picasso, em 1912, utilizou um pedaço<br />
122
de encerado com o desenho de um trançado de palhinha, como o que se utiliza em cadeiras,<br />
iniciando, assim, a invasão do espaço ilusório da imagem pelos objetos.<br />
Segundo Giulio Carlo Argan (1993, p.359), “para os cubistas, a colagem servia para<br />
demonstrar que não existe separação entre o espaço real e o espaço de arte, de modo que as<br />
coisas da realidade podem passar para a pintura sem alterar sua substância.” Já Golding<br />
(2000, p.46) considera que o cubismo serve de “ponte entre nossos modos habituais de<br />
percepção e o fato artístico, tal como nos é apresentado pelo artista.” Em outras palavras, o<br />
procedimento recoloca a imagem no nosso cotidiano, ao mesmo tempo em que a integra à<br />
construção plástica da pintura.<br />
Além da alusão às telas de Picasso em que há a técnica dos “papéis colados”, em<br />
“Homenagem a Picasso”, muitos outros poemas de Pedra do sono foram inspirados em<br />
quadros da pintura cubista. Nesse sentido, o poeta pernambucano consegue suscitar a<br />
impressão de estranheza no leitor ao se utilizar de uma linguagem e/ou de uma temática que<br />
põem em questão o sentido da poesia.<br />
Por outro lado, a introdução de “substâncias estranhas” nos quadros, segundo Braque,<br />
dá à obra o “sentido material”, além de possibilitar a extração de significados inesperados<br />
da combinação dessas substâncias de um modo original, como podemos perceber no poema<br />
“Composição”:<br />
Frutas decapitadas, mapas,<br />
aves que prendi sob o chapéu,<br />
não sei que vitrolas errantes,<br />
a cidade que nasce e morre,<br />
no teu olho a flor, trilhos<br />
que me abandonam, jornais<br />
que me chegam pela janela<br />
repetem gestos obscenos<br />
que vejo fazerem as flores<br />
me vigiando em noites apagadas<br />
123
onde nuvens invariavelmente<br />
chovem prantos que não digo.<br />
(MELO NETO, 1986, p.382)<br />
Nessa “composição” cabralina, o estranhamento é causado pelo fato de o poeta<br />
justapor imagens segundo uma técnica cubista. Através dessa perspectiva, podemos<br />
visualizar cada detalhe da cidade e ao mesmo tempo apreendê-la no seu conjunto como<br />
uma realidade desconexa e dissonante.<br />
Outro livro que, a nosso ver, vai se utilizar da técnica da “anulação do sentido”, na<br />
perspectiva do crítico, é Os três mal-amados (1943), em que o poeta contrasta três<br />
discursos, de acordo com as teorias da simultaneidade do cubismo: “o do sonho na boca de<br />
João, a obsessão do amor na de Joaquim e a beatitude solar na de Raimundo” como observa<br />
Renato Suttana (2003, p. 230).<br />
Ainda em relação ao processo da colagem, em João Cabral, encontramos a técnica<br />
cubista, ao atentarmos para as metáforas de O cão sem plumas, nas quais deparamos com o<br />
mesmo estranhamento causado no espectador diante de um pedaço de palhinha de cadeira,<br />
ou de um jornal em uma tela de Picasso:<br />
§ A cidade é passada pelo rio<br />
como uma rua<br />
é passada por um cachorro;<br />
uma fruta por uma espada.<br />
§ O rio ora lembrava<br />
a língua mansa de um cão,<br />
ora o ventre triste de um cão,<br />
ora o outro rio<br />
de aquoso pano sujo<br />
dos olhos de um cão.<br />
(MELO NETO, 1985, p.305)<br />
124
Na primeira estrofe citada, o tipo de analogia que é estabelecida entre as imagens da<br />
cidade, da rua e da fruta rompe com o senso comum, na medida em que reflete mais a<br />
percepção do que a imaginação do autor/leitor. Percebemos que, tanto as imagens da<br />
primeira estrofe, quanto a imagem do rio trabalhada na segunda estrofe são organizadas de<br />
acordo com o que Costa Lima chama de “procriação imagética”, pois são desdobradas<br />
várias vezes até que alcancem a concretude ou se tornem plásticas.<br />
Em Serial (1959-1961), José Guilherme Merquior (1965, p.89) também observa o<br />
aspecto cubista da poesia cabralina:<br />
Cubismo, porque essa poesia se torna plástica pelo visual, mas sobretudo pela<br />
correlação de planos, pela multiplicidade de sentidos, pelo contraponto de<br />
imagens cercando a coisa pelo sensível e pelo conceito, pelo físico e pelo<br />
humano. Correlação, em conseqüência, menos do que interpenetração. Está nela a<br />
origem do poema em série, do serial onde a caça ao objeto (pessoa ou coisa) se<br />
sucede nos flashes de vários ângulos, nos cortes, nos closes, que só a técnica<br />
flexível do “cameraman” consegue unir sem perda de fluidez.<br />
A correlação de planos, a multiplicidade de sentidos e o contraponto de imagens<br />
realmente são técnicas bastante evidentes no livro Seria. Como exemplo, podemos citar o<br />
poema “O sim contra o sim”, no qual João Cabral se serve da lição de vários artistas que<br />
tentaram explorar a potencialidade dos signos.<br />
O texto é dividido em oito partes e em cada uma delas o poeta evidencia as técnicas<br />
de diferentes artistas: Marianne Moore, Francis Ponge, Juan Miró, Mondrian, Cesário<br />
Verde, Augusto dos Anjos, Juan Gris e Jean Dubuffet. De cada um deles, o poeta brasileiro<br />
recorta processos de composição artística que corroboram os princípios que norteiam sua<br />
poesia.<br />
125
Dentre esses processos, é lícito lembrar a prática da dissecação da palavra<br />
empreendida por Marianne Moore, que favorece a limpeza, a economia e a ordem de seus<br />
textos; da “multiplicidade perceptiva”, proposta por Francis Ponge, ao girar nos dedos o<br />
seu objeto, ou girar “ao redor das coisas que opera” (MELO NETO,1986, p.59); a recusa da<br />
espontaneidade e do “saber” acadêmico de Miró, o qual desaprende o que aprendera, “a fim<br />
de reencontrar/ a linha ainda fresca da esquerda” (Ibidem, p.59); a geometria rigorosa de<br />
Mondrian, que enxerta “réguas, esquadros e outros utensílios” no seu fazer artístico; o<br />
colorido de Cesário Verde, que almeja alcançar os “tons opostos/ das maçãs que contou”<br />
(Ibidem, p.61); “o timbre fúnebre”, a “dureza da pisada” e a “geometria do enterro”, de<br />
Augusto dos Anjos; as lentes de Juan Gris e a luneta de Jean Dubuffet, no seus jogos de<br />
aproximação e distanciamento da realidade.<br />
Na esteira de Golding, acreditamos que tanto o pintor espanhol quanto o poeta<br />
brasileiro propõem, de maneira disciplinada, a criação de “um novo idioma formal” que<br />
esteja relacionando com a nossa vida cotidiana, para que possamos identificá-lo com<br />
facilidade, por fazer parte de “nossa experiência do mundo material que nos cerca”<br />
(GOLDING, 2000, p.46)<br />
Em linhas gerais, esses aspectos destacados na poesia de Cabral em relação ao projeto<br />
de Picasso demonstram que o poeta nordestino consegue apreender, no início de sua<br />
trajetória artística, mecanismos de criação pictórica do movimento em torno do qual<br />
gravitou a arte da primeira metade do século XX.<br />
126
4.2.A TÉCNICA <strong>DE</strong> JUAN GRIS<br />
Como já vimos, nos versos de “O sim contra o sim”, outros dois pintores são<br />
destacados por João Cabral – o espanhol Juan Gris e o francês Jean Dubuffet – como<br />
vozes com as quais o poeta pernambucano dialoga:<br />
Juan Gris levava uma luneta<br />
por debaixo do olho:<br />
uma lente de alcance<br />
que usava porém do lado outro.<br />
As lentes foram construídas<br />
para aproximar as coisas,<br />
mas a dele as recuava<br />
à altura de um avião que voa.<br />
Na lente avião, sobrevoava<br />
o atelier, a mesa,<br />
organizando as frutas<br />
irreconciliáveis na fruteira.<br />
Da lente avião é que podia<br />
Pintar sua natureza:<br />
Com o azul da distância<br />
Que a faz mais simples e coisa.<br />
Jean Dubuffet, se usa luneta<br />
é do lado correto;<br />
mas não com o fim vulgar<br />
com que se utiliza o aparelho.<br />
Não intenta aproximar o longe<br />
mas o que está próximo,<br />
fazendo com a luneta<br />
o que se faz com o microscópio.<br />
E quando aproximou o próximo<br />
até tacto fazê-lo,<br />
faz dela estetoscópio<br />
e apalpa com o olhar dedo.<br />
Com essa luneta feita dedo<br />
procede à auscultação<br />
das peles mais inertes:<br />
que depois pinta em ebulição.<br />
(MELO NETO, 1986, p.62)<br />
127
O pintor espanhol Juan Gris pertence ao grupo dos jovens cubistas que tinha em<br />
Picasso “um novo messias” (PIZZO, 1997, p.06). Em 1912, ou seja, antes de Cabral,<br />
apresenta sua Homenagem a Picasso-1912 (Fig.02), como prova significativa do<br />
entusiasmo que tinha pelo amigo e companheiro de pesquisas. Nessa tela, Gris pinta o<br />
retrato de Picasso, nos moldes da pintura cubista. De acordo com Pizzo (1997), as pinturas<br />
de Gris se concretizam em um estilo mais severo, no qual a cor se reduz quase à<br />
monocromia. As formas do pintor espanhol “são reveladas pelo jogo de claro e escuro,<br />
surgindo na superfície em sutis modulações de ritmo decorativo, onde o volume é sugerido<br />
pela predominância da linha curva.” (PIZZO,1997, p.11) Obedecendo a uma organização<br />
racional, o pintor traça os contornos dos objetos a partir de diferentes pontos de vista.<br />
Sabemos que, em mais de um texto, João Cabral vai se valer das propostas desse<br />
artista. No poema “De um avião”, do livro Quaderna (1956-1957), por exemplo, João<br />
Cabral faz uso dessas técnicas, por tentar alcançar a imagem de Pernambuco à medida que<br />
o avião se distanciava da geografia nordestina. A cada movimento circular do avião,<br />
mediado pela memória dos tempos ali vividos, o poeta consegue apreender a cartografia de<br />
seu espaço natal.<br />
O poema é dividido em cinco partes, cada uma contendo oito quartetos. Portanto,<br />
pela estrutura bem marcada da composição, há a sugestão de uma apreensão lenta e<br />
objetiva da realidade. A despeito disso, percebemos que, inicialmente, o poeta propõe um<br />
jogo ao leitor em que a paisagem vista de um avião é refeita e desfeita ao mesmo tempo:<br />
De um avião<br />
A Afonso Arinos Filho<br />
1. Se vem por círculos na viagem<br />
Pernambuco – Todos-os-Foras.<br />
128
Se vem numa espiral<br />
de coisa à sua memória.<br />
O primeiro círculo é quando<br />
o avião no campo do Ibura.<br />
Quando tenso na pista<br />
Salto ele calcula.<br />
Está o Ibura onde coqueiros,<br />
onde cajuzeiros, Guararapes.<br />
Contudo já parece<br />
em vitrine a paisagem.<br />
O aeroporto onde o mar e mangues,<br />
onde o mareiro e a maresia.<br />
Mas ar condicionado,<br />
mas enlatada brisa.<br />
De Pernambuco, no aeroporto,<br />
a vista já pouco recolhe.<br />
É o mesmo, recoberto,<br />
porém, de celulóide.<br />
Nos aeroportos sempre as coisas<br />
se distanciam ou celofane.<br />
No do Ibura até mesmo<br />
a água doída, o mangue.<br />
Agora o avião (um saltador)<br />
caminha sobre o trampolim.<br />
Vai saltar-me de fora<br />
para mais fora daqui.<br />
No primeiro círculo, em terra<br />
de Pernambuco já me estranho.<br />
Já estou fora, aqui dentro<br />
deste pássaro manso.<br />
O ato de refazer a paisagem começa desde o momento em que o eu lírico se encontra<br />
na terra, no campo do Ibura. Do aeroporto, onde o mar e os mangues se encontram, o avião<br />
salta, como um pássaro manso. Na segunda parte, o mapeamento da geografia<br />
pernambucana é feito através de um processo de intensa visualidade:<br />
2. No segundo círculo, o avião<br />
vai de gavião por sobre o campo.<br />
A vista tenta dar<br />
um último balanço.<br />
129
A paisagem que bem conheço<br />
por tê-la vestido por dentro,<br />
mostra, a pequena altura<br />
coisas que ainda entendo.<br />
Que reconheço na distância<br />
de vidros lúcidos, ainda:<br />
eis o incêndio de ocre<br />
que à tarde queima Olinda;<br />
eis todos os verdes do verde,<br />
submarinos sobremarinos;<br />
de dois lados da praia<br />
estendem-se indistintos;<br />
eis os arrabaldes, dispostos<br />
numa constelação casual;<br />
eis o mar debruado<br />
pela renda de sal;<br />
e eis o Recife, sol de todo<br />
o sistema solar da planície:<br />
daqui é uma estrela<br />
ou uma aranha, o Recife,<br />
se estrela, que estende seus dedos,<br />
se aranha,que estende sua teia:<br />
que estende sua cidade<br />
por entre a lama negra.<br />
(Já a distância sobre seus vidros<br />
passou outra mão de verniz:<br />
ainda enxergo o homem<br />
não mais sua cicatriz).<br />
O distanciamento da paisagem observada faz com que o poeta rememore as cores e<br />
as formas de sua terra.No plano metafórico, a imagem da estrela que configura a cidade de<br />
Recife é desdobrada na imagem da aranha, mas ambas estendem suas formas no quadro de<br />
lama negra. No terceiro círculo, se avista uma paisagem mais estruturada:<br />
3. O avião agora mais alto<br />
se eleva ao círculo terceiro,<br />
folha de papel de seda<br />
velando agora o texto.<br />
Uma paisagem mais serena<br />
mais estruturada, se avista:<br />
todas, de um avião,<br />
130
são de mapa ou cubistas.<br />
A paisagem, ainda a mesma,<br />
parece agora noutra língua:<br />
língua mais culta,<br />
sem vozes de cozinha.<br />
Para língua mais diplomática<br />
a paisagem foi traduzida:<br />
onde as casas são brancas<br />
e o branco, fresca tinta;<br />
onde as estradas são geométricas<br />
e a terra não precisa limpa<br />
e é maternal o vulto<br />
obeso das usinas;<br />
onde a água morta do alagado<br />
passa a chamar-se de marema<br />
e nada tem da gosma,<br />
morna e carnal, de lesma.<br />
Se daqui se visse seu homem,<br />
homem mesmo pareceria:<br />
mas ele é o primeiro<br />
que a distância eneblina<br />
para não corromper, decerto,<br />
o texto sempre mais idílico<br />
que o avião dá a ler<br />
de um a outro círculo.<br />
Se antes a paisagem era percebida pelo olhar de seu observador, a partir do terceiro<br />
círculo, passa a ser desenhada pela linguagem que a descreve, confirmando o processo da<br />
visualização-concreção em João Cabral, ou seja, é uma paisagem resultante de um processo<br />
que vai da percepção direta à imaginação do autor.<br />
No momento seguinte, ou seja, a partir do quarto círculo, essa paisagem, mediada<br />
pela linguagem do ser que a contempla, é desfeita enquanto uma imagem documental e se<br />
apresenta como resultante de uma apreensão impressionista. O eu lírico que enquadra a<br />
paisagem vista pela janela do avião passa em revista todos os meios expressivos para dizê-<br />
la:<br />
131
4. Num círculo ainda mais alto<br />
o avião aponta pelo mar.<br />
Cresce a distância com<br />
seguidas capas de ar.<br />
Primeiro, a distância se põe<br />
a fazer mais simples as linhas;<br />
os recifes e a praia<br />
com régua pura risca.<br />
A cidade toda é quadrada<br />
em paginação de jornal,<br />
e os rios, em corretos<br />
meandros de metal.<br />
Depois, a distância suprime<br />
por completo todas as linhas;<br />
restam somente cores<br />
justapostas sem fímbria:<br />
o amarelo da cana verde,<br />
o vermelho do ocre amarelo,<br />
verde do mar azul,<br />
roxo do chão vermelho.<br />
Até que num círculo mais alto<br />
essas mesmas cores reduz:<br />
à sua chama interna,<br />
comum, à sua luz,<br />
que nas cores de Pernambuco<br />
é uma chama lavada e alegre,<br />
tão viva que de longe<br />
sua ponta ainda fere.<br />
No quinto e último círculo, o poeta redefine o seu discurso, apresentando-nos o que<br />
Rubens Edson Alves Pereira chama de “um novo direcionamento poético” (1999, p.39). É o<br />
momento em que a paisagem é totalmente configurada pela memória daquele que a<br />
contempla:<br />
Penetra por fim o avião<br />
pelos círculos derradeiros.<br />
A ponta do diamante<br />
perdeu-se por inteiro.<br />
Até mesmo a luz do diamante<br />
findou cegando-se no longe.<br />
132
Sua ponta já rombuda<br />
tanto chumbo não rompe.<br />
Tanto chumbo como o que cobre<br />
todas as coisas aqui fora.<br />
Já agora Pernambuco<br />
é o que coube a memória.<br />
Já para encontrar Pernambuco<br />
o melhor é fechar os olhos<br />
e buscar na lembrança<br />
o diamante ilusório.<br />
É buscar aquele diamante<br />
em que o vi se cristalizar,<br />
que rompeu a distância<br />
com dureza solar;<br />
refazer aquele diamante<br />
que vi apurar-se cá de cima,<br />
que de lama e de sol<br />
compôs luz incisiva;<br />
desfazer aquele diamante<br />
a partir do que o fez por último,<br />
de fora para dentro,<br />
da casca para o fundo,<br />
até aquilo que, por primeiro<br />
se apagar, ficou mais oculto:<br />
o homem, que é o núcleo<br />
do núcleo de seu núcleo.<br />
(MELO NETO, 1986, p.136-41)<br />
Assim, por meio do distanciamento do objeto observado, o poeta refaz a paisagem<br />
vista inicialmente e, como propõe Juan Gris, consegue ver Pernambuco “Da lente avião”<br />
pois “ é de lá “que podia/ pintar sua natureza:/ com o azul da distância/ que a faz mais<br />
simples e coisa.”.(MELO NETO, 1986, p. 62)<br />
133
4.3. O TRÂNSITO ESTÉTICO-CRÍTICO ENTRE CABRAL E MIRÓ<br />
Além das constantes referências e alusões aos processos construtivos da pintura de<br />
Picasso e de Gris, João Cabral desenvolve um estudo sobre a pintura de Joan Miró. 64 Nesse<br />
estudo, o poeta aponta para a particularidade da pintura de Miró, que estaria no diálogo<br />
crítico constante do pintor com a tradição da pintura renascentista e pós-renascentista. O<br />
que João Cabral pretende mostrar é que em Miró há a valorização do fazer. Seus quadros,<br />
segundo o poeta, são “um pretexto para o fazer. Miró não pinta quadros. Miró pinta”<br />
(MELO NETO, 1998, p.39) Nessa concepção, o ato de criação é mais importante que a<br />
obra criada.<br />
De acordo com os biógrafos do pintor espanhol, este utilizou todos os tipos de<br />
materiais na composição de suas obras. Esse procedimento, marcado sobretudo pela mais<br />
livre imaginação, demandava uma severa disciplina. José Maria Faerna García-Bermejo<br />
(1995) observa que, “para alcançar seu pleno desenvolvimento, o gênio necessita<br />
efetivamente de rigor, método e trabalho duro”. 65<br />
Dessa forma, João Cabral propõe que compromisso de Miró com o “novo” pode<br />
ser revelado, não por seu aprisionamento a pressupostos teóricos, mas por sua reflexão<br />
permanente acerca do processo de criação. Em Miró, mais vale a luta contínua do gesto<br />
criador na procura de transcender os limites temáticos que a cristalização de formas e a<br />
profusão de cores. O pintor é visto como aquele artista que está em “permanente depuração<br />
de seus hábitos visuais, através da luta contra o hábito e habilidade” (MELO NETO, 1998,<br />
64 Conferir Joan Miró. Gravuras originais de Joan Miró. Barcelona: Editions de l’Oc, 1950. Publicado no<br />
Brasil no livro Prosa, 1998, p.17.<br />
65 Comentário na orelha do livro sobre Miró, organizado pelo crítico supracitado.<br />
134
p.46).<br />
Para García-Bermejo o grau de singularidade alcançado pelo pintor espanhol está<br />
no seu “universo temático e simbólico, aliado à sua peculiar caligrafia pictórica” (1995,<br />
p.02). São traços inconfundíveis e pessoais, mas que não conferem ao pintor a<br />
marginalidade que distancia o artista de seu tempo, pelo contrário, a arte de Miró contribuiu<br />
muito para o desenvolvimento da arte do século XX.<br />
João Cabral, no final do estudo sobre a pintura de Miró, lembra que o pintor usa o<br />
adjetivo “vivo”, traço relevante para se entender o projeto de modernidade do catalão e que<br />
também está, constantemente, reiterado no discurso crítico e literário do poeta:<br />
Na conversa de Miró, uma palavra existe: vivo, a meu ver muito instrutiva. Vivo<br />
é o adjetivo que ele emprega, mais do que para julgar, para cortar qualquer<br />
incursão ao plano teórico, onde jamais se sente à vontade. Vivo parece valer ora<br />
como sinônimo de novo, ora de bom. Em todo caso, expressão de qualidade. Essa<br />
palavra a meu ver indica bem o que busca sua sensibilidade e, por ela, sua<br />
pintura. Essa sensação de vivo é o que existe de mais oposto à sensação de<br />
harmônico ou desse equilíbrio, diante do qual nossa sensibilidade não se sente<br />
ferida, mas adormecida.(MELO NETO, 1998, p.47)<br />
O conceito de “vivo”, explicitado na citação, revela a práxis artística de Miró.<br />
Segundo J. Punyet Miró & G. Lolivier-Rahola (1998) o pintor catalão dava vida a todas as<br />
coisas que o rodeavam. As referências ao animismo das coisas aparecem várias vezes nas<br />
entrevistas do pintor: “Para mi, un árbol no es un árbol (...) sino algo humano, alguien vivo.<br />
Un árbol es un personaje, sobre todo nuestros árboles, los algarrobos. Un personaje que<br />
habla, que tiene hojas. Inquietante incluso.” (1998, p.38)<br />
Nesse contexto, entendemos que o pintor pretendia com sua arte colorida e viva<br />
fazer a leitura metamórfica de uma realidade também metamórfica, na qual todos os objetos<br />
estão sujeitos a contínuas mutações. O resultado desse fazer é o esvaziamento da linguagem<br />
135
artística, desencadeando o estranhamento: o objeto artístico fere a acomodação cotidiana.<br />
“Vivo”, assim, pressupõe uma postura reflexiva do artista e a sua luta obscura e<br />
lenta pelo dinamismo na pintura. Esse dinamismo proporcionaria a subversão da linguagem<br />
e a sua constante renovação. Tal procedimento aproxima o pintor de seu crítico-poeta, uma<br />
vez que a composição poética cabralina, em todas as suas fases, está ligada à reflexão<br />
metalingüística. Marly de Oliveira, no prefácio da obra Prosa, ao lembrar o poema que<br />
Cabral dedicou ao pintor 66 , confirma essa aproximação. Ambos estariam preocupados com<br />
um tipo de arte nova, “cuja qualidade seria o ‘vivo’ da coisa, o inquietante território ‘onde a<br />
vida é instável e difícil’”.(MELO NETO, 1998, p.06).<br />
4.3.1. A ESTÉTICA DO “VIVO” EM JOAN MIRÓ<br />
A partir de alguns dados críticos e biográficos de Miró, bem como da observação de<br />
algumas pinturas que apontam para o processo de construção do artista espanhol,<br />
tentaremos aproximar o projeto poético cabralino da proposta do pintor catalão.<br />
Acreditamos que a trilha comum dos dois artistas está evidenciada na idéia de dinamismo<br />
de seus projetos, que se configuram a partir do desdobramento das imagens apresentadas,<br />
da repetição de palavras, da reincidência ao mesmo tema, como às paisagens da infância e<br />
ao motivo feminino, por exemplo. Por outro lado, vale ressaltar que os dois artistas<br />
valorizam a força sensível do olhar como processo inicial de suas criações.<br />
O primeiro aspecto que chama a nossa atenção na obra do pintor em tela é a<br />
reincidência à paisagem de Mont-roig, um povoado de Tarragona, situado a 140 km de<br />
Barcelona. Suas primeiras obras apresentam retratos de personagens de sua convivência,<br />
66 Conferir anexo 04.<br />
136
em como paisagens de sua terra natal, principalmente paisagens montanhosas de Mont-<br />
roig:<br />
Es la tierra, la tierra: algo más fuerte que yo. Las montañas fantásticas<br />
desempeñan un papel em mi vida, y el cielo también. Es el choque de esas formas<br />
en mi espíritu más que la visión. En Mont-roig, es la fuerza lo que me alimenta,<br />
la fuerza (...) Mont-roig es el choque preliminar, primitivo, al que vuelvo<br />
siempre. Fuera, todo se mide en relación com Mont-roig. 67<br />
Mont-roig é lugar onde o pintor encontra a tranqüilidade e a paz necessárias para a<br />
sua concentração, segundo Miró & Lolivier-Rahola (1998). Ainda de acordo com seus<br />
biógrafos, as cores ocres das paisagens de Miró “evocan la sequedad de los estíos catalanes<br />
que en Prades se ve subrayada por la larga calle desierta, enmarcada por casas abrumadas<br />
por el calor de un cielo nuboso pero desesperadamente seco.” (1998, p.22)<br />
Esse vínculo estreito com a terra natal também é percebido em todo o discurso<br />
cabralino. O poeta nordestino dizia que “o homem só é amplamente homem quando é<br />
regional. Se me tirar a estrutura ideológica do pernambucano, eu nada sou.”(MELO NETO,<br />
1958) Por isso, observamos tantas referências em sua poesia a Pernambuco ou ao contexto<br />
nordestino em geral. Do mesmo modo que Miró, João Cabral não perde de vista a região<br />
natal no momento em que organiza a sua temática.<br />
Outro momento em que percebemos a proximidade dos dois artistas é em relação ao<br />
tratamento dado à temática feminina. A mulher é uma imagem permanentemente<br />
desdobrada pelos dois artistas. Em Miró é vista, juntamente com a imagem da estrela e do<br />
pássaro, como os personagens-arquétipos do pintor espanhol.<br />
Um dos primeiros quadros do pintor em que há o motivo feminino é Retrato de<br />
unaniña - 1918-1919 (Fig.03), trabalhado num estilo detalhista que “aplica a la<br />
67 Conferir Conversaciones com Joan Miró, entrevistas com G.Raillard, 1978, publicado em MIRÓ &<br />
LOLIVIER-RAHOLA (1998)<br />
137
epresentación de cada rasgo físico. Cada detalle es filtrado por su mirada las formas se<br />
estilizan y los objetos quedan reducidos a configuraciones lineales.” (MIRÓ &<br />
LOLIVIER-RAHOLA,1998, p.24). Nesse sentido, é uma imagem organizada dentro dos<br />
princípios da arte realista, na sua vertente espanhola mais tradicional. No Retrato de<br />
bailarina espanhola – 1921 (Fig.04), também se percebe a influência da pintura medieval<br />
catalã na repetição dos olhos amendoados e do nariz de perfil nítido. Apesar da constante<br />
experimentação de procedimentos artísticos ser a marca da pintura de Miró, percebemos,<br />
nas duas telas citadas, um pintor ligado às suas origens.<br />
Já La masovera -1922-1923 (Fig.05) é considerada uma obra de transição do pintor<br />
catalão, por combinar detalhes realistas com elementos totalmente alheios a essa natureza.<br />
O quadro mostra uma mulher, cujos pés são exagerados, sugerindo, segundo García-<br />
Bermejo, “a convicção do pintor de que as coisas ou pessoas absorvem força da terra em<br />
que se apóiam, da mesma forma que uma árvore dela se nutre pelas suas raízes.”(GARCÍA-<br />
BERMEJO, 1995, p.02).<br />
Na fase surrealista, percebemos que Miró abandona a exigência da terceira<br />
dimensão e do centro do quadro, lançando-se contra qualquer tipo de hierarquização de<br />
elementos em suas pinturas. Assim, diante da tela, o espectador passa por uma série de<br />
fixações sucessivas, para a apreensão dos vários setores do quadro. Há uma espécie de<br />
desintegração da unidade do quadro. É como se houvesse um quadro dentro de outro<br />
quadro, exigindo uma contemplação descontínua do espectador. Embora o pintor jamais<br />
tenha sido considerado como um surrealista ortodoxo, ele consegue absorver desse<br />
movimento o potencial que legitima o inconsciente e o onírico como material artístico, na<br />
opinião da maioria de seus críticos. E é esse material que vai possibilitar a liberação de seu<br />
próprio estilo pictórico, sintetizando os elementos telúricos e mágicos da sua fase<br />
138
detalhista.<br />
Depois da experiência com o estilo surrealista, Miró retorna à imagem feminina,<br />
quando dá atenção à figura humana, criando uma icnografia própria. Nessa fase, “as obras<br />
são marcadas por um traço livre e seguro onde a cor e a forma constroem o quadro”,<br />
segundo José Maria F. García-Bermejo (1995, p.19)<br />
Com exemplo dessa fase, destacamos a tela Retrato de Mrs. Millis – 1929 (Fig.06),<br />
que foi inspirada no quadro de George Engleheart. A tela representa uma jovem aristocrata,<br />
bem vestida, lendo uma carta de amor. Nessa tela, a mulher é representada num tom<br />
parodístico, que deforma a figura ao reduzir a cabeça e o pescoço da mulher, sob a forma<br />
dominante do chapéu de abas largas. A cabeça feminina minúscula, com poucos pêlos, vai<br />
aparecer também em outros quadros do pintor, juntos aos atributos sexuais, considerados<br />
pelos seus críticos como signos da fecundidade.<br />
Já no quadro Caracol, mulher, flor e estrela – 1934 (Fig. 07), o pintor volta a alargar<br />
as extremidades do corpo. Nesse quadro de 34 há o anúncio da “liberação do espaço<br />
perseguido pelo artista ao longo de sua carreira, uma vez que a mulher e os demais<br />
elementos aparecem suspensos, sem horizonte.” (GARCÍA-BERMEJO, 1995, p.26).<br />
Mulher e cachorro - de 1936 68 é a tela em que o poeta relaciona a figura feminina à<br />
personagem de Guernica, de Picasso. As duas telas expressam os sofrimentos das vítimas<br />
ante o horror da guerra, de acordo com os críticos dos dois pintores.<br />
Em 1938, Miró pinta uma série de quadros intitulada Mujer sentada I y II , na qual<br />
apresenta um corpo feminino que sofre transformações inesperadas. No quadro Mulheres<br />
rodeadas pelo vôo de um pássaro - de 1941 (Fig.08), da série Constelaciones, as mulheres<br />
são envolvidas pelas sucessivas posições do pássaro, que parecem invadir as<br />
68 Infelizmente não conseguimos uma cópia desse quadro na bibliografia consultada sobre o pintor.<br />
139
“extremidades do quadro, criando uma trama expansiva que virtualmente ultrapassa os<br />
limites da pintura.”(GARCÍA-BERMEJO, 1995, p.29).<br />
Na tela Mulher e pássaros ao amanhecer – 1946 (Fig. 09), a mulher, além de reunir<br />
atributos sexuais de ambos os gêneros, é apresentada através de linhas finas, terminadas em<br />
um ponto, junto ao sol, aos pássaros e às estrelas, retomando o universo telúrico dos<br />
primeiros tempos do pintor, numa dimensão cósmica.<br />
O mesmo tema é retomado em 1968, quando Miró pinta Mulher e pássaros na<br />
noite(Fig. 10) num momento em que o pintor revisa todo o seu processo de aprendizagem<br />
com pinturas. Nessas últimas telas “o gosto pelo traço manifesta-se em grossas linhas<br />
negras que se destacam dos fundos de impressão homogênea ou sobre superfícies<br />
salpicadas de pintura” (GARCÍA-BERMEJO,1995, p.48).<br />
Também em 1972, há a mesma temática em Mulher e pássaro, diante do sol (Fig.<br />
11) e o mesmo estilo das linhas grossas e negras, sobre as superfícies pintadas. Nessas telas,<br />
a linha termina em um parêntese, símbolo considerado por seus críticos como o de uma<br />
barreira que impede a fuga da energia do pintor.<br />
A nosso ver, a permanente pesquisa de meios expressivos, aliada à reincidência de<br />
temas e o deslumbramento pela cor, marca a arte do pintor espanhol, aproximando-o do<br />
poeta brasileiro, como tentaremos mostrar a seguir.<br />
4.3.2. O MOVIMENTO NA POÉTICA <strong>DE</strong> JOÃO CABRAL<br />
Ao destacarmos o adjetivo “vivo” como uma das marcas das propostas artísticas de<br />
Miró e de João Cabral, tentamos sugerir que as estéticas de ambos são caracterizadas por<br />
uma espécie de dinamismo ou movimento revelador da preocupação desses artistas com o<br />
140
lado vivo de suas imagens. Essa preocupação é perceptível principalmente no momento em<br />
que os dois artistas tematizam o processo da criação. Vale lembrar que tematizar o<br />
processo da criação vai além do uso da metalinguagem. Significa também produzir uma<br />
arte que está em constante processo de renovação de seus meios expressivos.<br />
Muitos leitores críticos de João Cabral observaram que o projeto estético do poeta,<br />
em relação ao panorama do Modernismo brasileiro, instiga um esvaziamento semântico,<br />
propondo a palavra poética como resultante de um processo criador que se debruça sobre si<br />
mesmo 69 . Nesse sentido, João Cabral tece o desligamento da sua arte da tradição, por viver<br />
numa sociedade tecnológica e capitalista, e oferece a sua imagem como a do poeta que é<br />
destituído da aura de gênio.<br />
Assim, a diferenciação ou inovação da poética cabralina estaria não só no seu<br />
distanciamento da tradição, como na sua ruptura, pela dessacralização do poeta e da criação<br />
poética, quando há a negação do derramamento emocional, que é substituído pela ação,<br />
processo ilimitado pela busca da palavra.<br />
Já observamos que João Cabral não propõe a arte como a imitação da realidade e<br />
nem pretende apresentá-la como denúncia de uma alienação coletiva, manipulada e de<br />
fundo ideológico. Pelo contrário, a sua poética é antes um instrumento cortante, abrindo<br />
fendas para denunciar a cristalização das idéias, para corroer um real socialmente<br />
inculcado. Através do despojamento do significado, abre espaços para que a significação –<br />
salpicada de ideologias – seja racionalmente corroída. Entre o sensível (real) e o vazio<br />
(surreal), entre o lírico e o social, João Cabral abre espaços para que a palavra se<br />
movimente, conduzindo o leitor para o processo da feitura do texto, em sua material<br />
concretude, decodificando o real social pelo eco, pelo secagem do lírico, como propõe<br />
69 Essa é a opinião de Reinaldo Martiniano Marques (1983).<br />
141
Theodor W. Adorno (1980) .<br />
Daí, os traços da modernidade nessa poética são sólidos, racionais. É a palavra<br />
concreta, centrada em imagens duras e cortantes, que deslizam, universalizando-se ao<br />
suscitar a constante reflexão daquele que se propõe a adentrar nos poemas. Assim, a análise<br />
das imagens em João Cabral deixa entrever a dinâmica do ato criador, calcada na tensão<br />
entre o distanciamento e a aproximação do real.<br />
É nesse viés que consideramos o discurso de Miró, quando pela fragmentação, pela<br />
geometria e pela multiplicidade de perspectivas de sua caligrafia pictórica, propõe a fusão<br />
do lógico e ilógico, do racional e do onírico. Exemplos dessa dinâmica estão nos quadros<br />
comentados anteriormente.<br />
Em relação a João Cabral, no poema “A bailarina”, do livro O engenheiro (1942-<br />
1945), percebemos o cruzamento de imagens, por oferecer a temática da mulher aliada à<br />
imagem do pássaro:<br />
A bailarina<br />
A bailarina feita<br />
de borracha e pássaro<br />
dança no pavimento<br />
anterior do sonho.<br />
A três horas de sono,<br />
mais além dos sonhos,<br />
nas secretas câmaras<br />
que a morte revela.<br />
Entre monstros feitos<br />
a tinta de escrever,<br />
a bailarina feita<br />
de borracha e pássaro.<br />
Da diária e lenta<br />
borracha que mastigo.<br />
Do inseto ou pássaro<br />
que não sei caçar.<br />
(MELO NETO, 1986, p.342)<br />
142
Nesse poema, a mulher “feita de borracha e pássaro”, é apresentada em movimento,<br />
dançando “no pavimento/ anterior do sonho”.(MELO NETO, 1986, p.342). A despeito de<br />
sua constituição, ou seja, feita de elementos cotidianos, concretos e, ao mesmo tempo,<br />
sensível, ela se movimenta. É um ser vivo que se apresenta diante de nossos olhos, mesmo<br />
que as circunstâncias da sua constituição sejam desfavoráveis a essa apresentação.<br />
Tomado na perspectiva metalingüistica do fazer poético, o poeta revitaliza uma das<br />
imagens femininas mais prosaicas, a da bailarina, figura marcada tradicionalmente pela<br />
leveza e abstração. Como já assinalamos anteriormente, a mulher que dança aparece com<br />
freqüência na poética cabralina, principalmente no momento em que João Cabral passa a<br />
conviver com os espanhóis. No entanto, essa imagem da bailarina é substituída pelas<br />
imagens das bailadoras do flamenco, por adquirir densidade concreta no contexto poético.<br />
Os poemas que abordam essa temática se organizam a partir de processos dinâmicos,<br />
os quais impõem um constante exercício à poética cabralina. A concretude das imagens<br />
limitam o signo ao mesmo tempo que invocam, na apreensão do leitor/espectador, um jogo<br />
de aproximação e distanciamento da realidade. O nexo que permite a correlação imagética<br />
não é imediato ou fortuito: obedece à dinâmica do poema e brota de sua interioridade,<br />
reiterando a tensão – mola mestra do processo criativo – segundo a ótica e a semiótica de<br />
João Cabral.<br />
Logo, à medida que o ilusionismo pictórico da visualidade se desencadeia no texto,<br />
os recursos da poética cabralina – colagem, montagem e desmontagem – se revigoram e<br />
objetivam o estudo do fazer poético. Todos esses aspectos serão comentados e ilustrados,<br />
na seqüência, momento em que tratamos da dança e da música na poética de João Cabral.<br />
143
CAPÍTULO 5<br />
MÚSICA , DANÇA , ARQUITETURA E LITERATURA EM<br />
DIÁLOGO<br />
No campo da estética comparada, literatura e música costumam ser aproximadas por<br />
serem artes que se desenvolvem no tempo; enquanto as artes plásticas, isto é, arquitetura,<br />
escultura e pintura, constituem-se e apresentam-se no espaço. As primeiras são associadas<br />
ao sentido da audição, as artes plásticas são apreendidas pela visão.<br />
Na concepção de Georg W.F. Hegel (1999, p. 113), pintura, música e literatura<br />
aproximam-se por serem artes românticas, cujos materiais sensíveis expressam a idéia com<br />
o mais alto grau de perfeição. Etienne Souriau (1969), por sua vez, divide as artes em dois<br />
grupos, considerando a música como uma arte de primeiro grau, em que todo o conjunto<br />
dos dados que constituem a obra partilha o modo de existência dos materiais sensíveis a<br />
partir dos quais ela se constitui; e literatura como sendo um das artes do segundo grau,<br />
imitativa ou representativa, em que em que há dependência entre os dados imediatos da<br />
obra com os elementos suscitados e apresentados por seu discurso, os quais existem de<br />
modo distinto da obra, tal como a mesma se nos apresenta aos sentidos. As artes do<br />
primeiro grupo apresentam a forma primária, apreendida pela percepção; as últimas, além<br />
da primária, apresentam a forma secundária, a qual é percebida pela imaginação.<br />
Diante do exposto, percebemos que as teorias que discutem as correspondências<br />
entre literatura e música são múltiplas e complexas. No entanto, segundo Antonio Manoel<br />
144
(1985) 70 , apesar das especificidades de cada uma dessas linguagens, essas correspondências<br />
podem derivar:<br />
da identidade genética de algumas formas convencionais, que às vezes preservam<br />
traços de usa origem mesmo depois de sua diferenciação no decorrer histórico.<br />
Há aquelas que se inscrevem por meio da mútua influência produzida pelo<br />
convívio de músicos e poetas em diferentes circunstâncias. Acrescentamos as<br />
intenções e os programas, os alvos expressionais e criadores de indivíduos,<br />
grupos e períodos, que induzem, promovem e realmente instauram a troca de<br />
objetivos: poesia como música, música como poesia. (DAGHLIAN, 1985, p.09)<br />
Manoel lembra ainda que ambas as artes têm como base material a sonoridade.Em<br />
virtude disso, os estudiosos da literatura têm se apropriado de termos pertencentes à<br />
terminologia a música, como por exemplo, “dissonância”, “melodia”, “harmonia”,<br />
“polifonia”, dentre outros. Do mesmo modo, os músicos tomam de empréstimo termos<br />
relativos à literatura, tais como: “elegia”, “idílio”, “cesura” etc. O autor supracitado chama<br />
a atenção também para aqueles termos que podem apresentar divergências semânticas,<br />
como “cadência”, “período”, “tema”, “frase”, “motivo”, “entoação”, “timbre”, “metro” e<br />
“ritmo”, os quais referem a um elemento essencial na música e na poesia.<br />
Além desses aspectos, o crítico mostra que embora a tradição dessas<br />
correspondências, bem como a idealização de uma das duas artes como projeto estético do<br />
pólo dessa relação (música como poesia/ poesia como música) seja comprovada no plano<br />
mítico (Apolo, Hermes, Orfeu, Anfião) e no plano histórico-literário (poesia trovadoresca,<br />
por exemplo), somente a partir da segunda metade do século XIX essas correspondências<br />
adquiriram o foro da convenção.<br />
70 Texto de apresentação do livro Poesia e Música, organizado por Carlos Daghlian (1985).<br />
145
Nesse contexto, acreditamos que as formulações de João Cabral em relação à música<br />
apresentam alguns traços originais que devem ser apontados. O primeiro deles é que o<br />
poeta não se considera um sujeito antimusical, mas antimelódico:<br />
Não sou musical para o ouvido por deficiência, mas me considero musical no<br />
sentido de que música não é só melodia embalante, mas construção de sons no<br />
tempo. Organização de elementos (na poesia, imagísticos e conceituais), uma<br />
arquitetura que se desenvolve numa determinada extensão de tempo.Você usou<br />
bem o verbo “desidratar”. Ao procurar “desidratar” minha expressão, eliminei<br />
dela todos os líquidos fluviais inúteis, isto é, tudo o que se introduz gratuitamente<br />
no verso para se atingir o que é mais fácil e superficial da música, a<br />
melodia.(MELO NETO, 1976)<br />
Além de negar um tipo de música marcada pela melodia, João Cabral afirma que o<br />
seu interesse é pela música a contrapelo, “não o entorpecente, mas o estimulante. Ora, o<br />
flamenco me dá isso. É como a luz que arde nos olhos de quem estava dormindo no<br />
escuro.”(Ibidem) Desse modo, João Cabral destaca também a possibilidade visual da<br />
música.<br />
As raras referências críticas que tentam incorporar a música e a dança flamencas à<br />
poética cabralina, porém, evidenciam apenas o aspecto sonoro do canto espanhol, como<br />
sendo um recurso para acentuar o caráter metalingüístico do texto, ou a temática da<br />
agudeza do discurso cabralino comparado ao falar a palo seco, contundente de Graciliano<br />
Ramos. Nesse sentido, relacionam tal aproveitamento interdiscursivo ao “fazer” do poeta e<br />
ao efeito eletrizante que esse recurso provoca no leitor. O lado visual da música, que na<br />
maioria das vezes está articulada à dança, não é considerado nesses casos.<br />
A nosso ver, em João Cabral, a música e a dança flamenca recuperam o sentido de<br />
uma arte “viva”. O conceito de “vivo” na poética do autor já foi discutido como um tipo de<br />
146
ecurso que na visão do poeta indica bem o que busca a sensibilidade de Miró: “Essa<br />
sensação de vivo é o que existe de mais oposto à sensação de harmônico ou desse<br />
equilíbrio, diante do qual nossa sensibilidade não se sente ferida, mas adormecida.”(MELO<br />
NETO, 1998, p.47) Tendo em vista essas observações e o interesse de João Cabral pelo<br />
cante flamenco, tentaremos estabelecer algumas relações entre João Cabral e a poesia de<br />
Federico García Lorca.<br />
5.1.O CANTE JONDO E SEU APROVEITAMENTO NA POÉTICA CABRALINA<br />
Federico García Lorca (189-1936), poeta espanhol apaixonado pelas tradições<br />
culturais de seu povo publica, em 1921, o Poema del cante jondo, livro que representa um<br />
novo rumo em sua obra, segundo Ian Gibson (1989). As composições de Lorca nessa obra,<br />
de acordo com Gibson, tentam imitar as letras das cantigas como fizeram tantos poetas no<br />
século XIX e mesmo, em boa parte , no século XX:<br />
A Guitarra<br />
Começa o pranto<br />
da guitarra.<br />
Quebram-se os copos<br />
da madrugada.<br />
Começa o pranto<br />
da guitarra.<br />
É inútil calá-la.<br />
É impossível calá-la.<br />
Chora monótona<br />
como chora a água,<br />
como chora o vento<br />
sobre a nevada.<br />
É impossível<br />
calá-la.<br />
Chora por coisas<br />
distantes.<br />
Areia do Sul quente<br />
147
que pede camélias brancas.<br />
Chora flecha sem alvo,<br />
a tarde sem manhã<br />
e o primeiro pássaro morto<br />
sobre o ramo.<br />
Oh! Guitarra!<br />
Coração mal ferido<br />
por cinco espadas.<br />
(LORCA, 1999, p.183-4)<br />
Apesar de não usar a primeira pessoa, como é a regra no cante jondo, o poeta se<br />
propõe a criar na mente do leitor a “sensação de ‘enxergar’ as fontes primitivas (as<br />
‘remotas terras da tristeza’) de que nasce a angústia do cante jondo, e acompanhá-la com a<br />
imaginação desde a primeira nota até que a voz do cantaor se extinga.”(GIBSON,1989,<br />
p.140). Nesse sentido, nos textos de Lorca, há o retorno às raízes míticas do mundo cigano:<br />
Poema de Soleá 71<br />
A Jorge Zalamea<br />
Terra seca,<br />
terra quieta<br />
de noites<br />
imensas.<br />
(Vento olival,<br />
vento na serra.)<br />
Terra<br />
velha<br />
do candil<br />
e da pena.<br />
Terra<br />
das fundas cisternas,<br />
Terra<br />
da morte sem olhos<br />
e das flechas.<br />
(Vento pelos caminhos.<br />
Brisa nas alamedas.)<br />
(LORCA, 1999, p.189)<br />
71 De acordo com os editores da obra de Lorca, “soleá” ou “soledad” é um dos tipos de canção da Andaluzia.<br />
148
Observando a linguagem do poema, percebemos que García Lorca herda toda a<br />
espontaneidade e o vigor de um falar que nasce de sua terra.Lembramos que, além de poeta,<br />
Lorca é músico. Sobre a música, o poeta escreve alguns artigos, dentre eles, “Regras em<br />
música”, no qual diz que “o verdadeiro artista obra por intuição, não por regras; no que<br />
tange à música, o que o compositor precisa, depois de aprender os rudimentos, é de uma<br />
imaginação original e um coração apaixonado.” (GIBSON, 1989, p.88)<br />
De certo modo, a espontaneidade, a valorização da imaginação e de estados<br />
emocionais que caracterizam a poesia do espanhol surge em decorrência do posicionamento<br />
de Lorca contra a poesia fria e descritiva do Ultraísmo. Essa tendência é ressaltada pelo<br />
poeta em sua correspondência com um jovem poeta andaluz, Adriano del Valle y Rossi, em<br />
1918:<br />
Sou um grande romântico, e este é o meu maior argumento. Num século de<br />
zepelins e mortes sem sentido, choro ao meu piano, sonhando com a bruma<br />
haendeliana. Escrevo versos muito meus, louvando igualmente Cristo e Buda,<br />
Maomé e Pã. Por lira tenho o meu piano e, em vez de tinta, suor de desejo, o<br />
pólen amarelo do meu lírio interior e meu grande amor. Temos que matar esses<br />
‘burgueses frajolas’ e apagar o riso das bocas dos que amam a Harmonia. Temos<br />
que amar a lua no lago de nossas almas e moldar nossas meditações religiosas no<br />
magnífico abismo de poentes chamejantes...porque a cor é a música dos<br />
olhos...Aqui vou pousar minha pena para subir à misericordiosa nau do Sono.<br />
Agora sabes como sou, pelo menos em parte de minha vida...”(LORCA, apud<br />
GIBSON, 1989, p.101)<br />
Por outro lado, não podemos nos esquecer de que, desde criança, o poeta espanhol<br />
convive com várias famílias de ciganos em Fuente Vaqueros, sua terra natal, onde os<br />
ciganos constituem dez por cento da população. No tempo da adolescência, Lorca freqüenta<br />
muitas vezes as grutas do Sacromonte, onde vivem dançarinos e cantores ciganos. Mais<br />
tarde, em 1922, Lorca realiza uma pesquisa sobre o cante jondo, que é apresentada sob a<br />
forma de conferência aos intelectuais de seu tempo.<br />
149
O poeta participa também de reuniões onde há contato com os cantores do flamenco.<br />
Em uma dessas ocasiões, uma festa organizada em 1927 para jovens literatos espanhóis em<br />
Madri, da qual também participa Damaso Alonso e Rafael Alberti, Manuel Torre, um<br />
grande cantaor cigano, tenta explicar aos presentes os mistérios do cante jondo – o genuíno<br />
flamenco - através da enunciação do seguinte pensamento: “o que temos de buscar<br />
constantemente, até encontrar, é o tronco negro do Faraó; isto é, um meio de ligar-se à<br />
herança que, na tradição cigana, remonta ao tempo em que as tribos perambulavam no<br />
Egito.” (GIBSON, 1989, p.236)<br />
Embora não tenha tido a mesma experiência de García Lorca, a referência à música<br />
flamenca e ao universo cigano também é constante na poética cabralina, desde Paisagens<br />
com figuras (1954-1955), primeiro livro que articula o Nordeste ao contexto espanhol:<br />
Diálogo<br />
A – O canto da Andaluzia<br />
é agudo com seta<br />
no instante de disparar<br />
ainda mais aguda e reta.<br />
B – Mas quem atira essa seta<br />
de tão penetrante fio<br />
pensa que a faca melhor<br />
é a que recorta o vazio.<br />
A J. P. Moreira da Fonseca<br />
A – É um canto em que se sente<br />
o que uma espada no frio,<br />
desembainhada, sem mesmo<br />
ter ferrugem como abrigo.<br />
B – Mas é espada que não corta<br />
e que somente se afia,<br />
que deserta se incendeia<br />
em chama que arde sozinha.<br />
A primeira parte do poema de João Cabral, organizada em conjuntos de estrofes que<br />
se contrapõem, parece propor um diálogo direto com as características do cante jondo<br />
150
egistradas na poesia de Lorca. O poeta pernambucano recupera as mesmas imagens<br />
cortantes da seta e da espada de Lorca, só que destituídas de seu tom lacrimoso, mas<br />
tratadas no seu contexto de agudeza “reta” e de “penetrante fio”.<br />
Na segunda parte, o poeta pernambucano tenta interpretar a música andaluza na sua<br />
relação com o cotidiano do povo andaluz:<br />
A – Tem alfinetes nas veias<br />
que nas veias se atropelam,<br />
tem mantas de carne viva<br />
cobrindo sua alma inteira.<br />
B – Mas o timbre desse canto<br />
que acende na própria alma<br />
o cantor da Andaluzia<br />
procura-o no puro nada,<br />
como à procura do nada<br />
é a luta também vazia<br />
entre toureiro e o touro,<br />
vazia, embora precisa,<br />
em que se busca afiar<br />
em terrível parceria<br />
no fio agudo de facas<br />
o fio frágil da vida.<br />
A – Até o dia em que essa lâmina<br />
abandone seu deserto,<br />
encontre o avesso do nada,<br />
tenha enfim seu objeto,<br />
Até o dia em que essa lâmina,<br />
essa agudeza desperta,<br />
ache, no avesso do nada,<br />
o uso que as facas completa.<br />
(MELO NETO, 1986, p.264-5)<br />
Nas últimas estrofes do texto, João Cabral dá sentido ao cantar espanhol no que<br />
concerne ao seu poder de sugestão do canto que envolve tanto o cantor como os seus<br />
ouvintes. Nesse contexto, o poeta brasileiro remete-nos à figura do duende de Lorca.<br />
151
Para Lorca, duende (que na linguagem comum designa um espírito sobrenatural<br />
do tipo poltergeist) passou a denotar uma forma de inspiração dionisíaca sempre<br />
relacionada à angústia, ao mistério e à morte, e que anima particularmente o<br />
artista que se apresenta em público – o músico, o dançarino ou o poeta que recita<br />
sua criação para uma platéia ao vivo, como tantas vezes ele mesmo fez. Se bem<br />
que o duende possa se manifestar em qualquer lugar, Lorca estava convencido de<br />
que a Espanha é o seu país de preferência – o país onde a fiesta nacional (que não<br />
se deve confundir com esporte) é o rito sacrifical da tourada. Sem duende,<br />
explicava Lorca, a arte do cantaor, ainda que tecnicamente perfeita, não terá<br />
pungência, não causará arrepios na espinha de quem o escuta. (GIBSON, 1989,<br />
p.143)<br />
Portanto, é esse poder de duende que João Cabral destaca em seus depoimentos e ao<br />
tematizar o cante jondo em vários momentos de sua poesia:<br />
El cante hondo<br />
This is the way the world ends<br />
Not with a bang but a whimper<br />
O cante hondo às mais das vezes<br />
desconhece essa distinção:<br />
o seu lamento mais gemido<br />
acaba em explosão.<br />
Tão retesada é sua tensão,<br />
tão carne viva seu estoque,<br />
que ao desembainhar-se em canto<br />
rompe a bainha e explode.<br />
(MELO NETO,1997, p. 47)<br />
Além de se referir à música flamenca como um canto explosivo, antimelódico por<br />
excelência, o poeta compara-a ao frevo de sua terra, observando que “são músicas que me<br />
excitam e despertam.”(MELO NETO, 1991)<br />
Ainda el cante flamenco<br />
É música desejada<br />
como o que não adormece:<br />
o mais contrário do embalo<br />
e do conto emoliente.<br />
Na Andaluzia esse canto<br />
152
insonífero se atende:<br />
a contrapelo, esfolado,<br />
arrepiando a alma e o dente.<br />
(MELO NETO,1997, p. 63)<br />
É importante observar que o poeta pernambucano, nos textos citados, também<br />
consegue identificar, no cante jondo, a voz do povo espanhol, que expressa na música os<br />
seus sentimentos mais profundos. Ao estudar as origens e a evolução desse cante jondo,<br />
García Lorca estava convencido de que foram os ciganos da Andaluzia que deram ao cante<br />
a sua forma definitiva, apesar das influências mais remotas que entram em sua formação<br />
como a adoção pela Igreja do cantochão litúrgico bizantino ou a invasão moura de 711 d. C.<br />
O poeta espanhol também investigou as quatro formas do cante jondo, a saber, siguiriya,<br />
soleá, saeta e petenera. Na seqüência deste estudo, mostraremos como João Cabral<br />
aproveita a primeira forma do cante ao tratar da dança de uma bailadora do flamenco.<br />
Antes de João Cabral, Lorca corporificou numa mulher a cantiga evocada. Segundo<br />
Gibson, a mulher em Lorca representa a angústia expressa nessas melodias primitivas. Essa<br />
angústia resulta da morte, do amor infeliz ou do desespero, temas que o poeta espanhol<br />
aproveitou em seus textos. As melodias dos ciganos, por outro lado, revelam, segundo<br />
Gibson,<br />
os arcanos da alma andaluza (donde o nome de “cante fundo”). E o estudo do<br />
cante jondo levou Lorca a concluir que os andaluzes são “um povo triste, um<br />
povo estático”, não os cantores folgazões e extrovertidos que em geral os<br />
estrangeiros imaginam.Não só a música do cante jondo como as letras fizeramlhe<br />
ver isso.(GIBSON,1989, p.142)<br />
Além desses aspectos, Lorca identificou nas letras do cante versos marcados pela<br />
concisão, por gradações sutis de angústia, por imagens expressivas e pela obsessão da<br />
153
morte. Muitos desses elementos são atualizados pela poética cabralina. Vale ressaltar ainda<br />
que para João Cabral, García Lorca é comparado a um diamante que se pode “pegar por<br />
vários lados. Lorca, para mim, é um poeta genial a partir do Romancero gitano e do Cante<br />
jondo. É que, mesmo amável – não sei – , me fascina, tem qualquer coisa.”(MELO NETO,<br />
1966)<br />
Nos versos incisivos de João Cabral, recuperamos a concisão, a angústia e as<br />
expressivas imagens a que Lorca se refere. A despeito dessas aproximações entre Federico<br />
García Lorca e João Cabral, quanto ao aproveitamento do cante jondo em seus textos,<br />
lembramos que a linguagem de Lorca é marcada por um processo densamente metafórico,<br />
revelando uma habilidade inata de criar imagens, como ressaltam seus biógrafos.<br />
A longa convivência do poeta espanhol com os ciganos faculta a escrita do<br />
Romancero Gitano (1924-1927) que, segundo Gibson, também nasceu devido em parte ao<br />
“contato de Lorca com esse povo exótico de procedência hindu, que, apesar de suas origens<br />
distantes, não raro parece mais andaluz que os próprios andaluzes.”(GIBSON, 1989, p.51)<br />
José Carlos Lisboa (1983) recorta uma fala de Lorca, na qual o poeta observa que<br />
Romancero Gitano é a sua obra mais popular, aquela que tem mais unidade, onde a sua<br />
“feição poética aparece, pela primeira vez, com personalidade própria, virgem de contato<br />
com outro poeta e definitivamente desenhada.” (LORCA, apud LISBOA,1983,p.13) O<br />
poeta espanhol explica também que, embora seja chamado gitano, o texto é um poema da<br />
Andaluzia. O termo gitano é escolhido por ser o mais elevado, o mais profundo, o mais<br />
aristocrático de seu país, e também por ser o mais representativo do seu modo de poetar e o<br />
que guarda mais afinidades com “a chispa, o sangue e o alfabeto da verdade andaluza e<br />
universal”.(Ibidem). Ainda de acordo com García Lorca, o Romance Gitano<br />
154
é um retábulo da Andaluzia com gitanos, cavalos, arcanjos, planetas, com a sua<br />
brisa judia, com sua aragem romana, com rios com crimes, com a nota vulgar do<br />
contrabandista e a nota celeste dos meninos nus de Córdoba, que zombavam de<br />
São Rafael (...) [Livro] em que as figuras servem a fundos milenares e em que<br />
não há senão uma personagem (...) a Pena que se filtra na medula dos ossos e na<br />
seiva das árvores, e que não tem nada a ver com a melancolia, a nostalgia ou<br />
qualquer aflição ou doença da lama; que é um sentimento mais celeste que<br />
terrestre; pena andaluza que é uma luta amorosa com o mistério que o rodeia e<br />
não pode compreender.(LORCA, apud LISBOA, 1983, p.13)<br />
Assim, o poeta espanhol tenta caracterizar os dezoito romances de seu livro. Além<br />
desses aspectos, García Lorca faz um comentário sobre o aproveitamento do mito e do<br />
realismo espanhol em seus textos:<br />
Desde os primeiros versos se observa que o mito está mesclado com o elemento<br />
que chamaríamos de realista, embora não o seja, visto que ele, ao contato com o<br />
plano mágico, se torna ainda mais misterioso e indecifrável, como a própria<br />
Alma da Andaluzia, luta e drama do veneno oriental do andaluz, com a geometria<br />
e o equilíbrio impostos pelo romântico, pelo bético (sic).(LORCA, apud<br />
LISBOA, 1983, p.14)<br />
Todas essas observações de Lorca são importantes, na medida em que esclarecem o<br />
modo como o poeta espanhol trata de temas ciganos em suas obras. Por outro lado,<br />
ajudam-nos a entender os contrastes que aparecem em seus poemas, como no texto “La<br />
Monja Gitana”:<br />
A Monja Gitana<br />
Silêncio de cal e mirto<br />
Malvas entre as ervas finas.<br />
A monja borda alelis<br />
sobre um pano palhiço.<br />
Voam na aranha gris<br />
sete pássaros do prisma.<br />
A igreja grunhe ao longe<br />
como um urso de barriga para cima.<br />
155
Quão bem borda!Com que graça!<br />
Sobre o pano palhiço,<br />
ela quisera bordar<br />
flores de sua fantasia.<br />
Que girassol! Que magnólia<br />
de lantejoulas e cintas!<br />
Que açafrões e que luas,<br />
no mantel da missa!<br />
Cinco toranjas se adoçam<br />
na próxima cozinha.<br />
As cinco chagas de Cristo<br />
cortadas em Almeria.<br />
Pelos olhos da monja<br />
galopam dois cavaleiros.<br />
Um rumos último e surdo<br />
lhe desprega a camisa,<br />
e ao olhar nuvens e montes<br />
nas hirtas lonjuras<br />
parte-se o seu coração<br />
de açúcar e erva-luísa.<br />
Oh! Que planura empinada<br />
com vinte sós em cima.<br />
Que rios postos de pé<br />
vislumbra sua fantasia!<br />
Mas segue com suas flores,<br />
enquanto de pé, na brisa,<br />
A luz joga xadrez<br />
no alto da gelosia.<br />
(LORCA,1999, p.365)<br />
Em relação a esse romance, Lisboa observa que há a quebra da tradição do octossílabo,<br />
já que o romance apresenta trinta e seis versos sem intervalos gráficos. Os versos pares são<br />
arrematados pela assonância do í-a, diferindo-se dos demais poemas do livro. Além desses<br />
aspectos estruturais, o texto é construído na base de uma antinomia, anunciada no título do<br />
romance. A palavra “monja” sugere um quadro de regra e disciplina, ao passo que a<br />
qualificação “gitana”, segundo o crítico, remete-nos à idéia de<br />
raça inquieta e andarilha, marcada pela exuberante fantasia tanto exteriormente<br />
acentuada nas roupagens policrômicas e no espetacular excesso de adornos<br />
pessoais como nos caprichos dos ofícios preferidos pelos ciganos e nas suas<br />
ousadas criações artísticas (nos metais, nas músicas, nas danças) – que<br />
correspondem s impulsos interiores instáveis, quase anárquicos do<br />
sangue.(LISBOA, 1983, p.73)<br />
156
Por outro lado, o texto explora uma personagem humana, a monja, e uma<br />
personagem não-humana, a luz, que serve de contraponto ao narrado. Ainda de acordo com<br />
a leitura de Lisboa, no ponto de vista da linguagem, além da referência auditiva proposta<br />
desde o início do poema e de um apelo olfativo no cheiro das toranjas, há uma rica aptidão<br />
pictórica, explicitada em menções e expressões visuais.<br />
Apesar de o poema aparentemente conduzir o leitor à imagem de uma pintura<br />
estática, devido ao aproveitamento de recursos sensoriais, o modo como o poeta trata esse<br />
universo policrômico suscita ação e movimento, que se registram nas formas verbais do<br />
poema, remetendo-nos ao mesmo tempo ao plano do concreto e o da fantasia, segundo<br />
Lisboa. Desse modo, resguardadas as diferenças que existem entre a proposta estética de<br />
Lorca e de João Cabral, podemos estabelecer algumas aproximações entre os dois autores<br />
também no que se refere ao aproveitamento da temática feminina pelo poeta brasileiro,<br />
sobretudo em sua relação com a dança espanhola.<br />
5.2. A DANÇA FLAMENCA NA POÉTICA CABRALINA 72<br />
Segundo Virgil C. Aldrich (1969), a dança se constitui como uma arte impura,<br />
híbrida, por misturar escultura, música e literatura. Essa impureza da dança pode ser<br />
72 Nesta parte da tese, aprofundamos algumas questões que foram apresentadas como parte de nossa<br />
Dissertação de Mestrado, intitulada “Motivo feminino e construção poética em João Cabral de Melo Neto”,<br />
sob orientação da professora doutora Melânia Silva de Aguiar, pela Pontifícia Universidade Católica de Minas<br />
Gerais, em 2001. Posteriormente o texto da Dissertação foi publicado resumidamente no livro Tradição e<br />
contemporaneidade: língua e literatura, coletânea de dissertações, organizada pelas professoras Maria do<br />
Carmo Lanna Figueiredo e Maria Nazareth Soares Fonseca e publicada pela PUC Minas, em 2003, p.77.<br />
157
confirmada no poema “Estudos para uma bailadora andaluza”, de João Cabral, por<br />
apresentar o corpo-em-ação da bailadora flamenca, que retrata expressivamente algo, como<br />
uma estátua o faz com sua forma; ao mesmo tempo em que o ritmo do “taconear” absorve<br />
as formas visíveis, dirigindo o conteúdo da mensagem ao ouvido do espectador. Assim<br />
reunidos todos os elementos da dança, surge um conteúdo literário: a história do<br />
sofrimento, da dor e das esperanças do povo da Andaluzia. Por outro lado, observamos a<br />
possibilidade de ler na dança flamenca toda a sensualidade e o erotismo da bailadora<br />
espanhola.<br />
A imagem da bailadora andaluza, entretanto, é recuperada em vários outros textos de<br />
João Cabral. Os procedimentos composicionais da recorrência à palavras e a reincidência<br />
de imagens da bailadora marcam a estética de João Cabral, enquanto possibilidade de<br />
impedir o congelamento de suas imagens como se fosse um objeto acabado. É uma espécie<br />
de dinamismo que desperta na consciência do leitor atitude correspondentemente ativa. Na<br />
seqüência de nosso estudo, mostraremos o movimento do intercurso da dança e da música<br />
flamenca na poesia cabralina.<br />
O poema que melhor retrata a poética do vivo e ao mesmo tempo constitui-se como<br />
referência direta à dança e à música flamenca é aquele que, segundo a tradição crítica<br />
“oficial” introduz o lirismo feminino nessa poesia: “Estudos para uma bailadora andaluza”,<br />
do livro Quaderna (1956-1959) 73 . São cento e noventa e dois versos, divididos em seis<br />
grupos de oito estrofes cada um. Cada estrofe, por sua vez, apresenta versos em redondilha<br />
maior. O poema apresenta também rimas em /i/ na primeira, terceira, quarta e sexta partes;<br />
73 Na opinião de Barbosa (1975) e de Campos (1976), Quaderna inaugura o motivo feminino nessa poesia.<br />
Barbosa vai mais longe ao dizer que o modo como João Cabral celebra a mulher em Quaderna indicia a<br />
conquista da linguagem da poesia pelo poeta.<br />
158
imas em /e/ na segunda e quinta partes, como ressalta Secchin (1999).<br />
Se considerado o valor estético dos sons 74 das rimas, é bom lembrar que o i para<br />
muitos é fino, penetrante, agudo como espinho, mas frio. Portanto, os efeitos sonoros do<br />
texto, possibilitam a visualização da tensão em que se encontra a bailadora, bem como de<br />
alguns aspectos plásticos da dança. 75<br />
Já o título do poema, “Estudos para uma bailadora andaluza”, sugere, na obra do<br />
poeta, aquilo que, na pintura de Miró, antecede a tela acabada: estudos. Com efeito, tal<br />
poema, antes de ser um ensaio descritivo, é um estudo visual da imagem do movimento da<br />
dança, ou seja, é antes processo do que resultado.<br />
O texto apresenta a visualização de imagens metamórficas, em seis momentos não<br />
estanques, mas inter-relacionados por contigüidade metonímica: a bailarina enquanto<br />
dança, transmutando-se em sucessivas figuras, segundo a ótica do espectador. É um estudo<br />
que lembra as palavras teóricas de João Cabral: “Durante seu trabalho, o poeta vira seu<br />
objeto nos dedos, iluminando-o por todos os lados”. (MELO NETO, 1998, p. 66)<br />
Daí, a plasticidade do poema ser dada por um jogo de imagens que reflete mais a<br />
percepção do que a imaginação. São imagens perceptivas, ou seja, imagens que<br />
representam tanto o processo de percepção quanto os objetos por ele apreendidos. Não é,<br />
portanto, casualidade aquilo que Luiz Costa Lima chama procriação imagética: uma<br />
imagem efêmera, a qual obedece à dinâmica da dança e do olhar, desencadeando outra série<br />
de imagens:<br />
74 Silveira Bueno, na obra Estilística brasileira (1964), propõe o valor estético dos sons das vogais, acima<br />
indicados.<br />
75 Os estudos sobre o ritmo da dança por siguiryias observam que os acentos básicos da música são marcados<br />
claramente.<br />
159
Dir-se-ia, quando aparece<br />
dançando por siguiriyas,<br />
que com a imagem do fogo<br />
inteira se identifica.<br />
Todos os gestos do fogo<br />
que então possui dir-se-ia:<br />
gestos das folhas do fogo,<br />
de seu cabelo, sua língua;<br />
gestos do corpo do fogo,<br />
de sua carne em agonia,<br />
carne de fogo, só nervos,<br />
carne toda em carne viva.<br />
Então, o caráter do fogo<br />
nela também se adivinha:<br />
mesmo gosto dos extremos,<br />
de natureza faminta,<br />
gosto de chegar ao fim<br />
do que dele se aproxima,<br />
gosto de chegar-se ao fim,<br />
de atingir a própria cinza.<br />
Porém a imagem do fogo<br />
é num ponto desmentida:<br />
que o fogo não é capaz<br />
como ela é, nas siguiriyas,<br />
de arrancar-se de si mesmo<br />
numa primeira faísca,<br />
nessa que, quando ela quer,<br />
vem e acende-a fibra a fibra,<br />
que somente ela é capaz<br />
de acender-se estando fria,<br />
de incendiar-se com nada,<br />
de incendiar-se sozinha.<br />
Neste trecho, observamos que o poeta busca no prosaico e na economia vocabular<br />
o fluxo contínuo das imagens que se revigoram na arquitetura e no ritmo do poema, ficando<br />
longe dos clichês que povoam a tradição literária. Com efeito, a bailadora em movimento<br />
esvazia-se de todas as conotações a ela atribuídas pelos principais modelos da tradicional<br />
poesia brasileira e se apresenta como “fogo”, porque possui “fogo” na “carne” e nos<br />
“cabelos”. É “fogo” porque seus movimentos não permitem a fixação de uma forma; pelo<br />
160
contrário, as imagens dançam tal como a chama disforme. Tal impossibilidade de fixação<br />
da imagem implica no desencadeamento de outras imagens que se sucedem, num frenesi<br />
rítmico, como os gestos e poses instantâneos da bailadora. Do “fogo” surge a imagem da<br />
“cavaleira/égua”, apresentada num questionamento:<br />
Subida ao dorso da dança<br />
(vai carregada ou a carrega?)<br />
é impossível se dizer<br />
se é a cavaleira ou a égua.<br />
Ela tem na sua dança<br />
toda a energia retesa<br />
e todo o nervo de quando<br />
algum cavalo se encrespa.<br />
Isto é: tanto a tensão<br />
de quem vai montado em sela,<br />
de quem monta um animal<br />
e só a custo o debela,<br />
como a tensão do animal<br />
dominado sob a rédea,<br />
que ressente ser mandado<br />
e obedecendo protesta.<br />
Então, como declarar<br />
se ela é égua ou cavaleira:<br />
há uma tal conformidade<br />
entre o que é animal e é ela,<br />
entre a parte que domina<br />
e a parte que se rebela,<br />
entre o que nela cavalga<br />
e o que é cavalgado nela,<br />
que o melhor será dizer<br />
de ambas, cavaleira e égua,<br />
que são de uma mesma coisa<br />
e que um só nervo as inerva,<br />
e que é impossível traçar<br />
nenhuma linha fronteira<br />
entre ela e a montaria:<br />
ela é a égua e a cavaleira.<br />
A figura feminina deixa de ser desenhada ou pintada a partir de uma ótica<br />
específica, pois não se sabe se “Subida ao dorso da dança/ (vai carregada ou carrega?)”. A<br />
161
dúvida inicial leva a uma imprecisão maior no final da estrofe: a mulher que se tenta dizer é<br />
a “cavaleira ou a égua?” O que se apresenta diante do leitor não é uma imagem definida da<br />
figura feminina, mas a opção pela imprecisão dessa imagem, que se oferece mais pela<br />
tensão que gera do que pela definição. É um jogo cubossurrealista, no qual a bailadora<br />
funde-se e confunde-se com as imagens “fogo”, “égua” e “cavaleira”, na percepção visual<br />
dos seus movimentos.<br />
Contudo, a contigüidade não se opera apenas na esfera visual: a dança das imagens<br />
é compassada pela percepção auditiva e, ao mesmo tempo, psíquica. Da frenética bailadora<br />
emana uma mensagem: passa a ser “telegrafista”.<br />
Quando está taconeando<br />
a cabeça, atenta, inclina,<br />
como se buscasse ouvir<br />
alguma voz indistinta.<br />
Há nessa atenção curvada<br />
muito de telegrafista,<br />
atento para não perder<br />
a mensagem transmitida.<br />
Mas o que faz duvidar<br />
possa ser telegrafia<br />
aquelas respostas que<br />
suas pernas pronunciam<br />
é que a mensagem de quem<br />
lá do outro lado da linha<br />
ela responde tão séria<br />
nos passa despercebida.<br />
Mas depois já não há dúvida:<br />
é mesmo telegrafia:<br />
mesmo que não se perceba<br />
a mensagem recebida,<br />
se vem de um ponto no fundo<br />
do tablado ou de sua vida,<br />
se a linguagem do diálogo<br />
é em código ou ostensiva,<br />
já não cabe duvidar:<br />
deve ser telegrafia:<br />
basta escutar a dicção<br />
162
tão morse e tão desflorida,<br />
linear, numa só corda,<br />
em ponto e traço, concisa,<br />
a dicção em preto e branco<br />
de sua perna polida.<br />
Em sua dança seca, concisa, fixa, “tão desflorida”, oposta ao balé clássico, a<br />
“telegrafista”, sapateando, emite um código que o espectador capta no plano da<br />
sensualidade. Parece ser uma espécie de sensualidade bruta, instintiva e bastante envolvente<br />
e persuasiva. Não é a sensualidade de um corpo desvelado, mas a sensualidade “linear” e<br />
“concisa” de movimentos e ritmos, isto é, está na linguagem de sua dança. O taconear da<br />
bailadora reitera o dinamismo da imagem feminina, e a “telegrafista” que toca o solo,<br />
teluricamente, transmuta-se em “árvore”:<br />
Ela não pisa na terra<br />
como quem a propicia<br />
para que lhe seja leve<br />
quando se enterre, num dia.<br />
Ela a trata com a dura<br />
e muscular energia<br />
do camponês que cavando<br />
sabe que a terra amacia.<br />
Do camponês de quem tem<br />
sotaque andaluz caipira<br />
e o tornozelo robusto<br />
que mais se planta que pisa.<br />
Assim, em vez dessa ave<br />
assexuada e mofina,<br />
coisa a que parece sempre<br />
aspirar a bailarina,<br />
esta se quer uma árvore<br />
firme na terra, nativa,<br />
que não quer negar a terra<br />
nem, como ave, fugi-la.<br />
Árvore que estima a terra<br />
de que se sabe família<br />
e por isso trata a terra<br />
com tanta dureza íntima.<br />
163
Mais: que ao se saber da terra<br />
não só na terra se afinca<br />
pelos troncos dessas pernas<br />
fortes, terrenas, maciças,<br />
mas se orgulha de ser terra<br />
e dela se reafirma,<br />
batendo-a enquanto dança,<br />
para vencer quem duvida.<br />
A mensagem mecânica anterior transveste-se de árvore, ultrapassando a visão da<br />
dança e permitindo a inclusão de outro aspecto da realidade feminina: as suas relações com<br />
o contexto social. A bailadora andaluza não é só uma metáfora, a da bailarina leve e mofina<br />
que dança. Como na tela La masovera, de Joan Miró, é uma figura que está bem plantada<br />
no solo, dotada da mesma “muscular energia” do homem que trabalha a terra e, como ele,<br />
“estima a terra/ de que se sabe família”.<br />
Neste momento, Cabral “quebra, mais uma vez, com as fronteiras do “lirismo”<br />
amoroso, criando o espaço necessário para que a sua lírica, ao deixar que assome o motivo<br />
feminino, não impossibilite a exploração simultânea de outros motivos.” (BARBOSA,<br />
1975, p.174) Ao apresentar o motivo feminino, o poeta apresenta também o motivo social,<br />
ao entrelaçar a figura da bailadora à figura do camponês, da árvore e da terra.<br />
Vale lembrar que a palavra flamenco provém de duas palavras árabes felag<br />
(campesino) e mengu (fugitivo). Para alguns autores 76 , flamenco passou a ser usado<br />
também como sinônimo de cigano andaluz a partir do século XVIII. Portanto, não seria<br />
mera casualidade a comparação entre a dura realidade do camponês/cigano de sotaque<br />
andaluz caipira, que sabe estimar a sua terra por estar preso a ela, mesmo não a possuindo<br />
nunca, e a bailadora que dança por siguiriyas.<br />
76 Foram consultados vários textos que estão disponíveis na Internet. Ver bibliografia no final do trabalho.<br />
164
A dança por siguiriyas é considerada como “o elemento flamenco mais<br />
profundamente emotivo” e as siguiriyas, constituem um dos cantes mais ciganos do<br />
flamenco. Segundo os pesquisadores a siguiriya é uma descarga de ódios acumulados, de<br />
perseguições, de liberdade e de amor abandonados. É sobretudo um desabafo perante a<br />
morte implacável. As bailadoras, no movimento da dança, contraem-se em si mesmas,<br />
sentindo momentaneamente a desesperança e a crueldade do mundo.<br />
No movimento seguinte, a bailadora se concretiza na imagem mineral da estátua:<br />
Sua dança sempre acaba<br />
igual como começa,<br />
tal esses livros de iguais<br />
coberta e contra-coberta:<br />
com a mesma posição<br />
como que talhada em pedra:<br />
um momento está estátua,<br />
desafiante, à espera.<br />
Mas se essas duas estátuas<br />
mesma atitude observam,<br />
aquilo que desafiam<br />
parece coisas diversas.<br />
A primeira das estátuas<br />
que ela é, quando começa,<br />
parece desafiar<br />
alguma presença interna<br />
que no fundo dela própria,<br />
fluindo, informe e sem regra,<br />
por sua vez a desafia<br />
a ver quem é que a modela.<br />
Enquanto a estátua final,<br />
por igual que ela pareça,<br />
que ela é, quando um estilo<br />
já impôs à íntima presa,<br />
parece mais desafio<br />
a quem está na assistência,<br />
como para indagar quem<br />
a mesma façanha tenta.<br />
O livro de sua dança<br />
capas iguais o encerram:<br />
165
com a figura desafiante<br />
de suas estátuas acesas.<br />
Todavia, não é uma estátua imóvel. Como todas as outras imagens, essa também é<br />
resultante de um processo dinâmico: a primeira estátua, a do começo da dança, desafia<br />
pelo que é internamente e o que pode mostrar exteriormente, já a segunda estátua, a do<br />
final da dança, desafia pelo que a assistência possa perceber dela. Uma e outra são imagens<br />
acesas, latentes, que, embora registradas no poema enquanto figuras estáticas, estátuas,<br />
proliferam significações. Se a dança se metamorfoseia em livro, a bailadora passa a<br />
“espiga”. O mineral passa a vegetal que amadurece. A idéia de maturação, também<br />
resultante de um processo de contigüidade da coloração dos grãos, retoma a idéia do<br />
“fogo”:<br />
Na sua dança se assiste<br />
como ao processo da espiga:<br />
verde, envolvida de palha;<br />
madura, quase despida.<br />
Parece que sua dança<br />
ao ser dançada, à medida<br />
que avança, a vai despojando<br />
da folhagem que a vestia.<br />
Não só da vegetação<br />
de que ela dança vestida<br />
(saias folhudas e crespas<br />
do que no Brasil é chita)<br />
mas também dessa outra flora<br />
a que seus braços dão vida,<br />
densa floresta de gestos<br />
a que dão vida a agonia.<br />
Na verdade, embora tudo<br />
aquilo que ela leva em cima,<br />
embora, de fato, sempre,<br />
continui nela a vesti-la,<br />
parece que vai perdendo<br />
a opacidade que tinha<br />
e, como a palha que seca,<br />
166
vai aos poucos entreabrindo-a.<br />
Ou então é que essa folhagem<br />
vai ficando impercebida:<br />
porque terminada a dança<br />
embora a roupa persista,<br />
a imagem que a memória<br />
conservará em sua vista<br />
é a espiga, nua e espigada,<br />
rompente e esbelta, em espiga.<br />
(MELO NETO, 1986, p. 127)<br />
Como nenhuma das metáforas apresentadas disse a mulher/bailadora, resta na<br />
memória a imagem de uma “espiga nua e espigada”. O que se tem da mulher é a sua forma,<br />
assim como a poesia que existe no poema não está no sentimento daquele que diz a mulher,<br />
ou na beleza da bailadora e de seus movimentos e, sim, na forma como se organiza o texto,<br />
nos seus elementos significantes. A linguagem que trata da mulher é constantemente<br />
revista, como são revistas as imagens que a imitam, imagens “descarnadas, que deixam<br />
visíveis os seus “esqueletos”, isto é, as suas linhas estruturais básicas” (CAMPE<strong>DE</strong>LLI &<br />
ABDALA JR., 1988, p.00). Tal procedimento revela a preocupação do poeta em tornar o<br />
poema independente de sua visão individual. Através da superposição de visões, de formas,<br />
o poeta minimiza os efeitos da perspectiva individual, tão valorizada pelos poetas da<br />
tradição romântica.<br />
Evidencia-se então a importância da arquitetura do poema. Esta arquitetura está no<br />
uso de palavras concretas e no rigor como estas palavras são organizadas. Enumeradas ou<br />
permutadas num mesmo texto, ou em textos diferentes, as palavras, como um tear, tecem<br />
num sentido e destecem noutro os fios das imagens femininas.<br />
Sabemos, no entanto, que a imagem da dançarina espanhola associada ao fogo não<br />
é exclusiva de João Cabral de Melo Neto. Antes do poeta brasileiro, Rainer Maria Rilke<br />
167
(1875-1926) já propunha a comparação entre "um fósforo a arder" e a dança de uma<br />
bailadora espanhola.A bailadora de Rilke, à medida que dança, é toda "flama" ou "chama",<br />
como propõem seus diferentes tradutores. No entanto, ela despreza o fogo e "atira-o<br />
bruscamente no tablado/ e o contempla", para depois apagá-lo, isto é, a mulher mesma se<br />
desfaz da imagem que a ela associam. Cabral se apropria dessa imagem da mulher/chama,<br />
mas para negá-la. Por isso, depois de freqüentar A educação pela pedra (1962-1965), o<br />
poeta, com o texto “Dois P. S. a um poema”, revisa a imagem da bailadora e a sua relação<br />
com o fogo:<br />
Certo poema imaginou que a daria a ver<br />
(sua pessoa, fora da dança) com o fogo.<br />
Porém o fogo, prisioneiro da fogueira,<br />
tem de esgotar o incêndio, o fogo todo;<br />
e o dela, ela o apaga (se e quando quer)<br />
ou o mete vivo no corpo: então, ao dobro.<br />
*<br />
Certo poema imaginou que a daria a ver<br />
(quando dentro da dança) com a chama:<br />
imagem pouca e pequena para contê-la,<br />
conter sua chama e seu mais-que-chama.<br />
E embora o poema estime que a imagem<br />
não conteria tudo dessa chama sozinha,<br />
que por si se ateia (se e quando quer),<br />
de quanto o mais-que-chama não estima;<br />
pois vale o duplo de uma qualquer chama:<br />
estas só dançam da cintura para cima.<br />
(MELO NETO, 1997, p.14)<br />
O poeta admite a impossibilidade dessa imagem e das outras que a seguem nos<br />
seus "Estudos para uma bailadora espanhola" dizerem a mulher, pois, enquanto o fogo,<br />
sendo “prisioneiro da fogueira”, esgota-se com o incêndio, o fogo da bailadora é controlado<br />
por ela “(se e quando quer)”; quanto à chama, esta é “imagem pouca e pequena para<br />
contê-la,/ conter sua chama e seu mais-que-chama” (1997, p.14). Em outro momento, no<br />
168
mesmo livro, com "De Bernarda a Fernanda de Utrera" 77 o poeta reintroduz as imagens da<br />
brasa e da chama, mas relacionadas às mulheres espanholas e aos seus cantes.<br />
No livro Agrestes (1981-1985), com “Uma bailadora sevilhana” 78 , João Cabral<br />
volta à mulher andaluza e seus sensuais movimentos de pernas, até que seja recuperada<br />
totalmente a imagem da bailadora espanhola e o seu dançar flamenco que “é cada vez; / é<br />
fazer; é um faz, nunca um fez” (MELO NETO,1997, p. 233). No penúltimo livro, Sevilha<br />
Andando (1987-1993), o poeta recorre novamente à imagem da bailadora, observando a<br />
incapacidade de dá-la a ver por palavras, pois “nada sabe dizer de novo” (MELO<br />
NETO,1997, p.329). As imagens associadas à mulher de “Estudos para uma bailadora<br />
andaluza” são revistas e o poeta conclui que “o que dela se escreveu até então/ se revelou<br />
premonição” (MELO NETO,1997, p. 332).<br />
A análise desses textos evidencia os processos de desarticulação/reinvenção da<br />
imagem feminina na poesia de João Cabral de Melo Neto. Depois de estruturada a imagem,<br />
o poeta começa a depurá-la de forma bastante inovadora, através de desdobramentos e<br />
contrastes metafóricos; em seguida, há a total negação da imagem construída inicialmente e<br />
a mulher passa a existir pelo que não se “sabe” ou não se deseja dizer dela. Assume o<br />
estatuto de figura, e passa a ter forma, como propõe Gerard Genette (1972), em seu ensaio<br />
“Figuras”: “A expressão simples e comum não tem forma, a figura, sim: eis-nos de volta à<br />
definição da figura como separação entre o signo e o sentido, como espaço interior da<br />
linguagem.”(GENETTE, 1972, p.201) A mulher, portanto, torna-se palavra que adquire<br />
concretude, vigor, consistência e suscita, ao ser expressa, uma pluralidade de significados.<br />
77 Conferir anexo 05.<br />
78 Conferir anexo 05.<br />
169
Na seqüência, prosseguindo na busca das relações entre o projeto poético cabralino<br />
e as artes espanholas, ao longo de nossas leituras, constatamos a possibilidade de articular a<br />
imagem da “casa-mulher” à arquitetura sevilhana.<br />
5.3.A ARQUITETURA E A <strong>POESIA</strong><br />
Como o objetivo de explicar a idéia de espaço em arquitetura, Bruno Zevi (1996)<br />
observa que o que distingue a arquitetura das outras artes é o fato de “agir com um<br />
vocabulário tridimensional que inclui o homem.” (1996, p.17). É o ser humano que dá<br />
sentido a essa arte, na medida em que se movimenta no seu espaço interior, pois esta arte<br />
projeta um tipo de espaço “que não pode ser conhecido e vivido a não ser por experiência<br />
direta”(Ibidem, p.18)<br />
Paul Valéry (1999), por sua vez, no diálogo de Sócrates com Fedro, no Eupalinos ou o<br />
arquiteto, observa que a arquitetura é considerada a mais completa das artes, por obedecer<br />
aos três princípios básicos da arte: a utilidade, a beleza, a solidez ou a duração. A utilidade<br />
estaria para a realização da arte em função do corpo; a beleza corresponderia aos desejos da<br />
alma; já a solidez estaria para a consciência da transitoriedade e o desejo de não perecer.<br />
Já o arquiteto Le Corbusier, como vimos, propõe que a arquitetura é um tipo de<br />
linguagem que desperta emoções: “Com o uso de materiais inertes e partindo de condições<br />
mais ou menos utilitárias, vocês estabeleceram certas relações que despertaram minhas<br />
emoções. Isso é Arquitetura.”(LE CORBUSIER, apud FRAMPTON, 1997, p.179),<br />
Essas considerações iniciais sobre o conceito de arquitetura são importantes por<br />
nos levar a repensar a presença da arquitetura na poética de Cabral. O poeta dedicou mais<br />
de um texto aos arquitetos. O primeiro deles, Fábula de Anfion, publicada junto com a<br />
170
Psicologia da composição e Antiode (1946-1947), já mereceu inúmeras leituras da crítica<br />
brasileira.<br />
Ao longo de nossas leituras sobre essa fábula, percebemos que é consensual a idéia<br />
de que o texto, numa perspectiva metalingüística, remete ao processo de “despoetização”<br />
do poema e que tal processo leva o leitor a refletir sobre a identidade entre o mundo e a<br />
linguagem. Destacamos o estudo de José Guilherme Merquior (p. 104), no qual o texto é<br />
visto como o poema que exprime a insuficiência da linguagem poética no momento de<br />
dizer a realidade.Do mesmo modo é tratada a outra fábula que remete à arquitetura, a<br />
“Fábula de um arquiteto”.<br />
A despeito dessas leituras, retomamos a última fábula de João Cabral, a fim de que<br />
possamos sinalizar para outras possibilidades de observar o intercurso entre a poesia<br />
cabralina e a arquitetura.<br />
Fábula de um arquiteto<br />
Arquitetura como construir portas,<br />
de abrir; ou como construir o aberto;<br />
construir, não como ilhar e prender,<br />
nem construir como fechar secretos;<br />
construir portas abertas, em portas;<br />
casas exclusivamente portas e tecto.<br />
O arquiteto: o que abre pra o homem<br />
(tudo se sanearia desce casas abertas)<br />
portas por-onde, jamais portas-contra;<br />
por onde, livres: ar luz razão certa.<br />
2.<br />
Até que, tantos livres e amedrontando,<br />
Renegou dar a viver no claro e aberto.<br />
Onde vãos de abrir, ele foi amurando<br />
Opacos de fechar; onde vidro, concreto;<br />
Até refechar o homem: na capela útero,<br />
Com confortos de matriz, outra vez feto.<br />
(MELO NETO, 1986, p.21)<br />
171
Na primeira parte do texto, João Cabral reitera a idéia básica do poema “O<br />
Engenheiro”, no qual apresenta um sujeito que tenta construir um espaço perfeito, aberto<br />
e luminoso, valendo-se de um projeto arquitetônico marcado pela logicidade e pela<br />
geometria. No entanto, na segunda parte do texto, deparamos com uma contradição: no<br />
lugar do espaço para fora, aberto, livre, do sonho do engenheiro, o arquiteto reconstrói um<br />
espaço fechado como um útero, ou seja, o sujeito reelabora o projeto anterior e passa a<br />
conceber a arquitetura como espaço para dentro, para o interior de nós mesmos.<br />
De acordo com o próprio poeta, a idéia desse texto surgiu quando visitou a capela<br />
de Nôtre-Dame-du-Haut (1950-3), em Ronchamp, na França. Essa capela é uma das mais<br />
famosas obras de Le Corbusier. Representa a busca da relação entre o espaço construído e o<br />
ambiente natural, na leitura de Giulio Carlo Argan (1992). Em decorrência disso, Le<br />
Corbusier modifica a tipologia habitual da igreja, renunciando à visão cristã tradicional. O<br />
espaço é integrado à plástica da forma, “por isso , a igreja de Ronchamp, a despeito da<br />
dispersão ideológica, mantém-se como um objeto plástico intensamente, dramaticamente<br />
expressivo”, segundo Argan (1992, p.388).<br />
O crítico observa também que Le Corbusier, nesta época, ainda se encontrava sob<br />
a influência do Cubismo, principalmente de Picasso. Quando construiu a Villa Savoye<br />
(1928-31), um dos pilares do racionalismo arquitetônico europeu, cerca de vinte anos antes,<br />
o arquiteto já buscava “a mútua penetração da casa-objeto e do espaço, a comunicabilidade<br />
entre interior e exterior, a resolução do movimento distributivo ou decompositivo dos<br />
ambientes no plano plástico das fachadas” (ARGAN, 1992, p.387), seguindo o espírito de<br />
Gris e de Braque.<br />
Vale lembrar que João Cabral diz ter herdado de Le Corbusier o desejo de lucidez,<br />
de claridade e de construtivismo em arte. Como apreciador da estética cubista, tem no<br />
172
arquiteto franco-suiço um exemplo importante para o que pretendia alcançar em sua<br />
poesia.No entanto, o mesmo João Cabral reconhecia que arquiteto em tela, no final da vida,<br />
negou todos esses valores que pregava anteriormente.<br />
Quanto ao poema em estudo, chama a atenção o tratamento semântico dado às<br />
imagens. Configuradas por oposição entre a idéia de abertura e fechamento, as “portas” do<br />
poema, que num primeiro momento se abrem, na segunda parte prendem o sujeito na<br />
“capela útero”. A sugestão das portas que dão acesso para dentro e para fora e da capela<br />
como um “útero”, remete ao espaço feminino e materno da proteção e do aconchego, já<br />
observado. Em decorrência disso, mais uma vez o espaço e a mulher se reencontram,<br />
como imagens geometricamente limitadas, que valem pelo que não se deixam limitar, pelo<br />
que surpreendem.<br />
5.3.1.A MULHER COMO ESPAÇO SEVILHIZADO NA <strong>POESIA</strong> <strong>DE</strong> JOÃO<br />
CABRAL<br />
Antes, porém de estabelecermos a articulação da imagem da mulher com o espaço<br />
sevilhano, temos que aventar as circunstâncias em que a imagem feminina está relacionada<br />
com a idéia de casa. Comecemos pelo poema “A mulher e a casa”, no qual o exercício de<br />
construção da imagem feminina passa pelo rigor geométrico da dialética do exterior e do<br />
interior da casa:<br />
A mulher e a casa<br />
Tua sedução é menos<br />
de mulher do que de casa;<br />
pois vem de como é por dentro<br />
ou por detrás da fachada.<br />
173
Mesmo quando ela possui<br />
tua plácida elegância,<br />
esse teu reboco claro,<br />
riso franco de varandas,<br />
uma casa não e nunca<br />
só para ser contemplada;<br />
melhor: somente por dentro<br />
é possível contemplá-la.<br />
Seduz pelo que é dentro,<br />
ou será, quando se abra;<br />
pelo que pode ser dentro<br />
de suas paredes fechadas;<br />
pelo que dentro fizeram<br />
com seus vazios, com o nada;<br />
pelos espaços de dentro,<br />
não pelo que dentro guarda;<br />
pelos espaços de dentro:<br />
seus recintos, suas áreas,<br />
organizando-se dentro<br />
em corredores e salas,<br />
os quais sugerindo ao homem<br />
estâncias aconchegadas,<br />
paredes bem revestidas<br />
ou recessos bons de cavas,<br />
exercem sobre esse homem<br />
efeito igual ao que causas:<br />
a vontade de corrê-la<br />
por dentro, de visitá-la.<br />
(MELO NETO, 1986, p. 153)<br />
Segundo Gaston Bachelard (1998, p.219), o geometrismo reforçado da dialética do<br />
exterior e do interior impõe limites que constituem barreiras. Por esse motivo, na leitura do<br />
texto literário, é preciso libertar-se de qualquer intuição definitiva para acompanhar a<br />
audácia dos poetas. Embora haja, no início do poema, a sugestão da exterioridade da casa<br />
aliada à estaticidade da figura feminina vista como espaço de “aconchego”, “abrigo”,<br />
prevalece o dinamismo do jogo da contemplação que é mais do interior, do que do exterior<br />
da casa-mulher.<br />
174
É na possibilidade de ser percorrida “por dentro”, “por detrás da fachada” que a casa-<br />
mulher seduz o olhar de seu contemplador. Portanto, derrubam-se os limites e as barreiras<br />
do geometrismo da imagem, para que esta se constitua como figura multifacetada.<br />
A casa-mulher é valorizada por se abrir para o que não se vê por fora; pelo que<br />
possui por dentro, “com seus vazios, com o nada”. Toda a caracterização prosaica da casa-<br />
mulher, como a “plácida elegância”, o “reboco claro”, o “riso franco de varandas” vai<br />
sendo negado como objeto de contemplação, para que se busque o que a casa-mulher “pode<br />
ser dentro”.<br />
Esse paradoxo que define o feminino em “A mulher e a casa” pode ser observado<br />
também no poema “Mulher vestida de gaiola” 79 , do mesmo livro. Aparentemente “cingida”,<br />
limitada pela gaiola, a mulher se debate no seu interior e a sua força é a força “de enchente<br />
do mar de Olinda” . (MELO NETO, 1986, p.176) Portanto, ela se sente livre.<br />
Do mesmo modo é tratada a figura feminina de “Uma ouriça” 80 , do livro A<br />
educação pela pedra (1962-1965). Além de trabalhada geometricamente através dos<br />
movimentos convexo e côncavo, a imagem da ouriça deixa de ser “passiva (como ouriço<br />
na loca)” para ser “agressiva (como jamais o ouriço)”, quando se chega perto dela; ou se<br />
lhe chega de longe, “propícia” para o “assalto” e para o “abraço”, simultaneamente.<br />
Nas obras posteriores, como em Sevilha andando (1987-1993), depois de<br />
“sevilhizada”, 81 a imagem da “casa-mulher” apresenta-se reiterada na imagem da “barcaça-<br />
mulher”:<br />
79 Conferir anexo 05.<br />
80 Conferir anexo 05.<br />
81 Cabral propõe em Andando Sevilha que: “Como é impossível, por enquanto, civilizar toda a terra, o jeito é<br />
sevilhizar o mundo”.<br />
175
Hoje embarcou numa mulher<br />
Recifense, ele a chama barcaça,<br />
que é o barco mais feminino,<br />
é mulher feita barco e casa<br />
(MELO NETO, 1997, p. 335)<br />
ou na “cidade-mulher”, onde o homem:<br />
nunca saberá<br />
se vive a cidade<br />
ou a mulher melhor<br />
sua mulheridade.<br />
(MELO NETO, 1997, p. 346)<br />
Barcaça e cidade são equivalentes à mulher, quando configuradas como espaços<br />
do acolhimento, da harmonia, do repouso, apesar de suscitarem, simultaneamente, a idéia<br />
de movimento. A barcaça navega “sem timão, sem timoneiro”, não tem destino certo; a<br />
cidade é lugar de “perfeito andar”, que possui “rua sem nome”. Apesar de indefinida, a<br />
cidade-mulher caracteriza-se pelo seu “segredo”: “o tudo de Sevilha/ está no andar de sua<br />
mulher” (MELO NETO, 1997, p.339). A partir de então, a cidade-mulher torna-se “Cidade<br />
viva”:<br />
Sevilha é uma cidade viva<br />
com a sevilhana que a habita,<br />
e que, andando, faz andar<br />
tudo o por onde ela passar.<br />
Seja a estreita Calle Regina<br />
ou a San Luís, na Macarena,<br />
há momentos em que não se sabe<br />
o que é passar e o que é passar-se.<br />
Ora, vi que Sevilha andava<br />
ou fazia andar quem a andasse.<br />
176
Quem me mostrou foi a mulher<br />
que sem a conhecer sequer<br />
é tudo tão sevilhana<br />
no ser e no modo com que anda<br />
que leva consigo Sevilha<br />
e a traz ao ambiente que habita.<br />
(MELO NETO, 1997, p. 349)<br />
Assim, a equivalência entre as duas imagens se faz em função do processo de<br />
imitação do andar que a cidade exige da mulher, ou que a mulher ensina à cidade.<br />
Elaboradas num clima mais subjetivo, as imagens femininas dos últimos livros, no entanto,<br />
reforçam o projeto arquitetônico do poeta, ao conjugar mulher-cidade-escrita. Sevilha<br />
andando e Andando Sevilha reiteram muitas idéias propostas em livros anteriores, no que<br />
concerne ao tema feminino. Lembramos que essa relação mulher-cidade começa em<br />
Paisagens com figuras (1954-1955), quando o poeta contrapõe a imagem feminina da<br />
cidade à imagem masculina do estado de Pernambuco, no poema “Duas paisagens”:<br />
D’Ors em termos de mulher<br />
(Teresa, La Bem Plantada)<br />
descreveu da Catalunha<br />
a lucidez sábia e clássica<br />
e aquela sóbria harmonia,<br />
aquela fácil medida<br />
que, sem régua e sem compasso,<br />
leva em si, funda e instintiva,<br />
aprendida certamente<br />
no ritmo feminino<br />
de colinas e montanhas<br />
que lá têm seios medidos.<br />
Em termos de uma mulher<br />
não se conta é Pernambuco:<br />
é um estado masculino<br />
e de ossos à mostra,duro,<br />
de todos, o mais distinto<br />
177
de mulher ou prostituto,<br />
mesmo de mulher virago<br />
(como a Castilla de Burgos).<br />
(MELO NETO, 1989, p.268)<br />
Nos poemas “Sevilha ao telefone” e “Ainda Sevilha ao telefone” podem ser<br />
observadas várias alusões ao poema “Paisagem ao telefone” 82 , do livro Quaderna. Atento a<br />
esse aspecto, Ivo Barbieri afirma que Sevilha andando vai repor “o discurso, de novo, na<br />
perspectiva do seu fier, que se auto-indicia nas passagens remissivas intratextuais”<br />
(BARBIERI, 1997, p.130). O crítico observa que, em “Paisagem pelo telefone”, há a<br />
naturalização da mulher na paisagem, uma vez que o telefone desvela primeiro a paisagem<br />
de luz e água da praia nordestina, para depois consubstanciar a presença clara e fresca da<br />
mulher nos elementos da paisagem; já nos poemas de Sevilha andando, a paisagem urbana<br />
se feminiza na imagem da mulher-cidade, pois o telefone abre-se logo “à pulsação da vida”,<br />
ao “arfar da cidade, ao “respirar recado” até que a cidade se torna “mulher inteira,/ mais<br />
que qualquer outra, Sevilha”. (MELO NETO,1997, p.345)<br />
Em outros momentos, a imagem feminina é revista na sua equivalência com a<br />
cidade de Sevilha. É o que acontece no poema dedicado a Marly de Oliveira, “A sevilhana<br />
que não se sabia”, divido em quatro quadros, nos quais valoriza diferentes aspectos da<br />
linguagem, para tentar encontrar a imagem desejada. No primeiro quadro, “reencontra as<br />
coisas ditas” sobre a sevilhana:<br />
82 Conferir anexo 05.<br />
Sua alegria nem sempre alegre<br />
porque há nela dupla febre:<br />
a febre sem patologia<br />
que lhe enfebrece até a gíria,<br />
178
que tanto informa sua festa<br />
e a alma em chispa detrás dela;<br />
e a outra febre, a da doença,<br />
da pobreza da Macarena,<br />
dos operários sem semana<br />
e dos ciganos de Triana:<br />
a febre antiga e popular<br />
que o mundo um dia há de curar<br />
e nada tem com a febre que arde<br />
no que é Sevilha e suas Carmens.<br />
Do comparante “fogo” de suas primeiras bailadoras, relacionado tanto ao contexto<br />
social de que fazem parte, quanto à sensualidade de seus movimentos, o poeta passa a<br />
“febre sem patologia”, mas tão intensa e ardente como a chama do fogo, pois é febre social,<br />
indiciadora da situação de pobreza em que vivem os operários e os ciganos de Triana, por<br />
isso “febre antiga e popular/ que o mundo um dia há de curar”, e que nada tem com a<br />
feminilidade de Sevilha e suas Carmens.<br />
No segundo quadro, o ambiente urbano e a mulher são comparados pelos seus<br />
atributos plásticos, evidenciados no uso de uma linguagem predominantemente adjetiva:<br />
De uma Sevilha tem pudor:<br />
de onde nos balcões tanta flor,<br />
de onde as casas de cor, caiadas<br />
cada ano em cores papagaias,<br />
que fazem cada rua uma festa<br />
que a sevilhana sem modéstia<br />
passeia como em sala sua,<br />
multivestida porém nua,<br />
dessa nudez sob mil refolhos<br />
que só se expressa pelos olhos.<br />
179
Associada às características da cidade, a imagem da sevilhana adquire a aparência<br />
de “multivestida”, mas, para o olhar de quem a contempla, mostra-se “nua”. A partir de<br />
então, a mulher reencontra o símile “chama morena e petulante” das bailadoras, as quais<br />
continuam “pisando esbeltas no chão, /ambas, num andar de afirmação” (MELO<br />
NETO,1997, p.330).<br />
sevilhana:<br />
No terceiro quadro do poema, o poeta tenta experimentar outra imagem da mulher<br />
Pois não quis viver em Sevilha<br />
que é de onde ela não se sabia,<br />
descrente da antropologia<br />
que lhe nega a genealogia:<br />
mas sevilhana nela toda,<br />
como se naufragada forma<br />
viesse a encalhar por engano<br />
nas praias do Espírito Santo.<br />
Não convencido de que a imagem da mulher se basta na imagem da cidade, ou<br />
vice-versa, o poeta retoma a relação entre mulher, a dança por siguiriyas e o cante do<br />
cigano:<br />
Donde o pé atrás, contra Sevilha?<br />
Crê que é só bulha, bulerías?<br />
Sevilha é mais da siguiriya<br />
que é a castelhana seguidilla<br />
que o cigano prende no tanque<br />
de seu silêncio, e fez m cante,<br />
e que a cigana faz em dança,<br />
centrada em si como uma planta.<br />
180
Então, a cidade se configura como espaço ou “praças de bolso, feitas/ para se ir<br />
escutar o tempo/ desfiar carretéis de silêncio.”Finalmente, no último quadro, o poeta deseja<br />
mostrar a sevilhana pela associação entre a mulher e a sonoridade das rimas do poema:<br />
quis dar-lhe a ver em assonantes<br />
o que ambas têm de semelhante.<br />
Mas para sua confusão<br />
o que escreveu até então<br />
de Sevilha, de sua mulher,<br />
de suas ruas, de seu ser<br />
(que Sevilha, se há de entender<br />
é toda uma forma de ser),<br />
o que escreveu até então<br />
se revelou premonição<br />
(MELO NETO, 1997, p. 332)<br />
Portanto, os meios de estruturação das imagens desses textos passam por jogos de<br />
linguagem, na sua maioria de natureza antitética, até que haja a fusão dos opostos,<br />
propiciando um rompimento com o senso comum, com o tipo de poesia que busca fixar um<br />
aspecto do feminino em detrimento de outro. Além disso, percebemos que a organização<br />
das imagens, na sua estruturação enquanto signo, parece constituída como a linguagem da<br />
arquitetura, arte que leva em conta o espaço interior do objeto representado e os efeitos que<br />
esse espaço interior provoca naquele que o percorre.<br />
Por outro lado, por acreditar que a poética de João Cabral é inesgotável no que diz<br />
respeito às possibilidades de relacioná-la com outras linguagens artísticas, tentamos<br />
observar, na seqüência, como o poeta trata uma das questões inevitáveis da modernidade: a<br />
que estabelece um vínculo íntimo entre arte moderna e espaço urbano.<br />
181
5.3.2.ENTRE RECIFE E SEVILHA: MO<strong>DE</strong>RNIDA<strong>DE</strong> E ESPAÇO URBANO EM<br />
JOÃO CABRAL <strong>DE</strong> MELO NETO<br />
Na modernidade, o ser humano está representado, de maneira exemplar, pelo<br />
habitante das grandes cidades, tornando-se, como nos lembra o professor Luis Alberto<br />
Brandão Santos (2006), “testemunha de um novo conjunto de referências concretas e<br />
simbólicas que vai se constituindo a partir da segunda metade do século XIX, e que tem em<br />
Baudelaire seu primeiro grande cronista.”<br />
Esse ser vive na cidade, espaço marcado pela geografia da confusão dos circuitos<br />
congestionados que impede o diálogo. A cidade é considerada o espaço por excelência da<br />
arte do conflito, arte que reflete o "clima" de um mundo em constante ebulição e evolução,<br />
arte que busca o tensionamento das matérias, arte que "desequilibra" e imprime um novo<br />
ritmo, dinâmico e veloz às formas plásticas, sonoras e gráficas.<br />
O que pretendemos mostrar nesta relação entre modernidade, espaço urbano e João<br />
Cabral de Melo Neto é como o poeta tece imagens da cidade.Estariam marcadas pela tensão<br />
entre o ser humano e o meio onde vive? Partimos de uma das linhas mestras da poética<br />
cabralina na construção de suas imagens urbanas: o fascínio por uma linguagem visual,<br />
plástica, “que se dirige à inteligência através dos sentidos.”(MELO NETO, 1989)<br />
Esse breve percurso poderá nos levar a perceber o desejo do poeta de ensinar que a<br />
comunicação poética não se dá unicamente por vias subjetivas, onde a experiência única do<br />
poeta encontra eco na vivência do leitor, considerado apenas como um consumidor do<br />
discurso poético. Já sabemos que para ele, o leitor é “contraparte essencial à atividade de<br />
criar literatura” (MELO NETO, 1998, p.67) Por isso o poeta está sempre preocupado em<br />
182
anunciar os seus procedimentos artísticos, a fim de que possa, acima de tudo, falar claro<br />
com seu leitor.<br />
Comecemos pelo poema “Autocrítica”, no qual João Cabral anuncia o seu modo de<br />
tratar os dois principais espaços geográficos de sua poética:<br />
Só duas coisas conseguiram<br />
(des)feri-lo até a poesia:<br />
o Pernambuco de onde veio<br />
e o aonde foi, a Andaluzia.<br />
Um , o vacinou do falar rico<br />
e deu-lhe a outra, fêmea e viva,<br />
desafio demente: em verso<br />
dar a ver Sertão e Sevilha.<br />
(MELO NETO, 1997, p. 140)<br />
Assim como em “Duas paisagens”, de Paisagens com figuras (1954-1955), o poeta<br />
propõe novamente o entrecruzamento entre dois espaços aparentemente opostos: o<br />
masculino Pernambuco e a feminina Andaluzia. No caso de”Autocrítica”, tanto um espaço<br />
quanto o outro contribuem para o falar cabralino. Da retórica objetiva, seca e contundente<br />
de Pernambuco ao dizer sensível, emocional e sedutor de Sevilha, apreendemos a<br />
plasticidade que fundamenta o universo poético cabralino.<br />
Já no poema “Pregão turístico de Recife”, também do livro Paisagens com figuras<br />
(1954-1955), João Cabral apresenta um espaço tecido pela geografia masculina do sertão,<br />
que encontra no sol com sua luz de agulhas, a sua comparação. Ao mesmo tempo, Recife é<br />
cidade alicerçada pela imagem da pedra, da terra bruta:<br />
Pregão turístico do Recife<br />
A Otto Lara Resende<br />
Aqui o mar é uma montanha<br />
regular redonda e azul,<br />
mais alta que os arrecifes<br />
e os mangues rasos ao sul,<br />
183
Do mar podeis extrair,<br />
do mar deste litoral<br />
um fio de luz precisa,<br />
matemática ou metal.<br />
Na cidade propriamente<br />
velhos sobrados esguios<br />
apertam ombros calcários<br />
de cada lado de um rio.<br />
Com os sobrados podeis<br />
aprender lição madura:<br />
um certo equilíbrio leve,<br />
na escrita , da arquitetura.<br />
E neste rio indigente,<br />
sangue-lama que circula<br />
entre cimento e esclerose<br />
com sua marcha quase nula,<br />
e na gente que se estagna<br />
nas mucosas deste rio,<br />
morrendo de apodrecer<br />
vidas inteiras a fio,<br />
podeis aprender que o homem<br />
é sempre a melhor medida.<br />
Mais: que a medida do homem<br />
não é a morte mas a vida.<br />
(MELO NETO, 1986, p.245)<br />
Em “Coisas de cabeceira, Recife”, de A educação pela pedra (1962-1965), o poeta<br />
busca Recife nos arquivos da memória:<br />
Diversas coisas se alinham na memória<br />
numa prateleira com o rótulo: Recife.<br />
Coisas como de cabeceira da memória,<br />
a um tempo coisas e no próprio índice;<br />
e pois que em índice: densas, recortadas,<br />
bem legíveis, em suas formas simples.<br />
2.<br />
Algumas dela, e fora as já contadas:<br />
o combogó, cristal do número quatro;<br />
os paralelepípedos de algumas ruas,<br />
de linhas elegantes mas grão áspero;<br />
a empena dos telhados, quinas agudas<br />
como se também para cortar, telhados;<br />
184
os sobrados, paginados em romancero.<br />
várias colunas por fólio, imprensados.<br />
(Coisas de cabeceira, firmando módulos:<br />
assim, o do vulto esguio sobrados).<br />
(MELO NETO, 1986, p.10)<br />
Os recortes são feitos a partir de imagens táteis que remetem a coisas duras, ásperas,<br />
agudas. A cidade recuperada pelo poeta tem como alicerce a imagem da pedra, da terra<br />
bruta. Em outros momentos, o poeta consegue apreender a cidade pelo seu oposto, pelo seu<br />
lado “úmido”:<br />
Fazer o seco, fazer o úmido<br />
A gente de uma capital entre mangues,<br />
gente de pavio e de alma encharcada,<br />
se acolhe sob uma música tão resseca<br />
que vai ao timbre de punhal, navalha.<br />
Talvez o metal sem húmus dessa música,<br />
ácido e elétrico, pedernal de isqueiro,<br />
lhe dê uma chispa capaz de tocar fogo<br />
Na molhada alma pavio, molhada mesmo.<br />
*<br />
A gente de uma Caatinga entre secas,<br />
Entre datas de seca e seca entre datas,<br />
se acolhe sob uma música tão líquida<br />
que bem poderia executar-se com água.<br />
Talvez as gotas úmidas dessa música<br />
Que a gente dali faz chover de violas,<br />
Umedeçam, e senão com a água da água,<br />
Com a convivência da água, langorosa.<br />
(MELO NETO, 1986, p.13)<br />
Abraçada pelo mar, pelo canavial, pela cana retilínea e nua, pela lama que envolve o<br />
homem, pela faca só lâmina, enfim, por toda a ambientação de Pernambuco, Recife vai se<br />
configurando as olhos do leitor. Na alternância dramática do úmido e do seco, vive o ser<br />
humano, ferindo a sensibilidade do leitor, através de imagens áridas e agressivas.<br />
A que contexto humano e social essas imagens nos remetem?<br />
185
Vários leitores cabralinos 83 observaram que tais imagens vêm reforçar a sofrida<br />
consciência de nosso atraso, a dura certeza de que a fome e a miséria não são uma<br />
fatalidade, um flagelo divino, mas o produto perverso do subdesenvolvimento. Nesse<br />
sentido, João Cabral resgata suas origens e a memória de seu povo para estruturar as bases<br />
da construção das imagens de Recife. Nesse resgate, o autor parece construir, como nos<br />
lembra Wilton Rossi (2006), uma ponte que ao mesmo tempo une e separa seus dois<br />
extremos, o autor e o leitor, falantes de duas línguas diferentes em dois universos diferentes<br />
conectados pela poesia, unicamente. O leitor toma as rédeas do ponto em que o autor as<br />
largou.<br />
Em decorrência desse processo de rememoração, João Cabral encontra, nos seus<br />
primeiros contatos com a geografia espanhola, o espaço árido do sertão nordestino. Por<br />
isso, em “Imagens em Castela”, do livro Paisagens com figuras (1954-1955), percebemos o<br />
retorno a Pernambuco através da recuperação da aridez da terra e dos elementos que a<br />
compõem:<br />
Imagens em Castela<br />
Se alguém procura a imagem<br />
da paisagem de Castela<br />
procure no dicionário:<br />
meseta provém de mesa.<br />
É uma paisagem em largura<br />
de qualquer lado infinita.<br />
É uma mesa sem nada<br />
e horizontes de marinha<br />
posta na sala deserta<br />
de uma ampla casa vazia,<br />
casa aberta e sem paredes,<br />
rasa aos espaços do dia.<br />
83 Conferir o artigo de Zuenir Ventura intitulado “Homem ainda é a melhor medida - A educação política pela<br />
poética de João Cabral”, disponível em http://epoca.globo.com/edic/19991018/zuenir.htm.<br />
186
Na casa sem pé direito,<br />
na mesa sem serventia,<br />
apenas, com seu cachorro,<br />
vem sentar-se a ventania.<br />
E quando não é a mesa<br />
sem toalha e sem terrina,<br />
a paisagem de Castela<br />
num grande palco se amplia:<br />
no palco raso,sem fundo,<br />
só horizonte, do teatro<br />
para a ópera que as nuvens<br />
dão ali em espetáculo:<br />
palco raso e sem fundo<br />
palco que só fosse chão,<br />
agora só freqüentado<br />
pelo vento e por seu cão.<br />
No mais, não é Castela<br />
mesa nem palco, é o pão:<br />
a mesma crosta queimada,<br />
o mesmo pardo no chão;<br />
aquele mesmo equilíbrio<br />
de seco e úmido, do pão,<br />
terra de águas contadas<br />
onde é mais contado o grão;<br />
aquela maciez sofrida<br />
que se pode ver no pão<br />
e em tudo o que o homem faz<br />
diretamente com a mão.<br />
E mais: por dentro, Castela<br />
tem aquela dimensão<br />
dos homens de pão escasso,<br />
sua calada condição.<br />
(MELO NETO, 1986, p.247)<br />
Além da recuperação do espaço de carência, que atravessa a poética cabralina<br />
sobretudo nos livros da segunda fase em que há as referências a Pernambuco, percebemos o<br />
retorno aos seres que habitam esse espaço, como o cão, o vento e o homem de “calada<br />
condição”, seres que vivem à margem da sociedade:<br />
187
Nas covas de Baza<br />
O cigano desliza por encima da terra<br />
não podendo acima dela sobrepairado;<br />
jamais a toca, sequer calçadamente,<br />
senão supercalçado: de cavalo, carro.<br />
O cigano foge da terra, de afagá-la,<br />
dela carne nua ou viva, no esfolado;<br />
lhe repugna, ele que pouco a cultiva,<br />
o hálito sexual da terra sob o arado.<br />
2.<br />
De onde quem sabe o cigano das covas<br />
dormir na entranha da terra, enfiado;<br />
dentro dela, e nela de corpo inteiro,<br />
dentros mais de ventre que de abraço.<br />
Contudo, dorme na terra uterinamente,<br />
dormir de feto, não o dormir de falo;<br />
encavando a cova sempre, para dormir<br />
mais longe da porta, sexo inevitável.<br />
(MELO NETO, 1986, p.17)<br />
Chama a atenção, nos dois últimos textos citados a forte ligação que existe entre a<br />
terra e o ser que nela habita. É uma relação de pertencimento vital, uterina. A nosso ver,<br />
esse tipo de tratamento dado ao espaço em João Cabral resulta da sua convivência com a<br />
arte espanhola e pode ter sido o seu maior aprendizado. O poeta afirmava em suas<br />
entrevistas que foi preciso distanciar-se do Brasil para saber falar de sua terra e de seu povo<br />
e que os espanhóis contribuíram muito para isso.<br />
Por outro lado, se o intercurso desses dois espaços, Pernambucano e Espanha, evoca<br />
a paisagem natal num primeiro momento, as cidades de Barcelona e Sevilha já surgem<br />
como ambientes que se opõem à condição de paisagem dura e árida:<br />
Coisas de cabeceira, Sevilha<br />
Diversas coisas se alinham na memória<br />
numa prateleira com o rótulo: Sevilha.<br />
Coisas, se na origem apenas expressões<br />
de ciganos dali; mas claras e concisas<br />
188
a um ponto de se condensarem em coisas,<br />
bem concretas, em suas formas nítidas.<br />
2.<br />
Algumas delas, e fora as já contadas:<br />
não esparramarse, fazer na dose certa;<br />
por derecho, fazer qualquer que fazer,<br />
e o do ser, com a incorrupção da reta;<br />
com nervio, dar a tensão ao que se faz<br />
da corda de arco e a retensão da seta;<br />
pies claros, qualidade de quem dança,<br />
se bem pontuada a linguagem da perna.<br />
(Coisas de cabeceira somam: exponerse,<br />
fazer no extremo, onde o risco começa).<br />
(MELO NETO, 1986, p.18)<br />
Como já observamos anteriormente, a linguagem que dá a ver a “mais espanhola<br />
das cidades da Espanha” tem no cantar cigano as suas “formas nítidas”. Linguagem<br />
contida, bem marcada, como passos de uma dança flamenca. Nesse falar “bem pontuado”,<br />
o poeta , transforma a cidade em mulher e vice-versa:<br />
A urbanização do regaço<br />
Os bairros mais antigos de Sevilha<br />
criaram uma urbanização do regaço,<br />
para quem, em meio a qualquer praça,<br />
sente o olho de alguém a espioná-lo,<br />
para quem sente nu no meio da sala<br />
e se veste com os cantos retirados.<br />
Com ruas feitas em pedaços de rua<br />
se agregando mal, por mal colados,<br />
com ruas feitas apenas com esquinas<br />
e por onde o caminhar fia quadrado,<br />
eles têm abrigos e íntimos de corpo<br />
nos recantos em desvão e esconsados.<br />
*<br />
Com ruas medindo corredores de casa,<br />
onde um balcão toca o do outro lado,<br />
com ruas arruelando mais, em becos<br />
ou alargando, mas em mínimos largos,<br />
os bairros mais antigos de Sevilha<br />
criam o gosto pelo regaço urbanizado.<br />
Eles têm o aconchego que a um corpo<br />
dá estar noutro, interno ou aninhado,<br />
189
para quem torce a avenida devassada<br />
e enfia o embainhamento de um atalho,<br />
para quem quer, quando fora de casa,<br />
seus dentros e reguardos de quarto.<br />
(MELO NETO, 1986, p.36)<br />
Apaixonado pelas ruas, pela luz, pelo clima da cidade, o poeta capta a atmosfera<br />
romântica de Sevilha, através de recortes sensoriais, mediados pelo olho, toque e gosto.<br />
Sobre sua paixão por Sevilha, escreveu “Sevilhizar o mundo”:<br />
Como é impossível, por enquanto,<br />
civilizar toda a terra,<br />
o que não veremos, verão,<br />
de certo, nossas tetranetas<br />
infundir na terra esse alerta,<br />
fazê-la uma enorme Sevilha,<br />
que é a contra-pelo, onde uma viva<br />
guerrilha do ser, pode a guerra.<br />
(MELO NETO, 1997, p.366)<br />
Vale ressaltar que Sevilha é cenário para três das mais famosas óperas da história.<br />
Carmen, de Georges Bizet, a cigana destruidora de corações, funcionária da fábrica de<br />
tabacos da cidade; de o Barbeiro de Sevilha, que cantava nas praças do Bairro de Santa<br />
Cruz e Don Juan, de Tirso de Molina, que percorria as estreitas ruas em busca de suas<br />
vítimas. Quaderna (1956-1959) é o livro em que a imagem da cidade de Sevilha é<br />
apresentada também como símbolo do aconchego e da sensualidade do mundo e da mulher:<br />
Sevilha<br />
§A cidade mais bem cortada<br />
que vi, Sevilha;<br />
cidade que veste o homem<br />
sob medida.<br />
190
Justa ao tamanho do corpo<br />
ela se adapta,<br />
branda e sem quinas, roupa<br />
bem recortada.<br />
Cortada só para um homem,<br />
não todo o humano;<br />
só para o homem pequeno<br />
que é o sevilhano.<br />
Que ao sevilhano Sevilha<br />
tão bem se abraça<br />
que é como se fosse roupa<br />
cortada em malha.<br />
§Ao corpo do sevilhano<br />
toda se ajusta<br />
e ao raio de ação do corpo,<br />
ou sua aventura.<br />
Nem com os gestos de corpo<br />
nunca interfere,<br />
qual roupa ou cidade que é<br />
cortada em série.<br />
Sempre à medida do corpo<br />
pequeno ou pouco:<br />
ao tecto baixo de míope,<br />
aos pés do coxo.<br />
Nunca tem panos sobrando<br />
nem bairros longe;<br />
sempre ao alcance do pé<br />
que não tem bonde.<br />
§O sevilhano usa Sevilha<br />
com intimidade,<br />
como se só fosse a casa<br />
que ele habitasse.<br />
Com intimidade ele usa<br />
ruas e praças;<br />
com intimidade de quarto<br />
mais que de casa.<br />
Com intimidade de roupa<br />
mais que de quarto;<br />
com intimidade de camisa<br />
mais que casaco.<br />
E mais que intimidade,<br />
até com amor,<br />
como um corpo que se usa<br />
pelo interior.<br />
191
§O modelo não é indicado<br />
é a nenhum nórdico:<br />
lhe ficará muito curto<br />
e ele incômodo.<br />
Ele ficará tão ridículo<br />
como um automóvel,<br />
dos que ali, elefânticos,<br />
tesos, se movem,<br />
nas ruas que o sevilhano<br />
fez par si mesmo,<br />
pequenas e íntimas para<br />
seu aconchego,<br />
sevilhano em que se encontra<br />
ainda o gosto<br />
de ter a vida à medida<br />
do próprio corpo.<br />
(MELO NETO, 1986, p.166)<br />
Por outro lado, o poeta consegue evidenciar no texto a mistura de origens presente<br />
tanto na arquitetura quanto no ritmo das palmas das dançarinas de flamenco, que parece<br />
resumir, num lamento coletivo, a dramaticidade da alma andaluza. Sevilha tem uma cor, é<br />
vermelha, a cor dos mistérios fascinantes, da sensualidade, do fogo. Tem uma música, o<br />
cante flamenco, cante “lamento mais gemido” que “acaba em explosão.(MELO NETO,<br />
1997, p.47)<br />
Finalmente, em Andando Sevilha (1987-1989), o espaço sevilhano, ao contrário das<br />
grandes metrópoles, é configurado como o espaço ideal, que supre todas as necessidades<br />
humanas:<br />
Sevilha e o progresso<br />
Sevilha é a única cidade<br />
que soube crescer sem matar-se.<br />
Cresceu do outro lado do rio,<br />
cresceu ao redor, como os circos,<br />
conservando puro seu centro,<br />
intocável, sem que seus de dentro<br />
192
tenham perdido a intimidade:<br />
que ela só, entre todas cidades,<br />
pode o aconchego de mulher,<br />
pode o macio existir do mel,<br />
que outrora guardava nos pátios<br />
e hoje é de todo antigo bairro.<br />
(MELO NETO, 1997, p.384)<br />
À medida que “anda” poeticamente por Sevilha, o poeta vai fazendo com que o<br />
movimento se inverta e a cidade passe a desfilar diante de seus olhos, revelando os seus<br />
mistérios e belezas. É um lugar onde vive um povo de espírito guerreiro, como foram os<br />
antigos gregos, fenícios, celtas e romanos. Há a devoção do cristianismo medieval, a magia<br />
dos ciganos, a inteligência dos judeus, o sentimento refinado dos árabes muçulmanos. Em<br />
Sevilha o renascimento se funde com o barroco e a descoberta das Américas com o<br />
modernismo contemporâneo.<br />
Portanto, se para João Cabral, a “poesia se dirige à inteligência, através dos sentidos”,<br />
ao longo de sua trajetória pelo espaço espanhol percebemos a maneira como aquela<br />
realidade foi sentida pelo poeta. Conversas com pessoas da cidade, descrição de paisagens,<br />
de monumentos, audição da música flamenca, cheiro das laranjeiras que ornamentam, tudo<br />
isso foi cantado em versos pelo poeta nordestino.<br />
Enfim, o que podemos depreender desse percurso é que essa é uma poesia que, como<br />
nos lembra Benedito Nunes (2001),<br />
canta menos e conta mais. Ela narra e dramatiza no empenho didático de ''dar a<br />
ver'' o que é e o que há. Divide-se sem partir-se numa voz alta para aglomerados<br />
de feira, sua ''segunda água'', fluvial (Morte e vida severina, p.ex.), e uma voz<br />
baixa da câmara, a ''primeira água'' (Uma faca só lâmina, p.ex.), cisterna que é a<br />
sede do próprio leitor avançando pelos meandros do texto para sorvê-lo.<br />
193
Esta é uma poesia agônica, como nos lembra o crítico, aquela que vive lutando<br />
consigo mesma e contra si mesma. Morrendo e renascendo, oferecendo ao seu leitor a<br />
experiência de um perpétuo recomeço, já que se refaz em cada imagem, se reorganiza em<br />
cada verso, na continuidade de uma mesma linguagem renovada.<br />
194
CONSI<strong>DE</strong>RAÇÕES FINAIS<br />
A proposta geral desta tese foi de inter-relacionar a poesia de João Cabral de<br />
Melo Neto às artes espanholas. O longo caminho que percorremos confirmou que há um<br />
diálogo explícito do poeta com os escritores espanhóis. Com vistas a reafirmar a<br />
autenticidade desses diálogos, empreendemos a tarefa de evidenciar os modos como<br />
acontecem em João Cabral. Concluímos que tal intercurso deve ser visto, sobretudo, a partir<br />
de três fundamentos teóricos: a ênfase dada ao aspecto visual e concreto da linguagem; a<br />
preocupação com o regional; o aproveitamento de motivos espanhóis como possibilidade<br />
estética.<br />
Em relação à preponderância da imagem visual, observamos, nas duas partes da tese,<br />
que João Cabral propõe, inicialmente, um diálogo com algumas estéticas que marcaram as<br />
artes do início do século XX, como o Cubismo e o Construtivismo. Nesse contexto,<br />
pudemos observar o trânsito da poesia cabralina por outras linguagens artísticas, sobretudo<br />
pelos procedimentos adotados nas artes plásticas.<br />
Através da análise de algumas poesias do autor, principalmente daquelas<br />
pertencentes à primeira fase de sua poética, pudemos comprovar que João Cabral parte do<br />
princípio da “visualização-concreção”, a fim de fazer “falar a espessura concreta do objeto,<br />
guinada da linguagem que se auto-define como um falar com coisas aspirando ao falar das<br />
coisas”, como observa Barbieri (1997, p.16).<br />
Nessa perspectiva, o poeta alcança o novo tipo de composição artística que a<br />
modernidade exige, ou seja, aquele resultante do “trabalho do artista” no que se refere à<br />
possibilidade de, diante do fenômeno artístico, possibilitar ao leitor uma atitude de<br />
195
gratuidade, de contemplação diante do texto, sem idéias preconcebidas, a fim de adentrar<br />
no espaço das sensações, percorrer o dentro e o fora da linguagem. Esta é a base da poesia<br />
que atinge a “inteligência através dos sentidos”, resultante de um olhar estético que difere<br />
do olhar do racionalismo cartesiano por desfazer a distinção sujeito-objeto, ao integrar “o<br />
que apreende com o que é apreendido”, como lembra Leyla Perrone-Moisés (NOVAES,<br />
1988) 84 . Assim, essa experiência estética, vivenciada pelo autor-leitor, pressupõe a<br />
dominância do sentido da visão sobre os demais sentidos.<br />
Cientes de que esse aspecto, o visual, é considerado por muitos críticos como o<br />
“ponto diretriz de sua estética, marcada pela presença do elemento espacial no corpo de<br />
seus poemas e na área de seus interesses intelectuais”, como ressalta Antônia T. Herrera<br />
(1995, p.151), constatamos que o processo da visualização atinge as quatro dimensões do<br />
discurso: morfológica, sintática, sonora e semântica.<br />
No plano morfológico, através do uso de neologismos, os quais nos remetem aos<br />
espaço nordestino e espanhol. No sintático, o texto é organizado de tal maneira que as<br />
repetições, os paralelismos, os encadeamentos, os desdobramentos das metáforas inscrevem<br />
movimento ao texto, instaurando um processo de semiose infinita, no plano semântico. No<br />
seu aspecto sonoro, a palavra cabralina recupera a fala contundente e áspera do sertão<br />
nordestino, ao mesmo tempo em que situa o fio agudo do cante flamenco.<br />
No sentido de alcançar essa “realidade visual ou visualizável”, além do<br />
aproveitamento de recursos das artes plásticas, constatamos que João Cabral propõe uma<br />
84 É nessa perspectiva que Leyla Perrone-Moisés (1988) classifica o olhar de Alberto Caeiro, heterônimo de<br />
Fernando Pessoa. A pesquisadora chama a atenção para a proximidade desse olhar objetivo com o olhar<br />
proposto pelas filosofias orientais. De acordo com a autora, “Um famoso mestre zen dizia : ‘Logo que<br />
começas a pensar numa coisa, ela deixa de ser. Precisas vê-la imediatamente, sem raciocinar, sem hesitar’.”<br />
(1988, p. 335)<br />
196
analogia com os procedimentos da dança e do cante flamenco, caracterizados por ele<br />
mesmo como sendo essencialmente visuais: “A música andaluza se associa a movimento de<br />
dança, torna-se visual. Aí eu gosto.”(MELO NETO, 1982) Assim, a poesia cabralina<br />
torna-se “uma poesia de fanopéia”, tal como propõe Cesário Verde em Portugal e García<br />
Lorca, na Espanha, como ressalta o próprio João Cabral.(MELO NETO, 1989)<br />
Quanto ao aproveitamento de elementos regionais, observamos, sobretudo na<br />
segunda parte da pesquisa, que em nenhum momento João Cabral abdica da preocupação<br />
com o fazer literário, uma vez que vai buscar nos clássicos espanhóis a linguagem que o<br />
ajudará a “escrever para o povo”. De o “Poema do Cid” a Gonzalo de Berceo e ao Século<br />
de Ouro, até a Geração de 27, tudo impressiona o poeta pernambucano, fazendo com que<br />
estude os espanhóis “verdadeiramente anos a fio”.(MELO NETO, 1966)<br />
O poeta lembra em seus depoimentos que a convivência com a cultura espanhola<br />
dá-lhe “um afastamento suficiente, não excessivo, para poder escrever sobre o Nordeste”, e<br />
a carreira diplomática liberta-o do que chama de provincianismo de muitos de seus<br />
contemporâneos.(Ibidem) Desse modo, João Cabral prioriza a comunicação com o leitor,<br />
sem abandonar o que João Alexandre Barbosa chama de “princípio da imitação da<br />
forma”(1975, p.224)<br />
No que concerne ao aproveitamento de motivos espanhóis, constatamos, também na<br />
segunda parte, que, primeiramente, João Cabral deixa-se seduzir pelas paisagens femininas<br />
da Espanha, sem perder de vista os espaços masculinos de seu sertão nordestino. Quanto<br />
mais o poeta freqüenta a geografia espanhola, mais aumenta o seu fascínio pela corrida de<br />
touros, pela dança e pela música andaluzas. Esse encantamento de João Cabral confunde o<br />
leitor crítico, o qual começa a pressentir o retorno do poeta à tradição lírica que sempre<br />
197
desprezou 85 , ou então passa a justificar a postura final do poeta em função do momento em<br />
que a obra é produzida, como se todo o percurso anterior perdesse sentido diante de tanta<br />
sensibilidade. 86<br />
A despeito dessas suposições, importa acentuar que, com os espanhóis, João Cabral<br />
aperfeiçoa o seu cante a palo seco, a ponto de torná-lo um “grito mais extremo”, que “tem<br />
de subir mais alto/ que onde sobe o silêncio;”(MELO NETO,1989, p.163). Além do mais,<br />
alguns toureiros ensinam o poeta a “domar a explosão [da flor]/com mão serena e contida/<br />
sem deixar que se derrame/ a flor que traz escondida”(MELO NETO,1989, p.259); o<br />
ferrageiro de Carmona dá-lhe a receita de “forjar: domar o ferro à força,/ não até uma flor<br />
já sabida,/ mas ao que pode ser flor se flor parece a quem o diga”(MELO NETO,1997,<br />
p.289) e os cantores do flamenco, acompanhados de suas bailadoras, mostram que entre<br />
poeta, poesia e leitor tem que haver “intimidade,/ assim no cante que no baile”, pois o poeta<br />
quer uma poesia “que se funciona para o próximo,/ quer um próximo conivente”. (MELO<br />
NETO,1997, p.384)<br />
Talvez a questão mais importante que devemos considerar acerca de João Cabral é<br />
85 Essa é a opinião de Carlos Felipe Moisés, no seu ensaio”Tradição reencontrada: lirismo e antilirismo em<br />
João Cabral: “Romper com a tradição obriga a seguir rompendo indefinidamente, e obriga ao mesmo tempo<br />
conviver para sempre com ela, vale dizer, com o lado indesejado de si mesmo. Para sempre ou até cansar, ou<br />
até que a intransigência ceda. Ceder não seria contrariar a coerência interna daquela poética do rigor? Insistir<br />
até cansar não seria uma forma de violentação? O fato é que a personalidade integral do poeta já não esconde<br />
mais que é constituída também de um lado sombrio, egoísta, sentimental. Por isso o confessionalismo, o autobiografismo,<br />
o tom memorialístico e saudosita dos últimos livros. O subjetivismo declarado, enfim, e não<br />
apenas subentendido.”<br />
86 É o caso de Ivan Junqueira que, no seu discurso de posse na Academia Brasília de Letras, alega que João<br />
Cabral termina a sua obra aos 45 anos, baseando-se no seguinte depoimento de Cabral a Rubem Braga em<br />
1976: "Considero minha obra acabada aos 45 anos. Não no sentido de que não escreverei mais, nem no de que<br />
não publicarei mais. Sim, no sentido de que não me sinto responsável pelo que escrevi e escreverei (talvez)<br />
depois dos 45 anos (...). Mas o que escrevi e talvez escreverei depois de A educação pela pedra é coisa que<br />
escrevi sem a mesma consciência, ou lucidez, do que escrevi antes. Gostaria de ser julgado pelo que escrevi<br />
até os 45 anos. Gostaria de ser considerado um autor póstumo: procurarei ignorar o que dizem, o que acham<br />
do que ainda posso fazer (e do que fiz depois dos 45 anos; isto é, depois de A educação pela pedra). Não sinto<br />
mais em mim a energia que precisei usara para escrever o pouco que escrevi até então.”<br />
198
que a sua proposta de recriação de novas formas de produção cultural e de diferentes meios<br />
de transmissão de um mesmo tema radica-se nos seus intercursos semióticos. Acreditamos<br />
que esses jogos de linguagem oferecem aos leitores contemporâneos possibilidades de<br />
melhor compreensão das chamadas poéticas da modernidade.<br />
Lembramos que o nosso propósito de ler a poesia de João Cabral a partir de suas<br />
relações com outras linguagens artísticas justificou-se na medida em que permitiu mais uma<br />
reflexão sobre os fundamentos do lirismo intelectual do poeta em estudo, os quais são<br />
geralmente tratados na perspectiva da ruptura, isto é, em contraposição à tradição da poesia<br />
brasileira. Apesar de esta proposta de leitura da poesia cabralina em sua relação com as<br />
artes espanholas ousar os primeiros passos, sabemos que um brevíssimo passeio pela<br />
fortuna crítica do poeta em tela confirma a pertinência das idéias que desejamos<br />
aprofundar, principalmente no que concerne à valorização de um tipo de objetividade<br />
marcada pela dimensão visual de suas imagens. A despeito disso, estamos cientes que esse<br />
tema demanda novas investigações, uma vez que, no decorrer da pesquisa, vislumbramos<br />
novas possibilidades de diálogos com escritores espanhóis não mencionados e com artistas<br />
em geral de várias nacionalidades.<br />
Por fim, queremos justificar, nessas considerações finais, o enfoque dado ao<br />
processo de percepção do texto cabralino, numa perspectiva fenomenológica. Conforme<br />
anunciamos na introdução da tese, a nossa trajetória de pesquisa partiu da leitura minuciosa<br />
de poemas, textos críticos, entrevistas, depoimentos e correspondências do poeta. Nesse<br />
sentido, assumimos o lugar de leitor de João Cabral, tentando ser parte ativa no processo.<br />
Em virtude desse procedimento, temos consciência de nossos erros e acertos ao<br />
fazer assertivas. Acreditamos que tais erros e acertos, no entanto, refletem as oscilações de<br />
nossas experiências estéticas diante de uma poética que, a cada leitura, instaura, pela lógica<br />
199
de sua organização, várias possibilidades de abordagem. Em momento nenhum nos<br />
esquecemos de que a poesia cabralina exige do leitor, “mais do que atenção aguçada e<br />
concentração interrogante”, como ressalta Ivo Barbieri (1997, p. 37), mas a contemplação<br />
direta, o corpo-a-corpo com a palavra, a fim de que esta se apresente diante de nós como<br />
algo vivo, que provoque em nós um efeito capaz de nos situar no mundo de forma incisiva,<br />
sem qualquer constrangimento.<br />
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SAVIOLI, Francisco Platão e FIORIN, José Luiz. Para entender o texto: leitura e redação.<br />
10 ed. São Paulo: Ática, 1996.<br />
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VALÉRY, Paul. Variedades. Trad. Maiza Martins de Siqueira. São Paulo: Iluminuras,1991.<br />
VALÉRY, Paul. Eupalinos ou o arquiteto. Trad. Olga Reggiani. São Paulo: Ed.34, 1996.<br />
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210
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Disponível em: http://www.secrel.com.br/jpoesia/lwmartins08c.htm.l.<br />
Acesso em 17/06/1999.<br />
MARTINS, Wilson. A uniformidade dos paradoxos cabralinos. Jornal O Globo, Caderno<br />
Prosa & Verso. Disponível em: http://www.secrel.com.br/jpoesia/wilson08.html.<br />
Acesso em 17/06/1999.<br />
MOISÉS, Carlos Felipe. Tradição reencontrada – lirismo e antilirismo em João Cabral.<br />
Disponível em: .http.//www.secrel.com.br/jpoesia/cfmo02.html.Acesso em 26/06/1999.<br />
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http://www.imaginario.com.br/artigo/a0031_a0060/a0059.shtml.Acesso em 04/12/2006o de<br />
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Gerais<br />
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Acesso em 14/08/2005.<br />
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Paulo Set./Dec. 1998.Disponível em:<br />
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Acesso em 14/08/2005.<br />
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Disponível em:<br />
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MONTEIRO, Vicente do Rego. Vicente do Rego Monteiro: pintor e poeta. Rio de Janeiro:<br />
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VENTURA,Zuenir. Homem ainda é a melhor medida - A educação política pela poética de<br />
João Cabral”, disponível em http://epoca.globo.com/edic/19991018/zuenir.htm. Acesso em<br />
14/08/2005.<br />
Documentários consultados<br />
Duas Águas- João Cabral de Melo Neto; Realização: TV Cultura- 1997; Apoio de<br />
Produção: Canal Sur- Sevilha; Roteiro e Direção: Cristina Fonseca; Produção: Alejandra<br />
Hope e Lina Murano; Pesquisa Iconográfica: Nerci Ferrari e Lina Murano; Iluminação:<br />
Roni Robson da Costa; Áudio: Isac de Mello; Imagens: Elizeu Ferreira; Edição: Carlos<br />
Henrique Carvalho e Cristina Fonseca; Edição de Imagem: Marcelo Stella; Pós-Produção:<br />
Antonio A. Gomes e Dario de Oliveira; Trilha Sonora: Péricles Cavalcanti; Trilha de<br />
Abertura: David Tygel; Poemas (voz) : Arnaldo Antunes<br />
212
Anexo 01<br />
“A Palo Seco”<br />
A R. Santos Torroella<br />
1.1. Se diz a palo seco<br />
o cante sem guitarra;<br />
o cante sem; o cante;<br />
o cante sem mais nada;<br />
se diz a palo seco<br />
a esse cante despido:<br />
ao cante que se canta<br />
sob o silêncio a pino.<br />
1.2. O cante a palo seco<br />
é o cante mais só:<br />
é cantar num deserto<br />
devassado de sol;<br />
é o mesmo que cantar<br />
num deserto sem sombra<br />
em que a voz só dispõe<br />
do que ela mesma ponha.<br />
1.3. O cante a palo seco<br />
é um cante desarmado:<br />
só a lâmina da voz<br />
sem a arma do braço;<br />
que o cante a palo seco<br />
sem tempero ou ajuda<br />
tem de abrir o silêncio<br />
com sua chama nua.,<br />
1.4. O cante a palo seco<br />
não é um cante a esmo:<br />
exige ser cantado<br />
com todo o ser aberto;<br />
é um cante que exige<br />
ANEXOS<br />
ANEXO A: POEMAS<br />
o ser-se ao meio-dia,<br />
que é quando a sombra foge<br />
e não medra a magia.<br />
2.1.O silêncio é um metal<br />
de epiderme gelada,<br />
sempre incapaz das ondas<br />
imediatas da água;<br />
a pele do silencio<br />
pouca coisa arrepia:<br />
o cante a palo seco<br />
de diamante precisa.<br />
2.2. Ou o silêncio é pesado,<br />
é um liquido denso,<br />
que jamais colabora<br />
nem ajuda com ecos;<br />
mais bem, esmaga o cante<br />
e afoga-o, se indefeso:<br />
a palo seco é um cante<br />
submarino ao silêncio.<br />
2.3. Ou o silêncio é levíssimo,<br />
é líquido sutil<br />
que se coa nas frestas<br />
que no cante sentiu;<br />
o silêncio paciente<br />
vagoroso se infiltra,<br />
apodrecendo o cante<br />
de dentro, pela espinha.<br />
2.4.Ou o silêncio é uma tela<br />
que difícil se rasga<br />
e que quando se rasga<br />
não demora rasgada;<br />
quando a voz cessa,<br />
se apressa em se emendar:<br />
213
tela que fosse de água,<br />
ou como tela de ar.<br />
3.1. A palo seco é o cante<br />
de todos mais lacônico,<br />
mesmo quando pareça<br />
estirar-se um quilômetro:<br />
enfrentar o silêncio<br />
assim despido e pouco<br />
tem de forçosamente<br />
deixar mais curto o fôlego.<br />
3.2. A palo seco é o cante<br />
de grito mais extremo:<br />
tem de subir mais alto<br />
que onde sobe o silêncio;<br />
é cantar contra a queda,<br />
é um cante para cima,<br />
em que se há de subir<br />
cortando, e contra a fibra.<br />
3.3. A palo seco é o cante<br />
de caminhar mais lento:<br />
por ser a contra-pêlo,<br />
por ser a contra-vento;<br />
é cante que caminha<br />
com passo paciente:<br />
o vento do silêncio<br />
tem a fibra de dente.<br />
3.4. A palo seco é o cante<br />
que mostra mais soberba;<br />
e que não se oferece:<br />
que se toma ou se deixa;<br />
cante que não se enfeita,<br />
que tanto se lhe dá;<br />
é cante que não canta,<br />
cante que aí está.<br />
4.1. A palo seco canta<br />
o pássaro sem bosque,<br />
por exemplo: pousado<br />
sobre um fio de cobre;<br />
a palo seco canta<br />
ainda melhor esse fio<br />
quando sem qualquer pássaro<br />
dá o seu assovio.<br />
4.2. A palo seco cantam<br />
a bigorna e o martelo,<br />
o ferro sobre a pedra,<br />
o ferro contra o ferro;<br />
a palo seco canta<br />
aquele outro ferreiro:<br />
o pássaro araponga<br />
que inventa o próprio ferro<br />
4.3. A palo seco existem<br />
situações e objetos:<br />
Graciliano Ramos,<br />
desenho de arquiteto,<br />
as paredes caiadas,<br />
a elegância dos pregos,<br />
a cidade de Córdoba,<br />
o arame dos insetos.<br />
4.4.Eis uns poucos exemplos<br />
se ser a palo seco,<br />
dos quais se retirar<br />
higiene ou conselho:<br />
não o de aceitar o seco<br />
por resignadamente,<br />
mas de empregar o seco<br />
porque é mais contundente.<br />
(MELO NETO, 1986, p.160-5)<br />
A Willy Lewin morto<br />
Se escrevermos pensando<br />
como nos está julgando<br />
alguém que em nosso ombro<br />
dobrado imaginamos,<br />
214
e é o primeiro que assiste<br />
ao enredado e incerto<br />
que é como no papel<br />
se vai nascendo o verso,<br />
e testemunha o aceso<br />
de quem está no estado<br />
do arqueiro quando atira,<br />
mais tenso que seu arco,<br />
foste ainda o fantasma<br />
que prele o que faço,<br />
e de quem busco tanto<br />
o sim e o desagrado.<br />
(MELO NETO, 1997, p.72-3)<br />
Joaquim Cardozo na Europa<br />
Ele foi um dos recifenses<br />
de menos ondes e onde mais,<br />
que em lisboas, madrids, paris,<br />
andou no Recife, seus cais.<br />
Como elas todas já sabia<br />
não foi turista ou visitante;<br />
não caminhou guias, programas:<br />
viveu-as de dentro, habitante.<br />
A guerra não o deixou andar<br />
outras que também lhe eram íntimas,<br />
que conhecera no Recife,<br />
habitando-as no espaço-língua.<br />
Confiou-me que se anda igualmente<br />
no cais do Apolo ou nos do Sena,<br />
que foi na Europa (não à Europa)<br />
como na Várzea ou Madalena.<br />
(MELO NETO, 1997, p.133-4)<br />
Cenas da vida de Joaquim Cardozo<br />
A tragédia grega e o mar do Nordeste<br />
Chega o Nordeste de Setembro:<br />
O Inverno se foi, com seus ventos.<br />
Tinham voz própria me dizia:<br />
com as ondas longo discutiam.<br />
Com o Inverno, acaba a temporada<br />
de teatro, a que ele não faltava,<br />
quando ainda engenheiro de campo<br />
arma, à noite, a tenda de pano.<br />
Dizia ouvir, marés inteiras,<br />
diálogos de tragédia grega:<br />
O vento e o mar se apostrofavam<br />
com vozes aos berros, de raiva,<br />
e com tal raiva, com tal nervo,<br />
que dispensava ler o texto.<br />
Dizia sentir o tremendo<br />
da tragédia, seu argumento,<br />
a que o murmurar dos coqueiros<br />
fazia o coro lastimeiro.<br />
Na maré-alta, o pleito sobe,<br />
na maré-baixa, baixa e morre.<br />
O teatro desses personagens<br />
que entoavam vozes sem face<br />
pensava algum dia escrever,<br />
dando ao som um texto que ler.<br />
Seguiria seu ritmo, enchendo-o,<br />
subindo e caindo no silêncio.<br />
Não é essa a curva das estórias?<br />
Não é esse o trajeto da História?<br />
(Não soube se escreveu tais peças.<br />
Talvez, pensando melhor nelas,<br />
achasse ocioso por palavras<br />
em formas vazias tão claras).<br />
Um poema sempre se fazendo<br />
Muito embora sua obra pequena,<br />
vivia escrevendo-se um poema:<br />
não no papel, mas na memória,<br />
um papel de pouca demora.<br />
Na memória, é fácil compor<br />
todo o dia, seja onde for:<br />
sentado, escritor, numa mesa,<br />
215
ou andando, entre a angústia e a pressa<br />
de uma cidade que abalroa,<br />
que exige de quem anda proa,<br />
onde quem anda entre choques<br />
ou se esgueira como quem foge.<br />
Cardozo levava seu poema:<br />
a poesia não leva a pena<br />
de fazê-la, a pena é abstrata,<br />
é o fazer, re-fazer, guardá-la.<br />
E nele vai sem romantismos:<br />
nem o de vir de paroxismos<br />
nem o mais de moda e moderno,<br />
de escalar fingidos infernos.<br />
Ele vivia com seu poema<br />
como outros vivem com sua crença:<br />
a dele é o poema do momento,<br />
que leva sem mudar de gênio.<br />
No Recife, em todas as horas,<br />
no Rio, quem melhor o ignora,<br />
eis como escrevia, me disse,<br />
o poeta que fez o Recife.<br />
Assim, não deu trabalho aos prelos:<br />
se sequer cuida de escrevê-los!<br />
Se só se alguém lhe pede um poema<br />
escreve algum que ainda lembra!<br />
O exilado indiferente<br />
A esse recifense de praias<br />
obrigam-no a deixar seu mapa:<br />
outro pernambucano, truão,<br />
(nada é do grego, Agamenão)<br />
disse que o não queria mais<br />
no espaço de que é capaz.<br />
Seqüestram-no amizades boas,<br />
às carreiras, para as Alagoas<br />
e, dos Maceiós, num navio<br />
vem viver federal, no exílio<br />
(que ele habitaria sem queixa,<br />
nunca de camarinha e mesa).<br />
De calça e paletó de amianto,<br />
ei-lo entre os cantados encantos,<br />
sem sentir que esse mar que o cerne<br />
é o Atlântico do Nordeste:<br />
de Guarabira, Pirangi,<br />
Carne de Vaca, Serrambi.<br />
Recifense, a um cria de engenho,<br />
ditou as canas de seu tempo,<br />
e impaciente, a um mestre-de-obras,<br />
que espera a planta há mais de uma hora,<br />
enquanto diz das sutilezas<br />
da poesia e escrita chinesas:<br />
“Qual, é inconcebível, meu caro,<br />
no Rio, onde o último é o trabalho,<br />
você quer preceder à antiga<br />
conversa de China e poesia.”<br />
Não canavieiro pernambucano,<br />
abria exceção para Campos.<br />
É em Campos que Maria Luísa<br />
e ele ouvem a chuva, sem camisa.<br />
Viagem à Europa e depois<br />
Antes da Guerra, fora à Europa.<br />
Bebeu-a até a última hora.<br />
Por cá, a poesia é sempre o dengue<br />
do falso índio, homossensualmente.<br />
No Nordeste, Freyre e a reação<br />
para trazer a bola ao chão.<br />
Mas é coisa de romancista<br />
não de política, polícia.<br />
Volta da Europa ao “Lafaiete”,<br />
como se inda ontem lá estivesse.<br />
Escreveu três poemas na Europa<br />
dois se apagaram na memória.<br />
Compõe alguns poemas, ainda,<br />
mas quase todos viram cinza,<br />
porque, completados, ninguém<br />
216
colhe da memória onde os tem.<br />
Eis talvez o melhor momento<br />
para ele, de seu desempenho:<br />
a Polícia, na mira, o tem;<br />
mas no “Lafaiete”entretém,<br />
e enquanto entretém, entretece,<br />
em sinal mais, quem lá aparece:<br />
é sem pregação, manifesto<br />
(e o gesto só o vê quem de perto);<br />
sabe o gesto sábio e ambíguo:<br />
é sempre com o mesmo sorriso<br />
que devolve o mau poema-sim<br />
e o fascista-sim porque sim.<br />
Assim viveu até que o Truão.<br />
Até que Oscar pôs-lhe nas mãos<br />
botar Brasília em pé. Qual a moeda?<br />
Deu-nos um novo Frei Caneca.<br />
(MELO NETO, 1997, p.321-5)<br />
Anexo 02<br />
Dentro da perda da memória<br />
A José Guimarães de Araújo<br />
Dentro da perda da memória<br />
uma mulher azul estava deitada<br />
que escondia entre os braços<br />
desses pássaros friíssimos<br />
que a lua sopra alta noite<br />
nos ombros nus de retrato.<br />
E do retrato nasciam duas flores<br />
(dois olhos dois seios dois clarinetes)<br />
que em certas horas do dia<br />
cresciam prodigiosamente<br />
para que as bicicletas de meu desespero<br />
corressem sobre seus cabelos.<br />
E nas bicicletas que eram poemas<br />
chegavam meus amigos alucinados.<br />
Sentados em desordem aparente,<br />
ei-los a engolir regularmente seus<br />
relógios<br />
enquanto o hierofante armado cavaleiro<br />
movia inutilmente seu único braço.<br />
(MELO NETO, 1986, p.376-7)<br />
Poema de desintoxicação<br />
Em densas noites<br />
com medo de tudo:<br />
de um anjo que é cego<br />
de um anjo que é mudo.<br />
Raízes de árvores<br />
enlaçam-me os sonhos<br />
no ar sem aves<br />
vagando tristonhos.<br />
Eu penso o poema<br />
da face sonhada,<br />
metade de flor<br />
metade apagada.<br />
O poema inquieta<br />
o papel e a sala.<br />
Ante a face sonhada<br />
o vazio se cala.<br />
Ó face sonhada<br />
de um silêncio de lua,<br />
na noite da lâmpada<br />
pressinto a tua.<br />
Ó nascidas manhas<br />
que uma fada vai rindo,<br />
sou o vulto longínquo<br />
de um homem dormindo.<br />
A Jarbas Pernambucano<br />
(MELO NETO, 1986, p.378)<br />
Poesia<br />
Ó jardins enfurecidos,<br />
pensamentos palavras sortilégio<br />
sob uma lua contemplada;<br />
jardins de minha ausência<br />
imensa e vegetal;<br />
ó jardins de um céu<br />
217
viciosamente freqüentado:<br />
onde o mistério maior<br />
do sol da luz da saúde?<br />
(MELO NETO, 1986, p.382)<br />
Composição<br />
Frutas decapitadas, mapas,<br />
aves que prendi sob o chapéu,<br />
não sei que vitrolas errantes,<br />
a cidade que nasce e morre,<br />
no teu olho a flor, trilhos<br />
que me abandonam, jornais<br />
que me chegam pela janela<br />
repetem gestos obscenos<br />
que vejo azerem as flores<br />
me vigiando em noites apagadas<br />
onde nuvens invariavelmente<br />
chovem prantos que não digo.<br />
(MELO NETO, 1986, p.382)<br />
Marinha<br />
Os homens e as mulheres<br />
adormecidos na praia<br />
que nuvens procuram agarrar?<br />
No sono das mulheres<br />
cavalos passam correndo<br />
em ruas que soam<br />
como tambores.<br />
Os homens têm espelhos de bolso<br />
onde os gestos das amadas<br />
(as amadas demoradas<br />
se repetem).<br />
Vi apenas que no céu do sonho<br />
a lua morta já não mexia mais.<br />
(MELO NETO, 1986, p.380)<br />
O Poeta<br />
No telefone do poeta<br />
desceram vozes sem cabeça<br />
desceu um susto desceu o medo<br />
da morte de neve.<br />
O telefone com asas e o poeta<br />
pensando que fosse o avião<br />
que levaria de sua noite furiosa<br />
aquelas máquinas em fuga.<br />
Ora, na sala do poeta o relógio<br />
marcava horas que ninguém vivera.<br />
O telefone nem mulher nem sobrado,<br />
ao telefone o pássaro-trovão.<br />
Nuvens porém brancas de pássaros<br />
acenderam a noite do poeta<br />
e nos olhos, vistos por fora, do poeta<br />
vão nascer duas flores secas.<br />
(MELO NETO, 1986, p.382-3)<br />
A André Masson<br />
Com peixes e cavalos sonâmbulos<br />
pintas a obscura metafísica<br />
do limbo.<br />
Cavalos e peixes guerreiros<br />
fauna dentro da terra a nossos pés<br />
crianças mortas que nos seguem<br />
dos sonhos.<br />
Formas primitivas fecham os olhos<br />
escafandros ocultam luzes frias;<br />
invisíveis na superfície pálpebras<br />
não batem.<br />
Friorentos corremos ao sol gelado<br />
de teu país de mina onde guardas<br />
o alimento a química o enxofre<br />
da noite.<br />
(MELO NETO, 1986, p.383-4)<br />
Ocorrências de uma sevilhana<br />
Me confiava uma sevilhana<br />
sem norte na grande Madrid:<br />
218
Nem sei de que lado é que vivo;<br />
só sei que é a três gritos daqui.<br />
Nada disso. Sou muito feia<br />
se pusessem nas mil-pesetas<br />
meu retrato, ninguém queria:<br />
nem de troco, as receberia.<br />
Olhando passar uma velha<br />
que dá na vista de tão suja:<br />
Aquela? nunca tomou banho,<br />
mesmo debaixo de uma ducha;<br />
se alguém a obrigar a duchar-se,<br />
abre na ducha um guarda-chuva.<br />
Num bar da Praça da Campana,<br />
umbigo de Sevilha e da Espanha;<br />
um não-andaluz, da calçada,<br />
levanta-se quando ela passa:<br />
Quié bien domiría contigo<br />
Resposta dela, como um tiro:<br />
Era tudo o que tu farias?<br />
Dormir?Terei cara de pílula?<br />
O que é que tu pensas de Franco?<br />
De que Franco?De Don Francisco?<br />
Imagina a serra do Alcor,<br />
baixinha mas toda em granito.<br />
Nunca ele soube distinguir<br />
quem Pepe Luís quem Manolete,<br />
nem saber se estavam cantando<br />
por fandanguillo ou martinete.<br />
Quando ele vinha por Sevilha<br />
nos faziam dançar, mas digo:<br />
o que lê gostava é de ver<br />
soleares dançadas por bispos.<br />
Tinha próprio dicionário<br />
e própria escada de valores,<br />
onde o degrau mais elevado<br />
era o que dizia salobre.<br />
Infundio nele não é mentira,<br />
coisa de frouxo fundamento:<br />
é o falso com imaginação,<br />
mentira talvez, mas com engenho.<br />
Nesse dicionário as palavras<br />
não deixam de ser entendidas,<br />
mas têm esses desvio mínimo<br />
que faz da língua murcha,viva.<br />
(MELO NETO, 1997, p.231)<br />
A entrevistada disse, na entrevista:<br />
Sou de Cádis, não de Sevilha.<br />
Mas isso é entre nós, não o diga.<br />
O que pode ser para alguém<br />
não nascer em Sevilha, e quem<br />
será capaz de confessar<br />
que nasceu num outro lugar?<br />
Quando a guerra civil bem quis<br />
voltei para onde não nasci.<br />
Sevilha?É o mais grande do mundo,<br />
é onde o alegre toca o profundo.<br />
Madrid?É o lugar onde vais dançar,<br />
mas há carros demais.<br />
Barcelona?Dançar é em vão,<br />
não aplaudem, sentam nas mãos.<br />
Coitados, são de uma outra gente.<br />
Não são?Mas querem que se pense.<br />
Vai para Marselha?Me lembro.<br />
A gente de lá, todo o tempo,<br />
vai e vem, vivendo nas ruas;<br />
não sei onde vai quando a chuva.<br />
Viver em Pernambuco?É longe.<br />
Aloísio falava cabonde<br />
de plantas de cana, de açúcar;<br />
lá tudo é doce ou são doçuras.<br />
219
Mas é longe, a mais de três gritos<br />
de Sevilha.Não vou por isso.<br />
Pernambuco para dançar?<br />
Bem que iria, se contrato há.<br />
A gente de lá, que vi aqui,<br />
diz que tem um Guadalquivir.<br />
Como é mesmo?Capibaribe?<br />
E a capital como é?O Recife?<br />
Por lá passou muito cigano?<br />
Então por que os pernambucanos<br />
sabem habitar tão de dentro<br />
nossa alma extrema, do flamenco?<br />
(MELO NETO,1997, p.235)<br />
Anexo 03<br />
Manolo Gonzáles<br />
Perguntavam muitos: “Porque<br />
tu toureias no extremo do ser,<br />
no limite entre a vida e a morte,<br />
como faz o toureiro pobre?<br />
Não pode fingir perigo,<br />
tourear buscando-se o tranqüilo?<br />
Porque tourear como toureias,<br />
como se fosse a vez primeira?”<br />
Se calava,quase menino,<br />
de cabelo louro de gringo,<br />
menino vestindo outro e prata,<br />
cores da morte celebrada.<br />
(MELO NETO,1997, p.375)<br />
Miguel Baez, “Litri”<br />
Ele toureava cada tarde<br />
num cara-coroa, um jogar-se.<br />
Não podia tourear um touro<br />
se não o fizesse corpo a corpo.<br />
Cada touro como que enrolava<br />
na cintura, como outra faixa,<br />
sem pensar como a despiria<br />
no fim da faena que fazia.<br />
Toureando, chamava a cornada<br />
que cada touro traz guardada,<br />
que não tem ora é sem receita,<br />
como todo touro é surpresa.<br />
(MELO NETO,1997, p.375-6)<br />
Campo de Tarragona<br />
Do alto da torre quadrada<br />
da casa de En Joan Miró<br />
o campo de Tarragona<br />
é mapa de uma só cor.<br />
É a terra da Catalunha<br />
terra de verdes antigos,<br />
penteada de avelã,<br />
oliveiras, vinha, trigo.<br />
No campo de Tarragona<br />
dá-se sem guardar desvãos:<br />
como planta de engenheiro<br />
ou sala de cirurgião.<br />
No campo de Tarragona<br />
(campo ou mapa o que se vê?)<br />
a face da Catalunha<br />
é mais clássica de ler.<br />
Podeis decifrar as vilas,<br />
constelação matemática,<br />
que o sol vai acendendo<br />
220
por sobre o verde de mapa.<br />
Podeis lê-las na planície<br />
como em carta geográfica,<br />
com seus volumes que ao sol<br />
têm agudeza de lâmina.<br />
podeis vê-las, recortadas,<br />
com as torres oitavadas<br />
de suas igrejas pardas,<br />
igrejas, mas calculadas.<br />
Girando-se sobre o mapa,<br />
desdobrado pelo chão<br />
ao pé da torre quadrada,<br />
se avista o mar catalão.<br />
É mar também sem mistério,<br />
é mar de medidas ondas,<br />
a prolongar o humanismo<br />
do campo de Terragona.<br />
Foram águas tão lavradas<br />
quanto os compôs catalães.<br />
Mas poucas velas trabalham,<br />
hoje, mar de tantas cãs.<br />
(MELO NETO,1986, p.253-4)<br />
Paisagem tipográfica<br />
Nem como sabe ser seca<br />
Catalunha no Montblanc;<br />
nem é Catalunha Velha<br />
sóbria assim em Camprodón.<br />
A paisagem tipográfica<br />
de Enric Tormo, artesão,<br />
é ainda bem mais simples<br />
que a horizontal do Ampurdán:<br />
é ainda mais despojada<br />
do que a vila de Cervera,<br />
compacta, delimitada<br />
como bloco na galera.<br />
A paisagem tipográfica<br />
de Enric Tormo, impressor,<br />
é melhor localizada<br />
em vistas de arte menor:<br />
na pobre paginação<br />
de Tarrasa e Sabadell,<br />
nas interlinhas estreitas<br />
das cidades do Vallés,<br />
nos bairros industriais<br />
com poucas margens em branco<br />
da Catalunha fabril<br />
composta em negro normando.<br />
Nas vilas em linhas retas<br />
feitas a componedor,<br />
nas vilas de vida estrita<br />
e impressas numa só cor<br />
(e onde às vezes se surpreende<br />
igreja fresca e romântica,<br />
capitular que não quebra<br />
o branco e preto da página)<br />
foi que achei a qualidade<br />
dos livros deste impressor<br />
e seu grávido ascetismo<br />
de operário (não de Dom).<br />
(MELO NETO,1986, p.260-1)<br />
“Crime na Calle Relator”<br />
“Achas que matei minha avó?<br />
O doutor à noite me disse:<br />
ela não passa desta noite;<br />
melhor para ela,tranqüilize-se.<br />
À meia-noite ela acordou;<br />
não de todo, a sede somente;<br />
e pediu: Dáme pronto, hijita,<br />
una poquita de aguardiente.<br />
Eu tinha só dezesseis anos;<br />
só, em casa com a irmã pequena:<br />
como poder não atender<br />
a ordem da avó de noventa?<br />
221
Já vi gente ressuscitar<br />
como simples gole de cachaça<br />
e arrancarse por bulerías<br />
gente da mais encorujada.<br />
E mais: se o doutor já dissera<br />
que da noite não passaria<br />
por que negar uma vontade<br />
que a um condenado se faria?<br />
Fui a esse bar do Pumarejo<br />
quase esquina de San Luís;<br />
comprei de fiado uma garrafa<br />
de aguardente (cazalla e anis)<br />
que lhe dei cuidadosamente<br />
como uma poção de farmácia,<br />
medida, como uma poção,<br />
como não se mede a cachaça;<br />
que lhe dei com colher de chá<br />
como remédio de farmácia:<br />
Hijita, bebi lo bastante,<br />
Disse com ar de comungada.<br />
Logo então voltou a dormir<br />
sorrindo em si como beata,<br />
um semi-sorriso de gracias<br />
aos santos óleos da garrafa.<br />
De manhã acordou já morta,<br />
e embora fria e de madeira,<br />
tinha defunta o riso ainda<br />
que a aguardente lhe acendera.”<br />
(MELO NETO,1997, p.281-2)<br />
Anexo 04<br />
O sim contra o sim<br />
Miró sentia a mão direita<br />
demasiado sábia<br />
e que de saber tanto<br />
já não podia inventar nada.<br />
Quis então que desaprendesse<br />
o muito que aprendera,<br />
a fim de reencontrar<br />
a linha ainda fresca da esquerda.<br />
Pois que ela não pôde, ele pôs-se<br />
a desenhar com esta<br />
até que, se operando,<br />
no braço direito ele a enxerta.<br />
A esquerda (se não é canhoto)<br />
é mão sem habilidade:<br />
reaprende a cada linha,<br />
cada instante, a recomeçar-se.<br />
(MELO NETO, 1986, p.58)<br />
Anexo 05<br />
De Bernarda a Fernanda de Utrera<br />
A Jatyr de Almeida Rodrigues<br />
Bernarda de Utrera arranca-se o cante<br />
quando a brasa chama a si as chamas;<br />
quando ainda brasa, no entanto quando,<br />
chamado a si o excesso, se desinflama:<br />
Ela usa a brasa íntima no quando breve<br />
em que, brasa apenas e em brasa viva,<br />
arde numa dosagem exata de si mesma:<br />
brasa estritamente brasa, inexcessiva.<br />
Fernanda de Utrera arranca-se o cante<br />
quando a brasa extenuada já definha;<br />
quando a brasa resfriada já se recobre<br />
com o cobertor ou as plumas da cinza.<br />
Ela usa a brasa íntima no quando longo<br />
em que rola calor abaixo até a pedra;<br />
no da brasa em pedra, no da brasa do<br />
[frio:<br />
Para daí reacendê-la, e contra a queda.<br />
(MELO NETO,1986, p.15-6)<br />
Uma bailadora sevilhana<br />
Como e por que sou bailadora?<br />
222
Quando era menina e moça<br />
tinha comprida cabeleira<br />
que me vinha até as cadeiras.<br />
Me diziam: com essas tranças<br />
não pode não votar-se à dança.<br />
Então, me ensinam a dançar.<br />
Sou? O que não pude decorar.<br />
Vendo famosa bailadora:<br />
ei-la apagada, quase mocha.<br />
Não te agrada F... de Tal,<br />
que todo dia sai no jornal?<br />
Não gosto: dança repetido;<br />
dança sem se expor, sem perigo;<br />
dançar flamenco é cada vez;<br />
é fazer; é um faz, nunca um fez.<br />
(MELO NETO,1997,p.233)<br />
Mulher vestida de gaiola<br />
Parece que vives sempre<br />
de uma gaiola envolvida,<br />
isenta, numa gaiola,<br />
de uma gaiola vestida,<br />
de uma gaiola, cortada<br />
me tua exata medida<br />
numa matéria isolante:<br />
gaiola-blusa ou camisa.<br />
E assim como tu<br />
nessa gaiola,cingida,<br />
o vasto espaço que sobra<br />
de tua gaiola-ilha<br />
é como outra gaiola<br />
igual que o mar: sem medida<br />
e aberto em todos os lados<br />
(menos no que te limita).<br />
Pois nessa gaiola externa<br />
onde tudo tem cabida,<br />
onde cabe Pernambuco<br />
e o resto da geografia,<br />
três bilhões de humanidade<br />
e até canaviais de usina<br />
sei que se debate um pássaro<br />
que a acha pequena ainda.<br />
Tal gaiola para ele<br />
mais do que gaiola é brida;<br />
como cárcere lhe aperta<br />
sua gaiola infinita<br />
e lhe aperta exatamente<br />
por essa parede mínima<br />
em que sua gaiola-mundo<br />
com a tua az divisa.<br />
Contra essa curta parede<br />
entre ti e ele contígua,<br />
que te defende e para ele<br />
é de força, se é camisa,<br />
todo o dia se debate<br />
a sua força expansiva<br />
(não de pássaro, de enchente,<br />
de enchente do mar de Olinda).<br />
Por que ele a quem sua gaiola<br />
de outros lados não limita,<br />
deseja invadir o espaço<br />
de nada que tu lhe tiras?<br />
por que deseja assaltar<br />
precisamente a área estrita<br />
da gaiola em que resides,<br />
melhor: de que estás vestida?<br />
(MELO NETO,1986, p.176-8)<br />
Uma ouriça<br />
Se o de longe esboça lhe chegar perto, se<br />
fecha (convexo integral de esfera),<br />
se eriça (bélica e multiespinhenta):<br />
223
e esfera e espinho, se ouriça à espera.<br />
Mas não passiva (como ouriço na loca)<br />
nem só defensiva (como se eriça o<br />
[gato);<br />
sim agressiva (como jamais o ouriço), do<br />
agressivo capaz de bote, de salto (não do<br />
salto para trás, como o gato):<br />
daquele capaz do salto para o assalto.<br />
2.<br />
Se o de longe lhe chega em (de longe),<br />
de esfera aos espinhos, ela se desouriça.<br />
Reconverte: o metal hermético e<br />
[armado<br />
na carne de antes (côncava e propícia), e<br />
as molas felinas (para o assalto),<br />
nas molas em espiral (para o abraço).<br />
MELO NETO,1986, p.21)<br />
Paisagem pelo telefone<br />
Sempre que no telefone<br />
me falavas,eu diria<br />
que falavas de uma sala<br />
toda de luz invadida,<br />
sala que pelas janelas,<br />
duzentos, se oferecia<br />
a alguma manhã de praia,<br />
mais manhã porque marinha,<br />
a alguma manhã de praia<br />
no prumo do meio-dia,<br />
meio-dia mineral<br />
de uma praia nordestina,<br />
Nordeste de Pernambuco,<br />
onde as manhãs são mais limpas,<br />
Pernambuco do Recife,<br />
de Piedade, de Olinda,<br />
sempre povoado de velas,<br />
brancas, ao sol estendidas,<br />
de jangadas, que são velas<br />
mais brancas porque salinas,<br />
que, como muros caiados<br />
possuem luz intestina,<br />
pois não é o sol quem as veste<br />
e tampouco as ilumina,<br />
mais em, somente as desveste<br />
de toda sombra ou neblina,<br />
deixando que livres brilhem<br />
os cristais que dentro tinham.<br />
Pois, assim, no telefone<br />
tua voz me parecia<br />
como se de tal manhã<br />
estivesses envolvida,<br />
fresca e clara, como se<br />
telefonasses despida,<br />
ou, se vestida, somente<br />
de roupa de banho, mínima,<br />
e que por mínima, pouco<br />
de tua luz própria tira,<br />
e até mais, quando falavas<br />
no telefone, eu diria<br />
que estavas de todo nua,<br />
só de teu banho vestida,<br />
que é quando tu estás mais clara<br />
pois a água nada embacia,<br />
sim, como o sol sobre a cal<br />
seis estrofes mais acima,<br />
a água clara não te acende:<br />
libera a luz que já tinhas.<br />
(MELO NETO,1986, p.134)<br />
Sevilha ao telefone<br />
Falo a Sevilha: ao telefone.<br />
Ela, a qualquer hora do dia.<br />
Falo até quando ocupado,<br />
e está quase sempre Sevilha.<br />
Falo mesmo quando ela dorme<br />
(ah! poder despertar Sevilha!),<br />
224
porque sei sempre que está<br />
no extremo da linha vazia:<br />
é um vazio vivo, habitado<br />
por todo o zumbir que é Sevilha<br />
mesmo dormida de todo:<br />
o que é muito pouco por dia.<br />
Ligo o telefone e espero:<br />
melhor se não o atendessem.<br />
Então, é o respirar recado:<br />
fala-me dormindo, e entendo<br />
e me diz tudo o que acordada<br />
por puro pudor não diria:<br />
“Não imagines que sou menos<br />
porque agora estou dormida;<br />
tanto dormindo entre lençóis,<br />
ou no telefone abstraída,<br />
te respondo em mulher inteira,<br />
mais que qualquer outra, Sevilha.”<br />
(MELO NETO, 1997, p.344)<br />
Ainda Sevilha ao telefone<br />
Quando pelo telefone<br />
quero falar com Sevilha<br />
e Sevilha, por acaso,<br />
está no instante dormida,<br />
deixo aberto o telefone<br />
à concha de voz vazia:<br />
ouço então no telefone<br />
como relógio com vida,<br />
toda uma vida passar<br />
como o ácido vivo de ginja.<br />
Ninguém fala ao telefone,<br />
mas há pulsação longínqua;<br />
onde há um pregão de tudo,<br />
onde há pragas de vizinhas,<br />
e se ouve o arfar de cidade<br />
que sabe dormir feminina.<br />
(MELO NETO,1997, p.348)<br />
225
ANEXO B: FIGURAS<br />
FIG.01 – LES <strong>DE</strong>MOISELLES D'AVIGNON - 1907<br />
982 x 1026 pixels - 115k. Museu de Arte Moderna, Nova York Disponível em:<br />
http://www.rainhadapaz.g12.br/projetos/artes/picasso/senhoritas.htm. 2007. Acesso em 29<br />
jan. 2007.<br />
FIG. 02 – HOMENAGEM A PICASSO – 1912<br />
817 x 1056 pixels - 163k – jpg. 2007. Collection of Mrs. and Mrs. Leigh Block, Art<br />
Institute of Chicago Disponível em:www.ibiblio.org. Acesso em 29 jan. 2007.<br />
226
FIG.03 - RETRATO <strong>DE</strong> UNA NIÑA - 1919<br />
160 x 218 pixels - 5k – jpg. Doação Joan Prats. Disponível em:www.spainselecta.com.<br />
2007. Acesso em 29 jan. 2007.<br />
FIG.04 – RETRATO <strong>DE</strong> BAILARINA ESPANHOLA – 1921<br />
151 x 151 pixels - 14k .Disponível em:<br />
fonte:www.elpais.es/.../20040228elpbabart_1_I_SCO.jpg.2007. Acesso em 29 jan. 2007.<br />
227
FIG.05 –LA MASOVERA – 1922-1923<br />
339 x 496 pixels - 42k – jpg.Disponível em: www.clas.ufl.edu.2007. Acesso em 29 jan.<br />
2007.<br />
FIG.06 – RETRATO <strong>DE</strong> MRS. MILLS – 1929<br />
554 x 745 pixels - 27k – jpg. Disponível em: www.abcgallery.com.2007. Acesso em 29 jan.<br />
2007.<br />
228
FIG. 07 – ESCARGOT, FEMME, FLEUR E ÉTOILE - 1934<br />
195 x 172cm.Disponível em: http://www.spanisharts.com/reinasofia/miro.htm.2007.<br />
Acesso em 29 jan. 2007.<br />
FIG. 08 – MUJERES RO<strong>DE</strong>ADAS POR EL VUELO <strong>DE</strong> UN PÁJARO – 1941<br />
300 x 244 pixels - 21k – jpg. Disponível em:www.pitoresco.com.br.2007. Acesso em 29<br />
jan. 2007.<br />
229
FIG.09 - MUJER Y PÁJAROS AL AMANECER. 1946<br />
Depósito Emili Fernández Miró<br />
Disponível em: http://www.bcn.fjmiro.es/.2007. Acesso em 29 jan. 2007.<br />
FIG.10. MUJER Y PÁJAROS A NOCHE – 1968<br />
MIRÓ, Joan. Joan Miro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1994, p.57.<br />
230
FIG.11 – MUJER Y PÁJAROS DIANTE <strong>DE</strong>L SOL – 1972<br />
MIRÓ, Joan. Joan Miro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1994, p.57.<br />
231