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Número 7 - CEART - Udesc

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MÓIN-MÓIN<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


Sociedade Cultura Artística de Jaraguá do Sul (SCAR)<br />

Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC)<br />

Editores:<br />

Gilmar A. Moretti (SCAR)<br />

Prof. Dr. Valmor Nini Beltrame (UDESC)<br />

Conselho Editorial:<br />

Prof.ª Dr.ª Ana Maria Amaral<br />

Universidade de São Paulo (USP)<br />

Dr.ª Ana Pessoa<br />

Fundação Casa de Rui Barbosa (RJ)<br />

Prof.ª MS. Amabilis de Jesus da Silva<br />

Faculdade de Artes do Paraná (FAP)<br />

Prof. Dr. Felisberto Sabino da Costa<br />

Universidade de São Paulo (USP)<br />

Prof.ª Dr.ª Izabela Brochado<br />

Universidade de Brasília (UNB)<br />

Prof.ª MS. Isabel Concessa P. de A. Arrais<br />

Universidade Federal do Pernambuco (UFPE)<br />

Prof.ª Magda Augusta Castanheira Modesto<br />

Pesquisadora (Rio de Janeiro)<br />

Marcos Malafaia<br />

Giramundo Teatro de Bonecos (Belo Horizonte)<br />

Prof. MS. Miguel Vellinho<br />

Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)<br />

Prof. MS. Paulo Balardim<br />

Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC)<br />

Prof. MS. Tácito Borralho<br />

Universidade Federal do Maranhão (UFMA)<br />

Prof. Dr. Wagner Cintra<br />

Universidade Estadual Paulista (UNESP)


MÓIN-MÓIN<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas<br />

Cenários da Criação no<br />

Teatro de Formas Animadas


Móin-Móin é uma publicação conjunta da Sociedade Cultura Artística de Jaraguá do<br />

Sul - SCAR e do Programa de Pós-Graduação em Teatro (Mestrado) da Universidade<br />

do Estado de Santa Catarina – UDESC. As opiniões expressas nos artigos são de inteira<br />

responsabilidade dos autores. A publicação de artigos, fotos e desenhos foi autorizada<br />

pelos responsáveis ou seus representantes.<br />

Editores: Gilmar Antônio Moretti – SCAR e Prof. Dr. Valmor Nini Beltrame – UDESC<br />

Coordenação editorial: Carlos Henrique Schroeder (Design Editora)<br />

Estudantes bolsistas: Gabriela Morales Tolentino Leite, Isadora Santos Peruch e Rhaisa Muniz<br />

Criação, vendas e distribuição: Design Editora<br />

Revisão: Marcos Leptretinf<br />

Diagramação: Beatriz Sasse<br />

Impressão: Gráfica Nova Letra<br />

Capa: Espetáculo Peer Gynt (2006 - RJ). Cia. PeQuod. Direção de Miguel Vellinho.<br />

Foto de Simone Rodrigues.<br />

Página 3: Espetáculo A Tecelã (2009 - RS). A Caixa do Elefante Teatro de Bonecos.<br />

Foto de Fabiana Beltrami.<br />

Página 5: Espetáculo Primeiras Rosas (2009 – SP). Cia. Pia Fraus. Concepção do<br />

espetáculo e seleção de contos Beto Andretta. Direção de Alexandre Fávero, Carlos<br />

Lagoeiro, Miguel Vellinho e Wanderlei Piras. Foto de Newber – Casa da Lapa.<br />

Página 6: Espetáculo Terra Papagallis (2010 – SP). Balé da cidade de São Paulo – Cia.<br />

Profissional de Dança Contemporânea do Teatro Municipal de São Paulo. Direção<br />

Cênica de Adriana Telg e Wanderlei Pyras. Bonecos e objetos de cena confeccionados<br />

pela Cia. Pia Fraus. Foto de João Mussolin.<br />

Página 7: Espetáculo A chegada de Lampião no inferno (2009 - RJ). Cia. PeQuod.<br />

Direção Miguel Vellinho. Foto de Simone Rodrigues.<br />

A publicação tem o apoio do Fundo Estadual de Cultura -<br />

Governo do Estado de Santa Catarina.<br />

Móin – Móin: Revista de Estudos sobre Teatro de Formas<br />

Animadas. Jaraguá do Sul: SCAR/UDESC,<br />

ano 6, v. 7, 2010. ISSN 1809-1385<br />

M712<br />

Periodicidade anual<br />

1.Teatro de bonecos. 2. Teatro de máscaras. 3. Teatro de fantoches<br />

CDD 792


SUMÁRIO MÓIN-MÓIN 7<br />

Cenários da Criação no<br />

Teatro de Formas Animadas<br />

O teatro na encruzilhada: o contexto dos dez primeiros anos do século XXI<br />

Valmor Nini Beltrame e Gilmar Antônio Moretti, 10<br />

Corpo/Objeto: o “mascaramento” na cena contemporânea brasileira<br />

Ipojucan Pereira, 14<br />

O Teatro de Objetos: história, idéias e reflexões<br />

Sandra Vargas, 27<br />

Figurinos e subjetividades efêmeras<br />

Amabilis de Jesus, 44<br />

Antropofagia e hibridismo no teatro de animação brasileiro<br />

Fábio Henrique Nunes Medeiros, 58<br />

Espaço e Cenografia no Teatro de Animação<br />

Osvaldo Anzolin, 76<br />

Específico e genérico: ator no teatro de animação<br />

Caroline Holanda, 94


Aspectos do processo de criação atoral no teatro de formas animadas<br />

Kely de Castro, 110<br />

A marionete como metáfora do corpo dançante:<br />

um convite à percepção<br />

Sandra Meyer, 125<br />

O diálogo entre teatro de atores e formas animadas:<br />

relato de uma experiência<br />

Luís Artur Nunes, 144<br />

De-vagar pela cena de Socorro<br />

Zilá Muniz, 159<br />

O teatro infantil e suas diversas linguagens<br />

Carlos Augusto Nazareth, 172<br />

O mamulengo em múltiplos sentidos<br />

Adriana Schneider Alcure, 188<br />

Festivais de Teatro de Animação no Brasil (2000-2009)<br />

Miguel Vellinho, 208<br />

História e Imaginário: o Festival de Teatro de Formas Animadas de Jaraguá do Sul<br />

Ana Paula Moretti Pavanello e Gilmar Antônio Moretti, 223


ERRATA<br />

1 - A foto da capa da<br />

Revista Móin-Móin nº<br />

6 - 2009 – Formação<br />

Profissional no Teatro<br />

de Formas Animadas<br />

refere-se ao espetáculo<br />

Livres e Iguais (1999)<br />

do Grupo Teatro sim...<br />

Por que não?!!! de Florianópolis.<br />

Direção de<br />

Nini Beltrame, Júlio<br />

Mauricio e Nazareno<br />

Pereira. Foto de Cleide<br />

de Oliveira.<br />

2 - O artigo “O futuro<br />

do teatro pode nascer<br />

também nos canteiros<br />

de obras de uma<br />

escola” de Margareta<br />

Niculesco (páginas 13<br />

a 24) foi traduzido por<br />

Margarida Baird, atriz,<br />

dramaturga e diretora<br />

teatral e José Ronaldo<br />

Faleiro, Doutor em<br />

Teatro pela Université<br />

de Paris X – Nanterre<br />

e Professor de Teatro<br />

na UDESC.<br />

3 - Os resumos e palavras-chave<br />

desta edição<br />

foram traduzidos<br />

e/ou corrigidos por<br />

Daniel Egil Ferdinand<br />

Yencken.


Móin-Móin: o nome desta publicação é uma homenagem à marionetista Margarethe<br />

Schlünzen, que faleceu em agosto de 1978 e, durante as décadas de 1950 e 1960,<br />

encantou crianças de Jaraguá do Sul (Santa Catarina, Brasil) com suas apresentações. Era<br />

sempre recebida efusivamente nas escolas pelo coro “Guten Morgen, Guten Morgen”<br />

(“bom dia, bom dia” em alemão). A expressão tornou o trabalho da marionetista<br />

conhecido como “Teatro da Móin-Móin”.<br />

Móin-Móin: the name of this publication is a tribute to the puppeteer Margarethe<br />

Schlünzen, who died in August 1978. During the 50´s and 60´s she enchanted children<br />

from Jaraguá do Sul (Santa Catarina, Brazil) with her puppet plays. When arrived at<br />

the schools she was always warmly welcomed by the chorus “Guten Morgen, Guten<br />

Morgen” (“Good morning, good morning” in German). The expression made the work<br />

of the puppeteer known as the “Móin-Móin Theatre”.<br />

Móin-Móin:le nom de cette publication est un hommage à la marionnetiste Margarethe<br />

Schlünzen, décédée au mois d´août 1978. Pendant les années 1950 et 1960 elle a<br />

émerveilée les enfants de la ville de Jaraguá do Sul (Santa Catarina, Brésil) avec ses<br />

spectacles. Elle était toujours accueillie avec enthousiasme dans les écoles où elle se<br />

présentait, les enfants lui disant en choeur “Guten Morgen, Guten Morgen” (“Bonjour,<br />

bonjour”, en allemand). C´est pourquoi le travail de la marionnettiste est connu comme<br />

“le Théâtre de la Móin-Móin”.<br />

Móin-Móin: el nombre de esta publicación es un homenaje a la titiritera Margarethe<br />

Schlünzen, que falleció en agosto de 1978, y durante las décadas de 1950 y 1960, encanto<br />

a niños y niñas de Jaraguá do Sul (Santa Catarina – Brasil), con sus presentaciones.<br />

Era siempre recibida efusivamente en las escuelas por el coro “Guten Morgen, Guten<br />

Morgen” (Buenos días, buenos días en alemán). La expresión convirtió el trabajo de la<br />

titiritera conocido como “Teatro de la Móin-Móin”.


10<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas<br />

MÓIN-MÓIN<br />

O teatro na encruzilhada: o contexto dos<br />

dez primeiros anos do século XXI<br />

A edição Nº 7 da Revista Móin-Móin pretende refletir sobre o<br />

que vem sendo produzido no teatro de formas animadas no Brasil<br />

nos dez primeiros anos do século XXI. A idéia é pensar sobre processos<br />

de criação, ações formativas/eventos, e mudanças que vêm<br />

acontecendo em diferentes contextos brasileiros. Estudar este tema<br />

é fundamental porque é possível registrar, neste período de 2000<br />

a 2009 no Brasil, um conjunto de atividades e iniciativas sobre o<br />

teatro de formas animadas que merecem reflexão, tais como: a multiplicação<br />

de festivais e eventos que tem dado grande visibilidade a<br />

essa arte; o fortalecimento e a consolidação do trabalho de grupos de<br />

teatro revelando o aprofundamento e o domínio da linguagem do<br />

teatro de animação; a hibridação de espetáculos que, cada vez mais,<br />

rompem as fronteiras do teatro de bonecos; a “contaminação” do<br />

teatro de atores com elementos da linguagem do teatro de animação.<br />

Ao mesmo tempo, o mercado, as leis de fomento à produção<br />

e à circulação de espetáculos pelo Brasil, oferecem benefícios e<br />

impõem exigências, o que remete a pensar sobre em que medida<br />

isso interfere nos processos criativos dos artistas e dos grupos.


MÓIN-MÓIN<br />

A reunião de artigos sobre tema tão importante e amplo criou,<br />

inicialmente, a idéia de produção de um dossiê, agora denominado<br />

de Cenários da criação no Teatro de Formas Animadas no Brasil.<br />

A opção pela expressão cenários possibilita ver o conjunto de textos<br />

como visão partilhada pelos autores sobre o contexto atual da produção<br />

dessa arte, ao mesmo tempo em que permite perceber o olhar<br />

em processo, particular, de cada colaborador, sobre o ambiente em<br />

que o teatro de animação é criado. Os cenários aqui apresentados<br />

são múltiplos, peculiares e no seu conjunto fornecem uma primeira<br />

visão, um panorama sobre diversos aspectos dessa arte no Brasil.<br />

Cinco artigos descortinam um cenário que pode ser denominado<br />

como o da “contaminação” do teatro e da dança pelo teatro de animação.<br />

Sandra Meyer analisa a idéia de marionete como metáfora<br />

do corpo à luz da experiência de dois grupos de dança: a Cia. Cena<br />

11 de Florianópolis e a Cia. Marta Soares de São Paulo. Luís Artur<br />

Nunes, diretor de teatro, destaca a importância de jogos que vivenciou<br />

com Richard Schechner, para a sua incursão pelo universo do<br />

teatro de formas animadas ao encenar espetáculos com atores. O<br />

diretor, ironicamente, denomina sua experiência na interface com o<br />

teatro de animação de “intuitiva e irresponsável”. Zilá Muniz reflete<br />

sobre seu trabalho como diretora e coreógrafa no qual se realiza o<br />

encontro do boneco/alegoria e do bailarino marionetizado com a<br />

dança. Fábio Henrique Nunes Medeiros analisa espetáculos dos<br />

grupos Giramundo, Cia. Pequod e Cia. Teatro Lumbra e evidencia<br />

a existência de procedimentos como hibridação e antropofagização<br />

nos procedimentos criativos dos espetáculos dos grupos mencionados.<br />

Ipojucan Pereira discute as relações entre corpo e objeto e trabalha<br />

o procedimento que denomina de “mascaramento do corpo”<br />

presente em diversos espetáculos. Estes cinco estudos configuram<br />

um cenário que coloca a dança, o teatro, as artes visuais, e o teatro<br />

de formas animadas no cruzamento, tornando-as artes híbridas.<br />

Um segundo e amplo cenário é apresentado por sete artigos que<br />

analisam situações concernentes às poéticas de espetáculos e novas<br />

tendências no contexto brasileiro. O Teatro de Objetos, linguagem<br />

11<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


12<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas<br />

MÓIN-MÓIN<br />

que começa a ganhar visibilidade no Brasil com a realização do<br />

FITO – Festival Internacional de Teatro de Objetos é discutido<br />

por Sandra Vargas. Seu artigo problematiza concepções entre<br />

Teatro de Objetos e Teatro de Bonecos feito com objetos, talvez,<br />

procedimento mais recorrente hoje no nosso país.<br />

Dois temas raramente estudados no teatro de formas animadas<br />

são figurino e cenografia. Amabilis de Jesus, ao analisar o tratamento<br />

dado ao figurino em diversos espetáculos que se apresentaram<br />

em Festivais no princípio deste século no Brasil, brinca com a<br />

máxima: “o hábito faz o monge”. Nesse jogo, seu texto discute a<br />

materialização das subjetividades presente em personagens. Osvaldo<br />

Anzolin escreve sobre aspectos estéticos, simbólicos e funcionais<br />

da cenografia e instiga o leitor a pensar na maneira como o tema é<br />

tratado, atualmente, nos espetáculos de teatro de animação.<br />

O trabalho do ator-animador é contemplado em dois artigos. Caroline<br />

Holanda remete o leitor a pensar que hoje, o trabalho desse artista<br />

já não se dá somente pela intuição, mas exige o domínio de técnicas<br />

próprias desse campo de atuação. A sistematização do trabalho do<br />

ator no teatro de formas animadas tem construído um conjunto de<br />

saberes imprescindíveis para a sua realização. Nessa mesma direção,<br />

Kely de Castro defende que existem especificidades que merecem<br />

observância no trabalho desse artista. Suas idéias se comprovam no<br />

acompanhamento da atuação dos elencos de quatro grupos de teatro<br />

de São Paulo: Sobrevento, Seres de luz, Morpheus e Cia. Truks.<br />

Carlos Augusto Nazareth apresenta outra faceta deste cenário: o<br />

teatro produzido para crianças e jovens na cidade do Rio de Janeiro.<br />

O autor amplia a discussão ao destacar que existem visões sobre<br />

a criança em diferentes períodos da história no Ocidente e que a<br />

idéia de infância é construção social que reflete particularidades da<br />

cultura e do contexto onde está inserida.<br />

Nosso Mamulengo é discutido por Adriana Schneider Alcure que<br />

evidencia a multiplicidade de visões sobre essa arte. Tal tradição,<br />

viva da Zona na Mata Pernambucana, é recriada em outros cenários<br />

e por isso hoje é possível falar de Mamulengo “fora de lugar”. Seu


MÓIN-MÓIN<br />

artigo chama a atenção para a complexidade e heterogeneidade<br />

dessa manifestação o que exige um olhar mais atento e disposto a<br />

perceber que é uma arte que dialoga com a contemporaneidade.<br />

Dois artigos apresentam outro cenário, e analisam os festivais<br />

de teatro de animação no Brasil. Miguel Vellinho destaca em seu<br />

artigo, as evidentes transformações ocorridas no modo de pensar<br />

e organizar estes eventos. Em seguida, destaca sua importância<br />

para a circulação de espetáculos e acesso da população a tais bens,<br />

ao mesmo tempo em que questiona o comportamento e opções<br />

de seus curadores na definição do perfil destes festivais. O último<br />

artigo discute o Festival de Teatro de Formas Animadas de Jaraguá<br />

do Sul, objeto de análise de seus organizadores, Ana Paula Moretti<br />

Pavanello Machado e Gilmar Antônio Moretti. Apoiado em idéias<br />

de História Cultural, o artigo demonstra a importância desse<br />

acontecimento na recuperação da memória artística da cidade e os<br />

sentidos do evento para a região.<br />

O conjunto de textos dessa edição apresenta ainda um cenário<br />

novo, certamente impensável há alguns anos atrás: a presença de<br />

jovens pesquisadores, formado por mestres, doutorandos e ou recém<br />

doutores, que pela primeira vez escrevem para a Revista. Essa<br />

nova situação denota que, diversos Programas de Pós-Graduação<br />

em Teatro e Artes, têm acolhido projetos de pesquisa sobre teatro<br />

de formas animadas. Alguns dos artigos aqui publicados resultam<br />

de estudos realizados em tais Programas.<br />

A edição da Revista Móin-Móin N.7 permite perceber as singularidades<br />

do teatro de formas animadas do Brasil no início<br />

deste século. Evidencia a existência de cenários diversificados, que<br />

constituem realidades em mutação contínua, com proposições<br />

variadas e que, longe de indicar uniformidade, situam essa arte<br />

no cruzamento, no permanente diálogo com outros campos de<br />

expressão e de conhecimento.<br />

Valmor Nini Beltrame Gilmar Antônio Moretti<br />

UDESC SCAR<br />

13<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


Corpo/Objeto: o “mascaramento”<br />

na cena contemporânea brasileira<br />

Ipojucan Pereira<br />

Grupo Teatral Isla Madrasta – São Paulo


PÁGINA 14: Espetáculo O Ilha (2008 - SP). Marcos Sobrinho - Núcleo de Dança<br />

e Performance. Direção, concepção e dramaturgia de Marcos Sobrinho. Foto de<br />

Edson Luciano.<br />

PÁGINA 15: Espetáculo Vestígios (2010 - SP). Concepção e criação de Marta Soares.<br />

Foto de João Caldas.


16<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas<br />

MÓIN-MÓIN<br />

Resumo: Analisa a presença de procedimentos de “mascaramento” em<br />

alguns exemplos de espetáculos brasileiros, considerados como pertencentes<br />

ou não ao âmbito do Teatro de Formas Animadas. Investiga as relações entre<br />

corpo e objeto na constituição de eixos de pesquisa de criadores contemporâneos<br />

brasileiros que se valem do cruzamento de linguagens corporais com as<br />

artes visuais. Aponta o conceito de “máscara corporal” como um denominador<br />

possível de equalização entre obras de características e origens diversas e que<br />

têm na visualidade o seu aporte mais expressivo.<br />

Palavras-chave: Corpo; objeto; máscara; animação.<br />

Abstract: This article analyses the procedures of “masking” in examples of<br />

Brazilian theatrical productions, some of which are considered to belong to the<br />

sphere of puppet theatre. The article investigates the relationship between body<br />

and object in the constitution of the axes of research of contemporary Brazilian<br />

theatre practitioners who have worked with an intersection of corporal languages<br />

and the visual arts. The article points to the concept of the “body mask” as a<br />

possible denominator of equalization between works of diverse characteristics<br />

and origins, whose visuality is its most significant support.<br />

Keywords: Body; object; mask; puppetry.<br />

Ao se abrirem as portas do elevador que nos conduz ao subsolo<br />

do SESC Vila Mariana, em São Paulo, nos deparamos com<br />

um amplo porão com iluminação indireta que aparentemente não


MÓIN-MÓIN<br />

demonstra vocação alguma para vir a ser um espaço teatral: não<br />

há qualquer assento confortável ou indicações do local destinado<br />

às apresentações. No programa há uma referência de que aquela é<br />

uma opção estética inspirada na arte do Site-Specific 1 .<br />

Alguns espectadores já se encontram espalhados erraticamente<br />

pelo ambiente, encostados às paredes, à espera do começo do espetáculo.<br />

Quatro imensas colunas de concreto alinham-se ao longo<br />

do centro do salão, cujo vazio é preenchido por ruídos indistintos<br />

e rumores de ventania. Entre as colunas estão dispostos dois telões,<br />

nos quais são projetadas imagens de dunas de areia e paisagens<br />

desérticas. E no centro desse lugar impessoal, carregado de frieza e<br />

solidão pelas imagens e ruídos, encontra-se disposta, entre os dois<br />

pares de colunas, uma ampla mesa de granito marrom coberta por<br />

um enorme monte de areia. E essa areia é silenciosamente aspergida<br />

para o espaço, pouco a pouco, por uma corrente de ar proveniente<br />

de um ventilador preso na borda da mesa.<br />

Estamos ali para assistir a um espetáculo de dança. Enquanto<br />

aguardamos o início, nos apoiamos indolentemente nas paredes,<br />

ziguezagueamos por entre as colunas ou simplesmente conversamos<br />

displicentemente uns com os outros. De repente, como se uma ordem<br />

telepática tivesse acometido sistematicamente todos os presentes, as<br />

pessoas movem-se sôfregas para próximo da mesa: no local onde a areia<br />

foi pacientemente escavada pela corrente de ar surge um calcanhar!<br />

Percebemos, então, que a bailarina está soterrada sob aquele monte<br />

e que assistiremos ao lento desvelamento do seu corpo, no manso<br />

transcorrer do fluxo ininterrupto das partículas de areia lançadas para<br />

o ar, que gradualmente se depositam no chão ao redor da mesa.<br />

1 Os artistas que deram início à arte do Site-Specific estão muito menos preocupados com<br />

o conteúdo da obra em si (e per si). O interesse é relocar o significado interno da obra para<br />

o seu contexto, reestruturando a presença do espectador para que este participe de uma<br />

experiência vivida com o seu corpo. Talvez o que diferencie a prática do Site-Specific da<br />

Performance, no começo dos anos 70, seja a direção das investigações sobre as questões<br />

de localização, e de como a percepção destas questões forma a nossa consciência. Na<br />

Performance a percepção é direcionada para o corpo, como um espaço a ser ocupado.<br />

Na prática do Site-Specific a direção é para o espaço e para como o corpo o percebe.<br />

17<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


18<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas<br />

MÓIN-MÓIN<br />

O espetáculo Vestígios, denominado pela sua criadora e intérprete<br />

Marta Soares 2 de “instalação coreográfica”, estreou em julho de 2010<br />

e se propôs a uma intersecção entre as linguagens da dança, artes<br />

visuais e performance. O ponto de partida foram os sambaquis 3 da<br />

região de Laguna, em Santa Catarina, e a obra foi construída por<br />

imersões físicas nas escavações arqueológicas do local, com o objetivo<br />

de investigar a relação do corpo com o ambiente.<br />

Porém, como dar conta de uma obra que frustra o entendimento<br />

tradicional da dança como uma “sequência de movimentos<br />

corporais executados de maneira ritmada, em geral ao som de<br />

uma música” (FERREIRA, 1999: 604)? Os únicos movimentos<br />

perceptíveis são executados pelos elementos inanimados, isto é,<br />

dos grãos de areia, deslocados ritmadamente pela ação mecânica<br />

de um eletrodoméstico, ao som de barulhos e ruídos. Apesar<br />

disso, há uma exacerbada dramaticidade na situação ali colocada<br />

que nos faz acompanhar o mudo e atritoso diálogo entre o vivo<br />

e o não-vivo.<br />

Vestígios parece evocar O Armário, uma encenação do grande<br />

mestre Tadeusz Kantor 4 feita no começo da década de 60, que dava<br />

início a fase denominada por ele de Teatro Informal. Nesse espetáculo,<br />

em meio a um palco atulhado de móveis, a porta de um armário<br />

se abre e dezenas de sacos enormes despencam, trazendo, entre os<br />

seus volumes, os corpos flácidos dos atores, tornando indistinta a<br />

separação entre objetos e atuantes, e revelando um aspecto essencial<br />

da poética kantoriana: a oposição entre vida e morte, animado e<br />

2 Marta Soares, bailarina e coreógrafa brasileira, mestre em Comunicação e Semiótica<br />

pela PUC/SP, cujos trabalhos não apresentam fronteiras entre interno e externo do<br />

corpo, buscando mobilizar o fluxo interior dos estados corporais para o movimento.<br />

Entre as suas criações destacam-se Les Poupées, O Homem de Jasmim e O Banho.<br />

3 Sítios arqueológicos pré-históricos, formados por amontoados de conchas, esqueletos<br />

e utensílios, indícios de cerimônias fúnebres indígenas.<br />

4 Tadeusz Kantor (1915 - 1990), pintor, cenógrafo e encenador polonês, fundador do<br />

grupo teatral Cricot-2 e conhecido sobretudo pelo seu Teatro da Morte.


MÓIN-MÓIN<br />

inanimado. A situação do objeto no teatro de Kantor é de parceria,<br />

um adversário com o qual o atuante compete, exigindo desse que<br />

coloque a sua expressividade ao nível objetal.<br />

Muitas das experimentações teatrais ao longo do século passado<br />

buscaram tratar o funcionamento do espaço cênico como a um<br />

“organismo”, ou seja, agregando-lhe qualidades inerentes ao corpo,<br />

e consequentemente levando o aparato psicofísico dos atuantes a<br />

incorporar a materialidade espacial. De Appia e Craig – para os<br />

quais as formas no espaço se projetariam sobre o corpo do ator,<br />

ampliando assim a sua plasticidade – passando pelas pesquisas<br />

de Oscar Schlemmer, na Bauhaus, – que “colocou, em termos<br />

geométricos e mecânicos, conceitos sobre a figura humana em<br />

relação ao espaço no qual ela se move” (AMARAL, 1991: 179)<br />

– é bastante clara a preocupação em erigir espaço e corpo como<br />

eixos de pesquisa e pilares de uma nova linguagem psicofísica no<br />

âmbito interno e externo da encenação.<br />

Com a ação que se iniciou nos happenings, nos anos 60, e evoluiu<br />

para as performances, nos anos 70, a separação ainda existente entre<br />

tempo e espaço da obra e, tempo e espaço do espectador começou a<br />

ser borrada, a ponto de o espectador passar a fazer parte da obra, e a<br />

obra dele. Ao se deixar atravessar por heterogeneidades de linguagens<br />

e ao dar espaço à polifonia discursiva, foi o ambiente que se tornou<br />

o grande equalizador das ambiguidades presentes entre espectador<br />

e artista; e o objetivo principal deixou de ser a amarração estética<br />

do todo, deslocando-se para a vivência de experiências.<br />

Daí, hoje, conclui-se que o deslocamento do campo da “representação”<br />

para o da “apresentação” marcou o início da encenação<br />

contemporânea na sua busca não pela “produção de sentido” e sim<br />

pela “produção de presença”. A narrativa dramatúrgica se modificou,<br />

tornando-se fragmentária, comportando silêncios muitas vezes<br />

preenchidos pelas imagens. A importância assumida pelo espaço<br />

nas encenações contemporâneas é outro ponto articulador de tal<br />

“produção de presença”, que tem no diálogo entre corpo e objeto<br />

o aporte expressivo por excelência.<br />

19<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


20<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas<br />

MÓIN-MÓIN<br />

Mesmo que as referências apresentadas até aqui sejam consideradas<br />

como “espetáculos de ator” – ou seja, a partir de um recorte<br />

centrado na figura humana –, não podemos descartar as semelhanças<br />

com o teatro de formas animadas, até porque tais fronteiras são<br />

muito difíceis de serem estabelecidas na contemporaneidade. O<br />

espetáculo A Infecção Sentimental Contra-Ataca do grupo XPTO 5 ,<br />

de São Paulo, é um bom exemplo. Após a sua primeira versão em<br />

1984, ele foi redimensionado e atualizado em 2001, e valeu-se<br />

(como em toda a produção do grupo) da combinação de diferentes<br />

linguagens, tais como dança, mímica, teatro e formas animadas,<br />

construindo uma poética inusitada e surpreendente na qual o ator<br />

deixa de ter a primazia e passa a dialogar, em pé de igualdade, com<br />

as artes visuais.<br />

Na versão de 2001 de A Infecção Sentimental Contra-Ataca,<br />

estamos diante de uma alegoria noturna da paisagem urbana, com<br />

personagens que vagam pelas ruas e ações que não se sabe bem<br />

como começaram ou como terminam. Logo na cena de abertura,<br />

somos confrontados com uma imagem um tanto estranha, mas<br />

de grande impacto poético: sacos de lixo, que manipulados por<br />

atores escondidos no seu interior, começam a se mover e passam a<br />

interagir entre si e com as pessoas a sua volta. Os objetos, “tudo o<br />

que não é o ator e que representa na cena os acessórios, os cenários,<br />

os telões e mesmo os figurinos” (PAVIS, 2003: 174), assumem o<br />

papel de sujeitos ao serem animados, ganhando um outro potencial<br />

dramático e passando a simularem as relações humanas.<br />

O emprego de um objeto de uso cotidiano como máscara corporal,<br />

como no caso dos sacos de lixo, exige do ator manipulador<br />

uma tomada de consciência de como as operações e associações<br />

entre músculos e ossos conectam o centro à periferia do corpo,<br />

pois também no objeto existe um vínculo entre o seu centro de<br />

5 O grupo XPTO é atuante desde 1984 na cena paulistana, e encabeçado pelo diretor,<br />

cenógrafo e figurinista Oswaldo Gabrielli. Dedicado a um teatro que mescla atores e bonecos,<br />

empregando um misto de técnicas e recursos, elaborou ao longo dos anos uma linguagem<br />

refinada e intensamente criativa que tem na visualidade o seu recurso mais expresso.


MÓIN-MÓIN<br />

gravitação e a sua superfície. E se o eixo do manipulador não estiver<br />

conectado ao da matéria inanimada, não se dará nenhuma relação.<br />

Um objeto em repouso já está em movimento, nas suas relações<br />

físicas internas que permitem a sua existência no mundo, nos seus<br />

sistemas de sustentação e de forças que se manifestam externamente<br />

nas relações com a gravidade. Animar é captar tal potencialidade e<br />

dinamizá-la como pulsação vital. É no movimento da forma que se<br />

manifestam os desejos da alma. À medida que algo se move, cria-se<br />

um processo de relacionamento com o mundo exterior.<br />

Há nisso uma semelhança muito grande com a dança e o teatro<br />

de atores, linguagens em que o mistério da vida também parece<br />

residir no interior do corpo humano e somente desvela-se na rítmica<br />

desenvolvida no espaço pelas mãos, braços, pernas, olhos...<br />

Contudo, a vida está ligada ao movimento e ao tempo. E os objetos<br />

(máscaras, bonecos, imagens, artefatos) quando estáticos, não<br />

sofrem as ações do tempo, não têm o significado da energia vital.<br />

Porém no palco, sob as luzes cênicas, acrescidos de movimentos,<br />

os sacos de lixo de A Infecção Sentimental Contra-Ataca conquistam<br />

uma força que extrapola as suas junções e a sua matéria, adquirindo<br />

conotações animalizadas e vibrações orgânicas. Um canal por meio<br />

do qual o nosso inconsciente pode aflorar e ganhar materialidade.<br />

O “mascaramento” tornou-se para toda uma geração de<br />

artistas europeus da primeira metade do século XX um recurso<br />

expressivo de reiterada importância. As pesquisas pedagógicas<br />

da máscara na formação do ator, as experimentações dos futuristas,<br />

dadaístas e surrealistas que submeteram a plasticidade do<br />

corpo às rigorosas geometrias dos figurinos e cenários, são alguns<br />

exemplos da busca de um incremento na expressividade física por<br />

intermédio da conjugação de elementos, muitas vezes de formatos<br />

abstratos, como máscaras corporais.<br />

Não é simples coincidência o fato de a máscara ter ressurgido<br />

no mesmo momento em que o objeto tomou nas artes plásticas<br />

um significado e uma contundência que ultrapassa todas as suas<br />

funções. A máscara é metamorfose. No teatro, ela está além do mero<br />

21<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


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Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas<br />

MÓIN-MÓIN<br />

divertimento de esconder o rosto, permitindo a troca, a multiplicidade<br />

de identidades, a transcendência. Proporcionando um teatro<br />

onde a forma e o movimento ganham destaque, ela realiza uma<br />

conexão com as artes visuais e a dança. O seu portador, ao mover<br />

o corpo, conscientiza-se da magnitude que o seu gestual provoca<br />

no espaço a sua volta. A limitação do campo visual, a distorção da<br />

voz, a objetividade dos impulsos internos, a articulação de um outro<br />

eixo postural são algumas condições oferecidas pelo jogo com a<br />

máscara, no qual o mínimo exigido é a ampliação da gestualidade.<br />

A obra do artista plástico José Leonilson 6 , por exemplo,<br />

e, sobretudo, parte do seu processo de criação, foi o ponto de<br />

partida para O Ilha, espetáculo apresentado pela primeira vez<br />

em São Paulo em junho de 2008, cujo título foi retirado de um<br />

bordado sobre tela de autoria do artista. O seu criador-intérprete<br />

Marcos Sobrinho 7 desenvolve desde 1988 investigações cênicas<br />

que abordam as artes plásticas como estratégia para o que chama<br />

de performances, na tentativa de delimitar o território híbrido<br />

das suas criações, que conjugam principalmente as linguagens<br />

da dança e das artes visuais.<br />

Em O Ilha estamos diante de um espetáculo que cria um espaço<br />

onírico, extremamente poroso aos fluxos de imaginação do público<br />

presente. Com o auxílio de uma sonorização indistinta e de uma<br />

iluminação recortada, o espaço cênico criado dinamiza as relações<br />

entre performer e objeto. Dispostos na penumbra, espalhados pelo<br />

linóleo negro que recobre a área de apresentação, estão corpos cujas<br />

6 José Leonilson (1957-1993), pintor, desenhista e escultor, um dos grandes expoentes da arte<br />

brasileira contemporânea. O uso recorrente de costuras e bordados marca a sua produção,<br />

constituída por obras de cunho predominantemente autobiográfico que expressam os<br />

dramas e as angústias do homem moderno.<br />

7 Marcos Sobrinho, criador-intérprete brasileiro, professor de dança contemporânea e<br />

pilates, desenvolve as suas investigações cênicas abordando, sobretudo, as artes plásticas<br />

como estratégia para articular estados corporais nos quais o corpo assume o lugar de<br />

outras referências. As suas principais criações foram Intersecção, Lócus – un chant<br />

d’amour, Um diálogo Impossível, EnBloq – interfaces de um corpo/poema e El Puerto.


MÓIN-MÓIN<br />

cabeças estão fundidas a objetos semelhantes a malas, ou pufes, ou<br />

mesas... São corpos sem rosto que atingem um grau absoluto de<br />

despersonalização, ao envergarem a mesma indumentária de cores<br />

neutras e desenvolverem uma rotina semelhante de deslocamentos<br />

ao rés do chão: eles rastejam, expandem-se e encolhem-se em<br />

movimentos espinais, sem nenhuma intenção espacial distinguível<br />

de uns para com os outros. Assemelham-se a invertebrados cegos<br />

que, imersos nas suas próprias sensações, deslizam em um meio<br />

liquefeito e antediluviano.<br />

Segundo a concepção de Marcos Sobrinho, questões como:<br />

“Qual a importância da vida e da morte na nossa cultura cada vez<br />

mais virtualizada?” e “Por que estamos perdendo a nossa identidade<br />

e nos tornando homens-objetos?”– por exemplo –, motivaram-no<br />

na construção de imagens de corpos isolados como ilhas, verdadeiras<br />

esculturas em movimento inspiradas em obras de Leonilson que<br />

revelam, na fusão entre o indivíduo e o objeto, o caráter ambíguo<br />

das identidades. O objetivo foi o de se chegar a um estado corporal<br />

que apagasse qualquer referência histórica, temporal ou social,<br />

alcançando assim uma fase embrionária 8 . O inanimado cumpriu<br />

um papel importantíssimo na sua busca, ao propor indagações<br />

relacionais para o criador-intérprete, levando-o à necessidade de<br />

construir um corpo capaz de humanizar objetos.<br />

A partir do exposto acima, são possíveis de serem traçados dois<br />

paralelos. Primeiramente com a máscara neutra 9 , cujo objetivo nos<br />

dias atuais ainda é o de apagar a persona social do ator e servir de<br />

instrumento para a limpeza gestual. Os seus traços remetem ao<br />

rosto humano em estado de apenas existir enquanto ser, sem alusão<br />

a gênero, faixa etária, classe social ou intencionalidade. Contudo,<br />

apesar das semelhanças, os objetos (máscaras) que encerram as<br />

cabeças dos intérpretes em O Ilha concorrem para composição<br />

8 Informação verbal. Entrevista concedida pelo artista.<br />

9 Utilizada inicialmente por Jacques Copeau na Escola do Vieux Colombier, e<br />

posteriormente aperfeiçoada por seus discípulos Etienne Decroux e Jacques Lecoq.<br />

23<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


24<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas<br />

MÓIN-MÓIN<br />

de uma expressividade que poderíamos chamar de pré-humana, e<br />

por conta disso, estariam mais próximos do véu de musselina que<br />

antecedeu a construção inicial das máscaras neutras por Jacques<br />

Copeau 10 , e que serviu de expediente à Etienne Decroux 11 para a<br />

formação da Mímica Corporal Dramática, ao focalizar o tronco<br />

como centro de expressão em vez das extremidades do corpo, tais<br />

como o rosto e as mãos:<br />

Se eu [Decroux] pedir a um ator que me expresse alegria<br />

ele me fará assim (ele fazia uma grande máscara de<br />

alegria no rosto), mas se eu cobrir o seu rosto com um<br />

pano, amarrar seus braços para trás e lhe pedir que me<br />

expresse agora alegria, ele precisará de anos de estudo!<br />

(DECROUX apud BURNIER, 2001: 67).<br />

A outra paridade está relacionada a outros artistas contemporâneos<br />

que têm lançado mão, por exemplo, do Sistema Laban 12 para<br />

também desenvolver trabalhos de exploração expressiva. A Expressividade<br />

– “como nos movemos” – é uma das categorias usadas nesse<br />

sistema para análise do movimento humano e refere-se ao impulso,<br />

ao ímpeto, a atitude interna do indivíduo para se locomover. Tal<br />

atitude desenvolve-se ao longo da primeira infância, na qual, por<br />

meio de explorações sensoriais, a criança gradualmente forma a sua<br />

extensão expressiva. Nos primeiros anos de vida, oscila-se tanto entre<br />

a expansão da percepção e descoberta do meio circundante quanto<br />

10 Jacques Copeau (1879-1949) liderou, em Paris, um movimento de valorização da<br />

participação do ator no processo de criação artística que resultou na Mímica Moderna de<br />

Etienne Decroux.<br />

11 Considerado o pai da Mímica Moderna, Decroux (1898-1991) começou a sua<br />

carreira em 1923 e em 1941 abriu a sua própria escola dedicada a uma nova arte: a<br />

Mímica Corporal Dramática.<br />

12 O Sistema Laban, denominado até a década de 80 como Sistema Effort-Shape,<br />

conhecido internacionalmente como Laban Movement Analysis (LMA), foi desenvolvido<br />

em grande parte por Rudolf Laban entre 1936 e 1951, tendo sido acrescido das<br />

contribuições de seus discípulos posteriormente.


MÓIN-MÓIN<br />

ao recolhimento defensivo contra esse mesmo meio. O emprego de<br />

objetos, de estímulos visuais e sonoros, de textos poéticos, associados,<br />

em geral, ao corpo disposto no plano baixo (entregue e sem<br />

compromisso estético definido) são alguns dos recursos utilizados<br />

nos laboratórios improvisacionais desses criadores que buscam nas<br />

qualidades pré-expressivas a sua forma de manifestação artística<br />

(FERNANDES, 2006: 118).<br />

Esses dois ingredientes, a qualidade pré-expressiva da movimentação<br />

e o uso de objetos (máscaras) sem características<br />

humanas, conformam uma experiência cênica na qual a imagem<br />

desempenha um papel relevante; no contexto que se opõe à representação<br />

mimética ou simbólica e que se aproxima mais dos<br />

processos inconscientes, de uma espécie de “pensamento visual”, a<br />

cena distancia-se da lógica fabular e ultrapassa o aspecto figurativo,<br />

tornando-se “a máquina de sonhar” (PAVIS apud BURNIER,<br />

2001: 204). As imagens criadas tanto a partir do espaço como do<br />

corpo, e em diálogo ou integração com os demais componentes do<br />

espetáculo, constroem uma dramaturgia que adquire um caráter<br />

móvel e mutante ao relacionar os corpos, tanto dos atores como<br />

do público, ao ambiente. O sentido do que é visto não é único, é<br />

múltiplo, aberto às interpretações do espectador.<br />

A maneira como o intérprete tem sido pensado e posto em cena<br />

na contemporaneidade revela o quão estamos longe de esgotar as<br />

discussões sobre a multiplicidade estética das práticas teatrais encontradas<br />

no nosso cotidiano. Nesse aspecto, o corpo vivo tem sido<br />

reduzido mais e mais à sua matéria, assemelhando-se ao objeto, em<br />

busca de equivalências significativas. Assim como o uso da máscara<br />

tradicional leva o ator para o campo da alteridade, as projeções<br />

do espaço cênico sobre o corpo do atuante instauram outra idéia<br />

acerca do “mascaramento”, que extrapolam a mimese tradicional. A<br />

hipótese do emprego do “mascaramento” como uma ferramenta de<br />

trabalho ativa nas mãos dos criadores atuais, libertando a cenografia<br />

dos limites da ambientação cênica, parece responder, em parte, as<br />

questões levantadas neste artigo.<br />

25<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


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Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas<br />

MÓIN-MÓIN<br />

REFERêNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

AMARAL, Ana Maria. Teatro de Formas Animadas. São Paulo:<br />

Edusp, 1991.<br />

BURNIER, Luís Otávio. A Arte de Ator: da Técnica à Representação.<br />

Campinas: Unicamp, 2001.<br />

FERNANDES, Ciane. O Corpo em Movimento: o Sistema Laban-<br />

Bartenieff na formação e pesquisa em Artes Cênicas. São Paulo:<br />

Annablume, 2006.<br />

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Aurélio Século<br />

XXI: o dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova<br />

Fronteira, 1999.<br />

PAVIS, Patrice. A Análise dos Espetáculos. São Paulo: Editora Perspectiva,<br />

2003.


O Teatro de Objetos: história,<br />

idéias e reflexões<br />

Sandra Vargas<br />

Grupo Sobrevento – São Paulo<br />

MÓIN-MÓIN<br />

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Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


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Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas<br />

MÓIN-MÓIN


MÓIN-MÓIN<br />

PÁGINA 27: Espetáculo Entre Dilúvios (2005 - Espanha). La Chana Teatro. Direção<br />

de Jaime Santos. Foto de Guto Muniz / Casa da Foto.<br />

PÁGINAS 28 e 29 (abaixo): Espetáculo Historias de Media Suela (2006 – Jaén –<br />

Espanha). Cia Fernan Cardama. Direção de Carlos Piñero. Foto de divulgação - PPH.<br />

PÁGINA 29: Espetáculo Mulheres (2003 - SP). Núcleo Trecos e Cacarecos. Direção<br />

de Sandra Vargas. Foto de Henrique Stichin.<br />

29<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


30<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas<br />

MÓIN-MÓIN<br />

Resumo: O presente artigo discute a arte do Teatro de Objetos como<br />

manifestação que vem ganhando visibilidade no cenário da criação teatral<br />

contemporânea e problematiza concepções e diferenças entre Teatro de Objetos<br />

e Teatro de Bonecos feito com objetos. Destaca as principais idéias de seus<br />

fundadores quando da sua criação em 1980 na França. Evidencia as diferentes<br />

visões sobre o modo de pensar e criar nessa arte, tendo como referência espetáculos<br />

que se apresentaram no Brasil nos últimos anos. O artigo também situa<br />

o percurso de alguns grupos brasileiros que vêm trabalhando nessa perspectiva.<br />

Palavras chave: Teatro de Objetos; teatro de animação; teatro contemporâneo.<br />

Abstract: The present article discusses the art of the theatre of objects as a<br />

form of expression that has been gaining visibility in the realm of contemporary<br />

theatrical creation, and problematises conceptions of, and differences between,<br />

the theatre of objects and puppet theatre performed with objects. The article<br />

highlights the principal ideas of it founders from the moment of its creation in<br />

1980 in France. The article reveals the different views on forms of thought and<br />

creation in this art, using the shows that have been presented in Brazil in the<br />

last few years as a reference. At the same time, the article situates the trajectories<br />

of a few Brazilian groups that have been working in this frame.<br />

Keywords: Theatre of objects; puppet theatre; contemporary theatre.<br />

A primeira vez que ouvi falar em Teatro de Objetos foi da boca<br />

do marionetista francês Philippe Genty, quando tivemos a sorte de


MÓIN-MÓIN<br />

que três integrantes do nosso Grupo, o Sobrevento, fossem selecionados,<br />

junto com outros jovens marionetistas da América Latina,<br />

para fazer um curso com ele, por um mês, na cidade de Trujillo,<br />

no Peru, em 1988.<br />

Naquele curso, um dos módulos era o Teatro de Objetos,<br />

apresentado como uma vertente do Teatro de Animação, onde<br />

se definiam algumas de suas particularidades e características e<br />

realizavam-se experimentos. Aquilo, para nós, foi uma surpresa,<br />

pois Genty nos falava em um Teatro de Bonecos sem bonecos, com<br />

objetos prontos (ready-mades), onde a manipulação, com todos<br />

os seus princípios (direção do olhar, ponto fixo, dissociação, eixo<br />

e nível), era muito discreta, não sendo, definitivamente, o mais<br />

importante.<br />

Na madrugada do dia 2 de março de 1980, em uma vigília,<br />

três companhias de Teatro de Animação (Théâtre de Cuisine – Katy<br />

Deville e Christian Cariignon –, Vélo Théâtre – Tania Castaing e<br />

Charlot Lemoine – e Théâtre Manarf – Jacques Templeraud) haviam<br />

se reunido e cunhado o termo Teatro de Objetos. Foi Katy<br />

Deville – fundadora do Théâtre de Cuisine, junto com Christian<br />

Carrignon –, quem mencionou pela primeira vez aquele termo.<br />

Aqueles artistas buscavam identificar-se e designar aquilo que eles<br />

vinham fazendo nos seus espetáculos e que consideravam que<br />

não era nem Teatro de Bonecos, nem Teatro de Atores. Buscavam<br />

reconhecer-se e aproximar-se de outros trabalhos exemplares com<br />

as quais acreditavam assemelhar-se, como o espetáculo Pequenos<br />

Suicídios, do húngaro Gyula Molnár. Eram companhias que trabalhavam<br />

com objetos prontos, deslocando-os da sua função original.<br />

Apresentavam um repertório sempre muito íntimo, confessional e<br />

revelador do próprio indivíduo (o artista). Assim surgiram espetáculos<br />

dramaticamente fortes, delicados e provocadores. Christian<br />

Carrignon e Katy Deville integraram a Companhia de Philippe<br />

Genty, que percebeu a importância daquele movimento, passando<br />

a difundir os princípios do Teatro de Objetos, tal qual os percebia,<br />

a partir do trabalho daqueles artistas, ainda que suas criações<br />

31<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


32<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas<br />

MÓIN-MÓIN<br />

seguissem outros rumos.<br />

É importante mencionar que outros artistas já se valiam de<br />

objetos nas suas encenações antes destas companhias, como o<br />

alemão Peter Ketturkat, que, desde 1978, dedica-se a um Teatro<br />

com objetos, tomando, porém, uma perspectiva particular, montando<br />

bonecos, personagens e cenas curtas a partir de objetos<br />

descartados. Ketturkat, tendo-se surpreendido com o impacto<br />

causado por seu trabalho no meio do Teatro de Animação, disse<br />

ter percebido, em redor de si, naquele período inicial do Teatro<br />

de Objetos, outros tantos artistas com trabalhos semelhantes ao<br />

seu, atribuindo aquilo não exatamente à herança de movimentos<br />

de vanguarda - como o Dadaísmo, o Surrealismo, o Futurismo -,<br />

mas ao “espírito de uma época”.<br />

Desde 2009, venho estabelecendo contato com artistas e<br />

companhias internacionais de Teatro de Objetos, por ocasião da<br />

realização de quatro edições do FITO – Festival Internacional de<br />

Teatro de Objetos 1 – nas cidades de Belo Horizonte (em setembro<br />

de 2009 e em maio de 2010), Porto Alegre (em março de 2010) e<br />

Manaus (em abril de 2010) -, na qualidade de curadora do evento.<br />

Pudemos trazer ao país importantes expoentes deste gênero, tais<br />

como: Katy Deville, com o espetáculo 20 Minutos sob o Mar (uma<br />

sereia, à beira de um aquário canta e encena, com ironia, canções<br />

que falam de mar), organizamos uma oficina e uma conferência<br />

sobre o assunto; Jaime Santos (Companhia Chana Teatro - Espanha)<br />

com os espetáculos Entre Dilúvios (quatro passagens bíblicas, de<br />

Caim a Noé, contadas com objetos cotidianos, símbolos, jogos de<br />

linguagem e muito humor e acidez, revelando uma visão particular<br />

da história da humanidade) e O Pequeno Vulgar (espetáculo infantil,<br />

baseado no famoso conto Vulgarcito, de Epaminondas, onde um<br />

manipulador conta as desventuras de um personagem que busca<br />

1 FITO - Festival Internacional de Teatro de Objetos - É um Projeto do SESI, idealizado<br />

por Lina Rosa. Foi realizado nas cidades de Belo Horizonte (setembro 2009 e<br />

maio 2010), Porto Alegre (março 2010) e Manaus (abril 2010).


MÓIN-MÓIN<br />

fazer uma princesa feliz), também organizamos uma oficina de<br />

Introdução ao Teatro de Objetos.<br />

Ambos explanaram os princípios que pautavam aquele movimento<br />

de Teatro de Objetos, tal qual passa a ser entendido no final<br />

dos anos 70 e início dos 80 (Jaime Santos, também foi aluno de<br />

Philippe Genty). Tanto no FITO quanto nas edições de 2010 do<br />

Festival Internacional de Teatro de Bonecos de Belo Horizonte 2 e<br />

do Festival Internacional de Teatro de Animação - FITAFLORIPA 3<br />

(que também têm trazido alguns espetáculos internacionais de Teatro<br />

de Objetos ao país), pude constatar que a grande maioria das<br />

companhias hoje atuantes no campo do Teatro de Objetos ainda<br />

se pautam por aqueles mesmos princípios que Philippe Genty percebeu<br />

nos primórdios daquele movimento e que buscou difundir<br />

nos muitos cursos que tem ministrado em diferentes países.<br />

Para Genty, o Teatro de Objetos é uma vertente do Teatro de<br />

Animação que se vale de objetos prontos, no lugar de bonecos,<br />

deslocando-os da sua função e conferindo-lhes novos significados,<br />

sem transformar, porém, a sua natureza, explorando uma<br />

dramaturgia que se vale de figuras de linguagem, em detrimento<br />

da importância da manipulação propriamente dita. Dentro deste<br />

conceito, portanto, tentar fazer um boneco, forçando a ilusão de<br />

um movimento humano a partir da junção de diferentes objetos,<br />

ou colocando dois olhos em um objeto, não constituiria um Teatro<br />

de Objetos, mas um Teatro de Bonecos feitos de objetos.<br />

Esta é uma consideração comum a outros artistas, como o<br />

espanhol Jaime Santos, que não vêem uma filiação do Teatro de<br />

Objetos ao Teatro de Animação, considerando aquele um gênero<br />

teatral particular. Katy Deville e Christian Carrignon, por sua<br />

vez, falando das acaloradas discussões em meados dos anos 80 em<br />

2 Festival Internacional de Teatro de Bonecos de Belo Horizonte - Idealizado pela<br />

Companhia Catibrum.<br />

3 FITAFLORIPA - Festival Internacional de Teatro de Animação: Idealizado por<br />

Sassá Moretti.<br />

33<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


34<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas<br />

MÓIN-MÓIN<br />

Charleville-Mézières – sede do Instituto Internacional da Marionete<br />

e do Festival de Teatro de Animação mais importante do mundo<br />

– diziam da rejeição que os artistas de Teatro de Objetos sofriam<br />

dos marionetistas – por “nem sequer se darem ao trabalho de confeccionar<br />

bonecos”, por ser “Teatro de bonequeiro preguiçoso” – e<br />

da importância de marcar, naquele momento, uma distinção entre<br />

os dois gêneros teatrais, que hoje acreditam reconciliados e unidos.<br />

Novos significados podem ser dados aos objetos, sem transformar<br />

a sua natureza, por meio de associações que se podem dar<br />

pela forma, pelo movimento, pela cor, pela textura, pela função do<br />

objeto, etc. Todas estas associações de idéias constituem figuras de<br />

linguagem e as mais utilizadas são a metáfora, quando se emprega<br />

um termo com significado diferente do habitual, com base numa<br />

relação de similaridade entre o sentido próprio e o sentido figurado,<br />

e a metonímia, quando uma palavra é usada para designar alguma<br />

coisa com a qual mantém uma relação de proximidade ou posse.<br />

Quando, no Teatro de Objetos, usamos um lenço de seda para<br />

retratar uma mulher bonita, associamos a suavidade da seda para<br />

caracterizar a maciez e, por conseguinte, a beleza desta mulher.<br />

Assim, vemos que não podemos escolher qualquer objeto para<br />

expressar a personagem ou idéia que buscamos: o objeto escolhido<br />

deve criar no espectador uma associação metafórica que o transforme<br />

em outra coisa além do que ele é, sem que deixe de ser o que ele<br />

efetivamente é. Precisaríamos, portanto, encontrar em um objeto<br />

algo que justificasse associá-lo à idéia ou à imagem que escolhemos.<br />

Exemplos com objetos:<br />

• pela forma e a cor, uma ameixa poderia ser um coração;<br />

• pelo movimento, um furador de papel poderia ser um sapo;<br />

• pela função, um martelo poderia ser um personagem rude<br />

e violento;<br />

• pela semântica, um pregador de roupas poderia ser um<br />

pregador religioso.<br />

Da primeira à terceira edição do FITO, trouxemos a Companhia<br />

La Balestra com o espetáculo A Criação. O espetáculo, que


MÓIN-MÓIN<br />

fala da guerra, tem a humanidade, uma multidão, representada por<br />

fósforos, por muitos fósforos, todos iguais. A guerra é representada<br />

acendendo-se todos os fósforos. O espectador pode ver, à sua frente,<br />

ânimos inflamados, pessoas queimadas, uma cidade destruída. Todo<br />

o horror da guerra é apresentado nada mais que com fósforos.<br />

No IV FITAFLORIPA, em junho de 2010, a Compagnie<br />

des Chemins de Terre (Bélgica) apresentou o espetáculo Richard,<br />

Polichineur d´Écritoire, em que, para encenar uma passagem de<br />

Ricardo III e falar da “carnificina”, das mortes na luta pelo trono<br />

da Inglaterra, os membros da família são representados por pedaços<br />

de carne que vão sendo espetados em um ferro, como em<br />

um churrasco.<br />

Nas quatro primeiras edições do FITO, o espetáculo Histórias<br />

de Meia-Sola, da Compañía Fernán Cardama, falando de um<br />

homem e de sua família, valia-se de diferentes sapatos: o pai era<br />

representado por um sapato social e os filhos por sapatos de crianças<br />

que variavam conforme a idade e o perfil de cada filho. Este recurso<br />

metonímico de tomar a parte pelo todo também é bem freqüente<br />

no Teatro de Objetos.<br />

No Teatro de Objetos, o ator cumpre um papel às vezes mais<br />

importante do que o próprio objeto. O ator deve acreditar no objeto,<br />

tal qual uma criança acredita nele, quando o toma e o anima.<br />

A criança, porém, não escolhe o objeto fazendo os mesmos jogos<br />

de pensamento, de associações, que o adulto.<br />

Segundo Christian Carrignon e Jean-Luc Mattéoli, em Le Théâtre<br />

d´Objet: Mode d´Emploi, o ator, neste jogo da manipulação, pode passar<br />

por três estágios em uma encenação de Teatro de Objetos:<br />

“Por exemplo, o ator tem um barco de madeira na sua mão:<br />

1 - Ele é personagem “por debaixo” do objeto (Zeus sopra<br />

por sobre o barco, em um plano aberto);<br />

2 - Ele é personagem “dentro” do objeto (Ulisses dentro<br />

do barco, preso em uma tempestade, em plano fechado).<br />

3 - Ele é manipulador, escondendo-se “atrás” do objeto,<br />

tornando-se “invisível” (ele coloca o barco em plano aberto,<br />

sem ser Zeus)”. (CARRIGNON; MATTÉOLI, 2006: 09)<br />

35<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


36<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas<br />

MÓIN-MÓIN<br />

No Teatro de Objetos, o jogo da manipulação descola-se da<br />

idéia de virtuosismo e pode tanto lembrar brincadeiras de criança<br />

ou fantasias alucinadas, quanto simples ilustrações de uma narrativa.<br />

Há aspectos técnicos, porém, a considerar na forma de manipular<br />

os objetos:<br />

• O ator deve ser capaz de direcionar o foco de atenção do<br />

público para o objeto, para si ou para o seu jogo com o objeto;<br />

• Na escolha dos objetos, um ponto de partida pode ser a seleção<br />

de “famílias” de objetos, tais como ferramentas, utensílios de<br />

cozinha, brinquedos, objetos femininos (jóias, maquiagens, leques,<br />

tiaras, grampos, etc). A utilização de diferentes “famílias de objetos”<br />

empobrece o jogo metafórico do Teatro de Objetos, dificultando,<br />

sobretudo, a relação entre os objetos utilizados.<br />

• A qualidade dos movimentos, dinâmicas e ritmos, ao se<br />

manipular um objeto permitirá associá-lo à imagem ou idéia que<br />

se persegue. Não se pode simplesmente apresentar um objeto sem<br />

explorar o seu funcionamento e movimentá-lo. O objeto em si só<br />

passa a ser algo além de si mesmo, quando se lhe sobrepõe uma<br />

segunda idéia, diferente de si que crie com ele uma relação. E isto<br />

pode se dar a partir da linguagem – o texto do ator –, de sons, de<br />

músicas ou do movimento que a ele se aplica. A movimentação de<br />

um objeto, porém, deve ser explorada a partir do funcionamento<br />

normal, cotidiano do objeto, para que ele nunca deixe de ser, essencialmente,<br />

o que ele efetivamente é. Assim, um rolo de fita crepe<br />

deveria rodar, desenrolar-se, ser puxado, mas não deveria voar. Um<br />

grampeador pode-se abrir e isto poderia evocar uma boca que se<br />

abre. Os grampos que saem dele poderiam ser dentes que caem. Seu<br />

barulho poderia parecer ameaçador. E o grampeador poderia ser<br />

um jacaré, um lobo, um patrão, um general, um telefone. Mas não<br />

poderia ser uma paca, uma minhoca, o Papai Noel, um televisor,<br />

uma panela, por não reconhecermos nada no seu funcionamento<br />

ou movimento normais que o associe a estas idéias ou figuras. Tomando<br />

outro exemplo, um martelo poderia ser um ditador, mas<br />

não poderia ser uma pomba.


MÓIN-MÓIN<br />

O Teatro de Objetos é particularmente provocador quando<br />

apresenta um repertório pessoal, autobiográfico, íntimo e autoral<br />

do ator, que se expõe através dos objetos. O grande potencial do<br />

Teatro de Objetos não está nas suas particularidades técnicas, mas,<br />

sim, naquilo que é capaz de despertar de mais profundo e revelador<br />

daquele artista, por meio de seus objetos.<br />

Segundo Carrignon e Mattéoli (2006: 07):<br />

“o Teatro de Objetos pertence ao nosso tempo e à nossa<br />

sociedade. É um Teatro que nasce no final do século XX,<br />

em um mundo invadido por objetos made in China.<br />

Qualquer que seja a história que conte, o Teatro de Objetos<br />

fala sobre nós, por meio das coisas manufaturadas<br />

reconhecíveis por todos. O Teatro de Objetos fala das<br />

pequenas coisas cotidianas. Cada espectador tem uma<br />

lembrança pessoal ligada a um certo objeto...”<br />

Ao que acrescenta: “a vocação primeira do Teatro de Objetos é<br />

a de tocar nossa intimidade, de interrogar o enigma que nós somos<br />

aos olhos dos outros”.<br />

Um exemplo de um trabalho extremamente pessoal, íntimo,<br />

delicado e profundo, são os muitos trabalhos da belga Agnés<br />

Limbos. Hoje, um dos maiores nomes do Teatro de Objetos,<br />

destaca-se pela ousadia na dramaturgia dos seus espetáculos. A<br />

Compagnie Gare Central, que dirige, participou do FITO com<br />

o espetáculo Klikli. Este espetáculo conta a história de um menino<br />

que, frágil, se esconde de um mundo inóspito e frio demais,<br />

criando com os seus brinquedos playmobil, de plástico,<br />

impessoais, um mundo próprio onde pode ser rei e governar do<br />

jeito que aprendeu. No espetáculo, vemos somente brinquedos<br />

que se movem sozinhos, estando os manipuladores totalmente<br />

ausentes. O espectador acompanha, passo a passo, as ações com<br />

os brinquedos. Aos poucos, vão entrando carrinhos, bombeiros,<br />

ambulâncias e um menino que circula no meio de tudo isto, até<br />

que, por fim, entra um tanque de guerra e atira no menino. Toda<br />

esta ação é apresentada com os brinquedos playmobil, tendo, ao<br />

37<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


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Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas<br />

MÓIN-MÓIN<br />

fundo uma voz em off de uma criança – mal percebida no interior<br />

de um móvel, em cena – que nos revela o seu sentimento<br />

de solidão e impotência, em um mundo que ela não é capaz de<br />

compreender.<br />

Pequenos Suicídios: três breves wexorcismos de uso cotidiano é<br />

outro clássico do Teatro de Objetos que segue este perfil. Apresenta<br />

o trágico e anunciado suicídio de um Alka-Seltzer em um copo de<br />

água, frente à rejeição sofrida por um punhado de bombons (da<br />

marca Garoto, diga-se de passagem); o amor de Jörg, jovem sueco,<br />

um fósforo, que se consome de amor por Pita, brasileira, fascinante<br />

e encantadora, um grão de café; e uma alegoria sobre o tempo, por<br />

meio da história do relacionamento do autor com sua tia excêntrica,<br />

entre amendoins, carteira, cédulas, mapa, fotos 3x4.<br />

Considerando que a dramaturgia do Teatro de Objetos é autoral,<br />

pessoal, individual, e que, portanto, está vinculada ao ator<br />

que a criou, terminamos por ser levados a questionar o que aconteceria<br />

com os muitos textos que têm sido escritos para o Teatro<br />

de Objetos. Será que eles se perderiam ou se tornariam inúteis,<br />

quando o ator-autor decidisse não apresentá-los mais? A carreira<br />

do antológico espetáculo Pequenos Suicídios lança luz sobre esta<br />

questão. Tido como uma das primeiras encenações de Teatro de<br />

Objetos, foi criado e apresentado por Gyula Molnár, a partir de<br />

1979, alcançando grande sucesso durante todos os anos 80. Um espetáculo<br />

autobiográfico, Pequenos Suicidios volta a ser encenado em<br />

2000, não por Gyula Molnár e, sim, pelo catalão Carlos Cañellas,<br />

da companhia Rocamora.<br />

Segue aqui um trecho de uma carta escrita por Gyula Molnár<br />

a Carlos, em resposta ao pedido deste da cessão dos direitos de<br />

representação do espetáculo:<br />

Naturalmente o culto à poética pessoal, ao estilo individual,<br />

condenaria uma iniciativa como esta. É certo,<br />

que entre os que cultuam o Teatro de Objetos, muito<br />

poucos têm a coragem de representar um espetáculo<br />

criado por outro. Neste ambiente, são todos poetas,


MÓIN-MÓIN<br />

autores e criadores. São raros os atores. Segundo o meu<br />

ponto de vista, cedendo nossos extravagantes textos,<br />

sacrificamos tão somente um pouco da nossa solidão<br />

criativa e o pior que nos pode acontecer é ter que dar<br />

quatro passos (em lugar de um) em busca de uma<br />

poética talvez mais exuberante que a própria (Gyula<br />

Molnár – 19 de março de 1999).<br />

No Brasil ainda existem poucos espetáculos de Teatro de<br />

Objetos e, ao contrário do que acontece na Europa, a maioria<br />

destina-se a crianças. Em 2000, dirigi o espetáculo adulto Mulheres,<br />

a convite da companhia Trecos e Cacarecos, que continua<br />

apresentando um perfil raro no país. No espetáculo, são encenados<br />

três contos (Barba Azul, A Mulher-Esqueleto e A Donzela sem<br />

Mãos) do livro Mulheres que Correm com os Lobos, de Clarissa<br />

Pinkola Estés. Em uma sala composta por dois ambientes – uma<br />

sala de jantar, com uma mesa e todos os objetos que remetem a<br />

um jantar, e uma sala de estar, com objetos pessoais femininos<br />

–, duas mulheres encontram-se para trocar confidências e experiências.<br />

Em cena, Barba Azul é representado por um xale azul<br />

e as donzelas seduzidas são leques. A sedução de Barba Azul e o<br />

encantamento da donzela dão-se simplesmente pelo abrir de um<br />

bombom de chocolate e pelo deleite ao saboreá-lo. O horror da<br />

descoberta do verdadeiro Barba Azul dá-se pelo derramamento do<br />

vinho em uma jarra, associado ao sangue derramado das donzelas<br />

assassinadas naquele castelo. Toda a encenação tomou o mesmo<br />

caminho: o da escolha da utilização do objeto de forma simbólica<br />

e a construção de metáforas poéticas.<br />

Outra experiência de Teatro de Objetos adulto, no Brasil,<br />

é o espetáculo História de Bar, criado pelo ator José Valdir Albuquerque,<br />

sob a direção de Henrique Sitchin, da Companhia<br />

Truks. Nele, um barman conta como foi a pior noite da sua vida,<br />

na cidade de São Paulo. Com objetos de bar e todos os utensílios<br />

necessários à preparação de drinks, é narrada uma grande aventura<br />

vivida pelo barman, no mundo boêmio da noite paulistana.<br />

Vemos ocorrer, à nossa frente, estranhos assassinatos, perseguições<br />

39<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


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Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas<br />

MÓIN-MÓIN<br />

de polícia e um desfile de possíveis suspeitos. Em um tom trash,<br />

irônico e às vezes cruel, vemos o ketchup transformar-se no sangue<br />

derramado nos assassinatos, vemos como uma possível suspeita,<br />

uma stripper, é representada por uma banana e como um acendedor<br />

automático de fogão transforma-se em um policial que<br />

não pára de dar tiros. Criado em 2009, este espetáculo consegue<br />

estabelecer uma forte comunicação com o público mais jovem e<br />

se vale de um jogo sobretudo verbal na construção de suas figuras<br />

de linguagem.<br />

No Rio Grande do Sul, a Companhia Gente Falante faz<br />

uma adaptação de Cinderela no espetáculo Louça Cinderella,<br />

onde servem um chá ao público, enquanto apresentam o conto<br />

em meio a louças, bolos, doces e chá. O grupo gaúcho Mosaico<br />

Cultural também trabalha o Teatro de Objetos para o público<br />

adulto, usando os objetos de forma íntima, direcionando cada<br />

apresentação a um único espectador ou a um pequeno grupo,<br />

onde é apresentada uma poesia, ilustrada por objetos, de uma<br />

forma sutil e delicada.<br />

Acredito que quando o Teatro de Objetos dirige-se ao público<br />

adulto, os princípios que pautaram o movimento dos anos<br />

oitenta são mais fáceis de reconhecer e aplicar. Pautados nestes<br />

princípios é que penso ser possível explorar ao máximo o potencial<br />

dramático e poético desta linguagem teatral. O uso da metáfora<br />

pode-nos levar a criar uma dramaturgia que obrigue a uma tomada<br />

de posições, que crie mais poetas do que atores, que nos obrigue<br />

a questionar quem somos e o que somos nesta sociedade que nos<br />

cerca, sempre pela via poética, sem ser panfletários e fugindo de<br />

mensagens e doutrinas. No Teatro de Objetos, podemos sair do<br />

papel de manipulador e ter a oportunidade de entrar em cena<br />

para dizer alguma coisa que nos diga respeito e que nos revele,<br />

criando uma dramaturgia provocadora, irônica, tocante e não só<br />

de mero entretenimento.<br />

Entre os grupos que se dedicam ao Teatro de Objetos para<br />

crianças, alinham-se companhias como a Truks (espetáculos Zôo-


MÓIN-MÓIN<br />

Ilógico), a Mariza Basso (O Circo dos Objetos e O Sítio dos Objetos),<br />

a Circo de Bonecos (Inzôonia e Guarda Zool) e o Teatro de La Plaza<br />

(Revolução na Cozinha). No Brasil, a maioria dos espetáculos de<br />

Teatro de Objetos destinados a crianças parte de uma perspectiva<br />

diferente daquela que estruturou o movimento de Teatro de Objetos<br />

europeu, em busca de estabelecer uma comunicação mais efetiva<br />

com a criança, pelo seu limitado domínio dos códigos lingüísticos,<br />

sociais e culturais. Assim, estes espetáculos terminam por valer-se<br />

de metáforas mais simples, que a criança possa perceber, ou simplesmente<br />

por abrir mão de outras associações de idéias que não<br />

as que se estabelecem pela forma, pela cor ou pelo movimento. É<br />

freqüente, também, a criação de personagens por meio da junção<br />

de dois ou mais objetos, que são usados como bonecos, independente<br />

da função e natureza dos mesmos. A aplicação de olhos<br />

nos objetos e a antropomorfização destes são recursos habituais,<br />

em busca da criação de empatia e familiaridade. Consideramos<br />

importante questionar a simplicidade das associações e o quanto<br />

podemos avançar no campo poético desta linguagem, mesmo<br />

quando direcionada a crianças, em busca de explorar ao máximo<br />

o seu potencial expressivo, evitando repetir um formato que não<br />

oferece tantas variações.<br />

Esta forma mais simples de tratar os objetos também é corrente<br />

no trabalho de companhias estrangeiras cujos espetáculos<br />

são dirigidos ao público infantil. A Compagnie du Petit Monde,<br />

da França, que integrou as duas primeiras edições do FITO é<br />

categórica em sua expressa oposição aos conceitos que pautaram<br />

a formulação do Teatro de Objetos. No espetáculo Toc-Toque, o<br />

objeto é sutilmente, ou nem sequer é, associado a novos significados.<br />

O objeto é apresentado e utilizado como tal (ou pouco mais<br />

do que isto) e o conflito entre diferentes objetos nasce de uma<br />

relação constituída, de certa forma, como uma partitura musical.<br />

Os objetos, aqui, relacionam-se, sobretudo, pelo seu aspecto<br />

mecânico e pelos sons que deles se extraem. Os manipuladores,<br />

em uma cozinha, revelam um trabalho extremamente preciso, em<br />

41<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


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Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas<br />

MÓIN-MÓIN<br />

uma busca de neutralidade ao mover os objetos. Assim, só para<br />

citar um exemplo, vemos colheres pequenas que lutam para entrar<br />

em uma torradeira e que são expulsas dela, da mesma forma<br />

como um pão é expulso quando está torrado. Nesta situação, um<br />

conflito entre as colheres e a torradeira estabelece-se puramente a<br />

partir do aspecto mecânico dos objetos. E o mesmo se dá com a<br />

companhia de Peter Ketturkat, que mencionamos anteriormente,<br />

quando monta um exército de saca-rolhas e simplesmente associa<br />

a mecânica, o movimento, destes objetos a soldados, sem ir além,<br />

na construção de suas metáforas.<br />

Há pouca circulação de espetáculos de Teatro de Objetos pelo<br />

país, o que fez com que os grupos desenvolvessem o seu trabalho<br />

sob uma única perspectiva, gerando uma certa entropia e uma<br />

limitada variedade de formas e recursos expressivos. O contato<br />

com companhias estrangeiras que possuem mais experiência e<br />

que oferecem trabalhos mais variados poderia contribuir com<br />

diferentes abordagens do gênero e apontar diferentes caminhos<br />

aos artistas brasileiros que se interessem por esta linguagem. A<br />

criação de Festivais específicos como o FITO e a inserção de espetáculos<br />

de Teatro de Objetos no corpo de diferentes Festivais de<br />

Teatro de Bonecos, de Animação, de Novas Linguagens, de Teatro<br />

Contemporâneo, como vem acontecendo, pode contribuir para o<br />

desenvolvimento da linguagem teatral, oferecendo novas visões e<br />

promovendo intercâmbios, não para estabelecer regras, demarcar<br />

um campo de atuação ou constituir fórmulas, mas para apresentar<br />

novos parâmetros para a criação poética. Mesmo porque, como diz<br />

Gyula Molnár, “o Teatro de Objetos não existe, mas façamos de<br />

conta que sim e vejamos o que acontece” (2009: 11). No FITO, os<br />

espetáculos foram discutidos acaloradamente entre os artistas e nos<br />

pareceu interessante perceber um desejo de confrontar resultados<br />

e compartilhar experiências artísticas. Os festivais devem servir<br />

como uma provocação estética ao trabalho do artista. Esperamos,<br />

porém, que não terminem por limitar-se a criar uma demanda<br />

mercadológica para um certo perfil de produção teatral.


REFERêNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

MÓIN-MÓIN<br />

CARRIGNON, Christian e MATTÈOLI, Jean-Luc. Le théâtre<br />

d´objet: mode d´emploi. Dijon: Ed.Scèrén, CRDP de Bourgogne,<br />

Col. L`Édition Légêre, n. 2, 2006.<br />

CARRIGNON, Christian e MATTÈOLI, Jean-Luc. Le théâtre<br />

d´objet: à la recherche du thèâtre d`objet. Paris: Ed. Themaa,<br />

Encyclopèdie fragmentèe de la marionnette, vol. 2, 2009.<br />

Revista E pur si muove. Vic-la-Gardiole: UNIMA / L’Entretemps,<br />

n. 5, 2006.<br />

EJNÈS, Véronique. Cahier partages: des thèâtres par objets interposés.<br />

Mont-Saint-Aignan, Normandie: Ed. ODIA, 2006.<br />

MOLNÀR, Giulio. Teatro d’Oggetti: appunti, citazioni, esercizi, raccolti<br />

da Giulio Molnàr. Pisa: Corazzano: Ed. Titivillus. 2009.<br />

43<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


44<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas<br />

MÓIN-MÓIN<br />

Figurinos e<br />

subjetividades efêmeras<br />

Amabilis de Jesus<br />

Faculdade de Artes do Paraná – FAP


MÓIN-MÓIN<br />

PÁGINAS 44 e 45 (abaixo): Espetáculo Tropeço (2004– PR). Tato Criação Cênica.<br />

Concepção e atuação de Dico Ferreira e Katiane Negrão. Foto de Chan.<br />

PÁGINA 45 (acima): Hoichi Okamoto, fundador do Teatro Dondoro de Japão,<br />

falecido no dia 6 de junho de 2010. Hoichi apresentou seu espetáculo Kiyohime<br />

Mandara no Festival de Teatro de Formas Animadas de Jaraguá do Sul no ano de<br />

2002. Foto de Takaharu Karaki.<br />

45<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


46<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas<br />

MÓIN-MÓIN<br />

Resumo: Busca-se refletir sobre os diferentes modos de abordagem do<br />

figurino, a partir da análise de espetáculos, de diferentes linguagens, que se<br />

apresentaram nos festivais brasileiros de teatro de animação nesse início de<br />

século. Toma-se por aporte o confronto entre as máximas: “O hábito não faz o<br />

monge” e “No teatro, o hábito faz o monge”, para discutir as formas de entender<br />

a materialização da subjetividade do personagem. Sublinham-se as subjetividades<br />

conjugadas, efêmeras, transitórias como próprias do teatro de animação.<br />

Palavras-chave: Figurino; teatro de animação; subjetividade.<br />

Abstract: This article seeks to reflect on the different ways of considering<br />

costume, parting from an analysis of performances in different theatre languages<br />

that have been presented in Brazilian puppet theatre festivals at the beginning<br />

of this century. The conflict between the maxims “The habit doesn't make<br />

the monk,” and “In theatre, the habit makes the monk,” is taken as the basis<br />

for the article, in order to discuss ways of understanding the materialization<br />

of the subjectivity of the character. Conjugated, ephemeral, and transitory<br />

subjectivities are highlighted as belonging to puppet theatre.<br />

Keywords: Costume; puppet theatre; subjectivity.<br />

Em sua gênese, a caracterização (da personagem) abarcaria aspectos<br />

de identificação do sujeito, tendo por princípio a materialização<br />

da persona. Durante o período grego é entendida principalmente<br />

como máscara, já que o figurino (quiton, capa e coturno) e outros<br />

artifícios (barba, peruca e enchimento no tórax) são complementos


MÓIN-MÓIN<br />

para garantir a verossimilhança. Então, a persona se manifesta na<br />

máscara, não exatamente no corpo-atuante, ocultado pelo figurino.<br />

O corpo da persona é um corpo-extra, um metacorpo.<br />

Talvez este fato tenha contribuído para que a máxima “No<br />

teatro, o hábito faz o monge” tenha sido largamente difundida,<br />

sobrepujando a máxima da qual é corruptela: “O hábito não faz<br />

o monge”. E buscar um confronto entre as máximas é arrostar o<br />

ilustre debate entre alma/matéria, corpo/mente.<br />

Mas de imediato percebe-se que o Teatro de Formas Animadas,<br />

em todas as suas especificidades de linguagens, por vezes confirma,<br />

por vezes subverte, ou, ainda, transita pelas noções subtendidas, sendo<br />

lugar das identidades efêmeras, das subjetividades conjugadas. Se<br />

a asserção “o hábito faz o monge” significa a aceitação de contornos<br />

e limites do ser, nos diversos espetáculos que se apresentaram nos<br />

festivais brasileiros nesse início de século XXI, teve-se assegurado<br />

um espaço para dúvida ou, ao menos, para a reflexão.<br />

A montagem O princípio do espanto, da Morpheu Teatro (SP),<br />

será aqui demarcada como um aporte para as primeiras considerações<br />

sobre este tema, tanto pelo mote desencadeador, como pela<br />

representatividade da boa qualidade dos espetáculos nacionais.<br />

Diante das mais variadas platéias, João da Silva Araújo reencena<br />

o vivificare, ampliando as interpretações sobre o Gênesis, e<br />

estendendo-as para a premissa da arte de animar. Apenas um suave<br />

sopro e, às vistas do público, o ser ganha vida. O desfecho encerra<br />

o seu infortúnio: vendo-se num espelho, o ser despertado também<br />

vê refletido a imagem daquele que o despertou. Nada pode atenuar<br />

seu destino. Sua matéria seria inerte. O sopro vital talvez seja mesmo<br />

um grande fio articulador, e ao qual estará sujeito. E se isto é ficção,<br />

não há constrangimentos em admitir-se um deus-manipulador dos<br />

atos mais ínfimos. É a sina de todo boneco. Muito embora sejamos<br />

tomados por uma profunda tristeza perante sua constatação.<br />

O corpo do ser despertado, coberto por uma calça preta com<br />

risca de giz, uma camisa branca e sapatos, é a personificação de<br />

sua subjetividade, o seu contorno, a sua delimitação. Mas é apenas<br />

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Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


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Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas<br />

MÓIN-MÓIN<br />

matéria, que se aparta de seu espírito – esse sim pertencente a uma<br />

outra ordem.<br />

O debate poderia perpetrar as angústias de Santo Agostinho,<br />

e os seus clamores para que o espírito seja bem mais que a simples<br />

matéria. No entanto, o público roga para que vença a matéria. O<br />

paradoxo se instaura: o ator-intérprete assenhoreado do espírito<br />

do boneco, com sua exímia manipulação faz crer no vivificare, e<br />

exatamente por isto leva a desejar a sua não-existência, pois já se<br />

aceita que o hábito faz o monge, e já está estabelecido um vínculo<br />

de afeição entre o público e este que se esconde sob o hábito.<br />

A técnica usada por Araújo, manipulação direta, é um forte<br />

recurso para selar o pacto, principalmente pelo dispositivo criado:<br />

um suporte na parte posterior da cabeça do boneco que se prende<br />

à boca do ator. Trajado com terno preto, camisa branca e chapéu<br />

preto, Araújo se mantém discreto, ausentando-se em favor da presença<br />

do boneco. Mas há o ato simbólico de um longo sopro, de<br />

duração equivalente ao tempo de toda a ação.<br />

Se em O princípio do espanto se explicita o debate sobre alma/<br />

matéria, outras montagens utilizam-se da mesma técnica; porém<br />

acrescentando detalhes, geram outras indagações. Os espetáculos<br />

da PeQuod Teatro de Animação (RJ), por exemplo, vem oportunizando<br />

reflexões num sentido diferente. Abandonando a roupa<br />

preta que comumente integra o guarda-roupa dos atores-intérpretes,<br />

desde a montagem de Sangue Bom a companhia encontrou uma<br />

solução eficiente para a incorporação do corpo-intérprete à cena.<br />

Miguel Vellinho discorre, na edição número um desta revista,<br />

sobre a adoção de figurinos de estivadores para os atores-intérpretes,<br />

em Sangue Bom:<br />

Caracterizados como trabalhadores braçais, os atores abrem o<br />

espetáculo descarregando o porão de um navio, empilhando<br />

as caixas no cais de um porto. Embora eles pareçam estar<br />

amontoando a carga aleatoriamente, os atores, na verdade,<br />

estão posicionando os balcões em suas marcas (...) É um<br />

trabalho de interpretação, mas também de contra-regragem,<br />

simultaneamente (VELLINHO, 2005: 173).


MÓIN-MÓIN<br />

Segundo o diretor, a escolha do figurino ocorreu durante o processo<br />

de construção da cenografia, vindo solidificar suas intenções.<br />

De qualquer modo, ao tempo que este recurso impede a interferência<br />

humana hierárquica (manipulador/manipulado), também não<br />

oculta a ação dos atores-intérpretes. Ou seja, revezando funções, e<br />

caracterizados como trabalhadores braçais, os atores fazem evidenciar<br />

a condição de subalternos, e se colocam como coadjuvantes.<br />

Na montagem Peer Gynt, desta mesma companhia, os modos<br />

de entender a presença dos atores-intérpretes são ainda mais<br />

complexos pela variedade de situações a que se prestam. Por vezes,<br />

em função do figurino branco, parecem pertencer à cenografia,<br />

misturando-se aos elementos cenográficos, também brancos. Em<br />

outras, são personagens (humanos) tornando a cena híbrida. Ou<br />

ainda, contra-regras.<br />

Em Cândido ou o otimismo, da Cia Instável (PR), duas atrizes,<br />

caracterizadas por roupas do século XVIII, dividem suas angústias,<br />

suas incertezas, seus pesares, suas insatisfações. O relato autobiográfico<br />

de cada uma delas aos poucos se integra ao texto de Voltaire, e<br />

a cena adquire uma dramaturgia composta por camadas, diferentes<br />

segmentos. Uma destas camadas se constrói com a presença de bonecos,<br />

também vestidos com roupas do século XVIII, que encenam,<br />

quase na integralidade, a peça Cândido ou o otimismo. A fusão dos<br />

textos acontece com algumas passagens lentas, quando uma das<br />

atrizes veste uma máscara, confundindo-se com os bonecos, ou<br />

quando se coloca como narradora. Mas há interrupções bruscas,<br />

assinaladas por um apito, indicando distanciamento, e novamente<br />

volta-se para as biografias das atrizes.<br />

A metalinguagem provoca um diálogo com a asserção do<br />

ingênuo protagonista Cândido: “estamos no melhor dos mundos<br />

possíveis”. Universos paralelos são construídos, e o resultado é um<br />

constante ir e vir entre o realismo e a ilusão, entre o teatro de animação<br />

e o teatro de atores, entre arte e vida. No entanto, a afirmativa<br />

do personagem não encontra lugar definitivo. Ecoa, aqui e ali.<br />

Se na linguagem da manipulação direta, via de regra, o híbrido<br />

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abarca o plano do “espírito”, na linguagem da luva, o híbrido se<br />

marca também no plano do corpo-animador e do corpo-animado.<br />

Geralmente, o figurino é a principal definição do corpo-boneco,<br />

é o seu limite. Limite de um espaço oco, que se preenche apenas<br />

com o braço e mão do intérprete.<br />

O uso da empanada para garantir a ausência do ator quase<br />

sempre significa um apagamento da relação entre o humano e<br />

o inumano. Mesmo híbrido, o corpo-boneco, ali exposto, busca<br />

camuflar a inerência do grotesco. No entanto, as permissões são<br />

concedidas pelo caráter lúdico próprio desta linguagem. As brincadeiras<br />

recorrentes nas montagens de Mamulengo, nas quais o corpo<br />

do boneco (mão do intérprete) se movimenta como um quadril a<br />

se requebrar, ou qualquer outra movimentação característica do repertório<br />

popular, são rompimentos com a pretensão de ilusionismo.<br />

Talvez seja este rompimento, forçando a percepção do híbrido, que<br />

contraditoriamente gera a independência do boneco das questões<br />

humanas. Ao exibir os procedimentos, confirma-se a inumanidade<br />

do boneco, e se suaviza o conflito da existência.<br />

No decorrer destes dez anos, muitas companhias internacionais<br />

passaram a compor o cenário dos festivais brasileiros. Producente, o<br />

intercâmbio trouxe familiaridade com grupos de diferentes países.<br />

A companhia argentina El Chonchón pode ser citada como exemplo<br />

da disseminação de novas abordagens, não somente pelos espetáculos<br />

apresentados em várias cidades do Brasil, mas também pelas<br />

trocas de conhecimento em workshops, debates e conversas de bar.<br />

Oportunizando contato com o humor sarcástico, esta companhia,<br />

repetidas vezes, usa como veículo a metalinguagem. Para os<br />

objetivos desta reflexão, a montagem de Romeu e Julieta Maria, traz<br />

dados distintos e de grande importância, sobretudo pela intenção<br />

de causar distanciamento da presença do intérprete.<br />

Inicialmente os atores-bonecos são apresentados ao público<br />

como integrantes de uma companhia de teatro. Um a um desfilam<br />

com suas roupas de ensaio, enquanto o diretor fala sobre os personagens<br />

que irão interpretar. Logo em seguida, já devidamente


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caracterizados, os bonecos encenam uma divertida releitura de<br />

Romeu e Julieta.<br />

Reportando-se ao universo teatral, e num tom de zombaria,<br />

a dramaturgia se marca pela referência aos métodos de interpretação<br />

considerados clássicos. A invocação à “memória emocional”,<br />

de Stanislavski, cria um jogo entre o teatro de atores e o teatro de<br />

animação.<br />

Os exercícios propostos pelo Teatro de Arte de Moscou podem<br />

ser considerados como um divisor para os estudos do figurino, por<br />

causar mudanças no entendimento da noção de materialização da<br />

persona. Conforme elucida Jean Chevalier, a máscara teatral, oriunda<br />

das danças sagradas, é uma modalidade do self universal, servindo<br />

como proteção da personalidade do seu portador. Já os exercícios<br />

propostos por Stanislavski, pautados nos termos “subconsciente”,<br />

“memória emocional” e “eu sou”, supõem que as indagações perduram<br />

no âmbito do self do corpo atuante.<br />

Então, assinalam-se duas perspectivas para a noção de persona:<br />

aquela derivada da idéia de personagem-espírito (fantasma), préexistente<br />

em forma de literatura, e o figurino como sendo o seu<br />

corpo; e a outra em que o personagem-espírito se manifesta no<br />

figurino e no corpo-atuante conjuntamente. Também aqui há uma<br />

relação híbrida, grotesca, que funde humano/inumano, arte/vida,<br />

mas representa um primeiro passo para os preceitos de presentificação<br />

do corpo, comuns no teatro contemporâneo.<br />

Em Romeu e Julieta Maria, a re-representação estabelece-se<br />

como um artifício que, por um lado, confirma a humanização<br />

dos bonecos e, por outro, alude à idéia de incorporação de personagens-fantasmas<br />

pela utilização de figurinos. A máxima “No<br />

teatro, o hábito faz o monge”, aplica-se de modo efetivo, já que<br />

também os personagens vividos pelos bonecos são materializados<br />

pelos figurinos. E no respeitante aos termos “eu sou” e “memória<br />

emotiva”, duplica-se a noção de subjetividade: o boneco é e vive<br />

o outro, porém, sendo boneco, ele mesmo é, simultaneamente, o<br />

ator-intérprete e o seu outro.<br />

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Embora na adaptação da peça Avarento, de Molière, a companhia<br />

espanhola Tabola Rassa utilize a linguagem de manipulação direta,<br />

no tocante ao figurino a junção de partes dos corpos dos intérpretes<br />

aos corpos dos bonecos lembra a linguagem da luva. Intitulada<br />

L’Avar, esta montagem oferece uma rica metáfora quando substitui<br />

as cabeças dos bonecos por torneiras, tubos, mangueiras e outros.<br />

O avarento não acumula ouro ou moedas, mas um tanque de água.<br />

Pelo fato das mãos dos atores-intérpretes completarem os corpos<br />

dos bonecos, de modo não velado, o híbrido não permanece<br />

somente no plano do “espírito”: se estende para o plano do corpo.<br />

Simbolicamente, a separação dos corpos se dá pelo figurino, que<br />

mais uma vez delimita o corpo-boneco. No entanto, a noção de<br />

“manipulação” sofre uma diluição, já que há junção dos corpos.<br />

Num sentido próximo, a Tato Criação Cênica (PR) mostra,<br />

em Tropeços, duas simpáticas e solitárias velhinhas nas suas ações<br />

rotineiras. As expressões de seus rostos (feitos com as mãos dos<br />

atores-intérpretes) modificam-se constantemente, passando pelas<br />

mais adversas emoções. Seus corpos (pedaços de tecidos) andam,<br />

dançam, levitam. E se a ilusão da existência autônoma das personagens<br />

se instala como o principal ganho, esta desaparece, como<br />

quebra brusca, quando uma delas se espreguiça, perdendo as formas<br />

de seu rosto e fazendo notar as mãos do intérprete.<br />

Usando partes de seus próprios corpos como suporte para<br />

os corpos dos bonecos, a companhia peruana Teatro Hugo e Inês<br />

diversifica ainda mais as possibilidades de materialização das personagens.<br />

A montagem mais conhecida do grupo, Cuentos Pequeños,<br />

é composta por vários esquetes, nos quais os corpos dos intérpretes<br />

parecem se desmontar para abrigar seres das mais inusitadas formas.<br />

Dentre os personagens destaco um certo senhor gorducho<br />

que, preocupado com seu peso, põe-se a fazer dietas. Um singelo<br />

levantar da camiseta do ator e lá está ele, alojado em sua barriga.<br />

O desenvolvimento da narrativa nada mais é que o trabalho de<br />

respiração do intérprete, e seu controle muscular.<br />

Se posto em diálogo com o método do “eu sou”, de Stanisla-


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vski, este personagem oferecia complexas análises, pois se recairia<br />

no debate corpo/mente. José Gil abre seu texto O interior do corpo<br />

indagando sobre o lugar do outro e o lugar da alma no corpo, fazendo<br />

uma panorâmica a partir dos questionamentos de Husserl:<br />

“de outrem, da sua subjetividade, não tenho senão uma experiência<br />

indireta” (1997: 147). Já distante da visão dicotômica, a perspectiva<br />

traçada por Gil se pauta na busca pela alma, e seus relatos são repletos<br />

de considerações sobre partes do corpo que, no senso comum,<br />

parecem abrigar o ser, o seu âmago, o seu ínfimo: olhos, entranhas,<br />

coração... Da dualidade corpo/mente, passa-se a enfrentar uma<br />

nova hierarquia: as partes nobres do corpo. De qualquer modo, o<br />

ser está no seu corpo.<br />

Aceitando-se a perspectiva posta por Gil, o “eu sou”, nesse caso<br />

equivaleria a eu sou corpo-mente. No caso do personagem gorducho,<br />

esta lógica se sobreporia a si mesma: eu sou o corpo-mente do<br />

outro, pois sendo corpo sou também mente-espírito, e o outro está<br />

no meu corpo. Precisar um limite entre os dois corpos fica ainda<br />

mais difícil quando se observa o figurino: uma calça comprida que<br />

serve de roupa para um e outro.<br />

O espetáculo Kiyohime Mandara, apresentado pelo solista<br />

Hoichi Okamoto, fundador do Grupo Dondoro apresenta uma<br />

técnica específica de manipulação de bonecos (em tamanho natural)<br />

e do uso de máscaras, que combinam princípios do teatro<br />

Butoh, elementos do teatro Nô, do Bunraku, da dança e da mímica<br />

moderna. Neste espetáculo, o solista interpreta dois personagens: a<br />

jovem Kiyohime e o jovem Anchin. Inicialmente, Okamoto usa a<br />

máscara do personagem Anchin em seu próprio rosto e manipula a<br />

personagem Kiyohime (máscara do “corpo” da boneca) simultaneamente.<br />

No desenvolver da história, vagarosamente inverte: retira<br />

a máscara de seu rosto, revelando a nova máscara (Kiyohime), e<br />

retira a máscara do “corpo” da boneca, que agora se torna Anchin.<br />

Nesta técnica, partes de seu corpo pertencem ao “corpo” de Anchin,<br />

e outras ao “corpo” de Kiyohime.<br />

O roteiro é simples: o jovem monge Anchin promete casamen-<br />

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Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


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to a Kiyohime em uma noite de amor. Mais tarde parte para um<br />

lugar distante. Traída por seu amante, Kiyohime se transforma em<br />

grande serpente e o mata com fogo. Em seguida se suicida com o<br />

intuito de segui-lo.<br />

Mas o que se vê é o desdobrar de um corpo masculino em corpo<br />

feminino, masculino/feminino. Por instantes, marcadamente masculino;<br />

por instantes, marcadamente feminino. Somente um corpo.<br />

No desdobrar pequenas denúncias, pequenas lacunas, indefinições.<br />

Masculino. Feminino. A máscara-Anchin estendida para o próprio<br />

corpo-ator-Okamoto. O corpo-homem-Okamoto movimenta-se<br />

lentamente, demarcando espaço, seguro dos seus objetivos. Masculino.<br />

A máscara-figurino-corpo-Kiyohime, separada do corpoator-Okamoto,<br />

em seus gestos suaves parece desmanchar-se pelo<br />

ar, sem meta, como divina entrega. Feminino. O ato do amor?<br />

Virilidade/Consagração. E se poderia permanecer no binômio<br />

masculino/feminino. Mas penetrar as passagens, as simultaneidades,<br />

as sobreposições, é alcançar minúcias, e, também, um exercício de<br />

compreensão das subjetividades conjugadas, efêmeras.<br />

Quando se observa o corpo-Anchim-Okamoto percebe-se o<br />

deslizar de uma das suas pernas, agora já parte do corpo-Kiyohime,<br />

e a serviço de sua sedução ardil. O corpo-intérprete-Okamoto<br />

distribuído entre os corpos dos personagens, torna-se híbrido:<br />

masculino/feminino, humano/inumano, material/imaterial. Ali,<br />

nas pequenas veias, nas zonas de intersecções, as fronteiras desmoronam<br />

e se perpetra o estado zero, sobrepuja-se a sexualidade,<br />

simula-se androginia. Lentamente, o corpo-Okamoto é ocupado<br />

por Kiyohime. Lentamente, o antigo figurino-corpo-Kiyohime é<br />

ocupado por Anchin. Trocam-se as máscaras em preparação à cena<br />

do desforço. Kiyohime está no corpo Okamoto: está serpente, e<br />

segue segura dos seus objetivos, sem devaneios, aguarda o momento<br />

final, investe com suavidade elaborada. Anchin se deixa entregar.<br />

O ato do amor? Transgressão.<br />

O corpo-Kiyohime, também corpo-Okamoto, esconde/desvela<br />

o ato homossexual: o corpo-intéprete-Okamoto amando o


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corpo-Anchin, percorrendo sua intimidade. Ou, o corpo-Okamoto,<br />

intérprete, amando a si mesmo, percorrendo sua própria intimidade,<br />

tal qual Narciso, entravado na luta com o Absoluto.<br />

Em princípio envoltas por uma aura mítica, as figuras bidimensionais<br />

do teatro de sombras sempre se puseram como um<br />

diferencial da linguagem de animação, encontrando interfaces,<br />

inclusive, com os debates sobre as formas de perceber os corpos.<br />

Jean-Claude Schmitt, analisando as relações entre os vivos e os<br />

mortos nas sociedades medievais, fala da imaginação mediadora<br />

surgida como forma de banir o culto material dos mortos. Santo<br />

Agostinho é citado pelo autor como o mais insistente na tentativa<br />

de fazer distinção entre a visão intelectual (além das imagens) e a<br />

visão corporal e espiritual, que “tratam de images, seja em relação<br />

com objetos materiais (visão corporal), seja independente dessa<br />

percepção dos objetos (visão espiritual)”. Sendo ainda que a visão<br />

espiritual “não percebe corpos, mas ‘semelhanças de corpos’, igualmente<br />

chamadas species, similitudines, figurae, formae, umbrae;<br />

elas são ‘como corpos’ (quase corpora) sem o ser verdadeiramente”<br />

(SCHMITT, 1999: 40).<br />

Uma analogia entre a recepção do teatro de sombras e os possíveis<br />

modos de pensar a sociedade através do espelho do “além”,<br />

torna-se viável quando se observa as lendas mais conhecidas desta<br />

linguagem. Ana Maria Amaral relata sobre a lenda de origem chinesa,<br />

do século II a.C (aproximadamente):<br />

Diz-se que o imperador Wu, desesperado pela morte de<br />

sua imperatriz teria oferecido uma fortuna a quem pudesse<br />

restituir-lhe a vida. Surgiu então um bonequeiro que,<br />

com uma réplica da silhueta de sua amada, apresentou-a<br />

ao imperador no teatro de sombras. O imperador, fascinado,<br />

passou a assistir todas as noites aos seus espetáculos<br />

(AMARAL, 1996: 78).<br />

Algumas culturas ainda preservam este caráter metafísico das<br />

sombras. Mas mesmo nas sociedades contemporâneas, nas quais<br />

esta linguagem buscou aproximação com o cinema e o vídeo, não<br />

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Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


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Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas<br />

MÓIN-MÓIN<br />

se pode negar sua condição não-material. Magda Modesto reflete<br />

a este respeito:<br />

A sombra é tão comum que não nos detemos a ponderar<br />

sobre a mesma – como o fato de ser bidimensional e ser<br />

a única coisa não-material que é visível. Por essa razão,<br />

compartilha características tanto com o mundo material<br />

quanto com o mundo invisível. É daí que surge o fenômeno<br />

da SOMBRA. Pelo fato de ser não-material, mas visível, do<br />

ponto de vista filosófico é apropriada para a interpretação<br />

visível das forças não-materiais como as atitudes demoníacas<br />

e o poder do amor (MODESTO, 1998: 03).<br />

As companhias Gioco Vitta (Itália), Cia La Cònica (Espanha),<br />

Controluce Teatro D’Ombre (Itália), e as brasileiras Cia Teatro<br />

Lumbra de Animação (RS) e Cia Karagóz K (PR) há muito vêm<br />

desenvolvendo uma linguagem híbrida e que invertem os preceitos<br />

quando projetam, na tela, os corpos dos atores-intérpretes, em<br />

conjunção com os corpos dos bonecos, ou não.<br />

Este procedimento proporciona um encontro entre as noções<br />

mais remotas e as mais atuais: da crença, do metafísico ao corpo<br />

virtual, bidimensional, corpo-midiatizado, quase corpora, figurae,<br />

umbrae. Do espectro dos mortos aos espectros dos vivos. E neste<br />

procedimento, monge e hábito são apenas vestígios das subjetividades<br />

de um corpo já inexistente, ou de um corpo existente.<br />

Se o teatro de animação, em suas diversificadas linguagens,<br />

dialoga, confirma ou nega que a máxima “No teatro, o hábito faz o<br />

monge”, pois abre espaço para as subjetividades coadunadas, transitórias<br />

e efêmeras; e se seus modos de entender a matéria extrapolam<br />

as hierarquias entre linguagens, entre o humano/inumano, uma<br />

provocação pode ser feita a partir do pressuposto que alguns figurinosobjetos<br />

exigem do corpo-atuante a manifestação de seus estados.<br />

Leonardo Fressato (PR) utiliza-se de figurinos de gelo (sutiã,<br />

tamanco e corpete), que intitula de figurino-congelante, para<br />

encontrar, em suas performances, estados alterados do corpo. Ali,<br />

sobre as plataformas de gelo, Fressato desenvolve as movimenta-


MÓIN-MÓIN<br />

ções previstas, contudo, reorganiza-se em função da dor causada<br />

pelo contato dos pés com o gelo. Após alguns instantes, a matéria<br />

do figurino começa a se derreter. Além de instáveis pelas formas<br />

assimétricas, os tamancos ficam escorregadios, aumentando o grau<br />

de dificuldade na movimentação.<br />

Na performance de Fressato, a matéria-objeto não é animada<br />

pelo ator. Percebemos sua existência pela passagem do estado<br />

sólido ao estado líquido. No entanto, a matéria do figurino gera<br />

uma premissa contrária às, normalmente, encontradas no teatro de<br />

animação: ao entrar em “contato”, empresta ao corpo um status de<br />

objeto, privilegiando as suas transformações. Nesta proposição se<br />

poderia pensar em relações objeto-a-objeto, ou sujeito-a-sujeito.<br />

A matéria serve, então, para mostrar os estados do corpo-vivo do<br />

ator. Mas isso é apenas mais uma provocação.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

AMARAL, Ana Maria. Teatro de Formas Animadas: Máscaras, Bonecos,<br />

Objetos. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1996.<br />

CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos:<br />

mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números . Trad.<br />

Vera da Costa e Silva et al. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1998.<br />

GIL, José. Metamorfoses do corpo. Lisboa: Relógio D’Água, 1997.<br />

MODESTO, Magda. Imagens de um passado presente: o Teatro de<br />

Sombras Asiático. Catálogo de exposição do VII Festival<br />

Espetacular de Teatro de Bonecos. Curitiba: Teatro Guaíra,<br />

1998.<br />

SCHMITT, Jean-Claude. Os vivos e os mortos na sociedade medieval.<br />

Trad. Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das<br />

Letras, 1999.<br />

VELLINHO, Miguel. Ação! Aproximações entre a linguagem cinematográfica<br />

e o teatro de animação. In: Móin-Móin Revista<br />

de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas, ano 01, n. 01.<br />

Jaraguá do Sul: Scar/<strong>Udesc</strong>, 2005.<br />

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MÓIN-MÓIN<br />

Antropofagia e hibridismo no<br />

teatro de animação brasileiro<br />

Fábio Henrique Nunes Medeiros<br />

Universidade de São Paulo – USP


MÓIN-MÓIN<br />

PÁGINAS 58 (acima): Espetáculo Babau ou a Vida Desembestada do Homem que<br />

Tentou Engabelar a Morte (2006 - PE). Mão Molenga Teatro de Bonecos. Direção<br />

de Marcondes Lima. Foto de Sávio Uchôa e Carla Denise.<br />

PÁGINAS 58 e 59: Espetáculo Salamanca do Jarau (2007 - RS). Cia. Teatro Lumbra.<br />

Direção de Alexandre Fávero. Foto de Alexandre Fávero.<br />

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Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


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MÓIN-MÓIN<br />

“Tupi or not Tupi, that is the question”.<br />

(Oswald de Andrade)<br />

“To be or not to be, that is the question” [Ser ou não ser, eis a questão].<br />

(William Shakespeare)<br />

Resumo: Este texto objetiva apontar características antropofágicas e híbridas (referenciadas<br />

em conceitos de Oswald de Andrade e Nestor Garcia Canclini) presentes no<br />

trabalho de quatro grupos brasileiros de teatro de animação. São analisados espetáculos<br />

cujas estréias aconteceram nos últimos dez anos: Filme Noir (2004), Cia. Pequod – RJ;<br />

Pinocchio (2006) Giramundo – MG; Babau ou a Vida Desembestada do Homem que<br />

Tentou Engabelar a Morte (2006) Mão Molenga – PE; e A Salamanca do Jarau (2007),<br />

Cia. Teatro Lumbra - RS. O estudo destaca como as idéias de hibridação e antropofagia,<br />

recorrentes nestes espetáculos, são trabalhadas de diferentes maneiras nas referidas<br />

encenações evidenciando a multiplicidade de procedimentos presentes nos mesmos.<br />

Palavras-chave: Antropofagia; hibridismo; teatro de animação brasileiro.<br />

Abstract: This text aims to draw attention to the anthropophagic and hybrid<br />

characteristics (referenced in concepts from Oswald de Andrade and Nestor Garcia<br />

Canclini) present in the work of four Brazilian puppet theatre groups. The following<br />

works, which have premiered in the last ten years, are analysed: Filme Noir (2004), from<br />

Companhia Pequod, Rio de Janeiro; Pinocchio, (2006) from Giramundo, Minas Gerais;<br />

Babau ou a Vida Desembestada do Homem que Tentou Engabelar a Morte (2006) from<br />

Mão Molenga, Pernambuco; and A Salamanca do Jarau (2007). The study highlights<br />

the way in which hybridization and anthropophagy, recurrent in these shows, are elaborated<br />

in different ways in the performances referred to, evidencing the multiplicity<br />

of procedures present in these performances.<br />

Keywords: Anthropophagy; hybridism; Brazilian puppet theatre.


MÓIN-MÓIN<br />

A paródia de Oswald de Andrade “Tupi or not Tupi, that is the<br />

question” inaugura esse texto alegoricamente para ilustrar o “ser”.<br />

Que “ser”? Substantivo ou sujeito? O ser que somos contaminados<br />

de outros seres? Ou o “ser” que especulamos ser diante das conjeturas<br />

formais? Ou ainda, podemos ser individuais enquanto ser? Ou<br />

ser é uma questão indecifrável? Ser antropofágico e híbrido não é<br />

inerente à consciência, ou à condição humana? Que passa por isso<br />

pela construção da linguagem? Essas primeiras linhas são apenas<br />

provocações para desestabilizar a lógica cartesiana a qual estamos<br />

condicionados ao olhar o mundo. Sobretudo, por abordar uma arte<br />

atual que nos escorrega pelos dedos, inclusive da situação de ser.<br />

Os conceitos que contemplam a contemporaneidade se atenuam<br />

paulatinamente, de modo que, se contaminam, se miscigenam<br />

e se transformam constantemente. O que atualmente podemos<br />

chamar de X pode se transformar em Y frente aos nossos olhos<br />

na velocidade dos acontecimentos atuais, sendo assim, seremos<br />

cautelosos em categorizações. Por vez, antropofagia, nem tão atual,<br />

e hibridismo são expressões recorrentes para conceituar práticas<br />

contemporâneas. Busquemos alguns resquícios na etimologia dessas<br />

palavras: antropofagia (do grego anthropos, “homem” e phagein,<br />

"comer"), que de certa forma explica o uso metafórico da expressão<br />

para designar a fisiologia, referenciais das culturas na sua formação,<br />

na sua estrutura; e híbrido do grego hybris que significa mistura,<br />

de certa forma com grau de similaridade, indicam como ponto de<br />

partida que a antropofagia deglute e o hibridismo mistura.<br />

Os dois termos são utilizados por vários segmentos científicos,<br />

mas para nós, o que interessa é a abordagem de Oswald de Andrade<br />

e de Nestor Garcia Canclini, porque se referem à cultura para<br />

redimensionar a fertilidade das misturas e ingestão do homem na<br />

sua estrutura referente.<br />

A antropofagia proposta por Oswald de Andrade é uma estética/poética<br />

pautada na busca por uma identidade nacional, na<br />

reconstrução de referências culturais brasileiras e européias, mas<br />

também investiga uma linguagem nova que incorpora caracte-<br />

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MÓIN-MÓIN<br />

rísticas não-realistas e não lineares. “Devorando”, deglutindo, de<br />

forma “selvagem” a cultura do outro, estrangeira, gesta uma nova,<br />

que passa pelos referenciais indígena e africano. Ou seja, parte de<br />

paradigmas “primitivos” do bom “selvagem” para devorar os “cânones”.<br />

A antropologia e mitos de tradição oral dizem que algumas<br />

culturas ritualísticas primitivas acreditam que, quanto maior a<br />

força do ser devorado, maior a força adquirida, e com esta mistura<br />

gera-se uma outra força.<br />

Algumas características do pensamento antropofágico como<br />

estão expressas no manifesto de 1928 de Oswald de Andrade: “só<br />

a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente”<br />

é a desterritorialização de bens simbólicos a partir de<br />

relações complexas de segregação sociocultural.<br />

A antropofagia, movimento artístico nacional modernista,<br />

acompanha e reelabora as vanguardas européias. A concepção de<br />

antropofagia de Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Tarsila do<br />

Amaral, entre outros, é a idéia de nutrir-se pela cultura do outro,<br />

resgatando raízes brasileiras. Buscam, sobretudo, uma identidade<br />

nacional, que conforme Canclini (2008:190), “seria, antes de mais<br />

nada, ter um país, uma cidade ou um bairro, uma entidade em<br />

que tudo o que é compartilhado pelos que habitam esse lugar se<br />

tornasse idêntico ou intercambiável”. Muito mais que do idêntico,<br />

a antropofagia se aproxima do intercâmbio.<br />

Outro conceito ao qual recorreremos é o de hibridização, que<br />

para Canclini (2008: XIX) “[são] processos socioculturais nos quais<br />

estruturas ou práticas discretas, [que] existiam de forma separada,<br />

se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas”.<br />

É importante frisar que o teatro em si, na sua essência já é uma<br />

arte múltipla, mestiça e antropofágica. Comunga com a literatura,<br />

música, dança, artes plásticas e atualmente, com as artes tecnológicas<br />

(cinema, videoarte, vídeo instalação, artes digitais, entre<br />

outras). Na velocidade dos tempos, se aproximou e se afastou de<br />

cada uma dessas linguagens. Mas, essas misturas atualmente diluem<br />

seu referente, ou seja, não se percebe essas linguagens em camadas


MÓIN-MÓIN<br />

visíveis, mas imbricadas.<br />

Canclini (2008: XXVII) também se utiliza de conceitos como<br />

mestiçagem e sincretismo, mas o próprio autor se refere à mestiçagem<br />

dizendo que esta está mais ligada a questões étnicas, assim como<br />

sincretismo para as questões religiosas. Dessa forma, o termo mais<br />

pertinente que contempla inúmeras ligações é o hibridismo, pois<br />

abarca várias relações, inclusive linguagem, e funde os dois termos.<br />

Conforme Canclini (2008: XXIX), “a palavra hibridismo aparece<br />

mais dúctil para nomear não só as combinações de elementos étnicos<br />

ou religiosos, mas também a de produção das tecnologias avançadas<br />

e processos sociais modernos ou pós-modernos”.<br />

O teatro é como uma máquina frenética de sentidos, por isso,<br />

é uma arte antropofágica e na contemporaneidade assume características<br />

híbridas, pois essas relações são evidenciadas e germinantes<br />

de outras configurações. Híbrido pode ser compreendido como um<br />

processo no qual duas, ou mais, vozes caminham juntas e convivem<br />

em território de conflito, se sobrepõem, ou se acomodam em pé<br />

de igualdade.<br />

As ideologias se misturam. Não se pode optar por ser dicotômico<br />

ou híbrido, sendo fruto de uma sociedade contemporânea,<br />

bombardeados por meios em que a dinâmica da comunicação<br />

fertiliza o homem e o transforma.<br />

Alguns exemplos recorrentes de referências e fertilizações de<br />

culturas no teatro de animação é a apropriação, quase que de forma<br />

genérica por vários grupos brasileiros, da manipulação à vista do<br />

público, sobre balcão, inspirado no Bunraku. Ou seja, “o cruzamento<br />

é tanto um entrecruzar de caminho, quanto a hibridização<br />

de raças e tradições. Essa ambigüidade ajusta-se maravilhosamente<br />

para descrição dos laços que existem entre as culturas: isso porque<br />

as mesmas se interpenetram” (PAVIS, 2008: 06). O Bunraku, tendo<br />

migrado de seu local de origem, hoje está impregnado na estética<br />

de muitos grupos, antropofagizado, uns sem nem saber ao certo o<br />

significado do mesmo.<br />

No entanto, a apropriação é muito mais técnica do que esté-<br />

63<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


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Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas<br />

MÓIN-MÓIN<br />

tica, embora a técnica possa delinear a estética, e fica evidente a<br />

mistura de meios num diálogo com outras culturas, característica<br />

antropofágica: devoração, apropriação (assimilação) e expurgação.<br />

Segundo Gardin (1995: 127), para Oswald de Andrade, “a cultura<br />

[...] é um mosaico de peças contraditórias. Este mosaico, ao<br />

colocar-se em estado de nudez diante da percepção do espectador,<br />

irá atuar sobre sua consciência de forma a provocar prováveis mudanças<br />

de hábitos e crenças sociais e culturais”. É nesse mosaico<br />

que o Bunraku japonês é assimilado e recodificado, num processo<br />

de incorporação, extrai-se a manipulação direta e o balcão como<br />

técnica, mas diferencia-se das especificidades estéticas do Bunraku.<br />

Um número significativo de grupos de teatro de animação<br />

vai trabalhar em perspectivas antropofágicas e híbridas no Brasil,<br />

mas devido à necessidade de recorte para desenvolvimento deste<br />

texto, observar-se-á essas características nos espetáculos e grupos<br />

já mencionados.<br />

Esta escolha destes espetáculos se deu pela evidência de diferentes<br />

maneiras de contaminação presentes nas encenações, pela<br />

aproximação dos mesmos com os conceitos abordados, pela distribuição<br />

dos grupos no território brasileiro, e pela definição do<br />

recorte histórico: primeiros dez anos do século XXI.<br />

Hibridismo de linguagens nas perspectivas do Teatro e<br />

Cinema<br />

Os espetáculos Filme Noir, da Cia PeQuod Teatro de Animação 1<br />

do Rio de Janeiro e Pinocchio, do Giramundo teatro de bonecos de<br />

Minas Gerais são duas montagens de grupos diferentes, em que a<br />

linguagem do cinema e vídeo foi incorporada fortemente nas suas<br />

concepções, mas sob diferentes abordagens.<br />

Filme Noir traz uma concepção além da temática do gênero<br />

1 Em seus espetáculos, a PeQuod procura refazer os limites do seu teatro aproximando-se<br />

de outras manifestações artísticas, como a dança, a literatura, os quadrinhos, o cinema,<br />

a fotografia. Tudo isso sem jamais perder o caráter artesanal da confecção dos bonecos,<br />

figurinos e cenários. (PEQUOD – SITE-2010)


MÓIN-MÓIN<br />

dos filmes Noir (romance policial, clichês...), extrai elementos da<br />

linguagem cinematográfica, como cor preto e branco e tons de<br />

cinza, por meio da luz e elementos cênicos (bonecos, figurinos,<br />

cenário, adereços); planos a partir de recortes espaciais e de luz;<br />

movimentação de recursos técnicos aludindo à câmera de captação<br />

de imagens fílmicas como travelling (trilho em que a câmera corre);<br />

vozes em off, Flash Backs e Making-off; sem abrir mão do sabor<br />

nostálgico do artesanal no teatro de animação. O espetáculo é como<br />

se estivesse passando um filme frente aos nossos olhos, ao vivo, com<br />

direito à metalinguagem e edição proporcionada pelas quebras e<br />

simultaneidade de acontecimentos, usando para isso vários recursos,<br />

em especial a luz, sem nenhum tipo de projeção de vídeo.<br />

É quando da linguagem do cinema se peneira o uso da máquina<br />

de filmar, de captação e projeção de imagens, restando outros<br />

elementos, como plano, movimento. O espetáculo inaugura uma<br />

proposta estética de fazer teatro de bonecos no Brasil.<br />

Para o diretor da Cia., Miguel Vellinho (2005: 170), “A particularidade<br />

mais visível do trabalho da PeQuod hoje consiste na<br />

aproximação do Teatro de Animação com a linguagem cinematográfica,<br />

explorando a cada espetáculo os princípios da sua gramática<br />

e tomando-os emprestados para servir de ferramenta para as suas<br />

encenações”.<br />

A lógica do teatro de animação parte do prisma que tudo pode<br />

ser animado, e dentro dessa percepção a iluminação dos espetáculos<br />

da Cia. é um organismo vital. Sendo assim, um profissional indispensável<br />

durante todo o processo de criação é o iluminador Renato<br />

Machado. “Com ele, o trabalho começa a ser discutido muitos meses<br />

antes dos ensaios”, (VELLINHO, 2005: 174), o que não deixa de<br />

ser um laço evidente com a linguagem cinematográfica, que tem a<br />

luz como seu “coração” e o movimento como suas artérias. Vellinho<br />

revela também que a base teórica do trabalho está nos dois livros<br />

de Sergei Eisenstein A Forma do Filme e O sentido do Filme. O<br />

diretor reflete ainda, inicialmente sobre o espetáculo Sangue Bom<br />

(1999), dizendo que intuitivamente “estávamos exercitando um<br />

65<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


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MÓIN-MÓIN<br />

estranho modo de fazer cinema, de fazer teatro” (VELLINHO,<br />

2005: 177). E depois a linguagem cinematográfica foi trabalhada<br />

conscientemente na montagem de Filme Noir.<br />

O espetáculo e estudos de antropofagização e hibridização<br />

dessas linguagens é um caminho que ainda está sendo traçado<br />

pelo grupo e que desencadeia outras misturas, como com a dança,<br />

circo, quadrinhos, na perspectiva da arte contemporânea, na qual,<br />

convivem passado, presente e futuro, e em que suas fronteiras são<br />

invisíveis.<br />

Na concepção do Pinocchio, a linguagem do vídeo é incorporada<br />

na encenação, mas no sentido “operacional”. Há projeções<br />

de vídeo no espetáculo, o que do ponto de vista estético se difere<br />

da Cia PeQuod.<br />

Pinocchio (2005), 29ª montagem do Giramundo 2 e a primeira<br />

do grupo “sem” o diretor/fundador Álvaro Apocalypse, também<br />

não deixa de ser uma homenagem aos fundadores e ao teatro de<br />

bonecos, no qual colocam as técnicas mais tradicionais dessa linguagem,<br />

como luva, fio, balcão, tringle, pantins, sombra e bonecos<br />

gigantes. É quando a metáfora do rito de passagem, da morte, se<br />

materializa na história do Giramundo. Quando Pinocchio surge, o<br />

grupo se depara com a perda de dois de seus idealizadores: Terezinha<br />

Veloso e Álvaro Apocalypse 3 . Ironicamente, uma das buscas<br />

de Pinocchio é a morte, a morte do boneco, porque ele quer ser<br />

humano, sendo esse um dos grandes conflitos do personagem na<br />

estrutura literária de Carlo Collodi.<br />

O espetáculo Pinocchio nasce num momento crucial para o<br />

grupo, em que a vida faz uma metáfora do criador e da criatura,<br />

pois o personagem quer se emancipar também. E ainda, pela escolha<br />

da estética dadaísta, que vai relacionar a poética do artista plástico<br />

Farnese de Andrade, que também trabalha com a metáfora de ritos,<br />

2 Fundado em 1970 por Álvaro Apocalype, Terezinha Veloso e Madu Vivacqua.<br />

3 Terezinha Veloso faleceu no dia 01/02/2003, aos 67 anos e Álvaro Apocalypse no dia<br />

06/09/2003 aos 66 anos.


MÓIN-MÓIN<br />

sobretudo o de passagem, da morte, da infância, do dogmatismo,<br />

das convenções sociais. Para um dos diretores do espetáculo, Marcos<br />

Malafaia (2008), a concepção se aproxima mais do teatro contemporâneo.<br />

“Apesar de densamente povoado pelo texto, ele tem uma<br />

filiação dentro das referências artísticas com o movimento dadaísta<br />

e com o surrealismo” (MALAFAIA, 2008).<br />

O diretor ressalta que o interesse era que os objetos de cena<br />

tivessem uma dramaturgia, carregassem as cicatrizes de sua vida<br />

enquanto material, que possuíssem uma existência própria.<br />

Eu acho que muito disso veio da interpretação da obra<br />

do Farnese [...] Um réquiem, uma ode, uma homenagem<br />

da nossa parte ao Álvaro, porque nesse espetáculo a gente<br />

conseguiu cumprir e colocar em conjunto as sete técnicas<br />

do teatro tradicional num mesmo espetáculo (luva, fio,<br />

vara, tringle, sombras, pantin e balcão). [...] O grupo<br />

rapidamente partiu para investigar caminhos novos. E<br />

um dos aspectos que contribuiu para isso e foi irreversível,<br />

foi o uso do vídeo (MALAFAIA, 2008).<br />

A inserção da linguagem do vídeo no espetáculo foi uma<br />

experiência que, segundo Mafalaia, aconteceu de modo espontâneo<br />

e intuitivo, trazendo resultados estéticos interessantes.<br />

Continuamos com o coração teatral, a cena, mas a animação<br />

vem ganhando espaço dentro do teatro. Animação no<br />

sentido amplo, não só no stop motion, vídeo ou o boneco<br />

digital, mas o movimento [...] A gente percebeu que o nosso<br />

grupo é um teatro de movimento (MALAFAIA, 2008).<br />

Esse pensamento revela mais uma forma de hibridismo na<br />

história de Álvaro Apocalypse e do Giramundo, nas quais as percepções<br />

se movimentam com o próprio tempo e acontecimento.<br />

As combinações são outras, a intersecção com outras artes, como<br />

literatura, artes plásticas e teatro, já se abstrairia, e por vez, as vozes<br />

se multiplicam com o cinema de animação, com a dança e com a<br />

arte do movimento, em seu sentido lato.<br />

Atualmente, essas referências são um dos legados deixados<br />

67<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


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Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas<br />

MÓIN-MÓIN<br />

por Álvaro. No entanto, elas aumentaram, se estendendo para<br />

o cinema, em especial o de animação, como pode ser percebido<br />

explicitamente em Pinocchio, que visita a obra do artista plástico<br />

contemporâneo Farnese de Andrade e técnicas de Stop Motion do<br />

cinema de animação.<br />

A concepção do espetáculo Pinocchio requer um maior esforço<br />

do público, devido às metáforas do movimento e das imagens,<br />

que podem ser ilustradas com inúmeras situações como quando<br />

o personagem flutua, que pode ser entendida como representação<br />

de liberdade, inclusive sob a gravidade; o fluxo de consciência é a<br />

lembrança, que é representada em ações simultâneas na cena com<br />

bonecos construídos nas técnica de fio, luva e balcão. É quando a<br />

dicotomia da razão e emoção falam juntas e geram uma confusão<br />

no pensamento do personagem; a cartilha do Pinocchio é um A,<br />

ou seja, o ícone do conhecimento é representado pela inicial do<br />

alfabeto; o grilo também aparece como uma lâmpada, outro ícone<br />

do pensamento, bastante utilizado em desenhos animados e HQs; a<br />

casa da fada é um oratório, fazendo menção à divindade; na cena que<br />

coloca o personagem em perigo ele aparece numa corda e surgem<br />

garras com farrapos para pegá-lo, esse perigo não tem cara, apenas<br />

mão e a corda, para qualquer que seja o lado que o personagem caia,<br />

a altura é a mesma; A cena do enforcamento de Pinocchio merece<br />

destaque por representar uma síntese do conflito do personagem.<br />

A lua de fundo representa a dualidade entre morte e vida e para tal<br />

se utilizou como recurso a fusão de linguagens. A combinação das<br />

linguagens do teatro de bonecos, teatro de sombras e projeções de<br />

imagens remete novamente ao caráter híbrido do espetáculo.<br />

Outras cenas com esse recurso de misturar linguagens é a de<br />

quando Pinocchio encontra o jazido da fada e a do pássaro o levando;<br />

a fada, com movimentos de bailarina, bebê e fisionomia de anjo<br />

barroco, tem uma leveza mágica o que a torna um ser fantástico; o<br />

espaço, na cena dos peixes que nadam no palco quase nu; no circo,<br />

quando Pinocchio já virou burro, há metalinguagem, representando<br />

o aniquilamento do personagem, que cede a essa força maior que ele:


MÓIN-MÓIN<br />

o sistema; além da cena de enforcamento, o fecho da idéia e crítica<br />

da condição humana se materializam na cena final, quando os atores<br />

montam o menino/boneco de madeira, que tem um coração no peito,<br />

outro grande exercício de metalinguagem e poesia do espetáculo.<br />

Além das metáforas no espetáculo, há apropriação direta,<br />

intertextualidade, do trabalho Roda de bicicleta de Duchamp, na<br />

qual Pinocchio corre dentro. Há personagens da história do teatro<br />

popular de bonecos, como Punch, Guignol, Polichinelo, com partituras<br />

de movimentos e truques, e mesmo dos mamulengos.<br />

O boneco no espetáculo Pinocchio agora divide a cena com<br />

outros objetos/bonecos, que mantêm seu código não completamente<br />

desmaterializado, pois há ambigüidade: o objeto/boneco<br />

tem braços e pernas, seus movimentos são representações de ações<br />

antropomórficas e zoomórficas.<br />

O espetáculo é uma celebração à arte da animação e não apenas<br />

ao teatro de bonecos, mas um mix de linguagens: teatro, cinema<br />

de animação e gêneros como luva, vara, fio, sombra e projeção.<br />

Dois espetáculos que dialogam com a cultura popular<br />

regional – Antropofagia cultural<br />

Babau ou a Vida Desembestada do Homem que Tentou Engabelar<br />

a Morte, de 2006 - Mão Molenga teatro de bonecos, 4 de Pernambuco<br />

e A Salamanca do Jarau, de 2007 - Cia Teatro Lumbra 5 – RS, são<br />

dois espetáculos diferentes enquanto linguagens, pois um utiliza<br />

elementos tradicionais do teatro de animação, como o próprio<br />

boneco de vara e luva; e o outro, com a linguagem do teatro de<br />

sombras, utiliza silhuetas com vários recursos, e além disso o corpo<br />

do ator. Mesmo os dois sendo teatro de animação, as características<br />

são bem diferentes enquanto técnica e estética da linguagem, o que<br />

revela como é múltipla essa arte. Mas, as abordagens são irmãs (elo<br />

4 Fundado em 1986 por Fábio Caio, Fátima Caio, Marcondes Lima e Carla Denise.<br />

5 Criado em 2000 e coordenado por Alexandre Fávero, atualmente conta com a equipe de<br />

Flávio Silveira, Roger Mothcy e Fabiana Bigarella.<br />

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Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


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Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas<br />

MÓIN-MÓIN<br />

entre as duas propostas) – a cultura popular regional, para serem<br />

apresentados em sala de teatro, ou seja, recodificam práticas discretas<br />

e específicas para outros espaços e geram uma nova forma.<br />

O espetáculo Babau ou a Vida Desembestada do Homem que<br />

Tentou Engabelar a Morte remonta à história dos brincantes, mamulengueiros<br />

populares de Pernambuco e região, faz homenagem ao<br />

teatro de mamulengo como tradição popular do Brasil, e difunde<br />

essa história. A trama é tecida por histórias reais e ficcionais baseadas<br />

na saga de mamulengueiros reconhecidos, coletadas em entrevistas<br />

com mestres como Zé Lopes e Zé de Vina, bem como, consulta<br />

fontes bibliográficas.<br />

O espetáculo também participa de uma movimentação que<br />

prevê o tombamento e registro do mamulengo pelo IPHAN 6 como<br />

patrimônio nacional e resgata a prática destes brincantes.<br />

Babau traz à cena bonecos originais feitos pela companhia<br />

e mamulengos criados na Oficina do Mestre Zé Lopes.<br />

Explorando diferentes técnicas de manipulação, são<br />

contadas histórias de várias gerações de brincantes que<br />

começaram seu aprendizado muito jovens e seguiram<br />

apresentando-se por cidades do interior pernambucano<br />

e pela capital (CARLA DENISE, 2010).<br />

Babau é um personagem que faz uma metáfora da condição<br />

do mamulengueiro, que consegue burlar a morte e assim perpetuase<br />

e ao mesmo tempo migra no tempo e espaço, seja através da<br />

mão do mamulengueiro ou da tradição. “Ele é o personagem que<br />

sempre consegue enganar a morte, numa situação inversa a de seus<br />

manipuladores e criadores, muitos dos quais morrem esquecidos e<br />

miseráveis” (DENISE, 2010). Babau está imortalizado, seja através<br />

das “bocas miúdas” ou dos revisitamentos e releituras.<br />

A proposta de encenação metalingüística de contar a história<br />

do teatro de mamulengo dentro de teatro de mamulengo caracteriza-se<br />

como uma concepção contemporânea e antropofágica,<br />

6 Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.


MÓIN-MÓIN<br />

sobretudo pelo deslocamento espacial e com base na tradição oral,<br />

o que reafirma sua condição antropofágica. A tradição popular é<br />

uma bricolagem de culturas.<br />

Já na concepção e montagem do espetáculo A Salamanca do<br />

Jarau da Cia. Teatro Lumbra do Rio Grande do Sul, também com<br />

base na tradição popular, o recorte, procedimentos e linguagem<br />

são diferentes.<br />

O espetáculo dá continuidade à temática da cultura popular<br />

brasileira, dessa vez especificamente gaúcha, e também à investigação<br />

ao teatro de sombras.<br />

O projeto da montagem é inspirado no conto homônimo de<br />

João Simões Lopes Neto 7 , que conta as “origens” do povo gaúcho.<br />

No entanto, a encenação vai além do mesmo, pois sua estrutura é<br />

recheada de elementos da cultura popular, prosa, lenda, expressões<br />

regionais e andanças do grupo durante o resgate da tradição gaúcha<br />

no circuito onde a trama foi ambientada.<br />

O gaúcho pobre Blau Nunes se encontra com o guardião<br />

da gruta do Cerro do Jarau, que lhe convida a passar<br />

por sete provas em troca de riquezas. Após, encontra-se<br />

com a princesa moura, a teiniaguá encantada pelo diabo<br />

indígena Anhangá-Pitã, a qual lhe oferece riquezas. Blau<br />

nega e pede seu amor em troca, mas não é atendido [...]<br />

Ao sair da gruta, recebe do guardião um amuleto com o<br />

qual faz fortuna, porém é difamado e isolado. Arrependido,<br />

Blau devolve o talismã e com isso liberta o sacristão<br />

e a teiniaguá, que formam um “casal que dará origem ao<br />

povo gaúcho (GRUPO – SITE: 2010).<br />

A história A Salamanca do Jarau 8 , bem como todas as estruturas<br />

dos contos maravilhosos europeus, traz personagens arquetípicos e<br />

fórmulas consagradas, como: princesa, fada, bruxa, guardião, amu-<br />

7 Escritor pelotense - RS. “Nos seus contos regionais falou da condição do negro, em O<br />

Negro Bonifácio e O Negrinho do Pastoreio.”(FÁVERO, 2003).<br />

8 A transposição e criação das cenas a partir do conto é realizado por Alexandre Fávero,<br />

diretor geral do projeto.<br />

71<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


72<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas<br />

MÓIN-MÓIN<br />

leto, diabo, magos, saga heróica em nome do amor, conflito por<br />

quebrar o encantamento – magia, dicotomia entre bem e mal, e ao<br />

mesmo tempo, a mestiçagem de personagens como: Caipora, Diabo<br />

indígena... É um sinal evidente da antropofagia na trama da peça.<br />

No percurso da pesquisa para montagem do espetáculo passaram<br />

historiadores acadêmicos, além de conhecedores da sabedoria<br />

popular. Esse procedimento dá vida e atualiza a história, pois a<br />

sabedoria popular é guardiã de conhecimentos intocáveis, devido<br />

ao seu poder de maleabilidade e transformação. Seus contadores<br />

estão vivos.<br />

Da história ao atracamento na encenação, o processo passa<br />

por uma tradução/traição de uma história basicamente oral (verbal)<br />

para a linguagem das sombras (imagética), o que demonstra<br />

um processo de conversão de signos e ao mesmo tempo perda e<br />

mutação dos mesmos. O grupo tem pleno domínio e consciência<br />

disso, como expresso por eles quando dizem que o espetáculo está<br />

fundamentado na experiência e pesquisa do universo das sombras,<br />

além da cultura gaúcha.<br />

O teatro de sombras é uma linguagem que transforma tudo<br />

em dramaturgia: o movimento, a imagem, o som. Dessa forma, o<br />

contexto da história está ambientalizado com imagens das paisagens<br />

dos pampas, igrejas e grutas em várias escalas de tamanhos.<br />

O som resgata a atmosfera mestiça do ritmo do lugar, bem como o<br />

período de colonização, que se configura por influências espanholas,<br />

portuguesas, indígenas, além da criação da atmosfera mágica<br />

– característica da linguagem do teatro de sombras.<br />

Muitos são os desdobramentos estéticos da linguagem do teatro<br />

de sombras pela Cia de Teatro Lumbra, sendo que, nessa arte,<br />

técnica e estética estão imbricadas: a dinâmica da manipulação do<br />

foco de luz e metalinguagem; silhuetas confeccionadas, de objetos<br />

e corporais; vários suportes de telas que também se movimentam;<br />

criação do aparato técnico (luz); ocupação espacial quase completamente<br />

preenchida, inclusive o fundo do palco; multiplicidade<br />

e cores de luz e dos outros elementos; subversão dos planos de


MÓIN-MÓIN<br />

luz e sombras que se deslocam, com isso, também altera o espaço<br />

de projeção; uso de recursos e elementos alternativos como água,<br />

fumaça, entre tantos outros; paradoxo entre ausência e presença<br />

do ator-manipulador-personagem; entre outros. “É esse aparato<br />

cenotécnico que permite a construção e desconstrução dos signos<br />

teatrais e da leitura audiovisual, durante todo o espetáculo, dando<br />

uma impressão surrealista dos signos” (FÁVERO, 2003).<br />

É importante sublinhar que nesta linguagem teatral, a preparação<br />

do ator/sombrista é fundamental devido a uma série de<br />

fatores, mas destaca-se o deslocamento espacial no escuro da cena<br />

e por trás dela.<br />

O espetáculo cria um panorama, um cartão postal do povo<br />

gaúcho na sua construção, a partir da percepção popular, revelando<br />

o hibridismo étnico e cultural desse povo, e também da própria<br />

linguagem do teatro de sombras que se recodifica em misturas<br />

técnicas e estéticas.<br />

Tanto os personagens Babau como Blau Nunes são representações<br />

em síntese de identidades sociais. Eles são resguardados e<br />

protegidos pela tradição, como uma espécie de museus da memória<br />

coletiva, tão viva quanto o povo e a capacidade de perpetuação pela<br />

interação comunicativa.<br />

Considerações<br />

A antropofagia como paródia da cultura, “especificamente no<br />

teatro, é usada no sentido da deglutição onde o novo texto [verbal<br />

ou não-verbal] traduz a cultura, tritura a tradição re-interpretandoa”<br />

(GARDIN, 1995: 185). É o terreno mais fértil para a mistura<br />

cultural e mesmo de linguagens, como resultante de uma diligente<br />

experiência técnica e estética, além de transformar o “canibal” num<br />

potencial artístico, numa qualidade estética.<br />

Na arte contemporânea, há uma revisitação constante. Ela<br />

não procura romper com o passado, mas ao contrário, ela dá novos<br />

significados, procurando trazer referências históricas para o presente<br />

adequando-as ao nosso tempo, além de trazer também referências<br />

73<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


74<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas<br />

MÓIN-MÓIN<br />

de outros segmentos.<br />

Ser híbrido, misturado, contaminado, mestiço, polifônico, intertextual,<br />

imbricado, inter e multifacetado, lembra algumas palavras<br />

de pensadores e poetas, como Roland Barthes (2002: 8) quando diz:<br />

“Então o velho mito bíblico se inverte, a confusão das línguas não<br />

é mais uma punição, o sujeito chega à fruição pela coabitação das<br />

linguagens, que trabalham lado a lado: o texto de prazer é Babel<br />

feliz”. Ou seja, texto é tessitura. Já na voz do poeta Lindolf Bell,<br />

ouvido ao pé da orelha, “O ser humano não é ilha, mas partilha”.<br />

É nesta perspectiva que as poéticas desses grupos e outros se<br />

arquitetam, construindo-se a partir da tessitura das linguagens.<br />

O teatro está repleto de imagens emergentes, ou seja, que<br />

emanam sentido. Isso é particularmente visível nos espetáculos de<br />

teatro de animação. Sua poesia transcende a palavra, bem como a<br />

imagem está encarnada de palavras, assim como o inverso.<br />

O teatro contemporâneo materializa o mito da Babel, invertido.<br />

É quando, conforme Roland Barthes (2002), a estética vive<br />

na coexistência de várias linguagens simultâneas. Assim se faz a<br />

têmpera do teatro de animação, mesclando-se constantemente.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

ANDRADE, Oswald de. Manifesto Antropofágico. In: Revista<br />

de Antropofagia. São Paulo: São Paulo: CLY ― Cia. Lithographica<br />

Ypiranga, ano 1, n. 1, maio de 1928.<br />

BARTHES, Roland. O prazer do texto. 3ª ed. São Paulo: Perspectiva,<br />

2002.<br />

CANCLINI, Nestor G. Culturas Híbridas. 4ª ed. São Paulo: Edusp,<br />

2008.<br />

DENISE, Carla. Mão Molenga teatro de bonecos. Disponível em:<br />

. Acesso em: 24<br />

de maio de 2010.<br />

FÁVERO, Alexandre. Relato de concepção, 2003. Disponível em:<br />


MÓIN-MÓIN<br />

htm>. Acesso em: 30 de maio 2010.<br />

GARDIN, Carlos. O Teatro Antropofágico de Oswald de Andrade: da<br />

ação teatral ao teatro de ação. São Paulo: Annablume, 1995.<br />

MALAFAIA, Marcos. Entrevista concedida a Fábio Henrique Nunes<br />

Medeiros. Belo Horizonte, 29 de out. de 2008. Entrevista.<br />

MEDEIROS, Fábio H. N. Fronteiras invisíveis e territórios<br />

movediços entre o teatro de animação contemporâneo e as artes<br />

visuais: a voz do pincel de Álvaro Apocalypse. 2008, 194 p.<br />

Dissertação (Mestrado em Teatro) – Universidade do Estado<br />

de Santa Catarina – UDESC. Florianópolis: 2009.<br />

PAVIS, Patrice. O Teatro no Cruzamento de Culturas. São Paulo:<br />

Perspectiva, 2008.<br />

VELLINHO, Miguel. Ação! Aproximações entre a linguagem<br />

cinematográfica e o teatro de animação. In: Móin Móin -<br />

Revista de Estudos Sobre Teatro de Formas Animadas. Jaraguá<br />

do Sul/SC, n. 1, v. 1. p.167-186, 2005.<br />

Outras fontes de consultas - sites dos grupos:<br />

http://www.pequod.com.br<br />

http://www.giramundo.org<br />

http://www.clubedasombra.com.br<br />

75<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


76<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas<br />

MÓIN-MÓIN<br />

Espaço e Cenografia no<br />

Teatro de Animação<br />

Osvaldo Anzolin<br />

Universidade Federal da Paraíba – UFPB


MÓIN-MÓIN<br />

PÁGINA 76 , 77 (acima) e 78: Espetáculo Submundo (2002 - SP). Grupo Sobrevento.<br />

Direção Luiz André Cherubini. Foto de Simone Rodrigues.<br />

PÁGINA 77 (abaixo): Espetáculo Operação Romeu + Julieta. Cia Casa Volante.<br />

Direção de Osvaldo Anzolin. Foto acervo do grupo.<br />

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Todo sentimento forte em nós provoca a idéia do vazio. É a linguagem clara que impede<br />

esse vazio, impede também que a poesia apareça no pensamento. É por isso que uma<br />

imagem, uma alegoria, uma figura que mascare o que gostaria de revelar tem mais significação<br />

para o espírito do que as clarezas proporcionadas pelas análises da palavra.<br />

(Antonin Artaud)<br />

Resumo: A presente reflexão aborda a conceituação do espaço de encenação e dos<br />

ideais de Cenografia para o Teatro de Animação. Esta arte transita na fronteira entre<br />

o movimento e a visualidade, entre a encenação e a imagem. Esta dualidade agrega<br />

agentes ligados ao ofício teatral e outros vinculados às artes visuais, o que provoca alguns<br />

desequilíbrios em uma situação em que vários elementos precisam se integrar. Aspectos<br />

estéticos, simbólicos e funcionais são abordados na intenção de se reunir elementos<br />

que auxiliem a concepção e análise do espaço cenográfico no Teatro de Animação.<br />

Palavras-chave: Cenografia; espaço de cena; teatro de animação.<br />

Abstract: This reflection looks at the conceptualization of the space of theatrical staging<br />

and the ideals of scenography for puppet theatre. The art of puppet theatre sits<br />

at the boundary between movement and the visual, between staging and the image.<br />

This duality aggregates agents connected to theatre craft and others associated with the<br />

visual arts, provoking some imbalances in a situation for which many elements need<br />

to be integrated. Aesthetic, symbolic and functional aspects are discussed with the aim<br />

of putting together elements that assist in the conception and analysis of scenographic<br />

space in puppet theatre.<br />

Key-words: Scenography; the space of the scene; puppet theatre.<br />

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O teatro contemporâneo, majoritariamente, não se presta mais<br />

a um reprodutor de textos escritos e por isso a função imagética é<br />

cada vez maior na sua elaboração. Apesar da afirmação categórica, de<br />

vários profissionais e teóricos do Teatro de Animação, que a essência<br />

desta arte está no movimento, compreendemos que sua principal<br />

evidência está no que é visível em cena: a imagem. Portanto, o<br />

Teatro de Animação está alinhado com as principais tendências<br />

cênicas e é deste modo que entendemos sua prática atualmente.<br />

A relação de todas as formas de teatro com a imagem passa pela<br />

questão da Cenografia e de seu espaço. Neste contexto consideramos<br />

alguns dados que compõem o conjunto cenográfico e os consideramos<br />

na intenção de entender suas características e possibilidades<br />

no ato da encenação, ou, como define Pavis (2003), da “colocação<br />

em imagens”. Analisamos atributos básicos da Cenografia, a saber:<br />

sua estética, seus significados e suas funções.<br />

A composição cenográfica é algo importante no conjunto que<br />

forma o espetáculo. O que se vê em cena – as cores, o volume, a<br />

massa, o equilíbrio, ou a ausência proposital de cada um desses<br />

elementos – deve ser levado em conta na concepção cênica, entretanto,<br />

não pode ser a única, e nem mesmo a principal preocupação<br />

na construção de um espetáculo. Teatro, seja ele de animação ou<br />

não, é o resultado de diversos elementos conjugados em torno de<br />

um objetivo maior, que é o próprio fazer teatral.<br />

A Cenografia pode entrar em conflito com a ação, pode<br />

parodiá-la, apoiá-la ou simplesmente tecer um comentário, mas é<br />

fundamental que tenha algum significado, que não esteja integrando<br />

o espetáculo sem querer interagir com ele. Todo elemento da cena<br />

comunica alguma informação, mesmo que não seja intencional.<br />

Ou seja, o que cala pode falar alto. Assim é interessante que o<br />

significado esteja nítido dentro da concepção espetacular. Ruídos<br />

indesejados, ou seja, qualquer fonte de erro ou de perda de fidelidade<br />

na comunicação de mensagens pode afetar negativamente<br />

a percepção do espectador, levando-o a fazer suposições distantes,<br />

ou até inversas ao sentido da peça.


MÓIN-MÓIN<br />

A limpeza e a simplicidade visual da cena é outro ponto importante<br />

a se considerar na análise de uma concepção cenográfica.<br />

O que é visto em cena e não tem função é inútil. Por mais que<br />

decore, embeleze, enfeite a área de ação, se não for funcional pode,<br />

e certamente será, um empecilho estético.<br />

A funcionalidade de um elemento em cena pode decorrer de duas<br />

formas distintas: a primeira delas é relacionada ainda aos significados,<br />

ao que se quer que o espectador perceba, seja por vias intelectuais ou<br />

sensíveis. Outra forma de funcionalidade é a instrumental. A cenografia<br />

pode contribuir, não só com a percepção visual do espectador,<br />

mas também com a ação propriamente dita. Um objeto inanimado<br />

em cena pode servir como sustentáculo da atuação, tendo inclusive<br />

uma função indispensável em certos espetáculos.<br />

A disposição espacial para a cena demanda importantes ponderações.<br />

A reflexão acerca da espacialidade no teatro comumente<br />

considera o posicionamento do público em relação à encenação e<br />

a influência do ambiente na percepção do espectador para com o<br />

espetáculo. Ao se tratar do Teatro de Animação precisamos ponderar<br />

também acerca da dupla disposição em cena. Nesse teatro, além<br />

da posição do espectador, há o local visível do objeto/personagem<br />

e o local do artista/personificador que pode estar aparente ou não,<br />

formando um espaço tripartido.<br />

As diversas modalidades do Teatro de Animação levam a<br />

distintas utilizações do espaço. As técnicas do Teatro de Bonecos<br />

adquirem cada qual a sua especificidade.<br />

O boneco de luva, o marote, o boneco de vara, por exemplo,<br />

são técnicas que habitualmente necessitam de um esconderijo para<br />

o animador não ser visto durante sua apresentação. Deste modo,<br />

comumente o espaço nestes espetáculos ficam resumidos a uma<br />

espécie de barraca, popularmente conhecida como empanada. Algumas<br />

empanadas são simples e funcionais, outras variam sua forma<br />

e assim estabelecem uma composição cenográfica mais elaborada<br />

e outras ainda se mantêm em um formato padronizado, mas, são<br />

acrescidas de elementos visuais que sugerem o ambiente da cena.<br />

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Já na manipulação direta o animador se mostra, ainda que<br />

normalmente não se ponha em total evidência. Nesse caso o espaço<br />

é comumente dado por um suporte em forma de balcão de tamanhos<br />

variados. A Cenografia é normalmente composta por poucos<br />

elementos dispostos sobre esta estrutura.<br />

O boneco de fios, ou marionete, tanto pode ter seu manipulador<br />

oculto por uma espécie de cortina, como pode explicitá-lo. No<br />

primeiro caso a área de ação pode ser vasta e a Cenografia ilimitada.<br />

Com o agente encoberto o espaço se limita à frente da cortina e o<br />

cenário é, na maioria das vezes, composto de artefatos realistas em<br />

tamanho proporcional aos bonecos.<br />

As técnicas de animação sugerem seus espaços de ação, que por<br />

sua vez limitam a criação da Cenografia, entretanto, elas são muitas<br />

e se multiplicam com adaptações que variam de espetáculo para<br />

espetáculo. Com o passar do tempo é mais difícil assistir a algum<br />

espetáculo em que a técnica esteja em seu estado puro. É uma das<br />

marcas da contemporaneidade.<br />

A percepção das coisas está vinculada à nossa sensibilidade<br />

e nada pode ser percebido se não houver os atributos do espaço.<br />

Não é propriamente o espaço que percebemos e sim as coisas que<br />

estão contidas nele. Percebemos ambientes, arranjos, ações, mas<br />

não percebemos o próprio espaço. Chauí (2000: 97) lembra que<br />

para Kant, o espaço é uma "intuição pura" ou "uma forma a priori<br />

da sensibilidade". Deste modo, segundo a filósofa, o espaço não é<br />

uma invenção do ser humano e também não é uma realidade independente,<br />

é parte efetiva da nossa sensibilidade. Nosso modo de<br />

perceber depende do espaço e sem ele seria impossível ter sensações<br />

qualificadas. Assim sendo percebemos objetos simultaneamente em<br />

razão do espaço ou sucessivamente em razão do tempo.<br />

De acordo com Ana Maria Amaral (1993: 18), “o movimento<br />

é a base da animação, pois é preciso ter-se sempre a ilusão de uma<br />

ação executada durante o ato da apresentação, sem o que não existe<br />

o ato teatral”. No entanto, o movimento somente é percebido<br />

em razão do tempo, ou seja, é a sucessão de imagens que nos dá


MÓIN-MÓIN<br />

a sensação de movimento. Então, o efeito causado pela seqüência<br />

de imagens está atrelado à visibilidade simultânea de diversos elementos<br />

na cena.<br />

O boneco, ou o ator, é percebido na relação com seu lugar e no seu<br />

espaço. Portanto, ao se tratar das artes cênicas, ainda que nossa percepção<br />

esteja direcionada ao foco dramático, é imprescindível a reflexão em<br />

torno do espaço da cena e seus componentes cenográficos.<br />

A representação teatral indica certa duplicidade. Primeiramente<br />

percebemos a porção material, caracterizada por um componente<br />

concreto, uma empanada, um balcão, ou qualquer outra forma de<br />

organização visível deste espaço. Outra percepção é a de que, no<br />

universo teatral, qualquer coisa física é também a imagem de outra<br />

coisa a qual se quer representar, ou seja, esta segunda visão ultrapassa<br />

a materialidade e nos mostra criações do nosso imaginário. Certa<br />

estrutura pode ser um balcão de madeira e ao mesmo tempo um<br />

quarto ou uma rua da cidade. No caso dos bonequeiros populares,<br />

as empanadas são estruturas físicas para esconder o indivíduo<br />

e ao mesmo tempo um espaço mágico, um mundo onde existem<br />

bonecos vivos.<br />

A empanada pode ter diversas variações. Na configuração popular,<br />

por exemplo, esta estrutura esconde o artista e provoca o posicionamento<br />

do público em sua frente, com a cabeça voltada para o alto.<br />

Contudo são muitas variantes nas formas contemporâneas, modelos<br />

que trazem a inspiração na origem popular e técnicas mais elaboradas.<br />

Neste contexto se encontra a Cia. Boca de Cena 1 que faz um<br />

trabalho eminentemente baseado na cultura popular. A estrutura<br />

delimitadora do espaço de ação que é normalmente usada por eles é<br />

simples, muito parecida com a empanada tradicional dos brincantes<br />

1 A Cia. de Teatro de Bonecos “Boca de Cena” é um grupo criado com o objetivo de<br />

resgatar a arte do Teatro de Bonecos no estado da Paraíba. Em mais de oito anos de<br />

atuação, se dedica a explorar variadas técnicas de construção e manipulação de bonecos.<br />

A utilização de vários recursos técnicos como iluminação, sonoplastia, pirotecnia<br />

e cenografia, faz do trabalho da Cia. Boca de Cena uma moderna e destacada releitura<br />

do Babau, teatro de bonecos popular da Paraíba.<br />

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do Babau 2 . Entretanto, os espetáculos são repletos de elementos<br />

visuais que compõem uma Cenografia bastante requintada. No<br />

espetáculo O Boi Encantado 3 o que se vê é uma empanada com<br />

aproximadamente dois metros de altura e coberta por um tecido<br />

azul escuro. No frontispício há o nome da companhia em relevo e<br />

uma abertura, a boca de cena. Por esta abertura é que se vêem os<br />

bonecos em cena, portanto os espectadores precisam ficar dispostos<br />

frente à estrutura para assistir ao espetáculo.<br />

Nas apresentações dos bonequeiros populares, que são sua fonte<br />

de inspiração, o público se dispõe ao redor da empanada, mas não<br />

tem a indicação precisa de onde ficar, pois estas estruturas comumente<br />

têm como objetivo quase único esconder o manipulador.<br />

Assim, frente a isto, o controle da disposição espacial dos espectadores,<br />

no espetáculo da Cia. Boca de Cena, já tem em proveito<br />

várias possibilidades de construção cenográfica. Estando todo o<br />

público na extremidade de uma reta, se abre condições para que<br />

elementos bidimensionais sejam vistos ao fundo dos bonecos, assim<br />

como outros elementos possam ser inseridos em frente ou no mesmo<br />

plano que eles, influenciando no imaginário dos espectadores.<br />

Tal qual o restante dos elementos cenográficos, a luz participa<br />

da produção de sentido no espetáculo. Por todas as suas especificidades,<br />

a iluminação é um assunto que poderia ser tratado à parte deste,<br />

todavia, é difícil falar em espaço cênico sem resvalar na questão da<br />

luz da cena. Suas funções vão desde o isolamento de um elemento<br />

da cena, passando pela influência no ritmo da representação, até<br />

a criação de uma atmosfera. Segundo Pavis (2003: 202), a ilumi-<br />

2 Babau é a denominação dada ao teatro de bonecos popular no estado da Paraíba.<br />

Apesar de ser muito parecido com o que conhecemos como Mamulengo, o Babau<br />

apresenta algumas particularidades relacionadas principalmente a seus personagens<br />

típicos, tanto na personificação como na configuração material do boneco.<br />

3 Segundo a Agência O Globo, em setembro de 2008, O Boi Encantado conquistou o<br />

Troféu Clorys Daly - prêmio maior do Festival de Teatro de Bonecos da Fita – com a<br />

mistura perfeita entre a literatura de cordel e personagens da literatura infantil, com<br />

grandes doses de criatividade e profissionalismo.


MÓIN-MÓIN<br />

nação está “situada na articulação do espaço e do tempo” e “é um<br />

dos principais enunciadores da encenação, pois comenta toda a<br />

representação e até mesmo a constitui, marcando seu percurso”.<br />

A iluminação de O Boi Encantado é produzida por equipamentos<br />

adaptados ao tamanho do espaço cênico. São pequenos refletores<br />

acoplados por hastes à empanada. Seja em uma praça pública, em<br />

um teatro de arena, ou mesmo em um palco italiano, a empanada<br />

auto-iluminada define seu espaço. A luz, manejada de uma mesa,<br />

também adaptada, dentro da empanada, completa sua função,<br />

marcando o espaço da cena, mudando de cor e intensidade a cada<br />

cena, alterando com isso o ritmo do espetáculo e ainda criando<br />

um ambiente fúnebre em um momento em que uma personagem<br />

bruxa entra em cena.<br />

A recém criada Cia. Casa Volante 4 de Belo Horizonte apresenta<br />

outra variação da empanada tradicional. Com o espetáculo Operação<br />

Romeu + Julieta, o grupo se alinha com “uma vocação antiga, mas<br />

cujo uso vem sendo mais bem identificado com buscas recentes,<br />

que é a de fazer conviver simultaneamente diferentes e variados<br />

recursos e efeitos expressivos” (PIRAGIBE, 2007: 201).<br />

Neste espetáculo em palco italiano, os animadores se mostram<br />

a princípio em uma cena aos moldes dos antigos Toy Theatres, contando<br />

o início da história da princesa feia que busca um príncipe<br />

que a tire da torre do castelo. Esta primeira cena é mostrada no<br />

proscênio, em frente à cortina, e ao abri-la os animadores já estão<br />

ocultos em uma empanada estilizada, uma estrutura cenográfica<br />

montada na forma de montanhas, com árvores e um castelo medieval.<br />

Diferente do outro espetáculo mencionado em que o espaço<br />

de cena é interno à empanada, em Operação Romeu + Julieta o<br />

espaço de ação envolve a empanada, mas não se limita a ela. Neste<br />

caso ele é expandido e toma quase todo palco italiano, tendo na<br />

Cenografia o principal elemento de configuração espacial da cena<br />

4 A Cia. Casa Volante nasceu em 2009, formada por Guilherme Pam, que já integrou<br />

a Cia. Giramundo e por Jeanne Kieffer, francesa formada pela École Supérieure National<br />

des Arts de la Marionette de Charleville-Mézières.<br />

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e seus desdobramentos.<br />

Assim, este espetáculo pôde ser mais detalhado em sua elaboração<br />

de luz. Sua concepção teve a possibilidade de se alinhar com<br />

as questões técnicas da maioria das intervenções cênicas de porte<br />

mediano ou grande. Com o espaço mais amplo é possível pensar<br />

em maior quantidade de fontes de luz e na posição de cada refletor,<br />

ajustando ângulo e direção com mais facilidade. A luz da cena é<br />

desviada, filtrada e bloqueada, modificando sua cor, intensidade,<br />

temperatura, entre outros aspectos que sem o espaço para instrumentos<br />

técnicos não seria possível.<br />

Este aspecto da iluminação é ainda melhor aproveitado no espetáculo<br />

Submundo do Grupo Sobrevento 5 . Vários outros espetáculos<br />

deste grupo poderiam servir como exemplo neste assunto, entretanto<br />

me refiro ao Submundo porque sua concepção extrapola os limites<br />

espaciais do Teatro de Animação, mormente conhecido. Trata-se de<br />

um espetáculo com várias técnicas de animação e representação empregadas<br />

simultânea e sucessivamente. O espaço é amplo e tomado<br />

por uma Cenografia extremamente efusiva. Estruturas translúcidas<br />

permitem excelentes efeitos de iluminação. A luz é bloqueada e filtrada<br />

pelos elementos de cena, emana sem restrição de direção, desvenda<br />

e expõe imagens que produzem inúmeros significados.<br />

O espaço deste espetáculo suporta várias técnicas de manipulação,<br />

desde o boneco de luva, com seu ator/animador ocultado<br />

por uma empanada que surge do cenário maior e o integra, até a<br />

técnica de manipulação direta que expõe seu agente em meio ao<br />

espaço simbólico. Como Piragibe (2007: 198) observa, “o método<br />

de manipulação escolhido dificulta a ocultação dos animadores,<br />

deixando-os em posição frontal em relação ao público, que pode<br />

enxergá-lo durante toda a apresentação. Essa dupla exposição de<br />

5 Formado em novembro de 1986, o Grupo Sobrevento é um grupo profissional de Teatro<br />

que se dedica à pesquisa, teórica e prática, da animação de bonecos, formas e objetos. Ao<br />

longo da sua carreira, o grupo criou vários espetáculos, a maioria dos quais permanecem<br />

em repertório. Fundado por Sandra Vargas, Miguel Vellinho e Luiz André Cherubini, seu<br />

diretor (Catálogo Sobrevento: 2003).


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bonecos e manipuladores possui um potencial expressivo que simplesmente<br />

não pode ser ignorado”.<br />

Em qualquer destes casos, a espacialidade é fundamental para<br />

a conquista de significados. A percepção da expressividade de um<br />

objeto – seja um boneco ou um ator – necessita da relação com seu<br />

espaço exterior. Sem a empanada os bonecos de luva tomariam outra<br />

acepção e seu ideal estaria distorcido. As técnicas de manipulação<br />

que permitem a visualização do atuante não alcançariam a mesma<br />

expressão se não houvesse a simultaneidade de imagens permitida<br />

pelo espaço. Portanto, qualquer encenação terá sua comunicabilidade<br />

intimamente ligada a uma espacialidade, pois dela depende<br />

a relação estética que a imagem é capaz de produzir.<br />

O Teatro de Animação tem natureza presencial e por isso seu<br />

espaço cênico não pode prescindir de sua materialidade, entretanto<br />

sua dimensão simbólica é o que lhe atribui sentido e significado. É<br />

somente na produção de sentido sobre a cena que o espaço tornarse<br />

totalmente presente na relação com o espectador.<br />

Temos o palco, a empanada, o balcão, todos os elementos cenográficos,<br />

contudo, em outro sentido, temos a percepção de que<br />

qualquer materialidade existente no universo de representação não só<br />

é a imagem de si mesma, mas também a imagem de algo a que ela faz<br />

alusão. Ou seja, segundo Araújo (2005: 83), é “um significante, que<br />

opera algum tipo de significado, cuja natureza extrapola o campo da<br />

materialidade e opera a travessia entre aquilo que consideramos concreto<br />

e aquilo que consideramos existir apenas no nosso imaginário”.<br />

A empanada de O Boi Encantado é uma estrutura física, com<br />

itens de tecido, madeira, fumaça de talco entre outros, mas representa<br />

um mundo, uma realidade diferente da nossa cotidiana. Não<br />

se trata simplesmente de criar uma composição de cores, massa e<br />

volume, algo belo para se apreciar. Os elementos são capazes de<br />

estabelecer uma comunicação não verbal com os espectadores e<br />

fazer com que percebam cada conformação cenográfica como se<br />

fossem levados a outro lugar. Visitam uma fazenda, a casa de uma<br />

bruxa, assim como podem visitar, em Operação Romeu + Julieta,<br />

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uma paisagem com castelo medieval.<br />

Reconhecer o lugar pode não ser tão importante como perceber<br />

o significado de estar ali. Conforme Pavis (2003: 383), “a imagem<br />

está em melhor condição de proporcionar uma percepção mais<br />

adequada dos processos inconscientes”, afirmação que faz amparado<br />

em teorias psicológicas de Sigmund Freud. Assim, em Submundo,<br />

este aspecto da Cenografia se torna mais esclarecedor. Estruturas<br />

aramadas de metal cobrem todo o palco e os atores/animadores se<br />

movimentam dentro delas nos fazendo sentir o ambiente de um<br />

calabouço, de uma prisão árida e assustadora. Os elementos criados<br />

por Daniela Thomas e André Cortez para este espetáculo não representam<br />

figurativamente um lugar. Não se trata de uma concepção<br />

realista de cenário, é antes uma estrutura simbólica. Cria significados<br />

que falam mais aos nossos sentidos que ao nosso intelecto.<br />

São armações metálicas de aspecto desagradável, com significados<br />

desagradáveis e ainda assim são belos em sua aplicabilidade, em sua<br />

maneira de nos fazer sentir algo. Porém, tudo isso de nada serviria<br />

isoladamente, voltaria a uma forma agressiva e desinteressante, de<br />

mau aspecto, se não estivesse ligado ao espetáculo.<br />

Gianni Ratto, (1999: 38) garante que “a verdadeira Cenografia<br />

é determinada pela presença do ator e de seu traje”. Podemos inferir<br />

que é a cena e seus elementos que dão sentido à Cenografia, como<br />

uma arte integrada e sem autonomia. Na mesma tese, Ana Maria<br />

Amaral (1993: 18) completa que “o Teatro de Animação não se expressa<br />

através do corpo do ator, muito pouco por palavras, mas, sim,<br />

através de formas, imagens, metáforas e símbolos”. Portanto, a arte<br />

cênica se dá plenamente somente pela junção de forma e movimento.<br />

A função da Cenografia no Teatro de Animação está em<br />

parte na completude metafórica. São construções que ajudam ou<br />

possibilitam a interpretação e o entendimento. O objeto animado<br />

aparece em cena com a intenção de referir-se a outra coisa, idéia<br />

abstrata ou personagem. Raramente um boneco é só um boneco.<br />

Essa representação metafórica somente é possível por causa das<br />

afinidades, ainda que remotas, entre diferentes coisas. Tais relações


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se estabelecem em função de analogias descobertas, desnudadas,<br />

realçadas, evidenciadas, enfatizadas pela construção artesanal dos<br />

objetos e da cena. Nesse universo o espectador habitua-se a interpretar<br />

o que vê, faz isso até inconscientemente. Por esse motivo a<br />

Cenografia torna-se perigosa se mal utilizada.<br />

Tudo que está visível em cena tem algum significado, proposital<br />

ou não. Muitas vezes é preferível a utilização de um espaço próximo<br />

da neutralidade a uma cenografia requintada. Se não há intenção,<br />

não há razão para determinado objeto compor a visualidade do<br />

espetáculo. Em muitos casos a Cenografia concorre com a cena,<br />

rivaliza com os bonecos, produzindo um conflito indesejado sob<br />

a percepção do espectador. Portanto é desejável que a Cenografia<br />

interaja com o espetáculo, o que não significa que precisa estar em<br />

total concordância com ele. Há possibilidades coerentes que não<br />

enfatizam simplesmente a ação da cena. O Teatro Épico de Bertolt<br />

Brecht, com a intenção de provocar o pensamento crítico e alertar<br />

o espectador para uma realidade de contrastes, exemplifica bem<br />

esta questão. Rosenfeld (2004: 159) aponta, nesta perspectiva, um<br />

ideal de projeto cenográfico que “é antiilusionista, não apóia a ação,<br />

apenas a comenta. É estilizado e reduzido ao indispensável; pode<br />

mesmo entrar em conflito com a ação e parodiá-la”.<br />

Contudo, a função da Cenografia não está somente na composição<br />

de mensagens significativas, não está somente na visualidade. A<br />

funcionalidade cenográfica envolve também o que dela nem sempre<br />

se vê ou se percebe, mas permite que a cena aconteça.<br />

O bonequeiro popular, na falta de uma empanada, estende<br />

um lençol de um batente a outro e faz da passagem seu espaço de<br />

encenação e do lençol seu cenário. Não há aqui outra intenção, se<br />

não a de esconder o manipulador para evidenciar o boneco. Mesmo<br />

as empanadas dos grupos modernos são antes esconderijos, para<br />

posteriormente se tornarem elementos estéticos e significativos. Este<br />

emprego mais operacional da Cenografia envolve conhecimentos<br />

técnicos que são importantes para um encenador. Uma cenografia<br />

construída à revelia do restante do grupo envolvido pode descaracte-<br />

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rizar a encenação e ocasionar inúmeras falhas. O projeto cenográfico<br />

que acompanha a produção do espetáculo é naturalmente mais<br />

bem sucedido. Diferente do costumeiro no teatro com atores, no<br />

Teatro de Animação é comum que o mesmo artista (ou grupo de<br />

artistas) responda pela direção e pela visualidade do espetáculo ao<br />

mesmo tempo, ou que pelo menos haja uma profunda integração<br />

entre os artistas de diferentes especialidades. Isto faz com que a<br />

operacionalidade do espetáculo seja melhor resolvida. Além disso,<br />

como afirmou Gianni Ratto (RATTO apud DIAS, 1999: 02), “só<br />

assim pode-se ter certeza de não se estar criando um mero pano de<br />

fundo, ou um simples elemento decorativo, mas o cenário desejável”<br />

De uma forma ou outra, a imagem do espetáculo precisa ser<br />

agradável aos olhos, ou seja, mesmo provocando pensamentos<br />

críticos, mostrando ambientes rústicos, a cena terá um melhor resultado<br />

artístico se não causar desconforto visual. Portanto as cores,<br />

o volume, a massa e o equilíbrio, parâmetros que proporcionam a<br />

visibilidade da cena, não podem ser desconsiderados na construção<br />

do espetáculo de bonecos, pois envolvem o objeto animado e<br />

auxiliam na comunicação estética.<br />

Enquanto espectadores, nossa percepção depende diretamente<br />

de nosso conhecimento. Nossa bagagem emocional e cultural ajuda<br />

neste processo. Do mesmo modo que reconhecemos uma personagem<br />

em uma chaleira que abre e fecha a tampa como se fosse uma<br />

boca, na Cenografia, quando nos deparamos com linhas, por exemplo,<br />

temos despertado em nós a memória emocional dos ambientes<br />

em que estamos acostumados. As linhas horizontais nos remetem<br />

às paisagens com a linha do horizonte e por isso pode nos trazer a<br />

sensação de repouso e quietude. Linhas verticais trazem a sensação<br />

de altura, principalmente pela associação com prédios e construções.<br />

Quando enxergamos essas linhas cruzadas, experimentamos uma<br />

atmosfera rude ou inflexível, pois elas lembram as malhas de redes<br />

ou grades de prisões, como no caso da Cenografia de Submundo.<br />

Sendo assim, a Cenografia trata muitas vezes com algo subjetivo,<br />

que tem a percepção variando de espectador para espectador,


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que muitas vezes não sabe dizer o que o incomoda, mas sente isso.<br />

Ele simplesmente gosta ou não gosta de determinada imagem.<br />

Entretanto, podemos buscar a aceitação de uma maioria. Para<br />

isso, a composição de imagem é indispensável, ou seja, é preciso<br />

arranjar os elementos visuais da cena de tal maneira que a atenção<br />

do público se dirija para o assunto, para o centro de interesse que,<br />

normalmente, são os personagens da ação. Toda imagem em cena<br />

pode ser atrativa ao ponto de despertar a atenção do espectador,<br />

mesmo não se movendo.<br />

É preciso ter imaginação estética, ou seja, ter pronto na mente<br />

o resultado visual que se pretende com bonecos, objetos, luz e espaço.<br />

Quando em um processo de montagem, as imagens sofrem<br />

muitas mudanças, e o rumo da criação começa a fugir do foco<br />

inicial, o resultado pode ser insatisfatório, pois as partes tendem<br />

a se desconectar. É interessante que haja um arranjo harmonioso<br />

dos elementos, como cores, formas, linhas, perspectiva e equilíbrio,<br />

mesmo que a harmonia se dê pelo contraste, ou pela ausência programada,<br />

e não pela falta de condições de produção de elementos.<br />

Geralmente, a limpeza e a simplicidade visual da cena é um<br />

ponto importante a se considerar na concepção cenográfica. Na<br />

tentativa de esclarecer todas as idéias contidas no espetáculo, costumamos<br />

cometer excessos. O excesso de informação é uma grave<br />

falha em muitas concepções, pois com o exagero não é possível<br />

atentar ao foco principal e a percepção geralmente é distorcida.<br />

Concordamos com Gianni Ratto (1999: 24) quando diz que “uma<br />

adjetivação decorativa pode nos levar melancolicamente a orgasmos<br />

de prancheta, mas o projeto assim concebido revelará sua inconsistência<br />

dramática”. Ele afirma criteriosamente que uma Cenografia<br />

só pode ser bela se não for gratuitamente bonita e for assimilada<br />

pelo espetáculo.<br />

É possível, e até desejável, criar a beleza com o Teatro de Animação,<br />

mas a Cenografia não pode estar somente a este serviço.<br />

Fazer um projeto cenográfico não significa decorar o ambiente para<br />

a realização da cena. As cores, as formas, os volumes, o equilíbrio<br />

91<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


92<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas<br />

MÓIN-MÓIN<br />

e a luz podem conceber a beleza, mas são apenas componentes da<br />

Cenografia, que é uma arte integrada ao Teatro.<br />

A Cenografia no Teatro de Animação não pode ser apenas um<br />

aspecto técnico, pois é uma área de criação artística, produção e sistematização<br />

de conhecimento. É um campo de atuação privilegiado<br />

no desenvolvimento das concepções do espaço cênico para o boneco.<br />

Muito do que foi abordado neste artigo faz parte do conhecimento<br />

já amplamente discutido no teatro com atores, mas o Teatro<br />

de Animação precisa se apoderar dessas informações, e, com suas<br />

especificidades, desenvolver rupturas no seu pensamento artístico.<br />

O conhecimento ou intuição estética já é plenamente utilizado<br />

no Teatro de Formas Animadas, nesse requisito, o teatro com<br />

atores ainda não o alcançou, entretanto é preciso atentar mais para<br />

questões que ainda não estão tão bem resolvidas.<br />

Na busca por uma estética primorosa, a função da Cenografia<br />

no Teatro de Animação muitas vezes é pouco considerada. Freqüentemente,<br />

vemos espetáculos em que nos cansamos nos primeiros<br />

minutos de apresentação, mesmo diante de uma plasticidade excelente.<br />

Comumente, nesses espetáculos, uma boa idéia visual, porém<br />

mal empregada, toma conta da peça e impede sua harmonia. Pode<br />

ser um boneco com função meramente decorativo, posto ali com<br />

a intenção única de revelar o óbvio, indicar que se trata de Teatro<br />

de Bonecos, ou outro objeto, por exemplo, uma roda, que serve<br />

apenas para informar o nome do grupo que se vê e isso se torna<br />

um estorvo no desenvolvimento das cenas. Não estamos afirmando<br />

que não se podem fazer referências ao nome do grupo, ao tipo<br />

de espetáculo, ao patrocinador ou qualquer outro assunto que se<br />

queira, mas se isso intervém na encenação, ainda que a embeleze<br />

– sob pena da destruição de um conjunto coeso – é amplamente<br />

recomendável que não se faça.<br />

Articulada com as questões dramatúrgicas, a Cenografia no<br />

Teatro de Animação é o conjunto de elementos da significação<br />

espacial de uma cena, por isso necessita ser planejada ao lado da<br />

preparação do objeto a ser animado.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

MÓIN-MÓIN<br />

AMARAL, Ana Maria. Teatro de Formas Animadas. 3ª ed. São Paulo:<br />

Edusp, 1993.<br />

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de Doutorado) UFRGN, 2005.<br />

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de Janeiro: UNIRIO, 1999. Ano 7, n.7. Disponível em:<br />

. Acesso em: 15 nov. 2006.<br />

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ROSENFELD, Anatol. O Teatro Épico. 4ª ed. São Paulo: Perspectiva,<br />

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VARGAS, Sandra; CHERUBINI, Luiz André; VELLINHO, Miguel;<br />

GANGLA, Anderson; SANTANA, Maurício. O teatro do<br />

Sobrevento: catálogo. São Paulo: Grupo Sobrevento, 2003.<br />

93<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


94<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas<br />

MÓIN-MÓIN<br />

Específico e<br />

genérico:<br />

ator no teatro<br />

de animação<br />

Caroline Holanda<br />

Universidade de Fortaleza - UNIFOR


MÓIN-MÓIN<br />

PÁGINAS 94 e 95: Espetáculo Só Serei Flor Quando Tu Flores (2008 - SC). Cia.<br />

Cênica Espiral. Direção de Alex de Souza. Foto de Jorge Minella.<br />

95<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


96<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas<br />

MÓIN-MÓIN<br />

Resumo: O termo “Teatro” é acolhedor de uma vasta gama de modalidades teatrais<br />

que se diferenciam por certos aspectos ligados ao modo de articulação dos princípios<br />

teatrais na geração da significação cênica. Esses modos de operar princípios teatrais dão<br />

a essas modalidades especificidades, originando a pluralidade da linguagem teatral, tais<br />

como o Teatro de Rua, Dança-Teatro e o Teatro de Animação. O presente artigo tem<br />

como proposta apontar e refletir acerca das particularidades do Teatro de Animação,<br />

tocando o tema na perspectiva do trabalho do ator-animador. Nesse intuito, apresento<br />

breve incursão no período de intensa redefinição nessa linguagem a fim de observar<br />

questões que marcam esse processo e incidem no modo de operar do ator-animador,<br />

para em seguida abordar propriamente o foco do artigo.<br />

Palavras-chave: Princípios técnicos; teatro de animação; ator-animador.<br />

Abstract: The term “theatre” brings together a vast gamut of theatrical modalities that<br />

are differentiated from other by certain aspects connected to the mode of articulation<br />

of theatrical principals in the creation of scenic meaning. These ways of operating<br />

theatrical principals give specificities to these modalities, originating the plurality of<br />

theatrical language, in forms such as street theatre, dance theatre, and puppet theatre.<br />

The present article aims to point out and reflect on the particularities of puppet theatre,<br />

touching on this theme from the perspective of the actor-puppeteer. With this goal,<br />

the article dips into a period of intense redefinition of theatrical language, with the<br />

aim of observing issues that influence the process and which are brought up through<br />

the manner in which the actor-puppeteer operates.<br />

Keywords: Technical principles; puppet theatre; actor-puppeteer.


MÓIN-MÓIN<br />

1. Transformações no Teatro de Animação: reverberações<br />

no trabalho do ator-animador<br />

O final do século XIX e início do XX representaram para o<br />

Teatro de Animação um período que abriria precedentes a intensas<br />

transformações nessa linguagem. A efervescência no campo das<br />

artes, sobretudo no campo teatral, com a vanguarda modernista,<br />

lançou o Teatro de Animação no eixo das discussões. O modernismo,<br />

em sua reação ao realismo, às idéias do naturalismo, opondose<br />

à tendência ilusionista que prevalecia desde o século XVIII,<br />

procura ultrapassar os limites da idealização do real. Leva à cena<br />

os instrumentos de produção da teatralidade, buscando apresentar<br />

o que está para além das aparências, num discurso mais lacônico<br />

e poético. Tais inquietações perpassam o trabalho do ator, que é<br />

pensado num novo modelo de atuação que se difere daquele em<br />

voga. Nesse contexto, o boneco e a máscara são tomados como<br />

referência para o comportamento do ator em cena, numa procura<br />

por afastar-se da interpretação predominante. Boneco e máscara<br />

pareciam responder à crise da representação teatral:<br />

Enquanto objeto e como forma plástica, a marionete<br />

permite uma grande liberdade de invenção e experimentação<br />

de materiais; forma teatral essencialmente visual,<br />

acompanhou a afirmação do espaço cênico concebido<br />

como espaço plástico; personagem abstrata, facilitou o<br />

abandono da verossimilhança narrativa e da coerência<br />

psicológica, fundamentos do teatro tradicional; ator<br />

lacônico, a marionete acompanhou as mudanças ocorridas<br />

na escrita teatral e no uso da voz, usada como instrumento<br />

sonoro, separada da personagem ou do corpo<br />

que a pronuncia. (ERULLI, 1994: 13, tradução minha).<br />

Esse movimento reposicionou o Teatro de Animação, fortalecendo<br />

seu status de arte autônoma em meio às demais linguagens<br />

artísticas. Entretanto, até então permanecia na linguagem certos<br />

procedimentos técnicos que primavam pelo velamento das fontes<br />

motrizes e vocais do objeto-personagem. O trabalho do atoranimador<br />

ocidental tinha como base a animação oculta, na qual o<br />

97<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


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Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas<br />

MÓIN-MÓIN<br />

ator se encontra o mais possível fora do alcance visual do público,<br />

como por exemplo, atrás de uma empanada - no caso do boneco<br />

de luva; ou atrás das plataformas - nas apresentações com bonecos<br />

de fio. Permanecia também o caráter de homogeneidade 1 do Teatro<br />

de Animação, quando ainda não se mesclavam à linguagem outros<br />

meios de expressão.<br />

Somente nas décadas de 1950 e 1960, na Europa, e no Brasil,<br />

na década de 1970, o Teatro de Animação é tomado de inquietações<br />

que suscitam intensas transformações, marcadamente no fazer do<br />

ator-animador. Da homogeneidade o Teatro de Animação passa à<br />

heterogeneidade que implica a retirada do boneco do papel de elemento<br />

dominante, realocando-o como um componente na cena em<br />

meio a outros, como objetos animados, adereços, atores-animadores<br />

à vista, atores mascarados, projeções, etc. Além disso, a porosidade<br />

da fronteira entre essa arte e as demais se verifica provocadora de um<br />

diálogo que marcaria profundamente o Teatro de Animação, borrando<br />

as definições de suas fronteiras, antes tão claras. O Teatro de Animação<br />

passa a ser um campo teatral onde tradição e contemporaneidade coexistem,<br />

numa complexa multiplicidade de expressões cênicas.<br />

Um dos fatores de fundamental interferência nas transformações<br />

do Teatro de Animação é a ruptura com a animação oculta e<br />

a presença visível do ator-animador na cena. E não apenas o atoranimador<br />

fica à vista, mas a forma inanimada é desvelada como tal<br />

por meio da opalização, procedimento que mostra o objeto-matéria<br />

- qual seja boneco, objeto utilitário ou materiais - enquanto tal,<br />

fazendo o espectador transitar entre a impressão de ver uma vida<br />

autônoma e um objeto inanimado. O desvelamento da animação<br />

é percussor de múltiplos desdobramentos. O animador agora pode<br />

escolher diferentes modos de compartilhar sua presença com o objeto<br />

que anima, o que, por conseguinte, lhe demanda a adequação<br />

dos princípios de atuação. Com a opalização, amplia-se o campo<br />

1 Esse conceito, bem como o conceito de heterogeneidade, vem sendo trabalhado nas pesquisas<br />

de Henryk Jurkowski, em livros como Métamorphoses: La Marionnette au XX Siècle.


MÓIN-MÓIN<br />

de exploração dramatúrgica, possibilitando ainda a criação de partituras<br />

cênicas mais metafóricas.<br />

Nesse panorama, o Teatro de Animação contemporâneo é<br />

marcado pelas tantas variantes de elaborações cênicas, sobretudo<br />

nas formas híbridas assumidas, reconfigurando o trabalho do<br />

ator-animador, que ganha novas nuances, rompendo parâmetros,<br />

afirmando velhos. A partir desse contexto, vale questionar: o que<br />

particulariza, pois, a atuação nessa linguagem?<br />

O Teatro de Animação é antes de tudo teatro. O ator-animador<br />

não pode prescindir do conhecimento da linguagem teatral. Necessita,<br />

todavia aliar à apropriação da linguagem teatral, as especificidades<br />

do Teatro de Animação. Tais especificidades parecem<br />

caracterizar-se não totalmente por diferenciação, mas por um<br />

acirramento dos princípios teatrais gerais.<br />

Tais diferenciações têm início e base no traço fundamental<br />

do Teatro de Animação, qual seja a relação do ator com o objeto<br />

como mediador da expressão cênica e sua relação com público. A<br />

presença do objeto imprime no Teatro de Animação o caráter sintético<br />

e faz da economia dos meios e precisão, princípios da atuação<br />

nessa linguagem. Torna-a bastante exigente quanto à posição de<br />

escuta e disponibilidade no trato com o material e demais elementos<br />

da composição da cena. Faz dos códigos cinéticos elementos<br />

imprescindíveis e fundamentais na animação. Ademais, exige do<br />

ator-animador certas posturas psicofísicas para a neutralidade nos<br />

distintos modos de compartilhar a cena com a forma animada.<br />

Essas especificidades são mais detalhadas na sequência.<br />

2. Desdobramento objetivado<br />

Tomando-se em conta a concepção de que para o ator no<br />

teatro em geral a personagem é uma máscara modelada e expressa<br />

em seu próprio corpo, no Teatro de Animação tem-se que esse<br />

fenômeno ocorre tendo origem psicofísica no corpo do ator, mas<br />

expressa no objeto animado. A essa capacidade do ator-animador<br />

em colocar sua carga interpretativa em uma forma que é externa a<br />

99<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


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MÓIN-MÓIN<br />

ele denominamos de “desdobramento objetivado”. Significa, para o<br />

ator-animador, organizar-se psicofisicamente em função desse outro<br />

que é ele (ator-animador), mas ao mesmo tempo não é. Habitando<br />

duas dimensões espaço-temporais distintas, necessita agir segundo<br />

as leis destas duas dimensões: a de seu próprio corpo e o universo<br />

circundante da representação; e as leis do objeto (leis inerentes à sua<br />

materialidade) e aos aspectos teatrais que o orientam (personagem,<br />

cena, espetáculo).<br />

O ator mantém a preocupação plástica no interior do espaço<br />

cênico que não deixa de modelar e remodelar ao ritmo de seus deslocamentos<br />

e de seus gestos. O ator-animador por sua vez diferencia<br />

seu modo de situar-se no espaço. Ele é portador de uma idéia, de<br />

um propósito de ação, mas apesar disso tem de se expressar em<br />

um volume distinto do seu próprio e em outra dimensão espaço<br />

temporal. Assim, trabalha sempre em dois níveis de experimentação,<br />

dois planos da realidade, devendo criar um laço "indissolúvel"<br />

entre ambas as condições como premissa de um desenvolvimento<br />

qualificado da animação. Numa dimensão tem-se a psique do<br />

ator-animador. Noutra, o imaginário dramático (a dimensão da<br />

personagem). Dois corpos em um espaço que, embora aparentemente<br />

seja um só não são: trata-se de duas dimensões distintas, mas<br />

intimamente interligadas.<br />

A interpretação no Teatro de Animação, portanto, é desdobrada<br />

e objetivada em uma forma a ser animada. O ator-animador<br />

encontra nesse processo uma particularidade fundamental do seu<br />

trabalho, princípio fundamente entrelaçado aos demais princípios<br />

que regem essa linguagem.<br />

3. Escuta<br />

Princípio de grande relevância na linguagem teatral, a escuta é mesmo<br />

imprescindível no Teatro de Animação. Enquanto certas modalidades<br />

teatrais comportam um ator com escuta débil, o Teatro de Animação<br />

apenas admite a escuta débil nos mais medíocres dos trabalhos.<br />

Para esta reflexão, tratamos a escuta do objeto em três pers-


MÓIN-MÓIN<br />

pectivas. A primeira relaciona o termo com a disponibilidade de<br />

perceber os estímulos do ambiente de trabalho, dos demais atoresanimadores<br />

e do objeto animado. Na animação de um boneco de<br />

balcão, por exemplo, três atores podem dividir restrito espaço. Logo,<br />

um ator centrado em si mesmo, dificulta o trabalho coletivo e a<br />

percepção das possibilidades de animação do boneco. Essa escuta<br />

diz também da concentração. O ator, corpo e mente, deve voltar-se<br />

ao processo de animação, numa percepção dilatada do contexto de<br />

trabalho e nele focado.<br />

Na segunda perspectiva a escuta é tida como um mecanismo<br />

de percepção dos aspectos da materialidade do objeto a fim de<br />

sustentar a composição dramatúrgica do espetáculo. Um exemplo<br />

claro dessa perspectiva é o trabalho do grupo catarinense Cia.<br />

Cênica Espiral, no espetáculo Só Serei Flor Quando Tu Flores. Nele<br />

costureiras animam um boneco construído a partir da junção de<br />

objetos pertinentes ao universo da costura. São rolos de linha,<br />

panos, alfinetes e uma tesoura que lhe serve de olhos. As situações<br />

vividas pela personagem são todas permeadas de ações frutos da<br />

relação entre o boneco e os objetos de costura. Assim, o diálogo<br />

com o material gera não somente elementos dramatúrgicos, mas<br />

incidem também na composição da personagem.<br />

Relativo também à composição da personagem e fundamentos<br />

da animação, a terceira perspectiva pontua alguns aspectos de como as<br />

características concretas do objeto se interligam à sua movimentação.<br />

A materialidade do objeto interfere em seu manuseio. Por<br />

exemplo, um boneco pesado exige muito da musculatura do atoranimador.<br />

É preciso, ao conceber um boneco, questionar-se sobre a<br />

necessidade ou não desse peso. Caso não seja necessário, indagar-se<br />

que outro material poderia substituí-lo. Por sua vez, evidencia-se<br />

a questão da durabilidade, que pode a seu turno, remeter a outras<br />

questões. O Mamulengo, por exemplo, demanda um boneco de<br />

material leve, pois é na maioria das vezes um boneco de luva empunhado<br />

durante muito tempo. Exige também material resistente,<br />

pois tem uma dramaturgia cheia de “cacetadas e pauladas” que<br />

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Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


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MÓIN-MÓIN<br />

atingem a cabeça dos bonecos.<br />

Mesmo o boneco meticulosamente projetado e construído<br />

solicita do ator-animador a escuta, não eliminando, portanto as<br />

descobertas sobre a maneira mais coerente de manusear as partes do<br />

boneco, impulsionar seus movimentos, garantir sua visibilidade em<br />

detrimento das mãos que cobrem (quando da animação direta), etc.<br />

No caso da animação de um objeto de uso cotidiano ou nãofigurativo<br />

permanece a importância da escuta e as descobertas da<br />

matéria, sendo estas ainda mais exigentes. Os objetos utilitários, por<br />

exemplo, deslocados de suas funções primárias, levados ao teatro,<br />

exigem que o ator-animador busque modos de caminhar, falar, agir,<br />

a partir das características dadas.<br />

É importante considerar o peso do objeto-forma, descobrir<br />

pontos de apoio e funcionamento de suas articulações para sua<br />

movimentação. Ao escutar as leis que regem o objeto, o atoranimador<br />

pode executar uma atuação sem maiores dispêndios<br />

inúteis de energia, selecionar e imprimir os movimentos que lhe<br />

são mais naturais, contribuindo para a criação de uma animação<br />

crível, orgânica nesse sentido.<br />

4. Economia dos meios, síntese e precisão<br />

Desde o abandono do ilusionismo naturalista, em sua tentativa<br />

de provocar no espectador a impressão de defrontar-se com<br />

uma parte do mundo real na cena, o teatro reinventa-se na síntese,<br />

apostando na participação ativa do espectador na significação da<br />

cena a partir de um discurso mais lacônico. O Teatro de Animação<br />

é uma linguagem que tem a síntese como marca fundamental de<br />

sua constituição, dado que a criação da personagem ocorre num<br />

objeto que é já sintético, se comparado às possibilidades humanas.<br />

Tal perspectiva solicita nessa linguagem outro princípio, o<br />

“princípio da economia”, fundamental na construção da cena a<br />

partir dos diferentes sistemas de signos e da partitura de movimento<br />

do objeto. A professora Anne Cara lembra:


MÓIN-MÓIN<br />

A marionete mais sofisticada permanece muito distante<br />

da complexidade expressiva do ser humano. O registro<br />

gestual, e, portanto expressivo, é sempre limitado pela<br />

marionete, e o manipulador poderia ser tentado a remediar<br />

essa carência com um suplemento de movimentos,<br />

um excesso gestual. Mas tratar-se-ia de um erro, de uma<br />

contradição fundamental. (2006: 31, tradução minha).<br />

A autora aponta como caminho para a eficácia expressiva uma<br />

seleção de gestos que privilegie aqueles com maior poder de evocação.<br />

Aponta, ademais, que o excesso de gestos é o que confere um<br />

caráter de agitação à personagem-objeto, consistindo em uma das<br />

principais debilidades na animação de um objeto. Essa agitação é<br />

comum na animação dos atores-animadores iniciantes, por vezes<br />

devido a certa ansiedade em desenvolver no objeto a animação.<br />

Entretanto, um boneco agitado perturba o processo de impressão<br />

de vida e sua recepção pelo espectador. Assim, o ator-animador<br />

deve selecionar movimentos, dando preferência àqueles que potencializam<br />

a expressividade do objeto. Nesse conjunto, o princípio<br />

da “precisão” pode fortalecer a animação. Trata-se de realizar os<br />

movimentos com limpeza e definição, sem excessos. Vale ressaltar<br />

que essa noção de precisão não significa movimentos permeados por<br />

grande quantidade de pausas, mas movimentos conscientes e claros.<br />

Embora, o caráter sintético do objeto possa parecer um aspecto<br />

limitante, ele é para os artistas dessa área um instigante desafio, provocador<br />

de múltiplas possibilidades expressivas. Nas palavras de Tito<br />

Lorefice: “O titiriteiro se expressa através de um objeto concreto, mas<br />

deve saber que sua arte sintetiza a realidade concreta e a modifica em<br />

uma instância superadora.” (2006: 15-16, tradução minha).<br />

5. Neutralidade<br />

Em geral, entre os atores-animadores brasileiros, a neutralidade<br />

é compreendida como a busca de uma presença em cena que passe<br />

o mais possível despercebida pelo público na animação à vista,<br />

apoiando-se em artifícios como figurino e maquiagem discretos e<br />

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Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


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MÓIN-MÓIN<br />

evitando movimentos bruscos, gestos amplos e movimentos faciais.<br />

Todavia, numa compreensão mais abrangente a neutralidade<br />

pode ser entendida como um estado de trabalho do ator-animador.<br />

As características do corpo neutro são apontadas por Sears Eldredge<br />

(1978) como: um corpo simétrico, centrado, focalizado, integrado,<br />

energizado, um corpo relaxado e envolvido em ser e não em fazer.<br />

Todos esses aspectos relacionam-se ao estado de disponibilidade<br />

da percepção e reação aos estímulos ao qual se submete o ator<br />

neutro, conformando um corpo equilibrado e por isso o sentido de<br />

simétrico e centrado explicitado por Eldredge. Trata-se de um corpo<br />

energizado, em condição de disponibilidade, mas sem ansiedade<br />

ou excessos, de tal maneira que se configure um corpo relaxado. O<br />

relaxamento corporal no estado de neutralidade implica em manter<br />

o corpo sem tensões desnecessárias, sem, contudo abandoná-lo. Em<br />

outras palavras, refere-se a uma “atenção relaxada”. O corpo envolvido<br />

em “ser não em fazer” pode ser pensado ainda dentro desse estado de<br />

disponibilidade como uma proposição em que o ator mais se dispõe<br />

aos relacionamentos e instruções do jogo do que à busca de compor<br />

uma personagem ou um conjunto de ações específicas.<br />

Eldredge acrescenta ainda duas características de um corpo<br />

neutro quando em movimento, a saber: trata-se de um corpo econômico<br />

e coordenado. O corpo econômico utiliza apenas a energia<br />

apropriada e necessária para o cumprimento de uma tarefa, um<br />

corpo que evita excessos. A noção de corpo coordenado supõe<br />

um movimento que deve fluir através de todas as partes do corpo,<br />

com todas as partes ligadas em uma relação contínua e coordenada.<br />

Qualquer ator pode apropriar-se do estado de neutralidade<br />

quando interpretando uma personagem. Para o ator-animador,<br />

todavia, ela mais que uma opção, é uma exigência técnica. A neutralidade<br />

constitui um mecanismo que viabiliza o deslocamento<br />

da centralidade do “eu” do ator-animador para coabitar o “eu”<br />

do objeto, ajustando sua presença para que se amplie a presença<br />

cênica do objeto.<br />

Nesse sentido, nos referimos a um corpo reorganizado para


MÓIN-MÓIN<br />

atender às exigências da animação de um objeto, um corpo presente,<br />

receptivo, disponível e preciso. Dentro dessa concepção este<br />

passa a ser um princípio presente nos variados modos de animação<br />

de objetos, ao contrário do conceito mais recorrente que toma a<br />

neutralidade como um princípio da atuação à vista. Embora o<br />

corpo do ator na animação oculta não seja a imagem final com a<br />

qual se depara o público, ele é o responsável pela apresentação dessa<br />

imagem e, portanto, organiza-se em função da representação. Um<br />

corpo ausente para a visão do público deve estar, pelo contrário,<br />

totalmente presente na atuação.<br />

6. Movimento<br />

É sabida a importância alcançada pelo movimento no teatro<br />

moderno até os dias de hoje. Dentre às mudanças de paradigmas<br />

da cena, o movimento, a fisicalidade, o corpo do ator tomam as<br />

atenções em reflexões que dizem respeito à treinamentos, criações<br />

cênicas, pedagogias teatrais.<br />

No Teatro de Animação o movimento foi desde sempre a base<br />

fundante dessa arte. O objeto, para assumir a função de personagem,<br />

só pode ser concebido imóvel enquanto fragmento de uma<br />

partitura de movimento, pois uma personagem por prolongado<br />

tempo inerte, volta a ser objeto.<br />

O movimento humano está vinculado à atividade mental, à sua<br />

capacidade de pensar. Rudolf von Laban, estudioso do movimento,<br />

sublinha que, o corpo humano não segue aspectos puramente físicos<br />

da produção de energia e na transformação desta em movimento.<br />

Embora sob a influência das leis físicas, o movimento humano apresenta<br />

distintas possibilidades de variação devido à sua motivação:<br />

O homem se movimenta a fim de satisfazer uma necessidade.<br />

Com sua movimentação, tem por objetivo atingir<br />

algo que lhe é valioso. É fácil perceber o objeto do movimento<br />

de uma pessoa, se é dirigido para algum objeto<br />

tangível. Entretanto, há também valores intangíveis que<br />

inspiram movimentos. (LABAN, 1978: 19).<br />

105<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


106<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas<br />

MÓIN-MÓIN<br />

Assim, o autor evidencia a distinção básica entre o movimento<br />

do homem e do ser inanimado na motivação ou “esforço”.<br />

Desse modo, não é qualquer movimento, qualquer sacolejar,<br />

que viabiliza a animação. O objeto para tornar-se personagem<br />

demanda uma seleção de movimentos que se ajustem a sua materialidade<br />

de constituição e a sua personagem. Trata-se de buscar<br />

para a seleção de movimentos aqueles que inferem a noção do<br />

pensamento oriundo do objeto animado.<br />

Por isso a composição de partituras de movimentos constitui<br />

uma ferramenta de trabalho na animação. Ela pode organizar a<br />

seqüência de movimentos do ator-animador, do objeto e por fim,<br />

pode servir à organização de cenas, entradas e saídas de pessoas,<br />

cenários e objetos de todo o espetáculo.<br />

Na composição da partitura de movimento do objeto é importante<br />

contemplar a seleção de movimentos relacionados ao “esforço”<br />

da personagem, ou seja, aos impulsos internos que originam<br />

os movimentos, consolidando a conduta da personagem-objeto.<br />

É importante ter em voga o caráter sintético do objeto, selecionando<br />

movimentos com maior potencial de significação. Vale<br />

lembrar também que a mesma trajetória de um movimento pode<br />

ser realizada de distintas maneiras, produzindo em cada variação<br />

diferentes conteúdos de significação. Michael Meschke (1988)<br />

chama atenção para o cuidado na realização dos movimentos no<br />

processo de animação: o menor gesto, deslocamento ou variação<br />

de ritmo influi na totalidade expressiva do objeto. Na criação de<br />

uma partitura ator-animador e diretor experimentam, analisam e<br />

selecionam movimentos, a fim de descobrir aqueles que melhor se<br />

adaptam às demandas artísticas e técnicas da personagem.<br />

Na partitura de movimentos frisamos a importância da presença<br />

de alguns elementos como: o olhar (em aspectos como a relação frontal;<br />

sua participação na confecção do foco e da triangulação; o olhar<br />

como indicador da ação); foco; a apresentação ou entrada do objeto;<br />

a respiração; o caminhar da personagem-objeto; e a manutenção de<br />

elementos como a tonicidade, nível, eixo e ponto fixo.


MÓIN-MÓIN<br />

É relevante observar que a ênfase na modelagem cinética não<br />

implica o desaparecimento ou submissão da palavra. Tão somente<br />

pretende sublinhar o movimento como base dessa linguagem teatral<br />

que demanda, portanto, uma maneira peculiar de se organizar para<br />

constituir sua expressividade. O movimento deve ser pensado não<br />

como um sistema sígnico que ilustra a palavra, mas como um sistema<br />

que interage com os signos da palavra na expressão dessa arte. Os<br />

diálogos presentes na animação de uma forma fazem impulsionar<br />

a ação. Comumente a não observância desse princípio ocasiona<br />

cenas nas quais o boneco é sacolejado, com pouca organicidade.<br />

Em geral esse tipo de movimentação é resultado da concepção que<br />

tem na palavra o elemento central e o movimento como sistema<br />

sígnico adjutório e meramente ilustrativo na animação. Na cena,<br />

tudo ganha significado. A palavra é um sistema sígnico de força,<br />

mas para o Teatro de Animação, o movimento é a alma do objeto.<br />

Conclusão<br />

O Teatro de Animação vivenciou um processo de intensas<br />

transformações. No Brasil elas têm início na década de 1970 e se<br />

verificam até os dias atuais. Tais modificações têm profundas interferências<br />

dialógicas no/do trabalho do ator-animador que se realiza<br />

com base em princípios técnicos específicos dessa linguagem.<br />

Assim, o “desdobramento objetivado” foi apresentado como<br />

processo dialógico no qual a personagem tem impulso no corpo do<br />

ator e se expressa no objeto. O ator-animador imerge em dois universos<br />

que dialogam na produção de uma realidade una. A “escuta”<br />

também foi eleita como princípio de trabalho do ator-animador<br />

implicada em três perspectivas: percepção e concentração; materialidade<br />

do objeto na composição dramatúrgica; materialidade do<br />

objeto na movimentação. Na sequência abordou-se a “economia<br />

dos meios” e “precisão” como princípios interligados ao caráter<br />

de “síntese” dessa linguagem. Em outras palavras, na animação,<br />

o menos vale mais e se potencializa ainda mais quando de uma<br />

realização precisa.<br />

107<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


108<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas<br />

MÓIN-MÓIN<br />

Os dois últimos princípios apontados foram a “neutralidade”<br />

e o “movimento”. O primeiro foi abordado como um estado permanente<br />

e pertinente a qualquer modo de atuação no Teatro de<br />

Animação - oculta ou à vista. Um mecanismo físico e psicológico,<br />

no qual o ator-animador passa por um processo de esvaziamento<br />

de qualquer coisa que possa sufocar a presença animada do objeto.<br />

Por fim, “o movimento” é apresentado como princípio fundamental<br />

para atuação nessa linguagem, dado que o objeto excessivamente<br />

inerte volta a ser apenas objeto. Nesse sentido a partitura de<br />

movimento é vista como uma ferramenta valiosa no trabalho do<br />

ator-animador.<br />

Ante ao exposto, é possível afirmar que o ator no Teatro de<br />

Animação não prescinde dos princípios gerais da linguagem teatral.<br />

Contudo o que é perceptível é que seu trabalho se particulariza na<br />

intensificação de certos princípios gerais, provocado pela mediação<br />

do objeto entre público e ator na expressão da personagem.<br />

O trabalho desse intérprete passa pela composição, pela organização<br />

dos signos de que dispõe sob a referência do caráter<br />

sintético que possui a matéria, elegendo os meios mais relevantes<br />

e realizando uma execução precisa a fim de provocar a superação<br />

da materialidade do inanimado na criação da poesia cênica.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

CARA, Anne. La marionnette – de l’objet manipulé à l’objet théâtral.<br />

Charleville-Mézières: SCÉRÉN, 2006.<br />

CAVALCANTE, Caroline M. H. A interpretação com o objeto:<br />

reflexões sobre o trabalho do ator-animador. Dissertação de<br />

Mestrado. Universidade do Estado de Santa Catarina –<br />

UDESC. Florianópolis: 2008.<br />

ELDREDGE, Sears A.; HUSTON, Hollis W. Actor training in the<br />

neutral mask. The Drama Review. v. 22, n. 04, dez, 1978.<br />

ERULLI, Brunella. Le dernier pas dépend du premier. In: PUCK.<br />

La marionnette et les autres arts. n. 07. Charleville-Mézières:


MÓIN-MÓIN<br />

Institut International de la Marionnette, p. 13, 1994.<br />

JURKOWSKI, Henryk. Métamorphoses: La Marionnette au XX<br />

Siècle. Tradução de Eliane Lisboa. Charleville-Mézières:<br />

Éditions Institut International de la Marionnette, 2000.<br />

LABAN, Rudolf von; ULLMANN, Lisa. Domínio do Movimento.<br />

Tradução de Anna Maria Barros de Vecchi e Maria Sílvia<br />

Mourão Netto. São Paulo: Summus, 1978.<br />

LOREFICE, Tito & KARTUN, Maurício. El Teatro de Títeres.<br />

Territorio natural de la metáfora. In: E pur si muove. n. 05.<br />

Charleville-Mézières: UNIMA, 2006.<br />

MESCHKE, Michael. ¡Una estética para el teatro de títeres! Tradução<br />

de Marina Torres de Uriz. Bizkaia: Concha de la Casa,1988.<br />

109<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


110<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas<br />

MÓIN-MÓIN<br />

Aspectos do processo de criação<br />

atoral no teatro de formas animadas<br />

Kely de Castro<br />

Cia Truks – São Paulo


MÓIN-MÓIN<br />

PÁGINA 110: Espetáculo Isto não é um Cachimbo (2007 - SP). Cia Truks. Direção<br />

de Henrique Sitchin. Foto de Henrique Sitchin.<br />

PÁGINA 111 (acima): Espetáculo Espalhando Sonhos (1994 - SP). Seres de Luz Teatro.<br />

Direção de Lily Curcio e Abel Saavedra. Foto de Daniel Pátaro e espetáculo Cuando Tú No<br />

Estás (2000 - SP). Seres de Luz Teatro. Direção de Seres de Luz Teatro. Foto de Daniel Pátaro.<br />

111<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


112<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas<br />

MÓIN-MÓIN<br />

Resumo: Este artigo trata de alguns aspectos relacionados ao processo de criação do<br />

ator no Teatro de Formas Animadas, partindo do princípio de que há especificidades a<br />

serem tratadas neste campo de atuação. Para tanto, traz algumas referências à pesquisa<br />

de mestrado realizada por mim em que pude observar o trabalho de quatro grupos<br />

especializados na linguagem, são eles: Grupo Sobrevento, Cia Truks, Seres de Luz<br />

Teatro e Morpheus Teatro.<br />

Palavras-Chave: Teatro contemporâneo; ator; processo de criação; ator-manipulador.<br />

Abstract: This article deals with some aspects of the development of the puppet theatre<br />

actor, parting from the principle that there are specificities that have to be dealt with<br />

in this area of activity. In order to discuss the subject I use some references from my<br />

Master's research, during which I was able to observe the work of four groups that<br />

specialize in the language of puppet theatre. These groups are Teatro Sobrevento, Cia<br />

Truks, Seres de Luz Teatro and Morpheus Teatro.<br />

Keywords: Contemporary theatre; actor; creative process; actor-puppeteer.<br />

Trago para este artigo algumas das inquietações que surgiram<br />

durante minha formação como atriz, ao resolver me dedicar à atuação<br />

com bonecos. Tais questões direcionaram meu trabalho como<br />

pesquisadora durante o mestrado e, ainda hoje, me acompanham<br />

em meu trabalho criativo em cena.<br />

Interessava-me saber se as técnicas, métodos e teorias elaborados<br />

para o ator do chamado teatro de atores, serviriam também para os


MÓIN-MÓIN<br />

que atuavam no Teatro de Formas Animadas. Por dois anos acompanhei<br />

o trabalho de quatro grupos atuantes na cidade de São Paulo<br />

e, entre espetáculos, oficinas, entrevistas e processos de montagem,<br />

pude observar, analisar e inclusive participar de parte do processo<br />

de criação destes artistas. Escolhi os grupos Sobrevento, Truks, Seres<br />

de Luz e Morpheus. Além de serem companhias reconhecidamente<br />

importantes para avanço da linguagem do Teatro de Animação no<br />

Brasil, são distintas em alguns aspectos relativos ao modo de criar,<br />

constituindo assim um campo copioso para a pesquisa.<br />

No perfil dos integrantes destas companhias, um fator aparentemente<br />

simples me chamou a atenção. A grande maioria destes<br />

artistas, antes de integrar um grupo especializado nesta linguagem<br />

específica, já atuava como ator. Logo, se seus trabalhos artísticos não<br />

se deram desde o início em contato com a animação de bonecos,<br />

esses também traziam para seu exercício questões próximas àquelas<br />

que me mobilizaram no início da pesquisa. De fato, nos encontros<br />

relativos aos processos de montagem de espetáculos, esses temas<br />

apareciam recorrentemente.<br />

É importante elucidar que trato aqui de uma arte de ator baseada<br />

na criação e na pesquisa. Ou seja, não do ator que se limita<br />

à reprodução de movimentos previamente estabelecidos, como<br />

quem apenas decora seu texto. Interessa-me o ator que carrega um<br />

ímpeto criativo, que compõe a cena com suas próprias intenções,<br />

emoções e energia. Aquele que, mesmo em seu exercício cotidiano<br />

busca uma relação crítica com sua arte, revendo e questionando<br />

freqüentemente seu ofício. Desta forma, notei que é constituído<br />

dentro das companhias o caráter de pesquisa, pois a busca por um<br />

caminho diferente, a criação de um novo espetáculo ou o estudo<br />

de uma determinada técnica, freqüentemente são impulsionados<br />

pelas inquietações artísticas dos atores e diretores das companhias.<br />

Neste artigo, encontro ainda a possibilidade de refletir sobre<br />

esses temas considerando, por meio da minha condição atual, como<br />

integrante de um dos grupos estudados, a Cia Truks. Ou seja, trago<br />

agora o acréscimo de uma perspectiva interior. Este termo é utiliza-<br />

113<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


114<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas<br />

MÓIN-MÓIN<br />

do por Patrice Pavis ao expor dois métodos opostos de análise de<br />

espetáculos, no caso, estrangeiros. Diz respeito a um tipo de olhar<br />

sobre o objeto de pesquisa em que o pesquisador se coloca como<br />

um observador-participante. Nas palavras do autor:<br />

O observador-participante mergulha no espetáculo, naquilo<br />

que o precede como naquilo que o segue. Ele participa<br />

na vida de um grupo teatral e cultural, assiste e se associa<br />

aos treinos e ensaios, toma parte nas escolhas estéticas, se<br />

funde no grupo correndo o risco de desaparecer como<br />

observador e de se tornar um deles. (PAVIS, 2005: 259).<br />

Minha trajetória como pesquisadora seguiu caminho parecido<br />

ao descrito por Pavis. Hoje, integrante de uma das companhias que<br />

estudei, identifico-me como uma atriz-pesquisadora. E neste tempo<br />

entre o desfecho da pesquisa acadêmica e hoje, em dedicação integral<br />

ao trabalho da companhia, tenho guardado reflexões amadurecidas<br />

pelo estudo acadêmico e instigadas pela prática cotidiana desta arte.<br />

A criação de espetáculos carrega conceitos que frequentemente<br />

são demonstrados em oficinas e palestras das companhias, já que<br />

uma das tendências do teatro contemporâneo é a valorização do<br />

processo de montagem. Assim, o interesse do público em geral<br />

voltou-se também para esta etapa. Tal aspecto contribuiu para que<br />

os grupos se dedicassem à pesquisa da linguagem, documentando,<br />

avaliando e pensando sobre seu fazer. Porém, para que isso seja<br />

possível, a companhia necessita de uma estrutura financeira para<br />

manter-se durante este período, o que raramente acontece. Assim,<br />

citarei aqui alguns dos aspectos que as companhias julgam ideais em<br />

seus processos de criação, mas que nem sempre têm a oportunidade<br />

de realizar por completo. A ordem que escolhi para esta reflexão<br />

também não é necessariamente aquela que se dá em cada grupo,<br />

pois, como já dito, as companhias se diferem em seus modos de<br />

criar, portanto, não seguem a mesma trajetória. Já que aqui não<br />

será possível demonstrar em detalhes as características particulares<br />

de cada grupo, escolhi tópicos sobre procedimentos que acredito<br />

serem fundamentais para todos os grupos citados.


MÓIN-MÓIN<br />

A busca do corpo não cotidiano do ator<br />

Um dos primeiros princípios adotados pelos grupos que observei<br />

é que não se deve iniciar qualquer tipo de trabalho relativo<br />

à cena, seja um ensaio cotidiano ou uma prática de criação, com o<br />

mesmo corpo que se chega da rua, ou seja, o corpo cotidiano. Em<br />

um dos estudos de Ana Maria Amaral sobre o trabalho do atormanipulador,<br />

a autora argumenta que “[...] A primeira etapa no<br />

trabalho de um ator é o aprendizado de sair de si. Num primeiro<br />

momento, deve estar aberto, disponível, ter a mente vazia, sem<br />

tensões, procurando antes comunicar-se com o próprio corpo.”<br />

(AMARAL, 2001: 21).<br />

Abandonar o corpo cotidiano é o primeiro passo para o alcance<br />

de um corpo cênico. Para o ator representa o equivalente à tela em<br />

branco do pintor. É o corpo livre dos movimentos automatizados<br />

e das tensões musculares, pronto para ser composto de expressão<br />

artística. Diferentes métodos e teorias sobre a preparação do ator<br />

defendem essa idéia. Stalislavski (1989) já se preocupava com que<br />

seus atores não se limitassem aos seus movimentos cotidianos.<br />

Grotowski também elaborou exercícios para que o ator fosse capaz<br />

de livrar-se dos gestos cotidianos que, para ele, eram incapazes de<br />

expressar os sentimentos mais profundos e intensos do ser humano<br />

(GROTOWSKI apud FLASZEN, L. et al, 2007: 107).<br />

Mas, para o ator-manipulador, há alguma especificidade na<br />

busca pelo corpo não cotidiano?<br />

Há ao menos dois aspectos importantes sobre este tema, que<br />

podem caracterizar particularidades da atuação no Teatro de Animação.<br />

Partindo da hipótese de que o boneco ou objeto é uma<br />

extensão do corpo do ator e que, portanto, seus movimentos são<br />

reflexos de comandos dados por ele, é possível afirmar que o objeto<br />

pode trazer para a cena um corpo limitado tal qual o corpo cotidiano<br />

do ator. Em outras palavras, se ele não rompe com o corpo<br />

cotidiano, pode transmitir para o boneco os limites de seu corpo.<br />

O segundo fator é a necessidade que o ator-manipulador tem<br />

de que sua energia flua a ponto de estender-se ao objeto manipula-<br />

115<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


116<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas<br />

MÓIN-MÓIN<br />

do. Essa energia de que falo é denominada “energia atoral”, que se<br />

configura em cena como intenção e emoção. Acredito que o grande<br />

desafio do ator-manipulador é conquistar a capacidade de transmitir<br />

esta energia atoral, portanto, humana, para o boneco ou objeto.<br />

Este trabalho pelo abandono do corpo cotidiano é feito com a idéia<br />

de que a energia atoral é uma característica do corpo cênico. Desta<br />

forma, para transmitir ao objeto manipulado uma expressividade<br />

tipicamente humana por meio desta energia, é preciso passar pelo<br />

rompimento do corpo cotidiano e buscar o corpo cênico.<br />

Na Cia. Truks, a técnica de manipulação direta é executada<br />

pelos atores em uma postura corporal não cotidiana: joelhos bem<br />

flexionados, quadril “encaixado” à coluna e pés paralelos. Durante<br />

os ensaios é nítida a importância do trabalho do abandono do corpo<br />

cotidiano, pois toda tensão ou erro de postura é imediatamente<br />

transmitido ao boneco. Uma das maiores preocupações da direção<br />

é corrigir a postura dos atores, pois, muitas vezes um problema de<br />

eixo 1 do boneco, por exemplo, é corrigido ao se ajustar a postura<br />

do manipulador.<br />

O “sair de si” como sugere Amaral (2001), significa, entre<br />

outras coisas, abandonar as tensões trazidas não só pelo cotidiano<br />

atual, mas muitas vezes, por conseqüência de uma vida inteira.<br />

Assim, os limites impostos por este corpo cotidiano têm características<br />

individuais em cada ator e por isso, muito embora haja nas<br />

oficinas dos grupos diversos exercícios para este fim, observei que<br />

cada ator procura encontrar seu próprio método.<br />

O trabalho com materiais diversos<br />

Exercícios com materiais no processo criativo do ator são<br />

1 O que freqüentemente chamamos de “eixo” no Teatro de Formas Animadas, diz respeito<br />

à manutenção coerente de uma estrutura corporal do boneco ou objeto, durante sua movimentação<br />

em cena. Normalmente se trabalha em relação à definição do que seria a “coluna<br />

vertebral”, que pode ser hipotética ou representada por alguma estrutura física pensada na<br />

confecção. A manutenção do eixo é considerada por muitos estudiosos e praticantes desta<br />

arte, um dos principais fatores responsáveis pela ilusão de vida na manipulação do objeto.


MÓIN-MÓIN<br />

utilizados não apenas no Teatro de Animação. Oskar Schelemmer<br />

e Tadeusz Kantor, por exemplo, deram grande importância a processos<br />

que buscavam a integração entre humano e matéria. Ambos<br />

pesquisaram, de formas distintas, práticas que desenvolveriam no<br />

ator sensibilidade e percepção apurada em relação aos materiais.<br />

Porém, é evidente que para o ator do Teatro de Formas Animadas<br />

estas características são essenciais.<br />

Assim, muitas vezes o primeiro passo dado em direção ao<br />

contato com a matéria, são jogos e exercícios com materiais<br />

diversos, como papel, plástico ou tecido. Os primeiros buscam<br />

despertar a sensibilidade do ator em relação ao objeto, para que<br />

conquiste a capacidade de compreender o que cada material traz<br />

de possibilidade expressiva. O pressuposto é de que cada material<br />

traz diferentes características e, portanto, se diferenciam também<br />

em termos de expressividade. Nesses procedimentos o ator pode<br />

descobrir possibilidades e singularidades nunca antes observadas,<br />

e os dados colhidos durante sua investigação lhe servirão como<br />

matéria-prima para a criação.<br />

Apesar do caráter preparatório deste tipo de exercício, já é possível<br />

identificar a presença da criação atoral. Pois, ao descobrir no objeto<br />

suas capacidades dramáticas, revelam-se os conflitos, normalmente<br />

impostos pelas relações entre o corpo humano, o corpo objetal e o<br />

espaço. O peso do objeto e sua forma são fatores categóricos para esses<br />

conflitos, eles determinam o tempo do material, e integrar-se com<br />

esse tempo singular é um aspecto importante nesse tipo de trabalho.<br />

Os conceitos básicos de manipulação também são empregados<br />

em dinâmicas com materiais, principalmente: respiração, olhar e<br />

eixo. A improvisação de cenas com esses materiais é normalmente<br />

a última fase desta etapa e, muitas vezes, pode trazer resultados<br />

interessantes. No espetáculo Big Bang, da Cia Truks, há uma cena<br />

em que os atores manipulam sacos de lixo e que foi criada a partir<br />

de um exercício de improvisação.<br />

Confeccionar, ato de criar.<br />

117<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


118<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas<br />

MÓIN-MÓIN<br />

Escolhi para minha pesquisa de mestrado grupos que tivessem<br />

uma característica que considero singular: a confecção inserida no<br />

processo de criação. Julgava que esta particularidade poderia trazer<br />

aspectos que os diferenciassem. As questões que cercam a confecção<br />

de bonecos e outros objetos fazem parte do estudo diário dos atores<br />

dessas companhias e estão presentes no processo de criação do início<br />

ao fim. Esse modo de fazer, por sua vez, se difere daqueles que<br />

não incluem a confecção nas funções dos atores, por introduzir na<br />

poética da arte do ator uma relação mais profunda com o material.<br />

Acredito que aprender a construir bonecos não constitua uma<br />

característica sine qua non para o ator do Teatro de Formas Animadas.<br />

Existem grupos e mesmo bonequeiros tradicionais que não<br />

confeccionam e mesmo assim realizam trabalhos com qualidade<br />

artística. Porém, considero a reflexão sobre este tema importante,<br />

visto que, ao que parece, no Brasil o envolvimento do ator na confecção<br />

é uma característica contemporânea do Teatro de Animação.<br />

Em 1981, na Revista Mamulengo, Álvaro Apocalypse, fundador<br />

do Grupo Giramundo, relatou como via o funcionamento dos<br />

grupos brasileiros na época:<br />

[...] de início o que se adianta como principal característica<br />

é uma nítida divisão entre os componentes da<br />

estrutura do espetáculo, resultado de uma espécie de<br />

‘especialização’ entre o pessoal envolvido. Ou seja, a cada<br />

componente do grupo cabe determinada tarefa, que por<br />

sua vez, se destina a produzir determinado componente<br />

do espetáculo. Como resultado desta forma estanque de<br />

trabalhar emerge a figura do especialista, que não assume<br />

a obra como um todo [...]. (APOCALYPSE, 1981: 16).<br />

Inserir a confecção no universo do ator demonstra uma mudança<br />

de olhar sobre esse processo. Apocalypse nos fala de um<br />

envolvimento do grupo no processo de criação do espetáculo como<br />

um todo, que resulta em uma nova qualidade. Henrique Sitchin,<br />

da Cia. Truks, quando questionado sobre a importância da confecção<br />

do objeto pelo ator, responde: “acho importante que o ator


MÓIN-MÓIN<br />

se envolva em todo o processo de criação do espetáculo, do início<br />

ao fim” 2 . Assim, a confecção dos bonecos se insere no percurso de<br />

concepção da encenação.<br />

Há algumas questões particulares concernentes à feitura do<br />

boneco pelo ator, uma delas é o olhar sobre a matéria bruta. Um<br />

ator vê um material de forma distinta da visão de um artesão ou<br />

um artista plástico. Ele procura características e possibilidades para<br />

colocar suas idéias cênicas em prática, portanto analisa a capacidade<br />

de movimentos, a partir do que pretende realizar em cena. Contudo,<br />

o inverso também pode ocorrer: primeiro confecciona-se o objeto<br />

e depois se cria a cena.<br />

O processo de confecção também toca a construção da personagem,<br />

pois se essa é uma função que cabe ao ator, poder-se-ia<br />

argumentar que logo a confecção também o é, já que durante seu<br />

processo determinam-se as características físicas da personagem. Por<br />

conseguinte, define-se seu modo de caminhar, de se movimentar,<br />

e muitas vezes até seu ritmo e pulsação. Sobre esta questão, Maria<br />

do Carmo Vivacqua – Madu apontou em 1977:<br />

É frequente observarmos em espetáculos movimentos<br />

involuntários, indesejáveis, movimentos não atribuídos<br />

pelo manipulador, mas que foram agregados ao boneco<br />

em sua confecção defeituosa. [...] Um bom boneco nem<br />

sempre é aquele totalmente articulado. O bom boneco<br />

é muitas vezes um pedaço de pau rijo, que sabe olhar o<br />

público com curiosidade [...]. (VIVACQUA, 1977: 61).<br />

Nesse sentido, a construção do boneco pelo ator lhe proporciona<br />

alguns benefícios. Durante esse processo, o ator tem a alternativa<br />

de experimentar possibilidades de execução de movimentos, assim<br />

como optar por técnicas de confecção viáveis para a personagem<br />

que deseja compor. Deve-se ressaltar que muitas vezes essas técnicas<br />

são descobertas pelo ator na pesquisa empírica. Em outras palavras,<br />

é confeccionando que o ator aprende a confeccionar e é testando<br />

idéias que desenvolve novas formas de fazer.<br />

2 Entrevista. Contato pessoal em julho de 2007.<br />

119<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


120<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas<br />

MÓIN-MÓIN<br />

Muitos atores relatam que a importância de passar pelo processo<br />

de confecção se dá, supostamente, por proporcionar uma<br />

relação mais estreita entre ator e boneco. De fato, sabemos que,<br />

quando se manipula um boneco construído por outra pessoa, há<br />

um período de conhecimento de seu mecanismo. Descobre-se aos<br />

poucos o quanto seu material é resistente, como equilibrar seu peso<br />

e suas possibilidades de movimentação. Segundo Ana Maria Amaral:<br />

Para animar um boneco o ator deve observá-lo bem antes,<br />

captar sua essência e procurar transmiti-la. Para dar vida<br />

ao inanimado é preciso ressaltar a matéria, ressaltar essas<br />

peculiaridades intrínsecas da materialidade com que<br />

todo boneco é feito. Essa autonomia, essa vida interior<br />

própria que caracteriza o boneco, é criada a partir de sua<br />

construção. Antes de o ator-manipulador animar um<br />

boneco, ou seja, antes de habitá-lo, no sentido de dar-lhe<br />

vida, quem o construiu já o habitou, já colocou ali um<br />

personagem. (AMARAL, 2001: 80).<br />

Portanto, quando o ator construiu o boneco, ou pelo menos<br />

participou de sua construção, dá-se, neste sentido, um passo adiante.<br />

O ator confeccionador tem um conhecimento profundo sobre o<br />

boneco, o que lhe permite também realizar, durante seu processo de<br />

criação de cena, modificações em sua estrutura. Esse procedimento<br />

é muito comum, pois no decorrer da construção cênica podem<br />

aparecer necessidades de movimentação que muitas vezes são impedidas<br />

por algum fator ligado à confecção. Assim, quando o ator<br />

conhece a feitura do boneco, ele é capaz de propor mudanças ou<br />

pequenos ajustes que podem significar ganhos em expressividade.<br />

A busca pelo corpo cênico do boneco<br />

Nota-se que é comum que haja um caminho percorrido até a<br />

chegada do boneco no processo de criação, principalmente quando<br />

a confecção faz parte deste processo. Assim, o início do trabalho<br />

do ator com o boneco se dá com um período de descoberta do<br />

corpo cênico do boneco e desde então começa a se formar a sua<br />

personalidade. Considerando que o boneco é personagem, faz-se


MÓIN-MÓIN<br />

necessário descobrir, com ele, seu comportamento habitual em<br />

seu corpo cênico, seus gestos expressivos próprios e suas reações<br />

a determinadas situações. Ou seja, inicia-se a criação daquilo que<br />

chamamos de personalidade.<br />

Se por um lado a aproximação dos movimentos do boneco<br />

aos do ser humano dá a ele qualidade cênica, por outro lado, o<br />

boneco não possui os recursos de expressão humanos (e aí reside<br />

sua essência). Assim, sua expressividade muitas vezes reside na força<br />

desta personalidade em cena. Este processo se dá, normalmente,<br />

com a improvisação de cenas cotidianas simples. O objetivo não<br />

é criar situações ou conflitos, mas simplesmente que o boneco<br />

esteja em cena reagindo a estímulos ou à falta deles. Hoje, trata-se<br />

de um procedimento muito comum nas companhias, mas nem<br />

sempre foi assim.<br />

Na década de setenta, Maria do Carmo Vivácqua queixava-se, na<br />

Revista Mamulengo, da falta de interesse dos manipuladores por alguns<br />

procedimentos, entre eles a pesquisa dos movimentos cotidianos:<br />

O manipulador brasileiro peca sistematicamente pelo<br />

descuido da manipulação que, trocada em miúdos,<br />

corresponde exatamente à alma do boneco. E a manipulação<br />

está intimamente ligada à construção do<br />

personagem. [...] Muitas vezes, ações consideradas<br />

erroneamente corriqueiras, como fazer um boneco<br />

andar, sentar, virar ou curvar, que são na verdade essenciais,<br />

são postas de lado. (VIVÁCQUA, 1977: 61).<br />

Certamente esse processo foi se modificando no Teatro de<br />

Animação no Brasil. Hoje vemos grupos que trabalham com essa<br />

linguagem e são extremamente desenvolvidos nesse aspecto. Os<br />

atores da companhia Morpheus, por exemplo, dedicam grande<br />

parte de sua pesquisa à descoberta desses movimentos. O resultado<br />

é a execução apurada de pequenos gestos que caracteriza o trabalho<br />

da companhia. João Araújo, ator da companhia, afirma que é<br />

preciso “[...] conviver com o boneco, olhar para ele, deixar que ele<br />

te olhe, brincar com ele e imaginar qual seria sua resposta gestual a<br />

121<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


122<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas<br />

MÓIN-MÓIN<br />

determinadas situações” 3 . Assim, a personagem/boneco adquire uma<br />

personalidade, um jeito de ser e reagir aos estímulos externos.<br />

Na Cia. Truks, após o trabalho de definir as principais características<br />

da personagem, executa-se improvisações e, posteriormente,<br />

a repetição de ações cotidianas e gestos expressivos. Esta prática<br />

proporciona à personagem um repertório de movimentos sobre o<br />

qual o ator-manipulador se baseia em cena. Este método foi eleito<br />

pela companhia pela razão de não costumar trabalhar com marcações<br />

rígidas de cena nos espetáculos. Assim, a partir do repertório<br />

desenvolvido nos ensaios, o ator pode responder com o boneco<br />

às situações vividas em cena e mesmo a eventos imprevisíveis que<br />

possam ali ocorrer.<br />

A resposta precisa aos acontecimentos dramáticos e a interferências<br />

externas dá ao boneco a qualidade de um corpo cênico. Para<br />

proceder em cena, contudo, não basta a repetição exaustiva dos gestos<br />

e ações, é preciso que a transposição de energia seja possível. Ademais,<br />

um gesto por si só, ainda que expressivo, pode ser vago se não<br />

for preenchido com intenção e sentimento que provenham do ator.<br />

Dois momentos e um entre eles.<br />

A arte do ator no Teatro de Formas Animadas é um campo<br />

bastante híbrido, pois, reúne elementos importantes mesmo fora<br />

do âmbito da atuação em cena. Ao menos nos grupos observados<br />

na pesquisa que realizei, os atores participam de todo o processo<br />

de concepção do espetáculo e este fato parece influenciar de forma<br />

expressiva o trabalho em cena. Atribuo a este fato grande parte das<br />

especificidades encontradas na investigação sobre a poética destes<br />

artistas. Percebi que as características particulares relacionadas aos<br />

métodos de interpretação, estão sempre no sentido de que o ator manipulador<br />

vai além, ou se antecipa. Ou seja, enquanto um ator precisa<br />

criar presença cênica, o ator-manipulador precisa criar e estendê-la.<br />

3 Depoimento do ator João Araújo, colhido durante oficina do grupo Morpheus Teatro,<br />

no Centro de Estudos e Práticas do Teatro de Animação. Biblioteca Monteiro Lobato,<br />

São Paulo, junho de 2009.


MÓIN-MÓIN<br />

Os papéis do ator no processo de criação das companhias são<br />

muitos e, assim, dentro de um leque de possibilidades, escolhi citar<br />

aqui temas que considero importantes. Para mim, estes tópicos<br />

abordados estão inseridos dentro de um contexto que considero que<br />

se divida em três etapas e que, guardadas suas particularidades, é<br />

uma trajetória comum entre os grupos que citei em minha pesquisa.<br />

A primeira é a preparação do ator antes do contato com o<br />

objeto a ser manipulado, que além da sua evidente importância<br />

para a atuação em cena, também guarda elementos diretamente<br />

ligados à criação do espetáculo. Há a experimentação de conceitos<br />

de manipulação no corpo do ator, uma prática que traz descobertas<br />

relevantes. Também é a etapa em que o grupo se integra em busca<br />

do que chamamos de “sintonia”, termo bastante citado por, supostamente,<br />

ser responsável pela beleza da manipulação.<br />

O último momento é o trabalho com o objeto manipulado, que<br />

envolve, entre outras coisas, o treino de manipulação e a concepção<br />

das cenas. No entanto, entre estes dois momentos há uma etapa<br />

que, dentro das inquietações de que falo no início desta reflexão,<br />

foi-me reveladora, pois concluí que se trata de uma das principais<br />

especificidades do processo de criação do Teatro de Formas Animadas:<br />

a confecção.<br />

A confecção aparece como uma etapa que, nas companhias<br />

estudadas, não abrange apenas a feitura do objeto, revela-se um<br />

sistema importante para a concepção da cena em diferentes aspectos,<br />

entre eles a construção da personagem. A técnica de confecção está<br />

diretamente ligada às características físicas da personagem, ao passo<br />

que as possibilidades de manipulação, definidas pela técnica, estão<br />

relacionadas à criação do repertório de movimentos.<br />

A confecção também aproxima o ator da condição de matéria<br />

do objeto a ser manipulado, já que possibilita o contato entre ambos<br />

desde o estado bruto do objeto. Esse material bruto exerce influência<br />

sobre a interpretação do ator, como no Grupo Sobrevento: em<br />

Um Conto de Hoffmann, os atores manipulavam figuras de papel;<br />

enquanto que em Orlando Furioso atuavam com bonecos feitos de<br />

123<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


124<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas<br />

MÓIN-MÓIN<br />

ferro e madeira.<br />

A atuação com os materiais, que se distinguem quanto aos<br />

aspectos físicos, resulta em qualidades de interpretação cênicas<br />

igualmente distintas. A matéria bruta também é suscetível à energia<br />

atoral. Isso significa que o ator não se relaciona nesse processo como<br />

um artesão, ou artista plástico, mas como ator e, por conseguinte,<br />

entende a matéria como “teatral”.<br />

Para Henrique Sitchin, Cia. Truks, “o processo de confecção<br />

une o grupo em torno do objetivo final que é o espetáculo, e assim<br />

os atores se situam como criadores não apenas na atuação em cena,<br />

mas no espetáculo como um todo” (2009). Ou seja, a confecção<br />

estreita o vínculo entre grupo e espetáculo, e entre ator e objeto.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

AMARAL, Ana Maria. O Ator e Seus Duplos. São Paulo: SENAC,<br />

2001.<br />

APOCALYPSE, Álvaro. Oficina de teatro de bonecos: um método<br />

como outros. In: Mamulengo. Rio de Janeiro: Associação<br />

Brasileira de Teatro de Bonecos (ABTB), v. 10, 1981.<br />

VIVÁCQUA, Maria do C. Da manipulação. In: Mamulengo.<br />

Rio de Janeiro: Associação Brasileira de Teatro de Bonecos<br />

(ABTB), v. 6, 1977.<br />

FLASZEN, L.; POLLASTRELLI, C.; MOLINARI, R. (Org.). O<br />

teatro laboratório de Jerzi Grotowski. 1959-1969. São Paulo:<br />

Perspectiva, 2007.<br />

STANISLAVSKI, Constantin. A construção da personagem. Rio de<br />

Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 1989.<br />

PAVIS, Patrice. A análise dos espetáculos. São Paulo: Perspectiva,<br />

2005.<br />

STICHIN, Henrique. A possibilidade do novo no teatro de animação.<br />

São Paulo: edição do autor, 2009.


A marionete como metáfora<br />

do corpo dançante: um<br />

convite à percepção<br />

Sandra Meyer<br />

Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC<br />

MÓIN-MÓIN<br />

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126<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas<br />

MÓIN-MÓIN


MÓIN-MÓIN<br />

PÁGINA 125: Espetáculo Lês<br />

Poupées (1997 – SP). Direção de<br />

Marta Soares. Foto de Gil Grossi.<br />

PÁGINAS 126 e 127: Espetáculo<br />

Skinnerbox (2005 – SC). Grupo<br />

Cena 11 Cia. de Dança. Direção<br />

de Alejandro Ahmed. Foto de<br />

Cristiano Prim.<br />

127<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


128<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas<br />

MÓIN-MÓIN<br />

Resumo: O artigo propõe reflexões acerca da metáfora da marionete no campo da<br />

dança. A associação com questões sobre o vivo/inanimado vem propiciando modos de<br />

percepção e organização do movimento em novas abordagens do corpo dançante. O<br />

texto destaca a presença desta metáfora na recente produção de dança contemporânea<br />

no Brasil, com enfoque nas proposições desenvolvidas por duas companhias, Grupo<br />

Cena 11 Cia de Dança, de Florianópolis e a Cia Marta Soares, de São Paulo.<br />

Palavras-chave: Dança; metáfora; marionete; percepção.<br />

Abstract: The article proposes reflections on the metaphor of the marionette in the field<br />

of dance. The association with questions of the live/inanimate helps to provide ways of<br />

perceiving and organizing movement in new approaches to the dancing body. The text<br />

highlights the presence of this metaphor in recent contemporary dance productions in<br />

Brazil, with a focus on the ideas developed by two companies, Grupo Cena 11 Cia de<br />

Dança, from Florianopolis, and Cia Marta Soares, from Sao Paulo.<br />

Keywords: Dance; metaphor; marionette; perception.<br />

A marionete tem sido evocada como forma de reflexão sobre<br />

as relações sujeito-objeto, humano-inumano e vida-morte. Exímia<br />

metáfora, alia-se à condição do inanimado, que, por sua vez, está<br />

atrelada ao entendimento, próprio a cada contexto e época, dos<br />

circuitos sensórios-motores do corpo em relação às forças gravitacionais.<br />

Na antiguidade clássica, a metáfora sobre o movimento<br />

humano era a do ser vivo. Aristóteles diferenciou o movimento vivo<br />

do movimento de uma marionete, pois a manipulação de cordas<br />

do inanimado provocaria um movimento determinado. Já o mo-


MÓIN-MÓIN<br />

vimento do ser vivo apresentaria variações, conforme a natureza. A<br />

idéia de uma natureza inanimada surgiria somente no século XVI,<br />

possibilitando a noção de corpo como máquina.<br />

Contendo resquícios de uma visão mecânica de corpo herdada<br />

do Iluminismo e, ao mesmo tempo, respondendo aos anseios pela<br />

organicidade do gesto e por um viés abstracionista idealizado pela<br />

arte no início do século passado, a marionete ainda persiste metaforicamente<br />

em nossos dias. No projeto das vanguardas do século<br />

XX a associação da marionete ao corpo cênico propiciou a problematização<br />

dos modos de representação do ator, especialmente, e<br />

sob determinadas perspectivas, do bailarino, no momento em que<br />

a arte questionava os referenciais vigentes de registro e de apreensão<br />

do real. Para além das questões próprias do teatro de marionetes enquanto<br />

gênero artístico, a marionete tornou-se referência para novas<br />

abordagens do ator em cena. Mas como pensar, hoje, as imagens<br />

que a marionete nos incita? E mais especificadamente, na dança?<br />

Problematizada sobremaneira no teatro, proponho abordar<br />

algumas questões que esta emblemática figura provoca ao ser transportada<br />

para o corpo dançante. Passado o estado de fascínio e repulsa<br />

proporcionado pela evocação de sua figura em relação ao trabalho do<br />

ator, nas primeiras décadas do século XX, a metáfora da marionete<br />

vem propiciando ainda reflexões acerca dos modos de percepção e<br />

organização do movimento em novas abordagens do corpo.<br />

Neste artigo abordo a presença desta metáfora na recente produção<br />

de dança contemporânea no Brasil, destacando o enfoque<br />

desenvolvido por duas companhias, Grupo Cena 11 Cia de Dança,<br />

de Florianópolis e a Cia Marta Soares, de São Paulo. O que parece<br />

interessar aos criadores destas duas companhias, Alejandro Ahmed<br />

e Marta Soares, respectivamente, ao margear tal metáfora, é a de<br />

problematizar a condição do sujeito na contemporaneidade. Ao<br />

invés de evocar a figura literal da marionete, com suas aparentes<br />

formas de comando exterior, a discussão sobre as formas de controle<br />

do corpo e sobre a potencia do inanimado atualiza-se na<br />

pesquisa corporal destes dois criadores em processos de percepção<br />

129<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


130<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas<br />

MÓIN-MÓIN<br />

e ação que problematizam as relações entre interior e exterior, a<br />

fragmentação do corpo, bem como questões acerca da autonomia<br />

e da sobrevivência do vivo. Estas perspectivas se encontram nas<br />

obras destes por meio de associações com a imagem da boneca,<br />

em Les Poupées, criação de Marta Soares estreada em 1997, e de<br />

robôs e próteses, como em Skinner Box, o espetáculo concebido<br />

por Alejandro Ahmed em 2005.<br />

Para aproximarmos a discussão aqui exposta da corporeidade<br />

dançante, começaremos pelo sentido da metáfora, que em sua<br />

etimologia nomeia um modo de conceber uma coisa em termos<br />

da outra, sendo sua função primordial a compreensão. Trata-se<br />

de um transporte ou transferência de significado com base numa<br />

analogia. Consideramos aqui a idéia de metáfora como instrumento<br />

conceitual de investigação e expressão lingüística e comportamental.<br />

Os conceitos estruturam nossa percepção e ação no mundo e estes<br />

processos de organização do pensamento são, em grande parte,<br />

metafóricos e requisitam a participação do aparelho sensório-motor,<br />

não emergindo como produto de uma consciência separada. De<br />

acordo com Lakoff e Johnson (1999), para compreender as coisas<br />

e agir no mundo categorizamos experiências, objetos e pessoas e<br />

estas categorias, antes de serem conceitos estabelecidos, emergem<br />

diretamente de nossa experiência na interação de nossos corpos<br />

com o ambiente. Esta visão de metáfora como estratégia cognitiva<br />

corrobora para o entendimento de cognição como ação incorporada,<br />

o que faz com que escolhas metafóricas não sejam somente<br />

figuras de retórica, mas, fundamentalmente, modos de agir no<br />

mundo (Nunes, 2009).<br />

Ao evocar figuras tais como marionete, robô ou boneca, a<br />

dança vem investigando novos entendimentos sobre a relação<br />

corpo-mente, oscilando entre a visão mecanicista e a organicista.<br />

Do amplo estudo sobre a metáfora, interessa-nos captar as maneiras<br />

com que o inanimado norteia o conceito de corpo na obra de<br />

Ahmed e Soares, propiciado processos diferenciados de percepção<br />

e ação. A marionete, na produção destes artistas, funciona não


MÓIN-MÓIN<br />

como elemento de desumanização ou desencarnação da figura do<br />

bailarino(a), mas como metáfora para pensar a noção de incorporação<br />

(embodied), ou seja, de como um pensamento se torna corpo.<br />

Um pensamento em ação, portanto.<br />

A marionete: entre o corpo mecânico e o orgânico<br />

A metáfora do inanimado é vista sob outro olhar nas vanguardas<br />

artísticas do século XX, depois das experiências cênicas inspiradas<br />

nos escritos de Heinrich Von Kleist (1777-1811). É quando a figura<br />

da marionete evoca um modelo de representação ideal do corpo,<br />

então livre das fragilidades humanas. Em seu célebre artigo Sobre<br />

o Teatro de Marionetes Kleist imagina o encontro entre o narrador<br />

e um bailarino da Ópera frente a um espetáculo de marionetes 1 . O<br />

“transporte” da figura da marionete para a figura humana idealizado<br />

por Kleist propõe um conceito mais abstrato de corpo, com linhas<br />

puramente ideais que permitam visualizar o movimento e gesto<br />

sem o maneirismo expressivo da época. Ao contrário do homem,<br />

que hesita frente a suas paixões, a marionete simboliza a possibilidade<br />

de um corpo ajustado a leis universais. O ideal romântico<br />

de recuperação da originalidade perdida é invocado na figura da<br />

marionete, o grau sígnico mais puro da estrutura corporal. Mais do<br />

que a evocação de um novo modo de representação para o ator ou<br />

bailarino, a metáfora evoca um ideal de natureza humana original,<br />

tão caro a pensadores como Rousseau. (GUINSBURG, 2001: 49).<br />

O movimento mecânico não contaminado pelos acidentes de<br />

uma atuação psicológica e realista poderia restituir o ideal de graça<br />

e justeza. O gesto da marionete nunca seria afetado, pois a afetação<br />

aparece “quando a alma (vis motrix) se acha em algum outro<br />

ponto que não o centro da gravidade do movimento” (KLEIST<br />

apud GUINSBURG, 2001: 49). Os afetos tenderiam a criar uma<br />

1 Escrito em 1810 para um diário berlinense – Berliner Abendblatter, fundado pelo<br />

próprio Von Kleist, o texto só teve repercussão no século XX, quando teóricos da<br />

modernidade encontraram eco nas suas reflexões sobre a natureza do movimento e a<br />

expressão do corpo humano perdida. (GUINSBURG, 2001: 45).<br />

131<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


132<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas<br />

MÓIN-MÓIN<br />

distância entre o centro motor e o centro de gravidade.<br />

Já a versão do diretor teatral Gordon Edward Craig (1872-<br />

1966) deixava a ver a ambigüidade da metáfora da marionete, se<br />

atualização do mero autômato ou a concretização de um novo<br />

tipo de movimento do corpo humano, dotado de uma técnica<br />

que respondesse as demandas de representação do início do século<br />

XX. Craig não negava a figura humana em si mesma, mas acima<br />

de tudo, a visão imprecisa de sua época em relação à atuação cênica<br />

e as vicissitudes do organismo. O status que o corpo adquire não<br />

poderia estar mais à mercê de um espontaneísmo e da exacerbação<br />

emotiva dos atores.<br />

A marionete e sua obediência à lei da gravidade propõe uma<br />

limpeza formal ao gesto cênico nunca antes evocada. A coluna<br />

vertebral é para o homem, assim como para a marionete, o centro<br />

do corpo cênico que, suspensa sob fios, não se submete a seu<br />

próprio peso e arbitrariedades, mas somente as leis mecânicas. A<br />

ausência de consciência da marionete a dota de uma graça divina,<br />

original, visto que resta ao homem “não ter consciência nenhuma<br />

ou a consciência infinita”, ou seja, aproximar-se “do manequim ou<br />

de Deus” (KLEIST apud GUINSBURG, 2001: 51).<br />

Na perspectiva proposta por Von Kleist, ao ajustar-se a leis<br />

universais, leis estas hegemônicas na época do escritor, a marionete<br />

escapa à condição antropomórfica. As descobertas científicas e as<br />

forças sociais surgidas no início do século XX, intensificadas no<br />

transcorrer do mesmo, contudo, colocaram em crise as categorias<br />

universais estáveis, re-inserindo a sociedade em parâmetros de devir<br />

e de instabilidade. A própria noção de equilíbrio frente as forças<br />

gravitacionais, abordado por Kleist, em seus constantes ajustes<br />

auto-cambiáveis e suas micro percepções, permitem a proposição<br />

de novas metáforas para o entendimento do corpo. Neste sentido,<br />

nem marionete nem manipulador, em seus acordos, escapam das<br />

ambigüidades e singularidades da corporeidade contemporânea.<br />

A visão mecanicista de mundo persistiu hegemonicamente até<br />

o século XIX, quando os conceitos de entropia postulados pela 2 a


MÓIN-MÓIN<br />

lei da termodinâmica 2 , o desenvolvimento da biologia e as teorias<br />

evolucionistas re-introduzem a noção de tempo, irreversibilidade e<br />

seleção natural. No século XX as teorias sobre complexidade, sistemas<br />

adaptativos e sistemas fora do equilíbrio chamaram a atenção<br />

para o fato dos organismos trocarem matéria e energia com seus<br />

ambientes. Novas leis estabelecem evidências sobre a auto-organização<br />

dos organismos, desta forma enfraquecendo os argumentos<br />

das metáforas mecanicistas da natureza e da instrumentalidade do<br />

corpo em relação ao movimento da alma, bem como rompe-se a<br />

hegemonia da visão newtoniana.<br />

À visão mecanicista herdada do renascimento somam-se outras<br />

analogias 3 . De máquina governada por leis universais imutáveis e<br />

fragmentado num conjunto segundo as leis da estática renascentista,<br />

o corpo começa a ser percebido, de fato, em movimento. Os<br />

estudos sobre o movimento humano até então partiam das leis<br />

gerais da mecânica, a saber, a lei do menor esforço, da distribuição<br />

dos esforços de acordo com as resistências a vencer, do relaxamento<br />

dos músculos e da inércia das massas.<br />

A noção de organismo se tornou, a partir do século XIX,<br />

uma chave racional para interpretação da natureza, da vida e da<br />

linguagem. Um modelo fundador que não se restringe a simples<br />

descrição classificatória de órgãos ou organismos biológicos e<br />

botânicos, mas torna-se essencialmente um suporte de noções<br />

(SCHLANGER, 1971: 114). Como figura de racionalidade universal,<br />

o organismo do século XIX é entendido por meio de uma<br />

unidade global, que garante a convivência harmônica do vivo, do<br />

universo ao indivíduo.<br />

2 A termodinâmica, ramo da física surgido no início do século XIX, fundamenta as<br />

atitudes voltadas para o dispêndio e conservação das energias dos corpos e não somente<br />

sobre sua ordenação mecânica.<br />

3 O uso do termo mecanicismo, segundo Meijer (2001: 47), expandiu-se em várias<br />

áreas do conhecimento e no senso comum e explicita a idéia de que a mecânica “é<br />

a teoria para tudo”, uma extensão da organização da máquina para a explicação do<br />

universo e do vivo.<br />

133<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


134<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas<br />

MÓIN-MÓIN<br />

A negação da mecanização da natureza transformaria a teoria<br />

da criatividade e da emoção. Contudo, ainda que a ciência e a<br />

arte apontassem para a limitação da visão mecânica da natureza, a<br />

metáfora do corpo como autômato ou máquina teve uma sobrevida<br />

extraordinária nas artes, e chega ao século XX com diferentes<br />

atualizações. As metáforas subjacentes à noção de corpo derivam<br />

de contextos históricos, culturais e sociais e a relação entre o saber<br />

artístico e outros saberes. Entre o corpo observado e manipulado<br />

enquanto instrumento e o corpo vivido enquanto organismo há<br />

modos distintos de se perceber as relações entre o corpo, a mente,<br />

o cérebro e o ambiente.<br />

A noção de organismo e de organicidade, contudo, não pode<br />

ser entendida longe de sua oposição à noção de máquina e de<br />

mecanismo, pois ambas são figuras de organização e harmonia<br />

do universo e do homem. (SCHLANGER, 1971: 59). As idéias<br />

mecanicistas e organicistas do final do século XIX oscilavam entre<br />

a noção introspectiva de inconsciente e as teorias sobre os reflexos,<br />

ambas recém surgidas, e, portanto, entre a espontaneidade e o automatismo<br />

do corpo. Neste contexto, a marionete, assim como o foi<br />

os autômatos no século XVII e XVIII, se constitui como metáfora<br />

ideal para problematizar os processos de representação no teatro,<br />

onde alcançou extrema visibilidade, e na dança.<br />

Menezes (1994) salienta que a influência das inovações tecnológicas<br />

e as conquistas científicas do período das vanguardas se<br />

dá no campo imaginário, enquanto temática, e vezes na realização<br />

técnica. Diferentemente dos europeus (dadaísmo, futurismo), o<br />

movimento de vanguarda russo de vertente construtivista instaura<br />

a máquina como elemento técnico na elaboração das obras. Incorporadas<br />

no processo de criação, e não como “fetiche tecnológico”,<br />

as metáforas se inserem como método de organização de técnicas<br />

e linguagens artísticas, a exemplo do ator biomecânico concebido<br />

por Meyerhold. Neste sentido, a metáfora da marionete, na dança,<br />

caminhou no século XX do imaginário da cena à formas de organização<br />

técnica do corpo.


MÓIN-MÓIN<br />

A boneca que dança: modelo da mecânica orgânica<br />

A dança também não se eximiu do fascínio pelo automatismo,<br />

incorporando-o tanto como temática quanto elemento de construção<br />

técnica. Um dos últimos balés do gênero romântico, Copélia<br />

narra a história da bailarina mecânica idealizada pelo inventor de<br />

autômatos, Dr Coppelius 4 . A história de amor não perpetua mais<br />

o amor impossível de seres do mundo real e do sobrenatural, motivações<br />

comuns aos balés desde a Renascença, mas o incomum<br />

triângulo afetivo formado pela jovem Swanilda, o noivo Franz e a<br />

boneca mecânica do Dr Coppelius. Inspirado no conto “O homem<br />

de areia”, escrito em 1817 por Ernest Theodor Amadeus Hoffmann<br />

(1766-1822), Copélia repete as relações de amor de um jovem<br />

por uma boneca, que, assim como outros autômatos, tornam-se<br />

recorrentes na narrativa fantástica do século XIX 5 .<br />

A bela Olímpia, a boneca criada pelo velho relojoeiro Spallanzani,<br />

é capaz de esconder o seu maquinismo de corda através de<br />

uma dança com perfeita regularidade rítmica, encantando o jovem<br />

Natanael. Contudo, o horror e a perversidade do conto de Hoffman<br />

desaparecem praticamente no balé coreografado por Saint-Léon<br />

(1821-1870). Ao invés da ambigüidade provocada pela figura mecânica,<br />

é a mimetização do movimento autômato que é evidenciada<br />

por meio da técnica do balé 6 . No conto de Hoffman, interpelado<br />

pelo amigo Siegmund sobre a estranheza causada pela figura rígida<br />

e sem vida da falsa jovem, Natanael, cego de amor, limita-se a comentar<br />

que o “espírito poeticamente organizado só se desdobra nos<br />

seus iguais”, pois as palavras e ações de Olímpia, longe das conversas<br />

4 Coppelia foi criada originalmente como ópera pelo francês Léo Delibes (1836-1891)<br />

e coreografada em 1870 por Arthur Saint-León.<br />

5 O Conto de Hoffman gera uma leitura psicanalítica através de Freud, pela obra “O<br />

Estranho” (1919).<br />

6 A relação mecanicista entre o vivo e o não vivo ainda se atualiza no século XIX com<br />

o balé Quebra nozes, com a figura de Dosselmayer, mágico e relojoeiro, e mais tarde<br />

com Petrouska, obra prima russa.<br />

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triviais dos espíritos humanos vazios, seriam “genuínos hieróglifos<br />

do mundo interior do amor e do conhecimento elevado da vida<br />

espiritual” (HOFFMAN apud CALVINO, 2004). A semelhança<br />

das marionetes de Kleist, a boneca de Hoffman aproxima a figura<br />

do inanimado de um ideal de elevação humana. A dança evoca a<br />

potência do inanimado através da figura da boneca, como a marionete<br />

será mais comumente transportada para o teatro.<br />

O modelo mecânico aliado ao orgânico também faz parte do<br />

imaginário da dança do século XX. Oskar Schlemmer (1888-1943)<br />

valoriza a superioridade da mecânica sem alma da marionete pela<br />

infalível capacidade de trabalho da máquina. O tipo de organicidade<br />

da sua mecânica forma uma “metafísica”, representação de uma<br />

categoria não-natural ou sobre-natural (SCHLEMMER, 1978:<br />

66). Fundada sobre a mecânica do corpo, a dança matemática de<br />

Schlemmer representa também o movimento sob leis espaciais e<br />

configurações visuais. Em seu texto Ballet Mecânico (1927), Schlemmer<br />

interroga se é reservada a sua época “mecanizar” o balé (grifo<br />

do autor). A precisão das proporções humanas, alvo de artistas como<br />

Albrecht Dürer e Leonardo da Vinci, é descrita como o resultado<br />

de uma harmonia matemática, onde cabe ao corpo representar a<br />

“imagem originária e o modelo da mecânica orgânica” com a complexidade<br />

mecânica de suas articulações e de seus órgãos motores<br />

feitos de carne e sangue (SCHLEMMER, 1978: 65).<br />

Seguindo a linha metafórica concebida por Kleist, Schlemmer<br />

apresenta a possibilidade do autômato executar os movimentos impossíveis<br />

ao ser humano, acreditando que existe um meio caminho<br />

entre uma marionete absolutamente inumana e a silhueta humana<br />

natural (VACCARINO, 2001: 4). Na redução da arte ao essencial e<br />

ao elementar, rechaça-se do mundo da representação o sentimento,<br />

cuja manifestação serviria a elevação pessoal, a flexibilização do<br />

corpo e às finalidades pedagógicas, mas, salienta Schlemmer, sem<br />

interessar absolutamente a arte.<br />

Simultâneo à exaltação dos elementos mecânicos, o renascimento<br />

do corpo na Europa no final século XIX, por outro lado,


MÓIN-MÓIN<br />

reforçou práticas e teorias sobre gestualidade e corporeidade pautadas<br />

na noção de organismo. Nesta perspectiva, o corpo era visto<br />

como fonte de verdade interior, retorno à natureza e busca de uma<br />

anterioridade a toda convenção social e cultural. O final do século<br />

XIX evidencia o desenvolvimento das grandes cidades, das grandes<br />

massas e de leis que melhor poderiam governar a era industrial. O<br />

homem civilizado se percebe cada vez mais distante do contato<br />

com os ritmos naturais de seu corpo e a incorporação do mito da<br />

máquina pelo ideário romântico é ao mesmo tempo símbolo do<br />

engenho humano e de sua degradação. A utilização da máquina<br />

como expressão máxima da pujança tecnológica se conflitava com<br />

o medo do desconhecido e da desumanização (NUNES, 2009).<br />

Em carta aberta enviada pela dançarina moderna Mary Wigman<br />

(1886-1973) à bailarina Anna Pavlova, a crítica à dança clássica<br />

se enuncia por meio da metáfora da marionete. Wigman descreve<br />

a aura da célebre bailarina russa como sendo falsa, pois fruto de<br />

uma “reprodução técnica e da rede de experiências de ‘marionetes<br />

humanas’, submetida à pressão de uma concorrência terrível e<br />

movida por um desejo estrito de fama”. 7 Aos princípios do balé<br />

clássico, que conformariam para Wigman uma dança de “boneca”,<br />

esta propõe, a partir dos princípios de Rudolf Laban (1879-1958),<br />

uma dança centrada no ser humano, em sua diferença.<br />

É neste contexto que os estudos do movimento de Laban contribuem<br />

para repensar a relação entre a dança e as leis da gravidade,<br />

quando aproxima o peso à memória corporal, fazendo da questão<br />

do peso do corpo e do seu deslocamento o centro de seu modo de<br />

pensar o movimento (SUQUET, 2008: 528). A forma com que<br />

cada indivíduo organiza sua postura para adaptar-se às leis da gravidade<br />

seria variável e tributária de pressões mecânicas e psicológicas<br />

inscritas culturalmente. Esta gestão complexa da verticalidade,<br />

para Laban, dependeria de uma atitude interior – vezes consciente<br />

7 "L´aura de Pavlova este done une fausse aura, fruit d´une reproduction technique et<br />

de la chaîne d´experiences de "marionnettes humaines", soumises à la pression d´une<br />

concurrence terrible et agitèes par le seul désir de renommée." (LAUNAY, 1996: 161).<br />

137<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


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MÓIN-MÓIN<br />

e vezes inconsciente – e determinaria as qualidades dinâmicas do<br />

movimento e a constituição de uma individualidade.<br />

A postura ereta alia problemas mecânicos da locomoção a<br />

elementos psicológicos e expressivos, antes mesmo de qualquer<br />

proposição intencional do sujeito. Como alerta Hupert Godard<br />

(s/d: 13), “a relação ao peso, à gravidade, já contém um humor,<br />

um projeto sobre o mundo”. O pesquisador francês chama de<br />

“pré-movimento” a essa atitude em relação ao peso e a gravidade,<br />

“que existe antes mesmo de se iniciar o movimento, pelo simples<br />

fato de estarmos de pé” (GODARD, s/d: 13). É especificamente<br />

este processo antecipador do movimento que vai produzir a carga<br />

expressiva do movimento a ser executado, sendo que o sistema<br />

dos músculos gravitacionais é o que assegura nossa postura, cuja<br />

manifestação escapa em grande parte aos processos conscientes e<br />

da vontade. Além de manter-nos em pé, estas cadeias musculares<br />

registram nossos estados afetivos e emocionais, proporcionando<br />

uma singularidade própria a cada indivíduo, tão temida por encenadores<br />

como Craig. Godard atribui aos gestos e seus fluxos de<br />

organização gravitacional, com suas dimensões projetivas e afetivas,<br />

o fator que diferencia o homem da máquina. Para Godard (s/d),<br />

Kleist descreveu perfeitamente este fenômeno em seu texto Sobre o<br />

Teatro de Marionetes. Uma vez suspensas por um fio, sem contato<br />

com o chão, a marionete não tem que dar conta de seu próprio peso,<br />

seus segmentos obedecem somente às leis mecânicas. Diferente do<br />

homem, elas não são atormentadas pela hesitação afetiva, ou seja,<br />

não se submetem às vicissitudes do pré-movimento, na constante<br />

mediação entre o centro motor do movimento e o centro da gravidade,<br />

cuja tensão expressa a carga afetiva do gesto. E é exatamente<br />

o bom domínio da organização gravitacional que propicia aos<br />

bailarinos atingir dimensões artísticas mais plenas.<br />

Neste sentido, sendo a negociação com a gravidade dependente<br />

de fatores conscientes e inconscientes, os fluxos de intensidade do<br />

corpo e do movimento produzirão sentidos diversos, ainda que<br />

o vocabulário gestual seja específico, como no caso do balé. Esta


MÓIN-MÓIN<br />

diferença, tão temida por Kleist e Craig, será a mola mestra do<br />

surgimento de uma corporeidade singular na dança surgida no<br />

século XX.<br />

A marionete, metáfora para as relações entre sujeito-objeto,<br />

humano-inumano e vivo-inanimado tem mantido um vigor na<br />

mais recente produção de dança contemporânea no Brasil. Sendo a<br />

gestão do equilíbrio e a relação com o peso/gravidade intrínsecas à<br />

criação em dança, a metáfora do inanimado aparece como ignição<br />

para outras estratégias de percepção e ação do corpo.<br />

O corpo em situação de risco e crise: experiências com o<br />

inanimado<br />

Alejandro Ahmed, desde o início de sua atuação como coreógrafo<br />

do Grupo Cena 11 Cia de Dança, em 1994, vem desenvolvendo uma<br />

pesquisa relacionada a criação e adaptabilidade de ações, nomeado<br />

pelo mesmo como “Percepção física”. Ahmed propõe aos integrantes<br />

de seu grupo, na maioria de seus espetáculos, a exemplo de “Skinner<br />

Box” (2005), aproximações com figuras inanimadas que necessitam<br />

do comando humano para mover-se, tais como robôs, bem como a<br />

presença de próteses a estender as ações do corpo. São três os parâmetros<br />

que orientaram a pesquisa deste trabalho: controle e comunicação,<br />

sujeito e objeto, homem e máquina. Outro aspecto identifica<br />

a poética do grupo em seus modos singulares de organização e movimentação.<br />

Os integrantes se lançam ao ar horizontalmente e caem<br />

ao chão em queda repentina, cedendo sem esforço ou temeridade ao<br />

empuxo da gravidade, ou caem num feito mata-borrão. De acordo<br />

com Ahmed, o comportamento de risco proposto pelo Cena 11 investiga<br />

estratégias que não as habituais para “evitar danos utilizados<br />

quando um corpo cai de maneira consciente”, como expressões de<br />

medo ou amenização do golpe pela reação imediata dos membros,<br />

promovendo uma espécie de “autonomia do corpo involuntário” de<br />

um “corpo sujeito-objeto” (AHMED, 2006: 105). Tal qual objetos<br />

inanimados, a reação não reflexiva ao impacto e a entrega ao chão<br />

dos dançarinos do Cena 11 subverte a defesa súbita e instintiva do<br />

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Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


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MÓIN-MÓIN<br />

corpo cotidiano em situação similar.<br />

Das relações entre queda e recuperação do equilíbrio (fall and<br />

recovery) criada por Dóris Humphrey nos anos 40, passando pelas<br />

trocas corporais da improvisação de contato desenvolvida por Steve<br />

Paxton nos anos 70, o consentimento da perda do equilíbrio na<br />

queda do corpo tem sido matéria de interesse de muitos criadores<br />

na contemporaneidade. A ideia de inflectir o funcionamento<br />

reflexo do corpo fora de seu eixo vertical, ligados aos mecanismos<br />

de sobrevivência, especialmente nos momentos de queda, requer<br />

acolher e desdobrar horizontalmente o corpo para minimizar o<br />

impacto ao chão. Paxton entende ser possível “treinar o consciente<br />

para permanecer aberto aos momentos críticos em que se desencadeia<br />

o reflexo”, para que esse se dissocie do medo (SUQUET Apud<br />

COURTINE, 2008: 534). Desta forma, a consciência se torna<br />

uma parceira frente ao desconhecido, ampliando as capacidades<br />

perceptivas do corpo em movimento.<br />

Ao abordar a obra do grupo Cena 11 Cia de Dança, a pesquisadora<br />

Maíra Spanghero retoma a condição mor da relação entre<br />

marionete e manipulador. Para manter-se de pé e movimentar-se,<br />

uma marionete precisa se adaptar ao eixo gravitacional e, para isso,<br />

necessita da ação do titeriteiro, que sustenta o suporte-controlador<br />

onde os fios se conectam, acima da sua cabeça. No caso do homem,<br />

há uma auto-organização constante do peso do corpo em oposição<br />

à força atrativa da gravidade, cujos pés, em contato com o solo, recebem<br />

a carga de peso de todo o corpo. Por meio de forças internas<br />

e externas, respectivamente, homem e marionete necessitam realizar<br />

acordos com a gravidade para produzir movimento.<br />

Mas, para simular as marionetes, conclui Spanghero, os intérpretes<br />

do Cena 11 não podem sofrer a mesma ação exterior que o<br />

desta figura inanimada.<br />

No humano, o mover-se ocorre através de um acordo entre<br />

força interna e força externa, enquanto que na marionete<br />

não existe a força interna. Se não há como desprover o<br />

corpo humano de forças internas, então uma solução seria


MÓIN-MÓIN<br />

promover alterações através de uma força externa (as peças<br />

artificiais), tal qual se fosse uma marionete. Essa poderia<br />

ser uma explicação de por que os dançarinos prolongam<br />

limites e usam extensões: pernas e braços metálicos, bogobol,<br />

patins, separador bucal, botas, joelheiras, proteções,<br />

roupas, animações etc. Essas próteses criam outras relações,<br />

que organizam os esforços de uma outra maneira.<br />

Andar numa perna-de-pau, por exemplo, altera o eixo de<br />

equilíbrio. Mudando isso, o corpo passa a aprender algo<br />

novo, fruto de sua interação com o artefato. Depois de<br />

tanto utilizar a prótese, o corpo do dançarino adquiriu a<br />

variação do movimento, corporificando-a. Ampliou, desse<br />

modo, o seu repertório de ação. Pôde, então, abrir mão<br />

do acessório. (SPANGHERO apud NORA, 2004: 39)<br />

Em Les Poupées, solo de dança da paulista Marta Soares criado<br />

em 1997, o ponto da partida para a investigação sobre o inanimado<br />

é a obra do artista plástico alemão Hans Bellmer (1902-1975). As<br />

bonecas de Bellmer dialogaram com questões ligadas aos movimentos<br />

dadaísta e surrealista, ao regime nazista, aos experimentos<br />

psicanalíticos, além dos contos de E.T.A. Hoffman, cujos enredos<br />

originaram obras clássicas, como o balé Copélia.<br />

Bellmer fotografava as bonecas em um processo de montagem,<br />

desmontagem e reconstrução. Ao mostrar fragmentos e entranhas<br />

do corpo aparentes, Bellmer desarticulava o corpo e o expunha em<br />

seu avesso, invertendo as relações já instituídas entre o interior e o<br />

exterior, problematizando o que chamava de “inconsciente físico”<br />

da matéria. Em Les Poupées Marta Soares explora as questões do<br />

feminino, da fragmentação do corpo e da multiplicidade do sujeito<br />

contemporâneo. Soares segue a lógica de Bellmer quando desloca<br />

e retorce o centro de gravidade de seu corpo e inverte as funções e<br />

posições originárias dos membros superiores e inferiores do corpo.<br />

Tal qual as imagens das meninas/bonecas de Bellmer, a criação coreográfica<br />

de Soares transita entre a marionete e a escultura, postas,<br />

contudo, em movimento. O corpo distorcido de Soares, diferente<br />

do balé mecanicamente ritmado da boneca Copélia, disfigura a<br />

noção de organismo, libertando a anatomia, seja humana ou inu-<br />

141<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


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Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas<br />

MÓIN-MÓIN<br />

mana, das proporções e funções pré-estabelecidas pela natureza.<br />

Inventa, então, “anagramas do corpo”, como propunha Bellmer<br />

(MORAES, 2002: 67).<br />

No texto “Ator e a Supermarionete” (1908) Gordon Craig afirma<br />

veementemente que o corpo humano falhou como instrumento<br />

da arte teatral. Craig supunha que, para criar uma obra de arte, seria<br />

preciso servir-se de materiais que apresentem certezas. A arte não<br />

admitiria acidentes e a natureza do homem tenderia a instabilidade,<br />

com sua escravidão à emoção e espontaneidade das sensações do<br />

corpo. Craig idealizava um ator que unisse uma natureza generosa a<br />

uma alta inteligência, onde esta governaria a natureza das paixões e<br />

o pensamento o movimento do corpo. O corpo, como previu Craig,<br />

“tende à independência” e não a ordem e certezas.<br />

Não seria mesmo o corpo, inevitavelmente, esta matéria instável,<br />

tão temida pelo encenador? Não seria esta a condição própria<br />

humana e a razão de ser da arte conectar-se com os paradoxos,<br />

ambiguidades e vicissitudes deste corpo/mente? São estes estados de<br />

ambiguidade e incertezas que são perscrutados por criadores como<br />

Alejandro Ahmed e Marta Soares, provocando novas abordagens<br />

da metáfora da marionete por meio do corpo dançante.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

AHMED, Alejandro; COLLAÇO, Gabriel. Autoria no corpo involuntário.<br />

In: MEYER, Sandra; TORRES, Vera; XAVIER,<br />

Jussara. Tubo de Ensaio. Experiências em dança e arte contemporânea.<br />

Florianópolis: Edição dos autores, 2006.<br />

CALVINO, Ítalo (Org.). Contos fantásticos do século XIX: O fantástico<br />

visionário e o fantástico cotidiano. São Paulo: Cia das Letras, 2004.<br />

GODARD, Hupert. Gesto e percepção. In: PEREIRA, Roberto.<br />

SOTER, Silvia (Orgs.) Lições de Dança 3. Rio de Janeiro:<br />

UniverCidade Editora, s/d.<br />

GUINSBURG, J. Da cena em cena. Ensaios de teatro. São Paulo:<br />

Editora Perspectiva, 2001.


MÓIN-MÓIN<br />

LAKOFF, George; JOHNSON, Mark. Philosophy in the Flesh, the<br />

embodied mind and its challenge to western thought. New York:<br />

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MENEZES, Philadelpho. A crise do passado. Modernidade, vanguarda<br />

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MORAES, Eliana Robert. O corpo impossível. A decomposição da figura<br />

humana: de Lautréamont a Bataille. São Paulo: FAPESC/<br />

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NUNES, Sandra Meyer. As metáforas do corpo em cena. São Paulo:<br />

Anna Blume/UDESC, 2009.<br />

SCHLANGER, Judith. Les metaphors de l’organisme. Paris: Éditions<br />

L’Harmattan, 1971.<br />

SCHLEMMER, Oskar. Théâtre et abstration (L’Espace du Bauhaus).<br />

Lausanne: Éditions L’Age d’homme, 1978.<br />

SPANGHERO, Maíra. Sobre a vontade de ultrapassar. IN: NORA,<br />

Sigrid (Org.). Húmus 1. Caxias do Sul: Lorigraf Gráfica e<br />

Editora, 2004, p. 31-41.<br />

__________________. A dança dos encéfalos acesos. São Paulo: Itaú<br />

Cultural, 2003.<br />

SUQUET, Annie. O corpo dançante: um laboratório da percepção.<br />

IN: COURTINE, Jean-Hacques (Org.). História do Corpo<br />

3. As mutações do olhar: Século XX. RJ: Vozes, 2008.<br />

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théâtrales 80. Objet-Danse. Institut Internatinal de la Marionnette.<br />

Éditions Lansman. Bruxelles, n. 80, p. 4-8, 2001.<br />

143<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


144<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas<br />

MÓIN-MÓIN<br />

O diálogo entre teatro de<br />

atores e formas animadas:<br />

relato de uma experiência<br />

Luís Artur Nunes<br />

Diretor teatral – Rio de Janeiro e São Paulo


MÓIN-MÓIN<br />

PÁGINA 144 e 145: Espetáculo A vida como ela é (2010 - SC). Teatro Sim... Por<br />

Que Não?!!! Direção de Luís Artur Nunes. Foto de Cleide de Oliveira.<br />

PÁGINA 145 (abaixo): Espetáculo A vida como ela é (2002 - RJ). Núcleo Carioca de<br />

Teatro. Atores Nara Keiserman, Maria Esmeralda, Francisco de Figueiredo e Isaac<br />

Bernat. Direção Luís Artur Nunes. Foto de Guga Melgar.<br />

145<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


146<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas<br />

MÓIN-MÓIN<br />

Resumo: O artigo propõe-se a relatar e refletir sobre os experimentos de Luís Artur<br />

Nunes, essencialmente um diretor de teatro de atores, mas que inúmeras vezes introduziu<br />

formas animadas no contexto da cena atoral. Descreve suas primeiras tentativas nos<br />

espetáculos A Salamanca do Jarau, de Simões Lopes Neto, e A Fonte, Érico Veríssimo.<br />

Em seguida, relata o exercício improvisacional “Bonecos Chineses”, tal como Nunes o<br />

aprendeu num workshop com Richard Schechner nos anos 1970. A técnica utiliza a<br />

premissa da manipulação de bonecos, mas com atores, que manipulam uns aos outros<br />

como se fossem bonequeiros com seus bonecos. Descreve seu aproveitamento como<br />

formato para a criação de cenas nos espetáculos Sarau das 9 às 11 (de Luís Artur Nunes<br />

em parceria com Caio Fernando Abreu) e A Vida Como Ela É..., de Nelson Rodrigues.<br />

Explica também o desenvolvimento de uma variação utilizando máscaras e dinâmicas<br />

inspiradas nos tableaux-vivants e nas HQ. O artigo advoga uma cena heterogênea,<br />

híbrida, onde atores e formas animadas possam dialogar livremente numa busca da<br />

ampliação dos limites da teatralidade.<br />

Palavras-chave: Teatro de formas animadas; diálogo entre teatro de atores e teatro de<br />

formas animadas; antiilusionismo e teatralidade explícita.<br />

Abstract: The article proposes to relate and reflect on the experiments of Luís Artur<br />

Nunes. Nunes is principally a director of live theatre, but has on numerous occasions<br />

used forms of puppet theatre in the context of scenes with live actors. The article<br />

describes his first experiments with the productions A Salamanca do Jarau, by Simões<br />

Lopes Neto, and A Fonte, by Érico Veríssimo. It then describes the improvisational<br />

exercise “Chinese Puppets”, as Nunes learnt it in a workshop with Richard Schechner<br />

in the 1970s. The technique uses the idea of the manipulation of dolls but with actors<br />

who manipulate each other as if they were puppeteers with their puppets. The article<br />

describes its utilization as the basis for the creation of scenes in the productions Sarau


MÓIN-MÓIN<br />

das 9 às 11 (by Luís Artur Nunes, in partnership with Caio Fernando Abreu) and A<br />

Vida Como Ela É... (by Nelson Rodrigues). Also explained is the development of a<br />

variation on the Chinese puppets exercise, using masks and dynamics inspired by<br />

tableaux-vivants and comics. The article advocates a heterogeneous, hybrid stage, in<br />

which actors and forms of puppetry can freely dialogue with each other in order to<br />

push the limits of theatricality.<br />

Keywords: Puppet theatre; dialogue between actors' theatre and puppet theatre; antiillusionism<br />

and explicit theatricality.<br />

Foi com surpresa que recebi o convite de contribuir com um<br />

texto para a Móin-Móin. Afinal de contas sempre fui essencialmente<br />

um diretor de teatro de atores, que eventualmente serviu-se aqui e<br />

ali de máscaras, bonecos, projeções ou efeitos de sombra para enriquecer<br />

seus espetáculos com doses extras de poesia e teatralidade.<br />

Contudo, nunca pretendi entender de teatro de formas animadas e,<br />

se tomei emprestado seus recursos, o fiz de forma intuitiva e – admito<br />

até - um tanto irresponsável. Como então escrever sobre uma<br />

matéria que jamais estudei formalmente? Não estaria atentando<br />

contra a ética acadêmica?<br />

Foi-me argumentado que hoje em dia assiste-se a um processo<br />

de hibridização, em que a cena atoral cada vez mais se contamina<br />

com elementos da cena de animação e vice-versa. Vemos bonequeiros<br />

saindo do esconderijo da empanada para ganhar o palco e ostentar<br />

sua manipulação, reivindicando a esta o status de performance<br />

válida em si mesma. Vemos atores contracenando com bonecos,<br />

com sombras ou com imagens projetadas etc. etc. Por conseguinte,<br />

havendo cometido algumas vezes essa violação de fronteiras, eu<br />

adquirira o direito de falar sobre o assunto.<br />

Fiz a contraproposta: por achar-me sem bagagem teórica para<br />

uma reflexão embasada, dispunha-me a relatar minhas experiências<br />

nesse jogo de cruzamentos e tentar refletir um pouco sobre elas –<br />

mas de forma mais pessoal, sem um maior compromisso acadêmico.<br />

Remexendo no baú da memória, não é que me dei conta<br />

de que, desde muito cedo no meu percurso teatral, já começava<br />

a brincar com os jogos de animação? Ainda na década de 1970<br />

147<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


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Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas<br />

MÓIN-MÓIN<br />

associei-me aos atores José de Abreu e Nara Keiserman para teatralizar<br />

A Salamanca do Jarau, lenda gauchesca vertida em prosa<br />

poética pelo escritor regionalista Simões Lopes Neto. Trata-se de<br />

um relato exuberantemente fantástico, que mistura elementos do<br />

folclore ibérico, árabe e guarani. Na minha encenação, o gaúcho<br />

Blau Nunes enfrentava mil perigos montado em seu pingo, que<br />

nada mais era do que uma armação coberta de chita colorida e<br />

encimada por uma cabeça de cavalo à maneira do Bumba-meuboi.<br />

O tribunal da Inquisição jesuítica, sendo desbaratado pela<br />

poderosa figura mitológica da Teiniaguá, eram cabides vestidos de<br />

batinas pretas e roxas, agitados ferozmente sob uma luz estroboscópica.<br />

A princesa moura encantada aparecia inicialmente como<br />

sombra chinesa, substituída a seguir pela atriz saída detrás do telão.<br />

Na cena em que Blau Nunes tem de enfrentar as sete provas para<br />

obter o condão mágico que atende a todos os desejos, a cena de<br />

atores cedia lugar à cena de bonecos, manipulados pelo elenco por<br />

detrás de um pano estendido à guisa de empanada. Blau passava a<br />

ser um boneco de vara reproduzindo fielmente os trajes e adereços<br />

do personagem-ator. Guerreiros fantasmas numa luta de espadas<br />

eram representados simplesmente por facões se entrechocando.<br />

Jaguares e pumas ferozes eram também bonecos de vara. Esqueletos<br />

de ossos requintadamente articulados sacudiam-se numa dança<br />

macabra, também pendurados em varas, os ossos brilhando na luz<br />

negra. Labaredas eram fogos-de-artifício acendidos no black-out.<br />

A terrível Boincininga, a cobra-grande, era uma daquelas molas<br />

– gadget muito popular na época – vestida de verde e tilintando<br />

guizos. As odaliscas sedutoras eram as mãos dos atores enluvadas,<br />

cobertas de flores e jóias, agitando lenços. Os anões fandangueiros<br />

eram bonecos de luva com carantonhas grotescas. Terminada a cena<br />

das sete provas, o teatro de bonecos se desmanchava e retomava-se<br />

o teatro de atores.<br />

Tudo isso fizemos sem consultar especialistas ou bibliografia.<br />

Contamos apenas com nossa intuição e bagagem teatral para<br />

inventar as formas, selecionar procedimentos e avaliar os efeitos.


MÓIN-MÓIN<br />

Mais de trinta anos após essa experiência, persiste uma sensação de<br />

constrangimento pela ousadia de mexer com técnicas que desconhecíamos.<br />

Ao mesmo tempo devo reconhecer, a bem da verdade,<br />

que os resultados formais e expressivos pareciam extremamente<br />

satisfatórios e obtinham excelente comunicação com a platéia. Por<br />

mais problemas que tivessem a criação e a execução por mãos de<br />

leigos, havia algo de inovador na sem-cerimônia com que os atores<br />

interagiam com sombras e bonecos, e uma naturalidade cativante<br />

na maneira como a ação atoral cedia lugar às formas animadas, as<br />

quais, concluída a sua tarefa, devolviam elegantemente a primazia<br />

aos atores. Era bonito ver como estes de repente se transformavam<br />

em bonequeiros para em seguida voltar a representar, deslizando<br />

entre as funções sem solavancos, sem tropeços, sem parecer estar<br />

cruzando nenhuma fronteira proibida.<br />

Anos mais tarde, em A Fonte, teatralização de uma passagem<br />

de O Continente, primeiro romance da trilogia O Tempo e o Vento<br />

de Érico Veríssimo, voltei a adotar com alegre inconsciência a inserção<br />

de formas animadas no tecido mesmo da cena atoral. Érico<br />

situa sua trama imaginária no seio dos eventos históricos dos últimos<br />

dias das missões jesuíticas no Rio Grande do Sul no século<br />

XVIII, que culminam com a aniquilamento da resistência guarani<br />

contra os exércitos aliados de Espanha e Portugal, encarregados de<br />

expulsá-los de suas terras. Há porém um componente mito-poético<br />

nessa ficção histórica. Um menino índio, Pedro, dialoga com Nossa<br />

Senhora, que ele julga ser sua mãe, no cemitério da redução. O<br />

ator que interpretava Pedro contracenava com um imenso boneco,<br />

mais ou menos inspirado nas criações do Bread and Puppet Theater,<br />

representando a Virgem Maria e manipulado por outros três<br />

atores. Eram três altíssimas varas, uma encimada pela cabeça da<br />

santa, as outras duas sustentando suas mãos, o todo unido por um<br />

amplo véu de gaze azul. Os atores-manipuladores, que recitavam de<br />

forma coral as falas da aparição, não faziam o menor esforço para<br />

disfarçar sua presença. Num outro momento, os índios da missão<br />

reencenavam, numa celebração em praça pública, o encontro de<br />

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Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


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MÓIN-MÓIN<br />

seu líder Sepé Tiaraju com o comandante do exército europeu, o<br />

Conde de Bobadela. O processo de heroicização e mitificação de<br />

Sepé ficava muito claro na maneira como os atores-índios conduziam<br />

seu teatro espontâneo. Um ator, montado nas costas de outro<br />

como seu cavalo, interpretava o chefe guarani. E a figura ridícula de<br />

Bobadela era improvisada pelos outros índios com objetos de uso<br />

doméstico, como peneiras, enxadas, cestos, colheres de pau etc. Essa<br />

montagem ingênua e fantasiosa processava-se à vista do público, e a<br />

contracenação entre os atores-Sepé e o Conde de Bobadela-boneco<br />

dava-se naturalmente, sem nenhuma afetação.<br />

Esse fascínio pelo teatro de formas animadas – estimulandome<br />

em muitas ocasiões a fazê-lo irromper em meio ao contexto<br />

mais tradicional do teatro de atores com que sempre trabalhei –<br />

atribuo-o ao seu caráter radicalmente antiilusionista. Sempre me<br />

encantaram o apelo a uma assumida teatralidade, a entrega ao puro<br />

jogo de códigos e convenções. Desde que comecei a encenar peças,<br />

ainda aluno de Direção Teatral, sentia-me mais atraído pelas formas<br />

épicas, não-realistas de representação. Hoje prefiro dizer rapsódico<br />

em vez de “épico”, por causa da carga espúria de conotações que<br />

esse termo adquiriu no teatro moderno. Rápsódico é o ato do<br />

rapsodo, aquele que desde a Grécia antiga – e mesmo antes – vem<br />

contando, mimando, “performando” histórias, fazendo as muitas<br />

vozes dos personagens, ajudando a contação com postura e gestual.<br />

O rapsodo é um apresentador (não é à toa que em inglês se fala em<br />

presentational theatre, em contraposição ao representational theatre),<br />

Ele mais mostra, sugere, do que interpreta ou encarna os elementos<br />

da ação imaginária.<br />

No seu livro Teatro Épico 1 Anatol Rosenfeld se refere ao teatro<br />

de bonecos como uma das formas teatrais mais carregadas de epicidade,<br />

na medida em que inviabiliza todo e qualquer ilusionismo<br />

Na relação ator-personagem do teatro de bonecos, a identificação<br />

é negada em nome da intermediação, da ilustração. Todos vemos<br />

1 ROSENFELD, Anatol. Teatro Épico. São Paulo: Perspectiva, 1985


MÓIN-MÓIN<br />

claramente que são fios, panos, paus, arames, que se tornam figuras<br />

vivas pela operação de condutores, operação às vezes oculta, outras<br />

apenas disfarçada, e até mesmo em algumas linguagens, abertamente<br />

ostentada.<br />

Teatro de sombras e o uso de máscaras são igualmente maneiras<br />

de ilustrar sem nenhuma tentativa de identificar a imagem<br />

com sua referência original. Uma silhueta é uma forma artificial.<br />

Uma máscara é um rosto falso. Ambos não pretendem ser cópia,<br />

são pura alusão.<br />

Todas essas formas me seduziam por seu teatralismo explícito,<br />

exacerbado. Mas nunca pretendi aprendê-las, dominá-las, fazer<br />

delas meu principal meio expressivo. No meu encantamento com<br />

o antiilusionismo, realizava encenações que em tudo se afastavam<br />

do realismo tradicional. Admito até que durante muito tempo,<br />

houve de minha parte uma rejeição, um preconceito contra a cena<br />

realista. Era uma tendência da época, não há dúvida. Realismo era<br />

“teatrão”, teatro morto, na expressão de Peter Brook. Foi bem mais<br />

tarde, com a evolução e a maturidade aos poucos alcançada, que<br />

percebi que o palco realista não deixava de ser teatral, convencional,<br />

manipulado. Apenas escondia convenção e manipulação por<br />

trás do pacto ilusionista. Vamos fingir, atores e público, que isso<br />

aqui é de verdade, que acontece espontaneamente, fatia de vida<br />

surpreendida através do buraco de fechadura na quarta parede.<br />

Mas todos sabemos que não passa de um faz-de-conta, que tudo<br />

foi ensaiado, organizado nos mínimos detalhes para produzir efeitos,<br />

para narrar. Não foi sem uma certa surpresa que me dei conta<br />

lá pelas tantas que o realismo também era rapsódico, ainda que à<br />

sua maneira: negando sê-lo, ao escamotear ao máximo os fios que<br />

movem seus fantoches. O público, que paga para ser ingênuo e se<br />

deixar enganar, ignora consentidamente esses fios. Mas nós, gente<br />

de teatro viciada, percebemos as sutilezas da enganação. E o que é<br />

pior (ou melhor?) comecei a achar fascinante também essa burla:<br />

quanto maior o disfarce, maior a manipulação!<br />

Resumo da ópera: o que sempre me interessou foi o ato teatral<br />

151<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


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MÓIN-MÓIN<br />

como manipulação, como jogo – assumido ou não. Mas nos tempos<br />

em que ainda não compreendera que o ilusionismo era apenas<br />

mais um truque, procurava de todas as formas fugir à fotografia<br />

realista. Flertar com as formas animadas era uma das estratégias<br />

de fuga. Este namoro acontecia espontaneamente, irresponsavelmente,<br />

como já assinalei. Foi somente em um período de estudos<br />

nos Estados Unidos, ao travar contato com as companhias da vanguarda<br />

nova-iorquina, que me dei conta de que poderia haver uma<br />

pesquisa consistente orientando tais descobertas. Ao participar de<br />

um workshop com o Performance Group, aprendi com seu diretor,<br />

Richard Schechner, um fascinante exercício de improvisação que<br />

ele denominava Chinese Puppets (Bonecos Chineses). Não perguntei<br />

de onde vinha a referência, mas sempre me pareceu que a fórmula<br />

lembrava mais o Bunraku japonês, onde a operação do boneco se dá<br />

à vista do público, sem nenhuma tentativa de ocultar o bonequeiro.<br />

No exercício de Schechner, um ator coloca-se atrás de outro para<br />

manipular-lhe os braços (e eventualmente a cabeça), emprestandolhe<br />

um gestual. Também faz com que ele se locomova pelo espaço,<br />

empurrando-o suavemente, e sussurra-lhe um texto improvisado<br />

ao ouvido, que ele repete em voz alta. Dois personagens, cada um<br />

composto de um ator-boneco com seu ator-bonequeiro, contracenam<br />

assim numa ação criada no momento, sem prévia combinação.<br />

Não se dava muita importância à coerência ou estrutura da cena<br />

inventada. O importante era a interação entre manipulador e manipulado<br />

e entre um e outro personagem. A escuta, o entrosamento,<br />

a prontidão de resposta são os focos do trabalho.<br />

Em princípio, portanto, tratava-se de um exercício atoral,<br />

uma ferramenta de treinamento. Ao voltar ao Brasil, retomando<br />

o trabalho com o Grupo de Teatro Província em Porto Alegre,<br />

apliquei-o em sessões de laboratório com meus atores. Estávamos<br />

engajados na criação de um espetáculo intitulado Sarau das 9 às<br />

11, composto de uma sucessão de quadros, cada um investigando<br />

uma linguagem. Surgiu daí a idéia de utilizar os Bonecos Chineses<br />

de Schechner como proposta para um desses quadros. Não me


MÓIN-MÓIN<br />

lembro se partimos de uma situação prévia ou se improvisamos ao<br />

bel-prazer. Mas aos poucos, junto com Caio Fernando Abreu, ator<br />

do espetáculo e colaborador na sua dramaturgia, fomos conduzindo<br />

a improvisação até a formatação de um texto definitivo. A cena,<br />

obviamente intitulada “Bonecos Chineses”, colocava em confronto<br />

um personagem masculino e um feminino numa situação próxima<br />

ao realismo fantástico. Não havia cenário e os figurinos eram totalmente<br />

estilizados: malhas pretas com peças coloridas sobrepostas.<br />

Os atores-bonecos usavam o tradicional nariz vermelho do clown.<br />

A um determinado momento da história, soava uma campainha<br />

e trocavam-se as funções: o bonequeiro virava boneco, e o boneco<br />

passava a funcionar como bonequeiro, colocando seu nariz de<br />

clown no novo títere.<br />

Retomei essa mesma técnica muitos anos depois, nas minhas<br />

três versões de A Vida como Ela é..., teatralização de uma seleção<br />

de narrativas da famosa coluna que Nelson Rodrigues assinava no<br />

jornal carioca A Última Hora. O conto chamava-se Doente e narra<br />

a história de uma mulher que trai compulsivamente o marido<br />

apesar de amá-lo sinceramente. Ao revelar-lhe seu comportamento<br />

“doentio”, a heroína passa contar com a aceitação do marido, que<br />

lhe impõe como única condição que ela lhe conte toda vez que<br />

incorrer em nova traição. Até que, não agüentando mais a situação,<br />

ela termina se enforcando “com o fio do ferro elétrico” e deixando<br />

um bilhete: “Morro para não trair nunca mais”.<br />

Assim como no Sarau, parti de um laboratório para treinar<br />

a técnica, que, respeitando Schechner, continuei chamando de<br />

“Bonecos Chineses”, por mais que essa nomenclatura me parecesse<br />

equivocada. É claro que, na fase do exercício improvisacional, texto<br />

e movimento eram criados ao sabor da inspiração do momento. Somente<br />

numa segunda etapa passamos a encenar o conto, decorando<br />

o texto rodriguiano e estabelecendo com muita precisão o desenho<br />

gestual e as marcas. As falas narrativas, que na minha adaptação<br />

eram extremamente econômicas, eram confiadas a um ator (ou<br />

atriz) narrador, instalado na extrema esquerda-baixa, fora, portanto<br />

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Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


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Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas<br />

MÓIN-MÓIN<br />

da área principal de atuação. A grande maioria do material textual<br />

eram os diálogos entre os dois torturados personagens de Nelson.<br />

Mesmo depois de memorizadas, as réplicas continuavam sendo sopradas<br />

pelo ator-manipulador no ouvido do seu ator-boneco como<br />

uma espécie de ponto, produzindo um efeito de estranhamento<br />

pela defasagem temporal que se estabelecia entre o sopro de um e<br />

a emissão da fala pelo outro. Nessa versão não havia campainha,<br />

narizes de palhaço ou quaisquer signos equivalentes. Os figurinos<br />

eram os trajes básicos do espetáculo, (vestido para as atrizes, terno<br />

e gravata para os homens), e os elementos cenográficos situando os<br />

diversos ambientes da ação eram apenas cadeiras dispostas numa<br />

composição fixa. Aqui também se processava uma troca de funções.<br />

Num dado momento da trama, o ator-boneco representando o marido,<br />

após assumir uma pose bem definida numa cadeira, levantavase<br />

e ia para trás da mesma. O ator que o manipulava sentava-se<br />

na mesma pose do outro, e o que até então fora boneco passava a<br />

comandar seu texto e movimento, mantendo-se rigorosamente o<br />

personagem nesta prestidigitação. Um pouco adiante na história,<br />

eram as atrizes que intercambiavam as tarefas. Numa primeira versão<br />

do espetáculo, a atriz-bonequeira saía de trás da atriz-boneco<br />

e se colocava a seu lado. Ambas desmontavam a postura com um<br />

relaxamento da cabeça e da parte superior do tronco. A atriz-boneco<br />

reincorporava a postura ereta e passava a ser a nova manipuladora,<br />

“montando” a antiga manipuladora, agora transformada em boneco,<br />

numa pose inicial para dar prosseguimento ao jogo. Nas segunda e<br />

terceira versões do espetáculo adotei uma solução mais simples para<br />

a troca das atrizes. Num rápido deslocamento passando por trás do<br />

personagem feminino, o ator-manipulador fazia seu boneco tomar<br />

a mão da atriz-manipuladora e puxá-la para sentar-se ao seu lado,<br />

transformando-a assim instantaneamente em boneco, enquanto<br />

que a atriz que até então fora boneco, colocava-se atrás da companheira<br />

para passar a governá-la. Não havia nenhuma tentativa de<br />

uniformização de voz ou comportamento corporal nessas trocas. O<br />

objetivo era evitar toda e qualquer identificação, tornando patente a


MÓIN-MÓIN<br />

manipulação narrativa. E com agradável surpresa percebíamos que<br />

o público as aceitava com naturalidade e continuava a acompanhar<br />

a história como se não houvera nenhuma interrupção.<br />

A ação dos atores-manipuladores dos “Bonecos Chineses” é<br />

discreta. Sua atenção foca-se inteiramente nos bonecos, atrás dos<br />

quais eles se mantêm o tempo todo, desempenhando a ação de<br />

soprar-lhes vida. Aos atores-bonecos cabe a responsabilidade de<br />

ilustrar os personagens. É claro que, com os ensaios intensivos, eles<br />

terminam conhecendo perfeitamente a partitura corporal e vocal<br />

que lhes são impostas, o que lhes permite compor o acabamento<br />

postural e gestual, emprestar expressão ao rosto e colorido às falas.<br />

Tudo isso no fundo não passa de uma brincadeira com a idéia do<br />

teatro de bonecos. Mas o engajamento profundo com que os atuadores<br />

nela se lançam cria uma cena de intensa visualidade, rica de<br />

sugestões, onde a elaboração formal não susta de forma alguma a<br />

levada narrativa nem o impacto dramático.<br />

Na mesma A Vida como Ela É... experimentei com uma variação<br />

deste procedimento de desenhar o discurso cênico como teatro de<br />

animação com atores conduzindo seus parceiros como bonecos. O<br />

conto, Noiva para Sempre narra a história de um rapaz envolvido<br />

com duas irmãs sem conseguir se decidir por uma delas. Pressionado<br />

pelo pai das moças, ele escolhe o primeiro nome que lhe vem a<br />

cabeça. Na noite de núpcias o casal encontra no leito nupcial a irmã<br />

preterida vestida de noiva e com os pulsos cortados. No espelho<br />

da penteadeira, uma mensagem escrita com batom: “Nem meu,<br />

nem teu”. A irmã casada enlouquece e a suicida é enterrada em seu<br />

vestido branco, “noiva para sempre”.<br />

A linguagem cênica adotada comportava várias diferenças em<br />

relação ao procedimento de Doente. Em primeiro lugar apenas o<br />

triângulo protagonista - o rapaz e as duas irmãs - eram teatralizados<br />

no esquema ator-manipulando-ator. Os demais - o pai, a mãe e o<br />

amigo confidente do noivo - eram representados tradicionalmente:<br />

um único ator para cada personagem, contracenando com as duplas<br />

boneco-bonequeiro. Não havia aqui troca de funções entre condutor<br />

155<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


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Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas<br />

MÓIN-MÓIN<br />

e conduzido. Os atores-bonecos vestiam uma máscara de látex que<br />

lhes cobria toda a cabeça, apenas com fendas para os olhos e nariz:<br />

rostos de expressão congelada, maquiados e penteados no estilo<br />

dos anos quarenta. As máscaras das duas irmãs guardavam traços<br />

idênticos, variando apenas a cor do cabelo. Impedidos de dialogar<br />

pela máscara fechada, as falas eram dadas pelos manipuladores,<br />

que deste modo desempenhavam uma performance mais ostensiva<br />

do que os discretos bonequeiros de Doente. Ao emitir as réplicas,<br />

ainda que se mantendo ligados aos bonecos, eles assumiam uma<br />

tarefa expressiva, compartilhando assim com os bonecos a responsabilidade<br />

de ilustrar o personagem.<br />

A manipulação também era diferente. Ao invés de imprimir<br />

um gestual contínuo nos bonecos, os condutores os colocavam<br />

em poses estáticas, num procedimento semelhante à brincadeira<br />

infantil de “estátuas”. Desta forma os bonecos executavam uma<br />

série de quadros-vivos, figurando apenas os momentos culminantes<br />

da sequência dramática, numa evidente alusão à linguagem de<br />

HQ. Esse jogo, reforçado pelas máscaras fixas, acentuava o caráter<br />

mecânico da manipulação. Assim os bonecos aparentavam uma<br />

certa rigidez, uma inexpressividade de manequim, o que causava<br />

um interessante efeito de estranhamento. A contracenação com os<br />

personagens individuais aumentava esse estranhamento, pois estes<br />

atuavam realisticamente. Ocasionalmente acontecia inclusive deles<br />

manipularem o boneco, como quando o pai levanta o queixo da filha<br />

tristonha, ou o amigo puxa o braço do noivo de forma amistosa,<br />

fazendo-o modificar a pose.<br />

A Vida como Ela É... trazia também vários efeitos de sombra.<br />

O marido traído de Doente, ao chegar em casa no desfecho, vê no<br />

telão a silhueta da adúltera enforcada com o fio do ferro elétrico.<br />

O casal de Noiva para Sempre, adentrando o quarto nupcial, surpreende<br />

em sombra a imagem da noiva morta.<br />

Na versão paulista do espetáculo, experimentei, no conto<br />

Flor de Laranjeira, com uma nova fórmula de atores-bonecos, que<br />

denominei de “personagem coral”. Em vez do manipulador ceder


MÓIN-MÓIN<br />

à primazia ao boneco-personagem, colocando-se atrás dele, neste<br />

caso, era o da frente que tomava a iniciativa de executar movimento<br />

e voz. O de trás (às vezes um só, outras vezes vários), colado ao da<br />

frente, reproduzia seu gestual e repetia as falas como uma sombra,<br />

uma ampliação da primeira figura.<br />

Outras experimentações se seguiram em outros trabalhos. Encenei<br />

espetáculos-solo que não se poderiam chamar de “monólogos”,<br />

uma vez que não se tratava de um só discurso de um único personagem.<br />

Outros personagens apareciam em telões como projeção<br />

fixa (still-shots) ou dinâmica, e contracenavam com o ator ao vivo.<br />

Essas figuras projetadas podiam ter sido criadas na fotografia ou no<br />

vídeo por outros atores, ou pelo mesmo ator solista, caracterizado<br />

em diferentes alteridades.<br />

Nesse artigo concentrei-me, no entanto, mais extensivamente<br />

no jogo de manipulação de atores-bonecos, por acreditar que<br />

ele exemplifica de maneira mais completa o meu diálogo com a<br />

questão das formas animadas. O importante de assinalar, creio,<br />

é a natureza heterogênea deste trabalho cênico. Com o risco de<br />

me tornar imprudente, explorando linguagens que não domino,<br />

não hesito em apropriar-me de todos os recursos possíveis para a<br />

criação. Resulta daí uma poética peculiar, que não advogo como<br />

fórmula a ser seguida senão por mim próprio. O fato dela ter<br />

chamado a atenção de especialistas em teatro de animação, contudo,<br />

me transmite a confiança de estar num bom caminho. O<br />

convite para encenar uma terceira versão de A Vida Como Ela É...<br />

com o Teatro Sim... Por que Não?!!! de Florianópolis, grupo que<br />

tem como uma de suas competências as formas animadas, veio<br />

reforçar essa impressão. Haviam assistido a montagem carioca e<br />

perceberam o parentesco com a sua pesquisa. Especialmente no<br />

jogo de atores-bonecos, enriqueceram o trabalho com sua expertise.<br />

Acho que Richard Schechner jamais imaginou, naquele distante<br />

workshop dos anos 70, que a sua brincadeira de Bonecos Chineses<br />

iria alcançar tamanho grau de sofisticação enquanto exercício de<br />

pura teatralidade.<br />

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Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


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Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas<br />

MÓIN-MÓIN<br />

Espetáculo A vida como ela é (2010 - SC). Teatro Sim... Por Que Não?!!!<br />

Direção de Luís Artur Nunes. Foto de Cleide de Oliveira<br />

Aí entra o teatro das formas animadas. Mas o que quer dizer<br />

exatamente a expressão “formas animadas”? Bonecos, sombras, projeções,<br />

é a exemplificação mais óbvia do ato de substituição do atorser-humano-vivo<br />

pelo ator-adereço, pelo ator-matéria-manobradapor-condutores<br />

na presentificação do personagem, das imagens da<br />

ficção. Ou também uma máscara escondendo o rosto real e substituindo<br />

novamente o animado pelo inanimado. O ator vivo passa a<br />

ser o bonequeiro, o intermediário, o portador da forma inanimada,<br />

que sua ação anima, dá-lhe vida. Mais ou menos fácil de entender.


De-vagar pela cena<br />

de Socorro<br />

MÓIN-MÓIN<br />

Zilá Muniz<br />

Ronda Grupo<br />

de Dança<br />

e Teatro -<br />

Florianópolis<br />

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MÓIN-MÓIN


MÓIN-MÓIN<br />

PÁGINAS 159, 160 e 161: Espetáculo Socorro (2008 - SC). Ronda Grupo de Dança<br />

e Teatro. Direção de Zilá Muniz. Foto de Cristiano Prim.<br />

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Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


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Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas<br />

MÓIN-MÓIN<br />

“(...) descobrir a palavra socorro através do labirinto de um grande número de<br />

frases e palavras, (...) elas exprimem foneticamente a necessidade de socorro, fora de toda<br />

situação determinada, real.”<br />

(Peter Handke)<br />

Resumo: Este artigo analisa a dramaturgia na dança, problematizando aspectos do<br />

processo de criação de Socorro, realização do Ronda Grupo de Dança e Teatro dirigido<br />

por Zilá Muniz. O espetáculo se caracteriza pelo encontro entre dança e o teatro de<br />

formas animadas. O presente estudo evidencia também que a dramaturgia na dança<br />

ordena a obra, define zonas de preocupação e precisão, é o fio condutor no processo de<br />

encenação. Portanto, antes, é o que fixa as estruturas parciais e as estruturas globais da<br />

obra. Em Socorro, a organização dos materiais foi efetuada a partir da apresentação de<br />

diversas imagens e ações indicadas pela diretora e com as contribuições dos dançarinos.<br />

A escolha das cenas seguiu a lógica que a dramaturgia foi desenhando no percurso da<br />

estruturação da montagem.<br />

Palavras-chave: Dramaturgia na dança; dança contemporânea; teatro de formas<br />

animadas.<br />

Abstract: This article analyses the dramaturgy of dance, problematising aspects of the<br />

creative process used in Socorro, as staged by Ronda Grupo de Dança e Teatro, directed<br />

by Zilá Muniz. The show is characterized by the meeting of dance and puppet theatre.<br />

This study also reveals that dramaturgy in dance creates order in the work, defines zones<br />

of concern and precision, and is the connecting thread in the process of the staging of<br />

the work. It is therefore what earlier on fixes the partial structures, and consequently<br />

the global structures, of the work. In Socorro the material was organized according to<br />

the presentation of diverse actions and images suggested by the director, with contributions<br />

from the dancers. The choice of the scenes followed the logic plotted by the<br />

dramaturgy over the course of the production.<br />

Keywords: Dramaturgy in dance; contemporary dance; puppet theatre.


MÓIN-MÓIN<br />

Dramaturgia na dança<br />

Na dança, a dramaturgia é entendida na base de toda operação<br />

de criação e se pode dizer que Jean-George Noverre 1 foi o primeiro<br />

dramaturgo da dança, pois seus Ballets não eram estruturados como<br />

uma coletânea de várias danças; ele submeteu a virtuosidade às<br />

necessidades da obra na sua integralidade. Além disso, foi Noverre<br />

quem liberou a dança da sua dependência da música. Portanto, a<br />

ideia de uma dramaturgia da dança provavelmente sempre existiu<br />

e, na história da dança, na maior parte dos casos, o coreógrafo é o<br />

próprio dramaturgo. Só recentemente, a partir dos anos 80, é que<br />

a dramaturgia na dança se tornou uma prática consciente, inclusive<br />

em alguns países como Bélgica e Holanda, onde o financiamento<br />

para uma criação de dança está vinculado à participação de um<br />

dramaturgo no processo de criação.<br />

“A dramaturgia é uma consciência e uma prática”<br />

(Bernard Dort)<br />

A dramaturgia na dança relaciona-se com a ideia de processo,<br />

escolhe-se trabalhar com materiais de origens diversas como textos,<br />

imagens, movimentos, filmes, objetos, ideias, etc. Além disso, a<br />

dança trabalha com o corpo, fator que determina grande parte da<br />

dramaturgia na criação de certos tipos de dança. É como se diz,<br />

cada corpo determina a dança que ali se produz. Assim, a dramaturgia<br />

se centra no corpo, o qual designou como sendo o lugar de<br />

emergência do sentido.<br />

Apesar do entrelaçamento de significações, o corpo singular<br />

excede o espaço e o tempo do campo cênico. Ele descobre, doa-se e<br />

se retoma num movimento, revela e nos esconde sua importância.<br />

O corpo, com sua história única, assegura-nos que o encadeamento<br />

de significações não é uma simples exposição semântica, mas ao<br />

contrário, enuncia e reflete a pessoa, enfim, é um “eu” que dança e<br />

1 Jean - George Noverre (1727 – 1810), coreógrafo francês, considerado grande reformador<br />

da dança. Ele reuniu as noções sobre o “ballet de ação” num corpo doutrinário claro.<br />

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Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


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Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas<br />

MÓIN-MÓIN<br />

não um “não importa quem”, segundo a definição de Charlotte Dubray<br />

(1997), em seu comentário no Dossier Danse et Dramaturgie.<br />

Em sua qualidade física, o corpo é dotado de morfologia,<br />

de peso, de plasticidade, de mobilidade, de volume. Matéria,<br />

forma, o corpo é fisicalidade, é energia, é fluxo de vitalidade.<br />

Assim como prioriza a descontinuidade, a assimetria, a dança<br />

eleva os membros do corpo acima da sua totalidade constitutiva.<br />

Renunciar ao corpo ideal, ou mais ainda, ao se festejar a<br />

diversidade de corpos, de técnicas, de culturas, é o singular que<br />

cria a consistência. Nesta relação, os aspectos como peso, carga,<br />

dor e violência se antepõem à harmonia, tão preciosa à tradição<br />

da dança. “O corpo é exposto como sua própria mensagem e<br />

ao mesmo tempo como um elemento profundamente estranho<br />

a si mesmo.” (LEHMANN, 2007: 340).<br />

Ao trabalhar com diferentes materiais, durante o processo de<br />

criação, podemos perceber como estes se transformam e se reorganizam<br />

para se desenvolver e aos poucos, quase sempre no final deste processo,<br />

surge lentamente um pensamento, um conceito ou uma estrutura.<br />

No entanto, a estrutura não é totalmente conhecida desde o início.<br />

Esta é uma forma de desenvolvimento de criação onde a<br />

dramaturgia na dança trabalha com movimentos e sons dos quais<br />

não se pode suspeitar a significação, pois esta é a maneira de se<br />

entender que o corpo na dança já carrega significados, além do<br />

potencial das diversas variações gestuais possíveis do mecanismo<br />

corporal articulado.<br />

Assim, a dramaturgia sempre tem relação com uma estrutura,<br />

trata-se de controlar e refletir sobre o todo e as partes, com as tensões<br />

e mecanismos de relacionamento e deslocamentos e sobreposições.<br />

Resumidamente trata-se de composição. A dramaturgia, como define<br />

Van Kerkhoven (1997), em depoimento para o Dossier Danse<br />

et Dramaturgie, “é o que faz respirar o todo”. Uma estrutura pode ser<br />

portadora de emoção e de significação, mas não no mesmo sentido<br />

que as palavras, uma vez que a narrativa lhes escapa. Na dança a<br />

lógica de construção de sentido não cabe ser narrativa.


MÓIN-MÓIN<br />

A dramaturgia é o que ordena a obra em fases de intensidade<br />

e que define zonas de preocupação ou de precisão em relação à<br />

questão escolhida para se trabalhar; é o fio condutor e ao longo<br />

da obra permeia esta questão e suas derivações. Portanto, antes, é<br />

o que fixa as estruturas parciais e conseqüentemente as estruturas<br />

globais da obra.<br />

Socorro<br />

“O único que uma obra de arte pode fazer é despertar o anseio de um novo estado de mundo”<br />

(Heiner Müller)<br />

As questões até aqui apresentadas objetivam colaborar na reflexão<br />

do processo de criação do espetáculo de dança contemporânea<br />

Socorro, que dirigi no ano de 2008, em Florianópolis. O principal<br />

desafio nesta montagem foi trazer o teatro de formas animadas<br />

como um recurso, que ao final, se tornou mais que isso. Socorro,<br />

então, foi criado para um corpo que se movimenta em diálogo<br />

com a ação e tece, com a palavra, uma dramaturgia para a dança.<br />

A obra, com duração de 60 minutos, é baseada livremente na obra/<br />

texto, do autor alemão Peter Handke, Gritos de Socorro (Hilferufe),<br />

e ocasionou o intercâmbio entre a dança contemporânea e o teatro<br />

de formas animadas, numa construção híbrida que experimenta o<br />

encontro entre as linguagens.<br />

A produção da montagem é do Ronda Grupo de Dança e Teatro,<br />

com concepção e direção de minha autoria em colaboração<br />

com os intérpretes-criadores Egon Seidler, Elisa Schmidt, Karina<br />

Degregório, Letícia Martins, Paula Bittencourt e Vicente Mahfuz,<br />

além da consultoria em formas animadas de Valmor Níni Beltrame,<br />

confecção dos bonecos por Marcos Araújo de Oliveira e cenário de<br />

Fernando Marés. A estréia aconteceu no dia 31 de outubro e permaneceu<br />

em cartaz até 09 de novembro de 2008, no Teatro da UBRO<br />

– União Beneficente Recreativa Operária em Florianópolis - SC.<br />

Socorro se dá no entre, no encontro da dança com o teatro<br />

de formas animadas, na cena. É uma obra que primordialmente<br />

“interroga o ser-no-mundo”. O lugar de partida é a dança e isso<br />

165<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


166<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas<br />

MÓIN-MÓIN<br />

importa para melhor compreender os caminhos que traçamos entre<br />

a dança e o teatro de formas animadas. Pensar e realizar o encontro<br />

entre estas duas linguagens cênicas, a princípio, foi um desafio e,<br />

aos poucos, se tornou um deleite.<br />

A composição e a organização do material surgiram a partir<br />

da presença do corpo, em suas tensões internas ou nas tensões<br />

transmitidas para o exterior: no dançarino, no boneco e nos elementos<br />

que constituem a cena. A vontade sempre foi a de criar uma<br />

poesia cênica na qual as imagens surgidas ao longo do processo<br />

estruturassem e se complementassem, para então desenvolver uma<br />

dramaturgia visual, uma dramaturgia da imagem. Nesta forma, não<br />

há uma sequencialidade linear ou narrativa na apresentação das<br />

cenas, e o que se oferece ao olhar é um poema que ganha forma<br />

nas metáforas ali apresentadas.<br />

O texto de Peter Handke foi utilizado como referência para a<br />

composição e buscamos definir como espaço um lugar de contos<br />

esquecido e abandonado, como se a imaginação não mais fosse<br />

acessada, largada ao esquecimento. Entendemos que esta idéia<br />

é uma metáfora para o mundo racional em que vivemos, onde a<br />

maior porcentagem de atividades que desenvolvemos é racional.<br />

Socorro, portanto, recorre à afetividade como maneira de nos aproximarmos<br />

de sensações e percepções perante a vida, sublimando<br />

o único entendimento lógico e racional sobre o mundo como o<br />

único caminho para o conhecimento.<br />

Também nos interessou pensar que as cenas não seriam interpretações<br />

para o texto de Peter Handke, o que em nossa opinião<br />

reduz o campo de possibilidades e liberdade. Trabalhamos na<br />

perspectiva de que as referências que trazemos para a composição<br />

situam e ao mesmo tempo divergem, e é através delas que as cenas<br />

se constroem e ao mesmo tempo adquirem autonomia.<br />

Dramaturgia em Socorro<br />

“Como se quisera aproximar cada vez mais a esta pequena entidade do instante pleno”<br />

(Marianne Van Kerkhoven)


MÓIN-MÓIN<br />

Na pesquisa de corpo desenvolvida para a criação das cenas do<br />

trabalho Socorro, o texto de Peter Handke provocou e ao mesmo<br />

tempo originou um estado de ser de urgência, de confusão e de<br />

atropelo. Este estado joga com o mundo dos comandos e instruções,<br />

o que, para nós, remete tão simplesmente à manipulação. Podemos<br />

pensar no termo “corpo instrução” para melhor definir este aspecto.<br />

O corpo dos dançarinos está o tempo todo submetido a comandos<br />

e instruções para resolver e criar material, acentuando a idéia de<br />

coisificação que tanto nos fascina.<br />

Foi por este viés que pensamos no boneco como possibilidade<br />

de trabalhar tal idéia, intensificando e deslocando impulsos de movimentos<br />

e gestos corporais, fazendo-nos incorporar uma realidade<br />

outra para o corpo do dançarino, e para o corpo do boneco. Restituindo,<br />

nesta relação entre dançarinos e bonecos, possibilidades<br />

latentes e retidas da corporeidade, de um e do outro. Portanto, o<br />

discurso se inscreve nos corpos e na relação entre sujeito/objeto,<br />

dançarino/boneco, o que nos remete de volta ao mundo das coisas<br />

do teatro de formas animadas.<br />

Por isso os bonecos foram confeccionados em tamanho natural,<br />

sem roupas, totalmente destituídos de personalidade, de<br />

rostos. Estas formas/objetos criaram vida ao se movimentarem e<br />

são manipulados ao mesmo tempo com delicadeza e negligência,<br />

em contraste com uma movimentação mais violenta nas seqüências<br />

de ações e movimentos dos dançarinos. O que conta é exatamente<br />

o tempo para cada ação, para cada movimento executado pelos<br />

bonecos e pelos manipuladores/dançarinos. Tentamos extinguir a<br />

relação hierárquica entre os corpos (boneco e humano); na cena, a<br />

simultaneidade das relações acontece para reforçar esta idéia.<br />

A corporeidade desenvolvida para o corpo que dança em<br />

Socorro atravessou o estado: o estar humano e estar boneco. Ali,<br />

nem sempre boneco é boneco e dançarino é humano, ou seja, o<br />

sujeito torna-se objeto e o objeto torna-se sujeito. “A desconstrução<br />

da imagem do sujeito para objeto provoca a sensação de que nós<br />

mesmos, em contrapartida, não seriamos simplesmente sujeitos<br />

167<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


168<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas<br />

MÓIN-MÓIN<br />

vivos, mas, em parte, coisas” (LEHMANN, 2007: 349).<br />

Para mergulhar neste corpo boneco criamos a cena em que a<br />

dançarina é manipulada como boneco, momento em que a relação<br />

entre humano e boneco se confunde e se misturam para nos situar<br />

no limiar entre sujeito/coisa/objeto/. Nesta simples referência, nesta<br />

metáfora, reconhecemos sim, um lugar que definitivamente já visitamos.<br />

O corpo, humano e boneco, ocupa o ponto central e é o<br />

portador de sentido tanto ao se apresentar em sua substância física e<br />

na gesticulação, quanto na manipulação. O desejo foi construir uma<br />

corporeidade auto-suficiente, que expõe suas intensidades e suas potencialidades<br />

gestuais na dança de cada um e na cena como um todo.<br />

Ao criarmos uma moldura temporal onde tudo acontece sem<br />

uma estrutura racional de espaço-tempo autônomo, permitimos a<br />

contemplação do acontecimento como, talvez, uma realidade natural,<br />

muitas vezes enigmática e que não vem representar nenhuma<br />

outra, senão sua existência própria.<br />

Da palavra ao movimento<br />

No início, a fase de desenvolvimento de material, se originou<br />

de estímulos como perguntas, palavras, imagens e propostas de improvisação<br />

fornecidas aos dançarinos pela diretora. Iniciamos com<br />

um processo de comunicação verbal e de reflexão subjetiva entre<br />

dançarinos e direção. Nesta etapa trabalhamos diversas sentenças e<br />

idéias do texto de Peter Handke, sobre as quais as imagens densas<br />

e carregadas de sentido resultaram do encontro e amontoamento<br />

de experiências, e, ainda do que surgia neste processo entre boneco<br />

e o corpo dos dançarinos.<br />

Depois de transformadas, acumuladas, condensadas, as palavras<br />

se tornaram irreconhecíveis, foram esmagadas pelos corpos. Estavam<br />

ali e poderiam expandir-se em múltiplas direções. As palavras, no<br />

início, evocavam o movimento e garantiram, para este processo,<br />

uma imagem carregada de experiência. A palavra, neste caso, não<br />

era literária, o que importava era o movimento encarnando sentido<br />

e encerrando conflitos não resolvidos da memória daqueles corpos.


MÓIN-MÓIN<br />

Ao experimentar, no corpo, como os jogos de poder são representados,<br />

se refletem e como são reformulados na experiência<br />

cotidiana, surgiu impressões que atravessavam da observação da<br />

vida diária para a criação de situações lúdicas em que a afetividade<br />

era liberada em estados de composição cênica.<br />

A fase de composição é acumulativa, e por composição se<br />

entende a seleção final dos materiais. A organização dos materiais,<br />

efetuada por ordem de apresentação, relação das imagens e o entrelaçamento<br />

das diversas imagens e ações, obedeceu ao critério pessoal<br />

da diretora em consonância com os dançarinos. Tal seleção seguiu<br />

a lógica interna que a dramaturgia foi desenhando.<br />

No entanto, como o trabalho surgiu dos estímulos e das<br />

palavras, ao final do processo resultou impossível voltar a elas. Os<br />

corpos escreviam um texto que resiste ao aprisionamento de seu<br />

significado. Neste processo de composição e idealização do espaço,<br />

ou ainda na seleção e edição da trilha sonora, que por um lado se<br />

caracteriza como um elemento de amálgama entre espaço e corpos,<br />

criam momentos de pura tensão e a cena vai se fortalecendo. Aqui<br />

fica a impressão de justeza, nos resulta como a montagem de um<br />

quebra-cabeças, e ao final há uma estrutura que não admite alteração<br />

alguma. Está tudo lá.<br />

Um mundo de sonho<br />

A criação de Socorro trabalhou também, em sua dramaturgia,<br />

o mundo onírico, tanto pela construção dos espaços e pela aparição<br />

de determinados elementos plásticos, quanto pela ambientação. É<br />

o tempo dos sonhos, e os corpos (humano/boneco) são os sobreviventes<br />

das catástrofes dos contos, a melancolia que os envolve é<br />

resultado do tempo do sonho através do filtro da memória. Neste<br />

sentido vai negligenciar o nexo casual narrativo em favor de outros,<br />

em especial, a lógica do sonho. E assim, afetar o espectador, não só<br />

mentalmente como também corporalmente, afetivamente.<br />

A acumulação de pequenos esquemas de movimentos, gestos, e<br />

palavras se repetem muitas vezes, com delicadas variações segundo<br />

169<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


170<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas<br />

MÓIN-MÓIN<br />

avançam as sequências. Ou se cruzam com outras mini sequências,<br />

incluindo gestos, palavras ou ações singulares. Trabalha-se com<br />

obstinação, na montagem do material, com o contraste, e sempre se<br />

volta à ideia de contrapor e contrastar, numa derivação associativa,<br />

com repetição e aceleração, com variações sutis na fragmentação e<br />

desse modo, o material vai tomando forma.<br />

Finalmente, os fragmentos acumulados são submetidos a<br />

uma ordenação em cenas, e que responde à intenção da diretora,<br />

para, desta maneira, restituir ao espectador a realidade tal como é<br />

em dado momento da vida ou ainda na lógica dos sonhos. Neste<br />

sentido, nenhum dos elementos que intervém da composição das<br />

cenas atua como centro de articulação, senão que a composição se<br />

sustenta para ilustrar o olhar sobre o mundo. Como se a presença<br />

de um dos elementos, visto aqui também da cenas, reclama pela<br />

outra, como um recurso associativo que demonstra a justaposição<br />

de materiais de naturezas distintas. “O Jogo com a ambiguidade<br />

do real e fictício, a transgressão entre os limites do privado e do<br />

público” (SANCHEZ, 2002: 20).<br />

Conectar mini sequências de movimentos, é dizer, experimentar<br />

as pequenas estruturas criadas a partir desta base, e com<br />

precisão vai se definindo a cena e a grande estrutura do espetáculo.<br />

O momento de improvisação se situa sobre tudo nos numerosos<br />

ensaios de combinações cada vez diferentes, na reorganização diferenciada<br />

das primeiras tentativas. Até que a forma alcance uma<br />

justeza e se estabiliza mais ou menos em uma organização que é a<br />

estrutura global da obra.<br />

Na minha perspectiva a dança não traduz ou interpreta as palavras.<br />

Os movimentos e as imagens, pela grande carga de experiência<br />

pessoal que encerram, nos impossibilitam de tentar descrevê-las<br />

racionalmente. Parece-me que esta tentativa de traduzir empobrece<br />

e rouba da experiência corpórea as possibilidades de percepção<br />

do todo, em que a carga afetiva e de memória amplia o que cada<br />

um constrói como sentido. Acima de tudo, é o exercício que se<br />

apropria de uma emocionalidade não atrelada às considerações


MÓIN-MÓIN<br />

racionais prévias.<br />

A idéia de dispersão e complexidade na dramaturgia da dança<br />

estabelece linhas de tensão e campos de força para situar a criação<br />

cênica contemporânea. A densidade da imagem associada à memória<br />

com a multiplicação ou justaposição dos focos de energia resulta<br />

da atomização dos materiais. O desencadeamento de imagens e<br />

associações, em contraponto com a sonoridade, cuja superposição<br />

surge como uma criação polifônica em que todos os elementos<br />

funcionam fragmentando-se entre si, seria como apresentar imagens<br />

não visíveis, dilatadas pelo microscópio.<br />

Os significados não aparecem diretamente, o espaço funciona<br />

como uma caixa de ressonância para a dança. Energia, tensão, linhas<br />

de força e variação de intensidade. As imagens surgem e assim o<br />

sentido é mais que entendido, é assimilado através das metáforas.<br />

Interessa-me a contaminação, a inter-relação e a impureza da obra<br />

de arte. Interessa-me uma dramaturgia, que ordena o espetáculo<br />

em fases de intensidade e que define zonas de ocupação tais como<br />

a relação entre corpo e boneco e objeto.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

LEHMANN, Hans-Thies. Teatro Pós-dramático. São Paulo: Cosac-<br />

Naiff, 2007.<br />

SANCHEZ, José A. Dramaturgias de La Imagen. Cuenca: Ediciones<br />

de La Universidad de Castilla-La Mancha, 2002.<br />

VAN KERKHOVEN, Mariane; DUBRAY, Charlotte; DORT,<br />

Bernard. Dossier Danse et e Dramturgie. in: Nouvelles de<br />

Danse, nº 31. Bruxelles: Contredanse, 1997.<br />

171<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


172<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas<br />

MÓIN-MÓIN<br />

O teatro infantil e suas diversas<br />

linguagens<br />

Carlos Augusto Nazareth<br />

Centro de Pesquisa e Estudo do Teatro<br />

Infantojuvenil – CEPETIN – Rio de Janeiro


MÓIN-MÓIN<br />

PÁGINAS 172 e 173: Espetáculo Peer Gynt<br />

(2006 - RJ). Cia. PeQuod. Direção Miguel<br />

Vellinho. Foto de Simone Rodrigues<br />

173<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


174<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas<br />

MÓIN-MÓIN<br />

Resumo: O estudo discute aspectos da criação do espetáculo teatral para o público<br />

infanto juvenil na cidade do Rio de Janeiro. Apresenta variadas visões sobre a concepção<br />

de criança, em diferentes épocas e contextos culturais, destacando que a noção de<br />

infância resulta de construção social. O artigo também reflete sobre as contribuições<br />

da arte – em especial o teatro – na construção da identidade da criança e na sua importância<br />

para o exercício da fruição artística.<br />

Palavras-chave: Infância; teatro para crianças; teatro de animação.<br />

Abstract: This study discusses aspects of the creation of theatre performances for<br />

children in the city of Rio de Janeiro. The article presents a number of visions of the<br />

concept of the child in different periods and cultural contexts, highlighting the notion<br />

of childhood as a social construction. The article also reflects on the contribution of<br />

art – and especially theatre – in the construction of the child's identity and in its importance<br />

for artistic fulfilment.<br />

Keywords: Childhood; children's theatre; puppet theatre.<br />

Um olhar sobre a infância<br />

Na Grécia Antiga a infância era um período fantástico para o<br />

aprendizado. É comum se dizer que o que se aprende, quando criança,<br />

fica de modo indelével na memória. A cultura grega tinha a tendência<br />

de considerar a infância como uma fase privilegiada da vida humana.<br />

Diferentemente da grega, a arte romana não teve uma preocupação<br />

com a idade e com a criança pequena e em crescimento. Preocupação<br />

esta que só estaria presente na arte ocidental durante a Renascença. Vale<br />

lembrar que a primeira lei que proibia o infanticídio data de 374 DC.


MÓIN-MÓIN<br />

Na Idade Média, não há um conceito exato de adulto e muito<br />

menos de criança. A infância se estende apenas até os sete anos. Nessa<br />

idade passa a ter acesso à língua escrita. O menino de sete anos é um<br />

homem em todos os aspectos, exceto na capacidade de fazer amor e<br />

guerra. O mundo da infância não existia, as crianças freqüentavam<br />

festas em que homens e mulheres alcoolizados se comportavam vulgarmente,<br />

sem pudor na frente dos menores. Sintetizando, invisível<br />

é a palavra que definiria a criança na Idade Média.<br />

Sem dúvida uma diferenciação entre o mundo medieval e o<br />

mundo moderno. Na modernidade, em culturas onde há diferença<br />

explícita entre o mundo adulto e o mundo infantil, os segredos<br />

do mundo adulto são revelados às crianças na medida em que elas<br />

se encaminham para a fase adulta e quando se acredita que esses<br />

segredos já sejam assimiláveis psicologicamente.<br />

Um novo ambiente começa a tomar forma no século dezesseis<br />

como resultado do surgimento da imprensa e da alfabetização, aparecendo<br />

uma nova definição do conceito de idade. Chega-se a uma<br />

concepção de infância que reclama a necessidade de esta ser protegida<br />

dos segredos do mundo adulto, principalmente os sexuais, e assim<br />

surge uma visão considerada moderna do conceito e visão de infância.<br />

No entanto, para que a idéia de infância se concretizasse<br />

foi necessária uma mudança fundamental, que ocorreu em meados<br />

do século XV, quando Gutenberg inventou a imprensa.<br />

A nova idade adulta passou a excluir as crianças, e estas, expulsas do mundo<br />

adulto, passaram a habitar um outro mundo, o mundo da infância.<br />

Depois da invenção da imprensa, os jovens, para se tornarem<br />

adultos, tinham que entrar no mundo letrado, e para tal precisavam<br />

de educação. A escola foi inventada pela civilização européia e seu<br />

surgimento provocou uma revolução profunda no próprio sentimento<br />

de família: esta não era mais responsável pela aprendizagem<br />

de suas crianças, pelo contrário, confiava à escola o papel de educar<br />

seus filhos. E assim, no século XVII, as crianças foram se tornando<br />

sujeitos de respeito, especiais. Com natureza e necessidades diferenciadas,<br />

separados e protegidos do mundo adulto.<br />

175<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


176<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas<br />

MÓIN-MÓIN<br />

No século XVIII, difundiram-se dois conceitos de infância.<br />

Um, em que a criança era vista como uma “folha em branco” a ser<br />

preenchida, a caminho da maturidade. Tudo se constituía num<br />

processo de desenvolvimento do aprendizado, em nada importando<br />

o biológico. E, por outro lado, a visão romântica, que concebia a<br />

criança como importante em si mesma, de natureza sincera, curiosa,<br />

espontânea, que não deveria ser castrada pela educação, mesmo<br />

sendo considerada um cidadão em potencial.<br />

No final do século XIX, se estabeleceria uma discussão que fundamenta<br />

até os dias de hoje os debates sobre a infância. Por um lado<br />

havia quem sustentasse, como Jean-Jacques Rousseau (1712-1778),<br />

que a mente da criança não é uma tábula rasa, devendo-se levar em<br />

conta as exigências e sua natureza, pois, caso contrário, ocorreriam<br />

disfunções em sua personalidade. Ao mesmo tempo, Sigmund Freud<br />

(1856-1939) confirmava John Locke (1632-1704), afirmando que<br />

as primeiras interações da criança com o meio são decisivas para<br />

determinar a estrutura de personalidade do adulto em formação,<br />

encontrando na razão um meio de controlar e sublimar as paixões da<br />

mente humana. Da mesma forma, mas em âmbito filosófico, John<br />

Dewey (1859-1952) afirmava que as necessidades psíquicas da criança<br />

devem ser entendidas a partir do que ela é, e não do que ela será; e que<br />

apenas com a identificação dos instintos e das necessidades reais da<br />

infância, a disciplina e a cultura da vida adulta virão na época devida.<br />

A criança passou a ser então entendida como tendo regras próprias<br />

de desenvolvimento, uma natureza própria, a ser elaborada em<br />

interação com o meio sócio-familiar e com seu ambiente, e essas características<br />

próprias, inerentes, inalienáveis não devem ser reprimidas<br />

sob risco de não se alcançar uma maturidade plena, realmente adulta.<br />

O desaparecimento da infância<br />

Através dos meios de comunicação, a informação hoje<br />

chega a todos de maneira indiscriminada e simultânea: a mídia<br />

eletrônica não retém qualquer tipo de segredo. Nesse contexto,<br />

explicita-se o motivo pelo qual a infância ora se vê ameaçada:


MÓIN-MÓIN<br />

os segredos são inexistentes. Como dissemos acima, o segredo<br />

é um pré-requisito para que exista a infância. Na Idade Média<br />

não havia meio de contar com a informação exclusiva para os<br />

adultos; portanto, não havia diferenciação no nível de conhecimento<br />

e, conseqüentemente, não havia infância. Na Era de<br />

Gutenberg surge este meio. Na Era da Televisão, ele se dissolve.<br />

Donde se infere que tanto a autoridade do adulto quanto a curiosidade<br />

da criança perdem espaço, pois é nos segredos que as "boas<br />

maneiras" e a vergonha estão instaladas. Estamos diante das mesmas<br />

condições presentes no século XIV, quando nenhuma palavra era<br />

considerada imprópria para a percepção audível de um jovem.<br />

Pelo visto, a infância é um evento social, pois está condicionada<br />

ao "olhar" da cultura e de um determinado momento histórico.<br />

Deve-se considerar, também, para essa conceituação, o fator econômico,<br />

uma vez que a infância perpetuou-se, de fato, apenas no<br />

momento em que uma idéia de classe média em ascensão pode<br />

sustentá-la. A linha divisória entre a infância e a fase adulta criada<br />

pela prensa tipográfica foi apagada pela televisão. A cultura livresca<br />

criou um novo modo de pensar adulto, alicerçado em um progresso<br />

gradual e cumulativo de conhecimentos; em contrapartida, a cultura<br />

predominantemente visual e imagética permeada pela linguagem<br />

oral, que a televisão traz em seu bojo, ora permite que as crianças<br />

tenham acesso ao mundo que antes era considerado impróprio para<br />

elas. Assim, antes mesmo de a criança aprender a ler e a escrever, a<br />

mídia televisiva já lhe terá escancarado o universo do adulto, que<br />

antes se constituía em algo a ser desvendado aos poucos, acompanhando<br />

passo a passo seu crescimento.<br />

Atualmente os conceitos de adulto e de infância estão um tanto<br />

confundidos, sem fronteiras. As brincadeiras de rua, os jogos, os<br />

brinquedos manuais já não são mais alvo de interesse de nossas<br />

crianças ou não estão mais disponíveis às mesmas. O vestuário<br />

infantil confunde-se com o do adulto: crianças vestem roupas sensuais,<br />

salto alto, usam maquiagem e acessórios exagerados; e adultos<br />

querem prolongar a adolescência, vestindo-se de forma apropriada a<br />

177<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


178<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas<br />

MÓIN-MÓIN<br />

este período. A partir dessas considerações, parece que a concepção<br />

de infância dos dias de hoje é semelhante à da Idade Média, quando<br />

a criança era concebida como um adulto em miniatura.<br />

Nesse sentido, é a noção de “individualidade” que faz com<br />

que a criança seja entendida, como se vê nas Diretrizes Curriculares<br />

Nacionais para a Educação Infantil (1998): a criança aí é um "sujeito<br />

de direitos", um ser uno, indivisível, curioso, dotado das melhores<br />

potencialidades da espécie e que deve ser respeitado, pois se encontra<br />

num momento de formação da personalidade e dos valores<br />

morais. A criança passou a ter uma “identidade” e constitui-se em<br />

alvo de atenção e respeito.<br />

É essencial destacar aqui que o sentimento de infância geralmente<br />

é muito mais presente nas famílias dotadas de maior poder<br />

aquisitivo. Afastando as crianças das brincadeiras e da vida escolar,<br />

o trabalho infantil é um velho conhecido, ainda encontrado na<br />

pós-modernidade. Está presente no cotidiano tanto dos menos<br />

quanto dos mais favorecidos economicamente, embora, é claro, de<br />

maneira diferenciada. Enquanto uma minoria, geralmente oriunda<br />

de famílias mais privilegiadas economicamente, trabalha atuando na<br />

televisão, nas passarelas, e até mesmo junto aos pais em seus negócios,<br />

a maioria das crianças advinda de camadas desprivilegiadas da<br />

sociedade trabalha em atividades penosas e fisicamente desgastantes.<br />

Mas ambas as formas de trabalho prejudicam a criança, que é privada<br />

de se desenvolver dentro dos limites de suas potencialidades<br />

A infância está cercada de inúmeras ameaças. Neil Postman (1999)<br />

defende a idéia de que a infância está desaparecendo.<br />

É diante dessa infância ameaçada e de tão difícil definição que<br />

a Arte atua e tem papel preponderante. Mas, para isso, mais que<br />

nunca é necessário que se conheça a criança, hoje. Suas necessidades,<br />

anseios e carências. Seu real e seu imaginário.<br />

Através da arte tocamos o sensível. Através do drama tocamos o<br />

sensível e o lógico. A possibilidade de construção e reconstrução se faz<br />

aqui e agora no contato com a Arte, e com a Arte dramática o repensar<br />

é mais amplo, porque drama é a interação do sensível com o lógico.


O teatro sob a perspectiva da obra de arte<br />

MÓIN-MÓIN<br />

O indizível – aí é que começa a Arte.<br />

Jean-Louis Ferrier<br />

As pessoas devem confiar na sua sensibilidade<br />

Fayga Ostrower<br />

Para Fayga Ostrower, a arte é necessária, é uma linguagem que<br />

mostra o que há de mais natural no homem. Através dela é possível<br />

verificar até mesmo que o homem pré-histórico e o pós-moderno<br />

não estão distantes um do outro quanto o tempo nos leva a imaginar:<br />

A arte é baseada numa noção intuitiva, que forma nossa<br />

consciência. Não precisa de um tradutor, de um intérprete.<br />

Isso é muito diferente das línguas faladas, porque<br />

você não entenderia o italiano falado há quinhentos anos<br />

atrás, mas uma obra renascentista não precisa de tradutor.<br />

Ela se transmite diretamente. E essa capacidade da<br />

arte de ser uma linguagem da humanidade é uma coisa<br />

extraordinária. (OSTROWER, 2000)<br />

Arte – definições diversas tentam se acercar do indizível. Será<br />

arte todo objeto que possui qualidades artísticas, tendo na estética<br />

sua função dominante, dada pela intencionalidade do artista? Será<br />

que existem valores característicos do belo? Como pensamos a Arte<br />

e os valores estéticos, hoje? Qualquer objeto ou atividade podem<br />

ser detentores de uma função estética? Será de prazer a sensação<br />

gerada quando estamos diante de uma obra de arte? Prazer este que<br />

move à necessidade de repetição deste estado?<br />

O diretor de teatro Peter Brook disse, certa vez, que a beleza<br />

de uma peça está na qualidade e na perfeição que o público é nela<br />

capaz de identificar. O juízo estético não é o juízo dessa adaptabilidade,<br />

mas expressa o prazer desinteressado que experimentamos ao<br />

concentrar nossa atenção na apreensão de um objeto. Kant propõe<br />

ainda o pleno exercício na apreciação da obra de arte.<br />

Esta experiência do prazer estético, a que se segue o desejo<br />

de sua repetição, no teatro, seguindo a teoria de Peter Brook, é a<br />

179<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


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Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas<br />

MÓIN-MÓIN<br />

qualidade – e, acrescentemos, o equilíbrio e a unidade conseguidos<br />

através da pluralidade de expressões artísticas que compõem a cena.<br />

No teatro inúmeras linguagens se unem para mostrar uma história.<br />

E por mostrarem, a palavra não é seu material único, mas parte de<br />

uma diversidade de linguagens que se percebe, que se sente e que<br />

se vê em cena. Tudo serve ao objetivo central de se encenar ou um<br />

texto, ou uma idéia, ou um fragmento. Importa o suporte, mas<br />

importa ainda mais o que se quer dizer ao público. E tudo deve<br />

estar a serviço desse objetivo: cenários, figurinos, luz, cor, atuação,<br />

texto, e o que mais entrar na escrita cênica. Essa unidade, em que<br />

os múltiplos sentidos são atingidos pela diversidade de linguagens,<br />

esse bombardeio múltiplo e uníssono sobre a emoção e o racional é<br />

que faz existir a experiência estética no teatro, e lhe dá essa característica<br />

única, de estímulos múltiplos sendo absorvidos num mesmo<br />

momento e ativando todas as áreas de percepção.<br />

A função do teatro é igualmente múltipla. O teatro é<br />

ritualístico. Possivelmente em suas mais antigas expressões<br />

se confunde no tempo com a origem do contar histórias.<br />

No caminhar dos tempos o ritualístico se tornou expressão quase<br />

que religiosa, por um lado, e herética, por outro, mas o ritual, a<br />

celebração, permanece em sua base.<br />

No teatro grego, as grandes questões, os arquétipos e os mitos<br />

eram oferecidos ao público e a catarse era sua grande propulsora.<br />

Mas o passar dos tempos foi reunindo em torno do teatro inúmeras<br />

funções: o teatro tem a função estética, catártica, questionadora,<br />

transformadora, política e social. É, como tal, uma obra de arte -<br />

expressão artística do homem, que fala do homem, para o próprio<br />

homem, e questiona o ser humano.<br />

O tecido teatral<br />

Nas mais diversas culturas surge periodicamente à tendência<br />

para considerar o mundo como um texto e, consequentemente,<br />

o conhecimento do mundo é equiparado<br />

à análise filológica desse texto: à leitura, à compreensão,


MÓIN-MÓIN<br />

à interpretação.[...]O texto universal compor-se-ia por<br />

“textos da vida” e “textos da arte”: unicidade contra pluralidade,<br />

existindo entre estas um isomorfismo geral ou<br />

mesmo uma relação generativa.<br />

Lotman e Uspenskij, 1988<br />

A partir destas afirmações de Lotman e Uspenskij, podemos<br />

tomar um texto como expressão do universo. O macro texto – o universo<br />

- seria composto de milhões de micro-textos que, interligados,<br />

o estruturariam. E mais: textos de arte refletiriam, por mimetismo –<br />

conceito encontrado na Arte Poética de Aristóteles – os textos da vida.<br />

É a vida que é representada na arte.<br />

Portanto, o texto teatral seria um dos muitos textos possíveis, e,<br />

como os outros, reproduziriam o mundo real por meio da mimesis.<br />

A mimesis de que fala Aristóteles, não é, como erroneamente se<br />

toma muitas vezes, simples imitação dos acontecimentos, mas sim<br />

das paixões que movem o homem a realizar o fato. Portanto, ao<br />

re-criar o fato em um texto teatral, o dramaturgo não está apenas<br />

reproduzindo, mas apropriando-se do fato e recontando-o, com<br />

toda a gama de emoções da ação mostrada, através de uma ótica<br />

que passa pelo olhar crítico e contemporâneo do autor. Ou seja,<br />

a proposta de texto não se limita a “reproduzir”, é um reconto<br />

que traz nele embutido uma visão crítica, comentando o mundo,<br />

interpretando-o, falando sobre ele.<br />

A palavra textus vem do particípio passado de texere<br />

(tecer) empregado em sentido figurado, metáfora que considera<br />

o conjunto lingüístico do discurso como um tecido.<br />

Compreende-se que a palavra textus tenha surgido num mundo<br />

judaico-cristão que possuía as tábuas da lei “escritas pela mão<br />

de Deus” (Êxodo, 31,18) que assim torna sagrado o próprio<br />

ato da escrita. E o teatro tem sua origem no sagrado também.<br />

O texto expressa o mundo e a compreensão e interpretação dos<br />

textos são a compreensão e interpretação da vida e do mundo.<br />

O espetáculo teatral é uma narrativa que começou a ser analisada<br />

sistematicamente nos anos de 1915-1930, pelos formalistas russos<br />

que se apoiavam nas sugestões do grande folclorista Aleksandr Niko-<br />

181<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


182<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas<br />

MÓIN-MÓIN<br />

laevich Veselovskij (1838-1906). E foi ainda o folclorista Wladimir<br />

Propp (1895-1970) que, nesses mesmos anos, levou mais longe o<br />

método de análise. Essas investigações foram retomadas a partir<br />

dos anos 50, com a contribuição de etnólogos como Lévi Strauss<br />

e teóricos da literatura como Tzvetan Todorov e Claude Bremond.<br />

O espetáculo tem origem ritualística, e como todo ritual, pretende<br />

mantê-lo fiel a seus princípios básicos. Da mesma forma que o texto<br />

pode ter origem divina, o teatro sempre foi a celebração do divino. E<br />

como ritual e celebração obedece a uma série de preceitos que constituem<br />

sua própria essência. A essência primeira do teatro seria a possibilidade<br />

de mostrar, ao invés da essência da narrativa que é o contar.<br />

O ritual do teatro congrega inúmeras manifestações do ser<br />

humano; a dança, o canto, a palavra, o gesto – e assim chegamos<br />

a idéia de tecido: inúmeras linguagens que se entrelaçam e criam<br />

uma tessitura una.<br />

Partindo do conceito de trama, tecido, urdidura, o espetáculo<br />

teatral é um tecido composto da urdidura e trama de diversas linguagens:<br />

o texto, o ator – corpo, voz, interpretação, cenário, figurino<br />

– ou seja, a plasticidade, a música, a luz. Portanto o espetáculo tem<br />

idéias, emoções, música, plasticidade, movimento – corporalidade.<br />

Tem, além da ação dramática, a ação no sentido de fisicalidade,<br />

acentuada no teatro antropológico de Eugênio Barba.<br />

Cada uma destas linguagens – e ainda há outras que se podem<br />

associar, como a linguagem de animação, do clown, do contador<br />

de histórias – são narrativas das quais os criadores precisam se<br />

apropriar. É também necessário, então, que se apropriem das técnicas.<br />

Linguagem e narrativa têm sentido, código, sintaxe. A luz<br />

tem significado, o movimento é narrativa, o som, a música é texto,<br />

o ator em movimento é a fisicalidade do teatro, e tem significado.<br />

Portanto, é necessário, para uma expressão artística, que aceita<br />

ou comporta tantas linguagens, que cada uma delas seja plenamente<br />

exercida, e que seu conjunto resulte num todo único e harmônico,<br />

esteticamente agradável, que passe emoção, prazer estético, que<br />

emocione, e faça pensar. E o teatro para a infância, como todo e


MÓIN-MÓIN<br />

qualquer teatro, precisa de todos esses requisitos para ser Teatro.<br />

Num mundo capitalista em que a terceira idade e a infância,<br />

sendo economicamente “não produtivas”, são desvalorizadas, a<br />

produção voltada para a criança é olhada com total descaso, por<br />

vários setores, pela mídia e até pelos próprios artistas. Acredita-se<br />

que “qualquer um” pode fazer teatro, qualquer um pode escrever,<br />

qualquer um pode montar um espetáculo teatral, porque “é para<br />

criança”... Mas teatro é obra de arte e, como tal, atua na formação<br />

da criança de forma marcante e contundente. E exige ser realizado<br />

trazendo benefícios e não causando danos – às vezes irreparáveis<br />

– não só ao desenvolvimento do gosto estético da criança, mas<br />

quanto à ideologia que o espetáculo transmite. Para realizá-lo bem<br />

é necessário talento e técnica para subsistir, pesquisa, estudo, experimentação,<br />

além de espaço para discussão e uma (re)avaliação<br />

metodológica e permanente.<br />

Uma experiência de construção de espetáculo com bonecos<br />

e atores<br />

O teatro infantil é, como todo teatro, feito de uma trama de<br />

linguagens diversas, que buscam uma unidade para expressar de<br />

forma eficiente, um idéia, como um todo. Dentre as muitas linguagens<br />

que surgem no teatro infantil, o teatro de formas animadas se<br />

faz quase sempre presente.<br />

Em nossa experiência de trinta anos de teatro para crianças<br />

sempre percebemos o grande apelo/identidade do boneco com a<br />

criança. Sempre fomos fascinados pelos títeres, embora não sejamos<br />

especialistas em teatro de formas animadas, mas em 90%<br />

de nossos espetáculos o boneco está ali presente. Por que será? É<br />

uma pergunta que ainda hoje nos fazemos - e que nos leva, aqui,<br />

a sermos auto-referentes.<br />

Montamos anos atrás um espetáculo chamado O Pássaro do Limo<br />

Verde, um reconto popular, da tradição oral, registrado no interior da<br />

Paraíba e recontado por “Altino Pimente” codinome de Maria das<br />

Graças Pimentel, mãe de Altino Pimentel. (Na época não era costume<br />

183<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


184<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas<br />

MÓIN-MÓIN<br />

as mulheres assinarem cordéis, daí a necessidade do pseudônimo).<br />

O processo de construção do espetáculo foi dos mais ricos e<br />

trabalhosos. Primeiramente freqüentamos as oficinas de Margaretha<br />

Nicolescu, diretora do teatro de marionetes Tandarica da Romênia,<br />

e na época, diretora da École Nationale Supérieure dês Arts de La<br />

Marionnette – ESNAM de Charleville-Mézières, e para o curso<br />

já levamos um primeiro tratamento do texto. Felizmente o curso<br />

era destinado a diretores da América Latina, e lá convivemos com<br />

grandes mestres como Fernando Augusto, do Mamulengo Só-riso,<br />

Magda Modesto, e outros artistas de todo o Brasil e da América<br />

Latina. Era um curso de direção de teatro de bonecos, mas ali<br />

aprendemos antes de tudo Teatro.<br />

Nas discussões durante o curso fomos construindo o espetáculo.<br />

O texto, de origem pernambucana, nos remetia ao teatro<br />

de Mamulengo, ainda mais com a forte presença ali de Fernando<br />

Augusto. Por não ser estritamente bonequeiro, e sim diretor de<br />

teatro de atores que se utilizava da linguagem de bonecos em seus<br />

espetáculos, tentei, propositalmente, unir estes dois lados – atores/<br />

bonecos, em perfeita igualdade de importância. E vimos como é<br />

difícil a arte do marionetista. O que importava era o personagem,<br />

não importava se feito por atores ou por bonecos. A passagem de<br />

atores para bonecos era sutil.<br />

Recebemos a visita de um diretor argentino que nos disse que,<br />

quando ele queria trabalhar ao mesmo tempo com atores e bonecos,<br />

se utilizava da linguagem da farsa, pois a linguagem da farsa e a<br />

linguagem do teatro de formas animadas tinham grandes semelhanças.<br />

Primeiramente ambos trabalhavam com tipos populares,<br />

com características exageradas, que deveriam ser reconhecidos de<br />

imediato pelo grande público.<br />

A partir daí resolvemos nos utilizar da estrutura do mamulengo<br />

para encenar o espetáculo, e mantivemos a tradicional<br />

empanada, que por vezes era quebrada, como elemento limitador,<br />

pelas intervenções do personagem Mateus. E ainda introduzimos<br />

a contadora de histórias, pois, na verdade, tudo surgira do registro


MÓIN-MÓIN<br />

de uma história contada por uma mulher do povo.<br />

Num processo de seis meses de pesquisa, trabalho, ensaios,<br />

o mais difícil foi dar uma personalidade de fato aos títeres. Por<br />

exemplo, havia O Mercador – homem gordo e suarento que só<br />

pensava em dinheiro. Primeiro passamos essa idéia ao marionetista<br />

carioca Fernando Santana, que confeccionou os bonecos; depois<br />

procuramos na manipulação, os movimentos, a voz, os trejeitos,<br />

que trouxessem vida ao boneco, transformando-o em marionete<br />

atuante e com personalidade marcante. Importava o personagem.<br />

Quando fomos buscar os atores, buscamos que tivessem as mesmas<br />

características, de modo que, ao passarmos do boneco para o ator, e<br />

do ator para o boneco, não houvesse quebra de continuidade, pois<br />

todos estavam embasados no personagem – e este permanecia todo<br />

o tempo em cena, embora por vezes representado pelo boneco, e,<br />

por vezes, pelo ator.<br />

A partir desse trabalho, e da percepção da dificuldade de executar<br />

esse tipo de trabalho com verdade, técnica e emoção, minha<br />

admiração pelos artistas que se dedicam em tempo integral ao<br />

teatro de bonecos se tornou maior. Para nós, foi um desafio, que<br />

acreditamos ter conseguido vencer, já que o espetáculo se manteve<br />

cinco anos em cartaz e ganhou quase todos os prêmios da crítica no<br />

ano de 1994. Isto porque respeitamos o teatro de marionetes, pesquisamos,<br />

estudamos, fomos duas vezes a Recife, enfim, encaramos<br />

como um desafio penetrar naquele universo. E só com muita força<br />

de vontade conseguimos penetrar, de fato, no universo mágico do<br />

mamulengo e do teatro de bonecos, de formas animadas.<br />

E aí descobrimos também como pode ser simbólico o teatro<br />

de formas animadas, que, no primeiro momento, parece uma<br />

simples reprodução de situações do cotidiano. E acreditamos que<br />

essa capacidade de trabalhar com o simbolismo, o mágico, é que<br />

torna o teatro de formas animadas insuperável. Foi a experiência<br />

que me fez entender melhor o que é o teatro de formas animadas,<br />

buscando um caminho para que as delimitações bonecos/atores<br />

fossem menos rígidas.<br />

185<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


186<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas<br />

MÓIN-MÓIN<br />

E o caminho do teatro de bonecos segue adiante, com<br />

alguns percalços<br />

Como crítico do Jornal do Brasil tive a oportunidade de ir a<br />

inúmeros festivais onde vi espetáculos incríveis. Porém nenhum me<br />

tocou tanto como PEER GYNT dirigido por Miguel Vellinho, em<br />

que ele rompe todas as barreiras de boneco/ator e cria praticamente<br />

uma linguagem nova e renovada, sem rótulos. A meu ver, o trabalho<br />

de Miguel Vellinho, já conhecido e reconhecido, se torna um referencial<br />

do teatro de formas animadas, de conceito amplo e irrestrito,<br />

que nos permite criar, sonhar, construir imaginários sem limites.<br />

Se, por um lado, vemos o teatro desenvolvido por Miguel Vellinho,<br />

brilhante, criativo, resultado de pesquisa profunda, por outro<br />

vemos inúmeros espetáculos de teatro para crianças que usam, e não<br />

se utilizam do boneco: arrastam os bonecos pelo palco como pedaços<br />

de pau e pano, o que os torna sem nenhum significado maior. Este é<br />

um dos grandes problemas das Artes: as pessoas se acham talentosas<br />

e acreditam que o talento é o bastante para levar para o palco tudo<br />

aquilo que se deseja. E está quase que cientificamente provado que<br />

isso não é verdade. O conhecimento, a técnica, a pesquisa, o trabalho<br />

sério é que criam linguagem, que criam significado. Fato semelhante<br />

se vê nas encenações que usam a figura do clown sem o menor<br />

conhecimento da importância desta linguagem, e do efeito que ela<br />

tem – também de encantamento, magia e, ainda mais, de crítica.<br />

Aqui paramos para um momento de reflexão: por que todos<br />

acham que podem fazer teatro, se utilizar de todas as técnicas<br />

existentes, sem o menor preparo, estudo ou pesquisa para desenvolver<br />

este tipo de trabalho? Do contador de histórias, passando<br />

pelo clown, até o teatro de formas animadas, a veleidade com que<br />

artistas se lançam a aventuras mal sucedidas utilizando-se dessas<br />

linguagens é quase desastrosa, e tão perniciosa que faz com que pais,<br />

professores e público vejam estas artes como artes menores. Não<br />

que elas sejam menores, mas porque são apresentadas ao público<br />

feitas de forma menor. São essas distorções que vão criando uma<br />

sintaxe perversa do teatro infantil.


MÓIN-MÓIN<br />

O panorama do teatro infantil no Rio de Janeiro<br />

O teatro infantil precisa deixar ao largo as questões repetitivas e<br />

recorrentes sobre o espetáculo teatral para crianças. Se levantarmos<br />

os artigos escritos sobre o teatro infantil - e são poucos - as questões<br />

são recorrentes, antigas e sem nenhuma proposta de solução ou de<br />

encaminhamento. E isto porque não há uma pesquisa constante,<br />

séria, acadêmica ou não, sobre esta expressão artística.<br />

Além do que é normalmente tratado é necessário, antes de<br />

mais nada, repensar e responder a algumas perguntas e questões:<br />

• Que criança temos hoje no teatro?<br />

• Do que necessitam, o que anseiam ouvir, o que desejam?<br />

• O teatro como Obra de Arte e o teatro como produto comercial.<br />

• A mídia.<br />

Ficam as questões. E o teatro continua, milenar e atual – ESSENCIAL.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

ARIÈS, Philippe. História Social da Criança e da Família. Rio de<br />

Janeiro: LTC, 1981.<br />

BRAYNER, Flávio. Da Criança-cidadã ao Fim da Infância. In:<br />

Educação e Sociedade, v.22, n.76, 2001<br />

POSTMAN, Neil. O Desaparecimento da Infância. Rio de Janeiro:<br />

Graphia, 1999.<br />

RUSSEFF, Ivan. A Infância no Brasil pelos Olhos de Monteiro Lobato.<br />

In: FREITAS, M. C. (org.). História Social da Infância no<br />

Brasil. 2 ed. São Paulo: Cortez, 1999.<br />

OSTROWER, Fayga. Palestra proferida em 29 de agosto de 2000.<br />

Belo Horizonte: PUC-Minas.<br />

ARISTÓTELES. Arte poética: texto integral. São Paulo: M. Claret,<br />

2004. 150 p.<br />

BRASIL. Parecer sobre as Diretrizes Curriculares Nacionais para a<br />

Educação Infantil. Brasília, DF. 17 dez. 1998.<br />

PROPP, Vladimir. Morfologia do conto maravilhoso. Rio de Janeiro:<br />

Forense-Universitaria, 1984.<br />

187<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


188<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas<br />

MÓIN-MÓIN<br />

O mamulengo em múltiplos sentidos<br />

Adriana Schneider Alcure<br />

Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ


MÓIN-MÓIN<br />

PÁGINA 188:<br />

Mestre Zé Lopes<br />

no Ateliê ao<br />

Vivo dos MestresMamulengueiros<br />

– SESI<br />

B o n e c o s d o<br />

BRASIL 2010<br />

na cidade de<br />

Manaus - AM.<br />

Foto de Valmor<br />

Nini Beltrame.<br />

Abaixo: Mestre<br />

Seu Tonho de<br />

Pombos na cidade<br />

de Manaus<br />

– AM, (2010).<br />

Foto de Valmor<br />

Nini Beltrame.<br />

PÁGINA 189: Espetáculo A chegada de Lampião no inferno (2009 - RJ). Cia. PeQuod.<br />

Direção Miguel Vellinho. Foto de Simone Rodrigues.<br />

Abaixo: Bonecos do Mestre Seu Tonho de Pombos. Mamulengos apresentados na<br />

Exposição do SESI Bonecos do BRASIL 2008 na cidade de Joinville – SC. Foto de<br />

Chan. Acervo de Fernando Augusto Gonçalves Santos.<br />

189<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


190<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas<br />

MÓIN-MÓIN<br />

Resumo: O teatro de mamulengos possui uma multiplicidade de sentidos, de<br />

re-significações dependentes de quem o aborda, de como o estamos observando e de<br />

quem lhe está atribuindo, tornando a sua definição mais complexa e heterogênea. Neste<br />

artigo, problematizaremos uma parte desses sentidos, com a intenção de compreender<br />

o mamulengo sob tensão, expondo alguns de seus processos de construção em diálogo<br />

com a contemporaneidade.<br />

Palavras-chave: Teatro de Mamulengos; Zona da Mata pernambucana; cultura<br />

popular; contemporaneidade.<br />

Abstract: Mamulengo theatre has a multiplicity of senses, of resignifications,<br />

according to who approaches it, how we observe it, and to whom it is attributed,<br />

making its definition more complex and multifaceted. In this article we problematise<br />

a number of these views of mamulengo theatre, with the aim of understanding mamulengo<br />

under pressure, displaying some of its processes of construction in dialogue<br />

with the contemporary.<br />

Key-words: Mamulengo theatre; pernambucan Zona da Mata; folklore; contemporaneity.<br />

O que é o mamulengo? É possível defini-lo, em linhas gerais,<br />

como sendo uma forma específica de teatro de bonecos, cuja região<br />

de atuação mais evidente é a Zona da Mata pernambucana. Mas<br />

não apenas. Na contemporaneidade, o mamulengo vem adquirindo<br />

uma multiplicidade de sentidos, de re-significações dependentes de<br />

quem o aborda, de como o estamos observando e de quem lhe está


MÓIN-MÓIN<br />

atribuindo, tornando-o mais complexo e heterogêneo do que inicialmente<br />

pareceria. Neste artigo, problematizarei uma parte desses<br />

sentidos, procurando não emaranhar ainda mais a questão, com a<br />

intenção de compreender o mamulengo sob tensão expondo alguns<br />

de seus processos de construção em diálogo com a contemporaneidade.<br />

Muitas vezes fui surpreendida no decorrer destes anos de<br />

pesquisa por fatos e observações que me obrigaram a ampliar ou<br />

transformar meus próprios entendimentos acerca do mamulengo.<br />

Por estar acompanhando alguns mamulengueiros da Zona da Mata,<br />

desde 1997, freqüentemente me confrontei com surpresas, novidades<br />

e contradições, que, talvez, só uma pesquisa de longa duração<br />

poderia evidenciar. O aparecimento de novas categorias, ou usos<br />

diferenciados de palavras, conceitos e expressões fundamentais empregados<br />

pelos mamulengueiros, além da ampliação da presença do<br />

mamulengo em diversos circuitos culturais, que não os da Zona da<br />

Mata, são alguns dos problemas com os quais me deparei.<br />

Tratar o teatro de mamulengos como um corpo único e invariável<br />

seria uma incoerência em relação às conquistas que a discussão<br />

em torno da cultura popular, conceito que por hora não problematizaremos,<br />

vem ganhando nos últimos anos. As questões da variabilidade<br />

e da criação artística são dois destes pontos, por exemplo,<br />

que contestariam um tratamento generalista sobre o mamulengo.<br />

Somos treinados a suprimir os sinais de incoerência e<br />

de multiculturalismo encontrados, tomando-os como<br />

aspectos não-essenciais decorrentes da modernização,<br />

apesar de sabermos que não há cultura que não seja um<br />

conglomerado resultante de acréscimos diversificados<br />

(...) (BARTH, 2000: 109).<br />

O mamulengo está presente em diversos circuitos, que não<br />

necessariamente os da Zona da Mata. Mesmo tendo um corpo<br />

“tradicional” bem definido, que seria referendado por um conjunto<br />

fixo de personagens, passagens, loas, músicas, pelo aprendizado dos<br />

mestres, entre outros aspectos, o mamulengo está inserido numa<br />

sociedade complexa que articula valores múltiplos, dinâmicos e<br />

amplos. Justamente por articular uma rede social densa, o mamu-<br />

191<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


192<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas<br />

MÓIN-MÓIN<br />

lengo põe em questão noções demasiadamente restritas de cultura,<br />

cultura popular e localidade.<br />

Creio ser adequado mantê-lo sob essa tensão: a de que o mamulengo<br />

apesar de ser abordado em sua especificidade, possui, simultaneamente,<br />

significados diferenciados para os múltiplos atores internos<br />

e externos à Zona da Mata que com ele se relacionam, e entendo que:<br />

isso de forma alguma diminui a primazia a ser dada às<br />

realidades que as pessoas constroem, aos eventos que elas<br />

ocasionam, e às experiências que elas obtêm. Essas constatações,<br />

porém, forçam-nos a reconhecer que vivemos<br />

nossas vidas com uma consciência e um horizonte que<br />

não abrangem a totalidade da sociedade, das instituições<br />

e das forças que nos atingem. (BARTH, 2000: 137).<br />

A presença do mamulengo em diversos circuitos culturais e contextos,<br />

acredito, estabelece uma conexão com os principais movimentos<br />

brasileiros de valorização da cultura popular nos últimos anos. Vale<br />

dizer aqui que o mamulengo tornou-se também sinônimo para “teatro<br />

popular de bonecos do Brasil”. Esta idéia implementa-se na recepção<br />

do mamulengo em contextos internos e externos à Zona da Mata.<br />

Nesse sentido, legitimar o mamulengo através de tal sinônimo é também<br />

contribuir para a construção de uma imagem de Brasil. Os projetos<br />

de identidade nacional se apóiam em elementos e matrizes definidos<br />

como pertencentes à cultura popular brasileira. A “fábula das três<br />

raças”, uma idéia recorrente na análise de processos culturais e identitários<br />

brasileiros (DA MATA, 1984), encontra eco em alguns trabalhos<br />

de pesquisa sobre o mamulengo, sobretudo quando é preciso valorizar,<br />

legitimar ou recuperar as suas origens. Nessas abordagens a busca dos<br />

mitos e elementos supostamente fundacionais do Brasil é recorrente.<br />

E a difusão dessas idéias é repetida, tanto por meios de comunicação,<br />

quanto por trabalhos artísticos teatrais que se dizem inspirados ou alicerçados<br />

na pesquisa deste universo. Não que não seja possível encontrar<br />

elementos desta “fábula” no mamulengo, mas o que gostaríamos<br />

de problematizar, é a necessidade de justificar práticas apoiando-se no<br />

argumento de autoridade do “tipicamente nacional”.


MÓIN-MÓIN<br />

Assim, o mamulengo é evocado, muitas vezes, a partir de uma<br />

idealização, e não realmente daquilo que se verifica em campo.<br />

Parece-me, assim, que dentro das necessidades desses discursos,<br />

importa menos o que seria realmente o mamulengo, e mais a justificativa<br />

ideológica de algo genuinamente brasileiro. Além disso,<br />

um determinado conceito de cultura popular, que apóia a constituição<br />

de tais projetos, é uma idéia homogeneizadora, que impede<br />

observar os fenômenos dentro da dinâmica processual que lhes é<br />

própria, de enxergar quem são de fato seus atores e como agem.<br />

Há uma ideologia clara por trás de alguns autores e artistas e no<br />

modo como eles constroem suas definições acerca do mamulengo.<br />

Em muitos casos, transparece o desejo de se construir o projeto<br />

de um teatro nacional de “raízes populares”, em que os elementos do<br />

teatro popular sejam alçados e ganhem visibilidade no cânone teatral.<br />

Com esta reflexão, não pretendo me colocar numa posição de restringir<br />

ou policiar o campo de definições, ou atribuir um verdadeiro<br />

sentido ao mamulengo. Como o mamulengo também é constituído<br />

por esta imagem idealizada, o mais interessante seria entender o porquê<br />

da eficácia em evocar o mamulengo como justificativa de projetos<br />

de identidade nacional. Também não se trata de julgar quem<br />

pode ou não se definir como mamulengueiro, um debate recorrente<br />

nesse campo de tensões. O que está em jogo é entender os critérios<br />

de quem se define como tal e, a partir daí, problematizar conceitos<br />

e definições. Não acredito que esta discussão possa enfraquecer o<br />

trabalho dos mamulengueiros na Zona da Mata, os portadores deste<br />

conhecimento específico, até porque os processos de legitimação<br />

para tornar-se mestre mamulengueiro neste contexto, também têm<br />

se modificado nos últimos anos. Portanto, não se pode correr o risco<br />

de que sejam criados perfis estereotipados de mestres, baseados em<br />

noções ambíguas, como a idéia de que há um único mamulengo de<br />

“raiz”. A discussão é polêmica, há muitas maneiras de compreendêla,<br />

assim, é preciso ampliar e não dogmatizar o debate.<br />

Outros circuitos, novos contextos<br />

193<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


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Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas<br />

MÓIN-MÓIN<br />

A circulação do mamulengo por outros contextos que não o<br />

da Zona da Mata pernambucana pode ser compreendido de duas<br />

maneiras: de mamulengueiros que se estabelecem em lugares fora<br />

da Zona da Mata, oriundos ou não desta região; e dos próprios<br />

mamulengueiros da Zona da Mata circulando por outras cidades,<br />

Estados e países.<br />

Os mamulengueiros que se estabelecem fora da Zona da Mata<br />

constituem-se, basicamente, em dois tipos: de grupos formados<br />

por pessoas, que em geral, não são oriundas da Zona da Mata, mas<br />

que inspirados na “tradição” do mamulengo fazem um trabalho de<br />

recriação, fenômeno que voltou a se intensificar depois dos anos<br />

1990, em todo o Brasil, principalmente nas capitais; e de mamulengueiros,<br />

oriundos do Nordeste, não necessariamente da Zona<br />

da Mata, mas que por razões diversas migraram para outros lugares<br />

à procura de trabalho, e levaram o mamulengo em suas bagagens.<br />

Há um caso muito interessante do cearense Lupércio Freire<br />

Maia, que se estabeleceu no Acre como soldado da borracha, em<br />

1943, levando consigo sua mala de bonecos, com cerca de 25<br />

personagens (ANTUNES, 2001: 14 e 15). Em 2001, tinha 80<br />

anos, mas nunca deixou de se apresentar tanto nas colocações de<br />

seringal, quanto em pequenos municípios desta região, que faz<br />

fronteira com o Peru e a Bolívia. Apesar do novo contexto, ele<br />

mantém as características dos personagens, que se adaptaram à nova<br />

situação. Por todo Brasil podemos encontrar outros casos assim,<br />

como o de Waldeck de Garanhuns, artista estabelecido em São<br />

Paulo, ou do grupo Carroça de Mamulengos, constituído por integrantes<br />

da mesma família, fundado em 1977 por Carlos Gomide,<br />

e desde então se apresentam pelo Brasil, inspirados pelo contato<br />

que tiveram com bonequeiros populares do Ceará, Rio Grande<br />

do Norte e da Paraíba 1 . Em Brochado (2001), a autora estudou<br />

os mamulengueiros que se estabeleceram em Brasília, alguns dos<br />

quais teriam migrado no período da construção da cidade. Este<br />

1 Informações obtidas no sítio: http://www.carrocademamulengos.com.br


MÓIN-MÓIN<br />

fenômeno deixou um legado notável ainda hoje na cidade, através<br />

do trabalho de artistas como Chico Simões, Carlos Machado, entre<br />

outros, que foram buscar no mamulengo a força motriz de seus<br />

trabalhos, realizando uma espécie de “imersão” no brinquedo. Os<br />

grupos artísticos inspirados na “tradição” são muitos, e não contínuos,<br />

se fazem e se desfazem a todo instante, e quando divulgam<br />

seus trabalhos, apresentam-se como “recriadores do mamulengo”,<br />

podendo ou não ter ligação com os mamulengueiros da Zona<br />

da Mata, ou tendo ou não conhecimento prático do brinquedo<br />

propriamente dito. No entanto, há grupos fundamentados em<br />

pesquisa como o Mamulengo Só-Riso, fundado em 1975, cujo<br />

diretor, Fernando Augusto Santos é um autor importante no assunto<br />

(SANTOS, 1979). Fato é que o mamulengo tornou-se uma<br />

referência relevante no contexto de teatro de animação no Brasil<br />

e, pode-se até dizer, no mundo, se integrando ao vasto campo de<br />

estilos e técnicas do teatro de formas animadas.<br />

O segundo caso, de mamulengueiros da Zona da Mata deslocando-se<br />

para outras cidades, estados e países, para a realização<br />

de apresentações nesses lugares, para pequenas temporadas, participação<br />

em festivais, e outras formas de circulação de espetáculo, é<br />

outro fenômeno recorrente. Pode-se dizer que este é um fato recente<br />

relacionado aos movimentos de valorização da cultura popular, ou<br />

em períodos históricos de intensificação deste debate. Para entender<br />

esta dinâmica, há relevantes análises de Abreu (2006/2007),<br />

Cavalcanti (1992 e 2004), Peirano (1992) e Vilhena (1997) sobre<br />

aspectos históricos destes movimentos no Brasil, com enfoque no<br />

contexto destas discussões, genealogia de conceitos e sobre a relação<br />

entre os estudos de folclore e as ciências sociais. Há também uma<br />

interessante discussão sobre patrimônio em Gonçalves (2002) e<br />

sobre a problemática contemporânea de tensões com a indústria<br />

cultural em Carvalho (1992).<br />

No caso específico de Pernambuco, vale ressaltar alguns movimentos<br />

culturais importantes, que tiveram como foco o incentivo<br />

à cultura local, entre eles: o Teatro do Estudante de Pernambuco,<br />

195<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


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MÓIN-MÓIN<br />

criado em 1947, e dirigido por muitos anos, por Hermilo Borba<br />

Filho; que, posteriormente, influenciou a criação do Teatro Popular<br />

do Nordeste, em 1958, fundado por Ariano Suassuna e Hermilo<br />

Borba Filho, tendo direcionado uma parte de seus interesses ao<br />

estudo do teatro de bonecos (BORBA FILHO, 1987); depois,<br />

já nos anos 1960, vale destacar a ação do Movimento de Cultura<br />

Popular, idealizado por Paulo Freire, Hermilo Borba Filho, Ariano<br />

Suassuna, Francisco Brennand, entre outros, e que atuou no interior<br />

de Pernambuco, funcionando praticamente até o início da ditadura<br />

militar, conjugando educação e valorização da cultura popular.<br />

O Movimento Armorial é também uma importante referência<br />

nesta rede. Surgido na década de 1970 em Pernambuco, foi<br />

um movimento artístico e cultural que tinha por princípio pensar<br />

uma arte brasileira erudita com referências na cultura popular. Dele<br />

participaram muitos intelectuais, entre eles o escritor e dramaturgo<br />

Ariano Suassuna, o gravurista e artista plástico Gilvan Samico, o<br />

músico e compositor Antonio Madureira, fundador do Quinteto<br />

Armorial, integrado por Antônio Nóbrega, entre outros. Na virada<br />

dos anos 1980 e 1990, é necessário destacar o Movimento<br />

Mangue Beat (ou Bit), cujo principal expoente foi Chico Science,<br />

falecido em fevereiro de 1997, integrante do grupo Nação Zumbi.<br />

O princípio do movimento era e, ainda é, reelaborar com uso da<br />

tecnologia elementos musicais da cultura regional.<br />

Em relação ao mamulengo propriamente, podemos destacar<br />

o I Encontro de Mamulengos do Nordeste, que ocorreu em<br />

dezembro de 1976, em Natal – RN. De Pernambuco, compareceram<br />

o Mamulengo Invenção Brasileira, provavelmente de Luiz<br />

da Serra, e o Mamulengo de João Redondo 2 , cujo mamulengueiro<br />

não consegui identificar. O I Encontro de Mamulengueiros de<br />

Pernambuco foi organizado pelo Mamulengo Só-Riso, em 1977.<br />

Estes encontros previam apresentações destes artistas, promovendo<br />

2 Um brevíssimo relatório do encontro pode ser verificado na Revista Mamulengo (dezembro<br />

de 1977, ano 3, número 6), editada pela ABTB (Associação Brasileira de Teatro de<br />

Bonecos) p. 49-51.


MÓIN-MÓIN<br />

seus deslocamentos para outras cidades, que não as das suas zonas<br />

de atuação, como Recife e Olinda.<br />

Já nos anos 1990, se intensificaram os contratos fora de Pernambuco,<br />

inclusive para fora do Brasil. O mamulengueiro Zé<br />

Lopes 3 se apresentou no Festival de Marionetes em Évora, Portugal<br />

(ZURBACH, 2002), e também fez exposição de bonecos no Rio de<br />

Janeiro, por duas vezes, em agosto de 1998 (ABREU, ALCURE &<br />

PACHECO, 1998) e em abril de 2001, além de diversas apresentações.<br />

O mamulengueiro Zé de Vina 4 vem ao Rio de Janeiro, pela<br />

primeira vez, em novembro de 1998, volta em 2001, depois em<br />

2007, ambas as oportunidades trazidas por mim, pela bonequeira<br />

Ananda Machado e outros companheiros. Desde 2004, o SESI vem<br />

organizando um grande evento, sob a forma de um festival itinerante,<br />

intitulado SESI Bonecos do Mundo 5 , e tem levado diversos<br />

mamulengueiros, brincantes de João Redondo e de Babau para<br />

circularem pelo Brasil. No evento, onde se apresentam grupos de<br />

teatro de bonecos tanto do Brasil, quanto estrangeiros, há destaque<br />

para o mamulengo, como o “legítimo teatro de bonecos do Brasil”,<br />

e em algumas edições construiu-se um dos pavilhões dedicados à<br />

exposição sobre as origens do boneco, com curadoria de Fernando<br />

Augusto Santos, com bonecos de diversos mamulengueiros, de<br />

diversas épocas, provenientes do acervo do Museu do Mamulengo,<br />

Espaço Tiridá, de Olinda. Nos últimos anos têm acontecido diversos<br />

encontros focados no mamulengo ou sobre teatro de bonecos<br />

em geral que incluem os mamulengueiros e outros brincantes das<br />

formas de teatro de bonecos popular do Nordeste em suas programações,<br />

em diversas cidades brasileiras como Brasília, São Paulo,<br />

Belo Horizonte, entre outras.<br />

3 José Lopes da Silva Filho nasceu em 21 de outubro de 1959, reside atualmente em Glória<br />

do Goitá-PE.<br />

4 José Severino dos Santos, conhecido também como Zé do Rojão ou ainda Zé Divina,<br />

nasceu em 14 de março de 1940, reside atualmente em Lagoa de Itaenga-PE.<br />

5 Informações sobre o evento podem ser encontradas no sítio: http://www.sesibonecos.com.br<br />

197<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


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MÓIN-MÓIN<br />

Outro ponto interessante são as oficinas e cursos onde mamulengueiros<br />

mais experientes, formam outros mamulengueiros,<br />

como, por exemplo, o trabalho do Centro de Revitalização do<br />

Mamulengo Pernambucano, espaço inaugurado em 2002, no antigo<br />

mercado público, em Glória do Goitá, apoiado pelo Programa<br />

de Artesanato Solidário 6 . O objetivo era revitalizar o mamulengo,<br />

a partir de oficinas e da criação de uma cooperativa de artesãos,<br />

transformando Glória do Goitá, juntamente com Olinda, em dois<br />

grandes pólos de produção de bonecos e de mamulengueiros. As<br />

oficinas eram ministradas por Zé Lopes, que vem, desde 1998,<br />

tendo a oportunidade de experimentá-las por todo o Brasil, com<br />

público de características variadas. Em visita ao mestre mamulengueiro<br />

Zé de Vina, em Lagoa de Itaenga, em julho de 2010, este me<br />

revelou que está construindo um quarto em sua casa para receber<br />

pesquisadores e artistas de diversos lugares, que costumam visitá-lo,<br />

seja para fazerem pesquisas, seja para se tornarem seus “aprendizes”.<br />

Se analisarmos os processos de aprendizado e transmissão, que<br />

classificaremos aqui, por hora, de “tradicionais”, para uma pessoa<br />

“tornar-se mestre” de mamulengo 7 , em contraste com estas novas<br />

experiências, fica evidente, que elas também indicam prenúncios<br />

destes novos tempos.<br />

Mais uma questão relevante é o fato de que vários municípios<br />

da Zona da Mata têm realizado projetos voltados para o reconhecimento<br />

das expressões populares locais, elegendo as mais influentes<br />

de suas localidades como imagem de propaganda turística de suas<br />

cidades. Em viagem à Zona da Mata, em julho de 2010, observei<br />

diversos outdoors nas vias de acesso a estes municípios, divulgando<br />

sua identidade peculiar através dessas expressões. É o caso de Glória<br />

6 Projeto do governo federal implantado ainda na gestão de Fernando Henrique Cardoso,<br />

e cujo coordenador era o pesquisador e bonequeiro Fernando Augusto Santos<br />

que teve o apoio também da Prefeitura Municipal de Glória, Caixa Econômica<br />

Federal, Comunitas, SEBRAE, Banco Mundial, e do Centro de Produção Cultural<br />

Mamulengo Só Riso.<br />

7 Faço esta análise em Alcure (2007).


MÓIN-MÓIN<br />

do Goitá, conhecida agora como o “berço do mamulengo”, como<br />

podemos conferir na imagem que segue.<br />

Foto de Adriana Schneider Alcure<br />

O mamulengo da Zona da Mata no Rio de Janeiro<br />

Ao acompanhar apresentações de mamulengueiros, em especial,<br />

de Zé Lopes e Zé de Vina realizadas no Rio de Janeiro,<br />

em locais diversos 8 , pude observar a relação que estabelecem com<br />

platéias bastante distintas e heterogêneas. Nessas relações estão<br />

implicadas: a qualidade das respostas do público às propostas do<br />

mamulengueiro; a reação da platéia ao próprio mamulengo; a<br />

escolha dos personagens e passagens que serão encenadas em determinadas<br />

apresentações; a duração do espetáculo; a qualidade<br />

da apresentação; e a satisfação ou não dos integrantes do mamulengo<br />

com os elementos novos que surgem na improvisação<br />

a partir dos estímulos e experiências vividas durante a viagem,<br />

8 Dessa variedade, destaco: escolas, para crianças de dois a 15 anos, para estudantes<br />

em universidades, na Feira de São Cristóvão na manhã de domingo para muitos<br />

conterrâneos nordestinos, Museu de Folclore, casas de familiares, para admiradores e<br />

apreciadores do brinquedo.<br />

199<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


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MÓIN-MÓIN<br />

entre outros aspectos.<br />

Em quase todas essas apresentações pude notar um estranhamento<br />

inicial do público em relação ao mamulengo. Entre outras<br />

reações quanto à recepção, pude notar a existência de uma idéia<br />

generalizada sobre o teatro de bonecos, de que seja um espetáculo<br />

próprio do universo infantil, e essa expectativa orientava o público<br />

em relação ao que se assistia. Como o teatro de mamulengos é<br />

destinado ao público em geral, tendendo para adultos, a reação da<br />

platéia era inevitável.<br />

A temática das passagens do mamulengo versa sobre o cotidiano,<br />

tratando, em geral, de assuntos ligados a dinheiro, briga e sexo,<br />

como diz Zé de Vina: “dinheiro, mulher e gente, é que bota o samba<br />

pra frente”. Os bonecos brigam, utilizando peixeiras, facões, cordas,<br />

e sempre há morte. Os personagens de status social supostamente<br />

elevado, como o Inspetor Peinha, o Cabo 70, o Coronel Mané<br />

Pancaru, sempre levam a pior, apanhando de mulheres loucas, de<br />

homens espertos, ou de velhos com problemas de dicção. Quando o<br />

assunto é sexo, as situações envolvem casamentos desfeitos, relações<br />

extraconjugais, gravidez duvidosa, viúvas fogosas, homens namoradores.<br />

A movimentação dos bonecos procura explorar a graça das<br />

situações, como, por exemplo, quando Colotilde e Simão dançam<br />

forró, e ele amassa a boneca num canto da empanada, enquanto<br />

ela mexe os quadris sensualmente. No mamulengo, os personagens<br />

vomitam porque beberam demais, ou abrem a boca para dar passagem<br />

a uma enorme minhoca, como se o boneco estivesse tomado<br />

por vermes. Para o mamulengueiro essas são situações altamente<br />

risíveis, certas de levar o público às gargalhadas.<br />

Ao espectador carioca desavisado, porém, elas pareciam estranhas,<br />

e muitas vezes ouvi na audiência comentários do tipo<br />

“que horror!”, “mas isso é uma grosseria!”, “que pouca vergonha!”,<br />

“quantos palavrões!”, “isso não é para criança ver!”. Em algumas<br />

escolas, as professoras ficaram constrangidas e fizeram comentários<br />

semelhantes. A dimensão desse fato foi notada alguns meses<br />

depois, na vinda de Zé de Vina ao Rio de Janeiro, quando se mos-


MÓIN-MÓIN<br />

trou muito difícil agendar apresentações nos lugares pelos quais<br />

Zé Lopes havia passado. No entanto, quando percebemos que<br />

era necessário um esclarecimento a respeito do contexto social no<br />

qual está inserido o mamulengo, as apresentações foram mais proveitosas,<br />

pois os professores puderam fazer, antes do espetáculo,<br />

um trabalho de contextualização do mamulengo para seus alunos.<br />

Sem problematizar aqui a noção de cultura popular, essas<br />

situações demonstram que a idealização do que seja a cultura<br />

popular entra em conflito com a realidade da cultura popular<br />

quando exposta. Existe uma distância entre sua manifestação real<br />

e os padrões estéticos e éticos que permeiam os valores da classe<br />

média. A “folclorização” destas expressões impede que ela seja vista a<br />

partir de sua lógica interna, por vezes não facilmente digerível para<br />

quem se interesse em entrar em contato com ela. A compreensão da<br />

cultura popular em si exige uma iniciação contextual que leve em<br />

conta o entendimento da alteridade e da diversidade de culturas e<br />

valores existentes nas sociedades. O estereótipo da cultura popular<br />

que vem sendo propagado, por meio do politicamente correto e de<br />

justificativas nacionalistas, é recorrente, por exemplo, na maneira<br />

como o folclore ainda é ensinado nas escolas. A cultura popular<br />

precisa ser entendida em suas muitas especificidades e, principalmente,<br />

particularidades contextuais, com códigos, estéticas e éticas<br />

próprios a cada universo em questão.<br />

No Rio de Janeiro, Zé Lopes foi notando esse estranhamento,<br />

e pensamos juntos a respeito, tentando fazer com que os espetáculos<br />

pudessem ser mais bem apreciados. Ele, então, criou uma<br />

apresentação, que fazia comigo, fora da barraca, antes de começar<br />

o mamulengo. Juntos, contávamos como teria sido a origem do<br />

mamulengo, e Zé Lopes se reportava ao canavial, e ao tempo em<br />

que fazia boneco em maniva, cortados na mandioca (aipim ou<br />

macaxeira). Isso situava o universo do mamulengo e minimizava os<br />

estranhamentos da linguagem utilizada por ele. Também passamos<br />

a escolher as passagens que melhor se adaptariam ao público de<br />

cada apresentação. No início, Zé Lopes selecionava as passagens<br />

201<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


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MÓIN-MÓIN<br />

que, segundo sua opinião, obtinham mais sucesso nas apresentações<br />

que fazia em Pernambuco, mas eram justamente as passagens que<br />

mais atordoavam o público do Rio de Janeiro. Assim, começamos<br />

a mesclar essas passagens com outras menos polêmicas, segundo<br />

ele, passagens do que ele definiu para mim como sendo do “mamulengo<br />

tradicional”.<br />

Já na Feira de São Cristóvão, ponto de encontro para os nordestinos<br />

no Rio de Janeiro, por exemplo, Zé Lopes ficou à vontade.<br />

Era um domingo, horário de almoço, fim de festa na Feira.<br />

A apresentação foi “quente”, e o público parecia extremamente<br />

familiarizado com o brinquedo, dialogando com os bonecos. Os<br />

bêbados entusiasmaram-se e ficaram dançando em frente à barraca,<br />

como nas apresentações nos sítios na Zona da Mata. Ofereciam goles<br />

de cachaça aos bonecos, mexiam nas saias das bonecas, tentavam<br />

levantar os personagens mortos. Mesmo competindo com os carros<br />

e aparelhos de som e com os muitos trios de forró da Feira, Zé Lopes<br />

saiu-se muito bem, não se preocupando em selecionar as passagens.<br />

Aos poucos fui também me familiarizando com a brincadeira<br />

propriamente dita e comecei a distinguir as passagens que Zé Lopes<br />

definia como mamulengo “tradicional”, que, segundo ele, se “perdiam<br />

na origem”, porque eram muito antigas. Essas interferências<br />

foram enriquecendo a diversidade das passagens que ele ia colocando<br />

nas apresentações cariocas. Segundo ele, a opção por apresentar<br />

determinadas passagens levava em consideração a preferência do<br />

público do mamulengo da Zona da Mata, para quem Zé estava<br />

mais habituado a se apresentar. Lá, as passagens preferidas eram as<br />

de Joaquim Bozó e João Redondo da Alemanha, do Nêgo Goiaba,<br />

de Praxédio, de Simão, com muita pancadaria e situações amorosas.<br />

Assim, a partir da observação da recepção do público carioca, e a<br />

seleção de outras passagens, pudemos conhecer o Bambu e a Morte,<br />

a Cobra e Caso Sério, os Caboclinhos, o Xangozeiro, o Janeiro<br />

Vai Janeiro Vem, o Cego e a Guia, os Cantadores, entre outras. De<br />

acordo com Zé Lopes, essas passagens eram bem “tradicionais”, e<br />

ele não imaginaria que fossem fazer tanto sucesso, como acabaram


MÓIN-MÓIN<br />

fazendo, no Rio de Janeiro.<br />

Todas as apresentações tinham duração de aproximadamente<br />

60 minutos, o que rendia em média quatro passagens por brincadeira.<br />

Em alguns dos novos circuitos citados na primeira parte<br />

deste artigo, a brincadeira não ultrapassa 30 minutos. Esse tempo<br />

de duração é bem diferente das apresentações que ocorrem para o<br />

público do mamulengo na Zona da Mata, onde o brinquedo não<br />

tem hora para acabar, podendo “ver o dia raiar”, e onde muitas<br />

vezes uma única passagem pode durar 60 minutos. Mas o ponto é:<br />

muitos mamulengueiros têm consciência dessa distinção e jogam<br />

com isso. Esta questão do tempo de apresentação em outros circuitos<br />

não “tradicionais” tem provocado debates entre os produtores<br />

destes eventos e pesquisadores ou artistas ligados ao mamulengo.<br />

O argumento para o limite do tempo baseia-se, nem sempre, na<br />

problemática da qualidade de apreciação e recepção em contextos<br />

não familiares ao mamulengo, ou ainda na capacidade individual<br />

de cada mamulengueiro em conduzir o seu brinquedo, mas, muitas<br />

vezes, em pressupostos artísticos e estéticos, que deveriam ser<br />

discutidos e não naturalizados por critérios de “gosto cultural”.<br />

Considerações finais<br />

O que presenciei nas apresentações no Rio de Janeiro se revelou<br />

esclarecedor em relação à capacidade do mamulengo em circular por<br />

diversos contextos. Esta observação colocava em xeque uma idéia<br />

recorrente de que o mamulengo necessitaria de uma identificação<br />

contextual para ser melhor compreendido. Sem negar esse fato,<br />

me deparei com outros. Em primeiro lugar a própria constituição<br />

do mamulengo como brinquedo, seus elementos, seu universo<br />

múltiplo de personagens e passagens, sua estrutura que relaciona a<br />

todo o momento enredo e improviso, se mostraram extremamente<br />

adequados para atravessar não só décadas, fato atestado pela existência<br />

de longa duração do mamulengo, mas também para circular<br />

por diferentes espaços. O reconhecimento contextual, na verdade,<br />

acelerou os processos de adaptação ao brinquedo, tanto por parte<br />

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do público carioca, que teve que se despir de preconceitos e idealizações<br />

sobre a cultura popular para entender o mamulengo, bem<br />

como por parte dos mamulengueiros que tiveram que reconhecer<br />

os novos locais onde estavam se apresentando, demonstrando e<br />

colocando seu próprio conhecimento sobre o mamulengo em ação.<br />

Enfim, são muitos os dados que se apresentam no novo contexto<br />

de produção cultural e artística brasileira como um todo.<br />

Nos últimos anos, diversos projetos foram lançados por todas as<br />

instâncias governamentais para a discussão e promoção da cultura<br />

popular brasileira, através de editais de fomento, de prêmios para<br />

mestres populares, de<br />

seminários de discussão,<br />

de processos de<br />

registro para o patrimônio<br />

imaterial 9 .<br />

Também diversas<br />

empresas privadas e<br />

públicas têm criado<br />

editais de patrocínio<br />

a projetos de pesquisa<br />

específicos para<br />

este segmento, bem<br />

como ao patrocínio<br />

de grupos e artistas<br />

Banner exposto na parede<br />

da casa de Zé de Vina<br />

sobre o Prêmio Culturas<br />

Populares 2009 - SID/<br />

MINC recebido por<br />

ele. Foto de Adriana<br />

Schneider Alcure.<br />

9 Nesse momento, ocorre o processo de pesquisa para o registro como patrimônio<br />

imaterial pelo IPHAN das formas de teatro de bonecos popular do Nordeste: o Mamulengo<br />

- PE, o Babau - PB, o João Redondo - RN e o Cassimiro Coco - CE.


MÓIN-MÓIN<br />

populares. A diferença é notável e, seguramente, muito precisa ser<br />

discutido, repensado, aprimorado.<br />

Numa conversa com Zé Lopes em sua casa, em julho de 2010,<br />

ele fez questão de expressar suas opiniões a respeito destas novas<br />

possibilidades. Em sua reflexão, há o reconhecimento positivo nas<br />

mudanças, mas também há o incômodo com a dificuldade em lidar<br />

com os mecanismos de subvenção e, por conseqüência, na falta de<br />

autonomia que ele deveria ter para acessá-los. A dificuldade existente<br />

nos meios de apresentação de projetos implica, ainda, na necessidade<br />

da tutela e da mediação por parte de pesquisadores e produtores,<br />

constituindo um obstáculo para a autonomia dos artistas. Em suas<br />

próprias palavras: “é como se tivessem colocado um tesouro no fundo<br />

do oceano e nos dissessem que podemos mergulhar pra buscá-lo,<br />

porque é nosso. Mas, como, se não temos os aparelhos para mergulhar<br />

em águas profundas, se não sabemos nadar?”<br />

Oficina de construção de bonecos de Zé Lopes, vizinho a sua casa em Glória do<br />

Goitá. Foto de Adriana Schneider Alcure.<br />

205<br />

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206<br />

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Cultura, 1998.<br />

ALCURE, Adriana Schneider. Mamulengos dos mestres Zé Lopes e<br />

Zé de Vina: etnografia e estudo de personagens. Dissertação<br />

(Mestrado em Teatro). Centro de Letras e Artes. Programa<br />

de Pós-Graduação, UNIRIO, 2001.<br />

________________________. A Zona da Mata é rica de cana e<br />

brincadeira: uma etnografia do mamulengo. Tese (Doutorado<br />

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207<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


208<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas<br />

MÓIN-MÓIN<br />

Festivais de<br />

Teatro de<br />

Animação<br />

no Brasil<br />

(2000-2009)<br />

Miguel Vellinho<br />

Universidade Federal<br />

do Estado do Rio de<br />

Janeiro - UNIRIO


MÓIN-MÓIN<br />

PÁGINA 208: SESI Bonecos - Recife (2008 – PE). Foto de Sérgio Schnaider. E abaixo:<br />

Tradicional desfile de bonecos do Festival Internacional de Teatro de Bonecos Canela<br />

(RS). Foto para divulgação / Acervo Fundação Cultural de Canela.<br />

PÁGINA 209: Festival Espetacular de Teatro de Bonecos - Curitiba (PR). Foto de<br />

Elenize Dgeniski. E abaixo: Banda Salsicha Recheada no FITB - Belo Horizonte<br />

(2008 - MG). Cia Caixa do Elefante - RS. Foto de Guto Muniz.<br />

209<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


210<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas<br />

MÓIN-MÓIN<br />

Resumo: O movimento teatral dos festivais brasileiros dedicados ao boneco e ao<br />

Teatro de Animação passou, nesta primeira década do século XXI, por transformações<br />

intensas para um período tão curto. Se em fins da década de 1990 o quadro era de<br />

comodismo em pautar e repetir atrações de sucesso garantido nos poucos festivais que<br />

existiam até então, com a virada do século, novos personagens, vindos de dentro e de fora<br />

do meio teatral, deram um fôlego novo a um mercado que parecia minguar. A circulação<br />

intensa nesses novos festivais pode realimentar grupos antigos a platéias novas, garantiu a<br />

popularização dos grupos surgidos nesses últimos dez anos e alimentou o sonho de novos<br />

criadores a embarcar em um circuito que, a cada ano, só tende a crescer. O presente estudo<br />

busca entender as razões, nem sempre muito claras, do comportamento dos organizadores<br />

e curadores brasileiros e permite conhecer um pouco mais este veio de produção.<br />

Palavras-chave: Festivais de teatro de animação; teatro de bonecos do Brasil; transformações<br />

no teatro de animação do Brasil.<br />

Abstract: At the beginning of the 21st century, the theatrical activity associated<br />

with Brazilian festivals dedicated to the puppet and to puppet theatre has passed<br />

through intense transformations in a very short period of time. If at the end of the<br />

90s the frame was that of complacency, with the few festivals in existence until that<br />

point presenting and repeating attractions whose success was guaranteed, with the turn<br />

of the century new figures, coming from within and from outside the theatre scene,<br />

gave new wind to a market that had appeared to be in decline. The intense circulation<br />

of groups in these new festivals was able to nourish old groups and new audiences, it<br />

guaranteed the popularization of the groups ermerging over the last ten years and it<br />

sustained the dreams of new creators to be able to enter a circuit which now, with each<br />

year, only tends to expand. The current study looks to understand the reasons for the<br />

actions of Brazilian organizers and curators, which are not always very clear, and to give<br />

the reader an opportunity to get to know a little more about this vein of production.<br />

Key-words: Puppet theatre festivals; Brazilian puppet theatre; transformations<br />

in Brazilian puppet theatre.


MÓIN-MÓIN<br />

Os festivais de Teatro de Animação no Brasil são, já se disse,<br />

a grande escola do artista nacional que opta em usar os bonecos<br />

como meio de expressão artística. Mais que isto: é o momento em<br />

que afinidades se alinham podendo gerar um perfil de produção<br />

compartilhada. Mais que um encontro ou uma “celebração do<br />

conhecimento”, um festival é capaz de tangenciar uma vertente do<br />

amplo espectro do Teatro de Animação e ser um fator preponderante<br />

na concepção de novos espetáculos.<br />

Esse fenômeno é bastante comum desde as primeiras edições<br />

dos festivais promovidos pela ABTB – Associação Brasileira de<br />

Teatro de Bonecos, nos idos dos anos 1970. Ali, um primeiro<br />

alinhamento de produção fez surgir uma geração de artistas atenta<br />

às renovações que uma nova cena exigia e onde as primeiras experimentações<br />

para outros públicos que não o infantil surgiram. Os<br />

festivais da ABTB também serviram de laboratório para as primeiras<br />

experiências com novas técnicas, vistas, até então, somente em<br />

palcos europeus. Essa geração teve em Washington, em 1980, um<br />

encontro de proporções únicas e que foi definidor de uma nova<br />

proposta para a década seguinte: a busca do apuro técnico e maior<br />

amplitude temática 1 . Nesse festival, o Teatro de Bonecos brasileiro<br />

passou a conhecer e entender as amplitudes que o Teatro de Animação<br />

pode abranger.<br />

Coube também a essa geração propagar dentro da ABTB o perfil<br />

que os futuros festivais nacionais deveriam ter, no sentido de contemplar<br />

aspectos diversos para a formação do artista nacional. Espelhados nessa<br />

geração, nas décadas seguintes, novos protagonistas tomaram a frente de<br />

ampliar o projeto de uma grande rede de festivais de Teatro de Animação<br />

espalhada pelo país. Com perfis múltiplos, alguns demonstraram ter<br />

mais fôlego que outros. Aos poucos, os festivais foram se descolando<br />

1 Em 1980, realizou-se em Washington (EUA) o XIII Festival Internacional de Teatro<br />

de Bonecos, promovido pela UNIMA – Union International de la Marionnette, ao<br />

qual o Brasil compareceu com uma delegação oficial patrocinada pelo SNT – Serviço<br />

Nacional de Teatro, coordenada por Humberto Braga. Dados obtidos em ABRAM-<br />

OVICH, Fanny: 1981 e BRAGA, Humberto: 2009.<br />

211<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


212<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas<br />

MÓIN-MÓIN<br />

das associações regionais da ABTB e passaram a assumir um perfil de<br />

outra natureza, mais próximo dos festivais de Teatro dedicados a outras<br />

vertentes que não a da Animação.<br />

Com 22 edições, desde 1988, a cidade de Canela (RS), localizada<br />

na Serra Gaúcha, abriga hoje o mais antigo festival do<br />

gênero no país, e é um exemplo desse descolamento do antigo<br />

formato dos festivais de associação para iniciativas público-privadas.<br />

Nascido dentro da AGTB – Associação Gaúcha de Teatro<br />

de Bonecos, o Festival de Canela, sob a coordenação de Antonio<br />

Carlos Sena, herdou de outra cidade a chance de sediar um grande<br />

evento internacional, graças ao fato de Caxias do Sul (RS) ter<br />

desistido de abrigar a segunda edição do evento. Canela apareceu<br />

como candidata ideal para substituir a cidade da primeira edição,<br />

pois já abrigava na época um festival de teatro e, portanto, tinha<br />

know-how e infra-estrutura para abrigar outro perfil de Teatro na<br />

cidade. Com o apoio de autoridades locais e estaduais, o Festival<br />

de Canela rapidamente firmou-se durante a década de 1990 como<br />

a mais importante mostra ligada ao Teatro de Bonecos no país.<br />

Recebeu as mais importantes companhias e grupos nacionais e<br />

internacionais, dando à cidade uma visibilidade jamais alcançada<br />

em qualquer outro evento.<br />

A partir de 1999, o Festival Internacional de Teatro de Bonecos<br />

de Canela desligou-se da AGTB e a coordenação do evento passou<br />

para a Fundação Cultural de Canela, sob os cuidados da publicitária<br />

Marina Gil. Tal Fundação tem um caráter público-privado e se<br />

organiza em um conselho representado por pessoas ligadas à comunidade<br />

da cidade e que visa à manutenção de políticas culturais no<br />

município. Segundo Marina Gil, o desligamento da AGTB gerou<br />

uma oxigenação na programação, que ficou “menos corporativa” e<br />

sem a necessidade de abarcar os mesmos grupos associados todo ano.<br />

Certamente essa não é a visão da AGTB. Para muitos bonequeiros<br />

gaúchos, a ruptura provocada pela Fundação Cultual deixou a<br />

impressão de apropriação indevida da ação criada e realizada inteligentemente,<br />

durante 11 anos pela Associação, sob a liderança de


MÓIN-MÓIN<br />

Antonio Carlos Sena. Boa parte das tensões geradas na época já foi<br />

superada, mas ainda restam pontos divergentes sobre o acontecido<br />

que o tempo se encarregará de atenuar.<br />

Na primeira edição, sob a coordenação da Fundação Cultural<br />

de Canela, a cidade ganhou mais um novo palco para abrigar o<br />

festival, a Casa de Pedra, uma antiga reivindicação da organização do<br />

evento nos anos anteriores, porque havia a necessidade de ampliação<br />

nas suas opções de espaços cênicos na cidade. Essa sinalização<br />

demonstra que havia um interesse crescente de toda a população<br />

pela manutenção de um festival desse porte na cidade.<br />

Marina Gil evidencia um foco na programação centrada em<br />

um público que “movimenta a economia da cidade” durante os dias<br />

de festival. Esse impacto comercial e financeiro vem gerando alterações<br />

claras na programação ao longo da última década. Canela vem<br />

aprofundando cada vez mais seus laços com essa arte e é visível sua<br />

permanência na cidade fora da época do evento. É possível destacar<br />

ações como o Ponto de Cultura Bonecos Canela, coordenado por<br />

Nélson Haas e o projeto Bonequeiros Mirins, que promove oficinas<br />

permanentes de Teatro de Bonecos nas escolas do município.<br />

Entretanto, o festival perdeu ao deixar de contemplar espetáculos<br />

de caráter mais investigativo e de pesquisa, sejam eles nacionais<br />

ou internacionais, e que têm borrado as fronteiras do Teatro<br />

de Animação em geral. Tampouco promove ações de difusão de<br />

conhecimento, como palestras e seminários, atividades comuns na<br />

época em que o Festival era realizado em parceria com a AGTB em<br />

outros encontros desse tipo. Com uma margem mínima de risco, o<br />

festival tenta abarcar espetáculos com objetos ou híbridos com dança<br />

e atores. No entanto, na visão de Marina, há uma visível resistência<br />

a isso por parte da comunidade, que soube se enxergar nos bonecos.<br />

Canela – segundo Marina Gil – “quer ver a mágica, o que surpreende,<br />

o inesperado”. Esse aspecto do títere como entretenimento vem<br />

dominando a programação das edições desse festival nesta década.<br />

Evidentemente, há uma parcela grande da produção dedicada<br />

aos bonecos que se utiliza desse apelo para encontrar seu público.<br />

213<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


214<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas<br />

MÓIN-MÓIN<br />

Porém, a existência de um festival serve também para pensar e,<br />

sobretudo, demonstrar que tipo de contaminações essa arte vem<br />

vivenciando, sem perder, é claro, a comunicabilidade irresistível que<br />

os bonecos sempre tiveram. E, nesse quesito, o público de Canela<br />

já está mais do que conquistado.<br />

A novidade da década foi o surgimento de um festival em Belo<br />

Horizonte (MG), cidade tradicionalmente conhecida pelo seu polo<br />

de produção no gênero, graças ao trabalho de Álvaro Apocalypse,<br />

Terezinha Apocalypse e Maria do Carmo V. Martins - Madu,<br />

que, juntos, no início dos anos 1970, realizaram um Teatro de<br />

Animação com requintes ainda não vistos no país até então. E é<br />

importante destacar que esse teatro refinado era feito, criado fora<br />

do eixo Rio-São Paulo, os dois pólos da produção nacional. Com<br />

uma trajetória ímpar, o grupo Giramundo ganhou notoriedade e<br />

atentou aos olhares estrangeiros que o Brasil possuía além de diversas<br />

manifestações do teatro de bonecos popular como o mamulengo,<br />

um teatro de bonecos contemporâneo e de grande refinamento<br />

técnico e artístico. Este grupo plantou na capital mineira uma<br />

cena fértil e criou um público atento e receptivo ao gênero. Mas<br />

faltava potencializar esse espaço e coube a outro grupo mineiro, o<br />

Catibrum Teatro de Bonecos, surgido no início da década de 1990,<br />

a tarefa de criar em Belo Horizonte um festival sem igual no país.<br />

Hoje, o Festival Internacional de Teatro de Bonecos (FITB) é uma<br />

referência até no exterior com 11 edições e com mais de duzentos<br />

grupos diferentes convidados ao longo da década.<br />

Se Canela exemplifica a transição dos festivais de associação<br />

para o novo formato, em Belo Horizonte o caráter é totalmente<br />

privado e nascido dentro de uma companhia de Teatro de Bonecos.<br />

Segundo Lelo Silva, diretor da Catibrum e mentor do FITB,<br />

a idéia da criação de um festival veio do fato de a Catibrum querer<br />

aprender mais, crescer mais e ampliar as iniciativas de intercâmbio<br />

na cidade, no estado e no país na época. Embora Lelo questione<br />

essa herança deixada pelos fundadores do Giramundo, é fato que o<br />

festival é muitíssimo bem recebido pela comunidade mineira, que


MÓIN-MÓIN<br />

sabe relacionar os feitos de outrora do pioneiro Giramundo com<br />

a atual curadoria inquieta e atenta às últimas novidades no campo<br />

da Animação. Esse caráter grandioso e que abarca muitos públicos<br />

diferentes dentro do mesmo festival faz hoje do FITB um evento<br />

de proporções e ambições maiores que Canela, graças a um olhar<br />

voltado para a apreciação da dramaturgia no âmbito das Formas<br />

Animadas. Essa qualidade intrínseca, observada com clareza nas<br />

edições do FITB, deu ao Catibrum a possibilidade de vislumbrar<br />

a criação de uma rede de festivais pelo país, dividindo os custos de<br />

atrações internacionais com outros festivais do país, ligados ou não<br />

ao universo da Animação. Assim, o FITB tornou-se irradiador de<br />

atrações para Canela, para um festival de vida breve em São Paulo e<br />

para Curitiba e Florianópolis. O Festival Internacional de Londrina<br />

(FILO), que não é dedicado ao Teatro de Animação, e a Mostra<br />

Internacional de Teatro (MIT), que acontece no Rio de Janeiro,<br />

também entram na parceria.<br />

Esse esboço de rede, no entanto, ainda não está consolidado.<br />

Lelo Silva lamenta, sobretudo, a falta de crença dos outros organizadores<br />

nas atrações pinçadas por ele em festivais europeus. Queixase<br />

que muitos festivais apenas entram no circuito e não trançam<br />

suas próprias visões sobre o que significa uma curadoria e por que<br />

motivos tais atrações estão reunidas naquela edição de determinado<br />

festival. Esse choque de interesses é um dado interessante sobre<br />

o vasto campo de investigações em que o Teatro de Animação<br />

se transformou com o passar dos anos. O que o público de Belo<br />

Horizonte quer ver pode não ter ressonância nas expectativas dos<br />

gaúchos que sobem a serra para ver algo mais fantástico que as<br />

neves ocasionais. Obviamente não estamos falando de qualidade,<br />

mas de foco, algo além e acima.<br />

Em uma década de existência do FITB, Lelo Silva e Adriana<br />

Focas souberam imprimir um panorama verdadeiramente global<br />

e atualizado das manifestações com bonecos pelo mundo. E foram<br />

além – usaram o próprio festival como espaço de estudo, com a<br />

criação de oficinas durante o evento, aprofundando as relações do<br />

215<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


216<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas<br />

MÓIN-MÓIN<br />

público e abrindo portas para que novos criadores tivessem contato<br />

com grandes especialistas na área da Animação.<br />

Outro evento nascido nesta década é o Festival de Formas<br />

Animadas de Jaraguá do Sul, cidade do interior catarinense com<br />

pouco mais de cem mil habitantes e que se assemelha a Canela<br />

em termos de absorção da cultura do boneco em sua comunidade.<br />

A idéia deste festival nasceu dos interesses comuns do Governo<br />

do Estado e da Sociedade Cultura Artística de Jaraguá do Sul<br />

– SCAR em abrigar um festival de teatro na cidade e fazer do<br />

imponente prédio desta mesma sociedade a sede de uma mostra<br />

dedicada ao Teatro de Formas Animadas. Com dez edições realizadas<br />

até este ano de 2010, o grande diferencial desse encontro<br />

está na existência do Seminário de Estudos sobre Teatro de Formas<br />

Animadas, coordenado pelo Professor Dr. Valmor Nini Beltrame,<br />

da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) e pelo<br />

Vice Presidente da SCAR Gilmar Antônio Moretti. Este segmento<br />

acadêmico vem ganhando, ano após ano, uma importância e se<br />

equipara à programação do festival, tal é a riqueza de diretores e<br />

estudiosos que já se apresentaram nesse encontro, que acontece<br />

concomitantemente aos dias do Festival. Esse paralelismo entre<br />

as apresentações artísticas e o viés acadêmico faz do Festival de<br />

Jaraguá do Sul um evento sem igual no país.<br />

Ao longo destes dez anos, jaraguaenses e vizinhos viram o<br />

melhor da produção nacional e internacional, desenvolvendo um<br />

senso crítico comum na cidade, que se torna mais exigente quanto<br />

à programação de cada edição. Segundo Willian Sievert, curador<br />

do Festival de Teatro de Formas Animadas de Jaraguá do Sul, a<br />

cidade vive um momento bastante especial: “O público adulto<br />

foi cativado pelo Teatro de Bonecos”. Isto se deve à coerência e à<br />

responsabilidade na hora de montar a programação. Mas sabe-se<br />

que é muito mais que isso. O preconceito que ronda este segmento<br />

das Artes Cênicas, de que todo e qualquer espetáculo de bonecos<br />

seria para crianças, vem sendo eliminado pela comunidade. E com<br />

uma programação voltada para as crianças, com a participação


MÓIN-MÓIN<br />

massiva das escolas durante a semana do festival, a visão de que as<br />

Formas Animadas abrangem muitos e diferenciados público está<br />

clara em Jaraguá do Sul.<br />

A imanência deste festival de pequeno porte, mas de grandes<br />

ambições, pode ser observada em várias ações que acontecem não<br />

somente na cidade, mas também em toda a região. Um dos aspectos<br />

mais visíveis é a popularização do trabalho e o resgate da figura<br />

histórica de Margarethe Schlünzen, marionetista que deu nome a<br />

esta revista. Margarethe é só um ponto no vasto campo de estudos<br />

da tradição do Teatro de Bonecos alemão em Santa Catarina, que<br />

aos poucos ganha a luz dentro e fora do palco. Com uma estrutura<br />

ímpar e o envolvimento de toda a comunidade, o Festival de Formas<br />

Animadas demonstra ter fôlego para muitas outras edições.<br />

Ali perto, na capital de Santa Catarina, um dos mais jovens<br />

festivais do país dedicados ao Teatro de Animação acontece desde<br />

2007. Com quatro edições o Festival Internacional de Teatro de<br />

Animação de Florianópolis (Fita Floripa) é uma iniciativa das duas<br />

universidades públicas da cidade: a Universidade do Estado de<br />

Santa Catarina – UDESC e a Universidade Federal de Santa Catarina<br />

– UFSC, sob a coordenação da professora Sassá Moretti. O<br />

evento foi gestado a partir das mesmas necessidades que Lelo Silva<br />

tinha em relação a sua Catibrum e a Belo Horizonte: informação<br />

e troca. Para Sassá, a saída era levar seus alunos do Curso de Artes<br />

Cênicas da UDESC para o Festival de Canela, para conhecer o<br />

amplo espectro que o Teatro de Animação pode ter hoje em dia.<br />

Criar um festival em Florianópolis era um modo de aproximar<br />

esses saberes de uma comunidade curiosa e carente de espetáculos<br />

dedicados a tal segmento. Sem um perfil definido, no entanto, o<br />

Fita Floripa quer agregar, segundo a coordenadora, “o que há de<br />

mais interessante no panorama das Formas Animadas, sejam luvas,<br />

manipulação direta, espetáculos com atores e bonecos ou qualquer<br />

outra técnica”. Nota-se aí, claramente, uma observância maior em<br />

relação às técnicas, mais do que a qualquer outro aspecto ligado à<br />

cena. Esta sinalização talvez tenha nascido de questões próprias de<br />

217<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


218<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas<br />

MÓIN-MÓIN<br />

um ambiente acadêmico em que a exemplificação não conseguisse<br />

suprir todas as indagações a partir de um projeto cênico. No entanto,<br />

é louvável essa ação quase solitária de Sassá Moretti, que já<br />

criou vínculos fortes tanto com o público adulto quanto o infantil,<br />

graças à imensa variedade de atrações nacionais e internacionais<br />

trazidas ano após ano.<br />

Curitiba, a perda (temporária?) mais sentida<br />

O estabelecimento de um festival de características peculiares<br />

pode criar vínculos de grande proporção nas comunidades que o<br />

acolhem. Essa ligação representa quase que uma apropriação do<br />

evento pela população, que se sente também responsável por ele.<br />

No entanto, não foi o que aconteceu em Curitiba (PR), sede do<br />

Festival Espetacular de Teatro de Bonecos, que estaria disputando<br />

com Canela o título de mais antigo festival dedicado ao gênero, se<br />

considerássemos as edições organizadas pela APTB – Associação<br />

Paranaense de Teatro de Bonecos. Nascido dentro dessa associação<br />

e sob os auspícios do Centro Cultural Teatro Guaíra desde 1992, o<br />

festival teve a sua 17ª e última realizada no ano de 2008.<br />

Há, é claro, uma questão financeira que criou enormes dificuldades<br />

para uma mostra que se dizia “espetacular”. Segundo Bia<br />

Reiner, coordenadora do evento, é “difícil manter um festival que<br />

se apresenta como espetacular com uma verba tão reduzida”. O<br />

evento contava sempre com recursos vindos através da Lei Rouanet<br />

e obtinha uma pequena complementação orçamentária do próprio<br />

Guaíra. Nas últimas edições, devido a uma mudança de prioridade<br />

nas ações daquela instituição, a verba captada através da Rouanet<br />

tornou-se o principal veio de custeio do evento. Junto a isso, cortes<br />

vultosos no orçamento do Guaíra levaram ao cancelamento do<br />

festival em 2009 e 2010.<br />

Lamentavelmente, é difícil entender toda a história, mas Curitiba<br />

é tida como um cenário fértil e de muitos grupos de teatro<br />

de bonecos, que tinham no evento um momento de troca. Mais<br />

ainda: Manoel Kobachuk um personagens históricos dos festivais


MÓIN-MÓIN<br />

da ABTB, ocorridos nos anos 1970, escolheu retornar para Curitiba<br />

e ali semear seus saberes recolhidos por tantos anos. Ele e bonequeiros<br />

como Euclides Coelho, Marilda Kobachuk, Olga Romero,<br />

Itaércio Rocha, Cauê e Renato Perré, são sedimentadores do Teatro<br />

de Animação naquela cidade. Nos anos 1990, a capital paranaense<br />

ganhou, graças ao empenho de Manoel Kabachuck, o Teatro do Dr.<br />

Botica, uma pequena sala de espetáculos totalmente voltada para<br />

uma programação com bonecos. Não se pode esquecer ainda a gravidade<br />

do fato de que a atual gestão da ABTB está em Curitiba. Mas<br />

parece que tudo isso não foi suficiente para a manutenção de um<br />

evento que já tinha, desde os anos 1990, repercussão internacional.<br />

É estranho notar que, depois de tantas edições, tal conjunção<br />

de fatores pareça não ter sido suficiente para que fosse cobrada,<br />

de forma incisiva, uma ação mais enérgica das autoridades ligadas<br />

ao Governo do Estado para que o evento não fosse interrompido.<br />

Não se pode deixar de se perguntar que ação ou mobilização foi<br />

realizada diante da decisão desse mesmo Governo que, ao retirar do<br />

calendário de eventos da cidade um festival altamente conceituado e<br />

que abrigou uma parcela considerável da produção contemporânea<br />

nacional e internacional, deixou um vácuo imenso para inúmeros<br />

artistas, que tinham na mostra um momento de real intercâmbio<br />

com produções vindas dos mais variados cantos do país e do planeta.<br />

E não foi somente nos palcos da cidade que parcelas generosas<br />

de conhecimento eram oferecidas à comunidade curitibana. Esse<br />

festival também abrigou exposições memoráveis da pesquisadora<br />

e colecionadora Magda Modesto, além de ter sido o embrião dos<br />

seminários de pesquisa que Jaraguá do Sul, honradamente, tomou<br />

para si. O Festival Espetacular deixa saudades por ter como característica<br />

principal fazer do encontro uma realidade, já que acolhia<br />

todos os participantes do evento por todos os dias do festival,<br />

promovendo encontros únicos, férteis em discussão inesquecíveis.<br />

Há, no entanto, uma luz no final do túnel. Segundo Reiner, o<br />

evento promete voltar em 2011, tão espetacular quanto continua<br />

sendo em nossa lembrança.<br />

219<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


220<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas<br />

MÓIN-MÓIN<br />

Um novo paradigma<br />

Nada, porém, foi tão marcadamente inovador e paradigmático<br />

quanto à criação do grande festival – e este termo fragiliza-se<br />

diante das proporções monumentais do evento – SESI Bonecos,<br />

no meio desta década. Seu perfil itinerante e seu porte estrutural<br />

sem igual no país faz aproximar os bonecos das proporções típicas<br />

dos festivais de rock espalhados pelo mundo. A descrição pode ser<br />

redutora, mas é necessário explicar mais para entender a complexidade<br />

que abraçou o Teatro de Animação em meados da década e<br />

criou vínculos e indagações ainda não digeridas por muitos criadores<br />

que usam bonecos como forma de expressão artística. A cada ano,<br />

desde 2004, dois ou três palcos são montados em alguma capital<br />

do país, geralmente em parques ou praças, durante três dias, para<br />

levar gratuitamente ao público o melhor da produção nacional. Há<br />

também uma pequena mostra internacional dentro da programação,<br />

que a cada ano cobre uma diferente região do país. A cada noite,<br />

há espaço para grupos locais, que se misturam aos grupos convidados<br />

para circular durante semanas consecutivas, cobrindo toda<br />

uma região do Brasil. Além disso, há oficinas abertas com mestres<br />

mamulengueiros, venda de bonecos, exposição de colecionadores<br />

diversos e toda uma cenografia apropriada e criada para abrigar o<br />

evento. Devido às pequenas proporções dos bonecos, toda apresentação<br />

é retransmitida por quatro telões de grande porte e alta<br />

definição, que ficam instalados ao lado dos palcos, tal qual em um<br />

show de rock. Ao final, uma grande atração musical encerra a noite.<br />

Uma única apresentação do evento é capaz de se igualar, em número<br />

de espectadores, a uma temporada inteira de uma peça em teatro<br />

de médio porte. Antes do surgimento do SESI Bonecos, nenhum<br />

grupo brasileiro havia passado pela experiência de ter um público<br />

na casa dos milhares em uma só apresentação de seu espetáculo.<br />

E há ainda muito que avançar neste formato. Que encenações<br />

podem nascer das relações geradas entre o palco e os telões<br />

que redimensionam sua cena? Que relações novas podem brotar<br />

da suposta frontalidade dos palcos e com o imenso terreno que


MÓIN-MÓIN<br />

abriga o público? Que fronteiras ainda podem ser interligadas e<br />

rediscutidas dentro da grandeza do próprio evento? São questões<br />

cujo amadurecimento que podem levar muito tempo para se chegar<br />

a conclusões e dependem da manutenção desse formato do evento.<br />

No entanto, o alinhamento estético já discutido no início deste texto<br />

fatalmente se revelará a qualquer momento. E é preciso atenção<br />

na escolha dos espetáculos para contemplar esse diálogo dentro de<br />

um formato tão inovador.<br />

A publicitária de grande prestígio, Lina Rosa Vieira, encontrou<br />

um mote para uma pequena revolução e criou um projeto que<br />

buscava democratizar e multiplicar o efeito de um boneco sozinho<br />

dentro de uma sala de espetáculos. Para isso, criou uma ambientação<br />

para conduzir o público a outro mundo – segundo ela, “como em<br />

Alice no país das maravilhas” – e revelar, em enormes proporções,<br />

a grandiosidade da própria arte do Teatro de Bonecos. “Muitos criticaram<br />

a mega estrutura do evento, mas o evento é mega porque o<br />

país também é, porque a sua cultura também é, então não poderia<br />

ser de outro jeito”, defende Lina, frente às críticas que surgiram<br />

nos primeiros anos do evento.<br />

De fato, os números impressionam. Com sete edições anuais,<br />

o projeto já percorreu o país duas vezes, levando, além dos cenários<br />

dos espetáculos convidados, estruturas próprias para a montagem<br />

da cenografia, palcos e equipamentos de som e luz compatíveis<br />

com o tamanho do evento. São dezenas de caminhões que circulam<br />

carregando toneladas de material com a função única de propagar<br />

uma programação cultural que abarque todas as possibilidades<br />

que o boneco tem hoje em dia. Desde o início do SESI Bonecos,<br />

em 2004, quando circulou por todos os estados do Nordeste, para<br />

depois ganhar o país inteiro, soma-se mais de um milhão e meio de<br />

espectadores. Na cidade natal do projeto, Recife (PE), reuniu-se,<br />

em uma só noite, mais de cem mil pessoas para assistir aos bonecos<br />

no Marco Zero. Porto Alegre (RS) também divide o feito da capital<br />

de Pernambuco, tendo alcançado o mesmo nível de concentração<br />

de espectadores. Tal façanha se deu através de uma parceria, até<br />

221<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


222<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas<br />

MÓIN-MÓIN<br />

então inédita, entre o SESI (Serviço Social da Indústria) e a agência<br />

comandada por Lina Rosa. O casamento é perfeito em termos de<br />

equiparação às vontades da criadora em aperfeiçoar cada vez mais<br />

o seu projeto e o patrocinador, que viu ali uma forma de implementar,<br />

por todo o país, suas ações em prol da democratização da<br />

cultura e da cidadania, com um impacto de mídia espontânea sem<br />

precedente em toda a vida da instituição.<br />

Este breve panorama nos dá conta de como o mercado está se<br />

expandindo em relação às possibilidades de um espetáculo circular<br />

pelo país. Porém, há ainda muito que fazer e remexer em estruturas<br />

que impedem curadores, programadores e coordenadores<br />

de, dentro da lei, criar brechas para permitir um trânsito menos<br />

obstruído dentro e fora do país. Isso é uma batalha que certamente<br />

durará ainda décadas. Mas há, em todos os programadores aqui<br />

entrevistados, um desejo profundo por uma circulação e divisão<br />

de custos cada vez maior. Que outros personagens possam entrar<br />

nesse circuito para ampliar esse horizonte que ainda cabe nos dedos<br />

de uma mão. Os perfis estão claros e cada vez mais definidos, um<br />

avanço em relação ao panorama que se tinha no início da década.<br />

Mas, claro, há que se querer mais. O próximo passo é posicionar<br />

politicamente, em cada cidade ou estado, a grandiosidade que um<br />

boneco possui. Sua empatia e irreverência espelham nossa alma e<br />

nossa cultura. Quem ainda não entendeu isso?<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS<br />

ABRAMOVICH, Fanny. 1980 – XIII Festival internacional de teatro<br />

de bonecos da UNIMA, In Revista Mamulengo, n. 10. Rio<br />

de Janeiro, SNT, 1981.<br />

BRAGA, Humberto. O papel dos festivais de teatro de animação na<br />

formação do ator animador brasileiro. In Móin-Móin, ano<br />

05, n. 06. Jaraguá do Sul, UDESC/SCAR, 2009.


História e Imaginário:<br />

o Festival de Teatro de Formas<br />

Animadas de Jaraguá do Sul<br />

Ana Paula Moretti Pavanello Machado<br />

e Gilmar Antônio Moretti<br />

Sociedade Cultura Artística de Jaraguá do Sul - SCAR<br />

MÓIN-MÓIN<br />

223<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


224<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas<br />

MÓIN-MÓIN


MÓIN-MÓIN<br />

PÁGINA 223: Espetáculo Bonecrônicas (1985<br />

- RS), personagem Borguetinho. Grupo Anima<br />

Sonho. Foto de Chan.<br />

PÁGINAS 224 e 225: Espetáculo Primeiras<br />

Rosas (2009 – SP). Cia. Pia Fraus. Concepção<br />

do espetáculo e seleção de contos Beto Andretta.<br />

Direção de Alexandre Fávero, Carlos Lagoeiro,<br />

Miguel Vellinho e Wanderlei Piras. Foto de Chan.<br />

225<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


226<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas<br />

MÓIN-MÓIN<br />

Resumo: O artigo apresenta um pouco da trajetória do Festival de Teatro de Formas<br />

Animadas de Jaraguá do Sul, compreendendo as motivações de sua criação e continuidade.<br />

Neste ano o Festival completa 10 anos de atividades ininterruptas. Para este estudo<br />

foi utilizada a abordagem da História Cultural, utilizando-se sobretudo, o conceito de<br />

imaginário e suas influências no prosseguimento das atividades do Festival atualmente.<br />

Palavras-Chaves: Festival de Teatro de Formas Animadas de Jaraguá do Sul;<br />

História; Imaginário.<br />

Abstract: The article presents part of the trajectory of the Puppet Theatre Festival<br />

of Jaraguá do Sul, including the reasons for its creation and the reasons for its endurance.<br />

This year the festival completes ten uninterrupted years of activity. A culturalhistorical<br />

approach was used in this study, especially the concept of the imaginary<br />

and its influences on the progression of the activities of the festival in the present day.<br />

Keywords: the Puppet Theatre Festival of Jaraguá do Sul; history; imaginary.<br />

Este artigo pretende refletir sobre a trajetória do Festival de<br />

Formas Animadas de Jaraguá do Sul, compreender as motivações<br />

de sua criação, e a continuidade do evento que completará 10 anos<br />

de atividades. Para tanto, será utilizada a ótica da História Cultural<br />

que como afirma Roger Chartier (1990:17), “tem por principal<br />

objetivo identificar o mundo como, em diferentes lugares e momentos,<br />

uma determinada realidade social é construída, pensada e<br />

dada a ler”. Dentro da linha da História Cultural, existem diversos


MÓIN-MÓIN<br />

campos específicos de análise: as representações, as narrativas, as<br />

sensibilidades, imaginários, entre outros. Para esta reflexão abordaremos<br />

o imaginário e a sua importância para a constituição, e<br />

principalmente para a consolidação do festival na cidade e região.<br />

Jaraguá do Sul, a partir de 15 de agosto de 2001, iniciou a sua<br />

trajetória no universo do teatro de animação. Para seus habitantes<br />

isso era novo na cidade, até estranho porque afinal, o que era o “tal<br />

teatro de formas animadas”? Um festival sobre isso? Teatro de “bonequinhos”<br />

ou “fantochinhos”? Certamente desse modo pensaram<br />

alguns dos habitantes, e outros, possivelmente, nem se interessaram.<br />

Assim começou um novo desafio, mostrar à população uma visão<br />

que sobrepujasse a concepção muitas vezes pejorativa do teatro de<br />

bonecos como “arte inferior”, destinada exclusivamente às escolas<br />

e crianças. Na verdade, essa missão não foi concluída, perdura até<br />

hoje, quando o Festival entra na sua décima edição.<br />

Porque um Festival de Formas Animadas em Jaraguá do Sul?<br />

Qual a tradição do município nessa área? Estes questionamentos<br />

foram recorrentes na época porque não havia realmente nenhum<br />

grupo teatral jaraguaense que trabalhasse com este gênero. Foi<br />

necessário resgatar na memória e no imaginário de sua população,<br />

histórias, lembranças, fatos que justificassem a realização de um<br />

festival desta natureza. A idéia de imaginário de Sandra Pesavento<br />

(2004: 43) colaborou nessa busca quando afirma: “[...] imaginário<br />

é um sistema de idéias e imagem de representação coletiva que os<br />

homens, em todas as épocas construíram para si, dando sentido<br />

para o mundo”. Este conceito esteve presente no resgate da história<br />

artística de Jaraguá do Sul, pois, o “imaginário é histórico e datado,<br />

ou seja, em cada época os homens constroem representações para<br />

conferir sentido ao real” (PESAVENTO, 2004: 43). Ao recorrermos<br />

à história do município localizamos uma tradição em teatro<br />

de bonecos que já havia sido esquecida por alguns de seus habitantes<br />

e por muitos, ainda desconhecida. Chegamos ao teatro de<br />

bonecos Kasperle praticado a partir dos anos 1950 por Margarethe<br />

Pätzmann Schlünzen. Foi necessário relembrar, recuperar, mostrar<br />

227<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


228<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas<br />

MÓIN-MÓIN<br />

aos jaraguaenses parte de sua história cultural.<br />

Raízes do Festival: um pouco sobre Margarethe Schlünzen<br />

Margareth nasceu em 13 de fevereiro de 1900 em Soltau, um<br />

distrito da Baixa Saxônia, na Alemanha. Na década de 1930 veio ao<br />

Brasil para cuidar dos filhos de sua irmã. Aqui, casou-se em 1937,<br />

com Ferdinand Schlünzen, pastor da Igreja Evangélica Luterana.<br />

Margareth trouxe da Alemanha, além da língua e do gosto pela<br />

música, “o hábito da leitura e a vivência do teatro de bonecos, o<br />

Kasperle de Hohnstein” (PETY, 2007: 234).<br />

O Kasperle de Hohnstein era o teatro de marionetes da companhia<br />

de Max Jacobs, realizado no castelo de Hohnstein, no estado<br />

da Saxônia e que, depois da mesma ser expulsa pelos nazistas em<br />

1933, permaneceram na cidade de Hohnstein, onde ergueram um<br />

teatro fixo para as marionetes. A companhia de Max Jacobs trouxe<br />

algumas inovações para o Kasperle, principalmente a incorporação<br />

de novos personagens, como Seppel e Gretel.<br />

É nessa tradição de Kasperle, e com base no livro “Segredo<br />

do Kasperl” de Gustav Resatz, de 1944, que na década de 1950 a<br />

senhora Margarethe, após confeccionar alguns bonecos, inicia as<br />

suas apresentações em Jaraguá do Sul. Característica marcante era<br />

a sua chegada nas escolas, sempre com a expressão “Móin-Móin”<br />

que deriva da saudação “Guteng morgen, guteng morgen” (Bom dia,<br />

bom dia, em alemão), que a deixou conhecida como a “tia Móin-<br />

Móin”. Para alguns a lembrança de seu trabalho ainda é viva na<br />

cidade, Tia Móin-Móin até hoje é lembrada. Por isso a expressão<br />

Móin-Móin foi escolhida para batizar a Revista editada pela Sociedade<br />

Cultura Artística – SCAR – e a Universidade do Estado<br />

de Santa Catarina – UDESC.<br />

Margarethe exerceu suas atividades de marionetista até início de<br />

1973, quando veio a falecer no dia 25 de agosto. Para Margarethe,<br />

o teatro de bonecos “era um meio de ajudar a educar”, dedicandose<br />

a essa tarefa durante toda a sua vida.<br />

A pesquisa efetuada por Mery Petty (2007) identificou que


MÓIN-MÓIN<br />

havia no imaginário jaraguense a presença do Kasperle. Entretanto,<br />

como o trabalho de Margarethe fora voltado para o público<br />

infantil e escolar, neste mesmo imaginário permanecia a noção<br />

de que o teatro de formas animadas era quase que exclusivamente<br />

para a escola e para crianças. Restava aos organizadores do Festival<br />

a tarefa de transformar essa idéia no sentido de que a população<br />

compreendesse que o teatro de formas animadas, pode sim ser um<br />

teatro destinado às crianças, mas essa arte também é feita e criada<br />

para o público adulto e ela se utiliza de diversos recursos expressivos<br />

além de fantoches.<br />

Festival: conquistas e dificuldades<br />

A criação e a organização do Festival de Teatro Formas Animadas<br />

em Jaraguá do Sul surgiu do desejo dos seus organizadores<br />

de fugir do “lugar comum” dos festivais existentes no país. O<br />

evento deveria incorporar, além do que é fundamental, ou seja, a<br />

apresentação de espetáculos, outras ações relacionadas com essa<br />

arte. O desafio era realizar um festival que de alguma forma, se<br />

diferenciasse de outros festivais, e que dialogasse principalmente<br />

com a situação atual dessa arte, com uma programação pautada<br />

em encenações contemporâneas. Vivemos um cotidiano cada vez<br />

mais midiático, imbricado pelas novas tecnologias e que repercute<br />

nas concepções teatrais. O Festival nasceu desse desejo, aliado ao<br />

mesmo tempo, ao interesse de valorizar expressões do teatro de<br />

bonecos clássico ou tradicional.<br />

Outro ponto de motivação para a sua realização, no início<br />

dos anos 2000, foi o Anima Mundi 1 , no qual os organizadores do<br />

Festival também se inspiraram para compreender novas tendências.<br />

Pensavam um Festival que oscilasse entre o novo e o tradicional,<br />

o inovador e o clássico, e que contribuísse, na sua realização, com<br />

1 O Festival Anima Mundi é um festival de cinema de animação criado em 1993 no<br />

Rio de Janeiro. A programação contempla a exibição de curtas, médias e longas-metragens,<br />

seriados e comerciais. As linguagens narrativas e técnicas são as mais variadas.<br />

O festival está em sua 18ª edição.<br />

229<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


230<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas<br />

MÓIN-MÓIN<br />

reflexões e sínteses sobre esta linguagem.<br />

Assim, o Festival de Teatro Formas Animadas de Jaraguá do Sul<br />

nasceu com o intuito de contemplar em sua programação tradição<br />

e inovação. Com o objetivo de não esquecer a história do teatro de<br />

bonecos na cidade, o Kasperle de Dona Margarethe foi escolhido<br />

como Ânima do Festival. Um dos bonecos de luva de seu espetáculo,<br />

o Urso Envergonhado, desfila pelas ruas, em 2003, anunciando o<br />

Festival. Começava assim uma nova história, uma nova tradição<br />

calcada na própria história do município.<br />

Ao longo dos anos o Festival proporcionou ao público jaraguaense<br />

o contato com a produção nacional e internacional na área, apresentando<br />

espetáculos de grupos do Rio Grande do Sul, São Paulo, Paraná,<br />

Minas Gerais, Ceará, Pará, Rio de Janeiro, além de países como Itália,<br />

Japão, Argentina, Espanha, Hungria. Para muitos jaraguaneses essa<br />

era a primeira vez que viam espetáculos teatrais de grupos de outras<br />

regiões do Brasil 2 e de outros países 3 , que traziam consigo suas tradições<br />

e parte de sua cultura. Os organizadores percebem que ao longo dos<br />

anos, mesmo com algumas dificuldades, o imaginário em torno do que<br />

era o teatro de formas animadas vem aos poucos sendo modificado.<br />

A curadoria do Festival, em seus dois primeiros anos foi realizada<br />

por Nazareno Pereira e Júlio Maurício do Grupo Teatro Sim...<br />

Por Que Não?!!!, de Florianópolis; no ano seguinte, por Leone Silva,<br />

2 Grupos como: A Caixa do Elefante de Porto Alegre; Cia. PeQuod do Rio de Janeiro;<br />

Grupo Sobrevento e Cia. Trucks, de São Paulo; Cia. Catibrum e Grupo Giramundo<br />

de Belo Horizonte; Cia. In Bust de Belém, entre outros. Entre os catarinenses registramos,<br />

Teatro Sim... Porque Não?!!!, Cia. Experimentus, Grupo A Caixa, Trip Teatro<br />

de Animação, Cirquinho do Revirado, Cia. Mútua, entre outros. E os jaraguaenses<br />

Gats, Cia. Alma Livre e Grupo Gestus.<br />

3 Dentre as atrações internacionais tivemos as apresentações internacionais de Salvatore<br />

Gatto, Itália, com seu Pulcinella,500 anni portati bene; Marcelo Peralta, Argentina, com<br />

Harapo,e Una História de Amor: Hoichi Okamoto, Japão, com Dondoro Theater ; Sergio<br />

Mercurio, Argentina, com En Camiño e Los Viejos; Miguel Gallardo e Olivier Benoit,<br />

Cia. Tabola Rassa, Espanha, com L’Avar; Hugo Suarez, Teatro Hugo & Ines, Peru, com<br />

Cuentos Pequeños, András Lénárt, Mikropódium, Hungria, com Stop; Jordi Bertran,<br />

Espanha, com Antologia; Pelele Marionetes, Franca, com La Muerte de Don Cristóbal.


MÓIN-MÓIN<br />

do grupo de teatro da Sociedade Cultura Artística. A partir do ano<br />

de 2005 a curadoria é assumida por Willian Siverdt da Trip Teatro<br />

de Animação da cidade de Rio do Sul.<br />

As primeiras edições contaram com desfiles, com bandas, chamando<br />

a atenção do público para o evento. Os desfiles anunciavam<br />

o festival para a população percorrendo as ruas centrais da cidade. É<br />

importante destacar que essa prática era comum em Jaraguá do Sul<br />

nas décadas de 1920 a 1950 para anunciar a chegada dos circos. O<br />

desfile com bonecos, bandas, provoca grande agitação na cidade e<br />

resgata no imaginário da população a idéia de festa, novidade, acontecimento<br />

com atrações e a ruptura com o cotidiano de trabalho.<br />

Embora a programação esteja destinada prioritariamente para<br />

os palcos do Centro Cultural da SCAR, sempre houve uma programação<br />

ampliando as ações do Festival com apresentações teatrais em<br />

fábricas, nas ruas, nas praças e nas escolas. O Festival foi rompendo<br />

as barreiras do tradicional palco italiano do Centro Cultural e invadiu<br />

outros espaços da cidade. Uma das metas de seus organizadores<br />

é buscar o público para admirar e aplaudir os artistas e envolver-se<br />

com a arte. É possível dizer que o público jaraguaense já incorporou<br />

à sua rotina, as atividades do Festival de Teatro de Formas Animadas,<br />

e que o mesmo integra o cenário cultural da cidade e região.<br />

Paralelamente às apresentações dos grupos teatrais, o Festival,<br />

desde os seus anos iniciais também se preocupou com a formação<br />

de artistas e interessados em arte, e assim encontrou na Universidade<br />

do Estado de Santa Catarina – UDESC – e no seu Programa de<br />

Pós-Graduação em Teatro (Mestrado e Doutorado), uma parceria<br />

ombreada com os ideais da Sociedade Cultura Artística – SCAR. E<br />

certamente, com os ideais de Margarethe “Móin-Móin”. Em 2004<br />

tem início o Seminário de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas,<br />

que orientará, logo depois, a edição da Móin-Móin - Revista<br />

de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas, iniciativa inédita no<br />

Brasil. O perfil do Festival se define mais claramente e se consolida<br />

ao reunir espetáculos, conferências e reflexões sobre essa arte e a<br />

publicação de estudos sobre este mesmo tema. A reunião destes três<br />

231<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


232<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas<br />

MÓIN-MÓIN<br />

aspectos: espetáculos, estudo e publicação dão ao Festival um perfil<br />

que o distingue de outras realizações no campo do teatro de animação.<br />

O Seminário de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas<br />

Diante desse novo conceito e na busca de consolidá-lo como<br />

Festival, seus organizadores procuraram inovar ainda. Neste sentido<br />

foi criado, conjuntamente com o Prof. Dr. Valmor Nini Beltrame, o<br />

Seminário como espaço para reflexão e discussão da teoria e da prática<br />

do teatro de animação. Muitos grupos de teatro de animação no Brasil<br />

fazem experimentações, estudos, e vivenciam processos criativos que<br />

merecem registros. O propósito dos grupos não é publicar artigos, o<br />

resultado disso aparece de modo visível nos espetáculos. Ao mesmo<br />

tempo, nos últimos anos, diversas Programas de Pós-Graduação têm<br />

estimulado a pesquisa nessa área e o resultado das mesmas permanece<br />

restrito ao âmbito acadêmico. A intenção foi criar uma oportunidade<br />

de troca de informações e apresentação das pesquisas realizadas nas<br />

universidades e no interior dos grupos fazendo desse momento no<br />

Festival mais um espaço de produção de saberes e conhecimentos.<br />

Na sua primeira edição, em 2001, foram dados os primeiros<br />

passos para a concretização dessa idéia. Naquela edição, Magda<br />

Modesto proferiu palestra discorrendo sobre a prática e a história<br />

do teatro de formas animadas no Brasil. E na terceira edição, em<br />

2003, o Prof. Dr. Valmor Nini Beltrame foi convidado pata analisar<br />

as semelhanças e diferenças entre o teatro de atores e o teatro de<br />

formas animadas. O encontro gerou um interessante debate entre<br />

integrantes dos grupos de teatro, estudantes do Curso de Artes<br />

Cênicas da Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC<br />

e público em geral ali presente.<br />

Essas duas experiências tornaram possível a realização, em<br />

2004, do 1º Seminário de Estudos do Teatro de Formas Animadas<br />

que trouxe a Jaraguá do Sul importantes pesquisadores e estudiosos<br />

da área. Inaugurava-se assim, uma nova e importante iniciativa,<br />

além dos espetáculos nacionais e internacionais apresentados: debates<br />

e palestras tornaram-se parte fundamental e importante do


MÓIN-MÓIN<br />

festival. 4 É importante lembrar que o tema do Seminário define o<br />

tema da Revista. Há desse modo, a integração das ações, contemplando<br />

divertimento, formação e informação.<br />

A Revista Móin-Móin<br />

As reflexões e os estudos apresentados no Seminário de Estudos<br />

permitiram que o Festival realizasse novos vôos. No ano de 2005, em<br />

uma parceria entre SCAR e UDESC foi lançada a edição número 1 da<br />

Revista Móin-Móin. Segundo seus editores, Gilmar Antonio Moretti<br />

e Valmor Nini Beltrame (2005:12) a publicação procurava completar:<br />

as ações formativas desencadeadas pelos festivais realizados<br />

na cidade de Jaraguá do Sul, desde 2001. Trata-se de uma<br />

revista que pretende preencher a grande lacuna na publicação<br />

de estudos e reflexões, resultado de pesquisas efetuadas<br />

nas universidades brasileiras ou no interior dos grupos que<br />

trabalham com as distintas formas expressivas que compõem<br />

o vasto campo do teatro de formas animadas.<br />

Na sua apresentação os editores também afirmam: “é uma revista<br />

que busca colaborar na formação de artistas, professores de teatro e do<br />

público interessado em conhecer mais profundamente essa linguagem”<br />

(BELTRAME e MORETTI, 2005:13). Assim, a Revista registra parte<br />

das discussões do Seminário, fomenta a discussão sobre essa arte e cumpre<br />

uma função importante de preencher a lacuna sobre a publicação<br />

sistemática no contexto brasileiro no qual até o presente momento não<br />

existe periódico sobre Teatro de Formas Animadas. A Revista tem uma<br />

edição anual e é monotemática: está dedicada ao teatro de animação,<br />

4 Os seminários, contaram e contam com a colaboração da Profª. Dra. Ana Maria Amaral<br />

(USP); Antonio Carlos Sena (RS); Chico Simões (Mamulengo Presepada, DF); Prof.ª Dra.<br />

Darci Kusano (USP); Prof. Dr. Felisberto Costa (USP); Humberto Braga (RJ); Prof.ª Dra.<br />

Izabela Brochado (UnB); Prof. Dr. José Ronaldo Faleiro (UDESC); Luiz André Cherubini<br />

(Grupo Sobrevento, SP); Magda (RJ); Prof. Marcos Malafaia (Grupo Giramundo,<br />

MG); Prof. Mestre Mario Piragibe (UFU); Miguel Vellinho (RJ); Prof. Mestre Tácito<br />

Freire Borralho (UFM, MA); Prof. Tito Lorefice (Argentina); Prof. Dr. Valmor Beltrame<br />

(UDESC) e Prof. Dr. Wagner Cintra (UNESP); Marcos Magalhães (Anima Mundi – RJ);<br />

Ana Alvarado (Periférico de Objetos – Buenos Aires); Francisco Medeiros (SP); Profª Dra.<br />

Alice K (UNICAMP); entre outros renomados diretores de teatro e estudiosos dessa arte.<br />

233<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


234<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas<br />

MÓIN-MÓIN<br />

mas para cada edição seu Conselho editorial decide um tema a ser<br />

abordado. Essa opção possibilita aprofundar as discussões em torno<br />

de um objeto de estudo. A reunião de mais de uma dezena de artigos<br />

abordando um mesmo assunto busca de um lado, cobrir em parte a<br />

temática selecionada e de outro, reunir diferentes visões sobre a mesma.<br />

Vele repetir que a Revista deve o seu nome à saudação Moin,<br />

comum entre os imigrantes alemães da região e principalmente às<br />

lembranças deixadas por Tia Margarethe Pätzmann Schlünzen e<br />

seu Kasperle. O Festival, o Seminário de Estudos e a Revista constituem<br />

uma unidade que alimenta as lembranças e o imaginário<br />

dos que assistem, participam e acompanham a programação do<br />

evento. Móin-Móin é saudação, cumprimento, mas também é festa,<br />

encontro, estudo e reflexão. O efêmero que constitui e caracteriza<br />

a obra teatral se materializa na publicação que registra parte das<br />

discussões, estudos e problematizações vivenciadas no evento.<br />

Dificuldades e desafios<br />

O ano de 2010 marca a 10ª edição do Festival. São 10 anos de<br />

atividades consolidando idéias. Hoje, certamente muitas pessoas que<br />

há uma década não compreendiam muito bem o que era o “teatro<br />

de formas animadas”, o apreciam e o aguardam a cada edição. Para<br />

muitos, a concepção de teatro de bonecos foi ampliada permitindo<br />

ver e compreender que essa arte é mais complexa. Ou seja, é uma arte<br />

que reúne manifestações como teatro de sombras, teatro de máscaras,<br />

teatro de objetos, o trabalho de animação de atores que estão visíveis<br />

ou ocultos. É preciso destacar que alguns grupos de teatro da cidade<br />

têm trabalhado estas propostas com sucesso.<br />

Um dos aspectos mais importantes dessa realização é sem<br />

dúvida, a democratização do acesso à arte, ao conhecimento, e à<br />

fruição de bons espetáculos para a população da cidade e região.<br />

Ao reunir espetáculos, a apresentação de estudos e pesquisas e ao<br />

efetuar a publicação da Revista, o evento se consolida como espaço<br />

de formação e entretenimento.<br />

Dificuldades sempre existiram na realização das edições do Festi-


MÓIN-MÓIN<br />

val, mas elas são superadas. Seus organizadores e participantes, atores<br />

e público, enfrentam os desafios porque sabem das surpresas quando a<br />

cortina se abre e o apresentador, com voz humana e corpo nem sempre<br />

reconhecível, os conduz ao mundo que já não é mais o cotidiano.<br />

Entretanto é importante reconhecer as limitações do Festival<br />

de Jaraguá do Sul e ver que após uma década de trabalho ainda<br />

existem muitas interrogações: os objetivos inicialmente definidos<br />

foram alcançados? Qual a contribuição dessa ação no contexto da<br />

cultura da cidade? Seus objetivos precisam ser renovados? São questionamentos<br />

ainda sem respostas definitivas e que provavelmente<br />

necessitam de algumas edições para serem respondidos.<br />

Para seus organizadores, o estímulo para seguir realizando o<br />

Festival, além de colaborar para a reflexão sobre essa linguagem, está<br />

no grande número de pessoas de todas as faixas etárias que assistem<br />

aos espetáculos; o entusiasmo para realizar o festival também nasce<br />

da satisfação expressa por muitos espectadores sobre a emoção vivida<br />

nos espetáculos e vem da certeza de que parte da visão equivocada<br />

sobre essa arte vem sendo superada. A população que espera cada<br />

nova edição torna-se a grande parceira e incentivadora deste festival.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

CHARTIER, Roger. A história Cultural: entre práticas e representações.<br />

Lisboa: Difel, 1990.<br />

BELTRAME, Valmor e MORETTI, Gilmar Antonio. Apresentação.<br />

Móin-Móin – Revista de Estudos sobre Teatro de Formas<br />

Animadas, N.º 1. SCAR/UDESC: Jaraguá do Sul, 2005.<br />

PESAVENTO, Sandra Jatahy. História e História Cultural.<br />

Belo Horizonte: Autêntica, 2004.<br />

PETY, Mery. Móin-Móin, Margarethe. Móin-Móin – Revista<br />

de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas, N.º 3. 2007.<br />

235<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


236<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas<br />

MÓIN-MÓIN<br />

Colaboradores da Móin-Móin N.7<br />

Adriana Schneider Alcure - Mestre em Teatro pela UNIRIO,<br />

doutora em Antropologia pelo IFCS/UFRJ e professora adjunta do<br />

Curso de Direção Teatral da Universidade Federal do Rio de Janeiro<br />

- UFRJ. É atriz, diretora teatral, e integra o Grupo Pedras. Faz<br />

parte da Associação Cultural Caburé. E-mail: asadriana@gmail.com<br />

Ana Paula Moretti Pavanello Machado – Professora e diretora<br />

teatral. Licenciada em História pela Universidade Federal de Santa<br />

Catarina- UFSC. Licenciada e Mestre em Teatro pela Universidade<br />

do Estado de Santa Catarina – UDESC. Coordenadora Executiva<br />

do Festival de Teatro de Formas Animadas de Jaraguá do Sul. Email:<br />

anapaulapavanello@yahoo.com.br<br />

Amabilis de Jesus - Figurinista com trabalhos para diversos grupos<br />

de teatro e dança da cidade de Curitiba. Professora de Cenografia<br />

e Indumentária no Departamento de Teatro da Faculdade de Artes do<br />

Paraná - FAP. Doutora em Artes Cênicas na Universidade Federal da<br />

Bahia - UFBA (2010). Mestre em Teatro pela Universidade do Estado<br />

de Santa Catarina - UDESC (2006). E-mail: liis@onda.com.br<br />

Carlos Augusto Nazareth - Crítico teatral, dramaturgo,<br />

diretor teatral, especialista em literatura infanto-juvenil, escritor<br />

com mais de quinze livros publicados e mais de dez peças encenadas.<br />

Recebeu cerca de cinquenta prêmios em teatro e literatura. Criador<br />

e diretor do Cepetin - Centro de Pesquisa e Estudo do Teatro<br />

Infantojuvenil. Email: cepetin@yahoo.com.br<br />

Caroline Holanda - Mestre em Teatro pela Universidade do<br />

Estado de Santa Catarina - UDESC com pesquisa direcionada aos<br />

princípios técnicos do trabalho do ator-animador. Atualmente é<br />

professora do Curso de Belas Artes da Universidade de Fortaleza -<br />

UNIFOR. E-mail: carolmassinha@yahoo.com.br


MÓIN-MÓIN<br />

Fábio Henrique Nunes Medeiros - Diretor teatral e bonequeiro,<br />

pesquisa Teatro de Formas Animadas. Doutorando em<br />

Artes Cênicas pela Universidade de São Paulo - USP e Mestre em<br />

Teatro pela Universidade de Santa Catarina – UDESC (2009).<br />

Especialista em História da Arte Brasileira pela Faculdade de Artes<br />

do Paraná – FAP. E-mail: fabiodeolinda@yahoo.com.br<br />

Gilmar Antônio Moretti – Diretor de Teatro e Cinema. Poeta e<br />

fotógrafo com diversos livros publicados nessa área. Vice-Presidente<br />

da SCAR – Sociedade Cultura Artística de Jaraguá do Sul. Idealizador<br />

do Festival de Teatro de Formas Animadas de Jaraguá do Sul<br />

e Editor da Revista Móin-Móin. E-mail: gilmoretti@terra.com.br<br />

Ipojucan Pereira - Ator, diretor e Mestre em Teatro pela ECA-<br />

USP com pesquisa sobre o Teatro Essencial de Denise Stoklos.<br />

Trabalha com Teatro Físico, Dança Moderna, e suas relações com<br />

o Teatro Inglês Moderno e com a Mímica Contemporânea. Atua<br />

no circuito teatral paulistano desde 1992; atualmente é diretor do<br />

Grupo Teatral Isla Madrasta. Email: ipojucan22@hotmail.com<br />

Kely de Castro - Atriz e pesquisadora. Mestre em Artes pela<br />

Escola de Comunicação e Artes- Uiversidade de São Paulo - USP.<br />

Licenciada em Teatro pela UNESP. Atualmente atua na Cia Truks<br />

Teatro de Bonecos. E-mail: kelydecastro@gmail.com<br />

Luís Artur Nunes - Diretor teatral, dramaturgo, Professor<br />

Titular aposentado da Universidade Federal do Estado do Rio de<br />

Janeiro – UNIRIO. Mestre em Teatro pela State University of New<br />

York (SUNY - 1976) e Doutor em Teatro pela City University<br />

of New York ( CUNY - 1987). Pesquisa temas como: melodrama,<br />

diálogo teatro-literatura, o ator-rapsodo e a obra de Nelson<br />

Rodrigues. E-mail: larthusp@uol.com.br<br />

Miguel Vellinho – Diretor teatral, ator, fundador do Grupo<br />

237<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


238<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas<br />

MÓIN-MÓIN<br />

Sobrevento. Mestre em Teatro (2008), pela UNIRIO - Universidade<br />

Federal do Estado do Rio de Janeiro. Fundador e diretor<br />

da Cia Pequod e atualmente é professor assistente na UNIRIO e<br />

onde pesquisa e dá aulas sobre teatro de animação. E-mail: vellinho2001@yahoo.com.br<br />

Osvaldo Anzolin - Ator, diretor e cenógrafo. Mestre e Graduado<br />

em Artes Cênicas pela UNESP - Universidade Estadual<br />

Paulista. Atualmente é professor do Departamento de Metodologia<br />

da Educação do Departamento de Artes Cênicas da UFPB - Universidade<br />

Federal da Paraíba, oferecendo disciplinas ligadas ao<br />

ensino de arte. Também atuou no Departamento de Artes Cênicas<br />

da mesma universidade. E-mail: anzolinosvaldo@yahoo.com.br<br />

Sandra Meyer - Professora no Departamento de Artes Cênicas<br />

e no Programa de Pós-Graduação em Teatro na Universidade do Estado<br />

de Santa Catarina – UDESC. Mestre (1998) e Doutora (2006)<br />

em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica<br />

de São Paulo – PUC-SP. Pesquisa corpo, movimento, improvisação,<br />

ação física e composição. E-mail: sandrameyer@globo.com<br />

Sandra Vargas – Atriz formada pela Universidade Federal<br />

do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO. Fundadora do Grupo<br />

Sobrevento, um dos mais importantes Grupos de Teatro do Brasil,<br />

reconhecido pelo trabalho com Teatro de Animação. É curadora do<br />

FITO – Festival Internacional de Teatro de Objetos. Atua como<br />

pedagoga do teatro e animadora cultural no Espaço Sobrevento em<br />

São Paulo. E-mail: grupo@sobrevento.com.br<br />

Zilá Muniz - Diretora de Dança, Mestre em Teatro (2004),<br />

Doutoranda em Teatro na Universidade do Estado de Santa Catarina<br />

– UDESC; Diretora do Ronda Grupo de Dança e Teatro.<br />

Desenvolve trabalho com improvisação como processo de composição<br />

na dança. E-mail: zilamuniz@hotmail.com


Publique seu artigo na Móin-Móin:<br />

MÓIN-MÓIN<br />

Se você tem um texto inédito para a nossa revista, envie-nos. Ele<br />

será apreciado pelo nosso conselho editorial, e poderá ser publicado.<br />

Os textos deverão seguir o seguinte padrão de apresentação:<br />

1. Artigos – Mínimo de 08 e máximo de 15 laudas.<br />

2. Solicita-se clareza e objetividade nos títulos.<br />

3. Duas vias impressas em folhas formato A-4, acompanhadas<br />

de cd gravado em Word for Windows 6.0 ou 7.0 (ou compatível<br />

para versão), em cd para Caixa Postal 491, Florianópolis – SC –<br />

Brasil ou pelo e-mail teatrodebonecos@udesc.br.<br />

4. Telefone e/ou e-mail para eventuais contatos.<br />

5. Indicação de publicação anterior do trabalho: data, local,<br />

título, assim como tratamento literário ou científico original.<br />

6. A formatação de seu trabalho de acordo com a padronização<br />

abaixo vai garantir a melhor compreensão de seu texto:<br />

• Fonte: Times New Roman. Tamanho 12.<br />

• Parágrafo: com recuo, espaço entre linhas 1,5.<br />

• Títulos de obras, revistas, etc.: itálico.<br />

• Nomes de eventos: entre aspas.<br />

• Citações: entre aspas.<br />

• As colaborações devem incluir brevíssima apresentação do<br />

autor, logo após o título, visando situar o leitor, de no máximo<br />

03 linhas.<br />

• À parte, o colaborador deve enviar uma autorização assinada<br />

para a publicação do texto, fotos ou desenhos. Caso inclua<br />

materiais gráficos da autoria de terceiros, é indispensável o aceite<br />

dos mesmos, assim como uma legenda de identificação.<br />

• Bibliografia: Deve ser acrescentada após as notas, em acordo<br />

com as normas padrões da ABNT.<br />

239<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


240<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas<br />

MÓIN-MÓIN<br />

Revista Móin-Móin N.1<br />

O Ator no Teatro de Formas Animadas<br />

16 x 23 cm/192 páginas<br />

A Revista MÓIN-MÓIN busca colaborar na formação de<br />

artistas, professores de teatro e do público interessado em artes<br />

cênicas. A primeira edição traz artigos de Ana Maria Amaral,<br />

Felisberto Sabino da Costa, Teotônio Sobrinho, José Parente,<br />

Chico Simões, Maria de Fátima Souza Moretti, Miguel Vellinho<br />

e Valmor Nini Beltrame. A única revista de estudos sobre teatro<br />

de formas animadas do Brasil é resultado de uma parceira entre a<br />

Sociedade Cultura Artística de Jaraguá do Sul e da Universidade<br />

do Estado de Santa Catarina com apoio do Governo do Estado<br />

de Santa Catarina.<br />

Revista Móin-Móin N.2<br />

Tradição e modernidade no Teatro de Formas Animadas<br />

16 X 23 cm/224 páginas/R$ 25,00<br />

Com o objetivo de divulgar as pesquisas artísticas realizadas<br />

pelos grupos de teatro e as reflexões teórico-práticas produzidas<br />

nas universidades, o segundo número da Móin-Móin – Revista<br />

de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas traz a tona o tema<br />

Tradição e Modernidade no teatro de formas animadas. A única<br />

publicação do gênero no país reafirma o caráter da tradição na<br />

contemporaneidade e acredita na diversidade, mesclando convidados<br />

internacionais com artigos que valorizam a tradição<br />

popular brasileira. Marco Souza, John McCormick, Glyn Edwards,<br />

Conceição Rosière, Christine Zurbach, Tito Lorefice,<br />

Izabela Brochado, Marcos Malafaia e Wagner Cintra.


MÓIN-MÓIN<br />

Revista Móin-Móin N.3<br />

Teatro de Bonecos Popular Brasileiro<br />

16 X 23 cm/248 páginas<br />

Na terceira edição, estudos sobre várias expressões cênicas populares<br />

que florescem nos estados brasileiros são apresentados por diferentes pesquisadores.<br />

Um mergulho nas formas de teatro de bonecos praticadas por<br />

artistas do povo e seus personagens: Mamulengo, Casemiro Coco, João<br />

Redondo, João Minhoca, Calunga, Cavalo Marinho, Boi-de-Mamão,<br />

Bumba-meu-boi etc. Esta edição também homenageia o Mestre Chico<br />

Daniel, falecido no dia 03 de março do ano de 2007. As reflexões sobre<br />

o teatro de bonecos popular no Brasil são feitas por Fernando Augusto<br />

Gonçalves Santos, Izabela Brochado, Adriana Schneider Alcure, Mariana<br />

de Oliveira, Altimar Pimentel, Ricardo Canella, Tácito Borralho, Valmor<br />

Nini Beltrame, Milton de Andrade e Samuel Romão Petry. Ao Kasperle<br />

— teatro de bonecos popular alemão que emigrou para as cidades de<br />

Pomerode e Jaraguá do Sul, em Santa Catarina — aparentemente “fora<br />

de lugar” é apresentado por Ina Emmel e Mery Petty, que dedica seu<br />

texto a marionetista Margarethe Schlünzen, a Sra. Móin-Móin.<br />

Revista Móin-Móin N.4<br />

Teatro de Formas Animadas Contemporâneo<br />

16 X 23 cm/282 páginas/R$ 25,00<br />

A quarta edição da Móin-Móin – Revista de Estudos sobre<br />

Teatro de Formas Animadas – procura, através da escolha desse tema,<br />

refletir e compreender as mudanças que o Teatro de Formas Animadas<br />

vem sofrendo nas últimas décadas. Essa discussão é enriquecida com<br />

artigos de brasileiros e estrangeiros. Dentre os brasileiros temos: José<br />

Ronaldo Faleiro (UDESC); Felisberto Sabino da Costa (USP); Mario<br />

Piragibe (UNIRIO); Osvaldo Gabrieli (XPTO-SP) e Humberto<br />

Braga (Produtor Cultural-RJ). E os estrangeiros: Dominique Houdart<br />

(Paris); Fabrizio Montecchi (Itália); Hadas Ophrat (Jerusalém);<br />

Béatrice Picon-Vallin (CNRS-Paris); Penny Francis (Londres); Jorge<br />

Dubatti (Buenos Aires); Gerardo Bejarano (UNA-Costa Rica).<br />

241<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


242<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas<br />

MÓIN-MÓIN<br />

Revista Móin-Móin N.5<br />

Teatro de Formas Animadas e suas Relações com as outras Artes<br />

16 X 23 cm/227 páginas<br />

A Revista Móin-Móin n°5 traz a partir do seu tema central<br />

questões e discussões sobre a pluralidade e hibridação do teatro de<br />

formas animadas que evidenciam, de um lado, as transformações<br />

ocorridas no modo de pensar e praticar essa arte nos últimos anos<br />

e de outro, a importância do teatro de animação no teatro contemporâneo.<br />

Os diversos artigos comprovam que as fronteiras entre as<br />

artes, hoje, mais do que em qualquer outro momento da sua história,<br />

têm seus limites cada vez menos definidos e se entrecruzam em teias<br />

complexas. Os articulistas são pesquisadores, diretores teatrais e<br />

professores, tanto do Brasil como do exterior: Brunella Eruli, Luiz<br />

Fernando Ramos, Cariad Astles, Darci Kusano, Marcos Magalhães,<br />

John Bell, Philippe Genty, Joan Baixas, Aleksandar Sasha Dundjerovic,<br />

Renato Machado, Ana Maria Amaral e Leszek Madzik.<br />

Revista Móin-Móin N.6<br />

Formação Profissional no Teatro de Formas Animadas<br />

16 X 23 cm/200 páginas<br />

A Revista Móin-Móin N.6 pretende enriquecer o debate sobre as<br />

variadas maneiras como se processa a formação profissional do artista<br />

que trabalha com teatro de formas animadas ou do jovem artista que<br />

opta pela profissão nessa arte. São 11 artigos que buscam sistematizar<br />

práticas e iniciativas que vêm acontecendo em diferentes pontos do<br />

Brasil, tanto no interior dos grupos de teatro quanto em instituições<br />

culturais e universidades. A edição também privilegia o leitor com<br />

quatro estudos de pedagogos do teatro de animação de outros três<br />

países. Os colaboradores são: Ana Alvarado (Argentina); Ana Maria<br />

Amaral – SP; Claire Heggen (França); Cíntia de Abreu – SP; Felisberto<br />

Costa – SP; Henrique Sitchin – SP; Humberto Braga – RJ;<br />

José Parente – SP; Magda Modesto – RJ; Marek Waszkiel (Polônia);<br />

Margareta Niculescu (França) e Paulo Balardim – RS.


Para solicitar ou adquirir a<br />

Revista MÓIN-MÓIN dirigir-se a:<br />

Sociedade Cultura Artística de Jaraguá do Sul<br />

Rua Jorge Czerniewicz, 160. Bairro Czerniewicz.<br />

CEP: 89255-000<br />

Fone/Fax (47) 3275-2477.<br />

Fone (47) 3275-2670.<br />

Jaraguá do Sul – Santa Catarina<br />

Home page: www.scar.art.br<br />

E-mail: scar@scar.art.br<br />

ou<br />

Design Editora Ltda.<br />

Caixa Postal 1.310<br />

CEP 89251-600<br />

Jaraguá do Sul/SC<br />

Home page: www.designeditora.com.br<br />

E-mail: atendimento@designeditora.com.br<br />

MÓIN-MÓIN<br />

243<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


244<br />

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas<br />

MÓIN-MÓIN<br />

Edição e distribuição www.designeditora.com.br<br />

Tipologia Adobe Garamond<br />

Impressão Nova Letra

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