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ISSN 1519-8782<br />
XIV CONGRESSO NACIONAL<br />
DE LINGUÍSTICA E FILOLOGIA<br />
Promovido pelo Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos<br />
Realizado no Instituto de Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro<br />
23 a 27 de agosto de 2010<br />
(http://www.filologia.org.br/xiv_cnlf)<br />
VOL. XIV, Nº 04, <strong>TOMO</strong> 1<br />
Anais do XIV CNLF<br />
Rio de Janeiro, 2010<br />
<strong>CiFEFiL</strong>
UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO<br />
CENTRO DE EDUCAÇÃO E HUMANIDADES<br />
FACULDADE DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES<br />
DEPARTAMENTO DE LETRAS<br />
Reitor<br />
Ricardo Vieiralves de Castro<br />
Vice-Reitora<br />
Maria Christina Paixão Maioli<br />
Sub-Reitora de Graduação<br />
Lená Medeiros de Menezes<br />
Sub-Reitora de Pós-Graduação e Pesquisa<br />
Monica da Costa Pereira Lavalle Heilbron<br />
Sub-Reitora de Extensão e Cultura<br />
Regina Lúcia Monteiro Henriques<br />
Diretor do Centro de Educação e Humanidades<br />
Glauber Almeida de Lemos<br />
Diretora da Faculdade de Formação de Professores<br />
Maria Tereza Goudard Tavares<br />
Vice-Diretora da Faculdade de Formação de Professores<br />
Catia Antonia da Silva<br />
Chefe do Departamento de Letras<br />
Maria Cristina Cardoso Ribas<br />
Sub-Chefe do Departamento de Letras<br />
Leonardo Pinto Mendes<br />
Coordenador de Publicações do Departamento de Letras<br />
José Pereira da Silva
Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos<br />
Boulevard 28 de Setembro, 397/603 – Vila Isabel – 20.551-030 – Rio de Janeiro – RJ<br />
eventos@filologia.org.br – (21) 2569-0276 – www.filologia.org.br<br />
DIRETOR-PRESIDENTE<br />
José Pereira da Silva<br />
VICE-DIRETORA<br />
Cristina Alves de Brito<br />
PRIMEIRA SECRETÁRIA<br />
Délia Cambeiro Praça<br />
SEGUNDA SECRETÁRIA<br />
Maria Lúcia Mexias Simon<br />
DIRETOR CULTURAL<br />
Marilene Meira da Costa<br />
VICE-DIRETORA CULTURAL<br />
Adriano de Sousa Dias<br />
DIRETORA DE RELAÇÕES PÚBLICAS<br />
Antônio Elias Lima Freitas<br />
VICE-DIRETORA DE RELAÇÕES PÚBLICAS<br />
Eduardo Tuffani Monteiro<br />
DIRETORA FINANCEIRA<br />
Ilma Nogueira Motta<br />
VICE-DIRETORA FINANCEIRA<br />
Jônia Maria Souza Silva<br />
DIRETOR DE PUBLICAÇÕES<br />
Amós Coelho da Silva<br />
VICE-DIRETOR DE PUBLICAÇÕES<br />
José Mário Botelho
XIV CONGRESSO NACIONAL<br />
DE LINGUÍSTICA E FILOLOGIA<br />
de 23 a 27 de agosto de 2010<br />
COORDENAÇÃO GERAL<br />
José Pereira da Silva<br />
Cristina Alves de Brito<br />
Marilene Meira da Costa<br />
COMISSÃO ORGANIZADORA E EXECUTIVA<br />
Amós Coelho da Silva<br />
Jonia Maria Souza Silva<br />
Antônio Elias Lima Freitas<br />
José Mário Botelho<br />
Eduardo Tuffani Monteiro<br />
Ilma Nogueira Motta<br />
Maria Lúcia Mexias Simon<br />
Antônio Elias Lima Freitas<br />
COORDENAÇÃO DA COMISSÃO DE APOIO<br />
Adriano de Sousa Dias<br />
Ilma Nogueira Motta<br />
COMISSÃO DE APOIO ESTRATÉGICO<br />
Marilene Meira da Costa<br />
Laboratório de Idiomas do Instituto de Letras (LIDIL)<br />
SECRETARIA GERAL<br />
Sílvia Avelar Silva
SUMARIO<br />
1. A ALUSÃO COMO PROPOSTA DE LER E ESCREVER NO GÊNERO<br />
ROMANCE<br />
Amanda Maria Nascimento Gomes ........................................... 1 – 19<br />
2. A APLICAÇÃO DO ESTUDO DO CÓDIGO BIBLIOGRÁFICO NAS EDI-<br />
ÇÕES DO SÉCULO XIX DE PAPÉIS AVULSOS DE MACHADO DE ASSIS<br />
Fabiana da Costa Ferraz Patueli...............................................20 – 27<br />
3. A CIRCUNFIXAÇÃO EM PORTUGUÊS<br />
Caio Cesar Castro da Silva .....................................................28 – 37<br />
4. A CONCORDÂNCIA DE NÚMERO NO SINTAGMA NOMINAL NA FALA<br />
DOS ESTUDANTES DA REDE PÚBLICA DE ENSINO DE SANTO ANTÔNIO<br />
DE JESUS-BA<br />
Dayane Moreira Lemos ..........................................................38 – 51<br />
5. A CONCORDÂNCIA VERBAL NO PORTUGUÊS POPULAR DE<br />
SALVADOR<br />
Welton Rodrigues Santos....................................................... 52 – 71<br />
6. A CONSTRUÇÃO DO PÚBLICO LEITOR EM TABLOIDES DO RIO DE<br />
JANEIRO<br />
Michelle Martins de Mattos Rangel ...........................................72 – 83<br />
7. A DIGLOSSIA ÁRABE: UMA APRECIAÇÃO DO HASSANIYYA COMO<br />
REPRESENTANTE DA VERTENTE BAIXA NO BINÁRIO DIGLÓSSICO<br />
Elias Mendes Gomes .............................................................84 – 96<br />
8. A ESCRITA NOS AUTOS DE QUERELA DO SÉCULO XIX: DO<br />
PASSADO AO PRESENTE<br />
Emilia Maria Peixoto Farias / Expedito Eloísio Ximenes / Patrícia de Oliveira<br />
Batista / Katharine Silva de Oliveira Soares.....................97 – 108<br />
9. A EVOLUÇÃO DA LINGUAGEM EM A TURMA DA MÔNICA<br />
Luciana da Costa Quintal ......................................................109- 124<br />
10. A FACE OCULTA DO ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA: UM<br />
ESTUDO DE CASO<br />
Sinéia Maia Teles Silveira / Sônia Maia Teles Xavier ..............125 – 145<br />
11. A FEMME FATALE EM “TARDE”, DE OLAVO BILAC<br />
Armando Rabelo Soares Neto .............................................146 – 160<br />
12. A HETEROGENEIDADE DO DISCURSO EM OURO, INCENSO E<br />
MIRRA, DE ALÍPIO MENDES<br />
Geysa Silva ......................................................................161 – 168<br />
13. A ILUSTRE CASA DE RAMIRES ANÁLISE DE VARIANTES (1895 –<br />
1900)<br />
Ânderson Rodrigues Marins ................................................169 – 182
14. A IMPORTÂNCIA DA FORMAÇÃO E DO DESENVOLVIMENTO DOS<br />
MOCAMBOS PARA A RECIFE DOS ANOS 1930 E 1940<br />
Jacqueline de Cássia Pinheiro .............................................183 – 190<br />
15. A IMPORTÂNCIA DA LEITURA NAS ESCOLAS BRASILEIRAS CON-<br />
TEMPORÂNEAS<br />
Vagner Aparecido de Moura ...............................................191 – 207<br />
16. A IMPORTÂNCIA DE PESQUISAS EM ESTRATÉGIAS DE<br />
APRENDIZAGEM NO ENSINO DE LÍN GUAS ESTRANGEIRAS<br />
Márcio Luiz Corrêa Vilaça ...................................................208 – 220<br />
17. A IMPORTÂNCIA DO PARATEXTO NA EDIÇÃO DO TEXTO TEATRAL<br />
VEGETAL VIGIADO, DE NIVALDA COSTA<br />
Débora de Souza / Rosa Borges dos Santos .........................221 – 231<br />
18. A IMPORTÂNCIA DOS QUADROS E PARÂMETROS LINGUÍSTICOS<br />
PARA O ENSINO E APRENDIZAGEM DE LÍNGUAS<br />
Carmem Praxedes .............................................................232 – 249<br />
19. A INFUÊNCIA DA ORALIDADE NA PRODUÇÃO TEXTUAL ESCRITA<br />
Tays Angélica Rezende .......................................................250 – 257<br />
20. A INTERNET NO ENSINO DE ESPANHOL PARA ALUNOS<br />
BRASILEIROS<br />
Beatriz Pereira da Silva .....................................................258 – 290<br />
21. A LINGUAGEM ANÁRQUICA DE ROLAND BARTHES EM DOIS<br />
MOMENTOS: AULA E O GRAU ZERO DA ESCRITA<br />
Regina Céli Alves da Silva ..................................................291 – 302<br />
22. A LINGUÍSTICA E O ENSINO DO PORTUGUÊS: INSTRUMENTOS<br />
PARA PROFESSORES DA EDUCAÇÃO BÁSICA<br />
Patrícia Ribeiro de Andrade ................................................303 – 312<br />
23. A MULTIPLICIDADE SEMÂNTICA DO VERBO ‘TER’ PLENO À LUZ DA<br />
SEMÂNTICA COGNITIVA<br />
Diogo Pinheiro ..................................................................313 – 325<br />
24. A PRODUÇÃO TEXTUAL SOB A PERSPECTIVA DA RETEXTUALIZAÇÃO<br />
EM UMA CLASSE DO ENSINO MÉDIO<br />
José Ricardo Carvalho .......................................................326 – 333<br />
25. A QUESTÃO DO MECENATO NA ANTIGUIDADE E NO<br />
RENASCIMENTO PORTUGUÊS<br />
Márcio Luiz Moitinha Ribeiro ...............................................334 – 340<br />
26. A QUESTÃO DO MÉTODO NO ENSINO DA LÍNGUA PORTUGUESA:<br />
SÉCULO XIX<br />
Márcia A. G. Molina ...........................................................341 – 353
27. A RELEVÂNCIA DAS MANIFESTAÇÕES CULTURAIS NA AULA DE LÍN-<br />
GUA PORTUGUESA<br />
Cláudia Cristina Marques dos Santos ...................................354 – 361<br />
28. A RESPEITO DA MUDANÇA HISTÓRICA NAS CONSTRUÇÕES PARAS-<br />
SINTÉTICAS /A...ECER/ E /EN...ECER<br />
Caio Cesar Castro da Silva..................................................362 – 370<br />
29. A RETÓRICA EM O CRIME DO PADRE AMARO<br />
Ânderson Rodrigues Marins.................................................371 – 379<br />
30. A SEDUÇÃO DISCURSIVA DA MÚSICA CRÉU<br />
Vagner Aparecido de Mour .................................................380 – 398<br />
31. A SELEÇÃO LEXICAL COMO ESTRATÉGIA ARGUMENTATIVA NOS<br />
TEXTOS PUBLICITÁRIOS<br />
Marcia de Oliveira Gomes ..................................................399 – 407<br />
32. A UNIDADE LEXICAL NO DISCURSO ETNOLITERÁRIO<br />
Maria Margarida de Andrade ...............................................408 – 418<br />
33. A UNIDADE LEXICAL NO DISCURSO PUBLICITÁRIO REGIONAL<br />
Nelly Carvalho...................................................................419 – 424<br />
34. A VARIAÇÃO FONÉTICA DAS VOGAIS MÉDIAS PRE E POSTÔNICAS<br />
NO LÉXICO DE MONTES CLAROS/MG<br />
Patrícia Goulart Tondineli 425 – 438<br />
35. A VARIAÇÃO LINGUÍSTICA EM DOIS LIVROS DIDÁTICOS DE LÍN-<br />
GUA PORTUGUESA<br />
Michelle de Oliveira ...........................................................439 – 452<br />
36. ALGUMAS MUSAS DE ÉBANO DE GREGÓRIO DE MATTOS: HINÁRIO<br />
CRIOULO: VERSOS EM FRAGMENTOS<br />
Ruy Magalhães de Araujo ...................................................453 – 464<br />
37. ANÁLISE DE AMBIGUIDADE LEXICAL EM MÚSICAS<br />
Adriana Hotz Tavares .........................................................465 – 475<br />
38. ANÚNCIOS E LETREIROS DO COMÉRCIO POPULAR: GÊNEROS EM<br />
DISCUSSÃO<br />
Osvaldo Barreto Oliveira Júnior ...........................................476 – 500<br />
39. APORTES SOCIOLINGUÍSTICOS À PRÁTICA DO PROFESSOR – IM-<br />
PLICAÇÕES NA SALA DE AULA<br />
Consuelo Domenici Mozzer Pinto / Lucia Furtado de Mendonça Cyranka<br />
...................................................................................... 501 – 513<br />
40. APRENDENDO PORTUGUÊS COM TEXTOS DE HUMOR<br />
Claudia Moura da Rocha / Darcilia M. P. Simões ....................514 – 527
41. ARISTÓTELES E PEIRCE: OS SUBSTRATOS PARA A COMPREENSÃO<br />
LÓGICA DOS PROCESSOS SEMIÓTICOS<br />
Luiz Roberto Peel Furtado de Oliveira ..................................528 – 534<br />
42. ARNALDO ANTUNES, INFERENCIAÇÃO E SENTIMENTO:<br />
FUNDAMENTOS SEMIOLINGUÍSTICOS PARA AULA DE LEITURA<br />
Beatriz dos Santos Feres ...................................................535 – 547<br />
43. AS CANÇÕES DIZEM MAIS: DESVENDANDO AS METÁFORAS<br />
PRESENTES NAS MÚSICAS SERTANEJAS<br />
Josiane Silveira Coimbra / Margareth Myriam da Rocha / Nívia de Souza<br />
Costa / Tays Angélica Rezende ..............................................548 – 559<br />
44. AS MARIAS NA MACROTOPONÍMIA SERGIPANA: A IGREJA E O<br />
PODER<br />
Cezar Alexandre Neri Santos ..............................................560 – 573<br />
45. AS METÁFORAS DO AMOR EM REVISTAS PARA ADOLESCENTES<br />
Ana Paula Ferreira ............................................................574 – 583<br />
46. AS METAMORFOSES DA MULHER NA POESIA BRASILEIRA<br />
FINISSECULAR<br />
Juliana Pêgas Costa ..........................................................584 – 592<br />
47. ASPECTOS DO PORTUGUÊS DO BRASIL NAS LETRAS DA MÚSICA<br />
POPULAR BRASILEIRA<br />
Maria Aparecida Rocha Gouvêa ...........................................593 – 602<br />
48. ASPECTOS SINTÁTICOS DO LATIM TARDIO- O CASO DO DISCURSO<br />
ADUERSUS IUDAEOS, DE TERTULIANO<br />
Renata Pereira Bastos / Luís Carlos Carpinetti ......................603 – 611<br />
49. ASPECTOS SINTÁTICOS DO TEXTO DE SÃO JERÔNIMO CONTRA<br />
IOHANNEM HIEROSOLYMITANUM EPISCOPUM AD PAMMACHIUM<br />
Ana Luíza Silva de Freitas / Luís Carlos Carpinetti .................612 – 619<br />
50. BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE O INGLÊS ANTIGO<br />
João Bittencourt de Oliveira ...............................................620 – 644<br />
51. CAMINHOS TEÓRICOS E PRÁTICOS EM ANÁLISE CRÍTICA DO<br />
DISCURSO<br />
Cleide Emília Faye Pedrosa / Derli Machado de Oliveira / Taysa Mércia<br />
dos Santos Souza Damaceno ..............................................646 – 691<br />
52. CARTAS DO LEITOR: A CONSTRUÇÃO DO ETHOS COMO ESPELHO<br />
DA CIDADANIA<br />
Lygia Maria Gonçalves Trouche ...........................................692 – 704<br />
53. CIÊNCIA E VIDA MODERNA NA DIALÉTICA MUSICAL DE GILBERTO<br />
GIL<br />
Beatriz Pereira da Silva .....................................................705 – 740
54. COMO E POR QUE TRABALHAR COM O TEXTO PUBLICITÁRIO EM<br />
SALA DE AULA<br />
Ilana da Silva Rebello Viegas ..............................................741 – 756<br />
55. COMO FUNCIONA O DISCURSO DO GÊNERO DIVULGAÇÃO CIENTÍ-<br />
FICA?<br />
Urbano Cavalcante Filho .....................................................757 – 770<br />
56. COMO SE PADECE NO PARAÍSO REPRESENTAÇÃO DA FIGURA<br />
MATERNA EM TRÊS FALAS<br />
Lucineide Lima de Paulo ....................................................771 – 784<br />
57. COMPONENTES ESTRUTURAIS DOS REPERTÓRIOS DE UMA OBRA<br />
LEXICOGRÁFICA<br />
Valéria Cristina de Abreu Vale Caetano ................................785 – 799<br />
58. COMPREENSÃO DE TEXTOS NARRATIVOS E ARGUMENTATIVOS DI-<br />
ALÓGICOS POR LEITORES DO ENSINO FUNDAMENTAL: RESULTADOS<br />
DA PESQUISA<br />
Antonia Valdelice de Sousa ................................................800 – 814<br />
59. CONSERVAÇÃO E PRESERVAÇÃO DOS ACERVOS DOCUMENTAIS<br />
BAIANOS<br />
E O TRABALHO FILOLÓGICO<br />
Maria da conceição Reis Teixeira .........................................815 – 826<br />
60. CONSTRUÇÕES LOCATIVAS NA FALA CULTA: UM ESTUDO<br />
VARIACIONISTA<br />
Elaine M. Thomé Viegas .....................................................827 – 836<br />
61. CONTRIBUIÇÕES AO DICIONÁRIO ETIMOLÓGICO DA LÍNGUA<br />
PORTUGUESA, DE ANTÔNIO GERALDO DA CUNHA: AS PALAVRAS<br />
COGNATAS EM FOCO<br />
Messias dos Santos Santana ..............................................837 – 847<br />
62. CRÍTICA TEXTUAL E CRÍTICA DE PROCESSO: EDIÇÃO E ESTUDO<br />
DO TEXTO TEATRAL<br />
Rosa Borges dos Santo.......................................................848 – 865<br />
63. CULTURA PARTILHADA E PUBLICIDADE USOS LEXICAIS NO<br />
DISCURSO PUBLICITÁRIO<br />
Nelly Carvalho ..................................................................866 – 875<br />
64. DA CIÊNCIA À DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA: NATUREZA E<br />
FUNCIONALIDADE DO DISCURSO<br />
Urbano Cavalcante Filho ....................................................876 – 891<br />
65. DE DIDO À MATRONA DE ÉFESO<br />
Amós Coêlho da Silva ........................................................892 – 898<br />
66. DE PRETO À AFRODESCENDENTE: IMPLICAÇÕES TERMINOLÓGICAS<br />
José Geraldo da Rocha ......................................................899 – 907
67. DISCURSOS DE POSSE DOS PRESIDENTES DO STF AS MANIFESTA-<br />
ÇÕES LINGUÍSTICAS E O ETHOS DO PODER JUDICIÁRIO<br />
Claudia Maria Gil Silva .......................................................908 – 917<br />
68. DISPARIDADES CRÍTICAS SOBRE A OBRA DE GIL VICENTE<br />
Rafael Santana Gomes ......................................................918 – 924<br />
69. DO SILENCIAMENTO DE LÍNGUAS: ALGUMAS REFLEXÕES<br />
DISCURSIVAS SOBRE A LEI 6.001<br />
Marcos Lúcio de S. Góis .....................................................925 – 940<br />
70. EDIÇÃO E ESTUDO DOS PROCESSOS ARGUMENTATIVOS DE<br />
DOCUMENTOS MANUSCRITOS DA CIDADE DO SALVADOR<br />
Gilberto Nazareno Telles Sobral ..........................................941 – 949<br />
71. ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA NA ESCOLA BÁSICA GÊNEROS E<br />
SEQUÊNCIAS TEXTUAIS<br />
Vania L. R. Dutra / Gustavo Listo ........................................950 – 962<br />
72. ENTRE INFORMAÇÃO E FICÇÃO, A ESCRITURA LITERÁRIA E O ES-<br />
PAÇO DE DISCURSIVIDADE DOS FOLHETINS NOS PERIÓDICOS DO SÉ-<br />
CULO XIX<br />
Vera Maria Aragão de Souza Sanchez ..................................963 – 971<br />
73. ESTRATÉGIAS ARGUMENTATIVAS EM SILVA JARDIM (SÉCULO XIX)<br />
Márcia A G Molina .............................................................972 – 980<br />
74. EXISTE MESMO UMA FACULDADE DE LINGUAGEM INATA E ESPECÍ-<br />
FICA? ALGUNS PROBLEMAS<br />
Zinda Vasconcellos ............................................................981 – 992<br />
75. EXPRESSÃO E SENTIDOS NO TRATAMENTO DA APICULTURA POR<br />
VARRÃO E VIRGÍLIO<br />
Matheus Trevizam ........................................................... 993 – 1004
A ALUSÃO COMO PROPOSTA DE LER E ESCREVER<br />
NO GÊNERO ROMANCE<br />
1. Introdução<br />
Amanda Maria Nascimento Gomes (UNEB)<br />
amandalispector@hotmail.com<br />
A leitura do romance Ciganos de Bartolomeu Campos de<br />
Queirós nos indicia a presença de várias categorias da intertextualidade.<br />
Buscamos com nossa pesquisa, o leitor-modelo do autormodelo<br />
do livro Ciganos de Bartolomeu Campos de Queirós, por entendermos<br />
que aquele que faz o jogo alusivo como a metáfora categoria<br />
da alusão e a memória se constitui o leitor-modelo do autormodelo<br />
do autor Bartolomeu Campos de Queirós. Por isso, o objetivo<br />
desta pesquisa é desenvolver um estudo intertextual tendo a metáfora<br />
como constituidora do jogo alusivo.<br />
A singularidade da obra pode ser percebida pela constituição<br />
gráfica, pois as páginas não são enumeradas convencionalmente e há<br />
uma linha gráfica que divide as duas histórias; a dos ciganos e a do<br />
menino. Observamos também outras possibilidades para que o leitor<br />
torne-se um leitor nômade que ao ir e vir entrelace as histórias, leiaas<br />
de tantas outras formas, outras possibilidades.<br />
Acima da linha, uma leitura permitida é aquela que os ciganos<br />
despertavam em um pequeno vilarejo, curiosidade, mistério, contemplação<br />
de medo, alegria, liberdade e beleza. Provocavam sonho<br />
nas pessoas daquele lugar. O sagrado misturava-se ao profano. E,<br />
ninguém sabia exatamente de onde viam ou para onde partiam os ciganos.<br />
Escutei de outros que eram filhos das grandes florestas e procuravam<br />
uma passagem para as minas de ouro do rei Salomão. (p. 1)<br />
Ninguém sabia para onde iam os ciganos. Se voltavam para o Egito<br />
ou se tiverem notícias, pelas cartas do baralho, das minas de ouro do rei<br />
Salomão. (p. 11)<br />
Os fragmentos acima aludem ao livro As Minas do Rei Salomão<br />
que narra a história de uma jornada ao coração da África feita<br />
por um grupo de aventureiros em busca de lendária riqueza do Rei
Salomão, rei bíblico renomado tanto por sua sabedoria quanto por<br />
sua riqueza. No livro os aventureiros correm riscos, desvendam mistérios,<br />
tudo para chegar à tão sonhada riqueza.<br />
O nome das serras, realmente, sempre foi serras de Salomão. Além<br />
disso, uma feiticeira, do distrito de Manica, uma velha de mais de cem<br />
anos, contou-me tudo... Isto é, contou-me que para lá das serras vive um<br />
povo que é da raça dos zulus, e que fala um dialeto zulu... Pois nesse povo<br />
há videntes, grandes feiticeiros, que de geração em geração, têm trazido<br />
o segredo de uma mina prodigiosa, que foi de um rei... (HAG-<br />
GARD, 2003, p. 25)<br />
– A entrada das minas de Salomão lá está... Chegaremos nós lá? (Id,<br />
p. 51)<br />
Em Ciganos há alusões ao livro citado à medida que o povo<br />
cigano também busca riquezas, correm riscos, desvendam mistérios,<br />
estão em busca de desvendar o segredo das minas, já que são também<br />
feiticeiros e videntes que o guardam “... se tiveram notícias, pelas<br />
cartas do baralho, das minas de ouro do rei Salomão” (p. 11)<br />
Outros falavam que vinham das terras de Espanha ou das areias de<br />
Portugal. Cortaram o mar, guiados pelo brilho das escamas de sereias,<br />
escondidos nas noites.<br />
Sem saber ao certo de onde viam ou para onde iam, sei que os ciganos<br />
surgiam. (p. 1)<br />
O trecho acima nos alude a um discurso histórico, que é uma<br />
das hipóteses de origem do povo cigano, que ainda hoje é de todo<br />
desconhecida. No princípio, devido à dificuldade de se estabelecer a<br />
origem dos diversos grupos de ciganos que chegaram a Portugal, foram<br />
erradamente chamados de gregos ou egipicianos, porque se pensava<br />
que vinham da Grécia ou do Egito.<br />
Não se conhece com exatidão a data da chegada dos ciganos a<br />
Portugal, mas a sua presença começa a ser assinalada no início do<br />
século XVI, de acordo com os primeiros testemunhos que aparecem<br />
na literatura e na legislação, isto é, no Cancioneiro de 1510 e no<br />
“Auto das Ciganas” de Gil Vicente em 1521.<br />
Em Portugal os ciganos apresentavam práticas misteriosas e<br />
pagãs estranhas como, adivinhar o futuro, acampar e vestir roupas diferentes,<br />
não podiam deixar de causar o pasmo das populações fortemente<br />
marcada pelo poder da igreja católica.<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
2
Muitos ciganos foram perseguidos e por isso saíram para diferentes<br />
partes do mundo e estiveram sujeitos a efeitos que se fazem<br />
sentir até hoje; cigano rouba menino, cigano rouba objetos, ciganos<br />
são pagãs, são amaldiçoados.<br />
É nesse jogo discursivo que destacamos a alusão, não como<br />
uma mera menção como propôs Paulino (1995, p. 29) a alusão é um<br />
tipo de intertextualidade fraca, uma vez que nota apenas uma leve<br />
menção a outro componente seu. Mas entendemos que a alusão é<br />
perturbadora porque exige do leitor um compromisso com o ir e vir<br />
dos discursos.<br />
Segundo Torga (2001, p. 10) a alusão;<br />
É perturbadora, é sutil, criadora do movimento de ir e vir, devir,<br />
porque exige do leitor um compromisso com a construção da narrativa,<br />
que tem uma história e precisa ser por ele reconstruída mnemonicamente<br />
pela cooperação.<br />
A perspectiva teórica sobre a alusão em Torga (2001) nos remete<br />
também a Eco (1994, p. 9) quando ele afirma que: o texto é<br />
uma máquina preguiçosa, pedindo ao leitor que faça uma parte do<br />
seu trabalho. Percebe-se que os autores acima comungam da mesma<br />
ideia que a memória constitui ao lado da metáfora uma das categorias<br />
do movimento de ir e devir da alusão como estratégia de leitura e<br />
escrita sutil, porém perturbadora na construção de sentido do texto.<br />
Ou ainda como Torga (2001, p. 10), que afirma que “as alusões<br />
vão formando a figura do todo – a partir dos índices – pequenas<br />
citações, enquanto parte desse todo”.<br />
Nascia assim, de repente como a morte, uma vila colorida que se aninhava<br />
naquele povo antigo. (p. 02)<br />
A emoção de misturava: de um lado o recado dos céus e do outro a<br />
realidade dos gitanos. Essa dúvida se tornava o sossego da cidade. (p.<br />
03)<br />
Desejo escondido de ler a linha do horizonte (grifos nossos). (p. 1)<br />
Os fragmentos acima indicam que a utilização de metáforas<br />
permite decifrar os mistérios do mundo e das emoções do povo cigano.<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
3
Em “Nascia assim, de repente como a morte” alude à ideia de<br />
que é também a morte um (re)nascimento e a vila (re)nascia com a<br />
chegada dos ciganos. Mas as pessoas daquele lugar conviviam com<br />
“o recado dos céus”, ou seja, a lembrança de que o sagrado deve imperar<br />
sobre a realidade dos ciganos, mas havia o desejo de “ler a linha<br />
do horizonte”, decifrar os mistérios que os envolviam, pois a origem<br />
dos ciganos está ligada, desde sempre, a fantasia. Tolerados ou<br />
hostilizados, os ciganos não deixam ninguém indiferente.<br />
Abaixo da linha gráfica está o sonho soturno do meninonarrador<br />
adulto em busca de preencher a sua falta interior. Um menino<br />
feito de coragem e medo que enxergava nos ciganos a possibilidade<br />
de eles ocuparem o vazio que ele carrega dentro de si.<br />
Foi no tempo dos ciganos que o conheci. Ele era como a madrugada<br />
perto de acordar. Era um menino feito de coragem e medo. (p. 01)<br />
Ah, ser roubado era o mesmo que ser amado. Ele sentia que só roubamos<br />
o que nos faz falta. E ele – como gostaria de ser ausência, mesmo<br />
dos ciganos. (p. 7)<br />
Para um menino, assim só, os ciganos eram uma espécie de sol que<br />
acordava os afetos (grifos nossos). (p. 8)<br />
Percebemos nos excertos que o menino constrói uma imagem<br />
dos ciganos de “espécie de sol que acordava os afetos” contrariando<br />
a memória coletiva que se organiza em torno de um mito social de<br />
ser o povo cigano nômade, aquele que rouba objetos, rouba meninos<br />
e tem um modo de existir que causa medo. Mas “Ah, ser roubado era<br />
o mesmo que ser amado”, aqui o verbo “roubar” assume um significado<br />
positivo, contrário ao seu significado real de retirar algo de outrem<br />
indevidamente. Pois para um menino que convivia com tantas<br />
faltas; indiferença e sisudez do pai, perda da mãe, solidão, só os ciganos<br />
com tanta alegria que despertam na cidade eram capazes de<br />
preencher seu vazio. Por isso ele queria ser levado pelos ciganos, desejava<br />
desfrutar de outros mundos com outras companhias. Para ele<br />
“os ciganos eram uma espécie de sol que acordava os afetos”. (p. 8)<br />
Ler Ciganos de Bartolomeu Campos de Queirós é a possibilidade<br />
de contemplar a beleza e a singularidade de sua obra. O texto –<br />
prosa poética - faz o leitor transitar pelas páginas e “[...] destramelar<br />
as janelas e espiar mais longe”. (QUEIRÓS, 1996). E isso se dá a<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
4
partir de uma estratégia de leitura daquele que faz o jogo alusivo<br />
com as metáforas e a memória discursiva.<br />
Assim, percebendo a metáfora e a memória discursiva como<br />
categorias constituidoras da alusão, entendemos que ela, a alusão<br />
pode ser uma teoria de leitura e escrita que nos possibilita ler Ciganos<br />
de Bartolomeu Campos de Queirós como “desejo escondido de<br />
ler a linha do horizonte e desvendar os mistérios que diziam além<br />
dos mares e das montanhas”. (QUEIRÓS, 1991).<br />
2. Da alusão e da fenomenologia dialética<br />
Em seu livro intertextualidade Paulino (1995, p. 29) afirma<br />
que a alusão é um tipo de intertextualidade fraca, uma vez que nota<br />
apenas uma leve menção a outro componente seu. Já Torga (2001)<br />
afirma que a alusão é criadora do movimento ir, vir e devir, que é o<br />
movimento da contradição inerente à fenomenologia dialética.<br />
Hegel (Apud TORGA, 2001, p. 10) traz para a filosofia a concepção<br />
de dialética em que a contradição se constitui o motor do<br />
pensamento. É por ela que o pensamento, e a história se realizam<br />
como processo, como movimento – movimento dos contrários.<br />
E, é este o movimento dialético do ir e vir, movimento da não<br />
linearidade que consiste o jogo alusivo em Ciganos, que apresenta os<br />
fenômenos que contém o movimento que releva a essência e esta por<br />
sua vez, contém, dialeticamente o fenômeno.<br />
Para Kosik (1995, p. 16) captar o fenômeno de determinada<br />
coisa significa indagar e descrever como a coisa em si se manifesta<br />
naquele fenômeno, e como ao mesmo tempo nele se esconde. Compreender<br />
o fenômeno é atingir a essência.<br />
Os fragmentos a seguir demonstram como se dá o movimento<br />
de sentido da alusão na perspectiva da fenomenologia dialética.<br />
Essa maneira milenar que os ciganos tinham de estar no mundo –<br />
nascendo em cada chegada e morrendo em cada partida – incomodava os<br />
habitantes da cidade, sempre a perseguirem o eterno. (p. 2)<br />
A emoção se misturava: de um lado o recado dos céus e do outro a<br />
realidade dos gitanos. Essa dúvida se tornava o sossego da cidade. (p. 3)<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
5
Nascia assim de repente como a morte, uma vila colorida que se aninhava<br />
naquele povoado antigo. (p. 2)<br />
Nos exemplos destacados podemos perceber a fenomenologia<br />
dialética como em “nascendo em cada chegada e morrendo a cada<br />
partida” é nítida, neste trecho, a contradição entre o “nascer” da chegada<br />
dos ciganos conota-se a alegria que a cidade sentia e o “morrer”<br />
na partida pelo vazio e tristeza que eles deixavam, mais adiante<br />
“nascia assim de repente como a morte, uma vila colorida”, a morte<br />
aqui assume um valor de vida pelo renascer da vila com a chegada<br />
dos ciganos.<br />
O movimento fenomenológico dialético do jogo alusivo se dá<br />
exatamente no jogo luz/sombra/luz presente no fenômeno e na teoria.<br />
Ou seja, no fenômeno há a presença da teoria e nela a presença do<br />
fenômeno. Assim ao se falar em “nascendo a cada chegada e morrendo<br />
a cada partida” o movimento de chagar já alude à partida que<br />
há em si o movimento daquele que chegou.<br />
Há também a presença do sagrado e do profano “de um lado o<br />
recado dos céus e do outro a realidade dos gitanos”<br />
Eles deixaram a Índia, alguns diziam, em busca de um caminho para<br />
se chegar ao sol. Escutei de outros que eram filhos das grandes florestas<br />
e procuravam uma passagem para as minas de ouro do rei Salomão. (p.<br />
1)<br />
Neste excerto percebemos a construção mitológica em torno<br />
dos ciganos, de que constituem um povo nômade sempre em busca<br />
de riquezas, que não se fixam em nenhum lugar, por isso causam curiosidades<br />
onde chagam. De maneira geral, pouco se sabe sobre sua<br />
cultura, a sua origem, a sua história e a razão de serem como são;<br />
festeiros, amantes do canto e da dança, das roupas coloridas, dos hábitos<br />
ruidosos e do desejo de liberdade. Tudo isso instigava a curiosidade<br />
de todos e do menino-narrador adulto que queria ser levado<br />
por eles.<br />
A metáfora “caminhos para se chegar ao sol” indicia esse desejo<br />
de ir além dos limites, de explorar lugares para se chegar ao<br />
“sol” ao brilho, às contemplações de alegria e felicidade. Daí o mito<br />
de ser o povo cigano alegre, festeiro. Alude, ainda, à lenda do Rei<br />
Salomão, personagem bíblico que sendo rei de Israel acumulou mui-<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
6
tas riquezas em seu reinado através da exploração de riquezas do<br />
Mediterrâneo.<br />
Nos escritos bíblicos do velho testamento Salomão é um dos<br />
reis mais exaltados pela sua riqueza e sabedoria.<br />
Todas as taças que o rei Salomão usava para beber eram de ouro, e<br />
toda a baixela do salão da floresta era também de ouro puro... E o rei Salomão<br />
superou em riqueza e sabedoria todos os reis da terra. Todo mundo<br />
queria visitar Salomão, para aprender a sabedoria que Deus lhe havia<br />
dado. Cada um trazia seus presentes: vasilhas de prata e ouro, roupas,<br />
armas e aromas, cavalos e mulas. (10 Rs, 21-25, p. 380)<br />
O fascínio provocado pelo esplendor da riqueza do rei Salomão<br />
nos remete à memória social que nos faz pensar que o povo cigano<br />
está sempre também em busca de riquezas, do ouro. Este não<br />
deixa de estar presente na vida deles que sendo nômades acumulam<br />
suas riquezas de maneira portátil.<br />
Era o amarelo a cor preferida dos ciganos. Eles amavam o sol, o ouro,<br />
o cobre. Enfeitavam-se com ouro nos dedos, nos dentes, nas orelhas,<br />
nos braços. (p. 8)<br />
O fragmento abaixo revela o desejo do menino-narrador adulto<br />
de também explorar sua vida, de “ler a linha do horizonte” de ir<br />
além, de desvendar mistérios, de buscar outras possibilidades de vida.<br />
Essa seria sua maior riqueza.<br />
Lembro-me, contudo, de seu primeiro segredo:desejo escondido de<br />
ler a linha do horizonte e desvendar o mistério que diziam além dos mares<br />
e das montanhas. (p. 1)<br />
Cabe ao leitor tornar-se nômade para transitar entre as duas<br />
histórias; a dos ciganos e a do menino. É ele o leitor empírico que<br />
vestido de leitor – modelo fará ou não o jogo alusivo. Isso se dá no<br />
momento em que se percebe a construção do discurso com o movimento<br />
do ir, vir e devir que une as duas histórias e faz perceber como<br />
os ciganos constroem no imaginário social o desejo de adquirir riquezas<br />
e liberdade, por isso estão sempre transitando e o desejo do<br />
menino de sair de seu lugar comum aludindo à vida dos ciganos.<br />
Para Torga (2001, p. 19) o texto vai, na sua significação, além<br />
do trabalho significante do autor. "Compreender uma obra é, assim,<br />
compreendê-la enquanto mediatizada pelas relações sociais, pela lin-<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
7
guagem, ou enfim, pelas relações autor-leitor, pela linguagem, pela<br />
alusão”.<br />
A presença dos ciganos mudava o ritmo de ser da cidade. Portas eram<br />
cerradas, roupas não dormiam em varal, nem cavalos soltos nos pastos.<br />
(p. 2)<br />
Com a chegada dos ciganos o medo passava a ser companheiro dos<br />
meninos: isto por contarem que cigano roubava criança. E, como ninguém<br />
sabia de onde viam ou para onde iam, as crianças ficariam perdidas<br />
para sempre. (p. 6)<br />
Ah, ser roubado era o mesmo que ser amado. Ele sentia que só roubamos<br />
o que nos faz falta. E ele como – gostaria de ser a ausência, mesmo<br />
dos ciganos... (p. 7)<br />
Aqui nota-se a de sentimentos antagônicos em relação ao povo<br />
cigano; primeiro temos os medos e a insegurança perante o povo<br />
cigano “a presença dos ciganos mudava o ritmo de ser da cidade”. O<br />
medo surgiu como mito construído em torno de um imaginário coletivo<br />
social de que ciganos roubam objetos de, que não são pessoas<br />
confiáveis, que são “diferentes”, pois têm uma cultura ímpar que não<br />
é comparada a nenhum outro povo. Até mesmo as crianças são influenciadas<br />
por esse discurso, principalmente quando os adultos lhe dizem<br />
que ciganos roubam menino, “Com a chegada dos ciganos o<br />
medo passava a ser companheiro dos meninos” (p. 6)<br />
Segundo, temos curiosamente o sentimento do menino de<br />
querer ser roubado pelos ciganos “Ah, ser roubado era o mesmo que<br />
ser amado”. Mas de onde vem esse desejo? Por que um menino gostaria<br />
de ser “roubado” pelos ciganos? É aqui que percebemos que o<br />
mito dos ciganos é uma alusão ao preenchimento das faltas do menino-narrador<br />
adulto. Se o povo cigano é alegre, festeiro, unido entre<br />
si, só eles poderiam preencher os vazios que há em um menino que<br />
convive com a perda da mãe, a indiferença do pai e a falta de amor<br />
da família.<br />
Ninguém sabia, nem as sábias ciganas, que morrer cedo era a sorte<br />
de sua mãe, mas assim foi. Ela partiu numa madrugada, neste momento<br />
frágil que nem mesmo a natureza se define. (p. 4)<br />
Foi do seu pai que ele herdou essa mania calada, esse jeito escondido<br />
e mais a saudade de coisas que ele não conhecia nem imaginava. Sua<br />
vontade de partir veio, porém, do desamor. Tudo em casa já andava ocu-<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
8
pado: as cadeiras, as camas, os pratos, os copos. Mesmo o carinho distribuído.<br />
(p. 3)<br />
Por seguidas vezes a sua solidão se misturava aos ruídos do chicote<br />
do pai, nas costas. E desse surpreendente dueto também ele não sabia a<br />
dor maior, se da carne ou a do coração. (p. 3)<br />
Ah, ser roubado era o mesmo que ser amado. Ele sentia que só roubamos<br />
o que nos faz falta. E ele – como gostaria de ser ausência, mesmo<br />
dos ciganos... (p. 7)<br />
Para um menino, assim só, os ciganos eram uma espécie de sol que<br />
acordava os afetos. (p. 8)<br />
Mas esta raça colorida, que roubava até o sono das crianças, se convertia<br />
em esperança para aquele menino contido. (p. 7)<br />
Na construção gráfica do livro há uma linha que divide as duas<br />
histórias; a dos ciganos e a do menino. Assim no desenvolver da<br />
narrativa os dois discursos vão se entrelaçando em forma de espiral;<br />
acima da linha a história dos ciganos aparece de forma mitológica<br />
que conduz o leitor à história do menino-narrador adulto. Abaixo da<br />
linha gráfica por sua vez alude à história dos ciganos acima da linha<br />
gráfica. E este o movimento fenomenológico-dialético da alusão às<br />
partes compondo o todo e o todo levando as partes.<br />
Era o amarelo a cor preferida dos ciganos. Eles amavam o sol, o ouro,<br />
o cobre. Enfeitavam-se com ouro nos dedos, nos dentes, nas orelhas,<br />
nos braços. (p. 8)<br />
A simbologia do amarelo alude à cor do ouro, do cobre que<br />
são metonimicamente as partes que compõe o todo que metaforicamente<br />
a riqueza. E, é também a cor amarela que representa o sol que<br />
é uma alusão à ação de aquecer, que é uma alusão ao afeto, este a<br />
maior riqueza do menino.<br />
Para um menino, assim só, os ciganos eram uma espécie de sol que<br />
acordava os afetos. E era tanto o amor, que muitas vezes ele duvidava de<br />
tudo, pensava ser um cigano em porta de família alheia. (p. 8)<br />
Desta maneira o menino-narrador, voz do autor empírico, do<br />
livro Ciganos alude em sua narrativa outros discursos que precisam<br />
ser recuperados pelo leitor.<br />
Em Ciganos o jogo alusivo constitui o cerne do discurso, sem<br />
ele o leitor empírico que não esteja vestido de leitor-modelo não<br />
desvendar as possibilidades de movimento de sentido do texto. Para<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
9
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
10<br />
Eco (1994 p. 22) O leitor-modelo é um conjunto de instruções textuais<br />
apresentadas pela manifestação linear do texto precisamente como<br />
um conjunto de frases ou de outros sinais.<br />
Adornado a mesa da sala da casa desse menino, havia um caramujo.<br />
Feito de um rosa quase branco e brilhante como o vazio, ele tinha a superfície<br />
lisa como pedra enrolada.<br />
Sempre que os ciganos surgiam, armava no coração do menino a<br />
vontade de ter sempre esse caramujo sobre o ouvido. É que ele trazia enrolado<br />
sob sua forma, o barulho das ondas do mar. Mas que existia depois<br />
das montanhas, atrás da linha do horizonte, mas que o caramujo<br />
mantinha como um recado ou uma saudade, fielmente. (p. 2)<br />
Outros falavam que vinham das terras de Espanha ou das areias de<br />
Portugal. Cortaram o mar, guiados pelo brilho das escamas de sereias,<br />
escondidos na noite.<br />
Sem saber ao certo de onde vinham ou para onde iam, sei que os ciganos<br />
surgiam. (p. 1)<br />
Os ciganos deixavam a cidade e nem sempre desavisadamente. Enquanto<br />
dobravam as lonas, os tapetes, as sedas, empilhavam o cobre, o<br />
menino recolhia sua esperança escondido em roupas dos varais.<br />
No dia seguinte restos de cinzas marcariam a presença dos ciganos.<br />
Engolido pelas noites, ele se punha a pensar no caminho daqueles<br />
gitanos vindos da Índia, das terras de Espanha e das areias de Portugal.<br />
Mas nem eles, capazes de roubos, o desejavam.<br />
Então o silêncio se instalava, frágil e rígido como vidro. (p. 11)<br />
Não faz muito, encontrei esse menino. Estava alheio como antes da<br />
chegada ou depois da partida dos ciganos.<br />
Ele passeava entre fadas, conchas, pássaros e domingos. Tentei por<br />
outra vez adivinhar seu pensamento. Vi que seu coração já não anda farto<br />
de desejos. Como caramujo, enrolado sobre si mesmo, ele imaginava viagens<br />
a lugares que só existem muito depois das nuvens. (p. 12)<br />
Os enunciados acima denotam que o jogo alusivo está justamente<br />
nos sinais que o autor-modelo proporciona para que o leitormodelo<br />
compreenda que o texto é uma máquina preguiçosa, pedindo<br />
ao leitor que faça a parte do seu trabalho, Eco (1994, p. 9).<br />
Em “Sempre que os ciganos surgiam, armava no coração do<br />
menino a vontade de ter sempre esse caramujo sobre o ouvido” percebemos<br />
que metaforicamente o caramujo alude ao sentimento de<br />
solidão de introspecção do menino, por isso "É que ele trazia, enro-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
11<br />
lado sob sua forma, o barulho das ondas do mar”. E, o mar nos alude<br />
aos caminhos que provavelmente os ciganos percorriam para chegar<br />
a vila que o menino morava. "Cortaram o mar guiados pelo brilho<br />
das escamas de sereias, escondidos na noite.” Quando os ciganos<br />
deixavam aquele lugar o menino voltava de novo para dentro de si,<br />
para suas faltas e seu vazio interior “Então o silêncio se instalava,<br />
frágil e rígido como vidro”, assim “como caramujo, enrolado sobre si<br />
mesmo, ele imaginava viagens a lugares que só existem muito depois<br />
das nuvens.”<br />
Os sinais que são partes, vão indiciando fragmentariamente, a<br />
constituição do sentido de certo todo na obra.<br />
2.1. Da metáfora<br />
As metáforas no dizer de Harries (1992, p. 87) falam daquilo<br />
que está ausente. Toda metáfora que é mais do que uma abreviação<br />
de uma linguagem mais direta acena para aquilo que transcende a<br />
linguagem ou ainda para Torga (2001, p. 46), a metáfora, é a parte<br />
que é produzida para ser equivalente ao todo, de forma que a relação<br />
todo/parte possa ser vista pretensamente na condensação do todo.<br />
Para Gagnebin (1997 apud TORGA, 200, p. 45), a ação metafórica<br />
é uma relação entre dois elementos da linguagem, ou seja, a<br />
possibilidade de transpor para uma coisa o nome de outra coisa.<br />
Ou ainda como afirma (TORGA, 2001, p. 45), “a metáfora,<br />
pela condensação, atuaria na linha da reprodução da relação todo/parte,<br />
a parte se identificaria com o todo.”<br />
No corpus analisado nossa atenção está voltada também para<br />
as metáforas, numa tentativa de desvelar o processo de construção<br />
desse jogo semiolinguístico da alusão de sentido e/ou expressões.<br />
São as experiências, as vivências que forjam o leitor, que lhe permitem<br />
alcançar (ou não) o projeto do autor e do narrador.<br />
Assim em Ciganos as metáforas vão formando o todo que alude<br />
às partes que, por sua vez são da ordem da metonímia. A força<br />
da metáfora no jogo alusivo depende basicamente de nossa incerteza,
da capacidade de deixar o interlocutor oscilando entre dois significados.<br />
Nos exemplos abaixo podemos perceber como se dá essa<br />
formação:<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
12<br />
Para um menino, assim só, os ciganos eram uma espécie de sol que<br />
acordava os afetos. (p. 8)<br />
O sol nos remete ao poder que ele tem de aquecer, o que é<br />
metaforicamente ligado ao afeto. Aquele que possui afeto está aquecido.<br />
E, o menino queria ser parte dos ciganos uma vez que ele acreditava<br />
que somente os ciganos poderiam preencher sua falta de amor.<br />
Por muitas vezes o sino da igreja se integrava às batidas dos martelos,<br />
e desse surpreendente dueto a cidade, como a poesia, ficava indefinida.<br />
(p. 3)<br />
O sino da igreja enquanto parte e as batidas dos martelos<br />
também enquanto parte constituem metonímias que aludem ao todo.<br />
O sino vindo da igreja anuncia aquilo que é da dimensão do sagrado,<br />
enquanto que as batidas do martelo anunciam para muitos um ritual<br />
profano dos ciganos.<br />
A cidade tornava-se indefinida com esse dueto, pois se de um<br />
lado o sagrado os convidava para os rituais religiosos, do outro os<br />
ciganos os seduziam para os rituais profanos. Tanto um quanto o outro<br />
aludem ao mesmo preenchimento das lacunas, das faltas, do não<br />
afeto da espiritualidade, da festividade, do trabalho dos ciganos.<br />
A emoção se misturava: de um lado o recado dos céus e do outro a realidade<br />
dos gitanos. Essa dúvida se tornava o sossego da cidade. (p. 3)<br />
O jogo alusivo é marcado neste fragmento de um lado como o<br />
céu sendo o lugar do sagrado, do mistério da purificação, do não pecador,<br />
de serem homens merecedores da alegria, do bem estar. Do<br />
outro lado a realidade dos gitanos, do mistério, das fantasias, das festas,<br />
do profano. Mas também da purificação.<br />
Nascia assim de repente como a morte, uma vila colorida que se aninhava<br />
naquele povoado antigo. (p. 2)<br />
A vila, metaforicamente renascia, ou seja, os moradores voltavam<br />
a ter alegria com a presença dos ciganos que eram promessa<br />
de mistério, fantasias, festas.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
13<br />
Nos fragmentos que se seguem, percebemos, como o jogo alusivo<br />
ocorre nas relações do menino-narrado adulto, seu meio familiar<br />
e o mundo social dos ciganos: o povo cigano é conhecido como<br />
um povo nômade, sem endereço fixo, que vive de chegadas e partidas,<br />
sem uma definição na vida, tendo como ponto forte a noção de<br />
pecadores, de ladrões, de perigosos, de perdidos na vida. Aqueles<br />
que faziam parte do grupo, as mulheres de roupas longas e coloridas,<br />
os homens com um modo singular de agir, aqueles que com sua chegada<br />
provocavam desejos escondidos nas pessoas daquele lugar e<br />
despertava o sonho do menino de ser levado por eles. O mistério que<br />
a presença deles provocava é, metaforicamente, uma alusão à liberdade,<br />
ao despertar dos desejos escondidos em respeito a religiosidade,<br />
ao afeto , às faltas interiores que os ciganos preenchiam em cada<br />
um daqueles lugares por onde andavam.<br />
Eles deixaram a Índia, alguns diziam, em busca de um caminho para<br />
se chegar ao sol. Escutei de outros que eram filhos das grandes florestas<br />
e procuravam uma passagem para as minas de ouro do rei Salomão. (p.<br />
1)<br />
Nascia assim de repente como a morte, uma vila colorida que se aninhava<br />
naquele povoado antigo. (p. 2)<br />
Eles devem ter inventado a festa, a cor, a forma do circo. (p. 9)<br />
Nas noites, forte de música saía das cabanas e, percorrendo a cidade,<br />
invadindo ouvidos, promovia sonhos. (p. 7)<br />
Assim, revelando desejos, confirmando anseios, realizando fantasias,<br />
os ciganos passavam a ser silenciosamente amados. (p. 5)<br />
Por seguidas vezes a sua solidão se misturava aos ruídos do chicote<br />
do pai nas costas. E desse surpreendente dueto também ele não sabia a<br />
dor maior, se a da carne ou a do coração. (p. 3)<br />
[...] Ele comungava a vontade de fazer de fazer-se atraído pelos ciganos<br />
e ser roubado por eles. Ah, ser roubado era o mesmo que ser amado<br />
e ele sentia que só roubamos o que nos faz falta. E ele - como gostaria<br />
de ser ausência, mesmo dos ciganos. (p. 7)<br />
Os fragmentos acima contêm no nosso entender, exemplos do<br />
jogo alusivo em Ciganos de Bartolomeu Campos de Queirós.<br />
O título já nos alude ao mito “ciganos” povo de origem desconhecida,<br />
que chega a causar medo, mas que sempre despertaram a
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
14<br />
curiosidade, o fascínio pelo desconhecido e também o desejo de espiar<br />
mais longe e desvendar os mistérios além dos mares e oceanos.<br />
Para Torga (2001, p. 19) O texto vai além, na sua significação,<br />
além do trabalho significante do autor. Compreender uma obra<br />
é, assim, compreendê-la enquanto mediatizada pelas relações sociais<br />
pela linguagem, ou enfim, pelas relações autor-leitor, pela alusão.<br />
Assim, revelando desejos, confirmando anseios, realizando fantasias,<br />
os ciganos passavam a ser silenciosamente amados. (p. 5)<br />
2.2. Da memória discursiva<br />
Em Ciganos de Bartolomeu Campos de Queirós percebemos<br />
que o discurso é uma prosa-poética construída com a memória.<br />
Para Halbwachs (Apud DAVALLON, 1999) a memória é caracterizada<br />
como o que ainda é vivo na consciência do grupo e para a<br />
comunidade.<br />
É o rememorar através das imagens, das experiências do passado:<br />
imagens dos ciganos; de seus costumes, das festas, do sagrado,<br />
do profano, dos sonhos, das faltas, que vão possibilitando ao leitor<br />
vestido de leitor-modelo e ao autor vestido de autor-modelo a construção<br />
do mosaico que é o livro Ciganos.<br />
Segundo Goff (Apud TORGA, 2001, p. 53), nas sociedades<br />
sem escrita cabia aos homens – memória ou aos membros mais velhos<br />
das comunidades serem os guardiões da memória. A memória<br />
coletiva se organiza em torno de três grandes interesses: o mito, o<br />
prestígio das famílias dominantes (genealogia) e o saber profissional<br />
ligado à magia religiosa.<br />
Os conceitos de memória se fazem necessários, pois entendemos<br />
que ela constitui uma das categorias da alusão em Ciganos.É<br />
ela, a memória, que permite resgatar o imaginário social do povo cigano<br />
e possibilitar o ir e vir do discurso na obra.<br />
No dizer de Brandão (Apud TORGA, 2001, p. 68) a memória<br />
discursiva é que torna possível toda a formação discursiva fazer circular<br />
formulações anteriores já anunciadas.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
15<br />
E de rua em rua, de porta em porta, elas se ofereciam para ler o destino<br />
que diziam oculto na palma de todas as mãos. Contavam ainda que a<br />
mão era uma cartilha que elas aprenderam a decifrar com os egípcios, há<br />
muitos e muitos séculos. (p. 4)<br />
E nas mãos que a cidade timidamente oferecia, estas ciganas – tiradoras<br />
de sorte – liam futuros cheios de amor e fortuna. Diziam de longas<br />
viagens e de terras desconhecidas. Falavam de um rapaz louro ou de uma<br />
rapariga morena que completaria a felicidade de cada um. Previam casamentos<br />
muito em breve e com muitos filhos. Viam um sinal de pequeno<br />
desgosto, mas a vida, esta seria longa e cheia de aventuras. (p. 5)<br />
Os fragmentos citados aludem ao discurso mitológico de que<br />
as ciganas são tiradoras de sorte, adivinhas, conseguem prever o futuro<br />
e para muitos profetizar significar blasfemar ir contra o sagrado.<br />
Desta maneira socialmente muitas ciganas causam estranheza, medo,<br />
onde chegam por prever o futuro. Assim ao longo da história foram<br />
rotuladas como feiticeiras, amaldiçoadas. No entanto, para a comunidade<br />
cigana a prática da quiromancia não é um mero sistema de adivinhação,<br />
mas, acima de tudo um inteligente esquema de orientação<br />
sobre o corpo, a mente e o espírito; sobre a saúde e o destino.<br />
O povo cigano pelo seu modo singular de estar no mundo<br />
causa curiosidade, medo, fascínio. A razão da diáspora dos ciganos<br />
ainda não é de todo conhecida, restando, portanto, apenas hipóteses.<br />
Mas o imaginário social criou conclusões de que o povo cigano é aventureiro,<br />
mau, ladrão e é isso que é repassado até hoje pelo mundo.<br />
A presença dos ciganos mudava o ritmo de ser da cidade. Portas eram<br />
cerradas, roupas não dormiam em varal, nem cavalos soltos nos pastos.<br />
(p. 2)<br />
O livro Ciganos nos convida ao sentimento despertado no<br />
menino que gostaria de ser roubado pelos ciganos contrariando o mito<br />
social. É a “cartilha” dos ciganos que o menino-narrador adulto<br />
quer decifrar.<br />
Por tantas vezes ele quis oferecer sua mão às ciganas, mas recusava,<br />
explicando para si mesmo que mão de menino não tem leitura, as linhas<br />
não são definidas. (p. 5)<br />
Mas seu primeiro amor foi Lili. Ela era feita de papel, impresso na<br />
cartilha, mas que lhe permitia repetir ao avesso: Lili, olhe para mim. Mas<br />
também ela continuava de olha fixo sem o ensinar a decifrar a linha do<br />
horizonte ou a descobrir o que imaginava escondido atrás dos mares. (p.<br />
5)
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
16<br />
Em “Mas seu primeiro amor foi Lili. Ela era feita de papel,<br />
impresso na cartilha”, o menino-narrador fala de um tempo passado,<br />
que nos alude a um dos lugares da socialização: a escola, já que a<br />
Cartilha, “O livro de Lili” era uma cartilha que seguia o Método<br />
Global de alfabetização, desde a década de 30 até meados na década<br />
de 60. Mas esta “cartilha” não ajudava o menino a decifrar o mundo<br />
“Mas também ela continuava de olha fixo sem o ensinar a decifrar a<br />
linha do horizonte ou a descobrir o que imaginava escondido atrás<br />
dos mares”.<br />
Um pensamento feliz invadia, raras vezes, o menino, que passava<br />
então a construir histórias. Seria roubado pelos ciganos e o pai partiria<br />
para resgatá-lo. Ofereceria recompensa, mesmo pouca, pediria rezas. E<br />
como todos os meninos ele voltaria para casa e se amedrontaria com os<br />
ciganos. Adotado, esqueceria o caramujo sobre a mesa, e pelas mãos do<br />
pai percorreria a vida e dormiria nas madrugadas. Herdaria o mesmo<br />
ofício e como o pai andaria estradas. Cansados repousariam os talheres<br />
e viveriam em si silencioso afeto (grifo nosso). (p. 10)<br />
A passagem acima nos remete a um sonho do meninonarrador<br />
adulto, pois ele gostaria de ser “roubado” pelos ciganos pela<br />
falta de afeto do pai e gostaria de ser “adotado” por esse mesmo pai.<br />
Aqui aludimos essas faltas ao discurso psicanalítico, pois a ausência<br />
de amor do pai, a não presença da mãe o levava a fantasiar exílios, e<br />
estes encontravam espaço na comunidade cigana, sempre alegre e<br />
unida “Ah, ser roubado era o mesmo que ser amado. Ele sentia que<br />
só roubamos o que nos faz falta. E ele – como gostaria de ser ausência,<br />
mesmo dos ciganos...” (p. 7). Mas ao ser resgatado pelo pai<br />
como todos os meninos ele voltaria para casa e se amedrontaria com os<br />
ciganos. Adotado, esqueceria o caramujo sobre a mesa, e pelas mãos do<br />
pai percorreria a vida e dormiria nas madrugadas. Cansados repousariam<br />
os talheres e viveriam em si silencioso afeto.<br />
A narrativa é convidativa, como é a alusão que possibilita<br />
capturar fragmentariamente a coisa e levar ao leitor-empírico a vestir-se<br />
se leitor-modelo e compor o mosaico que é a obra.<br />
3. Conclusão<br />
Tendo como corpus da pesquisa o livro “Ciganos” de Bartolomeu<br />
Campos de Queirós preocupou-se em investigar: quem é o lei-
tor-modelo do autor-modelo do livro Ciganos de Bartolomeu Campos<br />
de Queirós?<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
17<br />
Indagação que só foi possível ser respondida após a leitura da<br />
teoria da alusão proposta por Torga (2001), assim traçamos como hipótese:<br />
Que o leitor-modelo do autor-modelo do livro Ciganos é aquele<br />
que faz o jogo alusivo com as metáforas.<br />
Considerando que “a alusão é perturbadora, sutil, criadora do<br />
movimento de ir, vir, devir, porque exige do leitor um compromisso<br />
com a construção da narrativa, que tem uma história e precisa por ele<br />
ser reconstruída mnemonicamente, pela cooperação” (TORGA,<br />
2001, p. 10), é que foi possível ter um suporte teórico que desse conta<br />
da análise do corpus.<br />
Escrever uma monografia bibliográfica tendo como principal<br />
pesquisa o corpus Ciganos e a teoria da alusão como principal marco<br />
teórico foi pertinente porque ratificou nossa hipótese. Muito angustiava<br />
saber que o conceito proposto por Paulino (1994) era de que a<br />
alusão é um tipo fraco de intertextualidade.<br />
Em Ciganos percebemos como a narrativa se constrói a partir<br />
de duas histórias; a dos ciganos e a do menino-narrador adulto. E que<br />
nós enquanto leitoras e investigadoras tivemos que transitar pelas<br />
histórias e assim como os ciganos nos tornamos nômades alusivos<br />
para compor as partes que dão conta do todo da obra.<br />
Fazer as alusões presentes na narrativa nos possibilitou “ ler a<br />
linha do horizonte e desvendar os mistérios...”, já que a obra é uma<br />
prosa-poética e nos convida para desvendar com as metáforas, as entrelinhas,<br />
como bem disse Clarice Lispector “ o melhor não está nas<br />
linhas, o melhor está nas entrelinhas”.<br />
A leitura com a alusão permite formar um certo todo da obra<br />
a partir de fragmentos que conduzem a outros:<br />
Eles deixaram a Índia, alguns diziam, em busca de um caminho para<br />
se chegar ao sol. Escutei de outros que eram filhos das grandes florestas<br />
e procuravam uma passagem para as minas de ouro do rei Salomão. (p.<br />
1)<br />
O fragmento acima alude ao livro As Minas do Rei Salomão<br />
que por sua vez é uma alusão ao Rei bíblico Salomão.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
18<br />
Mas seu primeiro amor foi Lili. Ela era feita de papel, impresso na<br />
cartilha, mas que lhe permitia repetir ao avesso: Lili, olhe para mim. Mas<br />
também ela continuava de olha fixo sem o ensinar a decifrar a linha do<br />
horizonte ou a descobrir o que imaginava escondido atrás dos mares. (p.<br />
5)<br />
Há também alusão a fragmentos de outros textos e a seus próprios<br />
textos, quando remete não apenas do discurso pedagógico da<br />
cartilha – Lili, mas também do seu livro Ler, Escrever e Fazer Conta<br />
de Cabeça: “Se queria dizer ‘eu gosto de doce’ com o a Lili que olhava<br />
para mim, ficava assim: ‘ou geste muare do deco’.”<br />
Também os fragmentos abaixo aludem ao mito dos ciganos<br />
construído pelo imaginário social.<br />
Com a chegada dos ciganos o medo passava a ser companheiro dos<br />
meninos: isto por contarem que cigano roubava criança. E, como ninguém<br />
sabia de onde viam ou para onde iam, as crianças ficariam perdidas<br />
para sempre. (p. 6)<br />
A presença dos ciganos mudava o ritmo de ser da cidade. Portas eram<br />
cerradas, roupas não dormiam em varal, nem cavalos soltos nos pastos.<br />
(p. 2)<br />
E nas mãos que a cidade timidamente oferecia, estas ciganas – tiradoras<br />
de sorte – liam futuros cheios de amor e fortuna. Diziam de longas<br />
viagens e de terras desconhecidas. Falavam de um rapaz louro ou de uma<br />
rapariga morena que completaria a felicidade de cada um. Previam casamentos<br />
muito em breve e com muitos filhos. Viam um sinal de pequeno<br />
desgosto, mas a vida, esta seria longa e cheia de aventuras. (p. 5)<br />
O desenvolvimento deste trabalho mostrou que foi possível<br />
uma análise tendo a alusão como estratégia de leitura do livro Ciganos.<br />
E que outros livros também podem ser melhor analisados a partir<br />
desta estratégia.<br />
Como bem ensina Bartolomeu Campos de Queirós é preciso<br />
“...destramelar as janelas e espiar mais longe...”<br />
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
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Pontes. 1999.
BOSI, Ecleá. Memória e sociedade – lembranças de velhos. São<br />
Paulo: Cia. das letras, 1998.<br />
STORNILO, Ivo. Trad. A bíblia sagrada.São Paulo: Paulus, 1998.<br />
ECO, Umberto. Seis passeios pelo bosque da ficção. Trad. Feist,<br />
Hildegard. São Paulo: Cia. das Letras, 1994.<br />
HAGGARD, Henry. As minas do Rei Salomão. Trad. Jean Melville.<br />
São Paulo: Martin Claret, 2003.<br />
ISER,Wolfgang. A interação do texto com o leitor. Trad. Luiz Costa<br />
Lima. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.<br />
LAURENT, Jenny. Intertextualidades. Coimbra: Almedina, 1979.<br />
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19<br />
LYOTARD. Jean François. A fenomenologia. São Paulo: Difusão do<br />
Livro, 1967.<br />
PAULINO, Graça, WALTY, Ivete, CURY, Maria Zilda. Intertextualidades;<br />
teoria e prática. Belo Horizonte: Lê, 1995.<br />
KOSIK, Karel. Dialética do concreto. Trad. Célia Neves e Alderico<br />
Toríbio. São Paulo, 1995.<br />
QUEIRÓS, Bartolomeu Campos. Ciganos. 12. ed. Belo Horizonte:<br />
Miguilim, 1999.<br />
QUEIRÓS, Bartolomeu Campos. Ler, escrever e fazer conta de cabeça.<br />
2. ed. Belo Horizonte: Miguilim, 1994.<br />
TORGA, Vânia Lúcia Menezes. O movimento de sentido da alusão:<br />
Uma estratégia textual da leitura de Ler, Escrever e Fazer Conta de<br />
Cabeça, de Bartolomeu Campos de Queirós. Dissertação (Mestrado<br />
em Estudos Linguísticos) – faculdade de Letras, Universidade Federal<br />
de Minas Gerais, 2001.
A APLICAÇÃO DO ESTUDO<br />
DO CÓDIGO BIBLIOGRÁFICO<br />
NAS EDIÇÕES DO SÉCULO XIX DE PAPÉIS AVULSOS<br />
DE MACHADO DE ASSIS<br />
Fabiana da Costa Ferraz Patueli (UFF)<br />
patueli@click21.com.br<br />
[...] Avulsos são êles mas não vieram para aqui<br />
como passageiros que acertam de entrar na<br />
mesma hospedaria. São pessoas de uma só<br />
família que a obrigação do pae fez sentar à<br />
mesma mesa (ASSIS, 1882, I).<br />
O presente trabalho tem como pretensão expor o resultado final<br />
da Defesa de Projeto de Mestrado e os caminhos que foram tomados<br />
na elaboração da Dissertação de Mestrado em Letras, Subárea<br />
em Literatura Brasileira e Teorias da Literatura, área de concentração<br />
em Estudos de Literatura, na Universidade Federal Fluminense –<br />
UFF, sob a orientação da Professora Doutora Ceila Maria Ferreira<br />
Batista Rodrigues Martins.<br />
Primeiramente, não podemos deixar de relatar que a presente<br />
pesquisa iniciou após os estudos dos quais participei, realizados desde<br />
o ano de 2006, no Laboratório de Ecdótica – LABEC da Universidade<br />
Federal Fluminense – UFF, a fim de se elaborar uma edição<br />
crítica da obra Papéis Avulsos de Machado de Assis. Tendo em vista<br />
que os contos que compõe Papéis Avulsos, bem como suas respectivas<br />
publicações no século XIX são: “O Alienista”, em A Estação<br />
(15/10/1881 a 15/03/1882); “Teoria do Medalhão”, em Gazeta de<br />
Noticias (18/12/1881); “A Chinela Turca”, em A Épocha<br />
(14/11/1875); “Na Arca”, em O Cruzeiro (14/05/1878); “D. Benedicta”,<br />
em A Estação (15/04/1882 a 15/06/1882); “O Segredo do<br />
Bonzo”, na Gazeta de Noticias (30/04/1882); “O Anel de Polycrates”,<br />
na Gazeta de Noticias (02/07/1882); “O Empréstimo”, na Gazeta<br />
de Noticias (30/07/1882); “A Sereníssima República”, na Gazeta<br />
de Noticias (20/08/1882); “O Espelho”, na Gazeta de Noticias<br />
08/09/1882; “Uma visita de Alcibíades”, no Jornal das Famílias
(outubro de 1876) e na Gazeta de Noticias (01/01/1882); e “Verba<br />
Testamentária”, em Gazeta de Noticias (08/10/1882).<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
21<br />
Assim, essa Dissertação de Mestrado se desenvolveu a partir<br />
do objetivo geral de contribuir para a preservação do patrimônio cultural<br />
brasileiro e para a divulgação da Crítica Textual de autores modernos.<br />
Haja vista o autor Machado de Assis, que assim consideramos,<br />
destaca o ser humano em todos os contos do livro Papéis Avulsos.<br />
Os Papéis Avulsos se destacam, sobretudo, pelo aprofundamento<br />
psicológico do ser humano, de sua condição social e suas necessidades<br />
interiores. Por meio da sátira, não só em um recorte individual,<br />
mas do individual para o coletivo, em que a sociedade se abre<br />
em leque, conforme Francisco Luís da Gama Rosa em comentário a<br />
publicação da edição em livro de Papéis Avulsos, na Gazeta da Tarde<br />
(Rio de janeiro), em 02 de novembro de 1882:<br />
[...] a sociedade é o que há de mais infame; toda essa gente está<br />
contaminada pelo vício e pelo crime […] Por toda parte pululam os<br />
medalhões, os pomadistas, os parasitas, os boêmios, os caloteiros, os<br />
trampolineiros de eleições, os cacetes autores de dramas, os ambiciosos<br />
sórdidos, os invejosos miseráveis... Vícios, infâmia, loucura são coisas<br />
que não existem individualmente porque são o apanágio da multidão [...]<br />
(MACHADO, 2003, p. 141).<br />
Para tal esboço, compuseram a Dissertação os seguintes capítulos<br />
e subcapítulos gerais: 1. INTRODUÇÃO; 2. PRESSUPOSTOS<br />
TEÓRICOS E METODOLOGIA; 3. O ESTUDO DO CÓDIGO BI-<br />
BLIOGRÁFICO DE PAPÉIS AVULSOS; 3.1. ANÁLISE DO CÓ-<br />
DIGO BIBLIOGRÁFICO NAS EDIÇÕES DOS CONTOS DE PA-<br />
PÉIS AVULSOS; 4. OS EDITORES OU TIPÓGRAFOS DOS CON-<br />
TOS DE PAPÉIS AVULSOS, NA SEGUNDA METADE DO SÉ-<br />
CULO XIX; e 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS.<br />
O estudo dos códigos bibliográficos, sob qual entendemos aplicarmos,<br />
diz a respeito às distribuições textuais e de imagens, na<br />
tradição escrita, considerando as representações textuais, materializadas<br />
nas diferentes edições, produtoras de sentidos, cuja recepção<br />
pelo público leitor não podemos qualificar ou mensurar.<br />
Segundo Abel Barros Baptista, em Autobibliografias (2003:<br />
136), faz a seguinte ideia da qual nós concordamos:
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
22<br />
[…] os traços tipográficos prolongam a escrita do texto e complementam<br />
a intenção do autor, pelo que, em última instância, todo o texto destinado<br />
à reprodução tipográfica prescreve a respectiva disposição pelo processo<br />
da própria constituição<br />
Em conformidade, também, com o autor Jerome J. McGann,<br />
em The Textual Condition (1991), os códigos bibliográficos são os<br />
elementos que compõem, por exemplo, a disposição textual em parágrafos<br />
e na própria página, exclusivas do sentido visual que há no<br />
impresso. Os responsáveis por tal composição são o autor, responsável<br />
pelo texto, e o editor, responsável, muitas vezes, pela escolha do<br />
suporte e da apresentação textual.<br />
Assim, os códigos bibliográficos, como elementos impressos,<br />
podem transmitir significados:<br />
Significações bibliográficas, por outro lado, chamam a atenção imediatamente<br />
para outros estilos e relações de troca simbólica que envolvem<br />
todos os eventos de linguagem. O significado é transmitido através<br />
de códigos bibliográficos, bem como os códigos linguísticos. […] (MC-<br />
GANN, 1991, p. 57, tradução nossa). 1<br />
No entanto, o suporte responsável pela comunicação textual<br />
se constitui como outro elemento que por si só desponta como um<br />
aspecto influenciador no processo de socialização do texto, apesar de<br />
não ser o único.<br />
Nessa pesquisa, observamos outros aspectos, por exemplo, os<br />
decorrentes da transposição dos veículos de comunicação e a tradição<br />
que permeia esse ato no final do século XIX. Posto que será necessário<br />
evocar o processo editorial e seus personagens que compartilham<br />
a responsabilidade com o autor do texto publicado: seja o editor,<br />
seja as tipografias, ou vice-versa.<br />
A metodologia de trabalho adotada consistiu na pesquisa e na<br />
análise dos periódicos em que foram publicados os contos que constituem<br />
Papéis Avulsos, bem como a publicação em livro, na segunda<br />
metade do século XIX, apurando a existência de relações entre: ilustrações,<br />
partituras musicais e demais interlocuções textuais.<br />
1 “Bibliographical signifiers, on the other hand, immediately call our attention to other styles and<br />
scales of symbolic exchange that every language event involves. Meaning is transmitted<br />
through bibliographical as well as linguistic codes. […]” (MCGANN, 1991, p. 57).
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
23<br />
O confronto dos contos publicados em periódicos a realizado<br />
à edição em livro de 1882 dos Lombaerts rastreou algumas das alterações<br />
textuais, realizadas nos contos no processo de transposição<br />
para o livro. Como por exemplo, a mudança de nome de personagem<br />
nos contos que integram Papéis Avulsos, Crispim Soares um humilde<br />
industrial do Rio de Janeiro, na metade do século XIX, em “Verba<br />
Testamentária”, passa a Joaquim Soares por causa de outro conto<br />
publicado anteriormente em periódico “O Alienista” que tinha um<br />
personagem com o mesmo nome, Crispim Soares, um boticário da<br />
vila de Itaguaí.<br />
Por meio do estudo código bibliográfico realizado sob a obra<br />
Papéis Avulsos, pudemos constatar que nas publicações em periódicos,<br />
como por exemplo, do conto “O Alienista”, encontramos intercalando<br />
a publicação do capítulo, na A Estação, em 31 de dezembro<br />
de 1881, uma partitura musical, que serve de ilustração ao discurso<br />
que seria proferido à multidão pelo barbeiro Porfirio.<br />
Os contos de Papéis Avulsos foram publicados separadamente<br />
e depois publicados em conjunto em 1882 pelos Srs. Lombaerts &<br />
C.. Contudo, na transposição dos periódicos para o livro, alguns contos<br />
sofreram outra intervenção autoral, como por exemplo: a mudança<br />
de nomes de personagens e a implementação dos contos, comentada<br />
pelo próprio autor em nota na primeira publicação em livro.<br />
Desta forma, cada edição se torna única, uma representação de um<br />
texto a ser resgatada de acordo com suas historicidades e os objetivos<br />
simbólicos de cada suporte, o que justifica também a presente<br />
pesquisa.<br />
Consideramos, assim, única cada edição, sob a perspectiva<br />
das representações em um espaço e em um determinado tempo. Por<br />
isso, contempla-se em Papéis Avulsos – uma edição em livro de doze<br />
contos de Machado de Assis – as noções de obra e texto, livro-objeto<br />
e livro-metafísico. Ademais, sem a intenção de contemplar profundamente<br />
um estudo sob a perspectiva do gênero literário.<br />
Também, não foi menos importante, a pesquisa de informações<br />
fora do texto, como, por exemplo, a leitura de correspondências<br />
de Machado de Assis que trazem esses “papéis” que ao longo de suas<br />
produções foram já pensados para o suporte livro.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
24<br />
Incorporou-se ao estudo do código bibliográfico a perspectiva<br />
das Artes Gráficas, a fim de se observar as diagramações utilizadas<br />
nos impressos do século XIX no Brasil, tendo como ponto de partida<br />
o Diagrama de Villard que representa um padrão clássico, assim como<br />
a diversidade de estilos tipográficos que caracterizou a história<br />
das tipografias na segunda metade do século XIX.<br />
Além disso, estudamos a “ADVERTENCIA 2 ”, os contratos<br />
de propriedade intelectual e os demais testemunhos escritos. Na<br />
mesma proporção que a leitura de textos teóricos, biográficos e históricos<br />
contribuíram à pesquisa no apontamento das alegorias adotadas<br />
pelo autor, as historicidades e o conteúdo sociocultural brasileiro<br />
investidos na narrativa.<br />
Seguindo, como as pistas externas deixadas por Machado de<br />
Assis, como a carta a Joaquim Nabuco, de 14 de abril de 1883, referente<br />
à publicação de Papéis Avulsos, os contos que constituem esta<br />
obra “Não é propriamente uma reunião de escriptos esparsos, porque<br />
tudo o que alli está (excepto justamente a Chinella turca) foi escripto<br />
com o fim especial de fazer parte de um livro [...]” (ASSIS, 1944:<br />
40), verifica-se que Papéis avulsos se trata de uma composição una e<br />
não papéis espaçados que tomam o aspecto de um livro. O autor<br />
também confirma esta unidade aos seus leitores na parte intitulada<br />
como “ADVERTÊNCIA” da própria obra publicada em 1882. Por<br />
sorte neste volume se conservou o plano textual autorizado por Machado<br />
de Assis.<br />
Quanto às intromissões editoriais, verificamos muitos barbarismos.<br />
Além dos lapsos e gralhas tipográficas, as edições em especial<br />
de W. M. Jackson Inc. de 1937, expurgou textos que compunham<br />
o livro escolhidos inicialmente pelo autor, inserindo outros por<br />
conta própria. Por elegância e cordialidade algumas vezes avisou aos<br />
leitores que alguns textos escolhidos pelo próprio autor iriam compor<br />
outros volumes, em “Nota dos Editores” contradizendo as notas do<br />
autor que considerava os contos que ali estavam outro pelo autor<br />
Machado de Assis, definitivamente, não foram aleatórias, ora porque<br />
se observa um esforço em suas advertências em compor explicação<br />
sob os títulos dados e as escolhas que comporiam os seus planos tex-<br />
2 Pré-texto publicado na primeira edição em livro de Papéis Avulsos (ASSIS, I-II).
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
25<br />
tuais, como se exemplifica com as seguintes palavras acerca dos volumes<br />
de Várias Histórias e Histórias sem Data, respectivamente:<br />
AS VÁRIAS histórias que formam este volume foram escolhidas entre<br />
outras, e podiam ser acrescentadas, se não conviesse limitar o livro às<br />
suas trezentas páginas. É a quinta coleção que dou ao público. [...] O<br />
tamanho não é o que faz mal a este gênero de histórias, é naturalmente a<br />
qualidade; mas há sempre uma qualidade nos contos, que os torna<br />
superiores aos grandes romances, se uns e outros são medíocres: é serem<br />
curtos.<br />
De todos os contos que aqui se acham há dous que efetivamente não<br />
levam data expressa: os outros a tem [...] Supondo, porém, que o meu<br />
fim é definir estas páginas como tratando, em substância, de cousas que<br />
não são especialmente do dia, ou de certo dia, penso que o título está<br />
explicado [...] (ASSIS, 1975, p. 56).<br />
Das análises sob os planos textuais propostos pelo autor e a<br />
organização literária dada durante a transmissão editorial, ao longo<br />
do tempo. Por motivação mercadológica ou pedagógica, inicialmente,<br />
foram justificadas, ou ao menos comunicado em “notas dos editores”<br />
endereçado ao publico leitor que já não se encontram.<br />
Na verdade, o que se acha nas prateleiras das livrarias são unidades<br />
de contos publicados separadamente, ressalvando as poucas<br />
edições preocupadas com a sua utilização pedagógica faz referência<br />
a sua origem, todas as outras desconsideram o esforço do título e da<br />
composição, e até mesmo da unidade dos seus textos escolhidos para<br />
serem publicados em um mesmo volume, seja por nada terem de esparsos,<br />
seja por serem “folhas amigas” ou “relíquias”.<br />
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFIA:<br />
ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Contos fluminenses. Rio de Janeiro:<br />
Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1975, 265 p. v. 1. (Edições<br />
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Machado de Assis).<br />
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de Assis)
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______. Relíquias de casa velha. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira;<br />
Brasília: INL, 1975, 263 p. v. 11. (Edições Críticas de Obras de<br />
Machado de Assis)<br />
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de Assis)<br />
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JORNAL das Familias, Rio de Janeiro: B. L. Garnier, 1863-1876.<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
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MACHADO, Ubiratan. A vida literária no Brasil durante o Romantismo.<br />
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MASSA, Jean-Michel. A juventude de Machado de Assis. 1839-<br />
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SOUZA, J. Galante de. Bibliografia de Machado de Assis. Rio de<br />
Janeiro: MEC, Instituto Nacional do Livro, 1955.
1. Introdução<br />
A CIRCUNFIXAÇÃO EM PORTUGUÊS<br />
Caio Cesar Castro da Silva (UFRJ)<br />
caiocvianna@gmail.com<br />
Neste trabalho, abordaremos o processo de formação de palavras<br />
do português conhecido como parassíntese, procurando nos deter<br />
às suas controversas definições. Observaremos alguns dos principais<br />
trabalhos da tradição gramatical e da literatura especializada em<br />
morfologia derivacional.<br />
O texto encontra-se dividido da seguinte maneira: objetivamos<br />
apresentá-la sob a ótica da tradição gramatical em 2, citando as<br />
hipóteses correntes na tradição e na literatura morfológica. Nas seções<br />
em 3, 4 e 5 levantaremos questões relacionadas a essas hipóteses,<br />
seguindo em 6 considerações finais e as referências bibliográficas<br />
em 7.<br />
2. A parassíntese<br />
A parassíntese é, tradicionalmente, definida como a anexação<br />
simultânea de um prefixo e um sufixo a uma base (CUNHA & CIN-<br />
TRA, 2007; LIMA, 2008; CAMARA JR., 1975). Dessa forma, vocábulos<br />
como amanhecer e emparedar são analisados como nos<br />
moldes em (a):<br />
(a) a + manhã + ecer à amanhecer<br />
e/N/ + parede + ar à emparedar<br />
Percebemos, a partir das estruturas em (a), que o fator simultaneidade<br />
é aplicado com a adjunção dos afixos à base em um nível,<br />
e não em dois. Esse fator distingue formas como as citadas em (a) de<br />
outras como prefixar, em que o prefixo e o sufixo não são incorporados<br />
à base ao mesmo tempo (prefixo ~ fixar).<br />
A simultaneidade, segundo Valente et alii (2009), parece<br />
também ser o único ponto acordado na descrição do processo entre
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
29<br />
os autores da tradição gramatical e os da literatura especializada. As<br />
análises estabelecidas pelos teóricos, contudo, divergem nos demais<br />
pontos (como se há ou não um sufixo nos verbos terminados em -ar),<br />
gerando, por vezes, contradições. Surgem, assim, algumas possibilidades<br />
de análise da derivação parassintética:<br />
(1) considerar que, na maioria dos verbos de 1ª conjugação<br />
(apaixonar, encarar), haveria um espaço vazio no lugar<br />
do sufixo, ou um sufixo Ø (ao contrário dos verbos de 2ª<br />
conjugação (entristecer));<br />
(2) julgar, como faz a tradição, que se existe um vocábulo<br />
sem o prefixo ou sem o sufixo (abaixar ~ baixar), o procedimento<br />
mais indicado é excluir a interpretação de parassíntese;<br />
(3) considerar que os vocábulos se formam não a partir da anexação<br />
de prefixos e sufixos, mas de morfemas descontínuos,<br />
que se separariam para a inserção da base.<br />
Nas próximas seções, observaremos as três possibilidades apresentadas,<br />
tecendo considerações sobre cada uma delas, sobretudo<br />
com um maior destaque para a análise (3), que parece dar o melhor<br />
tratamento ao processo. Nossas amostras foram colhidas nos dicionários<br />
eletrônicos Houaiss (2001) e Aurélio (2004) e contém 452 verbos<br />
parassintéticos, formados a partir das construções a-X-ar, e/N/-<br />
X-ar, es-X-ar, a-X-ecer e e/N/-X-ecer.<br />
3. A hipótese do Ø<br />
Alguns autores, no âmbito da literatura especializada, propõem<br />
que a maioria dos verbos parassintéticos de 1ª conjugação, i.e.,<br />
com a terminação em -ar, não apresentam constituinte sufixal. Os<br />
verbos que apresentam a terminação -ejar seriam a exceção. Os verbos<br />
de 2ª conjugação também não se encaixariam nesse paradigma,<br />
porque apresentariam o sufixo -ec. Observemos em (b) e (c) os exemplos:<br />
(b) enrouquecer (e/N/- + rouco + -ec + -e + -r)<br />
esbravejar (es- + bravo + -ej + -a + -r)
(c) acostumar (a- + costume + ... + -a + -r)<br />
encarar (e/N/- + cara + ... + -a + -r)<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
30<br />
Os itens em (b), de acordo com Carone (1994) e Villalva<br />
(2003), demonstram haver dois sufixos (-ec e -ej, respectivamente)<br />
responsáveis pela derivação parassintética. No entanto, os exemplos<br />
em (c) apresentariam um problema para a descrição morfológica,<br />
visto que o sufixo estaria ausente. No caso, as autoras propõem uma<br />
posição sufixal vazia seguida da vogal temática e do morfe de infinitivo,<br />
que é apenas uma forma de citação. Haveria, pois, dois tipos de<br />
parassíntese no português: uma derivacional, como em (b), e outra<br />
flexional, como em (c).<br />
A análise, contudo, fere alguns princípios básicos da parassíntese,<br />
o que ocasiona algumas incoerências. Primeiramente, o processo<br />
exige um prefixo e um sufixo para formar vocábulos. Nos moldes<br />
da proposta anterior, verbos seriam formados unicamente a partir do<br />
prefixo, o que é discutível; a mudança categorial é, via de regra, de<br />
responsabilidade dos sufixos 1 . Sobre isso, Basílio (1993, p. 303) diz<br />
que essa generalização (...) é uma característica geral dos prefixos,<br />
nas mais variadas línguas, embora não absoluta. Em segundo lugar,<br />
o critério simultaneidade não poderia ser aplicado, uma vez que não<br />
ocorreria a inserção de elemento final derivacional. Acrescentemos<br />
ainda, não haver explicação para o surgimento de uma vogal temática<br />
verbal, nos exemplos em (c), já que não houve mudança de classe<br />
gramatical (N à V), pois, como dissemos acima, esta é uma propriedade<br />
do sufixo.<br />
Monteiro (1987) sustenta uma hipótese semelhante à apresentada<br />
anteriormente, com pequenas reformulações. O autor aponta para<br />
o fato de que nas formações típicas de (c) um sufixo Ø ocupa a<br />
posição do sufixo derivacional (esfarelar à es + farelo + Ø + a + r).<br />
Nesta interpretação, o princípio que determina um prefixo e um sufixo<br />
para toda construção parassintética é satisfeito, e, por consequência,<br />
o critério de simultaneidade, já que há um prefixo e um sufixo.<br />
1 Rocha (2008, p. 154) cita alguns exemplos raros de mudança categorial por prefixos<br />
em vocábulos cristalizados, como inglório (in + glória) e prefixo (pré + fixo).
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
31<br />
Se por um lado, Monteiro repara a contradição de se interpretar<br />
uma posição de sufixo vazia, por outro recorre a um artifício teórico<br />
de característica flexional para solucionar o problema.<br />
O zero morfêmico é, nas palavras de Bybee (1985, p. 4), "um<br />
tipo de distúrbio no mapeamento de um para um entre som e significado".<br />
Em esbravejar, por exemplo, verifica-se uma partícula entidade<br />
fonética, mais especificamente -ej, portadora de significado,<br />
enquadrar uma forma nominal na categoria verbal. Já em apaixonar,<br />
segundo Monteiro, haveria um zero morfofonético, já que não há<br />
uma partícula morfêmica, nem o som correspondente.<br />
Ainda sobre o zero, Bybee e Gonçalves (2005) assinalam que<br />
é um artifício utilizado para tentar uniformizar as descrições estruturais.<br />
Por isso mesmo, está vinculado a categorias mais básicas e não<br />
marcadas da língua. No português, aparece com frequência no gênero<br />
masculino, no número singular, na terceira pessoa do singular e no<br />
tempo presente. Como afirmam Valente et alii (2009, p. 6),<br />
Essas categorias não possuem representação fonética por seu caráter<br />
mais genérico, o que é comum nas línguas do mundo. Além disso, esses<br />
significados gramaticais tendem a se manifestar via flexão, o que leva à<br />
proposição de um morfe Ø apenas para a morfologia flexional.<br />
Aplicar o zero, que tem forte valor gramatical, à derivação é<br />
um risco, uma vez que a toda entidade sem valor morfológico e sem<br />
representação fonética seria possível postular um morfe Ø. Por essas<br />
razões, a hipótese (2) não se confirma.<br />
Em (c), a terminação -ar é responsável por reenquadrar, nos<br />
termos propostos por Nascimento (2006), a base nominal na categoria<br />
verbal. Assim, pela anexação da construção a-X-ar e e/N/-X-ar<br />
temos, respectivamente, acostumar [a [costume]N ar]V e encarar<br />
[e/N/ [cara]N ar]V. Como indica Basílio (1993), -ar é um sufixo derivacional<br />
justamente por fazer a mudança de classe. Além disso, apresenta<br />
a propriedade flexional resguardada na vogal temática.<br />
4. A hipótese tradicional<br />
A definição da tradição gramatical foi abordada anteriormente<br />
e dela também se aproximam alguns teóricos da literatura morfológica<br />
(ROCHA, 2008; SANDMANN, 1997). Nela, o fator da simulta-
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32<br />
neidade prevalece como critério para identificar ou excluir uma formação<br />
parassintética. Entretanto, como apontam Basílio (2007) e<br />
Kehdi (2003), este critério não é suficiente para descrever o processo.<br />
Vejamos os pares em (d):<br />
(d) alargar x largar<br />
descarnar x descarnado<br />
No primeiro par, há dois verbos com a mesma base, mas formados<br />
por modelos morfológicos diferentes. A existência de uma<br />
forma sem o prefixo levaria alguns autores à exclusão de alargar do<br />
quadro de parassíntese. Este verbo seria, então, analisado em dois<br />
níveis: primeiramente, haveria a derivação sufixal [[largo]ADJ ar]V,<br />
seguida de anexação do prefixo [a [largar]V ]V. Da mesma maneira,<br />
poderia acontecer com o segundo par em (d): descarnado seria o particípio<br />
do verbo descarnar, e não o adjetivo formado pela adjunção<br />
simultânea do prefixo des- e do sufixo -ado à base carne.<br />
Percebemos, todavia, que o significado dos vocábulos diferem.<br />
Segundo o dicionário Houaiss (2001), alargar é tornar mais<br />
largo, ao passo que largar significa soltar, deixar de segurar. Assim<br />
como, descarnado não é o paciente do ato de descarnar, mas um sujeito<br />
muito magro. Observemos as frases a seguir:<br />
(e1) A prefeitura alargou a Avenida 1.<br />
(e2) ?A prefeitura largou a Avenida 1.<br />
(f1) Pedro é descarnado.<br />
(f2) A fome deixou Pedro descarnado.<br />
(f3) ?João foi descarnado pela fome.<br />
Em (e1), dizemos que a avenida se tornou mais larga; já em<br />
(e2), embora seja estranha, uma leitura possível (com o verbo em seu<br />
sentido metafórico) seria a de a prefeitura ter esquecido da tal avenida,<br />
abandonando-a.. Alargar apresenta um valor semântico diferente<br />
daquele veiculado por largar. Se os verbos em questão apresentam<br />
significados diferentes, não se sustenta a proposta de que alguns parassintéticos<br />
são assemânticos, como assertam Henriques (2007) e
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33<br />
Sandmann (1997) 2 . Veremos mais adiante que a construção circunfixal<br />
é responsável por essa diferença de significado.<br />
Para os exemplos em (f1), (f2) e (f3) também é necessário que<br />
o critério semântico seja ativado juntamente ao critério de simultaneidade<br />
para identificarmos os derivados parassintéticos. Em (f1) informamos<br />
que Pedro é magro; em (f2), que a fome é a causa de Pedro<br />
ser magro; e em (f3) que Pedro é o paciente do ato de descarnar.<br />
Em (f1) e (f2) aparecem as formas adjetivas parassintéticas, enquanto<br />
que em (f3) o particípio passado do verbo descarnar. Mesmo com<br />
a estranheza causada por esta frase, verificamos dois tipos morfológicos<br />
(um adjetivo e um verbal, pois o adjetivo em (f1) é diferente do<br />
particípio em (f3)), que são licenciados por apresentarem significados<br />
diferentes.<br />
O que esses exemplos revelam é a insuficiência da hipótese<br />
tradicional para acomodar a parassíntese. Baseando a análise na existência<br />
de um vocábulo sem um dos afixos, seríamos obrigados a excluir<br />
as formas exemplificadas em (e1) e (f1-f2). Uma verificação<br />
que leve em conta o aspecto semântico é relevante não só para explicar<br />
a ocorrência de determinados vocábulos, como também para entender<br />
o traço morfossemântico do processo.<br />
5. A hipótese da circunfixação<br />
A respeito da hipótese (3), autores como Lopes (2003), Silva<br />
& Koch (2005) e Henriques (2007) focalizam o critério de simultaneidade<br />
como um traço decisivo na descrição estrutural da derivação<br />
parassintética. Justamente por prefixo e sufixo não poderem estar ausentes<br />
do processo, a ligação entre as partes torna-se um traço marcado.<br />
Os autores propõem que as frações sejam, então, compreendidas<br />
como circunfixos.<br />
Circunfixos são morfes descontínuos, em que a unidade de<br />
expressão é desmembrada para a inserção de outra forma (GON-<br />
ÇALVES, 2005). As partes representativas do morfe aparecem no i-<br />
2 Os autores afirmam que o prefixo a- não agrega significado à construção verbal, diferentemente<br />
dos prefixos des- e e/N/-. Para maiores detalhes, ver Valente et alii (2009).
nício e no fim de cada forma gerada. Observe no esquema da Figura<br />
1 como se dá a formação de amolecer a partir da circunfixação:<br />
aecer<br />
/a....ecer/<br />
mole<br />
Figura 1: formação circunfixal de amolecer<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
34<br />
Há vantagens tanto morfológica, quanto semântica na adoção<br />
da hipótese (3). Bechara (2009) e Kehdi (1999) afirmam que é um<br />
traço dos prefixos, geralmente, se coadunarem a verbos ou a adjetivos,<br />
como em (h) e (1), respectivamente:<br />
(h) refazer, deter, reter, conter, pospor, sobrepor;<br />
(1) infeliz, desrespeitoso, impensável, antiaderente.<br />
Poucos são os exemplos de prefixos que se anexam a substantivos.<br />
Normalmente, isso se verifica com deverbais (desempate, retorno).<br />
Entretanto, com base no nosso corpus de palavras coletadas<br />
em dicionários eletrônicos, ao analisarmos a distribuição categorial<br />
das bases que entram na derivação parassintética, observamos que há<br />
uma predominância de substantivos em relação a adjetivos (gráfico 1).<br />
Adjetivos<br />
Gráfico 1: distribuição categorial das bases<br />
Substantivos
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
35<br />
No gráfico acima, percebemos que o percentual de substantivos<br />
(pizza listrada), com 75, 66%, é bem mais expressivo do que o<br />
de adjetivos (pizza pontilhada), com 24, 34%, num total de 452 dados.<br />
A seleção para bases adjetivas, em geral, se dá com as construções<br />
a-X-ecer e e/N/-X-ecer. Isto se justifica pelo valor semântico de<br />
processo das construções estar intimamente relacionado ao traço [+<br />
qualificador] do adjetivo.<br />
Se, na parassíntese, os prefixos se unem a substantivos, em<br />
sua maioria, – embora teóricos afirmem que essa junção é atípica –<br />
surge o problema, do ponto de vista formal, de como lidar com os<br />
prefixos. Analisar a parassíntese com base na hipótese (3), resolve a<br />
questão de substantivos serem anexados à construção, porque a base<br />
está se unindo a morfes descontínuos, apesar de ampliar o inventário<br />
de afixos da morfologia derivacional.<br />
Os morfes descontínuos também solucionam a questão do valor<br />
semântico do processo, visto que o conteúdo está expresso na totalidade,<br />
e não em uma de suas frações. Na análise tradicional, há a<br />
contradição de considerar o sufixo vazio semanticamente. Em despudorado,<br />
por exemplo, a terminação -ado indica aquele que possui<br />
o que é expresso pela base (aquele que tem pudor), porém o prefixo<br />
indica negação (aquele que não tem pudor). Num enfoque tradicionalista,<br />
diz-se que o sentido ativado é o último, mas não há uma explicação<br />
para o fato, enquanto que num exame baseado na circunfixação,<br />
ao contrário, o significado parte do todo. Despudorado é, assim,<br />
aquele que não tem pudor, porque o circunfixo veicula esse significado<br />
prototípico 3 , como em desalmado, desventurado.<br />
De certa maneira, a proposta do circunfixo dá conta de todos<br />
os problemas discutidos durante o artigo, pois garante a presença do<br />
prefixo e sufixo por meio dos morfes descontínuos e confere ao fator<br />
semântico relevância na constituição do processo.<br />
3 Em desbocado, por exemplo, o resultado não é aquele que não tem boca, mas o indivíduo<br />
que usa linguagem inconveniente. Verifica-se aqui a extensão polissêmica motivada<br />
por processos conceituais como a metáfora.
6. Considerações finais<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
36<br />
Pudemos analisar, neste trabalho, a complexidade em se adotar<br />
uma definição para a derivação parassintética, assim como observamos<br />
as propostas correntes nas pesquisas acadêmicas. O enfoque<br />
tradicionalista não consegue acomodar as formações parassintéticas,<br />
visto que se baseia apenas no critério de simultaneidade. Da mesma<br />
maneira, outros estudos, de marcada base estruturalista, pautam-se<br />
em estratégias que acabam por também sabotar a univocidade do<br />
morfema. Concluímos que a verificação através de morfes descontínuos<br />
é mais adequada, tendo em vista que abarca os fatores formais e<br />
semânticos do processo.<br />
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A CONCORDÂNCIA DE NÚMERO<br />
NO SINTAGMA NOMINAL NA FALA<br />
DOS ESTUDANTES DA REDE PÚBLICA<br />
DE ENSINO DE SANTO ANTÔNIO DE JESUS-BA<br />
Dayane Moreira Lemos (UNEB) 1<br />
dayaneml@yahoo.com.br<br />
Brasil, um país colonizado, é mundialmente reconhecido por<br />
sua diversidade cultural, por uma mistura de povos que origina uma<br />
população matizada, única e singular. Mas, a mistura de índios,<br />
brancos e negros, não só originou novas culturas, o encontro desses<br />
povos originou de antemão um caos linguístico. Como conviver em<br />
uma comunidade bilíngue, multilíngue? Como haver comunicação<br />
entre os povos?<br />
Tais perguntas se tornam inevitáveis em tal contexto, uma vez<br />
que a linguagem gestual já havia se tornado limitada depois que o<br />
homem descobriu que emitindo sons articulados poderiam estabelecer<br />
diálogo. Devido à necessidade de comunicação se elegeu, no<br />
Brasil, uma língua oficial, o que acarretou, em 1758 pelo decreto de<br />
Marques de Pombal, a fixação do português como língua oficial brasileira.<br />
Dessa forma, tal decreto obrigou a população negra e indígena<br />
a utilizarem a língua do colonizador, porém a implantação do decreto<br />
não significou a exclusão das centenas de línguas que vigoravam<br />
no país.<br />
Em um processo gradual o português passou a vigorar, à medida<br />
que havia os intercâmbios entres as diversas populações, porém<br />
o português dos colonizados e/ou escravizados foram ganhando características<br />
peculiares que o diferenciava e diferencia do português<br />
1 Discente concluinte do curso de Letras Vernáculas da Universidade do Estado da Bahia –<br />
Campus v, vinculada ao grupo de pesquisa "Múltiplas linguagens: estudo, ensino e formação<br />
docente" - Certificado pela Universidade do Estado da Bahia; bolsista do Projeto de pesquisa<br />
“A fala dos estudantes da rede pública de Santo Antônio de Jesus-Ba”, financiado pelo PICIN e<br />
organizado pela professora Ms. Patrícia Ribeiro de Andrade, Lattes:<br />
http://lattes.cnpq.br/3691443901148216
europeu, estabelecendo o que se reconhece hoje como Variação Linguística.<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
39<br />
Devido ao longo processo de colonização e exploração a língua<br />
portuguesa, na modalidade brasileira, se torna um campo frutífero<br />
de pesquisas através desse potencial linguístico tão peculiar. Assim,<br />
se faz necessário a existência de uma ciência que se dedique a<br />
tal aspecto, nesse sentido surge a sociolinguística, dando lugar de<br />
destaque às variações e às mudanças linguísticas ocorridas dentro<br />
das diversas comunidades, aspectos essenciais ao funcionamento da<br />
língua. Através do aparato teórico-metodológico dessa ciência é possível<br />
a realização de diversas pesquisas sobre os dialetos do português<br />
do Brasil, constituindo no país um campo fértil para investigação.<br />
O modelo teórico da Sociolinguística possibilitou que fossem<br />
inseridos nos estudos da linguagem eventos sócio-históricos e culturais,<br />
hoje tidos como essenciais para a análise do dialeto de uma dada<br />
comunidade. Essa vertente da ciência da linguagem imprimiu na<br />
investigação a cultura de que a língua falada numa sociedade é heterogênea<br />
e como tal, é falada variavelmente, em conformidade com<br />
aspectos sociais, históricos, políticos, econômicos e culturais das diversas<br />
comunidades que compõem o todo social.<br />
Através desse aparato teórico que se pretende discutir e analisar<br />
um fenômeno que vem ganhando espaço entre os falantes do português<br />
brasileiro, que é a ausência da marca de plural em todos os elementos<br />
flexionáveis do Sintagma Nomina (SN). Pesquisas vêm<br />
demonstrando que os brasileiros tem se distanciado do padrão fixo<br />
proposto pelas gramáticas normativas, em que todos os itens do sintagma<br />
nominal devem ser, obrigatoriamente, flexionados.<br />
Sendo assim, o projeto objetiva demonstrar que o uso da concordância<br />
de número no SN na fala dos estudantes da rede pública de<br />
Santo Antônio de Jesus-Ba é uma regra variável, ratificando pesquisas<br />
anteriores. Para que uma pesquisa desse nível, sociolinguístico,<br />
seja realizada é preciso passar por alguns processos: a coleta de dados,<br />
as transcrições, codificações e análises.<br />
Diante de um mundo modernizado, o trabalho do sociolinguista<br />
tem se tornado menos exaustivo, uma vez que são oferecidos
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
40<br />
alguns suportes tecnológicos, assim como a ferramenta de quantificação<br />
GOLDVARB, a qual a alguns, poucos, anos era conhecida<br />
como VARBRUL, a qual rodava apenas no DOES, um sistema computacional<br />
que apresentava aos usuários muitas dificuldades, as quais<br />
ocasionava abandono de pesquisas. Mas, graças a criatividade humana<br />
hoje já temos em mãos o GOLDVARB que vem se aperfeiçoando<br />
constantemente e colaborado para dados mais precisos. É através<br />
dessa ferramenta quantitativa que essa pesquisa fornecerá seus dados.<br />
Fazendo o possível para deixar claros os percentuais e pesos oferecidos<br />
para análise.<br />
No primeiro capítulo, intitulado “A concordância nominal de<br />
número”, discutiremos a padronização desse fenômeno pelas gramáticas<br />
tradicionais, traçando elos entre o português brasileiro (PB) e o<br />
português europeu (PE), na tentativa de apresentar ao leitor o quanto<br />
os falantes do PB tem se distanciado da língua do colonizador.<br />
Após a retratação do fenômeno em análise, se inicia a análise<br />
dos dados, momento que observamos como se encontra o processo<br />
da variação da marcação de número no SN, na fala dos estudantes da<br />
rede pública de ensino de Santo Antônio de Jesus-Ba.<br />
Por fim, será exposto de forma sintetizada os resultados objetivos<br />
através das análises, tendo sempre em vista que o corpus é mínimo<br />
diante do amplo campo de atuação da língua em uso. O projeto<br />
se torna, apenas, uma amostra da riqueza da nossa língua.<br />
Importante salientar, que a escolha desse objeto deu-se a partir<br />
do desenvolvimento da pesquisa A fala dos estudantes da rede<br />
pública de ensino de Santo Antônio de Jesus 2 , através do qual se<br />
constituiu um corpus gravado e transcrito da língua oral, nos anos de<br />
2009 e 2010.<br />
2 Projeto de pesquisa desenvolvido por Patrícia Ribeiro de Andrade, com apoio da Pró-Reitoria<br />
de Pesquisa e Ensino de Pós-Graduação da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), através<br />
do seu Programa de Iniciação Científica, do qual participam as bolsistas Dayane Moreira<br />
Lemos e Luzileide de Jesus Santos e Santos.
1. A concordância nominal de número<br />
1.1. Um padrão europeu para o português brasileiro<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
41<br />
Por muito tempo o português brasileiro foi categorizado pelos<br />
formalistas como homogêneo e sistematicamente rígido, desconsiderando<br />
todo processo de “intercâmbio linguístico” por que a população<br />
brasileira passou na época da colonização. Entender a língua<br />
dessa forma é desconsiderar as suas peculiaridades, seus elementos<br />
externos. Entretanto, com o advento da Sociolinguística, surgem<br />
muitos estudos, os quais questionam os padrões formalistas, promovendo<br />
a realização cada vez mais intensa de novas pesquisas que<br />
demonstram o quanto são fortes os laços entre língua e sociedade,<br />
trabalhando a heterogeneidade da língua brasileira.<br />
Dentre os diversos estudos, podemos considerar a obra de<br />
Marcos Bagno (2001), o qual questiona o ensino da língua portuguesa<br />
no Brasil, demonstrando que não é mais possível trabalhar a língua<br />
materna na perspectiva da gramática tradicional, assim como<br />
proposta pelos formalistas. Dessa forma, afirma:<br />
[...] nossas gramáticas normativas tentam analisar o português do Brasil<br />
com o mesmo aparato teórico-descritivo usado para analisar o português<br />
de Portugal, sem se dar conta de que a língua falada aqui já apresenta<br />
muitas e profundas diferenças em relação à língua de lá, o que exige a elaboração<br />
de outra gramática, a gramática do português brasileiro.<br />
(BAGNO, 2001, p.19)<br />
Pensar a língua falada no Brasil de uma forma homogênea e<br />
semelhante ao português falado em Portugal é desconsiderar todo o<br />
processo de colonização, é “fechar os olhos” para uma realidade cada<br />
dia mais visível, a qual vem sendo camuflada no intuito, como diria<br />
Marcos Bagno (2001), de preservar os mitos em torno do português<br />
brasileiro.<br />
Dentro os vários mitos que são gerados, Bagno (2001) descreve<br />
alguns em seu livro: Preconceito Linguístico: o que é, como se<br />
faz. Através, desse simples e riquíssimo livro é possível perceber de<br />
forma clara que a população brasileira vem sendo manipulada através<br />
de mitos que têm corroborado para elevação de um preconceito<br />
cruel – o preconceito linguístico.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
42<br />
As nossas crianças nascem, aprendem a andar e a falar – quão<br />
mágicos são esses momentos! Na sua comunidade apreendem características<br />
peculiares e comuns ao ambiente linguístico, mas toda essa<br />
harmonia é rompida quando elas se deparam com um novo ambiente<br />
chamado escola. É lá que elas aprendem a LÍNGUA PORTUGUE-<br />
SA. Com relação a isto, Bagno (2001) nos faz refletir: seria essa criança<br />
uma pessoa sem-língua?<br />
Por que é tão difícil para os estudantes aprenderem sua “língua<br />
materna”, que mistério estaria por trás da nossa língua que nos<br />
faria sentir medo de aprendê-la? Estas são ótimas perguntas, sobre as<br />
quais os crentes na homogeneidade linguística deveriam refletir.<br />
É preciso deixar claro que o fato de aqui não se falar esse padrão<br />
de língua europeia, não tem feito dos falantes brasileiros menos<br />
falantes, uma vez que, segundo Dubois-Charlier (1981), falar significa,<br />
simplesmente, “[...] emitir sons tais e combinados de tal maneira<br />
que transmitem significações a outra pessoa que fala a mesma língua<br />
que você” (p.15). Sendo assim, pode-se concordar com Possenti<br />
(1999) quando afirma que "todos podemos ver diariamente que as<br />
crianças são bem sucedidas no aprendizado das regras necessárias<br />
para falar. A maior evidência disso é que falam". (POSSENTI, 1999,<br />
p. 21-22)<br />
Nesse sentido Perini acredita que<br />
[...] apesar das crenças populares, sabemos, e muito bem, a nossa língua<br />
[...]. Isso não se aplica apenas àqueles que sempre brilharam nas provas<br />
de português, mas também a praticamente qualquer pessoa que tenha o<br />
português como língua materna (PERINI, 2003, p. 10)<br />
Negrão, Scher e Viotti (2003) afirmam que qualquer criança<br />
antes de ingressar no ambiente escolar consegue construir sentenças<br />
impessoais. Isso fica claro, ao observarmos crianças em contato com<br />
qualquer outra pessoa. A partir de certa idade ela já começa a construir<br />
suas sentenças no intuito de estabelecer diálogo com seu interlocutor<br />
e de deixar claras suas opiniões, seus posicionamentos e<br />
questionamentos.<br />
Algumas pessoas poderiam se questionar: seria essa criança<br />
capaz de localizar o sujeito da oração e classificá-lo? E nós perguntamos:<br />
seria isto, realmente, necessário para haver comunicação? É<br />
refletindo nessa perspectiva, que se entende quando Bagno (2001, p.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
43<br />
9) diz que "o preconceito linguístico está ligado, em boa medida, à<br />
confusão que foi criada, no curso da história, entre língua e gramática<br />
normativa. Nossa tarefa mais urgente é desfazer essa confusão".<br />
(BAGNO, 2001, p. 9)<br />
Pensar em língua é pensar em dinamicidade, em variação, em<br />
mudança. Dentro desse contexto poderíamos nos questionar sobre o<br />
papel da escola no ensino de língua portuguesa, e é sobre isso, que<br />
ainda, Negrão, Scher e Viotti (2003) afirmam que<br />
O que a escola vai fazer é ensinar [...] que existe uma outra forma<br />
para construir uma sentença equivalente [...], que ela vai reconhecer em<br />
textos literários e científicos e que ela pode usar em contextos mais formais,<br />
como uma composição ou como uma carta a alguém não muito<br />
próximo. (NEGRÃO, SCHER E VIOTTI, 2003, p. 96).<br />
Mas, infelizmente os modelos que vigoram nas instituições<br />
escolares estão, ainda, distantes de reflexões nessa perspectiva. Os<br />
modelos atuais de ensino têm feito com que os falantes se sintam<br />
deslocados ao usarem a sua própria língua e o CERTO e o ERRADO<br />
empregados pelos professores de gramática desfazem do processo<br />
individual dos estudantes, do seu contexto de aquisição da linguagem.<br />
Tal metodologia ocasiona as contínuas evasões escolares, repetências,<br />
dentre outras consequências que giram em torno da matéria<br />
Língua Portuguesa, a qual prega normas e padrões que se distanciam<br />
do dia-a-dia dos brasileiros. Dessa forma,<br />
A substituição dessa pedagogia por um ensino crítico/reflexivo, certamente<br />
ajudaria a suprimir o preconceito que existe em torno da variação<br />
linguística no Brasil. Mas, enquanto a escola exclui a diversidade<br />
linguística dos seus programas, pesquisas vêm demonstrando como e<br />
porquê, no Brasil, a língua portuguesa difere tanto da variedade europeia.<br />
(ANDRADE, 2003, p. 8)<br />
1.2. Variação na concordância nominal de número no português<br />
brasileiro<br />
A variação na concordância de número no português falado<br />
no Brasil tem sido intensamente estudada e documentada, uma vez<br />
que se refere a um fenômeno que tem se evidenciado com os novos<br />
estudos, os quais dão a oportunidade de apresentar um português es-
sencialmente brasileiro que se caracteriza por sua heterogeneidade<br />
linguística, rica fonte de pesquisas.<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
44<br />
Para se entender melhor o fenômeno da concordância de número<br />
no sintagma nominal (SN) é preciso que fique claro que existem<br />
duas variantes: a variante marcada e a variante zero, (não marcada).<br />
Vejamos tal fenômeno através do exemplo extraído do corpus:<br />
Variante explícita:<br />
“[...] eu tinha dois cachorros” (INFO 1, 2010, p. 2)<br />
Variante zero de plural:<br />
“[...] minha mãe comprou dois coelhoØ” (INFO 1, 2010, p. 2)<br />
De forma resumida, pode-se afirmar que a concordância nominal<br />
de número ocorre a partir da inserção da marca de plural -s em<br />
todos os elementos flexionáveis do sintagma.<br />
No português brasileiro a concordância nominal de número<br />
não é tão invariável como “afirmam” algumas gramáticas. Scherre<br />
(1994) acredita e afirma que esse fenômeno não é uma regra categórica,<br />
mas sim variável conforme certos determinantes linguísticos e<br />
sociais, como vêm indicando várias pesquisas realizadas sobre os dialetos<br />
brasileiros.<br />
A ausência de concordância de número é estigmatizada por<br />
um círculo vicioso denominado preconceito linguístico. Para os pesquisadores,<br />
a não marcação do plural tem sido um fenômeno intensificado<br />
constantemente, mas os falantes ainda são temerosos ao assumirem<br />
esse modo peculiar de se expressar. Dificilmente, se encontra<br />
um falante brasileiro que assuma esse modo de se expressar, uma<br />
vez que este foge de um padrão elitizado. Nesse sentido, Perini<br />
(1997) afirma:<br />
Sabemos que é frequente, entre nós, fazer o plural marcando-o apenas<br />
no primeiro elemento do sintagma [...]. Essas construções, quando<br />
não são simplesmente ignoradas, são dadas como da linguagem das ‘pessoas<br />
incultas’, ou de ‘baixa classe’. Segundo essa opinião, não se trataria<br />
de um fato normal do português brasileiro, mas de um ‘erro’ cometido<br />
por aquelas pessoas (coitadas) que não tiveram a sorte de uma educação<br />
formal suficiente. (PERINI, 1997, p. 19)<br />
O autor segue afirmando que levantamentos mostram o contrário,<br />
uma vez que construções em que se deixa de marcar alguns
dos elementos do SN são amplamente utilizadas pelos falantes do<br />
Português Brasileiro, incluindo os “cultos”.<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
45<br />
Entende-se, então, que tal fenômeno é característico da oralidade<br />
sem exclusões de grupos minoritários e/ou majoritários. Ainda,<br />
nesse sentido, pesquisas registradas por Scherre (1994), afirmam<br />
[...] que o fenômeno da variação na concordância de número no português<br />
brasileiro falado do Brasil, longe de ser restrito a uma região ou<br />
classe social específica, é característico de toda comunidade de fala brasileira,<br />
apresentando diferenças mais de grau do que de principio, ou seja,<br />
as diferenças são mais relativas à quantidade de marca de plural e não<br />
aos contextos linguísticos nos quais a variação ocorre. (SCHERRE,<br />
1994, p. 38)<br />
Torna-se evidente que a ausência da marca de plural é comum<br />
em todas as comunidades brasileiras, condicionada por fatores linguísticos<br />
e extralinguísticos, mas cabe ressaltar que, assim como citado<br />
acima, alguns fatores extralinguísticos, como pouco grau de escolaridade,<br />
tendem a ser mais propensos à marca zero de plural, o<br />
que não implica dizer que tal fenômeno se restrinja a tal variável social.<br />
Pensar na variação da concordância de número no SN é entender<br />
que o português falado no Brasil apresenta características peculiares<br />
ao comparado com outras línguas, características essas que<br />
incitam pesquisas. Tentar entender a língua vernacular é tentar entender<br />
um pouco mais sobre nós.<br />
2. A concordância de número no sintagma nominal na fala dos estudantes<br />
da rede pública de santo Antônio de Jesus-BA<br />
2.1. Contextualização da pesquisa de campo<br />
Para realização de um projeto embasado na teoria de análise<br />
quantitativa se faz necessário o processo de pesquisa de campo, a<br />
busca pelos dados. É buscar no seio da comunidade material para análise,<br />
na tentativa de recolher amostras de língua em uso.<br />
Não é fácil se dispor a tal tarefa. É um trabalho cansativo e<br />
muitas vezes desgastante, mas tudo é válido quanto estamos com os<br />
resultados em mãos. Antes de ir a campo, é preciso uma preparação<br />
metodológica, uma vez que, assim como afirma Tarallo (1986), os
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
46<br />
documentadores precisam levar em conta que é um “intruso” na comunidade.<br />
Por isso, é preciso modelar nosso comportamento social e<br />
linguístico ao do falante, buscando a concretização de uma conversa<br />
informal.<br />
Muitos outros cuidados são abordados por Tarallo (1986), para<br />
que seja possível a coleta do vernáculo. Tudo isso é preciso ficar<br />
bem sistematizado antes do primeiro contato com a comunidade.<br />
A comunidade escolhida para elaboração do projeto foi a da<br />
rede pública estudantil, claro, fazendo um recorte mediante aos critérios<br />
que mais adiante serão expostos.<br />
2.2. Metodologia (tratamento de dados)<br />
Para a análise da recorrência de variantes na realização da regra<br />
de concordância de número entre os elementos do SN, no dialeto<br />
dos estudantes da rede pública de ensino de Santo Antônio de Jesus-<br />
Ba, utilizamos um corpus constituído de quatro inquéritos transcritos<br />
a partir de entrevistas gravadas. Essas entrevistas foram realizadas<br />
pelas pesquisadoras, Dayane Moreira Lemos e Lucileide XXX, bolsista<br />
do projeto A fala dos estudantes da rede pública de ensino de<br />
Santo Antônio de Jesus-Ba, organizado pela professora mestra Patrícia<br />
Andrade e financiado pelo PCIN (Programa de Iniciação Científica<br />
da UNEB), desde agosto de 2009.<br />
No projeto supracitado foi levado em consideração três variáveis<br />
sociais (escolarização, procedência geográfica e sexo) e seis variáveis<br />
linguísticas (configuração sintagmática do SN, função sintática<br />
do SN, número de constituintes flexionáveis do SN e saliência fônica),<br />
diante do fenômeno da concordância de número no SN.<br />
Para esse artigo foi selecionado apenas um grupo de informantes,<br />
formado por estudantes da quinta série, os quais se encaixam<br />
em duas células: estudantes oriundos da zona urbana e da zona rural.<br />
Desses grupos formou-se outra célula, o gênero (masculino e feminino),<br />
podendo tal distribuição ser visualizada no quadro abaixo:
Escolaridade<br />
5ª série<br />
Ensino Fundamental<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
47<br />
Quadro 1: Descrição da população em estudo<br />
Zona urbana Zona rural<br />
Feminino Masculino Feminino Masculino<br />
Informante Informante Informante Informante<br />
01<br />
02<br />
03<br />
04<br />
De posse dos inquéritos já transcritos, foi feita uma revisão<br />
destes através da audição das entrevistas que foram gravadas na escola,<br />
com duração média de trinta minutos cada uma delas. Nas<br />
transcrições foram recortados os sintagmas nominais pluralizáveis,<br />
constituídos de pelo menos dois elementos. Logo após, se iniciou o<br />
processo de codificação de dados.<br />
Estabelecidos os SN s a serem analisados, bem como as variáveis<br />
explanatórias e dependente, codificamos os dados levantados,<br />
preparando-os para a leitura pelo programa GOLDVARB 2005, uma<br />
nova versão do VARBRUL (Programa das Regras Variáveis), com a<br />
finalidade de analisar quantitativamente a variação da concordância<br />
nominal de número dos SN encontrados na fala dos entrevistados.<br />
2.3. Análise dos dados<br />
Como já relatado anteriormente, os dados que constarão nas<br />
análises são fornecidos através da ferramenta computacional<br />
GOLDVAB, colaborando para resultados mais precisos. Sendo assim,<br />
agora iniciaremos a parte mais envolvente do projeto, na qual os<br />
leitores constataram visualmente – em números – em que nível se<br />
encontra o fenômeno linguístico da concordância de número no sintagma<br />
nominal na comunidade em análise.<br />
Podemos observar, através das amostras analisadas, que a<br />
marca explícita de plural pode ser encontrada:<br />
1. Todos os elementos flexionáveis do SN:<br />
Ex.: “Todos os animais não falam” (INFO 03)
2. Em alguns elementos flexionáveis do SN:<br />
Ex.: “Todos os meus cachorroØ eu mandei para o interior”<br />
(INFO 01)<br />
3. Em apenas um dos elementos flexionáveis do SN:<br />
Ex.: “Meus amigoØ é tudo por fora” (INFO 04)<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
48<br />
Conforme foi discutido anteriormente, é através da perspectiva<br />
de análise não atomística que podemos, efetivamente, nos certificar<br />
do nível de aplicação da regra de concordância de número entre<br />
os elementos do sintagma nominal. Para as análises, através da variável<br />
dependente binária, fica estabelecido que a aplicação da regra<br />
ocorre se houver presença de marcas em todos os itens pluralizáveis<br />
do SN, enquanto que a ausência dessa marca, seja em apenas um dos<br />
elementos do SN sob análise, constitui-se falta de concordância.<br />
Foram analisados 138 SNs de mais de dois elementos flexionáveis.<br />
Desses 83 SNs não receberam marca de plural em todos os<br />
elementos flexionáveis, já 55 dos SNs apresentam regularidade na<br />
marca de plural. Percentualmente entendemos que:<br />
Fatores Número de ocorrências/Total % Input<br />
Com concordância 55/138 39 .60<br />
Sem concordância 83/138 60 .60<br />
Tabela 1: Aplicação da regra de concordância no SN,<br />
na fala dos estudantes da rede pública de Santo Antônio de Jesus-Ba<br />
O percentual de SNs de mais de dois elementos com todas as<br />
marcas de plural foi de 39% e com ausência de algumas dessas marcas<br />
temos 60%. O que equivale dizer que através da análise de um<br />
pequeno corpus se observa que há uma forte tendência de não marcação<br />
de plural em todos os elementos flexionáveis do SN.<br />
Na análise foram levadas em consideração duas variáveis sociais<br />
(procedência geográfica e sexo) e seis variáveis linguísticas<br />
(configuração sintagmática do SN, função sintática do SN, posição<br />
do SN em relação ao verbo, número de constituintes absolutos do<br />
SN, número de constituintes flexionáveis do SN e saliência fônica).<br />
Na análise em relação à procedência geográfica podemos observar<br />
que os falantes oriundos da zona rural e da zona urbana da ci-
dade SAJ equiparam-se quando se trata da marcação de plural nos itens<br />
flexionáveis do SN. Podendo ser visualizado da seguinte forma:<br />
Número de ocorrências/Total<br />
Fatores Com % Sem % Peso<br />
concordância concordância relativo<br />
Zona Urbana 34/87 39 53/87 60 .50<br />
Zona Rural 21/51 41 30/51 58 .49<br />
Tabela 1.1:<br />
Aplicação da regra de concordância no SN, conforme procedência geográfica<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
49<br />
Os falantes da zona urbana apresentam uma frequência de<br />
39% de SNs flexionados, enquanto os itens não flexionados ocorrem<br />
numa frequência de 60%. Este fator tem um peso relativo de .50, indicando<br />
sua relevância. Quanto aos falantes da zona rural observa-se<br />
uma recorrência de 41% de SNs marcados, contra 58% de SNs sem<br />
todas as marcas, apresentando peso relativo de .49.<br />
Nesta variável não encontramos discrepâncias no uso da concordância,<br />
conforme havíamos imaginado que aconteceria: os falantes<br />
da zona rural fazendo menos concordância que os da zona urbana.<br />
Entretanto, os números indicam um equilíbrio no emprego deste<br />
fenômeno. Inclusive o peso relativo dos dois fatores é praticamente o<br />
mesmo.<br />
Confirmando o já relatado por Scherre (1994) quando afirma<br />
que “[...] o fenômeno da variação de número no português falado do<br />
Brasil, pode ser caracterizado como um caso de variação linguística<br />
inerente, tendo em vista que ocorre em contextos linguísticos e sociais<br />
semelhantes [...]” (SCHERRE, 1994, p. 38). Ser da zona rural ou<br />
urbana não tem indicado se o falante é um usuário exclusivo da normal<br />
culta ou não, esses fatores estão tão implícitos no dia-a-dia do<br />
falante que para nos pesquisadores há uma linha tênue que define os<br />
grupos dos estigmatizados e dos inclusos.<br />
Diante dos dados acima apresentados notamos que realmente<br />
a variação na marcação do plural é uma constante na oralidade dos<br />
falantes analisados, e que apesar de ser uma variante estigmatizada<br />
se faz presente nos diferentes níveis sociais.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
50<br />
Já no que tange à variável gênero do informante notamos que<br />
o gênero feminino tende a marcar o plural um pouco mais em relação<br />
ao gênero masculino. Observe-se:<br />
Número de ocorrências/Total<br />
Fatores Com % Sem % Peso relativo<br />
concordância concordância<br />
Masculino 9/24 37 15/24 62 .52<br />
Feminino 46/114 40 68/114 59 .50<br />
Tabela 1.2:<br />
Aplicação da regra de concordância no SN, conforme a variável social gênero<br />
Mais uma vez, não encontramos grandes distinções no uso da<br />
concordância em função de diferentes fatores, uma vez que a frequência<br />
na fala dos informantes do gênero masculino é de 37% e na<br />
fala dos informantes do gênero feminino é de 40%.<br />
Em relação aos elementos sem concordância, os percentuais<br />
indicam uma frequência um pouco maior na fala dos informantes do<br />
gênero masculino (62%, contra 59%). É importante ressaltar que os<br />
dois fatores apresentam peso relativo relevante (.52 para o gênero<br />
masculino e .50 para o gênero feminino). Mais uma vez, os dados<br />
nos surpreendem quebrando a hipótese pré-levantada de que os falantes<br />
do gênero feminino tenderiam mais à marcação de plural.<br />
Considerando as duas variáveis sociais, procedência geográfica<br />
e gênero, podemos afirmar que nenhum dos dois fatores apresentou<br />
discrepâncias no que tange ao fenômeno da concordância. Os pesos<br />
gerados pelo programa GOLDVARB confirmou a estabilidade<br />
do fenômeno no corpus em análise.<br />
Apesar das limitações do projeto, se pode observar que os falantes<br />
da rede pública de ensino de Santo Antônio de Jesus-Ba, ainda<br />
se encontram em processo de variação em curso, por não apresentarem<br />
altos níveis de ausência da marca de plural em algum dos itens<br />
flexionáveis. Entretanto, isso não deve ser definitivo, pois só foi testado<br />
em apenas uma série (5ª série do fundamental). Doravante isso<br />
deve ser analisado na tentativa de buscar dados mais reais diante do<br />
maior número de ocorrências de SNs.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
51<br />
ANDRADE, Patrícia Ribeiro de. Um fragmento da constituição sócio-histórica<br />
do português do Brasil: variação na concordância nominal<br />
de número em um dialeto afro-brasileiro. Dissertação de Mestrado<br />
em Letras e Linguística: UFBA, Salvador, 2003.<br />
BAGNO, Marcos. Português ou brasileiro? Um convite à pesquisa.<br />
São Paulo: Parábola, 2001.<br />
BAGNO, Marcos. Preconceito linguístico: o que é, como se faz. 7.<br />
ed. São Paulo: Loyola, 2001.<br />
BECHARA, Evanildo. Moderna gramática portuguesa. 37. ed. ver.<br />
e ampl. 16. Reimpr. Rio de Janeiro: Lucerna, 2006.<br />
DUBOIS-CHARLIER, Françoise. Bases de análise linguística. Trad.<br />
João A. Peres. Coimbra: Almeida, 1981.<br />
MOLLICA, Maria Cecília; BRAGA, Maria Luíza. Introdução à sociolinguística:<br />
o tratamento da variação. 2. ed. São Paulo: Contexto,<br />
2004.<br />
NEGRÃO, E. V.; SCHER, A. P.; VIOTTI, E. . Sintaxe: explorando a<br />
estrutura da sentença. In: José Luiz Fiorin. (Org.). Introdução à linguística<br />
II: princípios de análise. 1. ed. São Paulo: Contexto, 2003, v.<br />
II, p. 81-109.<br />
PERINI, Mário A. Sofrendo a gramática: ensaios sobre a linguagem.<br />
3. ed. São Paulo: Ática, 2003.<br />
SCHERRE, M. M. P. Aspectos da concordância de número no português<br />
do Brasil. Revista Internacional de Língua Portuguesa<br />
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de Língua Portuguesa, 1994.<br />
SCHERRE, M. M. P. & NARO, A. J. Sobre a concordância de número<br />
no português falado do Brasil. In: RURRINO, Giovanni (Org.).<br />
Dialettologia, geolinguistica, sociolinguistica. (Atti del XXI Congresso<br />
Internazionale di Linguistica e Filologia Romanza). Centro di<br />
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Max Niemeyer Verlag, 5, p. 509-523, 1998.<br />
TARALLO, Fernando. A pesquisa sociolinguística. 2. ed. São Paulo:<br />
Ática, 1986.
1. Introdução<br />
A CONCORDÂNCIA VERBAL<br />
NO PORTUGUÊS POPULAR DE SALVADOR<br />
Welton Rodrigues Santos (UFBA)<br />
weltonsantos83@gmail.com<br />
A língua pode tomar formas diversas a depender da faixa etária<br />
do falante, sexo/gênero, escolarização, localização geográfica e<br />
até mesmo a depender da situação de fala.<br />
Analisar os falares de uma comunidade linguística consiste<br />
em ter um olhar bem apurado no que concerne à diversidade cultural<br />
e ao histórico, bem como ao modo de vida de determinados indivíduos.<br />
Neste trabalho monográfico, estaremos abordando o uso da<br />
concordância verbal mediante a análise de duas variáveis: faixa etária<br />
e escolarização. Para isso, tentaremos responder à seguinte indagação:<br />
Até que ponto a faixa etária e a escolaridade podem influenciar<br />
na utilização da concordância verbal? Na primeira variável, tentar-se-á<br />
uma análise a respeito da influência da idade na utilização da<br />
concordância verbal. Para tal estudo, chamaremos a atenção para as<br />
faixas etárias de 17 a 35 anos e de 51 anos em diante, nas quais veremos<br />
qual grupo de falantes aplicam de maneira mais frequente as<br />
regras de concordância verbal. Já na segunda variável, trabalharemos<br />
também com dois níveis de escolarização: fundamental e médio.<br />
Mostraremos a partir da averiguação de dados em situações reais de<br />
fala, se pesa ou não a variável escolaridade no uso da concordância<br />
verbal.<br />
Tomaremos por base diversos teóricos e pesquisadores que,<br />
de maneira exaustiva, já se debruçaram sobre o tema tratado neste<br />
trabalho. Nomes de pesquisadores como Anthony Julius Naro, Maria<br />
Marta Pereira Sherre, Dante Lucchesi e teóricos como Marcos Bagno,<br />
Willian Labov, Perini, dentre outros, darão o norte para o desenvolvimento<br />
das considerações que serão apresentadas.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
53<br />
Este trabalho de pesquisa objetiva-se em fazer uma abordagem<br />
referente ao uso da concordância verbal, tentado mostrar os<br />
principais casos de ausência de concordância (os que ocorrem com<br />
mais frequência) segundo a gramática tradicional. Iniciaremos esclarecendo<br />
o termo “concordância” trazendo uma abordagem epistemológica<br />
e sua utilização dentro da gramática normativa. Nesta parte,<br />
estaremos apresentando o conceito de concordância verbal, bem como<br />
o diferenciando da concordância nominal.<br />
Em seguida, estaremos apresentando a base teórica que norteará<br />
o trabalho. Mostraremos resultados já encontrados por outros<br />
pesquisadores da área de linguagens e também a metodologia utilizada<br />
para encontrar os resultados deste trabalho de pesquisa. Em última<br />
instância, traremos a análise dos dados colhidos a partir da observância<br />
de inquéritos do PEPP (programa de estudo do português<br />
popular de salvador).<br />
Por fim, espera-se que este trabalho seja como uma mola propulsora<br />
para a investigação de diversos outros aspectos, variações e<br />
mudanças apresentados pela língua.<br />
2. Concordância verbal<br />
De acordo com Ferreira (ano, p), o termo concordância significa<br />
“o ato de concordar, estar de acordo, em harmonia, em consonância”.<br />
Segundo o autor significa um "processo sintático em marcas<br />
morfológicas de uma palavra, tais como número, pessoa ou caso, são<br />
repetidas em outra(s) palavra(s) presente(s) no enunciado, indicando<br />
que formam, em conjunto, uma construção".<br />
Partindo da origem e da raiz da palavra, o termo concordância<br />
terá como significado “ter o mesmo coração, ser de um só coração”<br />
(do latim cum corde, literalmente “com o coração”). A gramática<br />
normativa faz uso do termo de uma forma metafórica, pois a concordância<br />
nos estudos gramaticais tem como objetivo harmonizar termos,<br />
ideias e/ou sentenças dentro das orações e períodos.<br />
A concordância na gramática tradicional pode ser dividida em<br />
dois tipos: nominal e verbal. A primeira trata da concordância em<br />
gênero e número do substantivo com seus determinantes – o adjeti-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
54<br />
vo, pronome adjetivo, artigo, numeral e particípio. Já o segundo tipo<br />
de concordância (objeto desse estudo), de acordo com Almeida<br />
(1999), aborda a relação de concordância entre o verbo e o sujeito<br />
em pessoa e número, ou seja, o verbo deverá ir para o mesmo número<br />
e pessoa do sujeito. Ainda de acordo com a gramática citada, deve<br />
ficar evidente que o verbo é quem deve concordar com o sujeito e<br />
não o contrário, porque o verbo é que depende do sujeito, ele é regido.<br />
3. Base teórica<br />
A sociolinguística é uma subárea da linguística que trata da<br />
língua em uso, considerando as relações entre suas estruturas linguísticas<br />
e os aspectos sociais e culturais de sua produção (CEZARIO e<br />
VOTRE, 2008). Tal ciência trata de todas as realizações verbais,<br />
buscando entender os principais fatores que impulsionam e inibem as<br />
variações e mudanças linguísticas e o nível de estabilidade de determinado<br />
fenômeno linguístico. Fernando Tarallo (2007, p. 63) em seu<br />
livro intitulado “A Pesquisa Sociolinguística”, sobre a questão da variação<br />
ou mudanças linguísticas, diz: "Nem tudo que varia sofre mudança;<br />
toda mudança linguística, no entanto, pressupõe variação. Variação,<br />
portanto, não implica mudança; mudança, sim, implica sempre<br />
variação".<br />
Em outras palavras, as mudanças linguísticas são antecedidas<br />
por variações, porém o fato de ocorrer variação na língua não significa<br />
que haverá mudança. Com isso, podemos perceber e distinguir<br />
de maneira objetiva a variação e a mudança linguística.<br />
Apesar de o aspecto social na língua ter sido chamado atenção<br />
desde os anos iniciais do século XX, através do linguista suíço Ferdinand<br />
de Saussure, a sociolinguística somente estabeleceu-se como<br />
ciência nos Estados Unidos, na década de 1960, com William Labov,<br />
criador da teoria variacionista. Em pesquisas sociolinguísticas, adota-se<br />
uma metodologia bem delimitada, que possibilita a coleta e codificação<br />
de dados. Aspectos do falante como contexto social, faixa<br />
etária, escolaridade, condição socioeconômica, sexo/gênero, dentre<br />
outros, são fatores preponderantes nos estudos sociolinguistas labovianos.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
55<br />
Dentre diversas contribuições das pesquisas sociolinguistas,<br />
destaca-se a constatação de variações na fala ocorrentes entre indivíduos<br />
de diversos níveis de escolarização a depender da situação de<br />
fala. Pode-se chegar a essa conclusão através da metodologia sociolinguista<br />
de análise da língua em situação de fala real. Até então, atribuía-se<br />
a fala não padrão somente a indivíduos não escolarizados.<br />
Em um estudo realizado no estado do Rio de Janeiro no ano<br />
de 1970, constatou-se que falantes não escolarizados diante da variante<br />
“As meninas brincam no quintal”, davam preferência à realização<br />
“As menina brinca no quintal”, ou seja, apresentavam a marca de<br />
pluralidade somente no determinante. Quanto ao núcleo do sujeito e<br />
ao verbo, a marca de plural não se fazia presente.<br />
A sociolinguística, no decorrer dos anos, além de buscar descrever<br />
e explicar os fenômenos linguísticos apresentou também subsídios<br />
para a área do ensino de línguas. Os sociolinguistas estudam<br />
qualquer variedade de fala e apresentam a língua das classes menos<br />
favorecidas (que se distanciam da norma padrão) não como inferior,<br />
insuficiente ou errada. Assinalam que esses falares são baseados em<br />
regras gramaticais, porém seguindo uma orientação de concordância<br />
distinta daquela utilizada na língua padrão. Para exemplificar essa<br />
forma distinta de concordância da língua não padrão, reanalisemos o<br />
exemplo supracitado “As menina brinca no quintal”. Vejamos que a<br />
marca de pluralidade aparece apenas no determinante se fazendo<br />
desnecessária nos outros elementos do enunciado para se compreender<br />
que não se trata de somente uma menina, mas sim de duas ou<br />
mais. Dessa forma, cria-se um pensamento menos preconceituoso,<br />
pois se passa a ver a língua padrão apenas como privilegiada socialmente,<br />
mas, no que concerne a sua estrutura e funcionamento, não<br />
existe nenhuma diferença, pois a língua conseguiu cumprir o seu papel<br />
– estabelecer a comunicação.<br />
De acordo com Bagno (2007), a competência comunicativa<br />
da língua não está relacionada com a gramática estudada na escola,<br />
mas sim com a própria vivência e experiência de mundo do indivíduo.<br />
Ele cita ainda, que cada pessoa tem internalizada a gramática de<br />
sua língua materna e, assim sendo, qualquer sentença produzida não<br />
constituirá erro, pois apenas saberes secundários (como é o caso da<br />
gramática aprendida na escola) podem constituir erros por serem a-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
56<br />
prendidas, praticadas, treinadas e memorizadas. Bagno faz referência<br />
ainda a Perini (1997) que diz que ”nosso conhecimento da língua é<br />
ao mesmo tempo altamente complexo, incrivelmente exato e extremamente<br />
seguro”. Entretanto, Perini continua dizendo que:<br />
Qualquer falante do português possui um conhecimento implícito altamente<br />
elaborado da língua, muito embora não seja capaz de explicitar<br />
esse conhecimento. E [...] esse conhecimento não é fruto de instrução recebida<br />
na escola, mas foi adquirido de maneira tão natural e espontânea<br />
quanto a nossa habilidade de andar. Mesmo pessoas que nunca estudaram<br />
gramática chegam a um conhecimento implícito perfeitamente adequado<br />
da língua. São como pessoas que não conhecem a anatomia e a fisiologia<br />
das pernas, mas que andam, dançam, nadam e pedalam sem problemas.<br />
Naro e Scherre (2007) tratam, ao longo de seus sete capítulos,<br />
de temas relativos à origem do português brasileiro e suas peculiaridades<br />
estruturais.<br />
O capítulo dois, mais precisamente, tratam da concordância<br />
variável do português, analisando este processo tanto no Brasil quanto<br />
em Portugal. Os autores apresentam as duas correntes que analisam<br />
ou procuram explicar a concordância verbal no Brasil, derivação<br />
ou crioulização, fundamentam sua tese – a derivação – apresentando<br />
a concordância variável no português europeu moderno, trata da documentação<br />
histórica da concordância variável no português europeu<br />
e suas implicações referentes ao tema.<br />
A respeito da teoria da derivação Naro e Scherre acreditam<br />
que a falta variável de concordância, assim como outros fenômenos<br />
variáveis no português não padrão do Brasil, tem origem na deriva<br />
secular das línguas. Afirmaram assim que a falta variável de concordância<br />
é uma tendência linguística e poderia ocorrer tanto no Brasil<br />
quanto em Portugal em maior ou menor grau e em épocas diferentes.<br />
Já a teoria do contato ou crioulização defende a tese de que,<br />
por ocasião da colonização no Brasil, o contato entre línguas distintas<br />
e a necessidade de comunicação para o exercício das atividades<br />
laborais deram origem à língua emergencial – Pidgin – e mais tarde à<br />
língua crioula. – língua materna para a geração subsequente. Tais<br />
contatos entre línguas se valeram da simplificação estrutural e gramatical,<br />
o que pode ter influenciado através da transmissão linguística<br />
irregular na falta variável de concordância no português brasileiro.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
57<br />
Com relação ao português europeu moderno, os autores comprovam<br />
que há variação na concordância, embora os linguistas portugueses<br />
a neguem. A monografia de Joana Lopes Alves intitulada<br />
“A linguagem dos pescadores de Ericeira” comprova a afirmativa<br />
dos autores. Salienta-se, no entanto, que os linguistas portugueses<br />
concordam em haver variação na concordância em Portugal apenas<br />
em alguns aspectos como no uso variável de desinências verbais de<br />
3ª pessoa do singular e 1ª do plural com a expressão “a gente” e o<br />
uso variável do –S final nas regiões de Andaluzia e especialmente<br />
em Barrancos que já pertenceu à Espanha.<br />
Os autores levantaram uma documentação histórica para a<br />
comprovação da concordância variável no português europeu, exemplificando<br />
tais ocorrências através de tabelas.<br />
Ao confrontarem as duas correntes de estudo das variantes de<br />
concordância, Naro e Scherre defendem a teoria da derivação, argumentando<br />
a falta de variável de concordância em todo o território<br />
brasileiro, independentemente do contato com línguas africanas ou<br />
processo de crioulização. Afirmam que a posição do verbo em relação<br />
ao sujeito é um fato plausível de observação visto que os estudos<br />
apontam a ocorrência em maior ou menor grau de variante de concordância<br />
a partir desse aspecto.<br />
O português do Brasil seria então resultado natural da deriva<br />
secular do português trazido de Portugal com o agravamento do contato<br />
com falantes de línguas das mais diversas origens.<br />
Por fim, os pressupostos teórico-metodológicos da sociolinguística<br />
são utilizados em vários centros de pesquisa em todo o<br />
mundo. Ainda hoje, muitos estudos se encontram em andamento, no<br />
entanto, existe muito a ser explorado.<br />
4. Antecedentes<br />
Diversos pesquisadores sociolinguistas tem se interessado pelo<br />
estudo da concordância verbal em seus diversos aspectos. Dentre<br />
esses pesquisadores, dois nomes tem se destacado: Anthony Julius<br />
Naro e Maria Marta Pereira Sherre (1999). Em um dos seus trabalhos<br />
sobre o tema citado, eles analisaram a influencia da saliência fônica
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
58<br />
em textos antigos e modernos, tendo como corpus enunciados retirados<br />
de jornais e revistas de circulação nacional. Nessa pesquisa, observaram<br />
a concordância variável de número verbo/sujeito e constataram<br />
que a saliência fônica controla a frequência relativa de uso de<br />
marca de plural nos verbos. Além disso, constataram também que esse<br />
fenômeno ocorre tanto na fala como na escrita em construções<br />
simples ou complexas e com sujeitos de núcleo simples ou compostos.<br />
A pesquisadora Maria Benedita dos Santos (1999) da Universidade<br />
Federal de Alagoas (UFAL) analisou como se processa a variação<br />
verbo/sujeito na língua falada por alunos da 1ª a 5ª série do<br />
ensino fundamental. Para essa averiguação, fez uso do banco de dados<br />
do projeto “A Língua Falada em Alagoas” do curso de pósgraduação<br />
em Letras da UFAL. Para essa pesquisa, ela utilizou para<br />
análise duas situações de fala: Posição sujeito (anteposto e posposto<br />
ao verbo) e a distância entre o sujeito e o verbo.<br />
Ao concluir a análise dos dados, Benedita chegou à conclusão<br />
de que a ausência de concordância verbal é mais acentuada quando o<br />
sujeito se encontra posposto ao verbo e também com o sujeito contíguo<br />
(sujeito imediatamente antes do verbo).<br />
Constância Maria Borges de Souza (1999), pesquisadora da<br />
Universidade Federal da Bahia, analisou em um de seus trabalhos a<br />
relação entre a concordância verbal e a saliência fônica do verbo na<br />
posição 3ª pessoa do singular/3ª pessoa do plural, e a posição e a distância<br />
do sujeito em relação ao verbo na fala de pessoas de diferentes<br />
níveis de escolaridade da cidade de Salvador, distribuídas em dois<br />
grupos: sexo masculino e feminino. Para esse trabalho, a pesquisadora<br />
utilizou como corpus seis inquéritos do PEPP / SSA.<br />
A partir das análises feitas, concluiu-se que quando o sujeito<br />
se encontra à esquerda do verbo, o falante emprega mais marcas de<br />
concordância. No entanto, a quantidade de marcas de concordância<br />
vai decrescendo à medida que o sujeito vai se distanciando do verbo.<br />
Dante Lucchesi (1994), ao observar a variação linguística entre<br />
falantes de uma comunidade rural afro-brasileira, constatou uma<br />
peculiaridade em relação aos resultados obtidos nos centros urbanos.<br />
Enquanto que as regras de concordância verbal nas grandes cidades
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
59<br />
se encontram em diminuição nas faixas etárias mais jovens, nesta<br />
comunidade ocorre o contrário, os jovens estão empregando com<br />
mais frequência as regras de concordância verbal que pessoas idosas.<br />
De acordo com o estudo, isso se dá por alguns aspectos. O primeiro<br />
deles e talvez o principal, é o fato dos jovens estarem tendo mais acesso<br />
a educação. Em seguida, pode-se ressaltar que estes jovens<br />
também estão saindo mais de suas comunidades para trabalhar em<br />
outras áreas que não a lavoura e, além disso, estão mais informados<br />
através da televisão e do rádio. Enquanto que os mais idosos vivem<br />
de forma mais confinada, isolada o mundo globalizado.<br />
A maior interação do individuo no processo produtivo da vida<br />
social, exposto a outros padrões linguísticos, favorece a assimilação<br />
de uma nova forma de utilização da língua e, por consequência, das<br />
regras de concordância verbal.<br />
Ainda de acordo com o estudo de Lucchesi, existem as mulheres<br />
que se restringem aos afazeres domésticos e à criação dos filhos.<br />
Estas por sua vez, também perpetuam, na maior parte dos casos,<br />
a não utilização das regras de concordância pelo isolamento que<br />
vivem em suas comunidades. Assim sendo, chega-se a conclusão de<br />
que os mais jovens são os que lideram essa ascendência quanto à utilização<br />
da concordância.<br />
Existem ainda muitos outros pesquisadores que já se dispuseram<br />
a tratar sobre a concordância verbal encontrando resultados diversos<br />
e muito pertinentes para a compreensão da língua como um<br />
sistema que sofre variações e mudanças constantes em sua trajetória.<br />
5. Metodologia<br />
A base teórica deste trabalho de pesquisa baseia-se nos estudos<br />
sociolinguísticos que tem sido objeto de inúmeras investigações<br />
nos últimos anos. Partindo do próprio nome “sociolinguística”, podese<br />
perceber que esta área da ciência estabelece uma correlação entre<br />
o estudo da língua em situação real de utilização e a sociedade, relação<br />
esta que resulta nas variações linguísticas objeto deste trabalho.<br />
Portanto, será utilizado para esta investigação um corpus<br />
constituído por 16 inquéritos do PEPP (Programa de Estudos do Por-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
60<br />
tuguês Popular de Salvador). Também serão analisadas duas variantes<br />
– faixa etária e escolaridade. Para tanto, adotar-se-á uma fundamentação<br />
teórica baseada na teoria da variação, cuja corrente, segundo<br />
Mollica (1994), se apresenta “como um espaço interdisciplinar,<br />
que atua nas fronteiras entre língua e sociedade, focalizando<br />
principalmente os empregos concretos da língua”.<br />
Se por um lado a Teoria da Variação atua nas fronteiras entre<br />
língua e sociedade, por outro, essa teoria contempla também questões<br />
relacionadas à variação e à mudança linguística, não de forma<br />
isolada, mas buscando desvendar o que existe na interface linguístico<br />
e extralinguístico e como esses fatores atuam ora impulsionado, ora<br />
retardando um processo de mudança.<br />
O percurso deste trabalho monográfico foi constituído por<br />
uma pesquisa bibliográfica na qual se buscou a partir de estudiosos<br />
da área, a base teórica necessária para a compreensão da variação. E<br />
também, por uma coleta de dados em situações reais de fala, através<br />
do PEPP, onde se teve o embasamento concreto para os resultados<br />
obtidos.<br />
Nessa perspectiva, este trabalho consiste em uma pesquisa investigativa<br />
de resultados quantitativos. Para isso, será constituído um<br />
corpus a partir de um grupo de inquéritos, em que os informantes se<br />
distribuirão em duas faixas etárias que compreendem a de 17 a 35<br />
anos e 51 em diante. Quanto a variável escolaridade os informantes<br />
se dividirão em ensino fundamental (primário) e ensino médio completo<br />
(antigo 2º grau).<br />
Por fim, os resultados obtidos serão apresentados em seus valores<br />
absolutos e também através de gráficos que nos darão a noção<br />
contrastiva dos somatórios.<br />
6. Análise de dados<br />
Os dados que serão analisados e apresentados estão baseados<br />
em variáveis extralinguísticas como faixa etária e escolaridade. Todos<br />
os inquéritos avaliados, extraídos do PEPP (Programa de Estudos<br />
do Português Popular de Salvador), foram divididos de acordo<br />
com as variáveis supracitadas.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
61<br />
A partir do corpus analisado, pôde-se chegar à conclusão,<br />
mais uma vez, de que as variáveis linguísticas existem e estão latentes<br />
a todos, e se encontram em diversos níveis da fala humana. Outro<br />
dado importantíssimo, constatado a partir deste estudo, foi o quanto a<br />
variável faixa etária influencia no falar do individuo, mais precisamente<br />
no que concerne a concordância verbal (objeto deste estudo).<br />
Assim sendo, observou-se neste trabalho que pessoas com idade de<br />
51 anos em diante, tendo cursado apenas o ensino fundamental ou<br />
completado o ensino médio, empregam com muito mais frequência a<br />
concordância verbal do que pessoas com faixa etária de 17 a 35 anos<br />
e que possuíam a mesma escolaridade. Esse fenômeno se dá por diversos<br />
fatores que serão abordados mais adiante.<br />
Vale salientar, por fim, que as análises e considerações que<br />
serão apresentadas a seguir se baseiam a partir da gramática normativa.<br />
6.1. Variável escolaridade<br />
Na análise dos inquéritos do PEPP referentes a indivíduos do<br />
ensino fundamental (primário), pôde-se perceber um número acentuado<br />
de falta de concordância verbal sujeito/verbo em sentenças simples,<br />
como em situações de uso do pronome pessoal “eles” (sujeito) e<br />
os verbos relacionados a esse termo. Vejamos os exemplos:<br />
1. “[...] todos eles corre [...]”<br />
2. “[...] eles só vai [...]”<br />
3. “[...] eles mexe mesmo [...]”<br />
4. “[...] você não sabe se eles está [...]”<br />
Tratando apenas da situação de concordância sujeito/verbo,<br />
sendo o sujeito o pronome “eles” (3ª pessoa do plural), foram encontradas<br />
17 ocorrências em que não se apresentavam a marca de pluralidade<br />
nos verbos relacionados a esse sujeito, ou seja, aproximadamente<br />
27,5 % da ausência de concordância se deu por este fator.<br />
Outro dado interessante quanto aos informantes desse nível de<br />
escolaridade, consiste na presença marcante de concordância verbal<br />
sujeito/verbo quando esse sujeito é o indefinido “a gente”. Essa ex-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
62<br />
pressão por se tratar de uma linguagem mais próxima das camadas<br />
populares, pois substitui o termo “nós” (2ª pessoa do plural), e por<br />
ser constantemente usada por todos os falantes, não cria nenhum tipo<br />
de dificuldade ou resistência na sua utilização. Vejamos os exemplos:<br />
1. [...] as condições financeiras da gente é muito [...]<br />
2. [...] que a gente vá de calça [...]<br />
3. [...] a gente brincava [...]<br />
4. [...] a gente mata em casa [...]<br />
Nesse caso de concordância verbal, a gramática normativa<br />
nos orienta que o sujeito “a gente” por ser um indefinido, concordará<br />
com a 3ª pessoa do singular. Portanto, não houve ocorrências de falta<br />
de concordância entre os informantes do ensino fundamental, no que<br />
concerne ao uso do indefinido “a gente”.<br />
Ao se tratar de informantes que possuem o ensino médio<br />
completo, constatou-se um número mais elevado de falta de concordância<br />
verbal sujeito/verbo no que tange a utilização do verbo “ser”,<br />
conforme segue:<br />
1. [...] as meninas era de saia [...]<br />
2. [...] as coreografias é em músicas [...]<br />
3. [...] é muitas, muitas brincadeiras [...]<br />
4. [...] eu brincava com meus primos, era primos, era amigos<br />
[...]<br />
Nesta relação sujeito/verbo, podemos perceber o verbo “ser”<br />
como um elemento fomentador da ausência de concordância. Nos oito<br />
inquéritos de informantes com ensino médio completo analisados,<br />
foram encontrados 34 casos de falta de concordância verbal sujeito/verbo.<br />
Desses, oito casos correspondem à falta de concordância<br />
entre o sujeito e o verbo “ser”, número que corresponde aproximadamente<br />
a 24%.<br />
Graficamente temos:
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
63<br />
Através dessa pesquisa, vale destacar ainda um outro aspecto<br />
interessante. Constatou-se que há um número considerável de ausência<br />
de concordância quando o verbo se encontra após o pronome relativo<br />
“que”, como pode ser visto nos exemplos abaixo:<br />
1. [...] dessas pessoas que estudou [...]<br />
2. [...] tem outros que era [...]<br />
3. [...] tem uns que se sobressai [...]<br />
4. [...] muitos colegas que acha [...]<br />
No caso referente à falta de concordância verbal depois do<br />
pronome relativo “que”, dos 34 casos de ausência de concordância<br />
sujeito/verbo, 7 se apresentaram com o relativo “que” entre o sujeito<br />
e o verbo, perfazendo assim um percentual aproximado de 21% de<br />
falta de concordância.<br />
Graficamente temos:
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
64<br />
Partindo dos dados gerais analisados para este trabalho de<br />
pesquisa, o efeito da escolarização na aplicação da concordância<br />
verbal sujeito/verbo foi preponderante. Pôde-se perceber que indivíduos<br />
com o ensino médio completo apresentaram menos ocorrências<br />
de falta de concordância, em detrimento aos que possuíam apenas o<br />
ensino fundamental. Enquanto que os informantes de ensino médio<br />
apresentam 34 casos de falta de concordância sujeito/verbo, os de<br />
ensino fundamental apresentaram 62 ocorrências, ou seja, um número<br />
que equivale a um acréscimo de mais de 82,35%.<br />
Assim, podemos concluir que o tempo em que o individuo<br />
permanece na escola consiste em um fator importante na aquisição<br />
das normas da concordância verbal. Vários aspectos podem influenciar<br />
nessa constatação. Um deles pode se dar pelo fato de a concordância<br />
verbal ser um conteúdo gramatical que sua abordagem é feita<br />
a partir da 7ª série, quando do inicio do estudo da sintaxe, e este<br />
mesmo conteúdo é revisto com mais aprofundamento durante o estudo<br />
no ensino médio. Outro aspecto que pode também influenciar é a<br />
questão da convivência com pessoas escolarizadas no ambiente escolar.<br />
Ao estar em contato constante com professores de língua portuguesa<br />
e também de outras disciplinas, o individuo pode perfeitamente<br />
assimilar a concordância mesmo sem o estudo sistemático das regras,<br />
visto que a prática, em muitos casos, é muito mais eficaz que a<br />
teoria.
6.2. Variável faixa etária<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
65<br />
A faixa etária é outra variável que pode ser analisada nos estudos<br />
sociolinguísticos e que traz um grande arcabouço de informações.<br />
Dados como conservação e mudanças linguísticas podem ser<br />
investigados a partir da observação de distintas faixas etárias.<br />
O corpus em questão é constituído por inquéritos do PEPP em<br />
que serão analisados informantes com idades entre 17 e 35 anos e de<br />
51 anos em diante. Observaremos, então, em quais aspectos se diferem<br />
os falares desses dois grupos de informantes e, em termos quantitativos,<br />
até que ponto ocorre essas diferenças em relação à concordância<br />
verbal sujeito/verbo.<br />
Em oito inquéritos analisados de pessoas com faixa etária entre<br />
17 a 35 anos foram encontrados 60 casos de ausência de concordância<br />
verbal sujeito/ verbo. Das ausências de concordância encontradas,<br />
o aspecto que mais chamou a atenção foi o da ausência da<br />
marca de pluralidade “m” no final dos verbos em 3ª pessoa do plural,<br />
conforme se pode observar nas sentenças a seguir:<br />
1. [...] as meninas tinha [...]<br />
2. [...] todos eles corre [...]<br />
3. [...] eles exige que a gente vá de calça [...]<br />
4. [...] as pessoas invade [...]<br />
Neste aspecto, correspondente à concordância sujeito/verbo<br />
foram detectados 27 casos de ausências da marca “m”, sendo assim<br />
um valor que corresponde a um percentual de 45% do total de casos.<br />
Graficamente temos:
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
66<br />
Nos inquéritos correspondentes a informantes com idade de<br />
51 anos em diante, pôde-se perceber uma conservação maior no que<br />
concerne ao uso da língua, mais precisamente ao que compete a aplicação<br />
da concordância verbal sujeito/verbo. Independentemente do<br />
nível de escolaridade desses informantes, houve um uso maior da<br />
concordância em questão. No entanto, um aspecto que foi propulsor<br />
da ausência de concordância nesta faixa etária foi a distância entre o<br />
sujeito e o verbo. Em situações em que o verbo se encontra separado<br />
por uma ou mais palavras do núcleo do sujeito, a tendência em ocorrer<br />
falta de concordância será maior, como podemos ver nos exemplos<br />
a seguir:<br />
1.[...] os jovens de hoje em dia é [...]<br />
2. [...] elas mesma que não se respeita [...]<br />
3. [...] muitos professores que não se interessa [...]<br />
4. [...] tem muitos que não se interessa [...]<br />
Em situações de concordância com o verbo imediatamente<br />
após o sujeito foram encontrados 7 casos de falta de concordância,<br />
enquanto que nas situações em que o verbo se encontra separado por<br />
uma ou mais palavras do núcleo do sujeito foram registradas 10 ocorrências.
Vejamos no gráfico a seguir:<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
67<br />
Partindo dos dados analisados, observou-se que a faixa etária<br />
também foi um fator considerável quanto à aplicação da concordância<br />
verbal. Enquanto que falantes com idade de 51 anos em diante<br />
apresentaram 36 casos de ausência de concordância verbo/sujeito, os<br />
de 17 a 35 anos incidiram 60 vezes nessa falta de concordância, valor<br />
correspondente a um acréscimo de 66,7%, conforme pode ser visualizado<br />
no gráfico abaixo.<br />
Diante dos números apresentados, percebe-se uma tendência à<br />
não utilização da concordância verbal por parte de indivíduos mais<br />
jovens (neste caso na faixa etária de 17 a 35 anos). Essa faixa etária<br />
apresenta uma inclinação maior para uma inovação linguística, enquanto<br />
que pessoas mais idosas tendem a utilizar a língua de forma<br />
mais conservadora, observando assim, aspectos mais formais da língua.<br />
6.3. Escolaridade / Faixa etária<br />
Ao se fazer o cruzamento de dados da faixa etária com a escolaridade<br />
dos falantes, os resultados não foram tão diferentes dos já<br />
mencionados, isto é, os falantes mais jovens, independente da escolarização,<br />
apresentaram maiores índices da não utilização da concor-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
68<br />
dância verbal sujeito/verbo, enquanto que os informantes de 51 anos<br />
em diante demonstraram uma preocupação maior no que se refere à<br />
norma padrão da língua.<br />
Os informantes correspondentes à faixa etária de 17 a 35 anos,<br />
que cursaram o ensino fundamental, apresentaram 35 ocorrências<br />
de ausência de concordância. No entanto, os inquiridos de 51<br />
anos em diante constituíram um somatório de 27 ocorrências, ou seja,<br />
22,9% a menos nos casos de concordância sujeito/verbo.<br />
No entanto, ao se tratar de informantes das duas faixas etárias<br />
citadas, porém com ensino médio completo, os resultados constituíram<br />
uma diferença gritante. Falantes mais jovens ocorreram 25 vezes<br />
na ausência de concordância, enquanto que os mais idosos obtiveram<br />
um somatório de apenas 9 ocorrências. Vejamos graficamente.<br />
Podemos atribuir esse resultado a aspectos profissionais dos<br />
informantes e pelo próprio meio social ao qual estão inseridos. Em<br />
torno de vinte e cinco anos atrás, uma pessoa que concluía o ensino<br />
médio tinha uma boa colocação no mercado de trabalho. Profissões<br />
como, administrador, contabilista, professor e outras mais, eram exercidas<br />
por profissionais de ensino médio. Por esse motivo, havia<br />
uma preocupação muito maior no que se refere aos profissionais de<br />
escolarização média quanto ao uso da língua que na sua maioria exerciam<br />
cargos de chefia. Em contra partida, os empregos atribuídos
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
69<br />
a indivíduos de escolaridade média atualmente são aqueles que não<br />
se tem a necessidade de esmero na utilização da língua, em muitos<br />
deles se utiliza apenas a força braçal.<br />
7. Considerações finais<br />
Ao longo das pesquisas para a preparação deste trabalho monográfico,<br />
muitas inquietações e questionamentos surgiram sobre as<br />
possíveis formas de utilização da língua, mais precisamente ao que<br />
concerne ao uso da concordância verbal entre populares da cidade do<br />
Salvador. Essas inquietações e questionamentos foram a razão para o<br />
desenvolvimento teste tema que, apesar de muito pesquisado e comentado<br />
entre os linguistas, ainda trás motivações para novas discussões<br />
e abordagens.<br />
Com base em análises de dados reais retirados de situações<br />
naturais de fala, podemos perceber a heterogeneidade da língua que,<br />
ao mesmo tempo, retrata uma homogeneidade, pois até mesmo o caráter<br />
heterogêneo da língua pressupõe um sistema devidamente estruturado.<br />
Este trabalho de pesquisa iniciou-se com uma abordagem epistemológica,<br />
trazendo a origem da palavra concordância e seus diversos<br />
significados assumidos a depender do contexto em que se encontra.<br />
Em continuação, abordou-se a visão de alguns teóricos que, a<br />
partir de seus conhecimentos, oportunizaram e conduziram as análises<br />
desta pesquisa.<br />
A partir da observância dos dados retirados dos inquéritos do<br />
PEPP, podemos concluir que tanto a escolaridade como a faixa etária<br />
do individuo influenciará de forma considerável na utilização da língua.<br />
Viu-se que falantes de escolaridade média aplicam mais a concordância<br />
verbal (de acordo com a gramática tradicional) do que falantes<br />
com o curso fundamental. Outro dado que se concluiu através<br />
desta pesquisa foi que falantes com idade de 51 anos em diante aplicaram<br />
muito mais concordâncias conforme a norma padrão do que<br />
pessoas de 17 a 35 anos de idade.<br />
Por fim, nesta monografia não se encerram as possibilidades<br />
de discussões referentes a concordância verbal. Temos aqui somente
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
70<br />
uma minúscula parcela de tudo que ainda pode ser resgatado e observado.<br />
Como consta na introdução, este trabalho deverá servir tão<br />
somente como uma mola propulsora para que outros interessados<br />
neste assunto possam se debruçar e se deleitar nas discussões sobre<br />
esse tema tão vasto que é a Concordância Verbal no Português Popular<br />
de Salvador.<br />
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
ALMEIDA, Napoleão Mendes de. Gramática metódica da língua<br />
portuguesa. 44. ed. São Paulo: Saraiva, 1999.<br />
CEZARIO, Maria Maura; VOTRE, Sebastião. Sociolinguística. In:<br />
MARTELOTTA, Mario Eduardo (org.). Manual de linguística. 1.<br />
ed. São Paulo: Contexto, 2008, p. 141 – 153.<br />
LUCCHESI, Dante. Variação e norma: elementos para uma caracterização<br />
sociolinguística do português do Brasil. Revista Internacional<br />
da Língua Portuguesa, v. 12, p. 17-28.<br />
MOLLICA, Maria Cecília. Fundamentação teórica: conceituação e<br />
delimitação. In. MOLLICA, Maria Cecília; BRAGA, Maria Luiza<br />
(Orgs.). Introdução à sociolinguística: o tratamento da variação. 1.<br />
ed. São Paulo: Contexto, 2003, p. 9-14.<br />
NARO, Anthony Julius. Modelos quantitativos e tratamento estatístico.<br />
In. MOLLICA, Maria Cecília; BRAGA, Maria Luiza (Orgs.).<br />
Introdução à sociolinguística: o tratamento da variação. 1. ed. São<br />
Paulo: Contexto, 2003, p. 15-25.<br />
NARO, Anthony Julius; SCHERRE, Maria Marta. Concordância variável<br />
em Português: A situação no Brasil e em Portugal. In. S-<br />
CHERRE, Maria Marta (org.). Origens do português brasileiro. 1.<br />
ed. São Paulo: Parábola, 2007, p. 49-69.<br />
PAIVA, Maria da Conceição de. A variável gênero/sexo. In. MOL-<br />
LICA, Maria Cecília; BRAGA, Maria Luiza (Orgs.). Introdução à<br />
sociolinguística: o tratamento da variação. 1. ed. São Paulo: Contexto,<br />
2003, p. 33-42.<br />
PERINI, Mario Alberto. Para uma nova gramática do português. 3.<br />
ed. São Paulo: Ática, 1986.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
71<br />
SOUZA, Maria Borges de. Posição do sujeito e fatores sociais na<br />
concordância verbal em Salvador. In: MOURA, Denilda (Org.). Os<br />
múltiplos usos da língua. 1. ed. Maceió, 1999, p. 506-510.<br />
TARALLO, Fernando. A pesquisa sociolinguística. 3. ed. São Paulo:<br />
Ática, 2000.<br />
VOTRE, Sebastião Josué. Relevância da variável escolaridade. In.<br />
MOLLICA, Maria Cecília; BRAGA, Maria Luiza (Orgs.). Introdução<br />
à sociolinguística: o tratamento da variação. 1. ed. São Paulo:<br />
Contexto, 2003, p. 51-56.<br />
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário Aurélio<br />
da língua portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 197?.
A CONSTRUÇÃO DO PÚBLICO LEITOR<br />
EM TABLOIDES DO RIO DE JANEIRO<br />
Michelle Martins de Mattos Rangel<br />
michellemichellinha@hotmail.com<br />
Desde as primeiras publicações dos jornais Meia Hora de Notícias<br />
e Expresso da Informação no estado do Rio de Janeiro em setembro<br />
de 2005 e março de 2006, respectivamente, percebe-se que<br />
estes jornais têm uma grande circulação. Em um ranking nacional 1 o<br />
jornal Meia Hora ocupa a 6ª posição com a média de publicação<br />
mensal de 214.768 exemplares. O jornal Expresso, por outro lado<br />
ocupa a 15ª posição com a média de publicação mensal de 64.236<br />
exemplares. O crescimento da divulgação desses tabloides 2 constitui<br />
a motivação principal para analisar tais publicações. Soma-se a isso<br />
o fato de que ambos apresentam um projeto gráfico semelhante, bem<br />
como a configuração da manchete em sua multimodalidade.<br />
Considerando essas questões e compreendendo que as construções<br />
de significações de um texto jornalístico estão intimamente<br />
ligadas ao tipo de veículo adequado à expectativa de um leitor potencial,<br />
conforme observou Corrêa (2002), o objetivo deste trabalho<br />
é perceber como se dá a construção da identidade do público leitor a<br />
partir da constituição multimodal desses tabloides.<br />
Cabe dizer que a quando trabalhamos com a multimodalidade<br />
por causa da multiplicidade de conhecimentos constituídos de estruturas<br />
sociais diversas, deve-se levar em conta uma análise de múltiplas<br />
categorias, a saber, o design, a produção e a distribuição. O design<br />
refere-se aos usos e combinações dos recursos semióticos a partir<br />
das convenções e conhecimentos socialmente construídos, sendo<br />
modificados somente numa interação social. A produção é a articulação<br />
do texto, o modo como foi organizada a expressão do design. A<br />
1 Ranking - Posição Participação e Evolução das Publicações - realizado pelo Instituto Verificador<br />
de Circulação (IVC) em 23 de abril de 2009.<br />
2 Jornais que em relação aos modelos tradicionais apresentam medidas reduzidas, notícia em<br />
formato curto e um maior número de ilustrações.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
73<br />
distribuição diz respeito a como será veiculado, se é para ser comercializado<br />
ou funcionar apenas como linguagem na interação (VAN<br />
LEEUWEN, 2001, apud PIMENTA e SANTANA, 2007).<br />
1. Os tabloides em foco: meia hora e expresso<br />
Os jornais Meia Hora de Notícias e Expresso da Informação<br />
são comumente denominados versões populares dos jornais O Dia<br />
(grupo o Dia) e Extra (Infoglobo), respectivamente. Estes jornais são<br />
configurados no formato tabloide. Inicialmente publicado em setembro<br />
de 2005 o Meia Hora ganha um concorrente em março de 2006,<br />
i.e., o Expresso. Publicados diariamente são vendidos a 0,70 centavos<br />
o Meia Hora e 0,50 o Expresso, alterando os preços nos finais de<br />
semana para 1,40 e 1,00, na sequência.<br />
O projeto gráfico dos referidos tabloides é bem semelhante.<br />
As cores vermelho, preto e branco configuram o logotipo dos mesmos.<br />
Ao lado e em tamanho bem visível encontra-se o preço padrão<br />
de circulação. Entretanto, internamente o Meia Hora é predominantemente<br />
preto e branco enquanto o Expresso, colorido. Semelhante<br />
também é a predominância de temas que circulam nas manchetes,<br />
configurando a capa dos jornais: ações criminosas versus operações<br />
policiais, mídia e futebol.<br />
As manchetes desses jornais são permeadas por gírias, expressões<br />
populares, expressões da oralidade, figuras de linguagem,<br />
simplificações, trocadilho, neologismos, rompem com o ideal de<br />
neutralidade fazendo juízos de valor e animalização (i.e. as pessoas<br />
são apresentadas como animais selvagens). Além disso, não se valem<br />
da norma escrita culta como o padrão linguístico dos jornais.<br />
Para exemplificar o que foi dito acima citaremos alguns textos<br />
das manchetes desses jornais que poderão ser verificadas no anexo:<br />
[a] Apropriação de gírias: “Civil esculacha 3 a milícia do Batman”;<br />
[b] Apropriação de expressões populares: “Brasil esculacha,<br />
Argentina paga mico”; [c] Apropriação de expressões da oralidade:<br />
3 Esculachar, segundo o dicionário Aurélio é uma gíria, os significados possíveis seriam descompor,<br />
desmoralizar; esculhambar.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
74<br />
“Tá a fim de espiar Michelle todinha?”; [d] Apropriação de figuras<br />
de linguagem (neste caso o eufemismo 4 ): “Polícia arregaça geral e<br />
deixa sete na horizontal”; [e] Uso de simplificações: “Bope acaba<br />
com farra de bandidos em apê de luxo 5 ”; [f] Criação de trocadilhos:<br />
“Festão da bandidagem só tinha convidado VIP 6 -Violento, Infrator,<br />
Procurado”; [g] Uso de Neologismos: “Poliçada manda oito pro colo<br />
do capiroto”; [h] Julgamentos de valor: “Monstro assassina criancinha<br />
de 5 anos”; [i] Animalização: “Ladrões que infernizavam a Zona<br />
Norte vão pra jaula”.<br />
Entretanto, se na capa percebemos grande ruptura com o padrão<br />
lingüístico comumente estabelecido para o jornal, i. e. com a<br />
norma culta escrita e com os ideais de imparcialidade que se apregoa,<br />
o interior do jornal os retoma. Apenas os títulos das notícias são<br />
construídos semelhantemente as manchetes, o texto não.<br />
Isto nos faz crer que a primeira capa tem por função impactar<br />
o leitor promovendo crescimento na demanda de consumo, já que<br />
rompe drasticamente com os modelos tradicionais dos jornais correntes.<br />
Contudo, essa configuração se dá em vista da imagem que se têm<br />
sobre o seu público ideal, sobre as características de leituras desejáveis<br />
deste público, desde o nome dos jornais, Meia Hora e Expresso,<br />
ao valor de venda, pouco menos de um real, e a formatação, neste<br />
caso tabloide.<br />
Sendo assim, quais são as imagens do leitor ideal veiculadas<br />
por estes jornais? Primeiramente, o leitor ideal desses jornais é aquele<br />
que tem pouco tempo para se dedicar à leitura diária de um jornal<br />
devido à correria cotidiana, dado que os nomes desses jornais já apontam<br />
para uma leitura breve e compacta, Meia Hora, diríamos de<br />
leitura, e Expresso da Informação.<br />
4 Eufemismo, que segundo Garcia (2006), consiste na substituição de um termo desagradável<br />
ou inaceitável por um termo mais agradável ou aceitável. Dessa forma a expressão “na horizontal”<br />
serve para substituir a palavra “mortos” amenizando o efeito de sentido causado pela<br />
mesma.<br />
5 Simplificação da palavra apartamento.<br />
6 Sigla da expressão de língua inglesa “Very Important People” que compreendemos por “Pessoa<br />
Muito Importante”
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
75<br />
Além dos nomes, a formatação contribui para formar a imagem<br />
do leitor ideal. As medidas reduzidas permitem fácil manejo,<br />
podendo ser lido no banco de um ônibus, por exemplo, quando se está<br />
a caminho do trabalho. A notícia em formato curto e o grande número<br />
de imagens que possuem reforçam a efemeridade e praticidade<br />
da leitura.<br />
Partindo do pressuposto que o leitor ideal está envolvido em<br />
uma multiplicidade de tarefas, esses jornais buscam oferecer uma facilidade<br />
e praticidade ao mesmo. Eles já apresentam ao leitor uma<br />
leitura pronta, direcionada, monitorada, logo a leitura é manipulada,<br />
isto é, não permite ao leitor refletir, questionar, nem mesmo o deixa<br />
livre para criar as suas próprias opiniões como podemos ver no texto<br />
da manchete a seguir em que o julgamento já foi previamente feito<br />
“Bandidagem covardona mata quatro PMs a tiros” 7 (grifos nosso).<br />
Esses jornais fazem a imagem de um leitor ideal pouco intelectualizado,<br />
ele precisa de uma já opinião formada, não é capaz de<br />
formar a sua própria opinião, seus interesses se reduzem a violência<br />
urbana, mídia e futebol. Soma-se a isso o fato de não dominarem a<br />
norma culta, como vemos, especialmente nas primeiras páginas, não<br />
há um compromisso com a norma escrita culta como nos demais jornais.<br />
Dessa forma esses jornais se configuram como um mecanismo<br />
controlador da ideologia dominante, ajudando a manter uma<br />
mesma estrutura social. Esses jornais ao se configurarem “como um<br />
mecanismo social e de linguagem” (BONINI, 2006, p. 68) de grande<br />
expressividade, tornaram-se um formador de opinião em massa. Esse<br />
poder que este veículo midiático acaba assumindo em nossa sociedade<br />
é extremamente preocupante, dado que o discurso, nas palavras de<br />
Fairclough (2001, p. 91),<br />
contribui para a constituição de todas as dimensões da estrutura social<br />
que, direta ou indiretamente, o moldam e o restringem: suas próprias<br />
normas e convenções, como também relações, identidades e instituições<br />
que lhe são subjacentes.<br />
7 Esta manchete poderá ser verificada no anexo.
Essa manipulação da leitura levará o leitor sempre a compartilhar<br />
de uma mesma ideologia sem questioná-la.<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
76<br />
Percebemos, portanto, que a esses tabloides são constituídos<br />
de elementos multimodais que atuam como controladores da demanda<br />
de consumo, além de manipularem a construção de opinião<br />
através de uma ideologia dominante. Dessa forma contribuem para a<br />
manutenção da mesma estrutura social, uma vez que se mantém uma<br />
mesma prática discursiva e consequentemente social (FAIRCLOU-<br />
GH, 2001).<br />
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
BONINI, Adair. Os gêneros do jornal: questões de pesquisa e ensino.<br />
In: KARWOSKI, Acir Mário; GAYDECZKA, Beatriz; BRITO, Karim<br />
Siebeneicher. (Orgs.). Gêneros textuais: reflexões e ensino. 2.<br />
ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2006, p. 57-69.<br />
CORRÊA, Manoel Luiz Gonçalves. Linguagem e comunicação social:<br />
visões da lingüística moderna. São Paulo: Parábola, 2002.<br />
FAIRCLOURGH, Norman. Discurso e mudança social. Brasília:<br />
Universidade de Brasília, 2001.<br />
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda; ANJOS, Margarida do;<br />
FERREIRA, Marina Baird; Miniaurélio século XXI escolar: O minidicionário<br />
da língua portuguesa. 4. ed. ver. e ampl. Rio de Janeiro:<br />
Nova Fronteira, 2001.<br />
GARCIA, Afrânio da Silva. Estudos universitários em semântica.<br />
Rio de Janeiro: Edição do Autor, 2006.<br />
PIMENTA, Sônia M. O. & SANTANA, Carolina D. A. Multimodalidade<br />
e semiótica social: o estado da arte. In: MATTE, Ana Cristina<br />
Fricke. (Org.). Lingua(gem), texto, discurso: entre a reflexão e a prática.<br />
Rio de Janeiro: Lucerna; Belo Horizonte: FALE/UFMG, 2007,<br />
p. 153-173.<br />
RANKING – Posição, Participação e Evolução das Publicações – realizado<br />
pelo Instituto Verificador de Circulação (IVC) em 23 de abril<br />
de 2009. Disponível em:
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
77<br />
http://docs.google.com/gview?a=v&q=cache:qSGNSdN_sL4J:www.<br />
redetribuna.com.br/images/RANKING%2520IVC%2520MAR%25202009.pd<br />
f+expresso+e+meia+hora+no+IVC&hl=pt-BR&gl=br. Acesso em:<br />
15/set./2009.<br />
ANEXOS<br />
Manchete publicada no jornal Meia Hora de Notícias<br />
no dia 27 de agosto de 2009, ano 4, n° 1.421.<br />
Manchete publicada no jornal Meia Hora de Notícias<br />
no dia 10 de setembro de 2009, ano 4, n°1.435.
Manchete publicada no Jornal Meia Hora de Notícias<br />
no dia 22 de outubro de 2009, ano 5, n° 1.477.<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
78
Manchete publicada no jornal Meia Hora de Notícias<br />
no dia 5 de março de 2009, ano 4, n° 1.246.<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
79
Manchete publicada no jornal Expresso da Informação<br />
no dia 6 de julho de 2009, ano IV, n° 990.<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
80
Manchete publicada no jornal Expresso da Informaçã<br />
no dia 1 de outubro de 2009, ano 4, n°1.077.<br />
Manchete publicada no jornal Meia Hora de notícias<br />
no dia 28 de fevereiro de 2009, ano 4, n° 1.241.<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
81
Manchete publicada no jornal Meia Hora de Notícias<br />
no dia 09 de março de 2009, ano 4, n° 1.250.<br />
Manchete publicada no jornal Meia Hora de Notícias<br />
no dia 24 de junho de 2009, ano 4, n° 1.357.<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
82
Manchete publicada no jornal Meia Hora de Notícias<br />
no dia 14 de março de 2009, ano 4, nº 1.255.<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
83
A DIGLOSSIA ÁRABE:<br />
UMA APRECIAÇÃO DO HASSANIYYA<br />
COMO REPRESENTANTE DA VERTENTE BAIXA<br />
NO BINÁRIO DIGLÓSSICO<br />
Elias Mendes Gomes (USP)<br />
eligomes@usp.br<br />
Enquanto a maioria dos ocidentais sente afeto<br />
por suas línguas maternas, o orgulho e amor<br />
que os árabes sentem pelo árabe é muito mais<br />
intenso. A língua árabe é o maior tesouro cultural<br />
deles. (Margaret Nydell)<br />
Historicamente, a rica língua árabe – com a prosa e a poesia<br />
altamente desenvolvida na época da Ja:hili:ya (a era pertencente ao<br />
período pré-islâmico) – sempre teve seu indiscutível lugar na Península<br />
Arábica e Oriente Médio mas, foi somente com o advento e expansão<br />
do Islamismo é que ela ganhou a projeção que a levou para<br />
além de suas fronteiras linguísticas históricas.<br />
Até a morte de Mohamed, o Profeta do Islã, o Islamismo esteve<br />
confinado a duas cidades na Península Arábica: Meca e Medina.<br />
Com o governo centrado nas mãos dos três primeiros califas, o Império<br />
Islâmico teve um período de expansão e consolidação. As fronteiras<br />
do Islamismo extenderam-se através do Norte da África até a atual<br />
Tunísia, ao norte até a moderna Turquia, e a leste até a Pérsia.<br />
Com o advento da Dinastia Omíada (661-750), o Império alcançou<br />
o extremo oeste do Norte da África (Marrocos), atravessou o<br />
Estreito de Gibraltar e adentrou a Península Ibérica ao norte. A leste,<br />
as fronteiras foram alargadas até a Índia (Lahore) e China. Com a<br />
queda da Dinastia Omíada, percebe-se que o Islamismo havia testemunhado<br />
uma expansão externa impressionante (tanto geograficamente<br />
quanto em influência); na Dinastia Abássida, entretanto, o<br />
Império Islâmico testemunhará uma consolidação e expansão interna<br />
sem precedentes. Durante os quase oito séculos de domínio do Califado<br />
Abássida, o território geográfico do Islamismo extendeu-se<br />
muito pouco, contudo, a civilização islâmica deu um salto para se
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
85<br />
tornar exemplo de modernidade, erudição e desenvolvimento. Braswell<br />
(1996, p. 46) atesta esse fato ao relatar:<br />
Quando os mongóis saquearam Bagdá em 1258 tendo em vista por<br />
um fim ao Califado Abássida lá, a civilização islâmica tinha sido estruturada<br />
em teologia, jurisprudência e ciência; e o árabe era falado da Espanha<br />
à Índia.<br />
Esta justaposição de línguas, de um lado o árabe e do outro as<br />
línguas vernaculares, produziu um enriquecimento do léxico árabe,<br />
mas também levou à estratificação do idioma, o que resultou, posteriormente,<br />
em uma diglossia.<br />
Nogueira (2006) explora essa noção em seu artigo “a diglossia<br />
nas comunidades árabes”. Ela traça a origem do conceito ao lingüísta<br />
françês William Marçais que em 1930 definiu a situação de<br />
diglossia e cunhou o termo para designar o fenômeno. Entretanto, foi<br />
Charles Ferguson que se tornou referência na literatura língüística<br />
por sua definição do termo 1 . Em seu clássico artigo de 1959, Ferguson<br />
descreveu a diglossia como “uma situação em que duas variedades<br />
da mesma língua são usadas para diferentes funções dentro da<br />
comunidade” (p. 35), que é o caso da língua falada no mundo árabe.<br />
A vertente “H” (Alta) abrange antigos conceitos poéticos, estadísticos,<br />
filosóficos e religiosos que foram preservados e fazem<br />
parte de um universo arcaico, mas ainda utilizado, principalmente na<br />
arena religiosa islâmica. Essa variedade é conhecida como o árabe<br />
clássico (a linguagem perpetuada pelo Alcorão), e ela nunca é utilizada<br />
nas conversacões do dia-a-dia, não sendo a língua materna de<br />
nenhuma das nações árabes. Entretanto, ela é aprendida formalmente<br />
e usada por estudiosos religiosos quando debatendo assuntos concernentes<br />
à fé. Essa variedade é símbolo de erudição e conhecimento<br />
teológico (HUDSON, 1980).<br />
Essa mesma vertente “H” também engloba a variedade árabe<br />
padrão moderno (APM) que é uma forma modernizada do árabe<br />
clássico e é menos complexa do que a variedade clássica no que se<br />
1 William Marçais, em 1930, definiu a situação de diglossia nas comunidades árabes,<br />
mas foi Ferguson (1964), que posteriormente definiu esse fenômeno. Ferguson atribui<br />
às duas variedades as denominações H (H[igh], como sendo a variedade elevada, identificando<br />
as vertentes clássica e padrão como pertencentes à essa categoria) e L<br />
(L[ow], como sendo a variedade “baixa”, identificando com ela os dialetos regionais).
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
86<br />
refere à sintaxe, morfologia e semântica (CORTÉS, 1996; NYDELL,<br />
2002). Ela é entendida, se não falada, pela maioria dos árabes. O<br />
APM é usado em situações de locuções formais, tais como palestras,<br />
noticiários e discursos e, na forma escrita, em correspondência oficial,<br />
literatura e jornais. Essa variedade é aprendida através do sistema<br />
educacional formal, e serve como a “língua franca” entre todos os<br />
países árabes. A morfologia e sintaxe do árabe padrão moderno são<br />
essencialmente as mesmas em todos os países árabes, da Mauritânia<br />
ao Iraque. As poucas diferenças lexicais são restritas a apenas algumas<br />
áreas especializadas, ajudando a manter, como no passado, a unidade<br />
linguística do mundo árabe. Este fato dá a todos os descendentes<br />
árabes um senso de identidade e uma consciência de sua herança<br />
cultural comum. O árabe padrão moderno é de caráter conservativo<br />
e tende a criar e agregar neologismos ao seu banco de vocabulário<br />
partindo de combinações já existentes no árabe clássico, embora<br />
vários lexemas tenham sido emprestados de outros idiomas<br />
(CORTÉS, 1996).<br />
A outra parte nessa diglossia é o árabe dialetal, ou o código<br />
“L”. Esta vertente varia de país a país e de região para região e é usada<br />
em todas as situações não formais do dia a dia, não obedecendo<br />
as regras gramaticais do clássico ou do padrão moderno, embora siga<br />
uma convenção própria e reconhecida. Essencialmente, esses dialetos<br />
são utilisados somente na versão oral, mas, algumas vezes, é reduzido<br />
à escrita, particularmente na poesia, em caricaturas de periódicos<br />
e em certos diálogos incluídos em romances contemporâneos.<br />
Entretanto não têm uma ortografia estabelecida. Contrário à vertente<br />
clássica e padrão moderno, os dialetos “não têm nenhum prestígio.<br />
Algumas pessoas vão ao extremo de dizerem que eles não têm gramática<br />
e que não vale a pena serem estudados com seriedade” (NY-<br />
DELL, 2002, p. 116).<br />
Outros estudiosos acrescentam à essa terceira vertente duas<br />
outras variedades: O árabe falado culto (HUDSON, 1980; ABU-<br />
MELHIM, 1992), e o árabe cairota (ABU-MELHIM, 1992). O árabe<br />
falado culto é a variedade usada por pessoas instruídas quando se<br />
comunicando com outras pessoas igualmente instruídas. El-Hassan<br />
(1978) citado em Abu-Melhim (1992) acrescenta a essa definição a<br />
seguinte característica: “No mundo árabe, os falantes instruídos usam<br />
uma variedade de árabe que nós chamamos de árabe falado cul-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
87<br />
to (AFC), que está baseado tanto no árabe padrão moderno como no<br />
árabe dialetal [as variedades regionais do árabe falado]” (ABU-<br />
MELHIM, 1992, p. 02).<br />
O árabe cairota é a variedade urbana falada no Cairo (Egito),<br />
sendo a variedade mais conhecida de todos os dialetos árabes, “e<br />
provavelmente o mais prestigiado entre eles” (ABU-MELHIM,<br />
1992, p. 07). Isso se deve ao fato de Cairo ser a “Hollywood” do<br />
mundo árabe. Centenas de filmes e músicas são oriundos deste centro<br />
cultural, disseminando, naturalmente, o léxico local. Além disso,<br />
educadores egípcios trabalham em todos os países de fala árabe,<br />
muitas vezes enviados pelo próprio governo egípcio em parceria com<br />
outros governos árabes.<br />
Com essa breve introdução à diglossia árabe, espera-se ter apresentado<br />
argumentos que legitimizem a reivindicação de que a sociolinguística,<br />
especialmente o campo da dialetologia seja muito importante<br />
na linguística árabe. O objeto desse estudo, o Hassaniyya, é<br />
apenas um dos muitos “falares” presentes em todos os países árabes<br />
do Norte da Africa e Oriente Médio.<br />
1. Mauritânia: a terra dos mouros<br />
A denominação “Mauritânia” foi dada pelos romanos para toda<br />
a África do norte. “Mauri” deriva-se da palavra fenícia “Mahurim”<br />
que significa “os homens do deserto”. Após a independência, os<br />
mouros – o grupo étnico dominante no país – se apropriaram desse<br />
antigo nome, batizando a recém-independente nação com o título<br />
República Islâmica da Mauritânia. O país se limita ao norte com o<br />
Marrocos (Saara Ocidental) e a Argélia, a leste com o Mali e ao sul<br />
com o Senegal. Ela cobre uma área de aproximadamente 1.030.000<br />
km 2 , o undécimo maior país africano. (NANTET, 2001).<br />
A Mauritânia tem sido habitada desde a pré-história: a abundância<br />
de pinturas nas rochas e cavernas, as ferramentas e as flechas<br />
de pedra que são facilmente encontradas no deserto parecem dar uma<br />
clara indicação de um passado glorioso, onde culturas pré-históricas<br />
disputavam entre si os animais de caça.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
90<br />
cisão ao fato dos pesquisadores se aterem à classe mais instruída da<br />
sociedade moura, esquecendo-se do resto da população. 2<br />
3. Swadesh e a filogênese linguística<br />
Morris Swadesh, um proeminente linguísta norte-americano,<br />
fez seus estudos universitários na Universidade de Chigago sob a tutela<br />
de Leonard Bloomfield e Edward Sapir (precursores do estruturalismo<br />
americano, que ganhou expressão com Noam Chomsky).<br />
Durante toda sua carreira como linguísta, Swadesh continuou a ser<br />
influenciado por Sapir e suas teorias, o que o levou a nortear suas<br />
pesquisas para o campo de estudos linguísticos comparados. Devido<br />
as suas teorias não muito convencionais para a época, Swadesh foi<br />
comumente considerado uma figura muito controversial no campo de<br />
linguística. Antes mesmo de completar seu doutorado (Yale University),<br />
ele já havia trabalhado em várias línguas indígenas (nez perce,<br />
nitinat, chitimacha), tentando encontrar um ancestral linguístico comum,<br />
um tipo de “protolíngua” que, teoricamente, teria originado as<br />
diferentes expressões linguísticas presentes na América do Norte.<br />
Foi neste contexto de linguística comparada que suas ideias<br />
de glotocronologia se desenvolveram e se solidificaram. Seu método<br />
não foi apenas usado para medir a profundidade do “grau de parentesco”<br />
das línguas conhecidas como “geneticamente” relacionadas,<br />
mas também para procurar demonstrar um possível relacionamento<br />
em um passado remoto daquelas línguas que, no momento atual, não<br />
são consideradas como sendo de uma mesma família de línguas. À<br />
medida que seus estudos avançavam, ele procurou encontrar relações<br />
linguísticas mais amplas, de escopo continental ou até mesmo global.<br />
Esse estudo das relações linguísticas estava totalmente baseado em<br />
semelhanças dos sistemas fonológicos e morfológicos e no paralelismo<br />
entre os itens lexicais. (NEWMAN, 1967).<br />
2 . No prefácio do “Étude du dialecte Maure”, Henri Carbou testifica: “O trabalho de<br />
R. Pierret permitirá aos berberisantes de se darem conta, acuradamente, da influência<br />
do berbére sobre o hassaniyya. Esta influência se expande paulatinamente à medida<br />
em que se avança em direção ao leste, e que se embrenha no país tuaregue.” (Carbou<br />
apud Pierret, 1948, p. IX).
4.6. Considerações finais<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
95<br />
A expansão da língua árabe para além de suas fronteiras históricas,<br />
bem como os resultados advindos desse crescimento, tem sido<br />
sobejamente estudada no meio acadêmico. O contato do árabe<br />
com as expressões vernaculares dos povos conquistados deu origem<br />
a muitos “falares” que, em tempo, se cristalizaram em dialetos distintos,<br />
distanciando-se, em alguns casos consideravelmente, da vertente<br />
escrita. Muitos desses dialetos têm sido estudados (notavelmente aqueles<br />
de países conhecidos) enquanto que outros permanecem na<br />
obscuridade. O hassaniyya, o dialeto falado na Mauritânia, Saara Ocidental<br />
e nos campos de refugiados de Tindouf (Argélia), se enquadra<br />
na categoria dos menos conhecidos, e por isso essa pesquisa.<br />
Com essa pesquisa esperou-se contribuir para a escassa literatura da<br />
área da dialetologia hassaniyya.<br />
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
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Revista de Estudos Árabes e das Culturas do Oriente Médio. Ano<br />
III, p. 32-57. São Paulo. Programa de Pós-Graduação em Língua, Literatura<br />
e Cultura Árabe – USP, 2006.<br />
NEWMAN, S. Morris Swadesh (1909-1967). Language 43, 1967.<br />
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Nationale, 1948.<br />
MARMOL, G.; OTREPPE, A. VAES, B. Sahara. Paris: Hachette,<br />
2000.<br />
NANTET, B. Mauritanie. Paris: Arthaud, 2001.<br />
NYDELL, M. K. Understanding Arabs: A guide to westerners. Revised<br />
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arabe de Mauritanie. Paris: Geuthner, 1988.<br />
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SWADESH LIST: http://en.wiktionary.org/wiki/Appendix:Afro-<br />
Asiatic_Swadesh_lists. Acesso em: 20 jul. 2010.
A ESCRITA NOS AUTOS DE QUERELA DO SÉCULO XIX:<br />
DO PASSADO AO PRESENTE<br />
Emilia Maria Peixoto Farias (UFC)<br />
emiliapfarias@globo.com<br />
Expedito Eloísio Ximenes (UECE)<br />
eloisio22@hotmail.com<br />
Patrícia de Oliveira Batista (UFC)<br />
Katharine Silva de Oliveira Soares (UFC)<br />
A variação e a mudança são características naturais das línguas,<br />
para as quais concorrem fatores de ordem social e cultural que<br />
podem marcar a fala e a escrita de uma sociedade ao longo do tempo.<br />
Nesse contexto, as pesquisas que se debruçam sobre documentos<br />
remanescentes têm importância inquestionável, pois nos permitem<br />
conhecer a escrita de uma sociedade em épocas distantes e compreender<br />
fenômenos linguísticos atuais.<br />
O presente trabalho discute a grafia registrada em documentos<br />
do início século XIX da Capitania do Ceará intitulados Autos de<br />
Querela, nos quais estão denunciados os mais diversos tipos de delitos.<br />
Para tanto, analisamos as ocorrências gráficas manifestas nos<br />
documentos, a fim de se caracterizar o período historiográfico da<br />
língua portuguesa ao qual pertencem.<br />
1. Os períodos da história da ortografia da língua portuguesa<br />
A tradição histórica da ortografia portuguesa é marcada por<br />
três períodos: (1) o fonético, que se inicia com os primeiros documentos<br />
redigidos em português e se estende até o século XVI; (2) o<br />
pseudoetimológico, que se inicia no século XVI e vai até o ano de<br />
1911, quando se inicia o terceiro e último período denominado de<br />
moderno ou reformado. Há, contudo, estudiosos como Joaquim José<br />
Nunes que reconhecem na história da ortografia portuguesa somente<br />
os dois primeiros períodos.<br />
1. Professora do Curso de Letras e do Programa de Pós-Graduação em Linguística.<br />
2. Professor do Curso de Letras.<br />
3. Mestranda CAPES/DS do Programa de Pós-Graduação em Linguística.<br />
4. Bolsista PIBIC/CNPq do Curso de Letras.
No início da escrita da língua portuguesa, aqueles que a escreviam<br />
procuravam reproduzir muito fielmente as formas manifestas<br />
na oralidade. A escrita caracterizava-se por uma representação<br />
fonética quase fiel dos sons da fala. Esse é o primeiro período da ortografia<br />
da língua portuguesa em Portugal e no Brasil. Denominado<br />
de fonético, estendeu-se do século XII ao século XVI. Mesmo que a<br />
tentativa fosse de representar muito proximamente os sons da fala, a<br />
escrita fonética nunca foi considerada adequada.<br />
De acordo com Carvalho (1996, p.1), "como não havia norma<br />
[...], o som /i/ podia ser representado por i, por y, e até h; a nasalidade<br />
por m, por n, ou por til, etc.” Segundo o autor, ainda nesse período,<br />
o sistema ortográfico manteve-se conservador em relação às mudanças<br />
na pronúncia de ler (leer) e ter (teer). Essa simplificação não<br />
é uma característica desse período.<br />
Nunes (1989) classifica a história da ortografia portuguesa em<br />
dois períodos: o fonético e o pseudoetimológico e tece o seguinte<br />
comentário relativo ao primeiro período:<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
98<br />
...caracteriza este período a representação, pelas letras, dos sons que<br />
elas realmente representam, consoante a evolução por eles sofrida, e a<br />
ausência, em geral, de caracteres não proferidos. Verdade seja que essa<br />
representação nem sempre acompanhou pari passu as alterações que se<br />
foram dando e por vezes conservou-se antiquada em relação ao desenvolvimento<br />
da língua. (NUNES, 1989, p. 193).<br />
Segundo Pereira (1932), o sistema fonético consiste em escrever<br />
como se pronuncia, fazendo com que a palavra escrita seja a<br />
imagem da palavra falada. Contudo, como há inúmeras diferenças<br />
nos falares dos indivíduos, a uniformidade na ortografia era apenas<br />
um ideal a ser buscado. O resultado desse sistema é um sincretismo<br />
na escrita como bem refere o autor:<br />
...este systema, tão preconizado pelos phoneticistas, não offerece,<br />
comtudo, base uniforme para uma reforma ortographica, vista a grande<br />
variedade da pronuncia, de região para região e de século para século.<br />
Sendo nelle a palavra escripta a imagem exacta da palavra fallada, a mudança<br />
constante da pronuncia determinaria a constante mudança de sua<br />
representação. (PEREIRA, 1932, p. 102).<br />
De acordo com Paiva (2008, p. 176), houve ainda o fenômeno<br />
em que “as vogais orais simples alternaram-se constantemente na
passagem do latim para o português. Assim, encontramos a em lugar<br />
de e ou e por a (...)”.<br />
O segundo período, denominado pseudoetimológico, sofre<br />
grande influência do latim, devido ao momento renascentista pelo<br />
qual atravessava a história. Esse momento é marcado pela valorização<br />
da cultura clássica e representa, na escrita, a tentativa de se recuperar<br />
a tradição etimológica greco-latina. Surgem, assim, grupos<br />
consonantais como: th (thesouro), ph (pharmacia), rh (rheumatismo)<br />
e ch (trachéia). Como houve excessos em relação à grafia justificada<br />
em pretensa etimologia, como em lyrio, Carvalho (1996, p. 2), afirma<br />
que “a ignorância não deixava ir além da pseudo-etimologia.”<br />
O terceiro e último período, denominado de moderno, simplificado<br />
ou reformado coincide com a codificação, pela primeira vez,<br />
da ortografia do português por Portugal. Quando desse fato, a escrita<br />
já estava bem diferente das realidades fonéticas e não estava predominantemente<br />
presa à etimologia. Segundo Castro (2007, p. 2), “a<br />
comissão de linguistas encarregue pela República de fazer uma ortografia,<br />
produziu um documento tecnicamente muito bom.”<br />
Desde então, muitos foram os acordos e as reformas para tornar<br />
unificada a ortografia do português do Brasil e de Portugal. Muitas<br />
foram também as discussões calorosas em torno do tema. Mais<br />
do que apontar inconsistências ou mesmo descuidos com a grafia dos<br />
autos, teremos o interesse maior em mostrar como a sociedade brasileira,<br />
mais precisamente, a cearense, registrou seus momentos em<br />
instâncias legitimamente representadas e representantes do nosso<br />
povo.<br />
2. A grafia nos Autos de Querela: o período fonético<br />
Os Autos de Querela são documentos do poder judiciário, nos<br />
quais estão registradas as queixas referentes aos mais diferentes tipos<br />
de crimes. Os documentos manuscritos pertencem ao Arquivo Público<br />
do Estado do Ceará (APEC), onde está reunido um rico acervo<br />
documental de natureza administrativa e notarial.<br />
Para efeito do presente trabalho, foram consultados quatro<br />
códices do século XIX, compreendendo o período que se estende de<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
99
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
100<br />
1802 a 1829. O período escolhido é marcado por valiosa fonte documental,<br />
pois inclui as duas últimas décadas da Colônia, 1802 a<br />
1822, e os primeiros anos do Império, 1822 a 1829.<br />
Nosso trabalho tem como base a obra de Ximenes (2006), que<br />
apresenta a transcrição de 67 documentos que compõem os quatro<br />
códices: o livro 39 é composto de dezoito autos, datados de 1802 a<br />
1806; o livro 33 é composto de dezenove autos, datados de 1807 a<br />
1813; o livro 64 é composto de dezessete autos, datados de 1811 a<br />
1813 e o livro 1097 é composto de treze autos, datados de 1824 a<br />
1829. A transcrição seguiu as normas de edição semidiplomática,<br />
conforme orientação adotada pelo grupo do PHPB (Para a História<br />
do Português Brasileiro).<br />
Na perspectiva lexicológica, os manuscritos investigados incluem-se<br />
cronologicamente no período pseudoetimológico da ortografia<br />
da língua portuguesa. No entanto, pela análise que mostraremos<br />
a seguir, a grafia está indiscutivelmente marcada pelas formas<br />
gráficas do período fonético.<br />
O período fonético coincide com o período arcaico ou nacional<br />
da língua portuguesa estendendo-se do século XII ao século XVI.<br />
Conforme Coutinho (1976, p.65), datam desse período os mais antigos<br />
documentos em prosa e em verso da língua portuguesa. Em prosa,<br />
os documentos são: o Auto de Partilhas (1192), o Testamento de<br />
Elvira Sanchez (1193) e a Notícia de Torto (1206?). Em verso, o autor<br />
cita duas cantigas: a primeira de Pai Soares de Taveirós (1189) e<br />
a segunda Del-rei D.Sancho (1194-1199).<br />
Nas palavras de Mattos e Silva (2004, p.262), o início do português<br />
arcaico ainda é “uma questão aberta”, a tradição filológica<br />
marca como início desse período o surgimento de quatro documentos:<br />
sendo um oficial, O Testamento de Afonso II (1214) e três particulares:<br />
Auto de Partilhas e o Testamento de Elvira Sanches, datados<br />
do final do século XII, e a Notícia de Torto (1212-1214). Como discute<br />
a autora, trata-se de assunto ainda em discussão devido aos achados<br />
de Ana Maria Martins, que nomeia como os textos mais antigos<br />
escritos em português testamentos, notícias e listas (fintos) datados<br />
do período que vai de 1175 a 1252.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
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Brasil e em Portugal. Entrevistador: Rui Martinho. Portugal, 2007.<br />
Entrevista concedida ao O ponto. Disponível em:<br />
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WILLIAMS, Edwin B. Do latim ao português. Tradução de Antonio<br />
Houaiss. Instituto Nacional do Livro, 1961.
A EVOLUÇÃO DA LINGUAGEM<br />
EM A TURMA DA MÔNICA<br />
Luciana da Costa Quintal<br />
professoralucianaquintal@gmail.com<br />
... o tempo altera todas as coisas; não<br />
existe razão para que a língua escape a<br />
essa lei universal. (Ferdinand de<br />
Saussure)<br />
1. O gênero em quadrinhos: a evolução do veículo de<br />
comunicação<br />
A utilização de desenhos para a comunicação atravessou milênios.<br />
Hoje, associados à linguagem verbal, as histórias em quadrinhos<br />
ganharam grande espaço na mídia escrita. A importância do<br />
gênero é reconhecida, após a revolução cultural sofrida na pósmodernidade,<br />
com a geração da informática e da informação, por sua<br />
contribuição para a educação e pelo prazer de ler. Por decorrência da<br />
abordagem contínua acerca desse tema, será exposta como HQs, sigla<br />
já usada em suas fontes.<br />
Apesar de a ilustração como atividade comunicativa ter as suas<br />
raízes na pré-história, os quadrinhos surgiram na Europa e eram<br />
predominantemente em caricaturas e humor. Em seu desenvolvimento<br />
evolutivo – conforme dito por Sonia Bibe Luyten, em O que é história<br />
em quadrinhos? (LUYTEN, 1985, p.12) – seus textos passaram<br />
do rodapé para junto dos personagens e, logo, foram incorporados os<br />
balões, diferencial primordial da linguagem das HQs.<br />
Com temas e estilos diversos, as HQs antes veiculadas somente<br />
pelos jornais, hoje ganharam autonomia por conquistarem o<br />
seu espaço em gibis próprios, meio de comunicação exclusivo. A<br />
primeira fase de circulação do gênero levou a serem consideradas
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
110<br />
como discurso jornalístico, mas logo tomaram outras categorizações,<br />
pois possuem linguagem linguístico-cognitiva e rico material pedagógico<br />
em semioses verbais e não-verbais. Hoje, as HQs são encontradas<br />
desde em bancas, como nas livrarias e na internet.<br />
Elas são de fácil identificação, pelo reconhecimento de suas<br />
peculiaridades: balões, quadros e desenhos. Entretanto, a sua classificação<br />
de gênero é complexa, pois existem muitos critérios utilizados<br />
na formulação dos quadrinhos. Essa dificuldade de reconhecê-lo<br />
ocorre por haver uma diversidade de discursos em sua expressão visual.<br />
O enredo é planejado através da incorporação da linguagem<br />
verbal que completa o que sugerem as imagens. Este recurso tecnológico<br />
das HQs assemelha-se às narrativas cinematográficas e de desenho<br />
animado, diferenciando-se apenas porque, nos quadrinhos, o<br />
movimento é relacionado e disposto em sequências narrativas que<br />
exigem maior esforço por parte do leitor em construir os sentidos.<br />
Logo, a caracterização do gênero HQs se manifesta através de<br />
suas composições em quadrinhos em sequência narrativa, caracterizados<br />
como um gênero icônico-verbal, cuja progressão temporal é<br />
organizada em quadrinhos, desenhos, balões e texto verbal. Elas carregam<br />
traços característicos na reprodução da fala, na maioria das<br />
vezes em tratamento informal, interjeições e reduções vocabulares.<br />
Sua principal característica é funcionar como meio de comunicação<br />
de massa junto ao desenvolvimento tecnológico da sua produção de<br />
modo a facilitar a compreensão ao leitor através da associação de<br />
imagens, cores, frases e até sons (onomatopeias).<br />
Na composição dos quadrinhos, os balões são as características<br />
principais, pois eles têm a função de expressar a fala de seus personagens<br />
em diferentes tons de humor e das reações mais diversas<br />
tais como surpresa, raiva, alegria, medo, desaprovação, sono, e, assim,<br />
fazendo parte da imagem em questão. Suas formas variam de<br />
acordo com o objetivo do autor em passar a mensagem, como exemplificado<br />
no exposto a seguir, proporcionando melhor compreensão e<br />
economia, tanto visual como comunicativa:
Fig. 1: http://www.turmadamonica.com.br/index.htm (Página Semanal 144)<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
111<br />
Na historinha acima, numa brincadeira metalinguística com o<br />
próprio artifício das HQs, se podem analisar três diferentes tipos de<br />
balões: o balão-fala; o balão-pensamento e o balão-trêmulo. O primeiro,<br />
o mais comum, transcreve as falas dos personagens; o segundo,<br />
em sua forma peculiar, apenas descreve o que o personagem está<br />
pensando no momento da ação; já o último expressa sempre algum<br />
tipo de emoção. No caso da personagem Mônica, a raiva.<br />
Outros recursos comunicativos utilizados são as onomatopeias,<br />
linguagem figurada que se expressa por meio de palavras nos<br />
quadrinhos a fim de traduzir certos sons e ruídos na língua escrita.<br />
Os balões onomatopaicos apresentam efeitos sonoros que surgiram,<br />
primeiramente, na língua inglesa, por ser um idioma mais sintético,<br />
e, assim, ganhavam proximidade com a realidade, assemelhando-se<br />
prontamente ao ruído expresso.<br />
Convencionou-se, na tradução das onomatopeias para os quadrinhos<br />
brasileiros, sua transcrição como meros signos visuais na<br />
linguagem das HQs. Alguns desses ruídos, tal como “gulp”, que em
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
112<br />
inglês significa tragar; engolir; devorar; sufocar e suas correlações;<br />
são usados nos quadrinhos nacionais de maneira que se aproxime apenas<br />
do som, sem valor semântico. Neste caso, uma das onomatopeias<br />
usadas é o “glu”, como veremos no quadrinho a seguir:<br />
Fig. 2: http://www.turmadamonica.com.br/index.htm (Página Semanal 120)<br />
No Brasil, embora ainda predomine a produção estrangeira de<br />
HQs, não é necessário que se haja uma preocupação com estrangeirismos<br />
ou a possível descaracterização do nacional, pois desenhistas<br />
como Maurício de Sousa já demarcaram as HQs brasileiras como<br />
produtos meramente nossos.<br />
As histórias em quadrinhos já não são mais meros produtos<br />
de consumo e sim marca da nova literatura contemporânea. Desse<br />
modo, a descoberta da criação artística através do gênero quadrinhos<br />
pode e deve funcionar como elemento formador e conscientizador do<br />
mundo para o mundo. Hoje, a quadrinização assume seu lugar de relevância<br />
na leitura, confirmando o grande nível de excelência a que<br />
se chegou a produção brasileira deste gênero.<br />
2. A evolução da linguagem<br />
Quando tratamos de evolução linguística, falamos também<br />
sobre a evolução dos tempos. Tudo o que evolui com o passar dos<br />
anos, influi na linguagem de uma mesma comunidade. Dessa forma,<br />
a produção das histórias em quadrinhos preocupa-se com este acompanhamento,<br />
utilizando-se da inclusão de novos recursos linguísticos<br />
de acordo com o período em questão.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
113<br />
Sendo assim, observamos a evolução de A Turma da Mônica<br />
que completou, em 2009, 50 anos de existência, tornando-se impossível<br />
passarem despercebidas as inúmeras transformações que sofreu<br />
durante todo este tempo. Para a realização deste trabalho, a respeito<br />
da inclusão de novos recursos linguísticos na obra de Maurício de<br />
Sousa, foram analisadas obras desde a década de 60 até os dias atuais.<br />
E, Para demonstrar este fato, foram selecionadas certas características<br />
que ajudam a demarcar o tempo de sua publicação. Dentre<br />
elas destacamos: as atualidades, a simplificação, os estrangeirismos,<br />
a linguagem de internet (o “internetês”), as gírias, a reforma ortográfica<br />
e a variação linguística. Estes temas serão expostos nos exemplos<br />
apresentados nos tópicos que se seguem.<br />
2.1. As Atualidades<br />
Fig. 3:<br />
Almanaque da Mônica, 1979, N. 04<br />
Fig. 4:<br />
Magali. Ano 2004, N. 375<br />
Para começar a falar de atualidades, se pode observar que o<br />
primeiro quadrinho não corresponde à época em que nos encontramos,<br />
pois vemos um artigo que, para muitos jovens, pode ser desconhecido:<br />
o filme fotográfico. Este quadrinho pertence ao final da década<br />
de 70, enquanto o segundo quadrinho é do final dos anos 90.<br />
Este apresenta um novo conceito em fotografia – não para nós, habitantes<br />
da era digital – trazendo uma máquina fotográfica de revelação<br />
instantânea.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
114<br />
No próximo quadrinho, temos uma referência olímpica: Ricardo<br />
Prado, que conquistou a medalha de prata na natação, modalidade<br />
400 metros medley, nas Olimpíadas de Los Angeles, em 1984.<br />
Curioso é que, nosso atual campeão das piscinas, nosso ídolo brasileiro<br />
desde 2008, Cesar Cielo, nem havia nascido ainda.<br />
2.2. A Simplificação<br />
Fig. 5: Cascão, 1986, N. 94.<br />
A questão da simplificação acontece na nossa língua desde o<br />
latim, principalmente na oralidade. Logo, como as histórias em quadrinhos<br />
buscam aproximar a língua escrita da língua falada, com o<br />
passar do tempo, vemos cada vez mais palavras simplificadas, seja<br />
na conjugação dos verbos, seja no próprio uso dos substantivos.<br />
Fig. 6: “não é”, no ano 1991.<br />
Almanaque do Cebolinha, 1991, N. 13<br />
Fig. 7: “né”, no ano 1998.<br />
Mônica. Coleção Um Tema<br />
Só, 1998, N. 20
2.3. Os estrangeirismos<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
115<br />
Ao fato de o nosso país abranger pessoas de diversas gerações<br />
e de diversas regiões do mundo, está ligada a evolução da nossa linguagem,<br />
sendo assim, a nossa língua ganha vários recursos. E, justamente<br />
pela influência de outras culturas, entram os estrangeirismos.<br />
Algumas expressões já foram “abrasileiradas” e outras se integram<br />
ao português ainda com a forma original.<br />
Fig. 8: “céuboy” e “show”, no ano 2008. Turma da Mônica Jovem, 2008, N. 01
2.4. O “internetês”<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
116<br />
A linguagem de internet, o internetês, é a linguagem utilizada<br />
no meio virtual, mais precisamente nas conversas instantâneas, nas<br />
salas de bate papo e até mesmo em sites onde há um máximo de caracteres<br />
exigidos. Como o computador tem sido um meio de comunicação<br />
muito utilizado no mundo contemporâneo, principalmente<br />
entre os jovens, as pessoas passaram a abreviar as palavras e, logo,<br />
estas ganharam uma configuração padronizada. É uma prática comum<br />
no âmbito da informática que, acostumados com a rapidez do<br />
mundo moderno, a utilizam como meio de agilizar e dinamizar as<br />
conversas.<br />
Fig. 9: “naum” e “vc”, na década de 00. Turma da Mônica Jovem, 2008, N. 02<br />
2.5. As gírias<br />
As gírias são vocábulos e expressões utilizadas por certos<br />
grupos sociais. Ao fato de estarem divididas por classes, se pode agregar<br />
também que cada época necessita de uma nova gama de palavras<br />
e expressões, de acordo com o seu grupo de falantes. Isso significa<br />
dizer que nem sempre se trata de uso de palavras não convencionais<br />
designando outras palavras, mas também de usos populares<br />
que se aplicam somente a um determinado período.
Fig. 10: “tô bege”, no ano 2009. Turma da Mônica Jovem, 2009, N. 10<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
117
Fig. 11: “diacho”, na década de 70. Almanaque da Mônica, 1979, N. 04<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
118<br />
Assim, pode ser observado que os personagens de “A Turma<br />
da Mônica” não trazem necessariamente jargões próprios, mas revelam<br />
dizeres que correspondem ao período de enunciação de suas falas.<br />
Logo, podemos ver nos quadrinhos abaixo os usos “diacho” e “to<br />
bege!”.<br />
No primeiro caso, conforme Aurélia: a Dicionária da língua<br />
afiada (LIBI, 2006), temos uma amostra da linguagem popular, que<br />
significa “diabo”, mas de forma eufemística. Dessa forma, a palavra<br />
“diacho” não carrega o seu sentido denotativo, pois é usada como<br />
uma interjeição de impaciência, usada na década de 70 e nem tão usual<br />
atualmente. Já no segundo caso, temos uma expressão que significa<br />
“tô boba”, ou “tô passada”, exprimindo surpresa através da fala<br />
da personagem Magali – que agora é pertencente a outra comunidade<br />
linguística, pois é uma adolescente nos dias atuais.<br />
2.6. A reforma ortográfica<br />
Desde a década de 60, a Turma da Mônica acompanha algumas<br />
alterações na ortografia da nossa língua. Nos anos de 1971 e
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
119<br />
1973 foram promulgadas alterações em Portugal, reduzindo as divergências<br />
ortográficas com o Brasil. Em 1975, Brasil e Portugal elaboraram<br />
novo projeto de acordo, que não foi aprovado oficialmente.<br />
Em 1996, o Acordo Ortográfico foi apenas ratificado por Portugal,<br />
Brasil e Cabo Verde. E, enfim, em 2008, o Acordo Ortográfico<br />
de 1990 foi aprovado por Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Brasil e<br />
Portugal, e implementado no início de 2009.<br />
Nos quadrinhos de “A Turma da Mônica”, foi destacada a<br />
mudança do verbo “parar” através do uso de “pára” (2002) e “para”<br />
(2009), designando a conjugação na segunda pessoa do singular, no<br />
modo imperativo. Depois do novo acordo, esse acento gráfico diferencial<br />
– que era usado para distinguir da preposição “para” - tornouse<br />
facultativo.<br />
Desde a década de 60, a Turma da Mônica acompanha algumas<br />
alterações na ortografia da nossa língua. Neste trabalho, foram<br />
observadas as mudanças do Acordo Ortográfico de 1990, que foi aprovado<br />
em 2008. Como a sua implementação começou no início de<br />
2009, analisamos obras anteriores e posteriores a este ano para demonstrar<br />
esta evolução.<br />
Fig.12: Almanaque da Mônica. Ano 2002 – Número 91
Fig.13: Cebolinha. Ano 2009 – Número 32<br />
2.7. A variação linguística<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
120<br />
O fato de o Brasil inteiro falar a mesma língua, não significa<br />
dizer que exista uma unidade linguística. Todos nós falamos o português,<br />
mas há de se reconhecer que em cada canto do país, em cada<br />
grupo social e até mesmo em cada profissão, ocorre a variação linguística.<br />
Ela nem sempre é demonstrada na escrita, pois não é reconhecida<br />
a sua devida importância. A começar pelos próprios livros<br />
didáticos, que não expõem a variação como uma das formas de comunicação<br />
da nossa língua. Sobre este tema, destacamos a opinião a<br />
seguir:<br />
Esse mito é muito prejudicial à educação porque, ao não reconhecer<br />
a verdadeira diversidade do português falado no Brasil, a escola tenta<br />
impor sua norma linguística como se ela fosse, de fato, a língua comum a<br />
todos os 160 milhões de brasileiros, independentemente de sua idade, de<br />
sua origem geográfica, de sua situação socioeconômica, de seu grau de<br />
escolarização etc. (BAGNO, 1999, p. 15)<br />
No caso do personagem em questão, não se trata de falta de<br />
instrução, pois Chico Bento tem acesso à escola. Trata-se de uma va-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
121<br />
riação regional por ser habitante de uma região não central, confirmando<br />
que o Brasil, apesar de ser um país monolíngüe, não possui<br />
homogeneidade linguística. Felizmente, Maurício de Sousa soube reconhecer<br />
esta diferença com a evolução de suas HQs.<br />
são <br />
inclu-<br />
Fig. 14: “vou”, na década de 70. Almanaque da Mônica, 1979, N. 04
3. Conclusão<br />
Fig. 15: “vô”, na década de 90. Chico Bento, 1996, N. 259<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
122<br />
A nova era aproxima o antigo ao novo como instrumento importante<br />
que provoca maior interesse entre o seu público. Este estímulo<br />
funciona como um despertar da curiosidade e como uma nova<br />
fonte de aquisição de conhecimento de outros conteúdos. Particularmente<br />
para este trabalho, pode ser visto que as histórias de A Turma<br />
da Mônica servem é, sim, rica ferramenta em prol do amadurecimento<br />
lingüístico e cultural do homem contemporâneo.<br />
Há de se acrescentar também que, além dos estudos específicos<br />
a que podem se dedicar os gibis, a inserção de novas linguagens<br />
também funcionam como fonte de conhecimento para os nossos alunos.<br />
Com a evolução do pensamento quadrinista, junto à nossa evolução<br />
linguística, progridem os recursos do cinema, da música, do<br />
esporte e, principalmente, da abordagem didático-pedagógica, que<br />
contribuem intensamente para o nosso gibi para a integração destas<br />
linguagens.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
123<br />
BAGNO, Marcos. Preconceito linguístico: o que é, como se faz. 43 a .<br />
Edição. São Paulo: Edições Loyola, 1999.<br />
GUSMAN, Sidney. Maurício quadrinho a quadrinho. São Paulo:<br />
Globo, 2006.<br />
LIBI, Fred. VIP, Ângelo. Aurélia, a dicionária da língua afiada. São<br />
Paulo: Editora da Bispa, 2006.<br />
LUYTEN, Sonia M. Bibe. O que é história em quadrinhos? São<br />
Paulo: Brasiliense, 1985.<br />
MOYA, Álvaro de. História da História em Quadrinhos. Porto<br />
Alegre: L & PM, 1986.<br />
SOUSA, Maurício. Turma da Mônica. Disponível em:<br />
. Acesso em: 20 abr.<br />
2010.<br />
______. Almanaque da Mônica, 1979, N. 04.<br />
______. Magali, 2004, N. 375.<br />
______. Cascão, 1986, N. 94.<br />
______. Almanaque do Cebolinha, 1991, N. 13.<br />
______. Mônica. Coleção Um Tema Só, 1998, N. 20.<br />
______. Turma da Mônica Jovem, 2008, N. 01.<br />
______. Turma da Mônica Jovem, 2008, N. 02.<br />
______. Turma da Mônica Jovem, 2009, N. 10.
______. Almanaque da Mônica, 1979, N. 04.<br />
______. Almanaque da Mônica, 2002, N. 91.<br />
______. Cebolinha, 2009, N. 32.<br />
______. Almanaque da Mônica, 1979, N. 04.<br />
______. Chico Bento, 1996, N. 259.<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
124
A FACE OCULTA DO ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA:<br />
UM ESTUDO DE CASO<br />
1. Uma provocação<br />
Sinéia Maia Teles Silveira (UNEB)<br />
sineiasilveira@hotmail.com<br />
Sônia Maia Teles Xavier (UNILESTEMG)<br />
smsilveira@uneb.br.<br />
O que ocorre nas escolas de 1º e 2º graus, no que diz respeito<br />
ao ensino de Língua Portuguesa, é um contínuo convite à reflexão de<br />
todos os que, nas universidades, vêm preparando alunos para atuar<br />
nesses níveis, já que uma das missões dos cursos de Letras é qualificá-los<br />
para atuar no ensino Fundamental e Médio.<br />
Pensando nisso, surgem alguns questionamentos: quais fatores<br />
têm interferido nas aulas ofertadas pela universidade para que a<br />
maioria dos alunos, assim que assume suas aulas, entenda que o repertório<br />
acumulado durante o curso pouco tem cooperado para a prática<br />
das aulas ministradas nas escolas em que atua ou atuará? Apesar<br />
do conhecimento de Linguística, muitos estagiários e egressos sentem-se<br />
impotentes no momento em que têm de executar o estágio:<br />
não dão conta de articular teoria e prática por fatores vários.<br />
Essas e outras questões inquietam aos professores, quando<br />
partem para as escolas de Ensino Fundamental e Médio, a fim de<br />
transpor as teorias apreendidas ao longo do curso de Letras para a<br />
prática. Estes, em sua maioria, durante a graduação, declaram-se adeptos<br />
de um ensino produtivo, tecem críticas ao ensino formalista e<br />
prescritivista adotado pelos professores observados na primeira fase<br />
do estágio, porém, no momento de traçar o planejamento das ações,<br />
acabam se sentindo inseguros, em terreno de areia movediça, afundam-se<br />
em dúvidas e incertezas.<br />
Quando assumem a sala de aula, alguns acabam por reproduzir<br />
muito daquilo que criticaram, preocupam-se excessivamente com<br />
conteúdos e menos com resultados. Como consequência, deixam à<br />
parte algumas estratégias pedagógicas bem formuladas e, assim, retroalimentam<br />
os problemas relativos ao ensino de Língua Portugue-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
126<br />
sa, na medida em que prescrevem regras de forma descontextualizada,<br />
utilizam o texto literário como pretexto para o ensino de gramática,<br />
sem levar em conta as múltiplas possibilidades literárias e semânticas<br />
do texto, a polifonia discursiva etc.<br />
Esse fazer pedagógico contribui significativamente para resultados<br />
negativos quanto ao domínio de língua. Estudos, pesquisas,<br />
documentos e referenciais qualitativos como os Parâmetros Curriculares<br />
Nacionais apontam essa crise no ensino de Língua Portuguesa,<br />
a exemplo dos resultados apresentados pelo espaço midiático que revelam<br />
dados preocupantes: os alunos finalizam a 4ª e 8 ª séries do<br />
ensino Fundamental e não conseguem demonstrar ter apreendido estratégias<br />
básicas de leitura, como compreender o que leem, fazer inferências,<br />
conforme atestam os resultados do SAEB – Sistema Nacional<br />
de Avaliação da Educação Básica. Concluintes do Ensino<br />
Médio revelam os mesmos resultados, demonstrando dificuldades na<br />
área de leitura e produção textual, como apontam os resultados do<br />
ENEM – Exame Nacional do Ensino Médio. Os testes do ENADE –<br />
Exame Nacional de Desempenho de Estudantes em todo o Brasil sinalizam<br />
índices preocupantes, já que evidenciam a pouca familiaridade<br />
desses alunos com uma área em que o domínio da língua é de<br />
extrema importância, é uma ferramenta básica para o exercício, não<br />
apenas de sua profissão, mas também de cidadania.<br />
2. Crise no ensino de língua portuguesa: falácia ou realidade? O<br />
olhar do aluno<br />
Quando se fala em crise no ensino de Língua Portuguesa, invariavelmente<br />
as atenções se direcionam para a gramática: alguns a<br />
apontam como a vilã, outros como a redentora capaz de contribuir<br />
para a reversão desse caos. Assim, a questão do ensino de Língua<br />
Portuguesa suscita um questionamento básico: deve-se ou não ensinar<br />
gramática na escola? Cabendo à escola ensiná-la, o que se deve<br />
objetivar e que tipo de gramática ensinar? Ou ainda, que tratamento<br />
deve ser dado ao seu ensino?<br />
Por um lado, os gramáticos apontam a necessidade de um ensino<br />
gramatical para instrumentalizar o aluno a se tornar um bom<br />
produtor de textos, um usuário competente da língua. De outro, os
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
127<br />
linguistas fazem críticas muito bem fundamentadas, apontando as falhas<br />
no ensino de língua, na medida em que se prioriza o ensino<br />
gramatical em detrimento do texto, a partir de uma concepção equivocada<br />
de que o domínio da linguagem é oriundo do conhecimento<br />
de regras e conceitos gramaticais, apontando como esse ensino tem<br />
sido propulsor de preconceitos linguísticos e exclusão social, principalmente<br />
em função de uma visão equivocada do que vem a ser a<br />
norma padrão.<br />
Britto (1997, p.73), sobre o assunto, afirma que essa ideia de<br />
que cabe à escola ensinar português padrão é resultante de uma confusão<br />
entre o que se entende por português padrão ou norma culta e<br />
as formas do discurso da escrita, comentando que desde Saussure fica<br />
evidente para quem estuda a língua despreconceituosamente que a<br />
“forma essencial da linguagem é a fala, sendo a escrita um sistema<br />
simbólico secundário [...] com uma longa história de constituição e<br />
relação com a fala”, sendo uma modalidade específica, regido por<br />
regras próprias, e, nesse sentido, não corresponde a nenhuma das variedades<br />
da língua portuguesa, ainda que interaja com elas. Nesse<br />
sentido, dominar a escrita, muito mais que o conhecimento de regras<br />
de uso, implica conhecer certas formas do discurso e acessar a determinados<br />
bens culturais.<br />
Na tentativa de entender um pouco essa problemática e verificar<br />
como os graduandos enxergam o ensino de Língua Portuguesa,<br />
fizemos uma pesquisa de campo em dois espaços universitários: a<br />
Universidade do Estado da Bahia, Campus V (Santo Antonio de Jesus),<br />
com graduandos do segundo semestre do Curso de Letras Vernáculas;<br />
uma universidade do interior de Minas Gerais, 1 com graduandos<br />
do primeiro período do Curso de Comunicação Social. Dentre<br />
as questões propostas, destacamos:<br />
A escola deve garantir ao aluno acesso à escrita e aos discursos que<br />
se organizam a partir dela. Diante disso, escreva sobre sua experiência<br />
relativa ao ensino de língua portuguesa no ensino médio, evidenciando<br />
qual o comportamento dos professores durante os três anos de ensino<br />
médio em relação ao ensino da língua materna.<br />
1 Como combinado com os alunos, utilizaremos o nome de informante a fim de preservar suas<br />
identidades.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
128<br />
Os alunos, ao rememorarem como eram ministradas as aulas<br />
de Língua Portuguesa no Ensino Médio, reiteram os problemas elencados.<br />
A primeira informante 2 descreve como as aulas eram ministradas:<br />
[...] Lembro da acomodação de alguns docentes ao passar o conteúdo,<br />
era sempre igual, não tínhamos novidades nas aulas, algo que fizesse<br />
com que nós, alunos, se interessasse 3 mais, provavelmente pensavam ou<br />
pensam que é mais cômodo seguir um modelo tradicional, do que expor<br />
algo novo, tendo como único objetivo que nós, alunos, aprendêssemos a<br />
norma culta, o que importava ou importa é que não podíamos falar, escrever<br />
ou ler errado. Hoje percebo que fui prejudicada por causa do ensino<br />
de alguns professores [...] Eles faziam parte da concepção que não influenciava<br />
a leitura, que quando iram passar algum assunto gramatical<br />
não interagia com um texto literário. Nas atividades, tínhamos que aplicar<br />
as regras gramaticais em sentenças isoladas, esses acontecimentos<br />
contribuíram para o bloqueio em vários alunos, que hoje em dia por consequência,<br />
encontram dificuldades em seu desenvolvimento no ensino<br />
superior e o mais triste é que sabemos que existem vários desse tipo de<br />
docente ainda. (A.C.S.O. – BA)<br />
Outra informante vai além, despejando sua mágoa e decepção<br />
em relação aos professores de Língua Portuguesa. Ela diz:<br />
É intrigante saber como um professor deixa o aluno se decepcionar<br />
com a matéria que ele transmite, informa ou esclarece. [...]. Tive três<br />
professoras de português, no primeiro ano uma amante da língua portuguesa,<br />
nos ensinava com classe [...] uma maravilha. No segundo ano foi<br />
um desastre, a professora era depressiva, velha no contexto, chantagista,<br />
aprender português era uma condenação e em fim no terceiro ano como<br />
dizem os baianos, “oh lezeira”, a professora dava sono de tão lenta, de<br />
voz baixa [...]. Me sinto constrangida de de ter que falar e escrever uma<br />
língua que além de ser passada sem muito amor e técnica ela é complicada<br />
deixando a desejar. (C.A – MG)<br />
Notemos que os informantes deixam entrever, nas linhas e entrelinhas<br />
do seu discurso, primeiro, sua perspicácia em enxergar, pelas<br />
lentes do aluno, as falácias de um ensino que não privilegia o texto,<br />
desconsidera as variações linguísticas, é prescritivo por excelência,<br />
dentre outros problemas. Do Nordeste ao Sudeste, os mesmos<br />
2 Os informantes serão citados pelas iniciais dos seus nomes, de modo a terem sua identidade<br />
preservada. Após as iniciais, serão codificados com a sigla BA, quando pertencentes à universidade<br />
da Bahia e MG, quando oriundos da universidade de Minas Gerais.<br />
3 Fomos fiéis à escrita dos informantes.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
129<br />
problemas são denunciados. E a visão que o aluno acaba por construir<br />
do professor e da Língua Portuguesa é deprimente: uma língua difícil,<br />
professores desmotivados, com concepções equivocadas e distorcidas<br />
da própria língua que ensinam e falam, metodologias que<br />
em nada contribuem para despertar paixão por aprender.<br />
A descrição feita por outros informantes confirma esse diagnóstico:<br />
Os professores tinham uma concepção prescritivista, pois eles ensinavam<br />
dizendo o que era certo e o que era errado, assim eram ditadas regras.<br />
[...] Nas aulas de Português usava-se só as regras com palavras isoladas,<br />
não se usava a palavra num contexto. Tinha professor que ensinava<br />
por ensinar. Era ensinada normas [...] mas isso era passado com palavras<br />
isoladas e não num contexto. O professor só ensinava assim.<br />
I.O.L.S. (BA)<br />
A língua portuguesa no ensino médio é tratada como algo bem básico,<br />
os professores ensinam o que o “sistema” promete que é particularmente<br />
a gramática e pouco de interpretação de texto, focando principalmente<br />
na gramática. A.L.A. (MG)<br />
Esse mesmo perfil do ensino de língua se configura nos depoimentos:<br />
Na minha trajetória estudantil, os professores utilizam a concepção<br />
da “linguagem enquanto expressão do pensamento”, ou seja, o ensino<br />
tradicional de língua, reproduzindo a gramática desvinculada das situações<br />
reais da língua. [...] não tinha aula de redação e só produzi um texto<br />
em sala de aula durante todo o colegial, que foi um breve resumo sobre o<br />
Romantismo. O enfoque do texto era só pra ensinar a gramática normativa<br />
de forma descontextualizada. O ensino de língua durante o colegial<br />
nunca ficou claro para mim, pois ensinava-se regras e a forma que eu e<br />
meus colegas utilizavam a língua oral não aparecia nos exemplo que o<br />
professor copiava no quadro. [...] O professor, através de exercícios, enfatizava<br />
a valorização do padrão normativo, assim, desprezava a análise<br />
linguística. [...] Reduzia as manifestações da língua que eu e meus colegas<br />
utilizavam através da fala a uma teoria normativa que era incoerente<br />
com as realizações reais da língua. (M.S – BA)<br />
No meu ensino médio, meus professores de língua portuguesa de<br />
nada acrescentaram ao meu conhecimento. Nas aulas, os alunos não davam<br />
atenção, conversavam o tempo todo e “matavam aula”. Mas a culpa<br />
do péssimo ensino médio não é somente dos alunos. Os professores<br />
quando começavam uma matéria, iam com ela até o fim do bimestre. Os<br />
alunos que prestavam atenção nas aulas, também terminavam o ano sabendo<br />
pouco ou quase nada. Meu desempenho no E.M., em relação a nota,<br />
estava ótimo, porém, na prática, isso não acontecia. Assim foi meu<br />
desastre no ensino médio. (V.A.C.P. – MG)
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
130<br />
É impressionante a unanimidade em relação ao ensino de língua<br />
nos dois depoimentos: ambos tecem sua decepção em relação à<br />
metodologia dos professores, à visão distorcida dos fatos da língua, a<br />
pouca ênfase no texto, o excesso de ensino de regras gramaticais<br />
descontextualizadas, o desinteresse do alunado por um ensino pouco<br />
ou nada produtivo. Notemos que a segunda informante (V.A.C.P.<br />
(MG)) reconhece a parcela de culpa dos alunos, no que tange ao desinteresse,<br />
mas ressalta que mesmo aqueles que agiam diferente não<br />
alcançavam bons resultados do ponto de vista qualitativo, ou seja,<br />
obtinham boas notas, contudo, a aprendizagem, de fato, não ocorria<br />
satisfatoriamente, já que ela evidencia o “desastre” no ensino médio.<br />
Tais depoimentos confirmam dados apontados em uma pesquisa<br />
realizada por Neves (2002, p. 237). Esse estudo revela que os<br />
professores, em sua maioria, afirmam ensinar gramática, porém, contraditoriamente,<br />
admitem que esse ensino gramatical aplicado nas<br />
escolas não tem nenhuma utilidade, não serve para nada. Quanto à<br />
forma de utilização da gramática, esse estudo revela que eles veem a<br />
gramática e a empregam para exercitar a metalinguagem em detrimento<br />
daquelas atividades propiciadoras de reflexão e operação sobre<br />
a linguagem, motivo pelo qual trabalham isoladamente redação,<br />
leitura e interpretação; de outro, literatura, e mais isoladamente ainda<br />
a gramática, sendo esta ensinada como uma transmissão daqueles<br />
conteúdos esboçados no livro didático adotado pela escola. Tais livros<br />
trazem textos que documentam a variação, a evolução linguística,<br />
as quais são desconsideradas nos exercícios, nas lições de gramática<br />
que não levam em conta a variação nem a mudança, assim como<br />
a ampla liberdade de o usuário produzir seus enunciados por meio da<br />
língua.<br />
Quanto a esses exercícios comumente aplicados nessas gramáticas,<br />
os professores revelam preferência por dois tipos: classificação<br />
de palavras e discriminação das funções sintáticas, afirmando<br />
que fazem isso a partir de textos ou frases, provavelmente para não<br />
serem acusados de artificializar o estudo gramatical. Ou seja, por<br />
conta dos equívocos que os estudos linguísticos apontam no ensino<br />
de língua, esses professores mudam de postura, adotam o texto para<br />
não serem acusados de artificializar o estudo gramatical, porém, esse<br />
uso é equivocado na medida em que o texto, como tão bem explicita<br />
Geraldi (1997), é apenas um pretexto para a retirada de palavras ou
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
131<br />
frases isoladamente, sem se levar em conta a riqueza do universo<br />
textual. Isso se reflete no depoimento abaixo:<br />
Durante minha vida estudantil, no ensino fundamental e médio, o<br />
ensino de língua portuguesa sempre foi como um conjunto de regras a<br />
serem aprendidos e colocados em prática [...]. Conjunto estes que não foram<br />
aprendidos e que tornava o ensino de língua muito cansativo. [...]<br />
Não havia separação entre as disciplinas de língua portuguesa e literatura,<br />
mas a prioridade do professor era trabalhar as normas gramaticais,<br />
somente em alguns momentos foram trabalhados alguns romances, que o<br />
professor pediu que fosse lido e não problematizou o conteúdo, e simplesmente<br />
aplicou uma atividade. [...] Estudar a língua é algo que se tornou<br />
muito complexo pela maneira que é ensinado. Se for feito uma pesquisa,<br />
poderá perceber que há maioria dos alunos não gostam de estudar<br />
língua portuguesa por considerar um sistema de regras. Na minha época,<br />
não era diferente, havia sempre uma valorização da norma culta e não se<br />
entendia o porquê de se aprender tudo aquilo se na realidade não se colocava<br />
em prática nem se comentava sobre as variações linguísticas e tudo<br />
que para a norma culta é considerado “erro” era denominado figura de<br />
linguagem. (N.J.S. – BA)<br />
Os graduandos abaixo revelam terem sido expostas ao tipo de<br />
ensino e contato com o texto em sala de aula semelhante ao vivenciado<br />
por N.J.S. – BA. Dizem eles:<br />
[...] Pouco se discutia ou até mesmo produzia para exercício de produções<br />
textuais, o foco não era o texto e sim as regras determinadas pela<br />
gramática normativa. Assim, as formas de abordagem dos textos tanto<br />
em língua portuguesa quanto em literatura eram trabalhados em questões<br />
escritas, estas mediadas através de avaliações, seminários, aulas expositivas,<br />
ministradas pelo professor. Desta forma, com um ensino conteudista<br />
e não trabalhado de forma condizente com o desempenho dos alunos,<br />
o aprendizado com certeza ficava deficiente em decorrência da forma de<br />
abordagem dos conteúdos propostos. (S.S.R. – BA)<br />
[...] o texto tornou-se muito desvalorizado na sala de aula, e os discentes<br />
ficam com uma deficiência muito grande quando se trata de interpretação<br />
de texto e leitura e fruição. (A.P.J.S. – BA)<br />
A língua materna seria a primeira língua que uma criança aprende<br />
em geral ensinada pela mãe, amigos, parentes e etc. Os professores tendem<br />
a corrigir os erros gramaticais e adequá-los de acordo com os padrões<br />
da norma culta. No meu caso não considero que o meu português é<br />
correto, ainda ultilizo muito da língua materna aquela que aprendi nas<br />
ruas, em casa, na internet etc. Ainda falta muito para que eu possa me<br />
aperfeiçoar de acordo com as regras gramaticais. (L.P.S.– MG)<br />
Refletindo sobre o tipo de ensino descrito pelos depoentes,<br />
verificamos uma prática equivocada, já que o ensino se reduz a um
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
132<br />
conhecimento metalinguístico que é visto pelo aluno como inútil,<br />
complicado, incompleto, já que não contribui significativamente para<br />
que ele domine a língua, configurando-se o que Geraldi (1987, p. 21)<br />
alega: “O ensino da língua foi desviado para o ensino da teoria gramatical”.<br />
O texto tem a sua função precípua desviada, o aluno perde<br />
o prazer de ler por ler, de buscar construir sentidos, de se empolgar<br />
com a leitura, de produzir outros sentidos, subverter, de envolver-se<br />
com o universo textual em uma perspectiva dialógica.<br />
Observamos que esse tipo de ensino conduz a concepções equivocadas<br />
em relação ao ensino de língua, como relata a terceira informante,<br />
quando alega que não considera o seu português correto,<br />
como se as outras variações fossem “erradas” e a única função dos<br />
professores de língua seja a de “corrigir erros gramaticais”. Além de<br />
ser, em alguns casos, vítima de preconceito linguístico, pois é tachado<br />
de não saber a sua própria língua, aquela que, como diz Carlos<br />
Drummond de Andrade, “é mistério, só cabe ao professor Carlos<br />
Góis desvendar”.<br />
E essa prática narrada acaba por ser nefasta, na medida em<br />
que distancia o aluno do texto, o que se refletirá negativamente na<br />
sua vida, como se verifica nos depoimentos transcritos:<br />
Na minha prática discente li apenas dois romances: Iracema e Senhora,<br />
indicados pela professora de Literatura. [...] a professora de língua<br />
portuguesa não trabalhava com textos, trazia apenas regras gramaticais<br />
para serem decoradas e postas nas provas. Se meus professores tivessem<br />
incentivado mais a leitura, acredito que hoje estaria melhor na minha vida<br />
acadêmica, pois tenho dificuldades para interpretar alguns textos e<br />
poemas. (I.C.S. – BA)<br />
[...] Deixou a desejar na elaboração de texto [...]. (S.S.M. – MG)<br />
Se a escola levar em conta que sua função básica é o ensino<br />
da língua padrão, certamente não é com teoria gramatical que ela atingirá<br />
tal objetivo. Pelo contrário, esse tipo de ensino levará o aluno<br />
a se desinteressar pelo estudo da língua, já que, quando pensa haver<br />
captado o que vem sendo trabalhado em sala de aula, entra em contato<br />
com determinadas construções sintáticas que não consegue entender,<br />
desestruturando-se, frustrando-se, sendo alvo de reprovações,<br />
recriminações que começam pela própria escola.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
133<br />
Nesse enfoque, como tão bem defende Neves (2003, p. 18), a<br />
escola trabalha equivocadamente o ensino de língua, na medida em<br />
que reduz o ensino de gramática à taxonomia e à nomenclatura em si<br />
por si. Aplica a gramática a partir da reflexão sobre o funcionamento<br />
da linguagem, não leva em conta as relações naturais estabelecidas<br />
entre várias formas de desempenho linguístico oral ou escrito, culto<br />
ou coloquial, o que, se contemplado fosse, possibilitaria ao usuário<br />
da língua dispor eficientemente dos recursos do processamento discursivo,<br />
sistematizando, a partir disso, os fatos linguísticos legitimados<br />
pelo funcionamento efetivo da linguagem, aqui entendidos como<br />
foco das ações.<br />
Esse foco, na prática, tem se desviado para ações excessivamente<br />
ritualistas no ensino gramatical, dentre elas: a aplicação de atividades<br />
de rotulação; reconhecimento e subclassificação de classes<br />
ou funções; definições, tidas como prontas, acabadas, inquestionáveis,<br />
percebendo-se a gramática como um “mapa taxonômico de categorias”,<br />
como cita Neves (2003, p. 116), o qual não considera a<br />
língua em funcionamento, organizada a partir da interação linguística,<br />
as funções que são efetuadas no uso.<br />
Procedimentos ritualísticos dessa natureza são reveladores de<br />
um ensino de gramática expositivo e impositivo de modelos, aos<br />
quais essas classes ou funções devem se encaixar, isso a partir de<br />
textos-pretextos formulados unicamente para esse exercitar mecânico<br />
e improdutivo da língua, desconhecendo-se, portanto, os usos da linguagem<br />
no trato com a gramática. Isso se confirma no depoimento<br />
dos graduandos, os quais esmiúçam como o texto se presentificou<br />
nas suas vidas estudantis e o tipo de ensino ministrado:<br />
Em minha prática discente o texto foi desvalorizado, pois não havia<br />
uma reflexão sobre a língua, no que diz respeito à sua efetiva realização.<br />
Em alguns momentos que o texto foi utilizado em sala de aula ele servia<br />
como base para auxiliar o ensino da norma padrão. [...] A prática pedagógica<br />
exercida por alguns professores não demonstrava uma definição<br />
sobre a finalidade do ato de ensinar e consequentemente uma real reflexão<br />
sobre o conteúdo transmitido. Não houve um vínculo claro entre a<br />
metalinguagem e a prática efetiva de análise linguística, mas uma valorização<br />
da norma culta e da escrita em detrimento da oralidade. Exercícios<br />
como escrever listas de verbos com o objetivo de demonstrar os tempos<br />
verbais, como pretérito perfeito, pretérito imperfeito e mais que perfeito,<br />
exemplificam a valorização da escrita e a utilização de uma metalingua-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
134<br />
gem que não facilita a retenção do conteúdo pelos alunos. (C.L.S.S. –<br />
BA)<br />
No ensino médio o ensinamento de língua portuguesa foi abordado<br />
no formato de uma revisão das regras e normas mais importantes acerca<br />
do nosso idioma. (F.T.A.S. – MG)<br />
Revelando ter sido exposta ao mesmo tipo de ensino, o depoente<br />
desabafa, deixando entrever no seu discurso a sua insatisfação<br />
com a experiência vivenciada em sala de aula, no que tange ao estudo<br />
da língua portuguesa:<br />
Infelizmente estes problemas perduraram no efetivo processo educacional<br />
durante o período escolar. Conceitos estabelecidos indefinidamente,<br />
não condizentes com a realidade e o interesse dos alunos, assim como<br />
a inserção de regras e métodos agregados a gramática tradicional e a valorização<br />
da norma culta como padrão para a sociedade, comprometeu<br />
em parte o ensino de qualidade. Em fim, todos esses fatores não que sejam<br />
inviáveis para o aprendizado, a exemplo da norma culta e a gramática,<br />
o fato é a forma como foram instaurados nos estudos o qual tornaram<br />
desinteressantes para os alunos [...]. (S.S.R. – BA)<br />
Outro graduando apresenta experiência similar ao da depoente<br />
acima, quando confessa: “[...] Os textos (normalmente crônicas ou<br />
trechos literários) serviam como pretextos para o aprendizado das<br />
normas gramaticais”. Ele também revela ter sido exposto ao mesmo<br />
tipo de ensino, quando narra sua vivência escolar:<br />
Durante o Ensino Médio, as aulas de Redação que eu tive eram totalmente<br />
mecânicas e estabelecidas. A docente (sempre auxiliada pelo livro<br />
didático) passava somente exercícios de acentuação gráfica e erros<br />
ortográficos e lia as regras para a criação de uma boa redação, sem qualquer<br />
tipo de prática. Os textos trabalhados nas aulas eram utilizados somente<br />
para fins gramaticais, sem haver qualquer discussão ou debate.<br />
(D.B. – BA)<br />
Os depoimentos permitem entrever a adoção, pela escola, de<br />
um modelo de ensino reducionista, prescritivista, revelando claramente<br />
uma concepção segundo a qual a linguagem é vista como expressão<br />
do pensamento. O texto é utilizado como pretexto para ensino<br />
da metalinguagem, isso quando se presentifica na sala de aula. Ou<br />
seja, o modo como o texto que se usa em cada situação de interação<br />
comunicativa está constituído não depende em nada para quem se fala,<br />
em que situação de fala, conforme Travaglia, tendo suas raízes na<br />
filosofia grega e, baseado nela, o ensino de Língua volta-se para a<br />
tradição gramatical, buscando-se a homogeneidade padronizada,
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
135<br />
desprezando-se a heterogeneidade dialetal, cabendo à escola unicamente<br />
o ensino da gramática normativa.<br />
Esse tipo de concepção, segundo Bagno (2002, p. 22), trabalha<br />
com abstrações, visto que a linguagem é vista como algo místico,<br />
além deste mundo, como uma essência, uma abstração, o que não é<br />
concebível visto que a língua é viva, concretizando-se como atividade<br />
social. Isso fica claro nos relatos a seguir, que rememoram o fazer<br />
pedagógico dos seus professores de língua portuguesa:<br />
Durante minha prática discente os professores tinham como prioridade<br />
empregar o uso correto da gramática, sem se preocupar com as variações<br />
da língua e com sua oralidade [...] dizendo que “esta palavra está<br />
errada, você pronunciou tal palavra errada para esse contexto”, sem se<br />
preocupar com o porque essa variação ocorreu. (A.P.J.S. – BA)<br />
Os professores do Ensino Médio de L.P. que me deram aula, são<br />
pessoas boas, mas que infelizmente me ensinaram pouco. Não sei se por<br />
causa do próprio sistema, dos professores ou por mim mesmo. Resumindo:<br />
meu conhecimento tanto na escrita quanto na fala é ruim. (G.G. –<br />
MG)<br />
Os professores do E.M. funcionam como corretores de todos os defeitos<br />
que nós alunos temos em relação a língua portuguesa. Eles nos<br />
forçam a exercitar nossas maiores dificuldades para que assim possamos<br />
praticar os exercícios básicos dentro da língua materna. [...]. (S.N.M. –<br />
MG)<br />
Fica evidente nesses relatos que os alunos enxergam no professor<br />
de português um detetive de “erros” que se preocupa excessivamente<br />
com a aplicação de um ensino prescritivo de regras, que<br />
pouco ou nada trabalha a variação linguística, conduzindo ao alunado<br />
a uma percepção equivocada desta, como deixa bem claro o depoente<br />
A.J.S. (BA), o qual apresenta uma visão ampla dessa variação.<br />
3. Concepções de gramáticas (ainda) vigentes nas aulas de língua<br />
portuguesa: um percurso teórico<br />
Concebendo a linguagem na perspectiva acima esboçada, a<br />
escola perpetua a pedagogia tradicional, no momento em que, como<br />
diz Bagno (2002, p. 25), a partir de uma abstração-redução – a norma<br />
culta-, procura apresentá-la como algo revestido de estabilidade,<br />
homogeneidade, um produto pronto e acabado. Isso revela uma das
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
136<br />
mais gritantes contradições desse tipo de concepção tradicional: fazendo-se<br />
uso dessa norma culta (abstração) como se fosse um corpo<br />
de regras aplicáveis na prática, na concretude, reduz-se a língua a essa<br />
norma, esta, por sua vez, à gramática (de frase).<br />
No enfoque explicitado acima, a escola adota, em decorrência<br />
disso, uma concepção de ensino essencialmente prescritiva de regras,<br />
buscando levar o aluno a substituir seus padrões linguísticos considerados<br />
“errados” por outros considerados “corretos”. É prescritivo<br />
porque para cada “faça isso” corresponde um “não faça aquilo”, mediante<br />
a aplicação de um único tipo de gramática, a normativa, só<br />
privilegiando a variedade escrita culta, sendo, desta forma, um tipo<br />
de ensino reducionista, o que não cabe mais nos dias atuais.<br />
Baseando-nos nessa concepção, a gramática é vista unicamente<br />
como manual com regras de bom uso da língua a serem seguidas<br />
por aqueles que querem se expressar adequadamente, sendo, por<br />
conseguinte, um conjunto sistemático de normas para bem falar e escrever,<br />
estabelecidas por especialistas, com base no uso da língua<br />
adotado e perpetuado pelos bons escritores, conforme Franchi (1991,<br />
p. 48). Sendo assim, apontamos que a língua é só a variedade tida<br />
como padrão ou culta, sendo as outras variações desvios, erros, agramaticais.<br />
Com isso, muitos professores ignoram a língua oral, criam<br />
preconceitos de todos os tipos, usando argumentos infundados<br />
para incluir ou excluir formas e usos nessa gramática, que são, na<br />
verdade, de outra ordem: estética; elitista ou aristocrática; política<br />
(purismo); comunicacional (facilidade de compreensão); histórica<br />
(tradição). Ou então justificam todo esse aparato metalinguístico em<br />
função do vestibular, alegando que precisam preparar o estudante para<br />
enfrentar esse desafio.<br />
Percebemos que a escola tem tratado a gramática como “uma<br />
entidade postiça a qual só teremos acesso se sairmos dos textos”,<br />
como alega Neves (2003, p. 129), esquecendo a escola que a gramática<br />
se explicita mediante o uso da linguagem; que a gramática de<br />
uma língua em funcionamento não é feita de regras absolutas; que<br />
não é eficiente nem produtivo reduzir a gramática a uma metalinguagem,<br />
catalogando-se e nomeando-se classes de palavras e, acima de<br />
tudo, que não é concebível a disciplina gramatical escamotear ou ignorar<br />
o real funcionamento da linguagem.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
137<br />
Levando em conta os pressupostos acima, vemos que não é<br />
dominando uma determinada variedade linguística que o indivíduo<br />
poderá mobilizar o conhecimento. Antes, o que o possibilitará isso<br />
será o acesso à cultura e à informação, consequentemente, a ampliação<br />
do seu domínio linguístico. Como diz Britto (1997, p. 176), trata-se,<br />
isso sim, de garantir a todos o acesso à escola e aos discursos<br />
que se organizam a partir dela, visto que o conhecimento linguístico<br />
decorre da experiência social e do acesso aos bens sociais e não da<br />
aprendizagem de uma metalinguagem. Logo, a reflexão sobre a língua<br />
é extremamente necessária, na medida em que<br />
Objeto historicamente construído, a língua nacional é plena de valores<br />
e sentidos, e a percepção aguda destes valores (preconceito, exclusão,<br />
elitização, apropriação), o reconhecimento da variação, o entendimento<br />
dos diferentes registros e o lugar da norma padrão [...] tudo isso exige<br />
um sujeito que, além de usar a língua, saiba como esses processos ocorrem.<br />
(BRITTO: 1997, p. 177)<br />
Não questionamos que o objetivo da escola é ensinar o português<br />
padrão ou de criar condições para que a sua aprendizagem seja<br />
efetivada, como afirma Geraldi (1999, p. 33). Para ele, essa tese infundada<br />
de que não se deve ensinar o padrão é fruto de um equívoco<br />
político e pedagógico, segundo o qual esse modelo de língua é altamente<br />
complexo, sendo, por conseguinte, de difícil aprendizagem<br />
para os alunos oriundos das camadas populares, falantes e usuários<br />
de variedades não padrão. Na verdade, para o autor, a não aprendizagem<br />
ou o desuso desse dialeto padrão decorre de valores sociais dominantes<br />
e também da adoção de estratégias pedagógicas ineficientes<br />
ou equivocadas por parte da escola. Assim, falar contra o que Possenti<br />
(1996, p. 56) chama de gramatiquice não é inviabilizar a reflexão<br />
sobre a língua, até porque tal ação é corrente na vida do ser humano,<br />
logo, não há razão para inviabilizá-la no espaço escolar.<br />
Bagno (2003) também não se posiciona contra a existência e<br />
o ensino de um padrão. O que ele combate é se estabelecer um padrão<br />
escrito tradicional como única norma a ser aceita para todos os<br />
meios de comunicação, todas as regiões e relações sociais, visto que<br />
para cada situação comunicativa há uma variedade adequada da língua.<br />
O que não se pode é, em nome dessa norma, desconhecer a variação<br />
linguística, ou não se refletir sobre ela na escola. O que não é<br />
mais cabível é que essa instituição, no trato com a linguagem, confunda<br />
noções de norma linguística e preconceito linguístico, conce-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
138<br />
bendo que a ela cabe avaliar usos linguísticos pela ótica da valoração<br />
social.<br />
Como defende Neves (2003, p. 22), até por conta da pressão<br />
da sociedade pela preservação da identidade, há na escola um espaço<br />
para o estudo da língua padrão, porém, é preciso partir da língua – da<br />
linguagem – para o padrão, ou seja, do uso para a norma, e não do<br />
movimento inverso – do padrão para a linguagem e para a língua,<br />
que é, numa visão acrítica, o que se tem efetivado na prática, quando<br />
se oferece a gramática de uma língua como uma camisa-de-força que<br />
vem desenhada para depois se encaixar os exemplos que caibam no<br />
desenho traçado, no modelo desenhado, na doutrina assentada, tratando-se<br />
a gramática como mera transmissora e registradora de modelos.<br />
Estes são denominados por Neves (2003, p. 85) de esquemas<br />
mudos, esqueletos inexplicados que depois são revestidos com aquilo<br />
que melhor se adapte a esses moldes.<br />
Com esse tipo de ensino, a metalinguagem acaba engolindo a<br />
linguagem que lhe deu vida e estatuto, instaurando dois problemas<br />
cruciais: o sufocamento da linguagem pela metalinguagem e a limitação<br />
do nível da análise à oração, a qual não atinge o patamar alcançado<br />
pela linguagem, desconsiderando-se, assim, que a gramática é<br />
decorrente de uma capacidade natural efetivada no uso, na interlocução<br />
e criação de textos, conforme a autora.<br />
Ora, é evidente que ninguém precisa estudar regras gramaticais<br />
para depois ser um falante competente de sua própria língua, logo,<br />
A gramática, como disciplina escolar, terá de ser entendida como<br />
explicitação do uso de uma linguagem – em todos os ângulos, inclusive o<br />
social – com base em muita reflexão sobre dados, o que exclui toda atividade<br />
de encaixamento em moldes que prescindam das ocorrências naturais<br />
e ignoram zonas de imprecisão e/ou oscilação. (NEVES, 2003, p. 25/6).<br />
Nesse viés, uma gramática escolar cientificamente conduzida,<br />
apoiada no real funcionamento da linguagem, verá como não científica<br />
a adoção de um conceito de correção no estabelecimento de um<br />
padrão linguístico a ser buscado pela escola, e natural e científica a<br />
utilização de um conceito de norma linguística e de língua-padrão no<br />
exame das relações estabelecidas entre gramática e uso da língua, a<br />
aceitação de propostas respaldadas pela Linguística na atuação escolar,<br />
renovando-se o tratamento dado à linguagem, à língua e à gramá-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
139<br />
tica, o que, por sua vez, implicaria numa realimentação das discussões<br />
teóricas aplicáveis sobre a linguagem.<br />
4. Que concepção de gramática e ensino, enfim, adotar?<br />
Levando-se em conta as discussões feitas, negar a necessidade<br />
do ensino gramatical é negar a sistematicidade da língua portuguesa.<br />
Saber gramática não significa decorar nomenclaturas, regras,<br />
exceções. Saber gramática é saber concatenar, combinar, criar de acordo<br />
com regras interiorizadas. É saber falar, ler e escrever com clareza<br />
e eficiência, dominando, o mais automaticamente possível, o<br />
sistema de regras do nosso meio de comunicação – o português. Assim,<br />
o professor deve ter uma concepção instrumentalista da língua<br />
que ensina, e não uma concepção normativa prescritiva. Deve considerar<br />
que a língua expressa as necessidades da cultura, esta desenvolve<br />
a linguagem sem por ela ser exigida. Quando a cultura muda, a<br />
língua tem recursos necessários para mudar com ela, ajustando-se às<br />
necessidades comunicativas.<br />
O que sugerimos, na verdade, é que se possibilite ao aluno elaborar<br />
um conhecimento sobre a língua, vendo-se a linguagem como<br />
um todo, investigando-a, pesquisando-a em todas as suas possibilidades,<br />
contemplando-a em todos os seus aspectos: sua historicidade,<br />
funcionalidade, variabilidade; os gêneros do discurso, a anáfora,<br />
a dêixis, dentre outras questões, bem como propiciando a revisão de<br />
bases semânticas de relações argumentativas, os sistemas de construção<br />
do seu léxico, suas relações com a gramática internalizada, conforme<br />
sugere Britto (1997, p. 178). Assim, a gramática, no contexto<br />
escolar, estaria vinculada aos processos da constituição do enunciado,<br />
sendo, consequentemente, dirigida pela observação da produção<br />
linguística efetivamente operada. (NEVES, 2003, p. 22).<br />
Nesse enfoque, é muito mais produtivo estudar as relações<br />
que se constituem entre os falantes, nos seus atos de fala, do que<br />
procurar o ensino da metalinguagem: analisar a língua, dominando<br />
conceitos e metalinguagens, descrevendo-a. Ora, descrever a língua é<br />
diferente de saber a língua, ou seja, usá-la nas diversas situações do<br />
dia-a-dia, em interação com outros falantes, demonstrando entendimento<br />
e produção de enunciados, diferençando as formas de expressão.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
140<br />
Geraldi (1997) propõe que, com base nessa postura, a partir<br />
de uma concepção de linguagem como processo ou fruto de uma interação<br />
social, as atividades no 1º Grau girem em torno do ensino de<br />
língua, usando-se a metalinguagem apenas quando esta for necessária<br />
para o alcance do objetivo final do domínio da Língua na variante<br />
padrão.<br />
Bagno (2002, p. 53), por sua vez, sugere que as aulas de língua<br />
portuguesa não se reduzam à aula de gramática, mas se configure<br />
em um espaço de leitura e escrita diárias de material diversificado,<br />
defendendo que o objetivo de Língua Portuguesa na escola deve ser<br />
o de levar o aluno a alcançar um grau de letramento cada vez maior,<br />
propiciando o desenvolvimento das habilidades de ler e escrever,<br />
possibilitando-o usar a sua língua com eficiência. Assim, saber português<br />
implicaria outras aptidões, como ler certos tipos de textos,<br />
compreendendo-os, dominar recursos da modalidade escrita, e não<br />
apenas dominar regras gramaticais.<br />
Como assegura Brito (1997), o papel da escola deve ser o de<br />
garantir ao aluno o acesso à escrita e aos discursos que se organizam<br />
a partir dela, permitindo a emergência de sujeitos críticos que, atuando<br />
sobre o seu objeto de estudo, que é a língua, investiguem, descubram,<br />
articulem, aprendam, enfim, estabeleçam relações, formem juízo<br />
e crítica, experimentem liberdade de expressão do pensamento.<br />
Muitos gramáticos afirmam que não se pode confundir o estudo<br />
da linguagem com a gramática. Bechara, por exemplo, adere a<br />
essa distinção e privilégio da Gramática, e isso não é mais que uma<br />
forma de desvalorizar e excluir variedades. Isso, conforme Britto, é<br />
retroceder no tempo, pois não faz sentido imaginar um professor de<br />
gramática que não tenha sua prática alicerçada na Linguística.<br />
A Língua, na verdade, só existe na interlocução. Estudar a<br />
língua, por conseguinte, é buscar identificar compromissos que surgem<br />
a partir da fala, e as condições a serem preenchidas pelos falantes<br />
para falar de certo modo em determinada situação concreta de interlocução.<br />
Nesse direcionamento, caberá à escola promover reflexões<br />
sobre a língua materna, levando em conta as relações de uso da<br />
linguagem e atividades de análise linguística e de explicitação da<br />
gramática, rejeitar um tratamento homogêneo da língua, trabalhando,<br />
portanto, a partir de uma perspectiva sociointeracionista, tendo como
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
141<br />
objeto de investigação a língua em uso, já que é a partir da interação<br />
que a linguagem é utilizada que há produção, ampliação dos usos da<br />
própria língua. Assim, nessa perspectiva, o foco passaria a ser a<br />
construção do sentido do texto, deixando este de ser usado apenas<br />
como pretexto para trabalho metalinguístico.<br />
Nesse viés, será muito mais produtivo estudar as relações que<br />
se constituem entre os falantes, nos seus atos de fala, do que procurar<br />
o ensino da metalinguagem: analisar a Língua, dominando conceitos<br />
e metalinguagens, descrevendo-a. Ora, descrever a língua é diferente<br />
de saber a língua, ou seja, usá-la nas diversas situações do dia-a-dia,<br />
em interação com outros falantes, demonstrando entendimento e<br />
produção de enunciados, diferençando as formas de expressão. Neves<br />
(2003) assegura que<br />
Ensinar eficientemente a língua e, portanto, a gramática é, acima de<br />
tudo, propiciar e conduzir a reflexão sobre o funcionamento da linguagem,<br />
e de uma maneira, afinal, óbvia: indo pelo uso linguístico para chegar<br />
aos resultados de sentido.<br />
Bagno (1999, p. 142) indica, dentre outras coisas: que o professor<br />
se conscientize de que todo falante nativo é um usuário competente<br />
dessa língua; aceite que não existe erro de português, mas diferenças<br />
de usos; não confunda erro de português com simples erro<br />
ortográfico, visto que a ortografia é artificial, enquanto que a língua<br />
é natural; reconheça que aquilo que é visto pela gramática tradicional<br />
como erro é um fenômeno com explicações científicas demonstráveis;<br />
conscientize-se de que há variação e mudança linguística em<br />
todas as línguas; perceba que a língua portuguesa não vai nem bem<br />
nem mal, apenas evolui; respeite a variedade linguística de todos os<br />
falantes; entenda que a língua permeia tudo, constituindo-nos enquanto<br />
seres humanos, daí sermos a língua que falamos; ensine bem,<br />
ensinando para o bem, respeitando o conhecimento intuitivo do aluno,<br />
valorizando o que ele sabe do mundo, da vida, reconhecendo a<br />
língua tal qual ele fala.<br />
Neves (2003, p. 151), por sua vez, afirma que<br />
[...] estudar a língua é refletir sobre o uso linguístico, sobre o exercício<br />
da linguagem; que o lugar da observação desse uso é os produtos que<br />
temos disponíveis – falados e escritos-, mas é, também, a própria atividade<br />
linguística de que participamos, isto é, a produção e a recepção, afinal,<br />
a interação; que, afinal, a gramática rege a produção de sentido.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
142<br />
Neves (2002, p. 266) advoga que o ensino de linguística deve<br />
oferecer condições para que o aluno tire dele orientação e conteúdo<br />
para o trabalho com a linguagem quando ele assumir a outra ponta (a<br />
sala de aula), no processo de ensino, compreendendo: que uma língua<br />
– e seu conhecimento –, envolve esquemas cognitivos: o conhecimento<br />
de uma língua é, afinal, o conhecimento de uma das manifestações<br />
do funcionamento da mente; as propriedades básicas da faculdade<br />
da linguagem, o que lhes irá permitir compreender o processo<br />
de aquisição da linguagem; de uma teoria funcionalista, pelo contrário–<br />
e complementarmente, levará conhecimentos que têm seu<br />
centro no uso linguístico; que o que se pretende, nas escolas de ensino<br />
fundamental e médio, é um bom uso da língua; o que é a língua<br />
em funcionamento, sabendo o que é ensinar a língua materna para os<br />
seus alunos.<br />
A autora defende que dar privilégio à reflexão é o modo de<br />
preconizar-se um tratamento da gramática que objetive o uso linguístico.<br />
Não apenas o estudioso da língua portuguesa, mas também o falante<br />
comum, conduzido na reflexão sobre o uso da linguagem, vai<br />
poder orientar-se para a utilização eficiente dos recursos do processamento<br />
discursivo, e, a partir desse ponto, chegar a uma sistematização<br />
dos fatos da língua legitimada pelo efetivo funcionamento da<br />
linguagem. Defende a autora que é “Partindo do todo da interlocução<br />
que a análise se torna legítima, e, mesmo, possível”. Para ela, “[...]<br />
não é a homogeneidade que se tem de buscar no exercício de uma atividade<br />
reflexiva sobre a linguagem: pelo contrário, a heterogeneidade<br />
é constitutiva da linguagem, pois a língua é um sistema eminentemente<br />
variável.” Dessa forma, a escola deve tratar a linguagem, em<br />
princípio, rejeitando moldes, vendo que não é natural que os padrões<br />
se imponham ao uso, mas que o uso estabeleça padrões, os quais,<br />
obviamente, do ponto de vista sociocultural, são submetidos a uma<br />
avaliação, já que diferentes usos hão de ser adequados a diferentes<br />
situações de uso.<br />
Aponta a autora algumas lições dessas reflexões: que ninguém<br />
precisa primeiro estudar as regras de uma disciplina gramatical<br />
para depois ser falante competente de sua língua; a gramática como<br />
disciplina escolar terá de entender-se como explicitação do uso de<br />
uma língua particular historicamente inserida, e, por aí, do próprio
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
143<br />
funcionamento da linguagem – com base em muita reflexão sobre<br />
dados.<br />
Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), referenciais<br />
qualitativos norteadores da educação no Brasil, pautam-se nas tendências<br />
linguísticas contemporâneas, fazem críticas aos aspectos negativos<br />
no ensino de língua, bem como apontam diretrizes para o ensino<br />
de Língua Portuguesa, dando assim, uma grande contribuição<br />
para o ensino. Neste referencial, a Língua Portuguesa é apresentada<br />
como uma área em mudança, no que concerne ao ensino de língua.<br />
Este se fundamenta em um tripé: escuta/leitura de textos orais/escritos;<br />
prática de produção de textos orais/escritos; prática de análise<br />
linguística. Dessa forma, o foco do ensino sai de regras estanques,<br />
pré-estabelecidas, e do tradicionalismo, passando para um questionamento<br />
de regras e comportamentos linguísticos.<br />
5. Sem conclusões; apenas provocações<br />
O que sugerimos é a saída de um ensino prescritivo, metalinguístico,<br />
descontextualizado e de uma teoria gramatical inconsistentes,<br />
para uma perspectiva mais crítica de ensino de língua, mediante<br />
a leitura e produção textual como eixos basilares para a formação do<br />
aluno. Isso porque se entende a língua, não mais como um corpo<br />
homogêneo e transparente, mas um somatório de possibilidades condicionadas<br />
pelo uso e pela situação discursiva, vendo-se o texto como<br />
unidade de ensino e a diversidade de gêneros como um aspecto a<br />
ser privilegiado no espaço escolar.<br />
Ressaltemos, como aspecto extremamente relevante, a importância<br />
que os textos produzidos pelos alunos passam a ter, nesse contexto,<br />
aqui contempladas a produção, a refacção como exercícios de<br />
análise linguística, reflexão sobre língua, linguagem e variações linguísticas,<br />
dentre outras possibilidades.<br />
Com base no que foi discutido, o que propomos é que o ensino<br />
de Língua Portuguesa se organize em torno do uso da leitura, da<br />
produção de textos e da gramática, aqui entendida como uma prática<br />
reflexiva sobre a língua e seus usos. Que se privilegie, no ensino da<br />
língua, a perspectiva sociointeracionista, concebendo-se a linguagem<br />
como processo de interação, levando-se em conta os contextos soci-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
144<br />
ais. Nesse sentido, é necessária uma mudança de paradigma do professor<br />
no que tange às suas concepções de linguagem, língua e ensino<br />
de língua, bem como ousadia para mudar, para desconstruir velhas<br />
práticas, implantando um ensino que contemple a riqueza e as<br />
potencialidades da língua; que seduza o aluno, que o faça encantar-se<br />
pela língua que o identifica, que pode contribuir para que ele se torne<br />
sujeito de sua história, ocupando, de fato, seu lugar de direito: a sala<br />
de aula.<br />
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
BAGNO, Marcos. Preconceito linguístico: o que é, como se faz. São<br />
Paulo: Loyola 1999.<br />
______. (org.). Linguística da norma. São Paulo: Loyola, 2002.<br />
______. A norma oculta – língua & poder na sociedade brasileira. 2.<br />
ed. São Paulo: Parábola, 2003.<br />
BRASIL, Ministério da Educação. Secretaria de Educação Fundamental.<br />
Parâmetros Curriculares Nacionais: Língua Portuguesa.<br />
Brasília, 2000.<br />
BRITO, Luiz Percival Leme. A sombra do caos: ensino de língua X<br />
tradição gramatical. Campinas: Mercado de Letras, 1997.<br />
FRANCHI, C. Mas o que é mesmo ‘Gramática’? In: LOPES, H. V.<br />
et al. Língua portuguesa: o currículo e a compreensão da realidade.<br />
São Paulo: Secretaria da Educação/Coordenadoria de Estudos e<br />
Normas Pedagógicas, 1991.<br />
GERALDI, João Wanderlei. O texto na sala de aula. São Paulo: Ática,<br />
1997.<br />
NEVES, Maria Helena de Moura. Que gramática estudar na escola?<br />
Normas e uso na língua portuguesa. São Paulo: Contexto, 2003.<br />
______. Gramática de usos do português. São Paulo: Contexto, 2000.<br />
______. A gramática: história, teoria e análise, ensino. São Paulo:<br />
UNESP, 2002.
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POSSENTI, Sírio. Por que (não) ensinar gramática na escola. Campinas:<br />
ALB/Mercado de Letras, 1996.<br />
TRAVAGLIA, Gramática e interação: uma proposta para o ensino<br />
de gramática no 1º e 2º Graus. São Paulo: Cortez, 1996.
A FEMME FATALE EM “TARDE”, DE OLAVO BILAC<br />
1. Introdução<br />
Armando Rabelo Soares Neto (UERJ)<br />
armandorabelo_soares@hotmail.com<br />
Apesar de estarem separados nos ideais e na vida literária, as<br />
composições dos parnasianos e simbolistas interligavam-se. Para<br />
Massaud Moisés (1984, p. 3), as manifestações realistas, nelas “incluindo<br />
as ramificações naturalistas e parnasianas, [...] e simbolistas<br />
entraram a exercer mútua influência [...]: Realismo e Simbolismo<br />
constituem estéticas [...] paralelas e interinfluentes”. Afrânio Coutinho<br />
(1968, p. 208) chega a afirmar a existência de “paralelismo e<br />
mistura” entre ambas as estéticas, definindo-as como “uma fase de<br />
poesia de transição e sincretismo”. Já Fernando Cerisara Gil (2006,<br />
p. 15) é categórico ao delimitar “a poesia parnasiana e simbolista<br />
como inscritas num mesmo andamento poético, estético e histórico”.<br />
Oriundo da Europa e tento como precursores Théophile Gautier<br />
e Charles Baudelaire, outro movimento fez-se presente entre as<br />
produções finisseculares oitocentistas, mesmo que de forma mais sutil:<br />
o Decadentismo. Segundo Gentil de Faria (1988, p. 55), “ordinariamente,<br />
as obras produzidas [...] no período de 1890 a 1930, caracterizam-se<br />
pela adaptação de modelos franceses. É em grande parte o<br />
reflexo de toda a literatura decadente reinante na França nas últimas<br />
décadas do século XIX”. Tal afirmação leva a crer que o Decadentismo<br />
também exercia influência nas produções parnasianosimbolistas,<br />
fazendo parte do sincretismo estético no qual estava imerso<br />
todo o cenário finissecular do último quartel daquele século.<br />
Se “esse entrecruzamento de correntes estéticas constitui a dinâmica<br />
do século XIX” (COUTINHO, 1968, p. 207-208) em seu finde-siècle,<br />
toda a produção poética oriunda neste tempo deve ser analisada<br />
sob esta ótica. Não seria diferente com Olavo Bilac. Inserido<br />
neste contexto e viajando anualmente para a França (BROCA, 2005,<br />
p. 143-144), o comentado poeta sofreu influência do movimento decadente<br />
que, paralelo à sua produção, ocorria: Bilac, ao mesmo tempo<br />
em que partilhava do contexto literário brasileiro, inseria-se na
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
147<br />
tradição artística francesa. Dessa forma, na poesia bilaquiana, pode<br />
ter penetrado o sincretismo que vigorava até então, sincretismo este<br />
fortemente marcado pela arte decadentista.<br />
Dentre os ideais estéticos decadentistas, dos quais se falará<br />
adiante, o erotismo surge como um dos mais latentes na obra de Olavo<br />
Bilac. Ao longo dos livros que compõem Poesias, o citado poeta,<br />
em diversos momentos, recorrerá à temática da mulher fatal, vista<br />
como paradigma da concepção erótica decadentista. Entretanto, é no<br />
livro Tarde que Bilac consagrará as suas femmes fatales, revestindoas<br />
de uma postura mitológica ancestral. Julga-se necessário, portanto,<br />
investigar as relações entre mito e literatura presentes em Tarde,<br />
procurando assim demonstrar o cotejo entre a mitologia e a literatura<br />
decadente na criação poética das mulheres fatais bilaquianas.<br />
2. A femme fatale em “Tarde”, de Olavo Bilac<br />
O Decadentismo idealizará um erotismo cerebral, que teria<br />
existência somente no plano mental. O erotismo transviado porque<br />
não consumado será tema recorrente dos decadentes. Dentre os diversos<br />
traços desta estética - o gosto pela artificialidade, o desprezo<br />
pela natureza, a linguagem rebuscada, “a curiosidade mórbida pelas<br />
coisas misteriosas e o prazer das sensações raras” (FARIA,1988:56),<br />
por exemplo – o erotismo se destaca. Na vertente do mencionado estilo<br />
literário, o erotismo se revela como forma de perversão, isto é,<br />
devido à negação ao natural, a concepção erótica decadentista se voltará<br />
para o sexo como ato transgressor, postura que provém do próprio<br />
ideal decadente de contrariedade aos valores sociais estabelecidos<br />
e da influência de Charles Baudelaire e Théophile Gautier, dentre<br />
outros autores que serviram de matrizes ao Decadentismo.<br />
Em Baudelaire e em Gautier encontra-se o ideal decadentista<br />
da femme fatale, figura que representa a alegoria da ruína da tradição<br />
artística ocidental, encarnada pelo próprio decadentismo. Neste movimento,<br />
a mulher deixará seu lugar de parceira passiva para assumir<br />
a posição de dominadora, o que já demonstraria uma modificação na<br />
concepção dos papéis eróticos. Bela, porém cruel, esta mulher se<br />
desprenderá de qualquer relação com ideais femininos de veneração<br />
e amor para revestir-se de maldade e frieza. Ela se tornará má na
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
148<br />
medida em que seduz o homem para levá-lo à ruína. A femme fatale<br />
decadentista geralmente é descrita como uma mulher de belos e exuberantes<br />
atributos físicos, mas, contudo, também um ser de alma<br />
monstruosa, marca que lhe cobre de paradoxos.<br />
Ao se falar em mulheres fatais do Decadentismo, deve-se<br />
sempre recorrer a uma figura feminina que, para os próprios decadentes,<br />
melhor as encarnaria: a personagem bíblica Salomé. Eleita a<br />
“deusa” do Decadentismo, Salomé traz em sua própria história a<br />
marca da fatalidade. Devido a sua frieza e crueldade, aliada à sua beleza<br />
e exuberância, a comentada personagem tornou-se, por excelência,<br />
a figura na qual se inspiravam grande parte dos artistas decadentes.<br />
De acordo com o já citado Latuf Mucci (1994, p. 71), “o tema da<br />
Salomé identifica-se com a concepção decadentista do amor, que une<br />
desejo e morte, volúpia e fatalidade, mulher e abismo”.<br />
A presença de tais figuras femininas fatais é frequente na obra<br />
poética de Olavo Bilac. Sua femme fatale irá desde uma tentadora em<br />
“Abyssus” (BILAC, 2006, p. 60) “bela e traidora”, capaz de seduzir<br />
o homem com o único desejo de levá-lo às ruínas, arquétipo feminino<br />
presente no livro “Sarças de Fogo”, até uma “Guerreira” (Idem, p.<br />
23) cruel e sanguinária, representada no poema como a própria “encarnação<br />
do mal” – composição presente no livro “Panóplias”. Outras<br />
mulheres fatais bilaquianas também poderiam ser enumeradas;<br />
no entanto, devido às posturas malsãs que as tornam comuns, uma<br />
explicitação mais profunda não se faz necessária. Necessário é que<br />
se perceba a não relação destes arquétipos femininos com a estética<br />
parnasiana. No Parnasianismo, a mulher emerge como um elemento<br />
distante ao poeta, possuindo atributos tão perfeitos que chega a ser<br />
mineralizada no poema, isto é, comumente ela será vista como estátua<br />
– objeto no qual converge o trabalho artístico da beleza, supremo<br />
ideal parnasiano. A mulher para este estilo literário será moldada, esculpida<br />
e petrificada pelo poeta, este admirador de sua beleza. Este<br />
ideal parnasiano acerca do feminino pode ser notado no poema “Estátua”,<br />
de Teófilo Dias (apud ABDALA JUNIOR, 1985, p. 21), produção<br />
que deixa evidente o desejo do eu-lírico de transformar sua<br />
musa em estátua:<br />
Do albor de brancas formas eu vestira<br />
Teus contornos gentis: eu te cobria<br />
Com marmóreo cendal os moles flancos.
E a sôfrega avidez dos meus desejos<br />
Em mudo turbilhão de imóveis beijos<br />
As curvas te enrolava em flocos brancos.<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
149<br />
É evidente que o Parnasianismo também possui um “forte lastro<br />
de sugestão sensual” (CANDIDO & CASTELLO, 1968, p. 126).<br />
Contudo, nesta escola, o feminino e a postura do eu-lírico estão sempre<br />
contidos, atitude aposta à demonstrada pelo poema bilaquiano<br />
“XIV”, integrante do livro “Via-láctea” (BILAC, 2006, p. 44), no<br />
qual o eu-lírico lamenta-se por ter se deixado envolver com uma mulher<br />
destruidora, produção poética que se aproxima mais da estética<br />
decadentista de erotismo destruidor:<br />
Por que tanta serpente atra e profana<br />
Dentro d’alma deixei que se aninhasse?<br />
Por que, abrasado de uma sede insana,<br />
A impuros lábios entreguei a face?<br />
No seu derradeiro livro, Tarde, Olavo Bilac dará vida a mulheres<br />
fatais identificadas com arquétipos mitológicos grecoromanos,<br />
egípcios e judaico-cristãos. Diferentemente dos outros livros,<br />
neste o poeta fará uma relação direta entre a femme fatale e as<br />
antigas concepções do feminino, melhor dizendo, os ancestrais arquétipos<br />
mitológicos. Aliás, sobre as mulheres fatais e sua relação<br />
com o mito e a literatura, Mario Praz (1996, p. 179) afirma:<br />
Sempre houve no mito e na literatura mulheres fatais, porque o mito<br />
e a literatura só fazem espelhar fantasticamente aspectos da vida real e a<br />
vida real sempre ofereceu exemplos mais ou menos perfeitos de feminilidade<br />
prepotente e cruel. (Ibidem)<br />
Diante de tão importante relação, é propício um estudo que<br />
procure expor tal cotejo: é necessário analisar a femme fatale presente<br />
em Tarde e sua relação com a mitologia.<br />
No poema “Oração à Cibele”, Bilac fará referência à deusa<br />
romana que intitula a composição. Esta divindade trazida da Frígia<br />
para Roma é denominada como Grande Mãe, identificada com a natureza<br />
como um todo e classificada como deusa da fecundidade. Aparentemente,<br />
não possuiria nenhum atributo que lhe concedesse aspectos<br />
fatais. No entanto, segundo Chevalier & Gheerbrant (1996, p.<br />
237), “de uma forma quase delirante, ela simboliza os ritmos da morte<br />
e da fecundidade, da fecundidade pela morte”. Visto que esta fecundidade<br />
presente na referida deusa dá-se pela ação mortífera, sua
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
150<br />
postura já poderia se aproximar de uma concepção de erotismo fatal.<br />
Outros elementos que envolvem o mito de Cibele contribuem para<br />
essa aproximação, dentre os quais se destacam cultos orgiásticos desenvolvidos<br />
em torno da deusa (GRIMAL, 1997, p. 86) e sua própria<br />
condição de mulher dominante e controladora, observável no “seu<br />
carro [...] puxado por leões: o que significa que ela domina, ordena e<br />
dirige a potência vital” (CHEVALIER & GHEERBRANT, 1996, p.<br />
237). Na produção bilaquiana em questão, o eu lírico se dirige a Cibele,<br />
fazendo-lhe uma prece:<br />
Deitado sobre a terra, em cruz, levanto o rosto<br />
Ao céu e às tuas mãos ferozes e esmoleres.<br />
Mata-me! Abençoarei teu coração, composto,<br />
Ó mãe, dos corações de todas as mulheres!<br />
Nesta primeira estrofe, o eu-lírico deixa entrever sua condição<br />
de prostração frente a esta mulher forte e dominadora. Seu único desejo<br />
é morrer por estas “mãos ferozes”, em uma atitude passiva de<br />
entrega. A estrofe seguinte ressalta o paradoxo que envolve a deusa,<br />
revestida com atributos de encanto, mas também de devassidão (traço<br />
peculiar às femmes fatales) e a perplexidade do eu lírico frente a<br />
uma deusa tão aniquiladora:<br />
Tu, que me dás amor e dor, gosto e desgosto,<br />
Glória e vergonha, tu que me afagas e feres,<br />
Aniquila-me! E doura e embala o meu sol posto,<br />
Fonte! berço! mistério! Ísis! Pandora! Ceres!<br />
Cibele é identificada no poema como divindade destruidora<br />
que, através de seu dualismo, seduz e encanta seu observador ao<br />
mesmo tempo que o maltrata. O poema faz uma aproximação da divindade<br />
em questão com outras deusas da mitologia: Ísis, da mitologia<br />
egípcia, e Pandora e Ceres, da mitologia clássica.<br />
Ísis “encarna o princípio feminino, fonte mágica de toda fecundidade<br />
e de toda transformação” (CHEVALIER & GHEER-<br />
BRANT, 1996, p. 507). Dentre os eventos que envolvem sua figura,<br />
destaca-se a passagem mítica da ausência de seu marido Osíris em<br />
viagem à Terra. Tendo inveja do irmão, Tífon tentara tomar o trono<br />
no momento da viagem de Osíris; contudo, o traidor tem seus planos<br />
frustrados por Ísis que, na falta do esposo, assumira o comando.<br />
Considera como deusa absoluta, “tanto no Oriente Médio quanto na<br />
Grécia e em Roma, e em toda a bacia do Mediterrâneo, Ísis foi ado-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
151<br />
rada como a deusa suprema e universal” (Ibidem), fato que lhe confere,<br />
como Cibele, traços dominantes e fortes. Sua representações<br />
também se aproximam de Cibele:<br />
Representavam Ísis ora sob os traços de mulher, com cornos de vacas,<br />
símbolo das fases da lua, ora com um sistro na mão direita e um vaso<br />
na esquerda, ora com a cabeça coroada de torres, como Cibele, tendo<br />
a seus pés o globo da terra; às vezes davam-lhe asas, um carcás ao ombro<br />
e nas mãos o Corno da Abundância. (SPALDING, 1973, p. 295)<br />
Além de sua personalidade imponente, Ísis é “considerada<br />
[...] como grande feiticeira”, marca que talvez explique a relação da<br />
deusa com os cultos de mistérios praticados nos primeiros séculos da<br />
era cristã (CHEVALIER & GHEERBRANT, 1996, p. 507) e com o<br />
estatuário da deusa, “representada com a cabeça coberta por um véu<br />
que representava o mistério” (BULFINCH, 2006, p. 373).<br />
Da mulher forte e misteriosa, passa-se para a concepção de<br />
feminino como ser destruidor. Pandora foi um “presente” de Zeus a<br />
Epimeteu; todavia, a intenção do deus supremo não foi a de presentear,<br />
mas sim de castigar Epimeteu e seu irmão Prometeu, pois estes<br />
haviam roubado o fogo sagrado e o dado aos homens (GRIMAL,<br />
1997, p. 353-354). Pandora foi criada por todos os deuses e presenteada<br />
com muitos atributos, porém, não só elementos de bondade lhe<br />
foram atribuídos: a astúcia, a curiosidade e a mentira também lhe foram<br />
acrescentadas. Sendo assim, Pandora causaria um dano imenso<br />
para a humanidade: através de sua personalidade, toda a humanidade<br />
viria a perecer:<br />
Criada com a cooperação de todos os deuses, Pandora recebeu uma<br />
longa série de qualidades, como a beleza, a graça e a persuasão. Mas<br />
Hermes havia inoculado em sua alma a mentira e a astúcia, e Hera, a curiosidade.<br />
Pandora foi enviada a Epimeteu, irmão de Prometeu, levandolhe<br />
como presente de núpcias um vaso fechado por uma tampa. Tomada<br />
por uma curiosidade irresistível, Pandora abriu o vaso, derramando sobre<br />
os homens todos os males que este continha. (MAGALHÃES, 2007, p.<br />
32-34)<br />
Segundo os já citados Chevalier e Gheerbrant (1996, p. 681),<br />
“Pandora simboliza a origem dos males da humanidade” e “o fogo<br />
dos desejos que causam a desgraça dos homens”. Essa marca de ruína<br />
que acompanha o mito de Pandora faz com que ela seja relacionada<br />
a uma femme fatale devastadora.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
152<br />
Seguindo a mesma concepção de feminino aliado à imponência<br />
e maldade, encontra-se citada no poema a deusa Ceres, “nome<br />
romano da deusa grega Deméter, com quem se identifica completamente”<br />
(GRIMAL, 1997, p. 84). A citada deusa é conhecida por vingar-se<br />
furiosamente da terra, no episódio do desaparecimento de sua<br />
filha Perséfone, raptada por Hades. O culto à deusa “remonta à mais<br />
remota Antiguidade, e se reveste dos maiores mistérios, Deméter ocupa<br />
o centro dos mistérios iniciáticos de Elêusis, que celebram [...]<br />
o ciclo dos mortos e dos renascimentos” (CHEVALIER & GHEER-<br />
BRANT, 1996, p. 328). Ceres/Deméter é vista como “deusa das alternâncias<br />
entre a vida e a morte” (Idem, p. 329), isto é, reúne plenitude<br />
e ruína.<br />
Ao eu lírico do poema em questão resta somente a morte. Diante<br />
de tão monstruosas figuras femininas, sua única ação é entregarse<br />
a Cibele que, nesta composição, encarna todas essas divindades:<br />
Que eu morra assim feliz, tudo de ti querendo:<br />
Mal e bem, desespero e ideal, veneno e pomo,<br />
Pecados e perdões, beijos puros e impuros!<br />
E os astros sobre mim caiam de ti, chovendo,<br />
Como os teus crimes, como as tuas bênçãos, como<br />
A doçura e o travor de teus cachos maduros!<br />
De igual forma a este poema, tem-se outra figura mitológica<br />
que se aproxima da concepção de mulher fatal. Trata-se do poema<br />
“Esfinge”. De acordo com Pierre Grimal (1997, p. 149), já citado, a<br />
esfinge é um “monstro feminino a quem se atribuía cabeça de mulher,<br />
peito, patas e cauda de leão, mas que estava provido de asas<br />
como uma ave de rapina”. Na mitologia grega, acredita-se que “este<br />
monstro foi enviado por Hera contra Tebas para castigar a cidade”<br />
(Ibidem). A esfinge devorava todos os que estavam ao seu alcance e<br />
criava enigmas aos viajantes que, não os conseguindo decifrar, eram<br />
devorados de igual forma. Seu mito aparece na tragédia Édipo Rei de<br />
Sófocles, cujo fragmento serve de epígrafe ao poema bilaquiano em<br />
destaque. Édipo foi o herói que decifrou o enigma da esfinge e esta,<br />
ultrajada, atirou-se de um precipício, suicidando-se. Em “Esfinge”,<br />
Olavo Bilac recria a esfinge mitológica, dando a ela traços da concepção<br />
de feminino fatal. Apesar de monstruosa, a esfinge bilaquiana<br />
será graciosa, sensual e sedutora, atributos que envolvem o homem,<br />
mas que também o destroem:
Perto de Tebas, junto a um monte, sobre o Ismeno,<br />
Águia e mulher, serpente e abutre, deusa e harpia,<br />
Tapando a estrada, à espera, - aterrava e sorria<br />
O monstro sedutor, horrível e sereno:<br />
“Devoro-te, ou decifra!” Era fascínio o aceno;<br />
A voz, morna e sensual, tinha afeto e ironia,<br />
Graça e repulsa; e a luz dos olhos escorria<br />
Fluido filtro, estilando um pérfido veneno.<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
153<br />
Este poema também faz referência às harpias, seres mitológicos<br />
que trazem em suas personalidades a marca da destruição:<br />
Gênios maus, monstros alados, de corpo de ave, cabeça de mulher,<br />
garras aceradas, odor infecto, elas atormentam as almas com perversidades<br />
incessantes. [...] As harpias simbolizam as paixões viciosas, tanto os<br />
tormentos obsedantes que o desejo faz sofrer quanto os remorsos que se<br />
seguem à satisfação. [...] Harpias figuram as importunações dos vícios e<br />
as provocações da maldade. (CHEVALIER & GHEERBRANT, 1996, p.<br />
484)<br />
Neste poema bilaquiano, tanto a esfinge quanto a harpia são<br />
representações do feminino destruidor. Suas descrições físicas são<br />
marcadas por garras, presas, odores, cauda, patas, asas: símbolos do<br />
instinto devorador da mulher fatal. Chevalier e Gheerbrant (1996, p.<br />
484) verão na esfinge grega o “símbolo da feminilidade pervertida” e<br />
a designação da “vaidade tirânica e destrutiva” (Idem, p. 390). Esta<br />
concepção aproxima estes monstros da femme fatale cultuada pelo<br />
decadentismo.<br />
No poema “A morte de Orfeu” (BILAC, 2006, p. 199), este<br />
mesmo ideal de feminino devorador aparece sob a ação sanguinária<br />
das bacantes, as sacerdotisas de Baco, contra Orfeu, este filho da<br />
musa Calíope: Orfeu havia perdido sua amada Eurídice que morrera<br />
picada por uma cobra; devido ao grande amor que por ela nutria, decide<br />
ir até os infernos para trazer sua amada de volta. As divindades<br />
infernais lhe concedem o desejo, mas sob uma única condição: ele<br />
não poderia olhar para trás enquanto não saísse do citado local. Orfeu<br />
não cumpre a condição e jamais revê sua amada (VICTORIA,<br />
2000, p. 111). Triste e abatido, Orfeu dispensa todas as mulheres<br />
que, incessantemente, procuram consolá-lo. As bacantes, furiosas<br />
com o seu desdém, esquartejam Orfeu em uma ação atroz, ato que<br />
pode ser notado no poema bilaquiano referenciado:
No último canto, no supremo brado,<br />
Pelo ódio das mulheres trucidado,<br />
Chorando o amor de uma mulher, morreu...<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
154<br />
Encerrando os exemplos de mulheres fatais que trazem consigo<br />
o mal e, portanto, assemelham-se às divindades e figuras femininas<br />
de outrora, encontra-se “Gioconda”. O conhecido quadro de Leonardo<br />
Da Vinci, também conhecido pela alcunha de “Mona Lisa”,<br />
faz surgir uma persona fascinante e enigmática. Walter Pater, professor<br />
de um grande expoente do decadentismo inglês – Oscar Wilde<br />
-, através de seus estudos sobre a história da Renascença (Studies in<br />
the history of the Renaissance, 1873), verá no sorriso de Gioconda<br />
uma marca que deixa entrever sua relação com a história da mulher<br />
fatal. Para Pater (apud PRAZ, 1996, p. 223), Gioconda seria a convergência<br />
de todo o passado maléfico e cruel que envolve as femme<br />
fatales, sejam elas divindades da mitologia clássica, personagens fatais<br />
bíblicas, mulheres sanguinárias orientais etc. É digno de nota as<br />
considerações do mencionado crítico sobre a “Gioconda”, de Da<br />
Vinci:<br />
É uma beleza que vem do interior e se imprime – o depósito, célula<br />
por célula, de estranhos pensamentos, de fantásticas divagações e de paixões<br />
esquisitas. Ponham-na por um momento ao lado de uma daquelas<br />
deusas gregas ou das belas mulheres da antiguidade: oh, como estas ficariam<br />
atormentadas com sua beleza, em que se transfunde a alma com todas<br />
as suas doenças! Todos os pensamentos e todas as experiências do<br />
mundo deixaram ali os seus sinais e suas marcas graças ao poder que têm<br />
de refinar e tornar expressiva a forma exterior. [...] A imaginação de uma<br />
vida perpétua, que reúna milhares de experiências, é de antiga data. E a<br />
filosofia moderna tem concebido a idéia da humanidade como sujeita à<br />
influência de todos os modos de pensamento e de vida. Certamente Mona<br />
Lisa poderia ser considerada como a encarnação daquela fantasia antiga<br />
e o símbolo da idéia moderna. (Ibidem)<br />
No poema “Gioconda” (BILAC, 2006, p. 200), Olavo Bilac<br />
faz culminar, assim como Pater, todo o espírito feminino fatal na figura<br />
que intitula esta produção, afirmando que<br />
Deu-te o grande Leonardo ao sorriso a ironia,<br />
Insídia, e eterno ardil, na luminosa teia:<br />
Tal, a Belerofonte a Quimera sorria,<br />
E a Esfinge de Gizé sorri na adusta areia...<br />
A cilada do amor, o embuste da utopia,<br />
O desejo, que abrasa, e a esperança, que enleia,<br />
Chispam na tua boca impenetrável, fria...
Seduzes, através dos séculos, sereia!<br />
Esse leve clarão no teu lábio, indeciso,<br />
É a dobrez ancestral, a malícia primeva<br />
Da Ísis, da pecadora altriz do Paraíso:<br />
Porque, para extrair as gerações da treva,<br />
A serpe, e a Adão, e a Deus, com o teu mesmo sorriso,<br />
Sorria, astuta e forte, a mãe das raças, Eva.<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
155<br />
Gioconda encarna toda a “dobrez ancestral” e, dessa forma, é<br />
comparada com diversas personas fatais. A primeira destas, Quimera,<br />
de origem clássica, “é um animal fabuloso, um misto de cabra e<br />
de leão. Ora se considera que tem a parte posterior de serpente e cabeça<br />
de leão implantada num corpo de cabra, ora que tem várias cabeças,<br />
uma de cabra e outra de leão.” (GRIMAL, 1997, p. 402) Foi<br />
morta por Belerofonte a mando do rei da Lícia Ióbates, devido à devastação<br />
que causava a seu território. Monstro avassalador, “a quimera<br />
seduz e causa desgraça de todo aquele que a ela se entrega”<br />
(CHEVALIER & GHEERBRANT, 1996, p. 763), traço que aproxima<br />
o monstro da concepção feminina estudada neste trabalho.<br />
Posteriormente, esta femme fatale é comparada à “Esfinge de<br />
Gizé”, monumento egípcio, e à Ísis, divindade também egípcia, bem<br />
como à Sereia, ser da mitologia clássica e, tempos depois, na mitologia<br />
nórdica (Idem, p. 814). Estas duas primeiras figuras já foram analisadas<br />
anteriormente, não havendo, pois, necessidade de retomá-las.<br />
Quanto à Sereia, vale comentar o seu desejo atroz e devorador. Na<br />
mitologia grega, eram monstros marinhos metade mulher, metade<br />
pássaro, que seduziam os navegantes com sua beleza e a melodia de<br />
seu canto para depois devorá-los, o que contribui para a formação de<br />
uma imaginação tradicional, na qual prevalece “o simbolismo de sedução<br />
mortal” das sereias (Ibidem), aproximando-as da mulher fatal.<br />
Ao final do poema em questão, encontra-se a femme fatale<br />
por excelência da cultura judaico-cristã: Eva. Descrita em Gênesis<br />
como a companheira do homem criada por Deus, Eva é lembrada<br />
como a mulher que arruinou a raça humana, trazendo para esta todos<br />
os males existentes. “Defronte de uma serpente que falava, Eva começou<br />
a duvidar da proibição divina e desobedeceu deliberadamente”<br />
(SCHULTZ, 1995, p. 14), ação que resultou no castigo divino<br />
tanto para a mulher quanto para o homem e, consequentemente, para
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
156<br />
toda a humanidade. De acordo com Chevalier & Gheerbrant (1996,<br />
p. 410), “na maior parte das vezes, Eva designará a mulher, a carne,<br />
a concupiscência”, fato que, corroborado pela sua atitude desobediente,<br />
“faz surgir a questão se a mulher não deva ser considerada a<br />
parte mais fraca” (DAUER, 1988, p. 733). É notável a semelhança<br />
entre a Eva judaico-cristã e a Pandora clássica (VICTÓRIA, 2000, p.<br />
116; MAGALHÃES, 2007, p. 34), analisada anteriormente. Ambas<br />
astutas e curiosas, ambas levam a humanidade à ruína: Eva morde o<br />
fruto, Pandora abre a caixa. Eva age como legítima femme fatale que,<br />
de forma destruidora, arruína a raça humana, constituindo-se assim<br />
como mais um exemplo de feminino destruidor e como elemento utilizado<br />
por Bilac para encerrar o poema. Eva, assim como todo o ideal<br />
de feminilidade cruel, converge, neste poema, para a figura de Gioconda.<br />
Na análise dos poemas bilaquianos fica evidente a utilização<br />
da temática mitológica como recurso artístico do poeta para invocar<br />
e dar vida a figuras cruéis e monstruosas, mas também enigmáticas e<br />
sedutoras, figuras estas que remontam às concepções ancestrais do<br />
elemento feminino como destruidor e devorador. As imagens poéticas<br />
presentes nestas produções recriam “o medo intemporal que os<br />
homens têm das mulheres e que disfarçam através de uma agressividade<br />
contra elas” (SANT’ANNA, 1984, p. 78). Atitude que demonstraria<br />
“a externalização de um canibalismo [do homem], ou uma passividade<br />
que poder ser a reafirmação do canibalismo da fêmea sobre<br />
o macho” (Ibidem).<br />
3. Conclusão<br />
Pode-se perceber, ao longo deste trabalho, os recursos poéticos<br />
utilizados por Olavo Bilac para compor as mulheres fatais. Utilizando<br />
mitologias de diversas culturas (grega, romana, egípcia, judaico-cristã)<br />
o poeta faz emergir a imagem de divindades de outrora ligadas,<br />
geralmente, ao mistério, à ruína e à destruição.<br />
Fazendo um paralelo entre mitologia e literatura, Bilac compõe<br />
femmes fatales envolventes, devoradoras e enigmáticas: figuras<br />
que, por sua postura imponente e dominante, fazem do homem um<br />
ser pequeno e passivo à sua vontade. É o caso de Cibele (em “Oração
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
157<br />
à Cibele”), da “Esfinge”, das bacantes (em “A morte de Orfeu”) e de<br />
“Gioconda”.<br />
Em todos os poemas analisados, além da imponência destas<br />
figuras femininas, transparece a posição de prostração e impotência<br />
masculinas. É o caso do eu lírico que se dirige a Cibele, de Orfeu<br />
sendo devorado pelas bacantes, de Édipo sendo envolvido no enigma<br />
esfíngico e do homem aturdido diante da imagem da Gioconda. Prostração<br />
esta símbolo da fragilidade e do medo masculino frente à mulher.<br />
A femme fatale decadentista encarnará estes ideais de atração<br />
e ruína. A Cleópatra de Gautier e as vampiras e lésbicas de Baudelaire<br />
(figuras predecessoras) e a Salomé de Huysmans trazem em si a<br />
marca decadente de erotismo feminino: Cleópatra atrai e destrói, as<br />
mulheres baudelairianas seduzem e devoram, Salomé encanta e mata.<br />
Tais personas em muito se aproximam das divindades antigas aqui<br />
trabalhadas. Sendo assim, no que tange à concepção de erotismo<br />
devorador, compartilham de atitudes e posturas próximas.<br />
Conclui-se, portanto, que o retorno às imagens e figuras mitológicas<br />
fatais é um recurso do poeta de recriar mulheres que se aproximam<br />
mais da concepção decadentista de feminino do que da ideia<br />
parnasiana de erotismo marmóreo. Destarte, as mencionadas produções<br />
podem ser vistas como exemplos da manifestação decadente na<br />
obra de Olavo Bilac. A análise de tais composições comprova o sincretismo<br />
estético existente no cenário finissecular oitocentista e as<br />
ressonâncias da estética decadentista na poesia bilaquiana.<br />
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Grécia, Roma, Egito, Grécia, Roma, Egito. Rio de Janeiro: Ediouro,<br />
2000.
A HETEROGENEIDADE DO DISCURSO<br />
EM OURO, INCENSO E MIRRA, DE ALÍPIO MENDES<br />
Geysa Silva (Instituto Cravo Albin)<br />
silva.geysa20@gmail.com<br />
As narrativas de Ouro, incenso e mirra. Narrativas históricas<br />
sobre Angra dos Reis (MENDES, 2009) colocam o leitor em contato<br />
com textos tão diferentes quanto os presentes oferecidos pelos chamados<br />
reis magos ao Menino Deus. São apresentados fatos históricos,<br />
lendas, retratos de vultos ilustres da cidade, festas populares<br />
etc., demonstrando o grau de informação de seu autor e a intenção de<br />
divulgá-la.<br />
Essa diversidade de assuntos se manifesta também no método<br />
usado nas pesquisas, que oscilam entre a consulta a fontes primárias<br />
e depoimentos colhidos da tradição oral, cuja veracidade não pode<br />
ser comprovada. Tem-se, por exemplo, a transcrição da certidão de<br />
batismo de Dom Luís Antônio dos Santos: “Aos vinte e cinco de<br />
março de mil oitocentos e dezessete, nesta matriz da Vila da Ilha<br />
Grande, batizei e pus os santos óleos a Luís, nascido ao primeiro do<br />
mesmo mês e ano” (MENDES, 2009, p. 291); por outro lado, é evidente<br />
a ausência de informações sobre bandas e orquestras, fato lamentado<br />
pelo próprio autor: “Bandas de música devem ter existido<br />
em Angra dos Reis desde os mais remotos tempos, talvez desde os<br />
tempos da antiga vila ou depois que recebeu o foral de cidade”<br />
(MENDES, 2009, p. 127), ou ainda: “Quanto às orquestras, é natural<br />
que houvesse pelo menos conjuntos locais capazes de execução de<br />
músicas sacras nas grandes festividades religiosas que se faziam no<br />
tempo antigo” (MENDES, 2009, p. 127). Na verdade, fica-se no terreno<br />
das suposições, uma vez que é criado um hiato entre a linguagem<br />
e a realidade, pois as frases não têm onde se apoiar, não dão a<br />
conhecer suas origens, devido às dificuldades encontradas pelo pesquisador.<br />
O livro, de início, torna muito claro a referência à Bíblia, introduzindo<br />
o leitor num jogo com a tradição católica e com o próprio<br />
nome da cidade em questão. Pela via da intertextualidade, Angra dos<br />
Reis é apresentada de maneira poética, através de uma estratégia que,
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
162<br />
sem explicitar o título, supõe leitores que farão o liame pretendido<br />
pelo locutor, condição necessária para que se realizem as potencialidades<br />
do que será exposto nas páginas seguintes.<br />
Os “capítulos”, organizados de maneira aleatória, formam um<br />
sistema solidário de narrativas coordenadas ou não, referentes a uma<br />
comunidade socioespacial que se reconhece neles projetada. Veja-se<br />
a seguinte sequência: A índia feiticeira ou mais um milagre de Nossa<br />
Senhora (p. 101), O celebérrimo Vidigal (p. 109), O rio do Choro (p.<br />
117) e Bandas de música e orquestras (p. 125). Nem cronologia, nem<br />
gênero discursivo, nem afinidade temática. Apenas o topos de referência<br />
a unir os assuntos.<br />
Essa dimensão comunitária do livro permite que sejam renovados<br />
e reforçados sentimentos coletivos que constituem a união daqueles<br />
que se veem ali incluídos, quer pela gênese dos assuntos tratados,<br />
quer pela efervescência cultural que provocam e acentuam a<br />
coesão dos habitantes dessa histórica cidade no sul fluminense. O sujeito<br />
locutor aposta na eficácia de seu discurso, apoiado na crença do<br />
lugar de enunciação; enunciação que tem implícita um nós, uma filiação<br />
do texto à determinada comunidade.<br />
O “nós” do autor de um texto histórico elimina a alternativa de atribuir<br />
a história seja a um indivíduo (o autor, sua filosofia pessoal, etc.) seja<br />
a um sujeito global (o tempo, a sociedade, etc.). Em lugar destas pretensões<br />
subjetivas ou destas generalidades edificantes, propõe a positividade<br />
de um lugar no qual o discurso se articula sem, no entanto, reduzirse<br />
a ele (MAINGUENEAU, 1993, p. 58-59).<br />
É evidente que o locutor procura fazer os leitores participarem<br />
das propriedades semânticas do texto, tornando-os capazes de se<br />
constituir como legitimadores do discurso proferido. O uso do plural<br />
não é sempre índice de modéstia do locutor; ele muitas vezes pressupõe<br />
que alguns leitores são diferentes de outros, alguns ocupam o<br />
plano em que, além de a referência ser sobejamente conhecida, a relação<br />
identitária é compartilhada, o que lhes garante um lugar especial<br />
na cena enunciativa. Veja-se a citação abaixo:<br />
Nós angrenses, que tanto nos orgulhamos da terra natal, também<br />
somos muito orgulhosos da santa padroeira, Nossa Senhora da Conceição,<br />
e por isso muito veneramos sua imagem, que está entre nós desde o<br />
dia 8 de dezembro de 1632, quando ficou conosco pela forma que detalhamos<br />
em outra narrativa deste livro... (MENDES, 2009, p. 103).
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
163<br />
O autor não hesita em transcrever o que chama de milagres,<br />
quando relata episódios referentes aos santos que são cultuados em<br />
Angra dos Reis. São Benedito e Nossa Senhora da Conceição surgem<br />
na magnitude da crença que provocam, pois o autor faz questão<br />
de ressaltar que as histórias sobre eles contadas não são lendas, são<br />
fatos comprovados. Não se levam em consideração crenças diferentes<br />
da que está sendo veiculada: “Nesta crônica, vamos contar o que<br />
aconteceu com uma índia feiticeira, ou seja, mais um milagre de nossa<br />
padroeira, a Imaculada Conceição” (MENDES, 2009, p. 103).<br />
Sem dúvida o autor emprega uma argumentação retórica para defender<br />
posições éticas, políticas e históricas: “Seria uma preciosidade<br />
para os historiadores angrenses se ainda existissem as coleções de<br />
todos aos jornais que circularam em nossa terra” (MENDES, 2009,<br />
p. 251); “A solução, como de outras vezes, veio do alto, lá do céu<br />
onde Deus, de sua janela do infinito, vê o que se passa neste mundo<br />
sublunar” (MENDES, 2009, p. 276).<br />
A subjetividade invade os tópicos frasais e atesta a fala de um<br />
locutor que não consegue esconder sua religiosidade, atravessando a<br />
linha que separa o pesquisador do crente. Ao falar como católico, o<br />
locutor passa a outro espaço na cena enunciativa, diferente daquele<br />
que é ocupado pelo historiador, assumindo a heterogeneidade de lugares<br />
em que se forma o discurso.<br />
Ao falar como católico, pode se entender que o enunciador fala<br />
por si e por outros, que são coenunciadores implícitos, pois os angrenses<br />
são, em sua maioria, católicos; entretanto, esse jogo no interior<br />
do discurso não significa igualdade de posições, já que esta cena<br />
se realiza com performatividade pedagógica, em que o autor se identifica<br />
como pesquisador e os leitores como interessados no assunto e<br />
assujeitados ao que é dito.<br />
Estar inscrito na cena pedagógica faz com que o sujeito atinja<br />
o status de detentor do saber, enquanto o discurso presume destinatários<br />
ordenados segundo múltiplos níveis de recepção: os angrenses,<br />
outros historiadores, as autoridades locais, os curiosos, etc. Daí o<br />
“tom” repreensivo, as observações críticas: “fúria devastadora que<br />
assolou essas plagas”; “o velho chafariz representa a carcaça do que<br />
foi e muita gente não sabe, ou não se interessa por saber” (MEN-<br />
DES, 2009, p. 25). Os enunciados, portanto, não estão voltados ape-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
164<br />
nas para seus objetos, eles consideram também o discurso do outro<br />
que neles repercutem, de maneira direta ou indireta.<br />
Há uma reversibilidade entre a comunidade imaginária de<br />
Angra dos Reis, o pesquisador, os angrenses e aquele que faz a enunciação;<br />
os efeitos textuais provocam os leitores que se inscrevem<br />
na cena enunciativa e no discurso a ela correlato. Ou seja, para o autor,<br />
Angra é a cidade esquecida de sua história e os angrenses são<br />
aqueles que não valorizam seus monumentos, portanto os que são<br />
responsáveis pelo que ficou esquecido; ele próprio é o pregador que<br />
denuncia esse estado de coisas; os demais são os que precisam ou<br />
desejam conhecer uma cidade a ser edificada pela palavra.<br />
Nessas condições, a unidade temática do livro perde a importância,<br />
porque se trata de dar publicidade a uma coletânea de fatos<br />
que dizem respeito a determinado local, investindo numa possível<br />
divulgação desses acontecimentos em outros lugares do país, até então<br />
desconhecedores da terra que se quer louvar.<br />
Os outros para os quais meu pensamento se torna, pela primeira vez,<br />
um pensamento real (e, com isso, real para mim), não são ouvintes passivos,<br />
mas participantes ativos da comunicação verbal. Logo de início, o<br />
locutor espera deles uma resposta, uma compreensão responsiva ativa.<br />
Todo enunciado se elabora como que para ir ao encontro dessa resposta<br />
(BAKHTIN, 1992, p. 320).<br />
Para realizar tal tarefa, aquele que enuncia esses discursos se<br />
coloca em determinado lugar e o “outro”, em um lugar complementar<br />
ao seu, mas ambos compartilham experiências e comportamentos.<br />
Dessa forma, garante-se a adesão, no mínimo, de alguns leitores virtuais,<br />
que são instados a colaborar com os objetivos do autor: “Quem<br />
ler o décimo volume da obra intitulada Santuário Mariano, de autoria<br />
de frei Agostinho de Santa Maria, editada em Lisboa no ano de<br />
1707, encontrará a fonte de onde colhemos o assunto” (MENDES,<br />
2009, p. 103). Na verdade há uma sugestão para que a obra seja consultada.<br />
As diversas narrativas postas em relação inserem lembranças<br />
que movimentam o discurso para fazer aceitar, não as argumentações,<br />
porém as fronteiras imprecisas entre os participantes da cena<br />
discursiva. Para os analistas do discurso, não interessa o sujeito antes
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
165<br />
de fazer a enunciação, mas qual é sua instância de enunciação. Podese<br />
dizer que<br />
Na realidade, é possível recorrer às mesmas categorias semânticas<br />
para analisar a formação discursiva e a comunidade discursiva que é seu<br />
correlato. Não nos é possível, aqui, entrar em detalhes; levando a caricatura<br />
ao exagero, dir-se-á simplesmente que, no plano semântico, este discurso<br />
se organiza em torno de uma noção de “ordem”, definida como<br />
uma totalidade cujos elementos estão distribuídos em lugares complementares<br />
e em comunicação constante e regrada (MAINGUENEAU,<br />
1993, p. 65).<br />
Discurso e realidade não são exteriores um ao outro, uma vez<br />
que o primeiro se constitui como experiência social. Quando Alípio<br />
Mendes afirma que “O tempo passa e a humanidade esquece rapidamente...<br />
Decorridos alguns anos da tragédia do Benedito Noite, alguns<br />
engenheiros, muitos, por coincidência, de origem francesa...”<br />
(MENDES, 2009, p. 211) está operando uma opinião e transmitindoa,<br />
não como visão de mundo, porém a partir da ideia de que o grupo<br />
social em que está inserido age sobre o locutor e interrelaciona discurso<br />
e comunidade, que, mesmo sendo categorias distintas de análise,<br />
ao entrar em contato, desencadeiam um determinado tipo de valorização,<br />
ou de seu contrário.<br />
Há um referente implícito nesses discursos que, ao não ser<br />
nomeado, aciona condições de sua enunciação mesma. Nesse caso,<br />
tem-se o pressuposto de que alguns angrenses concordam com a afirmação<br />
vista acima; nessas condições, o discurso teatraliza sua originalidade<br />
e, simultaneamente, ecoa vozes outras que circulam na<br />
comunidade discursiva.<br />
O sujeito de quem emana a opinião de que há falhas na história<br />
revolve a nostalgia de um passado concreto ou não, que ele deseja<br />
ver reverenciado e compartilhado pelos conterrâneos. Convencido de<br />
sua autoridade de pesquisador, impõe suas opiniões sobre os demais,<br />
usando uma linguagem que diz, ininterruptamente, os ideais que movem<br />
sua escrita e, de maneira simultânea, define a comunidade a que<br />
se refere, salientando a religiosidade que nela impera: “Uma das<br />
mais caras tradições do povo angrense é verdadeiramente a festa de<br />
São Benedito. Se assim é ainda hoje, que diríamos daquele tempo em<br />
que a religião católica dominava todas as camadas sociais” (MEN-<br />
DES, 2009, p. 277). Não por acaso a epígrafe do livro é tirada de Ca-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
166<br />
simiro de Abreu: “Todos cantam sua terra,/ Também vou cantar a<br />
minha;/ Nas débeis cordas da lira/ Hei de fazê-la rainha.”<br />
As efemérides e os elogios transparecem na linguagem plena<br />
de adjetivos que dão o tom bombástico às frases: “Destemido e altamente<br />
patriota, muito se distinguiu o valoroso angrense em sua vida<br />
político-militar” (MENDES, 2009, p. 183); “O barco está desarvorado,<br />
rotas as velas, partido o cordame, alagado o convés pelas águas.<br />
Mas consegue acolher-se ao seio azul da plácida enseada” (MEN-<br />
DES, 2009, p. 65); “A jovem apaixonada do moço poeta vivera nesse<br />
tempo da saudade do seu grande amor. Se alguma esperança alimentara<br />
antes, essa foi quebrada definitivamente com a confirmação da<br />
morte heroica do seu amado” (MENDES, 2009, p. 141).<br />
Cada discurso tem seu proprietário interessado e parcial; não há discurso<br />
sem dono, discurso que não signifique nada. (...) Na compreensão<br />
do discurso não é importante o seu sentido direto, objetal e expressivo-<br />
essa é sua falsa aparência – o que importa é a utilização real e sempre interessada<br />
desse sentido e dessa expressão pelo falante, utilização determinada<br />
pela sua posição (profissão, classe) e pela sua situação concreta<br />
(BAHKTIN, 1993, p. 192).<br />
O discurso de Ouro, incenso e mirra por ser tão heterogêneo<br />
procura construir, em seus movimentos, uma relação de afinidade<br />
sustentada por narrativas que compartilham o mesmo campo referencial.<br />
A semântica integradora cria um sistema de junções destinado a<br />
atribuir aos textos uma interdiscursividade fortemente coesa, em que<br />
não existem motivo nem tema com direito a monopólio enunciativo<br />
É preciso perceber que os “capítulos” do livro estabelecem<br />
uma relação de importância simétrica entre eles, para compreender a<br />
estrutura linguística que permeia a formação discursiva. Não há um<br />
capítulo mais importante que outro; todos são equivalentes. A heterogeneidade<br />
de temas reflete-se na heterogeneidade enunciativa, pois<br />
o locutor usa com frequência o metadiscurso para balizar suas afirmações,<br />
valendo-se de glosas que atravessam os enunciados. Observam-se<br />
rubricas de: autojustificação (“Não poderíamos omitir nesta<br />
nossa narrativa...”); presença de outro sujeito enunciador. (Em 1554,<br />
segundo Hans Staden, testemunha do fato...); confirmação (“Inicialmente<br />
devemos esclarecer que só resolvemos incluir o Dr. Coutinho<br />
no rol de nossos conterrâneos após termos certeza comprovada de<br />
que o nosso biografado nasceu em Angra dos Reis...”).
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
167<br />
É evidente que a operação metadiscursiva predominante é a<br />
parafrasagem. Ela é um dispositivo que se constitui como negociação<br />
entre os enunciadores na arena em que estão instauradas as palavras,<br />
promovendo coerções ao reajustar a enunciação, portanto não sendo<br />
nunca gratuitas. As glosas não são procedimentos ingênuos, porque<br />
Cada glosa apresenta-se, pois, como exibição de um debate com as<br />
palavras, o qual pretende exemplar; ela define para o coenunciador o<br />
bom caminho através do rumor infinito dos signos da língua e do interdiscurso.<br />
O sujeito cuja imagem é construída pelas glosas é um sujeito<br />
que domina um discurso e que oferece este domínio em espetáculo (MA-<br />
INGUENEAU, 1993, p. 94).<br />
Quando Alípio Mendes, ao escrever sobre Dom Sebastião<br />
Pinto do Rego, diz que “Durante o seu episcopado não se ateve às rotineiras<br />
causas administrativas ou aos tradicionais ritos religiosos”<br />
(p. 331), isto é, não fez apenas aquelas ações efetuadas pelos membros<br />
do clero, ele bloqueia outras interpretações que possam ser conferidas<br />
às palavras rotineiras e ritos, constrói um sentido dentro de<br />
sua enunciação e os termos passam a ter determinada entonação expressiva.<br />
Argumentar supõe o dialogismo, a presença de outro que<br />
deve ser convencido.<br />
No caso em estudo, o locutor é soberano e trabalha com uma<br />
finalidade explícita: a divulgação da história angrense. Tal objetivo<br />
aparece em toda a atividade enunciativa e, ao mesmo tempo em que<br />
lhe cria obrigações - citar fontes, colher depoimentos, etc.- concede a<br />
ele o direito de falar com autoridade sobre o assunto.<br />
O dialogismo, entretanto, cria delimitações ao enunciado. O<br />
locutor precisa imaginar como é ou como são seus destinatários para<br />
ter uma resposta presumida, daí a heterogeneidade de suas posições<br />
na cena enunciativa, daí o apelo constante à parafrasagem, como sói<br />
acontecer na maioria dos discursos históricos e literários.<br />
Pode-se afirmar que a heterogeneidade do discurso de Ouro,<br />
Incenso e Mirra deve-se também à escolha dos destinatários, feita<br />
pelo locutor, que procurou sempre levar em conta como sua fala seria<br />
recebida. Esse fator foi determinante no uso dos gêneros e dos<br />
procedimentos discursivos, embora houvesse a intenção de veracidade<br />
histórica, logo certa pretensão à neutralidade.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
168<br />
O estilo chamado neutro ou objetivo, o estilo das exposições essencialmente<br />
concentradas no seu objeto e que, ao que parece deveriam ignorar<br />
o outro, não deixa de implicar certa ideia do destinatário. Esse estiloobjetivo-neutro<br />
seleciona os recursos lingüísticos em função não só de<br />
uma adequação ao objeto do discurso, mas também do pressuposto fundo<br />
aperceptivo do destinatário (...) (BAKHTIN, 1992, p.324).<br />
É inegável que Alípio Mendes consegue tornar a história de<br />
Angra dos Reis acessível a todos os que se acercam de seu livro, livro<br />
que expressa os sentimentos do autor para com a terra em que<br />
nasceu e que ele quer introduzir no conhecimento de alguns e na<br />
memória de seus conterrâneos.<br />
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Trad. Maria Ermantina<br />
G. G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1992.<br />
BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética. A teoria<br />
do romance. Trad. Aurora Fornoni e outros. São Paulo: UNESP,<br />
1993.<br />
MAINGUENEAU, Dominique. Novas técnicas em análise do discurso.<br />
Trad. Freda Indursky. Campinas: UNESP, 1993.<br />
MENDES, Alípio. Ouro, incenso e mirra. Narrativas históricas sobre<br />
Angra dos Reis. Angra dos Reis: Ateneu Angrense de Letras e Artes,<br />
2009.
A ILUSTRE CASA DE RAMIRES<br />
ANÁLISE DE VARIANTES (1895 – 1900)<br />
Ânderson Rodrigues Marins (UERJ)<br />
profandermarins@hotmail.com<br />
INTRODUÇÃO<br />
A Ilustre Casa de Ramires é considerado, inquestionavelmente,<br />
um dos romances mais importantes do escritor português Eça de<br />
Queirós, reflexo de muito trabalho e almejo pela perfeição, características<br />
peculiares da escrita queirosiana. Nessa obra existem diferenças<br />
entre as edições que confrontaremos a fim de apontar as variantes.<br />
Serão comparados dois fragmentos do início do capítulo VI,<br />
pertencentes a duas edições da obra A Ilustre Casa de Ramires: a de<br />
1900, que será o texto-base, e a de 1895, que corresponde à edição<br />
da revista A Arte. As duas versões reproduzidas neste trabalho foram<br />
extraídas da Edição Crítica de Elena Losada Soler (1999).<br />
1. Os textos cotejados<br />
De acordo com a Edição de Elena Losada (ibidem, p. 27-28) a<br />
versão de A Ilustre Casa de Ramires de 1900 foi publicada no Porto<br />
pela Livraria Chardron de Lello & Irmãos, sucessores de Lugan &<br />
Geneliox, os editores de Eça. O texto, composto por 543 páginas,<br />
aparece dividido em XII capítulos de tamanho desigual, oscila entre<br />
as 86 páginas do capítulo V e as 24 do capítulo XII, sendo a extensão<br />
mais frequente de umas 45 a 49 páginas.<br />
Quanto à edição da revista A Arte sabe-se que Eça de Queirós<br />
colaborou com um fragmento d’A Ilustre Casa de Ramires no primeiro<br />
número da revista. Ele ocupa metade da página 9 e toda a página<br />
10 do número 1 (1895). Nesse fragmento narra-se o primeiro<br />
reencontro entre Gonçalo Mendes Ramires e André Cavaleiro.<br />
As diferenças consideradas mais importantes que apresenta A<br />
Arte situam-se em três níveis: substituições antroponímicas e toponímicas,<br />
inexistência do passeio ao jardim na quinta entre o encontro<br />
no quarto de André e o almoço na sala de jantar.
2. Breve análise de duas versões<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
170<br />
Os fragmentos das edições serão apresentados de maneira que<br />
os da revista A Arte ficarão com a letra B, e sua edição estará em anexo<br />
neste trabalho sendo, portanto, desnecessária a transcrição integral<br />
dos fragmentos cotejados.<br />
Os símbolos §, [...] e ] serão utilizados, respectivamente, para<br />
indicar mudança de parágrafo, evitar reprodução dos fragmentos integrais<br />
das edições comparadas e para separar as diferentes versões.<br />
Para cada trecho haverá, no início, a primeira e a última linha,<br />
por exemplo, “1-19”, mostrando que serão comparadas as variantes<br />
da linha 1 a 19 do texto-base com as da outra edição.<br />
1 – 19: A casa do Cavaleiro [...] em ceroulas!] B: No domingo cedo [...] em ceroulas.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
171<br />
20: E em ceroulas o abraçou, num generoso abraço de parabéns.] B: Em ceroulas lhe<br />
deu o grande abraço de parabéns.<br />
20 – 45: Depois, enquanto [...] me demito, e arde Tróia!...>>] B: E foi procurando [...]<br />
ou me demito”.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
172<br />
45 – 68: me demito, [...] sossega e, almocemos regaladamente!...] B: me demito [...]<br />
Então sossega, e dorme.
68 – 70: sossega e, [...] graça, hem?] B: sossega, e dorme.<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
173<br />
70 – 224: - Magnífico! afirmou Gonçalo. [...] - ] B: A criada, uma bela rapariga, [...] - “Então aquele<br />
Ramires não me manda o romance?”
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174
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177
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178<br />
224 – 229: Parece que o primeiro número da revista sai em Dezembro, [...] um trabalho<br />
sério, de erudição forte, bem português...] B: - Diz que o primeiro número da Revista<br />
sai a quinze de Outubro, [...] um trabalho sério, histórico.
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179<br />
230 – 234: - Pois convém! concordou vivamente Gonçalo. E à Novela só falta o capítulo<br />
quarto. [...] Que te parece?] B: - Está quase pronto, disse o Fidalgo da Torre que<br />
se servia outra vez de arroz. § Falta o Capítulo IV, que é o último. [...] perfeitamente<br />
segura.<br />
235 - 245: Cavaleiro riu, [...] até lhe achei graça:] B: O Cavaleiro enchia devagar o<br />
copo, [...] até lhe achei graça:<br />
245 - 247: - ]<br />
B: - “Eu vejo [...] o teu Ramires morrer, então é o Bento, e não outro...”<br />
248: Gonçalo recuou a cadeira:] B: O Fidalgo da Torre recuara a cadeira!<br />
249 – 252: - Se eu morrer!... [...] Enfim o impossível!] B: - Se eu morrer!... [...] Nesse<br />
caso era o Bento.
3. Conclusão<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
180<br />
Este artigo, distante da longa tarefa que seria uma verdadeira<br />
edição crítica, teve como objetivo central analisar uma das produções<br />
literárias de Eça de Queirós por meio do cotejo de duas versões. Assim,<br />
pode-se comprovar que uma das características habituais do trabalho<br />
de Eça são as substituições, transformações e depurações estilísticas.<br />
BIBLIOGRAFIA<br />
DUARTE, Lélia Parreira. A lúdica complexidade de A ilustre casa<br />
de Ramires, de Eça de Queirós. Disponível em:<br />
. Acesso<br />
em: 02/05/2010.<br />
FERREIRA, Juliana Casarotti. Eça de Queirós: um gênio da literatura<br />
mundial. Disponível em:<br />
Acesso em: 27 fev. 2010.<br />
LOUREIRO, Roberto. A trilogia do último Eça. Disponível em:<br />
Acesso em: 27 fev. 2010.<br />
MARINS, Ânderson Rodrigues. Crítica Textual: Compromisso com<br />
a Preservação e Transmissão Fiel dos Textos. Disponível em:<br />
. Acesso em: 19 jan. 2010.<br />
QUEIRÓS, José Maria Eça de. A ilustre casa de Ramires. Edição<br />
crítica de Elena Losada Soler. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da<br />
Moeda, 1999.
ANEXOS<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
181
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
182
A IMPORTÂNCIA DA FORMAÇÃO<br />
E DO DESENVOLVIMENTO DOS MOCAMBOS<br />
PARA A RECIFE DOS ANOS 1930 E 1940<br />
Jacqueline de Cássia Pinheiro (UNIGRANRIO)<br />
jpinheiro@unigranrio.com.br<br />
A intenção deste trabalho é estudar a história dos Mocambos<br />
do Recife durante os anos de 1930 e 1940, através da dimensão de<br />
seu termo. Autores mostram que a palavra mocambo, embora há<br />
muito estudada, revela em suas significações uma grande diversidade<br />
já que seu sentido é manipulado conforme as visões que recebe ao<br />
longo do tempo. A palavra mocambo, além de associada ao quilombo,<br />
como mostrou Gilberto Freyre, representando local de esconderijo<br />
e resistência dos escravos, também é associada ao local destinado<br />
aos negros, aos marginalizados socialmente, à sua dimensão ecológica,<br />
às atividades agrícolas, à insalubridade e ao atraso cultural, sendo<br />
inclusive, comparados às favelas da cidade do Rio de Janeiro à época<br />
do estudo em questão.<br />
Relacionada muitas vezes ao mocambo, as favelas do Rio de<br />
Janeiro eram, também, consideradas vergonha nacional, lugar da malandragem<br />
e de moradia do negro, considerado como "raça inferior".<br />
Neste sentido, a intenção aqui é determinar a origem, o significado e<br />
a forma que o termo mocambo fora empregado, analisando-o no contexto<br />
em que apareceu como objeto de um debate político intenso<br />
desde o final do século XIX, envolvendo políticos, engenheiros, urbanistas,<br />
artistas, intelectuais, bem como toda a população do Recife.<br />
Com relação aos mocambos, sabemos que é a partir do século<br />
XIX que este tipo de habitação se espalha pelas “zonas desprezadas<br />
da cidade”. E nessa nova configuração urbana a convivência entre<br />
negros e brancos se acentua. Tal convivência se mostrava nas próprias<br />
relações e comparações que podem ser feitas, principalmente<br />
de acordo com a educação, as posturas e os hábitos de um e de outro.<br />
A convivência, na verdade, os afastava (FREYRE, 2000).<br />
Os negros eram “o terror da burguesia dos sobrados”, pois<br />
habitavam as casas populares da cidade, os mocambos. Vale lembrar
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
184<br />
que à época da libertação dos escravos, em 1888, eles não tiveram, a<br />
princípio, um gosto pela liberdade. Muitos ficaram sem emprego e as<br />
condições de habitabilidade em que se encontravam era muito precária.<br />
Eram, em sua maioria mocambos, embora muitos tivessem se alocado<br />
em cortiços.<br />
Então, como viviam estas pessoas? Em que condições? Toda<br />
vez que se iria retratar a realidade de tais moradias, os materiais de<br />
construção dos mocambos não eram mencionados por suas qualidades,<br />
mas somente julgados por seus defeitos. Porém, o caráter considerado<br />
primitivo não estava somente em seu lado material, mas na<br />
própria paisagem social. A ideia de refugo e de local de habitação de<br />
negros e pardos dava esse ar de habitação primária comparada às habitações<br />
dos primeiros anos da Colônia.<br />
Os mocambos mantinham a intenção de reinventar os estilos<br />
de habitação e convivência africanos. Havia um misto de culturas<br />
que os próprios negros abarcaram dos europeus cristãos. Nos mocambos,<br />
então, havia a configuração de um espaço misto em sua<br />
própria estrutura. A diversidade cultural de negros com suas características<br />
e com as características dos brancos, se misturavam. Hábitos<br />
que ocorriam na frente das casas grandes se perpetuavam nos mocambos,<br />
como, por exemplo, cenas das senhoras que catavam piolho<br />
de suas filhas na porta da casa.<br />
Bezerra (1965) mostra ainda que no que competem às habitações<br />
populares, no final do século XIX os alagados também foram<br />
sendo cada vez mais substituídos pelos mocambos, que tinham sua<br />
ocupação completamente desordenada, se assemelhando, neste ponto,<br />
com as favelas.<br />
O trabalho de José Tavares Correia de Lira, Mots Cachés: les<br />
lieux du mocambo à Recife (1998), procura desvendar a história da<br />
palavra mocambo, mostrando que há muito ela é estudada em suas<br />
significações diversas. O autor revela que no fim do século XIX Recife<br />
era a principal zona de cultivo e de exportação de cana-deaçúcar,<br />
além de se constituir como pólo regional e possuir muitos<br />
trabalhadores, além dos escravos. E por causa da aglomeração de<br />
trabalhadores na cidade a representação do mocambo não mais era<br />
associada somente aos quilombos, mas aos pobres de uma maneira<br />
geral.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
185<br />
Já em 1919, na cidade de Recife foi proibida a construção de<br />
mocambos em sua região central. Nos anos 20 do mesmo século, os<br />
mocambos eram entendidos como sinônimo de diversidade da arquitetura<br />
e da cultura popular do Nordeste brasileiro, além de ser encarado<br />
como “habitação miserável”, sinônimo de cortiço, embora alguns<br />
autores defendessem a ideia de que os mocambos ainda tivessem<br />
melhores condições do que este último (LIRA, 1998). Mesmo<br />
assim, eram considerados a marca dos problemas sociais da cidade<br />
de Recife. A falta de higiene e a necessidade de um olhar mais atento<br />
das autoridades pernambucanas também era a preocupação de alguns<br />
intelectuais (FREYRE, 1937, p. 81).<br />
A substituição dos mocambos por outro tipo de casas populares<br />
na verdade se mostrou como uma substituição somente cenográfica,<br />
na visão de Freyre. Este entende que a higiene e a adaptação ao<br />
clima pernambucano se fazem sentir mais com os mocambos do que<br />
as construções de alvenaria. Este autor observa que o problema dos<br />
mocambos deveria ser visto mais como um problema social do que<br />
urbanístico, e sua apreensão por parte dos governantes apresentava<br />
um teor demagógico.<br />
No período da Segunda Guerra houve um considerável crescimento<br />
populacional no Recife 1 . Neste meio, disputas pelos aforamentos<br />
como os mocambos apareceram como um modo de fazer<br />
fonte de renda e tributos. Era o fomento de uma briga entre os administradores<br />
da cidade e os donos de mocambos que, pressionados,<br />
como enfatiza Daniel Bezerra (1965), criaram sociedades para defender<br />
seus interesses. Um grande exemplo aparece no final dos anos<br />
1920: a “Sociedade a Bem de Nossa Defesa”, uma das primeiras associações<br />
que deu origem a tantas outras até os anos de 1940 e 1950,<br />
como veremos mais tarde. Nessas associações já se mostrava um caráter<br />
educador e integrador que se queria durante o Governo Vargas<br />
(BEZERRA, 1965).<br />
Em pleno Estado Novo a demolição dos mocambos no centro<br />
de Recife ainda representava resquícios dessa mentalidade interventora<br />
e dissidente, pois “as transformações por que passaram os ve-<br />
1 Como mostra o Censo de 1940, o cálculo da população de Recife era de 348.410 pessoas.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
186<br />
lhos centros de Salvador ou Recife são exemplares deste elo entre intervenção<br />
urbana e identidade regional” (LIRA, 1999, p. 56).<br />
Tal problema era, então, minimizado com atitudes como exclusão<br />
social por um lado e afirmação cultural por outro, já que “[...]<br />
houve momentos em que fazia sentido imediato pensar a cidade em<br />
referência à raça, à cultura e à nação” (Ibidem, p. 57). Isto mostra<br />
que o processo de urbanização do Brasil nas décadas de 20 e 30 do<br />
século XX garantiu um sem-número de interpretações. Um dos exemplos<br />
era o pensamento de Oliveira Vianna, que defendia um culto<br />
ao passado para o êxito do nacionalismo brasileiro: “os últimos<br />
tempos do Império e, principalmente, os três decênios republicanos<br />
representam [...] uma fase de consideráveis alterações na estrutura da<br />
nossa população” (VIANNA, 1933, p. 105, apud LIRA, 1999, p. 60).<br />
Nas palavras de José Mariano Filho os mocambos eram:<br />
O retorno à vida primária permite aos negros a satisfação de suas<br />
tendências raciais, as práticas fetichistas, as danças, as macumbas, etc.<br />
As favelas do Rio de Janeiro como os Mocambos do Recife, são puras<br />
sobrevivências africanas como o foram os Quilombos dos Palmares no<br />
século XVII. (MARIANO FILHO, 1943, p. 20, apud LIRA, 1999, p. 63).<br />
Segundo Mariano Filho, em lugar dos mocambos deveriam<br />
ser erguidas “cidades-jardins” a fim de acabar com a insalubridade, a<br />
promiscuidade e a indisciplina que lhes eram comuns. Estas cidades,<br />
ou bairros-jardins, deveriam, entretanto, ser separados dos bairros<br />
nobres, como forma de estabelecer uma hierarquia. Mais uma vez,<br />
vê-se como as reformas urbanas estavam ligadas, de algum modo, ao<br />
debate racial da época.<br />
Tanto as favelas como os mocambos precisariam ser erradicados,<br />
no entender de muitos intelectuais e políticos da época, e seus<br />
habitantes deveriam trabalhar o mais longe possível do restante da<br />
sociedade. Afinal, a se manter esta situação, “a ‘integridade higiênica’<br />
da cidade estava ameaçada” (LIRA, 1999, p. 64).<br />
É importante, ainda, salientar o fluxo imigratório europeu nas<br />
cidades brasileiras, mostrado por Lira, em que grande parte da população<br />
do Brasil descendeu destes imigrantes em algum momento.<br />
Embora negros e índios contribuíssem também para essa genealogia,<br />
pensadores como Oliveira Vianna viam nos brancos europeus a salvação<br />
da nação brasileira, como comentado anteriormente. No e-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
187<br />
xemplo dado pelo autor sobre a cidade de São Paulo, “a miscigenação<br />
foi tanto mais rara, quanto mais forte os obstáculos à infiltração<br />
de indivíduos de cor na classe superior” (Ibidem, p. 65).<br />
Era como se Recife fosse etnicamente dividida em várias cidades,<br />
já que podemos observar a variedade de culturas que nela existia,<br />
e a dificuldade de adaptação da sociedade a esta variedade.<br />
[...] Recife, cidade vista ao mesmo tempo como símbolo de uma civilização<br />
luso-afro-brasileira bem-sucedida, e em que a faculdade de adaptação<br />
e hibridização entre raças e culturas e delas com o meio tropical é<br />
significativa. (Ibidem, p. 68-69).<br />
Mas, o interessante é que o debate acadêmico acaba gerando,<br />
no final da década de 1920, uma discussão pela valorização dos dois<br />
lados de Recife. Ora pela característica lusitana, defendida por pensadores<br />
como Oliveira Vianna, ora pela africana. Isto se dá porque<br />
alguns intelectuais, como Gilberto Freyre, vêem na urbanização da<br />
cidade alguns limites. Embora se ansiasse por uma urbanização, fazia-se,<br />
ao mesmo tempo, a “apologia das velhas ruas estreitas do<br />
Nordeste”, pois, para Freyre, o que algumas capitais pretendiam,<br />
dentre elas o próprio Rio de Janeiro, era imitar as cidades europeias<br />
e, segundo ele, Recife não deveria também fazê-lo. (Ibidem, p. 71):<br />
O Rio no conjunto de suas avenidas novas e dos seus palácios cosmopolitas,<br />
não passará dum amontoado inexpressivo de construções: imitá-lo<br />
será para o Recife o sacrifício de personalidade própria a um<br />
modelo que já em si é incolor, indistinto, inexpressivo. (FREYRE, 1924<br />
apud LIRA, 1999, p. 72).<br />
Deste modo, podemos perceber que para Gilberto Freyre a uniformização<br />
dada pelas reformas urbanas não combinava com o estilo<br />
e a identidade da cidade do Recife e é em favor desse regionalismo<br />
que Freyre será o porta-voz dos que o acompanham nesta ideia.<br />
Neste contexto, os mocambos produzem um interesse diferente,<br />
seja por uma curiosidade social, ou por suas características estéticas.<br />
Pintores, desenhistas e escritores vêem no mocambo uma forma de<br />
se chegar à cultura popular. Gilberto Freyre procura entender os fatores<br />
de resistência cultural e ver nos mocambos uma forma de identidade<br />
regional que leva à nacional. Um exemplo é a obra Mucambos<br />
do Nordeste, ensaio de G. Freyre, que “(...) visava pesquisar as constantes<br />
e as inovações em matéria de casa popular. O autor aí falava
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
188<br />
em causa da região, dos trópicos e da mestiçagem como fatores de<br />
resistência à uniformização da cultura” (LIRA, 1999, p. 100).<br />
A preocupação de Gilberto Freyre estava, como indica Lira,<br />
em reabilitar o mocambo, considerado por ele uma casa ecologicamente<br />
saudável numa época em que a discussão estava em torno de<br />
sua erradicação, pois não se encontrava nada de bom neste tipo de<br />
moradia. Tal reabilitação ensejada por Freyre teria a ver com a preocupação<br />
de reconstruir a memória nacional, as raízes culturais da<br />
mestiçagem entre brancos, negros e índios.<br />
Outro autor que também vê revela outra face do termo mocambo<br />
é Josué de Castro (1992), que percebia um sentido estético e<br />
cultural num mundo de singularidades e de moral próprias. Estes<br />
dois autores representam o que Lira chama de “romantização” deste<br />
tipo de habitação (LIRA, 1994).<br />
Mas, se o debate andava pelos corredores acadêmicos, pelas<br />
empreitadas políticas, como a população do Recife via o papel dos<br />
mocambos? O modo como as pessoas encaravam os mocambos era<br />
como verdadeiros inimigos da cidade e da população, já que as suas<br />
condições de habitabilidade e as noções de raça e etnia da época depunham<br />
contra a imagem de progresso para o Recife. Nascia, então,<br />
a “Sociedade dos Inimigos do Mocambo”, em 1929. Suas propostas<br />
eram o “melhoramento da raça” daquela população e uma especial<br />
atenção à saúde das pessoas, o que gerou a ideia de extinção dos mocambos<br />
a fim de cortar os males pela raiz. Esta ideia ia de encontro<br />
às empreitadas políticas. (LIRA, 1998, p. 94).<br />
Para o discurso implementado pelos políticos, substituir os<br />
mocambos por cortiços denotava um interesse de intervenção do Estado.<br />
E é a partir de então, anos de 1920, que aparecem os primeiros<br />
olhares para os mocambos como um lugar anti-higiênico, feio, inabitável.<br />
O termo mudava sua função outra vez.<br />
O Departamento de Saúde e Assistência de Pernambuco, na<br />
pessoa do médico Amaury de Medeiros, idealiza e cria em 1924, a<br />
“Fundação A Casa Operária”, incisiva nos questionamentos sobre as<br />
habitações populares. É o início de um projeto assistencialista, embora<br />
o trabalho efetivo do governo frente a esse problema só viesse<br />
nos anos 1930.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
189<br />
Deste modo, percebemos como o mocambo foi objeto de um<br />
debate político intenso desde o final do século XIX, envolvendo políticos,<br />
engenheiros, urbanistas, artistas, intelectuais, bem como toda<br />
a população. De um lado, os que não queriam esquecer que este tipo<br />
de habitação foi uma marca cultural importante para a cidade de Recife,<br />
de outro, os que procuravam dar um novo rumo à cidade, tentando<br />
apagar as marcas deixadas pelos mocambos.<br />
É, então, nessa perspectiva que nos anos de 1920 e 1930 os<br />
empresários pernambucanos também dão as mãos aos políticos e<br />
começam a pensar na higienização da população menos favorecida e<br />
ter como preocupação a construção das vilas operárias. Chegava, então,<br />
o Estado Novo, e com ele a configuração da luta contra o mocambo<br />
tendo como líder o interventor Agamenon Magalhães, como<br />
veremos no próximo capítulo. Era uma luta não só contra os mocambos<br />
e seus habitantes, mas contra todas as ameaças, entre elas, a que<br />
parecia mais grave, o comunismo 2 , e para isso era necessário a ajuda<br />
de todas as esferas da população, inclusive da imprensa, pois este era<br />
um órgão de tamanha influência na mudança de hábitos num processo<br />
de organização e reeducação da sociedade, como era o plano do<br />
governo.<br />
Observamos como a concepção do termo pode revelar toda<br />
uma relação com a identidade urbana, o sentido do lugar e, ainda,<br />
promover um intenso debate entre entidades diversas. A manifestação<br />
de cada momento porque a palavra mocambo passou revelou o<br />
entendimento de características físicas e simbólicas específicas aproximadamente<br />
durante cinquenta anos de história.<br />
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
BEZERRA, Daniel Uchoa Cavalcanti. Alagados, mocambos e mocambeiros.<br />
Pernambuco: Imprensa Universitária, 1965.<br />
CASTRO, Josué. Geografia da fome. Rio de Janeiro: Gyphus, 1992.<br />
FREYRE, Gilberto. Mucambos do Nordeste. Algumas notas sobre o<br />
2 O comunismo revelou-se uma grande ameaça, incluindo perseguições a intelectuais e políticos<br />
ligados aos mocambos, como Gilberto Freyre e o interventor Carlos de Lima Cavalcanti.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
190<br />
typo de casa popular mais primitiva do Nordeste do Brasil. Rio de<br />
Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1937.<br />
______. Sobrados e mocambos. 12. ed. Rio de Janeiro: Record,<br />
2000.<br />
LIRA, José Tavares Correia de. A romantização e a erradicação do<br />
mocambo, ou de como a casa popular ganha nome. Espaço &<br />
debates. São Paulo: vol. 14, n. 37, 1994.<br />
______. Mots Cachés: les lieux du mocambo à Recife. In: Genèse.<br />
Sciences sociales et histoire. n. 33. Paris, 1998.<br />
______. O urbanismo e o seu outro: raça, cultura e cidade no Brasil<br />
(1920-1945). Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais. N.<br />
1, maio, 1999.<br />
VIANNA, Oliveira. Evolução do povo brasileiro. 2. ed. São Paulo:<br />
Cia. Ed. Nacional, 1933.
A IMPORTÂNCIA DA LEITURA<br />
NAS ESCOLAS BRASILEIRAS CONTEMPORÂNEAS<br />
1. Considerações preliminares<br />
Vagner Aparecido de Moura (PUC-SP)<br />
moura_vagner@ig.com.br<br />
Ler não é apenas decodificar os símbolos gráficos, mas também<br />
interpretar o mundo em que vivemos, visto que o ato de ler representa,<br />
para o leitor em potencial, a ponte entre o mundo linguístico<br />
e o real, deste modo, possibilitando-lhe desenvolver a sua capacidade<br />
simbólica de interagir com o outro pela manifestação da palavra,<br />
em virtude da associação das informações lidas por ele ao seu<br />
conhecimento de mundo, armazenados em seu cérebro em forma de<br />
frames. Neste processo, estão envolvidas questões culturais, políticas,<br />
históricas e sociais no ato de decodificar os lexemas impressos<br />
nas páginas de um jornal, na tela de um computador, livro etc.<br />
Partindo dessa premissa, surgiram as seguintes inquietações:<br />
interpretar o mundo e desnudá-lo por meio das palavras será que é<br />
um ato prazeroso para os discentes? será que escola propicia as condições<br />
necessárias para desenvolver o prazer do ato de ler? em que<br />
condições são desenvolvidas a prática de leitura na escola contemporânea?<br />
Essas inquietações nos impeliram a definir a seguinte questão:<br />
Qual a importância da leitura nas instituições brasileiras contemporâneas?<br />
partindo desta questão, pretendemos, no presente artigo, com<br />
base no embasamento teórico Jouve (2002), Freire (1993), Novoa<br />
(1995), Schôn (1995), Bresson (1996), Possenti (1999), abordar a<br />
concepção e os processos de leitura; o papel do leitor (discente) e do<br />
docente em relação à prática de leitura; discutir a crise que envolve a<br />
formação do professor de ensino básico, e tratar da necessidade de<br />
uma política nacional que favoreça aos professores, no que diz respeito<br />
à habilidade de integrar formação acadêmica e prática escolar.<br />
Para corroborar nossas inferências, é apresentado um questionário,<br />
estruturado em 5 (cinco) questões, que envolveu 75 (setenta e<br />
cinco) alunos do ensino Médio, com o objetivo de descobrir a postu-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
192<br />
ra dos alunos diante da leitura e suas preferências. Trata-se de um<br />
demonstrativo que não se pauta pela quantidade, mas revela dados<br />
consideráveis em relação ao desenvolvimento do gosto pela leitura.<br />
Para finalizarmos, ressaltamos que é preciso considerar que<br />
vivemos numa sociedade com princípios e valores diferentes das gerações<br />
passadas, e, por conseguinte, a leitura ocorre em meio à velocidade<br />
da informação e aos avanços da tecnologia.<br />
2. Processos de Leitura<br />
Jouve (2002), ao tratar da leitura, informa que se fundamenta<br />
nas propostas de Gilles Thérien (1990), que a compreende como um<br />
processo de cinco dimensões: um processo neurofisiológico, um processo<br />
cognitivo, um processo afetivo, um processo argumentativo e<br />
um processo simbólico.<br />
Conforme Jouve, antes de qualquer coisa, a leitura é tida como<br />
algo concreto, que depende do funcionamento da visão e do cérebro,<br />
já que, segundo estudos, é necessário primeiramente perceber,<br />
identificar e memorizar signos, ou seja, é preciso enxergar e processar<br />
os signos para depois acontecer a análise e compreensão do conteúdo.<br />
Depois dessas etapas neurofisiológicas, acontece um processo<br />
de compreensão da leitura (processo cognitivo). Assim, tem-se uma<br />
atividade abstrata, que depende da conversão das palavras em elementos<br />
significativos. Nesse processo, a progressão da leitura depende<br />
do conhecimento do leitor, isto é, em alguns casos este precisa<br />
de mais tempo para compreender o que lê porque lhe falta um saber<br />
mínimo sobre o assunto.<br />
Outro fator que interfere no processamento da leitura é a emoção,<br />
já que, quanto mais o leitor identifica-se com o que lê, mais<br />
convincente a obra torna-se para ele. Alguns estudiosos afirmam que<br />
a afetividade é essencial para tornar a leitura mais significativa.<br />
A argumentação também está presente nos textos (inclusive<br />
nas narrativas), e o leitor pode ou não assumir para si a argumentação<br />
desenvolvida. Além disso, uma relação simbólica também é par-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
193<br />
te integrante do processo de leitura, pois o leitor valoriza a obra relacionando-a<br />
a outros elementos que tenham sentido para ele.<br />
Segundo Jouve, no processo de leitura, a distância entre o autor<br />
e o leitor pode acarretar dúvidas, visto que não há remissões diretas<br />
referentes ao espaço-tempo comuns aos interlocutores. Diferentemente<br />
do diálogo, em que sempre há uma relação de troca, o leitor<br />
precisa reconstruir o sentido do texto por meio da estrutura, das relações<br />
internas que este explicita. Dessa forma, um texto literário, fora<br />
de seu contexto, pode abrir margens a diferentes interpretações, dependendo<br />
da experiência e da cultura do leitor, além dos valores de<br />
sua época. A “descontextualização” é tida, portanto, como a principal<br />
responsável pela pluralidade do texto escrito.<br />
É claro que podemos fazer diferentes leituras de um mesmo<br />
texto literário; no entanto, não se permite qualquer leitura. É preciso<br />
atentar, segundo Barthes (1966, apud JOUVE 2002), para a coerência<br />
interna do texto para que as interpretações sejam válidas. Já Ricoeur<br />
(1986, apud JOUVE, 2002) acrescenta a coerência externa ao<br />
princípio de coerência interna, pois, segundo ele, dados como biografia,<br />
história, entre outros, estão ali para auxiliar na compreensão.<br />
Para uma leitura mais crítica, dentre todas as leituras consideradas<br />
legítimas, é preciso se considerar a primeira leitura da obra,<br />
pois, assim, há uma interpretação que leva em conta a época em que<br />
foi escrita. Entretanto, a partir do momento em que há a preocupação<br />
em analisar a obra, perde-se a leitura “inocente”, aquela que faz com<br />
que ela seja lida de maneira linear (esta é a forma mais comum e esperada,<br />
principalmente nas obras de ficção, que são escritas com a<br />
finalidade de envolver o leitor). A releitura de uma obra ou texto<br />
também é necessária em alguns casos que precisam de maiores esclarecimentos<br />
de detalhes que possam dar “efeitos de sentido” ao texto.<br />
O processo de leitura, portanto, depende de vários fatores e<br />
das relações de proximidade ou distanciamento do leitor para com o<br />
texto. Esse processo, que consiste na compreensão, pode ser mais<br />
demorado ou rápido, mais legítimo ou não, depende de releituras ou<br />
não, de acordo com o conhecimento de cada leitor.<br />
Segundo Bresso (1996), a escrita é uma codificação da linguagem<br />
oral, e embora ela seja sempre exposta aos humanos, desde
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
194<br />
muito cedo, precisa ser ensinada, assim como a leitura, e esta não está<br />
ligada apenas ao processo de identificação dos traçados e seu encadeamento,<br />
mas sim da compreensão do significado.<br />
É o que também confirma Fonseca (1992, apud GUIMA-<br />
RÃES, 2007, p. 36), já que para ele a leitura é sempre apropriação,<br />
invenção, produção de significados, ou seja, é um processo dinâmico.<br />
Segundo Guimarães (2007), a leitura e o texto se entrelaçam,<br />
sendo este a construção e aquela, o processo. Assim, na leitura, o que<br />
importa é o que está entretecido no texto, nas significações, ou seja,<br />
o importante é encontrar o sentido dele e não apenas desvendar as intenções<br />
do autor.<br />
Sobre essa compreensão de sentidos, temos ainda o que rezam<br />
os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa:<br />
A leitura é o processo no qual o leitor realiza um trabalho ativo de<br />
compreensão e interpretação do texto, a partir de seus objetivos, de seu<br />
conhecimento sobre o assunto, sobre o autor, de tudo o que sabe sobre a<br />
linguagem etc. Não se trata de extrair informação, decodificando letra<br />
por letra, palavra por palavra. Trata-se de uma atividade que implica estratégias<br />
de seleção, antecipação, inferência e verificação, sem as quais<br />
não é possível proficiência. É o uso desses procedimentos que possibilita<br />
controlar o que vai sendo lido, permitindo tomar decisões diante de dificuldades<br />
de compreensão, avançar na busca de esclarecimentos, validar<br />
no texto suposições feitas (...). O leitor competente é capaz de ler as entrelinhas,<br />
identificando, a partir do que está escrito, elementos implícitos,<br />
estabelecendo relações entre o texto e seus conhecimentos prévios ou entre<br />
o texto e outros textos já lidos. (BRASIL 1998. PCN – 3º e 4º ciclos.<br />
Brasília, MEC, p. 69/70)<br />
O leitor, portanto, de acordo com Possenti (1999), está numa<br />
posição de prestígio, já que, hoje, depois do surgimento da Linguística<br />
moderna, este passou a fazer parte do processo de construção dos<br />
sentidos do texto (coisa que até então não era comum, visto que para<br />
se descobrir o sentido de um texto devia-se interrogá-lo, a fim de saber<br />
o que o autor quis dizer nele). Assim, apenas o autor e o texto eram<br />
importantes na produção de sentido.<br />
Segundo Soares (1991), na leitura envolvem-se indivíduos: o<br />
leitor, o seu universo, sua posição na estrutura social, sua relação<br />
com o mundo e com os outros, o autor, o seu universo, sua posição<br />
social, e sua relação com o mundo e com os outros. Assim, conforme
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
195<br />
afirma Melo (1999), a leitura não é unilateral, mas sim interativa, já<br />
que não é não é apenas receptiva.<br />
A leitura, ainda de acordo com Soares (1991, p. 19), traz benefícios<br />
à sociedade e ao indivíduo: é forma de lazer e de prazer, de<br />
aquisição de conhecimentos e de enriquecimento cultural. Além disso,<br />
o indivíduo amplia suas condições de convívio social e de interação.<br />
Entretanto, apenas para as classes dominantes a leitura é vista<br />
por esses ângulos, enquanto as classes dominadas a entendem como<br />
sendo necessária à sobrevivência, ao acesso ao trabalho, à luta contra<br />
suas condições de vida, ou seja, um instrumento na busca de melhores<br />
condições de vida.<br />
Os depoimentos de pais dos dois grupos sociais (pertencentes<br />
à classe popular e pertencente às classes favorecidas), colhidos por<br />
Soares (1991), comprovam a tese de que apenas os privilegiados (economicamente)<br />
dão importância à leitura como forma de lazer e expressão<br />
(comunicação) mais efetiva, enquanto os mais desfavorecidos<br />
a vêem apenas como uma forma de ascensão social, afirmando<br />
que sem ela “a pessoa não serve para nada”. (cf. SOARES, 1991, p.<br />
22)<br />
3. Papel do leitor X docente<br />
A leitura é parte da interação verbal, enquanto implica a participação<br />
cooperativa do leitor na interpretação e na construção e reconstrução<br />
do sentido e das intenções pretendidos pelo autor. (AN-<br />
TUNES, 2003, p. 66)<br />
Ler é identificar-se com o apaixonado ou com o místico. É ser um<br />
pouco clandestino, é abolir o mundo exterior, deportar-se para uma ficção,<br />
abrir o parêntese do imaginário. Ler muitas vezes é trancar-se (no<br />
sentido próprio e figurado) É manter uma ligação através do tato, do olhar,<br />
até mesmo do ouvido, (as palavras ressoam). As pessoas leem com<br />
seus corpos. Ler é também sair transformado de uma experiência de vida,<br />
é esperar alguma coisa. É um sinal de vida, um apelo, uma ocasião de<br />
amar sem a certeza de que vai amar. Pouco a pouco o desejo desaparece<br />
sob o prazer (BELLENGER, p. 17, apud KLEIMAN, 2007, p. 15).<br />
O leitor é um dos sujeitos da interação, atua de forma ativa,<br />
buscando recuperar, interpretar e compreender as intenções do autor.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
196<br />
Os elementos gráficos (as palavras, os sinais,as notações) colaboram<br />
e facilitam a interpretação.<br />
De acordo com o princípio de que nem tudo está explícito no<br />
texto, afirma Van Dijk (1984, apud ANTUNES, 2003, p. 67) que “os<br />
textos são inevitavelmente incompletos e que um texto hipercompleto<br />
seria incoerente, além de comunicativamente inadequado”.<br />
Ser leitor é construir seu próprio saber sobre texto e leitura.<br />
Não é apenas compreender a palavra no sentido cabal, mas sim compreender<br />
o que está escrito de forma ampla, objetivando funcionar<br />
plenamente na sociedade.<br />
A compreensão de um texto envolve vários processos cognitivos.<br />
Na verdade, a compreensão de um texto é um processo que<br />
pode ser caracterizado pela utilização de conhecimento prévio, pois o<br />
leitor usa na leitura o que já sabe: o conhecimento adquirido no<br />
transcorrer da sua vida, uma vez que há interação dos divergentes níveis<br />
de conhecimento, como o conhecimento linguístico, o textual, o<br />
conhecimento de mundo, que fazem com que o leitor construa o sentido<br />
do texto. Dessa forma, a leitura é um processo interativo.<br />
A compreensão de um texto escrito envolve vários fatores, desde a<br />
compreensão de frases, sentenças, de argumentos, de provas formais e<br />
informais, de objetivos, de tenções, às vezes de ações do ato de compreender,<br />
já que envolve desde a compreensão de uma charada até a de uma<br />
obra de arte. (KLEIMAN, 2007, p. 10)<br />
Os textos também podem ser classificados, considerando-se o<br />
caráter da interação entre autor e leitor, uma vez que o autor propõese<br />
a fazer algo, mas é claro que essa intenção deve estar materialmente<br />
no texto por intermédio de marcas formais, pois o leitor dispõe-se<br />
a escutar o autor para que possa aceitar, julgar ou rejeitar, ou<br />
seja, ter sua opinião sobre o tema abordado.<br />
Percebemos que, durante uma leitura, há uma interação de vários<br />
níveis de conhecimento: de nível sintático, semântico e extralinguístico,<br />
objetivando construir a coerência local e a temática.<br />
Pode-se prever a existência de uma leitura não uniforme, diferente,<br />
portanto, em cada circunstância dependendo do tema, do nível de formalidade<br />
e do gênero do texto, ou ainda dos objetivos e dos motivos implicados<br />
no ato de ler. Assim como variam os gêneros de textos (editoriais,<br />
artigos, ensaios, noticiais, anúncios, avisos, relatórios, instruções de uso,
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
197<br />
editais, contos, poemas). Conforme variam os objetivos pretendidos para<br />
a leitura (leitura informativa, recreativa, instrumental etc.), variam também<br />
as estratégias a serem utilizadas. O grau de familiaridade do leitor<br />
com o conteúdo veiculado pelo texto interfere, também no modo de realizar<br />
a leitura. (cf. ALLENDE e CONDEMARIN, 1987, apud ANTU-<br />
NES, 2007, p. 77).<br />
Observa-se que para desenvolver um grau de familiaridade do<br />
leitor com os temas/leituras abordados em sala de aula, o docente<br />
deverá propor as seguintes estratégias:<br />
· Estabelecer objetivos de leitura;<br />
· Evitar paráfrase de textos literários;<br />
· Levantar questões para o aluno - leitor refletir sobre o texto:<br />
primeiro de compreensão e depois de interpretação;<br />
· Planejar a atividade de leitura;<br />
· Escolher textos à altura do repertório dos alunos para que<br />
o diálogo com a leitura seja produtivo, mas também outros<br />
de leitura complexa, que mediados pelo professor permitam<br />
tornar o diálogo possível;<br />
· Ativar conhecimentos prévios e instigar inferências necessárias<br />
para atingir seu objetivo.<br />
4. A formação do professor<br />
A discussão sobre a formação do professor vem de décadas<br />
em congressos, seminários, cursos e outros eventos similares, onde<br />
se procura encontrar um meio termo visando uma formação ideal ou<br />
necessária do professor do ensino básico (fundamental e médio), porém<br />
diante da platéia que destas discussões participa , depara-se com<br />
um grupo que vem demonstrar uma ostensiva insatisfação generalizada<br />
com relação aos modelos e às propostas formativas vigentes,<br />
principalmente, nos cursos de licenciatura.<br />
Tais discussões, quase sempre se voltam para a afirmação da<br />
necessidade de uma “política nacional de formação de professores e,<br />
em seguida, desfavorece aos professores, tecendo um perfil profissional<br />
por meio de um inventário de competências cognitivas e do-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
198<br />
centes que deveriam ser desenvolvidas pelos cursos formadores”. No<br />
entanto, dessa ampla e continuada discussão, não têm emergido propostas<br />
que ultrapassem o nível de recomendações abstratas sobre a<br />
necessidade de uma sólida formação dos educadores, da integração<br />
de teoria e prática, da interdisciplinaridade, etc. Naturalmente que<br />
sugestões dessa natureza são capazes de travar debates, mas a sua utilidade<br />
não vai além de efeitos retóricos.<br />
Num país como o Brasil, em que há grandes diferenças econômicas,<br />
sociais e culturais, não pode se investir numa única política<br />
de formação de professores tal como a própria LDB e por outro lado<br />
ultrapassar este limite conduzindo a formação do professor a um<br />
modelo mais abstrato com ampla variedade de situação nacional fica<br />
aquém das discussões.<br />
Há algumas décadas, acreditava-se que o professor ao terminar<br />
a graduação estaria pronto e apto para atuar na sua área o resto da<br />
vida. A escola contemporânea não deixa de constituir uma novidade<br />
social e cultural. Em tal espaço institucional, agora, o desempenho<br />
do professor não mais pode ser pensado e considerado como uma<br />
questão de formação teórica apenas – alguém que ensina; a escola<br />
hoje é uma ruptura com a escola do passado. Também as relações<br />
entre pais e filhos, nessa nova situação, não podem mais ser tomadas<br />
como modelo, sobretudo porque a vida cultural e social das famílias<br />
e do alunado mudou completamente.<br />
Para tanto, o professor deve estar consciente de que sua formação<br />
é permanente e integrada no seu dia-a-dia na escola. Por isso,<br />
o professor não pode se abster de estudar: o prazer pelo estudo e a<br />
leitura deve ser evidente, senão não irá conseguir passar esse gosto<br />
para seus alunos O professor que não aprende com prazer não ensinará<br />
com prazer. (SNYDERS, 1990).<br />
Desse modo, para a formação do professor é preciso conceber<br />
a escola como um ambiente educativo onde trabalhar e formar-se<br />
não sejam atividades distintas. O professor deve conceber sua formação<br />
como um processo permanente integrado no dia-a-dia e ser personagem<br />
ativo em todas as fases do seu processo de formação.<br />
O professor deve estar preparado para enfrentar os grandes<br />
desafios que certamente virão, e, para tanto, estar atualizado e saber
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
199<br />
desenvolver e conduzir práticas pedagógicas eficientes, assim, estará<br />
realmente dando a sua contribuição como educadores. Nóvoa (1995,<br />
p. 23) postula que “o aprender contínuo é essencial e se concentra<br />
em dois pilares: a própria pessoa, como agente, e a escola, como lugar<br />
de crescimento profissional permanente”. Para esse estudioso<br />
português, a formação continuada se dá de maneira coletiva e depende<br />
da experiência e da reflexão como instrumentos contínuos de análise.<br />
Para Vygotsky (2005), todo conhecimento é construído socialmente<br />
pela linguagem, no âmbito das relações humanas num processo<br />
sócio-histórico. O conhecimento, portanto, permite o desenvolvimento<br />
mental que se realiza na interação com o outro. Nessa<br />
perspectiva, o professor constrói sua formação, fortalecendo e enriquecendo<br />
seu conhecimento de mundo. Por isso é importante a troca<br />
de experiência com outro na construção de um saber coletivo. Para<br />
Nóvoa (1995, p. 26): “a troca de experiências e a partilha de saberes<br />
consolidam espaços de formação mútua, nos quais cada professor é<br />
chamado a desempenhar, simultaneamente, o papel de formador e de<br />
formando”.<br />
Assim, ambos os trabalhos em equipe interdisciplinar se revelam<br />
importantes, uma vez que as decisões tomadas em conjunto fortalecem<br />
os laços cooperativos ao mesmo tempo em que enfraquece,<br />
de certa forma, a resistência às mudanças, contribuindo para que todos<br />
possam ser responsáveis pelo sucesso da aprendizagem na escola.<br />
Haja vista que a produção de práticas educativas eficazes surge de<br />
reflexões da experiência particular, mas partilhada no grupo.<br />
Estudos têm mostrado a necessidade de o professor ser crítico<br />
para que possa refletir sua prática direcionando-a à realidade em<br />
que atua, ou seja, levando em conta as necessidades do grupo com o<br />
qual trabalha. Nesse sentido, Freire (1996, p. 43) postula que: “pensando<br />
criticamente a prática de hoje ou de ontem é que se pode melhorar<br />
a próxima prática”.<br />
Para Schön (1995), a prática-reflexiva em várias profissões,<br />
não apenas na prática docente, tem apontando situações conflitantes,<br />
desafiantes, e que a aplicação de técnicas convencionais simplesmente<br />
não resolve problemas. No ensino propriamente, a confrontação<br />
com dados diretamente observáveis produz um choque educa-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
200<br />
cional, à medida que os professores percebem que suas teorias de ações<br />
no ato de atuação divergem daquelas:<br />
No desenvolvimento de uma prática reflexiva é importante juntar<br />
três dimensões da reflexão sobre a prática: primeira, a compreensão das<br />
matérias pelo aluno (como é que este rapaz compreende estes modelos?<br />
Como é que a rapariga percebeu a distancia através da laçada de cordel<br />
que pendurou no quadro?); segundo, a interação interpessoal entre professor<br />
as quais idealizam. E aluno (como é que o professor compreende e<br />
responde a outros indivíduos a partir do ponto de vista da sua ansiedade,<br />
controle, diplomacia, confrontação, conflito ou autoridade?); terceira, a<br />
dimensão burocrática da prática (como é que um professor vive e trabalha<br />
na escola e procura a liberdade essencial à pratica reflexiva?). (1995,<br />
p. 90-91).<br />
Há um distanciamento entre o saber escola e o saber dos alunos,<br />
e entre o saber privilegiado da escola e o modo espontâneo como<br />
os professores encaram o ensino. Isso leva ao conflito. Não se<br />
trata de abandonar a utilização da técnica na prática docente, mas<br />
haverá momentos em que o professor estará em situações conflitantes<br />
e ele não terá como se guiar somente por critérios técnicos préestabelecidos.<br />
Veja o que diz Nóvoa (1995, p.27):<br />
As situações conflitantes que os professores são obrigados a enfrentar<br />
(e resolver) apresentam características únicas, exigindo, portanto características<br />
únicas: o profissional competente possui capacidades de autodesenvolvimento<br />
reflexivo (…). A lógica da racionalidade técnica opõe-se<br />
sempre ao desenvolvimento de uma práxis reflexiva.<br />
Sem dúvida, há bons profissionais que utilizam uma série de<br />
estratégias não planejadas, criatividades para resolver problemas no<br />
dia-a-dia, deste modo, conseguem estabelecer uma combinação entre<br />
ciência, técnica e arte. Deve-se ressaltar que essa dinâmica é imprescindível<br />
em contextos instáveis como o da sala de aula.<br />
Ora, para maior mobilização do conceito de reflexão na formação<br />
de professores, é necessário criar condições de trabalho em<br />
equipe entre os professores. Sendo assim, isso sugere que a escola<br />
deve criar espaço para esse crescimento.<br />
Nesse sentido, Schön (1995) nos diz que:<br />
(…) Nessa perspectiva o desenvolvimento de uma prática reflexiva<br />
eficaz tem que integrar o contexto institucional. O professor tem de se
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
201<br />
tornar um navegador atendo à burocracia. E os responsáveis escolares<br />
que queiram encorajar os professores a tornarem-se profissionais reflexivos<br />
devem criar espaços de liberdade tranquila onde a reflexão seja possível.<br />
Estes são os dois lados da questão – aprender a ouvir os alunos e<br />
aprender a fazer da escola um lugar no qual seja possível ouvir os alunos<br />
– devem ser olhados como inseparáveis. (1995, p. 87)<br />
A proposta prático-reflexiva propõe-se a levar em conta esta<br />
série de variáveis do processo didático, buscando um processo de<br />
metacognição, pelo qual o professor perceba os efeitos de sua atuação<br />
na aprendizagem de seus alunos. Diante disso, o desenvolvimento<br />
profissional do professor corresponde ao curso superior bom, somado<br />
ao conhecimento acumulado ou prévio, porém isso não basta.<br />
Faz-se essencial a atualização contínua a necessidade da formação<br />
continuada no processo, ou seja, a necessidade da construção do saber,<br />
do interagir permanente. Nóvoa (1995) observa sobre a importância<br />
da formação continuada do professor:<br />
A formação deve capitalizar as experiências inovadoras e as redes de<br />
trabalho que já existem no sistema educativo português, investindo-as do<br />
ponto de vista da sua transformação qualitativa, em vez de instaurar novos<br />
dispositivos de controle e de enquadramento. A formação implica a<br />
mudança dos professores e das escolas, o que não é possível sem investimento<br />
positivo das experiências inovadoras que já estão no terreno. Caso<br />
contrário, desencadeiam-se fenômenos de resistência pessoal e institucional,<br />
e provoca-se a passividade de muitos atores educativos. (1995, p. 30).<br />
4.1. Pesquisa com os alunos<br />
Conforme o embasamento das teorias de Nóvoa (1995),<br />
Schön (1995), Vygotsky (2005) acerca da formação de professores, e<br />
o pressuposto dos Parâmetros Curriculares e o posicionamento de<br />
Soares (1991), que a leitura envolve indivíduos: o leitor, o seu universo,<br />
sua posição na estrutura social, sua relação com o mundo e<br />
com os outros, o autor, o seu universo, sua posição social, e sua relação<br />
com o mundo e com os outros. Perante essa perspectiva, pretende-se,<br />
neste subitem, apresentar a coleta de dados, que foi realizada<br />
por intermédio de um questionário aos discentes do ensino médio regular<br />
e suplência, com o propósito de identificar o interesse do aluno<br />
contemporâneo a respeito da leitura.<br />
O questionário apresentado foi estruturado por cinco questões<br />
norteadoras: Você gosta de ler? Por quem é incentivado a ler? Que
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
202<br />
tipo de texto você gosta de ler? Você costuma ler? E quanto aos livros<br />
e textos solicitados na escola? Seguem, abaixo, os dados coletados:<br />
Pesquisa de campo, envolvendo 75 alunos do Ensino Médio Regular e Suplência sobre a leitura.<br />
Perguntas Respostas (%)<br />
Você gosta de ler?<br />
Por quem é<br />
incentivado a ler?<br />
Que tipo de texto você<br />
gosta de ler?<br />
Você costuma ler:<br />
Quanto aos livros e<br />
textos solicitados na<br />
escola?<br />
Pouco Muito Mais ou Menos<br />
24,66 17,18 56,16<br />
Romances<br />
Iniciativa própria Professores Familiares Amigos<br />
61,19 32,84 4,48 1,49<br />
histórias em Quadrinhos Textos sobre Informática,<br />
Ciência, mecânica<br />
54,82 30,66 14,52<br />
Às vezes<br />
Com<br />
freqüência<br />
Nunca lê porque<br />
acha chato<br />
Somente quando o<br />
professor pede<br />
Raramente<br />
41,18 27,45 0,98 8,82 21,57<br />
Lê porque a professora<br />
manda e vale nota<br />
Pega um<br />
resumo na<br />
internet<br />
Lê todos porque<br />
gosta<br />
Não lê por não ter<br />
tempo<br />
Nunca lê<br />
por achar<br />
chato<br />
52 8 20 17,33 2,67<br />
4.2. Organização e interpretação dos dados<br />
4.2.1. Você gosta de ler?<br />
O gráfico mostra que a maior concentração, 57%, é de alunos<br />
que gostam de ler mais ou menos, 25% gostam pouco de ler e apenas<br />
18% gostam de ler.<br />
57%<br />
Você gosta de ler?<br />
25%<br />
18%<br />
Pouco<br />
Muito<br />
Mais ou Menos
Quanto aos livros e textos solicitados na escola?<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
203<br />
O gráfico demonstra que há um grande resquício da pedagogia<br />
tradicional da educação no ensino contemporâneo, uma vez que<br />
os dados coletados com essa indagação, impelem-nos a verificar que<br />
52 % dos alunos lêem porque a professora manda e vale nota, e somente<br />
20% lê porque gosta, o restante dos alunos justificam da seguinte<br />
forma: 17% não lê porque não tem tempo; 8% pega um resumo<br />
na internet ; 3% nunca lê porque acha chato.<br />
20%<br />
17%<br />
Quanto aos livros solicitados na escola?<br />
8%<br />
3%<br />
52%<br />
4.2.2. Por quem é incentivado a ler?<br />
33%<br />
Lê porque a professora<br />
manda e vale nota<br />
Pega um resumo na<br />
internet<br />
Lê todos porque gosta<br />
Por quem é incentivado a ler?<br />
4%<br />
1%<br />
62%<br />
Não lê por não ter tempo<br />
Nunca lê por achar chato<br />
Iniciativa própria<br />
Professores<br />
Familiares<br />
Amigos
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
204<br />
O gráfico indica que o papel do professor na intervenção do<br />
processo de leitura é incipiente, visto que somente 33% dos alunos<br />
são incentivados pela postura do docente em sala de aula, por outro<br />
lado, 62% são por iniciativa própria, 4% são estimulados pelos familiares<br />
e 1%, por amigos.<br />
4.2.3. Que tipo de texto você gosta de ler?<br />
O gráfico demonstra que os discentes têm maior interesse por<br />
romances (54%), 31% por histórias em quadrinhos, 15% por textos<br />
sobre informática ciência e mecânica.<br />
31%<br />
15%<br />
Que tipo de texto você gosta de ler?<br />
54%<br />
4.2.4. Você costuma ler ?<br />
Romances<br />
histórias em<br />
Quadrinhos<br />
Textos sobres<br />
Informática,<br />
Ciência,mecânica<br />
O gráfico mostra que 41% dos alunos lêem às vezes, 27% leem<br />
com frequência, 22% raramente, 9% leem quando os professores<br />
pedem e 1% nunca lê porque acha chato.<br />
9%<br />
1%<br />
22%<br />
27%<br />
Você costuma ler:<br />
41%<br />
Às vezes<br />
Com frequência<br />
Nunca lê porque<br />
acha chato<br />
Somente quando o<br />
professor pede<br />
Raramente
5. Considerações finais<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
205<br />
Como vimos, a leitura é um processo complexo, multifacetado,<br />
pois envolve dimensões que se integram e se complementam.<br />
Esse processo dinâmico, devido às diversas estratégias que o<br />
leitor ativa para compreender o texto, deve ser ensinado (não apenas<br />
avaliado) com o objetivo de formar leitores proficientes, capazes de<br />
utilizar a leitura com fins diversos, inclusive, como forma de adquirir<br />
entretenimento e prazer.<br />
Ressaltamos que a questão da afetividade, conforme Jouve<br />
(2002), é essencial para a formação de leitores que considerem a leitura<br />
uma atividade significativa. Por isso, ao considerarmos a leitura<br />
em suas múltiplas dimensões, é preciso observar que o professor de<br />
língua materna deve refletir e planejar situações de ensino e aprendizagem<br />
que favoreçam não apenas o trabalho com a leitura, mas também<br />
o prazer de ler e a socialização de leituras como: compartilhar<br />
títulos, trocar idéias sobre obras, autores e experiências diversas com<br />
a prática leitora, com o propósito de apresentar aos discentes a importância<br />
da leitura em seu dia-a-dia, que abarca não só a esfera institucional<br />
– ambiente escolar – quanto à esfera social.<br />
Dessa forma, promovendo a inserção e vivência do aluno em<br />
um ambiente cultural letrado, por meio de práticas efetivas de leitura,<br />
o professor ocupará um papel fulcral como agente mobilizador de<br />
novas posturas em relação ao desenvolvimento do gosto de ler. Cabe<br />
a ele, refletir, planejar e propiciar situações didáticas adequadas aos<br />
seus alunos.<br />
Como observamos, na pesquisa, os dados do gráfico presente<br />
no item 4.21 indicam que os alunos revelam pouco apreço pela leitura.<br />
O gráfico 4.2.2 demonstra que 52/ dos entrevistados lêem apenas<br />
porque a professora manda. Essa informação reitera as observações<br />
do item anterior.<br />
O gráfico presente no item 4.2.3 demonstra que apenas um<br />
terço, aproximadamente, dos docentes incentiva a leitura, tal informação<br />
indica um envolvimento insatisfatório dos professores com a<br />
formação de leitores.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
206<br />
Podemos acrescentar a isso ao baixo envolvimento da família<br />
com o processo de leitura, pois a escola poderia engajar a família<br />
nesse processo, desde as séries iniciais, promovendo uma parceria e<br />
uma prática leitora inerente ao processo de desenvolvimento do educando,<br />
tendo em vista a importância dessa competência para a vida.<br />
O gráfico 4.2.5 nos mostra o baixo envolvimento dos alunos<br />
com a leitura, pois se destaca a ausência de prática e constância. Isso<br />
confirma uma situação preocupante no que tange à formação de leitores.<br />
Levando em conta a interpretação dos dados, obtidos por<br />
meio do questionário, só podemos considerar a importância da leitura<br />
nas escolas brasileiras contemporâneas, desde que o ensino seja<br />
desenvolvido em suas múltiplas facetas, envolvendo a cada dimensão<br />
da leitura novos desafios para a formação do leitor, pois é indubitável<br />
a necessidade de garantirmos o aprendizado dessa competência<br />
contemplando estratégias e gêneros textuais diversos. Para isso,<br />
reiteramos a relevância do trabalho pedagógico planejado de forma<br />
reflexiva e sistemática pelo professor a fim de promover situações de<br />
aprendizagem significativas.<br />
Ao trilharmos esse caminho, será possível formar leitores autônomos,<br />
críticos e preparados para utilizar a leitura em diferentes<br />
prismas e com objetivos variados; pois a formação adequada da leitura<br />
os fundamenta para engajar-se na sociedade de forma construtiva.<br />
Por fim, discutir o processo de leitura é fundamental para traçarmos<br />
novos caminhos, revermos posturas, vislumbrarmos horizontes<br />
que contemplem a leitura em toda a sua complexidade e, desenvolva,<br />
inclusive, o prazer de ler.<br />
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
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Parábola, 2003.<br />
FREIRE, P. Professora sim, tia não: cartas a quem ousa ensinar. São<br />
Paulo: Olho D’Água, 1993.
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In: NÓVOA, A. (Coord.). Os professores e a sua formação. Lisboa:<br />
Dom Quixote, 1995, p. 77-91.<br />
VIGOTSKI, L. S. Pensamento e linguagem. Trad. CAMARGO, J. L.<br />
São Paulo: Martins Fontes, 2005.<br />
BRASIL, Secretaria da educação, 1998. PCN – 3º e 4º ciclos. Brasília,<br />
MEC.<br />
BRESSON, F. A leitura e suas dificuldades. In: CHARTIER, Roger.<br />
Práticas de leitura. São Paulo: Estação Liberdade, 1996, p. 25-34.<br />
GUIMARÃES, E. Texto, leitura e escrita. In: FÁVERO, Leonor;<br />
BASTOS, Neusa; MARQUESI, Sueli. (Orgs.): Língua portuguesa:<br />
pesquisa e ensino, v. 2. São Paulo: EDUC/Fapesp, 2007, 35-44.<br />
JOUVE, V. A leitura. São Paulo: UNESP, 2002.<br />
POSSENTI, S. A leitura errada existe. In: BARZOTTO, Valdir<br />
(org.). Estado de leitura. Campinas: Mercado de Letras, 1999, p.<br />
169-178.<br />
SOARES, M. As condições sociais da leitura: uma reflexão em contraponto.<br />
In: ZILBERMAN, R; SILVA, E. T. (Orgs.). Leitura: perspectivas<br />
interdisciplinares. 2. ed. São Paulo: Ática, 1991, p. 18-29.
1. Introdução<br />
A IMPORTÂNCIA DE PESQUISAS<br />
EM ESTRATÉGIAS DE APRENDIZAGEM<br />
NO ENSINO DE LÍNGUAS ESTRANGEIRAS<br />
Márcio Luiz Corrêa Vilaça (UFF, UFRJ, UNIGRANRIO)<br />
professorvilaca@gmail.com<br />
O ensino de línguas estrangeiras é uma área rica em pesquisas<br />
e publicações pelo mundo. A diversidade de temáticas, focos e metodologias<br />
de pesquisa pode ser facilmente constatada. As publicações<br />
de editoras americanas e inglesas, de abrangências internacionais,<br />
são bibliografias constantes em pesquisas em diferentes países<br />
do mundo. Tais publicações ocorrem predominantemente em duas<br />
áreas: Linguística Aplicada e Educação.<br />
As influências destas publicações internacionais não são ocasionadas<br />
apenas por questões mercadológicas e de marketing. Os Estados<br />
Unidos e a Inglaterra apresentam tradição em pesquisas sobre<br />
aquisição e aprendizagem de línguas estrangeiras, com foco, logicamente,<br />
na língua inglesa. No Brasil, a intensificação de pesquisas sobre<br />
ensino-aprendizagem de Português como Língua Estrangeira<br />
(PLE) é mais recente.<br />
Com a Segunda Guerra Mundial, os investimentos em pesquisas<br />
sobre ensino de línguas ganham força nos Estados Unidos e na<br />
Europa. No cenário pós-guerra, a língua inglesa entra em lugar de<br />
língua estrangeira de destaque e ela começa a ser considerada uma<br />
língua internacional, sendo empregada em diversos campos para a<br />
comunicação entre pessoas de diferentes nacionalidades e culturas.<br />
Esta discussão inicial não pretende enfocar a importância da<br />
língua inglesa no mundo contemporâneo, mas oferecer uma breve<br />
compreensão de aspectos que contribuíram para o crescimento e para<br />
o fortalecimento de pesquisas sobre aprendizagem de línguas estrangeiras.<br />
Neste processo de expansão e consolidação de estudos sobre a<br />
aprendizagem de línguas estrangeiras, os métodos de ensino foram
209<br />
um dos temas mais comuns de pesquisa e publicações. Métodos eram<br />
desenvolvidos, descritos, analisados, criticados e renovados<br />
(LEFFA, 1998, BROWN, 2001; RICHARDS & RODGERS, 2001;<br />
LARSEN-FREEMAN, 2003). Isto indica que professores e pesquisadores<br />
acreditavam que o método exercia um papel crucial no sucesso<br />
ou insucesso da aprendizagem de línguas (VILAÇA, 2008).<br />
Tratava-se, portanto, do que podemos chamar de era dos métodos. A<br />
era dos métodos atinge níveis surpreendentes na segunda metade do<br />
século XX. No período pós-guerra, de uma forma geral, linguistas<br />
estudavam mais diretamente as estruturas das línguas, buscando descrevê-las,<br />
compreendê-las e compará-las. No mesmo período, com o<br />
surgimento da linguística aplicada, o foco estava nos métodos de ensino<br />
e nas pesquisas sobre tradução. Importante destacar que não se<br />
trata de determinismo. Logicamente outras pesquisas, envolvendo diferentes<br />
temáticas, eram realizadas por linguistas e linguistas aplicados.<br />
Gradualmente os métodos de ensino de línguas estrangeiras<br />
sofreram críticas e começaram a abrir maior espaço para que estudos<br />
e pesquisas sobre diferentes aspectos relacionados à aprendizagem/aquisição<br />
de línguas se popularizassem. Os métodos não deixaram<br />
de ser pesquisados ou desenvolvidos, mas começava um período<br />
que, mais nitidamente na década de noventa e nos primeiros anos do<br />
terceiro milênio, seria denominado de "Era pós-método" (BROWN,<br />
1995; KUMARAVADIVELU, 1994 e 2001; BROWN, 2002; VI-<br />
LAÇA, 2008).<br />
Esta transição deslocava o foco dos métodos de ensino para<br />
os professores e para os alunos. Afinal, as descrições e/ou prescrições<br />
metodológicas poderiam ser universais, mas os professores, os<br />
alunos e os contextos não eram. Não havia como garantir que o método<br />
adotado era aplicado conforme planejado ou desejado na sala de<br />
aula. Constatou-se também que metodologias consideradas de sucesso<br />
em alguns contextos não obtinham sucesso em outros.<br />
Embora não haja uma linearidade clara de mudanças de perspectivas<br />
e focos, muitos pesquisadores em Psicologia, Educação e<br />
Linguística Aplicada intensificaram as investigações em aspectos diversos<br />
que influenciam a aprendizagem, como, por exemplo, inteligência,<br />
aptidão, idade, estilos e estratégias de aprendizagem
210<br />
(SPOLSKY, 1989; LIGHTBOWN & SPADA, 1993; TARONE &<br />
YULE, 1999; ELLIS, 2000).<br />
2. Um pouco de história sobre as estratégias<br />
Em 1975, o trabalho da linguista americana Joan Rubin<br />
(1975), What the “good language learner” can teach us., deu impulso<br />
a um crescente interesse pelas estratégias de aprendizagem. É comum<br />
que a obra seja considerada um marco para a área, sendo referência<br />
quase obrigatória em estudos e publicações sobre estratégias.<br />
Na década de 90, os trabalhos de Anita Wenden, Rebecca Oxford,<br />
Andrew Cohen, Chamot e O' Malley ajudaram a tornar as estratégias<br />
em tema amplamente pesquisado e discutido. O livro Language<br />
Learning Strategies: what every teacher should know, de Rebecca<br />
Oxford (1990), é uma obra de referência. A obra combina discussões<br />
teóricas sobre de estratégias de aprendizagem e orientações<br />
para práticas em sala de aula para a identificação das estratégias empregadas<br />
por aprendizes e para o ensino de estratégias.<br />
Outros motivos podem ter contribuído para a popularização<br />
do livro da pesquisadora. Vejamos alguns destes possíveis motivos.<br />
A autora oferece o maior inventário de estratégias. Em obra anterior,<br />
O`Malley e Chamot (1990) sinalizavam que Oxford publicaria em<br />
breve o mais extenso inventário de estratégias disponível. A autora<br />
publica ainda aquele que se tornaria o questionário mais empregado<br />
para a identificação de estratégias de aprendizagem: SILL (Strategy<br />
Inventory for Language Learning). Um fator que, apesar de sutil,<br />
pode ter sido um diferencial foi a menor articulação entre estratégias<br />
e cognitivismo. No início de seu livro, Oxford reconhece que muitos<br />
estudos de estratégias eram vistos demasiadamente de forma cognitivista.<br />
A pesquisadora afirma que:<br />
Estratégias de aprendizagem de línguas não estão restritas às funções<br />
cognitivas (...). As estratégias também incluem funções comunicativas<br />
como planejamento, avaliação e organização da própria aprendizagem; e<br />
funções emocionais (afetivas), sociais, assim como outras funções. Infelizmente,<br />
muitos especialistas não prestaram atenção suficiente às estratégias<br />
sociais e afetivas no passado. (...) É provável que a ênfase venha a<br />
se tornar mais equilibrada, porque a aprendizagem de línguas é, indubitavelmente,<br />
um processo emocional e interpessoal, assim como eventos<br />
cognitivos e metacognitivos. (OXFORD, 1990, p. 11)
211<br />
Esta afirmação pode ter atraído a atenção de adeptos e defensores<br />
da abordagem comunicativa e dos críticos da psicologia cognitiva.<br />
A experiência indica que, infelizmente, muitos pesquisadores<br />
em linguística aplicada restringem, de forma indevida, os estudos de<br />
estratégias a investigações cognitivistas.<br />
Com a virada do milênio, as estratégias continuam a ser pesquisadas<br />
em diversos contextos. No caso específico do Brasil, podemos<br />
encontrar vários trabalhos sobre estratégias de aprendizagem de<br />
línguas realizados por pesquisadores brasileiros nos últimos anos<br />
(ALMEIDA, 2002; VILAÇA, 2003, 2009, 2010; FIGLIOLINI,<br />
2004; GOMES, 2004; CARDOSO, 2005; ARAÚJO-SILVA, 2006;<br />
LOPES, 2007, entre outros). No entanto, a quantidade de pesquisas<br />
poderia ser maior.<br />
3. O que são estratégias de aprendizagem?<br />
Convém apresentar as duas definições mais empregadas na literatura.<br />
O`Malley & Chamot (1990, p. 1) definem as estratégias de<br />
aprendizagem como “pensamentos ou comportamentos especiais que<br />
os indivíduos usam para ajudá-los a compreender, aprender ou reter<br />
nova formação”. Acrescentam ainda que “as estratégias de aprendizagem<br />
são modos especiais de processamento de informações que<br />
melhoram a compreensão, a aprendizagem, ou retenção de informações”.<br />
No livro Language Learning Strategies: what every teacher<br />
should know, Oxford (1990, p. 1) afirma que:<br />
Estratégias de aprendizagem são passos dados pelos estudantes para<br />
melhorar sua aprendizagem. As estratégias são especialmente importantes<br />
na aprendizagem de línguas porque elas são ferramentas para um envolvimento<br />
ativo e autodirigido, o que é essencial para o desenvolvimento<br />
da competência comunicativa. Estratégias de aprendizagem de línguas<br />
apropriadas resultam em proficiência aperfeiçoada e maior autoconfiança.<br />
Em termos gerais, as estratégias podem ser compreendidas<br />
como comportamentos, técnicas, ações e ferramentas empregadas<br />
para a aprendizagem e o uso de uma língua (OXFORD, 1990; CO-<br />
HEN, 1998).
4. Porque pesquisar estratégias de aprendizagem?<br />
212<br />
Em trabalho anterior (VILAÇA, 2010), discuto um panorama<br />
sobre as pesquisas em estratégias de aprendizagem. As formas mais<br />
empregadas de investigação são caracterizadas naquele trabalho.<br />
Neste artigo, algumas discussões são brevemente retomadas. Entretanto,<br />
convém salientar que a prioridade aqui é apontar a relevância e<br />
possíveis contribuições dos estudos envolvendo estratégias de aprendizagem<br />
de línguas.<br />
As pesquisas sobre estratégias de aprendizagem de línguas estão<br />
predominantemente relacionada a quatro aspectos (VILAÇA,<br />
2010), que são:<br />
1. Estudo e descrição do bom aluno de línguas<br />
2. Aprendizagem Autônoma<br />
3. Pesquisa centrada no aluno<br />
4. Ensino ou treinamento estratégico<br />
Nas próximas seções, focaremos em cada um destes aspectos<br />
de forma objetiva, buscando compreender possíveis contribuições<br />
práticas de cada um deles. É necessário reconhecer que eles não se<br />
encontram isolados. Em outras palavras, uma pesquisa pode abordar<br />
vários ou até mesmo os quatro aspectos relacionados.<br />
Em termos práticos, as pesquisas em estratégias realizadas em<br />
salas de aulas apresentam dois objetivos principais:<br />
ü Identificação de estratégias empregadas<br />
ü Ensino de estratégias de aprendizagem<br />
A identificação de estratégias de aprendizagem permite identificar<br />
o que o aluno faz durante a aprendizagem de uma língua ou<br />
em situações comunicativas. É possível, portanto, traçar um perfil estratégico<br />
do aluno. O perfil estratégico possibilita relacionar as estratégias<br />
a outros fatores, tais como crença, motivação, autonomia,<br />
idade, gênero, estilos, entre muitos outros. Pesquisas desta natureza<br />
apresentam propósito analítico-descritivo.
213<br />
Diferentes instrumentos de pesquisa podem ser empregados<br />
para a identificação das estratégias. Os principais são questionários,<br />
formulários, entrevistas, diários, gravações em áudio ou vídeo. A identificação<br />
de estratégias pode ocorrer antes, durante e depois da atividade<br />
de aprendizagem (COHEN, 1998).<br />
Com base no perfil estratégico, o professor pode compreender<br />
melhor como o aluno tende a abordar e gerenciar a própria aprendizagem.<br />
Os desenhos e focos de pesquisas podem ser variados.<br />
Muitas vezes a pesquisa enfoca uma habilidade linguística específica<br />
(produção oral, leitura, por exemplo) ou em componente de aprendizagem<br />
(vocabulário e gramática, por exemplo) (VILAÇA, 2010). A<br />
identificação de estratégias é o objetivo mais comum nas pesquisas<br />
em estratégias.<br />
Outro objetivo predominante nas pesquisas sobre estratégias é<br />
o ensino de estratégias, também referenciado na literatura como ensino<br />
estratégico (strategic teaching), treinamento do aprendiz (learner<br />
training), treinamento estratégico (strategy training), entre outras<br />
possíveis denominações.<br />
Este objetivo de pesquisa encontra amplo suporte na literatura<br />
sobre ensino de línguas estrangeiras (COHEN, 1998 e 2003; ELLIS,<br />
2000; BROWN, 2001; NUNAN, 2002; OXFORD, 2002 e 2004;<br />
CHAMOT, 2004a). É possível ensinar estratégias com diferentes abordagens<br />
e em diferentes contextos (aulas, oficinas e seminários,<br />
materiais didáticos, entre outras possibilidades). O ensino de estratégia<br />
apresenta um propósito instrumental-formador, uma vez que pretende<br />
preparar melhor o aprendiz para a aprendizagem e o uso de<br />
línguas.<br />
Pesquisas indicam que o ensino de estratégias pode contribuir<br />
para que os alunos:<br />
a) aprendam a aprender línguas (BROWN, 2001; HAR-<br />
RIS et al, 2001; NUNAN, 2002, OXFORD, 2002 e 2004,<br />
CHAMOT, 2004a, 2004b, 2005; COTTERALL & REIN-<br />
DERS, 2005, CHEN, 2007)<br />
b) desenvolvam autonomia (COTTERALL, 2000; GRIF-<br />
FITHS & PARR, 2001; NUNAN, 2002; CHAMOT, 2005;<br />
CARDOSO, 2005; PAIVA, 2005, SILVA, 2006).
214<br />
c) desenvolvam a competência comunicativa (OXFORD,<br />
1990; COHEN, 1998)<br />
d) ampliem a metacognição (RUBIN, 1975; WENDEN,<br />
1986; COHEN, 1998, CHAMOT, 2004a; MICELI &<br />
MURRAY, 2005)<br />
e) expandam seus estilos de aprendizagem (REID, 1995,<br />
OXFORD, 2001)<br />
O quadro abaixo se propõe a oferecer uma síntese destas duas<br />
principais formas de pesquisas em estratégias de aprendizagem de<br />
línguas.<br />
Tipos Básicos de Pesquisa em Estratégias de Aprendizagem<br />
Identificação e Descrição<br />
das Estratégias<br />
Ensino de Estratégias<br />
Propósito: analítico-descritivo instrumental-formador<br />
Objetivos Identificar as estratégias empre- Ensinar a aprender línguas;<br />
mais cogadas; Desenvolver a autonomia;<br />
muns: Relacionar o uso de estratégias a Ampliar o nível de conscien-<br />
variáveis específicas, tais como tização sobre a aprendizagem;<br />
idade, gênero, cultura, estilo, en- Desenvolver a competência<br />
tre muitos outros;<br />
comunicativa;<br />
Caracterizar os bons aprendizes; Desenvolver a metacognição;<br />
Identificar estratégias específicas Expandir os estilos de apren-<br />
por habilidade linguística;<br />
Elaborar inventários de estratégiasdizagem<br />
O ensino de estratégias não deve ser entendido como um treinamento<br />
mecanicista sem reflexão sobre a aprendizagem. Trate-se,<br />
na verdade, de uma possibilidade de instrumentalização e capacitação<br />
do aprendiz, seja este um aluno formal, um usuário da língua ou<br />
um autodidata, para melhor lidar com o processo de aprendizagem.<br />
Outro cuidado importante é não restringir o ensino de estratégias a<br />
metodologias específicas. Adotando abordagens diferentes, as estratégias<br />
podem ser ensinadas de forma direta/explícita ou indireta/implícita,<br />
integradas ou não ao programa de ensino.<br />
A identificação das estratégias empregadas pelos alunos costuma<br />
anteceder o ensino de estratégias. Com isso, o pesquisador busca<br />
avaliar as estratégias que devem ser ensinadas e/ou priorizadas.<br />
Neste caso, é comum que as pesquisas comparem o uso de estratégias,<br />
muitas vezes por meio de relatos verbais, antes e depois do en-
215<br />
sino das estratégias. O perfil estratégico possibilita melhor planejamento<br />
das estratégias, em especial quando o tempo e as oportunidades<br />
são limitados.<br />
É possível dividir o ensino de estratégias em amplo ou restrito,<br />
quanto à diversidade de tipos de estratégias. No ensino amplo, estratégias<br />
de diferentes naturezas e classificações são ensinadas, tais<br />
como cognitivas, metacognitivas etc. Por outro lado, no ensino restrito<br />
o ensino foca em um tipo de estratégia (cognitiva, por exemplo).<br />
Pesquisas sobre ensino de estratégias de aprendizagem podem<br />
contribuir significativamente para a elaboração de materiais didáticos,<br />
não apenas para os materiais didáticos publicados e comerciais,<br />
mas para materiais desenvolvidos pelos próprios professores em suas<br />
salas de aula. Uma das vantagens da inclusão de estratégias em materiais<br />
didáticos é a maior integração das estratégias às atividades e tarefas<br />
pedagógicas, o que permite maior possibilidade de contextualização<br />
e assimilação das mesmas.<br />
Outras contribuições do ensino de estratégias são possíveis.<br />
No entanto, este trabalho apontou aquelas que são mais discutidas da<br />
literatura. No caso da competência comunicativa, muitos autores<br />
pesquisam estratégias de comunicação. O termo requer cuidado,<br />
uma vez que estratégias comunicativas podem ter pouca relação com<br />
as estratégias de aprendizagem. Este caso fica mais evidente em estudos<br />
que analisam estratégias de comunicação em língua materna,<br />
nos discursos escritos e orais. Em outras palavras, o conceito de estratégias<br />
de comunicação pode não estar relacionado à aprendizagem<br />
de línguas. Isto se deve ao abrangente emprego do termo estratégia<br />
em estudos e pesquisas em Linguística e da Linguística Aplicada.<br />
Em Vilaça (2010, p. 22) aponto que:<br />
Este fato pode ser facilmente constatado no Glossário de Linguística<br />
Aplicada, publicado por Almeida Filho & Schmitz (1998). A publicação,<br />
um glossário bilíngue (Português-Inglês) de termos em Linguística Aplicada,<br />
apresenta mais de uma centena de ocorrências do termo estratégia.<br />
Termos que incluem, por exemplo, estratégias didáticas, estratégias fonéticas<br />
e estratégias discursivas.
5. Considerações finais<br />
216<br />
Este trabalho tem por objetivo estimular estudos e pesquisas<br />
sobre estratégias de aprendizagem. Tentar aprofundar algumas discussões<br />
aqui ofereceria riscos de superficialidade. Por este motivo,<br />
na medida do possível, o artigo procurou apresentar objetividade na<br />
apresentação das possibilidades e nas possíveis contribuições das<br />
pesquisas de estratégias.<br />
Considerando as dificuldades normalmente encontradas por<br />
professores de línguas estrangeiras, tais como tempo limitado, alunos<br />
desnivelados, é possível considerar que o ensino de estratégias de<br />
pode oferecer novas formas de instrumentalização do aluno para uma<br />
aprendizagem ativa e produtiva, buscando desenvolver cada vez<br />
mais diferentes competências e habilidades necessárias à aprendizagem<br />
e ao uso de uma língua estrangeira.<br />
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A IMPORTÂNCIA DO PARATEXTO<br />
NA EDIÇÃO DO TEXTO TEATRAL VEGETAL VIGIADO,<br />
DE NIVALDA COSTA<br />
1. Considerações iniciais<br />
Débora de Souza (UFBA)<br />
deboras_23@yahoo.com.br<br />
Rosa Borges dos Santos (UFBA)<br />
borgesrosa6@yahoo.com.br<br />
O presente trabalho se realiza a partir de estudos desenvolvidos<br />
no Grupo de Edição e Estudo de textos teatrais censurados na<br />
Bahia, coordenado pela Profa. Dra. Rosa Borges dos Santos (UFBA)<br />
que tem como principal objetivo recuperar e interpretar, por meio de<br />
atividade filológica, o texto teatral censurado no período da ditadura<br />
milita, na Bahia, assim como ao trabalho de conclusão de curso, intitulado<br />
Vegetal Vigiado, de Nivalda Costa: texto e censura (por uma<br />
análise de estratégias para driblar a censura), apresentado à Universidade<br />
do Estado da Bahia – UNEB, Salvador, 2009.<br />
O corpus 1 utilizado neste trabalho encontra-se no acervo do<br />
Espaço Xisto Bahia, à Biblioteca Pública do Estado da Bahia, e no<br />
arquivo privado de Nivalda Costa, ambos em Salvador. Os documentos<br />
integram também o arquivo Textos Teatrais Censurados, digital,<br />
organizado pelo referido grupo de pesquisa.<br />
Propõe-se, então, tratar da importância de materiais que se<br />
constituem em elementos paratextuais que servem à transcrição e à<br />
edição do texto teatral Vegetal Vigiado, de Nivalda Costa, produzido<br />
e censurado na época da ditadura militar, na Bahia. Observa-se, desse<br />
modo, em proposta de análise que se quer interpretativa, a grande<br />
contribuição desse vasto campo da paratextualidade constituído de<br />
materiais que cercam o texto. Justifica-se a realização deste trabalho<br />
pela possibilidade de contribuir com a recuperação, a preservação e a<br />
1 O texto aqui tomado como objeto de estudo faz parte do corpus utilizado por esta pesquisadora<br />
na pesquisa de mestrado em desenvolvimento no Programa de Pós-Graduação em Literatura<br />
e Cultura da Universidade Federal da Bahia – (UFBA).
222<br />
transmissão do patrimônio cultural escrito baiano no que tange à literatura<br />
dramática.<br />
2. Crítica textual: edição e estudo do texto teatral<br />
Uma verdadeira leitura filológica é ativa; implica adentrar no processo<br />
da linguagem já em funcionamento nas palavras e fazer com que<br />
revele o que pode estar oculto, incompleto, mascarado ou distorcido em<br />
qualquer texto que possamos ter diante de nós (SAID, 2007, p. 82).<br />
Nesse sentido, a crítica textual é concebida como método crítico,<br />
histórico e cultural que se aplica à análise de diferentes textos<br />
para decifrá-lo, interpretá-lo e explicá-lo enquanto processo e produto<br />
de determinada sociedade. Na crítica textual moderna, aplicada a<br />
texto com original disponível, em que se busca estabelecer uma forma<br />
autorizada do mesmo, têm-se como objeto textos modernos e<br />
contemporâneos, dos quais se dispõem, muitas vezes, de materiais<br />
pré, para e pós- textuais.<br />
No exercício filológico os textos são tomados como verdadeiros<br />
indivíduos históricos (PÉREZ PRIEGO, 1997), documentos e<br />
monumentos de uma sociedade, sendo o editor um mediador, que oferece<br />
ao público, uma possível leitura, resultado de um estudo efetivado<br />
em momento específico, que supõe a tomada de uma série de<br />
decisões criticas.<br />
No campo da crítica textual, e da crítica de processo, em que<br />
se estudam processos de criação, no Brasil, são quase inexistentes<br />
edições científicas de textos teatrais. Segundo Gadelha (1993, p.<br />
147) o texto teatral, efêmero por natureza, exige uma edição que seja<br />
elaborada segundo critérios científicos. A autora assevera:<br />
No caso da literatura dramática brasileira, chega a ser alarmante o<br />
estado de conservação dos textos: perderam-se incontáveis manuscritos;<br />
outros jazem à mercê do humor de traças, ratos e baratas nos porões das<br />
bibliotecas; alguns textos do passado desfiguraram-se pela sucessão de<br />
edições nada criteriosas; outros, ainda, acenam apenas com o seu título<br />
para os dias atuais, como fantasmas clamando pela chance de ascender<br />
aos céus.<br />
Chartier (2002) também chama atenção para o modo de<br />
transmissão de peças de teatro que têm sido largamente ignoradas<br />
pela história literária, mostrando que as modalidades de transmissão
223<br />
eram múltiplas, o que criou mais instabilidade textual. Nesse sentido,<br />
o autor afirma ser necessário o cruzamento entre crítica textual e história<br />
cultural, propondo uma análise do processo de produção, publicação,<br />
circulação e recepção dos textos.<br />
No Instituto Nacional de Artes Cênicas – INACEN, órgão do<br />
Ministério da Cultura, elaboraram-se edições nas áreas da dramaturgia<br />
brasileira e do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (MA-<br />
RINHO, 1986).<br />
Segundo Santos (2008), na Bahia, a Secretaria de Cultura e<br />
Turismo e a Universidade Federal da Bahia são responsáveis pelo<br />
fomento à produção bibliográfica na área teatral, em regime de cooperação<br />
mútua e de parceria com organizações profissionais da área,<br />
como o Teatro Vila Velha e o Teatro XVIII. A autora ressalta ainda a<br />
contribuição dada pelo grupo de pesquisa que coordena, Edição e<br />
Estudo de Textos Teatrais Censurados na Bahia, desde 2006.<br />
Na atividade de edição de textos teatrais, deve-se considerar a<br />
natureza literária e cênica desse objeto, que se configura como texto<br />
escrito e como performance. O elemento cênico é parte integrante do<br />
processo de escritura teatral, como afirma Grésillon (1995, p. 282):<br />
“o componente cênico coexiste com o texto desde o projeto inicial,<br />
embora de modo latente, não dito, até mesmo não dizível, como que<br />
recalcado pelo código da linguagem escrita”.<br />
Portanto, aqui, toma-se o texto escrito como objeto de estudo,<br />
levando-se em conta a arte dramática em sua totalidade, texto escrito<br />
e elementos cênicos (gestos, cenário, espaço, iluminação etc.). Dessa<br />
forma, deve-se entender a produção teatral como resultado de uma<br />
colaboração, pois o tecido teatral está sujeito a várias transformações,<br />
efetivadas pelo dramaturgo, pelo diretor, pelo encenador, pelos<br />
atores etc.<br />
Nessa perspectiva, os textos teatrais são partes de um sistema<br />
múltiplo e instável, não existindo como obra acabada, definitiva, pois<br />
estão sempre em contínuo movimento. Os “próprios autores reconhecem<br />
implicitamente, por sua prática, que, em matéria de escritura<br />
teatral, têm dificuldade em admitir que a obra tenha realmente chegado<br />
a seu termo” (GRÉSILLON, 1995, p. 271).
224<br />
Percebe-se, portanto, a necessidade de elaboração de edições<br />
confiáveis desses textos, levando-se em conta as suas peculiaridades,<br />
contribuindo-se com a recuperação, a preservação e a transmissão do<br />
patrimônio cultural escrito dramático.<br />
3. Nivalda Costa e sua produção teatral<br />
Nivalda Silva Costa, dramaturga, diretora, atriz e poetisa baiana,<br />
começou a fazer teatro no período ginasial, no Colégio Estadual<br />
Severino Vieira, em Salvador – BA. Segundo Costa o teatro pode e<br />
deve despertar diversas sensações, tem que fazer “[...] chorar, pensar,<br />
suar, rasgar e gritar” 2 , pois todas as emoções são possíveis. Desse<br />
modo, utilizando a arte dramática como uma arma frente ao regime<br />
militar, a diretora assevera: “[...] nossas vidas aqui era fazer arte,<br />
uma arte de driblar leões e atacar dragões e essa era nossa arma” 3 .<br />
Destacam-se aqui textos teatrais da dramaturga produzidos na<br />
época da ditadura militar, que fazem parte de uma série de estudos<br />
cênicos sobre relações entre poder e espaço, arquivados no Acervo<br />
do Espaço Xisto Bahia, localizado à Biblioteca Pública do Estado da<br />
Bahia, e no Arquivo Privado da diretora. Os espetáculos teatrais foram<br />
apresentados, em sua maioria, pelo Grupo de Experiências Artísticas,<br />
Testa, companhia criada por Costa.<br />
Têm-se, portanto, as seguintes produções: Aprender a Nada-r<br />
[1975]; Hamlet, Príncipe da Dinamarca [1976]; O Pequeno Príncipe<br />
ou Ciropédia [1976]; Pequeno Príncipe: aventuras [1977]; Vegetal<br />
Vigiado [1977]; Anatomia das Feras [1978]; Glub! Estória de um<br />
Espanto [1979]; Paixão, o caminho do ressurgir [1980]; Casa de<br />
Cães Amestrados [1980]. 4<br />
Nesse conjunto dos textos que compõem a produção teatral de<br />
Nivalda Costa, observa-se que em seu processo de escritura, ou de<br />
2 Informação verbal obtida em entrevista em 2007, em Salvador.<br />
3 Informação verbal obtida em entrevista em 2007, em Salvador.<br />
4 Em entrevista concedida ao grupo Edição e estudo de textos teatrais censurados na Bahia,<br />
em 2009, Costa informou as datas dos textos, pois nenhum é datado.
225<br />
criação, a dramaturga faz bricolagem de texto alheio, e ainda retoma<br />
sua obra e a reescreve, sempre quando necessário.<br />
Para entender o processo de construção dos textos daquela diretora,<br />
portanto, deve-se levar em conta “[...] os documentos como a<br />
correspondência, os testemunhos de terceiros, os artigos de imprensa,<br />
as obras consultadas antes ou durante a redação, que o geneticista<br />
de qualquer modo inclui tacitamente em suas análises [...]” (GRÉ-<br />
SILLON, 2007, p. 281). Dessa forma, faz-se de suma importância os<br />
materiais pré, para e pós- textuais no trabalho de interpretação e edição<br />
dos textos teatrais censurados.<br />
3.1. Edição do texto teatral vegetal vigiado: a importância<br />
dos elementos paratextuais<br />
No trabalho de edição e de interpretação do texto teatral Vegetal<br />
Vigiado, desde o início, mostraram-se relevantes os materiais<br />
que se constituem em elementos paratextuais. Nesse sentido, fazemse<br />
necessárias algumas considerações sobre paratexto.<br />
Paratextualidade é um dos cinco tipos de transtextualidade<br />
designadas por Gérard Genette (2006). O paratexto configura-se como<br />
tudo o que auxilia o leitor na interpretação de um texto, desse<br />
modo, tratam-se de<br />
[...] título, subtítulo, intertítulos, prefácios, posfácios, advertências,<br />
prólogos, etc.; notas marginais, de rodapé, de fim de texto; epígrafes; ilustrações;<br />
errata, orelha, capa, e tantos outros tipos de sinais acessórios,<br />
autógrafos ou alógrafos, que fornecem ao texto um aparato (variável) e<br />
por vezes um comentário, oficial ou oficioso, do qual o leitor, o mais purista<br />
e o menos vocacionado à erudição externa, nem sempre pode dispor<br />
tão facilmente como desejaria e pretende (GENETTE, 2006, p. 9-10).<br />
Nessa perspectiva, o conjunto de materiais que se constituem<br />
em elementos paratextuais veicula diversas informações que acompanham<br />
e/ou prolongam uma obra, situados na periferia do texto,<br />
mediando a atividade de leitura e interpretação entre leitor e texto,<br />
leitor e autor, leitor e mundo editorial.<br />
Segundo Telles (2006, p. 39) “o paratexto é composto de um<br />
conjunto heterogêneo de práticas e de discursos que reúne, entretan-
226<br />
to, uma visão comum, aquela que consiste ao mesmo tempo em informar<br />
e em convencer, afirmar e argumentar”.<br />
O paratexto se divide em dois grandes subconjuntos, o peritexto<br />
e o epitexto, como aponta Genette (1997). O peritexto agrupa<br />
os paratextos previamente elaborados para o texto maior, como rascunhos,<br />
esboços, projetos diversos, e o epitexto se refere a materiais<br />
que circulam fora da obra, como entrevistas, correspondências, notícias<br />
em jornais e revistas etc.<br />
Nesse sentido, alguns elementos paratextuais, entrevistas com<br />
Nivalda Costa concedidas ao Grupo de Pesquisa em 2007 e em 2009,<br />
uma notícia veiculada no jornal A Tarde, na Bahia, e desenhos do<br />
cenário, ajudaram no processo de interpretação e de edição do texto<br />
teatral Vegetal Vigiado, pois obtiveram-se informações sobre as circunstâncias<br />
de produção e de recepção da obra, bem como sobre a<br />
produção teatral da dramaturga, suas concepções estéticas e ideológicas,<br />
e sua atuação frente ao regime militar através do teatro.<br />
Em entrevista, a dramaturga revelou que o espetáculo Vegetal<br />
Vigiado, com estreia marcada e cenário pronto, foi proibido de ser<br />
encenado pelo Departamento de Censura. Essa proibição provocou<br />
também o cancelamento da apresentação do espetáculo em São Paulo,<br />
pois, após o ocorrido, passaram-se os prazos, realizando-se apenas<br />
leituras dramáticas da peça em Salvador.<br />
A partir de uma notícia veiculada no jornal A Tarde, na Bahia,<br />
em 11 de setembro de 1977, podem-se esclarecer um pouco mais<br />
os fatos, pois se noticiava a estreia da montagem relatada em entrevista<br />
por Costa, essa estava marcada para o dia 12 de outubro, no Solar<br />
do Unhão, em Salvador. Na notícia, comentava-se ainda a atuação<br />
de Nivalda Costa como diretora, o que também ajuda a entender<br />
sua participação no teatro baiano.<br />
Outro material paratextual relevante são os desenhos/plantas<br />
do cenário da peça concedidos ao Grupo de Pesquisa pela diretora,<br />
em que se podem visualizar as grandes estruturas que constituiriam o<br />
cenário. Essa informação ajuda a entender a produção teatral de Nivalda<br />
Costa, pois muito significam, e a perceber como a dramaturga<br />
estava envolvida na composição de diferentes tessituras da montagem.
227<br />
Outro fato esclarecido em entrevista diz respeito às datas dos<br />
testemunhos. O texto teatral Vegetal Vigiado é representado em sua<br />
tradição 5 , por dois testemunhos: 1. datiloscrito em papel vegetal,<br />
com 10 folhas, submetido ao exame dos órgãos de censura, apresenta<br />
carimbos da Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP), do<br />
Departamento da Polícia Federal (DPF), no ângulo superior direito; e<br />
outro da Sociedade Brasileira de Atores Teatrais ¾ Bahia (SBAT),<br />
além de carimbos “CORTE”, em tinta preta, às folhas 5 e 6, datado<br />
de 1977 (VV (1977)); 2. digitoscrito em papel ofício, com intervenções<br />
à mão, em tinta azul e vermelha, com 16 folhas, de 1978 (VV<br />
(1978)).<br />
O esclarecimento quanto à data dos testemunhos ajudou na<br />
escolha do texto de base, em que se adotou, para o estabelecimento<br />
do texto crítico, o testemunho VV (1978) por se tratar, até aquele<br />
momento, de último estado do texto modificado pela dramaturga.<br />
Pode-se ainda desfazer a dúvida quanto ao mecanismo de registro,<br />
máquina elétrica ou computador, do testemunho VV (1978).<br />
Intervenções também foram esclarecidas. Nos textos, observam-se<br />
algumas intervenções à tinta azul e vermelha, de modo que<br />
as intervenções da dramaturga confundem-se com as de outras pessoas,<br />
dificultando a identificação autoral de tais transformações 6 . Pode-se<br />
esclarecer, por exemplo, no testemunho VV (1977) uma intervenção<br />
feita pelo censor, à mão, em tinta azul, bem como outras feitas<br />
pela própria dramaturga. Em VV (1978), pode-se confirmar a hipótese<br />
de intervenções autorais, à mão, tinta azul e vermelha, obtendo-se<br />
ainda a informação de que existia outro sujeito no processo de<br />
escritura que datilografava e/ou digitava os textos da diretora.<br />
Questões textuais próprias à linguagem cifrada usada por<br />
muitos dramaturgos durante o regime opressor também foram explanadas.<br />
Cita-se, como exemplo, o jogo de palavras empreendido com<br />
5 Em entrevista concedida ao Grupo de Pesquisa em novembro de 2007, Costa revelou que a<br />
versão original da peça Vegetal Vigiado foi escrita, na verdade, em uma grande folha verde,<br />
entretanto, a dramaturga não fez referência ao que aconteceu com o testemunho.<br />
6 Aqui, não se tratam de intervenções explicitamente identificadas como estabelecidas pelos<br />
censores no trecho censurado, como retângulos, sublinhados e palavras “cortes” ou “com cortes”,<br />
assim como os carimbos observados.
229<br />
plicar e editar uma obra plural, oferecendo ao público diverso um<br />
texto teatral a ser lido, encenado e estudado.<br />
4. Considerações finais<br />
Na pesquisa desenvolvida pelo Grupo de Edição e Estudo de<br />
textos teatrais censurados na Bahia, coordenado pela Profa. Dra.<br />
Rosa Borges (UFBA), tem-se buscado reunir os seguintes materiais<br />
que se constituem em elementos paratextuais: 1. Pesquisa de fontes,<br />
recortes de jornais sobre espetáculos teatrais, críticas, comentários,<br />
citações, processos encaminhados pelos serviços de censura, parecer<br />
censório, relatório de observação do ensaio geral e certificado de<br />
censura; 2. Entrevistas com dramaturgos e com pessoas ligadas às<br />
peças. A partir desses materiais paratextuais pode-se melhor conhecer<br />
o autor e suas idiossincrasias, as circunstâncias de produção e recepção,<br />
o processo de criação etc., auxiliando na leitura e na interpretação<br />
do texto teatral a ser editado. Na edição crítica do texto teatral<br />
censurado Vegetal Vigiado, dessa forma, mostraram-se de fundamental<br />
relevância os elementos paratextuais, auxiliando sobremaneira<br />
na interpretação e no estabelecimento do texto.<br />
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
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na época moderna (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Casa da<br />
Palavra, 2002.<br />
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2007]. Entrevistadores: Luís César Souza e Iza Dantas. Salvador,<br />
2007. 1 CD. Entrevista concedida ao Grupo de Edição e Estudo de<br />
textos teatrais produzidos na Bahia no período da ditadura.<br />
COSTA, Nivalda. Vegetal Vigiado: depoimento [fev. 2009]. Entrevistador:<br />
Débora de Souza. Salvador, 2009. 1 CD. Entrevista concedida<br />
ao Grupo de Edição e Estudo de textos teatrais produzidos na<br />
Bahia no período da ditadura.<br />
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Espaço Xisto Bahia. Pasta nº. 83C.
230<br />
COSTA, Nivalda. Vegetal Vigiado. Salvador. 1978. 16 f. Arquivo<br />
Privado de Nivalda Costa.<br />
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1993, João Pessoa. Anais... João Pessoa, UFPB, 15 a 18 de outubro<br />
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GENETTE, Gerard. Palimpsestos: a literatura de segunda mão. Extratos<br />
traduzidos por Luciene Guimarães e Maria Antonia Ramos<br />
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TELLES, Célia Marques. O paratexto e a filologia. In: TEIXEIRA,<br />
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dos estudos filológicos. Salvador: Quarteto, 2006.<br />
VEGETAL Vigiado. A Tarde, Salvador, 11 set. 1977.
A IMPORTÂNCIA DOS QUADROS<br />
E PARÂMETROS LINGUÍSTICOS<br />
PARA O ENSINO E APRENDIZAGEM DE LÍNGUAS<br />
1. Introdução<br />
Carmem Praxedes (UERJ/USP)<br />
clpraxedes@yahoo.it<br />
Este trabalho faz parte de uma pesquisa sobre Educação Linguística<br />
1 que estamos desenvolvendo em colaboração com a Universidade<br />
de São Paulo – USP, dando continuidade a estudos anteriores<br />
a que temos nos dedicado no Instituto de Letras da UERJ. Especificamente<br />
nesta parte da pesquisa, o nosso objetivo é contrastar os dois<br />
principais documentos de referência linguística no Brasil e na Itália:<br />
os Parâmetros Curriculares Nacionais – PCNs e o Quadro Comum<br />
Europeu de Ensino Aprendizagem e Avaliação de Línguas – Framework,<br />
para, conjuntamente à aproximação de outros resultados sobre<br />
o assunto, organizar uma tipologia das culturas educacionais linguísticas<br />
destes dois países. A nossa referência teórica básica é PIERINI<br />
(2003) para o contraste; PAIS (2003) e ECO (1993) para a tipologia<br />
das culturas.<br />
2. O quadro comum europeu de referência para as línguas: aprender,<br />
ensinar, avaliar 2 – Framework<br />
O Quadro é um documento produzido pela Divisão de Políticas Linguísticas<br />
(Estrasburgo, França) do Conselho da Europa (Cf.<br />
www.coe.int), cujo último estágio de sua produção ocorreu após o<br />
ano de 1991 com a preciosa colaboração de professores e pesquisadores<br />
europeus e extracomunitários.<br />
1 Educação Linguística: Legalidade, legitimidade e legitimização – implicações semióticas.<br />
2 Título original: Common European Framework of Reference for Languages, Learning, Teaching,<br />
Assessment-CEFR.
233<br />
O Framework, como é chamado o quadro, é produto da política<br />
de integração europeia que vem sendo implementada neste continente<br />
desde o término da 2ª grande Guerra Mundial. Neste contexto,<br />
sinaliza-nos Balboni (2005) que, logo após a devastação da 2ª<br />
Guerra, todos os países Europeus criaram o Conselho da Europa, para<br />
encontrar na cultura comum uma maneira de sobreviver.<br />
Desde então, podemos notar a grande importância do Quadro<br />
para a Comunidade Europeia, ou seja, ele é um movimento linguístico<br />
em busca da unificação do continente e também uma resposta àqueles<br />
(USA) que se consideravam hegemônicos no mundo 3 . Ele é<br />
oferecido àqueles que pensavam que a Europa iria se silenciar nas<br />
cinzas do seu sofrimento, deixando os americanos dominarem o<br />
mundo como déspotas esclarecidos.<br />
Com vistas à implementação de uma série de medidas revitalizadoras<br />
do continente europeu, foi criado o Conselho da Europa,<br />
cujo objetivo principal é encontrar na cultura comum um modo de<br />
sobrevivência e reconstrução dos Estados Europeus.<br />
O Conselho da Europa – COE - com sede em Estrasburgo, na<br />
França, foi fundado em 05 de maio de 1949, através do Tratado de<br />
Londres, com o objetivo de promover a democracia, os direitos humanos,<br />
a identidade cultural e a busca de soluções para as sociedades<br />
da Europa (Cf. http://pt.wikipedia.org/wiki/Conselho_da_Europa). O<br />
seu principal instrumento de ação é oferecer aos estados membros as<br />
condições necessárias para o estabelecimento de acordos, intercâmbios<br />
e convênios.<br />
A União Europeia foi criada para consolidar os ideais do<br />
Conselho da Europa com um caráter supragovernamental e intergovernamental,<br />
desde 1º de janeiro de 2007, compreendendo 27 Estados<br />
que aderiram aos seus pressupostos, a partir do Tratado de Maastrichit,<br />
de 07 de fevereiro de 1992.<br />
3 Balboni (2005, p. 2) “(...) nos últimos anos os Estados Unidos repetiram diversas vezes, da<br />
Casa Branca, do Pentágono, dos Jornais; a Europa é o continente curvado sobre si mesmo,<br />
sobre os seus velhos habitantes aposentados que destroem os balanços estatais com as suas<br />
obstinadas sobrevivências (...) a Europa é aquela do velho catolicismo e do velho protestantismo<br />
e da velha ortodoxia, tradicionalista, voltada para o passado, enquanto a América neocom<br />
é aquela dos Born again, os renascidos que olham para frente e se esquecem (...) do<br />
passado de alcoolizados”.
234<br />
Num contexto cuja proposta, que fora apreendida a partir dos<br />
dados da realidade vivida e sofrida pelos europeus, era integrar-se<br />
para não se entregar, unir-se para não se destruir, tolerar para não<br />
massacrar, tornava-se evidente que o fio condutor da integração europeia<br />
não poderia percorrer toda a Europa, se não fosse através do<br />
compartilhar os saberes linguísticos e culturais das diversas nações<br />
componentes do território europeu. Tendo isto em vista, a valorização<br />
do ensino, aprendizagem e avaliação das línguas vivas, traduz-se<br />
na busca de compreender e reconhecer o outro; não através do filtro<br />
modelador de uma língua franca, que é na atualidade a língua inglesa,<br />
conforme fora no passado o latim, mas através da ruptura da praga<br />
de Babel.<br />
A grande percepção europeia não saiu do nada, do vazio, da<br />
destruição, mas do exercício purificador do sofrimento, sinalizador<br />
da possibilidade da inexistência do l’avenir, de um futuro colocado<br />
no calabouço solitário das paixões emanadas pelo desejo de alguns<br />
de dominar o mundo. Neste contexto, os europeus propuseram a aceitação<br />
da Babel, não mais para confundir e separar, mas para esclarecer<br />
e unir. Entendeu-se, finalmente, que valorizar a identidade de<br />
cada língua significa buscar romper a casca que envolve em um casulo<br />
a essência humana, tão bem manifestada através das línguas naturais.<br />
Valorizar as línguas e a linguagem humanas é o caminho para<br />
abrir as portas para a mútua e pacífica convivência, para a tolerância,<br />
para o amor e para a união das nações. Imaginem os europeus, habitantes<br />
do Velho Mundo, com as suas culturas em contato, com o seu<br />
percurso histórico; podendo conversar entre si na busca do autoconhecimento<br />
e da salvaguarda do continente, fazendo uso, cada vez<br />
mais, de suas línguas maternas?<br />
Mais do que uma língua de trânsito, função da língua franca,<br />
tentativa unicista de tradução/versão de todas as línguas em uma só,<br />
desconsiderando os limites e as amplitudes do fazer tradutório das<br />
culturas manifestadas por cada língua natural; o que queriam os europeus<br />
era estabelecer a paz e esta não se faria sem a compreensão<br />
dos gestos e atos dos povos que estejam constantemente em contato.<br />
Além disso, externamente, impunha-se o domínio cada vez mais<br />
crescente dos americanos, efetivos ganhadores das duas grandes<br />
guerras mundiais, era, então, necessário equilibrar a balança do poder<br />
internacional; ou isto ou a subserviência.
235<br />
Assim, a Europa se organizou através do Conselho da Europa<br />
e, posteriormente, da União Europeia e, entre as medidas tomadas<br />
para a efetiva ocorrência desta união, esteve a da criação de uma<br />
comissão de estudiosos de línguas que desenvolveu o Quadro Comum<br />
Europeu de Ensino-aprendizagem e Avaliação de Línguas –<br />
Framework – CEFR.<br />
O Quadro Comum Europeu, no seu contexto político e educativo,<br />
segue rigorosamente o objetivo geral do Conselho da Europa<br />
em suas recomendações do Comitê dos Ministros, ou seja, alcançar a<br />
maior unidade possível entre os seus membros, para a adoção de um<br />
método comum no domínio cultural. No que concerne às línguas vivas,<br />
o trabalho do Conselho da Cooperação Cultural, estruturado após<br />
a criação do Conselho maior (Conselho da Europa) em torno a<br />
uma série de projetos de caráter intermediário, fundamentou a sua<br />
coerência e continuidade sobre a adesão a três princípios:<br />
1º Que o rico patrimônio que representa a diversidade linguística<br />
e cultural na Europa constitui um recurso comum precioso que<br />
nos convém salvaguardar e desenvolver e que todos os esforços consideráveis<br />
se impõem na área da Educação, a fim de que esta diversidade,<br />
diferentemente de ser um obstáculo à comunicação, torne-se<br />
um recurso de enriquecimento e compreensão recíprocas.<br />
2º Que é somente através de um melhor conhecimento das<br />
línguas vivas europeias que se conseguirá facilitar a comunicação e<br />
as trocas entre os europeus de línguas maternas diferentes e, portanto,<br />
favorecer a mobilidade, a compreensão recíproca e a cooperação<br />
na Europa e, por conseguinte, eliminar os prejuízos da discriminação.<br />
3º Que os estados membros, ao adotar ou ao desenvolver uma<br />
política nacional na área de ensino-aprendizagem de línguas vivas,<br />
poderão oportunizar uma ação conjunta europeia com vistas à cooperação<br />
constante entre os seus estados.<br />
Com a finalidade de colocar em prática tais princípios, o comitê<br />
dos ministros solicitou aos governos dos estados membros a<br />
promoção nacional e internacionalmente das políticas governamentais<br />
e não governamentais, expondo os seus métodos de ensinoaprendizagem<br />
e avaliação de línguas, no que se refere especifica-
236<br />
mente à aprendizagem de línguas vivas e à produção e utilização de<br />
material, inclusive os multimídia.<br />
Da mesma forma, o comitê determinou que todos os estados<br />
deverão fazer o necessário para estabelecer um lugar eficaz no sistema<br />
europeu de informações englobando todos os aspectos da aprendizagem,<br />
ensino e pesquisa das línguas vivas com a adoção das mais<br />
avançadas tecnologias da informação e da comunicação.<br />
Consequentemente, as atividades do Conselho da Cooperação<br />
Cultural, seu Comitê de Educação e sua Secção de Línguas Vivas estão<br />
focalizados sobre o encorajamento, a sustentação e a coordenação<br />
de esforços dos estados membros e das organizações não governamentais<br />
para o melhoramento da aprendizagem das línguas, de acordo<br />
com os princípios fundamentais e, notadamente, o método seguido<br />
para colocar em prática as medidas gerais apresentadas nos<br />
anexos da Recomendação R (82) 18.<br />
As medidas de caráter geral que foram tomadas para a implementação<br />
do Framework consideraram que todos os países membros<br />
devem, na medida do possível:<br />
Desenvolver esforços para tornar possível que todos os meios<br />
de adquirir conhecimentos das línguas dos outros estados membros<br />
(ou de outras comunidades linguísticas no seu próprio país, considerando<br />
que muitos países da UE convivem com dialetos) sejam, efetivamente,<br />
disponibilizados a todas as classes sociais.<br />
Possibilitar o uso das línguas da comunidade para satisfazer<br />
as necessidades de comunicação de seus habitantes, sempre que necessário,<br />
estando eles em seu país de nascimento ou em trânsito pela<br />
União Europeia.<br />
Incentivar a troca de informações e de ideias entre os jovens e<br />
adultos através de outra língua, além da materna, de modo a comunicar<br />
os seus pensamentos e sentimentos e melhor compreender o modo<br />
de vida e a mentalidade de outros povos e os seus patrimônios<br />
culturais.<br />
Promover, encorajar e apoiar os esforços dos professores e alunos<br />
que, em todos os níveis, se disponibilizem a aplicar, de acordo<br />
com a realidade de cada um, os princípios de aprendizagem das lín-
237<br />
guas, conforme o definido no programa “Línguas Vivas” do Conselho<br />
da Europa, a saber:<br />
· Fundamentar o ensino e a aprendizagem das línguas sobre<br />
as necessidades, as características e os recursos dos aprendizes.<br />
· Definir, com o máximo de precisão, os objetivos válidos e<br />
realistas.<br />
· Elaborar os métodos e os materiais apropriados.<br />
· Propor modelos de instrumentos que permitam a avaliação<br />
dos programas de aprendizagem.<br />
· Promover os programas de pesquisa e de desenvolvimento,<br />
visando introduzir, em todos os níveis de ensino, os<br />
métodos e materiais com as melhores adaptações para<br />
permitir aos aprendizes de diferentes grupos adquirir uma<br />
atitude comunicativa correspondente as suas necessidades<br />
particulares.<br />
O Preâmbulo à recomendação R (98) reafirma os objetivos<br />
políticos de suas ações na área das línguas vivas, a saber:<br />
· Preparar todos os Europeus para uma possível intensificação<br />
da mobilidade internacional e cooperação entre eles,<br />
não somente educacional, cultural ou científica, mas igualmente<br />
para o comércio e a indústria.<br />
· Promover a compreensão e a tolerância mútuas, respeito<br />
das identidades e diversidades culturais para uma comunicação<br />
internacional mais eficaz.<br />
· Encorajar a desenvolver as riquezas e a diversidade da vida<br />
cultural na Europa para um conhecimento mútuo das<br />
línguas nacionais e regionais, compreendendo os meios<br />
mais largamente ensinados.<br />
· Atender às necessidades de uma Europa multilíngue e<br />
multicultural, desenvolvendo sensivelmente a capacidade<br />
de os Europeus se comunicarem, para além das fronteiras<br />
linguísticas e culturais.
238<br />
· Evitar os prejuízos que poderão ser causados àqueles que<br />
não possuam as capacidades necessárias para se comunicar<br />
em uma Europa interativa.<br />
Tem-se consciência de que todos os esforços deverão ser encorajados,<br />
concretamente organizados e financiados, em todos os níveis<br />
do sistema educativo pelos organismos competentes.<br />
O processo de produção do Framework e sua elaboração contaram<br />
com a colaboração de ilustres professores europeus e não europeus.<br />
É importante, todavia, destacar que o Framework é uma referência<br />
para o ensino-aprendizagem e avaliação de línguas em território<br />
Europeu, sem possuir a força impositiva da lei. Entretanto, os objetivos<br />
que nortearam a sua produção, bem como a qualificação da<br />
equipe envolvida lhe ofereceu uma grande respeitabilidade entre educadores<br />
e profissionais de línguas de todo o mundo.<br />
Os dois objetivos principais do Quadro são:<br />
· Encorajar professores e pesquisadores de línguas vivas a pensar<br />
sobre quais as habilidades e competências linguísticas e<br />
discursivas eles desejam que seus alunos desenvolvam, para<br />
tanto foram propostas algumas questões:<br />
a- O que nós fazemos exatamente no momento da troca oral<br />
ou escrita com outras pessoas?<br />
b- O que nos faz agir desta ou daquela maneira?<br />
c- Qual parte da aprendizagem é necessária a fim de que possamos<br />
utilizar uma nova língua.<br />
d- Como nós fixamos os objetivos e demarcamos nosso progresso<br />
entre ignorância total e a organização mental de sua<br />
matriz mínima?<br />
e- Como se efetiva a aprendizagem de uma língua?<br />
f- O que nós professores fazemos para ajudar as pessoas a aprender<br />
melhor uma língua?<br />
· Facilitar as trocas de informação entre os professores e os alunos,<br />
a fim de que os primeiros possam dizer aos segundos o
239<br />
que esperam deles em termos de aprendizagem e como eles<br />
tentarão ajudá-los.<br />
a- O que o aprendiz terá necessidade de fazer com a língua?<br />
b- O que se necessita aprender para ser capaz de utilizar a língua<br />
com os fins previamente estabelecidos?<br />
c- Por que o aprendiz quis aprender uma determinada língua?<br />
d- Quem é o aprendiz (idade, sexo, posição social e nível de<br />
instrução)?<br />
e- Quais são os conhecimentos, profissões e experiências do<br />
aprendiz e o que ele pretende fazer com a língua?<br />
f- Em qual medida o aprendiz tem acesso a manuais, a obras<br />
de referência gramáticas, dicionários etc.), a meios audiovisuais<br />
e informativos; materiais didáticos.<br />
g- Quanto tempo o aprendiz poderá ou será capaz de dedicar à<br />
aprendizagem de uma língua?<br />
A partir desta análise da situação de ensino-aprendizagem, é<br />
fundamental definir com o máximo de precisão os objetivos imediatamente<br />
avaliáveis, de acordo com as necessidades dos estudantes,<br />
considerando também as suas características individuais e os meios<br />
operacionais disponíveis. Há diversos parceiros com os quais devemos<br />
contar para o bom andamento do processo de ensinoaprendizagem<br />
de línguas, destacamos entre eles a quantidade de professores<br />
(instrutores, estagiários) dentro da sala de aula; a quantidade<br />
de administradores e técnicos de ensino; a relação e a possibilidade<br />
de contato presencial com autores e editores de manuais; pois existem<br />
bons livros e materiais que não são devidamente explorados pelos<br />
docentes; o uso das novas tecnologias da informação e comunicação<br />
– TIC.<br />
Mas, para além de todo um aparato didático e tecnológico, é<br />
fundamental que tenhamos uma equipe coesa e coerente na aplicação,<br />
desenvolvimento e avaliação dos percursos e objetivos propostos,<br />
cada um no seu domínio, trabalhando no mesmo sentido de orientar<br />
os estudantes no desenvolvimento das habilidades e competências<br />
linguísticas e discursivas.
240<br />
Tendo em vista o acima exposto, podemos notar que o Framework<br />
foi elaborado com a intenção de buscar responder a certas<br />
questões de transparência e coerência, sendo o mais exaustivo o possível<br />
em suas respostas. Em seu âmbito, entende-se por competências<br />
um saber-fazer e as atitudes que lhes são correlatas (não basta<br />
saber-fazer, é também importante considerar como se fez).<br />
Compreende-se também que o uso de uma língua é forjado ao<br />
longo da experiência de cada um, mas que cabe ao professor estimular<br />
o aluno à vivência da língua em situações modelos a serem propostas<br />
em seu cotidiano de aprendizagem, ou seja, é possível aprender<br />
a falar francês mesmo sem nunca ter ido à França! E é para isto<br />
que existe o professor de língua estrangeira: ele é um representante<br />
linguístico-cultural e afetivo de uma determinada língua, caberá a ele<br />
dar os passos iniciais para inserir o aprendiz em outro mundo e se esta<br />
inserção for bem feita, a continuidade da aprendizagem ocorrerá<br />
de forma tranquila e satisfatória, tornando a experiência singular e<br />
multiplicadora.<br />
Para tanto, o professor de línguas necessitará propor atividades<br />
que demonstrem os usos de uma mesma língua em diversos contextos<br />
sociais. Neste sentido, os organizadores do Framework propuseram<br />
fichas modelos 4 , a fim de que os professores possam acompanhar<br />
mais cuidadosamente o processo de aprendizagem de seus alunos.<br />
É também importante destacar que os órgãos de certificação<br />
em línguas estrangeiras da Europa estão seguindo os modelos do<br />
Framework, especialmente aqueles do Portfólio Europeu de Línguas<br />
– PEL, para conferir os seus diplomas. Sendo assim, é importantíssimo<br />
que professores e alunos, que estejam se preparando para tais<br />
certificações, tenham em mãos o PEL, para verificar se conseguiram<br />
desenvolver as competências e habilidades prognosticáveis. Além<br />
disso, ainda precisamos destacar que a certificação no nível C2 do<br />
Quadro 5 ; que possui seis níveis divididos em 90h cada, totalizando<br />
4 Referimo-nos ao Portfolio Européen des langues. Contact: Division des Langues Vivantes. Direction<br />
Générale IV. Conseil de L’Europe, Strasbourg, France. Site Internet:<br />
http://culture.coe.int/lang 2000 Conseil de l’Europe, Strasbourg, France.<br />
5 O quadro possui seis níveis, a saber: A1, A2, B1, B2, C1, C2.
241<br />
540h; permitirá o acesso a quem a tenha obtido em uma universidade<br />
da UE. 6<br />
3. Parâmetros Curriculares Nacionais<br />
No Brasil é a Secretaria de Educação Básica que deve zelar<br />
pela educação infantil, ensino fundamental e ensino médio. Segundo<br />
fontes do Ministério da Educação brasileiro – MEC:<br />
A educação básica é o caminho para assegurar a todos os brasileiros<br />
a formação comum indispensável para o exercício da cidadania e fornecer-lhes<br />
os meios para progredir no trabalho e em estudos posteriores.<br />
São dois os principais documentos norteadores da educação básica: a Lei<br />
de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), Lei nº 9.394, de 20<br />
de dezembro de 1996 e o Plano Nacional de Educação (PNE), Lei nº<br />
10.172/2001, regidos, naturalmente, pela Constituição da República Federativa<br />
do Brasil. 7<br />
Além dos documentos acima, existem os Parâmetros Curriculares<br />
Nacionais, que foram divididos em três partes; a primeira contempla<br />
o 1º ciclo do ensino fundamental, a segunda o 2º ciclo e a terceira<br />
o ensino médio. Os parâmetros têm o valor de referência para a<br />
educação nacional. Sua natureza não é, nem pretendeu ser, impositiva,<br />
todavia, a proposta que os nortearam buscou, em meio à construção<br />
de um eixo comum de caráter nacional, propiciar aos estados e<br />
municípios a possibilidade de, conjuntamente às comunidades representativas,<br />
tanto dos profissionais de educação quanto de pais e alunos,<br />
fazer as suas próprias escolhas sem perder de vista a base comum<br />
para todos os brasileiros.<br />
O contexto histórico oficial dos PCNs advém da participação<br />
do Brasil, em 1990, da Conferência Mundial de Educação para Todos,<br />
em Jomtien, na Tailândia, que foi convocada pela Unesco, Unicef,<br />
PNUD e Banco Mundial. Desta conferência e da Declaração de<br />
6 Até aqui retomamos parte de um artigo nosso: "Quadro comum europeu de ensinoaprendizagem<br />
e avaliação de línguas – o que falta ao cone sul para seguir este exemplar modelo<br />
de integração multicultural?" Disponível em:<br />
.<br />
7 ,<br />
Acesso em 15 set. 2009.
242<br />
Nova Delhi, países em desenvolvimento, como o Brasil, buscaram<br />
posições consensuais para a Educação. Tendo em vista a grandeza de<br />
tal acordo, o MEC coordenou a Elaboração do Plano Decenal da Educação<br />
(1993-2003), que foi um conjunto de diretrizes políticas em<br />
contínuo processo de negociação, voltado para a recuperação da escola<br />
fundamental, a partir do compromisso com a equidade e com o<br />
incremento da qualidade, bem como da constante avaliação dos sistemas<br />
escolares, com vistas ao seu contínuo aproveitamento.<br />
Para a elaboração dos PCNs consideraram-se as propostas<br />
curriculares dos Estados e Municípios brasileiros, a análise realizada<br />
pela Fundação Carlos Chagas sobre os currículos oficiais, dados estatísticos<br />
sobre o desempenho dos alunos do ensino fundamental, experiências<br />
de sala de aula difundidas em encontros, seminários e<br />
congressos, publicações e ainda as experiências de outros países.<br />
Posteriormente, organizou-se uma proposta inicial, que, após um<br />
processo de discussão em âmbito nacional, tendo envolvido professores<br />
e técnicos de ensino de diversos níveis de ensino, em 1995 e<br />
1996, foram gerados aproximadamente 700 pareceres sobre a proposta<br />
inicial. Após a reelaboração desta proposta e sua ampla divulgação<br />
e discussão, considerou-se que era necessária uma política de<br />
implementação da proposta educacional, além das possibilidades de<br />
atuação das Universidades e das Faculdades de Educação para a melhoria<br />
do ensino nas séries iniciais com impacto na formulação de<br />
propostas para a elaboração de novos programas de formação de professores,<br />
o que está obrigatoriamente vinculado à implementação dos<br />
PCNs.<br />
Assim temos a vinculação hierárquica existente entre Constituição<br />
da República, Lei de Diretrizes e Bases da Educação - LDB,<br />
Plano Nacional de Educação e Parâmetros Curriculares Nacionais.<br />
A Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988 –<br />
determina no Título II – Dos Direitos e Garantias Fundamentais –<br />
Capítulo I – Art. 5º "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de<br />
qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros<br />
residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à<br />
igualdade e à propriedade (...)".<br />
No Capítulo II – Dos Direitos Sociais – Art. 6º: "São direitos<br />
sociais a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previ-
243<br />
dência social, a proteção à maternidade e à família, a assistência aos<br />
desamparados, na forma desta constituição".<br />
Na LDB, destaca-se que o objetivo maior do ensino é o de<br />
propiciar, ainda no ensino fundamental, a todos os cidadãos a formação<br />
básica para a cidadania, criando nas escolas as condições de aprendizagem<br />
para:<br />
I - o desenvolvimento da capacidade de aprender, tendo como meios básicos<br />
o pleno domínio da leitura, da escrita e do cálculo;<br />
II - a compreensão do ambiente natural e social, do sistema político, da<br />
tecnologia, das artes e dos valores em que se fundamenta a sociedade;<br />
III - o desenvolvimento da capacidade de aprendizagem, tendo em vista a<br />
aquisição de conhecimentos e habilidades e a formação de atitudes e valores;<br />
IV - o fortalecimento dos vínculos de família, dos laços de solidariedade<br />
humana e de tolerância recíproca em que se assenta a vida social”(art.<br />
32). (Fonte: MEC/SEF, 1997).<br />
No que se refere ao ensino e aprendizagem de línguas, a<br />
LDB, 9.394/96 – Art.36 – III preconiza que “será incluída uma língua<br />
estrangeira moderna, como disciplina obrigatória, escolhida pela<br />
comunidade escolar, e uma segunda, em caráter optativo, dentro das<br />
disponibilidades da instituição” (LDB, 1999, p. 31).<br />
Diante de tal redação, é já esperado que aqueles menos comprometidos<br />
com um projeto educacional que tenha seriedade usem o<br />
eterno argumento dos gastos que impedem a inclusão de mais uma<br />
língua, além da Inglesa, mesmo que de forma optativa. Em geral, são<br />
poucas as escolas, públicas ou particulares, que buscam estabelecer<br />
convênios, parcerias e intercâmbios nacionais e internacionais, com<br />
vistas a viabilizar o ensino-aprendizagem de línguas estrangeiras. Da<br />
parte para o todo, do Brasil para toda a América do Sul, quantos são<br />
os estudantes que são incentivados a ir e vir para desenvolver os seus<br />
estudos linguísticos?<br />
Diante da falta de atitude dos governantes e da pouca insistência<br />
da população, como e quando teremos uma integração tal qual<br />
a que está ocorrendo na UE, onde os estudantes universitários po-
244<br />
dem, amparados pelo Projeto Erasmus, cursar o último ano da faculdade<br />
em um outro país da UE? 8<br />
Entretanto, para que isto ocorra, é necessário implementar,<br />
pelo menos, a parte do PCNs relativa às Linguagens, seus Códigos e<br />
Tecnologias, para que, rompendo as barreiras das línguas faladas no<br />
Continente Americano (Inglês, Espanhol, Francês e Português), possamos<br />
ter as portas abertas a um projeto multicultural.<br />
Sobre os PCNs, destacamos aqui o artigo de Rojo e Lopes<br />
(2004) em que os autores demonstram a incompletude dos PCNs, no<br />
que diz respeito à ausência ou pouca referenciação às mudanças de<br />
estrutura, organização, gestão e práticas didáticas que seriam necessárias<br />
para a realização dos princípios e diretrizes expostos nos documentos<br />
legais.<br />
Logo de início, notamos uma longa distância entre aquilo que<br />
está posto no texto legal da LDB ou no texto propositivo dos PCNs e<br />
a prática na maioria das instituições educacionais brasileiras, ou seja,<br />
de que maneira são aprofundadas questões como: pensar em cidadania,<br />
enquanto um saber-ser no mundo, conhecer línguas enquanto<br />
ferramentas de compreensão do mundo e suas culturas e propiciar<br />
aos alunos vivências em educação tecnológica básica?<br />
A crítica dos autores é relativa à operacionalização dessas<br />
metas, i. é; ao como tornar legítimo aquilo que é legal – LDB – e<br />
como legitimizar aquilo que, pelo processo de sua produção e pelos<br />
atores envolvidos, já nasceu legítimo. No entanto, a legitimização<br />
ampla e irrestrita consistirá na realização de suas metas e pressupostos<br />
no cotidiano escolar.<br />
Sobre as definições de legalidade e legítimo, vejamos o que é<br />
apresentado no Dicionário de Ciências Sociais da FGV:<br />
Legalidade: Em sua estrita significação etimológica, legalidade<br />
é a qualidade que acompanha a conduta ou a realidade que obedece<br />
a alguma lei. Como afirma L. Legaz Lacambra em Filosofia del<br />
Derecho (Barcelona, Bosch, 1953), legalidade significa, no sentido<br />
mais amplo e mais geral, a existência de leis e a submissão a elas dos<br />
8 Aqui nos referimos a intercâmbios prioritariamente no Continente Americano.
245<br />
atos de todos aqueles que lhes estão sujeitos. Esse conceito refere-se<br />
à legalidade social em sentido restrito.<br />
O mesmo dicionário expõe o seguinte sobre legitimidade:<br />
Legitimidade diz respeito: a) à condição de uma criança presumivelmente<br />
gerada ou nascida na constância do casamento, implicando direitos<br />
e obrigações filiais absolutas; ou b) à condição real, válida e aceita,<br />
de governantes, instituições, movimentos políticos e sistemas de domínio,<br />
decorrente da conformidade de tais governantes, instituições, movimentos<br />
e sistemas de autoridade com alguma lei, princípio ou fonte de<br />
autorização.<br />
No âmbito deste trabalho, entendemos o termo legalidade<br />
como aquilo que está previsto na lei e obriga, portanto, todos os cidadãos<br />
a cumprir.<br />
Legitimidade como aquilo que mesmo não tendo a força da<br />
lei, devido ao processo de sua criação, desenvolvimento ou implementação,<br />
tem uma força social tão grande que deveríamos considerá-lo<br />
como se fosse lei.<br />
E por legitimização entendemos os processos pelos quais passaram<br />
ou passou (ou passarão ou passará) um dado fato, documento<br />
ou ser para se tornar aceito(s) por todos.<br />
4. Considerações finais<br />
No Brasil não se aprendem línguas nas escolas, conforme os<br />
objetivos do Framework. Raríssimas exceções existem e, na maioria<br />
das vezes, são movidas pelo esforço de alguns docentes, que doam as<br />
suas vidas à Educação e ao Ensino. Em geral, pagando um preço<br />
muito caro por tal comprometimento. E isto se deve, antes de tudo, à<br />
falta de uma política educacional que considere a educação linguística<br />
como uma prioridade nacional, logicamente que isto implicaria ter<br />
previamente considerado a Educação como a base da sociedade.<br />
Diferentemente da valorização e aplicação do Framework na<br />
Itália e na Europa, no Brasil, os PCNs são vistos como algo enfadonho<br />
que não servem para nada. Exemplo disto é o lugar que ele ocupa<br />
nos programas e ementas dos currículos das licenciaturas. Em alguns<br />
casos, é lançado um olhar crítico aos PCNs no âmbito da disciplina<br />
Estrutura e Funcionamento de Ensino, mas muito raramente há
246<br />
um aprofundamento específico por área do conhecimento, i. é; nas<br />
Letras, dar-se-ia maior ênfase às Linguagens seus Códigos e suas<br />
Tecnologias, por exemplo. Expor e discutir os PCNs nas Faculdades<br />
e Institutos de Formação propiciaria a modificação do quadro atual<br />
de inércia na aplicação dos parâmetros ou ainda, para aqueles que<br />
não defendem a sua aplicação; a sua possível modificação. Só não<br />
podemos nos manter no espaço do não legal e do não legítimo, fossilizando<br />
ainda mais os processos de ensino-aprendizagem que dependam<br />
das línguas, ou seja, grande parte deles.<br />
A questão é muito grave, mas parece ficar oculta, pois não<br />
ganha muito espaço na mídia, nem nos eventos científicos, nem nas<br />
escolas. A postura tomada é a da aceitação que a aprendizagem de<br />
línguas não seja algo a ser feito nas escolas. Paradoxalmente, o<br />
mesmo professor que não é capaz de fazer o seu aluno aprender uma<br />
determinada língua na escola, trabalha em curso de língua, em que é<br />
capaz de levar a termo tal aprendizagem. Muitos atribuem tal insucesso<br />
ao fato de terem muitos alunos em sala, diferentemente do que<br />
ocorre nos cursos de idioma, que têm no máximo 20 alunos por turma,<br />
todavia, mesmo em algumas escolas, que podem dividir as turmas<br />
em grupos de 10 ou 15 alunos, os estudantes apresentam problemas<br />
na aprendizagem de línguas estrangeiras 9 , o que implica no<br />
não desenvolvimento satisfatório das quatro habilidades linguísticas<br />
ao término de anos de estudos. Modestamente, é possível esperar que<br />
todos os estudantes alcancem o desempenho de um nível B1 do<br />
Framework ao término da Educação Básica e isto levando em conta<br />
as diferenças cognitivas existentes em cada indivíduo.<br />
4.1. Compreender<br />
4.1.1. Competência Oral<br />
Sou capaz de compreender os pontos essenciais de uma sequência<br />
falada que incida sobre assuntos correntes do trabalho, da escola, dos<br />
tempos livres, etc. Sou capaz de compreender os pontos principais de<br />
muitos programas de rádio e televisão sobre temas atuais ou assuntos de<br />
interesse pessoal ou profissional, quando o débito da fala é relativamente<br />
lento e claro.<br />
9 Diga-se e também na aprendizagem da língua materna.
4.1.2. Competência Leitora<br />
4.2. Falar<br />
247<br />
Sou capaz de compreender textos em que predomine uma linguagem<br />
corrente do dia-a-dia ou relacionada com o trabalho. Sou capaz de compreender<br />
descrições de acontecimentos, sentimentos e desejos, em cartas<br />
pessoais.<br />
4.2.1. Interação oral<br />
Sou capaz de lidar com a maior parte das situações que podem surgir<br />
durante uma viagem a um local onde a língua é falada. Consigo entrar,<br />
sem preparação prévia, numa conversa sobre assuntos conhecidos, de interesse<br />
pessoal ou pertinentes para o dia a dia (por exemplo, família, passatempos,<br />
trabalho, viagens e assuntos da atualidade).<br />
4.2.2. Produção oral<br />
Sou capaz de articular expressões de forma simples para descrever<br />
experiências e acontecimentos, sonhos, desejos e ambições. Sou capaz de<br />
explicar ou justificar opiniões e planos. Sou capaz de contar uma história,<br />
de relatar o enredo de um livro ou de um filme e de descrever as minhas<br />
reações.<br />
4.3. Escrever<br />
Sou capaz de escrever um texto articulado de forma simples sobre<br />
assuntos conhecidos ou de interesse pessoal. Sou capaz de escrever cartas<br />
pessoais para descrever experiências e impressões. (Cf.<br />
http://europass.cedefop.europa.eu).<br />
As competências e habilidades descritas acima foram extraídas<br />
do Passaporte Europeu de Línguas PEL, que aqui inserimos como<br />
citação porque o consideramos um modelo bem organizado e que<br />
poderia ser utilizado também no Brasil, provavelmente, com pequenas<br />
adequações, sem que isto implique num processo de aculturação.<br />
Contudo, muito mais do que uma referência de descritores de competências<br />
e habilidades linguísticas, o que necessitamos é de divulgar,<br />
discutir, rever, enfim analisar os PCNs e Quadros Linguísticos<br />
com os estudantes dos cursos de Formação Docente, para que o futuro<br />
do ensino e aprendizagem de línguas na Educação Básica propicie<br />
a nossa população ter um alcance linguístico além-fronteira, ou seja,
248<br />
possuindo condições de acessar estudos, pesquisas, entrevistas, jogos<br />
etc., sem depender da barra de tradução do Google, que, diga-se, nos<br />
serve muito bem como amostragem de que línguas não são etiquetas,<br />
conforme afirmou Hjelmslev. Com esta tomada de decisão estaremos<br />
contribuindo para viabilizar um dos princípios da LDB: "o desenvolvimento<br />
da capacidade de aprender, tendo como meios básicos o<br />
pleno domínio da leitura, da escrita (...)".<br />
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Tecnológica. Brasília: MEC; SEMTEC, 2002. PCN+Ensino Médio:<br />
Orientações Educacionais complementares aos Parâmetros Curriculares<br />
Nacionais.<br />
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LOPES, M. & ROJO, Rojo. Linguagens, códigos e suas tecnologias.<br />
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Acesso em: abr. 2006.<br />
PAIS, C. T. Le lexique et la semiotique de la culture: quelques<br />
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PARÂMETROS Curriculares Nacionais: introdução aos parâmetros<br />
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PARÂMETROS Curriculares Nacionais: Linguagens, códigos e suas<br />
tecnologias. / Secretaria de Educação Média e Tecnológica – Brasília<br />
: MEC ; SEMTEC, 2002. PCN + Ensino Médio: Orientações Educacionais<br />
complementares aos Parâmetros Curriculares Nacionais.<br />
Disponível em:<br />
. Acesso em: 22 jul. 2010.<br />
PIERINI, L. Principi di Linguistica Contrastiva. Università di Roma<br />
Tre. & Consorzio Icon Italian Culture On the Net, 2003.
1. Introdução<br />
A INFUÊNCIA DA ORALIDADE<br />
NA PRODUÇÃO TEXTUAL ESCRITA<br />
Tays Angélica Rezende (UFJF)<br />
trezende85@hotmail.com<br />
Hoje, sabe-se muito mais sobre as relações entre oralidade e<br />
escrita do que há algumas décadas. Porém, pode-se perceber que tal<br />
estudo não se encontra bem propagado e nem está relacionado com a<br />
prática.<br />
Este artigo tem como objetivo analisar as marcas da oralidade<br />
presentes em produções textuais escritas por alunos do 3º ano do Ensino<br />
Fundamental, do Colégio de Aplicação João XXIII, da cidade<br />
de Juiz de Fora, contribuindo assim para um melhor conhecimento<br />
dos usos da língua.<br />
Para que esse trabalho se concretizasse, acompanhou-se a rotina<br />
de dois professores de Língua Portuguesa durante um ano letivo.<br />
Dessa forma, foram coletadas cerca de sessenta produções textuais<br />
realizadas pelos alunos; e esse material é a base do nosso estudo.<br />
O propósito é observar quais características de oralidade são<br />
mais empregadas no texto escrito desses alunos e a partir dessas observações,<br />
pretende-se refletir a importância do professor de língua<br />
portuguesa trabalhar com atividades relacionadas à língua oral e a<br />
escrita. Assim, nos abarcaremos das visões de Luiz Antônio Marcuschi<br />
(2008), Eric Havelock (1976), Harvey Graff (1995), Jânia Ramos<br />
(1997) sobre oralidade, escrita e linguagem.<br />
Além disso, realiza-se uma revisão literária dos PCNs de língua<br />
portuguesa de 2ª a 4ª série com o objetivo de analisar o seu parecer<br />
em relação ao trabalho em foco.<br />
Enfim, procuraremos estabelecer relações entre os estudos<br />
feitos por esses autores em relação à oralidade e à escrita com o que<br />
observamos em sala de aula e a partir daí corroborar ou não com a<br />
bibliografia.
2. Fundamentação teórica<br />
251<br />
Segundo Marcuschi (2008), o moderno homo sapiens tem<br />
cerca de um milhão de anos e a escrita surgiu há apenas 5.000 anos,<br />
exceto no Ocidente em que começou a ser usada cerca de 2.500 anos<br />
atrás.<br />
Para Eric Havelock (1976), a tardia entrada da escrita na humanidade<br />
e sua repentina valorização podem ser explicadas como<br />
um fato biológico-histórico, pois o homo sapiens emprega o discurso<br />
oral para se comunicar. Esse uso verbal foi conseguido ao longo de<br />
um milhão de anos por processos de seleção natural. O costume de<br />
usar “símbolos linguísticos” para representar a fala é um dispositivo<br />
que existe há pouco tempo.<br />
Os estudos de Michael Tomasello (1976), antropólogo evolucionista,<br />
corrobora a afirmação de Eric Havelock. Tomasello, ao partir<br />
da discussão Darwiniana para contestar a evolução, descobriu que<br />
os 6 milhões de anos que separam os seres humanos de outros macacos<br />
é um tempo muito curto do ponto de vista da evolução, ou seja,<br />
não houve tempo suficiente para que os processos de evolução biológica<br />
criassem habilidades cognitivas tais como nossa complexa<br />
forma de comunicação. Pesquisas atuais revelam que apenas nos últimos<br />
2 milhões de anos a linhagem humana deixou de apresentar<br />
apenas habilidades cognitivas típicas de grandes macacos, e os primeiros<br />
sinais contundentes de habilidades cognitivas únicas da espécie<br />
surgiram apenas nos últimos 200 mil anos com o Homo sapiens.<br />
Para Tomasello, o único mecanismo biológico que poderia<br />
ocasionar esse tipo de mudança é a “transmissão social ou cultural”.<br />
Os seres humanos têm modos de transmissão cultural únicos da espécie,<br />
seus artefatos culturais e tradições se acumulam ao longo do<br />
tempo de uma maneira que não ocorre nas outras espécies.<br />
Refletindo sobre essas observações, enquanto os homo sapiens<br />
surgiram há cerca de dois milhões de anos, a escrita surgiu há<br />
pouco mais de cinco mil anos. O fato é que a fala não perdeu seu lugar<br />
para a escrita, como afirma Graff (1995):<br />
A despeito das décadas nas quais os estudiosos vêm proclamando<br />
uma queda na difusão da cultura oral ‘tradicional”, a partir do advento<br />
da imprensa tipográfica móvel, continua igualmente possível e significa-
252<br />
tivo situar o poder persistente de modos orais de comunicação. (GRAFF,<br />
1995, p. 37)<br />
De acordo com Marcuschi (2008) “Oralidade e escrita são<br />
práticas e usos da língua com características próprias, mas não suficientemente<br />
opostas para caracterizar dois sistemas lingüísticos.”<br />
(MARCUSCHI, 2008, p. 17). Ramos (1997), toma a mesma concepção<br />
de Marcuschi ao afirmar que, “a correlação entre fala e a escrita<br />
está num continuum das práticas sociais.” (Ramos, 2007 p. 16). Para<br />
esses dois autores, a língua falada e a escrita não estão divididas e<br />
sim interligadas.<br />
3. Metodologia<br />
A partir das ideias apresentadas anteriormente, pretende-se,<br />
em um primeiro momento, destacar algumas marcas de oralidade<br />
mais freqüentes nas produções textuais escritas pelos alunos do 3º<br />
ano do Colégio de Aplicação João XXIII.<br />
Observamos que as dificuldades encontradas por esses estudantes<br />
foram: repetição de palavras, ausência de pontuação, marcadores<br />
conversacionais e erros ortográficos relacionados à fala.<br />
Em relação à repetição de palavras, analisou-se casos como:<br />
1. (...) Então depois de noite e noite o fazendeiro percebeu que um novilho<br />
não estava lá. O fazendeiro foi na casa grande o fazendeiro desceu do<br />
cavalo e pegou o chicote e deu uma surra de chicote no negrinho do pastoreio<br />
o negrinho levantou (...)<br />
2. (...) o patrão pediu ele cuidar dos novilhos dele ele saiu com os novilhos<br />
e ele deixou o novilho e perdeu um novilho(...)<br />
Observou-se que essa repetição corresponde a uma estratégia<br />
conversacional de manutenção de uma seqüência narrativa. Pode-se<br />
perceber que os trechos apresentados demonstram desconhecimento<br />
dos recursos disponíveis na língua para se evitar a repetição e manter<br />
a coesão textual. No entanto, deve-se lembrar que o corpus do trabalho<br />
desenvolvido aqui deriva-se de crianças que acabaram de ser alfabetizadas<br />
e não aprenderam, ainda, recursos gramaticais para se<br />
adequarem à norma culta padrão.
253<br />
No entanto, houve exceções. Notamos em alguns dos textos<br />
analisados, alunos que se mostraram conhecedores da norma culta<br />
padrão.<br />
1. (...) Numa fazenda muito grande morava um fazendeiro com sua mulher.<br />
Ele criava escravos que procuravam fazer tudo direitinho para não apanhar<br />
do patrão. (...)<br />
2. (...) seu patrão não entendeu e lhe deu um castigo de amarrá-lo pelos pés<br />
e jogá-lo em formigueiro.<br />
No primeiro exemplo, o estudante usou o pronome pessoal<br />
“ele” para estabelecer uma relação com “fazendeiro” que aparece anteriormente;<br />
e usou a palavra “patrão” para se referir também a “fazendeiro”,<br />
evitando a repetição.<br />
No segundo exemplo, o aluno usou os pronomes oblíquos<br />
“lo” e “lhe” para se referir ao Negrinho do Pastoreio.<br />
Outra ocorrência marcante nos textos é a ausência de pontuação.<br />
Essa falha é um reflexo da fala, pois está relacionada com os<br />
marcadores conversacionais, como mostra o exemplo abaixo:<br />
1. Num dia uma fasenda que tinha um fasendeiro muito mauvado que tinha<br />
muitos escravos um cafesau uma família e tinha que ter um escravo para<br />
cuidar do godo e ele chamou o negrinho e o nouvilio fugiu e o negrinho<br />
foi achar o novilho e a corda estava podre e foi apanhar e foi levado (...)<br />
O emprego de marcadores conversacionais, elementos típicos<br />
da fala, pode exercer funções diferenciadas de acordo com a situação<br />
em que se configuram. No fragmento acima, a falta de domínio das<br />
estratégias discursivas de segmentação e coesão textual, faz com que<br />
os alunos empreguem a conjunção “e”, que acaba se configurando<br />
como um marcador conversacional de continuidade discursiva.<br />
Nos exemplos abaixo, o recurso utilizado para estabelecer a<br />
coesão textual é o emprego dos marcadores “então” e “aí”. O uso<br />
desse recurso advém da intenção de promover a organização do texto,<br />
evidenciando a continuidade dos fatos:<br />
1. (...) o fazendeiro tinha muitos escravos mas precisava de mais um então<br />
ele se lembrou que tinha um negrinho na casa grande então o fazendeiro<br />
chamou ele lá e ordenou-o levar os novilhos então o negrinho (...)<br />
2. Teve um dia que uns dos seus escravos avia sumido aí o fazendeiro<br />
chamou o Negrinho do Pastoreio para subistituilo aí o fazendeiro falou<br />
asim para o Negrinho:
– Vai pegar o novilho?<br />
Aí o Negrinho foi preucuralo.”<br />
254<br />
Foram observados, ainda, “erros” de ortografia. Percebe-se<br />
que tais “erros” ocorrem pelo fato de que o aluno escreve de uma<br />
maneira muito próxima da forma como se fala. Dessa maneira, podese<br />
dizer que existe uma escrita “quase fonética”, pois trata-se da representação<br />
exata do som que se ouve, transcrevendo-o.<br />
1. Ele foi proucurar o novilho.<br />
2. (...) e jogou o negrinho no furmigueiro.<br />
3. (...) e amarro os pés dele.<br />
4. (...) o negrinho sobir para o céu.<br />
5. (...) ele não quiria tirar<br />
6. (...) e o negrinho foi procura (...) e falo<br />
7. Em vez dele i para a fazenda.<br />
8. (...) o corpo do negrinho foi subino até não (...)<br />
9. (...) o negrinho pidiu para (...)<br />
10. (...) aí ela rebentou (...)<br />
Nos textos também foram encontrados a troca de fonemas<br />
surdos por fonemas sonoros e vice-versa, geralmente no mesmo ponto<br />
de articulação do aparelho fonador.<br />
· p / b (labiais surda/sonora)<br />
1. (...) o fazendeiro deu uma surra no negrinho e jogou o corbo de negrinho<br />
(...)<br />
2. (...) e construiu uma cabela que era o sonho da mulher.<br />
· t / d (labio dentais surda/sonora)<br />
1. (...) O fazendeiro mantou o negrinho seguir(...)”<br />
2. (...) O Negrinho do Pastoreiro condou tudo para o patrão (...)”<br />
· c / g (gutural surda/sonora)<br />
1. (...) e foi progura o novilho (...)”
2. (...) o fasendero volto para ve o gastigo (...)”<br />
· f / v (fricativas surda/sonora)<br />
1. Você vai pagar por tudo que você vez.”<br />
2. Era uma fez (...)”<br />
255<br />
Diante disso, sugere-se que o professor realize atividades para<br />
que o aluno perceba a distinção existente entre os textos que são tipicamente<br />
escritos, os que são falados e ainda, aqueles que se configuram<br />
por meio de características de ambos.<br />
Para que um professor possa trabalhar em sala de aula atividades<br />
que tenham por objetivo a distinção entre oralidade e escrita,<br />
abarcaremos agora, os conceitos propostos para oralidade e escrita<br />
segundo Marcuschi (1998) e os Parâmetros Curriculares Nacionais<br />
da Língua Portuguesa de 2ª a 4ª série.<br />
De acordo com Marcuschi (2008), a oralidade equivale a uma<br />
prática social “[...]i nterativa para fins comunicativos que se apresenta<br />
sob variadas formas ou gêneros textuais fundados na realidade sonora;<br />
ela vai desde uma realização mais informal à mais formal nos<br />
mais variados contextos de uso .” (MARCUSCHI, 1998, p. 25). Os<br />
textos escritos seriam “[...] um modo de produção textual-discursiva<br />
para fins comunicativos com certas especificidades materiais e se caracterizaria<br />
por sua constituição gráfica, embora envolva também recursos<br />
de ordem pictória e outros.” (MARCUSCHI, 1998, p. 26). Ou<br />
seja, conforme Marcuschi, a diferença que há entre fala e escrita são<br />
os “aspectos formais, estruturais e semiológicos”, ou seja, o modo<br />
como representamos a língua através de códigos (sonoro e gráfico).<br />
Os Parâmetros Curriculares Nacionais da Língua Portuguesa<br />
propõem que a escola deve eleger em seu conteúdo escolar a Língua<br />
Oral e a Língua Escrita. O estudo da Língua Oral deve garantir que<br />
as atividades em sala de aula envolvam fala, escuta e reflexão sobre<br />
a língua, tais como:<br />
atividades de produção e interpretação de uma ampla variedade de textos<br />
orais, de observação de diferentes usos, de reflexão sobre os recursos que<br />
a língua oferece para alcançar diferentes finalidades comunicativas. Para<br />
isso, é necessário diversificar as situações propostas tanto em relação ao<br />
tipo de assunto como em relação aos aspectos formais e ao tipo de ativi-
256<br />
dade que demandam — fala, escuta e/ou reflexão sobre a língua. (PCNs,<br />
1998, p. 38/39).<br />
De acordo com os Parâmetros Curriculares, a Língua Escrita<br />
está fortemente ligada à leitura, pois são práticas complementares<br />
que se modificam mutuamente, isto é, “[...]a escrita transforma a fala<br />
(a constituição da “fala letrada”) e a fala influencia a escrita (o aparecimento<br />
de “traços da oralidade” nos textos escritos).” (PCNs,<br />
1998, p. 35).<br />
Dentre os conceitos de Língua Escrita, os dois sub-blocos, leitura<br />
e escrita, são divididos entre Prática de Leitura e Prática em<br />
Produção de Texto. Segundo os PCNs, “[...] o domínio da linguagem<br />
escrita se adquire muito mais pela leitura do que pela própria escrita;<br />
que não se aprende a ortografia antes de se compreender o sistema<br />
alfabético de escrita; e a escrita não é o espelho da fala.” (PCNs,<br />
1998, p. 48)<br />
Contudo, quando comparamos o que foi afirmado pelos<br />
PCNs, de que “[...] a escrita não é o espelho da fala” (PCNs, 1998, p.<br />
48), com o que foi observado em nossa análise, notamos uma similaridade<br />
muito grande entre fala e escrita. Isto é, alguns traços da oralidade,<br />
tais como, repetição de palavras, marcadores conversacionais<br />
e erros ortográficos relacionados à fala são muito marcantes na escrita<br />
da criança. Essa similaridade ocorre devido ao momento, já que a<br />
diferenciação entre as estruturas da modalidade oral e da escrita está<br />
sendo construída. Portanto, o professor deverá propor atividades em<br />
que se trabalhe as diferenças entre linguagem oral e linguagem escrita.<br />
4. Considerações finais<br />
Oralidade e escrita são práticas sociais próprias da interação<br />
entre os seres humanos, e que, por isso mesmo, têm mais similaridades<br />
do que diferenças. Cada uma dessas modalidades lingüísticas<br />
possui características que as particularizam. A distinção ocorre principalmente<br />
no modo como são organizados seus elementos estruturais<br />
e as semelhanças tornam-se evidentes quando os resultados de<br />
cada modalidade são dispostos num continuum tipológico.
257<br />
Diante disso, “Como se pode ensinar [e aprender] uma língua<br />
sem conhecer sua estrutura e o seu funcionamento, bem como os<br />
mecanismos que permitem a sua aquisição?" (ROULET (1978 p.<br />
75). Fortalecendo o questionamento de Roulet, os professores de língua<br />
portuguesa deveriam dispor atividades em que o aluno perceba<br />
que existem textos que são tipicamente escritos, aqueles que são tipicamente<br />
falados e outros que se configuram por meio da utilização<br />
de características de escrita e de fala.<br />
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
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variação & ensino. São Paulo: Parábola, 2002.<br />
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quarta série. Língua Portuguesa/Secretaria de Educação Fundamental<br />
Brasília, 1997.<br />
HAVELOCK. Eric. Originis of Western literacy. Toronto: Ontario<br />
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GRAFF, Harvey J. Os labirintos da alfabetização. Porto Alegre: Artes<br />
Médicas, 1995.<br />
MARCUSCHI, L. A. Da fala para a escrita: atividades de retextualização.<br />
9 ed. São Paulo: Cortez, 2008.<br />
RAMOS. Jania M. O espaço da oralidade na sala de aula. São Paulo:<br />
Martins Fontes, 1997.
A INTERNET NO ENSINO DE ESPANHOL<br />
PARA ALUNOS BRASILEIROS 1<br />
INTRODUÇÃO<br />
Beatriz Pereira da Silva (UFLA)<br />
bia-letras@hotmail.com<br />
O ensino/aprendizagem de espanhol no Brasil não pode mais<br />
ser considerada uma prática recente. Fatores como a globalização e<br />
os tratados que o nosso país tem assinado com os parceiros do Mercosul<br />
vem tornando o espanhol um idioma imprescindível pela necessidade<br />
de comunicação. Mas os brasileiros apresentam algumas<br />
particularidades na aprendizagem de espanhol como língua estrangeira<br />
(E/LE). Apresentam facilidade na leitura e reconhecem algumas<br />
palavras que têm relação com o português, relacionando-se muito<br />
melhor com a língua espanhola falada do que com a escrita.<br />
Segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais (1998, p. 69-<br />
70): A leitura é o processo no qual o leitor realiza um trabalho ativo<br />
de compreensão e interpretação do texto, a partir de seus objetivos,<br />
de seu conhecimento sobre o assunto, sobre o autor, de tudo o que<br />
sabe sobre a linguagem etc. Não se trata de extrair informação, decodificando<br />
letra por letra, palavra por palavra. Trata-se de uma atividade<br />
que implica estratégia de seleção, antecipação, inferência e<br />
verificação, sem as quais não é possível proficiência. É o uso desses<br />
procedimentos que possibilita controlar o que vai sendo lido, permitindo<br />
tomar decisões diante de dificuldades de compreensão, avançar<br />
na busca de esclarecimentos, validarem no texto suposições feitas.<br />
É necessário para isto, ter em mente o uso das TIC como recursos<br />
não como fim.<br />
A grande revolução no uso da Internet foi o aparecimento da<br />
web que permitiu que professores e alunos de línguas estrangeiras<br />
passassem a ter acesso à produção cultural de outros países e a falan-<br />
1 Este texto resulta do trabalho de conclusão de curso apresentado à Universidade Federal de<br />
Lavras, como requisito para conseguir o diploma de Especialista em Informática na Educação.
259<br />
tes dos diversos idiomas em salas de chat, listas de discussão e fóruns.<br />
A web evoluiu e hoje falamos em 3 fases. A web 1.0, que alguns<br />
estabelecem como data 1994 a 2004, a web 2, que é o estágio<br />
atual, e a web 3, um estágio futuro, mas cuja previsão é a ampliação<br />
da inteligência artificial, avanços na computação gráfica e em aplicações<br />
na web. É relevante dizer que essa história não é linear e dependendo<br />
da conexão e do equipamento ainda existem muitas pessoas<br />
que só podem usar os primeiros recursos da web 1.0.<br />
1. Revisão de Literatura<br />
1.1. O processo de ensino /aprendizagem de espanhol como<br />
segunda língua para brasileiros<br />
Segundo a Enciclopédia das Línguas no Brasil, a presença da<br />
língua espanhola no Brasil está caracterizada pelo seu modo de distribuição<br />
no território brasileiro. Por um lado, o espanhol como língua<br />
de contato; por outro lado, o espanhol como língua estrangeira.<br />
Em outras zonas fronteiriças do Brasil o espanhol é mais uma língua<br />
em convivência com o português, além das línguas indígenas com as<br />
quais tanto a língua portuguesa como a língua espanhola tem contato<br />
em ambos lados das fronteiras. Embora não haja nenhuma descrição<br />
linguística que comprove a existência de um bilinguismo nestas regiões,<br />
o espanhol é uma língua praticada e compreendida, sobretudo,<br />
pela necessidade de comunicação e inter-relação entre os habitantes<br />
destas regiões de fronteira. A situação da língua espanhola no Brasil<br />
como língua estrangeira cresceu e ganhou força no Brasil, a partir da<br />
aprovação no senado da lei nº 4.004 de 1993 que determina a obrigatoriedade<br />
do ensino do espanhol no ensino médio e facultativo no<br />
ensino fundamental. Além disto, posterior à implementação do Mercosul,<br />
o espanhol tornou-se também uma língua tão importante quanto<br />
o inglês no âmbito dos negócios e do comércio no país. Em razão<br />
destes fatores, o Brasil é o lugar onde o crescimento do interesse pela<br />
aprendizagem da língua foi o mais significativo nas últimas décadas<br />
do séc. XX e início deste século.<br />
Dentro deste contexto serão apresentadas características a serem<br />
observadas no que se refere ao processo de ensino/aprendiza-
260<br />
gem de espanhol como segunda língua, para alunos brasileiros. Destacaremos<br />
a seguir o porquê da necessidade de um processo de ensino/aprendizagem<br />
que seja centrado no aluno; objetive sua habilidade<br />
comunicativa; esteja embasado em conteúdo real e que use materiais<br />
obtidos de contextos autênticos (material que não foi previamente<br />
preparado ou adaptado para o ensino de línguas).<br />
1.2. Planejamento centrado no aluno<br />
Ao iniciar seus estudos os alunos brasileiros apresentam certa<br />
facilidade no que se refere ao entendimento do léxico, o que os leva<br />
por muitas vezes a sensação de que o espanhol é uma língua de fácil<br />
aquisição. Certamente para os alunos que possuem a língua portuguesa<br />
como primeira língua a facilidade existe e se dá pela, como<br />
abordaremos novamente, pela aproximação das línguas. Richman<br />
(2005, p. 58) afirma que o espanhol compartilha 96% das suas palavras<br />
mais frequentes com o português. O que explicaria a necessidade<br />
do ensino com base no léxico, baseando-se no conhecimento prévio<br />
do aluno. Obviamente isso não significa que se deva negligenciar<br />
o ensino das estruturas gramaticais. É necessário, porém, observar<br />
que nem todas estas palavras que supostamente apresentam ortografia<br />
idêntica tenham o mesmo sentido no português e no espanhol.<br />
Marrone (1990) afirma que o emprego de palavras idênticas quanto<br />
ao léxico e características uniformes quanto à morfologia e à sintaxe<br />
pode acarretar erro no uso e na grafia de vários vocábulos análogos,<br />
criando, como ocorre com os habitantes de países de língua espanhola<br />
que fazem fronteira com o Brasil, o portunhol.<br />
Infelizmente a maior parte dos materiais impressos e métodos<br />
utilizados até hoje para o ensino de espanhol como segunda língua<br />
não levam em conta o conhecimento do léxico que o aluno brasileiro<br />
tem em relação ao espanhol. Roca (1998, p. 187) afirma que “os objetivos<br />
de aprendizagem tem que ser diferentes para cada pessoa”,<br />
pois as metodologias, materiais e recursos podem ser bem utilizados<br />
se adaptados aos diferentes momentos e pessoas (estudantes) que os<br />
utilizarem.
1.3. Desenvolvimento da habilidade comunicativa<br />
261<br />
Não há como desenvolver a habilidade comunicativa sem<br />
comunicação. Grande parte dos manuais utilizados para o ensino de<br />
espanhol tem quase sempre textos de situações do dia-a-dia seguidos<br />
de diálogos prontos. O educador, por sua vez, ao optar pelo enfoque<br />
comunicativo, preocupado com o aspecto funcional da língua e seu<br />
caráter de instrumento de conversação, buscará apresentar aos alunos<br />
ferramentas para o desenvolvimento comunicativo que o aproximem<br />
de situações reais que ele viverá em contatos com nativos da língua<br />
que se estuda. Desta forma estará utilizando o texto como pretexto<br />
para a conversação e/ou produção textual. Porém, interagir realmente<br />
com falantes nativos de espanhol significa muito mais que empregar<br />
estruturas lexicais apropriadas a um contexto. A comunicação não se<br />
restringe às sequências de perguntas e respostas prontas. Goettenauer<br />
(2005, p. 69) esclarece que<br />
Obter um diálogo com começo, meio e fim é somente o começo do<br />
processo de interação que deve renovar-se infinitamente, pois sempre<br />
aparecerão circunstâncias novas que exigirão o improviso, de modo a<br />
não provocar uma lacuna no ato comunicativo.<br />
Dentre as diversas ferramentas encontradas para facilitar o<br />
processo de reconhecimento quanto ao léxico e desenvolver a habilidade<br />
comunicativa dos alunos brasileiros de E/LE, enfocaremos o<br />
uso da internet.<br />
A internet se destaca como ferramenta por sua capacidade de<br />
aglutinar os diferentes meios de comunicação existentes, por ser um<br />
veículo que permite ao usuário várias formas de comunicação de<br />
forma sincrônica (com o chat), ou assíncronas (com o email), seu<br />
destaque para o ensino da língua também se dá por possibilitar que a<br />
troca de informações ocorra de forma escrita ou oral, além de permitir<br />
o envio de material áudio visual, e a interatividade, a capacidade<br />
de intervenção no discurso opinando, agregando e trocando informações,<br />
algo que não nos oferecem até agora os outros meios de comunicação.<br />
(SANTA e KRAHEIN, 2003, p. 76)<br />
Softwares e chats são alguns dos recursos disponíveis utilizados<br />
como ferramentas para o ensino de línguas com enfoque comunicativo<br />
e apresentam um resultado satisfatório neste sentido. Com<br />
eles os alunos têm a possibilidade de acesso a comunicação em tem-
262<br />
po real com nativos do idioma ao qual se pretende estudar, seja oralmente<br />
ou por escrito. Desta forma estarão em contato com contextos<br />
reais de conversação, textos autênticos, e não só aos materiais<br />
utilizados e diálogos mediados empregados em sala de aula, podendo<br />
escolher entre assuntos, grupos e contatos que mais lhe interessem.<br />
1.4. Embasamento em conteúdo real e uso de materiais obtidos<br />
de contextos autênticos.<br />
Apenas alguns anos atrás, conseguir material ‘autêntico’ chegava,<br />
para os professores afastados das grandes metrópoles, a ser uma façanha.<br />
Era difícil saber o que pedir e quando o material chegava, às vezes, já estava<br />
ultrapassado. Isso era o caso mais do que nada de jornais e revistas,<br />
julgados de grande potencial para as aulas. No caso de livros, o professor<br />
tinha que estar por dentro do que se publicava, era difícil enviar dinheiro<br />
pra fora etc. (HUMBLÉ, 2002, p. 158).<br />
Atualmente com o uso da internet é possível buscar conteúdos<br />
de jornais publicados no mesmo dia em diversos países em um curto<br />
espaço de tempo, além de tornar possível o conhecimento de obras<br />
recentemente publicadas assim como a compra. Além dos aspectos já<br />
citados, o papel da internet torna-se fundamental na aquisição de material<br />
para as aulas de idiomas pois, além de possibilitar ao aluno<br />
contato direto com nativos de espanhol na forma oral ou escrita, possibilita<br />
a compilação de artigos, periódicos, revistas e sites por parte<br />
do professor para uso dos alunos, formando assim um corpus<br />
Humblé (2002, p. 160) explica:<br />
Um corpus é uma quantidade grande de textos estocados num computador<br />
e que são acessados com programas próprios de pesquisa. Os<br />
textos que fazem parte de um corpus podem ser variados, indo de jornais<br />
a romances, ou se concentrar num determinado gênero, como só periódicos.<br />
Estes textos podem ser apresentados de maneira impressa ou<br />
por meio de uma webquest, por exemplo. O educador pode disponibilizar<br />
sites que contenham os textos previamente selecionados, podendo<br />
inclusive contar com um recurso chamado “Delicious”, disponível<br />
na web, formando assim um corpus confiável. Obviamente,<br />
como a internet se modifica e amplia constantemente, deverá existir<br />
revisão por parte do professor com certa frequência, para evitar a indicação<br />
de material não mais existente.
263<br />
Esta pré-seleção feita pelo professor permite ao aluno fazer<br />
suas próprias pesquisas, além disso, os textos produzidos com a intenção<br />
de comunicar uma mensagem útil para um leitor costumam<br />
ser mais interessantes e mais reais do que exemplos de linguagem<br />
inventados. Sendo assim, além de estimular ao aluno, a utilização<br />
deste recurso permitirá que ele se torne mais livre na hora de produzir,<br />
pois muitas das dificuldades que mesmo os bons dicionários não<br />
conseguem resolver poderão ser superadas pelo uso inteligente de<br />
um corpus formado por textos autênticos.<br />
2. Metodologia<br />
A metodologia adotada foi caracterizada por estudo de caso,<br />
aplicado a dois cursos de idiomas e uma universidade (departamento<br />
de Letras) na cidade do Rio de Janeiro.<br />
Inicialmente foi realizada uma revisão bibliográfica para fundamentar<br />
a parte teórica do trabalho. Em seguida foi realizado um<br />
estudo de caso, tendo como instrumento de coleta de dados a observação<br />
da pratica pedagógica realizada por um período de dois meses<br />
nas três instituições.<br />
Após a coleta de dados foi realizada uma análise qualitativa<br />
nos dados colhidos para chegar à conclusão do trabalho e apontamento<br />
de algumas sugestões e ferramentas para a uma prática qualitativa<br />
no ensino de espanhol como língua estrangeira (E/LE) para alunos<br />
brasileiros com ênfase no enriquecimento do léxico.<br />
3. Resultados e discussão<br />
3.1. Por que utilizar a internet no ensino de Espanhol como<br />
língua estrangeira (E/LE)?<br />
As vantagens e limitações que a internet apresenta no ensino<br />
de línguas são determinadas pelas próprias características do meio.<br />
Por isso convém revisar as peculiaridades desta TIC denominada internet,<br />
para ver que consequências seu uso oferece ao ensino de<br />
E/LE.
264<br />
A maioria dos conteúdos presentes na internet são textos escritos,<br />
com as mesmas letras e as mesmas palavras que vêm sido<br />
empregadas nos meios agora chamados “tradicionais”.<br />
A este respeito, Aguirre (1997) destaca que a literatura é a arte<br />
da palavra, não a do papel. Cada mídia e suporte têm seus méritos<br />
próprios, mas não são a palavra. Apenas promovem a sua divulgação.<br />
A nova mídia digital também vai sediar a palavra e, no entanto<br />
por mais técnico que possa parecer, há sempre por trás, nessas palavras,<br />
um ser humano querendo se comunicar ou expressar, enviandonos<br />
as suas ideias e sentimentos, sua palavra.<br />
Segundo Ruipérez (1998, p. 853) pode-se afirmar que as possibilidades<br />
de troca de todo tipo de informação multimídia através da<br />
web começaram a mudar as formas de aprendizagem do E/LE, o autor<br />
destaca ainda que o uso da internet e da multimídia seguirão de<br />
enorme proveito na aprendizagem de E/LE, pois parecem ter sido<br />
criadas na medida para este fim.<br />
Na verdade, busca-se com o uso das ferramentas disponíveis<br />
na internet, desenvolver o uso da língua seguindo um modelo construtivista,<br />
integrador e participativo, que valorize a integração entre<br />
falantes do idioma estudado na construção do conhecimento. Portanto,<br />
observam-se como pontos positivos no que se refere ao uso das<br />
novas tecnologias para o desenvolvimento do léxico no ensino de espanhol<br />
como língua estrangeira que:<br />
As atividades e tarefas do professor são ampliadas, o professor<br />
é agora em mediador do processo de aprendizagem que facilita o<br />
acesso à informação e que ao mesmo tempo organiza didaticamente<br />
a informação disponibilizada na web. O professor já não é a única<br />
fonte de informação, as aulas já não são mais unidirecionais.<br />
Na fase em que se privilegia o intercambio linguístico, unemse<br />
agora atividades individuais ou em grupos pequenos na web, ou<br />
classes virtuais, em que o estudante organiza seu tempo, suas tarefas<br />
e o tipo de atividade que deseja realizar. Isso significa que estamos<br />
cada vez mais próximos de um ensino verdadeiramente centrado no<br />
aluno, que leva em consideração seus gostos e necessidades de aprendizagem,<br />
que aceita diferentes formas de aprender e que ao
265<br />
mesmo tempo proporciona uma situação de reunir interesses e informações.<br />
O estudante torna-se independente com relação a sua aprendizagem,<br />
ou seja, toma decisões quanto ao momento e a forma de aprender,<br />
podendo escolher entre se dedicar-se mais aos exercícios de<br />
escrita ou de pronúncia, de acordo com as suas necessidades. Isso<br />
significa uma tomada de consciência de si mesmo, de em que consiste<br />
aprender, ou, segundo Vigotsky, “aprender a aprender”.<br />
São agregadas as habilidades de forma natural.<br />
Os estudantes realizam atividades através da internet, levando<br />
em conta o que fará em sua vida real com o uso do espanhol.<br />
3.2. A Internet no desenvolvimento do léxico no ensino de<br />
E/LE<br />
A internet apresenta um alto grau de interesse para os estudantes<br />
em geral por sua ligação a ideia de comunicação, novidade e<br />
informação, tornando-se, ferramenta imprescindível para o ensino/aprendizagem<br />
de idiomas em todo o mundo. Altamente relacionada<br />
a utilização da língua e sendo de uso cotidiano de grande parte<br />
dos alunos, não podemos deixar de considerá-la uma grande ferramenta<br />
para a construção da aprendizagem e enriquecimento do vocabulário.<br />
É interessante, portanto destacar que a internet não constitui<br />
em si mesma um projeto docente, seus recursos são basicamente ferramentas<br />
que a ele podem ser inseridas. É desta forma, como uma<br />
entre várias ferramentas, que trataremos aqui da utilização da internet<br />
para o desenvolvimento do léxico no ensino de espanhol.<br />
É fato que, para que os estudantes desenvolvam satisfatoriamente<br />
suas produções escritas na língua de estudo, devem ter acesso<br />
a modelos e exemplos, além de técnicas. A mudança fundamental<br />
ocorrida neste momento é que o professor deixou de ser a principal<br />
referência e fonte de material para os alunos, pois é possível através<br />
de buscas individuais na web que estes encontrem diversos modelos<br />
e informações que enriquecerão e motivarão seu desenvolvimento.<br />
Além disso, o professor deixa de ser o único destinatário dos textos
266<br />
produzidos pelos estudantes, suas produções podem ser compartilhadas<br />
com outros alunos ou com quem desejarem.<br />
O sentimento de autonomia é uma das grandes vantagens do<br />
uso do computador e da internet, pois, ainda que o aluno tenha que<br />
cumprir determinadas tarefas, pode encontrar diferentes meios para<br />
concluí-las. Muitas vezes ávidos em conhecer e testar seus conhecimentos,<br />
os alunos de idiomas se aventuram em buscas ou fazem amizades<br />
com nativos, participam de listas, cursos, e-learning etc.<br />
Nestes casos, quando tratamos de multimídia, a internet é uma ferramenta<br />
bastante completa, pois possibilita o acesso não só a textos<br />
escritos, como a imagens, sons, interação em interface gráfica, simuladores,<br />
ou seja, comunicação não só escrita como falada, e vivenciada,<br />
de maneira bastante eficiente. Os textos escritos se apresentam<br />
na maioria das buscas feitas pela internet. Há, no entanto, uma necessidade<br />
emergente de que os estudantes brasileiros de E/LE tenham<br />
uma melhor produção textual, visto que apresentam maior facilidade<br />
na leitura que na produção escrita. O trabalho pedagógico<br />
com foco no desenvolvimento da expressão escrita está presente durante<br />
todo o processo de aprendizagem de uma língua estrangeira,<br />
mas quando está fora do livro didático, dos exercícios propostos pelo<br />
professor, ou seja, fora da sala de aula, a atitude do aluno frente a<br />
expressão escrita é outra. Ela é desvinculada de seu uso dentro da esfera<br />
escolar e didática e passa a ser usada em situações reais de comunicação,<br />
frente a necessidades e interesses imediatos, aos quais<br />
deseja satisfazer. Isso leva o aluno à criação de um discurso autêntico,<br />
produto da interação social entre os participantes desse discurso<br />
(VIGOTSKY, 1987, p. 6).<br />
Hilgert (2000, p. 17) destaca que a conversação digital apresenta<br />
uma estreita relação entre a fala e a escrita, em que estratégias<br />
conversacionais próprias da fala são utilizadas no momento da interação<br />
eletrônica. Concordaremos com o autor quando o mesmo afirma<br />
que a comunicação na internet “... se afina muito mais com o texto<br />
falado prototípico (conversação espontânea, conversação telefônica)<br />
do que com o correspondente escrito”. Neste caso, o foco passa a<br />
ser primeiramente o significado (o que se deseja dizer) e não a forma<br />
(como dizer), favorecendo a interação com a língua alvo e beneficiando<br />
o desenvolvimento de uma comunicação autentica.
267<br />
É necessário perceber que a utilização das Tecnologias da Informação<br />
e Comunicação (TIC) para o desenvolvimento do léxico<br />
aborda a formação contextualizada e significativa do vocabulário não<br />
só do aluno brasileiro de E/LE, mas de todos os estudantes de línguas.<br />
Esta formação contextualizada e significativa do vocabulário é<br />
realizada ao propor buscas, análises, contextualização, possíveis explicações,<br />
problematizações, autoria, coautoria, diálogo, interação,<br />
apropriação de teorias sobre problemas, investigação e, sobretudo,<br />
experimentação da língua com a utilização de diversos recursos disponíveis<br />
na internet.<br />
3.3. Algumas de ferramentas pedagógicas encontradas na web<br />
TECNOLOGIAS DE INFORMAÇÃO INFORMA ÃO E COMUNICAÇÃO<br />
COMUNICA ÃO<br />
ORKUT<br />
MSN<br />
TWITTER<br />
BLOG<br />
WIKI<br />
AVA<br />
CHAT<br />
SOFTWARE<br />
HARDWARE<br />
WEB<br />
Figura 1: Ferramentas da web 2<br />
TELECON-<br />
FERÊNCIA<br />
DOWLOAD<br />
FÓRUM<br />
LISTA DE<br />
DISCUSSÃO<br />
HIPER-<br />
TEXTO<br />
E-MAIL<br />
2 Esta figura foi elaborada por Cristina Alves de Brito (2010) e está disponível na página 136 do<br />
artigo "Perspectivas para o ensino de língua portuguesa à distância", no número 47 da Revista<br />
Philologus, resultante de trabalho apresentado no III Simpósio Nacional de Estudos Filológicos<br />
e Linguísticos, em abril de 2010. (Cf. http://www.filologia.org.br/revista/47/09.pdf)
268<br />
A Internet é composta pela hipermídia, definida por quatro características<br />
básicas: a mistura de diferentes linguagens, tais como verbais<br />
(textos), visuais (fotografias, desenhos, gráficos), sonoras (músicas, efeitos<br />
sonoros), audiovisuais (filmes, games, simulações etc.); a articulação<br />
em hipertextos; recursos de apoio à navegação (mapas, roteiros, sistemas<br />
de busca); e a interação. (SANTAELLA, 2004, p. 78).<br />
O conhecimento e o uso das diferentes ferramentas disponíveis<br />
na web possibilita ao educador usar a Internet de maneira consciente.<br />
Por seu potencial de comunicação e de pesquisa, ela é um extraordinário<br />
instrumento cognitivo, que potencializa as metodologias<br />
de ensino e aprendizagem.<br />
Serão listadas a seguir algumas ferramentas disponíveis na internet<br />
que possibilitam a comunicação síncrona e assíncrona. Algumas<br />
ferramentas apresentadas utilizam-se da aprendizagem colaborativa,<br />
outras não, mas apresentam todas elas resultados satisfatórios<br />
no que tange ao enriquecimento do léxico dos alunos brasileiros de<br />
E/LE e de suas competências comunicativas. Vale destacar que alguns<br />
desses recursos já vêm sido utilizados há algum tempo no ensino<br />
de diversas outras línguas e disciplinas e no ensino a distancia.<br />
As ferramentas abordadas a seguir são: E-mail, Web site,<br />
Chats, Twiter, Muds, Simulações, Lista de Discussão, Grupos, Fórum,<br />
Comunidades virtuais, Blog, Fotolog ou flog, Videolog, Webquest,<br />
Wiki, Podcast, Skoool, Delicious.
3.4. E-mail<br />
Ex.: Gmail<br />
Figura 2: E-mail<br />
269<br />
Possibilita ao usuário receber mensagens em seu computador.<br />
O interlocutor pode responder. às mensagens na hora que desejar, já<br />
que esta é uma interface de comunicação assíncrona.
3.5. Site<br />
Ex.: http://www.elpais.com/global/<br />
Figura 3: Site<br />
270<br />
Possibilita o acesso a textos autênticos de vários países hispânicos,<br />
com a intenção de aproximar o aluno às variantes do espanhol,<br />
às distintas culturas dos países hispânicos e ao uso comum do idioma.<br />
Torna possível encontrar os mais variados estilos e modalidades<br />
de texto e refletir sobre as ideias e a língua.<br />
3.6. Chat<br />
Considerado uma "conversa informal", o bate-papo via Internet<br />
é uma forma de comunicação síncrona, isto é, permite que duas<br />
ou mais pessoas se comuniquem em tempo real. Nessa modalidade<br />
de comunicação todos os participantes podem se comunicar com todos<br />
que estiverem conectados. Além de possibilitar uma comunicação<br />
entre todos ao mesmo tempo, essa interface também permite<br />
uma comunicação on-line mais reservada com qualquer participante.<br />
cias).<br />
Ex. 1: Windows Messenger-MSN (chat, vídeo chat, conferên
Figura 4: MSN<br />
Ex. 2: http://www.skype.com/intl/pt<br />
271<br />
Chats, ligações telefônicas, videoconferências, envio de mensagens,<br />
compartilha arquivos.<br />
Figura 5: Skype
272<br />
Esta ferramenta possibilita reunir pessoas distantes geograficamente<br />
em um mesmo ambiente virtual. Assim, alunos de diversas<br />
cidades do país e mesmo do exterior podem se encontrar para debater<br />
um dado tema, trocar experiências, informações e curiosidades<br />
mútuas. O conteúdo pode ser gravado e impresso.<br />
3.7. Twiter<br />
Ex.: http://twitter.com/home<br />
Figura 6: Twitter<br />
Permite aos usuários o recebimento diário de mensagens contendo<br />
novidades do grupo ou pessoas “seguidas” por este meio.<br />
"A sua utilização como mídia educativa, pode despertar o interesse<br />
dos alunos no que diz respeito a interação e fácil assimilação<br />
do conteúdo.” (MARTINS; GOMES; SANTOS, 2009)
3.8. MUDs<br />
Ex.: http://www.topmudsites.com/<br />
Figura 7: MUDs<br />
273<br />
Sigla para "multi-user domain". Uma forma de software que<br />
roda em redes e permite a participação de muitos usuários na criação<br />
colaborativa e interativa. Utilizados também para fins educacionais,<br />
principalmente o desenvolvimento de habilidades com a língua escrita.<br />
Os MUDs são mundos imaginários nos quais os jogadores assumem<br />
o papel de uma personagem, e recebem informações textuais<br />
que descrevem salas, objetos, outras Os participantes entram em descrições<br />
textuais de lugares imaginários, de objetos e personagens robóticos,<br />
habitantes desses lugares que podem ser visitados. Ficam à<br />
espera da interação inscrita de outros visitantes. O programa junta<br />
todas as descrições e inscrições, criando um único ambiente que evolui<br />
continuamente. O interessante é que toda a interface de um MUD<br />
é textual, ou seja, não há figuras, nem gráficos, sons ou qualquer coisa<br />
semelhante na interação com o usuário.
3.9. Simulações<br />
274<br />
Cano (1998, p. 171) apresenta já nesta época uma definição<br />
para os programas de simulação como ferramentas utilizadas na educação<br />
que:<br />
...reproduzem na tela do computador, de forma artificial, fenômenos e<br />
leis naturais, oferecendo ao aluno um ambiente exploratório que lhe<br />
permite levar a cabo uma atividade de pesquisa, manipulando determinados<br />
parâmetros e comprovando as consequências do seu desempenho.<br />
Citaremos como exemplos apenas os dois simuladores mais<br />
utilizados para o estudo de idiomas:<br />
Ex.1: http://secondlife.com/?v=2.0<br />
Figura 8: Second Life<br />
Em 2007 o mundo virtual Second Life passou a ser usado<br />
como um meio de ensino de línguas estrangeiras. Educadores, tanto<br />
em Second Life quanto na vida real, começaram a usar o mundo virtual<br />
para ensinar. A língua espanhola e o Instituto Cervantes possuem<br />
uma ilha em Second Life. O inglês (como língua estrangeira)<br />
também ganhou presença através de várias escolas e cursos, como<br />
British Council. Em português, há um livro específico sobre o tema,<br />
Second Life e Web 2.0 na Educação: o potencial revolucionário das
275<br />
novas tecnologias, dos pelos professores Carlos Valente e João Mattar,<br />
publicado pela Novatec.<br />
A comunicação fomentada pelo SecondLife, através das ferramentas<br />
de chat, voice, mensagens privadas e gestos, permite lecionar remotamente,<br />
reunindo, num mesmo local, estudantes de diferentes países, o<br />
que se revela uma mais-valia indescritível para a percepção da multiculturalidade.<br />
(PITA, 2010).<br />
Por outro lado, este ambiente possibilita a resposta imediata<br />
aos problemas colocados pelo aluno, independentemente do local ou<br />
da hora, o que não é possível com as ferramentas assíncronas que se<br />
utilizam regularmente na educação. Embora muitos professores recorram<br />
a ferramentas síncronas, o Second Life tem a vantagem de<br />
permitir a demonstração dos conteúdos em tempo real.<br />
Ex.: 2: http://thesims2.br.ea.com<br />
Figura 9: The Sims<br />
A comunicação no universo The Sims se dá por meio da língua,<br />
cujos diálogos são inscritos em balões, por eles é possível nomear<br />
pessoas, objetos e situações, transmitir emoções e desejos. A<br />
simulação do mundo imaginário-virtual do The Sims torna possível a<br />
simulação da vida real porque de forma análoga no mundo virtual<br />
precisa se valer da memória, da cognição, da capacidade de saber o<br />
que se conhece (metacognição) e da compensação, processos presen-
276<br />
tes no ensino-aprendizagem da língua espanhola. Os jogos, neste caso,<br />
são um momento real de aprendizado.<br />
3.10. Lista de Discussão<br />
Ex.: http://br.groups.yahoo.com/group/espanholinstrumental<br />
Figura 10: Yahoo Grupos<br />
Possibilita compartilhar informações com quem desejar. O<br />
grupo dá aos participantes dele acesso instantâneo a arquivos de<br />
mensagens, fotos, agendas, enquetes e links.
3.11. Fórum<br />
Ex.: http://br.answers.yahoo.com<br />
Figura 10: Yahoo Respostas<br />
277<br />
Emissão e recepção se confundem permitindo que a mensagem<br />
circulada seja comentada por todos os sujeitos do processo de<br />
comunicação. A inteligência coletiva é alimentada pela conexão da<br />
própria comunidade de maneira colaborativa Os fóruns são importantes<br />
para dinamizar debates entre um ou mais grupos de trabalho.
3.12. Comunidades virtuais<br />
Ex.:<br />
http://www.peabirus.com.br/redes/form/comunidade?id=980#<br />
Figura 11: Comunidade Educação (SEM) distancia<br />
278<br />
Permite estabelecer relações com o uso da língua estudada,<br />
com um grupo que compartilha dos mesmos interesses. Sartori<br />
(2003) vai um pouco mais além ao perceber que:<br />
As comunidades virtuais de aprendizagem têm seu funcionamento<br />
ligado, num primeiro momento, às redes de conexões proporcionadas pelas<br />
tecnologias de informação e comunicação; num segundo momento,<br />
pela possibilidade de, neste espaço, pessoas com objetivos comuns, se<br />
encontrarem e estabelecerem relações. Através da ação a distância é possível<br />
o desenvolvimento de novas sociabilidades e subjetividades, tornando-se<br />
um espaço que materializa a comunicação, a cultura e a educação.
3.13. Blog<br />
Ex.: http://ntevaiaescola2008.blogspot.com<br />
Figura 12: Blog NTE vai á Escola<br />
279<br />
Comumente usado como ferramenta interativa, os blogs são<br />
página na Web que se pressupõe ser atualizada com grande frequência<br />
através da colocação de mensagens constituídas por imagens e/ou<br />
textos, normalmente de pequenas dimensões (muitas vezes incluindo<br />
links para sites de interesse e/ou comentários e pensamentos pessoais<br />
do autor) e apresentadas de forma cronológica, sendo as mensagens<br />
mais recentes normalmente apresentadas em primeiro lugar.<br />
A possibilidade de interação proporcionada pelos weblogs é<br />
complementar à função dos fóruns de discussão. Os blogs, entretanto,<br />
são mais úteis na organização da conversa se o objetivo for inserir<br />
novas informações e links (Cf. WISE, 2005).
3.14. Videolog ou Vlog<br />
Ex.1: http://www.videologtv.com<br />
3.15. Fotolog ou Flog<br />
Figura 13: Videologtv<br />
Ex.2: http://www.fotolog.net<br />
Figura 14: Fotolog<br />
280
281<br />
Como nos blogs, os flogs e vlogs permitem que sejam realizadas<br />
constantes atualizações nos mesmos, favorecendo o trabalho<br />
em projetos de pesquisa tanto pessoais, como acadêmicos. São de fácil<br />
criação e, unidos a um bom planejamento de aula, podem se tornar<br />
valiosas ferramentas de cooperação e interação entre os alunos.<br />
Moran (2007) observa que<br />
Os blogs, flogs (fotologs ou videologs) permitem a atualização constante<br />
da informação, pelo professor e pelos alunos, favorecem a construção<br />
de projetos e pesquisas individuais e em grupo, e a divulgação de<br />
trabalhos. Com a crescente utilização de imagens, sons e vídeos, os flogs<br />
têm tudo para explodir na educação e se integrarem com outras ferramentas<br />
tecnológicas de gestão pedagógica.<br />
3.16. Webquest<br />
A palavra webquest significa Pesquisa na Internet (OLIVEI-<br />
RA et alii, 2004, p. 132) e é um método de pesquisa virtual. O professor<br />
estipula uma tarefa para seus alunos e oferece as ferramentas<br />
(links de sites de pesquisa, previamente escolhidos pelo professor)<br />
para que eles mesmos busquem o conteúdo e atinjam um resultado,<br />
que será exposto de forma virtual (pelo computador) ou convencional<br />
(produção manual).<br />
Uma webquest é composta por:<br />
· Introdução: é o problema que deve ser resolvido. Nessa parte,<br />
cria-se uma pequena história que motiva os estudantes para<br />
resolverem tal problema, gerando curiosidade sobre os resultados;<br />
· Tarefa: é a forma como os resultados da pesquisa serão apresentados<br />
como conclusão da atividade;<br />
· Processo e fontes de informação: são as etapas que os estudantes<br />
deverão percorrer para realizar toda a atividade, assim<br />
como as fontes de consulta e os materiais que deverão utilizar<br />
em todo o processo;<br />
· Avaliação: contém os níveis de desempenho que serão usados<br />
pelos estudantes para que estes façam sua própria avaliação.
282<br />
Cada nível deve conter os erros e acertos a que se referem de<br />
acordo com o que o professor estipulou na tarefa;<br />
· Conclusão: é o fechamento da atividade, congratulando os estudantes<br />
pelo resultado obtido. Nesta parte também pode ser<br />
acrescentada alguma informação extra que seja interessante<br />
para os alunos consultarem mais tarde, independente da realização<br />
desta atividade; referências: nesta parte serão listadas as<br />
fontes utilizadas na pesquisa.<br />
3.17. Wiki<br />
Ex.: http://www.wikispaces.com<br />
Figura 15: Wikispaces<br />
Wiki é o termo utilizado para definir um site da web que contém<br />
páginas que podem ser editadas por qualquer visitante, a depender<br />
da sua configuração. Na prática é um sítio que pode ser editado<br />
diretamente a partir de um navegador como Internet Explorer ou<br />
qualquer outro.<br />
Como ferramenta pedagógica, pode ser utilizado para a publicação<br />
do trabalho coletivo de um grupo de alunos ao longo de um<br />
curso, pois a sua estrutura lógica é muito semelhante à de um blog,
283<br />
mas, com a funcionalidade acrescida de que qualquer um pode juntar,<br />
editar e apagar conteúdos ainda que estes tenham sido criados<br />
por outros autores. Os wikis também são utilizados como ferramentas<br />
na educação para facilitar a escrita colaborativa de resumos de livros,<br />
palestras que foram assistidas pelos alunos ou projetos que estão em<br />
desenvolvimento pelos mesmos.<br />
3.18. Podcast<br />
Ex. http://spanish-podcast.com<br />
Figura 16: Poscast em espanhol<br />
Podcast é um arquivo de áudio digital, geralmente em formato<br />
MP3 ou AAC (este último pode conter imagens estáticas e links),<br />
publicado através de podcasting na internet . O termo podcast foi criado<br />
em 2004 pela junção das palavras iPod (tocador de música da<br />
empresa Apple) e broadcasting (transmissão de rádio ou televisão).<br />
O Podcast nada mais é que um arquivo de áudio transmitido e<br />
acessado pela Internet onde qualquer pessoa poderá criar um episódio<br />
(sinônimo de Podcast) de acordo com os seus gostos e interesses.<br />
Existem duas formas de se trabalhar com os Podcasts em sala<br />
de aula, a passiva e a ativa.
284<br />
Forma passiva: os alunos irão visitar os sites que oferecem os<br />
episódios e eles apenas ouvirão o conteúdo. Os professores de idiomas<br />
podem usar os serviços de Podcasting nas salas de aula como<br />
uma fonte de material autêntico para as atividades auditivas.<br />
Forma ativa: eles podem de fato participar na construção de<br />
sua aprendizagem, criando os próprios áudios e os publicando posteriormente.<br />
3.19. Wikisaber<br />
Ex.: http://www.wikisaber.es<br />
Figura 17: Wikisaber<br />
Possui soluções multimídia e recursos interativos<br />
Esse projeto permite tanto apreender/aprender online quanto offline<br />
porque é possível baixar todos os conteúdos, simulações e atividades,<br />
que permitem avaliar a compreensão dos temas, narrações em áudio e<br />
material complementar no computador ou em dispositivos móveis, como<br />
telefones e PDAs [Assistentes Digitais Pessoais]. (EducaRede Colômbia,<br />
2008)
285<br />
Os conteúdos em Wikisaber mesclam unidades conceituais<br />
com apoios de autoavaliações, que permitem interação com conteúdos<br />
da página, além do envio de sugestões a um correio eletrônico<br />
para aprimorar as opções oferecidas pelo sistema. Quando necessário,<br />
os temas também são tratados com simuladores, dando a sensação<br />
de um processo de aprendizagem ao qual estamos acostumados<br />
(professor–aluno), com a opção de oferecer conceitos, análise dos<br />
temas e desenvolvimento mais amplo dos conteúdos. É uma ferramenta<br />
utilizada para trabalhar a língua de maneira interdisciplinar.<br />
3.20. Delicious<br />
Ex.: http://delicious.com<br />
Figura 18: Delicious<br />
Oferece um serviço on-line que permite adicionar e pesquisar<br />
bookmarks sobre qualquer assunto. Mais do que um mecanismo de<br />
buscas para encontrar o que quiser na web ele é uma ferramenta para<br />
arquivar e catalogar os sites selecionados para que possa acessá-los<br />
de qualquer lugar. Permite compartilhar seus bookmarks com os amigos<br />
e visualizar os favoritos públicos de vários membros da comunidade<br />
e realizar pesquisas sobre diversos assuntos. Além disso, o<br />
Delicious pode ser usado, por exemplo, para montar um corpus (já
286<br />
citado anteriormente) de textos autênticos de sites previamente selecionados<br />
pelo professor.<br />
3.21. Vantagens no uso das ferramentas disponíveis<br />
na web<br />
As novas ferramentas criadas dentro da Segunda Geração da<br />
Web, popularmente conhecida por Web 2.0, vêm ganhando a atenção<br />
dos professores de língua estrangeira. Todas as ferramentas da web<br />
2.0 como Blogs, Wikis, Podcastings, entre outros, não foram construídos<br />
para fins educacionais. Entretanto, devido às suas características<br />
colaborativas, os professores estão aproveitando esse potencial<br />
da para utilizarem esses recursos como ferramentas adicionais no ensino<br />
de língua estrangeira.<br />
Para os professores que têm acesso à banda larga e buscam<br />
inovações no ensino de línguas estrangeiras, o uso das ferramentas<br />
da web 2.0 é uma ótima alternativa. Essas ferramentas promovem<br />
um ambiente colaborativo onde professores e alunos podem trocar<br />
experiências e desenvolver atividades que envolvam as habilidades<br />
linguísticas essenciais no ensino-aprendizagem da língua estrangeira.<br />
As ferramentas apresentadas acima fazem parte de um vasto<br />
leque de oportunidades que a internet oferece ao professor de línguas.<br />
Com elas, professores poderão utilizar recursos de áudio, imagens,<br />
vídeos em uma única tarefa, proporcionando aos alunos uma<br />
participação mais ativa no processo de construção de sua aprendizagem.<br />
Segundo Valente e Mattar (2007), a web 2.0 ajudou no processo<br />
de criação do conteúdo dos sites criando uma “sociedade de autores<br />
”. O aluno assume outro papel na aprendizagem:<br />
... o aluno passa também a ser, além de leitor, autor e produtor de material<br />
didático, e inclusive editor e colaborador, para uma audiência que ultrapassa<br />
os limites da sala de aula, ou mesmo do ambiente de aprendizagem.<br />
A habilidade para acessar e publicar conteúdo com facilidade nos<br />
força a repensar o que esperamos de nossos alunos, e inclusive o que<br />
significa ensinar e aprender.<br />
Todas as ferramentas apresentadas abordam o ampliação das<br />
competências comunicativas, e o enriquecimento do léxico possibilitando<br />
alem disso atividades que: desenvolvam as comunicação e a
287<br />
pesquisas; potencializem as metodologias de ensino e aprendizagem;<br />
estimulem atividades colaborativas e individuais; reúnam pessoas<br />
distantes geograficamente em um mesmo ambiente virtual; favoreçam<br />
debates, troca de experiências e interação; ajudem na fácil assimilação<br />
do conteúdo; colaborem no aperfeiçoamento da linguagem<br />
escrita; permitam o contato com textos autênticos e atuais na língua<br />
de estudo; possibilitem uma relação direta com a língua (espanhola)<br />
falada, assim como o desenvolvimento da metacognição( capacidade<br />
de saber o que se conhece),do dinamismo nos debates e da capacidade<br />
de compartilhar das informações.<br />
4. Conclusão<br />
Pelo fato da língua espanhola ter semelhanças com o português<br />
algumas pessoas acreditam que não seja necessário estudá-la<br />
seriamente. Essas pessoas costumam fazer uma tentativa dramática<br />
na hora de se comunicar, geralmente através do que se costuma chamar<br />
de “portunhol”. Durante as observações que antecederam a este<br />
projeto percebemos alunos cometerem erros ao pensarem que tudo<br />
pode ser transformado em diminutivo (como no português se faz habitualmente)<br />
e que palavras com sons parecidos sejam, de fato, o que<br />
estão pensando ser.<br />
Para alegria dos que gostam da língua, a procura pelo ensino<br />
do espanhol cresce a cada dia e os cursos focam cada vez mais no<br />
desenvolvimento conversacional. A produção oral de estudantes de<br />
língua espanhola, conforme as observações realizadas e os diversos<br />
autores citados, se realiza mediante a cooperação entre os seus falantes<br />
e o uso de estratégias que possam garantir a interação. Em estágios<br />
de aquisição e aprendizagem de espanhol, observou-se que um<br />
dos recursos utilizados pelos alunos para obter sucesso nas situações<br />
de interação é o uso da internet, por sugestão ou não dos professores.<br />
Essas ferramentas são de grande valia no desenvolvimento dos alunos<br />
por (algumas) já fazerem parte do cotidiano dos alunos, por serem<br />
fáceis de acessar e possibilitarem o contato com falantes nativos<br />
e/ou outros grupos de estudantes.<br />
As ferramentas citadas neste trabalho são utilizadas pelos professores<br />
e alunos observados no estudo de caso para o desenvolvi-
288<br />
mento comunicativo da língua espanhola. Muitas delas, tornaram-se<br />
ferramentas pedagógicas por acaso e outras não foram listadas como<br />
exemplo por não desenvolverem na prática do ensino de E/LE a função<br />
comunicativa da maneira idealizada pelos educadores no contexto<br />
educacional, ou por apresentarem difícil acesso aos alunos.<br />
Com o resultado deste trabalho pretende-se não só divulgar a<br />
internet como ferramenta no ensino de espanhol, mas auxiliar a escolha<br />
entre os recursos disponíveis na web, que melhor se adapte aos<br />
estudos e ao desenvolvimento de estratégias que contribuam para<br />
que os alunos tenham uma maior competência linguística e conversacional.<br />
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A LINGUAGEM ANÁRQUICA DE ROLAND BARTHES<br />
EM DOIS MOMENTOS:<br />
AULA E O GRAU ZERO DA ESCRITA<br />
1. Sobre linguagem e anarquismo: introdução<br />
Regina Céli Alves da Silva (UERJ)<br />
reginaceli@click21.com.br<br />
O sintagma de abertura do título deste trabalho, “a linguagem<br />
anárquica”, leva-nos, de imediato, a uma explicação a respeito do adjetivo<br />
que o compõe. Afinal, o termo comporta, como verificamos ao<br />
consultar os dicionários, pelo menos duas acepções: “aquilo que está<br />
sem governo ou autoridade; desordem consequente dessa ausência”<br />
(AULETE, 2007, p. 57). Quanto ao substantivo que lhe corresponde,<br />
anarquismo, encontramos: “teoria política que rejeita o governo e a<br />
autoridade do Estado” (Ibidem). Como o sentido que lhe atribuímos<br />
aqui está ligado a essa segunda opção, ou seja, à teoria política conhecida<br />
como anarquista, necessário será um esclarecimento mais<br />
amplo e aprofundado acerca desta.<br />
Para isso, contaremos com os apontamentos de George Woodcock,<br />
no estudo dedicado ao anarquismo, suas ideias e seus movimentos<br />
(1983). Logo no prólogo, devido mesmo à confusão existente<br />
em torno das palavras anarquismo, anarquista, anarquia, o autor se<br />
preocupa em esclarecê-las, de forma que aquele (des) entendimento<br />
generalizado, que liga o anarquismo à desordem, ao caos, seja desfeito.<br />
Assim, diz ele:<br />
Anarchos, a palavra grega original, significa apenas “sem governante”<br />
e assim, a palavra anarquia pode ser usada tanto para expressar a<br />
condição negativa de ausência de governo quanto a condição positiva de<br />
não haver governo por ser ele desnecessário à preservação da ordem.<br />
(WOODCOCK, 1983, p. 8)<br />
George W. menciona adiante um histórico dos termos, que<br />
não iremos desenvolver, mas que nos interessa, no trecho em que cita<br />
Proudhon, afirmando que este, em 1840, publicou um livro, O que<br />
é propriedade?, tornando-se “o primeiro homem a reclamar para si,<br />
voluntariamente, o título de anarquista”. (Ibidem, p. 9) Nessa obra, o<br />
francês entende que:
292<br />
Assim como o homem busca a justiça na igualdade, a sociedade procura<br />
a ordem na anarquia. Anarquia – a ausência de um senhor, de um<br />
soberano – tal é a forma de governo da qual nos aproximamos a cada dia.<br />
(Ibidem, p. 10)<br />
Ordem e anarquia, juntas, parecem esboçar uma contradição.<br />
Porém, apontam, segundo Woodcock, uma mudança de sentido por<br />
que passa os termos anarquismo, anarquia, pois, Proudhon,<br />
ao conceber uma lei de equilíbrio atuando no interior da sociedade, repudia<br />
a autoridade por considerá-la não como uma amiga da ordem, mas<br />
sua inimiga e, ao fazê-lo, devolve aos partidários do autoritarismo as acusações<br />
lançadas contra os anarquistas, ao mesmo tempo em que adota<br />
o título que espera tê-lo livrado do descrédito. (Ibidem, p. 10)<br />
As reflexões de Proudhon encontraram eco em muitos outros<br />
pensadores anarquistas, tais como, Bakunin e Kropotkin. E, apesar<br />
das variadas concepções acerca do assunto, da multiplicidade de, digamos,<br />
linhas, ou escolas, é possível rastrear, em todas, ideias em<br />
comum, que as une em torno de uma filosofia libertária, ou seja: a<br />
rejeição a toda autoridade, a toda forma de governo coercitiva, que<br />
prive o indivíduo de sua liberdade. E é também nesse sentido a abordagem<br />
que faremos dos escritos de Barthes em destaque no título<br />
desta análise.<br />
Para a empreendermos, iniciaremos com uma exposição de<br />
Aula (1992), seguida de O grau zero da escrita (1986). O que nos<br />
levou a escolher os dois textos tem a ver com o fato de este ter sido<br />
concebido no início do percurso reflexivo do autor e aquele, no (quase)<br />
arremate de tal percurso. A seguir, numa comparação entre os<br />
dois, apontaremos a relação em comum que mantêm com o ideário<br />
anarquista.<br />
2. Aula: reflexões sobre língua e poder, semiologia e seu ensino<br />
Escrito para ser apresentado em sua aula inaugural, quando<br />
tomou posse, no Colégio de França, em 1977, da cadeira de Semiologia,<br />
naquele momento inaugurada, o texto Aula retém momentos<br />
fundamentais da obra de Roland Barthes. De entrada, ele comenta a<br />
alegria que sente por estar ali; primeiramente, por poder reencontrar,<br />
na lembrança ou em presença, com autores que lhe são caros, entre<br />
eles: Michelet, Maurice Merleau-Ponty, Emile Benveniste, Michel
293<br />
Foucault. Depois, diz que a alegria se relaciona à sua entrada num<br />
lugar que está “fora do poder” (BARTHES, 1992, p. 8), enfatizando<br />
que o professor, lá, “não tem outra atividade senão a de pesquisar e<br />
de falar” (Ibidem, p. 8).<br />
A partir dessa fala inicial, o estudioso inicia a palestra, enfatizando<br />
a relação existente entre língua/linguagem e poder, observando,<br />
em princípio, que este não pode ser compreendido no singular,<br />
pois se apresenta nos múltiplos mecanismos das trocas sociais. Confiramos<br />
o que diz o palestrante:<br />
[...] chamo discurso de poder todo discurso que engendra o erro e,<br />
por conseguinte, a culpabilidade daquele que o recebe. Alguns esperam<br />
de nós, intelectuais, que nos agitemos a todo momento contra o Poder;<br />
mas nossa verdadeira guerra está alhures: ela é contra os poderes, e não é<br />
um combate fácil: pois, plural no espaço social, o poder é, simetricamente,<br />
perpétuo no tempo histórico: expulso, extenuado aqui, ele reaparece<br />
ali; nunca perece; façam uma revolução para destruí-lo, ele vai imediatamente<br />
reviver, re-germinar no novo estado de coisas. A razão dessa resistência<br />
e dessa ubiquidade é que o poder é o parasita de um organismo<br />
trans-social, ligado à história inteira do homem, e não somente à sua história<br />
política, histórica. Esse objeto em que se inscreve o poder, desde<br />
toda eternidade humana, é: a linguagem – ou, para ser mais preciso, sua<br />
expressão obrigatória: a língua. A linguagem é uma legislação, a língua é<br />
seu código. (Ibidem, p. 11-2)<br />
Segue o autor afirmando que “a língua é fascista” (Ibidem, p.<br />
14), pois obriga a dizer. Assertiva e gregária, ela tanto expõe a dúvida,<br />
a possibilidade, a suspensão de julgamento quanto, pela necessidade<br />
de reconhecimento, repete-se, guardando estereótipos. Nela, o<br />
sujeito é, ao mesmo tempo, mestre e escravo. “Servidão e poder se<br />
confundem inelutavelmente” (Ibidem, p. 15). Na linguagem, o homem<br />
é prisioneiro; sua liberdade só pode ocorrer fora dela. Mas esta<br />
não tem exterior, é fechada. Advém daí a necessidade de uma trapaça.<br />
Tal trapaça, já desde a publicação de O Grau Zero da Escritura,<br />
de 1953, vinha delineada ao se ocupar da compreensão de escritura,<br />
reflexão fundamental dentro da sua obra. Já se pode vislumbrar<br />
o anúncio, nessas primeiras incursões barthesianas acerca da linguagem,<br />
de uma inclinação anarquista. O golpe primeiro ali desferido atingiria<br />
todo o seu percurso reflexivo, uma vez que a língua/linguagem,<br />
como alvo, sofreria, desde então, e sempre, deslocamentos,<br />
de forma que as repetições (donde seu caráter gregário) re-
294<br />
cebessem, continuamente, o abalo de outra visada. O aceno anarquista<br />
está, portanto, atrelado à firme e declarada intenção de golpear o<br />
centro, lá onde os sentidos se repetem, onde habita o estereótipo, e o<br />
poder se resguarda e se perpetua.<br />
Voltemos ao Aula, precisamente ao momento em que o mestre<br />
anuncia:<br />
Essa trapaça salutar, essa esquiva, esse logro magnífico que permite<br />
ouvir a língua fora de seu poder, no esplendor de uma revolução permanente<br />
da linguagem, eu a chamo, quanto a mim: literatura (Ibidem, p.<br />
16).<br />
Sobre a literatura, ele assinala que exercita a liberdade, na<br />
medida em que desloca, desvia a ordem da linguagem. Três forças de<br />
liberdade (entre outras) residem nela (na literatura), libertando, pelo<br />
deslocamento, o texto literário: a mathesis, a mimesis e a semiosis.<br />
Pela mathesis, “a literatura assume muitos saberes” (Ibidem,<br />
p. 18), fazendo-os girar e concedendo-lhes um lugar indireto, e nisso<br />
ela é realista. “Através da escritura o saber reflete incessantemente<br />
sobre o saber” (Ibidem, p. 19), dramatiza-se. No discurso da ciência,<br />
o saber se reproduz na ausência de um sujeito enunciador; no da literatura,<br />
um sujeito é ouvido, e “as palavras [...] são lançadas como<br />
projeções, explosões, vibrações, maquinarias, sabores: a escritura faz<br />
do saber uma festa” (Ibidem, p. 21).<br />
Na mimesis, o que ocorre é a representação do real, ou melhor,<br />
a tentativa de representação, pois sendo o real uma ordem pluridimensional<br />
e a linguagem unidimensional não é possível o paralelismo<br />
entre ambos. Nesse caso, a literatura é irrealista – “acredita<br />
sensato o desejo do impossível” (Ibidem, p. 23). Utópica, portanto. A<br />
utopia não freia o poder; a utopia da língua pode ser recuperada<br />
“como língua da utopia” (Ibidem, p. 25). Ao autor resta o deslocamento<br />
e/ou a teimosia. Deslocando, faz a ordem girar; teimando, resiste-se<br />
ao estereótipo, afirmando o “irredutível da literatura” (Ibidem,<br />
p. 26). Espia e movimento. Entrada no jogo, dramatização.<br />
A terceira força, semiosis, “consiste em jogar com os signos”<br />
(Ibidem, p. 28). Promove uma heteronímia. Barthes descreve como<br />
“cúmulos de artifício” (Ibidem, p. 33), estereótipos, são produzidos<br />
por uma sociedade e, a seguir, transformados em “cúmulos de natureza”<br />
(Ibidem, p. 33), sentidos inatos. Tal força está voltada para o
295<br />
texto, índice do despoder. Este conduz a palavra gregária para outro<br />
lugar, atópico, fora do centro, portanto, e “longe dos topoi da cultura<br />
politizada” (Ibidem, p. 35).<br />
Um anarquismo – considera-se a etimologia do termo – pode<br />
ser detectado nas observações expostas. E este, pela trapaça, é realizado<br />
no texto literário. Não em todos, mas naqueles nos quais os signos<br />
sofrem constantes deslocamentos, salvando os textos da possibilidade<br />
de configuração de sentidos únicos, do caráter gregário, isto é,<br />
da repetição e do estereótipo.<br />
A seguir, Barthes fala sobre a semiologia, a sua semiologia,<br />
“ao mesmo tempo negativa e ativa” (Ibidem, p. 36). Negativa, ou<br />
melhor, apofática: "Não porque ela negue o signo, mas porque nega<br />
que seja possível atribuir-lhe caracteres positivos, fixos, a-históricos,<br />
acorpóreos, em suma: científicos". (Ibidem, p. 36-8)<br />
Mantendo uma relação com a ciência, não como disciplina,<br />
ela, a semiologia, pode contribuir com as ciências, “propondo-lhes<br />
um protocolo operatório” (Ibidem, p. 38). Além, e já finalizando a<br />
palestra, Barthes sublinha o método e o ensino desse campo semiológico,<br />
que, sem se fixar, colabora com os saberes, mas não se firma<br />
como um saber.<br />
3. O Grau Zero da Escritura: da escrita clássica ao neutro<br />
Dividido em duas partes, o texto traz, na primeira, uma interrogação<br />
a respeito da escritura e uma explanação sobre as suas diversas<br />
formas: a política, a burguesa, a romanesca, a poética; na segunda,<br />
faz uma breve história da escritura, partindo do nascimento da<br />
“má consciência”, momento em que a escritura se torna possível, segundo<br />
sua visão, até a escritura de grau zero, neutra. Dessas duas etapas<br />
do livro, acolheremos a indagação acerca do que é a escritura e,<br />
depois, em brevíssimas palavras, sinalizaremos com a sua história.<br />
Quando da indagação sobre o que é a escritura, Barthes, inicialmente,<br />
divisa a língua e o estilo. Sobre aquela, afirma estar aquém<br />
da literatura, e este, quase além. Acompanhemos o autor:<br />
O horizonte da língua e a verticalidade do estilo desenham, portanto,<br />
para o escritor, uma natureza, pois ele não escolhe nenhum dos dois. A
296<br />
língua funciona como uma negatividade, o limite inicial do possível; o<br />
estilo é como uma Necessidade que vincula o humor do escritor à sua<br />
linguagem. Naquela, ele encontra a familiaridade da História; neste, a de<br />
seu próprio passado. [...] entre a língua e o estilo, há lugar para outra realidade<br />
formal: a escritura. [Esta] é um ato de solidariedade histórica. [...]<br />
é a linguagem literária transformada por sua destinação social, é a forma<br />
apreendida na sua intenção humana e ligada assim às grandes crises da<br />
História. (BARTHES, 1986, p. 123-4)<br />
Sendo um compromisso “entre uma liberdade e uma lembrança”<br />
(BARTHES, 1986, p. 125), a escritura é momento e duração. Seu<br />
aparecimento está atrelado à constituição de uma língua nacional,<br />
tornando-se “uma espécie de negatividade, um horizonte que separa<br />
o que é proibido do que é permitido, sem se interrogar mais acerca<br />
das origens ou das justificações desse tabu.” (Ibidem, p. 148)<br />
Assim, a escritura clássica francesa, consolidada depois da<br />
nacionalização da língua, de cunho universalizante, voltada para a<br />
tradição, “não provocava nunca repulsa pela sua hereditariedade,<br />
sendo apenas um cenário feliz sobre o qual se elevava o ato do pensamento”<br />
(Ibidem, p. 148). Por volta de 1850, esse panorama começou<br />
a mudar devido mesmo às interferências históricas, que provocaram<br />
o nascimento de um “Trágico da literatura” (Ibidem, p. 150).<br />
[...] a unidade ideológica da burguesia produziu uma escritura única<br />
e que nos tempos burgueses (isto é, clássicos e românticos), a forma não<br />
podia ser dilacerada, já que a consciência não o era; e que, pelo contrário,<br />
desde o momento em que o escritor deixou de ser uma testemunha<br />
do universal para tornar-se uma consciência infeliz (por volta de 1850),<br />
seu primeiro gesto foi escolher o engajamento da forma, seja assumindo,<br />
seja recusando a escritura de seu passado. A escritura clássica explodiu<br />
então e toda a Literatura, de Flaubert até hoje, tornou-se uma problemática<br />
da linguagem. (BARTHES, 1986, p. 118)<br />
Tal preocupação com a forma leva a literatura a ser considerada<br />
como um objeto e isso faz com que ela provoque, então, sentimentos<br />
“que estão ligados ao fundo de qualquer objeto: sentido do<br />
insólito, familiaridade, repugnância, complacência, uso, assassínio”<br />
(Ibidem, p. 118). Passando por vários estágios, de Flaubert a Mallarmé,<br />
a literatura encontra em Camus um estilo da ausência, “a escritura<br />
se reduz então a uma espécie de modo negativo no qual os caracteres<br />
sociais ou míticos de uma linguagem são abolidos em benefício<br />
de um estado neutro e inerte da forma” (Ibidem, p. 161).
297<br />
O último parágrafo de O Grau Zero da Escritura, no qual<br />
Barthes registra aquilo que, para ele, é característico nas modernas<br />
escrituras, aquelas mais próximas de nossa época atual, merece destaque:<br />
Existe, portanto, em toda escritura presente, uma dupla postulação:<br />
há o movimento de ruptura e o de um advento, há o próprio desenho de<br />
toda situação revolucionária, cuja ambiguidade fundamental é que a Revolução<br />
deve tirar daquilo que quer destruir a própria imagem do que<br />
quer possuir. Como a arte moderna na sua totalidade, a escritura literária<br />
traz consigo, ao mesmo tempo, a alienação da História e o sonho da História:<br />
como Necessidade, ela atesta o dilaceramento das linguagens, inseparável<br />
do dilaceramento das classes: como Liberdade, ela é a consciência<br />
desse dilaceramento e o próprio esforço para ultrapassá-lo. Sentindo-se<br />
constantemente culpada de sua própria solidão, ela não deixa de<br />
ser uma imaginação ávida de uma felicidade das palavras; precipita-se<br />
para uma linguagem sonhada cujo frescor, por uma espécie de antecipação<br />
ideal, representaria a perfeição de um novo mundo adâmico, em que<br />
a linguagem não mais seria alienada. A multiplicação das escrituras institui<br />
uma Literatura nova, na medida em que esta só inventa sua linguagem<br />
para ser um projeto: A Literatura torna-se a Utopia da linguagem.<br />
(Ibidem, p. 167)<br />
Se, nesse momento, o de O Grau Zero da Escritura, Barthes<br />
ainda mantinha, no desenvolvimento de suas propostas teóricas, um<br />
vínculo com o pensamento marxista, como bem pode ser flagrado no<br />
parágrafo acima, à frente, tal vínculo se torna tênue para, finalmente,<br />
ceder, dando lugar a um questionamento e uma produção que podem,<br />
seguramente, ser acolhidos dentro de uma perspectiva anárquica. A<br />
utopia, por exemplo, será preterida pela atopia, o “habitáculo em deriva”<br />
(BARTHES, 2003, p. 62), o esfacelamento do sentido, a pluralidade<br />
das diferenças, enfim, os deslocamentos.<br />
4. Aula e O Grau Zero da Escritura: lições de um anarquista<br />
Leila Perrone-Moisés, em artigo escrito para a edição especial<br />
da Revista Cult dedicada a Roland Barthes, em março de 2006, comenta:<br />
A teoria barthesiana é, portanto, uma teoria mutante, que evolui e se<br />
transforma ao longo dos anos. Por isso é impróprio chamar Barthes de<br />
crítico marxista sociológico ou de semiólogo, porque essas denominações<br />
corresponderiam apenas a determinadas fases de sua carreira. Embora<br />
sempre em transformação, o teórico Barthes conservou as lições das
298<br />
fases abandonadas. Mesmo sendo cada vez mais avesso ao dogmatismo<br />
marxista, a fundamentação principal de sua teoria será sempre ética e politicamente<br />
de esquerda. [...] Presenças constantes em seus textos, dos<br />
primeiros até os últimos, são as palavras “história” e “crítica”, que ele<br />
tentará, incansavelmente, aliar às palavras “corpo”, “desejo” e “prazer”<br />
(PERRONE-MOISÉS, 2006, p. 46)<br />
A essas presenças constantes citadas por Leila, acrescentamos<br />
aquela que, segundo nossa visão, transmite uma preocupação fundamental<br />
que atravessa toda a obra de Barthes: a liberdade, ou melhor,<br />
a sua falta. Sendo assim, os dois trabalhos aqui em foco, embora separados<br />
por um intervalo de vinte e cinco anos, se aproximam, na<br />
medida em que, em ambos, o aceno libertário está presente. Está lá<br />
em O Grau Zero da Escritura, ao expor a noção de escritura e fazer<br />
o elogio do grau zero, do neutro da escrita, e em Aula, palestra inteiramente<br />
dedicada à discussão em torno das relações entre língua e<br />
poder.<br />
A persistente busca da liberdade na língua, na linguagem, fez<br />
com que Barthes se voltasse para o estudo da literatura, observandoa<br />
como uma “trapaça salutar”, um “logro magnífico”, através do qual<br />
nos é permitido vislumbrar, ainda que aprisionados no fechamento<br />
linguístico, uma aragem libertária. Daí, a “história” e a “crítica” serem<br />
palavras recorrentes em suas obras, bem como o “corpo”, o “desejo”,<br />
o “prazer”. Todas elas signos do aprisionamento e da trapaça.<br />
Essa ênfase na liberdade, a mesma que o afastou, no dizer de<br />
Leila Perrone-Moisés, do dogmatismo marxista, mas não de uma<br />
postura politicamente de esquerda, é que caracteriza, segundo nossa<br />
visão, a obra de Barthes como anarquista, isto é, estreitamente vinculada<br />
aos princípios gerais e profundos que norteiam a chamada “filosofia<br />
libertária”. Para sustentar tal aferição, continuemos com as explicações<br />
de George Woodcock:<br />
Descrever a teoria essencial do anarquismo é um pouco como tentar<br />
lutar com Proteu, pois as próprias características da atitude libertária –<br />
rejeição ao dogma, a deliberada fuga dos sistemas teóricos rígidos e, acima<br />
de tudo, a ênfase que dá à total liberdade de escolha, à primazia do<br />
julgamento individual – cria imediatamente a possibilidade de uma imensa<br />
variedade de pontos de vista, inconcebíveis num sistema rigorosamente<br />
dogmático. Na verdade, o anarquismo é a um só tempo diversificado<br />
e inconstante [...]. Como doutrina, muda constantemente, como<br />
movimento, cresce e se desintegra, em permanente flutuação, mas jamais<br />
se acaba. Existe na Europa desde 1840 ininterruptamente, e por suas
299<br />
próprias características multiformes, conseguiu sobreviver onde muitos<br />
movimentos do século anterior, bem mais poderosos, mas com menor<br />
capacidade de adaptação, desapareceram totalmente. (WOODCOCK,<br />
1983, p. 15)<br />
Rejeição ao dogma, fuga a sistemas teóricos rígidos, ênfase<br />
na liberdade de escolha individual são três características essenciais<br />
ao pensamento anarquista, como nos mostra Woodcock. E não são<br />
elas também essenciais nos escritos de Barthes, nas ideias difundidas<br />
por ele em suas obras? Por mais que o estudioso se confessasse anarquista,<br />
apenas no sentido etimológico do termo, e avesso à militância,<br />
é possível afirmar que ele militou, em tudo o que escreveu, em<br />
favor do anarquismo, de forma profunda, podendo mesmo ser equiparado<br />
aos mais fervorosos defensores da causa, tais como: Proudhon,<br />
Kropotkin, Bakunin, Stirner, etc. Seus textos alimentam verdadeira<br />
propaganda das ideias anarquistas e, segundo aqueles que<br />
conviveram com Barthes, também em sua vida, em sua maneira de<br />
viver, a filosofia libertária se fez presente.<br />
A própria inconstância dos movimentos, a multiplicidade e as<br />
divergências encontradas nas diferentes linhas do pensamento anarquista<br />
são características presentes nas produções barthesianas. Afinal,<br />
deslocamentos, variações e mutações, anunciados por Woodcock<br />
em relação ao anarquismo, também são pontos fundamentais defendidos<br />
por Roland Barthes. Novamente, recorremos a Woodcock:<br />
Proudhon diverge dos verdadeiros anarquistas individualistas por<br />
considerar a história em seu aspecto social e, apesar de sua entusiástica<br />
defesa das liberdades individuais, pensa em termos de associação: “Para<br />
que eu possa permanecer livre, para que eu não esteja sujeito a nenhuma<br />
lei exceto aquelas que eu mesmo tenha criado e para que eu me governe,<br />
diz ele – é preciso reconstruir o edifício da sociedade, tendo como base a<br />
ideia do Contrato.” (Ibidem, p. 17)<br />
Sobre o contrato, podemos ler em um fragmento do Roland<br />
Barthes por Roland Barthes:<br />
Elogio ambíguo do contrato – A primeira imagem que ele tem do contrato<br />
é, em suma, objetiva: o signo, a língua, a narrativa, a sociedade funcionam<br />
por contrato, [...]. [Este] permite a regra de ouro de toda habitação,<br />
decifrada no corredor de Shikidai: “nenhum querer-agarrar e, no entanto,<br />
nenhuma oblação.” (BARTHES, 2003, p. 72-3)
300<br />
A reflexão a respeito do contrato, em ambos, Proudhon e Barthes,<br />
tem em comum a convivência social espontânea, de forma que<br />
o indivíduo, vivendo em livre associação, não se perca de si mesmo.<br />
Na verdade, a noção de contrato, tal como a desenvolvida por<br />
Rousseau, era rejeitada pela maior parte dos teóricos anarquistas.<br />
Bem como a noção de comunismo de Marx e, até mesmo, a ideia de<br />
utopia, na medida em que esta é “uma construção mental rígida que,<br />
se bem sucedida, demonstraria ser tão prejudicial ao livre desenvolvimento<br />
dos que lhe estivessem sujeitos quanto qualquer outro dos<br />
sistemas já existentes” (WOODCOCK, 1983, p. 20)<br />
Aquela ideia de utopia exposta no último parágrafo de O grau<br />
zero vem revista no Roland Barthes por Roland Barthes, no fragmento<br />
dedicado, especificamente, a esse tópico.<br />
Para que serve a utopia- [...] No grau zero, a utopia (política) tem a<br />
forma (ingênua?) de uma universalidade social, como se utopia só pudesse<br />
ser o contrário estrito do mal presente, como se, à divisão, só pudesse<br />
responder, mais tarde, a indivisão; mas desde então, embora vaga e<br />
cheia de dificuldades, uma filosofia pluralista vem à luz: hostil à massificação,<br />
voltada para a diferença, fourierista, em suma; a utopia (sempre<br />
mantida) consiste então em imaginar uma sociedade infinitamente parcelada,<br />
cuja divisão não fosse mais social e, portanto, não fosse mais conflituosa.<br />
(BARTHES, 2003, p. 91)<br />
Barthes cita Fourier, do qual, certas ideias, principalmente essa<br />
sobre a utopia, foram incorporadas pelo ideário anárquico. A reflexão<br />
fourierista sobre como fazer com que os homens trabalhem<br />
por amor e não apenas por dinheiro penetrou nas discussões anarquistas<br />
e nas perquirições barthesianas. Na obra acima citada, o escritor,<br />
no fragmento “Uma sociedade de emissores”, afirma que “o<br />
gozo de escrever, de produzir, assalta de todos os lados; mas como o<br />
circuito é comercial, a produção livre continua estrangulada, [...]”<br />
(BARTHES, 2003, p. 94). A seguir, menciona a “cena utópica de<br />
uma sociedade livre (onde o gozo circularia sem passar pelo dinheiro),<br />
[...]” (Ibidem, p. 94). Assim, o trabalho por prazer, por amor (este<br />
também requisitado por Barthes), e não como simples parte de um<br />
contrato comercial, também encontra eco nas considerações propostas<br />
por Roland Barthes.<br />
Para finalizarmos nossas considerações tecidas em torno dos<br />
textos de Barthes em diálogo com as concepções construídas pelos
301<br />
adeptos da filosofia libertária, assinalamos que, em Barthes, todos os<br />
questionamentos estão voltados para aquilo que ele destacou na sua<br />
aula inaugural: a relação entre a língua e o poder. Assim, inúmeros<br />
tópicos que movimentam a propaganda e a ação anarquista são tratados,<br />
pelo pensador francês, como construções da linguagem e nesse<br />
sentido devem ser analisados.<br />
5. Língua, linguagem, escritura e poder: epílogo<br />
Enfim, pensamos que os trechos recolhidos nos textos de Barthes,<br />
postos ao lado das anotações de Woodcock, possam dar uma<br />
noção do que requisitamos no título deste trabalho: a relação profunda<br />
existente entre as ponderações barthesianas e as concepções mais<br />
caras e fundamentais ao pensamento anárquico. Tal relação pode ser<br />
verificada tanto nas indagações do mestre francês quanto na construção<br />
destas.<br />
Em Aula, e também já em O Grau Zero da Escritura, bem<br />
como em Roland Barthes por Roland Barthes, e todos os outros estudos<br />
produzidos por Barthes, no entremeio dessas obras, as compreensões<br />
veem embaladas (toma-se a palavra em seu sentido duplo) pela<br />
permanente e recorrente noção de escolha, de liberdade, ainda que<br />
esta apenas de viés, como trapaça ou logro, possa ser vislumbrada.<br />
De qualquer forma, estarão lá: a rejeição ao dogma, aos sistemas<br />
teóricos fixos e rígidos e a ênfase na liberdade do indivíduo. E,<br />
se, em O Grau Zero da Escritura, apareciam em rascunho, como tênue<br />
fio d’água correndo em direção ao mar, ao longo do tempo, foram<br />
ganhando força, encorpando-se, virando caudaloso rio, que pode<br />
ser navegado em Aula, no Roland Barthes por Roland Barthes e em<br />
outros escritos.<br />
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
AULETE, Caldas. Dicionário Caldas Aulete da língua portuguesa.<br />
Rio de Janeiro: Lexikon, 2007.<br />
BARTHES, Roland. Aula. 6. ed. Trad. Leila Perrone-Moisés. São<br />
Paulo: Cultrix, 1992.
302<br />
______. O grau zero da escritura. 3. ed. Trad. Heloysa de Lima<br />
Dantas e Anne Arnichand e Álvaro Lorencini. São Paulo: Cultrix,<br />
1986.<br />
______. Roland Barthes por Roland Barthes. Trad. Leila Perrone-<br />
Moisés. São Paulo: Estação Liberdade, 2003.<br />
PERRONE-MOISÉS, Leila. Roland Barthes e o prazer da palavra.<br />
Revista Cult. Edição especial. São Paulo, n.100, p. 42-6, mar. 2006.<br />
WOODCOCK, George. Anarquismo. Uma história das ideias e movimentos.<br />
Trad. Júlia Tettamanzy. Porto Alegre: L&PM, 1983.
A LINGUÍSTICA E O ENSINO DO PORTUGUÊS:<br />
INSTRUMENTOS PARA PROFESSORES<br />
DA EDUCAÇÃO BÁSICA<br />
1. Introdução<br />
Patrícia Ribeiro de Andrade (UNEB) 1<br />
patricia_campus5@yahoo.com.br<br />
Há décadas, a linguística consta dos currículos dos cursos de<br />
Letras em universidades brasileiras e, à medida que se desenvolve,<br />
tem tornado possível a realização de muitas pesquisas voltadas para<br />
o ensino de língua materna, na educação básica. Porém, os resultados<br />
desse crescimento ainda são pouco notados na formação dos estudantes,<br />
haja vista as contínuas críticas, vindas de vários segmentos<br />
da sociedade, as quais refletem um sentimento geral de que os alunos<br />
não sabem ler, não sabem escrever e nem falar (!). Quem trabalha na<br />
área de formação de professores consegue vivenciar de perto essa<br />
angústia e, certamente, a experimenta de forma intensificada por<br />
perceber que a universidade promove poucas mudanças na atuação<br />
do professor de português, que continua reproduzindo aquele velho<br />
ensino que não forma.<br />
Mesmo considerando que o insistente fracasso da educação<br />
brasileira não é função de eventos isolados, mas de uma confluência<br />
de razões, especialmente razões de ordem social, ainda assim, o aprendizado<br />
insatisfatório daquilo que se configura como objeto do<br />
ensino do português (leitura, produção de texto e análise linguística),<br />
figurará como um problema que se impõe reiteradamente aos estudiosos<br />
do assunto.<br />
O presente trabalho discute um projeto que visa a construção<br />
de ferramentas voltadas para a melhoria da qualidade do ensino do<br />
português. O projeto foi delineado a partir de hipóteses que se forma-<br />
1 Professora Assistente da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), onde coordena o projeto<br />
de pesquisa “A fala dos estudantes da rede pública de ensino de Santo Antônio de Jesus-Ba”,<br />
vinculado ao Grupo de Pesquisa “"Múltiplas linguagens: estudo, ensino e formação docente"<br />
(Certificado pela Universidade do Estado da Bahia).
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
304<br />
ram ao começarmos a perceber que há certa resistência à linguística,<br />
por parte dos professores da educação básica, embora estes não se<br />
furtem a reproduzir algumas partes do discurso dessa ciência que<br />
lhes parecem “politicamente corretas”.<br />
A primeira dessas hipóteses é a de que os professores que têm<br />
ainda a linguística como uma “ilustre desconhecida”, rejeitam-na, de<br />
forma categórica, em função de uma muito difundida crença de que<br />
ela prega que tudo que se fala e se escreve está correto, independentemente<br />
de contextos de uso. Sendo assim, qualquer tentativa de levar<br />
o conhecimento dessa ciência a tais professores vai necessariamente<br />
ter de passar por uma profunda desconstrução ideológica.<br />
A segunda hipótese considera que os professores que tiveram<br />
oportunidade de estudar linguística, principalmente as correntes ditas<br />
funcionalistas, que deram origem a um grande número de trabalhos<br />
destinados ao ensino de língua, embora tenham uma ideia diferente<br />
sobre a linguística, daquela que têm os professores mencionados anteriormente,<br />
não conseguem acionar o conhecimento adquirido por<br />
que é difícil estabelecer uma ponte entre o que aprenderam e o que a<br />
escola quer que ensinem.<br />
Entendemos que um salto neste sentido só acontecerá a partir<br />
do momento em que a oralidade fizer parte do programa da disciplina<br />
língua portuguesa, na educação básica, não porque esta deva ter<br />
primazia, mas porque, isto representaria uma mudança na compreensão<br />
do que seja língua e, por conseguinte, abriria as portas para um<br />
ensino que considere a gramática internalizada, como apontam Perini<br />
(2002) e Possenti (1997). Além disso, ampliaria o entendimento do<br />
que seja a menor unidade da língua, o texto, e que toda análise linguística<br />
deve ser contextualizada (KOCH, 1991; NEVES, 2003;<br />
ANTUNES, 2002).<br />
A terceira hipótese é a de que, a partir do conhecimento gerado<br />
pelo estudo de construções discursivas desses professores, será<br />
possível quebrar resistências que impedem mudanças no ensino e fazer<br />
proposições em função de um trabalho com língua materna, fortemente<br />
norteado pela linguística, trabalho este que levará a um aprendizado<br />
mais significativo, na formação inicial.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
305<br />
Tendo em vista o problema aqui levantado, discutiremos procedimentos<br />
que, acreditamos, podem vir a indicar respostas a este.<br />
Tais procedimentos envolvem a busca pelo conhecimento daquilo<br />
que os professores sabem e pensam sobre a linguística e, posteriormente,<br />
a realização de um trabalho junto a eles, tendo como suporte<br />
as diversas correntes da linguística, de forma a instrumentalizá-los<br />
pedagogicamente, para um trabalho mais adequado com o objeto de<br />
ensino do português.<br />
Com a realização do trabalho que ora apresentamos, pretendemos<br />
alcançar dois grandes objetivos: i) contribuir com os estudos<br />
voltados para a melhoria do ensino do português na educação básica;<br />
ii) propor um caminho para se estabelecer uma efetiva parceria de<br />
trabalho entre a universidade e escola básica, visando o aperfeiçoamento<br />
do aprendizado do português.<br />
E, relativamente às atividades a serem desenvolvidas, temos<br />
como objetivos específicos: i) interpretar as construções discursivas<br />
de professores da educação básica, sobre as contribuições da linguística<br />
para o ensino do português, à luz da análise do discurso; ii) construir<br />
métodos de abordagens do objeto do português, juntamente com<br />
professores da educação básica, tendo como suporte os Parâmetros<br />
Curriculares Nacionais para o ensino de língua materna, a Sociolinguística,<br />
linguística textual, análise do discurso, e as abordagens<br />
cognitivista e sociocognitivista dos processos de leitura e produção<br />
de texto.<br />
2. O que pensam, o que sabem os professores da educação básica<br />
sobre a linguística?<br />
Uma vez que o objetivo da pesquisa é, a princípio, conhecer o<br />
discurso do professor, cabe apresentar neste esboço alguns dos conceitos<br />
e categorias da análise do discurso que nortearão a realização<br />
do trabalho.<br />
A análise do discurso surge, conforme explana Mussalim<br />
(2001), na década de 1960, na França, fundamentada nas concepções<br />
políticas do linguista Jean Dubois e do filósofo Michel Pêcheux. A<br />
evolução dessa disciplina se faz na convergência de estudos de ordem<br />
política, encontrando respaldo científico na linguística estrutura-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
306<br />
lista da época, a exemplo da abordagem do filósofo Althusser, em<br />
Ideologia e aparelhos ideológicos do estado (1970):<br />
A linguística, então, aparece como um horizonte para o projeto althusseriano<br />
da seguinte maneira: como a ideologia deve ser estudada em<br />
sua materialidade, a linguagem se apresenta como o lugar privilegiado<br />
em que a ideologia se materializa. A linguagem se coloca para Althusser<br />
como uma via por meio da qual se pode depreender o funcionamento da<br />
ideologia. (MUSSALIM, 2001, p. 104).<br />
Na altura, as pesquisas eram feitas na perspectiva da linguística<br />
dita formal, em que a língua é analisada fora de seu contexto de<br />
uso, considerando-se apenas aspectos internos, exclusivamente estruturais.<br />
Atribui-se, então, à estrutura da língua toda responsabilidade<br />
pelo seu funcionamento. A língua é autônoma e funciona unicamente<br />
em consonância com seus dispositivos estruturais. Essa concepção<br />
de língua, amplamente aceita, até a segunda metade do século XX,<br />
possibilitou ao Estruturalismo manter uma hegemonia nos estudos da<br />
linguagem.<br />
Saussure é o pioneiro nessa busca pela unificação da linguística.<br />
É, pois, nesse intuito que esse linguista estabelece que a língua é<br />
um sistema autônomo, composto por elementos denominados signos.<br />
A partir da proposta saussuriana, a abordagem que se faz é da língua<br />
na sua imanência, o que propiciou a constituição de métodos próprios<br />
de investigação, e a elevação da linguística ao status de ciência.<br />
A língua, então, passa a ser vista apenas como estrutura, tendo como<br />
níveis de análise a fonética, fonologia, morfologia, sintaxe e semântica.<br />
Conforme Lucchesi (1998),<br />
Para Saussure o universo da linguagem, por seu caráter heterogêneo<br />
e plural seria incognoscível. Em contrapartida, a língua, dada a sua<br />
natureza unitária e homogênea, constituiria, para o linguista, o seu objeto<br />
de estudo por excelência. (LUCCHESI, 1998, p. 44),<br />
Tais formas de se explicar o fenômeno são pouco elucidativas<br />
no que se refere ao seu emprego enquanto prática social. Novamente<br />
considerando as palavras de Lucchesi: "Para dissociar a língua do<br />
seu existir concreto, é preciso separá-la também de sua história,<br />
ignorando o processo ininterrupto de transformações que é inerente à<br />
sua constituição". (LUCCHESI, 1998, p. 45).<br />
Assim, Michel Pêcheux, imprime outros rumos à nova ciência<br />
que surge:
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
307<br />
É neste contexto que nasce o projeto da AD. Michel Pêcheux, apoiado<br />
numa formação filosófica, desenvolve um questionamento crítico sobre<br />
a linguística e, diferentemente de Dubois, não pensa a instituição da<br />
AD como um progresso natural permitido pela linguística, ou seja, não<br />
concebe que o estudo do discurso seja uma passagem natural da Lexicologia<br />
(estudo das palavras) para a análise do discurso. A instituição da<br />
AD, para Pêcheux, exige uma ruptura epistemológica, que coloca o estudo<br />
do discurso num outro terreno em que intervêm questões teóricas relativas<br />
à ideologia e ao sujeito. (MUSSALIM, 2001, p. 105).<br />
No Brasil, a análise do discurso é consolidada por Eni Orlandi,<br />
cuja obra é tomada como suporte para o embasamento da pesquisa<br />
que ora apresentamos.<br />
A contribuição que almejamos oferecer ao meio acadêmico é<br />
de ordem teórica, uma vez que buscaremos abordar o discurso do<br />
professor no que se refere à linguística. Constituímos esse objeto por<br />
entendermos que, quanto mais aprendermos sobre as “vozes” que<br />
conduzem a prática docente, mais aptos estaremos a ajudar, se é este<br />
o nosso desejo.<br />
É bastante corrente a prática de “observar” o professor e depois<br />
partir para a crítica ferrenha ao seu trabalho. Até quando falamos<br />
com eles, parece que fazemos com o intuito de confirmar aquilo<br />
o que já sabemos e assim ampliamos nosso poder de fogo contra a<br />
sua prática “ultrapassada”. E surgem as teorias e os métodos de trabalho<br />
com a ilusão de salvar o ensino.<br />
E por que isto não tem acontecido, compreendemos que os<br />
caminhos devem ser reconfigurados. Ao invés de observar este professor<br />
e apenas falar sem jamais escutá-lo, talvez seja pertinente ouvir,<br />
de verdade, o que eles também têm a dizer sobre nós, os “pensadores”<br />
de sua prática e de suas atribuições, na tentativa de, ao interpretá-los,<br />
possamos nos reinterpretar.<br />
Nas palavras de Orlandi, os dizeres funcionam como pistas<br />
para a construção do conhecimento.<br />
Os dizeres não são como dissemos, apenas mensagens a serem decodificadas.<br />
São efeitos de sentidos que são produzidos em condições<br />
determinadas e que estão de alguma forma presentes no modo como se<br />
diz, deixando vestígios que o analista de discurso tem de apreender. São<br />
pistas que ele aprende a seguir para compreender os sentidos aí produzidos,<br />
pondo em relação o dizer com sua exterioridade, suas condições de<br />
produção. Esses sentidos têm a ver com o que é dito ali, mas também em
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
308<br />
outros lugares, assim como com o que não é dito, e com o que poderia<br />
ser dito e não foi. (ORLANDI, 2005, p. 30)<br />
Os “dizeres” do professor provavelmente devem começar a<br />
funcionar como ponto de partida para quaisquer outros discursos lhes<br />
avaliem.<br />
É na tentativa de explicitar o que está por trás da aparente resistência<br />
dos professores ao pensamento da linguística, no que concerne<br />
ao ensino de língua, que utilizaremos os métodos e as categorias<br />
propostas pela análise do discurso, registrando, para controle da<br />
pesquisa, as construções discursivas por eles produzidas.<br />
Os procedimentos analíticos da análise do discurso serão ferramenta<br />
de estudo para o trabalho, por se constituírem os recursos<br />
mais apropriados para se trazer à tona os implícitos do discurso sobre<br />
o qual repousa a manutenção de práticas pedagógicas que temos considerado<br />
ineficientes. Se o discurso “é efeito de sentidos entre locutores”<br />
(ORLANDI, 2005), há que se identificar tais efeitos, compreender<br />
como eles são apreendidos e a partir daí (re)construir.<br />
Sendo discurso o meio através do qual o homem se relaciona<br />
com o seu meio natural e social, e por intermédio deste os eventos da<br />
realidade sofrem deslocamentos ou ficam inalterados, então, o conhecimento<br />
profundo do discurso dos professores é condição necessária<br />
para conhecer seu pensamento e manter com este um diálogo<br />
que nos permita compreender e atuar na sua realidade, de modo a<br />
explicitar a ideologia que subjaz a defesa do ensino tradicional, trabalhando<br />
na perspectiva de sugerir visões outras sobre o instituído.<br />
Neste sentido, nos ocuparemos de identificar os contextos imediato<br />
e amplo, explicitando de que modo o contexto sóciohistórico<br />
vem determinando as condições de produção discursiva.<br />
Assumir essa posição significa percorrer os caminhos do interdiscurso<br />
que<br />
...consiste em considerar o que é dito em um discurso e o que é dito em<br />
outro, o que é dito de um modo e o que é dito de outro, procurando escutar<br />
o não dito naquilo que é dito, como uma presença de uma ausência<br />
necessária. (ORLANDI, 2005, p. 34).<br />
Na observância do “como” se dão as construções discursivas,<br />
a concepção de sujeito do discurso tem relevância fundamental. Este
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
309<br />
é um sujeito que deverá ser compreendido a partir da confluência de<br />
leituras que o considerem como o sujeito do inconsciente e da ideologia.<br />
Todo enunciado [...] é linguisticamente descritível como uma série<br />
de pontos de deriva possível oferecendo lugar à interpretação. Ele é sempre<br />
suscetível de ser/tornar-se outro. Esse lugar do outro enunciado é o<br />
lugar da interpretação, manifestação do inconsciente e da ideologia na<br />
produção dos sentidos e na constituição dos sujeitos. (ORLANDI, p. 59).<br />
Estes e outros dispositivos de análise serão acionados para<br />
tentarmos encontrar as respostas para o problema que ora inscrevemos.<br />
E, conforme dissemos anteriormente, interpretar o discurso do<br />
professor sobre a linguística é uma das etapas da pesquisa e esta é o<br />
cerne do projeto. Entretanto, é nosso objetivo também poder estabelecer<br />
com esse professor um trabalho de parceria, através do qual<br />
buscaremos auxiliá-lo no desenvolvimento de suas atividades com<br />
língua materna, ao tempo em que aprenderemos com ele a construir<br />
novos rumos para a formação de professores. Insere-se, então, a outra<br />
fase que denominamos etapa prática, a qual se guiará pelas propostas<br />
de ensino do português oferecidas por vertentes funcionalistas<br />
da linguística.<br />
3. Instrumentos para a educação básica<br />
O objeto do ensino de português na formação inicial é contemplado<br />
pelas atividades de leitura, escrita e análise linguística,<br />
como bem se sabe. A escola não deixa de cobrir essas atividades,<br />
mas as têm desenvolvido de forma assistemática e, por vezes, absolutamente<br />
contraproducente. Mas, não desejamos aqui manter o procedimento<br />
que critica ferozmente a forma como a escola conduz o<br />
desenvolvimento dessas habilidades pelo estudante. Queremos, sobretudo,<br />
apresentar um breve panorama do referencial teórico que<br />
embasa a fase prática da pesquisa.<br />
A proposta é trabalhar com professores de língua portuguesa,<br />
da educação básica, de escolas públicas, na cidade de Santo Antônio<br />
de Jesus-BA. Pretendemos constituir um corpus contendo o discurso<br />
de professores sobre o objeto do ensino do português e sobre o seu<br />
interesse pelas contribuições da linguística para o trabalho pedagógico.<br />
Nesse intuito, realizaremos, durante um semestre, encontros se-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
310<br />
manais para estudo e discussão dos Parâmetros Curriculares Nacionais<br />
para o ensino de língua materna, além do estudo de obras na linha<br />
da Sociolinguística, linguística textual, análise do discurso, cognitivista<br />
e sociocognitivista sobre os processos de leitura, produção<br />
de texto e análise linguística.<br />
Além de abordagens teóricas, em que buscaremos demonstrar<br />
a relevância desses postulados para o ensino, os encontros servirão<br />
para realizar o planejamento das aulas, bem como para organização<br />
de material didático. Ou seja, a função do trabalho com os professores<br />
é promover a ação/reflexão/ação, visando construir, junto com<br />
eles, uma concepção de língua e de ensino de língua que leve a procedimentos<br />
pedagógicos mais significativos. Tais ações refletem a<br />
hipótese levantada anteriormente de que os construtos teóricos por si<br />
e nem mesmo as propostas de ordem mais prática que sejam terão<br />
uma resposta, se não houver um trabalho de perto com os professores.<br />
Esta etapa prática do trabalho será fundamentada pelos estudos<br />
da “linguística aplicada” (em sentido mais amplo do que costumamos<br />
encontrar, a despeito do ensino de línguas estrangeiras), baseados<br />
na Sociolinguística, como as obras de Sírio Possenti (1997);<br />
Bagno (2001, 2002); Mattos e Silva (1997); Neves (2003), os quais<br />
chamam atenção para a importância do estudo da diversidade do português<br />
do Brasil, demonstrando como funcionam as variantes de uma<br />
regra variável e como o professor pode descrever os diversos registros,<br />
a fim de que o aluno compreenda a situacionalidade desse uso.<br />
O ensino de língua a partir de textos orais é outro ponto fundamental<br />
a ser trabalhado na etapa prática. Para isto, servirão de suporte<br />
teórico, os trabalhos de Antunes (2002); Geraldi (1997, 2001);<br />
Koch e Travaglia (1991); Marcuschi (2004); Kaufman e Rodríguez<br />
(1995). Esses estudos abordam tanto o funcionamento dos textos,<br />
bem como apresentam sugestões para trabalho com os mesmos, sua<br />
leitura e produção.<br />
A leitura e a produção de textos são competências amplamente<br />
estudadas na atualidade. O suporte teórico de tais competências<br />
serão abordados na etapa prática da pesquisa através das obras de<br />
Kaufman e Rodríguez (1995); Solé (1998); Geraldi (1997) Kleiman<br />
(1998); Alves (2001); Geraldi (1997); Brito (1997), em que, além de
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
311<br />
poder compreender os processos cognitivos envolvidos no aprendizado<br />
da leitura e da produção textual, será possível aprender como<br />
trabalhar a formação do gosto.<br />
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
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Paulo: Parábola, 2002.<br />
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2002.<br />
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São Paulo: Parábola, 2001.<br />
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sobre as condições de produção de textos escolares. In: GERALDI,<br />
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Paulo: Ática, 1997.<br />
FORTKAMP, Mailce Borges Mota; TOMITCH, Lêda Maria Braga.<br />
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GARRIDO, Selma; LIMA, Maria Socorro Lucena. Estágio e docência.<br />
Cortez, 2004.<br />
GERALDI, João Wanderley; CITELLI, Beatriz (Org.). Aprender e<br />
ensinar com textos de alunos. 4. ed. São Paulo: Cortez, 2001.<br />
GERALDI, João Wanderley (Org.). O texto na sala de aula. São<br />
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LUCCHESI, Dante. Sistema, mudança e linguagem. Lisboa: Colibri,<br />
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MARCUSCHI, Luiz Antônio. Da fala para a escrita: atividades de<br />
retextualização. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2004.<br />
MATTOS E SILVA, Rosa Virgínia. Contradições no ensino de português:<br />
a língua que se fala X a língua que ensina. São Paulo: Contexto,<br />
1997.<br />
MUSSALIM, Fernanda. Análise do discurso. In: MUSSALIM, Fernanda;<br />
BENTES, Anna Christina. Introdução à linguística: domínios<br />
e fronteiras. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2001.<br />
ORLANDI, Eni P. Análise de discurso: princípios e procedimentos.<br />
6. ed. Campinas: [Pontes?], 2005.<br />
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Educação. Secretaria de Educação Média e Tecnologia. Brasília: Ministério<br />
da Educação, 1999.<br />
PERINI, Mário A. Sofrendo a gramática. 3. ed. São Paulo: Ática,<br />
2002.<br />
POSSENTI, Sírio. Por que (não) ensinar gramática na escola.<br />
Campinas: Mercado das Letras, 1997.<br />
NEVES. Maria Helena de Moura. Que gramática estudar na escola?<br />
Norma e uso na língua portuguesa. São Paulo: Contexto, 2003.<br />
SOLÉ, Isabel. Estratégias de leitura. 6. ed. Trad. Cláudia Schilling.<br />
Porto Alegre: Artmed, 1998.
1. Primeiras palavras<br />
A MULTIPLICIDADE SEMÂNTICA<br />
DO VERBO ‘TER’ PLENO<br />
À LUZ DA SEMÂNTICA COGNITIVA<br />
Diogo Pinheiro (UFRJ)<br />
dorpinheiro@gmail.com<br />
Historicamente, a semântica lexical tem servido como arena<br />
de debates para visões muito diferentes, e em grande medida conflitantes,<br />
acerca de língua, linguagem e significado. De maneira um<br />
tanto esquemática, e inevitavelmente grosseira, é possível opor duas<br />
perspectivas. De um lado, as concepções formalistas se caracterizam,<br />
do ponto de vista filosófico-epistemológico, pela assunção de que o<br />
significado (ou pelo menos a parte linguisticamente relevante dele)<br />
está inerentemente associado à forma linguística. De outro lado, concepções<br />
(mais ou menos radicalmente) pragmáticas tendem a enxergar<br />
o sentido como o produto resultante de uma ação conjunta, vale<br />
dizer, uma negociação na qual interferem fatores os mais variados,<br />
como o conhecimento prévio dos interlocutores e determinações contextuais.<br />
Dada a dominância histórica da concepção formalista, é natural<br />
que maioria esmagadora dos estudos sobre a multiplicidade semântica<br />
– entendida como o fenômeno segundo o qual uma mesma<br />
forma se vincula a mais de um uso ou sentido – procure responder a<br />
questões do tipo “quantos significados tem uma determinada palavra?”.<br />
Essa maneira de formular a questão é, evidentemente, compatível<br />
com a ideia de que o léxico tem o formato de um repositório de<br />
formas ao lado das quais são enumerados os significados correspondentes.<br />
Essa visão não é, entretanto, a única possível. Como já se disse,<br />
outra possibilidade, que lentamente vem ganhando espaço nos últimos<br />
anos, muito em função dos sucessivos fracassos do projeto<br />
formalista no que tange à semântica lexical, é assumir que o significado<br />
de uma palavra é produto da interpretação – contingente e provisória<br />
em medida nada desprezível – do ouvinte ou leitor. No que
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
314<br />
diz respeito especificamente ao problema da multiplicidade semântica,<br />
essa nova perspectiva provoca, no mínimo, uma inovação metodológica<br />
considerável: a partir dela, a descrição dos múltiplos sentidos<br />
ou usos associados a uma forma deverá ser considerada um problema<br />
empírico, já que será necessário avaliar de que maneira o ouvinte<br />
constrói processualmente os significados. Dessa forma, a detecção<br />
dessa multiplicidade não poderá mais ser deixada a cargo,<br />
meramente, da introspecção do pesquisador.<br />
Embora tenha sido defendida pioneiramente por Sandra e Rice<br />
(1995), essa posição não tem encontrado terreno fértil no cenário<br />
dos estudos semânticos do português brasileiro – de agora em diante,<br />
PB (no que tange ao português europeu, seu êxito é um pouco mais<br />
significativo, mas ainda assim bastante limitado, ao menos do ponto<br />
de vista estritamente quantitativo). Neste trabalho, tais perspectivas<br />
filosóficas e metodológicas serão adotadas para a descrição da multiplicidade<br />
semântica do verbo ‘ter’ pleno do PB. Por ‘ter’ pleno, entendam-se<br />
os usos não modais e não auxiliares – o que exclui, portanto,<br />
casos como os seguintes:<br />
(1) Você tem que me ajudar!<br />
(2) Ele tem encontrado dificuldade para ser ouvido.<br />
Tudo isso significa, na prática, que este trabalho procurará dar<br />
conta da multiplicidade semântica do ‘ter’ pleno do PB a partir de<br />
uma abordagem eminentemente empírica. Com essa abordagem,<br />
procuramos avaliar – através de testes de julgamento semântico – a<br />
percepção semântica de 79 falantes nativos do português brasileiro<br />
acerca dos usos e sentidos do ‘ter’ pleno.<br />
Ademais, a fim de organizar e atribuir coerência aos resultados<br />
dos testes, recorreremos ao modelo de semântica lexical desenvolvido<br />
por Tuggy (1993; 2003). Fundamentado na gramática cognitiva<br />
(LANGACKER, 1987 e 1991), esse modelo permite representar,<br />
por meio de redes esquemáticas, o grau de proximidade semântica<br />
entre os diversos conceitos.
2. Quantos sentidos tem essa palavra?<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
315<br />
Determinar o número de sentidos de uma palavra equivale,<br />
tradicionalmente, a fazer uma escolha entre as categorias de polissemia<br />
e vagueza. Historicamente, o conceito de vagueza tem recebido<br />
acolhida calorosa nas semânticas de inspiração formalista (cf. SIL-<br />
VA, 2006). Um exemplo paradigmático desse tipo de abordagem é<br />
Viotti (2003). Debruçando-se sobre o ter pleno do PB, a autora conclui<br />
que se trata de um verbo “totalmente subespecificado” (p. 235),<br />
com estrutura de evento “em si vazia de conteúdo semântico” (p.<br />
238). Essa semântica inerentemente vaga seria, então, “especificada<br />
por composicionalidade, mais precisamente pela especificação de<br />
sua estrutura qualia pela estrutura qualia de outros constituintes” (p.<br />
238).<br />
Como lembra Taylor (2006), esse tipo de abordagem enfrenta<br />
um grande desafio: trata-se de obter uma formulação suficientemente<br />
geral para dar conta de todos os usos associados a uma palavra e suficientemente<br />
específica para não invadir o terreno conceptual de palavras<br />
semanticamente próximas. A alternativa contrária é aquela<br />
que tem sido perseguida pelos praticantes da Linguística Cognitiva<br />
(LC): privilegiar a polissemia, vale dizer, os usos concretos.<br />
Não tardou, contudo, para que essa abordagem fosse posta<br />
sob ataque. Para Sandra e Rice (1995), o modelo das redes radiais se<br />
ressente da ausência de um procedimento metodológico explícito capaz<br />
de conter a “proliferação descontrolada de distinções” (p. 91). O<br />
risco é o de que essa situação de “vagueza metodológica” (SAN-<br />
DRA; RICE, 1995, p. 90) conduza a uma “polissemia desenfreada”<br />
(CUYCKENS; ZAWADA, 2001). Um dos problemas causados por<br />
essa situação, e levantado inicialmente por Sandra e Rice (1995), diz<br />
respeito à realidade psicológica: como ter certeza de que o falante de<br />
fato armazena e/ou reconhece todas as representações conceptuais<br />
postuladas nas redes radiais?<br />
Essas questões recolocam, ao fim e ao cabo, o problema central<br />
do tratamento da multiplicidade semântica: como determinar o<br />
grau ótimo de generalidade/especificidade na descrição do significado<br />
de uma palavra? Em virtude dos problemas verificados tanto com<br />
a abordagem abstracionista quanto com a abordagem das redes radi-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
316<br />
ais, uma saída possível é representar tanto os significados mais gerais<br />
quanto as acepções específicas.<br />
Esta é a ideia por trás do modelo de Tuggy (1993, 2003). O<br />
autor assume que homonímia, polissemia e vagueza equivalem a<br />
pontos em um continuum de proximidade/afastamento semântico cujos<br />
extremos corresponderiam, de um lado, à situação na qual dois<br />
sentidos associados à mesma forma não guardam qualquer relação<br />
semântica (homonímia) e, de outro, à situação em que duas acepções<br />
são tomadas como mínimas variações contextuais de um único sentido<br />
(vagueza).<br />
A inovação fundamental de Tuggy, porém, consiste em abordar<br />
a multiplicidade semântica a partir da noção de rede esquemática<br />
(LANGACKER, 1987 e 1991). Na gramática cognitiva, esquema é o<br />
nome dado a tudo que há em comum entre duas ou mais estruturas<br />
cognitivas; tais estruturas, por sua vez, serão as elaborações do esquema.<br />
O insight crucial de Tuggy consiste na ideia de que os diferentes<br />
pontos do continuum resultam de uma alternância de foco:<br />
quanto maior o foco sobre o esquema, mais próximo se está do polo<br />
da vagueza; inversamente, quanto maior o foco sobre as elaborações,<br />
mais próximo se está do polo da homonímia. Eis como o autor representa<br />
essa ideia:<br />
C<br />
A B<br />
Estrutura<br />
fonológica<br />
A<br />
C<br />
B<br />
Estrutura<br />
fonológica<br />
A<br />
C<br />
B<br />
Figura 1: o continuum homonímia-polissemia-vagueza, segundo Tuggy (1993)<br />
A<br />
Estrutura<br />
fonológica<br />
C<br />
B<br />
A<br />
C<br />
Estrutura<br />
fonológica<br />
B<br />
Estrutura<br />
fonológica<br />
No diagrama acima, a letra C corresponde ao esquema, ao<br />
passo que A e B são suas elaborações. O extremo esquerdo, item a,
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
317<br />
representa a homonímia absoluta; o extremo direito, item e, representa<br />
a vagueza absoluta. Da esquerda para a direita, a distância vertical<br />
entre C (de um lado) e A e B (de outro) vai se tornando menor,<br />
indicando a progressiva aproximação semântica entre as elaborações<br />
e seu esquema respectivo.<br />
Além da progressiva aproximação conceitual entre as elaborações<br />
e o esquema, indicada pela distância vertical entre eles, a passagem<br />
da homonímia para a vagueza também se reflete no grau de<br />
saliência dos conceitos envolvidos. Quanto mais próximo se está da<br />
homonímia, mais salientes são as elaborações, e menos saliente os<br />
esquemas. Inversamente, conforme encaminhamos em direção à vagueza,<br />
os esquemas se tornam progressivamente mais proeminentes,<br />
ao contrário das elaborações. Essas mudanças ficam visualmente<br />
marcadas no esquema por meio das linhas ao redor de cada box, que<br />
podem ser tracejadas (vagueza) ou cheias e, sendo cheias, podem aparecer<br />
mais ou menos espessas, atingindo a espessura máxima no<br />
extremo esquerdo da homonímia.<br />
Tipicamente, porém, uma mesma forma fonológica não exibe<br />
apenas duas acepções. É comum que inúmeros usos/sentidos se distribuam<br />
por diversos pontos do continuum, de maneira a compor<br />
uma ampla e intrincada rede esquemática. Tuggy (1993) ilustra essa<br />
situação por meio do verbo paint:<br />
Embora represente um avanço significativo no tratamento da<br />
multiplicidade semântica, a abordagem de Tuggy parece padecer da<br />
mesma dificuldade identificada por Sandra e Rice (1995) nos estudos<br />
baseados nas redes radiais: como ter certeza de que as representações<br />
propostas correspondem de fato ao conhecimento do falante?
Apply<br />
disinfectant to<br />
patient’s body<br />
Apply make<br />
up to face<br />
Apply color to<br />
surface<br />
Paint<br />
portrait<br />
Apply<br />
paint to<br />
surface<br />
Artistic<br />
paint<br />
Trompe<br />
L’oeil<br />
3. A testagem empírica<br />
Decorative<br />
paint<br />
Utilitarian<br />
paint<br />
Paint road<br />
stripes<br />
Paint trim<br />
Paint<br />
houses<br />
Paint<br />
interior<br />
walls<br />
Figura 2: rede esquemática de paint , segundo Tuggy (1993)<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
PAINT<br />
Cover large<br />
area with<br />
single color<br />
of paint<br />
318<br />
Paint<br />
exterior<br />
Para avaliar a distância semântica entre os sentidos do ter<br />
pleno, aplicamos um teste de percepção a 83 falantes nativos do português<br />
brasileiro, todos com idade entre 18 e 20 anos. O teste consistia<br />
em 100 pares de sentenças nos quais uma mesma forma fonológica<br />
era necessariamente repetida. Destes, 33 nos interessavam diretamente<br />
– aqueles em que o segmento repetido correspondia a alguma<br />
forma do verbo ter – e os demais foram acrescentados para fornecer<br />
um parâmetro de comparação e para servir como distratores.<br />
Cada par de sentenças vinha acompanhado de uma escala de 0<br />
a 4, na qual se deveria marcar o grau de proximidade semântica percebida<br />
entre as formas idênticas: o grau 0 correspondia a homonímia<br />
(nenhuma relação), ao passo que 4 correspondia a vagueza (as duas<br />
acepções são tão próximas que são tomadas como um único sentido,<br />
com pequenas variações contextuais).<br />
Nosso teste se inspira em experimento semelhante realizado<br />
por Silva (2006, cap. 6). Dos 83 testes, dois foram descartados por<br />
trazerem escalas marcadas duplamente, e dois foram descartados
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
319<br />
porque traziam uma escala em branco. A tabela abaixo mostra a pontuação<br />
média atribuída a cada par de acepções.<br />
ITEM SENTIDOS / USOS MÉDIA CATEGO-<br />
RIA<br />
1 Continência concreta / Locação concreta 2.4 Polissemia<br />
2 Continência concreta/Continência abstrata 2.5 Polissemia<br />
3 Continência concreta / Locação abstrata 2.2 Polissemia<br />
4 Continência abstrata / Locação abstrata 2.4 Polissemia<br />
5 Locação concreta / Locação abstrata 2.5 Polissemia<br />
6 Continência concreta / Relação interpessoal 1.6 Polissemia /<br />
homonímia<br />
7 Continência concreta / Ter algo à disposição 1.8 Polissemia /<br />
homonímia<br />
8 Continência concreta / Propriedade 1.7 Polissemia /<br />
homonímia<br />
9 Continência concreta / Apoiar, aderir 1.5 Polissemia /<br />
homonímia<br />
10 Propriedade / Relação interpessoal 1.5 Polissemia /<br />
homonímia<br />
11 Propriedade / Ter algo à disposição 1.5 Polissemia /<br />
homonímia<br />
12 Propriedade / Experiência 1.3 Polissemia /<br />
homonímia<br />
13 Propriedade / Apoiar, aderir 1.0 Polissemia /<br />
homonímia<br />
14 Propriedade / Ser presenciado 1.0 Polissemia /<br />
homonímia<br />
15 Ter algo à disposição / Apoiar, aderir 3.5 Polissemia /<br />
vagueza<br />
16 Ter algo à disposição / Relação interpessoal 4 Vagueza<br />
17 Ter algo à disposição / Ser presenciado 4 Vagueza<br />
18 Ter algo à disposição para uso / Experiência 3.8 Vagueza /<br />
polissemia<br />
19 Apoiar, aderir / Relação interpessoal 3.7 Vagueza /<br />
polissemia<br />
20 Apoiar, aderir / Experiência 3.9 Vagueza /<br />
polissemia<br />
21 Relação interpessoal / Ser presenciado 4 Vagueza<br />
22 Relação interpessoal / Experiência 4 Vagueza<br />
23 Apoiar, aderir / Posse-locação abstrata 3 Vagueza /<br />
polissemia<br />
24 Relação interpessoal/Posse-locação abstrata 3.2 Vagueza /<br />
polissemia<br />
25 Ter algo à disposição/Posse-locação abstrata 3.3 Vagueza /<br />
polissemia<br />
26 Propriedade/Posse-locação concreta 3.8 Vagueza /
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
320<br />
27 Posse-locação concreta/Posse-locação abs- 1.8<br />
polissemia<br />
Polissemia /<br />
trata<br />
homonímia<br />
28 Propriedade / Posse-locação abstrata 1.3 Polissemia /<br />
homonímia<br />
29 Continência concreta / Qualificativo 1 Polissemia /<br />
homonímia<br />
30 Propriedade / Qualificativo 0.5 Polissemia /<br />
homonímia<br />
31 Relação interpessoal / Qualificativo 1 Polissemia /<br />
homonímia<br />
32 Possessivo-locativo concreto / Qualificativo 0.5 Homonímia<br />
33 Possessivo-locativo abstrato / Qualificativo 1.5 Polissemia /<br />
homonímia<br />
Tabela 1: resultados do experimento de percepção das acepções do ter pleno<br />
Os resultados mostram que as diversas acepções do ter pleno<br />
se distribuem ao longo do continuum homonímia-polissemiavagueza.<br />
Eis o panorama geral. Na parte de cima da Figura 3 – que<br />
abrange continência concreta, continência abstrata, locação concreta<br />
e locação abstrata –, estamos no domínio da polissemia (conforme<br />
1 a 5 do Tabela 1). Abaixo e à direita, a maior parte dos usos irmanados<br />
sob o rótulo de continência metonímica aproxima-se da região<br />
da vagueza, conforme 15 a 26. A exceção fica por conta de propriedade,<br />
que se distancia dos usos ilustrados em 10 a 14. Finalmente,<br />
a acepção qualificativa tende a ser percebida como um uso homonímico<br />
em relação a diversos outros sentidos, com a média do grau<br />
de semelhança oscilando entre 0,5 e 1.8 (conforme 29 a 33).<br />
A partir desses resultados, construímos a seguinte rede:
Continência<br />
concreta<br />
Experiência<br />
Posse-locação<br />
abstrata<br />
Relação<br />
interpesso<br />
al<br />
Continência<br />
abstrata<br />
Ter algo à<br />
disposição<br />
Continência<br />
Locação<br />
concreta<br />
Ser<br />
presenciado<br />
Locação<br />
abstrata<br />
Apoio<br />
adesão<br />
Propriedade<br />
Estabelecer<br />
relação<br />
Posselocação<br />
abstrata<br />
Figura 3: rede esquemática do ter pleno no PB<br />
Posse-locação<br />
concreta<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
Ser dono<br />
321<br />
A linha mais forte indica o alto grau de saliência da acepção<br />
julgar/considerar. Esse sentido é percebido como muito distante da<br />
noção geral de continência, o que caracteriza, precisamente, a situação<br />
de (quase) homonímia refletida pelos índices 0.5, 1.0 e 1.8 nos<br />
itens 29 a 33 da Tabela 1.<br />
Por outro lado, as linhas tracejadas mostram o baixo grau de<br />
saliência das acepções experiência, relação interpessoal, ter algo à<br />
disposição, aderir/apoiar e manter, guardar abstratamente em relação<br />
ao conceito mais geral glosado como estabelecer relação, o que<br />
caracteriza a (quase) vagueza revelada pelos itens 15 a 25.<br />
Note-se também que a acepção ser proprietário se destaca<br />
desse grupo: embora fosse possível, em tese, incluí-la sob o rótulo<br />
genérico estabelecer relação, o falante, na prática, atribui a ela um<br />
nível especial de proeminência. A linha mais forte entre estabelecer<br />
relação e ser proprietário sinaliza a tendência à homonímia entre esses<br />
dois conceitos, como revelado pelos índices dos itens 10 a 14.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
322<br />
Por outro lado, a ideia geral glosada como ser proprietário<br />
parece mais saliente que suas elaborações – aquela expressa pelo<br />
verbo possuir (que não pressupõe qualquer informação acerca do<br />
armazenamento da coisa possuída) e o uso possessivo-locativo concreto,<br />
que parece acrescentar a ideia de armazenamento à noção de<br />
propriedade, aproximando-se do sentido de verbos como manter,<br />
guardar. Caracteriza-se, assim, uma tendência à vagueza, revelada<br />
pelo índice 3.8 em 26.<br />
Nos demais casos, em que não há linhas fortes nem tracejadas,<br />
verificam-se diferentes graus de polissemia (conforme os índices<br />
dos itens 1 a 5). As acepções continência concreta, continência<br />
abstrata, locação concreta e locação abstrata são percebidas como<br />
distintas, mas ainda suficientemente próximas para que o esquema<br />
geral – apreendido como continência – possa ser reconhecido (o que<br />
aponta para um nível intermediário de saliência).<br />
Dentre as acepções ligadas diretamente a continência, destoa<br />
bastante aquela glosada como estabelecer relação. Os índices de 6 a<br />
9 mostram que os usos ligados a ela situam-se, em relação a continência<br />
concreta, entre a polissemia e a homonímia. Essa tendência é<br />
sinalizada pela linha mais forte no box correspondente e pela posição<br />
relativa de continência no diagrama.<br />
4. Explicando a distância semântica percebida<br />
Se as diversas acepções do ter pleno distribuem-se ao longo<br />
do continuum homonímia-polissemia-vagueza, cabe indagar que fatores<br />
atuam para aumentar ou diminuir a distância semântica percebida.<br />
Cinco fatores nos pareceram relevantes:<br />
(1) o número de processos cognitivos necessários para conectar dois<br />
significados: quanto mais processos forem necessários para encadear<br />
dois sentidos, maior a tendência de afastamento entre eles;<br />
(2) a natureza dos processos cognitivos necessários para conectar<br />
dois significados: processos que alteram a configuração semântica<br />
(topologia) do cenário inicial tendem a produzir uma sensação de<br />
maior afastamento semântico;
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
323<br />
(3) a regularidade ou produtividade dos processos: quanto mais produtivo<br />
o processo, menor a sensação de afastamento gerada (como já<br />
observado por Silva, cap. 6);<br />
(4) a estrutura argumental da construção em que a palavra se insere:<br />
quanto mais dessemelhantes as construções, maior o afastamento<br />
semântico percebido;<br />
(5) o grau de proeminência cultural de cada conceito: quanto mais<br />
proeminente é o conceito, mais afastado ele se coloca em relação aos<br />
demais usos.<br />
Nos itens 1, 2 e 4 da Tabela 1, as acepções de cada par são<br />
separadas por apenas um processo – realinhamento em 1 e 4, metáfora<br />
em 2. Nesses casos, o índice se mantém entre 2.4 e 2.5. Já em 3,<br />
dois processos (realinhamento e metáfora) separam as acepções, o<br />
que provavelmente explica o aumento da distância semântica percebida.<br />
Analogamente, quando se compara a continência concreta<br />
com os usos da continência metonímica, nota-se um grau significativo<br />
de afastamento (conforme 6 a 9), que parece motivado pela existência<br />
de dois processos cognitivos: (metáfora e metonímia, conforme<br />
a Figura 3).<br />
A mesma lógica se aplica aos itens 15 a 25. Nesses casos, os<br />
pares não foram separados por nenhum processo cognitivo. O resultado<br />
é uma pontuação média bastante elevada (entre 3.5 e 4), caracterizando<br />
uma nítida tendência à vagueza.<br />
Além do número de processos conectando duas acepções, sua<br />
natureza também se mostra relevante. A metonímia parece produzir<br />
um afastamento semântico mais acentuado que a metáfora e o realinhamento.<br />
Tanto em 3 quanto em 6 a 9, há dois processos envolvidos.<br />
Contudo, no primeiro caso, em que estão presentes realinhamento<br />
e metáfora, a pontuação média foi 2.2, ao passo, que, no segundo,<br />
com metáfora e metonímia, a média oscilou entre 1.5 e 1.8. Atribuímos<br />
essa diferença ao fato de que apenas metonímia altera a topologia<br />
do cenário experiencial que sustenta a rede. Se o realinhamento e<br />
a metáfora preservam um locativo (como sujeito) e um objeto locado<br />
(como objeto direto), a substituição metonímica destrói essa configu-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
324<br />
ração, contribuindo, presumivelmente, para aumentar a sensação de<br />
afastamento semântico.<br />
Nos itens 10 a 14, o grau de semelhança semântica percebida<br />
é baixo a despeito da ausência de processos conectando as acepções.<br />
É possível que esse fenômeno reflita a proeminência alcançada pela<br />
noção de propriedade, sentida pelos falantes como o significado<br />
“verdadeiro” de ter. Pode-se entender que propriedade atua como o<br />
protótipo da categoria formada pelo conjunto de usos de ter – como<br />
já intuíra Langacker (1991, p. 171) em relação à categoria de Posse.<br />
Tudo indica, em suma, que o falante identifica dois blocos<br />
dentro da continência metonímica: de um lado, propriedade; de outro,<br />
os demais usos, que se colocam em oposição a propriedade. Esses<br />
usos são sentidos como próximos ou mesmo idênticos entre si, ao<br />
mesmo tempo em que todos estão significativamente afastados da<br />
noção de propriedade (com pontuação 1.0 ou 1.5).<br />
Outro indicador da prototipicidade de propriedade aparece<br />
em 26 a 28. A posse-locação concreta foi julgada mais próxima de<br />
propriedade do que da sua contraparte metafórica direta – a posselocação<br />
abstrata. Por ser prototípica, a noção de propriedade é aquela<br />
com a qual as outras acepções são comparadas e em relação à qual<br />
são avaliadas. Como a posse-locação concreta pressupõe a propriedade,<br />
o fenômeno se repete, com o surgimento de dois grupos claramente<br />
delimitados. De um lado, as acepções propriedade e possessivo-locativo<br />
concreto, com grau de proximidade semântica bastante<br />
elevado (média de 3.8); de outro lado, o uso possessivo-locativo abstrato,<br />
afastado dos outros dois.<br />
Por fim, a acepção qualificativa é a que mais se afasta dos<br />
demais usos de ter, de modo que os pares 29 a 33 são os que mais se<br />
aproximam do extremo esquerdo do continuum. Isso não pode ser atribuído<br />
apenas ao número e à natureza dos processos envolvidos, já<br />
que tanto a acepção qualificativa quanto a posse-locação abstrata<br />
resultam igualmente de quatro passos encadeados (Fig. 3).<br />
Mas há uma diferença: o uso possessivo-locativo abstrato resulta<br />
de uma metáfora ontológica (LAKOFF; JOHNSON, 1980),<br />
processo regular e produtivo; o uso qualificativo resulta de uma metáfora<br />
menos generalizada: ESTADOS SÃO LUGARES (LAKOFF;
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
325<br />
JOHNSON, 1980). Como já mostrou Silva (2006), processos produtivos<br />
produzem a percepção de aproximação semântica. Além disso,<br />
deve-se considerar que, entre a posse-locação concreta e a abstrata,<br />
a metáfora não produz uma nova construção gramatical, ao contrário<br />
do que ocorre no caso do uso qualificativo. A semântica da nova<br />
construção parece também influencia na percepção do significado de<br />
ter.<br />
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
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Amsterdam: John Benjamins, 2001.<br />
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New York: Mouton de Gruyter, 2006.<br />
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In: MÜLLER, A. L., NEGRÃO, E. V., FOLTRAN, M. J (Orgs.).<br />
Semântica formal. São Paulo: Contexto, 2003.
A PRODUÇÃO TEXTUAL<br />
SOB A PERSPECTIVA DA RETEXTUALIZAÇÃO<br />
EM UMA CLASSE DO ENSINO MÉDIO<br />
José Ricardo Carvalho (FUFSE)<br />
ricardocarvalho.ufs@hotmail.com<br />
As reflexões sobre a cultura oralizada e a cultura letrada vem<br />
sendo desenvolvidas e alimentadas por diversas áreas de saber. Uma<br />
das perguntas mais recorrentes que os pesquisadores fazem é de como<br />
se processa as mediações simbólicas do homem com o mundo<br />
por meio da oralidade e por meio da língua escrita. Estudos tradicionais<br />
propõem a visão dicotômica entre oralidade e escrita como se as<br />
duas atividades fossem totalmente distintas. Enquanto a oralidade é<br />
definida pela relação face a face, decorrente do planejamento simultâneo<br />
da fala entre os participantes de uma conversação; o discurso<br />
escrito é estabelecido por uma interação à distância, havendo maior<br />
tempo de elaboração do discurso e a possibilidade de reformulá-lo<br />
em seu processo de revisão. Estas diferenças, no entanto, não significam<br />
soberania de uma modalidade sobre a outra como uma série de<br />
pesquisas e preleções gramaticais defenderam. Para redimensionar<br />
estas ideias é preciso compreender mais sobre os elementos que dão<br />
sentido ao texto escrito e ao falado para assim avaliarmos o processo<br />
de interação entre as duas modalidades. No discurso falado encontramos<br />
dimensões emotivas que dão significação as palavras por um<br />
viés envolvente como afirma Reyzábal (1999).<br />
As emoções mais intensas e pessoais exigem os sons da voz: do suspiro<br />
ao murmúrio até o grito revelam uma explosão vocal do ser, uma<br />
maneira de respirar, até mesmo antes da palavra. Na realidade, qualquer<br />
um pode “trair-se” pela voz, dizer mais do que diz através do próprio<br />
discurso. Pela voz, e não pela escrita em geral, diferenciamos sexos, idades<br />
e estados de ânimo. A voz envolve o corpo, por isso se fala de “beber<br />
as palavras”, “engolir as palavras” etc. A voz sozinha seduz, como sucede<br />
com Circe ou com as sereias, acalma as crianças e os animais; existem<br />
vozes cálidas, ásperas, mecânicas, frias, doces, envolventes, agradáveis<br />
ao ouvido... Dentro do grupo social, a comunicação oral implica uma<br />
função exteriorizadora, autoafirmativa, pois permite a transmissão do<br />
discurso que a comunidade sustenta sobre si mesma, o que assegura sua<br />
continuidade. (REYZÁBAL, 1999, p. 22)
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
327<br />
Como vemos, por meio da fala transmitimos muitas informações<br />
que ultrapassam o domínio do código verbal. Uma criança para<br />
aprender a falar, por exemplo, precisa interagir com falantes de sua<br />
língua materna para aos poucos incorporar o estilo entonacional, bem<br />
como aspectos os prosódicos da língua a serem internalizados. Junto<br />
a isto, a fala, em muitos momentos, vem acompanhada de movimentos<br />
que ajudam a significar as palavras no processo de interação verbal.<br />
O envolvimento da falação com a expressão corporal é tão forte<br />
que se amarrarmos as mãos de quem fala, enquanto se comunica,<br />
provavelmente, o sujeito não terá o mesmo desempenho discursivo.<br />
Os gestos, de alguma forma, acompanham e apoiam a organização e<br />
complementação de sentidos constitutivos do discurso. Sendo assim,<br />
os recursos do discurso oral ultrapassam a dinâmica do universo do<br />
sistema linguístico como previam antigos estudos sobre a dinâmica<br />
oral.<br />
Como vemos, o discurso falado se constitui de formas verbais<br />
e não verbais. Os elementos verbais, isto é, o léxico, a sintaxe, as gírias<br />
e mesmo marcadores conversacionais de uma língua, são acompanhados<br />
de traços suprassegmentais que orientam o sentido dos enunciados.<br />
São compreendidos neste processo, então, as mudanças<br />
de tom da voz e o próprio ritmo da fala com suas hesitações, ênfases,<br />
pausas e aceleração na produção de um discurso oral.<br />
Segundo Urbano (1999) para estudarmos a língua falada, precisamos<br />
antes de tudo considerar os recursos expressivos da língua<br />
no momento da enunciação. Um dos traços mais marcante é a entonação<br />
que liga a palavra e a experiência concreta do sujeito com o<br />
fato comunicado, esta, contudo, só se realiza a partir de um conjunto<br />
de variáveis que a torna expressiva. Sendo assim, o autor classifica<br />
os fatores expressivos da linguagem falada a ser considerado de acordo<br />
com a sua natureza:<br />
a) Elementos linguísticos e b) elementos não linguísticos ou paralinguísticos.<br />
Entre os primeiros incluem-se, de um lado, os verbais ou segmentais,<br />
e de outro, os prosódicos que, por sua vez, se subdividem em dois<br />
tipos: os suprassegmentais, como a entonação, a duração etc. e os cosegmentais,<br />
como a pausa, a ordem etc. Entre os não linguísticos ou paralinguísticos<br />
incluem-se os elementos cinésicos e os situacionais.”<br />
(URBANO, 1999, p. 122)
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
328<br />
Para Urbano (1999) os elementos linguísticos verbais, oriundos<br />
das faculdades intelectuais, constituem-se em um processo heterogêneo<br />
associado a elementos afetivos que se marcam por traços<br />
suprassegmentais. Entre os procedimentos de linguísticos que se destacam<br />
na compreensão expressiva dos enunciados, encontramos a<br />
repetição, as gírias, os vocativos, o uso de prefixos e sufixos com valor<br />
afetivo, as metáforas, os eufemismo, as alusões à fala de outrem,<br />
bem como expressões de atenuação etc. Tais aspectos são compreendidos<br />
junto a elementos prosódicos suprassegmentais de caráter não<br />
verbal, como o tom da voz, a acentuação das palavras, a entonação e<br />
a duração de um dizer, seguido, então, de traços co-segmentais tais<br />
como a ordem, a pausa e os possíveis deslocamentos funcionam como<br />
organizadores e articuladores do discurso. Todos estes elementos<br />
envolvidos, quando seguidos por gestos e expressões fisionômicas<br />
dão particularidades ao discurso falado.<br />
Contudo, em Marcuschi (2007) vemos que a fala e a escrita<br />
são formas de representação verbal cognitiva e social constitutivas<br />
das práticas sociais, portanto a língua, elemento nuclear, não se<br />
comporta com simples fator de modelação de seus usos, mas sim dos<br />
usos que modelam a língua. Sendo assim, fala e escrita; oralidade e<br />
letramento são atividades complementares e não opostas, visto que<br />
compartilham de semelhanças e diferenças que interagem entre si em<br />
processo dinâmico histórico-cultural. A compreensão dos processos<br />
de letramento não deve partir de regras que descrevem o funcionamento<br />
do código escrito em si, mas das práticas sociodiscursivas em<br />
que a escrita e a fala estão inseridas. Desta maneira, a polarização<br />
entre fala e escrita não tem sentido no processo de ensino da língua<br />
materna, visto que as duas modalidades de uso da linguagem reservam<br />
mais semelhanças do que diferenças, pois se constituem do<br />
mesmo sistema linguístico, compartilhando de gêneros textuais que<br />
intercambiam procedimentos similares na estruturação do funcionamento<br />
discursivo.<br />
O ensino da língua materna: a relação oralidade e escrita<br />
A visão teórica de Marcuschi (2001) fornece indicações para<br />
o trabalho de produção textual sob a ótica da retextualização, considerado<br />
os diferentes gêneros textuais como fonte de estímulo para re-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
329<br />
fletir e agir sobre a linguagem. Em sua proposta Marcuschi (2001, p.<br />
48) prevê a passagem de uma ordem para outra (falada e escrita) pode<br />
ocorrer em diferentes níveis. “1. Fala à Escrita (entrevista oral<br />
à Entrevista impressa); 2. Fala à Fala (conferênciaà Tradução<br />
simultânea); 3. Escrita àFala (texto escritoàExposição oral); 4. Escrita<br />
àEscrita (texto escrito àResumo escrito)”. As operações mencionadas<br />
ocupam o território da retextualização, envolvendo mudanças<br />
tanto no nível do código como no processo de construção de sentido.<br />
Para trabalhar sobre este processo é preciso considerar um conjunto<br />
de atividades que o usuário da língua realizar a passagem de<br />
uma modalidade para outra ou de um gênero textual para outro.<br />
Quando se procura reproduzir um determinado enunciado, por meio<br />
de outro código, é necessário se voltar para a atividade de transcodificação.<br />
No caso do discurso falado para o escrito temos a conversão<br />
da linguagem sonora para a gráfica, considerando um conjunto de<br />
convenções.<br />
As mudanças operadas na transcrição devem ser de ordem a não interferir<br />
na natureza do discurso produzido do ponto de vista da linguagem<br />
e do conteúdo. Já no caso da retextualização, a interferência é maior<br />
e há mudanças mais sensíveis, em especial no caso da linguagem.<br />
(MARCUSCHI, 2001, p. 49)<br />
Para ilustramos o movimento as operações ocorridas na passagem<br />
de uma modalidade para outra relatamos uma experiência de<br />
retextualização com uma turma de Ensino Médio de uma escola<br />
localizada no município de Itabaiana-Sergipe. Descrevemos o<br />
trabalho de produção textual realizado, em sala de aula, a partir da<br />
exibição de um texto em linguagem cinematográfica, seguido do<br />
registro do discurso oral e escrito produzido por alunos de uma<br />
classe do 3º anos do Ensino Médio. Os dados obtidos revelam um<br />
conjunto de operações linguísticas e semióticas realizadas pelos<br />
alunos para transferir conhecimentos de uma linguagem para outra.<br />
Primeiramente, foi exibido para uma turma de alunos do Ensino<br />
Médio o filme “Pequenas histórias”, tendo como autor e diretor<br />
Helvécio Ratton. O longa-metragem é composto de quatro histórias<br />
que intitulamos da seguinte forma: “O casamento do pescador com a<br />
Iara”; “O coroinha e o encontro das almas”; “O encontro com Papai<br />
Noel” e “A história de Zé Burraldo”. A trama é costurada por uma
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
330<br />
velha senhora que narra pequenas histórias em uma varanda de acordo<br />
com os recursos da tradição oral.<br />
Depois da exibição em vídeo, foi realizada uma conversa com<br />
os alunos a respeito do filme. Explicitaram-se procedimentos desenvolvidos<br />
nas quatro narrativas, observando os traços de oralidade explorados<br />
na linguagem cinematográfica para tornar o filme atraente<br />
do ponto de vista discursivo. De acordo com os alunos, a história que<br />
mais chamou atenção foi “O casamento do pescador com a Iara”,<br />
pois nela havia a reunião de elementos cômicos e românticos em<br />
uma única história. Tal narrativa foi, então, escolhida para organização<br />
de atividades de retextualização.<br />
Alguns dias após e exibição do filme, foi pedido a seis alunos<br />
que recontassem a lenda oralmente, sendo gravada e posteriormente<br />
transcrita de acordo com indicações de Castilho (1989). Os dados<br />
transcritos foram devolvidos aos informantes para que lessem e retextualizassem<br />
o material. Apresentamos a seguir a comparação entre<br />
a transcrição oral e a versão escrita retextualizada pela aluna-A.<br />
Versão oral:<br />
(1) Sim... a história do Tibúcio ..foi assim, né?... é... é como vocês já<br />
ouviram... é... foi ...um...um homem... assim que ele ia pescar todos os<br />
dias...era o sustento que ele tinha... pra vida dele... morava sozinho numa<br />
casa próxima ao rio que ele ia pescar todos os dias ... só qui frequentemente<br />
ele não tava conseguindo nada... (ALUNA – A)<br />
No discurso oral, a aluna inicia a história com um marcador<br />
conversacional “sim” para recontar a história do filme. O fato de saber<br />
que os outros interlocutores compartilham do mesmo saber, ou<br />
seja, já tinham visto o filme, enuncia “como vocês já ouviram...”. Este<br />
é um traço típico da cultura oral, chamar atenção do leitor no primeiro<br />
instante, revelando que a história já é conhecida por aqueles<br />
que se encontram no local. Na cultura de tradição oral, o mesmo acontece,<br />
visto que os griots (contadores de história) quando rememoram<br />
as histórias antigas. A narradora, ao fazer a passagem para o texto<br />
escrito conserva o mesmo traço da cultura oral, como se tomasse o<br />
turno de uma conversa.<br />
Versão escrita:<br />
(1) Sim vou relatar a história de Tibúcio; Tibúcio era o homem pescador<br />
que sobrevivia da pesca era seu sustento, ele morava sozinho em casa
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
331<br />
próximo ao rio que ele todos dias estava lá, só que certo tempo ele não<br />
estava mais conseguindo pescar absolutamente nada. (ALUNA – A)<br />
Na segunda clausula, a informante segue os passos de uma<br />
narrativa escrita tradicional: “Tibúcio era o pescador...”. Contudo, utiliza<br />
do artigo definido para apresentar um personagem teoricamente<br />
desconhecido para os interlocutores. A aluna parte do princípio que<br />
todos os leitores de seu texto escrito compartilharam da experiência<br />
de assistir o filme, portanto não haveria necessidade marcar o sujeito<br />
com pronome indefinido “um” por ser já conhecido pelos interlocutores.<br />
Do ponto de vista do ensino, fica claro que é necessário explicitar<br />
aos alunos de produção textual a importância de reescrever uma<br />
narrativa considerando os leitores ausentes, portanto a organização<br />
das informações no discurso escrito precisam ser reconfiguradas de<br />
maneira distinta para o efeito bem-sucedido.<br />
A retextualização segue a marcha introdutória da narração<br />
com apresentação do cenário em que vivia a personagem, lançando-o<br />
para a situação de conflito. A seleção lexical é mantida, acrescentando<br />
novos elementos que condensam as ideias. Para produzir o efeito<br />
de passagem de tempo decorrido na narrativa, a informante opta pelo<br />
uso da expressão “aí” em diferentes momentos da versão oral.<br />
Versão oral<br />
(2) aí certo dia ele viu uma Sereia... aí... ela perguntou o que ele fazia<br />
lá... aí ele contou a história dele... aí ele dissi qui a certo tempo ele<br />
não tava pescando mais.. (3). aí foi quando ela mandou... assim... falou<br />
pra ele que ele... (ALUNA – A)<br />
Versão escrita<br />
(3) Um certo dia como era de costume ele estava lá, triste bem triste e<br />
dirrepente aparece uma sereia, ele ficou surpreso e até assustado,<br />
perguntou a ela o que faz aqui? E Ela respondeu sou uma sereia e<br />
pediu-lhe que ele contasse o que estava acontecendo ele foi se acalmando<br />
e começou a lhe contar. (ALUNA – A)<br />
Na passagem do discurso oral para o escrito, observamos o<br />
acréscimo de novas informações a fim de expressar sentimentos do<br />
personagem e a criação de suspense por meio da expressão “dirrepente”<br />
(de repente), traço típico da oralidade. Por outro lado, há supressão<br />
da expressão “aí” na versão escrita, sendo substituída por outras<br />
formulações que ajudam o texto progredir do ponto de vista de
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
332<br />
novas informações. Acrescentam-se, principalmente, verbos no pretérito<br />
que ajudam na evolução temporal da narrativa.<br />
Versão oral<br />
(7) aí os dois se casaram e foram pra casa dele... a casa dele ...se transformou<br />
porque não tinha nada... a geladeira cheia de alimento a casa<br />
toda arrumada, tal ... (8) aí depois de um certo tempo, ele foi se<br />
transformando ... assim...e ela fez... lembrei agora... ela fez um pedido<br />
a ele... que ele nunca fizesse, assim, ela sofrer... porque ... que<br />
ele nunca fizesse assim ela sofrer.... aí foi assim... ele foi se transformando,<br />
bebendo muito... esquecia dela ... ia pras farras com os<br />
amigos, bebia chagava em casa bebo, não dava atenção ..a ela... ficava<br />
irritado. (ALUNA – A)<br />
Versão escrita<br />
(7) Eles casaram ela foi para a casa dele, mas sim, antes ela tinha feito<br />
um pedido a ele, que ele nunca a fizesse chorar nem maltratasse a<br />
ela. (8) Mas com o passar do tempo ele foi se transformando e estava<br />
deixando a sua esposa de lado, não lhe dava mais atenção, chegava<br />
em casa embriagado ia dormir e ela não falava nada, ou seja, sofria<br />
calada. (ALUNA – A)<br />
Na versão falada, a narradora manifesta esquecimento de uma<br />
parte da história que no texto escrito não é apagado de todo. A expressão<br />
“lembrei” que corresponde uma hesitação do contador e não<br />
do narrador, é retomada pelo função do narrador quando enuncia “Eles<br />
casaram ela foi para a casa dele, mas sim, antes ela tinha feito um<br />
pedido a ele...”. No texto escrito, novamente temos uma condensação<br />
de ideias para gerar o clímax da história com a briga entre os personagens.<br />
Como vemos as atividades de retextualização ajudam organizar<br />
estratégias de adaptação de um texto em uma linguagem para outra.<br />
Para o processo de adaptação é preciso, então, levar em conta o<br />
novo contexto discursivo, considerando: o propósito da reescrita, o<br />
tipo de relação a ser estabelecida entre os interlocutores na atividade<br />
discursiva e organização tipológica na passagem de um gênero para<br />
outro. Com este trabalho é possível observar como os alunos podem<br />
estabelecer uma relação de paráfrase entre dois textos que exigem<br />
um trabalho de reformulação, considerando as especificidades da<br />
modalidade falada e da modalidade escrita.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
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A QUESTÃO DO MECENATO NA ANTIGUIDADE<br />
E NO RENASCIMENTO PORTUGUÊS<br />
Márcio Luiz Moitinha Ribeiro (UERJ)<br />
Havia na Grécia e Roma antigas como também em Portugal<br />
na época do Renascimento a divinização do imperador, este membro<br />
de uma família de sangue real era apontado “pelos deuses” para governar<br />
no mundo real dos homens. Leni Ribeiro Leite (2007) afirma<br />
no resumo de sua comunicação a respeito de Marcial e desta divinização:<br />
Marcial foi um dos escritores que buscava, segundo ele mesmo diz<br />
em sua obra, retratar o dia a dia da capital do Império. Nesta comunicação,<br />
procuraremos mostrar como a divinização do Imperador é um tema<br />
importante nos epigramas de Marcial, servindo ao duplo propósito de<br />
conquistar favores imperiais e sustentar o projeto geral de sua obra: corroborar<br />
a construção de uma sociedade que siga preceitos rígidos de adequação<br />
à moral.<br />
O fato é que, não só Marcial, Virgílio e Horácio em Roma,<br />
mas também Calímaco e Teócrito no período helenístico entre tantos<br />
outros poetas; e Henrique Caiado em Portugal escreveram 1 suas obras<br />
com duplo propósito: o de alcançar a benevolência e a amizade<br />
do rei para subsistência; e o de escrever para educar a sociedade. Vale<br />
lembrar que Calímaco iniciou a sua carreira como modesto professor<br />
em Elêusis, num subúrbio de Alexandria, entrementes ocupou<br />
posição de grande destaque na corte de Ptolomeu Filadelfo, onde<br />
prestou serviços para ele até aproximadamente o ano 235 a. C.,<br />
quando morreu (HIME, 1989), como nos aponta Hime Gonçalves<br />
Muniz em sua tese de doutorado.<br />
De Marcial queremos destacar o que Jean Bayet, (1965) no<br />
livro Littérature Latine, nos apresenta a respeito da vida sofrida do<br />
poeta acima referido:<br />
1 Calímaco e Henrique Caiado teciam encômios aos reis da época com dois escopos. Primeiramente,<br />
queriam fazer parte do círculo da amizade dos poetas ilustres e monarcas; e, depois,<br />
precisavam de patrocínio para a sobrevivência deles.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
335<br />
M. Valérius Martialis était venu de Bilbilis (en Espagne, dans la<br />
province de Tarraconaise) achever sés études à Rome. Il y resta, séduit<br />
par la variété des impressions que la grande ville offrait à sa vivacité<br />
naturelle, mais y menant, pour subsister, la vie dure et humiliante du<br />
flatteur et du quémandeur: il flagorna Domitien, fit sa cour aux mêmes<br />
riches protecteurs que Stace. Il finit par y gagner, avec beaucoup de<br />
dégoûts, une mince aisance; et, par ses Épigrammes, la célébrité 2 .<br />
Para Ettore Paratore (1983) Marcial tornou-se um cliens, um<br />
adulador do rei, que beirava a pobreza e a miséria, de todo o seu esforço<br />
como poeta só obteve um casebre e um pequeno terreno em<br />
Nomento:<br />
Afinal, o que lhe sucedeu foi a condenação ao ofício ingrato de cliens,<br />
que o consumiu durante trinta e cinco anos em fatigantes corridas de<br />
um palácio para outro, em adulações exageradas e vãs, que deviam ser<br />
particularmente repugnantes para o seu bom gosto de poeta, numa pobreza<br />
que raiava a miséria e que o extenuou e lhe pesou no espírito, tolhendo-lhe<br />
talvez os ímpetos mais genuínos. De tanto esforço, não conseguiu<br />
obter mais que uma casinha, privada de água, no Quirinal e um<br />
pequeno terreno de pouco valor, em Nomento.<br />
Virgílio, como todos nós sabemos, escreveu três obras monumentais:<br />
A Eneida, as Bucólicas e as Geórgicas (poema didático<br />
elaborado por solicitação de Mecenas). Nestas obras, há algumas alusões<br />
ao mecenato e às questões políticas da época.<br />
Na Eneida, Virgílio 3 faz algumas alusões ao “deus” Augusto.<br />
Este na verdade pede ao poeta mantuano que faça uma obra épica de<br />
encomenda, sendo assim o poeta tece elogios no texto épico ao seu<br />
governo em Roma. Diz Zélia Cardoso (1989):<br />
Ele já era bastante conhecido nos meios artísticos e intelectuais de<br />
Roma quando, por solicitação de Augusto, se dispôs, em 29 a. C., a encetar<br />
a empresa gigantesca de escrever uma epopeia grandiosa que pudesse<br />
ombrear-se com os poemas homéricos.<br />
2 “M. Valério Marcial tinha vindo de Bílbilis (na Espanha, na província de Tarraconense) para<br />
concluir seus estudos em Roma. Ele aí permaneceu, seduzido pela variedade de impressões<br />
que a grande cidade oferecia à sua vivacidade natural, porém, aí levou, para subsistir, a vida<br />
dura e humilhante de adulador e de pedinte: ele bajulou Domiciano, fez seu cortejo aos mesmos<br />
ricos protetores que Estácio. Ele terminou por aí ganhar, com muito desgosto, uma escassa<br />
comodidade; e por seus epigramas, a celebridade”.<br />
3 Sabemos que Virgílio foi deveras o épico latino por excelência, o poeta nacional do Império.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
336<br />
Um pouco mais abaixo, a professora doutora e titular da USP,<br />
Zelia de Almeida Cardoso (1989): também ressalta esta questão do<br />
mecenato e da obra épica de encomenda:<br />
Conhecendo suas qualidades e sabedor de que o poeta, como havia<br />
demonstrado nesses textos, se dispunha a funcionar como verdadeiro<br />
porta-voz da política imperial, Augusto o incumbiu dessa nova missão.<br />
Durante dez anos - de 29 a 19 a. C. -, Virgílio trabalhou na composição<br />
do novo poema, A Eneida (Aeneis). Não chegou, todavia, a dar-lhe o último<br />
polimento.<br />
Diz Zélia de Almeida Cardoso (1989): em seu livro Literatura<br />
latina, sobre a 1ª. Bucólica:<br />
Na primeira Bucólica – que, certamente, não é a primeira na ordem<br />
de composição – temos um diálogo entre dois pastores, Melibeu e Títiro.<br />
O primeiro, deixando as terras que lhe tinham sido confiscadas, queixase<br />
ao segundo. Este agradece ao “deus” que lhe permitira permanecer nas<br />
suas. Essa bucólica é frequentemente considerada uma espécie de alegoria:<br />
para muitos, Títiro é a projeção de Virgílio, que exalta Otávio por ter<br />
este autorizado a devolução de uma propriedade confiscada à família do<br />
poeta. Melibeu espoliado, entretanto, também pode representar Virgílio.<br />
Há outras alusões políticas como na IV bucólica, por exemplo,<br />
quando Virgílio a dedica ao cônsul Polião.<br />
Em Horácio 4 , em algumas passagens de seus poemas, também<br />
encontramos esta questão do mecenato e de elogios ao rei. Nas Odes,<br />
apresenta-se o Horácio que se coloca a serviço da política de Augusto.<br />
Vejamos por exemplo que no primeiro livro das Odes, há a seguinte<br />
passagem que assim traduzimos e que comprova o que acabamos<br />
de afirmar:<br />
Ó Mecenas, descendente de antigos reis não só meu amparo como<br />
também minha doce glória, existem homens aos quais agrada ter reunido<br />
o pó olímpico 5 no carro; e a baliza não tocada pelas ligeiras rodas 6 , e a<br />
nobre vitória os leva até aos Deuses senhores das terras.<br />
4 Horácio viveu na mesma época de Virgílio e tornou-se seu amigo pessoal. Sabemos que Horácio<br />
só começou a publicar as suas obras, depois de Virgílio apresentá-lo a Mecenas. Horácio<br />
escreveu um livro de Sátiras, os Epodos, quatro livro de Odes, dois livros de Epístolas e o<br />
Cântico Secular, conhecido em latim como Carmen saeculare. Há uma dissertação sobre este<br />
canto, defendida na UFRJ pelo saudoso docente da UERJ, José de Oliveira Magalhães.<br />
5 Diz respeito ao pó dos jogos olímpicos.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
337<br />
Este se a turba dos inconstantes Romanos procura elevar as três<br />
grandes honras 7 ; (...)<br />
Referimo-nos ao Carmen saeculare numa nota acadêmica.<br />
Esta obra foi composta também com o escopo de encomenda pelos<br />
poderes públicos para ser cantado por ocasião dos jogos seculares,<br />
realizados por Augusto em 17 a. C.<br />
Quanto a Henrique Caiado, poeta português do período renascentista,<br />
deixou o Direito e deu preferência ao seu amor às Letras,<br />
por isto seu tio suspendeu a mensalidade do poeta e deixou-o sofrer<br />
privações, contudo o rei D. Manuel I patrocinou Henrique Caiado de<br />
modo que este ficou eternamente grato ao rei e compôs em alguns de<br />
seus epigramas encômios ao monarca. Vejamos duas passagens da<br />
vida de Caiado, tiradas da obra As Éclogas de Henrique Caiado, de<br />
Tomás da Rosa (1965) sobre esta questão de amor e gratidão ao Rei:<br />
Caiado dedicara-se de preferência às Letras, que o seduziam, pondo<br />
de parte a árida disciplina de Direito. Viajou depois pela Itália, satisfazendo<br />
a sua ânsia de saber, ao contacto com os mais altos valores do<br />
Humanismo Italiano. Visitou, entre outros centros culturais, Roma, Ferrara<br />
e Pádua. Seu tio, ao ter conhecimento do fato, suspendeu-lhe a mensalidade.<br />
Caiado sofreu privações... E só por ordem de D. Manuel I, encetou<br />
os estudos de Direito Romano, em que, como nas Letras Humanas,<br />
primou e triunfou, vindo a doutorar-se pela Universidade de Pádua.<br />
Um pouco mais abaixo afirma Tomás da Rosa (1965): "Caiado<br />
jamais esfriou a dedicação ao seu rei, sobretudo a D. Manuel. E<br />
em tudo procurou servir ao Humanismo português, e engrandecer<br />
Portugal com inteligência e amor".<br />
Do livro I dos Epigramas de Caiado, destacamos o de número<br />
III que trata esta questão do mecenato. Como perceberemos abaixo<br />
há encômios ao Rei Manuel. Vejamos a minha tradução (RIBEI-<br />
RO, 2010):<br />
6 Isto é, também lhes agrada.<br />
7 Alusão de Horácio as honras de Pretor, de Questor e de Cônsul na Roma antiga.
Ad Emmanuelem Regem<br />
EPIGRAMMA<br />
III.<br />
Hesperiae, Rex magne, decus, quo praefide virtus<br />
E coelo in terras conciliata venit.<br />
Maiorum superas clarissima facta tuorum:<br />
Aurea te redeunt principe saecla iterum.<br />
5 Nigros usque tuum nomen penetravit ad Indos:<br />
Vela tua Oceanus fertque, refertque Pater.<br />
Extremique tuis parent confinia mundi<br />
Legibus, es Regum maximus, Emmanuel.<br />
AO REI MANUEL<br />
EPIGRAMA<br />
III.<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
338<br />
Ó grande rei, glória da Hespéria 8 , por meio de quem o valor, comprometidamente<br />
conciliado, veio do céu à terra.<br />
Tu superas os feitos mais ilustres de teus antepassados:<br />
os séculos de ouro de novo retornam, sendo tu o soberano.<br />
5 Teu nome chegou até mesmo junto aos trigueiros indianos:<br />
o Oceano 9 impele tuas velas 10 e o Pai as traz de volta<br />
e os limites do extremo mundo se submetem às tuas<br />
leis, tu és o maior dos reis, ó Manuel 11 .<br />
Selecionamos uma passagem de Carlos Antonio Kalil Tannus<br />
(2007) em seu artigo, Um olhar sobre a Literatura Novilatina em<br />
Portugal, que vem a corroborar este costume que os reis tinham de<br />
patrocinar os poetas portugueses em seus estudos na Europa:<br />
8 As regiões do Ocidente são denominadas Hespéria.<br />
9 “Oceano”, personificação do deus do mar, esposo de Tétis. E o “Pai”, ao qual o verso 6 se refere,<br />
serve de exemplo da antonomásia do próprio Deus Júpiter.<br />
10 Trata-se de um exemplo de sinédoque, o autor quer dizer que navios são levados pelo Oceano<br />
às terras longínquas.<br />
11 Vale lembrar que Caiado obteve muitos favores de seu caríssimo rei, mormente financeiros.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
339<br />
Encontramos também um panegírico de D. João III, em que se ressalta<br />
a personalidade ativa, a prudência e agudeza de espírito, e o senso<br />
de justiça do rei, além do seu amor às Humanidades e da sua preocupação<br />
com os estudos dos seus bolseiros no Exterior ou com a qualidade do<br />
ensino na Universidade conimbricense:<br />
Mirantur omnes tuum grauissimum iudicium atque acerrimam mentis<br />
aciem ... Nam et complures adolescentes Parisiorum Lutetiam ad capiendum<br />
ingenii cultum tuo sumptu, alendos misisti et nouam hic litterarum<br />
academiam erexisti quae non modo externas omnium gentium scholas<br />
possit Lacessere sed ueteres etiam Athenas in nostra haec tempora<br />
reuocare uideatur. (Panegírico de D. João III escrito por Pedro Sanches)<br />
Eis a tradução de Carlos Tannus:<br />
Admiram todos teu seriíssimo julgamento e a agudeza de tua mente.<br />
Com efeito, enviaste muitos jovens a Paris, a tuas expensas, para ilustrarem-se<br />
e ainda, aqui, fundaste uma nova academia que não somente pudesse<br />
congregar os estudos de todas as nações mas que, também, parecesse<br />
trazer de volta aos nossos tempos a velha Atenas.<br />
Claudie Balavoine (1983) também retrata a questão do patronato,<br />
afirmando que é verdadeiro que da Florença a Ferrara, passando<br />
por Bolonha, seus apoios haviam acompanhado Caiado. Parece<br />
que eles haviam desejado que ele se tornasse poeta oficial do rei<br />
Dom Manuel.<br />
Vale enfatizar, como afirma a autora supracitada (BALA-<br />
VOINE, 1983), que em algumas éclogas de Henrique Caiado, o poeta<br />
procura captar a atenção de uma poderosa família, sem que um único<br />
mecenas seja sempre visado, pois sobre esse ponto Caiado não<br />
terá com que se lamentar de uma falta de proteção. Mas, sua ambição<br />
ultrapassa a preocupação de assegurar a sua sobrevivência.<br />
A mesma autora (BALAVOINE, 1983) também nos diz que o<br />
idílio XVI, de Teócrito já fazia referência ao mecenato, como também<br />
a VI écloga de Caiado, nos versos 38 a 39. Em uma comparação<br />
atenta dessas duas coletâneas, aparecem imitações pontuais inadiáveis<br />
que engajam os contextos. Ora todo segmento do texto do idílio<br />
XVI, de Teócrito, proclama o papel essencial das Musas, na propagação<br />
de o renomar e de procurar a proteção oficial e generosa do “basileus”<br />
Hiéron. Teócrito garantia então duplamente a solicitação de<br />
Caiado: primeiramente, fazendo aparecer o mecenato como uma instituição<br />
tão antiga quanto necessária e num segundo momento pro-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
340<br />
vando que as Musas pastoris poderiam cantar também a glória dos<br />
príncipes.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
BAYET, Jean. Littérature Latine. Paris: Armand Colin,1965.<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
341<br />
BALAVOINE, Claudie. Les églogues D’Henrique Caiado ou<br />
l’humanisme portugais a la conquete de la poesie neo-latine. Lisboa-<br />
Paris: Fundação Calouste Gulbenkian, 1983.<br />
CARDOSO, Zélia de Almeida. A literatura latina. Porto Alegre:<br />
Mercado Aberto, 1989.<br />
HIME, Gonçalves Muniz. Arte e significado nos Epigramas Funerários<br />
de Calímaco: uma abordagem estilística. Tese de Doutorado.<br />
Rio de Janeiro: UFRJ, 1989.<br />
LEITE, Leni Ribeiro. Humano mais que profano. Leituras do sagrado<br />
na Antiguidade Clássica e na cultura oriental. In: III CONGRES-<br />
SO DE LETRAS CLÁSSICAS E ORIENTAIS DO INSTITUTO DE<br />
LETRAS DA UERJ. De 07 a 10 de maio de 2007. Caderno de resumos.<br />
PARATORE, Ettore. História da literatura latina. Lisboa: Fundação<br />
Calouste Gulbenkian, 1983.<br />
RIBEIRO, Márcio Luiz Moitinha. Epigramas de Henrique Caiado:<br />
Estudo e tradução do Livro I. Tese de doutorado. São Paulo: USP,<br />
2010.<br />
ROSA, Tomás da. As éclogas de Henrique Caiado. Separata de Humanitas.<br />
Vols. I e II da Nova Série. (Vols. V e VI da Série Contínua).<br />
Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra,<br />
Instituto de Estudos Clássicos, 1954.<br />
TANNUS, Carlos Antonio Kalil. Um olhar sobre a literatura novilatina<br />
em Portugal. Revista Calíope – Presença Clássica. Número 16,<br />
Rio de Janeiro: UFRJ, dez/2007.
A QUESTÃO DO MÉTODO<br />
NO ENSINO DA LÍNGUA PORTUGUESA:<br />
SÉCULO XIX<br />
Márcia A. G. Molina (UNISA-SP)<br />
maguemol@yahoo.com.br<br />
Partimos neste trabalho da seguinte afirmação Nietzche<br />
(1873): "Só devemos interpretar o passado através do que há de mais<br />
forte no presente". O que há de mais forte em nossa área de atuação,<br />
que nos incomoda e intriga e poucos são as ações efetivas que resultam<br />
em bons resultados? Para mim, o ensino da língua portuguesa, o<br />
material didático, o método mesmo de ensino. Intrigados com o fato,<br />
fomos estudar o passado, procurando historiá-lo, na busca de analisar<br />
o presente e melhor compreendê-lo. Assim, à luz da História das Ideias<br />
Linguísticas, em especial Auroux, analisamos, no doutorado,<br />
uma das gramáticas mais utilizadas no século XX, a de Eduardo Carlos<br />
Pereira, verificando tratar-se de uma obra muito importante, com<br />
inúmeras edições, instruindo vários importantes vultos brasileiros.<br />
Essa gramática, ao mesmo tempo em que muito se aproximava de<br />
obras de séculos anteriores, apresentava discussões inovadoras, acompanhando,<br />
algumas vezes, as diretrizes da Gramática Histórico-<br />
Comparativa. Constatamos que logo em seu Prefácio, o autor tem<br />
preocupação com o ensino e o método, mas nisso quase nada apresenta<br />
de inovador. No pós-doutorado, fomos ao século XIX, às gramáticas<br />
brasileiras da primeira infância e, qual não foi nossa surpresa<br />
ao já percebermos também em algumas delas uma importante preocupação<br />
com o ensino, com o método, com a aprendizagem da língua.<br />
Essa preocupação, não era exclusividade dos estudiosos brasileiros,<br />
ao contrário, transpunha (ou transpõe?) continentes: Vasconcelloz,<br />
autor português, em sua a Grammatica Portuguesa, editada<br />
no Porto, mas também utilizada no Brasil, em meados do século<br />
XIX, asseverava:<br />
O ensino gramatical nas nossas escolas ainda geralmente se faz pelos<br />
velhos processos, incoerentes, arbitrários, metafísicos, que, longe de<br />
imprimirem conveniente orientação ao espírito do adolescente, lhe dão<br />
uma noção falsa da língua e da gramática, e apenas servem para lhe fati-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
342<br />
gar sem proveito a memória com a fixação de paradigmas e regras, cujo<br />
fundamento fica sendo uma incógnita para o aluno, como para toda a<br />
gente, e cuja exatidão é muitas vezes desmentida pelos fatos. (Prólogo da<br />
1 edição).<br />
Poucos anos depois, Cândido de Figueiredo em sua Gramática<br />
das Crianças (1918, p. 5) criticava:<br />
Em geral, os gramáticos de mais competência e saber não escreveram<br />
para crianças. Homens de ciência, adestrados a técnica da alta Filologia,<br />
dificilmente baixam de sua elevada esfera, para que os ouçam e os<br />
compreendam as pequenas criaturas, que procuram o primeiro ensinamento<br />
metódico da arte da falar e escrever a sua língua; e o modesto professor,<br />
que fala a essas crianças (...) acata o processo dos sábios, tentando<br />
transmiti-lo a quem tarde o compreenderá.<br />
Restaino (2009) lembra que até meados do século XIX, o ensino<br />
da Gramática Nacional estava associado ao conhecimento do<br />
professor ou preceptor, que o transmitia aos alunos por meio de ditados<br />
ou de suas “postillas”. Somente em 1856 é que o Compêndio do<br />
Prof. Cyrillo Dilermano é adotado no Colégio Pedro II.<br />
Embora os alunos desse colégio pertencessem, na sua maioria,<br />
à elite brasileira (FÁVERO, 2002) e, portanto, já dominando o padrão-culto<br />
de nossa língua, o colégio Imperial começava a ser freqüentado<br />
por aqueles que precisariam adquiri-la na escola.<br />
A adoção daquele Compêndio foi uma tentativa de sistematizar<br />
um trabalho intuitivo até então guiado somente pela experiência e<br />
sensibilidade dos mestres.<br />
Somada a essa questão de método, outra se impunha: a da língua.<br />
Que língua era a nossa? Os valores do Romantismo começavam<br />
a ser aqui difundidos, defendendo o elemento nacional, assim, em<br />
1855, Joaquim Norberto de Souza e Silva, redarguia:<br />
Já alguém nos lançou em rosto que não temos literatura nacional,<br />
porque não temos língua; ficou porém provado a toda a luz que a literatura<br />
de um povo é a voz de sua inteligência e que da influência do nosso<br />
clima, da configuração do nosso terreno, da fisionomia de nossos vegetais,<br />
do aspecto da natureza do nosso país (...) tudo tão dessemelhante de<br />
Portugal, devia resultar uma tal ou qual modificação nessa literatura,<br />
embora portuguesa, mas produzida por brasileiros. (...)<br />
Ora, o que se tem dado com a literatura é o que ainda não se deu<br />
com a língua (...) (SOUZA, 2002, p. 341, 342)
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
343<br />
Nessa mesma época, foram acrescidas ao programa do Colégio<br />
Pedro II, aulas de leitura, recitação e ortografia.<br />
Vale recordar que a concepção de leitura na ocasião estava<br />
circunscrita à noção de fluidez:<br />
A leitura, para se tornar verdadeiramente proveitosa, tem de obedecer<br />
a determinadas regras. De contrário redunda em pura perda, ou até dá<br />
resultados nocivos. Não basta ler: torna-se necessário saber ler (...)<br />
A maior parte da gente lê mal, porque lê depressa (...) a leitura precipitada<br />
nunca dá resultado (...) (VIANA, 1949, p. 24)<br />
De forma sucinta, então, esse era o contexto:<br />
– buscava-se uma sistematização dos estudos de língua portuguesa<br />
a fim de se atender à diversidade de alunos que chegava à escola:<br />
– buscava-se um material que fosse adequado ao ensino das<br />
crianças;<br />
– buscava-se um material que pudesse circular pela malha social,<br />
auxiliando a difundir os valores da época: respeito, nacionalidade,<br />
identidade etc.<br />
É sobre uma obra criada para procurar atender a essas necessidades<br />
que versa nosso trabalho: A Gramática da Infância, do cônego<br />
Pinheiro, em especial, analisaremos sua parte introdutória,<br />
"Aos leitores" e o “Prefácio”, passando brevemente pelo seu conteúdo,<br />
para que possamos refletir acerca das orientações seguidas pelo<br />
referido cônego.<br />
1. Gramática da Infância 1 – J. C. Fernandes Pinheiro<br />
1.1. Dados sobre o autor<br />
O cônego Joaquim Caetano Fernandes Pinheiro (1825-1876)<br />
lecionou Retórica, Poética e Literatura Nacional no Colégio de Pedro<br />
II, foi comendador da Ordem de Cristo e membro dos Institutos His-<br />
1 Procedemos à atualização ortográfica para facilitar à leitura.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
344<br />
tóricos do Brasil e da França, da Academia das Ciências de Lisboa e<br />
Madri e da Sociedade Geográfica de Nova Iorque. Polígrafo de compêndios,<br />
escreveu, principalmente: Catecismo da Doutrina Cristã<br />
(1855), Episódios da História Pátria Contados à Infância (1860),<br />
Curso Elementar de Literatura Nacional (1862), Meandro Poético<br />
(1864), História Sagrada Ilustrada (s/d), Gramática Teórica e Prática<br />
da Língua Portuguesa (com oito edições) e a obra em epígrafe.
1.2. Aos leitores<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
345<br />
A Gramática da Infância, produzida em 1864 e com, pelo<br />
menos, quatro edições 2 , é uma pequena gramática com 127 páginas,<br />
reunindo um “Aos leitores”, em que o autor explicita que a única<br />
coisa que tem na obra feito por si (lembremo-nos que se trata de um<br />
compêndio) é o método, já que, afirma, ter procurado simplificar as<br />
regras gramaticais.<br />
Expressa que espera que sua inovação seja sancionada pela<br />
experiência e diz que seu método procura aliar teoria e prática, confiando<br />
muito mais nisso do que n’esses arrojos de memória com que<br />
alguns preceptores pretendem iludir os incautos. (p. 1). Mas que método<br />
é esse a que se refere o autor? O que seriam essas inovações?<br />
Na tentativa de responder a essas perguntas, passemos, a seguir,<br />
à leitura do texto produzido pelo Dr. A. de Castro Lopes (professor<br />
da Escola Politécnica), à guisa de “Prefácio” em que apresenta<br />
uma minuciosa discussão acerca da obra, iniciando por uma crítica<br />
aos homens das Letras:<br />
Com efeito, muito pendor, muita dedicação devem ter esses que no<br />
Brasil em uma época de mercantilismo, e a despeito da grita atordoadora<br />
com que nos salões de suas orgias a política, nova Mesalina, estraga e<br />
corrompe uma mocidade talentosa, ousam ainda compor livros, escrever<br />
compêndios, e curar da instrução pública. (p. 8)<br />
Faz seu autor uma digressão nesse momento para criticar subliminarmente<br />
a sociedade, em especial, aqueles que se dedicam à política,<br />
mas que nada fazem à Educação:<br />
É que esse santo fogo que os anima, e que para arrefecê-lo bastava a<br />
indiferença dos governos e a inveja de espíritos tacanhos, acha elementos<br />
para seu incremento n’aquele ILUSTRE BRASILEIRO 3 , que ama sinceramente<br />
as letras e protege seus sacerdotes.<br />
Voltando a tratar da obra, destaca a importância de uma dirigida<br />
à infância, afirmando<br />
2 A obra estudada é a quarta edição.<br />
3 Quer nos parecer que essa é uma forma irônica de ele se referir a D. Pedro II.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
346<br />
...ser repugnante ver meninos e meninas de 7,8 ou 9 anos, estudando tratados<br />
gramaticais da língua portuguesa, e carregando inutilmente a cabeça<br />
de um acervo ingente de definições metafísicas, que, ingeridas facilmente<br />
pela memória voraz da criança, são expelidas pela língua sem jamais<br />
se poder fazer a digestão cerebral. (p. 9)<br />
Lembremo-nos aqui de que a criança começava a ser compreendida<br />
como tal, deixando de ser vista como adulto em miniatura.<br />
E A. Castro continua apontando:<br />
Cumpre que o menino aprenda gramática: mas a gramática que deve<br />
ser ensinada ao menino não é a mesma que deve aprender o adulto, o que<br />
já tem a inteligência desenvolvida pela idade, e mais ou menos enriquecida<br />
pelos variados conhecimentos adquiridos.<br />
A sagacidade desse crítico pareceu-nos imensa. Quando nem<br />
se cogitava sobre a importância dos conhecimentos de mundo na<br />
compreensão da leitura, fazia ele uma afirmação dessa monta.<br />
Depois dessa visão geral, vai, parte a parte, analisando a obra<br />
do Cônego, afirmando aqui e ali que "cada lição contém um pequeno<br />
número de regras, as principais e indispensáveis, relativas ao objeto<br />
da mesma lição marcadas com um algarismo". 4<br />
Especifica que se sentia feliz sempre que via em "obras elementares<br />
realizado o princípio de Jacotot com tão feliz artifício aplicado<br />
pelo grande Robertson".<br />
J. Jacotot (1770-1840) foi filósofo, matemático, advogado e<br />
professor francês criador do método da “emancipação intelectual”,<br />
baseado em três princípios:<br />
a) todos os homens têm inteligência igual;<br />
b) todos homem recebe de Deus a faculdade de ser capaz de<br />
instruir-se;<br />
c) tudo está em tudo.<br />
Afirmava Jacotot que o que diferencia os homens é o modo<br />
como cada um usa sua inteligência. No que concerne à linguagem,<br />
4 Como veremos a seguir, ao final de cada tópico gramatical, o autor insere um questi-<br />
onário e exercícios.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
347<br />
por exemplo, dizia que se deveria oferecer ao estudante uma passagem<br />
de poucas linhas, encorajando o aluno a estudar primeiramente<br />
as palavras, depois as letras, então a gramática, depois o significado,<br />
para depois partir para a literatura de um modo geral. Esse seu<br />
método está exposto em Enseignement Universel, Langue Maternelle<br />
(Louvain and Dijon, 1823) e no Journal de l’Èmancipation Intellectuelle<br />
(Achille Guillard, Paris, 1860).<br />
Parece-nos que, realmente, a tentativa do Cônego foi esta: a<br />
de que a criança aprendesse uma coisa de cada vez, então, ao final de<br />
cada capítulo, para fixação, apresentava um questionário com perguntas<br />
relativas ao conteúdo, cujas respostas deveriam ser localizadas<br />
na exposição gramatical e meramente copiadas ipsis litteris, revelando<br />
a importância dada, na ocasião, à memorização do conteúdo.<br />
Lembremo-nos de que esse era o método escolástico, “tradicional”<br />
que atravessou séculos nas aulas de gramática.<br />
Além disso, ao final de cada tópico gramatical uma grande<br />
lista de exercícios, objetivando a retenção do conteúdo, era oferecida<br />
aos alunos, talvez também seguindo os ditames de Robertson, cujo<br />
método era similar ao de Jacotot, mas aplicado ao aprendizado de<br />
uma segunda língua. Esse modelo estimulava o aprendizado na prática,<br />
através de atividades, por isso, a cada conteúdo gramatical ensinado<br />
uma lista de exercícios era apresentada, cujo tamanho foi crescendo<br />
ao longo da obra.<br />
Sobre isso se refere o professor da escola politécnica:<br />
Os exercícios são excelentes: abundantes de exemplos, em que se<br />
verificam as regras pouco antes expressas, além da utilidade prática para<br />
o fim gramatical, encerram a vantagem de versarem sobre variadíssimos<br />
assuntos, como sejam: história sagrada, história e geografia geral, e<br />
principalmente as do país (p. 12, grifos nossos)<br />
Lembremo-nos de que na ocasião do surgimento desse compêndio,<br />
há pouco as obras adotadas haviam deixado de ser importadas<br />
da Europa e, praticamente na mesma ocasião, começaram a ser<br />
ensinados história e geografia de nossa pátria e a gramática nacional.<br />
Restaino (op. cit.) afirma que somente em 1856 que, no colégio de<br />
Pedro II, se usa o Compêndio de Cyrillo Dilermando. Antes disso, utilizavam-se<br />
em aulas os conhecimentos dos mestres transmitidos por
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
348<br />
meio de ditados e apostilas, não havendo no Império obras didáticas<br />
brasileiras.<br />
Voltando à nossa gramática, afirma o professor:<br />
De uma atraente amenidade, e adequados a ambos os sexos, há<br />
n’esses exercícios sentenças. Máximas, reflexões, apotegmas, em suma,<br />
proposições, já do próprio autor, já de clássicos portugueses como Vieira,<br />
Camões, Bernardim Ribeiro, etc. as quais contendo verdades e doutrinas<br />
interessantes, é de toda a utilidade implantar no ânimo tenro das<br />
crianças. (p. 12)<br />
Como já se falou, a escola era para meninos (e brancos) e as<br />
poucas mulheres que freqüentavam o ambiente escolar só chegavam<br />
às primeiras letras.<br />
Vê-se também que o autor ressalta a formação do caráter, papel,<br />
como vimos, também delegado à escola.<br />
Depois, continuando o prefácio, elogia as modificações introduzidas<br />
pelo autor na questão de verbo 5 e nas "cerebrinas classificações<br />
de conjunções copulativas e disjuntivas e a introdução de um<br />
novo modo verbal: o modo condicional". 6<br />
Conclui seu prefácio dizendo que a obra apresentaria, no geral,<br />
a doutrina admitida e o que teria de mais importante era o fato de<br />
ter sido escrita em "estilo e frase a alcance das inteligências infantis,<br />
para as quais foi expressamente destinada". (p. 14).<br />
Para finalizar a discussão acerca desse prefácio, faz-se importante<br />
sublinhar que, ao lê-lo, criamos a expectativa de que estaríamos<br />
à frente de uma obra bastante diferenciada das demais, mas não foi<br />
isso que constatamos. O que a diferencia é a maneira paulatina com<br />
que apresenta o conteúdo, a sumarização desse no final e a apresentação<br />
acumulativa e crescente dos exercícios.<br />
Na realidade, por meio da análise do conteúdo gramatical da<br />
obra, percebemos ser seu autor seguidor das de orientação clássica,<br />
que compreendiam o conceito de gramática como "uma arte que en-<br />
5 As quais, pouco notamos, como verão.<br />
6 Aqui o autor inseria o Futuro de Pretérito e o Imperfeito do Subjuntivo.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
349<br />
sina a declarar bem os nossos pensamentos por meio de palavras".<br />
(p. 15). A definição de gramática como arte remonta à Antigüidade<br />
Clássica, Fávero (2001, p. 61) ensina:<br />
Ars é tradução do grego. Aristóteles na Metafísica atribui ao termo o<br />
sentido de ofício, habilidade para se fazer algo, artesão é o que possui essa<br />
habilidade e conhece as coisas pelos efeitos, não pelas causas. Dionísio<br />
7 chamou sua obra de arte gramatical, por não ser ela especulativa e<br />
não prática. (...) A Gramática, a Retórica, a Poética, a Lógica, a Geometria,<br />
a Aritmética e a Astronomia são artes; a Matemática e a Física não o<br />
são, pois seu objeto é o necessário e elas não são instrumentais. (...)<br />
E, de acordo com a autora, essas sete artes (as praticadas por<br />
homens livres, por isso Artes Liberales) constituíram o curriculum<br />
escolar durante séculos. 8<br />
Essa definição perdurou por muitos séculos 9 em obras como<br />
essas. Nas gramáticas do século anterior, como por exemplo, na<br />
Gramática Filosófica, de Soares Barbosa (escrita século XVIII e<br />
com a 2ª edição datada de1830), p. VIII pode-se ler: “A Gramática<br />
pois, que não é outra coisa, segundo temos visto, senão a "Arte, que<br />
ensina a pronunciar, escrever e falar corretamente qualquer língua<br />
(...)”<br />
Continuando, Fernandes Pinheiro, nas pegadas das obras do<br />
século XVIII e essas ancoradas nas da Idade Média, divide a gramática<br />
em quatro partes: etimologia, sintaxe, prosódia e ortografia:<br />
A divisão em quatro partes, a mesma que se encontra nos gramáticos<br />
do século anterior, Reis Lobato e Soares Barbosa [século XVIII] é herança<br />
da Idade Média (talvez Prisciano (...) (FÁVERO, op. cit., p. 65)<br />
Isso se deve, possivelmente à sua bagagem cultural. Já vimos<br />
que nasceu no século XVIII. Educado, possivelmente, por religiosos,<br />
recebeu formação clássica e chegou, inclusive, a lecionar, além de<br />
gramática, filosofia.<br />
7 “Dionísio o Trácio foi o verdadeiro organizador da arte da gramática na Antigüidade”<br />
(Neves, 1987, p.155). Ou seja, primeiro gramático grego.<br />
8 Muitas dessas disciplinas foram lecionadas por anos sucessivos no Colégio de Pedro<br />
II.<br />
9 Tendo sido abandonada somente no final do século XIX, com o desenvolvimento das<br />
ciências em geral e das ciências da linguagem, em especial.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
350<br />
Prosseguindo, por etimologia compreende a parte que traz a<br />
natureza das palavras e suas propriedades; por sintaxe, a que ensina<br />
coordenar com acerto a oração; por prosódia 10 , a que aponta a boa<br />
pronunciação das palavras; e por ortografia, a que mostra como escrever<br />
sem erros e empregar com acerto os sinais de pontuação.<br />
Chamamos atenção para o fato de que, na época, o caráter prescritivo<br />
da gramática era o vigente, ou seja sua função era a de ensinar a falar,<br />
como dizia Nebrija (1492), de acordo com os nobres:<br />
Cuando bien comigo pienso, mui esclarecida Reina, e pongo delante<br />
los ojos el antiguedad de todas las cosas que para nuestra recordación e<br />
memoria quedaron escritas, una cosa hallo e saco por conclusión mui<br />
certa: que siempre la lengua fue compañera del imperio (p. 6. edição de<br />
1946)<br />
Seguindo ainda a tradição greco-latina, o autor define oração<br />
como a reunião "de palavras com que enunciamos qualquer juízo".<br />
(p. 16).<br />
Explica, na primeira parte de seu compêndio, na Etimologia,<br />
que as palavras que compõem a oração podem ser de dez espécies:<br />
substantivo, artigo, adjetivo, pronome, verbo, particípio, preposição,<br />
advérbio, conjunção e interjeição. Atentamos aqui para dois fatos relevantes:<br />
de um lado, a proposta de inscrever as classes de palavras<br />
em dez categorias remete-nos às dez categorias de pensamento sugeridas<br />
por Aristóteles, na Metafísica; de outro, revela modernidade já<br />
que as obras do século XVIII, amparadas no modelo latino, desconsideravam<br />
o artigo e adjetivo e/ou pronome chegando a oito classes.<br />
Notemos que ele já os considera como classes gramaticais distintas<br />
do nome substantivo, como o fizera, anteriormente, por exemplo, o<br />
Prof. Coruja (1875), autor em que parece estar bastante calcado.<br />
Na segunda parte de sua obra, que compreende a Sintaxe,<br />
rompe, algumas vezes com o postulado por suas antecessoras.<br />
Inicia definindo oração ou período, informando "é a maneira<br />
de exprimir qualquer idéia, ou de comunicar aos outros os nossos<br />
pensamentos sobre qualquer coisa". (p. 103). Depois, de um lado, afirma<br />
que ela (a oração) compõe-se de três partes: sujeito, verbo e a-<br />
10 Neste trabalho, somente as duas primeiras partes serão objeto de discussão.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
351<br />
tributo, contrariando os preceitos da gramática logicista, como, por<br />
exemplo, a de Port-Royal, onde se lê:<br />
(...) como quando digo: A terra é redonda contém necessariamente dois<br />
termos: um chamado sujeito, que é aquele de que se afirma, como terra;<br />
e outro chamado atributo, que é o que se afirma, como redonda, além<br />
disso, a ligação entre esses dois termos, que é propriamente a ação de<br />
nosso espírito, que afirma o atributo do sujeito. (ARNAULD/ LANCE-<br />
LOT, 1992, p. 85)<br />
Por outro lado, comungando novamente com os preceitos de<br />
gramática como arte de falar e escrever bem, traz sintaxe de regência,<br />
concordância e construção, seguindo as demais gramáticas de orientação<br />
filosófica, como, por exemplo, a de Soares Barbosa (1822).<br />
Finaliza o capitulo com sintaxe figurada, estudando as principais figuras<br />
de sintaxe.<br />
Importa também especificar que o autor aproveita os exemplos<br />
e exercícios para, por meio deles, exercer outro importante papel<br />
que cabia à escola, tão divulgado na época, ou seja, além de ensinar,<br />
deveria ela também educar, incutindo nos jovens valores morais.<br />
(...) no período em questão, houve entrosamento acentuado entre a vida<br />
intelectual e as preocupações político-sociais. As diretrizes respectivas –<br />
conforme as entreviam os nossos homens de então nos modelos franceses<br />
e ingleses – se harmonizavam pela confiança na força da razão, considerada<br />
tanto como instrumento de ordenação do mundo, quanto como<br />
modelo de uma certa arte clássica, abstrata e universal. A isto se juntavam:<br />
1) o culto da natureza, (...) 2) o desejo de investigar o mundo (...) 3)<br />
finalmente, a aspiração à verdade, como descoberta intelectual, como fidelidade<br />
consciente ao natural, como sentimento de justiça na sociedade.<br />
(CÂNDIDO, 2000, p. 89)<br />
Assim, deparamo-nos, em cada rol de exercícios, ao final dos<br />
tópicos gramaticais, com asserções como as abaixo:<br />
É de nosso dever socorrer os pobres. (p. 29)<br />
Jesus Cristo, Senhor Nosso, morreu para nos salvar (p. 29)<br />
Leve e suave é a obrigação de obedecermos a nossos pais (p. 31)<br />
Seus dias eram contados por suas virtudes (p. 35)<br />
Ter juízo é a maior de todas as riquezas. (p. 45)<br />
Como pudemos perceber, o que a Gramática da Infância, do<br />
Cônego Pinheiro, poderia trazer de “novo” era o método, em que se-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
352<br />
guia Jacotot, apresentando paulatinamente o conteúdo. Se esse foi<br />
uma boa escolha, se frutificou, se facilitou seu trabalho, frente às dificuldades<br />
com que se deparava, com a vinda de um novo tipo de alunos,<br />
não sabemos, não temos nenhum testemunho nesse sentido,<br />
mas podemos afirmar que a leitura desse Compêndio mostrou-nos<br />
que discussões como tais são bastante antigas. Resta-nos, então, procurar<br />
trazer essas reflexões para nossa sala de aula, aparar arestas,<br />
adaptá-las à nossa realidade, à nossa sociedade. Cabe-nos, portanto,<br />
recordar a história para alinhavar sentidos, na tentativa de amenizar<br />
dificuldades que atravessam séculos no ensino da língua portuguesa.<br />
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CÂNDIDO, A. Literatura e sociedade. São Paulo: Publifolha, 2000.<br />
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de Janeiro: Tipografia Esperança, 1875.<br />
FÁVERO, L. L. O ensino no Império – 1837-1867 – Trinta anos do<br />
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RESTAINO, H.C. A trajetória do ensino de língua portuguesa e de<br />
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VIANA, M. G. A arte da leitura. Porto: Educação Nacional, 1949.
A RELEVÂNCIA DAS MANIFESTAÇÕES CULTURAIS<br />
NA AULA DE LÍNGUA PORTUGUESA<br />
Cláudia Cristina Marques dos Santos (UERJ)<br />
claudiacmsantos@ig.com.br<br />
Este trabalho refere-se às reflexões iniciais da minha dissertação<br />
que surge de algumas inquietações referentes ao tipo de ensino<br />
produzido pela sociedade que, muitas vezes, não possibilita à língua<br />
portuguesa se representar como linguagem. Um idioma transpira identidade<br />
e não se pode estudá-lo apenas como mais uma matéria da<br />
grade curricular.<br />
Em diversos níveis de aprendizagem – do ensino fundamental<br />
ao médio – os alunos encaram mecanicamente o estudo da língua,<br />
como uma “decoreba” de regras que nada significam. Em sua maioria,<br />
não conseguem realizar uma leitura além da superfície. Não há<br />
interlocução com os textos, o que acarreta total falta de articulação<br />
do conhecimento. Solicitar a um aluno que explique com as próprias<br />
palavras um assunto, supostamente compreendido, pode ser um imenso<br />
desafio.<br />
Como, porém, desfazer a imagem de desnecessário que o estudo<br />
da língua materna carrega? Qual a maneira para os discentes<br />
perceberem sua importância? Não se maquia a língua e se finge,<br />
simplesmente, que o estudo da gramática não se impõe como fundamental.<br />
Além de reverter essa visão, o ensino da língua portuguesa<br />
demanda uma reformulação que se coadune com o objetivo de formar<br />
cidadão críticos.<br />
Partindo do princípio de que sabedoria não se submete à<br />
compartimentalização, tomo emprestado do marketing, os fundamentos<br />
de “reposicionamento de marca” para estruturar minhas investigações.<br />
Conforme Armstrong e Kotler (1998, p. 201) esse conceito<br />
“pode exigir modificação do produto e também de sua imagem” a<br />
fim de modificar a percepção dos consumidores acerca dele.<br />
De modo geral, reposicionar envolve reverter a imagem de<br />
uma marca ou produto. Na história da propaganda moderna, encontra-se<br />
o caso clássico das sandálias Havaianas que, de produto consi-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
355<br />
derado de terceira categoria, popular e sem graça, passa a objeto da<br />
moda, com preço elevado e cobiçado por pessoas de diferentes níveis<br />
sociais.<br />
A mudança exige planejamento e, em seu processo usual, envolve<br />
pesquisas de mercado e entrevistas. Pode, no entanto, advir<br />
somente da observação pura e simples do comportamento do consumidor.<br />
O olho de um bom observador, às vezes, substitui, com vantagem,<br />
processos complexos de pesquisa e análise. Traçando um paralelo<br />
com a aprendizagem formal da língua nativa, pensar em algo<br />
que desinstalasse a ordem atual requereria que eu estivesse atenta ao<br />
comportamento, desejos e expectativas não só da comunidade escolar,<br />
como também da sociedade.<br />
Em um segundo momento, promovem-se campanhas publicitárias<br />
para associar o produto a eventos ou ocasiões que transmitam<br />
uma aura de felicidade, sofisticação, conforto, entre outros. Tudo, de<br />
acordo com o detectado na fase inicial. A melhor maneira de fazer a<br />
associação de um produto consiste em observar as pessoas em seu<br />
habitat, sem interferir. Da perspectiva da língua precisa-se, então, realçar<br />
o que já se dispõe no ambiente linguístico. Em concomitância,<br />
deve-se trabalhar com foco no público-alvo. Recriar a imagem do idioma<br />
para um público ou classe social ainda não bem posicionado<br />
em relação à visão anterior. No caso da aula de português, a meta se<br />
dirige para convencer os jovens de que o conhecimento da língua<br />
não se reduz à aplicação de avaliações ou produções textuais. Uma<br />
língua representa o código que determinado grupo social dispõe para<br />
falar sobre as demais linguagens e quanto maior a segurança nesse<br />
canal de expressão, melhor a habilidade de expressar o pensamento e<br />
mais ampla a capacidade de lidar com o novo.<br />
Estabelecendo uma relação com o marketing, o sucesso depende<br />
de uma consulta bem elaborada, em que as perguntas certas<br />
aconteçam, antes das respostas definitivas. Do lado pedagógico, torna-se<br />
vital para a motivação do aluno que as aulas de língua portuguesa<br />
dialoguem com a realidade que o jovem tem acesso. Cabe,<br />
portanto, buscar as alternativas viáveis para se reformatar o produto.<br />
Vale ressaltar que há muitos caminhos, alguns de ordem puramente<br />
linguística, outros de processo de aprendizagem ou mesmo<br />
de abordagem, porém, o que se propõe neste trabalho tem como
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
356<br />
premissa pensar a língua como a principal marca cultural de um país,<br />
valorizando o ensino a partir do dia a dia da sociedade, na qual a interação<br />
das diferentes linguagens promove a comunicação entre os<br />
homens.<br />
No mundo pós-moderno, velocidade tornou-se sinônimo de<br />
sucesso; quanto mais rápido se depreende uma informação, maior a<br />
chance de se produzir uma ação eficaz e eficiente. Já diz a sabedoria<br />
popular que “tempo é dinheiro” e, em uma sociedade de relações tão<br />
complexas quanto a da atualidade, compreender as regras de uma<br />
comunidade, sua cultura e tradição não se constitui tarefa das mais<br />
fáceis.<br />
A harmonia de uma coletividade passa pela capacidade de cada<br />
integrante produzir e interpretar sentidos. Por meio do pleno domínio<br />
da linguagem, devem-se apreender do cotidiano dados que se<br />
transformem em instrumentos para contribuir na conscientização do<br />
cidadão como um “indivíduo que, como membro de um Estado, usufrui<br />
de direitos civis e políticos garantidos pelo mesmo Estado e desempenha<br />
os deveres que, nesta condição, lhe são atribuídos”, segundo<br />
o Grande Dicionário Houaiss da língua portuguesa (2001, p.<br />
714).<br />
Dessa forma, as instituições de ensino têm papel fundamental<br />
na capacitação de alunos aptos a destrinchar as informações que se<br />
apresentam pela mídia ou pelos meios acadêmicos, permitindo que<br />
os jovens utilizem a língua para além do reconhecimento de leis e<br />
regras gramaticais, munidos de argumentos para criarem os próprios<br />
modos de ver o mundo, respeitando a diversidade e ganhando mobilidade<br />
no ambiente social.<br />
A partir da constatação de que a escola representa um forte<br />
agente de mudança na sociedade, precisa-se reformular o quê e como<br />
a escola deve ensinar. A realidade atual demanda uma maneira diferente<br />
de organizar o espaço, de se relacionar e, consequentemente,<br />
solicita novos cidadãos.<br />
Uma das posturas fundamentais no processo implica reconhecer<br />
que conhecimento científico não encerra um fim em si mesmo,<br />
mas se constitui instrumento para ajudar a desenvolver competências.<br />
A escola não deve ser vista como um lugar de transmissão de
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
357<br />
conhecimento, mas como espaço de criação e produção intelectual<br />
sem barreiras. Ao representar formas de conhecimento, práticas de<br />
linguagem, relações e valores sociais que são seleções e exclusões<br />
particulares da cultura mais ampla, pode-se afirmar que sua meta se<br />
traduz na aprendizagem individual.<br />
A bagagem escolar do ponto de vista curricular não atende<br />
mais à educação do século XXI. Com tantas ondas de informações,<br />
as pessoas ficam desorientadas frente a um mundo complexo e constantemente<br />
em mudança. Assim, conforme o relatório da UNESCO<br />
elaborado por Delors et alii (2000, p. 89), “a educação deve transmitir,<br />
de fato, de forma maciça e eficaz, cada vez mais saberes e saberfazer<br />
evolutivos, adaptados à civilização cognitiva, pois são as bases<br />
das competências do futuro”. Quatro aprendizagens tornam-se fundamentais<br />
como pilares do conhecimento: aprender a conhecer, dominar<br />
os instrumentos do conhecimento; aprender a fazer, a fim de<br />
por em prática o conhecimento; aprender a viver juntos, permitindo<br />
um contexto igualitário e a descoberta do outro; e aprender a ser, para<br />
melhor desenvolver um pensamento autônomo e crítico, refletindo<br />
sobre o mundo em construção.<br />
Segundo Delors (2000, p. 96), os países em desenvolvimento,<br />
como o Brasil, “encaram o futuro como estreitamente ligado à aquisição<br />
da cultura científica que lhes dará acesso à tecnologia moderna,<br />
sem negligenciar com isso as capacidades específicas de inovação e<br />
criação ligadas ao contexto local”. Questiona-se, porém, em que<br />
momento da educação formal esse ambiente nativo ganha cores fortes.<br />
Como o estudante é incentivado a perceber o mundo? Seu olhar<br />
enxerga tudo o que vê?<br />
Num mundo em transformação, devem-se valorizar, principalmente,<br />
a imaginação e a criatividade, expressões da liberdade<br />
humana, sempre ameaçadas pela padronização de comportamentos.<br />
O século XXI precisa oferecer às crianças e aos adolescentes ocasiões<br />
de descoberta e experimentação que contribuam para o aprender<br />
a ser, inclusive de forma a lhes apresentar em que âmbito se criou a<br />
sua geração e as que os precederam.<br />
Na sociedade contemporânea, altamente tecnológica, as informações<br />
chegam a todo instante e de qualquer lugar. Ainda em<br />
busca de suas próprias identidades, os jovens, porém, não estão aptos
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
358<br />
a filtrar e reprocessar o conteúdo das mensagens. Quanto mais tempo<br />
se despende na construção desse mecanismo de seleção e entendimento,<br />
menos preparado o indivíduo para criticar e transformar o<br />
meio social.<br />
De modo geral, parece que as famílias veem as instituições<br />
escolares como dotadas de responsabilidade e autoridade para educarem<br />
seus rebentos. Os pais, cada vez mais atarefados em garantir o<br />
próprio sustento, ou mesmo a sobrevivência como indivíduos pertencentes<br />
a um grupo, delegam a elas muito mais do que a educação<br />
formal. Os adolescentes, por sua vez, acostumados a conseguir o que<br />
precisam e desejam de forma facilitada, esperam que a escola forneça<br />
os instrumentos necessários ao sucesso profissional, sem se importarem<br />
em refletir sobre a realidade ao seu redor e as suas consequências<br />
para o futuro.<br />
Pensando o cidadão do século XXI, como espécie responsável<br />
pela continuação da vida no planeta, não só no que se refere à natureza,<br />
mas também à convivência entre os homens, e a fim de que não<br />
se forme apenas como útil à produção, esse trabalho aponta alguns<br />
caminhos para a inserção das manifestações culturais no ambiente<br />
escolar, especialmente nas aulas de língua portuguesa, como ferramentas<br />
que auxiliem à constituição de um sujeito contemporâneo crítico.<br />
A cada dia, presencia-se a alienação dos jovens em relação<br />
aos problemas que enfrenta a sociedade moderna. De certa forma,<br />
essa constante apatia, que cresce de geração em geração, contribui<br />
para a grande barbárie em que se vive.<br />
Muitas vezes, por não receberem estímulos adequados ao<br />
processo de reflexão - que se constitui em um exercício contínuo –,<br />
esquecem-se de que são dotados de tal habilidade. Outras, a dificuldade<br />
com a língua os impede de progredir num encadeamento lógico<br />
que conduza aos argumentos necessários para um debate eficaz.<br />
Assim, pressupõe-se que o incentivo à maior exposição às<br />
manifestações culturais proporcione a ampliação das percepções<br />
cognitivas e linguísticas, bem como uma oportunidade de crescimento<br />
como ser humano, integrante de uma coletividade bastante heterogênea.<br />
Cabe ao professor, mais do que estimular o conhecimento de
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
359<br />
todos os tipos de expressões - desde a clássica até a pop –, “vender”<br />
o desejo de partilhar o mundo que acontece fora dos muros da escola.<br />
De certa forma, pratica-se um exercício de humanidade, pois, nesse<br />
momento, se começa a perceber que mão se precisa gostar de tudo<br />
ou de todos, mas há a obrigação como ser humano de não se recusar<br />
experiências. Afinal, para se afirmar que algo não agrada, deve-se<br />
primeiro conhecer.<br />
Propagar essa prática, alcançando efetivamente as salas de aula<br />
e ratificar sua importância, representa uma grande contribuição da<br />
universidade para a ciência, uma vez que o discurso científico constitui-se<br />
o lugar da autoria e da argumentação.<br />
Na tarefa de perceber determinada linguagem, requisita-se ao<br />
aluno a capacidade de reconhecê-la, identificar suas características,<br />
seus traços, seu ambiente. Na medida em que há uma impressão sensorial<br />
que se verbaliza, quando já se domina o código linguístico ou,<br />
pelo menos, se admite sua relevância, se tangibiliza o aproveitamento<br />
dessa interação. Além de uma questão estética e cognitiva, o aluno<br />
desperta para aspectos referentes à língua portuguesa, levantando<br />
questões sobre as escolhas gramaticais ou sintáticas do autor, por exemplo.<br />
O embate com novas linguagens por meio da cultura salienta,<br />
ainda, a questão do estilo, conduzindo o aluno à reflexão sobre o<br />
porquê de sua identificação com determinada obra ou autor/artista.<br />
Essa sensibilização só se torna possível quando se teve a oportunidade<br />
de passar por diferentes estilos, de vivenciar as várias maneiras de<br />
se materializar a criação. Ao concretizar suas escolhas, leva-se o aluno<br />
a expressar o subjetivo, a quantificar em palavras a qualidade da<br />
sua emoção. O trabalho em equipe “manifestação cultural – aluno –<br />
verbalização” permite uma nova perspectiva do ensino, na qual se<br />
solicita a todo o momento o aprimoramento linguístico.<br />
Aliado à contribuição significativa para o aluno, frisa-se a<br />
importância para o desenvolvimento do professor, que passa a ter<br />
como interlocutor alguém que se coloca como sujeito de suas próprias<br />
palavras, exigindo do docente uma constante interação comunicativa<br />
que proporciona trocas e novas visões sobre o estudo.<br />
Entende-se que a relevância do estudo está em contribuir para<br />
o debate acerca das manifestações culturais aplicadas à sala de aula,
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
360<br />
trabalhando os conceitos de leitura, produção de textos e ensino da<br />
língua materna nos dias atuais.<br />
Um estudo que pretende contemplar as manifestações culturais<br />
como fomento para a motivação da aprendizagem da língua não<br />
se limita à área de concentração destinada e deve, portanto, buscar<br />
outras convergentes ao tema.<br />
A revisão bibliográfica abrangerá, dentre outros, aspectos da<br />
Filosofia, abordando teóricos como Theodor Adorno que versa sobre<br />
a massificação cultural e Michel Foucault que propõe uma reflexão<br />
sobre o utilitarismo; da Antropologia, a partir das considerações de<br />
Roque de Barros Laraia e José Luiz dos Santos; e dos Estudos Culturais,<br />
contemplando as propostas de Andrea Semprini sobre o Multiculturalismo<br />
e de Rogério Fleuri sobre Educação Intercultural.<br />
A história da humanidade presenciou três revoluções da informação:<br />
a escrita, o livro e a imprensa causaram grande impacto na<br />
sociedade, no ensino, na cultura – para não falar na religião. Afirmase<br />
que o mundo vivencia a quarta onda da informação; a atual, entretanto,<br />
não se traduziria em tecnologia, maquinário, técnicas ou velocidade,<br />
mas em conceitos. Com a crescente acessibilidade dos jovens<br />
a toda sorte de dados e a importância da linguagem para o pleno domínio<br />
das tecnologias e demandas do mundo contemporâneo, este<br />
trabalho visa a apontar caminhos para a inserção das manifestações<br />
culturais, entendidas como a voz social, uma maneira subjetiva de o<br />
ser humano transpor seu interior, o que pensa, o que deseja fazer,<br />
mover, ou modificar, em suas múltiplas possibilidades, na dinâmica<br />
das aulas de língua portuguesa, viabilizando, assim, que os indivíduos<br />
sejam capazes de aprender a organizar as informações como recurso-chave<br />
para o sucesso.<br />
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
ARMSTRONG, Gary; KOTLHER, Philip. Princípios de marketing.<br />
Rio de Janeiro: Prentice Hall do Brasil, 1998.<br />
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para o Século XXI. São Paulo: Cortez; Brasília: MEC, 2000.
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Culturais. Petrópolis: Vozes, 2000.<br />
HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro. Grande dicionário Houaiss<br />
da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.<br />
MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro.<br />
São Paulo: Cortez; Brasília: UNESCO, 2000.
A RESPEITO DA MUDANÇA HISTÓRICA NAS CONSTRU-<br />
ÇÕES PARASSINTÉTICAS<br />
/A...ECER/ E /EN...ECER/<br />
1. Introdução<br />
Caio Cesar Castro da Silva (UFRJ)<br />
caiocvianna@gmail.com<br />
Neste artigo, pretende-se fazer uma análise histórico-semântica<br />
de duas construções parassintéticas: /a...ecer/ e /eN...ecer/. Partiremos,<br />
então, de nossa hipótese primária de que uma das construções<br />
haveria se fossilizado, enquanto a outra teria se mantido produtiva ao<br />
longo da história da língua portuguesa.<br />
Para alcançarmos nossos objetivos, foram feitas análises baseadas<br />
em corpora informatizados do português e em testes de aceitabilidade<br />
com falantes da faculdade de Letras da UFRJ. Além disso,<br />
com base nos postulados da teoria da metáfora, observaremos a polissemia<br />
das palavras.<br />
2. A parassíntese<br />
A parassíntese é, tradicionalmente, definida como a anexação<br />
simultânea de um prefixo e um sufixo a uma base (CUNHA & CIN-<br />
TRA, 2007; LIMA, 2008; CÂMARA JR., 1975). Dessa forma, vocábulos<br />
como amanhecer e emparedar são analisados como nos<br />
moldes em (1):<br />
(1) a + manhã + ecer à amanhecer<br />
e/N/ + parede + ar à emparedar<br />
Percebe-se, a partir das estruturas em (1), que o fator simultaneidade<br />
é aplicado com a adjunção dos afixos à base em um nível, e<br />
não em dois. Esse fator distingue formas como as citadas em (a) de<br />
outras como prefixar, em que o prefixo e o sufixo não são incorporados<br />
à base ao mesmo tempo (prefixo e fixar coexistem).<br />
Alguns autores, como Silva & Koch (2005) e Henriques<br />
(2007), defendem que o processo seria mais bem analisado em ter-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
363<br />
mos de circunfixos, que podem ser definidos como uma unidade de<br />
expressão desmembrada para a inserção de outra forma (GONÇAL-<br />
VES, 2005). O esquema em (2) ilustra o processo derivacional que<br />
ocorre com a inserção da base entre as frações do circunfixo.<br />
3. O corpus e hipóteses<br />
mole<br />
/a....ecer/ amolecer<br />
(2) esquema da circunfixação<br />
O levantamento de dados foi feito nos dicionários eletrônicos<br />
Houaiss e Aurélio, tendo sido considerados os circunfixos /a...ecer/,<br />
formador de verbos como “amadurecer” e “anoitecer”, e /eN...ecer/,<br />
que forma verbos como “enriquecer” e “enlouquecer”. Dos 47 vocábulos<br />
encontrados, 77% eram iniciados por e/N/-, enquanto apenas<br />
23% apresentava o prefixo a-.<br />
Observou-se, também, que muitos dos vocábulos, embora<br />
fossem formados por morfes descontínuos diferentes, apresentavam<br />
a mesma base, como nos pares em (3). Para saber se os dois vocábulos<br />
dos pares são reconhecidos, fez-se uma consulta informal a falantes<br />
nativos do português, que revelou uma forte preferência pelos<br />
verbos iniciados por e/N/-.<br />
(3) abrutecer X embrutecer, abranquecer X embranquecer<br />
Os vocábulos em (3) veiculam o mesmo significado: o primeiro<br />
par significa, de acordo com o dicionário Houaiss, tornar-se<br />
bruto, e o segundo, tornar-se branco. Com base nessas informações,<br />
pôde-se formular as hipóteses de que (i) o não-reconhecimento de<br />
/a...ecer/ pelos falantes e sua baixa produtividade seriam indícios de<br />
fossilização morfológica, (ii) a construção /eN...ecer/, ao contrário,<br />
continuaria produzindo novos itens lexicais e (iii) os dois circunfixos<br />
seriam produtivos semanticamente, i.e., as palavras existentes no léxico<br />
passam por extensões de sentido.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
364<br />
Objetivando buscar indícios que corroborem as hipóteses descritas<br />
acima, serão feitas análises de dados em dicionários etimológicos<br />
do português e em textos históricos. Além disso, serão feitas<br />
considerações sobre os resultados de testes de aceitabilidade realizados<br />
com estudantes universitários.<br />
4. Análise histórica dos circunfixos<br />
Foram consultados alguns dicionários etimológicos, como<br />
Cunha (1999), Machado (1973), Nascentes (1955) e Silveira Bueno<br />
(1967), para confirmar a primeira datação registrada em textos escritos.<br />
Os primeiros vocábulos aparecem ainda no século XIII, enquanto<br />
os últimos são registrados no século XX. A distribuição dos itens<br />
pelo período analisado encontra-se na tabela 1, em que se verifica<br />
um período de concorrência entre os circunfixos que vai desde o século<br />
XIII ao século XVI.<br />
Século Frequência de /a...ecer/<br />
XIII 6/14 = 43%<br />
XIV 3/14 = 21%<br />
XV 0/3 = 0%<br />
XVI 2/3 = 67%<br />
XVII 0/1 = 0%<br />
XVIII 0/2 = 0%<br />
XIX 0/6 = 0%<br />
XX 0/2 = 0%<br />
Total 11/ 45 = 24%<br />
Quadro 1: datação dos vocábulos<br />
Cabe ressaltar que não foram encontradas as datas de entradas<br />
de dois verbos (enfurecer e encalvecer). Percebe-se que, até o século<br />
XVI, o circunfixo /a...ecer/ formou novos itens, embora a quantidade<br />
de dados analisados não seja tão robusta. Ainda assim, verifica-se<br />
que a partir do século XVII nenhum novo verbo é registrado nos dicionários<br />
etimológicos, como pode ser visualizado no gráfico abaixo.
100<br />
80<br />
60<br />
40<br />
20<br />
0<br />
séc.<br />
XIII<br />
séc.<br />
XIV<br />
séc.<br />
XV<br />
séc.<br />
XVI<br />
séc.<br />
XVII<br />
séc.<br />
XVIII<br />
séc.<br />
XIX<br />
séc.<br />
XX<br />
Gráfico 1: distribuição dos vocábulos nos séculos<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
/a...ecer<br />
365<br />
/eN...ecer/<br />
Outro fator que ajuda a explicar a concorrência entre os circunfixos<br />
é a acepção dos prefixos. o prefixo a- tem como significado<br />
“aproximação; em direção a (base)”, enquanto o e/N/- tem o significado<br />
prototípico de “movimento sobre”, mas também pode significar<br />
“aproximação; em direção a (base)”. Todos os verbos encontrados<br />
que se assemelham aos pares em (3) são formados no período em<br />
que as construções estavam em concorrência, ou seja, entre os séculos<br />
XIII e XVI. Seguindo o princípio da economia linguística, que<br />
está relacionado à simplificação das formas da língua, um dos circunfixos<br />
resistiria à força do tempo e continuaria produzindo novos<br />
vocábulos, enquanto o outro se tornaria um fóssil morfológico.<br />
Para verificar a compreensão dos falantes do português atual,<br />
aplicaram-se testes psicolinguísticos (cf. LIMA, 1999) a 23 informantes<br />
da Faculdade de Letras/ UFRJ. O objetivo dos testes era verificar<br />
se o falante nativo de língua portuguesa produziria palavras novas<br />
a partir da construção /a...ecer/ ou de /eN...ecer/. Foram utilizadas<br />
formas inventadas para que o léxico internalizado de cada indivíduo<br />
influenciasse o menos possível os resultados. Exemplos dessas<br />
criações são: anerdecer/enerdecer, abanguelecer/ embanguelecer, agatecer/engatecer.<br />
Os testes foram realizados individualmente para que não<br />
houvesse interferência nas respostas. Todos os entrevistados estavam<br />
cursando a graduação e tinham entre 18 e 25 anos. Foram realizados<br />
três modelos de testes para que se pudesse controlar uma maior<br />
quantidade de dados.<br />
O tempo que o informante levava para julgar cada uma das<br />
palavras também foi contabilizado, já que evidenciaria a velocidade
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
366<br />
com que cada informação é acessada no léxico do indivíduo. Dizendo<br />
de outra maneira, espera-se encontrar um tempo menor para as<br />
formas em /eN...ecer/, já que estaria disponível para fins de produção<br />
de novos itens lexicais. A contrário, as palavras de /a...ecer/ devem<br />
apresentar um tempo maior.<br />
Foram controladas 18 formações parassintéticas e obtiveramse<br />
138 respostas, no total. O comportamento de cada uma das construções<br />
parassintéticas é descrito no gráfico 2.<br />
80<br />
60<br />
40<br />
20<br />
0<br />
a-X-ecer<br />
e/N/-X-ecer<br />
Gráfico 2: escolha dos circunfixos nos testes de aceitabilidade<br />
Percebe-se, assim, que somente 29%, ou 40 respostas, foram<br />
para o circunfixo /a...ecer/, enquanto que /eN...ecer/ recebeu 71%, ou<br />
98 respostas, de preferência dos informantes. O tempo médio para o<br />
processamento dos dados parassintéticos foi o seguinte: 9,2 segundos<br />
no teste 1; 8,02 segundos no teste 2; e 10,07 segundos no teste 3. O<br />
tempo médio total foi de 9,1 segundos. O tempo médio para cada<br />
construção parassintética é apresentado no quadro 2:<br />
Tempo Médio<br />
a-X-ecer e/N/-X-ecer<br />
Modelo 1 10,4 segundos 8,3 segundos<br />
Modelo 2 8,3 segundos 7,8 segundos<br />
Modelo 3 10,3 segundos 9,5 segundos<br />
Total 9,7 segundos 8,5 segundos<br />
Quadro 2: resultado do tempo em relação aos testes<br />
Cotejando os resultados, percebe-se que a média de tempo de<br />
/eN...ecer/ é bem inferior que a do outro grupo, assim como a média<br />
total de tempo revela uma grande discrepância: 1,2 segundos de diferença<br />
entre os dois dados investigados.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
367<br />
A partir dos resultados dos testes, pôde-se trazer à baila mais<br />
um indicativo de que a construção /a...ecer/ se fossilizou, uma vez<br />
que apresentou baixa escolha entre os falantes do português (29%<br />
contra 71% de preferência por /eN...ecer/), como também demonstrou<br />
um tempo maior de processamento cognitivo. Se fosse uma<br />
construção produtiva, teria tido resultados não tão expressivos na<br />
comparação com o outro circunfixo.<br />
5. A extensão de sentido: uma questão de polissemia<br />
Para mostrar que as palavras das duas construções ainda possuem<br />
extensões semânticas, será utilizado o aparato da linguística<br />
cognitiva, mais especificamente a noção de metáfora e de mapeamento.<br />
Segundo a LC, a metáfora é entendida como uma operação<br />
cognitiva fundamental, ao contrário do que postula a tradição retórica.<br />
Lakoff & Johnson (2002) propõem que a nossa linguagem cotidiana<br />
é essencialmente metafórica, oferecendo uma alternativa experiencialista<br />
às perspectivas do objetivismo e do subjetivismo. Assim<br />
sendo, as palavras apresentam, comumente, extensões de sentido que<br />
não são aleatórias, mas motivadas cognitivamente. Sob esse enfoque,<br />
toda metáfora pode ser explicada por nossas experiências corporais<br />
ou interações com o meio. O espraiamento de um domínio fonte<br />
(mais concreto) para um domínio alvo (mais abstrato) é fundamental<br />
para a estruturação semântica. Os mapeamentos de sentidos são, dessa<br />
forma, descritos por Sweetser (1990:30) como “unidirecionais: as<br />
experiências corporais são uma fonte de vocabulário para nossos estados<br />
psicológicos, mas não o contrário”.<br />
Pode-se, assim, observar a metáfora TER CONTROLE É<br />
PARA CIMA; SER CONTROLADO É PARA BAIXO, que tem<br />
como exemplo (4), retirado do site Mídia News 1 .<br />
(4) Em MT, PSB ajuda a enfraquecer candidatura de Ciro.<br />
Seguindo Lakoff & Johnson (2002), inferimos que há uma<br />
competição entre dois candidatos adversários e que, nesse confronto,<br />
1
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
368<br />
PSB exerce controle sobre a candidatura de Ciro Gomes. Podemos<br />
concluir que o partido se encontra em uma posição superior em relação<br />
ao candidato. Isso é estabelecido a partir de nosso conhecimento<br />
de mundo, que apresenta a questão de ter controle sobre um oponente,<br />
como estando (a) na frente em um placar, (b) em uma posição à<br />
frente em uma corrida ou (c) acima, em uma luta corporal. Assim,<br />
nossa cognição atua metaforicamente e projeta esse significado para<br />
um debate, ou seja, uma competição eleitoral.<br />
Outro exemplo é apresentado em (5), retirado do site Uol<br />
Música 2 . Nesse caso, as ideias são conceptualizadas como entidades<br />
naturais, que podem sofrer o processo de maturação.<br />
(5) “Eu escutei muitas músicas do Black Jones, Stevie Wonder,<br />
Michael Jackson, coisas lindas. Nós acabamos desviando a atenção<br />
de muitas coisas lindas que tinham. Eu com isto busquei amadurecer<br />
as idéias para fazer uma coisa simples e com bom gosto.” cantora<br />
Luciana Melo.<br />
A metáfora IDEIAS SÃO ENTIDADES NATURAIS está relacionada<br />
à hipótese da corporificação, muito cara aos estudos cognitivistas.<br />
Pode-se citar Lakoff & Johnson (2002: 28) a esse respeito:<br />
A mente seria “corporificada”, isto é, estruturada através de nossas<br />
experiências corporais, e não uma entidade de natureza puramente metafísica<br />
e independente do corpo. Da mesma forma, a razão não seria algo<br />
que pudesse transcender o nosso corpo: ela é também “corporificada”,<br />
pois origina-se tanto da natureza de nosso cérebro, como das peculiaridades<br />
de nossos corpos e de suas experiências no mundo em que vivemos.<br />
6. Considerações finais<br />
Espera-se ter apresentado evidências de que o circunfixo<br />
/a...ecer/ se cristalizou, enquanto o outro se manteve produtivo ao<br />
longo da história da língua. No mais, ambas as construções possibilitam<br />
a atuação de processos metafóricos que ampliam as acepções de<br />
cada uma das palavras.<br />
2
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
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portuguesa. São Paulo: Saraiva, 1967.<br />
CAMARA Jr., Joaquim Mattoso. História e Estrutura da Língua<br />
Portuguesa. Rio de Janeiro: Padrão, 1975.<br />
CUNHA, A. G. da. Dicionário etimológico Nova Fronteira da língua<br />
portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.<br />
CUNHA, Celso Ferreira da & CINTRA, Luis Filipe Lindley. Nova<br />
gramática do português contemporâneo. Rio de Janeiro: Lexicon Informática,<br />
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Em MT, PSB ajuda a enfraquecer candidatura de Ciro. In:<br />
Midia News. Disponível em:<br />
http://www.midianews.com.br/?pg=noticias&cat=1&idnot=22103<br />
Acesso em: 25 abr. 2010, às 14h20min.<br />
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HOUAISS, A. Dicionário Eletrônico Houaiss da língua portuguesa.<br />
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LIMA, Carlos Henrique da Rocha. Gramática normativa da língua<br />
portuguesa. Rio de Janeiro: José Olympio, 2008.<br />
LIMA, P. L. L. Desejar é ter fome: novas ideias sobre antigas<br />
metáforas conceituais. Tese de doutorado. São Paulo: UNICAMP,<br />
1999.<br />
Luciana Mello disse que faz CD para ser tocado nas rádios. In: UOL<br />
Música. Disponível em:
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. Acesso<br />
em: 03 jul. 2007 às 19h00min.<br />
MACHADO, J. P. Dicionário etimológico da língua portuguesa:<br />
com a mais antiga documentação escrita e conhecida de muitos dos<br />
vocábulos estudados. Lisboa: Livros Horizonte, 1973.<br />
NASCENTES, A. Dicionário etimológico da língua portuguesa. Rio<br />
de Janeiro: Acadêmica, 1955.<br />
SILVA, Augusto S. O mundo dos sentidos em português. Coimbra:<br />
Almedina, 2006.<br />
SILVA, Maria Cecília Pérez de Souza & KOCH, Ingedore Grunfeld<br />
Villaça. Lingüística Aplicada ao Português: Morfologia. São Paulo:<br />
Cortez, 2005.<br />
SWEETSER, E. From etymology to pragmatics. Metaphorical and<br />
cultural aspects os sematic structure. Cambridge: Cambridge University<br />
Press, 1990.
A RETÓRICA EM O CRIME DO PADRE AMARO<br />
1. Introdução<br />
Ânderson Rodrigues Marins (UERJ)<br />
profandermarins@hotmail.com<br />
No romance O Crime do Padre Amaro, do escritor português<br />
Eça de Queirós (1845-1900), reside a exposição do comportamento<br />
pernicioso não só dos padres, mas também do clero em geral. Entre<br />
as principais ideias discutidas ao longo da obra identificam-se, ainda:<br />
aliança entre a igreja e os políticos, troca de favores para conquista<br />
de benefícios, valorização da ciência e das teorias vigentes na época,<br />
crime sem castigo, homossexualismo, miséria, casamento por interesse.<br />
O presente artigo analisa os principais comportamentos das<br />
personagens e os tipos de discursos utilizados por elas, e para esse<br />
fim adotamos por base a retórica antiga de Aristóteles 1 e os métodos<br />
de elaboração da linguagem persuasiva. Assim é que, estando a par<br />
de que todos os homens se empenham dentro de certos limites em<br />
submeter a exame ou sustentar uma tese, em apresentar uma defesa<br />
ou uma acusação, analisamos como isso é realizado pelas personagens<br />
do romance.<br />
2. Intencionalidade discursiva<br />
O homem utiliza diariamente a linguagem nas relações com<br />
outros indivíduos como um instrumento de ação carregado de intencionalidade.<br />
A linguagem torna-se o mecanismo necessário para a<br />
interação social, transmitindo pensamentos, vontades, experiências,<br />
1 Atente-se para a definição da Retórica dada por Aristóteles (1996, p. 33): Assentemos<br />
que a Retórica é a faculdade de ver teoricamente o que, em cada caso, pode ser<br />
capaz de gerar a persuasão. Nenhuma outra arte possui esta função, porque as demais<br />
artes têm, sobre o objeto que lhes é próprio, a possibilidade de instruir e de persuadir;<br />
por exemplo, a Medicina, sobre o interessa à saúde e à doença, a Geometria, sobre as<br />
variações das grandezas, a Aritmética, sobre o número; e o mesmo acontece com as<br />
outras artes e ciências.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
372<br />
tentando assim envolver o destinatário na consciência interior do locutor,<br />
a fim de que participe da sua realidade e de seu conhecimento<br />
de mundo 2 .<br />
Quando há o ato interativo, o locutor tem, necessariamente,<br />
determinados objetivos e propósitos, que vão desde a básica intenção<br />
de estabelecer ou manter o contato com o receptor até a de levá-lo a<br />
partilhar de suas opiniões ou a agir ou comportar-se de determinada<br />
maneira. Pode-se notar facilmente que a intencionalidade tem estreita<br />
relação com o que se tem chamado de argumentatividade. Essa intencionalidade<br />
no discurso é realizada através de argumentos. E é<br />
nesse discurso argumentado que há pretensões (KOCK, 2007; NO-<br />
GUEIRA, 2007).<br />
Além desse discurso argumentado, o romance é, ab initio, impregnado<br />
de um discurso filosófico-questionador (GARCIA, 2003),<br />
que se revela como que à procura de saber a verdade por trás dos fenômenos,<br />
das aparências, das verdades estabelecidas, das crenças<br />
generalizadas:<br />
Foi no domingo de Páscoa que se soube em Leiria que o pároco da<br />
Sé, José Miguéis, tinha morrido de madrugada com uma apoplexia. O pároco<br />
era um homem sanguíneo e nutrido, que passava entre o clero diocesano pelo<br />
comilão dos comilões. Contavam-se histórias singulares da sua voracidade. O<br />
Carlos da Botica – que o detestava – costumava dizer, sempre que o via sair<br />
depois da sesta, com a face afogueada de sangue, muito enfartado:<br />
– Lá vai a jiboia esmoer. Um dia estoura!<br />
Com efeito, estourou, depois de uma ceia de peixe – à hora em que<br />
defronte, na casa do doutor Godinho que fazia anos, se polcava com alarido.<br />
Ninguém o lamentou, e foi pouca gente ao seu enterro. Em geral não era estimado.<br />
Era um aldeão; tinha os modos e os pulsos de um cavador, a voz rouca,<br />
cabelos nos ouvidos, palavras muitos rudes (QUEIRÓS, 1991 3 , p. 13).<br />
2 Consideramos relevante apontar aqui as três funções essenciais da linguagem: representação<br />
mental, exteriorização psíquica e interação social. A primeira está ligada ao<br />
fato de o ser humano poder demonstrar a sua compreensão das coisas que o cercam,<br />
isto é, do mundo em que vive; quanto à segunda compreende-se que é o ato de ele exprimir<br />
o pensamento com o objetivo de se fazer entender e, dessa forma, participar<br />
com os outros da vida comum; e a terceira, por sua vez, refere-se ao fato de o ser humano<br />
estar integrado em uma comunidade, na qual o ato de sugestionar é recíproco<br />
entre os membros da sociedade.<br />
3 Todas as citações serão dessa edição.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
373<br />
Percebe-se, facilmente, que a reboque da riqueza de detalhes,<br />
da caracterização científica de personagens, emite-se, mediante um<br />
discurso filosófico-questionador, uma evidente crítica social. Essa<br />
crítica, na verdade, alia-se ao propósito assumido por Eça de Queirós<br />
de escrever, em coerência com as teorias do Realismo - que procurava<br />
ver esteticamente os problemas sociais, como alguém que se pusesse<br />
num camarote a analisar com binóculos as chagas sócias, ou<br />
quando delas se aproximasse, fizesse-o com luvas de pelica – e com<br />
as ideias aceitas, obras de combate às instituições vigentes (Monarquia,<br />
Igreja, Burguesia) e de ação e reforma social (MOISÉS, 2003,<br />
p. 192-5).<br />
Existem outros exemplos nos quais encontramos confirmações<br />
do que até então vimos afirmando. No que reproduzimos abaixo,<br />
ficam manifestos os desejos carnais cometidos pelo Padre Amaro<br />
– que pecava por desejar Amélia –, reflexo do péssimo comportamento<br />
do clero:<br />
Amaro achava aquelas unhas admiráveis, porque tudo que era ela ou<br />
vinha dela lhe parecia ser perfeito; gostava da cor dos seus vestidos, do<br />
seu andar, do modo de passar os dedos pelos cabelos, e olhava até com<br />
ternura para as saias brancas que ela punha a secar à janela do seu quarto,<br />
enfiadas numa cana. Nunca estivera assim na intimidade de uma mulher.<br />
Quando percebia a porta do quarto dela entreaberta, ia resvalar para dentro<br />
olhares gulosos, como para perspectivas de um paraíso: um saiote<br />
pendurado, uma meia estendida, uma liga que ficara sobre o baú, eram<br />
revelações da sua nudez, que lhe faziam cerrar os dentes, todo pálido. E<br />
não se saciava de a ver falar, rir, andar com as saias muito engomadas<br />
que batiam as ombreias das portas estreitas. Ao pé dela, muito franco,<br />
muito langoroso, não lhe lembrava que era padre: o Sacerdócio, Deus, a<br />
Sé, o Pecado, ficavam embaixo, longe; via-os muito esbatidos do alto do<br />
seu enlevo, como de um monte se veem as casas desaparecer no nevoeiro<br />
dos vales; e só pensava então na doçura infinita de lhe dar um beijo na<br />
brancura do pescoço, ou mordicar-lhe a orelhinha (p. 57).<br />
3. Elementos do discurso retórico<br />
Pode-se afirmar sem reservas que todo ato de tomar a palavra<br />
implica a construção de uma imagem de si, o que, consequentemente,<br />
é inferido pelo interlocutor. Assim, o ethos era designado pelos<br />
antigos como a construção de uma imagem de si destinada a garantir<br />
o sucesso do empreendimento oratório. O ethos, então, está vinculado<br />
aos traços de caráter que o orador deve mostrar ao auditório –
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
374<br />
pouco importando sua sinceridade – para causar boa impressão. O<br />
orador enuncia uma informação e ao mesmo tempo diz: sou isto, não<br />
sou aquilo. Aristóteles afirma em sua Retórica que é ao caráter moral<br />
que o discurso deve, por assim dizer, quase todo seu poder de persuasão.<br />
A título de exemplo, basta lembrarmos as tramas enganosas tecidas<br />
pelo padre Amaro para conquistar Amélia, do partido do sedutor<br />
inconsequente e o da mulher disponível e ingênua que acredita no<br />
discurso vazio e enganador de galã que se valoriza: Amaro com sua<br />
pretensa ligação direta com Deus.<br />
O logos (a ideia, o conceito) existente na mensagem é carregado<br />
de um discurso emocional, o qual pode persuadir, ao apelar-se<br />
para emoção e não para a razão, quando vazio de significado (GAR-<br />
CIA, 2003).<br />
Exemplo significativo tem-se a seguir:<br />
– E Amaro despeitado, descontente também por não a ter visto nessa<br />
manhã à missa das nove, resolveu “pôr tudo a claro numa carta de sentimento”;<br />
e preparava os períodos sentidos que lhe deviam ir resolver o<br />
coração, passeando pela casa, juncando o chão de pontas de cigarro, a<br />
cada momento curvando sobre o Dicionário de Sinônimos.<br />
Ameliazinha do meu coração: (escrevia ele). Não posso atinar com<br />
as razões maiores que a não deixaram responder ao bilhetinho que lhe<br />
dei em casa da senhora sua mamã; pois que era pela muita necessidade<br />
que tinha de lhe falar a sós, e as minhas intenções eram puras, e na inocência<br />
desta alma que tanto lhe quer e que não medita o pecado.<br />
Deve ter compreendido que lhe voto um fervente afeto, e pela sua<br />
parte me parece, (se não me enganam esses olhos que são os faróis da<br />
minha vida, e como a estrela do navegante) que também tu, minha Ameliazinha,<br />
tens inclinação por quem tanto te adora, pois que até outro dia,<br />
quando o Libânio quinou com os seis primeiros números, e que todos fizeram<br />
tanta algazarra, tu apertaste-me a mão por baixo da mesa com tanta<br />
ternura, que até me pareceu que o céu se abria e que eu sentia os anjos<br />
entoarem o hosana! Por que não respondeste pois? Se pensas que o nosso<br />
afeto pode ser desagradável aos nossos anjos da guarda, então te direi<br />
que maior pecado cometes trazendo-me nesta incerteza e tortura , que até<br />
na celebração da missa estou sempre com o pensar em ti, e nem me deixa<br />
elevar a minha alma no divino sacrifício. Se eu visse que este mútuo afeto<br />
era obra do tentador, eu mesmo te diria: oh, minha bem amada filha,<br />
façamos o sacrifício a Jesus, para lhe pagar parte do sangue que derramou<br />
por nós! Mas eu tenho interrogado a minha alma e vejo nela a brancura<br />
dos lírios. E o teu amor também é puro como a tua alma, que um dia<br />
se unirá à minha, entre os coros celestes, na bem-aventurança. Se tu soubesses<br />
como eu te quero, querida Ameliazinha, que até às vezes me pare-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
375<br />
ce que te podia comer aos bocadinhos! Responde pois e dize se não te<br />
parece que poderia arranjar-se a vermo-nos no Morenal, pela tarde. Pois<br />
eu anseio por te exprimir todo o fogo que me abrasa, bem como falar-te<br />
de coisas importantes, e sentir na minha mão a tua que eu desejo que me<br />
guie pelo caminho do amor, até aos êxtases de uma felicidade celestial.<br />
Adeus, anjo feiticeiro, recebe a oferta do coração do teu amante e pai espiritual.<br />
(p. 94-5)<br />
Apelando para a emoção, revestido de um ethos sedutor, Amaro<br />
organiza o pensamento e a linguagem, os quais podem servir à<br />
finalidade de quem discursa para obter, em determinada situação, o<br />
efeito que pretende. A prática persuasiva está a serviço de um partido,<br />
de uma ideologia, de uma verdade. No caso de Amaro, de fato, o<br />
partido de um sedutor inconsequente.<br />
Já em relação à personagem Amélia, encontra-se um traço do<br />
caráter feminino frequente na ficção literária: a ambiguidade, derivada<br />
da dissimulação e da astúcia (cf. EPSTEIN, 1993, p. 107), como<br />
se percebe facilmente no fragmento abaixo:<br />
E Amaro não sabia, quando passeava agitado pelo seu quarto, que<br />
ela em cima o escutava, regulando as palpitações do seu coração pelas<br />
passadas dele, abraçando o travesseiro, toda desfalecida de desejos, dando<br />
beijos no ar, onde se lhe representavam os lábios do pároco.<br />
[...]<br />
Desde domingo vivia atordoada. Sabia bem que a donzela inexperiente<br />
a que aludia o Comunicado era ela, Amélia, e torturava-a o vexame<br />
de ver assim o seu amor publicado no jornal. Depois (como ela pensava,<br />
mordendo o beiço numa raiva muda, com os olhos afogados de lágrimas),<br />
aquilo vinha estragar tudo! Na Praça, na Arcada já se diria com risinhos<br />
perversos: – “Então a Ameliazita da S. Joaneira metida com o pároco<br />
hem?” Decerto o senhor chantre, tão severo em “coisas de mulheres”,<br />
repreenderia o Padre Amaro... E por alguns olhares, alguns apertos<br />
de mão, aí estava a sua reputação estragada, estragado o seu amor!<br />
E Amélia, que ficara branca como a cal, teve imediatamente a certeza<br />
que o pároco, aterrado com o escândalo do jornal, aconselhado pelos<br />
padres timoratos, zelosos “do bom nome do clero” – tratava de se descartar<br />
dela! Mas, cautelosa, diante das amigas da mãe, escondeu o seu desespero;<br />
foi mesmo sentar-se ao piano, e tocou mazurcas tão estrondosas<br />
– que o cônego, tomando a mexer-se na poltrona, grunhiu:<br />
– Menos espalhafato e mais sentimento, rapariga! (p. 73, 104-5)<br />
Assim, a personagem pode forjar comportamentos, inventar<br />
mentiras e dissimular atitudes para fugir às consequências ocasiona-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
376<br />
das pelos seus atos. Mas como ver esta dissimulação? Negativamente,<br />
como traço inferior de caráter ou como estratégia de combate do<br />
mais fraco?<br />
Filha de dona Augusta Caminha (a S. Joaneira), Amélia não<br />
conheceu o pai e foi educada em ambiente clerical, pois sua mãe recebia<br />
frequentes visitas de padres e de outros membros da igreja.<br />
Romântica e sonhadora, pode-se dizer que a personalidade e o caráter<br />
de Amélia são um espelho de sua criação. Ela ama, por assim dizer,<br />
a figura do padre e não o homem.<br />
À luz das reflexões de Garcia (1999, p. 307) é a simples inspeção<br />
(ausência de análise dos fatos ou análise superficial deles) que<br />
nos leva a pronunciamentos motivados por impulsos afetivos, a expressão<br />
de sentimentos e não a juízos pautados pela razão. É exatamente<br />
o que se vê a seguir:<br />
Amélia ficou na sala de jantar até tarde fazendo o rascunho da carta.<br />
Dizia:<br />
SR. JOÃO EDUARDO<br />
A mamã cá me pôs ao fato da conversação que teve consigo. E se a<br />
sua afeição é verdadeira, como creio e me tem dado muitas provas, eu<br />
estou pelo que se decidiu com muita boa vontade, pois conhece os meus<br />
sentimentos. E a respeito de enxoval e papéis, amanhã se falará, pois<br />
que o esperamos para o chá. A mamã está muito contente e eu desejo<br />
que tudo seja para nossa felicidade, como espero há de ser, com a ajuda<br />
de Deus. A mamã recomenda-se e eu sou<br />
A que muito lhe quer<br />
Amélia Caminha.<br />
Apenas fechou a carta, as folhas de papel branco espalhadas diante<br />
dela deram-lhe o desejo de escrever ao Padre Amaro. Mas o quê? Confessar-lhe<br />
o seu amor, com a mesma pena, molhada na mesma tinta, com<br />
que aceitava por marido o outro?... (p. 107).<br />
Pela razão, Amélia sabia que deveria se afastar de Amaro; pela<br />
emoção, não era capaz de resistir a essa ideia. Corrobora-se, então,<br />
como traço do caráter de Amélia a dissimulação.<br />
É possível identificar, facilmente, no discurso empregado por<br />
Amélia, uma modalização do discurso. Esse tipo de estratégia persuasiva<br />
consiste em organizar o discurso de tal modo que ele não sirva<br />
a nenhum outro propósito senão o de também convencer, persuadir o
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
377<br />
ouvinte. E para tanto, foram utilizados a diretividade – o falante diz<br />
claramente ao ouvinte o que fazer – e a assertividade – o falante sequer<br />
aventa possibilidades de dúvidas ou de negativas (GARCIA,<br />
2006, p. 9).<br />
No contexto em que foi empregada, a modalização serviu para<br />
aprazer o João Eduardo que, desconfiado do envolvimento de Amélia<br />
com Amaro, fizera uma crítica anônima ao clero no jornal "A Voz<br />
do Distrito". Esse ato, quando descoberto, faz com que o rapaz perca<br />
o emprego, a noiva, e passe a ser tratado como um excomungado na<br />
cidade de Leiria. Como sabemos, sua situação só não ficou pior porque<br />
começou a trabalhar como educador dos filhos do senhor Morgado,<br />
que também não gostava muito do clero.<br />
João Eduardo – rapaz alto, pele branca e um belo bigode pequeno<br />
muito negro, caído aos cantos, que ele costumava mordicar<br />
com os dentes – é um personagem usado por Eça para denunciar o<br />
jogo de interesses e a politicagem, pois sempre sonhou em conseguir<br />
um emprego melhor por meio de favores de pessoas influentes. Trabalhava<br />
como escrevente no cartório do Nunes e era noivo de Amélia<br />
que, por sua vez, não estava verdadeiramente interessada pelo rapaz.<br />
Lembremos, por fim, que João Eduardo detestava o clero e frequentava<br />
a igreja somente para agradar à Amélia e a sua mãe, o que<br />
vem a confirmar o seu jogo de interesses.<br />
4. Conclusão<br />
Os elementos do discurso retórico e as estratégias de elaboração<br />
da linguagem persuasiva puderam ser facilmente identificados<br />
nos discursos das personagens. Nosso estudo, evidentemente, não<br />
ambicionou esgotar o assunto, mas buscou aplicar parte dessas teorias<br />
em um rico romance, assim como o mesmo pode ser feito em outros<br />
gêneros textuais.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
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Acesso em: 08/12/2009
A SEDUÇÃO DISCURSIVA DA MÚSICA CRÉU<br />
1. Considerações preliminares<br />
Vagner Aparecido de Moura (PUC-SP)<br />
moura_vagner@ig.com.br<br />
A antropologia interpretativa, postula que, no estudo dos valores<br />
culturais de uma determinada sociedade, não cabe mais a busca<br />
de leis universalizantes para o gênero humano, porém uma interpretação<br />
das culturas existentes, a sua compreensibilidade por nós, por<br />
intermédio de sua tradução 1 , em outras palavras, segundo Jordão<br />
(2004, p. 38), “o critério de cientificidade deve residir na estruturação<br />
lógica da pesquisa, na compreensão do fenômeno estudado e não<br />
mais em uma neutralidade e objetividade absolutas do conhecimento”.<br />
Partindo desse pressuposto, fomos impelidos a adentrar no<br />
ambiente escolar e perceber que o cotidiano escolar é movido por valores,<br />
sentimentos, pensamentos, concepções, culturas escolares e<br />
profissionais, onde as culturas sociais guiam os agentes, sujeitos da<br />
prática educativa, já que é o momento da autodescoberta da ação<br />
humana é mais do que a descoberta de explicações causais, teóricas<br />
ou ideológicas. Nesse processo de desnudamento da realidade que<br />
cerca o cotidiano do adolescente, nota-se que a música exerce um<br />
papel fucral no desenvolvimento de um comportamento, das escolhas<br />
lexicais, do vestiário, uma vez que aglutina valores e comportamentos<br />
de um estrato da sociedade, assim criando a sua própria linguagem<br />
e valores culturais para interagir com os interlocutores. Baseado<br />
nessas premissas, este artigo abordará: o histórico da análise<br />
do discurso, formação discursiva – dialogismo e ethos; o conceito de<br />
Música e o histórico do estilo Funk, com o propósito de analisar o<br />
corpus da música Créu – que contagia os adolescentes da periferia de<br />
São Paulo – por meio de um embasamento teórico de Mussalim<br />
(2005), Maigueneau (2004), Bakhtin (1992), Kerbrat-Orecchioni<br />
(1989), Amossy (2005) e Herschmann (2005).<br />
1 Essa concepção nos leva a defesa que postulou Evans-Ptrichard (1950) da antropologia como<br />
tradução para nossa cultura daqueles que são nossos sujeitos de pesquisa.
2. Histórico da análise do discurso<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
381<br />
A língua é analisada na estrutura interna em um sistema fechado,<br />
surgindo assim o estruturalismo. A análise do discurso cresce<br />
estruturada no Marxismo, juntamente com o desenvolvimento e<br />
crescimento da linguística. De acordo com Mussalim (2005), a priori<br />
discurso significa qualquer coisa, pois toda produção de linguagem é<br />
um discurso.<br />
A análise do discurso teve origem na França em 1960, neste<br />
momento, não considera a intenção do sujeito como algo determinante,<br />
porém os estudos pós 1960 demonstram que os sujeitos são<br />
condicionados por uma ideologia, sendo que analisar o discurso nada<br />
mais é que estudar a discursivização. Além disso, a análise do discurso<br />
trabalha com conceitos de formação discursiva, formação ideológica,<br />
heterogeneidade e interdiscurso, quer dizer, que a análise do<br />
discurso é ancorado no Marxismo Althusseriano, na psicanálise lacaniana<br />
e na linguística estrutural. Sendo assim, de acordo com Maigueneau<br />
(2004, p. 21), “a análise do discurso supõe a colocação conjunta<br />
de vários textos, dado que a organização do texto tomado isoladamente<br />
não pode remeter senão a si mesmo (estrutura fechada) ou<br />
à língua (estrutura infinita).”<br />
2.1. Dialogismo<br />
De acordo com Bakhtin (1992) a linguagem é dialógica, uma<br />
vez que a ciência humana possui método e objetos dialógicos, as ideias<br />
sobre o homem e a vida são marcadas pelo dialogismo, por isso<br />
Bakhtin (1992, p. 35 apud BRAIT, 1997, p. 30) ”a vida é dialógica<br />
por natureza”.<br />
2.2. Ethos<br />
O ato de utilizar a palavra leva a construção de uma imagem<br />
de si. Não é preciso que o locutor faça seu autorretrato, simplesmente<br />
o locutor faz em seu discurso uma apresentação de si, efetua-se<br />
com frequência à revelia dos parceiros, nas trocas verbais do cotidiano.<br />
Roland Barthes (1970, p. 315) designa ethos como os traços de<br />
caráter que o orador mostra ao auditório com sinceridade ou não,
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
382<br />
contudo objetiva causar boa impressão. A construção da imagem dos<br />
interlocutores na obra de Michel Pêcheux (1969), onde é feita uma<br />
imagem um do outro, o emissor a faz uma imagem de si mesmo juntamente<br />
com seu interlocutor e de forma recíproca o receptor faz<br />
uma imagem do emissor e de si mesmo. Kerbrat-Orecchioni (1989)<br />
salienta que a imagem que fazem de si mesmos, do outro e aquela<br />
que imaginam que o outro faz deles. Nesse processo marca das competências<br />
não linguísticas dos interlocutores que mostram a situação<br />
que forma o universo discursivo. Dominique Maingueneau (1993, p.<br />
138, apud AMOSSY, 2005, p. 31) salienta que o ethos não é dito<br />
claramente, porém mostrado:<br />
O que o orador pretende ser, ele o dá a entender e mostra: não diz<br />
que é simples ou honesto, mostra-o por sua maneira de se exprimir. O<br />
ethos está, dessa maneira, vinculado ao exercício da palavra, ao papel<br />
que corresponde a seu discurso, e noção ao individuo real, independente<br />
de seu desempenho oratório: é, portanto, o sujeito da enunciação uma<br />
vez que enuncia que está em jogo aqui.<br />
O lugar onde aparece o ethos é o discurso, o logos do orador,<br />
mostra as escolhas feitas. Toda forma de se expressar, resulta da escolha<br />
entre diversas possibilidades linguísticas e estilísticas, Ruth<br />
Amossy lembra que Roland Barthes (1966, p. 212, apud AMOSSY,<br />
2005, p. 70) sublinhou esta característica essencial: “são os traços de<br />
caráter que o orador deve mostrar ao auditório (pouco importando<br />
sua sinceridade) para causar boa impressão. [...] O orador enuncia<br />
uma informação e, ao mesmo tempo, ele diz: eu sou isto, eu sou aquilo".<br />
O ethos está ligado ao ato de enunciação e o público constrói<br />
representações do ethos do enunciador antes que fale.<br />
3. Formação Discursiva<br />
De acordo com Maingueneau (2004, p. 20), “formação discursiva<br />
é um conjunto de enunciados produzidos de acordo com esse<br />
sistema (a superfície discursiva)”. Sendo esse item (superfície discursiva)<br />
definido por Foucault (1995, p. 135, apud MANINGUE-<br />
NEAU, 2004, p. 20) como discurso "um conjunto de enunciados na<br />
medida em que eles decorram da mesma formação discursiva... é<br />
constituído de um número limitado de enunciados para os quais podemos<br />
definir um conjunto de condições de existência”.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
383<br />
Compreende-se que enunciado e formação discursiva estão<br />
intimamente ligados, principalmente das práticas discursivas que<br />
Foucault chama de práticas discursivas e que ele definiu assim:<br />
4. Música<br />
Um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas<br />
no tempo e no espaço, que definiram, em uma dada época e para uma determinada<br />
área econômica, geográfica ou linguística, as condições de exercício<br />
da função enunciativa. (FOUCAULT, 1969, apud PAVEAU &<br />
SARFARI, 2006, p. 207)<br />
A música não expressa uma ideia intelectual definida, tampouco<br />
um sentimento determinado, mas apenas aspectos psicológicos<br />
gerais, abstratos, (SCHNEIDER, 1957), porém essa generalidade<br />
não é uma abstração vazia, mas sim uma espécie de expressão com<br />
objetos divergentes que correspondem ao pensamento conceitual, por<br />
isso a música pode ser compreendida, interpretada e executada de<br />
diversas formas.<br />
Para Richard Wagner (1813/1883), música é a linguagem do<br />
coração humano. O conceito de música diverge de cultura para cultura,<br />
embora a linguagem verbal seja uma forma de comunicar e de<br />
nos relacionarmos.<br />
A música não é universal, já que cada povo possui sua maneira<br />
de expressão por meio da palavra. Então, a música possui uma<br />
linguagem universal, porém com dialetos que variam de cultura para<br />
cultura, envolvendo a maneira de tocar, cantar, organizar os sons e<br />
definir as notas básicas juntamente com seus intervalos. Ela está vinculada<br />
às emoções e ao mundo pré- verbal, tem uma linguagem privilegiada,<br />
já que por intermédio da música os seres humanos se comunicam<br />
e até dialogam com os cosmos, objetivando viajar pelo espaço<br />
com um disco de bronze banhado de ouro, levando o som da<br />
Terra.<br />
Em razão disso, Sagan (1983, p. 287, apud JEANDOT, 2008,<br />
p. 13) postula que “a música delicada de muitas culturas, algumas<br />
delas expressando nossa sensação de solidão cósmica, nosso desejo<br />
de terminar o isolamento, nossa vontade de estabelecer contato com<br />
outros seres no Cosmos”.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
384<br />
No entanto, quando um ser humano toca determinado instrumento,<br />
cria um gesto, por isso controla o som, já que a palavra cantada<br />
amplia, de forma significativa, o vigor da linguagem falada. Enfatiza<br />
Stockhausen (1971, p. apud JEANDOT, 2008, p. 18), dizendo<br />
que a música é<br />
determinada pelos músculos: os da laringe para o canto, os dos dedos para<br />
os instrumentos, os da respiração para os instrumentos de sopro, tudo<br />
é determinado pelo corpo do homem e é por isso que nunca se tocou segundo<br />
ritmos mais rápidos ou mais lentos que os naturais do corpo.<br />
Percebemos assim, que a música não surgiu das reflexões de<br />
Pitágoras, tampouco de estudos das cordas ou das lâminas que vibram;<br />
é simplesmente resultado de extensas e infinitas vivências do<br />
indivíduo com a música e de civilizações musicais diversas. Por conseguinte,<br />
Aguiar (1998) diz que:<br />
5. Estilo Funk<br />
A canção, tal como conhecemos hoje, existe há bastante tempo. Uma<br />
de suas características foi a de ser música produzida no meio popular e<br />
para ele especialmente dirigida.<br />
(...) Contudo, é pela antiga combinação letra & música que a canção<br />
melhor define. Quando pensamos em música popular, logo nos vem à<br />
mente a imagem de um cantor. (...). As palavras da letra servem para fixar<br />
a melodia na memória. Saber cantar as canções é um dos prazeres do<br />
ouvinte, e isto só é possível graças à presença da letra combinada à música.<br />
O termo funk ou funky surgiu na virada da década de 60 para<br />
70, deixando de lado a conotação negativa para tornar-se símbolo de<br />
alegria, de orgulho negro. No mercado o soul marca presença, então,<br />
alguns músicos da época começaram ver o funky apenas como uma<br />
vertente da música negra, capaz de elaborar uma música revolucionária,<br />
direcionada para a minoria étnica, já que os guetos de Nova<br />
York, aparecia um tipo de som com a intenção de transformar o cenário<br />
da música negra.<br />
A origem do funk carioca foi no início dos anos 70, com os<br />
Bailes da pesada promovidos por Big Boy e Ademir Lemos. A equipe<br />
Soul Grand Prix iniciou a nova fase dos ritmos funky no Rio de<br />
Janeiro. O rapper Nelson na década de 80 trouxe o ritmo para a Praça<br />
da Sé, em São Paulo iniciou embasado na música negra norte-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
385<br />
americana, que faziam referência às políticas raciais e culturais, que<br />
eram incompreendidas pelos funkeiros nacionais.<br />
Então foi se nacionalizando e se distanciando do hip-hop, porém<br />
parte de juventude negra que era mais politizada continuou a fidelidade.<br />
Agora, no Rio, o conteúdo, o ritmo, foi traduzido em forma<br />
de música dançante, alegre e não tanto politizada. Já em São Paulo, o<br />
hip-hop foi firmado pelo discurso político que fazia reivindicações<br />
do movimento negro.<br />
Na década de 90, o funk e o hip-hop se popularizavam e nacionalizavam<br />
em São Paulo e no Rio, onde funkeiros e b-boys distanciavam-se,<br />
surgindo uma dicotomia entre alienados e engajados,<br />
não porque o funk produzia uma música alegre, romântica e bemhumorada,<br />
possuía uma visão apolítica – por isso os funkeiros deixaram<br />
de ser bem-vindos nos demais bailes. Na verdade, o funk e o<br />
hip-hop não se iniciaram com os arrastões, mas isso pode ter causado<br />
a popularização. Verificando o contexto sociopolítico geral dos anos<br />
90, percebe-se o clima de pânico que aterrorizou as principais cidades<br />
brasileiras, onde ocorreram arrastões, ou seja, ação conjunto de<br />
jovens, objetivando pegar o que podiam e a mídia acentuou essa sensação<br />
de medo.<br />
Sendo assim, percebe-se que há certo interesse dos jovens pobres<br />
pelo linguajar que apresenta (expressão artística), mas também<br />
como forma de protesto, de afirmações de valores, de significados e<br />
de etnicidades. Na primeira metade dos anos 90, ocorreram inúmeros<br />
noticiários, que chocaram a opinião pública como o assassinato de<br />
menores na Candelária, Chacina de Vigário Geral, arrastões Militares<br />
no Rio de Janeiro, massacre de Carandiru (SP), as invasões e os<br />
massacres dos sem-terra em várias localidades...<br />
Nesse contexto, percebemos a violência na sociedade brasileira,<br />
há indício de uma desordem urbana, na verdade é uma maneira de<br />
expor a insatisfação pela estrutura autoritária e celetista, que gera a<br />
exclusão social, já que, a punição só ocorre para as camadas menos<br />
favorecidas da população, então a violência é uma forma de romper a<br />
ordem social. À medida que o funk foi se destacando na mídia, foi se<br />
identificando como atividade criminosa, uma atividade de gangue,<br />
que teve nos arrastões e na “biografia suspeita” dos que a integram a<br />
“contraprova” que acabam confirmando essa acusação.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
386<br />
Não é apenas a mídia que constituiu arena para o surgimento<br />
de discursos e sentidos divergentes. De acordo com Mikhail Bakhtin<br />
(1987), cada discurso comporta uma polissemia que não é controlada<br />
totalmente pelo sujeito.<br />
Desta forma, o discurso nem sempre é traduzido num projeto<br />
ideológico do produtor. Percebe-se que o discurso que demoniza o<br />
funk é o mesmo que assenta a sua estrutura para o glamour. O funk<br />
parecia seduzir os jovens carentes e da classe média, encontrando o<br />
caminho para o sucesso, dando uma perfeita visão de expectativa e<br />
frustrações. Desenvolvendo assim, seus próprios veículos de divulgação.<br />
Com objetivo de ter imagens normalizadoras a mídia também<br />
possui limitações, mas também há frestas, brechas, onde surge o “outro”,<br />
constituindo um lugar para se perceber as diferenças, denunciando<br />
condições e reivindicar a cidadania, desta forma, nota-se que os<br />
funkeiros constroem seus estilos nas ruas, desenvolvendo trajetórias<br />
e elaborando sentidos e territórios.<br />
Atualmente o funk está muito apelativo, quer dizer, que um<br />
empresário opta por uma dançarina seminua rebolando. Anteriormente<br />
dança-se, faziam-se coreografias criativas, no entanto hoje,<br />
nos bailes há trenzinhos, pulando de um lado para o outro, os jovens<br />
em fila indiana, trazendo a mão sobre o ombro do companheiro da<br />
frente, como marca de solidariedade, segurança, proteção e recolhimento.<br />
Além disso, há uma exibição grupal demonstrando competição<br />
e rivalidade entre os mesmos, o baile possui uma dimensão erótica,<br />
onde ocorrem movimentos corporais que simulam atos sexuais.<br />
Na verdade esse ambiente produzido pelo funk é visivelmente masculino,<br />
mas é claro que a presença feminina é fundamental para descontrair<br />
o baile, objetivando a criar competição entre os rapazes.<br />
As coreografias dos homens são mais expansivas, com movimentos<br />
largos e jogo de pernas e braços metrificados, já as mulheres<br />
apresentam movimentos sinuosos, porém não deixam de uma base<br />
mais mecânica, produzindo movimentos retos. Enquanto os homens<br />
dançam sozinhos ou em grupo, os passos são sincronizados.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
387<br />
Em contrapartida, as mulheres geralmente dançam em duplas ou em<br />
grupos pequenos com movimentos iguais opostos.<br />
O ritual de violência nos bailes funk, os grupos não objetivam<br />
eliminar o inimigo, mas sim, almejam reconhecimento de um lugar,<br />
um território, nesse jogo, almeja a participação, a inclusão compensando<br />
seu cotidiano onde são rejeitados e excluídos. Esses grupos,<br />
oriundos de segmentos populares, transitam na mídia numa espécie<br />
de jogo de espelhos, que ora os associa a imagens de delinquência,<br />
ora os apresenta como uma expressão da cultura popular dos anos<br />
90.<br />
Percebemos então, que o funk tem impressionado muito pela<br />
força que possui, e a capacidade de permanecer presente, de se disseminar<br />
pelas localidades. O funk é considerado perigoso porque traduz<br />
uma conduta inconsequente, que glorifica a delinquência.<br />
O estilo de vida desses jovens, quer dizer, os produtos culturais,<br />
gostos, opções de entretenimento, dança, roupas tem como principio<br />
estético “pegue e misture”. Em outras palavras é uma maneira<br />
de chantagear as estruturas de dominação, por isso, elaboram valores,<br />
sentidos, identidade e afirmam localismos, e ainda se integram<br />
cada vez mais no mundo globalizado. Contudo, os funkeiros não sabem<br />
explicar ao certo como as coreografias se consagraram, uma vez<br />
que é um processo de criação natural, espontâneo. Ressaltam que algumas<br />
músicas são elaboradas a partir de uma dança, já outras vezes,<br />
a letra da música sugere construção de passos de dança e novas brincadeiras.<br />
E quando estão distantes de seu território de origem (favelas e<br />
bairros pobres) sentem-se mais frágeis, porém mais engajados em lutar<br />
por um lugar, um reconhecimento. É claro que isso não ocorre<br />
somente pela dança e certas práticas sociais, já que a música está<br />
presente nos momentos de lazer, formando assim o lócus público,<br />
podemos assim afirmar e intervir de forma crítica no espaço público,<br />
mostrando um discurso próprio das favelas e subúrbios para toda a<br />
cidade.<br />
Tendo como base o arcabouço teórico discutido nos itens anteriores:<br />
dialogismo, ethos, música e o estilo funk. Pretende-se, no<br />
próximo item, analisar o corpus da música "Créu".
Análise do Corpus<br />
É créu é creu neles é créu nelas.<br />
Bora que vamos, bora que vamos.<br />
Pra dançar créu tem que ter disposição<br />
Pra dançar créu tem que ter habilidade<br />
Pois essa dança ela não é mole não<br />
Eu venho te lembrar são cinco velocidade<br />
A primeira é devagarzinho,<br />
É só aprendizado hein<br />
É assim o...<br />
Creeeuuu, creeuuu, creeeuuu.<br />
Se ligou... de novo...<br />
Creeeuuu, creeeuuu, creeeuuu<br />
Número dois:<br />
Creeuu, creeuu, creeuu, creeuu, creeuu,<br />
creeuu, continua…<br />
Fácil né… de novo<br />
Creeuu, creeuu, creeuu,<br />
creeuu, creeuu,<br />
creeuu<br />
Número três:<br />
Creuu, creuu, creeuu, creeuu, creeuu, creeuu,<br />
creeuu, creeuu, creeuu,<br />
creuu, creeuu, creeuu, tá ficando difícil hein…<br />
creeuu, creeuu<br />
, creeuu, creeuu, creeuu, creeuu, creeuu, creeuu<br />
creeuu, creeuu, creeuu…<br />
Agora eu quero ver na quatro hein<br />
Creu, tá aumentando mané<br />
Créu, créu, créu, créu<br />
Créu, créu, créu, creu, créu, créu, créu, créu<br />
Créu, créu ...<br />
Segura, dj vou confessar a vocês<br />
Que eu não consigo a número cinco hein, dj<br />
Número cinco hein, dj<br />
velocidade cinco na dança do creeuu...<br />
créu, créu, créu, créu, créu, créu, créu, créu,<br />
créu, créu, créu,<br />
créu, créu, créu, créu, créu, créu, créu, créu,<br />
créu créu créu,<br />
créu, créu, créu, créu, créu, créu, créu, créu,<br />
créu, créu, créu,<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
388
créu, creu, créu, créu, créu, créu, créu, créu<br />
créu, créu, créu,<br />
créu, créu, créu, créu, créu, créu, créu, créu,<br />
créu, créu, créu,<br />
créu...<br />
hahahahaha...<br />
créu, créu, créu, créu, creu, créu, créu, créu,<br />
créu, créu, créu,<br />
créu, créu, créu, créu, créu, créu, créu, créu,<br />
créu, créu, créu,<br />
créu, créu, créu, créu, créu, créu, créu, créu<br />
créu créu créu<br />
créu, créu, créu, créu, créu, créu, créu, créu<br />
créu, créu, créu<br />
créu, créu, créu, créu, créu, créu, créu, créu<br />
créu, créu, créu<br />
créu...<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
389<br />
A música inicia-se com um diálogo entre um enunciador que<br />
é o cantor, que faz uma convocação ao enunciatário que são os jovens<br />
funkeiros. Lembrando que segundo Bakhtin (1929/1988) considera<br />
que a língua é formada pelo fenômeno social da interação verbal,<br />
uma vez que o ser humano é inconcebível distante das relações<br />
que o ligam ao outro.<br />
Esses jovens formam a base da sociedade que almejam diversão<br />
e reconhecimento, já que vivem numa sociedade injusta, e a<br />
grande massa humana vive em condições miseráveis, em morros e<br />
favelas, já que a política é essencialmente concentrada na renda, sendo<br />
que a topografia e a cronografia dessa cenografia é um baile, num<br />
centro urbano, cujo estilo de vida desses jovens é similar, visto que<br />
conota uma forma de autoexpressão, envolvendo o corpo, as roupas,<br />
o discurso, os entretenimentos de lazer. Engloba a produção cultural<br />
do grupo, formando assim, o ethos dos funkeiros, salientando que os<br />
mesmos constroem seu estilo nas ruas, em especial nas de terra batida,<br />
nas praias e principalmente nos bailes, desenvolvem trajetórias,<br />
elaboram-se sentidos e territórios. A noção de ethos retomada por<br />
Oswald Ducrot (1984, p. 193, apud AMOSSY, 2005, p. 121) assevera:<br />
Em minha terminologia, diria que o ethos é ligado a L, o locutor enquanto<br />
tal: é como fonte da enunciação que ele se vê dotado de certos caracteres<br />
que, em consequência, tornam essa enunciação aceitável ou recusável.<br />
O que o orador poderia dele dizer, como objeto da enunciação,
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
390<br />
concerne, em contrapartida [...], ao ser do mundo, e não é este que está<br />
em questão na parte da retórica de que falo.<br />
Quando o enunciador diz...<br />
É créu é creu neles é créu nelas.<br />
Bora que vamos, bora que vamos.<br />
Há uma imbricação por parte do enunciador (cantor) direcionando<br />
ao enunciatário (plateia), neste momento ocorre uma espécie<br />
de ritual social da linguagem implícito, que é compartilhado pelos<br />
interlocutores. Quanto ao léxico créu, cujo significado contextual obtém<br />
possivelmente a seguinte definição: onomatopeia de conotação<br />
sexual, que supostamente corresponde ao som ou ruído no momento<br />
da conjunção carnal, que simula um movimento.<br />
Seguindo a música com o léxico "bora”, que é um mecanismo<br />
de interação com o locutor, que gramaticalmente de acordo com Celso<br />
Cunha (2007, p. 83/105) é uma palavra cuja composição é formada<br />
por aglutinação, (em+boa+hora), resultando embora. O autor<br />
pondera que:<br />
Chama-se formação de palavras o conjunto de processos morfossintáticos<br />
que permitem a criação de unidades novas com base em morfemas<br />
lexicais. Utilizam – se assim, para formar as palavras, os afixos de<br />
derivação ou os procedimentos de composição, que consiste em formar<br />
uma nova palavra pela união de dois ou mais radicais.<br />
Sendo assim, no discurso houve um apagamento do prefixo<br />
“em”, restando apenas "bora”. Esse enunciador manifesta seu discurso,<br />
fazendo um convite persuasivo ao enunciatário, que de acordo<br />
com, Maingueneau (2007, p. 17, apud BRUNELLI, 2008, p. 11) “...é<br />
um sistema de regras que define a especificidade de enunciação”.<br />
Percebe-se que existe um comportamento intencional por parte do<br />
enunciador em liderar a plateia, há um jogo que é constituído pelos<br />
atos de fala, os quais demonstram convenções que regulam as relações<br />
entre sujeitos, dando a cada elemento um estatuto na atividade<br />
da linguagem, sendo assim, acaba ocorrendo um contrato, que de acordo<br />
com Charaudeau (1983, p. 50, apud MAINGUENEAU, 1997,<br />
p. 30)<br />
... pressupõe que os indivíduos pertencentes a um mesmo corpo de práticas<br />
sociais sejam capazes de entrar em acordo a propósito das representações<br />
de linguagem destas práticas. Consequentemente, o sujeito que se<br />
comunica sempre poderá, com certa razão, atribuir ao outro (o não – EU)
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
391<br />
uma competência de linguagem análoga à sua que o habilite ao reconhecimento.<br />
O ato da fala transforma-se então, em uma proposição que o EU<br />
dirige ao TU e para a qual aguarda uma contrapartida de conivência.<br />
Levando isso em consideração, um sujeito ao enunciar demonstra<br />
um ritual social da linguagem implícito, que naturalmente é<br />
partilhado pelos interlocutores. Na verdade os atos da fala fornecem<br />
credibilidade às enunciações do cantor que afirma o seguinte:<br />
Pra dançar créu tem que ter disposição<br />
Pra dançar créu tem que ter habilidade<br />
Pois essa dança ela não é mole não<br />
Eu venho te lembrar são cinco velocidades<br />
A subjetividade enunciativa constitui o sujeito (cantor) e o<br />
assujeita, segundo Maingueneau (1997) dando-lhe autoridade, é claro<br />
que a encenação (sequência musical) não é uma máscara do real,<br />
já que este real é investido pelo discurso do enunciador quando diz: é<br />
necessário ter “disposição”,“habilidade”, já que “não é mole não”.<br />
Ocorre a, heterogeneidade constitutiva, visto que procura explicitar<br />
ao outro (plateia) por meio do discurso, salientando essas hipóteses.<br />
Depois, há um reconhecimento por parte da plateia, que aceita e vibra<br />
com o enunciado do cantor, devido a autoridade que possui no<br />
discurso relatado. Isso ocorre devido à formação discursiva, a qual<br />
está escrita o enunciador pelo seu caráter, que de acordo com Maingueneau<br />
(1997, p. 47) “corresponde a este conjunto de traços psicológicos<br />
que o leitor-ouvinte atribui espontaneamente à figura do enunciador<br />
em função de seu modo de dizer”. Salienta Foucault<br />
(1995), que esse sujeito traz e por isso demonstra suas experiências.<br />
O enunciador ao afirmar isso, utiliza um tom, alegre, e variado,<br />
já que assevera Bakhtin (1992, p. 396, apud BRAIT, 1997, p.<br />
33) “o tom não é determinado pelo material do conteúdo do enunciado<br />
ou pela vivência do locutor, mas pela atitude do locutor para com<br />
a pessoa do interlocutor (a atitude para com sua posição social, para<br />
com sua importância...)”. Por isso, a plateia espontaneamente compreendeu<br />
que o cantor tinha o objetivo de salientar o erotismo, já que<br />
o funk assume a condição de invenção e potencializa essa tradição do<br />
pegue e misture, por isso Herchmann (2005, p. 214) esclarece que:<br />
O estilo de vida e as práticas sociais dos grupos revelam um tipo de<br />
consumo e de produção que os desterritorializa e reterritorializa. A partir<br />
do funk esses jovens elaboram valores, sentidos, identidades e afirmam<br />
localismos, ao mesmo tempo em que se integram em um mundo cada
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
392<br />
vez mais globalizado. Ao construir seu mundo a partir do improviso, da<br />
montagem de elementos provenientes também de uma cultura transnacionalizada,<br />
em cima daquilo que está em evidência naquele momento,<br />
esses jovens, se não ressituam sua comunidade, amigos e a si mesmos no<br />
mundo, pelo menos denunciam a condição de excluídos da estrutura social.<br />
Percebe-se, que há certo convencimento por parte da plateia,<br />
ocorrendo assim, a eficácia discursiva advinda desse jogo de vozes.<br />
Primeiramente o cantor lembra, depois afirma que são cinco velocidades:<br />
A primeira é devagarzinho,<br />
É só aprendizado hein<br />
É assim o...<br />
Creeeuuu, creeuuu, creeeuuu<br />
Se ligou... de novo...<br />
Creeeuuu, creeeuuu, creeeuuu<br />
Nessa enunciação, ocorre uma ordem por parte do enunciador,<br />
que espera uma atitude responsiva da plateia. A formação discursiva<br />
fornece certa corporalidade ao enunciador, e essa corporalidade<br />
que de acordo com Maingueneau, (1997) possibilita aos sujeitos<br />
a incorporação de esquemas, que definem a maneira específica de<br />
praticar o ato, incorporando assim, uma dimensão erótica, realizando<br />
movimentos corporais, visto que, de acordo com Maingueneau,<br />
(1997, p. 40) “a formação discursiva na qual inscreve, o enunciador<br />
poderá jogar com estas coerções, ou pelo menos, realizar escolhas<br />
significativas entre as múltiplas possibilidades que se lhe oferecem”.<br />
Na sequência musical, ocorre a repetição das vogais (e/u) na<br />
palavra créu, conforme um eco, almejando indicar a intensidade do<br />
ato, pois procura mostrar o prolongamento gestual, seguindo assim a<br />
enumeração:<br />
Número dois:<br />
Creeuu, creeuu, creeuu, creeuu, creeuu,<br />
creeuu, continua…<br />
Fácil né… de novo<br />
Creeuu, creeuu, creeuu,<br />
creeuu, creeuu,<br />
creeuu<br />
No baile provavelmente é tudo pura emoção. Há meninos e<br />
meninas de todos os estilos, circulam intensamente, ocorrendo uma<br />
grande proximidade de corpos. As meninas geralmente trajam shor-
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393<br />
tinhos e saias curtíssimas, (algumas jovens um pouco mais velhas,<br />
vestem calças jeans, de moletom ou lycra) acompanhados de um top.<br />
Já os meninos, boné, bermudão, blusão, calça jeans ou moletom e<br />
camisa de malha, às vezes com mangas rasgadas. Baseado nesses fatos,<br />
Hermano Vianna (1997, apud HERSCHMANN, 2005, p. 25)<br />
ressalta que: “tudo podia ser funky: uma roupa, um bairro da cidade,<br />
o jeito de andar e uma forma de tocar música que ficou conhecida<br />
como funk”. Quanto às coreografias dos homens são mais expansivas,<br />
com movimentos largos e jogos de pernas e braços metrificados,<br />
já as mulheres apresentam movimentos sinuosos, porém retos. Vejamos<br />
a próxima enuneração:<br />
Número três:<br />
Creuu, creuu, creeuu, creeuu, creeuu, creeuu,<br />
creeuu, creeuu, creeuu,<br />
creuu, creeuu, creeuu, tá ficando difícil hein…<br />
creeuu, creeuu,<br />
reeuu, creeuu, creeuu, creeuu, creeuu, creeuu<br />
creeuu, creeuu, creeuu…<br />
O enunciador determina uma atividade, um movimento, uma<br />
ação e exige da plateia uma atividade responsiva, demonstrando assim,<br />
a heterogeneidade mostrada, que é uma tentativa do sujeito, o<br />
qual é representado pelo (cantor), pois procura explicitar a presença<br />
do outro, harmonizando essa presença, a qual aparece na música.<br />
Lembrando que pertencer ao mesmo grupo, obriga a acreditar no<br />
discurso, uma vez que a enunciação não é uma cena ilusória, onde se<br />
diz algo que é elaborado em outro lugar, mas sim, um dispositivo da<br />
construção do sentido e dos sujeitos que se reconhecessem na música.<br />
Na verdade, o sujeito é clivado (LACAN, 1998), já que não<br />
decide sobre os sentidos do discurso e suas possibilidades enunciativas,<br />
porém ocupa um lugar na sociedade, onde simplesmente enuncia<br />
com fundamentos ideológicos. Por isso Althusser (1970, apud<br />
MUSAALIM, 2005, p. 110) assevera que:<br />
A ideologia é bem um sistema de representações. Mas estas representações<br />
não tem, na maior parte do tempo, nada a ver com a consciên-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
394<br />
cia, elas são na maior parte das vezes imagens, às vezes conceitos, mas<br />
se impõem a maioria dos homens, sem passar por suas consciências.<br />
Dessa forma, o sentido desse discurso é demarcado e preestabelecido<br />
pela identidade de cada um: o cantor e a plateia, nesse espaço<br />
interdiscursivo. O sentido da música vai se construindo, à medida<br />
que o discurso foi se formando, logicamente que embasado na formação<br />
ideológica que de acordo com Maingueneau (2008, p. 206):<br />
A enunciação, ao se desenvolver, esforça-se por instituir progressivamente<br />
seu próprio dispositivo de fala. Ela implica, portanto, um processo<br />
de enlaçamento paradoxal (...). Assim a, a cenografia é ao mesmo<br />
tempo, origem e produto do discurso; ela legitima um enunciado que, retroativamente,<br />
deve legitimá-la e fazer com que essa cenografia da qual<br />
se origina a palavra seja precisamente a cenografia requerida por tal discurso.<br />
Na sequência musical temos:<br />
Agora eu quero ver na quatro hein<br />
Creu, tá aumentando mané<br />
Créu, créu, créu, créu<br />
Créu, créu, créu, creu, créu, créu, créu, créu<br />
Créu, créu ...<br />
Aqui, a dêixis coordena o espaço–temporal, articulando o eu e<br />
tu/aqui e agora. Onde o locutor discursivo do público, a topografia<br />
(aqui – no baile) e a cronografia (agora). Que de acordo com Maingueneau<br />
(1997, p. 41)<br />
A dêixis define as coordenadas espaço-temporais implicadas em um<br />
ato de enunciação (...) possui a mesma função, mas manifesta-se em um<br />
nível diferente: o do universo de sentido que uma formação discursiva<br />
constrói através de sua enunciação (...) distinguir-se-á nesta dêixis o locutor<br />
e o destinatário discursivos, a cronografia e a topografia.<br />
O sujeito constrói a cenografia de sua autoridade enunciativa.<br />
Por isso, Maingueneau (2008, p. 205) ressalta que “O discurso impõe<br />
sua cenografia, de algum modo, desde o início; mas, por outro lado,<br />
é por intermédio de sua própria enunciação que ele poderá legitimar<br />
a cenografia que impõe”.<br />
Em uma cenografia, associam-se a figura do enunciador e figuras<br />
correlatas de coenunciadores. Esses lugares supõem igualmente<br />
uma cronografia (um momento) e uma topografia (um lugar) das<br />
quais o discurso pretende originar-se (a cronografia e a topografia<br />
não são tempos cronológicos nem espaços geográficos, mas tempos e
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395<br />
espaços ideológicos, históricos: a favela, a cidade, a civilização, a<br />
globalização).<br />
Baseando-se nisso, o enunciador determina para si e para o<br />
destinatário uma enunciação legítima, neste momento aparece no enunciado<br />
(música) uma terceira pessoa, a qual o sujeito (cantor) dirige-se<br />
ao público interpelando como mané, que, de acordo com o<br />
verbete do minidicionário Aurélio (2000, p. 443) significa indivíduo<br />
inepto, desleixado, tolo e bobo. Na progressão musical, impele ao dj<br />
que não prossiga, porque demonstra insegurança quando diz:<br />
Segura, dj vou confessar a vocês<br />
Que eu não consigo a número cinco hein, dj<br />
Número cinco hein, dj<br />
velocidade cinco na dança do creeuu...<br />
créu, créu, créu, créu, creu, créu, creu, créu,<br />
créu, creu, creu,<br />
créu, creu, créu, creu, creu, créu, creu, créu,<br />
créu créu creu,<br />
créu, créu, creu, creu, creu, creu, creu, créu,<br />
créu, crêu, créu,<br />
créu, creu, créu, créu, créu, créu, creu, créu<br />
creu, créu, créu,<br />
créu, créu, créu, créu, créu, créu, creu, creu,<br />
créu, creu, créu,<br />
créu...<br />
hahahahaha...<br />
créu, creu, creu, créu, creu, créu, créu, creu,<br />
créu, creu, creu,<br />
créu, créu, créu, créu, créu, creu, créu, créu,<br />
créu, créu, créu,<br />
creu, créu, créu, créu, creu, creu, créu, créu<br />
créu créu créu<br />
créu, creu, créu, créu, créu, creu, créu, créu<br />
creu, creu, créu<br />
créu, créu, créu, creu, créu, créu, créu, créu<br />
créu, créu, créu<br />
créu...<br />
Lembrando que de acordo com Herschmann (2005, p. 287)<br />
“dj é discotecário, é quem comanda o som e, por conseguinte, o baile.”.<br />
O cantor (enunciador) dirige-se ao público (plateia) por meio de<br />
seu discurso, salientando a pressuposição, que não vai conseguir realizar<br />
a número cinco, demonstrando assim, uma refutação proposicional.<br />
Sendo que a velocidade da dança poderá atingir o ápice, que<br />
dizer, o êxtase. Por isso, assevera Kerbrat-Orecchioni (1978, p. 56,
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
396<br />
apud POSSENTI, 2008, p. 79) que “toda asserção é assumida, explícita<br />
ou implicitamente por um sujeito enunciador e é para este sujeito,<br />
em primeiro lugar que ela é verdadeira”.<br />
No entanto, para expressar toda a velocidade e êxtase nesta<br />
cena, o cantor pronuncia ininterruptamente a palavra créu, totalizando,<br />
113 vezes, pronunciada num tom de autoridade e satisfação,<br />
transparecendo assim, a heterogeneidade mostrada, que de acordo<br />
com Authier-Revuz, (1982, apud MUSSALIM, 2005, p. 134) “é uma<br />
tentativa do sujeito de explicitar a presença do outro no fio discursivo,<br />
numa tentativa de harmonizar as diferentes vozes que atravessam<br />
o seu discurso, numa busca pela unidade, mesmo que ilusória”.<br />
6. Considerações finais<br />
Dado o exposto, podemos perceber que a Análise do Discurso<br />
com fulcro nos critérios da linha francesa, estuda as produções verbais<br />
baseadas nas condições sociais de produção, sendo essas consideradas<br />
integrantes na significação e modo de formação dos discursos.<br />
Por isso nos remetemos ao dialogismo, que origina da interação<br />
verbal estabelecida entre o enunciador e o enunciatário, aparecendo a<br />
relação eu-tu, que nos conduz para o subjetivismo, conclui-se ocorrer<br />
um deslocamento do conceito de sujeito, o qual perde o papel principal,<br />
sendo substituído por divergentes vozes sociais que fazem dele<br />
um sujeito histórico e ideológico.<br />
Esse sujeito contribui para a formação do ethos, que está ligado<br />
ao estatuto do locutor e à questão de sua legitimidade, quer dizer,<br />
ao processo de legitimação pela fala, sendo que ato de utilizar a palavra<br />
leva a construção de uma imagem de si, pois o locutor faz em<br />
seu discurso uma apresentação de si.<br />
Partindo dessa premissa, percebemos a construção do ethos<br />
do enunciador na música analisada (Créu), juntamente com o enunciatário<br />
que é o fiador, embasado na ampliação do nosso conhecimento<br />
de mundo sobre o estilo funk que simplesmente invadiu a cena<br />
cultural no Brasil, seduzindo o jovem em paulistano por possuir um<br />
ritmo sincopado, que é levado por guitarras, um baixo denso, a presença<br />
marcada por metais e percussão, um rítmica forte devido às batidas<br />
mais vigorosa e dançante, e, por conseguinte, é acompanhado
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
397<br />
por modernas melodias. Devido a isso tem se consolidado como expressão<br />
artística, mas também como meio de protesto, de afirmação<br />
de valores, significados e etnicidades.<br />
Sendo assim, pode-se depreender que a sociedade atualmente<br />
possui diversas etnias e valores culturais, por isso cabe ao analista do<br />
discurso recuperar as formas de materialização, mostrando os efeitos<br />
de sentido, fazendo os recortes e analisando os planos de forma global.<br />
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
AGUIAR J. A poesia da canção. [s/l.]: Seccione. 1998,<br />
AMOSSY, R. (Org.). Imagens de si no discurso: a construção do ethos.<br />
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3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2007.<br />
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1974.<br />
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ed. 85, março de 2003.<br />
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2004.<br />
FERREIRA, A. B. H. Miniaurélio século XXI escolar: O minidicionário<br />
da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.<br />
HERSCHMANN, M. O funk e o hip-hop invadem a cena. 2. ed. Rio<br />
de Janeiro: UFRJ, 2005.
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futuro imediato. Porto Alegre: Artmed, 2000.<br />
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1999.<br />
JORDÃO, P. A antropologia pós-moderna: Uma nova concepção da<br />
etnografia e seus sujeitos. Disponível em:<br />
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Acesso em: 04/12/2009.<br />
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2007.<br />
MUSSALIM, F. & BENTES, A. C. (Orgs.). Introdução à linguística:<br />
domínios e fronteiras. São Paulo: Cortez, 2005.<br />
PAVEAU, M.-A. & SARFATI, G.- É. As grandes teorias da linguística.<br />
São Carlos: Claraluz, 2006.<br />
POSSENTI, S. Um dispositivo teórico e metodológico. In: POS-<br />
SENTI, S e BARONAS, R. L. (Orgs.). Contribuições de Domenique<br />
Maingueneau para análise do discurso do Brasil. São Carlos: Pedro<br />
& João, 2008, p. 201-212.<br />
POSSENTI S. Novas tendências, cenas da enunciação. São Carlos:<br />
Pedro & João, 2008.<br />
POSSENTI, S. & BARONAS, R. L. (Orgs.). Contribuições de Domenique<br />
Maingueneau para a análise do discurso do Brasil. São<br />
Carlos: Pedro & João, 2008.<br />
ZUBEN P. Música e tecnologia: O som e seus novos instrumentos.<br />
[s/l.]: Editores-Brasil, Irmãos Vitale, 2004.
A SELEÇÃO LEXICAL<br />
COMO ESTRATÉGIA ARGUMENTATIVA<br />
NOS TEXTOS PUBLICITÁRIOS<br />
1. Considerações iniciais<br />
Marcia de Oliveira Gomes (UERJ)<br />
marcya79@hotmail.com<br />
Catar feijão se limita com escrever:<br />
Jogam-se os grãos na água do alguidar<br />
E as palavras na da folha de papel;<br />
e depois, joga-se fora o que boiar.<br />
(MELO NETO, 1995, p. 346).<br />
Catar palavras, ajustar-lhes o sentido ou criar outras, não é<br />
exclusividade literária. Tal labor integra em maior ou menor grau todo<br />
ato de comunicação, pois, cada vocábulo possui uma carga semântica,<br />
marcada por seu significado ou uso social. Desse modo, por<br />
exemplo, se ao discutir soluções para uma dificuldade, um chefe a<br />
trata como um problema, traz com ela semas (traços distintivos semânticos),<br />
como difícil e trabalhoso; já um desafio implica disputa,<br />
coragem, ousadia. Logo, a segunda alternativa torna a questão mais<br />
atrativa e motivadora para seus funcionários.<br />
Em textos argumentativos, tal escolha pode ser crucial para o<br />
sucesso do projeto de comunicação, sendo diretamente responsável<br />
pela persuasão do alvo. Assim, este artigo objetiva analisar a seleção<br />
lexical no texto publicitário, que, visando informar, convencer e seduzir<br />
o consumidor, serve-se ricamente desse recurso como alicerce<br />
de sua argumentação.<br />
2. Análise dos textos publicitários<br />
Convencer pela palavra requer estratégias que podem ir do<br />
prazer estético do texto, capaz de seduzir o interlocutor, ao apelo à<br />
razão, na defesa de uma tese, característica do discurso argumentati-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
400<br />
vo. Tais elementos embora distintos não são excludentes. Os mecanismos<br />
de sedução serão argumentativos:<br />
Se ficarem periféricas, como apoio ilustrativo de um argumento, mas<br />
sairão do quadro argumentativo se o apelo aos sentimentos tomar o lugar<br />
de argumento e constituir o único meio de transporte da opinião. (BRE-<br />
TON, 1999, p. 50)<br />
O texto publicitário se vale, sobretudo, desses dois expedientes<br />
para vender suas ideias, criando uma imagem ideal do consumidor,<br />
na qual se baseia seu projeto de comunicação. E quanto mais abrangente<br />
o público-alvo, mais comum deve ser o vocabulário empregado<br />
para que a mensagem esteja ao alcance de todos. O que torna<br />
o texto criativo e marcante é o uso de recursos linguísticoexpressivos.<br />
No tocante à seleção lexical, eles se estabelecem a partir de<br />
oposições, jogos de palavras, metáforas, campos associativos etc.<br />
Observemos como esses elementos contribuem para a argumentação,<br />
nos exemplos que seguem.<br />
Exemplo 1:<br />
(Veja Rio, 22 jul. 2009)<br />
Nesse texto, chama a atenção o slogan: “É devassa. Mas cozinha<br />
como uma vovó”, que joga com o par contrastante devassa/ vovó.<br />
O primeiro vocábulo além de se referir à marca da cervejaria De-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
401<br />
vassa, também tem um apelo sexual, remetendo à imagem de libertinagem<br />
e ousadia. Já o segundo tem como representações a idade avançada,<br />
respeito e tradição. Essa combinação inusitada é a razão do<br />
impacto e da expressividade da mensagem.<br />
O uso da conjunção adversativa reforça a oposição, introduzindo<br />
o argumento mais forte no enunciado; “cozinha como uma vovó”.<br />
Assim, a orientação argumentativa, ou seja, o sentido para o<br />
qual o enunciado conduz (cf. DUCROT, 1987), é para a qualidade da<br />
comida do estabelecimento.<br />
Exemplo 2:<br />
(Veja Rio, 28 nov. 2007)
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
402<br />
O anúncio dos produtos “Casino” mescla palavras e expressões<br />
francesas com o texto em português, evocando a cultura francesa,<br />
origem da marca em questão. O uso de estrangeirismos, nesse caso,<br />
é bastante expressivo, conferindo autenticidade e exotismo à<br />
mensagem.<br />
Cabe ressaltar que, apesar de o texto contar com alguns galicismos,<br />
como chef e carte, a maioria dos estrangeirismos não é de<br />
uso comum no Brasil, restringindo-se, assim, o público-alvo.<br />
Exemplo 3:<br />
(Veja, 28 jul. 2010)
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
403<br />
O texto brinca com o sentido polissêmico das palavras branco<br />
e preto. Lembrando ser a polissemia, conforme Bechara, “um conjunto<br />
de significados, cada um unitário, relacionados com uma mesma<br />
forma”. (BECHARA, 2001, p. 402).<br />
Desse modo, o anúncio propicia duas leituras. Quando tais<br />
palavras se referem a cores, sua mescla resulta em uma outra cor:<br />
cinza. Se entendermos, entretanto, que branco e preto remetem a<br />
pessoas de grupos étnicos distintos, a união tem cunho cultural, tornando-se,<br />
portanto, mais atrativa.<br />
O adjetivo “interessante”, por sua vez, orienta argumentativamente<br />
o texto para a tese de que devemos assistir ao programa.<br />
Exemplo 4:<br />
(Veja Rio, 21 abr. 2010)<br />
A publicidade do Rei do Mate trabalha com o campo associativo<br />
de realeza: rei, monarquia e bobo da corte. Vale-se, desse modo,<br />
do conhecimento compartilhado pelo leitor para comprovar seu argumento<br />
“Toda monarquia tem um bobo da corte”. Segundo Bally:<br />
O campo associativo é um halo que circunda o signo e cujas franjas<br />
exteriores se confundem com o ambiente... A palavra boi faz pensar: 1)<br />
em “vaca, touro, vitelo, chifres, ruminar, mugir” etc.; 2) em “lavoura,<br />
charrua, jugo”, etc.; finalmente 3) pode evocar, e evoca em francês, ideias<br />
de força, de resistência, de trabalho paciente, mas também de lentidão,<br />
de peso, de passividade. (BALLY 1940 apud ULLMANN, 1977, p. 500).
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
404<br />
Outrossim, ao colocar a concorrência no papel de bobo da<br />
corte, visa a ridicularizá-la, aludindo à figura bizarra e zombeteira<br />
encarnada por esses bufões, responsáveis por divertir o rei e sua corte<br />
na Idade Média.<br />
Exemplo 5:<br />
(Veja Rio, 28 jul. 2010)
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
405<br />
A mensagem do restaurante Beluga alude à frase bíblica “A<br />
carne é fraca”, que, originalmente, significa que, a qualquer momento,<br />
pode-se cair em tentação. Entretanto, o significado se modifica<br />
diante do referente, pois, em se tratando de um restaurante, e carne<br />
deixa de remeter a corpo, em oposição a espírito, para se referir ao<br />
alimento servido no restaurante.<br />
Assim, a forma fixa que serve de argumento para que se frequente<br />
o restaurante é reformulada através da negação e do uso polissêmico<br />
da palavra “carne”. Segundo Carvalho:<br />
Na íntegra ou modificados, esses jogos de palavras facilitam a comunicação,<br />
estabelecendo uma certa familiaridade com o leitor, além de<br />
incorporar o elemento surpresa na fórmula fixa. (CARVALHO, 2010, p. 84)<br />
Exemplo 6:<br />
(O Globo, 13 jun. 2010)
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
406<br />
Esse anúncio faz parte de uma série da campanha da rede<br />
Hortifruti, que tem como carro-chefe a intertextualidade com músicas<br />
de sucesso. Nesse caso, a relação se dá com um trecho da música<br />
“óculos”, de Herbert Viana.<br />
O trocadilho “óculos/ brócolis” é possível pela semelhança<br />
fonética, colocando, como prometido pelo slogan, a natureza na posição<br />
de estrela. Segundo Maingueneau:<br />
O slogan está associado sobretudo à sugestão e se destina, acima de<br />
tudo, a fixar na memória dos consumidores potenciais a associação entre<br />
uma marca e um argumento persuasivo para a compra. (MAINGUENE-<br />
AU, 2002, p.171)<br />
Assim, o slogan “Aqui a natureza é uma estrela” funciona<br />
como argumento para que se adquira produtos da rede, mostrando<br />
que a natureza, metáfora para produtos, é valorizada e bem cuidada,<br />
o que garantiria a sua qualidade.<br />
Complementa o texto, o convite “Entre no ritmo do Hortifruti”,<br />
que, ainda explorando o campo associativo de música, convoca,<br />
de forma mais direta, o consumidor para as compras.<br />
3. Considerações finais<br />
Clara ou misteriosa, simples ou rebuscada, vernácula ou estrangeira,<br />
única ou com múltiplos sentidos. Cada palavra possui uma<br />
carga semântica, que pode ser atenuada ou salientada em seu emprego,<br />
produzindo efeitos expressivos que, quando apreendidos pelo interlocutor,<br />
são capazes de suscitar nele as emoções e julgamentos<br />
pretendidos por quem os produz.<br />
Desse modo, a seleção lexical mostra-se extremamente relevante<br />
na argumentação de textos publicitários, à medida que, bem<br />
executada, pode agir sobre o consumidor, influenciando a formação<br />
de sua opinião acerca do produto divulgado.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
407<br />
BECHARA, Evanildo. Moderna gramática portuguesa. Rio de Janeiro:<br />
Lucerna, 2001.<br />
BRETON, Philippe. A argumentação na comunicação. São Paulo:<br />
EDUSC, 1999.<br />
CARVALHO, Nelly de. Publicidade: a linguagem da sedução. São<br />
Paulo: Ática, 2010.<br />
DUCROT, Oswald. O dizer e o dito. São Paulo: Pontes, 1987.<br />
MAINGUENEAU, Dominique. Análise de textos de comunicação.<br />
São Paulo: Cortez, 2002.<br />
MELO NETO, João Cabral de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova<br />
Aguilar, 1995.<br />
ULLMANN, Stephen. Semântica: uma introdução à ciência do significado.<br />
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1977.
A UNIDADE LEXICAL NO DISCURSO ETNOLITERÁRIO<br />
1. Introdução<br />
Maria Margarida de Andrade (U P M)<br />
guida17@hotmail.com<br />
Tem este trabalho o objetivo de analisar a unidade lexical do<br />
discurso etnoliterário, contudo, para alcançar este objetivo, torna-se<br />
necessário localizar a etnoliteratura no conjunto das ciências que estudam<br />
o Homem e suas relações com o seu Universo antropocultural.<br />
Nesse percurso, serão apontadas as relações da etnoterminologia<br />
com outras disciplinas afins, destacando-se a etnoliteratura e seus<br />
discursos. Uma ligeira referência aos universos de discursos introduzirá<br />
a análise dos discursos literário e etnoliterário, para, no final,<br />
discutir-se o estatuto da unidade lexical nesses tipos de discursos.<br />
Para tanto, serão analisados os conceitos de vocábulo e termo, com<br />
referência obrigatória aos processos de terminologização e vocabularização.<br />
Só então será possível caracterizar o discurso etnoliterário e<br />
a sua unidade lexical, com base nos argumentos suscitados pelo raciocínio<br />
lógico dedutivo.<br />
2. Relações da etnoterminologia com outras disciplinas<br />
O objeto da etnoterminologia são os discursos etnoliterários,<br />
considerados por Greimas (1976, p. 3) discursos figurativos (folclore,<br />
mitologia, literatura), que, por sua vez, remetem à Antropologia:<br />
“ciência do homem no sentido lato, que engloba origens, evolução,<br />
desenvolvimento físico, material e cultural, fisiologia, psicologia, características<br />
sociais, crenças etc. (...) Antropologia cultural é o estudo<br />
da cultura, servindo-se dos dados das outras ciências: arqueologia,<br />
etnologia, etnografia, linguística, economia etc. (HOUAISS, 2001, p.<br />
240).<br />
A etnoliteratura, bem como a etnoterminologia constituem<br />
subáreas da Etnolinguística, conjunto de disciplinas que estuda a linguagem<br />
em seu contexto social e as relações entre linguagem e os<br />
demais aspectos da sociedade e da cultura. (FERREIRA, 1999, p.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
409<br />
849). A etnoterminologia, subárea da terminologia, inclui-se entre as<br />
disciplinas da lexicologia. A etnolinguística constituiu-se o lugar de<br />
encontro entre etnólogos e semioticistas que, indo além da descrição<br />
das línguas naturais exóticas, se interessou, desde a origem, por suas<br />
particularidades semânticas. No vasto domínio da sociossemiótica,<br />
destaca-se a etnossemiótica, que detém “o mérito de haver concebido,<br />
inaugurado e fundamentado as análises sintagmáticas que dizem<br />
respeito aos diferentes gêneros da literatura étnica, tais como as narrativas<br />
folclóricas (v. PROPP) e míticas (DUMÉZIL e LÉVI-<br />
STRAUSS), graças às quais se renovou a problemática do discurso<br />
literário”.<br />
Cabe à sociossemiótica o estudo dos discursos sociais não literários:<br />
o científico, político, jurídico, jornalístico, publicitário, pedagógico,<br />
burocrático, religioso e outros.<br />
O discurso literário é um domínio de pesquisa cujos limites<br />
parecem ter sido estabelecidos mais pela tradição que por critérios<br />
formais, objetivos. (GREIMAS; COURTÉS, ([1981], p. 168-169).<br />
Caracteriza-se como ficcional, objetiva despertar emoções, suscitar o<br />
prazer do texto, sem, contudo, constituir uma “imitação da vida”,<br />
mas metáforas da vida que conduzem a uma melhor compreensão<br />
dela. O elemento determinante de sua eficácia e de sua valorização é<br />
a estética.<br />
3. Tipologia dos discursos<br />
Para a semiótica e a linguística, a noção de discurso ultrapassa<br />
os limites do texto enunciado.<br />
O léxico de cada língua representa o universo antropocultural<br />
de seus falantes. Segundo Andrade (2005, p. 31) “Os dados da experiência<br />
humana, classificados pelos antropólogos em biofatos (fatos<br />
do universo físico e biológico), sociofatos (fatos da vida social, estruturas<br />
sociais), mentefatos (fatos da vida psíquica, interior), manufatos<br />
(objetos fabricados pelo homem) compõem o universo referencial,<br />
que, para o código linguístico, corresponde ao universo antropocultural”.<br />
Pais (2005, p. 156 e 165) afirma:<br />
A língua e seus discursos, juntamente com as semióticas não verbais,<br />
conferem a uma comunidade humana: a sua memória social; a sua
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
410<br />
consciência histórica; a consciência de sua identidade cultural; a consciência<br />
de sua permanência no tempo. (...) Assim, cada língua, por exemplo,<br />
é um instrumento de pensar o mundo.<br />
De modo geral, os universos de discursos podem ser classificados<br />
em dois grandes grupos: o que diz respeito à linguagem comum<br />
e o que respeita às linguagens de especialidades. Segundo Pais<br />
(1995, p. 163), “o discurso e seus universos não formam compartimentos<br />
estanques, interferindo incessantemente uns sobre os outros”.<br />
Contudo, entre os universos de discursos da língua comum e das línguas<br />
de especialidades, podem-se estabelecer algumas distinções:<br />
Lerat (1995 p. 62, 185 e 17) ensina que a língua de especialidade é<br />
uma língua escrita e que a Terminologia é por excelência o material<br />
distintivo do texto especializado. Entende-se por língua de especialidade<br />
um subsistema linguístico, que utiliza uma Terminologia e outros<br />
meios linguísticos visando a não ambiguidade da comunicação<br />
num domínio particular. A linguagem especializada é, antes de tudo,<br />
uma linguagem em situação de emprego científico ou profissional e<br />
sua maior função é transmitir conhecimentos. O léxico comum tem<br />
como funções básicas a emotiva, a conativa, fática, poética etc., enquanto<br />
a função básica da língua de especialidade é a referencial. As<br />
situações comunicativas do léxico comum são menos formais, enquanto<br />
as das línguas de especialidades são mais formais. Rondeau<br />
(1984) explica que o conjunto de palavras e expressões que não se<br />
refiram, no contexto em que são empregadas, a uma atividade especializada,<br />
pertence ao léxico da língua comum; as línguas de especialidades,<br />
ao contrário, caracterizam-se pelas relações de seus termos<br />
com uma área ou atividade específica.<br />
4. A unidade lexical<br />
A referência a termos vem a propósito, para que se observe<br />
que o vocabulário geral da língua tem o lexema ou vocábulo como<br />
unidade do discurso; as linguagens especializadas têm como unidade<br />
padrão o termo. Cabré (1993, p. 169) diz que “os termos são a unidade<br />
base da Terminologia, designam os conceitos próprios de cada<br />
disciplina especializada”. São muito tênues as fronteiras que delimitam<br />
termo e lexema, uma vez que há palavras (lexemas) que fazem<br />
parte do léxico comum, tais sejam: acidente, caráter, função, solu-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
411<br />
ção etc. que, ao ingressarem no vocabulário de uma linguagem específica<br />
(geografia, biologia, química etc.) perdem seu caráter polissemêmico,<br />
transformam-se em termos e seus significados são reduzidos<br />
a um único, naquele contexto. Portanto, o vocabulário das linguagens<br />
comuns constitui-se de lexemas ou vocábulos, enquanto o<br />
das linguagens especializadas constitui-se de termos. Na verdade, toda<br />
unidade lexical é plurifuncional no nível do sistema e monofuncional<br />
no nível de uma norma ou falar concreto.<br />
Galisson ([1978]) distingue vocabulário comum, compartilhado<br />
por todos os membros de uma comunidade linguística do vocabulário<br />
especializado, que, afinal, provém do léxico geral da língua.<br />
Barbosa (1998, p. 40) esclarece: “uma unidade lexical não é<br />
termo ou vocábulo em si mesma, mas, ao contrário, está em função<br />
‘termo’ ou em função ‘vocábulo’ ou seja, o universo de discurso em<br />
que se insere determina seu estatuto, em cada caso”.<br />
5. Terminologização X vocabularização<br />
Assim como não existem fronteiras rígidas entre linguagens<br />
comuns e linguagens de especialidades, não se pode rotular um vocábulo<br />
como “termo” ou “lexema”, dado que todas as unidades lexicais<br />
provêm do inventário geral do léxico da língua. Tal característica<br />
origina dois fatos linguísticos: terminologização e vocabularização.<br />
O primeiro fato ocorre quando um vocábulo da língua comum<br />
ingressa no vocabulário de uma língua de especialidade, p. ex. o vocábulo<br />
martelo transforma-se em termo na linguagem da anatomia;<br />
no segundo caso, vocabularização, apresenta-se como a transformação<br />
de um termo em vocábulo, ou seja, um termo do vocabulário especializado,<br />
como p.ex. neurastenia (neurastênico) passa a integrar o<br />
vocabulário da linguagem comum. Isto significa que, considerandose<br />
que são tênues os limites entre linguagens comuns e linguagens de<br />
especialidades, observa-se que na relação inter-universos pode ocorrer<br />
a transposição de um termo para o léxico comum ou a migração<br />
de um lexema para um vocabulário especializado. Como foi dito, no<br />
primeiro caso, tem-se a lexicalização ou vocabularização, ou seja, a<br />
transformação de um termo em vocábulo; no segundo, ocorre a terminologização,<br />
transformação de vocábulo em termo. Segundo Barbosa<br />
(1998, p. 30) trata-se de “normas de um sistema linguístico,
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
412<br />
uma relação horizontal intrassistema de significação e interuniverso<br />
de discurso”.<br />
6. Os discursos etnoliterários<br />
Os discursos etnoliterários compreendem a literatura oral, a<br />
literatura popular, incluindo a literatura de cordel, os contos, fábulas,<br />
histórias e anedotas etc., que passam de uma geração a outra por<br />
meio da tradição oral, que preserva o sistema de valores de uma comunidade<br />
humana, o sistema de crenças, o imaginário coletivo, o saber<br />
compartilhado sobre o mundo, em outras palavras, a etnoliteratura<br />
é o método de análise do discurso literário como fonte de conhecimento<br />
no estudo da diversidade cultural. "Têm os seus textos importantes<br />
funções culturais e estéticas, didática e mítica, assemelham-se,<br />
em muitos aspectos, ao mythos da antiga cultura grega”.<br />
Pais e Barbosa (2004, p. 79).<br />
Conceituando bem claramente os universos de discursos sociais<br />
não literários e os universos de discursos etnoliterários Pais<br />
(1993, p. 454-521) afirma: “os universos de discursos sociais não literários,<br />
sempre produzidos por grupos ou segmentos sociais que, através<br />
deles se sustentam, caracterizam-se por estruturas de poder<br />
próprias, mecanismos de argumentação / veridicção específicos, processos<br />
de manipulação peculiares, relações intersubjetivas e espaçotemporais<br />
de enunciação e enunciado”. Sobre os universos de discursos<br />
etnoliterários, Pais e Barbosa (2003, p. 257) assim se manifestam:<br />
“Neles se encontram narrativas que por certo não ocorreram ou,<br />
pelo menos, não teriam acontecido nos termos em que são explicitados.<br />
Falta-lhes, numa primeira leitura, a verossimilhança. Seus autores<br />
não são conhecidos ou, se há nomes, não podem ser atestados. O<br />
sujeito-enunciador é comumente apagado ou substituído por um ente<br />
imaginário ou virtual. As marcas de tempo e espaço do enunciado<br />
inexistem ou são muito vagas. Essas características produzem um efeito<br />
de sentido de atemporalidade e remetem a um espaço que é da<br />
utopia, do não lugar”.<br />
Os textos da etnoliteratura não se classificam como ficcionais,<br />
no sentido estrito do termo, por falta de verossimilhança. De certa<br />
forma poderiam ser considerados ficcionais, por serem (ou parece-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
413<br />
rem) os eventos narrados inverossímeis, se analisados denotativamente<br />
e não corresponderem a fatos historicamente comprovados.<br />
Desse modo, aproximam-se da fábula. Não se classificam, também,<br />
como documentais, porque não contam fatos históricos comprovados.<br />
Entretanto, os discursos etnoliterários assumem o importante<br />
papel de sustentar, conservar, atualizar e transmitir aspectos relevantes<br />
de um saber compartilhado, nas comunidades socioculturais em<br />
que são produzidos preservados e manifestados, dando aos seus<br />
membros o sentimento de pertencer à comunidade em questão. Pais e<br />
Barbosa lembram que<br />
Os textos etnoliterários são preservados ao longo dos séculos pela<br />
memória coletiva das comunidades e transmitidos de uma geração a outra<br />
pelas populações. Fazem parte da tradição popular, ou guardadas na<br />
memória, ou registradas em publicações artesanais, logo em seguida,<br />
transmitidos oralmente. (...) Nesse sentido, constituem documentos altamente<br />
significativos, reveladores de uma cultura e do seu processo histórico.<br />
(PAIS; BARBOSA, 2003, p. 258)<br />
Os discursos sociais não literários têm um estatuto sociossemiótico<br />
conferido pela sociedade, que os caracteriza como documentais x não<br />
ficcionais, de acordo com o seu modo de existência e produção socialmente<br />
aceitos. (....) No tocante aos discursos etnoliterários, verifica-se<br />
que sua produção se sustenta em combinações de modalidades complexas<br />
distintas. Ocupam-se, tais discursos, dentre outros aspectos, de sistema<br />
de valores, que por sua vez determinam pensamentos e condutas,<br />
formas de ver o mundo e o ser humano, comportamentos recomendáveis<br />
ou condenáveis, no fazer social. (....) Enquanto alguns universos de discursos<br />
sociais não literários, como o científico e o tecnológico pretendem<br />
apoiar-se, eminentemente na racionalidade os discursos etnoliterários<br />
sustentam-se, sobretudo, na afetividade, na sensibilidade e na historicidade.<br />
(PAIS, 2005).<br />
7. A unidade lexical no discurso etnoliterário<br />
As unidades lexicais dos discursos etnoliterários apresentam<br />
características específicas: são vocábulos metassemióticos, considerados<br />
quase termos técnicos, porque pertencem a uma linguagem especial.<br />
Seus sememas, porém, não correspondem nem aos sememas<br />
da linguagem comum, nem aos das linguagens científicas.<br />
Observa-se uma tensão dialética vocábulo X termo, nas unidades<br />
lexicais etnoliterárias. Essas unidades léxicas reúnem qualidades<br />
das linguagens de especialidades e da linguagem literária, con-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
414<br />
servando um valor semântico social, ao mesmo tempo permanecendo<br />
como documentos do processo histórico de uma cultura.<br />
Pode-se dizer que as unidades lexicais dos discursos etnoliterários<br />
apresentam um significado muito especializado, específico<br />
desse universo de discurso. Essas unidades lexicais, portanto, acumulam<br />
características das linguagens de especialidades e da linguagem<br />
literária. No nível da Norma e do falar concreto a unidade lexical<br />
do discurso literário assume as duas funções: vocábulo e termo.<br />
Trata-se de um vocábulo, nos seus aspectos referenciais, pragmáticos<br />
e simbólicos, em função semiótica, metassemiótica ou metametassemiótica<br />
e é um termo, na medida em que a unidade léxica em questão<br />
tem características de uma linguagem de especialidade. (PAIS; BAR-<br />
BOSA, 2004, p. 92).<br />
Certos universos de discurso suportam relações intertextuais e<br />
interdiscursivas que admitem uma abordagem transdisciplinar; outros<br />
há, no entanto, em que as relações intertextuais e interdiscursivas,<br />
por sua natureza, impõem um tratamento transdisciplinar.<br />
(BARBOSA, 2004).<br />
8. Conclusão<br />
Tomando-se em consideração a argumentação apresentada,<br />
pode-se chegar às seguintes conclusões:<br />
v O léxico geral da língua abriga inúmeras variedades de linguagens,<br />
destacando-se a dicotomia linguagem comum e linguagem<br />
especializada; a primeira diz respeito ao uso geral de todos os falantes,<br />
enquanto as linguagens especializadas constituem um<br />
conjunto de subcódigos, parcialmente coincidentes com os códigos<br />
e subcódigos da linguagem comum;<br />
v A variedade dos tipos de linguagem corresponde às finalidades<br />
específicas das diversas situações de comunicação;<br />
v Na área das linguagens especializadas, a significação de um termo<br />
muda, conforme o tipo de terminologia na qual é empregado;<br />
v Sabendo-se que a palavra pode assumir o estatuto de vocábulo<br />
e/ou de termo, cumpre observar: a palavra é um símbolo linguístico<br />
que admite plurissignificação; o termo, além de seu caráter
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
415<br />
monossemêmico, pertence a determinado sistema de conceitos e<br />
apresenta um grau de precisão muito mais elevado;<br />
v O discurso etnoliterário não pode ser considerado como integrante<br />
das chamadas linguagens especializadas, pois não apresenta<br />
características de cientificidade e outras, que permitam defini-lo<br />
como tal;<br />
v O discurso etnoliterário não se restringe aos parâmetros da chamada<br />
linguagem comum, pois extrapola seus limites, contudo se<br />
não se insere nas chamadas linguagens especializadas;<br />
v O discurso etnoliterário constitui um tipo de linguagem específica:<br />
não se enquadra no rol das linguagens especializadas, porém,<br />
ultrapassa os limites da linguagem comum;<br />
v Dadas essas características, conclui-se que a unidade lexical do<br />
discurso literário acumula o estatuto de termo e de vocábulo, ou<br />
seja, tanto pode ser termo como vocábulo, dependendo das circunstâncias<br />
e do tipo de universo de discurso no qual se insere.<br />
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A UNIDADE LEXICAL NO DISCURSO<br />
PUBLICITÁRIO REGIONAL<br />
1. Considerações iniciais<br />
Nelly Carvalho (UFPE)<br />
nellycar@terra.com.br<br />
A língua, não tendo função em si, existe para expressar a cultura<br />
e possibilitar que a informação circule. Ela corporifica as demais<br />
interpretações culturais, como as letras nas músicas, a oração na religião,<br />
a descrição e a especificação na moda, a receita na culinária, o<br />
título nas obras de arte.<br />
A cultura é transmitida pela língua, sendo também seu resultado,<br />
o meio para operar e a condição da subsistência dessa cultura.<br />
O discurso publicitário é também matizado pela cultura em que está<br />
inserido, seja no vocabulário escolhido, seja nas imagens selecionadas.<br />
A competência do discurso publicitário e a sua eficácia vão de<br />
pender da forma como representa a cultura em que está inserido,<br />
permitindo estabelecer uma relação pessoal com a realidade próxima.<br />
A presença de índices carregados de cultura partilhada pela comunidade<br />
aumenta o poder de persuasão e sedução da mensagem veiculada,<br />
pois apela para valores que circulam e são aceitos, sendo entendidos<br />
facilmente. Na publicidade brasileira, podemos observar<br />
que, enquanto algumas mensagens dirigem-se a um público-alvo nacional,<br />
outras são construídas visando a um público-alvo mais específico,<br />
regional.<br />
2. Fundamentos linguísticos<br />
Língua e cultura formam um todo indissociável e, no caso da<br />
língua e da cultura maternas, esse todo não é ensinado em nenhum<br />
lugar especial, mas adquirido ao sabor dos acontecimentos cotidianos.<br />
Ele identifica os indivíduos como participantes de uma coletividade<br />
e serve de denominador comum para o convívio social.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
420<br />
No caso da língua portuguesa – falada no Brasil e em Portugal,<br />
consistindo em duas vertentes de uma mesma língua – ‘veiculam-se<br />
culturas que, embora tenham raízes comuns, diversificaramse<br />
ao longo da história.<br />
Os componentes de uma língua são de ordem fonológica, sintática,<br />
e semântico-lexical. Todos estes sofrem diferenciações quando<br />
submetidos a influências diversas e são observadas na pronúncia,<br />
nas escolhas sintáticas, nas alterações de sentido, nas escolhas do<br />
termo, em vertentes diferentes de uma mesma língua.<br />
É, contudo, o componente semântico-lexical que revela com<br />
maior clareza as divergências entre os usos por diferentes comunidades<br />
linguísticas. O léxico, nomeando as realidades extralinguísticas<br />
vai permitir compreender conceitos abstratos e nomear diferentes<br />
ocorrências da vida cotidiana.<br />
O implícito (cultural) desempenha um papel decisivo, impondo<br />
uma fronteira eficaz e discreta entre os que compreendem e os<br />
que não compreendem o sentido total da mensagem. A fronteira cultural<br />
não é apenas a das nações, nem sequer a da língua: pode ser regional<br />
e ata mesmo grupal.<br />
A aquisição da competência cultural (na própria cultura) não<br />
faz parte de uma escolha possível: ela é vivida como uma ligação<br />
imediata e única com o mundo.<br />
3. Unidade Lexical: a Palavra<br />
A palavra analisa e objetiva o pensamento individual, tendo<br />
também um valor coletivo, pois há uma sociedade própria da língua.<br />
A palavra permite ao conceito ultrapassar o estágio individual e afetivo:<br />
ela racionaliza, classifica, distingue e generaliza o pensamento,<br />
tornando-o abstrato.<br />
O vocabulário, símbolo verbal da cultura, perpetua a herança<br />
cultural através dos signos verbais e faz a ponte entre o mundo da<br />
linguagem e o mundo objetivo. Palavras são emblemas culturais,<br />
símbolos com significados sociais, que conservam a experiência da<br />
atividade humana.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
421<br />
São inúmeros os exemplos de palavra que cristalizam uma<br />
carga cultural diferenciada. Galisson, linguista francês que estudou o<br />
tema para explicar o significado acrescido da carga cultural. Como<br />
dentro do próprio Brasil existem as diferenças dialetais entre regiões,<br />
decorrentes de condições e épocas de implantação da língua portuguesa<br />
e de sua imposição como língua veicular, isto pode revelar diferenças<br />
de uso.<br />
4. Zonas Dialetais Brasileiras<br />
Segundo Antenor Nascentes em O Linguajar Carioca, o falar<br />
brasileiro, apesar de sua relativa uniformidade, apresenta variações: a<br />
enorme extensão territorial, sem fáceis comunicações interiores quebrou<br />
a unidade da língua transplantada, fragmentando-o em subdialetos,<br />
contribuindo para isso o modo diferente de povoações das diversas<br />
regiões. Vinda da Europa, a língua e a cultura implantaram-se no<br />
litoral, formando dois focos de irradiação: São Paulo e Pernambuco.<br />
Seguem–se depois, na ordem, a Bahia, o Maranhão e o Rio de Janeiro.<br />
São Paulo levou ambas, língua e cultura, a Minas, Goiás, Mato<br />
Grosso. Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. A Pernambuco<br />
coube o papel de divulgá-las na margem esquerda do rio São Francisco<br />
que serviu como divisor de falares: em Alagoas, Paraíba, Rio<br />
Grande do Norte e Ceará, que as levou ao Acre.<br />
A Bahia influenciou a margem direita do velho Chico: Sergipe<br />
e Espírito Santo. O Maranhão divulgou a língua na Amazônia e o<br />
Rio de janeiro, capital da colônia desde 1763, por ter se tornado a<br />
língua da corte com a vinda da Família Real, em 1808 teve sua variante<br />
considerada, a partir de então o modelo da língua falada no Brasil.<br />
Antenor Nascente considerou o dialeto brasileiro dividido em<br />
duas zonas norte e sul, dividida em subfalares. No Norte, o amazônico<br />
e o nordestino. No sul: baiano, fluminense, mineiro e sulista. Mas,<br />
apesar da força atual da mídia, cada um desses subfalares, nos vários<br />
estados, vai criando características próprias no léxico.<br />
Como isso pode interessar ao publicitário e pode influenciar o<br />
mercado?
5. Diferentes usos da unidade Lexical<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
422<br />
Há duas formas de estabelecer a tipologia de diferenças lexicais<br />
interdialetais: partindo da palavra ou partindo do referente. São<br />
elas:<br />
Uma única forma e um único referente<br />
Formas múltiplas e um único referente<br />
1. cachaça/pinga. 2. bigu/carona;.kombeiro/perueiro 3. capiongo/tristonho/aperriado<br />
Forma única e referentes múltiplos<br />
Polissemia: Tampa, trouxa, Diadema/tiara; calção/maiô, pronto<br />
6. Múltiplas formas e único referente<br />
bravo/brabo Sutiã/califon/corpinho<br />
Múltiplas formas e múltiplos referentes (bomonímia)<br />
Manga, fruta; Manga, verbo (só no Nordeste significa zombar).<br />
1. boyzinho/mauricinho-patricinha/boyzinha<br />
2. mandioca/aipim/ macaxeira; laranja cravo, bergamota, tangerina.<br />
São sutis as distinções entre as zonas dialetais e como são delicadas<br />
as relações semânticas que limitam os campos dialetais<br />
7. Corpus<br />
– “O sol trabalha 365 dias por ano e usa sua pele como escritório”,<br />
da Episol, loção hidratante, é bem uma peça publicitária<br />
de cultura brasileira, coloca em evidência o fato qualidade de ser um<br />
país ensolarado.<br />
– Liberdade ainda que à tardinha, das sandálias Havaianas,<br />
traz à memória do receptor-alvo, a frase-símbolo da Inconfidência<br />
Mineira.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
423<br />
– Sogra chamando, dos celulares Sony Ericsson com identificador<br />
visual de chamadas, tem no visor uma cobra verde e amarela,<br />
forma como a nossa cultura trata as sogras.<br />
– Peixe-gato. Outdoor da Movimento exibindo um belo rapaz,<br />
um gato, de minúsculo calção de praia, na areia, onde aparecem<br />
os igualmente minúsculos peixes-gato, como são nomeados em Pernambuco.<br />
– Neste verão você precisa de uma sombrinha. Faz o jogo<br />
polissêmico entre pequena sombra, guarda-sol de praia e adorno carnavalesco,<br />
colocando como elemento estranho o fato de ser preciso<br />
sombrinha no inverno e não no verão.<br />
– Do maracatu para o cinema, da praia parra as orquestras<br />
de frevo, dos pólos de animação para o restaurante. Não é à<br />
toa que o Recife é a cidade das pontes. Recife, diversão dentro e<br />
fora da folia.<br />
– Obrigado, Maria Bonita, Lampião e Cleópatra. O Galo<br />
da Madrugada agradece a todos os pernambucanos que colocaram<br />
sua fantasia, entraram na folia e fizeram, mais uma vez, o<br />
maior bloco carnavalesco do mundo.<br />
– O boné - O abadá – O folião (descrevendo uma garrafa<br />
de cerveja) Antártica, paixão nacional, a cerveja oficial do Carnaval<br />
de Salvador.<br />
8. Conclusão<br />
Os exemplos permitem observar as diferenças de escolha das<br />
unidades lexicais nos dialetos brasileiros, resultantes da sedimentação<br />
cultural. As diferenças são produto de uma dialética histórica de<br />
diferenciação cumulativa. No curso de histórias diferentes, partindo<br />
de uma raiz comum, as comunidades desenvolvem culturas próprias<br />
que se expressam na sua forma de linguagem, nas escolhas de imagens.
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Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
426<br />
lexicais com o intuito de contribuir para os projetos que buscam entender<br />
as escolhas léxico-fonológicas dos falantes.<br />
Para que pudéssemos realizar essa discussão, tomamos como<br />
base os resultados das pesquisas de autores como Castro (1990), em<br />
Juiz de Fora/MG; Guimarães (2006), na região norte de Minas Gerais;<br />
Ribeiro (2007), em Belo Horizonte/MG; Viana (2008), em Pará<br />
de Minas/MG e Viegas (2001), em Belo Horizonte/MG. Além disso,<br />
nos utilizamos, para comprovar e discutir o caráter difusionista em<br />
relação ao comportamento das vogais médias [e, o] em posição pretônica<br />
e postônica não final, dos trabalhos de Bisol (1981), Bybee<br />
(2002), Chen & Wang (1975), Cristófaro-Silva (2001, 2006), Fidelholtz<br />
(1975), Khrishnamurti (1978), Labov (1981, 2008), Lee<br />
(1992), Oliveira (1991, 1995, 2008), Oliveira & Lee (2003, 2006),<br />
Wang (1969).<br />
No presente estudo, foram selecionados 9.149 dados da amostra,<br />
os quais foram submetidos ao programa GOLDVARB 2001. No<br />
corpus, 5.470 dados referem-se a variável (e) – 5.078 em posição<br />
pretônica e 392 em posição postônica não final –, e 3.679 referem-se<br />
a variável (o) – 3.299 em posição pretônica e 380 em posição postônica<br />
não final.<br />
Conforme já havíamos dito, o comportamento das pretônicas<br />
forma, na cidade de Montes Claros/MG, um quadro complexo. Já em<br />
relação às postônicas não finais, alem de se comportarem de modo<br />
diferenciado das pretônicas, verificamos, ainda, comportamento diferenciado<br />
em relação às variáveis (e) e (o): na variável (o) em posição<br />
postônica não final, o alçamento (53%) e predominante. Já em relação<br />
à variável (e), a manutenção da variável predomina, tanto em relação<br />
pretônica (70,8%), quanto em posição postônica não final<br />
(77,8%).<br />
1. O comportamento variável pretônica (e)<br />
A manutenção da variável (e), em posição pretônica, prevalece<br />
entre os falantes montes-clarenses. O percentual de 1% de rebaixamento<br />
aponta para uma das hipóteses iniciais deste trabalho: que o<br />
falar de Montes Claros não é mais caracterizado pela realização da
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
428<br />
Apesar de eliminado pela stepping down, o grupo escolaridade<br />
foi selecionado pela rodada stepping up. Já em relação ao rebaixamento<br />
da variável (o) em posição pretônica, dos 3.299 dados coletados,<br />
133 referem-se ao fenômeno e 2.704 à manutenção da variável<br />
(o) 4 . Ainda, as rodadas stepping up e down excluíram distância da<br />
silaba tônica, nasalidade, classe de palavras, grau de formalidade,<br />
individuo, sexo do falante, escolaridade e classe social. Apesar de<br />
eliminado pela stepping down, o grupo faixa etária foi selecionado<br />
pela rodada stepping up.<br />
3. O comportamento variável postônica (e) em posição não final<br />
Aqui, diferentemente das pretônicas, não foram utilizados os<br />
seguintes grupos de fatores: status da tonicidade, distância da silaba<br />
tônica, classe de palavra e grau de formalidade pela insuficiência de<br />
dados para compô-los. Não se utilizou, também, o grupo posição da<br />
vogal postônica por, neste estudo, as vogais serem sempre mediais.<br />
Parece-nos, em comparação com a realização das pretônicas,<br />
que a manutenção também prepondera entre os falantes montesclarenses<br />
– 78% – em detrimento do alçamento – 22%. Das 392 ocorrências<br />
da média (e) em posição postônica não final, 87 são relativas<br />
ao alçamento e 305 à manutenção da vogal. Os grupos selecionados<br />
pelas rodadas stepping up e down foram: vogal da silaba seguinte,<br />
vogal da silaba precedente, contexto fonológico precedente e contexto<br />
fonológico seguinte.<br />
Assim como ocorreu em relação ao alçamento da variável (e)<br />
em posição pretônica, em posição postônica verificamos que nenhum<br />
dos grupos de fatores não estruturais foi selecionado, sendo tal fato,<br />
portanto, indicativo de difusão lexical. Em relação ao dialeto montesclarense,<br />
comparando-o com os dados referentes ao dialeto da capital<br />
mineira (RIBEIRO, 2007), verificamos que o comportamento<br />
da postônica (o) é diferenciado, apesar de ambos favorecerem a manutenção<br />
da variável. Tal fato condiz com o que nos afirma Oliveira<br />
(2008): “E evidente que os falantes de um mesmo dialeto apresentarão<br />
mais semelhanças do que diferenças entre si. (...) E é evidente,<br />
4 462 dados coletados referem-se ao alçamento da vogal média [o] em posição pretônica.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
429<br />
também, que as diferenças irão crescer quando falantes de dialetos<br />
diferentes são comparados”.<br />
4. O comportamento da variável postônica (o) em posição não final<br />
Em relação à variável (o), em posição postônica não final,<br />
vemos um comportamento diferente do de todas as outras variáveis<br />
aqui analisadas, sejam elas em posição pretônica ou postônica. Aqui,<br />
o alçamento prevalece em relação à manutenção – 53% e 47%, respectivamente.<br />
Entretanto, se levarmos em consideração a margem de<br />
4 pontos percentuais de erro estatístico, podemos dizer que, em relação<br />
às postônicas (o), o comportamento dos falantes da cidade de<br />
Montes Claros e equivalente para os dois processos – manutenção e<br />
alçamento.<br />
Tal fato e confirmado pelo que nos mostra Ribeiro (2007) em<br />
relação ao falar de Belo Horizonte/MG. Assim como no dialeto montesclarense,<br />
na capital mineira, há a tendência de se elevar a média<br />
postônica (o), em posição não final.<br />
Os grupos selecionados pelas duas rodadas do VARBRUL foram:<br />
vogal da silaba seguinte, vogal da silaba precedente, contexto<br />
fonológico seguinte, contexto fonológico precedente e individuo. Ainda<br />
é necessário dizer que, para que as rodadas pudessem ser efetuadas,<br />
tivemos que retirar as 17 ocorrências da palavra páscoa; além<br />
disso, o alçamento da variável (o) foi categórico: pásc[u]a. Também<br />
excluímos a única ocorrência de alçamento com ausência de contexto<br />
seguinte – aure[w], variação de auréola.<br />
5. Os itens lexicais<br />
Dos 69 diferentes itens lexicais encontrados no nosso corpus<br />
com as vogais médias (e, o), em posição postônica não final, relativos<br />
ao fenômeno do alçamento, 34 dizem respeito à postônica (e) e<br />
35 à postônica (o) – conforme dados nas Tabelas 1 e 2. Além disso,<br />
em relação ao rebaixamento das postônicas (e, o), houve, nos dados<br />
colhidos, ausência quase categórica do fenômeno, sendo apenas en-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
430<br />
contrado em x[e]r[ ]x e bróc[ ]lis; este, com apenas uma ocorrência.<br />
Isso nos faz crer, assim como dito anteriormente por Vieira<br />
(1994) e Ribeiro (2007), que o dialeto montesclarense, no que se refere<br />
às médias postônicas em posição não final, é composto por um<br />
quadro com as vogais /e, i, a, u, o/, diferentemente do que postulou<br />
Câmara Jr. (2007, p. 44), que nos apresentou o seguinte quadro das<br />
primeiras vogais postônicas dos proparoxítonos, ou vogais penúltimas<br />
átonas:<br />
Altas /u/ /i/<br />
Médias /../ /e/<br />
Baixas /a/<br />
Itens como Jâmbore, âncora, cômodo, sambódromo, autônomas,<br />
monótona, diácono(s), brócolis e Xerox tiveram manutenção<br />
categórica, sendo que nos dois últimos (brócolis e Xerox) houve casos<br />
de realização da média (o) em posição postônica não final como<br />
baixa [ ]. Já os itens auréola, bússola, páscoa e período tiveram alçamento<br />
categórico.<br />
Verificamos que, em relação ao comportamento da postônica<br />
não final (o), o alçamento é superior à manutenção da variável, diferentemente<br />
do que verificamos em relação à postônica não final (e),<br />
cuja manutenção é a preferência dos falantes de Montes Claros.<br />
Dos 34 itens dados referentes à variável postônica (e), verificamos<br />
que a maioria deles possui manutenção ou alçamento categórico<br />
(bafômetro, câmera, centímetro, cérebro, crisântemo, cronômetro,<br />
fenômeno, helicóptero, núcleo, números, ópera, pálpebra, parênteses,<br />
presbítero, prótese, quilômetro, taxímetro, termômetro, útero<br />
e velocípede tiveram manutenção categórica. Já área, áurea –<br />
variação de auréola –, orquídea, petróleo e Timóteo tiveram alçamento<br />
categórico).<br />
Assim, através dos nossos dados, podemos confirmar as duas<br />
hipóteses levantadas por Ribeiro (2007): (1) itens lexicais, que podem<br />
se apresentar variáveis quando olhamos para toda a comunidade<br />
de fala, possuem pronuncias categóricas para cada individuo (a vari-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
431<br />
ação intraindividual existente é mínima); e, em decorrência disso, (2)<br />
não se pode computar como variáveis os itens que possuem pronuncias<br />
categóricas dentro da mesma comunidade de fala. (op. cit., p.<br />
161)<br />
Através da nossa análise sobre o comportamento das vogais<br />
médias (e, o), em posição pretônica e postônica não final, no falar de<br />
Montes Claros, pudemos verificar que as mesmas formam um sistema<br />
complexo, principalmente em posição pretônica, onde encontramos<br />
médias altas e baixas como variáveis.<br />
O comportamento das vogais médias – excetuando-se (o) em<br />
posição postônica não final – tem a manutenção como preferência de<br />
realização. Quanto ao comportamento individual, verifica-se que e<br />
variável, seja em relação ao posicionamento de (e, o), seja em relação<br />
ao individuo; entretanto, conforme nos aponta Ribeiro (2007, p.<br />
164), “apesar de os falantes terem apresentado variação intraindividual,<br />
(...) essa variação pode ser considerada uma situação marcada<br />
na língua, conforme postulou Oliveira (2006)”.<br />
A exclusão das variáveis extralinguísticas (sexo, faixa etária,<br />
grau de escolaridade e classe social) em quase todas as posições das<br />
vogais médias (e, o) aqui investigadas, confirma a hipótese maior<br />
deste trabalho: que a variação é lexical. Além, há vocábulos que alçaram<br />
mesmo sem ambiente vocálico favorecedor 5 , como apar[i]ceram,<br />
b[i]zerro, cr[i]sceu, m[i]lhor, r[i]ais, r[i]lacão,<br />
s[i]mestre, ac[u]mpanha, alg[u]dão, b[u]cado, c[u]meça, c[u]mer,<br />
v[u]ando, v[u]mitando, entre outros.<br />
Corroborando a hipótese da difusão lexical temos, ainda, casos<br />
categóricos como tod[o] e tud[u], pess[o]a e pess[u]al, além de<br />
[i]ntão, d[i]mais, d[e]pois, [e]xemplo, v[o]cê e p[u]rque.<br />
Verificamos que o alçamento das médias pretônicas (e, o), assim<br />
como o rebaixamento, é um processo variável, desmitificando,<br />
assim, a questão da harmonização vocálica. Quanto ao rebaixamento<br />
de (e, o), pudemos constatar que as categorias específicas propostas<br />
por Cristófaro-Silva (2005) dão conta de quase todos os casos encontrados<br />
neste trabalho.<br />
5 Levando-se em consideração os resultados de diversos estudos realizados no Brasil.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
436<br />
(a) inúmeras exceções a determinadas mudanças fonéticas não podem<br />
ser explicadas unicamente por analogia e/ou por empréstimo;<br />
(b) muitos processos fonológicos não são explicados somente por<br />
condicionamentos sonoros, mas por uma gama variada de fatores,<br />
incluindo os de natureza discursivo-pragmática e sócio-geográficosocial;<br />
(c) nem todos os vocábulos que contêm o som em mudança são afetados<br />
simultaneamente e da mesma maneira. Longe de se aplicar a<br />
todas as palavras ao mesmo tempo, as mudanças fônicas reconhecem<br />
limites temporais, quer por razões socioculturais, quer por razões<br />
pragmáticas, sendo, pois, continuas.<br />
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A VARIAÇÃO LINGUÍSTICA<br />
EM DOIS LIVROS DIDÁTICOS DE LÍNGUA PORTUGUESA<br />
1. Introdução<br />
Michelle de Oliveira (UERJ)<br />
michelle_letras@oi.com.br<br />
O Brasil, país com grande diversidade linguística- cerca de<br />
duzentas línguas são faladas atualmente (incluindo-se as línguas indígenas)<br />
por 189,6 milhões de falantes – de acordo com dados do<br />
IBGE, é marcado pela pluralidade linguística, cultural, social e econômica,<br />
apesar de a língua portuguesa, como língua oficial, ser a língua<br />
falada em todo o território nacional, além de ser a língua ensinada<br />
nas escolas.<br />
A diversidade linguístico-cultural do Brasil coloca em destaque<br />
o tema da variação como uma das preocupações centrais no ensino<br />
de Língua Portuguesa. No entanto, ao analisarmos os livros didáticos<br />
de Português, verificamos que o tratamento da variação linguística<br />
não é contemplado levando-se em conta a diversidade de variações<br />
existentes na língua (dialetais, diacrônicas, sociais, fonéticas,<br />
morfológicas, sintáticas etc.).<br />
Ao analisar o LDP, optamos por dois livros: Português: linguagens,<br />
de William Roberto Cereja e Thereza Cochar Magalhães,<br />
da 7ª série e Português: Projeto Araribá, da 8ª, no intuito de verificar<br />
se abordagens mais modernas de ensino, tais como as contribuições<br />
da Linguística Contemporânea e os Parâmetros Curriculares para o<br />
ensino de Língua Portuguesa, tem sido postas em prática já nas últimas<br />
séries dos LDPs de Ensino Fundamental.<br />
2. Análise dos livros didáticos de língua portuguesa<br />
2.1. Português: linguagens – Magalhães e Cereja<br />
2.1.1. Análise da variação no ensino de Gramática<br />
No livro Português: linguagens, os capítulos que trabalham a<br />
variação linguística são os correspondentes ao capítulo dois (da uni-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
440<br />
dade um), o capítulo um (da unidade dois) e os capítulos um e dois<br />
(da unidade três). Analisaremos, portanto, tais capítulos em relação à<br />
variação linguística no ensino de gramática.<br />
No capítulo dois da unidade um, Magalhães e Cereja apresentam<br />
primeiramente a gramática de forma sistematizada, sob um<br />
prisma tradicional e, geralmente, na seção "Linguagem e interação"<br />
trabalham a variação linguística. Nesta seção, os autores explicam<br />
que “na linguagem coloquial, é muito comum o emprego do verbo<br />
ter como impessoal, no lugar do verbo haver.” (pg. 48). Para exemplificar<br />
a proposição, utilizam como exemplo duas frases:<br />
Ao abordar os usos dos verbos “ter” e “haver”, os autores trabalham<br />
os diferentes níveis de registro, ao enfatizarem que “muitos<br />
escritores e compositores já incorporaram esse tipo de construção em<br />
seus textos, embora a variedade padrão recomende que se empregue<br />
nesses casos o verbo haver como impessoal” (p. 48). Com isso, tenta-se<br />
mostrar que o verbo “ter” encontra-se presente tanto na linguagem<br />
oral quanto na linguagem escrita.<br />
Verificamos, nesta parte, uma abordagem coerente quanto à<br />
variação linguística, visto exemplificar os diferentes usos e registros<br />
do verbo “haver” (usado em situações que exigem maior formalidade)<br />
e do verbo “ter” (bastante comum no discurso oral, embora também<br />
utilizado na linguagem escrita). Tal proposta está condizente<br />
com as orientações sugeridas pelos PCNs, uma vez que neste documento<br />
afirma-se que<br />
O estudo da variação, por cumprir um papel fundamental na formação<br />
da consciência linguística e no desenvolvimento da competência discursiva<br />
do aluno, deve estar sistematicamente presente nas atividades de<br />
Língua Portuguesa. (Parâmetros Curriculares Nacionais, 1998, p. 82)<br />
Analisando-se os exercícios propostos, os autores, no primeiro<br />
exercício, solicitam ao aluno apenas a passagem de uma variedade<br />
para outra:
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
441<br />
No exercício dois, questiona-se qual das duas formas é mais<br />
agradável de ouvir (quando se usa o verbo “ter” ou o “haver”?). Na<br />
resposta sugerida pelos autores, consta que o emprego do verbo “ter”<br />
soa “mais natural no português brasileiro” (p. 48).<br />
Os autores enfatizam, portanto, na resposta apresentada, uma<br />
não ruptura com a língua falada. Além disso, ao mostrar como exemplo<br />
o emprego do verbo “ter” no lugar do “haver” em fragmentos<br />
de textos do escritor Manuel Bandeira e do compositor Chico<br />
Buarque, conforme se verifica no exercício um, mostram que tais<br />
construções também são utilizadas na linguagem dos falantes cultos,<br />
enfocando, assim, a variação estilística, que considera as diversas<br />
circunstâncias de comunicação.<br />
Constatamos, assim, nessa seção, uma abordagem coerente<br />
sobre a variação nos fenômenos gramaticais, pois nela a gramática é<br />
concebida como “flexível, variável, mutável, exatamente por ser parte<br />
constitutiva das línguas, que são flexíveis, variáveis e mutáveis<br />
por natureza” (ANTUNES, 2004, p. 129).<br />
Por fim, no exercício três, expõe-se um texto de Chico Buarque<br />
e após há questões do tipo:<br />
Observe o emprego dos verbos amanhecer e chover no texto.<br />
a) Qual é a predicação deles?<br />
b) Qual é o sujeito a que cada um deles se refere?<br />
Assim, verificamos que a variação linguística é abordada somente<br />
nos exercícios um e dois. No exercício três, os autores retornam<br />
aos moldes tradicionais do ensino de gramática: identificação de<br />
funções sintáticas, sem a reflexão sobre as funções que os sujeitos e<br />
predicados possuem no texto.<br />
Desta forma, constatamos que neste capítulo a variação linguística<br />
é parcialmente trabalhada, havendo uma mescla da aborda-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
442<br />
gem tradicional, embasada no ensino da norma padrão com o ensino<br />
da variação linguística em alguns exercícios, sobretudo nos que correspondem<br />
à seção "Linguagem e interação".<br />
Já no capítulo um, da unidade dois, introduz-se o tema da adolescência,<br />
os comportamentos, assim como a linguagem que permeia<br />
o universo dos jovens. Na seção "A linguagem do texto", explora-se<br />
a variante linguística falada por este grupo, o que está relacionado<br />
à faixa etária de tal grupo social.<br />
No início do capítulo, há um texto intitulado “Qual é a sua<br />
tribo?”, de Walcyr Carrasco, o que já induz, pelo título, que se tratará<br />
de temas típicos da adolescência, visto o emprego do item lexical<br />
“tribo”, bastante comum na linguagem dos adolescentes.<br />
Na seção "Trocando ideias", há uma parte denominada "Ler é<br />
diversão", na qual se apresenta uma tira com os personagens utilizando<br />
a variante falada por adolescentes, o que se evidencia pelo<br />
emprego constante de gírias e expressões dessa faixa etária, como<br />
por exemplo: “compro sua barra”, “grilado” e “man”:<br />
Segundo Bortoni-Ricardo,<br />
A rede social de um indivíduo, constituída pelas pessoas com quem<br />
esse indivíduo interage nos domínios sociais, também é um fator
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
443<br />
determinante das características de seu repertório sociolinguístico<br />
(BORTONI-RICARDO, 2006, p. 49).<br />
Tal fato podemos observar ao analisar as expressões apresentadas<br />
na tira acima, típica do repertório linguístico dos grupos juvenis.<br />
É certo que a tira em questão estimula a leitura, pois trata de<br />
um tema que pertence ao universo juvenil: as tribos urbanas, os<br />
punks. Verificamos, assim, que o tema proposto reflete a realidade<br />
dos alunos, contudo, a tira poderia ser mais bem explorada no livro,<br />
trabalhando-se a variação diafásica, que se reflete na diferença de registros<br />
(formal, informal). Poderia, por exemplo, haver questões sobre<br />
a linguagem apresentada na tira, ou seja, as diferenças entre a<br />
linguagem utilizada em situações informais (uma conversa entre amigos,<br />
conforme é apresentada na charge) e em situações que exigem<br />
uma linguagem mais formal, como uma palestra, uma exposição<br />
etc.<br />
Nesta unidade, assim como na unidade anterior, há a explicitação<br />
das regras gramaticais. Na seção "A língua em foco", na parte<br />
"Linguagem e interação", há a ênfase no contexto situacional, quando<br />
se propõe a seguinte questão (p. 96):<br />
7- Se o contexto não esclarecer a intenção do locutor, a frase “O<br />
professor de Educação Física atendeu os alunos de uniforme” pode<br />
ser ambígua, isto é, ter duplo sentido.<br />
a) Quais são esses sentidos?<br />
b) Indique o tipo de predicado dessa oração, no caso de um e no caso<br />
de outro sentido.<br />
Evidencia-se, assim, uma mescla de abordagens, com questões<br />
(como na letra a) que tratam do funcionamento da linguagem,<br />
dos sentidos adquiridos por um determinado uso linguístico e outras<br />
perguntas (letra b) que, segundo Neves, “organizam-se em atividades<br />
de simples rotulação, reconhecimento e subclassificação de entidades<br />
(classes ou funções) (NEVES, 2008:116).<br />
Partindo-se para a unidade três, capítulo um, na seção "A linguagem<br />
do texto", verificamos que a variação linguística diafásica é<br />
apresentada por meio das falas de dois personagens (os filhos de dona<br />
Dolores), conforme consta no seguinte exercício:
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
444<br />
Enfatizam-se, assim, no diálogo expressões típicas da oralidade,<br />
na qual há a supressão de partes das palavras, como por exemplo:<br />
“tá” no lugar de “está”, assim como a gíria “pirou”. No exercício,<br />
aborda-se a questão da intimidade entre os interlocutores, o que<br />
faz a língua variar, adquirir um tom mais informal, por se tratar de<br />
relação mães-filho.<br />
Por fim, no capítulo dois, há um exercício sobre contração,<br />
informando que há algumas frases que estão em desacordo com a variedade<br />
padrão da língua, solicitando, então, que o aluno passe para a<br />
modalidade culta da língua. Uma das frases é a seguinte: “Fique quieto!<br />
É a vez dela falar...” (de ela falar-variedade padrão).<br />
Neste exercício, os autores poderiam ter explorado mais o<br />
trabalho com a variação linguística, ao mostrar que embora tais frases<br />
não estejam na norma culta, a maioria dos falantes, inclusive os<br />
que conhecem a norma “culta” usam essa variante.<br />
Com essa análise, vimos que os autores abordam o tema da<br />
variação, porém poderiam explorá-lo mais, propondo exercícios que<br />
trabalhassem com as diversas variantes, destacando as diferentes características<br />
de grupos de falantes: a classe social, o nível de escolaridade,<br />
a ocupação e nível de renda, a idade, ascendência étnica, o<br />
gênero, assim como os dialetos sociais, jargões profissionais, gírias,<br />
estilos de fala que a Língua Portuguesa possui.<br />
2.2. Projeto Araribá: Português/obra coletiva<br />
2.2.1. Análise da variação no ensino de gramática<br />
Ao longo da obra, verificamos que somente duas unidades<br />
trabalham com a variação no ensino de gramática (unidade três e<br />
cinco). Na unidade três, a parte que apresenta a variação corresponde
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
445<br />
ao estudo da colocação pronominal. Esta seção (Estudo da língua) inicia-se<br />
com o texto “Papos”, de Luis Fernando Veríssimo. Nesse<br />
texto, há a discussão entre duas pessoas sobre a colocação pronominal,<br />
sendo que um deles tenta “corrigir” o outro, baseando-se nas<br />
prescrições da norma padrão:<br />
Após o texto, há as seguintes questões:<br />
Enquanto a questão “a” trata do assunto principal do texto (a<br />
discussão entre duas pessoas sobre a colocação dos pronomes), na<br />
qual uma tenta “corrigir” a outra, a questão “b” induz à reflexão sobre<br />
a correção gramatical e a variedade padrão. Sabemos que o modo<br />
de falar do outro gera avaliações, diversas vezes preconceituosas.<br />
Assim, as pessoas que avaliam negativamente a fala do outro se baseiam<br />
na correção gramatical para estabelecerem julgamentos diversos.<br />
Sobre essa questão, Faraco afirma que “é frequente em nossa
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
446<br />
sociedade que se condene como erro todas as formas que não estão<br />
de acordo com aquilo que está prescrito nos velhos manuais de gramática.”<br />
(FARACO, 2006, p. 21).<br />
Tal atitude é representada pelo personagem do texto em questão,<br />
que trata a variedade não padrão como “erro”, ao condenar o<br />
modo de falar do outro personagem. Assim, as perguntas apresentadas<br />
poderiam ser mais bem trabalhadas, caso tivessem sido exploradas<br />
questões referentes ao preconceito linguístico e as atitudes em relação<br />
à fala da personagem apresentada.<br />
Após os exercícios, explica-se sobre a colocação pronominal,<br />
ao afirmar-se que “como o modo de falar do Brasil difere bastante do<br />
de Portugal e as regras gramaticais são as mesmas, é comum que haja<br />
desvios da variedade padrão” (pg. 115- grifo meu). Com esse comentário,<br />
nota-se que a variação é apresentada como um desvio da<br />
norma padrão, o que caracteriza uma atitude preconceituosa em relação<br />
às outras variantes.<br />
Passando-se para os exercícios propostos no livro, no exercício<br />
um, pergunta-se sobre “que regras gramaticais justificariam a colocação<br />
pronominal nos seguintes poemas”:
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
447<br />
Utiliza-se, portanto, a poesia somente como estratégia para o<br />
ensino de gramática, abandonando-se, assim, o trabalho com o texto.<br />
Sobre essa questão, Faraco utiliza o termo gramatiquice, para referirse<br />
“ao estudo da gramática como um fim em si mesmo” (FARACO,<br />
2006, p. 21)<br />
Já no exercício dois, trabalham-se, novamente, os tipos de registro,<br />
ao apresentar-se a seguinte questão:
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
448<br />
No entanto, o exercício privilegia apenas a identificação do<br />
registro, sem levar e aprofundar a reflexão sobre esse uso nesse contexto.<br />
No exercício seis, também se abordam os diferentes registros,<br />
quando se propõe ao aluno que frases foram escritas de modo mais<br />
formal em cada um dos pares abaixo:<br />
Partindo-se para a unidade cinco, verificamos que a variação<br />
não é quase abordada e quando o é, é tratada novamente como desvio,<br />
a notar-se, sobretudo, na parte em que se explica sobre os pronomes<br />
oblíquos (o, a, os, as) que funcionam como objeto direto,<br />
constando a observação reproduzida a seguir:
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
449<br />
Conforme observado, há um esvaziamento da proposta, uma<br />
vez que a explicação apresentada induz à noção de erro e à discriminação<br />
das variantes não padrão. A proposta seria mais bem apresentada<br />
se se destacasse que formas como “Eu não lhe convidei” são<br />
perfeitamente aceitáveis em certas situações comunicativas, mas que<br />
em situações mais formais poderia ser utilizada a variante padrão<br />
“Eu não o convidei”.<br />
Nos exercícios propostos, o único que aborda a variação linguística<br />
é o número sete. Introduz-se, então, uma poesia de Ulisses<br />
Tavares a fim de propor exercícios sobre a regência na variedade padrão<br />
e não padrão:<br />
Observamos, então, que as questões propostas direcionam o<br />
aluno para a identificação de erros, correspondendo a questões de<br />
simples rotulação, conforme observamos na questão oito, em que ainda<br />
há noções como as de correto e incorreto:
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
450<br />
Pelas questões apresentadas, verificamos que há a necessidade<br />
de se romper a dualidade entre correção e incorreção, substituindo-a<br />
pela de adequação ou inadequação. Era imprescindível que os<br />
autores enfatizassem que o uso da variante não padrão funciona como<br />
um recurso estilístico expressivo em textos literários, como ocorre<br />
na poesia de Ulisses Tavares, apresentada na questão sete.<br />
Seria necessária, ainda, a explicitação de que, se caso os pronomes<br />
fossem usados na variante padrão, a expressividade e o sentido<br />
não seriam os mesmos, já que, na poesia, aparece a reprodução do<br />
discurso direto. Sendo assim, a ausência da preposição em “e desconfio<br />
que era a única que ele tinha” são comuns na oralidade, presente<br />
na fala de todas as classes sociais, inclusive na dos falantes cultos.<br />
CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />
Ao refletirmos sobre o ensino da variação linguística apresentado<br />
nos dois livros didáticos de Língua Portuguesa, verificamos que<br />
estes trazem explicações sobre os diferentes níveis de registro, destacando-se<br />
os contextos de produção dos enunciados, além de apresentarem<br />
uma seleção variada de textos em diferentes gêneros. Contudo,<br />
ainda há muito que aperfeiçoar.<br />
Os autores poderiam ter trabalhado mais a linguagem dos textos,<br />
de modo que possibilitasse ao aluno refletir sobre os usos da língua,<br />
ao propor atividades que desenvolvessem a reflexão sobre as<br />
motivações pragmáticas, ampliando, assim, a capacidade de reflexão<br />
crítica sobre a linguagem.<br />
Em vez disso, muitos exercícios propostos nos livros didáticos<br />
apresentaram um ensino descontextualizado, utilizando diversas<br />
vezes o texto como pretexto para o ensino gramatical.<br />
Sobre a variação linguística nos livros analisados, somente o<br />
livro de Magalhães e Cereja apresentou um tratamento mais adequado<br />
à variação, ao trabalhar as marcas linguísticas ligadas a gerações,<br />
além de apresentarem variações diafásicas e lexicais, trabalhando-se,<br />
assim, com vários tipos de variações de que a língua dispõe. Já o li-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
451<br />
vro Projeto Araribá tratou a variação como desvio, ao citar ao longo<br />
da obra as prescrições da norma padrão e listar os desvios da norma.<br />
Já no livro Projeto Araribá, afirma-se que o texto foi utilizado<br />
como “unidade básica do ensino”, conforme as orientações recomendadas<br />
pelos PCNs. No entanto, no ensino gramatical, verificamos<br />
que não se privilegia o trabalho com o texto. Além do mais,<br />
consta também, sobre o tipo de linguagem utilizada, a concepção<br />
desta como “atividade discursiva e cognitiva” (p.4), o que não se verifica<br />
ao longo da obra.<br />
Nesta perspectiva, torna-se necessário que o professor analise<br />
criticamente os livros didáticos, verificando os objetivos expostos na<br />
obra, no sentido de perceber se nestes se prioriza o desenvolvimento<br />
das habilidades linguísticas dos alunos ou se trata a linguagem como<br />
homogênea, não suscetível a mudanças.<br />
Concordamos com Bechara, quando este afirma que é tarefa<br />
do professor de língua materna "transformar seu aluno num poliglota<br />
dentro de sua própria língua, possibilitando-lhe escolher a língua<br />
funcional adequada a cada momento de criação (BECHARA, 1993,<br />
p. 40).<br />
Tal afirmação só se torna possível por meio do trabalho com a<br />
variação linguística, que deve estar presente tanto nas aulas de língua<br />
materna quanto nos livros didáticos de Língua Portuguesa.<br />
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
ANTUNES, Irandé Costa. No meio do caminho tinha um equívoco:<br />
Gramática, tudo ou nada. In: BAGNO, Marcos. Linguística da norma.<br />
São Paulo: Loyola, 2002, p. 127-134.<br />
BAGNO, M. (Org.). Linguística da norma. São Paulo: Loyola, 2004.<br />
BECHARA, Evanildo. Ensino da gramática. Opressão? Liberdade?<br />
7. ed. São Paulo: Ática, 1993. Série Princípios.<br />
BORTONI-RICARDO, Stella Maris. Educação em língua materna:<br />
a sociolinguística na sala de aula. São Paulo: Parábola, 2004.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
452<br />
FARACO, C. A. Ensinar x não ensinar gramática: ainda cabe essa<br />
questão? In: Calidoscópio. Vol. 4, n.1, pp.15-26, jan/abr 2006.<br />
MARCUSCHI, Luiz Antonio. O livro didático de portuguêsmúltiplos<br />
olhares. Lucerna: Rio de Janeiro, 2002.<br />
NEVES, Maria Helena de Moura. Que gramática estudar na escola?<br />
São Paulo, Contexto, 2003.<br />
PARÂMETROS Curriculares Nacionais: Terceiro e quarto ciclos do<br />
Ensino Fundamental – Língua Portuguesa. Brasília: MEC/SEF,<br />
1997, v. 2.
ALGUMAS MUSAS DE ÉBANO<br />
DE GREGÓRIO DE MATTOS:<br />
HINÁRIO CRIOULO: VERSOS EM FRAGMENTOS<br />
Ruy Magalhães de Araujo (UERJ)<br />
ruymar1@gmail.com<br />
Este trabalho faz parte de nosso livro Pérolas Recolhidas de<br />
Gregório de Mattos, Rio de Janeiro, Galo Branco, 2009, e diz respeito<br />
a uma coleção de musas, todas negras e também mulatas, pertencentes<br />
à poesia romântico-erótica atribuída a Gregório de Mattos e<br />
por ele concebida com toda a sensualidade de um amante apaixonado.<br />
Essas musas de ébano fazem parte do chamado “hinário crioulo”,<br />
que foi decantado por ocasião da permanência de Gregório de Mattos<br />
no Recôncavo Baiano, em que a natureza paradisíaca propiciava à<br />
imagística poética mesclar-se com o prazer, ao sabor de gostos e amores<br />
intensos.<br />
Essas pérolas negras, dentre outras, podem ser assim enumeradas:<br />
Agrela, Babu, Beleta, Beliza, Bertola, Betica, Brásia, Britres,<br />
Cabra, Calabari, Carira, Conga, Córdula, Clara Dias, Gafeira, Ginga,<br />
Ilhoa, Inácia Barrosa, Inês, Jacupema. Jelu, Lise, Luíza da Prima,<br />
Luzia Sapata, Macotinha, Mangá, Maria João, Maria Pereira, Maria<br />
Viegas, Marimbonda, Marta, Mingota, Negra Xarifa, Papa-Moletas,<br />
Pelica, Puta Andresona, Puta Cagajosa, Puta Cambaia, Puta Jacutinga,<br />
Puta Velhaca, Quita, Rola, Samba, Supupema, Tona, Úrsula, Zabelona.<br />
Por vezes, aparece o nome dessas musas; em outras<br />
ocasiões, seu apelido. Nos versos fragmentados encontram-se<br />
os comentários.<br />
Agrela<br />
[De agrela, pequena agra.] Substantivo feminino. Nome de uma negra.<br />
Vem Luzia sacrifício<br />
Juíza de refestela<br />
Agrela, que já não grela,<br />
por ser puta d’abinitio<br />
de um jantar, que era vício
Apolônia<br />
Babu<br />
va.<br />
Beleta<br />
rodava o Santos licor,<br />
e a negra serva do amor<br />
gritava com saia verde,<br />
aqui-d’El-Rei, que se perde<br />
a roupa do meu Senhor.<br />
S. f. Nome de outra mulata amante do poeta.<br />
A ser bela a formosura,<br />
a beleza a ser formosa<br />
mudamente as ensinava<br />
a boquinha de Apolônia.<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
454<br />
(AMADO, 1990, vol. I, p. 482)<br />
(AMADO, 1990, vol. II, p. 1145)<br />
Substantivo feminino. Apelido de Bárbara, uma negra que o poeta corteja-<br />
Catona, Ginga, e Babu,<br />
com outra pretinha mais<br />
entraram nestes palhais<br />
não mais que a bolir co cu:<br />
eu vendo-as, disse, Jesu,<br />
que bem jogam as cambetas!<br />
(AMADO, 1990, vol. II, p. 1009)<br />
Substantivo feminino. Apelido de Isabel, mulata que o poeta maldiz, por<br />
tê-lo desprezado.<br />
Beliza<br />
Beleta, a vossa perna tão chagada<br />
Olha poderá ser pelo podrida,<br />
Mas eu não quero<br />
Olha em minha vida<br />
Podrida pelo mal infeccionada.<br />
(AMADO, 1990, vol. II, p. 1056)<br />
Substantivo feminino. Anagrama de Izabel, uma das musas do poeta.<br />
Quize-te, Beliza, amar,<br />
y por mas que iba queriendo,<br />
iba conmigo diziendo,<br />
que me havias de engañar:
Bertola<br />
Betica<br />
Brásia<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
455<br />
(AMADO, 1990, vol. II, p. 718)<br />
Substantivo feminino. Apelido de outra mulata, amiga do poeta.<br />
Bertola devia estar<br />
faminta e desconjuntada,<br />
pois vendo a pendência armada,<br />
tratou de se caldear:<br />
(AMADO, 1990, vol. I, p. 478)<br />
Substantivo feminino. Apelido de uma crioula, amante do poeta.<br />
Dize a Betica que quando<br />
buscava, que lhe mandar,<br />
um só cara pude achar,<br />
que por ser cará lho mando.<br />
(AMADO, 1990, p. 735)<br />
Substantivo feminino. Refere-se à Brásia do Calvário, mulata meretriz a<br />
quem o poeta satiriza.<br />
Brites<br />
Brásia: que brabo desar!<br />
vós me cortastes o embigo,<br />
mas inda que vosso amigo,<br />
não vos hei de perdoar:<br />
pusestes-vos a cascar,<br />
e invocastes os Lundus;<br />
Jesus, nome de Jesus!<br />
quem vos meteu no miolo,<br />
que se enfeitiçava um tolo<br />
mais que co jogo dos cus?<br />
(AMADO, 1990, vol. II, p. 854)<br />
“desar”:desaire.<br />
Substantivo feminino. Nome de mulher. Alteração de Breatiz por Beatriz,<br />
do it. Beatrice, este do lat. beatrice, de beare, ‘aquela que faz alguém feliz’.] Foi uma<br />
das grandes musas do poeta. Var.: Britiz.<br />
Aqui-d’El-Rei, que me matam<br />
os negros olhos de Brites!<br />
eu não vi mulher tão branca<br />
com tão negros azeviches.
Cabra<br />
Calabari<br />
Dizem, que pelos cabelos<br />
a leva certa velhice,<br />
que como enfim é menina,<br />
gosta mais de meninices.<br />
Substantivo feminino. Apelido de uma das amantes do poeta.<br />
A Cabra é puta cambaia,<br />
e em sentindo o membro a vela<br />
por fingir,que inda é donzela,<br />
quando fode, se desmaia:<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
456<br />
(AMADO, 1990, p. 714)<br />
(AMADO, 1990, p. 1086.)<br />
Substantivo feminino. Apelido de uma prostituta. Possível pronúncia lusitana<br />
de Calabar.<br />
Carira<br />
za.<br />
Catona<br />
(...) falta uma, e outra Mulata,<br />
e se acaso se acha aqui<br />
a Conga, a Calabari,<br />
e outras negras no folguedo,<br />
como as dorme o Azevedo,<br />
quem há de ir folgar-se ali?<br />
(AMADO, 1990, vol. II, p. 1078)<br />
Substantivo feminino. Apelido de Margarida, mulata a quem o poeta satiri-<br />
Carira: por que chorais?<br />
que é perdição não vereis,<br />
as pérolas, que perdeis<br />
pela perda dos corais?<br />
(AMADO, 1990, vol. II, p. 870)<br />
Substantivo feminino. Apelido de uma negra que poeta cortejava.<br />
Catona, Ginga, e Babu,<br />
com outra pretinha mais<br />
entraram nestes palhais<br />
não mais que a bolir co cu:<br />
(AMADO, 1990, vol. II, p. 1009)
Conga<br />
Córdula<br />
Clara Dias<br />
Gafeira<br />
Substantivo feminino. Apelido de uma prostituta.<br />
Falta Luzia a Sapata<br />
que estava na Cajaíba,<br />
arriba, putas, arriba,<br />
não se torne a Ilha em mata:<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
457<br />
(AMADO, 1990, vol. II, p. 1078)<br />
Substantivo feminino. Uma das mulatas preferidas do poeta.<br />
Córdula da minha vida,<br />
Mulatinha da minha alma,<br />
leda como as aleluias,<br />
é garrida como as Páscoas.<br />
Substantivo feminino. Também conhecida por “Mãe Monda”.<br />
(...) adeus a outra Mãe Monda<br />
Que se chama Clara Dias.<br />
(AMADO, 1990, p. 1084)<br />
(AMADO, 1990, p. 1036)<br />
Substantivo feminino. Apelido da mulata Joana, – ou Joana Gafeira, – cortejada<br />
pelo poeta.<br />
Ginga<br />
Aqui-d’El-Rei, que me mata,<br />
Gafeira, os vossos desdéns:<br />
eu não vi Parda tão branca<br />
com tão negro proceder.<br />
(AMADO, 1990, vol. II, p. 1087)<br />
Substantivo feminino. Apelido de uma negra, amante do poeta.<br />
Catona, Ginga, e Babu,<br />
com outra pretinha mais<br />
entraram nestes palhais<br />
não mais que a bolir co cu:<br />
eu vendo-as, disse, Jesu,<br />
que bem jogam as cambetas!<br />
(AMADO, 1990, p. 1009)
Ilhoa<br />
Inácia<br />
Inácia Barrosa<br />
Substantivo feminino. Apelido da mulata Inácia.<br />
Inácia, chamada Ilhoa<br />
para cada beiçarrão<br />
não bastava um canjirão<br />
com sopas de pão, e broa:<br />
bebeu vinho de Lisboa,<br />
bebeu do Porto, e Canárias,<br />
e vendo, que em copas várias<br />
outras o bebem do Beja,<br />
disse picada de inveja,<br />
ó Virgem das Candelárias!<br />
Substantivo feminino. Nome de uma das mulatas do poeta.<br />
Inácia, vós que me vedes<br />
em tal desesperação<br />
remediai-o senão<br />
dareis por essas paredes:<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
458<br />
(AMADO, 1990, p. 483)<br />
(AMADO, 1990, p, 1144)<br />
Nome próprio de uma prostituta. Em Barrosa, subentenda-se: Barroso com<br />
a primeira grafia, assim us. por efeito de rima com “escabrosa”.<br />
Inês<br />
Jacupema<br />
Faltam outras, que eu deixei,<br />
como é Inácia Barrosa,<br />
que inda que puta escabrosa,<br />
presta, para o que eu bem sei:<br />
(AMADO, 1990, vol. II, p. 1077)<br />
Substantivo feminino. Nome de uma das amantes do poeta.<br />
Adeus Inês amuada,<br />
Que por uma negra pinga<br />
três dias não me falaste,<br />
e me xingaste três dias.<br />
Substantivo feminino. Apelido de uma escrava.<br />
(AMADO, 1990, p. 1036)
Jelu<br />
Lise<br />
Luíza da Prima<br />
Luzia Sapata<br />
Macotinha<br />
Se acaso furtou, Senhor,<br />
algum ovo a Jacupema,<br />
o fez só, para que gema<br />
cos pesos do meu amor:<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
459<br />
(AMADO, 1990, p. 849)<br />
Substantivo feminino. Apelido de uma das mulatas amigas do poeta.<br />
Triste Jelu sem ventura<br />
ali ficou enterrada,<br />
mas foi bem afortunada<br />
de ir morrer à sepultura:<br />
Substantivo feminino. Provavelmente, Beliza.<br />
Lise, porque vos trocastes,<br />
e como um mal me deixastes<br />
em câmbio de um bem, Senhora,<br />
em seres meu mal agora,<br />
Que fostes meu bem, mostrastes.<br />
Substantivo feminino. Apelido de uma negra.<br />
Dizem, Luíza da Prima,<br />
que sois puta feiticeira,<br />
no de puta derradeira,<br />
no de feiticeira prima:<br />
Substantivo feminino. Apelido de uma mulata.<br />
Maribonda, minha ingrata<br />
tão pesada ali se viu,<br />
que desmaiada caiu<br />
sobre Luzia Sapata:<br />
Substantivo feminino. Apelido de uma mulata.<br />
(AMADO, 1990, vol. II, p. 859)<br />
(AMADO, 1990, p. 717)<br />
(AMADO, 1990, vol. II, p. 866)<br />
(AMADO, 1990, p. 478)
Mangá<br />
Maria João<br />
Maria Pereira<br />
Maria Viegas<br />
Marimbonda<br />
Foi com fausto soberano<br />
Macotinha, e a Pelica<br />
assistir à festa rica<br />
dia de São Caetano:<br />
Substantivo feminino. Apelido de uma mulata.<br />
A Mangá com ser de alcorça<br />
dá-se a um Pardo vaganau,<br />
que a cunha do mesmo pau<br />
melhor atocha.<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
460<br />
(AMADO, 1990, vol. II, p. 986)<br />
(AMADO, 1990, p. 1169)<br />
Substantivo feminino. Nome de uma crioula, cortejada pelo poeta.<br />
Estais dada a Berzabu,<br />
Chica, e não tendes razão,<br />
sofrei-me Maria João,<br />
pois eu vos sofro a Mungu:<br />
Substantivo feminino. Uma das musas do poeta.<br />
Adeus Maria Pereira,<br />
Que sempre à mesa assistias<br />
digentemente alegre<br />
c’o a comida e co’a a bebida.<br />
(AMADO, 1990, vol. II, p. 844)<br />
(AMADO, 1990, p. 1036).<br />
Substantivo feminino. Nome de uma negra, a quem o poeta satirizava.<br />
Dize-me Maria Viegas<br />
qual é a causa, que te move,<br />
a quereres, que te prove<br />
todo o home, a quem te entregas?<br />
(AMADO, 1990, vol. I, p. 439) m<br />
Substantivo feminino. Apelido de uma mulata, conhecida do poeta.
Marta<br />
Mingota<br />
Negra Xarifa<br />
mo.<br />
Papa-moleta<br />
Marimbonda, minha ingrata<br />
tão pesada ali se viu,<br />
que desmaiada caiu<br />
sobre Luzia Sapata:<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
461<br />
(AMADO, 1990, p. 478)<br />
Substantivo feminino. Nome de mulher. Era uma das namoradas do poeta.<br />
Marta: mandai-me um perdão<br />
em qualquer continha benta<br />
tocada na vossa venta<br />
passada por vossa mão:<br />
Substantivo feminino. Apelido de uma meretriz.<br />
É mui semelhante a Agrela<br />
a Mingota do Negreiros,<br />
que me mamou os dinheiros,<br />
o pôs-me à orça.<br />
(AMADO, 1990, vol. II, p. 861)<br />
(AMADO, 1990, vol. II, p. 1168)<br />
Expressão. Subentenda-se: negra muçulmana, i.e., que professa o islamis-<br />
mas logo mandou levar<br />
por uma negra Xarifa<br />
a alcativa tão patifa,<br />
(AMADO, 1990, vol. II, p. 994)<br />
Expressão sarcástica. dirigida à Beleta, que capengava de uma das pernas.<br />
Era uma das mulatas que haviam recusado os amores do poeta. No texto, subentendase:<br />
papa-muleta.<br />
Pelica<br />
As mãos pusestes no chão,<br />
e sentindo a terra branda,<br />
da brandura, que tresanda,<br />
tivestes má presunção:<br />
(AMADO, 1990, vol. II, p. 1057)
Puta Andresona<br />
Puta cagajosa<br />
Puta cambaia<br />
Substantivo feminino. Apelido de uma mulata, conhecida do poeta.<br />
Bebeu Pelica, um almude,<br />
e não faltou, quem notasse,<br />
que mil saúdes tragasse;<br />
e ficasse sem saúde:<br />
Substantivo feminino. Apelido de uma conhecida meretriz.<br />
Puta Andresona, eu pecador te aviso,<br />
que o que amor te ti tiver, não terá siso;<br />
tu te finges não ser senão honrada<br />
e nunca vi mentira mais provada:<br />
Substantivo feminino. Provavelmente, meretriz imunda.<br />
que uma Puta cagajosa<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
462<br />
(AMADO, 1990, vol. I, p. 479)<br />
(AMADO, 1990, vol. II, p. 876)<br />
(AMADO, 1990, p. 1086)<br />
Substantivo feminino. Provavelmente, meretriz de pernas tortas ou que<br />
tem o andar claudicante.<br />
Puta Jacutinga<br />
Puta velhaca<br />
A Cabra é puta cambaia,<br />
e em sentindo o membro a vela<br />
por fingir, que inda é donzela,<br />
quando fode, se desmaia:<br />
Substantivo feminino. Provavelmente, meretriz depravada.<br />
tanta pimenta rescaldo,<br />
tanta manipuba impressa<br />
no vão da tal boa peça.<br />
na tal puta Jacutinga<br />
faz, com que sobre a catinga<br />
a minipuba me fessa.<br />
(AMADO, 1990, p. 1086)<br />
(AMADO, 1990, p. 1086)
Quita<br />
Expressão. Provavelmente, meretriz traiçoeira.<br />
espanta-me que tão lerda<br />
fosse uma Puta velhaca,<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
463<br />
(AMADO, 1990, p. 1058)<br />
Substantivo feminino. Fam. No texto, dimin. de Mariquita, mulata cortejada<br />
e amada por Gregório de Matos.<br />
Rola<br />
Samba<br />
Supupema<br />
Vim ao sítio num lanchão,<br />
Quita, e tudo achei trocado,<br />
vós com peito atraiçoado,<br />
e eu vendido por traição:<br />
(AMADO, 1990, vol. II, p. 1154)<br />
Substantivo feminino. Apelido de uma das conhecidas do poeta.<br />
Sou eu acaso o Mazulo,<br />
que, do que tem de outras contas,<br />
dá sem conta cada um ano<br />
cem mil cruzados à Rola?<br />
(AMADO, 1990, vol. II, p. 737)<br />
Substantivo feminino. Apelido de uma das amigas do poeta.<br />
Adeus, Catona Bizarra,<br />
adeus gente da cozinha,<br />
adeus putíssima Samba,<br />
e honestíssima Luzia.<br />
(AMADO, 1990, vol. II, p. 1035)<br />
Adjetivo feminino. Apelido de uma crioula chamada Cipriana, que o poeta<br />
namorava.<br />
Tona<br />
Crioula da minha vida,<br />
Supupema da minha alma,<br />
bonita como umas flores,<br />
e alegre como umas páscoas.<br />
(AMADO, 1990, vol. II, p. 983)
Úrsula<br />
Zabelona<br />
Substantivo feminino. Apelido de Catona.<br />
Estou triste, e solitário<br />
esperando pelo baque<br />
que há de dar, Tona,<br />
esse achaque,<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
464<br />
(AMADO, 1990, vol. II, p. 1030)<br />
Substantivo feminino. Nome de uma mulata, cortejada pelo poeta.<br />
Só vós, Úrsula bizarra,<br />
entre uma e outra borracha<br />
cantáveis como gavacha<br />
sustenidos de guitarra:<br />
Substantivo feminino. Apelido de uma certa Isabel.<br />
Já que a puta Zabelona<br />
anda morta por me ouvir,<br />
eu lhe corto de vestir,<br />
que anda despida a putona:<br />
(AMADO, 1990, vol. II, p. 1017)<br />
(AMADO, 1990, vol. I, p. 632)<br />
AMADO, James. Gregório de Mattos. Obra poética. Rio de Janeiro:<br />
Record, 1990. 2 volumes.<br />
ARAUJO, Ruy Magalhães de. Pérolas recolhidas de Gregório de<br />
Mattos. Rio de Janeiro: Galo Branco, 2009.<br />
SILVA, José Pereira da. Sonetos de Gregório de Matos. Textos selecionados<br />
e estabelecidos com base na Edição Crítica da Obra Poética<br />
de Gregório de Matos, de autoria de Francisco Topa, da Universidade<br />
do Porto. Rio de Janeiro: Botelho, 2008.<br />
WISNIK, José Miguel. Poemas escolhidos de Gregório de Matos.<br />
São Paulo: Cultrix, 1989.
ANÁLISE DE AMBIGUIDADE LEXICAL EM MÚSICAS<br />
1. Ambiguidade<br />
Adriana Hotz Tavares (FASAR)<br />
adrianatavares@unipaclafaiete.edu.br<br />
Aristóteles (384 a.C. - 322 a.C.) considerado o precursor na<br />
discussão sobre as metáforas, em Poética define metáfora como “a<br />
transposição do nome de uma coisa para outra, transposição do gênero<br />
para a espécie, ou da espécie para o gênero, ou de uma espécie para<br />
outra, por via de analogia” (ARISTÓTELES, 1959, p. 312)<br />
Segundo Tânia Serrano Nakamura a função da ambiguidade é<br />
sugerir significados diversos para uma mesma mensagem. É uma figura<br />
de palavra e de construção. Embora funcione como recurso estilístico,<br />
a ambiguidade também pode ser um vício de linguagem, que<br />
decorre da má colocação da palavra na frase. Nesse caso, deve ser<br />
evitada, pois compromete o significado da oração.<br />
Mattoso Câmara (1986) apresenta a seguinte definição de<br />
ambiguidade: “Circunstância de uma comunicação linguística se<br />
prestar a mais de uma interpretação; a antiga retórica grega focalizou-a<br />
na construção da frase sob o nome de Anfibologia”.<br />
Figura 1 – Exemplo de ambiguidade.<br />
A ambiguidade pode se originar do fato da frase ter uma estrutura<br />
sintática suscetível de várias interpretações. O que gera a ambiguidade<br />
são as diferentes possibilidades de reorganizar as sentenças,<br />
ou seja, possibilidade de ocorrência de diferentes estruturas sintáticas<br />
na mesma sentença. Assim, na frase a seguir há duas interpretações:
O magistrado julga as crianças culpadas.<br />
a) O magistrado julga que as crianças são culpadas.<br />
b) O magistrado julga as crianças que são culpadas.<br />
gue.<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
466<br />
Existem várias classificações para a ambiguidade. É o que se-<br />
1.1. Ambiguidade sintática<br />
A ambiguidade sintática é aquela em que a mesma estrutura<br />
de superfície sai de duas (ou mais de duas) estruturas profundas diferentes,<br />
ou seja, não é necessário interpretar cada palavra individualmente<br />
como ambígua, mas se atribui a ambiguidade as distintas estruturas<br />
sintáticas que originam as distintas interpretações: uma sequência<br />
de palavras pode ser analisada em um grupo de palavras de<br />
vários modos.<br />
Exemplo: Jorge ama Rosa tanto quanto João.<br />
É possível inferir que:<br />
a) Jorge ama Rosa tanto quanto João ama Rosa.<br />
b) Jorge ama Rosa tanto quanto ele ama João.<br />
1.2. Ambiguidade de escopo<br />
A ambiguidade de escopo sempre envolve a idéia de distribuição<br />
coletiva ou individual.<br />
Exemplo: As meninas tinham 6 bonecas.<br />
Pode-se interpretar que cada menina tem 6 bonecas ou que 6<br />
bonecas são distribuídas entre todas elas.<br />
1.3. Ambiguidade semântica<br />
Para o professor Dílson Catarino, esta não é gerada pelos itens<br />
lexicais nem na estrutura sintática e nem no escopo da sentença,
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
467<br />
mas sim pelo fato de os pronomes poderem ter diversos antecedentes.<br />
Exemplo: Encontrei João correndo no vale.<br />
Não fica claro na sentença quem corria no vale. João ou eu?<br />
1.4. Ambiguidade visual<br />
São imagens nas quais vemos coisas diferentes, conforme o<br />
enfoque. Com tais imagens, deve-se procurar sempre algo a mais do<br />
que o primeiro olhar nota.<br />
É o que se observa na imagem a seguir, em que é possível ver<br />
uma mulher sentada à penteadeira, ou uma caveira.<br />
Figura 2 – Exemplo de ambiguidade visual.<br />
1.5. Ambiguidade lexical<br />
A ambiguidade lexical consiste na dupla interpretação que incide<br />
apenas sobre o item lexical. Segundo Mattoso Câmara (1986), a<br />
ambiguidade é consequência da homonímia, polissemia e deficiência<br />
dos padrões sintáticos.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
468<br />
A homonímia ocorre quando os sentidos da palavra ambígua<br />
não são relacionados:<br />
Exemplo: Preciso limpar minha manga. (Manga – fruta /<br />
Manga – parte do vestuário)<br />
Figura 1- Exemplo de homonímia.<br />
Já a polissemia ocorre quando os possíveis sentidos da palavra<br />
ambígua têm alguma relação entre si.<br />
Exemplo: Guarda: roupa, chuva, municipal – porque ambos<br />
protegem.<br />
Figura 2- Exemplo de polissemia.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
469<br />
A ambiguidade lexical será o principal foco deste artigo sob o<br />
prisma de sua aplicabilidade nas músicas.<br />
2. Análise das músicas sob o prisma da ambiguidade lexical<br />
Dentro de um mesmo estilo musical há frases em que é possível<br />
perceber a duplicidade de sentido sem dificuldades e outras nas<br />
quais a ambiguidade está em entrelinhas. É o caso do sertanejo caipira,<br />
que é a execução composta e executada das zonas rurais, do<br />
campo, a antiga moda de viola; e o breganejo, que consiste em uma<br />
nova roupagem do sertanejo de raiz que tem pouca temática rural a<br />
fim de agradar habitantes de cidades grandes. Na diferenciação<br />
dessas ramificações do sertanejo, principal enfoque de estilo musical<br />
desta pesquisa, observa-se que ambas apresentam ambiguidade<br />
lexical, mas que se dão em diferentes níveis de percepção.<br />
Observe:<br />
No Sertanejo de raiz:<br />
A Caneta e a Enxada<br />
Zico e Zeca<br />
Composição: Capitão Barduíno e Teddy Vieira<br />
Certa vez uma caneta foi passear lá no sertão<br />
Encontrou-se com uma enxada, fazendo uma plantação.<br />
A enxada muito humilde, foi lhe fazer saudação,<br />
Mas a caneta soberba não quis pegar na sua mão.<br />
E ainda por desaforo lhe passou uma repreensão.<br />
Disse a caneta pra enxada não vem perto de mim, não<br />
Você está suja de terra, de terra suja do chão<br />
Sabe com quem está falando, veja sua posição<br />
E não se esqueça a distância da nossa separação.<br />
Eu sou a caneta dourada que escreve nos tabelião<br />
Eu escrevo pros governos a lei da constituição<br />
Escrevi em papel de linho, pros ricaços e barão<br />
Só ando na mão dos mestres, dos homens de posição.<br />
A enxada respondeu de fato eu vivo no chão,<br />
Pra poder dar o que comer e vestir o seu patrão<br />
Eu vim no mundo primeiro quase no tempo de Adão<br />
Se não fosse o meu sustento ninguém tinha instrução.
Vai-te caneta orgulhosa, vergonha da geração<br />
A tua alta nobreza não passa de pretensão<br />
Você diz que escreve tudo, tem uma coisa que não<br />
É a palavra bonita que se chama.... educação!<br />
No breganejo:<br />
Lembranças De Amor<br />
Veja só<br />
Sei que palavras não consertam nada<br />
Mas eu acho que é melhor<br />
A gente conversar<br />
Afinal<br />
O nosso caso não difere de outros casos<br />
Que acabaram mal<br />
E só pra te lembrar<br />
Eu já sofri demais<br />
Mas longe de você<br />
Sofrerei bem mais<br />
Refrão:<br />
Preciso te dizer o que acontece com meu sentimento<br />
Chego em casa, não te vejo<br />
O meu desejo é te ligar correndo<br />
E pouco a pouco, a solidão e o silêncio me abraçam<br />
Minha alegria passou<br />
Só as lembranças de amor, não passam...<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
470<br />
Victor e Leo<br />
Composição: Victor Chaves<br />
“A caneta e a enxada” enquadra-se no sertanejo de raiz. Esse<br />
apólogo de sucesso até hoje foi lançado em 1956 na gravadora<br />
Colúmbia inaugurando a dupla Zico e Zeca. Infere-se a percepção<br />
pelo caipira do distanciamento entre as classes sociais: essa canção<br />
tem implicita uma metáfora sutil na qual a caneta representa a classe<br />
de pessoas que dominam as ciências humanas ou exatas, os<br />
detentores do conhecimento e a enxada representa as pessoas que<br />
trabalham nos campos, nos sertões; que ganham a vida com o<br />
trabalho braçal. Sendo assim, observa-se o emprego de uma<br />
ambiguidade lexical porque ocorre nos termos “caneta” e “enxada”,
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
471<br />
isto é, no elemento lexical. Outro ponto a ser considerado é a<br />
maneira com que as palavras são pronunciadas nessa música. Os<br />
cantores Zico e Zeca fazem juz a música caipira e pronunciam<br />
“prantação” ao invés de plantação, “pusição” ao invés de posição e<br />
deixam claro o sotaque nas consoantes L e R em termos como alta e<br />
orgulhosa. Além disso não usam o plural de maneira adequada,<br />
dizendo “pros ricaço” no lugar de “para os ricaços” e “dos homi” no<br />
lugar de “dos homens”. Isso dá à música naturalidade e remete ao<br />
verdadeiro sertanejo de raiz. Um último fator a ser destacado é o tipo<br />
de instrumentos usados (como a viola) e a falta de tecnologia: a<br />
música gravada não passou por montagens computadorizadas.<br />
A segunda canção, “Lembrança de amor” enquadra-se no<br />
breganejo e tornou-se um enorme sucesso nos últimos meses.<br />
Apresenta metáforas de identificação mais clara. É o que pode ser<br />
observado na seguinte sentença, por exemplo: “Te ligar correndo” –<br />
ao ouvir essa frase, fica claro que o autor não referia-se a ação de<br />
correr, andar rapidamente, mas ao fato de que ele ligaria<br />
imediatamente após chegar em casa. Um outro exemplo nesta canção<br />
é a expressão: “a solidão e o silêncio me abraçam” – sabemos que<br />
solidão e silêncio são substantivos abstratos e que não poderiam<br />
abraçar um ser humano. Trata-se da relação de envolvimento que<br />
esses sentimentos estabelecem com o eu-lírico.<br />
Deste modo, observa-se novamente um caso de ambiguidade<br />
lexical porque a duplicidade de sentido está no emprego da<br />
conotação das palavras. Ressalta-se ainda o uso de vocabulário<br />
comum do dia-a-dia, sem predominância de sotaque. O instrumental<br />
é mais elaborado, com uso de teclado e outros instrumentos não<br />
encontrados no sertanejo de raiz. Além disso, as músicas são feitas<br />
com apoio de recursos tecnológicos que melhoram a voz dos artistas<br />
e fazem as canções ficaram mais atraentes e compatíveis com o<br />
gosto dos jovens – público alvo do breganejo.<br />
3. Conclusão<br />
Como foi visto “A caneta e a enxada” e “Lembrança de amor”<br />
diferem-se nos instrumentos musicais usados, no público alvo, na<br />
abordagem do tema e no tipo de ambiguidade lexical.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
472<br />
Ao abordarmos a ambiguidade lexical existente nas canções<br />
“A caneta e a enxada” e “Lembrança de amor”, nos referimos a<br />
metáforas aristotélicas, que são aquelas em que “a metáfora é uma<br />
‘criação linguística’, pois a língua não é apenas veículo comum, ela é<br />
também um meio de despertar emoções e de as fazer surgir nos outros”,<br />
conforme o próprio Aristóteles diz.<br />
Observa-se então que apesar de tratar-se de duas ramificações<br />
diferentes de um mesmo estilo musical, ambas apresentam ambiguidade<br />
lexical, mas que aparecem em níveis diferentes de entendimento.<br />
Enquanto uma apresenta uma ambiguidade lexical gerada por<br />
uma metáfora mais visível “Lembrança de amor”, a outra não deixa<br />
claro que se trata de ambiguidade e os interlocutores usualmente remetem-se<br />
ao sentido conotativo da canção (“A caneta e a enxada”).<br />
A linguagem metafórica é, sem dúvida, uma das principais estratégias<br />
expressivas disponíveis na língua. A metáfora lexical, então,<br />
é entendida a partir dos padrões da palavra, pelos quais se estabelecem<br />
principalmente as relações de semelhança. Utilizar uma metáfora<br />
implica em empregar um termo em lugar de outro, seja como desvio,<br />
como um empréstimo semântico ou como uma substituição.<br />
Dessa forma, quando se entende a metáfora como figura de linguagem,<br />
vemos que, no âmbito da figura, a metáfora assemelha-se a<br />
uma imagem. Quanto a esta aproximação conceitual, Aristóteles afirma:<br />
A imagem é igualmente uma metáfora; entre uma e outra a diferença<br />
é pequena. [...] Podemos empregar todas estas expressões quer como imagens,<br />
quer como metáforas. Todas as que saborearmos como metáforas<br />
servirão também manifestamente como imagens e as imagens, por<br />
sua vez, serão metáforas a que não falta senão uma palavra (ARISTÓ-<br />
TELES, 1959, p. 201).<br />
Partindo desse pressuposto, observa-se a presença de<br />
ambiguidades em vários outros estilos musicais além do sertanejo<br />
abordado neste artigo. Entre outros destacam-se:<br />
– Na Música Popular Brasileira<br />
No dia em que a Terra parou (Raul Seixas)<br />
E o aluno não saiu para estudar<br />
Pois sabia o professor também não tava lá<br />
E o professor não saiu pra lecionar
– No funk<br />
– No axé<br />
– No pagode<br />
Pois sabia que não tinha mais nada pra ensinar<br />
No dia em que a Terra parou (Ôôôô)<br />
Deu mole prá caramba<br />
É um tremendo vacilão<br />
Tá todo arrependido<br />
Vai comer na minha mão<br />
Isso aqui vai pegar fogo<br />
Temperatura sobe<br />
É não tem como controlar<br />
É fogo de alegria<br />
Se dou a mão, quer logo o pé<br />
Isso me aborrece<br />
Sai pra lá bicão, sai pra lá mané<br />
Vê se desaparece<br />
É toda a hora meu cumpadre<br />
Quebra o galho aí<br />
Tremendo vacilão (Perlla)<br />
É fogo (Harmonia do Samba)<br />
Sai da minha aba (Só pra contrariar)<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
473<br />
Acredita-se ainda, que esse recurso seja usado para dar um<br />
tom de humor às músicas e deixá-las mais próximas da linguagem<br />
cotidiana do povo, afinal, essa é uma das principais intenções da<br />
música, alegrar a vida das pessoas. Cada estilo musical é destinado a<br />
determinado público-alvo, e para atingi-lo é necessário que os<br />
autores usem uma linguagem mais próxima da realidade dessas<br />
pessoas, ainda sim, trata-se de um objeto de lazer e descontração,<br />
talvez por isso dispõem, em grande parte das músicas, de linguagem<br />
não tão formal, o que é mais acessível e usado no dia a dia. Infere-se,<br />
ainda, que a temática das músicas também muda: no sertanejo<br />
caipira os temas são comumente de problemas de amor ou de<br />
denúncia social e no breganejo a abordagem dá-se de forma<br />
diferenciada.<br />
Nas músicas “A Caneta e a enxada” e “Lembrança de amor”<br />
foi possível perceber observar uma linguagem não tão rebuscada o
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
474<br />
que torna as canções mais abrangentes. Em “A caneta e a enxada” foi<br />
vista uma metáfora aristotélica, usada não para descontração, mas<br />
para a realização de uma crítica social mais sutil. Em contraposição<br />
em “Lembrança de amor” observou-se uma linguagem ainda mais<br />
descontraída na qual as ambiguidades foram usadas para que a letra<br />
ficasse mais próxima da linguagem do público alvo do breganejo.<br />
É o que afirma Letícia Vianna no artigo Movimentos musicais<br />
e identidades sociais no contexto da cultura de massa no Brasil:<br />
uma reflexão caleidoscópica (p 71): "Música é um complexo e diversificado<br />
lugar de interação social, criação e reprodução de representações<br />
que falam de culturas e identidades específicas".<br />
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
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Vozes, 1986.<br />
CANÇADO, Márcia. Manual de semântica. Belo Horizonte: UFMG,<br />
2005.<br />
CHOMSKY, N. Estruturas sintáticas. Hague: Mounton, 1957.<br />
______. O conhecimento da língua: sua natureza, origem e uso. Tradução<br />
Anabela Gonçalves e Ana Tereza Alves. Lisboa: Caminho,<br />
1986.<br />
Dicionário Michaelis – DTS Softwares Brasil Ltda.<br />
DUCROT, Oswald. O dizer e o dito. Campinas: Pontes, 1988.<br />
FIORIN, José Luiz. (Org.). Introdução à linguística: objetos teóricos.<br />
São Paulo: Contexto, 2002.<br />
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Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
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http://letras.terra.com.br/<br />
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http://pt.wikipedia.org/wiki/Ax%C3%A9_music<br />
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http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%BAsica_sertaneja<br />
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JAKOBSON, Roman. Linguística e comunicação. São Paulo: Cultrix,<br />
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MARTINET, A. Elementos de linguística geral. 8. ed. São Paulo:<br />
Martins Fontes, 1878.<br />
ORLANDI, Eni Pulcinelli. O que é linguística. São Paulo: Editora<br />
Brasiliense, 1986.<br />
SAUSSURE, Ferdinand. Curso de linguística geral. São Paulo: Cultrix/Edusp,<br />
1969.<br />
www.klickeducacao.com.br/2006
ANÚNCIOS E LETREIROS DO COMÉRCIO POPULAR:<br />
GÊNEROS EM DISCUSSÃO<br />
1. Considerações iniciais<br />
Osvaldo Barreto Oliveira Júnior (IF Baiano, UFAC)<br />
osvaldobojr@yahoo.com.br<br />
Os estudos de Mikhail Bakhtin (2003 e 2006) 1 instauraram<br />
uma concepção de língua centrada nas funções sociocomunicativas<br />
da linguagem humana, ou seja, como fato social fundado nas necessidades<br />
de comunicação; por isso, dinâmico, evolutivo e concreto.<br />
Essa concepção questionou os paradigmas abstrato e subjetivista, nos<br />
quais a língua era entendida, respectivamente, como um sistema de<br />
regras imutáveis e como uma criação mental do falante.<br />
Ao valorizar o caráter social da linguagem humana, Bakhtin<br />
(2003) entende a língua como veículo de comunicação vivo, que deve<br />
ser compreendido nos contextos de uso. Além disso, argumenta<br />
que a concretização dos produtos de linguagem efetiva-se mediante a<br />
interativa social, negando, portanto, que a enunciação seja monológica,<br />
para afirmar o caráter dialógico da linguagem. Nessa lógica, o<br />
diálogo é concebido como essência de toda comunicação verbal, isto<br />
é, toda construção linguística é fruto da interação entre sujeitos sócio<br />
e historicamente situados.<br />
Vale ressaltar que, quando propõe o diálogo como essência da<br />
interação verbal, Bakhtin define-o em um sentido mais amplo, não o<br />
restringindo à interação verbal face a face:<br />
O diálogo, no sentido estrito do termo, não constitui, é claro, senão<br />
uma das formas, é verdade que das mais importantes, da interação<br />
verbal. Mas pode-se compreender a palavra “diálogo” num sentido mais<br />
amplo, isto é, não apenas como a comunicação em voz alta, de pessoas<br />
colocadas face a face, mas toda comunicação verbal, de qualquer tipo<br />
que seja. (BAKHTIN, 2006, p. 127)<br />
1 As edições das obras de Bakhtin lidas para fundamentar este artigo datam de 2003 e 2006,<br />
mas as ideias desse linguista russo foram disseminadas desde a segunda metade do século<br />
XX.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
477<br />
Assim, nas palavras de Bakhtin (2006), a comunicação verbal<br />
é sempre dialógica, pois a palavra sempre comporta duas faces: procede<br />
de alguém que, através da interação social, se dirige a outro(s)<br />
interlocutor(es). Isso significa que o signo linguístico só congrega<br />
sentidos através da interação realizada no convívio social. Trata-se,<br />
portanto, de um posicionamento sociointeracionista acerca da linguagem<br />
humana, que elege o dialogismo como condição de existência<br />
da própria língua e, por conseguinte, dos produtos de linguagem.<br />
Essa vertente dos estudos linguísticos prioriza – como objeto<br />
de estudo – as formas nas quais as ações linguísticas (interlocuções)<br />
se concretizam, os gêneros discursivos (ou gêneros textuais) 2 , pois,<br />
através deles, podem ser percebidos os sentidos que são construídos<br />
(por meio de) e com a língua, já que os gêneros possuem existência<br />
concreta e revelam os modos culturais de uso da leitura, da escrita e<br />
da oralidade.<br />
Os gêneros não surgem de mecanismos autônomos da língua,<br />
mas da associação dos conhecimentos linguísticos socialmente construídos<br />
com as ações históricas, ideológicas, discursivas e cognitivas<br />
culturalmente elaboradas em contextos sociais específicos. Como toda<br />
ação de linguagem se estrutura através de uma forma mais ou menos<br />
estabilizada, torna-se coerente afirmar que os gêneros discursivos<br />
são indispensáveis à interlocução humana, ou melhor, a comunicação<br />
humana somente se concretiza através da articulação dos gêneros<br />
textuais. Dessa forma, concordamos com Marcuschi (2008, p.<br />
161), quando ele afirma:<br />
Os gêneros são atividades discursivas socialmente estabilizadas que<br />
se prestam aos mais variados tipos de controle e até mesmo ao exercício<br />
de poder. Pode-se, pois, dizer que os gêneros textuais são nossa forma de<br />
inserção, ação e controle social no dia a dia. Toda e qualquer atividade<br />
discursiva se dá em algum gênero que não é decidido ad hoc, como já<br />
lembrava Bakhtin ([1953]1979) em seu célebre ensaio sobre os gêneros<br />
do discurso. Daí também a imensa pluralidade de gêneros e seu caráter<br />
essencialmente socio-histórico. Os gêneros são também necessários para<br />
a interlocução humana.<br />
2 Neste artigo, concebemos as expressões “gêneros discursivos” e “gêneros textuais” como<br />
equivalentes, tal qual Marcuschi (2001, p. 42-43) em Letramento e Oralidade no Contexto das<br />
Práticas Sociais e Eventos Comunicativos.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
478<br />
Como se vê, a comunicação verbal é condicionada pelos gêneros<br />
discursivos de tal modo “que é impossível se comunicar verbalmente<br />
a não ser por algum gênero” (MARCUSCHI, 2003, p. 22).<br />
Ademais, vale salientar que os gêneros representam formas de controle<br />
social e possibilitam o exercício do poder, já que legitimam o<br />
discurso. Por essa razão, nas sociedades ocidentais, alguns gêneros<br />
possuem maior prestígio que outros, pois, na valoração de um discurso<br />
empiricamente realizado, questões como o prestígio da esfera<br />
social em que circula, o nível de formalidade da linguagem e a posição<br />
social dos interlocutores são preponderantes.<br />
Contudo, embora aceitemos que haja gêneros de maior prestígio,<br />
não podemos subestimar o valor e a funcionalidade dos gêneros<br />
textuais que circulam em contextos sociais menos formais e, por<br />
questões econômicas e ideológicas, também menos valorizados. Por<br />
essa razão, associamos, neste trabalho, duas correntes teóricas que<br />
investigam a relação linguagem e sociedade (a das práticas sociais de<br />
letramento e a dos gêneros textuais), para discutir os aspectos que<br />
definem a identidade de um gênero – circulação sócio-histórica, funcionalidade,<br />
conteúdo temático, construção composicional e estilo –<br />
a partir da análise de anúncios e letreiros do comércio popular, que<br />
são exemplo de práticas sociais concretizadas à margem da escola,<br />
com pouco ou nenhuma influência das normas linguísticas valorizadas<br />
nas instituições formais de ensino.<br />
2. Práticas sociais de letramento e gêneros textuais<br />
O desenvolvimento de práticas de oralidade, leitura e escrita<br />
envolve processos complexos, em que os aspectos socioculturais,<br />
históricos e ideológicos são determinantes, haja vista que os modos<br />
de articulação da linguagem verbal dependem das condições de vida<br />
dos sujeitos. Nessa lógica, compreender os usos linguísticos concretizados<br />
por sujeitos sócio e historicamente situados implica reconhecer<br />
que os usos da língua são variados e condicionados pelas características<br />
das atividades humana.<br />
De forma análoga, Mikhail Bakhtin (2003, p. 262) apregoa<br />
que a elaboração dos gêneros discursivos é determinada pelas formas<br />
culturais de interação desenvolvidas nos diversos campos de ativida-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
479<br />
des humanas. Como são muitos e variados os campos de atuação<br />
humana, a diversidade de gêneros é enorme. Assim, para compreender<br />
os gêneros, faz-se também indispensável associá-los às esferas de<br />
circulação ou aos domínios discursivos que os põem em evidência,<br />
que os legitimam, que os fazem assumir determinadas formas, em<br />
vez de outras.<br />
No artigo Letramento e oralidade no contexto das práticas<br />
sociais e eventos comunicativos, Luiz Antônio Marcuschi (2001, p.<br />
43) afirma que os gêneros textuais são construídos socialmente e<br />
congregam propriedades dos textos empíricos produzidos para fins<br />
de interação verbal. Esses gêneros podem ser orais e/ou escritos, e<br />
muitos deles envolvem letramento e oralidade de forma simultânea.<br />
Por essa razão, os gêneros textuais são inseridos no contexto das discussões<br />
sobre as práticas sociais de letramento, que valorizam os usos<br />
linguísticos que surgem e se desenvolvem à margem da escola.<br />
O modelo que pretendo sugerir como adequado para tratar dos problemas<br />
do letramento é o que parte da observação das relações entre oralidade<br />
e letramento na perspectiva do contínuo das práticas sociais e atividades<br />
comunicativas, envolvendo parcialmente o modelo ideológico<br />
(em especial o aspecto da inserção da fala e da escrita no contexto da<br />
cultura e da vida social) e observando a organização das formas linguísticas<br />
no contínuo dos gêneros textuais. Trata-se de uma questão que possibilita<br />
um leque muito grande de análise sem trazer como central a questão<br />
ideológica e sem se fixar na morfossintaxe nem em modelos estratificados<br />
e alienados da realidade sociocomunicativa. (MARCUSCHI, 2001,<br />
p. 28)<br />
A perspectiva social do fenômeno letramento insere-se no<br />
contexto das proposições sobre o sociointeracionismo da linguagem,<br />
concebendo leitura e escrita como práticas sociais que se concretizam<br />
em contextos comunicativos diversos, conforme as especificidades<br />
socioideológicas dos contextos de interação verbal. Essa acepção<br />
social do processo de aquisição e desenvolvimento da linguagem<br />
engloba as nuanças políticas, culturais, sociais e ideológicas do uso<br />
da língua, salientando a existência de um contínuo de relações entre<br />
fala e escrita, do qual surgem e se desenvolvem os gêneros discursivos,<br />
para suprir as necessidades de comunicação verbal entre os integrantes<br />
dos diferentes campos de atuação humana.<br />
A conjuntura teórica das práticas sociais de letramento mostra-se<br />
vinculada à perspectiva sócio-histórica e cultural de aborda-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
480<br />
gem dos gêneros textuais, que – sob influência dos estudos de Bakhtin<br />
e, em especial, norteada por interesses antropológicos, sociológicos<br />
e etnográficos – volta-se para a análise da organização social e<br />
das relações de poder que os gêneros representam. Nessa perspectiva,<br />
“A atenção não se volta para o ensino e sim para a compreensão<br />
do funcionamento social e histórico dos produtos concretos de linguagem”<br />
(MARCUSCHI, 2008, p. 153, grifo nosso).<br />
O modelo das práticas sociais de letramento preocupa-se com<br />
as relações entre oralidade e escrita e a influência dessas nas práticas<br />
sociais de interação verbal. Essas práticas são importantes, pois revelam<br />
os modos culturais de uso do letramento. Numa mesma sociedade,<br />
os usos da língua escrita e da língua oral são influenciados por<br />
contextos socioculturais específicos. Por essa razão, o letramento deve<br />
ser compreendido através da análise dos gêneros discursivos escritos<br />
e/ou orais, pois há gêneros híbridos, numa perspectiva sociointerativa<br />
de ações de usos da língua em contextos socioculturais situados,<br />
posto que se desenvolvem para garantir a interlocução, uma<br />
das atividades através das quais o homem se sociabiliza.<br />
3. Gêneros em discussão3<br />
Por serem formas de ação social, os gêneros do discurso estão<br />
intrinsecamente relacionados às esferas sociais em que circulam, ou,<br />
nas palavras de Bakhtin (2003, p. 262), aos campos da atividade humana.<br />
Por isso, as formas concretas de materialização do discurso,<br />
embora sejam relativamente estáveis, variam conforme as características<br />
do contexto social em que se desenvolvem. Nesse raciocínio,<br />
investigar a formatação de um gênero não implica apenas estudar as<br />
suas características linguísticas, mas, sobretudo, discutir as nuanças<br />
sociais, históricas e discursivas envolvidas em sua concretização.<br />
Por esse motivo, priorizamos, nessa discussão, as questões<br />
que, segundo Bakhtin (2003, p. 261), definem as formas dos enunciados<br />
– o conteúdo temático, o estilo da linguagem e a construção<br />
composicional –, já que esses aspectos são determinados pelas especificidades<br />
dos atos de interação verbal e pelas características soci-<br />
3 Os exemplares analisados neste artigo estão disponíveis nos anexos.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
481<br />
ais, históricas e ideológicas dos sujeitos envolvidos no processo de<br />
comunicação.<br />
Antes das questões supracitadas, abordamos as especificidades<br />
de “circulação sócio-histórica e funcionalidade” (MARCUSCHI,<br />
2003, p. 24) dos gêneros em voga, que, associadas às anteriores, representam<br />
os principais aspectos identitários dos gêneros textuais.<br />
Essa abordagem é coerente com os propósitos deste trabalho, pois se<br />
funda na noção de gênero como “formas verbais de ação social relativamente<br />
estáveis realizadas em textos situados em comunidades de<br />
práticas sociais e em domínio discursivos específicos” (MARCUS-<br />
CHI, 2003, p. 25).<br />
3.1 Circulação sócio-histórica<br />
Os textos analisados neste artigo foram colhidos, durante o<br />
segundo semestre de 2008 e primeiro semestre de 2009, no comércio<br />
popular que circunda o terminal urbano da cidade de Rio Branco-<br />
AC, para composição do corpus da pesquisa desenvolvida no curso<br />
de Mestrado em Letras: Linguagem e Identidade (2007-2009), da<br />
Universidade Federal do Acre (UFAC), que resultou na dissertação<br />
intitulada Práticas de Oralidade, Leitura e Escrita no Comércio Popular<br />
do Centro da Cidade de Rio Branco-AC, orientada pela professora<br />
Dra. Luciana Marino do Nascimento (UFAC).<br />
Nesse trabalho de pesquisa, discutimos as características da<br />
variante linguística concretizada nos gêneros agora retomados, usando<br />
um procedimento etnográfico, pois visávamos ao estudo e descrição<br />
de práticas linguísticas desenvolvidas por uma comunidade específica.<br />
Esse olhar etnográfico também nos orienta agora, quando<br />
optamos por discutir os aspectos que definem a identidade dos anúncios<br />
e letreiros em voga.<br />
Rio Branco, capital do estado do Acre, é uma cidade com aproximadamente<br />
350.000 (trezentos e cinquenta mil) habitantes, que<br />
cresceu e se desenvolveu fortemente na última década. A população<br />
é composta, em sua maioria, por descendentes de nordestinos, sobretudo<br />
cearenses, que desbravaram a floresta, no início do século XX,<br />
para extrair a seringa, matéria-prima da borracha. No entanto, em
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
482<br />
virtude do desenvolvimento experimentado nos últimos anos, a cidade<br />
também possui habitantes que advieram de outras regiões do Brasil,<br />
e até do mundo, devido ao interesse que a floresta amazônica<br />
desperta.<br />
No centro da cidade, ao lado do terminal urbano, existe um<br />
comércio popular que reúne diversos lojistas e vendedores ambulantes.<br />
Trata-se de trabalhadores formais e informais que desenvolvem<br />
suas atividades profissionais, através da comercialização de mercadorias<br />
de baixo preço, em empreendimentos simples, voltados para o<br />
público de baixa renda e transeuntes ocasionais. Circulam, por esses<br />
centro comercial, praticamente todos os habitantes que necessitam de<br />
transporte urbano coletivo para se locomoverem.<br />
Como todo gênero textual precisa de um suporte para circular<br />
socialmente, é importante especificar, para determinar os contextos<br />
de circulação sócio-histórica dos gêneros por ora discutidos, os tipos<br />
de suporte que registramos no comércio popular em questão. Antes,<br />
contudo, vale esclarecer “que suporte de um gênero é uma superfície<br />
física em formato específico que suporta, fixa e mostra um texto”<br />
(MARCUSCHI, 2008, p. 174). Assim, o suporte possibilita a materialização<br />
do discurso em texto.<br />
No comércio popular pesquisado, encontramos suportes variados<br />
que possibilitam a veiculação social dos anúncios e letreiros registrados,<br />
a saber: pôsteres, paredes de lojas, papéis variados, pedaços<br />
de papelão, placas luminosas, carrinho de picolé, pedaços de<br />
madeira etc. Essa gama de materiais demonstra que as condições socioeconômicas<br />
dos interlocutores são preponderantes na escolha do<br />
material de divulgação, um indício de que os textos assumem as<br />
formas condicionadas pela esfera discursiva em que circulam: por<br />
ser um comércio popular e variado, a informalidade dos atos de interação<br />
verbal é proeminente, resultando também na simplicidade, e<br />
até improvisação, dos suportes utilizados.<br />
3.2 Funcionalidade e conteúdo temático<br />
Os gêneros discursivos permitem-nos realizar linguisticamente<br />
nossas intenções, externar nossos objetivos em situações comuni-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
483<br />
cativas específicas, enfim, concretizar nossa vontade discursiva, que<br />
é realizada, a priori, na escolha do gênero. Nessa lógica, adaptamos<br />
nossas intenções ao gênero do discurso, cujo conteúdo e forma tendem<br />
a se adequar, dentre outros condicionantes, à situação concreta<br />
de comunicação, aos sujeitos participantes da interlocução e às características<br />
do campo discursivo.<br />
A vontade discursiva do falante se realiza antes de tudo na escolha<br />
de um certo gênero de discurso. Essa escolha é determinada pela especificidade<br />
de um campo da comunicação discursiva, por considerações<br />
semântico-objetais (temáticas), pela situação concreta de comunicação<br />
discursiva, pela composição pessoal dos seus participantes, etc. A intenção<br />
discursiva do falante, com toda a sua individualidade e subjetividade,<br />
é em seguida aplicada e adaptada ao gênero escolhido, constitui-se e desenvolve-se<br />
em uma determinada forma de gênero. (BAKHTIN, 2003, p.<br />
282)<br />
A leitura do texto supracitado ratifica a ideia de que os gêneros<br />
legitimam, nos contextos de interação verbal, as formas do dizer<br />
e funcionam conforme as intenções linguístico-discursivas dos falantes.<br />
Por essa razão, a determinação de um gênero textual leva sempre<br />
em conta a natureza dos objetivos das atividades desenvolvidas e as<br />
intenções do produtor do discurso concretizadas através do gênero<br />
selecionado, pois “Quando dominamos um gênero textual, não dominamos<br />
uma forma linguística e sim uma forma de realizar linguisticamente<br />
objetivos específicos em situações sociais particulares.”<br />
(MACUSCHI, 2003, p. 29)<br />
Na esfera publicitária, por exemplo, os gêneros discursivos<br />
que se prestam à divulgação ou propagação de serviços e produtos<br />
geralmente revelam a intenção de conquistar, seduzir o cliente, levando-o<br />
a consumir/contratar o produto/serviço anunciado, através<br />
da veiculação de conteúdos que, via de regra, ressaltam as qualidades<br />
do objeto anunciado. Esse intuito determina a funcionalidade linguístico-discursiva<br />
dos textos, respaldando-o em estratégias do dizer, cujo<br />
modo de funcionamento da linguagem predominante é o apelativo.<br />
Dessa forma, mesmo que distintas sequências linguísticas estejam<br />
presentes em um gênero publicitário, normalmente ganham maior<br />
destaque – não pela quantidade, e sim pelo enfoque – as sequências<br />
injuntivas, que acionam enunciados incitadores de ações (do consumo).
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
484<br />
Os letreiros e anúncios do comércio popular também são gêneros<br />
de divulgação de produtos, serviços, estabelecimentos comerciais<br />
etc.; mas, devido à esfera de circulação e ao campo de atividade<br />
humana em que inserem, eles possuem características bastante distintas<br />
das formas discursivas do âmbito da publicidade. Enquanto<br />
nestas a formulação dos enunciados é determinada por uma complexa<br />
estrutura funcional, que atribui aos textos caráter profissional, estilo<br />
sofisticado e conteúdo formulado a partir de pesquisas de opinião<br />
pública; nos anúncios e letreiros, a informalidade e o caráter popular<br />
da atividade desenvolvida são determinantes na construção de textos<br />
simples, objetivos e materializados segundo as condições de letramento<br />
social do falante.<br />
No tocante à funcionalidade e ao conteúdo temático, os anúncios<br />
e letreiros registrados no comércio popular do centro de Rio<br />
Branco-AC revelam, principalmente, a intenção de informar o possível<br />
cliente ou passante sobre as especificidades do negócio, os preços<br />
dos produtos e serviços, promoções, horário de expediente, ou<br />
até mesmo veicular pedidos de ajuda. Existe, portanto, uma diferença<br />
essencial entre a intenção concretizada nos gêneros em foco e aquela<br />
que geralmente é acionada no discurso publicitário, que preza pela<br />
ação de seduzir, de conquistar o cliente. Isso pode ser constatado através<br />
do modo de funcionamento da linguagem, pois nos textos analisados<br />
prevalece a função informativa, enquanto que, na publicidade,<br />
geralmente a função apelativa (conativa) é proeminente.<br />
Nesses letreiros, alguns feitos de forma improvisada, com materiais<br />
diversos, torna-se saliente a necessidade do locutor (produtor<br />
das mensagens) de estabelecer comunicação com os interlocutores<br />
(passantes eventuais, possíveis clientes etc.), a fim de conquistar o<br />
comprador (placas que anunciam mercadorias, serviços e preços),<br />
seduzir o passante (letreiros que divulgam supostas qualidades dos<br />
estabelecimentos), informar aos clientes (placas que indicam horário<br />
de almoço e de funcionamento etc.) e até mesmo pedir ajuda financeira<br />
(letreiro em que a vendedora solicita ajuda para um parente enfermo).<br />
Em todos esses casos, a elaboração dos gêneros é definida<br />
por uma necessidade pragmática, utilitária, daí a formatação de textos<br />
breves, sintéticos e centrados na função de informar conteúdos<br />
relacionados à atividade comercial desenvolvida.
3.3 Estilo da Linguagem e Construção Composicional<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
485<br />
Na hipótese sociointeracionista de língua, os textos não são<br />
produções individuais que dependem, exclusivamente da vontade do<br />
falante, e sim produtos da ação social desenvolvida; por isso, revelam<br />
os modos socioculturais e históricos de articulação da linguagem<br />
na esfera social em que circula. Nas palavras de Marcuschi (2003, p.<br />
35):<br />
Considerando que os gêneros independem de decisões individuais e<br />
não são facilmente manipuláveis, eles operam como geradores de<br />
expectativas de compreensão mútua. Gêneros textuais não são fruto de<br />
invenções individuais, mas formas socialmente maturadas em práticas<br />
comunicativas. Esta era também a posição de Bakhtin [1997] que, como<br />
vimos, tratava os gêneros como atividades enunciativas “relativamente<br />
estáveis”.<br />
Dessa forma, ao acionar a linguagem para estabelecer comunicação<br />
social, o sujeito necessita articulá-la na forma dos gêneros<br />
do discurso, que têm a sua composição definida socialmente. Esses<br />
gêneros geram expectativa no falante, pois são relativamente estáveis.<br />
Assim, quando recebe uma carta, o interlocutor já imagina em<br />
qual composição se enquadra o texto, pois, socialmente, o gênero<br />
carta assume determinados aspectos que lhe são próprios, que lhe identificam<br />
enquanto um gênero de correspondência e não outro.<br />
É claro que renovações podem acontecer, transformando a<br />
composição típica de um gênero, pois, como produto de linguagem,<br />
os gêneros também são suscetíveis às transformações e mudanças<br />
que ocorrem no meio social. Ademais, há também o fenômeno da intergenericidade,<br />
pois há gêneros que apresentam configuração híbrida,<br />
ou seja, que se apropriam da forma de outros gêneros para materializar<br />
o discurso. Isso é muito comum nos campos de atividade<br />
humana em que a criatividade ou espontaneidade norteiam a construção<br />
textual, mas nem tanto naquelas atividades formais nas quais<br />
a formatação do discurso deve seguir rigorosamente as formas preestabelecidas.<br />
No entanto, apesar das mudanças e transformações a que os<br />
produtos de linguagem são suscetíveis, é preciso admitir, tal qual<br />
Bakhtin, que os gêneros discursivos possuem formas relativamente<br />
estáveis que os caracterizam. Por esse motivo, as construções com-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
486<br />
posicionais dos gêneros geralmente alinham-se às formas definidas<br />
nos diversos campos de atividade humana. Nessa lógica, discutir o<br />
estilo e a construção composicional de gêneros veiculados em certa<br />
esfera social representa compreender os modos socioculturais de interação<br />
verbal articulados num contexto específico.<br />
Na esfera do comércio popular do centro da cidade de Rio<br />
Branco-AC, os anúncios e letreiros registrados apresentam composição<br />
curta, com poucos enunciados, em que prevalecem sequências<br />
tipológicas do tipo expositiva e descritiva, com função informativa.<br />
Prevalece um estilo direto, econômico nas palavras e informal, respaldado<br />
na variante linguística que a comunidade de falantes domina<br />
e determinado, dentre outros condicionantes, pela natureza do conteúdo<br />
veiculado e pelas formações sociais dos interlocutores.<br />
Outrossim, os gêneros em discussão viabilizam o estabelecimento<br />
de relações diversas: entre conhecidos (comerciantes e seus<br />
clientes) e desconhecidos (comerciantes e passantes), muitos deles<br />
inseridos em níveis de escolaridade e formações sociais diversificados.<br />
Essa análise demonstra que o estilo dos gêneros (anúncios e letreiros<br />
do comércio popular) esta intrinsecamente relacionado ao estilo<br />
da linguagem articulada e às relações sociais estabelecidas no<br />
campo de atuação em voga, pois<br />
A relação orgânica e indissolúvel do estilo com o gênero se revela<br />
nitidamente também na questão do estilo de linguagem ou funcionais.<br />
No fundo, os estilos de linguagem ou funcionais não são outra coisa senão<br />
estilos de gênero de determinadas esferas da atividade humana e comunicação.<br />
Em cada campo existem e são empregados gêneros que correspondem<br />
às condições específicas de dado campo; é a esses gêneros<br />
que correspondem determinados estilos. Uma determinada função (científica,<br />
técnica, publicitária, oficial, cotidiana) e determinadas condições<br />
de comunicação discursivas, específicas de cada campo, geram determinados<br />
gêneros, determinados tipos de enunciados estilísticos, temáticos e<br />
composicionais relativamente estáveis. O estilo é indissociável de determinadas<br />
unidades temáticas – de determinadas unidades composicionais:<br />
de determinados tipos de construção do conjunto, de tipos do seu acabamento,<br />
de tipos da relação do falante com outros participantes da comunicação<br />
discursiva – com os ouvintes, os leitores, os parceiros, o discurso<br />
do outro, etc. (BAKHTIN, 2003, p. 266)<br />
Nesses termos, discutir o estilo e a composição dos anúncios<br />
e letreiros em questão inclui também analisar as características da<br />
linguagem nas quais esses textos se concretizam, pois, dessa forma,
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
487<br />
poderemos elucidar as razões que definem as formas de estabilização<br />
por ora apresentadas na situação pública de circulação em que se situam.<br />
Por serem produtos de linguagem veiculados em uma esfera<br />
popular, os textos em análise são escritos numa variante não padrão<br />
do português, na qual a economia linguística resulta em objetividade<br />
e síntese da linguagem, que se centra nos interesses imediatos do divulgador:<br />
seduzir, conquistar e disputar o cliente, para vender um<br />
produto ou prestar um serviço. Por essa razão, a construção composicional<br />
dos gêneros é sucinta, direta e prioriza o que é essencial, ou<br />
seja, a informação, já que, segundo Edith Pimentel pinto (2001, p.<br />
28):<br />
As manifestações escritas de particulares ou pequenos comerciantes,<br />
com vista à comunicação com o público, um público indiferenciado,<br />
constituído por passantes ocasionais, são linguisticamente econômicas,<br />
dispensando tudo o que seja acessório ao núcleo da mensagem. Centramse<br />
nas necessidades, reclamos e interesses do anunciante, sem qualquer<br />
menção explícita à pessoa do destinatário.<br />
Como se pode notar, a construção dos gêneros em discussão é<br />
norteada por estrutura composicional e estilo definidos pela e na comunidade<br />
de comunicação (campo de atuação humana) em que circulam,<br />
revelando sintonia entre língua e sociedade, entre produtos de<br />
linguagem e os sujeitos sócio-históricos e culturais que os produzem<br />
para interagir socialmente; demonstrando, sobremaneira, que os gêneros<br />
– como ações sociais relativamente estabilizadas – assumem as<br />
formas legitimadas pela esfera de circulação, porque, assim como<br />
não é possível dissociar linguagem e sociedade, também não se pode<br />
separar gêneros, estilos e campos de atividade humana.<br />
4. Considerações finais<br />
Toda ação linguística é materializada por meio de um gênero<br />
discursivo estruturado conforme as especificidades da situação de<br />
comunicação, o nível social dos sujeitos envolvidos no processo, a<br />
vontade discursiva do locutor, a relação deste com o interlocutor etc.;<br />
por isso, os gêneros são produtos de linguagem que revelam os aspectos<br />
sociais, históricos, discursivos, ideológicos e cognitivos en-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
488<br />
volvidos nos atos de interação verbal articulados em um campo de<br />
atividade humana.<br />
Desse modo, eles congregam características discursivas e linguísticas<br />
da comunidade de falantes que os estruturam, revelando os<br />
modelos concretos de legitimação do dizer. Em alguns campos de<br />
atuação humana, esses modelos são mais rígidos; em outros, mais<br />
flexíveis, dependendo da natureza das relações estabelecida no meio<br />
social em questão. Isso possibilita afirmar que os gêneros também<br />
são práticas sociais de letramento e, como estas, podem surgir e se<br />
desenvolver com pouco ou nenhuma influência dos saberes formais<br />
veiculados pela e na escola.<br />
A discussão sobre os anúncios e letreiros do comércio popular<br />
do centro da cidade de Rio Branco-AC permitiu-nos constatar que os<br />
fatores sociais – natureza do conteúdo veiculado, situação de comunicação,<br />
relação entre os participante da esfera de atividade social,<br />
intenção comunicativa, estilo social etc. – são determinantes para a<br />
estrutura composicional dos enunciados. Não que a variante da linguagem<br />
também não influencie nessa formatação, mas esta também<br />
é determinada pelas condições sociais dos interlocutores, pois a língua<br />
é uma ação social que se sintoniza às características históricas,<br />
culturais, geográfica etc. dos falantes e dos atos de interação verbal.<br />
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análise de gêneros e compreensão. 3. ed. Parábola, 2008.<br />
PINTO, Edith Pimentel. O português popular escrito. 3. ed. São<br />
Paulo: Contexto, 2001.
6. ANEXOS<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
490<br />
6.1 Anúncios que informam a especificidade do negócio, ou seja, as mercadorias<br />
comercializadas ou os serviços prestados;
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
491
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492
6.2 Anúncios que indicam preços de produtos ou serviços;<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
493
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494
6.3 Anúncios que divulgam promoções<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
495
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496
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497<br />
6.4 Letreiros produzidos para conquistar a clientela, usando sequências<br />
linguísticas que salientam supostas qualidades do estabelecimento comercial;
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
498
6.5 Anúncios que veiculam pedidos de ajuda ou informam o horário de<br />
expediente.<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
499
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
500
1. Introdução<br />
APORTES SOCIOLINGUÍSTICOS<br />
À PRÁTICA DO PROFESSOR<br />
– IMPLICAÇÕES NA SALA DE AULA<br />
Consuelo Domenici Mozzer Pinto (PMJF)<br />
cdmozzer@gmail.com<br />
Lucia Furtado de Mendonça Cyranka (UFJF)<br />
Um dos grandes desafios dos educadores é aproximar-se do<br />
universo do aluno e apreender suas concepções acerca dos saberes<br />
adquiridos, no sentido de auxiliá-lo na geração de um novo conhecimento<br />
que evolua a partir das manifestações e experiências no contexto<br />
das aprendizagens escolares.<br />
Nesse sentido, a língua, como um bem cultural, não só se caracteriza<br />
como força mediadora do conhecimento; mas também é, ela<br />
mesma, conhecimento.<br />
A criança, ao chegar na escola, já traz um saber de sua língua<br />
que lhe capacita a comunicação de forma satisfatória. Nesse arsenal<br />
de conhecimentos, inclui-se a variedade linguística que lhe é própria,<br />
seja considerada de prestígio, ou não. Entretanto, se o seu vernáculo<br />
está incluído nesse último caso, isto é, se não é reconhecido socialmente<br />
e, principalmente, na escola como sendo legítimo, esse aluno<br />
se vê severamente limitado no desenvolvimento de competências<br />
linguísticas que o levem, no futuro, à competente participação em<br />
eventos de fala públicos e formais.<br />
Buscando refletir sobre essa temática, a sociolinguística tem<br />
contribuído consideravelmente para a desmistificação dessas noções.<br />
O que ela mostra, segundo Freire (1990), é que cientificamente, todas<br />
as línguas são válidas, sistemáticas, sistemas normatizados, e que<br />
a distinção inferioridade/superioridade constitui um fenômeno social.<br />
Segundo Bagno (2002, p. 32),<br />
O papel do linguista é descrever a língua em suas múltiplas manifestações<br />
e oferecer hipóteses e teorias consistentes para explicar os fenômenos<br />
linguísticos, de modo que os educadores possam se servir dessas
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
502<br />
descrições e explicações para empreender uma prática pedagógica que<br />
leve em conta a pluralidade de realizações empíricas da língua.<br />
Neste artigo, pretendemos discutir, à luz de uma abordagem<br />
sociolinguística, os impactos desses conhecimentos no contexto da<br />
sala de aula, abordando o papel da escola no ensino da variedade culta<br />
da língua e os desafios presentes no enfrentamento dessa questão,<br />
enfatizando como os conhecimentos da sociolinguística podem aprimorar<br />
a prática docente e contagiar nossos alunos com a confiança<br />
e a alegria de se usar a língua com segurança, para o desempenho de<br />
qualquer tarefa comunicativa cabível.<br />
2. A voz dos alunos<br />
Freire (1990) adverte que a língua dos alunos é o único meio<br />
pelo qual podem desenvolver sua própria voz, pré-requisito para o<br />
desenvolvimento de um sentimento positivo do próprio valor. A voz<br />
dos alunos jamais deve ser sacrificada, uma vez que ela é o único<br />
meio pelo qual eles dão sentido à própria experiência no mundo.<br />
A sociolinguística nos ensina que onde há variação linguística<br />
sempre há avaliação social. Numa sociedade profundamente hierarquizada,<br />
como a nossa, todos os valores culturais e simbólicos que<br />
nela circulam também estão dispostos em categorias de prestígio, ou<br />
não. Entre esses valores culturais e simbólicos, está a língua, certamente<br />
o mais importante deles. Podemos, então, dizer, de acordo<br />
com Bagno (2006, p. 8):<br />
Uma das tarefas do ensino de língua na escola seria, portanto, discutir<br />
criticamente os valores sociais atribuídos a cada variante linguística,<br />
chamando a atenção para a carga de discriminação que pesa sobre determinados<br />
usos da língua, de modo a conscientizar o aluno de que sua produção<br />
linguística, oral ou escrita, estará sempre sujeita a uma avaliação<br />
social, positiva ou negativa.<br />
O nosso sistema escolar está norteado para ensinar a língua da<br />
cultura dominante, também denominada de língua-padrão.<br />
Bagno (2002) argumenta que o ensino da língua na escola<br />
brasileira tem visado, tradicionalmente, “reformar” ou “consertar” a<br />
língua do aluno, considerado, logo de saída, como um “deficiente<br />
linguístico”, ao qual a escola deve “dar” algo que ele “não tem”, isto
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
503<br />
é, uma ”língua” digna desse nome. Esse modo de conceber os fatos<br />
de linguagem condena ao submundo do não ser todas as manifestações<br />
linguísticas não normatizadas, rotuladas automaticamente de<br />
“erro” – e, junto com as formas linguísticas estigmatizadas, condenase<br />
ao silêncio e à quase-inexistência as pessoas que se servem delas.<br />
É possível observar esse fato, através do depoimento de alguns<br />
alunos matriculados em duas escolas da rede municipal da cidade<br />
de Juiz de Fora (MG). Ambas as escolas situam-se na periferia<br />
e atendem crianças do 2º ao 9º ano do ensino fundamental. A comunidade,<br />
na qual estão inseridas, possui características comuns, como:<br />
população com escassez de recursos financeiros; transporte inadequado;<br />
precariedade nos serviços básicos de água, luz, esgoto, atendimento<br />
médico e saúde pública; estrutura familiar comprometida;<br />
problemas relacionados à criminalidade e ao tráfico de drogas, dentre<br />
outros.<br />
Ao serem perguntados sobre a razão pela qual estudavam a<br />
língua portuguesa na escola, os alunos responderam 1 :<br />
Graciele (09 anos/4º ano): Pra aprender falar a língua portuguesa<br />
direito, né! Tem gente que fala errado. Meu primo, por exemplo. Tem<br />
gente na minha sala que fala “trusse”, invés de trouxe.<br />
Mauro (09 anos/2º ano): Pra “passá” de ano e não “ficá” burro, né!<br />
Observe-se o como uma criança de apenas 09 anos de idade,<br />
provavelmente, quatro de vida escolar, já tem inculcadas crenças negativas<br />
sobre sua competência como usuário da própria língua materna,<br />
o que, do ponto de vista linguístico, é um absurdo. Nessa fase<br />
da vida, a não ser por questões de patologias físico-mentais, qualquer<br />
falante domina todas as estruturas básicas de sua língua, sejam regras<br />
morfossintáticas, sejam recursos de construção lexical, sejam até<br />
mesmo certos recursos discursivos mais sofisticados. Graciele, por<br />
exemplo, se percebe como membro de uma comunidade de fala, juntamente<br />
com seu primo, seus colegas de sala e é capaz, como tal, de<br />
construir argumentos para comprovar a crença que já lhe foi inculcada,<br />
prova de sua competência de falante, mas infelizmente, prova<br />
também de que está sendo vítima de uma concepção equivocada de<br />
1 Os nomes dos alunos e das professoras aqui citados são fictícios.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
504<br />
linguagem e de educação linguística. Perini (2010, p. 21) adverte<br />
que:<br />
Para nós, “certo” é aquilo que ocorre na língua. É verdade que quase<br />
todo mundo tem suas preferências, detesta algumas construções, prefere<br />
a pronúncia de alguma região, etc. Mas o linguista precisa manter uma<br />
atitude científica, com atenção constante às realidades da língua e total<br />
respeito por elas. O linguista, cientista da linguagem, observa a língua<br />
como ela é, não como algumas pessoas acham que ela deveria ser. Condenar<br />
uma construção ou uma palavra ocorrente como incorreta é mais<br />
ou menos como decretar que é “errado” que aconteçam terremotos (não<br />
seria melhor que não acontecessem?). Mas eles acontecem, e um cientista<br />
não tem remédio senão reconhecer os fatos.<br />
Em outro momento, foi perguntado às crianças se a língua falada<br />
por eles era a mesma ensinada na escola. As respostas foram as<br />
seguintes:<br />
Graciele: É. Mas tem gente que fala errado, tem a língua presa.<br />
Gisele (09 anos/4º ano): É. A gente fala meio errado. Fala com jeito<br />
meio da roça.<br />
Paulo (08 anos/3º ano): Não. Eu falo de um jeito que tá errado. Elas<br />
(professoras) falam mais certo do que eu. Por exemplo, eu falo “melorá”<br />
(melhorar). A professora, a diretora, o meu pai, minha mãe, “fala” certo.<br />
Menos quem não sabe “escrevê” ainda é que fala errado.<br />
Observe-se como a Gisele já considera errado o dialeto rural,<br />
fonte preciosa de inúmeras manifestações culturais de valor inegável.<br />
E Paulo parece já ter “aprendido” que só a modalidade certa é a escrita,<br />
quando afirma que quem não sabe escrever, fala errado... A que<br />
ostracismo vê, então, relegados os milhares de analfabetos brasileiros,<br />
excluídos da possibilidade de integrarem, efetivamente, a sociedade<br />
brasileira!<br />
Segundo Bortoni-Ricadro (2005), o prestígio associado ao<br />
português-padrão é, sem dúvida, um valor cultural muito arraigado,<br />
herança colonial consolidada nos nossos cinco séculos de existência<br />
como nação. Podemos e devemos questioná-lo, desmistificá-lo e demonstrar<br />
sua relatividade e seus efeitos perversos na perpetuação das<br />
desigualdades socais, mas negá-lo, não há como. É preocupante o fato<br />
de muitos estudiosos e professores considerarem que toda a linguagem,<br />
e consequentemente, a cultura das crianças de classes populares,<br />
tem que ser substituída pela língua da cultura institucionalizada.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
505<br />
Buscando conhecer a opinião dos professores regentes do ensino<br />
fundamental – 2º ao 5º ano – sobre a eficiência do ensino da língua<br />
portuguesa na escola e o papel do professor nesse processo, levando-se<br />
em consideração a língua falada por seus alunos, observamos<br />
o seguinte:<br />
Mariana (professora há 17 anos do ensino fundamental, atualmente,<br />
como regente do 2º e 5º anos na rede municipal):<br />
O problema é que eles (alunos) chegam com a fala carregada com<br />
muita gíria. Não é errada, né? Mas, muito pobre. Na hora de escrever, eles<br />
colocam isso tudo. Isso dificulta a aprendizagem. Demora um pouco.<br />
Tem que explicar. Você fala assim, mas escreve assim. Não é que eles<br />
estejam certos ou errados, né? Só que a escola tem que se aproximar o<br />
máximo do português escrito. Mas eles usam o português falado. Tem<br />
que tirar o que eles falam a vida inteira e voltar pro português escrito.<br />
Aqui está a origem da crença do Paulo expressa acima: a modalidade<br />
melhor é a escrita (“...a escola tem que se aproximar o máximo<br />
do português escrito.”). Quer dizer que falar é errado? Então o<br />
aluno deve permanecer calado para não errar? Como se pode pretender<br />
que a escola promova a formação do homem integral, negandolhe<br />
o direito à palavra?<br />
Clara (professora há 21 anos do ensino fundamental, atualmente<br />
como regente do 2º e 4º anos na rede municipal), apresenta<br />
sua opinião:<br />
O problema é que o jeito dos nossos alunos falarem não está de acordo<br />
com o da escola. Mas nós não podemos desprezar o jeito deles. O<br />
que procuro fazer é mostrar pra eles que existe uma outra maneira deles<br />
se expressarem. Isto (a fala do aluno) interfere na aprendizagem deles<br />
porque eles querem usar esse jeito de falar deles na escrita. Será que isso<br />
é uma maneira errada, ou não? A língua vem deles, é o jeito deles, da<br />
convivência deles, do ambiente familiar.<br />
Se levarmos em consideração o contexto em que eles vivem, de como<br />
se usa o português, como eles aprenderam a usar o português, eu acho<br />
que não é errado. Porque eles estão usando da maneira que eles aprenderam<br />
ali. Agora, se considerarmos o que a sociedade cobra, esse<br />
jeito de falar é considerado errado.<br />
A escola deve procurar esclarecer pro aluno esta diferença. Ele tem a<br />
sua maneira de falar no contexto da família, mas na sociedade, esse português,<br />
essa gramática tem que ser usada de outra maneira. Tem uma cobrança<br />
do mundo lá fora.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
506<br />
Nesse depoimento, a professora demonstra consciência da existência<br />
das variedades linguísticas encontradas em sala de aula,<br />
mas revela a sua insegurança de como tratar a questão. O prestígio<br />
conferido à língua culta na escola leva à marginalização o jeito de falar<br />
e de se expressar dos alunos. Uns momentos de reflexão, de acordo<br />
com Perini (2010, p. 19), deixam bem claro que as duas variedades<br />
existem, vão continuar a existir e, principalmente, não podem<br />
ser trocadas. Segundo o autor, tanto o português falado pelos alunos<br />
(português falado do Brasil, ou PB), quanto o português padrão têm<br />
importância na nossa sociedade. Mas, no que pese a relevância de<br />
cada uma, a variedade que ele denominou PB tem uma importância<br />
que o padrão não tem: o PB é conhecido e usado constantemente pela<br />
totalidade dos brasileiros, ao passo que o padrão é privilégio de<br />
uma pequena minoria de pessoas mais escolarizadas.<br />
A situação seguinte traz a experiência de Valéria, (professora<br />
há 07 anos, atualmente como regente do 3º ano do ensino fundamental<br />
na rede municipal):<br />
Eu “to” fazendo um curso de língua portuguesa, pela Secretaria Municipal<br />
de Educação (Práticas de mediação no processo ensinoaprendizagem<br />
de oralidade/escrita, leitura e do trabalho com os dialetos<br />
sociais na escola pública) pra me atualizar e oferecer um ensino de qualidade.<br />
O que tá proposto no curso, “to” colocando em prática. Mas, acho<br />
que não estou tendo o sucesso que eu esperava. Eu acho que a gente ensina,<br />
mas falta interesse dos alunos. Tem uma distância entre a nossa fala<br />
e a fala que o aluno usa no seu dia-a-dia. Se a gente se aproxima muito<br />
(da fala do aluno), o português perde a qualidade. Não sei bem como resolver<br />
isso.<br />
O jeito de falar do aluno está distante do desejo da escola. Isso é por<br />
causa do desinteresse pela língua portuguesa. Os alunos acham muito difícil.<br />
Eles acham mais difícil que a matemática. Não deveria, porque eles<br />
falam português desde que nasceram. A matemática, não. Eles aprendem<br />
quando entram pra escola. Eles não enxergam quanto o português auxilia<br />
nas outras áreas. Não existe o jeito certo e errado de falar o português.<br />
Existem diferentes formas em diferentes espaços. É isso que eu quero<br />
que o meu aluno aprenda. Ele não comunica errado. Ele precisa aprender<br />
que a forma de comunicar no grupo social dele é uma. Ele precisa aprender<br />
outras formas de comunicar para participar de outros grupos e entender<br />
outras culturas.<br />
Nota-se, como no caso anterior, a mesma insegurança da professora<br />
de como lidar com as questões da variação linguística no<br />
contexto da sala de aula. Percebe-se também a sua consciência da
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
507<br />
necessidade de mudança de postura da escola frente a essa questão.<br />
Ela compreende que as variações da língua são parte da vida da nossa<br />
sociedade e que desprezar uma em detrimento da outra não é a solução<br />
para o problema. Mas como levar nossas crianças a se tornarem<br />
competentes em utilizar, quando necessário, a variedade culta do<br />
português, tanto na modalidade oral quanto na escrita? E mais: como<br />
fazê-los se interessarem por esta questão? Segundo Cyranka, em artigo<br />
inédito,<br />
A sociolinguística, considerando a contraparte social da linguagem,<br />
oferece o caminho para o tratamento adequado da heterogeneidade linguística<br />
na escola. Para essa ciência, a variação e a mudança linguísticas<br />
são processos naturais e têm motivações várias, entre elas, a identidade<br />
dos falantes dentro do seu grupo social e até mesmo de localidade geográfica.<br />
Nesse sentido, a capacitação docente na área da sociolinguística<br />
constitui o primeiro passo, indispensável para predispor os professores à<br />
ampliação do seu conhecimento acerca da língua e suas variações.<br />
Mediante esses depoimentos, constatamos, na fala de algumas<br />
professoras, indícios da consciência de que a escola não pode ignorar<br />
as diferenças sociolinguísticas. Os professores e, por meio deles, os<br />
alunos têm que estar bem conscientes de que existem duas ou mais<br />
maneiras de dizer a mesma coisa. E mais, que essas formas alternativas<br />
servem a propósitos comunicativos distintos e são recebidas de<br />
maneira diferenciada pela sociedade. Algumas conferem prestígio ao<br />
falante, aumentando-lhe a credibilidade; outras contribuem para formar-lhe<br />
uma imagem negativa, diminuindo-lhe as oportunidades.<br />
Para firmar essa convicção, Bortoni-Ricadro (2004, p. 9), partindo<br />
da análise das principais características das variedades linguísticas<br />
faladas pelos brasileiros de origem rural e urbana, defende:<br />
Como bem sabemos, nas disputas do mercado linguístico, diferença<br />
é deficiência. Por isso, cabe à escola levar os alunos a se apoderar também<br />
das regras linguísticas que gozam de prestígio, a enriquecer o seu<br />
repertório linguístico, de modo a permitir a eles o acesso pleno à maior<br />
gama possível de recursos para que possam adquirir uma competência<br />
comunicativa cada vez mais ampla e diversificada – sem que ainda isso<br />
implique a desvalorização de sua própria variedade linguística, adquirida<br />
nas relações sociais dentro de sua comunidade.<br />
Para realizar a tarefa de enriquecer o repertório linguístico do<br />
aluno, o professor necessita dos conhecimentos sociolinguísticos para<br />
proceder a uma análise criteriosa dos fenômenos de variação e
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
508<br />
mudança linguística em sala de aula. Em seu artigo, Bagno (2006, p.<br />
8) acrescenta:<br />
O profissional da educação tem que saber reconhecer os fenômenos<br />
linguísticos que ocorrem em sala de aula, reconhecer o perfil sociolinguístico<br />
de seus alunos para, junto com eles, empreender uma educação<br />
em língua materna que leve em conta o grande saber linguístico prévio<br />
dos aprendizes e que possibilite a ampliação incessante do seu repertório<br />
verbal e de sua competência comunicativa, na construção de relações sociais<br />
permeadas pela linguagem cada vez mais democráticas e não discriminadoras.<br />
Entendemos que a prática docente implica aprendizagem por<br />
parte dos alunos, bem como aprendizagem, ou reaprendizagem, por<br />
parte dos que ensinam - os professores. Temos muito a aprender com<br />
os alunos a quem ensinamos.<br />
3. O papel da escola no ensino da variedade culta da língua e<br />
seus enfrentamentos<br />
A crença na superioridade de uma variedade linguística sobre<br />
as demais é um mito arraigado na cultura brasileira. Segundo Bortoni-Ricardo<br />
(2004), as variedades faladas pelos grupos de maior poder<br />
político e econômico passam a ser vistas como variedades mais bonitas<br />
e até mais corretas. Mas essas variedades, que ganham prestígio<br />
porque são faladas por grupos de maior poder, nada têm de intrinsecamente<br />
superior às demais. O prestígio que adquirem é mero resultado<br />
de fatores políticos e econômicos.<br />
A escola não pode ignorar as diferenças sociolinguísticas.<br />
Bagno (2002) advoga que uma das tarefas do ensino de língua na escola<br />
seria, então, discutir os valores socais atribuídos a cada variante<br />
linguística, enfatizando a carga de discriminação que pesa sobre determinados<br />
usos da língua, de modo a conscientizar o aluno de que<br />
sua produção linguística, oral ou escrita, estará sempre sujeita a uma<br />
avaliação social, positiva ou negativa. É responsabilidade do professor,<br />
desenvolver competências de uso da variedade culta do português<br />
do Brasil, isto é, a que realmente está em uso. Cyranka (2008,<br />
p. 27) completa esta ideia ao afirmar:<br />
Toda essa evidência aponta claramente para a necessidade de a escola<br />
reconhecer a legitimidade da variedade vernacular dos alunos, a ponto
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
509<br />
de trabalhar com ela em sala de aula, mostrando-se não propriamente<br />
compassiva, mas detentora do conhecimento de que ela vale para seus<br />
fins, tanto quanto a variedade prestigiada vale para outros diferentes fins.<br />
Enquanto a escola insistir em negar o caráter sócio-histórico-funcional<br />
dessa variedade, ela permanecerá na perplexidade, ao se defrontar com<br />
resultados cada vez mais pobres do ponto de vista do desenvolvimento,<br />
nos alunos, da competência de uso da língua culta. Isso porque, ao invés<br />
de aproximar, ela os distancia da crença de que são capazes de adquirir a<br />
competência de uso dessa variedade, ainda que mais prestigiada e diferente<br />
da que utilizam.<br />
A consciência gera responsabilidade.<br />
Entretanto, observa-se que o aluno que chega à escola exibindo,<br />
em sua linguagem, uma incidência maior de variáveis linguísticas<br />
não padrão é estigmatizado e julgado com severidade. Segundo<br />
pesquisas realizadas por Bortoni-Ricardo (2005, p 120),<br />
...os professores tendem a ter expectativas mais modestas em relação aos<br />
alunos falantes de dialetos estigmatizados do que em relação aos alunos<br />
falantes de variedades de prestígio e que essa expectativa influencia o<br />
rendimento acadêmico dos alunos. Formam-se assim as profecias autorrealizáveis,<br />
que se vão haurir no processo de ratificação das teorias da<br />
deficiência.<br />
Quando a professora faz dos modos de falar da criança uma<br />
área de conflito, a criança adere ao conflito e torna seu estilo interacional<br />
progressivamente mais distinto do estilo da professora. Ao<br />
contrário, quando seu modo de falar não é um campo de conflito, a<br />
criança se adapta à variedade culta, prestigiada. Segundo a mesma<br />
autora, as estratégias intuitivas usadas pelos professores para lidar<br />
com a complexa questão da variação linguística podem contribuir<br />
para a implementação de uma pedagogia culturalmente sensível.<br />
Entende-se por pedagogia culturalmente sensível um tipo de<br />
esforço especial empreendido pela escola, a fim de reduzir os problemas<br />
de comunicação entre professores e alunos. Segundo Bortoni-Ricardo<br />
(2005, p. 128):<br />
É objetivo da pedagogia culturalmente sensível criar em sala de aula<br />
ambientes de aprendizagens onde se desenvolvam padrões de participação<br />
social, modos de falar e rotinas comunicativas presentes na cultura<br />
dos alunos.<br />
A prática da pedagogia culturalmente sensível prevê o respeito<br />
às características socioculturais e individuais dos alunos. É na es-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
510<br />
cola que a criança brasileira pobre vai começar a ter acesso a estilos<br />
diferentes do seu vernáculo e vai iniciar a tarefa de incorporar esses<br />
estilos ao seu repertório linguístico. Bortoni-Ricardo afirma que, na<br />
familiarização do aluno com estilos monitorados – os que se sobrepõem<br />
ao vernáculo aprendido pela criança no contato, inicialmente<br />
com a família e, em seguida, com os pares – e na sua aquisição dos<br />
recursos comunicativos que lhe vão permitir usar esses estilos, é que<br />
se observa os efeitos positivos da ampliação da competência linguística<br />
e comunicativa do aluno.<br />
4. Implicações na sala de aula<br />
Para envolver o aluno no universo dos saberes escolares, é<br />
preciso descobrir os conhecimentos da cultura popular que já trazem<br />
de suas casas. Interações dos ambientes educacionais com a realidade<br />
familiar e comunitária da criança favorecem o seu desenvolvimento<br />
e facilitam a emergência de novos saberes. Nesse contexto,<br />
quando o uso da língua padrão não leva em conta a cultura popular<br />
do aluno, torna-se um grande entrave na construção do seu aprendizado.<br />
Essa questão nos remete a pensar sobre aqueles alunos que<br />
frequentam as nossas aulas e não encontram formas de interagir com<br />
as informações que lhes são apresentadas. Quando falta continuidade<br />
entre a casa e a instituição educativa, a criança fica sem saber o que<br />
fazer, não consegue aproveitar as aprendizagens adquiridas, emudece<br />
e perde o interesse em aprender.<br />
De acordo com a abordagem sociolinguística, as crianças<br />
chegam à escola trazendo variações linguísticas de diferentes registros,<br />
modos de dizer diferentes que, discutidos e compartilhados,<br />
contribuem para aumentar o repertório linguístico à disposição de<br />
cada uma delas.<br />
Nessa perspectiva, Gagné (2002) afirma que a escola deve visar<br />
o aumento do repertório linguístico das crianças para lhes dar a<br />
possibilidade de utilizar as variantes apropriadas às situações de comunicação<br />
mais diversas e assegurar, o mais eficazmente possível,<br />
as funções a que a língua serve. A escola, portanto, deve organizar<br />
sua pedagogia de tal modo que a criança tenha não só um repertório
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
511<br />
extenso, mas também que saiba se servir dele adequadamente e que<br />
tenha o gosto de fazê-lo.<br />
A linguagem, como riqueza cultural, é um recurso fundamental<br />
para comunicar ideias, sentimentos, conhecimentos e opiniões.<br />
Um ambiente que oferece liberdade de expressão e ao mesmo tempo<br />
orienta, leva o aluno a aprender positivamente e a tomar decisões sobre<br />
sua aprendizagem.<br />
Segundo Bortoni-Ricardo (2005), para operar de maneira aceitável,<br />
um membro de uma comunidade de fala tem de aprender o<br />
que dizer e como dizê-lo apropriadamente, a qualquer interlocutor e<br />
em quaisquer circunstâncias. Se um falante não tiver acesso a recursos<br />
linguísticos necessários para a implementação de certo ato de fala,<br />
como por exemplo, vocabulário ou padrões retóricos, esse ato de<br />
fala se torna inviável.<br />
Os estudos da sociolinguística, na prática docente, possibilitam<br />
um novo olhar sobre questões relacionadas ao processo de ensino/aprendizagem<br />
das crianças. A partir dessas reflexões, pode-se dizer<br />
que o sucesso do trabalho em sala de aula depende da congruência<br />
entre os saberes trazidos pelo aluno do seu meio familiar e os da<br />
escola, o respeito à diversidade de formas de leitura do mundo pela<br />
criança, a qualidade dos ambientes de educação, as abordagens baseadas<br />
numa pedagogia culturalmente sensível e a definição de uma<br />
política educacional voltada para o ensino e aprendizagem como prática<br />
social.<br />
5. Conclusão<br />
A criança que chega à escola tem certo domínio da sua língua<br />
materna, isto é, sabe organizar seu pensamento explicitá-lo de forma<br />
coerente a fim de comunicar-se nas diversas situações. Mas ainda carece<br />
de um conjunto amplo de recursos comunicativos que lhe permitam<br />
realizar tarefas comunicativas complexas que exijam uma fala<br />
monitorada.<br />
Nesse sentido, Bortoni-Ricardo (2004) afirma que é papel da<br />
escola facilitar a ampliação da competência comunicativa dos alunos,<br />
permitindo-lhes apropriarem-se dos recursos necessários para se
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
512<br />
desempenharem bem, e com segurança, nas mais distintas tarefas<br />
linguísticas. A escola é, por excelência, o espaço em que os educandos<br />
vão adquirir, de forma sistemática, recurso comunicativo que<br />
lhes permitam desempenhar-se competentemente em práticas socais<br />
especializadas.<br />
A pluralidade cultural e a rejeição aos preconceitos linguísticos<br />
são valores que precisam ser cultivados em todas as etapas da vida<br />
escolar. O domínio da língua é central para o processo de desenvolvimento,<br />
crescimento, aprendizagem, construção, conhecimento.<br />
Vincula-se à imaginação, à criação, ao diálogo, à expressão de saberes,<br />
afetos, valores.<br />
A contribuição mais efetiva que a sociolinguística pode dar,<br />
no sentido de apoiar os professores na sua prática, está em capacitálos<br />
para a autorreflexão, a análise crítica e a transformação do seu<br />
fazer pedagógico com o objetivo de conciliar estratégias de ensino<br />
inseridas nos parâmetros de uma pedagogia culturalmente sensível,<br />
promovendo, ao mesmo tempo, a educação linguística dos alunos.<br />
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
BAGNO, Marcos; GAGNÉ, Gilles, SUTBBS, Michael. Língua materna:<br />
variação e ensino. São Paulo: Parábola, 2002.<br />
______. Nada na língua é por acaso: ciência e senso comum na educação<br />
em língua materna. Presença Pedagógica, Belo Horizonte,<br />
ano 12, n. 71, set. 2006.<br />
BORTONI-RICARDO, Stella Maris. Educação em língua materna:<br />
a sociolinguística em sala de aula. São Paulo: Parábola, 2004.<br />
______. Nós cheguemu na escola, e agora? Sociolinguística na sala<br />
de aula. São Paulo: Parábola, 2005.<br />
CYRANKA, Lúcia F. Mendonça; NASCIMENTO, Lívia Arcanjo,<br />
OTONI, Patrícia Rafaela; PERON, Simone Rodrigues. A reflexão<br />
sociolinguística no ensino fundamental: resultados de uma pesquisaação/<br />
FAPEMIG. (Artigo a ser publicado).<br />
CYRANKA, Lúcia F. Mendonça; PERNAMBUCO, Déa Lúcia<br />
Campos. A língua culta na escola: uma interpretação sociolinguísti-
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ca. Instrumento: Revista de Estudo e Pesquisa em Educação, Juiz de<br />
Fora, v. 10, p.17-28, jan./dez. 2008.<br />
FREIRE, Paulo; MACEDO, Donaldo. Alfabetização: leitura da palavra,<br />
leitura do mundo. Trad.: Lólio Lourenço de Oliveira. 4. ed. Rio<br />
de Janeiro: Paz e Terra, 1990.<br />
PERINI, Mário, A. Gramática do português brasileiro. São Paulo:<br />
Parábola, 2010.
APRENDENDO PORTUGUÊS COM TEXTOS DE HUMOR<br />
1. Considerações iniciais<br />
Claudia Moura da Rocha (UERJ)<br />
claudiamoura@infolink.com.br<br />
Darcilia M. P. Simões (UERJ)<br />
www.darciliasimoes.pro.br<br />
É notória a crise por que passa o ensino em nosso país. Ensino<br />
que não corresponde às expectativas dos alunos, da sociedade<br />
nem dos professores. Os alunos queixam-se do distanciamento entre<br />
conteúdos ensinados e a vida prática; a sociedade endossa as queixas<br />
dos primeiros, uma vez que necessita de mão de obra especializada e<br />
preparada para trabalhar com as novas tecnologias; os professores,<br />
conscientes dessas novas demandas, nem sempre conseguem “atrair”<br />
o interesse dos alunos para suas aulas. Há ainda um agravante em relação<br />
a essa situação: apesar de todo o desenvolvimento tecnológico<br />
alcançado pela sociedade, o ensino ainda se dá, nos mesmos moldes<br />
tradicionais de um ou dois séculos atrás.<br />
Em relação ao ensino de língua portuguesa, a situação pouco<br />
difere do que foi anteriormente exposto. Professores se queixam de<br />
que é cada vez mais difícil ensinar a alunos desmotivados, desinteressados,<br />
que consideram o conteúdo apresentado distante de sua<br />
realidade e de suas necessidades. Outro fator age como complicador<br />
dessa situação: a distância existente entre a língua falada em casa,<br />
nas ruas, ouvida na televisão e no rádio e a ensinada na escola mostra-se<br />
um grande obstáculo para esses alunos. Isso só vem a reforçar<br />
o importante papel exercido pela escola no ensino da língua-padrão:<br />
é ela a responsável por proporcionar esse acesso, oferecendo aos alunos<br />
meios de inclusão social.<br />
Em vista desse panorama nada alentador, mudanças vêm sendo<br />
implementadas a fim de despertar o interesse dos educandos, aproximando<br />
o ensino de língua portuguesa da realidade. Passou-se a<br />
incluir a leitura de textos de diferentes gêneros textuais, muitos deles<br />
próximos da realidade do aluno (histórias em quadrinhos, bilhetes,<br />
cartas, letras de música, piadas) com vistas a modificar sua relação
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
515<br />
com a própria língua. A inclusão de outros gêneros textuais, além<br />
dos literários, só veio a corroborar as descobertas dos estudos linguísticos<br />
(da Linguística Textual, por exemplo, que ampliou o conceito<br />
de texto), atendendo também às necessidades de uma sociedade<br />
que precisa de indivíduos que saibam lidar com os mais variados gêneros<br />
textuais existentes. Além dos gêneros textuais, a língua-padrão<br />
continua sendo ensinada nas aulas de língua materna (aliás, como<br />
deve ser, sem, no entanto, ignorarmos as outras variedades linguísticas<br />
existentes e muitas vezes faladas pelos alunos), uma vez que é<br />
ela que permite a esse aluno a participação integral na vida em sociedade.<br />
Entre os gêneros que passaram a receber mais atenção por<br />
parte de estudiosos, professores e autores de livros didáticos estão os<br />
que veiculam o humor. É muito recorrente encontrarmos em livros<br />
didáticos a presença de histórias em quadrinhos, charges, cartuns,<br />
piadas, crônicas e contos de humor. Por essa razão, acreditamos ser<br />
relevante estudar de que forma esses gêneros textuais podem ser trabalhados<br />
em sala de aula, seja nas atividades de leitura e interpretação,<br />
seja nas de produção textual, com especial interesse pelos recursos<br />
linguísticos empregados para fazer rir.<br />
2. Aprendendo português com textos de humor<br />
É possível aprender português por meio da leitura de textos de<br />
humor? É a essa pergunta que pretendemos responder. Os gêneros<br />
textuais de humor oferecem rico material para o professor de língua<br />
portuguesa utilizar em suas aulas, uma vez que a língua é empregada<br />
com a finalidade de fazer rir, ou seja, é usada como um recurso expressivo,<br />
não apenas como simples meio de comunicação. Procuraremos<br />
demonstrar como os recursos linguísticos (de natureza fonológica,<br />
morfológica, semântica, entre outros) presentes nos textos de<br />
humor podem ser aproveitados pelo professor em suas aulas de leitura,<br />
interpretação e produção textual.<br />
Por uma característica intrínseca a alguns gêneros textuais de<br />
humor (aliar a linguagem verbal à não verbal), nas aulas de leitura e<br />
interpretação, por exemplo, seria interessante levar os alunos a uma
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
516<br />
leitura desses dois aspectos, já que a compreensão textual depende<br />
de ambos. Vejamos alguns exemplos:<br />
Disponível em:<br />
. Acesso<br />
em: 06 ago. 2009.<br />
A história em quadrinhos de Caulos estabelece uma relação<br />
intertextual com o famoso poema de Gonçalves Dias, Canção do Exílio.<br />
É a linguagem verbal empregada que nos permite dizer isso.<br />
Mas é a imagem do último quadrinho (um tronco cortado) que introduz<br />
o elemento novo, produzindo, de forma irônica, uma crítica ao<br />
desmatamento. Percebe-se, por conseguinte, a importância da linguagem<br />
não verbal para a compreensão do sentido do texto.<br />
A difusão da cultura digital, proporcionada pelo avanço tecnológico,<br />
gerou um contato mais constante do leitor com outros có-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
517<br />
digos não verbais, daí a necessidade de a escola não restringir sua área<br />
de atuação à linguagem verbal apenas. Simões (2009, p. 52) afirma,<br />
a esse respeito, que<br />
Estudos e pesquisas contemporâneos voltados para o ensino da língua<br />
portuguesa têm promovido uma integração dialógica entre áreas,<br />
com vista não só ao aprofundamento da análise do sistema linguístico e<br />
de sua potencialidade estrutural, mas também à combinação de dados extraídos<br />
de áreas afins que participam dos processos discursivocomunicativos.<br />
Estes, por sua vez, emoldurados pelos recursos digitais,<br />
vêm abrindo novas discussões em relação ao texto e à leitura. Essas discussões<br />
destacam a relevância da preparação dos sujeitos para interagir<br />
com múltiplos códigos, uma vez que a hegemonia do verbal de há muito<br />
foi quebrada pela intervenção da imagem.<br />
Legenda: Global warming. If we don’t act now, the future looks blue.<br />
Aquecimento global. Se não agirmos agora, o futuro será triste (azul).<br />
Agência: Bhadra Communications (Índia). Disponível em:<br />
.<br />
Acesso em 17/06/2010.<br />
Esse tipo de exercício pode auxiliar na leitura de outros gêneros<br />
que reúnam as duas linguagens (verbal e não verbal) ou que se
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
518<br />
utilizem apenas da linguagem não verbal. O que podemos perceber é<br />
que as estratégias empregadas na leitura de textos de humor podem<br />
ser utilizadas também na leitura de textos de outra natureza, como o<br />
anúncio publicitário apresentado a seguir. Nele, as informações apresentadas<br />
pelo texto e pela ilustração se complementam e, somente<br />
pela integração de ambas, é possível estabelecer o sentido do texto.<br />
O leitor precisa perceber que o jogo de palavras (possível em inglês,<br />
pois blue tanto pode significar azul como triste) é complementado<br />
pela imagem do planeta Terra coberto pelos oceanos (os continentes<br />
estariam submersos pelo grande volume de águas provocado pelo<br />
aquecimento global).<br />
A leitura de textos humorísticos também permite que se explorem<br />
o duplo sentido, a ambiguidade provocada pela homonímia,<br />
pela polissemia e pela paronímia. Segundo Travaglia (1989: 60), a<br />
ambiguidade é um recurso básico no humor devido à bissociação,<br />
que “consiste em, por recursos diversos, ativar dois mundos textuais”<br />
(TRAVAGLIA, 1995, p. 43).<br />
Vejamos alguns exemplos de textos de humor, pertencentes a<br />
diferentes gêneros, que exploram esse recurso:<br />
CONCERTO OU CONSERTO?<br />
O português foi convidado pelo amigo brasileiro para assistir a um<br />
concerto de piano. No intervalo do espetáculo o amigo pergunta ao português:<br />
– E aí? Está gostando do concerto de piano?<br />
– O gajo toca tão bem que eu nem havia percebido que o piano estava<br />
quebrado! (AVIZ, 2003, p. 153)<br />
O menino que chupou a bala errada<br />
Diz que era um menininho que adorava bala e isto não lhe dava<br />
qualquer condição de originalidade, é ou não é? Tudo que é menininho<br />
gosta de bala. Mas o garoto desta história era tarado por bala. Ele tinha<br />
assim uma espécie de ideia fixa, uma coisa assim... assim, como direi?<br />
Ah... creio que arranjei um bom exemplo comparativo: o garoto tinha por<br />
bala a mesma loucura que o senhor Lacerda tem pelo poder.<br />
Vai daí um dia o pai do menininho estava limpando o revólver e, para<br />
que a arma não lhe fizesse uma falseta, descarregou-a, colocando as
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
519<br />
balas em cima da mesa. O menininho veio lá do quintal, viu aquilo ali e<br />
perguntou pro pai o que era.<br />
– É bala – respondeu o pai, distraído.<br />
Imediatamente o menininho pegou diversas, botou na boca e engoliu,<br />
para desespero do pai, que não medira as consequências de uma informação<br />
que seria razoável a um filho comum, mas não a um filho que<br />
não podia ouvir falar em bala que ficava tarado para chupá-las.<br />
Chamou a mãe (do menino), explicou o que ocorrera e a pobre senhora<br />
saiu desvairada para o telefone, para comunicar a desgraça ao médico.<br />
Esse tranquilizou a senhora e disse que iria até lá, em seguida.<br />
Era um velho clínico, desses gordos e bonachões, acostumados aos<br />
pequenos dramas domésticos. Deu um laxante para o menininho e esclareceu<br />
que nada de mais iria ocorrer. Mas a mãe estava ainda aflita e insistiu:<br />
– Mas não há perigo de vida, doutor?<br />
– Não – garantiu o médico: – Para o menino não há o menor perigo<br />
de vida. Para os outros talvez.<br />
– Para os outros? – estranhou a senhora.<br />
– Bem... – ponderou o doutor: – O que eu quero dizer é que, pelo<br />
menos durante o período de recuperação, talvez fosse prudente não apontar<br />
o menino para ninguém. (PRETA, 2003, p. 89-90)<br />
O primeiro texto, uma piada, explora a homonímia conserto/concerto,<br />
reforçando o estereótipo de que portugueses são pouco<br />
inteligentes. É a interpretação equivocada do personagem lusitano<br />
que é responsável pela graça da piada.<br />
No segundo texto, uma crônica de Stanislaw Ponte Preta, é<br />
explorada a polissemia do vocábulo bala. Quando o filho e o pai<br />
conversam, cada um aciona um significado diferente da palavra bala,<br />
e é esse desencontro entre as expectativas de cada um que gera o equívoco<br />
entre os dois.<br />
Apresentamos também o anúncio de um veículo que se valia<br />
da polissemia do termo perua para provocar o cômico. O termo em<br />
questão tanto pode se referir a uma mulher que se veste de forma espalhafatosa,<br />
mas que acredita ser elegante, como pode ser uma designação<br />
regional (mais especificamente de São Paulo) para caminhonete<br />
ou van. Há também o trocadilho com o substantivo próprio
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
520<br />
Besta, nome do veículo, e besta, indivíduo ignorante ou pouco inteligente.<br />
Um homem vinha dirigindo<br />
uma Besta por uma estrada quando<br />
foi parado por um guarda.<br />
O guarda se aproximou e pediu:<br />
“Por favor, o documento da Besta.”<br />
O motorista levou a mão ao bolso<br />
e tirou sua carteira de identidade.<br />
“Não”, disse o guarda,<br />
“eu quero os papéis da perua”.<br />
Aí, o homem virou para a mulher e<br />
falou: “Ah, é o seu documento<br />
que ele está pedindo, querida”.<br />
Ah, ah, ah, ah, ah, ah, ah, ah, ah, ah...<br />
Kia.<br />
Besta. Só um veículo tão inteligente consegue rir de si mesmo.<br />
(Veja, 31/08/1994)<br />
Há muitos exemplos de anúncios publicitários que empregam<br />
o humor como estratégia para atrair a atenção do público, além de<br />
cativá-lo. No exemplo a seguir, encontramos dois vocábulos (pêssego<br />
e amora) que estabelecem uma relação paronímica com duas palavras<br />
em ausência (preço e agora), remetendo a famosos slogans de<br />
anúncios de cartão de crédito. O emprego dos parônimos acaba produzindo<br />
um enunciado ambíguo. Ao trabalhar esse texto, o professor<br />
também pode fazer referência à função distintiva que os fonemas apresentam,<br />
o que ocorre com o par de palavras amora/agora.
Disponível em:<br />
www.mppublicidade.com.br/image.php?url=trabalhos/original/517.jpg&type=img<br />
Acesso em 18/06/2010.<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
521<br />
Os mesmos fenômenos podem ser encontrados em poemas,<br />
letras de música, por exemplo, o que corrobora a ideia de que a leitura<br />
de textos de humor desenvolve habilidades de leitura requeridas
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
522<br />
por outros textos. Para interpretar a letra de música Metáfora, de<br />
Gilberto Gil, é necessário que o leitor perceba o jogo de palavras feito<br />
com os vocábulos meta e lata. O texto explora a relação homonímica<br />
entre meta (objetivo que se almeja; substantivo) e meta (atribuir<br />
a si condição ou competência que não possui; imperativo do verbo<br />
meter). Em relação à palavra lata, o eu lírico reconhece que ela pode<br />
vir a adquirir outros sentidos num poema, podendo tornar-se polissêmica<br />
(“Mas quando o poeta diz: "Lata"/Pode estar querendo dizer<br />
o incontível”)<br />
Metáfora<br />
Uma lata existe para conter algo<br />
Mas quando o poeta diz: "Lata"<br />
Pode estar querendo dizer o incontível<br />
Uma meta existe para ser um alvo<br />
Mas quando o poeta diz: "Meta"<br />
Pode estar querendo dizer o inatingível<br />
Por isso, não se meta a exigir do poeta<br />
Que determine o conteúdo em sua lata<br />
Na lata do poeta tudonada cabe<br />
Pois ao poeta cabe fazer<br />
Com que na lata venha caber<br />
O incabível<br />
Deixe a meta do poeta, não discuta<br />
Deixe a sua meta fora da disputa<br />
Meta dentro e fora, lata absoluta<br />
Deixe-a simplesmente metáfora<br />
Gilberto Gil<br />
É possível perceber que, ao analisarmos os textos anteriores,<br />
nossa atenção se voltou para determinados itens lexicais que, à maneira<br />
de pistas, foram conduzindo o leitor no seu processo de construção<br />
do sentido do texto. Essas pistas funcionam com ícones ou índices<br />
(cf. SIMÕES, 2009, p. 86-88), que vão sendo identificados pelo<br />
leitor, oferecendo-lhe um (ou mais de um) caminho na interpretação<br />
de um texto. No caso do texto de humor, que muitas vezes se<br />
calca no duplo sentido, na ambiguidade, os ícones e índices se caracterizam<br />
por, propositalmente, serem desorientadores (cf. SIMÕES,<br />
2009, p. 96-98), oferecendo mais de uma possibilidade de interpretação.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
523<br />
Outro fenômeno muito explorado pelos textos de humor e que<br />
pode ser trabalhado com os alunos é a dêixis. Os dêiticos são elementos<br />
que adquirem sua significação de acordo com o contexto,<br />
dando, muitas vezes, margem a equívocos decorrentes da dupla interpretação,<br />
como o que ocorre na tirinha apresentada a seguir.<br />
O Globo, 12/07/2006<br />
O vocábulo aqui não indica o mesmo referente para Eddie<br />
Sortudo e para Hagar, pois cada um o emprega pensando num lugar<br />
diferente. Para Hagar, sua pergunta é uma espécie de indagação filosófica<br />
e estar aqui pode se referir tanto a ainda estar vivo daqui a duas<br />
semanas ou a permanecer naquela cidade, sem estar viajando (os<br />
vikings são conhecidos por viajarem pelos mares em busca de riquezas).<br />
Eddie Sortudo, personagem considerado tolo, pouco inteligente,<br />
interpreta aqui como sendo o bar. Rimos da sua falta de compreensão<br />
acerca do que o amigo disse, pois não percebe que seria impossível<br />
permanecerem no bar por tanto tempo; seu amigo só poderia estar<br />
se referindo à sua permanência no plano terrestre (estar vivo) ou<br />
naquela cidade (não estar viajando).<br />
A presença de implícitos, subentendidos também é recorrente<br />
em textos humorísticos. Essas lacunas precisam ser “preenchidas”<br />
para que o texto faça sentido e, para isso, o leitor precisa acionar vários<br />
tipos de conhecimento, entre eles o de mundo e o linguístico. O<br />
mesmo tipo de habilidade (saber empregar variados tipos de conhecimento)<br />
também é requerido na leitura de outros gêneros que não<br />
sejam humorísticos.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
524<br />
Na tira a seguir, o leitor necessita acionar seu conhecimento<br />
de mundo (saber o que é um deserto, como são o clima e a temperatura<br />
nesse ambiente) e seu conhecimento sobre o personagem da história<br />
em quadrinhos em questão (no caso, Cascão, da Turma da Mônica,<br />
que tem ojeriza à água) para compreender o texto. Note-se que<br />
há apenas um balão de fala (“Ufa! Estou indo na direção certa!”) e<br />
para compreender a tirinha é necessário, além de observar as ilustrações,<br />
levar em consideração informações que não estão explicitadas<br />
no texto (o fato de o personagem ter aversão à água). Dessa forma, é<br />
possível interpretar o texto: Cascão não gosta de tomar banho e foge<br />
de água (indo em direção contrária a ela), portanto o sobrevivente do<br />
deserto estaria indo na direção certa.<br />
O Globo, 13/07/2006<br />
Para compreender a próxima história em quadrinhos, do<br />
mesmo personagem, é necessário que o leitor acione os mesmos conhecimentos<br />
a fim de entender que somente alguém com aversão à<br />
água gostaria de escorregar em uma casca de banana e se sujar todo.<br />
Notamos a importância da ilustração (demonstrando como Xaveco, o<br />
amigo de Cascão, ficou sujo; como ocorreu a queda; como a fisionomia<br />
de Cascão é de satisfação ao vislumbrar a possibilidade de se<br />
sujar da mesma forma), da linguagem verbal, mas, assim como ocorre<br />
na tira anterior, é preciso suprir lacunas, ler os subentendidos, as<br />
informações implícitas no texto para compreendê-lo.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
525<br />
O Globo, 08/07/2006<br />
No tocante às atividades de produção textual, podemos mostrar<br />
aos alunos como os tipos textuais (MARCUSCHI, 2008, p. 154-<br />
155) ou modos de organização do texto (OLIVEIRA, 2007, p. 81)<br />
contribuem para a construção do texto humorístico. Nas piadas e nas<br />
histórias em quadrinhos, por exemplo, costuma predominar o tipo<br />
narrativo. No entanto, também é possível encontrarmos passagens<br />
desses textos em que se verifica a presença de outros tipos textuais,<br />
como o descritivo, por exemplo.<br />
Ex-surdo<br />
Após anos praticamente surdo, um homem compra um aparelho auditivo<br />
moderno, quase invisível, e volta ao consultório do médico, que<br />
lhe pergunta:<br />
– E então? Gostou da compra?<br />
– Sem dúvida. Ouvi uns sons nas últimas semanas que nem imaginava<br />
que existissem.<br />
– Muito bom. E sua família? Também gostou da novidade?<br />
– Ah! Ninguém em casa sabe que eu tenho o aparelho. E está sendo<br />
ótimo. Só este mês resolvi mudar meu testamento pelo menos três vezes!<br />
(AVIZ, 2003, p. 86-87)<br />
Na piada transcrita anteriormente, percebemos que predomina<br />
o tipo textual narrativo, mas notamos a presença de trechos de cunho
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
526<br />
descritivo, importantíssimos para a construção do humor da piada. O<br />
trecho “após anos praticamente surdo” serve para caracterizar o personagem<br />
principal da piada como alguém que tem sérios problemas<br />
de audição. Essa informação faz o leitor (ou o ouvinte) da piada acionar<br />
seu conhecimento de mundo sobre o assunto; seu conhecimento<br />
sobre o gênero textual piada lhe permite elaborar hipóteses<br />
sobre o que poderá acontecer na narrativa. O outro trecho descritivo<br />
“um aparelho auditivo moderno, quase invisível” é que será fundamental<br />
para o texto ser engraçado. Como o aparelho é quase imperceptível,<br />
os parentes do personagem nem notaram a melhora de sua<br />
audição. A graça reside no fato de que o homem passou a ouvir tudo<br />
o que seus parentes diziam, sem que estes soubessem.<br />
O professor pode solicitar a seus alunos que, após a leitura de<br />
textos humorísticos, procurem identificar os tipos textuais nele presentes,<br />
qual tipo costuma predominar em cada gênero, que recursos<br />
linguísticos são mais encontrados em cada tipo textual (por exemplo,<br />
verbos no pretérito, no tipo narrativo; adjetivos e locuções adjetivas,<br />
no descritivo; verbos no imperativo, no injuntivo). Seria interessante<br />
solicitar aos alunos que fizessem o mesmo com outros textos que não<br />
pertencessem ao universo humorístico, o que lhes permitiria comparar<br />
os empregos dos tipos textuais em textos de gêneros diferentes. A<br />
partir do reconhecimento dos tipos e de suas características, podemos<br />
pedir ao aluno que escreva o seu próprio texto (de humor ou não),<br />
empregando os tipos textuais mais adequados ao gênero escolhido e,<br />
consequentemente, a seu propósito comunicativo.<br />
3. Considerações finais<br />
A melhor maneira de se aprender uma língua é por meio do<br />
seu uso, quer falando ou ouvindo, quer lendo ou escrevendo. Então<br />
seria possível aprender português por meio da leitura de textos de<br />
humor? Acreditamos que sim, pois os textos de humor oferecem farto<br />
material sobre a língua portuguesa em uso. Por meio dos exemplos<br />
arrolados anteriormente, pudemos identificar os recursos linguísticos<br />
sendo empregados com a finalidade de provocar o riso. Ao trabalharmos<br />
o texto de humor em sala de aula, permitimos ao aluno que<br />
reconheça outra finalidade para seu idioma que não seja a comunica-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
527<br />
tiva. Além disso, demonstramos como a língua é uma enorme fonte<br />
de recursos expressivos, que podem ser empregados ora para fazer<br />
rir, ora para emocionar; ora para argumentar, ora para informar. Cabe<br />
ao professor ampliar o repertório de textos lidos por seus alunos,<br />
permitindo-lhes o acesso aos mais variados gêneros textuais, incluindo-se,<br />
nesse caso, os textos humorísticos.<br />
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
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de Janeiro: Record, 2003.<br />
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Produção textual, análise de gêneros<br />
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e o humor brasileiro na televisão. In: Estudos linguísticos e literários,<br />
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1995, p. 41-50.
ARISTÓTELES E PEIRCE:<br />
OS SUBSTRATOS PARA A COMPREENSÃO LÓGICA<br />
DOS PROCESSOS SEMIÓTICOS<br />
Luiz Roberto Peel Furtado de Oliveira (UFT)<br />
luizpeel@yahoo.com.br<br />
A linguagem comporta uma tríplice categorização: a “absignificação”<br />
1 , a significação e a consignificação. Dizer algo é, então,<br />
“absignificar”, significar ou consignificar: ou designamos intuitivamente<br />
a própria linguagem verbal, “absignificando”; ou a sua generalização,<br />
a partir da predicação, significando; ou, a sua composicionalidade<br />
textual, por meio da coesão e da coerência, consignificando.<br />
Esses conceitos foram parcialmente apresentados por Aristóteles,<br />
principalmente em seu Organon, e posteriormente discutidos,<br />
com mais precisão, por Charles Sanders Peirce. Partindo, pois, do<br />
primeiro chegaremos sempre ao segundo, dissecando tanto as suas<br />
considerações preliminares quanto as consequências delas advindas.<br />
Quanto à primeira categoria, “absignificar” é apontar diretamente<br />
para a significância; sendo ótimos exemplos os nomes ou signos<br />
que indicam direta e simplesmente as suas próprias formas – o<br />
texto lírico, a pintura abstrata, o teatro do absurdo.<br />
Em relação à segunda categoria, significar é definir conotativamente,<br />
ou seja, apontar genericamente para a essência; sendo exemplos<br />
precisos e diretos as frases declarativas, em que, a partir de<br />
uma substância ou sujeito, enunciamos um predicado genérico. Logo,<br />
podemos dizer, que a enunciação declarativa – o logos apofhantikós<br />
aristotélico – comporta sempre um substrato e uma predicação<br />
(uma referência a um fenômeno real ou cultural e uma afirmação genérica<br />
a partir dele).<br />
1 A escolha de “absignificação” se justifica em função de ser um processo significativo fruto do<br />
acaso e da intuição, diferentemente dos processos da significação, calcados na indução, e da<br />
consignificação, fundamentada na dedução; outra justificativa é a relação que esse processo<br />
guarda com a abdução de Peirce.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
532<br />
ção gráfica indicada acima, quando dissertamos a respeito desse processo,<br />
pode ser desenvolvida até a enésima potência, pois, dependendo<br />
do intérprete, haverá multiplicidade hermenêutica, isto é, ampla<br />
possibilidade interpretativa. Um exemplo tirado de Manuel Bandeira<br />
nos ajudará a compreender o processo: o primeiro verso do<br />
Rondó dos Cavalinhos, “Os cavalinhos correndo e nós cavalões comendo”,<br />
suscitou uma disputa muita saudável num jornal carioca – o<br />
debate entre Manuel Bandeira e Aurélio Buarque de Holanda a respeito<br />
do significado das palavras desse verso, veremos que para cada<br />
um dos autores, o vocábulo “cavalinhos” tem um significado; para o<br />
primeiro, esses versos trouxeram à mente os cavalinhos do carrossel,<br />
cavalinhos de pau, presos como objetos e soltos como fantasia, em<br />
que os indivíduos realizam prodigiosas viagens, circulares e cheias<br />
de mimese; já para Bandeira, os cavalinhos eram de carne e osso, os<br />
do Jóquei Clube, pequenos somente quando contemplados à distância,<br />
distantes do olhar. E essas várias possibilidades significativas,<br />
cada uma por sua vez, levam todos os outros signos a alterarem igualmente<br />
o seu sentido.<br />
Por outro lado, no texto informativo, predomina o processo<br />
paronímico, que resulta em procedimentos mais simples, já que o<br />
sentido passa a ser fechado, determinado. O processo paronímico é<br />
percebido na relação entre as frases, ou melhor, na relação entre os<br />
signos de frases diferentes que se referem à mesma realidade objetiva.<br />
Já a sinonímia aparece sempre em qualquer texto argumentativo<br />
(o publicitário ou o jurídico, por exemplo), uma vez que, nesses<br />
discursos, as bases referenciais e predicativas serão sempre genéricas,<br />
para poderem persuadir ou convencer.<br />
Relacionando, agora, com as afirmações de Peirce, com suas<br />
matrizes de pensamento e linguagem, podemos afirmar que os processos<br />
que estamos abordando – “absignificação”, significação e<br />
consignificação, em relação aos enunciados verbais, ocorrem sempre<br />
na terceira matriz, a simbólica: a “absignificação” na sua expressão<br />
primeira (a primeiridade na terceiridade – o texto expressivo, lírico<br />
ou mimético); a significação na sua expressão segunda (a secundidade<br />
na terceiridade – o texto informativo); e a consignificação na sua
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
533<br />
expressão terceira (a terceiridade na terceiridade – o texto argumentativo).<br />
Dissequemos essas afirmações: no texto expressivo encontraremos<br />
as possibilidades significativas, ou seja, a explosão de significados,<br />
a existência de rhema (o que é dito, o vocábulo que predica –<br />
segundo Aristóteles e Frege) sem sujeito definido; por outro lado, no<br />
texto informativo, haverá a predominância do processo paronímico,<br />
já que o sentido é determinado; por último, na sinonímia, com a identidade<br />
de significantes e de interpretantes, depararemo-nos com<br />
generalizações, posto que somente as referências ou as realidades objetivas<br />
é que serão distintas.<br />
Consequentemente, a homonímia denota identidade nominal<br />
ou sígnica; a sinonímia, identidade nominal e nocional; e a paronímia,<br />
identidade referencial.<br />
Quanto ao rhema, como já foi dito acima, constitui-se a partir<br />
de uma referência, isto é, de um sujeito, sendo sua elaboração a partir<br />
da predicabilidade. E seu papel básico, no processo de elaboração<br />
do enunciado, é definido em função do contexto semântico e pragmático,<br />
como propriedade, generalização ou acidente – ou indica<br />
uma característica própria ou genérica ou acidental do substrato empregado<br />
como sujeito.<br />
Em relação a esse último, o sujeito, tem-se situação semelhante:<br />
ou é compreendido em relação ao contexto semântico e<br />
pragmático através de processos sinonímicos, ou paronímicos, ou<br />
homonímicos. Se os seres (ou realidades) nomeados apresentarem<br />
identidade nocional e nominal em relação ao contexto linguístico e<br />
pragmático, falar-se-á em processo elaborado com base na sinonímia;<br />
se somente apresentarem identidade nominal, o processo se baseará<br />
na homonímia; se identidade apenas do objeto, na paronímia;<br />
se, ao contrário, não houver identidade de nenhum tipo, ter-se-á um<br />
texto pouco coeso e pouco coerente.<br />
A predicação pode, então, ser definida como o modo de criação<br />
de sentidos a partir da realidade (natural ou cultural), ou seja,<br />
como a possibilidade concreta de modalização sistêmica, estabelecendo,<br />
por meio de processos de “absignificação”, de “significação”<br />
ou de “consignificação”, coesão e coerência semânticas para o texto.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
534<br />
ARISTOTE. Organon – catégories et de l’interprétation. Paris: Librairie<br />
Philosophique J. Vrin, 1989.<br />
ARISTÓTELES. Organon. Lisboa: Guimarães, 1985.<br />
ARISTOTELIS. Categoriae et liber de interpretatione. Oxford: Oxford<br />
University Press, 1986.<br />
PEIRCE, C.S. Escritos coligidos. São Paulo: Nova Cultural, 1989.<br />
______. Semiótica e filosofia. São Paulo: Cultrix, 1972.<br />
______. Semiótica. São Paulo: Perspectiva, 1995.
ARNALDO ANTUNES, INFERENCIAÇÃO E SENTIMENTO:<br />
FUNDAMENTOS SEMIOLINGUÍSTICOS<br />
PARA AULA DE LEITURA<br />
1. A aula de leitura ou a leitura da aula<br />
Beatriz dos Santos Feres (UFF/CIAD-Rio)<br />
beatrizferes@yahoo.com.br<br />
Há mais de dez anos os Parâmetros Curriculares Nacionais<br />
preconizam o trabalho centrado no texto, numa tentativa de estabelecer,<br />
por parte da escola e, sobretudo, do professor, uma nova postura<br />
para o ensino de língua. Segundos os PCNs, o estudo da língua portuguesa<br />
deve se pautar na análise e reflexão sobre seu uso efetivo na<br />
sociedade, atrelando, por meio de textos, as variedades linguíticas<br />
existentes a seus contextos específicos de manifestação.<br />
Longe da teoria e perto da prática, no entanto, verifica-se uma<br />
lenta modificação da metodologia adotada e a permanência do “vício”<br />
da irrefletida metalinguagem decorada e da incipiência do trabalho<br />
com a produção textual e com a leitura – e, consequentemente, o<br />
desamor pelas letras e pela aprendizagem. Mesmo com o interesse<br />
crescente das pesquisas aplicadas ao ensino, a realidade das escolas<br />
tem sido apenas pontuada por iniciativas isoladas de uma minoria<br />
docente mais “crédula”, que tem demonstrado dificuldade para disseminar<br />
sua prática renovadora. Por isso a necessidade de trabalhos<br />
como este, cujo objetivo precípuo é divulgar modos de fazer fundamentados<br />
teoricamente, não só a fim de esclarecer postulações e práticas<br />
pedagógicas diferenciadas, mas também estimular a formação<br />
de professores capacitados para uma escola consciente de seu papel<br />
na formação de cidadãos autônomos e críticos.<br />
A orientação recebida pelos professores de língua portuguesa<br />
nas escolas, em geral, reside na responsabilidade pela aquisição do<br />
“padrão culto da língua” e pelo desenvolvimento das habilidades de<br />
leitura e de escrita. Em relação aos modos de fazer que envolvem essa<br />
prática, muitas questões podem ser levantadas: as atividades de<br />
leitura e produção permanecem dissociadas das de investigação gramatical?<br />
O estudo de gramática continua privilegiando a abordagem
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
536<br />
de conceitos abstratos, abstraídos do uso efetivo da língua? Aprender<br />
o “padrão culto” ainda é sinônimo de “aprender português”? O estudo<br />
abstrato da gramática e a “cultura do certo e do errado” têm oferecido<br />
ao alunado um conhecimento sólido sobre adequação linguística<br />
às circunstâncias de enunciação? Tem-se formado usuários autônomos,<br />
proficientes na oralidade, na leitura e na escrita? A exígua<br />
capacidade leitora dos recém-egressos do ensino médio e sua dificuldade<br />
com a produção de textos atestados por exames como os do<br />
ENEM e dos vestibulares provam, entre outros fatos, a ineficácia do<br />
método.<br />
Por esses motivos (e alguns outros, omitidos em virtude dos<br />
limites impostos pelo propósito deste trabalho), pretende-se aqui focalizar<br />
estratégias para o desenvolvimento da capacidade leitora e,<br />
mais especificamente, os processos de inferenciação e de sentimento<br />
(como ato de sentir) de latências na construção do(s) sentido(s) do<br />
texto. Para isso, serão explorados os conceitos de patemização<br />
(CHARAUDEAU, 2010), iconicidade (PEIRCE, 2003; SANTAEL-<br />
LA, 2000; PIGNATARI, 2004) e de competência fruitiva (FERES,<br />
2010). Como corpus para análise, serão usados textos poéticos de<br />
Arnaldo Antunes, contidos no livro Palavra desordem (2002). A partir<br />
dessa abordagem, espera-se mostrar como o trabalho com o texto<br />
na aula de LP pode levar o aluno a cogitar, fazer relações, posicionar-se,<br />
sentir e tornar-se um usuário competente e autônomo da língua<br />
portuguesa.<br />
2. Fundamentos semiolinguísticos, inferenciação e sentimento<br />
A teoria semiolinguística de análise do discurso (CHARAU-<br />
DEAU, 2008) propõe, para a análise do fato linguageiro, uma perspectiva<br />
psicossociocomunicativa. Assim, aspectos formais, facilmente<br />
localizáveis na superfície do texto, são analisados em sua relação<br />
com aspectos da ordem do discurso e da situação que envolve a troca<br />
comunicativa. O texto passa a ser visto como o lugar de confluência<br />
de propósitos, saberes compartilhados e formas em função de um<br />
projeto interativo que é “colocado em cena” por sujeitos ajustados às<br />
circunstâncias enunciativas. Saber construir o sentido do texto, seja<br />
na extremidade da produção, seja na da recepção, pressupõe, portanto,<br />
o acionamento de saberes que excedem o reconhecimento do sig-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
537<br />
no linguístico e de sua estruturação. São saberes que possibilitam a<br />
criação de expectativas (confirmadas na finalização do processo) em<br />
relação ao texto e ao sujeito interagente com quem se divide a construção<br />
do sentido.<br />
Considerando-se a inferenciação o processo de extração de<br />
conteúdos implícitos ao texto, exige-se do sujeito-interpretante uma<br />
habilidade para relacionar o material linguageiro, ou a superfície do<br />
texto, às suas condições de uso e aos conhecimentos partilhados pelos<br />
interagentes. Nessa relação, emergem sentidos além da “simbolização<br />
referencial” (CHARAUDEAU, 2008), concomitantes aos explícitos,<br />
mas apenas sugeridos pelo contrato de comunicação. A interpretação,<br />
portanto, necessita de uma competência leitora que ultrapasse<br />
a “evidência textual” na direção de sentidos indiretos, subjacentes,<br />
ou ainda, “excedentes”. Essa perspectiva é corroborada por<br />
teorias que tomam a compreensão como inferência – e não mais como<br />
decodificação:<br />
...toda compreensão será sempre atingida mediante processos em que atuam<br />
planos de atividades desenvolvidos em vários níveis e em especial<br />
com a participação decisiva do leitor ou ouvinte numa ação colaborativa.<br />
(MARCUSCHI, 2008, p. 238)<br />
Segundo Kleiman (2009), a leitura é considerada um processo<br />
interativo justamente porque níveis de conhecimento prévio, como o<br />
linguístico, o textual, o conhecimento de mundo, se interpenetram a<br />
fim de que sejam inferidos os sentidos. Além disso, o tipo de inferência<br />
“que se dá como decorrência do conhecimento de mundo e<br />
que é motivado pelos itens lexicais dos textos é um processo inconsciente<br />
do leitor proficiente” (KLAIMEN, 2009, p. 25) e, embora inconsciente,<br />
constitui aquilo que é efetivamente lembrado após a leitura<br />
(e não, como se poderia crer, o que o texto explicitava).<br />
Há, porém, outro tipo de inferência, relacionada à patemização,<br />
isto é, ao desencadeamento de emoções e, pode-se acrescentar, à<br />
percepção de qualidades: trata-se de uma inferência relacionada ao<br />
sentimento (como ato de sentir), dependente do reconhecimento de<br />
representações impregnadas de valores socialmente disseminados<br />
(Charaudeau, 2010), ou ainda, dependente da habilidade para, a partir<br />
de “pistas textuais”, relacionar elementos semelhantes entre si a<br />
fim de permitir a emergência de qualidades, num processo baseado<br />
na iconicidade.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
538<br />
Segundo Charaudeau (2010, p. 34), a análise do discurso “pode<br />
tentar estudar o processo discursivo pelo qual uma emoção pode<br />
ser estabelecida, ou seja, tratá-la como um efeito visado (suposto)”;<br />
“como um possível surgimento de seu ‘sentido’ em um sujeito específico,<br />
em situação particular”. Em outras palavras, a patemização é<br />
um processo observável a partir de representações que trazem em si<br />
valores coletivamente partilhados e que engajam o sujeito em um<br />
comportamento reacional previsível, de acordo com as normais sociais.<br />
Palavras como “cólera”, “horror”, “angústia”, “indignação” etc. designam<br />
estados emocionais, mas não provocam, necessariamente, emoção.<br />
Pode acontecer que seu emprego tenha um efeito contra-produtivo:<br />
explicitar um estado emocional poderia ser interpretado como um faz-deconta,<br />
porque, como se diz em determinadas culturas, “a verdadeira emoção<br />
não é dita, é sentida. Outras palavras como “vítima”, “assassinato”,<br />
“crime”, “massacre”, imagens de sangue, de destruição, de inundação,<br />
de desmoronamentos que são em parte ligadas aos dramas do mundo,<br />
exclamações (Ah! Oh! Nossa!) são suscetíveis de expressar ou engendrar<br />
medos, sofrimentos, horrores, mas são somente “suscetíveis”. O<br />
que se pode dizer é que estas palavras e estas imagens são, cada vez<br />
mais, “bons candidatos” para o desencadeamento de emoções. Mas tudo<br />
depende do ambiente em que essas palavras estão, do contexto, da situação<br />
na qual se inscrevem, de quem as emprega e de quem as recebe.”<br />
(CHARAUDEAU, 2007, p. 242-243)<br />
De acordo com esse ponto de vista, a emoção é desencadeada<br />
pela presença de signos patêmicos, responsáveis por despertar, no interlocutor,<br />
estados emocionais “colaterais”, que excedem o sentido<br />
intelectivo, em função das relações estabelecidas com o contexto situacional<br />
em que esses signos se inserem.<br />
Há outro tipo de processo que provoca inferências vinculadas<br />
às emoções e à percepção de qualidades: a iconicidade. Baseando-se<br />
em conceitos advindos da Semiótica peirciana 1 (Peirce, 2003; Santaella,<br />
2000; Pignatari, 2004), a iconicidade é tomada como um pro-<br />
1 Uma das tríades propostas por Peirce (2003) baseia-se na relação entre signo e objeto:<br />
quando a relação se estebelece a partir de convenções, tem-se o símbolo, considerado o signo<br />
genuíno; quando a relação se estabelece por contiguidade, pela ligação factual entre signo e<br />
objeto, por exemplo, numa relação de causa e efeito, ou de parte pelo todo, tem-se um índice;<br />
quando a relação se estabelece por similaridade, tem-se o ícone. A similaridade, nesse caso,<br />
não diz respeito somente a aspectos visuais, mas a qualquer aspecto perceptível, seja físico<br />
(sonoro, tátil, gustativo, olfativo), sensitivo, ou ainda, valorativo.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
539<br />
cesso cognitivo que se baseia em aproximações de elementos por similaridade.<br />
Aproximados os elementos, a qualidade que os une não<br />
só é evocada, mas exacerbada, passando à centralidade da significação<br />
e do sentimento (como ato de sentir).<br />
A semiose, segundo Peirce (2003), é um processo infinito,<br />
pois a relação signo-objeto-interpretante 2 pode contar com outro signo<br />
como objeto 3 , provocando, portanto, redes relacionais intermináveis<br />
4 entre os signos, que se “explicariam” uns aos outros. Quanto à<br />
especificidade da expressão de qualidades, o emprego de signos icônicos<br />
(que se “parecem” com o objeto que representam) e de relações<br />
icônicas entre signos e elementos exteriores a eles, presentes no<br />
contexto situacional, ou guardados na memória coletiva, favorecem a<br />
apresentação de emoções e sensações às vezes indizíveis.<br />
Na iconicidade intrassígnica, há motivação entre o signo e o<br />
objeto, ou, entre o significante e o significado. É o caso do signo imagético,<br />
que se parece com o objeto a que se refere (objeto psíquico,<br />
de existência limitada pela cognição, e não elemento concreto do<br />
mundo, como poderia ser confundido). As onomatopeias e as palavras<br />
com forte impacto sonoro correspondente ao sentimento que<br />
significam, como os “palavrões” cujas consoantes plosivas se assemelham<br />
ao rompante emocional expresso, também são exemplos de<br />
similaridade entre os constituintes sígnicos. Há igualmente uma relação<br />
icônica entre palavras e/ou expressões que se assemelham, isto é,<br />
2 “Nenhum signo pode funcionar como tal a não ser na medida em que é interpretado como outro<br />
Signo (por exemplo, num ‘pensamento’, o que quer que seja isso). Consequentemente, é<br />
absolutamente essencial ao Signo que ele deve afetar outro Signo (8225). (...) O interpretante<br />
não é outra coisa senão outra representação (1339). Todo propósito de um Signo é aquele de<br />
que ele deva ser interpretado em outro Signo (8191)”. (PEIRCE, apud SANTAELLA, 2000, p.<br />
64)<br />
3 Por exemplo, diz-se que o significado de “estímulo” pode ser “incentivo” (o objeto do signo<br />
“estímulo” é, portanto, outro signo, “incentivo”), ou ainda, que o significado de “gato”, em determinado<br />
contexto, pode ser “bonito”, “atraente”, num sentido “figurado”, em função da similaridade<br />
entre a beleza e a elegância do animal e as do homem a quem se atribui a denominação.<br />
4 “...a significação (e a comunicação), por meio de deslocamentos contínuos, que referem um<br />
signo a outros signos ou a outra cadeia de signos, circunscreve as unidades culturais de modo<br />
assintótico, sem jamais conseguir ‘tocá-las’ diretamente, mas tornando-as acessíveis através<br />
de outras unidades culturais.” (ECO, 2003, p. 60)
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
540<br />
uma iconicidade intersígnica, seja em sua materialidade, como aquela<br />
ocorrida nas rimas, por exemplo, seja em seu conteúdo, como nos<br />
sinônimos mais ou menos próximos, ou também entre signos verbais<br />
e não verbais.<br />
A iconicidade também pode atuar ancorada no conhecimento<br />
prévio acionado pelas inferências, ou por elementos das circunstâncias<br />
enunciativas. Nesses casos, diferenciados daqueles citados anteriormente,<br />
a aproximação por semelhança não se localiza na superfície<br />
textual, ou se circunscreve às formas, mas une elementos presentes<br />
na “materialidade” textual e outros, evocados por ela, oriundos<br />
dos níveis discursivo e situacional que compõem a construção do<br />
sentido, permitindo a inferenciação. Charaudeau (2001 e 2004) explica<br />
que há uma competência de linguagem, ligada à convergência<br />
das habilidades relativas a esses três níveis (superficial, discursivo e<br />
situacional) de que se valem os sujeitos interagentes para criar expectativas<br />
e/ou estados favoráveis de aceitabilidade a fim de que se<br />
possa finalizar o sentido veiculado por determinado texto e, consequentemente,<br />
atingir o propósito da troca estabelecida.<br />
Se é preciso utilizar uma competência de linguagem que abarca<br />
conhecimentos linguageiros, discursivos e situacionais a fim<br />
de se estabelecer o sentido intelectivo, para a apreensão das qualidades<br />
relativas a estados emocionais tematizados, também será exigida<br />
uma competência fruitiva, que diz respeito à construção de um sentido,<br />
sobretudo, afetivo, aberto ao ato de sentir. É uma competência<br />
ligada à habilidade para relacionar elementos por meio da similaridade<br />
e suscitar a partir disso uma qualidade – sensação, emoção,<br />
sentimento – às vezes indizível, não “representável”, mas com certeza<br />
sentida, “apresentável” por meio da enunciação; uma competência<br />
estésica, no sentido de Valery (apud Costa Lima, 1983), relacionada<br />
às sensações, excitações e reações sensíveis.
3. Um pouco de Arnaldo Antunes<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
541<br />
Antunes, 2002<br />
Em Palavra Desordem (2002), Arnaldo Antunes investe na<br />
reconstrução de lexias simples e complexas (palavras, expressões,<br />
clichês, ou ditos populares), cuja diagramação original – cada qual<br />
em uma página inteira, utilizando as mais diversas direções – acrescenta-lhes<br />
efeitos de sentido e/ou estéticos. Na reconstrução, o estranhamento<br />
provoca a alusão ao sentido correspondente à nova forma<br />
– iconicamente. Aqui, respeitando-se a subjetividade das interpretações<br />
de base poética, serão analisados quatro casos de neologia apresentados<br />
nesse livro, grafados verticalmente, “EXCESSÍSSSISSS-<br />
SISSSSSIMO”, “CINE-PENSAMENTO”, “CABEÇA-DESPENSA”<br />
e “REJUVELHECER”, e dois casos de “reorganização morfológica”<br />
(“GEN ET” e “SENTI MENTAL MENTE”), cujas partes em que se<br />
dividem se colocam sobrepostas em diferentes níveis, organizados<br />
horizontalmente.<br />
“EXCESSÍSSSISSSSISSSSSIMO”: a própria palavra apresenta<br />
o excesso que expressa. Considerado o grau um processo derivativo<br />
(e não flexional), a aplicação do sufixo superlativo -íssimo<br />
(que por si só expressa intensidade, ou abundância) à base substantiva<br />
EXCESSO, cujo significado é redundado pelo sufixo num quase<br />
espelhamento significativo, provoca-se a exacerbação da Qualidade<br />
de SER EXCESSIVO. Além disso, a repetição das sílabas e das vogais,<br />
sugerindo alongamentos (que também significam intensidade,<br />
ou abundância, ou seja, excessos), também provoca, iconicamente,<br />
pelo excesso de elementos, não só a ideia que se quer comunicar,<br />
mas, sobretudo, a sensação daquela Qualidade. A interpretação no<br />
nível superficial/formal, a fim de se estabelecer o sentido intelectivo,<br />
é permeada pelo sentimento (ato de sentir) daquele EXCESSO.<br />
Em “CINE-PENSAMENTO” e em “CABEÇA-DESPENSA”,<br />
a união de substantivos com objetivo de Qualificação de um sobre o<br />
outro, além da referenciação, também trabalha com o princípio da
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
542<br />
iconicidade no nível superficial, agora dependendo do acionamento<br />
de traços significativos comuns, que tornam semelhantes os elementos<br />
aproximados.<br />
No primeiro caso, o que permite a aproximação dos elementos<br />
CINE e PENSAMENTO (aparentemente nada relacionáveis) é,<br />
digamos, a Qualidade do SER IMAGÉTICO: o cinema e o pensamento<br />
se parecem por se constituírem de imagens relacionadas, sequenciais,<br />
moldáveis, criadas etc. O cinema se assemelha ao pensamento;<br />
o pensamento se assemelha ao cinema – ainda que parcialmente.<br />
Se o elemento qualificador é “pensamento”, caracteriza-se<br />
“cine” como aquele capaz de se parecer com o pensamento, seja em<br />
sua capacidade criativa, ou representacional, seja na influência sobre<br />
a formação de conceitos e opiniões. Se “cine”, anteposto a “pensamento”,<br />
qualifica-o subjetivamente, então o pensamento é caracterizado<br />
como “cinematográfico”, capaz de construir cenas comparáveis<br />
às de cinema. Dessa composição, salta a Qualidade que os assemelha<br />
e que se quer destacar: a de SER IMAGÉTICO.<br />
Igualmente em “CABEÇA-DESPENSA”, a iconicidade aproxima<br />
os elementos formadores por meio de uma similaridade evocada:<br />
“despensa”, local apropriado para guardar, armazenar, ou para se<br />
“despender” pensamentos, qualifica “cabeça”. Na junção dos lexemas,<br />
atualiza-se o sentido-Qualidade de SER LOCAL DE ARMA-<br />
ZENAMENTO, transferindo para “cabeça” a Qualidade essencial de<br />
“despensa”, de local onde se acumulam itens, ideias, memórias,<br />
quinquilharias.<br />
Já em “REJUVELHECER”, percebe-se a sobreposição de palavras<br />
(REJUVENECER/REJUVELHECER), possibilitada pela semelhança<br />
sonora, e a formação da base/palavra-valise “juvelho”, de<br />
que derivaria “rejuvelhecer”. Com isso, une-se, iconicamente, a condição<br />
de “ser jovem” à de “ser velho” e, ao aproximar esses elementos,<br />
assemelha-os, e/ou mistura-os. A modificação operada no nível<br />
superficial, ligada a mecanismos linguísticos, faz aflorar uma questão<br />
própria do nível discursivo, bastante debatida na atualidade: a ideia<br />
da “eterna juventude”, mesclada às campanhas de valorização<br />
da “melhor idade”, influenciadas pela evolução da qualidade de vida<br />
na terceira idade. Ou ainda, o simples questionamento existencial<br />
daquele que envelhece, sentindo-se ainda jovem. De qualquer forma,
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
543<br />
emerge uma discussão partilhada socialmente, oriunda das relações<br />
estabelecidas com o contexto social, por meio da neologia, da analogia<br />
e daquilo que os elementos formadores fornecem como representações.<br />
Os outros casos dependem mais especificamente da liberdade<br />
de diagramação oferecida aos textos para a construção dos sentidos.<br />
“GEN ET”, cujas partes são dispostas horizontalmente, uma acima<br />
da outra, obriga uma leitura dupla: na apreensão visual imediata,<br />
“gente”; mas, numa apreensão “em sentido horário”, gente/ET, uma<br />
possível referência a “extraterrestre”, comumente abreviada como<br />
“ET”. Como se houvesse, sobre a palavra “gente”, uma reorganização<br />
de seus constituintes, desdobrada em “gente” + “ET”. A concomitância<br />
de “gente” e de “ET” provoca, além das referências isoladas<br />
a seus significados, a necessidade de se estabelecer o sentido<br />
dessa mesclagem: há um “tipo de gente” que pode ser considerada<br />
“ET”, um estranho às características atribuídas a quem se possa designar<br />
“gente”, termo por meio do qual se atribui um valor especialmente<br />
positivo para “ser humano”. Aqui, um investimento maior nos<br />
“saberes de crença” a que se ligam os elementos e, consequentemente,<br />
na paternização oriunda dessa “impressão” nos signos. Na aproximação<br />
dos elementos, similares em sua condição de “ser” (“ser<br />
humano” e “ser extraterrestre”), ocorre a transposição da Qualidade<br />
de SER ESTRANHO (característica de “ET”, “adjetivo”, predicativo)<br />
ao elemento “GENTE” (“substantivo”, referencial), que passa a<br />
identificá-los. Mais uma vez, a iconicidade, atuando, no caso, no<br />
plano do significado a partir de uma conformação/diagramação textual<br />
inusitada que induz à aproximação dos elementos (ou mesmo à<br />
sua mescla) e à sua condição comum de “ser”, provoca a exacerbação<br />
da Qualidade de SER ESTRANHO e a atribuição dessa Qualidade<br />
ao signo que, de certa maneira, a contém.<br />
Por último, tem-se “SENTI MENTAL MENTE”, cujos fragmentos<br />
se dispõem horizontalmente, um acima do outro. “Mental”<br />
aparece invertido, “de cabeça para baixo”, contrastando com os outros<br />
elementos e, nesse contraste, enfatiza-se seu conteúdo. “Sentimentalmente”<br />
é, em princípio, um modificador cujo valor atribuído<br />
coletivamente pode ser negativo em função de uma possível predominância<br />
da emoção sobre a razão em um mundo em que se precisa<br />
agir racionalmente. Na fragmentação, o elemento “mental” aparece
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
544<br />
como a parte central de “sentimentalmente”. Iconicamente, aquilo<br />
que pode ser considerado “mental”, racional, localiza-se centralmente<br />
do que acontece baseado na emoção, “sentimentalmente”, mas<br />
mostra seu contraste pela inversão.<br />
Pode-se interpretar a soma desses recursos expressivos como<br />
um convite para que “se sinta por meio da mente”, numa tentativa de<br />
se racionalizar, de se recobrir de signos aquilo que é sentido, submetido<br />
ao sentimento, ao ato de sentir. Na reação àquilo que se percebe<br />
(uma “fusão” entre “mente” e “sentimento”), emerge um registro, algo<br />
que represente o produto dessa percepção. Às vezes, essa representação<br />
corresponde a uma designação própria; às vezes, por sua<br />
natureza mais perceptiva do que objetiva, é preciso recorrer a mecanismos<br />
analógicos de representação (ou de apresentação, dado seu<br />
caráter icônico). Numa síntese do tema deste artigo, busca-se significar<br />
o sentimento.<br />
4. Por uma nova pedagogia para a aprendizagem de leitura<br />
Ainda hoje prevalece a crença de que a responsabilidade no<br />
desenvolvimento da autonomia leitora é exclusiva do professor de<br />
língua portuguesa. A insuficiência da capacidade interpretativa por<br />
grande parte de alunos egressos do ensino médio (e o que dizer dos<br />
de nível fundamental...) é patente; a queixa quanto ao péssimo rendimento<br />
nas demais matérias costuma encontrar justificativa na dificuldade<br />
na interpretação de enunciados de exercícios e provas e, sobretudo,<br />
no entendimento dos textos didáticos; enfim, o mau resultado<br />
no trato com o texto escrito é comumente atribuído a falhas das<br />
aulas de língua materna, além, é claro, do desinteresse do aluno, acostumado<br />
a realizar tarefas de repetição, de cópia, e não de reflexão.<br />
O desenvolvimento da capacidade leitora na escola depende<br />
de um investimento global, tanto no que diz respeito ao letramento,<br />
quanto no que se refere à leiturização. O letramento, processo leitor<br />
“completo”, envolve não só a simples decodificação do sistema escrito,<br />
como também a finalização interpretativa ancorada no contexto<br />
sociodiscursivo. Para isso, vários mecanismos linguísticos devem ser<br />
trabalhados em sua relação com a textualização (escrita e oral), no<br />
intuito de refletir sobre a língua em uso, além de possibilitar a vincu-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
545<br />
lação da materialidade textual ao conhecimento prévio dos leitores<br />
em formação, num movimento de extensão cognitiva. Já a leiturização,<br />
por seu caráter geral (não circunscrito ao texto verbal escrito)<br />
expande o processo leitor a toda atividade de linguagem, desde que<br />
consideradas as representações sociais que a constituem.<br />
A habilidade leitora não se restringe aos textos escritos, mas se aplica<br />
a qualquer objeto, real ou não, concreto ou não, verbal ou não. Seu<br />
desenvolvimento visa a estimular a capacidade de atribuir o mais variado<br />
conjunto possível de juízos acerca dos objetos de todos os tipos lidos e<br />
de perceber as representações atribuídas por outras pessoas aos objetos<br />
que o próprio indivíduo representa de modo diverso. (SENNA, 2000, p.<br />
9)<br />
Nesse sentido, o investimento global de que necessita o desenvolvimento<br />
da capacidade leitora não se limita às aulas de língua<br />
portuguesa, mas é de responsabilidade de todas as disciplinas, sobretudo<br />
no ensino fundamental e médio, fase em que ainda se deve ter o<br />
professor como mediador da aprendizagem. A leiturização está presente<br />
em toda atividade escolar, pois aprender é, de fato, uma construção<br />
de sentido, um trabalho conjunto em direção à significação<br />
compartilhada socialmente. Afinal, como defende Morin (2008),<br />
“um ensino educativo tem como missão transmitir não um mero saber,<br />
mas uma cultura que permita compreender nossa condição e nos<br />
ajude a viver”.<br />
O letramento tem sido um grande desafio para os educadores,<br />
seja pelo desinteresse demonstrado pelos alunos em relação ao texto<br />
escrito, seja pela dificuldade que apresentam em atividades que dependem<br />
de maior abstração.<br />
Um texto escrito é um objeto de leitura dos mais complexos. A despeito<br />
de ser ele mesmo um objeto concreto, não se lê através de operações<br />
concretas, pois o conteúdo objetivo de sua leitura não está em sua<br />
forma concreta, mas sim, nas representações expressas pelas palavras.<br />
Todo texto escrito é abstrato, mesmo que trate de coisas as mais concretas,<br />
uma vez que não são as coisas que estão sendo lidas, mas, as representações<br />
subordinadas aos juízos que outra pessoa construiu sobre as<br />
coisas. (SENNA, 2000, p. 9).<br />
Além disso, o letramento é visto como uma atividade multidisciplinar<br />
em virtude dos saberes de conhecimento e de crença que<br />
envolvem as representações de que essa atividade se constitui. Ao<br />
professor de língua portuguesa cabe a tarefa, também realizada na
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
546<br />
leiturização, de mediar o processamento da leitura em relação às inferências<br />
dependentes do entorno contextual acessado pelo texto –<br />
tarefa que engloba a capacidade para apreender sentimentos a partir<br />
das representações socialmente disseminadas, ou ainda a partir de<br />
mecanismos baseados na iconicidade. Mas também cabe a ele a responsabilidade<br />
quanto ao trato específico com a superfície textual escrita<br />
e suas idiossincrasias. Isso requer o estudo, exemplificado neste<br />
trabalho, da língua e seus mecanismos significativos, do ordenamento<br />
linear e sequenciado, próprio da escrita, da projeção de expectativas<br />
de construção de sentido direcionadas e restringidas pela língua<br />
em uso. É na convergência desses aspectos que se coloca a competência<br />
de linguagem, intrínseca a todo processo de construção de<br />
sentido, na leiturização, ou no letramento.<br />
O desenvolvimento da competência leitora, portanto, deve<br />
considerar a habilidade do professor/mediador para promover atividades<br />
relacionadas a cada um desses aspectos e, sobretudo, a textos<br />
exigentes de inferenciação e sentimento, por meio dos quais sejam<br />
acionadas estratégias leitoras que exercitem o cálculo de sentido baseado<br />
em observação, relação, reflexão, juízo de valores e ajuste à situação<br />
comunicativa.<br />
REVERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
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Brasil, 2000, p. 3203-3225.
AS CANÇÕES DIZEM MAIS:<br />
DESVENDANDO AS METÁFORAS PRESENTES<br />
NAS MÚSICAS SERTANEJAS<br />
1. Introdução<br />
Josiane Silveira Coimbra(UFJF)<br />
josicoimbra86@hotmail.com<br />
Margareth Myriam da Rocha(UFJF)<br />
alextostes1@hotmail.com<br />
Nívia de Souza Costa(UFJF)<br />
niviacosta@hotmail.com<br />
Tays Angélica Rezende(UFJF)<br />
trezende85@hotmail.com<br />
A linguística cognitiva rompe com o paradigma científico<br />
centrado nas descrições das estruturas das línguas (com foco no significante)<br />
e começa os modernos estudos sobre a linguagem (com o<br />
foco no significado).<br />
Dentre os diversos estudos propostos pela linguística cognitiva,<br />
Geoge Lakoff e Mark Johnson (2002), base teórica do nosso estudo,<br />
no livro Metáforas da Vida Cotidiana, rompem com a ideia de<br />
que a metáfora é apenas um artifício literário e defendem que ela assume<br />
uma função fundamental no nosso sistema conceptual.<br />
Este trabalho tem como objetivo identificar e analisar as principais<br />
metáforas empregadas nas músicas sertanejas e, a partir dessas<br />
observações, estabelecer os conceitos metafóricos mais comuns nessa<br />
área musical.<br />
O corpus da presente pesquisa é constituído por 69 canções,<br />
de quatro duplas sertanejas famosas entre os brasileiros, e nele encontrou-se<br />
cerca de 20 metáforas, de acordo com o modelo proposto<br />
por Lakoff e Johnson (2002).<br />
Dentre as canções analisadas, foram encontradas metáforas<br />
orientacionais, ontológicas e estruturais.
2. Questões teórico-metodológicas<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
549<br />
A perspectiva metodológica da pesquisa está relacionada com<br />
o fundamento teórico proposto por Geoge Lakoff e Mark Johnson<br />
(2002), no livro Metáforas da Vida Cotidiana. Esse estudo propõe<br />
um rompimento com o conceito metafórico, geralmente presente em<br />
estudos tradicionais, no qual diz que a metáfora é apenas um artifício<br />
literário, usado apenas com o intuito de “embelezar” o texto. Esses<br />
dois autores propõem uma visão nova, na qual a metáfora está presente<br />
no cotidiano dos usuários de qualquer língua.<br />
O corpus do presente trabalho foi composto pela análise de 69<br />
canções, de quatro duplas brasileiras famosas: Chitãozinho e Xororó,<br />
Gino e Geno, Teodoro e Sampaio e por fim Zezé di Camargo e Luciano.<br />
Encontramos, nesse recolhimento de dados, em torno de 20 metáforas<br />
diferentes. Isso pode ser uma evidência da hipótese levantada<br />
pelos autores, nos quais inspiramos nossos fundamentos teóricos, de<br />
que a metáfora está presente em nossa “vida cotidiana”.<br />
Os dois pesquisadores colocam a existência de três tipos de<br />
metáforas: as orientacionais, as ontológicas e as estruturais, as quais<br />
serão explicitadas mais abaixo.<br />
3. A semântica sob a ótica do estruturalismo e o gerativismo<br />
Para a fundamentação do presente trabalho, foram visitados<br />
alguns conceitos norteadores da linguística cognitiva, os quais são de<br />
incontestável importância em relação ao estudo e análise das metáforas<br />
presentes em nossa vida cotidiana, sobretudo nas canções sertanejas,<br />
foco de nossa análise.<br />
No século XX, despontaram duas teorias formalistas nos estudos<br />
científicos da linguagem, o Estruturalismo e o Gerativismo, de<br />
acordo com as quais privilegiava-se o significante em detrimento do<br />
significado que ,por sua vez, era subfocalizado.<br />
A Semântica Estruturalista opera com a noção de valor opositivo,<br />
descrevendo o sistema linguístico pela Teoria dos Traços que,<br />
baseada na Hipótese Forte da Composicionalidade, postula que o<br />
produto é igual ao resultado da soma das partes que o integram. Já a<br />
Semântica Gerativista, cujo foco também é o significante, opera com
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
550<br />
modelos matemáticos, focalizando a competência linguística e , assim<br />
como os estruturalistas, primam pelo centro da gramática e analisam<br />
os modelos mais regulares.<br />
No entanto, essas duas correntes teóricas desprezam o significado<br />
e consequentemente os usuários da língua, a cultura, interação e<br />
experiência humanas. Por esta razão, os formalistas não conseguiram<br />
explicar, por exemplo, as expressões idiossincráticas da língua bem<br />
como as construções irregulares (para nós em especial as metáforas),<br />
pois tais fenômenos estão ancorados na cognição humana e, portanto,<br />
na cultura do falante. Se levarmos em consideração a Teoria dos<br />
Traços e o significado linguístico, explicaríamos uma construção<br />
como “A estrada por que passei estava parcialmente interditada”, segundo<br />
a qual o elemento “estrada” porta o seu significado linguístico,<br />
pois é um fenômeno regular da língua. Contudo, pela mesma teoria,<br />
não explicaríamos a construção “A estrada desta vida está difícil<br />
sem você”, segundo a qual o sentido do mesmo elemento “estrada”<br />
não tem previsibilidade nem transparência, já que sua construção é<br />
metafórica.<br />
Desta maneira, observa-se que a “Hipótese Forte da Composicionalidade”<br />
não se aplica ao conhecimento cultural, uma vez que<br />
este está relacionado à experiência, à cultura, à condição social, ao<br />
período histórico, etc. É fundamental observarmos também que embora<br />
as teorias formalistas mencionadas tenham contribuído expressivamente<br />
para o estudo do significante, não foram satisfatórias no<br />
estudo do significado, objeto da Semântica, que hoje une forma,<br />
cognição e cultura para desvendá-lo.<br />
4. A linguística cognitiva e os estudos da linguagem<br />
A linguística cognitiva redefiniu os estudos da linguagem a<br />
partir de três hipóteses sociocognitivas quais sejam a insuficiência do<br />
significante, o caráter partilhado da significação e a força da experiência<br />
física, corporal e social na constituição dos significados. De<br />
acordo com a primeira hipótese, podemos depreender que a forma<br />
linguística é apenas uma pista suscitadora do significado, uma vez<br />
que este é proveniente da ação conjunta. A segunda hipótese prevê a<br />
relação triádica na qual o símbolo é motivado a partir da ação inte-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
551<br />
grada entre o “eu”, o “outro” e o “mundo”, ou seja, ele não é nem arbitrário<br />
nem previsível. A terceira hipótese está ancorada na força da<br />
experiência para a construção do significado, considerando o corpo<br />
como cerne do pensamento e da linguagem. Com isso, incorporamse<br />
as situações particulares de uso da linguagem às estruturas linguísticas<br />
para a interpretação do significado, sobretudo das idiossincrasias,<br />
até então consideradas exceção. Dessa forma, podemos perceber<br />
que o ser humano é biológico e cultural ao mesmo tempo, sendo a<br />
experiência biológica imprescindível para juntamente com a experiência<br />
cultural desvendarem os significados.<br />
5. Metáfora conceptual/tipologia<br />
De acordo com abordagens tradicionais, a metáfora está relacionada<br />
ao emprego literário e/ou retórico, sem valor cognitivo. Sendo<br />
assim, ela seria um fenômeno verbal, desassociado dos usos cotidianos<br />
da linguagem, ou seja, seu uso tradicional estaria ligado apenas<br />
à ornamentação de textos literários. Contudo, a metáfora é um<br />
mecanismo fundamentalmente conceptual e cognitivo através do<br />
qual raciocinamos e compreendemos conceitos abstratos de nosso<br />
dia a dia em termos de outros mais concretos; Lakoff (2002) diz “A<br />
essência da metáfora é compreender e experienciar uma coisa em<br />
termos de outra.” (LAKOFF, 2002, p. 48). Segundo George Lakoff<br />
(2002), o ser humano conceptualiza e categoriza o mundo à sua volta<br />
a partir de sua experiência corporal, de seus estímulos culturais, sociais<br />
e interacionais. Sendo assim, nossa mente projeta pensamentos<br />
metafóricos através dos quais mapeamos domínios conceptuais diferentes,<br />
transferindo elementos do domínio concreto (domínio fonte)<br />
para outro abstrato (domínio alvo), facilitando assim a compreensão<br />
de experiências novas integradas às anteriores. Logo, a metáfora torna-se<br />
um recurso de nosso pensamento que parte de nossas experiências<br />
corporais e de nosso cotidiano como esse autor retrata em seu livro<br />
Metáforas da vida cotidiana.<br />
É importante ressaltar que as metáforas também podem se realizar<br />
de formas não linguísticas ou pensamentos, por exemplo, nas<br />
práticas sociofísicas e a realidade de nossa vida cotidiana. Se o que é<br />
importante é central, em um evento social, pessoas em alta posição<br />
social tendem a ocupar lugares físicos mais centrais do que as menos
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
552<br />
importantes, porém nosso foco é na linguagem. Percebermos que ao<br />
mesmo tempo em que a metáfora destaca, ela também oculta. Da<br />
mesma forma que a metáfora nos levará a compreendermos um aspecto<br />
de um conceito em termos de outro, ela também ocultará outros<br />
aspectos do conceito em questão, isto é, a estrutura metafórica é<br />
parcial e não total. De acordo com Lakoff (2002) “quando dizemos<br />
que um conceito é estruturado por uma metáfora, queremos dizer que<br />
ele é parcialmente estruturado e que ele pode ser expandido de algumas<br />
maneiras e não de outras”. (LAKOFF, 2002, p. 57).<br />
Analisaremos a presença de metáforas estruturais, orientacionais<br />
e ontológicas nas canções sertanejas. Para isso faremos uma<br />
breve definição sobre cada uma delas, segundo George Lakoff<br />
(2002) em seu livro já mencionado. As metáforas estruturais ocorrem<br />
quando um conceito é estruturado metaforicamente em termos<br />
de outro como TEMPO É DINHEIRO e O AMOR É UMA VIA-<br />
GEM. Nessa metáfora, entendemos que estruturar é corresponder os<br />
elementos similares de um domínio e de outro. As metáforas orientacionais<br />
estão relacionadas à nossa orientação espacial como para<br />
cima – para baixo, dentro – fora, frente – trás. Nesse tipo de projeção<br />
metafórica a base física são as experiências corporais do aparelho<br />
sensório-motor como FELIZ É PARA CIMA e TRISTE É PARA<br />
BAIXO. Por fim, as metáforas ontológicas são utilizadas de forma<br />
ampla e são a base para “conceber eventos, atividades, emoções, ideias,<br />
etc. como entidades e substâncias.” (LAKOFF, 2002, p. 76)<br />
Nossa experiência com os objetos e as substâncias físicas auxiliam<br />
na compreensão de conceitos, uma vez que através da personificação<br />
de entidades, temos nós mesmos como domínio-fonte. Ao identificarmos<br />
nossas experiências, podemos categorizá-las, agrupá-las e<br />
quantificá-las e, por conseguinte, raciocinar sobre elas. De acordo<br />
com Lakoff (2002), as metáforas ontológicas são necessárias para<br />
tentar lidar racionalmente com nossas experiências como em MEN-<br />
TE É MÁQUINA e INFLAÇÃO É UMA ENTIDADE.<br />
6. Análise das metáforas nas canções sertanejas<br />
Para confirmar a existência e utilização abundante dessas metáforas<br />
no cotidiano, vamos analisar alguns exemplos nas canções
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
553<br />
sertanejas de algumas duplas de sucesso: Zezé di Camargo e Luciano,<br />
Gino e Geno, Teodoro e Sampaio e Chitãozinho e Xororó.<br />
6.1. A vida como trajeto / amor é trajeto<br />
Eu quero este amor, viagem louca. (Salva meu coração - Zezé di<br />
Camargo e Luciano)<br />
Não quero ser mais um na sua estrada (Toma juízo - Zezé di Camargo<br />
e Luciano)<br />
Deixei meu lar pra seguir seu caminho. (Raízes sertanejas – Gino e<br />
Geno)<br />
Que é melhor seguir outro caminho (Bebendo com os amigos – Teodoro<br />
e Sampaio)<br />
O caminho eu já sei de cor. Desta vida marvada... (Vida Marvada<br />
Chitãozinho e Xororó).<br />
Nesses trechos, observamos uma projeção metafórica na qual<br />
a vida/o amor seria um trajeto. Em “Eu quero este amor, viagem louca”<br />
podemos perceber que o amor (domínio alvo) é projetado para a<br />
viagem (domínio fonte) e em “não quero ser mais um na sua estrada”<br />
a vida (domínio alvo) é projetada para a estrada (domínio fonte).<br />
Como viagem e estrada são experienciados por nós através de nosso<br />
corpo, podemos compreender amor e vida pela metáfora estrutural<br />
do trajeto, na qual poderíamos destacar os elementos: os amantes<br />
como viajantes, o trajeto como a vida no dia a dia e o destino como<br />
objetivo. Em “Deixei meu lar para seguir seu caminho” e “Que é melhor<br />
seguir outro caminho” observamos que caminho (domínio fonte)<br />
é projetado para a vida (domínio alvo). Novamente conceitos concretos<br />
de base física corporal projetam-se metaforicamente para conceitos<br />
abstratos; fica mais fácil compreender a vida através do caminho<br />
que podemos percorrer. Nessa metáfora, nós, seres humanos, somos<br />
os viajantes projetados para os amantes, o trajeto projetado para o dia<br />
a dia e o caminho, para a vida a dois.<br />
6.2. A vida é um jogo / amor é um jogo<br />
Eu sem juízo, faço o seu jogo. (Sem medo de ser feliz – Zezé di Camargo<br />
e Luciano).
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
554<br />
Eu juro que eu jogo limpo, fui bom jogador, mas fui trapaceado. No<br />
jogo do amor, pelo adversário, que era meu amigo. (Troféu de dor Gino e<br />
Geno).<br />
A vida é como um jogo. Um dia a gente perde, o outro a gente<br />
ganha. ( A vida é como um jogo – Chitãozinho e Xororó)<br />
Também estou nesse jogo eu já amarrei um fogo por causa da gostosona.<br />
(Gostosona – Teodoro e Sampaio).<br />
Em “Eu sem juízo, faço seu jogo” e “Eu juro que eu jogo limpo”<br />
podemos observar a projeção metafórica do amor para o jogo,<br />
em os jogadores (domínio fonte) se projetam para os amantes (domínio<br />
alvo). Como jogo é um conceito que experienciamos através<br />
do nosso aparelho sensório motor, podemos compreendê-lo facilmente;<br />
logo o projetamos para o amor, que por ser um conceito abstrato<br />
é de difícil compreensão. Ao dizer “faço o seu jogo”, o autor<br />
pode estar referindo-se à submissão às regras do parceiro e que ambos<br />
estão do mesmo lado; já em “jogo limpo” percebemos que há um<br />
desabafo por parte de um dos adversários, pois os amantes (jogadores)<br />
não estão do mesmo lado; se um deles diz que joga limpo é porque<br />
é sincero no relacionamento ao passo que o outro (o adversário)<br />
não o é, pois trapaceia “Mas fui trapaceado”. Podemos notar através<br />
da metáfora AMOR É UM JOGO que nem sempre o relacionamento<br />
é sincero, pois em se tratando de jogo, ocorrem disputas nas quais os<br />
amantes (adversários) podem se tornar trapaceiros ao mentirem ou<br />
traírem. Contudo, se o relacionamento está bem, os amantes tornamse<br />
parceiros nesse jogo, pois jogam do mesmo lado.<br />
6.3. Amor é guerra<br />
Eu já fiz de tudo pra não te perder, briguei com o mundo, lutei por<br />
você (Vem cuidar de mim – Zezé di Camargo e Luciano).<br />
Lutei por ela com dentes e unhas e Deus é testemunha ela judiou de<br />
mim. (Largue mão dessa mulher – Teodoro e Sampaio).<br />
Nessa metáfora estrutural, notamos que os elementos do domínio<br />
fonte “os guerreiros” projetam-se para o domínio alvo como<br />
“os amantes”. Os verbos briguei e lutei já denotam esse cenário bélico<br />
que se projeta para os eventos do relacionamento amoroso; o verbo<br />
perder remete aos danos sofridos pelos amantes projetados metaforicamente<br />
pelos prejuízos aos guerreiros. Em “Lutei por ela com
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
555<br />
dentes e unhas” também observamos essa característica bélica através<br />
do verbo lutei reforçado pela expressão popular “unhas e dentes”,<br />
explicitando a garra com que os amantes/guerreiros lutam para<br />
alcançar seu objetivo: a vitória (domínio fonte) projetada para o domínio<br />
do parceiro (domínio alvo). Em contrapartida, temos “ela judiou<br />
de mim” em que o verbo judiar expressa a superioridade da mulher<br />
nesse relacionamento, uma vez que ela domina o parceiro, levando-o<br />
à rendição (domínio fonte) projetada pela submissão do<br />
parceiro em concessão do controle (domínio alvo).<br />
6.4. Amor é loucura<br />
Enlouqueceu o meu coração (Irresistível – Zezé di Camargo e Luciano)<br />
Por amor, quantas loucuras eu já fiz. (Felicidade que saudade de você-<br />
Zezé di Camargo e Luciano)<br />
O nosso amor é loucura. (Delícias do amor - Teodoro e Sampaio).<br />
Mas se a gente ama, não tem jeito, faz loucura, perde a razão. (Tudo<br />
Por Amor - Chitãozinho e Xororó).<br />
Nessa metáfora temos o amor estruturado em termos da loucura,<br />
as similaridades entre esses dois sentimentos nos levam a estruturar<br />
tais conceitos. Em “enlouqueceu meu coração” e “...Por amor,<br />
quantas loucuras eu já fiz...” o verbo enlouqueceu e o substantivo<br />
loucuras são projetados metaforicamente para as ações dos amantes;<br />
assim como os loucos projetam-se para os amantes. Ora, se quem<br />
ama é capaz de cometer atitudes impensadas e imprudentes, ele pode<br />
ser comparado a um louco que também age irracionalmente. Como a<br />
loucura pode ser experienciada, nós a projetamos para o amor que é<br />
um sentimento através do qual, no auge da paixão, nos leva a agir<br />
sem pensar.<br />
6.5. Amor é fogo, que queima<br />
Uma luz de fogo, o meu corpo vem queimar (Vem ficar comigo –<br />
Zezé di Camargo e Luciano)<br />
Eu me queimei no fogo do amor. (Sem medo de ser feliz – Zezé di<br />
Camargo e Luciano).
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
556<br />
Amantes ardentes com todas as sedes (Perigosas Emoções -<br />
Chotãozinho e Xororó)<br />
Quero me queimar no seu calor, quero te encher de amor. (Uma<br />
noite especial – Chitãozinho e Xororó).<br />
Assim como a metáfora “Amor é loucura”, “Amor é fogo” é<br />
uma metáfora estrutural, na qual os conceitos de amor e fogo se misturam<br />
devido às suas similaridades. Em “Uma luz de fogo, o meu<br />
corpo vem queimar”, o amor (domínio alvo) é projetado metaforicamente<br />
pelo fogo (domínio fonte), pois este é concreto, visível e, portanto,<br />
experienciado pelo nosso aparelho sensório motor. Sendo assim,<br />
compreendemos mais facilmente como o amor pode queimar.<br />
Se o calor/luz do fogo nos queima, entendemos essa propriedade do<br />
amor; o próprio verbo queimar, usado metaforicamente em vários<br />
exemplos extraídos das canções confirma essa projeção. Além disso,<br />
o fogo assume o papel de causador, projetando-se para o amor que<br />
causa os desejos ardentes, o calor e que queima, todos para expressar<br />
o domínio abstrato das sensações humanas diante desse sentimento<br />
que é tão arrebatador quanto o fogo é destruidor.<br />
6.6. Tempo é um objeto móvel e nós estamos parados<br />
O tempo passa (O tempo passa) (Não é Papel da Gente - Chitãozinho<br />
e Xororó.).<br />
Partindo do TEMPO, um conceito abstrato e que não percebemos<br />
pelos nossos sentidos, os autores Lakoff e Johnson (2002) selecionam<br />
características mais concretas que permitem projetar um<br />
domínio no outro. O ser humano entende o tempo como algo que está<br />
à frente ou atrás de si (espacialmente) ou que ele está parado e nós<br />
nos movimentamos em torno dele. Temos aqui um exemplo de metáfora<br />
orientacional TEMPO É UM OBJETO EM MOVIMENTO ou<br />
O TEMPO PASSA POR NÓS. No exemplo “...o tempo passa” comprovamos<br />
que o tempo é um objeto em movimento, pois essa expressão<br />
linguística compõe a metáfora de que o tempo é um objeto que<br />
se move. O domínio alvo é o TEMPO projetado pelo domínio fonte<br />
OBJETO MÓVEL. Há um apelo para que se atente ao fato de que o<br />
que passa diante de nós é o passado e não há como voltar atrás para<br />
recuperá-lo.
6.7. Sucesso é destruição<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
557<br />
E quando chega num pagode ela arrasa. (Bola da vez Gino e Geno).<br />
Ela usa saia curta, ela arrasa, ela detona. (Gostosona - Teodoro e<br />
Sampaio).<br />
Temos nesses exemplos “Ela arrasa” e “Ela detona” um tipo<br />
de metáfora cada vez mais frequente, na qual os verbos “arrasar” e<br />
“detonar” dentre outros necessitam sintaticamente de um objeto direto,<br />
porém este está implícito nas orações devido a questões morais<br />
por se tratarem de verbos destrutivos. Esses são exemplos que se referem<br />
a domínios conceptuais vetados, por isso os verbos transitivos<br />
diretos foram destransitivizados. Se o sucesso leva à competição, esta<br />
pressupõe uma guerra no universo da concorrência que ocasionará<br />
a omissão dos objetos diretos, pois estes são na verdade o adversário<br />
que será arrasado, detonado por ela; nessa metáfora, o conceito de<br />
agressor (domínio fonte) projeta-se para o sucesso (domínio alvo).<br />
6.8. Feliz é para cima; triste é para baixo/ bom é para cima;<br />
ruim é para baixo<br />
Levanta a cabeça, meu bem (...) levanta a cabeça fale aqui comigo.<br />
(Ex-mulher - Teodoro e Sampaio)<br />
Diz que eu posso estar no maior alto astral. (É mentira dela – Teodoro<br />
e Sampaio).<br />
Eu já fui pobre daquele de andar na lona. Mas eu venci e dei a volta<br />
por cima. Jamais eu vou pisar em quem ta lá em baixo. (Só dou carona<br />
para quem dá pra mim – Teodoro e Sampaio).<br />
Chegou no fundo do poço escuto o povo gritar. (No fundo do poço –<br />
Teodoro e Sampaio)<br />
Nos trechos acima temos o que chamamos metáfora orientacional,<br />
visto que indicam uma orientação espacial, de base física. Em<br />
“Levanta a cabeça” e “alto astral”, temos um exemplo dessa metáfora<br />
em que a postura caída corresponde à tristeza e depressão e a postura<br />
ereta corresponde a um estado emocional positivo. Nos trechos<br />
“andar na lona”, “a volta por cima”, “quem ta lá em baixo”, “fundo<br />
do poço” correspondem à metáfora BOM É PARA CIMA; RUIM É<br />
PARA BAIXO. O que é bom para uma pessoa se caracteriza para<br />
cima e o que é ruim, para baixo.
6.9. Personificação<br />
Solidão me ataca. (Cara de boi - Gino e Geno).<br />
Solidão me arrasa. (Chorei, chorei - Gino e Geno)<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
558<br />
A paixão me devora e essa dor não quer passar. (Vem me amar - Gino<br />
e Geno).<br />
A saudade devora o meu coração. (Eu e a lua – Teodoro e Sampaio).<br />
Nos exemplos “Solidão me ataca”, “Solidão me arrasa” e “A<br />
paixão me devora” temos tipos de metáforas ontológicas, expandidas<br />
pela personificação. Em todas percebemos o que não é humano agindo<br />
como se o fosse. A solidão e a paixão foram personificadas e<br />
poderíamos ter as metáforas SOLIDÃO É DESTRUIÇÃO e PAI-<br />
XÃO É DESTRUIÇÃO respectivamente como submetáforas de<br />
AMOR É GUERRA, pois em ambos os casos observamos verbos de<br />
caráter destrutivo, quais sejam atacar, arrasar e devorar dentre outros.<br />
Dessa forma, pensamos na solidão e na paixão como algo que<br />
pode nos ferir ou até destruir/matar. De acordo com Lakoff (2002) “o<br />
que todas têm em comum é o fato de serem extensões de metáforas<br />
ontológicas, permitindo-nos dar sentido a fenômenos do mundo em<br />
termos humanos, termos esses que podemos entender com base em<br />
nossas próprias motivações, objetivos, ações e características.” (LA-<br />
KOFF, 2002, p. 88). Assim, conceitos abstratos como solidão e paixão<br />
são projetados para o domínio humano como causadores de sofrimento,<br />
tornando-se dessa maneira mais compreensíveis para nós.<br />
7. Considerações finais<br />
Na presente análise verificou-se que ocorreu a predominância<br />
das metáforas ontológicas e das estruturais, sobretudo esta última.<br />
Levanta-se a hipótese de que como essas canções tratam, principalmente,<br />
do amor, que é um conceito abstrato, busca-se através dessas<br />
metáforas estruturais e ontológicas descrever e explicar as sensações<br />
que esse sentimento, ou outros, provoca nos seres humanos.<br />
Observou-se que, assim como na vida cotidiana há um uso<br />
abundante de metáforas, também há tal uso nas canções, visto que<br />
estas falam sobre as ocorrências do dia-a-dia. Para compreender conceitos<br />
abstratos como o amor, a solidão e outros sentimentos, as me-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
559<br />
táforas acima mencionadas são fundamentais para essa compreensão,<br />
sendo estruturadas sobre conceitos baseados em termos de experiências<br />
básicas, por serem mais familiares ao nosso entendimento.<br />
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
LAKOFF, George & MARK, Johnson. Metáforas da vida cotidiana.<br />
Coordenação da tradução Mara Sophia Zanotto. Campinas: Mercado<br />
das Letras; São Paulo: Educ, 2002.<br />
SALOMÃO, Maria Margarida Martins. A questão da construção do<br />
sentido e a revisão da agenda dos estudos da linguagem. In: Veredas<br />
Revista de Estudos Linguísticos – UFJF. V. 3, nº 1, jan/jun, 1999.<br />
Juiz de Fora. EDU FJF, 1999.<br />
TOMASELLO, Michael. Origens culturais da aquisição do conhecimento<br />
humano; tradução Claudia Berliner. São Paulo: Martins<br />
Fontes, 2003.
AS MARIAS NA MACROTOPONÍMIA SERGIPANA:<br />
A IGREJA E O PODER<br />
1. Justificativa<br />
Cezar Alexandre Neri Santos (UFS)<br />
cezarneri@hotmail.com<br />
Pretende-se expor a presença da entidade religiosa Maria na<br />
macrotoponímia sergipana. De cunho histórico-interdisciplinar a partir<br />
da perspectiva linguística, este trabalho analisa o fenômeno toponomástico<br />
de nomeação de Maria, a mãe de Jesus, nos municípios<br />
sergipanos. Mostrar-se-á que tais municípios não foram determinados<br />
aleatoriamente, mas que sua formação perpassa por um emaranhado<br />
de significações históricas por vezes esquecida ou desconhecida.<br />
Para elaboração do estudo, fundamenta-se o referencial teórico<br />
em autores como Dick (1992), que embasa a análise taxonômica,<br />
além de documentos históricos sobre Sergipe e seu processo de ocupação,<br />
uso e posse. Centralizar-se-á aqui nos hierotopônimos.<br />
Há uma classe dentro da taxonomia de Dick (1992) denominada<br />
hierotopônimos. Estes dizem respeito aos topônimos relativos a<br />
nomes sagrados de crenças diversas, a efemérides religiosas, às associações<br />
religiosas e aos locais de culto. Essa categoria subdivide-se<br />
em hagiotopônimos - nomes de santos ou santas do hagiológio católico<br />
romano, objetos específico de estudo do presente trabalho, e mitotopônimos,<br />
que se referem às entidades mitológicas – ex.: Exu, em<br />
Pernambuco. A ocorrência de mitotopônimos inexiste no escopo<br />
pesquisado nos municípios sergipanos. Isso também demonstra o<br />
poder da Igreja Católica ao impedir a penetração de outras denominações<br />
religiosas no léxico.<br />
A partir da listagem dos municípios sergipanos atuais, nota-se<br />
o grande número de cidades em honra ao hagiológio católico romano,<br />
especialmente a Nossa Senhora, nas suas diversas denominações.<br />
Ao pesquisar outros trabalhos acadêmicos que dialogam com o presente,<br />
percebe-se que também há preocupação de entender esse fenômeno<br />
alhures, a saber Carvalhinhos (2005; 200?) e Ramos (2007).
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
561<br />
Na primeira, há uma justificativa compatível com a do presente trabalho:<br />
[...] investigar por que uma única entidade sagrada recebe tantas denominações<br />
(referimo-nos ao nome específico, que a Igreja denomina título),<br />
além de tentar criar, na medida do possível, tipologias que congregassem<br />
os vários núcleos semânticos contidos nos títulos de Nossa Senhora.<br />
Essas tipologias foram absolutamente necessárias para que se evidenciassem<br />
as relações semânticas dentro dos sintagmas toponímicos.<br />
Não apenas o léxico expõe a materialidade do poder religioso<br />
nas cidades sergipanas. Qualquer um que adentre nos municípios que<br />
possuam os nomes de Maria encontrará no ponto inicial da cidade<br />
estátuas em tamanho ampliado (imagens). Estes símbolos religiosos<br />
representam, bem como o relógio dos 500 anos do ‘descobrimento’<br />
do Brasil (GREGOLIN, 2003), monumentos de sentido.<br />
1.1. Caracterizando o ato toponímico<br />
Nomear é uma atribuição linguística e característica inata ao<br />
ser humano. Demonstrar um sentimento de pertença e as características<br />
singulares dos locais fazem parte da ação toponímica. Esse ato<br />
denominativo perpassa um signo linguístico especial, portador de<br />
motivação e de significação semântica particulares, pois agem como<br />
reflexo de características físicas e/ou socioeconômico-cultural do<br />
ambiente designado.<br />
Dick escreve que o signo toponímico se configura<br />
como um signo duplamente motivado, pois além de seu motivo semântico<br />
possui o motivo do denominador, ou seja, a intencionalidade (quer<br />
objetiva, quer subjetiva) que resultou na eleição de uma lexia e não outra<br />
para compor aquele enunciado. Essa escolha condiciona-se, muitas vezes,<br />
à cultura do grupo. (apud CARVALHINHOS, 2010, p. 2463-4)<br />
A ação nomeadora é objeto de estudo de um ramo da linguística:<br />
a Onomástica. À Toponímia, que juntamente com a Antroponímia<br />
são subáreas da Onomástica, cabe o interesse pelos itens lexicais<br />
que designam os lugares ou acidentes geográficos – os topônimos. A<br />
escolha dos topônimos pode ser motivada por diversos fatores, tais<br />
quais: geográficos, históricos, culturais, religiosos etc. Somada a essas<br />
motivações, encontra-se a subjetividade do denominador, que<br />
conscientemente ou não, irá depositar em sua escolha traços de sua
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
562<br />
percepção. Esse conjunto é responsável por manter viva a memória<br />
cultural da sociedade, além de ser o retrato da relação homem, ambiente,<br />
língua e cultura, como sustentou Sapir (1969, p. 44) na qual “a<br />
língua de qualquer povo servirá como reflexo de seu meio e de sua<br />
cultura, pois eles se influenciam mutuamente”.<br />
2. Ocupação de Sergipe e igreja católica: histórias que se confundem<br />
Segundo Oliva e Santos (2002), antes de se tornar um território<br />
da Coroa Portuguesa, as terras que iam da Baía de Todos os Santos<br />
até o rio São Francisco eram posse do português Francisco Pereira<br />
Coutinho. Localizada entre as prósperas capitanias da Bahia e de<br />
Pernambuco, o território sergipano foi dominado tardiamente pela<br />
metrópole europeia – somente no final do século XVI – sendo até então<br />
controlado por tribos indígenas. Ao tentar fugir da ameaça de escravidão<br />
nos engenhos de colonos portugueses, tais tribos pediram<br />
ao governo-geral que<br />
[...] enviasse missionários às suas aldeias, o que aconteceu no ano de<br />
1575, com a vinda de padres jesuítas. Sob a chefia do padre Gaspar Lourenço,<br />
os religiosos, que vieram da Bahia, percorreram aldeias ensinando<br />
a língua portuguesa e os princípios da religião cristã. Por onde passavam<br />
os missionários erguiam igrejas [...] (OLIVA e SANTOS, 2002, p. 23)<br />
A primeira povoação de Sergipe foi onde hoje está a antiga<br />
capital do estado, São Cristovão. O banco de dados do Instituto Brasileiro<br />
de Geografia e Estatísticas (IBGE) descreve que<br />
[...] após subjugar o gentio a 1.° de janeiro de 1590 e levantar o forte Cotenguiba,<br />
junto à foz do rio Sergipe, Cristóvão de Barros fundou a primitiva<br />
povoação, sob a denominação de Cidade de São Cristóvão de Sergipe<br />
d'EI Rei. 1<br />
Acima, vimos que é fato comum a nomeação de localidades<br />
com hierotopônimos, ou seja, santos ou entidades religiosas como<br />
forma de “proteção ao lugar referido”, assim como quando pais nomeiam<br />
seus filhos com santos homônimos. O donatário poderia até<br />
ter denominado a povoação de São Cristovão com seu nome – constituindo<br />
um antropotopônimo (ex: Tobias Barreto, Simão Dias), mas<br />
1 http://www.ibge.gov.br/cidadesat/topwindow.htm?1
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
563<br />
o fez em alusão ao santo católico. Isso demonstra novamente o poder<br />
exercido pela Igreja tanto na esfera política quanto individual, enquanto<br />
força espiritual humana. É o indivíduo/grupo ofertando a terra<br />
à proteção divinal.<br />
Tal ocorrência se mostrou presente e constante nos topônimos<br />
sergipanos. Datado de 1808, o documento Memória sobre a capitania<br />
de Sergipe, do bispo Dom Marcos Antônio de Souza, que fora<br />
vigário da Freguesia de Jesus, Maria e José de São Gonçalo do Pé de<br />
Banco (Siriri), relata sobre a divisão espacial sergipana do começo<br />
do século XIX:<br />
Alcançava, na época, a população de Sergipe 72.236 habitantes,<br />
sendo 20.300 brancos, 19.954 negros, 1.440 índios e 30.542 raças combinadas<br />
(mestiços). Vê-se quão dizimados foram os habitantes primitivos.<br />
Existiam sete vilas: Santa Luzia, Geru, Santo Amaro das Brotas,<br />
Própria, Nossa Senhora da Piedade de Lagarto, Santo Antônio e Almas<br />
de Itabaiana e Vila Nova do Rio São Francisco. Sobressaíam-se as povoações<br />
de Laranjeiras e Estância. (NUNES, 1978, p. 25).<br />
Vemos aqui nomeações instituídas em língua portuguesa,<br />
como demonstração de poder sobre a língua geral – nhengatu, a língua<br />
franca no Brasil da época. Fato curioso é a tendência contrária<br />
no século seguinte, no qual as línguas indígenas são utilizadas na<br />
nomeação de vários municípios sergipanos. Ao apagar um símbolo<br />
identitário tão poderoso quanto a língua de um grupo, os portugueses<br />
mascaram uma unificação nacional com a Língua Portuguesa e destroem<br />
marcas socioétnico-culturais 2 . Ver o índio como estrangeiro<br />
em sua própria terra é um dos resultados desta ação 3 .<br />
3. Hierotopônimos na macrotoponímia sergipana<br />
Dos 75 municípios atuais no estado de Sergipe, localizado no<br />
nordeste brasileiro, a presença dos hierotopônimos é marcante. Não<br />
só por se tratar de um estado do Nordeste, mas por, como descrito<br />
anteriormente, a posição de destaque da instituição católica em Sergipe<br />
ser historicamente bem explícita.<br />
2 Atualmente, dos 75 municípios sergipanos, 23 possuem nomes indígenas (30,6% do total).<br />
3 Eni Orlandi (1997) trabalha bem a questão do apagamento cultural.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
564<br />
Carvalhinhos (2005) também pontua uma expressão exclusiva<br />
da toponímia brasileira, na qual Maria recebe aqui o pronome possessivo<br />
Nossa, enquanto que, em Portugal, o designativo geralmente<br />
se apresenta Senhora das Graças em vez de Nossa Senhora das<br />
Graças. Sergipe, obviamente, não fica fora desta tendência brasílica.<br />
Sobre tal dado, acreditamos que a forma composta difundida no Brasil,<br />
pelo uso gramatical do possessivo nossa, acaba criando um elo entre<br />
o eu discursivo, enunciador, e o objeto enunciado, a senhora. Este elo,<br />
que gramaticalmente denota relação ou posse, diminui a distância entre<br />
enunciador e objeto, sendo mais íntimo, a nosso ver, que o termo Senhora<br />
ou Virgem Maria. (CARVALHINHOS, 200?)<br />
Topônimos atuais em homenagem à Maria (7 municípios –<br />
10,7% do total), a saber, Divina Pastora, Nossa Senhora Aparecida,<br />
Nossa Senhora da Glória, Nossa Senhora das Dores, Nossa Senhora<br />
de Lourdes, Nossa Senhora do Socorro e Rosário do Catete.<br />
A referência a esses topônimos se dá de forma regressiva.<br />
Com exceção de Divina Pastora, todos são mais conhecidos e designados<br />
por seu termo específico. Destarte, Nossa Senhora da Glória é<br />
tratado simplesmente por Glória, Nossa Senhora (N. Sra.) das Dores<br />
por Dores e assim sucessivamente. O mesmo processo será feito pelo<br />
autor neste trabalho.<br />
3.1. Divina pastora<br />
A cidade de Divina Pastora, a 40 quilômetros da capital Aracaju,<br />
tem se destacado como aquela que recebe a maior romaria no<br />
Estado. Milhares vão até a igreja matriz da cidade nos meses de<br />
Maio e Outubro, numa procissão de 9 quilômetros. Em devoção à<br />
Nossa Senhora Divina Pastora, vários romeiros, inclusive de estados<br />
circunvizinhos, vão em caravanas festejar essa celebração de fé católica.<br />
Sergipe é citado em número considerável nos websites em<br />
homenagem a divindades. Isso demonstra o quanto a toponímia reflete<br />
fatores sócio-histórico-culturais e permite o conhecimento, até<br />
não espontâneo do território a partir do signo toponímico. Conhecerse-<br />
á mais da cosmovisão e ideais dos povos, seus rituais e até curio-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
565<br />
sidades sobre a terra. Explicitamos duas citações que remetem ao<br />
município a partir dessa devoção mariológica.<br />
A Igreja Matriz de Divina Pastora, em Sergipe, construída no século<br />
XIX, herança dos frades missionários, é um outro testemunho eloquente<br />
da presença missionária. O seu teto reserva-nos a mais expressiva obra<br />
do pintor baiano José Teófilo de Jesus, fiel pintor da visão de frei Isidoro.<br />
Pode-se afirmar, com segurança que é a maior pintura painelista de<br />
Sergipe. 4<br />
[...] Já no Brasil até existe, no estado de Sergipe, uma cidade chamada<br />
Divina Pastora, elevada a vila em 1836, e cuja Igreja Matriz é dedicada<br />
a Nossa Senhora sobre esta invocação 5 .<br />
Ladeira, um ergotopônimo (Dick, 1992), é a denominação<br />
inicial para a atual Divina Pastora. Nota-se desde cedo a presença da<br />
igreja católica na região – fato comum há todas as regiões do Estado,<br />
o que justifica essa mudança toponímica para Nossa Senhora Divina<br />
Pastora.<br />
Não há registro do tempo exato em que a povoação Ladeira, nome<br />
dado inicialmente ao município de Divina Pastora, começou a se<br />
formar, mas há um fato que pode indicar uma data aproximada.<br />
Quando o vigário Manoel Carneiro de Sá tomou posse da paróquia<br />
de Siriri, em 18 de fevereiro de 1700, a freguesia de Ladeira já existia.<br />
(ibidem)<br />
Segundo o IBGE (2008), o distrito é criado com a denominação<br />
de Nossa Senhora da Divina Pastora, pela lei provincial de<br />
31/05/1833. Uma segunda mudança toponímica acontece em meados<br />
do século XX, quando Nossa Senhora da Divina Pastora passa a ser<br />
denominada simplesmente Divina Pastora. Há aí a conservação lexical<br />
de elementos formantes do topônimo anterior, na qual o novo topônimo<br />
preserva alguma base do anterior.<br />
Quadro diacrônico da mudança toponímica: Ladeira > Nossa<br />
Senhora da Divina Pastora > Divina Pastora.<br />
4 Divina Pastora. Disponível em: . Acessado<br />
em: 27 jun. 2010.<br />
5 Nossa Senhora Divina Pastora. Disponível em:<br />
. Acesso em: 27 jun. 2010.
3.2. Nossa Senhora Aparecida<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
566<br />
O município de Nossa Senhora Aparecida, no sertão sergipano,<br />
com 8.123 habitantes, foi criado em 26 de novembro de 1963,<br />
com a denominação de Cruz das Graças e sede no povoado Cruz do<br />
Cavalcante, desmembrado do município de Ribeirópolis pelo decreto-lei<br />
estadual nº. 1.233 (IBGE, 2008).<br />
Em 1975 foi mudada a denominação do município para Nossa<br />
Senhora Aparecida pela lei Estadual n.° 165-A, de 24 de dezembro<br />
de 1975, passou ao atual topônimo, o qual permanece até hoje. A<br />
mudança toponímica aconteceu dentro da própria taxe (Dick, 1992),<br />
demonstrando uma tradição religiosa a região. Para homenagear a<br />
padroeira do Brasil, o município passa a ter mais um hierotopônimo<br />
mariano.<br />
3.3. Nossa Senhora da Glória<br />
Segundo fontes precárias 6 , a primeira povoação na região da<br />
atual cidade recebeu o nome de Boca da Mata (somatotopônimo),<br />
dado pelos viajantes que descansavam no local. Por volta de 1600 a<br />
1620, os ranchos ali existentes formaram uma povoação. Posteriormente,<br />
a localidade foi rebatizada quando o pároco Francisco Gonçalves<br />
Lima, fez uma campanha junto aos moradores para aquisição<br />
de uma imagem de Nossa Senhora da Glória.<br />
Sua primeira denominação, “Boca da Mata”, segundo relatam<br />
os glorienses mais idosos, deu-se por conta desses viajantes, pois tinham<br />
medo de seguir suas rotas durante a noite e ali, na entrada da<br />
mata, dormiam. Disso surgiu uma expressão que se tornou comum<br />
entre eles: “dormir na boca da mata”. Daí a origem da toponímia.<br />
6 Nossa Senhora da Glória. Disponível em:<br />
. Apesar de o site Wikipedia compor<br />
uma biblioteca on-line aberta, os dados aqui colhidos têm como fonte principal relatórios feitos<br />
pela Universidade Tiradentes, universidade renomada no estado, baseados no IBGE (1991-<br />
1996) cedidos pela Secretaria Municipal de Educação, Esporte, Cultura e Lazer de Nossa Senhora<br />
da Glória.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
567<br />
Em 1922, a lei nº 835 de 6 de fevereiro, constituiu o então<br />
povoado “Boca da Mata” como “Nossa Senhora da Glória”. Em 26<br />
de Setembro de 1928, deu-se a emancipação política do município.<br />
O nome Nossa Senhora da Glória, segundo informam as pessoas<br />
mais antigas do lugar, foi iniciativa do Pe. Francisco Gonçalves<br />
Lima, seu primeiro capelão, que trouxe a imagem da referida santa,<br />
consagrada então padroeira do lugar, e o sino para a primeira capela.<br />
(IBGE)<br />
3.4. Nossa Senhora das Dores<br />
Também chamada Nossa Senhora da Piedade, Nossa Senhora<br />
da Soledade, Nossa Senhora das Angústias, Nossa Senhora das Lágrimas,<br />
Nossa Senhora das Sete Dores, Nossa Senhora do Calvário<br />
ou ainda Nossa Senhora do Pranto, e invocada em latim como Beata<br />
Maria Virgo Perdolens, ou Mater Dolorosa, é um dos plúrices títulos<br />
pelos quais a Igreja Católica venera a Virgem Maria, sendo sob<br />
essa designação particularmente cultuada em Portugal.<br />
Essa veneração chegou até o Brasil, sendo grande o número<br />
de topônimos com tal denominação. Especificamente quanto ao município<br />
sergipano,<br />
[...] mantém a tradição religioso-cultural já centenária dos penitentes. O<br />
movimento adquiriu um cunho religioso a partir de promessas feitas por<br />
pessoas que viam na penitência a maneira mais correta de agradecer as<br />
graças recebidas. Apenas homens são recebidos no grupo dos penitentes.<br />
Eles ficam envoltos em túnica e capuz brancos, cobrindo todo o corpo e<br />
rosto. Toda Sexta-Feira da Paixão eles percorrem cruzeiros e santacruzes<br />
do subúrbio da cidade, durante um período de sete anos seguidos,<br />
entoando preces e cânticos em intenção das almas sofredoras. 7<br />
Segundo Laudelino Freire, Dores, que fica no agreste sergipano,<br />
a 72 quilômetros da capital, no início, chamou-se Enforcados,<br />
em virtude de ali terem sido sacrificados alguns gentios que habitavam<br />
a região. Com a chegada de um religioso, pregador da Santa<br />
7 Nossa Senhora das Dores (Sergipe). Disponível em:<br />
. Acesso em: 27 jun. 2010
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
568<br />
Missão, o topônimo foi mudado para Nossa Senhora das Dores. (apud<br />
IBGE, 2008)<br />
Vemos aqui mais uma mudança toponímica motivada por um<br />
religioso forasteiro – geralmente um jesuíta português, que para remeter<br />
à devoção de um santo do hagiológio católico, nomeia a cidade<br />
com uma denominação mariana: Enforcados (Animotopônimo ou<br />
Nootopônimo) > Nossa Senhora das Dores (hierotopônimo).<br />
3.5. Nossa Senhora de Lourdes<br />
A povoação deste município, a 136 quilômetros da capital<br />
Aracaju, cresceu ao redor da Lagoa das Antas, e recebeu esse nome<br />
por causa da grande quantidade desse animal na região. O casal pernambucano<br />
que primeiro explorou a região, por volta de 1810, Joaquim<br />
José e Ana Josefa da Rocha, fugiu da seca que assolava o sertão<br />
pernambucano. Ao chegar a uma grande lagoa onde existia uma<br />
considerável quantidade de antas (mamífero que chega a dois metros<br />
de altura), resolveram fazer morada.<br />
Em 1950, o lugar denominado anteriormente de Lagoa das<br />
Antas passou a se chamar Arraial de Antas. Na década de 1960, o<br />
distrito é criado com a denominação de Nossa Senhora de Lourdes,<br />
um ex-povoado, pela lei estadual nº 554, de 06-02-1954, subordinado<br />
do município de Canhoba. Elevado à categoria de município com<br />
a denominação de Nossa Senhora de Lourdes, pela lei estadual nº<br />
103-A, de 13-05-1963.<br />
O povo lourdense possui uma das mais fortes ligações de fé<br />
com Nossa Senhora. A padroeira e atual topônimo da cidade possui<br />
uma histórica relação com a comunidade, que encontra na imagem<br />
da santa de Lourdes sinais de esperança. Segundo IBGE (2008), não<br />
se sabe ao certo quando foi descoberta a gruta que abrigava a imagem<br />
de Nossa Senhora de Lourdes, no bairro Coqueiros, gruta esta<br />
natural com enormes pedras onde filtrava água e que para chegar nela,<br />
havia necessidade de atravessar um riacho. Essa gruta era onde o<br />
povo [...] ia passear rezar e captar água, onde muitos afirmavam ser<br />
"Benta" e "milagrosa", faziam churrascos, aniversários e outros eventos.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
569<br />
Essa relação de devoção, que perpassa o léxico enquanto reflexo<br />
cultural, pode ser notada nas reações do povo quanto a essa<br />
imagem da padroeira e sua representatividade.<br />
[Dois namorados] chegaram a casa, deu aquele estrondo, muito forte<br />
mesmo, chamando atenção da comunidade; [...] Apavorados chegou à<br />
notícia: Desmoronou a Gruta... Todos ficaram entristecidos, afinal, além<br />
de ser um local religioso, também de laser (sic).<br />
Temos aí duas mudanças toponímicas: Lagoa das Antas (hidrotopônimo)<br />
> Arraial das Antas (poliotopônimo) > Nossa Senhora<br />
de Lourdes (hierotopônimo). Esse município põe em destaque que a<br />
tradição de denominação por tradição religiosa é também um fenômeno<br />
recente, mesmo com o contínuo crescimento de protestantes e<br />
autodenominados não religiosos.<br />
3.6. Nossa Senhora do Socorro<br />
A apenas 8 km e Aracaju, com a segunda maior população do<br />
estado e cidade-dormitório da capital, Nossa Senhora do Socorro<br />
possui considerável força política e constitui mais um município cuja<br />
devoção do padroeiro é destinada a Maria, mãe de Jesus.<br />
Uma lei se refere à regulamentação feita durante o Estado<br />
Novo, regime ditatorial implantado pelo então presidente Getúlio<br />
Vargas, no qual os municípios brasileiros não poderiam ter homônimos.<br />
Antes mesmo desta lei federal, o historiador sergipano Luiz<br />
Antonio Barreto descreve que<br />
[...] em 1943 o Departamento Estadual de Estatística, dirigido por João<br />
Carlos de Almeida, preparou um projeto de mudança de nomes de vários<br />
municípios sergipanos, para evitar que existissem no Estado 20 localidades<br />
homônimas de outras anteriormente existentes no País 8 .<br />
De acordo com as alterações ocorridas a partir das leis supracitadas,<br />
não houve mudanças substanciais nos hierotopônimos marianos<br />
sergipanos. Entretanto, o município de Socorro foi atingido.<br />
Nem todos remetem à Cotinguiba, nome do rio que corta a cidade,<br />
8 In BARRETO, Luiz Antonio. Nomes & homenagens. s/d. Disponível em:<br />
www.sindipetroalse.org.br/site/images/stories/visite%20aracaju/NOMESHOMENAGENS.doc<br />
Acesso em: 25 jun. 2010.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
570<br />
designação primeira desta localidade ao mencionar o município, cujo<br />
nome primitivo foi Nossa Senhora do Perpétuo Socorro do Tomar<br />
da Cotinguiba.<br />
Nossa Senhora do Socorro de Cotiguiba 9 (sic) para Socorro alterado,<br />
pela lei provincial de 1902-1835. Socorro para Cotiguiba (sic) alterado<br />
pelo decreto-lei estadual ° 377, de 31-12-1943, revogado pela lei nº 533,<br />
de 07-12-1944.<br />
Entretanto, por vezes, a mudança toponímica incitada por intervenção<br />
do Poder Público “nem sempre [as mudanças sistemáticas]<br />
impostas são bem aceitas pela população, gerando protestos que levam<br />
o Poder Público a restaurar a nomenclatura anterior”. (RAMOS,<br />
2007)<br />
Em 31 de dezembro de 1943 passou a ter a denominação de Cotiguiba<br />
(sic), por fôrça da Legislação Federal que proibia a duplicidade de<br />
nomes dos municípios brasileiros. O novo topônimo era usado somente<br />
em documentos oficiais nunca chegando a linguagem do povo, e, por isto,<br />
atendendo a tal motivo, os poderes constituídos do Estado através da<br />
Lei estadual nº 554, de 6 de fevereiro de 1954, fizeram-no voltar a denominar-se<br />
Nossa Senhora do Socorro. (IBGE, 2008)<br />
Temos aí o seguinte quadro:<br />
Nossa Senhora do Perpétuo Socorro do Tomar da Cotinguiba<br />
> Nossa Senhora do Socorro de Cotinguiba > Socorro > Cotinguiba<br />
> Nossa Senhora do Socorro.<br />
3.7. Rosário do Catete<br />
Além de ser um topônimo brasileiro, outras nações possuem<br />
topônimo homônimo, há exemplo de Argentina e Espanha. Especificamente<br />
quanto ao sergipano, cita o histórico da cidade, segundo o<br />
IBGE, que<br />
[...] as terras ocupadas pela Cidade de Rosário do Catete pertenciam<br />
ao antigo engenho Jordão, de propriedade de Jorge de Almeida Campos,<br />
que as doou para construção da capela de Nossa Senhora do Rosário, i-<br />
9 O site do IBGE descreve erroneamente Cotiguiba em vez de Cotinguiba. Tal ocorrência permite<br />
a discussão da toponímia como relevante meio de identificação de uma comunidade. Os<br />
órgãos oficiais devem ser os primeiros a resgatar e preservar de maneira cuidadosa sua história,<br />
inclusive no aspecto ortográfico.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
571<br />
magem que teria sido encontrada por escravos, nas matas adjacentes.<br />
(IBGE)<br />
Desde os primórdios da povoação, a devoção por Nossa Senhora<br />
do Rosário se mostra presente. O que talvez não se apresente,<br />
num primeiro momento, é a presença dessa devoção a partir deste<br />
signo toponímico. Isso porque muitos imaginam que Rosário designa<br />
um antropotopônimo, não a santa. Ao visitar a cidade, por outro lado,<br />
a presença imediata de um enorme rosário (instrumento usado<br />
para rezar o terço três vezes) denota a relação léxico e identidade<br />
cultural.<br />
Entretanto, esse signo toponímico possui algo de característico:<br />
a tentativa, mesmo que parcial/temporária, de apagamento do<br />
discurso religioso. Essa laicização vai à contramão do fluxo diacrônico<br />
dos topônimos, não apenas dos sergipanos. Note-se esse processo:<br />
Nossa Senhora do Rosário do Catete para simplesmente Rosário alterado,<br />
pelo decreto estadual nº 113, de 12-07-1932. Rosário para Rosário<br />
do Catete alterado, pelo decreto estadual nº 377, de 31-12-1943, revogado<br />
pelo decreto de nº 533, de 07-12-1944.<br />
No primeiro caso, a mudança toponímica: hierotopônimo ><br />
antropotopônimo, através do silenciamento parcial pelo governo das<br />
marcas religiosas. É o governo formulando alterações no campo de<br />
políticas linguísticas durante o período do presidente Getúlio Vargas.<br />
Com a lei federal de 1943 supracitada, para diferenciação<br />
com Rosário no Maranhão, temos a implantação do denominativo<br />
‘Catete’, cuja motivação é incerta. Nem o site oficial do IBGE dispõe<br />
informações sobre a questão. Contudo, muito esclarecedor é o<br />
hipertexto abaixo:<br />
Nada, absolutamente nada de oficial existe para explicar o nome Catete,<br />
mas existem indícios fortes. Catete é uma espécie de milho comum<br />
na região. Catete vem de caititu (tupi-guarani) que quer dizer “porco do<br />
mato”, animal encontrado naquelas terras. Catete significa reduto de escravos<br />
(em Rosário eles eram milhares). E catete era nome de um dos<br />
engenhos do Barão de Maruim 10 .<br />
10 Rosário do Catete. Disponível em: . Acesso<br />
em: 10 jul. 2010.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
572<br />
Bem, como é explícito, um dos dois municípios cujo signo<br />
toponímico mariológico não mais possui a configuração Nossa Senhora<br />
de(a).
3.8. Caso especial: O município de Itaporanga d’Ajuda<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
573<br />
Além destes seis, o município de Itaporanga d’Ajuda também<br />
alude a Maria. Esse topônimo faz menção a Nossa Senhora da Ajuda,<br />
como descrito no site do IBGE (2008).<br />
Em consequência, somente em 1845, a povoação atingiu categoria<br />
de freguesia, sob a invocação de Nossa Senhora da Ajuda de Itaporanga.<br />
O Município surgiu em 1854, passando a sua sede à vila e muito mais<br />
tarde à cidade sempre com o topônimo de Itaporanga, vocábulo de origem<br />
tupi que significa pedra bonita (ita-pedra, poranga-bonita). Em<br />
1944, atingido pela legislação federal que proibia duplicidade de nomes,<br />
passou a se chamar Irapiranga por determinação do Decreto-lei estadual<br />
n.° 533. A partir de 1.° de janeiro de 1949 adotou a denominação de Itaporanga<br />
d'Ajuda por força da Lei estadual n.° 123. (ibidem)<br />
A perspectiva diacrônica deste topônimo permite notar a recuperação<br />
tanto do nome indígena original – Itaporanga – quanto do<br />
primitivo designativo religioso, a padroeira da cidade – Nossa Senhora<br />
da Ajuda. Ao contrário do processo comum, houve aqui o resgate<br />
do indianismo.<br />
3.9. Hierotopônimos não marianos em Sergipe<br />
Outros 13 municípios aludem a santos católicos, a saber: Frei<br />
Paulo, Santa Luzia do Itanhy, Santa Rosa de Lima, Santana do São<br />
Francisco, Santo Amaro das Brotas, São Cristóvão, São Domingos,<br />
São Francisco, São Miguel do Aleixo, Cedro de São João, Amparo<br />
de São Francisco, Canindé de São Francisco, Carmópolis. Assim, os<br />
hierotopônimos atuais no estado perfazem um total de dezenove<br />
(25,3% dos topônimos atuais), dos quais 7 (36,8%) dos hierotopônimos<br />
sergipanos referem-se ao culto mariológico, explicitando a forte<br />
relação com a entidade Maria, argumento exposto em todo esse trabalho.<br />
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
CARVALHINHOS, Patrícia de Jesus. Hierotoponímia portuguesa:<br />
os nomes de Nossa Senhora. Disponível em:<br />
. Acesso em: 20 jun.<br />
2010.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
574<br />
______. Intersecções línguo-culturais na onomástica: a questão religiosa.<br />
Disponível em:<br />
. Acesso<br />
em: 22 jun. 2010.<br />
____. Hierotoponímia portuguesa. De Leite de Vasconcelos às atuais<br />
teorias onomásticas. Estudo de caso: as Nossas Senhoras. 2005.<br />
(Doutorado pelo programa de pós-graduação em Semiótica e Linguística<br />
Geral – Departamento de Linguística). Universidade de São<br />
Paulo, São Paulo.<br />
DICK, Maria Vicentina. Toponímia e antroponímia no Brasil. Coletânea<br />
de estudos. São Paulo: Gráfica da FFLCH/USP, 1992.<br />
GREGOLIN, Maria do Rosário (org.). Discurso e Mídia. A cultura<br />
do espetáculo. São Carlos: Claraluz, 2003.<br />
NUNES, Maria Thetis. História de Sergipe a partir de 1820. [s/l.]:<br />
Cátedra / MEC, 1978<br />
OLIVA, Terezinha. A.; SANTOS, Lenalda Andrade. Trajetória histórica<br />
de Sergipe. São Paulo: Ática, 2002.<br />
ORLANDI, Eni Pulcinelli. As formas do silêncio: no movimento dos<br />
sentidos. 4. ed. Campinas: Unicamp, 1997.<br />
PÊCHEUX, Michel. Papel da memória. In: ACHARD, Pierre et alii.<br />
Papel da memória. Campinas: Pontes, 1999.<br />
RAMOS, Ricardo Tupiniquim. Processos de mudança toponímica e<br />
sua abordagem pela teoria da variação e mudança linguística. 2007,<br />
Ano 13, nº 38<br />
SAPIR, Edward. Língua e ambiente. Linguística como ciência. Ensaios.<br />
Rio de Janeiro: Acadêmica, 1969, p. 43-62.
1. Introdução<br />
AS METÁFORAS DO AMOR<br />
EM REVISTAS PARA ADOLESCENTES<br />
Ana Paula Ferreira (UERJ)<br />
anapaferr@gmail.com<br />
Assim como o próprio conceito de indivíduo, o amor é uma<br />
construção histórico-social, portanto, não pode ser considerado como<br />
constituinte de uma “essência humana”, visto que nem mesmo esta<br />
existe. Diferentes representações acerca do amor podem ser verificadas,<br />
podendo estas ser mantidas ou alteradas de acordo com os valores,<br />
interesses, necessidades, costumes e crenças de cada época e sociedade.<br />
Se há, então, essa pluralidade, existiria uma forma predominante<br />
nos dias atuais, que fosse mais valorizada ou possibilitada pela<br />
sociedade moderna? Seria a mídia, de alguma forma, instrumento<br />
participante nesse processo?<br />
É inegável a importância da mídia na formação de comportamentos.<br />
A todo o momento, ela orienta a ação das pessoas, indicando<br />
o que estas devem ou não consumir, o modo como devem agir, e, até<br />
mesmo, o que devem ser e pensar. Ao mesmo tempo, é também reflexo<br />
da sociedade, refletindo os anseios desta, com a intenção de atingir<br />
seu público e ser consumida por este.<br />
Os jovens, em particular, parecem ser constantemente influenciados<br />
pelo o que é apresentado pela mídia. Isso não significa que<br />
os adultos estariam alheios ao poder desta. Mas, sem dúvida, a juventude<br />
merece aqui um destaque, devido ao período em que se encontra<br />
de construção e desenvolvimento, necessidade de experimentações,<br />
integração e aceitação. Paralelamente a isto, os espaços tradicionais<br />
de referência para o adolescente e o jovem, como a família e<br />
a escola, nem sempre têm conseguido prover as necessidades de informação<br />
geradas por uma realidade em acelerado processo de mudança.<br />
É nesse contexto que a mídia se firma ainda mais como um<br />
instrumento de formação de mentalidades e atitudes.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
575<br />
As relações amorosas são intensamente abordadas pela mídia.<br />
Reconhecendo as representações sociais acerca dos relacionamentos,<br />
ela busca oferecer aquilo que acredita ser de interesse do público a<br />
que se destina. Consequentemente, acaba também por influenciar este,<br />
ratificando as regras de conduta social.<br />
A sociedade ocidental contemporânea parece estimular, em<br />
geral, um tipo muito particular de amor, diferente da concepção romântica<br />
das gerações passadas, onde o que se busca em uma relação,<br />
primordialmente, é a satisfação dos próprios desejos. Tudo se torna<br />
muito fluido, as sensações superam o sentimento, em uma necessidade<br />
imperativa de se consumir bem-estar e eliminar qualquer incômodo<br />
ou desconforto. Observa-se uma maior preocupação com a satisfação<br />
pessoal, onde os próprios desejos prevalecem sobre os do<br />
outro, o qual, nessa relação, não é alguém dotado de alteridade, mas<br />
“qualquer um”, ou melhor, alguém que proporcione prazer.<br />
Minha intenção, através da observação das representações da<br />
mídia impressa acerca das relações amorosas contemporâneas, seria<br />
a de verificar como o conceito de amor é apresentado nessas produções,<br />
averiguando as formas de relacionar-se privilegiadas atualmente<br />
pelos instrumentos midiáticos voltados para a juventude. Para tanto,<br />
contarei com contribuições da Linguística Cognitiva; em especial,<br />
utilizarei a Teoria da Metáfora Conceptual.<br />
No intuito de entender melhor como o amor é conceptualizado<br />
contemporaneamente, quais as ideologias presentes e as mensagens<br />
transmitidas nestes discursos que têm o jovem como seu principal<br />
interlocutor, destacarei as metáforas conceptuais que são utilizadas<br />
quando os relacionamentos amorosos são abordados, visto que<br />
estas são instrumentos poderosos para a compreensão da visão de<br />
mundo existente em determinada sociedade.<br />
Por trabalhar com essa faixa etária, verifico que seus relacionamentos,<br />
de modo geral, são baseados em busca por satisfação pessoal<br />
através de contatos superficiais e efêmeros, e isso se reflete em<br />
seus atos e objetivos de vida. Considero que a mídia pode ser instrumento<br />
que, ao mesmo tempo, transparece e estimula esse tipo de<br />
comportamento.
2. Metáfora e Cognição<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
576<br />
O estudo acerca das metáforas não é recente. Sua noção mais<br />
antiga no Ocidente vem do século IV a. C., da Grécia Antiga. Aristóteles,<br />
em sua Arte Poética, define-a como “a transposição do nome<br />
de uma coisa para outra, transposição do gênero para a espécie, ou da<br />
espécie para o gênero, ou de uma espécie para outra, por via de analogia.”<br />
(1964, p. 304). Com o passar do tempo, essa categoria proposta<br />
por Aristóteles foi sendo desmembrada em outras figuras de<br />
linguagem, e o senso comum nos indica que a metáfora, hoje, pode<br />
ser definida como uma figura que faz uma comparação implícita entre<br />
duas coisas, entidades ou assuntos não relacionados.<br />
Essa concepção nos leva a defender que a metáfora é um fenômeno<br />
usado com finalidades artísticas e baseado na semelhança<br />
entre duas entidades que são comparadas. Sendo apenas um elemento<br />
acessório, usado para “enfeitar” o discurso, a metáfora não seria<br />
essencial em nossa comunicação.<br />
Contudo, a partir de 1980, com a publicação de Metáforas da<br />
vida cotidiana, de George Lakoff e Mark Johnson, surge uma nova<br />
visão de metáfora: a metáfora conceptual. De acordo com ela, a metáfora<br />
tem o objetivo de auxiliar na compreensão de determinados<br />
conceitos, sendo empregada comumente no dia-a-dia por todas as<br />
pessoas. A metáfora passa a não mais ser considerada como um ornamento,<br />
mas como um processo importante do pensamento humano.<br />
Segundo Lakoff (2002), uma metáfora conceptual é uma maneira<br />
convencional de conceptualizar um domínio de experiências<br />
em termos de outro, normalmente de modo inconsciente. Ou seja, a<br />
metáfora é chamada de conceptual porque fornece o conceito de algo.<br />
Em uma metáfora conceptual, encontramos dois tipos de domínios,<br />
o domínio-fonte e o domínio-alvo. Domínio é a área do conhecimento<br />
ou experiência humana. O domínio-fonte é aquele a partir<br />
do qual alguma coisa é conceptualizada metaforicamente; geralmente<br />
é algo concreto, que faz parte de nossa experiência. O domínioalvo<br />
é o abstrato, é aquele que desejamos conceptualizar.<br />
Se pegarmos o exemplo O AMOR É UMA VIAGEM (as metáforas<br />
conceptuais são sempre grafadas em caixa alta), torna-se cla-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
577<br />
ro que o conceito de amor é fornecido a partir do conceito de viagem.<br />
O amor é o domínio-alvo, aquele a que queremos atribuir um<br />
conceito e viagem é o domínio-fonte, a partir do qual o amor é conceptualizado.<br />
Quando afirmamos que um conceito é compreendido a partir<br />
de outro, consideramos que há uma série de correspondências entre a<br />
fonte e o alvo, assim, elementos conceptuais do alvo correspondem a<br />
elementos conceptuais da fonte. Essas correspondências conceptuais<br />
sistemáticas são chamadas de mapeamento. Para o exemplo dado anteriormente,<br />
Sardinha (2007, p. 31) fornece os seguintes mapeamentos,<br />
entre outros:<br />
· Viajantes: marido e mulher;<br />
· Mapa da viagem: planos futuros da vida a dois;<br />
· Destino da viagem: relação feliz a dois;<br />
· Deslocamento tranquilo na viagem: relação sem problemas.<br />
Sardinha ainda sinaliza que se uma viagem longa é monótona<br />
ou cansativa, um casal que vive há muito tempo junto pode se cansar<br />
do relacionamento ou achá-lo monótono. Esses seriam desdobramentos,<br />
ou seja, as inferências que podemos fazer a partir de uma metáfora<br />
conceptual.<br />
Compreender, então, uma metáfora significa efetuar o mapeamento<br />
entre a fonte e o alvo. Ao utilizarmos uma expressão linguística<br />
metafórica, nós respeitamos o mapeamento convencionado pela<br />
comunidade linguística; não é qualquer elemento do alvo que pode<br />
ser mapeado com determinado elemento da fonte. Gostaria de ressaltar<br />
aqui a diferença entre expressões linguísticas e metáforas conceptuais.<br />
As expressões linguísticas são as manifestações (modo de falar)<br />
das metáforas conceptuais (modos de pensar). É através do uso<br />
das expressões linguísticas que a existência das metáforas conceptuais<br />
é revelada.<br />
As metáforas conceptuais são culturais, resultantes de mapeamentos<br />
que são relevantes para uma determinada cultura. Elas refletem<br />
a ideologia e o modo de ver o mundo de certo grupo de pessoas.<br />
Elas são coletivas, no sentido de que para serem verdadeiras, precisam<br />
ser compartilhadas em sociedade. Portanto, podem ser emprega-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
578<br />
das como meio de entender como as pessoas vivem e interagem no<br />
meio social, em interface com diferentes áreas, como a análise do<br />
discurso e a linguística de corpus, entre outras.<br />
A teoria da metáfora conceptual pressupõe que os mapeamentos,<br />
em uma dada cultura, sejam legítimos, frutos de um desenvolvimento<br />
histórico-cognitivo na tentativa de compreender melhor o<br />
mundo ao seu redor. Nem sempre, porém, é o que verificamos; em<br />
alguns casos, deparamo-nos com mapeamentos artificiais, ou seja,<br />
construídos de acordo com necessidades de certo grupo, em benefício<br />
de determinadas pessoas ou instituições.<br />
As mídias, em especial, a publicidade, costumam utilizar as<br />
metáforas como um mecanismo eficiente para seduzir, apresentam<br />
uma ideologia de modo sutil e criam uma relação mais próxima com<br />
o público consumidor, que se torna cúmplice do emissor ao “entender”<br />
a mensagem que está sendo transmitida. É o exemplo da propaganda<br />
que nos mostra um grupo de amigos, felizes, magros, todos de<br />
aparência saudável, em contato com a natureza, a qual nos diz que<br />
BEBER O REFRIGERANTE X É SER FELIZ / É SER MAGRO / É<br />
SER SAUDÁVEL / É TER AMIGOS / É RESPEITAR A NATU-<br />
REZA, e assim por diante. Podemos, assim, constatar que as metáforas<br />
são recursos retóricos poderosos.<br />
3. As metáforas conceptuais nas revistas para adolescentes<br />
Com o intuito de observar a conceptualização do amor e verificar<br />
as mensagens que são transmitidas às jovens leitoras das revistas<br />
Capricho e Atrevida, selecionei artigos sobre relacionamentos<br />
amorosos em seis revistas, ao todo, publicadas nos meses de maio e<br />
junho de 2009. Todos os artigos abordavam questões acerca dos relacionamentos<br />
amorosos juvenis. Destaquei algumas metáforas conceptuais<br />
presentes nesses artigos, as quais apresentarei a seguir. O<br />
processo de identificação das metáforas foi feito manualmente,<br />
através da leitura de cada artigo.
1. AMOR É VIAGEM<br />
“... porque seu amor vai assim, aos trancos e barrancos...”.<br />
“... porque o amor chegou ao fim...”.<br />
· Domínio-alvo: amor.<br />
· Domínio-fonte: viagem.<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
579<br />
Os viajantes são o namorado e a namorada, e se o relacionamento<br />
amoroso é uma viagem, podemos considerar que ele teve um<br />
início, terá um término, o trajeto poderá ser longo ou curto, monótono<br />
ou excitante etc.<br />
2. AMOR É NEGÓGIO<br />
“... tem que investir quando a gente sente que é um amor<br />
maior”.<br />
· Domínio-alvo: amor.<br />
· Domínio-fonte: negócio.<br />
Neste caso, o investidor é a namorada; ela poderá realizar os<br />
mais variados investimentos, os quais podem ser atenção, carinho,<br />
respeito, um bom papo, ou também trapaças, e até mesmo uma produção<br />
mais caprichada, como roupas, maquiagens... O lucro obtido<br />
com o investimento deverá ser a aquisição e manutenção do próprio<br />
namorado.<br />
3. AMOR É ELEIÇÃO<br />
“... que tipo de namorada você vai ser quando for eleita<br />
ganhadora do amor dele. Se está em fase de campanha, ...”.<br />
“Inicie a sua campanha rumo ao amor do gato. Panfletos,<br />
cartazes, propagandas ...”.<br />
· Domínio-alvo: amor.<br />
· Domínio-fonte: eleição.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
580<br />
O candidato é a pretendente a namorada, o cargo almejado é o<br />
posto de namorada, a campanha poderá se valer de várias estratégias,<br />
novamente podem ser utilizados carinho, atenção, respeito, um bom<br />
papo, como também mentiras, trapaças, e até mesmo uma produção<br />
mais caprichada, roupas novas, maquiagens... Vale lembrar que a eleição<br />
poderá ser vencida, ou não, assim como também há a possibilidade<br />
de renúncia e de outros candidatos concorrendo ao almejado<br />
posto.<br />
4. AMOR É JOGO<br />
“No jogo do amor você deve aspirar sempre pelo posto de<br />
titular. Nada de ficar no banco de reserva...”.<br />
“Goooool!!! Tá na maior disputa pelo amor do gato?”.<br />
· Domínio-alvo: amor.<br />
· Domínio-fonte: jogo.<br />
Os jogadores são o namorado e a namorada. Eles podem estar<br />
no mesmo time, buscando uma diversão em conjunto, ou em times<br />
adversários, competindo entre si; nesse caso, o objetivo é ganhar do<br />
outro. O prêmio pode ser conquistar a afeição do namorado, dominálo,<br />
enganá-lo, dependendo de qual for a proposta do jogo e se algumas<br />
regras, como, por exemplo, respeito, sinceridade, entre outras,<br />
serão estabelecidas. Outros jogadores poderão participar também do<br />
jogo, brigando pela posição de namorada e deixando a perdedora no<br />
banco de reserva, ou seja, sem participar do jogo do amor.<br />
5. AMOR É GUERRA<br />
“... que possam ser rivais batalhando pelo amor do gato”.<br />
“... deu todas as estratégias para conquistar o coração dele”.<br />
· Domínio-alvo: amor.<br />
· Domínio-fonte: guerra.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
581<br />
Os adversários poderão ser o namorado e a namorada, ou a<br />
namorada e uma rival, ambas querendo conquistar o amor do mesmo<br />
garoto. O objetivo é conquistar ou derrotar o outro (o inimigo). É<br />
claro que não se pode confiar no inimigo, e as táticas de guerra poderão<br />
ser as mais variadas possíveis, visando ao alcance do objetivo.<br />
6. AMOR É MAGIA<br />
“... até mesmo ‘enfeitiçada’. É que o amor é magia mesmo”.<br />
“Enfeitice o gato. Dicas e magias para você ter o seu amor”.<br />
· Domínio-alvo: amor.<br />
· Domínio-fonte: magia.<br />
O mágico é a namorada, que se valerá de mágicas, truques ou<br />
encantamentos para enfeitiçar sua plateia, o namorado. Cabe aqui<br />
ressaltar que mágicas são ilusões utilizadas para dar uma falsa impressão<br />
às pessoas. O encantamento tem um efeito temporário e os<br />
truques podem ser descobertos ou revelados.<br />
7. AMOR É DOENÇA<br />
“Ele pode estar morrendo de amor ...”.<br />
“... só o tempo e um novo amor tudo de bom podem curar<br />
esse amor”.<br />
· Domínio-alvo: amor.<br />
· Domínio-fonte: doença.<br />
Os pacientes são o namorado e/ou a namorada, a cura seria o<br />
término do amor, os sintomas podem ser variados como sofrimento<br />
causado pelo outro, falta de concentração nas atividades cotidianas<br />
que não estejam relacionadas com o outro, alta emotividade etc. Segundo<br />
as metáforas verificadas, os remédios mais eficientes seriam o<br />
aumento da autoestima e um novo amor que não provocasse tais sintomas.
8. AMOR É SEMENTE<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
582<br />
“... estiverem dispostos a cultivar esse amor em equilíbrio<br />
com a família”.<br />
“... você já sinta o amor desabrochar no seu coração”.<br />
· Domínio-alvo: amor.<br />
· Domínio-fonte: semente.<br />
Os semeadores são o namorado e a namorada, e a terra semeada<br />
é o namoro. Bons frutos seriam um relacionamento feliz, sem<br />
problemas, os cuidados são os mais variados. Os adubos podem ser<br />
atenção, carinho, respeito, um bom papo, e até mesmo uma produção<br />
mais caprichada, como roupas, maquiagens... Nem sempre, porém, a<br />
semente vinga, fatores internos e externos podem dificultar esse processo,<br />
como a fofoca e interferência de terceiros no relacionamento,<br />
ciúmes, incompatibilidades e demais tribulações pelas quais podem<br />
passar os relacionamentos.<br />
4. Considerações finais<br />
A partir das metáforas, pode ser confirmada a pluralidade de<br />
representações para o amor na sociedade contemporânea. Foram encontradas<br />
a representação de amor como algo positivo, seja um presente<br />
que é ofertado, ou uma semente que necessita ser cuidada para<br />
florescer, como também verificamos uma visão negativa, a de uma<br />
doença, ou a de uma guerra, por exemplo.<br />
Entre as metáforas sinalizadas, há algumas bastante significativas<br />
que parecem ratificar a sensação de que o outro é um adversário,<br />
alguém que deve ser combatido e que precisa ser derrotado para<br />
que possamos alcançar a vitória e a sensação de felicidade e bemestar<br />
que constantemente nos é imposta.<br />
Há também aqui espaço para a ideia do amor enquanto uma<br />
ilusão, ou um negócio. De qualquer modo, continuamos a ter de enganar,<br />
passamos a ter concorrentes e/ou oponentes, que, curiosamente,<br />
são aqueles com quem nos relacionamos afetivamente.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
583<br />
Não quero, com essa breve observação, afirmar que todos os<br />
relacionamentos amorosos são pautados por regras egocêntricas, e<br />
que a visão de amor preponderante nos dias atuais seria a do outro<br />
como um inimigo, alguém que, em certo ponto, passa a impedir a obtenção<br />
de prazer e que, portanto, deve ser deixado em segundo plano.<br />
Mas é interessante reconhecer que as metáforas indicam fortemente<br />
essa visão de relacionamento, que cada vez mais vem sendo retratada<br />
e estimulada pelos meios de comunicação. E se os relacionamentos<br />
ditos íntimos passam a ser pautados por essas regras, o que podemos<br />
pensar sobre as outras formas de relacionar-se?<br />
Certamente, trata-se de uma pequena pesquisa, restrita a alguns<br />
artigos de duas revistas voltadas ao público adolescente, mas<br />
creio que o reconhecimento das possibilidades diversas de amar que<br />
hoje são oferecidas é fundamental para que ideologias não nos sejam<br />
impostas sem uma análise crítica daquilo que necessitamos e realmente<br />
queremos.<br />
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
ARISTÓTELES. Arte poética. In: ___. Arte retórica e arte poética.<br />
Tradução: Antônio Pinto de Carvalho. São Paulo: Difusão Europeia<br />
do Livro, 1964, p. 301-309.<br />
KÖVECSES, Zoltán. Metaphor: a practical introduction. New York:<br />
Oxford University Press, 2002.<br />
______. Metaphor in culture: universality and variation. Cambridge:<br />
Cambridge University Press, 2005.<br />
LAKOFF, George. Moral politics: how liberals and conservatives<br />
think. Chicago: University of Chicago Press, 2002.<br />
LAKOFF, George; JOHNSON, Mark. Metaphors we live by.<br />
Chicago: University of Chicago Press, 1980.<br />
_____. Philosophy in the flesh: the embodied mind and its challenge<br />
to Western thought. New York: Basic Books, 1999.<br />
SARDINHA, Tony Berber. Metáfora. São Paulo: Parábola, 2007.
1. Introdução<br />
AS METAMORFOSES DA MULHER<br />
NA POESIA BRASILEIRA FINISSECULAR<br />
Juliana Pêgas Costa (UERJ/FFP)<br />
jujupegas@hotmail.com<br />
A poesia brasileira do segundo oitocentos, marcada por uma<br />
verdadeira pluralidade de estilos literários, apresenta a mulher em<br />
suas diversas metamorfoses. Essa figura feminina perpassa as estéticas<br />
de fin de siècle sob influência decadentista, estética que elege<br />
Charles Baudelaire como patrono e retira, de seu tom profanador,<br />
grande inspiração.<br />
Este trabalho pretende analisar algumas das diversas faces atribuídas<br />
à mulher, presentes nos poemas de Olavo Bilac e Raimundo<br />
Correia, inseridos e rotulados como parnasianos, mas que carregam<br />
nítida influência da estética decadentista.<br />
2. As diversas faces da femme fatale<br />
Charles Baudelaire, poeta francês, foi considerado o “pai” do<br />
Decadentismo. Seus poemas revelam a mulher como agente, dominadora<br />
do ato sexual, trazendo para a literatura a figura da femme fatale,<br />
que será recorrente na poesia brasileira finissecular. O escritor,<br />
ao apresentar essa “fêmea maldita”, desagrada a burguesia francesa,<br />
causando polêmica. Vale lembrar que a sexualidade constitui-se como<br />
um tabu em muitas sociedades. Os valores, a moral, com o reforço<br />
da religião, tentam deter ou regular o instinto natural do sexo. Segundo<br />
Camille Paglia: “A sociedade é uma construção artificial, uma<br />
defesa contra o poder da natureza (...). O homem civilizado esconde<br />
de si mesmo a extensão de sua subordinação à natureza” (PAGLIA,<br />
1993, p.13).<br />
Dessa forma, Baudelaire, ao apresentar a mulher exercendo<br />
seus desejos, mostrando sua sexualidade, transgredia, de fato, os valores<br />
morais. O autor de “As flores do Mal” repudiava o natural. Sob
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
585<br />
essa perspectiva, a mulher, “ser natural por excelência”, era abominável<br />
na visão baudelairiana:<br />
A mulher é o oposto do Dândi.<br />
Deve, pois, nos causar repulsa.<br />
A mulher tem fome e quer comer – sede, e quer beber.<br />
No cio, quer ser comida.<br />
Que glória!<br />
A mulher é natural, isto é, abominável.<br />
Por isso mesmo ela é sempre vulgar, ou seja, o contrário do Dândi.<br />
(BAUDELAIR, 1995, p.525)<br />
A partir dessa concepção, o poeta traz para a literatura figuras<br />
femininas que se afastam, ao máximo, do ideal naturista. Surge, nesse<br />
cenário, a mulher maquiada, em que o artifício da maquiagem<br />
transforma a natureza imperfeita: “tudo o que a moda faz deve ser<br />
considerado uma deformação sublime da natureza, transformando a<br />
natureza grosseira e imunda em charme e beleza” (BAUDELAIRE,<br />
1993, p. 244). Surgem, também, as figuras da lésbica, da prostituta e<br />
da mulher infértil, uma vez que a maternidade representaria o retrato<br />
mais fiel da natureza.<br />
O período entre o final do século XIX e início do século XX é<br />
marcado por uma verdadeira pluralidade de estilos. Como afirma José<br />
Guilherme Merquior (1996, p. 141): “A pluralidade de estilos é o<br />
aspecto mais ostensivo do segundo Oitocentos”. Estes estilos retiram<br />
de Baudelaire grande influência.<br />
O Parnasianismo, movimento literário francês, inicia-se com<br />
a publicação de Le Parnasse Contemporain, em 1866, que contou<br />
com Theóphile Gautier, um dos poetas mais importantes do movimento.<br />
Esta escola literária buscava a precisão vocabular, a perfeição<br />
formal e evitava os exageros sentimentais, como fizera outrora o<br />
Romantismo. Os poemas deveriam ser fruto de um verdadeiro trabalho<br />
com as palavras, e não um mero produto da inspiração. No Brasil,<br />
essa estética, assim como o Simbolismo, foi alvo de inúmeras críticas,<br />
uma vez que nela não havia preocupação direta com questões<br />
sociais ou de cunho nacional. Isso fez com que o movimento fosse<br />
considerado superficial, por muitos críticos literários entusiastas do<br />
Modernismo.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
586<br />
Essa estética, para alguns influenciada pelo cientificismo e<br />
positivismo, mostrou certa dualidade na figura feminina: de um lado,<br />
a mulher da ideologia católica, ressaltando-se sua bondade e maternidade.<br />
De outro lado, seus desejos e sua sensualidade. “De alguma<br />
maneira, é também a repetição de um certo dualismo entre o 'bem' e<br />
o 'mal', o pecado e a virtude”(SANT’ANNA, 1984, p. 68).<br />
Segundo os preceitos positivistas, a mulher deveria representar<br />
o amor e a bondade, deveria sustentar a base familiar. Dessa forma,<br />
a estética parnasiana, sob influência dessa corrente cientificista,<br />
mostra a face dessa mulher de uma sociedade patriarcal.<br />
Por outro lado, encontramos a mulher, ainda na estética parnasiana,<br />
de forma bastante sensual. Porém, nota-se um conflito, uma<br />
vez que todo o prazer do eu lírico pela figura feminina transporta-se<br />
para um distanciamento, no momento em que a imagem da mulher<br />
transforma-se em objeto estático, passível de contemplação: “Fixada<br />
num pedestal ou colocada no imaginário do poeta como algo a ser<br />
apenas visto, essa imagem narra o conflito entre a pulsão e o recalque”,<br />
afirma Affonso Romano de Sant’anna (Idem, p. 71). Nesse<br />
sentido, ao colocar a mulher como objeto a ser contemplado, transparece<br />
o ideal parnasiano em seu sentido estético, no “culto do objeto<br />
plástico à distância” (Ibidem, p. 71). Mas essas não são as únicas faces<br />
atribuídas à mulher no Parnasianismo. Há também a presença da<br />
fêmea devoradora e cruel, o que reforça a marca decadentista nesse<br />
movimento literário.<br />
O Decadentismo, estética também de matriz francesa do século<br />
XIX, mostrava-se contrária ao “cientificismo” parnasiano e ao naturalismo.<br />
A princípio, esta nomenclatura fora atribuída a certos pensadores<br />
que, com inspiração na obra de Charles Baudelaire, eram<br />
contrários à sociedade norteada pelos valores positivistas e burgueses.<br />
Entre esses intelectuais, destacam-se Stéphanie Mallarmé (1842-<br />
1898), Paul Verlaine (1844-1896) e Joris Karl Huysmans (1842-<br />
1898). Este movimento retira de Baudelaire seu prazer em desagradar,<br />
em chocar e em transgredir.<br />
A figura da femme fatale baudelairiana emerge no Decadentismo,<br />
o qual irá influenciar as estéticas Parnasiana e Simbolista. De<br />
acordo com a professora francesa Mireille Dottin-Orsini, “a literatura
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
587<br />
da segunda metade do século XIX mostra claramente que a mulher<br />
mete medo, que é cruel e pode matar” (1996, p. 13).<br />
Nossos poetas Raimundo Correia e Olavo Bilac, inseridos no<br />
Parnasianismo, trazem essa figura feminina transgressora em diversos<br />
de seus poemas, colaborando para a percepção de que o Decadentismo<br />
se faz presente em poetas rotulados e classificados como<br />
pertencentes a outra estética literária.<br />
A partir desse perfil, sob influência da estética decadentista, é<br />
que serão analisadas algumas faces recorrentes da mulher na poesia<br />
brasileira parnasiana: as emblemáticas Salomé e Cleópatra, a mulher<br />
sereia, a mulher vampira e a Esfinge.<br />
Quando se fala em Decadentismo, principalmente ao abordar<br />
a imagem feminina, surge, de imediato, a imagem de Salomé.<br />
O episódio bíblico contido nos evangelhos de Mateus (14, 1-<br />
11) e Marcos (6,17-28) apontam Salomé como responsável pela morte<br />
de João Batista. Mas esse fato não é suficiente para que essa emblemática<br />
figura se torne a deusa dos decadentistas. Salomé, numa<br />
festa do palácio, dança para Herodes, conquistando, assim, a possibilidade<br />
de realizar um de seus desejos. Atendendo ao pedido de sua<br />
mãe Herodias, pede a cabeça de João Batista.<br />
Eis a musa eleita pelos decadentistas, ao unir beleza e sensualidade<br />
à ruína e à destruição. De acordo com Cláudia Amorim, “Salomé<br />
não é apenas uma sedutora; é, para os decadentistas, uma obra<br />
de arte viva, perigosa, fatal ao homem” (AMORIM, 2004, p. 41-42).<br />
O episódio bíblico será alvo de diversas releituras, a partir do<br />
século XIX, tornando-a cada vez mais cruel e libidinosa. Entre as célebres<br />
interpretações estão as pinturas de Gustave Moreau, em 1876,<br />
e a peça teatral de Oscar Wilde, estreada em 1896, quatro anos após<br />
ter sofrido censura.<br />
Com efeito, Salomé está presente nas mulheres, ao unirem beleza<br />
e sensualidade à ruína do homem. Essa figura serve de alegoria<br />
a tantas outras mulheres malditas da literatura. De acordo com Paula<br />
Morão:<br />
O mito de Salomé, ao longo da história das suas ocorrências textuais,<br />
cada vez se afasta mais da glosa do texto matricial dos Evangelistas,
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
588<br />
e progressivamente se encaminha para a miscigenação com diversas outras<br />
figuras mitológicas que se estruturam segundo um mesmo paradigma<br />
disfórico, de sexo representado como ritual violento, angustiante,<br />
provocador de ruínas, morte e destruição (MORÃO, 1997, p. 116)<br />
Diversos poemas de Olavo Bilac e Raimundo Correia deixam<br />
entrever a imagem de Salomé, através de figuras femininas com exuberante<br />
beleza que mostram seus poderes de destruição.<br />
O poema “Abyssus”, de Olavo Bilac mostra, claramente, a ferocidade<br />
da mulher que destrói e devora o homem:<br />
Bela e traidora! Beijas e assassinas...<br />
Quem te vê não tem forças que te oponha<br />
Ama-te, e dorme no teu seio, e sonha,<br />
E, quando acorda, acorda feito em ruínas...<br />
Seduzes e convidas, e fascinas,<br />
Como o abismo que, pérfido, a medonha<br />
Fauce apresenta flórida e risonha,<br />
Tapetada de rosas e boninas.<br />
O viajor, vendo as flores, fatigado<br />
Foge o sol, e, deixando a estrada poenta,<br />
Avança, incauto... Súbito, esbroado,<br />
Falta-lhe o solo aos pés: recua e corre,<br />
Vacila e grita, luta e se ensanguenta,<br />
E rola, e tomba, e se espedaça, e morre...<br />
Logo de início, o poeta ressalta a beleza da mulher relacionada<br />
à maldade e o prazer que o homem tem em ser seduzido por ela.<br />
Em seguida, apresenta a face escondida desse prazer: a degradação<br />
do homem. Essa mulher ataca e, sem motivo aparente, devora o homem<br />
e o submete à pior das tormentas. A mulher é, aparentemente,<br />
um universo dicotômico de extremos. Ora proporciona imenso prazer,<br />
ora imensa dor, mas essas sensações caminham juntas no significado<br />
dessa mulher, ressaltando-se o ideal decadente. A mulher apresenta-se<br />
como verdadeira encarnação do mal, levando a figura<br />
masculina, através das tentações carnais, às penitências do que fora<br />
desfrutado. Na visão de Camille Paglia, “para Baudelaire, sexo é limitação<br />
e não libertação” (1992, p.388). Da mesma forma, o poema<br />
de Bilac apresenta essa percepção de que o homem “é traído pelo<br />
corpo, entregue às mãos das mulheres por fraqueza sexual” (Idem, p.<br />
388).<br />
Os últimos versos mostram essa destruição sendo efetivada. A<br />
mulher, como um animal feroz, faz do homem sua presa e o devora.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
589<br />
O homem tenta fugir, mas a superioridade desta mulher não permite<br />
que ele tenha forças para lutar.<br />
O poema sugere outra figura feminina muito recorrente no<br />
Decadentismo: a mulher-vampiro. O primeiro verso já contém traços<br />
de vampirismo, no momento em que o poeta relaciona o beijo ao assassinato.<br />
Essa imagem misteriosa, que une paixão e morte, constitui-se<br />
como uma das diversas faces da mulher fatal. No poema “As<br />
metamorfoses do Vampiro”, Charles Baudelaire apresenta a mulher<br />
sob esta figura, com “lábios de framboesa / coleando qual serpente<br />
ao pé da lenha acesa”. Ainda no mesmo poema, ela diz: “Tão douta<br />
na volúpia eu sou, queridos sábios, / Quando um homem sufoco à<br />
borda de meus lábios”. O soneto XIV, de Via-Láctea, de Olavo Bilac<br />
deixa entrever os mesmos efeitos mortais causados pela figura feminina,<br />
através de sua “mordida”:<br />
Depois dos lábios sôfregos e ardentes,<br />
Senti – duro castigo aos meus desejos –<br />
O gume fino de perversos dentes...<br />
E não posso das faces poluídas<br />
Apagar os vestígios desses beijos<br />
E os sangrentos sinais dessas feridas!<br />
Outra forte imagem feminina presente na estética decadentista<br />
é a de Cleópatra. A mais famosa rainha egípcia foi eternizada por sua<br />
inteligência e seu enorme poder sedutor. De acordo com Camille Paglia,<br />
“escravizada pela natureza, Cleópatra torna-se uma escravizadora<br />
sexual sadiana” (1993, p. 385). Com sua fascinação por serpentes,<br />
encarnará, na poesia do segundo oitocentos, a imagem da mulher-serpente,<br />
sedutora, envolvente e letal, símbolo da tentação erótica.<br />
O poema “Na Tebaida”, de Sarças de Fogo, de Olavo Bilac, traz<br />
essa mulher, encarnada na figura da serpente, sensual, sedutora e sádica:<br />
“Luto: porém teu corpo se avizinha/Do meu, e o enlaça como<br />
uma serpente... / Fujo: porém a boca prendes, quente, / Cheia de beijos,<br />
palpitantes, à minha...”.<br />
O mesmo poeta, em “O sonho de Marco Antônio”, descreve a<br />
sensualidade e o poder da mulher na figura de Cleópatra: “Ele é valente<br />
e ela o subjuga e o doma... / Só Cleópatra é grande, amada e<br />
bela! / Que importa o império e a salvação de Roma? / Roma não vale<br />
um só dos beijos dela!”.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
590<br />
A enigmática Esfinge também terá forte representação na poesia<br />
do segundo oitocentos. Segundo a mitologia grega, Esfinge era<br />
formada por cabeça de mulher, patas, garras e peitos de um leão,<br />
uma cauda de serpente e asas de águia. De acordo com a tradição<br />
grega, ela teria sido enviada para amaldiçoar a cidade de Tebas, lançando<br />
seu enigma, quase indecifrável, aos seus desafiadores. Como<br />
mortal consequência por não desvendar seu mistério, a criatura maligna<br />
devorava diversos homens que ousavam desafiá-la. Por sua inteligência<br />
(representada pela cabeça humana), causando destruição,<br />
essa Esfinge feminina torna-se uma das diversas metamorfoses sofridas<br />
pela mulher, presente nas estéticas finisseculares. O poeta Raimundo<br />
Correia, inserido na estética parnasiana, contém leves ressonâncias<br />
decadentistas, e apresenta a figura da mulher em seus poemas,<br />
sob nítida influência dessa estética. O soneto “Desdéns” mostra<br />
a face cruel, maligna das femmes fatales. Logo no início do poema, a<br />
mulher surge como uma fera, com “unhas de coral felinas”, pronta<br />
para destruir o homem: “garras que, a sorrir, tu me assassinas”. Assim<br />
como a Esfinge, essa mulher é uma cruel fera, que domina sua<br />
presa e a devora sem piedade.<br />
A efígie da Esfinge não está presente somente na femme fatale.<br />
Por ser uma figura enigmática, misteriosa, surge no cenário como<br />
a figura do mistério e das máscaras. A estética decadentista, através<br />
do simulacro configura-se, de acordo com Latuf Isaias Mucci, como<br />
“um texto esfíngico, que prescinde da decifração, porque vive de suas<br />
máscaras” (MUCCI, 1994, p. 52).<br />
Outra persona que emergirá na poesia brasileira parnasiana,<br />
através das influências decadentistas, é a sereia. Sugestiva e insaciável,<br />
a “mulher-sereia” seduz e inebria com seu canto. Essa figura,<br />
como tantas faces da mulher fatal, possui um poder infindável de sedução<br />
e de causar a morte do homem. O poema “A uma cantora”, de<br />
Raimundo Correia, deixa transparecer essa figura mitológica seduzindo<br />
o eu lírico, que diz ter sofrido uma flechada em seus ouvidos,<br />
através de seu canto.<br />
Olavo Bilac também traz em seus poemas a figura da sereia.<br />
Em “Medalha Antiga”, sua beleza e sua sensualidade são exaltadas:<br />
“Nua a deusa, nadando, a onda dos seios túmidos/ Leva diante de si,<br />
amorosa e sensual”. O mesmo poeta, no poema “A Iara” mostra, no-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
591<br />
vamente, essa figura folclórica sendo contemplada pelo eu lírico:<br />
“Vive dentro de mim, como num rio, / Uma linda mulher, esquiva e<br />
rara”.<br />
3. Conclusão<br />
A mulher aparece na literatura do segundo oitocentos assumindo<br />
diversas faces. Algumas delas, como as emblemáticas Salomé<br />
e Cleópatra, a vampira, a Esfinge e a sereia mostram-se extremamente<br />
sensuais e sádicas e entram no cenário da literatura como agentes,<br />
dominadoras do ato sexual. Os poetas Olavo Bilac e Raimundo Correia<br />
deixam entrever diversas das configurações da mulher fatal. Inseridos<br />
na estética parnasiana, esses, entre diversos poetas, mostram<br />
a visível presença da tão esquecida estética decadentista. Os traços<br />
do Decadentismo estão presentes, e muitas vezes, escondidos nas estéticas<br />
rotuladas como parnasianas ou simbolistas. Por isso, é importante<br />
ressaltar que, a figura feminina, em suas metamorfoses, perpassa<br />
essas estéticas do segundo oitocentos sob nítida influência decadentista.<br />
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o desejo e a interdição em nossa cultura através da poesia. São Paulo:<br />
Brasiliense, 1984.
ASPECTOS DO PORTUGUÊS DO BRASIL<br />
NAS LETRAS DA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA<br />
1. Introdução<br />
Maria Aparecida Rocha Gouvêa (UERJ e UniFOA)<br />
cidarochagouvea@hotmail.com<br />
“O Brasil é grande, todos o sabemos. E os sessenta milhões<br />
de brasileiros falamos e escrevemos de inúmeras maneiras a língua<br />
que nos deu Portugal.” Assim, Raquel de Queiroz (1958, p. 280) iniciou<br />
uma carta de resposta a um editor português que propunha alterações<br />
nos textos dela, como condição para publicação em Portugal.<br />
As diferenças entre o português de Portugal e o português do Brasil é<br />
uma discussão antiga, iniciada no período pós-independência. De um<br />
lado, os puristas defendiam a conservação do padrão português; de<br />
outro lado, havia os defensores do abrasileiramento da língua, com<br />
absorção das características próprias do modo brasileiro culto de se<br />
falar/escrever.<br />
Este artigo objetiva refletir sobre as propostas de inovações<br />
na língua nesse período histórico, como também sobre a legitimação<br />
do português falado/escrito no Brasil e demonstrar como a música<br />
popular brasileira, por se aproximar da nossa realidade, contribuiu e,<br />
até hoje, contribui para o registro da língua na forma como é falada/<br />
escrita no país.<br />
Para essas reflexões serão utilizadas as contribuições, principalmente,<br />
de Azeredo (2008), Cunha (1977) e Faraco (2008). Fontes<br />
como Bechara (2000), Sant’Anna (2004), entre outros, também referenciaram<br />
as reflexões e análises.<br />
2. Abrasileirar ou não? Eis a questão.<br />
Com a independência, o Brasil deu início ao processo de estruturação<br />
da sociedade e isso incluiu várias ações, como a criação<br />
de instituições educativas, dentre elas, o Colégio Pedro II com seus<br />
programas de ensino que incluíam o ensino da língua. Atrelado a isso,<br />
iniciou-se também a produção de instrumentos linguísticos como
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
594<br />
gramáticas, dicionários e antologias. Evidentemente, tais fatos também<br />
fizeram emergir o debate em torno das diferenças entre o português<br />
de Portugal e o português do Brasil, como relata Faraco (2008,<br />
p. 112): “O caminhar da carruagem vai constituindo, desde a Independência,<br />
dois grupos distintos: um conservador, purista; e outro,<br />
defensor da absorção, na escrita, de características próprias do modo<br />
brasileiro culto de falar a língua.”<br />
Azeredo (2008, p. 538) também registra a polêmica em torno<br />
da proposta do abrasileiramento da língua.<br />
A sorte da língua portuguesa na boca e na pena dos brasileiros tem<br />
sido, desde as primeiras décadas do século XIX, tema de controvérsia e<br />
debates entre dois grupos: tradicionalistas e progressistas. Estes geralmente<br />
defendendo o direito à inovação e à diferença, aqueles condenando<br />
uma e outra coisa em nome do que consideram uma prerrogativa dos<br />
mais antigos e verdadeiros donos da língua.<br />
Os puristas encontravam adeptos à proposta de conservação,<br />
como José Honório Rodrigues e Cândido de Figueiredo, com sua coluna<br />
no Jornal do Comércio do Rio de Janeiro, intitulada “o que se<br />
não deve dizer”. Joaquim Nabuco também acreditava na superioridade<br />
da raça portuguesa e defendia a conservação e uniformidade da<br />
língua no padrão português, como registra Faraco (2008, p. 113, apud<br />
PINTO, 1978, p. 197)<br />
A raça portuguesa, entretanto, como raça pura, tem maior resistência<br />
e guarda assim melhor o seu idioma: para essa uniformidade de língua<br />
escrita devemos tender. Devemos opor um embaraço à deformação que é<br />
mais rápida entre nós: devemos reconhecer que eles são os donos das<br />
fontes, que as nossas empobrecem mais depressa e que é preciso renoválas<br />
indo a eles.<br />
Do outro lado, brasileiros como Gonçalves Dias e José de Alencar<br />
defendiam que o abrasileiramento do português era uma necessidade.<br />
Para garantir essa tese, os escritores utilizavam dois argumentos:<br />
as necessidades expressivas dos artistas e a recepção da literatura<br />
pelo povo, como dizia Alencar: “Nós, os escritores nacionais,<br />
se quisermos ser entendidos de nosso povo, havemos de falarlhe<br />
em sua língua, com os termos ou locuções que ele entende, e que<br />
lhes traduz os usos e sentimentos” (FARACO 2008, p. 115, apud<br />
PINTO, 1978, p. 123).
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
595<br />
Vale ressaltar que a inovação proposta por eles não era uma<br />
nova língua brasileira. Essa causa lutava apenas contra a inflexibilidade<br />
dos puristas como registra Cunha (1977, p. 25).<br />
A bem dizer, toda a questão da “língua brasileira” se resume, ainda<br />
hoje, na luta contra as regras inflexíveis dos puristas, dos gramáticos retrógrados,<br />
sempre contrários a inovações e defensores de um desarticulado<br />
sistema idiomático, simples mosaico de formas e construções colhidas<br />
em épocas diversas do passado literário.<br />
Como vemos, esse debate discute o limite entre a conservação<br />
do lusitanismo e a inovação, e persiste até os dias atuais, embora estejamos<br />
muito mais próximos da consciência da legitimação dos usos<br />
do português do Brasil.<br />
3. A norma é normal?<br />
Sabemos que nenhuma língua é homogênea, a não ser nas representações<br />
imaginárias de uma cultura e nas concepções políticas<br />
de uma sociedade. Ela é heterogênea porque é “um conjunto de variedades<br />
reconhecidas histórica, política e culturalmente como manifestação<br />
de uma mesma língua por seus falantes”. (FARACO, 2008,<br />
p. 34).<br />
Nesse contexto, também se faz necessário recuperar o conceito<br />
de norma, formulado pelo linguista Eugênio Coseriu, na década de<br />
50, entendendo-o como cada um dos diferentes modos sociais de realizar<br />
os grandes esquemas de relações do sistema da língua.<br />
Segundo Faraco (2008, p. 37)<br />
É possível, conceituar tecnicamente norma como determinado conjunto<br />
de fenômenos lingüísticos (fonológicos, morfológicos, sintáticos e<br />
lexicais) que são correntes, costumeiros, habituais numa dada comunidade<br />
de fala. Norma nesse sentido se identifica com normalidade, ou seja,<br />
com o que é corriqueiro, usual, habitual, recorrente (“normal”) numa certa<br />
comunidade de fala.<br />
Na abordagem sobre o tema, o autor (2008, p. 73) classifica<br />
três normas para o português no Brasil:<br />
· Norma culta/comum/standard – conjunto de fenômenos linguísticos<br />
que ocorrem habitualmente no uso dos falantes letrados em situações<br />
monitoradas de fala e escrita. É a expressão viva de certos<br />
segmentos sociais em determinadas situações.
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596<br />
· Norma padrão – construto sócio-histórico que serve de referência<br />
para estimular um processo de uniformização. É uma codificação relativamente<br />
abstrata, uma baliza extraída do uso rela para servir de<br />
referência, em sociedades marcadas por acentuada dialetação, a projetos<br />
políticos de uniformização linguística. O autor defende que não<br />
precisamos de uma norma-padrão para a pronúncia, pois é desnecessária<br />
e inconveniente, entretanto é óbvio que necessitamos de uma<br />
grafia-padrão.<br />
· Norma gramatical – segundo o autor, nossos melhores gramáticos<br />
da segunda metade do século XX flexibilizaram os juízos normativos,<br />
quebrando a rigidez da tradição imposta no século XIX. Para<br />
ele, “nossas gramáticas atuais estão assim, num meio termo, entre<br />
‘os excessos caprichosos’ da norma-padrão e as descrições sistemáticas<br />
da norma culta/comum /standard”.<br />
Azeredo (2008, p. 549-552) descreve dezesseis aspectos que<br />
distinguem o português de Portugal do português do Brasil.<br />
São eles:<br />
· A construção do ser/ficar etc. + gerúndio: ficavam conversando;<br />
· A preferência pela colocação proclítica dos pronomes átonos: me<br />
solta;<br />
· O uso do ele e respectivas variações como complemento direto do<br />
verbo: guardei ele;<br />
· A tendência para a eliminação das estruturas proparoxítonas: cosca<br />
(por cócegas);<br />
· A dupla negação: não quero não;<br />
· O uso do presente do indicativo nas frases imperativas: pega outro<br />
pedaço de bolo;<br />
· A redução do sistema de pessoa do verbo à oposição entre duas formas<br />
– uma para a pessoa que fala e outra para as demais pessoas: eu<br />
planto X tu/você/ele/nós planta;<br />
· O uso de a gente como expressão genérica ou indeterminadora da<br />
pessoa do discurso que inclui o enunciador: a gente quase não sai de<br />
casa;<br />
· O uso do em para reger o complemento verbal que designa o limite<br />
de um movimento: foi na cidade;<br />
· O uso da forma pronominal tu com o verbo na terceira pessoa: tu<br />
sabe onde fica o cinema?;
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597<br />
· A mistura de formas relativas a você e tu: se ela te convidar, você<br />
aceita?;<br />
· O uso do lhe como objeto direto: não lhe vi na festa.;<br />
· O uso do sujeito pronominal redundante: nós dissemos;<br />
· Certas construções de relativização: “Conheço um rapaz que o pai é<br />
marceneiro” e “A casa que eu moro é antiga”;<br />
· Substituição de determinados clíticos pronominais: “Ela prendia o<br />
cachorro, mas à noite deixava ele solto no quintal”;<br />
· Determinados usos do pronome possessivo: “Você sabia que hoje é<br />
aniversário do seu/teu irmão?” “Onde estão seus pais?” (para um<br />
interlocutor no singular) e “Onde estão os pais de vocês?”(para<br />
mais de um interlocutor).<br />
Considerando os aspectos descritos por Azeredo, este artigo<br />
se propõe a demonstrar como as letras da MPB contribuíram e, até<br />
hoje, contribuem para o registro da norma culta/comum/standard. Para<br />
a análise, foram selecionadas sete trechos de letras de músicas que<br />
utilizam os aspectos descritos pelo autor.<br />
É importante registrar que a letra da música tem características<br />
comuns à oralidade, pois, normalmente, é memorizada para ser<br />
cantada, acompanhada por algum instrumento. Esse aspecto faz com<br />
que, habitualmente, os compositores optem por marcas linguísticas<br />
coloquiais, próprias do falar, entretanto, o produto escrito não deixa<br />
de ser um importante objeto linguístico para o estudo da realidade<br />
brasileira, principalmente, a partir da década de 60, com as canções<br />
de protesto social, como defende Sant’Anna (2004, p. 13)<br />
Toda essa evolução marca, no entanto, uma crescente transformação<br />
da música popular brasileira num fenômeno não apenas sonoro, mas num<br />
produto escrito. O que era apenas voz tanto na música quanto na poesia,<br />
se converte em grafia marcando o ponto máximo desses movimentos de<br />
equivalência e identidade. Por isso, críticos e professores universitários<br />
começam a se interessar pela letra da música popular, surgindo daí uma<br />
ensaística a ela dedicada que não é apenas o texto jornalístico das crônicas<br />
de ontem ou das necessárias histórias da música popular.<br />
4. Análise do corpus<br />
Para a análise, serão utilizados como referência os aspectos<br />
apresentados por Azeredo, descritos acima.
O meu guri – Chico Buarque - 1981<br />
Chega no morro com o carregamento<br />
Pulseira, cimento, relógio, pneu, gravador<br />
Rezo até ele chegar no alto<br />
Essa onda de assalto tá um horror<br />
Eu consolo ele, ele me consola<br />
Boto ele no colo pra ele me ninar<br />
De repente acordo, olho pro lado<br />
E o danado já foi trabalhar, olha aí<br />
Olha aí, ai o meu guri<br />
Olha aí, é o meu guri<br />
E ele chega<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
598<br />
Nesse trecho da música de Chico Buarque, encontramos um<br />
dos aspectos citados por Azeredo como característica do português<br />
do Brasil: o uso do pronome pessoal ele como complemento direto<br />
do verbo em “eu consolo ele” e “boto ele”. Outro aspecto descrito<br />
por Azeredo é o uso da preposição em para reger o complemento<br />
verbal que designa o limite de um movimento em “chega no morro”<br />
e “chegar no alto”.<br />
Castigo<br />
A gente briga<br />
Diz tanta coisa que não quer dizer<br />
Briga pensando que não vai sofrer<br />
Que não faz mal se tudo terminar<br />
Um belo dia<br />
A gente entende que ficou sozinho<br />
Vem a vontade de chorar baixinho<br />
Vem o desejo triste de voltar.<br />
(...)<br />
Azeredo também aponta o uso de a gente como expressão genérica<br />
ou indeterminadora da pessoa do discurso que inclui o enunciador,<br />
encontrada na letra dessa música de Tom Jobim e Dolores Duran,<br />
sucesso da década de 50.<br />
Roda Viva – Chico Buarque - 1967<br />
Tem dias que a gente se sente<br />
Como quem partiu ou morreu<br />
A gente estancou de repente<br />
Ou foi o mundo então que cresceu<br />
A gente quer ter voz ativa<br />
No nosso destino mandar<br />
Mas eis que chega a roda viva
E carrega o destino pra lá.<br />
(...)<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
599<br />
Nessa música de Chico, encontramos, mais uma vez, o uso de<br />
a gente como expressão genérica ou indeterminadora da pessoa que<br />
inclui o enunciador. Também encontramos o verbo ter no lugar de<br />
haver, uma forma muito utilizada no cotidiano dos brasileiros, embora<br />
não recomendado pelas gramáticas normativas.<br />
Olé, olá – Chico Buarque - 1965<br />
(...)<br />
Não chore ainda não, que eu tenho uma razão<br />
Pra você não chorar<br />
Amiga, me perdoa, se eu insisto à toa<br />
Mas a vida é boa para quem cantar<br />
Meu pinho, toca forte que é pra todo mundo acordar<br />
Não fale da vida, nem fale da morte<br />
Tem dó da menina, não deixa chorar<br />
Olê, olê, olê, olá<br />
Nessa canção de Chico, encontramos mais três aspectos apontados<br />
por Azeredo: a dupla negação em “não chore ainda não” e o<br />
uso do presente do indicativo nas frases imperativas: “amiga, me<br />
perdoa”“meu pinho, toca forte” e “tem dó da menina, não deixa<br />
chorar”. Observa-se também que, embora o compositor utilize a<br />
forma pronominal você, há alguns verbos conjugados na 2ª pessoa do<br />
singular, que também é característico do português do Brasil.<br />
Blues do Elevador – Zeca Baleiro<br />
(...)<br />
mas hoje eu só quero chorar<br />
como um poeta do passado<br />
e fumar o meu cigarro<br />
na falta de absinto<br />
eu sinto tanto eu sinto muito<br />
eu nada sinto<br />
como dizia Madalena<br />
replicando os fariseus<br />
quem dá aos pobres e empresta,<br />
adeus<br />
Nessa letra do compositor maranhense Zeca Baleiro, encontramos<br />
mais um aspecto apontado por Azeredo: o sujeito pronominal<br />
redundante em “eu sinto tanto”, “eu sinto muito”, “eu nada sinto”.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
600<br />
Segundo o autor, embora as gramáticas normativas recomendem a<br />
supressão do pronome nesse caso, “o português do Brasil, mesmo em<br />
sua variedade culta, está dando ampla preferência ao resgate do sujeito,<br />
ao contrário do que se passa em Portugal” (AZEREDO, 2008,<br />
p. 550).<br />
Travessia – Milton Nascimento – 1967<br />
(...)<br />
Vou seguindo meu caminho<br />
Me esquecendo de você<br />
Eu não quero mais a morte<br />
Tenho muito que viver<br />
Vou querer amar de novo<br />
E se não der não vou sofrer<br />
Já não sonho<br />
Hoje faço<br />
Com meu braço o meu viver<br />
Nessa canção de Milton Nascimento, encontramos três aspectos<br />
apontados por Azeredo. No primeiro verso, aparece a construção<br />
ir + gerúndio em “vou seguindo meu caminho”; no segundo verso,<br />
aparece a colocação proclítica do pronome átono me em “me esquecendo<br />
de você”; e no terceiro verso, aparece novamente o sujeito<br />
pronominal redundante em “eu não quero mais a morte”.<br />
Inútil – Roger Moreira<br />
A gente não sabemos escolher presidente<br />
A gente não sabemos tomar conta da gente<br />
A gente não sabemos nem escovar os dentes<br />
Tem gringo pensando que nós é indigente<br />
A gente somos inútil.<br />
Nesse fragmento da irreverente letra de Roger Moreira, integrante<br />
do grupo de rock Ultraje a Rigor, sucesso da década de 80,<br />
encontramos novamente a expressão a gente como apontado por Azeredo.<br />
Observa-se também o verbo no plural, em desacordo com a<br />
recomendação da gramática normativa. Vale ressaltar que, nessa letra,<br />
há uma intenção discursiva para esse uso, pois, nesse período, o<br />
país enfrentava dificuldades políticas e sociais (processo de abertura<br />
política com voto direto, baixo nível educacional, dívida externa,...)<br />
que passavam uma imagem negativa do Brasil no exterior. Construções<br />
do tipo “a gente fomos” ou “nós foi”, durante muito tempo, re-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
601<br />
presentaram a fala do brasileiro que não tinha acesso à educação e<br />
que, portanto, não utilizava a norma culta. Dessa forma, a escolha<br />
pela forma “a gente não sabemos” é intencional, utilizada para satirizar<br />
a falta de políticas públicas destinadas à educação, a passividade<br />
do povo brasileiro e as consequências advindas dessa realidade.<br />
5. Conclusão<br />
Neste trabalho observamos como é importante levantar os aspectos<br />
históricos relacionados ao português do Brasil e como o país<br />
construiu e ainda constrói sua identidade e legitima seu modo de falar<br />
e escrever. Para isso, é necessário identificar características próprias<br />
do povo brasileiro e reconhecer o que herdamos dos outros povos/raças<br />
que participaram da nossa história. Nesse contexto, a MPB<br />
contribuiu e continua a contribuir para o registro do português falado<br />
e escrito aqui, pois como comprovado, as características peculiares<br />
do nosso idioma são utilizadas com frequência pelos compositores<br />
brasileiros.<br />
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
AZEREDO, José Carlos de. Gramática Houaiss da língua portuguesa.<br />
São Paulo: Publifolha, 2008.<br />
BECHARA, Evanildo. Moderna gramática portuguesa. 37. ed. Rio<br />
de Janeiro: Lucerna, 2000.<br />
CUNHA, Celso. Língua portuguesa e realidade brasileira. Rio de<br />
Janeiro: Tempo Brasileiro, 1977.<br />
FARACO, Carlos Alberto. Norma culta brasileira: desatando alguns<br />
nós. São Paulo: Parábola, 2008.<br />
HENRIQUES, Claudio César & SIMÕES, Darcilia Marindir P.<br />
(Orgs.) A redação de trabalhos acadêmicos: teoria e prática. Rio de<br />
Janeiro: EdUERJ, 2002.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
602<br />
QUEIROZ, Raquel. 100 crônicas escolhidas. Rio de Janeiro: José<br />
Olympio, 1958.<br />
SANT’ANNA, Affonso Romano de. Música popular e moderna poesia<br />
brasileira. São Paulo: Landmark, 2004.<br />
TELLES, Tereza. Chico Buarque na sala de aula: leitura, interpretação<br />
e produção de textos. Petrópolis: Vozes, 2009.
ASPECTOS SINTÁTICOS DO LATIM TARDIO- O CASO DO<br />
DISCURSO ADUERSUS IUDAEOS, DE TERTULIANO<br />
1. Introdução<br />
Renata Pereira Bastos (UFJF)<br />
renatapbastos@ig.com.br<br />
Luís Carlos Carpinetti (UFJF)<br />
luclicarpinetti@uol.com.br<br />
Quintus Septimius Florens Tertullianus, por nós conhecido<br />
como simplesmente Tertuliano, nasceu por volta de 160 d. C. em<br />
Cartago, filho de um centurião proconsular romano, gentio. Recebeu<br />
uma sólida instrução intelectual, jurídica e retórica. Dos escritores<br />
eclesiásticos latinos é um dos mais originais. Sua retórica joga com<br />
todo registro de indignação patética, de ironia espirituosa e habilidade<br />
jurídica. Morreu depois de 220, em Cartago, onde nascera. Na obra<br />
Aduersus Iudaeos, o autor tem o intuito de mostrar que a lei veterotestamentária<br />
foi válida somente até a vinda de Jesus Cristo, o novo<br />
legislador, prenunciado pelos profetas e que também os gentios<br />
participam da graça de Deus.<br />
Neste trabalho nosso foco não será os aspectos dogmáticos ou<br />
teológicos que este texto de Tertuliano possa conter, mas sim os aspectos<br />
gramaticais e literários deste importante tratado retórico de<br />
Tertuliano. Também estamos apresentando o resultado de uma análise<br />
que fizemos do texto em questão, como participação no projeto de<br />
iniciação científica intitulado "A construção da irrealidade na argumentação<br />
de arengas judiciárias da latinidade clássica". 1<br />
2. Aspectos sintáticos do discurso Aduersus Iudaeos, de<br />
Tertuliano<br />
Nesta sessão, apresentaremos as principais ocorrências sintáticas<br />
que representem discrepâncias com relação ao que prescreve a<br />
1 Projeto orientado pelo Prof. Dr. Luís Carlos Lima Carpinetti, da área de Língua e Literatura<br />
Latinas, do Departamento de Letras, da Faculdade de Letras, da UFJF.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
604<br />
norma clássica, dos quais os autores da época clássica são os modelos,<br />
e que as gramáticas de língua latina propõem como padrão a ser<br />
adotado ou, pelo menos, aprendido. Os exemplos citados representam<br />
ocorrências que podem se repetir várias vezes no texto ou, às<br />
vezes, representam situações únicas.<br />
Observamos que a citação bíblica funciona como complemento<br />
do uerba dicendi dico, ou outros, e seria uma novidade em relação<br />
à prática da época clássica que modificava o texto em sua estrutura<br />
sintática para constituir uma oração infinitiva, complemento de um<br />
uerbum dicendi. Agora, a citação bíblica é tomada tal e qual acontece<br />
no seu texto de origem e entra, como citação e complemento de<br />
um uerbum dicendi, sem sofrer qualquer modificação em sua estrutura<br />
sintática.<br />
Dari enim habebat circumcisio, sed in signum unde Israel in nouissimo<br />
tempore dinosci haberet, quando secundum sua merita in sanctam<br />
ciuitatem ingredi prohiberetur — secundum uerba prophetarum dicentium:<br />
Terra uestra deserta, ciuitates uestrae igni exustae, regionem uestram<br />
in conspectu uestro extranei comedent, et deserta et subuersa a populis<br />
extraneis derelinquetur filia Sion, sicut casa in uinea et sicut custodiarium<br />
in cucumerario et quasi ciuitas quae expugnatur.<br />
A circuncisão era apenas um sinal característico, que serviria para<br />
fazer reconhecer Israel no fim dos tempos, quando lhe seria proibido entrar<br />
na cidade santa por causa de seus crimes, segundo as palavras dos<br />
profetas que dizem: Vossa terra será deserta, vossas cidades serão tomadas<br />
pelo fogo, estrangeiros devorarão vossa pátria sob vossos olhos. Ela<br />
será desolada como o campo que o inimigo devastou. A filha de Sião foi<br />
abandonada como a tenda depois da estação dos frutos, como uma cabana<br />
em um campo de pepinos, como uma cidade arruinada. (AI, III, 4). 2<br />
A oração a seguir contém o advérbio unde, que seria um<br />
complemento de lugar indicando origem. No texto citado abaixo, ele<br />
recupera as citações bíblicas das profecias de Jeremias que recomenda<br />
uma circuncisão espiritual, além da circuncisão carnal, como aquela<br />
circuncisão após a saída do Egito. Por esse advérbio, o autor<br />
remete o leitor ao texto citado do profeta Jeremias e, como seria um<br />
advérbio que indica origem, serve para introduzir uma consequência<br />
2 Tertuliano, Aduersus Iudaeos, III, 4. Essa referência é a encontramos na edição eletrônica do<br />
texto de Tertuliano, no site www.thelatinlibrary.com. Nas demais citações deste texto, indicaremos<br />
o mesmo segundo essa edição.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
605<br />
ou conclusão, sacada do texto de Jeremias. Assim acontece neste<br />
fragmento que ora citamos:<br />
Unde intellegimus et priorem circumcisionem tunc datam cessaturam<br />
et nouam legem, non talem qualem iam dederat patribus, processuram<br />
adnuntiari, sicut Esaias praedicabat dicens, quod in nouissimis diebus<br />
manifestus futurus esset mons domini et domus dei super uertices<br />
montium.<br />
Donde entendemos que a primeira circuncisão que tinha sido dada,<br />
devia cessar para dar lugar a uma lei nova, diferente da que tinha sido<br />
dada a seus pais. Assim o tinha assinalado antecipadamente o profeta<br />
Isaías. Por volta dos últimos tempos, a montanha em que habita o Senhor<br />
será conhecida, e a casa de Deus será elevada acima das colinas, sobre o<br />
cimo das montanhas. (AI, III, 8)<br />
O exemplo a seguir traz uma oração que se encerra com um<br />
só verbo (cessaret) e que tem dois elementos de introdução: quod e<br />
quando. Pela tradução que apresentamos, fica patente que o autor<br />
justapôs as duas partículas com as quais introduziu as orações:<br />
Manifestum est itaque non aeternum sed temporale fuisse praeceptum<br />
quod quandoque cessaret.<br />
É, pois, manifesto que não foi eterno, mas temporal o preceito o qual<br />
cessasse e quando cessasse. (AI, IV, 7)<br />
O verbo ostenduntur aparece como uma espécie de depoente,<br />
no qual a conjugação passiva não corresponde ao sentido que esse<br />
verbo apresenta na frase. Provavelmente, a conjugação depoente dá<br />
conta de uma passagem de ostendo à classe de verbo depoente.<br />
Cui etenim tenet dexteram pater deus nisi Christo filio suo, quem et<br />
exaudierunt omnes gentes, id est cui omnes gentes crediderunt, cuius et<br />
praedicatores apostoli in psalmis Dauid ostenduntur: "In uniuersam, inquit,<br />
terram exiuit sonus eorum et ad terminos terrae uerba eorum"?<br />
A quem Deus Pai toma pela mão senão Jesus Cristo seu Filho, o<br />
qual todas as nações escutaram, isto é, no qual creram todas as nações e<br />
do qual o Salmista nos designa assim, os apóstolos encarregados de pregar<br />
seu nome: "Sua palavra se espalhou em todo o universo, ela ressoou<br />
até às extremidades da terra"? (CI, VII, 3).<br />
Pela construção desta frase, a conjunção causal quoniam assume<br />
valor de advérbio interrogativo. O quoniam, pela tradução inglesa<br />
é um advérbio interrogativo (how). Na tradução francesa, o<br />
tradutor optou por construir uma oração com um gerúndio. A tradu-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
606<br />
ção inglesa parece ser mais de acordo com a observação que fizemos<br />
do fragmento.<br />
Sic igitur de eo Daniel praedicauit, ut quando et quo in tempore<br />
gentes esset liberaturus ostenderet et quoniam post passionem ipsa<br />
ciuitas exterminari haberet.<br />
In such wise, therefore, did Daniel predict concerning Him, as to<br />
show both when and in what time He was to set the nations free; and<br />
how, after the passion of the Christ, that city had to be exterminated. 3<br />
Tal é, pois, a natureza da profecia de Daniel sobre Jesus Cristo, que<br />
ele anunciou em que tempo e em que época ele devia libertar as nações,<br />
e como, depois da paixão de Cristo, a cidade devia ser arruinada. (CI,<br />
VIII, 3).<br />
A oração interrogativa subordinada com verbo no indicativo<br />
se dá porque, pela própria questão semântica de seu conteúdo que,<br />
por se tratar de uma predição, encerra uma certeza acerca do que é<br />
predito, nesse caso as setenta semanas vindouras, o uso do indicativo<br />
encontra sua justificativa de emprego para expressar certeza. Assim,<br />
o uso do indicativo atende a uma questão aspectual que as gramáticas<br />
latinas atribuem ao uso do indicativo.<br />
Animaduertamus igitur, terminum quomodo in uero praedicit LXX<br />
ebdomadas futuras; in quibus si reciperent eum, "aedificabitur in latitudinem<br />
et longitudinem et innouabuntur tempora".<br />
Observemos, pois, o término fixado pelo profeta, e com que justeza<br />
ele predisse que as setenta semanas se escoariam, depois das quais, "eles<br />
seriam edificados em latitude e longitude, e os tempos seriam renovados",<br />
se eles recebessem Jesus Cristo". (CI, VIII, 7).<br />
Quia é uma conjunção causal, mas no trecho abaixo aparece<br />
como partícula introdutória de uma oração integrante com verbo no<br />
subjuntivo (praemittat) e que se apresenta como oração complemento<br />
do particípio presente animaduertentes. Assim entendemos, pois a<br />
predicação de animaduerto prevê que lhe seja atribuído um complemento<br />
e que, estando a oração introduzida por quia em contiguidade<br />
com o particípio desse verbo, é lógico que pensemos que a oração introduzida<br />
por quia seja esse complemento.<br />
Aeque sono nominis inducuntur, cum uirtutem Damasci et spolia<br />
Samariae et regnum Assyriorum sic accipiunt, quasi bellatorem porten-<br />
3 De acordo com a tradução do site New Advent: http://www.newadvent.org/fathers/0308.htm
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
607<br />
dant Christum, non animaduertentes quia scriptura praemittat: "Quoniam<br />
priusquam cognoscat puer uocare patrem aut matrem accipiet uirtutem<br />
Damasci et spolia Samariae aduersus regem Assyriorum".<br />
[Os judeus] se deixam ainda abusar pelas palavras, quando nesta<br />
"potência de Damasco que Jesus Cristo deve destruir, nestes despojos de<br />
Samaria que ele carrega diante do rei da Assíria" eles teimam em ver os<br />
presságios de um Cristo conquistador, sem prestar atenção às declarações<br />
que a Escritura anteponha. "Antes que a criança saiba chamar pelo nome<br />
seu pai e sua mãe, ele destruirá a potência de Damasco e ele carregará os<br />
despojos de Samaria diante do rei dos assírios".<br />
O trecho introduzido por quod aparece traduzido como se se<br />
tratasse de um pronome relativo neutro, mas se assim o for, o que<br />
poderia ser apontado como antecedente? Virga é feminino, radix, idem.<br />
Se, ao contrário, for uma conjunção causal, descaracteriza-se<br />
como causa, já que se configura como oração relativa. Diante disso,<br />
isto é, não sendo oração causal e não se sustentando como oração relativa,<br />
segundo os padrões da gramática do latim clássico, somos levados<br />
a pensar que este quod ou é uma conjunção causal mesmo, já<br />
que não pode ser pronome relativo, pois o contexto não comporta tal<br />
categoria, ou ele é um pronome relativo que já sofreu uma mutação<br />
morfológica e não tem o mesmo funcionamento sintático que os pronomes<br />
qui, quae, quod. Mas isto também o restante do texto não traz<br />
outros exemplos semelhantes.<br />
O trecho é o seguinte:<br />
Et nascetur, inquit, uirga de radice Iesse, quod est Maria, et flos de<br />
radice ascendet...<br />
Un rejeton naîtra de la tige de Jessé, "c'est-à-dire de Marie", et une<br />
fleur s'élèvera de ses racines... 4<br />
Um rebento nascerá do tronco de Jessé, que é Maria e uma flor se<br />
elevará de suas raízes. (CI, IX, 26).<br />
Atrocitas é um caso de catáfora. No caso, o pronome relativo<br />
não se identifica com antecedentes como manus (fem. pl.) e pedes<br />
(masc. pl.) e sim com atrocitas (fem. sing.).<br />
Si adhuc quaeris dominicae crucis praedicationes, satis iam poterit<br />
tibi facere uicesimus primus psalmus totam Christi continens passionem<br />
4 Conforme tradução encontrada no site:<br />
http://www.tertullian.org/french/g3_02_adversus_judaeos.htm
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
608<br />
canentis iam tunc gloriam suam: Foderunt, inquit, manus meas et pedes,<br />
quae propria est atrocitas crucis.<br />
Se tu buscas outras provas de que a cruz de Nosso Senhor foi predita,<br />
abra o Salmo 21, onde está contida a paixão de Cristo, que canta assim<br />
antecipadamente toda a sua glória: “eles perfuraram meus pés e minhas<br />
mãos”, o qual é peculiar o suplício da cruz. (CI, X, 13).<br />
Em torno de intellegatur temos uma estrutura de nominativo<br />
com infinitivo e uma de acusativo com infinitivo, sendo que a estrutura<br />
de nominativo com infinitivo é própria quando usada com o<br />
verbo na voz passiva, como intellegatur. Já a estrutura de acusativo<br />
com infinitivo supõe a ideia de intellego, verbo na voz ativa, o qual<br />
não aparece expresso, apoiando-se a estrutura de acusativo com infinitivo<br />
em intellegatur. Depois de nec, deveria vir expresso o verbo<br />
intellegant.<br />
Nunc si omnes istas interpretationes respuerit et inriserit duritia cordis<br />
uestri, probabimus sufficere posse mortem Christi prophetatam, ut ex<br />
hoc quod non esset edicta qualis mors intellegatur per crucem euenisse<br />
nec alii deputandam fuisse passionem crucis quam cuius mors praedicabatur.<br />
Agora se a dureza de vosso coração rejeita essas explicações e se escarnece,<br />
basta-me, nós o provamos, que a morte de Jesus Cristo tenha sido<br />
predita, para que eu esteja em direito de concluir que ela se consumou<br />
pelo suplício da cruz, ainda que a Escritura tenha mantido silêncio sobre<br />
este tipo de morte e que eu não possa atribuir a morte da cruz senão àquele<br />
cuja morte estava anunciada. (CI, X, 14)<br />
A citação bíblica, marcada pela coordenação, contém uma estrutura<br />
rítmica que, a princípio não tem uma valorização dentro desse<br />
texto, apesar de ser possível observá-la. Santo Agostinho, em sua obra<br />
De doctrina christiana 5 lembra que o próprio texto da Bíblia<br />
contém o modelo retórico próprio e, nesse sentido, valoriza a estruturação<br />
rítmica e a estrutura paralelística presente nas narrativas bíblicas<br />
ou em outros gêneros de textos. Tertuliano recorre à Bíblia como<br />
fonte de provas passíveis de combater os absurdos presentes na linguagem<br />
bíblica e defende a prevalência dos textos do Novo Testamento<br />
sobre os do Antigo Testamento, como os profetas, os livros do<br />
Pentateuco e os escritos históricos.<br />
5 Conforme se pode ler na Dissertação de Mestrado de Fabrício Klain Cristofoletti, defendida<br />
em 31 de maio de 2010, na FFLCH-USP
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
609<br />
Huius autem signi sacramentum, uariis modis praedicatum, est in<br />
quo uita hominibus praestruebatur, in quod Iudaei non essent credituri,<br />
sicut Moyses ante nuntiabat in Exodo dicens: Eiciemini de terra in qua<br />
introibitis, / et in nationibus illis non eritis in requiem, / et erit instabilitas<br />
uestigii pedis tui, / et dabit tibi deus cor taedians / et tabescentem animam<br />
et oculos deficientes ut non uideant, / et erit uita tua pendens in<br />
ligno ante oculos tuos, / et non credes uitae tuae. 6<br />
O sacramento deste sinal misterioso, que preludiava antecipadamente<br />
à vida dos homens, e no qual os judeus não deviam crer, foi anunciado<br />
por vários símbolos. Moisés o designava ainda no Êxodo, quando dizia:<br />
"O Senhor vos expulsará da terra na qual vós entrareis. Dispersados entre<br />
as nações, vós não encontrareis aí nenhum repouso; vós não tereis somente<br />
onde repousar a planta de vossos pés. Pois o Senhor vos dará um<br />
coração trêmulo, olhos lânguidos e uma alma devorada de dores. Vossa<br />
vida estará como suspensa diante de vós, e vós não acreditareis em nada<br />
em vossa vida". (CI, XI, 9).<br />
Registramos o aparecimento do emprego da preposição de<br />
como expressão de instrumento, fato não consignado na norma clássica<br />
pelas gramáticas consultadas.<br />
Si autem iam nec unctio est illic, ut Daniel prophetauit – dicit enim<br />
exterminabitur –, ergo iam non est illic unctio, quia nec templum ubi erat<br />
cornu de quo reges unguebantur.<br />
Ora, se a unção não estiver mais com eles, assim como te profetizou<br />
Daniel com essas palavras: "A unção será destruída", não há, pois, mais<br />
unção entre vós, visto que eles não têm mais nem o templo onde estava o<br />
chifre com o qual os reis eram ungidos. (CI, XIII, 6).<br />
Está havendo intromissão da oralidade, dialogismo e isto se<br />
observa nas orações adverbiais soltas e um afrouxamento da coesão<br />
textual, ou seja, uma quebra da estrutura estritamente hierarquizada<br />
de orações encadeadas por orações principais e suas subordinadas<br />
devidamente encaixadas. Este tipo de ocorrência dificilmente aconteceria<br />
em uma arenga judiciária de Cícero.<br />
A qua fide Israel excidit secundum Hieremiam prophetam dicentem:<br />
Mittite, interrogate nimis, si facta sunt talia, si mutabunt gentes deos suos<br />
et isti non sunt dii; populus autem meus mutauit gloriam suam, ex quo<br />
6 A marcação da citação latina da Escritura com barras serve para demonstrar a marcação rítmica<br />
de que falamos.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
610<br />
nihil proderit eis; expauit caelum super isto. Et quando expauit? Indubitate<br />
quando passus est Christus. 7<br />
E nós recobramos a vida por esta mesma fé que Israel repudiou, seguindo<br />
esta mesma palavra de Jeremias: "Enviai ao longe e interrogai<br />
com cuidado: houve alguma vez algo semelhante? As nações mudaram<br />
seus deuses, vãos simulacros? E meu povo mudou sua glória por um ídolo!<br />
O céu estremeceu de espanto". Quando o céu pôde estremecer de espanto?<br />
Incontestavelmente quando Jesus sofreu. (CI, XIII, 13).<br />
O quod é referente a todas as ações relatadas na frase: é o uso<br />
demonstrativo do pronome:<br />
alios enim lapidauerunt, alios fugauerunt, plures uero ad necem tradiderunt,<br />
quod negare non possunt.<br />
Os judeus, com efeito, lapidaram a uns, baniram a outros, imolaram a<br />
muitos; eles não poderiam negá-lo. (CI, XIII, 20).<br />
Aqui terminamos a nossa amostragem que nos propusemos<br />
fazer. Seria apenas importante lembrar que, como amostragem, supõe<br />
que os fatos apontados ocorram mais vezes ao longo de todo o<br />
texto.<br />
3. Conclusão<br />
Os casos que trouxemos para este artigo são resultantes de um<br />
levantamento realizado no âmbito do projeto de pesquisa citado.<br />
Ressaltamos o que encontramos como diferenças com relação à<br />
norma clássica ou os modelos retóricos consagrados desta época, que<br />
muitas vezes ocupam os exemplos das gramáticas latinas citadas na<br />
bibliografia, mas que têm relevância no sentido em que mostram que<br />
novo modelo retórico e literário está sendo engendrado, e que o modelo<br />
retórico herdado está sendo bombardeado pelo contato com o<br />
texto bíblico, com o surgir de uma nova fase da latinidade e que tudo<br />
isso cria um novo modo de escrever, de citar etc. Observamos também<br />
e procuramos mostrar as alterações que os padrões sintáticos sofreram<br />
e que este texto expõe tais mudanças.<br />
7 O negrito é para marcar a oração adverbial não acoplada a uma oração principal.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
611<br />
ALTANER, B. e STUIBER, A. Patrologia. Vida, obras e doutrina<br />
dos Padres da Igreja. Trad. Monjas Beneditinas. São Paulo: Paulinas,<br />
1988.<br />
CRISTOFOLETTI, F. A noção de eloquência no De doctrina christiana<br />
de Agostinho de Hipona. São Paulo: FFLCH-USP, 2010.<br />
FARIA, E. Gramática superior da língua latina. Rio de Janeiro: Acadêmica,<br />
1959.<br />
LIPPARINI, G. Sintaxe latina. Trad. e adaptação Pe. Alípio R. Santiago<br />
de Oliveira. Petrópolis: Vozes, 1961.<br />
MAURER Jr., T. Gramática do latim vulgar. Rio de Janeiro: Acadêmica,<br />
1959.<br />
MOHRMANN, C. Études sur le latin des chrétiens. Tomes I e II.<br />
Roma: Edizioni di Storia e letteratura, 1961.<br />
TERTULIANO. Aduersus Iudaeos. Disponível em:<br />
.<br />
TERTULIANO. An answer to the Jews. Disponível em:<br />
http://www.newadvent.org/fathers/0308.htm<br />
TERTULIANO. Contre les juifs. Disponível em:<br />
http://www.tertullian.org/french/g3_02_adversus_judaeos.htm
ASPECTOS SINTÁTICOS DO TEXTO DE SÃO JERÔNIMO<br />
CONTRA IOHANNEM HIEROSOLYMITANUM<br />
EPISCOPUM AD PAMMACHIUM<br />
1. Introdução<br />
Ana Luíza Silva de Freitas (UFJF)<br />
analufrei@yahoo.com.br<br />
Luís Carlos Carpinetti (UFJF)<br />
luclicarpinetti@uol.com.br<br />
Neste trabalho refletiremos sobre aspectos sintáticos do texto<br />
de São Jerônimo “Contra João de Jerusalém”. Este tratado, publicado<br />
entre janeiro e março de 397 de nossa era, constitui um libelo contra<br />
o origenismo, mas que expõe ao público a heresia ariana, condenada<br />
havia já 50 anos, a qual o bispo de Jerusalém professava sob as feições<br />
da heresia origenista, ainda objeto de debate, tendo-se originado<br />
esse debate nessa importante diocese, governada então por João, sob<br />
cuja jurisdição vive Jerônimo na cidade de Belém, mas o qual este<br />
não poupa no inflamado libelo.<br />
Particularmente, não nos deteremos nos aspectos dogmáticos<br />
que dominam este texto, em sua discussão heresiológica. Mas sim<br />
como objeto de análise de construção textual, sob o ponto de vista da<br />
sintaxe oracional. Como bolsista de iniciação científica do projeto<br />
“A construção da irrealidade na argumentação de arengas judiciárias<br />
da latinidade clássica” 1 , o texto chama a atenção por suas estruturas<br />
sintáticas, pelo contraste que apresenta com os padrões expostos nas<br />
gramáticas de língua latina que se ocupam, em sua grande parte, de<br />
autores que se situam, no mais tardar, na época clássica ou pósclássica,<br />
mas não na época tardia, como é o caso de São Jerônimo e<br />
de seu tratado polêmico que iremos analisar.<br />
1 Orientado pelo Prof. Dr. Luís Carlos Lima Carpinetti, área de Língua e Literatura<br />
Latinas do Departamento de Letras, da Faculdade de Letras da UFJF.
2. Aspectos sintáticos do texto<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
613<br />
Trabalharemos nessa seção de modo a apresentar o que pudemos<br />
coletar no texto quanto a aspectos sintáticos que mereçam<br />
uma apreciação por representarem situações novas no curso da pesquisa<br />
sobre sintaxe oracional latina e que comentamos esses achados<br />
nesta seção. É importante ressaltar que, na medida em que o texto<br />
reproduz a descrição sintática do latim clássico, descrita na maior<br />
parte das gramáticas de língua latina (que neste trabalho adotaremos<br />
como referência a gramática de Ernesto Faria, 1959), nós admitimos<br />
como ocorrências da língua padrão e que as gramáticas descrevem<br />
como tal e que a ausência de comentários sobre essas ocorrências é<br />
um reconhecimento tácito de que as mesmas se referem a um uso<br />
adotado pela linguagem literária culta, não sendo necessário deternos<br />
nestas situações, senão nas situações que apresentam relevância<br />
para o trabalho de pesquisa que empreendemos. Apresentaremos tópicos<br />
em torno dos fragmentos selecionados no texto com os devidos<br />
comentários.<br />
Primeiramente faremos uma reflexão sobre a correspondência<br />
da oração infinitiva com os complementos em particípio. O trecho<br />
em nota traz uma oração condicional que apresenta um verbum dicendi<br />
o qual tem como complemento dois elementos coordenados<br />
pela conjunção aditiva et: multorum animos perturbatos e et in utramque<br />
partem fluctuare sententiam. A coordenação faz-nos rever<br />
uma hipótese que havíamos construído acerca dos elementos semelhantes<br />
a multorum animos perturbatos que, como complemento de<br />
diceres, constituiria o que o português tem como objeto direto e predicativo<br />
do objeto direto, sem podermos classificá-los como uma oração<br />
infinitiva. Em etapas anteriores deste projeto, nós acrescentávamos<br />
ao texto latino o verbo esse, ao lado dos particípios, especialmente<br />
os particípios passados e futuros, na tentativa de configurar<br />
o texto de forma a reproduzir o modelo da oração infinitiva. Tal procedimento<br />
foi abandonado quando percebemos que o acusativo, acompanhado<br />
de particípio também no acusativo (como complementos<br />
de uerba dicendi, por exemplo) era um procedimento textual<br />
constante e não nos era permitido ficar, de certo modo, corrigindo<br />
sistematicamente aquilo que a constituição do texto insistia em trazer<br />
e, por isso, rendemo-nos às evidências de que a construção sintática<br />
citada era alguma coisa que o próprio português reconhece e pratica.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
614<br />
Nesse caso, abandonamos a pratica de indicar o verbo esse como elipse<br />
e então o exemplo que encontramos em São Jerônimo nesse<br />
texto traz-nos uma luz sobre o que nos ocupava como hipótese ou<br />
como observação latente. A ocorrência dessa coordenação faz-nos<br />
pensar que a oração infinitiva, devidamente configurada com o acusativo<br />
e infinitivo, tem o mesmo valor que o elemento que aparece<br />
em primeiro lugar, uma vez que a coordenação reúne elementos de<br />
mesmo valor sintático. Tal situação, a de “multorum animos perturbatos”,<br />
tratada a princípio como oração infinitiva com elipse do infinitivo<br />
esse agora reaparece e nos leva a concluir que a elipse desse<br />
infinitivo realmente é coisa para se cogitar uma vez que a coordenação<br />
entre os complementos aponta para a igualdade dos valores sintáticos.<br />
Se isto não se verificava entre os autores do período clássico,<br />
pode ser que essa equivalência que verificamos entre esses complementos<br />
seja um dado do latim tardio, ressalvadas as questões relativas<br />
a transmissão dos textos que pode encobrir lapsos ou erros nos<br />
textos que chegaram até nós hoje. Vejamos o fragmento:<br />
Denique nisi ad Apologiam, de qua nunc scribere institui, multorum<br />
animos diceres perturbatos, et in utramque partem fluctuare sententiam,<br />
decreueram in incepto silentio permanere.<br />
Enfim se não dirias perturbados os espíritos de muitos para a Apologia,<br />
sobre a qual comecei agora a escrever, e que o parecer flutua para<br />
uma e outra parte, eu havia decretado permanecer no silêncio inicial.<br />
(CIH, 1) 2<br />
O uso da conjunção etiamsi mais o indicativo contraria a exposição<br />
encontrada na gramática de G. Lipparini 3 , segundo a qual essa<br />
conjunção rege de preferência o subjuntivo para expressar um fato<br />
que se leva em conta apesar da contrariedade do mesmo em relação<br />
aos demais fatos. Acreditamos que, neste caso, o uso do indicativo e<br />
o uso do subjuntivo esteja vinculado à motivação da expressão do<br />
real, do potencial e do irreal e que, quando São Jerônimo utiliza o<br />
2 Contra Iohannem Hierosolymitanum, 1° parágrafo. Adotaremos neste trabalho a sigla<br />
CIH. Para referir-nos ao texto em estudo, seguido no número do parágrafo, conforme<br />
a edição eletrônica desse texto no site: www.thelatinlibrary.com<br />
3 LIPPARINI (1961), à página 228, informa "Etiamsi (se bem que) de preferência rege<br />
o conjuntivo".
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
615<br />
indicativo, esteja aludindo ao aspecto do real ao construir a seguinte<br />
oração concessiva:<br />
Etiam si bene credit, et circumspecte et timide loquitur, suspicionem<br />
mihi facit nimia diligentia.<br />
Se bem que acredita muito e fala com circunspecção e recato, lança<br />
sobre mim uma suspeita com demasiada diligência. (CIH, 2).<br />
É interessante observar no exemplo em nota que a oração que<br />
segue o uerbum dicendi não constitui como seria de esperar, uma oração<br />
infinitiva, conforme tantas vezes observamos na oratória ciceroniana.<br />
O que temos aqui é a figura correspondente ao uso dos dois<br />
pontos após o verbo dicendi, que seria um recurso que adotaríamos<br />
modernamente, por exemplo, na tradução. Essa ocorrência registra<br />
um momento em que a língua literária modifica um padrão da construção<br />
da retórica clássica.<br />
Sed dicis, epistolam meam probauit Alexandrinus episcopus.<br />
Mas dizes: o bispo alexandrino aprovou a minha epístola. (CIH, 5).<br />
O exemplo a seguir é um caso de uso da oração infinitiva,<br />
mas a ocorrência apenas decalca a estrutura da oração infinitiva de<br />
uso dos autores clássicos. A estrutura em questão traz um sujeito no<br />
acusativo, seguido de infinitivo ou particípios + esse e aparece como<br />
complementos de uerba dicendi ou declarandi, uerba sentiendi e uerba<br />
voluntatis. No exemplo em nota a seguir, o sujeito da oração infinitiva<br />
é “te”, o qual se depreende do sujeito “tu” que é o mesmo sujeito<br />
de “dicis” e que se acha oculto diante de “locutum”, nesse caso<br />
forma abreviada do infinitivo locutum esse, figurando apenas o particípio<br />
no acusativo locutum, o que nos leva a entendê-lo em concordância<br />
com um possível sujeito no acusativo, nesse caso “te”:<br />
Sed dicis, epistolam meam probauit Alexandrinus episcopus. Quid<br />
probauit? contra Arium, contra Photinum, contra Manichaeum bene locutum.<br />
Mas dizes: o bispo alexandrino aprovou minha epístola. O que aprovou?<br />
Que tu tenhas falado bem contra Ário, contra Fotino, contra o Maniqueu.<br />
(CIH, 5)<br />
Nas orações em negrito observamos a ocorrência da conjunção<br />
"quod" como integrante, fato que passou a suceder no latim tardio<br />
com mais frequência. Quando no latim clássico, a conjunção integrante<br />
quod ocorria após verbos como dico, credo, scio e seme-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
616<br />
lhantes, e também em escritores de cunho mais popular, como Plauto,<br />
Tertuliano, Macróbio (citados por Theodoro Henrique Maurer Júnior<br />
(1959) como representantes de fala de latim vulgar ou tardio,<br />
quando esta fonte ganhou foros de oficialidade literária) no texto de<br />
São Jerônimo torna-se proverbial e famoso o uso de "quod" depois<br />
de dico, quando o uso literário tendia a construir complementos com<br />
orações infinitivas e não utilizar construções de orações integrantes<br />
introduzidas por "quod":<br />
Et primum de libro ubi loquitur: sicut enim incongruum est dicere,<br />
quod possit Filius uidere Patrem: ita inconueniens est opinari, quod<br />
Spiritus sanctus possit uidere Filium.<br />
E primeiramente acerca do livro em que diz: como é, pois, inconveniente<br />
dizer que o Filho possa ver o Pai: assim inconveniente sustentar<br />
que o Espírito Santo possa ver o Filho. (CIH, 7)<br />
A oração interrogativa Generationem eius quis enarrabit?<br />
Representa, no exemplo em nota a seguir, o complemento oracional<br />
como uma interrogativa, mas não uma interrogativa indireta (como<br />
era comum nos textos ciceronianos ou outros da época clássica),<br />
complemento do uerbum dicendi “ait”. A oração interrogativa, configurada<br />
como interrogativa direta, com o verbo no modo indicativo,<br />
nos dá a dimensão do uso novo da citação literária praticada na época<br />
de São Jerônimo. A frase citada no início desse parágrafo constitui<br />
uma citação da Bíblia (Isaías, 53, 8). Em textos anteriores, estudados<br />
como corpus de pesquisa, verificamos muito amiúde o uso da<br />
oração interrogativa indireta, como complementos de uerba dicendi,<br />
para reportar perguntas de personagens destes textos, como costuma<br />
se dar em textos de retórica judiciária. Mas neste tratado polêmico de<br />
São Jerônimo, observamos que a técnica de citação literária utilizada<br />
por este autor, neste tratado, é utilizada até hoje, em termos de parâmetros<br />
sintáticos, e nos parece ter nascido com os Padres da Igreja<br />
em suas relações com os textos bíblicos, pois se observa a mesma situação<br />
em relação ao texto de Tertuliano, por exemplo, no tratado<br />
Aduersus Iudaeos, que estudamos. A oração que é a citação de um<br />
trecho da Bíblia parece inalterada em sua sintaxe, diferentemente do<br />
que acontecia no período clássico, quando ocorria a transformação<br />
do indicativo em subjuntivo. O texto em que se insere a pergunta,<br />
como citação bíblica é:
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
617<br />
Ubi Isaias Virginis demonstrator, qui in una quaestione succumbens<br />
ait: Generationem eius quis enarrabit?<br />
Quando Isaías, descritor da Virgem, que, sucumbindo em única<br />
questão, disse: a sua geração quem defenderá? (CIH, 10).<br />
Se transformássemos ao modo clássico a oração, como uma<br />
oração completiva interrogativa indireta, o texto de São Jerônimo teria<br />
a seguinte formulação:<br />
Ubi Isaias Virginis demonstrator, qui in una quaestione succumbens<br />
ait generationem eius quis enarraturus sit.<br />
No exemplo em nota a seguir, a expressão de Anastasi ocorre<br />
o uso da preposição “de” que precede o substantivo próprio “Anastasius”,<br />
no caso genitivo. É possível que aí encontremos o principio do<br />
uso da preposição “de” para indicar o caso genitivo nas línguas românicas,<br />
quando a desinência de caso era concomitante com o uso da<br />
preposição. Vejamos:<br />
Nonne cum de Anastasi pergeretis ad crucem, et ad eum omnis aetatis<br />
et sexus turba conflueret... tu tortus inuidia aduersus gloriosum senem<br />
clamitabas...?<br />
Acaso, quando prosseguíeis para a cruz de Anastásio e para ele uma<br />
turba de toda idade e sexo confluía, não ficavas a clamar torcido de ódio<br />
contra o glorioso velho...? (CIH, 11).<br />
É preciso considerar a predicação de dono, a qual difere de<br />
do, em sua construção sintática, especialmente no período clássico,<br />
época em que a construção de dono era diferente do que aparece aqui,<br />
quando dono funciona como a regência de “dar” em português,<br />
demandando um objeto direto e um objeto indireto. O complemento<br />
de dono no período clássico era um ablativo (a coisa presenteada) e<br />
um acusativo (a pessoa presenteada). No caso, seu significado era de<br />
presentear. Ex: Rex me uita donauit. "O rei deu-me de presente a vida".<br />
Assim vejamos:<br />
Dono tibi nutriculas tuas, ne uagiant infantes; dono decrepitos senes,<br />
ne hyberno frigore contrahantur.<br />
Dou-te tuas amazinhas, para que as crianças não deem vagidos; doute<br />
velhos decrépitos, para que não se contraiam com o frio hibernal.<br />
(CIH, 32)<br />
A oração "quid est maius" é complemento de "dic", mas não<br />
se constrói com o subjuntivo. Se o subjuntivo marca subordinação,
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
618<br />
aqui a subordinação é a justaposição de um discurso direto colocado<br />
como complemento de "dic", como simples complemento, diferentemente<br />
do que se dava nas construções ciceronianas.<br />
Dic mihi, acutissime disputator, quid est maius, tantam terrae magnitudinem<br />
appendere super nihilum, et super aquarum incerta librare: an<br />
Deum transire per clausam portam, et creaturam cedere Creatori?<br />
Diz-me, ó agudíssimo discutidor, o que é maior, dependurar-se sobre o<br />
nada tamanha grandeza da terra e igualar-se às incertezas das águas: ou<br />
Deus passar pela porta fechada, e a criatura ceder ao Criador? (CIH, 35).<br />
Entretanto o uso do subjuntivo nas orações interrogativas indiretas<br />
subsiste, isso nos leva a perguntar o porquê da coexistência<br />
das duas estruturas. Estaria o autor indiferente ao fato destas estruturas<br />
terem uma equivalência? Ou então o uso de uma ou outra atesta<br />
uma intenção retórica e estilística?<br />
Sed noui cur Caesariam, cur Antiochiam nolueris mittere (litteras).<br />
Mas sei por que não quiseste enviar (cartas) a Cesaréia, por que não<br />
a Antioquia. (CIH, 37)<br />
É muito comum no texto do Contra João de Jerusalém a<br />
presença de orações relativas nas quais o pronome relativo é precedido<br />
de preposição, fato que não era muito comum nos discursos analisados<br />
de Cícero. Vejamos um exemplo:<br />
Sin autem sub nomine presbyteri tollis mihi, propter quod saeculum<br />
dereliqui...<br />
Se, porém, sob o nome de presbítero suprimes a mim, por cuja causa<br />
abandonei o mundo... (CIH, 41).<br />
3. Notas de conclusão<br />
Pelo que ficou demonstrado, pelos exemplos e análises apresentadas,<br />
sempre em contraste com a análise de autores clássicos,<br />
como padrão gramatical que as gramáticas propõem como análise da<br />
língua e padrão sintático dos textos, como se em todos os períodos<br />
em que se pensou e se escreveu em latim fosse possível se espelhar<br />
sempre na sintaxe clássica, a análise desse tratado polêmico, o Contra<br />
João de Jerusalém, de São Jerônimo, mostra-nos que não somente<br />
este tratado se diferencia do padrão clássico, como incorpora tendên-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
619<br />
cias da sintaxe do latim vulgar, bem como inaugura novas formas do<br />
discurso indireto, com a citação do texto bíblico.<br />
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
BIBLIA sacra iuxta vulgatam Clementinam. Madrid: BAC, 1946.<br />
DUVAL, Y.-M. Sur les insinuations de Jérôme contre Jean de<br />
Jérusalem. De l’arianisme à l’origénisme. Revue d’Histoire Ecclésiastique<br />
65, 1970, p. 353-374.<br />
FARIA, E. Gramática superior da língua latina. Rio de Janeiro: Acadêmica,<br />
1959.<br />
GOELZER, H. Étude lexicographique et grammaticale de la latinité<br />
de Saint Jérôme. Paris: Hachette, 1884.<br />
LIPPARINI, G. Sintaxe latina. Trad. e adapt. Pe. Alípio R. Santiago<br />
de Oliveira. Petrópolis: Vozes, 1961.<br />
MAURER Jr., T. Gramática do latim vulgar. Rio de Janeiro: Acadêmica,<br />
1959.<br />
MOHRMANN, C. Études sur le latin des chrétiens. Tomes I e II.<br />
Roma: Edizioni di Storia e letteratura, 1961.<br />
SÃO JERÔNIMO. Contra Joannem Hierosolymitanum. In: MIGNE,<br />
J.-P. Patrologiae cursus completus, tomo 23, series graeca. Paris: Petit<br />
Montrouge, 1883.<br />
S. Eusebii Hieronymi stridonensis, presbyteri, contra Ioannem Hierosolymitanum,<br />
episcopum ad pammachium. Disponível em:<br />
.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
622<br />
anônimo anglo, provavelmente um monge ou clérigo, que conseguiu<br />
mesclar fatos da história escandinava e da mitologia pagã com elementos<br />
cristãos. O Poema se refere a acontecimentos semi-históricos<br />
de um passado distante que pode ser datado do ano 520 aproximadamente,<br />
já que muitas pessoas citadas são conhecidas através de outras<br />
fontes; fala dos reis e heróis escandinavos e de suas contendas.<br />
A ação envolve não somente os Anglo-Saxões, mas também algumas<br />
tribos do norte, principalmente os Suiões, os Getas, os Frísios e os<br />
Danes.<br />
Figura 1: Primeira página do único manuscrito existente do poema Beowulf. Note-se<br />
como as margens estão esfarrapadas e a página escurecida pela fumaça de incêndio de<br />
século XVIII. (POOLEY, 1968, p. 22)
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
623<br />
Apresentamos, a seguir, os dez primeiros versos originais de<br />
Beowulf, com a tradução em inglês contemporâneo realizada pelo<br />
poeta e escritor irlandês Seamus Heaney, agraciado com o Nobel de<br />
Literatura de 1995.<br />
Hwæt! We Gardena in geardagum,<br />
þeodcyninga, þrym gefrunon,<br />
hu ða æþelingas ellen fremedon.<br />
Oft Scyld Scefing sceaþena þreatum,<br />
monegum mægþum, meodosetla ofteah,<br />
egsode eorlas. Syððan ærest wearð<br />
feasceaft funden, he þæs frofre gebad,<br />
weox under wolcnum, weorðmyndum þah,<br />
oðþæt him æghwylc þara ymbsittendra<br />
ofer hronrade hyran scolde,<br />
So. The Spear-Danes in days gone by<br />
and the kings who ruled them had courage and greatness.<br />
We have heard of those princes' heroic campaigns.<br />
There was Shield Sheafson, scourge of many tribes,<br />
a wrecker of mead-benches, rampaging among foes.<br />
This terror of the hall-troops had come far.<br />
A foundling to start with, he would flourish later on<br />
as his powers waxed and his worth was proved.<br />
In the end each clan on the outlying coasts<br />
beyond the whale-road had to yield to him<br />
(Beowulf, vv. 1-10)<br />
(Beowulf, vv. 1-10, tradução de Seamus Heaney)<br />
Na primeira versão do Pai Nosso, datada por volta do ano<br />
1000, mais de 80% das 54 palavras são irreconhecíveis para grande<br />
parte dos falantes nativos do inglês moderno. Antes da invasão dos<br />
Normandos (1066), muitas palavras do inglês moderno tomadas do<br />
francês ainda não faziam parte do léxico inglês. Podemos observar<br />
que o texto da versão King James de 1611, com exceção do emprego<br />
do u em lugar do v, já se aproxima muito do inglês moderno, sendo,<br />
pois, acessível a qualquer falante nativo.<br />
Inglês antigo (Old English) Versão King James (1611)<br />
Fæder ure þu þe eart on heofonum;<br />
Si þin nama gehalgod<br />
to becume þin rice<br />
gewurþe ðin willa<br />
on eorðan swa swa on heofonum.<br />
Our father which art in heauen,<br />
hallowed be thy name.<br />
Thy kingdom come.<br />
Thy will be done in earth as it is in heauen.<br />
Giue us this day our daily bread.
urne gedæghwamlican hlaf syle us todæg<br />
and forgyf us ure gyltas<br />
swa swa we forgyfað urum gyltendum<br />
and ne gelæd þu us on costnunge<br />
ac alys us of yfele soþlice<br />
2. O povoamento germânico<br />
And forgiue us our debts<br />
as we forgiue our debters.<br />
And lead us not into temptation,<br />
but deliuer us from euill.<br />
Amen.<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
624<br />
O inglês antigo consistia de vários dialetos germânicos levados<br />
para a Grã-Bretanha do noroeste do continente europeu em meados<br />
do primeiro milênio da Era Cristã. O povoamento germânico foi<br />
muito limitado durante o período romano (41-410 d. C), mas se expandiu<br />
grandemente após a saída dos romanos nas primeiras décadas<br />
do século V d. C. A língua nunca foi totalmente homogeneizada como<br />
um meio literário ou administrativo, contudo logrou maior progresso<br />
nessa direção (apesar da primazia do latim) do que a maioria<br />
das outras línguas vernáculas europeias. Escrevendo em latim no século<br />
XIII, o monge e historiador anglo-saxão do mosteiro de Jarrow,<br />
na Northumbria, Bede, identificou em sua monumental obra<br />
concluída em 731, acima citada, os primeiros colonizadores<br />
germânicos como três povos distintos: os Jutos (Iatae em latim), os<br />
Anglos 3 , e os Saxões. Com base nos seus escritos e também em<br />
outras indicações, os Jutos e o Anglos provavelmente habitavam na<br />
península dinamarquesa, os Jutos no norte (donde o nome Jutlândia,<br />
em dinamarquês Jylland e em alemão Jütland) e os Anglos no sul,<br />
em Schleswig-Holstein (atualmente um dos 16 Länder ou estados<br />
federais da Alemanha). Os Saxões se estabeleceram ao sul e ao oeste<br />
dos Anglos, mais ou menos entre o Elba e o Ems, possivelmente até<br />
o Reno. Uma quarta tribo, os Frísios ou Frisões, alguns dos quais<br />
com muita probabilidade foram para a Inglaterra, ocupavam uma<br />
estreita faixa de terra ao longo da costa desde Weser até o Reno,<br />
juntamente com as ilhas fronteiriças. Na época das invasões, os Jutos<br />
haviam aparentemente descido para a área costeira próxima à voz do<br />
Weser, e possivelmente se fixado ao redor do Zuyder Zee (Holanda)<br />
e do baixo Reno, daí o contato com os Frísios e os Saxões (BAUGH<br />
& CABLE, 1993, p. 45-46).<br />
3 São os dialetos germânicos falados pelos anglos e pelos saxões que vão dar origem ao inglês.<br />
A palavra England, por exemplo, originou-se de Angle-land (literalmente: “terra dos anglos”).
Figura 2: Mapa mostrando as diversas rotas migratórias tomadas pelas tribos germânicas<br />
entre os séculos V e XI.<br />
Fonte: http://www.theancientweb.com/explore/content.aspx?content_id=34<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
625<br />
Os membros das tribos germânicas que chegaram primeiro –<br />
os Jutos liderados pelos irmãos Hegest e Horsa – se instalaram principalmente<br />
na parte sudeste da ilha, ainda conhecida pelo nome céltico<br />
de “Kent” (do britônico Cantus, literalmente: "aba" ou "borda").<br />
Subsequentemente, os Saxões continentais vieram a ocupar o restante<br />
da região sul do Tâmisa, e os Anglos se estabeleceram na grande<br />
área que se estendia do norte do Tâmisa aos planaltos escoceses<br />
(Scottish Highlands), exceto a parte do extremo sudoeste (atual País<br />
de Gales).<br />
A ocupação germânica compreendia sete reinos, a heptarquia<br />
anglo-saxônica: Kent, Essex, Sussex, Wessex, East Anglia (Anglia<br />
Oreintal), Mércia, e Northumbria – sendo o último, as terras ao norte<br />
do Humber, uma amalgamação de dois reinos anteriores, Bernica e<br />
Deira. Kent logo se tornou o centro principal de cultura e riqueza, e<br />
antes do final do século VI seu rei Ethelbert (Æðelberht) pôde reivindicar<br />
a hegemonia sobre todos os outros reinos ao sul do Humber.<br />
Mais tarde, nos séculos VII e VIII, essa supremacia teve que passar a<br />
Northumbria, com seus grandes centros de erudição em Lindisfarme,<br />
em Wearmouth, e em Jarrow, o próprio mosteiro de Bede; em seguida<br />
a Mércia; e por fim a Wessex, com sua brilhante linhagem de reis<br />
começando com Egbert (Ecgberht), que destronou o rei de Mércia
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
626<br />
em 825, e culminando no seu neto, o superlativamente grande Alfred,<br />
cujos sucessores, após sua morte em 899, tomaram para si o título<br />
de Rex Anglorum (“Rei dos Ingleses”) (PILES, 1971, p. 115-16).<br />
Figura 3: Distribuição dos principais dialetos do inglês antigo por volta do ano 600. A<br />
área em amarelo era ainda habitada pelos britânicos nativos. Fonte:<br />
http://www.lib.utexas.edu/maps/historical/shepherd/britain_settlement_600_1923.jpg<br />
Já no século VIII, os falantes do inglês antigo dominavam territórios<br />
aproximadamente equivalentes em extensão e distribuição ao<br />
reino posterior da Inglaterra. Quatro variedades principais da língua<br />
podem ser distinguidas nos documentos preservados: o Kentish, associado<br />
aos Jutos; o West Saxon, na região sul chamada Wessex, basicamente<br />
o mais poderoso dos reinos saxônicos, cujos fundadores se<br />
originaram no norte da Alemanha; o Mercian, dialeto anglo falado<br />
em Mércia, um reino que se estendia do Tâmisa ao Humber; e o Northumbrian,<br />
o mais setentrional dos dialetos anglos, falado do Humber<br />
ao Forth. A Crônica Anglo-Saxônica (The Anglo-Saxon<br />
Chronicle), iniciada no século IX (891) a pedido do rei de Wessex<br />
Alfredo o Grande, e escrita inteiramente em inglês antigo, por sua<br />
vez, descreve ano a ano, do ponto de vista dos colonizadores, o progresso<br />
de vários líderes e grupos à medida que superam a resistência<br />
dos britânicos céltico-romanos do século V ao VII.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
629<br />
Gênero – No inglês antigo, além dos gêneros masculino e<br />
feminino, há ainda o gênero neutro, para as palavras que não são<br />
nem masculinas nem femininas. Porém, cumpre aqui observar que<br />
nem sempre o gênero natural, baseado nas diferenças de sexo, corresponde<br />
exatamente ao gênero gramatical. Desse modo, as palavras<br />
wíf ”mulher”, mægden “menina” e cild “criança”, ao contrário do<br />
que se espera, são neutras.<br />
No inglês moderno, predomina o gênero natural, ou seja, os<br />
substantivos gramaticalmente masculinos são biologicamente do sexo<br />
masculino. Há pouquíssimas exceções a essa regra, como, por exemplo,<br />
ao se referirem a navios e países, os falantes nativos utilizam<br />
o pronome she “ela” e não he “ele”.<br />
Número – Como no inglês moderno, há no inglês antigo apenas<br />
dois números: o singular e o plural. Do antigo dual, o único vestígio<br />
é encontrado nos pronomes da primeira e segunda pessoa: wit<br />
“nós dois” e git “vocês dois”.<br />
Caso – Diferentemente do que acontece no inglês moderno,<br />
onde as palavras, como os substantivos, apresentam variações em<br />
sua parte final (desinências nominais) para indicarem apenas as categorias<br />
de número e gênero (este em casos excepcionais, como count<br />
“conde” – countess “condessa”), no inglês antigo, os substantivos,<br />
adjetivos e pronomes indicam, ainda por meio de desinências, qual a<br />
função que desempenham na frase. Chama-se caso à forma tomada<br />
por uma palavra declinável para indicar precisamente qual a função<br />
sintática que desempenha na frase. São quatro os casos no inglês antigo,<br />
a saber:<br />
Nominativo – É o caso que designa a pessoa ou coisa de que<br />
trata a frase, geralmente o sujeito, como por exempla se cyning (“o<br />
rei”). Adjetivos na função predicativa também tomavam a forma de<br />
nominativo.<br />
Genitivo 5 – É principalmente o caso do complemento terminativo<br />
do nome, cuja função principal é indicar posse, como por exemplo<br />
þæs cyninges scip ("o navio do rei").<br />
5 O –s indicador do genitivo singular e também do plural geral dos substantivos no inglês moderno<br />
vem diretamente do genitivo singular e das formas do plural do nominativo-acusativo do
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
630<br />
Dativo – É principalmente o caso da atribuição, indicando a<br />
pessoa ou coisa a quem um objeto é destinado, ou em benefício de<br />
quem se faz alguma coisa. Seu emprego mais comum e generalizado<br />
é indicar a função de objeto ou complemento indireto da oração, como<br />
por exemplo Ohthere sæde his hlaforde / Ælfrede cyninge...<br />
(“Ohtere disse ao seu senhor, (ao) Rei Afredo”).<br />
Acusativo – A função primária do acusativo é a de indicar o<br />
objeto ou complemento direto do verbo. Por exemplo Æþelbald lufode<br />
þone cyning ("Æþelbald amava o rei"), onde Æþelbald é o sujeito<br />
e þone cyning é o objeto. Note-se que o acusativo já havia começado<br />
a se mesclar com o nominativo.<br />
A declinação foi grandemente simplificada durante o período<br />
do inglês médio (1100–1500), quando os pronomes no acusativo e<br />
dativo se fundiram num único pronome objeto (oblíquo). Devido às<br />
limitações de espaço e a complexidade do tema, trataremos aqui somente<br />
das cinco categorias gramaticais mais relevantes.<br />
3.2.1. Substantivo<br />
No estudo das flexões nominais, é fácil perceber que a palavra<br />
é constituída essencialmente de dois elementos: tema e desinência.<br />
As desinências são em geral as mesmas para cada caso, variando<br />
de declinação para declinação a parte final do tema, que se caracteriza<br />
pelo elemento que imediatamente precede a desinência. Desse<br />
modo, enquanto o tema encerra a significação da palavra e a característica<br />
da declinação a que a mesma pertence, a desinência indica simultaneamente<br />
as categorias gramaticais de gênero, número e caso.<br />
Havia diferentes terminações dependendo da categoria de<br />
número do substantivo singular (por exemplo, hring “um anel”) ou<br />
plural (por exemplo, hringas “muitos anéis”). Os substantivos são<br />
também categorizados pelo gênero gramatical – masculino, feminino<br />
inglês antigo. Essa forma é o resultado da redução da vogal átona –as, que veio também a ser<br />
grafada –es no inglês médio. Novas palavras invariavelmente conformam o que sobrevive da<br />
declinação de tema em –a (por exemplo the king’s “do rei”, the kings “os reis”, the kings’ “dos<br />
reis”, sem nenhuma distinção na pronúncia), de modo que pode-se afirmar ser este o único<br />
vestígio de declinação sobrevivente no inglês moderno.
3.2.2. Adjetivo<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
633<br />
O adjetivo no inglês antigo flexiona para indicar as distinções<br />
de gênero, número e caso. Existem dois paradigmas de declinação<br />
para o adjetivo: forte e fraca. Diferentemente do substantivo, o mesmo<br />
adjetivo pode declinar-se num ou noutro paradigma, dependendo<br />
da estrutura da frase. Desse modo, quando o adjetivo segue um demonstrativo<br />
ou possessivo declina-se como fraco; nos demais casos,<br />
declina-se como forte.<br />
Paradigma para o adjetivo swift (“veloz”) na declinação<br />
fraca:<br />
Singular<br />
Caso Masculino Feminino Neutro<br />
Nom. (se) swifta (séo) swifte (Þaet) swifte<br />
Acus. (þone) swiftan (þá) swiftan (Þaet) swifte<br />
Gen. (þæs) swiftan (þære) swiftan (þæs) swiftan<br />
Dat. (þæm) swiftan (þá) swiftan (þæm) swiftan<br />
Plural (todos os três gêneros)<br />
Caso<br />
Nom. (þá) swiftan<br />
Acus. (þá) swiftan<br />
Gen. (Þára) swiftena<br />
Dat. (þæm) swiftum
Agora, o mesmo adjetivo na declinação forte:<br />
Singular Plural<br />
Caso Masculino Feminino Neutro<br />
Nom. swift swift swift<br />
Acus. swiftne tswifte swift<br />
Gen. swiftes swiftre swiftes<br />
Dat. swiftum swiftre Swiftm<br />
Instr. swifte swifte<br />
Comparativo e superlativo<br />
3.2.3. Artigo definido<br />
O comparativo de swift é swiftra.<br />
O superlativo de swift é swiftost<br />
Nom. swifte swifta swift<br />
Acus. swifte swifta swift<br />
Gen. swiftra swiftra swiftra<br />
Dat. swiftum swiftum swiftum<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
634<br />
O artigo definido no inglês antigo desempenhava praticamente<br />
a mesma função que desempenha no inglês moderno, ou seja, a de<br />
determinante; porém, às vezes exercia o papel de pronome demonstrativo<br />
e pronome relativo. Isto é, podia significar não somente the<br />
(“o”, “a”; “os”, “as”), mas também this, that; these, those (“este”,<br />
“aquele”; “estes”, “aqueles”); ou podia ser usado como pronome relativo<br />
para introduzir uma oração subordinada. Quando o artigo definido<br />
é usado como pronome relativo, ele concorda com o seu antecedente<br />
em gênero e número.<br />
Atualmente, o artigo definido the é uma palavra simples e invariável,<br />
mas no inglês antigo declinava em gênero, número e caso,<br />
em concordância com o substantivo que determinava, conforme<br />
mostra a tabela abaixo.
Caso Masculino Feminino Neutro Plural (todos os três gêneros)<br />
Nom. sé séo þaet þá<br />
Acus. þone þá þaet þá<br />
Gen. þaes þaere þaes þára<br />
Dat. þaem þaere þaem Þaem<br />
Instr. þý /þon þý /þon<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
635<br />
A tabela seguinte mostra a concordância do adjetivo e do artigo<br />
definido com o substantivo:<br />
Caso Masculino Feminino Neutro<br />
Nom. se dola cyning seo dole ides tæt dole bearn<br />
Acus. tone dolan cyning ta dolan idese tæt dole bearn<br />
Gen. tæs dolan cyninges tære dolan idese tæs dolan bearnes<br />
Dat. tæm dolan cyninge tære dolan idese tæm dolan bearne<br />
Tradução O rei tolo A mulher tola A criança tola<br />
Desse modo, num paradigma nominal padrão temos 4 casos x<br />
2 números x 3 gêneros = 24 “lacunas” morfológicas — mas o inglês<br />
antigo possuía somente nove formas para todas essas flexões, a saber:<br />
Ø (ausência de flexão), umlaut (do alemão "alteração de som"),<br />
-u, -a, -e, -an, -um, -as, -es (bem mais simples, portanto, do que o alemão).<br />
3.2.4. Pronome<br />
No inglês antigo, todos os pronomes são declináveis, sendo,<br />
porém, seu sistema de declinação diferente dos diversos sistemas de<br />
declinação nominal.<br />
Pronomes pessoais – Os pronomes pessoais dividem-se pelas três<br />
pessoas gramaticais, sendo em número de seis.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
637<br />
Pronomes interrogativos – Esses pronomes se traduzem por who<br />
“quem” ou what ”que ou qual” e se usam somente em frases interrogativas.<br />
Who (masculino e feminino) What (neutro)<br />
Nom. hwá hwæt<br />
Acus. hwone hwæt<br />
Gen. hwæs hwæs<br />
Dat. hwæm hwæm<br />
Instr. hwy 9<br />
3.2.5. Verbo<br />
3.2.5.1. Generalidades<br />
O verbo no inglês antigo é flexionado para indicar as distinções<br />
de pessoa, número e tempo. O sistema temporal é bem mais<br />
simples do que no inglês moderno. Há apenas dois tempos: o presente<br />
e o passado (pretérito). Não há futuro no inglês antigo. Para exprimir<br />
essa função, utilizavam-se perífrases com auxiliares modais,<br />
do tipo willan (literalmente: "to wish to do" = desejar fazer) ou sculan<br />
(literalmente: "to have to do" = ter que fazer) + infinitivo. O pretérito<br />
inclui o território semântico ocupado no inglês moderno pelas<br />
formas compostas do “past progressive” (I was writing), do “present<br />
perfect” (I have written), e do “past perfect” (I had written). 10<br />
Os verbos no inglês antigo, quanto à morfologia, se classificam<br />
em verbos fracos e verbos fortes. Como em todas as línguas<br />
9 Do instrumental neutro hwy desenvolveu-se o pronome interrogativo moderno why “por que”.<br />
10 Essas formas verbais compostas começaram a se desenvolver ainda no período do inglês<br />
antigo, provavelmente para suprir noções aspectuais ao lado da categoria de tempo. Desse<br />
modo, no inglês moderno, verifica-se uma oposição aspectual bem marcada entre frases do tipo:<br />
I wrote a letter last week. (“Escrevi uma carta na semana passada.”) e<br />
I have written letters. (“Escrevi cartas.”)<br />
No primeiro caso, o falante se refere a uma ação passada definida e conhecida, portanto, marcada<br />
pelo adjunto adverbial “last week”. Já no segundo, trata-se de uma ação que, embora seja<br />
também passada, percebe-se uma ligação do passado com o presente, ou seja, a ação tem<br />
consequências no presente.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
643<br />
“comer”, drincan > drink “beber”, sloœpan > sleep “dormir”, libban<br />
> live “viver”, foehatan > fight “lutar” etc.<br />
Quase tudo mudou. No inglês moderno, como vimos, o gênero<br />
gramatical dos substantivos desapareceu completamente, os adjetivos<br />
não mais concordam com os substantivos em número, caso e<br />
gênero; os substantivos possuem apenas dois casos: nominativo e<br />
genitivo; os verbos se reduziram a poucas formas (no presente do indicativo<br />
só flexionam na terceira pessoa do singular); o subjuntivo<br />
praticamente desapareceu. As diversas noções aspectuais se fazem<br />
através de perífrases. A maioria dessas mudanças foi causada, ou pelo<br />
menos acelerada, pelas invasões dos Nórdicos, nos fins do século<br />
VII e dos Normandos, em 1066, mas isso é outra história.<br />
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
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TRUMBLE, William R.; BROWN, Lesley; STEVENSON, Angus<br />
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University Press, 2004.
1. Introdução<br />
CAMINHOS TEÓRICOS E PRÁTICOS<br />
EM ANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSO<br />
Cleide Emília Faye Pedrosa (UFRN, UFS, UERJ)<br />
eliaspedrosa@uol.com.br<br />
Derli Machado de Oliveira (UFRN, Faculdade Atlântico)<br />
derli_machado@hotmail.com<br />
Taysa Mércia dos Santos Souza Damaceno (UFRN)<br />
taysa_damaceno@yahoo.com.br<br />
Este minicurso apresenta como objetivo a proposta de aplicar<br />
conhecimentos advindos da análise crítica do discurso em práticas de<br />
análise em texto/discurso, ressaltando as categorias de comodificação,<br />
tecnologização e intertextualidade. Este objetivo dar conta da<br />
seguinte ementa: visão teórica da análise crítica do discurso (ACD);<br />
propostas de análise a partir das categorias: democratização; comodificação;<br />
tecnologização; intertextualidade e primado do interdiscurso.<br />
Como justificativa para esta abordagem, apontamos: Por julgar<br />
que a análise crítica do discurso (ACD) ainda é pouco conhecida na<br />
academia, principalmente, em suas perspectivas de aplicação, este<br />
minicurso tem como objetivo apresentar, em primeiro plano, uma visão<br />
teórica da análise crítica do discurso (ACD), para logo em seguida<br />
apresentar duas propostas de análise que foram desenvolvidas<br />
com base nessa linha de investigação, especialmente, na que concerne<br />
à corrente social desenvolvida por Fairclough (2003, 2008). Faz<br />
parte ainda da parte prática, deste minicurso, os pressupostos desenvolvidos<br />
por Maingueneau (2008) em ‘Gênese dos discursos’ sobre a<br />
‘semântica global’, especificamente, sobre o primado do interdiscurso<br />
e a polêmica como interincompreensão. Desse modo, organizamos<br />
o material de apoio ao desenvolvimento da proposta em: a) caminhos<br />
históricos e metodológicos em análise crítica do discurso; b)<br />
Modelo tridimensional da ACD; c) Democratização; tecnologização<br />
e comodificação: categorias de análise e; d) Semântica Global: teoria<br />
e prática. Com o resultado, esperamos que as perspectivas do público-alvo<br />
(alunos de Letras e áreas afins, professores do ensino médio,<br />
profissionais e usuários do texto/discurso) sejam atendidas.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
646<br />
2. Caminhos históricos e metodológicos em análise crítica do discurso<br />
Análise crítica do discurso, perspectiva que recusa a neutralidade da<br />
investigação e do investigador, que define os seus objetivos em termos<br />
políticos, sociais e culturais e que olha para a linguagem como prática<br />
social e ideológica e para a relação entre interlocutores como contextualizada<br />
por relações de poder, dominação e resistência institucionalmente<br />
constituídas. (PEDRO, 1998, p. 15)<br />
Os analistas críticos do discurso se posicionam politicamente<br />
quanto às análises que procedem. Para eles, é importante verificar<br />
como as práticas linguísticas, discursivas e sociais se interrelacionam<br />
de tal maneira nas estruturas socialmente alicerçadas em<br />
práticas ideológicas que se torna difícil fugir delas. Seguir uma postura<br />
crítica, como a assumida pela análise crítica do discurso (ACD),<br />
requer se identificar com seu objetivo, qual seja, elucidar as naturalizações<br />
advindas de práticas ideológicas, tornando claro os efeitos<br />
que o discurso causa por serem opacos para os participantes (FAIR-<br />
CLOUGH, 1995a) e, deste modo, intervir na sociedade a fim de gerar<br />
mudanças, principalmente, a favor dos ‘perdedores’ (excluídos<br />
sociais, pessoas sujeitas a relações de opressão, pobres’), dos menos<br />
favorecidos. Pois é fato sabido que a circulação de texto dentro de<br />
uma sociedade pode servir de meios de dominação através da linguagem,<br />
entre alguns destes aspectos Hanks (2008, p. 155) aponta:<br />
exercício de poder social, desigualdade política, cultural, discriminação<br />
de classe, sexo, etnia. Por isso que cabe a ACD desnaturalizar<br />
estas práticas discursivas – “analisar e revelar o papel do discurso na<br />
(re)produção da dominação” (PEDRO, 1998, p. 25).<br />
Sobre este assunto, Van Dijk (2008, p. 19) afirma o seguinte:<br />
Se o discurso controla mentes, e mentes controlam ação, é crucial<br />
para aqueles que estão no poder controlar o discurso em primeiro lugar.<br />
Como eles fazem isso? Se eventos comunicativos consistem não somente<br />
de escrita e fala “verbais”, mas também de um contexto que influencia o<br />
discurso, então o primeiro passo para o controle do discurso é controlar<br />
seus contextos. [...] Isso significa que precisamos examinar em detalhe as<br />
maneiras como o acesso ao discurso está sendo regulado por aqueles que<br />
estão no poder (VAN DIJK, 2008, p. 19).<br />
“Examinar em detalhe as maneiras como o acesso ao discurso<br />
está sendo regulado por aqueles que estão no poder” (FAIRCLOU-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
647<br />
GH, 1995b, p. 33; RESENDE; RAMALHO, 2006, p. 49-50) é o<br />
grande desafio da ACD. E para dar conta deste desafio, esta concepção<br />
assume que a ideologia é, por natureza, hegemônica, pois serve<br />
tanto para estabelecer como para sustentar relações de dominação e<br />
convém, igualmente, para reproduzir a ordem social que beneficia<br />
indivíduos e os blocos dominantes nos quais estão inseridos, perpassando<br />
suas ideias como fruto do senso comum.<br />
Foi com esta postura que surgiu – dentro do campo da Linguística<br />
– a análise crítica do discurso com fortes influências de outras<br />
escolas, tais como linguística crítica, semiótica social e sociolinguística<br />
crítica.<br />
Seu termo foi utilizado por Fairclough em artigo publicado<br />
em 1985. Mas foi um congresso na Universidade de Amsterdam, em<br />
janeiro de 1991, que deu corpo às ideias de um grupo de pesquisadores:<br />
Teun van Dijk, Norman Fairclough, Gunter Kress, Theo van Leeuwen<br />
e Ruth Wodak. Eles estiveram juntos discutindo teorias e métodos<br />
de análises de discursos. Wodak (2003, p. 21, Tradução Nossa),<br />
que participou ativamente deste congresso histórico, pronunciase;<br />
assim, em relação à este encontro: esta “reunião de Amsterdam<br />
supôs um começo institucional, um esforço tendente a começar um<br />
programa de intercâmbio (ERAMUS, durante três anos)” (WODAK,<br />
2003, p. 21, tradução nossa). Desde a primeira reunião, o grupo, embora<br />
internacional e heterogêneo, consolidou o novo paradigma. Esta<br />
consolidação foi mais fruto de um agendamento “e programa de investigação<br />
que pela existência de teorias e metodologias comum”,<br />
acrescenta Wodak (2003, p. 22, tradução nossa).<br />
Fairclough (2008) esclarece-nos que, mesmo tendo ligação<br />
com a LC, como apontado acima, a ACD vai surgir a partir de limitações<br />
desta. O autor também aponta que limitações também em<br />
propostas de análise da Análise do Discurso (AD) contribuíram para<br />
o surgimento da ACD. Para ele, a AD, ao enfatizar a perspectiva social,<br />
relegou a análise linguística; enquanto, a LC ao evidenciar a análise<br />
linguística, deu pouca ênfase aos conceitos de ideologia e poder.<br />
Fairclough sustenta que ambas apresentam uma visão estática<br />
das relações de poder.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
648<br />
Nessa conjuntura, o grande posicionamento deste novo paradigma<br />
vai ser o fato de considerar a ‘linguagem como uma forma de<br />
prática social’ e para tal, é necessário atender a três perspectivas: linguagem<br />
como parte da sociedade (não algo externo a ela); linguagem<br />
como um processo social; linguagem como um processo condicionado<br />
socialmente (FAIRCLOUGH, 1995b, p. 22). Também ela será<br />
norteada por três conceitos básicos: poder, história e ideologia.<br />
As situações de socialização e subjetividades em que os seres<br />
humanos estão inseridos são cruciais para estudos críticos. Pois estes<br />
estudos do discurso requerem teorização e descrição dos processos e<br />
das estruturas sociais, bem como dos processos nos quais os sujeitos<br />
históricos criam sentidos em sua interação com textos (WODAK,<br />
2003). Os textos, para investigação, podem estar inseridos em diversos<br />
contextos, tais como o político, o econômico; "o racismo, a propaganda<br />
e a mídia, e os ambientes institucionais como a burocracia e<br />
a educação” (HANKS, 2008, p. 172, 173).<br />
Para dar suporte a sua análise do texto\discurso, a ACD busca<br />
base teórica na linguística de Halliday, na sociolinguística de Bernstein,<br />
nas obras de críticos literários e também de filósofos sociais<br />
como Pêcheux, Foucault, Harbemas, Bakhtin, e Voloshinov e Giddens<br />
com sua Teoria da Estruturação. Para esta teoria, o sujeito é capaz<br />
de gerar transformações sociais por meio do discurso (o discurso<br />
modela a sociedade e é modelado por ela). Esclarecendo um pouco<br />
mais a Teoria da Estruturação, temos:<br />
Aspectos da Teoria da Estruturação de Giddens (1989) prestam-se à<br />
discussão sobre o papel dos agentes sociais, e seus discursos, na manutenção<br />
e transformação da sociedade. Segundo essa teoria, a constituição<br />
da sociedade se dá de maneira bidirecional, ou seja, há uma dualidade da<br />
estrutura social que a torna o meio e o resultado de práticas sociais (RE-<br />
SENDE & RAMALHO, 2006, p. 41).<br />
Abaixo apontaremos algumas correntes desta escola e destacaremos<br />
a corrente social, com a qual vamos trabalhar neste minicurso.<br />
2.1. Correntes de pesquisa em ACD
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
649<br />
Com base em Resende (2009), pode-se afirmar que Fairclough<br />
articula a linguística sistêmica funcional com a sociologia; que<br />
van Dijk procura estabelecer a ligação entre a linguística textual com<br />
a Psicologia Social; e que os trabalhos de Wodak ligam-se com a Sociolinguística<br />
e a História. Já com base em Meyer (2003), podemos<br />
destacar as correntes que sugiram devido às escolhas do quadro teórico-metodológico<br />
assumido por alguns pesquisadores em ACD: a<br />
microsociológica com Ron Scollon; as teorias sobre a sociedade e o<br />
poder com base na tradição de Michel Foucault com Siegfried Jäger,<br />
Norman Fairclough e Ruth Wodak; e as teorias do conhecimento social<br />
com Teun van Dijk. Entre estas correntes e quadro teórico apontados,<br />
destacaremos a corrente que seguimos: corrente social da linguagem<br />
de Fairclough.<br />
2.1.1. Corrente social da linguagem: Norman Fairclough<br />
Norman Fairclough, um dos pioneiros da ACD, interessa-se<br />
pelos estudos críticos e interdisciplinares sobre a prática discursiva e<br />
a sua relação com a mudança social e cultural. Suas contribuições<br />
centrais para os estudos críticos da linguagem foram criar um método<br />
para estudar o discurso e fazer com que cientistas sociais e estudiosos<br />
da mídia reconheçam a necessidade de um trabalho com linguistas<br />
(MAGALHÃES 2005; cf. RESENDE; RAMALHO, 2006).<br />
Este seu trabalho assumiu grande importância na solidificação da<br />
função de linguistas críticos na crítica social contemporânea (RE-<br />
SENDE; RAMALHO, 2006). As autoras ainda afirmam:<br />
O diálogo crescente entre a Linguística e a Ciência Social Crítica,<br />
nas bases teóricas da ADC, foi determinante no processo de abertura da<br />
disciplina, que culminou no movimento da centralidade do discurso para<br />
a percepção deste como um momento de práticas sociais (RESENDE;<br />
RAMALHO, 2006, p. 146).<br />
O modelo desenvolvido por Fairclough reúne análise linguística<br />
e teoria social, “numa combinação desse sentido mais socioteórico<br />
de ‘discurso’ com o sentido de ‘texto e interação’ na análise de<br />
discurso orientada linguisticamente” (FAIRCLOUGH, 2008, p. 22).
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
650<br />
Sobre isto, Resende e Ramalho (2006, p. 11) 1 afirmam: “A teoria social<br />
do discurso é uma abordagem de análise de discurso crítica<br />
(ADC), desenvolvida por Norman Fairclough, que se baseia em uma<br />
percepção da linguagem como parte irredutível da vida social dialeticamente<br />
entrecortada a outros elementos sociais”.<br />
A forte herança de Halliday se faz presente explicitamente<br />
nas propostas de Fairclough. O texto analisado, segundo o modelo sitêmico-funcional,<br />
daria conta das funções: ideacional – experiência<br />
do mundo, sistema de conhecimentos e crenças; interpessoal – interação<br />
social entre os participantes, sujeitos sociais, identidade; Textual<br />
– ligação das partes de um texto em um todo coerente. Caldas–<br />
Coulthard (2008, p. 33), assim, se expressa:<br />
A metafunção ideacional ou experimental é a manifestação no sistema<br />
linguístico de um propósito geral que nos permite entender ou experimentar<br />
o ambiente em que vivemos; a metafunção interpessoal ou relacional<br />
nos permite constituir e mudar relações sociais e identidades sociais,<br />
marcando a interação entre as pessoas.<br />
Para Fairclough (2008), a localização teorética da ACD está<br />
em ver o discurso como um momento das práticas sociais, sabendo<br />
que todas as práticas incluem os elementos: atividade produtiva,<br />
meios de produção, relações sociais, identidades sociais, valores culturais,<br />
consciência e semioses.<br />
O primeiro modelo de análise desenvolvido por Fairclough<br />
(2008) – chamado de modelo tridimensional do discurso – engloba<br />
três dimensões: o texto, a prática discursiva e a prática social. Assim<br />
se expressa Hanks (2008, p. 172)<br />
Nessa abordagem (ACD), o discurso é tratado sob três perspectivas:<br />
como texto dotado de forma linguística, como ‘prática discursiva’ por<br />
meio da qual os textos são produzidos, distribuídos e consumidos, e como<br />
‘ prática social’ que tem vários efeitos ideológicos, incluindo normatividade<br />
e hegemonia.<br />
A seguir, no próximo tópico, abordaremos este quadro teórico/metodológico<br />
tridimensional desenvolvido por Fairclough (2008).<br />
Nele, observa-se, além das categorias que compõem as práticas tex-<br />
1 As autoras Resende e Ramalho utilizam o termo "análise de discurso crítica" (ADC),<br />
preferimos utilizar ACD como em Pedro (1998) e Wodak & Meyer (2003), entre outros.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
651<br />
tuais, discursivas, a prática social que envolve “três tendências principais<br />
de mudança discursiva que têm afetado a ordem do discurso<br />
societal”, que podemos relacionar diretamente às mudanças social e<br />
cultural: a democratização, a comodificação e a tecnologização. Especificamente,<br />
estas três tendências também serão desenvolvidas em<br />
tópico a parte.<br />
2.1.2. Modelo tridimensional<br />
O modelo tridimensional desenvolvido por Fairclough (2008)<br />
é baseado na linguística sistêmica-funcional de Halliday, como já afirmado,<br />
teoria que considera a linguagem na forma como ela é configurada<br />
pelas funções sociais que deve atender. Segundo esta escola<br />
“a linguagem é uma semiótica social” e “a forma linguística é afetada<br />
sistematicamente pelas circunstâncias sociais (CALDAS-<br />
COULTHARD, 2008, p. 27-28). Halliday (apud CALDAS-<br />
COULTHARD, 2008, p. 28) afirma que “a forma particular apresentada<br />
pelo sistema gramatical de uma língua está estreitamente relacionada<br />
com as necessidades pessoais e sociais para as quais a língua<br />
irá servir”. O texto, analisado segundo esta perspectiva, é considerado<br />
uma unidade semântica e uma forma de inter(ação).<br />
Este modelo tridimensional de análise do texto\discurso assume<br />
o posicionamento que qualquer evento ou exemplo de discurso<br />
pode ser considerado, simultaneamente, um texto (análise linguística),<br />
um exemplo de prática discursiva (análise da produção e interpretação<br />
textual) e um exemplo de prática social (análise das circunstâncias<br />
institucionais e organizacionais do evento comunicativo).<br />
Nas palavras de Fairclough (1998, p. 83-84):<br />
Esta abordagem tem uma característica especial: a ligação entre a<br />
prática sociocultural e o texto é mediada pela prática discursiva. A forma<br />
como um texto é produzido e interpretado – ou seja, que práticas e convenções<br />
discursivas têm origem em que ordem (ou ordens) do discurso e<br />
como se articulam – dependem da natureza da prática sociocultural que o<br />
discurso integra (incluindo a sua relação com hegemonias já existentes);<br />
a natureza da prática discursiva da produção textual molda o texto, deixando<br />
‘vestígios’ nas suas características superficiais; por fim, a natureza<br />
da prática discursiva da interpretação textual determina a forma como serão<br />
interpretados os laços superficiais de um texto.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
652<br />
Para atender a esse modelo tridimensional, deverão ser consideradas<br />
três perspectivas analíticas, a multidimensional, a multifuncional<br />
e a histórica. A primeira, para avaliar as relações entre mudança<br />
discursiva e social e, também, para relacionar as propriedades<br />
particularizadas de textos às propriedades sociais de eventos discursivos;<br />
a segunda, a multifuncional, para averiguar as mudanças nas<br />
práticas discursivas que contribuem para mudar o conhecimento, as<br />
relações e identidades sociais; finalmente, a histórica, para discutir a<br />
“estruturação ou os processos ‘articulatórios’ na construção de textos<br />
e na constituição, em longo prazo, de ‘ordens de discurso’” (FAIR-<br />
CLOUGH, 2008, p. 27, destaques do autor).<br />
A análise de um discurso, tomado como exemplo particular<br />
de prática discursiva, focaliza os processos tanto de produção e de<br />
distribuição como de consumo textual. Esses processos são sociais,<br />
por isso exigem referência aos ambientes econômicos, políticos e<br />
institucionais particulares, nos quais o discurso é gerado. Podemos,<br />
ainda, afirmar que a produção e o consumo são, parcialmente, de natureza<br />
sociocognitiva. Essa afirmação se justifica porque ambas são<br />
práticas que abrangem processos cognitivos de produção e interpretação<br />
textual que, por sua vez, são fundamentados nas estruturas e<br />
nas convenções sociais interiorizadas (daí o uso do prefixo “sócio-”).<br />
Van Dijk (2008), da corrente sociocognitivista da ACD, não aceita a<br />
passagem do discurso ao social (especialmente ao poder e dominação),<br />
sem ligá-lo ao cognitivo:<br />
De acordo com o meu esquema teórico, essa ligação direta não existe:<br />
não há uma influência direta da estrutura social sobre a escrita ou a<br />
fala. Antes, estruturas sociais são observadas, experimentadas, interpretadas<br />
e representadas por membros sociais, por exemplo, como parte de<br />
sua interação ou comunicação continuada. É essa (subjetiva) representação,<br />
esses modelos mentais de eventos específicos, esse conhecimento,<br />
essas atitudes e ideologias que, no fim, influenciam os discursos e outras<br />
práticas sociais das pessoas (VAN DIJK, 2008, p. 26).<br />
Por fim, ainda se pode afirmar que a “concepção tridimensional<br />
do discurso” reúne três tradições analíticas (FAIRCLOUGH,<br />
1998): descrição – análise textual; interpretação – prática discursiva;<br />
explicação – análise social. Caldas-Coulthard (2008) nos informa<br />
que na tradição descritiva, o texto, embora unidade semântica, é analisado<br />
segundo suas características formais; a interpretação investiga
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
653<br />
o uso das convenções; a explicação tem por objetivo “explicitar como<br />
as propriedades de interação situam-se na ação social” (p. 32),<br />
verificando o uso político e ideológico dessa interação e as relações<br />
de poder e valores discriminatórios.<br />
Observa-se que nem sempre é nítida a distinção entre “descrição”<br />
e “interpretação”. O critério recomendável, segundo o próprio<br />
Fairclough (1998, 2008), é considerar como “descrição” os casos em<br />
que mais se destaquem os aspectos formais do texto. Realçando-se<br />
mais os processos produtivos e interpretativos, há de ter-se em conta<br />
a análise da prática discursiva, embora se envolvam, também, os aspectos<br />
formais do texto. Também vale lembrar que a análise do discurso<br />
é uma atividade multidisciplinar. Ao analisar textos, mesmo<br />
linguisticamente, estamos considerando tanto forma quanto conteúdo,<br />
ainda que algumas abordagens tenham tentado diferenciar e distanciar<br />
esses aspectos.<br />
A seguir, o modelo tridimensional e suas categorias de análise.<br />
Deve-se considerar que estas categorias e dimensão não devem<br />
constituir-se de forma estanques, são apenas nortes que ajudam na<br />
análise.
Figura 1: Adaptação do Modelo Tridimensional 2<br />
2.1.3. Análise textual<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
654<br />
Dimensão baseada na tradição de análise textual e linguística<br />
e tem como objetivo descrever as características organizacionais gerais,<br />
o funcionamento e o controle das interações. Não deve ser feita<br />
isoladamente das outras dimensões. Os itens relevantes nesta análise<br />
são: tomada de turnos, estruturas de trocas, controle de tópicos, determinação<br />
e policiamento de agendas, formulação, modalidades, polidez,<br />
ethos, conectivos e argumentação, transitividade e tema, significado<br />
das palavras, criação de palavras, metáforas, entre outros. A<br />
análise textual envolve quatro itens, apresentados em escalas ascendentes:<br />
a) vocabulário (lexicalização); b)gramática, c) coesão e d) estrutura<br />
textual.<br />
a) Vocabulário<br />
Significado das palavras: mapear as palavras-chave que apresentam<br />
significado cultural variável, o significado potencial<br />
de uma palavra, enfim, como elas funcionam como um modo<br />
de hegemonia e um foco de luta.<br />
Criação de palavras: examinar as lexicalizações alternativas<br />
e sua significação tanto política quanto ideológica. É interessante<br />
constatar que a criação de itens lexicais gera novas categorias<br />
culturalmente essenciais.<br />
Para Fairclough (Cf. RESENDE; RAMALHO, 2006, p. 75)<br />
“Os significados das palavras e a lexicalização de significados<br />
não são construções individuais, são variáveis socialmente<br />
construídas e socialmente contestadas, são ‘facetas de processos<br />
sociais e culturais mais amplos’. Com isto devemos entender<br />
que os significados das palavras ou a lexicalização destes<br />
significados não resultam de leituras individuais, mas leituras<br />
de indivíduos inseridos histórico-socialmente. O próprio<br />
2 Pedrosa (2005) apresenta o modelo através de quadros em "Análise crítica do discurso<br />
– uma proposta para a análise crítica..." Propostas da ACD. A ACD propõe-se a estudar<br />
a linguagem como prática social e, Os que fundamentam suas pesquisas na análise<br />
crítica do discurso www.filologia.org.br/ixcnlf/3/04.htm
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
655<br />
Rajagopalan (2003) destaca que o processo de nomeação é<br />
um ato político.<br />
Metáfora: caracterizar as metáforas utilizadas em contraste<br />
com metáforas usadas para sentidos semelhantes em outro lugar,<br />
verificar que fatores (cultural, ideológico, histórico etc.)<br />
determinam a escolha dessa metáfora. Verificar as implicações<br />
políticas e ideológicas, identificando os conflitos entre<br />
metáforas alternativas. Fairclough (2008), com base em Lakoff<br />
e Johnson, afiança que as metáforas estão ‘infiltradas’ na<br />
vida cotidiana, na linguagem, no pensamento e na ação. Isto<br />
corrobora o fato de nosso sistema conceitual ser, por natureza,<br />
metafórico. Significa, deste modo, que os conceitos não só estruturam<br />
os pensamentos, estruturam também o modo como<br />
apreendemos o mundo e como nele nos comportamos. Para<br />
Dell’Isola (1998), a metáfora é um fenômeno discursivo e por<br />
isso apresenta-se em um contexto referencial, podendo também<br />
conter marcas culturais. O criador da metáfora e seu<br />
‘desconstrutor’, inseridos em um contexto cultural, subvertem<br />
as regras da língua/do discurso a fim de construir novas formas<br />
de discursos e representações da realidade.<br />
Caldas-Coulthard (2008, p. 33, 34) sugere uma lista de perguntas<br />
norteadoras para se proceder à análise do vocabulário:<br />
1- Há palavras no texto que são ideologicamente contestadas<br />
(sexistas, recistas etc.);<br />
2- Há algumas que permitem classificar as pessoas no texto<br />
quanto ao tipo de profissão e de papeis sociais.<br />
3- Há palavras formais ou informais no texto (formas de tratamento,<br />
por exemplo)?<br />
4- Que valor expressivo é dado às palavras (como as palavras<br />
avaliativas são usadas, por exemplo)?<br />
5- Que metáforas são usadas?<br />
b) Gramática
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
656<br />
Transitividade (função ideacional da linguagem): Verificar se<br />
tipos de processo [ação, evento...] e participantes estão favorecidos<br />
no texto, que escolhas de voz são feitas (ativa ou passiva)<br />
e quão significante é a nominalização dos processos”<br />
(FAIRCLOUGH, 2008, p. 287). Há uma motivação social para<br />
analisar a transitividade. Pode-se tentar estabelecer que fatores<br />
sociais, culturais, ideológicos, políticos ou teóricos decidem<br />
como um processo é significado num tipo de discurso<br />
particular (ou mesmo em diferentes discursos) ou em um dado<br />
texto. Por exemplo, há motivação para escolher a voz passiva.<br />
Seu uso permite a omissão do agente por ser irrelevante,<br />
por ser evidente por si mesmo ou por ser desconhecido, mas,<br />
também, a omissão pode ter razões políticas ou ideológicas, a<br />
fim de ofuscar o agente, a causalidade e a responsabilidade.<br />
Tema (função textual da linguagem): observar se existe um<br />
padrão discernível na estrutura do tema do texto para as escolhas<br />
temáticas das orações. Tema é a “dimensão textual da<br />
gramática da oração dedicada aos modos pelos quais os elementos<br />
da oração são posicionados de acordo com a sua proeminência<br />
informacional” (FAIRCLOUGH, 2008, p. 221).<br />
Modalidade (função interpessoal da linguagem): determinar<br />
padrões por meio da modalidade, quanto ao grau de afinidade<br />
expressa com proposições. Quando as pessoas escolhem suas<br />
orações em termos de modelo e estrutura, selecionam, também,<br />
o significado e a construção de identidades sociais, de<br />
relações sociais, de crenças e conhecimentos. Alguns itens<br />
gramaticais são utilizados para modalizar a oração: verbos<br />
auxiliares modais, tempos verbais, conjunto de advérbios modais<br />
e seus adjetivos equivalentes. Além desses elementos,<br />
outros aspectos da linguagem também indicam a modalização,<br />
como padrões de entonação, fala hesitante, entre outros.<br />
Na modalidade, temos mais que um comprometimento do falante<br />
com suas proposições, um comprometimento que passa,<br />
também, pela interação com os interlocutores.<br />
A lista de Caldas-Coulthard (2008, p. 34) em relação á gramática<br />
é a seguinte:
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
657<br />
1- Que tipos de processos verbais e participantes são predominantes<br />
na interação?<br />
2- O agenciamento é explicito (quem faz o quê)?<br />
3- Que tipos de nominalizações são usados?<br />
4- As orações são ativas ou passivas?<br />
5- Que modos (declarativo, interrogativo, imperativo) são<br />
usados?<br />
6- Como a modalidade é feita?<br />
7- Que tipos de pronomes são usados? E como?<br />
8- As orações são positivas ou negativas?<br />
9- As orações complexas são caracterizadas por subordinação<br />
ou coordenação?<br />
c) Coesão<br />
Mostrar de que forma as orações e os períodos estão interligados<br />
no texto. Na coesão, pode-se considerar como as orações<br />
são ligadas em frases e como essas são ligadas para formar<br />
unidades maiores nos textos. Os marcadores coesivos não<br />
podem ser vistos apenas como propriedades objetivas dos textos,<br />
mas “têm de ser interpretados pelos intérpretes de textos<br />
como parte do processo de construção de leituras coerentes do<br />
texto” (FAIRCLOUGH, 2008, p. 220). Esses marcadores<br />
também necessitam ser tomados dinamicamente e segundo a<br />
visão do produtor do texto: os produtores de texto situam ativamente<br />
relações coesivas de determinados tipos no processo<br />
de posicionar o intérprete como sujeito. A coesão pode tornarse<br />
um modo significativo de trabalho ideológico que ocorre<br />
em um texto.<br />
d) Estrutura textual
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
658<br />
Descrever as características organizacionais gerais, o funcionamento<br />
e o controle das interações. A estrutura textual também<br />
diz respeito à arquitetura do texto, principalmente no que<br />
se refere a aspectos superiores do planejamento de diferentes<br />
tipos de texto. A forma como o texto se organiza pode expandir<br />
a percepção dos sistemas de crenças e conhecimentos e alargar,<br />
também, a percepção dos pressupostos sobre as relações<br />
sociais dos tipos de texto mais diversos.<br />
Polidez: identificar que estratégias de polidez são mais utilizadas<br />
na amostra e o que isso sugere sobre as relações sociais<br />
entre os participantes. As regras de polidez particulares tanto<br />
incorporam quanto reconhecem relações sociais de poder particulares.<br />
Segundo Fairclough (2008, p. 204), “investigar as<br />
convenções de polidez de um dado gênero ou tipo de discurso<br />
é um modo de obter percepção das relações sociais dentro das<br />
práticas e dos domínios institucionais, aos quais esse gênero<br />
está associado”.<br />
Ethos: verificar as características que contribuem para a construção<br />
do ‘eu’ ou de identidades sociais. “A imagem discursiva<br />
de si é [...] ancorada em estereótipos, um arsenal de representações<br />
coletivas que determinam, parcialmente, a apresentação<br />
de si e sua eficácia em uma determinada cultura”<br />
(CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2004, p. 221). Esses<br />
estereótipos culturais circulam nos mais diversos domínios:<br />
literatura, cinema, publicidade etc. (MAINGUENEAU,<br />
2001). O posicionamento de Fairclough (2008) é o de que o<br />
ethos pode ser considerado como parte de um processo mais<br />
amplo de “modelagem” em que o tempo e o lugar de uma interação<br />
e seus participantes, assim como o ethos desses participantes,<br />
são constituídos pela valorização de ligações em<br />
certas direções intertextuais de preferência a outras.<br />
Mais uma vez, a contribuição da lista elaborada por Caldas-<br />
Coulthard (2008, p. 34)<br />
1- Onde está situada a principal informação no texto?<br />
2- Que tipos de relações oracionais existem?
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
659<br />
3- Que tipos de estruturas genéricas são usados (narrativa,<br />
argumentações, relatórios etc.)?<br />
2.1.4. Análise discursiva<br />
A prática discursiva (produção, distribuição e consumo) está<br />
baseada na tradição interpretativa ou microssociológica de levar em<br />
conta a prática social como algo que as pessoas, ativamente, produzem<br />
e apreendem com embasamento em procedimentos compartidos<br />
consensualmente. Trata-se, portanto, de uma análise chamada de “interpretativa”,<br />
pois é uma dimensão que trabalha com a natureza da<br />
produção e interpretação textual. Alguns aspectos podem ser observados<br />
nessa análise, envolvendo as três dimensões da prática discursiva:<br />
produção do texto – interdiscursividade e intertextualidade manifesta;<br />
distribuição do texto – cadeias intertextuais; consumo do texto<br />
– coerência. A essas três dimensões, Fairclough (2008) acrescentou<br />
as “condições da prática discursiva” com a finalidade de apresentar<br />
aspectos sociais e institucionais que envolvem produção e consumo<br />
de textos.<br />
a) Produção do texto<br />
Por interdiscursividade e intertextualidade, entende-se a propriedade<br />
que os textos têm de estar repletos de fragmentos de<br />
outros textos. Esses fragmentos podem estar delimitados explicitamente<br />
ou miscigenados com o texto que, por sua vez,<br />
pode assimilar, contradizer ou fazer ressoar, ironicamente, esses<br />
fragmentos.<br />
Interdiscursividade (intertextualidade constitutiva): Especificar<br />
os tipos de discurso que estão na amostra discursiva sob<br />
análise, e de que forma isso é feito.<br />
Intertextualidade manifesta: Especificar o que outros textos<br />
estão delineando na constituição do texto da amostra, e como<br />
isso acontece. Como ocorre a representação discursiva: direta<br />
ou indireta? O discurso representado está demarcado claramente?<br />
De acordo com o processo considerado, a intertextua-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
660<br />
lidade pode ser vista diferentemente. No processo de produção,<br />
a intertextualidade acentua a historicidade dos textos,<br />
sendo sempre acréscimo às “cadeias de comunicação verbal”<br />
(BAKHTIN, 2000). No processo de distribuição, a intertextualidade<br />
é útil para a “exploração de redes relativamente estáveis<br />
em que os textos se movimentam, sofrendo transformações<br />
predizíveis ao mudarem de um tipo de texto a outro”<br />
(FAIRCLOUGH, 2008, p. 114). No processo de consumo, a<br />
intertextualidade é proveitosa ao destacar que não é unicamente<br />
“o texto” (ou os textos intertextualizados na constituição<br />
desse texto) que molda a interpretação, porém, também os<br />
outros textos que os intérpretes, variavelmente, trazem ao<br />
processo de interpretação. Observar se há relação entre intertextualidade<br />
e hegemonia é importante e produtivo como pista<br />
para a interpretação, para explicar as mudanças. O conceito<br />
de intertextualidade liga-se à produtividade dos textos, pois<br />
aponta para como os textos transformam textos anteriores e<br />
reestruturam as convenções existentes a fim de originar novos<br />
textos.<br />
b) Distribuição do texto<br />
Cadeias intertextuais: classificar a distribuição de uma amostra<br />
discursiva através da descrição das séries de textos nas<br />
quais ou das quais é transformada. Quais os tipos de transformações,<br />
quais as audiências antecipadas pelo produtor?<br />
Quando especificamos as cadeias intertextuais em que entra<br />
um tipo particular de discurso, estamos, na verdade, especificando<br />
sua distribuição. O número de cadeias intertextuais é<br />
limitado pelo número de cadeias reais, ou seja, pelo número<br />
de instituições e de práticas sociais. As cadeias intertextuais<br />
podem ser muito complexas, como ocorre, por exemplo,<br />
quando se transforma um discurso presidencial em outros textos,<br />
pertencentes a diferentes gêneros (reportagens, análises e<br />
comentários, artigos acadêmicos etc.), ou podem ser muito<br />
simples, pois uma contribuição a uma conversa informal não<br />
poderá gerar tantas cadeias intertextuais como no exemplo an-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
661<br />
terior, provavelmente será apenas modificada por formulações<br />
dos coparticipantes.<br />
c) Consumo do texto<br />
Coerência: Considerar as implicações interpretativas das particularidades<br />
intertextuais e interdiscursivas da amostra. Como<br />
os textos são interpretados e quanto de trabalho inferencial<br />
é requerido. A coerência deixa de ser abordada como propriedade<br />
do texto para ser tratada como propriedades de interpretação,<br />
pois um texto só faz sentido para alguém, quando<br />
lhe é possível interpretá-lo, ao gerar leituras coerentes. Contudo,<br />
não se deve esquecer que há a possibilidade de fazeremse<br />
leituras diferentes, como resistência à proposta pelo texto.<br />
De qualquer modo, a fim de que um texto faça sentido, é necessário<br />
que os intérpretes encontrem uma maneira de convencionar<br />
seus vários dados em uma unidade coerente, conquanto<br />
não necessariamente unitária, determinada ou não ambivalente.<br />
No dizer de Magalhães (2001, p. 23): “Os interpretantes,<br />
além de sujeitos discursivos em processos discursivos,<br />
são também sujeitos sociais com determinadas experiências<br />
acumuladas de vida e recursos orientados diferentemente para<br />
as dimensões múltiplas da vida”.<br />
d) Condições da prática discursiva<br />
Especificar as práticas sociais de produção e consumo do texto,<br />
ligadas ao tipo de discurso que a amostra representa. A<br />
produção é coletiva ou individual? Há diferentes estágios de<br />
produção? A fim de compreender as condições de práticas<br />
discursivas, é necessário perceber que os textos são produzidos<br />
de maneira particular e em contextos sociais particulares.<br />
Semelhantemente à produção, os textos são consumidos diferentemente<br />
em variados contextos sociais. A produção e o<br />
consumo podem ser individuais ou coletivos. Os textos podem<br />
ser caracterizados por distribuição simples (conversa casual)<br />
ou complexa. Eles podem apresentar resultados variá-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
662<br />
veis, de natureza extradiscursiva e, ainda, discursiva (os atos<br />
de fala).<br />
2.1.5. Análise social<br />
O objetivo geral dessa prática é especificar “a natureza da<br />
prática social da qual a prática discursiva é uma parte, constituindo a<br />
base para explicar por que a prática discursiva é como é; e os efeitos<br />
da prática discursiva sobre a prática social” (FAIRCLOUGH, 2008,<br />
p. 289), porque “a prática social (política, ideológica etc.) é uma dimensão<br />
do evento comunicativo, da mesma forma que o texto” (FA-<br />
IRCLOUGH, 2008, p. 99). Essa é uma análise de tradição macrossociológica<br />
e com características interpretativas. É uma dimensão que<br />
verifica as questões de interesse na análise social, ou seja, analisa as<br />
circunstâncias institucionais e organizacionais do evento discursivo e<br />
de que maneira elas moldam a natureza da prática discursiva. Em resumo<br />
a análise social tem por objetivo, especialmente, trabalhar ideologia<br />
e hegemonia.<br />
a) Matriz social do discurso: especificar as relações e as estruturas<br />
sociais e hegemônicas que constituem a matriz dessa instância<br />
particular da prática social e discursiva; como essa instância<br />
aparece em relação a essas estruturas e relações [...]; e que efeitos<br />
ela traz, em termos de sua representação ou transformação?”<br />
(FAIRCLOUGH, 2008, p. 289-290).<br />
b) Ordens do discurso: explicitar o relacionamento da instância<br />
da prática social e discursiva com as ordens de discurso que ela<br />
descreve e os efeitos de reprodução e transformação das ordens<br />
de discurso para as quais colaborou.<br />
c) Efeitos ideológicos e políticos do discurso: focalizar os seguintes<br />
efeitos ideológicos e hegemônicos particulares: sistemas<br />
de conhecimento e crença, relações sociais, identidades sociais<br />
(eu).<br />
Conforme Fairclough, ideologias são construções ou significações<br />
da realidade (mundo físico, relações sociais, identidades sociais)<br />
que se fundamentam em diferentes dimensões das formas e dos
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
663<br />
sentidos das práticas discursivas e que colaboram para a produção, a<br />
reprodução ou a transformação das relações de poder.<br />
As ideologias implícitas nas práticas discursivas são por demais<br />
eficazes quando se tornam naturalizadas e conseguem atingir o<br />
status de senso comum (repositório dos diversos efeitos de lutas ideológicas<br />
passadas e constante alvo de reestruturação nas lutas atuais).<br />
Contudo, essa propriedade aparentemente estável e estabelecida das<br />
ideologias pode ser subjugada pela transformação, ou seja, pela luta<br />
ideológica como dimensão da prática discursiva, conseguindo-se, assim,<br />
remodelar as práticas discursivas e as ideologias que nelas foram<br />
construídas, no contexto das redefinições das relações de dominação.<br />
A ideologia é uma propriedade tanto de estruturas nas ordens<br />
dos discursos (que constituem o resultado de eventos passados)<br />
quanto de eventos (ou condições de eventos atuais e nos próprios eventos).<br />
Nas palavras de Fairclough (2001, p. 119), “é uma orientação<br />
acumulada e naturalizada que é construída nas normas e nas<br />
convenções, como também um trabalho atual de naturalização e desnaturalização<br />
de tais orientações nos eventos discursivos”.<br />
Fairclough afirma que os sujeitos, mesmo sendo posicionados<br />
ideologicamente, têm capacidade de agir criativamente, no sentido<br />
de executar suas próprias conexões entre as diversas práticas e ideologias<br />
a que são expostos e, também, de reestruturar tanto as práticas<br />
quanto as estruturas posicionadoras. “O equilíbrio entre o sujeito ‘efeito’<br />
ideológico e o sujeito agente ativo é uma variável que depende<br />
das condições sociais, tal como a estabilidade relativa das relações<br />
de dominação” (FAIRCLOUGH, 2008, p. 121).<br />
Esta questão do sujeito vem a ser o grande embate entre AD e<br />
ACD. Aquela com um sujeito assujeitado e esta com um sujeito<br />
transformador. Diante deste aspecto, é interessante conhecer o posicionamento<br />
de um grande analista (da AD) nacional – Sirio Possente.<br />
Possenti (2009, p. 83) afirma que passou “não aceitar a tese corrente<br />
em AD segundo a qual o sujeito é assujeitado, não foi por desconhecê-la.<br />
Foi exatamente porque eu a conhecia bastante bem e a<br />
tinha anteriormente aceito. Se passei a não mais aceitá-la, pelo menos<br />
na formulação Althusseriana, foi por outras razões, teóricas e
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
664<br />
empíricas”, e ainda acrescenta que o próprio Foucault em sua obra o<br />
Uso dos Prazeres (1984 apud POSSENTI, 2009, p. 87) “abandonara<br />
seu posto antigo, e visava agora a um sujeito das práticas do cotidiano,<br />
cercado de circunstâncias que certamente não o deixam livre,<br />
mas que não o subjugam.” E arremata com a frase: “Estamos longe<br />
do sujeito assujeitado”.<br />
Fairclough considera que nem todo discurso é irremediavelmente<br />
ideológico. As ideologias caracterizam as sociedades que são<br />
estabelecidas numa relação de poder, de dominação. Assim, à medida<br />
que os seres humanos transcendem esse tipo de sociedade, transcendem<br />
também a ideologia. Por isso, Fairclough (2008) não aceita a<br />
visão que atribui a Althusser, em que a ideologia é o cimento social,<br />
o que é inseparável da sociedade. Os discursos caracterizam-se abertos<br />
em termos de princípios, logo, eles não são investidos ideologicamente<br />
no mesmo grau.<br />
O segundo ponto a ser tratado na análise da prática social é a<br />
hegemonia, conceito procedente dos estudos de Gramsci (Apud FA-<br />
IRCLOUGH, 2008) sobre o capitalismo ocidental e da estratégia revolucionária<br />
da Europa Ocidental. Destacaremos algumas concepções<br />
de hegemonia aceitas por Fairclough (2008, p. 122):<br />
a. É tanto liderança como exercício do poder em vários domínios de<br />
uma sociedade (econômico, político, cultural e ideológico).<br />
b. É, também, a manifestação do poder de uma das classes economicamente<br />
definidas como fundamentais em aliança com outras forças<br />
sociais sobre a sociedade como um todo, porém nunca alcançando,<br />
senão parcial e temporariamente, um ‘equilíbrio instável’.<br />
c. É, ainda, a construção de alianças e integração através de concessões<br />
(mais do que a dominação de classes subalternas).<br />
d. É, finalmente, um foco de luta constante sobre aspectos de maior volubilidade<br />
entre classes (e blocos), a fim de construir, manter ou,<br />
mesmo, a fim de romper alianças e relações de dominação e subordinação<br />
que assumem configurações econômicas, políticas e ideológicas.<br />
Ideologia, a partir dessa visão de hegemonia, é “uma concepção<br />
do mundo que está implicitamente manifesta na arte, no direito,<br />
na atividade econômica e nas manifestações da vida individual e coletiva”<br />
(GRAMSCI apud FAIRCLOUGH, 2008, p. 123). A produ-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
665<br />
ção, a distribuição e o consumo de textos são, em verdade, um dos<br />
enfoques da luta hegemônica que contribui, em diferentes graus, para<br />
a reprodução ou a transformação da ordem de discurso e das relações<br />
sociais e assimétricas existentes.<br />
Hegemonia, em resumo, é o domínio baseado no consenso, na<br />
concessão que grupos poderosos fazem a grupos menores, a fim de<br />
não desestabilizar o poder.<br />
O discurso vem a ser a grande força utilizada para naturalizar<br />
práticas sociais hegemônicas, pois ele tem a força de naturalizar<br />
condições adversas ou discrepantes socialmente em algo aceito sem<br />
questionamento. Van Dijk (2008, p. 21) afirma que “A ilusão de liberdade<br />
e diversidade pode ser uma das melhores maneiras de produzir<br />
a hegemonia ideológica que servirá aos interesses dos poderes<br />
dominantes na sociedade".<br />
2.2. Metodologia em análise crítica do discurso<br />
A análise crítica do discurso é uma disciplina que dialoga<br />
com a Linguística e a Ciência Social Crítica e constitui um modelo<br />
teórico-metodológico aberto a pesquisas de diversas práticas na vida<br />
social. Conforme Pedro (1998, p. 26). “a ACD procura centrar-se na<br />
análise das estratégias discursivas que legitimam o controle, que ‘naturalizam’<br />
a ordem social e, especialmente, as relações de desigualdade”.<br />
Por isso, as análises empíricas em ACD devem movimentarse<br />
entre o linguístico e o social, pois esta considera o discurso como<br />
uma forma de prática social, ou seja, como um modo de ação sobre o<br />
mundo e a sociedade, apontando para as mudanças sociais contemporâneas<br />
e as práticas emancipatórias. Isto justifica por que pesquisa,<br />
nesse campo, requer uma visão científica de crítica social a fim de<br />
prover base científica para um questionamento crítico da prática social<br />
(RESENDE; RAMALHO, 2004).<br />
Por isso que fundamentam suas pesquisas na análise crítica do<br />
discurso orientam para que os métodos utilizados sirvam para vincular<br />
a teoria com a observação. Seus métodos indicam as vias segui-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
666<br />
das ou que serão seguidas pela investigação. Pelo fato de os investigadores<br />
seguirem vários enfoques, a metodologia adotada, como não<br />
poderia deixar de ser, seguirá, também, vários caminhos, de acordo<br />
com os enfoques ressaltados. Segundo Meyer (2003), é necessário<br />
que a ACD mantenha, continuamente, uma retroalimentação entre a<br />
análise e a recolhida de dados. Por isso, a seleção de dados não se<br />
encerra quando do início da análise, ao contrário, o analista, diante<br />
de um fato novo, buscará, em sua fonte de dados, exemplos que possam<br />
confirmar o que foi encontrado. O que poderia gerar uma análise<br />
infinita é controlado pelo recorte estabelecido para a pesquisa. Assim,<br />
a coleta de dados passa a ser uma fase, ou melhor, um processo<br />
permanentemente operativo. Isto por que trabalhos em ACD não delimitam<br />
as diferenças entre teoria, descrição e aplicação.<br />
Dentre seus campos de pesquisa, estão: mídia, enquadramento<br />
profissional, contextos burocráticos, burocratização e tecnologização<br />
da linguagem, literatura, discursos legais, médico, da ciência, da economia,<br />
racismo, discriminação com base no sexo, desvantagem<br />
educativa, situações multiétnica, entre outros.
3. Democratização, tecnologização e comodificação: as tendências<br />
contemporâneas do discurso<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
667<br />
Novas práticas de linguagem estão emergindo nos mais variados<br />
campos da vida social. De acordo com Fairclough (2008), as<br />
mudanças na prática social são inicialmente marcadas no plano da<br />
linguagem pelas mudanças no sistema de gêneros discursivos. Uma<br />
sociedade ou instituição particular tem uma configuração particular<br />
de gêneros com relações particulares entre eles, constituindo um sistema.<br />
Dessa forma, quando os gêneros sofrem mudanças, isso acaba<br />
alterando as relações entre eles, e consequentemente, o seu sistema.<br />
Para o autor, as três tendências que têm afetado o discurso nas<br />
sociedades contemporâneas são: a democratização, a comodificação<br />
e a tecnologização. As duas primeiras referem-se a mudanças efetivas<br />
nas práticas discursivas, enquanto a terceira, a tecnologização do<br />
discurso, é uma tendência de mudança nas ordens de discurso que<br />
sugere uma intervenção consciente nas práticas discursivas, fator<br />
significativo na produção de transformações sociais.<br />
Destaca ainda, o referido autor, que as tendências interagem<br />
entre si nos processos de luta hegemônica sobre a estrutura das ordens<br />
de discurso, causando um impacto notável sobre diversas ordens<br />
de discurso contemporâneas e projetando rearticulações.<br />
Fairclough (2008) desenvolveu análises de publicidade referente<br />
ao ensino superior para ilustrar esses processos. Os resultados<br />
mostram uma mudança nas tecnologias discursivas empregadas, fundamentadas<br />
em posicionamentos discursivos que revelam a construção<br />
do leitor como consumidor de um produto.<br />
Essa tendência neoliberal e globalizada também tem causado<br />
mudanças que afetam as práticas religiosas, contribuindo para uma<br />
nova visão de religião, associando-a aos princípios mercadológicos<br />
de produção e rentabilidade, introduzindo nas instituições religiosas<br />
a lógica da competição e concorrência no mercado.<br />
Escolhemos como objeto de análise o discurso institucional<br />
da Igreja Universal do Reino de Deus, entidade pública religiosa, em<br />
virtude de ela nos parecer um exemplo característico de estrutura<br />
empresarial-eclesiástica na atualidade. O corpus para análise é cons-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
668<br />
tituído por testemunhos publicados na seção Superação do jornal Folha<br />
Universal em 2008. Para entendermos melhor os três processos<br />
vejamos como eles são conceituados e como se realizam neste corpus.<br />
3.1 Democratização do discurso: a eliminação simulada<br />
de marcadores explícitos de poder<br />
As transformações ocorridas nas últimas décadas, aceleradas<br />
pelos avanços na tecnologia – nos meios de comunicação, nos modos<br />
de produção e na natureza das organizações – produziram a necessidade<br />
de uma nova linguagem. De modo geral, o discurso formal vem<br />
sendo substituído pelo informal.<br />
Para Fairclough (2008), essa tendência ao discurso conversacional<br />
é resultado do processo de democratização em todas as esferas<br />
da atividade humana. O autor entende como democratização do discurso,<br />
“a redução de marcadores explícitos de assimetria de poder<br />
entre pessoas com poder institucional desigual – professores e alunos,<br />
gerentes e trabalhadores, pais e filhos, médicos e pacientes –,<br />
que é evidente numa diversidade de domínios institucionais” (FA-<br />
IRCLOUGH 2008, p. 129).<br />
Em sua pesquisa, o linguista britânico analisa cinco áreas de<br />
democratização discursiva: relações entre línguas e dialetos sociais;<br />
acesso a tipos de discurso de prestígio; eliminação de marcadores<br />
explícitos de poder em tipos de discurso institucionais com relações<br />
desiguais de poder; tendência à informalidade das línguas, e mudanças<br />
nas práticas referentes ao gênero na linguagem. Em nosso trabalho<br />
destacaremos a retirada de marcadores explícitos de poder em tipos<br />
de discurso institucionais com relações desiguais de poder.<br />
Essa tendência de eliminar marcadores explícitos de poder,<br />
enfatiza o autor, está intimamente ligada à informalidade, cuja importância<br />
tem sido bastante acentuada pelos valores culturais contemporâneos.<br />
Ele afirma: “é nos tipos mais formais de situação que<br />
as assimetrias de poder e status são as mais nítidas” (FAIRCLOU-<br />
GH, 2008, p. 251). A forma como o discurso conversacional está<br />
sendo projetado do seu domínio privado para a esfera pública é uma
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
669<br />
manifestação clara de informalidade. Destaca ainda que a conversação<br />
está colonizando a mídia, vários tipos de discurso profissional/<br />
público, educacional e outros.<br />
A mudança na relação entre discurso falado e escrito dá a dimensão<br />
dessa manifestação de informalidade. Percebemos essa mudança<br />
referente à conversação não só em todas as partes da mídia<br />
impressa, mas também nos meios eletrônicos como rádio e televisão.<br />
Com isso cresce o número de programas de entrevistas e de apresentadores<br />
que conversam com seus ouvintes como se estivessem batendo<br />
um papo com amigos. Reportagens de jornais simulam o discurso<br />
conversacional. Observemos a chamada da seção Superação.<br />
“TODA SEMANA VOCÊ VAI ACOMPANHAR, AQUI,<br />
HISTÓRIAS EMOCIONANTES E DRAMÁTICAS<br />
DE QUEM ENFRENTOU E VENCEU DESAFIOS”.<br />
A personalização dos leitores (você), e a direção individualizada<br />
a fiéis potenciais (você e não vocês), simulam uma relação conversacional<br />
e, portanto, relativamente pessoal, informal, íntima, solidária<br />
e igual entre a instituição (Folha Universal/Igreja Universal) e<br />
o leitor, a quem ela deseja persuadir. Desse modo, com o uso do pronome<br />
“você”, o locutor encena um diálogo com o leitor e o convida<br />
para ler a seção todas as semanas.<br />
A referência direta é usada convencionalmente como marcador<br />
de informalidade na publicidade moderna. A esse respeito Fairclough<br />
(2008) afirma que os textos comodificados, construídos sobre<br />
modelos de publicidade, manifestam comumente aspectos democratizantes<br />
como a informalidade e o discurso conversacional.<br />
Porém, Fairclough (2008) ressalta que essa retirada funciona<br />
apenas como uma maquiagem e mostra sua preocupação com a eliminação<br />
de marcadores explícitos de hierarquia e assimetria de poder<br />
em tipos de discurso institucional nos quais as relações de poder<br />
são desiguais. Nas palavras do autor, “detentores de poder e ‘sentinelas’<br />
de vários tipos estão simplesmente substituindo mecanismos explícitos<br />
de controle por mecanismos encobertos” (FAIRCLOUGH,<br />
2008, p. 251).
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
670<br />
Corroborando e ampliando essa ideia, Carvalho (2002, p. 17)<br />
afirma que “o discurso [da propaganda] e da publicidade é um dos<br />
instrumentos de controle social e, para realizar esta função, simula<br />
igualitarismo, remove da estrutura de superfície os indicadores de<br />
autoridade e poder, substituindo-os pela linguagem da sedução”.<br />
Esses traços textuais marcam uma mudança histórica importante<br />
na natureza e nos objetivos dos “testemunhos religiosos” alinhada<br />
com as mudanças maiores da religião cristã: a colonização do<br />
discurso religioso pelo discurso de mercado. O mercado opera no<br />
sentido de cooptar o campo da religião para a reprodução dos seus<br />
interesses, exercendo assim o papel de reprodução e legitimação do<br />
modo de produção e da ideologia dominante.<br />
Nessa perspectiva, as leis da religião passam a praticar o idioma<br />
da mercadoria e a submeter tudo a essa engrenagem mercantilizadora.<br />
A publicidade, por sua vez, portadora dos interesses do capital,<br />
pressiona a religião a operar na mesma lógica, submete-a as<br />
mesmas regras e valores. Num primeiro momento, o evangelho vira<br />
mercadoria, oferecido em outdoors, faixas, propagandas e outras<br />
formas de mídia. Num segundo momento a fé vira mercadoria, que<br />
submete seu valor de uso ao valor de troca. E num momento final, os<br />
próprios fiéis viram mercadorias, através das notícias, dos testemunhos.<br />
Então, podemos afirmar que, nos casos analisados, há uma<br />
espécie de democratização relacionada a um sentido hegemônico,<br />
que acaba por participar da manutenção ou mudança dos valores, das<br />
crenças, da prática social.<br />
3.2 Tecnologização do discurso: a mudança discursiva<br />
como resultado de um processo consciente<br />
O termo ‘tecnologias discursivas’, adotado por Fairclough<br />
(2008), foi adaptado da análise de Foucault sobre as ‘tecnologias’ e<br />
‘técnicas’ ligadas ao ‘biopoder’ moderno, e a tecnologização do discurso<br />
como características de ordens de discurso modernas, ao se referir<br />
a uma das tendências de produção de mudança discursiva.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
671<br />
Norman Fairclough (2008, p. 264) chama de “tecnologização<br />
do discurso” um conjunto de técnicas que são usados estrategicamente<br />
para “ter efeitos particulares sobre o público”. Tendência das<br />
sociedades modernas, essas “técnicas” têm sido cada vez mais utilizadas<br />
por um grupo de pessoas detentoras de “habilidades especiais”,<br />
geralmente especialistas no manejo da linguagem, das técnicas linguísticas,<br />
de conhecimentos sobre a sociedade e seu funcionamento,<br />
na tentativa frequente de controle sobre a vida das pessoas.<br />
O teórico britânico (2008, p. 90) listou cinco características<br />
da tecnologização do discurso: 1. O surgimento de peritos em “tecnologia<br />
do discurso”; 2. Uma mudança no “policiamento” das práticas<br />
discursivas; 3. Concepção e projeção de técnicas discursivas descontextualizadas;<br />
4. Simulação discursiva com fundamentos estratégicos;<br />
5. Pressão no sentido de uniformizar as práticas discursivas.<br />
Ele diz:<br />
As tecnologias discursivas estabelecem uma ligação íntima entre o<br />
conhecimento sobre linguagem e discurso e poder. Elas são planejadas e<br />
aperfeiçoadas com base nos efeitos antecipados mesmo nos mais apurados<br />
detalhes de escolhas linguísticas no vocabulário, na gramática, na entonação,<br />
na organização do diálogo, entre outros, como também a expressão<br />
facial, o gesto, a postura e os movimentos corporais. Elas produzem<br />
mudança discursiva mediante um planejamento consciente. Isso implica<br />
acesso de parte dos tecnólogos ao conhecimento psicológico e sociológico<br />
(FAIRCLOUGH, 2008, p. 265).<br />
Caracterizadas como uma forma de poder, como instrumentos<br />
de policiamento e dominação das práticas discursivas, as tecnologias<br />
discursivas estão avançando para locais institucionais específicos,<br />
onde são conscientemente cuidadas, planejadas e aperfeiçoadas por<br />
especialistas para atender às exigências institucionais na transmissão<br />
das técnicas. Os especialistas ou tecnólogos têm acesso ao conhecimento<br />
sobre a linguagem e o discurso que moldam as práticas discursivas<br />
institucionais.<br />
Fairclough (2008, p. 264) afirma que a entrevista, o ensino, o<br />
aconselhamento e a publicidade são “técnicas transcontextuais que<br />
são consideradas como recursos ou conjunto de instrumentos que<br />
podem ser usados para perseguir uma variedade ampla de estratégias<br />
em muitos e diversos contextos”.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
672<br />
A mídia (recursos tecnológicos ligados à comunicação) é o<br />
espaço ideal para a tecnologização dos discursos das igrejas neopentecostais.<br />
Através dos meios de comunicação de massa, espaço que<br />
abriga profissionais aptos e especialistas em técnicas persuasivas, é<br />
que são publicizados os discursos comodificados das instituições religiosas.<br />
A produção discursiva midiática evangélico neopentecostal<br />
vem se caracterizando através da capacidade de despertar desejos.<br />
Em relação à ideia de sedução, Fairclough (2008), citando a obra de<br />
Habermas (1984), destaca a “colonização” do mundo pelos “sistemas<br />
da economia e do Estado”, o que provocaria “um deslocamento de<br />
usos ´comunicativos´ da linguagem (...) por usos ´estratégicos´ da<br />
linguagem – orientados para o sucesso, para conseguir que as pessoas<br />
realizem coisas” (FAIRCLOUGH, 2008, p. 24).<br />
Não podemos deixar de observar que a IURD, enquanto instituição<br />
religiosa, investe nessas tecnologias discursivas, usando uma<br />
gama de estratégias. Para ser mais eficaz naquilo que propõe, convencer<br />
os fiéis dos eficientes serviços e produtos, a IURD aperfeiçoou<br />
sua técnica de oratória contratando jornalistas e profissionais da<br />
área de marketing. Esses profissionais usam técnicas cada vez mais<br />
aprimoradas para convencer da capacidade que a própria IURD tem<br />
de resolver todos os males da face da Terra. Giddens (1991) utiliza o<br />
termo “peritos” quando se refere aos profissionais das igrejas que são<br />
pagos pelo trabalho de mediação entre o fiel e Deus, espécie de psicoterapeutas<br />
que proveem as pessoas das chaves compreensivas de<br />
suas dificuldades.<br />
Como ressaltamos anteriormente, o sucesso profissional e os<br />
ganhos materiais são temas recorrentes nos testemunhos publicados<br />
na seção Superação. Essa estratégia discursiva de sedução fica bem<br />
evidenciada nos exemplos abaixo.<br />
Título: “A pobreza tentou apagar meu sonho”<br />
[...]<br />
“Atribuo nosso sucesso profissional aos propósitos de fé que sempre<br />
participamos na IURD”. Além do consultório, o casal alcançou outra vitória:<br />
o nascimento do filho. (Edição 832, 16/03/2008)
Título: Determinação é essencial para o sucesso<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
673<br />
Subtítulo: Mergulhado em dívidas, médico encontra o verdadeiro<br />
caminho para os objetivos<br />
[...]<br />
Hoje, ele é proprietário de centros clínicos nos municípios de São<br />
Gonçalo, Itaboraí e Araruama, no interior do Rio de Janeiro, e de um<br />
consultório próprio na capital, oferecendo serviços em diversas áreas<br />
médicas, contando com uma equipe de aproximadamente 30 especialistas.<br />
(Edição 837, 20/04/2008)<br />
Título: Ideia redentora<br />
Subtítulo: Após duas falências e muitas derrotas, empresária faz<br />
sucesso em outros países<br />
“Superamos as duas falências que tivemos e as derrotas se tornaram<br />
conquistas”, conta.<br />
Tais resultados satisfatórios, segundo Selma, foram alcançados após<br />
participar do propósito da Fogueira Santa (campanha realizada na I-<br />
URD), do qual ela faz questão de não ficar de fora até os dias de hoje. “A<br />
cada Fogueira Santa, Deus me dá novas inspirações. Recentemente, adquiri<br />
um salão de beleza e estética num dos bairros de alto nível de Curitiba”,<br />
relata. (Edição 858, 22/09/2008)<br />
Nos fragmentos selecionados acima, o sucesso profissional e<br />
a prosperidade financeira detém importante centralidade. Os exemplos<br />
comprovam os propósitos comunicativos tecnologizados dos editores<br />
e evidenciam a lógica eminentemente capitalista que procura<br />
contextualizar a “fé” ao mercado consumidor.<br />
Constatamos, portanto, que a tecnologização do discurso tem<br />
provocado mudanças no discurso religioso, por meio de mudanças<br />
nas ordens de discurso das instituições e na configuração e articulação<br />
de novos gêneros discursivos, como é o caso do testemunho midiático,<br />
contexto da nossa pesquisa. Nesse caso, a mudança discursiva<br />
é planejada em detalhes, estrategicamente, para atingir objetivos<br />
predeterminados.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
674<br />
3.3 Comodificação: o discurso mercantilizado e marketizado<br />
da religião<br />
Além de poder classificá-los na tendência de “democratização”<br />
e “tecnologização”, é possível vislumbrar outra tendência na<br />
superfície dos textos analisados: a comodificação.<br />
Segundo Fairclough (2008), a comodificação é um processo<br />
que se configura na organização de domínios sociais diversos – cujo<br />
alvo não é a produção de bens de consumo – em estruturas de produção,<br />
distribuição e consumo: discursos associados com a produção de<br />
bens de consumo colonizam outros discursos institucionais.<br />
O exemplo de comodificação que o autor apresenta é o discurso<br />
educacional que oferece cursos vendidos pela publicidade. Tal<br />
como a educação, os “produtos” e “serviços” religiosos seriam apenas<br />
um de uma série de domínios cujas ordens de discurso são colonizadas<br />
pelo gênero publicitário. O resultado é uma proliferação de<br />
textos que conjugam aspectos de publicidade com aspectos de outros<br />
gêneros de discurso.<br />
O foco nesta seção é a intergenericidade: a emergência de um<br />
discurso híbrido de depoimento-e-publicidade e segue um modelo de<br />
análise tomado de Fairclough (2008). Pode-se destacar, de acordo<br />
com esse autor, que as mudanças na prática social são marcadas no<br />
plano da linguagem pelas mudanças no sistema de gênero discursivo.<br />
A análise intertextual e interdiscursiva do gênero discursivo é fundamental<br />
para o estudo do aspecto híbrido dos gêneros discursivos.<br />
Na concepção de Fairclough (2008), o aparecimento de novos gêneros<br />
e a transformação dos já existentes estão relacionados com mudanças<br />
discursivas mais amplas na sociedade contemporânea. Essa é<br />
uma tendência à comodificação do discurso que explica o caráter híbrido,<br />
interdiscursivo do gênero discursivo testemunho religioso em<br />
mídia impressa que é composto por configurações de diferentes gêneros<br />
e discursos.<br />
Até aqui temos nomeado nosso objeto de análise de gênero<br />
testemunho religioso em mídia impressa, para fazer distinção do testemunho<br />
religioso veiculado na mídia não impressa (radiofônica, televisiva<br />
e outras). A recente evolução dos “testemunhos” é um refle-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
675<br />
xo das “pressões” sofridas pelas igrejas no sentido de se adequarem<br />
às condições do mercado “vendendo” os seus “cultos” e fazendo uso<br />
de técnicas discursivas provenientes da área da publicidade. Algumas<br />
das mudanças já efetuadas refletem-se na aparência física dos<br />
“testemunhos”: uma configuração de texto multimodal, utilizando<br />
várias linguagens ou semioses – a verbal, a imagética, as cores etc.<br />
Tradicionalmente o testemunho consistia no relato de alguma<br />
benção alcançada. Continha, portanto, informações relativas ao problema<br />
enfrentado pelo depoente e a sua solução. O objetivo era a<br />
glorificação do nome de Deus. No modelo comodificado, o objetivo<br />
seria divulgar uma marca (instituição) e “vender” seus produtos.<br />
Trata-se, portanto, de um tipo de texto jornalístico com propriedades<br />
publicitárias, ou seja, expõe um fato, relata um acontecimento<br />
com intenções explícitas de promoção mercantil. Embora o<br />
testemunho publicado na seção Superação tenha um funcionamento<br />
linguístico-discursivo e formal do que seja uma linguagem jornalística<br />
(título, subtítulo, lead, relato de um fato), utiliza a linguagem<br />
marquetizada da persuasão, carregando a ideia de promoção mercantil.<br />
Constatamos, portanto, que tal gênero discursivo, de maneira<br />
sutil, incita os leitores a um estilo de vida, despertando neles antes<br />
uma necessidade ou desejo de ter algo. Assim, o espaço para o depoimento<br />
dos fiéis deixa de ser um simples relato e passa a ser persuasivo,<br />
mercantilista.<br />
O fato é que o produto ou serviço veiculado sob ícone de um<br />
depoimento (ACONTECEU COMIGO), no espaço editorial, terá<br />
mais credibilidade e legitimidade perante os leitores do testemunho.<br />
Assim, podemos dizer que o gênero discursivo testemunho religioso<br />
em mídia impressa tem como propósito comunicativo divulgar algum<br />
produto ou serviço, no caso específico, a própria IURD e seus<br />
produtos (Fogueira Santa de Israel) aproveitando-se do espaço editorial<br />
e de algumas propriedades da linguagem jornalística, com intenções<br />
explícitas de promoção mercantil. Portanto, a função comunicativa<br />
deste gênero é híbrida: informa para vender e vende para informar.<br />
Essa dubiedade confere ao depoimento/produto uma nova forma<br />
de ação e interação com o público, despertando o desejo pelo
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
676<br />
produto/serviço anunciado, impelindo o leitor/consumidor à ação.<br />
Dessa forma, vinculado a um acontecimento, o testemunho-publicidade<br />
passa a estimular as necessidades e interesses do leitor/consumidor,<br />
tendo como argumento vantagens, benefícios, como pode ser<br />
verificado no exemplo:<br />
Vida sem dívidas [manchete]<br />
Casal sofre fracasso financeiro mas participa de propósitos e recupera<br />
as perdas<br />
Por Ana Carolina Sousa<br />
redacao@folhauniversal.com.br<br />
São inúmeros os motivos que levam uma pessoa à Igreja Universal<br />
do Reino de Deus. Um deles é o fracasso na vida financeira. Foi o que<br />
aconteceu, por exemplo, com Marlene José Cabral Soares e Élcio Aparecido<br />
Soares, ambos de 37 anos. (FATO, ACONTECIMENTO) Quando o<br />
casal de trabalhadores autônomos chegou à IURD (PRODUTO) não possuía<br />
nada além de dívidas. Marlene relembra aquele momento difícil da<br />
vida:<br />
“Trabalhávamos muito e não crescíamos. Morávamos de favor em<br />
apenas dois cômodos e nossos filhos adoeciam constantemente. Com isso,<br />
o pouco dinheiro que entrava era gasto com médicos e remédios.<br />
Nosso casamento também estava desgastado por brigas e traições”.<br />
A mudança aconteceu quando chegaram à IURD (PRODUTO). Aprenderam<br />
sobre a importância do dízimo e participaram de campanhas e<br />
propósitos (PRODUTOS). Hoje, a família comemora o casamento feliz,<br />
os filhos saudáveis e a próspera vida financeira. “Somos muito abençoados<br />
em todos os sentidos. Nossa família é unida e não temos doenças.<br />
Conquistamos quatro caminhões, pois trabalhamos com comércio de frutas.<br />
Temos casa própria, um lote e carro de passeio”, conclui Marlene.<br />
(EDIÇÃO 852, 8/08/2008, destaques nossos)<br />
Como se pode observar, o texto acima apresenta uma configuração<br />
híbrida: insere-se no espaço editorial Superação, tendo a temática<br />
da fé, como pano de fundo, para divulgar os produtos da IURD,<br />
que transforma a vida das pessoas. Para tanto, de forma direta, divulga<br />
os benefícios e vantagens do produto IURD, por meio de um texto<br />
jornalístico.<br />
Percebemos no exemplo que o texto traz uma estrutura jornalística:<br />
título “Vida sem dívidas” (frase curta para chamar a atenção),
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
677<br />
atribuição de voz a um dos personagens (Marlene José Cabral Soares<br />
e Élcio Aparecido Soares), assinatura (por Ana Carolina Sousa redacao@folhauniversal.com.br),<br />
enfatizando a responsabilidade do jornalista,<br />
e foto-legenda. O texto traz informações acerca dos fiéis,<br />
mas procura, neste cenário informativo, divulgar produtos oferecidos<br />
pela IURD.<br />
Embora veiculadas no espaço para o depoimento do fiel, no<br />
exemplo fica evidenciado a promoção de produtos ou serviços, como<br />
a divulgação das campanhas oferecidas pela IURD e suas vantagens<br />
e benefícios, despertando o interesse do público leitor/consumidor.<br />
Brown (1971) afirma que a propaganda, ou a publicidade, usa<br />
alguns esquemas básicos a fim de obter o convencimento dos receptores,<br />
dentre os quais destacarei dois: a criação de inimigos (o discurso<br />
persuasivo costuma criar inimigos) e o apelo à autoridade (o<br />
discurso persuasivo chama alguém que valide o que está sendo afirmado).<br />
Em relação ao primeiro, as narrativas dos testemunhos revela<br />
muito bem esta questão. A IURD se justifica contra algo: a derrota<br />
em suas mais diferentes áreas da vida. Antes de chegar à IURD, a<br />
pessoa está falida, deprimida, desenganada etc.<br />
Os elementos apresentados acima convergem para certas conotações<br />
que se encontram no eixo combate-triunfo. Ou seja, as pessoas<br />
encontram uma arma para vencer os seus inimigos: a IURD. O<br />
resultado da vitória é o aumento do prestígio social, a paz e harmonia<br />
completa na família, a ausência total de doenças e vícios.<br />
Trouxemos outro exemplo (o número das frases foi acrescentado<br />
por nós). O texto ocupa um quarto de uma página do jornal, o<br />
resto é ocupado por duas fotos (com legendas que remetem à matéria<br />
interna) onde uma senhora aparece sorridente num escritório e na outra<br />
pousa entre dois carros novos em frente a uma garagem.<br />
Na legenda da primeira o destaque em negrito “CONQUIS-<br />
TA: Representação da marca de perfumes onde Izilda recebe distribuidores”,<br />
na segunda sobressai: “CARROS: Bênçãos conquistadas<br />
através da Fogueira Santa”.<br />
[Título]: “Eu venci a pobreza”
[Subtítulo] Empresária dá a volta por cima depois de conviver<br />
com a falta de dinheiro.<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
678<br />
A empresária Izilda de Oliveira Bandeira, de 50 anos, passou por<br />
muitas dificuldades antes de chegar à IURD [1]. “Meu marido sempre<br />
trabalhou, mas, em uma determinada época, ficou desempregado, o que<br />
desestruturou a nossa vida, inclusive o nosso casamento”, conta [2]. Com<br />
dois filhos pequenos e a casa para cuidar, Izilda diz que ficava angustiada<br />
diante da situação [3]. “Chegamos a depender de favor e de empréstimos<br />
de familiares para sobreviver [4]. Embora morássemos em casa<br />
própria, era inacabada, por conta das precárias condições financeiras”,<br />
relata, acrescentando que, não bastassem tantos problemas, os filhos viviam<br />
doentes, e isso gerava gastos também com remédios [5]. Sem dormir<br />
direito, a empresária lembra que, durante as madrugadas, assistia à<br />
programação da IURD pela televisão, o que despertou o interesse dela<br />
em buscar ajuda [5]. “Fui à Igreja e lá aprendi a lutar, agir minha fé e, acima<br />
de tudo, obedecer a Deus totalmente [6]. Tomei conhecimento da<br />
Fogueira Santa de Israel – um propósito de fé da Igreja – e me lancei de<br />
corpo, alma e espírito”, diz, salientando que, de lá para cá, a vida dela<br />
nunca mais foi a mesma, senão de vitórias [7]. Hoje, Izilda é proprietária<br />
de uma marca de perfumes, com escritório próprio de representação em<br />
Santo André, no ABC Paulista. Segundo ela, a marca foi criada e estruturada<br />
a partir de uma inspiração concedida por Deus [8]. “Pagamos as dívidas,<br />
não dependemos mais de ninguém e temos tudo do bom e do melhor,<br />
inclusive automóveis zero quilômetro, uma casa ampla e confortável<br />
e um belo apartamento na praia da Enseada, região nobre do Guarujá,<br />
litoral de São Paulo”, testemunha [9]. (Edição 843 – 01/06/2008, p. 2i).<br />
O exemplo apresenta o depoimento de uma usuária (cliente)<br />
da IURD e, ao mesmo tempo, tenta “vende-la”. O texto apresenta de<br />
forma padronizada uma alternância no nível da frase entre tipos de<br />
discurso de depoimento e de publicidade. Por exemplo, a manchete<br />
(em caixa alta, tamanho de letras bem maiores, em negrito) “EU<br />
VENCI A POBREZA” entre aspas, possui características de um testemunho<br />
pessoal, já a continuação da mesma manchete, “empresária<br />
dá a volta por cima depois de conviver com a falta de dinheiro” parece<br />
um anúncio de uma instituição financeira, ou de uma gerenciadora<br />
de loteria.<br />
No exemplo, o programa de televisão da igreja é mencionado<br />
como o grande responsável pelo início da transformação na vida da<br />
pessoa: sem dormir direito, a empresária lembra que, durante as<br />
madrugadas, assistia à programação da IURD (frase (5)). Outras,<br />
como (6), (7) e (8) são muito claramente atribuíveis ao discurso publicitário.<br />
Assim, a reportagem acaba por se assemelhar a uma peça
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
679<br />
publicitária sobre a IURD. Além disso, ao analisar as imagens, também<br />
é possível verificar a sua capacidade de simular um estilo de vida,<br />
criando um mundo que consumidores potenciais, produtores e<br />
produtos podem conjuntamente ocupar.<br />
A mescla de informações sobre o depoimento e publicidade<br />
pode ser interpretada como um modo de reagir ao dilema que instituições<br />
como igrejas enfrentam no mercado moderno. Segundo Fairclough<br />
(2008, p. 151), “setores da economia fora da produção de<br />
bens de consumo estão, de modo crescente, sendo arrastados para o<br />
modelo dos bens de consumo e para a matriz do consumismo, e estão<br />
sob pressão para 'empacotar' suas atividades como bens de consumo<br />
e 'vendê-las' aos 'consumidores'”.<br />
A comodificação, de acordo com o autor supracitado, não é<br />
um processo particularmente novo, mas recentemente ganhou força e<br />
intensidade como um aspecto da “cultura empresarial”. Observa-se<br />
que essa cultura vem se concretizando cada vez com maior força no<br />
campo religioso, à medida que os fiéis passam a ser vistos como clientes.<br />
Isso tem feito com que as instituições religiosas se tornem cada<br />
vez mais atrativas, e seus serviços precisam agradar cada vez mais<br />
os consumidores, acirrando a concorrência no mercado religioso cada<br />
vez mais. No intuito de atrair uma determinada “clientela”, as instituições<br />
tendem a mostrar que a religião pode ser algo lucrativo,<br />
bastando que os fiéis frequentem regularmente a igreja, que se “vende”<br />
através do discurso marketizado como uma instituição diferenciada,<br />
e contribua financeiramente.<br />
Assim, as pessoas são atraídas para os templos, “catedrais da<br />
fé” como são chamadas, (verdadeiros shopping centers da fé) com a<br />
promessa de algum ganho, seja ele de caráter físico, emocional ou<br />
financeiro. Com isso até mesmo a “fé” tem se transformado em um<br />
bem de consumo, um objeto de leilão: leva quem dá o maior lance.<br />
Ou um tipo de “título de capitalização celestial”: sua oferta rende juros<br />
e correção monetária e se tiver sorte alguns prêmios extras, do tipo:<br />
carros importados, apartamentos na praia, sítios e fazendas, e<br />
uma empresa, é claro.<br />
Ainda segundo Fairclough (2008, p. 151), “textos do tipo informação<br />
e publicidade ou falar e vender são comuns em várias or-
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680<br />
dens de discurso institucionais na sociedade contemporânea. Eles<br />
testemunham um movimento colonizador da publicidade do domínio<br />
do mercado de bens de consumo, num sentido estrito, para uma variedade<br />
de outros domínios”.<br />
No testemunho religioso midiático a fala do testemunhante,<br />
inserida num contexto jornalístico, tem como principal objetivo<br />
“vender” o produto IURD. Para incrementar um trabalho provocativo<br />
e sensacionalista, recursos estratégicos com fórmulas gráficas são<br />
utilizados pelos editores do jornal Folha Universal para provocar reações<br />
emocionais e assim atrair a atenção do leitor, seguindo princípios<br />
básicos de toda propaganda: persuadir.<br />
O sucesso editorial depende de uma boa composição da página.<br />
Por isso, a seção Superação é formada de um texto escrito mais<br />
uma ou até duas fotografias que chegam a ocupar mais da metade de<br />
todo o seu espaço.<br />
A reportagem da edição publicada pela Folha Universal em<br />
15 de junho de 2008 na página 2i de seu caderno Folha IURD é um<br />
exemplo. A primeira foto traz como legenda: “CONQUISTA: Depois<br />
de tomar conhecimento do poder de Deus, Alcimínio usou a<br />
fé, deixou a vida de derrotas e conquistou muitas vitórias”.<br />
Apresenta, no primeiro plano, um senhor de meia idade, em<br />
pé, provavelmente em frente a sua casa. Seu corpo está ereto e ele<br />
olha diretamente para a lente da câmera que o fotografa. Em segundo<br />
plano, vemos uma grande piscina, uma casa bem construída, um sobrado<br />
com jardim. Temos aí elementos que compõem o espaço em<br />
que o testemunhante se insere. A segunda fotografia, que ocupa um<br />
espaço bem menor, mostra o pátio de uma empresa de siderurgia,<br />
com a seguinte legenda: “NEGÓCIOS: Empresário investe no<br />
ramo de siderurgia em cinco estados”. As imagens em questão, em<br />
harmonia com o título da reportagem e a legenda das fotos, deixam<br />
pressuposto que o empresário citado na reportagem adquiriu aqueles<br />
bens (mansão, empresa) como resultado de sua participação na campanha<br />
da Fogueira Santa.<br />
Para alguns analistas, o discurso neoliberal da IURD está fazendo<br />
com que os fiéis se tornem “homens econômicos”. Não só
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
681<br />
com relação ao sagrado, mas também em suas vidas profanas. No<br />
âmbito do sagrado, eles negociam com a Divindade, e do profano,<br />
eles são “vigorosos consumidores” (CAMPOS, 1997). Os fiéis, considerados<br />
como consumidores, optam pelos produtos da “cesta” e<br />
enchem seus carrinhos de compra.<br />
Campos (1999, p. 358) afirma:<br />
Nos templos da IURD, os consumidores religiosos escolhem aqueles<br />
produtos que mais se relacionam com suas necessidades e arquiteturaram<br />
em sua própria cabeça o produto desejado, conforme as suas aspirações.<br />
Isto é, a Igreja Universal oferece um Kit contendo os ingredientes de um<br />
produto retrabalhado no imaginário do “consumidor”. O preço a ser pago<br />
para a satisfação dos desejos na IURD é monetarizado. Daí a importância<br />
em sua pregação de temas como “sacrifício do dinheiro”, “ofertas de<br />
amor”, pois “dar o dízimo é candidatar-se a receber bênçãos sem medida”,<br />
repete o fundador.<br />
Podemos também enxergar no discurso midiático, além dos<br />
bens simbólicos que toda religião acaba por oferecer, a oferta de<br />
bens materiais de consumo em ampla escala. Neste caso, o discurso<br />
religioso assume visivelmente os ares do discurso mercadológico,<br />
ambos se caracterizando na forma de discursos de poder, já que eles<br />
não ocorrem fora dos meios de comunicação, e, para isso, o discurso<br />
religioso começa a incorporar outros domínios discursivos que são<br />
peculiares aos anseios dos espectadores. Prega-se o que os consumidores-alvo<br />
anseiam. Promete-se o que os clientes potenciais precisam.<br />
Analisando a proposta de marketing da Igreja Universal,<br />
Campos (1997, p. 224) observou que: “Cada produto iurdiano, embora<br />
faça parte de uma ‘família de produtos’, é uma espécie de iceberg<br />
que aponta para uma visão de mundo, consubstanciada num<br />
grupo de ideias centradas ao redor da expressão ‘Cristo salva, cura,<br />
faz prosperar os que o aceitam na Igreja Universal do Reino de<br />
Deus’”.<br />
Dentre os serviços, uma espécie de “cesta básica da fé”, estão<br />
aqueles que envolvem as emoções (terapia do amor), intelectuais e<br />
financeiros. A maioria deles requer a participação constante nos cultos<br />
e uma contrapartida: o sacrifício – ou seja, dinheiro. Se os fiéis<br />
estão com problemas financeiros, são convencidos a “agir a fé”, ou
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
682<br />
seja, doar mais do que podem, e até mesmo o que não tem, para que<br />
a vida sofra uma reviravolta. É o caso da campanha “Fogueira Santa<br />
de Israel”.
4. Semântica global: teoria e prática<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
683<br />
Apresentamos, neste tópico, os pressupostos desenvolvidos<br />
por Maingueneau (2007) em ‘Gênese dos discursos’ sobre a ‘semântica<br />
global’, especificamente, sobre o primado do interdiscurso e a<br />
polêmica como interincompreensão, para assim demonstrarmos outra<br />
possibilidade a análise discursiva convergente com o modelo Tridimensional<br />
de Fairclough (2008). As análises propostas nesta seção<br />
trazem discursos de docentes em formação na área de Letras e a temática<br />
restrita abordada é o ensino de língua portuguesa na Educação<br />
Básica.<br />
4.1. A proposta de análise de Fairclough e os elos com a Semântica<br />
Global<br />
O sistema de regras de boa formação semântica do discurso<br />
diz respeito às restrições de semânticas globais que serão detalhadas<br />
mais adiante nesse trabalho. Esses traços semânticos que restringem,<br />
ao mesmo tempo, todos os planos discursivos: vocabulário, temas<br />
tratados, intertextualidade, instâncias de enunciação. Esses traços<br />
funcionam como marcas nos textos que se filiam a um determinado<br />
discurso. Essa visão macro e microlinguística dos discursos tem<br />
também aporte teórico no modelo de análise de Norman Fairclough<br />
(2008), que será tomado aqui como uma adição às análises de Maingueneau<br />
(2007), para abarcar o estudo do interdiscurso.<br />
Para Fairclough (2008), cada caso discursivo tem três dimensões<br />
ou facetas, que estão interligados, mas analiticamente separáveis:<br />
É uma língua falada ou escrita texto; É um exemplo de discurso<br />
práticas envolvendo a produção e interpretação de texto; E é uma peça<br />
de prática social.<br />
Dessa proposta depreende-se que há três níveis método da análise do<br />
discurso: o método da análise do discurso inclui descrição linguística da<br />
língua texto, a interpretação da relação entre o (produtivo e interpretativos)<br />
processos discursivos e de texto, e explicação da relação entre os<br />
processos discursivos e os processos sociais. (FAIRCLOUGH, 2008, p.<br />
97)<br />
Quando usa o termo discurso o autor considera o uso da linguagem<br />
como forma de prática social e não como pura atividade in-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
684<br />
dividual, o discurso não é só um modo de ação sobre o mundo, mas<br />
também um modo de representação:<br />
I – O ensino de língua materna deve ser ministrado sob a ótica da<br />
uma prática educativa 3 , respeitando as variações linguísticas, haja vista<br />
que o homem é produto social (...) É papel da escola propiciar ao estudante<br />
de língua materna uma orientação acerca das oportunidades que<br />
um falante da norma culta terá, principalmente numa sociedade estratificada.<br />
II – É fundamental que os alunos tenham certo domínio de sua própria<br />
linguagem, para que não ocorra discriminação sociolinguística. É<br />
importante que os professores se conscientizem, a procurar melhoria no<br />
ensino para mudança social.<br />
Podemos observar nesse discurso de um acadêmico de Letras,<br />
quando a temática tratava do ensino de língua materna. As vozes aqui<br />
representadas estão centradas na proposta variacionista de ensino,<br />
que representa um conjunto de teorias que circulam na Academia.<br />
Vocábulos como “sociedade estratificada, produto social, mudança<br />
social, prática educativa, variação linguística” remetem a um contexto<br />
abarcado pelo conjunto político de propostas democratizadoras inerentes<br />
a modelo seguido pela ideologia renovadora sobre o ensino<br />
de LM, o que não deixa de ser um modo de representação e prática<br />
social revelada no discurso.<br />
Isso posto, implica relação entre estrutura social e discurso,<br />
uma como causa ou efeito da outra. Para dar conta desse entendimento<br />
o autor também entende interdiscurso como precedente ao<br />
discurso. “As categorias intertextualidade e interdiscursividade são<br />
bastante exploradas pela ACD, pois ela analisa as relações de um<br />
texto ou um discurso, considerando outros que lhe são recorrentes.”<br />
(PEDROSA, 2008, p. 139)<br />
O modelo tridimensional de Fairclough (2008) compreende a<br />
análise textual, a análise discursiva e a prática social. Dentro dessas<br />
categorias, outras subcategorias convergem com a proposta da semântica<br />
global de Maingueneau.<br />
3 Os grifos nossos objetivam o direcionamento para as análises centradas no vocábulo,<br />
no tema e na intertextualidade – categorias relevantes para análise discursiva pautada<br />
pela Semântica Global de Maingueneau (2007).
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
685<br />
Conforme Ramalho e Resende (2006), a análise textual é a<br />
primeira dimensão de análise no modelo tridimensional e caracteriza-se<br />
pela descrição linguística. Dentre as subcategorias tem-se gramática,<br />
coesão, estrutura textual e vocabulário. Abrimos um parêntese,<br />
para demonstrar este último como a ponte real entre o modelo de<br />
Fairclough e as restrições globais de Maingueneau.<br />
Para Fairclough (2008, p. 288), ênfase da análise está nas “palavras-chave<br />
que têm significado cultural geral ou mais local; nas palavras<br />
cujos significados são variáveis e mutáveis; e no significado<br />
potencial de uma palavra – uma estruturação particular de seus significados<br />
– como um modo de hegemonia e um foco de luta”.<br />
Esses traços operadores do discurso, pela via do vocabulário<br />
definem conjunto de categorias lexicais opostas, já que a luta e a hegemonia<br />
evidenciada pala materialidade linguística pode ser definida<br />
como operadores de individuação que de acordo com Brunelli<br />
(2008), para cada discurso, dois conjuntos de categorias semântica<br />
dos vocabulários aparecem opostas: o conjunto dos semas reivindicados<br />
(os semas positivos) e o conjunto de semas rejeitados(os negativos).<br />
Nos discursos dos graduandos em questão, semas do tipo<br />
gramática, regras, erro, língua terão cargas positivas ou negativas a<br />
partir da posição discursiva do enunciador.<br />
Veja-se:<br />
III – Deve sempre aproveitar o conhecimento que o aluno já possui e<br />
não trabalhar somente com a gramática normativa, pois essa tem que<br />
deixar de ser um fim e passar a ser um meio.<br />
IV – Os professores deveriam se desprender mais da gramática e<br />
trabalhar temas variados, ligados a linguagem.<br />
V – O ensino de Língua Materna deve não ser somente algo mecânico<br />
como anda sendo (...) as aulas estão sendo baseadas em regras que<br />
são expostas na gramática normativa. O que realmente deve ser levado<br />
em conta é a língua como algo funcional, ou seja, ela serve para ser utilizada<br />
de várias formas e o professor como um ser consciente, deveria passar<br />
a ensinar a língua de uma forma não somente tradicional.<br />
VI – O ensino de LP deve ser de forma clara, com muita explicação<br />
e de fácil entendimento, pois exige muitas regras, e não é tão fácil entender<br />
a língua portuguesa.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
686<br />
VII – É bem verdade que o ensino de LP está defasado, as crianças<br />
chegam aos onze anos falando um português abaixo da média, segundo<br />
as normas gramaticais, devido ao convívio com os pais. Não basta o professor<br />
passar 1h20min , quando o aluno chega em casa e ouve gírias, palavras<br />
incorretas.<br />
Pelas explorações semânticas das unidades lexicais e pelo espaço<br />
discursivo que esses exemplos se encontram, tomemos os exemplos<br />
para motivo de exploração contraditória implícita.Pela posição<br />
enunciativa, o discurso V é característico pela posição de um sujeito<br />
opositor às ideias propostas pela prescrição do ensino tradicional,<br />
um sujeito crítico. Enquanto a posição enunciativa no discurso<br />
VII traz a prescrição como premissa para o ensino demonstrando aí o<br />
que chamamos de semas positivos e negativos na análise discursiva<br />
pautada pela semântica global. Em V, o vocábulo regras é um sema<br />
negativo, enquanto em VI, ele não aparece com tanta negatividade<br />
semântica. O que chamamos aqui de negatividade é uma rejeição e<br />
positivo como uma aceitação, uma vez que cada discurso repousa, de<br />
fato, sobre um conjunto de semas repartidos em dois registros: de um<br />
lado, os semas positivos, “reivindicados”; de outro, os semas negativos,<br />
“rejeitados”. A cada posição discursiva se associa um dispositivo<br />
que a faz interpretar os enunciados de seu Outro 4 traduzindo-as<br />
nas categorias do registro negativo de seu próprio sistema. (MAIN-<br />
GUENEAU, 2007, p. 103)<br />
Dentro desse diálogo com o outro, temos o que chamamos<br />
de interdicurso, que se inscreve na perspectiva da heterogeneidade<br />
enunciativa pela negação, aceitação, citação, referenciação vocabular,<br />
como veremos a seguir.<br />
4.2. Interdiscurso: pressuposto para análise discursiva sob a<br />
ótica da Semântica Global<br />
A análise da prática discursiva, segundo Ramalho e Resende<br />
(2006) do modelo tridimensional contempla a interdiscursividade, as<br />
cadeias textuais, a coerência, as condições prática discursivas, a in-<br />
4 Não estamos tratando de uma proposta lacaniana, mas sim pautada na linha discur-<br />
siva de Dominique Maingueneau (2007).
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
687<br />
tertextualidade manifesta. Dessa categoria fica evidente a ponte que<br />
se faz com o interdiscurso. Implicado nessa teoria sob a ótica da intertextualidade<br />
manifesta ou constitutiva, mas evidenciando a primazia<br />
dessas relações sobre o discurso. “A intertextualidade implica<br />
uma ênfase sobre a heterogeneidade dos textos e um modo de análise<br />
que ressalta os elementos e as linhas diversos e frequentemente contraditórios.”<br />
(FAIRCLOUGH, 2008, p. 137). Dessa forma, toma-se<br />
nesse trabalho o interdiscurso como objeto de análise.<br />
O conceito de interdiscurso no presente trabalho terá a orientação<br />
teórica de Maingueneau (2008, p. 33) “Nossa hipótese do primado<br />
do interdiscurso inscreve-se na perspectiva de uma heterogeneidade<br />
constitutiva, que amarra em uma relação inextricável, o<br />
Mesmo do discurso e seu Outro.” A proposta de Maingueneau coloca<br />
o discurso como uma interação entre discursos, o que implica um<br />
tipo de análise em que a identidade discursiva é definida pela interdiscursividade,<br />
isto é da relação do seu discurso com o discurso do<br />
seu Outro. O autor diz que é necessário refinar o conceito que aparece<br />
tão amplo. Para tanto, o a generalização do interdiscurso será<br />
substituída pela tríade: universo discursivo, campo discursivo e espaço<br />
discursivo.<br />
Por “universo discursivo”, o autor entende o conjunto de todos<br />
os tipos de formações discursivas interagem numa condição de<br />
produção, também representa necessariamente um conjunto finito,<br />
mesmo que não possa ser apreendido em sua globalidade. Trata-se<br />
do horizonte mais amplo tratado no discurso, do qual serão construídos<br />
os domínios mais estruturados para a pesquisa do analista do<br />
discurso: os campos discursivos. Para Brunelli (2008), trata-se do<br />
conjunto de discursos que se delimitam numa região determinada pelo<br />
universo discursivo, mantendo diversos tipos de relações como o<br />
confronto aberto, aliança, aparente neutralidade. Ou seja, embora sejam<br />
discursos com a mesma função social, divergem sobre o modo<br />
pelo qual essa função deve ser preenchida. Daí o encaixe, a coerência<br />
na análise dos discursos dos discentes de letras, sobre o ensino de<br />
língua portuguesa, como observamos nos discursos III e VII, que interagem<br />
pela linha do ensino, que embora divergentes, estão determinadas<br />
pela região ensino de língua portuguesa (universo), apresentando<br />
agora os campos discursivos.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
688<br />
Para Maingueneau (2007, p. 35), campo discursivo é “um<br />
conjunto de formações discursivas que se encontram em concorrência,<br />
delimitam-se reciprocamente em uma região determinada do universo<br />
discursivo”, divergindo, como já fora dito, na forma como a<br />
função social do discurso será preenchida. Esse recorte em campos é<br />
apenas uma abstração necessária, que deve permitir abrir múltiplas<br />
redes de trocas. Para o autor, é no interior do campo discursivo que<br />
se constitui um discurso, e sua hipótese é que tal constituição pode<br />
deixar-se descrever em termos de operações regulares sobre formações<br />
discursivas já existentes. Não significa que os discursos se<br />
constituam todos da mesma forma.<br />
Tomando como base essas noções, podemos dizer que no interior do<br />
“universo discursivo” temos um “campo discursivo”, em que várias formações<br />
discursivas se encontram em concorrência, delimitando-se reciprocamente.<br />
Dentro do campo podem ser isolados os espaços discursivos,<br />
isto é, subconjuntos que ligam ao menos duas formações discursivas<br />
que mantêm relações privilegiadas, relações essas que o analista julga<br />
pertinente para o seu propósito. (LARA, 2004, p. 118)<br />
Nesse contexto, tomando a noção de interdiscurso, enquanto<br />
espaço de trocas entre vários discursos, evidencia-se que as falas dos<br />
alunos de Letras sobre o ensino de LM é atravessada por várias formações<br />
discursivas, mostrando que a heterogeneidade é princípio de<br />
sua constituição.<br />
4.3. Heterogeneidade, Interdiscursividade, Intertextualidade:<br />
da teoria à prática<br />
Maingueneau (2007), na Gênese dos Discursos, faz uma distinção<br />
entre intertexto e intertextualidade. Para o autor, o intertexto é<br />
um complexo de fragmentos citados em um mesmo corpus enquanto<br />
a intertextualidade é conceituada como um sistema de regras que define<br />
o intertexto. A intertextualidade torna-se plano de análise uma<br />
vez que “todo campo discursivo define certa maneira de citar os discursos<br />
anteriores do mesmo campo” (op. cit. p.81). Assim, o intertexto<br />
ancora-se no eixo da memória discursiva, aceitando alguns discursos<br />
e recusando outros, seja pela intertextualidade interna (memória<br />
discursiva acerca do ensino de LM) e intertextualidade externa<br />
(textos de outros campos discursivos que se ligam ao discurso do a-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
689<br />
cadêmico de Letras acerca do ensino de LM). Essas regras acabam<br />
definindo que a intertextualidade do discurso tradicional sobre o ensino<br />
de LM não é mesma que a intertextualidade do discurso inovador<br />
da Linguística, como nos discursos que seguem, marcados pela<br />
inovação:<br />
VIII – Que o ensino de LP possa ser efetivado a partir do texto, priorizando<br />
a visão da língua como um mecanismo vivo e de extrema interatividade.<br />
Claro que o padrão normativo deve ser levado em consideração,<br />
no entanto, não como verdade absoluta.<br />
IX – A LP deve ser ensinada através de textos, desmontando e montando<br />
textos e a gramática deve ser ensinada como complementar. Formar<br />
leitores e produtores de texto é a única alternativa e ainda ensinar<br />
com os gêneros textuais.<br />
A intertextualidade aqui marcada pela proposta dos Gêneros<br />
Textuais, da interação verbal é externa, pois traz um elo entre teorias<br />
que aqui se apresentam em diferentes discursos e posições enunciativas.<br />
É nesse contexto que a Polêmica como interincompreensão<br />
nos é pertinente para a breve exposição neste minicurso. Maingueneau<br />
(2007) diz que<br />
Cada formação discursiva tem uma maneira própria de interpretar o<br />
seu outro. Uma tal ideia contraria, aliás, as representações espontâneas,<br />
para as quais o ‘antagonismo” entre os dois discursos é uma noção estável<br />
que não é necessário especificar mais. (MAINGUENEAU, 2007, p.<br />
108)<br />
Dessa forma, o discurso da inovação não pode ser dissociado<br />
do discurso da tradição uma vez que um determina o outro, como<br />
podemos perceber nos exemplos IV e VII:<br />
IV – Os professores deveriam se desprender mais da gramática e<br />
trabalhar temas variados, ligados à linguagem.<br />
VII – É bem verdade que o ensino de LP está defasado, as crianças<br />
chegam aos onze anos falando um português abaixo da média, segundo<br />
as normas gramaticais, devido ao convívio com os pais. Não basta o professor<br />
passar 1h20min , quando o aluno chega em casa e ouve gírias, palavras<br />
incorretas<br />
De acordo com o francês, a Interincompreensão regrada é<br />
constitutiva da prática interdiscursiva dos discursos que partilham do
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
690<br />
mesmo espaço discursivo. Nesse sentido, interessa-nos saber quais<br />
os mecanismos linguísticos que entram em cena quando dois discursos<br />
que estão em um mesmo espaço discursivo instauram uma polêmica<br />
entre si. Os textos dos alunos de Letras versando sobre o ensino<br />
de LM como corpus é justificado pelo fato deles apresentarem duas<br />
opiniões diferentes sobre um mesmo assunto – o ensino de português<br />
e mudança de postura diante do fenômeno língua.<br />
Assim, noção de semântica global estrutura-se sobre esse postulado<br />
da existência de uma zona de regularidade semântica a partir<br />
da qual todos os planos da discursividade, como o léxico, os processos<br />
gramaticais, até o modo de enunciação e de organização da comunidade<br />
que enuncia o discurso, estão submetidos ao mesmo sistema<br />
de restrições globais. Esse sistema de restrições é concebido<br />
como um delineador de critérios que, em uma formação discursiva<br />
determinada, distinguem o que é possível ou não de ser enunciado do<br />
interior daquela formação.<br />
5. Palavras finais<br />
Resende e Ramalho (2006, p. 146) destacam que mesmo diante<br />
do fato de a ACD ser uma disciplina relativamente nova no<br />
meio acadêmico “já conta com uma história de desdobramentos à<br />
qual subjaz a intenção de superar possíveis limitações linguísticas<br />
que permeiam trabalhos com textos”. E reforçam a importância do<br />
modelo tridimensional que trabalhamos neste minicurso.<br />
O próprio Rajagopalan (2003) chama a atenção para a necessidade<br />
de que pesquisadores na área de linguística assumam suas<br />
‘responsabilidades perante a sociedade’. Isto se coaduna com o posicionamento<br />
de analistas críticos do discurso. Utilizando as palavras<br />
de Garcia (2003, p. 203): “Fairclough deixa bem clara a sua visão de<br />
que a análise do discurso crítica não se limitará apenas a descrever as<br />
práticas discursivas, mas também propiciará a mudança discursiva e,<br />
portanto, a mudança social. Essa postura é politicamente ativa e ideologicamente<br />
renovadora”.
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Rio de Janeiro: CiFEFil, 2005b, p. 43-70.<br />
RAJAGOPALAN, Kanavillil. Por uma linguística crítica. São Paulo:<br />
Parábola, 2003.<br />
RESENDE, Viviane de Melo. Análise de Discurso Crítica e Realismo<br />
Crítico: Implicações interdisciplinares. São Paulo: Pontes, 2009.<br />
RESENDE, Viviane de Melo. RAMALHO, Viviane. Análise de discurso<br />
crítica. São Paulo: Contexto, 2006.<br />
______. Análise de discurso crítica, do modelo tridimensional à articulação<br />
entre práticas: implicações teórico-metodológicas. Revista<br />
linguagem em (dis)curso, vol 5. N 1, 2004. Disponível em:<br />
<br />
WODAK, Ruth. De qué trata el análisis crítico del discurso (ACD).<br />
Resumen de su historia, sus conceptos fundamentales y sus desarrollos.<br />
In: WODAK, Ruth; MEYER, Michael (Orgs.). Métodos de análisis<br />
crítico del discurso. Barcelona: Gedisa, 2003, p. 17-34.
CARTAS DO LEITOR: A CONSTRUÇÃO DO ETHOS COMO<br />
ESPELHO DA CIDADANIA<br />
1. Apresentação<br />
Lygia Maria Gonçalves Trouche (UFF)<br />
lymt@terra.com.br<br />
O texto não é para ser contemplado, ele é enunciação<br />
voltada para um co-enunciador que é necessário<br />
mobilizar para fazê-lo aderir “fisicamente”<br />
a um certo universo de sentido.<br />
(Maingueneau, 2005, p. 73)<br />
Este texto tem por objetivo discutir, sob o ponto de vista da<br />
encenação discursiva no gênero “carta de leitor”, os procedimentos<br />
linguístico-discursivos da construção enunciativa (Charaudeau,<br />
2009) com apoio nos princípios da linguística da enunciação (Koch,<br />
2003), relacionados às questões de construção do ethos – imagem de<br />
si no discurso – desenvolvidas por Maingueneau (2005, 2008). Assim,<br />
a análise do corpus permitirá uma reflexão consistente dos aspectos<br />
linguísticos e uma leitura do ethos de um recorte datado da<br />
opinião pública, como um espelho de questões relevantes da cidadania.<br />
Especificamente serão pesquisados os papéis discursivos do<br />
locutor e do interlocutor nas cartas publicadas. Os fatos de língua já<br />
descritos em nossas gramáticas e estudos sobre a modalização (sentido<br />
de língua) serão observados nos efeitos de sentido que produzem<br />
(sentido de discurso) na situação de comunicação em que se inserem.<br />
Analisaremos uma “carta de leitor” do jornal O Globo, publicada<br />
na seção fixa DOS LEITORES que apresenta o seguinte subtítulo:<br />
“Pelo e-mail, pelo site do GLOBO, por celular e por carta, este<br />
é um espaço aberto para a expressão do leitor.” O jornal, em um box<br />
destacado, informa que acolhe opiniões sobre todos os temas e que<br />
rejeita acusações insultuosas ou desacompanhadas de documentação.<br />
Avisa que devido às limitações de espaço será realizada uma seleção<br />
de cartas e que, quando não forem concisas, poderão ser publicados
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
693<br />
trechos mais relevantes. Na mesma página, há um espaço separado<br />
denominado NO SITE E NO CELULAR que procura manter e incentivar<br />
uma interação com os leitores por meio da internet e da telefonia<br />
móvel. Logo, a seção DOS LEITORES destina-se inteiramente<br />
à comunicação com os leitores, reservando-lhes uma possibilidade<br />
de expressão de suas idéias.<br />
2. Texto: produto da atividade discursiva<br />
Podemos conceituar texto como uma unidade construída por<br />
uma série de frases encadeadas sintática e semanticamente, sob a orientação<br />
de um tema, cumprindo uma finalidade comunicativa.<br />
Segundo Koch (2003, p. 6), o texto apresenta-se como<br />
Uma manifestação verbal constituída de elementos linguísticos selecionados<br />
e ordenados pelos coenunciadores, durante a atividade verbal,<br />
de modo a permitir-lhes, na interação, não apenas a depreensão de conteúdos<br />
semânticos, em decorrência da ativação de processos e estratégias<br />
de ordem cognitiva, como também a interação (ou atuação) de acordo<br />
com práticas socioculturais.<br />
Devemos, desde logo, levar em conta também que do ponto<br />
de vista dos interlocutores (eu comunicante/locutor e tu interpretante<br />
/leitor) interagem três fatores para que a comunicação se realize: o<br />
conhecimento linguístico, o conhecimento de mundo e o conhecimento<br />
interacional (KOCH, 2002, p. 32-33.). O conhecimento linguístico<br />
corresponde ao domínio da competência gramatical que diz<br />
respeito às regras da linguagem, como a formação de palavras e de<br />
frases, à pronúncia, à ortografia, à semântica. Esta competência se<br />
centra diretamente na habilidade e no conhecimento necessários para<br />
a expressão adequada, em primeira instância, do sentido literal. Segundo<br />
a concepção de Charaudeau (2008, p. 25), “a produção dessas<br />
paráfrases estruturais permite que se efetue na linguagem um jogo de<br />
reconhecimento morfossemântico construtor de sentido, que remete à<br />
realidade que nos rodeia (atividade referencial), conceituando-a (atividade<br />
de simbolização) O conhecimento de mundo corresponde ao<br />
conhecimento do tipo declarativo (asserções a respeito dos fatos do<br />
mundo) e ao tipo episódico (modelos cognitivos adquiridos pela experiência<br />
na vida social). Com base nesses conhecimentos e em<br />
competências específicas, o falante pode formular hipóteses, estabe-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
694<br />
lecer e perceber a coesão lexical, realizar inferências com base em<br />
“remissões a alguma coisa além do enunciado explícito, que se encontra<br />
antes e depois do ato de proferição da fala”. (CHARAUDE-<br />
AU, 2008, p. 25) O conhecimento sociointeracional se refere ao domínio<br />
das ações verbais que permitem a interação pela linguagem.<br />
Falamos, pois, de competência sociolinguística que corresponde ao<br />
uso adequado de expressões linguísticas aos diferentes contextos, isto<br />
é, à situação dos participantes, propósitos da interação, normas e<br />
convenções da interação, adequação entre significado e forma, significado<br />
e função comunicativa. Os três fatores: o conhecimento linguístico,<br />
o conhecimento de mundo e o conhecimento interacional<br />
levam à competência discursiva que corresponde ao modo como se<br />
combinam formas gramaticais e significado para a significação da<br />
totalidade discursiva, veiculada por diversos gêneros em que se dão<br />
as relações sociais. Charaudeau (2008, p. 78) faz uma correspondência<br />
entre modos de discurso e gêneros textuais, mostrando que um<br />
gênero pode coincidir com um determinado modo de organização<br />
dominante ou apresentar uma combinação dos modos.<br />
3. Gênero “carta de leitor”<br />
A carta de leitor é um gênero textual que se organiza em torno<br />
de um assunto que, geralmente, faz parte das pautas dos jornais e<br />
que, portanto, de alguma forma, representa um interesse despertado<br />
na sociedade. Caracteriza-se por um estilo de comunicação “in absentia”,<br />
em forma de paragrafação e limites de linha padronizados<br />
pelo jornal e por um conjunto de ideias e opiniões de locutores que<br />
interagem diretamente com o veículo de comunicação.<br />
Atualmente, a “carta de leitor” apresenta-se como um gênero<br />
bastante difundido e, até certo ponto, incentivado pelos meios de<br />
comunicação que buscam a interatividade com os leitores. Assim,<br />
A “carta do leitor” é uma carta aberta dirigida a destinatários desconhecidos.<br />
Ela é veiculada através dos meios de comunicação escrita, de<br />
circulação ampla ou restrita, tem caráter público, cumprindo importante<br />
função social na medida em que possibilita o intercâmbio de informações,<br />
ideias, opiniões entre diferentes pessoas de um determinado grupo.<br />
Nessas cartas, encontramos o português escrito no padrão formal, atual,<br />
da forma como é concebido pela comunidade usuária. (PASSOS, 2003,<br />
p. 81)
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
695<br />
Dominar um gênero textual não se reduz a dominar determinadas<br />
formas de língua, mas sim a possibilidade de realizar, pela língua,<br />
objetivos específicos de comunicação, em situações sociais particulares.<br />
Logo, a adequada utilização dos gêneros textuais por parte<br />
dos falantes está firmemente estruturada na cultura, já que se trata de<br />
fenômenos sócio-históricos. Destacamos a concepção contemporânea<br />
de gêneros com enfoque em seu caráter de comunicação em atividades<br />
socialmente organizadas com base em Bronckart (1999, p.<br />
103) para quem “a apropriação dos gêneros é um mecanismo fundamental<br />
de socialização, de inserção prática nas atividades comunicativas<br />
humanas” e em Bazerman (2006, p. 31) que define: “Gêneros<br />
são o que nós acreditamos que eles sejam. Isto é, são fatos sociais<br />
sobre os tipos de atos de fala que as pessoas podem realizar e sobre<br />
modos como elas os realizam”.<br />
Assim podemos entender que os gêneros resultam de processos<br />
sociais, vivenciados por pessoas que procuram, pela linguagem,<br />
compartilhar significados com propósitos práticos.<br />
Pode-se resumir o gênero “carta de leitor” como aquele em<br />
que o locutor, em sua condição de cidadão, transmite a interlocutores<br />
indeterminados e, presumivelmente, heterogêneos uma opinião, reflexão<br />
ou indignação sobre um fato social, julgado relevante, para<br />
evidenciar determinada situação, talvez mais como forma de catarse<br />
do que para buscar o comprometimento dos leitores com atitudes radicais<br />
de transformação social Trata-se de denúncias ou de juízos de<br />
valor que não possuem força suficiente para abalar o sistema. Todavia,<br />
constituem-se em excelentes subsídios para a identificação de<br />
um ideal de civilidade, ainda que apenas discursivamente idealizado.<br />
O espaço dos leitores seria, pois, um simulacro de atuação democrática,<br />
enraizado na cultura, para evidenciar o “dever ser” do lugar comum.<br />
Trata-se de uma situação comunicativa em que os parceiros<br />
não estão face a face, mas mantêm suas identidades psicológicas, sociais<br />
e de ethos. Segundo Charaudeau, esses parceiros estão envolvidos<br />
num contrato de comunicação que implica um ritual sociodiscursivo<br />
em que o eu-comunicante/locutor e o tu-interpretante/leitor devem<br />
conhecer seus papéis. Isso implica, ainda, que há um conjunto<br />
de liberdades e restrições, resultantes desse tipo de enunciação do ato
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
696<br />
de linguagem: o espaço cedido pelo jornal, a possibilidade de interferência<br />
do editor no texto com cortes ou escolha de algum trecho para<br />
destaque, bem como as recomendações apresentadas no box de explicitação<br />
do que pode ou não ser dito. Entra, portanto, também em<br />
jogo a competência comunicativa que requer dos participantes da encenação<br />
(locutor e leitores), além do conhecimento de mundo partilhado<br />
(o conhecimento dos fatos relatados), a habilidade no uso da<br />
língua em registro adequado ao contexto (texto veiculado pela imprensa).<br />
Portanto, de grande importância, a situação social dos participantes,<br />
os propósitos da interação (comentários e críticas sobre acontecimentos<br />
de domínio público), normas e convenções linguístico-discursivas<br />
do gênero textual. O texto do gênero “carta de leitor”<br />
deve apresentar os traços linguísticos que permitam identificar o remetente<br />
(enunciador) [o modo como se manifesta discursivamente<br />
como locutor] e o destinatário [o modo como se constrói discursivamente<br />
o destinatário]; o assunto; os efeitos de sentido construídos para<br />
a persuasão ou manipulação do destinatário (leitor) em direção a<br />
determinado ponto de vista; a predominância do tipo textual, a qualidade<br />
do ethos, isto é, a construção de uma identidade compatível<br />
com o mundo construído discursivamente. Embora o gênero “carta”<br />
(em sentido amplo) permita uma variedade de finalidades: pedido,<br />
apresentação, conselho, informações, críticas, comentários, agradecimento,<br />
notícias familiares entre tantas outras, a “carta de leitor”,<br />
geralmente, constitui-se em uma exposição crítica, quase sempre<br />
emotiva, sobre fato de conhecimento público. Essa seção do jornal,<br />
por ilustrar o espírito de uma época, lembra, de certo modo, as tiras<br />
da Mafalda e as charges que, com sua ironia cortante, comentam a<br />
realidade e, nos implícitos, nos mostram, em relação especular, muito<br />
de nossas próprias faces.<br />
4. Modos de organização do discurso<br />
Comunicar, como se sabe, é uma tarefa complexa, já que não<br />
se trata apenas de se transmitir uma informação entre interlocutores,<br />
como se a linguagem fosse o reflexo do pensamento. A comunicação<br />
resulta de um processo de produção de linguagem, tanto do ponto de<br />
vista de sua concepção, como de sua compreensão.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
697<br />
Um discurso, para cumprir sua função social, se organiza em<br />
“modos” (CHARAUDEAU, 2008, p. 74) que consistem no emprego<br />
de determinada categoria de língua, ordenados em função das finalidades<br />
do ato de comunicação. Os “modos de organização do discurso”<br />
compreendem o enunciativo, o descritivo, o narrativo e o argumentativo.<br />
Cada um desses modos possui uma função de base e um<br />
princípio de organização que pressupõem, ao mesmo tempo, uma organização<br />
do “mundo referencial” e uma organização de sua “encenação”<br />
(descritiva, narrativa, argumentativa). Focalizaremos, nesse<br />
trabalho, o modo enunciativo, especificado no seguinte quadro (resumido):<br />
Charaudeau (2008, p. 750)<br />
O modo enunciativo dá conta da posição do locutor em relação<br />
ao interlocutor, a si mesmo e aos outros. Esse modo intervém na<br />
encenação de cada um dos outros – descritivo, narrativo e argumentativo.<br />
O modo de organização enunciativo não se confunde com a<br />
situação de comunicação, pois o foco está centrado nos protagonistas,<br />
seres da fala, internos à linguagem; não se confunde também<br />
com a “modalização” que é uma categoria de língua que permite, por<br />
procedimentos linguísticos, tornar explícito o implícito no ponto de<br />
vista do locutor.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
698<br />
O modo enunciativo é uma categoria de discurso que constrói<br />
a maneira pela qual o sujeito falante (locutor) age na encenação 1 do<br />
ato de comunicação. Na perspectiva da semiolinguística, pode-se entender<br />
que todo ato de linguagem se compõe de um “propósito referencial”<br />
que se concretiza em “ponto de vista enunciativo” do sujeito<br />
falante, integrados a uma situação de comunicação.<br />
Sintetizando, Charaudeau (2008, p. 82) conceitua:<br />
No âmbito da análise do discurso, que é a nossa perspectiva,<br />
o verbo enuncia se refere ao fenômeno que consiste em organizar<br />
as categorias de língua, ordenando-as de forma que dêem<br />
conta da posição que o sujeito falante ocupa em relação ao interlocutor,<br />
em relação ao que ele diz e em relação ao que o outro<br />
diz.<br />
As três funções do modo enunciativo resumem-se nos seguintes<br />
comportamentos: a) alocutivo que estabelece uma relação de influência<br />
entre locutor e interlocutor (o locutor age sobre o interlocutor,<br />
impondo-lhe uma reação); b) elocutivo que revela o ponto de vista<br />
do locutor (o locutor enuncia seu ponto de vista, modalizando subjetivamente<br />
o enunciado); c) delocutivo que retoma a fala de um terceiro<br />
(o locutor se apaga no ato de comunicação e não implica o interlocutor,<br />
sua enunciação é aparentemente objetiva).<br />
5. A construção do ethos na “carta de leitor”<br />
Tomamos ethos em seu viés pragmático como construção de<br />
imagens que se dão na interação verbal como troca simbólica regida<br />
por mecanismos sociais. Nesse estudo sobre a construção do ethos<br />
nas “cartas de leitor” como espelho da cidadania, destacamos que o<br />
locutor – porta-voz e reflexo da opinião pública – critica os acontecimentos<br />
e, implicitamente, busca a adesão dos leitores às opiniões<br />
expressas. O discurso da “carta de leitor” constrói a expectativa de<br />
que o público compartilhe com o locutor um conjunto de valores, de<br />
crenças e de evidências socialmente valorizadas. Ruth Amossy<br />
1 Charaudeau denomina “encenação” (mise-en-scène) a interação entre os participantes de um<br />
ato de comunicação.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
699<br />
(2005, p. 124), ao discutir as instâncias do orador, do auditório e das<br />
crenças compartilhadas, afirma:<br />
O orador apoia seus argumentos sobre a doxa que toma emprestada<br />
de seu público do mesmo modo que modela seu ethos com as representações<br />
coletivas que assumem, aos olhos dos interlocutores, um valor positivo<br />
e são suscetíveis de produzir neles a impressão apropriada às circunstâncias.<br />
Embora os locutores das “cartas” raramente sejam figuras socialmente<br />
reconhecidas (políticos, intelectuais, artistas etc.), seus<br />
discursos abordam a realidade com base em representações culturais<br />
preexistentes.<br />
Nesse gênero discursivo, o “fiador” 2 do ethos corresponde aos<br />
ideais cristalizados de moralidade e de comportamentos socialmente<br />
valorizados que o leitor identifica no locutor. A “apresentação de si”<br />
do locutor se constrói com base nos esquemas coletivos que ele identifica<br />
como cristalizados na cultura e em modalidades enunciativas<br />
que componham determinada imagem.<br />
O locutor ou eu comunicante pode adotar atitudes diferenciadas<br />
em relação ao seu dizer, isto é, pode apresentar-se em primeira<br />
pessoa do singular ou do plural, pode assumir uma atitude distanciada<br />
em um comentário centrado no assunto ou ainda dirigir-se ao leitor<br />
mesmo que indiretamente.<br />
Normalmente, os locutores das “cartas de leitor” revelam, pelos<br />
comentários e críticas que fazem, os ethé da moralidade, da temperança<br />
e da honestidade, implícitas na avaliação contundente do<br />
“fazer” das autoridades e dos comportamentos protagonizados por<br />
personalidades conhecidas na mídia ou que, eventualmente, se envolvam<br />
em acontecimentos destacados no noticiário do jornal e da<br />
TV.<br />
Analisaremos apenas uma “carta de leitor” (em função dos<br />
limites de extensão deste tipo de trabalho) de O Globo de<br />
115/07/2010, no que se refere aos modos de organização do discurso<br />
e à construção dos ethé:<br />
2 O “fiador”, para Maingueneau (2005, p. 72) é uma imagem construída pelo coenunciador com<br />
base em indícios textuais de diversas ordens.
Carta<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
700<br />
O presidente Lula poderia ser menos destemperado. Ele se irrita com<br />
qualquer tipo de comentário. A FIFA tem razão em se preocupar com a<br />
infraestrutura para a Copa de 2014. Se não temos aeroportos, estádios,<br />
rodovias etc., o início está atrasado, sim. Caso contrário, teremos obras<br />
malfeitas, mal acabadas e um legado de sucata.<br />
Victor Alberto ferreira Corrêa Rio<br />
Nessa carta, observamos o ethos do locutor como alguém equilibrado<br />
com capacidade de avaliar o temperamento irritadiço do<br />
presidente Lula frente a uma crítica da FIFA, julgada pertinente. No<br />
texto em análise, o modo enunciativo apresenta, predominantemente,<br />
comportamento elocutivo – ponto de vista da avaliação, por meio de<br />
opinião e apreciação do fato. Há aspectos de modalização que compõem<br />
a caracterização da subjetividade do locutor tais como: o auxiliar<br />
“poder” no futuro do pretérito, indicando uma possibilidade não<br />
concretizada; o uso do presente do indicativo com valor de asserções<br />
sobre fatos apresentados como reais. O emprego do presente do indicativo<br />
e do futuro como tempos do comentário (WEINRICH, apud<br />
KOCH & FÁVERO, 2008, p. 44,45), conduzem o leitor a uma atitude<br />
receptiva e atenta, intensificando a validade do relato. A condicional<br />
“se”, relacionada ao tempo presente, anula de certo modo a<br />
condição, que é apresentada como real – não temos mesmo aeroportos:<br />
trata-se de argumento retórico para corroborar a afirmativa da<br />
FIFA sobre o atraso das obras para a Copa do Mundo de 2014, fato<br />
intensificado pelo uso do “sim”, que dialoga com uma voz fora do<br />
texto. Destaque-se a escolha de adjetivos e de locuções adjetivas de<br />
avaliação pessoal como: “destemperado, malfeitas, mal acabadas, de<br />
sucata”. Há, também, no texto da “carta” aspectos do comportamento<br />
delocutivo, pois o locutor diz “como o mundo existe”, apresentando<br />
fatos mencionados por outro locutor (a FIFA). A polifonia funciona<br />
como argumento para validar as críticas feitas e apontar a real situação<br />
em que nos encontramos (sem aeroportos, estádios, rodovias<br />
etc.). Nota-se que, apesar da aparente objetividade, o locutor se vale<br />
de exemplos que alertam o leitor para as prováveis consequências<br />
indesejadas, se não houver mudança de atitude das autoridades. Podemos<br />
inferir os ethé da falta de responsabilidade no cumprimento<br />
dos prazos para a realização das obras e da irresponsabilidade em re-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
701<br />
lação à infraestrutura necessária à realização de uma Copa do Mundo<br />
no Brasil.
6. Reflexões finais<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
702<br />
Aspectos como a polifonia, a intertextualidade, a ironia, a metáfora,<br />
entre outros, são igualmente importantes constituintes da produção<br />
de sentido do texto, no ato da comunicação que implica, necessariamente<br />
a interação entre os interlocutores. Segundo Charaudeau<br />
(2006, p. 67),<br />
A situação de comunicação constitui assim o quadro de referência ao<br />
qual se reportam os indivíduos de uma comunidade social quando iniciam<br />
uma comunicação. Como poderiam trocar palavras, influenciar-se,<br />
agredir-se, seduzir-se, se não existisse um quadro de referência?<br />
A análise de texto requer sempre um trabalho continuado ao<br />
longo da vida, já que todo ato de leitura põe, face a face, quase sempre<br />
em confronto, conhecimentos de mundo e experiências discursivas<br />
diferentes.<br />
Os textos das “cartas de leitor” permitem uma visão de aspectos<br />
relevantes de nossa cultura, pois apresentam avaliações e comentários<br />
de uma parcela da população sobre o cotidiano, servindo como<br />
um espelho da opinião geral. Observa-se nessas cartas, ainda que<br />
implicitamente, uma busca de concordância dos leitores em relação a<br />
juízos de valor sobre vários aspectos do comportamento social. Nesse<br />
sentido, a “carta de leitor” funciona como um termômetro da visão<br />
de mundo de uma parcela pequena, mas constante da população. Os<br />
ethé percebidos, com base nas críticas feitas, apontam, em uma relação<br />
especular, as características de nossa cidadania, ainda um projeto<br />
em construção.<br />
Como atividade pedagógica, a análise das “cartas de leitor”<br />
pode ser um eficiente meio de desenvolvimento do leitor crítico tanto<br />
em relação a fatos da língua, como a reflexões sobre comportamentos<br />
que nos identificam como pertencentes a uma cultura. Podem<br />
também levantar questões que induzam a uma autocrítica que produza,<br />
mesmo que a longo prazo, uma conscientização de nosso problemas.sociais.<br />
Um tratamento sistemático das questões de interpretação de<br />
texto deve considerar, portanto, a situação de comunicação, os tipos<br />
e gêneros textuais, o modo de organização do discurso, o registro de<br />
língua em sua adequação às finalidades do texto, os fatores de tex-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
703<br />
tualidade, o conhecimento de mundo. Assim, ficará evidente para o<br />
aluno que, para ler e interpretar um texto, há um instrumental teórico<br />
capaz de permitir-lhe uma abordagem adequada de análise.<br />
O gênero textual “carta de leitor” constitui um material importante<br />
e adequado à análise da orientação discursiva de um texto.<br />
Possui ainda a vantagem de tratar de assuntos do cotidiano e que dizem<br />
respeito à vida do cidadão.<br />
Os resultados desse tipo de análise poderão favorecer uma<br />
prática de ensino de língua portuguesa que procure apontar estratégias<br />
de leitura e de produção de texto, permitindo que o aluno se desenvolva<br />
como sujeito de sua linguagem e estabeleça um diálogo<br />
produtivo com os textos que circulam em nossa sociedade. Enfim<br />
que capte as entrelinhas.<br />
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ethos. São Paulo: Contexto, 2005.<br />
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Organizado por Ângela Paiva Dionísio & Judith Chambliss Hoffnagel.<br />
São Paulo: Cortez, 2003.<br />
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São Paulo: EDUC/PUC-SP, 1999.<br />
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Hachette, 2002.<br />
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São Paulo: Cortez, 2008.
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AMOSSY, Ruth. A imagem de si no discurso. São Paulo: Contexto:<br />
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PASSOS, Cleide Maria Teixeira Veloso dos. As cartas do leitor nas<br />
revistas Nova Escola e Educação. In: DIONÍSIO, Ângela Paiva &<br />
Beserra, Normanda da Silva. (Orgs.) Tecendo textos, construindo experiências.<br />
Rio de Janeiro: Lucerna, 2003.
CIÊNCIA E VIDA MODERNA<br />
NA DIALÉTICA MUSICAL DE GILBERTO GIL 1<br />
1. Introdução<br />
Beatriz Pereira da Silva (UFLA e UVA)<br />
bia-letras@hotmail.com<br />
Sei que a arte é irmã da ciência<br />
ambas filhas de um deus fugaz.<br />
(Gilberto Gil)<br />
A partir da década de sessenta a ciência revoluciona o planeta.<br />
Alguns acontecimentos marcados pelas evoluções científicas e<br />
tecnológicas causaram fortes mudanças na vida do homem, sua visão<br />
de mundo e seu comportamento. Entre eles pode-se destacar a chegada<br />
do primeiro homem no espaço, enviado pelos soviéticos, o primeiro<br />
homem na lua, enviado pelos americanos, a reprodução do<br />
DNA, o capitalismo avançado e a nova concepção das religiões dentro<br />
da sociedade.<br />
Antenado as mudanças sociais do país e grande admirador das<br />
evoluções científicas, Gilberto Gil apresenta em seu trabalho a tentativa<br />
de populariza e vulgarizar algumas noções da ciência, no sentido<br />
de afirmar o lugar que ela ocupa na vida humana.<br />
Não é uma vulgarização da ciência em si, e sim de notícias do<br />
que ela significa, de aspectos da história da ciência, no sentido de localizar<br />
os indivíduos com relação às invenções, ao progresso e às<br />
novas descobertas. E mais ainda, a notícia no sentido das relações<br />
próximas ou distantes que a ciência possa ou deva ter com outros aspectos<br />
da questão humana, como a religião, a filosofia, a magia, enfim,<br />
as ciências humanas de um modo geral.<br />
1 Este trabalho resulta da monografia "O Homem e a Ciência na Obra de Gilberto Gil", apresentada<br />
em 2007, como requisito de conclusão do curso de Letras com habilitação em Português<br />
e Espanhol na Faculdade de Letras da Universidade Veiga de Almeida, orientada pelo<br />
Professor Raiff Magno Barbosa Pereira.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
706<br />
Dentro desse contexto, este trabalho explora como se expressam<br />
temas e visões sobre a ciência, a tecnologia e seus impactos na<br />
vida moderna nas letras de canções de Gilberto Gil. O objetivo primordial<br />
do trabalho é realizar um levantamento inicial de como temas<br />
de ciência, atividade social imersa em determinado contexto cultural,<br />
podem surgir na manifestação das artes populares, neste caso a<br />
música brasileira.<br />
Tendo como objetivo relacionar as implicações gerais entre<br />
ciência e música, esse trabalho explora um aspecto dessa relação<br />
complexa entre ciência e música: como nas letras de canções da música<br />
de Gilberto Gil surgem e se expressam temas e visões sobre a<br />
ciência, a tecnologia e seus impactos na vida moderna. Foram examinadas<br />
letras de diversas canções sem a preocupação de abordar<br />
outros elementos do discurso musical.<br />
Isso é evidentemente uma limitação forte, já que a música<br />
guarda uma integralidade entre a harmonia, o ritmo e as palavras. A<br />
aliança texto–música é matéria das mais antigas e sensíveis no campo<br />
da arte. Por isso, analisar somente os aspectos informativos e poéticos<br />
das letras musicais significa uma atitude redutora e um risco<br />
maior. Apesar dessa limitação, pode-se acreditar que estudos como<br />
esse podem ajudar a investigar como temas de ciência e tecnologia<br />
estão presentes no imaginário de compositores.<br />
Será apresentado, no que se segue, letras de músicas de Gilberto<br />
Gil provenientes do acervo da música popular brasileira, desde<br />
a década de 1960. Serão consideradas letras musicais que se referem<br />
de alguma forma a temas, conceitos, visões ou atitudes diante da ciência,<br />
da tecnologia e de seus impactos sobre os indivíduos e sobre a<br />
sociedade.<br />
No sentido de facilitar a análise, agrupamos tentativamente as<br />
letras examinadas de acordo com as seguintes categorias:<br />
1. Ciência: medos e apreensões – referem-se a eventos científicos<br />
ou tecnológicos como a chegada do homem à Lua;<br />
criticando ou ironizando as consequências dos usos da ciência<br />
e da tecnologia, como aquelas referentes à influência da<br />
tecnologia sobre o homem.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
707<br />
2. Pausa para reflexão: O poeta e seus questionamentos –<br />
indagam ou têm como assunto conceitos ou teorias científicas,<br />
como aquelas que se referem a cibernética, ao uso do<br />
raio laser, e aos conceitos fundamentais de tempo e espaço;<br />
questionam e/ou se referem a conceitos e teorias científicas<br />
para aplicá-los em diversos contextos e situações da vida<br />
social.<br />
3. A ciência é amiga da arte – abordam relações na vida social<br />
e individual decorrentes de avanços tecnológicos, como<br />
a introdução de aparatos tecnológicos diversos - a televisão,<br />
o computador, a internet etc.;<br />
Essa classificação é evidentemente superficial e é necessário<br />
aprimorá-la. Note-se que as fronteiras entre as categorias aqui apresentadas<br />
não são muito precisas; várias letras musicais mencionadas<br />
a seguir poderiam se enquadrar em mais de uma delas. Apesar disso,<br />
essa listagem pode ser útil como uma primeira tentativa classificatória<br />
ou pelo menos como um artifício didático para o acompanhamento<br />
deste texto.<br />
As letras de música selecionadas a seguir são apenas alguns<br />
exemplos possíveis; muitas outras escolhas poderiam ter sido feitas.<br />
O objetivo é destacar que uma análise da música popular, uma expressão<br />
artística tão forte no Brasil, pode conduzir a interessantes<br />
questionamentos sobre a relação entre ciência e cultura no país.<br />
2. Ciência: ontem e hoje<br />
A perspectiva histórica sobre o modo como as teorias científicas<br />
se desenvolvem e a informação é acumulada mostram que, até<br />
recentemente a crença era de que havia um círculo constante de conhecimento;<br />
e que as teorias tornavam-se, gradualmente cada vez<br />
mais abrangentes e mais precisas.<br />
Os criadores do método científico moderno buscaram contrapor<br />
suas ideias à visão de mundo dominante na Antiguidade e por<br />
toda a Idade Média. O conhecimento da natureza se fundamentava<br />
na compreensão da interação de seus elementos. O sujeito que se
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
708<br />
propunha conhecer a natureza, não procurava conquistá-la ou dominá-la.<br />
A conquista e o domínio da natureza passam a ser a nova<br />
perspectiva da ciência a partir dos séculos XVI e XVII, quando alguns<br />
pensadores (Galileu, Newton, Bacon, Descartes, dentre outros)<br />
lançam as bases do método científico que predominou até o início do<br />
século XX, como paradigma da atividade científica.<br />
A noção de paradigma é normalmente utilizada para estabelecer<br />
uma diferenciação entre dois momentos ou dois níveis do processo<br />
de conhecimento científico (KUHN, 1989; CAPRA, 1982). Para<br />
um entendimento mínimo do que significa essa noção, pode-se conceituar<br />
o paradigma enquanto um modelo de ciência que serve como<br />
referência para todo um fazer científico, durante uma determinada<br />
época ou um período de tempo demarcado. A partir de certo momento<br />
da história da ciência, o referido modelo predominante tende a se<br />
esgotar em função de uma crise de confiabilidade nas bases de seu<br />
conhecimento. Então, o paradigma passa a ser substituído por outro<br />
modelo científico predominante.<br />
Fritjof Capra (1991, p. 83-133) discorre sobre os dois paradigmas<br />
da ciência. Segundo ele, o velho modelo científico teve suas<br />
principais características formuladas por Descartes, Newton, e Bacon.<br />
Nesse paradigma chamado de racionalista acreditava-se que em<br />
qualquer sistema complexo, a dinâmica do todo poderia ser compreendida<br />
a partir da propriedade das partes.<br />
No novo paradigma, chamado de holístico, ecológico, ou sistêmico,<br />
as relações entre as partes e o todo são invertidas. As propriedades<br />
das partes só podem ser entendidas a partir da dinâmica do<br />
todo. Nele cada estrutura é vista como manifestação de um processo<br />
subjacente.<br />
O paradigma científico moderno deu uma nova visão do<br />
mundo, opondo-se à visão Aristotélica. A ciência moderna é contra<br />
todas as formas de dogmatismo e de autoridade e se opõe ao conhecimento<br />
vulgar (senso comum) na medida em que desconfia das evidencias<br />
da experiência imediata e crê na razão, avançando pela observação<br />
descomprometida e livre, sistemática e mais rigorosa possível<br />
dos fenômenos naturais.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
709<br />
Santos afirma que “todo o conhecimento científico visa constituir-se<br />
em senso comum” (1990, p. 55). Essa tese afirma, basicamente,<br />
que a ciência pós-moderna deve dialogar com outras formas<br />
de conhecimento, em particular com o conhecimento do senso comum.<br />
Sendo assim, durante as mudanças de paradigma, sentiu-se<br />
que os alicerces do conhecimento estavam se desagregando. O paradigma<br />
cartesiano baseou-se na crença de que o conhecimento científico<br />
poderia alcançar a certeza absoluta e final.<br />
Contudo, e principalmente em Descartes, o novo método científico<br />
– que colocava a ordenação da realidade como sendo promovida<br />
pela razão – ainda se deixava impregnar por uma entidade<br />
metafísica alheia ao objeto de estudo da ciência: a razão, consequentemente,<br />
e em última instância, era validada por Deus.<br />
Mesmo séculos depois, essa noção ainda impregna o pensamento<br />
de Albert Einstein, um dos maiores cientistas do século XX:<br />
ao afirmar que “Deus não joga dados”, ainda pressupõe a existência<br />
de um ser supramundano. Porém, essa pressuposição perde o seu<br />
significado, sobretudo como o desenvolvimento da física quântica,<br />
onde a natureza do conhecimento, o papel dos cientistas, a objetividade<br />
e o determinismo da ciência tradicional a que atende aos pressupostos<br />
da perspectiva cartesiana são profundamente questionados.<br />
Sendo assim, tivemos na física um conceito que parecia absolutamente<br />
indispensável e depois caiu por terra. Isso acontece também<br />
em outros campos da ciência através dos tempos.<br />
Segundo Capra (1991, p. 83), “os cientistas não lidam com a<br />
verdade, eles lidam com descrições limitadas da realidade”. Todos os<br />
conceitos, teorias e descobertas segundo o novo paradigma da ciência<br />
são limitadas e aproximadas, desse modo, a ciência nunca poderá<br />
fornecer uma compreensão completa e definitiva da realidade.<br />
A verdade será, portanto, a preocupação fundamental da ciência,<br />
mas será impossível formular um critério de verdade e aqui reside<br />
certa contradição, pois se por um lado a ciência caminha para a<br />
verdade, por outro lado não há critério que permita afirmar que uma<br />
proposição é verdadeira. Quando muito, pode-se dizer que é falsa ou<br />
que resistiu às suas falsificações e às falsificações das anteriores teorias<br />
e, nessa medida, é superior a elas.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
710<br />
A verdade funcionará como uma espécie de ideal regulador.<br />
Aproximando-nos da verdade eliminando os erros das teorias precedentes<br />
e substituindo-as por outras com maior grau de probabilidade,<br />
sendo nisto que reside o progresso da ciência, e só há progresso se<br />
for admitida uma verdade na direção da qual se segue. Assim, o objeto<br />
da ciência não será tanto a verdade, mas o desenvolver da probabilidade<br />
mediante a procura de proposições aproximadamente<br />
mais verdadeiras.<br />
3. Ciência: medos e apreensões<br />
Os anos 50 e 60 foram marcados por transformações mundiais<br />
no campo sociopolítico, econômico, técnico-científico e cultural.<br />
Gilberto Gil antenado nas mudanças ocorridas em sua época irá interpretar<br />
a problemática existente entre os avanços científicos e as<br />
manifestações artísticas.<br />
Grande defensor da arte como espaço de fuga espiritual e resistência<br />
às tendências desumanizantes da vida, preocupa-se especificamente<br />
com o caráter ambíguo da tecnologia e sua presença cada<br />
vez mais decisiva no cotidiano. Destacou-se entre os artistas e compositores<br />
de sua época ao colocar nas canções a temática referente ao<br />
embate entre o processo desumano da ciência e a existência do ser.<br />
Em 1966, sob o impacto da decida da nave Lunik 9 no solo<br />
lunar, compôs uma canção com o mesmo nome, da qual diversos elementos<br />
mais tarde fariam parte da estética tropicalista, como a iniciativa<br />
de retirar de fatos jornalísticos motivos a serem trabalhados<br />
em canções e a fusão entre o novo e o tradicional.<br />
Poetas, seresteiros, namorados, correi<br />
É chegada a hora de escrever e cantar<br />
Talvez as derradeiras noites de luar<br />
Momento histórico, simples resultado do desenvolvimento da<br />
ciência viva<br />
Afirmação do homem normal, gradativa sobre o universo natural<br />
Sei lá que mais<br />
Ah, sim! Os místicos também profetizando em tudo o fim do mundo<br />
E em tudo o início dos tempos do além<br />
Da nova guerra ouvem-se os clarins<br />
Guerra diferente das tradicionais, guerra de astronautas nos espaços<br />
siderais
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
711<br />
E tudo isso em meio às discussões, muitos palpites, mil opiniões<br />
Um fato só já existe que ninguém pode negar, 7, 6, 5, 4, 3, 2, 1, já!<br />
E lá se foi o homem conquistar os mundos lá se foi<br />
Lá se foi buscando a esperança que aqui já se foi<br />
Nos jornais, manchetes, sensação, reportagens, fotos, conclusão:<br />
A lua foi alcançada afinal, muito bem, confesso que estou contente<br />
também<br />
A mim me resta disso tudo uma tristeza só<br />
Talvez não tenha mais luar pra clarear minha canção<br />
O que será do verso sem luar?<br />
O que será do mar, da flor, do violão?<br />
Tenho pensado tanto, mas nem sei<br />
Poetas, seresteiros, namorados, correi<br />
É chegada a hora de escrever e cantar<br />
Talvez as derradeiras noites de luar.<br />
Na canção, o compositor revelava-se ao mesmo tempo encantado<br />
e temeroso diante do avanço da tecnologia. Em suas próprias<br />
palavras:<br />
Recebi o impacto da notícia do pouso da Lunik 9 na Lua com orgulho<br />
e ponderação: estávamos conquistando o espaço, mas onde isso ia<br />
dar? Não era só o cidadão que especulava, mas também o artista, com o<br />
senso de ser locutor da sociedade junto a história.... (RENNÓ, 2003, p.<br />
70-71).<br />
A letra inicia conclamando os poetas a uma urgente corrida<br />
para aproveitar o momento ainda possível de se escrever poesias e<br />
canções inspirada pelo luar. Apresenta também um temor exagerado<br />
da tecnologia e de que ela pudesse afugentar todo o caráter romântico,<br />
lírico que abarca a imagem da lua. A partir do momento em que o<br />
satélite começasse a ser explorado e colonizado pelos homens, deixaria<br />
de ser algo distante, inalcançável, o que era uma das condições<br />
necessária para a prática de um lirismo saudosista romântico. Acrescenta<br />
ainda admiração por aquele momento histórico e ao invés de<br />
louvar a ponte entre ciência e arte, o que fará posteriormente em outras<br />
canções, o compositor se queixa de que a ciência e o avanço do<br />
progresso estariam destruindo o romantismo poético, resultando na<br />
morte da poesia.<br />
Apresenta uma nítida opção pelas temáticas recorrentes no<br />
Romantismo (mar, luar, violão), tradicionalmente relacionados com<br />
poeta e poesia. É aparentemente um alerta à ingênua tríade “poetas,<br />
seresteiros, namorados”, mas compõe um forte manifesto político a
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
712<br />
respeito das conquistas espaciais, “Guerra diferente / Das tradicionais<br />
/ Guerra de astronautas / Nos espaços siderais”. Isso porque emergia<br />
no cenário internacional a Guerra Fria: disputa entre Estados<br />
Unidos e União Soviética (URSS) pelos poderes político e econômico,<br />
além da conquista do espaço. Esse foi o grande impulso para a<br />
exploração espacial e resultou em grandes avanços científicos e tecnológicos,<br />
além de outras descobertas importantes.<br />
Segundo Gil, a inspiração nasceu de uma “profunda assunção<br />
de um sentido trágico” de seu tempo, em que os avanços científicos<br />
geravam medo e dúvidas sobre o futuro da humanidade. Lembra-nos<br />
Lacerda (2002, p. 49) que o perigo de uma terceira guerra mundial<br />
era uma das grandes preocupações da época, além do crescimento<br />
bélico, cada vez mais potente desde o episódio de Hiroshima. Lacerda<br />
destaca ainda que “... nessa canção, o apocalipse vem surgindo<br />
em uma dupla face, não apenas o fim, mas também um novo começo,<br />
um fenômeno simultaneamente destrutivo e construtivo”.<br />
Nos versos “Lá se foi buscando / A esperança que aqui já se<br />
foi”, podemos realmente comprovar essa posição, visto que o espaço<br />
sideral apresenta a esperança de um recomeço para a humanidade,<br />
um reencontro com a esperança que já não era facilmente encontrada<br />
em nosso planeta.<br />
Ampliando a discussão podemos buscar um entendimento<br />
maior no diálogo com a poesia intitulada O homem; as viagens, de<br />
Carlos Drummond de Andrade (1979, p. 440-441).<br />
Nesse trabalho o poeta mineiro nos mostra que a grande falência<br />
existencial do homem, muitas vezes, é abdicar de uma mudança<br />
radical do seu interior ao naufragar em viagens siderais que só o<br />
confirmam como grande negligenciador de sua própria alma.<br />
A esse ser “bicho da terra tão pequeno”, cabe buscar uma ligação<br />
primordial, harmoniosa e benéfica entre o já conclamado<br />
mundo científico e a expansiva alma humana. Sendo essa a mais difícil<br />
viagem proposta: “a viagem de si a si mesmo”.<br />
Para se buscar a “esperança que aqui já se foi” não é necessário<br />
ao homem outros mundos colonizar, apenas se faz necessário
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713<br />
“humanizar o homem” para que esse possa “con-viver” em um espaço<br />
onde a esperança seja inesgotável.<br />
Prosseguindo no embate entre ciência e humanidade, Gilberto<br />
Gil escreve em 69 a canção Cérebro Eletrônico, em que avalia e retifica<br />
a condição humana como soberana em relação à robótica.<br />
O cérebro eletrônico faz tudo<br />
Faz quase tudo<br />
Faz quase tudo<br />
Mas ele é mudo<br />
O cérebro eletrônico comanda<br />
Manda e desmanda<br />
Ele é quem manda<br />
Mas ele não anda<br />
Só eu posso pensar<br />
Se Deus existe<br />
Só eu<br />
Só eu posso chorar<br />
Quando estou triste<br />
Só eu<br />
Eu cá com meus botões<br />
De carne e osso<br />
Eu falo e ouço. Hum<br />
Eu penso e posso<br />
Eu posso decidir<br />
Se vivo ou morro por que<br />
Porque sou vivo<br />
Vivo pra cachorro e sei<br />
Que cérebro eletrônico nenhum me dá socorro<br />
No meu caminho inevitável para a morte<br />
Porque sou vivo<br />
Sou muito vivo e sei<br />
Que a morte é nosso impulso primitivo e sei<br />
Que cérebro eletrônico nenhum me dá socorro<br />
Com seus botões de ferro e seus<br />
Olhos de vidro<br />
As discussões sobre a cibernética começaram a se tornar públicas<br />
nos anos 70, o computador já estava se tornando uma realida-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
714<br />
de, era o chamado cérebro eletrônico, nem um pouco miniaturizado<br />
como são os computadores hoje.<br />
Sempre atento ao seu tempo, na música Cérebro Eletrônico<br />
Gil atenta ao risco dessa crescente maquinização, robotização e<br />
computadorização. Nela, o autor enfoca o problema do avanço tecnológico,<br />
pois novamente se vê diante do perigo de que a tecnologia<br />
assuma feições desumanizantes e venha a representar uma grave ameaça<br />
à humanidade, visto que o cérebro eletrônico “faz tudo, comanda,<br />
manda e desmanda”.<br />
A música já admitia as perspectivas de um “mundo novo” e<br />
suas implicações, mas com certa ironia; nela o homem aceita a importância<br />
do computador, e faz um alerta para o homem-máquina ou<br />
a máquina comandando o homem. Diante disso, põe o ser humano<br />
em situação superior à máquina, demonstrando que ela deverá servir<br />
ao homem, e não o contrário, o que, aliás, é o pressuposto básico da<br />
cibernética, as novas inteligências artificiais colocadas sob o controle<br />
da inteligência original, humana.<br />
Segundo o cientista Francis Crick, prêmio Nobel pela descoberta<br />
da estrutura dupla hélice do DNA, o homem não precisa provar<br />
ser melhor que o computador ou qualquer máquina, pois ele realmente<br />
o é. Mesmo o homem produzindo máquinas que enxerguem<br />
ou conversem, elas não têm a capacidade de interpretar significados,<br />
e são confusas na identificação de objetos “... podemos construir um<br />
modelo com um comportamento um pouco parecido com o do cérebro,<br />
mas construir algo que se comporte exatamente como ele talvez<br />
seja tecnicamente impossível” (GRECO, 2001, p. 57-58).<br />
Sendo assim, o homem ainda é insubstituível por não haver<br />
máquinas que possam tomar decisões, para isso seria necessário<br />
construir máquinas que funcionassem como redes neurais.<br />
Por haver sido escrita em um período em que as informações<br />
sobre o assunto ainda eram poucas e os avanços crescentes, havia o<br />
medo de o homem ser comandado pelas máquinas. As comparações<br />
entre as capacidades dos dois tornaram-se inevitáveis. Gil recorre,<br />
então, para o campo da espiritualidade como espaço de autonomia do<br />
homem, em que a máquina por ser irracional não atua.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
715<br />
Os versos “Só eu posso pensar se Deus existe / Só eu / Só eu<br />
posso chorar quando estou triste” chamam a atenção para essas impossibilidades<br />
do cérebro eletrônico que, embora cérebro, não tem<br />
vida própria e não pode chorar, curiosa concepção da possibilidade<br />
humana, em contraponto à capacidade eletrônica de mandar e desmandar<br />
vista pelo poeta: “O cérebro eletrônico comanda / Manda e<br />
desmanda / Ele é quem manda / Mas ele não anda” Percebe-se então<br />
um jogo de contrastes que se estabelece no texto, valorizando as possibilidades<br />
do ser humano diante das impossibilidades da máquina.<br />
O que poderia ser visto como característica superior à raça<br />
humana surge como grande diferencial do homem: pensar cá com<br />
“seus botões de carne e osso” sobre sua existência e ao mesmo tempo<br />
sua finitude. Soma-se a isso uma característica pungente: a autonomia<br />
do individuo que pensa e pode decidir entre a vida e a morte,<br />
pois “Que cérebro nenhum (...) dá socorro” no “caminho inevitável<br />
para a morte”.<br />
A máquina pode até ser eterna, mas não faz do homem um ser<br />
perene. E isso não descarta e não tira do humano a possibilidade de<br />
pensar em Deus, de vivenciar ou experienciar algo de teor místico.<br />
Mesmo em um momento em que a tecnologia aponta às vantagens<br />
da máquina, Gil valoriza as sutilezas, as fragilidades do ser<br />
humano, dando a ele o poder supremo de alcançar realidades sensíveis<br />
em contato com sua própria limitação.<br />
Durante o tempo que passa na prisão, Gilberto Gil compõe<br />
três músicas que retratam uma nova opção de vida. Devido possivelmente<br />
à dificuldade em recompor uma perspectiva de vida presente,<br />
em razão da privação de liberdade que vivia no momento,<br />
compõe músicas sobre temas futurísticos, voltando sua atenção para<br />
as novas descobertas e avanços científicos, entre essas composições<br />
está Futurível.<br />
Você foi chamado, vai ser transmutado em energia<br />
Seu segundo estágio de humanóide hoje se inicia<br />
Fique calmo, vamos começar a transmissão<br />
Meu sistema vai mudar<br />
Sua dimensão<br />
Seu corpo vai se transformar<br />
Num raio, vai se transportar
No espaço, vai se recompor<br />
Muitos anos-luz além<br />
Além daqui<br />
A nova coesão<br />
Lhe dará de novo um coração mortal<br />
Pode ser que o novo movimento lhe pareça estranho<br />
Seus olhos talvez sejam de cobre, seus braços de estanho<br />
Não se preocupe, meu sistema manterá<br />
A consciência do ser<br />
Você pensará<br />
Seu corpo será mais brilhante<br />
A mente, mais inteligente<br />
Tudo em superdimensão<br />
O mutante é mais feliz<br />
Feliz porque<br />
Na nova mutação<br />
A felicidade é feita de metal.<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
716<br />
Segundo o próprio Gil, “essa música representa o diálogo entre<br />
a liberdade e a prisão, constituídas pelas próprias cadeias que os<br />
homens encadeiam. A liberdade é o que está na essência de nós<br />
mesmos nas situações limites.” (FONTELES, 1999, p. 141).<br />
Por esse caminho, entendemos que mesmo fisicamente preso<br />
é possível que a consciência esteja livre, pois se pode aprisionar o<br />
homem, mas não seus pensamentos. A liberdade é mais que puramente<br />
física, é o que está no cerne de cada um.<br />
Em Futurível, nos versos em que diz: “Não se preocupe, meu<br />
sistema manterá / A consciência do ser / Você pensará...”. Gil projeta<br />
no futuro seus anseios e medos, entre eles o de que a tecnologia desenvolvida<br />
para resolver os problemas humanos acabe criando novas<br />
dificuldades à humanidade.<br />
Ultrapassando o significado da letra e refletindo sobre como<br />
ela é cantada, observamos na introdução da música sons que lembram<br />
os filmes de ficção científica, nos remetendo à ideia futurista<br />
que se consagrou na época com películas do mesmo gênero de 2001:<br />
uma Odisseia no Espaço, acrescentando um tom de suspense, de mistério<br />
com relação às novidades.
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717<br />
Percebemos uma nítida preocupação quanto às mudanças<br />
possíveis na essência do homem, em decorrência dos avanços científicos<br />
e tecnológicos. Por outro ângulo, esses versos nos possibilitam<br />
ver a música como uma crítica social muito clara ao momento histórico<br />
que Gil e o país estavam atravessando.<br />
A chegada dos militares ao poder restringiu o direito do homem<br />
de se expressar livremente. O sistema manteria a “consciência<br />
do ser”, mas servindo aos seus objetivos. Neste caso, cabe a definição<br />
feita pelo neurologista português António Damásio, que<br />
...divide a consciência humana em duas, a consciência nuclear e a consciência<br />
alargada, a primeira se refere ao aqui e agora, não há passado<br />
nem futuro para ela, a segunda é referente não só ao aqui e agora, mas<br />
também ao nosso passado e ao nosso futuro antecipado (GRECO, 2001,<br />
p. 26).<br />
Este ser transformado, após passar pelo “segundo estágio de humanóide”,<br />
conservaria somente a consciência nuclear. Não faria referências<br />
ao passado, nem planos e projetos para o futuro.<br />
Lacerda (2002, p. 65) destaca que a chegada dos militares ao<br />
poder pôs em evidência a figura do ser humano com características<br />
que nos remetem às máquinas, funcionando ao comando de superiores<br />
sem questionar os motivos ou consequências de seus atos, somente<br />
importando-se com o aqui e agora (consciência nuclear). Um<br />
homem comandado por detentores do poder sem ideais políticos,<br />
mas com objetivos calculados em termos de produtividade e de progresso<br />
material a ser obtido a qualquer custo.<br />
O regime militar agia como um cientista sem escrúpulos, visando<br />
ao resultado de seu experimento a qualquer custo, mesmo que<br />
fosse necessário dispor da vida das cobaias de seu laboratório. Nesse<br />
caso, vidas de homens comuns que tinham sua privacidade violada.<br />
Tudo isso, visto como necessário e certo para o avanço da sociedade:<br />
“Olha você está sendo trazido pra um novo estágio da humanidade,<br />
mas não se preocupe, isso é muito natural”, como uma iniciação aos<br />
novos tempos a que o homem será submetido.<br />
Vale ressaltar ainda que no contexto histórico educacional do<br />
Brasil, foram implementados nos currículos escolares disciplinas que<br />
direcionavam os alunos ao, e somente, viés técnico-científico. Mui-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
718<br />
tas vezes renegadas, disciplinas como Sociologia, Filosofia e Artes<br />
não contribuíam para a formação do educando que privilegiava a<br />
formação dos alunos para trabalharem em indústrias.<br />
A chegada dos militares ao poder gerou uma grande censura<br />
aos pensamentos libertários da época. Muitos foram presos, exilados<br />
ou mortos, pois a “mutação” conservaria a consciência do ser, mas a<br />
felicidade não seria criada por essa consciência, já viria pronta, estrategicamente<br />
planejada, “de metal”, não seria criada pela liberdade de<br />
pensar ou agir. Também é possível a interpretação de que a felicidade<br />
se daria por meio de bens materiais ou da evolução industrial: “O<br />
mutante é mais feliz / Feliz porque / Na nova mutação / A felicidade<br />
é feita de metal”.<br />
Diante disso, não parecendo mais haver “futuro possível”, Futurível<br />
expressa de forma sutil o fim da humanidade e a descrença de<br />
que o progresso material de alguns traga mais felicidade ao mundo,<br />
ideias consideradas comunistas e temidas pelo regime da época.<br />
4. Pausa para reflexão: O poeta e seus questionamentos<br />
Desde a instalação da ciência, no século XVII, até recentemente,<br />
o conhecimento era entendido como um aumento ou aproximação<br />
da verdade acerca das coisas e que ia sendo acumulado nas<br />
memórias e nos livros. Essa concepção ainda segue e ganha cada vez<br />
mais associação à crença de que o conhecimento é uma criação sempre<br />
nova (não uma acumulação), que toma por base o já existente.<br />
Atualmente há uma tendência em querer tornar o conhecimento<br />
científico mais acessível ao maior número de pessoas, simplificando-o.<br />
Apesar de não ser muito fácil divulgar uma teoria de modo<br />
popular, isso se faz cada vez mais necessário devido ao aumento<br />
da importância da ciência na vida cotidiana.<br />
As novas tecnologias permitem contatos muito mais ricos,<br />
constantes e variados de grupos com diversos critérios de valor, podendo<br />
enriquecer a experiência pessoal ou enfraquecer as identidades<br />
já constituídas na qual divergem alguns teóricos.<br />
Vejamos a letra da canção Queremos Saber, de 1976.
Queremos saber,<br />
O que vão fazer<br />
Com as novas invenções<br />
Queremos notícia mais séria<br />
Sobre a descoberta da antimatéria<br />
e suas implicações<br />
Na emancipação do homem<br />
Das grandes populações<br />
Homens pobres das cidades<br />
Das estepes dos sertões<br />
Queremos saber,<br />
Quando vamos ter<br />
Raio laser mais barato<br />
Queremos, de fato, um relato<br />
Retrato mais sério do mistério da luz<br />
Luz do disco voador<br />
Pra iluminação do homem<br />
Tão carente, sofredor<br />
Tão perdido na distância<br />
Da morada do senhor<br />
Queremos saber,<br />
Queremos viver<br />
Confiantes no futuro<br />
Por isso se faz necessário prever<br />
Qual o itinerário da ilusão<br />
A ilusão do poder<br />
Pois se foi permitido ao homem<br />
Tantas coisas conhecer<br />
É melhor que todos saibam<br />
O que pode acontecer<br />
Queremos saber, queremos saber<br />
Queremos saber, todos queremos saber<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
719<br />
A composição é um questionamento sobre a democratização<br />
das informações científicas. Segundo Gilberto Gil, essa canção serve<br />
como afirmação do compromisso do artista em se fazer abrir os acessos<br />
para todo mundo. “Quanto mais todo mundo souber, melhor. Essa<br />
coisa de que o saber é para especialistas, não!” (FONTELES,<br />
1999, p. 256).<br />
O poeta baiano sugere ainda que a ciência deixe de ser algo<br />
distante do homem comum e contribua para a sua emancipação. Essa<br />
visão também é compartilhada por cientistas como Carl Sagan, cien-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
720<br />
tista que buscou sempre oferecer ao público leigo ou especializado a<br />
mais completa e acessível visão científica dos fatos que se fez<br />
possível, e Alan Sokal, que defende a incrementação do<br />
conhecimento científico como essencial para a democracia,<br />
justificando que assim evitará que decisões importantes sejam<br />
tomadas sem participação popular (GRECCO, 2001, p. 22).<br />
Partindo do pressuposto de que a maior fonte de poder é a<br />
informação, Queremos Saber nos leva á observar que apesar de<br />
tantas descobertas científicas importante, como o raio laser e a<br />
antimatéria, há um jogo paradoxal que mantém o homem comum<br />
ainda “perdido”, “carente” e “sofredor”, distante da “luz do disco<br />
voador”, das novidades científicas que o levariam ao conhecimento.<br />
Lacerda (2002, p. 93) destaca que todos os elementos trabalhados na<br />
música convergem para um debate sobre a ilusão do poder, como<br />
uma alusão à atitude arrogante dos que detêm o saber como privilégio<br />
em nossa sociedade. na sociedade atual quem detem o poder é a<br />
elite, Sugere também uma outra leitura em que o texto nos leve a um<br />
diálogo intercultural e interdisciplinar.<br />
A pós-modernidade trás a possibilidade de pensar o indivíduo<br />
com uma formação pautada em um saber unívoco. È preciso refletir<br />
o mundo e por consequência o pensamento contemporâneo como algo<br />
em eterna formação, e mais do que isso num viés holístico em que<br />
os diferentes saberes são vistos não como algo compartimentalizado<br />
ou fragmentado.<br />
O sociólogo francês Edgar Morin (2003, p. 116) afirma que,<br />
diante dos problemas complexos que as sociedades contemporâneas<br />
hoje enfrentam, apenas estudos de caráter inter-poli-trandisciplinar<br />
poderiam resultar em análises satisfatórias de tais complexida- des:<br />
"Afinal, de que serviriam todos os saberes parciais senão para formar<br />
uma configuração que responda a nossas expectativas, nossos<br />
desejos, nossas interrogações cognitivas?” (MORIN, 2003, p. 116).<br />
De acordo com várias tradições místicas muito consideradas e<br />
utilizadas por Gil em suas composições, a verdade última deve ser<br />
buscada pela intuição e não pela análise e pelo raciocínio.<br />
Há também aqueles que apontam o período atual como resultante<br />
de um enfraquecimento da crença que poderíamos ter em um
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
721<br />
elemento comum a toda a humanidade, assim como também se enfraqueceu<br />
a crença de que seria possível chegar-se a atingir um conhecimento<br />
não parcial, nem ilusório das coisas – a verdade.<br />
Sendo assim, todo poder é uma ilusão, mesmo o que é baseado<br />
no conhecimento, pois tudo o que existe está em permanente andamento<br />
e se modifica a cada instante, portanto, aquele que detém<br />
hoje o saber pode não possuí-lo no futuro, pelo menos não como<br />
verdade absoluta, a não ser que consiga obter uma visão holística,<br />
mas essa, a mente humana só é capaz de conceber quando livre de<br />
interesses mundanos.<br />
A imprecisão semântica, característica do autor aparece claramente<br />
na música Logos versus logo, mas mesmo aparentemente<br />
confusa, a composição expõe com clareza a complexidade do que<br />
tem a dizer.<br />
Trocar o logos da posteridade<br />
Pelo logo da prosperidade<br />
Celebra-se, poeta que se é<br />
Durante um tempo a ideia radical<br />
De tudo importar, se para o supremo ser<br />
De nada importar, se para o homem mortal<br />
Abarrotam-se os cofres do saber<br />
Um saber que se torne capital<br />
Um capital que faça o futuro render<br />
Os juros da condição de imortal<br />
(Mas a morte é certa!)<br />
Trocar o logos da posteridade<br />
Pelo logo da prosperidade<br />
E assim por muito tempo busca-se<br />
O cuidadoso esculpir da estátua<br />
Que possa atravessar os séculos intacta<br />
Tornar perpétua a lembrança do poeta<br />
Mas chega-se ao cruzamento da vida<br />
O ser pra um lado, pra outro lado o mundo<br />
Sujeita-se o poeta à servidão da lida<br />
Quando a voz da razão fala mais fundo
E essa voz comanda:<br />
Trocar o logos da posteridade<br />
Pelo logo da prosperidade<br />
E o bom poeta, sólido afinal<br />
Apossa-se da foice ou do martelo<br />
Para investir do aqui e agora o capital<br />
No produzir real de um mundo justo e belo<br />
Celebra assim, mortal que já se crê<br />
O afazer como bem ritual<br />
Cessar da obsessão pelo supremo ser<br />
Nascer do prazer pelo social<br />
E o poeta grita:<br />
Trocar o logos da posteridade<br />
Pelo logo da prosperidade<br />
Eis o papel da grande cidade<br />
Eis a função da modernidade<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
722<br />
De imediato salta aos olhos o jogo linguístico que o poeta se<br />
propõe a usar durante toda a canção. Presencia-se assim a linguagem<br />
poético-musical como forma de discutir duas posições de ser e de agir<br />
do homem perante o mundo.<br />
No título, se mostra a oposição entre logos e logo. A primeira<br />
como cenário de um mundo regrado pelo discurso técnico cientificista<br />
em que o paradigma de viver se pauta na racionalidade (logo, do<br />
grego significa, palavra, ciência, conhecimento). A segunda na urgência<br />
de reencontrar a prosperidade, tendo como agenciador a figura<br />
do poeta que através da “ideia radical” busca captar de tudo pra<br />
daí surgir o supremo existir, o conviver para além de um mundo material.<br />
É a urgência de uma visão utilitarista e produtivista, em oposição<br />
ao mundo puramente poético.<br />
Cada vez mais usufruindo dos paradoxos, Gilberto Gil num<br />
jogo-poético linguístico apresenta a vida num eterno jogo e posições,<br />
brincando com as palavras no seu sentido mais corriqueiro, prova<br />
poder escavar delas e transformá-las em outras verdades. “Cofres” já<br />
não aprisionam, libertam; o capital se transfigura naquilo que é imprescindível<br />
para o ser. Não no sentido de reificar o humano, mas
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
723<br />
trazendo para ele uma condição de imortalidade. As palavras, então,<br />
outrora configuradas em um universo dicionarizado capitalista se revestem<br />
de um sentido libertário, ampliando e potencializando os seus<br />
sentidos.<br />
Gilberto Gil também sabe que a busca pela prosperidade é<br />
uma tarefa árdua, visto que a sedução da voz da razão (Capitalismo<br />
Mundial Integrado) tudo faz para driblar, velar e levar o poeta a um<br />
caminho de servidão. E assim os papéis se invertem: “Trocar o logos<br />
da posteridade / Pelo logo da prosperidade”. Seria lugar comum dizer<br />
que a prosperidade na voz capitalista é lucrar? Parece que sim.<br />
Mas cabe ao bom poeta, aquele convicto de seu papel, reinventar o<br />
mundo de maneira a recuperar o fraterno, o igual, numa atitude aos<br />
ideais socialistas sugeridos a partir das palavras foice e martelo, símbolos<br />
do partido comunista.<br />
Inserindo o poeta num lócus mais social do que puramente<br />
metafísico, Gilberto Gil inscreve a prática desse numa atitude mais<br />
engajada, tirando dele a imagem de um ser no pedestal e o colocando<br />
numa atitude “sólida afinal”. Seguindo as estrofes, acompanhamos<br />
como o artistas poeta sai do seu papel de contemplador do ser e torna-se<br />
apenas mais um na engrenagem da máquina capitalista.<br />
Na primeira estrofe, o desejo de evolução transcendente está<br />
acima do desejo de evolução material, e aquela, só se dá pela arte,<br />
visto que essa consiste na mais audaciosa expressão de um projeto<br />
cultural e espiritual: além de ser “geradora de perfeição e plenitude,<br />
ela é, por essência, afirmação, benção e divinização da existência”<br />
(NIETZSCHE, apud JAPIASSU, 2005, p. 230); além disso, é “a<br />
mais direta visão da realidade” (BÉRGSON, apud JAPIASSU, id.<br />
ib.) ou “a contemplação das coisas independentemente do princípio<br />
da razão” (SCHOPENHAUER, apud JAPIASSU, id. ib.). Encontramos<br />
aí a ideia do estreitamento do poeta com Deus, justificando a<br />
grandeza daquele que, em tese, seria superior ao cientista, por buscar<br />
e obter tal aproximação.<br />
A segunda estrofe traz um sentido diminuidor, depreciativo,<br />
da atribuição exagerada que o poeta faz de si mesmo ao associar a<br />
poesia ao plano da economia, ao plano da acumulação. O refrão nos<br />
leva a esse sentido de inclusão do poeta, no utilitarismo, fazendo de-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
724<br />
le um ser comum ao fazer de sua arte algo meramente burocrático,<br />
profissional, trocando o “logos da posteridade” por sua urgência de<br />
capital, pelo “logo da prosperidade”.<br />
Nas estrofes seguintes, é abordada a questão do engajamento:<br />
O poeta após entrar no processo capitalista da sociedade, se engaja,<br />
resgatando a excelência poética através de um serviço prestado à<br />
humanidade pela conscientização política ou social em busca de um<br />
mundo melhor, através de sua poesia. Desenvolvendo a ideia de que,<br />
já que se tornou “sólido”, com desejos concretos e não apenas espirituais,<br />
o poeta entra na esteira da produção, dobrando-se à contingência<br />
de ser um indivíduo produtivo e comum, como tantos outros, em<br />
busca da sobrevivência física, deixando de lado sua preocupação anterior<br />
com o uso da arte para o crescimento espiritual.<br />
A palavra Cibernética, do grego, significa condutor, e foi<br />
utilizado como o nome de uma nova ciência que visava à compreensão<br />
dos fenômenos naturais e artificiais através do estudo dos processos<br />
de comunicação e controle nos seres vivos, nas máquinas e<br />
nos processos sociais. A teoria cibernética de Wiener, originou pesquisas<br />
e influenciou vários campos científicos, incluindo a antropologia<br />
desde a década de 1940. Atualmente, a cibernética está praticamente<br />
esquecida como uma ciência, mas deixou importantes contribuições<br />
para a cultura.<br />
Inserido no assunto no período em que trabalhava na alfândega,<br />
Gilberto Gil foi introduzido à cibernética por seu amigo César,<br />
“um entusiasta da cibernética” que lhe deu o primeiro livro sobre o<br />
assunto – a obra clássica, de Norbert Wiener.<br />
Atento às possibilidades surgidas com as contribuições da cibernética,<br />
tidas como meios criativos para as reavaliações do consenso<br />
social acerca dos significados das coisas, Gilberto Gil compõe Cibernética,<br />
como uma forma de reavaliar, questionar e ao mesmo<br />
tempo responder as dúvidas existentes.<br />
Na época, a União Soviética atingiu seu auge geopolítico e<br />
tecnológico utilisando a cibernética para a gestão e controle da economia.<br />
Lá na alfândega Celestino era o Humphrey Bogart<br />
Solino sempre estava lá
Escrevendo: "Dai a César o que é de César"<br />
César costumava dar<br />
Me falou de cibernética<br />
Achando que eu ia me interessar<br />
Que eu já estava interessado<br />
Pelo jeito de falar<br />
Que eu já estivera estado interessado nela<br />
Cibernética<br />
Eu não sei quando será<br />
Cibernética<br />
Eu não sei quando será<br />
Mas será quando a ciência<br />
Estiver livre do poder<br />
A consciência, livre do saber<br />
E a paciência, morta de esperar<br />
Aí então tudo todo o tempo<br />
Será dado e dedicado a Deus<br />
E a César dar adeus às armas caberá<br />
Que a luta pela acumulação de bens materiais<br />
Já não será preciso continuar<br />
A luta pela acumulação de bens materiais<br />
Já não será preciso continuar<br />
Onde lia-se alfândega leia-se pândega<br />
Onde lia-se lei leia-se lá-lá-lá<br />
Cibernética<br />
Eu não sei quando será<br />
Cibernética<br />
Eu não sei quando será<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
725<br />
Apresentando uma forte crítica ao capitalismo e a acumulação<br />
de bens materiais, acreditando ser esse um dos fatores que emperram<br />
o mecanismo do desenvolvimento e evolução da humanidade. O verso<br />
“Onde lia-se lei leia-se lá-lá-lá”, é um exemplo do anarquismo libertário<br />
que tomava conta da juventude universitária da época.<br />
Há uma entonação libertária e até mesmo comunista na música,<br />
colocando-se de maneira esperançosa com a chegada da cibernética,<br />
mas desacreditando que sua vinda fosse possível.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
726<br />
Num mundo regido pelo prisma positivista, é a ciência que direciona<br />
os discursos do poder os quais, muitas vezes serão revestidos<br />
de uma verdade absoluta.<br />
A ciência, representada na música pela cibernética, terá seu<br />
sentido positivo quando “estiver livre do poder, a consciência livre<br />
do saber a paciência morta de esperar”. Ou seja, um direcionamento<br />
maior dado á ciência no sentido de levá-la e elevá-la a um diálogo<br />
com Deus e trazer benefícios espirituais ao homem.<br />
5. A ciência é amiga da arte<br />
As canções que se seguem foram agrupadas por tematizar<br />
questões relacionadas à ciência como saber que auxilia o homem em<br />
sua caminhada existencial. Vejamos a primeira intitulada Parabolicamará<br />
Antes mundo era pequeno<br />
Porque Terra era grande<br />
Hoje mundo é muito grande<br />
Porque Terra é pequena<br />
Do tamanho da antena parabolicamará<br />
Ê, volta do mundo, camará<br />
Ê, ê, mundo dá volta, camará<br />
Antes longe era distante<br />
Perto, só quando dava<br />
Quando muito, ali defronte<br />
E o horizonte acabava<br />
Hoje lá trás dos montes, den de casa, camará<br />
Ê, volta do mundo, camará<br />
Ê, ê, mundo dá volta, camará<br />
De jangada leva uma eternidade<br />
De saveiro leva uma encarnação<br />
Pela onda luminosa<br />
Leva o tempo de um raio<br />
Tempo que levava Rosa<br />
Pra aprumar o balaio<br />
Quando sentia que o balaio ia escorregar<br />
Ê, volta do mundo, camará<br />
Ê, ê, mundo dá volta, camará
Esse tempo nunca passa<br />
Não é de ontem nem de hoje<br />
Mora no som da cabaça<br />
Nem tá preso nem foge<br />
No instante que tange o berimbau, meu camará<br />
Ê, volta do mundo, camará<br />
Ê, ê, mundo da volta, camará<br />
De jangada leva uma eternidade<br />
De saveiro leva uma encarnação<br />
De avião, o tempo de uma saudade<br />
Esse tempo não tem rédea<br />
Vem nas asas do vento<br />
O momento da tragédia<br />
Chico, Ferreira e Bento<br />
Só souberam na hora do destino apresentar<br />
Ê, volta do mundo, camará<br />
Ê, ê, mundo dá volta, câmara<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
727<br />
O texto trabalha em cima da alteração do tempo e do<br />
encurtamento das distâcias provocados pela globalização, e explora<br />
bem duas de suas características: a revolução tecnológica nas<br />
comunicações e na eletrônica e a hibridização entre culturas<br />
populares locais e uma cultura de massa universal.<br />
O compositor utiliza uma linguagem simples em toda a composição.<br />
O título Parabolicamará propõe a fusão das palavras parabólica,<br />
tipo de antena mais eficiente em captar sinais de TV, e camará,<br />
vocativo usado por praticantes de capoeira para se referirem uns aos<br />
outros, apresenta durante a música contrastes entre o rural e o urbano,<br />
o artesanal e o industrial e a harmonização entre o tradicional e o<br />
moderno.<br />
Na música, o tempo existencial encontra-se em contraposição<br />
ao tempo cronológico – a eternidade, a encarnação e a saudade se<br />
contrapõem à jangada e o saveiro, e estes dois ao avião Com o avanço<br />
tecnológico, os conceitos de grande e pequeno, longe e perto são<br />
tidos como relativos, podem ser encurtados com a velocidade e facilidade<br />
de acesso encontradas nos tempos atuais.<br />
Há também uma alusão ao tempo subatômico, da pequena<br />
partícula de tempo, fazendo uma referência a Einstein, cujo trabalho
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
728<br />
teórico possibilitou o desenvolvimento da energia atômica. Segundo<br />
Gil “A imagem mais representativa desse tempo subatômico referido<br />
anteriormente é a correção equilibradora que Rosa faz com o balaio,<br />
observado nos seguintes versos: Pela onda luminosa / Leva o tempo<br />
de um raio / Tempo que levava Rosa / Pra aprumar o balaio”.<br />
Além da questão do tempo, há na música uma referência ao<br />
espaço. Para alguns estudiosos a globalização teve seu início com as<br />
grandes navegações entre países e continentes, com isso, além de<br />
outros benefícios, foi possível ao homem conhecer e relacionar-se<br />
com culturas diferentes.<br />
Trazendo o tema para os dias atuais, Gilberto Gil sugere em<br />
Parabolicamará uma tecnologia voltada a divulgação das culturas de<br />
pequenas comunidades do país, e a mescla entre culturas populares<br />
locais e uma cultura universal. A proposta da música é que não só<br />
essas pequenas comunidades tenham acesso a informações de todo o<br />
mundo, como também que o mundo tenha acesso a cultura de diversas<br />
comunidades do país, principalmente as interioranas e sertanejas.<br />
(Rennó, 2003, p. 403)<br />
A globalização tecnológica possibilite ao homem aumentar o<br />
tamanho de seu conhecimento, do seu mundo, antes restrito devido<br />
ao pouco contato ou informações de outros lugares, povos e culturas<br />
distantes e o torne maior, “do tamanho da antena” parabólica, do tamanho<br />
da possibilidade de informações que se pode adquirir com os<br />
avanços da tecnologia da informação.<br />
A internet, rede mundial de computadores, é a face mais<br />
visível da globalização das comunicações, possível graças a acordos<br />
e protocolos entre diferentes entidades privadas da área de<br />
telecomunicações e governos no mundo. Isto permitiu um fluxo de<br />
troca de ideias e informações sem precedentes na história da<br />
humanidade. Permitindo as pessoas observar as tendências do mundo<br />
inteiro, tendo apenas como fator de limitação a barreira linguística.<br />
Criar meu web site<br />
Fazer minha home-page<br />
Com quantos gigabytes<br />
Se faz uma jangada<br />
Um barco que veleje
Que veleje nesse infomar<br />
Que aproveite a vazante da infomaré<br />
Que leve um oriki do meu velho orixá<br />
Ao porto de um disquete de um micro em Taipé<br />
Um barco que veleje nesse infomar<br />
Que aproveite a vazante da infomaré<br />
Que leve meu e-mail até Calcutá<br />
Depois de um hot-link<br />
Num site de Helsinque<br />
Para abastecer<br />
Eu quero entrar na rede<br />
Promover um debate<br />
Juntar via Internet<br />
Um grupo de tietes de Connecticut<br />
De Connecticut acessar<br />
O chefe da Macmilícia de Milão<br />
Um hacker mafioso acaba de soltar<br />
Um vírus pra atacar programas no Japão<br />
Eu quero entrar na rede pra contactar<br />
Os lares do Nepal, os bares do Gabão<br />
Que o chefe da polícia carioca avisa pelo celular<br />
Que lá na praça Onze tem um vídeopôquer para se jogar<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
729<br />
Pela Internet é uma das canções de Gil em louvor à tecnologia<br />
com a intenção de fazer relações entre as novas tecnologias e outros<br />
campos. Os jogos poéticos são a base para a construção dessa canção.<br />
Pode-se observar na gravação da música uma brincadeira verbal<br />
interessante relacionada à palavra “Connecticut”, introduzindo uma<br />
fala rápida na qual diz: “Don’t cut my connection! I connect, you<br />
cut! I connect, you cut!”.<br />
A letra segue para os lugares mais distantes, “os lares do Nepal”,<br />
“os bares do Gabão”, para dar conta da agilidade que caracteriza<br />
a internet. Em entrevista a Rennó, Gil comenta sobre a satisfação<br />
em relação a essa música após ler um ensaio sobre a internet na África,<br />
de John Perry Barlow, onde fala da incorporação ágil que o continente<br />
está fazendo desse meio. Segundo ele a internet apresentou<br />
uma vitalidade extraordinária na África, que nesse campo está queimando<br />
etapas, enquanto em muitos outros se mantém ainda subdesenvolvida.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
730<br />
O título reforça o que a música também faz, a incorporação<br />
alegre, lúdica, dos novos jogos tecnológicos e a intenção se jogar o<br />
jogo poético junto com o jogo tecnológico, reportando a oitenta anos<br />
atrás, quando provavelmente um mesmo tipo de estímulo tenha levado<br />
Donga e Mauro de Almeida a fazer Pelo telefone.<br />
Na década de 1990, Gilberto Gil incluiu Pela Internet no já<br />
mencionado álbum "Quanta" e, com ela, explorou o 'infomar', seus<br />
termos técnicos e a globalização emergente, fazendo referência ao<br />
mencionado Pelo Telefone.<br />
O universo se põe diante do homem, dessa vez, através da internet<br />
e das redes que lhe são disponibilizadas pela mesma. Criar<br />
websites, fazer homepages e usar gygabites para fazer jangadas e<br />
barcos que velejem através da internet em busca de respostas, propostas,<br />
ideias e soluções para os problemas da humanidade ao mesmo<br />
tempo em que geram alegria e capacidade de superação de suas<br />
angústias, medos e inseguranças deve ser o foco de todos.<br />
No espaço virtual tem-se o mundo no horizonte e, nas mãos, o<br />
seu destino. Gil já como Ministro da Cultura, em aula magna na USP<br />
em 2004 diz que o uso de tecnologia digital muda os comportamentos.<br />
O uso pleno da Internet e do software livre cria fantásticas possibilidades<br />
de democratizar os acessos à informação e ao conhecimento,<br />
maximizar os potenciais dos bens e serviços culturais, amplificarem<br />
os valores que formam o repertório comum e, portanto, a<br />
cultura, e potencializar também a produção cultural, criando inclusive<br />
novas formas de arte.<br />
A música Quanta é um convite do autor para compartilhar<br />
com o público sua admiração pelas conquistas e possibilidades abertas<br />
pela pesquisa científica nas últimas décadas, em particular no<br />
campo da física subatômica, fundamentada na teoria quântica e na<br />
tecnologia da informática.<br />
Gilberto Gil sempre nutriu um fascínio pelas ciências naturais<br />
e suas aplicações na vida humana, tanto que não dedicou a elas não<br />
somente canções isoladas, mas o álbum duplo, lançado em 1997,<br />
com o nome Quanta.<br />
É um trabalho que vem do meu enorme fascínio pelo universo masplanckiano,<br />
schrodingeriano, heisenberguiano, niels-bohriano; um fascí-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
731<br />
nio de anos... Quanto mais eu leio sobre o quantum da matéria, sobre essa<br />
abolição da escravatura da física do mecanicismo, do paradigma cartesiano,<br />
mais eu fico pensando por que eu resolvi passar quase cinco anos<br />
dedicando uma especulação sobre isso a um trabalho artístico, acabando<br />
por fazer um disco duplo, enorme, exaustivo, até confuso para muita<br />
gente (Rennó, 2003, p. 431).<br />
Nesse álbum fica clara a diferente abordagem da ciência e do<br />
mundo feita por Gil, se comparada com suas músicas das décadas de<br />
60 e 70.<br />
Mas não é só o artista quem modifica suas abordagens, a própria<br />
ciência e toda a realidade a nossa volta estão em permanente<br />
mudança.<br />
Estudos sobre o átomo derrubam a teoria da inércia, um dos<br />
pilares da física newtoniana, mudando completamente a relação com<br />
os conhecimentos já estabelecidos. Além de constatarem uma complexidade<br />
cada vez maior dentro do átomo, descobriram várias outras<br />
partículas e chegaram à conclusão de que todas elas estão em movimento<br />
constante, jamais estão em repouso, estão sempre interagindo,<br />
trocando energia. Disso resulta que nenhum objeto ou fenômeno natural<br />
pode ser estudado de maneira completa sem se avaliar sua relação<br />
com o restante do universo.<br />
Nasce então uma nova maneira de interpretar a Natureza,<br />
mais próxima da compreensão do mundo desenvolvida pelos místicos<br />
orientais (hindus, budistas e taoístas). Essa noção de que tudo o<br />
que existe está entrelaçado em uma teia dinâmica de relações, de que<br />
a Natureza é um sistema dinâmico de forças e energias, foi fundamental<br />
para o desenvolvimento da moderna consciência ecológica.<br />
Sendo assim, a ciência possibilita ao homem perceber hoje o que povos<br />
antigos já sabiam: somos parte da Natureza e tudo o que fazemos<br />
é interagir com o mundo à nossa volta.<br />
Diante dos aspectos observados, não existe contradição entre<br />
o engajamento na causa ecológica, defendido por Gil em composições<br />
anteriores, e a valorização da ciência. O que observamos é a afinidade<br />
do autor com as mais recentes tendências da pesquisa científica.<br />
Essa relação de afinidade de Gilberto Gil com a ciência e suas<br />
implicações na busca de uma consciência humanística surge com a
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
732<br />
música Quanta. Nessa música ganhou espaço um conceito fundamental<br />
e complexo da física moderna: o quantum.<br />
Para a concepção da canção Quanta, Gilberto Gil contou com<br />
César Lates, integrante do grupo de cientistas que descobriu o píon<br />
(uma das partículas que compõem o universo subatômico), como um<br />
tipo de consultor, a quem o autor recorria para não cometer “nenhum<br />
sacrilégio”. (Jornal do Brasil, 25 abr.1997 apud LACERDA, 2002,<br />
p. 102)<br />
Quanta do latim<br />
Plural de quantum<br />
Quando quase não há<br />
Quantidade que se medir<br />
Qualidade que se expressar<br />
Fragmento infinitésimo<br />
Quase que apenas mental<br />
Quantum granulado no mel<br />
Quantum ondulado no sal<br />
Mel de urânio, sal de rádio<br />
Qualquer coisa quase ideal<br />
Cântico dos cânticos<br />
Quântico dos quânticos<br />
Canto de louvor<br />
De amor ao vento<br />
Vento, arte do ar<br />
Balançando o corpo da flor<br />
Levando o veleiro pro mar<br />
Vento de calor<br />
De pensamento em chamas<br />
Inspiração<br />
Arte de criar o saber<br />
Arte, descoberta, invenção<br />
Theoría em grego quer dizer<br />
O ser em contemplação<br />
Cântico dos cânticos<br />
Quântico dos quânticos<br />
Sei que a arte é irmã da ciência<br />
Ambas filhas de um deus fugaz<br />
Que faz num momento e no mesmo momento desfaz
Esse vago deus por trás do mundo<br />
Por detrás do detrás<br />
Cântico dos cânticos<br />
Quântico dos quânticos<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
733<br />
O compositor baiano, abusando da "licença científica", mas<br />
com grande sensibilidade poética, combina ciência e arte fazendo<br />
uma referência ao samba de Cartola com os versos: “Sei que a arte é<br />
irmã da ciência / Ambas filhas de um Deus fugaz” (GIL. 1996, p.<br />
358).<br />
Nos mesmos versos se refere a arte e ciência colocando-as no<br />
mesmo nível do que se quer e o que se materializa, entre a suposição<br />
e a constatação científica, entre a inspiração e arte, sendo ambas filhas<br />
do mesmo “vago deus por trás do mundo” um deus imenso, incorpóreo,<br />
“Que faz num momento e no mesmo momento desfaz” nos<br />
remetendo a ideia de que todo o cosmos está entregue a um contínuo<br />
fluxo, concepção básica para se compreenda os avanços da física<br />
contemporânea.<br />
Ao longo do percurso da história a ciência viu seus ensinamentos<br />
serem pautados em dois prismas: o primeiro pregava o paradigma<br />
cartesiano em que não haveria possibilidade de convergência<br />
de pensamento entre ciência e espiritualidade. O segundo abarcava<br />
uma visão integradora das coisas do mundo, através do paradigma<br />
holístico e da teoria da relatividade iremos perceber a vida e seu mistério<br />
interligando as várias áreas do saber, inclusive aproximando-as<br />
uma vez que “a arte é irmã da ciência”.<br />
Para Gil, o entendimento do ser humano não se dá nem pelo<br />
viés da ciência, nem pelo viés da arte. É uma confluência desses<br />
segmentos que uma possível leitura do mistério do homem se faz<br />
presente. Daí talvez possamos dizer expressões com sintagmas aparentemente<br />
tão contrastantes “mel de urânio”, “sal de rádio”<br />
O autor trabalha também na comunhão da ciência com a espiritualidade,<br />
a transcendência, ao brincar com as expressões “cântico<br />
dos “cânticos” “cântico dos quânticos”.<br />
Segundo a canção, “theoría em grego quer dizer / O ser em<br />
contemplação”, sabendo que o termo teoria é mais utilizado para nos
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
734<br />
referirmos ás ciências, Gil brinca mais uma vez com as palavras nos<br />
levando ao termo contemplação, base de todo e qualquer tipo de arte.<br />
Assim, ao utilizar os versos “Vento, arte do ar / Balançando o corpo<br />
da flor / Levando o veleiro pro mar”, refere-se não só a observação<br />
do artista, como também do cientista que a emprega para seu estudo.<br />
A música Átimo de pó brinca com o som e a rima de palavras<br />
relacionadas à ciência, a e mecânica quântica como spin e quark, e<br />
mescla a elas palavras como yang e yin relacionados à filosofia chinesa.<br />
Esses dois últimos representam o príncipio da dualidade. Yin<br />
como negativo e Yang como positivo. É uma analogia, assim como a<br />
carga elétrica atribuída a prótons e elétrons, são opostos que se<br />
complementam.<br />
Niels Bhor, um dos grandes construtores da teoria quântica<br />
teve como inspiração para entender a Mecânica dos Quanta o I<br />
Ching, conhecido como o livro das mutações na cultura chinesa. Isso<br />
porque tudo o que existe está em permanente transformação. As provas<br />
físicas, as equações e experiências de laboratório, todas elas até<br />
então, eram para provar que as coisas existiam, mas não questionavam<br />
ou cogitavam suas mudanças.<br />
Foi quando se descobriu que o átomo, até algumas décadas<br />
atrás considerado a menor porção em que se poderia dividir a<br />
matéria, era subdividido em partículas menores, que se chegou à incerteza<br />
e a indefinição.<br />
Os cientistas foram chegando a esses fatos. E chegaram à Teoria<br />
dos Quarks, que é um dos elementos básicos que constituem a<br />
matéria, e é a única das partículas que interage através de todas as<br />
quatro forças fundamentais. Essa teoria possibilitou as novas noções<br />
sobre o Universo.<br />
É possível que Steven Weinberg, prêmio Nobel de física em<br />
1979, esteja certo em afirmar que o fato de ser possível entender o<br />
universo de modo sistemático tenha sido realmente a grande descoberta<br />
da ciência, e que talvez a única descoberta nessa área realmente<br />
importante para a filosofia tenha sido a descoberta da própria ciência<br />
Weinberg destaca ainda que a filosofia profissional tem seu<br />
valor próprio, mas não apresenta nenhum valor para o estudo da ci-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
735<br />
ência. (GRECO, 2001, p. 170). Mesmo assim não podemos descartar<br />
o uso da filosofia como ferramenta interessante utilizada por alguns<br />
cientistas no estudo de suas e teorias, como foi o caso de Niels Bhor<br />
com a filosofia oriental.<br />
Analisando a letra da música Átimo de pó essa relação entre a<br />
filosofia e a ciência se põe de maneira muito explicita.<br />
Entre a célula e o céu<br />
O germe e Perseu<br />
O quark e a Via-Láctea<br />
A bactéria e a galáxia<br />
Entre agora e o eon<br />
O íon e Órion<br />
A lua e o magnéton<br />
Entre a estrela e o elétron<br />
Entre o glóbulo e o globo blue<br />
Eu, um cosmos em mim só<br />
Um átimo de pó<br />
Assim: do yang ao yin<br />
Eu e o nada, nada não<br />
O vasto, vasto vão<br />
Do espaço até o spin<br />
Do sem-fim além de mim<br />
Ao sem-fim aquém de mim<br />
Den de mim<br />
Já no título da composição observamos o uso da palavra “átimo”,<br />
que provém de átomo, mas é tomada na concepção de momento,<br />
de pequeno instante de tempo, e a palavra “pó”, utilizada na música<br />
para representar a matéria, como na utilização feita pela Bíblia.<br />
Sendo assim, Átimo de pó é um momento de matéria, que segundo<br />
algumas religiões é do que se trata a encarnação, um momento de<br />
materialização do homem, e a canção segue “filosofando” a esse respeito,<br />
utilizando-se de termos científicos.<br />
“Galáxia” e “quark”, que em física de partículas representa o<br />
componente básico para a constituição da matéria, representando o<br />
macro e o micro, a imensidão e o ponto mínimo a que se pode chegar.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
736<br />
A representação do tempo aparece claramente nos termos “agora”<br />
e “eon” (período de tempo extremamente longo e indefinido).<br />
A representação do espaço aparece nas palavras “íon” utilizado pelos<br />
químicos para descrever a porção das moléculas capaz de viajar, e<br />
“Órion”, que além do nome de uma constelação, é também o nome<br />
escolhido para a nova nave espacial da NASA, que irá substituir os<br />
ônibus espaciais.<br />
Sendo assim o poete segue a canção esclarecendo ser ele<br />
quem se encontra entre “Galáxia” e “quark”, o “agora” e “eon” e entre<br />
o “íon” e o “Órion”, e se coloca como um possuidor de um<br />
cosmos em si, termo utilisado na filosofia para representar tudo o<br />
que existe, tenha ou não sido identificado.<br />
Coloca-se como um cosmos em si só, o termo cosmos segundo<br />
a Filosofia significa tudo o que existe, tenha ou não sido identificado.<br />
Por fim a canção retrata o homem como um ser infinito de experiências<br />
e descobertas a serem realizadas e ao mesmo tempo pequeno<br />
e insignificante diante do universo. Este homem posto entre a<br />
grandiosidade das descobertas científicas e das coisas naturais que ao<br />
invés de se oporem, se complementam, como o yin e o yang, se identifica<br />
com elas e percebe nele mesmo um sem fim de descobertas a<br />
serem feitas além, aquém e dentro de si.<br />
Escrita em 1988, após uma viagem ao país do sol nascente e<br />
estimulado pelo significado do Japão como potência tecnológica,<br />
Gilberto Gil compõe a música Do Japão. A canção pode ser interpretada<br />
como a imagem de um lugar onde residem forças antagônicas,<br />
colocadas de forma a coexistirem.<br />
Do Japão<br />
Quero uma máquina de filmar sonhos<br />
Pra registrar nas noites de verão<br />
Meu corpo astral leve, feliz, risonho<br />
Voando alto como um gavião<br />
Que filme dentro de minha cabeça<br />
Todo pensamento raro que eu mereça<br />
Toda ilusão a cores que apareça<br />
Toda beleza de sonhar em vão<br />
Do Japão<br />
Quero também um trem-bala-de-coco
Pra atravessar túneis do dissabor<br />
Quero um microcomputador barroco<br />
Que seja louco e desprograme a dor<br />
Visitar um templo zen-desbundista<br />
Conversar com um samurai futurista<br />
Que me dê pistas sobre o sol-nascente<br />
Que me oriente sobre o novo amor<br />
Do Japão<br />
Quero uma gueixa que em poucos minutos<br />
Da minha queixa faça uma paixão<br />
Descubra novos sentimentos brutos<br />
E, enfeitiçada, tome um avião<br />
E a gente vá viver num outro mundo<br />
Pra lá do Terceiro ou Quarto ou Quinto Mundo<br />
Onde a rainha seja uma açucena<br />
E a divindade, a pena do pavão.<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
737<br />
Em Gil fica clara a compreensão de um país que tenta construir<br />
sua identidade através da convivência de duas culturas, a ocidental<br />
e a oriental. Ou seja, o Japão tecnológico, cibernético e o Japão<br />
tradicional, fundado nas concepções culturais milenares. Do país<br />
marcado por um pensamento zen, mas inscrito na era científica.<br />
Para ele a canção visa “as possibilidades de contribuição da<br />
tecnologia para o próprio fundamento da visão existencial, a visão de<br />
dentro” (GIL in RENNÓ, 2003, p. 386) buscando um equilíbrio entre<br />
o universo maquínico e o onírico. Será possível? Haverá máquina<br />
que filme os sonhos?<br />
A canção de Gil não faz desmerecer toda a contribuição que a<br />
ciência e a tecnologia deixaram para o homem. Tenta, porém conjugar<br />
a ciência com o que há de mais profundo e tradicional da existência<br />
japonesa. A ciência como o elo entre o passado (samurai) e o<br />
futuro (futurista).<br />
Utiliza vocábulos ligados a tecnologia e a tradição como recurso<br />
para representar o seu propósito na música. O “microcomputador”<br />
representa o racional, o previsível e o “barroco” representa aquilo<br />
que é dialético, dicotômico, paradoxal. Assim como no encontro<br />
das palavras zen-desbundista podemos interpretar ao mesmo aquilo<br />
que é introspectivo, equilibrado e harmonioso e o que é exterior,<br />
desmesurado.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
738<br />
Além da tecnologia, o Japão é referencia para aqueles que<br />
buscam na meditação e no conhecimento interno a desobstrução da<br />
mente e o bem espiritual. Sendo assim, saindo do mundo da tecnologia<br />
industrial em direção a alma japonesa, a canção passa pelo “microcomputador<br />
barroco” e chega ao samurai e a gueixa.<br />
Essa última aparece configurada em um jogo antitético com a<br />
expressão “sentimentos brutos”, uma vez que a gueixa remete a um<br />
símbolo de leveza e delicadeza.<br />
Vale comentar a leve brincadeira sugerida na cena em que<br />
uma gueixa pega um avião, isso porque o universo construído sobre<br />
esta figura emblemática foi sempre de reclusão ao lar. O avião surge<br />
não só como aquilo que entra em cheque com a tradição (gueixa),<br />
como também sugere a emancipação da mulher saindo do espaço<br />
privado se deslocando para o universo público.<br />
Ao citar “microcomputador barroco” que é “louco e desprograma<br />
a dor”, o poeta começa a delinear uma nova visão de tecnologia.<br />
Desta vez o computador que era, utilizado para fins capitais é<br />
humanizado, o que segundo Lacerda (2002, p. 101) “não se trata de<br />
desenvolver uma nova tecnologia, mas de dar um novo uso a que já<br />
existe”.O objetivo da tecnologia não seria somente aumentar a produtividade,<br />
mas ajudar o homem à “atravessar os túneis do dissabor”<br />
com um “trem-bala-de-coco” para que pudesse alcançar sua felicidade.<br />
6. Conclusão<br />
O trabalho apresentado resulta de uma pesquisa de muitas leituras<br />
e debates sobre a evolução científica do século XX, contextualizadas<br />
na obra de Gilberto Gil. A proposta inicial desta monografia<br />
a princípio era o estudo da ciência e do sagrado na poética do autor,<br />
mas ao longo de buscas incansáveis de referências sobre o assunto,<br />
chegou-se à conclusão que, em se tratando de Gil, não seria temporalmente<br />
possível realizar a pesquisa em apenas um semestre letivo.<br />
Sendo assim, as pesquisas foram restritas apenas à ciência dentro de<br />
sua obra.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
739<br />
Enquanto apreciadora das canções de Gil, várias questões foram<br />
fascinantes em relação a esse trabalho, questões essas que haviam<br />
passado despercebidas, até mesmo por quem dizia admirar suas<br />
musicas há muito tempo. Entre essas questões, a que mais chama a<br />
atenção é a maneira como o autor brinca com as palavras ao tratar do<br />
local e o universal na perspectiva científica, contextualizando-as.<br />
As leituras necessárias para tratar da ciência nas canções de<br />
Gilberto Gil foram, a cada novo livro indicado, mais intrigantes. Estudos<br />
sobre filosofia oriental, física quântica, entre outro temas revelaram,<br />
a princípio espanto, por se tratar de assuntos tão distantes e ao<br />
mesmo tempo tão próximos da realidade. Mas aos poucos, a variedade<br />
temática existente em Gil, fez de sua obra terreno ideal para o estudo<br />
de temas tão atuais.<br />
Ao término desse trabalho, a ideia de que se espera transmitir,<br />
entre outras é a de que “a arte é irmã da ciência”, e que diferentes<br />
campos do saber humano, quando mesclados geram novos conhecimentos,<br />
possibilitando ao homem não mais viver “a ilusão do poder”.<br />
REFERÊNCIAS BIBLOGRÁFICAS<br />
CALVANI, Carlos Eduardo B. Teologia e MPB. São Paulo: Loyola,<br />
1998.<br />
CAPRA, Fritjof. O ponto de mutação: a ciência, a sociedade e a cultura<br />
emergente. São Paulo: Cultrix, 1982.<br />
––––––; STEINDL-RAST, David; MATUS, Thomas. Pertencendo<br />
ao universo: explorações nas fronteiras da ciência e da espiritualidade.<br />
Tradução de Maria de Lourdes Eichenberger e Newton Roberval<br />
Eichenberg. São Paulo: Cultrix, [1991].<br />
COUTINHO, Afrânio (Dir.); COUTINHO, Eduardo de Faria (Codir.).<br />
A literatura no Brasil. Vol. I – Preliminares e generalidades. 3.<br />
ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: J. Olympio; Niterói: Eduff, 1986.<br />
DANTAS, Boaventura. Um discurso sobre as ciências. Porto: Afrontamento,<br />
1990.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
740<br />
FONTELES, Bené. Giluminoso: a poética do ser. Brasília: Edunb;<br />
São Paulo: SEXC, 1999.<br />
GIL, Gilberto. Gilberto Gil. Seleção de textos, notas, estudos biográfico,<br />
histórico e crítico e exercícios por Fred de Góes. Colaboração:<br />
Lauro Góes e Nelson Motta. São Paulo: Abril Educação, 1982. (Coleção<br />
Literatura Comentada).<br />
––––––. Todas as letras. Organizado por Carlos Rennó. São Paulo:<br />
Cia. das Letras, 2003.<br />
GREGO, Alessandro. Homens de ciência [entrevistados por...]. São<br />
Paulo: Conrad Ed. do Brasil, 2001.<br />
JAPIASSU, Hilton. Ciência e destino humano. [Rio de Janeiro]: Imago,<br />
[2005].<br />
KUHN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas. 3. ed. São<br />
Paulo: Perspectiva, 1989.<br />
LACERDA, Francisco José Neiva. Gilberto Gil: Partículas em suspensão.<br />
Niterói: Eduff, 2002.<br />
LAZARTE, Rolando. Max Weber: Ciência e valores. 2. ed. São Paulo:<br />
Cortez, 2001.<br />
LEÃO, Emmanuel Carneiro. Aprendendo a pensar. Vol. I. 5. ed. Petrópolis:<br />
Vozes, 2002.<br />
MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o<br />
pensamento. 8. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.<br />
PEREIRA, Raiff Magno Barbosa. Se eu quiser falar com Deus: O<br />
sagrado na obra de Gilberto Gil. Anteprojeto de doutorado apresentado<br />
ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura (Poética),<br />
vinculado à linha de pesquisa “Poéticas das diferentes linguagens”,<br />
elaborado sob a orientação da Professora Doutora Helena Parente<br />
Cunha. UFRJ – Faculdade de Letras, 2° semestre de 2006.<br />
RISÉRIO, Antonio (Org.). Gilberto Gil – Expresso 2222. Salvador:<br />
Corrupio, 1982.
COMO E POR QUE TRABALHAR<br />
COM O TEXTO PUBLICITÁRIO<br />
EM SALA DE AULA<br />
Ilana da Silva Rebello Viegas (UFF)<br />
ilanarebello@uol.com.br<br />
A ausência de trabalhos, em sala de aula, com<br />
textos que circulam socialmente, como jornal,<br />
letras de música, anúncios ou outdoors, surge<br />
como sintonia de recusar a experiência do aluno<br />
como cidadão fora do espaço acadêmico. (...)<br />
(MENEZES, Gilda et alli: 2003: 9)<br />
A educação, sendo uma prática social, não pode restringir-se<br />
a ser puramente livresca, teórica, sem compromisso com a realidade<br />
local e com o mundo em que vivemos.<br />
Cada vez mais, se torna necessário o trabalho em sala de aula<br />
com diferentes textos, dentre eles, os da mídia, pois são esses textos<br />
que fazem parte do dia a dia dos alunos e da sociedade em geral.<br />
1. A difícil tarefa de ler e interpretar na escola<br />
Segundo Vargas (2000, p. 7-8), a estrutura educacional brasileira<br />
tem formado mais ledores que leitores. Para a autora, a diferença<br />
entre uns e outros está<br />
na qualidade da decodificação, no modo de sentir e de perceber o que está<br />
escrito. O leitor, diferentemente do ledor, compreende o texto na sua<br />
relação dialética com o contexto, na sua relação de interação com a forma.<br />
O leitor adquire através da observação mais detida, da compreensão<br />
mais eficaz, uma percepção mais crítica do que é lido, isto é, chega à política<br />
do texto. A compreensão social da leitura dá-se na medida dessa<br />
percepção. Pois bem, na medida em que ajudo meu leitor, meu aluno, a<br />
perceber que a leitura é fonte de conhecimento e de domínio do real, ajudo-o<br />
a perceber o prazer que existe na decodificação aprofundada do texto.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
742<br />
Leitura, texto e sentido fazem parte do processo de interpretação.<br />
Se não existe texto, seja ele verbal ou não verbal, não há leitura<br />
e muito menos produção de sentidos.<br />
Estudo realizado por Marcuschi (2001, p. 47) sobre o tratamento<br />
dado à compreensão de textos nos livros didáticos de Língua<br />
Portuguesa revela que<br />
A língua é tomada como um instrumento de comunicação não problemático<br />
e capaz de funcionar com transparência e homogeneidade. (...)<br />
(...) O vocabulário, por exemplo, é quase sempre proposto numa definição<br />
ou explicação por sinonímia (ou antonímia), esquecendo-se outros<br />
aspectos de funcionamento, tais como o metafórico, o figurado e, em<br />
especial a significação situada. A realidade fonológica da língua é suplantada<br />
com naturalidade já nas 2ª e 3ª séries do ensino fundamental. As<br />
estruturas e funções sintáticas são identificadas linearmente e com segurança,<br />
sobretudo na perspectiva de uma metalinguagem, pouco se tratando<br />
o caso tão complexo da variação, seja dialetal ou social. A produção<br />
textual, quando exercitada, não é explicitada sequer para o professor,<br />
quanto menos para o aluno.<br />
Essa realidade descrita por Marcuschi (ibidem) mostra que a<br />
maioria dos livros didáticos de Língua Portuguesa não leva o aluno a<br />
analisar, interpretar e aplicar os recursos expressivos das linguagens, relacionando<br />
textos com seus contextos, mediante a natureza, função, organização<br />
das manifestações, de acordo com as condições de produção e<br />
recepção. (PCN, 1999, p. 127)<br />
O livro didático de Língua Portuguesa, sendo uma das ferramentas<br />
e, talvez, a mais utilizada pelos professores, acaba não contribuindo<br />
muito na formação de leitores críticos, capazes de interpretarem<br />
o que leem.<br />
Tal problema é detectado por muitos educadores e pesquisadores,<br />
como Kleiman (2004, p. 56), levando-a a afirmar que<br />
Se o aluno é capaz de decodificar o texto escrito, se ele é capaz de<br />
utilizar a informação sintática do texto na leitura, e se, ademais, ele já<br />
completou a aquisição da língua materna, as dificuldades que ele revela<br />
na compreensão do texto escrito são decorrentes de estratégias inadequadas<br />
de leitura. A prática mencionada, a utilização do texto como pretexto<br />
da aula de gramática, certamente contribui para a formação de estratégias<br />
de leitura inadequadas, pela ênfase que coloca nos aspectos sequenciais e<br />
distribucionais dos elementos linguísticos do texto, justamente aqueles<br />
elementos que não são constitutivos do texto enquanto unidade de significação.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
743<br />
Para um trabalho produtivo de ensino de língua portuguesa,<br />
os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN’s) recomendam a utilização<br />
de diferentes gêneros textuais. A proposta não é utilizar o texto<br />
como pretexto para o ensino de gramática, mas sim, como fonte de<br />
leitura, ampliação de vocabulário, interpretação e análise de elementos<br />
linguísticos.<br />
Assim, de acordo com os objetivos propostos pelos PCN’s,<br />
fica evidente que o professor deve trabalhar com os alunos diferentes<br />
gêneros textuais, de modo que eles sejam capazes de ler, compreender<br />
e interpretar esses textos, sabendo utilizá-los em situações concretas.<br />
O estudo dos gêneros discursivos e dos modos como se articulam<br />
proporciona uma visão ampla das possibilidades de usos da linguagem,<br />
(...) (PCN, 1999, p. 18)<br />
Porém, como são muitos os gêneros, os PCN’s recomendam<br />
que o professor priorize os que caracterizam os usos públicos da linguagem,<br />
já que é compromisso da escola assegurar ao aluno o exercício<br />
pleno da cidadania. (Cf. PCN, 1998, p. 24).<br />
Assim, por meio de um trabalho sistemático com o texto, o<br />
professor pode estar contribuindo para a formação de verdadeiros<br />
leitores. O aluno precisa extrair sentido do que lê, ou seja, chegar ao<br />
“sentido de discurso”, para, então, perceber que o texto é fonte de<br />
prazer e de conhecimento.<br />
2. Sentido de língua x sentido de discurso:<br />
contribuições da teoria semiolinguística de análise do discurso<br />
Distinguir sentido de língua de sentido de discurso (terminologia<br />
proposta por Patrick Charaudeau: 1995, 1999, p. 29) é de fundamental<br />
importância tendo em vista que o nosso objetivo é propor<br />
atividades que ajudem o aluno a ultrapassar o sentido de língua/compreensão<br />
e chegar ao sentido de discurso/interpretação.<br />
Charaudeau (ibidem) estabelece uma distinção entre sentido<br />
de língua e sentido de discurso, tendo como base a noção referencial<br />
da língua. Tal distinção é importante porque mostra a diferença entre
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
744<br />
dois processos tomados comumente como idênticos – a compreensão<br />
e a interpretação.<br />
De acordo com Charaudeau (2001, p. 31-2), todo ato de linguagem<br />
é uma encenação que comporta quatro protagonistas, sendo<br />
dois situacionais, externos e dois discursivos, internos. Os sujeitos<br />
“externos” são o EUc (eu-comunicante) e o TUi (tu-interpretante) e<br />
os sujeitos “internos”, o EUe (eu-enunciador) e o TUd (tudestinatário).<br />
No circuito externo, os seres são de ação, instituídos pela<br />
produção (EUc) e pela interpretação (TUi) e guiados pelo FAZER da<br />
situação psicossocial. Já no circuito interno, os seres são da fala, instituídos<br />
pelo DIZER (EUe e TUd).<br />
No ato de comunicação, o sujeito comunicante tem por objetivo<br />
significar o mundo, a partir de seus propósitos, para um sujeito<br />
interpretante. Nessa troca, ou seja, nesse processo de transação, para<br />
proceder a uma análise do texto, o sujeito interpretante precisa não<br />
só mobilizar o sentido das palavras e suas regras de combinação<br />
(langue) como também construir um sentido que corresponda a sua<br />
intencionalidade (parole). Nesse ponto, passa-se do sentido de língua<br />
ao sentido de discurso, tendo em vista que o sujeito interpretante não<br />
busca o significado das palavras ou sua combinação (sentido de língua),<br />
mas seu sentido social (sentido de discurso).<br />
O processo de ordem categorial que termina no reconhecimento<br />
do sentido de língua pode se chamar “compreensão”. E o processo<br />
duplo (discursivo e situacional) de ordem inferencial, que leva<br />
ao reconhecimento – construção do sentido de discurso problematizado<br />
e finalizado – pode ser chamado de “interpretação”.<br />
Cabe à escola, trabalhar com os alunos estratégias de leitura<br />
de modo que sejam capazes de ultrapassar o sentido de língua.<br />
3. Análise e criação de textos publicitários<br />
O que há na linguagem publicitária que tanto atrai consumidores?<br />
As pessoas consomem basicamente para experimentar um tipo<br />
qualquer de satisfação. Porém, é interessante observar que a propaganda<br />
não é uma linguagem qualquer, livre de intencionalidades.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
745<br />
Quando nos propomos a mergulhar nas entrelinhas do texto publicitário,<br />
percebemos o emaranhado de combinações a fim de seduzir,<br />
levando o leitor a adquirir um determinado produto.<br />
Assim, ler um texto publicitário não é somente desvelar a ideologia<br />
transmitida, mas também, é perceber o jogo feito com as<br />
palavras, a fim de tirar o leitor da indiferença.<br />
O professor pode mostrar aos alunos que o texto publicitário é<br />
um apelo, um vínculo entre o anunciante e o consumidor. E, para seduzir<br />
o leitor, os argumentos objetivos, somente, não bastam, pois é<br />
preciso mostrar vantagens para o consumidor.<br />
Ao elaborar um texto publicitário, é de suma importância que<br />
o aluno imagine o que o consumidor virtual pensa a respeito do produto<br />
a ser oferecido.<br />
Outro aspecto relevante é que a linguagem publicitária faz<br />
uso também dos signos não verbais ou icônicos como uma grande<br />
força de expressão e persuasão. Em alguns casos, a ilustração é autossuficiente<br />
para conseguir os objetivos que se pretende obter. O<br />
professor pode mostrar que os signos icônicos servem para reforçar<br />
os valores de atenção, compreensão, memorização e credibilidade.<br />
Enquanto algumas pessoas acreditam no que está impresso, uma<br />
grande maioria acredita no que vê, e não precisa ser uma prova científica,<br />
mas apenas uma aparência da prova de verdade que se quer<br />
transmitir.<br />
O logotipo, a marca e o espaço em branco formam, juntamente<br />
com a ilustração, os aspectos gráficos de um anúncio. O que importa<br />
é trabalhar no limite do texto, levantando-se as suas verdades<br />
escondidas.<br />
Assim, o professor pode propor um trabalho de observação,<br />
interpretação e criação de novos textos publicitários. A partir da leitura<br />
de anúncios, comentar o ocultamento dos verbos “compre” ou<br />
“faça” e descobrir a maneira de conseguir o que se quer, sem que apareçam<br />
os imperativos. Na verdade, nesse tipo de texto, todos os<br />
imperativos valem por “compre”. Como afirma Monnerat (2003, p.<br />
34),<br />
(...) os verbos (...) quando usados no imperativo, equivalem sempre a<br />
comprar. “Assine Caras e ganhe gênios da música” equivale a compre.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
746<br />
O uso do imperativo caracteriza uma linguagem autoritária, pouco usada<br />
no cotidiano, quando, por exemplo, a ordem “faça isso” é substituída por<br />
eufemismos: “Por favor, você pode fazer isso?” Na publicidade, o receptor<br />
obedece a ordens categóricas sem protestar: “Leia Manchete”, “Abuse<br />
e use C&A” etc., e isto porque a publicidade, não se dirigindo a ninguém<br />
em especial, dirige-se individualmente ao receptor.<br />
O professor pode levar os alunos a entenderem as diferentes<br />
motivações para o uso do imperativo e também perceberem de que<br />
outra forma eles podem dar uma ordem, sem utilizar esse modo verbal.<br />
Nem sempre o publicitário utiliza verbos no imperativo, tendo<br />
em vista que este modo caracteriza uma linguagem autoritária. O publicitário<br />
pode utilizar, para seduzir o leitor, estratégias argumentativas,<br />
como a singularização e a pressuposição e, ainda, a inferência.<br />
“Uma estante pra quem gosta do bom<br />
e do melhor. Mas prefere o melhor.”<br />
Rudnick Store & Projetos<br />
Veja Rio: 30/09/03
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
747<br />
Na singularização, o agente publicitário procura distinguir o<br />
produto (Marca) de todos os outros produtos possíveis, tornando-o<br />
único. O produto x de uma determinada Marca é sempre “o melhor”,<br />
“o irresistível” em relação a y, de outra Marca, como por exemplo,<br />
na propaganda da Rudnick Store & Projetos.<br />
Já a pressuposição, na publicidade, fabrica uma imagem do<br />
destinatário da qual ele próprio não pode fugir, como na propaganda<br />
do carro da Ford, em que o publicitário parte do pressuposto de que o<br />
leitor gosta de modelos bonitos de carros e gosta também de pagar<br />
pouco pelo produto.<br />
“Para quem é<br />
exigente no<br />
design, mas se<br />
contenta com<br />
pouco no preço.<br />
Ford Focus<br />
hatch”<br />
Ford Focus<br />
hatch<br />
Veja Rio:<br />
17/09/03
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
748<br />
Na relação posto/pressuposto, observa-se que o posto pode<br />
ser contestado, já o pressuposto é um dado indiscutível para o leitor;<br />
não podendo ser contestado, sob pena de se tornar incoerente o enunciado.<br />
No texto da Ford temos o seguinte:<br />
POSTO: O leitor é exigente no design (“gosta do bom e do<br />
melhor”), mas gosta também de pagar pouco pelo produto.<br />
PRESSUPOSTO: O design e o preço do carro Ford Focus<br />
hatch são ótimos; atingem a quem é exigente no preço e na<br />
qualidade.<br />
O texto da Rudnick Store & Projetos, a seguir, é exemplo de<br />
inferência. Ao ler o enunciado, o receptor deverá perceber o elogio<br />
implícito – se “a sala é a sua cara” (“a não ser que ele se ache feio”)<br />
é porque tanto ele, quanto os móveis são bonitos. Vale notar que o<br />
adjetivo “bonito” não aparece uma única vez, surgindo do reconhecimento<br />
da inferência.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
749<br />
“Essa sala é a sua cara. A não ser<br />
que você se ache feio.”<br />
Rudnick Store & Projetos<br />
Veja Rio: 22/10/03<br />
Pressuposição e subentendido não são o mesmo mecanismo.<br />
Na pressuposição, há o posto (o dado) e o pressuposto, que é reconhecido<br />
por meio de marcas textuais explícitas, como certos conectores<br />
circunstanciais (ainda, já, já que, também, desde que etc.); verbos<br />
que indicam mudança ou permanência de estado (ficar, começar,<br />
continuar etc.) e verbos de estado psicológico (sentir, saber, lastimar<br />
etc.); orações adjetivas (explicativas e restritivas); expressões e verbos<br />
reiterativos (de novo, refazer etc.) etc.<br />
Já no subentendido, ou inferência (chamado por Grice de implicatura<br />
conversacional), o receptor da mensagem tem de inferir o<br />
não dito por meio de conhecimento de mundo, conhecimento partilhado,<br />
situação comunicativa etc.<br />
Como sugestão de atividade, o professor pode pedir que os<br />
alunos identifiquem, em alguns textos publicitários, os seguintes me-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
750<br />
canismos: singularização, pressuposição e inferência. Vale lembrar<br />
que, num texto, pode ser utilizada mais de uma estratégia. Nos textos<br />
em que a pressuposição é utilizada, os alunos podem também identificar<br />
o POSTO, o PRESSUPOSTO e o MARCADOR DE PRESSU-<br />
POSIÇÃO.<br />
Os alunos também podem ser levados a escreverem textos argumentativos<br />
para os anúncios, utilizando as estratégias – singularização<br />
e/ou pressuposição - de modo que o leitor seja seduzido a<br />
comprar o produto anunciado. Nessa atividade, o professor recorta<br />
propagandas de jornais e revistas e retira o texto de argumentação. O<br />
professor deve mostrar aos alunos que o texto argumentativo deve<br />
ressaltar as qualidades do produto, utilizando sempre palavras positivas.<br />
Muitos textos publicitários também “jogam” com a polissemia<br />
das palavras ou expressões, possibilitando várias interpretações.<br />
O professor pode solicitar que os alunos identifiquem o(s) sentido(s)<br />
denotativo(s) (sentido de língua, dicionarizado) das palavras ou expressões<br />
e, quando houver, o(s) sentido(s) conotativo(s) (sentido de<br />
discurso, figurado).
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
751<br />
“Montanha não é lugar de<br />
pé frio.”<br />
Timberland<br />
Veja: 04/06/03<br />
No texto da marca de calçados Timberland, o publicitário joga<br />
com a polissemia da expressão “pé frio”.<br />
Numa primeira análise, após lermos o texto argumentativo,<br />
compreendemos que os calçados da Timberland, feitos de couro hidrofugado<br />
– “couro com tratamento especial e costura selada, que<br />
proporciona total impermeabilidade” – permitem que o leitor fique<br />
com os pés aquecidos, mesmo em montanhas. Porém, a expressão<br />
“pé frio” é também utilizada popularmente em relação às pessoas<br />
pessimistas, que não acreditam no sucesso, ou que atraem azar. Assim,<br />
numa segunda leitura, escalar montanhas não é atividade para<br />
“pé frio”, ou seja, para pessimistas.<br />
Questões de reconhecimento do sentido denotativo das palavras<br />
e expressões exigem do aluno um conhecimento básico da língua.<br />
Para que esse aluno chegue ao sentido global do texto, precisa<br />
primeiramente, identificar os sentidos literais de uma palavra ou expressão.<br />
Após esse primeiro reconhecimento, ele terá mais possibili-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
752<br />
dades de perceber os outros possíveis sentidos atribuídos às palavras<br />
e as implicações que tais sentidos trazem ao texto.<br />
Outro recurso muito utilizado pelo texto publicitário é a ambiguidade.<br />
“Faixa. De uma forma ou de outra, você acaba usando.”<br />
Fonte: http://www.transportes.gov.br/Pare/Camp5.htm<br />
O professor deve discutir com os alunos quando a ambiguidade<br />
é problemática e quando é um recurso estilístico.<br />
No texto do Ministério dos Transportes, a ambiguidade é considerada<br />
estilística, tendo em vista que é intencional e voluntária. O<br />
publicitário tira proveito da possibilidade de duplo sentido do termo<br />
“faixa” e constrói o seu texto jogando com os dois sentidos (faixa de<br />
pedestre e faixa de curativo) para atingir o interlocutor, afetando-o.<br />
A intertextualidade também é um recurso explorado nas propagandas.<br />
O professor pode selecionar vários textos publicitários que<br />
apresentem intertextualidade e pedir que os alunos a identifique.<br />
O texto do Greenpeace vale-se desse recurso para identificar<br />
um problema ambiental.
“Você não quer contar esta história para seus filhos, quer?”<br />
Greenpeace<br />
Fonte: www.greenpeace.org.br<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
753<br />
Nesse texto, há a relação intertextual com a conhecida história<br />
infantil: “Chapeuzinho Vermelho” e a intertextualidade é explícita,<br />
estabelecida por meio da imagem: uma criança, vestida com uma capa<br />
vermelha e levando uma cesta, passeia por uma floresta desmatada;<br />
e pelo texto: “Você não quer contar esta história para seus filhos,<br />
quer?”. Sugere-se, com o pronome “esta”, a existência de uma outra<br />
história, diferente dessa, a ser contada, ou seja, a história de Chapeuzinho<br />
Vermelho.<br />
Esse texto publicitário foi veiculado para promover a conscientização<br />
dos leitores de diversas revistas sobre problemas na relação<br />
entre o homem e o ambiente. O próprio título do texto é uma<br />
provocação. Assim, a intertextualidade é utilizada para sensibilizar e,<br />
consequentemente, seduzir o leitor para a adesão da causa.<br />
Questões que envolvem esse fator da textualidade requerem<br />
que o aluno assuma uma atitude crítica e reflexiva em relação às diferentes<br />
ideias relativas ao mesmo tema encontradas em um mesmo<br />
ou em diferentes textos, ou seja, ideias que se cruzam no interior dos<br />
textos lidos, ou aquelas encontradas em textos diferentes.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
754<br />
Atividades que relacionam texto verbal e texto não-verbal<br />
propiciam ao leitor relacionar informações expressas verbalmente<br />
com as imagens. Exigem que o leitor perceba os mínimos detalhes<br />
do texto visual para relaciona-los com a imagem como um todo e, a<br />
partir daí, extrair sentidos.<br />
Na atividade com o texto publicitário da marca Philco, o aluno<br />
pode ser levado, num primeiro momento, a identificar o contexto<br />
de um casamento, representado pelo bouquet de noiva, logo abaixo<br />
do texto publicitário.<br />
“O casamento perfeito: ela, impossível de tirar os olhos; ele, discreto como deve ser.<br />
Duetto Philco tela plana e DVD. Enfim juntos.”<br />
Philco<br />
Veja: 08/06/05<br />
Numa segunda análise, o aluno pode ser levado a identificar<br />
os referentes dos pronomes pessoais do caso reto, levando-se em<br />
consideração o contexto e os produtos anunciados: ela (a noiva - TV<br />
tela plana) e ele (o noivo – DVD). É uma questão de coesão referencial,<br />
que tem por objetivo mostrar ao aluno os elementos que constroem<br />
a articulação entre as diversas partes de um texto. Para que as<br />
ideias estejam bem relacionadas, também é preciso que estejam bem<br />
interligadas, bem “unidas” por meio de vocábulos que têm a finalidade<br />
de ligar ou retomar palavras, locuções, orações e períodos ou<br />
atribuir a marca da temporalidade.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
755<br />
Além dos recursos analisados, o professor pode aproveitar todos<br />
os textos publicitários utilizados em sala de aula para discutir<br />
com os alunos a ideologia implícita. Os textos publicitários fabricam<br />
uma imagem de mundo que provoca o leitor, levando-o a adquirir o<br />
produto. A não obtenção do produto pode representar para o consumidor<br />
a anulação social. Por meio das palavras, o receptor “descobre”<br />
o que lhe faltava, passando por um momento de “mudança”,<br />
embora logo após a compra sinta a frustração de permanecer insatisfeito.<br />
Se a compra levar a satisfação, o publicitário não conseguirá<br />
comprador para novos produtos.<br />
Essas são apenas algumas sugestões de como o professor pode<br />
explorar os textos publicitários nas aulas de língua materna. Concordamos<br />
com Antunes (2009, p. 206), quando diz:<br />
Não sei se seria sonhar muito. Mas acredito que, se desde o início,<br />
for dada aos alunos a oportunidade da leitura plena (do livro e do mundo)<br />
– aquela que desvenda, que revela, que lhes possibilita uma visão crítica<br />
do mundo e de si mesmos – se lhes for dada a oportunidade da leitura<br />
plena, repito, uma nova ordem de cidadãos poderá surgir e, dela, uma<br />
nova configuração de sociedade.<br />
4. Breves considerações finais<br />
Não existem fórmulas mágicas para o ensino de qualquer disciplina.<br />
Se não temos um caminho novo, precisamos encontrar um<br />
jeito novo de caminhar. O caminho pode ser o mesmo, mas se as estratégias<br />
e os objetivos forem repensados, podemos contribuir para a<br />
formação de leitores críticos.<br />
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
ANTUNES, Irandé. Língua, texto e ensino: outra escola é possível.<br />
São Paulo: Parábola, 2009.<br />
CHARAUDEAU, Patrick. Uma teoria dos sujeitos da linguagem. In:<br />
MARI, H. et alii. Análise do discurso: fundamentos e práticas. Belo<br />
Horizonte: Núcleo de Análise do Discurso – FALE/UFMG, 2001, p.<br />
23-37.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
756<br />
______. Análise do discurso: controvérsias e perspectivas. In:<br />
MARI, H. et alli. (Orgs.). Fundamentos e dimensões da análise do<br />
discurso. Belo Horizonte: Carol Borges – Núcleo de Análise do Discurso.<br />
Fale – UFMG, 1999, p. 27-43.<br />
______. Les conditions de compréhension du sens de discours. In:<br />
Anais do I Encontro Franco-Brasileiro de Análise do Discurso. Rio<br />
de Janeiro: UFRJ, 1995, pp. 9-16.<br />
KLEIMAN, Ângela B. Leitura: ensino e pesquisa. 2. ed. Campinas:<br />
Pontes, 2004.<br />
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Compreensão de texto: algumas reflexões.<br />
In: DIONÍSIO, Ângela Paiva; BEZERRA, Maria Auxiliadora<br />
(Orgs.). O livro didático de português: múltiplos olhares. Rio de Janeiro:<br />
Lucerna, 2001, p. 46-59.<br />
MENEZES, Gilda et alli. Como usar outras linguagens na sala de<br />
aula. 4. ed. São Paulo: Contexto, 2003.<br />
MONNERAT, Rosane. A publicidade pelo avesso. Niterói: EDUFF,<br />
2003.<br />
PARÂMETROS Curriculares Nacionais: ensino médio: linguagens,<br />
códigos e suas tecnologias. Brasília: Ministério da Educação, 1999.<br />
PARÂMETROS Curriculares Nacionais: Terceiro e quarto ciclos do<br />
ensino fundamental: língua portuguesa. Brasília: Ministério da Educação,<br />
1998.<br />
REBELLO, Ilana da Silva. O produto (marca) como garotopropaganda:<br />
as modalidades do ato delocutivo e a intertextualidade -<br />
uma leitura semiolinguística do texto publicitário escrito. Dissertação<br />
de Mestrado em Letras. Niterói, UFF, Instituto de Letras, 2005.<br />
______. VIEGAS, Ilana da Silva. Conteúdos de interpretar – a leitura<br />
como passaporte para a interação com o mundo. Tese de Doutorado<br />
em Letras. Niterói, UFF, Instituto de Letras, 2009.<br />
VARGAS, Suzana. Leitura: uma aprendizagem de prazer. 4. ed. Rio<br />
de Janeiro: José Olympio, 2000.
1. Introdução<br />
COMO FUNCIONA O DISCURSO<br />
DO GÊNERO DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA?<br />
Urbano Cavalcante Filho (IFBA/UFBA/UESC)<br />
urbanocavalcante@yahoo.com.br<br />
O ensino da língua materna ainda tem como característica o<br />
caráter normativo, prescritivo e conceitual, marcado por aulas classificatórias<br />
de nomenclaturas e categorias da gramática normativa,<br />
com ênfase nos estudos da ortografia e da sintaxe da língua portuguesa<br />
(daqui em diante LP).<br />
Na década de 70, e, sobretudo, a partir dos anos 80, com o<br />
surgimento das teorias linguísticas, a concepção do ensino da língua<br />
materna pautada no caráter normativo prescritivo e conceitual, marcado<br />
por aulas classificatórias de nomenclaturas e categorias da gramática<br />
tradicional, passou a ser contestada. Essas teorias postulam<br />
que o ensino e estudo da língua ultrapassam as formas linguísticas, e<br />
os interesses voltam para as relações entre essas formas, seu contexto<br />
de uso e suas condições de produção. Por isso que muitas críticas foram<br />
dirigidas ao ensino tradicional da língua materna. Duas das críticas<br />
merecem especial atenção. Uma delas diz respeito à excessiva<br />
valorização da gramática normativa dissociada da realidade linguística<br />
e discursiva dos alunos (tendo como consequência o preconceito<br />
contra as formas de oralidade e as variedades não padrão) e a outra<br />
se centra no uso do texto como pretexto para o tratamento de aspectos<br />
gramaticais.<br />
Portanto, quando se pensa no verdadeiro objeto de ensino da<br />
língua, tem-se que considerar os usos sociais que os falantes fazem<br />
dela, centrados na concepção sociointeracional da linguagem. Desse<br />
modo, o ensino da língua – antes conceitual, classificatório, prescritivista,<br />
gramaticalista, nomenclaturista, – passa a ser visto no uso e<br />
funcionamento da língua, enquanto sistema simbólico, situado num<br />
contexto sócio-histórico determinado.<br />
Toda essa discussão em torno da redefinição do objeto de ensino<br />
e estudo da língua portuguesa tem permitido surgir documentos
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
758<br />
orientativos oficiais, a exemplo dos já citados Parâmetros Curriculares<br />
Nacionais (PCNs), que apresentam orientações teóricometodológicas<br />
para o ensino da língua materna. O cerne das ideias<br />
dos PCNs fundamenta-se na teoria dos gêneros do discurso (BAKH-<br />
TIN, 1992), sejam eles orais, sejam escritos, permitindo um maior<br />
esclarecimento do seu funcionamento, o que é extremamente importante<br />
tanto para sua produção quanto para sua compreensão. Inferimos,<br />
com isso, que o trabalho com gêneros discursivos 1 , na escola, é<br />
uma excelente oportunidade para se lidar com a língua nos seus mais<br />
variados usos no dia-a-dia, pois nada do que fazemos linguisticamente<br />
está fora de ser um gênero.<br />
Dentre o conjunto dos gêneros tidos como potencialmente infinitos<br />
e mutáveis (KLEIMAN, 2005, p. 8), temos a divulgação científica,<br />
que, na agenda do dia, se coloca como um gênero discursivo<br />
que demanda estudos, na medida em que, hoje, ao se refletir sobre o<br />
papel da ciência tal como ela se constitui na atualidade, numa sociedade<br />
como a nossa, implica pensar também numa discussão que deve<br />
levar em conta não só a produção do conhecimento científico, mas<br />
também a sua transmissão e a sua reprodução.<br />
O presente trabalho objetiva apresentar as reflexões obtidas a<br />
partir de um trabalho desenvolvido nas aulas de língua materna nos<br />
cursos técnicos do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia<br />
da Bahia (IFBA), Campus Valença. Os textos trabalhados nas aulas<br />
pertenciam ao gênero divulgação científica, constantes da Revista<br />
Galileu 2<br />
1 Há uma oscilação terminológica entre os termos gênero textual e gênero discursivo.<br />
São termos considerados equivalentes pelos autores que abordam o assunto. Nesse<br />
trabalho, portanto, optamos por utilizar a noção de gênero por esta está “associada à<br />
de discurso (gênero de ou do discurso) e a noção de tipo, à de textos (tipos textuais ou<br />
tipos de textos) e, consequentemente, a dimensão textual aparece subordinada à dimensão<br />
discursiva” (BRONCKART, 1999, p. 139).<br />
2 Os textos trabalhados foram reunidos da Revista Galileu, de periodicidade mensal,<br />
da Editora Globo. Os textos selecionados para exemplificação no presente artigo constam<br />
da edição nº 217, de agosto de 2009.
2. Sobre os gêneros discursivos: breve reflexão<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
759<br />
Desde Platão e Aristóteles, a noção de gênero discursivo vem<br />
sendo uma preocupação constante entre os estudiosos da linguagem,<br />
haja vista as várias classificações que têm aparecido ao longo dos<br />
tempos, sob os mais diferentes termos (gêneros textuais, tipos de discurso,<br />
tipos textuais, modos/modalidades de organização textual, espécies<br />
de texto e de discursos etc.) (BRANDÃO, 2003, p. 35). Dessa<br />
forma, essa questão do gênero foi preocupação primeira da poética e<br />
da retórica e não da linguística. Sobre isso Brandão (2003, p. 35) elenca<br />
duas razões: primeiro, porque a linguística, enquanto ciência<br />
específica da linguagem, é recente, e depois porque a preocupação<br />
inicial foi com as unidades menores que o texto (a exemplo do fonema,<br />
da palavra, da frase). Na medida em que ela passa a se preocupar<br />
com o texto, começa a pensar na questão da classificação. Essa<br />
preocupação se torna crucial quando ela deixa de trabalhar somente<br />
com textos literários, mas se volta também para o funcionamento de<br />
qualquer tipo de texto.<br />
Em seus escritos, o linguista russo Mikhail Bakhtin (1992)<br />
focaliza sua reflexão no caráter social dos fatos de linguagem. Nessa<br />
perspectiva, o enunciado é encarado como produto da interação verbal,<br />
determinado tanto por uma situação material concreta como pelo<br />
contexto mais amplo que constitui o conjunto das condições de vida<br />
de uma dada comunidade linguística. Dessa forma, o autor insiste<br />
sobre a diversidade das atividades sociais que são exercidas pelos diversos<br />
grupos e, consequentemente, sobre a multiplicidade das produções<br />
de linguagem ligadas a essas atividades. Isso nos permite dizer<br />
que é impossível a comunicação verbal a não ser por algum gênero,<br />
assim como também é impossível se comunicar a não ser por algum<br />
texto. Dito de outra maneira, a comunicação verbal só é possível<br />
por algum gênero discursivo 3 . Essa é uma posição defendida por<br />
Bakhtin (1992), ao tratar a língua em seus aspectos discursivos e enunciativos,<br />
e não em suas peculiaridades formais e estruturais. Com<br />
essa noção, Bakhtin ratifica a concepção de encarar a linguagem como<br />
um fenômeno social, histórico e ideológico, definindo um enunciado<br />
como uma verdadeira unidade de comunicação verbal.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
760<br />
Entendemos, portanto, que a riqueza e diversidade das produções<br />
de linguagem, neste universo, são infinitas, mas organizadas.<br />
Nas palavras de Bakhtin (1992, p. 279):<br />
A riqueza e a variedade dos gêneros do discurso são infinitas, pois a<br />
variedade virtual da atividade humana é inesgotável e cada esfera dessa<br />
atividade comporta um repertório de gêneros do discurso que vai diferenciando-se<br />
e ampliando-se à medida que a própria esfera se desenvolve<br />
e fica mais complexa.<br />
Dessa forma, Bakhtin estende os limites da competência linguística<br />
dos sujeitos para além da frase na direção dos “tipos relativamente<br />
estáveis de enunciados” e do que ele chama “a sintaxe das<br />
grandes massas verbais”, isto é, os gêneros discursivos, com os quais<br />
temos contato e vivemos imersos desde o início de nossas atividades<br />
de linguagem.<br />
Considerando sob este prisma, os gêneros discursivos não são<br />
apenas um conjunto de propriedades estruturais, uma unidade composicional<br />
com características e procedimentos formais, mas também<br />
são concomitantemente produtos da atividade humana, refletida a<br />
partir de condições específicas e de finalidades tanto temática quanto<br />
intuitiva, estilística de cada sujeito social. Com isso, não pretendemos<br />
secundarizar os aspectos formais, mas, e essa é uma posição defendida<br />
por Maingueneau (1996), que é preciso articular, num movimento<br />
dialético contraditório, o “como dizer” ao conjunto de elementos<br />
enunciativos, porque cada gênero se associa a épocas, a lugares<br />
específicos e a um ritual apropriado.<br />
Na atividade social, em cada esfera, em que os indivíduos estão<br />
inseridos, eles utilizam a língua de acordo com os gêneros de<br />
discurso específicos. Considerando o fato de que os atos sociais vivenciados<br />
pelos grupos são diversos, consequentemente a produção<br />
de linguagem também o será.<br />
Conforme dito a respeito da riqueza e variedade dos gêneros<br />
produzidos pelos indivíduos nas situações sociais, esses gêneros, nas<br />
palavras de Bakhtin (1992, p. 279):<br />
As condições específicas e as finalidades de cada uma dessas esferas<br />
não só por seu conteúdo (temático) e por seu estilo verbal, ou seja, pela<br />
seleção operada nos recursos da língua – recursos lexicais, fraseológicos<br />
e gramaticais – mas também, e sobretudo, por sua estrutura composicional.<br />
Estes três elementos (conteúdo temático, estilo e construção compo-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
761<br />
sicional) fundem-se indissoluvelmente no todo do enunciado, e todos eles<br />
são marcados pela especificidade de uma esfera de comunicação.<br />
Com base nesse postulado bakhtiniano, o gênero se caracteriza,<br />
então, por esses três elementos: o conteúdo temático, o estilo verbal<br />
e a estrutura composicional.<br />
Diante dessa contextualização introdutória, discutir a divulgação<br />
científica, enquanto gênero do discurso, na acepção bakhtiniana,<br />
é também evidenciar que há um jogo de regras, que controlam o funcionamento<br />
e a circulação dos discursos sociais. Por isso que não dizemos<br />
o que queremos, onde e quando queremos, mas os discursos<br />
são organizados socialmente, inserem-se numa ordem enunciativa e<br />
são regulados, moldados pelos gêneros que os constituem. Em outras<br />
palavras, cada esfera da comunicação social apresenta “tipos relativamente<br />
estáveis de enunciados”.<br />
3. Sobre o gênero divulgação científica<br />
Podemos caracterizar a divulgação científica, considerada<br />
como um processo de difusão de pesquisas e teorias em âmbito geral,<br />
como a reenunciação de um discurso-fonte (D1) elaborado por “especialistas”<br />
e destinado a seus pares em um discurso segundo (D2)<br />
reformulado por um divulgador e destinado ao “grande público”.<br />
Na concepção de Authier-Revuz (1998, p. 107), o texto de<br />
DC é uma associação do discurso científico com o discurso cotidiano,<br />
sendo que este último favorece a leitura por parte de um número<br />
maior de leitores. A autora conceitua divulgação científica como:<br />
uma atividade de disseminação, em direção ao exterior, de conhecimentos<br />
científicos já produzidos e em circulação no interior de uma comunidade<br />
mais restrita; essa disseminação é feita fora da instituição escolaruniversitária,<br />
não visa à formação de especialistas, isto é, não tem por<br />
objetivo estender a comunidade de origem.<br />
Constitui, portanto, o texto de DC a interseção entre dois gêneros<br />
discursivos: o discurso da ciência e o discurso do jornalismo,<br />
este último visto como o discurso de transmissão de informação. Para<br />
Campos (s/d, p. 1), esse gênero “é considerado como realização<br />
enunciativa marcada pela ação de quem é colocado na posição de um<br />
ao falar pelo outro (o especialista) para o outro (não especialista)”
(grifos do autor).<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
762<br />
Noutras palavras, é como se o texto de DC operasse uma espécie<br />
de tradução intralingual, na medida em que busca uma equivalência<br />
entre o jargão científico e o jornalístico. Assim, o gênero em<br />
discussão compreende um texto reformulado, o qual pode ter sido originado<br />
a partir de um artigo ou relatório acadêmico-científico, de<br />
uma entrevista ou até mesmo de uma tradução de um texto em língua<br />
estrangeira, direcionado para a população distanciada do vocabulário<br />
e das práticas científicas, mas que deseja e necessita do conhecimento<br />
das ciências.<br />
Entendemos, com isso, que a DC é uma prática eminentemente<br />
heterogênea na medida em que incorpora no seu fio discursivo<br />
tanto elementos provenientes daquele que lhe serve de fonte – o discurso<br />
científico – quando daquele que pretende atingir – o discurso<br />
jornalístico. É, portanto, no limiar entre uma e outra prática discursiva,<br />
no espaço do interdiscurso, que a atividade de DC se desenvolve.<br />
O diálogo, o contato com o seu exterior discursivo é, aqui, o elemento<br />
chave na compreensão do que vem a ser este gênero discursivo.<br />
Segundo Campos (2006), o gênero de DC exige socialmente a<br />
materialização de uma relação dialógica que pressupõe a posição de<br />
um que delineia uma realização de linguagem determinada pelo outro<br />
– o especialista – tendo em vista o não especialista na posição alternativa<br />
daquele que tem o lugar destinatário de para o outro. Nesse<br />
sentido, assumir a posição de um, como divulgador, é assumir uma<br />
dupla exterioridade e uma dupla excedência com o acabamento e a<br />
completude provisórios, associados a tal duplicidade. De forma geral,<br />
podemos afirmar, pautados nas reflexões de Leibruder (2003)<br />
que o texto de DC, na sua função de vulgarização científica, contrapõe-se<br />
ao hermetismo próprio do discurso científico, buscando propiciar<br />
ao leitor leigo (não especialista) o contato com o universo da<br />
ciência através de uma linguagem que lhe seja familiar.<br />
3.1. DC: Discurso e funcionamento<br />
Conscientes de que a “língua” dos cientistas é considerada<br />
uma “língua estrangeira” para o grande público, concordamos que<br />
há, no discurso de divulgação, uma prática de reformulação de um
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
763<br />
discurso-fonte (D1) por um discurso segundo (D2) - em função de<br />
um leitor, “receptor” diferente daquele a quem se endereçava o discurso<br />
científico.<br />
Pautados na ideia de que o discurso de DC é considerado um<br />
lugar privilegiado de reformulação explícita do discurso, os discursos<br />
de DC distinguem-se dos demais “gêneros” de reformulação exatamente<br />
pelo quadro da estrutura enunciativa - o D1 não é apenas<br />
fonte, mas, sobretudo, o objeto mencionado de D2. Em tais discursos,<br />
funciona uma dupla estrutura enunciativa, na qual duas situações,<br />
dois cenários enunciativos ficam interligados: por um lado, os<br />
interlocutores (cientistas e seus pares) e o quadro enunciativo de D1<br />
e, por outro, os interlocutores (divulgador e público em geral) e o<br />
quadro enunciativo de D2.<br />
No nível do fio do discurso, o discurso da DC representa uma<br />
ação de colocar em contato dois discursos, uma vez que esse tipo de<br />
discurso é constituído pelo discurso científico e pelo discurso cotidiano,<br />
no próprio desenrolar da atividade por meio de um fio heterogêneo.<br />
É um trabalho pelo e no discurso.<br />
3.1.1. Leitor e autor-modelo de DC<br />
O leitor, enquanto ingrediente do processo de produção e recepção<br />
do texto se diferencia do leitor empírico, já que é uma entidade<br />
ideal que o texto prevê como colaborador e que também procura<br />
criá-lo. A quem Eco (1979, p. 17) denomina de leitor-modelo:<br />
O leitor-modelo (...) não é o leitor empírico. O leitor empírico é você,<br />
todos nós, quando lemos um texto. Os leitores empíricos podem ler<br />
de varias formas, e não existe lei que determine como devem ler, porque<br />
em geral utilizam o texto como receptáculo de suas próprias paixões.<br />
Maingueneau (1996, p. 50) compartilha com a definição de<br />
Eco quando afirma que o destinatário da narrativa, e aqui nós deslocamos<br />
a reflexão para o destinatário dos textos de DC, não são leitores<br />
reais, mas certa figura de leitor construída pelo texto através da<br />
enunciação do autor.<br />
É importante o estabelecimento dessa distinção, quando consideramos<br />
a posição de leitura assumida pelo leitor. A primeira posição<br />
caracteriza o leitor de primeiro nível que ler querendo saber o fi-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
764<br />
nal do texto, sua conclusão e a segunda descreve a movimentação<br />
que o leitor de segundo nível deve fazer dentro do texto. Nesse sentido<br />
o leitor-modelo de segundo nível é “um conjunto de instruções<br />
textuais, apresentadas pela manifestação linear do texto, precisamente<br />
como um conjunto de frases ou de outros sinais” (ECO, 1994, p.<br />
22).<br />
3.1.2. Heterogeneidade discursiva da divulgação científica<br />
É com base na teoria bakhtiana que fundamentamos nossa<br />
discussão, já que esta aponta para a presença do Outro em todos os<br />
discursos. Assim sendo, o discurso de DC está permeado pelas palavras<br />
alheias.<br />
Nos estudos linguísticos pós-bakhtinianos, Authier-Revuz elaborou<br />
uma distinção no campo da heterogeneidade discursiva: heterogeneidade<br />
mostrada e heterogeneidade constitutiva. Authier-<br />
Revuz (1990) considera a heterogeneidade constitutiva como “todo<br />
discurso é constitutivamente atravessado pelos ‘outros discursos’ e<br />
pelo ‘discurso do Outro’”. Já a heterogeneidade mostrada apresenta<br />
dois tipos de enunciados: aquele com marcas explícitas e aqueles cujas<br />
marcas não são mostradas.<br />
Nos dizeres, verificamos a presença e os valores das vezes alheias.<br />
O discurso direto, por exemplo, indica outra posição, outro<br />
significado, outro valor axiológico, advindos do discurso do outro. O<br />
discurso direto vem separado da fala do autor por meio de aspas,<br />
dois pontos, travessões, itálico e verbos discendi, por exemplo.<br />
“Ela é feita para resistir a impactos muito fortes e a temperaturas altíssimas.<br />
Não há material leve que possa suportar essas condições”, afirma<br />
o coordenador do curso de engenharia aeronáutica da USP de São<br />
Carlos, Fernando Catalano.<br />
“Apesar de seus espinhos curtos e pontiagudos serem capazes de ferir<br />
e afastar seus agressores, a região da genitália e a região da barriga<br />
dos porcos-espinhos são livres dessa proteção ou possuem pelos menos<br />
rígidos (os espinhos são pelos modificados)”, diz Luiz Pires, diretor do<br />
Zoológico de Bauru, no interior de São Paulo.<br />
Como pôde ser visto, é estratégia linguístico-discursiva do autor<br />
do texto marcar esse discurso do outro como forma de provar sua<br />
neutralidade diante do que está sendo dito, ou mar a origem do dis-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
765<br />
curso ou o direito autoral. Essa presença do discurso relatado também<br />
se presta para, mesmo sendo destacado no discurso (por aspas,<br />
por exemplo), marcar o argumento de autoridade. Assim, temos como<br />
efeito da utilização desse recurso, uma autenticidade, evidenciando<br />
que as palavras foram realmente proferidos pelo seu autor.<br />
Com análise dessas categorias no discurso da divulgação científica,<br />
pretendemos perceber como esse discurso (re)atualiza (se<br />
podemos dizer assim) o discurso da ciência. Assim, ao comentar o<br />
discurso científico, o divulgador (re)atualiza-o em outra ordem, a do<br />
senso comum, através de um gesto de interpretação.<br />
4. O texto de DC em sala de aula: implicações pedagógicas<br />
Assim afirmam os Parâmetros Curriculares Nacionais (BRA-<br />
SIL, 1998, p. 20-21):<br />
Interagir pela linguagem significa realizar uma atividade discursiva:<br />
dizer alguma coisa a alguém, de uma determinada forma, num determinado<br />
contexto histórico e em determinadas circunstâncias de interlocução.<br />
Isso significa que as escolhas feitas ao produzir um discurso não são<br />
aleatórias - ainda que possam ser inconscientes -, mas decorrentes das<br />
condições em que o discurso é realizado. Quer dizer: quando um sujeito<br />
interage verbalmente com outro, o discurso se organiza a partir das finalidades<br />
e intenções do locutor, dos conhecimentos que acredita que o interlocutor<br />
possua sobre o assunto, do que supõe serem suas opiniões e<br />
convicções, simpatias e antipatias, da relação de afinidade e do grau de<br />
familiaridade que têm, da posição social e hierárquica que ocupam. Isso<br />
tudo determina as escolhas do gênero no qual o discurso se realizará, dos<br />
procedimentos de estruturação e da seleção de recursos linguísticos.<br />
Com esse posicionamento dos PCNs, justifico o caráter heterogêneo,<br />
dinâmico e não transparente da linguagem. Dessa forma, se<br />
a pretensão da escola é a formação de sujeitos críticos e leitores proficientes<br />
dos mais variados gêneros discursivos, é preciso, então, que<br />
ocorra um trabalho que se volte para essas questões da linguagem, no<br />
intuito de perceber sua dinâmica, seu funcionamento.<br />
Concordamos com Bezerra (2005), quando afirma reconhecer<br />
que a escola sempre trabalhou com gêneros, até porque, na década de<br />
80, com a divulgação de algumas teorias linguísticas privilegiando o<br />
estudo do texto, os livros didáticos diversificaram e ampliaram ainda<br />
mais a sua seleção textual, destacando-se a presença de textos jorna-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
766<br />
lísticos (notícias, reportagens, entrevistas, propagandas etc.). No entanto,<br />
os seus ensinamentos eram restritos à observação e análise de<br />
aspectos estruturais ou formais dos textos. Ou seja, os textos eram<br />
usados como pretexto para o estudo da metalinguagem e classificação<br />
gramatical (identificação de verbos, retirada de adjetivos, categorização<br />
dos substantivos e pronomes etc.).<br />
Portanto, ao trazer o gênero discursivo DC para sala de aula<br />
de língua materna, acreditamos que alunos e professores, ao lerem e<br />
analisarem criticamente o seu discurso, podem perceber os delineamentos<br />
sociais que levaram à construção dos sentidos discursivos.<br />
Podem, assim, verificar como as práticas discursivas se processam<br />
numa dinâmica interacional, na qual os sentidos se constroem pela<br />
negociação entre os sujeitos e como esses têm suas ações motivadas<br />
ideologicamente.<br />
Além disso, o trabalho com a língua toma uma dimensão outra<br />
e mais significativa se este for desenvolvido partindo de uma<br />
perspectiva que trate das “características discursivas” (que aqui não<br />
abordamos de forma tão aprofundada), mas possível perfeitamente<br />
para a sala de aula e minimamente suficiente para o trabalho pedagógico.<br />
Assim, a título de exemplificação, vejo as questões abaixo<br />
como indagações que, de maneira geral, podem permitir que nossos<br />
alunos entendam as condições de produção e circulação desse gênero:<br />
a) Quem escreve (em geral) esse gênero discursivo?, b) Com que<br />
propósito?, c) Onde?, d) Quando?, e) Como?, f) Com base em que<br />
informações?, g) Como o enunciador obtém as informações?, h)<br />
Como o enunciador transmite essas informações?, i) Que estratégias<br />
o enunciador utiliza para transmitir as informações?, j) Que estratégias<br />
o leitor precisa para ler os textos de divulgação científica?, m)<br />
Para quem é dirigido esse gênero?, n) Por que o faz?, o) Onde o encontra?,<br />
p) Em que condições esse gênero pode ser produzido e pode<br />
circular na nossa sociedade?<br />
Dessa forma, possibilitar o trabalho com esse gênero textual é<br />
perceber que a língua não acontece artificialmente, com aulas “decorativas”<br />
de nomenclatura gramatical (metalinguagem). Pelo contrário,<br />
esse trabalho permitirá ao aluno o desenvolvimento de sua competência<br />
discursiva. Assim dizem os Parâmetros Curriculares Nacionais<br />
(BRASIL, 1998, p. 23):
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
767<br />
Nessa perspectiva, não é possível tomar como unidades básicas do<br />
processo de ensino as que decorrem de uma análise de estratos: letras/fonemas,<br />
sílabas, palavras, sintagmas, frases que, descontextualizados,<br />
são normalmente tomados como exemplos de estudo gramatical e<br />
pouco têm a ver com a competência discursiva. Dentro desse marco, a<br />
unidade básica do ensino só pode ser o texto.<br />
O que defendemos aqui é que é importante que os alunos saibam<br />
que, ao lerem o texto, não basta o domínio da sintaxe, a relação<br />
de elementos e a semântica. O significado dos signos é insuficiente,<br />
por si só, para a interpretação dos textos, daí a necessidade de os professores<br />
terem acesso a outras teorias, que versam sobre a linguagem<br />
para redimensionar seu trabalho na formação de leitores críticos de<br />
textos, sejam esses de qualquer natureza.<br />
E qual o perfil do leitor crítico que a escola pretende formar?<br />
Buscamos a resposta nas reflexões de Brandão (2001, p. 18):<br />
a) o leitor crítico não é apenas um decifrador de sinais, um decifrador<br />
da palavra (...) o leitor busca uma compreensão ativa (e não passiva)<br />
do texto, dialogando com ele, recriando sentidos implícitos, fazendo inferências,<br />
estabelecendo relações e mobilizando seus conhecimentos para<br />
dar coerência às possibilidades significativas do texto; (...) b) o leitor crítico<br />
é cooperativo, na medida em que deve ser capaz de construir o universo<br />
textual a partir das indicações linguísticas e discursivo-pragmáticas<br />
que lhe são fornecidas; c) o leitor crítico é produtivo, na medida em que<br />
trabalha o texto e se institui como um co-enunciador (...); d) o leitor crítico<br />
é, enfim, sujeito do processo de ler e não objeto, receptáculo de informações.<br />
É um sujeito que é capaz de estender o ato de ler para além<br />
da leitura da palavra, tendo no seu horizonte uma leitura de mundo (no<br />
sentido paulo-freiriano) que o leve, que o habilite a inteligir o contexto<br />
social, histórico que o cerca e nele atuar com cidadão.<br />
Dessa forma, nos textos de DC são perceptíveis as relações<br />
entre linguagem e sociedade, exigindo de nós, leitores, estratégias<br />
específicas para a realização de uma leitura crítica e eficiente desses<br />
textos. As reflexões desse estudo sinalizam para a possibilidade de<br />
um excelente trabalho de leitura nas aulas de língua materna, com o<br />
intuito de desenvolver e aprimorar a competência leitora de nossos<br />
alunos dos mais diversos gêneros discursivos disponíveis em nossas<br />
relações histórico-sociais.
5. Considerações finais<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
768<br />
Os reflexos da evolução a respeito dos estudos referentes aos<br />
gêneros discursivos (antecipados por Bakhtin há várias décadas) e as<br />
relações entre linguagem e sociedade são percebidos nos textos de<br />
DC, os quais constituem um gênero que mescla diferentes domínios<br />
discursos, ou seja, discursos advindos de diferentes áreas das ciências<br />
com o discurso jornalístico ou, ainda, com o discurso do cotidiano,<br />
com a finalidade de adaptar-se aos interesses e às necessidades<br />
sócio-históricas dos indivíduos.<br />
Considerando as palavras de Motta-Roth (2006, p. 145):<br />
A sala de aula de línguas talvez seja o melhor lugar para analisar,<br />
criticar e/ou avaliar as várias instâncias de interação humana de culturas<br />
localizadas, nas quais a linguagem é usada para mediar práticas sociais.<br />
Acredito que ensinar línguas é ensinar alguém a ser um analista do discurso,<br />
portanto creio que as discussões em sala de aula devem enfocar as<br />
práticas linguageiras em associação a ações específicas na sociedade.<br />
Somente a prática pedagógica nesses termos pode contribuir para o desenvolvimento,<br />
no aluno e no professor, da consciência crítica dos aspectos<br />
contextuais e textuais do uso a linguagem e, portanto, das competências<br />
linguísticas e discursivas, de modo a empoderar a todos nós que participamos<br />
da vida em sociedade.<br />
Dessa forma, o trabalho didático-pedagógico de leitura deve<br />
levar os alunos a perceberem que a composição dos gêneros, levando<br />
em conta todos os seus aspectos (verbais, não verbais, informações<br />
apresentadas ou omitidas, destaque dado a algumas mais do que às<br />
outras) é planejada de acordo com sua função social e seus propósitos<br />
enunciativos.<br />
Finalmente, esclarecemos que, trabalhar com os gêneros que<br />
os alunos têm contato no dia-a-dia não significa dizer que só estes<br />
sejam importantes. Pelo contrário, acredito que cabe à escola também<br />
aprimorar ou fazer conhecidos gêneros que, normalmente, não<br />
são do âmbito da experiência cotidiana dos alunos, visando ampliar<br />
seu universo de conhecimento. Julgamos interessante, pois, que as<br />
aulas possam levar o aluno a entender o funcionamento textual em<br />
sua produção de sentido; que apenas reconheça ou identifique os já<br />
existentes, mas também esteja apto a integrar, na sua prática de produção<br />
e recepção, novas modalidades discursivas.
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COMO SE PADECE NO PARAÍSO<br />
REPRESENTAÇÃO DA FIGURA MATERNA<br />
EM TRÊS FALAS<br />
1. Considerações Iniciais<br />
Lucineide Lima de Paulo (UFF; IFRJ)<br />
lucineide.paulo@ifrj.edu.br<br />
Os sujeitos, na interação, empregam a linguagem com diferentes<br />
intenções. Frequentemente, o objetivo é comunicar, ao outro,<br />
fatos vivenciados. Nessa tentativa de compartilhar acontecimentos,<br />
são narradas histórias que, em geral, apresentam traços comuns, isto<br />
é, elementos que a tornam mais ou menos prototípicas (por exemplo,<br />
uma complicação, um clímax etc.). Além disso, as narrativas permitem<br />
ao sujeito significar o mundo em que vive, caracterizando-o ou<br />
apenas nomeando-o de forma que, ao relatar, expresse sua visão sobre<br />
dado ponto. Essas maneiras de expressão constituem traços culturais<br />
que funcionam como uma forma de se reconhecer pertencente<br />
a um grupo determinado. Não se pode esquecer que, comumente, tais<br />
características são definidas por oposição às características de outros<br />
grupos sociais, como se se pudesse declarar: “sou a e ajo da forma a<br />
porque não sou do grupo b, onde se age da maneira b”. A questão relevante<br />
nessa classificação é evitar-se o estigma e o julgamento por<br />
meio das oposições positivo x negativo.<br />
Por isso, buscamos neste trabalho discutir a construção das<br />
identidades maternas em três mulheres com cerca de 50 anos de idade,<br />
indagando a elas sobre o significado de ser mãe e incentivando-as<br />
a narrar como foi o parto do primeiro filho. Buscamos, com isso, analisar<br />
as falas para distinguir como construíram suas próprias identidades<br />
de mãe e como se manifestam em relação ao serviço médico<br />
prestado no parto do primeiro filho. Assim, distanciadas temporalmente<br />
do acontecimento narrado, testamos a idealização do momento,<br />
cujos pontos negativos presumíamos ver apagados, mas que na<br />
verdade foram mencionados com ênfase. Além disso, comprovamos<br />
o que Labov já verificara: ao contar experiências pessoais, as infor-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
772<br />
mantes se envolvem emocionalmente e passam a controlar menos a<br />
fala, sendo, portanto, mais espontâneas.<br />
2. Narrativa – um enfoque sociointeracionista<br />
Há uma maneira muito comum de se empregar a linguagem<br />
para interagir: contando histórias. Por meio da narrativa, o ser humano<br />
é capaz de significar o mundo em que vive, suas experiências,<br />
a si próprio. Contam-se histórias com diferentes finalidades, como<br />
informar, divertir, argumentar, expressar sentimentos. Espera-se, entretanto,<br />
que tenham certo efeito de suspense ou surpresa e um fechamento<br />
qualquer (FINNA, 2009, p. 120). Isso, grosso modo, define<br />
a narrativa.<br />
3. Narrativas<br />
Ao narrar, o indivíduo organiza acontecimentos passados, indicando<br />
uma sequência, temporal ou causal. Essa, aliás, é a característica<br />
básica para um texto ser assim considerado: apresentar ordem<br />
temporal ou sequencialidade.<br />
A forma narrativa seria, assim, uma forma de prática social estruturadora<br />
não só do discurso, mas também das relações sociais, constituindo-se<br />
em um mecanismo rotineiro de intelecção – socialmente aceitável<br />
e respondendo a intenções, audiências e contextos específicos – sobre<br />
quem somos, sobre quem são os outros e sobre o que nós e eles fazemos<br />
(FABRÍCIO; BASTOS, 2009, p. 42).<br />
Starosky (2009) retoma a clássica proposta de Labov (1972,<br />
p. 354-398) para explicar a constituição da narrativa. Haveria uma<br />
previsibilidade quanto às partes fundamentais (ou ao menos importantes)<br />
para se tomar um texto como uma narrativa canônica:<br />
Resumo:<br />
trecho no qual há uma síntese do tema, funcionando como<br />
uma apresentação, uma introdução da história;<br />
Orientação:<br />
fragmento no qual há uma contextualização, isto é, a localiza-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
773<br />
ção espacial e temporal da história, além das personagens envolvidas<br />
e a própria situação;<br />
Ação complicadora:<br />
orações nas quais se encontra o clímax;<br />
Avaliação:<br />
comentários extras nos quais são descritos os estados psicológicos<br />
das personagens e, também, notas explicativas ou comparativas<br />
por parte do narrador. Na avaliação, pode estar explicitado<br />
o objetivo da história;<br />
Resultado ou resolução:<br />
apresentação do final da história, de forma que a tensão criada<br />
na ação complicadora se desfaça ou reduza;<br />
Coda:<br />
parte em que se anuncia o fim da história, por exemplo, com<br />
um pequeno resumo, de forma que se faça uma ligação da<br />
narrativa com o momento presente.<br />
É importante ressaltar que essa ordem não é fixa e que nem<br />
todos os elementos são imprescindíveis. Para Labov (apud STA-<br />
ROCKY, 2009, p. 103), apenas a ação complicadora é essencial, já<br />
que definiria o caráter narrativo de um texto. Nas palavras de Finna<br />
(2009, p. 118), essa ação complicadora constitui-se de um tipo de<br />
ruptura ou distúrbio no decorrer normal dos eventos, o que provocará<br />
uma reação ou uma tentativa de reajuste. A autora também menciona<br />
que nas histórias prototípicas está presente um objetivo convergente,<br />
baseada na interpretação do narrador seja quanto às personagens, seja<br />
quanto a eventos, ou mesmo a estados. Em outras palavras, ao se<br />
contar uma história, deve-se ter um ponto, um motivo para reproduzi-la<br />
– ao qual se deve conceder destaque.<br />
A estrutura narrativa, portanto, é composta por elementos<br />
fundamentais e por outros apenas acessórios. Poder-se-ia formular<br />
uma proposta simplificada do modelo de narrativa de Labov da seguinte<br />
forma (FINNA, 2009, p. 121)<br />
a. Resumo: essa história é sobre o quê?<br />
b. Orientação: onde e quando?
c. Ação complicadora: e então... O que aconteceu?<br />
d. Resolução: e... Como terminou?<br />
e. Coda: como isso é relevante para o aqui e agora?<br />
f. Avaliação: e daí?<br />
4. Identidades nas Narrativas<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
774<br />
Narrar envolve diversos aspectos além de uma história a ser<br />
contada: há a manifestação de uma postura, de uma forma de ver o<br />
mundo, de como se posicionar diante do outro e de si mesmo. A língua,<br />
por si só, já é reveladora de como as pessoas encaram conflitos<br />
e contradições próprias do sistema sócio-político, lembra Minayo<br />
(2008). As narrativas, portanto, não fugiriam à regra: manifestam os<br />
sujeitos e suas identidades. Os narradores constroem uma variedade<br />
de sentidos, articulando-os: por meio desses sentidos, manifestam a<br />
si e suas práticas sociais. Assim, seus valores culturais e julgamentos<br />
estarão presentes, explícita ou implicitamente.<br />
Já houve a crença de que a identidade de um indivíduo poderia<br />
ser determinada, descrita sem falhas. Essa era uma visão que tomava<br />
o sujeito como alguém único e livre para escolher. Entretanto,<br />
reconhece-se atualmente que o sujeito manifesta diferentes identidades,<br />
uma vez que, nos diferentes momentos em que interage, está assumindo<br />
diversas posições de sujeito, isto é, não se comporta como<br />
um ser imutável, mas é instável – apesar de estar dentro de uma previsibilidade.<br />
Por isso, o termo identidade já está marcado com o traço do<br />
pré-configurado, invariável, permanente – diferentemente dos sujeitos<br />
na realidade. Falar em identidade equivale a crer que o indivíduo<br />
se constitui de uma essência imutável. Assim, sugere-se o uso do<br />
termo identidades, que assinala o caráter múltiplo, plural dos sujeitos,<br />
os quais teriam à disposição algumas “posições de sujeito” com<br />
as quais se movimentariam em sociedade, ou o termo identificação,<br />
denotador de um processo contínuo de construção do sujeito.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
775<br />
Essa relação entre práticas sociais e narrativa se dá por meio<br />
de três fatores: estilos diferentes que deixam perceptíveis os recursos<br />
narrativos mais comuns, reelaboração dos papéis sociais e negociação<br />
dos sentidos (baseando-se em crenças, valores etc.).<br />
Isso ocorre porque o sujeito sempre apresenta traços culturais<br />
em sua postura, ainda que inconscientemente. Em outras palavras:<br />
um sujeito é capaz de revelar o comportamento social do grupo a que<br />
pertence, representando-o.<br />
Nas palavras de Woodward (2008, p. 17):<br />
A representação inclui as práticas de significação e os sistemas simbólicos<br />
por meio dos quais os significados são produzidos, posicionandonos<br />
como sujeito. É por meio dos significados produzidos pelas representações<br />
que damos sentido à nossa existência e àquilo que somos.<br />
Além disso tudo, não se pode esquecer que a identidade é parte<br />
de um composto: ela não se constitui sozinha, mas somente a partir<br />
da diferença. O sujeito categoriza, classifica, etiqueta um elemento<br />
a partir do que ele é, mas também a partir do que ele não é.<br />
5. Leitura das identidades latentes nas narrativas<br />
É possível distinguir um sujeito com traços bem delineados<br />
por trás do narrador. Isso se dá porque, ao construir a história, o narrador<br />
deixa transparecer seu sistema de valores, sua visão de mundo,<br />
sua forma de se relacionar com o mundo e com o outro, já que emprega<br />
uma espécie de “filtro cultural e afetivo”.<br />
Os falantes são, em geral, bons narradores e dominam estratégias<br />
que elevam o suspense, ou criam expectativa, prendendo a atenção<br />
do ouvinte. Um desses recursos é o emprego do discurso relatado.<br />
Haveria um efeito de realce ao provocar a suspensão das ações<br />
da história. Isso revelaria a performance do narrador, isto é, como o<br />
narrador conta a história, quais suas técnicas e meios de envolver o<br />
ouvinte com seu relato.<br />
Dessa forma, alguns narradores seriam portadores de um “estilo<br />
de alto envolvimento” (TANNEN, 1989 apud BASTOS, 2008, p.<br />
102), isto é, empregariam recursos (figuras de linguagem, imagens,
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
776<br />
repetições, rimas, diálogos, padrões rítmicos etc.) que tornariam suas<br />
narrativas atraentes, prendendo a atenção dos ouvintes, tal qual uma<br />
Sherazade.<br />
6. Metodologia: leitura de textos em Análise da Conversa<br />
6.1. As narrativas colhidas<br />
Para proceder à análise, realizamos minientrevistas com três<br />
falantes, no mês de agosto de 2009. Seguem as descrições (apenas<br />
uma letra identificará as entrevistadas):<br />
1. A.: 52 anos, casada, dona-de-casa, nunca trabalhou fora, nasceu<br />
no interior do estado do Pará e mudou-se para o estado do<br />
Rio de Janeiro em 1978, onde deu à luz três filhos (30, 28 e<br />
26 anos);<br />
2. B.: 51 anos, casada, dona-de-casa, trabalhou fora durante a<br />
juventude (por cerca de 12 anos), nasceu no Pará e mudou-se<br />
para o Rio de Janeiro aproximadamente em 1975. Deu à luz<br />
dois filhos (24 e 17 anos);<br />
3. C.: 52 anos, casada, dona de casa, trabalhou fora durante a<br />
juventude (por cerca de 15 anos), nasceu no Rio de Janeiro,<br />
onde deu à luz um filho (27 anos).<br />
Para colher os dados, procedemos da seguinte forma: individualmente<br />
abordamos as mulheres, às quais era explicado sucintamente<br />
o objetivo do encontro (uma pesquisa em que analisaríamos<br />
particularidades das histórias contadas, comparando experiências de<br />
vida). Optamos por revelar parcialmente o objetivo no início, deixando<br />
claro que se, ao final, fosse do interesse da entrevistada inutilizar<br />
a gravação, assim seria feito. Ao final, quando já estavam colhidos<br />
os dados, explicávamos com mais detalhes o ponto central da<br />
pesquisa e pedíamos autorização para o trabalho com as respostas.<br />
A seguir, a sequência de questões propostas às três participantes:<br />
a) O que significa ser mãe para a senhora?
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
777<br />
b) Como foi o nascimento do seu primeiro filho? (aqui, convidávamos<br />
a entrevistada a esmiuçar como ocorreu esse<br />
parto, que emoções e sentimentos teve etc.)<br />
c) Como foi o tratamento médico que você recebeu nesse<br />
parto?<br />
6.2. Notas sobre a transcrição<br />
Empregaremos, neste trabalho, alguns conceitos próprios da<br />
Análise da Conversa para dar tratamento adequado às gravações realizadas<br />
e posteriores transcrições e estudos. Para isso, recorremos a<br />
alguns autores brasileiros, que revisitaram teóricos como Tannen<br />
(1989) ou Jefferson (SACKS; SCHEGLOFF; JEFFERSON, 1974)<br />
(entre outros) em suas notações.<br />
Dividimos o texto em unidades, para torná-lo mais visível<br />
graficamente. Além disso, essa divisão em linhas permite ao analista<br />
distinguir padrões rítmicos e repetições nas falas. Gago (2002, p. 93)<br />
explica que unidades de construção de turno são unidades de fala<br />
constituídas por jatos de linguagem.<br />
Para representar, na escrita, o discurso produzido originalmente<br />
na modalidade oral, escolhemos manter a ortografia-padrão.<br />
Gago (idem) explica que há dois sistemas (não necessariamente excludentes):<br />
a escrita-padrão e a escrita modificada.<br />
Na escrita-padrão, opta-se por grafar as palavras obedecendo<br />
a um registro da língua tido como padrão. Já na escrita modificada,<br />
busca-se indicar, por meio de algumas convenções, os detalhes da<br />
pronúncia (“pra num chegá atrasadu” – por exemplo).<br />
Como nosso objetivo, neste trabalho, não recai sobre formas<br />
de se expressar, mas sobre representações sociais – para cujo estudo<br />
pouco interferem as variações – esclarecemos que os textos serão<br />
transcritos com o mínimo de sinais convencionais de transcrição (silêncios,<br />
alongamentos, ênfase, aceleração etc.). Entretanto, ressalvamos<br />
que, sendo relevante para a análise, será feita uma breve descrição<br />
de tal ou qual fator que tenha influenciado uma fala (como um<br />
silêncio mais longo ou risos).
7. Três pequenas entrevistas: ser mãe é...<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
778<br />
Nossa expectativa, ao optar por um tema subjetivo como a<br />
maternidade, era observar relatos que revelassem o alto envolvimento<br />
das entrevistadas com o assunto, tornando a narrativa mais fluente,<br />
uma vez que o próprio Labov já previra essa facilidade em discorrer<br />
sobre um tema, desde que atingisse o aspecto emocional. Além disso,<br />
optamos por fazer referência a um evento passado há muito tempo<br />
(o primeiro filho em mulheres na faixa dos 50 anos) para deixar<br />
virem à tona descrições romantizadas, em que a distância temporal<br />
influiria ao apagar ou minimizar a importância de acontecimentos<br />
desagradáveis ocorrido à época.<br />
Após as leituras, verificamos haver três eixos ordenadores de<br />
ideias, como três grandes motes, os quais serão discutidos em tópicos,<br />
a seguir.<br />
7.1. Nasci para ser mãe<br />
Em duas entrevistadas, observou-se a revelação de uma vocação<br />
para a maternidade.<br />
A entrevistada A apresenta a condição de mãe como a “mais<br />
importante” e esse status é de longa duração, pois o filho “vem pra<br />
gente (...) pra gente tomar conta o resto da vida”. Mais que isso, ser<br />
mãe, para A, é cuidar dos filhos: “isso basta”.<br />
Já B, direciona essa importância para o aspecto coletivo da<br />
família, pois afirma: “acho que a importância de ter filho / é construir<br />
uma família, né? / Depois ao longo do casamento / construir uma<br />
família”.<br />
Assim, observamos que ambas assumem um papel construído<br />
culturalmente: mulher nasceu para ser mãe e esposa. E há alegria<br />
nesse cumprimento de dever.
7.2. Ser mãe é padecer no paraíso<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
779<br />
As mães A e C, por um lado, e B, por outro, viveram partos<br />
de tipos diferentes: as primeiras deram à luz por parto normal no sistema<br />
público de saúde; a segunda, por cesárea com um médico conhecido,<br />
do ambiente de trabalho. Assim, a visão de sofrimento é<br />
distinta. Para A e C, houve longo sofrimento antes de ir ao hospital e<br />
mesmo depois de dar entrada no sistema público de saúde, e tratamento<br />
inadequado ao chegar ao serviço médico. Entretanto, A faz<br />
questão de mencionar que o momento do nascimento desse filho foi<br />
especial e todo o sofrimento foi relegado a segundo plano diante da<br />
felicidade do primeiro bebê.<br />
A revela seu sofrimento durante a narrativa: “comecei a sofrer<br />
dor às quatro horas da manhã”; somente “uma hora da tarde a vizinha<br />
me levou pro hospital”; e “quando deu umas seis horas da tarde<br />
nasceu a minha primeira filha”. A ideia do sacrifício também está<br />
perceptível na doação materna, na contínua e infindável dedicação:<br />
“esse filhão essa filhona que vem pra gente/ o resto da vida/ pra gente<br />
tomar conta o resto da vida”. Entretanto, se A declara ter sofrido<br />
muito, também ameniza a importância dessa dor. A respeito do momento<br />
em que foi levada ao hospital, conta: “eu já estava com muitas<br />
dores/ mas dor... dor do amor”, ou quando comenta o atendimento<br />
ruim que recebeu: “foi horrível porque a enfermeira me tratou mal” e<br />
acrescenta, ao final, após uma pausa: “mas depois pa... tudo passou/<br />
depois ficou muito bem”. Acreditamos ver, nesse gesto de reduzir o<br />
impacto negativo do parto, uma tentativa de mostrar-se feliz com a<br />
tarefa que lhe foi destinada, apesar de esta lhe causar certo martírio:<br />
a maternidade.<br />
Da mesma forma, C relata seu sofrimento. Ao responder à<br />
questão “Como foi o nascimento do seu primeiro filho”, declara rapidamente:<br />
“Foi bom não”: “comecei a passar mal cedo/ umas oito<br />
horas da manhã / Cheguei no hospital às duas horas da tarde/ Fiquei<br />
até onze e meia da noite com dor”. Diferentemente de A, que narra a<br />
história e acrescenta os horários, intercalando-os no fluxo narrativo,<br />
C inicia seu relato com a sequência de horários organizada. Essa<br />
forma de introduzir sua história situa o ouvinte e cria certa sensação<br />
de suspense, como que a fazer o outro pensar: “o que terá ocorrido
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
780<br />
nesse meio tempo, já que as dores do parto começaram às oito da<br />
manhã e o bebê nasceu quase meia-noite?”. Seu relato é cronológico<br />
e, empregando um recurso que busca envolver o ouvinte, o discurso<br />
relatado, cita o mau tratamento recebido: em certo momento, percebeu<br />
que, apesar da hemorragia que sofria, não havia seu tipo sanguíneo<br />
anotado no prontuário, pois o próprio médico a inquiriu a respeito:<br />
“Aí o doutor até no final / Na minha ficha não tinha / Perguntou o<br />
tipo do meu sangue / A senhora sabe o tipo do seu sangue / Eu falei<br />
sei / Ah se não passar a hemorragia / nós vamos ter que / vai ter que<br />
tomar o sangue”. C chega mesmo a mencionar que havia outras parturientes<br />
que, também em recuperação, a convidavam para caminhar:<br />
“As mulheres lá / Vamos passear / Vamos comer maçã / Que comer<br />
maçã nada / Eu quero deitar / Quero descansar / Aquelas mulheres lá<br />
/ Estão acostumadas a ter filho”. E aqui ainda observamos uma tentativa<br />
de construir uma identidade para tais mulheres que “estão acostumadas<br />
a ter filho” e, por isso, teriam mais disposição.<br />
Verificamos assim que a experiência de dar à luz um filho,<br />
para essas duas informantes, foi traumática. A procura minimizar esse<br />
sofrimento, procedimento diferente de C, que não oculta sua insatisfação<br />
com o serviço público.<br />
Por outro lado, B, beneficiada pelo acompanhamento de um<br />
obstetra conhecido, esteve tranquila, pois agendou-se o nascimento<br />
do bebê para dia 26 de dezembro, permitindo à gestante dirigir-se à<br />
maternidade sem dores: “Eu tive cesárea porque não tinha passagem<br />
/ aí o médico marcou tudo direitinho / aí eu passei o Natal em casa”.<br />
7.3. Amo meu filho<br />
Um traço comum às informantes A e B foi a menção ao amor<br />
sentido pelo filho, ainda que não fosse o tópico trazido pelo entrevistador.<br />
A, já na segunda unidade de fala, declara que “ser mãe é fruto<br />
do amor”. E mantém essa visão amorosa em outras unidades: na “dor<br />
do amor” e na revelação emocionada (momento em que a voz ficou<br />
embargada e os olhos marejados) de como se sentiu depois do parto,<br />
ao dizer que “eu chorei muito de emoção/ quando ela nasceu / de
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
781<br />
tanta alegria”. Ao final da entrevista, quando observa que as três<br />
perguntas já foram feitas e acredita que não há mais o que relatar,<br />
procura encerrar sua exposição com “isso me causou muita alegria”.<br />
Essa declaração de amor e felicidade também esteve presente<br />
na fala de B, por exemplo, no uso diminutivo ao se referir à filha. A<br />
tentativa de encerramento é mais significativa para essa notação:<br />
“Mas foi tudo bem / Fiquei feliz com a chegada da minha filha /<br />
Como eu sou feliz até hoje com ela / Minha ( ) / Eu adoro minha filha<br />
/ É isso”.<br />
8. Considerações finais<br />
Todas as três informantes produziram narrativas com presença<br />
de clímax, coda, apresentação do contexto, o que indica que,<br />
mesmo sob uma situação tensa (entrevista gravada para pesquisa),<br />
são capazes de conduzir uma narrativa, envolvendo o ouvinte, buscando<br />
revelar com clareza o que sentiram e viveram, seja por um relato<br />
marcado cronologicamente, seja pela redundância presente em<br />
algumas unidades.<br />
Observamos tentativas de reparo mais frequentemente ligadas<br />
à busca de um dado na memória, que por considerar haver erros na<br />
fala, haja vista a narrativa fazer referência a um fato ocorrido há<br />
mais de vinte anos.<br />
B, em certo momento, relata que “O ginecologista era nossomeu<br />
conhecido, né?”, optando por não se expressar no plural (talvez<br />
incluindo o marido), mas mantendo o singular. Esse é um reparo prototípico.<br />
Entretanto, essa mesma informante, em alguns momentos,<br />
busca ganhar tempo com a inserção de “aí”, no início das unidades<br />
(demarcando um novo parágrafo ou etapa do acontecimento relatado),<br />
ou apenas mantendo o silêncio para tentar rememorar um fato.<br />
Como nessas entrevistas não houve interação, consideramos que as<br />
pausas estavam mais ligadas à organização do pensamento do que a<br />
um sentido que o sujeito quisesse atribuir à fala – como pode ocorrer<br />
em conversas espontâneas (por exemplo, para ironizar).
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
782<br />
Por fim, constatamos que a imagem de mãe ainda prevalece<br />
como a da mulher que se sacrifica, que sofre, abdicando de si pelo filho.<br />
Entretanto, ressalte-se que essa renúncia é altruísta, pois mesmo<br />
vivendo tais situações, ser mãe é rir e chorar, é amar, é ser feliz. Assim,<br />
cremos que a imagem romantizada do primeiro filho nas descrições<br />
dessas mães e de seus papeis quanto à criação/ educação se dá,<br />
principalmente, pelo afeto que nutrem, mas também por estarem distanciadas<br />
temporalmente do momento focalizado.<br />
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COMPONENTES ESTRUTURAIS<br />
DOS REPERTÓRIOS DE UMA OBRA LEXICOGRÁFICA<br />
Valéria Cristina de Abreu Vale Caetano (UERJ)<br />
valeriacristinacaetano@yahoo.com.br<br />
Neste capítulo do livro intitulado Curso Básico de Terminologia,<br />
a autora Lídia Almeida Barros, estuda as obras lexicográficas<br />
e terminográficas do ponto de vista de sua organização interna, ou<br />
seja, dos seus três componentes estruturais: a macroestrutura, a microestrutura<br />
e o sistema de remissivas.<br />
1. A macroestrutura<br />
Por macroestrutura entende-se a organização interna de uma<br />
obra lexicográfica ou terminológica e está relacionada às características<br />
gerais do repertório.<br />
Geralmente, todos os dicionários apresentam logo nas primeiras<br />
páginas uma introdução, texto fundamental que expõe ao leitor as<br />
características da obra, os critérios adotados para sua elaboração, seu<br />
público-alvo, seus objetivos, informações básicas sobre o domínio<br />
especializado cuja terminologia é tratada na obra. Também constam<br />
as abreviações, símbolos utilizados e outros elementos que se considere<br />
de importância para a compreensão dos dados veiculados no repertório.<br />
A lista de entradas, conjunto de unidades linguísticas descritas<br />
nos verbetes, constitui a nomenclatura.<br />
Os verbetes reúnem os dados relativos à unidade lexical ou<br />
terminológica descrita e compõem pelo menos dois elementos: entrada<br />
(unidade lexical ou terminológica que encabeça um verbete) e
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
786<br />
o enunciado lexicográfico/terminográfico (informações fornecidas<br />
sobre ela).<br />
1.1. Ordem Alfabética Contínua ou Descontínua<br />
Na ordem alfabética contínua, a sequência não leva em conta<br />
os espaços em branco, nem os caracteres não alfabéticos ou sinais<br />
diacríticos, tais como apóstrofo, hífen, cedilha, til, acentos diferenciais<br />
e outros.<br />
Alguns terminógrafos preferem a sequência descontínua, que<br />
se caracteriza pelo fato de que o espaço em branco precede sinais<br />
como apóstrofo, hífen, dois pontos etc. que, por sua vez, precedem a<br />
letra (AUGER & ROUSSEAU, 1978, p. 43).<br />
Ordem alfabética contínua<br />
galinha galinha<br />
galinha-arrepiada galinha-arrepiada<br />
galinha-choca galinha-choca<br />
galinha-d’água galinha-d’água<br />
galinha-da-guiné galinha-d’angola<br />
galinha-da-índia galinha-da-guiné<br />
galinha-d’angola galinha-da-índia<br />
Ordem alfabética descontínua<br />
galinha-da-numídia galinha-da-numídia<br />
galinha-do-mato galinha-do-mato<br />
As diferenças de ordenamento acima se dão pelo fato de que<br />
na ordem contínua o apóstrofo e o hífen são ignorados e somente a<br />
sequência alfabética é considerada. Na descontínua, apóstrofo tem<br />
precedência em relação à letra.
1.2. O Fechamento da Cadeia Interpretante<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
787<br />
As definições devem veicular as informações necessárias para<br />
a total compreensão do conteúdo semântico-conceitual da entrada.<br />
Porém, nem sempre elas são capazes de suprir todas as necessidades<br />
de decodificação, pois, às vezes, nelas são empregadas unidades lexicais<br />
desconhecidas do leitor. Neste sentido, coloca-se a questão do<br />
fechamento do texto lexicográfico ou terminográfico, isto é, da decodificação,<br />
por meio da macroestrutura, de todas as unidades lexicais<br />
ou terminológicas inscritas na definição.<br />
Em medicina, os termos próprios dessa área do saber são frequentemente<br />
descritos por enunciados definicionais que contêm termos<br />
da biologia. Se o terminólogo decidir pelo tratamento dos termos<br />
da biologia, estará adotando um sistema fechado. Caso opte por<br />
definir apenas os termos específicos da medicina, remetendo o leitor<br />
a outros repertórios, estará optando pelo sistema aberto.<br />
O sistema aberto é considerado como o mais viável, sobretudo<br />
porque um dicionário não existe sozinho. Ele faz parte de um<br />
conjunto de repertórios mais vasto, capaz de suprir as necessidades<br />
de compreensão geral de um conjunto terminológico específico.<br />
As necessidades de circulação e de recuperação de dados podem<br />
ainda ser satisfeitas no interior do próprio dicionário, por meio<br />
de informações expressas no enunciado definicional. O vocabulário<br />
para exercer a função pedagógica do discurso terminológico, pode<br />
preencher as lacunas provocadas pela ausência na macroestrutura das<br />
unidades linguísticas cuja compreensão é difícil, usando alguns subterfúgios.<br />
Exemplo:<br />
Em um verbete procura-se garantir o fechamento do texto<br />
terminográfico dentro dos limites da própria definição, evitando uti-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
788<br />
lizar apenas o termo científico. A compreensão é facilitada pelo emprego<br />
de uma metalinguagem mais simples, de fácil entendimento.<br />
2. A microestrutura<br />
Entende-se por microestrutura a organização dos dados contidos<br />
no verbete, ou melhor, o programa de informações sobre a entrada<br />
disposto no verbete. Três elementos devem ser levados em<br />
consideração, quando da distribuição dos dados na microestrutura:<br />
a) o número de informações transmitidas pelo enunciado lexicográfico/terminográfico;<br />
b) a constância no programa de informações em todos os<br />
verbetes dentro de uma mesma obra;<br />
c) a ordem de sequência dessas informações.<br />
O tipo e a organização dos dados variam de um dicionário para<br />
outro, no entanto devem ser constantes no interior de uma obra. O<br />
programa de informações previamente estabelecido varia de acordo<br />
com o tipo de unidade linguística descrita, mas deve ser aplicável a<br />
todos os verbetes cujas entradas sejam de mesma natureza. Esse programa<br />
constante de informações é também chamado de microestrutura<br />
básica e é um dos elementos responsáveis pela homogeneidade<br />
do repertório.<br />
2.1. Paradigmas Mínimos e Possíveis da Microestrutura<br />
O enunciado lexicográfico ou terminológico se organiza segundo<br />
Barbosa (1990, p. 230), em três macroparadigmas, três grandes<br />
zonas semântico-sintáticas (paradigma informacional, definicio-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
789<br />
nal e pragmático) que se compõem, por sua vez, de microparadigmas.<br />
Os microparadigmas variam em qualidade e quantidade, conforme<br />
a natureza da obra lexicográfica, seus objetivos, limites e público-alvo.<br />
2.2. A Entrada<br />
Em Lexicografia, a entrada é também chamada endereço e<br />
em Terminologia, vedeta. A unidade linguística que recebe um tratamento<br />
lexicográfico ou terminográfico é chamada unidade de tratamento.<br />
Do ponto de vista gráfico, a entrada é normalmente escrita<br />
em negrito e é separada do corpo do enunciado lexicográfico ou terminológico.<br />
O signo linguístico em posição de entrada deve sempre<br />
começar por uma letra minúscula.<br />
A entrada deve sempre se apresentar em sua forma não marcada:<br />
no infinitivo, se for um verbo; no masculino, quando se tratar<br />
de um substantivo ou um adjetivo. Os termos complexos devem conservar<br />
sua ordem sintagmática normal.<br />
A entrada é um modelo de realização de palavras-ocorrência e<br />
representa, assim, suas variantes. Ela é a síntese morfossintática e léxico-semântica<br />
das ocorrências, é o lema, a forma de base, ou seja, a<br />
estrutura escolhida segundo as convenções lexicográficas e terminográficas<br />
para representar uma palavra.<br />
2.3. A Definição<br />
O enunciado que descreve o conteúdo semântico-conceitual<br />
de uma unidade lexical ou terminológica em posição de entrada de<br />
um verbete é chamado definição ou enunciado definicional. É um<br />
conjunto de informações que são dadas sobre a obra.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
790<br />
Há três tipos fundamentais de definições, os quais condizem<br />
com os tipos básicos de obras lexicográficas e terminográficas (o dicionário<br />
de língua, a enciclopédia e o dicionário terminológico):<br />
a) definições lexicográficas caracterizam-se pela predominância<br />
de informações linguísticas, tratando mais de “palavras”;<br />
b) definições enciclopédicas se ocupam mais de referentes e<br />
de descrição de “coisas”;<br />
c) definições terminológicas trazem predominantemente conhecimentos<br />
formais sobre “coisas” e fenômenos (Finatto, 2001b,<br />
p.120).<br />
2.3.1. A definição em um dicionário de língua geral<br />
As informações veiculadas pelas definições em um dicionário<br />
de língua são de natureza linguística. No verbete do dicionário devem<br />
constar todas as acepções da unidade lexical definida. Portanto,<br />
o dicionário de língua define a unidade lexical em seus sentidos denotativos,<br />
conotativos, idiomáticos e especializados.<br />
2.3.2. A definição em vocabulários técnicos, científicos e<br />
especializados<br />
Enquanto um dicionário de língua procura apresentar de forma<br />
exaustiva todos os sentidos de uma unidade lexical dentro de um<br />
sistema linguístico, uma obra terminográfica se atém exclusivamente<br />
ao conteúdo específico de um termo em um dado domínio. É preciso<br />
levar em conta ao se elaborar definições de um dicionário terminológico<br />
elementos objetivos e subjetivos que determinam as condições
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
791<br />
de produção. O repertório especializado é um projeto inserido em um<br />
contexto social.<br />
2.3.2.1. Adequação ao domínio<br />
A definição de uma unidade terminológica deve adaptar-se ao<br />
domínio da experiência ao qual o conceito descrito pertence. Por exemplo,<br />
o termo jogo pode ser definido de maneiras diferentes de<br />
acordo com o significado que adquire em cada domínio. É o caso de<br />
jogo em música (domínio mais amplo) e em técnica instrumental<br />
(subdomínio da música).<br />
2.3.2.2. Estrutura formal e organização conceitual do<br />
enunciado definicional<br />
A definição é um enunciado que descreve e explica um termo,<br />
fazendo parte de uma predicação definicional composta de um sujeito<br />
(a entrada) e de um predicado (definição). Estes são ligados por<br />
uma cópula normalmente não explícita. A primeira palavra da definição<br />
(descritor) pode ser de natureza metalinguística ou funcionar<br />
como elemento de inclusão lógico-semântica. As cópulas podem ser<br />
metalexias ou arquilexemas (POTTIER, 1965, apud BARROS,<br />
2004, p. 39).<br />
Expressões como tipo de, ação de, espécie de, coisa, pessoa<br />
etc. são metalexias. Em contrapartida, assento (para designar cadeira)<br />
é um arquilexema.<br />
A constância da metalinguagem e da organização semântico-<br />
conceitual dos enunciados definicionais é importante para a homogeneidade<br />
da obra. A definição deve ser elaborada respeitando alguns<br />
princípios:
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
792<br />
· não se deve utilizar cópulas do tipo diz-se de, significa (tal<br />
termo) é, é quando, trata-se de, indica, (essa palavra)<br />
quer dizer, esse termo designa etc.;<br />
· a definição não deve conter em seu enunciado o termo definido;<br />
· deve ser completa sem veicular dados supérfluos e inúteis;<br />
· deve manter com o termo definido uma relação de univocidade;<br />
· a definição deve se adaptar ao público-alvo;<br />
· quando houver a possibilidade de redigir a definição na<br />
forma afirmativa, não utilizar a forma negativa;<br />
· palavras de sentido vago, ambíguo ou figurado não devem<br />
ser empregadas.<br />
Uma minuciosa análise semântica do termo-entrada, do público-alvo<br />
e dos propósitos da obra dará subsídios para a elaboração de<br />
uma definição que exprima com exatidão os atributos semânticoconceituais,<br />
não dando margem a ambiguidades e sendo adequada às<br />
particularidades do repertório em projeto.<br />
2.3.2.3. Gênero próximo + diferenças específicas<br />
Para o filósofo grego Aristóteles, o gênero próximo é que só<br />
tem abaixo de si espécies; o gênero distante é o que recobre outros<br />
gêneros de menor extensão.<br />
A fórmula proposta gênero próximo + diferenças específicas<br />
permitem elaborar uma definição que descreve o termo- entrada co-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
793<br />
mo uma espécie única no gênero. Como exemplo, a autora apresenta<br />
definições adaptadas de termos que designam os diferentes tipos de<br />
impostos existentes no Brasil (SANDRONI, 1994). As definições<br />
deixam clara a condição de gênero próximo do termo imposto em relação<br />
a seus hipônimos (diferentes tipos de impostos).<br />
A definição terminológica distribui a carga conceitual no enunciado<br />
definicional de modo que se identifique o termo como parte<br />
de um conjunto. Ao mesmo tempo em que o distingue dos outros<br />
termos pertencentes a esse mesmo conjunto.<br />
A possibilidade de elaboração de definições terminológicas<br />
que sigam o modelo gênero próximo + diferenças específicas é limitada.<br />
Esse modelo é funcional somente em sistemas extremamente<br />
coerentes.<br />
2.3.2.4. Tipos de definições<br />
As definições podem ser classificadas de acordo com o tipo<br />
de informações que elas transmitem, o qual depende da natureza linguística<br />
da palavra escrita. Elas podem ser substanciais, relacionais,<br />
morfossemânticas, nominais, etimológicas, acidentais, definição por<br />
compreensão ou por extensão. Em Terminologia, distingue-se, ainda,<br />
a definição da descrição e da explicação.<br />
· Definições substanciais e relacionais<br />
As definições substanciais “exprimem a substância do termo<br />
definido” (REY-DEBOVE, 1971, apud BARROS, 2004, p. 205) e<br />
estas se aplicam “a quatro categorias (gramaticais)”, sobretudo ao<br />
substantivo e ao verbo. São as mais empregadas nas obras terminográficas.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
794<br />
As definições relacionais exprimem a relação que une o termo<br />
definido a outra palavra que o qualifica. Colocam em evidência<br />
as relações que os adjetivos e os advérbios mantêm em língua com<br />
outras unidades lexicais.<br />
· Definições morfossemânticas, nominais e etimológicas<br />
As definições morfossemânticas têm como base a estrutura<br />
formal da unidade linguística descrita. Baseiam-se na equivalência<br />
formal. É preciso que o terminólogo tome cuidado para não cair no<br />
que se chama definição nominal, ou seja, na definição que não respeita<br />
o princípio da não circularidade.<br />
A definição etimológica procede do ponto de vista formal de<br />
maneira semelhante à morfossemântica, com enfoque, entretanto, no<br />
significado original da palavra; procura resgatar o sentido que os elementos<br />
morfológicos constituintes da unidade linguística tinham<br />
no momento de criação desta última.<br />
· Definições por compreensão e por extensão<br />
A definição por compreensão é estabelecida com base em<br />
uma relação de inclusão semântico-conceitual que descreve o termo<br />
por meio de traços distintivos (características). É ideal para a elaboração<br />
de vocabulários técnicos, científicos e especializados e segue o<br />
modelo clássico gênero próximo + diferenças específicas. Seu objetivo<br />
maior é atingir o princípio de monorreferencialidade.<br />
A definição por extensão (genérica) consiste “em enumerar<br />
todas as espécies que estão no mesmo nível de abstração ou todos os<br />
objetos individuais que pertencem ao conceito definido” (FELBER,<br />
1984, apud BARROS, 2004, p. 137).<br />
· Diferença entre definição, descrição e explicação
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
795<br />
“Enquanto a definição deve explicar todos os traços pertinentes<br />
de significação (definição linguística) ou todos os traços conceituais<br />
pertinentes, a descrição pode acumular traços pertinentes e traços<br />
característicos não pertinentes” (REY, 1977, apud BARROS,<br />
2004, p. 42).<br />
A definição organiza os atributos semântico-conceituais de<br />
um termo com vistas a evidenciar o seu lugar em um sistema unificado<br />
de conceitos e a explicação é a descrição do conceito visto de<br />
maneira isolada.<br />
· Outros elementos importantes<br />
Béjoint salienta a necessidade de se elaborar, para cada categoria<br />
de termos, um modelo de definição que agruparia os traços<br />
mais importantes, assegurando, desta forma, a exaustividade e a precisão<br />
(BÉJOINT, 1997, apud BARROS, 2004, p. 22)<br />
Uma relação unívoca deve estabelecer-se entre a definição e o<br />
termo definido.<br />
“Tipologia de uma obra lexicográfica e tipologia de definição<br />
situam-se numa relação determinante/determinado” (BARBOSA,<br />
1995, p. 1).<br />
Para Béjoint, a definição terminológica é uma descrição funcional<br />
do conceito (BÉJOINT, 1997, apud BARROS, 2004, p. 23).<br />
3. O sistema de remissivas<br />
3.1. Funções e Objetivos<br />
O sistema de remissivas (rede de remissivas, referências cruzadas)<br />
procura resgatar as relações semântico-conceituais existentes
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
796<br />
entre as unidades lexicais ou terminológicas que compõem a nomenclatura<br />
de uma obra lexicográfica ou terminológica. Sua função é<br />
corrigir o isolamento das mensagens, ligando variantes, criando<br />
campos semânticos. Esse percurso orientado estrutura-se com base<br />
em duas direções principais:<br />
a) as relações semânticas que o termo de entrada mantém<br />
com os outros termos do domínio repertoriado;<br />
b) os usos específicos do termo no interior do universo em<br />
que está inserido (Krieger et al, 2001, p. 252).<br />
O sistema de remissivas pode estar presente na macroestrutura<br />
ou na microestrutura. Está presente em qualquer tipo de repertório,<br />
atribuindo-lhe uma homogeneidade maior, na qual as informações<br />
aparentemente compartimentadas se religam e constituem um todo.<br />
3.2. Limites e Critérios para o Estabelecimento do Sistema<br />
de Remissivas<br />
O fato de que a priori todas as unidades linguísticas que<br />
compõem a lista das entradas de um repertório mantêm relações semântico-conceituais<br />
entre si impõe um limite para o estabelecimento<br />
do sistema de remissivas.<br />
Os lexicógrafos e os terminógrafos devem definir critérios<br />
qualitativos e quantitativos para a organização desse sistema. Os critérios<br />
podem variar de acordo com o tipo de obra.<br />
3.3. Tipos de Remissivas<br />
Na macroestrutura, algumas entradas não são definidas e encabeçam<br />
um verbete que remete o leitor a um outro verbete, onde se
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
797<br />
encontra a informação completa. Na microestrutura, a remissiva pode<br />
assumir formas diversas, como V. (ver), q. v. (queira ver), cf.<br />
(confronte, compare), asterisco, negrito, número de série, símbolo de<br />
classificação, índice e outros.<br />
3.3.1. Remissiva ver<br />
Utiliza-se a remissiva Ver para dirigir o leitor a um verbete<br />
em que se encontram as informações que deseja. O emprego desse<br />
tipo de remissiva pode se dar em diversas direções:<br />
a) Para indicar ao consulente uma forma léxica mais adequada,<br />
preferível ou usual.<br />
b) Variantes: a remissiva é empregada para indicar os seguintes<br />
percursos da variante para a forma de maior aceitação; do regionalismo<br />
à forma de uso territorial mais amplo; do termo popular<br />
ao termo científico (dentro de um mesmo domínio); da expressão em<br />
linguagem familiar à expressão da norma culta; da forma arcaica à<br />
forma atualmente em uso.<br />
c) Da forma estrangeira para a vernácula: boutique|butique<br />
d) Elementos de fraseologismos ou adjetivos, para indicar<br />
locução ou lexia complexa a qual pertence.<br />
3.3.2. Queira ver e confronte<br />
A remissiva q. v. empregada para aconselhar o leitor a consultar<br />
um outro verbete para complementar as informações.<br />
O emprego de q.v. também se dá em situações em que a definição<br />
de uma unidade lexical, embora completa, não satisfaça às necessidades<br />
de elucidação exigidas pelo leitor.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
798<br />
Encontra-se, ainda, nos dicionários o uso de q. v. para orientar<br />
o leitor a consultar um verbete cuja entrada é uma variante ortográfica<br />
da unidade lexical procurada. Exemplo: electrocardiograma\ eletrocardiograma.<br />
A remissiva cf. também aconselha o leitor a consultar outro<br />
verbete, sem que esta consulta seja obrigatória ou absolutamente necessária.<br />
Seu objetivo é o de alertar para a existência de unidades lexicais<br />
semelhantes. Ex.: migração- emigração- imigração.<br />
No caso das unidades lexicais que são parônimas, é muito utilizada<br />
a remissiva cf. e o dicionário procura alertar o leitor para as<br />
semelhanças e diferenças.<br />
3.3.3. Asterisco<br />
O asterisco (*) tem por objetivo indicar ao leitor que aquela<br />
unidade linguística é entrada de um verbete e nele é definida. Um<br />
exemplo da utilização desse tipo de remissiva é fornecido pelo Dicionário<br />
de Semiótica de A. J. Greimas e de Joseph Courtès.<br />
1.1.1. Número de série e símbolo de classificação<br />
O número de série, entendido como um símbolo numérico<br />
que indica o lugar de um verbete na cadeia formada por todos os<br />
verbetes de um dicionário, tem por objetivo facilitar a remissão.<br />
Exemplo: 521. HBM Nacional: n p Ver: Horto Botânico do<br />
Museu Nacional (528). (BARROS, 1997, p. 601).<br />
Nos vocabulários sistemáticos, o número é frequentemente<br />
substituído pelo símbolo de classificação. O leitor é informado sobre<br />
o lugar que as unidades terminológicas ocupam no sistema de con-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
799<br />
ceitos, podendo encontrá-las facilmente e situá-las em um conjunto<br />
maior.<br />
1.1.2. Índice<br />
O índice alfabético é muito importante para a garantia da operacionalidade<br />
da obra.<br />
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
AUGER, P. e ROUSSEAU, L. et alii. Méthodologie de la recherche<br />
terminologique. Québec: Officiel du Quebec, 1978.<br />
BARBOSA, M. A. Considerações sobre a estrutura e funções da obra<br />
lexicográfica. In: Actas do Colóquio de Lexicologia e Lexicografia.<br />
Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, 1990, p. 229-241.<br />
BARROS, Lídia de Almeida. Curso básico de terminologia .São<br />
Paulo: USP, 2004.<br />
SANDRONI, Paulo. Novo dicionário de economia. [São Palo]: Record,<br />
1994.
COMPREENSÃO DE TEXTOS NARRATIVOS<br />
E ARGUMENTATIVOS DIALÓGICOS<br />
POR LEITORES DO ENSINO FUNDAMENTAL:<br />
RESULTADOS DA PESQUISA<br />
1. Introdução<br />
Antonia Valdelice de Sousa (UFC) 1<br />
licesousa@terra.com.br<br />
A pesquisa que ora apresentamos fundamenta-se em modelos<br />
que tratam de esclarecer o aprendizado da escrita de textos argumentativos<br />
e analisar como funcionam os textos narrativos, o processo de<br />
negociação, as marcas de argumentação, os graus de argumentatividade,<br />
as macrorregras de sumarização, as metarregras de coerência,<br />
as estratégias cognitivas, a metacognição, a retórica e uma visão geral<br />
da pesquisa acerca de leitura e escrita. Entre as versões mais difundidas,<br />
estão os modelos de Alliende (1990), Barthes (1970), Boissinot<br />
(1992), Cunningham (1990), Chambliss (1985), Charolles<br />
(1997), Dolz (1992), Golder e Coirier (1994), Kintsch e van Dijk<br />
(1983, 1985), Labov e Waletsky (1967), Nelson e Narens (1994), Perelman<br />
(1977), Schneuwly (1988).<br />
Nesta perspectiva, este trabalho procurou avaliar a compreensão<br />
de textos narrativos e argumentativos dialógicos por leitores do<br />
ensino fundamental, a partir da análise da macro e superestrutura<br />
desses tipos textuais, obtidos mediante a tarefa de reescritura.<br />
Sob este enfoque, propusemo-nos verificar experimentalmente,<br />
as hipóteses da pesquisa que serviram como diretrizes para a<br />
construção dos instrumentos do experimento, direcionaram os passos<br />
práticos da pesquisa e a demarcação dos limites da discussão que se<br />
segue.<br />
1 Doutora e Mestre em Linguística pela Universidade Federal do Ceará - UFC. Especialista em<br />
Língua Portuguesa pela Universidade Estadual do Ceará - UECE. Tem experiência em Linguística<br />
e Psicolinguística, com ênfase em Linguística Cognitiva e Linguística Aplicada. Pesquisa<br />
os seguintes temas: capacidade argumentativa, compreensão textual, tipos de texto,<br />
marcas de argumentação. Membro do grupo de pesquisa GELP-COLIN da UFC.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
801<br />
São objetivos específicos: a) verificar a compreensão leitora<br />
dos sujeitos avaliada com base na reconstrução da macroestrutura de<br />
textos narrativos e argumentativos dialógicos; b) observar as estratégias<br />
utilizadas pelos sujeitos, a partir da reescrita da macro e superestrutura<br />
dos textos; c) identificar as estratégias relacionadas aos esquemas<br />
de reconhecimento da macroestrutura e da organização global<br />
de textos narrativos e argumentativos dialógicos.<br />
Dessa forma, considerando-se que a análise de reescrituras<br />
produzidas pelos sujeitos para cada um dos textos argumentativos<br />
(narrativos e argumentativos dialógicos), utilizadas como instrumentos<br />
para avaliar a compreensão, deve ser uma atividade escolar utilizada<br />
por professores, como forma de avaliar a compreensão de materiais<br />
de leitura, por seus alunos, em quase todos os níveis de escolaridade,<br />
e considerando que a capacidade de identificar a organização<br />
global e reconstruir a organização da estrutura de um texto está relacionada<br />
à habilidade de reescrevê-lo, colocamos os seguintes problemas:<br />
a) o conhecimento mínimo do esquema canônico dos textos<br />
(TNA/TAD) proporcionará melhor compreensão das formas de estruturação<br />
dessas tipologias?; b) o esquema textual permite o uso de<br />
estratégias para a (re) construção da macroestrutura?; c) há diferença<br />
entre o desempenho leitor do aluno e o tipo de texto (narrativo ou argumentativo).<br />
Portanto, os problemas citados estão relacionados às<br />
questões de estudos e serviram como diretrizes na construção das hipóteses.<br />
Nesse sentido, com esses problemas em vista, procuramos verificar<br />
a validade das hipóteses relacionadas abaixo. Assim, temos<br />
como hipótese básica, verificar se os leitores proficientes, ao realizarem<br />
uma tarefa de reescritura, apresentam melhor desempenho quanto<br />
à recuperação da macroestrutura textual e quanto ao reconhecimento<br />
da organização global do texto narrativo do que do texto argumentativo<br />
dialógico, tendo em vista a maior explicitude da organização<br />
interna deste primeiro tipo de texto. Como hipóteses secundárias,<br />
acreditamos que: 1) o conhecimento mínimo do esquema canônico<br />
dos textos (TNA/TAD) será o fator determinante para uma melhor<br />
compreensão das formas de estruturação dessas tipologias; 2)<br />
existe um esquema textual para cada tipologia que deve ser atingido<br />
para que leitores independentes possam empregar as estratégias de
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
802<br />
leitura e (re) construir a macroestrutura; 3) a diferença entre o desempenho<br />
leitor do aluno e o tipo de texto (narrativo ou argumentativo<br />
dialógico) deverá ser demonstrada claramente, a partir de estratégias<br />
cognitivas utilizadas no processamento.<br />
2. Metodologia da pesquisa<br />
Este trabalho é o resultado de uma pesquisa experimental com<br />
estudantes do 9º ano do Ensino Fundamental, de uma escola particular,<br />
que atende a alunos de classe média de Fortaleza.<br />
Para obter os dados, realizamos a pesquisa em duas etapas<br />
distintas, antes das quais, selecionamos os textos e verificamos se os<br />
instrumentos eram adequados para testar a validade das hipóteses.<br />
Na primeira etapa, selecionamos os sujeitos da pesquisa, mediante<br />
a aplicação da técnica do Cloze, separando leitores proficientes<br />
de leitores não proficientes.<br />
Os resultados finais da aplicação do teste Cloze, permitiram a<br />
constituição de um grupo de sujeitos (S 01 a S 20) testados em um único<br />
momento. Desse modo, os vinte (20) sujeitos obtiveram entre<br />
60% e 70% de quantidade média de acertos. Por fim, estes resultados<br />
constatam que os sujeitos obtiveram o maior escore, com mesma faixa<br />
etária e a menor variação possível entre a faixa inicial e a final, permitindo,<br />
diante disto, a seleção de sujeitos para a execução da tarefa de<br />
reescritura.<br />
Importa destacar, para a nossa avaliação, que o resultado final<br />
da aplicação do teste Cloze indicou a habilidade dos sujeitos com nível<br />
independente.<br />
Na segunda etapa, buscamos verificar se os leitores proficientes,<br />
ao realizarem uma tarefa de reescritura, apresentam melhor desempenho<br />
quanto à recuperação da macroestrutura textual e quanto<br />
ao reconhecimento da organização global do texto narrativo do que
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
803<br />
do texto argumentativo dialógico, tendo em vista a maior explicitude<br />
da organização interna deste primeiro tipo de texto (TNA 2 /TAD 3 ).<br />
Nesta etapa, os sujeitos realizaram uma tarefa experimental para<br />
avaliar a compreensão de textos narrativos e argumentativos dialógicos<br />
nas produções lidas, a saber: a) leitura e reescritura de um texto<br />
narrativo; b) leitura e reescritura de um texto argumentativo dialógico.<br />
Para a composição da parte do corpus referente à reescritura,<br />
todos os alunos foram solicitados a ler os textos e reescrevê-los, formando<br />
um total de quarenta (40) reescrituras de textos narrativos<br />
(TNA) e quarenta (40) de textos argumentativos dialógicos (TAD).<br />
Para efeito de análise de resultados, entretanto, foram considerados<br />
apenas os vinte (20) leitores, ou seja, dez (10) de cada texto, selecionados<br />
com base na aplicação do Cloze.<br />
3. Análise do processo de compreensão de textos narrativos e argumentativos<br />
Os resultados mostram que, ao reescrever os textos, as macrorregras<br />
não foram apreendidas de forma homogênea por todos os<br />
sujeitos. Diante disso, acreditamos que a percepção destas macrorregras<br />
está condicionada à intenção comunicativa do autor, ao propósito<br />
da leitura, ao tipo de situação em que se processa a leitura e aos<br />
esquemas (estruturas abstratas, construídas pelo próprio indivíduo,<br />
para formar a sua teoria de mundo) do sujeito leitor. Tais condicionamentos<br />
e esquemas têm forte influência sobre a compreensão e,<br />
portanto, sobre a reescritura. Outrossim, de posse desses conhecimentos<br />
e das macrorregras, o sujeito leitor poderá compreender melhor<br />
as informações dos textos.<br />
De modo geral, os resultados relacionados à identificação<br />
dessas estratégias, apontam uma tendência maior de uso satisfatório<br />
dos textos TNAs em relação aos TADs. Neste caso, acreditamos<br />
que quanto maior for a compreensão, maior será a adequação da<br />
reescritura, pois o sujeito não pode reescrever aquilo que não co-<br />
2 Abreviaremos (TNA) para texto narrativo.<br />
3 Abreviaremos (TAD) para texto argumentativo dialógico.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
804<br />
nhece. Tal compreensão deve ser atribuída à habilidade de apreender<br />
a macro e superestrutura textual. Por sua vez, o baixo desempenho<br />
dos textos TADs ocorre, ainda, devido à ausência de um trabalho<br />
centrado nesta tipologia (TAD). Enfim, as ocorrências sinalizam<br />
que as estratégias podem ser desenvolvidas e até modificadas<br />
pela intervenção pedagógica, indicando, portanto, que essas estratégias<br />
não funcionam como norma para ordenar uma ação ou sequências<br />
de proposições, mas possibilitam avançar seu curso em<br />
função de critérios de eficácia textual, de intensificação e compreensão<br />
do que foi lido, de detecção das possíveis falhas de compreensão<br />
responsáveis pela construção de uma interpretação para o<br />
texto.<br />
Por outro lado, toda essa discussão pode nos conduzir à<br />
conclusão de que essas metarregras não dão conta, sozinhas, de todas<br />
as condições necessárias para um texto ser avaliado como bem<br />
formado. No entanto, para a construção do sentido de um texto,<br />
muitos elementos se entrelaçam e muitos caminhos são tomados<br />
para que o leitor consiga atingir o propósito de leitura e desenvolver<br />
habilidades inferenciais e argumentativas. Assim, tais habilidades<br />
estão associadas à capacidade de compreensão, pois só se fala<br />
daquilo que se compreende. Nesse sentido, tomando como exemplo<br />
a tarefa de reescritura proposta neste trabalho, os resultados demonstraram<br />
que os sujeitos leitores reescreveram apenas aquilo que<br />
eles compreenderam.<br />
Cumpre salientar, ainda, que com relação à superestrutura do<br />
texto (TAD), a consideração de aspectos superestruturais foi feita com o<br />
propósito de verificar a validade de uma das hipóteses apresentadas neste<br />
trabalho. No caso do texto (TAD), o esquema superestrutural proposto<br />
por Boissinot (1992) corresponde aos seguintes componentes mínimos:<br />
a) tese proposta (corresponde ao ponto de vista privilegiado no texto); b)<br />
tese refutada (indica um ponto de vista contrário ao da tese proposta); c)<br />
justificativa (corresponde aos argumentos, fatos, exemplos que fundamentam<br />
a tese proposta); d) conclusão (consiste na reafirmação da tese<br />
proposta mediante um argumento de caráter genérico). Por outro lado, a<br />
ordem seguida na realização textual desse esquema, pode ser descrita ainda,<br />
por evidência, justificativa e tese.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
805<br />
Dito isto, não devemos rejeitar as reescrituras com percentual<br />
macro ou superestrutural insatisfatório, mas principalmente, entender<br />
até que ponto eles refletiram acerca do texto. Assim sendo, os resultados<br />
demonstram que os esquemas cognitivos que permitem as inferências<br />
necessárias para depreender a macro e superestrutura dos textos,<br />
em termos de cálculos cognitivos, não foram os mesmos acionados<br />
pelas tipologias em questão (TNAs/TADs), indicando por que as<br />
leituras e reescrituras são extremamente variáveis.<br />
Com base nas ocorrências obtidas, veremos a comparação do<br />
percentual (%) e número de sujeitos com relação aos componentes<br />
superestruturais verificados nas reescrituras (TNAs/TADs).<br />
SUJEITOS PERCENTUAL(%) COMPONENTES<br />
TNAs TADs TNAs TADs Ocorrências<br />
4 3 40 30 Sim<br />
2 1 20 10 Parcial<br />
4 6 40 60 Não<br />
Os resultados da tabela sugerem que esses dois grupos de sujeitos<br />
apresentam um desempenho diferenciado na recuperação dos<br />
componentes superestruturais de cada texto. Destarte, esses resultados<br />
confirmam a primeira hipótese secundária de que o conhecimento<br />
mínimo do esquema canônico dos textos (TNA/TAD) será o fator<br />
determinante para uma melhor compreensão das formas de estruturação<br />
dessas tipologias. Porém, do ponto de vista quantitativo, essa diferença<br />
não apresenta tanta discrepância, principalmente, no que se<br />
refere à identificação total (sim) e parcial (P), pois verificamos nas<br />
reescrituras dos textos TNAs, que 40% dos sujeitos recuperaram plenamente<br />
(significa que o sujeito considerado produziu em sua reescritura<br />
uma macroproposição correspondente ao conteúdo do componente<br />
em questão) os componentes superestruturais em relação a<br />
30% dos textos TADs. Este desempenho, por parte dos sujeitos,<br />
comprova ainda que 20% dos sujeitos (TNAs) e 10% (TADs) recuperaram<br />
parcialmente (demonstra que o sujeito produziu uma macroproposição<br />
correspondente ao conteúdo do componente em questão,<br />
porém, com algum desvio ou lacuna de conteúdo) esses componentes<br />
superestruturais. No entanto, os que não conseguiram recuperar<br />
(significa que o sujeito produziu uma macroproposição expressando<br />
um conteúdo distinto daquele do componente em questão ou
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
806<br />
ignorou completamente tal componente, não fazendo, diante disto,<br />
referência a ele) os componentes, oscilaram entre 40% para o TNA e<br />
60% para o TAD.<br />
De modo geral, os resultados acima destacados sugerem um<br />
melhor desempenho em relação à superestrutura para os textos TNAs<br />
do que para os textos TADs. Portanto, os dois textos (TNAs/TADs)<br />
comparados na tabela, podem também, ser observados a partir do<br />
gráfico, a seguir.<br />
Comparação com relação à superestrutura<br />
Como vemos neste gráfico, do ponto de vista quantitativo, entretanto,<br />
não verificamos diferença tão significativa com relação aos<br />
dois grupos de leitores na comparação da recuperação dos componentes<br />
superestruturais para o resultado total com o código (Sim) e o<br />
parcial (P), mas, apenas uma diferença (40% TNA e 60% TAD) para<br />
a ausência (N), ou seja, a falta de recuperação desses componentes.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
807<br />
No entanto, no que diz respeito à organização global, a atenção deve<br />
ser centrada em todos os componentes que foram minimamente identificados.<br />
Na verdade, poderíamos mesmo afirmar que a maior ou menor<br />
presença de cada um desses componentes superestruturais depende<br />
da maneira como o sujeito leitor recruta e opera com vários<br />
recursos linguísticos de que dispõe, bem como da relevância do esquema<br />
de tipo de texto para a produção ou a compreensão. Assim,<br />
conforme van Dijk e Kintsch (1983), a construção de um texto é resultado<br />
da capacidade de usar os recursos disponíveis para construir<br />
um macroplano, cuja execução depende da construção do texto base<br />
(representação semântica do input discursivo na memória episódica),<br />
por meio de subestratégias responsáveis pelo estabelecimento da coerência<br />
semântica, global e local. Além disso, para se entender os<br />
componentes superestruturais de um texto é necessário que o leitor<br />
demonstre conhecer esse tipo de texto.<br />
Diante disso, os dados mostram que o baixo desempenho<br />
(principalmente para a conclusão) com relação aos textos TADs pode<br />
ser atribuído a não familiaridade dos alunos com esses tipos textuais<br />
na escola. De fato, os sujeitos recuperaram mais facilmente os<br />
componentes superestruturais do TNA. Nesse sentido, concordamos<br />
com Dolz (1992) quando diz que esse tipo de texto (TNA) passou a<br />
ser mais trabalhado com os estudantes em sala de aula e, por isso,<br />
passou a ser mais familiar. Por fim, como salientamos anteriormente<br />
(SOUSA, 2003), o ensino de tipos e gêneros textuais deve ser feito a<br />
partir do primeiro ano, possibilitando, portanto, que o sujeito leitor<br />
apreenda, efetivamente, a lidar com a argumentação oral e escrita.<br />
4. Considerações finais<br />
A nossa proposta neste trabalho foi avaliar a compreensão leitora<br />
de textos narrativos e argumentativos dialógicos por leitores do<br />
ensino fundamental, a partir da análise da macro e superestrutura<br />
desses tipos textuais, obtidos mediante a tarefa de reescritura e de<br />
testes de leitura do tipo Cloze. Investigamos até que ponto as reescrituras<br />
por leitores do ensino fundamental para os dois tipos de textos
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
808<br />
refletiam a compreensão adequada da macroestrutura textual e do reconhecimento<br />
da organização global dessas tipologias. Assim, os<br />
textos selecionados estão organizados segundo diferentes formas de<br />
estruturação, sendo um narrativo e outro argumentativo dialógico. O<br />
primeiro apresenta maior explicitude da organização interna, tendo<br />
sido por isso, considerado mais familiar e, portanto, mais favorável<br />
ao processamento do que o texto argumentativo dialógico, mais<br />
complexo do ponto de vista de sua estrutura global, organizado segundo<br />
um esquema de confronto de teses: tese proposta e tese refutada<br />
mediante um processo de argumentação.<br />
Desse modo, estabelecemos como hipótese básica de nossa<br />
pesquisa que leitores proficientes, ao realizarem uma tarefa de reescritura,<br />
apresentam melhor desempenho quanto à recuperação da<br />
macroestrutura textual e quanto ao reconhecimento da organização<br />
global do texto narrativo do que do texto argumentativo dialógico,<br />
tendo em vista a maior explicitude da organização interna deste primeiro<br />
tipo de texto. De modo complementar, formulamos três hipóteses<br />
secundárias em função do mesmo nível de leitura dos sujeitos<br />
da pesquisa. Nesse sentido, esperávamos que o conhecimento mínimo<br />
do esquema canônico dos textos (TNA/TAD) seria o fator determinante<br />
para uma melhor compreensão das formas de estruturação<br />
dessas tipologias; existe um esquema textual para cada tipologia que<br />
deveria ser atingido para que leitores independentes pudessem empregar<br />
as estratégias de leitura e (re) construir a macroestrutura; a diferença<br />
entre o desempenho leitor do aluno e o tipo de texto (narrativo<br />
ou argumentativo dialógico) deveria ser demonstrada claramente,<br />
a partir de estratégias cognitivas utilizadas no processamento.<br />
Na avaliação das reescrituras foram considerados diversos fatores<br />
que acreditávamos serem evidenciadores de compreensão global<br />
dos textos reescritos: a organização global, a progressão da informação,<br />
o uso de estratégias de reescrituras e de regras de sumarização<br />
e a percepção da coerência macro e superestrutural das reescrituras.<br />
De forma geral, as análises procedidas dos resultados das avaliações<br />
confirmaram a hipótese básica, ou seja, leitores proficientes,<br />
ao realizarem uma tarefa de reescritura, apresentam melhor desem-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
809<br />
penho quanto à recuperação da macroestrutura textual e quanto ao<br />
reconhecimento da organização global do texto narrativo do que do<br />
texto argumentativo dialógico, tendo em vista a maior explicitude da<br />
organização interna deste primeiro tipo de texto.<br />
O desempenho dos sujeitos da amostra variou de acordo com<br />
o tipo de texto, mas também, a partir de estratégias cognitivas utilizadas<br />
no processamento.<br />
Os resultados confirmam que foi possível recuperar plenamente<br />
40% e parcialmente 20% da macroestrutura textual e do reconhecimento<br />
de organização global dos textos TNAs comparado aos<br />
textos TADs, que obtiveram respectivamente, 30% e 10% na apreensão<br />
desses mesmos conteúdos.<br />
Com relação às hipóteses secundárias, todas foram testadas e<br />
confirmadas.<br />
A primeira dessas hipóteses era de que o conhecimento mínimo<br />
do esquema canônico dos textos (TNA/TAD) seria o fator determinante<br />
para uma melhor compreensão das formas de estruturação<br />
dessas tipologias. Assim, os resultados indicam que dos textos TNAs<br />
foi possível depreender plenamente 40% de todos os componentes<br />
do esquema canônico, 20% parcial e 40% que apresentaram dificuldade<br />
ou que ignoraram qualquer referência com relação aos componentes<br />
do texto base, que comparado aos textos TADs, obtiveram<br />
30% total, 10% parcial e 60% que apresentaram dificuldades ou produziram<br />
componentes discrepantes para o texto base. A segunda hipótese<br />
secundária, por consequência, era a de que existe um esquema<br />
textual para cada tipologia que deveria ser atingido para que leitores<br />
independentes pudessem empregar as estratégias de leitura e (re)<br />
construir a macroestrutura. De fato, as análises realizadas indicaram<br />
que durante a leitura, os sujeitos tentaram aplicar as estratégias que<br />
eles consideravam adequadas a fim de alcançar os objetivos estabelecidos<br />
na execução da tarefa. Com isso, desse grupo de sujeitos,<br />
20% dos textos TNAs e 10% dos textos TADs utilizaram em suas reescrituras<br />
procedimentos estratégicos cognitivamente menos sofisticados,<br />
ou seja, menos habilidade na manipulação dos diferentes recursos<br />
(substituições lexicais, pronominalizações, explicitações de<br />
inferências etc) que garantem a retomada ou recuperação de elemen-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
810<br />
tos dos textos, valendo-se ainda, da estratégia geral de reorganização<br />
das informações do texto base, sugerindo assim, uma leitura mais<br />
global dos textos e um esforço na tentativa de (re) construir a macroestrutura,<br />
reescrevendo-a, portanto, apenas parcialmente, em relação<br />
aos textos base. Por fim, os demais sujeitos, isto é, 40% dos textos<br />
TNAs e 60% dos textos TADs, apresentaram problemas de coerência<br />
macroestrutural. Em geral, todas (40% e 60%) essas reescrituras revelaram<br />
problemas de desenvolvimento sequencial e incoerência na<br />
progressão das informações, além de enunciados contraditórios com<br />
relação ao conteúdo base, principalmente, para a finalização de suas<br />
reescrituras. Finalmente, a terceira hipótese secundária era a de que a<br />
diferença entre o desempenho leitor do aluno e o tipo de texto (narrativo<br />
ou argumentativo dialógico) deveria ser demonstrada claramente,<br />
a partir de estratégias cognitivas utilizadas no processamento. Assim,<br />
os resultados, de modo geral, comprovam um melhor desempenho<br />
dos sujeitos dos textos TNAs com relação às estratégias cognitivas<br />
utilizadas no processamento cognitivo do que os sujeitos dos textos<br />
TADs, ao utilizarem estratégias de reescrituras mais sofisticadas,<br />
como por exemplo, a explicitação de inferências, a integração e a reconstrução<br />
de informações dos textos originais, o atendimento às<br />
condições de coerência global (repetição, progressão, não contradição<br />
e relação), a reconstituição dos componentes superestruturais essenciais<br />
de cada texto base.<br />
Dessa forma, o desempenho dos sujeitos da amostra variou, a<br />
partir da execução da atividade de reescritura proposta, isto quer dizer<br />
que quando comparamos o desempenho dos sujeitos leitores nos<br />
dois tipos de textos (TNAs/TADS), para a habilidade inferencial e o<br />
processamento de estratégias macro e superestruturais, constatamos<br />
diferenças pouco significativas ponto de vista quantitativo, principalmente,<br />
no que se refere à identificação total e parcial, pois verificamos<br />
nas reescrituras dos textos TNAs que 40% dos sujeitos recuperaram<br />
plenamente (significa que o sujeito considerado produziu<br />
em sua reescritura uma macroproposição correspondente ao conteúdo<br />
do componente em questão) os componentes superestruturais em<br />
relação a 30% dos textos TADs. Assim, este desempenho, por parte<br />
dos sujeitos, comprova, ainda, que 20% dos sujeitos (TNAs) e 10%<br />
(TADs) recuperaram parcialmente (demonstra que o sujeito produziu
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
811<br />
uma macroproposição correspondente ao conteúdo do componente<br />
em questão, porém com algum desvio ou lacuna de conteúdo) esses<br />
componentes superestruturais. De fato, os que não conseguiram recuperar<br />
os componentes superestruturais (significa que o sujeito produziu<br />
uma macroproposição expressando um conteúdo distinto daquele<br />
do componente, em questão ou ignorou completamente tal<br />
componente, não fazendo, destarte, referência a ele) oscilaram entre<br />
40% para o TNA e 60% para o TAD.<br />
Diante disso, verificamos que existe uma tendência em favor<br />
de melhor desempenho para os textos TNAs no que se refere à identificação<br />
total e parcial desses componentes superestruturais, entretanto,<br />
essa diferença parece pouco significativa quantitativamente<br />
(40% e 20% para o TNA/ 30% e 10% para o TAD), o que nos leva a<br />
ponderar que não basta sugerir que o texto narrativo seria propício ao<br />
processamento e, portanto, de fácil compreensão, dada a maior familiaridade<br />
de sua estrutura ou que o texto argumentativo, por sua vez,<br />
seria o tipo de texto mais complexo do ponto de vista de sua estrutura<br />
global ou ainda, comparado aos textos narrativo e expositivo, o<br />
texto argumentativo, por sua vez, seria o tipo de texto mais complexo<br />
do ponto de vista de sua estrutura global.<br />
Cumpre salientar ainda, que não basta verificar se o sujeito<br />
leitor preservou mais ou menos itens com relação à macroestrutura<br />
textual e à organização global do texto original, mas principalmente,<br />
entender o que ele compreendeu do texto. Nesse sentido, não queremos<br />
fazer distinções para ver quem é melhor ou menos hábil, pois a<br />
compreensão do processo de leitura não termina na produção de reescrituras,<br />
mas na compreensão e não basta só o sujeito compreender<br />
o texto do autor, ele tem que fazer uma leitura crítica, refletir acerca<br />
do texto. Eis aí que entra a proposta de nossa pesquisa, pois ao trabalharmos<br />
com as tipologias em questão (TNAs/TADs), poderemos<br />
contribuir no sentido de levar o aluno a pensar, a refletir sobre o texto,<br />
a compreender o que está nas entrelinhas.<br />
Nesta perspectiva, com base nas teorias elencadas e nos dados<br />
obtidos na pesquisa, podemos afirmar que com a solicitação de transformar<br />
o texto base em sua forma de reescritura, verifica-se não só a<br />
compreensão do conteúdo, mas também, o domínio da habilidade de
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
812<br />
expressão escrita. Portanto, a reescritura, como forma de aprendizagem<br />
e de avaliação, poderia ter sua utilização estendida para todos os<br />
níveis de ensino (do ensino fundamental ao superior) permitindo o<br />
desenvolvimento simultâneo e integrado das duas habilidades envolvidas<br />
na atividade escolar: leitura e escrita.<br />
As macrorregras de sumarização propostas neste trabalho,<br />
embora apresentem limitações, deixam uma contribuição ao ensino<br />
que é o quadro teórico apresentando os critérios para avaliação de<br />
reescrituras produzidas pelos sujeitos em tarefas oriundas de sala de<br />
aula. Neste caso, a partir delas, pode-se subsidiar o sujeito leitor na<br />
identificação das informações básicas do texto. Além disso, como o<br />
conjunto de conhecimento varia de leitor para leitor, durante o processo<br />
de leitura, com compreensão, ocorre um processo de sumarização,<br />
através do qual o sujeito leitor, mentalmente, constrói os elementos<br />
essenciais do texto. Ainda assim, esses processos (leitura/sumarização)<br />
podem apresentar resultados (compreensão/interpretação)<br />
extremamente variáveis.<br />
As evidências sugeridas pelos dados e pelos exemplos comentados,<br />
embora frutos de uma pesquisa experimental de rigor científico,<br />
não podem ser entendidas como conclusivas. Com isso, temos<br />
consciência da necessidade de mais investigação sobre o assunto,<br />
pois falta ainda muito trabalho, tanto teórico como experimental, para<br />
encontrarmos novos parâmetros que permitam dar conta de diferenças<br />
de compreensão entre os textos reescritos pelos sujeitos leitores<br />
de nossa pesquisa.<br />
Destarte, diante dos resultados sumarizados, julgamos ter apresentado<br />
alguns elementos que podem contribuir para uma melhor<br />
compreensão dos textos abordados (TNAs/ TADs). Portanto, esperamos<br />
que as ideias expostas neste trabalho possam servir de ponto<br />
de partida para outras pesquisas sobre o assunto e de motivação para<br />
que professores envolvidos com o ensino fundamental e médio alimentem<br />
uma reflexão, sempre oportuna, sobre o ensino/aprendizagem<br />
da língua, sobretudo, no que diz respeito à tarefa (reescritura) de<br />
pesquisa proposta. Nesse sentido, no tocante às pesquisas posteriores<br />
nesta linha de trabalho, fica aberta uma pesquisa que estude como<br />
essa tarefa pode ser reconfigurada em outras turmas e por que não
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
813<br />
reaplicá-la em escolas públicas, para comparar os dados e saber se os<br />
sujeitos leitores (alunos) apresentariam ou não o mesmo desempenho.<br />
Por fim, não nos parece, contudo, insensato apostar na possibilidade<br />
de outra pesquisa sugerindo o cumprimento de tarefa de reescritura<br />
para avaliar a compreensão leitora dos sujeitos com relação às<br />
tipologias em questão (TNAs/TADs) ou de outros tipos e gêneros<br />
textuais, tais como uma tarefa de escrita argumentativa, uma tarefa<br />
de reconhecimento de inferências, uma tarefa de textualidade, uma<br />
tarefa de julgamento argumentativo, em particular, para julgamentos,<br />
graus de argumentatividade e desenvolvimento de suas capacidades<br />
argumentativas.<br />
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por leitores do ensino fundamental. Dissertação de Mestrado:<br />
UFC, 2003.
1. Introdução<br />
CONSERVAÇÃO E PRESERVAÇÃO<br />
DOS ACERVOS DOCUMENTAIS BAIANOS<br />
E O TRABALHO FILOLÓGICO<br />
Maria da conceição Reis Teixeira (UNEB; SALT)<br />
conceicaoreis@ig.com.br<br />
A “certidão de nascimento” do Brasil, ou melhor, a carta de<br />
“achamento do Brasil”, redigida por Pero Vaz de Caminha, em 1500,<br />
foi lavrada na Província da Bahia. Nela, o seu redator prestava conta<br />
à coroa portuguesa “do achado das terras do Brasil”. O país “nasceu”,<br />
deu seus primeiros passos em solos da Baía de Todos os Santos.<br />
Não há dúvidas de que aqui foram lavrados os primeiros documentos<br />
oficiais que marcaram a sua história política, econômica, social<br />
e cultural. Como não há dúvidas que aqui também teve início a<br />
criação dos primeiros acervos documentais brasileiros. As igrejas,<br />
devido ao poder e ao prestígio que detinham, certamente foram as<br />
naturais guardiãs dos primeiros textos aqui lavrados. As cadeias, as<br />
câmaras administrativas, as bibliotecas particulares, os arquivos públicos<br />
e privados, com o passar do tempo, vão gradativamente se encarregando<br />
desta atividade, preservando-os do extravio, do desaparecimento,<br />
da destruição.<br />
Por esta razão, os acervos baianos depositam documentos jurídicos,<br />
legislativos, executivos, folhetos, jornais, revistas, obras literárias<br />
e não literárias. São textos valiosíssimos, que armazenam informações<br />
preciosas capazes de ajudar a elucidar muitos aspectos da<br />
nossa história que ainda carecem de ser esclarecidos, escritos e rescritos,<br />
nos permitindo compreender melhor o cotidiano da sociedade,<br />
elucidando aspectos da história do Brasil da época em que estes foram<br />
lavrados. Entretanto, com o passar do tempo, parece que estes<br />
acervos não receberam a devida atenção de seus gestores, do poder<br />
público no seu gerenciamento, visando à preservação e à conservação<br />
dos mesmos.<br />
Para a concretização dos objetivos traçados no projeto de<br />
pesquisa intitulado Edição e Estudos de Textos Literários e Não Li-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
816<br />
terários, é preciso visitar os acervos baianos na tentativa de localizar<br />
os textos, mapeá-los para depois transcrevê-los. Atividade que tem<br />
se mostrado árdua de ser executada, devido à dificuldade de acesso<br />
aos arquivos e, consequentemente, ao conjunto de documentos que<br />
interessam ao trabalho em execução. Contudo, as constantes visitas<br />
aos acervos têm oportunizando, gradativamente, delinear um quadro<br />
real do estado de conservação dos acervos documentais existentes no<br />
estado da Bahia.<br />
Almejo, no presente texto, a partir de alguns exemplos, oferecer<br />
uma pequena mostra do estado de conservação dos acervos visitados<br />
até o momento com vistas à composição do corpus que pretendo<br />
editar, destacando o importante labor desenvolvido pela Filologia<br />
Textual, ramo do saber que trabalha com o texto escrito, retirando-o<br />
do ostracismo e facultando à sociedade o acesso ao patrimônio espiritual<br />
produzido por uma dada comunidade.<br />
2. Preservação e conservação de acervos documentais<br />
Acervos, do latim acervus, ‘montão, ‘ruma’ ou ‘conjunto de<br />
bens que integram um patrimônio’, são celeiros que os pesquisadores<br />
das variadas áreas do saber, sobretudo os filólogos, adentram, vasculham,<br />
esmiúçam na tentativa de encontrar indícios que os possibilitem<br />
reconstruir ou tentar reconstruir e compreender os fatos, os acontecimentos<br />
elaborados, vividos, experimentados por um povo,<br />
uma nação, uma civilização. A palavra acervo remete a arquivos,<br />
que, até pouco tempo, eram entendidos como simples “depósito” de<br />
papéis velhos, entretanto, na atualidade, são definidos como unidades<br />
administrativas, cuja principal função é a de reunir, ordenar, selecionar,<br />
guardar e dispor conjuntos de documentos, para uso individual<br />
ou coletivo. Portanto, o papel básico dos arquivos é recolher,<br />
conservar e disponibilizar os documentos públicos após terem eles<br />
desempenhado a finalidade que os fez surgir.<br />
O homem por onde passa deixa seu rastro, seja este produzido<br />
involuntariamente como, por exemplo, os resquícios dos objetos, utensílios,<br />
seja produzido voluntariamente, com o objetivo de registrar,<br />
documentar para as gerações futuras o saber acumulado por aquele<br />
homem ou por aquela civilização, através das diversas formas
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
817<br />
de escrita experimentada pela humanidade. Concordo com Diderot<br />
quando diz que:<br />
[...] sem escrita, privilégio do homem, cada indivíduo, reduzido à sua<br />
própria experiência, seria forçado a recomeçar a carreira que o seu antecessor<br />
teria percorrido, e a história dos conhecimentos do homem seria<br />
quase a da ciência da humanidade. (apud MARTINS, 1996, p. 70)<br />
Talvez seja por esta razão que Vera Acioli (2003), em A Escrita<br />
no Brasil Colônia: Um Guia para Leitura de Documentos Manuscritos,<br />
considere o documento manuscrito a mola-mestra da História.<br />
Aqui amplio o qualificativo “mola-mestra” para todos os textos<br />
escritos. Graças à necessidade de comunicação, através do texto escrito<br />
se pôde inferir sobre o passado dos egípcios, assírios, babilônios,<br />
cretenses, hebreus, romanos, chineses, hindus, por exemplo. O<br />
que já inferimos e ainda poderemos inferir sobre os americanos, os<br />
brasileiros, sem dúvida, é e será graças aos documentos “armazenados”<br />
nos arquivos.<br />
Os documentos dos arquivos permitem avivar os fatos, acontecimentos,<br />
todavia para que isto aconteça é necessário adentrar nos<br />
“sótãos dos fatos”, revirar papéis velhos amórficos, raspar a camada<br />
espessa de poeira, colar fragmentos, organizar retalhos, colocar em<br />
desordem para depois ordená-los, fazendo emergir o texto e contribuído<br />
para “o mover das histórias” que se encontram aprisionadas,<br />
adormecidas, silenciadas nos cartórios, nas igrejas, nos conventos,<br />
nas Câmaras Municipais, nas bibliotecas, nos arquivos públicos e eclesiásticos.<br />
Fato é que os documentos armazenados nas estantes dos arquivos,<br />
com raríssimas exceções, agonizam e morrem lenta e silenciosamente.<br />
Acredito que é necessário pensar numa política de preservação<br />
e em conservação preventiva. É necessário também que as<br />
ações empreendidas sejam, de fato, efetivas e bem direcionadas.<br />
Mas, afinal, que é uma política de preservação? Uma política de prevenção<br />
é um tipo de ação de âmbito superior, que engloba o desenvolvimento<br />
e implantação de planos, programas e projetos de preservação<br />
de acervos. Possui objetivos, limites e diretrizes para atingir<br />
um resultado. Visa definir orientações globalizantes, sistemáticas e<br />
contínuas a serem alcançadas.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
818<br />
Acredito que as péssimas condições constatadas nos acervos<br />
baianos não sejam exclusivas do Estado da Bahia, uma vez que Vera<br />
Acioli (2003), na obra supracitada, afirma que o estado de conservação<br />
dos documentos manuscritos na maioria dos Estados brasileiro é<br />
desolador. Diz-nos ainda:<br />
[...] da falta de interesse dos detentores dos documentos e da carência de<br />
uma política voltada à preservação dos arquivos, quer públicos, quer<br />
provados, é a ausência de condições para a conservação e organização da<br />
maioria deles. Arquivo morto, no Brasil, é sinônimo de porão, onde os<br />
documentos são jogados sem qualquer tratamento técnico. Na maior parte<br />
dos casos é preciso um grande esforço de triagem do documento por<br />
parte do pesquisador, a fim de recuperar qualquer informação. (ACIOLI,<br />
2003, p. 15)<br />
A pesquisadora tem razão quando afirma que os poderes públicos,<br />
até o momento, não desenvolveram, efetivamente, uma política<br />
de conservação e restauração dos documentos que ainda restam.<br />
Salvo raras exceções, os nossos acervos documentais são geridos por<br />
gestores desqualificados para a função de guardiões do patrimônio<br />
cultural, acondicionados em ambientes inadequados, manipulados<br />
por servidores inábeis para a função que desempenham.<br />
Destarte, Spinelli Júnior (1997) aponta, como exigências básicas<br />
para a conservação de um patrimônio cultural, administração<br />
segura, recursos adequados e conhecimentos decorrentes da ciência e<br />
da técnica. Assevera ainda que todo legado histórico é de responsabilidade<br />
de todos e isto implica na disponibilidade ao uso, sob critérios<br />
determinados que garantam sua transmissão às gerações futuras. E<br />
diz ainda:<br />
A gravidade e a urgência de todos os problemas concernentes à<br />
conservação de patrimônios culturais como os vemos hoje, só poderão<br />
ser resolvidos através de ampla revisão nas atitudes profissionais, institucionais<br />
e políticas. Não haverá nenhum tipo de avanço substancial quanto,<br />
à permanência de um bem cultural, seja ele qual for, enquanto não<br />
houver um maciço esforço neste sentido. (SPINELLI JÚNIOR, 1997, p.<br />
11)<br />
Penso que o compromisso em conservar e preservar as fontes<br />
documentais não é dever apenas de quem gere os acervos. Quem se<br />
utiliza destas fontes também deve ser responsável. Os pesquisadores<br />
devem ser treinados tecnicamente para manusear de forma a não acentuar<br />
ou contribuir para a degradação do suporte ou da mancha es-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
819<br />
crita. Deve também ser conscientizado da importância da preservação<br />
do acervo enquanto documento de uma época, ou seja, não basta<br />
recolher a informação, transcrever o texto, acreditando que está preservando,<br />
é imprescindível a preservação do documento enquanto<br />
documento.<br />
Carecem de cuidados não somente as chamadas obras raras,<br />
mas toda a produção escrita da atualidade. Os livros, as revistas, os<br />
jornais, os documentos manuscritos legais do poder executivo, legislativo<br />
e judiciário, por exemplo, serão os “papéis velhos” do futuro,<br />
portanto, devem ser conservados. Não se pode perder de vista que os<br />
acervos bibliográficos, legados históricos, traduzem todo bem cultural,<br />
são testemunhos ou provas de contínuo desenvolvimento cultural<br />
da humanidade, e, por esta razão, a sua preservação é de responsabilidade<br />
de todos e isto implica na responsabilidade de uso. È imprescindível<br />
ter consciência da fragilidade dos suportes. As agressões<br />
climáticas e o manuseio pelo próprio homem, o uso dos processos de<br />
reprodução modernos, aceleram a destruição dos suportes. Então,<br />
como decidir o que deve ser preservado ou ser incluído em um programa<br />
de preservação? Todas as coleções de uma biblioteca ou de<br />
um acervo devem ser alvo de um programa de preservação?<br />
Não há dúvidas de que é todo o acervo, ou melhor dizendo,<br />
todos os acervos devem ser incluídos em um programa de conservação<br />
e preservação. No entanto, Zuñiga (2002) diz que, na impossibilidade<br />
de incluir todo o acervo num programa de preservação, é necessário,<br />
em primeiro lugar, conhecer a fundo o arquivo sobre o qual<br />
se pretende trabalhar. Ressalta que tudo é importante para se ter um<br />
quadro preciso do risco que o acervo vem sofrendo e a partir daí decidir-se-á<br />
pelas obras que deverão ser incluídas no programa de preservação<br />
e conservação. Para que isto aconteça é fundamental que os<br />
gestores conheçam qual o valor do acervo e qual o impacto das perdas<br />
e danos para o conjunto de obras que faz parte do acervo. É necessário<br />
identificar que métodos, ações normativas serão mais eficazes<br />
na minimização dos processos de degradação do acervo e quais<br />
os custos e prazos para tais ações.
2.1. Alguns exemplos<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
820<br />
O Arquivo Público da Bahia, criado em 1890, é a mais<br />
importante entidade arquivistiva do estado da Bahia, pertence ao<br />
Poder Executivo. A instituição, subordinada à Fundação Pedro<br />
Calmon – Centro de Memória e Arquivo Público da Bahia, localizase<br />
no Mosteiro da Baixa de Quintas à Ladeira de Quintas, 50, em<br />
Salvador. É guardião de importantes documentos históricos da<br />
Bahia. Compõem o acervo Documental os Arquivos Permanentes e<br />
os Temporários. As Seções do acervo permanente compreendem<br />
documentos divididos por cinco temas e períodos, a saber, (1) Seção<br />
Colonial – Provincial; (2) Seção de Arquivos Judiciários; (3) Seção<br />
de Arquivos Republicanos; (4) Seção Fazendária - Alfandegária; e<br />
(5) Seção de Arquivos Privados.<br />
A instituição conta com uma equipe de profissionais<br />
qualificados para o manuseio e transporte até a sala de consulta.<br />
Entretanto, ainda não há uma politica de preservação global do<br />
acervo. O estado de conservação dos documentos é lastimável.<br />
Muitos documentos encontram-se danificados, devido à ação de<br />
insetos, fungos, nível de umidade e a temperatura ambiente favorece<br />
a ploriferação dos mesmos. Apresentam odor muito forte. Inclusive,<br />
o seu manuseio, sem ou com uso de de luvas e máscaras<br />
(instrumentos indispensavéis quando da consulta de documentos<br />
“antigos”), poderá trazer danos à saúde do pesquisador. O suporte de<br />
alguns documentos encontram-se em bom estado de conservação,<br />
todavia, a mancha escrita esmaeceu-se e sua leitura é impossível.<br />
A Biblioteca Pública do Estado da Bahia, localizada na Rua<br />
General Labatut, Barris,Salvador, foi fundada em 1811 e passou por<br />
várias sedes até ser reinaugurada, em 1970, no atual endereço. É a<br />
primeira biblioteca com esse caráter criada no Brasil. Conta, na Subgerência<br />
de Obras Raras e Valiosas, com cerca 60.000 títulos, que<br />
abarcam quase todos os ramos do conhecimento. Há ainda uma subgerência<br />
de periódicos onde podem ser encontrados quase todos os<br />
primeiros periódicos produzidos no Brasil. Em 1912, a Biblioteca foi<br />
incendiada durante bombardeio no governo de Hermes da Fonseca,<br />
tendo perdido a maioria do seu acervo de 25.000 volumes, que ficou<br />
reduzido a 400. Sem dúvida, um prejuízo incalculável. É gerida pela<br />
Fundação Pedro Calmon, através da Diretoria de Bibliotecas (Siste-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
821<br />
ma de Bibliotecas Públicas Estaduais), que é responsável pelos serviços<br />
de implantação, assistência técnica, dinamização, aquisição e<br />
conservação de seus acervos.<br />
Infelizmente, a instituição não dispõe de profissionais com<br />
formação específica na área de conservação e preservação de acervos<br />
documentais, nem especialistas em obras raras; por exemplo, a subgerência<br />
Obras Raras e Valiosas é administrada por uma bibliotecária.<br />
Apesar dos gestores saber o valor do acervo, até o momento nada<br />
foi feito no sentido de se proceder a transferência de suporte – ou seja,<br />
transferência do suporte papel para o suporte digital via processo<br />
de escaneamento e/ou digitalização – ou o resgate via transcrição dos<br />
textos.<br />
A adoção da técnica transferência de suporte é muito benéfica<br />
a documentos raros, principalmente quando estes têm duplo valor: o<br />
suporte formato jornal, por exemplo, tem valor documental da memória<br />
da história da imprensa no Brasil e o seu conteúdo intelectual<br />
tem valor enquanto informações históricas que registram o mundo e<br />
as formas do homem conceber o mundo circundante.<br />
Cabe ressaltar que decidir digitalizar um acervo documental<br />
significa tomar decisões importantes quanto à resolução de imagem,<br />
à reprodução cromática, às compressões, ao armazenamento, à viabilização<br />
do acesso. Por exemplo, quanto maior a resolução na captura<br />
da imagem fac-similar, maior o tamanho do arquivo digital e consequentemente<br />
mais oneroso o seu armazenamento. A decisão deverá<br />
estar atrelada ao compromisso da instituição com a manutenção da<br />
versão digital através do tempo, considerando-se as mudanças tecnológicas<br />
e baseando-se numa política que assegure o acesso contínuo<br />
ao material digitalizado que tenha valor permanente para a pesquisa.<br />
Em termos práticos, a transferência de suporte pode ser adequadamente<br />
realizada, sem provocar danos aos originais, porque já<br />
existem equipamentos capazes de capturar imagens sem que ocorra o<br />
contato direto com o material alvo da digitalização. Além disso, a<br />
transferência de suporte possibilitará a preservação do conteúdo intelectual<br />
para as gerações futuras e dará acessibilidade aos pesquisadores,<br />
sem que estes contribuam para acelerar ainda mais o processo de<br />
destruição definitiva a que estão sujeitos os documentos originais,<br />
quando do seu manuseio.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
822<br />
É bom lembrar que, se o suporte do documento estiver desidratado,<br />
o próprio manuseio dos pesquisadores, no processo de resgate<br />
dos textos, contribui para acentuar ainda mais a sua fragilidade,<br />
acelerando, portanto, a sua destruição por completo e definitivamente.<br />
Caso o conjunto de documentos ou acervo bibliográfico esteja<br />
como os que ilustramos com as imagens a seguir, quase nada poderá<br />
ser feito, pois não resta mais nada a preservar. Coleções completas<br />
de periódicos raros, que somente a Biblioteca dispunha, foram totalmente<br />
destruídas. As imagens dispensam qualquer comentário acerca<br />
do estado de conservação e revelam quanto valor tem os nossos acervos<br />
para os poderes públicos.<br />
Fig. 1: Fotografia Coleção Diário da Bahia, 1871.
Fig. 2: Fotografia Coleção Echo Santamarense, 1884<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
823
Fig. 3: Fotografia da Coleção Diário da Bahia, 1872<br />
3. Considerações finais<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
824<br />
Convém lembrar que a palavra filologia, etimologicamente,<br />
tem sido entendida como ‘culto da erudição’. Lázaro Carreter (1990,<br />
p. 187), por exemplo, define como sendo a “ciência que estuda a linguagem,<br />
a literatura e todos os fenômenos de cultura de um povo ou<br />
de um grupo de povos por meio de textos escritos.” Basseto (2001, p.<br />
17) afirma que “o filólogo é aquele que apreende a palavra, a expressão<br />
da inteligência, do pensamento alheio e com isso adquire conhecimentos,<br />
cultura e aprimoramento intelectual”. Lausberg (1974) diz<br />
que a filologia tem de cumprir a tarefa tripla de crítica textual, interpretação<br />
de textos e a integração superior dos textos tanto na história<br />
da literatura como e na fenomenologia literária.<br />
Fato é que, independente das definições que o termo tem recebido<br />
ao longo da história, este ramo do saber se preocupa com a<br />
preservação da memória coletiva. Esta atividade não é uma exclusividade<br />
das sociedades modernas, pelo contrário, o homem, à medida<br />
que vem acumulando conhecimento, tem buscado manter viva a
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
825<br />
memória como forma de significar sua existência, fazendo emergir, a<br />
partir dela, sua própria história.<br />
No presente texto, busquei, através de dois exemplos, dar uma<br />
pequena mostra do estado de conservação dos acervos que foram visitados<br />
durante o meu processo de busca dos textos para a composição<br />
do corpus que pretendo editar. A situação em que se encontram<br />
nossos acervos documentais é desalentador. Se nos acervos de dois<br />
centros de referência como o Arquivo Público da Bahia e a Biblioteca<br />
Pública do Estado da Bahia não há uma política sistemática de<br />
conservação e preservação do patrimônio escritural de que são guardiões,<br />
imaginemos os acervos e bibliotecas das cidades do interior do<br />
Estado, onde os recursos, humanos e financeiros, são escassos e tardam<br />
chegar.<br />
Procurei também destacar o papel basilar desempenhado pelo<br />
filólogo para a compressão da história literária baiana, quiçá brasileira,<br />
a partir da sua incursão nos acervos públicos e privados. O trabalho<br />
do filólogo pode ser comparado com o do arqueólogo, pois enquanto<br />
este procura conhecer as civilizações da Antigüidade através<br />
dos vestígios materiais, aquele estuda os testemunhos escritos a fim<br />
de desvencilhar a história das civilizações engendrada nos materiais<br />
escritos deixados por aquelas.<br />
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
ACIOLI, Vera Lúcia Costa. A escrita no Brasil Colônia: um guia para<br />
leitura de documentos manuscritos. 2. ed. Recife: UFPE/Fundação<br />
Joaquim Nabuco/Massangana, 2003.<br />
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. 6. ed. Rio de Janeiro:<br />
Forense Universitária, 2000.<br />
MAGALHÃES, Aloísio. E triunfo? a questão dos bens culturais no<br />
Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; Brasília: Fundação Nacional<br />
Pró-Memória, 1985.<br />
MARTINS, Wilson. A palavra escrita: história do livro, da imprensa<br />
e da biblioteca. 2. ed. São Paulo: Ática, 1996.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
826<br />
QUEIROZ, Rita C. R. de. Para que editar? A filologia a serviço da<br />
preservação da memória baiana. In: TEIXEIRA, Maria da Conceição<br />
R.; QUEIROZ, Rita e Cássia R. de; SANTOS, Rosa Borges dos<br />
(Org.) Diferentes perspectivas dos estudos filológicos. Salvador:<br />
Quarteto, 2006, p. 141-157.<br />
______. A crítica textual e a recuperação da história. Scripta Philologica,<br />
Feira de Santana, n. 1, p. 64-79, 2005.<br />
SPINELLI JÚNIOR, Jayme. A conservação de acervos bibliográficos<br />
e documentais. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional,<br />
1997.<br />
TEIXEIRA, Maria da Conceição Reis. Textos de imprensa: problemas<br />
na sua edição. Cadernos do CNLF. Rio de Janeiro: Universidade<br />
do Estado do Rio de Janeiro, vol. 9, n. 10, 2005, p. 171-178.<br />
ZUÑIGA, Solange. A importância de um programa de preservação<br />
em arquivos públicos privados. Revista Registro, Indaiatuba, n. 1,<br />
jul. 2002, p. 71-89.
CONSTRUÇÕES LOCATIVAS NA FALA CULTA:<br />
UM ESTUDO VARIACIONISTA<br />
1. Introdução<br />
Elaine M. Thomé Viegas (UFRJ)<br />
elainemt@gmail.com<br />
Este trabalho trata da possibilidade de uso do advérbio locativo<br />
à esquerda do sintagma preposicional (SP) locativo, como nos exemplos<br />
de (01) a (03), com o objetivo de verificar o comportamento<br />
desse tipo de construção em dados de fala do Rio de Janeiro do século<br />
XX sob a metodologia da Sociolinguística implantada por Labov<br />
(1994).<br />
(01) nós moramos com meus tios-avós porque eles eram já mais idosos e... eu tinha<br />
que realmente morar com eles... e então eles é que saíram de casa... então<br />
nós morávamos num apartamento AQUI no Flamengo... e eles saíram de casa<br />
e nós tivemos a nossa lua de mel... [071-495]<br />
(02) e eu sempre odiei aquela ca... aquela carreira... eu tinha horror àquele troço...<br />
sabe... negócio de ler Diário Oficial todo dia... e andar no fórum... um calor<br />
danado AQUI no Rio de Janeiro e a gente de paletó e gravata... suando em<br />
bicas... deixando o sapato marcado no asfalto... isso não... isso não... isso não<br />
é mentira não... às vezes fazia tanto calor que a gente ficava com o sapato<br />
marcado LÁ no asfalto [018-62]<br />
(03) o meu filho mais velho teve um casamento... assim mais... mais no estilo... no<br />
estilo clássico vamos dizer assim... porque... foi um casamento AQUI na reitoria...<br />
e... os pais da moça... ficaram quer dizer viviam normalmente né?<br />
[071-514]<br />
2. Hipótese<br />
Nos exemplos em (04), em que os sintagmas preposicionados<br />
não possuem elemento definidor, a gramaticalidade das construções<br />
é duvidosa ( ( * ) ). O acréscimo de um dos advérbios de dentro dos parêntesis<br />
em anteposição ao SP locativo não modificaria tal condição.<br />
(04) a. ( * ) (AQUI/AÍ/ALI/LÁ) Em sala trabalham com língua portuguesa.<br />
b. ( * ) (AQUI/AÍ/ALI/LÁ) Em colégio aqueles alunos lideram a confusão.<br />
c. ( * ) O Pedro se machucou (AQUI/AÍ/ALI/LÁ) em parquinho.<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1
d. ( * ) Os documentos (AQUI/AÍ/ALI/LÁ) em pasta precisam de carimbo.<br />
828<br />
Em (05), o acréscimo de artigo definido ou pronome demonstrativo<br />
à preposição torna, indiscutivelmente, todos os exemplos<br />
gramaticais. A presença dos advérbios locativos à esquerda dos SPs<br />
locativos não alteraria a gramaticalidade das sentenças.<br />
(05) a. (AQUI/AÍ/ALI/LÁ) Na/Nesta/Nessa/Naquela sala trabalham com língua<br />
portuguesa.<br />
b. (AQUI/AÍ/ALI/LÁ) No/Neste/Nesse/Naquele colégio aqueles alunos lideram<br />
a confusão.<br />
c. O Pedro se machucou (AQUI/AÍ/ALI/LÁ) no/neste/nesse/naquele parquinho.<br />
d. Os documentos (AQUI/AÍ/ALI/LÁ) na/nesta/nessa/naquela pasta precisam<br />
de carimbo.<br />
Assim, uma hipótese para o uso do advérbio locativo à esquerda<br />
do SP locativo seria a de que a presença de advérbio estaria<br />
relacionada à definitude do sintagma preposicionado.<br />
3. O corpus e a metodologia<br />
O corpus utilizado como base para a análise é o do Projeto<br />
Norma Linguística Urbana Culta (NURC) da cidade do Rio de Janeiro<br />
(www.letras.ufrj.br/nurc-rj). São identificados os SPs locativos de<br />
6 entrevistas da década de 70 do século XX, independentemente da<br />
presença ou ausência do advérbio locativo à esquerda do SP, chegando-se<br />
a um total de 471 ocorrências.<br />
Na análise variacionista, a variável dependente analisada é<br />
caracterização da margem esquerda do SP locativo e as variantes<br />
são presença de advérbio locativo × ausência de advérbio locativo,<br />
como exemplificado em (06) e (07):<br />
(06) e eu sempre morei aqui... é muito engraçado isso... a minha mulher... morava<br />
AQUI nessa casinha mesmo... quando solteira... [233-17]<br />
(07) [Botafogo]... é um bairro que (es)tá... altamente familiar porque estudei lá<br />
também tenho a família toda morando Ø nesse bairro... a casa que eu estava...<br />
até... um ano atrás... [133-15]<br />
Além da variável dependente, também são analisados fatores<br />
internos e externos à língua, a saber: a) valor da preposição que in-
829<br />
troduz o SP locativo; b) caracterização do lugar contido no SP; c)<br />
função sintática do SP locativo; d) tipo de verbo; e) tipo de advérbio<br />
locativo que figura à esquerda do SP locativo; f) definitude do nome<br />
contido no SP locativo; g) definitude do nome que figura à esquerda<br />
do SP locativo; h) preposição introdutora do SP locativo; i) esvaziamento<br />
semântico da preposição de; j) tema do inquérito; k) gênero e<br />
l) faixa etária do locutor.<br />
4. Resultados iniciais e análise dos dados<br />
O programa estatístico Goldvarb X (2005) realizou a leitura<br />
dos dados percentuais. Em apenas 7% (34/471) das ocorrências de<br />
SPs locativos há advérbio locativo à esquerda. São 19 casos de aqui,<br />
9 de ali e 6 de lá.<br />
(08) quanto mais leite uma criança puder tomar melhor né até adultos também...<br />
devíamos tomar leite nas refeições mas AQUI no Brasil esse costume não é<br />
nada difundido né?<br />
(09) nunca imaginei que o Fundão pudesse ser uma calamidade como é... eu tenho<br />
a impressão que deve andar até cobra naqueles jardins ALI do Fundão... vocês<br />
trabalham LÁ no Fundão? [233-183]<br />
A ocorrência do tipo de preposição distribui-se conforme a<br />
Fig. 1. Como era esperado, as preposições locativas são as que mais<br />
introduzem o tipo de SP analisado. 1<br />
1 A preposição de pode assumir uma série de valores, a depender do contexto em que<br />
está inserida (cf. FERREIRA, 1999; CUNHA e CINTRA, 2001; LIMA, 2001; HOU-<br />
AISS, 2004; BECHARA, 2009), podendo veicular, especialmente em função de adjunto<br />
adnominal, conteúdos semânticos mais definidos como os das preposições em,<br />
com e para. Essa propriedade da preposição de pode ser analisada como resultado de<br />
ela não apresentar um eixo semântico bem delineado, o que possibilita a sua ocorrência<br />
em contextos onde outras preposições poderiam ocorrer, o que faz de de uma preposição<br />
curinga, com conteúdo semântico difuso, por isso, de difuso (THOMÉ, AN-<br />
DRADE e CALLOU, 2005; AVELAR, 2006; THOMÉ, 2006a e 2006b; SANTOS,<br />
CAMPOS e CALLOU, 2006a e 2006b; VIEGAS, 2008). Esse tipo de afirmação vai<br />
de encontro aos casos em que o item de possui uma significação mais precisa, como<br />
em adjuntos adverbiais que carregam, claramente, as noções de origem ou afastamento.<br />
De, então, possuiria a capacidade de comportar-se tanto como um item gramatical<br />
quanto como um item lexical.
15%<br />
12%<br />
73%<br />
Locativa DE Difuso Direcional<br />
Fig. 1: Distribuição do tipo de preposição<br />
830<br />
Os resultados apontam que somente os SPs que possuem termos<br />
com clara noção locativa admitem o uso do advérbio a sua esquerda<br />
(cf. Tab. 1). Termos em que a noção de lugar confunde-se<br />
com a de meio, como avião, carro, ônibus, ou termos cuja noção de<br />
lugar confunde-se com a de matéria, como pasta, jornal ou bolsa,<br />
não figuraram com advérbio locativo à esquerda do SP locativo.<br />
Caracterização de Presença Ausência<br />
lugar<br />
de advérbio de advérbio Total<br />
Oco % Oco % Oco %<br />
não topônimo 11 5 214 95 225 53<br />
topônimo 23 12 174 88 197 47<br />
Total 34 8 388 92 422 100<br />
Tab. 1: Distribuição do elemento locativo em relação à variável dependente<br />
(10) e depois a cidade ainda... voltou a crescer mais recentemente então pra bairros<br />
residenciais... e com isso ela se uniu a certas outras cidades vizinhas que<br />
eram consideradas cidades e que hoje em dia são bairros de Barcelona...<br />
(133-72)-topônimo<br />
(11) bandeira de porta é uma parte da porta eh... superior... você está vendo aquilo?<br />
bem... aquela parte superior... antigamente... em portas antigas... eh... tinha...<br />
eh... o vidro... tinha o vidro pra... pra... pra.... pra iluminação do... do...<br />
do... do recinto... não é? (233-52)-não-topônimo<br />
O cruzamento do grupo tipo de preposição com o que caracteriza<br />
lugar aponta para o fato de as preposições direcionais serem as<br />
que menos introduzem elemento locativo topônimo, com uma fre-
831<br />
quência de 26%. Já a preposição de com conteúdo semântico difuso<br />
é a que mais introduz topônimos, talvez pelo fato de veicular com<br />
maior frequência o conteúdo semântico de em, preposição essencialmente<br />
locativa (Thomé Viegas, 2008) (cf. Fig. 2).<br />
100%<br />
75%<br />
50%<br />
25%<br />
0%<br />
54%<br />
46%<br />
31%<br />
69%<br />
74%<br />
26%<br />
Locativa DE Difuso Direcional<br />
Topônimo Não-top.<br />
Fig. 2: Distribuição da presença de advérbio por preposição e tipo de lugar<br />
As funções sintáticas de complemento verbal e adjuntos adnominal<br />
e adverbial distribuem-se equilibradamente, assim como as<br />
frequências de presença de advérbio locativo de acordo com as funções<br />
sintáticas (cf. Tab. 2).<br />
Função sintática<br />
Presença<br />
de advérbio<br />
Ausência<br />
de advérbio<br />
Total<br />
Oco % Oco % Oco %<br />
c. verbal 12 7 159 93 171 37<br />
adj. adverbial 12 7 157 93 169 36<br />
adj. adnominal 10 8 115 92 125 27<br />
Total 34 7 431 93 465 100<br />
Tab. 2: Distribuição do elemento locativo em relação à função sintática<br />
(12) eu estou morando em Botafogo que é o bairro onde eu sempre morei... (133-<br />
13)-c. verbal;<br />
(13) sábado ela às vezes quer que eu leve ela pra fazer compras... porque ela não<br />
sabe guiar... então eu tenho que... e eu me recuso a ir a Copacabana num sábado...<br />
guiando... (233-466)-c. verbal;<br />
(14) período de atender despachar encapar cadernos comprar coisas na papelaria<br />
voltar para casa fazer dever... (133-278)-adj. adverbial;
832<br />
(15) os melhores restaurantes franceses do mundo... que são melhores do que em<br />
Paris... porque o garçom serve bem... em Paris o garçom serve como se estivesse<br />
fazendo um favor... né... em Tóquio não... (233-281)-adj. adverbial;<br />
(16) [Papa] que pregava uma espécie de sociedade entre o operário e o patrão... o<br />
patrão entraria com traba/com o capital e o operário entraria com o trabalho...<br />
isso esquematizou novamente o modo de vida... poucos patrões admitem isso...<br />
o governo atual no Brasil preparou um esquema parecido com esses...<br />
(164-116)-adj. adnominal;<br />
(17) geralmente o sujeito que vive em cidade grande é um chato que não tem nada<br />
que fazer no sábado e domingo... não é? [...] a vida em casa geralmente pra<br />
ele é um inferno... (233-573)-adj. adnominal.<br />
Os verbos estativos são os que mais se relacionam ao SP locativo<br />
(cf. Tab. 3). Isso talvez se deva ao fato desse tipo de verbo precisar<br />
ter seu sentido completado com o auxílio de SPs locativos, como<br />
ocorre com o locativo morar e com os copulativos estar e ficar.<br />
Presença<br />
Ausência<br />
Tipo de verbo de advérbio de advérbio Total<br />
Oco % Oco % Oco %<br />
estativo 19 11 149 89 168 52<br />
de processo 4 3 115 97 119 37<br />
de culminação 2 6 33 94 35 11<br />
Total 25 8 297 92 322 100<br />
Tab. 3: Distribuição do elemento locativo em relação ao tipo de verbo<br />
(18) o sindicato é oriundo de antigos regimes sociais desde que o Socialismo Cristão<br />
na metade do século passado... os principais sindicatos estão nos países<br />
mais fortes... os Estados Unidos têm alguns dos sindicatos mais fortes do<br />
mundo que decidem realmente... (164-91)-estativo;<br />
(19) são três ao todo... eu tenho dois netos que são os que estão aqui... hoje... são<br />
filhos do meu filho mais velho que mora em Brasília vieram... passar agora<br />
uns... uns dias aqui conosco... (071-52)-estativo;<br />
(20) ele [professor] não pode ser funcionário se ele se sindicalizar... se sindicalizará<br />
se trabalhar em colégio particular... se o seu empregador for o Estado...<br />
ele não/o sindicato nunca poderá agir contra o seu patrão... (164-268)-de processo;<br />
(21) agora normalmente o jovem quer ir embora pra casa por quê... quer ir embora<br />
de casa por quê? por quê? porque ele não quer ter hora pra chegar em casa...<br />
(373-149)-de culminação.<br />
Em relação à definitude do SP, quando é definido, a presença<br />
de advérbio é maior do que quando não há elemento algum relacio-
833<br />
nado à preposição. Quando o SP é introduzido por elemento indefinido,<br />
não há advérbio a sua esquerda.<br />
Definitude<br />
Presença Ausência Total<br />
do SP locativo de advérbio de advérbio<br />
Oco % Oco % Oco %<br />
sem elemento algum 4 2 156 98 160 36<br />
com elemento definido 30 11 251 89 281 64<br />
Total 34 7 407 93 441 100<br />
Tab. 4: Distribuição do elemento locativo em relação à definitude<br />
O cruzamento do grupo função sintática e definitude do SP<br />
mostra que, em todas as funções, o SP é, na maioria das vezes, definido<br />
(cf. Fig. 3).<br />
100%<br />
80%<br />
60%<br />
40%<br />
20%<br />
0%<br />
31%<br />
69%<br />
43%<br />
57%<br />
37%<br />
63%<br />
A. adverb. C. verbal A. adnom.<br />
Definido Sem elem.<br />
Fig. 3: Distribuição da definitude do SP locativo por função sintática<br />
Os resultados relativos ao gênero e à faixa etária mostram que<br />
a frequência de uso do advérbio distribui-se equilibradamente (Tab.<br />
5 e 6).<br />
Gênero<br />
Presença<br />
de advérbio<br />
Ausência<br />
de advérbio<br />
Total<br />
Oco % Oco % Oco %<br />
masculino 21 9 219 91 240 51<br />
feminino 13 6 218 94 231 49<br />
Total 34 7 437 93 471 100<br />
Tab. 5: Distribuição do gênero do locutor em relação à variável dependente
834<br />
Faixa etária<br />
Presença<br />
de advérbio<br />
Ausência<br />
de advérbio<br />
Total<br />
Oco % Oco % Oco %<br />
1 10 6 156 94 166 35<br />
2 15 8 183 92 198 42<br />
3 9 8 98 92 107 23<br />
Total 34 7 436 93 471 100<br />
Tab. 6: Distribuição da faixa etária do locutor em relação à variável dependente<br />
Somente um estudo em tempo real, com o acréscimo dos resultados<br />
da década de 90, poderá apontar tanto se homens comportam-se<br />
de maneira diferente da das mulheres, quanto se há gradação<br />
etária ou mudança geracional.<br />
5. Conclusões iniciais e etapas futuras<br />
A análise inicial com os dados de 70 mostra que a frequência<br />
de presença do advérbio locativo à esquerda do SP locativo é baixa.<br />
Em uma etapa futura, pretende-se ampliar a amostra de 70 e<br />
estender a análise para dados de fala da década de 90, aprofundando<br />
a avaliação dos resultados a fim de verificar se o padrão de uso se<br />
mantém e quais os fatores relevantes para o uso do advérbio à esquerda<br />
do SP através da obtenção dos pesos relativos. Outra intenção<br />
é observar o mesmo fenômeno no português europeu oral culto, para<br />
investigar se há e quais seriam as diferenças entre as variedades da<br />
língua.<br />
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
AVELAR, J. Adjuntos adnominais preposicionados no português<br />
brasileiro. Tese de doutoramento. Campinas: Unicamp, 2006.<br />
AZEREDO, J. C. Gramática Houaiss da língua portuguesa. 2. ed.<br />
São Paulo: Publifolha, 2008.<br />
BECHARA, E. Moderna gramática portuguesa. 37. ed. ver., ampl. e<br />
atual. Conforme o novo Acordo Ortográfico. Rio de Janeiro: Nova<br />
Fronteira, 2009.
835<br />
CUNHA, C. e CINTRA, L. Nova gramática do português contemporâneo.<br />
3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.<br />
FERREIRA, A. B. H. Novo Aurélio século XXI: o dicionário da língua<br />
portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.<br />
HOUAISS, A. Minidicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de<br />
Janeiro: Objetiva, 2004.<br />
http://www.letras.ufrj.br/nurc-rj<br />
LABOV, W. Padrões sociolinguísticos. Trad. Marcos Bagno, Maria<br />
Marta Scherre e Caroline Cardoso. São Paulo: Parábola, 2008.<br />
______. Principles of Linguistic Change – Volume 1: Internal Factors.<br />
Cambridge: Blackwell, 1994.<br />
______. Sociolinguistic Patterns. Philadelphia: University of Pennsylvania<br />
Press, 1972.<br />
LIMA, C. H. R. Gramática normativa da língua portuguesa. 41. ed.<br />
Rio de Janeiro: José Olympio, 2001.<br />
LYONS, C. Definiteness. Cambridge: Cambridge University Press,<br />
1998.<br />
MIRA MATEUS, Mª H. et alii. Gramática da língua portuguesa. 5.<br />
ed. Lisboa: Caminho, 2003.<br />
NEVES, Mª H. de M. Gramática de usos do português. São Paulo:<br />
UNESP, 2000.<br />
SANKOFF, D.; TAGLIAMONTE, S. A.; SMITH, E. Goldvarb X-A<br />
multivariate analysis application. 2005. Disponível em:<br />
<br />
VIEGAS, E. M. T. Preposições de, em, com e para em adjuntos adnominais:<br />
uma análise variacionista. Dissertação de Mestrado em<br />
Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras,<br />
2008.<br />
______. A funcionalidade da preposição de em corpus do século<br />
XIX. Trabalho de Mestrado. Rio de Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras,<br />
2006a.
836<br />
______. Preposições DE e EM: variação nas línguas escrita e falada<br />
nos séculos XIX e XX. Trabalho de Mestrado. Rio de Janeiro: UFRJ,<br />
Faculdade de Letras, 2006b.<br />
______; ANDRADE, P.; CALLOU, D. Sobre o uso da preposição<br />
DE e EM no português brasileiro: uma abordagem variacionista. In:<br />
SANTOS, D. V. (Org.). Inicia – Revista da Graduação em Letras da<br />
UFRJ, nº 3. Rio de Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras, 2005, p.<br />
161-168.<br />
WEINREICH, U.; LABOV, W.; HERZOG, M. Fundamentos empíricos<br />
para uma teoria da mudança linguística. Trad. Marcos Bagno.<br />
São Paulo: Parábola, 2006.
CONTRIBUIÇÕES AO<br />
DICIONÁRIO ETIMOLÓGICO DA LÍNGUA PORTUGUESA,<br />
DE ANTÔNIO GERALDO DA CUNHA:<br />
AS PALAVRAS COGNATAS EM FOCO<br />
1. Introdução<br />
Messias dos Santos Santana (UESPI)<br />
messiasdsantana@click21.com.br<br />
É comum, ao termos dúvidas quanto à escrita ou à significação<br />
de algumas palavras, recorrermos a um dicionário para dirimirmos<br />
tais dúvidas. Tal situação fez surgir, para o dicionário, um “apelido”<br />
nada muito convencional, segundo se infere a seguir, a partir<br />
dos trechos retirados de Houaiss & Villar (2002): “pai dos burros”,<br />
um “substantivo masculino”, que possui um caráter de “Regionalismo”<br />
e empregado no “Brasil”, em situações de “Uso informal” da<br />
língua portuguesa, como sinônimo de “Dicionário”, com a mesma<br />
significação que esta palavra é empregada em lexicografia.<br />
Ora, a partir de uma caracterização como a apresentada acima<br />
para a palavra dicionário, é possível admitir que, no uso informal (e<br />
aqui não podemos esquecer que uma parcela muito grande da população<br />
brasileira só faz uso dessa variedade linguística), o dicionário é<br />
visto como “uma perfeição só”, como aquele que “dá a última palavra”<br />
em termos de como se grafa uma palavra ou acerca de qual(is) é<br />
(são) sua(s) (“verdadeira(s)”) significação(ões).<br />
Dessa maneira de pensar sobre o dicionário, para considerá-lo<br />
como não apresentando nenhum erro ou equívoco, acredito nada faltar.<br />
E é verdade, pois se existe algo que possui credibilidade incontestável<br />
entre as pessoas que só se expressam através da variedade<br />
coloquial ou fazendo uso de uma língua somente em sua variedade<br />
informal, esse algo é o dicionário.<br />
Se, por outro lado, tivermos o cuidado de consultar o que dizem<br />
Houaiss & Villar (op. cit.), sobre o que é um dicionário, quando<br />
definido em sua concepção lexicográfica, compreenderemos que um<br />
dicionário envolve mais elementos que as compilações da forma de<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1
838<br />
escrever uma palavra e de sua(s) correspondente(s) significação(ões),<br />
conforme abaixo:<br />
Compilação completa ou parcial das unidades léxicas de uma língua<br />
(palavras, locuções, afixos etc.) ou de certas categorias específicas suas,<br />
organizadas numa ordem convencionada, ger. alfabética, e que fornece,<br />
além das definições, informações sobre sinônimos, antônimos, ortografia,<br />
pronúncia, classe gramatical, etimologia etc. ou, pelo menos, alguns<br />
destes elementos [A tipologia dos dicionários é bastante variada; os mais<br />
correntes são aqueles em que os sentidos das palavras de uma língua ou<br />
dialeto são dados em outra língua (ou em mais de uma) e aqueles em que<br />
as palavras de uma língua são definidas por meio da mesma língua.]<br />
Analisando, pois, o que dizem os autores acima, verificaremos<br />
que um dicionário envolve, realmente, muitos outros elementos,<br />
além da simples listagem das palavras de uma língua e de seu(s) correspondente(s)<br />
significado(s). No entanto, dois desses elementos apresentados<br />
por eles chamam a nossa atenção com mais destaque,<br />
em virtude da própria natureza do texto que aqui é escrito: quando<br />
eles contemplam a organização do dicionário, dizendo que suas unidades<br />
léxicas vêm “organizadas numa certa ordem convencionada,<br />
ger.[almente] alfabética” (destaque meu), e quando dizem que ele<br />
pode conter “informações sobre sinônimos, antônimos, ortografia,<br />
pronúncia, classe gramatical, etimologia etc. ou, pelo menos, alguns<br />
destes elementos [A tipologia dos dicionários é bastante variada; os<br />
mais correntes são aqueles em que os sentidos das palavras de uma<br />
língua ou dialeto são dados em outra língua (ou em mais de uma) e<br />
aqueles em que as palavras de uma língua são definidas por meio da<br />
mesma língua.]” (destaque meu). Com isso, Houaiss & Villar chamam<br />
a nossa atenção para a estrutura do dicionário e para os seus<br />
tipos, temas que discutiremos a seguir.<br />
2. Sobre a estrutura e os tipos de dicionários<br />
Embora quase todas as pessoas já tenham visto um dicionário<br />
ou já tenham consultado um, são poucas as que sabem como ele se<br />
estrutura e que a maneira como se encontra organizado está diretamente<br />
relacionada com a sua classificação. Daí, ser importante, sobretudo<br />
para quem estuda dicionários, saber que<br />
Todo diccionario se halla construido y organizado en torno a dos ejos<br />
fundamentales: una macroestructura, constituida por todas sus entra-
839<br />
das dispuestas de acuerdo con un determinado criterio ordenador, junto a<br />
una microestructura o conjunto de informaciones – también dispuestas<br />
de acuerdo con un determinado patrón o patrones – que se ofrecen dentro<br />
del artículo lexicográfico. (DAPENA, 2002, p. 75).<br />
Mas como organizar as entradas 1 de um dicionário? Que critério<br />
levar em consideração? Para Dapena (op. cit., p.71) “la ordenación<br />
a que se hallan sometidas las entradas de un diccionario [...] es<br />
arbitraria y convencional, y responde siempre a unas necesidades de<br />
tipo practico”. Não obstante ser arbitrária e convencional, é possível<br />
afirmar que<br />
La ordenación más frecuente de los diccionarios es la alfabetica; pero,<br />
a su lado, existen otras, que generalmente se dan en combinación con<br />
esta ultima, tales como a ideológica o analógica, por familias etimologicas<br />
o morfológicas y la estadística, a las que podemos añadir [...] la estructural<br />
(DAPENA, op. cit., p.71).<br />
Conclui-se, portanto, que a ordenação das palavras em um dicionário<br />
dá-se em conformidade com o interesse de seu autor, não<br />
havendo, pois, uma maneira obrigatória de ordená-las, ou seja, o lexicógrafo<br />
ordena as palavras de acordo com os critérios que ele define,<br />
atendendo ao que lhe convém, conforme a sua proposta de trabalho<br />
e a finalidade de seu dicionário, podendo os dicionários ser classificados,<br />
na respectividade dos critérios apresentados na citação anterior,<br />
em dicionários “alfabéticos, ideológicos o analógicos, de familias<br />
etimológicas, estadísticos o de frecuencia, estructurales y mixtos”.<br />
(DAPENA, op. cit., p.71).<br />
3. O Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, de Antônio<br />
Geraldo da Cunha<br />
Ao lermos as páginas iniciais do Dicionário Etimológico da<br />
Língua Portuguesa (CUNHA, 2007) – doravante DELP –, percebemos<br />
que é nítida a preocupação de Cunha em apresentar ao seu leitor<br />
os critérios que ele elege para estruturar o seu dicionário:<br />
Com o propósito de facilitar ao consulente o manuseio do Dicionário<br />
(destaque do autor), julgamos oportuno adotar, também, a ordenação<br />
1 O conceito de entrada que se adotará, aqui, está conforme Dapena (op. cit., p. 136),<br />
isto é, a palavra que inicia o verbete de um dicionário e a respeito da qual são apresentadas<br />
algumas informações.
840<br />
alfabética, que é a mais normal e a mais comum em obras deste gênero.<br />
Convém notar, porém, que certos verbetes mereceram tratamentos diferenciados,<br />
em face das suas características peculiares e, principalmente,<br />
em razão das vantagens que adviriam da reunião em um só verbete dos<br />
derivados, compostos e cognatos do vocábulo que intitula o verbete, para<br />
melhor compreensão das origens e da história de cada um desses vocábulos.<br />
(p. XI, grifo nosso).<br />
Tanto no trecho acima quanto no que abaixo se segue, podemos<br />
perceber o seu interesse em deixar clara a relação etimológica<br />
entre os vocábulos que compõem esse dicionário:<br />
Para melhor elucidar o consulente no tocante às íntimas correlações<br />
etimológicas entre vocábulos de mesma origem remota e, mais particularmente,<br />
com o objetivo de economizar o espaço físico do Dicionário<br />
(destaque do autor), propiciando assim um melhor aproveitamento da<br />
matéria e a consequente inclusão de um maior número de vocábulos, reuniram-se<br />
num único verbete, como já mencionamos anteriormente, os<br />
principais derivados, compostos e cognatos do vocábulo em epígrafe. (p.<br />
XIX, grifo nosso).<br />
Considerando, portanto, as duas citações acima retiradas do<br />
DELP, fica nítida a preferência de Cunha por distribuir, ao longo da<br />
estrutura de seu dicionário, as palavras alfabeticamente e por famílias<br />
etimológicas, sendo que esta última distribuição “consiste en la<br />
agrupación en torno a una raíz, étimo o palabra inicial en una derivación,<br />
de todos los vocablos emparentados” (DAPENA, op. cit., p. 73)<br />
e, com isso, ele opta por apresentar as palavras que são cognatas<br />
“num único verbete”.<br />
Dessa forma e considerando o que diz Dapena (op. cit., p. 71),<br />
sobre os tipos de dicionário, conforme acima, o título do dicionário<br />
de Cunha encontra-se, pois, justificado, ou seja, é um dicionário que<br />
contém informações etimológicas sobre palavras da língua portuguesa,<br />
as quais estão nele dispostas alfabeticamente, para que o leitor<br />
possa melhor manuseá-lo e perceber as relações etimológicas entre<br />
elas.<br />
Mas será que Cunha, realmente, apresenta todas as palavras<br />
que são cognatas em um único verbete ao longo da estrutura de seu<br />
dicionário?
846<br />
Após todas essas explanações, podemos perceber que as palavras<br />
acima – mas também todos os outros grupos de palavras analisados<br />
nesta seção – quando analisadas numa perspectiva sincrônica,<br />
deixam dúvidas quanto a serem ou não cognatas, dúvidas essas que,<br />
num estudo diacrônico, não mais se fazem presentes, e a classificação<br />
delas como cognatas é feita com uma segurança que não é<br />
transmitida pela análise sincrônica.<br />
4. Conclusões<br />
O que até aqui foi exposto permite-nos chegar a algumas conclusões<br />
importantes acerca dos dicionários de uma forma geral, mas<br />
especialmente sobre o DELP, no que diz respeito à distribuição das<br />
palavras cognatas ao longo de sua estrutura.<br />
Uma primeira informação importante é que a construção de<br />
um dicionário é sustentada através de conhecimentos que permitem<br />
ao lexicográfico, considerando sua proposta de trabalho, organizar a<br />
estrutura de seu dicionário de modo a permitir um manuseio satisfatório.<br />
Essa foi a proposta de Cunha, no DELP, conforme podemos<br />
perceber através da análise de trechos iniciais de duas citações que<br />
aqui foram apresentadas, como em: “Com o propósito de facilitar ao<br />
consulente o manuseio do Dicionário [...] (destaque do autor, p. XI);<br />
e através deste outro: “Para melhor elucidar o consulente no tocante<br />
às íntimas correlações etimológicas entre vocábulos de mesma origem<br />
remota [...]” (p. XIX).<br />
Apesar de seu interesse em apresentar as palavras cognatas<br />
em um mesmo verbete, verificamos, a partir do que expusemos, que,<br />
no tocante ao tratamento dado às palavras cognatas, existem equívocos,<br />
ou seja, Cunha dispõe algumas palavras que são cognatas em<br />
verbetes diferentes, como se elas não fossem cognatas, pelo “[...] fato<br />
de ele ter concentrado as suas análises em informações sincrônicas,<br />
como, por exemplo, as formas e as significações atuais dessas<br />
palavras” (SANTANA, op. cit., p. 81).<br />
Dessa forma, com o que aqui apresentamos sobre o DELP,<br />
esperamos chamar a atenção, sobretudo, dos que se dedicam ao estu-
847<br />
do da lexicografia, para o aprimoramento desse dicionário no que se<br />
refere aos problemas apontados.<br />
Por fim, resta-nos deixar claro que o fato de as palavras aqui<br />
apresentadas estarem dispostas como não constituindo palavras cognatas<br />
não significa, necessariamente, que Cunha e seus auxiliares<br />
não as pudessem reconhecer como cognatas ou que não soubessem<br />
que elas são cognatas – o que fica difícil até de imaginar quando se<br />
observam as palavras amar, amigo e amor. Os dados, no entanto, tais<br />
como foram analisados, permitem-nos afirmar que há um número<br />
significativo de palavras cognatas no DELP que não estão assim caracterizadas.<br />
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário etimológico da língua<br />
portuguesa. 3. ed. Rio de Janeiro: Lexikon, 2007.<br />
DAPENA, José-Álvaro Porto. Manual de técnica lexicográfica. Madrid:<br />
Arco/Libros, 2002.<br />
ERNOUT, A.; MEILLET, Antoine. Dictionnaire étymologique de la<br />
langue latine: histoire de mots. Paris: Klincksieck, 1959.<br />
FARIA, Ernesto. Dicionário escolar latino-português. 6. ed. Rio de<br />
Janeiro: FAE, 1985.<br />
HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Sales. Dicionário eletrônico<br />
Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002.<br />
CD-ROM.<br />
OLIVEIRA, Josenir Alcântara de. A produtividade fonéticosemântica<br />
e cultural da raiz indo-europeia *pel- ‘dobrar’. 3. v. Tese.<br />
USP, São Paulo, 2002.<br />
SANTANA, Messias dos Santos. Nem tudo que é parece e nem tudo<br />
que parece é: mudando a língua, não reconhecendo os cognatos. Dissertação.<br />
UFPI, Teresina, 2009.<br />
SARAIVA, F. R. Santos. Novíssimo dicionário latino-português: etimológico,<br />
prosódico, histórico, geográfico, mitológico, biográfico,<br />
etc. 11. ed. Rio de Janeiro: Garnier, 2000.
CRÍTICA TEXTUAL E CRÍTICA DE PROCESSO:<br />
EDIÇÃO E ESTUDO DO TEXTO TEATRAL<br />
1. Espaço delimitado: primeiras palavras<br />
Rosa Borges dos Santos (UFBA)<br />
borgesrosa6@yahoo.com.br<br />
Neste trabalho, discutem-se brevemente algumas questões relativas<br />
à edição e ao estudo de textos teatrais censurados na Bahia no<br />
período da ditadura militar, no âmbito das críticas, textual e de processo<br />
(Crítica Genética), considerando as especificidades da obra teatral,<br />
em quadro teórico e metodológico que atenda aos processos de<br />
composição e de transmissão da obra, observando-se como certo autor<br />
ou transmissor interfere no texto e, como isso, atribui significados<br />
a significantes em duas dimensões processuais, discursiva e material<br />
(DUARTE, 2007). As observações serão aqui construídas a partir de<br />
alguns dos textos que compõem o Arquivo Textos Teatrais Censurados<br />
na Bahia.<br />
2. Diálogos entre críticas: textual e genética<br />
A crítica tradicional filológica, com o propósito, de reconstituir<br />
o texto final para ser lido, representativo do ânimo autoral, tendia<br />
para um fim pré-determinado, o de buscar um texto acabado, um<br />
produto. Ressalte-se, porém, que a Crítica Textual já estudava os<br />
rascunhos, os esboços, os manuscritos, entre outros elementos, ou seja,<br />
considerava, de certa forma, o processo, mas para cumprir uma<br />
finalidade: estabelecer um texto final, expurgando as alterações introduzidas<br />
ao longo do tempo pelos diversos agentes, escritor e<br />
transmissor. Embora as edições tivessem aparato crítico, comentários<br />
e uma série de outras estratégias de contemplação das variantes do<br />
texto, quer autorais, quer editoriais, elas ficavam à margem, sem que<br />
fossem tomadas como “chaves de leitura do texto”.<br />
Quando a Crítica Genética começa a trabalhar com as variantes<br />
autorais com vistas à compreensão do processo de criação de um<br />
autor, assume-se, cada vez mais, na Crítica Textual, o interesse pelo<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1
849<br />
processo de construção do texto, conciliando, além da perspectiva filológica,<br />
orientações de outros campos do saber, da teoria literária,<br />
das críticas, literária e biográfica, da história literária e da arquivística<br />
literária.<br />
O filólogo, editor de textos, ocupar-se-ia dos textos enquanto<br />
processo e produto, ou somente enquanto processo, conforme situação<br />
textual examinada e finalidade do trabalho a ser realizado; e o<br />
critico genético trabalharia com os documentos que testemunham o<br />
processo escritural, tudo que vem antes do texto. Combinadas, atuam no<br />
sentido de recuperar, reconstituir e interpretar textos e suas versões.<br />
Quanto à edição no âmbito das Críticas aqui expostas, esclarece-se<br />
que, no terreno da filologia, a prática editorial faz-se de acordo<br />
com cada situação textual encontrada. Interessa, portanto, oferecer<br />
ao leitor um ou mais texto(s) dado(s) a ler, fundamentando-se em<br />
critérios científicos rigorosos. Assim, a opção se daria por uma edição<br />
crítica, crítica em perspectiva genética, histórico-crítica, sinóptico-crítica,<br />
diplomática e fac-similar.<br />
No que tange à Crítica de Processo, a edição pode constituirse,<br />
conforme afirma Grésillon (1994), de: reprodução dos documentos<br />
sob a forma de fac-símiles; transcrição que respeite a topologia<br />
da página manuscrita, linearizada, mista – diplomática e linearizada<br />
–, e diplomática (GRÉSILLON, 1994, p. 121-135); e comentários<br />
que permitam ao leitor refazer os caminhos da escritura. Interessando-se<br />
pela dinâmica escritural, realizam-se: edição fac-similar, edições<br />
genéticas propriamente ditas, edição genética eletrônica (GRÉ-<br />
SILLON, 1994, p. 177-202) para tornar o prototexto 1 visível, legível<br />
e inteligível.<br />
Deve-se, no entanto, atentar-se para as limitações dos suportes,<br />
papel ou computador, no que tange à apresentação do texto ou do<br />
processo, a escrita em movimento. A passagem para o suporte ele-<br />
1 Termo cunhado por Jean Bellemin-Noel em sua obra O texto e o prototexto para designar “o<br />
conjunto de documentos escritos que carregam algum tipo de testemunho do processo escritural<br />
[...] e, caso se faça necessário, as reescrituras que antecedem a nova edição do texto”<br />
(GRÉSILLON, 2009, p. 43).
850<br />
trônico “convida o leitor a abrir seu próprio caminho pela materialidade<br />
imaterial da edição eletrônica” (GRÉSILLON, 2009, p. 50).<br />
No exame desses materiais, vários campos do saber se harmonizam<br />
em torno do texto, filologia, codicologia, paleografia, teoria<br />
literária, historia literária, lingüística, estilística, entre outros. Em<br />
perspectiva filológica, vale-se então dos saberes que saem desses lugares<br />
teóricos com a finalidade de editar e interpretar os textos.<br />
Outro aspecto importante a considerar é o caráter memorialístico<br />
que tais textos (testemunhos, documentos e monumentos) apresentam,<br />
ficando atento para as marcas de como a memória se manifesta<br />
nesses materiais, pondo em relevo o processo de criação.<br />
3. Texto em cena: processo de produção e transmissão do texto<br />
teatral<br />
Almuth Grésillon (1995), no artigo Nos limites da Gênese: da<br />
escritura do texto de teatro à encenação, trata da necessidade de esclarecimentos<br />
a respeito do texto de teatro em relação ao texto em<br />
prosa ou verso no que se refere à análise do processo de gênese.<br />
Chama atenção para o fato de que, mesmo depois de o dramaturgo<br />
estabelecer seu imprimatur como para selar o fim absoluto do percurso<br />
genético, pode-se ainda partir em direção a novos desdobramentos<br />
escriturais (GRÉSILLON, 1995).<br />
Para a edição e análise da obra teatral, deve-se considerar que<br />
Cada texto es un producto histórico: […] que en él se reflejan – filtradas<br />
por una serie más o menos numerosa de mediaciones estéticoculturales<br />
– la situación personal del autor, su concepción del mundo, los<br />
conflictos socio-económicos por él vividos, sus experiencias existenciales,<br />
sus conocimientos teóricos y prácticos, el grado de su adhesión a toda<br />
clase de convenciones de su tiempo y de la colectividad a la cual pertenece<br />
(TAVANI, 1988, p. 35). 2<br />
2 Tradução nossa: Cada texto é um produto histórico: [...] que nele se refletem – filtradas por<br />
uma série mais ou menos numerosa de mediações estético-culturais – a situação pessoal do<br />
autor, sua concepção de mundo, os conflitos socioeconômicos vividos por ele, suas experiências<br />
existenciais, seus conhecimentos teóricos e práticos, o grau de sua adesão a toda classe<br />
de convenções de seu tempo e da coletividade a qual pertence.
851<br />
Nesse sentido, faz-se necessário conhecer o processo de produção<br />
e transmissão do texto teatral tomado em suas particularidades,<br />
a saber: é feito para ser encenado, tem estrutura, conteúdo e funções<br />
específicas, traz anotações do diretor, dos atores, quando tratam,<br />
por exemplo, da composição de suas personagens, indicações<br />
cênicas etc.. Todos os textos (do autor, do diretor, do ator, dentre outros)<br />
derivam do que se pode chamar de “texto do autor”. Cabe, portanto,<br />
ao editor considerar tais peculiaridades do teatro, que se constitui<br />
de TEXTO e de ENCENAÇAO, como afirma Luigi Giuliani<br />
(2006, p. 2):<br />
El texto, fijo y durable, y la representación, efímera, constituyen las<br />
dos vertientes de lo que llamamos teatro, son – parafraseando una célebre<br />
definición de Saussure –, las dos caras de una misma hoja: no podemos<br />
separarlas so pena de hacer desaparecer la hoja misma. 3<br />
O texto teatral é, desse modo, parte de um sistema múltiplo e<br />
instável, não existindo, nesse caso, como obra acabada, definitiva,<br />
pois está sempre em contínuo movimento. Deve-se, no entanto, levar<br />
em conta dois aspectos: o texto escrito para ser encenado (texto/representação)<br />
que orienta a performance, e o texto enquanto objeto<br />
literário, destinado à leitura.<br />
Gadelha (1993) afirma que o texto teatral, efêmero por natureza,<br />
por sua dupla existência como literatura e espetáculo, exige<br />
uma edição que seja elaborada segundo critérios científicos. Contudo,<br />
edições de textos teatrais, seja no campo da Crítica Textual e ou<br />
da Crítica de Processo (Genética), são ainda em número reduzido no<br />
Brasil.<br />
O Instituto Nacional de Artes Cênicas – INACEN, órgão do<br />
Ministério da Cultura, ocupou-se do preparo de edições fidedignas<br />
nas áreas da Dramaturgia Brasileira e do Patrimônio Histórico e Artístico<br />
Nacional, publicando a Coleção Clássicos do Teatro Brasileiro,<br />
com vistas à divulgação das obras de teatro de autores brasileiros,<br />
permitindo a outros profissionais o acesso a textos para leitura e encenação<br />
(MARINHO, 1986).<br />
3 Tradução nossa: O texto, fixo e durável, e a representação, efêmera, constituem as duas vertentes<br />
do que chamamos teatro, são – parafraseando uma célebre definição de Saussure –, as<br />
duas faces da mesma moeda: não podemos separá-las sob a pena de fazer desaparecer a<br />
própria moeda.
852<br />
Na Bahia, o Grupo de Edição e Estudo de Textos, através da<br />
Equipe Textos Teatrais Censurados, coordenada pela professora e<br />
pesquisadora, Rosa Borges, tem-se ocupado de reunir tais textos para<br />
desenvolvimento de teorias de edição, modelos editoriais e estudo.<br />
Recorta-se, a partir desse momento, o texto teatral censurado, produzido<br />
na Bahia no período da ditadura militar, que se caracteriza pela<br />
ação de vários sujeitos que nele interferem, direta ou indiretamente,<br />
autores, diretores, atores, e até mesmo censores, para se tecerem as<br />
observações.<br />
Tem-se, em determinada situação, um texto, perene e único,<br />
encaminhado ao Serviço de Censura da Polícia Federal, algumas vezes<br />
publicados nas Revistas de Teatro ou mesmo em livro; em outra,<br />
um texto efêmero e múltiplo, que se modifica a cada performance. É<br />
neste espaço que se conciliam os trabalhos da Crítica Textual e da<br />
Crítica Genética ou Crítica de Processo. A Crítica Textual daria conta<br />
da edição de um texto, que estabelece, ainda que provisoriamente,<br />
e divulga; enquanto a Crítica Genética analisaria os movimentos de<br />
escritura, evidenciando diferentes versões de uma obra.<br />
Passa-se à descrição do processo de produção e transmissão<br />
do texto teatral censurado. São textos datiloscritos, em sua maioria,<br />
originais ou cópias mimeografadas ou xerocopiadas, que apresentam<br />
cortes destacados em vermelho ou azul, identificados com um carimbo<br />
com as seguintes inscrições: CORTE ou COM CORTES. Outros<br />
carimbos também se registram no suporte textual: da Divisão de<br />
Censura de Diversões Públicas (DCDP) do Departamento da Polícia<br />
Federal (DPF), em formato redondo e retangular; da Superintendência<br />
Regional da Bahia – Censura Federal – Departamento da Polícia<br />
Federal; da Sociedade Brasileira de Autores Teatrais – SBAT. Vejase<br />
abaixo uma folha datilografada de um texto de João Augusto, com<br />
cortes e carimbo da DCDP do DPF, que se encontra no acervo do<br />
Teatro Vila Velha, e outra folha de um texto de Nivalda Costa, Vegetal<br />
Vigiado, com outros carimbos, da DCDP e da SBAT, e com cortes,<br />
além de anotações manuscritas a tinta azul.
Fig. 1 – Carimbos e cortes no texto Quem não morre num vê Deus, de João Augusto<br />
Fonte: Acervo do Teatro Vila Velha<br />
853
Fig. 02 – Carimbos e cortes no texto da peça Vegetal vigiado, de Nivalda Costa<br />
Fonte: Acervo do Espaço Xisto Bahia<br />
854
4. Processo de criação: análise em textos teatrais censurados<br />
855<br />
Para ilustrar um possível estudo do processo de criação, tomam-se<br />
alguns excertos de textos teatrais submetidos ao exame da<br />
Censura Federal.<br />
Em (Gay) Paradise 4 , texto de Walter Dultra Grimm, com dois<br />
testemunhos, a palavra Gay foi rasurada, apagada, em um deles, aquele<br />
submetido ao exame da Censura Federal, talvez por autocensura,<br />
diante da possibilidade de corte por parte dos censores. Comparem-se<br />
os testemunhos a partir da capa do texto da peça (Fig. 3 e 4):<br />
Fig. 03 – Capa do texto encaminhado ao Serviço de Censura<br />
Fonte: Acervo do Espaço Xisto Bahia<br />
Fig. 04 – Capa do texto para encenação<br />
Fonte: Acervo do Espaço Xisto Bahia<br />
Outra situação que se pode examinar nos textos teatrais censurados<br />
diz respeito à ação do censor, diferente da provável censura<br />
do autor mostrada acima. Observa-se no excerto abaixo do datiloscri-<br />
4 São dois os testemunhos dessa obra e embora não tragam datas, a peça foi encenada em<br />
1983, conforme Aninha Franco (1994), em O teatro na Bahia através da imprensa, no Teatro<br />
Gamboa.
856<br />
to de À Flor da Pele, texto de Consuelo de Castro, submetido ao exame<br />
da censura em 1974, o corte do censor, de cunho moral, que silencia<br />
as práticas sexuais dissonantes com o que preconiza a formação<br />
ideológica religiosa cristã:<br />
.<br />
(f. 40, l.33-35; f. 41, l. 1-4) 5<br />
Tais marcas (cortes) na materialidade do texto possibilitam o<br />
entendimento desse movimento contínuo característico da obra teatral,<br />
do texto à cena, intensificado pela intervenção dos censores, envolvendo<br />
procedimentos diversos diante do veto, no sentido de encenar<br />
ou não a peça, de usar de estratégias para dar conta da lacuna<br />
deixada pelos cortes etc., considerando, desse modo, as modificações<br />
feitas ao texto por ação de outros.<br />
Sônia Khéde (1981, p. 93) esclarece que:<br />
No relacionamento da censura com a obra de arte, aquela não deseja<br />
julgá-la esteticamente e sim ideologicamente […] resultando daí um ato<br />
triplamente acrescentado: a censura do escritor, a censura do censor e<br />
como feedback a autocensura ideológica, decorrente da censura ideológica<br />
do censor.<br />
Assim, vê-se que como consequência desse relacionamento<br />
entre censura e obra, a postura de dramaturgos e intelectuais que<br />
adotaram diferentes estratégias para driblar a ação da censura, tais<br />
como: “valer-se de episódios/personagens históricos e de obras/autores<br />
clássicos para discutir a situação atual e a realidade brasileira”<br />
(GARCIA, 2008, p. 306), empregar linguagem figurada, metáforas,<br />
alusões, jogos simbólicos, digressões, “títulos dissuasivos ou palavrões<br />
em excesso para desviar a análise censória dos objetivos prin-<br />
5 O trecho citado foi todo cortado pelo censor.
857<br />
cipais da peça teatral” (GARCIA, 2008, p. 306), deixar espaços em<br />
branco, dentre outros recursos realizados durante a encenação,<br />
trocando, muitas vezes, a palavra pelo gesto significativo.<br />
Veja-se que as anotações manuscritas feitas em um dos testemunhos<br />
do texto História da Paixão do Senhor (Fig. 5), de João<br />
Augusto, foram consideradas no datiloscrito passado a limpo, enviado<br />
à Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP). Situação<br />
nem sempre comum no que se refere à obra teatral.
Fig. 5 – Testemunhos de História da paixão do Senhor (s.d.)<br />
858
859<br />
Anotações manuscritas de Cleise Mendes (1980) em folha em<br />
branco entre os papéis que testemunham o preparo da peça Cândido:<br />
o herói sem nenhum caráter ou Cândido ou O Otimismo, original de<br />
Voltaire, adaptado por Cleise Mendes a partir de tradução portuguesa<br />
6 , evidenciam o diálogo constante e o trabalho integrado de um<br />
grupo, que envolve diretores e atores no processo, tais como Armindo<br />
Bião e Deolindo Checcucci. Há ainda sugestão de corte, de correção<br />
etc. Confiram-se tais informações na figura abaixo:<br />
Fig. 06 - Cândido: “O herói de muito caráter” / Cândido ou O Otimismo<br />
Adaptação de Cleise Mendes<br />
6 Informação verbal.
860<br />
Diante das situações textuais acima expostas, propõem-se algumas<br />
práticas editoriais que levem em conta o trabalho integrado de<br />
dois campos do conhecimento, e, ao mesmo tempo, de dois métodos<br />
críticos para a análise literária, a Crítica Textual e a Crítica Genética<br />
(Crítica de Processo).<br />
Desse modo, visando à conservação e à preservação dos textos<br />
trabalhados e também para torná-los acessíveis a outros interessados,<br />
faz-se a digitalização dos mesmos. Devido ao avanço tecnológico,<br />
tem-se optado pela edição fac-similar 7 ou a simples reprodução<br />
fotográfica, transferindo-se a imagem do documento para o meio digital.<br />
Alguns dos textos reunidos no Arquivo Textos Teatrais Censurados<br />
se prestam a diferentes tipos de edição, apresentadas a seguir,<br />
enquanto propostas de edição que atendam a esse diálogo entre<br />
as Críticas, Textual e Genética.<br />
Segundo Grésillon (1995, p. 11):<br />
A Gênese do texto de teatro obriga então a uma mudança de direção.<br />
Ela proíbe que o encaminhamento genético seja sistematicamente barrado<br />
pelos limites impostos pelo texto impresso, considerado versão ne varietur.<br />
Os dossiês genéticos de teatro ensinam-nos que os projetos de encenação<br />
determinam, muitas vezes, repercussões textuais que podem dar<br />
à obra escrita uma orientação totalmente diferente (GRÉSILLON, 1995,<br />
p. 11).<br />
Diante do exposto, sugere-se para uma situação que se caracteriza<br />
pelo exame das variantes autorais, uma metodologia analítica<br />
que possa determinar uma matriz ou matrizes de criação do texto ou<br />
da obra de um autor, conforme se posiciona Santos (2008) em artigo<br />
que trata da metodologia aplicada à edição de textos teatrais. Para<br />
tanto, levar-se-iam em conta os seguintes critérios para a realização<br />
da edição genética:<br />
a) Reunião dos textos (autógrafos) de um determinado dramaturgo;<br />
7 A edição fac-similar é uma “[...] reprodução obtida por meios mecânicos (litografia, fotografia,<br />
fototipia etc.) de um texto manuscrito, impresso ou esculpido, cujo testemunho se revela muito<br />
importante, do ponto de vista estético e filológico, e é de difícil acesso” (APL, 1920 apud DU-<br />
ARTE, 1997, p. 76).
861<br />
b) Investigação do processo de criação efetivado pelo escritor,<br />
identificando os padrões de criação que ela apresenta;<br />
c) Determinação dos elementos (“de natureza estrutural, ou seja,<br />
constitui uma das bases sobre a qual se erige a produção do<br />
criador” (BRITO; GUINSBURG, 2006, p. 21) que deverão<br />
ser considerados no estabelecimento da matriz (“é um quadro<br />
formado por elementos de criação que o artista escolhe para<br />
gerar sua obra” (BRITO; GUINSBURG, 2006, p. 20) bem<br />
como os procedimentos (“ação do artista no uso dos elementos<br />
eleitos” (BRITO; GUINSBURG, 2006, p. 21) adotados,<br />
com o objetivo de esclarecer os modos pelos quais o autor<br />
configura esses elementos.<br />
A busca de uma matriz criativa do autor apóia-se no método<br />
comparativo, o qual revela aspectos comuns e diferentes do objeto<br />
analisado. Consideram-se os modos de composição da obra e como<br />
esta produção dialoga com a realidade artística, cultural e social nas<br />
quais esta obra se insere e como o autor incorpora, em seu processo<br />
criativo, novos instrumentos inspirados por esse contexto. Interessa,<br />
portanto, o processo criativo e não a obra, no que tange à edição genética.<br />
Outra sugestão seria a elaboração de uma edição crítica em<br />
uma perspectiva genética que procurará trazer à tona o momento textual<br />
último, pelo menos no que concerne aquele processo de produção,<br />
de manipulação do texto pelo escritor, e, através do exame do<br />
texto teatral, mostrar os caminhos da criação, a partir dos materiais<br />
autógrafos reunidos, definindo as marcas estilísticas, o usus scribendi,<br />
8 que, por sua vez, deverão fornecer subsídios para outras leituras<br />
ou conjecturas por parte de estudiosos do assunto e até mesmo para<br />
tomadas de decisões do editor quando da fixação do texto crítico ou<br />
determinar a lição 9 definitiva face a uma lição alternativa. 10 Para a<br />
8 Diz respeito ao estilo do autor do texto em que se trabalha.<br />
9 Entende-se por LIÇÃO o conteúdo de um lugar do texto em qualquer de seus testemunhos;<br />
pode ser substantiva (palavras ou frases) ou adjetiva (sinais de pontuação e capitalização, por<br />
exemplo) (DUARTE, 1997, p. 82).<br />
10 Diz-se que uma LIÇÃO é ALTERNATIVA quando o escritor apresenta várias lições para o<br />
mesmo lugar, não se decidindo por nenhuma delas.
862<br />
edição crítica em uma perspectiva genética, são relevantes o processo<br />
de criação e a obra.<br />
Uma edição crítico-genética, portanto, é aquela que combina<br />
os objetivos e os métodos da edição crítica e da edição genética: por<br />
um lado, edita o texto e anota todas as intervenções do editor bem<br />
como prepara um aparato de variantes da tradição; por outro, faz a<br />
recensão de todos os manuscritos relacionados com o texto, classifica-os,<br />
organiza-os e descreve-os, e registra em aparato genético as<br />
sucessivas alterações autorais, lugar a lugar e testemunho a testemunho.<br />
Enquanto crítica, procura fixar o texto mais autorizado; enquanto<br />
genética, documenta o percurso seguido pelo autor na construção<br />
do texto, fornecendo ao leitor o registro total e ordenado dos estados<br />
evolutivos por que passou o texto, com as correções, as alternativas e<br />
as hesitações do autor, permitindo ao leitor a possibilidade de reconstituir,<br />
por si próprios, os estados pertinentes (CARVALHO,<br />
2003).<br />
Quanto à edição histórico-crítica de tradição alemã, Louis<br />
Hay (2007, p. 346) esclarece que a “distinção entre as edições ‘histórico-críticas’<br />
e edições genéticas baseia-se na escolha de seus procedimentos<br />
editoriais.” Ela, porém, estaria bem situada entre a edição<br />
crítica e a genética, destacando-se que, na atividade filológica, o manuscrito<br />
é abordado na pluralidade de suas significações, em uma<br />
perspectiva crítica e hermenêutica.<br />
Propõe-se ainda fazer uma edição sinóptica que “consiste en<br />
la reproducción simultánea (normalmente en páginas contrastadas o<br />
en columnas paralelas, verticales u horizontales) de la transcripción<br />
diplomática de todos y cada uno de los testimonios de la tradición de<br />
una obra (PÉREZ PRIEGO, 1997, p. 44).” 11 Tal edição tem a<br />
vantagem de dar a ler simultaneamente diferentes versões.<br />
11 Tradução nossa: [...] consiste na reprodução simultânea (normalmente em páginas contrastadas<br />
ou em colunas paralelas, verticais ou horizontais) da transcrição diplomática de todos e<br />
de cada um dos testemunhos da tradição de una obra.
5. Limites encerrados: palavras finais<br />
863<br />
Observam-se, portanto, nos textos teatrais censurados, em<br />
seus aspectos materiais e discursivos, inúmeros vestígios e diferentes<br />
marcas de vários agentes, o escritor, o transmissor, o censor, o diretor,<br />
os atores, entre outros. Cabe aos estudiosos interessados entender<br />
essas peculiaridades que caracterizam a obra teatral, para que se possa<br />
analisar o processo de criação evidenciado por tais marcas, considerando<br />
o percurso do texto à cena, bem como os processos de produção,<br />
recepção e circulação de tais textos. São importantes, para essa<br />
análise, roteiros, rascunhos, anotações, entrevistas com as pessoas<br />
envolvidas com a montagem das peças, notícias veiculadas nos jornais<br />
que circularam àquela época, e, sobretudo, textos submetidos ao<br />
exame da Censura Federal.<br />
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FFCH da USP, 16 a 20 de setembro de 1985. Publicação em<br />
1986, p. 175-292.<br />
PÉREZ PRIEGO, Miguel Ángel. La edición de textos. Madrid: Síntesis,<br />
1997.
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SANTOS, Rosa Borges dos. Uma metodologia aplicada à edição de<br />
textos teatrais. In: MAGALHÃES, José Sueli de; TRAVAGLIA, Luiz<br />
Carlos (Orgs.). Múltiplas Perspectivas em Linguística. Uberlândia:<br />
Edufu, 2008. 1 CD-ROM.<br />
TAVANI, Giuseppe. Teoría y metodología de la edición critica de<br />
textos literarios contemporáneos. In: LITTERATURE LATINO-<br />
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pratique de l’édition critique. Roma: Bulzoni, 1988, p. 65-84. (Collection<br />
Archives).
CULTURA PARTILHADA E PUBLICIDADE<br />
USOS LEXICAIS NO DISCURSO PUBLICITÁRIO<br />
1. Considerações iniciais<br />
Nelly Carvalho (UFPE)<br />
nellycar@terra.com.br<br />
A língua, não tendo função em si, existe para expressar a cultura<br />
e possibilitar que a informação circule. Ela corporifica as demais<br />
interpretações culturais, como as letras nas músicas, a oração na religião,<br />
a descrição e a especificação na moda, a receita na culinária, o<br />
título nas obras de arte.<br />
A cultura é transmitida pela língua, sendo também seu resultado,<br />
o meio para operar e a condição da subsistência dessa cultura.<br />
O discurso publicitário é também matizado pela cultura em que está<br />
inserido, seja no vocabulário escolhido, seja nas imagens selecionadas.<br />
A competência do discurso publicitário e a sua eficácia vão de<br />
pender da forma como representa a cultura em que está inserido,<br />
permitindo estabelecer uma relação pessoal com a realidade próxima.<br />
A presença de índices carregados de cultura partilhada pela comunidade<br />
aumenta o poder de persuasão e sedução da mensagem veiculada,<br />
pois apela para valores que circulam e são aceitos, sendo entendidos<br />
facilmente. Na publicidade brasileira, podemos observar<br />
que, enquanto algumas mensagens dirigem-se a um público-alvo nacional,<br />
outras são construídas visando a um público-alvo mais específico,<br />
regional.<br />
2. Fundamentos linguísticos<br />
Língua e cultura formam um todo indissociável e, no caso da<br />
língua e da cultura maternas, esse todo não é ensinado em nenhum<br />
lugar especial, mas adquirido ao sabor dos acontecimentos cotidianos.<br />
Ele identifica os indivíduos como participantes de uma coletividade<br />
e serve de denominador comum para o convívio social.<br />
No caso da língua portuguesa – falada no Brasil e em Portu-
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867<br />
gal, consistindo em duas vertentes de uma mesma língua – veiculamse<br />
culturas que, embora tenham raízes comuns, diversificaram-se ao<br />
longo da história.<br />
Os componentes de uma língua são de ordem fonológica, sintática<br />
e semântico-lexical.<br />
Todos estes sofrem diferenciações quando submetidos a influências<br />
diversas e são observadas na pronúncia, nas escolhas sintáticas,<br />
nas alterações de sentido, nas escolhas do termo, em vertentes<br />
diferentes de uma mesma língua.<br />
É, contudo, o componente semântico-lexical que revela com<br />
maior clareza as divergências entre os usos por diferentes comunidades<br />
linguísticas. O léxico, nomeando as realidades extralinguísticas<br />
vai permitir compreender conceitos abstratos e nomear diferentes<br />
ocorrências da vida cotidiana.<br />
As diferenças entre nações que têm em comum a língua materna,<br />
no caso, Brasil e Portugal, são um tipo particular de fronteira<br />
cultural: a identidade é percebida pelo que se é (explícito) e pelo que<br />
não se é (implícito).<br />
Um saber comum é constituído de uma rede de forças. O<br />
principio de exclusão dos não iniciados naquele saber partilhado é<br />
decisivo para o sentido que tomam os signos: é o que acontece em<br />
toda a comunidade cultural, seja qual for a sua extensão.<br />
O jogo é sempre o mesmo: no momento da comunicação, entender<br />
um signo é construir uma linha de demarcação entre os que<br />
compartilham o sentido evocado e os que ficam excluídos. O implícito<br />
(cultural) desempenha um papel decisivo, impondo uma fronteira<br />
eficaz e discreta entre os que compreendem e os que não compreendem<br />
o sentido total da mensagem. A fronteira cultural não é apenas<br />
a das nações, nem sequer a da língua: pode ser regional e ata<br />
mesmo grupal.<br />
A aquisição da competência cultural (na própria cultura) não<br />
faz parte de uma escolha possível: ela é vivida como uma ligação<br />
imediata e única com o mundo. Os fatos são interpretados, mediatizados<br />
por uma aprendizagem e percebidos como expressão de uma<br />
evidência indiscutível. A realidade não se apresenta da mesma forma
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868<br />
em todas as culturas: ela é uma construção elaborada por meio da<br />
experiência pragmática do mundo, sem que se perceba sua relatividade,<br />
isto é, sem que se considere a existência de outras formas de<br />
viver e de interpretar a realidade objetiva. As próprias mudanças culturais<br />
acontecem de forma imperceptível: uma comunidade não percebe<br />
as mutações a não ser quando se instalam definitivamente.<br />
O processo de socialização introduz o indivíduo numa construção<br />
arbitrária do mundo, coerente, mas não universal. O indivíduo<br />
(ou a sociedade), contudo, pretende alcançar essa universalidade em<br />
relação à sua cultura. Bastante ilustrativo é o caso da cultura ocidental<br />
europeia, que nos primeiros contatos com os povos dos continentes<br />
recém-descobertos, na época das grandes navegações, tentou fazer<br />
de suas iniciativas culturais um parâmetro universal. Os portugueses<br />
diziam que os índios não tinham fé, nem lei, nem rei, porque<br />
além de não serem valores na cultura tupi, eles não sabiam pronunciar<br />
os fonemas, F, L, R, por não integrarem a fonética de sua língua.<br />
3. Palavra e conceito<br />
A palavra analisa e objetiva o pensamento individual, tendo<br />
também um valor coletivo, pois há uma sociedade própria da língua.<br />
A palavra permite ao conceito ultrapassar o estágio individual e afetivo:<br />
ela racionaliza, classifica, distingue e generaliza o pensamento,<br />
tornando-o abstrato.<br />
Resultante de uma evolução histórica, a língua ordena e classifica<br />
os signos de acordo com seu próprio sistema classificatório<br />
semântico e formal.<br />
O vocabulário, símbolo verbal da cultura, “perpetua a herança<br />
cultural através dos signos verbais” e faz a ponte entre o mundo da<br />
linguagem e o mundo objetivo. Não é estático, como a realidade objetiva<br />
em que se espelha; ele evolui e se adapta, constituindo sempre<br />
um portador apropriado de significações, valores e cargas novas que<br />
a realidade gera e a palavra transmite. Essas cargas novas são responsáveis<br />
pelo surgimento constante e inevitável de neologismos,<br />
pela adoção de empréstimos, pela arcaização de termos, pela mudança<br />
de significados, como forma de adaptação da língua á evolução do<br />
mundo. Ao permitir a comunicação interpessoal, a língua favorece as
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869<br />
representações e atitudes coletivas, produzindo a cultura. O jogo de<br />
simbiose no qual funcionam língua e cultura faz com que sejam o reflexo<br />
recíproco e obrigatório uma da outra.<br />
Palavras são emblemas culturais, símbolos com significados<br />
sociais, que conservam a experiência da atividade humana.<br />
O estudo de palavras, nas quais o componente cultural manifesta-se<br />
com mais intensidade, pode ser o fio condutor para o conhecimento<br />
de uma comunidade. Esse componente cultural é denominado,<br />
por Galisson, “carga cultural partilhada” e permite identificar<br />
o falante na condição de “indivíduo coletivo”, um conceito que<br />
distingue e esclarece mecanismos sociais, culturais e linguísticos, facilitando<br />
o estudo do comportamento humano.<br />
Um dos elementos (talvez o mais forte) de identificação coletiva<br />
é a língua materna, que, associada à cultura, permite a intercompreensão.<br />
Isolada da cultura de origem, porém, e inserida em<br />
comunidades diferentes, a língua materna vai recebendo marcas dessa<br />
nova cultura e formando vertentes que se afastam, sobretudo, no<br />
aspecto lexical, aquele que nomeia a realidade. As palavras passam a<br />
receber uma carga conotativa cultural diferente da anterior. A cultura<br />
na qual a língua se insere desempenha um papel de grande importância,<br />
sendo uma “cultura transversal”, que pertence à comunidade<br />
como um todo e não deve ser confundida com a cultura erudita.<br />
A língua, como já vimos, é sempre carregada de cultura em<br />
todos os níveis (fonológico, morfológico, sintático e lexical e até<br />
mesmo nos gestos e na mímica que reforçam a mensagem). Mas é o<br />
vocabulário que carrega consigo a maior carga cultural, a cultura<br />
comportamental comum. Não há, contudo, uma carga cultural uniforme.<br />
O acervo lexical é formado por unidades estáveis e privilegiadas<br />
para os conteúdos de cultura que neles aderem, anexando-lhes<br />
outra dimensão à dimensão originária. Palavras como eagle (águia)<br />
ou king(rei) têm o mesmo referente em inglês e português, mas cargas<br />
culturais diversas.<br />
Nas duas vertentes do português (Portugal e Brasil), isso é<br />
óbvio em palavras como rapariga e bicha. Há palavras quase neutras<br />
e outras bastante marcadas pelos usos sociais. São inúmeros os e-
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870<br />
xemplos de palavra que cristalizam uma carga cultural diferenciada.<br />
Galisson, linguista francês que estudou o tema, criou um esquema<br />
bastante elucidativo para explicar o significado acrescido da carga<br />
cultural.<br />
Como dentro do próprio Brasil existem as diferenças dialetais<br />
entre regiões, decorrentes de condições e épocas de implantação da<br />
língua portuguesa e de sua imposição como língua veicular, este esquema<br />
pode revelar diferenças de uso.<br />
4. Zonas Dialetais Brasileiras<br />
Para entendermos essa carga cultural das palavras no português<br />
do Brasil, faz-se necessário conhecer, em linhas gerais, as zonas<br />
dialetais brasileiras.<br />
Segundo Antenor Nascentes em O Linguajar Carioca, o falar<br />
brasileiro, apesar de sua relativa uniformidade, apresenta variações<br />
bem características: a enorme extensão territorial, sem fáceis comunicações<br />
interiores quebrou a unidade da língua transplantada, fragmentando-o<br />
em subdialetos, contribuindo para isso o modo diferente<br />
de povoações das diversas regiões. Vinda da Europa, a língua e a<br />
cultura implantaram-se no litoral, formando dois focos de irradiação:<br />
São Paulo e Pernambuco. Seguem-se depois, na ordem, a Bahia, o<br />
Maranhão e o Rio de Janeiro.<br />
São Paulo levou ambas, língua e cultura, a Minas, Goiás, Mato<br />
Grosso. Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. A Pernambuco<br />
coube o papel de divulgá-las na margem esquerda do rio São<br />
Francisco que serviu como divisor de falares: em Alagoas, Paraíba,<br />
Rio Grande do Norte e Ceará, que as levou ao Acre.<br />
A Bahia influenciou a margem direita do velho Chico: Sergipe<br />
e Espírito Santo. O Maranhão divulgou a língua na Amazônia e<br />
ao Rio de janeiro, capital da colônia desde 1763, se vincula a colonização<br />
do estado do Rio. Esta variante, por ter se tornado a língua da<br />
corte com a Transmigração da Família Real, em 1808, foi considerada,<br />
a partir de então o modelo da língua falada no Brasil.<br />
Antenor Nascente considerou o dialeto brasileiro dividido em<br />
duas zonas norte e sul, que por sua vez se subdividem em subfalares.
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871<br />
No Norte, o amazônico e o nordestino. No sul: o baiano, o fluminense,<br />
o mineiro e o sulista. Mas, apesar da força homogeneizadora dos<br />
meios de transporte modernos e mais ainda dos meios de comunicação,<br />
em cada um desses subfalares, nos vários estados, vão-se criando<br />
características próprias no léxico, na fonética e nos torneios sintáticos.<br />
Mas, como isso pode interessar ao publicitário e pode influenciar<br />
o mercado?<br />
5. Diferenças Lexicais<br />
Algeo criou uma tipologia mais minuciosa para analisar as diferenças<br />
lexicais entre o inglês britânico e o americano. Ele considera<br />
duas formas de estabelecer a tipologia de diferenças lexicais interdialetais:<br />
partindo da palavra ou partindo do referente. Utilizando seu<br />
esquema para estudar as diferenças regionais, teremos:<br />
5.1. Uma única forma e um único referente<br />
1. Referente correspondente na língua comum – É a classe que não<br />
envolve diferença entre variedades.<br />
2. Lacuna referencial ou referente sem correspondente em uma das<br />
variedades: cantoria (desafio de violeiros) – maracatu-frevo.<br />
3. Lacuna lexical ou termo sem correspondente: peba, gaitada.<br />
4. Lacuna cultural – representa hábitos inexistentes e sem correspondência<br />
na outra cultura: lapinha, pitoco, cotoco.<br />
5.2. Formas múltiplas e um único referente<br />
1. Sinônimos – cachaça/pinga.<br />
2. Termos equivalentes – Sinônimos interdialetais: bigu/carona;<br />
kombeiro/perueiro.<br />
3. Sinônimos em apenas uma das variedades: capiongo/tristonho;<br />
aperriado/preocupado.
5.3. Forma única e referentes múltiplos<br />
1. Polissemia<br />
2. Polissemia interdialetal: tampa.<br />
3. Uma forma única pode denotar três ou mais referentes: trouxa.<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
872<br />
4. -Termos mais ou menos equivalentes – Diadema/tiara;calção/maiô.<br />
5. Termos nos quais uma forma geral é semanticamente restrita em<br />
outra variedade pernambucana, pronto.<br />
5.4. Múltiplas formas e múltiplos referentes<br />
1. Termos intercambiáveis – São aqueles que, embora usados nas<br />
duas variedades, não cabem exatamente nos mesmos contextos<br />
linguísticos, como ocorre com bravo/brabo Sutiã/califon/corpinho.<br />
5.5. Múltiplas formas e múltiplos referentes (bomonímia)<br />
1. Homonímia.<br />
2. Homonímia interdialetal usado em área restrita; manga, fruta;<br />
manga, verbo (só no Nordeste significa zombar).<br />
3. Analogia – Importante relação para comparações interculturais, a<br />
analogia é o oposto da homonímia. Análogos são objetos que diferem<br />
entre si e têm nomes diversos, mas preenchem posições parecidas<br />
em diferentes sistemas. boyzinho/mauricinho; patricinha/<br />
boyzinha.<br />
4. Analogia interdialetal – Diferenças culturais levam a diferenças<br />
linguísticas e constituem a causa mais significativa das variações<br />
dialetais. Ex: mandioca/aipim/macaxeira; laranja cravo, bergamota,<br />
tangerina. Os alimentos, aliás, são um dos maiores responsáveis<br />
pelas variações interdialetais, porque as coisas que eles<br />
nomeiam nas duas culturas são similares, mas não iguais.<br />
As dificuldades para estabelecer correspondências lexicais
são, resumidamente, as seguintes:<br />
· Demarcar os limites do significado das palavras.<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
873<br />
· Considerar a diferença entre o vocabulário passivo e o ativo, que<br />
mascara as dificuldades.<br />
· Perceber que a frequência modifica a questão de uso.<br />
Vimos, nas tipologias acima, como são sutis as distinções entre<br />
as zonas dialetais e como são delicadas as relações semânticas<br />
que limitam os campos dialetais. Essas classificações orientam a análise,<br />
mas dada à limitação do objeto de estudo – os usos do discurso<br />
publicitário, observados em jornais, revista e outdoors, no início de<br />
2003, nas peças regionais e nacionais.<br />
6. Apresentação do Corpus<br />
“O sol trabalha 365 dias por ano e usa sua pele como escritório”,<br />
da Episol, loção hidratante, é bem uma peça publicitária<br />
carregada de cultura brasileira,pois apesar do produto ser de uma<br />
multinacional, coloca em evidência uma qualidade de que nos vangloriamos<br />
todos:ser um país ensolarado.<br />
Iniciamos a apresentação do corpus com três publicidades que<br />
levam a marca da cultura brasileira e só são entendidas por quem vive<br />
aqui e compartilha as vivências acumuladas. A seguir serão apresentadas<br />
peças regionais.<br />
1. Liberdade ainda que à tardinha, das sandálias Havaianas, traz<br />
à memória do receptor-alvo, a frase-símbolo da Inconfidência<br />
Mineira.<br />
2. Sogra chamando, dos celulares Sony Ericsson com identificador<br />
visual de chamadas, tem no visor uma cobra verde e amarela<br />
(creio que é jararaca), forma como a nossa cultura trata as sogras.<br />
Na França é o cortês belle-mère.<br />
3. Por que não eu? Me leva pra casa. Da Assolan, faz referência à<br />
supremacia da outra marca no Brasil e usa o nível coloquial, iniciando<br />
a frase com pronome oblíquo.
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874<br />
4. Peixe-gato. Outdoor da Movimento exibindo um belo rapaz, um<br />
gato, com um minúsculo e colorido calção de praia, deitado na<br />
areia, à beira mar, onde aparecem os igualmente minúsculos peixes-gato,<br />
como são nomeados nas praias de Pernambuco.<br />
5. Neste verão você precisa de uma sombrinha. Propaganda institucional<br />
do verão em Pernambuco. Faz o jogo polissêmico entre<br />
pequena sombra, guarda-sol de praia e adorno carnavalesco, colocando<br />
como elemento estranho o fato de ser preciso sombrinha<br />
no inverno e não no verão.<br />
6. Do maracatu para o cinema, da praia parra as orquestras de<br />
frevo, dos pólos de animação para o restaurante. Não é à toa<br />
que o Recife é a cidade das pontes. Recife, diversão dentro e<br />
fora da folia.<br />
7. E você pensando que as pontes eram as únicas coisas que Recife<br />
tinha em comum com Veneza. Quanto Prima: as delícias<br />
da Itália em fast food.<br />
Segue-se uma mostra das inúmeras peças publicitárias com o<br />
mote do carnaval, sobretudo do Galo da Madrugada:<br />
1. Obrigado, Maria Bonita, Lampião e Cleópatra. O Galo da<br />
Madrugada agradece a todos os pernambucanos que colocaram<br />
sua fantasia, entraram na folia e fizeram, mais uma vez,<br />
o maior bloco carnavalesco do mundo.<br />
2. O boné – O abadá – O folião (descrevendo uma garrafa de<br />
cerveja) Antártica, paixão nacional, a cerveja oficial do Carnaval<br />
de Salvador.<br />
7. Conclusão<br />
Os exemplos retirados do minicorpus permitem observar as<br />
diferenças de escolha dos itens lexicais e dos usos linguísticos nos<br />
dialetos brasileiros, resultantes da sedimentação cultural, que se fez<br />
diferente nas várias regiões.<br />
As diferenças observadas são o produto de uma dialética histórica<br />
de diferenciação cumulativa. No curso de histórias diferentes,
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
875<br />
partindo de uma raiz comum, as comunidades desenvolvem culturas<br />
próprias que se expressam na sua forma de linguagem, nas escolhas<br />
de imagens. Constituindo-se em variantes, que se baseiam na intercompreensão,<br />
as regiões dialetais brasileiras têm as raízes de sua identidade<br />
fincadas nos elementos culturais partilhados.<br />
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
ALGEO, John. British/American lexical differences. In: English<br />
across cultures/Culture across English. Communications. New<br />
York. Edited by Ofélia Garcia and Richard Otheguy, 1989.<br />
BIDERMAN, Maria Teresa Camargo. Teoria linguística: Linguística<br />
quantitativa e computacional. Rio de Janeiro: Ao livro Técnico,<br />
1979.<br />
BOURDIEU, Pierre. Ce que parler veut dire: l’economie des<br />
échanges linguistiques. Paris: Fayard, 1982.<br />
CARVALHO,Nelly. Publicidade, a linguagem da sedução. São Paulo:<br />
Ática, 2002.<br />
DIONÍSIO, Mário. Meu reino (se o tivesse) por um cavalo de pau.<br />
In: Monólogo a duas vozes. Lisboa: Almedina, 1983.<br />
GALISSON, R. Lexicologie et enseignement des langues: Essais<br />
Methodologique. Paris: Hachette, 1979.<br />
NASCENTE, Antenor. O dialeto carioca. Rio de Janeiro: Nova<br />
Fronteira, 1945.<br />
ZARATE, Geneviève. Enseigner une culture étrangère. Paris: Hachette,<br />
1986.
DA CIÊNCIA À DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA:<br />
NATUREZA E FUNCIONALIDADE DO DISCURSO<br />
1. Introdução<br />
Urbano Cavalcante Filho (IFBA/UFBA/UESC)<br />
urbanocavalcante@yahoo.com.br<br />
A palavra é uma espécie de ponte lançada entre<br />
mim e os outros. Se ela se apóia sobre mim numa<br />
extremidade, na outra apoia-se sobre o meu<br />
interlocutor. A palavra é o território comum do<br />
locutor e do interlocutor. Mas como se define o<br />
locutor? Com efeito, se a palavra não lhe pertence<br />
totalmente, uma vez que ela se situa numa<br />
espécie de zona fronteiriça, cabe-lhe, contudo,<br />
uma boa metade.<br />
(Mikhail Bakhtin)<br />
O objetivo deste texto 1 é caracterizar o gênero divulgação científica<br />
e analisar o papel do divulgador enquanto aquele que fala<br />
pelo outro e para o outro. Assim, procuraremos primeiramente discutir<br />
aspectos concernentes à concepção, natureza e funcionalidade dos<br />
gêneros discursivos, tomando como aporte teórico, principalmente,<br />
as reflexões promovidas pelo estudioso russo Mikhail Bakhtin. Em<br />
seguida, abordaremos as condições de produção tanto do discurso da<br />
ciência, quanto do discurso jornalístico para, finalmente, refletir sobre<br />
a natureza, características e funcionalidade de um novo gênero<br />
discursivo, que é o resultado da fusão, da hibridização dos dois gêneros<br />
anteriores – o gênero divulgação científica, destacando o papel<br />
do divulgador científico como mediador.<br />
1 O presente artigo faz parte das reflexões feitas pelo autor no desenvolvimento de sua pesquisa<br />
no Mestrado em Letras: Linguagens e Representações da Universidade Estadual de Santa<br />
Cruz (UESC), sob a orientação da Profª Dra. Vânia Lúcia Menezes Torga.
2. Dos gêneros do discurso<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
877<br />
A noção de gênero discursivo, retomado das antigas retórica e<br />
poética, bem como as análises de gêneros diversos têm sido objeto<br />
de reflexão e estudo de inúmeras escolas e vertentes teóricas. Dentre<br />
os diversos estudiosos, dos mais diversos campos do saber, que vai<br />
desde à nova retórica até a abordagem sistêmico-funcional, da linguística<br />
de corpus até à reflexão bakhtiniana, passando pelos críticos<br />
literários, retóricos, sociólogos, cientistas cognitivistas, linguistas<br />
computacionais, professores, analistas do discurso, comunicadores,<br />
dentre tantos outros, o estudo dos gêneros foi, dessa forma, uma<br />
constante temática que interessou aos antigos e tem atravessado, ao<br />
longo dos tempos, as preocupações, principalmente, dos estudiosos<br />
da linguagem.<br />
O estudo dos gêneros textuais não é novo e, no Ocidente, já tem pelo<br />
menos vinte e cinco séculos, se considerarmos que sua observação sistemática<br />
iniciou-se em Platão. O que hoje se tem é uma nova visão do<br />
mesmo tema. Seria gritante ingenuidade histórica que foi os últimos decênios<br />
do século XX que se descobriu e iniciou o estudo dos gêneros textuais.<br />
Portanto, uma dificuldade natural no tratamento desse tema acha-se<br />
na abundância e diversidade das fontes e perspectivas de análise. Não é<br />
possível realizar aqui um levantamento sequer das perspectivas teóricas<br />
atuais (MARCUSCHI, 2008, p. 147).<br />
Nossa pesquisa também se insere nesse grupo que objetiva se<br />
debruçar no estudo dos gêneros. Dentre a infinidade de gêneros que<br />
estão em circulação na sociedade e que produzimos cotidianamente,<br />
na medida em que das mais diversas são nossas atividades de linguagem,<br />
nosso trabalho debruçar-se-á no estudo sobre o gênero divulgação<br />
científica.<br />
No processo de interação verbal, não dizemos o que queremos,<br />
onde e quando queremos. Os discursos são organizados socialmente,<br />
inserem-se numa ordem enunciativa e são regulados, moldados<br />
pelos gêneros que os constituem. Em outras palavras, cada esfera<br />
da comunicação social apresenta “tipos relativamente estáveis de enunciados”.<br />
Considerando as anotações feitas por Bakhtin (1997) quanto à<br />
constituição, à natureza e a própria funcionalidade dos gêneros discursivos,<br />
estes são, num primeiro plano de observação, considerados
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
878<br />
como modos relativamente acabados de comunicação que permitem<br />
aos atores sociais a interlocução em sua integralidade.<br />
Entendendo, pois, os gêneros do discurso como “tipos relativamente<br />
estáveis de enunciados”, é notório que esse conceito de gênero<br />
está integrado à atividade social de utilização da língua, que sofre<br />
uma regulação das condições e finalidades de cada uma de suas<br />
esferas da atividade produzida pelos seres humanos nas situações<br />
comunicativas relativamente estáveis a que estão integrados. Esses<br />
enunciados, então, dispõem de certa estabilidade:<br />
Trata-se de rotinas, de comportamentos estereotipados e anônimos<br />
que se estabilizaram pouco a pouco, mas que continuam sujeitos a uma<br />
variação contínua. A arenga de um camelô ou a redação de um fait divers<br />
seguem uma rotina, adaptada às circunstâncias; não se baseiam em nenhum<br />
texto-modelo. Por outro lado, alguns gêneros muito ritualizados<br />
obedecem a um modelo definitivamente estabelecido, do qual não é possível<br />
afastar-se (por exemplo, a missa)” (MAINGUENEAU, 2001)<br />
Esse fato de os gêneros serem considerados rotinas, como nos<br />
apresentou Maingueneau, impede, contudo, que o gênero seja pensado<br />
de acordo com o sentido de molde:<br />
Os gêneros não podem ser considerados como formas que se encontram<br />
à disposição do locutor a fim de que este molde seu enunciado nessas<br />
formas. Trata-se, na realidade, de atividades sociais que, por isso<br />
mesmo, são submetidas a um critério de êxito (MAINGUENEAU,<br />
2001).<br />
Ainda pensando no aspecto “relativamente acabado” dos gêneros,<br />
poder-se-ia resumir a discussão em torno de tal temática da<br />
seguinte maneira: os gêneros, segundo essa visão bakhtiniana, são<br />
resultados da fusão de três dimensões constitutivas, como bem sinaliza<br />
Bakhtin: i) o conteúdo temático ou aspecto temático - objetos,<br />
sentidos, conteúdos, gerados numa esfera discursiva com suas realidades<br />
socioculturais -, o qual tem a função de definir o assunto a ser<br />
intercambiado; ii) o estilo verbal ou aspecto expressivo – seleção lexical,<br />
frasal, gramatical, formas de dizer que têm sua compreensão<br />
determinada pelo gênero –; iii) a construção composicional ou aspecto<br />
formal do texto – procedimentos, relações, organização, participações<br />
que se referem à estruturação e acabamento do texto, que sinaliza,<br />
na cena enunciativa, as regras do jogo de sentido disponibilizados<br />
pelos interlocutores.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
879<br />
Assim, percebemos que os gêneros sempre estão ligados a um<br />
tema e a um estilo, apresentando uma composição própria, com os<br />
quais operamos de modo inevitável:<br />
Esses gêneros do discurso nos são dados quase como nos é dada a<br />
língua materna, que dominamos com facilidade antes mesmo que lhe estudemos<br />
a gramática [...] Aprender a falar é aprender a estruturar enunciados<br />
[...] Os gêneros do discurso organizam nossa fala da mesma maneira<br />
que a organizam as formas gramaticais. [...] Se não existissem os gêneros<br />
do discurso e se não os dominássemos, se tivéssemos de construir<br />
cada um de nossos enunciados, a comunicação verbal seria quase impossível<br />
(BAKHTIN, 1997, p. 301-302).<br />
Num segundo plano, cabe ressaltar que sua constituição e definição<br />
não se esgotam nem se limitam apenas a esses três elementos.<br />
Numa cena enunciativa concreta, observa-se que sua constituição atrela-se,<br />
depende, sobretudo, de condições exteriores à língua e ao<br />
sujeito-falante. Depende, nesse sentido, de uma necessidade real e<br />
específica e da atividade humana exercida pelo sujeito. Dentro dessa<br />
necessidade, da atividade humana e da utilização do sistema de código<br />
linguístico é que a organização dos três elementos devem ser estudados.<br />
Assim, os gêneros, como a língua, refletem e, simultaneamente,<br />
refratam, na metáfora do espelhamento de Campos (2006), as<br />
vontades, os desejos, as necessidades sociais, os quereres humanos<br />
dentro de uma atividade social singular e de uma situação comunicativa<br />
específica. Assim, apresenta o autor:<br />
[...] podemos dizer que o espelho, como materialidade, não é processo<br />
que se reduz à operação de produzir, em reflexo, as imagens que vão<br />
sendo mostradas na superfície de sua lâmina como se ali pudesse acontecer<br />
apenas a dimensão visível das imagens. Nesse sentido, o espelhamento<br />
processaria as imagens passíveis de reprodução e, como tal, constituiriam<br />
os objetos marcados pela movimentação coagulada da aparência de<br />
vida. À primeira vista, tal processo de constituição da visão das imagens,<br />
não consideraria a possibilidade da diferença dos olhares na sua produção,<br />
reduzindo as imagens à ilusão superficial da reprodução em série.<br />
Diante dos limites da reprodução, o espelho não só reflete, mas, ainda, e,<br />
simultaneamente, refrata. (CAMPOS, 2006, p. 303)<br />
E ainda:<br />
Com esse quadro, o espelhamento, que vai além do refletir, realizando<br />
a operação de refratar, o faz no interior da excedência, ou visão de<br />
mundo do autor enquanto construção social que não só aponta para o a-
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880<br />
cabamento, mas, ainda, para o inacabamento do que cerca o humano. E<br />
isso nos possibilita dizer que o espelhamento enquanto processo da linguagem<br />
seria a metáfora da criação, que não se efetiva sem a diferença<br />
dos raios de luz da refração na lâmina que reproduz e transforma as imagens,<br />
mas, ainda, na lâmina enquanto nada: processo instaurador da singularidade<br />
(CAMPOS, 2006, p. 306-307).<br />
Se, ainda tratando da estabilidade dos gêneros, eles apresentam<br />
formas “relativamente acabadas” e, por outro lado, emanam por<br />
intermédio da apropriação da língua em condições específicas, os<br />
gêneros, em um terceiro plano, possuem em sua essencialidade uma<br />
natureza inacabada, ambivalente e dúbia. Noutras palavras, sua natureza<br />
revela um movimento de tensão da linguagem entre o móvel e o<br />
imóvel, o elástico e o rígido, o estável e o instável numa relação dialética<br />
da contradição.<br />
Nessa perspectiva, os gêneros, por conta desses traços contraditórios<br />
e dialéticos que os constituem, são abertos, transmutáveis e<br />
passíveis de hibridização. É o que ocorre, por exemplo, quando fundem-se<br />
o gênero da ciência com o gênero jornalístico, dando origem<br />
a um novo gênero – o divulgação científica, objeto de estudo e análise<br />
dessa pesquisa.<br />
Além disso, o sujeito deve ser considerado como um componente<br />
significativo na manifestação do acabamento e inacabamento<br />
dos gêneros, uma vez que são responsáveis pela regularização ou não<br />
dos enunciados. Afinal, o sujeito é uma instância que está investida<br />
social e institucionalmente de um papel para realizar o ato de linguagem.<br />
Partindo da concepção de inacabamento dos gêneros, percebe-se<br />
um alargamento dos elementos básicos que contribuem para o<br />
ritual de configuração dos mesmos, porque, nessa perspectiva, é incoerente,<br />
impossível pensar o gênero sem a inserção ou certo reflexo<br />
e refração da figura de um eu locutor que fala para um tu interlocutor.<br />
Noutras palavras, com isso queremos dizer que o gênero, o<br />
enunciado, como produto da enunciação, é um ato individual em que<br />
está pressuposta a instância do sujeito. Ou seja, alguém enuncia. Alguém<br />
produz um discurso. Alguém produz um ato de fala. No entanto,<br />
essa instância produtora de discurso não se encontra só no processo<br />
de enunciação. O enunciado constitui uma ação verbal entre dois
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881<br />
sujeitos. Ao enunciar pressupõe o outro, quando se diz, diz-se a alguém.<br />
O discurso é, portanto, uma relação verbal entre locutor/enunciador<br />
e alocutário/enunciatário. E ainda, todo discurso é<br />
composto de uma pluralidade de enunciados, marcado por diferentes<br />
formações e posições.<br />
Com isso, ratificamos a ideia de que eles são responsáveis pela<br />
constituição de sentido. Sendo assim, os gêneros não conseguiriam<br />
significar simplesmente a partir dos três elementos básicos defendidos<br />
por Bakhtin.<br />
Nesse caso, os gêneros nada mais são do que um espaço de<br />
mediação de sentidos, um modo de organização da experiência humana<br />
em uma situação dada. Diante disso, como pensar ou pensar<br />
isoladamente a relação construída entre o eu locutor e o seu tu interlocutor<br />
e os outros elementos da enunciação, se o eu locutor é uma<br />
constituição semântica, certa visão de mundo doada ao outro numa<br />
experiência dialógica?<br />
Seguindo esse raciocínio, os atores sociais significam a si, ao<br />
outro e ao mundo, numa lógica do espelho defendida por Campos,<br />
através do excedente de visão. O locutor quando se coloca em posição<br />
de enunciação reflete e refrata, cria uma imagem de si, de uma<br />
visão de mundo e, consequentemente, tenta, num jogo do espelho,<br />
“vender” sua imagem para o interlocutor. O que retoma o caráter de<br />
tensão estabelecido pela linguagem no espaço de comunicação.<br />
Isso nos leva a pensar numa certa projeção do sujeito na figura<br />
do locutor e do ouvinte como partes constitutivas dos elementos<br />
básicos do estudo dos gêneros. Com isso, abandona-se, de uma vez<br />
por todas, o fechamento e isolamento usuais estabelecido pelo estruturalismo<br />
das categorias: obra, autor, leitor, gênero e domínio epistemológico,<br />
posto que é na articulação desses elementos que os gêneros<br />
se manifestam.<br />
Esses elementos, apesar de possuírem suas especificidades,<br />
mantêm entre si uma relação espiralada, fazendo-se partes integrantes<br />
de um todo enunciativo.<br />
A articulação desses elementos ainda não é suficiente para entender<br />
a natureza complexa dos gêneros discursivos. Se se pensa o<br />
gênero mediante a relação de significação estabelecida pelos interlo-
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882<br />
cutores, pensa-se também como tal relação é construída e contribui<br />
para o todo significativo. Nesse caso, entram em cena componentes<br />
que fundam o discurso ou os discursos. A intenção comunicativa, interdiscurso<br />
e o intradiscurso e o papel social que o enunciador assume<br />
contribuem para a compreensão da natureza de um dado gênero.<br />
3. A ordem do discurso científico<br />
O discurso é um fenômeno social. Esta é uma noção de discurso<br />
apresentada por Orlandi (1996), que, tomando-o como tal, está<br />
considerando a linguagem enquanto interação. Isso nos permite afirmar<br />
que, tomando-a como interação, estamos levando em consideração<br />
as suas condições de produção e recepção. Afinal, o discurso<br />
só significa num dado espaço/tempo. Desse modo, a relação estabelecida<br />
pelos interlocutores, assim como o contexto, faz parte da constituição<br />
da significação daquilo que se diz.<br />
Todo discurso só significa quando são levadas em consideração<br />
suas condições de produção e recepção. Portanto, considerando o<br />
discurso da ciência, esse tipo de discurso não pode ser encarado sem<br />
a consideração do estabelecimento da relação que sua linguagem estabelece<br />
com o contexto, “compreendendo-se contexto em seu sentido<br />
estrito (situação de interlocução, circunstância de comunicação,<br />
instanciação de linguagem) e no sentido lato (determinações histórico-sociais,<br />
ideológicas etc.)” (ORLANDI, 1996, p. 152). E o seu significar,<br />
sem dúvida, está aberto a acolher as diferentes formas e sentidos,<br />
pois toda vez que um sujeito enuncia ou anuncia, diz algo a alguém<br />
uma configuração para seu discurso é estabelecida.<br />
Nas palavras da autora:<br />
Um tipo de discurso resulta do funcionamento discursivo, sendo este último<br />
definido como a atividade estruturante de um discurso determinado,<br />
para um interlocutor determinado, por um falante determinado, com finalidades<br />
específicas. Observando-se sempre, que esse "determinado" não<br />
se refere nem ao número, nem a presença física, ou à situação objetiva<br />
dos interlocutores como pode ser descrita pela sociologia. Trata-se de<br />
formações imaginárias, de representações, ou seja, da posição dos sujeitos<br />
no discurso (ORLANDI, 1996, p. 153).<br />
Nos gêneros discursivos da ciência, por exemplo, a intenção<br />
comunicativa se revela mediante o discurso de ciência enquanto o
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883<br />
lugar autorizado a dizer a verdade, devendo ser aceita como tal sem<br />
contestação. Isso não significa dizer que a intenção deve ser aceita de<br />
modo passivo, tranquilo. Mas que existe um sujeito autorizado a dizer<br />
para que o dito seja significado.<br />
O que temos, no discurso autoritário, é a desarticulação da dinâmica<br />
da interlocução – que é a articulação locutor-ouvinte. Ou seja,<br />
a reversibilidade – o que determina a dinâmica da enunciação, ou<br />
seja, a troca de papéis no discurso entre locutor e ouvinte –, no discurso<br />
autoritário tende a ser zero, já que apenas um dos polos da enunciação<br />
está autorizado a dizer o que diz e como diz.<br />
É possível que, ao tratarmos da autoridade que o discurso científico<br />
é possuidor, aproximá-lo do conceito de discurso competente,<br />
proposto por Chauí (1990), ressalvadas as possíveis restrições a<br />
tal proposta de relação, de aproximação. Para Chauí (1990), o discurso<br />
competente é aquele que ao ser proferido, ouvido é aceito como<br />
autorizado. Vamos além: é um discurso em que, considerando a<br />
dinâmica da linguagem, não é qualquer um que pode proferi-lo, em<br />
qualquer lugar, em qualquer circunstância, ou seja, para ser aceito<br />
como manifestação da verdade, é pela voz do cientista que ele deve<br />
ser enunciado, já que é resultado de algo que foi observado, testado,<br />
comprovado.<br />
O lugar de enunciação também se revela como um componente<br />
importante na tradução da natureza do gênero. O lugar permite<br />
um excedente de visão que o autoriza a concretizar sua intenção. Ainda<br />
o lugar de enunciação autoriza o que deve ser interdito ou dito<br />
no espaço interlocução. E isso se constitui em traço determinante na<br />
definição e distinção dos gêneros.<br />
O lugar social corresponde em certa medida a uma função<br />
empírica assumida pelo indivíduo. É esse lugar social que permite a<br />
representação, a imagem que esse indivíduo projeta dentro do seu<br />
discurso, a partir de sua posição discursiva, a fim de delimitar os espaços<br />
de interação entre o “eu” que fala/escreve e o “tu” que ouve/lê.<br />
O “eu” que fala no discurso de ciência, deve, através de mecanismos<br />
linguístico- discursivos, imprimir para o interlocutor uma representação<br />
de um sujeito que sabe exatamente o que diz porque analisou,<br />
observou, testou, comprovou, portanto, a atividade responsiva do sujeito<br />
“tu” deve ser de aceitação.
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884<br />
Essa relação entre o “eu” autorizado a dizer de uma determinada<br />
posição não confere a relação de força estabelecida entre o “tu”<br />
sua eficácia, eficiência, porque o sujeito “tu” pode, orientado por<br />
princípios discursivos diversos, desconsiderar a autoridade.<br />
Por exemplo, o discurso da ciência sobre a transfusão de sangue:<br />
“Quem doa sangue, salva vidas”. Os cientistas da saúde evidenciam<br />
a importância do sangue, o tipo sanguíneo... Mas esse discurso<br />
é vazio de sentido para os interlocutores filiados a formação dialógica<br />
e discursiva “testemunhas de Jeová”, uma vez que é discurso religioso.<br />
Essa observação nos faz perceber que a relação de forma entre<br />
“eu” e “tu” é complexa, visto que não é passiva, tranquila, estável,<br />
mas envolve as formações discursivas e ideológicas que o “tu”<br />
faz parte.<br />
4. A ordem do discurso jornalístico<br />
No gênero discursivo jornalístico, vemos também que a intenção<br />
comunicativa se revela mediante um discurso que objetiva a<br />
transmissão de informações em função de interesses e expectativas.<br />
Esse gênero discursivo, enquanto reprodutor de fatos da realidade,<br />
anuncia, comunica acontecimentos. Assim, caracterizado como produtor<br />
e interpretador de um conjunto de enunciados, o gênero jornalístico<br />
toma corpo. No seu ato de enunciar, enquanto ato de dizer o<br />
mundo, o discurso do gênero jornalístico fala o outro, fala ao outro e<br />
com o outro.<br />
Nesse processo de construção da escritura do fato jornalístico,<br />
os sujeitos envolvidos são os produtores do acontecimento, corporificados<br />
como as fontes de informação. Nestas estão, em um polo, o<br />
narrador do fato, o jornalista, e no outro extremo, os leitores, aqueles<br />
a quem o referido gênero se dirige, intentando socializar informações.<br />
Depreendemos disso que, nessa relação, temos uma relação tríplice<br />
operada pelos jornalistas, leitores e fontes de informações. Essa<br />
relação cooperativa acaba por desembocar, na verdade, numa semantização<br />
dos discursos das fontes, produzindo a partir deles, novos enunciados.
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885<br />
Para essa empreitada, as atividades típicas desse gênero de<br />
descrever/escrever um fato, buscam-se os mecanismos da estrutura<br />
morfológica, sintática, fonética da língua para que o “eu” responsável<br />
pelo discurso do informar, possa imprimir ao “tu” que ouve/lê<br />
uma representação de sujeito que enuncia perseguindo a precisão, a<br />
clareza, a transparência, a imparcialidade, e ao mesmo tempo, possibilitando<br />
ao interlocutor/leitor uma compreensão satisfatória para a<br />
formação de sua opinião a respeito daquilo que é apresentado, enunciado,<br />
dito.<br />
Uma categoria que merece destaque na abordagem desse gênero<br />
é a categoria de pessoa que, segundo Fiorin (1999), é essencial<br />
para que o ato de linguagem se torne discurso, já que todo discurso é,<br />
em geral, a relação entre um “eu” e um “tu”. No jornalismo, temos<br />
novos contornos dessa relação, já que a palavra do jornalismo funciona<br />
como uma mediação entre fontes e leitores. Aqui o que temos<br />
é um locutor que não se marca em seu próprio enunciado, que lhe é<br />
exterior, e o faz de forma impessoal. É nesse momento que o jornalista<br />
tenta extrair a marca de subjetividade na relação eu tu e lança<br />
mão da terceira pessoa. Esse uso da terceira pessoa do discurso assinala<br />
a garantia de sua estratégia de universalidade, de objetividade. É<br />
o que Ducrot (1968) vai referir-se a essa utilização do “ele” como a<br />
marcação de um não sujeito.<br />
Temos também aqui, como visto no discurso do gênero científico,<br />
a pretensão de um discurso autorizado, na medida em que, não<br />
só como mero reprodutor de enunciados, o discurso jornalístico também<br />
produz novos enunciados, só que a partir da interpretação do<br />
discurso de origem. Nesse processo de interpretação, há o apagamento<br />
da fala de sua fonte enquanto estratégia de construir sua própria<br />
fala. É como se o jornalista tomasse os enunciados dos quais não é o<br />
autor como se fossem seus e se impõe, na cena enunciativodiscursiva,<br />
como origem do dizer, isto é, um discurso autorizado.<br />
Esses enunciados jornalísticos ao falar do mundo, explicar o<br />
mundo por meio do relato dos acontecimentos não explicam em sua<br />
totalidade o mundo. Ora, o que se tem é a enunciação de fragmentos<br />
dos acontecimentos, já que há uma limitação que o impossibilita, seja<br />
o tempo, o espaço, seja a visão subjetiva de quem o enuncia que<br />
tem de fazer suas escolhas. É um discurso que a todo tempo, constrói
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886<br />
e reconstrói, aparece numa arena de instabilidade e estabilidade de<br />
enunciados que fazem parte, por conseguinte, de diferentes formações<br />
e temas.<br />
Retomando a ideia de Campos sobre o espelhamento da linguagem<br />
que é constitutivamente uma experiência de caráter polifônico,<br />
já que, na vivência do falar e escrever, “o texto é sempre objeto<br />
de mediação uma vez que realiza o processamento de quem fala/escreve<br />
na relação com quem processa o que ouve/lê” (CAMPOS,<br />
2006, p. 307), é que direcionamos nossa reflexão agora para pensar<br />
que é dessa fusão, desse hibridismo, também possibilidade pela metáfora<br />
do espelhamento da linguagem, que nasce o gênero de divulgação<br />
científica, que funciona como um discurso sobre em que, ao<br />
“publicizar” o discurso da ciência, ressignifica-o, colocando-se entre<br />
a própria ciência e os sujeitos não especialistas. É um discurso que se<br />
inscreve num espaço de negociação entre as formações discursivas<br />
da ciência e da mídia (jornalismo) para atingir a um grande público<br />
(não especialistas).<br />
5. O gênero divulgação científica<br />
Podemos caracterizar a divulgação científica (DC), considerada<br />
como um processo de difusão de pesquisas e teorias em âmbito<br />
geral, como a reenunciação de um discurso-fonte (D1) elaborado por<br />
“especialistas” e destinado a seus pares em um discurso segundo<br />
(D2) reformulado por um divulgador e destinado ao “grande público”<br />
(D3). Entendendo-se D1 como discurso da ciência, D2 – divulgação<br />
científica e D3, discurso do cotidiano.<br />
Constitui-se tarefa não muito simples definir o texto de divulgação<br />
científica (daqui em diante DC), pois, de acordo com Sanches<br />
Moura (2003, p. 13), “cada divulgador tem sua própria definição de<br />
divulgação”. No entanto, é sugerido o seguinte conceito operativo:<br />
“a divulgação é uma recriação do conhecimento científico, para torná-lo<br />
acessível ao público”.<br />
Nesta perspectiva, destacamos como principal eixo teórico, o<br />
trabalho de Authier-Revuz (1998) sobre divulgação científica. Na<br />
concepção dessa autora, o texto de DC é uma associação do discurso<br />
científico com o discurso cotidiano, sendo que este último favorece a
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887<br />
leitura por parte de um número maior de leitores. A autora conceitua<br />
divulgação científica como:<br />
uma atividade de disseminação, em direção ao exterior, de conhecimentos<br />
científicos já produzidos e em circulação no interior de uma comunidade<br />
mais restrita; essa disseminação é feita fora da instituição escolaruniversitária,<br />
não visa à formação de especialistas, isto é, não tem por<br />
objetivo estender a comunidade de origem (p. 107).<br />
Constitui, portanto, o texto de DC a interseção entre dois gêneros<br />
discursivos: o discurso da ciência e o discurso do jornalismo,<br />
este último visto como o discurso de transmissão de informação. Para<br />
Campos (2006, p. 1) esse gênero “é considerado como realização<br />
enunciativa marcada pela ação de quem é colocado na posição de um<br />
ao falar pelo outro (o especialista) para o outro (não especialista)”.<br />
Noutras palavras, é como se o texto de DC operasse uma espécie<br />
de tradução intralingual, na medida em que busca uma equivalência<br />
entre o jargão científico e o jornalístico. Assim, o gênero em<br />
discussão compreende um texto reformulado, o qual pode ter sido originado<br />
a partir de um artigo ou relatório acadêmico-científico, de<br />
uma entrevista ou até mesmo de uma tradução de um texto em língua<br />
estrangeira, direcionado para a população distanciada do vocabulário<br />
e das práticas científicas, mas que deseja e necessita do conhecimento<br />
das ciências.<br />
Para Campos (2006), o gênero de DC exige socialmente a<br />
materialização de uma relação dialógica que pressupõe a posição de<br />
um que delineia uma realização de linguagem determinada pelo outro<br />
– o especialista – tendo em vista o não especialista na posição alternativa<br />
daquele que tem o lugar destinatário de para o outro. Nesse<br />
sentido, assumir a posição de um, como divulgador, é assumir uma<br />
dupla exterioridade e uma dupla excedência com o acabamento e a<br />
completude provisórios, associados a tal duplicidade. De forma geral,<br />
podemos afirmar, pautados nas reflexões de Leibruder (2003)<br />
que o texto de DC, na sua função de vulgarização (ou divulgação)<br />
científica, contrapõe-se ao hermetismo próprio do discurso científico,<br />
buscando propiciar ao leitor leigo (não especialista) o contato<br />
com o universo da ciência através de uma linguagem que lhe seja<br />
familiar.
5.1. O papel do divulgador<br />
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888<br />
Pensar o gênero divulgação científica exige que pensemos<br />
também a respeito da importância que exerce, na mediação da enunciação<br />
do especialista em interação com a enunciação do não especialista,<br />
a mediação nessa experiência de linguagem da figura do divulgador.<br />
Na caracterização do gênero divulgação científica, percebemos<br />
a interação que marca a enunciação do especialista com a enunciação<br />
do não especialista, mediado pela enunciação do divulgador.<br />
Nessa articulação, segundo Campos (2006, p. 11):<br />
DV [divulgador] assume a posição de um para tentar, discursivamente,<br />
fazer a aproximação do outro (Ciência) ao universo do outro (Público),<br />
e vice-versa, constitui a enunciação ternária, ou seja, a enunciação<br />
do gênero divulgação científica, que se realiza com a mediação, praticada<br />
por DV, no jogo interativo de linguagem. Aqui, DV articula a enunciação<br />
primária (enunciação do especialista) com a enunciação secundária<br />
(enunciação do não especialista). Tal conjunto de experiências de linguagem,<br />
ou de gênero, vem marcado, dialogicamente, por uma dupla exterioridade<br />
e uma dupla excedência. Ou seja, ao dizer, emblematicamente,<br />
eu falo pelo outro para o outro, assume o seu propósito discursivo de<br />
produzir um texto que promova a aproximação de uma enunciação a outra.<br />
O que se observa, no gênero divulgação científica, a partir do<br />
papel desempenhado pelo divulgador, já que ele fala do outro para o<br />
outro, é que, ao ser constituído, o uso dialógico da linguagem entre<br />
duas enunciações – a do cientista e a do jornalista – gera, de modo<br />
criativo uma nova enunciação: a enunciação da divulgação científica.<br />
Assim, temos o divulgador assumindo duas exterioridades: uma exterioridade,<br />
por conta do discurso, da enunciação da ciência; e outra<br />
exterioridade, esta, referindo-se ao discurso, à enunciação do jornalismo.<br />
Dessa fusão, o divulgador assume outra exterioridade, aquele<br />
que, a partir da mescla das duas enunciações, articula um novo projeto<br />
de produção de sentido, onde o lugar de enunciação, a intenção<br />
comunicativa e o papel social ocupado pelo enunciador (divulgador)<br />
assume características próprias nesse ato de linguagem.<br />
A atividade do divulgador científico, antes de ser mera adaptação<br />
daquilo que foi formulado pelo discurso científico, é antes de<br />
tudo, um verdadeiro trabalho discursivo. O trabalho do divulgador é<br />
resultado de um gesto interpretativo do discurso da Ciência e não a-
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889<br />
penas uma reformulação do discurso da Ciência. O modo como o divulgador<br />
vai elaborar seu discurso depende essencialmente do contexto<br />
discursivo em que se inscreve, o que inclui, como vimos, não<br />
apenas o meio através do qual o seu artigo será veiculado, mas essencialmente<br />
o interlocutor a quem este se dirige.<br />
O espaço ocupado pela enunciação do divulgador é o espaço<br />
do interdiscurso, um espaço de conciliação entre duas forças enunciativas:<br />
de um lado, a enunciação científica, de outro, a enunciação<br />
jornalística. O papel do divulgador é, portanto, de articulador, conciliador<br />
das enunciações que são produzidas socialmente e que, para<br />
chegar ao público como “acessível” precisa ser reconfigurada, recriada.<br />
O que temos aí, não é mera forma de reformulação discursiva,<br />
mas essencialmente a formulação de um novo discurso (ZAM-<br />
BONI, 1997, p. 28), com características e finalidades próprias.<br />
Tudo isso que está sendo discutido pode ser observado nos<br />
textos de divulgação científica. As características, aportando-nos em<br />
Zamboni (2001), confirmam o que antes já foi afirmado sobre considerar<br />
os textos de divulgação científica como um gênero de discurso<br />
específico. Ora, suas características – que vão desde a estrutura gramatical,<br />
a organização do texto, os recursos retóricos, entre outros –<br />
imprimem no texto de divulgação uma estrutura estável que está relacionada<br />
à sua função central de apresentação do conhecimento científico<br />
para públicos não especialistas. Tudo isso é feito a partir<br />
dessa imagem e representação que o eu locutor – divulgador – faz do<br />
tu interlocutor.<br />
6. Considerações finais<br />
Com base no que foi discutido aqui, observamos que as modalidades<br />
enunciativas do discurso da ciência e da divulgação científica<br />
apresentam características próprias que as diferenciam. Isso se<br />
justifica pelo fato de as posições de sujeitos adotadas em cada um<br />
dos planos serem diferentes, bem como a imagem que se tem do interlocutor<br />
a quem os textos são direcionados.<br />
Portanto, a pertinência de análise de textos de DC, no âmbito<br />
dos estudos linguísticos, justifica-se porque levamos em consideração<br />
a grande necessidade que a escola tem de abrir espaço para a en-
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890<br />
trada dos gêneros discursivos; no âmbito da análise discursiva, por<br />
ser esse discurso marcado visivelmente pelo discurso do outro e<br />
também pela presença do eu. Além disso, o texto de divulgação científica,<br />
gênero textual difundido na mídia, carece de estudos mais<br />
aprofundados, por se tratar de um texto com vários recursos de linguagem<br />
a serem explorados.<br />
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Instituto de Estudos da Linguagem, UNICAMP, Campinas.
DE DIDO À MATRONA DE ÉFESO<br />
Amós Coêlho da Silva (UERJ)<br />
amoscoelho@uol.com.br<br />
Públio Vergílio Marão (70 – 19 a. C.) nos legou três obras:<br />
Bucólicas (também denominada Éclogas ou Églogas), Geórgicas e<br />
Eneida. A Eneida é um poema épico e relata a fundação de Roma.<br />
Eneias, portanto, o patriarca, precisará se casar, porque perdeu sua<br />
esposa Creúsa em Troia. Encontra todas as adversidades (ou provas<br />
míticas), preparadas pela deusa Juno, no seu caminho de Troia para<br />
Itália e todo amparo de sua mãe Vênus.<br />
Vênus escondera Ascânio ou Iulo, filho de Enéias, em lugar<br />
seguro. Pediu ao seu filho Cupido que assumisse a forma de Ascânio<br />
e interdum gremio fovet, inscia Dido /Insidat quantus miserae deus!,<br />
durante algum tempo aperta-o) no regaço, não sabe Dido / (que tem)<br />
um deus em (seu) colo, como há de ser infeliz! (I, 719 -20) A expressão<br />
“gremio miserae, (literalmente) no colo da infeliz” se deve à antropomorfização<br />
e ao poder de Cupido. Por exemplo, possui na sua<br />
aljava tanto a flecha do amor quanto a flecha do ódio. Por isso, pôde<br />
medir forças com o poderoso Apolo, que tem como um dos atributos<br />
arco e flecha e riu da pequena arma do filho de Vênus, porque julgou<br />
ser um brinquedo, coisa de criança. Ardilosamente, Cupido feriu a<br />
ninfa Dafne, mas instilando-lhe repulsa por Apolo, e neste, inoculou<br />
com a do amor. A pedido, para livrar-se de Apolo, foi transformada<br />
na árvore loureiro, que é o próprio termo ‘dafne’ em grego, a árvore<br />
predileta de Apolo. Nos jogos dedicados a Apolo, o herói, vencedor<br />
de provas, recebia uma coroa de louros; daí, o sentido de glória...<br />
Eros ou Cupido é a personificação do amor. A sua função divina<br />
se traduz pela “complexio oppositorum”, a união dos opostos; é<br />
uma pulsão fundamental do ser, a libido, que garante a existência pela<br />
união e supera antagonismos. Os poetas cantam este amor há muito.<br />
Assim, nos versos (741-4), do poema em sua peça trágica Joannes<br />
Princeps do humanista Diogo de Teive (m. 1565):<br />
Hunc (furorem sentiunt) ferae densis nemorum latebris;<br />
hunc aper saeuus, leo, taurus, ursus;
hunc greges mites, simul et furore<br />
concita turba.<br />
Este (furor sentem), as feras nos densos esconderijos do bosque;<br />
Este, o selvagem javali, o leão, o touro, o urso;<br />
Este, os mansos rebanhos, e ao mesmo tempo, pelo furor,<br />
Uma turba excitada (de viventes).<br />
Chico Buarque compôs “O que será”:<br />
O que será, que será?<br />
Que andam suspirando pelas alcovas<br />
Que andam sussurrando em versos e trovas<br />
Que andam combinando no breu das tocas<br />
Que anda nas cabeças anda nas bocas<br />
Que andam acendendo velas nos becos<br />
Que estão falando alto pelos botecos<br />
E gritam nos mercados que com certeza<br />
Está na natureza<br />
Será, que será?<br />
O que não tem certeza nem nunca terá<br />
O que não tem conserto nem nunca terá<br />
O que não tem tamanho...<br />
O que será, que será?<br />
(...)<br />
Luís Vaz de Camões também já escreveu num belo soneto:<br />
Amor é fogo que arde sem se ver;<br />
É ferida que dói e não se sente;<br />
É um contentamento descontente;<br />
É dor que desatina sem doer!<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
893<br />
Olavo Bilac também falou de amor na expulsão de Adão e<br />
Eva do paraíso:<br />
Ah! bendito o momento em que me revelaste<br />
O amor com o teu pecado, e a vida com o teu crime!<br />
Porque, livre de Deus, redimido e sublime,<br />
Homem fico, na terra, à luz dos olhos teus,<br />
– Terra, melhor que o céu! homem, maior que Deus!<br />
Ao hóspede Eneias solicitou a rainha de Cartago que relatasse<br />
todas as proezas heroicas, enquanto a imagem de Siqueu, o marido<br />
querido, ia se desvanecendo ao longo daquela noite de banquete.<br />
O irmão de Siqueu usurpara o reinado do esposo de Dido; era<br />
cruel e avaro. Além de matá-lo, se apossou dos haveres dele. Esta,<br />
advertida em sonho pelo marido, reuniu suas coisas e as pessoas des-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
894<br />
contentes com o seu irmão e fundou Cartago. Como nestas sociedades<br />
arcaicas a mulher não pode ficar solteira, Jarbas na África pedelhe<br />
a mão em casamento, mas não consegue porque ela se une a Eneias<br />
após este conselho de sua irmã Ana (IV, 31- 34):<br />
(...) Ó luce magis dilecta sorori,<br />
Solane perpetua maerens carpere iuuenta,<br />
Nec dulces natos, Veneris nec praemia noris?<br />
Id cinerem aut Manes credis curare sepultos?<br />
(...) Ó dileta para a (tua) querida mais do que a luz,<br />
Acaso, te consumirás só, gemendo durante (a força ) de (tua) juventude,<br />
Nem doces filhos, nem as dádivas de Vênus?<br />
Crês tu que a cinza ou os manes sepultados (de Siqueu) se importam com<br />
isto?<br />
Era o que bastava para Dido ou Elissa. E as deusas Vênus e<br />
Juno encomendaram uma chuva de granizo que surpreendeu o casal<br />
em desamparo. Eles, porém, encontraram abrigo numa gruta: Speluncam<br />
Dido dux et Troianus eandem / Deveniunt. Dido e o chefe<br />
troiano chegam à mesma gruta (165 - 6). Ille dies primus leti primusque<br />
malorum / Causa fuit, Aquele dia foi, por primeiro, causa da<br />
morte e, por primeiro, causa dos males (IV, 169 - 170)<br />
A caverna (ou a gruta, os antros etc.) é o arquétipo do útero<br />
materno e se apresenta nos mitos de origem e de iniciação (CHE-<br />
VALIER & GHEERBRANDT, 1982: CAVERNA)<br />
Contudo, Eneias não pretende aliar-se a Dido, ele decidiu obedecer<br />
às ordens de Júpiter que era garantir “genus Latinum (...) atque<br />
altae moenia Romae, a geração latina (...) e as muralhas da poderosa<br />
Roma” (I, 6 - 7). Prepara Eneias uma saída secreta de Cartago.<br />
Dido descobre, censura-lhe a traição e resolve se suicidar.<br />
A morte de Dido (Livro IV, 651-671)<br />
651 `Dulces exuviae, dum fata deusque sinebant,<br />
accipite hanc animam, meque his exsolvite curis.<br />
Vixi, et, quem dederat cursum fortuna, peregi,<br />
et nunc magna mei sub terras ibit imago.<br />
655 Urbem praeclaram statui; mea moenia vidi;<br />
ulta virum, poenas inimico a fratre recepi;<br />
felix, heu nimium felix, si litora tantum<br />
numquam Dardaniae tetigissent nostra carinae!'<br />
Dixit, et, os impressa toro, `Moriemur inultae,<br />
660 sed moriamur' ait. `Sic, sic iuvat ire sub umbras:
Tradução:<br />
Hauriat hunc oculis ignem crudelis ab alto<br />
Dardanus, et nostrae secum ferat omina mortis.'<br />
Dixerat; atque illam media inter talia ferro<br />
conlapsam aspiciunt comites, ensemque cruore<br />
665 spumantem, sparsasque manus. It clamor ad alta<br />
atria; concussam bacchatur Fama per urbem.<br />
Lamentis gemituque et femineo ululatu<br />
tecta fremunt; resonat magnis plangoribus aether,<br />
non aliter, quam si immissis ruat hostibus omnis<br />
670 Karthago aut antiqua Tyros, flammaeque furentes<br />
culmina perque hominum volvantur perque deorum.<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
895<br />
Doces despojos, enquanto o permitiriam os destinos e os deuses,<br />
Recebei esta alma e libertai-me destes cuidados.<br />
Vivi e cumpri a missão que a fortuna me tinha dado,<br />
E agora minha grande imagem (pelo feito realizado) irá para debaixo das<br />
terras.<br />
655 Fundei uma cidade ilustre; vi as minhas muralhas (prontas);<br />
Vinguei (meu) esposo, castiguei um irmão inimigo.<br />
Feliz, se nunca os navios troianos tivessem tocado os nossos litorais.”<br />
660 Disse (estas palavras) e, colando sua boca à almofada:<br />
“Morreremos sem vingança, mas morramos, diz. Assim, assim me agrada<br />
ir para as sombras.<br />
O cruel Dárdano do alto mar detenha com os olhos esta chama<br />
E leve consigo os agouros da minha morte.”<br />
663 Dissera (estas palavras), e as damas veem-na caída sobre o ferro,<br />
Espumando sangue no meio de tais palavras,<br />
665 E as mãos manchadas. Um clamor eleva-se<br />
Para os altos átrios, a Fama enfurece-se pela cidade alarmada.<br />
As casas estremecem com lamentações,<br />
Choro e gemido de mulheres;<br />
O ar ressoa com grandes clamores dolentes,<br />
Não de outro modo que se<br />
670 Toda a Cartago ou a antiga Tiro ruísse,<br />
Introduzidos os inimigos, e as chamas enfurecidas<br />
Reviram-se pelas moradas dos homens e pelos templos dos deuses.<br />
Para o traidor, o silêncio, quando Eneias, na realização de sua<br />
prova heroica máxima: a catábase, a encontrou mais tarde no Campo<br />
das Lágrimas. Ele relatou a ela que suspeitava que ela tivesse se matado.<br />
Chorou e lamento-se. Ela não respondeu. Ela usou a espada que<br />
tinha sido dada por ele como presente na noite do banquete.<br />
Petrônio (morreu 65 d. C.) foi admitido no fechado círculo do<br />
imperador Nero para opinar sobre as coisas elegantes. Logo a inveja<br />
de Tigelino, prefeito dos pretorianos, promoveu a morte de Petrônio.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
896<br />
Sua obra única é o Satyricon, com um ‘y’ parodiando a letra grega<br />
no termo ‘sátyro’. Ou seja, como é uma sátira menipeia e “sátira” é<br />
um étimo latino, cujo alfabeto não tem o “y”, o título com “y” para<br />
exprimir o caráter sensual dos sátiros, entidades da mitologia grega<br />
que se caracteriza pelo comportamento sensual. É a sensualidade de<br />
que se revestem os episódios narrados.<br />
A novela da matrona de Éfeso exprime o sutil pessimismo petroniano<br />
tão bem definido a respeito das fraquezas da carne e tornouse<br />
um clássico da literatura latina.<br />
Este capítulo 111 começa apresentando a senhora de Éfeso<br />
como um baluarte de castidade, Matrona quaedam Ephesi tam notae<br />
erat pudicitiae, ut vicinarum quoque gentium feminas ad spectaculum<br />
sui evocaret, uma mulher casada tão reconhecida pela sua virtude<br />
que atraía até as mulheres dos países vizinhos para vê-la. (111)<br />
O termo “matrona”, mulher casada, faz parte de uma constelação<br />
semântica indicativa do papel social da mulher em Roma antiga.<br />
É um derivado de mater, mãe que, além de sua função de maternidade,<br />
pouca atividade social exercia. Já “pater”, através de suas<br />
cognatas: patrimonium, patria, patrocinium (e o verbo) patro – executar,<br />
realizar etc. exprime o rico papel do homem na sociedade.<br />
Ela acompanhou e velou o esposo morto, como ainda é costume<br />
nos nossos dias. Mas o seu velório ultrapassou as expectativas,<br />
pois a fidelíssima viúva lamentava-se e preparava-se para morrer de<br />
fome, sem que parentes próximos pudessem demover da sua decisão<br />
e consolá-la daquela aflição. Dada a determinação inflexível daquele<br />
modelo exemplar de fidelidade, todos já a davam como morta e, na<br />
cidade, não se falava de outra coisa. Uma criada fiel pôs-se ao lado<br />
daquele exemplo único de amor conjugal. No entanto, como um soldado<br />
percebesse luz e gemidos em meio aos túmulos, enquanto montava<br />
sua guarda da crucificação de três ladrões por ordem do governador,<br />
aproximou-se. Petrônio ressalta os contrastes tétricos do cemitério,<br />
os quais deveriam ter despertado sentimento de medo do sobrenatural<br />
no soldado; mas, ao contrário, para o homem o que houve<br />
foi o estímulo de uma visão admirável de uma mulher tão bela naquele<br />
lugar e compaixão pelo desgrenhado da desesperada com o<br />
rosto ferido pelas unhas. Ofereceu-lhe sua pobre refeição e admoestou-lhe<br />
de tudo que todos já haviam recomendado na mesma situa-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
897<br />
ção: assim será o fim de cada um de nós, não devemos nos mortificar<br />
inutilmente etc.<br />
Dada a persistência paciente dele em oferecer bebida e comida,<br />
a criada atentou para o generoso cheiro do vinho, aceitou a gentileza<br />
e, pela primeira vez, exortou a sua ama que compartilhasse da<br />
ceia. Como o soldado se encolhesse, continuou a criada convencendo<br />
a sua senhora contra a sua obstinação de viúva numa expressão que é<br />
bem uma paródia de uma passagem na Eneida, de Vergílio. Agora<br />
também serviu de argumento, como naquele momento de Ana, irmã<br />
de Dido (Eneida IV, 34): Id cinerem aut manes sentire sepultos? Acreditas<br />
que as cinzas ou os manes sepultados percebem teu sacrifício?<br />
Imediatamente, a senhora, esgotada pelo jejum de muitos dias,<br />
abandonou a sua obstinação, a qual tinha repelido até as importantes<br />
e graves orientações dos magistrados. Enfim, comeu e bebeu<br />
com a mesma avidez da criada.<br />
No capítulo 112, relata-se que o soldado entusiasmado com<br />
seu sucesso, passou a assediar a virtude da senhora com a mesma argumentação<br />
que a demovera daquele jejum. A criada incumbiu-se de<br />
abrir-lhe o coração, alegando-lhe o desperdício da juventude dela em<br />
tão triste local. Ne hanc quidem partem [corporis] mulier abstinuit,<br />
victorque miles utrumque persuasit. Certamente a mulher não recusou<br />
os apelos do corpo, e o soldado vencedor a persuadiu duplamente.<br />
Conclusão<br />
Públio Ovídio Nasão, ou simplesmente Ovídio, escreveu Heroides,<br />
são monólogos de amor. Monólogos, porque as heroínas apaixonadas<br />
(uma personagem histórica: Safo, a carta de número 15)<br />
escreve aos seus amados, que nunca lerão tais mensagens, a não ser<br />
três cartas respondidas: a de Paris, 16; a de Leandro, 18 e a de Acôncio,<br />
20, que alguns as julgam espúrias (HARVEY, 1987, p. 271). Há<br />
um poema que é uma carta de Dido Aeneae, Dido para Eneias. Termina<br />
com um epitáfio, que um pentâmetro elegíaco: Praebuit Aeneas<br />
et causam morti et ensem; / Ipsa sua Dido concidit usa manu. Eneias
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
898<br />
ofereceu o motivo de sua morte e a espada; Dido com sua própria<br />
mão a usou e se cortou.<br />
O Prof. Walter Vergna chamou a esta ação de "apoteose do<br />
amor (que) com a morte da amante, morte que escreve em letras de<br />
sangue no firmamento da Mitologia a condenação do amado" (p. 77)<br />
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grega. Petrópolis: Vozes, 1991.<br />
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Petrópolis: Vozes, 1993.<br />
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Précis Methodique Paris: Didier, 1932.<br />
PETRONIUS, SENECA. Apocolocyntosis. With an English translation<br />
by Michael Heseltine & W.H.D. Rouse. Cambrigde: Harvard<br />
University, 1975.<br />
SILVA, Márcia Regina de Faria. O trágico nas ‘Heroides’ de Ovídio.<br />
Tese de Doutorado, Faculdade de Letras – UFRJ, Rio de Janeiro:<br />
2008.<br />
VIRGILE. L’Énéide. Nouvelle edition, revue et augmentée avec<br />
introduction, notes, appendices et index par Maurice Rat. Paris: Garnier<br />
Frères, s/d.<br />
VERGNA. Walter. Heroides: A concepção do amor em Roma<br />
através da obra de Ovídio. Rio de Janeiro: Museu de Armas<br />
Ferreira da Cunha, 1975.
DE PRETO À AFRODESCENDENTE:<br />
IMPLICAÇÕES TERMINOLÓGICAS<br />
José Geraldo da Rocha (Unigranrio) 1<br />
rochageraldo@hotmail.com<br />
Quem de nós já não teve a oportunidade de ouvir afirmações<br />
do tipo: “a coisa está preta”; “a situação esta preta”. Nessas circunstâncias<br />
não restam dúvidas de que se fala de realidades desfavoráveis.<br />
A coisa não anda bem, nem a situação está boa. Na linguagem<br />
cotidiana, o preto aqui é utilizado para aludir, ilustrar o quanto tal realidade<br />
está feia. Consequentemente, preto é a mesma coisa que feio.<br />
Em outros momentos, encontramos a mudança terminológica<br />
onde não é mais o “preto” que vai dinamizar a linguagem, mas sim o<br />
“negro”. Ao se referir às valas de esgotos à céu aberto, se afirma:<br />
“valas negras”. Na camada de ozônio vai-se falar do “buraco negro”<br />
; em relação ao câmbio não oficial o termo utilizado comumente é<br />
“câmbio negro”; ainda encontramos o “setembro negro”; “as nuvens<br />
negras”; “um dia negro” “alista negra”; “a alma negra”; “a fome negra”;”a<br />
viúva negra” e tantas outras situações. O que se pode perceber<br />
é que tal quais as afirmações em relação a “preto”, essas afirmações<br />
tão comuns na língua portuguesa no Brasil remetem, todas elas,<br />
a um horizonte de algo ruim.<br />
Esses dois termos, "preto e negro” acabaram sendo naturalizados<br />
na sociedade brasileira de tal forma carregados de pejoratividades,<br />
que em determinados ambientes se quer é admitido que se<br />
questione o emprego dos mesmos.<br />
O presente artigo objetiva colocar em discussão essa terminologia,<br />
demonstrando como na sociedade brasileira foi evoluindo suas<br />
compreensões, e, sobretudo, a relevância da desconstrução do caráter<br />
pejorativo e discriminador presente na utilização cotidiana da mes-<br />
1 Doutor em Ciências Humanas pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro; Prof.<br />
Adjunto Dr. do Programa de Pós Graduação – Mestrado em Letras e Ciências Humanas de<br />
Unigranrio; professor no Programa de Pós Graduação Lato Seno – PENESB/UFF e na Pós<br />
Graduação em Africanidades da UCAM.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
900<br />
ma. O crescimento de uma consciência negra vai impulsionar uma<br />
revisão terminológica ao mesmo tempo uma busca de termos mais<br />
apropriados para referir-se aos povos negros de origens africanas.<br />
Preto é mesma coisa que negro? Uns afirmam ser tudo igual,<br />
outros buscam argumentos para diferenciar os termos. É comum ouvirmos<br />
afirmações do tipo: preta é cor, negro é raça. A distinção aqui<br />
se dá em função da relação ao objeto em questão. Como adjetivo,<br />
preto encerra uma qualificação “a cor do objeto”, já negro nos parece<br />
designar o próprio sujeito. Os dicionários da língua portuguesa não<br />
nos oferecem uma real distinção terminológica entre as duas palavras.<br />
Em ambos os casos preto aparece como sinônimo de pessoa de<br />
pele escura e ao mesmo tempo, cor, escuridão, ausência de luz. Tomando<br />
como referência o Dicionário Aurélio verificamos:<br />
Preto- que tem a mais sombria de todas as cores; da cor de ébano, do<br />
carvão. Rigorosamente no sentido físico o preto é ausência de cor, como<br />
o branco é o conjunto de todas as cores. ( …) Sujo, encardido, indivíduo<br />
negro, a cor da pele desse indivíduo, a cor da pele queimada pelo sol.(…)<br />
perigoso, difícil ( …) preto de alma branca – indivíduo negro bom, generoso,<br />
nobre, leal. (FERREIRA)<br />
Ao buscar definir o termo “negro”, o mesmo autor acaba induzindo<br />
a generalização da “confusão terminológica”. Para Holanda,<br />
negro significa: “de cor preta. Indivíduo de raça negra, preto. Sujo,<br />
encardido, preto. Muito triste, lúgubre. Melancólico, funesto. Maldito,<br />
sinistro. Escravo”. (FERREIRA)<br />
Nilma Gomes ao enveredar pelo campo das relações raciais<br />
explicita alguns elementos resultantes de tais confusões.<br />
A discussão sobre relações raciais no Brasil é permeada por uma diversidade<br />
de termos e conceitos. O uso destes, muitas vezes causa discordâncias<br />
entre autores, intelectuais e militantes com perspectivas teóricas<br />
e ideológicas diferentes (…) negros são denominados aqui as pessoas<br />
classificadas como pretas e pardas nos censos demográficos realizados<br />
pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) (GOMES,<br />
2005, p. 39)<br />
As dificuldades terminológicas de tal realidade têm gerado ao<br />
longo da história incompreensões, equívocos e malversação das palavras<br />
no processo de ensino e aprendizagem. O simples, nem tão<br />
simples assim, fato de perguntar a cor de uma pessoa gera situações<br />
inusitadas. Aparentemente, existe certo medo da cor quando esta se
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
901<br />
encontra associada à pessoa, principalmente aos descendentes africanos.<br />
Veja como isso soa na crônica a seguir:<br />
Qual é a Sua Cor?<br />
Eu negro? Virgem Maria moço! Negro eu? Deus me livre. Só me<br />
faltava essa! Como posso ser negro? – não sei - Eu não sou negro?- o<br />
que você acha? – Não sei, olhe pra mim. Eu sou assim... como é que se<br />
diz... você me entende – ah tá – que cor eu sou? Cruz credo sô! Nunca<br />
tinha pensado nisso... mas por que você perguntou isso pra mim? – por<br />
perguntar - eu preciso responder? – seria bom – Deixa eu pensar um<br />
pouquinho... Bobagem essa. Que besteira sô! Que diferença faz ser negra<br />
ou qualquer outra cor? Ah mas você quer saber mesmo qual é a minha<br />
cor... uns me chamam de moreno, outros de mulato, de pardo, e alguns<br />
até me chamam de negro... sabe de uma coisa moço? Branco eu sei que<br />
não sou, mas sinceramente, sabe que não sei que cor eu sou. Meu Deus!<br />
Engraçado né! Agora veja eu não sei que cor eu sou. Como pode isso? –<br />
Sei não. – E se eu soubesse... o que iria mudar? Certamente nada. Meus<br />
cabelos continuariam assim, duros, ruim, feios e rebeldes. Meu nariz<br />
continuaria chato. Ou ficaria fininho só por que eu sei minha cor moço?<br />
O senhor acha que o meu salário aumentaria por eu saber a minha cor?<br />
Ou que meu barraco na favela se transformaria numa casa num lugar<br />
chique? As pessoas passariam a me tratar diferente? Sabe moço... tem<br />
horas que algumas perguntas não devem ser feitas. E o pior as respostas<br />
a essas perguntas, quando somos obrigados, aumentam a nossa dor! Responder<br />
uma pergunta como essa exige pensar muito, exige consciência.<br />
E tem momentos que é melhor fingir moço. Fingir que não se sabe, que<br />
não se tem consciência e continuar vivendo na ilusão... o senhor tá me<br />
entendendo? Fingir já faz parte da minha forma de resistir, da minha vida.<br />
Tantos fingem que eu não existo que eu não tenho direitos, que eu<br />
sou isso, que sou aquilo... Vivemos num mundo de muito fingimento<br />
moço. Fingir minha cor é apenas mais um fingimento entre tantos fingimentos<br />
que nos trazem tanta dor. (ROCHA, 2009)<br />
Em princípio, o termo “preto” surgido por volta do século X<br />
designava pessoas de pele escura originárias da África. Entretanto,<br />
com a escravidão no século XV a palavra “negro” passa a ser adotada<br />
pelos portugueses. A associação do termo “negro” à escravos foi<br />
utilizado pelos espanhóis na América. Daí o sentido do termo receber<br />
uma conotação ofensiva nos que marcou séculos de história. Ficou<br />
no ar certa confusão entre preto e negro, que passaram a significar<br />
a mesma coisa, ou seja, pessoas de pele escura. Como a escravidão<br />
ficou como realidade que marcou negativamente a história da<br />
humanidade, o termo passou a ser empregado como sinônimo de coisas<br />
ruins. Coisa preta ou coisa negra é sinônima de coisa que não<br />
presta.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
902<br />
Houve um tempo na historia do Brasil, e não foi diferente nos<br />
demais países das Américas, em que o “preto” foi sinônimo de escravo.<br />
Os escravos eram pretos e os pretos eram escravos. Pretos não<br />
eram considerados humanos, pois aos escravizados questionava-se a<br />
existência de alma. Daí o trato tal qual animais no período colonial.<br />
Escravo não presta, preto não presta, e preto é igual a negro, e negro<br />
não presta. É nesse contexto que encontramos as expressões “valas<br />
negras” para designar esgoto à céu aberto; “a situação está preta”,<br />
para significar que a mesma está ruim. Origina-se assim uma pseudonecessidade<br />
de identificação de tudo o que é bom ao branco, em<br />
oposição ao negro. Em decorrência de tal concepção, a beleza passa<br />
a ser branca, e a feiúra negra. A bondade assume a brancura em contraposição<br />
à maldade que é negra. Negro passa a significar algo sujo,<br />
enquanto a limpeza se associa ao branco. O inferno é concebido como<br />
negro ao passo que o céu é lugar das almas brancas.<br />
O emprego terminológico carrega consigo a fundamentação<br />
de uma ideologia do embranquecimento. Com isso, a negação da cor<br />
passa a ser uma necessidade dos negros como elemento de afirmação<br />
e busca de reconhecimento social. Se ser branco é sinônimo de ser<br />
bonito, por que um negro vai querer ser negro? Se ser branco é prérequisito<br />
para a aceitação social, que motivo tem um descendente de<br />
africanos para querer ser negro?<br />
Essa realidade de associação negativista dos termos, principalmente<br />
o termo negro vai passar por um processo de desconstrução<br />
e resignificação terminológica. No âmbito da sociologia, o termo negro,<br />
vai ganhar relevância por se tratar de uma realidade mais adequada<br />
na classificação de grupos étnicos raciais originários da África.<br />
Entretanto, em função da carga negativa de preconceitos em torno<br />
da terminologia utilizada ao longo da história, inúmeras dificuldades<br />
vão se explicitando e criando dificuldades de resgate e aplicação<br />
correta do termo.<br />
Nessa perspectiva, as lutas dos movimentos sociais negros para<br />
recontar a história do negro no Brasil não vão medir esforços para<br />
superar o caráter pejorativo impregnado no termo. Recontar a história<br />
passa por imprimir significados novos ou resignificar o termo negro,<br />
demarcando-o como valor. Assim muitos grupos negros cantaram<br />
nas comunidades eclesiais o canto: “eu sou negro sim como
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
903<br />
Deus criou, sei lutar pela vida cantar liberdade e gostar dessa cor”.<br />
Nesse canto a afirmação da certeza de ser filho de Deus como as<br />
demais pessoas.<br />
Ser negro não é então sinônimo de escravo, ser negro é sinônimo<br />
de pertença às origens africanas. Isso não mais se configurará<br />
como ofensa, mas ao contrário, deve ser motivo de orgulho. Nesse<br />
sentido, o manifesto do movimento negro unificado é veemente:<br />
Nós, negros brasileiros, orgulhosos por descendermos de Zumbi, líder<br />
da República negra de Palmares, (…) nos reunimos hoje, (…) para<br />
declarar a todo o povo brasileiro nossa verdadeira e efetiva data: 20 de<br />
novembro – dia da consciência negra (CARDOSO, 2002, p. 67)<br />
O termo negro vai aos poucos recebendo novas significações.<br />
Os tabus vão sendo quebrados e a carga de pejoratividade que envolvia<br />
a terminologia vai sendo removida. Os grupos de combate ao racismo<br />
vão se multiplicar na sociedade brasileira e com isso se dá o<br />
crescimento da aceitabilidade terminológica. A evocação da origem<br />
diferente dos negros vai fundamentar tal discurso. Ser negro no Brasil<br />
é ter uma origem africana.<br />
Então posso dizer com orgulho: sou de lá da África, se eu não<br />
sou de lá meus pais são de lá da África, se meus pais não são de lá,<br />
meus avôs são de lá, se meus avôs não são de lá, meus ancestrais são<br />
de lá da África. A compreensão do termo negro à luz do reconhecimento<br />
da existência da África vai mudar uma lógica de inserção na<br />
história. A aproximação da África tão distante, para a cotidianidade<br />
da vida do negro passa ser uma tarefa desafiadora.<br />
Existe uma áfrica!Existe uma áfrica em algum lugar! Existe uma áfrica<br />
ainda que distante! Existe uma áfrica nem tão distante! Existe uma<br />
áfrica bem mais perto do que se imagina! Existe uma áfrica em você e<br />
em mim! Somos todos rebentos engendrados no Ventre da Mãe África<br />
(ROCHA, 2008)<br />
Em sendo essa origem motivo de orgulho, por que então não<br />
dizer-se negro sim, mas agora com o significado terminológico de<br />
afro-brasileiro. Essa concepção vai embasar um processo de construção<br />
de identidade negra no país. É mais que uma consciência negra<br />
individual. Trata-se de uma consciência negra coletiva construída<br />
associada às origens com o toque de brasilidade.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
904<br />
Os africanos não foram trazidos e escravizados apenas no<br />
Brasil, eles foram espalhados pelas Américas. No decorrer do processo<br />
de afirmação das identidades étnicas nas Américas, foi constatada<br />
a necessidade de encontrar uma terminologia que pudesse “englobar”<br />
os negros como um todo nas Américas. Surge assim o termo<br />
“afro-americano”. Com isso, aumenta na América, a consciência de<br />
pertença à “Mãe África” por parte dos negros. Filhos originários de<br />
um mesmo continente, irmãos em uma mesma história em terras estranhas.<br />
A partilha dessas histórias de lutas em terra estranhas fomentou<br />
a solidariedade com negros de outras regiões do mundo par além<br />
das Américas, o que impulsionou a busca do termo “afrodescendente”<br />
para designar todos os negros presentes na diáspora. Evidentemente<br />
tal terminologia suscitou e continua suscitando acalorados debates.<br />
De certo modo, trata-se de formas de apropriação do termo<br />
numa perspectiva de poder. Existem em tal concepção terminológica<br />
diferenciados aspectos ideológicos. Para alguns, não passa de um<br />
discurso de manipulação política. Outros, entretanto, veem o termo<br />
como forma de fortalecimento de identidade. Agrega-se a essa compreensão<br />
terminológica o reconhecimento da situação vivenciada pelos<br />
descendentes africanos, conforme podemos constatar no documento<br />
das Américas com vistas à Declaração de Durban.<br />
Reconocemos que los afro descendientes han sido victimas de racismo,<br />
discriminación racial e esclavitud durante siglos, y de la negación<br />
histórica de muchos de SUS derechos(…) igalmente constatamos<br />
lãs consequencias nefastas de la esclavitud que se encuentra en la raiz<br />
de las situaciones de profunda desigualdad social y econômica de que<br />
son generalmente víctimas los afro descendientes.(FORO DE ONG’S, p.<br />
9)<br />
Conforme se pode notar, a dimensão do termo afrodescendente<br />
é extremamente ampla e abrangente. O seu emprego acaba instando<br />
às nações a uma revisão das relações estabelecidas historicamente<br />
com os povos originários do continente africano espalhados na diáspora.<br />
A consciência da afrodescendência fomenta busca solidária<br />
como a que se deu na Conferência das Américas em preparação para<br />
a Conferência Mundial ocorrida na África do Sul em 2001.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
905<br />
As possibilidades de superação do racismo, da discriminação<br />
racial, da xenofobia e todas as formas correlatas de intolerância estão<br />
associadas diretamente ao grau de desenvolvimento da consciência.<br />
Considerações finais<br />
As discussões terminológicas aqui apresentadas inscrevem-se<br />
numa perspectiva de se repensar as formas estereotipadas em que o<br />
racismo e a discriminação têm utilizado nos processos de exclusão<br />
dos afrodescendentes na sociedade brasileira.<br />
A naturalização da associação de preto, negro a coisas que<br />
não prestam, conduziram, inclusive no processo educacional, a incutir<br />
na mente das pessoas uma dose cavalar de teorias do embranquecimento.<br />
A fuga muitas vezes inconsciente de tudo o que se associa<br />
ao negro, inclusive do ponto de vista simbólico, tornou-se para muitos<br />
uma necessidade para trilhar os caminhos do reconhecimento e<br />
da aceitabilidade social. Obviamente que isso implicou em um longo<br />
e doloroso processo de negação da identidade negra.<br />
Num esforço salutar, os movimentos negros acabaram perseguindo<br />
outros termos que pudessem dar conta de um arregimentar de<br />
pessoas e ao mesmo tempo, possibilitasse um fomento da busca solidária<br />
de superação das discriminações e do racismo. Nesse contexto<br />
que os termos afro-brasileiros, afro-americanos e afrodescendentes<br />
vão ganhar relevância e se tornam realidades denunciadoras dos processos<br />
de exclusões, ao mesmo tempo referência para se propor e<br />
buscar estratégias conjuntas de inclusão.<br />
Em tempos de busca pelo “politicamente correto”, na relação<br />
com os negros na sociedade brasileira, a forma como a terminologia<br />
é empregada influencia decisiva e diretamente na convivência social.<br />
No processo de ensino e aprendizagem, a superação dos vícios de<br />
linguagem que empregam depreciativamente a terminologia aqui por<br />
nós abordada, tornou-se um desafio cotidiano.<br />
Na atualidade ainda é muito comum presenciarmos discursos<br />
onde alguns desses termos trabalhados criam certo mal estar. Em determinadas<br />
oportunidades tornam-se perceptíveis o desconforto dos<br />
indivíduos. Já não se sabe mais se deve chamar alguém de negro.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
906<br />
Ora por medo de estar ofendendo e ser “enquadrado” no crime de racismo<br />
pelo que se sentiu ofendido; ora pela própria falta de consciência<br />
e esclarecimento terminológico que a realidade encerra, para<br />
além da construção pejorativa que ao termo foi imbuído. Por outro<br />
lado, aos que trabalham na perspectiva de desconstrução da negatividade<br />
terminológica e resignificação da palavra negro, é motivo de<br />
orgulho ser chamado de negro. Obviamente que para esses indivíduos<br />
ou grupos, o ser chamado de negro encerra uma história uma<br />
cultura, uma hereditariedade vinculada às origens africanas. Evidentemente<br />
que isso fortalece a dimensão de afra descendência.<br />
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
CARDOSO, Marcos. O Movimento Negro. Belo Horizonte: Mazza,<br />
2002.<br />
FORO DE ONG’S. Conferencia Mundial Contra o Racismo. Santiago:<br />
2001.<br />
GOMES, Nilma Lino. Alguns termos e conceitos presentes no debate<br />
sobre relações raciais no Brasil: uma breve discussão. In: Educação<br />
antirracista: caminhos abertos pela lei 10.639. Brasília: SECAD,<br />
2005.<br />
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua<br />
portuguesa. 3. ed. rev. atual. Curitiba: Positivo, 2004.<br />
FREYRE, Gilberto. Casa grande & senzala. 31. ed. Rio de Janeiro:<br />
Record, 1996.<br />
NOVAES, Ana Lúcia. Ações Afirmativas e Ambiente Escolar: uma<br />
leitura sob o enfoque da promoção do senso de autoeficácia. In: RO-<br />
CHA, José Geraldo da & SANTOS, Ivanir dos (Orgs.). Diversidade<br />
& ações afirmativas. Rio de Janeiro: CEAP, 2007.<br />
ROCHA, J. G. Poema África. Rio de Janeiro: 2008.<br />
_____. Crônica Qual é a sua cor? Rio de Janeiro: 2009.<br />
SANT’ ANNA, Wânia. O impacto político-econômico das ações afirmativas.<br />
In: GOMES, Nilma Lino (Org.). Tempos de lutas: as a-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
907<br />
ções afirmativas não contexto brasileiro. Brasília: Secretaria de Educação<br />
Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2006.<br />
SANTOS, Renato Emerson. Políticas de cotas raciais nas universidades<br />
brasileiras – o caso da UERJ. In: GOMES, Nilma Lino (Org.).<br />
Tempos de lutas: as ações afirmativas não contexto brasileiro. Brasília:<br />
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade,<br />
2006.<br />
SILVEIRA, Oliveira. Vinte de novembro: história e conteúdo. In:<br />
SILVA, Petronilha Beatriz Gonçalves & SILVERIO, Valter Roberto<br />
(Orgs.). Educação e ações afirmativas: entre a injustiça simbólica e a<br />
injustiça econômica.
DISCURSOS DE POSSE DOS PRESIDENTES DO STF<br />
AS MANIFESTAÇÕES LINGUÍSTICAS<br />
E O ETHOS DO PODER JUDICIÁRIO<br />
Claudia Maria Gil Silva (UERJ e UniFOA)<br />
cacaigil@bol.com.br<br />
1. Sobre os discursos de posse dos Presidentes do Supremo Tribunal<br />
Federal<br />
Acreditamos na democracia como regime ideal para os homens e sabemos<br />
que ela se assenta no prevalecimento das leis. Mas leis não se aplicam<br />
sozinhas. E os juízes, aos quais incumbe a aplicação delas, isto é,<br />
a função altíssima de dar vida a esses textos, encarnam poderes – por assim<br />
dizer – divinos. (Fragmento do discurso de posse do Presidente do<br />
STF, Ministro Lafayette Andrada – Brasília, 1962)<br />
Abrigos da história de um poder e suportes da imagem que<br />
dele se constrói, constituem os discursos de posse dos Presidentes do<br />
Supremo Tribunal Federal um tomo indispensável para o estudo da<br />
linguagem como templo da palavra em movimento no tempo e no<br />
espaço.<br />
Um lugar que revela uma prática comunicativa institucional<br />
capaz de retratar as distintas posições sócio-políticas, de épocas várias,<br />
de um Brasil e de um Poder. Tais discursos apresentam-se impregnados<br />
de uma carga semântica e ideológica que os entrelaça a<br />
outros discursos e enunciadores, constituindo-se, portanto, num corpus<br />
essencialmente dialógico.<br />
Discursos em que a ocorrência de manifestações metafóricas<br />
e metonímicas é capaz de forjar a realização de novos dizeres, uma<br />
vez que essas manifestações permitem o desdobramento de significados,<br />
além de convergirem para a concepção de diferentes identidades<br />
– individuais ou coletivas – que são capazes de denotar a imagem<br />
dos sujeitos enunciativos e da instituição que representam.<br />
Discursos em que é possível verificar que o binômio palavra /<br />
poder é, ao mesmo tempo, alicerce e compositor de uma imagem;<br />
que presidência e presidentes são o resultado de uma dupla identidade<br />
que se funde em uma só, ou seja, o enunciador referenda a ima-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
909<br />
gem do poder que assume e vice-versa, construindo, dessa forma, o<br />
ethos do Poder Judiciário no Brasil.<br />
Discursos em que a seleção e a combinação do léxico, cuidadosamente<br />
realizadas para a construção dos sentidos, conduzem-nos<br />
à leitura e identificação de uma imagem não apagada pelo tempo, e<br />
ainda constantemente fortalecida por enunciadores capazes de estabelecer<br />
em seus textos o modo com que pretendem se ver relacionados<br />
com o outro.<br />
Discursos proferidos por vinte e seis homens e apenas uma<br />
mulher no período de 1962 a 2010; que revelam a imagem de um<br />
Poder construída pelo próprio Poder por meio de seus respectivos<br />
membros na investidura de sua presidência. Discursos que definem<br />
um ethos que transita pelo tempo; que conclamam vozes outras para<br />
confirmarem a marca que não se quer dissociar dessa Instituição.<br />
Discursos que elevam o Poder Judiciário à altura do “Poder Divino”,<br />
uma vez que unem as características pessoais de seus membros à<br />
“missão” institucional que desempenham.<br />
2. Sobre a palavra<br />
Criada com o objetivo primeiro de decalcar a realidade, a palavra<br />
transforma-se quando assume a função do dizer, uma vez que<br />
se associa a outras palavras e insere-se em um determinado contexto,<br />
representando o homem diante de outro homem na construção de<br />
uma história e de uma imagem.<br />
Desde o momento de sua formação, quando selecionados os<br />
elementos de sua estrutura interna até a relação formal que estabelece<br />
com outras, a palavra dá ao homem a liberdade de se pôr no mundo<br />
e, nesse movimento palavra/homem/mundo as sociedades se instalam,<br />
as relações de força que se estabelecem entre os sujeitos são<br />
acionadas e a assimetria de papéis presente nas relações sociais se<br />
solidificam e fortalecem.<br />
Palavras são, portanto, sinais cujos significados se constroem<br />
na boca de quem as pronuncia, nos olhos de quem as lê, nos ouvidos<br />
de quem as escuta. Só a palavra pode oferecer ao homem a oportuni-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
910<br />
dade de dize(-se), de revelar(-se), de libertar(-se) ou de prender(-se)<br />
em um mundo onde ela é, ao mesmo tempo, a chave e a tranca: porta<br />
para todas as (im)possibilidades.<br />
Correia e Lemos (2005, p. 66) propõem, para a palavra, alguns<br />
conceitos e reflexões. Por palavra típica, por exemplo, entendem<br />
ser aquela que, no discurso escrito, representa a “sucessão de<br />
caracteres delimitados por espaços em branco, (a chamada ‘palavra<br />
gráfica’)”; palavras que assumem dimensão superior à palavra gráfica:<br />
sintagmas que se formam por mais de uma palavra e as locuções<br />
preposicionais, conjuncionais e adverbiais; palavras que assumem<br />
dimensão inferior à palavra gráfica, sem autonomia para funcionarem<br />
sozinhas, isoladamente, pois não ocupam posição sintática alguma,<br />
apenas funcionam como elementos compositores de outras palavras<br />
e, por fim, as expressões idiomáticas que comportam significados<br />
que vão além da sua estrutura e de seus componentes.<br />
Segundo as autoras, portanto, poderíamos afirmar que as palavras<br />
podem ser consideradas como símbolos do universo real ou<br />
imaginário do homem e, por isso, há aquelas que podem mais, que<br />
sabem mais longe, que atravessam outras palavras ou cruzam-se com<br />
elas para poderem significar. E há, no entanto, aquelas cuja significação<br />
reporta apenas a seus próprios elementos de construção.<br />
3. Sobre as criações neológicas<br />
Assim como há palavras que, cansadas, abandonam o cenário<br />
discursivo, há outras, no entanto, que invadem esse cenário abandonando<br />
o seu sentido primeiro, soldando-se a outros significados em<br />
busca de traduzir o pensamento humano. Esse mesmo pensamento,<br />
às vezes, necessita de criar um novo componente lingüístico para<br />
tornar-se concreto. São assim criados os neologismos, cujo objetivo<br />
é o enriquecimento da língua.<br />
Para Alves (1994), a ocorrência dos neologismos pode se dar<br />
das seguintes formas:<br />
· fonológicos: quando ocorre a criação de um item lexical<br />
cuja base do significante não se encontra presente na lín-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
911<br />
gua. Muito raro de se dar pelo fato de sua difícil decodificação<br />
e compreensão pelos falantes dessa mesma língua.<br />
· sintáticos: quando a combinação dos elementos que os<br />
constituem não está relacionada simplesmente à formação<br />
do léxico, mas principalmente à frase em que estão inseridos,<br />
por alterarem classes e funções.<br />
· semânticos: quando um componente lexical já existente<br />
em uma língua incorpora uma significado novo, não institucionalizado.<br />
· truncação: palavra criada por um tipo de abreviação em<br />
que se elimina uma parte da seqüência lexical, geralmente<br />
sua parte final.<br />
· palavra-valise: criada a partir da redução dos elementos<br />
de duas bases (ou apenas de uma delas) para criar um novo<br />
léxico – perda da parte final de uma base e a parte inicial<br />
de outra. Esse processo também é conhecido por cruzamento<br />
vocabular, palavra portmanteau, contaminação,<br />
entre outros.<br />
· reduplicação: repetição da base de uma palavra a fim de<br />
construir um novo léxico.<br />
· Derivação regressiva: na língua portuguesa, essa ocorrência<br />
se dá, principalmente, quando há a substantivação<br />
de formas verbais e seguido pelo acréscimo da vogais -a, -<br />
e e -o ao radical do verbo.<br />
· Por empréstimo: uso de unidade léxica estrangeira, seguida<br />
ou não de sua tradução, tendo sua estrutura alterada<br />
ou não.<br />
Há, portanto, diversas formas pelas quais o homem pode conceber<br />
e expressar o conhecimento resultante da sua vida em sociedade<br />
e a forma como ele utiliza a palavra, quando explora o seu valor<br />
simbólico, permite que seja reconhecido, identificado entre tantos<br />
como único, uma vez que espelha, em seu discurso, a imagem que<br />
faz de si e que deseja ver compartilhada.
4. Sobre os neologismos semânticos<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
912<br />
Por expressar nova associação entre significado e significante,<br />
uma palavra ou expressão poder ser considerada um neologismo semântico.<br />
Para M Louis Guilbert (Apud VALENTE, 2005, p. 131), a<br />
neologia semântica se concretiza no âmbito do lexema e pode apresentar-se<br />
sob três formas:<br />
· a neologia sintagmática: quando se dá a modificação do<br />
agrupamento dos semas referentes a um lexema, sem haver,<br />
no entanto, a modificação da forma deste. Consiste<br />
nas construções metafóricas e metonímicas, por exemplo,<br />
as quais serão objetos de análise deste artigo.<br />
· a neologia por conversão: afeta a categoria gramatical do<br />
lexema, ou seja, além de impregnado de novo sentido,<br />
desloca-se de sua classe gramatical de origem para assumir<br />
outra.<br />
· a neologia sociológica: quando um termo pertencente a<br />
um jargão profissional passa ou a incorporar a linguagem<br />
de um outro grupo profissional , rompendo com o significado<br />
primeiro para ajustar-se ao novo meio, ou mesmo<br />
quando passa a habitar a linguagem usual de um grupo de<br />
falantes, adaptando-se, também, à sua nova condição discursiva.<br />
5. A análise do corpus<br />
5.1. Fragmentos do discurso de agradecimento do Ministro<br />
Lafayette Andrada como o primeiro Presidente do Supremo<br />
Tribunal Federal eleito e empossado em Brasília<br />
(...) Mas as leis não se aplicam sozinhas. Os juízes, aos quais incumbe<br />
a aplicação delas, isto é, a função altíssima de dar vida a esses<br />
textos, encarnam poderes – por assim dizer – divinos.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
913<br />
· “...a função altíssima de dar vida a esses textos, ...” remete<br />
à passagem bíblica, escrita no 1º livro do Antigo Testamento:<br />
“Deus disse...” (Gênesis) e tudo foi feito;<br />
· a construção metafórica dialoga com a história registrada<br />
no mais sagrado dos livros, onde está documentada a magia<br />
da palavra, que, como brasa na boca de Deus, queima<br />
e se derrama sobre o abismo informe e vazio que era a terra<br />
e se transforma no grande mistério da vida, no princípio<br />
de tudo, de tudo o que está feito, de tudo o que está escrito.<br />
· a função altíssima do juiz é transformar palavra em justiça,<br />
é animar o inanimado, implicitando, concomitantemente,<br />
a construção metonímica o juiz é a justiça ou viceversa,<br />
a justiça é o juiz.<br />
“Sei quão difícil, árdua, hercúlea, a missão do juiz, mas nada há tão<br />
nobilitante.”<br />
· utiliza a marca de não-pessoa em “...hercúlea, a missão do<br />
juiz”, permitindo que enunciador e coenunciadores compartilhem<br />
a imagem criada do herói, daquele que foi o<br />
deus dos exércitos;<br />
· atravessa, novamente, o tempo na história da humanidade<br />
ao retomar a imagem de Hércules e inscrevê-la no discurso<br />
com o fim de confirmar o ethos divino, numa metáfora<br />
que supervaloriza a função do juiz, que aqui é tratada como<br />
missão e que garante a esse representante do Poder<br />
Judiciário um título de nobreza.<br />
“Encerro essas palavras, invocando a proteção divina para que, sob<br />
seu pálio, que sempre me cobriu, encontre eu forças para manter<br />
bem alta a Presidência do Supremo Tribunal Federal.”<br />
· invoca a proteção divina, mas, ao mesmo tempo, compartilha<br />
com Deus o manto de Deus, ora fazendo uso da pessoa<br />
ampliada, ora da pessoa restrita: “o seu pálio, que
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
914<br />
sempre me cobriu...” o que, metaforicamente, conota: a<br />
toga do juiz é o manto de Deus;<br />
· tanto o manto quanto a toga representam, metonimicamente,<br />
o poder, que nesse contexto, igualam-se, sustentando<br />
do ethos divino;<br />
· tal proteção tem o objetivo de “manter bem alta a Presidência<br />
do Supremo Tribunal Federal.”, ratificando a idéia<br />
de que o Supremo Tribunal Federal se eleva a uma altura<br />
inimaginável, só alcançada por Deus e pelos membros integrantes<br />
do “Poder Judiciário(-Divino)”.<br />
5.2. Fragmento do discurso de Posse da Ministra Ellen Gracie<br />
como Presidente do Supremo Tribunal Federal (e<br />
primeira mulher a ocupar esse cargo no Brasil)<br />
“Talvez por isso é que visionariamente, como é próprio dos artistas,<br />
e desejando um futuro em que não seja necessário fazer uso tão freqüente<br />
da balança, nem brandir a espada para garantir a execução<br />
do julgado, que o gênio de Ceschiatti fez repousar tranqüilamente a<br />
Themis que dá as boas vindas aos que adentram a esta Casa. Ela representa<br />
o ideal a ser perseguido, o de uma sociedade pacificada,<br />
que nada distraia de seu grande futuro. Onde a Justiça, como uma<br />
senhora que é, possa sentar-se em dignidade, e descansar sobre o<br />
regaço o gládio que é seu atributo impositivo.<br />
· ao inscrever a deusa Themis na cena enunciativa, o enunciador<br />
instala a marca da divindade e, ao mesmo tempo,<br />
autoriza o símbolo da Justiça a tomar vida mais uma vez<br />
na terra como a guardiã que sempre fora.<br />
· realiza isso entre a construção metonímica uso tão freqüente<br />
da balança, que suscita o equilíbrio singular de<br />
que necessitam os juízes nos julgamentos que realizam e<br />
decisões que proferem, e a construção metafórica e, ao<br />
mesmo tempo, metonímica brandir a espada para garantir<br />
a execução do julgado, que estabelece entre caneta e<br />
espada uma relação singular e ímpar de único instrumento<br />
e gesto capazes de proteger o ser humano da não-justiça.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
915<br />
· estará, portanto, o juramento/compromisso que profere o<br />
eu enunciativo, em seu discurso de posse, também “guardado”<br />
por ela.<br />
· ratifica a crença de que a palavra do enunciador será acatada<br />
tanto por homens quanto por deuses assim como as<br />
leis e oráculos proferidos por Themis.<br />
· a marca da intertextualidade permeia o discurso de posse<br />
da Ministra Ellen Gracie, uma vez que dialoga com a mitologia;<br />
· o lugar discursivo, representado nesse parágrafo por “esta<br />
Casa”, apontará a construção de um tempo. Um tempo<br />
discursivo que colabora para a construção da imagem de<br />
um enunciador justo, que crê na possibilidade de um presente<br />
que caminha ao encontro de um futuro pacífico para<br />
a sociedade e digno para a Justiça, assim como quis Deus.<br />
O desejo do Poder Judiciário é o desejo de Deus.<br />
· ainda em “esta casa”, uma relação metafórica subjaz à<br />
“casa de Deus”, que também “construiu” na Terra a Sua<br />
casa, a casa onde os homens podem se abrigar, encontrar<br />
a paz, o perdão, a justiça etc.;<br />
· “(...)Justiça, como uma senhora que é, possa sentar-se em<br />
dignidade (...)" remete, novamente, à imagem feminina e<br />
divina de Themis, numa relação ora metonímica, em referência<br />
aos poderes da deusa, ora metafórica à própria<br />
deusa, confirmando o ethos divino tanto do enunciador<br />
quando do Poder Judiciário no Brasil.<br />
6. Considerações Finais<br />
· Para que nos vejamos dentro de um ato de linguagem, é<br />
necessário produzirmos discursos impregnados de uma<br />
determinada carga semântica capaz de os entrelaçar a outros<br />
discursos e enunciadores, em tempos vários.<br />
· No plano de estudo dos processos neológicos é possível
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
916<br />
perceber que a palavra transita num universo discursivo,<br />
cuja finalidade é constituir sentidos.<br />
· Que pela inovação ou modificação de sentido das palavras<br />
e expressões de uma língua é possível construir um mundo<br />
paralelo ao real e resgatar seres e imagens de tempos<br />
distantes, inserindo-os na contemporaneidade.<br />
· Os processos metafóricos e metonímicos trazidos para estudo<br />
neste artigo constituem novidades tanto em si mesmos,<br />
uma vez que tanto na seleção dos semas – constituintes<br />
sintagmáticos do discurso – como também no resultado<br />
semântico, a modificação não afeta o léxico.<br />
· Os fragmentos selecionados neste artigo foram retirados<br />
de dois discursos que representam momentos importantes<br />
na história do Poder Judiciário e do Brasil. Lafayete Andrada<br />
foi o primeiro ministro do STF do Brasil Novo, eleito<br />
e empossado em Brasília – nova (e atual) capital do<br />
Brasil – e, Ellen Gracie, a primeira mulher no STF e a<br />
primeira a ocupar a presidência desse Poder.<br />
· Nos discursos de posse dos Presidentes do Supremo Tribunal<br />
Federal os processos neológicos semânticos analisados<br />
podem, também, ser estudados sob outros vieses (O<br />
da neologia por conversão ou sociológica, por exemplo), o<br />
que garantiria a continuidade e aprofundamento desse estudo.<br />
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA<br />
ALVES, Ieda Maria. Neologismo: Criação lexical. 2. ed. São Paulo:<br />
Ática, 1994.<br />
______. BARROS, Diana L. P. de. Dialogismo, Polifonia e Enunciação.<br />
In: BARROS, Diana L. Pessoa de, FIORIN, José Luiz (org.)<br />
Dialogismo, polifonia, intertextualidade. São Paulo: Edusp, 2003.<br />
CORREIA, Margarida e LEMOS, Lucia San Payo de. A inovação<br />
lexical em português. Lisboa: Edições Colibri/APP, 2005.
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DASCAL, Marcelo. “O ethos na argumentação: uma abordagem<br />
pragma-retórica.” Ruth Amossy (org.). Imagens de si no discurso: a<br />
construção do ethos.São Paulo: Contexto, 2005.<br />
FEDERAL, Supremo Tribunal. Posses Presidenciais. Brasília 1962-<br />
2004. Brasília: Supremo Tribunal Federal, 2004.<br />
FERREIRA, Aurélio Buarque de. Novo dicionário da língua portuguesa.<br />
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975.<br />
HOUAISS, Antônio e VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss<br />
da língua portuguesa. 1. ed. Rio de Janeiro: Objetiva: 2001.<br />
MAINGUENEAU, Dominique. Análises de textos de comunicação.<br />
Trad. Cecília P. de Souza-e-Silva, Décio Rocha. São Paulo: Cortez:<br />
2001.<br />
VALENTE, André. “Produtividade lexical: criações neológicas”. In:<br />
PAULIUKONIS, Maria Aparecida Lino e GRAVAZZI, Ingrid.<br />
(Orgs.) Da língua ao discurso: reflexões para o ensino. Rio de Janeiro:<br />
Lucerna, 2005.<br />
______. Neologismos literários em romance de Mia Couto. In: Valente,<br />
André (org.) Língua portuguesa e identidade: marcas culturais.<br />
Rio de Janeiro: Caetés, 2007.
DISPARIDADES CRÍTICAS<br />
SOBRE A OBRA DE GIL VICENTE<br />
Rafael Santana Gomes (UERJ)<br />
camonianus@gmail.com<br />
Gil Vicente, eis aí uma das mais importantes personalidades<br />
do teatro português. Mestre Gil, embora não tenha sido o fundador,<br />
ou melhor, o iniciante da atividade dramatúrgica em Portugal, como<br />
já ficou provado numa série de estudos acadêmicos, foi, no entanto –<br />
e talvez ainda seja –, a figura de maior destaque no panorama do teatro<br />
lusitano, porque, como bem o disse Garrett no prefácio ao drama<br />
Um Auto de Gil Vicente, o comediógrafo da Rainha D. Leonor foi<br />
aquele que, efetivamente, deixou lançados em suas peças os fundamentos<br />
de uma escola nacional de teatro, fazendo de seus textos um<br />
grande instrumento civilizador.<br />
De todos os escritores da literatura portuguesa, Gil Vicente<br />
talvez seja aquele que desperte as opiniões mais antagônicas por parte<br />
da crítica. Para alguns estudiosos, o dramaturgo teria sido um propagandista<br />
da política real portuguesa; para outros, um crítico dessa<br />
política. Alguns consideram Gil Vicente um católico fervoroso e ortodoxo;<br />
outros, um autor com ideias bastante próximas às dos reformadores<br />
protestantes. Há quem diga que Gil Vicente exprimia os valores<br />
da burguesia mercantil, contra os da aristocracia, e há quem<br />
pense exatamente o contrário. Essa disparidade de interpretações se<br />
deve a uma série de fatores. Em primeiro lugar, isso ocorre pelo fato<br />
de não sabermos exatamente quem foi Gil Vicente e qual a sua verdadeira<br />
posição social. Ressalte-se aqui que não se trata de tentar interpretar<br />
a obra de um autor a partir de sua biografia, mas apenas de<br />
buscar certas diretrizes de leitura a partir de seu posicionamento ideológico.<br />
Em segundo lugar, poderíamos dizer que, pelo fato de o teatro<br />
vicentino ter sido composto de uma forma um tanto improvisada,<br />
e pelo fato de a sua obra só ter sido publicada postumamente, há uma<br />
série de lacunas que não nos permitem saber, com precisão, como<br />
determinadas cenas eram representadas. Lembre-se que, no teatro, o<br />
texto verbal constitui apenas uma parte do espetáculo, sendo as rubricas<br />
ou didascálias de suma importância no que concerne às indi-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
919<br />
cações cênicas da peça. Finalmente, poderíamos dizer que, pela tonalidade<br />
cômica do teatro vicentino, os seus escritos se tornam bastante<br />
ambíguos do ponto de vista ideológico. Ou seja, às vezes é muito difícil,<br />
quando se trata de um texto cômico, dizer exatamente que valores<br />
são defendidos e que valores são criticados pela obra.<br />
O que é muito instigante no teatro de Gil Vicente, e, por isso<br />
mesmo, muito importante de se destacar, é que, embora o comediógrafo<br />
português tenha escrito suas peças no século XVI, isto é, em<br />
pleno Renascimento, há em sua obra um acentuado caráter medievalizante:<br />
Gil Vicente não seguiu os padrões estéticos renascentistas,<br />
quer no que concerne aos tipos composicionais por ele utilizados –<br />
mistérios, moralidades, farsas etc. –, quer no que tange ao processo<br />
de construção formal de seus escritos teatrais, urdidos, quase sempre,<br />
a partir de redondilhas. Além disso, Gil Vicente também não fez uso<br />
do português moderno do século XVI, valendo-se, propositadamente,<br />
de um registro arcaizante.<br />
No intuito de apresentar uma leitura coerente para o teatro vicentino,<br />
diante de tamanha disparidade crítica, tomaremos como<br />
ponto de partida o conhecido Auto da Barca do Inferno, e faremos,<br />
ainda, algumas referências a outras peças do autor, buscando, sempre<br />
que possível, tentar equilibrar os pontos de vista antagônicos.<br />
No Auto da Barca do Inferno, os personagens-tipo apresentam<br />
uma espécie de comportamento circular, isto é, tentam sair da situação<br />
na qual se encontram a partir da repetição das mesmas atitudes<br />
que os condenam. Assim, o fidalgo quer ter acesso à Barca da<br />
Glória tão somente pelo prestígio de sua condição social, e tenta<br />
convencer o Anjo para que o deixe embarcar em sua nau a partir do<br />
mesmo comportamento despótico com o qual agiu durante toda a vida:<br />
humilhando e tiranizando os mais simples; o onzeneiro, por sua<br />
vez, lamenta-se por haver falecido antes da época do recebimento<br />
dos lucros, fator que, em sua visão, não lhe conferira a oportunidade<br />
de subornar o Anjo, e, portanto, de comprar o seu lugar no céu; a alcoviteira<br />
crê-se no direito de adentrar a Barca da Glória pela atitude<br />
absurda de agenciar moças para os cônegos da Sé; o frade, por seu<br />
turno, não vê pecado algum em dançar, praticar esgrima e namorar, e<br />
continua a manter os mesmos atos depois de morto, pois crê que apenas<br />
no uso da batina e nos salmos rezados estaria a sua salvação.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
920<br />
Eis aí um quadro passível de muitas leituras. Lembrando sempre que<br />
Gil Vicente não trabalha com conflitos psicológicos, isto é, com caracteres<br />
individuais, mas sim com tipos sociais 1 , leiamos o Auto da<br />
Barca do Inferno, a partir da ideia de uma crítica social que, a um só<br />
tempo, não perdoa os desvios ideológicos das estruturas relacionadas<br />
ao mundo medieval e nem os das relacionadas ao mundo moderno.<br />
Apesar do acentuado caráter medievalizante da obra de Gil<br />
Vicente, parece-nos que não seria correto afirmar que o dramaturgo<br />
português rejeitasse, com vigor, tudo aquilo que representasse a nova<br />
sociedade, em prol de um furor passadista e de uma atitude ortodoxa.<br />
Tampouco se pode dizer que Gil Vicente tenha sido um entusiasta do<br />
mundo moderno. Parece-nos, outrossim, que Gil Vicente quisesse<br />
corrigir os vícios de ambas as sociedades – a medieval e a moderna –<br />
para, dialeticamente, aproveitar o que nelas havia de melhor. A sociedade<br />
medieval parece ser criticada, pelo teatrólogo, por sua estrutura<br />
opressora e completamente fechada em si própria, fator que geraria<br />
uma série de problemas, como, por exemplo, um excesso de frades<br />
sem a menor vocação para o serviço religioso, uma justiça corrupta<br />
e mancomunada com a nobreza – como fica mais que patente<br />
no auto da Frágua do Amor – e uma aristocracia de pobres, parasitas<br />
e ociosos – como é evidenciado na famosa Farsa do Escudeiro.<br />
No auto da Frágua do Amor, são duramente criticados, dentre<br />
outros, dois elementos pertencentes ao topo da pirâmide social do<br />
Portugal de quinhentos: a Justiça e o Clero. Diferentemente de sua<br />
imagem clássica, a Justiça aparece, nesse auto, representada na figura<br />
de uma velha corcovada, com as mãos enormes – para melhor receber<br />
os subornos –, e com a vara quebrada. Muito distante, pois, de<br />
sua iconografia tradicional – geralmente de postura reta e de expressão<br />
imparcial –, a personagem da Justiça procura a frágua no intuito<br />
de recuperar sua forma primitiva, o que só logra após passar três ve-<br />
1 Em relação a isso, dizem António José Saraiva e Óscar Lopes, “Diferentemente do<br />
que sucede com o teatro clássico, o teatro vicentino não tem por propósito apresentar<br />
conflitos psicológicos. Não é um teatro de caracteres e de contradições entre (ou dentro<br />
de) eles, mas um teatro de sátira social, um teatro de ideias, e um teatro polêmico.<br />
No palco vicentino não perpassam caracteres individuais, mas tipos sociais agindo segundo<br />
a lógica da sua condição, fixada de uma vez para sempre; personificações de<br />
conceitos e de instituições, e ainda entes sobrenaturais, como Diabos e Anjos” (1969,<br />
p. 195).
que me faça de jantar.<br />
Isto, eramá, é viver.<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
922<br />
(VICENTE, 1984, p. 394-397)<br />
Como se vê, o erro do frade estaria, não em se dar conta do<br />
grande número de sacerdotes sem vocação para o serviço religioso,<br />
e, portanto, sem serventia alguma para a sociedade, mas em querer<br />
abandonar sua condição de frade tão somente para adequar-se aos<br />
moldes da vida aristocrática, assentada no princípio do não trabalhar.<br />
Além disso, Gil Vicente também critica, em vários de seus autos, o<br />
ideal medieval do amor cortês, muitíssimo presente na mentalidade<br />
da nobreza. É o que assistimos, por exemplo, na famosa Farsa do<br />
Escudeiro. Nessa farsa, há a presença de um nobre falido, Aires Rosado,<br />
o qual passa os dias a fazer trovas e canções, enquanto ele e<br />
seu criado, Apariço, morrem de fome, porque o escudeiro concebe o<br />
trabalho como um empreendimento desonroso. E os textos de Gil<br />
Vicente parecem denunciar, como dizem António José Saraiva e Óscar<br />
Lopes (1969, p. 199), que quem sustentava essa classe de ociosos,<br />
que quem verdadeiramente suportava essa carga pesada de parasitas,<br />
era o pobre lavrador, explorado por consequência do próprio<br />
sistema. Ressalte-se que, não obstante o cômico das peças vicentinas,<br />
há um olhar bastante comovido do teatrólogo de quinhentos por parte<br />
dos humildes.<br />
Contudo, não apenas a tirania do mundo medieval é criticada<br />
nos autos de Gil Vicente: os desvios ideológicos da sociedade moderna<br />
também o são. Isso pode ser percebido, claramente, na Farsa<br />
de Inês Pereira e no Auto da Lusitânia, este último considerado, pela<br />
crítica, como uma espécie de síntese de todo o teatro vicentino. Na<br />
Farsa de Inês Pereira, a personagem principal – Inês Pereira, mulher<br />
pertencente à ainda engatinhante burguesia, – é apresentada como<br />
uma jovem que passa os dias entediada, a bordar, fiar e costurar, e<br />
que sonha casar-se, enxergando no matrimônio um modo de libertação<br />
dos trabalhos domésticos. Para casar-se com Inês, apresentam-se<br />
dois pretendentes: um, rústico e campesino, herdeiro de “fazenda de<br />
mil cruzados” (VICENTE, 1984, p. 340), Pero Marques; outro, nobre<br />
falido e escudeiro, Brás da Mata. Por ter como ideal de comportamento<br />
masculino aquele ditado pelas regras do código de amor cortês,<br />
Inês Pereira despreza completamente a figura de Pero Marques –<br />
que não tem os refinamentos da nobreza – e escolhe Brás da Mata
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
923<br />
para seu companheiro, sonhando, assim, poder experimentar os gozos<br />
da corte. Após o casamento, Brás da Mata se mostra um marido<br />
totalmente despótico, fazendo de Inês uma mulher prisioneira e infeliz.<br />
Ora, o que lemos nesse auto é a aspiração das classes populares e<br />
burguesas à vida da corte, mesmo que, para isso, tenham que passar<br />
por grandes sacrifícios, atitude duramente criticada por Gil Vicente.<br />
Ainda em relação a isso, lembre-se que a possibilidade de mobilidade<br />
social é um dos fenômenos mais típicos do mundo moderno e<br />
mercantil. No Auto da Lusitânia, por sua vez, duas personagens alegóricas,<br />
Todo-o-Mundo e Ninguém, representariam bem os problemas<br />
do mundo moderno. Assim, Todo-o-Mundo, alegoria da burguesia<br />
mercantil, representada na figura de um rico mercador, tem o desejo<br />
de comprar não apenas aquilo que o dinheiro pode comprar, isto<br />
é, bens materiais, mas também alguns outros bens mais abstratos,<br />
tais como a virtude, a honra e a moral. Em contrapartida, Ninguém,<br />
alegoria do descaso geral pelos valores éticos, busca a consciência, a<br />
verdade e a repressão, numa atitude oposta à de Todo-o-Mundo.<br />
Ora, sabemos que o mundo moderno, não obstante as melhorias<br />
empreendidas nas sociedades como um todo, também trouxera<br />
em seu bojo o esquecimento do mundo medieval, assentado nos valores<br />
da tradição teológica cristã. Como bem assinala o historiador e<br />
ensaísta Eduardo Lourenço, o nascimento do mundo moderno iniciara<br />
um longo processo de “dilaceração da temporalidade cristã”<br />
(2001, p. 74), processo a partir do qual o niilismo viria a tornar-se a<br />
lógica do mundo ocidental, convertendo-se o dinheiro numa espécie<br />
de valor sobrepujante a todos os outros valores. E parece-nos que é<br />
justamente contra essa lógica niilista, ou melhor, contra esse processo<br />
de reificação da espiritualidade cristã, que Gil Vicente se põe,<br />
com veemência, ao tratar dos problemas do mundo moderno. Daí o<br />
fato de profissionais que, anacronicamente, poderíamos nomear de<br />
liberais, tais como o onzeneiro, o sapateiro e a alcoviteira, serem duramente<br />
criticados no Auto da Barca do Inferno, pois todos eles agem<br />
de modo a valorizar mais o dinheiro do que qualquer valor moral<br />
existente. Todavia, como dissemos a certa altura deste texto, não<br />
podemos afirmar que Gil Vicente tenha sido, nem completamente reacionário<br />
ao mundo moderno, nem um apologista do mundo medieval.<br />
A este último, critica o dramaturgo a situação vergonhosa da Igreja<br />
– a venda de indulgências, o sistema de rezas decoradas, sem o
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
924<br />
menor ato de fé, o grande número de sacerdotes sem vocação para o<br />
serviço religioso, o conluio da justiça com a nobreza, a exploração<br />
impiedosa aos lavradores etc. –; ao mundo moderno, critica Gil Vicente<br />
a cobiça incessante e o esmagamento dos valores cristãos, sem,<br />
contudo, ser completamente contra esse mundo, porque cedo se deu<br />
conta de que a vida é um andar para adiante, e de que a solução dos<br />
problemas não estaria, em hipótese alguma, numa atitude retrógrada<br />
e na impossível tentativa de restaurar o passado de forma plena. Enfim,<br />
poderíamos dizer que, estando a meio caminho entre o medieval<br />
e o moderno, os autos de Gil Vicente criticam e refletem os valores<br />
aviltados de dois mundos, fazendo do riso um importante instrumento<br />
de recusa e de negação.<br />
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
ALVES, Maria Theresa Abelha. Gil Vicente: Sob o signo da derrisão.<br />
Feira de Santana: UEFS, 2002.<br />
GARRETT, Almeida. Um auto de Gil Vicente. Porto: Editora Porto,<br />
1995.<br />
LOURENÇO, Eduardo. A nau de Ícaro. São Paulo: Companhia das<br />
Letras, 2001.<br />
SARAIVA, António José & LOPES, Óscar. História da literatura<br />
portuguesa. Rio de Janeiro: Companhia Brasileira de Publicações,<br />
1969.<br />
VICENTE, Gil. Antologia do teatro de Gil Vicente. (Seleção, introdução,<br />
notas e glossário de Cleonice Berardinelli). Rio de Janeiro:<br />
Nova Fronteira, 1984.
1. Introdução<br />
DO SILENCIAMENTO DE LÍNGUAS:<br />
ALGUMAS REFLEXÕES DISCURSIVAS<br />
SOBRE A LEI 6.001 1<br />
Marcos Lúcio de S. Góis (UFGD)<br />
marcosgois@ufgd.edu.br<br />
O que está dito – e porque está sob<br />
esta forma – expõe o que o texto calou.<br />
Peneira que permite ver, de viés,<br />
vislumbres de sol e silêncio.<br />
(Lourival Holanda)<br />
Desde 1511, quando surge o primeiro decreto régio regularizando<br />
as práticas de uso das terras e de contato com os povos do<br />
Brasil recém-colonizado, até a constituição brasileira de 1988, os indígenas<br />
são uma presença/ausência constante no discurso pficial do<br />
Estado.<br />
Naquele ano, o rei Dom Manuel I dirige a Cristóvão Pires,<br />
capitão do navio Bretoa, que partia de Lisboa rumo a Cabo Frio no<br />
intuito de explorar pau-brasil (ou pau de tinta, como era conhecido),<br />
um Regimento determinando, além de recomendações técnicas, como<br />
deveria ser o comportamento dos membros dessa nau, em relação<br />
aos indígenas que a expedição haveria de encontrar nas costas brasileiras.<br />
Segundo Thomas (1982), recaía, sobre a tripulação do navio, a<br />
proibição estrita de ofender, de algum modo, os indígenas ou de causar-lhes<br />
prejuízo. Isso pode significar que, para os portugueses do<br />
século XVI, extrair pau-brasil, ou empreender quaisquer outros tipos<br />
de exploração das terras e dos povos indígenas, não era visto como<br />
algo prejudicial aos habitantes do “Novo Mundo”. Para fazerem valer<br />
as determinações do Rei, ainda de acordo com o mesmo autor,<br />
1 Este artigo é uma versão modificada e ampliada do texto Constituição de identidade indígena<br />
na/pela lei 6.001: sujeito, história e poder, apresentado em forma de comunicação oral no II<br />
Encontro Nacional do GELCO, 2003, Goiânia-GO. In: Anais do II Encontro Nacional do GEL-<br />
CO. Goiânia-GO: Editora da UFG, 2003.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
926<br />
aos infratores prescreviam-se penas extraordinariamente duras, que<br />
iam da perda de parte dos salários até, de acordo com a categoria do<br />
infrator, um castigo correspondente ao delito 2 . Era fundamental, ao<br />
que tudo indica, assegurar a preservação daqueles que conheciam a<br />
nova terra.<br />
De lá para cá, as mudanças na legislação acompanharam as<br />
mudanças da cultura e da civilização, embora a essência do discurso<br />
colonialista perdure há séculos. Tal afirmação ainda necessita de<br />
uma investigação mais atenta, uma vez que se faz necessário, no<br />
campo da política indigenista brasileira, estudar a legislação buscando<br />
compreender as relações de poder que possibilitaram sua emergência.<br />
Ao tentar lançar um olhar discursivo sobre o assunto, nosso<br />
objetivo principal neste artigo é, considerando as práticas discursivas<br />
como uma relação entre linguagens e constituição de identidades, refletir<br />
sobre algumas condições que proporcionaram a irrupção e a existência<br />
de discursos institucionais que contribuíram e contribuem<br />
para o processo de construção de identidades dos índios brasileiros<br />
pelo não índio, em um momento determinado na História do país.<br />
Para tanto, tomamos como ponto de partida a Lei 6.001, de<br />
19/12/1973, “que regula a situação jurídica dos índios ou silvícola e<br />
das comunidades indígenas, com o propósito de preservar a sua cultura<br />
e integrá-los, progressiva e harmoniosamente, à comunidade nacional”<br />
(Art. 1) 3 .<br />
2 Apesar de haver um Regimento estabelecendo que os índios não deveriam ser “ofendidos”<br />
e/ou “prejudicados”, 35 escravos índios foram embarcados na mesma nau com destino a Portugal<br />
(RIBEIRO, 1997, 34).<br />
3 Em 1973 foi promulgada a Lei 6.001 para dispor sobre as relações entre Estado, sociedade<br />
brasileira e sociedades indígenas. Essa lei, mais conhecida como "Estatuto do Índio", em linhas<br />
gerais, seguiu um princípio estabelecido pelo Código Civil do Brasil de 1916: de que os<br />
índios, sendo "relativamente capazes", deveriam ser tutelados por um órgão indigenista estatal<br />
(de 1910 a 1967, coube ao Serviço de Proteção ao Índio - SPI, a responsabilidade pela “guarda”<br />
dos povos indígenas, tarefa que, atualmente, cabe à Fundação Nacional do Índio – Funai)<br />
até que eles estivessem “integrados à comunhão nacional”. No atual Código Civil (redação final<br />
aprovada em 6/12/2001, publicado no D. O. em 11/1/2002), fazem-se referências aos indígenas<br />
brasileiros no artigo 4, que trata dos que “são incapazes, relativamente a certos atos, ou<br />
à maneira de os exercer”, da seguinte maneira: “Parágrafo único. A capacidade dos índios será<br />
regulada por legislação especial”. No entanto, é importante frisar que antes, esse artigo refere-se<br />
à: I - os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos; II - os ébrios habituais, os vi-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
927<br />
Acreditando, pois, que uma prática discursiva não significa<br />
em si, mas na sua relação com o sujeito, com a história e com o poder,<br />
pretendemos lançar alguns questionamentos a respeito dos sentidos<br />
que foram se constituindo e se legitimando como discurso jurídico-legislativo<br />
acerca do que vem a ser “índio” para a política brasileira.<br />
Ou seja, tentaremos compreender, ancorados em Pêcheux<br />
(1994), como o discurso da lei produz uma espécie de policiamento<br />
dos enunciados, uma normalização asséptica de sua leitura. O que<br />
produz como efeito um deslocamento da cultura indígena para uma<br />
concepção judaico-cristã de civilidade.<br />
2. A lei, o discurso e os povos indígenas<br />
Dentre os chamados discursos formadores, há o de “senso<br />
comum”. No caso das leis, um bastante corrente é o pensamento de<br />
que a lei tem o poder de consertar e/ou evitar injustiças. Quando falamos<br />
em leis, portanto, um senso comum que as envolve é a ideia<br />
de que elas garantem a justiça e/ou servem para equilibrar as relações<br />
sociais. Esse discurso de senso-comum se constitui, acreditamos,<br />
num deslocamento do direito romano, pelo qual se procurou estabelecer<br />
as regras de conduta para os cidadãos de um local 4 . Histo-<br />
ciados em tóxicos, e os que, por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido; III - os<br />
excepcionais, sem desenvolvimento mental completo; IV - os pródigos”.<br />
4 Nos períodos iniciais do Império Romano, os cidadãos de Roma eram considerados, grosso<br />
modo, mais integrantes de uma comunidade do que indivíduos. Com o tempo, a evolução caracterizou-se<br />
por acentuar e desenvolver o poder central de Roma e, em consequência, pela<br />
progressiva criação de regras que visavam a reforçar sempre mais a autonomia do cidadão,<br />
como indivíduo. Em outros termos, pelas palavras de Michel-Jones: “Observa-se, nos mundos<br />
grego e romano, a passagem da máscara à personagem representada e dessa ao actor social<br />
cujo papel exprime, tanto no teatro como no jogo social, ‘direitos individuais, ritos, privilégios’.<br />
A persona, posteriormente, torna-se uma realidade fundamental do direito romano que divide o<br />
mundo em personae, res e actiones. Para M. Mauss, esta evolução resulta, por um lado, do<br />
uso dos nomen, cognomen e praenomen que pertencem ao indivíduo e o situam dentro da família<br />
e, por outro, da ascensão da plebe romana à persona civil, ao pleno direito de cidade. A<br />
pessoa abrange nessa altura: a classe social (conditio), o estado da vida civil (status), os cargos<br />
e honras da vida civil e militar (munus). Uma vez criados o direito de adquirir a persona –<br />
direito de que só o escravo está excluído - e o carácter pessoal do direito, a introdução da<br />
consciência na concepção jurídica da pessoa faz-se correlativamente à aquisição pela persona<br />
do sentido moral [um sentido de ser consciente, independente, autônomo, livre, responsável] -<br />
nomeadamente sob a influência dos estoicos” (MICHEL-JONES, 1978, p. 49-50).
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
928<br />
ricamente então, o discurso jurídico-legislativo, enquanto enunciado<br />
administrativo, legitimou-se como que expressando a mais “legal”<br />
das verdades, cuja produção e interpretação são extremamente regradas.<br />
A partir desse ponto de vista, entendemos que as leis – como<br />
qualquer outra formação discursiva no interior de uma formação ideológica<br />
– são capazes de criar e propagar diferentes tipos de discriminações,<br />
inclusive a étnica. Subjacente à ilusão de objetividade do<br />
discurso jurídico, encobre-se uma subjetividade latente, principalmente<br />
aos levarmos em conta a ideologia que está materializada nas<br />
leis, geralmente produzidas por pessoas ligadas ao discurso hegemônico,<br />
sendo em geral brancas, pertencentes a classes de maior prestígio<br />
socioeconômico e do sexo masculino. Assim, tanto as leis como<br />
as decisões legais que as envolvem, tenderão a refletir as relações assimétricas<br />
de poder entre legisladores, juízes e advogados, de um lado,<br />
e, de outro, os membros de grupos sociais à margem do processo<br />
jurídico, dos quais fazem parte os povos indígenas.<br />
Mas afinal, o que são leis? A primeira acepção do dicionário<br />
Aurélio 5 , nos aponta para a seguinte definição: “S. f. 1. Regra de direito<br />
ditada pela autoridade estatal e tornada obrigatória para manter,<br />
numa comunidade, a ordem e o desenvolvimento”. Um dicionário<br />
técnico traz outra definição:<br />
Lei – Norma, preceito. A doutrina considera a lei sob dois aspectos:<br />
em seu sentido formal, quando é toda disposição de caráter imperativo<br />
emanada de autoridade competente para legislar; e em sentido material,<br />
como sendo a norma imperativa contendo, em seu caráter geral, uma regra<br />
objetiva (LEITE, 1965, p. 118).<br />
Se considerarmos a noção de Pêcheux (1990) acerca da relação<br />
entre universo logicamente estabilizado e universo não estabilizado<br />
logicamente, podemos incluir, pela contraposição da definição<br />
encontrada no AE e em Leite, e corrente nos discursos jurídicos, as<br />
leis dentro desse universo logicamente estabilizado, porque, em sua<br />
essência, são um tipo de discurso que não permite interpretação, salvo<br />
para aos “iniciados”, “implicando o uso regulado de proposições<br />
lógicas com interrogações disjuntivas e a recusa de certas marcas de<br />
5 Neste nosso trabalho, estamos usando a versão eletrônica do Novo dicionário Aurélio eletrônico<br />
séc. XXI, de 1999; doravante apenas AE.
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929<br />
distância discursiva e, principalmente, a recusa de aspa de natureza<br />
interpretativa” (PÊCHEUX, 1990, p. 31).<br />
Em Contrato Social, Rousseau trabalhou a natureza dessa<br />
questão, afirmando que os homens, por serem desiguais, precisam de<br />
convenções e leis para viverem harmoniosamente. Ou, nas palavras<br />
do próprio autor:<br />
Toda a justiça vem de Deus, só Ele é a sua fonte, mas se soubéssemos<br />
recebê-la de tão alto, não precisaríamos de governos nem de leis...<br />
Mas quando o povo estatui sobre o povo, só a si mesmo se considera e,<br />
se alguma relação então existe, é entre o todo segundo um ponto de vista<br />
e o todo segundo outro ponto de vista, sem qualquer divisão no todo. Se<br />
assim é, a matéria sobre a qual se estatui é geral como a vontade que estatui.<br />
É a este ato que eu chamo de lei (ROUSSEAU, 1999, p. 105-6).<br />
Se confrontarmos as duas assertivas acima – a do AE e a de<br />
Rousseau – com os postulados de Pêcheux, será possível depreender<br />
que em um espaço logicamente estabilizado, “supõe-se que todo sujeito<br />
falante sabe do que se fala, porque todo enunciado produzido<br />
nesses espaços reflete propriedades estruturais independentes de sua<br />
enunciação” (PÊCHEUX, 1990, p. 31). Porém, do ponto de vista<br />
discursivo, as leis não são discursos homogêneos, porque perpetuam<br />
nelas marcas de uma pluralidade discursiva. Em outras palavras, está<br />
presente, na aparente objetividade das leis, uma subjetividade dissimulada.<br />
As leis se legitimam, logo, por observar o discurso hegemônico<br />
de certo período histórico. Podemos encontrar, valendo-nos das<br />
palavras de Miotello (2000), ao olhar a forma como a sociedade se<br />
organiza e a estrutura que ela mantém, dois conjuntos discursivos: no<br />
primeiro grupo, estão os “discursos explicadores”, que se fundamentam<br />
em acontecimentos passados, buscando “explicar de onde viemos<br />
e por que somos do jeito que somos”; e, no outro lado, encontram-se<br />
os “discursos formadores”, os do vir a ser, do porvir, alicerçados<br />
nas “garras” do futuro, “que buscam deixar claro onde se quer<br />
chegar”.<br />
Percebemos, então, a “fala” das leis se alicerçando nos discursos<br />
formadores de cada época, evidenciando, desse modo, as tramas<br />
da linguagem, compreendida no seu enlace com a História, com<br />
o sujeito e com o poder. Como toda relação com a linguagem é dada<br />
à ambiguidade, há sempre um discurso entre o dito e o não dito.
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930<br />
Voltando à definição de lei encontrada no AE, ou seja: uma<br />
“regra de direito ditada pela autoridade estatal e tornada obrigatória<br />
para manter, numa comunidade, a ordem e o desenvolvimento”, existem,<br />
nesse enunciado, elementos que marcam a exclusão do sujeito.<br />
Se a regra é “ditada”, por uma “autoridade estatal”, para que haja<br />
certa “ordem” e “desenvolvimento”, é essencial a pergunta: ditada a<br />
quem? Que autoridade estatal? De que ponto de vista se estabelece o<br />
que é “ordem” e “desenvolvimento”?<br />
A lei, desse modo, é um dos produtos de uma “ideologia dominante”,<br />
nos dizeres de Pêcheux (1997, p. 151) ao reler toda uma<br />
tradição dos estudos sobre “ideologia” (de Marx a Althusser) 6 , resultante<br />
“das relações de desigualdade-contradição-subordinação que<br />
caracterizam, numa formação social historicamente dada, o “todo<br />
complexo com dominante” das formações ideológicas que nela funcionam”.<br />
Dizendo de outra maneira, o discurso jurídico ocidental está<br />
necessariamente inscrito numa “macroenunciação”, que é a moral<br />
e os valores da sociedade ocidental capitalista e cristã. Lei, ordem e<br />
desenvolvimento, portanto, seguem à lógica que funda essa sociedade<br />
e seus valores.<br />
Neste momento, necessitamos voltar ao parágrafo inicial desse<br />
item, quando dissemos que é senso comum ver a “lei” como um<br />
poder capaz de consertar e/ou evitar erros e/ou injustiças. Na verdade,<br />
as leis existem para manter um status quo dominante, objetivando<br />
preservar a ordem e o desenvolvimento (progresso) segundo a racionalidade<br />
capitalista e cristã. Ou seja, é preciso haver este, e não<br />
outro tipo de lei, para que haja ordem e desenvolvimento conforme o<br />
princípio do capital e da cristandade. Sem a lei, não há nem “ordem”<br />
e nem “desenvolvimento”. Assim, cria-se a necessidade de um mundo<br />
“semanticamente normal”, no qual a necessidade de fronteiras<br />
...coincide com a construção de laços de dependência face às múltiplas<br />
coisas a saber, [...] máquinas de saber contras as ameaças de toda espécie”,<br />
[e, assim,] “[...] o Estado e as instituições funcionam como polos<br />
privilegiados de respostas a essa necessidade ou a essa demanda (PÊ-<br />
CHEUX, 1990, p. 34).<br />
6 Cf. também Zizek (1966); Eagleton (1995); Thompson (1997).
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931<br />
Aceitando, pois, como parâmetros as considerações anteriores,<br />
afirmamos que o sistema legal envolve o confronte entre discursos,<br />
e seria um trabalho árduo, senão impossível, mapear e analisar<br />
cada um deles com atenção. Por essa razão, neste trabalho procuramos<br />
produzir uma reflexão a partir de um tipo específico de discurso<br />
jurídico: a Lei 6.001.<br />
E afinal, quem são os indígenas? A Lei 6.001, em seu art. 3.º,<br />
afirma o seguinte: Para efeito de lei, ficam estabelecidas as definições<br />
a seguir discriminadas:<br />
I – Índio ou silvícola – É todo indivíduo de origem e ascendência<br />
pré-colombiana que se identifica e é identificado como pertencente a um<br />
grupo étnico cujas características culturais o distinguem da sociedade nacional.<br />
(Os destaques são nossos).<br />
O AE afirma, na sua quarta acepção, que “índio” (doravante<br />
sem aspas) é todo “Indivíduo pertencente a qualquer um dos povos<br />
aborígines das Américas”, e abre espaço para o seguinte comentário:<br />
Historicamente, designação genérica dada às populações que habitavam<br />
a América quando da chegada dos conquistadores europeus; atualmente,<br />
aplica-se a qualquer indivíduo que pertence a grupo étnico descendente<br />
ou supostamente descendente daquelas populações.<br />
A Constituição de 1988, por sua vez, nada acrescenta à definição<br />
de índio atribuída pelo “Estatuto do Índio”; na verdade, embora<br />
seja um enorme avanço em relação aos direitos das minorias étnicas,<br />
ela mantém vigente a Lei 6.001.<br />
Se confrontarmos o art. 1.º e 3.º, dessa Lei, novamente a pergunta:<br />
“quem são os índios?”. No artigo primeiro, está deste modo<br />
expresso:<br />
Art. 1.º Esta Lei regula a situação jurídica dos índios ou silvícolas e<br />
das comunidades indígenas, com o propósito de preservar a sua cultura e<br />
integrá-los, progressiva e harmoniosamente, à comunhão nacional.<br />
Parágrafo único. Aos índios e às comunidades indígenas se estende a<br />
proteção das leis do País, nos mesmos termos em que se aplicam aos<br />
demais brasileiros, resguardados os usos, costumes e traduções indígenas,<br />
bem como as condições peculiares reconhecidas nesta Lei.<br />
Neste parágrafo único, mostra-se o índio como “brasileiro”:<br />
“nos mesmos termos que se aplicam aos demais brasileiros”. Observemos<br />
que o advérbio demais, ao modificar o adjetivo "brasileiros",
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933<br />
O Estatuto do Índio diz sobre a terra 7 , sobre as riquezas naturais,<br />
sobre os bens móveis ou imóveis, no entanto, pouco menciona<br />
sobre a língua, ocorrendo uma única menção no artigo 49, a respeito<br />
do qual discorreremos adiante. Tal como a intenção pombalina, silencia-se<br />
aqui todo o patrimônio linguístico indígena: o discurso legal<br />
desistoriciza assim as línguas indígenas, colocando-as na condição<br />
de não línguas. Levando em conta a relação do sujeito com a linguagem,<br />
veremos que não é possível dissociar “linguagem” e “ser<br />
humano”. Segundo Benveniste (1988):<br />
É na e pela linguagem que o homem se constitui como ‘sujeito’,<br />
porque só a linguagem funda na realidade, na ‘sua’ realidade, que é a do<br />
ser, o conceito de ‘ego’. A ‘subjetividade’ de que tratamos aqui é a capacidade<br />
do locutor de se colocar como ‘sujeito’ (p. 259).<br />
A linguagem está na natureza do homem, que não a fabricou (...).<br />
Nós não atingimos jamais o homem reduzido a si mesmo (...). Todos os<br />
caracteres da linguagem, sua natureza não material, seu funcionamento<br />
simbólico, seu arranjo articulado, o fato de que tenha um ‘conteúdo’, já<br />
são suficientes para tornar suspeita esta assimilação a um instrumento,<br />
que tende a dissociar do homem a propriedade da linguagem (p. 284).<br />
Se não há língua, não existe sujeito. O sujeito se constitui a<br />
partir dos enfrentamentos que a própria natureza das línguas implica.<br />
Recentemente, para ilustrar, talvez o fato mais marcante seja o dos<br />
índios Pataxó-Hãhãhãi que, na década de 1980, lutaram para resgatar<br />
linguisticamente sua Atxohã (língua). Para eles, como bem observa<br />
Orlandi (1990), uma das integrantes da equipe elaboradora da cartilha<br />
Linções de Bahetá (1983), a posse da língua significava “o desejo<br />
de ser índio, em momento de ameaça de extermínio”. E acrescenta a<br />
autora:<br />
Como, no Brasil, a língua atesta a identidade e, para o índio, o direito<br />
à terra, pode-se compreender a ambiguidade da noção de língua no<br />
processo identitário: voltada para interior do próprio grupo, é um dos<br />
princípios de sua identidade; para o exterior, na relação de contato, é um<br />
7 A Convenção 107, da Organização Internacional do Trabalho da ONU, realizada em Genebra<br />
em 1957, da qual o Brasil é signatário desde 30/4/1965, declara: “Art. 11 – O direito de propriedade,<br />
coletivo ou individual, será reconhecido aos membros das populações interessadas sobre<br />
as terras que ocupem tradicionalmente”. No entanto, segundo a Constituição Federal 1988,<br />
em seu art. 4, parágrafo 5, as terras ocupadas “tradicionalmente” pelos índios são bens inalienáveis<br />
da União, e não propriedade dos povos indígenas. Essa convenção foi revista pela<br />
Convenção 169, sobre povos indígenas e tribais.
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934<br />
dos documentos que o identificam (ORLANDI, 1990, p. 162-163. Destaques<br />
da autora).<br />
Em outros termos, muito embora haja comunidades indígenas<br />
que não possuem mais o domínio de sua língua ancestral, é sem dúvida<br />
a língua uma das mais fortes características identitárias e ideológicas<br />
de um povo, embora o critério “língua” seja, nesse caso, relativo.<br />
É certo que um povo pode não possuir, por motivos históricos,<br />
sua língua “original”, e sofre por manter viva suas manifestações<br />
culturais, mas certamente não existe língua sem que haja ou tenha<br />
existido um povo. E reforça Orlandi (1990, p. 165-166):<br />
Dependendo das condições históricas de existência do povo, ou seja,<br />
da violência do contato, sabemos que um índio pode não falar mais a sua<br />
língua e ser do seu povo, ser índio. O que nos permite dizer que este critério<br />
só tem validade positiva: quando fala a língua, é índio; quando não<br />
fala, não é certo que não o seja.<br />
De fato, é já sabido que a Lei em questão tem uma caráter integracionista<br />
e que não corresponde mais à atualidade, no entanto, é<br />
possível a partir de agora investigar a hipótese de que a maneira dúbia<br />
como os indígenas são significados no e pelo discurso jurídico<br />
está diretamente relacionada com o silenciamento do seu falar. Em<br />
outros termos, os vários povos indígenas são “mais ou menos brasileiro”<br />
porque não falam o português, a língua do colonizador. A<br />
condição para sua “ascensão” à condição de brasileiro é a total renúncia<br />
de seu falar em prol do português. A título de exemplo, vejamos<br />
o caso em que há, na Lei 6.001, uma referência à “língua” indígena:<br />
“Art. 49° A alfabetização dos índios far-se-á na língua do grupo<br />
a que pertençam, e em português, salvaguardado o uso da primeira”.<br />
E no artigo seguinte:<br />
Art. 50. A educação do índio será orientada para a integração na<br />
comunhão nacional mediante processo de gradativa compreensão dos<br />
problemas gerais e valores da sociedade nacional, bem como do aproveitamento<br />
das suas aptidões individuais.<br />
Embora seja assegurado aos indígenas a alfabetização na própria<br />
língua e a determinação de que a educação dos mesmos será orientada<br />
para a sua integração à sociedade nacional, a “língua” acaba<br />
ocupando papel secundário no que se refere a outras questões relacionadas<br />
aos povos indígenas. Veja-se, por exemplo, que a língua
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935<br />
não é considerada um patrimônio indígena. O que se pode considerar<br />
é o fato de que, muito embora possa a língua indígena ocupar uma<br />
posição de destaque nessa Lei num primeiro momento, se o objetivo<br />
é a integração nacional, a língua portuguesa, como única língua oficial<br />
do Estado brasileiro, torna-se, indubitavelmente, proeminente<br />
sobre a primeira.<br />
Ainda que muitas línguas indígenas tenham sido extintas por<br />
conta da colonização, do século XVI até a época atual, alguns povos<br />
ainda permanecem vivos e muitos têm empreendido considerável fôlego<br />
para fazer com que as novas gerações aprendam e reforcem a<br />
própria língua. O esforço de resgate linguístico reforça a ideia de que<br />
dentre as várias formas de resistência ao discurso colonizador (no caso,<br />
o colonizador falante do português), é fundamental a resistência<br />
linguística porque, sem língua, tornam-se cada vez mais distantes os<br />
aspectos identitários que unem os membros de um mesmo grupo.<br />
De onde vêm, contudo, esses discursos que silenciam as línguas<br />
indígenas? Talvez pudéssemos considerar que, regendo os discursos<br />
legais produzidos sobre os povos indígenas, o enunciadoreitor,<br />
nos termos de Michel Foucault da Arqueologia do Saber 8 , seja<br />
o enunciado de Gândavo:<br />
A lingoa de que usam, toda pela costa, he huma: ainda que em certos<br />
vocábulos differe n'algumas partes; mas nam de maneira que se deixem<br />
huns aos outros entender: e isto até altura de vinte e sete gràos, que daqui<br />
por diante ha outra gentilidade, de que nós nam temos tanta noticia, que<br />
falan já outra lingoa differente. Esta de que trato, que he geral pela costa,<br />
he mui branda, e a qualquer nação fácil de tomar. Alguns vocabulos ha<br />
nella de que nam usam senam as femeas, e outros que nam servem senam<br />
pera os machos: carece de tres letras, convem a saber, nam se acha<br />
nella F, nem L, nem R, cousa digna despanto porque assi nam têm Fé,<br />
nem Lei, nem Rei, e desta maneira vivem desordenadamente sem terem<br />
além disso conta, nem peso, nem medido (GÂNDAVO, 1980, p. 123-24.<br />
Os destaques são nossos).<br />
8 Por enunciados reitores compreendem-se, nas palavras de Foucault: “...os que se referem à<br />
definição das estruturas observáveis e do campo de objetos possíveis, os que prescrevem as<br />
formas de descrição e os códigos perceptivos de que ele pode servir-se, os que fazem aparecerem<br />
as possibilidades mais gerais de caracterização e abram, assim, todo um domínio de<br />
conceitos a serem construídos; enfim, os que, constituindo uma escolha estratégica, dão lugar<br />
ao maior número de opções ulteriores” (1986, p. 168).
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936<br />
Essa posição de Gândavo, como a maioria dos posicionamentos<br />
europeus em relação aos indígenas, vem carregada de um extremo<br />
preconceito. Para sermos mais precisos, nitidamente notamos a<br />
manifestação do que atualmente se considera “preconceito linguístico”<br />
(BAGNO, 1999). Em outros termos, notamos que, impregnado<br />
de uma visão ingênua dos universos indígenas, Gândavo achava que<br />
os povos indígenas “viviam desordenadamente”. Não devemos nos<br />
esquecer de que a lei tem forte relação com a ordem e o desenvolvimento.<br />
Notemos, ainda nesse fragmento, que, por causa dessa suposta<br />
“carência”, “viviam desordenadamente”, o que significa dizer que<br />
as sociedades indígenas não eram “ordenada”, “organizada”, por não<br />
terem nem F, nem L e nem R, ou, nem fé, nem lei e nem rei. Por não<br />
terem lei, rei e fé, era um desvio que precisava ser corrigido; era preciso<br />
catequizar (Deus), administrar (Lei) e governar (Rei), dado que<br />
uma nação não poderia viver sem os preceitos religiosos, administrativos<br />
e governamentais 9 .<br />
Existem assim, de um lado, os povos indígenas que não tinham<br />
voz no século XVI e que hoje dizem que suas terras foram invadidas,<br />
e, de outro, o discurso colonizador que afirma: o Brasil foi<br />
“descoberto”, “achado”, “conquistado”, “civilizado”. Duas formações<br />
discursivas em confronto que impedem outros discursos de significar,<br />
entre eles o outro “brasileiro”.<br />
Há sempre relações de poder e de controle presentes nos discursos,<br />
é certo. E elas retratam, principalmente, procedimentos de<br />
controle do discurso nas interações verbais, os quais podem ser classificados,<br />
conforme Foucault (1998), de três modos, a saber: mecanismos<br />
externos de controle, mecanismos internos de controle e mecanismos<br />
de controle do sujeito.<br />
Esses mecanismos nos levam a pensar nas práticas discursivas<br />
envolvendo as leis e o universo indígena. Podemos pressupor, para<br />
que os índios façam parte da “sociedade nacional”, que eles, ao en-<br />
9 Importante observar também que essa afirmação feita por Gândavo foi feita a partir da observância<br />
de sociedades indígenas da Costa brasileira, predominantemente pertencentes à família<br />
linguística tupi. No entanto, esse enunciado, ao longo dos anos, veio reproduzindo seus efeitos,<br />
independentemente do povo indígena em referência.
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937<br />
trar no universo cultural do “brasileiro”, abandonem seu discurso,<br />
construído, até então, fora do âmbito da instituição, para assumirem<br />
o que lhes será transmitido pelo Estado. Além do mais, sabendo que<br />
os indígenas precisam ter “conhecimento da língua portuguesa” para<br />
deixarem o regime tutelar previsto na Lei (Art. 9.º, II), pressupõe-se<br />
que, quando “abandonarem” a própria língua, haverá um maior controle<br />
do dizer, isto é, do que se pode ou não dizer num conjuntura<br />
dada (PÊCHEUX, 1995). Deduzimos, portanto, que a “nova realidade”<br />
determinará, aos indígenas, as regras discursivas, dizendo quem<br />
fala, o que fala, como fala e em que momento fala.<br />
Parece nítida, por parte das práticas jurídico-legislativas do<br />
Estado brasileiro, uma tentativa de negação da diversidade cultural,<br />
linguística e política diante do que seja uma “sociedade nacional”.<br />
Negar os conhecimentos prévios dos povos indígenas, inclusive linguísticos,<br />
como partes constitutivas da “sociedade nacional”, é desejar<br />
o total apagamento das diferenças. Desse modo, o Estado desconsidera,<br />
por exemplo, as línguas faladas pelos índios em detrimento<br />
do legitimado por ele, o português, silenciando, assim, o sujeito “índio”.<br />
Interessante, porém, é notar que alguns indígenas e grupos de<br />
estudiosos, encontraram na nessa legislação um brecha em relação ao<br />
linguístico, e isso levou a que alguns municípios se tornassem bilíngues<br />
10 .<br />
10 O caso mais exemplar talvez seja, no Brasil, o de São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas.<br />
Nas palavras do professor Gilvan Müller de Oliveira: [Em relação à oficialização de línguas indígenas<br />
em São Gabriel], “A ideia foi levada a uma assembleia geral da Federação das Organizações<br />
Indígenas do Rio Negro (FOIRN) com cerca de 500 delegados das 42 organizações<br />
de base que a integram, e foi aprovado, no início de 2001, um pedido da FOIRN ao IPOL para<br />
a elaboração do anteprojeto de lei e sua justificativa. Incorporamos à nossa equipe um advogado<br />
especialista em elaboração de legislação municipal, Márcio Rovere Sandoval, e o anteprojeto<br />
foi discutido, aperfeiçoado e encaminhado para a câmara pelo vereador Camico Baniwa.<br />
Foi aprovado por unanimidade em dezembro de 2002, fazendo de São Gabriel da Cachoeira<br />
o único dos 5.507 municípios a ter, [até então], além do português, língua oficial da União,<br />
também línguas cooficiais municipais. Como são, pelos nossos cálculos, pelo menos 11 municípios<br />
de maioria populacional indígena no Brasil e muitos de maioria falante do japonês, italiano<br />
ou outras línguas de imigração, abre-se com esta jurisprudência a possibilidade de construirmos<br />
oficialmente um quadro de bilinguismo estável para o Brasil, na medida em que a visibilidade<br />
dos futuros ‘municípios bilíngues’ será um importante estímulo para frear a tendência à<br />
perda linguística das línguas minorizadas brasileiras”. (OLIVEIRA, 2005, p. 90).
3. Palavras de conclusão<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
938<br />
Procuramos evidenciar com este artigo que o Estado, por<br />
meio do Estatuto do Índio (Lei 6.001), de alguma forma, ao silenciar<br />
as línguas indígenas, contribui para construir uma identidade branca<br />
para os povos índios, contribuindo para o apagamento de traços que<br />
os identificam não só enquanto indivíduos de povos distintos, mas<br />
como sujeitos de tais. Há aqui uma tentativa de enquadrá-los nos padrões<br />
e valores da sociedade ocidental e cristã. É importante que,<br />
nessa mesma linha de raciocínio, sejam investigados outros documentos,<br />
tais como a Constituição Federal de 1988, a fim de buscar<br />
compreender como essa relação entre o discurso oficial do Estado<br />
produz sentido quando da relação entre línguas, identidades, discursos.<br />
Este estudo da legislação indigenista no Brasil não teve pretensões<br />
de ser exaustivo. Devido a sua dimensão, ela carece de fôlego<br />
e de olhos que ajudem a esmiuçar a legislação enquanto uma prática<br />
do discurso da lógica dominante. O mar é grande e, nesse grande<br />
mar da legislação indigenista e da história discursiva sobre os povos<br />
indígenas brasileiros, fazendo minhas as palavras de Holanda, “sempre<br />
o mar ao mar se assemelha, sendo diverso” (1992, p. 19).<br />
Foi um risco essa leitura. Porém, mesmo assim, valeu o risco.<br />
E sendo ocioso investigar o mar, pegamos só aquilo de que precisávamos.<br />
Ademais, adiante, outros textos irão explorar o que este silenciou.<br />
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Acesso em: 25/5/2009.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
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1995.<br />
ZIZEK, S. (Org.). Um mapa da ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto,<br />
1997.
EDIÇÃO E ESTUDO<br />
DOS PROCESSOS ARGUMENTATIVOS<br />
DE DOCUMENTOS MANUSCRITOS<br />
DA CIDADE DO SALVADOR<br />
Gilberto Nazareno Telles Sobral (UNEB)<br />
gsobral@uneb.br<br />
Em 10 de Abril de 1932, inaugura-se o Arquivo Histórico<br />
Municipal de Salvador, com o objetivo de ser guardar toda a documentação<br />
do antigo Senado da Câmara deste o período colonial.<br />
O seu vasto acervo está dividido entre arquivos permanentes,<br />
arquivos de impressos e biblioteca, arquivos audiovisuais (fotografias<br />
e slides de aspectos urbanos de Salvador e de seus habitantes entre<br />
os anos 40 e 90 do século XX, projetos arquitetônicos, filmes e partituras<br />
musicais) e arquivos correntes e intermediários (documentos do<br />
Poder Público municipal).<br />
Compondo a documentação dos arquivos permanentes estão<br />
provisões reais, atas da Câmara, provisões do Governo e Senado,<br />
posturas Municipais, provisões do Senado, registro de Patentes de<br />
Militares, provisões do Governo, cartas de Eclesiásticos, circulares<br />
da Câmara, certidões do Senado, escrituras de compra e venda de escravos,<br />
cartas do Senado à Sua Majestade etc.<br />
Infelizmente as condições de acondicionamento dos documentos<br />
não são condizentes com seu valor. Os encadernados ficam<br />
em prateleiras sem um suporte adequado e os avulsos em caixas de<br />
papelão simples e sem nenhum invólucro protetor. Além disso, a<br />
temperatura e a umidade do ambiente corroboram com a proliferação<br />
de agentes biológicos que favorecem a deterioração do acervo.<br />
Com o intuito de preservar e divulgar esta documentação,<br />
vem sendo desenvolvido um trabalho em duas etapas: inicialmente, é<br />
feito um levantamento e seleção da documentação a ser editada, respeitando<br />
o estado de conservação, que permita o manuseio e a leitura,<br />
e, em seguida, realizado um estudo dos processos argumentativos<br />
presentes, objetivando compreender a mentalidade dos administradores<br />
da Cidade do Salvador no período em questão. É importante res-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
942<br />
saltar que, sendo, estes documentos, fontes primárias, editá-los é<br />
uma etapa fundamental neste estudo, pois materializam fatos importantes<br />
da história do povo soteropolitano.<br />
A pesquisa é concentrada, prioritariamente, nos livros de registro<br />
de Cartas a Sua Majestade, nos séculos XVII e XVIII, mas<br />
também já foram editados requerimentos da população enviados à<br />
Câmara e documentos do livro Identidade de Pretos. No presente<br />
trabalho, serão apresentados alguns resultados das análises possibilitadas<br />
pelas edições de documentos da segunda metade do século<br />
XVIII e, em seguida, a edição de um manuscrito do início da primeira<br />
metade do século em questão, que compõe o atual conjunto de<br />
documentos da pesquisa, acompanhada de breves considerações, a<br />
partir dos pressupostos teóricos da Nova Retórica, na qual argumentar<br />
é “provocar ou aumentar a adesão dos espíritos às teses que se apresentam<br />
a seu assentimento” (PERELMAN; OLBRECHTS-<br />
TYTECA, 1996, p. 50).<br />
Sobre a edição dos manuscritos, além da dificuldade de leitura<br />
em virtude do traçado das letras e do estado de conservação dos<br />
manuscritos, outro problema encontrado diz respeito ao grande número<br />
de abreviaturas, que totalizaram 927 ocorrências, sendo 06 por<br />
contração, 301 por suspensão e 620 por letra sobreposta. Destaca-se<br />
também o fato de, num mesmo manuscrito, aparecerem formas abreviativas<br />
distintas para uma mesma palavra, permitindo uma multiplicidade<br />
de significados para uma mesma abreviatura, principalmente<br />
em relação a nomes próprios.<br />
Editados os documentos, procedeu-se ao agrupamento dos<br />
testemunhos para análise. Sendo todos os documentos datados da segunda<br />
metade do século XVIII, foram divididos em dois grupos, tomando-se<br />
como base para o agrupamento o auditório: o primeiro é<br />
composto de cartas dirigidas ao Rei D. José I; o segundo é composto<br />
de cartas dirigidas à Rainha D. Maria I. Todas as cartas têm como<br />
tema questões financeiras, que afetavam diretamente o cotidiano dos<br />
soteropolitanos.<br />
Segundo Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996, p. 131), “para<br />
cada auditório existe um conjunto de coisas admitidas que têm, todas,<br />
a possibilidade de influenciar-lhe as reações”, o que pode ser<br />
comprovado com a variedade de argumentos empregados pelos ca-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
943<br />
maristas da cidade de Salvador para o estabelecimento do acordo essencial<br />
em todo processo argumentativo e, consequentemente, a adesão<br />
de sua tese.<br />
Todo acordo está fundamentado em duas categorias: a relativa<br />
ao real, que são os fatos, as verdades e as presunções, e a relativa ao<br />
preferível, aquela que diz respeito aos valores, as hierarquias e os lugares<br />
do preferível. Entende-se aqui por real apenas o que um auditório<br />
acredita ou simplesmente entende ser real.<br />
A categoria do real pode ser ilustrada, no corpus aqui analisado,<br />
da seguinte forma: a administração da Cidade do Salvador era<br />
exercida pelo Senado da Câmara (fato), que realizava obras de manutenção<br />
e melhoria da cidade (verdade), visando à qualidade de vida<br />
dos seus habitantes (presunção).<br />
Entre os argumentos baseados na estrutura do real presentes<br />
nos discursos entre a Câmara do Senado de Salvador e a Corte Portuguesa,<br />
no período que abrange a pesquisa, estão: o argumento<br />
pragmático, que é definido por Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996,<br />
p. 303) como “aquele que permite apreciar um ato ou um acontecimento<br />
consoante suas conseqüências favoráveis ou desfavoráveis”; o<br />
argumento do desperdício, que consiste em defender a continuidade<br />
de uma atividade para que não sejam perdidos o tempo e o investimento<br />
já empregados. É aquele que incita a continuar a ação começada<br />
até o êxito final; o argumento de autoridade, aquele que utiliza<br />
o juízo de valor de uma pessoa ou de grupo de pessoas como meio de<br />
prova a favor de uma tese.<br />
Há ainda a ocorrência dos argumentos que fundam a estrutura<br />
do real, isto é, aqueles situados no exemplo, no modelo, no antimodelo<br />
etc.<br />
Analisando a ocorrência do argumento de autoridade, observa-se<br />
a presença em 50% do corpus. Este índice demonstra que os<br />
camaristas reconheciam a necessidade, em determinadas situações,<br />
de utilizar juízos de valor de pessoas da confiança de Sua Majestade<br />
como meio de prova da tese defendida.<br />
O argumento de desperdício também foi identificado em 50%<br />
do corpus. A utilização deste argumento pode representar, junto ao<br />
auditório, a valorização do dinheiro da Câmara pelo orador, cuja es-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
944<br />
cassez de recursos, diante das necessidades da Cidade do Salvador,<br />
demandaria a solicitação de verbas que eram destinadas à Coroa.<br />
A argumentação pelo exemplo foi a menos utilizada pelos<br />
membros da Câmara, sendo encontrada em apenas 20% do corpus.<br />
Destaca-se o fato de que as ações, de cuja imitação era sugerida, eram<br />
atribuídas aos Reis que antecederam D. José I.<br />
A argumentação pelo modelo foi utilizada em 80% do corpus,<br />
ocupando o segundo lugar em relação aos demais argumentos. Observa-se<br />
que o modelo, além de indicar a conduta a ser seguida, serve<br />
como garantia para o comportamento adotado. Destaca-se, ainda,<br />
que a grande ocorrência deste argumento também está associada à<br />
diversidade daqueles tomados como modelo – antigos camaristas,<br />
ministros, reis etc.<br />
O emprego da argumentação pelo antimodelo foi verificado<br />
em 50% do corpus. É possível atribuir à grande utilização deste argumento<br />
ao fato de ele, ao sugerir a recusa à conduta de determinadas<br />
pessoas por parte do auditório, o orador valorizava o próprio<br />
comportamento, já que os antimodelos eram pessoas cujas posições<br />
eram contrárias aos interesses do próprio orador, ou seja, os camaristas.<br />
O argumento pragmático ocupa um lugar privilegiado em toda<br />
a argumentação, visto que é identificado em 100% do corpus. Tal<br />
fato justifica-se uma vez que toda argumentação pressupõe um acordo<br />
prévio entre orador e auditório e os camaristas sempre utilizavam<br />
o bem-comum como principal objetivo de tudo que era requerido.<br />
Logo há uma relação direta entre os fatos apresentados e suas possíveis<br />
conseqüências.<br />
Após as considerações feitas acerca do primeiro grupo de documentos<br />
estudados e tendo em vista a divulgação deste acervo manuscrito,<br />
apresenta-se, a seguir, a edição de um documento do início<br />
do século XVIII, cujo lançamento, no livro de registro, está nos fólios<br />
78r, 79r e v, 80r e v. Datado de 27 de agosto de 1701, discorre<br />
sobre as benfeitorias de Dom João de Lancastro, governador geral no<br />
período de 22 de Maio de 1694 a 03 de julho de 1702.
Cópia de huma Carta<br />
que este Senado escreveu asua Mages<br />
tade sobre o acerto ebom governo<br />
do General o S(e)n(ho)r Dom João de<br />
05 Lancastro //_________ // ________ //_____<br />
Senhor= Na Frota do anno passa-<br />
do de mil esente centos fizemos pre-<br />
zente aVossa Magestade onotavel<br />
zelo e Cabal acerto com que Dom<br />
João de Lancastro Governador e<br />
capitão geral deste Estado, etinha<br />
avido neste governo, epor que<br />
05 continuaraõ as suas proezas<br />
he razaõ naõ cessamos com as re-<br />
ferir aVossa Magestade // Aca=<br />
bou com efeito as seis companhi-<br />
as de soldados para o socorro de<br />
10 Mombaça / em que vossa Ma-<br />
gestade ja falavamas na dita con-<br />
ta/ e eram todas maças bem dis-<br />
postas e capazes de qual quer oc-<br />
cazião, emais parece assentaraõ<br />
15 praça obrigados da afebilidade ,<br />
emodo do dito Governador, do que<br />
de qualquer outro motivo, enaõ<br />
ficaraõ alguns sem [...] minera =<br />
cão , porque se despio para as ves<br />
20 tir , e com tudo digo , ecom todo o<br />
necessario as embarcou socegadamen-<br />
te nas duas Naus de que tambem<br />
demos aVossa Magestade parte ,<br />
as quaes fez dar a Vossa em sab-<br />
25 bado vinte sete de Novembro do dito<br />
anno de mil esete centos com belo<br />
tempo , eainda que amais peque-<br />
pequena naõ foi bem succedida de<br />
pois de sahir a barra, naõ esteve<br />
por elle esta desgraça deque só Deos<br />
pode saber a Cauza, elevava amaior tan-<br />
05 ta gente emonicões que bastava só pa-<br />
ra opretendido socorro, e esperamos ,<br />
em Deos lhe naõ fizesse falta a Com-<br />
78 v<br />
79 r<br />
79 v<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
945
panheira// Tendo noticia de que no te-<br />
quiriça temia da Villa de Camamú<br />
10 se tinhaõ achado algumas migalhas<br />
de ouro mandou fazer deligencia pa-<br />
ra que se descubrissem as Minas delle,<br />
enaõ sefez anecessaria por impedi-<br />
mento da chuva echeia os rios<br />
15 e havendo mandado tambem<br />
ao Coronel Antonio da Silva Pi-<br />
mentel a outro semelhante desco-<br />
brimento e o Certaõ naõ chegou<br />
ao Citio determinado por terno-<br />
20 ticia estava já occupado dos<br />
paulistas mas mandou ao Coro=<br />
nel Antonio Vieira de Lima a fazer de<br />
ligencia em outras partes domesmo<br />
Certaõ em que se acharaõ tambem ou-<br />
25 tras migalhas de ouro epoderá [...]<br />
lo e industria do dito Governador<br />
vir a achar a inda grandes mi=<br />
80 r<br />
Minas se estiver aqui mais na-<br />
anos em utilidade da Fazenda Re-<br />
al de Vossa Mag(estad)e e desta Capitania e naõ será<br />
muito que se acrescente aquella<br />
05 por intervençaõ sua quando em<br />
todos estes annos tem feito haver<br />
tam grandes econhecidos argumen-<br />
tos nos contractos, efez que os dos<br />
dizimos se rematasse este anno<br />
10 em cento ecincoenta mil cruza-<br />
dos, esperando-se naõ passasse<br />
de cem, assim porque rematan-<br />
do-se nesta quantia o anno pas-<br />
sado perdeu muito quem atomou,<br />
15 como por senaõ esperar ainda<br />
cabal safra de Assucar // Por<br />
mizericordia de Deos edeligen-<br />
cias suas fica esta capitania co<br />
notavel abundancia defarinha<br />
20 emais mantimentos ecom todo<br />
o cuidado e inteireza adminis=<br />
tra justiça a todos fazendo que<br />
vivamos bem procedidos e em paz<br />
e se castiguem os mal feitores, esse<br />
25 evitem os delictos eaté os maos cos-<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
946
tumes de trajes desonestos, e dan-<br />
ças lascivas fez evitar // No cuida-<br />
No cuidado da conduçaõ edespacho<br />
do Tabaco eaviamento desta Frota<br />
foi incensante achando-se prezente<br />
atudo, efazendo só aquilo para que<br />
05 muitos naõ bastariaõ, mas sem<br />
embargo disso ainda que naõ tivera<br />
ordens deVossa Magestade para se<br />
deter adita Frota / se he que asiti-<br />
nha/ naõ podera partir mais se-<br />
10 do pelo grande numero de folhas<br />
de Tabaco, que houve, edescuidado dos<br />
carregadores. Finalmente em tu-<br />
do o que he requeremos por serviço<br />
de Vossa Magestade ebem deste Povo<br />
15 nos ampara edifere com grande a-<br />
amor epromptidaõ e assim quize-<br />
ramos, que fosse aqui mais dila-<br />
tada asua assistencia porem qu-<br />
ando onaõ mereçamos por que<br />
20 as suas prendas etalento acha-<br />
maõ para maiores lugares fi-<br />
cará satisfeito anosso desejo, econ-<br />
solada anossa saudade com o<br />
virmos com maiores contenta-<br />
25 mentos epremios muito iguaes<br />
aseu merecimento, evontade, pa-<br />
ra que sirvaõ de estimulo, aque<br />
os mais oimitem todos lovem a<br />
Vossa Magestade por justo, eliberal<br />
remunerador dos que servem A Pe-<br />
ssoa de Vossa Magestade nos Guarde<br />
05 Deos por muitos annos Bahia<br />
e Camara a os vinte esete de A=<br />
gosto de mil sete centos ehum// e<br />
Eu Pedro Dias Pereira que sirvo<br />
de Escrivaõ da Camara o subscre<br />
10 vi // Andre Leitaõ de Mello// Joaõ de<br />
Barros Machado // Pedro Barboza<br />
Leal// Gonçalo Soares da Franca //<br />
Joaõ Gonsalves Pinheiro //___________//<br />
80 v<br />
81 r<br />
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
947
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
948<br />
O manuscrito compõe um bloco de quatro cartas do livro de<br />
registro nº 28.8, que foram encaminhadas a Portugal acerca de um<br />
mesmo tema. A edição destes documentos permitiu, principalmente,<br />
revelar um fato não muito comum na colônia: a defesa de um governador<br />
geral entre os administradores da cidade do Salvador, uma vez<br />
que era uma relação tradicionalmente conflituosa.<br />
Cada processo argumentativo demanda atitudes específicas do<br />
orador. Como já dito, a utilização da argumentação pelo exemplo, no<br />
conjunto de documentos analisados, não era freqüente, tendo em vista<br />
que a conduta e ações daqueles que interferiam na administração<br />
local eram sempre colocadas em dúvida. No entanto a argumentação<br />
pelo exemplo, na questão mencionada, foi fundamental por aproximar<br />
ações do governador geral ao comportamento dos camaristas, o<br />
que confirma que a consciência do lugar social de onde se fala é essencial<br />
para validar uma determinada tese.<br />
O estudo, portanto, tem contribuído para a compreensão de<br />
um importante momento da história do Brasil, em particular, das relações<br />
sociais na Cidade do Salvador.<br />
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
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leitura de documentos manuscritos. Recife: EDUFPE; Fundação<br />
Joaquim Nabuco; Massangana, 1994.<br />
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Magestade. Salvador: Câmara Municipal; Fundação Gregório de<br />
Matos, 1994/1996. Documentos Históricos do Arquivo Municipal.<br />
FÁVERO, Leonor Lopes. As concepções linguísticas no século XVIII:<br />
a gramática portuguesa. Campinas: UNICAMP, 1996.<br />
FLEXOR, Maria Helena Occhi. Abreviaturas: manuscritos dos séculos<br />
XVI ao XIX. São Paulo: UNESP/Secretaria da Cultura/Divisão<br />
de Arquivo do Estado, 1991.<br />
PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado de<br />
argumentação: a nova retórica. Trad. Maria Ermantina Galvão G.<br />
Pereira. São Paulo: M. Fontes, 1996.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
949<br />
RUY, Affonso. História da câmara municipal do Salvador. Salvador:<br />
Câmara Municipal, 1996.<br />
SOBRAL, Gilberto Nazareno Telles Sobral. A relação colôniametrópole<br />
no século XVIII: edição semidiplomática das cartas do senado<br />
e estudo da argumentação, 2004. Tese (Doutorado em Letras) –<br />
Instituto de Letras, Universidade Federal da Bahia, Salvador.
ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA NA ESCOLA BÁSICA<br />
GÊNEROS E SEQUÊNCIAS TEXTUAIS<br />
1. Introdução<br />
Vania L. R. Dutra (UERJ e UFF)<br />
vaniardutra@uol.com.br<br />
Gustavo Listo (UFF)<br />
Hoje, grande parte dos alunos que sai da escola apresenta<br />
muitos problemas em relação à leitura e à escrita. Resultados de avaliações<br />
oficiais têm comprovado essa afirmação: o Brasil ocupa, em<br />
relação mesmo a outros países da América Latina, uma das últimas<br />
posições no que se refere ao nível de conhecimento esperado de um<br />
aluno que conclui seus estudos no Ensino Fundamental e Médio. Esse<br />
quadro, que tantos prejuízos traz para toda a sociedade, não é absolutamente<br />
novo, conforme pode parecer. Ele vem de longa data, e,<br />
pelo que se percebe, a tendência é que se agrave cada vez mais, caso<br />
a Educação não venha a ser tratada como prioridade pelas autoridades<br />
de nosso país.<br />
Apesar de todo o esforço dos professores, o resultado do trabalho<br />
desenvolvido nas escolas ainda está aquém do que se espera,<br />
tendo em vista o objetivo de formar leitores e produtores proficientes<br />
de textos. Certamente, uma das causas desse fracasso escolar 1 foi o<br />
entendimento equivocado, por parte dos professores, de uma forma<br />
geral, de que estudar a língua era estudar gramática. Essa era a visão<br />
acerca do trabalho com a língua na escola, uma visão restrita e reducionista.<br />
Hoje, entretanto, a perspectiva de trabalho é outra.<br />
Com o avanço dos estudos linguísticos e, consequentemente,<br />
entre nós, com o advento dos PCN, o foco do trabalho foi modificado.<br />
O foco, agora, passa a ser o gênero, embora a filosofia de traba-<br />
1 Essa é uma causa interna ao processo de ensino-aprendizagem da Língua Portuguesa. Há<br />
muitas outras que poderiam aqui ser consideradas. A mais grave, entretanto, e a mais difícil de<br />
sanar – porque não está nas mãos dos educadores – diz respeito às políticas educacionais por<br />
que passamos ao longo dos anos, com uma progressiva e perversa desvalorização do Professor.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
951<br />
lho permaneça a mesma: continua-se a trabalhar metalinguisticamente.<br />
Só que, agora, estuda-se sobre o gênero, sobre o texto – sem se<br />
deixar de estudar, também, sobre a gramática. Seu uso – do gênero,<br />
do texto e da gramática –, entretanto, permanece à margem das aulas<br />
de língua.<br />
O gênero passou, então, a ocupar o centro dos trabalhos nas<br />
aulas de Língua Portuguesa, esquecendo-se o professor de que não é<br />
o gênero que produz a língua, mas a língua que produz o gênero.<br />
Nessa perspectiva, é nosso objetivo maior trazer de volta a<br />
língua para o lugar central de objeto de análise nas aulas de Língua<br />
Portuguesa. Para tanto, é preciso considerar que os gêneros são inúmeros<br />
(MARCUSCHI, 2002) e que nem todos precisam ser objeto<br />
de análise na escola. É preciso que se possam distinguir, com segurança,<br />
os que devem lá estar, e quais deles devem ser objeto de leitura<br />
ou, conjuntamente, de leitura e de escrita. É preciso considerar,<br />
também, que os gêneros podem ser agrupados, numa perspectiva didática,<br />
com base na sequência textual (ADAM, 1992) que neles predomina<br />
– o que estabelece, para aquele agrupamento de gêneros, aspectos<br />
gramaticais a serem observados como característicos daquela<br />
sequência textual específica.<br />
Essa perspectiva de trabalho com os textos possibilita uma<br />
organização diferente dos conteúdos programáticos da Língua Portuguesa<br />
e, especificamente, de gramática, que girarão em torno das sequências<br />
textuais e não dos gêneros propriamente ditos. Isso permitirá<br />
ao aluno perceber a aplicabilidade dos conhecimentos gramaticais<br />
adquiridos aos textos que lê e aos textos que escreve. Além disso, o<br />
aluno poderá perceber a relação íntima existente entre aspectos linguísticos<br />
e sequências textuais, transportando, automaticamente, os<br />
conhecimentos linguísticos adquiridos de um gênero para outro, desde<br />
que eles apresentem, em sua base linguístico-textual, a mesma sequência.<br />
Os conceitos de sequência textual e de gênero textual assim<br />
considerados podem promover uma mudança relevante no trabalho<br />
com a leitura e com a escrita na escola, e, consequentemente, – acreditamos<br />
–, uma mudança no quadro desalentador que temos hoje: os<br />
alunos saem da escola, depois de, no mínimo, doze anos de escolari-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
952<br />
zação, sem o domínio básico da leitura e da escrita, habilidades essenciais<br />
para a vida em sociedade.<br />
2. Gêneros, tipos e sequências textuais<br />
Sabe-se que a interação verbal realiza-se por meio de enunciados<br />
produzidos nas diferentes esferas da atividade humana socialmente<br />
organizada. Sabe-se, também, que esses enunciados são tão<br />
heterogêneos e complexos quanto o são os diversos campos dessas<br />
atividades. A esses tipos relativamente estáveis de enunciados produzidos<br />
em cada esfera de troca verbal, no interior das atividades<br />
humanas, Bakhtin (2003) chama de gêneros do discurso. Para o autor,<br />
falamos por meio de gêneros dentro de determinada esfera da atividade<br />
humana. Não atualizamos simplesmente um código linguístico,<br />
mas moldamos a nossa fala aos parâmetros de um gênero no interior<br />
de uma atividade. Sendo assim, não se pode pensar o gênero<br />
em si mesmo ou em seus aspectos formais somente. Suas funções<br />
socioverbais e ideológicas são imprescindíveis para sua constituição.<br />
Considerando-se que todos os textos – orais e escritos – materializam-se<br />
sempre na forma de um gênero, isto é, considerando-se<br />
que possuem formas relativamente estáveis e típicas de construção<br />
do todo (op.cit., p. 282), é fundamental que se busque conhecer o seu<br />
funcionamento visando a uma maior eficácia em sua produção e sua<br />
compreensão.<br />
Sendo um fenômeno que se localiza entre a língua, o discurso<br />
e as estruturas sociais (MEURER, 2000), o gênero passa a ser uma<br />
noção essencial para a definição da própria linguagem. Assim, ele<br />
possibilita diálogos entre estudiosos de diferentes áreas e traz elementos<br />
teóricos que provocam uma revisão de muitos conceitos até<br />
então estabelecidos – a noção de tipo de texto, por exemplo.<br />
A tradição do ensino da redação na escola classificava os textos,<br />
de uma forma geral, em três “tipos”: descrição, narração e dissertação.<br />
Os professores propunham um tema e acrescentavam, à<br />
proposta de trabalho, o “tipo” de texto que deveria ser construído:<br />
descritivo, narrativo ou dissertativo (DUTRA, 2007).
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
953<br />
Para Adam (1992), entretanto, os gêneros textuais são constituídos<br />
por sequências textuais – também chamadas tipos textuais<br />
(MARCUSCHI, 2002), entre outros. Essas sequências são “esquemas”<br />
linguísticos básicos cuja função, conforme Bronckart (1999), é<br />
organizar linearmente seu conteúdo temático, exercendo papel fundamental<br />
na organização infraestrutural mais geral dos textos.<br />
Em Adam, os gêneros são considerados como componentes<br />
da interação social e as sequências, como organizações linguísticoformais<br />
em interação no interior de um gênero.<br />
Desse modo, os gêneros textuais são fenômenos históricos,<br />
profundamente vinculados à vida cultural e social; são manifestações<br />
linguísticas concretas, constituindo textos empiricamente realizados<br />
que cumprem funções diversas em diferentes situações comunicativas.<br />
Por sua vez, as sequências são construtos teóricos semiotizados<br />
por meio de propriedades linguísticas específicas que planificam os<br />
diferentes gêneros. Enquanto os gêneros são inúmeros, as sequências<br />
são relativamente poucas: narrativa, descritiva, argumentativa, explicativa<br />
e dialogal (ADAM, op.cit.) 2 .<br />
Marcuschi – com base no que propõe Werlich (apud MAR-<br />
CUSCHI, 2002) –, por sua vez, apresenta cinco tipos de textos: ele<br />
não considera a sequência dialogal, chama de tipo expositivo 3 a sequência<br />
explicativa de Adam e acrescenta o tipo injuntivo 4 .<br />
É bastante comum que, no mesmo gênero textual, se realizem<br />
duas ou mais sequências, havendo sempre a predominância de uma<br />
sobre as demais. Um texto é, em geral, heterogêneo em relação às<br />
sequências textuais, mas caracteriza-se como um tipo de texto descritivo,<br />
narrativo, argumentativo etc. de acordo com a sequência que<br />
nele prevalecer. A sequência textual é caracterizada por um conjunto<br />
2 Embora sendo poucas, há divergências entre os tipos de sequências apresentadas pelos<br />
autores de uma forma geral. A questão, entretanto, não é meramente terminológica, mas de<br />
concepção teórica.<br />
3 O expositivo é de natureza analítica, racional. O expositor analisa um tema objetiva e<br />
logicamente, expondo suas características. Ele se afasta do argumentativo, uma vez que neste<br />
o sujeito falante está comprometido com uma tese, buscando persuadir seu interlocutor.<br />
4 O tipo injuntivo associa-se à presença de verbos no imperativo e seus equivalentes<br />
semânticos, característicos de textos instrucionais.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
954<br />
de traços linguísticos que formam, de fato, um “segmento” de texto,<br />
não um texto – a não ser que essa sequência componha todo o texto.<br />
Assim, podem fazer parte da constituição de um mesmo texto sequências<br />
textuais diferentes, mas relacionadas entre si.<br />
Diante do quadro teórico que apresentamos, para uma maior<br />
objetividade e clareza, e para escapar à confusão terminológica, esclarecemos<br />
quais são os termos com que trabalhamos para nomear os<br />
principais conceitos discutidos nesta seção – conceitos que, propomos,<br />
devem nortear o trabalho do professor na escola. Nossa escolha<br />
se dá com base nos objetivos do trabalho que, acreditamos, devam<br />
ser os das aulas de Língua Portuguesa: análise centrada principalmente<br />
na materialidade textual, embora considerando também a situação<br />
de produção dos textos e seu aspecto sócio-histórico. Optamos,<br />
então, pelas expressões gênero textual (texto empiricamente realizado),<br />
tipo de texto (de acordo com a sequência nele predominante) e<br />
sequência textual (segmento de texto específico), por fazerem mais<br />
diretamente referência à materialidade textual.<br />
Os gêneros são considerados como componentes da interação<br />
social e as sequências, como organizações linguístico-formais em interação<br />
no interior de um gênero (ADAM, 1992). As sequências textuais<br />
se fundamentam em critérios intratextuais – linguísticos e formais.<br />
Os gêneros, por sua vez, em critérios extratextuais – sóciocomunicativos<br />
e discursivos.<br />
No nível da oração, a relação que se constrói entre as partes é<br />
estrutural: é a organização de partes para formar um todo. É o caso<br />
da relação entre, por exemplo, substantivo e artigo para formar o sintagma<br />
nominal sujeito; da relação entre sujeito e predicado para formar<br />
o sintagma oracional. Numa análise gramatical de base funcional<br />
(HALLIDAY, 2002), isso significa uma configuração orgânica<br />
de elementos, em que cada um desempenha uma função específica<br />
em relação ao todo de que é parte integrante – é o sistema linguístico<br />
organizando-se em estruturas gramaticais.<br />
Porém, como vêm apontando os estudos sobre gêneros textuais<br />
desenvolvidos pela Academia, existe estrutura para além do período,<br />
da frase. O texto também tem uma organização interna, mas não<br />
baseada na gramática. Sua organização é semântica e muito mais “livre”<br />
que a organização das unidades gramaticais.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
955<br />
À semelhança do que ocorre com a sílaba e com a oração, por<br />
exemplo, que têm, respectivamente, uma estrutura fonológica e uma<br />
estrutura gramatical previsíveis, o texto tem uma estrutura semântica,<br />
às vezes surpreendente. A ideia de estrutura aqui é a mesma – construto<br />
teórico criado a partir de elementos menores. A diferença está<br />
no modo como essa estrutura é “codificada”, ou seja, no modo como<br />
ela toma corpo. Um texto não é um somatório de frases; ele é constituído<br />
de elementos específicos, que variam de um gênero para outro,<br />
de uma sequência textual para outra – cada um deles com seus elementos<br />
e configurações próprios, cujos constituintes mínimos são as<br />
frases – períodos simples e compostos.<br />
Para Halliday & Hasan (1977, p. 339), para um texto ser coerente,<br />
é preciso que ele seja coeso 5 e que atenda às exigências do gênero<br />
a que pertence:<br />
Para um texto ser coerente, ele deve ser coeso; mas ele precisa ir<br />
além. Ele deve empregar os recursos coesivos da maneira que requer o<br />
gênero de que é um exemplar; deve ser semanticamente apropriado, com<br />
realizações léxico-gramaticais a atingir (i.e., precisa fazer sentido); e<br />
deve ter estrutura. (tradução livre) 6<br />
Os textos socialmente considerados como representantes de<br />
determinado gênero têm características semelhantes, atribuídas a restrições<br />
genéricas: os gêneros têm identidade e nos condicionam a escolhas<br />
que não podem ser livres nem aleatórias. Segundo Bakhtin<br />
(2003), eles limitam nossa ação na fala e na escrita, organizando-a,<br />
assim como a gramática organiza as formas linguísticas.<br />
Já as sequências textuais são organizações linguístico-formais<br />
que entram na configuração de um gênero textual para realizar objetivos<br />
discursivos por ele suscitados – como narrar, descrever, argumentar<br />
etc. Essas sequências atendem a critérios basicamente linguísticos<br />
e são descritas por meio dos elementos linguísticos e estruturas<br />
gramaticais característicos de sua constituição formal.<br />
5 Estudos mais recentes esclarecem que a coesão é um dos fatores que concorrem para a<br />
coerência, podendo haver sequências sem coesão e mesmo assim coerentes, e vice-versa.<br />
6 For a text to be coherent, it must be cohesive; but it must be more besides. It must deploy the<br />
resources of cohesion in ways that are motivated by the register of which it is an instance; it<br />
must be semantically appropriate, with lexicogrammatical realizations to match (i.e. it must<br />
make sense); and it must have structure.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
956<br />
Um gênero pode ter – e geralmente tem –, em sua constituição,<br />
mais de uma sequência textual. E, quando isso acontece, aquela<br />
que predomina é, normalmente, a que caracteriza o tipo textual a que<br />
aquele exemplar do gênero pertence.<br />
2.1. A sequência narrativa<br />
Adam (op.cit.), inspirado principalmente em Labov & Waletzky<br />
(1967), caracteriza a sequência narrativa como composta por<br />
seis macroproposições: situação inicial, complicação, (re)ações, resolução,<br />
situação final e moral. A situação inicial e a situação final<br />
representam os momentos de equilíbrio da ação e têm uma base mais<br />
descritiva. A complicação, as (re)ações e a resolução é que caracterizam<br />
o esquema narrativo em si: um fato ocorre, quebrando o equilíbrio<br />
inicial e desencadeando (re)ações; essas (re)ações forçam uma<br />
resolução, que cria uma nova situação de equilíbrio. A moral –<br />
quando explicitamente apresentada, como no caso de grande parte<br />
das fábulas – é uma reflexão acerca dos fatos narrados e é de responsabilidade<br />
do narrador.<br />
Essa ordem de apresentação das macroproposições da narrativa<br />
é normalmente fixa, obedecendo à linearidade temporal 7 . Por isso<br />
essa sequência é considerada a mais apropriada para, a partir dela,<br />
por exemplo, se apresentar aos alunos a relação entre os tempos pretérito<br />
perfeito, pretérito imperfeito e pretérito mais-que-perfeito do<br />
indicativo, discutindo seu emprego e suas funções no texto. Além<br />
desse, há outros aspectos linguísticos que são característicos da constituição<br />
da sequência narrativa, assim como há outros que são mais<br />
determinantes na constituição de cada uma das demais sequências.<br />
3. Desdobramentos didáticos<br />
Para demonstrar a viabilidade da proposta aqui desenvolvida,<br />
descrevemos, na sequência, a organização do trabalho que propomos<br />
para o gênero conto – que, claro, pode ser reduplicada com outros<br />
7 Referimo-nos, aqui, à estruturação das narrativas lineares tradicionais.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
957<br />
gêneros. Vale dizer, também, que vimos trabalhando nessa linha e<br />
que os resultados têm-se apresentado encorajadores.<br />
3.1. O gênero conto – uma análise<br />
O conto caracteriza-se por ser uma narrativa em prosa de fatos<br />
fictícios. Costuma apresentar uma ação central ou núcleo narrativo,<br />
e outro(s) núcleo(s) narrativo(s) secundário(s) diferente(s) – dependendo<br />
de sua extensão –, mas que mantêm, entre si, uma relação<br />
causal.<br />
Os núcleos narrativos central e secundários colocam em ação<br />
personagens que realizam suas “cenas” em um determinado espaço e<br />
um determinado tempo. O conto, ao apresentar as características dessas<br />
personagens e caracterizar o espaço e o tempo da narrativa, recorre<br />
a recursos descritivos.<br />
Como já fora salientado aqui, os gêneros normalmente são<br />
constituídos por sequências textuais diferentes, embora uma predomine<br />
sobre as demais. Nesse caso, a sequência descritiva é comum<br />
no início do texto, quando são apresentadas as personagens, o tempo<br />
e o espaço. E pode retornar à cena a qualquer momento em que se fizer<br />
necessária a apresentação de um elemento novo. As sequências<br />
argumentativa e dialogal também são frequentes nesse gênero. Entretanto,<br />
prevalece, no conto, a sequência narrativa. Por isso sua caracterização<br />
como um gênero narrativo.<br />
3.2. Aspectos linguístico-gramaticais característicos da<br />
sequência narrativa<br />
Um recurso frequente de que lança mão o escritor do conto é<br />
a apresentação do diálogo que se dá entre as personagens – o chamado<br />
discurso direto, que traz à baila questões de pontuação, uso e função<br />
do vocativo, emprego de letra maiúscula, por exemplo, a depender<br />
do nível dos alunos com que se esteja trabalhando.<br />
A coerência temporal é um aspecto a ser observado com muito<br />
cuidado, pois a manutenção da linha temporal é, normalmente, um<br />
ponto frágil na produção de texto dos alunos. Os tempos e modos
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
958<br />
verbais desempenham um papel importante na leitura (compreensão)<br />
e na escrita (produção) dos textos de uma forma geral, mas, principalmente,<br />
dos gêneros constituídos basicamente por sequências narrativas.<br />
Assim, é fundamental discutir com eles, observando o texto<br />
que se está lendo, se o autor mantém a linearidade temporal da narrativa<br />
– quais os elementos gramaticais que ele utiliza para isso e de<br />
que forma – ou se opta por romper essa linearidade voltando ao passado<br />
ou projetando acontecimentos no futuro. É esse o momento de<br />
investir na análise dos tempos e modos, e na forma como eles se relacionam<br />
uns com os outros.<br />
O emprego dos artigos definido e indefinido também merece<br />
atenção especial aqui. Conforme Kaufman (1995, p. 22), a apresentação<br />
das personagens ajusta-se à estratégia da definibilidade. As<br />
personagens são apresentadas, pela primeira vez no texto, por meio<br />
de um sintagma nominal introduzido por um artigo indefinido (ou<br />
outro elemento a ele equivalente). Quando essa personagem é novamente<br />
referida no texto, o artigo indefinido é substituído pelo definido<br />
ou por um nome, pronome etc.<br />
As relações semânticas mais frequentes que se estabelecem<br />
entre as diferentes partes do texto – orações, frases, parágrafos – são<br />
as de tempo e as de causa. É fundamental, então, que se investiguem,<br />
com os alunos, os conectivos que explicitam tais relações nos contos<br />
que estão lendo. Esses conectivos podem se afigurar como conjunções,<br />
locuções prepositivas, locuções adverbiais, marcadores discursivos,<br />
entre outros. Isso será de grande valia para a ampliação do repertório<br />
de que lançam mão para construir tais relações nos textos<br />
que escrevem.<br />
Por último – mas não esgotando todas as possibilidades de<br />
exploração dos aspectos linguísticos da sequência narrativa –, é preciso<br />
observar como o autor dos textos em análise constrói o ponto de<br />
vista da narrativa. O narrador é uma “entidade” criada pelo autor do<br />
texto para narrar os fatos que constituem o enredo do texto lido. É a<br />
voz que guiará o leitor na construção do sentido do texto. Essa voz<br />
pode-se apresentar em primeira pessoa ou em terceira pessoa, e faz<br />
parte da coerência do texto a manutenção do ponto de vista adotado<br />
desde o início da narrativa. É uma oportunidade para mostrar aos alunos<br />
a função e o uso textual dos pronomes pessoais e demonstrati-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
959<br />
vos, para que eles possam usá-los com mais propriedade em seus<br />
próprios textos.<br />
3.3. Análise e reflexão linguística<br />
A reflexão sobre os aspectos linguísticos enumerados no item<br />
anterior, e sua exploração nos textos lidos em sala, suscita a necessidade<br />
de uma sistematização mais detalhada de cada um deles. Essa<br />
sistematização se dá, necessariamente, fora do texto. Decide-se, então,<br />
que tema linguístico-gramatical será tratado a partir de cada um<br />
dos textos a serem lidos, planejando-se uma rotina de trabalho com<br />
alguns contos.<br />
Essa sistematização não dispensa a apresentação dos conceitos<br />
e das nomenclaturas dos itens estudados, mas, principalmente,<br />
pressupõe a apresentação de seus usos e suas funções. Na sequência,<br />
exercícios de uso são propostos aos alunos para que eles tenham a<br />
oportunidade de automatizar o emprego daqueles elementos linguísticos<br />
em sua prática linguística tanto oral quanto escrita.<br />
3.4. Produção de textos<br />
Após o trabalho assim desenvolvido com cada um dos contos,<br />
uma proposta de escrita de texto é apresentada. Solicita-se aos alunos<br />
que escrevam um conto, com base em uma temática específica, correlata<br />
ao tema do conto lido, mas não necessariamente a mesma.<br />
Essa prática propõe que os alunos redijam para colocar em<br />
prática, efetivamente, o que se discutiu, tanto em termos do gênero<br />
conto – com suas características formais de superestrutura e sua função<br />
social –, como em termos das estruturas linguísticas dele características,<br />
que são a base para a sua construção.<br />
O que se tem afigurado como resultado dessa prática tem nos<br />
estimulado a continuar investindo nela. Os textos produzidos pelos<br />
alunos têm apresentado um nível cada vez melhor em relação a sua<br />
estruturação linguística. São textos coerentes e mais próximos de<br />
uma escrita proficiente.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
960<br />
Percebe-se, também, uma modificação na disposição do aluno<br />
para a escrita de textos na escola. A maioria dos alunos escreve e até<br />
demonstra prazer em fazê-lo. Isso se deve, talvez, ao fato de se explorar<br />
o gênero de forma a que ele não seja uma incógnita para o aluno.<br />
O aluno-escritor já sabe o que é um conto, como ele se estrutura,<br />
qual a sua função social e quais os elementos linguísticos de que<br />
precisará lançar mão para que ele seja “bem escrito”, cumprindo seu<br />
objetivo comunicativo.<br />
4. Considerações finais<br />
É muito importante que o aluno perceba a relação entre o gênero<br />
que está sendo estudado e os aspectos gramaticais abordados,<br />
que devem ser trabalhados de forma associada, por meio da sequência<br />
textual nele predominante. Assim ele reconhecerá esses elementos<br />
linguísticos e identificará sua função nos textos que lê, e os usará<br />
com adequação nos textos que escreve, a serviço da concretização de<br />
sua intenção comunicativa.<br />
Estudar gramática a partir do texto é essencial para que o aluno<br />
não fique com a impressão equivocada de que texto é uma coisa e<br />
gramática é outra, e que um nada tem a ver com o outro. Não há texto<br />
sem gramática. Essa verdade torna-se ainda mais concreta para o<br />
aluno quando ele percebe que o conhecimento gramatical adquirido e<br />
reconhecido nos textos que lê é aplicado, com mais segurança e proveito,<br />
nos textos que escreve. Para isso, a sistematização das estruturas<br />
gramaticais e os exercícios de uso dessas mesmas estruturas, que<br />
se fazem fora do texto, são muito relevantes – e, diríamos, até essenciais<br />
–, principalmente para os alunos das classes mais populares,<br />
que podem não ter – e normalmente não têm – tais estruturas como<br />
características da variedade de língua que usam em seu dia a dia.<br />
No que diz respeito à avaliação da aprendizagem, é na produção<br />
de textos que o professor poderá de fato verificar se os conteúdos<br />
trabalhados foram significativos para os alunos, se eles se apropriaram<br />
desse conteúdo, aplicando-o adequada e estrategicamente nos<br />
textos que produzem a partir de então.<br />
Ao jogar o foco do trabalho gramatical sobre as sequências<br />
textuais, ou seja, ao se eleger uma sequência textual como unidade
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
961<br />
de trabalho, elegem-se, também, os conteúdos gramaticais que serão<br />
trabalhados na mesma unidade. Abre-se, assim, o leque dos gêneros<br />
textuais que poderão fazer parte das leituras eleitas para o mesmo período<br />
e para as propostas de escrita.<br />
As estruturas gramaticais emanadas da sequência textual narrativa,<br />
objeto de análise nas “aulas de gramática”, estarão presentes<br />
em todos os gêneros em cuja constituição tal sequência predominar.<br />
Portanto, o professor poderá transitar entre contos, crônicas narrativas,<br />
fábulas, romances, notícias de jornal, relatos históricos, entre<br />
outros gêneros considerados narrativos, pois o conhecimento adquirido<br />
pelos alunos a partir do conto será naturalmente transposto para<br />
a leitura e a produção dos demais gêneros, graças à semelhança estrutural<br />
que há entre eles – semelhança essa que o professor fará com<br />
que os alunos percebam e usem a seu favor na leitura e na escrita.<br />
Para terminar, vale dizer, ainda, que não é nossa intenção<br />
propor outra terminologia – que os conceitos de gênero, tipo e sequência<br />
textuais aqui tratados podem sugerir –, a ser levada à sala de<br />
aula para se juntar à terminologia gramatical já existente proposta<br />
pela NGB. Quem precisa dominar essa teoria e essa nomenclatura,<br />
além da teoria e da nomenclatura gramatical, é o professor. Conhecendo<br />
tudo isso é que o professor poderá dimensionar o verdadeiro<br />
lugar da Gramática nas aulas de Língua Portuguesa e produzir material<br />
didático adequado para trabalhar o uso da língua, principalmente<br />
na modalidade escrita e na variedade padrão, que é o que a sociedade<br />
espera que a escola faça.<br />
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
ADAM, J. M. Les textes: types et prototypes. Paris: Nathan, 1992.<br />
BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: ___. Estética da criação<br />
verbal. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.<br />
BRONCKART, J. P. Atividade de linguagem, textos e discursos: por<br />
um interacionismo sociodiscursivo. São Paulo: Educ, 1999.<br />
DUTRA, Vania L. R. Relações conjuntivas causais no texto<br />
argumentativo. Tese de Doutorado. Rio de Janeiro: UERJ, 2007.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
962<br />
HALLIDAY, M. A. K. An introduction to functional grammar. 2.<br />
ed. London: Edward Arnold, 2002.<br />
HALLIDAY, M. A. K & HASAN, R. Cohesion in English. London:<br />
Longman, 1977.<br />
KAUFMAN, A. M. & RODRÍGUEZ, M. H. Escola, leitura e<br />
produção de textos. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995.<br />
LABOV, W. & WALWTSKY, J. Narrative analysis: oral versions of<br />
personal narratives. In: HELM, J. (Org.). Essays on the verbal and<br />
visual arts. Seattle: Washington University Press, 1967.<br />
MARCUSCHI, L. Gêneros Textuais: definição e funcionalidade. In:<br />
DIONISIO, A. e outros (Org.). Gêneros textuais e ensino. Rio de<br />
Janeiro: Lucerna, 2002.<br />
MEURER, J. L. O conhecimento de gêneros textuais e a formação<br />
do profissional da linguagem. In: FORTKAMP. M. B.; TOMITCH,<br />
L. M. B. (Orgs.). Aspectos da linguística aplicada. Florianópolis:<br />
Insular. 2000.
ENTRE INFORMAÇÃO E FICÇÃO,<br />
A ESCRITURA LITERÁRIA<br />
E O ESPAÇO DE DISCURSIVIDADE DOS FOLHETINS<br />
NOS PERIÓDICOS DO SÉCULO XIX<br />
1. Introdução<br />
Vera Maria Aragão de Souza Sanchez (UNIRIO)<br />
varagao@superig.com.br<br />
É senso comum o pressuposto de que o jornalista deva pautar<br />
seu relato pela exatidão, registrando fatos ou descrevendo cenas de<br />
modo imparcial, neutro, abstendo-se de qualquer julgamento de valor.<br />
O jornalismo informativo define a si próprio como isento e parte<br />
da credibilidade almejada depende do modo de fazer crer que se interpõe<br />
entre os fatos e o leitor de forma a narrar, noticiar, descrever,<br />
dentro da concepção de que o exposto é o “real”.<br />
Por considerar que nenhum discurso é neutro, parece impossível<br />
não levar em conta que a escrita jornalística, informativa ou expositiva,<br />
é construída a partir do lugar social ocupado pelo sujeito<br />
que a produz – na ilusão de autoria de seu próprio texto –, assim<br />
como pelas características do periódico onde é publicada e sua forma<br />
de distribuição. Do mesmo modo, a relação entre o leitor e o mundo<br />
irá determinar sua leitura do texto e a consequente formação de sentidos,<br />
igualmente subjugada à memória, à ideologia, à historicidade<br />
que os constituem como sujeito.<br />
Há um leitor virtual inscrito no texto. Um leitor que é constituído no<br />
próprio ato da escrita. Em termos do que denominamos "formações imaginárias"<br />
em análise de discurso, trata-se aqui do leitor imaginário, aquele<br />
que o autor imagina (destina) para seu texto e para quem ele se dirige.<br />
Tanto pode ser um seu "cúmplice" quanto um seu "adversário" (OR-<br />
LANDI, 1988, p. 9).<br />
Estabelecidas as relações entre o leitor “real” e o leitor imaginado<br />
– residente no texto e nele constituído a priori –, a relação entre<br />
os interlocutores e as condições de leitura passam a ser entendidas<br />
como componentes do texto. A interpretação faz-se presente no<br />
autor/leitor e no analista, todos sujeitos-intérpretes, frutos da histori-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
964<br />
cidade que os afeta e, embora metodologicamente com atuações diferenciadas,<br />
na prática, desencadeiam processos inter-relacionados.<br />
O interesse de estudar os periódicos oitocentistas vem exatamente<br />
por vislumbrarmos seu valor documental revelador dos processos<br />
sociais, dos conflitos, das paixões e dos interesses que, conscientemente<br />
ou não, os revestem de uma função icônica. Este trabalho<br />
é um recorte da tese que tem como corpus analítico, discursos<br />
que narraram a cena carioca do século XIX, pesquisados através de<br />
crônicas/críticas e anúncios de espetáculos teatrais. Neste trabalho<br />
iremos refletir sobre a escritura literária que pautou os discursos dos<br />
periódicos da época. Para tal, iniciamos com a análise de algumas<br />
importantes publicações quanto à diagramação, à tipologia e outras<br />
características, chegando ao espaço reservado a estes discursos – em<br />
especial a coluna “Folhetim”, que inaugurou um tipo de texto escrito<br />
no formato popular – para melhor entendimento da relação entre o<br />
jornalismo informativo/literário e o gênero que se firmava a partir<br />
daí: a crônica.<br />
2. Contextualizando as matérias jornalísticas 1<br />
Geralmente compostos de quatro páginas, os periódicos de<br />
meados do século XIX apresentavam similaridade quanto ao título<br />
das seções que se ocupavam de espetáculos teatrais ou de artistas em<br />
geral, como “Correspondencia”, “Theatros”, “Publicações a pedido”,<br />
“Pacotilha”, “Comunicado 2 ” e outros. Era frequente, no mesmo jornal,<br />
uma edição nomear a seção “Publicações a pedido” e na edição<br />
seguinte estampar “Publicação a pedidos”. No Diário do Rio de Janeiro,<br />
na coluna “Theatros”, localizada na página 3 ou 4, o subtítulo<br />
costumava indicar o local do espetáculo criticado, como “Theatro de<br />
São Pedro de Alcântara”, ou “São Januário”. Mas as matérias podi-<br />
1 Nas transcrições dos títulos, subtítulos etc., foi mantida a grafia e a acentuação com<br />
que foram publicados.<br />
2 O nome “Pacotilha” apareceu pela primeira vez no Correio Mercantil em 9 de fevereiro<br />
de 1851, p. 1, apresentando notas e pequenos artigos em tom irônico, em subtítulo<br />
à seção “Comunicado”. Foi nesse espaço que Manuel Antonio de Almeida publicou<br />
Memórias de um Sargento de Milícias, sob o pseudônimo “Um Brasileiro” (SODRÉ,<br />
1996, p. 218).
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
965<br />
am estar tanto nas colunas intituladas “Correspondências” quanto em<br />
“Communicado”. Na edição de 18 de maio de 1851, por exemplo,<br />
após a completa indicação “Anno XXX, nº 8818, Sabbado”, a seção<br />
“Communicado”, à p.2, apresentava o extenso subtítulo: “Breves<br />
considerações sobre a poezia dramática nacional – O incendio do<br />
theatro – As produções brasileiras – A abertura de S. Januário – A<br />
estreia da nova dama – O Bahiano na Côrte – O Manuel Raimundo”.<br />
A matéria é bastante variada e extensa, mas aborda, primordialmente,<br />
o incêndio ocorrido dias antes, no Teatro S. Pedro.<br />
A seção “Publicações a pedido”, coluna fixa localizada entre<br />
as páginas 1 e 2 dos periódicos, como o nome indica, tratava-se de<br />
espaço aberto aos leitores, que tanto cobravam providências às autoridades,<br />
quanto publicavam um agradecimento, ou dedicavam um<br />
poema à sua amada – geralmente assinado apenas com uma inicial.<br />
Eram comuns os debates de leitores entre si, cuja defesa de opiniões<br />
ocasionava réplicas e tréplicas sucessivas sobre o mesmo assunto.<br />
Quanto à diagramação, apesar de não percebermos uma organização<br />
rígida, todos os jornais seguiam, aproximadamente, a mesma<br />
diagramação: a maioria dividia as páginas em 3 ou 5 colunas e dispunha<br />
seus artigos, anúncios e comunicados separados por uma linha<br />
horizontal, simples ou dupla, desenhada ou não. As notícias veiculadas<br />
não eram separadas por assunto e apenas os anúncios vinham<br />
agrupados por tema, obedecendo a certa organização. É comum encontrarmos<br />
uma matéria extensa iniciando ao final de uma página e<br />
alongando-se por várias colunas na página seguinte. No tocante à tipologia,<br />
alguns faziam uso de vários tipos em uma mesma página,<br />
uns mais rebuscados, outros menos.<br />
Características diferentes tinham os pasquins. Sem periodicidade<br />
certa, com um único redator disfarçado por pseudônimo, geralmente<br />
disponibilizavam apenas um artigo e o que mais fosse publicado<br />
inseria-se na seção “Correspondência”. Sodré (1996, p. 183)<br />
afirma que, pelas características panfletárias dos discursos em linguagem<br />
combativa, mais facilmente entendidos pela população menos<br />
erudita, havia certa confusão entre pasquim e panfleto, indefinição<br />
que chegou até nós e ainda hoje dificulta classificações mais<br />
precisas.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
966<br />
Os pasquins estampavam uma epígrafe logo abaixo do nome,<br />
deixando claro suas tendências. O Beija-Flor, por exemplo, chamado<br />
inicialmente Beija-Flor: Annaes Brasileiros de Sciencia, Politica,<br />
Litteratura, etc., etc., por huma Sociedade de Litteratos, até 1849 tinha<br />
o subtítulo “Jornal de Instrucção e Recreio”. A partir de 1849,<br />
assim se apresentava: “No meio de disputas tão azedadas e que todas<br />
versam sobre a política, os leves divertimentos de mera literatura não<br />
cativam suficientemente a atenção” (SODRÉ, 1996, p. 186). Já no<br />
enunciado de apresentação, critica as outras publicações (azedas disputas<br />
políticas) e reclama a pouca atenção dada às publicações literárias.<br />
Evidenciando a disputa entre interesses, define a posição-sujeito<br />
assumida no enunciado, ao adjetivar classificatória e dicotomicamente<br />
os assuntos: as azedadas disputas que versam sobre o tema (a política),<br />
versus os leves divertimentos (a literatura).<br />
Nessas publicações, era comum a epígrafe em verso, como<br />
em A Marmota na Corte: “Eis a Marmota / Bem variada / Pra’ ser de<br />
todos / Sempre estimada / Fala a verdade / Diz o que sente / Ama e<br />
respeita / A toda gente”. Após 1852, chamando-se apenas Marmota,<br />
substituiu a epígrafe pelo subtítulo “Jornal de modas e variedades” e,<br />
afinado com o público feminino, passou a distribuir aos seus assinantes,<br />
músicas e figurinos litografados (Idem, p. 233). Incentivando a<br />
dramaturgia nacional e reclamando do prestígio que o governo dispensava<br />
às companhias italianas, A Marmota tanto enaltecia a figura<br />
de D. Pedro quanto cobrava providências a algumas instituições. Polêmica,<br />
sua tônica mais marcante era a sátira e a crítica de costumes.<br />
Entretanto, a maioria das matérias sobre espetáculos e artistas<br />
em geral, tinha lugar no rodapé das primeiras páginas dos jornais,<br />
espaço chamado “Folhetim”, modelo importado da França, marco de<br />
todos os periódicos do período. A importância do feuilleton justificase<br />
a seguir.<br />
3. Do folhetim à crônica, a riqueza do jornalismo literário do século<br />
XIX<br />
Inicialmente, o “Folhetim” era um espaço composto de diferentes<br />
ordens discursivas, miscelâneas sem restrições temáticas nem<br />
preocupação de continuidade, pequenas histórias do cotidiano, pia-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
967<br />
das e charadas para entreter o leitor. Posteriormente, com a publicação<br />
de artigos, passou constituir-se em duas formas distintas, isto é,<br />
mantendo o entretenimento do folhetim-variedades e adotando a nova<br />
concepção, a do folhetim-romance (BENDER e LAURITO,<br />
1993). Portanto, era comum encontrarmos no rodapé de alguns jornais<br />
apenas variedades e, em outros, histórias publicadas passo a<br />
passo, em capítulos. Entretanto, como já mencionado, a organização<br />
não era rígida: no Diário do Rio de Janeiro, por exemplo, a seção<br />
“Variedades” continha histórias com estrutura de folhetim, mas fora<br />
do espaço do rodapé. Em algumas edições, o Diário publicava uma<br />
história na seção “Variedade” e outra no “Folhetim”, espaço que anteriormente<br />
no mesmo jornal era intitulada “Appendice”. As razões<br />
da troca de nome foram assim expostas no exemplar de 12 de fevereiro<br />
de 1841:<br />
A palavra folhetim, adoptada pelo Jornal do Commercio para dar ideia<br />
dos artigos de recreio que os francezes chamao feuilleton, está geralmente<br />
recebida: nós, para não contrariar o uso, substituimos o nosso<br />
appendice pelo folhetim. Publicamos hoje algumas fabulas e uma ode,<br />
composição d’um nosso compatriota, o Sr. Doutor J. J. T.: o publico apreciará<br />
seu merecimento.<br />
Não tardou muito e o espaço “Folhetim” passou a ser fundamental<br />
à difusão de obras literárias e aos futuros romances brasileiros<br />
3 ; mesmo sem grandes pretensões literárias e escrevendo sob<br />
pseudônimo, tal despretensão “salvou o romance, tão contrastante,<br />
em seu miúdo realismo e em sua graça fluente, da pesada ornamentação<br />
que o Romantismo triunfante vinha impondo, avassaladoramente”<br />
(SODRÉ, 1966, p. 218-219). Mas, antes de se divulgarem<br />
nos folhetins dos jornais e antes de publicarem seus próprios livros,<br />
estes autores atuavam como críticos teatrais.<br />
As matérias, raramente assinadas, continham apenas as iniciais<br />
do autor – verdadeiras ou não; o uso de pseudônimo, como dissemos,<br />
era a forma mais habitual, como “Dr. Semana”, que sabemos<br />
pertencer a Machado de Assis, assim como hoje sabemos que Gonçalves<br />
Dias assinava os folhetins do Correio Mercantil em meados<br />
3 Entre os romances publicados em fascículos estão O Guarani, de José de Alencar,<br />
Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida e O Ateneu, de<br />
Raul Pompéia, dentre vários outros.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
968<br />
do século XIX. De modo impressionista, notícia e crítica amalgamavam-se<br />
a opiniões pessoais.<br />
É fato que as apreciações dos críticos se dão dentro de um espaço<br />
determinado, onde assistem ao espetáculo junto com os demais<br />
espectadores, sofrendo influência da plateia que por vezes aplaude<br />
entusiasticamente, outras vezes vaia, ri, silencia, esboça reações que<br />
formam um conjunto relacional determinante à recepção que o crítico<br />
terá da cena. Dependendo do lugar de onde “fala”, se técnico, crítico<br />
ou plateia, o autor assume posições-sujeito e constrói sentidos<br />
diferentes. Subjugado a essas posições, é assim que a rede de sentidos<br />
se estabelece, em constante movimento, (re)construindo e<br />
(re)significando a memória.<br />
Na complexidade dos discursos jornalísticos que vinham se<br />
delineando na imprensa do século XIX, vemos as marcas ideológicas<br />
impressas em sua materialização. Pródigos em humor irônico, mesclando<br />
ficção a documentário, entremeando lembranças pessoais e<br />
opiniões a dados históricos, marcam, dentre outros, uma escritura literária<br />
que deixou evidente o processo discursivo de formação e estabilização<br />
de uma fala popular e brasileira.<br />
Naquele momento, como representação própria de um povo,<br />
constituído de um modo de dizer que representava a oralidade, o folhetim,<br />
como espaço de divulgação dos ideais românticos, instaurava<br />
uma nova estética na escrita literária. Em remissão às camadas populares,<br />
cabe notar também que, conforme observado por Martin-<br />
Barbero (2003, p. 192), até mesmo quanto à tipologia sua organização<br />
era sintomática: letra grande, clara e espacejada, escolhas cujo<br />
formato “fala, muito mais que do comerciante, do público ao qual o<br />
texto se dirige: um leitor ainda imerso no universo da cultura oral”.<br />
Era necessário falar a essa camada da população e o folhetim transpunha<br />
a barreira da escritura literária e abria-se à pluralidade e à heterogeneidade.<br />
Grosso modo, foi a partir da escrita folhetinesca e das condições<br />
de produção cultural inauguradas naquele espaço que, em suas<br />
múltiplas possibilidades, firmou-se a crônica – do grego chronikós,<br />
procedente de chronos, relativo ao tempo; portanto, relatos do dia a<br />
dia, do tempo presente.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
969<br />
Diversos estudiosos apontam a carta de Pero Vaz de Caminha,<br />
como a primeira crônica com sentido de narração histórica no<br />
Brasil. No documento, a observação direta de Caminha relatando ao<br />
rei de Portugal a descoberta do Brasil, em 1500, é fundamental à dimensão<br />
temporal do registro e à sua veracidade. Caminha comportou-se<br />
“como um cronista no sentido atual da palavra – o de flagrador<br />
do tempo presente – na medida em que seu relato é contemporâneo<br />
dos acontecimentos que narra” (BENDER e LAURITO, 1993, p.<br />
12). Ao redimensionar a observação da paisagem brasileira e seu aspecto<br />
exótico, assim como a cultura e os costumes indígenas, o narrador<br />
imprimiu sua visão particular ao momento e deu-lhe a concretude<br />
capaz de assegurar sua imortalidade.<br />
Assim, de característica histórica, do tempo em que os cronistas<br />
(principalmente medievais) relatavam os grandes feitos dos heróis,<br />
até a literatura jornalística do século XIX, a crônica fixou-se no<br />
país e tomou conotações caracteristicamente brasileiras. Fosse um<br />
registro do passado ou do presente, com toques de ironia e humor,<br />
em sua multiplicidade de assuntos, a crônica constitui-se como um<br />
meio de representação temporal, de resgate do tempo. “Onde cabem<br />
as pequenas coisas do cotidiano? Como registrar a historia nossa de<br />
cada dia, não necessariamente a História? Como tornar eterno o instantâneo?<br />
Na crônica.” (Idem, p. 43).<br />
Prática de jornalistas/literatos da época, a crônica compunhase,<br />
obrigatoriamente, de elementos híbridos, ou seja, da escritura poética<br />
proveniente da subjetividade ideológica que determina a visão<br />
de mundo desses sujeitos-autores, e de sua destinação a um público<br />
leitor heterogêneo, que vinha aderindo aos veículos impressos. Para<br />
diversos pesquisadores, o século XIX assistiu ao nascimento de artistas<br />
híbridos, homens a um só tempo jornalistas e escritores e, consequentemente,<br />
o amalgamado entre imprensa e literatura.<br />
É sob esse aspecto que a relação da crônica com a história do<br />
cotidiano é interessante ao analista do discurso, pois se constitui como<br />
testemunho de uma vida ou uma época, lugar de memória, “um<br />
meio de se inscrever a História no texto” (ARRIGUCCI JR., 1987, p.<br />
52). O cotidiano, dimensão temporal onde se desenrola toda ação<br />
humana, é também o espaço onde os cronistas deixam evidentes dis-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
970<br />
putas e conflitos socioculturais, promovem a transformação ou mantêm<br />
a permanência, revelam ou apagam ideologias.<br />
Na maioria desses autores dos primeiros tempos, a crônica tem um<br />
ar de aprendizado de uma matéria literária nova e complicada, pelo grau<br />
de heterogeneidade e discrepância de seus componentes, exigindo também<br />
novos meios linguísticos de penetração e organização artística: é<br />
que nela afloram em meio ao material do passado, herança persistente da<br />
sociedade tradicional, as novidades burguesas trazidas pelo processo de<br />
modernização do país, de que o jornal era um dos instrumentos (Idem, p.<br />
57).<br />
Desse modo, é possível pensar o cronista como um historiador<br />
do cotidiano, sujeito-autor que se equilibra entre o coloquial e o<br />
literário, que é livre o suficiente para dar colorido ao que escreve,<br />
explorando a função poética e lúdica da linguagem e, sob aparente<br />
superficialidade, fazer história. É possível, igualmente, pensar a crônica<br />
como gênero romântico, pelo caráter que adotou, por exemplo,<br />
em oposição às línguas greco-latinas do período clássico, reconhecendo<br />
a importância de precedências como o sânscrito ou a cultura<br />
orientalista e, finalmente, pela apropriação democrática da gramática,<br />
convertendo-se em uma manifestação nacionalista de expressão<br />
(ELIA, 2005).<br />
4. Considerações Finais<br />
Como sabemos, até a primeira metade do século XIX não havia<br />
no Brasil uma produção literária significativa: com um grande<br />
número de analfabetos, não eram incomuns as leituras feitas por um<br />
membro da família, oral e coletivamente, para os demais. Com a abertura<br />
e o desenvolvimento da imprensa brasileira, a produção cultural<br />
do país encontrou, efetivamente, condições para progredir. Observou-se,<br />
portanto, o crescimento da produção do material impresso<br />
e os folhetins muito contribuíram para a divulgação e expansão do<br />
material literário e para a construção de um público leitor.<br />
Depois do Romantismo, a crônica passou não mais a se legitimar<br />
apenas dentro da tradição da narrativa, mas o cronista estabeleceu<br />
novos processos de enunciação em espaços textuais que absorviam<br />
várias linguagens, inaugurando-se novas condições de produção<br />
cultural, marcas que remetem ao universo da cultura popular.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
971<br />
Sem dúvida, parte do valor do folhetim foi incorporar elementos<br />
da memória narrativa popular ao imaginário social urbano, assim<br />
como, por meio da leitura fragmentada, instigar a curiosidade do leitor<br />
por aquele gênero de narrativa interminável, ideal à formação do<br />
público leitor e ao encontro do intelectual com o povo.<br />
Entendemos a prática jornalística de forma análoga à literária,<br />
associando jornalista e escritor, ambos partícipes das interconexões<br />
sociais que constituem o mundo, do mesmo modo que é possível entendermos<br />
as práticas narrativas à luz da fluência, do movimento<br />
contínuo e inacabado, da linguagem em ação que constituem as práticas<br />
discursivas.<br />
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
ARRIGUCCI JR., Davi. Enigma e comentário – Ensaios sobre literatura<br />
e experiência. São Paulo: Cia. das Letras, 1987.<br />
BENDER, Flora; LAURITO, Ilka. Crônica – História, teoria e prática.<br />
São Paulo: Scipione, 1993.<br />
ELIA, Silvio. Romantismo e Linguística. In: GUINSBURG, J. O<br />
Romantismo. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2005.<br />
MARTIN-BARBERO, Jesus. Dos meios às mediações – Comunicação,<br />
cultura e hegemonia. 2. ed. Rio de Janeiro: UFRJ, 2003.<br />
ORLANDI, Eni. As formas do silêncio: No movimento dos sentidos.<br />
Campinas: Pontes, 1987.<br />
______. A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso. 2.<br />
ed. rev. e aum. Campinas: Pontes, 1987a.<br />
______. Discurso e leitura. Coleção Passando a Limpo. São Paulo:<br />
Cortez, 1988.<br />
SODRÉ, Nelson Werneck. A história da imprensa no Brasil. Rio de<br />
Janeiro: Civilização Brasileira, 1966.
ESTRATÉGIAS ARGUMENTATIVAS<br />
EM SILVA JARDIM (SÉCULO XIX)<br />
Márcia A G Molina (UNISA/SP)<br />
maguemol@yahoo.com.br<br />
Nosso objetivo neste trabalho foi o de analisar um texto publicado<br />
na imprensa periódica do século XIX, à luz da AD [na linha<br />
francesa], servindo-nos, em especial de Van Dijk, em seu News as<br />
Discourse (1988). Para nossa análise selecionamos um discurso proferido<br />
por Silva Jardim no Rio de Janeiro, em 21/09/1888, e publicado<br />
em partes, por nove dias, no ano subseqüente, começando no dia<br />
22/10 até o dia 04/11, mais de um ano depois, nas páginas do Correio<br />
do Povo, às vésperas da Proclamação da República. Esse discurso,<br />
no jornal, foi publicado com o nome Movimento Republicano.<br />
No dia que antecedeu à sua publicação, ou seja, no dia 21/10,<br />
em nota, o jornal esclareceu:<br />
O Correio do Povo começará amanhã a publicar este discurso. Preparado<br />
para a publicidade desde que foi proferido, só agora pôde ser dado<br />
à imprensa. Tem, entretanto, como o leitor verá, a mesma atualidade<br />
que quando foi pronunciado.<br />
Vale informar que o discurso é uma réplica ao proferido por<br />
Joaquim Nabuco, contra o movimento republicano, na Câmara dos<br />
Deputados.<br />
Analisaremos três dos níveis ou dimensões textuais sugeridos<br />
por Van Dijk na obra supracitada:<br />
a) Coerência local;<br />
b) Implícitos;<br />
c) Estilo e Retórica.<br />
Van Dijk explicita que uma análise adotando os pressupostos<br />
da AD deve caminhar para além do textual, considerando também<br />
"os contextos cognitivo, social, cultural ou histórico". (Op. cit.. p.<br />
111).
973<br />
Assim, começaremos discorrendo sobre o autor e o contexto<br />
de criação de sua obra, para depois partimos para a análise.<br />
1. Silva Jardim e o contexto de produção de sua obra<br />
Antônio da Silva Jardim, um dos mais brilhantes jornalistas<br />
do final do século XIX, nasceu em Capivari, Rio de Janeiro, atualmente<br />
Silva Jardim, a 18 de agosto de 1860. Estudou na Faculdade<br />
de Direito de São Paulo, formando-se em 1882, ano em que começa<br />
a lecionar no Curso Anexo da Escola Normal de São Paulo. Três anos<br />
depois, demite-se do cargo e transfere-se para Santos onde se<br />
dedica ao ensino e à advocacia.<br />
Sua notável campanha política pró-República inicia-se em janeiro<br />
de 1888, por ocasião do ato do governo imperial de destituir de<br />
seu mandato os vereadores da Câmara Municipal de São Borja que<br />
haviam indicado que o país deveria ser consultado sobre o fim da<br />
monarquia pela morte do Imperador, visto ser a princesa Isabel “uma<br />
princesa fanática, casada com um príncipe estrangeiro” (FÁVERO;<br />
MOLINA, 2008).<br />
Essa atividade se estende até 1890 com o manifesto de dois<br />
de outubro, dirigido ao Partido Republicano do Estado do Rio, em<br />
que faz um exame dos resultados da primeira eleição do novo regime.<br />
Em novembro desse mesmo ano, parte para a Europa com a família<br />
e a primeiro de julho de 1891 morre tragado pelo Vesúvio.<br />
Sua obra compreende opúsculos, manifestos e artigos, todos<br />
de propaganda republicana, tendo sido considerado a "voz mais intrépida<br />
e o pensamento mais arrojado" da época. Muitos desses discursos<br />
foram pronunciados veementemente em público, momento<br />
em que, fazendo uso de sua retórica, realizava um verdadeiro espetáculo.<br />
Sua influência, como diz seu biógrafo, foi muito grande, já que<br />
auxiliou na "criação de uma consciência republicana" (JARDIM,<br />
1978, p. 14). De espírito rebelde, "intransigente, autoritário e insubordinado,<br />
pôs na causa da República toda a sua atividade" (Idem, p.<br />
15).<br />
Embora muito discutida nos meios intelectuais, a República<br />
não foi um movimento popular, ao contrário, foi idealizada e realiza-
974<br />
da pela classe dominante, especialmente por militares e demais pessoas<br />
iluminadas pelas correntes filosóficas divulgadas no século<br />
XIX, como o liberalismo e o positivismo de August Comte. Portanto,<br />
urgia que as idéias do Movimento Republicano fossem levadas aos<br />
demais e o meio mais eficaz para isso, na ocasião, era a imprensa.<br />
Silva Jardim, então, defensor da causa e buscando adeptos, explicita<br />
ainda no Prelóquio:<br />
Falando é que a gente se entende, diz o provérbio popular, e é falando<br />
claro, razoável, digno, que todos poderemos chegar à unificação<br />
da opinião e da conduta política. A República nada teme, tudo estuda,<br />
tudo discute, tudo concilia, tudo melhora; porque a República é a Pátria,<br />
é forçosamente o Bem.(Idem, p. 242)<br />
A imprensa, como veículo de divulgação de informação e<br />
formadora de opinião, acaba, também, representando a realidade retratada,<br />
mostrando como são traduzidas as posições e interesses dos<br />
indivíduos que compõem a sociedade, como pensam que ela é, como<br />
agem, ou como gostariam que ela fosse. E o veículo onde o pronunciamento<br />
de Silva Jardim foi publicado não era diferente. Na ocasião,<br />
a imprensa escrita multiplicava-se e muitos desses jornais vinham<br />
à lume na intenção de serem porta-vozes da sociedade, ou como diz<br />
Mello (2007) feitos para o povo, para as causas do povo. O Correio<br />
do Povo, um órgão republicano, que circulou de 1889 a 1891, dirigido<br />
por Alcindo Guanabara, foi um desses. Muitos dos textos nele<br />
publicados questionavam a Monarquia, discutiam a República com a<br />
finalidade de reunir possíveis adeptos à causa.<br />
Analisaremos, pois, a seguir, O Movimento Republicano, de<br />
Silva Jardim.<br />
2. Análise do Movimento Republicano<br />
Van Dijk ensina que uma das mais importantes noções semânticas<br />
a ser estudada nos textos é a de coerência local, explicando<br />
que essa é observada em proposições referentes aos fatos relatados,<br />
por meio de relações de tempo, condição, causa e consequência.<br />
Assim, quando o veículo em que foi divulgado o discurso de<br />
Silva Jardim intitulou-o “Movimento Republicano”, já exigia que os
975<br />
leitores recorressem ao seu “script” e previssem o que seria tratado<br />
no texto.<br />
Por outro lado, o jovem, ao afirmar a seus interlocutores: "Aqui<br />
estou de novo, diante de vós, na tribuna popular, a cumprir o meu<br />
dever de apostolar o nosso ideal republicano, e de combater o erro<br />
monárquico" (p. 196, grifos nossos), faz com que todos infiram que<br />
já estivera em plenários outras vezes para discutir seu ideal e combater<br />
aquilo que os presentes e, posteriormente, seus leitores (já que se<br />
tratava de um jornal defensor das causas republicanas) questionavam.<br />
Van Dijk informa que outra propriedade do discurso, somada<br />
à coerência local, é a global, já que o texto é uma unidade semântica,<br />
cuja principal informação advém de sequências organizadas, selecionadas,<br />
topicalizadas e sua compreensão depende de operações como<br />
a de seleção e abstração por parte de seu leitor. Isso se vê com clareza<br />
no discurso proferido por Silva Jardim, quando, por exemplo, tece<br />
uma crítica àqueles que ainda se posicionavam contra os ideais republicanos:<br />
Senhores, é de lamentar que nem todos os que se preocupam das<br />
questões de direção e de governo da sociedade se tenham ainda libertado<br />
de preconceitos metafísico, que na vida política os levam ao vago nas<br />
meditações e nos atos e ao empirismo desregrado o mais falível (p. 197).<br />
Sabia que seus ouvintes utilizar-se-iam de seu conhecimento<br />
de mundo para inferir que estava se dirigindo a Joaquim Nabuco.<br />
O mesmo conhecimento autoriza-o a citar, subliminarmente,<br />
as correntes filosóficas que norteavam os estudiosos à época, para<br />
criticar a postura autoritária e individualista de nosso monarca em<br />
várias passagens do texto:<br />
Nós vivemos sob o regímen de leis naturais, e nada a elas escapa:<br />
nada há que resulte apenas da nossa vontade individual; (p. 197, grifos<br />
nossos);<br />
Poder-se-ia supor uma força capaz de fazer a nós, brasileiros, habituados<br />
à liberdade e somente até aqui tolerando a sua mistificação pelo<br />
receio de subverter a ordem, de nos fazer aceitar o regímen da monarquia<br />
absoluta (...) (Idem)<br />
Agora, criticando a morosidade com que agia a monarquia<br />
brasileira, verbaliza:
976<br />
Não ides pensar, um instante, senhores, que eu condene a lei que aboliu<br />
a escravidão no Brasil. Em meu pensar, não resta dúvida que é certo<br />
que a lei de 13 de maio foi, depois da independência, o ato mais gloriosos<br />
de nossa pátria; mas não é menos certo que foi um ato tardio e violento:<br />
fazer uma cousa rapidamente não quer dizer fazê-la cedo, nem fazê-la<br />
bem (...) (p. 206)<br />
Recorrendo à História para assegurar seu posicionamento,<br />
constata: "Que foi a Revolução Francesa, senão o produto do egoísmo<br />
das massas ferido?" (p. 209)<br />
Muitos outros são os exemplos em que, sabendo a quem se dirigia,<br />
sabendo o que poderia ser compreendido e inferido por sua audiência,<br />
cita e deixa ao outro a responsabilidade de completar os não<br />
ditos.<br />
Para Van Dijk, palavras, períodos e outras expressões textuais<br />
que podem ser inferidas no texto comportam importantes dimensões<br />
ideológicas. Assim, segundo ele, a análise do não dito pode se mostrar,<br />
muitas vezes, mais relevante que a leitura do que vem expresso<br />
textualmente.<br />
Já Guimarães (2009, p. 62) informa que as diferentes significações<br />
dos enunciados embutidas nos implícitos, condicionam-se ao<br />
contexto no qual o enunciado foi produzido, do ato de fala e da intenção<br />
comunicativa.<br />
No discurso proferido por Silva Jardim, há muitos implícitos<br />
e seu uso é bastante estratégico. Por meio deles ora critica, ora denuncia,<br />
ora ironiza o Imperialismo, como em:<br />
(...) antigamente éramos acusados [por quem?] de ser um partido de<br />
moços utopistas ou de velhos políticos descrentes da monarquia, por verem<br />
burladas as suas pretensões. Os elementos conservadores do país, os<br />
homens graves, refletidos, sem pretensões, não estão convosco, diziam<br />
[quem?]! E, entretanto, agora, senhores, que esses elementos estão entre<br />
nós, acusam-nos justamente por isso mesmo! É o caso de a tais amigos<br />
só responder com o riso! (p. 208, grifos nossos)<br />
Convidando sua audiência a inferir, por meio de seu estilo vigoroso,<br />
que os republicanos seriam de toda forma criticados... pelos<br />
imperialistas.<br />
Para Van Dijk, estilo é o resultado de escolhas entre variados<br />
caminhos de se dizer a mesma coisa, utilizando-se de diferentes pa-
977<br />
lavras, ou diferentes estruturas sintáticas. Para ele, o estilo pode ter<br />
implicações sociais e ideológicas, porque, muitas vezes, essas escolhas<br />
revelam a opinião do locutor sobre os atores e a situação comunicativa.<br />
No texto em estudo, o estilo de Silva Jardim é eloqüente:<br />
Cidadãos! A grandeza do movimento republicano ressalta evidentemente<br />
de suas gloriosas origens, de sua justa legitimidade (...). A aspiração,<br />
já agora inabalável, da classe eminentemente conservadora de nossa<br />
pátria, é demais, desde 1870(...) (p. 212)<br />
Repleto de figurativizações:<br />
O viajor que atravessa o Saara é presa do fenômeno enganador da<br />
miragem. Oásis benditos, sorridentes, vicejantes; casarias brancas, cidades,<br />
campos, povos: tudo acode à sua vista como um deslumbramento; e<br />
o viajor fatigado caminha cheio de esperança... Caminha... e a miragem<br />
não se torna realidade; tudo lhe é ilusão à vista, tudo lhe é um sonho à<br />
alma! (p. 212)<br />
E de negações, como:<br />
No preencher esta gloriosa tarefa, não há retroceder um ponto: contra<br />
a zombaria ignorante e má, a afirmação consciente e serena; contra a<br />
pedrada, o argumento, contra o tiro assassino, a perícia do cirurgião que<br />
extraia a bala (...)<br />
Não há parar um instante, se nem diante da morte, também não diante<br />
da tristeza negra das prisões (...)<br />
Não há parar um só dia: são muitos e acumulados os recursos do regímen<br />
do erro, da ignorância e da maldade, ara impedir o advento da<br />
nossa aspiração (...) (p. 196)<br />
Sublinhamos aqui, seguindo Maingueneau (1989), o caráter<br />
polifônico dessa construção, fazendo emergir do texto um enunciador<br />
que sustenta os ideais republicanos, com o qual, parece a audiência<br />
se identificar e para quem nada é impossível, contrapondo-se ao<br />
enunciador que divulga a voz da monarquia, como compreendida por<br />
ele: defendida por cidadãos ignaros, regime do erro, da ignorância,<br />
da maldade.<br />
Neste jogo polifônico, Silva Jardim constrói-se e se mostra a<br />
seu auditório (leitores). Aristóteles, em sua Retórica, explica que o<br />
locutor persuade por seu caráter (ethos) quando seu discurso o torna<br />
um orador digno de fé e que a construção do ethos é, sobretudo, uma<br />
construção do discurso. Silva Jardim mostrava-se intrépido, batalhador,<br />
questionador e sua audiência o acompanhava aplaudindo, ova-
978<br />
cionando, vibrando, e essas marcas não foram apagadas no texto, depois,<br />
publicado no jornal:<br />
(...) a monarquia usa de seduções à inevidência do talento, a força do egoísmo,<br />
e às fraquezas do caráter; e é mister tudo combater, para que<br />
caia de todo o erro, isto é, o Império, e se alevante a grandeza da Pátria,<br />
isto é, a República! (Aplausos). (p. 196, grifos nossos).<br />
(...) diante das fatalidades cósmicas e sociais, e de atividade contínua, incessante,<br />
para a aspiração do bem: - do verdadeiro, do belo e do bom!<br />
(Muito bem! Muito bem) (Idem).<br />
Frisamos aqui a eloquência do texto de Silva Jardim, jovem<br />
reconhecidamente intempestivo, arrogante, corajoso que fazia vibrar<br />
audiência, defendia fervorosamente a República, praticamente exigindo<br />
a adesão de seu auditório. Frisamos aqui também as palavras<br />
de Silvio Romero (1888, p. 541, v. 2): "As peças oratórias eram escritas<br />
para serem recitadas, mas eram-no com verdadeiro entusiasmo<br />
(...) O povo que nada lia, era ávido por ouvir os oradores mais famosos..."<br />
E o povo cria em suas palavras, emaranhava-se nas tramas de<br />
seu discurso repleto de figuras retóricas, como, por exemplo, interrogações,<br />
usadas estilisticamente, fazendo com que cada interlocutor a<br />
elas respondesse mentalmente:<br />
Poder-se-á negar a Marcha da Humanidade para o bem? (p.198)<br />
Se o movimento republicano não é um fato de caráter social, se é<br />
produto unicamente da revolta do egoísmo ferido, como o receais? (p.<br />
199)<br />
Ou como por meio de assíndetos:<br />
Artistas, escritores, médicos, pensadores, mestres, todos os homens<br />
de pensamento aderem aos programas de reformas sociais antes que os<br />
agricultores, os comerciantes, os fabricantes, os banqueiro. É um erro?<br />
Não: é uma necessidade. (Muito bem!) (p. 201)<br />
Enumerando os intelectuais que participavam do movimento,<br />
mas sublinhando que o povo nele precisaria acreditar.<br />
Utilizando-se de apóstrofes, conclama o povo:<br />
Senhores, é de lamentar que nem todos os que se preocupam das<br />
questões de direção e de governo da sociedade se tenham ainda libertado<br />
de preconceitos metafísicos (...) (p. 197) interpelam os interlocutores,<br />
chamando-os para o discurso, tornando-os colaboradores do texto. Re-
979<br />
força essa função o uso do pronome pessoal majestático: (...) é em defesa<br />
dos nossos que aqui estou, sem ódio, nem paixões, sem o propósito da<br />
ofensa (...) (p. 196).<br />
Metáforas e sinédoques embelezam o texto, tornando-o ainda<br />
mais crível, já que utilizadas como elemento argumentativo, convencendo<br />
pela paixão (pathos):<br />
Notai bem, senhores, que os lavradores não receberam a lei da abolição<br />
com as armas na mão: o que eles fizeram foi desquitar-se das suas ligações<br />
espirituais com o trono, no que tiveram tanto mais razão quanto<br />
não era precisa grande sagacidade para compreender que a monarquia tinha<br />
e tem sido a nossa ruína (...) a lavoura não fez mais do que, especialmente<br />
em Minas, retomar as suas tradições (...) (p. 204).<br />
Recordemo-nos aqui que<br />
O efeito estético nasce quando o código é percebido como mensagem<br />
e a mensagem é percebida como código, o texto é transferido de um<br />
para outro sistema de comunicação, enquanto o público tem a percepção<br />
de ambos (RIBEIRO, 2006, p. 24)<br />
E seu público sentia a força desses ornamentos no discurso.<br />
Como pudemos perceber, o discurso de Silva Jardim, publicado<br />
na íntegra, um ano depois, leva-nos a deduzir por que ele fora<br />
mantido na gaveta esse tempo todo, tendo sido dado a público quase<br />
às vésperas da Proclamação da República: acreditamos que, em virtude<br />
de ser muito forte, muito combativo, muito envolvente e produzido<br />
num “tom” quase revolucionário, mobilizando a audiência a posicionar-se<br />
contra a Monarquia, poderia trazer prejuízos ao jornal,<br />
mesmo sendo o Correio do Povo um veículo de divulgação Republicana.<br />
A voz de Silva Jardim ratifica os dizeres de seu biógrafo, para<br />
quem era ele um dos mais representativos "ideólogos da corrente radical"<br />
(JARDIM, p. 9), fazendo emergir a vibração, o jovem: "no estilo<br />
da Revolução Francesa, meio a Danton, meio a Camille Desmoulins,<br />
que queria a participação do povo" (...) naquele momento histórico.<br />
(Idem, p. 10).<br />
Logo, Silva Jardim sabia o que queria dizer e, mais, sabia<br />
como dizer:<br />
O agente constrói uma certa representação sobre a interação comunicativa<br />
em que se insere e tem, em princípio, um conhecimento exato
980<br />
sobre sua situação no espaço-tempo; baseando-se nisso, mobiliza algumas<br />
de suas representações declarativas sobre os mundos como conteúdo<br />
temático e intervém verbalmente. (BRONCKART, 2003, p. 99)<br />
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
ARISTÓTELES. Arte retórica e arte poética. Rio de Janeiro: Ediouro,<br />
s/d.<br />
BRONCKART, J. P. Atividade de linguagem, textos e discursos. São<br />
Paulo, Educ. 2003.<br />
FÁVERO, L. L. e MOLINA, M. A. G. A propaganda republicana na<br />
imprensa. Revista da ANPOLL, n. 25, p. 93 a 106.<br />
GUIMARÃES, E. Texto, discurso e ensino. São Paulo: Contexto,<br />
2009.<br />
MAINGUENEAU, D. Análise do discurso. São Paulo: Pontes, 1989.<br />
RIBEIRO, J. A. Transdisciplinaridade: literatura brasileira e jornalismo/Correio<br />
Mercantil. São Paulo: Fernando Bilah, 2006.<br />
JARDIM, A. Silva. Propaganda republicana. Rio de Janeiro: Ministério<br />
da Educação e Cultura. Fundação Casa de Rui Barbosa, 1978.<br />
SOUZA, A. R. O império da eloquência. Rio de Janeiro: UERJ,<br />
1999.<br />
VAN DIJK, T. A. New as discourse. New Jersey and London: Lawrence<br />
E. Associates, 1988.
1. Introdução<br />
EXISTE MESMO UMA FACULDADE<br />
DE LINGUAGEM INATA E ESPECÍFICA?<br />
ALGUNS PROBLEMAS<br />
Zinda Vasconcellos (UERJ)<br />
zinda@superig.com.br<br />
Em artigo anterior (VASCONCELLOS, 2010), motivada por<br />
uma desconfiança antiga quanto a explicações inatistas do comportamento<br />
e da linguagem, efetuei um amplo levantamento de subsídios<br />
interdisciplinares em busca de alternativas e/ou confirmações<br />
sobre o inatismo e, sobretudo, de fatores que explicassem em que as<br />
características universais da linguagem e das línguas são necessárias.<br />
Pesquisei sobre todos os tipos de “começos”: sobre aquisição da linguagem;<br />
sobre cognição animal e experiências de ensino de linguagem<br />
a primatas; sobre “sinalização caseira” 1 ; sobre línguas crioulas;<br />
e também sobre a origem da linguagem. Além disso, aventurei-me<br />
por trabalhos de genética, teoria da evolução e neurociências. E em<br />
todos esses estudos deparei-me com sérios obstáculos para a possibilidade<br />
de existência de uma faculdade inata específica para a linguagem.<br />
Não terei como, nas dimensões previstas para este artigo, tratar<br />
de todos esses obstáculos. Assim, entre os problemas encontrados,<br />
privilegiarei os que apontam para a implausibilidade biológica<br />
das concepções inatistas sobre a linguagem, fazendo apenas breve<br />
menção aos outros tipos de dificuldades em que essas concepções incorrem.<br />
1 Tradução minha de home signing, os sinais feitos por crianças surdas não expostas a uma<br />
língua de sinais.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
982<br />
2. Caracterização prototípica das propostas quanto a uma faculdade<br />
de linguagem inata<br />
A existência de uma faculdade inata específica para a linguagem,<br />
além de pressuposta por Chomsky em praticamente todas as<br />
suas obras desde pelo menos Aspects…, é também defendida por vários<br />
outros teóricos, dos quais os principais são Jackendoff, Pinker, e<br />
Bickerton 2 , quase todos dissidentes do gerativismo chomskyano. Para<br />
esclarecer os pontos problemáticos das concepções em pauta, na<br />
impossibilidade de fazer isso para cada proposta existente na literatura,<br />
apresentarei primeiro uma caracterização prototípica dessa faculdade<br />
que valha para a maioria dos inatistas, embora cada um deles<br />
possa se afastar de uma ou mais das características apontadas.<br />
Seria uma capacidade mental: a) inata; b) de natureza representacional,<br />
isso é, um “sistema de competência”: conjunto de conhecimentos<br />
(de regras e/ou princípios conforme as teorias) de natureza<br />
simbólica, que estariam de algum modo instanciados no cérebro<br />
3 ; c) específica para a linguagem, e separada de outras capacidades<br />
da mente 4 ; d) não presente em outras espécies animais, nem<br />
mesmo nos primatas superiores; e) cuja principal função seria a de<br />
guiar a aquisição da linguagem pelas crianças, que, sem ela, é considerada<br />
impossível por esses teóricos, principalmente por causa de<br />
uma alegada “pobreza do estímulo” 5 , mas também devido à descrença<br />
que a maioria dos inatistas manifesta no que diz respeito à<br />
importância de processos de aprendizagem 6 .<br />
2 Por exemplo, em BICKERTON 2003, 2007; JACKENDOFF, 2003; JACKENDOFF & PINKER<br />
2005; PINKER, 1995, 2003; e PINKER & JACKENDOFF, 2005.<br />
3 E não um substrato neural que possibilite o desempenho, por ex. permitindo o comando articulatório<br />
ou a percepção dos sons usados na linguagem.<br />
4 Para muitos autores, correspondente a um módulo da mente/cérebro (ver mais abaixo no<br />
texto).<br />
5 Resumidamente trata-se da ideia de que o input linguístico não é suficiente para que as crianças<br />
possam adquirir linguagem apenas induzindo as propriedades dele, havendo necessidade<br />
da GU para “estreitar” a classe das possíveis análises.<br />
6 Um exemplo extremo em tal desconfiança na possibilidade da aprendizagem se encontra na
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
983<br />
Como disse antes, vou-me centrar, neste artigo, nos problemas<br />
relacionados com a implausibilidade biológica dessas concepções.<br />
Mas outros problemas para elas vêm dos estudos sobre a aquisição<br />
da linguagem e a cognição animal.<br />
Os primeiros 7 questionam o argumento da pobreza do estímulo<br />
e a interpretação inatista do chamado período crítico 8 , mostrando<br />
a existência de muito mais estrutura no input do que é suposto pelas<br />
propostas inatistas, e deixando um papel muito maior para a aprendizagem<br />
e para faculdades gerais da mente na aquisição da linguagem.<br />
Já os segundos demonstram uma continuidade muito maior<br />
entre o homem e outros animais do que se acreditava anteriormente,<br />
e não só entre o homem e outros primatas, mas até entre o homem e<br />
pássaros, cetáceos etc.<br />
Por exemplo, em 2002, num artigo conjunto com outros autores<br />
(HAUSER et alii, 2002), talvez pressionado pelas evidências da<br />
natureza evolutiva de várias características da linguagem, Chomsky<br />
distinguiu, na capacidade de linguagem, dois níveis: uma faculdade<br />
de linguagem em sentido estrito, constituída apenas por um sistema<br />
computacional responsável pela recursividade da linguagem, que seria<br />
o único componente da faculdade da linguagem privativo da espécie<br />
humana; e uma faculdade de linguagem em sentido amplo, que<br />
incluiria também um sistema sensório-motor e um conceitualintensional,<br />
os quais poderiam ter evoluído por razões não relacionadas<br />
à linguagem. No entanto, essa característica da recursividade, do<br />
contribuição de Fodor ao dito debate Chomsky/Piaget (Cf. PIATTELLI-PALMARINI, 1983/<br />
1975), em que, defendendo a impossibilidade lógica de desenvolvimento de linguagens ou estruturas<br />
mais ricas se já não estiverem pré-disponíveis, o autor simplesmente exclui a possibilidade<br />
de existência de qualquer aprendizagem real.<br />
7 Uma boa apresentação de resultados recentes de tais estudos e dos desafios que eles colocam<br />
para teorias tradicionais da aprendizagem, tanto behavioristas como inatistas, encontra-se<br />
em Kuhl 2006.<br />
8 O termo período crítico se refere a um período de tempo, que se acredita ser biologicamente<br />
determinado, durante o qual os organismos estão predispostos para a aquisição de respostas<br />
específicas, a qual tende se tornar impossível depois. O conceito nasceu no campo da Etologia.<br />
Os gerativistas o interpretam como resultante de um “fechamento” da faculdade de linguagem.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
984<br />
uso infinito de meios finitos, deixada como exclusiva dos humanos,<br />
foi descoberta também no canto dos pássaros (OKANOYA, 2002)!<br />
Não se pode esquecer, ainda, de que ao menos outro animal, o<br />
célebre bonobo Kanzi, conseguiu adquirir naturalmente uma língua<br />
humana, o inglês oral, manifestando inclusive compreensão de orações<br />
relativas (SAVAGE-RUMBAUGH et alii, 2001).<br />
3. Problemas quanto à compatibilidade das concepções inatistas<br />
sobre a linguagem com os conhecimentos biológicos<br />
Um problema sério é a implausibilidade de que uma faculdade<br />
inata – o que em princípio 9 significaria que fosse um fruto da evolução<br />
guiada pela seleção natural – tenha o caráter de um sistema de<br />
competência, e não de desempenho. Como bem diz Lieberman<br />
(2002, p. 13), a seleção natural age sobre comportamentos que aumentem<br />
a adaptabilidade biológica dos organismos e suas oportunidades<br />
reprodutivas, e não sobre uma competência encoberta apenas<br />
potencial.<br />
Problema esse que é ainda agravado pela natureza tão abstrata,<br />
e tão específica para a linguagem, dos sistemas que as teorias de<br />
cunho gerativista têm proposto, cujos tipos de regras e/ou princípios<br />
(regras de reescrita, c-comando, princípio de subjacência ou princípios<br />
de ligação, operação AGREE, para citar de memória alguns dos<br />
recursos constantes da literatura de diferentes épocas) não têm qualquer<br />
relação com a sobrevivência dos indivíduos ou com vantagens<br />
reprodutivas deles 10 .<br />
9 Digo em princípio porque Chomsky pessoalmente sempre tendeu a resistir à ideia de que a<br />
seleção natural seja o fator causal predominante da gênese da faculdade de linguagem<br />
(CHOMSKY, 2006, p. 55, 57, 67, e 94-97), preferindo atribuir o seu surgimento à organização<br />
do sistema nervoso ou ao resultado “…de leis físicas e químicas em um cérebro que atingiu<br />
certo nível de complexidade” (ibidem, p. 67). Ideia que não é, porém, compartilhada pelos demais<br />
adeptos do inatismo linguístico acima mencionados.<br />
10 Dentro especificamente da obra de Chomsky, esse problema diminuiu de gravidade, mas<br />
não desapareceu, após o programa minimalista, por causa da menor especificidade linguística
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
985<br />
E há ainda o fato dessa faculdade de linguagem ser vista como<br />
exclusivamente humana, o que implicaria no seu caráter recente.<br />
Como se teria originado, em tão pouco tempo evolutivo? Por meio<br />
de uma “mutação miraculosa”? Mas os biólogos não acreditam nesse<br />
tipo de possibilidade…<br />
Aliás, a crer nos críticos construtivistas do inatismo (por ex.<br />
ELMAN et alii, 1998), a maioria das concepções inatistas sobre a<br />
conduta e a cognição dos organismos superiores se baseia em ideias<br />
desmentidas pelos avanços da genética molecular 11 , e também nem<br />
sempre consideram as restrições sobre os tipos de mudanças evolutivas<br />
possíveis segundo a teoria do Evo-devo, que corresponde à versão<br />
mais recente da teoria da evolução.<br />
Elman et alii criticam, sobretudo, o que chamam de ilusão<br />
preformacionista, segundo a qual o genoma especifica, explicitamente,<br />
os traços de comportamento ou os conhecimentos dos organismos.<br />
Tal ilusão decorre de uma concepção de gene chamada de gene<br />
P (P de preformacionismo) (Apud GRIFFITHS, 2006, p. 4), segundo<br />
a qual os genes são vistos enquanto causas de dados traços do fenótipo<br />
(por ex., um gene para olhos azuis). Dela resulta uma disposição<br />
para acreditar em genes únicos para a determinação de características<br />
complexas, e, no caso da linguagem, a esperança em encontrar um<br />
gene, ou um pequeno conjunto de genes, que sejam o fruto de mutações<br />
próprias à espécie humana e tenham causado o advento da capacidade<br />
de linguagem preconizada. Mas tal concepção não encontra<br />
fundamentos nas descobertas mais recentes sobre a genética e o desenvolvimento<br />
epigenético dos organismos, por um lado, e nas versões<br />
mais atuais da teoria da evolução, por outro, segundo as quais as<br />
características do adulto não dependem diretamente dos genes, mas<br />
do funcionamento do sistema computacional em que se crê a partir de então, e sua talvez possível<br />
correspondência com um modo de operação geral do sistema nervoso (embora não observado<br />
até agora em nenhum outro comportamento…).<br />
11 Boa parte dessas ideias desmentidas só o veio a ser recentemente, sobretudo após as<br />
descobertas genéticas resultantes do deciframento do genoma humano e de outras espécies.<br />
Outras já são questionadas por evolucionistas, geneticistas, biólogos moleculares e embriologistas<br />
há bastante tempo, mas permanecem vivas no senso comum, de que nem sempre os<br />
linguistas conseguem escapar.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
986<br />
se desenvolvem gradualmente através de uma série de interações<br />
causais dos produtos gênicos entre si e com fatores externos 12 .<br />
A visão preferida atualmente é a do gene M (M de molecular),<br />
caracterizado por sua estrutura molecular e por sua atuação nos<br />
processos epigenéticos do desenvolvimento do organismo. Com efeito,<br />
a teoria do Evo-devo liga a evolução, sobretudo, a mudanças no<br />
padrão temporal de desenvolvimento dos indivíduos de uma espécie<br />
(CARROLL, 2006), que é determinado pelos genes, mas especialmente<br />
pelos mais antigos, que têm versões correspondentes desde os<br />
primeiros seres multicelulares!<br />
E os estudos sobre o desenvolvimento dos organismos também<br />
mostram que a trajetória dos genes às características é bastante<br />
indireta, e tem um caráter “histórico” (no sentido das características<br />
dependerem mais do processo do seu desenvolvimento do que dos<br />
genes em si). Os mesmos genes podem se expressar ou não, e podem<br />
fazê-lo em momentos diferentes, dependendo dos outros genes ativos<br />
anteriormente ou no mesmo momento, o que tem consequências nas<br />
características resultantes. Tais estudos também mostram que o padrão<br />
típico de desenvolvimento de uma espécie é muito “canalizado”,<br />
no sentido de que fenótipos semelhantes podem resultar de genótipos<br />
relativamente diferentes, havendo vários caminhos para soluções<br />
equivalentes – o que, até certo ponto, protege o padrão da variação<br />
genética, visto que o efeito das mutações em um gene é uma<br />
consequência global da expressão de todos os outros genes: o impacto<br />
fenotípico de uma mutação não é proporcional à magnitude da<br />
mesma, mas depende da dinâmica geral do desenvolvimento.<br />
Dessa canalização resultam restrições aos tipos de mudanças<br />
possíveis, não bastando que uma estrutura ou característica seja favorável<br />
à sobrevivência para que possa ter evoluído.<br />
12 Tal ilusão ainda seria admissível se os seres humanos tivessem genes muito diferentes dos<br />
das outras espécies, o que não ocorre: não só eles têm mais de 98% dos genes em comum<br />
com os chimpanzés, como mais de 70% em comum com os ratos. É óbvio que a relação dos<br />
genes com características não pode ser tão direta, e que as diferenças entre essas espécies<br />
dependem mais de mecanismos regulatórios diferentes, determinantes dos padrões de expressão<br />
dos mesmos genes durante o desenvolvimento delas, do que de novos genes estruturais.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
987<br />
Uma observação importante que decorre das considerações<br />
acima é que não basta encontrar um ou poucos genes que difiram dos<br />
primatas aos humanos para que se possa atribuir a eles os conhecimentos<br />
que fariam parte da GU, a menos que se possa explicar como<br />
esses genes atuam e como os processos epigenéticos que eles desencadeiam<br />
levam a uma estrutura cerebral específica para a linguagem,<br />
sobretudo uma que contenha conteúdos representacionais específicos.<br />
Além desses problemas de ordem mais geral, as concepções<br />
inatistas também são dificilmente conciliáveis com os resultados de<br />
pesquisas neurocientíficas sobre a natureza do cérebro. Em particular,<br />
ideias segundo as quais o genoma especificaria, explicitamente,<br />
os traços de comportamento ou os conhecimentos dos organismos<br />
sob a forma de representações inscritas no cérebro são implausíveis,<br />
dada a plasticidade do desenvolvimento cerebral dos organismos<br />
complexos 13 .<br />
Também não encontra respaldo a visão do sistema nervoso<br />
que acompanha tipicamente as concepções inatistas, a dita hipótese<br />
da modularidade da mente, que postula a existência de uma série de<br />
módulos mentais independentes uns dos outros, cada um com seus<br />
primitivos e operações, que, no que toca à linguagem, tem uma versão<br />
ancestral nas ideias de Chomsky sobre a existência de um “órgão<br />
da linguagem” independente da cognição geral.<br />
Com efeito, os estudos de Edelman (1992) e de Edelman &<br />
Tononi (2000) sobre o desenvolvimento do sistema nervoso mostram<br />
que este só é determinado pelos genes de modo muito indireto, “de<br />
rascunho”. Seria um sistema auto-organizado, guiado no seu processo<br />
de formação por forças estatisticamente tão variáveis, que nem<br />
gêmeos idênticos têm exatamente a mesma estrutura cerebral: os genes<br />
restringem os processos de desenvolvimento possíveis, mas não<br />
determinam o resultado deles. Isso, por si só, já fala contra a existência<br />
de “microcircuitos” que correspondam a representações inatas<br />
13 Seriam também impossíveis porque não há um número suficiente de genes para determinar<br />
todos esses conteúdos. O número de sinapses cerebrais é de ordem muito maior do que o de<br />
combinações de genes possíveis.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
988<br />
específicas para dados domínios de conhecimentos, como tendem a<br />
crer os adeptos do inatismo cognitivo e linguístico.<br />
Mas há mais. Descobertas neurocientíficas mostram que a<br />
plasticidade do córtex cerebral é incompatível não só com conteúdos<br />
representacionais inatos, mas até com “módulos inatos” para dadas<br />
funções 14 .<br />
Aqui e no que se segue, por impossibilidade de reportar as várias<br />
experiências, me basearei principalmente em Elman et alii<br />
(1998). Mas não consigo deixar de mencionar as experiências de<br />
substituição sensorial levadas a efeito por Bach-y-Rita, (Apud<br />
PHILLIPS, 2006), que ilustram cabalmente o dito acima. Bach-y-<br />
Rita fez com que um rapaz cego há anos voltasse a “ver” com a língua:<br />
uma câmara em sua testa leva o sinal até um dispositivo que<br />
transforma os padrões de claro e escuro em impulsos elétricos, que<br />
estimulam uma grade de eletrodos em sua língua, que carrega a imagem<br />
codificada. Observação de Phillips: “O órgão do sentido que<br />
capta a informação, assim como a forma como ela é levada ao cérebro<br />
[acrescento: e a zona do córtex a que chega, que provavelmente<br />
não deve ser o córtex visual primário] parecem menos importantes<br />
que a informação em si” (PHILLIPS, 2006, p. 71).<br />
Ninguém nega que, apesar da variabilidade individual da estrutura<br />
cerebral, haja tendências consistentes para a alocação do processamento<br />
das funções a dadas áreas corticais. Isso se explica seja<br />
pelas propriedades computacionais de tais áreas, mais adequadas para<br />
umas funções que para outras, seja por fatores temporais do desenvolvimento<br />
(que funções se desenvolvem primeiro, e que áreas<br />
ainda estão livres ou já ocupadas). Assim essas tendências se aplicam<br />
à maioria dos indivíduos, desde que passem pelas experiências<br />
necessárias – que, no caso humano, incluem não só terem estímulos<br />
14 Os críticos conexionistas alegam que as concepções modulares se baseiam em resultados<br />
afasiológicos de adultos e não levam em conta o desenvolvimento. Também se baseiam, segundo<br />
eles, em ideias falsas, como a de que, na gênese de diferentes déficits neurológicos, há<br />
alguns módulos preservados e outros atingidos – quando, para esses autores, em vez de ser<br />
qualitativamente diferentes, tais déficits formam um contínuo, e suas causas são devidas a<br />
processos de nível “mais baixo” do que os relativos a danos em módulos cognitivos inteiros.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
989<br />
visuais, auditivos, táteis etc., mas, para a aquisição da linguagem, estarem<br />
expostos a uma língua durante a infância e ser objeto de cuidados<br />
interpessoais dentro de uma cultura.<br />
Mas essas áreas do cérebro, em vez de serem “módulos” inatos<br />
específicos para um dado domínio cognitivo, no início são apenas<br />
adequadas para o processamento dos inputs típicos de tal domínio, e<br />
só se tornam específicas para ele como resultado de um processo de<br />
modularização, dependente da experiência, capaz de acontecer até<br />
para atividades que ninguém diria que são inatas, como a leitura.<br />
Processo que pode não se dar, ou só de modo diferente do<br />
normal, na falta da experiência adequada, ou em circunstâncias excepcionais,<br />
como problemas durante o desenvolvimento do sistema<br />
nervoso, falta séria de inputs sensoriais, amputações de partes do<br />
corpo, isolamento na infância etc.<br />
Fora isso, o desenvolvimento das funções típicas é muito canalizado,<br />
havendo vários caminhos para soluções equivalentes; e, em<br />
caso de danos cerebrais, outras zonas do cérebro se ocupam das funções<br />
normalmente processadas pela atingida, desde que o dano seja<br />
precoce: por ex., lesões que causariam afasia em adultos não impedem<br />
a aquisição ou recuperação da linguagem por crianças pequenas;<br />
e os déficits provisórios que estas sofrem não correspondem aos<br />
que danos às mesmas áreas causariam em adultos 15 .<br />
Além disso, todas as diferenças entre a estrutura do cérebro<br />
humano e a de outros primatas são questão de grau: há variações de<br />
15 Essas diferenças nos efeitos de danos cerebrais em crianças e adultos são devidas ao fato<br />
de que dadas “aquisições” em uma fase do desenvolvimento são necessárias para outras posteriores.<br />
Por ex., ao passo que, nos adultos, a área de Broca está mais ligada à produção da<br />
linguagem que à compreensão, e a de Wernicke mais à compreensão que à produção, danos<br />
precoces na área de Broca do hemisfério esquerdo têm efeitos leves na produção da linguagem,<br />
enquanto danos na área de Wernicke esquerda interferem mais na linguagem expressiva!<br />
Mas isso se explica porque esses últimos dificultam a análise acústica, o que por sua vez<br />
perturba o estabelecimento dos padrões motores da fala, que precisam de suporte perceptual.<br />
Esses efeitos não ocorrem em adultos com lesões na área de Wernicke esquerda, porque<br />
seus padrões motores para a pronúncia já estão automatizados (ver a longa discussão sobre<br />
isso em Elman et alii, 1998, p. 301-314).
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
990<br />
tamanho absoluto e relativo de áreas homólogas, e também na distância<br />
entre os subsistemas, mas não há evidências de que os humanos<br />
tenham desenvolvido novos tipos de neurônios, novas formas de<br />
circuitos, novas camadas corticais ou novos neurotransmissores sem<br />
correspondentes no cérebro dos primatas. Onde residiria o substrato<br />
para um órgão de linguagem apenas humano?<br />
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VASCONCELLOS, Z. Alguns subsídios interdisciplinares para o<br />
tratamento da questão da natureza cognitiva da linguagem. Alfa: revista<br />
de linguística, nº 54(2), 2010, no prelo.
1. Introdução<br />
EXPRESSÃO E SENTIDOS<br />
NO TRATAMENTO DA APICULTURA<br />
POR VARRÃO E VIRGÍLIO<br />
Matheus Trevizam (UFMG)<br />
matheustrevizam2000@yahoo.com.br<br />
Propomo-nos a seguir, partindo da leitura comparativa de<br />
passagens afins das obras agrárias de Varrão reatino (De Re Rustica)<br />
e Virgílio (Geórgicas), apontar, do ponto de vista lexical e estilístico,<br />
algumas particularidades da escrita desses contemporâneos<br />
nas Letras latinas do séc. I a. C. Em princípio, pode-se grosseiramente<br />
dizer que estamos, em ambos os casos, diante de textos afins<br />
à vertente técnica da literatura antiga, por isso entendendo todo um<br />
corpus literário ocupado, entre outras possíveis funções, também de<br />
abordar domínios do saber humano com objetivos mais ou menos<br />
sistemáticos de sua exposição ao público. 1 Tal postura de veicular<br />
ordenadamente informações atinentes aos mais variados ramos do<br />
saber produzidos pelas culturas – gramática, retórica, filosofia, agropecuária,<br />
caça, pesca, estratégia militar... – não se deixa restringir<br />
por modelos genéricos estanques, pois que, no caso das Geórgicas,<br />
assistimos a semelhantes desenvolvimentos pelo viés da poesia<br />
didática, enquanto, no De Re Rustica III, sob a forma dialógica.<br />
Isso significa, então, alguma abertura para divisarmos, apesar<br />
da suposta e “imutável” tecnicidade de obras como o De Re<br />
Rustica e as Geórgicas – inclusive no detalhe de se veicularem, em<br />
ambas, tópicos miúdos relativos às partes da apicultura –, diferenças<br />
constitutivas nos planos do vocabulário e do agenciamento<br />
formal dos recursos de linguagem/ estilo, cujas motivações, em última<br />
instância, enraízam-se não só nas matrizes genéricas em pauta<br />
a cada vez de escrita, mas ainda, fundamentalmente, nas dinâmicas<br />
1 Cf., sobre a característica de veiculação de conteúdos da poesia didática antiga, as seguintes<br />
palavras de Zélia de Almeida Cardoso (2003, p. 102): "Assim sendo, poderia parecer estranha<br />
a utilização da poesia para transmitir o saber. Em Roma, contudo – como, de resto,<br />
também havia ocorrido na Grécia – foi frequente essa prática".
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
994<br />
de recepção de início previstas para um ou outro texto. Desse modo,<br />
se é verdade que a dicção dialógica, com frequência utilizada<br />
nas letras antigas com vistas à abordagem técnica de assuntos em<br />
importantes âmbitos como a filosofia e a retórica, por exemplo,<br />
pautou-se amiúde por parâmetros como os da oralidade e de alguma,<br />
ou razoável, elaboração da linguagem, 2 sem, contudo, descuidar<br />
do foco principal da informatividade, o mesmo não se pode categoricamente<br />
afirmar da assim dita “poesia didática” greco-latina.<br />
Nesse último gênero textual, portanto, encontram-se ora o privilégio<br />
da face informativa – caso inegável, segundo alguns críticos e o<br />
próprio poeta, do acurado poema filosófico identificado com o De<br />
Rerum Natura –, 3 ora de outros níveis semânticos concomitantes,<br />
como o da metáfora e o da proposição de intrincados jogos metalinguísticos<br />
para leitores cultos. 4<br />
2. Análises comparativas<br />
De início, direcionamo-nos para o tratamento do tema da localização<br />
da colmeia em Varrão (III XVI 12-17) e Virgílio (IV 18-<br />
32). Do ponto de vista lexical, assim, destacamos os apelativos do<br />
ninho de abelhas em um e outro autor: no primeiro, pois, recorre-se,<br />
internamente ao âmbito doravante circunscrito, às palavras mellitona,<br />
mellarium, melitrophium, aluarium e aluus; mas, no segundo, a<br />
sedes (v. 8), statio (v. 8), stabulum (v. 14), aluarium (v. 34), tectum<br />
(v. 38), lar (v. 43) e cubile (v. 45). Ora, como já observamos em<br />
outra ocasião de posicionamento teórico (Cf. TREVIZAM, 2006, p.<br />
2 Cf., sobre a literariedade dos diálogos platônicos, especificamente, as seguintes palavras<br />
de Bloom (2004, p. 45): Não tenho competência para avaliar Platão como filósofo, mas seus<br />
diálogos, no que têm de melhor, são poemas dramáticos absolutamente singulares, sem par<br />
na história da literatura.<br />
3 Cf. Lucrécio, De rerum natura I 930-931: Primum, quod magnis doceo de rebus, et artis/ relligionum<br />
animum nodis exsoluere pergo,/ deinde, quod obscura de re tam lucida pango/ carmina,<br />
musaeo contingens cuncta lepore. – “Primeiro, porque ensino sobre grandes coisas, e<br />
dos estreitos/ nós das religiões continuo a soltar teu espírito,/ depois, porque, sobre assunto<br />
obscuro, tão claros versos/ canto, contagiando tudo com o encanto das Musas” (aqui, citado<br />
em minha tradução).<br />
4 A Ars amatoria ovidiana enquadra-se nesta última descrição, pois, nela, além da camada<br />
superficial dos supostos ensinamentos galantes, veem-se desenvolvimentos relacionados ao<br />
questionamento da poética elegíaca “ortodoxa” (TREVIZAM, 2003, p. 109 ss).
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
995<br />
259ss), as expressões varronianas sem dúvida pendem para o campo<br />
de uma distinta tecnicidade: em três delas, de fato, notam-se raízes<br />
gregas ou latinas (mel-) evocativas do principal produto sintetizado<br />
por esses animais. Por outro lado, enquanto aluarium, dicionarizado<br />
com o sentido inicial de “ninho de abelhas”, também se<br />
enquadra nesta definição de recorrência a itens lexicais diretamente<br />
oriundos de uma zona do vocabulário técnico em latim, o mesmo<br />
não se pode dizer de aluum, pois, com seus originais significados<br />
de “entranhas” ou “intestinos”, furta-se a esse cerrado limite.<br />
Virgílio, segundo vimos, além de por aluarium, referiu-se ao<br />
mesmo objeto da vida agrícola por sedes (“assento”, “morada”...),<br />
statio (“local de parada”, “posto”, “acampamento”...), stabulum<br />
(“morada”, “hospedaria”, “estábulo”...), tectum (“teto”, “casa”,<br />
“covil”...) e cubile (“leito”, “quarto de dormir”, “toca”...), em preferencial<br />
recorrência a vocabulário de emprego muito vasto no idioma.<br />
Em outras palavras, se, com dizer aluarium, por força remeteríamos<br />
o ouvinte ao universo dos antigos apicultores romanos, o<br />
mesmo não se dá com os imprecisos tectum, cubile, stabulum e, sobretudo,<br />
sedes e statio, termos, nos dois últimos casos, sequer capazes<br />
de garantir-nos sempre a vinculação com a ideia de um “abrigo”<br />
contextualmente identificável, por vezes, com o espaço de<br />
recolhimento das abelhas.<br />
Aqui preferimos, apesar da aparente “desvantagem” de Virgílio<br />
no quesito da acuidade técnica, compreender o direcionamento<br />
dado por um e outro autor ao plano lexical da apicultura em conjunto<br />
com sua inserção nos âmbitos genérico e receptivo dos textos.<br />
Ora, em princípio corresponde à poesia, nos termos de Jakobson<br />
(1969, p. 118-162), evidenciar a mensagem/ modus dicendi, não,<br />
necessariamente, meros conteúdos. Assim, o fato de muitas das expressões<br />
designativas da “morada” das abelhas poderem estenderse<br />
também para a menção a outros animais ou ao homem apontanos<br />
para uma espécie de afrouxamento poético de barreiras entre<br />
todos os domínios da vida numa obra como as Geórgicas, em que,<br />
a saber, videiras novas necessitam, à maneira de jovens humanos,<br />
serem “educadas” pelo agricultor (Cf. VIRGILE, II, 362-370); homens<br />
e animais, ao longo do livro III, condoem-se dos mesmos males<br />
do amor e da peste; indivíduos de certas sociedades, conforme
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
996<br />
adiante veremos, manifestam profunda reverência por seus reis...<br />
semelhantemente às abelhas (Cf. VIRGILE, IV, 210-218). Com isso<br />
desejamos apontar, num poema didático no qual a tecnicidade<br />
agrícola, embora não ausente, presta-se com frequência a pano de<br />
fundo para a derivação de sentidos num nível que se poderia dizer<br />
“metafórico”, as prováveis e justificadas motivações do poeta em<br />
fazer-se, sensivelmente, mais generalizante.<br />
Nesse mesmo aspecto de conformação estrutural da obra e<br />
dos objetivos de escrita, Varrão, por sua vez, mostra-se, como bom<br />
praticante do dialogismo no sentido genérico do termo, eficaz e, até<br />
certo ponto, preciso comunicador de saberes atinentes ao domínio<br />
agrário romano (Cf. SKYDSGAARD, 1968, p. 90). Por sinal, as situações<br />
interativas ficcionais a envolverem as personagens de seus<br />
diálogos rústicos correspondem, inalteradamente, a encontros informais<br />
para que se exponham, segundo o desejo e os conhecimentos<br />
mesmos de cada interlocutor, as sucessivas partes de muitas<br />
práticas agrícolas. Assim, parece-nos claro que, diante de personagens<br />
desejando, inclusive, aprender para pôr em prática com eficácia,<br />
mostrar-se direto e claro na apresentação de conteúdos corresponde<br />
a uma importante finalidade dos três diálogos agrários de<br />
Varrão reunidos sob a rubrica do De Re Rustica:<br />
Mas, devido ao luxo”, disse ele, “de certo modo há um festim diário<br />
dentro dos portões de Roma. Acaso ainda L. Abúcio, homem, como<br />
sabeis, grandemente douto, cujos livros são à maneira dos de Lucílio,<br />
não dizia que sua propriedade no território de Alba sempre era superada<br />
nas criações pela casa de campo? O campo, com efeito, rendia menos<br />
de dez mil sestércios, mas a casa de campo mais de vinte. Ele<br />
mesmo que, se tivesse adquirido uma casa de campo junto ao mar, onde<br />
o desejasse, haveria de receber mais de cem mil sestércios dessa casa<br />
de campo. Pois bem! M. Catão, há pouco, quando recebeu a tutela<br />
de Luculo, não vendeu os peixes de seus tanques por quarenta mil sestércios?”<br />
Áxio disse: “Meu Mérula, recebe-me, por favor, como aluno<br />
da criação na casa de campo. 5<br />
5 Cf. Varrão, De Re Rustica III II 18: Sed propter luxuriam, inquit, quodam modo epulum cotidianum<br />
est intra ianuas Romae. Nonne item L. Abuccius, homo, ut scitis, apprime doctus, cuius<br />
Luciliano charactere sunt libelli, dicebat in Albano fundum suum pastionibus semper uinci<br />
a uilla? Agrum enim minus decem milia reddere, uillam plus uicena. Idem secundum mare,<br />
quo loco uellet, si parasset uillam, se supra centum milia e uilla recepturum. Age, non M. Cato<br />
nuper, cum Luculli accepit tutelam, e piscinis eius quadraginta milibus sestertiis uendidit
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
997<br />
Um pormenor, por outro lado, para que atentou Cesidio de<br />
Meo (1986, p. 50ss) ao descrever os traços da linguagem técnica<br />
agrícola em Roma também pode auxiliar-nos a avançar um pouco<br />
na compreensão das escolhas lexicais de Varrão e Virgílio teóricos<br />
da apicultura. Trata-se da incorporação de helenismos, que não se<br />
restringe, como observa, a um universo experiencial como o da agropecuária<br />
antiga, mas “invade”, por assim dizer, muitos domínios<br />
do saber nos quais os gregos, tantas vezes adotados em Roma como<br />
modelos e referenciais teóricos, fizeram sentir as marcas da própria<br />
cultura. Notamos, com efeito, que, nas passagens citadas, eles são<br />
mais visíveis em Varrão [haja vista, por exemplo, os nomes mellitona<br />
e melitrophium, em cuja composição adentram, além da raiz<br />
grega para “mel/ abelha” – méli- –, aquela, no segundo caso, para<br />
“nutrição” – tropheîon –, serpyllon (hérpyllon – “serpão”), cytisum<br />
(kýtisos – “codesso”) e cyperum (kýpeiron – “junco”)] e, bem menos,<br />
em Virgílio [além de Eurus – Eûros, vento do leste, v. 29 –,<br />
unicamente se apresentam, nos versos citados, serpylla, plural neutro<br />
do supracitado serpyllon varroniano – v. 31 –, e thymbrae – v.<br />
31 –, “segurelha”].<br />
Se tivéssemos de ensaiar alguma interpretação para estes<br />
dados, primeiramente lembraríamos que a língua poética romana,<br />
como bem notou Kroll (1988, p. 6 ss), foi, na verdade, bastante<br />
permeável ao influxo linguístico grego, em níveis estruturais tão<br />
variados quanto, além do léxico, os da morfologia e, mesmo, da<br />
sintaxe; não seria obviamente correto, assim, restringir os helenismos<br />
de qualquer espécie a uma “exceção” das linguagens técnicas<br />
em Roma.<br />
Contudo, os motivos de sua entrada na dicção poética latina<br />
correspondem, em geral, a outros distintos daqueles a lhes justificarem<br />
a presença num prosador técnico como Varrão: pautados pela<br />
necessidade de se fazerem mais refinados do que os usuários do latim<br />
vinculados à simples linguagem de uso do dia-a-dia, os poetas,<br />
muitas vezes, tiveram em recursos como os estrangeirismos e os arcaísmos<br />
uma via possível de acessar planos linguísticos nobres (Cf.<br />
KROLL, 1988, p. 6-24). Por sua vez, a incorporação de vocabulário<br />
piscis? Axius, Merula mi, inquit, recipe me quaeso discipulum uillaticae pastionis (aqui, citado<br />
em minha tradução).
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
998<br />
estrangeiro oriundo de um domínio técnico qualquer – filosofia, retórica,<br />
agricultura, medicina... – para o corpo de obras antes de tudo<br />
pautadas pelo princípio-mestre da tecnicidade expositiva parecenos,<br />
sobretudo, manter nexos com a necessidade de fazer-se preciso:<br />
como dar-se a entender inequivocamente, ao introduzir novos<br />
saberes em determinado ambiente que não dispunha deles no mesmo<br />
grau (ou na mesma maneira) de desenvolvimento, à revelia da<br />
entrada de conceitos, tantas vezes, a exigirem a segura “ancoragem”<br />
em vocábulos do primitivo idioma de veiculação cultural?<br />
Dois nomes do ninho de abelhas que dissemos acima utilizados por<br />
Varrão – mellitona e melitrophium –, parecem-nos corresponder a<br />
tais direcionamentos de “preservação de sentidos”, na medida em<br />
que, aludindo ele a objetos fundamentais ao trato das abelhas por<br />
nomes de imediato evocativos dos primitivos vocábulos gregos, o<br />
autor, que sabemos amiúde ter derivado saberes técnicos mesmo de<br />
Aristóteles e Teofrasto, entre outros, faz-se inequívoco intérprete<br />
do alheio (Cf. HEURGON, 2003, p. XXVI ss).<br />
Os trechos seguintes que tomamos de Varrão (III XVI 8-9) e<br />
Virgílio (IV 67-87) para análise correspondem aos que se poderiam<br />
dizer correspondentes à “batalha das abelhas”. De início, assim, em<br />
Virgílio, fazemos atentar para o caráter obviamente épico desta<br />
passagem: trata-se afinal de apresentar, no tradicional metro da poesia<br />
heroica antiga – hexâmetros datílicos –, um episódio de enfrentamento<br />
entre diferentes “exércitos” liderados por diferentes “reis”.<br />
Para o leitor um pouco familiarizado com a literatura clássica, tal<br />
descrição sumária corresponde exatamente ao que assistimos nas<br />
obras de dois de seus maiores expoentes, Homero, que retratou de<br />
maneira fundadora na Ilíada a sangrenta guerra entre os gregos, liderados<br />
por Agamêmnon, e os troianos, liderados por Heitor, e<br />
Virgílio, o qual, na segunda parte da Eneida (cantos VII-XII), mostra-nos<br />
com vivacidade as lutas entre o príncipe Eneias e os itálicos<br />
de Turno.<br />
Várias expressões virgilianas da passagem, num nível mais<br />
miúdo de leitura, correspondem, ainda, ao imaginário da épica antiga:<br />
chamamos a atenção, especificamente, para trepidantia corda –<br />
“palpitantes corações”, v. 69-70; Martius ille canor – “aquele som<br />
marcial”, v. 71; sonitus tubarum – “barulhos das tubas”, v. 72; ipsa
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
999<br />
ad praetoria – “junto aos acampamentos mesmos”, v. 75; magnisque<br />
clamoribus – “e com grandes gritos”, v. 76; aethere in alto –<br />
“no alto éter”, v. 78; non densior aëre grando,/ nec de concussa<br />
tantum pluit ilice glandis – “não mais basto do céu o granizo,/ nem<br />
de uma azinheira batida chove tanta glande”, v. 80-81; per medias<br />
acies – “pelo meio dos exércitos”, v. 82; dare terga – “dar as costas”<br />
(em fuga), v. 85. Acreditamos em que a recorrência a semelhante<br />
vocabulário contribui em si para dar realce estilístico ao trecho<br />
em pauta: afinal, trata-se de ressonâncias de um nível expressivo<br />
e poético mais sublime (o da poesia heroica, não didática!) que<br />
não se restringem à coincidência métrica, ao vago uso do mesmo<br />
tema guerreiro, ao tom movimentado advindo da própria situação<br />
de peleja, mas, fundamentalmente, trazem à tona, de maneira impressiva,<br />
evidentes reminiscências do mundo em “maior escala” característico<br />
de produções como as que assinalamos acima para Homero<br />
e, na imediata sequência cronológica de escrita das Geórgicas,<br />
para Virgílio mesmo.<br />
Dentre tais expressões, o recurso a um Martius canor e a aether/aër,<br />
por “céu”, parecem-nos corresponder às três mais importantes<br />
contribuições para o efeito nobilitador que aqui desejamos<br />
destacar. De fato, enquanto, nos demais casos, sobretudo o contexto<br />
e sua ocorrência conjunta parecem produzir sentidos inequivocamente<br />
dispersores da banalidade, o adjetivo Martius, decerto vinculado<br />
ao deus Marte (Mars), e as denominações helenizantes “éter”/<br />
“ar” para designar o firmamento revestem-se, mesmo que tomados<br />
em si, de inegável aura de nobreza. Bastando-nos o que se disse a<br />
respeito de Martius, aether e aër, por outro lado, enquadram-se em<br />
certa listagem proposta por Leumann, quando explica a seletividade<br />
do léxico poético romano (Cf. LEUMANN, 1988, p. 176):<br />
No âmbito dos substantivos, o fenômeno mais patente é o emprego<br />
de termos substitutivos dos nomes “específicos”, os kýria onómata.<br />
Alguns exemplos bastarão. Para dei: diui, caelestes, caelites, caelicolae,<br />
superi; para pater: parens, genitor, sator; para mater: genetrix, creatrix;<br />
para filius: gnatus, illo satus, generatus, quo sanguine creatus,<br />
proles; para caelum: aether, aër, aethra.<br />
Por outro lado, outros recursos contribuem para atribuir ao<br />
texto Virgiliano dessa passagem “bélica” o vigor épico que lhe cabe:<br />
destacamos, assim, o acúmulo de verbos de ação [exierint – “ti-
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
1000<br />
verem saído”, v. 67/ increpat – “excita”/ coeunt – “juntam-se”, v.<br />
73/ exacuunt – “afiam”, v. 74/ aptant – “preparam”, v. 74/ miscentur<br />
– “misturam-se”, v. 76/ uocant – “chamam”, v. 76/ erumpunt –<br />
“irrompem”, v. 77/ concurritur – “avança-se contra”, v. 78/ glomerantur<br />
– “enovelam-se”, v. 79/ cadunt – “caem”, v. 80/ pluit –<br />
“chove”, v. 81/ uersant – “revolvem”, v. 83/ dare (terga) – “dar as<br />
costas”, v. 85] e a sequenciação corrida em duas grandes partes interligadas<br />
(v. 67-76/ 77-85), nas quais o fluxo contínuo dos eventos<br />
se faz, além de pela farta recorrência a et e -que aditivos, ainda pela<br />
eventual presença de outras partículas coesivas (nam – “com efeito”,<br />
v. 67/ tum – “então”, v. 73/ ergo – “logo”, v. 77). Sintomaticamente,<br />
a impressão de movimento e, mesmo, grandeza cessa na<br />
leitura desses versos ao depararmos o par 86-87, em que, segundo a<br />
observação dos críticos (Cf. TREVIZAM, 2005, p. 190-191), reconduzem-se<br />
os insetos a seu posto diminuto no Universo:<br />
hi motus animorum atque haec certamina tanta<br />
pulueris exigui iactu compressa quiescunt.<br />
estes movimentos do espírito e estes tamanhos combates<br />
com um jato de pó escasso aquietam reprimidos (minha tradução).<br />
Isso nos permite, como desejam alguns estudiosos, 6 ver em<br />
todo o episódio da “batalha das abelhas” efeitos de ridicularização<br />
parodística dos insetos, como se, na verdade, a grandeza de tom expressa<br />
nos versos imediatamente anteriores a esse desfecho inesperado<br />
viesse revelar-se irônica e, de fato, insustentável...<br />
A passagem que assim também denominamos em Varrão,<br />
em parte por alguma comodidade analítica – pois não se trata, a rigor,<br />
de uma parte da obra do escritor técnico tão coesa ou óbvia<br />
quanto a virgiliana, apresenta distintas diferenças quando comparada:<br />
Regem suum secuntur, quocumque it, et fessum subleuant, et si<br />
nequit uolare, succollant, quod eum seruare uolunt. Neque ipsae sunt<br />
inficientes nec non oderunt inertes. Itaque insectantes ab se eiciunt fucos,<br />
quod hi neque adiuuant et mel consumunt, quos uocificantes plures<br />
persecuntur etiam paucae. Extra ostium alui opturant omnia, qua<br />
6 Cf. Dalzell (1996, p. 119): The picture of the tiny bees, described with all the earnestness of<br />
an ethnographic treatise, must surely be intended to raise a smile. The description of the battle<br />
of bees is the most obvious case of mock-heroic intent.
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uenit inter fauos spiritus, quam erithacen appellant Graeci. Omnes ut<br />
in exercitu uiuunt atque alternis dormiunt et opus faciunt pariter et ut<br />
colonias mittunt, iique duces conficiunt quaedam ad uocem ut imitatione<br />
tubae. Tum id faciunt, cum inter se signa pacis ac belli habeant. 7<br />
Seguem seu rei para onde quer que vá; cansado, auxiliam; se não<br />
pode voar, carregam nas costas, porque desejam salvá-lo. Nem elas<br />
mesmas são ociosas nem não odeiam os inertes. E assim, expulsam de<br />
junto delas os zangões perseguindo, porque não ajudam e consomem<br />
mel; fazendo eles muito barulho, mesmo poucas, perseguem grande<br />
número deles. Fora da entrada da colmeia selam tudo, por onde vem o<br />
ar que permeia os favos, com um material chamado erithace pelos gregos.<br />
Todas vivem como no exército, dormem e trabalham alternadamente,<br />
do mesmo modo, também enviam como que colônias, e seus<br />
chefes dão certas ordens com a voz como se imitassem uma trombeta.<br />
Agem assim quando têm sinais de paz e de guerra entre si.<br />
Consideramos, dessa maneira, a frase extra ostium a appellant<br />
Graeci uma interpolação que pouco tem a ver com a belicosidade,<br />
ou, ao menos, com a combatividade das abelhas varronianas.<br />
Contudo, quando se fala, no início, de uma fidelidade incondicional<br />
aos “reis” da colmeia – algo que nos recorda de pronto o espírito<br />
hierárquico de adesão de suas correlatas em Virgílio – e da expulsão<br />
dos zangões barulhentos e inertes, além, em seguida, da vida<br />
“militar” dos insetos, em que não faltam turnos de vigília, “colônias”,<br />
ordens de chefes e até “trombetas”, aproximamo-nos inequivocamente<br />
do mesmo plano da experiência tratado naquele poema<br />
didático.<br />
A intermediação do sóbrio interlocutor varroniano, porém<br />
(Appius), faz com que esta passagem assuma sentidos, antes de<br />
mais nada, descritivos: não se trata de apresentar uma cena com vivacidade<br />
e a recorrência a concretos efeitos imagéticos e, até, sonoros,<br />
8 mas, sobretudo, de relatar de forma apenas direta o comportamento<br />
dos insetos em situações de desavença. Linguisticamente,<br />
em concordância com um subentendido sujeito identificável como<br />
apes (“abelhas”), surgem quase sempre, com monotonia, verbos<br />
conjugados na terceira pessoa do singular do presente do indicativo,<br />
perfazendo a série de atividades caracterizadoras, na fala de Ápio,<br />
7 Cf. Varrão, De re rustica III XVI 8-9 (aqui, citado em minha tradução).<br />
8 Cf., no v. 72 de Virgílio (et uox/ auditur fractos sonitus imitata tubarum – “e uma voz/ é ouvida<br />
à imitação dos barulhos retumbantes de uma tuba” – minha tradução), a marcada aliteração<br />
em “t”, como que a mimetizar o toque marcial de uma trombeta.
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da disciplina e industriosidade das abelhas. Algo assim, por outro<br />
lado, não ocorria na dinâmica dicção de Virgílio, dada a própria<br />
mudança dos sujeitos associáveis a cada verbo conjugado de emprego,<br />
alguma alternância entre a voz passiva e a ativa e, mesmo,<br />
no emprego dos tempos... 9 Do ponto de vista lexical, da mesma<br />
forma que em Virgílio, surgem obviamente expressões evocativas<br />
do âmbito humano da guerra – regem, ut in exercitu, ut colonias,<br />
duces, ut imitatione tubae, signa pacis et belli... –, mas destacamos,<br />
aqui, a diferenciação de planos operada pelo escritor técnico ao<br />
deixar claro, por três vezes (“como no exército”/ “como que colônias”/<br />
“como se imitassem uma trombeta”), que compara, não identifica,<br />
práticas animais com culturais; ainda, a menção em grego ao<br />
erithace, um dos produtos das abelhas com o mel e o própolis, retoma<br />
o viés precisamente técnico do léxico varroniano, tal como<br />
antes o vimos.<br />
Isso posto, encontramos-nos em condições de divisar, com<br />
base nos exemplos tratados, algo do desenho lexical e estilístico das<br />
obras agrárias de Varrão e Virgílio. No primeiro, assim, parecemnos<br />
sobressair, em cumprimento da vocação dialógica e informativa<br />
do diálogo, uma maior precisão técnica e a linearidade comunicativa;<br />
no segundo, por sua vez, tendo o autor optado por fazer poesia<br />
didática “metafórica”, ou seja, não de todo centrada em seus conteúdos<br />
ostensivos, destaca-se a beleza de construção do todo, em detrimento,<br />
muitas vezes, da mera face expositiva de saberes técnicos.<br />
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9 Assim, exierint (v. 67) pressupõe como sujeito um subentendido apes, bem como exacuunt<br />
(v. 74) e aptant (v. 74), entre outros verbos; miscentur (v. 76) e glomerantur (v. 79) também,<br />
mas, nestes casos, com a introdução variada da voz passiva; pluit (v. 81) e subegit (v. 85),<br />
por sua vez, têm como respectivos sujeitos tantum glandis (v. 81) e grauis uictor (v. 84-85).
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />
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