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HELÂNIA CUNHA DE SOUSA CARDOSO A POESIA ... - Educadores

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<strong>HELÂNIA</strong> <strong>CUNHA</strong> <strong>DE</strong> <strong>SOUSA</strong> <strong>CARDOSO</strong><br />

A <strong>POESIA</strong> <strong>DE</strong> JOÃO CABRAL <strong>DE</strong> MELO NETO E AS ARTES<br />

ESPANHOLAS<br />

BELO HORIZONTE<br />

FACULDA<strong>DE</strong> <strong>DE</strong> LETRAS<br />

2007


<strong>HELÂNIA</strong> <strong>CUNHA</strong> <strong>DE</strong> <strong>SOUSA</strong> <strong>CARDOSO</strong><br />

A <strong>POESIA</strong> <strong>DE</strong> JOÃO CABRAL <strong>DE</strong> MELO NETO E AS ARTES<br />

ESPANHOLAS<br />

BELO HORIZONTE<br />

FACULDA<strong>DE</strong> <strong>DE</strong> LETRAS<br />

2007<br />

Tese apresentada à Faculdade de<br />

Letras da Universidade Federal de<br />

Minas Gerais – UFMG, como<br />

requisito parcial para a obtenção do<br />

título de Doutor em Estudos Literários<br />

(Área de Concentração: Literatura<br />

Brasileira; Linha de Pesquisa: Poéticas<br />

da Modernidade)<br />

Orientadora: Professora Doutora<br />

Maria Ester Maciel de Oliveira Borges<br />

2


Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)<br />

C268p Cardoso, Helânia Cunha de Sousa.<br />

A poesia de João Cabral de Melo Neto e as artes espanholas / He-<br />

lânia Cunha de Sousa Cardoso. – Belo Horizonte: [s.n.], 2007.<br />

231 f. il.<br />

Orientador: Maria Ester Maciel de Oliveira Borges.<br />

Tese (doutorado) – Universidade Federal de Minas Gerais, Facul-<br />

dade de Letras.<br />

1. João Cabral de Melo Neto. 2. Artes Espanholas. 3. Artes Vi-<br />

suais. I. Título.<br />

CDD: 709.46<br />

3


AGRA<strong>DE</strong>CIMENTOS<br />

A Deus, que me concedeu sabedoria para conduzir esta pesquisa e serenidade para<br />

enfrentar os desafios que a cada passo se postavam no meu percurso.<br />

A meus pais, Edson Ramiro de Sousa e Ana Cunha de Sousa; meus irmãos, Heliana,<br />

Ernando e Edriana, que sempre me apoiaram e me incentivaram em todos os meus projetos,<br />

fazendo-me acreditar na possibilidade da realização de meus sonhos.<br />

Ao meu marido, Pedro Cardoso Filho, e minhas filhas, Ana Cecília e Thaís, pelo<br />

incentivo, pela compreensão nos meus momentos de prolongadas ausências.<br />

À professora Dra. Maria Ester Maciel de Oliveira Borges, que acompanhou de<br />

forma atenta e cuidadosa toda a pesquisa e elaboração do texto.<br />

Aos professores Dra. Melânia Silva de Aguiar, Dra. Lucila Nogueira Rodrigues,<br />

Dra. Marli de Oliveira Fantini Scarpelli, e Dr. Antônio Carlos Secchin, que se dispuseram a<br />

participar de minha banca avaliadora, dividindo comigo suas experiências e conhecimentos.<br />

Às professoras Dra. Maria Zilda Cury e Dra. Sueli Maria Coelho, por aceitarem o<br />

convite para compor a suplência de minha banca.<br />

A todos os professores do Curso de Pós-graduação em Letras, área de Estudos<br />

Literários, pelo convívio intelectual e afetivo durante os quatro anos de UFMG.<br />

4


À Fundação Educacional de Patos de Minas, na pessoa de seu Pró-Reitor de<br />

Planejamento, Administração e Finanças, Prof. Ms. Milton Roberto de Castro Teixeira,<br />

pelo fomento à minha pesquisa.<br />

À Secretária de Estado de Educação, professora Vanessa Guimarães Pinto, por me<br />

liberar das atividades docentes nos quatro anos de pesquisa.<br />

À Diretora da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Patos de Minas,<br />

professora Neusa Helena de Queiroz Borges, pela confiança e pelo apoio que me dispensou<br />

ao longo desses quatro anos de curso.<br />

Ao poeta Francisco Bandeira de Mello e aos professores, Dra. Graciela Ravetti, Ms.<br />

Marcos Antônio Caixeta Rassi, Ms. Roberto Carlos dos Santos, Altamir Fernandes de<br />

Sousa, pelas conversas sobre João Cabral de Melo Neto e os espanhóis.<br />

Aos professores Ms. Mônica Soares de Araújo Guimarães, Ms. Carlos Roberto da<br />

Silva, Ms. Geovane Fernandes Caixeta, Ms. Helena Maria Ferreira, Dr. Luís André<br />

Nepomuceno, Ms.Sidnei Cursino Guimarães Romão, Moacir Manoel Felisbino,<br />

bibliotecária Dione Cândido Aquino, estagiários, amigos da Rede Arte na Escola e da<br />

Escola Estadual “Professor Antônio Dias Maciel”, pelo incentivo e pela confiança ao longo<br />

deste percurso.<br />

A todos aqueles que, direta ou indiretamente, contribuíram para a realização deste<br />

trabalho e cujos nomes possam ter sido, injustamente, olvidados.<br />

5


RESUMO<br />

O presente trabalho propõe a leitura da poesia de João Cabral de Melo Neto a partir<br />

de suas relações com as artes espanholas.Buscou-se evidenciar os modos de estruturação da<br />

linguagem cabralina em comparação com formas e articulações estruturais utilizadas nas<br />

linguagens da arquitetura, da literatura, da pintura, da dança e da música espanholas. Para a<br />

consecução dos objetivos propostos, o texto foi dividido em duas partes, sendo que a<br />

primeira trata dos modos de construção do visível, no contexto da modernidade, e a<br />

segunda recai sobre as formas de intercurso entre a poesia de João Cabral e as obras de<br />

alguns artistas espanhóis. Os resultados obtidos explicitam as variadas realizações desses<br />

diálogos, os quais favorecem a leitura do texto cabralino.<br />

PALAVRAS-CHAVE: João Cabral de Melo Neto. Diálogo. Artes Espanholas.<br />

6


ABSTRACT<br />

This work proposes a reading of João Cabral de Melo Neto's poetry comparing<br />

it to its connection with the spanish arts. It was tried to show the ways of structuring the<br />

cabralina language if compared to figures and structural articulation used on the<br />

language of the spanish architecture, literature, painting , dance and music. To achieve the<br />

proposed goals, the text was separated in two parts, and the first part deals with the ways<br />

of visible construction, taking into account the modern context, and the second part deals<br />

with the interdiscourse between João Cabral's poetry and some pieces of art of some<br />

Spanish artists. The results obtained set out a variety of realizations of these dialogues,<br />

which favour the reading of cabralino’s text.<br />

KEYWORDS: João Cabral de Melo Neto.Dialogue. Spanish Arts.<br />

7


LISTA <strong>DE</strong> FIGURAS<br />

Figura 1 - Les Demoiselles d’Avignon-1907......................................................................226<br />

Figura 2 - Homenagem a Picasso -1912-...........................................................................226<br />

Figura 3 - Retrato de unaniña - 1918-1919 ......................................................................227<br />

Figura 4 - Retrato de bailarina espanhola - 1921............................................................. 227<br />

Figura 5 - La masovera -1922-1923....................................................................................228<br />

Figura 6 - Retrato de Mrs. Mills - 1929.............................................................................228<br />

Figura 7 -. Caracol, mulher, flor e estrela -1934 ............................................................. 229<br />

Figura 8 - Mulheres rodeadas pelo vôo de um pássaro - de 1941....................................229<br />

Figura 9 - Mulher e pássaros ao amanhecer - 1946..........................................................230<br />

Figura 10 - Mulher e pássaro à noite - 1968.....................................................................230<br />

Figura 11 - Mulher e pássaro diante do sol - 1972............................................................231<br />

8


SUMÁRIO<br />

CONSI<strong>DE</strong>RAÇÕES INICIAIS .......................................................................................11<br />

1ª PARTE: A BUSCA <strong>DE</strong> PLASTICIDA<strong>DE</strong> EM LITERATURA................................21<br />

CAPÍTULO 1: MODOS <strong>DE</strong> CONSTRUÇÃO DO VISÍVEL.........................................21<br />

1.1 A imagem visual como exigência da arte moderna........................................................27<br />

1.2 A atualização do modelo cartesiano................................................................................49<br />

1.3 A estética do visível como proposta de testemunho da realidade...................................52<br />

1.4 O racionalismo estético de João Cabral de Melo Neto...................................................53<br />

CAPÍTULO 2: A ESTÉTICA CABRALINA EM EXERCÍCIO...................................66<br />

2.1 Pedra do sono e a organização do texto figurativo na busca da visibilidade..................66<br />

2.2 O exercício cubista em Os três mal-amados...................................................................78<br />

2.3 A fase construtiva do discurso: a visibilidade geométrica e os indícios de um futuro<br />

diálogo com os espanhóis......................................................................................................81<br />

2ª PARTE: JOÃO CABRAL <strong>DE</strong> MELO NETO EM DIÁLOGO COM AS ARTES<br />

ESPANHOLAS....................................................................................................................86<br />

CAPÍTULO 3: OS NÍVEIS DO INTERCURSO <strong>DE</strong> LINGUAGENS...........................86<br />

3.1 A citação por epígrafes....................................................................................................87<br />

3.2 As alusões diretas a nomes ou a processos de criação artística......................................94<br />

3.3 A recorrência a mitos, a temas e a espaços espanhóis..................................................105<br />

CAPÍTULO 4: PRESENÇA DA PINTURA ESPANHOLA EM JOÃO CABRAL ..115<br />

4.1 O cubismo de Picasso....................................................................................................119<br />

4.2 A técnica de Juan Gris...................................................................................................127<br />

9


4.3 O trânsito estético-crítico entre Cabral e Miró..............................................................134<br />

4.3.1 A estética do vivo em Juan Miró................................................................................136<br />

4.3.2 O movimento na poética de João Cabral Melo Neto.................................................140<br />

CAPÍTULO 5: MÚSICA, DANÇA, ARQUITETURA E LITERATURA EM<br />

DIÁLOGO........ ................................................................................................................144<br />

5.1 O cante jondo e seu aproveitamento na poética cabralina............................................147<br />

5.2 A dança flamenca na poética cabralina........................................................................157<br />

5.2 A arquitetura e a poesia.................................................................................................170<br />

5.3 A mulher como espaço sevilhizado na poesia de João Cabral......................................173<br />

5.4 Entre Recife e Sevilha: modernidade, espaço urbano e João Cabral de Melo<br />

Neto.....................................................................................................................................182<br />

CONSI<strong>DE</strong>RAÇÕES FINAIS...........................................................................................195<br />

REFERÊNCIAS ...............................................................................................................201<br />

ANEXOS............................................................................................................................213<br />

10


CONSI<strong>DE</strong>RAÇÕES INICIAIS<br />

O permanente exercício de João Cabral de Melo Neto em torno do ofício da escrita<br />

tem suscitado, ao longo dos anos, estudos de naturezas teórico-críticas diversas. Na maioria<br />

das vezes, tem-se tomado a imagem do poeta pela vertente da inventiva racional, sem se<br />

atentar para a preocupação do autor com a recepção de sua poesia. Foi por perceber, na<br />

linguagem literária de seu tempo, a intransitividade e o hermetismo que João Cabral se<br />

esforçou por apresentar uma poesia dinâmica, não congelada na figura de objeto acabado,<br />

mas impulsionadora de inovacões técnicas, identificando-se como um autor que tenta se<br />

adaptar aos novos tempos, com vistas a atingir o seu leitor.Dentre as inovações propostas<br />

por João Cabral, está o modo como propõe o intercurso com outras formas de linguagens<br />

artísticas.<br />

Isso posto, o objetivo principal desta tese é mostrar como são estabelecidos esses<br />

diálogos interartísticos em sua poesia e quais são os possíveis precursores do poeta nesse<br />

processo. O estudo parte dos poemas, ensaios, depoimentos e casos narrados de viva voz<br />

pelo poeta, bem como de textos pertencentes à sua fortuna crítica.<br />

A relevância da pesquisa está na possibilidade de aprofundar o entendimento sobre<br />

os processos de organização da poética cabralina em sua relação com textos pertencentes a<br />

outros sistemas semióticos, além do literário, como os da pintura, da arquitetura, da música<br />

e da dança espanholas. Até onde pudemos chegar em nossas investigações, observamos<br />

que a hipótese de aproximação de João Cabral aos espanhóis já foi defendida por alguns<br />

estudiosos, os quais propõem, sobretudo, relações entre textos pertencentes ao mesmo<br />

sistema semiótico da literatura, isto é, à linguagem verbal.<br />

11


Por outro lado, esses estudos procuram evidenciar as fases da poesia cabralina em<br />

que tais diálogos acontecem 1 , como é o caso de João Gaspar Simões (1964, p.342) o qual<br />

observa que João Cabral, depois que sai do Brasil, busca na Espanha, “mesmo sem querer,<br />

a ‘razão matemática’ que igualmente rege seus versos em substituição do discursivo<br />

inerente ao romance peninsular.”<br />

Assim, de acordo com o crítico, o interesse do poeta brasileiro pelos espanhóis<br />

surge em decorrência da postura metalingüística assumida na “primeira fase” de sua<br />

trajetória poética. O nome citado nesse contexto é o do poeta espanhol Jorge Guillén (1893-<br />

1984) 2 que, à maneira de um Paul Valéry (1871-1945) 3 , também cultiva a poética do rigor,<br />

como será mostrado adiante.<br />

César Leal (1964, p.4) também admite que a influência da tradição ibérica dá à<br />

poesia cabralina uma nota de austeridade, de contenção. Através do romancero, o poeta<br />

brasileiro passa a dar o sentido e a ordem que sua poesia mais caracteristicamente<br />

1 Em relação às fases da poesia cabralina, João Cabral de Melo Neto, ao publicar o livro Duas águas, em<br />

1956, propõe a seguinte divisão: uma fase construtiva e outra participante. A primeira fase é formada pelos<br />

poemas experimentais, arquitetônicos, feitos para poetas e que versam sobre o próprio fazer poético. A fase<br />

participante volta-se para a problemática social do homem do nordeste e é formada por obras como O cão sem<br />

plumas (1950) e O rio (1953), que são poemas longos sobre os miseráveis habitantes dos manguezais do rio<br />

Capibaribe. Essa última fase, apesar do mesmo rigor estético das obras construtivistas, atinge com mais<br />

facilidade o leitor comum, pois lida com problemas universais do ser humano: a fome, a miséria, as diferenças<br />

sociais. A despeito dessa divisão proposta por João Cabral, em depoimento dado à TV Cultura, por ocasião<br />

do documentário Duas águas, o escritor e ensaísta Décio Pignatari observa que tal critério “é reducionista e<br />

prejudica o entendimento da obra de João Cabral. O pessoal da Academia de Letras e os acadêmicos da<br />

Universidade se contentam com esta divisão e acham que ela explica tudo. Mas não é bem assim. João Cabral<br />

sustenta uma enorme crise, um debate que nunca se resolve, entre a obra de arte em si e a obra de arte<br />

enquanto instrumento de melhoramento e aperfeiçoamento social. Ele mantém esta contradição<br />

constantemente, e isto impregna toda a obra dele. O conflito é rico e é muito mais entranhado." Disponível em<br />

www.tvcultura.com.br/aloescola/literatura/joaocabral/joaocabral3.htm - 23k -<br />

2 Jorge Guillén é um dos importantes poetas da chamada Generación del 27, grupo que inclui nomes como os<br />

de Pedro Salinas, Gerardo Diego, Dámaso Alonso, Federico García Lorca, Luis Cernuda, Vicente<br />

Aleixandre, Rafael Alberti, Emilio Prados, Manuel Altolaguirre, Juan José Domenchina. Dentre outras<br />

propostas, os poetas dessa geração renovaram os estudos de Luis de Góngora y Argote (1561-1627).<br />

3 Poeta-crítico francês pertencente à linhagem dos poetas-críticos nos quais predomina a disciplina no<br />

processo de criação artística.<br />

12


nordestina merece.<br />

Já Eduardo Portella (1956) divide a obra de João Cabral em três períodos<br />

diferentes, ao se referir a Duas águas. O primeiro período, “de espírito francês, valeryano”,<br />

apresenta uma preocupação esteticista, um rigor formal a ponto de afastar o leitor; o<br />

segundo, é o período “espanhol”, ou seja, “quando o poeta reconhece que o exercício<br />

formal não deve ser uma atitude intransitiva e que aos anos de elevação técnica tem de<br />

suceder uma fase de extensão, fase em que a maior preocupação é recuperar o leitor. O<br />

popular, a linguagem falada revaloriza-se então.”(PORTELLA, 1956) Com a intenção de<br />

recuperar o seu leitor, o poeta procura adequar a sua linguagem.Já o último período, na<br />

opinião do crítico, é o da “compenetração dos dois momentos anteriores”(Ibidem), em que<br />

a temática, as formas e as expressões nacionalizam-se. É a fase de Morte e vida severina<br />

(1955-1955).<br />

João Cabral, de certo modo, confirma a observação de Portella ao afirmar que, se<br />

não tematizou o Nordeste antes, foi porque entendia que ainda “não tinha descoberto a<br />

linguagem adequada para falar do Brasil”(MELO NETO, 1968) 4 . Para o poeta, a linguagem<br />

adequada viria, sobretudo, a partir do conhecimento da literatura espanhola:<br />

A Espanha deu-me um afastamento suficiente, não excessivo, para poder escrever<br />

sobre o Nordeste e a carreira [diplomática] libertou-me do provincianismo de<br />

muitos dos meus contemporâneos. (MELO NETO, 1968)<br />

E quando cheguei à Espanha, eu comecei a estudar sistematicamente a literatura<br />

espanhola. Foi uma coisa que me libertou dessa influência francesa que eu tinha<br />

através do Willy Lewin e ao mesmo tempo abriu horizontes para mim enormes.<br />

4 Os depoimentos de João Cabral são extraídos dos livros Correspondência de Cabral com Bandeira e<br />

Drummond., de Flora Sussekind (2001), Idéias fixas de João Cabral de Melo Neto, de Félix de Athayde<br />

(1998) e Civil Geometria – bibliografia crítica, analítica e anotada de João Cabral de Melo Neto 1942-1982,<br />

de Zila Mamede (1987). No corpo do texto, indicamos o ano em que tais depoimentos foram proferidos e nas<br />

referências finais, indicamos, na ordem em que são citados, os nomes dos entrevistadores, seguidos dos<br />

nomes das revistas ou dos jornais onde foram publicados.<br />

13


Porque o espanhol, apesar de ser o povo da Inquisição, o povo católico, o<br />

espanhol tem a literatura mais realista do mundo. Isso foi outra coisa da maior<br />

importância para mim, para eu me reforçar no meu anti-idealismo, no meu antiespiritualismo,<br />

no meu materialismo.(MELO NETO, 1990)<br />

Esses depoimentos demonstram que há, em João Cabral, o desejo de identificação<br />

de sua arte com os padrões europeus, principalmente espanhóis, com os quais conviveu por<br />

treze anos 5 . Em cartas enviadas aos poetas Manuel Bandeira e Carlos Drummond de<br />

Andrade, na época em que morava em Barcelona, João Cabral revela um contato intelectual<br />

muito grande com os escritores da Espanha, tornando-se, diante de seus conterrâneos, uma<br />

espécie de porta-voz da literatura espanhola daquele momento (CARVALHO, 2002).<br />

Aventada, então, a possibilidade de relacionar a poesia de João Cabral à literatura<br />

espanhola, principalmente no que concerne ao aspecto formal da organização da<br />

linguagem, fomos instados a retornar aos depoimentos do poeta pernambucano, com o<br />

propósito de delimitar o nosso tema.<br />

Em entrevista concedida a Antônio Carlos Secchin (1999), em novembro de 1980,<br />

ao ser questionado sobre aspectos que julga mal ou insuficientemente analisados em sua<br />

obra, João Cabral observa:<br />

Acho errado ver Uma faca só lamina exclusivamente como arte poética. Também<br />

ainda não se enfatizou o grande predomínio dos substantivos, adjetivos e verbos<br />

5 João Cabral é transferido como vice-cônsul para o Consulado Geral de Barcelona em 1947.Em 1950, é<br />

transferido para o Consulado Geral de Londres. O poeta retorna ao Brasil em 1952, quando é acusado de<br />

subversão, a fim de responder a inquérito. Colocado em regime de disponibilidade pelo Itamaraty, fica no<br />

Brasil até 1956, ano em que é nomeado cônsul-adjunto em Barcelona. Em 1958, é transferido para o<br />

Consulado-Geral em Marselha. Em 1960, volta à Espanha, como primeiro-secretário da Embaixada, em<br />

Madri. Em 1961, volta ao Brasil, mas, no mesmo ano, retorna à Embaixada em Madri.Em 1962 é transferido<br />

para Sevilha. Em 1964, segue para Genebra. Em 1966, transfere-se para a Embaixada em Berna, no cargo de<br />

ministro-conselheiro. Em 1967, é nomeado cônsul-geral em Barcelona. Em 1968, é eleito para a vaga de<br />

Assis Chateaubriand na Academia Brasileira de Letras, tomando posse em 1969, quando é removido para a<br />

Embaixada em Assunção.Em 1972, é nomeado embaixador do Brasil no Senegal .Em 1979, transfere-se para<br />

o Equador. Em 1981, é nomeado embaixador em Honduras. Em 1982, é removido para Portugal. Em 1987, é<br />

transferido para o Rio de Janeiro, aposentando-se como embaixador em 1990.Em 1992, representa o Brasil<br />

em Sevilha, por ocasião das comemorações do Sete de Setembro.<br />

14


concretos nos meus textos. Sim, porque adjetivos e verbos admitem essa<br />

categoria. Por exemplo: o adjetivo sublime é abstrato, como tristeza. Maçã é tão<br />

concreto quanto o adjetivo torto. A literatura espanhola usa preponderantemente<br />

o concreto, e por isso me interessou. As literaturas primitivas me interessam.<br />

Parece que a linguagem começou pelas palavras concretas. (SECCHIN, 1999, p.<br />

333)<br />

Como podemos observar, o significado da palavra “concreto” para João Cabral<br />

difere do uso do termo situado no contexto de vanguarda brasileira, e em parte daquele<br />

formulado pelo grupo Noigrandes, de São Paulo, apresentado por um artigo de outubro<br />

de 1955, por Augusto de Campos:<br />

Em sincronização com a terminologia adotada pelas artes visuais e, até certo<br />

ponto, pela música de vanguarda (concretismo, música concreta), diria eu que há<br />

uma poesia concreta.Concreta no sentido em que, postas de lado as pretensões<br />

figurativas da expressão (o que não quer dizer: posto à margem o significado), as<br />

palavras nessa poesia atuam como objetos autônomos. Se, no entender de Sartre,<br />

a poesia se distingue da prosa pelo fato de que para esta as palavras são signos<br />

enquanto para aquela são coisas, aqui essa distinção de ordem genérica se<br />

transporta a um estágio mais agudo e literal, eis que os poemas concretos<br />

caracterizar-se-iam por uma estruturação ótico-sonora irreversível e funcional, e,<br />

por assim dizer, geradora da idéia, criando uma entidade todo-dinâmica,<br />

‘verbivocovisual’ – é o termo de Joyce – de palavras dúcteis, moldáveis,<br />

amalgamáveis, à disposição do poema. (CAMPOS, apud TELES, 1979, p.178)<br />

Observamos que a idéia de “concreto” formulada pelo poeta pernambucano não<br />

coincide com o dos concretos, embora apresente certos traços valorizados por eles, como a<br />

exploração da materialidade da linguagem, em sua dimensão plástica e sonora. Ou seja, o<br />

conceito cabralino, por não se circunscrever ao culto da palavra como um objeto autônomo,<br />

é mais amplo e matizado que o do concretismo brasileiro, aproximando-se mais da proposta<br />

dos teóricos da análise do discurso 6 , os quais observam que a idéia de “concreto” não se<br />

restringe apenas aos substantivos, mas estende-se aos adjetivos e verbos, como “vermelho”<br />

6 Referimo-nos aos preceitos de Jean-Michel Adam (1987), traduzidos por Francisco Platão Savioli e José<br />

Luiz Fiorin (1996).<br />

15


e “abanar-se”, palavras que contêm um grau de concretude maior do que as palavras<br />

“tolerante” e “invejar”, por exemplo. Nesse sentido, eles entendem que concreto e abstrato<br />

não são dois pólos absolutamente opostos. Assim, no tocante à opinião de João Cabral, o<br />

interesse pela literatura espanhola advém do modo como tenta redimensionar o uso do<br />

vocábulo concreto.<br />

Nesse contexto, João Cabral cita nomes que vão desde a vertente realista e objetiva<br />

que surgiu na Espanha com a literatura épica primitiva – principalmente o romancero e a<br />

novela picaresca – no período anterior ao chamado Século do Ouro espanhol, até poetas<br />

da Geração de 27, como Miguel Hernández, García Lorca e outros, em que se percebe a<br />

preponderância do uso de uma linguagem plástica, concreta.<br />

Por outro lado, além do visível interesse pelo uso do concreto, João Cabral chama a<br />

nossa atenção também para os possíveis diálogos entre as literaturas portuguesa, espanhola<br />

e brasileira pela valorização da cultura popular:<br />

A literatura espanhola é grande porque é, sobretudo, a mais realista do mundo. É<br />

a que tem bases mais profundamente populares. Até mesmo nos clássicos, como<br />

Cervantes, Quevedo, mesmo em Góngora, se encontra a presença do povo, do<br />

popular. Em Góngora, observamos bastante o realismo, por vezes rude, áspero<br />

[...] o espanhol é o povo do concreto. (MELO NETO, 1952)<br />

Sim, eu creio que uma das coisas formidáveis que nós latinos, ibéricos e iberoamericanos<br />

temos é a tradição de um teatro visceralmente popular, desde Gil<br />

Vicente e Lope Rueda, até Lope de Vega, Calderon e Tirso de Molina. Quanto a<br />

mim, essa tradição tem uma vitalidade extraordinária e pode ajudar muito todos<br />

aqueles que pretendem criar um teatro e um tempo moderno e popular. Não só no<br />

teatro. O verso camoniano e garciliano, à exceção dos decassílabos, é popular. Os<br />

nossos grandes utilizaram indistintamente formas eruditas e não eruditas de<br />

expressão. O seu verso subsiste ainda na literatura popular de Portugal, Espanha e<br />

Brasil. (MELO NETO, 1966)<br />

Sobre o tipo de realismo que João Cabral valoriza na literatura espanhola,<br />

acreditamos que seja aquele resultante de um processo criativo que demanda uma atitude<br />

16


vigilante do autor diante do ato da escrita, com vistas a alcançar um tipo de objetividade ou<br />

de realismo distintos da objetividade e do realismo que concebe a literatura como uma<br />

técnica para a imitação direta da aparência das coisas. Nessa perspectiva, em conformidade<br />

com as teorias da arte contemporânea 7 que tratam do sentido da palavra mímesis, João<br />

Cabral nega a concepção que defende a idéia de reflexo ou reprodução da realidade.<br />

Portanto, de acordo com os depoimentos do poeta em estudo, as maiores qualidades<br />

da literatura da Espanha são o uso da palavra concreta, tomada, sobretudo, em sua<br />

dimensão plástica; o realismo da linguagem, considerando a linguagem como realidade<br />

primeira do homem, usada no seu caráter popular.<br />

Sob este ponto de vista, esse fascínio de João Cabral pelos espanhóis poderia ser<br />

visto como “uma ânsia coletiva de afirmar componentes europeus de nossa formação”,<br />

conforme propõe Antonio Candido (2000, p. 110) ao se referir ao intelectual brasileiro. A<br />

nosso ver, no entanto, esse parece não ser o caso de João Cabral, já que o aproveitamento<br />

da temática popular e da técnica de versejar espanhola é mais visível nas obras escritas na<br />

Espanha. Acreditamos que, longe de casa, em contato com uma cultura que valoriza o<br />

prosaico, ecoa com mais nitidez a voz do povo nordestino que se dá a ver num ritmo<br />

áspero e contundente.<br />

O passo seguinte, então, foi verificar se os traços da literatura espanhola destacados<br />

pelo poeta brasileiro são reconhecidos pelos críticos de arte daquele país. Para nossa<br />

surpresa, entre os nomes mais tradicionais da Espanha, observamos que há um consenso<br />

acerca de algumas constantes que marcam as obras produzidas pelos artistas espanhóis.<br />

7 De acordo com Herbert Read (1991, p.72), desde o Filebo, última obra de Platão, há o abandono definido da<br />

teoria da mimese como imitação direta da aparência das coisas.<br />

17


Apontam como marcas tradicionais o uso da palavra concreta, a ininterrupta adesão aos<br />

ideais nacionais e a vigência da tradição local em suas manifestações artísticas.<br />

Na concepção de Ramón Menéndez Pidal (apud LÓPEZ, 1957, p.404), por<br />

exemplo, as tendências mais significativas da literatura espanhola na Idade Média são o<br />

gosto pelas formas de expressão mais sóbrias e espontâneas ou a aversão a tudo quanto se<br />

supõe que sejam artifícios ou complicações excessivas; a inclinação para um tipo de arte<br />

realista, oposta tanto ao fantástico, quanto às vagas impressões abstratas. Reforçando essa<br />

tendência da literatura espanhola em objetivar o texto, José García López (1957) observa<br />

que muitos escritores espanhóis tendem a eliminar todo tipo de retórica desnecessária,<br />

oferecendo-nos um tipo de lírica mais objetiva, mais concreta.<br />

Diante dessas informações relevantes para a delimitação de nosso objeto de<br />

pesquisa, surgiu a dúvida quanto ao corpus literário que seria utilizado, já que a presença<br />

espanhola parece marcar a produção de João Cabral em todas as suas fases. A fim de evitar<br />

a exaustiva análise de todos os livros do poeta, como tradicionalmente tem acontecido,<br />

penamos em priorizar as obras publicadas a partir de A escola das facas (1975-1980). No<br />

entanto, percebemos que, desde o primeiro livro, João Cabral já indicia, na busca de uma<br />

linguagem visual, a possibilidade de inter-relação com outras artes. Assim, a nossa tarefa<br />

foi selecionar poemas que evidenciam os modos como acontecem esses diálogos; se no<br />

plano estrutural dos textos, através do aproveitamento da técnica de composição dos versos;<br />

se na organização sintática do discurso; ou se apenas através da recorrência a temas<br />

comuns.<br />

Nesse contexto, o método escolhido foi o da análise de textos em seus vários níveis,<br />

partindo de autores que propõem os fundamentos da arte visual no contexto da<br />

modernidade e daqueles que discutem as possibilidades de relações intertextuais.<br />

18


Admitimos que não conseguimos manter a coerência que desejávamos na escolha desses<br />

nomes. Em parte, porque, como o nosso objetivo inicial foi articular procedimentos<br />

estéticos, entendemos que o poema e sua escritura deviam ser prioridade no momento da<br />

interpretação; e em parte porque a nossa postura interpretativa variou de acordo com a<br />

temática abordada em cada poema: ora nos ativemos à análise do discurso poético, ora<br />

inter-relacionamos processos de criação artística, ora procuramos mostrar como esses<br />

processos derivam de circunstâncias socioeconômicas ou ideológicas.<br />

Essa variação está refletida na estrutura de nossa tese: embora esteja divida em duas<br />

partes, cada parte teve que ser subdividida em capítulos, nos quais acabamos tratando de<br />

questões teóricas e análises de textos ao mesmo tempo.<br />

Desse modo, para efetivar o estudo proposto, empreendemos inicialmente uma<br />

pesquisa bibliográfica e analítica, visando a estabelecer os principais fundamentos da<br />

proposta estética do poeta em estudo. Mostramos, na primeira parte, a ênfase na<br />

plasticidade da linguagem, como princípio norteador da escrita do poeta, sendo que, no<br />

primeiro capítulo, discutimos a perspectiva visual da arte contemporânea e buscamos as<br />

principais vertentes desse pensamento em arte, a fim de recuperar o tipo de racionalidade<br />

proposta pelo poeta em seu discurso teórico-crítico. No segundo capítulo, aprofundamos as<br />

nossas análises de textos das duas primeiras obras de João Cabral, com o intuito de<br />

evidenciar os recursos utilizados pelo poeta na primeira fase de sua produção artística, se de<br />

natureza estrutural, sintática ou semântica.<br />

Na segunda parte de nosso estudo, tentamos estabelecer os diálogos entre literatura<br />

e outras artes, sem perder de vista o grau de sugestionabilidade dos textos cabralinos e a<br />

identificação de seus níveis de intercurso com outras linguagens artísticas. A segunda parte<br />

19


foi dividida em três capítulos. No primeiro, tentamos explicitar os modos pelos quais a<br />

poética cabralina dialoga com as artes espanholas. Nos dois últimos capítulos, propusemos<br />

a leitura de poemas em suas relações com essas artes, atentando para as teorias que<br />

fundamentam esses trânsitos inter-semióticos.<br />

Por fim, nas considerações finais, pontuamos as principais questões discutidas ao<br />

longo dessa pesquisa, bem como as conclusões a que chegamos no final de uma acurada<br />

reflexão.<br />

20


1ª PARTE<br />

A BUSCA <strong>DE</strong> PLASTICIDA<strong>DE</strong> EM LITERATURA<br />

CAPÍTULO 1<br />

MODOS <strong>DE</strong> CONSTRUÇÃO DO VISÍVEL<br />

João Cabral de Melo Neto lança seu primeiro livro de poesia em 1942, depois de<br />

consolidado o modernismo brasileiro e de redefinida a nossa cultura. Esse papel coube às<br />

gerações de 1922 e de 1930, como observa Antonio Candido (2000). Aos poetas de 1940<br />

em diante, coube a realização de pesquisas formais 8 e psicológicas na poesia, ou então<br />

abdicaram do papel de escritores e se tornaram especialistas em propagandas e panfletos<br />

políticos. O aumento gradativo do número de leitores nos primeiros decênios do século XX,<br />

o surgimento de numerosas editoras, a concorrência de meios de comunicação mais<br />

expressivos, como o rádio, o cinema, o teatro etc., são alguns dos fatores que justificam as<br />

inovações formais em literatura nesse período.<br />

No caso de João Cabral, percebemos que é consensual a idéia de que o poeta<br />

pernambucano apresenta uma proposta artística que, desde a primeira fase, problematiza<br />

um tipo de lirismo cristalizado na tradição da poesia brasileira, ao condenar o<br />

sentimentalismo e o emocionalismo e ao postular um novo tipo de objetividade para a<br />

poesia. Não há dúvidas de que essa nova objetividade é marcada pela ênfase na pesquisa<br />

estética, sem a preocupação com o engajamento político-social do texto, como reza a<br />

8 Neste estudo, empregamos o termo forma e seus correlatos de acordo com a concepção clássica definida<br />

por Herbert Read como “uma certa relação harmônica ou proporcional das partes com o todo e umas com as<br />

outras que pode ser analisada e finalmente reduzida a número.” (READ, 1967, p.98)<br />

21


geração de 30, ou seja, visando à literatura de testemunho da realidade. Como acentua<br />

Antônia Torreão Herrera (1995),<br />

sua questão é como não dizer esse Nordeste, já todo ele mediatizado pela<br />

interferência do ficcional de excessivo peso conteudístico, semantizado<br />

sentimentalmente numa ilusão mimética que imagina o signo transparente e capaz<br />

de fazer por ele falar o real como um dado a priori. Resta ao poeta instaurar uma<br />

nova linguagem como novo modo de ver – uma “forma fecunda em idéias”, que<br />

possa dar a ver nela a realidade -, e que não se propõe a dizer. (HERRERA, 1995,<br />

p.151)<br />

Nessa perspectiva, de acordo com os textos críticos de João Cabral, o poeta<br />

moderno tem necessidade de repensar a função da poesia de seu tempo e introduzir em sua<br />

obra pelo menos uma das seguintes atitudes mentais: “captar mais completamente os<br />

matizes sutis, cambiantes, inefáveis, de sua expressão pessoal” e “apreender melhor as<br />

ressonâncias das múltiplas e complexas aparências da vida moderna”.(MELO NETO, 1998,<br />

p.97) 9<br />

Em face do nosso desejo de discutir o sentido da objetividade pensada pelo poeta<br />

pernambucano e de observar quem são os seus precursores, buscamos todas as afirmações<br />

que João Cabral faz acerca da idéia de hermetismo, linguagem, lirismo, literatura, poesia,<br />

forma, e termos afins. Na maioria das vezes, percebemos que é enfatizada a idéia de um<br />

escrever claro:<br />

(...)Eu, quando escrevo, o meu esforço não é escrever harmonioso, não é escrever<br />

bonito, é escrever claro. Não me dar a entender como a linguagem matemática,<br />

mas dar a ver aquela coisa da maneira mais clara. No poema não só há uma<br />

obrigação moral do poeta ser claro, como também eu tenho a impressão de que o<br />

esforço mais fecundo que ele pode fazer é procurar ser claro. (MELO NETO,<br />

1989)<br />

9 Essa é a tese do poeta, ao tratar da função moderna da poesia, em 1954.<br />

22


Sob esse aspecto, escrever claro, dar a ver a realidade não significa simplesmente<br />

organizar o texto dentro de uma lógica matemática, geométrica, ou como rezam algumas<br />

propostas de objetividade que antecedem a produção poética de João Cabral, sobretudo no<br />

Brasil 10 , mas usar palavras concretas.<br />

Por isso, ao se referir aos três tipos de poesia propostos por Erza Pound, o poeta<br />

afirma que as poesias portuguesa e brasileira são “preponderantemente melopéia e<br />

logopéia” (MELO NETO, 1958), ou seja, poesia de sugestão auditiva e poesia que<br />

transmite uma idéia, respectivamente. A poesia cabralina é vista por ele mesmo como uma<br />

poesia de “fanopéia”, isto é, aquela que apresenta uma realidade visual ou visualizável. Este<br />

tipo de poesia, a fanopéica, ao sugerir uma maçã, por exemplo, cria um símbolo, um objeto<br />

concreto, que pode ser lido tanto pelo escritor, como pelo leitor, por dar a ver o que o<br />

escritor quer dizer. Desse modo, a comunicação entre os dois se estabelece prontamente,<br />

porque quando se lê maçã, não se lê o conceito de maçã. Ao passo que melancolia, cada<br />

um lê de um jeito. Para João Cabral a palavra concreta, porque muito mais sensorial, é<br />

sempre mais poética do que a palavra abstrata, pois a palavra concreta é a palavra entendida<br />

pelos sentidos e a palavra abstrata é a palavra que se atinge pela inteligência. (MELO<br />

NETO, 1989)<br />

Em virtude dessas afirmações, perfilamos a racionalidade cabralina à vertente que<br />

pretende a organização de um tipo de linguagem literária que corporifica a palavra, a fim de<br />

que esta seja percebida pelo leitor e se encarne como algo que produza uma nova e<br />

10 Na seqüência deste primeiro capítulo, tentaremos evidenciar as diferenças que existem entre o projeto de<br />

objetividade de João Cabral e as propostas que marcaram as gerações que precederam o poeta, sobretudo a<br />

geração de 30, de acordo com os estudos de Flora Sussekind (1984)<br />

23


diferente ordem significativa 11 , isto é, numa perspectiva fenomenológica 12 . Nesse sentido,<br />

devemos observar que o ato de corporificar o pensamento como imagem vai além da<br />

simples preocupação com o fazer artístico, pois visa a alcançar as sensações dadas pela<br />

natureza do objeto.O próprio poeta tenta explicar esse processo, ao falar da influência de<br />

Murilo Mendes em sua poética:<br />

Pois bem: creio que nenhum poeta brasileiro me ensinou como ele a importância<br />

do visual sobre o conceitual, do plástico sobre o musical (a poesia dele, que tanto<br />

parecia gostar de música, é muito mais de pintor ou cineasta do que de músico).<br />

Sua poesia me ensinou que a palavra concreta, porque sensorial, é sempre mais<br />

poética do que a palavra abstrata, e que assim a função do poeta é dar a ver (a<br />

cheirar, a tocar, a provar, de certa forma a ouvir: enfim, a sentir) o que ele quer<br />

dizer, isto é, dar a pensar. (MELO NETO, 1976)<br />

Além de Murilo Mendes, percebemos que essa tendência em estruturar um tipo de<br />

linguagem que alcance a forma do objeto pela sua concretude também advém de outras<br />

leituras do poeta. Graciliano Ramos, por exemplo, é o nome citado por João Cabral, no<br />

momento em que a temática do texto problematiza a propensão formal e social da<br />

linguagem literária, ou seja, quando tenta articular o “fazer e o dizer” no seu canto “A palo<br />

seco” 13 :<br />

11 Chamamos a atenção para o perigo de confundirmos potencialidade significativa da linguagem de João<br />

Cabral com ambigüidade discursiva, recurso marcado pelo poder de sugestão, que permite o mistério, a<br />

indefinição do texto. A priori, tal efeito ofuscaria a clareza da expressão, embora o próprio poeta tenha<br />

admitido essa ambigüidade em alguns de seus depoimentos: “Agora eu sinto que apesar de todo meu esforço<br />

de não ser hermético, eu sou um poeta hermético, disso não tenho dúvida.” (In: 34 Letras. Rio de Janeiro, nº<br />

03, março, 1989, p.44)<br />

12 Partimos das concepções de percepção fenomenológica apresentadas por Marilena Chauí (2002), na obra<br />

Convite à Filosofia.Para a autora, em nosso século, a Fenomenologia e a Gestalt alteraram bastante as<br />

teorias do conhecimento apresentadas pelas tradições empirista e intelectualista, conforme observaremos ao<br />

longo de nosso estudo.<br />

13 Para evitar a transcrição de todos os textos no corpo da tese, aqueles que repetem aspectos já analisados ou<br />

que não sejam analisados verso a verso, serão apresentados sob a forma de anexos ou fragmentados. Os<br />

anexos serão numerados de acordo com o capítulo a que se referem.Por exemplo: capítulo 01, consultar anexo<br />

01.<br />

24


A palo seco existem<br />

situações e objetos:<br />

Graciliano Ramos,<br />

desenho de arquiteto,<br />

as paredes caiadas,<br />

a elegância dos pregos,<br />

a cidade de Córdoba,<br />

o arame dos insetos.<br />

(MELO NETO, 1986, p.164)<br />

Ciente da impossibilidade de dizer o real, de Graciliano Ramos o poeta aprende a<br />

direcionar o seu canto para a linguagem do objeto, por isso recorre a recursos de construção<br />

da imagem que possam dar a ver uma realidade contida na imagem mesma.<br />

Tentando esclarecer essas questões de maneira mais objetiva, alguns anos mais<br />

tarde, em fevereiro de 1970, em entrevista a Ruiz Nestosa 14 , João Cabral volta a falar sobre<br />

a função da poesia na era moderna, lembrando que à poesia não se pode atribuir a função<br />

de outros gêneros literários. O poeta brasileiro alega que a poesia e a arte devem ter algum<br />

comprometimento, mas que isso não pode ofuscar a personalidade do artista.João Cabral,<br />

nesse contexto, refere-se, sobretudo, ao realismo socialista praticado pelos espanhóis nos<br />

14 [...] la poesia cumple una gran función en la sociedad contemporánea. Pero es la misma función que cumple<br />

toda la actividad intelectual, y no hay buscarle, de ningun modo, una función especial y diferente. No hay por<br />

qué atribuirle una función específica como pretenden muchos, y com ella se puede hacer todo lo que se puede<br />

hacer con todos los otros géneros. La única función de la poesia es decir la verdad. No mentir, como todo el<br />

arte. Y la única obligación del intelectual es para con la verdad [...] Para mí, el viejo y contravertido tema del<br />

intelectual y el compromiso, se reduce a lo que decía: compromiso com la verdad. El artista no debe<br />

comprometerse com ninguna ideologia, aun cuando algunos creen que deben comprometerse con un partido<br />

político. Es cierto que la verdad no es algo absoluto.Pero la obrigación del artista es decir aquello que él cree<br />

es verdad, la verdad de cada uno. Si el artista se compromete con un partido político, pierde su libertad ya que<br />

ese partido le impone una línea, y no se puede hablar entonces, com sinceridad, de una verdad que se le<br />

impone a uno[...],/De todos modos, creo que lo mas importante para un artista es conocerse de manera<br />

exhaustiva para no hacer algo para lo qual él no está habilitado. Y esto es importante, pues el artista tiene<br />

muchísimas más posibilidades de equivocarse por que es muy sensible a la moda. [...]/ Pero la literatura es<br />

algo pendular. Hoy los jóvenes se reúnem alrededor de mi poesia y no se acuerdan de Schmidt. Mañana se<br />

reunirán de nuevo alrededor de él y se olvidarán de mi. Y asi sucesivamente[...].<br />

25


anos 40, começo dos 50, segundo Joan Brossa (1919-1998). 15 O poeta pernambucano<br />

discorda do realismo espanhol, considerando que aquele tipo de literatura inibe a força<br />

individual. Para João Cabral, a força individual, aquilo que é do artista, não pode ser<br />

oprimido por nenhuma ideologia. Sua idéia é que a poesia deve indicar um caminho de<br />

crítica social, mas sem jamais se submeter a qualquer teoria.<br />

Portanto, nos dois momentos em que fala da função da poesia, temos a impressão de<br />

que João Cabral tenta desarticular o fazer poético do poeta moderno da questão político-<br />

social, como se a poesia estivesse acima de qualquer intenção ideológica ou partidária.<br />

Dizer a verdade em poesia não significa, para o autor, converter a literatura em testemunho<br />

da realidade, mas em oferecer uma das possibilidades de apreensão dessa mesma realidade.<br />

Luiz Costa Lima (1967), em entrevista, foi um dos primeiros críticos a chamar a<br />

atenção para o tipo de realismo cabralino, alegando que,<br />

na consciente traição à poética mallarmeana, a obra de João Cabral nos tem<br />

proposto a possibilidade de repensarmos não só nossas idéias sobre o discurso<br />

poético, e sua maneira de realização, como, e de maneira drástica, de pormos em<br />

cheque o conceito de realismo. Na verdade, se confundirmos, como é freqüente,<br />

realismo e expressão testemunhal ou seremos obrigados, neste caso, a desprezar o<br />

conceito por sua estreita utilidade, ou não entenderemos o alcance da lição<br />

cabralina, forçando-a por senda descabida. Pois em Cabral madura e se condensa<br />

a tensão que notávamos desde Manuel Bandeira: a de fazer da palavra mais que<br />

indício do real, a de construir pelo próprio tipo das relações de palavra a palavra,<br />

de frase a frase, de verso a verso, um realismo de linguagem.[...] Com João<br />

Cabral chega a seu tempo a fase criadora do modernismo.[...](LIMA,1967)<br />

Desse modo, talvez na tentativa de explicitar esse novo tipo de realismo, em outro<br />

momento o poeta tenta definir o tipo de literatura que deseja alcançar:<br />

15 De acordo com o escritor catalão, os escritores espanhóis viviam “muito limitados durante o franquismo e<br />

ele [João Cabral] abriu novas perspectivas para nós com suas idéias. Cabral vivia a sua época e a gente não.”<br />

Em entrevista publicada nos Cadernos de Literatura Brasileira, 1998, p. 16.<br />

26


Literatura não é só o ato de captar na obra literária uma determinada coisa: há a<br />

contraparte, que é a capacidade de comunicar a coisa captada.(...)... o critério para<br />

saber se a coisa foi bem expressa é justamente a possibilidade de que ela tenha<br />

sido comunicada a outras pessoas além do artista.(MELO NETO, 1953)<br />

De acordo com essa definição, João Cabral não “sacrifica ao bem da expressão a<br />

intenção de comunicar” (MELO NETO, 1998, p.99), como alguns individualistas<br />

exacerbados de seu tempo, mas preocupa-se também com o poder de comunicação de sua<br />

linguagem e com os modos de recepção de seus textos. Assim, a objetividade do projeto<br />

cabralino está pautada em uma reflexão crítica acerca do fazer poético, ao mesmo tempo<br />

em que tenta resgatar a comunicação com o leitor, visto por ele como “contraparte essencial<br />

à atividade de criar literatura.” (MELO NETO, 1998, p.67).<br />

Com o intuito de aprofundar nossas reflexões, passamos a investigar as razões de<br />

a lírica moderna em geral, e em especial, a lírica cabralina, estarem atentas ao aspecto da<br />

organização de “um instrumento mais maleável e de reflexos imediatos”(MELO NETO,<br />

1998, p.97), como diz João Cabral, ao se referir à poesia que a modernidade exige.<br />

1.1.A IMAGEM VISUAL COMO EXIGÊNCIA DA ARTE MO<strong>DE</strong>RNA<br />

Para João Cabral, embora a poesia de seu tempo “seja uma coisa multiforme<br />

demais” (MELO NETO, 1998, p.97), há a possibilidade de se encontrar nela um<br />

denominador comum: o espírito de pesquisa formal, já que esse aspecto “tem caracterizado<br />

as diversas gerações que se vêm sucedendo no período dito moderno, ainda que não se<br />

possa afirmar seja a pesquisa da forma o motivo nodal da criação poética de cada uma<br />

27


dessas gerações.” (Ibidem)<br />

Atentando para o sentido que João Cabral dá para a necessidade de uma constante<br />

pesquisa em arte e para o modo como o poeta brasileiro inova a sua poesia, encontramos,<br />

em seus depoimentos, referências a algumas vertentes artísticas, as quais privilegiam a<br />

imagem visual como possibilidade de atualização e modernização do discurso literário, em<br />

consonância com a vida moderna, a despeito de terem surgido antes ou depois de João<br />

Cabral.<br />

No que concerne à arte de seu tempo, como já mostramos, João Cabral fala da<br />

importância do visual sobre o conceitual no momento da organização do texto que, segundo<br />

ele, tem que atingir a realidade exterior, a qual se tornou mais complexa e exigente nos<br />

tempos atuais, em face da concorrência dos meios de comunicação.Nesse contexto, o poeta<br />

pernambucano reconhece que a imagem determina ou é determinada pelo texto. Em razão<br />

disso, em muitos momentos, o poeta confessa o seu interesse por estéticas ligadas ao visual:<br />

Ficando nos modernos, eu confesso que o Cubismo, para mim, é da maior<br />

importância. Não só o Cubismo como pintura, mas também como teoria artística. E<br />

também toda a pintura abstrata construtivista. Não a pintura abstrata chamada<br />

lírica; mas a abstrata geométrica, construtivista me interessa muito. (MELO NETO,<br />

1986)<br />

O interesse de João Cabral não só pelas artes, mas também pelas teorias cubistas e<br />

construtivistas demanda o estudo dessas duas correntes estéticas, já que o nosso propósito é<br />

articular o discurso cabralino a tendências visuais da modernidade.<br />

Em relação ao Cubismo, interessa-nos a classificação proposta por alguns<br />

estudiosos, a fim de que possamos observar se o poeta pernambucano filia-se a uma única<br />

vertente cubista. De acordo com os fundamentos de Herbert Read (1991), por exemplo, há<br />

28


duas escolas cubistas: a rígida e a liberal. Os liberais são representados por Braque e Juan<br />

Gris. Levam sua abstração para um fim decorativo. Apresentam pinturas discretas em tom,<br />

“cuidadosamente trabalhadas, plasticamente efetivas, relacionadas em seu efeito total com a<br />

harmonia de natureza morta de Chardin. Parecem trazer consigo alguma sugestão do<br />

mundo orgânico, uma nota dos processos vitais”(READ,1991, p.80) Já a corrente rígida de<br />

um Léger, um Metzinger, um Duchamp ou um Duchamp-Villon suprime toda a<br />

sensibilidade orgânica, segundo Read. Para esses artistas, vale a sensibilidade mecânica<br />

sugerida pela máquina.<br />

Considerando essa classificação, acreditamos que João Cabral aproxima-se de<br />

ambas, já que está mais preocupado com os mecanismos da linguagem cubista, os quais<br />

exigem um trabalho intelectual rigoroso no momento da produção da arte, do que em<br />

privilegiar uma tendência como a melhor possibilidade de apreensão visual da realidade.<br />

Ressaltamos as palavras de Antonio Candido (1999) que, em 1943, no artigo de<br />

apresentação do livro Pedra do sono (1942), observa em João Cabral a propensão a um tipo<br />

de “cubismo de construção (...) sobrevoado por um senso surrealista de poesia” 16 . Em uma<br />

entrevista sobre Pedra do sono, João Cabral confirma a leitura de Antonio Candido, ao<br />

afirmar que o crítico “notou que minha poesia aparentemente surrealista, no fundo era a<br />

poesia de um cubista.”(MELO NETO, 1975) Na verdade, tudo isso leva a crer que João<br />

Cabral, ao longo de sua trajetória como intelectual e poeta, está sempre pesquisando formas<br />

de linguagem que possam resolver o problema da comunicação com o seu leitor.<br />

Além disso, é importante lembrar que o poeta pernambucano convive com outras<br />

formas de organização estética, além do Cubismo e do Surrealismo, pois retorna ao cenário<br />

16 Conferir “Poesia ao norte”. O texto foi reproduzido no Caderno Especial da Folha de São Paulo, São Paulo,<br />

11 out. 1999, por ocasião da morte de João Cabral.<br />

29


asileiro 17 , no momento em que o país funda museus de arte moderna (1948-49) e<br />

inaugura a I Bienal de São Paulo (1951), os quais abrem caminho para a<br />

internacionalização de linguagens artísticas, como propõe Maria Alice Milliet (2005).<br />

Nesse contexto, ainda segundo Milliet, “o acesso à informação, por meio da vinda de<br />

mostras e artistas estrangeiros, favoreceu a adesão de jovens artistas à arte de raiz<br />

construtivista” (MILLIET, 2005, p.08).<br />

Na concepção de Read, o Construtivismo ambiciona “a criação de uma nova<br />

realidade, o produto de uma atividade que usa apenas os elementos absolutos de espaço e<br />

tempo – até renunciaram à cor como meio pictórico por causa de sua natureza<br />

‘acidental’.”(READ, 1981, p.87) Para o crítico, essa tendência artística mantém a<br />

significação humanística em suas atividades, já que “as imagens visuais criadas pelo artista,<br />

embora independentes da ciência e tecnologia, ‘têm um efeito na psicologia humana<br />

comum e transferem os sentimentos do artista aos sentimentos dos homens em geral’.”<br />

(READ, 1981, p.87)Portanto, não negam totalmente a subjetividade.<br />

Já para Aaron Scharf (2000, p.116), o artista do Construtivismo acreditava que<br />

“podia contribuir para suprir as necessidades físicas e intelectuais da sociedade como um<br />

todo, relacionando-se diretamente com a produção de máquinas, com a engenharia<br />

arquitetônica e com os meios gráficos e fotográficos de comunicação”.<br />

Nesses termos, o objetivo das novas estéticas, sobretudo daquelas de natureza<br />

construtivista, é o da socialização da arte. Os construtivistas propunham que os artistas<br />

“deviam libertar-se das excrescências ornamentais e das algemas acumuladas da arte do<br />

17 Como já observamos anteriormente, o poeta é transferido como vice-cônsul para o Consulado Geral de<br />

Barcelona em 1947, mas retorna ao Brasil em 1952, quando é acusado de subversão, a fim de responder a<br />

inquérito.<br />

30


passado. Advogavam o edifício nu, a pureza inerente nas formas elementares.” (SCHARF,<br />

2000, p.117) Em outras palavras, libertar a arte das “excrescências ornamentais e das<br />

algemas acumuladas” possibilitaria a organização lógica da sociedade, ao mesmo tempo em<br />

que atribuiria à arte uma significação utilitária, uma vez que o artista tomaria problemas<br />

concretos como ponto de partida de suas criações. Assim, o “movimento, no seu significado<br />

original, repudia o conceito de ‘gênio’: intuição, inspiração, auto-expressão.”(Ibidem,<br />

p.121) A ordem, o equilíbrio e a clareza construtivistas aproximam artista e espectador, já<br />

que há a possibilidade deste articular esse tipo de arte às suas experiências cotidianas. Em<br />

síntese, o que podemos afirmar acerca do Construtivismo é que é uma estética que se<br />

organiza em função do destinatário e do consumo de suas produções, por isso interessa a<br />

João Cabral.<br />

Além do interesse em conhecer essas novas tendências estéticas, em 1938, João<br />

Cabral fez parte de um grupo de intelectuais interessados em literatura, que se reunia em<br />

Recife. Essa “roda literária” circulava no Café Lafaiete e se reunia em torno do poeta Willy<br />

Lewin e do pintor Vicente do Rego Monteiro.<br />

A Willy Lewin, João Cabral dedica o primeiro livro e depois escreve um poema<br />

póstumo 18 , em Museu de tudo (1966-1974), referindo-se ao amigo como sendo “o fantasma<br />

/que prelê o que faço,/e de quem busco tanto o sim e o desagrado.” (MELO NETO, 1997,<br />

p.72). De acordo com o poeta, Lewin era “um homem informadíssimo, com um<br />

conhecimento estupendo da literatura moderna francesa”.(MELO NETO, 1991) Era dono<br />

de uma biblioteca onde, durante a guerra, os poetas do grupo de Pernambuco obtinham<br />

informações sobre arte. Lewin dava especial atenção aos surrealistas e incentivava os<br />

18 Conferir anexo 01<br />

31


jovens escritores para que lessem novos autores, principalmente os franceses. Ainda<br />

segundo João Cabral, Lewin via nos surrealistas “os sujeitos iluminados, os videntes, no<br />

sentido de Rimbaud”(MELO NETO, 1990), enquanto João Cabral preferia Mallarmé. É<br />

importante lembrar que o primeiro livro, Pedra do sono (1940-1941), de feição<br />

“surrealista” para muitos críticos, é dedicado a Willy Lewin e a epígrafe é um verso de<br />

Mallarmé.<br />

Para o pintor pernambucano Vicente do Rego Monteiro (1899 - 1970), João Cabral,<br />

na obra O engenheiro (1942-1945), escreve dois poemas. Em um deles, o poeta descreve<br />

um dos quadros do pintor 19 :<br />

A paisagem zero<br />

(pintura de Monteiro, V. do R.)<br />

A luz de três sóis<br />

ilumina as três luas<br />

girando sobre a terra<br />

varrida de defuntos.<br />

Varrida de defuntos<br />

mas pesada de morte:<br />

como a água parada,<br />

a fruta madura.<br />

Morte a nosso uso<br />

aplicadamente sofrida<br />

na luz desses sóis<br />

(frios sóis de cego);<br />

nas luas de borracha<br />

pintadas de branco e preto;<br />

nos três eclipses<br />

condenando o muro;<br />

no duro tempo mineral<br />

que afugentou as floras.<br />

E morte ainda no objeto<br />

(sem história, substância,<br />

sem nome ou lembrança)<br />

abismando a paisagem,<br />

janela aberta sobre<br />

o sonho dos mortos.<br />

(MELO NETO, 1986, p. 342)<br />

19 Embora tenhamos feito uma pesquisa sobre a obra do pintor, não conseguimos identificar o quadro descrito<br />

por João Cabral.<br />

32


No início do texto, são ressaltadas figuras como sóis, luas etc., motivos que se<br />

tornam inspiração para grande parte das obras do pintor, devido ao seu interesse pelas<br />

lendas e costumes da Amazônia. Todavia, ao longo do poema, João Cabral privilegia em<br />

sua descrição o modo como o pintor trata esses elementos na tela, remetendo-nos a um dos<br />

depoimentos de Vicente do Rego Monteiro:<br />

Eu planejo como um arquiteto. Eu uso cálculos sucessivos até achar a linha para a<br />

construção definitiva. Eu acho que o quadro, vou usar essa palavra, o quadro se<br />

fabrica, se constrói como uma casa. Esse negócio de falar de inspiração, de<br />

improvisação, só no tachismo e impressionismo, onde o artista vai com o corpo e<br />

a cara, com tudo, improvisa. Mas eu acho que o artista, depois do cubismo,<br />

constrói o seu trabalho. Para mim a linha é tão importante. A linha é exatamente<br />

o continente, e a cor, o conteúdo. A cor dá luz e sombra mas a linha é que define.<br />

(MONTEIRO, 1969) 20 .<br />

No outro texto do mesmo livro dedicado ao pintor, há a referência à vida pessoal do<br />

artista plástico:<br />

A Vicente do Rego Monteiro<br />

Eu vi teus bichos<br />

mansos e domésticos:<br />

um motociclo<br />

gato e cachorro.<br />

Estudei contigo<br />

um planador,<br />

volante máquina,<br />

incerta e frágil.<br />

Bebi da aguardente<br />

que fabricaste<br />

servida às vezes<br />

numa leiteira.<br />

Mas sobretudo<br />

20 Depoimento à Walmir Ayala e Ricardo Cravo Albim, para o Ciclo de Artes Plásticas do Museu da Imagem<br />

e do Som do Rio de Janeiro, em 27.10.1969, publicado posteriormente no livro Vicente do Rego Monteiro:<br />

pintor e poeta. Rio de Janeiro: 5ª Cor, 1994. p.254-255, 270, 272.<br />

33


senti o susto<br />

de tuas surpresas.<br />

E é por isso<br />

que quando a mim<br />

alguém pergunta<br />

tua profissão<br />

não digo nunca<br />

que és pintor<br />

ou professor<br />

(palavras pobres<br />

que nada dizem<br />

de tais surpresas);<br />

respondo sempre:<br />

_É inventor,<br />

trabalha ao ar livre<br />

de régua em punho,<br />

janela aberta<br />

sobre a manhã.<br />

(MELO NETO, 1986, p.357)<br />

No poema supracitado, o poeta refere-se aos atributos do pintor em relação ao seu<br />

ofício cotidiano. Assim, do aprendizado com Vicente do Rego Monteiro, pintor que em<br />

1919 realizou, em Recife, sua primeira mostra individual, João Cabral destaca a<br />

inventividade geométrica e concisa. De acordo com os biógrafos do pintor, Vicente foi<br />

professor de pintura sucessivamente na Escola de Belas-Artes de Recife e na de Brasília,<br />

sendo que só pouco antes de falecer desfrutou algum prestígio maior em sua terra natal. As<br />

principais características de sua arte são “a plasticidade, a sensação volumétrica que se<br />

desprende dos planos, a textura quase imaterial, de tão leve, o forte desenho, esquematizado<br />

e a ciência da composição, que o torna um clássico, preocupado com a construção das<br />

formas.” 21<br />

Outra questão importante acerca de Vicente do Rego Monteiro é que, em março de<br />

1930, o pintor levou para o Recife uma exposição de obras dos principais representantes da<br />

chamada Escola de Paris, entre os quais destacamos Picasso, Léger, Miró e Braque. O<br />

21 Conferir dados no endereço http://www.pitoresco.com/brasil/viremon/viremon.htm, captados em 15 de<br />

novembro de 2006.<br />

34


evento, segundo Moacir dos Anjos Junior e Jorge Ventura Morais (1998), apesar da<br />

qualidade intrínseca das obras, encontrou uma alta dose de incompreensão.<br />

Outro pintor pernambucano que mereceu um poema de João Cabral foi Joaquim do<br />

Rego Monteiro (1903 - 1934), irmão de Vicente. Embora o texto tenha sido publicado em<br />

Museu de tudo (1966-1974), obra que vai reunir os poemas que o autor nunca conseguiu<br />

encaixar na arquitetura de nenhum livro anterior, destacamos a referência ao aspecto<br />

cromático das telas do pintor:<br />

Joaquim do Rego Monteiro, pintor<br />

Esse recifense em Paris<br />

taquigrafou (como Miró)<br />

o magro e o nu, o inexcessivo<br />

de onde nasceu e se exilou;<br />

e essa parca caligrafia<br />

de recifense soube apor<br />

aos verdes podres do alagado,<br />

traduzindo o que é lama em cor.<br />

(MELO NETO, 1997, p.66)<br />

É interessante ressaltar a força expressiva do contraste visual estabelecido no<br />

poema, no momento em que João Cabral se refere aos “verdes podres do alagado” e à<br />

“lama”. Além da forte plasticidade do poema, João Cabral também recorta o tom<br />

taquigráfico das imagens aprendido na geografia do seco e do úmido de Recife. Os<br />

trabalhos de Joaquim do Rego Monteiro, segundo Gilberto Freyre (1979, p. 369), “são<br />

todos paisagens e marinhas. Assuntos ingênuos: recantos de bairros quietos com as suas<br />

lojitas de telhado vermelho; trechos de cais batidos de sol; pedaços de ruas meio tristonhas<br />

onde habitam e negociam petits bourgeois morosos e bons.”<br />

Apesar do interesse por pintores que valorizam o aspecto plástico de seus quadros,<br />

pelas estéticas cubistas, construtivistas e pelos surrealistas em primeira instância, ou da<br />

35


provável influência de Baudelaire e Mallarmé, em meio à efervescência de novas idéias em<br />

arte, João Cabral diz que são os ensaios críticos de arquitetura de Le Corbusier e de Paul<br />

Valéry que mais o influenciam:<br />

(...) do nosso grupo participavam jovens arquitetos que tinham o livro do Le<br />

Corbusier, outra grande influência da minha vida, talvez até maior que a de<br />

Valéry. Porque se o pensamento de Valéry me interessava até o último ponto, a<br />

poesia era uma coisa que eu sempre achei um pouco perfumada, um pouco<br />

preciosa e que não me interessava muito. Ao passo que Le Corbusier foi um<br />

sujeito que me revelou a importância da criação intelectual. (MELO NETO,<br />

1990)<br />

Portanto, de acordo com o poeta brasileiro, Le Corbusier (1887 - 1965), ou Charles-<br />

Édouard Jeanneret, é o nome que mais influencia o pensador e intelectual João Cabral de<br />

Melo Neto. Le Corbusier, com sua concretização audaciosa de teorias arquitetônicas<br />

avançadas, curou-o do Surrealismo, definido como arte fúnebre. De Le Corbusier o poeta<br />

recorta a expressão “machine à émouvoir”, que vai servir de epígrafe ao livro O engenheiro<br />

(1942-1945) Embora o poeta não tenha localizado o artigo de onde retirou essa citação 22 e<br />

de ter alegado tratar-se da descrição de um quadro, ela é reiterada em vários ensaios do<br />

arquiteto franco-suiço sobre a arquitetura moderna 23 , publicados parcialmente na Revista<br />

L’Esprit Nouveau, posteriormente reunidos no livro Vers une architecture (1923), obra que<br />

consagrou Le Corbusier.<br />

Os ensaios que compõem o livro, de acordo com os organizadores da edição<br />

brasileira 24 , definiram na Europa “toda uma certa maneira de pensar o problema plástico.”<br />

22 O poeta diz em entrevista que leu um artigo de Le Corbusier em uma revista de pintura, mas não sabia<br />

localizar tal artigo. (Conferir entrevista a Mário César Carvalho, Folha de São Paulo, Folha Ilustrada, São<br />

Paulo, 24 maio 1988)<br />

23 Na tradução em português encontramos o mesmo trecho em três artigos sobre Arquitetura: “1. A lição de<br />

Roma”, pág. 105; “2. A Ilusão das Plantas”, pág. 125; “3. Pura Criação do Espírito”, pág. 145.<br />

24 Conferir a capa da 4ª edição publicada pela Editora Perspectiva, São Paulo, 1989.<br />

36


Nesse sentido, as idéias contidas, “neste vigoroso livro-manifesto”, são “em defesa de um<br />

meio ambiente construído com vistas não apenas ao homem empreendedor mas<br />

principalmente ao homem estético.” Desse modo, as palavras citadas por João Cabral<br />

pertencem ao contexto da descrição de uma experiência estética em arte, como podemos<br />

observar no trecho a seguir:<br />

Vocês usam pedra, madeira e concreto, e com esses materiais constroem casas e<br />

palácios, isso é construção.A inventividade está em ação. De repente, porém,<br />

vocês tocam meu coração, fazem-me bem; fico feliz, e digo: “Isso é bonito”. Isso<br />

é Arquitetura. Existe a participação da arte. Minha casa é prática. Agradeço a<br />

vocês, como poderia agradecer aos engenheiros ferroviários ou ao serviço<br />

telefônico. Vocês não tocaram meu coração.Mas suponhamos que as paredes se<br />

elevem aos céus de um modo que me deixe emocionado. Percebo suas intenções:<br />

seus estados de espírito foram gentis, brutais, encantadores ou nobres. É o que me<br />

dizem as pedras que vocês erigiram. Vocês me fixam no lugar e meus olhos o<br />

contemplam. Eles vêem algo que expressa uma idéia. Uma idéia que se manifesta<br />

sem som ou palavra, mas unicamente através de formas que mantêm uma certa<br />

relação mútua. Essas formas são tais que se revelam claramente à luz. As relações<br />

entre elas não têm, necessariamente, nenhuma referência àquilo que é prático ou<br />

descritivo. São uma criação matemática que a mente de vocês gerou. São a<br />

linguagem da Arquitetura. Com o uso de materiais inertes e partindo de<br />

condições mais ou menos utilitárias, vocês estabeleceram certas relações que<br />

despertaram minhas emoções. Isso é Arquitetura. (LE CORBUSIER, apud<br />

FRAMPTON, 1997, p.179)<br />

Antes de descrever essa experiência, em outro ensaio intitulado “Roteiro”, Le<br />

Corbusier discorre sobre a estética do engenheiro, contrapondo-a à estética do arquiteto. Ele<br />

observa que a estética do engenheiro nos põe em acordo com as leis do universo,<br />

atingindo a harmonia, uma vez que se inspira na lei de economia e é conduzida pelo<br />

cálculo. Já o arquiteto, por ordenar formas,<br />

realiza uma ordem que é uma pura criação de seu espírito; pelas formas afeta<br />

intensamente nosso sentidos, provocando emoções plásticas; pelas relações que<br />

cria, ele desperta em nós ressonâncias profundas, nos dá a medida de uma ordem<br />

que sentimos em consonância com a ordem do mundo, determina movimentos<br />

diversos de nosso espírito e de nossos sentimentos; é então que sentimos a beleza.<br />

(LE CORBUSIER, 1989, p.XXIX)<br />

37


Portanto, ao anunciarmos o fragmento de Corbusier como sendo o relato de uma<br />

experiência estética, pensamos nas palavras de Ralph Roos (apud DONDIS, 1997, p.23), o<br />

qual observa que a arte existe quando “produz uma experiência do tipo que chamamos de<br />

estética, uma experiência pela qual passamos, quando nos encontramos diante do belo e<br />

que resulta numa profunda satisfação.”<br />

Além do mais, lembramos que a experiência estética existe a partir da contemplação<br />

do objeto e, antes de qualquer coisa, desperta emoções naquele que contempla, como<br />

ressalta Le Corbusier: “Com o uso de materiais inertes e partindo de condições mais ou<br />

menos utilitárias, vocês estabeleceram certas relações que despertaram minhas emoções”.<br />

(LE CORBUSIER, apud FRAMPTON, 1997, p.17)<br />

Diante dessas observações, acreditamos que a identificação de João Cabral com Le<br />

Corbusier não pode ser vista somente em função do geometrismo ou da racionalidade do<br />

arquiteto. Mesmo porque, segundo Frampton (1997), por ser o primeiro trabalho teórico de<br />

Le Corbusier sobre Arquitetura, o texto em tela revela uma atitude mental “dialética” diante<br />

da arte. Essa atitude dialética do arquiteto é devida, por um lado, às suas origens albigenses,<br />

de resto calvinista e à sua visão maniqueísta meio esquecida, mas latente. Por outro lado,<br />

por ter experimentado várias escolas (na Suíça, em Paris, na Alemanha), a trajetória de Le<br />

Corbusier é marcada por influências extremamente variadas e intensas, destacando-se o<br />

Cubismo em pintura e a estética mecânica do Purismo 25 . O arquiteto franco-suíço, com seu<br />

Purismo de feição neoplatônica, desejava “abranger todas as formas de expressão plástica,<br />

da pintura de salão ao design de produtos à arquitetura”.(FRAMPTON,1997, p.182)<br />

25 O seu lado cubista é observado por João Cabral em entrevista a André Pestana, O que eles pensam, Rio de<br />

Janeiro, Tagore, 1990. Já as suas idéias estéticas de purismo em arte, segundo Frampton, foram reunidas em<br />

um ensaio intitulado Le Purisme, que foi publicado em 1920, no quarto número da revista artística e literária<br />

L’Esprit Nouveau.<br />

38


Acreditamos que essa concepção dialética da forma, introduzida por Le Corbusier<br />

principalmente no ensaio “Estética e Arquitetura do Engenheiro” seja a maior lição<br />

aprendida por João Cabral, sobretudo quando este observa que “(...) a maior influência que<br />

sofri foi a de Le Corbusier. Aprendi com ele que se podia fazer uma arte não com<br />

o mórbido, mas com o são, não com o espontâneo, mas com o construído.”(SECCHIN,<br />

1999, p.327)<br />

Nesse sentido, devemos lembrar ainda que a dialética do arquiteto francês, em<br />

Arquitetura, é visível no jogo onipresente de opostos em suas obras. Nelas são percebidos<br />

os contrastes “entre o sólido e o vazio, luz e sombra, Apolo e Medusa”.<br />

(FRAMPTON,1997, p.179). Já nos ensaios do livro Vers une architecture, o dualismo<br />

conceitual do arquiteto é visto “em sua necessidade imperiosa de atender às exigências<br />

funcionais através da forma empírica” e no “impulso de usar elementos abstratos de modo a<br />

atingir os sentidos e nutrir o intelecto.” (Ibidem, p. 182)<br />

Quanto a Paul Valéry (1871-1945), a nosso ver, a lição aprendida por João Cabral<br />

está nos ensaios do poeta-crítico francês, sobretudo em Eupalinos ou o Arquiteto, publicado<br />

pela primeira vez em 1921. Nesse livro, conforme veremos no capítulo referente às relações<br />

entre a poesia cabralina e a Arquitetura, Valéry, através do arquiteto Eupalinos de Mégara,<br />

define a Arquitetura como sendo a arte que possibilita a ordenação entre o corpo e o<br />

espírito:<br />

O corpo e o espírito, esta presença invencivelmente atual e esta ausência criadora<br />

que disputam o ser, e que é preciso enfim compor; este finito e este infinito que<br />

trazemos em nós mesmos, cada qual segundo sua natureza, cumpre agora que se<br />

unam em uma construção ordenada. E, queiram os deuses, se trabalharem de<br />

acordo, trocando conveniência e graça, beleza e solidez, movimentos contra<br />

linhas e números contra pensamentos, terão enfim descoberto sua verdadeira<br />

relação, seu ato. Que se combinem, que se compreendam através da matéria de<br />

minha arte! Pedras e forças, perfis e massas, luzes e sombras, agrupamentos<br />

artificiais, ilusões de perspectiva e realidades da gravidade, estes são os objetos<br />

39


de seu comércio; e seja lucro a incorruptível riqueza que chamo Perfeição.<br />

(VALÉRY, 1996, p.69)<br />

Talvez tentando ilustrar esse pensamento de Valéry, principalmente no que diz<br />

respeito à necessidade de controle do artista no momento de criação, em um dos poemas de<br />

seu terceiro livro, O engenheiro (1942-1945), o poeta escreve:<br />

A Paul Valéry<br />

É o diabo no corpo<br />

ou o poema<br />

que me leva a cuspir<br />

sobre meu não higiênico?<br />

Doce tranqüilidade<br />

do não-fazer; paz,<br />

equilíbrio perfeito<br />

do apetite de menos.<br />

No início do poema a Valéry, percebemos que a tranqüilidade do eu-lírico advém da<br />

consciência de conseguir retirar da matéria poética todos os resíduos de sua própria<br />

experiência interior, em função de um tipo de arte objetiva e clara.Atinge o “equilíbrio<br />

perfeito”, ao se negar enquanto subjetividade ao poema.Começa aí a poesia do “não”, a<br />

face antilírica do poeta.<br />

Na seqüência do texto, João Cabral reforça essa tranqüilidade alcançada, por<br />

petrificar seu discurso, isolar “fugas, evaporação,/febre, vertigem”, enfim todos os<br />

“líquidos da vida”, que poderiam comprometer o discurso da objetividade:<br />

Doce tranqüilidade<br />

da estátua na praça<br />

entre a carne dos homens<br />

que cresce e cria.<br />

Doce tranqüilidade<br />

40


do pensamento da pedra,<br />

sem fuga, evaporação,<br />

febre, vertigem.<br />

Doce tranqüilidade<br />

do homem na praia:<br />

o calor evapora,<br />

a areia absorve,<br />

as águas dissolvem<br />

os líquidos da vida;<br />

e o vento dispersa<br />

os sonhos, e apaga<br />

a inaudível palavra<br />

futura, - apenas<br />

saída da boca,<br />

sorvida no silêncio.<br />

(MELO NETO, 1986, p.359)<br />

Do ponto de vista sintático, no texto, percebemos que a tranqüilidade do eu-lírico é<br />

reforçada pela repetição do verso “Doce tranqüilidade” e do paralelismo observado no uso<br />

constante de adjuntos adnominais do termo repetido. Também o ritmo binário sugere essa<br />

mesma paz e tranqüilidade que a semântica das palavras impõe ao texto.<br />

Também em Agrestes (1981-1985), na parte intitulada “Linguagens alheias”, através<br />

do poema “Debruçado sobre os cadernos de Paul Valéry”, João Cabral destaca os<br />

pressupostos teóricos do poeta-crítico francês:<br />

Quem que poderia a coragem<br />

de viver em frente da imagem<br />

do que faz, enquanto se faz,<br />

antes da forma, que a refaz?<br />

Assistir nosso pensamento<br />

a nossos olhos se fazendo,<br />

assistir ao sujo e ao difuso<br />

com que se faz, e é reto e é curvo.<br />

Só sei de alguém que tenha tido<br />

a coragem de se ter visto<br />

nesse momento em que só poucos<br />

41


são capazes de ver-se, loucos<br />

de tudo o que pode a linguagem:<br />

Valéry – que em sua obra, à margem,<br />

revela os tortuosos caminhos<br />

que, partindo do mais mesquinho,<br />

vão dar ao perfeito cristal<br />

que ele executou sem rival.<br />

Sem nenhum medo,deu-se ao luxo<br />

de mostrar que o fazer é sujo.<br />

(MELO NETO, 1997, p.252)<br />

Ao revistar o poeta, muitos anos depois, João Cabral reconhece o projeto estético<br />

do autor francês, descrevendo, verso a verso, cada etapa do audacioso fazer de Valéry.<br />

Ressaltamos que, de acordo com os estudos críticos, Valéry surge na poética de João Cabral<br />

na mesma época em que foi construída a primeira grande obra cívica da arquitetura<br />

moderna brasileira, o prédio do Ministério da Educação, de Le Corbusier, de Niemeyer, dos<br />

irmãos Roberto e de Lúcio Costa, ou seja, nos anos 1936-1942.<br />

Fábio Lucas (1990) é um dos críticos que, em conformidade com o poeta<br />

pernambucano, atesta o pertencimento de Valéry ao grupo dos poetas-críticos do rigor e da<br />

disciplina:<br />

Daí a sua luta para fazer do poema uma construção mental. Em carta a seu amigo<br />

Louÿs, de 1890, já definia o caráter voluntário de seu desígnio poético: "Sonho<br />

com uma poesia curta - um soneto - escrita por um visionário requintado que<br />

seria ao mesmo tempo um agradável arquiteto, um algebrista sagaz, um<br />

calculador infalível do efeito a produzir.”A disciplina que buscou nas ciências<br />

ofereceu-lhe uma propensão ao método exato e uma preferência por uma arte<br />

quase matemática, por uma expressão obtida pela química verbal. Enfim, Valéry<br />

se empenhou na busca de um método destinado a fazer da criação poética uma<br />

obra de precisão. O lirismo para ele não ia além do "desenvolvimento de uma<br />

exclamação” (LUCAS, 1990, p. 09).<br />

Portanto, de Valéry, João Cabral recorta a preocupação com “um método” de<br />

construção artística como “direção axial comum a todas as atividades”, já que este<br />

42


afirma escrever mediante a organização de um roteiro estabelecido previamente. Nada<br />

mais interessa a João Cabral, como alerta Costa Lima :<br />

do mesmo modo que a sombra de Mallarmé se projeta sobre a obra de Cabral,<br />

sem que, por isso, ele seja mallarmeano, de igual forma ele recebe Valéry para<br />

transgredir seu rumo. Deste mantém o poeta nordestino o rigor no trato da<br />

palavra, o ideal do poema como construção. No mais, restam diferenças.(LIMA,<br />

1968, p.279)<br />

No entanto, o lado arquitetônico do poeta brasileiro não advém somente da<br />

influência de intelectuais estrangeiros. Ainda no Recife, João Cabral aperfeiçoa o gosto<br />

pela Arquitetura, por intermédio de um grupo de arquitetos com os quais conviveu,<br />

principalmente através da amizade com Joaquim Cardozo (1897-1978), poeta do<br />

Capibaribe, a quem João Cabral dedica o livro O cão sem plumas (1949-1950): “Eu era<br />

muito amigo de Joaquim Cardozo que era o calculista de cimento armado de Oscar<br />

Niemeyer e tudo isso me encorajou muito a levar a poesia para esse lado arquitetônico." 26<br />

No mesmo livro dedicado a Le Corbusier, no qual João Cabral escreve também a<br />

Valéry, há um texto dedicado a Joaquim Cardozo:<br />

A Joaquim Cardozo<br />

Com teus sapatos de borracha<br />

seguramente<br />

é que os seres pisam<br />

no fundo das águas.<br />

Encontraste algum dia<br />

sobre a terra<br />

o fundo do mar,<br />

o tempo marinho e calmo?<br />

Tuas refeições de peixe;<br />

teus nomes<br />

26 Depoimento dado à TV Cultura, por ocasião do documentário Duas águas, direção e roteiro de Cristina<br />

Fonseca, disponível em www.tvcultura.com.br/aloescola/literatura/joaocabral/joaocabral3.htm-23k-<br />

43


femininos: Mariana; teu verso<br />

medido pelas ondas;<br />

a cidade que não consegues<br />

esquecer<br />

aflorada no mar: Recife,<br />

arrecifes, marés, maresias;<br />

e marinha ainda a arquitetura<br />

que calculaste:<br />

tantos sinais da marítima nostalgia<br />

que te fez lento e longo.<br />

(MELO NETO, 1986,p.356)<br />

No poema a Joaquim Cardozo fica evidente a referência ao ofício do poeta-arquiteto<br />

homenageado. Essa referência, no entanto, não acontece apenas no plano semântico, na<br />

escolha das palavras que pertencem ao mundo de Joaquim Cardozo. Percebemos que o tom<br />

apelativo do discurso, transposto no recurso da interrogação, sugere o questionamento das<br />

dificuldades do ofício do amigo arquiteto dos edifícios e da geografia de Recife.<br />

Também nos livros Museu de tudo (1966-1974), A escola das facas (1975-1980) e<br />

Crime na Calle Relator (19885-1987), João Cabral dedica poemas ao amigo arquiteto:<br />

A luz em Joaquim Cardozo<br />

Escrever de Joaquim Cardozo<br />

só pode quem conhece<br />

aquela luz Velásquez<br />

de onde nasceu e de que escreve.<br />

A luz que várzeas da Várzea<br />

onde nasceu, redonda,<br />

vem até o ex-Cais de Santa Rita<br />

que viveu: luz redoma,<br />

luz espaço, luz que se veste,<br />

leve como uma rede,<br />

e clara, até quando preside<br />

o cemitério e a sede.<br />

(MELO NETO, 1997, p. 48)<br />

No segundo poema, João Cabral observa que consegue escrever sobre o amigo<br />

44


depois de conhecer a luz de Velásquez, pintor barroco da corte espanhola do século XVII e<br />

um dos maiores artistas de todos os tempos. Vale lembrar que o pintor espanhol, mesmo<br />

vivendo em meio aos fidalgos cortesãos, não deixou de inspirar-se em figuras populares<br />

para compor seus magníficos quadros, os quais se tornaram representação viva da<br />

sociedade castelhana daquele tempo.<br />

Cardozo”:<br />

Outro poema escrito a Joaquim Cardozo, em Museu de tudo é “Pergunta a Joaquim<br />

É que todo o dar ao Brasil<br />

de Pernambucano há de ser nihil?<br />

Será que o dar de Pernambuco<br />

é suspeitoso porque em tudo<br />

sintam a distância, o pé atrás,<br />

insubserviente de quem foi mais?<br />

(MELO NETO, 1997, p.87)<br />

No texto, a pergunta é feita ao companheiro que, do mesmo modo que o autor, tenta<br />

dar a ver a sua realidade ao Brasil, a partir de seu lugar de origem, ou seja, a partir do que é<br />

Pernambuco.Ao falar do poeta do Capibaribe, João Cabral diz que “Cardozo era<br />

pernambucano de corpo e alma, sua linguagem era regional, seu espírito, atento.”Além<br />

dessas características, João Cabral observa que admirava Cardozo pela sua teimosia em<br />

falar das coisas de Pernambuco “com os pés plantados no chão.”(MELO NETO, 1984)<br />

Daí, talvez, a perspectiva de uma arte nihil, incompreendida pela maioria daqueles<br />

que não convivem com a realidade do povo nordestino. Em A escola das facas, aparecem<br />

mais dois poemas dedicados ao amigo. O primeiro é “Na morte de Joaquim Cardozo”, no<br />

qual João Cabral mais uma vez ressalta o valor do poeta que deveria ser “comido” pela sua<br />

terra, como dizia Joyce:<br />

45


Creio que Joyce é que dizia<br />

que a Irlanda dele se comia<br />

comendo os filhos, como a porca<br />

que as crias melhores devora.<br />

Estamos tão desenvolvidos<br />

que já podemos esses estilo<br />

De fazer Dublin, Irlanda, Europa?<br />

e um novo imitá-las, em porca?<br />

(MELO NETO, 1997 p.122)<br />

Já no poema “Joaquim Cardozo na Europa” 27 o poeta pernambucano descreve o<br />

amigo como sendo aquele que percorreu os grandes centros da Europa como quem anda em<br />

Pernambuco, ou seja, não como “um turista ou visitante”, mas como alguém que “viveu-as<br />

de dentro, habitante”. (MELO NETO, 1997, p.133)<br />

Finalmente no livro Crime na Calle Relator aparece o último texto dedicado ao<br />

arquiteto pernambucano “Cenas da vida de Joaquim Cardozo” 28 .É um poema longo,<br />

dividido em quatro partes, nas quais João Cabral recorda episódios vividos pelo<br />

conterrâneo no Nordeste, durante o ofício da escrita, nos momentos em que visitava outras<br />

regiões nordestinas e durante a viagem à Europa e depois. Em todo o texto, João Cabral<br />

ressalta em Joaquim Cardozo o poeta que poucos leram.<br />

Por fim, ao enumerar os seus precursores em relação ao uso da imagem visual, João<br />

Cabral lembra o contato que teve com a literatura inglesa, especialmente com a poesia dos<br />

imagistas Eliot e Auden. Mas, em virtude da delimitação do nosso campo de pesquisa, não<br />

discutiremos a presença desses dois poetas.<br />

Voltando para o contexto em que viveu João Cabral, devemos ressaltar ainda que,<br />

27 Conferir anexo 01.<br />

28 Conferir anexo 01.<br />

46


preocupado com os caminhos da poesia no Brasil, no início dos anos 50, o poeta<br />

pernambucano publica quatro artigos sobre os poetas da geração de 45. 29 Contemporâneo<br />

dessa geração, João Cabral foi um poeta dissonante, por estar mais afinado com as estéticas<br />

construtivistas da vanguarda internacional 30 e por ter recuperado a matéria prosaica e a<br />

prosificação do verso proposta pela tradição de 22, no sentido de “assegurar uma dicção<br />

corrente e precisa”, como lembra Benedito Nunes (1971, p.30). Ainda em relação aos<br />

poetas de 45, Nunes observa que “Bem outra será a posição de João Cabral, que oporá o<br />

princípio da clareza ao de pureza e o controle reflexivo da elaboração poética à sondagem e<br />

ao aprofundamento das vivências”(NUNES, 1971, p.31)<br />

Ainda tratando de teorias que pressupõem o tipo de arte exigida pela modernidade,<br />

destacamos o nome de Italo Calvino (1990), o qual apresenta “seis propostas para o<br />

próximo milênio”: leveza, rapidez, exatidão, multiplicidade, visibilidade e consistência. A<br />

visibilidade é a proposta que nos interessa, por duas razões: primeiro porque Calvino<br />

reconhece a prioridade da imagem visual, no momento de formar o imaginário, numa época<br />

em que a literatura já não mais se refere a uma autoridade ou tradição que seria sua origem<br />

ou seu fim, mas visa à novidade, à originalidade, à invenção. A segunda razão é porque<br />

acreditamos que o termo visibilidade aproxima-se do conceito de visualização, proposto<br />

por Luiz Costa Lima (1968) em relação ao projeto de João Cabral, como sendo “uma forma<br />

de criação poética, que implica na relação dialética entre percepção e imaginação.”<br />

(SOARES, 1978, p.46), conforme mostraremos no segundo capítulo de nossa tese.<br />

29 Referimo-nos aos quatro artigos sobre a Geração de 45, publicados no Diário Carioca, em 1952.<br />

30 João Cabral sempre fez questão de afirmar que não pertencia à Geração de 45, pois, no momento em que<br />

essa geração consegue se projetar no cenário artístico brasileiro, ele já estava na Espanha, como vice-cônsul,<br />

desde 1947: “No Brasil, nunca participei de política literária nenhuma. Sou da Geração de 45 porque todos os<br />

que se consideram assim são meus contemporâneos.”(MELO NETO, 1969)<br />

47


Para Italo Calvino (1923-1985), há dois processos imaginativos: “o que parte da<br />

palavra para chegar à imagem visiva e o que parte da imagem visiva para chegar à<br />

expressão verbal.”(CALVINO,1990, p.99) O primeiro deles está articulado à recepção da<br />

obra literária e do cinema, por “projetar imagens em nossa tela interior.” Já o segundo<br />

relaciona-se ao ato da produção artística, uma vez que cabe ao autor da obra a “escolha<br />

entre várias imagens que ‘chovem’ na fantasia”. (Ibidem, p.102)<br />

Partindo da sua experiência como escritor, Calvino observa que, quando começou a<br />

escrever histórias fantásticas, ainda não se colocavam problemas teóricos, “a única coisa de<br />

que estava seguro era que na origem de cada um de meus contos havia uma imagem<br />

visual.” (Ibidem, p.104).<br />

Diante dessa proposta de Calvino, observamos que tanto Calvino quanto João<br />

Cabral revelam preocupações semelhantes quanto à arte da modernidade, época da<br />

“civilização da imagem”, na qual o indivíduo corre o risco de “perder a faculdade humana<br />

fundamental: a capacidade de pôr em foco visões de olhos fechados, de fazer brotar cores e<br />

formas de um alinhamento de caracteres alfabéticos negros sobre uma página branca, de<br />

pensar por imagens” (Ibidem, p.108).<br />

Para alcançar esse olhar, Calvino sugere uma espécie de “pedagogia da<br />

imaginação”, através da qual o indivíduo aprende a controlar a própria visão interior sem<br />

sufocá-la e sem, por outro lado, deixá-la cair num confuso e passageiro fantasiar, mas<br />

permitindo que as imagens se cristalizem numa forma bem definida, memorável, auto-<br />

suficiente, ‘icástica’.”(Ibidem).<br />

Os dois autores compartilham o mesmo pensamento quanto aos passos para se<br />

formar a parte visual da imaginação literária: partem da observação direta do mundo real<br />

antes de verbalizar o pensamento. Por isso a tese cabralina de que a “poesia é dar corpo, dar<br />

48


imagem ao pensamento, à idéia”(MELO NETO , 1980), ou a de Calvino ao afirmar que<br />

todas as “realidades” e as “fantasias” só podem tomar forma através da escrita, na<br />

qual exterioridades e interioridade, mundo e ego, experiências e fantasia<br />

aparecem compostos pela mesma matéria verbal; as visões polimorfas obtidas<br />

através dos olhos e da alma encontram-se contidas nas linhas uniformes de<br />

caracteres minúsculos ou maiúsculos, de pontos, vírgulas, de parênteses; páginas<br />

inteiras de sinais alinhados, encostados uns aos outros como grãos de areia,<br />

representando o espetáculo variegado do mundo numa superfície sempre igual e<br />

sempre diversa, como as dunas impelidas pelo vento do deserto.(CALVINO,<br />

1990, p.114)<br />

Apesar de Calvino ressaltar as fantasias e as interioridades no seu fazer artístico, é<br />

pela valorização da imagem visual que aproximamos os dois artistas. O que podemos<br />

depreender é que devemos rever a visibilidade da poesia de João Cabral, articulando essa<br />

tendência à preocupação do poeta em tornar mais próximos de nossa compreensão os<br />

significados que essa poesia traz.<br />

1.2. A ATUALIZAÇÃO DO MO<strong>DE</strong>LO CARTESIANO<br />

No momento em que discutimos os fundamentos teóricos da objetividade cabralina,<br />

temos que considerar dois modos distintos de inteligência: a chamada inteligência<br />

cartesiana, proposta por Descartes, “o primeiro filósofo a separar o raciocínio de uma<br />

dependência sensória das coisas (penso, logo existo)” (READ,1967, p.169) e a inteligência<br />

estética, “que mantém contato com o mundo sensório em todas as fases de seu raciocínio<br />

(sinto, logo existo:a realidade é uma criação de meus sentidos)”, postulada pelos filósofos<br />

da fenomenologia da percepção.<br />

No que diz respeito à possibilidade de atualização do racionalismo cartesiano em<br />

João Cabral, sabemos que o poeta impõe, no momento de organização de seus textos, um<br />

49


olhar matemático, com o propósito de organizar um tipo de linguagem que possa dar a ver<br />

o seu objeto como uma realidade concreta. Esse procedimento justifica a tendência da<br />

crítica de articular a poesia cabralina, principalmente os livros da primeira fase, à<br />

concepção da inteligência de linhagem aristotélica, que se pauta no preceito horaciano do<br />

limae labor e que obedece aos princípios da ordem, simetria e determinação.<br />

A despeito de revelar o lado arquiteto/engenheiro do poeta em tela, essa concepção<br />

do fazer literário de João Cabral pressupõe a imagem de um escritor que escreve poesia<br />

“como ‘trabalho intelectual’” e que se expressa através de uma linguagem lógica,<br />

raciocinante, que deve ser “compreendida, mais do que assimilada em termos de emoção”,<br />

como propõe Wilson Martins (1999).<br />

Por outro lado, presume que o desejo de ver claro, leitmotiv da poesia cabralina<br />

coloca na feitura de sua poesia uma lógica que, de tão rigorosa, se torna difícil de<br />

compreender, apresentando versos que “são pedras, paralelepípedos deixados ao acaso<br />

(propositadamente) na estrada da sua poesia para que o leitor pare, questione, analise e<br />

possa, assim, atingir o conhecimento da mesma. Não de uma forma emocional, mas<br />

racionalmente”. (AFONSO, 1995, p.31)<br />

Mediante essas afirmações, acreditamos que considerar a proposta de objetividade<br />

cabralina apenas como um projeto concebido em consonância com os princípios da<br />

inteligência cartesiana poderia dificultar a fruição estética dessa poesia, já que, como<br />

observa Edla Van Steen (1980), esse tipo de crítica, contraditoriamente, pode servir de<br />

obstáculo à leitura, entendimento e compreensão viva do texto de João Cabral, uma vez que<br />

cria, “em cima da obra do autor de O cão sem plumas, plumas de gesso e camadas de<br />

granito senão intransponíveis ao menos duras de roer.” Ou então acentuar a metalinguagem<br />

50


como a principal característica dos textos, admitindo que esta poética caminha para a<br />

“esterilidade da forma pura”. 31<br />

A nosso ver, em se tratando de um fenômeno de índole estética, não podemos<br />

relacionar a recepção dessa poesia apenas a uma das conotações da palavra compreender,<br />

ou seja, “alcançar com a inteligência”. Nessa concepção, de acordo com o dicionário, o ato<br />

da compreensão é entendido como o ato de apreender com a mente um conteúdo racional,<br />

enquanto que a obra de arte que nos é apresentada exige um tipo de percepção que vai<br />

muito além disso.Portanto, em se tratando de poesia, temos que trabalhar o sentido de<br />

compreender enquanto “perceber ou alcançar as intenções ou o sentido de” (FERREIRA,<br />

1986, p.442) O significado conceitual de um produto literário é menos importante do que a<br />

sua capacidade de significar, como lembra José García López (1957).<br />

Por outro lado, lembramos que o racionalismo cartesiano, ao articular a arte com a<br />

realidade, aproxima-se do chamado realismo testemunhal, que marca várias gerações da<br />

literatura brasileira, de acordo com os estudos de Flora Sussekind (1984). Com o propósito<br />

de não confundirmos a racionalidade cabralina com realismo testemunhal, como sugere<br />

Costa Lima, na seqüência, evidenciamos os principais pressupostos teóricos dessa tradição<br />

estética.<br />

31 Lauro Escorel (1973) discorda das leituras que aplicam a fórmula “esterilidade da forma pura”, ao se<br />

referirem à fase construtiva da poesia cabralina: “Só um preconceito sociológico, de nenhuma validade,<br />

poderá falar de ‘esterilidade da forma poética pura’ , a propósito dos poemas da primeira fase do poeta<br />

pernambucano.” (1973, p.49) Escorel defende a tese de que toda palavra empregada por Cabral até Psicologia<br />

da composição é “psicologicamente significativa” e traduz “estados de consciência profundos e autênticos,<br />

tão objetivos na sua interioridade como os mais concretos objetos e paisagens de que mais tarde lançará mão<br />

para expressar-se.” (Ibidem) O crítico propõe uma abordagem psicológica da poesia de Cabral, à luz da<br />

psicologia junguiana e dos ensinamentos de Charles Mauron.<br />

51


1.3. A ESTÉTICA DO VISÍVEL COMO PROPOSTA <strong>DE</strong> TESTEMUNHO DA<br />

REALIDA<strong>DE</strong><br />

Flora Sussekind, em obra prefaciada por Luiz Costa Lima, 32 assinala que a marca<br />

da tradição da chamada literatura realista brasileira é a “obsessão pela visibilidade”. De<br />

acordo com a pesquisadora, quando o discurso literário “tenta ocultar sua própria<br />

ficcionalidade em prol de uma maior referencialidade, talvez os seus grandes modelos<br />

estejam efetivamente na ciência e na informação jornalística, via de regra consideradas<br />

paradigmas da objetividade e da veracidade.” (SUSSEKIND,1984, p.37)<br />

Nesse contexto, como lembra a pesquisadora 33 , autores e leitores são levados a<br />

obedecer a uma “estética do visível”, ou seja, ao “desejo irresistível de ver,” no texto<br />

literário, aspectos caracterizadores da nação, da cultura, do povo brasileiros. Para alcançar<br />

essa visibilidade, a autora observa que, em tais obras, é “dominante a correlação da<br />

atividade literária com as ações contidas em verbos como ‘retratar’, ‘ver’, ‘olhar’,<br />

‘enxergar’.”(SUSSEKIND, 1984, p.101)<br />

Sussekind ressalta ainda que esse tipo de procedimento exige do literário e daquele<br />

que o escreve a negação do “trabalho com a e na linguagem para que o leitor, dominado por<br />

um ‘desejo irresistível de ver’, pareça estar em contato direto com ‘o’ real.”(Ibidem) Dessa<br />

maneira, o escritor se torna uma espécie de “película virgem em busca de impressões reais,<br />

assim como da opacidade da literatura simples transparência”, para que o público possa<br />

32 Trata-se do livro Tal Brasil, qual romance? – uma ideologia estética e sua história: o naturalismo,<br />

originalmente apresentado como dissertação de Mestrado em Literatura Brasileira, na PUC do Rio de Janeiro.<br />

Luiz Costa Lima foi um dos componentes da banca de Sussekind.<br />

33 A autora faz referências a alguns textos representativos do Realismo/Naturalismo do final do século XIX,<br />

do Neo-Realismo da década de 30 e do Romance-reportagem dos anos setenta.<br />

52


“ver o acontecido sem nenhuma barreira e sem as ambigüidades próprias do ficcional”<br />

(SUSSEKIND, 1984, p.101).<br />

Entendemos que, embora o poeta pernambucano seja obcecado pela organização<br />

lógica do poema, pela precisão geométrica de seu discurso e eleja os “olhos”, desde os seus<br />

primeiros poemas, como o sentido privilegiado no processo de percepção da realidade, não<br />

há em sua poesia o objetivo de fixar, sem ambigüidades, impressões que pareçam ‘tais e<br />

quais’ às concepções do leitor de nação, cultura e verdade, como confirma Sussekind em<br />

relação à vertente naturalista brasileira.Como ressalta Herrera, o universo poético de João<br />

Cabral “é, pois, construído no intuito de dar a ver uma realidade que nela mesma está<br />

contida” (HERRERA, 1995, p.157), remetendo-nos às palavras de Tzvetan Todorov<br />

(1986):<br />

Não se deve ceder à ilusão representativa que, durante muito tempo, contribuiu<br />

para ocultar esta metamorfose: não há, em primeiro lugar, uma determinada<br />

realidade, e depois a sua representação pelo texto. O dado é texto<br />

literário.(TODOROV, 1986, p.42)<br />

Em virtude disso, já em Pedra do sono (1940) 34 , parece haver uma perspectiva<br />

fenomenológica na construção das primeiras imagens poéticas apresentadas, como<br />

mostraremos no segundo capítulo desta tese. Por essa razão, tentamos relacionar a<br />

objetividade de João Cabral também à perspectiva da inteligência estética.<br />

1.4. O RACIONALISMO ESTÉTICO <strong>DE</strong> JOÃO CABRAL <strong>DE</strong> MELO NETO<br />

Tomando depoimentos de João Cabral, desde o início da publicação de sua obra e os<br />

seus ensaios críticos, percebemos que a concepção que o autor tem de objetividade em arte<br />

34 Primeira coletânea em que João Cabral reúne poemas escritos em sua adolescência em Pernambuco.<br />

53


ultrapassa a visão racionalista cartesiana. Consciente do seu papel de poeta-crítico, o autor<br />

não se atém somente ao princípio da auto-referência e do autoquestionamento da sua<br />

linguagem. Como vimos, o discurso literário e crítico do poeta é marcado pela preocupação<br />

com o leitor e pela comunicabilidade dos poemas.<br />

Ao tratar do processo de composição em poesia, por exemplo, João Cabral propõe a<br />

discussão acerca das idéias opostas de “inspiração” e “trabalho artístico” que marcam sua<br />

geração. Sabemos que João Cabral sempre negou todo tipo de lirismo que se vincula à idéia<br />

de “inspiração”, ou seja, aquela escrita em linguagem corrente, resultante de pouca<br />

elaboração, cuja essencialidade está no tom<br />

É através do tom, de suas qualidades musicais, e não qualidades intelectuais ou<br />

plásticas, que ela [a poesia] tenta reproduzir o estado de espírito em que foi<br />

criada. Muitas vezes, mais do que pelas palavras é pela entonação que o autor<br />

penetra em sua atmosfera. É uma poesia que se lê mais com a distração do que<br />

com a atenção, em que o leitor mais desliza sobre as palavras do que as absorve.<br />

Vagamente, para captar das palavras, sua música. É uma poesia para ser lida mais<br />

do que para ser relida.(MELO NETO, 1998, p.59)<br />

Na concepção de João Cabral, a poesia de “inspiração” vale-se da musicalidade, da<br />

entonação, ou do tom, para alcançar o leitor. Percebemos que a palavra tom refere-se tanto<br />

ao modo de expressar-se, à inflexão da voz, como, no contexto da música, à altura de um<br />

som na escala geral dos sons. Desse modo, a palavra tom está ligada ao sentido da audição,<br />

à capacidade de ouvir.<br />

De acordo com os estudos sobre os sentidos apresentados por Jacob Bronowski<br />

(1997), a audição é um tipo de apreensão do mundo limitada, que não leva o leitor a uma<br />

experiência estética completa, uma vez que o ouvido é usado amplamente para o<br />

estabelecimento de contato com outras pessoas ou com outras coisas vivas, a fim de se<br />

obter informações dessas outras pessoas ou coisas no mundo.<br />

54


Já para Marilena Chaui (1988, p.47), “ouvir, volta-nos para dentro, ver, lança-nos<br />

para fora.” A pesquisadora observa, no entanto, que mais importante do que pensar essa<br />

diferença é considerar a afirmação platônica de que a verdadeira causa pela qual recebemos<br />

a audição e a vista é estarmos destinados ao conhecimento. Por estar voltada para o interior,<br />

“a audição nos faz começar ali onde todo saber deve começar, interpretação socrática do<br />

oráculo de Delfos: ‘conhece-te a ti mesmo’.”(Ibidem)<br />

Nessa perspectiva, João Cabral neutraliza a poesia de “inspiração”, levando-nos a<br />

presumir que esta seja um tipo de texto que não proporciona ao autor/leitor a verdadeira<br />

fruição estética. O poeta considera que, por não se constituir como uma atividade limitada,<br />

aplicadora de regras, ou posterior à inspiração, a tendência de se trabalhar o projeto artístico<br />

é convertida em exercício estético desde o momento da criação. Essa seria a forma de<br />

realização artística: o poeta torna-se leitor de si mesmo, crítico de seu fazer, inventor de<br />

“novo tipo de dicção”. Por isso, de acordo com João Cabral:<br />

Não é o olho crítico posterior à obra. O poema é escrito pelo olho crítico, por um<br />

crítico que elabora as experiências que antes vivera, como poeta.(...) Não é de<br />

estranhar que muitas vezes esqueçam essa experiência, como tal, e que ela, ao<br />

ressuscitar, venha vestida de outra expressão, diversa completamente. (MELO<br />

NETO, 1998, p.65)<br />

O poder sugestivo da linguagem cabralina está mais pautado “nos truques da escrita do<br />

que na sonoridade melódica de seus versos”, como lembra Herrera (1995, p.152). Desse<br />

modo, essa nova dicção, embora possa ser confundida com uma nova lei criada pelo poeta,<br />

não toma a forma de “catecismo para uso privado, um conjunto de normas precisas que ele<br />

se compromete a obedecer” (MELO NETO, 1998, p.66). Ao contrário, o único ponto de<br />

referência que o poeta teria ao escrever seria a sua consciência, “a consciência de dicções<br />

55


de outros poetas que deseja evitar.”(Ibidem) 35 Essas outras dicções 36 , marcadas por modos<br />

de expressão “pouco vivas”, “escrita sem fala”, precisariam ser abandonadas, uma vez que<br />

a experiência estética pressupõe um tipo de arte provocadora de sensações diversas, como<br />

um canto “a contrapelo, esfolado”:<br />

como o que não adormece:<br />

o mais contrário do embalo<br />

e do canto emoliente.<br />

Na Andaluzia esse canto<br />

insonífero se atende:<br />

a contrapelo, esfolado,<br />

arrepiando a alma e o dente.<br />

(MELO NETO, 1997, p.63)<br />

O “canto a contrapelo” do poeta, provocador de sensações, abre mão do tom<br />

harmonioso, do ritmo embalador, em nome de um timbre cortante, áspero que arrepia “a<br />

alma e o dente”. Nesse sentido, temos que admitir que o tipo de racionalidade proposta pela<br />

escrita cabralina implica também um ato reflexivo fenomenológico, na perspectiva da<br />

fenomenologia da percepção, uma vez que,<br />

o conhecimento inteiro e o pensamento inteiro vivem de um fato inaugural cuja<br />

expressão é: senti. Senti: alcancei com esta cor, ou com qualquer outro sensível<br />

em questão, uma existência singular que interrompia de chofre meu olhar, e, no<br />

entanto, prometia-lhe uma série indefinida de experiências, concreção de<br />

possíveis desde sempre reais nas faces escondidas da coisa, lapso de duração<br />

dado numa vez”.” (MERLEAU-PONTY, 1975, p. 437/438)<br />

José Guilherme Merquior (1965) e Luiz Costa Lima (1968) são os primeiros a<br />

destacarem a “impregnação fenomenológica da obra de João Cabral” (LIMA, 1968, p..40),<br />

35 Muitas dessas dicções estão “Linguagens alheias”, do livro Agrestes (1981-1985).<br />

36 Conferir os poemas “Encontro com um poeta” de Paisagens com figuras; “O sim contra o sim”, de Serial<br />

(1959-1961),; “A Pereira da Costa” ,“O pernambucano Manuel Bandeira”, “Murilo Mendes e os rios”, de<br />

Museu de tudo (1966-1974); “Tio e sobrinho”, de A escola das facas(1975-1980), “The return of the native”<br />

de Agrestes, dentre outros.<br />

56


aseados nos pressupostos teóricos de Edmund Husserl (1859-1938) e de Maurice Merleau-<br />

Ponty (1908-1961). Diante dessa possibilidade, podemos inferir que emoção intelectual ou<br />

“poesia que se dirige à inteligência, através dos sentidos”(MELO NETO, 1985), como quer<br />

o poeta, implica poesia de natureza plástica, cuja linguagem é clara, concreta. Desse modo,<br />

o projeto lírico do poeta pressupõe o desenvolvimento de uma capacidade intelectual<br />

decorrente de um treinamento para criar e compreender as mensagens numa perspectiva<br />

visual. Acreditamos que esse é o papel de uma arte que pretenda engajar-se nas atividades<br />

ligadas à comunicação que a sociedade moderna exige, uma vez que esta dispõe de meios<br />

de comunicação que apresentam e reproduzem a vida quase como um espelho, além de<br />

favorecerem um processo de inter-relação de linguagens artísticas.<br />

Em virtude disso, discutimos a poética cabralina enquanto uma produção artística<br />

que tenta fixar e tornar possível, ao leitor, simultaneamente, a visão da realidade que nos<br />

circunda em sua perenidade e permanência. Algumas observações de Maurice Merleau-<br />

Ponty (1975), no ensaio A dúvida de Cézanne, sinalizam para esse tipo de produção<br />

artística:<br />

O que motiva um gesto do pintor não pode residir unicamente na perspectiva ou<br />

na geometria, em leis da decomposição de cores ou em qualquer outro<br />

conhecimento. Para todos os gestos que pouco a pouco fazem um quadro só há<br />

um motivo, a paisagem em sua totalidade e em sua plenitude absoluta - a que<br />

Cézanne justamente chamava “motivo”. Começava por descobrir as bases<br />

geológicas. Não mais se movia depois, e, olhos dilatados, contemplava, relatava<br />

Mme. Cézanne. Ele “germinava” com a paisagem.Tratava-se, esquecida toda a<br />

ciência, de recuperar por meio destas ciências a constituição da paisagem como<br />

organismo nascente. (...) A arte não é uma imitação, nem, por outro lado, uma<br />

fabricação segundo os votos do instinto e do bom gosto. É uma operação de<br />

expressão. (MERLEAU-PONTY, 1975, p.309)<br />

57


É nessa direção que entendemos a proposta da poesia de João Cabral, já que o poeta<br />

tenta “pintar” uma realidade de um modo que ainda não foi pintado pela nossa tradição<br />

lírica 37 , privilegiando a expressividade do texto.<br />

Na mesma conferência em que trata do problema da composição poética, o poeta<br />

reafirma a questão do perigo da incomunicabilidade da arte, já que o trabalho artístico,<br />

voltado apenas para a pesquisa formal da linguagem, pode tornar-se uma violência contra si<br />

mesmo. Em cada novo livro há a preocupação em se cortar mais do que em se acrescentar<br />

ao que já está feito, em nome do que não se sabe. Nesse sentido, o poeta corre o risco de<br />

produzir uma obra de arte que passa a valer por si, matando um certo tipo de comunicação<br />

com o leitor:<br />

Seria a morte da comunicação, e nela esse tipo de poesia iria se encontrar com a<br />

outra incomunicação, a do balbucio, que, por outros caminhos, estão também<br />

buscando os poetas do inefável e da escrita automática.(MELO NETO, 1998,<br />

p.67)<br />

Morta a comunicação, surge uma espécie de desprezo pelo leitor, resultando um<br />

processo criativo o qual funda as bases do hermetismo na poesia. Há o perigo de o poeta<br />

falar sozinho “de si mesmo, de suas coisas secretas, sem saber para quem escreve. Sem<br />

saber se o que escreve vai cair na sensibilidade de alguém com os mesmos segredos,<br />

capaz de percebê-los” (MELO NETO, 1998, p.68)<br />

Com esse argumento, João Cabral mostra a relevância do leitor no momento da<br />

criação do poema. Essa nova poesia demanda um novo tipo de leitor. Que leitor seria<br />

37 Em entrevista a Marques Gastão, em 1958, Cabral diz que: “Um crítico brasileiro disse que eu sou o poeta<br />

mais estranho e distante da tradição do lirismo português e brasileiro. (...) O que limita as duas poesias, a<br />

portuguesa e a brasileira, é serem excessivamente líricas e, como tais, exclusivamente subjetivas. E, como<br />

subjetivas, correm o perigo de cair no sentimentalismo”<br />

58


esse? Percorrendo também os depoimentos e os poemas de João Cabral, algumas<br />

características desse leitor podem ser encontradas: um leitor que, a priori, identifica-se<br />

com o texto lido, que tem desejo e prazer em lê-lo:<br />

(...) A leitura é, para mim, a coisa mais importante. Quando me perguntam o que<br />

aconselharia a um jovem para ler, eu digo que, para ler, é preciso ter prazer.<br />

Quem tem esse prazer vai descobrindo o que quer ler. As escolas deviam ensinar<br />

aos jovens o prazer da leitura. Infelizmente, não e o estão fazendo. Noto que cada<br />

dia se lê menos. A TV está tirando das pessoas o hábito da leitura. Mas, me<br />

pergunto: como alguém pode ser um bom médico ou um bom físico sem ler? A<br />

leitura é cada dia mais necessária e cada dia se lê menos. (MELO NETO, 1986).<br />

Nesses termos, o leitor cabralino ideal experimenta inicialmente uma relação de<br />

prazer com o texto, a fim de descobrir a experiência da leitura. Do prazer de ler, surge o<br />

novo leitor, sujeito ativo, crítico, paciente, que penetra na complexidade do texto de<br />

modo a contemplar, a perceber sensível e cognitivamente todo o seu significado.<br />

Encontramos, em alguns poemas de João Cabral, esse tipo leitor, sujeito que assume o<br />

papel de tradutor, de porta-voz dos seus semelhantes, como o garoto de a “Descoberta da<br />

literatura”, do livro A escola das facas (1975-1980), que lia para os trabalhadores do<br />

engenho:<br />

Descoberta da Literatura<br />

No dia-a-dia do engenho,<br />

toda a semana , durante,<br />

cochichavam-me em segredo:<br />

saiu um novo romance.<br />

E da feira do domingo<br />

me traziam conspirantes<br />

para que os lesse e explicasse<br />

um romance de barbante.<br />

Sentados na roda morta<br />

de um carro de boi, sem jante,<br />

ouviam o folheto guenzo,<br />

a seu leitor semelhante,<br />

com as peripécias de espanto<br />

preditas pelos feirantes.<br />

Embora as coisas contadas<br />

59


e todo o mirabolante,<br />

em nada ou pouco variassem<br />

nos crimes, no amor, nos lances,<br />

e soassem como sabidas<br />

de outros folhetos migrantes,<br />

a tensão era tão densa,<br />

subia tão alarmante,<br />

que o leitor que lia aquilo<br />

como puro alto-falante,<br />

e, sem querer, imantara<br />

todos ali, circunstantes,<br />

receava que confundissem<br />

o de perto com o distante,<br />

o ali com o espaço mágico,<br />

seu franzino com o gigante,<br />

e que o acabassem tomando<br />

pelo autor imaginante<br />

ou tivesse que afrontar<br />

as brabezas do brigante.<br />

(E acabaria, não fossem<br />

contar tudo à Casa-grande:<br />

na moita morta do engenho,<br />

um filho-engenho, perante<br />

cassacos do eito e de tudo,<br />

se estava dando ao desplante<br />

de ler letra analfabeta<br />

de corumba, no caçanje<br />

próprio dos cegos de feira,<br />

muitas vezes meliantes.)<br />

(MELO NETO, 1997, p.129/130)<br />

A descoberta da literatura acontece em decorrência do envolvimento dos<br />

ouvintes. Embora já soubessem da história narrada, a qual variava “em nada ou pouco”,<br />

como diz o poeta, toda a densa tensão pressentida pelo leitor, contagia os ouvintes, na<br />

medida em que percebem a mágica das palavras que os imanta ao texto.<br />

Por outro lado, percebemos, no texto, o lugar do leitor. Filho-engenho que se<br />

coloca perante cassacos do eito e divide com eles o conhecimento que é restrito à Casa-<br />

grande. Se no plano semântico é possível ver a realidade nordestina, com todas as suas<br />

gritantes diferenças sociais e econômicas, no plano da organização estrutural e sintática<br />

do texto, somos remetidos ao canto da letra analfabeta, que marca as feiras de<br />

60


Pernambuco. Desse modo, João Cabral fala do leitor ao leitor analfabeto, mesmo com o<br />

objetivo de levá-lo apenas a experimentar o prazer da descoberta da literatura.<br />

Apesar de o poeta brasileiro manifestar preocupação como leitor, Donis A.<br />

Dondis (1997) observa que ainda há muito o que fazer quanto à recepção da arte da era<br />

tecnológica:<br />

A arte e o significado da arte mudaram profundamente na era tecnológica, mas a<br />

estética da arte não deu resposta às modificações.Aconteceu o contrário: enquanto<br />

o caráter das artes visuais e sua relação com a sociedade modificaram-se<br />

dramaticamente, a estética da arte tornou-se ainda mais estacionária. O resultado<br />

é a idéia difusa de que as artes visuais constituem o domínio exclusivo da<br />

intuição subjetiva, um juízo tão superficial quanto o seria a ênfase excessiva no<br />

significado literal. Na verdade, a expressão visual é o produto de uma inteligência<br />

extremamente complexa, da qual temos, infelizmente, em conhecimento muito<br />

reduzido. (DONDIS, 1997, p.27)<br />

De acordo com a pesquisadora, a estética da arte visual ainda não desenvolveu um<br />

sistema estrutural e uma metodologia que permita o ensino e o aprendizado de como<br />

interpretar visualmente as idéias. O leitor ainda não educou o seu olhar para a visão das<br />

coisas. As pessoas tendem a fazer leituras impressionistas, intuitivas do objeto artístico,<br />

limitando as possibilidades de sentidos a que tal objeto pode remeter. No que tange à<br />

literatura em geral, ainda persiste o olhar impressionista do leitor comum. Nesse contexto,<br />

encontra-se o leitor comum. O poeta tenta caracterizá-lo:<br />

[Eu defendia] uma poesia que chegasse ao povo. Eu achava que a poesia estava<br />

fechada demais e tentei abri-la um pouco mais. Mas depois eu vi que era um<br />

negócio muito difícil por essa coisa de que o leitor no Brasil é a elite, de forma<br />

que você, queira ou não queira, acaba escrevendo para essa elite. Como é que<br />

você vai escrever para o sertanejo, que não sabe ler? (MELO NETO, 1994)<br />

Percebemos, por essas palavras, que há uma preocupação constante do poeta com o<br />

leitor analfabeto e com o leitor comum. Essa é uma atitude que merece a nossa atenção,<br />

61


quando tratamos da produção poética de João Cabral, pois não acreditamos que o poeta, ao<br />

se referir ao leitor que não sabe ler, ou àquele que tem dificuldades em alcançar o sentido<br />

de sua lírica, tenha a pretensão de exigir um domínio teórico dos processos construtivos do<br />

texto. João Cabral é um dos poetas da literatura de língua portuguesa que mais se<br />

preocupou em produzir uma poesia visível para o seu leitor, valendo-se de estratégias<br />

discursivas que caracterizam textos pertencentes ao contexto da arte popular, como o metro<br />

da literatura de cordel, o tom didático das fábula etc.<br />

Lembramos que o reconhecimento da preponderância do aspecto visual das imagens<br />

sobre o aspecto conceitual, além de exigir a concretização da palavra, para oferecê-la ao<br />

leitor de forma clara, implica também falar “numa ‘forma’ familiar ao leitor”, já que “cada<br />

povo tem determinadas formas ou gêneros de poesia que lhe são familiares.” (MELO<br />

NETO, 1954) 38 Nessa perspectiva, a clareza dessa poesia está articulada tanto ao processo<br />

de percepção sensorial, quanto à capacidade de o escritor dar tratamento poético às formas<br />

artísticas familiares ao leitor.<br />

A partir do exposto, podemos afirmar que a busca do visível é o traço fundamental<br />

do lirismo de João Cabral, o qual marca a linguagem cabralina de Pedra do sono (1942) a<br />

Andando Sevilha (1987-1989), ou seja, de um tipo de Cubismo, de Surrealismo ou<br />

Construtivismo inicial, marcado pela pesquisa e planejamento, até chegar a um tipo de<br />

realismo social, contribuindo para uma percepção mais humana das populações nordestinas<br />

e do viver sevilhano. Nas palavras de George Rudolf Lind (1970),<br />

a arte sóbria e severa de João Cabral, racionalmente clara apesar dos seus<br />

artifícios estilísticos gongóricos, esta arte não apela ao nosso sentimento, não<br />

conta com o nosso entusiasmo; mas, se assumirmos a atitude que ela exige de<br />

38 Conferir depoimento publicado na obra de Félix de Athayde (1998, p. 34), sem referência à fonte direta.<br />

62


nós, a contemplação lúdica do mundo exterior e interior, ela recompensa o nosso<br />

esforço pela alta satisfação estética que nos oferece o espetáculo dum mundo<br />

rigorosamente ordenado em palavras, do mundo nosso re-feito e renovado,como<br />

apenas um autêntico poeta é capaz de fazer. (LIND, 1970, p.25)<br />

João Cabral é um poeta que exige a postura contemplativa do leitor, pelo fato de,<br />

conforme João Palma Ferreira (apud MAME<strong>DE</strong>,1987, p.312), conseguir “induzir o leitor à<br />

percepção de um estranho e novo conceito de todas as possibilidades da palavra e a<br />

faculdade de por meio da palavra transmitir remotos aspectos sensoriais que a poesia tem<br />

desprezado ultimamente.”<br />

Desse modo, acreditamos que o projeto lírico do poeta, desde a sua fase inicial,<br />

pressupõe a existência de um leitor que desenvolva a sua capacidade intelectual decorrente<br />

de um treinamento do olhar para criar e compreender as mensagens, inicialmente nos seus<br />

aspectos sensoriais, sem nenhuma intenção intelectiva ou de projeção psicológica, em<br />

outras palavras, para viver uma experiência estética. Por isso, primeiro o leitor percebe a<br />

imagem do objeto como algo vivo, propulsor de significações, que o leva a uma experiência<br />

de prazer jamais esquecida. Dessa maneira, ousamos rever a sua Psicologia da composição,<br />

na perspectiva da recepção do texto, já que o leitor é a contraparte essencial nesse processo<br />

de composição, no qual também o autor tende a ser leitor de si mesmo:<br />

VI<br />

Não a forma encontrada<br />

como uma concha, perdida<br />

nos frouxos areais<br />

como cabelos;<br />

não a forma obtida<br />

em lance santo raro,<br />

tiro nas lebres de vidro<br />

do invisível;<br />

mas a forma atingida<br />

como a ponta do novelo<br />

que a atenção, lenta,<br />

63


desenrola,<br />

aranha; como o mais extremo<br />

desse fio frágil,que se rompe<br />

ao peso, sempre, das mãos<br />

enormes.<br />

(MELO NETO, 1986, p.330)<br />

A forma do poeta não seria encontrada no isolamento das palavras do texto e nem<br />

em impressões subjetivas ou juízos superficiais, mas na apreensão lenta de cada imagem,<br />

respeitando o “fio frágil” dos significados que se rompem a cada manejo técnico da leitura.<br />

Depois dessa apreensão, viriam as análises, as classificações e as projeções propriamente<br />

ditas. Pressupõe, portanto, o que Merleau-Ponty chama de “atitude natural do eu inocente,<br />

ingênuo” (1975, p.434), atitude prévia à reflexão, despojada de predicados, juízos e<br />

proposições.<br />

Ao final desse capítulo, podemos inferir que o sentido de modernidade proposto<br />

pelo poeta em estudo sinaliza para a necessidade de se pesquisarem meios expressivos<br />

pertencentes não só aos sistemas verbais, mas também aos modos de comunicação visual,<br />

já que na modernidade prevalecem os meios de expressão visual e a pesquisa do poeta não<br />

pode perder de vista a comunicação com o seu leitor. Tendo em vista o leitor, vale a<br />

utilização de outros subgêneros textuais, tais como a anedota, canções populares, poesia<br />

satírica, poesia narrativa etc., os quais têm uma função social. Além do mais, há que se<br />

considerar também a estrutura da imagem, do verso da palavra, na notação da frase.<br />

Não temos dúvida de que os ensaios citados condenam um tipo de lirismo intimista<br />

e individualista, provocador de um abismo entre poesia e leitor. Mostram a necessidade do<br />

poeta considerar os aspectos da vida moderna, a fim de que se possa diminuir esse<br />

abismo.Poesia e leitor, nesse sentido, adquirem vida, movimento, provocados pelo trabalho<br />

64


perceptivo do poeta. Na tentativa de alcançar seus objetivos, como o poeta trabalha esses<br />

fundamentos teóricos e estéticos? Na seqüência, vamos aprofundar nossas leituras dos<br />

poemas em que há o uso de recursos de linguagem, na tentativa de alcançar a plasticidade<br />

das imagens.<br />

65


CAPÍTULO 2<br />

A ESTÉTICA CABRALINA EM EXERCÍCIO<br />

Nesta parte da pesquisa, adotamos um procedimento predominantemente<br />

hermenêutico, com vistas a evidenciar que, em Pedra do sono (1940-1941) e em Os três<br />

mal-amados (1943), João Cabral já organiza a sua linguagem no sentido de obter a clareza<br />

e a plasticidade em poesia, sobretudo, através do uso enfático da palavra concreta, traço que<br />

marca a produção futura do autor, como anunciamos no primeiro capítulo desta tese.<br />

Por outro lado, são obras que estabelecem um diálogo explícito com o poeta Carlos<br />

Drummond de Andrade, não só pela dedicatória e pela variação em torno do poema<br />

“Quadrilha”, de Drummond, mas no que se refere à procura de um conceito de poesia. 39<br />

Além disso, é perceptível o diálogo com Murilo Mendes, sobretudo na primeira obra,<br />

devido à ênfase ao aspecto plástico das imagens.<br />

2.1. PEDRA DO SONO E A ORGANIZAÇÃO DO TEXTO FIGURATIVO NA<br />

BUSCA DA VISIBILIDA<strong>DE</strong><br />

Pedra do sono (1940-1941), livro de estréia do poeta pernambucano, apresenta um<br />

verso de Mallarmé, como epígrafe, e já tende ao construtivismo visual, através de um olho<br />

que observa o real e o surreal, adotando a mesma postura analítica e depuradora em relação<br />

a esses dois planos.<br />

39 Em um de seus artigos sobre a Geração de 45, João Cabral diz que os poetas mais jovens parte de um poeta<br />

mais antigo, com o propósito de definir um conceito de poesia, a partir do qual realizará sua própria poesia.<br />

Conferir: MELO NETO, 1998, p. 77.<br />

66


A despeito de sua tendência surrealista, largamente justificada pela crítica devido ao<br />

uso de termos correlatos à idéia do onírico, do noturno, do líquido e do inconsistente, a obra<br />

em estudo, contrapõe real e irreal, através do encadeamento 40 , no plano sintático de sua<br />

organização, de situações diurnas e noturnas, concretas e abstratas, obedecendo à lógica de<br />

um único olhar que observa. Acreditamos que não seja gratuita a opção pela forma<br />

discursiva em primeira pessoa, já que, na condição de observador da cena, o eu-lírico<br />

recorta e concatena imagens advindas do sonho, da memória e do mundo real. O resultado<br />

alcançado com esse processo define o tipo de texto apresentado, como sendo de natureza<br />

predominantemente figurativa.<br />

De acordo com Francisco Platão Savioli e José Luiz Fiorin (1996), o texto<br />

figurativo é aquele em que predominam os termos concretos, em oposição ao texto<br />

temático, em que há o predomínio de termos abstratos. O texto figurativo apresenta mais<br />

elementos concretos, porque são estes tipos de elementos que se referem às “figuras”, isto<br />

é, às representações do mundo e das ações do homem, a algo presente no mundo natural,<br />

entendendo como natural os mundos criados pela linguagem.<br />

Ainda de acordo com esses autores, conforme mostramos na introdução desta tese, o<br />

conceito de concreto estende-se também aos adjetivos, contrariando os pressupostos de<br />

algumas gramáticas, pois “formam um contínuo que vai do mais concreto ao mais<br />

abstrato.”(SAVIOLI e FIORIN, 1996, p.51) Do mesmo modo, João Cabral nos ensina a<br />

distinguir o sentido da palavra concreto, como mostramos na introdução desta tese:<br />

Ainda não se enfatizou o grande predomínio dos substantivos, adjetivos e verbos<br />

concretos nos meus textos.Sim, porque adjetivos e verbos admitem essa<br />

categoria. Por exemplo: o adjetivo sublime é abstrato, como tristeza. Maçã é tão<br />

40 Usamos o termo encadeamento, no sentido em que é dado Carlos Reis e Ana Cristina M. Lopes (1988), no<br />

Dicionário de teoria da narrativa, ou seja, como o ato de concatenar linearmente unidades narrativas<br />

mínimas.<br />

67


concreto quanto o adjetivo torto. (SECCHIN, 1999, p.333)<br />

Outro aspecto importante que deve ser ressaltado como critério de classificação dos<br />

textos em figurativos e temáticos é a noção de narratividade do texto. Para Reis e Lopes,<br />

“narratividade é o fenômeno de sucessão de estados e transformações, inscrito no discurso e<br />

responsável pela produção de sentido” (REIS e LOPES, 1988, p.69). Envolve relações<br />

temporais de concomitância, anterioridade e posterioridade. Desse modo, a narratividade do<br />

texto pode ser percebida pelo uso de verbos em tempos verbais variados e pelo uso de<br />

advérbios.<br />

Diante dessas breves considerações teóricas, podemos considerar os vinte poemas<br />

de Pedra do sono, como sendo de natureza figurativa, uma vez que em todos eles somos<br />

remetidos a figuras que se referem a objetos e ações do homem no mundo natural e há a<br />

narratividade, ou seja, ocorre mudança de estado durante o texto. Podemos ilustrar todos<br />

esses aspectos, analisando o primeiro poema do livro:<br />

Poema<br />

Meus olhos têm telescópios<br />

espiando a rua,<br />

espiando minha alma<br />

longe de mim mil metros.<br />

Mulheres vão e vêm nadando<br />

em rios invisíveis.<br />

Automóveis como peixes cegos<br />

compõem minhas visões mecânicas.<br />

Há vinte anos não digo a palavra<br />

que sempre espero de mim.<br />

Ficarei indefinidamente contemplando<br />

meu retrato eu morto.<br />

(MELO NETO, 1986, p.375)<br />

68


Inicialmente observamos que as imagens que nos são apresentadas surgem a partir<br />

da perspectiva de um “eu” que contempla o mundo natural ou imaginado. Embora<br />

tenhamos a impressão de que esse “eu” se encontre numa atitude permanentemente<br />

passiva diante do mundo, ele espia o que existe e o que não existe. Voltando ao<br />

dicionário, espiar refere-se ao ato de “observar secretamente; procurar descobrir, com o<br />

fim de fazer danos, as ações de; espionar.” Ou “olhar, observar furtivamente,<br />

disfarçadamente”. (FERREIRA, 1986, p. 704) Portanto, a passividade do eu-lírico pode<br />

ser vista também como disfarce, tentativa de engodo, daquele que sabe de seu<br />

propósitos, mas teme anunciá-los explicitamente na obra de estréia. De modo que, na<br />

situação de observador do mundo, João Cabral nos remete ao gauche de Carlos<br />

Drummond de Andrade. As referências aos temas, imagens e até palavras do poeta<br />

mineiro constituem o começo de um poeta que ainda não definiu o seu timbre.<br />

No entanto, a possibilidade de anunciar o tipo de texto que deseja alcançar<br />

também se confirma no uso enfático do gerúndio, que nos remete à idéia de ação<br />

duradoura, pesquisa constante, persistente, minuciosa, traço que marca o fazer poético<br />

do autor em tela.<br />

Nesse sentido, ressaltamos ainda a idéia de que o eu-lírico se vale de olhos que<br />

“têm telescópios” e que compõem “visões mecânicas” do universo natural ou<br />

imaginado. Os olhos telescópicos, então, tornam a realidade ou os objetos mais<br />

próximos, mais completos, mais visíveis, a ponto de ganharem corpo, isto é, a ponto de<br />

tornarem-se palpáveis, concretos. Essa operação de aproximação da imagem, de chegá-<br />

la a si, para transmitir-lhe uma nova vida e fazer dela uma realidade perceptível de<br />

forma dinâmica, viva e integral é vista por Luiz Costa Lima (1968) e Angélica Maria<br />

69


Santos Soares (1978) como o princípio da visibilidade, ou o mecanismo da visualização-<br />

concreção: “Visualização não deve ser confundida com visão, pois enquanto esta é<br />

apenas um dos sentidos da percepção humana, aquela se refere a uma forma de criação<br />

poética, que implica na relação dialética entre percepção e imaginação.” (SOARES,<br />

1978, p.46) 41 Por isso, no segundo poema intitulado “os olhos”<br />

Todos os olhos olharam:<br />

o fantasma no alto da escada,<br />

os pesadelos, o guerreiro morto,<br />

a girl a forca o amor.<br />

Juntos os peitos bateram<br />

e os olhos todos fugiram.<br />

(Os olhos ainda estão muito lúcidos).<br />

(MELO NETO, 1986, p. 375)<br />

Portanto, na mesma direção do texto anterior, estes são olhos que têm condições de<br />

precisar as imagens observadas, tomá-las nos seus aspectos físicos, geográficos, enfim,<br />

corporificá-las através do mesmo procedimento, mesmo que pertençam ao campo da<br />

imaginação, pois “Os olhos ainda estão muito lúcidos”. Nessa perspectiva, os olhos<br />

possibilitam enxergar a realidade a partir do que é menos visível ao olho comum.Assim,<br />

mesmo que o eu-lírico não seja sujeito das ações que observa, percebemos que ele dá a ver<br />

a realidade de forma lúcida, figura o real, através do registro predominante de imagens, de<br />

situações e de ações concretas:<br />

Poema deserto<br />

Todas as transformações<br />

todos os imprevistos<br />

se davam sem o meu consentimento.<br />

Todos os atentados<br />

41 Lúcia Santaella e Winfried Nöth (2005, p. 36), observam que “essa dualidade semântica das imagens como<br />

percepção e imaginação se encontra profundamente arraigada no pensamento ocidental.”<br />

70


eram longe de minha rua.<br />

nem mesmo pelo telefone<br />

me jogavam uma bomba.<br />

Alguém multiplicava<br />

alguém tirava retratos;<br />

nunca seria dentro de meu quarto<br />

onde nenhuma evidência era provável.<br />

Havia também alguém que perguntava:<br />

Por que não um tiro de revólver<br />

ou a sala subitamente às escuras?<br />

Eu me anulo me suicido,<br />

percorro longas distâncias inalteradas,<br />

te evito te executo a cada momento e em cada esquina.<br />

(MELO NETO, 1986, p. 375/376)<br />

Como no primeiro poema, aqui também se trabalha a idéia de distanciamento do eu-<br />

lírico, que não “consente” as ações de terceiros. No entanto, tais ações existem e o registro<br />

delas obedece a seqüências temporais diversas, em lugares distintos, de diferentes modos,<br />

permitindo a idéia de narratividade do texto.<br />

A visibilidade ou visualização, como processo basilar da criação poética de João<br />

Cabral, também pode ser observada em vários outros poemas de Pedra do sono, como em<br />

“Os manequins”:<br />

Os sonhos cobrem-se de pó.<br />

Um último esforço de concentração<br />

morre no meu peito de homem enforcado.<br />

Tenho no meu quarto manequins corcundas<br />

onde me reproduzo<br />

e me contemplo em silêncio.<br />

(MELO NETO, 1986, p.376)<br />

Neste poema, o eu-lírico materializa-se nos manequins de seu quarto, mantendo-se,<br />

no entanto, na mesma atitude contemplativa. A narratividade persiste no texto, uma vez que<br />

é visível a idéia de mudança, de transformação.<br />

71


Na seqüência do livro, aparecem dois poemas “Dentro da perda da memória” 42 e<br />

“Noturno”, nos quais as imagens vêm a partir de um processo de letargia do eu-lírico. As<br />

figuras, nesse contexto, são dadas a ver, obedecendo a uma desordem típica dos estados de<br />

inconsciência. Por outro lado, “Noturno” explora predominantemente o campo semântico<br />

da noite e os estados e/ou situações noturnas:<br />

Noturno<br />

O mar soprava sinos<br />

os sinos secavam as flores<br />

as flores eram cabeças de santos.<br />

Minha memória cheia de palavras<br />

meus pensamentos procurando fantasmas<br />

meus pesadelos atrasados de muitas noites.<br />

De madrugada, meus pensamentos soltos<br />

voaram como telegramas<br />

e nas janelas acesas toda a noite<br />

o retrato da morta<br />

fez esforços desesperados para fugir.<br />

(MELO NETO, 1986, p. 377)<br />

“Dentro da perda da memória” refere-se também a “(dois olhos dois seios dois<br />

clarinetes)/ que em certas horas do dia/ cresciam prodigiosamente”. Aqui é a perda da<br />

memória que provoca a desordenação das figuras. Por essa desorganização do discurso em<br />

consonância com a idéia de perda da memória, paradoxalmente, os poemas primam pela<br />

sua clareza e concretude. Esse modo de escrever, o poeta toma emprestado de Murilo<br />

Mendes, seu mestre na organização plástica das imagens, do qual adota a mesma<br />

perspectiva surrealista. Do mesmo modo, percebemos os versos de “Infância”. São<br />

organizados em consonância com o jeito desordenado do pensamento infantil, ao mesmo<br />

42 Consultar anexo 02.<br />

72


tempo em que recupera elementos pertencentes ao universo da criança, como “anjo da<br />

guarda”, “hélices”, “aviões”, “locomotivas” “carrosséis” etc.:<br />

Infância<br />

Sobre o lado ímpar da memória<br />

o anjo da guarda esqueceu<br />

perguntas que não se respondem.<br />

Seriam hélices<br />

aviões locomotivas<br />

timidamente precocidade<br />

balões-cativos si-bemol?<br />

Mas meus dez anos indiferentes<br />

rodaram mais uma vez<br />

nos mesmos intermináveis carrosséis.<br />

(MELO NETO, 1986, p. 377)<br />

“A poesia andando”, “Poema de desintoxicação”, “Poesia” e “Composição” 43<br />

complementam, resguardadas as suas particularidades, a mesma reflexão metalingüística<br />

observada nos primeiros poemas do livro:<br />

43 Consultar anexo 02.<br />

A poesia andando<br />

Os pensamentos voam<br />

dos três vultos na janela<br />

e atravessam a rua<br />

diante de minha mesa.<br />

Entre mim e eles<br />

estendem-se avenidas iluminadas<br />

que arcanjos silenciosos<br />

percorrem de patins.<br />

Enquanto os afugento<br />

E ao mesmo tempo que os respiro<br />

Manifesta-se um trovoada<br />

Na pensão da esquina.<br />

E agora<br />

Em continentes muito afastados<br />

os pensamentos amam e se afogam<br />

em marés de águas paradas.<br />

(MELO NETO, 1986, p. 379)<br />

73


Há o uso da primeira pessoa em todos eles; o encadeamento de imagens do<br />

mundo real e do mundo surreal: “Eu penso o poema/ da face sonhada,/ metade de flor/<br />

metade apagada” (MELO NETO,1986, p.378); a oposição dia/noite; a narratividade do<br />

discurso, enfim, são predominantemente textos figurativos.<br />

Já os poemas “Canção” e “Marinha” 44 retomam o estado de estaticidade do eu-lírico<br />

pelo fato de a corporificação das figuras ser estabelecida pelo pensamento, pela<br />

imaginação, ou pelo sonho:<br />

Canção<br />

Demorada demoradamente<br />

nenhuma voz me falou.<br />

Eu vi o espectro do rei<br />

não sei em que porta ele entrou.<br />

Meus sofrimentos cumpridos<br />

que o sono os arrebatou?<br />

Mas por detrás da cortina<br />

que gesto meu se apagou?<br />

(MELO NETO, 1986, p.380)<br />

Outro aspecto que devemos ressaltar, nesses poemas, é o uso da interrogação. De acordo com<br />

Antônio Carlos Secchin (1999, p.21), o uso explícito da interrogação surge seis vezes em Pedra do<br />

sono. Apesar de usadas, na maioria das vezes, associadas “ao clima de mistério e transcendência”,<br />

como observa o crítico citado, tal recurso não deixa de conferir ao discurso um tom reflexivo e<br />

questionador:<br />

44 Conferir anexo 02.<br />

Os homens e as mulheres<br />

adormecidos na praia<br />

que nuvens procuram<br />

agarrar?<br />

(MELO NETO, 1986, p.380)<br />

74


Já em “A Porta” e “Janelas”, percebemos a luta do poeta no sentido de buscar<br />

a palavra exata, a imagem desvestida do véu que a encobre. O poema “Porta” é o primeiro a<br />

evocar essa idéia de procura:<br />

Procuravam a esquecida chuva<br />

de inverno em sua boca<br />

de onde alguém soprara as<br />

palavras de fora do poema.<br />

Como interrogassem sobre a...(?)<br />

a mulher falando no escuro:<br />

levitações elefante até-logo,<br />

o sol na fronte não desaparecia.<br />

Houve porém outro alguém<br />

(deste só a cabeça<br />

e o número da casa)<br />

que se esqueceu entre o véu e o assalto.<br />

(MELO NETO, 1986, p.381)<br />

O contraste entre escuro/sol volta ao poema, reafirmando a idéia de tensão, de luta<br />

do poeta.Repetindo as palavras de Marta de Senna (1980),<br />

sua luta é já aqui uma luta para enxergar para além do véu que encobre as coisas.<br />

A palavra é ainda véu (cf. “Janelas”, vs. 9-11) que oblitera o real ao invés de<br />

revelá-lo. É preciso rasgar o véu, domar a palavra, ultrapassar a pedra – a<br />

superfície plana e opaca que impede a visão das coisas que estão por detrás –,<br />

vencer o sono – esse inimigo que se insinua sub-repticiamente para intensificar a<br />

opacidade da pedra, para turvar qualquer tentativa de ver claro. (SENNA, 1980,<br />

p.03)<br />

A porta, segundo Jean Chevalier e Alain Gheerbrant (1997) “simboliza o local de<br />

passagem entre dois estados, entre dois mundos, entre o conhecido e o desconhecido, a luz<br />

e as trevas, o tesouro e a pobreza extrema” (1997, p.734). Por outro lado, esses autores<br />

lembram que a porta tem um valor dinâmico, de travessia, “pois não somente indica uma<br />

passagem, mas convida a atravessá-la”, para que saiamos do “domínio profano para o<br />

domínio sagrado”. (Ibidem, p.735)<br />

75


Já a palavra janela, na sua simbologia, remete “ao oriente, ao sul e ao ocidente, que<br />

são as três estações do Sol.(...) Enquanto abertura para o ar e para a luz, a janela simboliza<br />

receptividade.”(Ibidem, p.511). No poema, percebemos a alusão a diferentes situações<br />

humanas:<br />

Janelas<br />

Há um homem sonhando<br />

numa praia; um outro<br />

que nunca sabe as datas;<br />

há um homem fugindo<br />

de uma árvore; outro que perdeu<br />

seu barco ou seu chapéu;<br />

há um homem que é soldado;<br />

outro que faz de avião;<br />

outro que vai esquecendo<br />

sua hora seu mistério<br />

seu medo da palavra véu;<br />

e em forma de navio<br />

há ainda um que adormeceu.<br />

(MELO NETO, 1986, p.381)<br />

O paralelismo sintático dos verbos sinaliza para um estado comum de todos os homens<br />

apresentados: encontram-se desnorteados, perdidos, “sonhando”, “fugindo”, “esquecendo” de<br />

alguma coisa. Portanto, todos eles procuram a luz, por isso o poema recebe o título de “janelas”, ou<br />

seja, diante da necessidade de cada um há a possibilidade de visualizar a luz.<br />

Quanto aos poemas “O poeta”, “Homenagem a Picasso” e “A André Masson” 45 ,<br />

percebemos que o que está em discussão é o ato da escrita. No primeiro texto, o poeta ainda<br />

se debate entre o mundo onírico e a idéia do dia, prefigurada nas imagens surrealistas das<br />

“vozes sem cabeça”, do “telefone com asas”, das “nuvens” que povoam a “noite do poeta”,<br />

em oposição ao “relógio” que “marcava horas” e dos “olhos, vistos por fora”.(MELO<br />

NETO, 1986, p.383)<br />

45 Conferir anexo 02.<br />

76


O segundo texto, “Homenagem a Picasso”, acentua a plasticidade da obra do pintor<br />

espanhol, como teremos a oportunidade de discutir na segunda parte desta tese, enquanto o<br />

terceiro texto, dedicado a André Masson (1896-1987), revela a simpatia de João Cabral<br />

pelo aspecto construtivista e abstratizante da técnica surrealista, através da alusão a temas e<br />

aos modos de organização “sintática” das telas do pintor dessa geração.<br />

Finalmente em “Espaço jornal”, o poeta, mais uma vez, recorre a Drummond, na<br />

perspectiva irônica do discurso (duas últimas estrofes):<br />

No espaço jornal<br />

a sombra come a laranja<br />

a laranja se atira no rio,<br />

não é um rio, é o mar<br />

que transborda de meu olho.<br />

No espaço jornal<br />

nascendo do relógio<br />

vejo mãos, não palavras,<br />

sonho alta noite a mulher<br />

tenho a mulher e o peixe.<br />

No espaço jornal<br />

esqueço o lar o mar<br />

perco a fome a memória<br />

me suicido inutilmente<br />

no espaço jornal.<br />

(MELO NETO, 1986, p.384)<br />

O livro em estudo termina com “O poema e a água”, no qual “as vozes líquidas do poema”<br />

convidam para um devaneio de “mentação surrealista”, como observa Costa Lima:<br />

As vozes líquidas do poema<br />

convidam ao crime<br />

ao revólver.<br />

Falam para mim de ilhas<br />

que mesmo os sonhos<br />

não alcançam.<br />

O livro aberto nos joelhos<br />

o vento nos cabelos<br />

77


olho o mar.<br />

Os acontecimentos de água<br />

põem-se a se repetir<br />

na memória.<br />

(MELO NETO, 1986, p.385)<br />

Embora essa “mentação surrealista” venha nas duas primeiras estrofes, de acordo<br />

com o crítico, “tal identificação não deixará de chocar ao leitor familiarizado com a obra de<br />

Cabral a partir de O engenheiro. É certo que a alucinação surrealista não toca em sua<br />

lucidez” (LIMA,1968, p.244), já que, nas duas últimas estrofes, o livro se mantém aberto e<br />

as imagens líquidas “põem-se a se repetir” no espaço da “memória”.<br />

A título de conclusão, percebemos que o primeiro livro de João Cabral apresenta os<br />

“olhos”, ou as ações correlatas ao ato da visão, de uma maneira distinta da tradição<br />

observada por Sussekind, por permitir que a realidade ganhe corpo, torne-se dinâmica, viva,<br />

palpável, concreta. Desse modo, João Cabral parece conceber a percepção como resultante<br />

de uma relação do sujeito com o mundo exterior e não uma reação físico-fisiológica de um<br />

sujeito físico-fisiológico a um conjunto de estímulos externos (como suporia o empirista),<br />

nem uma idéia formulada pelo sujeito (como suporia o intelectualista).A relação dá sentido<br />

ao percebido e ao percebedor, e um não existe sem o outro. Se o eu-lírico do poema utiliza-<br />

se de olhos telescópicos, ou de “visões mecânicas”, é para enxergar a realidade a partir do<br />

que é menos visível ao olho comum e não para reduplicar a realidade do senso comum.<br />

2.2. O EXERCÍCIO CUBISTA EM OS TRÊS MAL-AMADOS<br />

A visualização-concreção, como processo de criação poética, como propõe Costa<br />

Lima, ou a percepção fenomenológica pode ser observada também no segundo livro do<br />

78


poeta, Os três mal-amados (1943), no qual João, Raimundo e Joaquim apresentam suas<br />

amadas através de processos perceptivos que acontecem em diferentes circunstâncias. Em<br />

vista disso, observamos que a relação entre o sujeito e o objeto amado é mediada por um<br />

movimento do olhar que ora aproxima, ora distancia observador e observado:<br />

João:<br />

Raimundo:<br />

Joaquim:<br />

Olho Teresa. Vejo-a sentada aqui a meu lado, a poucos centímetros de<br />

mim. A poucos centímetros, muitos quilômetros. Por que essa impressão<br />

de que precisaria de quilômetros para medir a distância, o afastamento em<br />

que a vejo neste momento?<br />

Maria era a praia que eu freqüentava certas manhãs. Meus gestos<br />

indispensáveis que se cumpriam a um ar tão absolutamente livre que ele<br />

mesmo determina seus limites, meus gestos simplificados diante de<br />

extensões de que uma luz geral aboliu todos os segredos.<br />

O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu<br />

minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu<br />

meus cartões de visitas. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu<br />

escrevera meu nome.<br />

(MELO NETO, 1986,p.365)<br />

Constatamos que, no primeiro caso, Teresa surge a partir do olhar de João, sujeito<br />

que ora aproxima, ora distancia a personagem de seu foco de visão, sem entender a razão<br />

desse procedimento. É um sonhador que não consegue alcançar o seu objeto de desejo,<br />

numa quase alusão à figura feminina inatingível de um romântico como Álvares de<br />

Azevedo:<br />

João:<br />

Olho Teresa como se olhasse o retrato de uma antepassada que tivesse vivido em<br />

outro século. Ou como se olhasse o vulto em outro continente, através de um<br />

telescópio. Vejo-a como se a cobrisse a poeira tenuíssima ou o ar quase azul que<br />

envolvem as pessoas afastadas de nós muitos anos ou muitas léguas.(...) Posso<br />

dizer dessa moça ao meu lado que é a mesma Teresa que durante todo o dia de<br />

hoje, por efeito de gás do sonho senti pegada a mim?(MELO NETO, 1986,<br />

p.365/366)<br />

79


No caso de Raimundo, Maria é oferecida ao leitor como uma presença já<br />

experimentada, reconstituída no texto de maneira lúcida e clara, sem a interferência direta<br />

do olhar do observador. O modo de ver Maria dinamiza sua figura, tornando-a uma imagem<br />

viva:<br />

Raimundo:<br />

Maria não era um corpo vago, impreciso. Eu estava ciente de todos os detalhes de<br />

seu corpo, que poderia reconstituir à minha vontade. Sua boca, seu riso irregular.<br />

Todos esses detalhes não me seria difícil arrumá-los, recompondo-a, como um<br />

jogo de armar ou um prancha anatômica (...) Maria era também o sistema<br />

estabelecido de antemão, o fim onde chegar. Era a lucidez que, ela só, nos pode<br />

dar um modo novo e completo de ver uma flor, de ler um verso. (MELO NETO,<br />

1986, p.367/372)<br />

Já Joaquim está totalmente envolvido pelo sentimento amoroso. Homem do passado,<br />

surge como uma espécie de mediador da causa dos “mal-amados”, já que se entrega por<br />

inteiro a emoção que “devora” a sua pessoa. Aniquilado pelo amor, não lhe resta nem o<br />

tempo futuro enquanto “grande poeta”. Nessa perspectiva, como lembra Secchin, mostra<br />

que “’amor’ e ‘poesia’ são inconciliáveis”(1999, p.32) Costa Lima, por sua vez, lembra<br />

que o poeta pernambucano não disfarça em Joaquim a presença de Drummond, voz que soa<br />

como um eco na poética do jovem poeta.<br />

Por fim, em um texto que se mescla à prosa 46 , encontramos três formas distintas de<br />

concepção da imagem dos “mal-amados” e de suas amadas. No entanto, nenhuma das três<br />

formas dá a ver a realidade, se tomadas isoladamente, pois se por um lado há a interferência<br />

da subjetividade (enunciação em primeira pessoa) e da emoção (o amor é o sujeito das<br />

46 Em entrevista ao poeta Felipe Fortuna, João Cabral observa que nunca se entusiasmou pelo poema em<br />

prosa. Alega que Os três mal-amados não é um poema em prosa, mas “uma peça de teatro” que não foi<br />

concluída. (MELO NETO, 1987)<br />

80


ações) de olhares que observam, por outro há a tentativa de neutralização da perspectiva do<br />

observador (enunciação em terceira pessoa).Tomadas em conjunto, percebemos as seis<br />

“faces” de um mesmo cubo, ou seja, da realidade de sujeitos “mal-amados”. Esse aspecto<br />

remete claramente ao Cubismo.<br />

2.3. A FASE CONSTRUTIVA DO DISCURSO: A VISIBILIDA<strong>DE</strong> GEOMÉTRICA<br />

E OS INDÍCIOS <strong>DE</strong> UM FUTURO DIÁLOGO COM OS ESPANHÓIS<br />

Na tentativa de aprimorar a plasticidade anunciada nas primeiras obras, o poeta<br />

propõe, no livro O engenheiro (1942-1945), um projeto geométrico de construção para os<br />

seus poemas, evidenciando a objetividade e a clareza como procedimentos ideais no ato da<br />

concretização de sua linguagem. Como já observamos, nesta obra, acentuam-se os diálogos<br />

com nomes como de Le Corbusier, Joaquim Cardozo, Vicente do Rego Monteiro e outros,<br />

cujas obras reforçam a perspectiva de um fazer artístico modulado pela busca da<br />

visibilidade. Por outro lado, ressaltamos que, nesses poemas, há o propósito simultâneo de<br />

alcançar o potencial expressivo da linguagem e de esclarecer a perspectiva do discurso,<br />

através da proposição de que o entendimento do poema depende da lógica de sua<br />

composição. Essa lógica, lembramos, não se limita apenas à simetria do texto ou à<br />

depuração do subjetivismo, mas se estabelece no uso enfático de palavras concretas para<br />

corporificar o pensamento, convertê-lo em imagem viva, pois, segundo ele, “é muito mais<br />

fácil eu dar a ver com palavras concretas, que se dirigem aos sentidos, do que usando<br />

palavras abstratas.”(MELO NETO, 1989) O final do poema “A lição de poesia” explicita a<br />

lógica pretendida:<br />

81


A luta branca sobre o papel<br />

que o poeta evita,<br />

luta branca onde corre o sangue<br />

de suas veias de água salgada.<br />

A física do susto percebido<br />

entre os gestos diários;<br />

susto das coisas jamais pousadas<br />

porém imóveis – naturezas vivas.<br />

E as vinte palavras recolhidas<br />

nas águas salgadas do poeta<br />

e de que se servirá o poeta<br />

em sua máquina útil.<br />

Vinte palavras sempre as mesmas<br />

de que conhece o funcionamento,<br />

a evaporação, a densidade<br />

menor que a do ar.<br />

(MELO NETO, 1986, p.355)<br />

As vinte palavras recolhidas darão sentido à objetividade do poeta na medida em<br />

que darão corpo ao seu pensamento, tornando vivas as suas percepções. Nesse sentido, a<br />

base do racionalismo cabralino pressupõe um tipo de experiência estética que fratura o<br />

modelo da tradição realista brasileira, uma vez que, segundo Angélica Soares (1978), o<br />

exercício da visualização em Cabral é levado às últimas conseqüências, até que o aspecto<br />

plástico se sobreponha ao discursivo na poesia desse autor. Costa Lima, antes disso, já tinha<br />

alertado para o fato de que o aspecto pictórico da poesia cabralina “importa ser considerado<br />

à medida que indica um elo mediatizador com a realidade.” (1968, p.260).<br />

Com o receio de repetir aspectos já discutidos à exaustão pelos críticos acerca dos<br />

livros que compõem a fase construtiva da poética cabralina, assinalamos, de forma sucinta,<br />

que livros seguintes, como Psicologia da composição com a Fábula de Anfion e Antiode<br />

(1946-1947), Uma faca só lâmina (1955), Serial (1959-1961) A educação pela pedra<br />

(1962-1965): e A escola das facas (1980) são textos que, resguardadas as suas diferenças,<br />

82


confirmam a trajetória de João Cabral, enquanto aquele poeta que continuamente pesquisa<br />

processos de construção poética que possam dar a ver o seu objeto, sem se limitar apenas<br />

ao rigor formal ou à geometrização do discurso, mas que aprende as quatro lições da pedra:<br />

a de dicção, a de moral, a de poética e a de economia, como ressalta João Alexandre<br />

Barbosa (1975, p.227):<br />

Uma educação pela pedra: por lições;<br />

para aprender da pedra, freqüentá-la;<br />

captar sua voz inenfática, impessoal<br />

(pela dicção ela começa as aulas).<br />

A lição de moral, sua resistência fria<br />

ao que flui e a fluir, a ser maleada;<br />

a de poética, sua carnadura concreta;<br />

a de economia, seu adensar-se compacta:<br />

lições de pedra (de fora para dentro,<br />

cartilha muda), para quem soletrá-la.<br />

Depois de aprendidas as quatro lições da pedra, somos levados a articular as<br />

relações existentes entre essas quatro lições e o espaço-sertão onde a pedra se instala:<br />

Outra educação pela pedra: no Sertão<br />

(de dentro para fora, e pré-didática).<br />

No Sertão a pedra não sabe lecionar,<br />

e se lecionasse, não ensinaria nada;<br />

lá não se aprende a pedra: lá a pedra,<br />

uma pedra de nascença, entranha a alma.<br />

(MELO NETO, 1986, p.11)<br />

Por se encontrarem em “um território ostensivamente mineral”, como lembra<br />

Secchin (1999, p. 236), as imagens apresentadas no poema são solidificadas pela<br />

linguagem, confundidas com ela. No entanto, é preciso lembrar que, O cão sem plumas<br />

(1949-1950) e a maioria dos livros publicados depois, foram escritos fora do Brasil.<br />

Advindas de outros espaços, as imagens cabralinas organizam-se também em conformidade<br />

83


com esses espaços, como em “Tecendo a manhã”, também de A educação pela pedra<br />

(1962-1965):<br />

Um galo sozinho não tece uma manhã:<br />

ele precisará sempre de outros galos.<br />

De um que apanhe esse grito que ele<br />

e o lance a outro: de um outro galo<br />

que apanhe o grito que um galo antes<br />

e o lance a outro; e de outros galos<br />

que com muitos outros galos se cruzem<br />

os fios de sol de seus gritos de galo,<br />

para que a manhã, desde uma teia tênue,<br />

se vá tecendo, entre todos os galos.<br />

2.<br />

E se encorpando em tela, entre todos,<br />

se erguendo tenda, onde entrem todos,<br />

se entretendendo para todos, no toldo<br />

(a manhã) que plana livre de armação,<br />

A manhã, toldo de um tecido tão aéreo<br />

Que, tecido, se eleva por si: luz balão.<br />

(MELO NETO, 1986, p. 19)<br />

Inicialmente é importante lembrar que a imagem do grito, trabalhada na primeira<br />

estrofe, é revista pelo poeta em vários poemas, como Auto do frade (1984) “Ocorrências de<br />

uma sevilhana” e “A entrevistada disse, na entrevista” 47 , do livro Agrestes (1985). Nos<br />

quatro momentos, está relacionada à medida de distância, como reza a cultura espanhola.<br />

No dizer do poeta: “Talvez eu tenha me repetido porque achasse que não tinha sido ainda<br />

explorada completamente essa metáfora, essa imagem”(MELO NETO, 1989). Assim, no<br />

poema em estudo, o grito sugere a marcação do espaço entre os galos, possibilitando ao<br />

leitor a configuração geométrica dos fios do sol, da teia tênue, da tela e da tenda/toldo, da<br />

manhã.<br />

Além desse aspecto, ao atentarmos para as estratégias de composição do poema,<br />

observamos que o texto resulta de um intenso trabalho intelectual. O poeta afirma que<br />

47 Conferir anexo 02.<br />

84


gastou dez anos para concluí-lo. Na sua rigorosa elaboração, percebemos uma articulação<br />

de diferentes planos de percepção do real e de representação de valores a partir de<br />

metáforas sinestésicas que envolvem o olhar, a audição e o tato, as quais nos remetem a<br />

dimensões de espaço e tempo em poesia.<br />

Nesse caso, o uso de palavras concretas corporifica a idéia de um amanhecer, ou<br />

seja, dá corpo a uma imagem abstrata. A concretude da manhã é sugerida inicialmente pelo<br />

verbo usado no título do poema: Tecendo a manhã. O ato de tecer é tátil, depende das mãos<br />

daquele que tece. Além do mais, sugere uma marcação temporal, pois exige paciência e<br />

cuidados, é lento.<br />

Quanto à representação de valores, quando um galo tece, ele adota o mesmo<br />

princípio produtivo de uma aranha, isto é, implica um trabalho que enreda outros seres,<br />

outros galos, que ao final, entram e se entretendem todos no toldo da manhã. A sonoridade<br />

do canto conjunto dos galos também é ouvida na aliteração do fonema /t/, que aparece nos<br />

últimos versos do poema, reforçando essa idéia de coletividade.<br />

Sem a pretensão de esgotar a leitura do poema em estudo, lembramos que todas<br />

essas observações são importantes na medida em que esclarecem os processos de<br />

composição do poeta e revelam as formas de intercurso dessa literatura com outras<br />

linguagens artísticas.<br />

No sentido de evitar análises exaustivas de poemas pertencentes a todos os livros de<br />

João Cabral, neste capítulo selecionamos alguns textos, nos quais tentamos evidenciar os<br />

fundamentos do projeto visual de João Cabral e os seus modos de organização diante das<br />

exigências da vida moderna. Nos capítulos seguintes, continuamos delimitando nosso<br />

corpus, restringindo nossas análises apenas aos poemas que, de algum modo, explicitam os<br />

diálogos da poesia cabralina com tendências artísticas espanholas.<br />

85


2ª PARTE<br />

JOÃO CABRAL <strong>DE</strong> MELO NETO EM DIÁLOGO COM AS<br />

ARTES ESPANHOLAS<br />

CAPÍTULO 3<br />

OS NÍVEIS DO INTERCURSO DAS LINGUAGENS<br />

Como vimos na primeira parte desta tese, em João Cabral, há a citação constante,<br />

numa perspectiva metalingüística, de artistas que, frente à realidade cultural de suas épocas,<br />

dedicaram-se à criação de “novas escrituras”, a despeito de serem ou não serem bem<br />

recebidos por seus “leitores”. Dentre eles 48 , além dos franceses Mallarmé, Le Corbusier e<br />

Paul Valéry, destacamos os espanhóis Pablo Picasso, Juan Miró, Gonzalo de Berceo, Jorge<br />

Guillén, Juan Gris, Joan Brossa, Miguel Hernández, Pedro Salinas, Rafael Alberti e<br />

Federico García Lorca com os quais o poeta dialoga em seus textos teórico-críticos e<br />

literários. Esses diálogos vão se caracterizar ora pela idéia de aproximação estética, ora<br />

pelo distanciamento em relação aos artistas mencionados.<br />

Ressaltamos que, além da alusão 49 a outras vozes artísticas, não podemos esquecer<br />

que o poeta brasileiro conviveu com a cultura espanhola durante treze anos e procurou, ao<br />

48 Nomes como de W. H. Auden, Marianne Moore, Gertrude Stein, W. B. Weats, Cesário Verde, Afonso<br />

Arinos, Augusto dos Anjos, Manuel Bandeira, Vinícius de Moraes, Luís Jardim, Augusto Frederico<br />

Schmidt, irmãos Campos, Ledo Ivo, José Lins do Rego, Marly de Oliveira dentre outros citados ou não ao<br />

logo de nossa tese atravessam o discurso cabralino.<br />

49 De acordo com Massaud Moisés (1982) alusão é “toda referência, direta ou indireta, propositada ou<br />

casual, a uma obra, personagem, situação etc., pertencente ao mundo literário, artístico, mitológico etc., e que<br />

seja do conhecimento do leitor.” (1982, p.18)<br />

86


longo desse tempo, aprofundar seus conhecimentos sobre essa cultura, através de leituras,<br />

contatos diretos com artistas, visitas a exposições de arte etc. Portanto, o realismo, o caráter<br />

popular e a plasticidade da arte espanhola não passaram despercebidos ao autor<br />

pernambucano.Dadas essas incursões desse poeta pela arte dos espanhóis, somos levados a<br />

observar em que medida isso acontece.<br />

3.1. A CITAÇÃO POR EPÍGRAFES 50<br />

Em Psicologia da composição com a Fábula de Anfion e Antiode (1946-1947) e O<br />

rio (1953), a presença dos poetas espanhóis faz-se através do uso de epígrafes de Jorge<br />

Guillén (1893-1984) e Gonzalo de Berceo (1180?-1247), respectivamente. No primeiro<br />

caso, João Cabral retira o verso inicial do poema El horizonte do livro Cántico, de Jorge<br />

Guillén, publicado pela primeira vez em 1928, dentro do chamado conceptismo conceitual<br />

de certas vanguardas européias:<br />

Riguroso horizonte,<br />

Cielo y campo, ya idénticos,<br />

Son puros ya: su línea,<br />

(GUILLÉN, apud BARBOSA,1975, p.58)<br />

O livro foi reeditado com ampliações em 1936, 1945 e 1950. 51 Na edição de 1936,<br />

o poema figura na segunda parte, Las horas situadas. Em entrevista a Mário Chamie<br />

50 Ainda de acordo com o Dicionário de Termos Literários, de Massaud Moisés, epígrafe designa “os<br />

fragmentos de textos que servem de lema ou divisa de uma obra, capítulo ou poema”. (1982, p.189)<br />

51 Em carta a Manuel Bandeira, em 1947, João Cabral diz que conhecia as reedições de 1937 e de 1939 e que<br />

compraria para Bandeira a nova edição que o poeta preparava. Acreditamos tratar-se da edição de 1945 e não<br />

de 1950, conforme observa Flora Sussekind. Conferir SUSSEKIND, 2001, p.47<br />

87


(1979), João Cabral observa que o poeta-crítico espanhol ajuda-o a definir o aspecto<br />

formal do poema:<br />

De fato, descobri Jorge Guillén em 1947, quando fui morar na Espanha. Tenho a<br />

impressão de que devo muito de minha obsessão pela simetria e do meu<br />

intelectualismo à poesia de Jorge Guillén, até a reunião de sua obra no livro<br />

Cântico [...] O curioso dessa influência é que há uma diferença essencial entre<br />

mim e Jorge Guillén. Sinto que ele é um poeta muito mais abstrato do que eu e<br />

que uma das chaves da compreensão de minha poesia decorra, talvez, da<br />

diferença que aprendi, na escola primária entre vocábulo concreto e vocábulo<br />

abstrato. Vocábulo concreto é aquele que você pode apreender por um dos<br />

sentidos; vocábulo abstrato é aquele que não pode ter essa apreensão. (MELO<br />

CHAMIE, 1979, p.39)<br />

João Alexandre Barbosa (1975, p.58) confirma a opinião do poeta brasileiro,<br />

observando que, ao explorar, nos três poemas anunciados pela epígrafe de Guillén, “o<br />

silêncio e a negação como possíveis metáforas para uma definição de sua poética”, João<br />

Cabral recorta do poeta espanhol o desejo de obter a clareza e o equilíbrio necessário ao ato<br />

da escrita, a qual também pretende alcançar a perfeição e a comunicação com o mundo,<br />

conforme propõem os últimos versos do texto de Guillén:<br />

Perfección! Se da fin<br />

A la ausencia del aire,<br />

De repente evidente.<br />

Pero la luz resbala<br />

Sin fin sobre los límites<br />

Oh perfección abierta!<br />

Horizonte, horizonte<br />

Trémulo, casi trémulo<br />

De su don inminente!<br />

Se sostiene en un hilo<br />

La frágil, la difícil<br />

Profundidad del mundo.<br />

Ya el espacio se comba<br />

Dócil, ágil, alegre<br />

Sobre esa espera, mía.<br />

(GUILLÉN, apud BARBOSA, 1975, p.59)<br />

88


Ainda de acordo com Barbosa, a referência aos versos do poeta espanhol se justifica<br />

pelo fato de João Cabral desejar, nos três longos poemas de sua Psicologia da composição,<br />

alcançar “o espaço a ser construído por uma linguagem que, atraída pelo silêncio, busca,<br />

não obstante, ‘La frágil, la difícil/Profundidad del mundo.’” (1975, p. 59).<br />

Já Luiz Costa Lima (1968) alega que a presença de Jorge Guillén, em João Cabral,<br />

dá-se, inicialmente, pela negação, uma vez que ao “sensualismo intelectualizado” da obra<br />

Cântico, do poeta espanhol, João Cabral opõe o “realismo fenomenológico”, ou seja, “o<br />

contínuo perguntar-se não só pelas coisas, como pelas próprias imagens que<br />

utiliza.”(LIMA, 1968, p.292).Atento à diferença apontada por Cabral, ou seja, à perspectiva<br />

abstrata da linguagem de Guillén, Costa Lima, na análise do livro O cão sem plumas (1949-<br />

1950), afirma que o poeta brasileiro trabalha a temática do rio de forma lúcida, tentando<br />

“introduzir o leitor na idéia de visualização” (LIMA, 1968, p.296), ou seja, negando a idéia<br />

de transposição da paisagem ou da natureza nordestina, como acontece nos textos do<br />

espanhol. Ainda no sentido de contestar a aproximação entre os dois poetas, o crítico<br />

brasileiro observa que as imagens cabralinas não apresentam nenhuma exaltação, como faz<br />

Guillén em seus textos: “Prosaicas nada têm de familiar, todavia à descrição de um<br />

rio.Tornam-se precisas e restritas como as econômicas palavras de um<br />

telegrama”.(LIMA,1968, p.29)<br />

Quanto à epígrafe de O rio, “Quiero que compongamos yo e tú una prosa”, o texto é<br />

tomado a Gonzalo de Berceo e, segundo Torres, remonta à lição do século XII espanhola,<br />

“a buscar o concreto, o essencial, o substantivo, o realismo e toda a sorte de antídotos<br />

contra o vago e o abstrato.”(TORRES, apud FERRAZ, 2002, p. 112). Já o poeta afirma que<br />

uma das influências recebidas na parte técnica do texto advém da descoberta da literatura<br />

89


primitiva espanhola, uma vez que os versos são em arte mayor, com os versos ímpares<br />

fixos e os versos pares variáveis, como podemos observar no trecho abaixo:<br />

Sempre pensara em ir<br />

caminho do mar.<br />

Para os bichos e rios<br />

nascer já é caminhar.<br />

Eu não sei o que os rios<br />

têm de homem do mar;<br />

sei que se sente o mesmo<br />

e exigente chamar.<br />

Eu já nasci descendo<br />

a serra que se diz do Jacarará,<br />

entre caraibeiras<br />

de que só sei por ouvir contar<br />

(pois, também como gente,<br />

não consigo me lembrar<br />

dessas primeiras léguas<br />

do meu caminhar).<br />

(MELO NETO, 1986, p.273)<br />

Ainda de acordo com João Cabral, “todos os versos pares terminam em toante<br />

espanhola, pois a contagem dos versos em espanhol é diferente da nossa.” 52 No que diz<br />

respeito ao autor da epígrafe, das poucas informações disponíveis sobre a vida de Berceo,<br />

sabemos que foi um clérigo do monastério de San Millán de la Cogolla. Escreveu três vidas<br />

de santos, a saber: San Millán, Santa Oria e Santo Domingo de Silos, e uma coleção de<br />

vinte e cinco narrativas agrupadas sob o título de Miraclos de Nuestra Señora.<br />

De acordo com a maioria dos críticos, Gonçalo de Berceo talvez seja o nome<br />

espanhol que mais tenha influenciado João Cabral de Melo Neto. Para Helton José<br />

Gonçalves de Souza (2004), há três aspectos que marcam o diálogo entre Berceo e o poeta<br />

pernambucano: “(a) o uso regular do quarteto, em JCMN; (b) a alusão ao quadrivium; e (c)<br />

o modo como JCMN homenageia o poeta medieval espanhol, no poema intitulado<br />

52 Entrevista a Jorge Laclette, 21 jun. 1953.<br />

90


“Catecismo de Berceo”, do livro Museu de tudo.” (SOUZA, 2004, p.69)<br />

Em relação à cuaderna via, definida por João Alexandre Barbosa (2001) como “um<br />

tipo de estrofe usada principalmente nos séculos 13 e 14 e composta de quatro versos<br />

alexandrinos de uma só rima” (BARBOSA, 2001, p.59), é apontada como o recurso formal<br />

mais utilizado nos textos de raízes populares de João Cabral.<br />

Por outro lado, Berceo é visto como um escritor culto que está preocupado com a<br />

comunicabilidade de seus textos. Escrevia seus poemas de catequese, na língua falada de<br />

seu tempo, dirigindo-se a pessoas de origem humilde. No entanto, não menosprezava as<br />

qualidades estilísticas de seu discurso:<br />

Pero esta falta de originalidad temática no rebaja, sin embargo, la personalidad de<br />

Berceo como poeta. El autor modifica, amplifica y enriquece sus modelos,<br />

vistiéndolos con rasgos de las costumbres cotidianas de la región. Su propósito<br />

es dar cercanÍa a lo que cuenta para aproximar el árido texto latino a las gentes<br />

sencillas; se esfuerza por ser gráfico y familiar, y recurre a comparaciones<br />

prácticas de labriegos, locuciones campesinas, a nombres de utensílios<br />

domésticos, a refranes. Así es como los temas de su tiempo, adquieren em sus<br />

manos sabor de inmediata realidad, de paisaje habitual, de familiar localización.<br />

El mundo que captaban sus ojos desde el tranquilo claustro de su monasterio,<br />

salta a sus páginas poeticamente tansmutat. (ALBORG, apud SOUZA, 2004,<br />

p.70)<br />

Na opinião de Alborg, a qualidade da linguagem de Berceo está sobretudo no uso<br />

de palavras e comparações ligadas ao cotidiano das pessoas, o que faz com que haja a<br />

visualização por parte dos leitores do contexto religioso que pregava. Na verdade,<br />

através desses recursos de linguagem, o poeta conseguia concretizar o “árido texto<br />

latino” junto a pessoas simples que viviam no campo. Portanto, todo o rigor da<br />

linguagem de Berceo visava à comunicação de suas teses.<br />

Juan Antonio Ruiz Domingues (apud SOUZA, 2004, p.76) afirma que “convertir<br />

en lenguaje poético lo que era fría prosa, constituye la labor de nuestro escritor.” Além<br />

91


de Domingues, Jorge Guillén foi outro leitor de Berceo que reafirma o poder<br />

comunicativo dos poemas do clérigo.<br />

Atento ao aspecto temático de Berceo e à forma de organização de seus textos, João<br />

Cabral nos oferece o “Catecismo de Berceo”, poema que vai reforçar todas as<br />

considerações feitas anteriormente:<br />

1.<br />

Fazer com que a palavra leve<br />

pese como a coisa que diga,<br />

para o que isolá-la de entre<br />

o folhudo em que se perdia.<br />

2.<br />

fazer com que a palavra frouxa<br />

ao corpo de sua coisa adira:<br />

fundi-la em coisa,espessa, sólida,<br />

capaz de chocar com a contígua.<br />

3.<br />

Não deixar que saliente fale:<br />

sim, obrigá-la à disciplina<br />

de preferir a fala anônima,<br />

como a todas de uma linha.<br />

4.<br />

Nem deixar que a palavra flua<br />

como rio que cresce sempre:<br />

canalizar a água sem fim<br />

noutras paralelas, latente.<br />

(MELO NETO, 1997, p.59)<br />

Através do uso reiterado de verbos no infinitivo com valor de imperativo, o poeta<br />

evoca o discurso catequético de Berceo, ao mesmo tempo em que teoriza os princípios do<br />

uso da palavra concreta em poesia.<br />

Além do poema em tela, João Cabral vai praticar os ensinamentos de Berceo no livro<br />

Quaderna (1956-1957), no qual o poeta nos oferece uma espécie de fotografia da região<br />

nordestina, de seu povo e de seus costumes, apelando para imagens sensoriais<br />

92


“transformando palavras-coisas em imagem concreta de coisa-arquitetura, com o<br />

instrumento metodológico (ou ‘via’, entendida objetivamente como ‘caminho’)”, como<br />

lembra Souza (2004,p.74)<br />

Essas primeiras observações acerca do estilo de Berceo são suficientes para<br />

discutirmos a presença do poeta espanhol na literatura cabralina. Mais de uma vez o poeta<br />

fez questão de afirmar a importância do realismo espanhol para a sua prática poética,<br />

conforme vimos no início desta pesquisa.<br />

Desse modo, a escola de Berceo e dos épicos castelhanos, além de colaborar para a<br />

aproximação entre o poeta e o contexto nordestino, favorece a inserção de gêneros<br />

populares na poética cabralina. Como exemplo de composições em que João Cabral<br />

procura adequar a linguagem dos poemas à realidade de que trata, com o objetivo de<br />

alcançar a comunicação, com o leitor, citamos os livros O rio (1953) e Morte e vida<br />

severina (1954-1955). Nessas duas obras, o poeta brasileiro tenta flagrar a vida sertaneja,<br />

recorrendo ora à ausência de “adornos” para falar da realidade do rio e de sua espessura,<br />

ora à sua “forma cartográfica”, ou então ao “auto de natal”, cuja base está na literatura<br />

popular nordestina.<br />

Portanto, o uso da palavra concreta em João Cabral, bem como o aproveitamento de<br />

temas populares são consolidados durante a convivência com os espanhóis. Devemos<br />

lembrar, mais uma vez, que a fase em que o poeta se dedica à poesia social, de cunho<br />

popular é justamente a fase em que passa a conviver com a cultura e com o povo espanhol.<br />

Por fim, o que podemos presumir acerca desse diálogo de João Cabral com a literatura<br />

de Berceo é que trabalhar o objeto de arte, dominar técnicas de composição não implica<br />

produzir uma obra difícil de ser lida, estranha ao contexto da literatura vigente. Podemos<br />

93


pensar, como pretendia Berceo, que o labor do artista tem relação com o seu desejo de ser<br />

lido, entendido pelos seus leitores.<br />

3.2.AS ALUSÕES DIRETAS A NOMES OU A PROCESSOS <strong>DE</strong> CRIAÇÃO<br />

ARTÍSTICA<br />

Além das epígrafes, outra forma de incursão pelas artes espanholas se dá através da<br />

dedicatória de poemas a artistas espanhóis, de citações, de recorrências ou de alusões a<br />

nomes e a processos de criação desses artistas, como em “Homenagem a Picasso”, de<br />

Pedra do sono;“Fábula de Joan Brossa” e “Encontro com um poeta”, o qual remete a<br />

Miguel Hernández, de Paisagens com figuras (1954-1955); partes do poema “O sim contra<br />

o sim”, de Serial (1959-1961), em que há alusão ao fazer artístico de Juan Gris; “Fábula de<br />

Rafael Alberti”, de Museu de tudo (1966-1974) e a referência a mais dois poetas da<br />

Generación del 27, Pedro Salinas e Jorge Guillén, em “Dois Castelhanos em Sevilha”, de<br />

Andando Sevilha (1987-1989).<br />

A primeira referência direta a um artista espanhol é feita em um poema dedicado a<br />

Pablo Picasso (1881-1973), na obra Pedra do sono (1942), como já comentamos<br />

anteriormente. No texto em homenagem ao pintor espanhol, João Cabral faz alusão à<br />

técnica de Picasso, assumindo uma postura “coloquial-irônica” em relação ao uso de<br />

recortes de jornais pelo pintor.<br />

No caso de Juan Gris (1887-1927), um dos mais famosos e versáteis pintores e<br />

escultores cubistas espanhóis, João Cabral destaca a técnica de aproximação e de<br />

afastamento de imagens, a fim de que o artista possa chegá-las a si, apreendê-las e, a seguir,<br />

adquirir o distanciamento estético para melhor transmiti-las. Os modos como o poeta vai<br />

94


aproveitar as lições de Picasso e de Gris serão enfatizados no capítulo referente às relações<br />

entre pintura e literatura.<br />

Já a relação entre João Cabral e o poeta dramaturgo e artista plástico Joan Brossa<br />

(1919-1998), visto atualmente como um clássico catalão, começa na época em que o poeta<br />

brasileiro morava em Barcelona. Os dois artistas mantinham constantes conversas sobre<br />

poesia, no apartamento de João Cabral. Segundo Brossa, eles discutiam estéticas e falavam<br />

sobre a poesia dos outros.Ainda de acordo com o poeta catalão, não há semelhanças entre o<br />

seu projeto artístico e o projeto de João Cabral: “a minha tem muitas imagens e é mais<br />

sensitiva. A influência de João Cabral veio de outra parte, da maneira de expressar a<br />

preocupação social na arte. Até hoje sigo algumas de suas sugestões e incorporei o<br />

elemento crítico no meu trabalho.” 53<br />

Como podemos ver, ao contrário do que temos mostrado, no caso de Brossa, é João<br />

Cabral quem lhe serve de modelo. Além disso, o poeta brasileiro publica o primeiro livro<br />

do espanhol.Por outro lado, João Cabral dedica um poema ao amigo, intitulado “Fábula de<br />

Joan Brossa”:<br />

Joan Brossa, poeta frugal,<br />

que só come tomate e pão,<br />

que sobre papel de estiva<br />

compõe versos a carvão,<br />

nas feiras de Barcelona.<br />

Joan Brossa, poeta buscão,<br />

as sete caras do dado,<br />

as cinco patas do cão<br />

antes buscava Joan Brossa,<br />

místico da aberração,<br />

buscava encontrar nas feiras<br />

sua poética sem-razão.<br />

Mas porém como buscava<br />

onde é o sol mais temporão,<br />

pelo Clot, Hospitalet,<br />

53 Conferir o texto “O amigo revisitado – três depoimentos sobre a relações do escritor, tipógrafo e intelectual<br />

engajado João Cabral de Melo Neto com seus contemporâneos”, Cadernos de Literatura Brasileira, Instituto<br />

Moreira Sales, p.15 nº 01,mar 1996.<br />

95


onde as vidas de artesão,<br />

por bairros onde as semanas<br />

sobram da vara do pão<br />

e o horário é mais comprido<br />

que fio de tecelão,<br />

acabou vendo, Joan Brossa,<br />

que os verbos do catalão<br />

tinham coisas por detrás<br />

eram só palavras, não.<br />

Agora os olhos. Joan Brossa<br />

(sua trocada instalação),<br />

voltou às coisas espessas<br />

que a gravidez pesa ao chão<br />

e escreveu um Dragãozinho<br />

denso, de copa e fogão,<br />

que combate as mercearias<br />

com ênfase de dragão.<br />

(MELO NETO, 1986, p.251)<br />

Observamos que, no texto, João Cabral propõe um retorno às “coisas espessas/que a<br />

gravidez pesa ao chão”, tanto no aspecto semântico como sonoro da linguagem, através das<br />

rimas pobres em “ão”. Ao mesmo tempo, na perspectiva ideológica do discurso, há uma<br />

troca da “poética sem-razão”, aquela que se distancia de seu objeto, dobrando-se sobre si<br />

mesma por uma que “combate as mercearias/com ênfase de dragão”, que consegue alcançar<br />

a comunicabilidade com o seu leitor.<br />

Esses aspectos observados em relação ao poema dedicado ao escritor espanhol<br />

corroboram a leitura de João Alexandre Barbosa (1975, p.129), o qual postula que<br />

Paisagens com figuras é um livro que “marca o momento de enlace entre duas experiências<br />

fundamentais do poeta (a nordestina e espanhola)”. Nesse sentido, à primeira vista,<br />

percebemos a tendência de João Cabral a buscar as imagens concretas do imaginário<br />

espanhol que estão perfiladas aos motivos da dureza da realidade em que vive o povo<br />

nordestino. Já na opinião de Nicolás Extremera Tapia (2004),<br />

Paisagem com figuras é um livro que inaugura esse diálogo permanente entre as<br />

96


duas culturas a que estamos aludindo. Dos dezoito poemas que o compõem, oito<br />

estão dedicados a Pernambuco e dez a Espanha, repartidos estes últimos do<br />

seguinte modo: dois à paisagem de Castela, três à paisagem de Catalunha, um ao<br />

poeta Joan Brossa, um ao poeta Miguel Hernández, um aos toureiros, um a<br />

Andaluzia, que Cabral ainda não conhece físicamente, representada pelo cante e<br />

os touros, e finalmente um de que compartilham Catalunha e Pernambuco.<br />

Quanto ao poeta Miguel Hernández (1910-1942), a homenagem é feita no poema<br />

“Encontro com um poeta”. Como nos lembra Barbosa (1975), é a paisagem que vem<br />

participar de sua definição. Assim, o lugar diz o poeta, sua linguagem, seu modo de<br />

escrever os espaços onde viveu:<br />

Em certo lugar da Mancha<br />

onde mais dura é Castela,<br />

sob as espécies de um vento<br />

soprando armado de areia,<br />

vim surpreender a presença,<br />

mais do que pensei, severa,<br />

de certo Miguel Hernández,<br />

hortelão de Orihuela.<br />

A voz desse tal Miguel,<br />

entre palavras e terra<br />

indeciso, como em Fraga<br />

as casas o estão da terra,<br />

foi um dia arquitetura,<br />

foi voz métrica de pedra,<br />

tal como cristalizada,<br />

surge Madrid a quem chega.<br />

(MELO NETO, 1986, p.255-256)<br />

De Hernández, portanto, João Cabral toma as paisagens nativas, bem como o jeito de<br />

metrificar. Vale lembrar que, segundo a crítica espanhola 54 , Miguel Hernández foi um<br />

poeta deslumbrado pelo jogo barroco de Góngora e dos gongoristas de seu tempo, como<br />

Rafael Alberti. Escreveu conforme os preceitos bucólicos de Garcilaso e de "las furias y<br />

penas" de Quevedo, além de obedecer à simbologia ascética e conceptual de Calderón.<br />

54 Conferir site da Fundação Cultural Miguel Hernández, disponível em<br />

http://www.miguelhernandezvirtual.com/obra/obra.htm.<br />

97


Desse modo, ao atualizá-lo, João Cabral revista muitos clássicos da literatura de língua<br />

espanhola.<br />

Acerca de Rafael Alberti (1902-1999), em Museu de tudo, João Cabral dedica duas<br />

versões de uma outra “fábula”. A primeira versão é de 1947:<br />

Do anjo marinheiro<br />

(asas azuis a gola<br />

da blusa azul, bolsa<br />

de azul do mar);<br />

do anjo teológico,<br />

não em ovo gerado,<br />

puros frutos de ar<br />

como maçãs de vento;<br />

do anjo venenoso,<br />

serpente emboscada<br />

no tufo das palavras<br />

o fluido jogo abandonou.<br />

Fez o caminho inverso:<br />

do vapor à gota de água<br />

(não, da vida ao sono,<br />

ao sonho, ao santo);<br />

Foi da palavra à coisa,<br />

Seja dolorosa à coisa,<br />

Seja áspera, lenta, difícil<br />

a coisa.<br />

(MELO NETO, 1997, p. 87)<br />

Nesta “fábula”, são apresentados os modos do fazer do poeta-pintor. João Cabral<br />

destaca as etapas do aprendizado de Alberti, da pintura à poesia, até o momento em que<br />

alcança a escrita concreta, “da palavra à coisa”. Em conformidade com os críticos<br />

espanhóis 55 , a lírica albertiana apresenta cinco fases: a primeira fase está ligada ao<br />

movimento andaluz chamado “Neopopularismo”, do qual fez parte Federico García Lorca,<br />

e outros poetas de 27. O “Neopopularimso” surgiu em oposição ao elitismo da linguagem<br />

55 Conferir site da Fundação Rafael Alberti, disponível em http://www.rafaelalberti.es<br />

98


modernista espanhola, bem como ao “Ultraísmo”, movimento que propunha “atirar uma<br />

pedra no olho da Lua símbolo do sentimentalismo romântico”(GIBSON, 1989, p.112) e que<br />

se empenhava em implementar na literatura uma revolução temática, léxica e tipográfica.<br />

Nos poemas publicados nesta fase sob o título de Marinero en tierra, percebemos<br />

sua paixão pelo mar nativo e sua nostalgia do paraíso da infância.De acordo com o crítico<br />

Ian GIBSON (1989), o primeiro amor de Alberti foi pela pintura, mas quando conheceu<br />

Lorca, de quem foi muito amigo, já tinha se decidido pela poesia.<br />

A segunda fase de Alberti é marcada pela influência do barroquismo de Góngora. Já<br />

na terceira fase, Alberti adota a perspectiva surrealista em sua poesia. As duas últimas fases<br />

do poeta espanhol vão ser caracterizadas pelo sentimento nacionalista, em decorrência de<br />

sua adesão aos movimentos revolucionários de seu tempo. Atento às etapas da poética<br />

albertiana, em 1963, o poeta pernambucano reescreve a mesma “fábula”, fazendo-lhe<br />

algumas alterações:<br />

Do anjo marinheiro<br />

(asas azuis a gola<br />

da blusa azul, enfunada<br />

de azul do mar);<br />

do anjo teológico,<br />

(não em ovo gerado,<br />

frutos virgens, do ar,<br />

castas maçãs de vento);<br />

enfim do anjo venenoso,<br />

(cobra má, enroscada<br />

no mato dicionário)<br />

- o jogo aéreo abandonou.<br />

Fez o caminho inverso:<br />

Não foi da coisa ao sonho,<br />

Ao nome, à sombra;<br />

foi do vapor de água<br />

à gota em que condensa;<br />

foi da palavra à coisa,<br />

árdua que seja,<br />

ou demorada, a coisa<br />

seja áspera ou arisca,<br />

em sua coisa, a coisa<br />

seja doída, pesada,<br />

99


seja enfim coisa a coisa.<br />

(MELO NETO, 1997, p. 88)<br />

Embora mantenha o mesmo plano imagético, na segunda versão, João Cabral acentua<br />

mais a idéia do concreto em Alberti. Em outros momentos da poesia cabralina, há alusão ao<br />

poeta espanhol, sobretudo quando João Cabral se refere à província de Cádiz, região onde<br />

nasceu Alberti. Segundo Gibson, o poeta era andaluz, de Puerto de Santa María.<br />

O outro grande expoente da Generación del 27 citado na poética cabralina é o poeta<br />

Pedro Salinas (189-1951). No último livro de João Cabral, Andando Sevilha (1987-1989), o<br />

poeta pernambucano alude ao professor Pedro Salinas. O espanhol lecionou em várias<br />

universidades européias, além de fazer conferências na América, onde viveu desde 1936.<br />

Na verdade, João Cabral destaca o modo de ensinar do poeta:<br />

Dois Castelhanos em Sevilha<br />

Fio o Convento dos Jesuítas<br />

e mais tarde a Universidade,<br />

onde um tempo Pedro Salinas<br />

ditava aos gritos suas classes;<br />

mais gritava dos que ditava<br />

e gritava de tal maneira<br />

que tinha alunos não inscritos,<br />

sérios, nas calçadas fronteiras.<br />

Na seqüência do poema, reaparece Jorge Guillén. Deste último, João Cabral também<br />

revê a postura didática, já que o espanhol saiu da Espanha em 1938, para estabelecer-se nos<br />

Estados Unidos como professor de várias universidades americanas:<br />

Depois veio Jorge Guillén;<br />

porém como falava baixo<br />

100


e não o podiaa escutar,<br />

foram-se os imatriculados.<br />

Imagino-o soprando as aulas,<br />

como soprou sempre a poesia<br />

que fez, com régua e com esquadro.<br />

Dura mais a voz menos viva?<br />

Como seja, se não chegava<br />

sequer às calçadas fronteiras,<br />

foi mais longe o fio dessa voz.<br />

entre os guarda-fronteiras.<br />

(MELO NETO, 1997, p.376)<br />

Diante do intercurso de João Cabral por nomes representativos da poesia espanhola,<br />

sobretudo da Geração de 27, notamos que, a despeito de se considerar um poeta marginal<br />

em relação à tradição da literatura brasileira, devido ao seu antilirismo, ele não rompe<br />

totalmente com essa tradição, no momento em que visa à comunicação com o leitor. Há<br />

uma idéia de continuidade em relação à vertente que se articula ao aproveitamento do<br />

romancero e da poesia primitiva da Espanha. Em entrevista, João Cabral afirma: “Talvez<br />

meu interesse pela cultura espanhola esteja no parentesco dela com a cultura luso-<br />

brasileira”.(MELO NETO,1987)<br />

Além da referência a nomes de pintores e de poetas pertencentes ao contexto cultural<br />

espanhol, na poesia cabralina, também encontramos alusões a outros tipos de ofícios: a arte<br />

de cantar, de dançar, de tourear e de fundir o ferro. Os dois primeiros casos serão tratados<br />

nos capítulos que se seguem. Já quanto à arte de tourear, destacamos o poema “Alguns<br />

Toureiros”, dedicado a Antonio Houaiss:<br />

Eu vi Manolo Gonzáles<br />

e Pepe Luís, de Sevilha:<br />

precisão doce de flor,<br />

graciosa, porém precisa.<br />

Vi também Julio Aparício,<br />

de Madrid, como Parrita:<br />

101


ciência fácil de flor,<br />

espontânea, porém estrita.<br />

Vi Miguel Báez, Litri,<br />

dos confins da Andaluzia,<br />

que cultiva uma outra flor:<br />

angustiosa de explosiva.<br />

E também Antonio Ordóñez,<br />

que cultiva flor antiga:<br />

perfume de renda velha,<br />

de flor em livro dormida.<br />

Mas eu vi Manuel Rodríguez,<br />

Manolete, o mais deserto,<br />

o toureiro mais agudo,<br />

mais mineral e desperto,<br />

o de nervos de madeira,<br />

de punhos secos de fibra<br />

o da figura de lenha<br />

lenha seca de caatinga,<br />

o que melhor calculava<br />

o fluido aceiro da vida,<br />

o que com mais precisão<br />

roçava a morte em sua fímbria,<br />

o que à tragédia deu número,<br />

à vertigem, geometria<br />

decimais à emoção<br />

e ao susto, peso e medida,<br />

sim, eu vi Manuel Rodríguez,<br />

Manolete, o mais asceta,<br />

não só cultivar sua flor<br />

mas demonstrar aos poetas:<br />

como domar a explosão<br />

com mão serena e contida,<br />

sem deixar que se derrame<br />

a flor que traz escondida,<br />

e como, então, trabalhá-la<br />

com mão certa, pouca e extrema:<br />

sem perfumar sua flor,<br />

sem poetizar seu poema.<br />

(MELO NETO, 1986, p.258-259)<br />

102


Dando continuidade ao seu aprendizado com as imagens no livro Paisagens com<br />

figuras, João Cabral retira da arte de tourear a lição do controle e do equilíbrio no momento<br />

da elaboração do texto poético. O poeta pernambucano retorna à imagem da “flor”, já<br />

explorada e desmetaforizada no poema Antiode, a fim de relacionar o ato de poetar e o ato<br />

de tourear. Em ambos os casos, o trabalho é feito pelas mãos, rigorosamente controladas,<br />

dos sujeitos das ações. Como lembra Barbosa, “’lendo’ a tourada, João Cabral aprende,<br />

pela linguagem do poema, a sua linguagem de precisão e anti-ilusionismo.” (1975, p.133)<br />

O jeito preciso e comedido de Manolo Gonzáles tourear é retomado em Andando Sevilha,<br />

no poema que leva o nome do toureiro. 56 Além de destacar a técnica de Gonzáles, João<br />

Cabral relaciona a tourada ao perigo da morte.Também o perigo da tourada é ressaltado no<br />

poema “Miguel Baez, ‘Litri’” 57<br />

Já em Museu de tudo, no poema El toro de lídia, João Cabral explora a imagem do<br />

touro, comparando-o com o rio:<br />

56 Conferir anexo 03.<br />

57 Conferir anexo 03.<br />

Um toro de lídia é como um rio<br />

na cheia. Quando se abre a porta,<br />

que a custo o comporta, e o touro<br />

estoura na praça, traz o touro a cabeça<br />

alta, de onda, aquela primeira onda<br />

alta, da cheia, que é como o rio,<br />

na cheia, traz a cabeça de água.<br />

Tem então o touro o mesmo atropelar<br />

cego da água; mesmo murro de montanha<br />

dentro de sua água; a mesma pedra<br />

dentro da água de sua montanha como um rio,<br />

na cheia, tem de pedra a cabeça de água.<br />

(MELO NETO, 1997, p.71)<br />

103


O outro texto em que há o aproveitamento do contexto espanhol relacionado ao<br />

ofício do fazer poético é o poema “O Ferrageiro de Carmona”, do livro Crime na Calle<br />

Relator (1985-19870):<br />

Um ferrageiro de Carmona<br />

que me informava de um balcão:<br />

“Aquilo? É de ferro fundido,<br />

foi a fôrma que fez, não a mão.<br />

Só trabalhando em ferro forjado<br />

que é quando se trabalha ferro;<br />

então, corpo a corpo com ele,<br />

domo-o, dobro-o até o onde quero.<br />

O ferro fundido é sem luta,<br />

é só derramá-lo na fôrma.<br />

Não há nele a queda-de-braço<br />

e o cara-a-cara de uma forja.<br />

Existe grande diferença<br />

do ferro forjado ao fundido;<br />

é uma distância tão enorme<br />

que não pode medir-se a gritos.<br />

Conhece a Giralda de Sevilha?<br />

De certo subiu lá em cima<br />

Reparou nas flores de ferro<br />

dos quatro jarros das esquinas?<br />

Pois aquilo é ferro forjado.<br />

Flores criadas numa outra língua.<br />

Nada têm das flores de fôrma<br />

moldadas pelas das campinas.<br />

Dou-lhe aqui humilde receita,<br />

ao senhor que dizem ser poeta:<br />

o ferro não deve fundir-se<br />

nem deve a voz ter diarréia.<br />

Forjar: domar o ferro à força,<br />

não até uma flor já sabida,<br />

mas ao que pode até ser flor<br />

se flor parece a quem diga.”<br />

(MELO NETO, 1997, p.288-9)<br />

Inicialmente percebemos que as aliterações em “f” ferem o ouvido do leitor,<br />

remetendo-o ao ofício do ferreiro, marcado pela “fôrma”, pelo “ferro”. Nesse contexto,<br />

104


sabemos que o trabalho existe e que o sujeito consegue domar e dobrar o ferro a seu<br />

modo. Portanto, mesmo que não seja a mão controladora do poema anterior que forja o<br />

ferro, a ação de “forjar” por si só já é domadora. Por isso, nas duas últimas estrofes, o<br />

poema assume o tom didático de ensinamento dos outros textos. Se antes a lição foi<br />

aprendida pela pedra, no espaço-sertão do Nordeste; ou pelo toureiro, pressionado nas<br />

arenas espanholas; agora a lição vem do ferrageiro, que ensina o poeta a fazer a sua flor.<br />

3.3. A RECORRÊNCIA A MITOS, A TEMAS E A ESPAÇOS ESPANHÓIS<br />

Quanto à recorrência a mitos, a temas ou a espaços espanhóis, a obra que inaugura<br />

esses modos de intercursos com a Espanha é novamente Paisagens com figuras. O segundo<br />

poema do livro, “Medinaceli” recupera a “Terra do provável do autor anônimo do Cantar<br />

de Mio Cid”, como anuncia o poeta entre parêntese, antes da primeira estrofe do poema.<br />

Através da descrição, os versos das cinco estrofes iniciais localizam a cidade, no tempo em<br />

que eram celebradas as suas conquistas:<br />

Do alto de sua montanha<br />

numa lenta hemorragia<br />

do esqueleto já folgado<br />

a cidade se esvazia.<br />

Puseram Medinaceli<br />

bem na entrada de Castela<br />

como no alto de um portão<br />

se põe um leão de pedra.<br />

Medinaceli era o centro<br />

(nesse elevado plantão)<br />

do tabuleiro das guerras<br />

entre Castela e o Islão,<br />

entre Leão e Castela,<br />

entre Castela e Aragão,<br />

105


entre o barão e seu rei,<br />

entre o rei e o infanção,<br />

onde engenheiros, armados<br />

com abençoados projetos,<br />

lograram edificar<br />

todo um deserto modelo.<br />

No ritmo da marcha dos exércitos, o reino de Castela se esvaía na paisagem das<br />

guerras que modelaram o deserto-cidade. Já as últimas estrofes do poema focalizam a<br />

situação presente da cidade:<br />

Agora, Medinaceli<br />

É cidade que se esvai:<br />

mais desce por esta estrada<br />

do que esta estrada lhe traz .<br />

Pouca coisa lhe sobrou<br />

senão ocos monumentos,<br />

senão a praça esvaída<br />

que imita o geral exemplo;<br />

pouca coisa lhe sobrou<br />

se não foi o poemão<br />

que poeta daqui contou<br />

(talvez cantou, cantochão),<br />

que o poeta daqui escreveu<br />

com a dureza de mão<br />

com que hoje a gente daqui<br />

diz em silêncio seu não.<br />

(MELO NETO, 1986, p.247)<br />

Outro aspecto do texto que realça o lado rude e pobre da cidade e daquele que nela<br />

habita é o jogo das anáforas, o qual sugere a monotonia da existência de um povo que vive<br />

da memória de seus heróis, sem nenhum desejo ou perspectiva de mudança.<br />

Vale ressaltar, neste momento, que o Poema del Cid ou Cantar de Mio Cid é o<br />

primeiro texto citado por João Cabral, no qual percebemos a fidelidade dos espanhóis a<br />

suas tradições nacionalistas. O poema é o mais antigo canto de gesta da literatura<br />

106


espanhola, em que aparece o mais popular dos heróis castelhanos, cuja figura audaz, leal,<br />

perseverante, serena e paciente inspira poetas de todos os tempos. Segundo Pedro<br />

Henríquez Urena (1968), o texto foi composto em 1140, antes de completarem os cinqüenta<br />

anos da morte do herói, Rodrigo Diaz de Vivar, o qual nasceu por volta de 1043 e morreu<br />

em 1099. Apesar de o texto basear-se em fatos históricos comprovados pelos historiadores<br />

espanhóis, ao longo do tempo foi modificado pela fantasia de alguns nomes que o<br />

reescreveram. A versão mais antiga que temos é a que foi reconstituída por Ramón<br />

Menéndez Pidal, o qual conservou a ortografia antiga, modernizando apenas a acentuação<br />

das palavras e a pontuação dos versos. Já a versão moderna mais conhecida é a de Pedro<br />

Salinas, um dos maiores poetas da modernidade espanhola.<br />

Imaginamos que, na Espanha, o poeta brasileiro deve ter tido acesso à versão do<br />

poema escrito em Castela, na região compreendida entre Medinaceli e Luzón, no caminho<br />

entre Burgos e Valência. Nessa versão, além da descrição da campanha do herói e de seus<br />

feitos, há dados concretos sobre a região onde este viveu e lutou.<br />

Por outro lado, lembramos que, conforme depoimentos e entrevistas de João Cabral,<br />

é na poesia espanhola que o poeta encontra a linguagem que corresponde aos seus<br />

propósitos de escrever claro para alcançar o leitor: “eu recebi mais da poesia espanhola. O<br />

que esse pessoal me mostrou, e me impressionou muito, é que não vale a pena escrever para<br />

o povo sem usar a forma que ele usa. É por isso que eu utilizo a forma narrativa.”(MELO<br />

NETO, 1966)<br />

Nessa perspectiva, o poeta brasileiro vai priorizar o metro popular do romancero<br />

espanhol.O romancero, no seu sentido geral, como observa Massaud Moisés (1982, p.460),<br />

“designa a atividade poética luso-espanhola, de caráter épico e lírico, anônima, transmitida<br />

107


por via oral, durante a Idade Média, configurada nos romances, ou a sua compilação em<br />

volume, integral ou antológico” Na outra acepção, a palavra refere-se ao Romancero<br />

General, nome dado em castelhano à estampa em 1600. João Cabral descobriu o<br />

romancero em Barcelona, quando lá esteve pela primeira vez em 1947:<br />

[...] Foi assim que a poesia espanhola me foi revelada.Especialmente a poesia<br />

anterior ao Século do Ouro que me marcou profundamente do ponto de vista<br />

rítmico e não métrico. O poema do Cid está no centro dessa revelação. É claro<br />

que, depois, eu passei a conhecer a poesia antiga ou primitiva de outros países.<br />

Em todas eu constatei a predominância do vocábulo concreto sobre o abstrato. Na<br />

poesia espanhola, em particular, verifiquei que essa predominância é uma<br />

característica que atravessa toda a sua história, exceto durante o regime de<br />

Franco. (CHAMIE, 1979, p. 39)<br />

Sobre essa literatura, José García López (1957) lembra que<br />

Los poemas épicos castellanos ofrecen una ecactitud histórica muy superior a la<br />

de los franceses. Ello se debe a que el espíritu castellano, siente un fuerte despego<br />

hacia lo fantástico y maravilhoso, y a que los poemas fueron escritos poço<br />

después de haber ocurrido los hechos reales.(LÓPEZ, 1957, p.409)<br />

Assim, comparado às técnicas das gestas francesas, o Poema del Cid é considerado<br />

mais espontâneo e mais sóbrio. Segundo García López,<br />

Vivo, rápido e intensamente dramático, el arte del Cantar castellano se nos<br />

muestra rico en elementos afectivos. Los más diversos recursos son utilizados por<br />

el juglar, que parece querer mantener en tensión la atención de su auditório,<br />

haciendo vibrar sucesivamente todas las cuerdas de su sensibilidad, en constantes<br />

variaciones de tono. Dentro de esta misma sencillez expresiva, el estilo tiene una<br />

magnífica gama de matices que van desde lo más delicado hasta lo más robusto,<br />

desde lo más sutilmente irônico a lo más gravemente dramático. (LÓPEZ, 1957,<br />

p.412)<br />

Como pudemos observar através da análise do texto do Poema del Cid,<br />

provavelmente João Cabral tenha recortado o ritmo, o sangrento e impressionante realismo<br />

com que são descritas as cenas de guerra, bem como a expressividade envolvente, que<br />

assegura a atenção do leitor.<br />

108


Além da cidade do autor anônimo do Cantar de Mio Cid, em Paisagens com<br />

figuras, no texto “Campo de Tarragona” 58 , há referências a uma das propriedades do pintor<br />

espanhol, Joan Miró, localizada em uma província vizinha a Barcelona. Em “Paisagem<br />

Tipográfica” 59 é a vez do impressor catalão Enric Tormo. Outra geografia espanhola<br />

também é introduzida no livro, em “Outro rio: o Ebro”:<br />

Vou quase sempre entre gesso<br />

do esqueleto do animal<br />

que veio cair de sede<br />

nestas terras de Aragão.<br />

O gesso também perece,<br />

não morde mais como a cal.<br />

Dir-se-ia que até a pedra<br />

morreu de sede e de sol.<br />

A partir das duas primeiras estrofes, percebemos a aproximação entre o rio e o<br />

contexto desértico do espaço-sertão nativo do poeta. O mesmo ocorre nos últimos versos do<br />

poema:<br />

58 Conferir anexo 03.<br />

59 Idem.<br />

Disponho de um leito largo<br />

como cama de casal,<br />

mas é pouco deste leito<br />

que cubro com meu lençol.<br />

Pois assim mesmo tão fraco<br />

no duro chão mineral,<br />

só veia regando ainda<br />

curtido couro animal,<br />

sou destas terras ossudas<br />

líquida espinha dorsal<br />

e até mesmo fui trincheira<br />

(quando do front de Aragão).<br />

(MELO NETO, 1986, p.267-8)<br />

109


Como observou Barbosa em relação ao conjunto de poemas do livro em estudo, “a<br />

identificação entre paisagens e a figura que a habita é um momento no processo mais<br />

profundo de singularização da miséria através do qual o homem é percebido”(1975, p. 139)<br />

Desse modo, ao articular paisagens e pessoas, geografias e ofícios, João Cabral tenta<br />

apreender pela linguagem a forma e as condições da existência de cada pessoa e de cada<br />

lugar.<br />

A partir de então, nas obras seguintes, vão se confirmando nessa poética paralelos<br />

entre a realidade nordestina e a paisagem acidentada da Espanha e de seus habitantes<br />

ciganos etc. Assim acontece em Quaderna (1956-1959), dedicado a Murilo Mendes, em<br />

que o poeta opõe a mensagem e o discurso à imagem e plasticidade, conforme veremos no<br />

capítulo referente à música e à dança flamencas. Também em A educação pela pedra<br />

(1962-1965), livro escrito “na base da dualidade”, segundo João Cabral, há alusões a<br />

figuras humanas e à geografia nordestinas e espanholas.<br />

Já o livro Museu de tudo (1966-1974), de certa forma, difere dos textos citados<br />

anteriormente. A coleção de poemas apresentada, “compondo uma espécie de quadros, ou<br />

uma série de quadros”, como observa o crítico português Oscar Lopes 60 , aborda diferentes<br />

temas de diferentes culturas, dentre eles, a música da Andaluzia, pintores, escultores,<br />

escritores de várias nacionalidades, futebol etc. No entanto o mesmo procedimento de<br />

Paisagens com figuras é adotado pelo poeta no sentido de dar a ver essas figuras.Há o<br />

mesmo registro das impressões de um eu-lírico que recolhe paisagens, ofícios e pessoas,<br />

sendo que os atributos de uns cruzam-se com os dos outros.<br />

Em A escola das facas (1975-1980) e em outras obras que se seguem, embora o<br />

60 Numa entrevista a Mário Pontes, João Cabral concorda com a leitura desse crítico, declarando que se “trata<br />

de uma coleção de coisas reconstruídas e arrumadas conforme um plano de disposição.” (MELO NETO,<br />

1980)<br />

110


poeta retome temas típicos da tradição lírica brasileira, como as reminiscências da infância<br />

em Pernambuco, a exaltação aos heróis da pátria, a morte etc., marcados pelo “afastamento<br />

suficiente” de sua terra, como assinala o poeta em entrevista citada, tais motivos são<br />

tratados segundo os moldes das outras linguagens, como veremos nos capítulos que se<br />

seguem.<br />

O livro Auto do frade (1984), por exemplo, é um “auto para vozes”, como afirma<br />

Cabral, “coisa muito visual, conseqüência daquela minha primeira impressão de que os<br />

últimos momentos do frei Caneca dariam um bom filme, e é estranho, um auto feito para<br />

teatro, não para cinema.” (ATHAY<strong>DE</strong>, 1998, p.117)<br />

O poema “Ocorrências de uma sevilhana”, do livro Agrestes (1981-1985), introduz<br />

outras vozes nos poemas, como no texto em prosa, embora ainda não haja as marcas do<br />

discurso direto:<br />

Me confiava uma sevilhana<br />

sem norte na grande Madrid:<br />

Nem sei de que lado é que vivo;<br />

só sei que é a três gritos daqui.<br />

(MELO NETO, 1997, p.231)<br />

Já no poema “Crime na Calle Relator” 61 , do livro de mesmo nome, constituído de<br />

poemas narrativos, ou de histórias ouvidas pelo poeta, o uso das aspas tem um valor<br />

semântico e uma eficácia importante para o entendimento do texto, pois implica a inserção<br />

da fala de uma jovem, uma bailarina de flamenco, que conta a sua história. É o relato de<br />

uma “história autêntica”, segundo João Cabral, e que merece, no plano da organização do<br />

discurso, um processo que atribui à personagem a responsabilidade da fala, ou seja,<br />

61 Conferir anexo 03<br />

111


aproxima-se das artes cênicas:<br />

“Achas que matei minha avó?<br />

O doutor à noite me disse:<br />

Ela não passa desta noite;<br />

Melhor para ela, tranqüilize-se.<br />

À meia-noite ela acordou;<br />

não de todo, a sede somente;<br />

e pediu: Dáme pronto, hijita,<br />

una poquita de aguardiente.<br />

(MELO NETO, 1997, p.281)<br />

Com o propósito de dar mais visibilidade ao relato, o poeta transcreve as falas da<br />

mocinha espanhola e de sua avó. Acreditamos que João Cabral tenha adotado essa forma de<br />

escrever por acreditar que essa é a forma que atinge o leitor 62 .<br />

As últimas obras publicadas pelo poeta, Sevilha andando (1987-1993) e Andando<br />

Sevilha (1987-1989), parecem acentuar o trânsito dessa poética pela cultura espanhola em<br />

suas diferentes linguagens, sobretudo a partir das figuras das bailarinas do flamenco, que<br />

voltam aos poemas com toda a sua expressividade visual e auditiva. Como já anunciamos,<br />

nos capítulos seguintes, tentaremos mostrar os modos pelos quais o poeta propõe esses<br />

intercursos de linguagens em seus dois últimos livros.<br />

Por outro lado, percebemos, na estruturação das imagens femininas que compõem<br />

toda a obra, uma inter-relação com a linguagem da Arquitetura, uma vez que a mulher é<br />

tomada como espaço a ser habitado, vivido pelo seu contemplador, conforme veremos no<br />

estudo relativo às relações entre poesia e Arquitetura. Os diálogos são tão fortes nos<br />

poemas de Sevilha, que o poeta chega a propor o “Viver Sevilha”, através do intercurso<br />

62 Em entrevista a Augusto Massi, o poeta afirma que os poemas narrativos apresentados são casos que<br />

aconteceram com ele ou que lhe contaram em Sevilha.<br />

112


estético:<br />

1<br />

Se dás voltas a uma escultura,<br />

o corpo é que a envolve, livre;<br />

se penetra em qualquer pintura<br />

como janela que se abrisse;<br />

se pode boiar numa música,<br />

nos pauis doentes de que consiste;<br />

se pode ir em fins de semana<br />

a romances que tenham o “habite-se”.<br />

2<br />

Mas só a arquitetura é total,<br />

não virtual, ao corpo que a vive,<br />

ainda mais se essa arquitetura<br />

numa cidade se urbanize;<br />

como em Sevilha, a mais regaço<br />

de toda cidade que existe,<br />

pois nela vamos e nos vai,<br />

num vai e vem que ir-se e vir-se.<br />

3<br />

Só em Sevilha o corpo está<br />

com todos os sentidos em riste,<br />

sentidos que nem se sabia,<br />

antes de andá-la, que existissem;<br />

sentidos que fundam num só:<br />

viver num só o que nos vive,<br />

que nos dá a mulher de Sevilha<br />

e a cidade ou concha em que vive.<br />

4<br />

Uma mulher sei, que não é<br />

de Sevilha nem tem lá raízes,<br />

que sequer visitou Sevilha<br />

e que talvez nunca a visite,<br />

mas que é dentro e fora Sevilha,<br />

toda a mulher que ela é, já disse,<br />

Sevilha de existência fêmea,<br />

A que o mundo se sevilhize.<br />

(MELO NETO, 1997, p.337)<br />

Além dos poemas citados neste capítulo, a obra cabralina apresenta, na sua fase<br />

final, uma infinidade de textos que confirmam a hipótese de que a poesia de João Cabral<br />

113


configura-se por diálogos entre diferentes possibilidades artísticas e culturais, na medida<br />

em que conjugam o entrelaçamento de linguagens distintas, num processo dinâmico de<br />

inter-relação dos signos propiciadores de novas leituras e novos sentidos. São textos que<br />

propõem a alteração da linguagem poética em função da expressividade, visando a uma<br />

melhor comunicação com o leitor, pois entre texto e leitor tem que haver “intimidade”,<br />

talvez a mesma “Intimidade do flamenco”:<br />

O flamenco quer intimidade,<br />

assim no cante que no baile.<br />

Aquele fazer de mais dentro,<br />

se quer de quem faz pôr-se ao centro,<br />

centrar-se, viver seu caroço,<br />

e a partir dele dar-se todo,<br />

esse cante ou baile é monólogo<br />

que se funciona para o próximo,<br />

quer um próximo conivente<br />

capaz de centrar-se igualmente.<br />

Não quer um palco que o dissolva,<br />

seu fazer se faz boca a boca.<br />

(MELO NETO, 1997, p.383)<br />

Na seqüência deste estudo, aprofundaremos a leitura dos processos de construção do<br />

texto de João Cabral em suas relações com outras linguagens artísticas, partindo de<br />

pressupostos teóricos que aventam essas possibilidades. Começamos pela pintura.<br />

114


CAPÍTULO 4<br />

PRESENÇA DA PINTURA ESPANHOLA EM JOÃO CABRAL<br />

As relações entre literatura e artes plásticas são histórica e teoricamente<br />

fundamentadas por um paralelo que, desde a Antigüidade até o século XVIII, permaneceu<br />

na fórmula ut pictura poesis, proposta por Horácio na sua Ars Poética. Desde então, pintura<br />

e literatura são colocadas em situação de conformidade ou de equivalência, embora haja<br />

entre essas duas linguagens artísticas uma relação de concorrência hierárquica, já que de<br />

acordo com Simonides, a poesia é uma pintura falante e a pintura, uma poesia muda.<br />

(MUHANA, 2002)<br />

Vale lembrar, no entanto, que a era renascentista recupera o ut pictura poesis,<br />

invertendo o sentido da expressão, uma vez que na teoria assegurada pelos tratados<br />

iconográficos ou didáticos os grandes gêneros retóricos e as grandes divisões dos discursos<br />

moldam os procedimentos da pintura.<br />

Como exemplo, pode ser citado o texto de Leon Battista Alberti (1999), Da Pintura,<br />

redigido em duas versões: a latina, em 1435 e a vernácula ou vulgar, “em língua toscana”,<br />

em 1436. O texto de Alberti é considerado o primeiro documento da literatura artística a<br />

constituir a pintura como objeto de teoria e doutrina sistematizadas. Foi referência de<br />

investigação de importantes pintores, como Leonardo da Vinci, e de muitos tratados do<br />

século XVI. Com Alberti, estabelecem-se cabalmente contatos diretos entre a pintura<br />

contemporânea e as tradições clássicas da arte, da história e da literatura. Há inúmeros<br />

115


estudos que salientam e ilustram o quanto as teorias e a estrutura do De pictura dependem<br />

das tradições poéticas e retóricas.<br />

Na verdade o tratado de Alberti vai além do paralelismo de seus antecessores, pela<br />

singularidade de seu discurso ao conceituar arte e artista. O autor elabora seus preceitos e<br />

conceitos a partir, principalmente, das retóricas de Cícero e Quintiliano.<br />

A pintura, retórica traduzida, constitui-se não apenas como tomadora de temas, mas,<br />

basicamente, como articulação: as cinco partes canônicas da retórica, a saber, invenção,<br />

disposição, elocução, ação e memória, operam no discurso albertiano. Porém não há uma<br />

aplicação mecânica dessas partes, pois na pintura de Alberti temos três momentos:<br />

circunscrição, composição e recepção de luzes. O paralelismo ocorre também na<br />

composição, segunda etapa da pintura. As partes da composição – superfície, membros,<br />

corpos – compõem-se segundo a divisão gramatical, letras, sílabas, dicções. Alberti postula<br />

que os jovens pintores devem agir como os jovens que aprendem a escrever:<br />

Ensinam-lhes em primeiro lugar e separadamente todas as formas de letras, que<br />

os antigos chamavam elementos, depois ensinam as sílabas; a seguir, ensinam a<br />

compor todas as palavras. Os nossos alunos deviam seguir esse método na<br />

pintura. Primeiramente deveriam aprender a desenhar bem os contornos das<br />

superfícies; a seguir, deveriam aprender cada forma distinta de cada membro e<br />

confiar à memória toda a diferença que possa existir em cada membro.<br />

(ALBERTI, 1999, p. 141)<br />

Quanto ao pintor, Alberti observa que é um homem moralmente bom e culto em<br />

muitas coisas, conquista fama e fortuna certa na sociedade, parecido com o modelo de<br />

orador-cidadão de Quintiliano. Nessa perspectiva, as artes plásticas são liberadas do<br />

menosprezo que pesava sobre elas, desde Platão, “iniciador do longo reino do logos”,<br />

“supremo inimigo da imagem”, como observa Solange Ribeiro de Oliveira (1993, p.14).<br />

116


Alberti observa ainda que, além de saber geometria, o pintor deve andar na<br />

companhia de poetas e oradores, pois estes<br />

têm muitos recursos em comum com os pintores; dotados de vasto conhecimento<br />

sobre muitas coisas, serão de grande ajuda para uma bela composição da história,<br />

cujo maior mérito consiste na invenção que, como veremos, costuma ser de tal<br />

força, que mesmo sem a pintura, agrada por si mesma. (ALBERTI, 1999, p.139)<br />

Assim, pintor e escultor abandonam a companhia de artesãos e operários e começam<br />

a integrar a dos poetas.<br />

Nos meados do século XVIII, 1776, na Alemanha, o paralelismo entre as duas artes<br />

é revisto por Gothhold Ephraim Lessing (1964) o qual também busca fundamentos estéticos<br />

para propor os limites entre as artes plásticas e a literatura:<br />

A pintura, em suas imitações, emprega meios ou signos totalmente diversos dos<br />

da poesia - figuras e cores no espaço - enquanto a última utiliza sons articulados<br />

em ordem temporal: como, indiscutivelmente, os signos usados devem ter uma<br />

relação precisa com o objeto representado, segue-se que os signos dispostos lado<br />

a lado podem expressar apenas temas que, no conjunto ou em suas partes,<br />

existam dessa forma, enquanto os sinais que se sucedem no tempo podem<br />

expressar apenas aqueles que, no todo ou em parte, sejam sucessivos. (LESSING,<br />

1964, p.55).<br />

De acordo com Oliveira, esse pronunciamento antecipa posições modernas<br />

contrárias à tradição ut pictura poesis. Apoiadas precisamente na diferença de meios<br />

empregados pelas diversas artes – e não nas semelhanças temáticas – essas posições<br />

deduzem daí a impossibilidade de comparar poesia e artes plásticas.<br />

Na verdade, a contribuição de Lessing está na necessidade de distinguir dois<br />

critérios para a comparação entre uma obra literária e outra plástica. Um dos critérios é o da<br />

semelhança do assunto ou motivo representado. Outro, a semelhança de estilo. Estudos<br />

revelam que grande parte da comparação feita nos séculos XVII e XVIII tinha como base a<br />

117


semelhança de assunto, que a crítica contemporânea considera irrelevante, já que os estudos<br />

atuais valorizam a semelhança estilística. Diante de tais colocações, algumas contrárias<br />

outras favoráveis à tradição ut pictura poesis, observa-se que ela perpassa os tempos.<br />

No contexto da literatura brasileira, do período colonial à era contemporânea,<br />

encontramos, sobretudo na poesia, diálogos explícitos entre a literatura e a pintura.<br />

Deparamos com procedimentos composicionais que vão da simples alusão a um quadro, até<br />

incorporação de processos de composição das linguagens visuais.<br />

José Américo de Barros (1993) lembra que é bem conhecido o fato de que uma<br />

escultura de Brecheret, a “Cabeça de Cristo”, encontre-se na origem da obra Paulicéia<br />

desvairada, de Mário de Andrade. Igualmente conhecido é o fato de que o movimento da<br />

Antropofagia, liderado por Oswald de Andrade, teve, entre os acontecimentos que o<br />

determinaram, uma tela, o Abaporu, de Tarsila do Amaral.<br />

Na década de cinqüenta, como já observamos, temos o movimento da poesia<br />

concreta que tomou ao campo das artes plásticas a palavra que o designa e a idéia de<br />

autonomia da arte que lhe é correlata. Portanto, a busca de novas técnicas e formas de<br />

expressão é uma preocupação constante na evolução das artes. Nessa perspectiva, surgem<br />

estudos que têm como referência as combinações de signos verbais e não-verbais.<br />

Diante do exposto, tentaremos agora ilustrar alguns desses possíveis procedimentos<br />

composicionais que aproximam a poesia de João Cabral e a pintura espanhola. Seguimos,<br />

desse modo, a vertente dos estudos que destacam a precedência que as artes plásticas<br />

tiveram sobre a literatura. Contrariando um pouco a postura de Alberti, observamos que tais<br />

procedimentos são desenvolvidos primeiramente no campo da expressão plástica, como<br />

lembra João Cabral em seu poema “A lição de Pintura”:<br />

118


Quadro nenhum está acabado,<br />

disse certo pintor;<br />

se pode sem fim continuá-lo,<br />

primeiro, ao além de outro quadro<br />

que, feito a partir de tal forma,<br />

tem na tela, oculta, uma porta<br />

que dá a um corredor<br />

que leva a outra e a muitas outras.<br />

(MELO NETO, 1997, p.77)<br />

Acreditamos que o contato com um tipo de arte vigorosa, a pintura espanhola,<br />

marcada pelo “jogo das fibras musculares”, pelos “tendões prestes a romper-se” ou pelas<br />

“ossaturas visíveis sob a pele morta ou ressequida”, como assinala Élie Faure (1991), talvez<br />

tenha impressionado bastante o poeta pernambucano, sujeito oriundo de uma realidade<br />

moldada pela mesma trágica existência.<br />

4.1.O CUBISMO <strong>DE</strong> PICASSO<br />

Quanto aos pintores espanhóis, a poesia de João Cabral, desde o primeiro livro, cita<br />

nomes das artes espanholas. No livro Pedra do sono (1942), como já vimos, João Cabral<br />

faz uma “homenagem” a Picasso, valorizando as técnicas com que o pintor espanhol recorta<br />

suas imagens:<br />

Homenagem a Picasso<br />

O esquadro disfarça o eclipse<br />

que os homens não querem ver.<br />

Não há música aparentemente<br />

nos violinos fechados.<br />

Apenas os recortes dos jornais diários<br />

acenam para mim com o juízo final.<br />

(MELO NETO,1986,p.383)<br />

Através dessa homenagem, percebemos que Picasso é o primeiro pintor espanhol a<br />

119


ser citado pelo poeta por se utilizar da “disciplina da forma e o severo silêncio da<br />

composição, que o esquadro domina e os violinos fechados garantem” (ESCOREL,1973,<br />

p.19), ou seja, por uma espécie de pintura mais conceitual, disciplinada e geométrica. João<br />

Cabral, ao se referir ao pintor, observa que Picasso fez quadros porque estudava os espaços,<br />

os volumes.<br />

Insatisfeito com a perfeição formal e linear de suas primeiras pinturas, o pintor<br />

espanhol buscou na força da escultura bárbara, ibérica e celta, os motivos e as formas para<br />

os seus quadros. Diante dessa ruptura brusca e radical, é um artista que transcendeu todos<br />

os movimentos estéticos de seu tempo, segundo John Golding (2000).<br />

A mudança de tema e estilo do pintor é importante para a pintura do início do século<br />

XX, uma vez que rompe com a perspectiva matemática e científica adotada pelos artistas<br />

desde o início da Renascença italiana. Para Golding, antes de Picasso, “o artista via o seu<br />

modelo ou objeto de um único ponto de vista estacionário”. (GOLDING, 2000, p.40) Em<br />

relação ao pintor espanhol, era como se ele “tivesse andado 180 graus em redor do seu<br />

modelo e tivesse sintetizado suas sucessivas impressões numa única imagem”. (Ibidem)<br />

A tela que marca o período de transição da obra de Picasso é Les Demoiselles<br />

d’Avignon-1907(Fig.01), que foi pintada em duas etapas. O quadro nos apresenta algumas<br />

garotas de um prostíbulo de Barcelona, o Bordel de Avignon, situado no “calle Avignon”.<br />

Na opinião de Esníder Pizzo (1997), a composição do quadro é bem elaborada e<br />

“completamente subvertida pela introdução, intensa e plena de vitalidade, dessas figuras<br />

femininas.” (PIZZO,1997, p.03) Ainda de acordo com o crítico, a vitalidade das imagens<br />

deve-se à arte negra. Picasso teria entendido que a vitalidade da obra de arte independe do<br />

“grau de imitação de uma realidade preestabelecida”, mas dependeria da “reconstituição<br />

de uma realidade absolutamente obediente aos instintos e impulsos mais originais.”<br />

120


(PIZZO, 1997, p.03)<br />

Já para o citado crítico Herbert Read (1991, p.93), Picasso é um artista de muitas<br />

faces. No entanto, fundamentado nos estudos de E. M. Zervos, o crítico postula que a<br />

principal marca do estilo do pintor é a subjetividade, pois seus métodos são dominados<br />

pela angústia. Este sentimento é o que “o capacita a derrubar todas as suas barreiras,<br />

deixando o campo do possível livre para ele e abrindo-lhe perspectivas.” (ZERVOS, apud<br />

READ, 1991, p.93)<br />

Devemos ressaltar também que os estudos sobre as origens da pintura de Picasso<br />

que apontam para a influência da escultura negra sinalizam para a plasticidade das figuras,<br />

surgida em conseqüência da decomposição dinâmica em planos, marcados por traços rudes,<br />

que envolvem os personagens e criam uma nova organização espacial.<br />

Portanto, a visualidade da obra do pintor seria condicionada pela arte negra. É o<br />

momento em que o pintor concebia a forma cubista “em termos escultóricos” (GOLDING,<br />

2000, p.41), ou seja, no seu período “negróide”, Picasso dizia que a figura era facilmente<br />

compreendida em termos esculturais.<br />

Para Apollinaire (PIZZO,1997, p.05), “Picasso estuda um objeto como um cirurgião<br />

disseca um cadáver”, isto é, o pintor analisa a realidade, inicialmente, a partir de seus<br />

aspectos formais, como se fosse um corpo estático. No momento seguinte, descoberta a sua<br />

estrutura interna, depois de apreendida em relação aos seus fenômenos múltiplos, tal<br />

realidade seria representada como um conjunto orgânico de diversos elementos.<br />

Esse olhar cirúrgico e escultural de Picasso nos remete a Francis Ponge, a quem<br />

Cabral também dedica alguns de seus versos 63 :<br />

Francis Ponge, outro cirurgião,<br />

63 Trata-se de parte do poema “O sim contra o sim”, do livro Serial (1959-1961).<br />

121


adota uma outra técnica:<br />

gira-as nos dedos, gira<br />

ao redor das coisas que opera.<br />

Apalpa-as com todos os dez<br />

mil dedos da linguagem:<br />

não tem bisturi reto<br />

mas um que se ramificasse.<br />

Com ele envolve tanto a coisa<br />

que quase a enovela<br />

e quase a enovelando,<br />

se perde, enovelado nela.<br />

E no instante em que até parece<br />

que já não a penetra,<br />

ele entra sem cortar:<br />

saltou por descuidada fresta.<br />

(MELO NETO, 1985, p.59)<br />

Observando o poema, percebemos que tanto o pintor espanhol quanto o escritor<br />

francês mereceram a atenção do poeta pernambucano pelo desejo de alcançarem todas as<br />

formas do objeto tratado, possibilitando maior visibilidade na percepção de suas imagens.<br />

Por outro lado, não podemos nos esquecer de que, a partir de 1908, o pintor<br />

espanhol começa a depurar suas telas da vitalidade mágica e do grotesco selvagem dos seus<br />

primeiros quadros, concentrando-se na objetividade da imagem e na sua construção formal:<br />

“assim, as deformações selvagens e impetuosas são substituídas por sínteses planejadas da<br />

forma que tendem a uma simplificação geométrica da realidade.”(PIZZO, 1997, p.04) A<br />

nosso ver, esse é o primeiro aspecto que Cabral destaca, ao homenagear o pintor, em<br />

“Homenagem a Picasso”.<br />

Outro processo da pintura de Picasso que pode ser observado na poética de Cabral é<br />

o processo da colagem, através do qual os cubistas incorporavam tiras de papel e outros<br />

fragmentos de materiais às suas pinturas e desenhos. Picasso, em 1912, utilizou um pedaço<br />

122


de encerado com o desenho de um trançado de palhinha, como o que se utiliza em cadeiras,<br />

iniciando, assim, a invasão do espaço ilusório da imagem pelos objetos.<br />

Segundo Giulio Carlo Argan (1993, p.359), “para os cubistas, a colagem servia para<br />

demonstrar que não existe separação entre o espaço real e o espaço de arte, de modo que as<br />

coisas da realidade podem passar para a pintura sem alterar sua substância.” Já Golding<br />

(2000, p.46) considera que o cubismo serve de “ponte entre nossos modos habituais de<br />

percepção e o fato artístico, tal como nos é apresentado pelo artista.” Em outras palavras, o<br />

procedimento recoloca a imagem no nosso cotidiano, ao mesmo tempo em que a integra à<br />

construção plástica da pintura.<br />

Além da alusão às telas de Picasso em que há a técnica dos “papéis colados”, em<br />

“Homenagem a Picasso”, muitos outros poemas de Pedra do sono foram inspirados em<br />

quadros da pintura cubista. Nesse sentido, o poeta pernambucano consegue suscitar a<br />

impressão de estranheza no leitor ao se utilizar de uma linguagem e/ou de uma temática que<br />

põem em questão o sentido da poesia.<br />

Por outro lado, a introdução de “substâncias estranhas” nos quadros, segundo Braque,<br />

dá à obra o “sentido material”, além de possibilitar a extração de significados inesperados<br />

da combinação dessas substâncias de um modo original, como podemos perceber no poema<br />

“Composição”:<br />

Frutas decapitadas, mapas,<br />

aves que prendi sob o chapéu,<br />

não sei que vitrolas errantes,<br />

a cidade que nasce e morre,<br />

no teu olho a flor, trilhos<br />

que me abandonam, jornais<br />

que me chegam pela janela<br />

repetem gestos obscenos<br />

que vejo fazerem as flores<br />

me vigiando em noites apagadas<br />

123


onde nuvens invariavelmente<br />

chovem prantos que não digo.<br />

(MELO NETO, 1986, p.382)<br />

Nessa “composição” cabralina, o estranhamento é causado pelo fato de o poeta<br />

justapor imagens segundo uma técnica cubista. Através dessa perspectiva, podemos<br />

visualizar cada detalhe da cidade e ao mesmo tempo apreendê-la no seu conjunto como<br />

uma realidade desconexa e dissonante.<br />

Outro livro que, a nosso ver, vai se utilizar da técnica da “anulação do sentido”, na<br />

perspectiva do crítico, é Os três mal-amados (1943), em que o poeta contrasta três<br />

discursos, de acordo com as teorias da simultaneidade do cubismo: “o do sonho na boca de<br />

João, a obsessão do amor na de Joaquim e a beatitude solar na de Raimundo” como observa<br />

Renato Suttana (2003, p. 230).<br />

Ainda em relação ao processo da colagem, em João Cabral, encontramos a técnica<br />

cubista, ao atentarmos para as metáforas de O cão sem plumas, nas quais deparamos com o<br />

mesmo estranhamento causado no espectador diante de um pedaço de palhinha de cadeira,<br />

ou de um jornal em uma tela de Picasso:<br />

§ A cidade é passada pelo rio<br />

como uma rua<br />

é passada por um cachorro;<br />

uma fruta por uma espada.<br />

§ O rio ora lembrava<br />

a língua mansa de um cão,<br />

ora o ventre triste de um cão,<br />

ora o outro rio<br />

de aquoso pano sujo<br />

dos olhos de um cão.<br />

(MELO NETO, 1985, p.305)<br />

124


Na primeira estrofe citada, o tipo de analogia que é estabelecida entre as imagens da<br />

cidade, da rua e da fruta rompe com o senso comum, na medida em que reflete mais a<br />

percepção do que a imaginação do autor/leitor. Percebemos que, tanto as imagens da<br />

primeira estrofe, quanto a imagem do rio trabalhada na segunda estrofe são organizadas de<br />

acordo com o que Costa Lima chama de “procriação imagética”, pois são desdobradas<br />

várias vezes até que alcancem a concretude ou se tornem plásticas.<br />

Em Serial (1959-1961), José Guilherme Merquior (1965, p.89) também observa o<br />

aspecto cubista da poesia cabralina:<br />

Cubismo, porque essa poesia se torna plástica pelo visual, mas sobretudo pela<br />

correlação de planos, pela multiplicidade de sentidos, pelo contraponto de<br />

imagens cercando a coisa pelo sensível e pelo conceito, pelo físico e pelo<br />

humano. Correlação, em conseqüência, menos do que interpenetração. Está nela a<br />

origem do poema em série, do serial onde a caça ao objeto (pessoa ou coisa) se<br />

sucede nos flashes de vários ângulos, nos cortes, nos closes, que só a técnica<br />

flexível do “cameraman” consegue unir sem perda de fluidez.<br />

A correlação de planos, a multiplicidade de sentidos e o contraponto de imagens<br />

realmente são técnicas bastante evidentes no livro Seria. Como exemplo, podemos citar o<br />

poema “O sim contra o sim”, no qual João Cabral se serve da lição de vários artistas que<br />

tentaram explorar a potencialidade dos signos.<br />

O texto é dividido em oito partes e em cada uma delas o poeta evidencia as técnicas<br />

de diferentes artistas: Marianne Moore, Francis Ponge, Juan Miró, Mondrian, Cesário<br />

Verde, Augusto dos Anjos, Juan Gris e Jean Dubuffet. De cada um deles, o poeta brasileiro<br />

recorta processos de composição artística que corroboram os princípios que norteiam sua<br />

poesia.<br />

125


Dentre esses processos, é lícito lembrar a prática da dissecação da palavra<br />

empreendida por Marianne Moore, que favorece a limpeza, a economia e a ordem de seus<br />

textos; da “multiplicidade perceptiva”, proposta por Francis Ponge, ao girar nos dedos o<br />

seu objeto, ou girar “ao redor das coisas que opera” (MELO NETO,1986, p.59); a recusa da<br />

espontaneidade e do “saber” acadêmico de Miró, o qual desaprende o que aprendera, “a fim<br />

de reencontrar/ a linha ainda fresca da esquerda” (Ibidem, p.59); a geometria rigorosa de<br />

Mondrian, que enxerta “réguas, esquadros e outros utensílios” no seu fazer artístico; o<br />

colorido de Cesário Verde, que almeja alcançar os “tons opostos/ das maçãs que contou”<br />

(Ibidem, p.61); “o timbre fúnebre”, a “dureza da pisada” e a “geometria do enterro”, de<br />

Augusto dos Anjos; as lentes de Juan Gris e a luneta de Jean Dubuffet, no seus jogos de<br />

aproximação e distanciamento da realidade.<br />

Na esteira de Golding, acreditamos que tanto o pintor espanhol quanto o poeta<br />

brasileiro propõem, de maneira disciplinada, a criação de “um novo idioma formal” que<br />

esteja relacionando com a nossa vida cotidiana, para que possamos identificá-lo com<br />

facilidade, por fazer parte de “nossa experiência do mundo material que nos cerca”<br />

(GOLDING, 2000, p.46)<br />

Em linhas gerais, esses aspectos destacados na poesia de Cabral em relação ao projeto<br />

de Picasso demonstram que o poeta nordestino consegue apreender, no início de sua<br />

trajetória artística, mecanismos de criação pictórica do movimento em torno do qual<br />

gravitou a arte da primeira metade do século XX.<br />

126


4.2.A TÉCNICA <strong>DE</strong> JUAN GRIS<br />

Como já vimos, nos versos de “O sim contra o sim”, outros dois pintores são<br />

destacados por João Cabral – o espanhol Juan Gris e o francês Jean Dubuffet – como<br />

vozes com as quais o poeta pernambucano dialoga:<br />

Juan Gris levava uma luneta<br />

por debaixo do olho:<br />

uma lente de alcance<br />

que usava porém do lado outro.<br />

As lentes foram construídas<br />

para aproximar as coisas,<br />

mas a dele as recuava<br />

à altura de um avião que voa.<br />

Na lente avião, sobrevoava<br />

o atelier, a mesa,<br />

organizando as frutas<br />

irreconciliáveis na fruteira.<br />

Da lente avião é que podia<br />

Pintar sua natureza:<br />

Com o azul da distância<br />

Que a faz mais simples e coisa.<br />

Jean Dubuffet, se usa luneta<br />

é do lado correto;<br />

mas não com o fim vulgar<br />

com que se utiliza o aparelho.<br />

Não intenta aproximar o longe<br />

mas o que está próximo,<br />

fazendo com a luneta<br />

o que se faz com o microscópio.<br />

E quando aproximou o próximo<br />

até tacto fazê-lo,<br />

faz dela estetoscópio<br />

e apalpa com o olhar dedo.<br />

Com essa luneta feita dedo<br />

procede à auscultação<br />

das peles mais inertes:<br />

que depois pinta em ebulição.<br />

(MELO NETO, 1986, p.62)<br />

127


O pintor espanhol Juan Gris pertence ao grupo dos jovens cubistas que tinha em<br />

Picasso “um novo messias” (PIZZO, 1997, p.06). Em 1912, ou seja, antes de Cabral,<br />

apresenta sua Homenagem a Picasso-1912 (Fig.02), como prova significativa do<br />

entusiasmo que tinha pelo amigo e companheiro de pesquisas. Nessa tela, Gris pinta o<br />

retrato de Picasso, nos moldes da pintura cubista. De acordo com Pizzo (1997), as pinturas<br />

de Gris se concretizam em um estilo mais severo, no qual a cor se reduz quase à<br />

monocromia. As formas do pintor espanhol “são reveladas pelo jogo de claro e escuro,<br />

surgindo na superfície em sutis modulações de ritmo decorativo, onde o volume é sugerido<br />

pela predominância da linha curva.” (PIZZO,1997, p.11) Obedecendo a uma organização<br />

racional, o pintor traça os contornos dos objetos a partir de diferentes pontos de vista.<br />

Sabemos que, em mais de um texto, João Cabral vai se valer das propostas desse<br />

artista. No poema “De um avião”, do livro Quaderna (1956-1957), por exemplo, João<br />

Cabral faz uso dessas técnicas, por tentar alcançar a imagem de Pernambuco à medida que<br />

o avião se distanciava da geografia nordestina. A cada movimento circular do avião,<br />

mediado pela memória dos tempos ali vividos, o poeta consegue apreender a cartografia de<br />

seu espaço natal.<br />

O poema é dividido em cinco partes, cada uma contendo oito quartetos. Portanto,<br />

pela estrutura bem marcada da composição, há a sugestão de uma apreensão lenta e<br />

objetiva da realidade. A despeito disso, percebemos que, inicialmente, o poeta propõe um<br />

jogo ao leitor em que a paisagem vista de um avião é refeita e desfeita ao mesmo tempo:<br />

De um avião<br />

A Afonso Arinos Filho<br />

1. Se vem por círculos na viagem<br />

Pernambuco – Todos-os-Foras.<br />

128


Se vem numa espiral<br />

de coisa à sua memória.<br />

O primeiro círculo é quando<br />

o avião no campo do Ibura.<br />

Quando tenso na pista<br />

Salto ele calcula.<br />

Está o Ibura onde coqueiros,<br />

onde cajuzeiros, Guararapes.<br />

Contudo já parece<br />

em vitrine a paisagem.<br />

O aeroporto onde o mar e mangues,<br />

onde o mareiro e a maresia.<br />

Mas ar condicionado,<br />

mas enlatada brisa.<br />

De Pernambuco, no aeroporto,<br />

a vista já pouco recolhe.<br />

É o mesmo, recoberto,<br />

porém, de celulóide.<br />

Nos aeroportos sempre as coisas<br />

se distanciam ou celofane.<br />

No do Ibura até mesmo<br />

a água doída, o mangue.<br />

Agora o avião (um saltador)<br />

caminha sobre o trampolim.<br />

Vai saltar-me de fora<br />

para mais fora daqui.<br />

No primeiro círculo, em terra<br />

de Pernambuco já me estranho.<br />

Já estou fora, aqui dentro<br />

deste pássaro manso.<br />

O ato de refazer a paisagem começa desde o momento em que o eu lírico se encontra<br />

na terra, no campo do Ibura. Do aeroporto, onde o mar e os mangues se encontram, o avião<br />

salta, como um pássaro manso. Na segunda parte, o mapeamento da geografia<br />

pernambucana é feito através de um processo de intensa visualidade:<br />

2. No segundo círculo, o avião<br />

vai de gavião por sobre o campo.<br />

A vista tenta dar<br />

um último balanço.<br />

129


A paisagem que bem conheço<br />

por tê-la vestido por dentro,<br />

mostra, a pequena altura<br />

coisas que ainda entendo.<br />

Que reconheço na distância<br />

de vidros lúcidos, ainda:<br />

eis o incêndio de ocre<br />

que à tarde queima Olinda;<br />

eis todos os verdes do verde,<br />

submarinos sobremarinos;<br />

de dois lados da praia<br />

estendem-se indistintos;<br />

eis os arrabaldes, dispostos<br />

numa constelação casual;<br />

eis o mar debruado<br />

pela renda de sal;<br />

e eis o Recife, sol de todo<br />

o sistema solar da planície:<br />

daqui é uma estrela<br />

ou uma aranha, o Recife,<br />

se estrela, que estende seus dedos,<br />

se aranha,que estende sua teia:<br />

que estende sua cidade<br />

por entre a lama negra.<br />

(Já a distância sobre seus vidros<br />

passou outra mão de verniz:<br />

ainda enxergo o homem<br />

não mais sua cicatriz).<br />

O distanciamento da paisagem observada faz com que o poeta rememore as cores e<br />

as formas de sua terra.No plano metafórico, a imagem da estrela que configura a cidade de<br />

Recife é desdobrada na imagem da aranha, mas ambas estendem suas formas no quadro de<br />

lama negra. No terceiro círculo, se avista uma paisagem mais estruturada:<br />

3. O avião agora mais alto<br />

se eleva ao círculo terceiro,<br />

folha de papel de seda<br />

velando agora o texto.<br />

Uma paisagem mais serena<br />

mais estruturada, se avista:<br />

todas, de um avião,<br />

130


são de mapa ou cubistas.<br />

A paisagem, ainda a mesma,<br />

parece agora noutra língua:<br />

língua mais culta,<br />

sem vozes de cozinha.<br />

Para língua mais diplomática<br />

a paisagem foi traduzida:<br />

onde as casas são brancas<br />

e o branco, fresca tinta;<br />

onde as estradas são geométricas<br />

e a terra não precisa limpa<br />

e é maternal o vulto<br />

obeso das usinas;<br />

onde a água morta do alagado<br />

passa a chamar-se de marema<br />

e nada tem da gosma,<br />

morna e carnal, de lesma.<br />

Se daqui se visse seu homem,<br />

homem mesmo pareceria:<br />

mas ele é o primeiro<br />

que a distância eneblina<br />

para não corromper, decerto,<br />

o texto sempre mais idílico<br />

que o avião dá a ler<br />

de um a outro círculo.<br />

Se antes a paisagem era percebida pelo olhar de seu observador, a partir do terceiro<br />

círculo, passa a ser desenhada pela linguagem que a descreve, confirmando o processo da<br />

visualização-concreção em João Cabral, ou seja, é uma paisagem resultante de um processo<br />

que vai da percepção direta à imaginação do autor.<br />

No momento seguinte, ou seja, a partir do quarto círculo, essa paisagem, mediada<br />

pela linguagem do ser que a contempla, é desfeita enquanto uma imagem documental e se<br />

apresenta como resultante de uma apreensão impressionista. O eu lírico que enquadra a<br />

paisagem vista pela janela do avião passa em revista todos os meios expressivos para dizê-<br />

la:<br />

131


4. Num círculo ainda mais alto<br />

o avião aponta pelo mar.<br />

Cresce a distância com<br />

seguidas capas de ar.<br />

Primeiro, a distância se põe<br />

a fazer mais simples as linhas;<br />

os recifes e a praia<br />

com régua pura risca.<br />

A cidade toda é quadrada<br />

em paginação de jornal,<br />

e os rios, em corretos<br />

meandros de metal.<br />

Depois, a distância suprime<br />

por completo todas as linhas;<br />

restam somente cores<br />

justapostas sem fímbria:<br />

o amarelo da cana verde,<br />

o vermelho do ocre amarelo,<br />

verde do mar azul,<br />

roxo do chão vermelho.<br />

Até que num círculo mais alto<br />

essas mesmas cores reduz:<br />

à sua chama interna,<br />

comum, à sua luz,<br />

que nas cores de Pernambuco<br />

é uma chama lavada e alegre,<br />

tão viva que de longe<br />

sua ponta ainda fere.<br />

No quinto e último círculo, o poeta redefine o seu discurso, apresentando-nos o que<br />

Rubens Edson Alves Pereira chama de “um novo direcionamento poético” (1999, p.39). É o<br />

momento em que a paisagem é totalmente configurada pela memória daquele que a<br />

contempla:<br />

Penetra por fim o avião<br />

pelos círculos derradeiros.<br />

A ponta do diamante<br />

perdeu-se por inteiro.<br />

Até mesmo a luz do diamante<br />

findou cegando-se no longe.<br />

132


Sua ponta já rombuda<br />

tanto chumbo não rompe.<br />

Tanto chumbo como o que cobre<br />

todas as coisas aqui fora.<br />

Já agora Pernambuco<br />

é o que coube a memória.<br />

Já para encontrar Pernambuco<br />

o melhor é fechar os olhos<br />

e buscar na lembrança<br />

o diamante ilusório.<br />

É buscar aquele diamante<br />

em que o vi se cristalizar,<br />

que rompeu a distância<br />

com dureza solar;<br />

refazer aquele diamante<br />

que vi apurar-se cá de cima,<br />

que de lama e de sol<br />

compôs luz incisiva;<br />

desfazer aquele diamante<br />

a partir do que o fez por último,<br />

de fora para dentro,<br />

da casca para o fundo,<br />

até aquilo que, por primeiro<br />

se apagar, ficou mais oculto:<br />

o homem, que é o núcleo<br />

do núcleo de seu núcleo.<br />

(MELO NETO, 1986, p.136-41)<br />

Assim, por meio do distanciamento do objeto observado, o poeta refaz a paisagem<br />

vista inicialmente e, como propõe Juan Gris, consegue ver Pernambuco “Da lente avião”<br />

pois “ é de lá “que podia/ pintar sua natureza:/ com o azul da distância/ que a faz mais<br />

simples e coisa.”.(MELO NETO, 1986, p. 62)<br />

133


4.3. O TRÂNSITO ESTÉTICO-CRÍTICO ENTRE CABRAL E MIRÓ<br />

Além das constantes referências e alusões aos processos construtivos da pintura de<br />

Picasso e de Gris, João Cabral desenvolve um estudo sobre a pintura de Joan Miró. 64 Nesse<br />

estudo, o poeta aponta para a particularidade da pintura de Miró, que estaria no diálogo<br />

crítico constante do pintor com a tradição da pintura renascentista e pós-renascentista. O<br />

que João Cabral pretende mostrar é que em Miró há a valorização do fazer. Seus quadros,<br />

segundo o poeta, são “um pretexto para o fazer. Miró não pinta quadros. Miró pinta”<br />

(MELO NETO, 1998, p.39) Nessa concepção, o ato de criação é mais importante que a<br />

obra criada.<br />

De acordo com os biógrafos do pintor espanhol, este utilizou todos os tipos de<br />

materiais na composição de suas obras. Esse procedimento, marcado sobretudo pela mais<br />

livre imaginação, demandava uma severa disciplina. José Maria Faerna García-Bermejo<br />

(1995) observa que, “para alcançar seu pleno desenvolvimento, o gênio necessita<br />

efetivamente de rigor, método e trabalho duro”. 65<br />

Dessa forma, João Cabral propõe que compromisso de Miró com o “novo” pode<br />

ser revelado, não por seu aprisionamento a pressupostos teóricos, mas por sua reflexão<br />

permanente acerca do processo de criação. Em Miró, mais vale a luta contínua do gesto<br />

criador na procura de transcender os limites temáticos que a cristalização de formas e a<br />

profusão de cores. O pintor é visto como aquele artista que está em “permanente depuração<br />

de seus hábitos visuais, através da luta contra o hábito e habilidade” (MELO NETO, 1998,<br />

64 Conferir Joan Miró. Gravuras originais de Joan Miró. Barcelona: Editions de l’Oc, 1950. Publicado no<br />

Brasil no livro Prosa, 1998, p.17.<br />

65 Comentário na orelha do livro sobre Miró, organizado pelo crítico supracitado.<br />

134


p.46).<br />

Para García-Bermejo o grau de singularidade alcançado pelo pintor espanhol está<br />

no seu “universo temático e simbólico, aliado à sua peculiar caligrafia pictórica” (1995,<br />

p.02). São traços inconfundíveis e pessoais, mas que não conferem ao pintor a<br />

marginalidade que distancia o artista de seu tempo, pelo contrário, a arte de Miró contribuiu<br />

muito para o desenvolvimento da arte do século XX.<br />

João Cabral, no final do estudo sobre a pintura de Miró, lembra que o pintor usa o<br />

adjetivo “vivo”, traço relevante para se entender o projeto de modernidade do catalão e que<br />

também está, constantemente, reiterado no discurso crítico e literário do poeta:<br />

Na conversa de Miró, uma palavra existe: vivo, a meu ver muito instrutiva. Vivo<br />

é o adjetivo que ele emprega, mais do que para julgar, para cortar qualquer<br />

incursão ao plano teórico, onde jamais se sente à vontade. Vivo parece valer ora<br />

como sinônimo de novo, ora de bom. Em todo caso, expressão de qualidade. Essa<br />

palavra a meu ver indica bem o que busca sua sensibilidade e, por ela, sua<br />

pintura. Essa sensação de vivo é o que existe de mais oposto à sensação de<br />

harmônico ou desse equilíbrio, diante do qual nossa sensibilidade não se sente<br />

ferida, mas adormecida.(MELO NETO, 1998, p.47)<br />

O conceito de “vivo”, explicitado na citação, revela a práxis artística de Miró.<br />

Segundo J. Punyet Miró & G. Lolivier-Rahola (1998) o pintor catalão dava vida a todas as<br />

coisas que o rodeavam. As referências ao animismo das coisas aparecem várias vezes nas<br />

entrevistas do pintor: “Para mi, un árbol no es un árbol (...) sino algo humano, alguien vivo.<br />

Un árbol es un personaje, sobre todo nuestros árboles, los algarrobos. Un personaje que<br />

habla, que tiene hojas. Inquietante incluso.” (1998, p.38)<br />

Nesse contexto, entendemos que o pintor pretendia com sua arte colorida e viva<br />

fazer a leitura metamórfica de uma realidade também metamórfica, na qual todos os objetos<br />

estão sujeitos a contínuas mutações. O resultado desse fazer é o esvaziamento da linguagem<br />

135


artística, desencadeando o estranhamento: o objeto artístico fere a acomodação cotidiana.<br />

“Vivo”, assim, pressupõe uma postura reflexiva do artista e a sua luta obscura e<br />

lenta pelo dinamismo na pintura. Esse dinamismo proporcionaria a subversão da linguagem<br />

e a sua constante renovação. Tal procedimento aproxima o pintor de seu crítico-poeta, uma<br />

vez que a composição poética cabralina, em todas as suas fases, está ligada à reflexão<br />

metalingüística. Marly de Oliveira, no prefácio da obra Prosa, ao lembrar o poema que<br />

Cabral dedicou ao pintor 66 , confirma essa aproximação. Ambos estariam preocupados com<br />

um tipo de arte nova, “cuja qualidade seria o ‘vivo’ da coisa, o inquietante território ‘onde a<br />

vida é instável e difícil’”.(MELO NETO, 1998, p.06).<br />

4.3.1. A ESTÉTICA DO “VIVO” EM JOAN MIRÓ<br />

A partir de alguns dados críticos e biográficos de Miró, bem como da observação de<br />

algumas pinturas que apontam para o processo de construção do artista espanhol,<br />

tentaremos aproximar o projeto poético cabralino da proposta do pintor catalão.<br />

Acreditamos que a trilha comum dos dois artistas está evidenciada na idéia de dinamismo<br />

de seus projetos, que se configuram a partir do desdobramento das imagens apresentadas,<br />

da repetição de palavras, da reincidência ao mesmo tema, como às paisagens da infância e<br />

ao motivo feminino, por exemplo. Por outro lado, vale ressaltar que os dois artistas<br />

valorizam a força sensível do olhar como processo inicial de suas criações.<br />

O primeiro aspecto que chama a nossa atenção na obra do pintor em tela é a<br />

reincidência à paisagem de Mont-roig, um povoado de Tarragona, situado a 140 km de<br />

Barcelona. Suas primeiras obras apresentam retratos de personagens de sua convivência,<br />

66 Conferir anexo 04.<br />

136


em como paisagens de sua terra natal, principalmente paisagens montanhosas de Mont-<br />

roig:<br />

Es la tierra, la tierra: algo más fuerte que yo. Las montañas fantásticas<br />

desempeñan un papel em mi vida, y el cielo también. Es el choque de esas formas<br />

en mi espíritu más que la visión. En Mont-roig, es la fuerza lo que me alimenta,<br />

la fuerza (...) Mont-roig es el choque preliminar, primitivo, al que vuelvo<br />

siempre. Fuera, todo se mide en relación com Mont-roig. 67<br />

Mont-roig é lugar onde o pintor encontra a tranqüilidade e a paz necessárias para a<br />

sua concentração, segundo Miró & Lolivier-Rahola (1998). Ainda de acordo com seus<br />

biógrafos, as cores ocres das paisagens de Miró “evocan la sequedad de los estíos catalanes<br />

que en Prades se ve subrayada por la larga calle desierta, enmarcada por casas abrumadas<br />

por el calor de un cielo nuboso pero desesperadamente seco.” (1998, p.22)<br />

Esse vínculo estreito com a terra natal também é percebido em todo o discurso<br />

cabralino. O poeta nordestino dizia que “o homem só é amplamente homem quando é<br />

regional. Se me tirar a estrutura ideológica do pernambucano, eu nada sou.”(MELO NETO,<br />

1958) Por isso, observamos tantas referências em sua poesia a Pernambuco ou ao contexto<br />

nordestino em geral. Do mesmo modo que Miró, João Cabral não perde de vista a região<br />

natal no momento em que organiza a sua temática.<br />

Outro momento em que percebemos a proximidade dos dois artistas é em relação ao<br />

tratamento dado à temática feminina. A mulher é uma imagem permanentemente<br />

desdobrada pelos dois artistas. Em Miró é vista, juntamente com a imagem da estrela e do<br />

pássaro, como os personagens-arquétipos do pintor espanhol.<br />

Um dos primeiros quadros do pintor em que há o motivo feminino é Retrato de<br />

unaniña - 1918-1919 (Fig.03), trabalhado num estilo detalhista que “aplica a la<br />

67 Conferir Conversaciones com Joan Miró, entrevistas com G.Raillard, 1978, publicado em MIRÓ &<br />

LOLIVIER-RAHOLA (1998)<br />

137


epresentación de cada rasgo físico. Cada detalle es filtrado por su mirada las formas se<br />

estilizan y los objetos quedan reducidos a configuraciones lineales.” (MIRÓ &<br />

LOLIVIER-RAHOLA,1998, p.24). Nesse sentido, é uma imagem organizada dentro dos<br />

princípios da arte realista, na sua vertente espanhola mais tradicional. No Retrato de<br />

bailarina espanhola – 1921 (Fig.04), também se percebe a influência da pintura medieval<br />

catalã na repetição dos olhos amendoados e do nariz de perfil nítido. Apesar da constante<br />

experimentação de procedimentos artísticos ser a marca da pintura de Miró, percebemos,<br />

nas duas telas citadas, um pintor ligado às suas origens.<br />

Já La masovera -1922-1923 (Fig.05) é considerada uma obra de transição do pintor<br />

catalão, por combinar detalhes realistas com elementos totalmente alheios a essa natureza.<br />

O quadro mostra uma mulher, cujos pés são exagerados, sugerindo, segundo García-<br />

Bermejo, “a convicção do pintor de que as coisas ou pessoas absorvem força da terra em<br />

que se apóiam, da mesma forma que uma árvore dela se nutre pelas suas raízes.”(GARCÍA-<br />

BERMEJO, 1995, p.02).<br />

Na fase surrealista, percebemos que Miró abandona a exigência da terceira<br />

dimensão e do centro do quadro, lançando-se contra qualquer tipo de hierarquização de<br />

elementos em suas pinturas. Assim, diante da tela, o espectador passa por uma série de<br />

fixações sucessivas, para a apreensão dos vários setores do quadro. Há uma espécie de<br />

desintegração da unidade do quadro. É como se houvesse um quadro dentro de outro<br />

quadro, exigindo uma contemplação descontínua do espectador. Embora o pintor jamais<br />

tenha sido considerado como um surrealista ortodoxo, ele consegue absorver desse<br />

movimento o potencial que legitima o inconsciente e o onírico como material artístico, na<br />

opinião da maioria de seus críticos. E é esse material que vai possibilitar a liberação de seu<br />

próprio estilo pictórico, sintetizando os elementos telúricos e mágicos da sua fase<br />

138


detalhista.<br />

Depois da experiência com o estilo surrealista, Miró retorna à imagem feminina,<br />

quando dá atenção à figura humana, criando uma icnografia própria. Nessa fase, “as obras<br />

são marcadas por um traço livre e seguro onde a cor e a forma constroem o quadro”,<br />

segundo José Maria F. García-Bermejo (1995, p.19)<br />

Com exemplo dessa fase, destacamos a tela Retrato de Mrs. Millis – 1929 (Fig.06),<br />

que foi inspirada no quadro de George Engleheart. A tela representa uma jovem aristocrata,<br />

bem vestida, lendo uma carta de amor. Nessa tela, a mulher é representada num tom<br />

parodístico, que deforma a figura ao reduzir a cabeça e o pescoço da mulher, sob a forma<br />

dominante do chapéu de abas largas. A cabeça feminina minúscula, com poucos pêlos, vai<br />

aparecer também em outros quadros do pintor, juntos aos atributos sexuais, considerados<br />

pelos seus críticos como signos da fecundidade.<br />

Já no quadro Caracol, mulher, flor e estrela – 1934 (Fig. 07), o pintor volta a alargar<br />

as extremidades do corpo. Nesse quadro de 34 há o anúncio da “liberação do espaço<br />

perseguido pelo artista ao longo de sua carreira, uma vez que a mulher e os demais<br />

elementos aparecem suspensos, sem horizonte.” (GARCÍA-BERMEJO, 1995, p.26).<br />

Mulher e cachorro - de 1936 68 é a tela em que o poeta relaciona a figura feminina à<br />

personagem de Guernica, de Picasso. As duas telas expressam os sofrimentos das vítimas<br />

ante o horror da guerra, de acordo com os críticos dos dois pintores.<br />

Em 1938, Miró pinta uma série de quadros intitulada Mujer sentada I y II , na qual<br />

apresenta um corpo feminino que sofre transformações inesperadas. No quadro Mulheres<br />

rodeadas pelo vôo de um pássaro - de 1941 (Fig.08), da série Constelaciones, as mulheres<br />

são envolvidas pelas sucessivas posições do pássaro, que parecem invadir as<br />

68 Infelizmente não conseguimos uma cópia desse quadro na bibliografia consultada sobre o pintor.<br />

139


“extremidades do quadro, criando uma trama expansiva que virtualmente ultrapassa os<br />

limites da pintura.”(GARCÍA-BERMEJO, 1995, p.29).<br />

Na tela Mulher e pássaros ao amanhecer – 1946 (Fig. 09), a mulher, além de reunir<br />

atributos sexuais de ambos os gêneros, é apresentada através de linhas finas, terminadas em<br />

um ponto, junto ao sol, aos pássaros e às estrelas, retomando o universo telúrico dos<br />

primeiros tempos do pintor, numa dimensão cósmica.<br />

O mesmo tema é retomado em 1968, quando Miró pinta Mulher e pássaros na<br />

noite(Fig. 10) num momento em que o pintor revisa todo o seu processo de aprendizagem<br />

com pinturas. Nessas últimas telas “o gosto pelo traço manifesta-se em grossas linhas<br />

negras que se destacam dos fundos de impressão homogênea ou sobre superfícies<br />

salpicadas de pintura” (GARCÍA-BERMEJO,1995, p.48).<br />

Também em 1972, há a mesma temática em Mulher e pássaro, diante do sol (Fig.<br />

11) e o mesmo estilo das linhas grossas e negras, sobre as superfícies pintadas. Nessas telas,<br />

a linha termina em um parêntese, símbolo considerado por seus críticos como o de uma<br />

barreira que impede a fuga da energia do pintor.<br />

A nosso ver, a permanente pesquisa de meios expressivos, aliada à reincidência de<br />

temas e o deslumbramento pela cor, marca a arte do pintor espanhol, aproximando-o do<br />

poeta brasileiro, como tentaremos mostrar a seguir.<br />

4.3.2. O MOVIMENTO NA POÉTICA <strong>DE</strong> JOÃO CABRAL<br />

Ao destacarmos o adjetivo “vivo” como uma das marcas das propostas artísticas de<br />

Miró e de João Cabral, tentamos sugerir que as estéticas de ambos são caracterizadas por<br />

uma espécie de dinamismo ou movimento revelador da preocupação desses artistas com o<br />

140


lado vivo de suas imagens. Essa preocupação é perceptível principalmente no momento em<br />

que os dois artistas tematizam o processo da criação. Vale lembrar que tematizar o<br />

processo da criação vai além do uso da metalinguagem. Significa também produzir uma<br />

arte que está em constante processo de renovação de seus meios expressivos.<br />

Muitos leitores críticos de João Cabral observaram que o projeto estético do poeta,<br />

em relação ao panorama do Modernismo brasileiro, instiga um esvaziamento semântico,<br />

propondo a palavra poética como resultante de um processo criador que se debruça sobre si<br />

mesmo 69 . Nesse sentido, João Cabral tece o desligamento da sua arte da tradição, por viver<br />

numa sociedade tecnológica e capitalista, e oferece a sua imagem como a do poeta que é<br />

destituído da aura de gênio.<br />

Assim, a diferenciação ou inovação da poética cabralina estaria não só no seu<br />

distanciamento da tradição, como na sua ruptura, pela dessacralização do poeta e da criação<br />

poética, quando há a negação do derramamento emocional, que é substituído pela ação,<br />

processo ilimitado pela busca da palavra.<br />

Já observamos que João Cabral não propõe a arte como a imitação da realidade e<br />

nem pretende apresentá-la como denúncia de uma alienação coletiva, manipulada e de<br />

fundo ideológico. Pelo contrário, a sua poética é antes um instrumento cortante, abrindo<br />

fendas para denunciar a cristalização das idéias, para corroer um real socialmente<br />

inculcado. Através do despojamento do significado, abre espaços para que a significação –<br />

salpicada de ideologias – seja racionalmente corroída. Entre o sensível (real) e o vazio<br />

(surreal), entre o lírico e o social, João Cabral abre espaços para que a palavra se<br />

movimente, conduzindo o leitor para o processo da feitura do texto, em sua material<br />

concretude, decodificando o real social pelo eco, pelo secagem do lírico, como propõe<br />

69 Essa é a opinião de Reinaldo Martiniano Marques (1983).<br />

141


Theodor W. Adorno (1980) .<br />

Daí, os traços da modernidade nessa poética são sólidos, racionais. É a palavra<br />

concreta, centrada em imagens duras e cortantes, que deslizam, universalizando-se ao<br />

suscitar a constante reflexão daquele que se propõe a adentrar nos poemas. Assim, a análise<br />

das imagens em João Cabral deixa entrever a dinâmica do ato criador, calcada na tensão<br />

entre o distanciamento e a aproximação do real.<br />

É nesse viés que consideramos o discurso de Miró, quando pela fragmentação, pela<br />

geometria e pela multiplicidade de perspectivas de sua caligrafia pictórica, propõe a fusão<br />

do lógico e ilógico, do racional e do onírico. Exemplos dessa dinâmica estão nos quadros<br />

comentados anteriormente.<br />

Em relação a João Cabral, no poema “A bailarina”, do livro O engenheiro (1942-<br />

1945), percebemos o cruzamento de imagens, por oferecer a temática da mulher aliada à<br />

imagem do pássaro:<br />

A bailarina<br />

A bailarina feita<br />

de borracha e pássaro<br />

dança no pavimento<br />

anterior do sonho.<br />

A três horas de sono,<br />

mais além dos sonhos,<br />

nas secretas câmaras<br />

que a morte revela.<br />

Entre monstros feitos<br />

a tinta de escrever,<br />

a bailarina feita<br />

de borracha e pássaro.<br />

Da diária e lenta<br />

borracha que mastigo.<br />

Do inseto ou pássaro<br />

que não sei caçar.<br />

(MELO NETO, 1986, p.342)<br />

142


Nesse poema, a mulher “feita de borracha e pássaro”, é apresentada em movimento,<br />

dançando “no pavimento/ anterior do sonho”.(MELO NETO, 1986, p.342). A despeito de<br />

sua constituição, ou seja, feita de elementos cotidianos, concretos e, ao mesmo tempo,<br />

sensível, ela se movimenta. É um ser vivo que se apresenta diante de nossos olhos, mesmo<br />

que as circunstâncias da sua constituição sejam desfavoráveis a essa apresentação.<br />

Tomado na perspectiva metalingüistica do fazer poético, o poeta revitaliza uma das<br />

imagens femininas mais prosaicas, a da bailarina, figura marcada tradicionalmente pela<br />

leveza e abstração. Como já assinalamos anteriormente, a mulher que dança aparece com<br />

freqüência na poética cabralina, principalmente no momento em que João Cabral passa a<br />

conviver com os espanhóis. No entanto, essa imagem da bailarina é substituída pelas<br />

imagens das bailadoras do flamenco, por adquirir densidade concreta no contexto poético.<br />

Os poemas que abordam essa temática se organizam a partir de processos dinâmicos,<br />

os quais impõem um constante exercício à poética cabralina. A concretude das imagens<br />

limitam o signo ao mesmo tempo que invocam, na apreensão do leitor/espectador, um jogo<br />

de aproximação e distanciamento da realidade. O nexo que permite a correlação imagética<br />

não é imediato ou fortuito: obedece à dinâmica do poema e brota de sua interioridade,<br />

reiterando a tensão – mola mestra do processo criativo – segundo a ótica e a semiótica de<br />

João Cabral.<br />

Logo, à medida que o ilusionismo pictórico da visualidade se desencadeia no texto,<br />

os recursos da poética cabralina – colagem, montagem e desmontagem – se revigoram e<br />

objetivam o estudo do fazer poético. Todos esses aspectos serão comentados e ilustrados,<br />

na seqüência, momento em que tratamos da dança e da música na poética de João Cabral.<br />

143


CAPÍTULO 5<br />

MÚSICA , DANÇA , ARQUITETURA E LITERATURA EM<br />

DIÁLOGO<br />

No campo da estética comparada, literatura e música costumam ser aproximadas por<br />

serem artes que se desenvolvem no tempo; enquanto as artes plásticas, isto é, arquitetura,<br />

escultura e pintura, constituem-se e apresentam-se no espaço. As primeiras são associadas<br />

ao sentido da audição, as artes plásticas são apreendidas pela visão.<br />

Na concepção de Georg W.F. Hegel (1999, p. 113), pintura, música e literatura<br />

aproximam-se por serem artes românticas, cujos materiais sensíveis expressam a idéia com<br />

o mais alto grau de perfeição. Etienne Souriau (1969), por sua vez, divide as artes em dois<br />

grupos, considerando a música como uma arte de primeiro grau, em que todo o conjunto<br />

dos dados que constituem a obra partilha o modo de existência dos materiais sensíveis a<br />

partir dos quais ela se constitui; e literatura como sendo um das artes do segundo grau,<br />

imitativa ou representativa, em que em que há dependência entre os dados imediatos da<br />

obra com os elementos suscitados e apresentados por seu discurso, os quais existem de<br />

modo distinto da obra, tal como a mesma se nos apresenta aos sentidos. As artes do<br />

primeiro grupo apresentam a forma primária, apreendida pela percepção; as últimas, além<br />

da primária, apresentam a forma secundária, a qual é percebida pela imaginação.<br />

Diante do exposto, percebemos que as teorias que discutem as correspondências<br />

entre literatura e música são múltiplas e complexas. No entanto, segundo Antonio Manoel<br />

144


(1985) 70 , apesar das especificidades de cada uma dessas linguagens, essas correspondências<br />

podem derivar:<br />

da identidade genética de algumas formas convencionais, que às vezes preservam<br />

traços de usa origem mesmo depois de sua diferenciação no decorrer histórico.<br />

Há aquelas que se inscrevem por meio da mútua influência produzida pelo<br />

convívio de músicos e poetas em diferentes circunstâncias. Acrescentamos as<br />

intenções e os programas, os alvos expressionais e criadores de indivíduos,<br />

grupos e períodos, que induzem, promovem e realmente instauram a troca de<br />

objetivos: poesia como música, música como poesia. (DAGHLIAN, 1985, p.09)<br />

Manoel lembra ainda que ambas as artes têm como base material a sonoridade.Em<br />

virtude disso, os estudiosos da literatura têm se apropriado de termos pertencentes à<br />

terminologia a música, como por exemplo, “dissonância”, “melodia”, “harmonia”,<br />

“polifonia”, dentre outros. Do mesmo modo, os músicos tomam de empréstimo termos<br />

relativos à literatura, tais como: “elegia”, “idílio”, “cesura” etc. O autor supracitado chama<br />

a atenção também para aqueles termos que podem apresentar divergências semânticas,<br />

como “cadência”, “período”, “tema”, “frase”, “motivo”, “entoação”, “timbre”, “metro” e<br />

“ritmo”, os quais referem a um elemento essencial na música e na poesia.<br />

Além desses aspectos, o crítico mostra que embora a tradição dessas<br />

correspondências, bem como a idealização de uma das duas artes como projeto estético do<br />

pólo dessa relação (música como poesia/ poesia como música) seja comprovada no plano<br />

mítico (Apolo, Hermes, Orfeu, Anfião) e no plano histórico-literário (poesia trovadoresca,<br />

por exemplo), somente a partir da segunda metade do século XIX essas correspondências<br />

adquiriram o foro da convenção.<br />

70 Texto de apresentação do livro Poesia e Música, organizado por Carlos Daghlian (1985).<br />

145


Nesse contexto, acreditamos que as formulações de João Cabral em relação à música<br />

apresentam alguns traços originais que devem ser apontados. O primeiro deles é que o<br />

poeta não se considera um sujeito antimusical, mas antimelódico:<br />

Não sou musical para o ouvido por deficiência, mas me considero musical no<br />

sentido de que música não é só melodia embalante, mas construção de sons no<br />

tempo. Organização de elementos (na poesia, imagísticos e conceituais), uma<br />

arquitetura que se desenvolve numa determinada extensão de tempo.Você usou<br />

bem o verbo “desidratar”. Ao procurar “desidratar” minha expressão, eliminei<br />

dela todos os líquidos fluviais inúteis, isto é, tudo o que se introduz gratuitamente<br />

no verso para se atingir o que é mais fácil e superficial da música, a<br />

melodia.(MELO NETO, 1976)<br />

Além de negar um tipo de música marcada pela melodia, João Cabral afirma que o<br />

seu interesse é pela música a contrapelo, “não o entorpecente, mas o estimulante. Ora, o<br />

flamenco me dá isso. É como a luz que arde nos olhos de quem estava dormindo no<br />

escuro.”(Ibidem) Desse modo, João Cabral destaca também a possibilidade visual da<br />

música.<br />

As raras referências críticas que tentam incorporar a música e a dança flamencas à<br />

poética cabralina, porém, evidenciam apenas o aspecto sonoro do canto espanhol, como<br />

sendo um recurso para acentuar o caráter metalingüístico do texto, ou a temática da<br />

agudeza do discurso cabralino comparado ao falar a palo seco, contundente de Graciliano<br />

Ramos. Nesse sentido, relacionam tal aproveitamento interdiscursivo ao “fazer” do poeta e<br />

ao efeito eletrizante que esse recurso provoca no leitor. O lado visual da música, que na<br />

maioria das vezes está articulada à dança, não é considerado nesses casos.<br />

A nosso ver, em João Cabral, a música e a dança flamenca recuperam o sentido de<br />

uma arte “viva”. O conceito de “vivo” na poética do autor já foi discutido como um tipo de<br />

146


ecurso que na visão do poeta indica bem o que busca a sensibilidade de Miró: “Essa<br />

sensação de vivo é o que existe de mais oposto à sensação de harmônico ou desse<br />

equilíbrio, diante do qual nossa sensibilidade não se sente ferida, mas adormecida.”(MELO<br />

NETO, 1998, p.47) Tendo em vista essas observações e o interesse de João Cabral pelo<br />

cante flamenco, tentaremos estabelecer algumas relações entre João Cabral e a poesia de<br />

Federico García Lorca.<br />

5.1.O CANTE JONDO E SEU APROVEITAMENTO NA POÉTICA CABRALINA<br />

Federico García Lorca (189-1936), poeta espanhol apaixonado pelas tradições<br />

culturais de seu povo publica, em 1921, o Poema del cante jondo, livro que representa um<br />

novo rumo em sua obra, segundo Ian Gibson (1989). As composições de Lorca nessa obra,<br />

de acordo com Gibson, tentam imitar as letras das cantigas como fizeram tantos poetas no<br />

século XIX e mesmo, em boa parte , no século XX:<br />

A Guitarra<br />

Começa o pranto<br />

da guitarra.<br />

Quebram-se os copos<br />

da madrugada.<br />

Começa o pranto<br />

da guitarra.<br />

É inútil calá-la.<br />

É impossível calá-la.<br />

Chora monótona<br />

como chora a água,<br />

como chora o vento<br />

sobre a nevada.<br />

É impossível<br />

calá-la.<br />

Chora por coisas<br />

distantes.<br />

Areia do Sul quente<br />

147


que pede camélias brancas.<br />

Chora flecha sem alvo,<br />

a tarde sem manhã<br />

e o primeiro pássaro morto<br />

sobre o ramo.<br />

Oh! Guitarra!<br />

Coração mal ferido<br />

por cinco espadas.<br />

(LORCA, 1999, p.183-4)<br />

Apesar de não usar a primeira pessoa, como é a regra no cante jondo, o poeta se<br />

propõe a criar na mente do leitor a “sensação de ‘enxergar’ as fontes primitivas (as<br />

‘remotas terras da tristeza’) de que nasce a angústia do cante jondo, e acompanhá-la com a<br />

imaginação desde a primeira nota até que a voz do cantaor se extinga.”(GIBSON,1989,<br />

p.140). Nesse sentido, nos textos de Lorca, há o retorno às raízes míticas do mundo cigano:<br />

Poema de Soleá 71<br />

A Jorge Zalamea<br />

Terra seca,<br />

terra quieta<br />

de noites<br />

imensas.<br />

(Vento olival,<br />

vento na serra.)<br />

Terra<br />

velha<br />

do candil<br />

e da pena.<br />

Terra<br />

das fundas cisternas,<br />

Terra<br />

da morte sem olhos<br />

e das flechas.<br />

(Vento pelos caminhos.<br />

Brisa nas alamedas.)<br />

(LORCA, 1999, p.189)<br />

71 De acordo com os editores da obra de Lorca, “soleá” ou “soledad” é um dos tipos de canção da Andaluzia.<br />

148


Observando a linguagem do poema, percebemos que García Lorca herda toda a<br />

espontaneidade e o vigor de um falar que nasce de sua terra.Lembramos que, além de poeta,<br />

Lorca é músico. Sobre a música, o poeta escreve alguns artigos, dentre eles, “Regras em<br />

música”, no qual diz que “o verdadeiro artista obra por intuição, não por regras; no que<br />

tange à música, o que o compositor precisa, depois de aprender os rudimentos, é de uma<br />

imaginação original e um coração apaixonado.” (GIBSON, 1989, p.88)<br />

De certo modo, a espontaneidade, a valorização da imaginação e de estados<br />

emocionais que caracterizam a poesia do espanhol surge em decorrência do posicionamento<br />

de Lorca contra a poesia fria e descritiva do Ultraísmo. Essa tendência é ressaltada pelo<br />

poeta em sua correspondência com um jovem poeta andaluz, Adriano del Valle y Rossi, em<br />

1918:<br />

Sou um grande romântico, e este é o meu maior argumento. Num século de<br />

zepelins e mortes sem sentido, choro ao meu piano, sonhando com a bruma<br />

haendeliana. Escrevo versos muito meus, louvando igualmente Cristo e Buda,<br />

Maomé e Pã. Por lira tenho o meu piano e, em vez de tinta, suor de desejo, o<br />

pólen amarelo do meu lírio interior e meu grande amor. Temos que matar esses<br />

‘burgueses frajolas’ e apagar o riso das bocas dos que amam a Harmonia. Temos<br />

que amar a lua no lago de nossas almas e moldar nossas meditações religiosas no<br />

magnífico abismo de poentes chamejantes...porque a cor é a música dos<br />

olhos...Aqui vou pousar minha pena para subir à misericordiosa nau do Sono.<br />

Agora sabes como sou, pelo menos em parte de minha vida...”(LORCA, apud<br />

GIBSON, 1989, p.101)<br />

Por outro lado, não podemos nos esquecer de que, desde criança, o poeta espanhol<br />

convive com várias famílias de ciganos em Fuente Vaqueros, sua terra natal, onde os<br />

ciganos constituem dez por cento da população. No tempo da adolescência, Lorca freqüenta<br />

muitas vezes as grutas do Sacromonte, onde vivem dançarinos e cantores ciganos. Mais<br />

tarde, em 1922, Lorca realiza uma pesquisa sobre o cante jondo, que é apresentada sob a<br />

forma de conferência aos intelectuais de seu tempo.<br />

149


O poeta participa também de reuniões onde há contato com os cantores do flamenco.<br />

Em uma dessas ocasiões, uma festa organizada em 1927 para jovens literatos espanhóis em<br />

Madri, da qual também participa Damaso Alonso e Rafael Alberti, Manuel Torre, um<br />

grande cantaor cigano, tenta explicar aos presentes os mistérios do cante jondo – o genuíno<br />

flamenco - através da enunciação do seguinte pensamento: “o que temos de buscar<br />

constantemente, até encontrar, é o tronco negro do Faraó; isto é, um meio de ligar-se à<br />

herança que, na tradição cigana, remonta ao tempo em que as tribos perambulavam no<br />

Egito.” (GIBSON, 1989, p.236)<br />

Embora não tenha tido a mesma experiência de García Lorca, a referência à música<br />

flamenca e ao universo cigano também é constante na poética cabralina, desde Paisagens<br />

com figuras (1954-1955), primeiro livro que articula o Nordeste ao contexto espanhol:<br />

Diálogo<br />

A – O canto da Andaluzia<br />

é agudo com seta<br />

no instante de disparar<br />

ainda mais aguda e reta.<br />

B – Mas quem atira essa seta<br />

de tão penetrante fio<br />

pensa que a faca melhor<br />

é a que recorta o vazio.<br />

A J. P. Moreira da Fonseca<br />

A – É um canto em que se sente<br />

o que uma espada no frio,<br />

desembainhada, sem mesmo<br />

ter ferrugem como abrigo.<br />

B – Mas é espada que não corta<br />

e que somente se afia,<br />

que deserta se incendeia<br />

em chama que arde sozinha.<br />

A primeira parte do poema de João Cabral, organizada em conjuntos de estrofes que<br />

se contrapõem, parece propor um diálogo direto com as características do cante jondo<br />

150


egistradas na poesia de Lorca. O poeta pernambucano recupera as mesmas imagens<br />

cortantes da seta e da espada de Lorca, só que destituídas de seu tom lacrimoso, mas<br />

tratadas no seu contexto de agudeza “reta” e de “penetrante fio”.<br />

Na segunda parte, o poeta pernambucano tenta interpretar a música andaluza na sua<br />

relação com o cotidiano do povo andaluz:<br />

A – Tem alfinetes nas veias<br />

que nas veias se atropelam,<br />

tem mantas de carne viva<br />

cobrindo sua alma inteira.<br />

B – Mas o timbre desse canto<br />

que acende na própria alma<br />

o cantor da Andaluzia<br />

procura-o no puro nada,<br />

como à procura do nada<br />

é a luta também vazia<br />

entre toureiro e o touro,<br />

vazia, embora precisa,<br />

em que se busca afiar<br />

em terrível parceria<br />

no fio agudo de facas<br />

o fio frágil da vida.<br />

A – Até o dia em que essa lâmina<br />

abandone seu deserto,<br />

encontre o avesso do nada,<br />

tenha enfim seu objeto,<br />

Até o dia em que essa lâmina,<br />

essa agudeza desperta,<br />

ache, no avesso do nada,<br />

o uso que as facas completa.<br />

(MELO NETO, 1986, p.264-5)<br />

Nas últimas estrofes do texto, João Cabral dá sentido ao cantar espanhol no que<br />

concerne ao seu poder de sugestão do canto que envolve tanto o cantor como os seus<br />

ouvintes. Nesse contexto, o poeta brasileiro remete-nos à figura do duende de Lorca.<br />

151


Para Lorca, duende (que na linguagem comum designa um espírito sobrenatural<br />

do tipo poltergeist) passou a denotar uma forma de inspiração dionisíaca sempre<br />

relacionada à angústia, ao mistério e à morte, e que anima particularmente o<br />

artista que se apresenta em público – o músico, o dançarino ou o poeta que recita<br />

sua criação para uma platéia ao vivo, como tantas vezes ele mesmo fez. Se bem<br />

que o duende possa se manifestar em qualquer lugar, Lorca estava convencido de<br />

que a Espanha é o seu país de preferência – o país onde a fiesta nacional (que não<br />

se deve confundir com esporte) é o rito sacrifical da tourada. Sem duende,<br />

explicava Lorca, a arte do cantaor, ainda que tecnicamente perfeita, não terá<br />

pungência, não causará arrepios na espinha de quem o escuta. (GIBSON, 1989,<br />

p.143)<br />

Portanto, é esse poder de duende que João Cabral destaca em seus depoimentos e ao<br />

tematizar o cante jondo em vários momentos de sua poesia:<br />

El cante hondo<br />

This is the way the world ends<br />

Not with a bang but a whimper<br />

O cante hondo às mais das vezes<br />

desconhece essa distinção:<br />

o seu lamento mais gemido<br />

acaba em explosão.<br />

Tão retesada é sua tensão,<br />

tão carne viva seu estoque,<br />

que ao desembainhar-se em canto<br />

rompe a bainha e explode.<br />

(MELO NETO,1997, p. 47)<br />

Além de se referir à música flamenca como um canto explosivo, antimelódico por<br />

excelência, o poeta compara-a ao frevo de sua terra, observando que “são músicas que me<br />

excitam e despertam.”(MELO NETO, 1991)<br />

Ainda el cante flamenco<br />

É música desejada<br />

como o que não adormece:<br />

o mais contrário do embalo<br />

e do conto emoliente.<br />

Na Andaluzia esse canto<br />

152


insonífero se atende:<br />

a contrapelo, esfolado,<br />

arrepiando a alma e o dente.<br />

(MELO NETO,1997, p. 63)<br />

É importante observar que o poeta pernambucano, nos textos citados, também<br />

consegue identificar, no cante jondo, a voz do povo espanhol, que expressa na música os<br />

seus sentimentos mais profundos. Ao estudar as origens e a evolução desse cante jondo,<br />

García Lorca estava convencido de que foram os ciganos da Andaluzia que deram ao cante<br />

a sua forma definitiva, apesar das influências mais remotas que entram em sua formação<br />

como a adoção pela Igreja do cantochão litúrgico bizantino ou a invasão moura de 711 d. C.<br />

O poeta espanhol também investigou as quatro formas do cante jondo, a saber, siguiriya,<br />

soleá, saeta e petenera. Na seqüência deste estudo, mostraremos como João Cabral<br />

aproveita a primeira forma do cante ao tratar da dança de uma bailadora do flamenco.<br />

Antes de João Cabral, Lorca corporificou numa mulher a cantiga evocada. Segundo<br />

Gibson, a mulher em Lorca representa a angústia expressa nessas melodias primitivas. Essa<br />

angústia resulta da morte, do amor infeliz ou do desespero, temas que o poeta espanhol<br />

aproveitou em seus textos. As melodias dos ciganos, por outro lado, revelam, segundo<br />

Gibson,<br />

os arcanos da alma andaluza (donde o nome de “cante fundo”). E o estudo do<br />

cante jondo levou Lorca a concluir que os andaluzes são “um povo triste, um<br />

povo estático”, não os cantores folgazões e extrovertidos que em geral os<br />

estrangeiros imaginam.Não só a música do cante jondo como as letras fizeramlhe<br />

ver isso.(GIBSON,1989, p.142)<br />

Além desses aspectos, Lorca identificou nas letras do cante versos marcados pela<br />

concisão, por gradações sutis de angústia, por imagens expressivas e pela obsessão da<br />

153


morte. Muitos desses elementos são atualizados pela poética cabralina. Vale ressaltar ainda<br />

que para João Cabral, García Lorca é comparado a um diamante que se pode “pegar por<br />

vários lados. Lorca, para mim, é um poeta genial a partir do Romancero gitano e do Cante<br />

jondo. É que, mesmo amável – não sei – , me fascina, tem qualquer coisa.”(MELO NETO,<br />

1966)<br />

Nos versos incisivos de João Cabral, recuperamos a concisão, a angústia e as<br />

expressivas imagens a que Lorca se refere. A despeito dessas aproximações entre Federico<br />

García Lorca e João Cabral, quanto ao aproveitamento do cante jondo em seus textos,<br />

lembramos que a linguagem de Lorca é marcada por um processo densamente metafórico,<br />

revelando uma habilidade inata de criar imagens, como ressaltam seus biógrafos.<br />

A longa convivência do poeta espanhol com os ciganos faculta a escrita do<br />

Romancero Gitano (1924-1927) que, segundo Gibson, também nasceu devido em parte ao<br />

“contato de Lorca com esse povo exótico de procedência hindu, que, apesar de suas origens<br />

distantes, não raro parece mais andaluz que os próprios andaluzes.”(GIBSON, 1989, p.51)<br />

José Carlos Lisboa (1983) recorta uma fala de Lorca, na qual o poeta observa que<br />

Romancero Gitano é a sua obra mais popular, aquela que tem mais unidade, onde a sua<br />

“feição poética aparece, pela primeira vez, com personalidade própria, virgem de contato<br />

com outro poeta e definitivamente desenhada.” (LORCA, apud LISBOA,1983,p.13) O<br />

poeta espanhol explica também que, embora seja chamado gitano, o texto é um poema da<br />

Andaluzia. O termo gitano é escolhido por ser o mais elevado, o mais profundo, o mais<br />

aristocrático de seu país, e também por ser o mais representativo do seu modo de poetar e o<br />

que guarda mais afinidades com “a chispa, o sangue e o alfabeto da verdade andaluza e<br />

universal”.(Ibidem). Ainda de acordo com García Lorca, o Romance Gitano<br />

154


é um retábulo da Andaluzia com gitanos, cavalos, arcanjos, planetas, com a sua<br />

brisa judia, com sua aragem romana, com rios com crimes, com a nota vulgar do<br />

contrabandista e a nota celeste dos meninos nus de Córdoba, que zombavam de<br />

São Rafael (...) [Livro] em que as figuras servem a fundos milenares e em que<br />

não há senão uma personagem (...) a Pena que se filtra na medula dos ossos e na<br />

seiva das árvores, e que não tem nada a ver com a melancolia, a nostalgia ou<br />

qualquer aflição ou doença da lama; que é um sentimento mais celeste que<br />

terrestre; pena andaluza que é uma luta amorosa com o mistério que o rodeia e<br />

não pode compreender.(LORCA, apud LISBOA, 1983, p.13)<br />

Assim, o poeta espanhol tenta caracterizar os dezoito romances de seu livro. Além<br />

desses aspectos, García Lorca faz um comentário sobre o aproveitamento do mito e do<br />

realismo espanhol em seus textos:<br />

Desde os primeiros versos se observa que o mito está mesclado com o elemento<br />

que chamaríamos de realista, embora não o seja, visto que ele, ao contato com o<br />

plano mágico, se torna ainda mais misterioso e indecifrável, como a própria<br />

Alma da Andaluzia, luta e drama do veneno oriental do andaluz, com a geometria<br />

e o equilíbrio impostos pelo romântico, pelo bético (sic).(LORCA, apud<br />

LISBOA, 1983, p.14)<br />

Todas essas observações de Lorca são importantes, na medida em que esclarecem o<br />

modo como o poeta espanhol trata de temas ciganos em suas obras. Por outro lado,<br />

ajudam-nos a entender os contrastes que aparecem em seus poemas, como no texto “La<br />

Monja Gitana”:<br />

A Monja Gitana<br />

Silêncio de cal e mirto<br />

Malvas entre as ervas finas.<br />

A monja borda alelis<br />

sobre um pano palhiço.<br />

Voam na aranha gris<br />

sete pássaros do prisma.<br />

A igreja grunhe ao longe<br />

como um urso de barriga para cima.<br />

155


Quão bem borda!Com que graça!<br />

Sobre o pano palhiço,<br />

ela quisera bordar<br />

flores de sua fantasia.<br />

Que girassol! Que magnólia<br />

de lantejoulas e cintas!<br />

Que açafrões e que luas,<br />

no mantel da missa!<br />

Cinco toranjas se adoçam<br />

na próxima cozinha.<br />

As cinco chagas de Cristo<br />

cortadas em Almeria.<br />

Pelos olhos da monja<br />

galopam dois cavaleiros.<br />

Um rumos último e surdo<br />

lhe desprega a camisa,<br />

e ao olhar nuvens e montes<br />

nas hirtas lonjuras<br />

parte-se o seu coração<br />

de açúcar e erva-luísa.<br />

Oh! Que planura empinada<br />

com vinte sós em cima.<br />

Que rios postos de pé<br />

vislumbra sua fantasia!<br />

Mas segue com suas flores,<br />

enquanto de pé, na brisa,<br />

A luz joga xadrez<br />

no alto da gelosia.<br />

(LORCA,1999, p.365)<br />

Em relação a esse romance, Lisboa observa que há a quebra da tradição do octossílabo,<br />

já que o romance apresenta trinta e seis versos sem intervalos gráficos. Os versos pares são<br />

arrematados pela assonância do í-a, diferindo-se dos demais poemas do livro. Além desses<br />

aspectos estruturais, o texto é construído na base de uma antinomia, anunciada no título do<br />

romance. A palavra “monja” sugere um quadro de regra e disciplina, ao passo que a<br />

qualificação “gitana”, segundo o crítico, remete-nos à idéia de<br />

raça inquieta e andarilha, marcada pela exuberante fantasia tanto exteriormente<br />

acentuada nas roupagens policrômicas e no espetacular excesso de adornos<br />

pessoais como nos caprichos dos ofícios preferidos pelos ciganos e nas suas<br />

ousadas criações artísticas (nos metais, nas músicas, nas danças) – que<br />

correspondem s impulsos interiores instáveis, quase anárquicos do<br />

sangue.(LISBOA, 1983, p.73)<br />

156


Por outro lado, o texto explora uma personagem humana, a monja, e uma<br />

personagem não-humana, a luz, que serve de contraponto ao narrado. Ainda de acordo com<br />

a leitura de Lisboa, no ponto de vista da linguagem, além da referência auditiva proposta<br />

desde o início do poema e de um apelo olfativo no cheiro das toranjas, há uma rica aptidão<br />

pictórica, explicitada em menções e expressões visuais.<br />

Apesar de o poema aparentemente conduzir o leitor à imagem de uma pintura<br />

estática, devido ao aproveitamento de recursos sensoriais, o modo como o poeta trata esse<br />

universo policrômico suscita ação e movimento, que se registram nas formas verbais do<br />

poema, remetendo-nos ao mesmo tempo ao plano do concreto e o da fantasia, segundo<br />

Lisboa. Desse modo, resguardadas as diferenças que existem entre a proposta estética de<br />

Lorca e de João Cabral, podemos estabelecer algumas aproximações entre os dois autores<br />

também no que se refere ao aproveitamento da temática feminina pelo poeta brasileiro,<br />

sobretudo em sua relação com a dança espanhola.<br />

5.2. A DANÇA FLAMENCA NA POÉTICA CABRALINA 72<br />

Segundo Virgil C. Aldrich (1969), a dança se constitui como uma arte impura,<br />

híbrida, por misturar escultura, música e literatura. Essa impureza da dança pode ser<br />

72 Nesta parte da tese, aprofundamos algumas questões que foram apresentadas como parte de nossa<br />

Dissertação de Mestrado, intitulada “Motivo feminino e construção poética em João Cabral de Melo Neto”,<br />

sob orientação da professora doutora Melânia Silva de Aguiar, pela Pontifícia Universidade Católica de Minas<br />

Gerais, em 2001. Posteriormente o texto da Dissertação foi publicado resumidamente no livro Tradição e<br />

contemporaneidade: língua e literatura, coletânea de dissertações, organizada pelas professoras Maria do<br />

Carmo Lanna Figueiredo e Maria Nazareth Soares Fonseca e publicada pela PUC Minas, em 2003, p.77.<br />

157


confirmada no poema “Estudos para uma bailadora andaluza”, de João Cabral, por<br />

apresentar o corpo-em-ação da bailadora flamenca, que retrata expressivamente algo, como<br />

uma estátua o faz com sua forma; ao mesmo tempo em que o ritmo do “taconear” absorve<br />

as formas visíveis, dirigindo o conteúdo da mensagem ao ouvido do espectador. Assim<br />

reunidos todos os elementos da dança, surge um conteúdo literário: a história do<br />

sofrimento, da dor e das esperanças do povo da Andaluzia. Por outro lado, observamos a<br />

possibilidade de ler na dança flamenca toda a sensualidade e o erotismo da bailadora<br />

espanhola.<br />

A imagem da bailadora andaluza, entretanto, é recuperada em vários outros textos de<br />

João Cabral. Os procedimentos composicionais da recorrência à palavras e a reincidência<br />

de imagens da bailadora marcam a estética de João Cabral, enquanto possibilidade de<br />

impedir o congelamento de suas imagens como se fosse um objeto acabado. É uma espécie<br />

de dinamismo que desperta na consciência do leitor atitude correspondentemente ativa. Na<br />

seqüência de nosso estudo, mostraremos o movimento do intercurso da dança e da música<br />

flamenca na poesia cabralina.<br />

O poema que melhor retrata a poética do vivo e ao mesmo tempo constitui-se como<br />

referência direta à dança e à música flamenca é aquele que, segundo a tradição crítica<br />

“oficial” introduz o lirismo feminino nessa poesia: “Estudos para uma bailadora andaluza”,<br />

do livro Quaderna (1956-1959) 73 . São cento e noventa e dois versos, divididos em seis<br />

grupos de oito estrofes cada um. Cada estrofe, por sua vez, apresenta versos em redondilha<br />

maior. O poema apresenta também rimas em /i/ na primeira, terceira, quarta e sexta partes;<br />

73 Na opinião de Barbosa (1975) e de Campos (1976), Quaderna inaugura o motivo feminino nessa poesia.<br />

Barbosa vai mais longe ao dizer que o modo como João Cabral celebra a mulher em Quaderna indicia a<br />

conquista da linguagem da poesia pelo poeta.<br />

158


imas em /e/ na segunda e quinta partes, como ressalta Secchin (1999).<br />

Se considerado o valor estético dos sons 74 das rimas, é bom lembrar que o i para<br />

muitos é fino, penetrante, agudo como espinho, mas frio. Portanto, os efeitos sonoros do<br />

texto, possibilitam a visualização da tensão em que se encontra a bailadora, bem como de<br />

alguns aspectos plásticos da dança. 75<br />

Já o título do poema, “Estudos para uma bailadora andaluza”, sugere, na obra do<br />

poeta, aquilo que, na pintura de Miró, antecede a tela acabada: estudos. Com efeito, tal<br />

poema, antes de ser um ensaio descritivo, é um estudo visual da imagem do movimento da<br />

dança, ou seja, é antes processo do que resultado.<br />

O texto apresenta a visualização de imagens metamórficas, em seis momentos não<br />

estanques, mas inter-relacionados por contigüidade metonímica: a bailarina enquanto<br />

dança, transmutando-se em sucessivas figuras, segundo a ótica do espectador. É um estudo<br />

que lembra as palavras teóricas de João Cabral: “Durante seu trabalho, o poeta vira seu<br />

objeto nos dedos, iluminando-o por todos os lados”. (MELO NETO, 1998, p. 66)<br />

Daí, a plasticidade do poema ser dada por um jogo de imagens que reflete mais a<br />

percepção do que a imaginação. São imagens perceptivas, ou seja, imagens que<br />

representam tanto o processo de percepção quanto os objetos por ele apreendidos. Não é,<br />

portanto, casualidade aquilo que Luiz Costa Lima chama procriação imagética: uma<br />

imagem efêmera, a qual obedece à dinâmica da dança e do olhar, desencadeando outra série<br />

de imagens:<br />

74 Silveira Bueno, na obra Estilística brasileira (1964), propõe o valor estético dos sons das vogais, acima<br />

indicados.<br />

75 Os estudos sobre o ritmo da dança por siguiryias observam que os acentos básicos da música são marcados<br />

claramente.<br />

159


Dir-se-ia, quando aparece<br />

dançando por siguiriyas,<br />

que com a imagem do fogo<br />

inteira se identifica.<br />

Todos os gestos do fogo<br />

que então possui dir-se-ia:<br />

gestos das folhas do fogo,<br />

de seu cabelo, sua língua;<br />

gestos do corpo do fogo,<br />

de sua carne em agonia,<br />

carne de fogo, só nervos,<br />

carne toda em carne viva.<br />

Então, o caráter do fogo<br />

nela também se adivinha:<br />

mesmo gosto dos extremos,<br />

de natureza faminta,<br />

gosto de chegar ao fim<br />

do que dele se aproxima,<br />

gosto de chegar-se ao fim,<br />

de atingir a própria cinza.<br />

Porém a imagem do fogo<br />

é num ponto desmentida:<br />

que o fogo não é capaz<br />

como ela é, nas siguiriyas,<br />

de arrancar-se de si mesmo<br />

numa primeira faísca,<br />

nessa que, quando ela quer,<br />

vem e acende-a fibra a fibra,<br />

que somente ela é capaz<br />

de acender-se estando fria,<br />

de incendiar-se com nada,<br />

de incendiar-se sozinha.<br />

Neste trecho, observamos que o poeta busca no prosaico e na economia vocabular<br />

o fluxo contínuo das imagens que se revigoram na arquitetura e no ritmo do poema, ficando<br />

longe dos clichês que povoam a tradição literária. Com efeito, a bailadora em movimento<br />

esvazia-se de todas as conotações a ela atribuídas pelos principais modelos da tradicional<br />

poesia brasileira e se apresenta como “fogo”, porque possui “fogo” na “carne” e nos<br />

“cabelos”. É “fogo” porque seus movimentos não permitem a fixação de uma forma; pelo<br />

160


contrário, as imagens dançam tal como a chama disforme. Tal impossibilidade de fixação<br />

da imagem implica no desencadeamento de outras imagens que se sucedem, num frenesi<br />

rítmico, como os gestos e poses instantâneos da bailadora. Do “fogo” surge a imagem da<br />

“cavaleira/égua”, apresentada num questionamento:<br />

Subida ao dorso da dança<br />

(vai carregada ou a carrega?)<br />

é impossível se dizer<br />

se é a cavaleira ou a égua.<br />

Ela tem na sua dança<br />

toda a energia retesa<br />

e todo o nervo de quando<br />

algum cavalo se encrespa.<br />

Isto é: tanto a tensão<br />

de quem vai montado em sela,<br />

de quem monta um animal<br />

e só a custo o debela,<br />

como a tensão do animal<br />

dominado sob a rédea,<br />

que ressente ser mandado<br />

e obedecendo protesta.<br />

Então, como declarar<br />

se ela é égua ou cavaleira:<br />

há uma tal conformidade<br />

entre o que é animal e é ela,<br />

entre a parte que domina<br />

e a parte que se rebela,<br />

entre o que nela cavalga<br />

e o que é cavalgado nela,<br />

que o melhor será dizer<br />

de ambas, cavaleira e égua,<br />

que são de uma mesma coisa<br />

e que um só nervo as inerva,<br />

e que é impossível traçar<br />

nenhuma linha fronteira<br />

entre ela e a montaria:<br />

ela é a égua e a cavaleira.<br />

A figura feminina deixa de ser desenhada ou pintada a partir de uma ótica<br />

específica, pois não se sabe se “Subida ao dorso da dança/ (vai carregada ou carrega?)”. A<br />

161


dúvida inicial leva a uma imprecisão maior no final da estrofe: a mulher que se tenta dizer é<br />

a “cavaleira ou a égua?” O que se apresenta diante do leitor não é uma imagem definida da<br />

figura feminina, mas a opção pela imprecisão dessa imagem, que se oferece mais pela<br />

tensão que gera do que pela definição. É um jogo cubossurrealista, no qual a bailadora<br />

funde-se e confunde-se com as imagens “fogo”, “égua” e “cavaleira”, na percepção visual<br />

dos seus movimentos.<br />

Contudo, a contigüidade não se opera apenas na esfera visual: a dança das imagens<br />

é compassada pela percepção auditiva e, ao mesmo tempo, psíquica. Da frenética bailadora<br />

emana uma mensagem: passa a ser “telegrafista”.<br />

Quando está taconeando<br />

a cabeça, atenta, inclina,<br />

como se buscasse ouvir<br />

alguma voz indistinta.<br />

Há nessa atenção curvada<br />

muito de telegrafista,<br />

atento para não perder<br />

a mensagem transmitida.<br />

Mas o que faz duvidar<br />

possa ser telegrafia<br />

aquelas respostas que<br />

suas pernas pronunciam<br />

é que a mensagem de quem<br />

lá do outro lado da linha<br />

ela responde tão séria<br />

nos passa despercebida.<br />

Mas depois já não há dúvida:<br />

é mesmo telegrafia:<br />

mesmo que não se perceba<br />

a mensagem recebida,<br />

se vem de um ponto no fundo<br />

do tablado ou de sua vida,<br />

se a linguagem do diálogo<br />

é em código ou ostensiva,<br />

já não cabe duvidar:<br />

deve ser telegrafia:<br />

basta escutar a dicção<br />

162


tão morse e tão desflorida,<br />

linear, numa só corda,<br />

em ponto e traço, concisa,<br />

a dicção em preto e branco<br />

de sua perna polida.<br />

Em sua dança seca, concisa, fixa, “tão desflorida”, oposta ao balé clássico, a<br />

“telegrafista”, sapateando, emite um código que o espectador capta no plano da<br />

sensualidade. Parece ser uma espécie de sensualidade bruta, instintiva e bastante envolvente<br />

e persuasiva. Não é a sensualidade de um corpo desvelado, mas a sensualidade “linear” e<br />

“concisa” de movimentos e ritmos, isto é, está na linguagem de sua dança. O taconear da<br />

bailadora reitera o dinamismo da imagem feminina, e a “telegrafista” que toca o solo,<br />

teluricamente, transmuta-se em “árvore”:<br />

Ela não pisa na terra<br />

como quem a propicia<br />

para que lhe seja leve<br />

quando se enterre, num dia.<br />

Ela a trata com a dura<br />

e muscular energia<br />

do camponês que cavando<br />

sabe que a terra amacia.<br />

Do camponês de quem tem<br />

sotaque andaluz caipira<br />

e o tornozelo robusto<br />

que mais se planta que pisa.<br />

Assim, em vez dessa ave<br />

assexuada e mofina,<br />

coisa a que parece sempre<br />

aspirar a bailarina,<br />

esta se quer uma árvore<br />

firme na terra, nativa,<br />

que não quer negar a terra<br />

nem, como ave, fugi-la.<br />

Árvore que estima a terra<br />

de que se sabe família<br />

e por isso trata a terra<br />

com tanta dureza íntima.<br />

163


Mais: que ao se saber da terra<br />

não só na terra se afinca<br />

pelos troncos dessas pernas<br />

fortes, terrenas, maciças,<br />

mas se orgulha de ser terra<br />

e dela se reafirma,<br />

batendo-a enquanto dança,<br />

para vencer quem duvida.<br />

A mensagem mecânica anterior transveste-se de árvore, ultrapassando a visão da<br />

dança e permitindo a inclusão de outro aspecto da realidade feminina: as suas relações com<br />

o contexto social. A bailadora andaluza não é só uma metáfora, a da bailarina leve e mofina<br />

que dança. Como na tela La masovera, de Joan Miró, é uma figura que está bem plantada<br />

no solo, dotada da mesma “muscular energia” do homem que trabalha a terra e, como ele,<br />

“estima a terra/ de que se sabe família”.<br />

Neste momento, Cabral “quebra, mais uma vez, com as fronteiras do “lirismo”<br />

amoroso, criando o espaço necessário para que a sua lírica, ao deixar que assome o motivo<br />

feminino, não impossibilite a exploração simultânea de outros motivos.” (BARBOSA,<br />

1975, p.174) Ao apresentar o motivo feminino, o poeta apresenta também o motivo social,<br />

ao entrelaçar a figura da bailadora à figura do camponês, da árvore e da terra.<br />

Vale lembrar que a palavra flamenco provém de duas palavras árabes felag<br />

(campesino) e mengu (fugitivo). Para alguns autores 76 , flamenco passou a ser usado<br />

também como sinônimo de cigano andaluz a partir do século XVIII. Portanto, não seria<br />

mera casualidade a comparação entre a dura realidade do camponês/cigano de sotaque<br />

andaluz caipira, que sabe estimar a sua terra por estar preso a ela, mesmo não a possuindo<br />

nunca, e a bailadora que dança por siguiriyas.<br />

76 Foram consultados vários textos que estão disponíveis na Internet. Ver bibliografia no final do trabalho.<br />

164


A dança por siguiriyas é considerada como “o elemento flamenco mais<br />

profundamente emotivo” e as siguiriyas, constituem um dos cantes mais ciganos do<br />

flamenco. Segundo os pesquisadores a siguiriya é uma descarga de ódios acumulados, de<br />

perseguições, de liberdade e de amor abandonados. É sobretudo um desabafo perante a<br />

morte implacável. As bailadoras, no movimento da dança, contraem-se em si mesmas,<br />

sentindo momentaneamente a desesperança e a crueldade do mundo.<br />

No movimento seguinte, a bailadora se concretiza na imagem mineral da estátua:<br />

Sua dança sempre acaba<br />

igual como começa,<br />

tal esses livros de iguais<br />

coberta e contra-coberta:<br />

com a mesma posição<br />

como que talhada em pedra:<br />

um momento está estátua,<br />

desafiante, à espera.<br />

Mas se essas duas estátuas<br />

mesma atitude observam,<br />

aquilo que desafiam<br />

parece coisas diversas.<br />

A primeira das estátuas<br />

que ela é, quando começa,<br />

parece desafiar<br />

alguma presença interna<br />

que no fundo dela própria,<br />

fluindo, informe e sem regra,<br />

por sua vez a desafia<br />

a ver quem é que a modela.<br />

Enquanto a estátua final,<br />

por igual que ela pareça,<br />

que ela é, quando um estilo<br />

já impôs à íntima presa,<br />

parece mais desafio<br />

a quem está na assistência,<br />

como para indagar quem<br />

a mesma façanha tenta.<br />

O livro de sua dança<br />

capas iguais o encerram:<br />

165


com a figura desafiante<br />

de suas estátuas acesas.<br />

Todavia, não é uma estátua imóvel. Como todas as outras imagens, essa também é<br />

resultante de um processo dinâmico: a primeira estátua, a do começo da dança, desafia<br />

pelo que é internamente e o que pode mostrar exteriormente, já a segunda estátua, a do<br />

final da dança, desafia pelo que a assistência possa perceber dela. Uma e outra são imagens<br />

acesas, latentes, que, embora registradas no poema enquanto figuras estáticas, estátuas,<br />

proliferam significações. Se a dança se metamorfoseia em livro, a bailadora passa a<br />

“espiga”. O mineral passa a vegetal que amadurece. A idéia de maturação, também<br />

resultante de um processo de contigüidade da coloração dos grãos, retoma a idéia do<br />

“fogo”:<br />

Na sua dança se assiste<br />

como ao processo da espiga:<br />

verde, envolvida de palha;<br />

madura, quase despida.<br />

Parece que sua dança<br />

ao ser dançada, à medida<br />

que avança, a vai despojando<br />

da folhagem que a vestia.<br />

Não só da vegetação<br />

de que ela dança vestida<br />

(saias folhudas e crespas<br />

do que no Brasil é chita)<br />

mas também dessa outra flora<br />

a que seus braços dão vida,<br />

densa floresta de gestos<br />

a que dão vida a agonia.<br />

Na verdade, embora tudo<br />

aquilo que ela leva em cima,<br />

embora, de fato, sempre,<br />

continui nela a vesti-la,<br />

parece que vai perdendo<br />

a opacidade que tinha<br />

e, como a palha que seca,<br />

166


vai aos poucos entreabrindo-a.<br />

Ou então é que essa folhagem<br />

vai ficando impercebida:<br />

porque terminada a dança<br />

embora a roupa persista,<br />

a imagem que a memória<br />

conservará em sua vista<br />

é a espiga, nua e espigada,<br />

rompente e esbelta, em espiga.<br />

(MELO NETO, 1986, p. 127)<br />

Como nenhuma das metáforas apresentadas disse a mulher/bailadora, resta na<br />

memória a imagem de uma “espiga nua e espigada”. O que se tem da mulher é a sua forma,<br />

assim como a poesia que existe no poema não está no sentimento daquele que diz a mulher,<br />

ou na beleza da bailadora e de seus movimentos e, sim, na forma como se organiza o texto,<br />

nos seus elementos significantes. A linguagem que trata da mulher é constantemente<br />

revista, como são revistas as imagens que a imitam, imagens “descarnadas, que deixam<br />

visíveis os seus “esqueletos”, isto é, as suas linhas estruturais básicas” (CAMPE<strong>DE</strong>LLI &<br />

ABDALA JR., 1988, p.00). Tal procedimento revela a preocupação do poeta em tornar o<br />

poema independente de sua visão individual. Através da superposição de visões, de formas,<br />

o poeta minimiza os efeitos da perspectiva individual, tão valorizada pelos poetas da<br />

tradição romântica.<br />

Evidencia-se então a importância da arquitetura do poema. Esta arquitetura está no<br />

uso de palavras concretas e no rigor como estas palavras são organizadas. Enumeradas ou<br />

permutadas num mesmo texto, ou em textos diferentes, as palavras, como um tear, tecem<br />

num sentido e destecem noutro os fios das imagens femininas.<br />

Sabemos, no entanto, que a imagem da dançarina espanhola associada ao fogo não<br />

é exclusiva de João Cabral de Melo Neto. Antes do poeta brasileiro, Rainer Maria Rilke<br />

167


(1875-1926) já propunha a comparação entre "um fósforo a arder" e a dança de uma<br />

bailadora espanhola.A bailadora de Rilke, à medida que dança, é toda "flama" ou "chama",<br />

como propõem seus diferentes tradutores. No entanto, ela despreza o fogo e "atira-o<br />

bruscamente no tablado/ e o contempla", para depois apagá-lo, isto é, a mulher mesma se<br />

desfaz da imagem que a ela associam. Cabral se apropria dessa imagem da mulher/chama,<br />

mas para negá-la. Por isso, depois de freqüentar A educação pela pedra (1962-1965), o<br />

poeta, com o texto “Dois P. S. a um poema”, revisa a imagem da bailadora e a sua relação<br />

com o fogo:<br />

Certo poema imaginou que a daria a ver<br />

(sua pessoa, fora da dança) com o fogo.<br />

Porém o fogo, prisioneiro da fogueira,<br />

tem de esgotar o incêndio, o fogo todo;<br />

e o dela, ela o apaga (se e quando quer)<br />

ou o mete vivo no corpo: então, ao dobro.<br />

*<br />

Certo poema imaginou que a daria a ver<br />

(quando dentro da dança) com a chama:<br />

imagem pouca e pequena para contê-la,<br />

conter sua chama e seu mais-que-chama.<br />

E embora o poema estime que a imagem<br />

não conteria tudo dessa chama sozinha,<br />

que por si se ateia (se e quando quer),<br />

de quanto o mais-que-chama não estima;<br />

pois vale o duplo de uma qualquer chama:<br />

estas só dançam da cintura para cima.<br />

(MELO NETO, 1997, p.14)<br />

O poeta admite a impossibilidade dessa imagem e das outras que a seguem nos<br />

seus "Estudos para uma bailadora espanhola" dizerem a mulher, pois, enquanto o fogo,<br />

sendo “prisioneiro da fogueira”, esgota-se com o incêndio, o fogo da bailadora é controlado<br />

por ela “(se e quando quer)”; quanto à chama, esta é “imagem pouca e pequena para<br />

contê-la,/ conter sua chama e seu mais-que-chama” (1997, p.14). Em outro momento, no<br />

168


mesmo livro, com "De Bernarda a Fernanda de Utrera" 77 o poeta reintroduz as imagens da<br />

brasa e da chama, mas relacionadas às mulheres espanholas e aos seus cantes.<br />

No livro Agrestes (1981-1985), com “Uma bailadora sevilhana” 78 , João Cabral<br />

volta à mulher andaluza e seus sensuais movimentos de pernas, até que seja recuperada<br />

totalmente a imagem da bailadora espanhola e o seu dançar flamenco que “é cada vez; / é<br />

fazer; é um faz, nunca um fez” (MELO NETO,1997, p. 233). No penúltimo livro, Sevilha<br />

Andando (1987-1993), o poeta recorre novamente à imagem da bailadora, observando a<br />

incapacidade de dá-la a ver por palavras, pois “nada sabe dizer de novo” (MELO<br />

NETO,1997, p.329). As imagens associadas à mulher de “Estudos para uma bailadora<br />

andaluza” são revistas e o poeta conclui que “o que dela se escreveu até então/ se revelou<br />

premonição” (MELO NETO,1997, p. 332).<br />

A análise desses textos evidencia os processos de desarticulação/reinvenção da<br />

imagem feminina na poesia de João Cabral de Melo Neto. Depois de estruturada a imagem,<br />

o poeta começa a depurá-la de forma bastante inovadora, através de desdobramentos e<br />

contrastes metafóricos; em seguida, há a total negação da imagem construída inicialmente e<br />

a mulher passa a existir pelo que não se “sabe” ou não se deseja dizer dela. Assume o<br />

estatuto de figura, e passa a ter forma, como propõe Gerard Genette (1972), em seu ensaio<br />

“Figuras”: “A expressão simples e comum não tem forma, a figura, sim: eis-nos de volta à<br />

definição da figura como separação entre o signo e o sentido, como espaço interior da<br />

linguagem.”(GENETTE, 1972, p.201) A mulher, portanto, torna-se palavra que adquire<br />

concretude, vigor, consistência e suscita, ao ser expressa, uma pluralidade de significados.<br />

77 Conferir anexo 05.<br />

78 Conferir anexo 05.<br />

169


Na seqüência, prosseguindo na busca das relações entre o projeto poético cabralino<br />

e as artes espanholas, ao longo de nossas leituras, constatamos a possibilidade de articular a<br />

imagem da “casa-mulher” à arquitetura sevilhana.<br />

5.3.A ARQUITETURA E A <strong>POESIA</strong><br />

Como o objetivo de explicar a idéia de espaço em arquitetura, Bruno Zevi (1996)<br />

observa que o que distingue a arquitetura das outras artes é o fato de “agir com um<br />

vocabulário tridimensional que inclui o homem.” (1996, p.17). É o ser humano que dá<br />

sentido a essa arte, na medida em que se movimenta no seu espaço interior, pois esta arte<br />

projeta um tipo de espaço “que não pode ser conhecido e vivido a não ser por experiência<br />

direta”(Ibidem, p.18)<br />

Paul Valéry (1999), por sua vez, no diálogo de Sócrates com Fedro, no Eupalinos ou o<br />

arquiteto, observa que a arquitetura é considerada a mais completa das artes, por obedecer<br />

aos três princípios básicos da arte: a utilidade, a beleza, a solidez ou a duração. A utilidade<br />

estaria para a realização da arte em função do corpo; a beleza corresponderia aos desejos da<br />

alma; já a solidez estaria para a consciência da transitoriedade e o desejo de não perecer.<br />

Já o arquiteto Le Corbusier, como vimos, propõe que a arquitetura é um tipo de<br />

linguagem que desperta emoções: “Com o uso de materiais inertes e partindo de condições<br />

mais ou menos utilitárias, vocês estabeleceram certas relações que despertaram minhas<br />

emoções. Isso é Arquitetura.”(LE CORBUSIER, apud FRAMPTON, 1997, p.179),<br />

Essas considerações iniciais sobre o conceito de arquitetura são importantes por<br />

nos levar a repensar a presença da arquitetura na poética de Cabral. O poeta dedicou mais<br />

de um texto aos arquitetos. O primeiro deles, Fábula de Anfion, publicada junto com a<br />

170


Psicologia da composição e Antiode (1946-1947), já mereceu inúmeras leituras da crítica<br />

brasileira.<br />

Ao longo de nossas leituras sobre essa fábula, percebemos que é consensual a idéia<br />

de que o texto, numa perspectiva metalingüística, remete ao processo de “despoetização”<br />

do poema e que tal processo leva o leitor a refletir sobre a identidade entre o mundo e a<br />

linguagem. Destacamos o estudo de José Guilherme Merquior (p. 104), no qual o texto é<br />

visto como o poema que exprime a insuficiência da linguagem poética no momento de<br />

dizer a realidade.Do mesmo modo é tratada a outra fábula que remete à arquitetura, a<br />

“Fábula de um arquiteto”.<br />

A despeito dessas leituras, retomamos a última fábula de João Cabral, a fim de que<br />

possamos sinalizar para outras possibilidades de observar o intercurso entre a poesia<br />

cabralina e a arquitetura.<br />

Fábula de um arquiteto<br />

Arquitetura como construir portas,<br />

de abrir; ou como construir o aberto;<br />

construir, não como ilhar e prender,<br />

nem construir como fechar secretos;<br />

construir portas abertas, em portas;<br />

casas exclusivamente portas e tecto.<br />

O arquiteto: o que abre pra o homem<br />

(tudo se sanearia desce casas abertas)<br />

portas por-onde, jamais portas-contra;<br />

por onde, livres: ar luz razão certa.<br />

2.<br />

Até que, tantos livres e amedrontando,<br />

Renegou dar a viver no claro e aberto.<br />

Onde vãos de abrir, ele foi amurando<br />

Opacos de fechar; onde vidro, concreto;<br />

Até refechar o homem: na capela útero,<br />

Com confortos de matriz, outra vez feto.<br />

(MELO NETO, 1986, p.21)<br />

171


Na primeira parte do texto, João Cabral reitera a idéia básica do poema “O<br />

Engenheiro”, no qual apresenta um sujeito que tenta construir um espaço perfeito, aberto<br />

e luminoso, valendo-se de um projeto arquitetônico marcado pela logicidade e pela<br />

geometria. No entanto, na segunda parte do texto, deparamos com uma contradição: no<br />

lugar do espaço para fora, aberto, livre, do sonho do engenheiro, o arquiteto reconstrói um<br />

espaço fechado como um útero, ou seja, o sujeito reelabora o projeto anterior e passa a<br />

conceber a arquitetura como espaço para dentro, para o interior de nós mesmos.<br />

De acordo com o próprio poeta, a idéia desse texto surgiu quando visitou a capela<br />

de Nôtre-Dame-du-Haut (1950-3), em Ronchamp, na França. Essa capela é uma das mais<br />

famosas obras de Le Corbusier. Representa a busca da relação entre o espaço construído e o<br />

ambiente natural, na leitura de Giulio Carlo Argan (1992). Em decorrência disso, Le<br />

Corbusier modifica a tipologia habitual da igreja, renunciando à visão cristã tradicional. O<br />

espaço é integrado à plástica da forma, “por isso , a igreja de Ronchamp, a despeito da<br />

dispersão ideológica, mantém-se como um objeto plástico intensamente, dramaticamente<br />

expressivo”, segundo Argan (1992, p.388).<br />

O crítico observa também que Le Corbusier, nesta época, ainda se encontrava sob<br />

a influência do Cubismo, principalmente de Picasso. Quando construiu a Villa Savoye<br />

(1928-31), um dos pilares do racionalismo arquitetônico europeu, cerca de vinte anos antes,<br />

o arquiteto já buscava “a mútua penetração da casa-objeto e do espaço, a comunicabilidade<br />

entre interior e exterior, a resolução do movimento distributivo ou decompositivo dos<br />

ambientes no plano plástico das fachadas” (ARGAN, 1992, p.387), seguindo o espírito de<br />

Gris e de Braque.<br />

Vale lembrar que João Cabral diz ter herdado de Le Corbusier o desejo de lucidez,<br />

de claridade e de construtivismo em arte. Como apreciador da estética cubista, tem no<br />

172


arquiteto franco-suiço um exemplo importante para o que pretendia alcançar em sua<br />

poesia.No entanto, o mesmo João Cabral reconhecia que arquiteto em tela, no final da vida,<br />

negou todos esses valores que pregava anteriormente.<br />

Quanto ao poema em estudo, chama a atenção o tratamento semântico dado às<br />

imagens. Configuradas por oposição entre a idéia de abertura e fechamento, as “portas” do<br />

poema, que num primeiro momento se abrem, na segunda parte prendem o sujeito na<br />

“capela útero”. A sugestão das portas que dão acesso para dentro e para fora e da capela<br />

como um “útero”, remete ao espaço feminino e materno da proteção e do aconchego, já<br />

observado. Em decorrência disso, mais uma vez o espaço e a mulher se reencontram,<br />

como imagens geometricamente limitadas, que valem pelo que não se deixam limitar, pelo<br />

que surpreendem.<br />

5.3.1.A MULHER COMO ESPAÇO SEVILHIZADO NA <strong>POESIA</strong> <strong>DE</strong> JOÃO<br />

CABRAL<br />

Antes, porém de estabelecermos a articulação da imagem da mulher com o espaço<br />

sevilhano, temos que aventar as circunstâncias em que a imagem feminina está relacionada<br />

com a idéia de casa. Comecemos pelo poema “A mulher e a casa”, no qual o exercício de<br />

construção da imagem feminina passa pelo rigor geométrico da dialética do exterior e do<br />

interior da casa:<br />

A mulher e a casa<br />

Tua sedução é menos<br />

de mulher do que de casa;<br />

pois vem de como é por dentro<br />

ou por detrás da fachada.<br />

173


Mesmo quando ela possui<br />

tua plácida elegância,<br />

esse teu reboco claro,<br />

riso franco de varandas,<br />

uma casa não e nunca<br />

só para ser contemplada;<br />

melhor: somente por dentro<br />

é possível contemplá-la.<br />

Seduz pelo que é dentro,<br />

ou será, quando se abra;<br />

pelo que pode ser dentro<br />

de suas paredes fechadas;<br />

pelo que dentro fizeram<br />

com seus vazios, com o nada;<br />

pelos espaços de dentro,<br />

não pelo que dentro guarda;<br />

pelos espaços de dentro:<br />

seus recintos, suas áreas,<br />

organizando-se dentro<br />

em corredores e salas,<br />

os quais sugerindo ao homem<br />

estâncias aconchegadas,<br />

paredes bem revestidas<br />

ou recessos bons de cavas,<br />

exercem sobre esse homem<br />

efeito igual ao que causas:<br />

a vontade de corrê-la<br />

por dentro, de visitá-la.<br />

(MELO NETO, 1986, p. 153)<br />

Segundo Gaston Bachelard (1998, p.219), o geometrismo reforçado da dialética do<br />

exterior e do interior impõe limites que constituem barreiras. Por esse motivo, na leitura do<br />

texto literário, é preciso libertar-se de qualquer intuição definitiva para acompanhar a<br />

audácia dos poetas. Embora haja, no início do poema, a sugestão da exterioridade da casa<br />

aliada à estaticidade da figura feminina vista como espaço de “aconchego”, “abrigo”,<br />

prevalece o dinamismo do jogo da contemplação que é mais do interior, do que do exterior<br />

da casa-mulher.<br />

174


É na possibilidade de ser percorrida “por dentro”, “por detrás da fachada” que a casa-<br />

mulher seduz o olhar de seu contemplador. Portanto, derrubam-se os limites e as barreiras<br />

do geometrismo da imagem, para que esta se constitua como figura multifacetada.<br />

A casa-mulher é valorizada por se abrir para o que não se vê por fora; pelo que<br />

possui por dentro, “com seus vazios, com o nada”. Toda a caracterização prosaica da casa-<br />

mulher, como a “plácida elegância”, o “reboco claro”, o “riso franco de varandas” vai<br />

sendo negado como objeto de contemplação, para que se busque o que a casa-mulher “pode<br />

ser dentro”.<br />

Esse paradoxo que define o feminino em “A mulher e a casa” pode ser observado<br />

também no poema “Mulher vestida de gaiola” 79 , do mesmo livro. Aparentemente “cingida”,<br />

limitada pela gaiola, a mulher se debate no seu interior e a sua força é a força “de enchente<br />

do mar de Olinda” . (MELO NETO, 1986, p.176) Portanto, ela se sente livre.<br />

Do mesmo modo é tratada a figura feminina de “Uma ouriça” 80 , do livro A<br />

educação pela pedra (1962-1965). Além de trabalhada geometricamente através dos<br />

movimentos convexo e côncavo, a imagem da ouriça deixa de ser “passiva (como ouriço<br />

na loca)” para ser “agressiva (como jamais o ouriço)”, quando se chega perto dela; ou se<br />

lhe chega de longe, “propícia” para o “assalto” e para o “abraço”, simultaneamente.<br />

Nas obras posteriores, como em Sevilha andando (1987-1993), depois de<br />

“sevilhizada”, 81 a imagem da “casa-mulher” apresenta-se reiterada na imagem da “barcaça-<br />

mulher”:<br />

79 Conferir anexo 05.<br />

80 Conferir anexo 05.<br />

81 Cabral propõe em Andando Sevilha que: “Como é impossível, por enquanto, civilizar toda a terra, o jeito é<br />

sevilhizar o mundo”.<br />

175


Hoje embarcou numa mulher<br />

Recifense, ele a chama barcaça,<br />

que é o barco mais feminino,<br />

é mulher feita barco e casa<br />

(MELO NETO, 1997, p. 335)<br />

ou na “cidade-mulher”, onde o homem:<br />

nunca saberá<br />

se vive a cidade<br />

ou a mulher melhor<br />

sua mulheridade.<br />

(MELO NETO, 1997, p. 346)<br />

Barcaça e cidade são equivalentes à mulher, quando configuradas como espaços<br />

do acolhimento, da harmonia, do repouso, apesar de suscitarem, simultaneamente, a idéia<br />

de movimento. A barcaça navega “sem timão, sem timoneiro”, não tem destino certo; a<br />

cidade é lugar de “perfeito andar”, que possui “rua sem nome”. Apesar de indefinida, a<br />

cidade-mulher caracteriza-se pelo seu “segredo”: “o tudo de Sevilha/ está no andar de sua<br />

mulher” (MELO NETO, 1997, p.339). A partir de então, a cidade-mulher torna-se “Cidade<br />

viva”:<br />

Sevilha é uma cidade viva<br />

com a sevilhana que a habita,<br />

e que, andando, faz andar<br />

tudo o por onde ela passar.<br />

Seja a estreita Calle Regina<br />

ou a San Luís, na Macarena,<br />

há momentos em que não se sabe<br />

o que é passar e o que é passar-se.<br />

Ora, vi que Sevilha andava<br />

ou fazia andar quem a andasse.<br />

176


Quem me mostrou foi a mulher<br />

que sem a conhecer sequer<br />

é tudo tão sevilhana<br />

no ser e no modo com que anda<br />

que leva consigo Sevilha<br />

e a traz ao ambiente que habita.<br />

(MELO NETO, 1997, p. 349)<br />

Assim, a equivalência entre as duas imagens se faz em função do processo de<br />

imitação do andar que a cidade exige da mulher, ou que a mulher ensina à cidade.<br />

Elaboradas num clima mais subjetivo, as imagens femininas dos últimos livros, no entanto,<br />

reforçam o projeto arquitetônico do poeta, ao conjugar mulher-cidade-escrita. Sevilha<br />

andando e Andando Sevilha reiteram muitas idéias propostas em livros anteriores, no que<br />

concerne ao tema feminino. Lembramos que essa relação mulher-cidade começa em<br />

Paisagens com figuras (1954-1955), quando o poeta contrapõe a imagem feminina da<br />

cidade à imagem masculina do estado de Pernambuco, no poema “Duas paisagens”:<br />

D’Ors em termos de mulher<br />

(Teresa, La Bem Plantada)<br />

descreveu da Catalunha<br />

a lucidez sábia e clássica<br />

e aquela sóbria harmonia,<br />

aquela fácil medida<br />

que, sem régua e sem compasso,<br />

leva em si, funda e instintiva,<br />

aprendida certamente<br />

no ritmo feminino<br />

de colinas e montanhas<br />

que lá têm seios medidos.<br />

Em termos de uma mulher<br />

não se conta é Pernambuco:<br />

é um estado masculino<br />

e de ossos à mostra,duro,<br />

de todos, o mais distinto<br />

177


de mulher ou prostituto,<br />

mesmo de mulher virago<br />

(como a Castilla de Burgos).<br />

(MELO NETO, 1989, p.268)<br />

Nos poemas “Sevilha ao telefone” e “Ainda Sevilha ao telefone” podem ser<br />

observadas várias alusões ao poema “Paisagem ao telefone” 82 , do livro Quaderna. Atento a<br />

esse aspecto, Ivo Barbieri afirma que Sevilha andando vai repor “o discurso, de novo, na<br />

perspectiva do seu fier, que se auto-indicia nas passagens remissivas intratextuais”<br />

(BARBIERI, 1997, p.130). O crítico observa que, em “Paisagem pelo telefone”, há a<br />

naturalização da mulher na paisagem, uma vez que o telefone desvela primeiro a paisagem<br />

de luz e água da praia nordestina, para depois consubstanciar a presença clara e fresca da<br />

mulher nos elementos da paisagem; já nos poemas de Sevilha andando, a paisagem urbana<br />

se feminiza na imagem da mulher-cidade, pois o telefone abre-se logo “à pulsação da vida”,<br />

ao “arfar da cidade, ao “respirar recado” até que a cidade se torna “mulher inteira,/ mais<br />

que qualquer outra, Sevilha”. (MELO NETO,1997, p.345)<br />

Em outros momentos, a imagem feminina é revista na sua equivalência com a<br />

cidade de Sevilha. É o que acontece no poema dedicado a Marly de Oliveira, “A sevilhana<br />

que não se sabia”, divido em quatro quadros, nos quais valoriza diferentes aspectos da<br />

linguagem, para tentar encontrar a imagem desejada. No primeiro quadro, “reencontra as<br />

coisas ditas” sobre a sevilhana:<br />

82 Conferir anexo 05.<br />

Sua alegria nem sempre alegre<br />

porque há nela dupla febre:<br />

a febre sem patologia<br />

que lhe enfebrece até a gíria,<br />

178


que tanto informa sua festa<br />

e a alma em chispa detrás dela;<br />

e a outra febre, a da doença,<br />

da pobreza da Macarena,<br />

dos operários sem semana<br />

e dos ciganos de Triana:<br />

a febre antiga e popular<br />

que o mundo um dia há de curar<br />

e nada tem com a febre que arde<br />

no que é Sevilha e suas Carmens.<br />

Do comparante “fogo” de suas primeiras bailadoras, relacionado tanto ao contexto<br />

social de que fazem parte, quanto à sensualidade de seus movimentos, o poeta passa a<br />

“febre sem patologia”, mas tão intensa e ardente como a chama do fogo, pois é febre social,<br />

indiciadora da situação de pobreza em que vivem os operários e os ciganos de Triana, por<br />

isso “febre antiga e popular/ que o mundo um dia há de curar”, e que nada tem com a<br />

feminilidade de Sevilha e suas Carmens.<br />

No segundo quadro, o ambiente urbano e a mulher são comparados pelos seus<br />

atributos plásticos, evidenciados no uso de uma linguagem predominantemente adjetiva:<br />

De uma Sevilha tem pudor:<br />

de onde nos balcões tanta flor,<br />

de onde as casas de cor, caiadas<br />

cada ano em cores papagaias,<br />

que fazem cada rua uma festa<br />

que a sevilhana sem modéstia<br />

passeia como em sala sua,<br />

multivestida porém nua,<br />

dessa nudez sob mil refolhos<br />

que só se expressa pelos olhos.<br />

179


Associada às características da cidade, a imagem da sevilhana adquire a aparência<br />

de “multivestida”, mas, para o olhar de quem a contempla, mostra-se “nua”. A partir de<br />

então, a mulher reencontra o símile “chama morena e petulante” das bailadoras, as quais<br />

continuam “pisando esbeltas no chão, /ambas, num andar de afirmação” (MELO<br />

NETO,1997, p.330).<br />

sevilhana:<br />

No terceiro quadro do poema, o poeta tenta experimentar outra imagem da mulher<br />

Pois não quis viver em Sevilha<br />

que é de onde ela não se sabia,<br />

descrente da antropologia<br />

que lhe nega a genealogia:<br />

mas sevilhana nela toda,<br />

como se naufragada forma<br />

viesse a encalhar por engano<br />

nas praias do Espírito Santo.<br />

Não convencido de que a imagem da mulher se basta na imagem da cidade, ou<br />

vice-versa, o poeta retoma a relação entre mulher, a dança por siguiriyas e o cante do<br />

cigano:<br />

Donde o pé atrás, contra Sevilha?<br />

Crê que é só bulha, bulerías?<br />

Sevilha é mais da siguiriya<br />

que é a castelhana seguidilla<br />

que o cigano prende no tanque<br />

de seu silêncio, e fez m cante,<br />

e que a cigana faz em dança,<br />

centrada em si como uma planta.<br />

180


Então, a cidade se configura como espaço ou “praças de bolso, feitas/ para se ir<br />

escutar o tempo/ desfiar carretéis de silêncio.”Finalmente, no último quadro, o poeta deseja<br />

mostrar a sevilhana pela associação entre a mulher e a sonoridade das rimas do poema:<br />

quis dar-lhe a ver em assonantes<br />

o que ambas têm de semelhante.<br />

Mas para sua confusão<br />

o que escreveu até então<br />

de Sevilha, de sua mulher,<br />

de suas ruas, de seu ser<br />

(que Sevilha, se há de entender<br />

é toda uma forma de ser),<br />

o que escreveu até então<br />

se revelou premonição<br />

(MELO NETO, 1997, p. 332)<br />

Portanto, os meios de estruturação das imagens desses textos passam por jogos de<br />

linguagem, na sua maioria de natureza antitética, até que haja a fusão dos opostos,<br />

propiciando um rompimento com o senso comum, com o tipo de poesia que busca fixar um<br />

aspecto do feminino em detrimento de outro. Além disso, percebemos que a organização<br />

das imagens, na sua estruturação enquanto signo, parece constituída como a linguagem da<br />

arquitetura, arte que leva em conta o espaço interior do objeto representado e os efeitos que<br />

esse espaço interior provoca naquele que o percorre.<br />

Por outro lado, por acreditar que a poética de João Cabral é inesgotável no que diz<br />

respeito às possibilidades de relacioná-la com outras linguagens artísticas, tentamos<br />

observar, na seqüência, como o poeta trata uma das questões inevitáveis da modernidade: a<br />

que estabelece um vínculo íntimo entre arte moderna e espaço urbano.<br />

181


5.3.2.ENTRE RECIFE E SEVILHA: MO<strong>DE</strong>RNIDA<strong>DE</strong> E ESPAÇO URBANO EM<br />

JOÃO CABRAL <strong>DE</strong> MELO NETO<br />

Na modernidade, o ser humano está representado, de maneira exemplar, pelo<br />

habitante das grandes cidades, tornando-se, como nos lembra o professor Luis Alberto<br />

Brandão Santos (2006), “testemunha de um novo conjunto de referências concretas e<br />

simbólicas que vai se constituindo a partir da segunda metade do século XIX, e que tem em<br />

Baudelaire seu primeiro grande cronista.”<br />

Esse ser vive na cidade, espaço marcado pela geografia da confusão dos circuitos<br />

congestionados que impede o diálogo. A cidade é considerada o espaço por excelência da<br />

arte do conflito, arte que reflete o "clima" de um mundo em constante ebulição e evolução,<br />

arte que busca o tensionamento das matérias, arte que "desequilibra" e imprime um novo<br />

ritmo, dinâmico e veloz às formas plásticas, sonoras e gráficas.<br />

O que pretendemos mostrar nesta relação entre modernidade, espaço urbano e João<br />

Cabral de Melo Neto é como o poeta tece imagens da cidade.Estariam marcadas pela tensão<br />

entre o ser humano e o meio onde vive? Partimos de uma das linhas mestras da poética<br />

cabralina na construção de suas imagens urbanas: o fascínio por uma linguagem visual,<br />

plástica, “que se dirige à inteligência através dos sentidos.”(MELO NETO, 1989)<br />

Esse breve percurso poderá nos levar a perceber o desejo do poeta de ensinar que a<br />

comunicação poética não se dá unicamente por vias subjetivas, onde a experiência única do<br />

poeta encontra eco na vivência do leitor, considerado apenas como um consumidor do<br />

discurso poético. Já sabemos que para ele, o leitor é “contraparte essencial à atividade de<br />

criar literatura” (MELO NETO, 1998, p.67) Por isso o poeta está sempre preocupado em<br />

182


anunciar os seus procedimentos artísticos, a fim de que possa, acima de tudo, falar claro<br />

com seu leitor.<br />

Comecemos pelo poema “Autocrítica”, no qual João Cabral anuncia o seu modo de<br />

tratar os dois principais espaços geográficos de sua poética:<br />

Só duas coisas conseguiram<br />

(des)feri-lo até a poesia:<br />

o Pernambuco de onde veio<br />

e o aonde foi, a Andaluzia.<br />

Um , o vacinou do falar rico<br />

e deu-lhe a outra, fêmea e viva,<br />

desafio demente: em verso<br />

dar a ver Sertão e Sevilha.<br />

(MELO NETO, 1997, p. 140)<br />

Assim como em “Duas paisagens”, de Paisagens com figuras (1954-1955), o poeta<br />

propõe novamente o entrecruzamento entre dois espaços aparentemente opostos: o<br />

masculino Pernambuco e a feminina Andaluzia. No caso de”Autocrítica”, tanto um espaço<br />

quanto o outro contribuem para o falar cabralino. Da retórica objetiva, seca e contundente<br />

de Pernambuco ao dizer sensível, emocional e sedutor de Sevilha, apreendemos a<br />

plasticidade que fundamenta o universo poético cabralino.<br />

Já no poema “Pregão turístico de Recife”, também do livro Paisagens com figuras<br />

(1954-1955), João Cabral apresenta um espaço tecido pela geografia masculina do sertão,<br />

que encontra no sol com sua luz de agulhas, a sua comparação. Ao mesmo tempo, Recife é<br />

cidade alicerçada pela imagem da pedra, da terra bruta:<br />

Pregão turístico do Recife<br />

A Otto Lara Resende<br />

Aqui o mar é uma montanha<br />

regular redonda e azul,<br />

mais alta que os arrecifes<br />

e os mangues rasos ao sul,<br />

183


Do mar podeis extrair,<br />

do mar deste litoral<br />

um fio de luz precisa,<br />

matemática ou metal.<br />

Na cidade propriamente<br />

velhos sobrados esguios<br />

apertam ombros calcários<br />

de cada lado de um rio.<br />

Com os sobrados podeis<br />

aprender lição madura:<br />

um certo equilíbrio leve,<br />

na escrita , da arquitetura.<br />

E neste rio indigente,<br />

sangue-lama que circula<br />

entre cimento e esclerose<br />

com sua marcha quase nula,<br />

e na gente que se estagna<br />

nas mucosas deste rio,<br />

morrendo de apodrecer<br />

vidas inteiras a fio,<br />

podeis aprender que o homem<br />

é sempre a melhor medida.<br />

Mais: que a medida do homem<br />

não é a morte mas a vida.<br />

(MELO NETO, 1986, p.245)<br />

Em “Coisas de cabeceira, Recife”, de A educação pela pedra (1962-1965), o poeta<br />

busca Recife nos arquivos da memória:<br />

Diversas coisas se alinham na memória<br />

numa prateleira com o rótulo: Recife.<br />

Coisas como de cabeceira da memória,<br />

a um tempo coisas e no próprio índice;<br />

e pois que em índice: densas, recortadas,<br />

bem legíveis, em suas formas simples.<br />

2.<br />

Algumas dela, e fora as já contadas:<br />

o combogó, cristal do número quatro;<br />

os paralelepípedos de algumas ruas,<br />

de linhas elegantes mas grão áspero;<br />

a empena dos telhados, quinas agudas<br />

como se também para cortar, telhados;<br />

184


os sobrados, paginados em romancero.<br />

várias colunas por fólio, imprensados.<br />

(Coisas de cabeceira, firmando módulos:<br />

assim, o do vulto esguio sobrados).<br />

(MELO NETO, 1986, p.10)<br />

Os recortes são feitos a partir de imagens táteis que remetem a coisas duras, ásperas,<br />

agudas. A cidade recuperada pelo poeta tem como alicerce a imagem da pedra, da terra<br />

bruta. Em outros momentos, o poeta consegue apreender a cidade pelo seu oposto, pelo seu<br />

lado “úmido”:<br />

Fazer o seco, fazer o úmido<br />

A gente de uma capital entre mangues,<br />

gente de pavio e de alma encharcada,<br />

se acolhe sob uma música tão resseca<br />

que vai ao timbre de punhal, navalha.<br />

Talvez o metal sem húmus dessa música,<br />

ácido e elétrico, pedernal de isqueiro,<br />

lhe dê uma chispa capaz de tocar fogo<br />

Na molhada alma pavio, molhada mesmo.<br />

*<br />

A gente de uma Caatinga entre secas,<br />

Entre datas de seca e seca entre datas,<br />

se acolhe sob uma música tão líquida<br />

que bem poderia executar-se com água.<br />

Talvez as gotas úmidas dessa música<br />

Que a gente dali faz chover de violas,<br />

Umedeçam, e senão com a água da água,<br />

Com a convivência da água, langorosa.<br />

(MELO NETO, 1986, p.13)<br />

Abraçada pelo mar, pelo canavial, pela cana retilínea e nua, pela lama que envolve o<br />

homem, pela faca só lâmina, enfim, por toda a ambientação de Pernambuco, Recife vai se<br />

configurando as olhos do leitor. Na alternância dramática do úmido e do seco, vive o ser<br />

humano, ferindo a sensibilidade do leitor, através de imagens áridas e agressivas.<br />

A que contexto humano e social essas imagens nos remetem?<br />

185


Vários leitores cabralinos 83 observaram que tais imagens vêm reforçar a sofrida<br />

consciência de nosso atraso, a dura certeza de que a fome e a miséria não são uma<br />

fatalidade, um flagelo divino, mas o produto perverso do subdesenvolvimento. Nesse<br />

sentido, João Cabral resgata suas origens e a memória de seu povo para estruturar as bases<br />

da construção das imagens de Recife. Nesse resgate, o autor parece construir, como nos<br />

lembra Wilton Rossi (2006), uma ponte que ao mesmo tempo une e separa seus dois<br />

extremos, o autor e o leitor, falantes de duas línguas diferentes em dois universos diferentes<br />

conectados pela poesia, unicamente. O leitor toma as rédeas do ponto em que o autor as<br />

largou.<br />

Em decorrência desse processo de rememoração, João Cabral encontra, nos seus<br />

primeiros contatos com a geografia espanhola, o espaço árido do sertão nordestino. Por<br />

isso, em “Imagens em Castela”, do livro Paisagens com figuras (1954-1955), percebemos o<br />

retorno a Pernambuco através da recuperação da aridez da terra e dos elementos que a<br />

compõem:<br />

Imagens em Castela<br />

Se alguém procura a imagem<br />

da paisagem de Castela<br />

procure no dicionário:<br />

meseta provém de mesa.<br />

É uma paisagem em largura<br />

de qualquer lado infinita.<br />

É uma mesa sem nada<br />

e horizontes de marinha<br />

posta na sala deserta<br />

de uma ampla casa vazia,<br />

casa aberta e sem paredes,<br />

rasa aos espaços do dia.<br />

83 Conferir o artigo de Zuenir Ventura intitulado “Homem ainda é a melhor medida - A educação política pela<br />

poética de João Cabral”, disponível em http://epoca.globo.com/edic/19991018/zuenir.htm.<br />

186


Na casa sem pé direito,<br />

na mesa sem serventia,<br />

apenas, com seu cachorro,<br />

vem sentar-se a ventania.<br />

E quando não é a mesa<br />

sem toalha e sem terrina,<br />

a paisagem de Castela<br />

num grande palco se amplia:<br />

no palco raso,sem fundo,<br />

só horizonte, do teatro<br />

para a ópera que as nuvens<br />

dão ali em espetáculo:<br />

palco raso e sem fundo<br />

palco que só fosse chão,<br />

agora só freqüentado<br />

pelo vento e por seu cão.<br />

No mais, não é Castela<br />

mesa nem palco, é o pão:<br />

a mesma crosta queimada,<br />

o mesmo pardo no chão;<br />

aquele mesmo equilíbrio<br />

de seco e úmido, do pão,<br />

terra de águas contadas<br />

onde é mais contado o grão;<br />

aquela maciez sofrida<br />

que se pode ver no pão<br />

e em tudo o que o homem faz<br />

diretamente com a mão.<br />

E mais: por dentro, Castela<br />

tem aquela dimensão<br />

dos homens de pão escasso,<br />

sua calada condição.<br />

(MELO NETO, 1986, p.247)<br />

Além da recuperação do espaço de carência, que atravessa a poética cabralina<br />

sobretudo nos livros da segunda fase em que há as referências a Pernambuco, percebemos o<br />

retorno aos seres que habitam esse espaço, como o cão, o vento e o homem de “calada<br />

condição”, seres que vivem à margem da sociedade:<br />

187


Nas covas de Baza<br />

O cigano desliza por encima da terra<br />

não podendo acima dela sobrepairado;<br />

jamais a toca, sequer calçadamente,<br />

senão supercalçado: de cavalo, carro.<br />

O cigano foge da terra, de afagá-la,<br />

dela carne nua ou viva, no esfolado;<br />

lhe repugna, ele que pouco a cultiva,<br />

o hálito sexual da terra sob o arado.<br />

2.<br />

De onde quem sabe o cigano das covas<br />

dormir na entranha da terra, enfiado;<br />

dentro dela, e nela de corpo inteiro,<br />

dentros mais de ventre que de abraço.<br />

Contudo, dorme na terra uterinamente,<br />

dormir de feto, não o dormir de falo;<br />

encavando a cova sempre, para dormir<br />

mais longe da porta, sexo inevitável.<br />

(MELO NETO, 1986, p.17)<br />

Chama a atenção, nos dois últimos textos citados a forte ligação que existe entre a<br />

terra e o ser que nela habita. É uma relação de pertencimento vital, uterina. A nosso ver,<br />

esse tipo de tratamento dado ao espaço em João Cabral resulta da sua convivência com a<br />

arte espanhola e pode ter sido o seu maior aprendizado. O poeta afirmava em suas<br />

entrevistas que foi preciso distanciar-se do Brasil para saber falar de sua terra e de seu povo<br />

e que os espanhóis contribuíram muito para isso.<br />

Por outro lado, se o intercurso desses dois espaços, Pernambucano e Espanha, evoca<br />

a paisagem natal num primeiro momento, as cidades de Barcelona e Sevilha já surgem<br />

como ambientes que se opõem à condição de paisagem dura e árida:<br />

Coisas de cabeceira, Sevilha<br />

Diversas coisas se alinham na memória<br />

numa prateleira com o rótulo: Sevilha.<br />

Coisas, se na origem apenas expressões<br />

de ciganos dali; mas claras e concisas<br />

188


a um ponto de se condensarem em coisas,<br />

bem concretas, em suas formas nítidas.<br />

2.<br />

Algumas delas, e fora as já contadas:<br />

não esparramarse, fazer na dose certa;<br />

por derecho, fazer qualquer que fazer,<br />

e o do ser, com a incorrupção da reta;<br />

com nervio, dar a tensão ao que se faz<br />

da corda de arco e a retensão da seta;<br />

pies claros, qualidade de quem dança,<br />

se bem pontuada a linguagem da perna.<br />

(Coisas de cabeceira somam: exponerse,<br />

fazer no extremo, onde o risco começa).<br />

(MELO NETO, 1986, p.18)<br />

Como já observamos anteriormente, a linguagem que dá a ver a “mais espanhola<br />

das cidades da Espanha” tem no cantar cigano as suas “formas nítidas”. Linguagem<br />

contida, bem marcada, como passos de uma dança flamenca. Nesse falar “bem pontuado”,<br />

o poeta , transforma a cidade em mulher e vice-versa:<br />

A urbanização do regaço<br />

Os bairros mais antigos de Sevilha<br />

criaram uma urbanização do regaço,<br />

para quem, em meio a qualquer praça,<br />

sente o olho de alguém a espioná-lo,<br />

para quem sente nu no meio da sala<br />

e se veste com os cantos retirados.<br />

Com ruas feitas em pedaços de rua<br />

se agregando mal, por mal colados,<br />

com ruas feitas apenas com esquinas<br />

e por onde o caminhar fia quadrado,<br />

eles têm abrigos e íntimos de corpo<br />

nos recantos em desvão e esconsados.<br />

*<br />

Com ruas medindo corredores de casa,<br />

onde um balcão toca o do outro lado,<br />

com ruas arruelando mais, em becos<br />

ou alargando, mas em mínimos largos,<br />

os bairros mais antigos de Sevilha<br />

criam o gosto pelo regaço urbanizado.<br />

Eles têm o aconchego que a um corpo<br />

dá estar noutro, interno ou aninhado,<br />

189


para quem torce a avenida devassada<br />

e enfia o embainhamento de um atalho,<br />

para quem quer, quando fora de casa,<br />

seus dentros e reguardos de quarto.<br />

(MELO NETO, 1986, p.36)<br />

Apaixonado pelas ruas, pela luz, pelo clima da cidade, o poeta capta a atmosfera<br />

romântica de Sevilha, através de recortes sensoriais, mediados pelo olho, toque e gosto.<br />

Sobre sua paixão por Sevilha, escreveu “Sevilhizar o mundo”:<br />

Como é impossível, por enquanto,<br />

civilizar toda a terra,<br />

o que não veremos, verão,<br />

de certo, nossas tetranetas<br />

infundir na terra esse alerta,<br />

fazê-la uma enorme Sevilha,<br />

que é a contra-pelo, onde uma viva<br />

guerrilha do ser, pode a guerra.<br />

(MELO NETO, 1997, p.366)<br />

Vale ressaltar que Sevilha é cenário para três das mais famosas óperas da história.<br />

Carmen, de Georges Bizet, a cigana destruidora de corações, funcionária da fábrica de<br />

tabacos da cidade; de o Barbeiro de Sevilha, que cantava nas praças do Bairro de Santa<br />

Cruz e Don Juan, de Tirso de Molina, que percorria as estreitas ruas em busca de suas<br />

vítimas. Quaderna (1956-1959) é o livro em que a imagem da cidade de Sevilha é<br />

apresentada também como símbolo do aconchego e da sensualidade do mundo e da mulher:<br />

Sevilha<br />

§A cidade mais bem cortada<br />

que vi, Sevilha;<br />

cidade que veste o homem<br />

sob medida.<br />

190


Justa ao tamanho do corpo<br />

ela se adapta,<br />

branda e sem quinas, roupa<br />

bem recortada.<br />

Cortada só para um homem,<br />

não todo o humano;<br />

só para o homem pequeno<br />

que é o sevilhano.<br />

Que ao sevilhano Sevilha<br />

tão bem se abraça<br />

que é como se fosse roupa<br />

cortada em malha.<br />

§Ao corpo do sevilhano<br />

toda se ajusta<br />

e ao raio de ação do corpo,<br />

ou sua aventura.<br />

Nem com os gestos de corpo<br />

nunca interfere,<br />

qual roupa ou cidade que é<br />

cortada em série.<br />

Sempre à medida do corpo<br />

pequeno ou pouco:<br />

ao tecto baixo de míope,<br />

aos pés do coxo.<br />

Nunca tem panos sobrando<br />

nem bairros longe;<br />

sempre ao alcance do pé<br />

que não tem bonde.<br />

§O sevilhano usa Sevilha<br />

com intimidade,<br />

como se só fosse a casa<br />

que ele habitasse.<br />

Com intimidade ele usa<br />

ruas e praças;<br />

com intimidade de quarto<br />

mais que de casa.<br />

Com intimidade de roupa<br />

mais que de quarto;<br />

com intimidade de camisa<br />

mais que casaco.<br />

E mais que intimidade,<br />

até com amor,<br />

como um corpo que se usa<br />

pelo interior.<br />

191


§O modelo não é indicado<br />

é a nenhum nórdico:<br />

lhe ficará muito curto<br />

e ele incômodo.<br />

Ele ficará tão ridículo<br />

como um automóvel,<br />

dos que ali, elefânticos,<br />

tesos, se movem,<br />

nas ruas que o sevilhano<br />

fez par si mesmo,<br />

pequenas e íntimas para<br />

seu aconchego,<br />

sevilhano em que se encontra<br />

ainda o gosto<br />

de ter a vida à medida<br />

do próprio corpo.<br />

(MELO NETO, 1986, p.166)<br />

Por outro lado, o poeta consegue evidenciar no texto a mistura de origens presente<br />

tanto na arquitetura quanto no ritmo das palmas das dançarinas de flamenco, que parece<br />

resumir, num lamento coletivo, a dramaticidade da alma andaluza. Sevilha tem uma cor, é<br />

vermelha, a cor dos mistérios fascinantes, da sensualidade, do fogo. Tem uma música, o<br />

cante flamenco, cante “lamento mais gemido” que “acaba em explosão.(MELO NETO,<br />

1997, p.47)<br />

Finalmente, em Andando Sevilha (1987-1989), o espaço sevilhano, ao contrário das<br />

grandes metrópoles, é configurado como o espaço ideal, que supre todas as necessidades<br />

humanas:<br />

Sevilha e o progresso<br />

Sevilha é a única cidade<br />

que soube crescer sem matar-se.<br />

Cresceu do outro lado do rio,<br />

cresceu ao redor, como os circos,<br />

conservando puro seu centro,<br />

intocável, sem que seus de dentro<br />

192


tenham perdido a intimidade:<br />

que ela só, entre todas cidades,<br />

pode o aconchego de mulher,<br />

pode o macio existir do mel,<br />

que outrora guardava nos pátios<br />

e hoje é de todo antigo bairro.<br />

(MELO NETO, 1997, p.384)<br />

À medida que “anda” poeticamente por Sevilha, o poeta vai fazendo com que o<br />

movimento se inverta e a cidade passe a desfilar diante de seus olhos, revelando os seus<br />

mistérios e belezas. É um lugar onde vive um povo de espírito guerreiro, como foram os<br />

antigos gregos, fenícios, celtas e romanos. Há a devoção do cristianismo medieval, a magia<br />

dos ciganos, a inteligência dos judeus, o sentimento refinado dos árabes muçulmanos. Em<br />

Sevilha o renascimento se funde com o barroco e a descoberta das Américas com o<br />

modernismo contemporâneo.<br />

Portanto, se para João Cabral, a “poesia se dirige à inteligência, através dos sentidos”,<br />

ao longo de sua trajetória pelo espaço espanhol percebemos a maneira como aquela<br />

realidade foi sentida pelo poeta. Conversas com pessoas da cidade, descrição de paisagens,<br />

de monumentos, audição da música flamenca, cheiro das laranjeiras que ornamentam, tudo<br />

isso foi cantado em versos pelo poeta nordestino.<br />

Enfim, o que podemos depreender desse percurso é que essa é uma poesia que, como<br />

nos lembra Benedito Nunes (2001),<br />

canta menos e conta mais. Ela narra e dramatiza no empenho didático de ''dar a<br />

ver'' o que é e o que há. Divide-se sem partir-se numa voz alta para aglomerados<br />

de feira, sua ''segunda água'', fluvial (Morte e vida severina, p.ex.), e uma voz<br />

baixa da câmara, a ''primeira água'' (Uma faca só lâmina, p.ex.), cisterna que é a<br />

sede do próprio leitor avançando pelos meandros do texto para sorvê-lo.<br />

193


Esta é uma poesia agônica, como nos lembra o crítico, aquela que vive lutando<br />

consigo mesma e contra si mesma. Morrendo e renascendo, oferecendo ao seu leitor a<br />

experiência de um perpétuo recomeço, já que se refaz em cada imagem, se reorganiza em<br />

cada verso, na continuidade de uma mesma linguagem renovada.<br />

194


CONSI<strong>DE</strong>RAÇÕES FINAIS<br />

A proposta geral desta tese foi de inter-relacionar a poesia de João Cabral de<br />

Melo Neto às artes espanholas. O longo caminho que percorremos confirmou que há um<br />

diálogo explícito do poeta com os escritores espanhóis. Com vistas a reafirmar a<br />

autenticidade desses diálogos, empreendemos a tarefa de evidenciar os modos como<br />

acontecem em João Cabral. Concluímos que tal intercurso deve ser visto, sobretudo, a partir<br />

de três fundamentos teóricos: a ênfase dada ao aspecto visual e concreto da linguagem; a<br />

preocupação com o regional; o aproveitamento de motivos espanhóis como possibilidade<br />

estética.<br />

Em relação à preponderância da imagem visual, observamos, nas duas partes da tese,<br />

que João Cabral propõe, inicialmente, um diálogo com algumas estéticas que marcaram as<br />

artes do início do século XX, como o Cubismo e o Construtivismo. Nesse contexto,<br />

pudemos observar o trânsito da poesia cabralina por outras linguagens artísticas, sobretudo<br />

pelos procedimentos adotados nas artes plásticas.<br />

Através da análise de algumas poesias do autor, principalmente daquelas<br />

pertencentes à primeira fase de sua poética, pudemos comprovar que João Cabral parte do<br />

princípio da “visualização-concreção”, a fim de fazer “falar a espessura concreta do objeto,<br />

guinada da linguagem que se auto-define como um falar com coisas aspirando ao falar das<br />

coisas”, como observa Barbieri (1997, p.16).<br />

Nessa perspectiva, o poeta alcança o novo tipo de composição artística que a<br />

modernidade exige, ou seja, aquele resultante do “trabalho do artista” no que se refere à<br />

possibilidade de, diante do fenômeno artístico, possibilitar ao leitor uma atitude de<br />

195


gratuidade, de contemplação diante do texto, sem idéias preconcebidas, a fim de adentrar<br />

no espaço das sensações, percorrer o dentro e o fora da linguagem. Esta é a base da poesia<br />

que atinge a “inteligência através dos sentidos”, resultante de um olhar estético que difere<br />

do olhar do racionalismo cartesiano por desfazer a distinção sujeito-objeto, ao integrar “o<br />

que apreende com o que é apreendido”, como lembra Leyla Perrone-Moisés (NOVAES,<br />

1988) 84 . Assim, essa experiência estética, vivenciada pelo autor-leitor, pressupõe a<br />

dominância do sentido da visão sobre os demais sentidos.<br />

Cientes de que esse aspecto, o visual, é considerado por muitos críticos como o<br />

“ponto diretriz de sua estética, marcada pela presença do elemento espacial no corpo de<br />

seus poemas e na área de seus interesses intelectuais”, como ressalta Antônia T. Herrera<br />

(1995, p.151), constatamos que o processo da visualização atinge as quatro dimensões do<br />

discurso: morfológica, sintática, sonora e semântica.<br />

No plano morfológico, através do uso de neologismos, os quais nos remetem aos<br />

espaço nordestino e espanhol. No sintático, o texto é organizado de tal maneira que as<br />

repetições, os paralelismos, os encadeamentos, os desdobramentos das metáforas inscrevem<br />

movimento ao texto, instaurando um processo de semiose infinita, no plano semântico. No<br />

seu aspecto sonoro, a palavra cabralina recupera a fala contundente e áspera do sertão<br />

nordestino, ao mesmo tempo em que situa o fio agudo do cante flamenco.<br />

No sentido de alcançar essa “realidade visual ou visualizável”, além do<br />

aproveitamento de recursos das artes plásticas, constatamos que João Cabral propõe uma<br />

84 É nessa perspectiva que Leyla Perrone-Moisés (1988) classifica o olhar de Alberto Caeiro, heterônimo de<br />

Fernando Pessoa. A pesquisadora chama a atenção para a proximidade desse olhar objetivo com o olhar<br />

proposto pelas filosofias orientais. De acordo com a autora, “Um famoso mestre zen dizia : ‘Logo que<br />

começas a pensar numa coisa, ela deixa de ser. Precisas vê-la imediatamente, sem raciocinar, sem hesitar’.”<br />

(1988, p. 335)<br />

196


analogia com os procedimentos da dança e do cante flamenco, caracterizados por ele<br />

mesmo como sendo essencialmente visuais: “A música andaluza se associa a movimento de<br />

dança, torna-se visual. Aí eu gosto.”(MELO NETO, 1982) Assim, a poesia cabralina<br />

torna-se “uma poesia de fanopéia”, tal como propõe Cesário Verde em Portugal e García<br />

Lorca, na Espanha, como ressalta o próprio João Cabral.(MELO NETO, 1989)<br />

Quanto ao aproveitamento de elementos regionais, observamos, sobretudo na<br />

segunda parte da pesquisa, que em nenhum momento João Cabral abdica da preocupação<br />

com o fazer literário, uma vez que vai buscar nos clássicos espanhóis a linguagem que o<br />

ajudará a “escrever para o povo”. De o “Poema do Cid” a Gonzalo de Berceo e ao Século<br />

de Ouro, até a Geração de 27, tudo impressiona o poeta pernambucano, fazendo com que<br />

estude os espanhóis “verdadeiramente anos a fio”.(MELO NETO, 1966)<br />

O poeta lembra em seus depoimentos que a convivência com a cultura espanhola<br />

dá-lhe “um afastamento suficiente, não excessivo, para poder escrever sobre o Nordeste”, e<br />

a carreira diplomática liberta-o do que chama de provincianismo de muitos de seus<br />

contemporâneos.(Ibidem) Desse modo, João Cabral prioriza a comunicação com o leitor,<br />

sem abandonar o que João Alexandre Barbosa chama de “princípio da imitação da<br />

forma”(1975, p.224)<br />

No que concerne ao aproveitamento de motivos espanhóis, constatamos, também na<br />

segunda parte, que, primeiramente, João Cabral deixa-se seduzir pelas paisagens femininas<br />

da Espanha, sem perder de vista os espaços masculinos de seu sertão nordestino. Quanto<br />

mais o poeta freqüenta a geografia espanhola, mais aumenta o seu fascínio pela corrida de<br />

touros, pela dança e pela música andaluzas. Esse encantamento de João Cabral confunde o<br />

leitor crítico, o qual começa a pressentir o retorno do poeta à tradição lírica que sempre<br />

197


desprezou 85 , ou então passa a justificar a postura final do poeta em função do momento em<br />

que a obra é produzida, como se todo o percurso anterior perdesse sentido diante de tanta<br />

sensibilidade. 86<br />

A despeito dessas suposições, importa acentuar que, com os espanhóis, João Cabral<br />

aperfeiçoa o seu cante a palo seco, a ponto de torná-lo um “grito mais extremo”, que “tem<br />

de subir mais alto/ que onde sobe o silêncio;”(MELO NETO,1989, p.163). Além do mais,<br />

alguns toureiros ensinam o poeta a “domar a explosão [da flor]/com mão serena e contida/<br />

sem deixar que se derrame/ a flor que traz escondida”(MELO NETO,1989, p.259); o<br />

ferrageiro de Carmona dá-lhe a receita de “forjar: domar o ferro à força,/ não até uma flor<br />

já sabida,/ mas ao que pode ser flor se flor parece a quem o diga”(MELO NETO,1997,<br />

p.289) e os cantores do flamenco, acompanhados de suas bailadoras, mostram que entre<br />

poeta, poesia e leitor tem que haver “intimidade,/ assim no cante que no baile”, pois o poeta<br />

quer uma poesia “que se funciona para o próximo,/ quer um próximo conivente”. (MELO<br />

NETO,1997, p.384)<br />

Talvez a questão mais importante que devemos considerar acerca de João Cabral é<br />

85 Essa é a opinião de Carlos Felipe Moisés, no seu ensaio”Tradição reencontrada: lirismo e antilirismo em<br />

João Cabral: “Romper com a tradição obriga a seguir rompendo indefinidamente, e obriga ao mesmo tempo<br />

conviver para sempre com ela, vale dizer, com o lado indesejado de si mesmo. Para sempre ou até cansar, ou<br />

até que a intransigência ceda. Ceder não seria contrariar a coerência interna daquela poética do rigor? Insistir<br />

até cansar não seria uma forma de violentação? O fato é que a personalidade integral do poeta já não esconde<br />

mais que é constituída também de um lado sombrio, egoísta, sentimental. Por isso o confessionalismo, o autobiografismo,<br />

o tom memorialístico e saudosita dos últimos livros. O subjetivismo declarado, enfim, e não<br />

apenas subentendido.”<br />

86 É o caso de Ivan Junqueira que, no seu discurso de posse na Academia Brasília de Letras, alega que João<br />

Cabral termina a sua obra aos 45 anos, baseando-se no seguinte depoimento de Cabral a Rubem Braga em<br />

1976: "Considero minha obra acabada aos 45 anos. Não no sentido de que não escreverei mais, nem no de que<br />

não publicarei mais. Sim, no sentido de que não me sinto responsável pelo que escrevi e escreverei (talvez)<br />

depois dos 45 anos (...). Mas o que escrevi e talvez escreverei depois de A educação pela pedra é coisa que<br />

escrevi sem a mesma consciência, ou lucidez, do que escrevi antes. Gostaria de ser julgado pelo que escrevi<br />

até os 45 anos. Gostaria de ser considerado um autor póstumo: procurarei ignorar o que dizem, o que acham<br />

do que ainda posso fazer (e do que fiz depois dos 45 anos; isto é, depois de A educação pela pedra). Não sinto<br />

mais em mim a energia que precisei usara para escrever o pouco que escrevi até então.”<br />

198


que a sua proposta de recriação de novas formas de produção cultural e de diferentes meios<br />

de transmissão de um mesmo tema radica-se nos seus intercursos semióticos. Acreditamos<br />

que esses jogos de linguagem oferecem aos leitores contemporâneos possibilidades de<br />

melhor compreensão das chamadas poéticas da modernidade.<br />

Lembramos que o nosso propósito de ler a poesia de João Cabral a partir de suas<br />

relações com outras linguagens artísticas justificou-se na medida em que permitiu mais uma<br />

reflexão sobre os fundamentos do lirismo intelectual do poeta em estudo, os quais são<br />

geralmente tratados na perspectiva da ruptura, isto é, em contraposição à tradição da poesia<br />

brasileira. Apesar de esta proposta de leitura da poesia cabralina em sua relação com as<br />

artes espanholas ousar os primeiros passos, sabemos que um brevíssimo passeio pela<br />

fortuna crítica do poeta em tela confirma a pertinência das idéias que desejamos<br />

aprofundar, principalmente no que concerne à valorização de um tipo de objetividade<br />

marcada pela dimensão visual de suas imagens. A despeito disso, estamos cientes que esse<br />

tema demanda novas investigações, uma vez que, no decorrer da pesquisa, vislumbramos<br />

novas possibilidades de diálogos com escritores espanhóis não mencionados e com artistas<br />

em geral de várias nacionalidades.<br />

Por fim, queremos justificar, nessas considerações finais, o enfoque dado ao<br />

processo de percepção do texto cabralino, numa perspectiva fenomenológica. Conforme<br />

anunciamos na introdução da tese, a nossa trajetória de pesquisa partiu da leitura minuciosa<br />

de poemas, textos críticos, entrevistas, depoimentos e correspondências do poeta. Nesse<br />

sentido, assumimos o lugar de leitor de João Cabral, tentando ser parte ativa no processo.<br />

Em virtude desse procedimento, temos consciência de nossos erros e acertos ao<br />

fazer assertivas. Acreditamos que tais erros e acertos, no entanto, refletem as oscilações de<br />

nossas experiências estéticas diante de uma poética que, a cada leitura, instaura, pela lógica<br />

199


de sua organização, várias possibilidades de abordagem. Em momento nenhum nos<br />

esquecemos de que a poesia cabralina exige do leitor, “mais do que atenção aguçada e<br />

concentração interrogante”, como ressalta Ivo Barbieri (1997, p. 37), mas a contemplação<br />

direta, o corpo-a-corpo com a palavra, a fim de que esta se apresente diante de nós como<br />

algo vivo, que provoque em nós um efeito capaz de nos situar no mundo de forma incisiva,<br />

sem qualquer constrangimento.<br />

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SAVIOLI, Francisco Platão e FIORIN, José Luiz. Para entender o texto: leitura e redação.<br />

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VALÉRY, Paul. Variedades. Trad. Maiza Martins de Siqueira. São Paulo: Iluminuras,1991.<br />

VALÉRY, Paul. Eupalinos ou o arquiteto. Trad. Olga Reggiani. São Paulo: Ed.34, 1996.<br />

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210


B) WEBLIOGRÁFICAS<br />

Sobre o autor<br />

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em: http://www.geocities.com/Athens/6526/escol3.html.Acesso em 25/06/1999.<br />

MARTINS, Wilson. Cabral por ele mesmo. Depoimentos apresentados, Jornal de Poesia.<br />

Disponível em: http://www.secrel.com.br/jpoesia/lwmartins08c.htm.l.<br />

Acesso em 17/06/1999.<br />

MARTINS, Wilson. A uniformidade dos paradoxos cabralinos. Jornal O Globo, Caderno<br />

Prosa & Verso. Disponível em: http://www.secrel.com.br/jpoesia/wilson08.html.<br />

Acesso em 17/06/1999.<br />

MOISÉS, Carlos Felipe. Tradição reencontrada – lirismo e antilirismo em João Cabral.<br />

Disponível em: .http.//www.secrel.com.br/jpoesia/cfmo02.html.Acesso em 26/06/1999.<br />

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http://www.imaginario.com.br/artigo/a0031_a0060/a0059.shtml.Acesso em 04/12/2006o de<br />

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TAPIA, Nicolás Extremera “Espanha na poesia de João Cabral de Melo Neto”. Revista<br />

Eletrônica Rio Total, Opinião Acadêmica, nº 382, 20 ago 2004. [online] Disponível<br />

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Gerais<br />

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http://www.miguelhernandezvirtual.com/obra/obra.htm. Acesso em 14/08/2005.<br />

Acesso em 14/08/2005.<br />

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http://members.xoom.com/-XMCM/sflamenco/historia.htm. Acesso em 23/03/00.<br />

JUNQUEIRA, Ivan. Discurso de posse na Academia Brasileira de Letras. [online]<br />

Disponível em:<br />

http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=656&sid=338&tpl=pri<br />

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MONTEIRO, Vicente do Rego. Vicente do Rego Monteiro: pintor e poeta. Rio de Janeiro:<br />

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http://www.geocities.com/Vienna/8172/raizes.html. Acesso em 05/04/00.<br />

VENTURA,Zuenir. Homem ainda é a melhor medida - A educação política pela poética de<br />

João Cabral”, disponível em http://epoca.globo.com/edic/19991018/zuenir.htm. Acesso em<br />

14/08/2005.<br />

Documentários consultados<br />

Duas Águas- João Cabral de Melo Neto; Realização: TV Cultura- 1997; Apoio de<br />

Produção: Canal Sur- Sevilha; Roteiro e Direção: Cristina Fonseca; Produção: Alejandra<br />

Hope e Lina Murano; Pesquisa Iconográfica: Nerci Ferrari e Lina Murano; Iluminação:<br />

Roni Robson da Costa; Áudio: Isac de Mello; Imagens: Elizeu Ferreira; Edição: Carlos<br />

Henrique Carvalho e Cristina Fonseca; Edição de Imagem: Marcelo Stella; Pós-Produção:<br />

Antonio A. Gomes e Dario de Oliveira; Trilha Sonora: Péricles Cavalcanti; Trilha de<br />

Abertura: David Tygel; Poemas (voz) : Arnaldo Antunes<br />

212


Anexo 01<br />

“A Palo Seco”<br />

A R. Santos Torroella<br />

1.1. Se diz a palo seco<br />

o cante sem guitarra;<br />

o cante sem; o cante;<br />

o cante sem mais nada;<br />

se diz a palo seco<br />

a esse cante despido:<br />

ao cante que se canta<br />

sob o silêncio a pino.<br />

1.2. O cante a palo seco<br />

é o cante mais só:<br />

é cantar num deserto<br />

devassado de sol;<br />

é o mesmo que cantar<br />

num deserto sem sombra<br />

em que a voz só dispõe<br />

do que ela mesma ponha.<br />

1.3. O cante a palo seco<br />

é um cante desarmado:<br />

só a lâmina da voz<br />

sem a arma do braço;<br />

que o cante a palo seco<br />

sem tempero ou ajuda<br />

tem de abrir o silêncio<br />

com sua chama nua.,<br />

1.4. O cante a palo seco<br />

não é um cante a esmo:<br />

exige ser cantado<br />

com todo o ser aberto;<br />

é um cante que exige<br />

ANEXOS<br />

ANEXO A: POEMAS<br />

o ser-se ao meio-dia,<br />

que é quando a sombra foge<br />

e não medra a magia.<br />

2.1.O silêncio é um metal<br />

de epiderme gelada,<br />

sempre incapaz das ondas<br />

imediatas da água;<br />

a pele do silencio<br />

pouca coisa arrepia:<br />

o cante a palo seco<br />

de diamante precisa.<br />

2.2. Ou o silêncio é pesado,<br />

é um liquido denso,<br />

que jamais colabora<br />

nem ajuda com ecos;<br />

mais bem, esmaga o cante<br />

e afoga-o, se indefeso:<br />

a palo seco é um cante<br />

submarino ao silêncio.<br />

2.3. Ou o silêncio é levíssimo,<br />

é líquido sutil<br />

que se coa nas frestas<br />

que no cante sentiu;<br />

o silêncio paciente<br />

vagoroso se infiltra,<br />

apodrecendo o cante<br />

de dentro, pela espinha.<br />

2.4.Ou o silêncio é uma tela<br />

que difícil se rasga<br />

e que quando se rasga<br />

não demora rasgada;<br />

quando a voz cessa,<br />

se apressa em se emendar:<br />

213


tela que fosse de água,<br />

ou como tela de ar.<br />

3.1. A palo seco é o cante<br />

de todos mais lacônico,<br />

mesmo quando pareça<br />

estirar-se um quilômetro:<br />

enfrentar o silêncio<br />

assim despido e pouco<br />

tem de forçosamente<br />

deixar mais curto o fôlego.<br />

3.2. A palo seco é o cante<br />

de grito mais extremo:<br />

tem de subir mais alto<br />

que onde sobe o silêncio;<br />

é cantar contra a queda,<br />

é um cante para cima,<br />

em que se há de subir<br />

cortando, e contra a fibra.<br />

3.3. A palo seco é o cante<br />

de caminhar mais lento:<br />

por ser a contra-pêlo,<br />

por ser a contra-vento;<br />

é cante que caminha<br />

com passo paciente:<br />

o vento do silêncio<br />

tem a fibra de dente.<br />

3.4. A palo seco é o cante<br />

que mostra mais soberba;<br />

e que não se oferece:<br />

que se toma ou se deixa;<br />

cante que não se enfeita,<br />

que tanto se lhe dá;<br />

é cante que não canta,<br />

cante que aí está.<br />

4.1. A palo seco canta<br />

o pássaro sem bosque,<br />

por exemplo: pousado<br />

sobre um fio de cobre;<br />

a palo seco canta<br />

ainda melhor esse fio<br />

quando sem qualquer pássaro<br />

dá o seu assovio.<br />

4.2. A palo seco cantam<br />

a bigorna e o martelo,<br />

o ferro sobre a pedra,<br />

o ferro contra o ferro;<br />

a palo seco canta<br />

aquele outro ferreiro:<br />

o pássaro araponga<br />

que inventa o próprio ferro<br />

4.3. A palo seco existem<br />

situações e objetos:<br />

Graciliano Ramos,<br />

desenho de arquiteto,<br />

as paredes caiadas,<br />

a elegância dos pregos,<br />

a cidade de Córdoba,<br />

o arame dos insetos.<br />

4.4.Eis uns poucos exemplos<br />

se ser a palo seco,<br />

dos quais se retirar<br />

higiene ou conselho:<br />

não o de aceitar o seco<br />

por resignadamente,<br />

mas de empregar o seco<br />

porque é mais contundente.<br />

(MELO NETO, 1986, p.160-5)<br />

A Willy Lewin morto<br />

Se escrevermos pensando<br />

como nos está julgando<br />

alguém que em nosso ombro<br />

dobrado imaginamos,<br />

214


e é o primeiro que assiste<br />

ao enredado e incerto<br />

que é como no papel<br />

se vai nascendo o verso,<br />

e testemunha o aceso<br />

de quem está no estado<br />

do arqueiro quando atira,<br />

mais tenso que seu arco,<br />

foste ainda o fantasma<br />

que prele o que faço,<br />

e de quem busco tanto<br />

o sim e o desagrado.<br />

(MELO NETO, 1997, p.72-3)<br />

Joaquim Cardozo na Europa<br />

Ele foi um dos recifenses<br />

de menos ondes e onde mais,<br />

que em lisboas, madrids, paris,<br />

andou no Recife, seus cais.<br />

Como elas todas já sabia<br />

não foi turista ou visitante;<br />

não caminhou guias, programas:<br />

viveu-as de dentro, habitante.<br />

A guerra não o deixou andar<br />

outras que também lhe eram íntimas,<br />

que conhecera no Recife,<br />

habitando-as no espaço-língua.<br />

Confiou-me que se anda igualmente<br />

no cais do Apolo ou nos do Sena,<br />

que foi na Europa (não à Europa)<br />

como na Várzea ou Madalena.<br />

(MELO NETO, 1997, p.133-4)<br />

Cenas da vida de Joaquim Cardozo<br />

A tragédia grega e o mar do Nordeste<br />

Chega o Nordeste de Setembro:<br />

O Inverno se foi, com seus ventos.<br />

Tinham voz própria me dizia:<br />

com as ondas longo discutiam.<br />

Com o Inverno, acaba a temporada<br />

de teatro, a que ele não faltava,<br />

quando ainda engenheiro de campo<br />

arma, à noite, a tenda de pano.<br />

Dizia ouvir, marés inteiras,<br />

diálogos de tragédia grega:<br />

O vento e o mar se apostrofavam<br />

com vozes aos berros, de raiva,<br />

e com tal raiva, com tal nervo,<br />

que dispensava ler o texto.<br />

Dizia sentir o tremendo<br />

da tragédia, seu argumento,<br />

a que o murmurar dos coqueiros<br />

fazia o coro lastimeiro.<br />

Na maré-alta, o pleito sobe,<br />

na maré-baixa, baixa e morre.<br />

O teatro desses personagens<br />

que entoavam vozes sem face<br />

pensava algum dia escrever,<br />

dando ao som um texto que ler.<br />

Seguiria seu ritmo, enchendo-o,<br />

subindo e caindo no silêncio.<br />

Não é essa a curva das estórias?<br />

Não é esse o trajeto da História?<br />

(Não soube se escreveu tais peças.<br />

Talvez, pensando melhor nelas,<br />

achasse ocioso por palavras<br />

em formas vazias tão claras).<br />

Um poema sempre se fazendo<br />

Muito embora sua obra pequena,<br />

vivia escrevendo-se um poema:<br />

não no papel, mas na memória,<br />

um papel de pouca demora.<br />

Na memória, é fácil compor<br />

todo o dia, seja onde for:<br />

sentado, escritor, numa mesa,<br />

215


ou andando, entre a angústia e a pressa<br />

de uma cidade que abalroa,<br />

que exige de quem anda proa,<br />

onde quem anda entre choques<br />

ou se esgueira como quem foge.<br />

Cardozo levava seu poema:<br />

a poesia não leva a pena<br />

de fazê-la, a pena é abstrata,<br />

é o fazer, re-fazer, guardá-la.<br />

E nele vai sem romantismos:<br />

nem o de vir de paroxismos<br />

nem o mais de moda e moderno,<br />

de escalar fingidos infernos.<br />

Ele vivia com seu poema<br />

como outros vivem com sua crença:<br />

a dele é o poema do momento,<br />

que leva sem mudar de gênio.<br />

No Recife, em todas as horas,<br />

no Rio, quem melhor o ignora,<br />

eis como escrevia, me disse,<br />

o poeta que fez o Recife.<br />

Assim, não deu trabalho aos prelos:<br />

se sequer cuida de escrevê-los!<br />

Se só se alguém lhe pede um poema<br />

escreve algum que ainda lembra!<br />

O exilado indiferente<br />

A esse recifense de praias<br />

obrigam-no a deixar seu mapa:<br />

outro pernambucano, truão,<br />

(nada é do grego, Agamenão)<br />

disse que o não queria mais<br />

no espaço de que é capaz.<br />

Seqüestram-no amizades boas,<br />

às carreiras, para as Alagoas<br />

e, dos Maceiós, num navio<br />

vem viver federal, no exílio<br />

(que ele habitaria sem queixa,<br />

nunca de camarinha e mesa).<br />

De calça e paletó de amianto,<br />

ei-lo entre os cantados encantos,<br />

sem sentir que esse mar que o cerne<br />

é o Atlântico do Nordeste:<br />

de Guarabira, Pirangi,<br />

Carne de Vaca, Serrambi.<br />

Recifense, a um cria de engenho,<br />

ditou as canas de seu tempo,<br />

e impaciente, a um mestre-de-obras,<br />

que espera a planta há mais de uma hora,<br />

enquanto diz das sutilezas<br />

da poesia e escrita chinesas:<br />

“Qual, é inconcebível, meu caro,<br />

no Rio, onde o último é o trabalho,<br />

você quer preceder à antiga<br />

conversa de China e poesia.”<br />

Não canavieiro pernambucano,<br />

abria exceção para Campos.<br />

É em Campos que Maria Luísa<br />

e ele ouvem a chuva, sem camisa.<br />

Viagem à Europa e depois<br />

Antes da Guerra, fora à Europa.<br />

Bebeu-a até a última hora.<br />

Por cá, a poesia é sempre o dengue<br />

do falso índio, homossensualmente.<br />

No Nordeste, Freyre e a reação<br />

para trazer a bola ao chão.<br />

Mas é coisa de romancista<br />

não de política, polícia.<br />

Volta da Europa ao “Lafaiete”,<br />

como se inda ontem lá estivesse.<br />

Escreveu três poemas na Europa<br />

dois se apagaram na memória.<br />

Compõe alguns poemas, ainda,<br />

mas quase todos viram cinza,<br />

porque, completados, ninguém<br />

216


colhe da memória onde os tem.<br />

Eis talvez o melhor momento<br />

para ele, de seu desempenho:<br />

a Polícia, na mira, o tem;<br />

mas no “Lafaiete”entretém,<br />

e enquanto entretém, entretece,<br />

em sinal mais, quem lá aparece:<br />

é sem pregação, manifesto<br />

(e o gesto só o vê quem de perto);<br />

sabe o gesto sábio e ambíguo:<br />

é sempre com o mesmo sorriso<br />

que devolve o mau poema-sim<br />

e o fascista-sim porque sim.<br />

Assim viveu até que o Truão.<br />

Até que Oscar pôs-lhe nas mãos<br />

botar Brasília em pé. Qual a moeda?<br />

Deu-nos um novo Frei Caneca.<br />

(MELO NETO, 1997, p.321-5)<br />

Anexo 02<br />

Dentro da perda da memória<br />

A José Guimarães de Araújo<br />

Dentro da perda da memória<br />

uma mulher azul estava deitada<br />

que escondia entre os braços<br />

desses pássaros friíssimos<br />

que a lua sopra alta noite<br />

nos ombros nus de retrato.<br />

E do retrato nasciam duas flores<br />

(dois olhos dois seios dois clarinetes)<br />

que em certas horas do dia<br />

cresciam prodigiosamente<br />

para que as bicicletas de meu desespero<br />

corressem sobre seus cabelos.<br />

E nas bicicletas que eram poemas<br />

chegavam meus amigos alucinados.<br />

Sentados em desordem aparente,<br />

ei-los a engolir regularmente seus<br />

relógios<br />

enquanto o hierofante armado cavaleiro<br />

movia inutilmente seu único braço.<br />

(MELO NETO, 1986, p.376-7)<br />

Poema de desintoxicação<br />

Em densas noites<br />

com medo de tudo:<br />

de um anjo que é cego<br />

de um anjo que é mudo.<br />

Raízes de árvores<br />

enlaçam-me os sonhos<br />

no ar sem aves<br />

vagando tristonhos.<br />

Eu penso o poema<br />

da face sonhada,<br />

metade de flor<br />

metade apagada.<br />

O poema inquieta<br />

o papel e a sala.<br />

Ante a face sonhada<br />

o vazio se cala.<br />

Ó face sonhada<br />

de um silêncio de lua,<br />

na noite da lâmpada<br />

pressinto a tua.<br />

Ó nascidas manhas<br />

que uma fada vai rindo,<br />

sou o vulto longínquo<br />

de um homem dormindo.<br />

A Jarbas Pernambucano<br />

(MELO NETO, 1986, p.378)<br />

Poesia<br />

Ó jardins enfurecidos,<br />

pensamentos palavras sortilégio<br />

sob uma lua contemplada;<br />

jardins de minha ausência<br />

imensa e vegetal;<br />

ó jardins de um céu<br />

217


viciosamente freqüentado:<br />

onde o mistério maior<br />

do sol da luz da saúde?<br />

(MELO NETO, 1986, p.382)<br />

Composição<br />

Frutas decapitadas, mapas,<br />

aves que prendi sob o chapéu,<br />

não sei que vitrolas errantes,<br />

a cidade que nasce e morre,<br />

no teu olho a flor, trilhos<br />

que me abandonam, jornais<br />

que me chegam pela janela<br />

repetem gestos obscenos<br />

que vejo azerem as flores<br />

me vigiando em noites apagadas<br />

onde nuvens invariavelmente<br />

chovem prantos que não digo.<br />

(MELO NETO, 1986, p.382)<br />

Marinha<br />

Os homens e as mulheres<br />

adormecidos na praia<br />

que nuvens procuram agarrar?<br />

No sono das mulheres<br />

cavalos passam correndo<br />

em ruas que soam<br />

como tambores.<br />

Os homens têm espelhos de bolso<br />

onde os gestos das amadas<br />

(as amadas demoradas<br />

se repetem).<br />

Vi apenas que no céu do sonho<br />

a lua morta já não mexia mais.<br />

(MELO NETO, 1986, p.380)<br />

O Poeta<br />

No telefone do poeta<br />

desceram vozes sem cabeça<br />

desceu um susto desceu o medo<br />

da morte de neve.<br />

O telefone com asas e o poeta<br />

pensando que fosse o avião<br />

que levaria de sua noite furiosa<br />

aquelas máquinas em fuga.<br />

Ora, na sala do poeta o relógio<br />

marcava horas que ninguém vivera.<br />

O telefone nem mulher nem sobrado,<br />

ao telefone o pássaro-trovão.<br />

Nuvens porém brancas de pássaros<br />

acenderam a noite do poeta<br />

e nos olhos, vistos por fora, do poeta<br />

vão nascer duas flores secas.<br />

(MELO NETO, 1986, p.382-3)<br />

A André Masson<br />

Com peixes e cavalos sonâmbulos<br />

pintas a obscura metafísica<br />

do limbo.<br />

Cavalos e peixes guerreiros<br />

fauna dentro da terra a nossos pés<br />

crianças mortas que nos seguem<br />

dos sonhos.<br />

Formas primitivas fecham os olhos<br />

escafandros ocultam luzes frias;<br />

invisíveis na superfície pálpebras<br />

não batem.<br />

Friorentos corremos ao sol gelado<br />

de teu país de mina onde guardas<br />

o alimento a química o enxofre<br />

da noite.<br />

(MELO NETO, 1986, p.383-4)<br />

Ocorrências de uma sevilhana<br />

Me confiava uma sevilhana<br />

sem norte na grande Madrid:<br />

218


Nem sei de que lado é que vivo;<br />

só sei que é a três gritos daqui.<br />

Nada disso. Sou muito feia<br />

se pusessem nas mil-pesetas<br />

meu retrato, ninguém queria:<br />

nem de troco, as receberia.<br />

Olhando passar uma velha<br />

que dá na vista de tão suja:<br />

Aquela? nunca tomou banho,<br />

mesmo debaixo de uma ducha;<br />

se alguém a obrigar a duchar-se,<br />

abre na ducha um guarda-chuva.<br />

Num bar da Praça da Campana,<br />

umbigo de Sevilha e da Espanha;<br />

um não-andaluz, da calçada,<br />

levanta-se quando ela passa:<br />

Quié bien domiría contigo<br />

Resposta dela, como um tiro:<br />

Era tudo o que tu farias?<br />

Dormir?Terei cara de pílula?<br />

O que é que tu pensas de Franco?<br />

De que Franco?De Don Francisco?<br />

Imagina a serra do Alcor,<br />

baixinha mas toda em granito.<br />

Nunca ele soube distinguir<br />

quem Pepe Luís quem Manolete,<br />

nem saber se estavam cantando<br />

por fandanguillo ou martinete.<br />

Quando ele vinha por Sevilha<br />

nos faziam dançar, mas digo:<br />

o que lê gostava é de ver<br />

soleares dançadas por bispos.<br />

Tinha próprio dicionário<br />

e própria escada de valores,<br />

onde o degrau mais elevado<br />

era o que dizia salobre.<br />

Infundio nele não é mentira,<br />

coisa de frouxo fundamento:<br />

é o falso com imaginação,<br />

mentira talvez, mas com engenho.<br />

Nesse dicionário as palavras<br />

não deixam de ser entendidas,<br />

mas têm esses desvio mínimo<br />

que faz da língua murcha,viva.<br />

(MELO NETO, 1997, p.231)<br />

A entrevistada disse, na entrevista:<br />

Sou de Cádis, não de Sevilha.<br />

Mas isso é entre nós, não o diga.<br />

O que pode ser para alguém<br />

não nascer em Sevilha, e quem<br />

será capaz de confessar<br />

que nasceu num outro lugar?<br />

Quando a guerra civil bem quis<br />

voltei para onde não nasci.<br />

Sevilha?É o mais grande do mundo,<br />

é onde o alegre toca o profundo.<br />

Madrid?É o lugar onde vais dançar,<br />

mas há carros demais.<br />

Barcelona?Dançar é em vão,<br />

não aplaudem, sentam nas mãos.<br />

Coitados, são de uma outra gente.<br />

Não são?Mas querem que se pense.<br />

Vai para Marselha?Me lembro.<br />

A gente de lá, todo o tempo,<br />

vai e vem, vivendo nas ruas;<br />

não sei onde vai quando a chuva.<br />

Viver em Pernambuco?É longe.<br />

Aloísio falava cabonde<br />

de plantas de cana, de açúcar;<br />

lá tudo é doce ou são doçuras.<br />

219


Mas é longe, a mais de três gritos<br />

de Sevilha.Não vou por isso.<br />

Pernambuco para dançar?<br />

Bem que iria, se contrato há.<br />

A gente de lá, que vi aqui,<br />

diz que tem um Guadalquivir.<br />

Como é mesmo?Capibaribe?<br />

E a capital como é?O Recife?<br />

Por lá passou muito cigano?<br />

Então por que os pernambucanos<br />

sabem habitar tão de dentro<br />

nossa alma extrema, do flamenco?<br />

(MELO NETO,1997, p.235)<br />

Anexo 03<br />

Manolo Gonzáles<br />

Perguntavam muitos: “Porque<br />

tu toureias no extremo do ser,<br />

no limite entre a vida e a morte,<br />

como faz o toureiro pobre?<br />

Não pode fingir perigo,<br />

tourear buscando-se o tranqüilo?<br />

Porque tourear como toureias,<br />

como se fosse a vez primeira?”<br />

Se calava,quase menino,<br />

de cabelo louro de gringo,<br />

menino vestindo outro e prata,<br />

cores da morte celebrada.<br />

(MELO NETO,1997, p.375)<br />

Miguel Baez, “Litri”<br />

Ele toureava cada tarde<br />

num cara-coroa, um jogar-se.<br />

Não podia tourear um touro<br />

se não o fizesse corpo a corpo.<br />

Cada touro como que enrolava<br />

na cintura, como outra faixa,<br />

sem pensar como a despiria<br />

no fim da faena que fazia.<br />

Toureando, chamava a cornada<br />

que cada touro traz guardada,<br />

que não tem ora é sem receita,<br />

como todo touro é surpresa.<br />

(MELO NETO,1997, p.375-6)<br />

Campo de Tarragona<br />

Do alto da torre quadrada<br />

da casa de En Joan Miró<br />

o campo de Tarragona<br />

é mapa de uma só cor.<br />

É a terra da Catalunha<br />

terra de verdes antigos,<br />

penteada de avelã,<br />

oliveiras, vinha, trigo.<br />

No campo de Tarragona<br />

dá-se sem guardar desvãos:<br />

como planta de engenheiro<br />

ou sala de cirurgião.<br />

No campo de Tarragona<br />

(campo ou mapa o que se vê?)<br />

a face da Catalunha<br />

é mais clássica de ler.<br />

Podeis decifrar as vilas,<br />

constelação matemática,<br />

que o sol vai acendendo<br />

220


por sobre o verde de mapa.<br />

Podeis lê-las na planície<br />

como em carta geográfica,<br />

com seus volumes que ao sol<br />

têm agudeza de lâmina.<br />

podeis vê-las, recortadas,<br />

com as torres oitavadas<br />

de suas igrejas pardas,<br />

igrejas, mas calculadas.<br />

Girando-se sobre o mapa,<br />

desdobrado pelo chão<br />

ao pé da torre quadrada,<br />

se avista o mar catalão.<br />

É mar também sem mistério,<br />

é mar de medidas ondas,<br />

a prolongar o humanismo<br />

do campo de Terragona.<br />

Foram águas tão lavradas<br />

quanto os compôs catalães.<br />

Mas poucas velas trabalham,<br />

hoje, mar de tantas cãs.<br />

(MELO NETO,1986, p.253-4)<br />

Paisagem tipográfica<br />

Nem como sabe ser seca<br />

Catalunha no Montblanc;<br />

nem é Catalunha Velha<br />

sóbria assim em Camprodón.<br />

A paisagem tipográfica<br />

de Enric Tormo, artesão,<br />

é ainda bem mais simples<br />

que a horizontal do Ampurdán:<br />

é ainda mais despojada<br />

do que a vila de Cervera,<br />

compacta, delimitada<br />

como bloco na galera.<br />

A paisagem tipográfica<br />

de Enric Tormo, impressor,<br />

é melhor localizada<br />

em vistas de arte menor:<br />

na pobre paginação<br />

de Tarrasa e Sabadell,<br />

nas interlinhas estreitas<br />

das cidades do Vallés,<br />

nos bairros industriais<br />

com poucas margens em branco<br />

da Catalunha fabril<br />

composta em negro normando.<br />

Nas vilas em linhas retas<br />

feitas a componedor,<br />

nas vilas de vida estrita<br />

e impressas numa só cor<br />

(e onde às vezes se surpreende<br />

igreja fresca e romântica,<br />

capitular que não quebra<br />

o branco e preto da página)<br />

foi que achei a qualidade<br />

dos livros deste impressor<br />

e seu grávido ascetismo<br />

de operário (não de Dom).<br />

(MELO NETO,1986, p.260-1)<br />

“Crime na Calle Relator”<br />

“Achas que matei minha avó?<br />

O doutor à noite me disse:<br />

ela não passa desta noite;<br />

melhor para ela,tranqüilize-se.<br />

À meia-noite ela acordou;<br />

não de todo, a sede somente;<br />

e pediu: Dáme pronto, hijita,<br />

una poquita de aguardiente.<br />

Eu tinha só dezesseis anos;<br />

só, em casa com a irmã pequena:<br />

como poder não atender<br />

a ordem da avó de noventa?<br />

221


Já vi gente ressuscitar<br />

como simples gole de cachaça<br />

e arrancarse por bulerías<br />

gente da mais encorujada.<br />

E mais: se o doutor já dissera<br />

que da noite não passaria<br />

por que negar uma vontade<br />

que a um condenado se faria?<br />

Fui a esse bar do Pumarejo<br />

quase esquina de San Luís;<br />

comprei de fiado uma garrafa<br />

de aguardente (cazalla e anis)<br />

que lhe dei cuidadosamente<br />

como uma poção de farmácia,<br />

medida, como uma poção,<br />

como não se mede a cachaça;<br />

que lhe dei com colher de chá<br />

como remédio de farmácia:<br />

Hijita, bebi lo bastante,<br />

Disse com ar de comungada.<br />

Logo então voltou a dormir<br />

sorrindo em si como beata,<br />

um semi-sorriso de gracias<br />

aos santos óleos da garrafa.<br />

De manhã acordou já morta,<br />

e embora fria e de madeira,<br />

tinha defunta o riso ainda<br />

que a aguardente lhe acendera.”<br />

(MELO NETO,1997, p.281-2)<br />

Anexo 04<br />

O sim contra o sim<br />

Miró sentia a mão direita<br />

demasiado sábia<br />

e que de saber tanto<br />

já não podia inventar nada.<br />

Quis então que desaprendesse<br />

o muito que aprendera,<br />

a fim de reencontrar<br />

a linha ainda fresca da esquerda.<br />

Pois que ela não pôde, ele pôs-se<br />

a desenhar com esta<br />

até que, se operando,<br />

no braço direito ele a enxerta.<br />

A esquerda (se não é canhoto)<br />

é mão sem habilidade:<br />

reaprende a cada linha,<br />

cada instante, a recomeçar-se.<br />

(MELO NETO, 1986, p.58)<br />

Anexo 05<br />

De Bernarda a Fernanda de Utrera<br />

A Jatyr de Almeida Rodrigues<br />

Bernarda de Utrera arranca-se o cante<br />

quando a brasa chama a si as chamas;<br />

quando ainda brasa, no entanto quando,<br />

chamado a si o excesso, se desinflama:<br />

Ela usa a brasa íntima no quando breve<br />

em que, brasa apenas e em brasa viva,<br />

arde numa dosagem exata de si mesma:<br />

brasa estritamente brasa, inexcessiva.<br />

Fernanda de Utrera arranca-se o cante<br />

quando a brasa extenuada já definha;<br />

quando a brasa resfriada já se recobre<br />

com o cobertor ou as plumas da cinza.<br />

Ela usa a brasa íntima no quando longo<br />

em que rola calor abaixo até a pedra;<br />

no da brasa em pedra, no da brasa do<br />

[frio:<br />

Para daí reacendê-la, e contra a queda.<br />

(MELO NETO,1986, p.15-6)<br />

Uma bailadora sevilhana<br />

Como e por que sou bailadora?<br />

222


Quando era menina e moça<br />

tinha comprida cabeleira<br />

que me vinha até as cadeiras.<br />

Me diziam: com essas tranças<br />

não pode não votar-se à dança.<br />

Então, me ensinam a dançar.<br />

Sou? O que não pude decorar.<br />

Vendo famosa bailadora:<br />

ei-la apagada, quase mocha.<br />

Não te agrada F... de Tal,<br />

que todo dia sai no jornal?<br />

Não gosto: dança repetido;<br />

dança sem se expor, sem perigo;<br />

dançar flamenco é cada vez;<br />

é fazer; é um faz, nunca um fez.<br />

(MELO NETO,1997,p.233)<br />

Mulher vestida de gaiola<br />

Parece que vives sempre<br />

de uma gaiola envolvida,<br />

isenta, numa gaiola,<br />

de uma gaiola vestida,<br />

de uma gaiola, cortada<br />

me tua exata medida<br />

numa matéria isolante:<br />

gaiola-blusa ou camisa.<br />

E assim como tu<br />

nessa gaiola,cingida,<br />

o vasto espaço que sobra<br />

de tua gaiola-ilha<br />

é como outra gaiola<br />

igual que o mar: sem medida<br />

e aberto em todos os lados<br />

(menos no que te limita).<br />

Pois nessa gaiola externa<br />

onde tudo tem cabida,<br />

onde cabe Pernambuco<br />

e o resto da geografia,<br />

três bilhões de humanidade<br />

e até canaviais de usina<br />

sei que se debate um pássaro<br />

que a acha pequena ainda.<br />

Tal gaiola para ele<br />

mais do que gaiola é brida;<br />

como cárcere lhe aperta<br />

sua gaiola infinita<br />

e lhe aperta exatamente<br />

por essa parede mínima<br />

em que sua gaiola-mundo<br />

com a tua az divisa.<br />

Contra essa curta parede<br />

entre ti e ele contígua,<br />

que te defende e para ele<br />

é de força, se é camisa,<br />

todo o dia se debate<br />

a sua força expansiva<br />

(não de pássaro, de enchente,<br />

de enchente do mar de Olinda).<br />

Por que ele a quem sua gaiola<br />

de outros lados não limita,<br />

deseja invadir o espaço<br />

de nada que tu lhe tiras?<br />

por que deseja assaltar<br />

precisamente a área estrita<br />

da gaiola em que resides,<br />

melhor: de que estás vestida?<br />

(MELO NETO,1986, p.176-8)<br />

Uma ouriça<br />

Se o de longe esboça lhe chegar perto, se<br />

fecha (convexo integral de esfera),<br />

se eriça (bélica e multiespinhenta):<br />

223


e esfera e espinho, se ouriça à espera.<br />

Mas não passiva (como ouriço na loca)<br />

nem só defensiva (como se eriça o<br />

[gato);<br />

sim agressiva (como jamais o ouriço), do<br />

agressivo capaz de bote, de salto (não do<br />

salto para trás, como o gato):<br />

daquele capaz do salto para o assalto.<br />

2.<br />

Se o de longe lhe chega em (de longe),<br />

de esfera aos espinhos, ela se desouriça.<br />

Reconverte: o metal hermético e<br />

[armado<br />

na carne de antes (côncava e propícia), e<br />

as molas felinas (para o assalto),<br />

nas molas em espiral (para o abraço).<br />

MELO NETO,1986, p.21)<br />

Paisagem pelo telefone<br />

Sempre que no telefone<br />

me falavas,eu diria<br />

que falavas de uma sala<br />

toda de luz invadida,<br />

sala que pelas janelas,<br />

duzentos, se oferecia<br />

a alguma manhã de praia,<br />

mais manhã porque marinha,<br />

a alguma manhã de praia<br />

no prumo do meio-dia,<br />

meio-dia mineral<br />

de uma praia nordestina,<br />

Nordeste de Pernambuco,<br />

onde as manhãs são mais limpas,<br />

Pernambuco do Recife,<br />

de Piedade, de Olinda,<br />

sempre povoado de velas,<br />

brancas, ao sol estendidas,<br />

de jangadas, que são velas<br />

mais brancas porque salinas,<br />

que, como muros caiados<br />

possuem luz intestina,<br />

pois não é o sol quem as veste<br />

e tampouco as ilumina,<br />

mais em, somente as desveste<br />

de toda sombra ou neblina,<br />

deixando que livres brilhem<br />

os cristais que dentro tinham.<br />

Pois, assim, no telefone<br />

tua voz me parecia<br />

como se de tal manhã<br />

estivesses envolvida,<br />

fresca e clara, como se<br />

telefonasses despida,<br />

ou, se vestida, somente<br />

de roupa de banho, mínima,<br />

e que por mínima, pouco<br />

de tua luz própria tira,<br />

e até mais, quando falavas<br />

no telefone, eu diria<br />

que estavas de todo nua,<br />

só de teu banho vestida,<br />

que é quando tu estás mais clara<br />

pois a água nada embacia,<br />

sim, como o sol sobre a cal<br />

seis estrofes mais acima,<br />

a água clara não te acende:<br />

libera a luz que já tinhas.<br />

(MELO NETO,1986, p.134)<br />

Sevilha ao telefone<br />

Falo a Sevilha: ao telefone.<br />

Ela, a qualquer hora do dia.<br />

Falo até quando ocupado,<br />

e está quase sempre Sevilha.<br />

Falo mesmo quando ela dorme<br />

(ah! poder despertar Sevilha!),<br />

224


porque sei sempre que está<br />

no extremo da linha vazia:<br />

é um vazio vivo, habitado<br />

por todo o zumbir que é Sevilha<br />

mesmo dormida de todo:<br />

o que é muito pouco por dia.<br />

Ligo o telefone e espero:<br />

melhor se não o atendessem.<br />

Então, é o respirar recado:<br />

fala-me dormindo, e entendo<br />

e me diz tudo o que acordada<br />

por puro pudor não diria:<br />

“Não imagines que sou menos<br />

porque agora estou dormida;<br />

tanto dormindo entre lençóis,<br />

ou no telefone abstraída,<br />

te respondo em mulher inteira,<br />

mais que qualquer outra, Sevilha.”<br />

(MELO NETO, 1997, p.344)<br />

Ainda Sevilha ao telefone<br />

Quando pelo telefone<br />

quero falar com Sevilha<br />

e Sevilha, por acaso,<br />

está no instante dormida,<br />

deixo aberto o telefone<br />

à concha de voz vazia:<br />

ouço então no telefone<br />

como relógio com vida,<br />

toda uma vida passar<br />

como o ácido vivo de ginja.<br />

Ninguém fala ao telefone,<br />

mas há pulsação longínqua;<br />

onde há um pregão de tudo,<br />

onde há pragas de vizinhas,<br />

e se ouve o arfar de cidade<br />

que sabe dormir feminina.<br />

(MELO NETO,1997, p.348)<br />

225


ANEXO B: FIGURAS<br />

FIG.01 – LES <strong>DE</strong>MOISELLES D'AVIGNON - 1907<br />

982 x 1026 pixels - 115k. Museu de Arte Moderna, Nova York Disponível em:<br />

http://www.rainhadapaz.g12.br/projetos/artes/picasso/senhoritas.htm. 2007. Acesso em 29<br />

jan. 2007.<br />

FIG. 02 – HOMENAGEM A PICASSO – 1912<br />

817 x 1056 pixels - 163k – jpg. 2007. Collection of Mrs. and Mrs. Leigh Block, Art<br />

Institute of Chicago Disponível em:www.ibiblio.org. Acesso em 29 jan. 2007.<br />

226


FIG.03 - RETRATO <strong>DE</strong> UNA NIÑA - 1919<br />

160 x 218 pixels - 5k – jpg. Doação Joan Prats. Disponível em:www.spainselecta.com.<br />

2007. Acesso em 29 jan. 2007.<br />

FIG.04 – RETRATO <strong>DE</strong> BAILARINA ESPANHOLA – 1921<br />

151 x 151 pixels - 14k .Disponível em:<br />

fonte:www.elpais.es/.../20040228elpbabart_1_I_SCO.jpg.2007. Acesso em 29 jan. 2007.<br />

227


FIG.05 –LA MASOVERA – 1922-1923<br />

339 x 496 pixels - 42k – jpg.Disponível em: www.clas.ufl.edu.2007. Acesso em 29 jan.<br />

2007.<br />

FIG.06 – RETRATO <strong>DE</strong> MRS. MILLS – 1929<br />

554 x 745 pixels - 27k – jpg. Disponível em: www.abcgallery.com.2007. Acesso em 29 jan.<br />

2007.<br />

228


FIG. 07 – ESCARGOT, FEMME, FLEUR E ÉTOILE - 1934<br />

195 x 172cm.Disponível em: http://www.spanisharts.com/reinasofia/miro.htm.2007.<br />

Acesso em 29 jan. 2007.<br />

FIG. 08 – MUJERES RO<strong>DE</strong>ADAS POR EL VUELO <strong>DE</strong> UN PÁJARO – 1941<br />

300 x 244 pixels - 21k – jpg. Disponível em:www.pitoresco.com.br.2007. Acesso em 29<br />

jan. 2007.<br />

229


FIG.09 - MUJER Y PÁJAROS AL AMANECER. 1946<br />

Depósito Emili Fernández Miró<br />

Disponível em: http://www.bcn.fjmiro.es/.2007. Acesso em 29 jan. 2007.<br />

FIG.10. MUJER Y PÁJAROS A NOCHE – 1968<br />

MIRÓ, Joan. Joan Miro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1994, p.57.<br />

230


FIG.11 – MUJER Y PÁJAROS DIANTE <strong>DE</strong>L SOL – 1972<br />

MIRÓ, Joan. Joan Miro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1994, p.57.<br />

231

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