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FACULDADE CÁSPER LÍBERO<br />

MESTRADO EM COMUNICAÇÃO<br />

NARRATIVAS DA VIDA REAL E SIGNO DA COMPREENSÃO<br />

Histórias de Vi<strong>da</strong><br />

AGNALDO JOSÉ DOS SANTOS<br />

São Paulo-SP — 2010


AGNALDO JOSÉ DOS SANTOS<br />

NARRATIVAS DA VIDA REAL E SIGNO DA COMPREENSÃO<br />

Histórias de Vi<strong>da</strong><br />

Dissertação apresenta<strong>da</strong> ao Programa de<br />

Pós-graduação Stricto Sensu em<br />

Comunicação <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong>de <strong>Cásper</strong> Líbero,<br />

área de concentração Comunicação na<br />

Contemporanei<strong>da</strong>de e Linha de pesquisa<br />

Produtos Midiáticos: Jornalismo e<br />

Entretenimento, como requisito parcial<br />

para a obtenção do título de mestre em<br />

Comunicação, sob a orientação do Prof.<br />

Dr. Dimas A. Künsch.<br />

Facul<strong>da</strong>de <strong>Cásper</strong> Líbero – Mestrado em Comunicação<br />

São Paulo-SP — 2010<br />

2


Dos Santos, Agnaldo José<br />

Narrativas <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>real</strong> e <strong>signo</strong> <strong>da</strong> <strong>compreensão</strong> / Agnaldo José dos<br />

Santos -- São Paulo, 2010.<br />

158 f. : il. ; 30 cm.<br />

Orientador: Prof. Dr. Dimas A. Künsch<br />

Dissertação (mestrado) – Facul<strong>da</strong>de <strong>Cásper</strong> Líbero, Programa de<br />

Mestrado em Comunicação<br />

1. Comunicação. 2. Jornalismo. 3. Histórias de vi<strong>da</strong>. I. Dos Santos,<br />

Agnaldo José. II. Facul<strong>da</strong>de <strong>Cásper</strong> Líbero, Programa de Mestrado em<br />

Comunicação. III. Título.<br />

3


ATA DA BANCA DE DEFESA<br />

4


5<br />

Para Joaquim e Alice


Agradeço o carinho e os ensinamentos que me foram <strong>da</strong>dos pelo<br />

meu orientador Prof. Dr. Dimas A. Künsch, aos professores do Mestrado<br />

<strong>da</strong> Facul<strong>da</strong>de <strong>Cásper</strong> Líbero e aos meus amigos do grupo de pesquisa<br />

“Comunicação, Jornalismo e Epistemologia <strong>da</strong> Compreensão”.<br />

6


RESUMO<br />

Esta dissertação abor<strong>da</strong> o <strong>signo</strong> <strong>da</strong> <strong>compreensão</strong> na construção de histórias de<br />

vi<strong>da</strong>. A partir <strong>da</strong>s reflexões do grupo de pesquisa “Comunicação, jornalismo e<br />

epistemologia <strong>da</strong> <strong>compreensão</strong>”, <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong>de <strong>Cásper</strong> Líbero, do qual o autor faz parte,<br />

propõe-se uma prática compreensiva do jornalismo e, especificamente, as histórias de<br />

vi<strong>da</strong> como caminho de <strong>compreensão</strong> <strong>da</strong>s pessoas e do mundo. O termo “<strong>compreensão</strong>”<br />

assume, neste trabalho, um estatuto cognitivo, não sendo ela vista, portanto, meramente<br />

no nível <strong>da</strong>s relações intersubjetivas. Um estatuto cognitivo significa que, pela via <strong>da</strong><br />

atitude compreensiva, o sujeito do conhecimento, como aqui se propõe, está mais<br />

habilitado não a <strong>da</strong>r respostas (fecha<strong>da</strong>s) sobre o mundo, mas a trilhar caminhos mais<br />

profundos no conhecimento. Tomando como objeto empírico de estudo um conjunto de<br />

histórias de vi<strong>da</strong> publica<strong>da</strong>s pelos jornais O Estado de S. Paulo, Correio Popular e<br />

Gazeta do Cambuí, tendo, como referencial teórico, o pensamento de autores como<br />

Edgar Morin, Joseph Campbell, Edvaldo Pereira Lima, Cremil<strong>da</strong> Medina e Dimas<br />

Kunsch, e concluindo com um trabalho autoral, esta dissertação apresenta as <strong>narrativas</strong><br />

complexo-compreensivas como forma de <strong>compreensão</strong> e de transformação do mundo.<br />

Palavras-chave: Comunicação. Jornalismo. Narrativas <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>real</strong>. Histórias de vi<strong>da</strong>.<br />

Epistemologia <strong>da</strong> <strong>compreensão</strong>.<br />

ABSTRACT<br />

This lecture approaches the <strong>signo</strong> f comprehension on history of live.<br />

Considering researches studied by “Communication, journalism and epistemology of<br />

comprehension” group, from Casper Líbero College, which one the author takes part, is<br />

suggested na intelligible practice of the journalism and, in a specific way, the histories<br />

of live as a way of understanding people and worlwide. The “comprehension” term<br />

assumes in this work a cognitive Law means that, by the path of comprehensive<br />

attitude, the subjetc matter of knowledge, proposed here, is more qualified not to give<br />

answers (closed) about worlwide, but to follow wider pathes inside the knowledge.<br />

Taking as empiric object of studying an amount of histories of live published by<br />

journals like O Estado de S. Paulo, Correio Popular and Gazeta do Cambuí, based on<br />

Edgar Morin, Joseph Campbell, E<strong>da</strong>valdo Pereira Lima, Cremil<strong>da</strong> Medina and Dimas<br />

Kunsch thoughts, and concluding with an authoral search, this lecture shows the<br />

narratives complex-comprehensive as way of understanding and changing worldwide.<br />

Key-words: Communication. Journalism. Narratives of <strong>real</strong> live. Histories of live.<br />

Epistemology of comprehension.<br />

7


SUMÁRIO<br />

INTRODUÇÃO ................................................................................................... 11<br />

CAPÍTULO I<br />

As <strong>narrativas</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>real</strong> numa socie<strong>da</strong>de em constante mu<strong>da</strong>nça ............... 17<br />

1. A liquidez no cotidiano <strong>da</strong> contemporanei<strong>da</strong>de ................................................ 18<br />

2. De uma socie<strong>da</strong>de de massa para um mundo virtual ........................................ 26<br />

3. O neotribalismo na pós-moderni<strong>da</strong>de ............................................................... 33<br />

4. O mito e as <strong>narrativas</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>real</strong> .................................................................... 44<br />

5. O Jornalismo Transformativo e a <strong>compreensão</strong> <strong>da</strong> <strong>real</strong>i<strong>da</strong>de ........................... 49<br />

CAPÍTULO II<br />

As <strong>narrativas</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>real</strong> e o pensamento complexo-compreensivo .............. 56<br />

1. Por um pensamento que tece e entretece ......................................................... 57<br />

2. As histórias de vi<strong>da</strong> nos jornais .................................................................... 66<br />

2.1 Que são histórias de vi<strong>da</strong>? ....................................................................... 66<br />

2.2 O jornal O Estado de S. Paulo e suas histórias de vi<strong>da</strong> ............................ 67<br />

2.3 O jornal Correio Popular .......................................................................... 72<br />

2.4 A Gazeta do Cambuí ................................................................................ 77<br />

3. História de vi<strong>da</strong> de O Estado de S. Paulo ....................................................... 85<br />

4. História de vi<strong>da</strong> do jornal Correio Popular ..................................................... 92<br />

5. História de vi<strong>da</strong> do jornal Gazeta do Cambuí ................................................. 97<br />

CAPÍTULO III<br />

A experiência de narrar a partir do <strong>signo</strong> <strong>da</strong> <strong>compreensão</strong> ............................ 101<br />

1. Introdução ...................................................................................................... 102<br />

2. Frente a frente com Pelé ................................................................................. 108<br />

3. O jovem do brechó ......................................................................................... 116<br />

4. O Marechal <strong>da</strong> música sertaneja ..................................................................... 120<br />

CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................. 124<br />

REFERÊNCIAS ................................................................................................. 128<br />

ANEXOS .............................................................................................................. 131<br />

8


Compreender...<br />

“Senhor, fazei-me instrumento de vossa paz.<br />

Onde houver ódio, que eu leve o amor.<br />

Onde houver ofensa, que eu leve o perdão.<br />

Onde houver discórdia, que eu leve a união.<br />

Onde houver dúvi<strong>da</strong>, que eu leve a fé.<br />

Onde houver erro, que eu leve a ver<strong>da</strong>de.<br />

Onde houver desespero, que eu leve a esperança.<br />

Onde houver tristeza, que eu leve a alegria.<br />

Onde houver trevas, que eu leve a luz.<br />

Ó Mestre, fazei que eu procure mais<br />

Consolar, que ser consolado.<br />

Compreender, que ser compreendido.<br />

Amar, que ser amado.<br />

Pois, é <strong>da</strong>ndo que se recebe.<br />

É perdoando que se é perdoado<br />

E é morrendo que se vive para a vi<strong>da</strong> eterna.”<br />

9<br />

Francisco de Assis


Joaquim e Alice<br />

Quando fecho os olhos e penso na minha infância, lembro-me de duas pessoas<br />

que não estão mais neste mundo: Joaquim e Alice. O primeiro, pai de minha mãe; a<br />

segun<strong>da</strong>, mãe de meu pai. Joaquim, mineiro de São Sebastião do Paraíso, além de<br />

especialista em pesca, era bom de prosa. Adorava reunir os netos junto ao calor do<br />

fogão de lenha e contar histórias.<br />

Num inverno, ele pôs umas batatas-doce no meio <strong>da</strong>s cinzas com algumas brasas<br />

avermelha<strong>da</strong>s e começou:<br />

Um dia, eu estava na beira do Rio Pardo, pescando. Como fazia muito frio, levei<br />

um garrafão de pinga para tomar um gole vez em quando. De repente, olhei pra<br />

trás e vi uma sucuri enorme, devia ter uns dez metros, olhando pra mim, com<br />

uma rã presa na boca. Meu coração disparou. Pensei que ela iria me engolir.<br />

Então, tive uma idéia: peguei o garrafão, aproximei-me dela com cui<strong>da</strong>do, puxei<br />

a rã e despejei uma boa dose de cachaça naquela boca imensa. A sucuri foi<br />

saindo devagarinho, devagarinho. Suspirei. Estava salvo. Então, voltei a pescar.<br />

Pouco tempo depois, olhei para trás de novo... e quase pulei no rio de tanto<br />

medo. Sabe quem estava ali? A sucuri. Agora com duas rãs naquela bocoooona.<br />

Para nós, era uma festa! E acreditávamos piamente...<br />

Vovó Alice, muito religiosa, também adorava contar “causos” para a gente.<br />

Sempre recordo a história de São Benedito com Nossa Senhora:<br />

Um dia São Benedito estava na cozinha do convento lá de Palermo na Itália, já<br />

pensando no que faria para o almoço dos padres. De repente, olhou à sua frente<br />

e viu Nossa Senhora chegando com o menino Jesus no colo. Ele ficou muito<br />

alegre. Pediu para Maria deixá-lo <strong>da</strong>r uma volta com o menino pelo jardim do<br />

convento. Ela colocou seu filho nos braços do jovem santo. Benedito, então, saiu<br />

com Jesus no colo e foi mostrando-lhe to<strong>da</strong>s as belezas <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de. Mas o tempo<br />

foi passando sem que percebesse. Quando viu, o sol já estava no meio do céu. O<br />

santo ficou desesperado, pois era hora de servir o almoço e ele não havia<br />

preparado na<strong>da</strong>. Voltou correndo para o convento e, para sua surpresa, Nossa<br />

Senhora havia feito a comi<strong>da</strong> para os padres. Benedito entregou o menino à<br />

mãe. Nossa Senhora voltou para o céu e Benedito colocou a comi<strong>da</strong> na mesa.<br />

Não sobrou nem um grão de arroz para contar a história. Depois que todos<br />

almoçaram, o reitor do convento chamou Benedito e lhe disse: “Parabéns. Você<br />

nunca fez um almoço tão gostoso como este”. O santo agradeceu o elogio, mas<br />

ficou bem quietinho. Afinal, se ele contasse o que havia acontecido, ninguém<br />

acreditaria.<br />

10


Histórias como estas o autor tem muitas para contar. Ca<strong>da</strong> uma mais interessante<br />

que a outra. Daí sua paixão por <strong>narrativas</strong> e seu desejo de <strong>real</strong>izar uma pesquisa sobre<br />

<strong>narrativas</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>real</strong> na Facul<strong>da</strong>de <strong>Cásper</strong> Líbero. Com quarenta e três anos, o autor<br />

viveu muitas coisas na caminha<strong>da</strong>, que estão guar<strong>da</strong><strong>da</strong>s no baú de sua memória. Mas, as<br />

<strong>narrativas</strong> de Joaquim e Alice ele as têm na ponta <strong>da</strong> língua. Não há como esquecê-las.<br />

Elas percorreram a maior distância que existe no universo: a distância entre a cabeça e o<br />

coração. Uma vez grava<strong>da</strong>s no coração, na<strong>da</strong> mais poderá apagá-las.<br />

11


Introdução<br />

Esta dissertação tem como objetivo mostrar a importância <strong>da</strong> narrativa como<br />

modo de conhecimento e força transformadora <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de. Contar uma história,<br />

sobretudo sobre a vi<strong>da</strong> de uma pessoa, seja ela célebre ou anônima, é oferecer muito<br />

mais que informações: é transmitir sabedoria. Sábio é aquele que tem consciência de sua<br />

vi<strong>da</strong>, sabe decidir, não é conduzido por opiniões de outros, mas tem senso crítico,<br />

discernimento e maturi<strong>da</strong>de.<br />

O corpus <strong>da</strong> pesquisa é formado pelos jornais: O Estado de S. Paulo, Correio<br />

Popular e Gazeta do Cambuí, que publicam, semanalmente, um perfil ou história de<br />

vi<strong>da</strong>. De outubro de 2008 a março de 2009, o autor selecionou as matérias dos<br />

respectivos jornais, num total de 62 histórias.<br />

O assunto escolhido é importante, sobretudo numa época como esta, em que as<br />

pessoas são bombardea<strong>da</strong>s por informações, atualiza<strong>da</strong>s minuto a minuto. São notícias e<br />

mais notícias, que informam, mas, também confundem, quando não sufocam o leitor. A<br />

leitura de um perfil pode ser mais informativa e transformadora que dezenas de páginas<br />

com notícias, muitas vezes, superficiais. Um texto jornalístico, inspirado na literatura,<br />

na mitologia, na <strong>compreensão</strong>, na ternura, no diálogo dos afetos, no conhecimento<br />

comum e outros, propostos pelo <strong>signo</strong> <strong>da</strong> <strong>compreensão</strong>, tem potencial transformador,<br />

possibilita uma nova consciência sobre a vi<strong>da</strong> e o mundo, e isso se dá, de modo muito<br />

especial, como este trabalho pretende mostrar, com as histórias de vi<strong>da</strong>.<br />

Esta dissertação tem como objetivos investigar a presença, nos textos publicados<br />

pelos jornais escolhidos, dos dois sentidos de <strong>compreensão</strong>: o cognitivo e o<br />

intersubjetivo. Será que as histórias de vi<strong>da</strong>, de sua concepção à sua publicação,<br />

abraçam, juntam, integram sentidos, além de procurar e de promover a ética, o respeito,<br />

a justiça, a paz e outros valores que estamos associando ao Signo <strong>da</strong> Compreensão? De<br />

que elementos os repórteres produtores dessas <strong>narrativas</strong> se utilizam para atingir suas<br />

metas, sobretudo, na busca de uma relação que se pretende profun<strong>da</strong>, com suas<br />

personagens, suas histórias e sua <strong>real</strong>i<strong>da</strong>de? Que motivos levam jornalistas a escreverem<br />

histórias de vi<strong>da</strong>, como escolhem seus personagens e desenvolvem a construção <strong>da</strong><br />

narrativa? É possível a produção de um texto que informa, mas que tem sabor e<br />

emociona, abra os olhos para outros aspectos <strong>da</strong> <strong>real</strong>i<strong>da</strong>de, aproxime as pessoas?<br />

12


O autor, analisando as matérias eleitas para o estudo, pensa que talvez o pouco<br />

espaço que as histórias de vi<strong>da</strong> ocupam nos jornais impressos possa ter diretamente a<br />

ver com o fato de os repórteres não estarem preparados para serem narradores de<br />

histórias de vi<strong>da</strong>. Não se pode amar nem valorizar aquilo que não se conhece. Também,<br />

muitas vezes falta tempo, precisam escrever muitas matérias ao mesmo tempo, não<br />

sendo possível um espaço de dias para uma melhor pesquisa do assunto, imersão na<br />

<strong>real</strong>i<strong>da</strong>de e re<strong>da</strong>ção do texto. Essas hipóteses, no entanto, não são as que preocupam<br />

diretamente este autor no trabalho aqui apresentado. Ficam como pano de fundo e como<br />

motivação para ulteriores estudos e pesquisas. O que se pretende de fato afirmar, como<br />

já assinalado, são os vínculos existentes entre uma atitude ou aproximação de tipo<br />

compreensivo — tanto no sentido intelectual quanto intersubjetivo — e o<br />

conhecimento, tendo em conta uma visão complexa <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de, do mundo, <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>.<br />

Esta é a grande questão que podemos considerar como a hipótese central desta<br />

dissertação.<br />

A metodologia adota<strong>da</strong> consiste em:<br />

a) Pesquisa bibliográfica: com a intenção de formular um instrumental teórico, apto<br />

a entender a prática jornalística em sua relação com o tema <strong>da</strong> <strong>compreensão</strong>,<br />

tanto em seu sentido cognitivo (de um conhecimento complexo), quanto<br />

intersubjetivo, na direção de uma ética do respeito e <strong>da</strong> <strong>compreensão</strong>. Para tanto,<br />

utiliza-se o autor de intuições teóricas trabalha<strong>da</strong>s no grupo de pesquisa<br />

“Comunicação, jornalismo e epistemologia <strong>da</strong> <strong>compreensão</strong>”, <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong>de<br />

<strong>Cásper</strong> Líbero, de que este pesquisador participa, desde a implantação do<br />

mesmo, no segundo semestre de 2008. A epistemologia, dito de forma simples, é<br />

o pensamento sobre o pensamento, ou o conhecimento sobre o conhecimento. O<br />

grupo de pesquisa, portanto, numa primeira aproximação, propõe-se a pensar o<br />

pensamento comunicacional, uma vez que essa é a área ou o campo de<br />

conhecimento em que se insere. Numa segun<strong>da</strong>, e não menos importante<br />

aproximação, pensa o pensamento comunicacional sob a luz instigante e<br />

desafiadora <strong>da</strong> <strong>compreensão</strong>.<br />

b) Entrevistas em profundi<strong>da</strong>de: com produtores de algumas <strong>da</strong>s histórias de<br />

vi<strong>da</strong>: Ivan Marsiglia (O Estado de S. Paulo), Fabiano Ormaneze (Correio<br />

Popular) e Tiago Gonçalves (Gazeta do Cambuí); com o professor e<br />

13


pesquisador <strong>da</strong>s <strong>narrativas</strong> complexo-compreensivas, Dr. Dimas A. Kunsch,<br />

líder do grupo de pesquisa “Comunicação, Jornalismo e Epistemologia <strong>da</strong><br />

Compreensão”, <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong>de <strong>Cásper</strong> Líbero.<br />

c) Jornais utilizados: na escolha de três jornais cujos textos são analisados — O<br />

Estado de S. Paulo, Correio Popular e Gazeta do Cambuí. O primeiro publica,<br />

uma vez por semana, no Caderno Aliás, uma narrativa sobre personagens. O<br />

Correio popular mantém uma coluna semanal chama<strong>da</strong> “Um rosto na multidão”,<br />

que traz o perfil de uma pessoa <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de Campinas ou <strong>da</strong> região. O jornal<br />

Gazeta do Cambuí, distribuído gratuitamente no bairro Cambuí <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de<br />

Campinas, publica, semanalmente, histórias de vi<strong>da</strong>.<br />

d) Seleção do material: as <strong>narrativas</strong>, publica<strong>da</strong>s nos três jornais, foram<br />

seleciona<strong>da</strong>s durante seis meses, no período de agosto de 2008 a março de 2009.<br />

A partir de março de 2009, a pesquisa continuou com a leitura dos textos<br />

publicados pelos três jornais e a organização de informações: o assunto<br />

abor<strong>da</strong>do, o personagem <strong>da</strong> narrativa, o repórter que escreveu a matéria, o que<br />

diz o texto. Depois, o autor elegeu três textos, escolhidos aleatoriamente, para<br />

uma análise mais profun<strong>da</strong>, utilizando-se para isso de cinco elementos que o<br />

autor, a partir <strong>da</strong>s intuições provenientes do pensamento complexocompreensivo,<br />

considera importantes para se narrar uma história de vi<strong>da</strong>, a<br />

saber: personagem, imersão, diálogo dos afetos, <strong>compreensão</strong> e transformação.<br />

e) Por fim, o autor escreveu três textos, inspirados no pensamento complexocompreensivo,<br />

como experiência de se narrar a partir do <strong>signo</strong> <strong>da</strong> <strong>compreensão</strong>.<br />

No primeiro capítulo <strong>da</strong> dissertação, o autor apresenta algumas características <strong>da</strong><br />

socie<strong>da</strong>de dos primeiros anos do século 21. O pensamento do sociólogo polonês,<br />

Zygmunt Bauman, e o conceito de “moderni<strong>da</strong>de líqui<strong>da</strong>”. A socie<strong>da</strong>de, alicerça<strong>da</strong> na<br />

produção industrial e na razão instrumental, passa por uma mu<strong>da</strong>nça profun<strong>da</strong>. O que<br />

era sólido se liquefaz. As grandes tradições, como a família, a política e a religião,<br />

movem-se nesse mar de inconstância. As relações humanas se fragilizam e, na visão de<br />

Bauman, tudo se torna “liquido”: a vi<strong>da</strong>, o amor, o medo.<br />

14


Outra marca <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de atual é o processo de virtualização pelo qual está<br />

passando, uma ver<strong>da</strong>deira revolução nos relacionamentos e no mundo <strong>da</strong> comunicação.<br />

O autor traz alguns pontos importantes sobre a passagem de socie<strong>da</strong>de de massa, para<br />

uma socie<strong>da</strong>de onde as novas tecnologias colocam o mundo na palma <strong>da</strong>s mãos dos que<br />

têm acesso a este novo universo.<br />

Ain<strong>da</strong>, se por um lado, observa-se a fluidez <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de, por outro, verifica-se<br />

um fenômeno muito significativo neste início de novo milênio: o neotribalismo. Para o<br />

sociólogo francês, Michel Maffesoli, a socie<strong>da</strong>de pós-moderna assiste ao retorno do<br />

tribalismo. Depois do domínio <strong>da</strong> razão mecânica, previsível, instrumental, assiste ao<br />

retorno do “princípio de eros”, <strong>da</strong> revolução dos sentimentos, <strong>da</strong> valorização dos rituais,<br />

<strong>da</strong>s emoções e paixões coletivas, do corpo em espetáculo e do gozo contemplativo.<br />

O outro aspecto, sobre o qual se reflete no primeiro capítulo, é a importância do<br />

mito para a construção de histórias de vi<strong>da</strong>. O Iluminismo colocou o mito num “baú”,<br />

considerando-o coisa infantil ou inútil. Mas, se olharmos para as novelas, filmes, livros,<br />

revistas, cinema, internet, rádio, jornal, enfim, para as <strong>narrativas</strong> midiáticas <strong>da</strong><br />

contemporanei<strong>da</strong>de, verificaremos que elas têm, como estrutura básica, a Jorna<strong>da</strong> do<br />

Herói, o mito.<br />

O primeiro capítulo traz também o pensamento do pesquisador Edvaldo Pereira<br />

Lima e suas reflexões sobre Jornalismo Transformativo. Apresenta os dez princípios<br />

filosóficos dessa prática jornalística, ferramentas úteis para jornalistas escritores de<br />

histórias de vi<strong>da</strong>: exatidão, humanização, universalização temática, estilo próprio e voz<br />

autoral, simbolismo, imersão, criativi<strong>da</strong>de, responsabili<strong>da</strong>de ética e <strong>compreensão</strong>.<br />

No segundo capítulo, o autor propõe o pensamento complexo-compreensivo<br />

como eixo para as <strong>narrativas</strong> <strong>da</strong> contemporanei<strong>da</strong>de. A partir do pensamento de<br />

pesquisadores deste campo de conhecimento, como Dimas Kunsch, Cremil<strong>da</strong> Medina,<br />

Edgar Morin, Luis Carlos Restrepo, Michel Maffesoli, Edvaldo Pereira Lima e Eliane<br />

Brum, ocupa-se com o estudo de um pensamento que, nessa linha, “tece e entretece”.<br />

Para Kunsch, a reportagem complexo-compreensiva assume, sem cerimônia, a tarefa de<br />

tecer, de costurar nexos entre informações que, isola<strong>da</strong>s e numerosas, quais árvores a<br />

impedir uma visão do bosque, não permitem uma <strong>compreensão</strong> abrangente dos sentidos<br />

de uma época. As múltiplas possibili<strong>da</strong>des, que a hoje escassa reportagem oferece,<br />

auxiliam na construção de um tipo de conhecimento que, sem abdicar <strong>da</strong> razão, dialoga<br />

com as incertezas do cotidiano, <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, do mundo, articulando sentidos que a<br />

racionalização do pensamento moderno — reducionista e redutora <strong>da</strong>s virtuali<strong>da</strong>des<br />

15


humanas de <strong>compreensão</strong> — não abarca. Compreensivo, tanto no sentido objetivo<br />

quanto subjetivo, ain<strong>da</strong> segundo Kunsch, o pensamento que informa uma reportagem de<br />

quali<strong>da</strong>de torna mais compreensível, cósmico, o mundo <strong>da</strong> atuali<strong>da</strong>de, oferecendo a esse<br />

mesmo mundo a chance de não se autodestruir na violência ou na guerra, no desespero.<br />

Este autor apresenta, em segui<strong>da</strong>, as <strong>narrativas</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>real</strong> no período eleito<br />

para o estudo, publica<strong>da</strong>s pelos jornais O Estado de S. Paulo, Correio Popular e Gazeta<br />

do Cambuí. Apresenta um apanhado geral e traz exemplos de <strong>narrativas</strong> complexocompreensivas,<br />

sem perder de vista o interesse em observar lacunas, promessas não<br />

<strong>real</strong>iza<strong>da</strong>s, possibili<strong>da</strong>des. Faz, na sequência, uma análise mais profun<strong>da</strong> de uma<br />

matéria de ca<strong>da</strong> jornal pesquisado, utilizando, como ferramenta, cinco fun<strong>da</strong>mentos que<br />

considera importantes para a construção de histórias de vi<strong>da</strong>, sob o <strong>signo</strong> <strong>da</strong><br />

<strong>compreensão</strong>: personagem, imersão, diálogo dos afetos, <strong>compreensão</strong> e transformação.<br />

No terceiro e último capítulo, o autor cui<strong>da</strong> em produzir três histórias de vi<strong>da</strong>s,<br />

aprofun<strong>da</strong>ndo o tema, utilizando-se <strong>da</strong>s reflexões do grupo de pesquisa “Comunicação,<br />

jornalismo e epistemologia <strong>da</strong> <strong>compreensão</strong>”. Pensa ca<strong>da</strong> uma <strong>da</strong>s matérias para um<br />

jornal específico dos três veículos estu<strong>da</strong>dos. Depois <strong>da</strong> matéria, coloca o making off,<br />

explicando como foi pauta<strong>da</strong> e escrita a história de vi<strong>da</strong>, além de refletir sobre ca<strong>da</strong> uma<br />

delas, a partir do <strong>signo</strong> <strong>da</strong> <strong>compreensão</strong>.<br />

Os autores, com os quais o autor se ocupa, no início do trabalho, como Bauman,<br />

Adorno e Horkheimer, Maffesoli, Levy, Campbell e outros, trazem até nós o sentido <strong>da</strong><br />

complexi<strong>da</strong>de do presente, e as diferentes tentativas teóricas de entendimento. É nesse<br />

mundo de sentidos diversos, abertos, complexo, em que somos chamados a “tecer e<br />

entretecer”, pela via <strong>da</strong> narrativa, uma <strong>compreensão</strong> possível, em que se insere o esforço<br />

de produção de histórias de vi<strong>da</strong>. A narrativa, como aqui se entende, é uma ferramenta<br />

útil na construção do cosmos em meio ao caos, como ensina Medina. Estes autores<br />

revelam que existem muitas tonali<strong>da</strong>des entre o preto e o branco. A discussão não é<br />

quem tem a melhor teoria, quem está certo e errado, mas ampliar o horizonte de<br />

<strong>compreensão</strong> <strong>da</strong> <strong>real</strong>i<strong>da</strong>de. Podemos aprender, com ca<strong>da</strong> um deles, algo sobre o mundo,<br />

os relacionamentos, enfim, a vi<strong>da</strong>.<br />

Este trabalho, ao focar seu interesse no tema <strong>da</strong> narrativa jornalística e,<br />

especificamente, <strong>da</strong>s histórias de vi<strong>da</strong>, não tem, de forma alguma, a intenção de ditar<br />

receitas para o jornalismo, ou de imaginar uma prática jornalística reduzi<strong>da</strong> à produção<br />

de histórias de vi<strong>da</strong>. Não é essa, de fato, a intenção. A crítica aos velhos vícios do<br />

reducionismo e <strong>da</strong> simplificação, do tecnicismo etc., que freqüentam o jornalismo como<br />

16


outras áreas <strong>da</strong> produção simbólica, não possui o objetivo de desqualificar a produção<br />

<strong>da</strong> informação de atuali<strong>da</strong>de, ou <strong>da</strong> notícia, em benefício <strong>da</strong> construção de histórias de<br />

vi<strong>da</strong>. Tem, sim, o objetivo de demarcar o espaço <strong>da</strong>s histórias de vi<strong>da</strong> e <strong>da</strong>s <strong>narrativas</strong><br />

em geral, como fun<strong>da</strong>mental para o cultivo <strong>da</strong> profundi<strong>da</strong>de, <strong>da</strong> complexi<strong>da</strong>de, e, mais<br />

que tudo, <strong>da</strong> <strong>compreensão</strong>. As notícias são importantes para a vi<strong>da</strong> <strong>da</strong>s pessoas.<br />

To<strong>da</strong>via, quando um jornal inclui, em suas páginas, histórias de vi<strong>da</strong>, possibilita aos<br />

leitores um novo olhar sobre determinado acontecimento. Além <strong>da</strong> informação, vai<br />

crescer no conhecimento e na <strong>compreensão</strong>.<br />

17


CAPÍTULO I<br />

AS NARRATIVAS DA VIDA REAL<br />

NUMA SOCIEDADE EM CONSTANTE MUDANÇA<br />

18


1. A liquidez no cotidiano <strong>da</strong> contemporanei<strong>da</strong>de<br />

A socie<strong>da</strong>de do novo milênio está passando por muitas mu<strong>da</strong>nças.<br />

Diferentemente de outras épocas, essas mu<strong>da</strong>nças têm alcance global, afetando o mundo<br />

inteiro. Fator determinante dessas transformações é a ciência e a tecnologia, com sua<br />

capaci<strong>da</strong>de de manipular a própria vi<strong>da</strong> dos seres vivos, e com a capaci<strong>da</strong>de, também,<br />

de criar uma rede de comunicações de alcance mundial, de interação em tempo <strong>real</strong>,<br />

apesar <strong>da</strong>s distâncias geográficas.<br />

Nesse novo contexto social, a vi<strong>da</strong> do ser humano e sua <strong>real</strong>i<strong>da</strong>de se tornaram<br />

complexas e fragmenta<strong>da</strong>s. A falta de informação só se resolve com mais informação,<br />

gerando e <strong>da</strong>ndo à luz, tantas vezes e contraditoriamente, a incomunicação e a<br />

in<strong>compreensão</strong>. Para o cientista político francês, Dominique Wolton, os homens<br />

“comunicam-se” bem mais facilmente que no passado, mas a comunicação, a<br />

inter<strong>compreensão</strong>, não é proporcional à eficácia <strong>da</strong>s técnicas. Complexa por natureza, a<br />

comunicação complicou-se ain<strong>da</strong> mais nestes últimos trinta anos, graças ao progresso<br />

técnico. Nos tempos atuais, todo mundo vê tudo ou quase tudo, mas percebe, ao mesmo<br />

tempo, que não compreende melhor o que acontece. A visibili<strong>da</strong>de do mundo não basta<br />

para torná-lo mais compreensível. “Sonhou-se com a aldeia global; encontra-se a<br />

cacofonia de Babel. Na ponta dos canais e <strong>da</strong>s redes, encontramos freqüentemente a<br />

in<strong>compreensão</strong>, para não dizer a incomunicação” (Wolton, 2006:18-19).<br />

Essa socie<strong>da</strong>de, em constante mu<strong>da</strong>nça, é retrata<strong>da</strong> pelo sociólogo polonês,<br />

Zygmunt Bauman, com a metáfora <strong>da</strong> “fluidez”. Os líquidos, diferentemente dos<br />

sólidos, não mantêm sua forma com facili<strong>da</strong>de. Os fluidos não ficam presos em espaços,<br />

nem prendem o tempo, pois o preenchem por um momento. Os sólidos, ao contrário,<br />

19


não podem mu<strong>da</strong>r facilmente. Uma pedra, dependendo do tamanho e do peso, pode ficar<br />

milhões de anos no mesmo lugar. As águas de um rio, ao contrário, oferecem<br />

dificul<strong>da</strong>des para serem conti<strong>da</strong>s. “Os fluidos se movem facilmente. Eles ‘fluem’,<br />

‘esvaem-se’, ‘respingam’, ‘transbor<strong>da</strong>m’, ‘vazam’, ‘inun<strong>da</strong>m’, ‘borrifam’, ‘pingam’;<br />

são ‘filtrados’, ‘destilados’” (Bauman, 2001:8). Portanto, “fluidez” ou “liquidez” dá<br />

idéia <strong>da</strong> nova fase pela qual a socie<strong>da</strong>de está passando. Os sólidos estão derretendo: o<br />

sagrado sendo profanado e o passado, destronado.<br />

Há alguns séculos, a socie<strong>da</strong>de estava solidifica<strong>da</strong> na razão instrumental, na ciência<br />

e no homo faber. O importante era produzir ca<strong>da</strong> vez mais, descobrir o porquê de to<strong>da</strong>s<br />

as coisas; pensar era sinônimo de existir. Mas o mundo mudou. “Os poderes que se<br />

liquefazem passaram do ‘sistema’ para a ‘socie<strong>da</strong>de’, <strong>da</strong> ‘política’ para as ‘políticas <strong>da</strong><br />

vi<strong>da</strong>’ — ou desceram do nível ‘macro’ para o nível ‘micro’ do convívio social”<br />

(Bauman, 2001:14). O capitalismo absolutizou-se, gerando desemprego, fome e<br />

concentração de ren<strong>da</strong> nas mãos de poucos, no final do século XX. As relações humanas<br />

se fragilizaram com o advento do novo milênio, sobretudo pela globalização; o amor, a<br />

vi<strong>da</strong>, o tempo, o medo tornaram-se líquidos.<br />

Bauman entende, pois, que a socie<strong>da</strong>de de hoje é líquido-moderna. Nesta, as<br />

<strong>real</strong>izações individuais podem mu<strong>da</strong>r num piscar de olhos. Tudo envelhece<br />

rapi<strong>da</strong>mente. A inconstância criou raízes profun<strong>da</strong>s. Ou você se moderniza ou perece.<br />

Modernizar-se é viver no presente e pelo presente. É obter satisfação, o máximo<br />

possível. Veloci<strong>da</strong>de, e não duração, é o que importa. Com a veloci<strong>da</strong>de certa, pode-se<br />

consumir to<strong>da</strong> a eterni<strong>da</strong>de no presente, sem ter que esperar a continuação <strong>da</strong>s<br />

experiências numa vi<strong>da</strong> futura. O caminho é comprimir a eterni<strong>da</strong>de no hoje <strong>da</strong> história<br />

de modo a poder ajustá-la à duração de uma existência individual. A incerteza de uma<br />

vi<strong>da</strong> mortal em um universo imortal foi finalmente resolvi<strong>da</strong>: “Agora é possível parar de<br />

se preocupar com as coisas eternas sem perder as maravilhas <strong>da</strong> eterni<strong>da</strong>de. Com efeito,<br />

ao longo de uma vi<strong>da</strong> mortal pode-se extrair tudo aquilo que a eterni<strong>da</strong>de poderia<br />

oferecer” (Bauman, 2007:15).<br />

Antes do nascimento disso que Bauman chama de moderni<strong>da</strong>de líqui<strong>da</strong>, o tempo<br />

caminhava, se comparado com hoje, a passos de tartaruga. As pessoas, em meio a<br />

sofrimentos de to<strong>da</strong> ordem, aceitavam viver nesse “vale de lágrimas”, com o olhar<br />

voltado para um futuro feliz, pleno, eterno, no qual todos os seus sonhos se<br />

concretizariam. Em nosso mundo acelerado, essas esperanças podem ser descarta<strong>da</strong>s,<br />

pois importa mesmo viver o aqui e o agora. Importa, mais que tudo, consumir. O<br />

20


consumo é importante, faz parte <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. Oxalá, todos tivessem a mesma possibili<strong>da</strong>de<br />

de acesso aos bens necessários à sobrevivência, crescendo em quali<strong>da</strong>de de vi<strong>da</strong>!<br />

To<strong>da</strong>via, vemos alguns poucos consumindo tudo o que podem e milhões sem o mínimo<br />

para viver. Assim, Bauman considera o lixo o principal produto <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de líquidomoderna<br />

de consumo. Que fazer com ele? E se você também for jogado nele? “Na<br />

socie<strong>da</strong>de dos consumidores, ninguém pode deixar de ser um objeto de consumo. (...)<br />

‘Consumidores’ e ‘objetos de consumo’ são pólos conceituais de um continuum ao<br />

longo do qual todos os membros <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de de consumidores se situam e se movem,<br />

de um lado para o outro diariamente” (Bauman, 2007:18). Morreram as principais<br />

utopias <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de e as idéias de sua transformação.<br />

Na moderni<strong>da</strong>de líqui<strong>da</strong>, a economia gira em torno de objetos descartáveis ou de<br />

envelhecimento rápido. Há o desprezo pelo “longo prazo” e pela “totali<strong>da</strong>de” e sua<br />

substituição pelos valores <strong>da</strong> gratificação instantânea e <strong>da</strong> felici<strong>da</strong>de individual. Por<br />

isso, as “celebri<strong>da</strong>des” são as principais personagens líquido-modernas. Busca-se a<br />

notorie<strong>da</strong>de, a abundância de suas imagens e a freqüência com que seus nomes são<br />

mencionados nas transmissões de rádio e TV. To<strong>da</strong>via, muitas celebri<strong>da</strong>des aparecem<br />

do na<strong>da</strong> e caem rapi<strong>da</strong>mente no esquecimento. Vão parar também no lixo. Bauman,<br />

porém, afirma que não podemos colocar to<strong>da</strong> a culpa pela situação em que vivemos na<br />

indústria de consumo, mas alerta:<br />

Essa indústria está bem equipa<strong>da</strong> para a forma de vi<strong>da</strong> a que chamo de “moderni<strong>da</strong>de<br />

líqui<strong>da</strong>”. Essa indústria e essa forma de vi<strong>da</strong> estão afina<strong>da</strong>s entre si e reforçam<br />

mutuamente o controle sobre as opções que os homens e mulheres de nossa época<br />

podem, de forma <strong>real</strong>ista, fazer. A cultura líquido-moderna não se percebe mais como<br />

uma cultura do aprendizado e do acúmulo, como as outras registra<strong>da</strong>s nos relatos dos<br />

historiadores e etnógrafos. Parece, em vez disso, uma cultura do desengajamento, <strong>da</strong><br />

descontinui<strong>da</strong>de e do esquecimento (Bauman, 2007:83-84).<br />

A socie<strong>da</strong>de de consumo tem, por base, a premissa de satisfazer os desejos<br />

humanos de uma forma que nenhuma socie<strong>da</strong>de do passado pôde <strong>real</strong>izar ou sonhar. A<br />

promessa de satisfação, no entanto, só permanecerá sedutora enquanto o desejo<br />

continuar ir<strong>real</strong>izado; o que é mais importante, enquanto houver uma suspeita de que o<br />

desejo não foi plena e totalmente satisfeito. “A não-satisfação dos desejos e a crença<br />

firme e eterna de que ca<strong>da</strong> ato visando a satisfazê-los deixa muito a desejar e pode ser<br />

aperfeiçoado — são esses os volantes <strong>da</strong> economia que tem por alvo o consumidor”<br />

(Bauman, 2007:106). Por isso, os que navegam na moderni<strong>da</strong>de líqui<strong>da</strong> precisam tornar<br />

21


permanente a insatisfação no coração <strong>da</strong>s pessoas. Uma forma de causar esse efeito é<br />

depreciar e desvalorizar os produtos de consumo, logo depois de terem sido alçados ao<br />

universo dos desejos do consumidor. Uma outra forma, ain<strong>da</strong> mais eficaz, é o método<br />

de satisfazer to<strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de, desejo ou vontade, de uma forma que não pode deixar de<br />

provocar novas necessi<strong>da</strong>des, desejos e vontades. O que começa com necessi<strong>da</strong>de deve<br />

terminar como compulsão ou vício, gerando assim a “síndrome consumista”. Essa<br />

síndrome degra<strong>da</strong> os prazeres duradouros e promove a transitorie<strong>da</strong>de. Mais importante<br />

que o progresso e o futuro é a busca do prazer pelo prazer.<br />

“Ordem e Progresso” é o que se lê na bandeira nacional. O progresso, segundo<br />

Bauman, já foi a mais extrema manifestação do otimismo radical, promessa de<br />

felici<strong>da</strong>de universalmente compartilha<strong>da</strong> e duradoura. Agora significa uma ameaça de<br />

mu<strong>da</strong>nça inflexível e inescapável, que pressagia não a paz e o repouso, mas a crise e a<br />

tensão contínuas, impedindo qualquer momento de descanso; uma espécie de <strong>da</strong>nça <strong>da</strong>s<br />

cadeiras em que um segundo de desatenção resulta em prejuízo irreversível e exclusão.<br />

Em vez de grandes expectativas e doces sonhos, o “progresso” evoca uma insônia<br />

repleta de pesadelos de “ser deixado para trás”, perder o trem ou cair <strong>da</strong> janela de um<br />

veículo em rápi<strong>da</strong> aceleração. Em vez de reduzir o ritmo espantoso <strong>da</strong> mu<strong>da</strong>nça, muito<br />

menos de prever e controlar sua direção, as pessoas se concentram no que podem ou<br />

acreditam poder, ou no que lhes garantem que podem influenciar. Elas tentam calcular e<br />

minimizar o risco de serem atingi<strong>da</strong>s pelos incontáveis e indefiníveis perigos que o<br />

mundo e seu futuro incerto lhes reservam.<br />

A ordem deu lugar a uma nova ordem, e o medo instalou-se na socie<strong>da</strong>de<br />

líquido-moderna. Muito dinheiro pode ser ganho com a insegurança e existe até uma<br />

“indústria” explorando o medo. A segurança pessoal tornou-se um dos principais pontos<br />

de ven<strong>da</strong>, talvez o principal, em to<strong>da</strong> espécie de estratégias de marketing. “Como diz<br />

Ray Surette, o mundo visto pela TV parece ser de ‘ci<strong>da</strong>dãos-ovelhas’ sendo protegidos<br />

de ‘criminosos-lobos’ por ‘policiais-cães pastores’” (Bauman, 2007: 93).<br />

As pessoas <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de líqui<strong>da</strong> estão imersas num rio de prazer cuja<br />

correnteza é veloz e não sabe quando chegará ao mar.<br />

Sou sacerdote e, certa vez, uma noiva veio falar comigo: “Posso lhe pedir uma<br />

coisa?”. “Pode” — respondi. “Eu queria colocar a música de uma cantora de que gosto<br />

muito como canto de entra<strong>da</strong> no meu casamento”. Tentei convencê-la a usar músicas<br />

litúrgicas, próprias para a cerimônia. Mas ela insistiu: “Deixa, por favor”. Fez até cara<br />

de choro. Perguntei por que ela queria tanto essa música. Ela me respondeu: “É que essa<br />

22


música estava tocando no rádio do carro do meu namorado quando demos o primeiro<br />

beijo”. Os meses se passaram. Numa manhã, an<strong>da</strong>ndo pelas ruas de minha ci<strong>da</strong>de,<br />

encontrei aquela jovem, de roupas esportivas, correndo no calçadão. Ela veio ao meu<br />

encontro, inspirando e expirando com muita intensi<strong>da</strong>de. “Tudo bem com você?” Eu<br />

parei: “Como vai? Que disposição! Correndo a esta hora?” “Estou tentando perder uns<br />

quilinhos. Fiquei solteira de novo. Meu casamento não deu certo. Preciso voltar a ser<br />

bonita para conquistar um novo amor. Agora estou livre para voar”. Conversamos mais<br />

alguns minutos e despedimo-nos. Percebi que aquela jovem estava voando sem rumo.<br />

A fragili<strong>da</strong>de dos laços humanos, o sentimento de insegurança que ela inspira e<br />

os desejos conflitantes de apertar os laços e ao mesmo tempo mantê-los frouxos: eis, o<br />

tema que Bauman desenvolve no seu livro Amor Líquido. Assiste-se ao processo de<br />

“individualização”, e os relacionamentos são bênçãos ambíguas: “No líquido cenário <strong>da</strong><br />

vi<strong>da</strong> moderna, os relacionamentos talvez sejam os representantes mais comuns, agudos,<br />

perturbadores e profun<strong>da</strong>mente sentidos <strong>da</strong> ambivalência” (Bauman, 2004:8).<br />

Buscam, na moderni<strong>da</strong>de líqui<strong>da</strong>, relacionamentos “de bolso”, de que se podem<br />

dispor quando se tem o desejo ou deixá-los guar<strong>da</strong>dos quando não forem necessários.<br />

Exemplo desse tipo de relacionamento são os casais semi-separados, onde ca<strong>da</strong> um tem<br />

sua vi<strong>da</strong>, sua casa, seu trabalho. Quando dá vontade, encontram-se, amam-se,<br />

consomem-se e deixam um “restinho” guar<strong>da</strong>do para o próximo encontro. Relações<br />

“virtuais” nas quais homem e mulher estão “conectados”, mas ca<strong>da</strong> qual pode deletar o<br />

outro na hora que bem quiser. Apaixonam-se e desapaixonam-se com facili<strong>da</strong>de. Na<br />

moderni<strong>da</strong>de líqui<strong>da</strong>, o amor “até que a morte nos separe” está fora de mo<strong>da</strong>. Enfim, o<br />

desejo dominou o amor. Quem deseja quer consumir, absorver, devorar, ingerir, digerir,<br />

aniquilar. O amor, por sua vez, cui<strong>da</strong> e preserva o objeto cui<strong>da</strong>do. Se o desejo quer<br />

consumir, o amor quer possuir. O desejo <strong>real</strong>izado coincide com a aniquilação de seu<br />

objeto, mas o amor cresce com a aquisição do objeto e se <strong>real</strong>iza na sua durabili<strong>da</strong>de.<br />

“Se o desejo se auto-destrói, o amor se auto-perpetua” (Bauman, 2004:24).<br />

O jornal Folha de S. Paulo publicou, no dia 5 de agosto de 2009, no caderno<br />

Cotidiano, matéria sobre um projeto no Senado que prevê o divórcio on-line. A proposta<br />

quer que processos para casais sem filho menor ou incapaz, separados em comum<br />

acordo, sejam feitos pela internet. Matéria <strong>da</strong> Folha revela como é frágil o<br />

relacionamento entre cônjuges. Na era do namoro pela internet, a separação e o divórcio<br />

consensuais on-line podem passar a ser uma <strong>real</strong>i<strong>da</strong>de. A possibili<strong>da</strong>de está prevista em<br />

um projeto de lei apresentado pela senadora Patrícia Saboya (PDT-CE), com o objetivo<br />

23


de agilizar os processos. A senadora quer, inclusive, suprimir a obrigatorie<strong>da</strong>de de<br />

audiência entre as partes. O Fórum <strong>da</strong> Freguesia do Ó, em São Paulo, é um dos poucos<br />

que já trabalha on-line. Juízes, entretanto, não dispensam a audiência entre as partes. O<br />

projeto está sob análise <strong>da</strong> Comissão de Constituição e Justiça do Senado e ain<strong>da</strong> deve<br />

sofrer modificações. Saboya quer também dispensar a necessi<strong>da</strong>de de advogados no<br />

divórcio on-line. "Quero facilitar o divórcio de casais sem filhos, pois, se há acordo, é<br />

como se fosse um contrato desfeito", diz ela. Defensores do texto dizem que o processo<br />

tende a ser mais rápido e barato e que a medi<strong>da</strong> favorecerá casais que não moram mais<br />

no mesmo Estado ou que não querem se encontrar. Se não dá mais para conviver, ou se<br />

não é mais conveniente manter o relacionamento, na<strong>da</strong> melhor que um divórcio<br />

facilitado.<br />

Isso gera uma frustração muito grande, sobretudo para os que investiram tempo<br />

e dinheiro ao longo do namoro e casamento, pois, na moderni<strong>da</strong>de líqui<strong>da</strong>, os<br />

relacionamentos são tidos como investimentos, como todos os outros: você entrou com<br />

tempo, dinheiro, esforços que poderiam ter sido empregados para outros fins, esperando<br />

que seu investimento lhe trouxesse lucro. Quais os lucros que se espera de um<br />

relacionamento? Em primeiro lugar e acima de tudo, espera-se “a segurança — em<br />

muitos sentidos: a proximi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> mão amiga quando você mais precisa dela, o socorro<br />

na aflição, a companhia na solidão, o apoio para sair de uma dificul<strong>da</strong>de, o consolo na<br />

derrota e o aplauso na vitória” (Bauman, 2004:29). Mas estar num relacionamento é<br />

viver uma incerteza permanente. Comprometer-se com outra pessoa em longo prazo é<br />

uma espa<strong>da</strong> de dois gumes. Na medi<strong>da</strong> em que os relacionamentos são vistos como<br />

investimentos, como garantias de segurança e solução de problemas, eles mais se<br />

parecem um jogo de cara ou coroa.<br />

Assim, vivemos na cor<strong>da</strong> bamba, numa areia movediça, enfrentando o alto mar<br />

com uma janga<strong>da</strong>, sem na<strong>da</strong> próximo de nós que nos dê apoio, segurança, solidez. Eis<br />

algumas <strong>da</strong>s principais idéias de Bauman.<br />

Mas será que o sociólogo polonês acerta de ver<strong>da</strong>de ao afirmar que a<br />

moderni<strong>da</strong>de hoje é líqui<strong>da</strong>? A fluidez e a fragili<strong>da</strong>de dos laços humanos são<br />

percebi<strong>da</strong>s, tal como os entende Bauman, também nos textos publicados nos jornais, de<br />

modo especial nas histórias de vi<strong>da</strong>?<br />

O pensamento de Bauman revela o despertar de um novo milênio em crise. Os<br />

alicerces, abalados pela liquidez <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de, evocam uma mu<strong>da</strong>nça de paradigma.<br />

Se, nos séculos 19 e 20, o mundo foi dominado pelo racionalismo, parece que a nova<br />

24


on<strong>da</strong> aponta para a fragili<strong>da</strong>de, a veloci<strong>da</strong>de, a superficiali<strong>da</strong>de, o esvaziamento de<br />

sentido. Aponta para as conexões, sempre mais freqüentes e numerosas, e muito menos<br />

para os vínculos. Vínculos pesam. Amarram. Para o psiquiatra e pesquisador<br />

colombiano, Luis Carlos Restrepo, padecemos de um analfabetismo afetivo que<br />

dificulta compreender as raízes de nosso sofrimento. Analfabetismo que nos impede de<br />

encontrar chaves para melhorar nossa vi<strong>da</strong> cotidiana: “Basta lançar um olhar à família<br />

para <strong>da</strong>r-nos conta do montante de sofrimento que carregamos e constatar que aquilo<br />

que por definição deveria ser um ninho de amor se converte freqüentemente em foco de<br />

violência” (Restrepo, 2001:20).<br />

Mas será que uma crise significa somente negativi<strong>da</strong>de? A mãe esquece as dores<br />

do parto ao acalentar seu filho recém-nascido nos braços, pela primeira vez. O<br />

universitário chora ao receber o diploma, não por ter passado por tantas dificul<strong>da</strong>des no<br />

seu dia a dia na facul<strong>da</strong>de, mas por se sentir um vitorioso. O agricultor nem se lembra<br />

mais do suor derramado quando <strong>da</strong> semeadura, no momento em que está carregando os<br />

feixes de trigo nos ombros. Talvez esse momento líquido do homem sapiens-demens o<br />

impulsione a vôos mais altos.<br />

Edvaldo Pereira Lima, pioneiro no Brasil disso que ele chama de Jornalismo<br />

Literário Avançado, um dos maiores expoentes <strong>da</strong>s <strong>narrativas</strong> <strong>da</strong> <strong>real</strong>i<strong>da</strong>de em nosso<br />

país, defende que um novo mundo é possível. Para Lima, a profun<strong>da</strong> crise <strong>da</strong> civilização<br />

contemporânea, anuncia<strong>da</strong> e decanta<strong>da</strong> por cientistas de ponta, visionários, artistas,<br />

guardiões de tradições, escancara agora as portas <strong>da</strong> percepção. Não há como negar.<br />

Está presente nos noticiários <strong>da</strong> mídia, nos acontecimentos <strong>da</strong> esquina, na rotina de<br />

todos os dias. Junto com a crise, espanto, dor, sofrimento. Contudo, junto com a crise,<br />

oportuni<strong>da</strong>de. Momento precioso de se rever conceitos, de passar a limpo o legado do<br />

passado, de direcionar rumos, de experimentar propostas de um novo mundo possível.<br />

Atrelado ao momento, o desafio. As circunstâncias prementes pedem um salto de<br />

consciência. Um refinamento de quali<strong>da</strong>de na nossa capaci<strong>da</strong>de de agir e de expressar<br />

nossas experiências <strong>da</strong> <strong>real</strong>i<strong>da</strong>de. Somos pressionados a <strong>da</strong>r um novo significado ao que<br />

vivemos, sentimos, entendemos.<br />

Somos impulsionados a abrir o olhar para dentro, assim como para fora, procurando<br />

com urgência sentido num estado geral que nos parece de caos, onde muitos dos<br />

edifícios <strong>da</strong>s nossas certezas desmoronam-se a veloci<strong>da</strong>de espantosa. Felizmente, por<br />

outro lado, sementes promissoras brotam no jardim <strong>da</strong>s possibili<strong>da</strong>des novas, trazendonos<br />

o alento <strong>da</strong> co-criação inespera<strong>da</strong> <strong>da</strong> civilização planetária. Um salto quântico de<br />

consciência (Lima, 2009:13).<br />

25


Nesta socie<strong>da</strong>de, onde os sólidos se tornam líquidos, onde as certezas deságuam<br />

na incerteza, na insegurança e na fragili<strong>da</strong>de, as histórias de vi<strong>da</strong> têm um papel<br />

imprescindível. Narrar uma história é tentar parar o tempo. É <strong>da</strong>r uma pausa na fluidez.<br />

O mundo corre em alta veloci<strong>da</strong>de e isso não nos permite ver a vi<strong>da</strong> como ela é. Quando<br />

paramos por um momento, respiramos, refletimos sobre a vi<strong>da</strong> e o que está acontecendo<br />

à nossa volta, temos equilíbrio e discernimento para <strong>da</strong>r os próximos passos. As<br />

histórias de vi<strong>da</strong>, publica<strong>da</strong>s em jornais, tornam-se portos, onde ancoramos o barco de<br />

nossa vi<strong>da</strong>, mesmo que seja por alguns minutos. Mas estes são suficientes para nos<br />

aju<strong>da</strong>r no mergulho para dentro de nós mesmos ou para avançarmos para águas mais<br />

profun<strong>da</strong>s.<br />

26


2. De uma socie<strong>da</strong>de de massa para um mundo virtual<br />

Se para Bauman, estamos na moderni<strong>da</strong>de líqui<strong>da</strong>, para outros autores ain<strong>da</strong><br />

vivemos uma socie<strong>da</strong>de de massa, onde as pessoas perdem a identi<strong>da</strong>de e tornam-se<br />

coisas ou objetos de exploração. Esse pensamento está presente entre nós desde o século<br />

20. Horkheimer e Adorno, junto com outros intelectuais de influências teóricas<br />

distintas, reuniram-se a partir de 1923, em Frankfurt, empreendendo uma crítica radical<br />

<strong>da</strong>quele momento histórico. De maneiras diferentes, manifestaram as suas desilusões<br />

com respeito às transformações do mundo contemporâneo, sobretudo após a Segun<strong>da</strong><br />

Guerra Mundial e o “milagre econômico” do pós-guerra. Em sua visão, a <strong>real</strong>i<strong>da</strong>de<br />

social, dinâmica, complexa, cambiante, estava submeti<strong>da</strong> a um método que se pretendia<br />

universal e unitário, o método científico. O positivismo impunha um procedimento nãosocial<br />

às ciências sociais.<br />

Sob a influência <strong>da</strong>s análises de Marx e criticando a política <strong>da</strong> burguesia, os<br />

frankfurtianos revelaram a transformação dos conceitos econômicos: a livre troca vai<br />

favorecer as desigual<strong>da</strong>des sociais e a economia livre vai gerar monopólios. To<strong>da</strong>via, o<br />

grande objeto <strong>da</strong> crítica <strong>da</strong> Escola de Frankfurt, de modo especial por meio de<br />

Horkheimer e Adorno, vai ser o pensamento de Descartes, com o seu Discurso do<br />

Método. Como pano de fundo desse pensamento está a idéia de que o homem, graças à<br />

técnica e por meio dela, deveria se tornar mestre e senhor <strong>da</strong> natureza, não compreendêla,<br />

mas dominá-la. Esse modelo de pensamento reinou absoluto no Ocidente e ain<strong>da</strong> é<br />

predominante em muitas áreas, inclusive na jornalística: racionali<strong>da</strong>de que pretendeu<br />

separar sujeito e objeto, corpo e alma, eu e mundo, natureza e cultura, transformando as<br />

27


paixões, as emoções, os sentidos, a imaginação e a memória em inimigos do<br />

pensamento racional.<br />

Boaventura de Sousa Santos elenca os traços mais marcantes do paradigma <strong>da</strong><br />

ciência moderna em crise:<br />

(...) Paradigma cuja forma de conhecimento procede pela transformação <strong>da</strong> relação eu/tu<br />

em relação sujeito/objeto, uma relação feita de distância, estranhamento mútuo e de<br />

subordinação total do objeto ao sujeito (um objeto sem criativi<strong>da</strong>de e responsabili<strong>da</strong>de);<br />

um paradigma que pressupõe uma única forma de conhecimento válido, o conhecimento<br />

científico (...); um paradigma que tende a reduzir o universo dos observáveis ao<br />

universo dos quantificáveis e o rigor do conhecimento ao rigor matemático do<br />

conhecimento (...); um paradigma que desconfia <strong>da</strong>s aparências e <strong>da</strong>s facha<strong>da</strong>s e procura<br />

a ver<strong>da</strong>de nas costas dos objetos, assim perdendo de vista a expressivi<strong>da</strong>de do face a<br />

face <strong>da</strong>s pessoas e <strong>da</strong>s coisas onde, no amor ou no ódio, se conquista a competência<br />

comunicativa; um paradigma que assenta na distinção entre o relevante e o irrelevante e<br />

que se arroga o direito de negligenciar (Bachelard) o que é irrelevante e, portanto, de<br />

não reconhecer na<strong>da</strong> do que não quer ou pode conhecer; um paradigma que avança pela<br />

especialização e pela profissionalização do conhecimento (...); um paradigma que se<br />

orienta pelos princípios <strong>da</strong> racionali<strong>da</strong>de formal ou instrumental (...); finalmente, um<br />

paradigma que produz um discurso que se pretende rigoroso, antiliterário, sem imagens<br />

nem metáforas, analogias ou outras figuras <strong>da</strong> retórica, mas que, com isso, corre o risco<br />

de se tornar, mesmo quando falha na pretensão, um discurso desencantado, triste e sem<br />

imaginação, incomensurável com os discursos normais que circulam na socie<strong>da</strong>de<br />

(Santos, 2003:34-35).<br />

Horkheimer e Adorno criticavam a Indústria Cultural, conceito elaborado por<br />

eles para dizer como tudo se transformava em artigo de consumo na socie<strong>da</strong>de<br />

enraiza<strong>da</strong> no Iluminismo: “To<strong>da</strong>s as vezes que uma certa fórmula se populariza, isto é,<br />

tem êxito de consumo, a indústria a promove e repete sempre o mesmo padrão. Tais<br />

circunstâncias intensificam a passivi<strong>da</strong>de social” (Matos, 2001:69). Para Horkheimer e<br />

Adorno, os meios de comunicação bloqueiam a imaginação através <strong>da</strong>s imagens<br />

publicitárias, televisivas e outras. Estas convertem tudo em entretenimento para as<br />

massas: guerras, genocídios, greves, eventos religiosos, catástrofes naturais, obras de<br />

arte ou de pensamento.<br />

A abor<strong>da</strong>gem dos frankfurtianos se faz visível nos meios de comunicação,<br />

sobretudo na televisão. Aparece o programa “Big Brother”, que inspira a “Casa dos<br />

Artistas”, que dá origem à “A Fazen<strong>da</strong>” e por aí...: uma seqüência de mesmice, de<br />

massificação, de futili<strong>da</strong>de e esvaziamento de valores. Os jornais impressos não ficam<br />

atrás: banalizam a vi<strong>da</strong>, transformam notícias em mercadoria. Recentemente, fui à banca<br />

de jornal. Numa capa, havia uma caricatura de um porco com a seguinte manchete:<br />

“Gripe suína já mandou dez para o beleléu”. E assim vai...<br />

28


Lima defende a idéia de que a comunicação de massa produz efeitos nos<br />

receptores. Esses efeitos, de forma consciente ou não, existem e se manifestam. Se a<br />

pessoa tem alguma fragili<strong>da</strong>de cultural, intelectual ou psicológica, está mais sujeita à<br />

componente negativa dessa influência. Aí entra a responsabili<strong>da</strong>de do jornalista. Ele<br />

pode construir ou destruir, levantar ou derrubar seus leitores. Lima percebe que o jovem<br />

profissional de comunicação se sente atraído pelo fascínio que a comunicação de massa<br />

exerce, mas nem sempre tem a consciência dos efeitos do que diz ou escreve. Há um<br />

fascínio pelo glamour que a coisa representa, e facilmente deixam de ver os efeitos do<br />

que fazem, <strong>da</strong>s mensagens, do sistema de comunicação de massa como um todo.<br />

Em Dialética do Esclarecimento, Horkheimer e Adorno afirmam que a Indústria<br />

Cultural transferiu a arte para a esfera do consumo, transformou tudo em mercadoria,<br />

em diversão. Sua ideologia é o negócio, o mecanismo <strong>da</strong> oferta e <strong>da</strong> procura. Substituise<br />

o conteúdo pela técnica, e o consumidor não precisa ter pensamento próprio, pois o<br />

produto prescreve to<strong>da</strong> reação.<br />

Nos dias atuais, a Indústria Cultural foi assumi<strong>da</strong> pela internet. O problema <strong>da</strong><br />

“cultura de massa”, que tanto preocupou Adorno e Horkheimer, ganha novos e<br />

desafiantes contornos na socie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> assim chama<strong>da</strong> era <strong>da</strong> informação e <strong>da</strong><br />

comunicação. A era <strong>da</strong> rede mundial de computadores, <strong>da</strong> virtualização. Novos temas e<br />

novos problemas se levantam, de uma forma que Adorno e Horkheimer estavam longe<br />

de poder suspeitar. Muitos criticam esse novo meio de comunicação, dizendo que ele<br />

escraviza as pessoas, faz delas número, senha, coisa. Mas outros veem o universo<br />

virtual, positivamente.<br />

No livro O que é o virtual?, o filósofo francês, Pierre Lévy, diz que muitas<br />

pessoas pensam que o virtual é uma ilusão, quando, na <strong>real</strong>i<strong>da</strong>de, a palavra “virtual”<br />

vem do latim medieval virtualis, derivado, por sua vez, de virtus, força, potência. Ele<br />

não se opõe ao <strong>real</strong>, mas ao atual: “O virtual, com muita freqüência, não está presente”<br />

(Lévy, 1996:19). O autor tem uma visão altamente positiva <strong>da</strong> comunicação virtual.<br />

Segundo ele, a virtualização aconteceu muito tempo antes do advento <strong>da</strong> internet,<br />

através <strong>da</strong> imaginação, <strong>da</strong> memória, <strong>da</strong> religião e do conhecimento. Mas, hoje, esse<br />

novo universo <strong>da</strong> comunicação rompe fronteiras. Uma comuni<strong>da</strong>de virtual pode, por<br />

exemplo, organizar-se sobre uma base de afini<strong>da</strong>de por intermédio de sistemas de<br />

comunicação telemáticos. Seus membros estão reunidos pelos mesmos núcleos de<br />

interesses, pelos mesmos problemas: a geografia, contingente, não é mais nem um ponto<br />

de parti<strong>da</strong>, nem uma coerção. Apesar de “não-presente”, essa comuni<strong>da</strong>de está repleta<br />

29


de paixões e de projetos, de conflitos e de amizades. Ela vive sem lugar de referência<br />

estável. Está em to<strong>da</strong> parte onde se encontrem seus membros móveis, nos quatro cantos<br />

do mundo ou em parte alguma: “A virtualização reinventa uma cultura nômade, não por<br />

uma volta ao paleolítico nem às antigas civilizações de pastores, mas fazendo surgir um<br />

meio de interações sociais onde as relações se reconfiguram com um mínimo de<br />

inércia” (Lévy, 1996:21).<br />

Para Lévy, a virtualização submete a narrativa clássica a uma prova rude:<br />

uni<strong>da</strong>de de tempo sem uni<strong>da</strong>de de lugar (graças às interações em tempo <strong>real</strong> por redes<br />

eletrônicas, às transmissões ao vivo, aos sistemas de telepresença). Assim, o virtual<br />

produz efeitos, derruba barreiras, transforma as relações entre privado e público, próprio<br />

e comum, subjetivo e objetivo, mapa e território, autor e leitor etc.<br />

Ao falar <strong>da</strong> virtualização do texto, Lévy esclarece que “um texto é um objeto<br />

virtual, abstrato, independente de um suporte específico. Essa enti<strong>da</strong>de virtual atualizase<br />

em múltiplas versões, traduções, edições, exemplares e cópias” (Lévy, 1996:35). O<br />

filósofo francês afirma que existem outros tipos de textos além do alfabético:<br />

ideogramas, diagramas, mapas, esquemas, simulações, mensagens iconográficas ou<br />

fílmicas, texto como discurso elaborado, próprio <strong>da</strong> mídia eletrônica, o hipertexto,<br />

diante do qual o leitor é mais “ativo”, pode interagir, editar, potencializar sua<br />

informação. O hipertexto não é algo novo, tendo existido desde sempre. Por exemplo, o<br />

recurso <strong>da</strong>s remissões, o encaminhamento do leitor para outras partes do texto. O leitor<br />

de um livro ou de um artigo no papel se confronta com um objeto físico sobre o qual<br />

uma certa versão do texto está integralmente manifesta. Certamente, ele pode anotar nas<br />

margens, fotocopiar, recortar, colar, proceder a montagens, mas o texto inicial está lá,<br />

preto no branco, já <strong>real</strong>izado integralmente. Na leitura em tela, essa presença extensiva e<br />

preliminar à leitura desaparece. O suporte digital (disquete, disco rígido, disco ótico)<br />

não contém um texto legível por humanos, mas uma série de códigos informáticos que<br />

serão eventualmente traduzidos por um computador em sinais alfabéticos para um<br />

dispositivo de apresentação. A tela apresenta-se então como uma pequena janela, a<br />

partir <strong>da</strong> qual o leitor explora uma reserva potencial.<br />

Nas redes digitais, o texto foi desterritorializado, afirma Lévy. O texto continua<br />

subsistindo, mas a página — cerca<strong>da</strong> pelo branco <strong>da</strong>s margens lavrado em linhas e<br />

semeado de letras e de caracteres pelo autor — furtou-se e juntou-se à torrente digital.<br />

Dessa maneira, graças à digitalização, o texto e a leitura recebem hoje um novo<br />

impulso, e ao mesmo tempo uma profun<strong>da</strong> mutação. Pode-se imaginar que os livros, os<br />

30


jornais, os documentos técnicos e administrativos impressos no futuro serão apenas<br />

projeções temporárias e parciais de hipertextos on-line muito mais ricos e sempre<br />

ativos. Mas Lévy não acredita que o texto impresso em papel deixe de existir. A<br />

diferença é que, no texto on-line, o leitor pode interagir, participar de sua construção,<br />

refletir sobre ele instantaneamente, o que não é possível com um texto impresso nas<br />

mãos.<br />

A comunicação virtual é um gigantesco passo <strong>da</strong>do pela humani<strong>da</strong>de. Primeiro,<br />

porque os jornais impressos em papel têm limite de espaço. O escritor de histórias de<br />

vi<strong>da</strong> fica preso ao número de caracteres e nem sempre tem condições de desenvolver<br />

uma narrativa profun<strong>da</strong> e mais duradoura. Isso não é problema para quem publica na<br />

internet. Espaço é o que não falta. Exemplo disso é o site TextoVivo<br />

(www.textovivo.com.br) <strong>da</strong> Academia Brasileira de Jornalismo Literário, que publica<br />

<strong>narrativas</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>real</strong>. Para se ter uma idéia, o texto “A Rússia de Lyuba Lulko”, <strong>da</strong><br />

jornalista Thatiza Curuci, possui 26.548 caracteres, o que seria publicável em jornal<br />

impresso apenas em série ou utilizando to<strong>da</strong>s as páginas <strong>da</strong> edição de um jornal ou<br />

revista. Isso já aconteceu no passado. Exemplo disso é o livro Hiroshima, de John<br />

Hersey, considera<strong>da</strong> a mais importante reportagem do século XX, publica<strong>da</strong> na revista<br />

The New Yorker, no dia 31 de agosto de 1946. Isso é possível hoje, desde que haja<br />

interesse do jornal e dos leitores.<br />

Se, por um lado, a virtualização contribui para a publicação, divulgação e leitura<br />

de histórias de vi<strong>da</strong>, o mesmo não acontece com a construção dessas histórias, pois email,<br />

msn, orkut, twitter ou outra ferramenta virtual, jamais substituem a relação sujeitosujeito,<br />

de que fala Medina (2006). A imersão na <strong>real</strong>i<strong>da</strong>de <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>da</strong> personagem é<br />

ponto crucial para uma história de vi<strong>da</strong> sob o <strong>signo</strong> <strong>da</strong> <strong>compreensão</strong>, tema de que<br />

trataremos em profundi<strong>da</strong>de mais adiante. Para Eliane Brum, jornalista premia<strong>da</strong> por<br />

seus textos, em grande parte em forma de histórias de vi<strong>da</strong>, é preciso olhar a própria<br />

vi<strong>da</strong> com generosi<strong>da</strong>de, curvar o pescoço e colocar os olhos no mesmo plano dos olhos<br />

<strong>da</strong>s pessoas. Desta posição de igual<strong>da</strong>de pode-se enxergá-las. Por exemplo, no livro A<br />

vi<strong>da</strong> que ninguém vê, Eliane Brum traz a história do Sapo, um mendigo que se arrastava<br />

pelas ruas de Porto Alegre. Ela conta como encontrou esse personagem:<br />

Em 1999, ao trilhar as ruas de Porto Alegre, pelas quais tantas vezes eu tinha an<strong>da</strong>do, o<br />

desafio era pisar sobre as mesmas pedras, mas olhar de outro lugar. Não é um truque<br />

banal, é uma alteração de foco que se faz em apenas um segundo e uma inclinação de<br />

alguns centímetros do pescoço, mas que resulta avassaladora. Um exemplo. O mendigo<br />

31


<strong>da</strong> Rua <strong>da</strong> Praia, estatelado o chão, barriga sobre a laje, havia 30 anos. Não sei quantas<br />

vezes passei por ele com pena e culpa. A vi<strong>da</strong> que ninguém vê me impôs — e não foi<br />

fácil — curvar o pescoço, me agachar e colocar meus olhos no mesmo plano dos olhos<br />

dele. Dessa posição de igual<strong>da</strong>de, pude enxergá-lo. Bastou olhar para baixo para que<br />

Sapo pudesse me contar como era olhar para cima (Brum, 2006:189).<br />

Através do contato com a personagem, com todos os sentidos bem aguçados, é<br />

que se pode construir uma narrativa transformadora, na linha do que propõe Lima. Para<br />

Brum, o dito é, muitas vezes, tão importante quanto o não-dito, o que o entrevistado<br />

deixa de dizer, o que omite. É preciso calar para ser capaz de escutar o silêncio. Olhar<br />

significa sentir o cheiro, tocar as diferentes texturas, perceber os gestos, as hesitações,<br />

os detalhes, apreender as outras expressões do que somos: “Metade (talvez menos) de<br />

uma reportagem é o dito, a outra metade o percebido. Olhar é um ato de silêncio”<br />

(Brum, 2006:191).<br />

A socie<strong>da</strong>de atual, líqui<strong>da</strong>, virtual, em muitos pontos ain<strong>da</strong> impulsiona<strong>da</strong> pela<br />

Indústria Cultural, acelerou o tempo, encurtou as distâncias e derrubou fronteiras. Hoje,<br />

através <strong>da</strong> comunicação virtual, pode-se falar com um amigo que mora do outro lado do<br />

mundo, ao vivo, ou saber o que está acontecendo na menor ilha do Oceano Pacífico.<br />

Isso é uma vitória para a humani<strong>da</strong>de. Mas, veem-se também os grandes monopólios <strong>da</strong><br />

comunicação mais preocupados com o lucro do que com o planeta e as pessoas. O<br />

mesmo se dá com os jornais. É duro ver as mesmas notícias e as mesmas personagens<br />

todos os dias nas manchetes. Não se aguenta mais ver a foto do Ronaldo do Corinthians,<br />

de José Sarney, com seu bigode e suas lambanças, no Senado. Será que não existe mais<br />

na<strong>da</strong> sob o sol para ser publicado? Será que o mundo é só desgraça e frustração? Não,<br />

não é. Contudo, para contemplar as estrelas, é preciso olhar para cima; para sentir a<br />

força de uma on<strong>da</strong>, é preciso entrar no mar; para ouvir o som do vento, é preciso<br />

silenciar o corpo e a alma. Lamentavelmente, a maioria dos jornalistas não tem tempo<br />

para isso, ou não quer deixar a cadeira vazia na re<strong>da</strong>ção.<br />

A pesquisadora <strong>da</strong> USP, Cremil<strong>da</strong> Medina afirma:<br />

Temos hoje o jornalismo do computador, <strong>da</strong> internet. Agora, o jornalismo de sofá, de<br />

janela, de internet etc. e tal podem até ser jornalismo. Mas não são a essência desse<br />

fenômeno, que é o reportar o presente. Pode-se até fazer análise do sofá, <strong>da</strong> cadeira<br />

confortável, fazer comentários na televisão, fazer comentários na internet — a internet,<br />

hoje, é um palco de juízos de valor, de chutômetros, de ideologia coisa e tal —, mas<br />

isso, para mim, não é reportar e reconstituir, ou recriar a cena do presente (em Kunsch,<br />

2004:254).<br />

32


A socie<strong>da</strong>de do novo milênio traz consigo a liquidez ou fluidez. Os laços<br />

humanos são marcados pela fragili<strong>da</strong>de, a virtualização, ao mesmo tempo, aproxima e<br />

separa as pessoas. A produção cultural e intelectual virou mercadoria. Mas, o sociólogo<br />

francês Michel Maffesoli nos traz mais um fenômeno de nosso tempo: o neotribalismo.<br />

33


3. O neotribalismo na pós-moderni<strong>da</strong>de<br />

O pensador francês, Michel Maffesoli, defende que a socie<strong>da</strong>de pós-moderna<br />

vive o retorno ao tribalismo. Isso pode ser visto pelo cotidiano e seus rituais, emoções e<br />

paixões coletivas, valorização do corpo em espetáculo e do gozo contemplativo, tendo<br />

como símbolo o hedonismo de Dioniso. Está acontecendo uma revolução, não limita<strong>da</strong><br />

a uma área geográfica, mas que, em maior ou menor medi<strong>da</strong>, se faz visível em to<strong>da</strong>s as<br />

partes do mundo e, como entende esse autor, vai ser o valor dominante para os decênios<br />

do futuro. Depois do domínio <strong>da</strong> razão mecânica, previsível, instrumental, assiste-se ao<br />

retorno do “princípio de eros”, ao retorno do tribalismo, “ver<strong>da</strong>deira revolução<br />

espiritual; revolução dos sentimentos que ressalta a alegria <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> primitiva, <strong>da</strong> vi<strong>da</strong><br />

nativa” (Maffesoli, 2006:6).<br />

Uma <strong>da</strong>s marcas <strong>da</strong>s tribos contemporâneas é o prazer de estar junto, viver<br />

intensamente o momento, gozar deste mundo sem preocupação com o futuro, com<br />

questões políticas, econômicas, sociais ou mesmo com a <strong>real</strong>ização de um projeto ou a<br />

conquista de um objetivo. O que importa é pertencer a um grupo, viver em comunhão<br />

com a natureza, experimentar tudo o que é humano. “A vi<strong>da</strong> se torna selvagem”.<br />

Maffesoli observa que a socie<strong>da</strong>de pós-moderna está deixando de ser patriarcal,<br />

hierarquiza<strong>da</strong>, passando a priorizar os laços <strong>da</strong> fraterni<strong>da</strong>de, numa constante abertura à<br />

dimensão comunitária <strong>da</strong> sociali<strong>da</strong>de. Vê-se isso na importância que as pessoas dão à<br />

mo<strong>da</strong>, na manifestação do instinto de imitação, nas pulsões gregárias de todos os tipos,<br />

nas múltiplas histerias coletivas, nos grandes eventos esportivos, musicais e religiosos:<br />

É em função dos gostos sexuais, <strong>da</strong>s soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>des de escolas, <strong>da</strong>s relações de amizade,<br />

<strong>da</strong>s preferências filosóficas ou religiosas que vão se constituir as redes de influência, a<br />

34


camara<strong>da</strong>gem e outras formas de aju<strong>da</strong> mútua. “Redes <strong>da</strong>s redes” (...), onde o afeto, o<br />

sentimento, a emoção sob suas diversas modulações têm um papel essencial (Maffesoli,<br />

2006:14).<br />

Assim, não é mais um indivíduo poderoso ou uma instituição quem domina a<br />

socie<strong>da</strong>de, mas a paixão comunitária. “Trata-se <strong>da</strong> saturação do sujeito, <strong>da</strong> subjetivi<strong>da</strong>de<br />

de massa” (Maffesoli, 2006:15). É a decadência do esquema substancialista do<br />

Ocidente, <strong>da</strong> ontologia como ponto de parti<strong>da</strong>: Ser, Deus, Estado, Instituições,<br />

Indivíduo. O ego cogito não é mais soberano; ele deu lugar aos afetos locais, a um<br />

“pensamento do ventre”, que sabe valorizar os sentidos, as paixões e as emoções<br />

comuns. É o primado <strong>da</strong> persona.<br />

Quando se olha para a vi<strong>da</strong> cotidiana, percebe-se como o emocional tem<br />

dominado o comportamento <strong>da</strong>s pessoas. “Pode-se dizer que assistimos tendencialmente<br />

à substituição de um social racionalizado por uma sociali<strong>da</strong>de com dominante<br />

empática” (Maffesoli, 2006:39). Essa tendência ao emocional e comunitário caminha,<br />

lado a lado, com o desenvolvimento tecnológico e econômico. As metrópoles<br />

desumanizam as pessoas; por isso, partilham seus sentimentos e sua paixão em<br />

agrupamentos específicos.<br />

Maffesoli afirma que, na pós-moderni<strong>da</strong>de, está acontecendo a passagem do<br />

social para a sociali<strong>da</strong>de. Segundo ele, vivemos o tempo <strong>da</strong>s “aldeias”. A vi<strong>da</strong> social<br />

tem como ponto de parti<strong>da</strong> o local, o território, o conhecimento ordinário. A vi<strong>da</strong> se<br />

sedimenta nos bairros, na força <strong>da</strong>s comuni<strong>da</strong>des, na transcendência do indivíduo, e não<br />

mais na política. Nessas aldeias vive-se, em extremo, o presente e a estrutura <strong>da</strong><br />

“família amplia<strong>da</strong>”. “Em uma palavra, a economia <strong>da</strong> ordem política, fun<strong>da</strong>menta<strong>da</strong> na<br />

razão, no projeto e na ativi<strong>da</strong>de, dá lugar à ecologia de uma ordem orgânica (ou<br />

holística), integrando ao mesmo tempo a natureza e a proxemia” (Maffesoli, 2006:125).<br />

Eis algumas características <strong>da</strong> sociali<strong>da</strong>de: o relativismo do viver, a experiência<br />

do outro, o diálogo, a relação táctil: “Na massa nos cruzamos, nos roçamos, nos<br />

tocamos, interações se estabelecem, cristalizações se operam e grupos de formam”<br />

(Maffesoli, 2006:128). O pensador francês chama essas relações de “união em<br />

pontilhado”, comparando o que acontece hoje com a vi<strong>da</strong> <strong>da</strong>s primeiras comuni<strong>da</strong>des<br />

cristãs, forma<strong>da</strong>s por pequenos grupos espalhados pelo Império Romano, de cuja<br />

experiência nasceu a expressão “comunhão dos santos”. Hoje nos confrontamos com<br />

uma forma de comunhão dos santos. “As mensagens de computador, as redes sociais, as<br />

diversas soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>des, os encontros esportivos e musicais são todos indícios de um<br />

35


ethos em formação. É isso que delimita esse novo espírito do tempo que podemos<br />

chamar de sociali<strong>da</strong>de” (Maffesoli, 2006:129).<br />

Na pós-moderni<strong>da</strong>de, o homem não é mais considerado uma ilha. Deus e a<br />

Teologia, o Espírito e a Filosofia, o Indivíduo e a Economia estão cedendo lugar ao<br />

neotribalismo, que não tem projeto político, não busca nenhuma finali<strong>da</strong>de e tem como<br />

única razão de ser a experiência do presente vivido sem preconceitos. Maffesoli<br />

esclarece a diferença entre as características do social e <strong>da</strong> sociali<strong>da</strong>de. No social, o<br />

indivíduo podia ter uma função na socie<strong>da</strong>de, e funcionar no âmbito de um partido, de<br />

uma associação, de um grupo estável. Na sociali<strong>da</strong>de, a pessoa representa papéis, tanto<br />

dentro de sua ativi<strong>da</strong>de profissional quando no seio <strong>da</strong>s diversas tribos de que participa.<br />

Mu<strong>da</strong>ndo o seu figurino, ela vai assumir o seu lugar de acordo com seus gostos<br />

(sexuais, culturais, religiosos e outros), a ca<strong>da</strong> dia, nas diversas peças do teatro do<br />

mundo. No social, existia a autentici<strong>da</strong>de; na sociali<strong>da</strong>de, o que existe é a<br />

superficiali<strong>da</strong>de, a aparência — e, nesse contexto, não é difícil perceber onde o<br />

pensamento maffesoliano, por vias diversas e com sentidos novos, se aproxima <strong>da</strong>s<br />

idéias de fluidez dos líquidos de que trata Zygmunt Bauman (2001).<br />

A teatrali<strong>da</strong>de instaura e reafirma a comuni<strong>da</strong>de. O culto do corpo, os jogos de<br />

aparência só valem porque se inscrevem em uma cena ampla onde ca<strong>da</strong> um é, ao mesmo<br />

tempo, ator e espectador. (...) É próprio do espetáculo acentuar, diretamente, ou de<br />

maneira eufemística, a dimensão sensível, táctil <strong>da</strong> existência social. Estar-junto permite<br />

tocar-se. Todos os prazeres populares são prazeres de multidão ou de grupo (Maffesoli,<br />

2006:134).<br />

Essa necessi<strong>da</strong>de humana de agrupar-se, de viver em tribos e comuni<strong>da</strong>des, está<br />

na sua essência, desde quando houve a passagem do sapiens para o homo sapiens, com<br />

o aumento <strong>da</strong> complexi<strong>da</strong>de cerebral. Edgar Morin, no livro O enigma do homem,<br />

afirma que essa complexi<strong>da</strong>de traduziu-se por uma complexificação microssocial<br />

(indivíduo, família), macrossocial (abertura para o exterior por exogamia, troca,<br />

alianças), uma complexificação do sistema de comuni<strong>da</strong>des e uma nucleação cultural a<br />

partir do mito e <strong>da</strong> magia: “A prodigiosa diáspora que espalhou o homo sapiens por<br />

todo o planeta, em algumas dezenas de milhares de anos, é a <strong>da</strong> arkhé-socie<strong>da</strong>de. Foi<br />

acompanha<strong>da</strong> por uma extraordinária diversificação <strong>da</strong>s raças, <strong>da</strong>s etnias, <strong>da</strong>s culturas,<br />

<strong>da</strong>s linguagens, dos mitos, dos deuses” (Morin, 1979:156). Segundo Morin, formaramse<br />

socie<strong>da</strong>des duras e socie<strong>da</strong>des doces, socie<strong>da</strong>des curva<strong>da</strong>s sob a necessi<strong>da</strong>de e<br />

36


socie<strong>da</strong>des que satisfaziam sem dificul<strong>da</strong>des suas necessi<strong>da</strong>des, socie<strong>da</strong>des em que a<br />

caça permanecia preponderante e socie<strong>da</strong>des em que a colheita ou a apanha voltavam a<br />

tornar-se preponderantes, socie<strong>da</strong>des agressivas e socie<strong>da</strong>des passivas, socie<strong>da</strong>des com<br />

forte opressão e socie<strong>da</strong>des com fraca opressão, socie<strong>da</strong>des com etiqueta minuciosa e<br />

socie<strong>da</strong>des de grande espontanei<strong>da</strong>de, socie<strong>da</strong>des de morte pesa<strong>da</strong> e socie<strong>da</strong>des de<br />

morte leve, socie<strong>da</strong>des possuí<strong>da</strong>s pelos espíritos e socie<strong>da</strong>des que brincavam com os<br />

espíritos, socie<strong>da</strong>des mais dedica<strong>da</strong>s aos deuses e socie<strong>da</strong>des mais dedica<strong>da</strong>s aos<br />

homens, socie<strong>da</strong>des que oprimiam duramente a mulher e socie<strong>da</strong>des em que a mulher é<br />

apenas menos importante, socie<strong>da</strong>des luxuriosas e socie<strong>da</strong>des abstinentes, socie<strong>da</strong>des<br />

“apolíneas” e socie<strong>da</strong>des “dionisíacas”. To<strong>da</strong>s elas se baseiam em um sistema cujo<br />

elemento generativo é a cultura. To<strong>da</strong>s usam linguagem de dupla articulação. To<strong>da</strong>s<br />

conhecem regras de parentesco, casamento, exogamia, ritos, mitos, magia, cerimônias<br />

<strong>da</strong> morte e <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, crença numa sobrevivência, arte, <strong>da</strong>nça e canto.<br />

Para Morin, o nascimento <strong>da</strong> família aconteceu com a verticalização do<br />

homíni<strong>da</strong>, sendo possível a relação sexual frontal e o desabrochar <strong>da</strong> atração erógena —<br />

os lábios, os seios inchados, o pênis espesso e longo —, bem como a erotização do<br />

rosto. A mulher passa a ter orgasmo. A partir de então, o homem e a mulher se amam,<br />

“estão nos braços um do outro”. Assim nasce o amor, combinando sexuali<strong>da</strong>de,<br />

erotismo e ternura, amor que encontrará alicerce social no casamento. Dessa união<br />

homem-mulher brotam os filhos e a abertura sociológica: “A família é um subsistema<br />

aberto para o sistema social. O pai-marido pertence à classe dos homens, a mulher ao<br />

grupo <strong>da</strong>s mulheres, o filho, a partir de certa i<strong>da</strong>de, ao grupo dos jovens não-iniciados”<br />

(Morin, 1979:161). To<strong>da</strong>via, esses agrupamentos eram formados por algumas dezenas<br />

de indivíduos e não estavam ligados intimamente uns aos outros. Somente com o<br />

crescimento dos grupos, as delimitações de território, cooperações, amizades é que vai<br />

surgir a exogamia. Ela favoreceu a diversificação étnica, o desenvolvimento <strong>da</strong>s<br />

singulari<strong>da</strong>des individuais, impedindo, ao mesmo tempo, que a espécie humana se<br />

quebrasse em várias espécies. “Através e apesar <strong>da</strong>s diferenças de raças e de etnias, a<br />

espécie humana, diaspora<strong>da</strong> pelo imenso planeta, manteve, graças à arkhé-socie<strong>da</strong>de,<br />

sua uni<strong>da</strong>de” (Morin, 1979:165).<br />

Com a constante multiplicação de pequenos grupos sociais, a complexificação<br />

do conhecimento técnico, <strong>da</strong> linguagem, aumenta o papel generativo <strong>da</strong> cultura. As<br />

ativi<strong>da</strong>des vão sendo integra<strong>da</strong>s num ciclo cosmo-mitológico; as cerimônias fomentam<br />

a comunicação com o todo e entre todos. As regras de organização <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de são<br />

37


consagra<strong>da</strong>s pela magia, pelo rito e pelo mito. Desse modo, o ser humano estará apto a<br />

<strong>da</strong>r um passo gigantesco: <strong>da</strong> arkhé-socie<strong>da</strong>de para a socie<strong>da</strong>de histórica, cuja base vai<br />

ser a ci<strong>da</strong>de.<br />

O que Morin chama de “terceira nascença do homem” aconteceu há cerca de 10<br />

mil anos na Baixo-Mesopotâmia e região do rio Jordão, em volta dos vales férteis, onde<br />

se haviam desenvolvido as culturas do milho, <strong>da</strong> ceva<strong>da</strong>, e onde a dialética <strong>da</strong><br />

concentração demográfica, do trabalho, <strong>da</strong> técnica, <strong>da</strong> troca, <strong>da</strong> federação, <strong>da</strong> guerra e<br />

<strong>da</strong> conquista fez surgir as primeiras grandes ci<strong>da</strong>des, através de um processo federativoassociativo,<br />

ou de um processo dominador-avassalador, ou com a chega<strong>da</strong> de<br />

migradores e pilhantes e até mesmo de nômades espoliadores e conquistadores.<br />

Mas a ci<strong>da</strong>de também pode nascer como coroamento <strong>da</strong> conquista de um rei guerreiro,<br />

que, depois de ter dominado uma poeira de pequenas socie<strong>da</strong>des rurais, instala seu<br />

palácio, o templo, a guarnição, os ergástulos, recebe o tributo que se tornará imposto, e<br />

fun<strong>da</strong>, ao mesmo tempo, o Estado e a Ci<strong>da</strong>de (...), um metassistema e um megassistema,<br />

em comparação com a arkhé-socie<strong>da</strong>de (Morin, 1979: 180-181).<br />

Com o desenvolvimento <strong>da</strong>s socie<strong>da</strong>des históricas, surge a grande ci<strong>da</strong>de ou<br />

metrópole. É nela que apareceu a escrita, a filosofia, a autonomia do indivíduo, a ordem<br />

e a desordem. Assim, a instabili<strong>da</strong>de faz brotar as crises, liberta as forças demenciais<br />

que a arkhé-socie<strong>da</strong>de havia acorrentado e controlado. “Mas é nessa mesma<br />

instabili<strong>da</strong>de que residem as fontes <strong>da</strong> evolução, isto é, de desorganização e<br />

reorganização” (Morin, 1979:190), evolução cujo motor vai ser a incerteza. Mas o<br />

tempo foi passando... e, para Morin, a evolução do homem não está necessariamente<br />

liga<strong>da</strong> à história; pode-se, portanto, imaginar a possibili<strong>da</strong>de de uma evolução metahistórica,<br />

o nascimento de uma quarta forma de socie<strong>da</strong>de, ou seja, uma quarta nascença<br />

<strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de, uma socie<strong>da</strong>de hipercomplexa.<br />

Essa hipercomplexi<strong>da</strong>de é visível na socie<strong>da</strong>de pós-moderna, na qual, como<br />

afirma Maffesoli, o indivíduo significa menos do que a comuni<strong>da</strong>de a qual se inscreve;<br />

onde importa menos a grande história factual do que as histórias vivi<strong>da</strong>s no dia a dia, as<br />

situações imperceptíveis que constituem a trama comunitária. Para ele, deve-se estar<br />

atento ao componente relacional <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> social. O homem em relação. Não apenas a<br />

relação interindividual, mas também a que nos liga a um território, a uma ci<strong>da</strong>de, a um<br />

meio ambiente natural que partilhamos com outros, às pequenas histórias do dia a dia,<br />

ao tempo que se cristaliza em espaço. A partir <strong>da</strong>í, a história de um lugar se torna<br />

história pessoal. Por sedimentação, tudo o que é insignificante — rituais, odores, ruídos,<br />

38


imagens, construções arquitetônicas — se transforma no que Nietzsche chamou de<br />

“diário figurativo”. “Diário que nos ensina o que é preciso dizer, fazer, pensar, amar.<br />

Diário que nos ensina ‘que podemos viver aqui, já que vivemos aqui’” (Maffesoli,<br />

1998:170).<br />

O que se vê no novo milênio é a saturação do modelo puramente racional e<br />

progressista do Ocidente. Assiste-se ao advento de uma nova socie<strong>da</strong>de, com a<br />

“orientalização” do mundo, uma ênfase maior ao afetual, às relações de vizinhança, a<br />

ritualização do bairro; enfim, ao sentimento partilhado, qualquer que seja o território em<br />

questão ou o conteúdo <strong>da</strong> afeição: “interesses culturais, gostos sexuais, cui<strong>da</strong>dos<br />

vestimentares, representações religiosas, motivações intelectuais, engajamentos<br />

políticos, (...) nutrientes ao que chamo de neotribalismo” (Maffesoli, 1998:188).<br />

As tribos urbanas são mobiliza<strong>da</strong>s, segundo Maffesoli, pelo não-racional. O<br />

não-racional não é o irracional, não se posiciona com relação ao racional, como<br />

acontece de acordo com uma lógica que domina o mundo desde o Iluminismo. Agora se<br />

admite que a racionali<strong>da</strong>de, tal como gesta<strong>da</strong> nos séculos XVIII e XIX, é apenas um dos<br />

modelos possíveis <strong>da</strong> razão que age na vi<strong>da</strong> social. Portanto, o afetual e simbólico<br />

podem ter a sua própria racionali<strong>da</strong>de. O sociólogo francês usa dois termos para<br />

expressar seu pensamento, voltado para a existência, para a alma do mundo:<br />

“conhecimento comum” e “razão sensível”, não por acaso títulos de duas de suas mais<br />

conheci<strong>da</strong>s obras. A racionali<strong>da</strong>de que se anuncia agora se organiza em torno de um<br />

eixo (guru, ação, prazer, espaço) que, ao mesmo tempo, liga as pessoas e as deixa livres.<br />

O fato de pertencer não é absoluto, ca<strong>da</strong> um pode participar de uma infini<strong>da</strong>de de<br />

grupos, investindo, em ca<strong>da</strong> um deles, uma parte importante de si próprio. “Esse<br />

borboleteamento é, certamente, uma <strong>da</strong>s características essenciais <strong>da</strong> organização social<br />

que se está esboçando” (Maffesoli, 1998:202).<br />

Depois do domínio do racionalismo, emerge o mundo <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, uma mistura de<br />

ternura e cruel<strong>da</strong>de. As grandes teorias elabora<strong>da</strong>s no Ocidente já não alcançam tanta<br />

adesão. Hoje se vê surgir a lógica <strong>da</strong> alteri<strong>da</strong>de, o retorno a pensamentos arcaicos, o<br />

“sentir o pensar”, e o “pensar o sentir”.<br />

O neurocientista António Damásio, professor e chefe do Departamento de<br />

Neurologia <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de Iowa, nos EUA, no livro O erro de Descartes, mostra a<br />

importância <strong>da</strong> emoção na vi<strong>da</strong> do homem. A visão dualista de Descartes separava<br />

emoção, razão e mente, com seu “penso, logo existo”, talvez a afirmação mais famosa<br />

<strong>da</strong> história <strong>da</strong> filosofia. Damásio, por sua vez, diz que esse foi o grande erro do filósofo<br />

39


francês, pois a afirmação sugere que pensar e ter consciência de pensar são os<br />

ver<strong>da</strong>deiros substratos de existir. E, como Descartes via o ato de pensar como uma<br />

ativi<strong>da</strong>de separa<strong>da</strong> do corpo, isso significa a separação <strong>da</strong> mente, a “coisa pensante”, do<br />

corpo não pensante. No entanto, diz Damásio, antes do aparecimento <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de, os<br />

seres já eram seres. Num <strong>da</strong>do ponto <strong>da</strong> evolução, surgiu uma consciência elementar.<br />

Com essa consciência elementar, apareceu uma mente simples; com uma maior<br />

complexi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> mente, veio a possibili<strong>da</strong>de de pensar e, mais tarde ain<strong>da</strong>, de usar<br />

linguagens para comunicar e melhor organizar os pensamentos. “Para nós, portanto, no<br />

princípio foi a existência e só mais tarde chegou o pensamento” (Damásio, 2006:279).<br />

Para Damásio (2006), o filósofo francês é símbolo de um conjunto de idéias<br />

acerca do corpo, do cérebro e <strong>da</strong> mente que, de uma maneira ou de outra, continuam a<br />

influenciar as ciências e as humani<strong>da</strong>des no mundo ocidental. A preocupação é dirigi<strong>da</strong><br />

tanto à noção dualista com a qual Descartes separa a mente do cérebro e do corpo como<br />

às variantes modernas dessa noção, por exemplo: a idéia de que mente e cérebro estão<br />

relacionados, mas apenas no sentido de a mente ser o programa de software que corre<br />

numa parte do hardware, chamado cérebro; ou que cérebro e corpo estão relacionados,<br />

mas apenas no sentido de o primeiro não conseguir sobreviver sem a manutenção que o<br />

segundo lhe oferece. Damásio não descarta a importância <strong>da</strong> razão para a vi<strong>da</strong> do<br />

homem, mas alerta para o perigo de o homem cair no racionalismo ao desprezar as<br />

emoções:<br />

Qual foi, então, o erro de Descartes? (...) A afirmação “Cogito ergo sum” ilustra<br />

exatamente o oposto <strong>da</strong>quilo que creio ser ver<strong>da</strong>de acerca <strong>da</strong>s origens <strong>da</strong> mente e <strong>da</strong><br />

relação entre a mente e o corpo. A afirmação sugere que pensar e ter consciência de<br />

pensar são os ver<strong>da</strong>deiros substratos de existir. E, como sabemos que Descartes via o<br />

ato de pensar como uma ativi<strong>da</strong>de separa<strong>da</strong> do corpo, essa afirmação celebra a<br />

separação <strong>da</strong> mente, a “coisa pensante” (res cogitans), do corpo não pensante, o qual<br />

tem extensão e partes mecânicas (res extensa) (Damásio, 2006:279).<br />

Kunsch, no texto Aquém, em e além do conceito: comunicação, epistemologia e<br />

<strong>compreensão</strong>, dá pistas <strong>da</strong>s origens do que ele chama de Signo <strong>da</strong> Explicação. O autor<br />

lembra que a longa e cau<strong>da</strong>losa tradição científica estende suas raízes lá para trás do<br />

tempo, até a Grécia Antiga, “embora assuma seu evidente rigor, vigor, e às vezes rancor<br />

a partir do início <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de”, com nomes como Bacon, Galileu e outros, atingindo<br />

o ápice com René Descartes. Para Kunsch, buscar a <strong>compreensão</strong> — no sentido de um<br />

40


pensamento que junta, integra, faz as pessoas e os sentidos dialogarem uns com os<br />

outros — muitas vezes é sofrer a in<strong>compreensão</strong>:<br />

(...) A crítica aqui proposta ao modelo de pensamento empírico-racionalista não dura<br />

muito tempo para ser desclassifica<strong>da</strong>, às vezes com violência, como se fosse uma<br />

postura retrógra<strong>da</strong> de descrédito na ciência, quando não de apologia ignorante do<br />

obscurantismo. Não convém se assustar com certo tipo de reação, não exatamente<br />

racional nem tampouco científica de um pensamento aqui e acolá arredio à crítica, por<br />

ter se habituado a pôr pontos finais lá onde interrogações, vírgulas, ponto-e-vírgulas e<br />

reticências ofereceriam maior garantia na difícil arte de exorcizar o dogmatismo e abrir<br />

o terreno à <strong>compreensão</strong> (Kunsch, 2009:64).<br />

Valorizando também a emoção, Maffesoli defende que é preciso aproximar<br />

paixão e razão, valorizar os sentimentos compartilhados, a memória coletiva, o<br />

inconsciente coletivo, o lúdico e o onírico, pois o vínculo social, na pós-moderni<strong>da</strong>de, é<br />

mais carnal que cerebral: o estar-junto não precisa mais se dotar de uma racionalização<br />

distante, de um progresso social ou de um paraíso celeste por vir, preferindo viver o<br />

instante. Seja nas i<strong>da</strong>s às “boates”, nos ajuntamentos religiosos, nas diversas<br />

peregrinações exóticas ou nos inúmeros eventos esportivos, o que se exalta é a vi<strong>da</strong> no<br />

que ela tem de sensível e afetuoso. O ascetismo, a renúncia, a mortificação, próprios do<br />

ju<strong>da</strong>ísmo-cristianismo, perderam fôlego. O que se percebe é um “presente eterno”, no<br />

qual o selvagem, a tecnologia e os arquétipos convivem bem, estão numa sinergia:<br />

Estamos no próprio coração do retorno <strong>da</strong>s figuras míticas no festivo contemporâneo,<br />

uma celebração <strong>da</strong>s raízes, uma busca desenfrea<strong>da</strong> dos símbolos, o desejo de estar<br />

ligado novamente à alteri<strong>da</strong>de através de arquétipos que não se representam, mas são<br />

vividos aqui e agora (Maffesoli, 2007:46).<br />

O neotribalismo, diferentemente <strong>da</strong> Indústria Cultural que via tudo como<br />

mercadoria e as pessoas como massa, une arcaísmo e tecnologia, enraizando as pessoas<br />

em um território que pode ser ao mesmo tempo <strong>real</strong> (o local onde vivemos), ou virtual<br />

(possibilitado pelos modernos meios de comunicação, sobretudo a internet). Territórios<br />

simbólicos em que a imagem, o símbolo, tudo o que é “ir<strong>real</strong>”, ocupa lugar privilegiado.<br />

No neotribalismo, o sujeito já não é senhor de sua história, mas participante de uma<br />

comuni<strong>da</strong>de de destino. Não importa “A Ver<strong>da</strong>de”, mas ver<strong>da</strong>des momentâneas,<br />

factuais, liga<strong>da</strong>s à vi<strong>da</strong> <strong>da</strong>s comuni<strong>da</strong>des e <strong>da</strong>s tribos. “Como já assinalei, estamos<br />

efetivamente entrando, e de forma irreversível, no Tempo <strong>da</strong>s Tribos. O tempo desses<br />

41


intelectuais que subordinam seu próprio julgamento ao do grupo de que fazem parte”<br />

(Maffesoli, 2007:152).<br />

No tempo <strong>da</strong>s tribos, as pessoas não querem mais conceitos fechados e<br />

totalitários, mas noções, metáforas e analogias. Pode-se ver em tudo isso um<br />

reencantamento do mundo, um novo olhar para o conhecimento ordinário, ou <strong>da</strong> praça<br />

pública, “uma mistura de rigor e poesia, de razão e paixão, de lógica e mitologia, (...)<br />

uma mistura inextricável de inteligível e de sensível, de sapiens e de demens”<br />

(Maffesoli, 2007a:92). É o ser humano vivendo sob o <strong>signo</strong> <strong>da</strong> desordem, cujas<br />

características Morin assim descreve:<br />

Um ser de uma afetivi<strong>da</strong>de imensa e instável, que sorri, ri, chora, um ser ansioso e<br />

angustiado, um ser gozador, embriagado, extático, violento, furioso, amante, um ser<br />

invadido pelo imaginário, um ser que conhece a morte e não pode acreditar nela, um ser<br />

que segrega o mito e a magia, um ser possuído pelos espíritos e pelos deuses, um ser<br />

que se alimenta de ilusões e de quimeras, um ser subjetivo cujas relações com o mundo<br />

objetivo são sempre incertas, um ser submetido ao erro, ao devaneio, um ser híbrido que<br />

produz a desordem. E como chamamos loucura à conjunção <strong>da</strong> ilusão, do<br />

descomedimento, <strong>da</strong> instabili<strong>da</strong>de, <strong>da</strong> incerteza entre <strong>real</strong> e imaginário, <strong>da</strong> confusão<br />

entre subjetivo e objetivo, do erro, <strong>da</strong> desordem, somos obrigados a ver o homo sapiens<br />

como homo demens (Morin, 1979:116-117).<br />

Essa complexi<strong>da</strong>de que envolve a história humana torna-se palpável quando se<br />

vai ao encontro <strong>da</strong> experiência comum, <strong>da</strong> banali<strong>da</strong>de do cotidiano, pois é esse<br />

entrelaçamento do racional e não-racional que move as histórias humanas, a vi<strong>da</strong> social.<br />

Ca<strong>da</strong> homem é uma “síntese individualiza<strong>da</strong>” <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de: “A complexi<strong>da</strong>de cotidiana,<br />

a ‘cultura primeira’, merece uma atenção específica — e a isto propus que se<br />

denominasse conhecimento comum” (Maffesoli, 2007a:260).<br />

A situação do homem na pós-moderni<strong>da</strong>de é paradoxal. Estamos num momento<br />

de crise, de acrisolamento. Mas crise não é negativi<strong>da</strong>de. Se as dificul<strong>da</strong>des são<br />

encara<strong>da</strong>s com coragem e abertura, descobrem-se portas e janelas onde só se via um<br />

muro alto e contínuo. Urge, na socie<strong>da</strong>de pós-moderna, neotribal, o aprendizado e o<br />

ensino <strong>da</strong> <strong>compreensão</strong>. Para Morin, as interdependências multiplicaram-se. A<br />

consciência de ser solidários com a vi<strong>da</strong> e a morte, de agora em diante, une os humanos<br />

uns aos outros. “A comunicação triunfa, o planeta é atravessado por redes, fax, telefones<br />

celulares, modems, internet”. Entretanto, a in<strong>compreensão</strong> permanece geral, pois<br />

nenhuma técnica de comunicação, do telefone à internet, traz por si mesma a<br />

<strong>compreensão</strong>. “Educar para compreender a matemática ou uma disciplina determina<strong>da</strong> é<br />

uma coisa; educar para a <strong>compreensão</strong> humana é outra. (...) A missão propriamente<br />

42


espiritual <strong>da</strong> educação é ensinar a <strong>compreensão</strong> entre as pessoas como condição e<br />

garantia <strong>da</strong> soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de intelectual e moral <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de” (Morin, 2000:93).<br />

To<strong>da</strong>via, o que Maffesoli chama de pós-moderni<strong>da</strong>de, nesse contexto, não<br />

significa simplesmente uniformização, homogeneização. Marc Augé, etnólogo francês,<br />

professor de antropologia <strong>da</strong> École dês Hautes Études em Scienses Sociales e diretor de<br />

pesquisa do Centre National de La Recherche Scientifique, em Paris, prefere usar o<br />

termo “sobremoderni<strong>da</strong>de”, acentuando a idéia <strong>da</strong> coexistência <strong>da</strong>s correntes de<br />

uniformização e dos particularismos, <strong>signo</strong> de uma lógica do excesso: excesso de<br />

informação, de imagens e de individualismo. Paralelo ao neotribalismo, vê-se também a<br />

multiplicação <strong>da</strong>s reivindicações de identi<strong>da</strong>de local com formas e em escalas muito<br />

diferentes entre umas e outras: “Ca<strong>da</strong> um pode constatar felizmente que o mundo não<br />

está definitivamente sob o <strong>signo</strong> <strong>da</strong> uniformi<strong>da</strong>de e, ao mesmo tempo, inquietar-se<br />

diante <strong>da</strong>s desordens e <strong>da</strong>s violências gera<strong>da</strong>s pela loucura identitária” (Augé,<br />

2006:100). Para esse autor, o mundo contemporâneo é, ao mesmo tempo, unificado e<br />

dividido, uniformizado e diverso, desencantado e reencantado. Não estamos no fim <strong>da</strong><br />

história e <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de, mas, segundo ele, sofrendo de um excesso de moderni<strong>da</strong>de.<br />

Excesso de informação, que “nos dá a sensação de que a história se acelera. Ca<strong>da</strong> dia<br />

somos informados do que acontece nos quatro cantos do mundo. Naturalmente esta<br />

informação é sempre parcial e talvez tendenciosa: mas, (...) reforça-nos ca<strong>da</strong> dia o<br />

sentimento de estarmos dentro <strong>da</strong> história” (Augé, 2006:104). Excesso de imagens, que<br />

iguala acontecimentos, pessoas, e torna incerta a distinção entre o <strong>real</strong> e a ficção.<br />

Excesso de individualismo que, segundo Augé, “consiste na individualização passiva,<br />

muito diferente do individualismo conquistador do ideal moderno: uma individualização<br />

de consumidores cujo aparecimento tem a ver (...) com o desenvolvimento dos meios de<br />

comunicação” (Augé, 2006:106).<br />

Retomando, nesse contexto, o tema deste trabalho, é possível imaginar que os<br />

jornalistas que narram histórias de vi<strong>da</strong> precisam desenvolver olhares, ouvidos e<br />

corações compreensivos às diversas manifestações <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de. Sem uma atitude<br />

compreensiva, as <strong>narrativas</strong> <strong>da</strong> <strong>real</strong>i<strong>da</strong>de serão pobres e superficiais, como chuva caindo<br />

sobre uma pessoa protegi<strong>da</strong> por um guar<strong>da</strong>-chuva, ou sementes lança<strong>da</strong>s sobre terra<br />

pedregosa.<br />

Nas histórias de vi<strong>da</strong> publica<strong>da</strong>s nos jornais O Estado de S. Paulo, Correio<br />

Popular e Gazeta do Cambuí, escolhidos para esta pesquisa, podemos encontrar muitos<br />

elementos do neotribalismo estu<strong>da</strong>do por Maffesoli. Esses três veículos de comunicação<br />

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trazem histórias de vi<strong>da</strong> e perfis de pessoas que têm lutado por uma socie<strong>da</strong>de mais<br />

justa, fraterna e solidária. São histórias de pessoas simples, em sua maioria, mas que<br />

sonham que um mundo melhor é possível e batalham para isso. Histórias em que<br />

prevalecem o não-racional, o afeto, a <strong>compreensão</strong> e o engajamento comunitário —<br />

muitos desses valores, trazidos à tona pelo pensamento maffesoliano. Textos que<br />

revelam a complexi<strong>da</strong>de do ser humano, onde sapiens e demens se dão as mãos.<br />

Histórias que tocam a alma e apontam para a luz que brilha no fim do túnel. Histórias<br />

que transformam o caos em cosmos, como diz Medina. Narrativas que se tecem,<br />

constroem, elaboram, montam, representam um esforço respeitável de organização do<br />

caos. O que nos é <strong>da</strong>do perceber, tanto numa perspectiva intimista, volta<strong>da</strong> para dentro,<br />

quanto numa perspectiva do eu no mundo, o mundo e eu, sempre se apresenta ou está aí<br />

como um caos. Medina reforça:<br />

A arte de narrar acrescentou sentidos mais sutis à arte de tecer o presente. Uma<br />

definição simples é aquela que entende a narrativa como uma <strong>da</strong>s respostas humanas<br />

diante do caos. Dotado <strong>da</strong> capaci<strong>da</strong>de de produzir sentidos, ao narrar o mundo, a<br />

inteligência humana organiza o caos em um cosmos (Medina, 2003:47).<br />

A fluidez, a virtualização e o neotribalismo podem ser percebidos no cotidiano<br />

<strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de contemporânea. O jornalismo caminha nessa <strong>real</strong>i<strong>da</strong>de, muitas vezes<br />

perdido no deserto à procura de um oásis para matar a sede, a fome e aliviar o cansaço.<br />

Muitos profissionais <strong>da</strong> comunicação querem fazer coisas diferentes, descobrir<br />

caminhos para a própria vi<strong>da</strong> e encontrar um sentido novo para seu trabalho. As<br />

histórias de vi<strong>da</strong> são ótimas oportuni<strong>da</strong>des de crescimento pessoal e de conhecimento<br />

do mundo, sobretudo quando acontece uma sintonia entre leitor e personagem. Medina<br />

diz pesar para o leitor de uma narrativa o grau de identificação com os anônimos e suas<br />

histórias de vi<strong>da</strong>. De certa forma, a ação coletiva <strong>da</strong> grande-reportagem ganha em<br />

sedução quando quem a protagoniza são pessoas comuns que vivem a luta do cotidiano.<br />

O jornalista é convi<strong>da</strong>do a sair de si, de seu mundo, e a aceitar uma aventura, <strong>da</strong>r<br />

o primeiro passo, atravessar o primeiro limiar <strong>da</strong> jorna<strong>da</strong> do herói, proposta pelo<br />

mitólogo Joseph Campbell.<br />

44


4. O mito e as <strong>narrativas</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>real</strong><br />

As <strong>narrativas</strong> <strong>da</strong> contemporanei<strong>da</strong>de têm como estrutura as <strong>narrativas</strong> míticas<br />

ancestrais <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de. Quando assistimos novelas, filmes, ouvimos música ou<br />

lemos livros, revistas e jornais, impressos ou na internet, percebemos que as questões de<br />

fundo são praticamente sempre as mesmas. Mito, ficção e <strong>real</strong>i<strong>da</strong>de se misturam<br />

atemporalmente. O mito foi colocado nos porões do saber humano, guar<strong>da</strong>do no baú,<br />

rotulado como coisa infantil, sobretudo a partir do século XVIII, com o Iluminismo, o<br />

Hegelianismo e o Positivismo, repercutindo até nossos dias.<br />

Para Kunsch, “a crença inabalável na razão, como senhora absoluta de todo<br />

conhecimento humano, e no destino glorioso <strong>da</strong> ciência empírica não é responsável<br />

única pelo desprezo que os autores concentrados ao redor dessas posturas filosóficas<br />

nutrem pelo mito” (2007:32). Esse desprezo tem a ver, também, com o modo altamente<br />

reducionista, como o concebem. Mito não é ilusão ou crença em vãs utopias, mas sonho<br />

humano que se torna forte, principalmente, nos momentos de sofrimento e dor. O mito<br />

não é história que se conta, mas uma forma de conhecimento do mundo. Não é somente<br />

a ciência que conhece o mundo. A narrativa é uma <strong>da</strong>s formas mais ancestrais de a<br />

humani<strong>da</strong>de conhecer-se e conhecer o mundo. O mito não é um modo inferior de<br />

pensamento, e nem desapareceu, pois freqüenta os grandes sonhos <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de, torna<br />

os homens mais humanos. “Onde quer que o homem ponha os pés, ele sempre pisa mil<br />

caminhos. A antiga sabedoria indiana presta uma boa aju<strong>da</strong> às noções (...) de uma visão<br />

<strong>da</strong>s diferentes <strong>narrativas</strong> como instrumentos na dura arte de nos compreendermos como<br />

humanos” (Kunsch e Medina, 2007:33).<br />

45


Um dos maiores mitólogos de todos os tempos, Joseph Campbell, esclarece no<br />

livro O herói de mil faces que, em todo o mundo habitado, em to<strong>da</strong>s as épocas e sob<br />

to<strong>da</strong>s as circunstâncias, os mitos humanos têm florescido. Da mesma forma, esses mitos<br />

têm sido a viva inspiração para todos os demais produtos possíveis <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong>des do<br />

corpo e <strong>da</strong> mente humanos.<br />

Para Campbell, não seria demais considerar o mito a abertura secreta, através <strong>da</strong><br />

qual as inexauríveis energias do cosmos penetram nas manifestações culturais humanas:<br />

“As religiões, filosofias, artes, formas sociais do homem primitivo e histórico,<br />

descobertas fun<strong>da</strong>mentais <strong>da</strong> ciência e <strong>da</strong> tecnologia e os próprios sonhos que nos<br />

povoam o sono surgem do círculo básico e mágico do mito” (Campbell, 2007:15). É por<br />

isso que há tantas histórias de heróis na mitologia. Segundo Campbell, mesmo nos<br />

romances populares, o protagonista é um herói ou uma heroína que descobriu ou<br />

<strong>real</strong>izou alguma coisa além do nível normal de <strong>real</strong>izações ou de experiência. “O herói é<br />

alguém que deu a própria vi<strong>da</strong> por algo maior que ele mesmo” (Campbell, 1993:131). O<br />

herói enfrenta uma jorna<strong>da</strong> para conquistar seus objetivos.<br />

Campbell resume a jorna<strong>da</strong> do herói <strong>da</strong> seguinte maneira: o herói mitológico,<br />

saindo de sua cabana ou castelo cotidianos, é atraído, levado ou se dirige<br />

voluntariamente para o limiar <strong>da</strong> aventura. Ali, encontra uma presença sombria que<br />

guar<strong>da</strong> a passagem. O herói pode derrotar essa força, assim como pode fazer um acordo<br />

com ela, e penetrar com vi<strong>da</strong> no reino <strong>da</strong>s trevas (batalha com o irmão, batalha com o<br />

dragão; oferen<strong>da</strong>, encantamento); pode, <strong>da</strong> mesma maneira, ser morto pelo oponente e<br />

descer morto (desmembramento, crucifixão). Além do limiar, o herói inicia uma jorna<strong>da</strong><br />

por um mundo de forças desconheci<strong>da</strong>s e, não obstante, estranhamente íntimas, algumas<br />

<strong>da</strong>s quais o ameaçam fortemente (provas), ao passo que outras lhe oferecem uma aju<strong>da</strong><br />

mágica (auxiliares). Quando chega ao nadir <strong>da</strong> jorna<strong>da</strong> mitológica, o herói passa pela<br />

suprema provação e obtém sua recompensa. Seu triunfo pode ser representado pela<br />

união sexual com a deusa-mãe (casamento sagrado), pelo reconhecimento por parte do<br />

pai criador (sintonia com o pai), pela sua própria divinização (apoteose) ou, mais uma<br />

vez – se as forças se tiverem mantido hostis a ele – pelo roubo, por parte do herói, <strong>da</strong><br />

benção que ele foi buscar (rapto <strong>da</strong> noiva, roubo do fogo); intrinsecamente, trata-se de<br />

uma expansão <strong>da</strong> consciência e, por conseguinte, do rei (iluminação, transfiguração,<br />

libertação). O trabalho final é o do retorno. Se as forças abençoarem o herói, ele agora<br />

retorna sob sua proteção (emissário); se não for esse caso, ele empreende uma fuga e é<br />

perseguido (fuga de transformação, fuga de obstáculos). No limiar do retorno, as forças<br />

46


transcendentais devem ficar para trás, o herói reemerge do reino do terror (retorno,<br />

ressurreição). A bênção que ele trás consigo restaura o mundo (Campbell, 2007).<br />

No livro A jorna<strong>da</strong> do escritor, Christopher Vogler, que a<strong>da</strong>ptou para o cinema a<br />

Jorna<strong>da</strong> do Herói de Campbell, reforça que o mito não é uma inver<strong>da</strong>de, nem um<br />

exagero fantástico. Um mito é um tipo especial de história que li<strong>da</strong> com os deuses ou as<br />

forças <strong>da</strong> criação, e com as relações entre essas forças e os seres humanos. Vogler<br />

explica que o mito é uma metáfora de um mistério que aponta para algo que está além<br />

<strong>da</strong> <strong>compreensão</strong> humana. É uma comparação que nos aju<strong>da</strong> a entender, por analogia,<br />

alguns aspectos de nosso eu misterioso. Desse modo, um mito não é uma mentira, mas<br />

uma maneira de se chegar a uma ver<strong>da</strong>de profun<strong>da</strong>. Nem to<strong>da</strong>s as histórias modernas<br />

são mitos, nem chegam a ter dimensões míticas, mas as histórias que contamos hoje em<br />

dia têm muita coisa em comum com a antiga energia que anima os mitos. “Os padrões<br />

estruturais e os personagens arquetípicos dos mitos fornecem a base de to<strong>da</strong>s as<br />

<strong>narrativas</strong> modernas” (Vogler, 1992:6).<br />

Vogler a<strong>da</strong>ptou os passos <strong>da</strong> Jorna<strong>da</strong> do Herói de Campbell para o cinema,<br />

resumindo-os em doze estágios:<br />

01. Os heróis são apresentados no MUNDO COMUM, onde<br />

02. recebem um CHAMADO À AVENTURA.<br />

03. Primeiro, ficam RELUTANTES ou RECUSAM O CHAMADO, mas<br />

04. num Encontro com o MENTOR são encorajados a fazer a<br />

05. TRAVESSIA DO PRIMEIRO LIMIAR e entrar no Mundo especial, onde<br />

06. encontram TESTES, ALIADOS E INIMIGOS.<br />

07. Na APROXIMAÇÃO DA CAVERNA OCULTA, cruzam um segundo limiar<br />

08. onde enfrentam a PROVAÇÃO SUPREMA.<br />

09. Ganham sua RECOMPENSA e<br />

10. são perseguidos no CAMINHO DE VOLTA ao Mundo Comum.<br />

11. Cruzam então o Terceiro Limiar, experimentam uma RESSURREIÇÃO e são<br />

transformados pela experiência.<br />

12. Chega então o momento do RETORNO COM O ELIXIR, a bênção ou o tesouro<br />

que beneficia o Mundo Comum (Vogler, 1992:44).<br />

O método <strong>da</strong> jorna<strong>da</strong> do herói oferece ao jornalista condições para humanizar o<br />

texto, seja na captação <strong>da</strong>s informações ou na re<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> história de vi<strong>da</strong>. Esse método<br />

contribui não só para contar a história de personali<strong>da</strong>des, de celebri<strong>da</strong>des, mas também<br />

de pessoas comuns. “Uma história de vi<strong>da</strong> bem mapea<strong>da</strong> permite não só ampliar a visão<br />

de mundo do entrevistado, mas que esta ação, à semelhança dos círculos concêntricos<br />

que se expandem a partir de uma pedra joga<strong>da</strong> na água, permite aumentar a consciência<br />

47


num nível histórico, familiar, comunitário e até planetário” (Martinez, 2008:43).<br />

Contudo, esse trabalho não é tarefa fácil:<br />

A captação de uma história de vi<strong>da</strong> contemporânea resulta num caleidoscópio vivo cuja<br />

<strong>compreensão</strong> e re<strong>da</strong>ção é tão desafiante quanto fascinante. Até porque, neste mundo<br />

globalizado, coexistem numa mesma pessoa desde superstições que remontam aos<br />

homens <strong>da</strong>s cavernas, como o temor de raios e trovões, às questões biológica,<br />

emocional, intelectual e espiritual, mergulha<strong>da</strong>s na complexa rede de inter-relações<br />

sociológicas, históricas e ecológicas nas quais está entranha<strong>da</strong> (Martinez, 2008:46).<br />

Kunsch e Martinez, no artigo “Histórias de vi<strong>da</strong> produzi<strong>da</strong>s por jornalistas-<br />

escritores: uma experiência”, apontam a importância <strong>da</strong> jorna<strong>da</strong> do herói para a<br />

construção de <strong>narrativas</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>real</strong> na contemporanei<strong>da</strong>de, “parte integrante e<br />

essencial ao conceito de Jornalismo Transformativo”, de que fala Lima. Para eles, no<br />

contexto <strong>da</strong>s <strong>narrativas</strong> contemporâneas inspira<strong>da</strong>s na estrutura mítica, o protagonista <strong>da</strong><br />

história é, portanto, alguém que, ligado às forças motrizes e transformadoras <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>,<br />

torna-se um reformador social. Ele deixa de pensar, prioritariamente, em si mesmo para<br />

se doar a um objetivo mais elevado ou a outrem. “Essa personagem principal <strong>da</strong> história<br />

pode consagrar sua vi<strong>da</strong>, de forma simbólica, a seu núcleo familiar, comunitário ou<br />

social, como no caso de um cientista que tinha de compartilhar menos tempo com a<br />

família do que gostaria para se dedicar à pesquisa” (Kunsch e Martinez, 2007:34).<br />

As <strong>narrativas</strong> construí<strong>da</strong>s com base na estrutura <strong>da</strong> jorna<strong>da</strong> do herói têm forças<br />

para ampliar a consciência dos leitores e transformá-los em pessoas melhores.<br />

Justamente pelo fato de falar de vi<strong>da</strong> e não apenas de informar sobre acontecimentos do<br />

dia a dia. E não importa qual o veículo que levará essa oportuni<strong>da</strong>de para os leitores:<br />

(...) Não importa a plataforma — uma parede protegi<strong>da</strong> numa caverna ou jornais,<br />

revistas, filmes, programas de rádio ou TV, portais, blogs, e-books lidos no computador<br />

ou celular. As histórias que o jornalista conta, dia após dia, por meio dos testes,<br />

provações, intuições e revelações iluminadoras dos protagonistas <strong>da</strong> narrativa, podem<br />

aju<strong>da</strong>r o receptor midiático a refletir sobre sua existência. Podem ajudá-lo a transformar<br />

essa existência com a agili<strong>da</strong>de e criativi<strong>da</strong>de necessárias, de forma a viver de maneira<br />

mais humana e plena em um cenário planetário que sofre alterações de proporções e<br />

veloci<strong>da</strong>de jamais vistas na história <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de (Kunsch e Martinez, 2007:40).<br />

O jornalismo descobre, a ca<strong>da</strong> dia, novas técnicas para a produção do material<br />

que será publicado nas mídias informativas, tendo como meta, em nossos tempos de<br />

constantes mu<strong>da</strong>nças, a rapidez <strong>da</strong> captação e <strong>da</strong> veiculação <strong>da</strong>s notícias que interessam<br />

aos seus consumidores. Contudo, para Martinez, essas técnicas não dão conta de revelar<br />

48


o que há de mais profundo nos acontecimentos, pois essa forma de abor<strong>da</strong>gem <strong>da</strong><br />

<strong>real</strong>i<strong>da</strong>de é marca<strong>da</strong>mente iluminista (vendo o homem como puramente racional),<br />

materialista (só é considerado o que existe em corpo material), reducionista (a <strong>real</strong>i<strong>da</strong>de<br />

precisa ser reduzi<strong>da</strong>, fragmenta<strong>da</strong>, para ser compreendi<strong>da</strong>), mecanicista e positivista (a<br />

natureza precisa estar em função do ser humano). “Essa abor<strong>da</strong>gem não é mais<br />

suficiente para explicar o universo complexo que marca a época contemporânea”<br />

(Martinez, 2008:29), pois a comunicação social é feita por humanos e para seres<br />

humanos. “Na<strong>da</strong> mais natural que a defesa <strong>da</strong> humanização <strong>da</strong> narrativa para atingir um<br />

público em potencial que a ca<strong>da</strong> dia está mais perplexo diante de um novo mundo,<br />

globalizado e sistêmico” (Martinez, 2008:32).<br />

Dessa forma, o repórter que busca a <strong>compreensão</strong> em suas <strong>narrativas</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>real</strong><br />

deve praticar a inclusão, o diálogo; nunca pensar que está começando do zero; valorizar<br />

a polifonia, o abraço, o afeto, a vi<strong>da</strong>:<br />

A frase de Shakespeare, de que “há mais mistérios entre o céu e a terra do que imagina<br />

nossa vã filosofia”, talvez possa ser aplica<strong>da</strong> ao campo <strong>da</strong> comunicação, naquilo que<br />

aju<strong>da</strong> a entender os rumos possíveis de um pensamento de matriz compreensiva. Um<br />

pensamento que junta; que não descarta o que não cabe nos limites de uma disciplina a<br />

se fazer doutrina, mas que chama para a conversa e o diálogo; que sabe ver o ser e o<br />

não-ser em sua dialogia, a complementarie<strong>da</strong>de dos opostos, a lógica não-lógica do<br />

paradoxo. Um pensamento que jamais imagina poder começar do zero, mas que entende<br />

sua existência e possibili<strong>da</strong>de de avanço na medi<strong>da</strong> mesma em que se reconhece na<br />

intertextuali<strong>da</strong>de dos sentidos e vozes plurais. Um pensamento que, não sendo dual, não<br />

se pretende único (Kunsch, 2009:68).<br />

49


5. O Jornalismo Transformativo e a <strong>compreensão</strong> <strong>da</strong> <strong>real</strong>i<strong>da</strong>de<br />

O mito, a jorna<strong>da</strong> do herói e outras formas de <strong>compreensão</strong> do mundo podem<br />

contribuir para transformá-lo. Lima, como apontado, propõe o que denomina Jornalismo<br />

Transformativo, um modo de se praticar o jornalismo que o situa num nível diferente<br />

que o <strong>da</strong> simples informação. O jornalista pode contribuir, e muito, para esse novo salto<br />

de consciência. Em entrevista a Kunsch 1<br />

, o autor explica o que significa Jornalismo<br />

Transformativo, como resultado de uma intensa pesquisa, cujo ponto de parti<strong>da</strong> foi o<br />

Jornalismo Literário e, depois, o Jornalismo Literário Avançado:<br />

Trata-se de uma produção jornalística basea<strong>da</strong> na escola <strong>da</strong> narrativa, <strong>da</strong> profundi<strong>da</strong>de,<br />

<strong>da</strong> busca de uma leitura compreensiva e contextual <strong>da</strong> <strong>real</strong>i<strong>da</strong>de. Um trabalho<br />

consciente, proativamente voltado para um processo de transformação social. Do<br />

mesmo modo como provoca efeitos negativos, o jornalismo pode provocar efeitos<br />

positivos. Efeitos que despertem as pessoas para determinados temas e sejam capazes de<br />

provocar uma catarse na sua visão de mundo. Ain<strong>da</strong> que um simples texto jornalístico<br />

não vá fazer isso, o importante é que a pessoa se coloque em um processo dinâmico.<br />

Talvez a matéria jornalística seja o primeiro contato com a idéia, a proposta nova. A<br />

pessoa irá depois beber de outras fontes, até que, num determinado momento,<br />

sistematicamente, passe por um processo de transformação (www.textovivo.com.br).<br />

Para Lima, a produção de textos narrativos de quali<strong>da</strong>de, tendo a vi<strong>da</strong> <strong>real</strong> como<br />

eixo principal, envolve dois momentos importantes: a imersão, ou mergulho sem medo<br />

na <strong>real</strong>i<strong>da</strong>de <strong>da</strong> personagem, e o afastamento <strong>da</strong>li para que a psiquê encontre o sentido<br />

do que foi vivido intensamente no primeiro instante, para se conseguir a <strong>compreensão</strong><br />

do que foi experimentado. No primeiro momento, o repórter vai focar os aspectos<br />

objetivos <strong>da</strong> <strong>real</strong>i<strong>da</strong>de, próprios do território lógico e concreto. Mas aqui começa uma<br />

1 A entrevista completa pode ser encontra<strong>da</strong> no site: www.textovivo.com.br<br />

50


armadilha para o escritor <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>real</strong>. O propósito de uma boa matéria de Jornalismo<br />

Literário, e mais ain<strong>da</strong>, de Jornalismo Literário Avançado, deve ser o de buscar<br />

compreender o universo escolhido para abor<strong>da</strong>gem. Significa integrar informações,<br />

encontrar associações entre elementos do mundo observado, entender o melhor possível<br />

o padrão de forças que conformaram a manifestação <strong>da</strong> <strong>real</strong>i<strong>da</strong>de tal qual o repórter<br />

encontrou. “Não quer dizer explicar, tampouco estabelecer uma relação simplista de<br />

causa e efeito. Muito menos deve limitar-se a expor uma situação, mesmo que de modo<br />

extenso, sem avançar para além do nível meramente informativo”. 2<br />

Tentar compreender o mundo apenas pelo aspecto objetivo <strong>da</strong> <strong>real</strong>i<strong>da</strong>de, diz<br />

Lima, “é uma rouba<strong>da</strong>”. Esse pensamento que domina o mundo, a ciência, a socie<strong>da</strong>de<br />

há séculos, não é eficaz para os narradores <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>real</strong>, pois a vi<strong>da</strong> <strong>real</strong> é complexa,<br />

contempla objetivi<strong>da</strong>de, mas também subjetivi<strong>da</strong>de. Lima ensina que, para entrar nesse<br />

estado psicológico que traz à superfície <strong>da</strong> consciência a <strong>compreensão</strong> intuitiva, o autor<br />

<strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>real</strong> precisa silenciar-se. Não haverá fonte externa alguma que lhe aju<strong>da</strong>rá em<br />

primeira instância nessa tarefa. Não adianta recorrer aos especialistas. O escritor<br />

necessita calar-se, aceitar a voz que pode surgir, tími<strong>da</strong>, em si mesmo, apresentando de<br />

súbito, num lance intuitivo revelador, o sentido de um acontecimento, de uma situação,<br />

o aspecto até então oculto de um personagem. O estado psicológico adequado para<br />

produzir essa revelação interna exige atitude contemplativa. É como se o autor, depois<br />

de passar um bom tempo convivendo com o universo sobre o qual vai narrar, se<br />

esquecesse um instante <strong>da</strong>quilo tudo, acalmasse os neurônios e então, em modo<br />

relaxado, sereno, permitisse que tudo desfilasse em sua mente, sob nova estruturação<br />

simbólica, para poder acontecer, como que num relance, a <strong>compreensão</strong> de tudo o que<br />

viveu. Essa <strong>compreensão</strong> pode surgir como um símbolo, uma imagem, uma associação<br />

de idéias, uma metáfora.<br />

Lima ensina quatro passos para se conseguir o silêncio que faz brotar a<br />

<strong>compreensão</strong>: o sonho, a meditação, a visualização criativa e a observação <strong>da</strong><br />

sincronici<strong>da</strong>de. O sonho pode trazer muitas coisas <strong>da</strong> experiência vivi<strong>da</strong> pelo repórter<br />

quando fez a imersão. A dica é manter sempre por perto um caderno e uma caneta para<br />

anotações. A meditação é muito importante. Através dela o repórter recebe os “insights”<br />

de <strong>compreensão</strong> de que precisa para escrever uma história de vi<strong>da</strong> que toque a alma dos<br />

leitores. A visualização criativa consiste em imaginar uma tela mental na cabeça, atrás<br />

2 Lima, www.textovivo.com.br, acessado em 06/11/2009.<br />

51


<strong>da</strong> testa, projetar nela imagens espontâneas inspira<strong>da</strong>s no que foi visto, ouvido, sentido<br />

quando <strong>da</strong> imersão na <strong>real</strong>i<strong>da</strong>de do personagem cuja história de vi<strong>da</strong> vai ser narra<strong>da</strong>. Por<br />

fim, o repórter deve observar a sincronici<strong>da</strong>de de fatos e acontecimentos, aparentemente<br />

díspares, mas que, de súbito, trazem-lhe um sentido inesperado. Isso acontece porque,<br />

no ato de observação <strong>da</strong> <strong>real</strong>i<strong>da</strong>de, o repórter não está captando apenas os sinais<br />

objetivos que estão ao redor, chamando tanto a atenção dos seus sentidos. Em segundo<br />

plano, sutilmente, outra esfera <strong>da</strong> mente está também captando os sinais subjetivos,<br />

mesmo que não perceba ou não os compreen<strong>da</strong> de imediato. Mais tarde, quando a<br />

pessoa sossega o cérebro, relaxa e usa os recursos do sonho, <strong>da</strong> meditação, <strong>da</strong><br />

visualização criativa e <strong>da</strong> sincronici<strong>da</strong>de, está convi<strong>da</strong>ndo uma outra parte do seu ser<br />

mais profundo para vir à tona, trazendo-lhe um presente preciosíssimo.<br />

No livro Páginas Amplia<strong>da</strong>s, o livro-reportagem como extensão do jornalismo e<br />

<strong>da</strong> literatura, Lima apresenta o que ele denomina os dez princípios filosóficos do<br />

Jornalismo Literário, que podem ser aplicados como instrumentos nas <strong>narrativas</strong> sob o<br />

<strong>signo</strong> <strong>da</strong> <strong>compreensão</strong> (Lima, 2009:351-448). A exatidão é o primeiro. O texto, para ser<br />

considerado jornalístico, deve informar, trazer a ver<strong>da</strong>de para o leitor. “O modo como<br />

essas informações são apresenta<strong>da</strong>s, porém, na<strong>da</strong> tem a ver com textos burocráticos e<br />

entediantes que muitas vezes encontramos em relatos jornalísticos recheados de<br />

números” (Lima, 2009:357). Como se trata de uma narrativa, o repórter deve apresentar<br />

uma cena, contar um fato, atiçar a imaginação do leitor. Dentro disso, passar as<br />

informações. Lima afirma que o relato oral, as <strong>narrativas</strong> pictográficas nas cavernas, as<br />

ro<strong>da</strong>s de conversas ao redor de fogueiras em tempos imemoriais, as cartas <strong>da</strong>ndo conta<br />

de descobertas de novos territórios, os contos de fa<strong>da</strong>s, as grandes epopéias mitológicas,<br />

os testemunhos de guerras e migrações, os grandes romances e os modestos contos<br />

escritos à pena, em tempos remotos e nos computadores plugados no oceano cibernético<br />

de nossos dias, as superproduções de efeitos especiais de Hollywood e o vídeo caseiro<br />

do pai corujão, registrando os primeiros passos <strong>da</strong> filhinha, são todos elementos de uma<br />

mesma fonte-matriz: nossa propensão humana a contar histórias. Artificialmente, o<br />

jornalismo convencional esqueceu-se disso, buscando estruturar seu discurso de um<br />

modo considerado, por muito tempo, lógico, racional e objetivo. Pelo exagero, o que se<br />

gerou foi um modo de comunicação social muitas vezes asséptico. Entre a técnica <strong>da</strong><br />

pirâmide inverti<strong>da</strong> e o estilo narrativo, o leitor aprecia mais o segundo. Pois o estilo<br />

narrativo corresponde a uma tendência natural humana, há milênios, que é contar e<br />

receber (ouvir, ver, ler) histórias.<br />

52


A humanização é um dos elementos mais importantes para uma boa história de<br />

vi<strong>da</strong>. Ela deve ser o eixo <strong>da</strong> narrativa. “Onde há a pessoa humana, pode haver uma<br />

história maravilhosa a ser conta<strong>da</strong>, mesmo que os primeiros indícios sejam<br />

desestimuladores. O olhar e o escrutínio do autor é que fazem a diferença. Mas a<br />

descoberta do tesouro escondido na pedra bruta exige tempo, paciência, determinação”<br />

(Lima, 2009:361).<br />

Outro fun<strong>da</strong>mento do Jornalismo Literário, de acordo com Lima, muito útil para<br />

os repórteres que narram histórias de vi<strong>da</strong>, é a universalização temática <strong>da</strong>s histórias<br />

conta<strong>da</strong>s. Nos periódicos, os assuntos tratados estão quase sempre encaixados nas suas<br />

diferentes áreas de especialização. Por isso as re<strong>da</strong>ções dos grandes veículos de<br />

cobertura geral se organizam em torno de editorias. Ca<strong>da</strong> assunto é trabalhado de acordo<br />

com os códigos, as regras e os conhecimentos peculiares de ca<strong>da</strong> setor especializado.<br />

Resulta que o leitor não especializado perde a oportuni<strong>da</strong>de de se interessar por<br />

determina<strong>da</strong>s áreas ao não encontrar, nos periódicos, uma linguagem e um tratamento<br />

que o permitam compreendê-las. É fun<strong>da</strong>mental o exercício do discernimento do autor<br />

para apreender o que está à sua volta, obter clareza <strong>da</strong>s forças dinâmicas que movem<br />

qualquer acontecimento — do esporte à política, <strong>da</strong> ciência ao comportamento, <strong>da</strong><br />

economia à cultura —, ler a <strong>da</strong>nça do universo. E localizar o papel do ser humano em<br />

qualquer situação, como agente e sujeito dos acontecimentos. “O jornalista literário é<br />

mais do que um cronista dos fatos. É um tradutor de conhecimentos. Registra, observa,<br />

testemunha, interpreta, traduz. Só assim presta um serviço que vale a pena, pois com<br />

seu esforço de apreensão reconstrói o mundo” (Lima, 2009:368).<br />

O autor de histórias de vi<strong>da</strong> precisa comunicar com desenvoltura. Para isso<br />

precisa de estilo próprio e voz autoral. Com imaginação e criativi<strong>da</strong>de, vê o mundo com<br />

olhar diferenciado, fazendo seu texto ser singular. Para Lima, o que o leitor espera não é<br />

um discurso de “ver<strong>da</strong>de absoluta”, mas sim uma leitura individual, marca<strong>da</strong> pela<br />

experiência própria do autor, seu modo de captar e expressar a <strong>real</strong>i<strong>da</strong>de, sua interação<br />

com os personagens <strong>da</strong> história. O autor não é um mero compilador de <strong>da</strong>dos, esforçado<br />

moleque de recados que transmite as versões dos fatos mol<strong>da</strong>dos, conforme os<br />

interesses de suas fontes, nem se esconde, submisso, por trás <strong>da</strong>s afirmações dos<br />

especialistas. Autor de jornalismo literário tem nome, rosto, corpo, cabeça, tronco,<br />

membros. Tem mente e coração. Pensa e sente. É um estudioso constante <strong>da</strong> <strong>real</strong>i<strong>da</strong>de.<br />

Interpreta, avalia, busca unir os fios de <strong>compreensão</strong> que unem ações, pessoas,<br />

ambientes. Tem virtudes e defeitos. Enxerga coisas que pessoas menos exercita<strong>da</strong>s para<br />

53


contar histórias não enxergam. Mas é sua leitura particular do <strong>real</strong>, seu pensamento<br />

narrativo, que interessa ao leitor (cf. Lima, 2009:368-369).<br />

Lima diz ain<strong>da</strong> que uma narrativa que desperta o interesse do leitor e o<br />

transforma nasce <strong>da</strong> imersão do repórter na <strong>real</strong>i<strong>da</strong>de. “O autor precisa partir a campo,<br />

ver, sentir, cheirar, apalpar, ouvir os ambientes por onde circulam seus personagens.<br />

Precisa interagir com eles. Deve vivenciar parte <strong>da</strong> experiência de vi<strong>da</strong> que eles vivem”<br />

(Lima, 2009:373). Essa observação participante, como adiantado, deve ser segui<strong>da</strong> de<br />

um afastamento <strong>da</strong> <strong>real</strong>i<strong>da</strong>de observa<strong>da</strong> e vivencia<strong>da</strong>, de um período de silêncio, para<br />

depois fazer brotar o texto.<br />

Outro princípio importante para a construção de histórias de vi<strong>da</strong> é o<br />

simbolismo. Segundo Lima, os <strong>da</strong>dos factuais não dão conta de mostrar a <strong>real</strong>i<strong>da</strong>de<br />

como ela é, pois todo acontecimento tem significados que fogem ao alcance <strong>da</strong> razão,<br />

que só os símbolos podem descrever. O simbolismo aju<strong>da</strong> a consoli<strong>da</strong>r na mente do<br />

leitor a síntese, a imagem, o sentido de um acontecimento, pois se vale do discurso<br />

poético, do código visual. Os significados que não estão evidentes pelos fatos é preciso<br />

ter tirocínio para entender, mesmo que o protagonista <strong>da</strong> história não os consiga<br />

verbalizar. O compromisso, enquanto autor, é ler a <strong>real</strong>i<strong>da</strong>de <strong>da</strong> maneira mais fiel e<br />

completa possível. Isso exige flexibili<strong>da</strong>de mental, assim como sensibili<strong>da</strong>de para se<br />

ver, no que está sutilmente disponível, a carga simbólica oculta. É o simbolismo que<br />

permite ao autor fazer ponte entre um fato ou situação com seu sentido universal. Um<br />

dos meios de emprego do simbolismo é o uso de metáforas, o recurso de linguagem que<br />

permite substituir uma coisa por uma outra que ela não é, mas que todo mudo entende<br />

(cf. Lima, 2009:379).<br />

A criativi<strong>da</strong>de é outro pilar básico do Jornalismo Literário, igualmente muito<br />

útil para as <strong>narrativas</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>real</strong> sob o <strong>signo</strong> <strong>da</strong> <strong>compreensão</strong>. O repórter precisa criar<br />

coisas novas, não ficar na mesmice. Para isso, imaginação e associação são duas ótimas<br />

ferramentas. “Imaginar é ver, com os olhos <strong>da</strong> mente, possibili<strong>da</strong>des não antecipa<strong>da</strong>s<br />

por outros. É discernir, mentalmente, caminhos novos para se atingir objetivos. (...)<br />

Associar é unir conteúdos que normalmente não vemos mutuamente relacionados”<br />

(Lima, 2009:384-385). To<strong>da</strong>via, a imaginação e a associação não estão a serviço <strong>da</strong><br />

ficção, quando se trata de vi<strong>da</strong> <strong>real</strong>. É enxergar o mundo de uma forma diferente, sem<br />

inventar o que não existe naquela história. Aí reside a credibili<strong>da</strong>de de um texto<br />

jornalístico. Por isso, o jornalista deve ter responsabili<strong>da</strong>de ética. O pacto estabelecido<br />

entre o autor e o leitor é que o primeiro, ao apresentar uma história de jornalismo<br />

54


literário ao segundo, entrega-lhe algo que corresponde a uma ver<strong>da</strong>de, ain<strong>da</strong> que a uma<br />

ver<strong>da</strong>de possível, por se tratar de uma representação, uma espécie de edição do mundo.<br />

Não há, ali, propriamente, conteúdos ficcionais. O autor não deve jamais desvincular-se<br />

desse voto de fé, pois uma vez comprometido, sua reputação vai por água abaixo. Uma<br />

narrativa de jornalismo literário não é uma tese científica. O autor não é obrigado a<br />

encontrar hipóteses rígi<strong>da</strong>s, nem comprovar na<strong>da</strong>, a partir de uma tese prioritariamente<br />

esboça<strong>da</strong>. “Sua missão é narrar organicamente, com vigor <strong>real</strong>, o que vê, sente, cheira,<br />

constata. O que compreende <strong>da</strong> <strong>real</strong>i<strong>da</strong>de que vivencia, o que apreende <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de<br />

de seus personagens. Na<strong>da</strong> mais do que isso (Lima, 2009:392).<br />

Para Lima, o autor de histórias de vi<strong>da</strong> também precisa buscar a <strong>compreensão</strong>,<br />

vencer o pensamento que quer explicar tudo, numa visão unilateral, verticaliza<strong>da</strong> e<br />

reducionista dos acontecimentos. A <strong>compreensão</strong> busca exibir o mundo sob<br />

perspectivas diversifica<strong>da</strong>s. Mais do que isso, ilumina as conexões entre conteúdos<br />

aparentemente desconectados. Interliga <strong>da</strong>dos, mostra sentidos, perspectivas. Faz com<br />

que o leitor perceba o que tem a ver com sua própria vi<strong>da</strong>, tudo aquilo que está lendo.<br />

Muitos profissionais <strong>da</strong> comunicação assumiram essa nova visão de jornalismo.<br />

Há jornalistas de longa caminha<strong>da</strong> ou que estão <strong>da</strong>ndo os primeiros passos na profissão,<br />

construindo histórias de vi<strong>da</strong> sob o <strong>signo</strong> <strong>da</strong> <strong>compreensão</strong>. Homens e mulheres<br />

conscientes, que indicam a existência de uma luz no fim do túnel, de modo especial<br />

àqueles que perderam as esperanças. Podemos ler esses textos, por exemplo, no caderno<br />

Aliás, do jornal O Estado de S. Paulo, como nas páginas dos jornais Correio Popular e<br />

Gazeta do Cambuí. Histórias como a de Maria Beatriz Dreyer Pacheco, portadora do<br />

HIV, que trabalha pela prevenção <strong>da</strong> Aids na terceira i<strong>da</strong>de (O Estado de S. Paulo,<br />

30/11/2008, J8); dos negros americanos que foram à posse de Barack Obama (O Estado<br />

de S. Paulo, 25/01/2009, J8); <strong>da</strong> líder <strong>da</strong>s quebradeiras de cocos do estado de Tocantins,<br />

Raimun<strong>da</strong> Gomes <strong>da</strong> Silva (O Estado de S. Paulo, 08/03/2009, J8); <strong>da</strong> professora<br />

Patrícia Fonseca, que embarcou nas férias para Angola, a fim de aju<strong>da</strong>r na alfabetização<br />

dos africanos (Correio Popular, 06/12/2008, A9); do jovem Henrick Melara Felippe,<br />

portador <strong>da</strong> Síndrome de Down, que lançou um livro Terra em Perigo (Correio<br />

Popular, 03/01/2009, A10); <strong>da</strong> ex-freira Teresinha Perpétua Ribeiro que acolhe crianças<br />

e ensina profissões nas favelas de Campinas (Correio Popular, 28/02/2009, A11); de<br />

José Feliciano <strong>da</strong> Silva, que produz canecas reutilizando latas de cervejas e refrigerantes<br />

(Gazeta do Cambuí, 27/03/2009, 4); do motorista de ônibus, José Carlos Garcia, que<br />

fabrica instrumentos musicais nos dias de folga (Gazeta do Cambuí, 23/01/2009, 6).<br />

55


Textos vivos, emocionantes, que tocam a alma e incendeiam os corações frios. Histórias<br />

de pessoas simples e anônimas, mas que encontraram o sentido <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> na prática <strong>da</strong><br />

soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de, no exercício <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia e no amor ao próximo. Ci<strong>da</strong>dãos que não<br />

deixam a liquidez <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de apagar a chama <strong>da</strong> esperança que ain<strong>da</strong> fumega em<br />

seus corações. Textos que mostram que é no chão <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> que a vi<strong>da</strong> se entende, como<br />

defende Maffesoli, que o ordinário é extraordinário; textos através dos quais<br />

aprendemos que a teoria não é tudo, como diz Augé, é apenas isso: teoria, como<br />

tentativa de <strong>compreensão</strong>. Narrativas onde o ser humano é colocado no centro, tem voz,<br />

tem história, não é mercadoria ou massa manipula<strong>da</strong> pela Indústria Cultural. As teorias<br />

nos aju<strong>da</strong>m a ter uma visão do mundo em que vivemos. São importantes, mas na<strong>da</strong> é<br />

mais importante que o ser humano.<br />

Kunsch ressalta a urgência de se estimular a produção de textos vivos, de<br />

<strong>narrativas</strong> complexo-compreensivas, alicerça<strong>da</strong>s no pensamento complexo e<br />

compreensivo:<br />

Um pensamento complexo é o que faz dialogar os diferentes, que tece e entretece em<br />

conjunto — lembrando o significado etimológico de complexus —, que une o que a<br />

tradição sangue azul do conhecimento científico separou. Plural em seus métodos e nas<br />

respostas que ousa oferecer aos problemas do conhecimento, o pensamento complexo é<br />

aberto à fértil promiscui<strong>da</strong>de do mito e do mistério, aos desvios desdogmatizantes do<br />

não-racional, às heresias metodológicas <strong>da</strong> arte e dos saberes comuns. Promove o<br />

diálogo e a negociação de sentidos entre ciências e humani<strong>da</strong>des, propõe e não impõe, é<br />

mais talvez e menos portanto. O rigor argumentativo de uma razão fecun<strong>da</strong> não<br />

desdenha do calor e <strong>da</strong> ternura de um pensamento igualmente lábil, multicolorido, de<br />

meios tons, nos lugares onde o veredicto acachapante <strong>da</strong> lógica violenta vê o preto ou o<br />

branco, o certo ou o errado, o bem ou o mal, o primitivo ou o avançado. Um<br />

pensamento mais de noção que de conceito, intuitivo-sintético mais que analítico. Um<br />

pensamento sério, sim, sem ser raivoso. Um pensamento não violento e não guerreiro.<br />

Compreensivo (Kunsch, 2004:8-9).<br />

56


CAPÍTULO II<br />

NARRATIVAS DA VIDA REAL<br />

E PENSAMENTO COMPLEXO-COMPREENSIVO<br />

57


1. Por um pensamento que tece e entretece<br />

O sociólogo francês, Edgar Morin, é um dos mais veementes críticos do<br />

positivismo, abrindo caminho, em seu pensamento, de defesa <strong>da</strong> complexi<strong>da</strong>de, para a<br />

plurali<strong>da</strong>de e a harmonia do mundo e <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. Esse pensamento, como neste trabalho se<br />

pretende deixar claro, é fun<strong>da</strong>mental para repórteres que narram histórias de vi<strong>da</strong>.<br />

Morin rompeu, num certo sentido, com o pensamento moderno, com as idéias de<br />

Descartes, Galileu, Kepler, Newton e outros, não desvalorizando a razão, mas<br />

distanciando-se dos perigos do racionalismo, que faz <strong>da</strong> razão o instrumento não só<br />

privilegiado, mas absoluto, no conhecimento <strong>da</strong> essência do <strong>real</strong>, tanto natural quanto<br />

histórico. O racionalismo sustenta a primazia <strong>da</strong> razão, <strong>da</strong> capaci<strong>da</strong>de de pensar, de<br />

raciocinar, em relação ao sentimento, à vontade e às emoções. Menospreza outras<br />

formas possíveis de aproximação ao <strong>real</strong>. Não tem em conta o lugar que cabe a outras<br />

formas de conhecimento e a outros saberes.<br />

O paradigma cartesiano, ou o que Morin chama de grande paradigma ocidental<br />

do pensamento, formulado por Descartes e imposto pelo desdobramento <strong>da</strong> história<br />

européia a partir do século XVII, separa sujeito e objeto, alma e corpo, espírito e<br />

matéria, quali<strong>da</strong>de e quanti<strong>da</strong>de, finali<strong>da</strong>de e causali<strong>da</strong>de, sentimento e razão, liber<strong>da</strong>de<br />

e determinismo, existência e essência. Contra essa dicotomia, Morin propõe a<br />

complexi<strong>da</strong>de. O “pensamento pertinente”, como ele diz, deve enfrentar a<br />

complexi<strong>da</strong>de. Complexus significa o que foi tecido junto; de fato, há complexi<strong>da</strong>de<br />

quando elementos diferentes são inseparáveis constitutivos do todo — como o<br />

econômico, o político, o sociológico, o psicológico, o afetivo, o mitológico — e há um<br />

tecido interdependente, interativo e inter-retroativo entre o objeto de conhecimento e<br />

58


seu contexto, as partes e o todo, o todo e as partes, as partes entre si. Por isso, “a<br />

complexi<strong>da</strong>de é a união entre a uni<strong>da</strong>de e a multiplici<strong>da</strong>de” (Morin, 2002:38).<br />

Morin defende a <strong>compreensão</strong> entre as pessoas como condição e garantia <strong>da</strong><br />

soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de intelectual e moral <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de. Comprensão que significa,<br />

intelectualmente, apreender em conjunto, comprehendere, abraçar junto — o texto e seu<br />

contexto, as partes e o todo, o múltiplo e o uno. Esta comporta um conhecimento de<br />

sujeito a sujeito. O outro não é apenas percebido objetivamente, é percebido como outro<br />

sujeito com o qual nos identificamos e que identificamos conosco. “Compreender<br />

inclui, necessariamente, um processo de empatia, de identificação e de projeção.<br />

Sempre intersubjetiva, a <strong>compreensão</strong> pede abertura, simpatia e generosi<strong>da</strong>de” (Morin,<br />

2002:94-95).<br />

O jornalista, ao elaborar uma história de vi<strong>da</strong>, ao entrar em contato direto com<br />

seu personagem e o mundo dele, precisa ter consciência de que está diante do cosmo<br />

naquele pequeno universo pessoal, pois, como afirma Morin, o ser humano é ao mesmo<br />

tempo singular e múltiplo, traz em si o cosmo. Todo ser, mesmo aquele fechado na mais<br />

banal <strong>da</strong>s vi<strong>da</strong>s, constitui ele próprio um cosmo. Traz em si multiplici<strong>da</strong>des interiores,<br />

personali<strong>da</strong>des virtuais, uma infini<strong>da</strong>de de personagens quiméricos, uma poliexistência,<br />

no <strong>real</strong> e no imaginário, no sono e na vigília. “Ca<strong>da</strong> qual contém em si galáxias de<br />

sonhos e de fantasmas, impulsos de desejos e amores insatisfeitos, (...) lampejos de<br />

lucidez, tormentos dementes...” (Morin, 2002:58).<br />

Exemplo de repórter que pratica a <strong>compreensão</strong> na construção de histórias de<br />

vi<strong>da</strong> é a gaúcha Eliane Brum, vencedora do prêmio Jabuti de livro-reportagem, em<br />

2007, com A vi<strong>da</strong> que ninguém vê. Nesse livro, ela diz que sempre gostou <strong>da</strong>s histórias<br />

pequenas. Das que se repetem, <strong>da</strong>s que pertencem à gente comum. Das desimportantes.<br />

Ela sempre se interessou mais pelo cachorro que morde o homem do que pelo homem<br />

que morde o cachorro — embora ache que essa seria uma história e tanto. No olhar de<br />

Brum, o ordinário <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> é extraordinário. E o que a rotina faz com a gente é encobrir<br />

essa ver<strong>da</strong>de, fazendo com que o milagre do que ca<strong>da</strong> vi<strong>da</strong> é se torne banal. “Esse é o<br />

encanto de A vi<strong>da</strong> que ninguém vê: contar os dramas anônimos como os épicos que são,<br />

como se ca<strong>da</strong> Zé fosse um Ulisses, não por favor ou exercício <strong>da</strong> escrita, mas porque<br />

ca<strong>da</strong> Zé é um Ulisses. E ca<strong>da</strong> pequena vi<strong>da</strong> uma Odisséia” (Brum, 2006:187).<br />

Para Eliane Brum, é preciso olhar a própria vi<strong>da</strong> com generosi<strong>da</strong>de, curvar o<br />

pescoço e colocar os olhos no mesmo plano dos olhos <strong>da</strong>s pessoas. Dessa posição de<br />

igual<strong>da</strong>de se pode enxergá-las. Não é o que costuma ocorrer no jornalismo, hoje<br />

59


sobretudo. Não são poucos os repórteres que escrevem seus textos no conforto <strong>da</strong>s<br />

cadeiras <strong>da</strong> re<strong>da</strong>ção. A mediação se dá pelo telefone, msn, e-mail ou outro recurso <strong>da</strong><br />

internet.<br />

Olhar a vi<strong>da</strong> do outro pela tela do computador é olhar o óbvio, o que todo mundo<br />

vê. Muitos jornalistas se acostumaram com o mais fácil, com a rotina acelera<strong>da</strong> <strong>da</strong>s<br />

re<strong>da</strong>ções, tendo se transformado em compiladores de monólogos, em aplicadores de<br />

aspas em série. Especialmente se só podem contar com palavras transmiti<strong>da</strong>s por<br />

telefone ou por e-mail. Fulano disse, sicrano afirmou. A vi<strong>da</strong> é bem melhor do que isso.<br />

O dito é, muitas vezes, tão importante quanto o não-dito, o que o entrevistado deixa de<br />

dizer, o que omite. É preciso calar para ser capaz de escutar o silêncio, ensina Brum.<br />

Olhar significa sentir o cheiro, tocar as diferentes texturas, perceber os gestos, as<br />

hesitações, os detalhes, apreender as outras expressões do que somos. “Metade (talvez<br />

menos) de uma reportagem é o dito, a outra metade o percebido. Olhar é um ato de<br />

silêncio” (Brum, 2006:191).<br />

Exemplo de texto escrito com o auxílio <strong>da</strong> internet — e aqui não se está<br />

afirmando que a internet não deva ser utiliza<strong>da</strong> na produção <strong>da</strong> informação jornalística<br />

— foi publicado pelo jornal O Estado de S. Paulo, no caderno Aliás, no dia 11 de<br />

janeiro de 2009. Uma entrevista de Mônica Manir com o autor de telenovelas e<br />

minisséries Manoel Carlos, com o título “Maneco@viveravi<strong>da</strong>”. Eis um trecho:<br />

Na sua primeira entrevista pelo MSN, ele solta o verbo durante 4 horas.<br />

Mônica diz:<br />

— Oi, Maneco. Tudo certo por aí?<br />

Manoel Carlos — Rio diz:<br />

— Tudo bem. Meu filho está aqui perto, mas não sei se por muito tempo. É a primeira<br />

vez que uso isto. Pode começar, se quiser.<br />

E assim se apresentaram as partes nesta entrevista dos tempos instantâneos, pelo MSN,<br />

em que até o telefone perdeu a vez. A ligeira dificul<strong>da</strong>de auditiva de Manoel Carlos foi<br />

o argumento para recorrer ao Messenger, mas vem de longe a implicância dele com a<br />

maquininha de Graham Bell. Maneco disse certa vez que, quando trocava de número,<br />

colocava uma carta no correio avisando os amigos sobre a mu<strong>da</strong>nça. Telefone seria<br />

apenas para emergências emergenciais, e a palavra impressa, pau-pra-to<strong>da</strong>-obra,<br />

inclusive na versão cursiva (Manir, 2009:J6).<br />

Manir apresenta as razões de a entrevista ter sido feita pela internet: “a ligeira<br />

dificul<strong>da</strong>de auditiva de Manoel Carlos”. Mas essa técnica de captação de informações é<br />

basicamente fria. Em princípio, pode-se afirmar: é preciso olhar nos olhos, tornar-se um<br />

só coração com o entrevistado. Brum afirma que, se estivermos <strong>real</strong>mente decididos a<br />

enxergar, não sabemos o que vamos ver. Quando sai <strong>da</strong> re<strong>da</strong>ção, tem uma idéia de para<br />

60


onde deve olhar e o que pretende buscar, mas é uma idéia aberta, suficiente apenas para<br />

partir. “Tudo o que somos de melhor é resultado do espanto. Como prescindir <strong>da</strong><br />

possibili<strong>da</strong>de de se espantar? O melhor de ir para a rua espiar o mundo é que não<br />

sabemos o que vamos encontrar. Essa é a graça maior de ser repórter. Essa é a graça<br />

maior de ser gente” (Brum, 2006:193).<br />

Vejamos o primeiro parágrafo de um texto seu, “Enterro de pobre”, publicado no<br />

jornal Zero Hora de Porto Alegre, no dia 26 de junho de 1999, e que está no livro A<br />

vi<strong>da</strong> que ninguém vê, exemplo do que a repórter disse acima:<br />

Não há na<strong>da</strong> mais triste do que enterro de pobre. Porque o pobre começa a ser enterrado<br />

em vi<strong>da</strong>. Quem diz é Antonio, um homem esculpido pelo barro de uma humil<strong>da</strong>de mais<br />

antiga do que ele. Um homem que tem vergonha até de falar e, quando fala, teme falar<br />

alto demais. E quando levanta os olhos, tem medo de ofender o rosto do patrão apenas<br />

pela ousadia de erguê-los. Quem diz é Antonio Antunes. Ele acabara de sepultar o<br />

caixão do filho cujo rosto desconhece. O bebê de 960 gramas que morreu ain<strong>da</strong> no<br />

ventre <strong>da</strong> mãe. Antonio quis espiar a face do filho por um momento, mas a funcionária<br />

que foi buscar a criança na geladeira não deixou. Antonio tinha comprado uma roupinha<br />

de sete reais no centro de Porto Alegre para que o filho não fosse sepultado nu como um<br />

rebento de bicho. Mas não pôde vesti-lo. Restou a Antonio o caixãozinho branco que<br />

ninou nos braços até a cova número 2026 do Campo Santo do Cemitério <strong>da</strong> Santa Casa<br />

(Brum, 2006:36).<br />

Eis um texto profundo, que informa, mas faz muito mais que isso: emociona,<br />

conscientiza, revela a vi<strong>da</strong> que está por trás do acontecimento. Antonio Antunes<br />

representa milhões de Antonios, não só do Rio Grande do Sul, mas do Brasil e do<br />

mundo.<br />

Eliane Brum, como tantos outros repórteres, se distancia do paradigma<br />

cartesiano, do racionalismo e <strong>da</strong>s fórmulas prontas. Por isso, tornam-se compreensivos,<br />

inspiradores de novos jornalistas que querem vencer o olhar míope do cotidiano.<br />

Quando se elimina a “catarata” dos olhos, vê-se a vi<strong>da</strong> como ela é e escrevem-se<br />

histórias de vi<strong>da</strong> que tocam a alma dos leitores, até a dos que têm um coração de pedra.<br />

Além de retratar a vi<strong>da</strong> <strong>real</strong>, de humanizar as relações humanas, as <strong>narrativas</strong><br />

construí<strong>da</strong>s a partir do <strong>signo</strong> <strong>da</strong> <strong>compreensão</strong> conduzem jornalistas e leitores a um<br />

maior conhecimento. A <strong>compreensão</strong> não é apenas uma virtude importante para os<br />

nossos dias, um sentimento. Kunsch diz:<br />

A <strong>compreensão</strong> faz conhecer. Ela produz conhecimento sobre as pessoas, a<br />

socie<strong>da</strong>de e a natureza, assumindo desse modo, legitimamente, o estatuto de uma<br />

ver<strong>da</strong>deira episteme. Assim, mais bem e profun<strong>da</strong>mente conhece quem se faz<br />

compreensivamente a caminho. É nesse ganho de <strong>compreensão</strong>, tanto sob o<br />

61


ponto de vista <strong>da</strong> produção do conhecimento quanto <strong>da</strong> humanização <strong>da</strong>s<br />

relações entre as pessoas, que se revela como uma epistemologia complexocompreensiva<br />

é simultaneamente pragmática, num mundo, este nosso, tão ávido<br />

de respostas para as grandes questões que levanta quanto carente de ternura, de<br />

amor e de soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de (Kunsch, 2004:10).<br />

Hoje se tem excesso de informações e, muito freqüentemente, pouca<br />

profundi<strong>da</strong>de. O leitor fica informado, mas encontra dificul<strong>da</strong>de em compreender o que<br />

está acontecendo. Quando se abrem as páginas dos jornais, liga-se a TV, acessa-se a<br />

internet ou se ouve uma notícia no rádio, a terra do campo do mundo recebe uma chuva<br />

de verão. As nuvens negras encobrem o sol, vem aquele vento forte, poeira para to<strong>da</strong><br />

lado, a chuva cai torrencialmente e, depois de meia hora, volta a calmaria e o sol<br />

reaparece. Mas... ficou o estrago: enchentes, que<strong>da</strong> de barracos, mortes, acidentes e<br />

tantos outros problemas. A chuva que fecun<strong>da</strong> a terra e a notícia que fecun<strong>da</strong> o coração<br />

humano para a transformação do status quo é aquela que vem lentamente, calmamente,<br />

perdura por horas, cai sem presa, penetra os poros e faz germinar a semente. Assim são<br />

as <strong>narrativas</strong> complexo-compreensivas:<br />

A reportagem complexo-compreensiva assume, sem cerimônia, a tarefa de tecer,<br />

de costurar nexos entre informações que, isola<strong>da</strong>s e numerosas, quais árvores a<br />

impedir uma visão do bosque, não permitem uma <strong>compreensão</strong> abrangente dos<br />

sentidos de uma época (Kunsch, 2005:53).<br />

Para Kunsch, as múltiplas possibili<strong>da</strong>des que a hoje escassa reportagem oferece<br />

auxiliam na construção de um tipo de conhecimento que, sem abdicar <strong>da</strong> razão, dialoga<br />

com as incertezas do cotidiano, <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, do mundo, articulando sentidos que a<br />

racionalização do pensamento moderno — reducionista e redutora <strong>da</strong>s virtuali<strong>da</strong>des<br />

humanas de <strong>compreensão</strong> — não abarca. Compreensivo, tanto no sentido objetivo<br />

quanto subjetivo, o pensamento que informa uma reportagem de quali<strong>da</strong>de torna mais<br />

compreensível, cósmico, o mundo <strong>da</strong> atuali<strong>da</strong>de, oferecendo a esse mesmo mundo a<br />

chance de não se autodestruir na violência ou na guerra, como no desespero. O autor<br />

propõe a reversão do famoso cogito, ergo sum, para comprehendo ergo sum, a renúncia<br />

ao <strong>signo</strong> <strong>da</strong> explicação e a opção pelo <strong>signo</strong> <strong>da</strong> <strong>compreensão</strong>, portadora <strong>da</strong> esperança e<br />

<strong>da</strong> utopia, em meio aos sofrimentos, a dor e a morte vivi<strong>da</strong>s pelos seres humanos,<br />

diuturnamente, na contemporanei<strong>da</strong>de:<br />

62


Sou humano, existo, como sujeito do conhecimento, enquanto ser que compreende,<br />

compreensivamente. Compreender: abraçar, pegar junto, no sentido de tecer em<br />

conjunto, complexamente. Compreender: ser compreensivo, solidário, humano.<br />

Compreender: entender, perceber os nexos, as ligações. Sem certezas, mas na segurança<br />

possível que a narrativa cósmica consegue oferecer frente ao caos, à desordem. (...) A<br />

vi<strong>da</strong> e o mundo não se cansam de mostrar que não cabem em, nem suportam, uma<br />

pirâmide inverti<strong>da</strong> (Kunsch, 2005:53).<br />

As <strong>narrativas</strong> sob o <strong>signo</strong> <strong>da</strong> <strong>compreensão</strong> buscam a profundi<strong>da</strong>de dos<br />

acontecimentos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>real</strong>. Como afirma Maffesoli, “ca<strong>da</strong> um de nós é o que é porque<br />

conta uma história, ver<strong>da</strong>deira ou falsa. Qualquer relação, seja de amizade, seja<br />

amorosa, só terá sentido quando qualquer um dos protagonistas contar tal história. Uma<br />

história de família, por exemplo, contém muitos não-ditos: algo <strong>da</strong> ordem <strong>da</strong> certeza,<br />

mas não <strong>da</strong> veraci<strong>da</strong>de” (Maffesoli, 2008:5). Kunsch diz: “Não pode existir, a bem <strong>da</strong><br />

ver<strong>da</strong>de, a vi<strong>da</strong> que não se conta. O mundo não pode existir. O amor e o ódio, a flor, a<br />

lua e as estrelas, a criança, o saci-pererê, qualquer coisa que de coisa vira história,<br />

símbolo, linguagem” (Kunsch, 2004,7).<br />

Narrar a partir de um pensamento que tece e entretece é olhar para o lençol<br />

freático que existe no mais profundo <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> humana. Enquanto o ser humano não<br />

descobre sua posição no mundo ele continua escravo de tudo, sem a possibili<strong>da</strong>de de<br />

protagonizar a sua própria história:<br />

O fluxo de conhecimentos (...) traz nova luz sobre a situação do ser humano no<br />

universo. Os progressos concomitantes <strong>da</strong> cosmologia, <strong>da</strong>s ciências <strong>da</strong> Terra, <strong>da</strong><br />

ecologia, <strong>da</strong> biologia, <strong>da</strong> pré-história, nos anos 1960-1970, modificaram as idéias sobre<br />

o Universo, a Terra, a Vi<strong>da</strong> e sobre o próprio homem. Mas estas contribuições<br />

permanecem ain<strong>da</strong> desuni<strong>da</strong>s. O humano continua esquartejado, partido como pe<strong>da</strong>ços<br />

de um quebra-cabeça ao qual falta uma peça (Morin, 2002:47-47).<br />

Ao mergulhar na vi<strong>da</strong> de um personagem, o jornalista penetra nos abismos mais<br />

secretos <strong>da</strong>quela história. Pois, como ensina Morin (2002:57-58), o ser humano é, ao<br />

mesmo tempo, singular e múltiplo, traz em si o cosmo. Mesmo aquele fechado na mais<br />

banal <strong>da</strong>s vi<strong>da</strong>s, constitui ele próprio um cosmo. Traz em si multiplici<strong>da</strong>des interiores,<br />

personali<strong>da</strong>des virtuais, uma infini<strong>da</strong>de de personagens quiméricos, uma poliexistência<br />

no <strong>real</strong> e no imaginário, no sono e na vigília, na obediência e na transgressão, no<br />

ostensivo e no secreto, balbucios embrionários em suas cavi<strong>da</strong>des e profundezas<br />

insondáveis. Ca<strong>da</strong> qual contém em si galáxias de sonhos e de fantasmas, impulsos de<br />

desejos e amores insatisfeitos, abismos de desgraças, imensidões de indiferença géli<strong>da</strong>,<br />

queimações de astro em fogo, acesos de ódio, desregramentos, lampejos de lucidez,<br />

63


tormentas dementes. O sociólogo francês defende que o século XXI precisa abandonar a<br />

visão unilateral que define o ser humano pela racionali<strong>da</strong>de. O homem é “sapiens e<br />

demens (sábio e louco), faber e ludens (trabalhador e lúdico), empiricus e imaginarius<br />

(empírito e imaginário), economicus e consumans (econômico e consumista), prosaicus<br />

e poeticus (prosaico e poético)” (Morin, 2002:58). O jornalista produtor de histórias de<br />

vi<strong>da</strong> não pode se esquecer disso:<br />

O homem <strong>da</strong> racionali<strong>da</strong>de é também o <strong>da</strong> afetivi<strong>da</strong>de, do mito e do delírio (demens). O<br />

homem do trabalho é também o homem do jogo (ludens). O homem empírico é também<br />

o homem imaginário (imaginarius). O homem <strong>da</strong> economia é também o do consumismo<br />

(consumans). O homem prosaico é também o <strong>da</strong> poesia, isto é, do fervor, <strong>da</strong><br />

participação, do amor, do êxtase (...) Assim, o ser humano não só vive de racionali<strong>da</strong>de<br />

e de técnica; ele se desgasta, se entrega, se dedica a <strong>da</strong>nças, transes, mitos, magias, ritos;<br />

crê na virtude do sacrifício, viveu freqüentemente para preparar sua outra vi<strong>da</strong> além <strong>da</strong><br />

morte. (...) No ser humano, o desenvolvimento do conhecimento racional-empíricotécnico<br />

jamais anulou o conhecimento simbólico, mítico, mágico ou poético (Morin,<br />

2002:58-59).<br />

A <strong>compreensão</strong> transforma a relação sujeito-objeto do técnico em informação<br />

dos dias atuais para a relação sujeito-sujeito do mediador social. As <strong>narrativas</strong><br />

complexo-compreensivas têm um olhar especial para os protagonistas do cotidiano que,<br />

espelhados nos personagens <strong>da</strong> arte, tecem a aventura humana <strong>da</strong> <strong>real</strong>i<strong>da</strong>de social. Para<br />

Medina, há, nesses enredos do caos <strong>da</strong> história, gritos e sussurros, violências e farras,<br />

sobrevivências e tragédias <strong>da</strong> exclusão que não cabem numa razão quadricula<strong>da</strong> pelo<br />

rigor do método. “É preciso abrir os poros <strong>da</strong> sensibili<strong>da</strong>de para que os impulsos<br />

afetuosos <strong>da</strong> não razão abalem a razão arrogante” (Medina, 2003:131).<br />

As histórias de vi<strong>da</strong> podem contribuir para o processo evolutivo <strong>da</strong> existência<br />

humana. Muito mais que informar ou narrar um acontecimento do passado ou do<br />

presente, as <strong>narrativas</strong> complexo-compreensivas podem impulsionar os leitores a buscar<br />

a transformação pessoal, familiar e social. Lima, em entrevista a Kunsch, afirma haver<br />

uma teleologia espontânea em tudo o que existe na socie<strong>da</strong>de humana.<br />

Há em tudo um impulso dessa força que a gente chama de vi<strong>da</strong>, que é o impulso <strong>da</strong><br />

evolução. E evolução ele entende como sendo um processo de assimilação, domínio e<br />

maestria de níveis ca<strong>da</strong> vez mais complexos de entendimento <strong>da</strong> <strong>real</strong>i<strong>da</strong>de e de interação<br />

com ela. Com outras palavras: a evolução é um processo, acionado pelas forças <strong>da</strong><br />

existência, por aquilo que move tudo o que existe, em direção a níveis ca<strong>da</strong> vez mais<br />

complexos de domínio <strong>da</strong> <strong>real</strong>i<strong>da</strong>de. No entanto, existe, <strong>da</strong> mesma forma e ao mesmo<br />

tempo, outra força por trás do processo, que tende à entropia, à involução, à per<strong>da</strong> de<br />

quali<strong>da</strong>de. Na Teoria Geral dos Sistemas, duas características ou dois impulsos marcantes<br />

dos sistemas abertos são o impulso do crescimento — que, nessa outra linguagem, seria o<br />

64


caminho <strong>da</strong> evolução — e o impulso de entropia, <strong>da</strong> per<strong>da</strong> de energia — que aqui<br />

chamamos de impulso para a involução, a estagnação ou, pior, a deteriorização, o<br />

retrocesso. Jung, tendo em conta a socie<strong>da</strong>de humana, fala do consciente e do inconsciente<br />

coletivo. A massa de uma população, de uma nação, é movi<strong>da</strong> também por valores, fatores<br />

ou efeitos que circulam no nível <strong>da</strong> mente coletiva, consciente ou inconscientemente. E essa<br />

mente coletiva está sujeita, também, ao processo de evolução e involução (Kunsch,<br />

2004:262-263).<br />

A partir desses pensadores, este autor escolhe cinco fun<strong>da</strong>mentos como ferramentas<br />

para a análise <strong>da</strong>s matérias escolhi<strong>da</strong>s dentre as que foram publica<strong>da</strong>s nos jornais O<br />

Estado de S. Paulo, Correio Popular e Gazeta do Cambuí. São elas:<br />

a) Personagem: uma narrativa <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>real</strong> não pode prescindir de personagens. O<br />

jornalismo é feito por, com e para pessoas humanas. Por isso, o ser humano deve<br />

sempre ser o centro, o eixo ao redor do qual caminha a narrativa. O jornalista, na<br />

ver<strong>da</strong>de, não precisa humanizar o texto, mas sim, como diz Kunsch, “desdesumanizar”<br />

o texto. Muitas vezes veem-se reportagens publica<strong>da</strong>s em jornais<br />

nas quais o ser humano fica na periferia. Desse modo, o texto está<br />

desumanizado. Iremos ver, por exemplo, como a história de vi<strong>da</strong> de Maria<br />

Beatriz foi conta<strong>da</strong> pelo jornalista Ivan Marsiglia e como isso de dá.<br />

b) Imersão: outro fun<strong>da</strong>mento importante para uma narrativa <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>real</strong> é a<br />

imersão. É mais difícil contar a história de alguém, em profundi<strong>da</strong>de, sem deixar<br />

a Re<strong>da</strong>ção e ir ao encontro <strong>da</strong>s pessoas. É preciso estar no ambiente dos<br />

personagens para sentir o cheiro <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> que pulsa naquele lugar, para ouvir o<br />

silêncio, as imagens escondi<strong>da</strong>s, as reações <strong>da</strong>s pessoas, os gestos, as pausas, os<br />

risos e as lágrimas. Se o repórter faz tudo pela internet ou pelo telefone, tende<br />

fortemente a construir uma história de vi<strong>da</strong> sem vi<strong>da</strong>. Ele precisa estar no<br />

ambiente, mas ouvir, estar atento. De na<strong>da</strong> adiante a presença física, se a mente<br />

está ausente. Ou seja: a presença física não representa garantia de presença de<br />

espírito, de comunicação efetiva.<br />

c) Diálogo dos afetos: o jornalista não pode ir ao encontro dos personagens <strong>da</strong><br />

história de vi<strong>da</strong> a ser narra<strong>da</strong> com tudo pronto, com o texto previamente<br />

redigido, restando somente algumas frases dos personagens para serem<br />

coloca<strong>da</strong>s entre aspas e, assim, completar a matéria. É fun<strong>da</strong>mental a abertura, o<br />

65


diálogo, o afeto, a ternura, o respeito. Os personagens são pessoas, têm uma<br />

história, identi<strong>da</strong>de. São sujeitos, e não objetos. Por isso, o relacionamento entre<br />

repórter e personagens deve ser, como ensina Martin Buber, “Eu-Tu”, e não<br />

“Eu-isso”.<br />

d) Compreensão: uma história de vi<strong>da</strong> sob esse <strong>signo</strong> precisa levar jornalista,<br />

personagem e leitor à <strong>compreensão</strong>. Ela traz informações importantes para o<br />

entendimento do assunto abor<strong>da</strong>do, aju<strong>da</strong> a todos os envolvidos na história a<br />

terem uma visão diferente sobre o que foi narrado, fornece elementos para o<br />

crescimento no conhecimento do tema. To<strong>da</strong>via, leva todos a serem mais<br />

compreensivos uns com os outros, consigo mesmos e com o mundo.<br />

e) Transformação: outro fun<strong>da</strong>mento importante, na visão do autor, é a<br />

transformação. Quando uma história de vi<strong>da</strong> teve o ser humano como eixo<br />

principal, o repórter gastou as solas dos sapatos para apurar as informações,<br />

afetou e foi afetado pelo personagem, compreendeu melhor o assunto e tornouse<br />

mais compreensivo, conseqüentemente essa narrativa vai provocar<br />

transformações na vi<strong>da</strong> de repórter, personagem e leitor. Vai ser muito difícil<br />

para alguém ficar indiferente diante dela.<br />

66


2. As histórias de vi<strong>da</strong> nos jornais O Estado de S. Paulo, Correio<br />

Popular e Gazeta do Cambuí<br />

2.1. Que são histórias de vi<strong>da</strong>?<br />

As histórias de vi<strong>da</strong> publica<strong>da</strong>s em jornais são textos diferentes <strong>da</strong>s biografias<br />

em livro. Trata-se de uma narrativa curta e de natureza autoral. Para Sergio Vilas<br />

Boas, “os processos de criação são multidimensionais. Neles, combinam-se memória,<br />

conhecimento, imaginação, sínteses e sentimentos, cinco elementos imprescindíveis ao<br />

trabalho autoral” (Vilas Boas, 2003:13-14). Vilas Boas diz ain<strong>da</strong> que uma história de<br />

vi<strong>da</strong> ou um perfil não podem prescindir de todos os conceitos e técnicas de reportagem<br />

conhecidos, além de recursos <strong>da</strong> literatura e outros. To<strong>da</strong>via, a marca desse tipo de<br />

texto é o sentimento de quem participa e o mergulho do repórter na própria história.<br />

O conceito “histórias de vi<strong>da</strong>” nasceu no contexto <strong>da</strong>s pesquisas qualitativas em<br />

Ciências Sociais (sociologia, antropologia, história, psicologia):<br />

Essa mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de dá atenção total ou parcial às <strong>narrativas</strong> sobre as vi<strong>da</strong>s de indivíduos<br />

ou de grupos sociais, visando humanizar um tema, um fato ou uma situação<br />

contemporânea. Na sua versão mais abrevia<strong>da</strong>, a história de vi<strong>da</strong> examina episódios<br />

específicos <strong>da</strong> trajetória do protagonista (Vilas Boas, 2003:16-17).<br />

Para Vilas Boas, as histórias de vi<strong>da</strong> só podem eluci<strong>da</strong>r, in<strong>da</strong>gar, apreciar a vi<strong>da</strong><br />

num <strong>da</strong>do instante. São mais atraentes quando provocam reflexões sobre aspectos,<br />

objetivos e subjetivos, comuns à existência de todos nós.<br />

67


2.2. O jornal O Estado de S. Paulo e suas histórias de vi<strong>da</strong><br />

O Estado de S. Paulo, jornal paulista diário e matutino, foi fun<strong>da</strong>do em 4 de<br />

janeiro de 1875, com o nome de Província de São Paulo por um grupo liderado por<br />

Américo Brasiliense de Almei<strong>da</strong> Melo e Manuel Ferraz de Campos Sales. Em 1885,<br />

68<br />

ingressou em sua re<strong>da</strong>ção Júlio<br />

César Ferreira de Mesquita, que em<br />

pouco tempo passou a diretor.<br />

Desde então, a direção do jornal<br />

permaneceu nas mãos <strong>da</strong> família<br />

Mesquita. Organizado por uma<br />

comissão nomea<strong>da</strong> pelo Congresso<br />

Republicano de Itu, <strong>real</strong>izado em<br />

1874, o jornal Província de São<br />

Paulo teve como principais<br />

articuladores Américo Brasiliense,<br />

atuando na ci<strong>da</strong>de de São Paulo, e<br />

Campos Sales, atuando em<br />

Campinas. A campanha<br />

republicana, intensifica<strong>da</strong> na fase<br />

final <strong>da</strong> campanha abolicionista,<br />

viu igualmente seus objetivos<br />

alcançados com a proclamação <strong>da</strong><br />

República, em 15 de novembro de<br />

1889. Nesse momento, o Província<br />

de São Paulo passou a chamar-se O<br />

Estado de S. Paulo.<br />

O Estado de S. Paulo publica, aos domingos, o caderno Aliás, com o resumo dos<br />

principais acontecimentos <strong>da</strong> semana. Na última página desse caderno, sempre vem uma<br />

história de vi<strong>da</strong> ou perfil retratando um dos problemas vivenciados pela socie<strong>da</strong>de<br />

brasileira, na semana <strong>da</strong> publicação. Em alguns casos, retrata a vi<strong>da</strong> de celebri<strong>da</strong>des;<br />

também muitas histórias são de pessoas anônimas que, com suas experiências ou


ativi<strong>da</strong>des, são exemplos de dedicação e amor à família, à comuni<strong>da</strong>de e ao Brasil. De<br />

outubro de 2008 a março de 2009, período escolhido pelo autor para analisar as<br />

<strong>narrativas</strong>, O Estado de S. Paulo publicou as seguintes histórias de vi<strong>da</strong>, no caderno<br />

Aliás:<br />

DATA<br />

12/10/08<br />

19/10/08<br />

26/10/08<br />

02/11/08<br />

09/11/08<br />

16/11/08<br />

TÍTULO<br />

O Federal<br />

Exilado <strong>da</strong> história<br />

Ser negro aqui e acolá<br />

Laços de família<br />

Gabriel, o articulador<br />

Embaixa<strong>da</strong>s de Marlene<br />

AUTORIA<br />

Ivan Marsiglia<br />

Mônica Manir<br />

Flávia Tavares<br />

Ivan Marsiglia<br />

Mônica Manir<br />

Flávia Tavares<br />

ASSUNTO<br />

69<br />

História do advogado e delegado <strong>da</strong><br />

Polícia Federal Protógenes Queiroz,<br />

chefe <strong>da</strong> Operação Satiagraha, que<br />

perdera a sala e o poder na Polícia<br />

Federal.<br />

História de vi<strong>da</strong> de Maria Thereza<br />

Fontella Goulart, viúva do<br />

presidente João Goulart, que estava<br />

indigna<strong>da</strong> com o que chamou de<br />

descaso na administração do<br />

Ministério do Trabalho, ao saber que<br />

os objetos passados ao ministério em<br />

1997, para inauguração do espaço<br />

João Goulart, tinham ido parar “nos<br />

porões”.<br />

Experiências de vi<strong>da</strong> de Alexandre,<br />

Baba Jan, Míriam, Roberto, Ronaldo<br />

e Vânia. Como brasileiros que<br />

vivem nos Estados Unidos li<strong>da</strong>m<br />

com a questão racial.<br />

História de vi<strong>da</strong> do clã dos Teles,<br />

torturados em 1972, no DOI-Codi,<br />

durante a ditadura militar. O desejo<br />

de justiça mantém unidos Amélia e<br />

César, seus filhos Janaína e Édson, e<br />

a irmã Criméia.<br />

Gabriel Jorge Ferreira, advogado<br />

que escreveu a minuta do contrato<br />

de fusão entre Itaú e Unibanco, teve<br />

sua história narra<strong>da</strong>. Ele foi<br />

chamado pelos dois lados. Queriam<br />

discrição e alguém que conhecesse<br />

muito bem o sistema.<br />

A vice-presidente social do<br />

Corinthians e viúva de Vicente<br />

Matheus, Marlene Matheus foi a<br />

personagem <strong>da</strong> reportagem do


23/11/08<br />

30/11/08<br />

07/12/08<br />

14/12/08<br />

21/12/08<br />

28/12/08<br />

No olho do furacão<br />

Contamina<strong>da</strong> pela vi<strong>da</strong><br />

Um ser analógico<br />

O pianista rodou<br />

A gnomonia de 2008<br />

Las Vegas do Caribe<br />

Mônica Manir<br />

Ivan Marsiglia<br />

Mônica Manir<br />

Ivan Marsiglia<br />

Humberto<br />

Wernech<br />

Sérgio Augusto<br />

70<br />

caderno Aliás, de 16 de novembro<br />

de 2008, dias depois que o<br />

Corinthians voltara à série A do<br />

Campeonato Brasileiro, tendo<br />

conquistado a série B. Como o time<br />

do coração, Marlene queria subir na<br />

hierarquia do clube.<br />

Vi<strong>da</strong> dos profissionais de segurança<br />

e dos operadores <strong>da</strong> Bolsa de<br />

Valores de São Paulo. Naquela<br />

semana, em 17 de novembro, por<br />

volta <strong>da</strong>s 15h30, um operador <strong>da</strong><br />

Itaú Corretora dera um tiro no<br />

próprio peito durante pregão <strong>da</strong><br />

BM&F. Ele fora transferido para o<br />

Hospital Santa Isabel, onde<br />

permanecia internado na UTI. Seu<br />

estado era grave, porém estável.<br />

História de vi<strong>da</strong> de Beatriz Pacheco,<br />

fun<strong>da</strong>dora do Movimento Nacional<br />

<strong>da</strong>s Ci<strong>da</strong>dãs Posithivas. Aos 60 anos<br />

e portadora do HIV, a moradora <strong>da</strong><br />

ci<strong>da</strong>de de Porto Alegre trabalha pela<br />

prevenção <strong>da</strong> Aids na terceira i<strong>da</strong>de.<br />

Thomaz Farkas, fotógrafo e<br />

cineasta, que flagrou o passado de<br />

São Paulo, Rio e Brasília tem sua<br />

história publica<strong>da</strong> no caderno Aliás,<br />

do dia 7 de dezembro de 2008. Luz e<br />

sombra o fascinavam, especialmente<br />

em prédios e naturezas-mortas.<br />

História de vi<strong>da</strong> de Romário José<br />

Borelli, músico, historiador e<br />

dramaturgo. Em 1968, Romário<br />

apanhou na estréia de Ro<strong>da</strong> Viva, em<br />

Porto Alegre. O regime militar<br />

endurecia de vez.<br />

História <strong>da</strong>s cinco categorias cria<strong>da</strong>s<br />

há 80 anos, pelo excêntrico<br />

intelectual paraense, Jayme Ovalle,<br />

que continuam atuais. Os nomes<br />

foram tirados de habitués <strong>da</strong> ro<strong>da</strong><br />

boêmia de Ovalle: San Thiago<br />

Dantas, Onésimo Coelho, Ari<br />

Kerner e Mozart Monteiro.<br />

Texto de Sérgio Augusto sobre<br />

Havana, capital cubana, nos tempos


11/01/09<br />

18/01/09<br />

25/01/09<br />

01/02/09<br />

08/02/09<br />

15/02/09<br />

Maneco@viveravi<strong>da</strong><br />

Mãos de bisturi<br />

O povo de Obama<br />

A vitória do genérico<br />

Tempestá in un<br />

bicchiere d’acqua<br />

Dor sem remédio<br />

Mônica Manir<br />

Elder Ogliari<br />

Pedro Doria<br />

Marcela Vieira e<br />

Renata Reis<br />

Sérgio Augusto<br />

Ivan Marsiglia<br />

71<br />

<strong>da</strong> Máfia e a jogatina na velha<br />

ditadura. Sob o governo do<br />

presidente Fulgêncio Batista e a<br />

conivência <strong>da</strong> Casa Branca, o crime<br />

organizado dominou a capital <strong>da</strong><br />

ilha.<br />

História de vi<strong>da</strong> do autor de<br />

telenovelas Manoel Carlos. A<br />

entrevista foi a primeira feita por<br />

Manoel Carlos, via internet, através<br />

do MSN, com duração de 4 horas.<br />

História de vi<strong>da</strong> do cirurgião<br />

plástico Renato Viera, que operou<br />

Dilma Rousseff. Conta a vi<strong>da</strong> do<br />

médico gaúcho que deu à ministra<br />

<strong>da</strong> Casa Civil um novo visual: o de<br />

candi<strong>da</strong>ta. Discreto, ele passou a<br />

receber 40 telefonemas por dia <strong>da</strong><br />

imprensa para falar sobre a cirurgia<br />

mais comenta<strong>da</strong> <strong>da</strong> semana.<br />

Reportagem sobre a presença dos<br />

negros americanos na posse do<br />

presidente Barack Obama. O<br />

jornalista Pedro Doria narra o dia <strong>da</strong><br />

posse na capital dos EUA. Os negros<br />

tomaram conta <strong>da</strong>s ruas e praças <strong>da</strong><br />

ci<strong>da</strong>de de Washington, num dos<br />

momentos mais importantes e<br />

emocionantes <strong>da</strong> história dos<br />

Estados Unidos.<br />

A repórter Marcela Vieira e a<br />

advoga<strong>da</strong> Renata Reis fizeram a<br />

matéria do dia 1º. de fevereiro de<br />

2009, sobre a produção, em larga<br />

escala, de medicamentos como o<br />

Efavirenz, contra a Aids, estratégia<br />

do governo brasileiro para reduzir os<br />

custos.<br />

Reportagem sobre a polêmica do<br />

caso Cesare Battisti entre Brasil e<br />

Itália. O ex-ativista italiano é<br />

acusado de quatro homicídios.<br />

Condenado pela justiça de Milão,<br />

em 1988, Battisti foge para a França<br />

e depois para o México. Por fim, em<br />

2004, veio para o Brasil, onde é<br />

preso em 2007.<br />

História de vi<strong>da</strong> <strong>da</strong> família Hsueh. O


22/02/09<br />

01/03/09<br />

08/03/09<br />

15/03/09<br />

22/03/09<br />

O lutador<br />

Herança em livros<br />

Ela quebra tudo<br />

Isay in rainbows<br />

A céu aberto<br />

Ivan Marsiglia<br />

Andrei Netto<br />

Flávia Tavares<br />

Ivan Marsiglia<br />

Mônica Manir<br />

72<br />

texto mostra o sofrimento dos<br />

familiares de Edison Hsueh, morto<br />

no ano de 1999, em trote na<br />

Facul<strong>da</strong>de de Medicina <strong>da</strong><br />

Universi<strong>da</strong>de de São Paulo. Os<br />

Hsueh perderam a esperança na<br />

Justiça.<br />

A vi<strong>da</strong> e a carreira do lutador de<br />

vale-tudo Lyoto Machi<strong>da</strong>. O nissei<br />

Lyoto refaz o caminho dos Gracie e<br />

quer consagrar a técnica de sua<br />

família no vale-tudo.<br />

Reportagem sobre a livraria<br />

Shakespeare and Company, grife<br />

cria<strong>da</strong> em Paris, há 90 anos.<br />

Coman<strong>da</strong><strong>da</strong> por Sylvia Beach<br />

Whitman, a livraria mantém tradição<br />

de convivência e hospitali<strong>da</strong>de.<br />

História de vi<strong>da</strong> de Raimun<strong>da</strong><br />

Gomes <strong>da</strong> Silva, líder <strong>da</strong>s<br />

quebradeiras de coco babaçu <strong>da</strong><br />

Amazônia. Raimun<strong>da</strong> dos Cocos,<br />

como é conheci<strong>da</strong>, ganhou o mundo<br />

defendendo as quebradeiras e<br />

cantarolando a vi<strong>da</strong> na floresta.<br />

Escreve o texto Flávia Tavares,<br />

publicado no Aliás, do dia 8 de<br />

março, Dia Internacional <strong>da</strong> Mulher.<br />

História de vi<strong>da</strong> do arquiteto Isay<br />

Weinfeld, tiete número 1 do<br />

Radiohead, grupo de rock <strong>da</strong><br />

Inglaterra. Fanático pela ban<strong>da</strong><br />

inglesa que chegaria ao Brasil<br />

naquela semana, Isay rejeita a<br />

hierarquia entre cultura popular e<br />

erudita e diz que o vocalista, Thom<br />

York, “é um gênio, uma <strong>da</strong>s dez<br />

personali<strong>da</strong>des mais interessantes do<br />

planeta”.<br />

A jornalista Mônica Manir conta a<br />

história do edifício Quebec, obra<br />

inacaba<strong>da</strong> <strong>da</strong> Encol em Campinas-<br />

SP. Dez anos após a falência <strong>da</strong><br />

construtora, um esqueleto <strong>da</strong><br />

falcatrua vira problema de saúde<br />

pública. O texto mostra as<br />

dificul<strong>da</strong>des <strong>da</strong>s 18 famílias que<br />

moram, de forma precária, no<br />

edifício, empilha<strong>da</strong>s em muquifos<br />

divididos por tapumes.


29/03/09<br />

Passado a limpo<br />

2.3. O jornal Correio Popular<br />

Wilson Tosta<br />

73<br />

História de vi<strong>da</strong> do professor <strong>da</strong><br />

PUC-Rio e ex-preso político, Álvaro<br />

Cal<strong>da</strong>s. Álvaro, na época militante<br />

do Partido Comunista Brasileiro<br />

Revolucionário (PCBR), pensou ter<br />

sido levado para Porto Alegre.<br />

Quase 36 anos depois, descobriu seu<br />

cárcere ver<strong>da</strong>deiro: o Destacamento<br />

de Operações de Informações –<br />

Centro de Operações de Defesa<br />

Interna (DOI-Codi), do IV Exército<br />

de Pernambuco, hoje Hospital Geral<br />

do Recife.<br />

O Correio Popular de Campinas é o maior jornal publicado fora <strong>da</strong>s capitais e<br />

completou 82 anos de fun<strong>da</strong>ção, no dia 4 de setembro de 2009. Pertence à Rede<br />

Anhangüera de Comunicação. Tendo sido fun<strong>da</strong>do<br />

pelo jornalista Álvaro Ribeiro, a primeira edição<br />

saiu no dia 4 de setembro de 1927, um domingo.<br />

Cinco anos após a fun<strong>da</strong>ção, o jornalista<br />

Sylvino de Godoy assumiu a direção do jornal,<br />

ficando à sua frente até o final <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, em 1970,<br />

aos 81 anos. Godoy deixou à família o legado de<br />

defesa do direito coletivo que norteia a política<br />

editorial do Correio Popular e dos demais veículos<br />

<strong>da</strong> Rede Anhangüera de Comunicação, cria<strong>da</strong> em<br />

1996, quando o Correio comprou o Diário do Povo.<br />

Hoje, fazem ain<strong>da</strong> parte do grupo a Revista<br />

Metrópole, encarta<strong>da</strong> aos domingos no Correio, a<br />

Gazeta do Cambuí, semanário de bairro; o Notícia<br />

Já, recém-lançado em Campinas; e as Gazetas de<br />

Piracicaba e Ribeirão, que circulam três vezes por semana: terças, quintas e finais de<br />

semana. Por dia, a tiragem do jornal é de cerca de 48 000 exemplares (aos domingos,<br />

esse número chega a 66 000 exemplares), uma tiragem que situa o jornal entre as<br />

maiores publicações do país.


O Correio Popular publica, semanalmente, uma história de vi<strong>da</strong>, no caderno<br />

Ci<strong>da</strong>des, na coluna “Um Rosto na multidão”. Os textos são assinados, em sua maioria,<br />

por um mesmo jornalista, Fabiano Ormaneze, que narra histórias de personagens <strong>da</strong><br />

ci<strong>da</strong>de de Campinas, interior de São Paulo. Os personagens retratados, geralmente,<br />

exercem um papel importante na socie<strong>da</strong>de, sobretudo em favor dos que mais sofrem,<br />

como o cônego que ergueu uma creche na favela, a dona de casa que aju<strong>da</strong> mais de<br />

quinhentas crianças, um jardineiro que há muitos anos cui<strong>da</strong> de uma praça na ci<strong>da</strong>de,<br />

entre outros. No período de outubro de 2008 a março de 2009, foram publicados os<br />

seguintes textos:<br />

DATA<br />

04/10/08<br />

11/10/08<br />

18/10/08<br />

25/10/08<br />

TÍTULO<br />

Cônego ergueu<br />

creche na favela<br />

Supermadrinha<br />

alegra 500 crianças<br />

O homem por trás<br />

<strong>da</strong>s flores <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de<br />

Artista descobriu<br />

talento para pintura<br />

aos 45 anos<br />

AUTORIA<br />

Rogério<br />

Verzignasse<br />

Fabiano<br />

Ormaneze<br />

Fabiano<br />

Ormaneze<br />

Fabiano<br />

Ormaneze<br />

ASSUNTO<br />

74<br />

História de vi<strong>da</strong> de Carlos Menegazzi, 87<br />

anos. Durante 30 anos, o religioso<br />

trabalhou na igreja Sagrado Coração de<br />

Jesus, no bairro Botafogo. Depois de se<br />

aposentar, trabalha na periferia com as<br />

crianças pobres, assisti<strong>da</strong>s pelo religioso,<br />

numa creche.<br />

A vi<strong>da</strong> e o trabalho de Magali Apareci<strong>da</strong><br />

Oliveira, dona de casa, 52 anos,<br />

moradora do Jardim Carlos Lourenço.<br />

Desde 1980, Magali organiza uma festa<br />

para as crianças do bairro, no dia 12 de<br />

outubro. Ela arreca<strong>da</strong> brinquedos e<br />

alimentos e distribui para todos os seus<br />

“afilhados”.<br />

História de vi<strong>da</strong> de José Antonio Vicente,<br />

“seo” Toninho, 50 anos, um dos<br />

jardineiros mais antigos de Campinas.<br />

Ele trabalha na praça do Largo do Pará.<br />

Solteiro e com apenas o Ensino<br />

Fun<strong>da</strong>mental completo, seo Toninho<br />

mora numa casa simples, na Vila Rica,<br />

com um sobrinho, de quem cui<strong>da</strong> desde<br />

que a mãe do garoto morreu.<br />

Alcides Maiorino Filho, 61 anos,<br />

descobriu o talento para pintura aos 45<br />

anos. Ele foi demitido do trabalho e não<br />

conseguia outro por causa <strong>da</strong> i<strong>da</strong>de.


08/11/08<br />

22/11/08<br />

29/11/08<br />

06/12/08<br />

13/12/08<br />

Desenhista<br />

transforma mangás<br />

em voluntariado<br />

Sabor do acarajé<br />

simboliza a força <strong>da</strong><br />

resistência africana<br />

Copeira prepara ceia<br />

para morador de rua<br />

Voluntariado mu<strong>da</strong><br />

férias de professora<br />

Ex-viciado escreve<br />

sobre a recuperação<br />

Fabiano<br />

Ormaneze<br />

Fabiano<br />

Ormaneze<br />

Fabiano<br />

Ormaneze<br />

Fabiano<br />

Ormaneze<br />

Fabiano<br />

Ormaneze<br />

75<br />

Entrou em depressão e passou a sofrer de<br />

mal de Parkinson. Foi aí que sua vi<strong>da</strong><br />

mudou, depois de descobrir a pintura.<br />

Adriana Limoli ensina técnicas japonesas<br />

em igrejas católicas de Campinas.<br />

Publicitária por formação, Adriana já<br />

trabalhou como estilista e, em 1998,<br />

resolveu fazer um curso de desenho, com<br />

a idéia de ensinar crianças carentes. Mais<br />

de quinhentas crianças já passaram por<br />

sua oficina.<br />

Tia Nice, 78 anos, nasceu em Caculé, no<br />

interior <strong>da</strong> Bahia. Vive em Campinas<br />

desde a infância e faz o acarajé mais<br />

famoso <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de. Estava muito feliz com<br />

a eleição de Obama para a presidência<br />

dos Estados Unidos <strong>da</strong> América, enfim,<br />

com a valorização do negro.<br />

Maria de Fátima <strong>da</strong> Silva trabalha para<br />

alimentar pelo menos 800 pessoas na<br />

noite de Natal. A iniciativa tem até nome:<br />

Dia do Mendigo Feliz. Fátima tem 47 aos<br />

e mora no bairro Caligaris, no limite <strong>da</strong>s<br />

ci<strong>da</strong>des Campinas e Sumaré. Ela vai<br />

guar<strong>da</strong>ndo um pouco de dinheiro todo<br />

mês, pega todo o 13º salário como<br />

copeira, pede aju<strong>da</strong> aos moradores do<br />

bairro e faz a festa para os moradores de<br />

rua <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de.<br />

Patrícia Fonseca, professora <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de,<br />

embarcaria em janeiro para Angola com<br />

um objetivo: aju<strong>da</strong>r o próximo. Ela vai<br />

viajar nas férias para o país africano,<br />

devastado por uma guerra civil, com a<br />

idéia de aju<strong>da</strong>r na reconstrução do país.<br />

“O que mais existe em Angola são<br />

pessoas que precisam de aju<strong>da</strong>. Não dá<br />

para cruzar os braços”, afirma a<br />

professora.<br />

Walter Malcon Lima reconstrói a vi<strong>da</strong> e<br />

prepara os últimos capítulos do livro O<br />

Abandono. A obra conta seu<br />

envolvimento com bebi<strong>da</strong>s e drogas e sua<br />

recuperação. Alcoólatra e usuário de<br />

cocaína, Walter perdeu a família e a<br />

digni<strong>da</strong>de. Ele se recuperou na Apot,<br />

Associação Promocional Oração e<br />

Trabalho, fun<strong>da</strong><strong>da</strong> pelo padre Haroldo<br />

Rahm.


20/12/08<br />

27/12/08<br />

03/01/09<br />

17/01/09<br />

24/01/09<br />

Médico se<br />

transforma em Papai<br />

Noel no Celso Pierro<br />

Dona Iracema tem<br />

muita gratidão a<br />

compartilhar<br />

Jovem portador de<br />

Down lança livro<br />

Publicitário vira o<br />

jogo na carreira<br />

Escudo virtual contra<br />

o preconceito<br />

Fabiano<br />

Ormaneze<br />

Fábio Gallacci<br />

Fabiano<br />

Ormaneze<br />

Rogério<br />

Verzignasse<br />

Rogério<br />

Verzignasse<br />

76<br />

O médico Joaquim Simões Neto, 36<br />

anos, alegra funcionários e pacientes do<br />

hospital e materni<strong>da</strong>de Celso Pierro, na<br />

PUC de Campinas. Fã de carros antigos,<br />

o gastrocirurgião usa uma ambulância<br />

dos EUA como trenó. “Adorei. Achei um<br />

gesto de soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de para quem está<br />

internado. É sempre bom receber<br />

presentes”, disse a emprega<strong>da</strong> doméstica<br />

Maria Isabel Camargo Catine, interna<strong>da</strong><br />

há três dias.<br />

A dona de casa, Iracema Lorenzetti, de<br />

62 anos, travou uma batalha solitária pela<br />

vi<strong>da</strong> de seus filhos, James Spencer e<br />

Kelly Cristina Ribeiro, afetados, ain<strong>da</strong><br />

crianças, pela desmielinização,<br />

hidrocefalia e atrofia cerebelar, distúrbios<br />

que causam a paralisia quase completa do<br />

corpo. Ela foi abandona<strong>da</strong> pelo marido e<br />

teve que se desdobrar para garantir a<br />

sobrevivência <strong>da</strong> família com o mínimo<br />

de digni<strong>da</strong>de e condições.<br />

Matriculado em escola regular, o<br />

adolescente, Henrick Melara Fellipe,<br />

escreveu e ilustrou uma publicação de 20<br />

páginas. O livro foi prefaciado por Luís<br />

Fernando Veríssimo. A obra foi edita<strong>da</strong><br />

pela Editora Edelbra, numa tiragem<br />

pequena e ain<strong>da</strong> não está sendo<br />

comercializa<strong>da</strong> mas, para o adolescente e<br />

a família, o livro tem o peso de um<br />

troféu.<br />

O publicitário Otávio Lacer<strong>da</strong> vendeu a<br />

empresa para se dedicar à criação de<br />

brinquedos educativos. Suas criações<br />

estão espalha<strong>da</strong>s por cinco países. O<br />

campineiro comemora o sucesso depois<br />

de 20 anos no ramo. Os jogos educativos,<br />

criados por sua editora, fazem parte do<br />

catálogo de produtos sugeridos pela<br />

maior feira mundial de fabricantes de<br />

brinquedo, organiza<strong>da</strong> na ci<strong>da</strong>de alemã<br />

de Nuremberg.<br />

Carioca, radicado em Campinas, Deco<br />

Ribeiro criou o site e-jovem para orientar<br />

adolescentes gays. A experiência venceu<br />

barreiras e preconceitos e já se faz<br />

presente em cinco regiões brasileiras. O<br />

número de acessos no site chega a 100<br />

mil por mês. A página na web ganhou o


31/01/09<br />

07/02/09<br />

14/02/09<br />

21/02/09<br />

Poetisa guar<strong>da</strong> jóias<br />

raras em caixa<br />

Fado e bacalhau para<br />

to<strong>da</strong>s as raças<br />

Porteiro traz o<br />

faroeste para Minas<br />

O jardineiro que<br />

virou motorista dos<br />

prefeitos<br />

Rogério<br />

Verzignasse<br />

Rogério<br />

Verzignasse<br />

Rogério<br />

Verzignasse<br />

Rogério<br />

Verzignasse<br />

77<br />

caráter de organização não<br />

governamental. Deco ensina os<br />

adolescentes a se entenderem, a se<br />

aceitarem e a viverem com digni<strong>da</strong>de.<br />

Norma Ribeiro tem em casa duas<br />

fantasias <strong>da</strong> ópera O Guarani, composta<br />

por Carlos Gomes. Ela passou a vi<strong>da</strong><br />

escrevendo versos. Nasci<strong>da</strong> em São<br />

Paulo, em 1929, Norma se mudou para<br />

Campinas aos 16 anos. Pouco conheci<strong>da</strong><br />

no Brasil, recebeu grandes prêmios no<br />

exterior e guar<strong>da</strong> em sua caixa, jóias<br />

raras <strong>da</strong> música e <strong>da</strong> literatura brasileira.<br />

História de Vi<strong>da</strong> de Adelino <strong>da</strong> Ponte,<br />

empresário campineiro que assumiu a<br />

Casa de Portugal, com a missão de atrair<br />

os moradores <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de. Nascido em<br />

Pombal, Adelino viu quando o pai,<br />

Manoel, teve de vender tudo o que tinha<br />

no complicado pós-guerra. Com a<br />

economia portuguesa em frangalhos, o<br />

homem se desfez de uma taverna e uma<br />

loja de madeiras. A família desembarcou<br />

no Brasil, em 1955. Com 14 anos<br />

arrumou emprego em uma loja de<br />

tecidos, em São Paulo. Em 1963, foi<br />

convencido a se mu<strong>da</strong>r para Campinas.<br />

O fã de John Wayne e escritor nas horas<br />

vagas <strong>da</strong>tilografa contos protagonizados<br />

por pistoleiros. Luís Carlos Garcia,<br />

porteiro de um prédio de apartamentos <strong>da</strong><br />

Rua Paula Bueno, em Campinas, tem sua<br />

história conta<strong>da</strong> por Rogério<br />

Verzignasse. Aos 55 anos, jamais<br />

conseguiu publicou um livro. Há uma<br />

pilha de livros <strong>da</strong>tilografados e<br />

encadernados com espiral. Mas Luís<br />

Carlos não fica triste: ele ama arrancar<br />

histórias do teclado <strong>da</strong> velha máquina de<br />

escrever, marca Remington.<br />

História de vi<strong>da</strong> de Vitório Pacci, que<br />

trocou os canteiros pelo volante, durante<br />

35 anos. Hoje, aposentado, só quer ficar<br />

ao lado <strong>da</strong> esposa, Margari<strong>da</strong>. Ele se<br />

lembra de quando pegou na enxa<strong>da</strong> pela<br />

primeira vez para limpar a praça Silva<br />

Rêgo, perto do balão do castelo, em<br />

Campinas. Um belo dia, deu uma carona<br />

para o engenheiro do setor, Osvaldo<br />

Nascimento de Lemos. A partir <strong>da</strong>í, foi<br />

convi<strong>da</strong>do para ser o motorista do


28/02/09<br />

07/03/09<br />

14/03/09<br />

21/03/09<br />

Ex-freira leva ação<br />

social a favela<br />

Maria-fumaça:<br />

paixão move<br />

guia-mirim<br />

Secretária troca hotel<br />

de luxo por funilaria<br />

Casamento muito<br />

especial em Socorro<br />

2.4. A Gazeta do Cambuí<br />

Rogério<br />

Verzignasse<br />

Fabiano<br />

Ormaneze<br />

Fábio Gallacci<br />

Fabiano<br />

Ormaneze<br />

78<br />

prefeito de Campinas. Ficou até 1991,<br />

quando se aposentou, no governo de Jacó<br />

Bittar.<br />

Mineira, de Poço Fundo, na região de<br />

Alfenas, Teresinha Perpétua Ribeiro,<br />

mudou-se para o distrito de Barão<br />

Geraldo, na déca<strong>da</strong> de 1980. Durante 11<br />

anos, viveu no convento <strong>da</strong>s irmãs<br />

carmelitas. Deixou o convento e, há treze<br />

anos, fundou uma associação beneficente<br />

para socorrer os moradores de uma favela<br />

em Campinas.<br />

História de Caio Fernando Cezario, guiamirim<br />

do trem Maria-fumaça que liga os<br />

municípios de Campinas e Jaguariúna.<br />

Aos 13 anos, cursa a 6ª série do ensino<br />

fun<strong>da</strong>mental e ama fazer esse trabalho,<br />

que considera “uma diversão”. Começou<br />

acompanhando sua mãe, guia do trem.<br />

Chegou a substituí-la quando ela não<br />

podia ir trabalhar. “Se eu pudesse,<br />

dormiria nos vagões”, diz o menino.<br />

A campineira, Josiane Batista, deu uma<br />

reviravolta na vi<strong>da</strong>. Acostuma<strong>da</strong> a vestir<br />

roupas sociais quando trabalhava como<br />

Office manager bilíngüe no hotel Royal<br />

Palm Plaza, trocou tudo isso para aju<strong>da</strong>r<br />

o marido atual numa funilaria. Ela se<br />

separou do primeiro marido, que lhe<br />

deixou três filhos. Josiane dá duro o dia<br />

todo para cui<strong>da</strong>r <strong>da</strong>s crianças.<br />

História do casal Maria Gabriela Demate<br />

e Fábio Marchetti Moraes, pais <strong>da</strong><br />

garotinha Valentina. A mãe tem<br />

Síndrome de Down e o pai um pequeno<br />

retar<strong>da</strong>mento mental adquirido no<br />

nascimento. Eles se casaram na igreja<br />

matriz de Socorro-SP, no dia do<br />

aniversário <strong>da</strong> filha. Valentina nasceu<br />

sem nenhum problema de saúde, caso<br />

raro na medicina.


Gazeta do Cambuí é um jornal semanal que circula no Cambuí, um dos mais<br />

tradicionais e importantes bairros de Campinas. Lançado em 2003, a Gazeta do Cambuí,<br />

com distribuição gratuita para os moradores do<br />

bairro, dentro do Correio Popular, abor<strong>da</strong><br />

temas ligados à cultura, lazer, comportamento e<br />

assuntos que revelam curiosi<strong>da</strong>des do bairro e<br />

de seus personagens. O jornal está nas mãos dos<br />

moradores às sextas-feiras, trazendo ain<strong>da</strong> um<br />

roteiro gastronômico e cultural completo do<br />

bairro. Gazeta do Cambuí é um jornal de leitura<br />

leve, dinâmica, que traduz a vi<strong>da</strong> de quem mora,<br />

trabalha e freqüenta o bairro do Cambuí.<br />

Como no Correio Popular, as histórias<br />

de vi<strong>da</strong> publica<strong>da</strong>s pelo jornal Gazeta do<br />

Cambuí são construí<strong>da</strong>s, em sua maioria, por<br />

um só jornalista, Tiago Gonçalves. Com<br />

criativi<strong>da</strong>de, Tiago brin<strong>da</strong> os leitores com textos<br />

complexo-compreensivos, transformadores e cheios de emoção.<br />

Mineiro de Três Corações, o berço do Rei Pelé, Tiago Gonçalves não puxou<br />

na<strong>da</strong> a seu conterrâneo. Considera-se ruim de bola. Preferiu atuar em outros gramados:<br />

o <strong>da</strong>s letras e o <strong>da</strong>s artes. Embevecido, ora pelo Jornalismo ora pelo Teatro, não<br />

pestanejou em se envere<strong>da</strong>r pelas duas paixões. Formado em Jornalismo pela PUC-<br />

Campinas, em 2005, tem Pós-Graduação em Jornalismo Literário pela Academia<br />

Brasileira de Jornalismo Literário (ABJL). Atualmente é repórter de Cultura e crítico<br />

teatral do Caderno C, do Correio Popular (Grupo RAC, em Campinas). No grupo,<br />

ain<strong>da</strong> foi repórter <strong>da</strong> Gazeta do Cambuí. Também atuou como colaborador de revistas,<br />

como National Geographic do Brasil e Viola Caipira. Desde o começo do ano, tornouse<br />

colunista fixo do Circonteúdo, o maior e mais reconhecido portal circense do Brasil.<br />

Em paralelo, cursou Artes Dramáticas, no Conservatório Carlos Gomes, em Campinas,<br />

formando-se em 2005. De lá para cá, dedica-se à pesquisa de Circo-Teatro. Aliás, o<br />

estudo começou durante a participação do jornalista, de 26 anos, no projeto Sons,<br />

Gestos e Imagens na Paulistânia, abrigado entre 2006 e 2007, no Centro de Memória <strong>da</strong><br />

Unicamp (CMU). Há dois anos tem sido o diretor artístico <strong>da</strong> Companhia Teatral<br />

79


Mensageiros <strong>da</strong> Arte (Itatiba/SP), que está em turnê com a comédia de circo-teatro A<br />

Noiva do Defunto.<br />

A escrita é degusta<strong>da</strong> por Tiago Gonçalves como um prato. Gosta de saborear<br />

palavra por palavra. “Nesta hora, me vem a cabeça os pilares do JL: voz autoral, estilo,<br />

humanização, uso de símbolos e metáforas, digressão, precisão de <strong>da</strong>dos e informações.<br />

Isso tudo, a partir <strong>da</strong> anterior (e bem feita) imersão na <strong>real</strong>i<strong>da</strong>de. Matéria por telefone,<br />

nem pensar! Humanização e Uso de Metáforas são dois elementos que prezo muito em<br />

minhas reportagens. Além, claro, do estilo, né? Estilo que o jornalista esculpe a ca<strong>da</strong><br />

reportagem”, diz.<br />

Da voz autoral, Tiago traz a capaci<strong>da</strong>de de seus avôs, que foram grandes<br />

contadores de boas histórias (aliás, acredita que o jornalista deve se espelhar nos bons<br />

contadores de causos). “O estilo mostra quem o jornalista é. A sua identi<strong>da</strong>de. Daí, a<br />

fuga sem olhar para trás do gesso <strong>da</strong> pirâmide inverti<strong>da</strong>. A humanização é quem dá vi<strong>da</strong><br />

ao texto. Ela tira a crosta endureci<strong>da</strong> <strong>da</strong>s palavras, colocando-as à flor <strong>da</strong> pele. Com a<br />

humanização, o texto consegue mexer com as sensações <strong>da</strong>s pessoas. Faz o texto ter<br />

pernas e vi<strong>da</strong> própria. Tocar no espectador”, esclarece.<br />

O Uso de símbolos e metáforas estimula a criativi<strong>da</strong>de do leitor. Faz ele<br />

entender e digerir a informação através <strong>da</strong> brincadeira com as palavras. Além de que,<br />

nossa mente tende a gravar com mais facili<strong>da</strong>de os sentidos visuais. Com a digressão,<br />

<strong>da</strong>mos novos contornos à matéria, distanciando <strong>da</strong> personagem principal em busca de<br />

outros viés que estejam interligados à matéria e que possam nos aju<strong>da</strong>r na <strong>compreensão</strong><br />

maior. No caso desta matéria, buscou pontuar as diferenças entre carpinteiro e<br />

marceneiro. Parênteses: tudo, claro, fun<strong>da</strong>mentado na precisão de <strong>da</strong>dos e informações.<br />

Vejamos os textos que foram publicados de outubro de 2008 a março de 2009.<br />

DATA<br />

03/10/08<br />

TÍTULO<br />

Estrelas do balcão<br />

AUTORIA<br />

Tiago<br />

Gonçalves<br />

ASSUNTO<br />

80<br />

História de Marcos Rogério e Carlos<br />

Daniel, Rodrigo Andrade e Gustavo<br />

Andrade, bartenders, que trabalham<br />

na ci<strong>da</strong>de de Campinas. Eles<br />

aprenderam a profissão nas noites<br />

campineiras, sobretudo observando<br />

outros profissionais <strong>da</strong> área.


10/10/08<br />

24/10/08<br />

31/10/08<br />

07/11/08<br />

14/11/08<br />

21/11/08<br />

Cestinhas de ouro<br />

Brasil na ponta do pé<br />

De volta à noite<br />

Nasci<strong>da</strong> para voar<br />

Bala<strong>da</strong> de bel<strong>da</strong>des<br />

Paixão em tom laranja<br />

Tiago<br />

Gonçalves<br />

Tiago<br />

Gonçalves<br />

Tiago<br />

Gonçalves<br />

Tiago<br />

Gonçalves<br />

Tiago<br />

Gonçalves<br />

Tiago<br />

Gonçalves<br />

81<br />

O ex-jogador de basquete, Adilson<br />

Nascimento, 56 anos, junto com<br />

outros ex-atletas <strong>da</strong> seleção<br />

brasileira, como Oscar Schmidt e<br />

Marcel, recebeu uma homenagem<br />

em Campinas, num jogo beneficente<br />

em sua aju<strong>da</strong>.<br />

História do coreógrafo argentino<br />

Rubén Terranova, que mora no<br />

Brasil desde 1982. Ele estava em<br />

Campinas com o espetáculo Contos<br />

e Cantos do Brasil e foi entrevistado<br />

pelo jornalista Tiago Gonçalves.<br />

Aos 56 anos, 20 como professor,<br />

Rubén esbanja joviali<strong>da</strong>de e<br />

criativi<strong>da</strong>de.<br />

Vi<strong>da</strong> do violonista Ricardo Matsu<strong>da</strong>,<br />

ex-integrante do grupo Anima.<br />

Ricardo gosta mesmo de tocar na<br />

noite. Mora em Campinas há mais<br />

de 25 anos. Fã de Dorival Caymmi,<br />

o violonista toca músicas<br />

instrumentais e MPB no restaurante<br />

Daitan.<br />

Mônica Pinho Edo, pára-quedista e<br />

piloto de avião, desde pequena<br />

aprendeu a gostar de aviação.<br />

Apaixona<strong>da</strong> pela vi<strong>da</strong> de Santos<br />

Dumont, Mônica sonha <strong>da</strong>r a volta<br />

ao mundo voando. É casa<strong>da</strong> com<br />

Carlos Edo, também piloto de avião.<br />

Como é uma noite de festa na vi<strong>da</strong><br />

<strong>da</strong>s candi<strong>da</strong>tas a Miss de São Paulo.<br />

Numa <strong>da</strong>s etapas do concurso, as<br />

mulheres estiveram no bairro<br />

Cambuí, na cachaçaria São Joaquim,<br />

numa bala<strong>da</strong>, ao som de músicas<br />

sertanejas. As bebi<strong>da</strong>s mais<br />

consumi<strong>da</strong>s foram suco de frutas e<br />

refrigerante diet.<br />

História de vi<strong>da</strong> dos namorados<br />

Paula Palmieri e Gabriel Taco.<br />

Campineiros, se conheceram num<br />

dos sofás <strong>da</strong> sala de espera <strong>da</strong><br />

Academia de Ballet Juliana Omati.<br />

Hoje dividem um apartamento no<br />

Rio de Janeiro. Ela integrava o<br />

elenco <strong>da</strong> novela Os mutantes, <strong>da</strong><br />

Record. Ele é apresentador do


28/11/08<br />

05/12/08<br />

12/12/08<br />

19/12/08<br />

09/01/09<br />

Sonhos no papel<br />

Reverência<br />

à construção centenária<br />

Noites de teatro,<br />

música e luz<br />

Festas <strong>da</strong> vira<strong>da</strong><br />

Garota brilha nas alturas<br />

Tiago<br />

Gonçalves<br />

Nice Bulhões<br />

Tiago<br />

Gonçalves<br />

Tiago<br />

Gonçalves<br />

Nice Bulhões<br />

82<br />

Shoptime. Gabriel estudou teatro na<br />

Escola Macunaíma e vendeu pipoca<br />

para pagar o aluguel. Paula é neta do<br />

artista plástico e cantor lírico<br />

Saverio Palmieri.<br />

A alegria de alunos e professores <strong>da</strong><br />

Ânima Academia de Arte, por<br />

ocasião <strong>da</strong> exposição de desenhos<br />

Sonhos, que aconteceu naquele final<br />

de semana. Ao todo foram<br />

apresentados 70 trabalhos com<br />

diferentes técnicas e estilos de<br />

desenhos, como mangá, artístico,<br />

histórias em quadrinhos, pintura,<br />

ilustração, arte contemporânea e<br />

mo<strong>da</strong>.<br />

Narrativa sobre um imóvel histórico<br />

do bairro Cambuí, construído no<br />

século 19. Hoje o prédio abriga a<br />

pizzaria Piola. É um dos mais<br />

antigos <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de Campinas e<br />

acaba de ser tombado pelo<br />

Candepacc (Conselho de Defesa do<br />

Patrimônio Cultural de Campinas).<br />

História de vi<strong>da</strong> de Maria<br />

Gonçalves, moradora do Jardim<br />

Aeroporto, que saiu de casa<br />

acompanha<strong>da</strong> do neto, Gabriel, de<br />

13 anos, para fazer o tradicional<br />

passeio por pontos de Campinas, no<br />

Roteiro de Natal, que oferecia peça e<br />

recitais. O repórter mostra os pontos<br />

turísticos <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, enfeitados para<br />

o nascimento de Jesus Cristo, a<br />

partir <strong>da</strong> visão de Maria Gonçalves.<br />

O autor <strong>da</strong> matéria narra a<br />

preparação do Bairro Cambuí para o<br />

Réveillon, sobretudo a festa do<br />

Clube Cultura, do Tênis Clube e do<br />

Vitória Hotel. É um texto pequeno,<br />

que destaca a importância que as<br />

pessoas e os organizadores dão para<br />

as comemorações do início de um<br />

ano novo.<br />

Depois de duas semanas sem<br />

publicar a coluna de histórias de<br />

vi<strong>da</strong>, o jornal Gazeta do Cambuí<br />

trouxe a história de Mariana<br />

Rodrigues Maekawa. A jovem é


16/01/09<br />

23/01/09<br />

30/01/09<br />

07/02/09<br />

Chope gelado,<br />

papo quente<br />

Sensibili<strong>da</strong>de no trajeto<br />

Fi<strong>da</strong>lgo dos pincéis<br />

Uma nova<br />

forma de amar<br />

Tiago<br />

Gonçalves<br />

Tiago<br />

Gonçalves<br />

Tiago<br />

Gonçalves<br />

Nice Bulhões<br />

83<br />

acrobata do Cirque Du Soleil e veio<br />

para Campinas participar do<br />

casamento <strong>da</strong> irmã. Depois <strong>da</strong> festa,<br />

Mariana voltaria para Las Vegas,<br />

nos Estados Unidos, onde<br />

participaria <strong>da</strong> apresentação do show<br />

Love.<br />

Reencontro <strong>da</strong>s amigas: Jéssica<br />

Loureiro, Marina Dias e Natália<br />

Figueiredo, em um bar do bairro<br />

Cambuí, depois <strong>da</strong>s festas de fim de<br />

ano. O bairro tem muitos lugares<br />

para as pessoas trocarem idéias e<br />

<strong>real</strong>izarem um happy hour. Segundo<br />

Tiago Gonçalves, “a ressaca do final<br />

do ano é cura<strong>da</strong> em mesas de bar:<br />

rodinhas anima<strong>da</strong>s e gente bonita”.<br />

História de vi<strong>da</strong> de José Carlos<br />

Garcia, 43 anos, motorista de ônibus<br />

e fabricante de instrumentos no<br />

quintal de sua casa. È conhecido<br />

como “O do violino”. Sua<br />

especiali<strong>da</strong>de é a fabricação de<br />

violinos. Influenciado pelo avô,<br />

quando morava no Paraná, José<br />

Carlos conhecia quase tudo sobre<br />

violino, aos 16 anos. Resolveu<br />

fabricar um para tocar. E não parou<br />

mais. Foi caminhoneiro e, desde<br />

1998, é motorista de ônibus.<br />

“Quando eu me aposentar vou<br />

dedicar o resto de minha vi<strong>da</strong> a<br />

isso”, disse.<br />

A vi<strong>da</strong> e o trabalho de Bira Dantas,<br />

professor de caricatura <strong>da</strong> Pandora<br />

Escola de Desenho. Ele fez uma<br />

versão de Dom Quixote em<br />

quadrinhos a pedido de uma editora.<br />

Havia feito, também em quadrinhos,<br />

o livro Memórias de um sargento de<br />

milícias. Pintados à mão, com<br />

aquarela, o objetivo é trazer à cena,<br />

em forma de desenho, as<br />

traquinagens de Dom Alonso e seu<br />

fiel escudeiro, Sancho Pança.<br />

A jornalista, a partir <strong>da</strong>s reflexões do<br />

psicoterapeuta Flávio Gikovate,<br />

escreve sobre o relacionamento<br />

entre o homem e a mulher. Com o<br />

auxilio do exemplo <strong>da</strong>s histórias de<br />

vi<strong>da</strong> dos casais Maria de Lourdes


13/02/09<br />

20/02/09<br />

27/02/09<br />

06/03/09<br />

Sagrado no profano<br />

É pra lá que vou...<br />

Expressões <strong>da</strong> Índia<br />

No início era só um<br />

hobby<br />

Tiago<br />

Gonçalves<br />

Tiago<br />

Gonçalves<br />

Tiago<br />

Gonçalves<br />

Tiago<br />

Gonçalves<br />

84<br />

Pimenta e Carlos Ferreira,<br />

Francyelle Nicolau e Enos <strong>da</strong> Silva,<br />

ela traz para o leitor a importância<br />

do amor de duas pessoas inteiras, e<br />

não mais de duas metades. A<br />

narrativa une reflexões sobre<br />

relacionamentos e psicologia.<br />

História de vi<strong>da</strong> e do trabalho de<br />

artesãs do bairro Cambuí que<br />

transformam objetos descartáveis<br />

em símbolos para a devoção.<br />

Garrafas long neck viram São<br />

Francisco com cara de menino e<br />

cabaças se tornam oratórios. Izil<strong>da</strong><br />

Fernandes e suas amigas começaram<br />

o projeto há oito anos. Hoje têm um<br />

ateliê com peças únicas, coloca<strong>da</strong>s à<br />

disposição dos interessados nesse<br />

tipo de arte. A história,<br />

emocionante, mostra o amor <strong>da</strong>s<br />

pessoas pela religião e pelo planeta,<br />

pois muitos materiais usados no<br />

ateliê, seriam jogados na natureza.<br />

A aventura dos moradores do bairro<br />

que deixam a ci<strong>da</strong>de para curtir o<br />

carnaval no Rio de Janeiro, na Bahia<br />

e em Minas Gerais. O texto traz<br />

personagens como: Douglas<br />

Ricardo, Aman<strong>da</strong> Ribeiro, e outros e<br />

explica o que os motiva a busca por<br />

outras regiões durante a folia.<br />

A narrativa é sobre o espetáculo<br />

Musico f Joy, em cartaz na ci<strong>da</strong>de de<br />

Campinas, naquele final de semana.<br />

Na ocasião, a Rede Globo veiculava<br />

a novela “Caminho <strong>da</strong>s Índias” e o<br />

espetáculo gerou grande interesse no<br />

bairro. A personagem <strong>da</strong> narrativa é<br />

a bailarina brasileira Ana Paiva, que<br />

desembarcou em 2004 na Índia, para<br />

desven<strong>da</strong>r os mistérios do kuchipudi,<br />

um estilo clássico de <strong>da</strong>nça indiana.<br />

Histórias de vi<strong>da</strong> dos artesãos <strong>da</strong><br />

feirinha do bairro Cambuí, que<br />

criam peças por passatempo e só<br />

então passam a ganhar com elas.<br />

Como em to<strong>da</strong>s as matérias, Tiago<br />

Gonçalves traz personagens, como:<br />

Daniel <strong>da</strong> Silva, Wagner Gerlach, o<br />

casal Marta e Alberto. O hobby


13/03/09<br />

20/03/09<br />

27/03/09<br />

Que nem José<br />

Parceria de sensibili<strong>da</strong>de<br />

Artista <strong>da</strong>s latinhas<br />

Tiago<br />

Gonçalves<br />

Tiago<br />

Gonçalves<br />

Tiago<br />

Gonçalves<br />

85<br />

aju<strong>da</strong>-os a melhorar o orçamento. As<br />

peças custam a partir de R$ 7,00.<br />

A história do carpinteiro Ilson<br />

Antonio Verginelli que mantém a<br />

tradição <strong>da</strong> família na confecção de<br />

imagens de santos. Ilson aprendeu o<br />

ofício com o pai, Felício Verginelli,<br />

que trabalhou como carpinteiro<br />

durante 80 dos seus 93 anos de vi<strong>da</strong>.<br />

Na família, sete filhos são<br />

carpinteiros. O texto une profissão,<br />

religião e tradição, tripé que mantém<br />

viva a história <strong>da</strong> família moradora<br />

do bairro Cambuí.<br />

História de vi<strong>da</strong> <strong>da</strong>s cantoras Helena<br />

Porto e Taís Reganelli. A primeira<br />

começou a vi<strong>da</strong> artística cantando na<br />

noite do bairro Cambuí. Estava<br />

lançando um CD com músicas de<br />

compositores <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de. Ouviu 200<br />

canções para escolher 10. As<br />

cantoras fariam show no teatro do<br />

Centro de Convivência em<br />

Campinas.<br />

A narrativa <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>real</strong> é sobre o<br />

ex-garçom José Feliciano <strong>da</strong> Silva.<br />

Conhecido como “Feliciano <strong>da</strong>s<br />

canecas” an<strong>da</strong> pelas ruas do bairro<br />

mostrando as canecas que faz com<br />

latas vazias de cerveja e<br />

refrigerantes. Paranaense de Uraí,<br />

Feliciano trabalhava carpindo café.<br />

Na época, seu pai, Messias<br />

Feliciano, fazia canecas com latas<br />

vazias. Aprendeu a arte. Em<br />

Campinas foi metalúrgico e garçom,<br />

até viver <strong>da</strong> arte <strong>da</strong>s canecas. Seu<br />

objetivo é ser professor e passar a<br />

técnica adiante.<br />

Tendo conhecido rapi<strong>da</strong>mente a história de ca<strong>da</strong> jornal e nos informado sobre as<br />

histórias de vi<strong>da</strong> produzi<strong>da</strong>s no período eleito para esta pesquisa, iremos ver, a partir de<br />

agora, três histórias, uma de ca<strong>da</strong> jornal. Foram escolhi<strong>da</strong>s pelo autor, para uma análise<br />

em profundi<strong>da</strong>de, tendo em conta os princípios escolhidos como caracterizadores de<br />

uma abor<strong>da</strong>gem de tipo complexo-compreensiva.


3. História de vi<strong>da</strong> de O Estado de São Paulo<br />

Contamina<strong>da</strong> pela vi<strong>da</strong><br />

Dentre as histórias de vi<strong>da</strong> do Caderno Aliás e analisa<strong>da</strong>s por este autor,<br />

“Contamina<strong>da</strong> pela vi<strong>da</strong>” fala sobre a vi<strong>da</strong> de Maria Beatriz Dreyer Pacheco, 60 anos,<br />

portadora do vírus HIV, que trabalha na prevenção <strong>da</strong> Aids. O objetivo, nesta parte do<br />

trabalho, como apontado linhas antes, é observar como os cinco fun<strong>da</strong>mentos de uma<br />

visão complexo-compreensiva na produção jornalística — personagem, imersão,<br />

diálogo dos afetos, <strong>compreensão</strong> e transformação — se fazem presentes no texto.<br />

Quem é Ivan Marsiglia, o jornalista que escreveu essa história de vi<strong>da</strong>? Em<br />

entrevista concedi<strong>da</strong> a este autor 3<br />

, em janeiro de 2010, Marsiglia contou que sua<br />

trajetória jornalística não é muito ortodoxa sob o ponto de vista <strong>da</strong> grande imprensa.<br />

Trabalhou quase to<strong>da</strong> a vi<strong>da</strong> em revista, o que influenciou muito o seu estilo de<br />

escrever. Fez jornalismo na Metodista em São Bernardo do Campo-SP. A partir do<br />

segundo ano, um professor o convenceu de que valeria a pena fazer outro curso para ter<br />

uma bagagem humanística. Acabou fazendo Ciências Sociais, na Universi<strong>da</strong>de de São<br />

Paulo. Ele estu<strong>da</strong>va e trabalhava ao mesmo tempo. Terminou a graduação em<br />

jornalismo no ano de 1993 e entrou na Editora Abril. “Tive a sorte de cair na re<strong>da</strong>ção <strong>da</strong><br />

revista Playboy. Era uma re<strong>da</strong>ção estelar. Logo que entrei o diretor era o Juca Kfouri<br />

3 Entrevista completa, ver nos anexos.<br />

86


ain<strong>da</strong>, que é um ótimo jornalista”. Trabalhava lá também, como escritor sênior, Eugênio<br />

Bucci. “Quando o Juca Kfouri saiu para trabalhar na revista Placar, o Ricardo Setti, um<br />

jornalista fenomenal, que já trabalhou aqui no Estadão, virou o diretor de re<strong>da</strong>ção <strong>da</strong><br />

Playboy”. O re<strong>da</strong>tor-chefe <strong>da</strong> revista era Humberto Werneck, um dos grandes nomes do<br />

New Journalism no Brasil. Marsiglia trabalhou com outros profissionais importantes,<br />

como Guilherme Cunha Pinto. Teve uma ótima escola. “A Playboy, de fato, tinha um<br />

esmero, um cui<strong>da</strong>do com o texto, além <strong>da</strong>s grandes entrevistas com uma técnica<br />

incrível. Ali, a gente aprendia com outras estrelas que eram convi<strong>da</strong><strong>da</strong>s para fazerem<br />

essas entrevistas, como Ruy Castro”. Isso tudo foi bom para ele: “Fui ser jornalista<br />

porque gosto de escrever. Há jornalistas que têm paixão pelo texto e outros que têm<br />

paixão pela notícia, pelo furo. Eu não me encaixaria tanto nesse perfil. Minha paixão<br />

maior é pelo texto”. Depois desse período, Marsiglia conseguiu uma bolsa para morar<br />

em Paris e trabalhar numa revista chama<strong>da</strong> Europa, com jornalistas de vários países,<br />

numa integração para conhecer a União Européia. Voltou para a Abril e teve uma<br />

proposta <strong>da</strong> revista Trip, no ano 2000, que ele considerava uma revista muito rica do<br />

ponto de vista <strong>da</strong> linguagem e também <strong>da</strong> pauta, criativa. Foi para lá. Ficou até 2004<br />

quando recebeu um convite do jornalista Ricardo Kotscho, para trabalhar na assessoria<br />

do presidente Lula em Brasília-DF. “Nunca tinha imaginado isso, mas achei que seria<br />

uma experiência boa e fui para o terceiro an<strong>da</strong>r do Palácio do Planalto. Aí o Ricardo<br />

Kotscho saiu, chegou o André Singer, depois veio o Franklin Martins”. Foi então que<br />

chegou o convite do Aliás. “Um grande amigo meu, Fred de Melo Paiva, trabalhava<br />

aqui. Estou aqui no Aliás desde setembro de 2008”.<br />

Dentro do jornal, explica Marsiglia, “somos considerados privilegiados, pois<br />

temos um pouco mais de tempo para trabalhar. O caderno é semanal. Só que a vi<strong>da</strong> não<br />

é tão colori<strong>da</strong> assim porque a gente nunca tem uma semana para fazer uma matéria”. O<br />

nome do caderno é Aliás, a semana revista, sendo calcado nos acontecimentos <strong>da</strong><br />

semana. “Temos que esperar a semana acontecer, ou pelo menos parte dela, pra vermos<br />

para onde ela vai para podermos fechar a pauta. Começamos a discutir a pauta na<br />

segun<strong>da</strong>-feira, com uma reunião <strong>da</strong> equipe interna. O caderno é fechado na sexta e<br />

ro<strong>da</strong>do na madruga<strong>da</strong> do sábado”. Mônica Manir é a atual editora. Na ver<strong>da</strong>de, é a partir<br />

de terça para quarta que a pauta se consoli<strong>da</strong>. “Aí temos de dois a três dias para<br />

fecharmos a página oito do Aliás, com um texto, entre aspas, em estilo de revista, com<br />

uma apuração mais rigorosa, mais tempo, mais detalha<strong>da</strong>. É corrido do mesmo jeito”.<br />

87


Marsilglia diz que a pauta é discuti<strong>da</strong> muito em função <strong>da</strong> semana e dos<br />

acontecimentos que, como Humberto Werneck sempre dizia, representam “os cadáveres<br />

que a imprensa deixa por aí sem pesquisar”, uma notícia de jornal que saiu, um<br />

episódio. “Veio agora à minha cabeça por exemplo um episódio de racismo que houve<br />

num estacionamento do Carrefour há uns meses atrás. Um homem negro num carro Eco<br />

Sport foi dominado e jogado no chão na frente <strong>da</strong> mulher”. A matéria saiu “pequininha”<br />

num jornal, onde o rapaz diz ter sido humilhado. “Esta é uma história fantástica. Quem<br />

é esse homem? De onde ele veio, onde trabalhou, como conseguiu comprar aquele<br />

carro”. São matérias assim que podem ser explora<strong>da</strong>s no final de semana para a página<br />

oito do caderno, considera<strong>da</strong> uma página em estilo Jornalismo Literário.<br />

A narrativa tem a pessoa humana como eixo. Beatriz é a protagonista <strong>da</strong><br />

reportagem. Moradora de Porto Alegre-RS, viu sua vi<strong>da</strong> virar do avesso depois de um<br />

diagnóstico positivo de Aids. Segundo os médicos, ela teria pouco tempo de vi<strong>da</strong>, pois,<br />

na época, quase na<strong>da</strong> se sabia sobre a Síndrome <strong>da</strong> Imunodeficiência Adquiri<strong>da</strong>. Beatriz<br />

vai protagonizar uma história de vi<strong>da</strong> emocionante.<br />

Beatriz, 60 anos, teve três homens na vi<strong>da</strong>. O primeiro deu a ela quatro filhos. O<br />

segundo contaminou-a com o vírus HIV. O terceiro foi seu único e ver<strong>da</strong>deiro amor.<br />

Gaúcha de Porto Alegre, ela nunca usou drogas nem foi infiel a nenhum de seus<br />

maridos. Entretanto, o perfil "careta", como ela própria define — tão distinto do que se<br />

costumava chamar "grupo de risco" <strong>da</strong> síndrome <strong>da</strong> imunodeficiência adquiri<strong>da</strong> nos<br />

anos 80, quando a doença foi populariza<strong>da</strong> no Brasil pela voz aterrorizante de Hélio<br />

Costa no Fantástico — não a salvou <strong>da</strong>s estatísticas <strong>da</strong> Aids.<br />

Quando recebeu a pior notícia <strong>da</strong> sua vi<strong>da</strong>, Beatriz pensou ser o fim de sua<br />

história. A morte abraçou-a. Amou o marido, foi fiel, mas ele a infectou. Noites em<br />

claro, tristeza, angústia, parecia o fim <strong>da</strong> estra<strong>da</strong>. A dor que sentia é a mesma de<br />

milhares de pessoas portadoras do HIV, com suas lutas, alegrias e sofrimentos. To<strong>da</strong>via,<br />

pouco a pouco, vai descobrindo que não está sozinha e que precisa batalhar muito para<br />

li<strong>da</strong>r com a situação. Jamais imaginara que seria infecta<strong>da</strong>, pois já não era uma jovem,<br />

nem usava drogas ou era homossexual, grupos que ela, até então, pensava ser os mais<br />

propícios a terem Aids. Mas, as coisas estão mu<strong>da</strong>ndo. São muitas as mulheres com<br />

AIDS no Brasil, sofrendo com o preconceito e a falta de recursos para cui<strong>da</strong>r <strong>da</strong> saúde.<br />

Assim esclarece Ivan Marsiglia:<br />

A história de vi<strong>da</strong> de Beatriz cabe no <strong>da</strong>do mais alarmante de um estudo divulgado esta<br />

semana pelo Programa Nacional de DST e Aids do Ministério <strong>da</strong> Saúde. Entre 1996 e<br />

2006, a incidência <strong>da</strong> doença entre maiores de 50 anos mais que dobrou no País,<br />

88


passando de 7,5 para 15,7 casos por 100 mil habitantes. Cerca de 70% dos pacientes são<br />

do sexo masculino e 75%, casados, que freqüentemente acabam por contaminar suas<br />

mulheres — uma vez que, por questão de hábito geracional, menos de 20% dos<br />

brasileiros nessa faixa etária usam preservativo.<br />

Beatriz tem uma história, mora num determinado lugar, tem uma família. O<br />

jornalista coloca essas informações importantes na matéria. Ninguém vive isolado no<br />

mundo. Indica ain<strong>da</strong> como a doença mudou sua vi<strong>da</strong>, por incrível que pareça, para<br />

melhor. Passou a valorizar ca<strong>da</strong> momento, ca<strong>da</strong> pessoa. Tornou-se mais carinhosa e<br />

compreensiva com os outros, além de se compreender melhor. Abriu-se à soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de.<br />

Deixou de pensar apenas em suas próprias coisas e entregou-se plenamente aos que<br />

sofrem com a doença. Em vez de lamentação, depressão, remorso, isolamento, preferiu<br />

a alegria, o sorriso, o amor e a esperança em poder aju<strong>da</strong>r aqueles que estão na mesma<br />

situação, ou piores que ela.<br />

Educa<strong>da</strong> nos rígidos padrões gaúchos, Beatriz emancipou-se como pessoa e como<br />

mulher a partir de encontros, decepções e tragédias entre as quais a Aids não seria a pior<br />

- e, bem ao contrário, estaria presente quando a vi<strong>da</strong> lhe proporcionou uma experiência<br />

única e madura com o amor. Além disso, seria a doença também a conferir sentido<br />

existencial e profissional à advoga<strong>da</strong> de hoje, defensora intransigente e bem-humora<strong>da</strong><br />

do "direito ao amor <strong>da</strong> pessoa com Aids", como diz. Missão a que dedica quase tanto<br />

tempo e carinho quanto a seus três netos, Bibiana, de 12 anos, Bruna, 9, e Bernardo, 4.<br />

Como todo ser humano, Beatriz alegrou-se, sofreu, ganhou, perdeu. Mas soube<br />

<strong>da</strong>r a volta por cima:<br />

Maria Beatriz Dreyer Pacheco, a Neca no apelido de família, estudou em colégio de<br />

freira e casou-se virgem, no final <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 50, com um rapaz vizinho de porta <strong>da</strong><br />

família, escolhido por seu pai. "Eu tinha 19 anos", lembra-se, "e achava estranho o fato<br />

de que não se podia nem pegar na mão antes de assinar o papel. Depois, tudo ficava<br />

permitido." O tudo, no caso, não era lá grande coisa. Mas logo vieram os filhos, com<br />

suas alegrias, a diluir aquela vi<strong>da</strong> "insípi<strong>da</strong>, inodora e incolor", como definiria anos mais<br />

tarde. Certa noite, pouco antes <strong>da</strong>s bo<strong>da</strong>s de prata do casal, o marido, gerente <strong>da</strong> Caixa<br />

Econômica Federal, confessou estar diversificando sua carteira de investimentos: no<br />

caso, em uma moça 15 anos mais nova.<br />

Segundo Marsiglia, a matéria Contamina<strong>da</strong> pela vi<strong>da</strong> começou a ser pensa<strong>da</strong><br />

depois que a equipe do Aliás viu uma pesquisa do Ministério <strong>da</strong> Saúde dizendo que os<br />

casos de Aids tinham reduzido, a sobrevivência aumentado, mas numa certa faixa etária,<br />

acima dos 50, aumentara sensivelmente, principalmente em mulheres. Decidiram, então,<br />

procurar uma mulher, idosa, portadora do HIV para escrever a matéria. “Foi um pouco<br />

89


difícil encontrar. Mas um amigo meu que trabalhava num grupo de DST indicou a<br />

Beatriz, que já havia participado de alguns encontros”. Aí ele foi para Porto Alegre,<br />

numa quinta-feira, à tarde. Fez a entrevista na casa dela e voltou no mesmo dia.<br />

O prazo para terminar a matéria era sexta-feira à tarde. “Eu me lembro que foi<br />

muito difícil. Foi uma <strong>da</strong>s matérias que eu levei mais tempo pra achar um caminho.<br />

Chegou um momento, eu me lembro, por volta <strong>da</strong>s seis <strong>da</strong> tarde, eu tinha que entregar o<br />

texto, estava meio em pane”. Era uma história digna, de alguém que se apaixonou,<br />

casou-se com um homem para cui<strong>da</strong>r dela por causa <strong>da</strong> Aids, mas que acaba sendo<br />

cui<strong>da</strong>do pela Beatriz, pois desenvolve um câncer e morre. Para ele aquele tempo com<br />

ela não foi em vão. Ele chegou num apartamento de classe média, com fotografias de<br />

netos, filhos, uma vovó que não tinha na<strong>da</strong> de maluca. Alguém que teve três homens na<br />

vi<strong>da</strong>: um que lhe deu um filho, outro que lhe deu o HIV e outro que lhe deu amor e que<br />

foi seu grande amor. Marsiglia conta que passou a tarde com ela: “Me lembro que<br />

durante a entrevista ela colocou sobre a mesa muita coisa que utiliza nas palestras;<br />

espalhou camisinhas de diversas cores. E assim nasceu o texto, um dos que eu gostei<br />

mais de ter feito”.<br />

A imersão do repórter na <strong>real</strong>i<strong>da</strong>de de Beatriz foi fun<strong>da</strong>mental para que o texto<br />

fosso complexo-compreensivo. Marsiglia não conhecia a personagem. Teve que ir ao<br />

encontro dela, em Porto Alegre. Ele se envolveu física e emocionalmente na história.<br />

Não ficou de fora. Mergulhou no mar <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> de alguém. Teve que ser compreensivo,<br />

fazer uma jorna<strong>da</strong> ao sul do Brasil sem saber exatamente o que encontraria. Teve que se<br />

despojar de preconceitos, de idéias pré-estabeleci<strong>da</strong>s. Necessitou de abertura total para<br />

captar a vi<strong>da</strong> e a morte que pulsavam no peito de Beatriz.<br />

Estando na casa de Beatriz, Marsiglia olhou nos olhos <strong>da</strong> personagem. Falou e<br />

ouviu. Chorou e sorriu com ela. Ele diz que Beatriz não era uma mulher promíscua, mas<br />

uma mulher tranqüila. Alguém que encontrou na doença uma maneira de colaborar.<br />

Continua <strong>da</strong>ndo palestras, mesmo depois <strong>da</strong> morte do marido. O casal, durante as<br />

palestras, beijava-se na boca e tomava água no mesmo copo para demonstrar que a Aids<br />

não se transmitia dessa maneira. Gestos de <strong>compreensão</strong>.<br />

No texto, o repórter continua contando a vi<strong>da</strong> <strong>da</strong> personagem. Agora, falando do<br />

ver<strong>da</strong>deiro amor que Beatriz experimentou. Com os filhos criados e aos 42 anos de<br />

i<strong>da</strong>de, Beatriz decidiu que não havia mais lugar para homens em sua vi<strong>da</strong>:<br />

90


Isso até encontrar Carlos Antônio Aleixo, "o único de quem você pode publicar o nome,<br />

porque foi quem eu amei de ver<strong>da</strong>de", em março de 1996, na sala de espera do Tribunal<br />

do Trabalho, em Porto Alegre. Ele era auditor fiscal, também tinha filhos e estava<br />

recém-separado. Simpatizaram um com o outro e, no meio <strong>da</strong> conversa, deram-se conta<br />

de que já tinham se conhecido, 30 anos atrás. "Você não é a Neca?", perguntou Carlos,<br />

que estivera na casa dos Pachecos quando era apenas um garoto de 14 anos e ela tinha<br />

18. "Na hora, não me dei conta. Mas quando ele me telefonou, convi<strong>da</strong>ndo para jantar,<br />

ouvi sua voz e senti um frio na barriga. Aí me dei conta de que estava gostando dele". O<br />

jantar foi no sábado. Segun<strong>da</strong>-feira, os dois já estavam morando juntos. O ano que se<br />

seguiu foi maravilhoso para Beatriz e Carlos. "Vivi a sexuali<strong>da</strong>de mais rica <strong>da</strong> minha<br />

vi<strong>da</strong> entre os 50 e os 60 anos", conta ela. "Nossos filhos notavam quanto éramos felizes<br />

e nos chamavam de ‘envelhecentes’”, ri.<br />

Assim, a vi<strong>da</strong> de Beatriz foi transforma<strong>da</strong>, a partir <strong>da</strong> Aids. Não desanimou<br />

diante <strong>da</strong>s dificul<strong>da</strong>des e <strong>da</strong> notícia. Mostrou-se forte o suficiente para lutar contra a<br />

morte e para aju<strong>da</strong>r muitas outras pessoas a serem fortes também. Não só transformou<br />

sua visão <strong>da</strong>s coisas, como lidera a luta contra a Aids em sua <strong>real</strong>i<strong>da</strong>de. Exemplo de<br />

mulher para todos que convivem com ela. A história de vi<strong>da</strong> de Beatriz pode<br />

transformar a vi<strong>da</strong> de leitores portadores ou não do vírus HIV.<br />

A primeira infectologista consulta<strong>da</strong> por Beatriz deu-lhe 18 meses de vi<strong>da</strong>. (...) Os<br />

filhos começaram a se despedir dela. Uma ocasião os quatro repetiram com a mãe o<br />

passeio preferido de infância: foram ao circo juntos e comeram algodão-doce. Natal e<br />

aniversários foram celebrados como se fossem os últimos. O casal também enfrentou o<br />

drama junto. Nos primeiros quatro meses, Beatriz e Carlos tiveram que pagar o<br />

tratamento do bolso. "Gastávamos US$ 2 mil por mês em medicamentos", conta ela,<br />

que precisou se endivi<strong>da</strong>r e teve um automóvel tomado pelo oficial de Justiça. Quando o<br />

coquetel antiaids foi descoberto e o Ministério <strong>da</strong> Saúde passou a fornecê-lo<br />

gratuitamente pelo Sistema Único de Saúde, a situação melhorou. Os dois tiveram que<br />

redescobrir a vi<strong>da</strong> sexual e aprender a usar camisinha. Também começaram um trabalho<br />

de militância contra o preconceito e pelo amor nos tempos de HIV. Beatriz fundou o<br />

Movimento Nacional <strong>da</strong>s Ci<strong>da</strong>dãs Posithivas, de prevenção e apoio aos infectados. Já<br />

em 1999, ela publicou no jornal do Gapa, Grupo de Apoio à Prevenção <strong>da</strong> Aids, um<br />

artigo intitulado Nós, as HIVéias, que tocava no tema tabu <strong>da</strong> infecção de mulheres de<br />

meia-i<strong>da</strong>de casa<strong>da</strong>s. Dispensar a camisinha nas relações estáveis? Fazendo o exame<br />

antes, tudo bem, ensinava Beatriz, contanto que a proteção seja regra nas relações<br />

extraconjugais: "Se pular a cerca, traz a guampa (chifre, no dialeto gauchês) sem o HIV<br />

pendurado nela". Para mostrar que o contágio <strong>da</strong> Aids não se dá senão por via sexual ou<br />

transfusão de sangue, os dois faziam palestras durante as quais bebiam água do mesmo<br />

copo e eram invariavelmente encerra<strong>da</strong>s por um apaixonado beijo na boca.<br />

Contamina<strong>da</strong> pela vi<strong>da</strong>, portanto, é exemplo de que a narrativa <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>real</strong> tem<br />

seu lugar no jornalismo. Uma coisa é você oferecer aos leitores informações sobre a<br />

Aids, algo importante, sem dúvi<strong>da</strong>, porque precisamos de informações sobre a doença,<br />

outra, oferecer uma história como a de Beatriz, com seu testemunho de vi<strong>da</strong>. Uma<br />

narrativa assim toca o coração de quem a lê, pode impulsionar o leitor a querer se<br />

91


soli<strong>da</strong>rizar com os portadores <strong>da</strong> Aids; tem poder de fazer as pessoas serem mais<br />

compreensivas e menos preconceituosas com quem tem a doença; alerta as pessoas que<br />

estão na faixa etária de Beatriz a serem prudentes e a perceberem que podem passar por<br />

tudo o que a personagem está passando se forem negligentes com a própria vi<strong>da</strong>. Além<br />

dessas possibili<strong>da</strong>des que uma narrativa <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>real</strong> oferece, existem muitas outras que<br />

nem podemos imaginar. Por isso, as histórias de vi<strong>da</strong>, tão importantes para a<br />

transformação e a <strong>compreensão</strong> <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de, devem estar presentes nos jornais.<br />

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4. História de vi<strong>da</strong> do jornal Correio Popular<br />

Casamento muito especial em Socorro<br />

O autor <strong>da</strong> matéria do jornal Correio Popular é Fabiano Ormaneze, formado pela<br />

PUC de Campinas, em 2004. Pós-graduado em Jornalismo Literário, trabalhou em<br />

assessoria de imprensa, jornal impresso e produção editorial de livros em editoras.<br />

Mesmo quando fazia assessoria de imprensa, seu foco eram as histórias de vi<strong>da</strong>. Algo<br />

que desde a facul<strong>da</strong>de o interessou. Seu projeto de conclusão de curso foi um livroreportagem<br />

sobre histórias de vi<strong>da</strong>, Vi<strong>da</strong>s parti<strong>da</strong>s, histórias de mães que enfrentaram a<br />

morte dos filhos.<br />

Fabiano ain<strong>da</strong> estava na pós-graduação quando recebeu o convite para trabalhar<br />

no jornal. Começou na coluna Um rosto na multidão. A coluna não tinha um titular,<br />

nem periodici<strong>da</strong>de. Hoje ela é publica<strong>da</strong> todos os sábados.<br />

Ele nunca teve problemas por escrever textos um pouco diferentes. Aliás, esse<br />

estilo é sua marca. “No Correio já se sabe que meu estilo é esse. Não sofri nenhuma<br />

represália por escrever no estilo Jornalismo Literário. Mas percebo que o estilo não é o<br />

que chama mais a atenção dos leitores, e sim as histórias de vi<strong>da</strong> que conto”. Para<br />

Fabiano o estilo aju<strong>da</strong>, atrai, mas são os personagens quem cativa. Quanto mais ousado<br />

é o texto, maior o retorno dos leitores.<br />

A proposta <strong>da</strong> coluna Um rosto na multidão, como adiantado, não é falar de<br />

celebri<strong>da</strong>des, de gente conheci<strong>da</strong>, mas de pessoas anônimas que fazem uma coisa<br />

diferente ou que tenha uma história de vi<strong>da</strong> pitoresca, que chame a atenção, ou que<br />

93


tenha um trabalho de doação <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, que sirva de exemplo para a socie<strong>da</strong>de. Essas<br />

histórias chamam a atenção dos leitores porque geram uma identificação. “É alguém<br />

anônimo como eu”, “alguém que eu conheço”, “que mora no meu bairro”. Outro<br />

aspecto: são histórias “boas” num jornal que traz notícias “ruins”, como todo jornal,<br />

apesar de o Correio não ser sensacionalista, voltado para o público A e B. “As histórias<br />

de vi<strong>da</strong> são como um momento de alívio para quem acabou de ler um fato violento que<br />

aconteceu na ci<strong>da</strong>de ou na região. O jornal, muitas vezes, é árido e um texto mais suave<br />

aju<strong>da</strong> o leitor a compreender melhor as coisas”, disse Fabiano 4<br />

. Ele dá um exemplo:<br />

“Você lê uma matéria falando <strong>da</strong> fome e de repente se depara com um texto diferente,<br />

mostrando que existem pessoas lutando para matar a fome de outras. Isso mostra que a<br />

vi<strong>da</strong> social não é só tragédia”. Para ele, “precisamos de exemplos para seguir. As<br />

histórias de vi<strong>da</strong> alimentam a esperança <strong>da</strong>s pessoas”.<br />

Fabiano acha fun<strong>da</strong>mental ir ao lugar onde está a pessoa. “Você, indo ao lugar,<br />

recebe tantas informações sobre a pessoa que por telefone você não consegue e por email<br />

menos ain<strong>da</strong>. Porque o lugar em que a pessoa vive fala sobre ela. As coisas que ela<br />

possui, as pessoas ao seu redor falam sobre ela”.<br />

Para o jornalista do Correio Popular, as histórias de vi<strong>da</strong> podem transformar a<br />

vi<strong>da</strong> <strong>da</strong>s pessoas. Certa vez, ele fez uma matéria sobre a dificul<strong>da</strong>de que crianças, com<br />

alguma deficiência, têm para conseguir brinquedos. “É uma coisa muito difícil para uma<br />

criança cega, por exemplo, encontrar um brinquedo apropriado para ela. Fiz uma<br />

matéria sobre isso”. Dois dias depois, ele recebeu um e-mail de uma pessoa que estava<br />

abrindo uma loja de brinquedos em Campinas e que, motiva<strong>da</strong> pela matéria, decidiu<br />

abrir um pe<strong>da</strong>ço <strong>da</strong> sua loja com brinquedos para crianças portadoras de deficiência,<br />

cegas, sur<strong>da</strong>s, mu<strong>da</strong>s, paralíticas etc. “Nesse sentido eu penso que contar a história <strong>da</strong><br />

criança que não tem brinquedo, não por que não tem dinheiro, mas por não ter acesso,<br />

por que não pensaram nela quando foram fabricar os brinquedos, provoca uma<br />

transformação”. Para Fabiano, se há um jornalismo que transforma, esse jornalismo é o<br />

que conta boas histórias de vi<strong>da</strong>. “Procuro contar histórias que trazem bons exemplos<br />

para as pessoas, que possam servir de transformação. Mas não fico preocupado se<br />

transformou ou não. Eu planto as sementes”.<br />

Casamento muito especial em Socorro é um texto complexo-compreensivo. O<br />

repórter inicia falando do casamento <strong>da</strong>s personagens:<br />

4 Entrevista completa pode ser encontra<strong>da</strong> nos anexos.<br />

94


O que se viu na última quinta-feira, na Igreja Matriz de Socorro (a 104 quilômetros de<br />

Campinas), foi uma cena para cerimonial nenhum colocar defeito. Maria Gabriela<br />

Demate, de 28 anos, como to<strong>da</strong> noiva, chegou um pouquinho atrasa<strong>da</strong>, cerca de dez<br />

minutos, e já era espera<strong>da</strong>, com ansie<strong>da</strong>de, pelo noivo, Fábio Marchetti de Moraes, de<br />

29 anos. A <strong>da</strong>ta também não foi escolhi<strong>da</strong> por acaso: fazia um ano que Valentina, a filha<br />

do casal, nascera. Falando assim pode parecer uma história comum, com uma<br />

coincidência de <strong>da</strong>tas. E <strong>real</strong>mente seria, se o casal não tivesse ficado conhecido desde a<br />

gestação <strong>da</strong> garotinha.<br />

Essa cena que abre a narrativa não demorou para ser escrita pelo jornalista, mas<br />

demorou muito paras ser concretiza<strong>da</strong>. Maria Gabriela tem síndrome de Down. Até aí<br />

tudo bem. Mas, ficou grávi<strong>da</strong>. A gravidez de mulheres com síndrome de Down é um<br />

fato raro para a medicina: apesar de terem os órgãos reprodutivos bem formados, a taxa<br />

de fertili<strong>da</strong>de é menor, além de ser grande o risco de um aborto natural. A estimativa é<br />

de que haja, no mundo todo, pouco mais de 50 filhos de mães com Down.<br />

Esse fato gerou dezenas de matérias em muitos jornais. Na região de Campinas<br />

não se falava em outra coisa. O que fazer com a menina? Será que ela vai conseguir ser<br />

mãe? E a criança? Vai nascer perfeita ou com Down? Discussões e mais discussões.<br />

Informações e mais informações!<br />

Isso durou os nove meses. Até que nasceu a Valentina. Para a felici<strong>da</strong>de de<br />

todos, perfeita, vendendo saúde. Isso gerou outras dezenas de matérias. Aí vieram<br />

outros desafios para Maria Gabriela: ela enfrentou muitos problemas para registrar a<br />

menina, porque a Lei brasileira exige que o pai diga: “Esta é minha filha”, mas o pai de<br />

Valentina, Fábio, tem uma pequena deficiência mental, pelo atraso na hora do parto, e<br />

não tinha condições de dizer isso. Mais polêmica e repercussão na região, como diz o<br />

repórter no texto:<br />

Quando Valentina nasceu, na Materni<strong>da</strong>de de Campinas, começou um impasse que só<br />

foi solucionado três meses depois na Justiça. A menina teve o registro de nascimento<br />

negado, sob a alegação de que Fábio não teria o discernimento necessário para declarar,<br />

por si só, ser o pai, como prevê a legislação brasileira. A única saí<strong>da</strong> seria registrá-la<br />

como filha de pai não declarado, o que ficou fora de cogitação pela família. Chegou-se a<br />

falar, inclusive, que seria necessário um exame de DNA, o que acabou não sendo<br />

necessário. A autorização para o registro foi concedi<strong>da</strong> depois que Fábio foi ouvido por<br />

uma juíza.<br />

Fabiano Ormaneze conta que, por tudo isso, o caso já vinha sendo acompanhado<br />

pelo Correio Popular a pelo menos um ano e meio. Depois que registraram a criança, os<br />

pais decidiram se casar. Desse modo, o casamento tornou-se celebração de uma vitória.<br />

95


Como ensina Campbell, no final <strong>da</strong> jorna<strong>da</strong>, depois de muitas batalhas, o herói retorna<br />

com o elixir. O casamento era o retorno. Retorno à vi<strong>da</strong> cotidiana, às pequenas alegrias.<br />

Nascia mais uma bela matéria. Fabiano foi a Socorro, conversou com os pais dos dois<br />

jovens que iriam se casar. Acompanhou o casamento e escreveu o texto, que teve grande<br />

repercussão.<br />

O casamento aconteceu no dia 19 de março. O repórter, com simplici<strong>da</strong>de, narra<br />

o momento mais emocionante <strong>da</strong> cerimônia <strong>da</strong> seguinte maneira:<br />

A garotinha, que começa a <strong>da</strong>r os primeiros passos, teve uma participação especial no<br />

casamento: no colo <strong>da</strong> avó e mãe <strong>da</strong> noiva, Laurin<strong>da</strong>, ela levou as alianças para o casal.<br />

A narrativa do Correio Popular foi um sucesso. A repercussão na re<strong>da</strong>ção foi<br />

extraordinária. A história de vi<strong>da</strong> de Maria Gabriela, Fábio e Valentina tocou<br />

profun<strong>da</strong>mente a vi<strong>da</strong> de todos. Isso mostra o poder transformador de uma narrativa <strong>da</strong><br />

vi<strong>da</strong> <strong>real</strong> publica<strong>da</strong> num jornal. Uma história sobre a Síndrome de Down que informa,<br />

mas, especialmente, torna as pessoas mais compreensivas e menos preconceituosas.<br />

Muita gente na socie<strong>da</strong>de vê os portadores de deficiência mental como “loucas”, inaptas<br />

para a convivência social. Há pessoas que pensam que portadores de Down são inúteis,<br />

nem deveriam ter nascido, já que não têm muitas possibili<strong>da</strong>des! A história de Maria<br />

Gabriela e Fábio faz essas idéias desmoronarem, pois todo ser humano tem digni<strong>da</strong>de e<br />

sonhos a serem <strong>real</strong>izados, como escreve o repórter na matéria:<br />

Noiva exigente, que dizia que queria “tudo como se fosse uma princesa”, Maria<br />

Gabriela fez questão de ter viagem de lua de mel. O casal partiu ontem à tarde para um<br />

hotel-fazen<strong>da</strong> em Águas de Lindóia (a 102 quilômetros de Campinas), onde ficará até<br />

amanhã. Enquanto isso, dona Laurin<strong>da</strong> vai cui<strong>da</strong>r de Valentina. “O casamento foi lindo,<br />

como nós todos sonhávamos. Foi o final feliz esperado para esta história”, disse a mãe<br />

<strong>da</strong> noiva. O romance de Fábio e Maria Gabriela começou na infância, quando os dois já<br />

trocavam presentes na Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE). O<br />

namoro sério teve início em 2005. “Foi tudo do jeito que eu sempre sonhei”, disse a<br />

noiva.<br />

A história de vi<strong>da</strong>, narra<strong>da</strong> por Fabiano Ormaneze, emociona, informa,<br />

transforma. Quebra barreiras, derruba muros, vence preconceitos. Não dá mais para<br />

vivermos fazendo acepção de pessoas. Ninguém é pior ou melhor que ninguém. Somos<br />

humanos. Se não nos respeitamos mutuamente como viveremos nesse planeta azul, que<br />

está perdendo a cor pela in<strong>compreensão</strong>? As <strong>narrativas</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>real</strong> dão um brilho novo<br />

96


às páginas dos jornais. Não por causa <strong>da</strong> tinta <strong>da</strong>s impressoras, mas <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> que pulsa no<br />

coração do jornalista que escreve a partir do <strong>signo</strong> <strong>da</strong> <strong>compreensão</strong>.<br />

97


5. História de vi<strong>da</strong> do jornal Gazeta do Cambuí<br />

Que nem José<br />

A matéria “Que nem José” foi publica<strong>da</strong> na Gazeta do Cambuí, no dia 13 de<br />

março de 2009, tendo sido escrita pelo jornalista Tiago Gonçalves.<br />

Conta a vi<strong>da</strong> do carpinteiro Ilson Antonio Verginelli. O pai de Ilson, Felício<br />

Verginelli, morreu aos 93 anos e trabalhou como carpinteiro durante 80 anos. A família<br />

conta com 7 carpinteiros. É uma história que resgata a vi<strong>da</strong> dos italianos que vieram<br />

para o Brasil, em busca de uma vi<strong>da</strong> melhor, com muita dedicação e fé em São José, pai<br />

de Jesus, o carpinteiro de Nazaré.<br />

Como Tiago escreveu essa narrativa? “Lembro-me que saí pelo Cambuí, bairro<br />

onde circulava a Gazeta do Cambuí, em busca de um carpinteiro. Queria encontrar<br />

algum tradicional, que ain<strong>da</strong> mantivesse a mesma tradição her<strong>da</strong><strong>da</strong> de São José. Por<br />

indicação, fui a diversas casas: numa, o carpinteiro indicado não era carpinteiro, mas<br />

marceneiro. Descartei. Na segun<strong>da</strong>, o profissional já tinha falecido. Até que cheguei à<br />

antiga casa de Seo Felício. O vizinho me disse: ‘Ele foi um dos melhores carpinteiros,<br />

mas já morreu’. No entanto, pairou a salvação de minha pauta: ‘Seu filho, Ilson, herdou<br />

a profissão’. Pensei: Perfeito! O impressionante foi quando apurei a vista e enxerguei,<br />

repousando no oratório <strong>da</strong> frente <strong>da</strong> casa, um São José de gesso. Antigo, quase<br />

desbotado. Apesar de a casa estar fecha<strong>da</strong>, após a morte de Felício, a imagem que<br />

retratava a devoção e a profissão do velho ain<strong>da</strong> estava em imponência. Marquei a<br />

conversa para o dia seguinte com Ilson. Antes do papo, pedi para que ele mostrasse<br />

98


algumas ferramentas <strong>da</strong> profissão. Foi quando me apresentou um serrote e uma plaina<br />

manual. Ain<strong>da</strong> confidenciou: ‘Pertenceram ao meu pai’. Nossa conversa amistosa durou<br />

uma hora. Mais do que uma entrevista, o encontro se configurou num bate-papo. Ilson<br />

falou sobre as peripécias do pai, como ele entrou na profissão, o futuro que <strong>da</strong>ria à casa<br />

do velho, falou <strong>da</strong>s dificul<strong>da</strong>des <strong>da</strong> profissão e comentou sobre a sua família que é<br />

composta por sete carpinteiros. Sete, em uma só família? Não poderia ser melhor, numa<br />

matéria que falaria sobre esta profissão. Por último, Ilson disse que não quis que o filho,<br />

Rafael, seguisse a herança <strong>da</strong> família”.<br />

Para Tiago, faz-se de extrema importância ao jornalista estabelecer laços de<br />

amizade com o entrevistado antes de ca<strong>da</strong> conversa (“prefiro mencionar: conversa ou<br />

bate-papo, do que entrevista – soa muito formal”). Para começar, gosta de se encontrar<br />

com a personagem em seu ambiente natural. A casa ou o escritório ou o emprego diz<br />

muito ao repórter atento. Basta observar o seu redor, que conta muito <strong>da</strong>quela pessoa<br />

que está à sua frente. Procura digerir aquele ambiente com relação à personagem. No<br />

caso de Ilson, a casa do pai dizia muita coisa e mexia muito com o filho. Durante o<br />

papo, lembrou-se de coisa que tinha já esquecido. Às vezes, o meio nos conta mais do<br />

que o próprio personagem.<br />

Outra característica que esse jovem repórter sempre traz à tona, em suas<br />

conversas, é a infância. Gosta de estimular a personagem a voltar à meninice. “Ela nos<br />

diz muita, mas muita coisa. E nos explica muito, também. Fazer a personagem voltar ao<br />

passado e recriar em palavras aqueles instantes é crucial e proveitoso. Gosto de ouvir<br />

histórias.... Isso deveria ser uma arma ao jornalista de hoje: Escutar! Vemos ao<br />

contrário, já que a maioria pensa em perguntar!”, explica.<br />

Nessa sua empreita<strong>da</strong> como jornalista, está mais presente as técnicas de<br />

apuração <strong>da</strong> História Oral: “Enxergo que tem tudo a ver com a apuração do Jornalismo<br />

Literário, principalmente a desenvolvi<strong>da</strong> na Unicamp, do que as do distanciamento <strong>da</strong><br />

escola jornalística convencional e fria”. Ao invés de perguntas, lança temas pelos quais<br />

as personagens possam passear, discutir, contar, relembrar ou até mesmo divagar sobre<br />

o assunto ou determina<strong>da</strong> informação. Sempre, claro, a partir de suas memórias<br />

pessoais.<br />

Por exemplo, Ilson foi discutir a profissão de carpinteiro não pelo âmbito do que<br />

ele ouve falar, mas pelo que suas memórias emotivas lhe sopram. Está nisso o<br />

ver<strong>da</strong>deiro depoimento, a ver<strong>da</strong>deira voz <strong>da</strong> personagem.<br />

99


compreensiva:<br />

100<br />

Vejamos no texto alguns pontos que fazem essa narrativa ser complexo-<br />

O nome não é de santo, mas o sobrenome sim: Antonio, o casamenteiro. Se bem que a<br />

profissão de Ilson está liga<strong>da</strong> a outra santi<strong>da</strong>de, José.<br />

Vemos, nesse trecho <strong>da</strong> narrativa, a íntima ligação <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> com a religião, as<br />

crenças, os mitos, elementos desenvolvidos por um pensamento complexocompreensivo.<br />

A matéria seria publica<strong>da</strong> por ocasião <strong>da</strong> Festa de São José. Por isso, o<br />

repórter procurou um carpinteiro, profissão do pai de Jesus Cristo. A história conta que<br />

José ensinou a profissão a Jesus, que também tornou-se carpinteiro. O mesmo se deu na<br />

narrativa publica<strong>da</strong> pela Gazeta do Cambuí: Ilson aprendeu a ser carpinteiro com o pai,<br />

Felício.<br />

Tal como o carpinteiro de Nazaré, na Galileia, o de Campinas dedica sua vi<strong>da</strong>, desde a<br />

época de meninote, ao ofício com a madeira. Serra, lixa e enverniza. Na rotina de<br />

trabalho em construções, sejam elas de casas, prédios, escolas e até de igrejas, Ilson tem<br />

como fiéis escudeiros ferramentas de ontem, pouco utiliza<strong>da</strong>s hoje, como serrote e uma<br />

plaina manual. Ele as mantém por um único motivo: pertenciam ao seu pai, Felício<br />

Verginelli, que morou seus 93 anos no Cambuí e fez fama como um dos melhores<br />

carpinteiros <strong>da</strong>s redondezas.<br />

A narrativa traz ain<strong>da</strong> ao leitor a valorização <strong>da</strong> família, <strong>da</strong> tradição, do passado.<br />

Ilson não despreza as ferramentas antigas que seu pai usava, mas faz questão de utilizálas.<br />

O pai já morreu, mas ele mantém íntima ligação com ele, através desses<br />

instrumentos e de tudo o que aprendeu. Isso é <strong>compreensão</strong>. Muitas pessoas acham que<br />

o passado não tem importância. Defendem que o que se tem hoje é o que vale. Um<br />

pensamento compreensivo não descarta as experiências de ontem ou de mil anos atrás.<br />

Não defende que o homem dos dias atuais seja mais inteligente que o do passado, que as<br />

técnicas do novo milênio sejam superiores às dos povos antigos. Ao contrário, ensina<br />

que o passado ilumina o presente, enriquece o presente. Isso vemos na história Que nem<br />

José.<br />

Outro aspecto de <strong>compreensão</strong> que o texto nos indica é a busca pelo<br />

aperfeiçoamento, a abertura ao novo. Um pensamento complexo-compreensivo não é<br />

fechado, mas amplia horizontes. Ilson, apesar de anos de experiência na profissão,<br />

depois de tudo o que aprendeu do pai, ain<strong>da</strong> se considera aprendiz <strong>da</strong> profissão e <strong>da</strong><br />

vi<strong>da</strong>:


101<br />

A carpintaria, gosta de afirmar, “não é uma profissão fácil de se levar: Judia muito <strong>da</strong><br />

pessoas”, reconhece. Por isso, não há carpinteiro que se preze sem nenhuma marca de<br />

corte ou sem protagonizar um tombo <strong>da</strong>queles. “Meu pai, mesmo, caiu de uma altura de<br />

quase cinco metros. Ficou mais de um ano sem an<strong>da</strong>r”. Apesar dos contras, Ilson não<br />

troca a carpintaria por na<strong>da</strong>. Gosta dos desafios que a profissão proporciona. “Sempre<br />

faço coisas diferentes, porque nenhum telhado é igual ao outro”.<br />

O pai continua vivo na memória de Ilson:<br />

Felício trabalhou até os 80 anos. “Ele nos acompanhava na obra ou, quando<br />

comentávamos de algum serviço, sempre queria nos ensinar a fazer”. Só parou quando a<br />

vista começou a enfraquecer. Lúcido e elétrico, o velho carpinteiro revelava apenas para<br />

os filhos o segredo do sucesso <strong>da</strong> profissão de São José: inteligência para executar o<br />

madeiramento; agili<strong>da</strong>de para an<strong>da</strong>r em cima dos telhados, e força, “tem que conseguir<br />

carregar as madeiras, né?".<br />

Na história de vi<strong>da</strong> Que Nem José, o jornalista Tiago Gonçalves procurou<br />

brincar com o carpinteiro que não tinha nome, mas sobrenome de Santo. E que, ao invés<br />

de José, o padroeiro dos carpinteiros, foi batizado em devoção a outro santo, Antônio, o<br />

casamenteiro.<br />

Um detalhe que abusou na produção deste texto foi o uso do flashback. “Por<br />

presentificar ao máximo as informações, utilizei-se do recurso citado para viajar com a<br />

personagem até o passado. A dosagem entre o hoje e o ontem garante uma fluidez na<br />

apresentação <strong>da</strong>s informações muito interessante. Prende o leitor”, contou.<br />

A narrativa publica<strong>da</strong> na Gazeta do Cambuí cumpre o papel de motivar os<br />

moradores do bairro. Ilson é um homem simples, carpinteiro, que circula pelas ruas do<br />

Cambuí, muitas vezes sem ser notado, porque não é uma celebri<strong>da</strong>de. To<strong>da</strong>via, tem uma<br />

história interessantíssima. Quantas coisas o carpinteiro ensinou através <strong>da</strong> matéria. Com<br />

certeza, as pessoas passaram a vê-lo de outra forma depois de ter sua história de vi<strong>da</strong><br />

publica<strong>da</strong> no jornal. Seu exemplo de trabalho, seu amor ao pai, sua fé, são sinais de que<br />

a vi<strong>da</strong> ordinária é extraordinária, como ensina Brum. Que o conhecimento de uma<br />

pessoa, em sua área profissional, não deve levá-la ao desprezo dos ensinamentos dos<br />

antepassados, mas à união <strong>da</strong>s diferentes formas de conhecimento para uma vi<strong>da</strong><br />

melhor.


CAPÍTULO III<br />

A EXPERIÊNCIA DE NARRAR<br />

A PARTIR DO SIGNO DA COMPREENSÃO<br />

102


1. Introdução<br />

103<br />

O terceiro e último capítulo <strong>da</strong> dissertação é um trabalho autoral. Você vai conhecer<br />

três histórias de vi<strong>da</strong> produzi<strong>da</strong>s pelo autor, a partir de seus estudos no Mestrado e no<br />

grupo de pesquisa “Comunicação, Jornalismo e Epistemologia <strong>da</strong> Compreensão”, <strong>da</strong><br />

Facul<strong>da</strong>de <strong>Cásper</strong> Líbero.<br />

Narrar, a partir do <strong>signo</strong> <strong>da</strong> <strong>compreensão</strong>, é uma experiência que marca a vi<strong>da</strong> do<br />

repórter. Ele li<strong>da</strong> com personagens, com pessoas. Ca<strong>da</strong> ser humano tem uma história.<br />

Desde o nascimento até a morte, ele vai deixando suas pega<strong>da</strong>s grava<strong>da</strong>s no chão do<br />

mundo. Narrar, portanto, uma história de vi<strong>da</strong>, é ir ao encontro de alguém, de um<br />

sujeito. Alguém que ri, chora, ama, sonha, desanima, enfrenta novamente os obstáculos<br />

e chega ao fim. Todos nós fazemos a jorna<strong>da</strong> do herói, proposta por Campbell.<br />

A primeira narrativa <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>real</strong> conta a história de Wilson Maritaca, ex-jogador de<br />

futebol, que atuou pelo Corinthians, no tempo do Santos de Pelé. No texto Frente a<br />

frente com Pelé, Maritaca fala <strong>da</strong> emoção de jogar contra o “Rei do futebol”, no estádio<br />

<strong>da</strong> Vila Belmiro, na baixa<strong>da</strong> santista, suas experiências no mundo do esporte e o novo<br />

sentido que encontrou para sua vi<strong>da</strong>, depois que deixou de jogar. Essa narrativa foi<br />

pensa<strong>da</strong> e escrita como se o autor fosse publicá-la no Caderno Aliás, do jornal O Estado<br />

de S. Paulo. Um tema que seria de interesse para um jornal que é veiculado em todo o<br />

Brasil.<br />

Na história, O jovem do brechó, o autor traz a vi<strong>da</strong> de Sérgio Murilo, um jovem que<br />

vive numa cadeira de ro<strong>da</strong>s, mas que montou um brechó para ganhar o pão de ca<strong>da</strong> dia.<br />

Sérgio pede roupas usa<strong>da</strong>s para as pessoas e vende-as em sua loja a preços bem baixos.<br />

Recebe soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de e é solidário. Sonha, trabalha, luta, ama, sofre, desperta a<br />

esperança no coração <strong>da</strong>queles que entram em seu brechó. A vi<strong>da</strong> de Sérgio Murilo foi


104<br />

pauta<strong>da</strong> e escrita pensando num jornal como o Correio Popular, veiculado numa grande<br />

ci<strong>da</strong>de como Campinas e sua região metropolitana.<br />

Por fim, a história: O Marechal <strong>da</strong> música sertaneja, conta a vi<strong>da</strong> de Geraldo<br />

Meirelles, pioneiro no incentivo à música “caipira” nos meios de comunicação,<br />

sobretudo no rádio e na televisão. Essa história de vi<strong>da</strong> foi pensa<strong>da</strong> para um jornal como<br />

a Gazeta do Cambuí, cujas <strong>narrativas</strong> são pequenas e versam sobre histórias de vi<strong>da</strong> de<br />

pessoas que moram no mesmo bairro dos protagonistas. Geraldo Meirelles vive numa<br />

chácara, no bairro Bela Vista, na ci<strong>da</strong>de de Casa Branca-SP.<br />

Nos anexos, para reforçar a idéia dessa identificação com o tema <strong>da</strong>s <strong>narrativas</strong> de<br />

vi<strong>da</strong> <strong>real</strong>, o autor disponibiliza, para o leitor, a narrativa Simplesmente Mulata que conta<br />

a história de um casal, Domingos e Mulata, que viveram um casamento de 73 anos. O<br />

autor acompanhou a vi<strong>da</strong> <strong>da</strong> família durante o período de doença <strong>da</strong> esposa, cerca de um<br />

ano e meio. Fez inúmeras visitas ao casal, experimentou a dor <strong>da</strong> família, sobretudo de<br />

Domingos, que ficava dia e noite ao redor do leito de Mulata, enchendo-a de carinho e<br />

amor. Pouco tempo depois <strong>da</strong> morte <strong>da</strong> esposa, Domingos também faleceu. É uma<br />

história de maior fôlego, publica<strong>da</strong> no livro Jornalistas literários: <strong>narrativas</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong><br />

<strong>real</strong> por novos autores brasileiros, organizado por Sergio Vilas Boas. O texto revela<br />

possibili<strong>da</strong>de e potenciali<strong>da</strong>des, muitas vezes, difíceis de serem explora<strong>da</strong>s em espaços<br />

menores, que os jornais, às vezes até com certa má vontade, disponibilizam, ou em<br />

tempos de produção exíguos – longos trabalhos de apuração, entre outras coisas,<br />

representam investimentos financeiros que os jornais raramente estão dispostos a fazer.<br />

Essas <strong>narrativas</strong> levam-nos ao tema <strong>da</strong> <strong>compreensão</strong>, objeto de preocupação do<br />

grupo de pesquisa “Comunicação, Jornalismo e Epistemologia <strong>da</strong> Compreensão”, do<br />

qual o autor faz parte, como afirmado antes.<br />

Em entrevista ao autor <strong>da</strong> dissertação, o líder do grupo de pesquisa, Dimas A.<br />

Künsch, fala a respeito do pensamento compreensivo. Vejamos, a seguir, os fios que<br />

tecem a rede deste grupo de pesquisa <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong>de <strong>Cásper</strong> Líbero. Esses fios são nos<br />

oferecidos por Kunsch.<br />

Na alma do grupo, está a idéia de pensar sobre o pensamento <strong>da</strong> comunicação. De<br />

propor não tanto outro pensamento, outra teoria, e, sim, outra atitude cognitiva. É no<br />

nível <strong>da</strong>s atitudes que o grupo trabalha quando fala na <strong>compreensão</strong>. Dá-se ao termo<br />

<strong>compreensão</strong> um estatuto cognitivo, porque se poderia pensar a <strong>compreensão</strong> num nível<br />

apenas intersubjetivo, o que já seria muito importante. Um estatuto cognitivo significa<br />

que, pela via <strong>da</strong> atitude compreensiva, estamos mais habilitados não a <strong>da</strong>r respostas


105<br />

sobre o mundo, mas a trilhar caminhos mais auspiciosos no conhecimento. No grupo<br />

são destacados os dois lados dessa <strong>compreensão</strong>. Quando se fala de dois lados é<br />

evidente que é mais para nos entendermos, porque a <strong>real</strong>i<strong>da</strong>de nunca é forma<strong>da</strong> assim de<br />

dois lados. A <strong>real</strong>i<strong>da</strong>de é complexa, tem muitíssimos lados, os que conhecemos, os que<br />

não conhecemos, os que nos desafiam.<br />

Para nos compreendermos, nos entendermos melhor, as atitudes compreensivas, no<br />

nível específico do conhecimento, do trabalho cognitivo, representam um modo de<br />

pensar que não se constrói somente a partir <strong>da</strong> análise. Sem desprezar a análise,<br />

privilegia-se a síntese, o olhar compreensivo sobre diferentes esforços, teorias que se<br />

conversam e mais que teorias de uma área específica do saber, modos de saber,<br />

diferentes sabedorias, tipos de conhecimento. No campo cognitivo, precisamos fazer,<br />

por exemplo, as artes dialogarem com as ciências empíricas, a filosofia, os saberes<br />

religiosos, os saberes comuns. São muitas as <strong>narrativas</strong> que a humani<strong>da</strong>de constrói para<br />

tentar compreender o mundo. São muitas as histórias. São muitas as maneiras de<br />

aproximação que os seres humanos têm para <strong>da</strong>r conta dessa questão. Quem sou eu?<br />

Que mundo é este mundo? De onde vim? Para onde vou? São as questões básicas <strong>da</strong><br />

humani<strong>da</strong>de. O conhecimento humano no fundo é isso. Assim, o grupo busca respostas<br />

para algumas perguntas. Isso no âmbito <strong>da</strong> cognição, <strong>da</strong> busca do conhecimento.<br />

No âmbito intersubjetivo, o que a atitude compreensiva ressalta é que, sendo<br />

compreensivos uns com outros, aumentam as chances de nos compreendermos a nós<br />

mesmos e o mundo em que vivemos. O ser humano é a peça mais importante do<br />

concerto. A vi<strong>da</strong> humana é o que há de mais importante. Isso tem que estar no centro de<br />

todo esforço de conhecimento. Por isso, os membros do grupo de pesquisa valorizam a<br />

atitude do respeito. A atitude de compreender inclusive a in<strong>compreensão</strong>. De<br />

compreender inclusive o erro, porque o erro também ensina, tem um valor cognitivo.<br />

Dentro de uma visão compreensiva, o erro também tem a sua luz, lá onde talvez ele<br />

escon<strong>da</strong> a sua luz.<br />

Seja no mundo <strong>da</strong> cognição ou <strong>da</strong> intersubjetivi<strong>da</strong>de, a <strong>compreensão</strong> nos faz mais<br />

aptos a fugir à concorrência, à arrogância, à disputa pelo poder, e também a fugir à<br />

violência, que é a pior parte de todos esses processos, que são processos duais,<br />

reducionistas, não complexos, que, no limite, levam à violência física ou à violência<br />

sem sangue, como diz Restrepo no livro O direito à ternura.<br />

E as principais diferenças entre <strong>signo</strong> <strong>da</strong> explicação e <strong>signo</strong> <strong>da</strong> <strong>compreensão</strong>? A<br />

explicação é um procedimento normal e ordinário no processo humano do


106<br />

conhecimento. Em vários momentos, temos que explicar. O problema não está na<br />

explicação, mas em transformar a explicação no horizonte definitivo de to<strong>da</strong>s as buscas,<br />

como se tudo estivesse aí para ser explicado. Boa parte <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> não merece explicação.<br />

Exige outros procedimentos cognitivos. Então, na<strong>da</strong> contra a explicação, mas contra o<br />

<strong>signo</strong> fechado <strong>da</strong> explicação, o reducionismo <strong>da</strong> explicação. Por que, além <strong>da</strong><br />

explicação, nós temos outras atitudes que têm tanto valor quanto. Mesmo lá onde, para<br />

certas questões, você não dá uma explicação, uma resposta, não significa que não valeu<br />

o caminho feito e o ponto em que você chegou de <strong>compreensão</strong>.<br />

O <strong>signo</strong> <strong>da</strong> <strong>compreensão</strong> não joga na<strong>da</strong> fora. Ele diz à explicação: “Você tem que<br />

dialogar com outros modos de <strong>compreensão</strong>”. A mesma coisa é a razão. Ninguém, em<br />

sã consciência, pode se voltar contra a racionali<strong>da</strong>de humana, pois essa é uma<br />

capaci<strong>da</strong>de, uma competência que nós, humanos, temos e que às vezes não usamos ou<br />

usamos mal. Usar mal a razão significa coisas ruins. A racionali<strong>da</strong>de humana contribui<br />

para que nós caminhemos num sentido mais humano e positivo. Assim como lá temos a<br />

explicação absolutiza<strong>da</strong>, aqui podemos ter o absolutismo <strong>da</strong> razão. Eis aí o erro.<br />

É necessário diferenciarmos racionalismo de razão. O racionalismo não é razão. A<br />

razão pode ser crítica. A razão pode ser dialógica. A razão pode ser amorosa. A razão<br />

pode ser muito humana, muito compreensiva. Na<strong>da</strong> contra a razão! Tudo contra o<br />

racionalismo, a absolutização <strong>da</strong> razão, pois o ser humano é mais do que razão. Faz<br />

parte de uma visão compreensiva mostrar que não temos garantia de na<strong>da</strong>. A razão pode<br />

nos levar ao obscurantismo, à perversi<strong>da</strong>de, à guerra. Quantas vezes motivos racionais e<br />

tecnológicos levam-nos à destruição do outro! As emoções também. Nós não estamos<br />

num ambiente angelical. Vivemos num ambiente de conflitos, de dúvi<strong>da</strong>s, de incertezas.<br />

Só que o pensamento compreensivo diz: “A dúvi<strong>da</strong>, a incerteza, o erro e mesmo a<br />

in<strong>compreensão</strong>, devem ser colocados para dialogar”. Se eu desconheço o estatuto<br />

cognitivo <strong>da</strong> incerteza, desconheço uma <strong>da</strong>s coisas que mais nos acossam o tempo todo:<br />

as incertezas. Entretanto, o pensamento de recorte mais racionalista, analítico,<br />

explicativo, sempre trabalhou com a idéia de que podemos chegar a certezas,<br />

conclusões, ver<strong>da</strong>des. Isso é muito perigoso. Porque, de fato, não conseguimos chegar a<br />

isso.<br />

Essa dissertação trabalha as histórias de vi<strong>da</strong> publica<strong>da</strong>s em jornais. O mundo e<br />

a vi<strong>da</strong> existem se forem narrados. Não há outra maneira. Falamos sobre as coisas.<br />

Representamos as coisas. Sentimos e criamos símbolos sobre as coisas. Tudo isso faz<br />

parte desse esforço de compreendermos o mundo em que vivemos. Temos nossas


107<br />

utopias, nossos sonhos, erros, limites. O entrevistado tem uma visão muito ampla sobre<br />

narrativa. Vê a ciência empírica como grande narrativa, altamente qualifica<strong>da</strong>,<br />

primorosa em muitos dos seus aspectos. Mas há, também, as <strong>narrativas</strong> míticas, as<br />

<strong>narrativas</strong> populares, os “causos”, as histórias humanas. Por que é assim? Porque, como<br />

dizia Joseph Campbell, em seus estudos sobre o mito, as histórias humanas são as mais<br />

varia<strong>da</strong>s possíveis. São inúmeras. Incontáveis. Mas, no fundo, a humani<strong>da</strong>de está<br />

sempre falando <strong>da</strong>s coisas que lhe interessam. São as questões de fundo. E essas<br />

questões freqüentam a filosofia, a ciência, a religião... Você não consegue escapar delas.<br />

É a questão do sentido <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, a questão do amor, a questão <strong>da</strong> felici<strong>da</strong>de, a questão <strong>da</strong><br />

origem <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e <strong>da</strong> morte. Ou seja, não podemos não falar dessas coisas. E, ao falar,<br />

estamos encontrando um lugar que é nosso, não necessariamente uma resposta. Quem<br />

tem resposta para a questão <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e <strong>da</strong> morte? Mas temos, como dizia Kant, por<br />

sermos humanos, a necessi<strong>da</strong>de e o dever de perguntar, o dever de contar. Nós nos<br />

fazemos humanos enquanto narramos o mundo, as experiências, os sonhos, as utopias.<br />

As <strong>narrativas</strong>, to<strong>da</strong>s elas, de qualquer tipo, em verso, em prosa, visuais, têm, no<br />

fundo, essa preocupação básica de nos situar, de nos aju<strong>da</strong>r na construção de nossa<br />

identi<strong>da</strong>de de humanos. Não de anjos ou de deuses, mas de humanos. Do modo como<br />

somos, com nossos potenciais, nossos limites, nossos erros, nossas buscas. No nível<br />

prático, ele diz que a narrativa, a palavra, tem um poder terapêutico. A palavra cura,<br />

porque, ao falar, ao assumir o direito que lhe cabe de se expressar, em qualquer<br />

situação, o ser humano assume o seu protagonismo. Esse é o primeiro passo de todo<br />

processo curativo, seja no plano <strong>da</strong> saúde física, psíquica, espiritual. Hoje as pessoas<br />

têm menos tempo de falar, contar, expressar-se, tendo necessi<strong>da</strong>de dos terapeutas.<br />

Estamos nos tornando uma socie<strong>da</strong>de em busca de farmácias e terapeutas. O mundo<br />

precisa mu<strong>da</strong>r para escutar as mais diferenças <strong>narrativas</strong> <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de. Daí a<br />

importância de todo trabalho jornalístico, uma tentativa de contar a história do que está<br />

acontecendo.<br />

Em nossos dias, com o acúmulo muito grande de informações, num nível nunca<br />

antes imaginado, surge o desafio <strong>da</strong>s <strong>narrativas</strong>, dos contadores de histórias. Por quê?<br />

Por que precisamos tecer os sentidos do que está acontecendo. De que adianta alguém<br />

ter um milhão de informações sobre determinado assunto? O que vai fazer com milhões<br />

de informações? Dá desespero. Então, são necessários contadores de história para nos<br />

aju<strong>da</strong>r a administrar as informações e perceber os grandes eixos de significados, os<br />

grandes desafios que aparecem na nossa vi<strong>da</strong>.


108<br />

As <strong>narrativas</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>real</strong>, sob o <strong>signo</strong> <strong>da</strong> <strong>compreensão</strong>, resultam em<br />

transformação, porque nos aju<strong>da</strong>m a pôr ordem na casa. Essas <strong>narrativas</strong> estão trazendo,<br />

para o centro do debate, o ser humano e, sempre que o ser humano é colocado no centro<br />

<strong>da</strong>s preocupações, os resultados são transformadores. Esse é o sentido de to<strong>da</strong> busca<br />

humana de <strong>compreensão</strong>. Quando as pessoas contam histórias, narram sobre seus<br />

heróis, heróis que podem ser pessoas muito simples, comuns, essas histórias sempre<br />

provocam uma transformação nas pessoas que as lêem e as contam. Ninguém sai igual<br />

<strong>da</strong> história: nem quem é o protagonista <strong>da</strong> história, nem quem é o protagonista do texto,<br />

nem quem é o protagonista <strong>da</strong> leitura. As histórias de vi<strong>da</strong> nos emocionam, tocam-nos,<br />

fazem-nos pensar que a vi<strong>da</strong>, apesar de to<strong>da</strong>s as dificul<strong>da</strong>des, vale a pena.<br />

A <strong>compreensão</strong>, força motriz desta dissertação, pretende ser exercita<strong>da</strong> nas<br />

<strong>narrativas</strong> que veremos a seguir.


2. Frente a frente com Pelé<br />

109<br />

A casa é espaçosa. Sala com sofá amarelo. Estante cheia de livros, troféus, sendo<br />

um dourado em forma de chuteira. A mesa é de madeira e tem ao redor oito cadeiras<br />

avelu<strong>da</strong><strong>da</strong>s em cor marrom. Na sala, pode se ver ain<strong>da</strong> o diploma de Educação Física<br />

pela Universi<strong>da</strong>de de Ribeirão Preto, o certificado de capacitação de profissionais de<br />

educação física e prática desportiva, volta<strong>da</strong> a pessoas portadoras de deficiência e um<br />

outro, de curso teórico e prático de futebol. Sobre a mesa, uma imagem de Nossa<br />

Senhora Apareci<strong>da</strong>, um terço pendurado num crucifixo. Mas, o que mais chama a<br />

atenção de quem entra na sala é uma relíquia na parede no fundo entre dois candelabros:<br />

um quadro com uma fotografia de Maritaca frente a frente com Pelé, o rei do futebol.<br />

Wilson Maritaca, ex-jogador de futebol, nasceu em Casa Branca, ci<strong>da</strong>de do<br />

interior de São Paulo, em 1947; o pai era ferroviário, a mãe doméstica; eram seis<br />

irmãos, quatro mulheres e dois homens.<br />

Na sua infância, passou um período em Casa Branca e, com oito anos, mudou-se<br />

para Franca, porque seu pai fora transferido para lá. Começou a freqüentar um parque<br />

infantil e, nele, passava meio período do dia; de manhã, ia à escola e, à tarde, ao parque,<br />

onde jogava futebol. Um dia, um professor de Educação Física o conheceu e começou a<br />

incentivá-lo bastante. O nome dele era Roberto. Ficou cinco anos em Franca.<br />

De chinelos desgastados nos pés, short azul escuro e camiseta laranja. Enquanto<br />

conta sua história, mexe muito os braços e inclina o corpo para frente várias vezes.<br />

Ele voltou para Casa Branca quando tinha 13 anos. Lá em Franca o chamavam<br />

de Pelezinho. De volta à terra natal, precisou aju<strong>da</strong>r em casa; foi para a lavoura apanhar<br />

laranjas. Apanhava também jabuticaba e manga.


110<br />

— Eu fazia isso sem problemas, mas no íntimo eu queria mesmo era estu<strong>da</strong>r.<br />

Então, entrei na Escola Industrial, aqui em Casa Branca, e fui fazer o curso de técnico<br />

em Mecânica e Torneiro. Estudei três anos e me formei. Depois <strong>da</strong> Mecânica, entrei no<br />

ginásio e, com 17 anos, me mudei para Araraquara por causa do futebol.<br />

“Pelezinho” jogava também futebol de salão, no time <strong>da</strong> escola. Certa vez, o<br />

time jogou contra a Ferroviária de Araraquara, campeã estadual naquele ano. Perderam<br />

o jogo de 7x2, mas um dos dirigentes gostou do seu jeito de jogar.<br />

Na semana seguinte, o dirigente voltou a Casa Branca para falar com seus pais.<br />

Eles o deixaram ir; viam ali uma oportuni<strong>da</strong>de de melhorar a situação. Maritaca ficou<br />

dois meses nas equipes de base <strong>da</strong> Ferroviária. Foi difícil no começo. Enfrentou muitos<br />

obstáculos. O futebol era visto de uma forma bem diferente do que é hoje.<br />

— Quem ficava atrás de futebol era considerado vagabundo; futebol era coisa de<br />

quem não tinha na<strong>da</strong> pra fazer. Mas eu sentia que tinha condições de me desenvolver;<br />

no fundo, no fundo, eu sonhava com isso.<br />

Na época, a Ferroviária possuía uma estrutura fantástica, a melhor de todos os<br />

clubes do interior. Estando em Araraquara, Maritaca jogava e estu<strong>da</strong>va ao mesmo<br />

tempo; terminou o segundo grau e entrou na Universi<strong>da</strong>de Federal de São Carlos para<br />

cursar Educação Física. Fez dois anos lá. Trancou a matrícula por um ano, pois foi jogar<br />

no Paulista de Jundiaí. Depois desse ano no Paulista, foi para o Botafogo de Ribeirão<br />

Preto, onde concluiu o curso na Universi<strong>da</strong>de de Ribeirão Preto. Era o ano de 1974.<br />

Do Botafogo ele foi para o Corinthians, onde disputou o Campeonato Paulista<br />

<strong>da</strong>quele ano. Perderam a final para o Palmeiras por 1x0. Aí aconteceu uma coisa difícil<br />

para ele: machucou-se e teve que ficar o ano de 1975 sem jogar. Quando se recuperou<br />

foi para o XV de Piracicaba, disputou o campeonato paulista de 1976 e chegou à final,<br />

novamente contra o Palmeiras. Perderam também por 1x0.<br />

Estava no quintal, próximo a uma mangueira de pequeno porte. Num dos galhos,<br />

uma gaiola e um periquito esperto, pulava para lá e para cá; até parecia o Maritaca<br />

quando jogava, não <strong>da</strong>va sossego para os zagueiros adversários. Esse passarinho é seu<br />

xodó. Cui<strong>da</strong> dele como se fosse um filho.<br />

Maritaca encerrou a carreira como profissional no XV de Piracicaba. Veja como<br />

são as coisas. Quando chegou à Ferroviária, ela não estava na divisão especial do<br />

Campeonato Paulista, na elite, mas na primeira divisão. Naquele ano, 1967, a<br />

Ferroviária chegou à final do campeonato contra o XV de Piracicaba e foi dele o gol do<br />

título e do acesso do clube para a divisão especial. Foi o seu primeiro título no futebol e


111<br />

um dos momentos mais importantes <strong>da</strong> sua vi<strong>da</strong>. A partir desse título, <strong>real</strong>mente, ele<br />

passou a ser valorizado no mundo do futebol.<br />

Esse título marcou a vi<strong>da</strong> de Maritaca, mas ele viveu ain<strong>da</strong> outro momento<br />

eternizado no quadro na parede <strong>da</strong> sala. Foi num jogo na Vila Belmiro, em 1969. Ele<br />

estava na Ferroviária. Era uma <strong>da</strong>ta importante, dia do aniversário <strong>da</strong> sua mãe. Ela era<br />

santista e lhe recomendou que pedisse a camisa para o Pelé.<br />

— Antes de iniciar o jogo, me aproximei dele, falei do aniversário de minha mãe<br />

e pedi a camisa, dizendo que seria o maior presente que eu podia <strong>da</strong>r a ela. Aí ele falou:<br />

‘Olha Maritaca, tem um coronel aqui na Vila vendo a parti<strong>da</strong> e ele me pediu a camisa.<br />

No próximo jogo eu prometo que dou uma para sua mãe’. Mas, para minha surpresa,<br />

quando o jogo acabou, eu ouvi o Pelé me chamando: ‘Maritaca, Maritaca’. Ele veio<br />

correndo em minha direção e disse: ‘Pegue a camisa. Leve para sua mãe e dê um abraço<br />

nela por mim’. O Pelé era um atleta diferente de tudo o que vi. Ele tinha algo mais; a<br />

capaci<strong>da</strong>de de raciocínio dele era assustadora; a sua técnica extrapolava tudo; estava mil<br />

anos na frente de todo mundo. Vivia em outro universo, num outro departamento”.<br />

Na primeira vez que jogou contra o Pelé, os companheiros de time chamaram<br />

sua atenção durante a parti<strong>da</strong>. Eles gritavam: “Maritaca, você está no campo, não está<br />

assistindo não, você não é torcedor não, marca o homem...”.<br />

— É que a gente ficava deslumbrado, boquiaberto com o que ele fazia.<br />

Para se ter uma idéia, aquele jogo <strong>da</strong> Vila perderam por 5x2 e voltaram para<br />

Araraquara fazendo festa. Perder de cinco, na Vila Belmiro, era um tremendo resultado.<br />

O Botafogo de Ribeirão Preto fora lá antes e perdera de 12; jogou em casa e perdeu de<br />

11 e o Machado, goleiro do time, fora o melhor jogador em campo.<br />

— O que eu mais apreciava no Pelé era sua postura, a maneira como se<br />

relacionava com as pessoas. Eu nunca vi o Pelé deixar de <strong>da</strong>r um autógrafo, de acenar<br />

com a mão quando alguém chamava seu nome; ele até esticava a cabeça para ver as<br />

pessoas. Elas faziam de tudo para ter uma assinatura dele.<br />

Passa do meio-dia. O calor é forte. Uma brisa suave invade o quintal. O<br />

cheirinho <strong>da</strong> comi<strong>da</strong> aumenta ain<strong>da</strong> mais a fome. Alho, cebola. Hummm... Logo<br />

sentamos à mesa e saboreamos carne com mandioca, a famosa “vaca atola<strong>da</strong>”! Que<br />

delícia.<br />

Depois que encerrou a carreira de atleta, Maritaca teve uma confecção;<br />

aposentou-se no futebol, por acidente de trabalho. Foi o primeiro atleta no Estado de<br />

São Paulo a conquistar esse tipo de aposentadoria: acidente de trabalho como jogador.


112<br />

Ele reivindicou, junto ao INSS, os direitos sobre o “bicho” — prêmio que o clube <strong>da</strong>va<br />

aos atletas em caso de vitória.<br />

— Naquela época, o bicho não era considerado salário. Mas deu certo; me<br />

aposentei com quinze salários mínimos. Se eu não tivesse feito essa conquista estaria<br />

numa situação difícil. O clube nos registrava com três ou quatro salários mínimos.<br />

Quando voltou para Casa Branca, em 1980, aconteceu uma reviravolta na vi<strong>da</strong><br />

de Maritaca. Ele participou do CEC, um Curso de Evangelização Cristã, que a Igreja<br />

Católica <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de <strong>real</strong>iza duas vezes ao ano. Segundo ele, foi a maior bênção que<br />

aconteceu na sua vi<strong>da</strong>. Ele não tinha tanto contato com religião, sempre fora católico,<br />

mas não praticante.<br />

— Eu costumo dizer que católico é a pior coisa que existe; católico é coisa ruim.<br />

A gente precisa ser católico-cristão; com o CEC eu fui ter consciência <strong>da</strong> minha vi<strong>da</strong>.<br />

Existiu um Maritaca antes e um outro depois do CEC. Foi a partir disso que coloquei a<br />

locomotiva nos trilhos. Tive a felici<strong>da</strong>de de conhecer minha esposa, a Ci<strong>da</strong>, uma pessoa<br />

maravilhosa, companheira, amiga, a sabedoria para criar os filhos.<br />

Hoje ele trabalha em Brasília, num projeto de inclusão social de crianças através<br />

do futebol. Trabalho ligado ao Clube de Regatas do Flamengo, do Rio de Janeiro-RJ.<br />

Fica vinte dias na Capital Federal e dez em sua ci<strong>da</strong>de. Faz isso há três anos.<br />

— Estou feliz, gosto do que faço, trabalho com criança; devo ofertar um pouco<br />

do muito que recebi; <strong>da</strong>r um pouco de mim para as pessoas; passar minha experiência,<br />

meu conhecimento. É um trabalho que me dá muita alegria, muita satisfação.<br />

Certa vez, jogando pela Ferroviária, Maritaca estava concentrado em Jundiaí.<br />

Ele sempre quis ser feliz na vi<strong>da</strong>, mas não sabia como conquistar essa felici<strong>da</strong>de. Lá<br />

existe um morro parecido com o Pão de Açúcar, onde foi coloca<strong>da</strong> uma imagem do<br />

Cristo, bem grande. Ele ficou invocado, olhando para o morro.<br />

— Era meio moleque ain<strong>da</strong>. Eu queria um sinal para acreditar em alguma coisa.<br />

Estava com 19 anos. Aí eu fui lá no Cristo, cheguei perto dele e falei assim: “Não vou<br />

contar na<strong>da</strong> pra ninguém, Jesus. Só eu e o Senhor estamos aqui; me dá um sinal, mexe<br />

só um dedinho, afirmando que vou ser feliz”.<br />

Ele ficou lá horas e horas olhando, e o Cristo não mexeu o dedo. É a busca de<br />

todo ser humano. Hoje compreende as coisas. Afirma ser um homem extremamente<br />

feliz, tendo muito mais do que podia imaginar, não em bens materiais, mas em<br />

interiori<strong>da</strong>de. Esse é o seu maior investimento hoje. Gosta de ler e acha que para alguém


113<br />

ser feliz neste mundo precisa aprender a amar, senão não tem jeito. Essa é a sua maior<br />

busca.<br />

— Lá no meu trabalho, em Brasília, o meu patrão me deu to<strong>da</strong> a abertura; então<br />

faço a parte de espirituali<strong>da</strong>de. A gente sempre começa e encerra as reuniões com<br />

alguma coisa espiritual. Nenhum trabalho vai pra frente sem o cultivo <strong>da</strong><br />

espirituali<strong>da</strong>de.<br />

Um cachorro de pequeno porte se aproxima. Cheira os chinelos de Maritaca. Ele<br />

passa as mãos nas orelhas do animal, que rapi<strong>da</strong>mente vira a barriga para cima.<br />

— Como pode uma esfera, uma bolinha, causar um impacto tão grande assim a<br />

nível mundial, principalmente no Brasil? — questionou Maritaca.<br />

Ele lembra que Pelé, certa vez, foi viajar com o Santos para o Oriente Médio. Lá<br />

o povo estava em guerra. Pararam de guerrear durante uma semana para verem o Santos<br />

e o Pelé jogarem. Depois que o Santos saiu <strong>da</strong> região, os países voltaram a guerrear.<br />

— O futebol consegue fazer isso! Consegue tirar o povo <strong>da</strong> opressão por alguns<br />

momentos; o pessoal de baixa ren<strong>da</strong> fica muito ligado porque sofre muito. Hoje, por<br />

exemplo, eu já não consigo torcer pela seleção brasileira. Gostaria de ver o Brasil<br />

campeão, bi, tri, tetra, penta, hexa... <strong>da</strong> honradez, <strong>da</strong> honesti<strong>da</strong>de, <strong>da</strong> justiça. A seleção<br />

sendo campeã, o que vai acrescentar para nós, para a comuni<strong>da</strong>de, para os brasileiros<br />

como um todo?<br />

Para Maritaca, infelizmente, existem muitos espertalhões que usam a seleção e o<br />

futebol para tirarem do foco os ver<strong>da</strong>deiros problemas. Temos tantas coisas para nos<br />

preocupar. Se o Brasil tivesse sido hexa este ano, os políticos estariam deitando e<br />

rolando. Até quando vamos conviver com essa situação? Precisamos mu<strong>da</strong>r isso!<br />

— Quando eu estava na Ferroviária, no Botafogo, muitas vezes os filhos dos<br />

meus diretores diziam assim: ‘Maritaca, você não sabe como a semana, na minha casa,<br />

fica em ordem quando vocês ganham um jogo; meu pai se relaciona maravilhosamente<br />

com minha mãe. Mas, quando perdem, a semana se transforma num inferno’. Veja<br />

como o futebol influencia positivamente ou negativamente o relacionamento entre as<br />

pessoas! Isso é grave, é gravíssimo. Por que não há investimento em educação? Sabe, eu<br />

tenho dó de torcedor. A corrupção e a manipulação nesse meio são muito maiores do<br />

que as pessoas imaginam.<br />

Junto com Rondinelli, ex-jogador do Flamengo, Maritaca coordena as escolinhas<br />

do Flamengo, em Brasília; trabalha para uma empresa de Educação, chama<strong>da</strong> Notre<br />

Dame. O dono <strong>da</strong> empresa tem um filho que é atleta e apaixonado pelo Flamengo.


114<br />

Então comprou franquias do Flamengo em Brasília, Goiás, Maranhão e Tocantins só ele<br />

pode montar escolinhas do Flamengo. Esse colégio vai do maternal até a universi<strong>da</strong>de.<br />

Fazem parcerias com prefeituras, pois o projeto é educar através do esporte.<br />

— A gente só pode implantar escolinhas na ci<strong>da</strong>de se pudermos aju<strong>da</strong>r cinqüenta<br />

crianças carentes. Os outros alunos pagam trinta reais por mês para terem aulas de<br />

futebol. Se aparecer algum garoto que possua potencial para ser atleta, há um<br />

investimento nesse garoto, encaminhando-o para outra escola onde vai receber to<strong>da</strong> a<br />

assistência necessária.<br />

Maritaca atua na área <strong>da</strong> Educação Física. Usa o Desporto como ferramenta<br />

para aju<strong>da</strong>r as crianças. Seu trabalho é convencer os pais e os responsáveis de que<br />

podem transformar a criança a partir do esporte. Tudo é movimento, a criança vai<br />

descobrindo o corpo; brincando se socializa.<br />

— Agradeço muito à minha mãe por eu ter feito a universi<strong>da</strong>de. Eu era jogador<br />

de futebol e ela exigia muito de mim, que eu fizesse alguma outra coisa para eu ter uma<br />

quali<strong>da</strong>de de vi<strong>da</strong> melhor.<br />

As pessoas são as coisas mais importantes na vi<strong>da</strong> de Maritaca. De tudo o que<br />

conquistou na carreira como jogador, o mais importante foi a amizade, especialmente a<br />

do Bebeto, hoje responsável pelas equipes de base do São Paulo Futebol Clube.<br />

— Ele jogava comigo na Ferroviária, no meio de campo. Eu passei muitas<br />

dificul<strong>da</strong>des quando cheguei lá e ele foi um amigo de ver<strong>da</strong>de, me animava, estendia a<br />

mão. Até hoje somos amigos, de vez em quando nos falamos pelo telefone. É isso que<br />

vale a pena. Muito mais que ganhar um título ou dinheiro é ter amigos ver<strong>da</strong>deiros.<br />

Making off<br />

Conheço Wilson Maritaca há alguns anos. Homem simples, sempre preocupado<br />

com os outros, sobretudo com as crianças pobres, aceitou o convite para a entrevista.<br />

Generoso e acolhedor, Maritaca avisou a esposa, Ci<strong>da</strong>, que receberia visitas para o<br />

almoço. Ci<strong>da</strong> preparou um frango caipira com arroz e sala<strong>da</strong>s varia<strong>da</strong>s.<br />

Cheguei à casa <strong>da</strong> família por volta <strong>da</strong>s 10h. Maritaca foi ao portão e me<br />

abraçou. Entrando pela sala, avistei o quadro do ex-jogador ao lado de Pelé. A<br />

fotografia está em destaque entre dois candelabros. Observei ain<strong>da</strong> me<strong>da</strong>lhas, troféus e<br />

outros objetos ligados ao futebol, expostos na estante e na mesa, que fica próxima à


115<br />

parede em que foi coloca<strong>da</strong> a fotografia. Saímos <strong>da</strong> sala. Na cozinha, recebi o sorriso de<br />

Ci<strong>da</strong> que já cui<strong>da</strong>va do frango. O cachorro <strong>da</strong> família latiu contra mim e cheirou minha<br />

calça jeans. Não fiquei com medo, pois o cachorro era bem pequeno. A entrevista seria<br />

feita no quintal <strong>da</strong> casa, numa área coberta. Dialogamos, partilhamos nossas<br />

experiências, tomamos um café fresco preparado pela esposa de Maritaca. Por diversas<br />

vezes, ele se emocionou, relembrando os momentos de glória e sofrimento em sua<br />

carreira como atleta de futebol. Evitei fazer uma entrevista de perguntas e respostas.<br />

Deixei que o diálogo fluísse naturalmente. Observei muita coisa: seus gestos, o<br />

ambiente, a influência <strong>da</strong> Ci<strong>da</strong> naquele instante e outros pontos que me aju<strong>da</strong>riam na<br />

construção <strong>da</strong> história de vi<strong>da</strong>. Tivemos momentos mais formais e outros informais,<br />

como os vividos durante o almoço.<br />

Com a entrevista <strong>real</strong>iza<strong>da</strong> através dos momentos de partilha, comunhão,<br />

amizade e aju<strong>da</strong> mútua, despedi-me. Como ensina Edvaldo Pereira Lima, não cheguei<br />

em casa e escrevi a história de vi<strong>da</strong>. Fui fazer outras ativi<strong>da</strong>des. No dia seguinte, com<br />

bastante calma e tempo reservado para isso, tranqüilizei meu coração e escrevi o texto.<br />

Como vimos nesta dissertação, as <strong>narrativas</strong> complexo-compreensivas estão<br />

abertas às diversas formas de conhecimento. Com muitas informações em mãos e tantas<br />

outras grava<strong>da</strong>s no meu interior, fui gestando a narrativa até que ela nasceu. Vejamos<br />

agora alguns elementos do pensamento compreensivo presentes no texto:<br />

“Frente a frente com Pelé” é um texto que reflete muitos pontos <strong>da</strong> jorna<strong>da</strong> do<br />

herói, proposta por Joseph Campbell. No princípio, Maritaca vivia seu cotidiano, o<br />

mundo comum. Na sua infância passou um período em Casa Branca e, com oito anos,<br />

mudou-se para Franca, porque seu pai fora transferido para lá. Começou a freqüentar<br />

um parque infantil, onde passava meio período do dia; de manhã, ia à escola e, à tarde,<br />

ao parque, onde jogava futebol. Recebeu um chamado à aventura, quando foi convi<strong>da</strong>do<br />

a jogar na Ferroviária de Araraquara-SP. Atravessou o primeiro limiar, enfrentou os<br />

desafios e os inimigos, sobretudo o preconceito. Como ele disse, “o futebol era visto de<br />

uma forma bem diferente do que é hoje. Quem ficava atrás de futebol era considerado<br />

vagabundo; futebol era coisa de quem não tinha na<strong>da</strong> pra fazer. Mas eu sentia que tinha<br />

condições de me desenvolver; no fundo, no fundo, eu sonhava com isso”. Maritaca<br />

passou pela provação suprema e recebeu a recompensa, quando disputou a final do<br />

campeonato paulista no jogo contra o XV de Piracicaba: “Naquele ano, 1967, a<br />

Ferroviária chegou à final do campeonato contra o XV de Piracicaba e foi meu o gol<br />

do título e do acesso do clube para a divisão especial. Foi o meu primeiro título no


116<br />

futebol e um dos momentos mais importantes <strong>da</strong> minha vi<strong>da</strong>. A partir desse título,<br />

<strong>real</strong>mente passei a ser valorizado no mundo do futebol”. Por fim, a volta com o elixir<br />

para sua terra natal. Agora, junto com Rondinelli, ex-jogador do Flamengo, coordena as<br />

escolinhas do Flamengo em Brasília e em Casa Branca-SP.<br />

Um momento que mais me marcou na vi<strong>da</strong> de Maritaca foi a atitude<br />

compreensiva de Pelé com a mãe do protagonista. A mãe de Maritaca, torcedora do<br />

Santos, pede que o filho consiga a camisa de Pelé, como presente de aniversário. O “Rei<br />

do futebol” havia prometido <strong>da</strong>r a camisa para um coronel ao final do jogo. Mas, diante<br />

do pedido de Maritaca, resolve <strong>da</strong>r-lhe o presente. Atitudes assim revelam o caráter de<br />

um atleta. Pelé mostra ser um homem compreensivo. Era uma celebri<strong>da</strong>de, mas provou<br />

ter humil<strong>da</strong>de e carinho para com as pessoas.<br />

Por sua vez, Maritaca mostra, através de sua vi<strong>da</strong>, ser uma pessoa compreensiva<br />

nos dois aspectos de <strong>compreensão</strong>. Cognitivamente, foi alguém que procurou aprender<br />

com o esporte, mas não desprezou a ciência, cursando facul<strong>da</strong>de de Educação Física<br />

quando ain<strong>da</strong> jogava futebol. Intersubjetivamente, valorizando mais a família, os<br />

amigos e as crianças que seus troféus e o dinheiro. Esse seu jeito de ser e viver contribui<br />

para a transformação <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> de muitas crianças. Liderando o projeto de inclusão social<br />

de crianças pobres, através do futebol, retribui o apoio e o carinho que recebeu <strong>da</strong>s<br />

ci<strong>da</strong>des e dos clubes por onde passou.


3. O jovem do brechó<br />

117<br />

Se você an<strong>da</strong>r pelas ruas do centro <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de Casa Branca, interior do Estado de<br />

São Paulo, facilmente vai se deparar com o jovem Sérgio Murilo. Com uma cadeira de<br />

ro<strong>da</strong>s, mais pareci<strong>da</strong> com uma bicicleta, ele não pára. Cumprimenta um, acena para<br />

outro, sempre balançando muito os braços e mexendo a cabeça para lá e para cá. Ele<br />

deixa a funcionária de seu brechó atendendo os clientes e sai pelas casas, pedindo aju<strong>da</strong>,<br />

na maioria <strong>da</strong>s vezes, roupas usa<strong>da</strong>s. Esse é seu ganha-pão. As pessoas são generosas<br />

com ele. Em seu brechó, a procura por mercadorias é grande.<br />

A porta aberta e uma frase numa faixa azul, dizendo: “sejam bem vindos”,<br />

manifestam a receptivi<strong>da</strong>de do lugar. Prateleiras com bonecas, um ursinho de pelúcia<br />

marrom, um regador amarelo de plástico, roupas em caixas encosta<strong>da</strong>s nas paredes.<br />

Com alegria, festa, fé e amor, Sérgio Murilo recebe seus clientes todos os dias, no<br />

brechó que leva seu nome. Quanto sofrimento experimenta todos os dias! Ele possui<br />

deficiência física e motora. Mas, não desanima.<br />

— Deus me sustenta a ca<strong>da</strong> dia. Ele me conduz e me mostra o caminho.<br />

Sérgio Murilo sonha acor<strong>da</strong>do, com os olhos brilhantes de felici<strong>da</strong>de. To<strong>da</strong>via, nem<br />

sempre foi assim. Ele era uma pessoa revolta<strong>da</strong> antes de participar <strong>da</strong> Igreja. Achava<br />

que o seu problema era um castigo que Deus lhe tinha <strong>da</strong>do. Pensava que Deus não<br />

gostasse dele. Mas, depois que começou a acompanhar o grupo de jovens, tudo ficou<br />

diferente. Entendeu que Deus não castiga ninguém. Hoje, tem certeza de que é amado<br />

mais que tudo nesse mundo.<br />

— Eu coloco os joelhos no chão todos os dias e peço: ‘Senhor, você sabe os meus<br />

problemas. Me dê força.


No brechó, seja frio, seja calor, chuva, sol, não importa, Sérgio Murilo ganha o seu<br />

sustento. Antes de abrir o brechó, procurou emprego na ci<strong>da</strong>de inteira. Ninguém o quis<br />

por causa <strong>da</strong> deficiência. Achavam que ele não tinha capaci<strong>da</strong>de para trabalhar. Mas<br />

encontrou uma saí<strong>da</strong>. Algumas pessoas o aju<strong>da</strong>ram a abrir a loja, lugar que ama muito.<br />

Faz seis anos que está ali. O cômodo é alugado. Não dá muito lucro porque tem pouca<br />

mercadoria. Com o que vende, dá para pagar as contas e comprar o que precisa.<br />

No Brasil, 62% <strong>da</strong>s pessoas com deficiência não possuem emprego e as que<br />

trabalham recebem, em sua maioria, cerca de um salário mínimo. O jovem de 26 anos<br />

não an<strong>da</strong> com as próprias pernas. Suas pernas têm ro<strong>da</strong>s. Contudo, está quilômetros à<br />

frente de muitos jovens na estra<strong>da</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>.<br />

— A vi<strong>da</strong> é dom de Deus, a nossa maior riqueza. Sem a fé, as riquezas do mundo<br />

118<br />

não servem para na<strong>da</strong>. Conheço jovens que se deixam levar pelas seduções do mundo e<br />

estão morrendo. Eles têm conserto. Basta voltarem a Deus, o único que pode mu<strong>da</strong>r o<br />

ser humano. Eu não consigo mu<strong>da</strong>r a vi<strong>da</strong> de ninguém, mas Jesus consegue.<br />

Sérgio Murilo levanta cedo, movimenta as ro<strong>da</strong>s <strong>da</strong> cadeira com força e sincronia<br />

pelas ruas <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de. An<strong>da</strong>, mesmo não podendo an<strong>da</strong>r. Fala, mesmo com dificul<strong>da</strong>de.<br />

Sem sua força interior, ele seria como um deserto, sem água, sem vi<strong>da</strong>, morto, poeira,<br />

rastros apagados pelo vento. Sem a esperança e o entusiasmo, seria terra sequiosa, céu<br />

sem estrelas, mar sem água, um beija-flor no inverno.<br />

O jovem não conseguiria ser assim se não fosse o apoio <strong>da</strong> família e dos amigos.<br />

Para ele, a amizade é um dos maiores dons de Deus.<br />

— Eu tenho esse dom. Faço amizade com muita facili<strong>da</strong>de. Meus amigos são os<br />

meus maiores presentes. Com eles a gente ri, chora, brinca.<br />

A família também aju<strong>da</strong> muito. Quando precisa, leva-o para todo lado. Não o tratam<br />

como um deficiente e, sim, como uma pessoa normal. A mãe ocupa um lugar central<br />

nessa história:<br />

— Se estou agora trabalhando, é graças à minha mãe. Os médicos sempre me<br />

desenganaram. Diziam que o meu problema não tinha solução. Que eu não iria an<strong>da</strong>r,<br />

falar, ouvir.<br />

A mãe o levou a muitos médicos. Dormia no chão do hospital para ficar perto dele.<br />

— Ela é uma pessoa vitoriosa.<br />

O maior desejo de Sérgio Murilo é construir uma família. Quando tinha vinte anos<br />

pensava em ir para um seminário, ser padre ou irmão; mas viu que essa não era sua<br />

vocação. Apesar de to<strong>da</strong> limitação, quer arrumar uma esposa, formar uma família e ter


119<br />

filhos. Não está namorando. Ele busca. Já paquerou bastante. A única coisa que pede a<br />

Deus é uma namora<strong>da</strong> que seja uma pessoa de fé, como ele.<br />

Making off<br />

Agen<strong>da</strong>r uma entrevista com ele foi fácil, pois Sérgio Murilo é uma pessoa<br />

muito aberta, adora conversar, como dizem no interior: “Fala mais que o homem <strong>da</strong><br />

cobra”, ou, “fala igual um papagaio”. Encontrei-o conduzindo sua cadeira de ro<strong>da</strong>s na<br />

Praça do Rosário, a segun<strong>da</strong> maior <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de. Ele me acolheu prontamente. Preferi fazer<br />

a entrevista em seu local de trabalho. Assim, poderia observar muitas coisas e sentir o<br />

pulsar do seu coração através <strong>da</strong>s palavras.<br />

Marcamos para um sábado, antes do almoço. Estava muito frio. Entrei no brechó<br />

e olhei para os detalhes. Talita, a funcionária, ficou o tempo todo ao lado de Sérgio<br />

Murilo. Como fiz com a história de vi<strong>da</strong> de Wilson Maritaca, não levei perguntas<br />

prontas, mas deixei o diálogo fluir naturalmente. Quando chegava um cliente eu<br />

esperava. Ele atendia com carinho e voltava a conversar comigo. Ficamos juntos<br />

aproxima<strong>da</strong>mente três horas. Após a entrevista fiz a foto. Sérgio Murilo fez questão que<br />

Talita fosse fotografa<strong>da</strong> ao lado dele: “Ela é meu braço direito. Sem ela aqui eu estaria<br />

enrolado”, brincou. Voltei para casa, deixei a poeira abaixar, silenciei meu coração. Só<br />

depois, sentei para escrever o texto. Quando escrevo uma narrativa, uso a técnica <strong>da</strong><br />

escrita rápi<strong>da</strong> que aprendi com Edvaldo Pereira Lima. Pego várias folhas de papel,<br />

sento-me confortavelmente, fecho os olhos, imagino tudo o que ouvi na entrevista, o<br />

que meus olhos puderam ver e os outros sentidos conseguiram captar. Depois começo a<br />

escrever sem parar, sem pensar muito. Desse modo, a razão não bloqueia a emoção. A<br />

edição vem depois. Assim nasceu o texto O jovem do brechó.<br />

A história de vi<strong>da</strong> de Sérgio Murilo leva-nos à <strong>compreensão</strong>. Ele faz parte de um<br />

grande número de brasileiros que sofrem por serem portadores de deficiência física.<br />

Apesar de muitas conquistas, os deficientes ain<strong>da</strong> lutam por seus direitos. No texto,<br />

Sérgio Murilo fala <strong>da</strong>s dificul<strong>da</strong>des de se conseguir um emprego. No fundo, as<br />

pessoas preferem quem é considerado perfeito aos olhos <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de do que um<br />

deficiente para ocupar um cargo na empresa. Contudo, o jovem não desiste. Não fica<br />

se considerando uma vítima <strong>da</strong> história, mas se esforça de to<strong>da</strong>s as maneiras para<br />

conseguir se sustentar e aju<strong>da</strong>r a família.


120<br />

Histórias de pessoas comuns, como a de Sérgio Murilo, têm a força de conduzir<br />

os que estão sem esperança à esperança, de renovar a alegria na vi<strong>da</strong> dos que estão<br />

chorando, de fazer de ca<strong>da</strong> pessoa a Fênix, com sua capaci<strong>da</strong>de de renascer <strong>da</strong>s<br />

cinzas. Se você não prestar atenção ao seu redor correrá o risco de não enxergar uma<br />

pessoa como Sérgio Murilo. Quanta gente passa por ele e não o vê? Passa ao seu<br />

lado e finge não o ver? Mas, através desta narrativa, o jovem se torna percebido,<br />

visível, mesmo àqueles que não o querem enxergar. Essa é a beleza e a missão <strong>da</strong>s<br />

<strong>narrativas</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>real</strong>.


4. O Marechal <strong>da</strong> música sertaneja<br />

121<br />

Uma estra<strong>da</strong> de terra, com curvas contornando uma lagoa, foi me distanciando <strong>da</strong><br />

ci<strong>da</strong>de. Não ouvia mais as buzinas dos carros, nem os gritos <strong>da</strong>s crianças, mas apenas o<br />

barulho do silêncio. No alto <strong>da</strong> chácara, encontrei o Marechal, tranqüilo e feliz. Uma<br />

orquestra de pássaros de mil cores fazia uma sinfonia nas árvores, alegrando o coração<br />

de Geraldo Meirelles, 83 anos.<br />

Nascido no interior, foi para a capital paulista ain<strong>da</strong> pequeno. Conheceu Dom<br />

Macedo, bispo auxiliar <strong>da</strong> Catedral <strong>da</strong> Sé e diretor <strong>da</strong> Rádio Nove de Julho, que o<br />

convidou para ajudá-lo. Depois de certo tempo, ofereceu-lhe um programa. Lembrou-se<br />

de suas raízes e decidiu inovar, tocando canções que falavam <strong>da</strong> terra, de tudo que<br />

lembrasse o sertão. Apesar do sucesso, era criticado por muitas pessoas.<br />

— Diziam que eu aju<strong>da</strong>va o povo a continuar na ignorância.<br />

O programa durou vinte anos, até a rádio ser fecha<strong>da</strong> pelos militares, em 1973. De<br />

proprie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Cúria Metropolitana, não silenciou diante <strong>da</strong> censura coloca<strong>da</strong> em<br />

prática nos meios de comunicação pela ditadura. Por isso foi tira<strong>da</strong> do ar.<br />

Geraldo Meirelles lançou novos talentos, através do programa “Canta Viola”. A<br />

história do “Canta Viola” começou em 1960, na extinta TV Associa<strong>da</strong>s, hoje TV<br />

Cultura. O primeiro programa de música sertaneja lutou contra preconceitos dos mais<br />

diversos. Passou por outras emissoras, como Tupi, Bandeirantes e chegando a TV<br />

Record, ficando assim mais de 25 anos nesta mesma emissora.<br />

Geraldo Meirelles ensinava os compositores sertanejos a fazer letras sem muito nóis<br />

vai, nóis vorta. O Marechal ajudou muitas duplas: Belmonte e Amaraí, Chitãozinho e<br />

Xororó, dentre outras.


Um dia, chegou a seu escritório um pai e seus filhos cantores. Olhou para os<br />

meninos. Pareciam dois passarinhos. Apelidou-os de Chitãozinho e Xororó. Eles<br />

passaram a fazer parte <strong>da</strong> Caravana Canta Viola. Ensinou-lhes muitas coisas.<br />

— Eu colocava um lápis na boca de ca<strong>da</strong> um e pedia para pronunciarem várias<br />

frases — relembrou, enchendo os olhos de lágrimas.<br />

Mesmo sofrendo com o preconceito, animava o povo <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de e do sertão. O<br />

122<br />

programa Canta Viola foi o primeiro do gênero sertanejo a ter mais de uma hora de<br />

duração, na televisão brasileira. Por tudo que fazia, recebeu o título de Marechal. Houve<br />

um festival na ci<strong>da</strong>de de Santo André para escolherem os melhores radialistas do Brasil.<br />

Meirelles ganhou o primeiro lugar.<br />

— O organizador, que se chamava Canelinha, ao me entregar o troféu, disse que<br />

existiam muitos sol<strong>da</strong>dos, sargentos, capitães e generais na música do país, mas<br />

marechal só havia um: eu, Geraldo Meirelles.<br />

O tempo passou, e o Marechal voltou para o sertão. Ao lado <strong>da</strong> esposa Wilma, dos<br />

cinco filhos, vinte e um netos e três bisnetos, quer apenas ouvir o canto dos pássaros e o<br />

ponteado de viola. Tudo isso, sem se esquecer de Nossa Senhora Apareci<strong>da</strong>, sua<br />

protetora e mãe.<br />

— Acendo uma vela para ela todos os dias. Se eu consegui ser o Marechal é porque<br />

ela esteve ao meu lado, em todos os momentos.<br />

Making off<br />

Geraldo Meirelles é um homem simples e acolhedor. Sou amigo de um de seus<br />

filhos, Martin. Ele me ajudou a agen<strong>da</strong>r um dia para visitar seu pai e fazer a matéria<br />

sobre sua vi<strong>da</strong>. O Marechal <strong>da</strong> Música Sertaneja vive tranqüilo, ao lado <strong>da</strong> esposa, numa<br />

chácara, na ci<strong>da</strong>de de Casa Branca-SP, onde nasceu. A chácara se chama “Canta Viola”,<br />

nome do programa que alegrou o povo brasileiro durante anos.<br />

Quando cheguei à chácara, dona Wilma veio ao meu encontro, sorrindo, feliz<br />

por minha visita. Serviu-me um café, na cozinha. Logo vi o Marechal chegando,<br />

aju<strong>da</strong>do por uma bengala. Ficamos juntos cerca de três horas. Conversamos, rimos<br />

muito, nos emocionamos. Geraldo Meirelles passou a vi<strong>da</strong> inteira se dedicando à<br />

música sertaneja, viajando os quatro cantos do Brasil com a Caravana Canta Viola,<br />

sobretudo, aju<strong>da</strong>ndo as pessoas. Isso trouxe muita alegria, mas muitas dores. Hoje ele


123<br />

sente no corpo os milhares de quilômetros ro<strong>da</strong>dos por estra<strong>da</strong>s esburaca<strong>da</strong>s e tortuosas.<br />

Mas se sente <strong>real</strong>izado. Às vezes, na entrevista, enchia os olhos de lágrimas ao<br />

relembrar <strong>da</strong>s duplas sertanejas que ajudou. Muitas ain<strong>da</strong> têm carinho por ele; outras...<br />

Nunca mais deram notícias. Ficaram famosas e o abandonaram. Entretanto, Geraldo<br />

Meirelles não fala mal dessas pessoas. Sente-se orgulhoso por ter aju<strong>da</strong>do de alguma<br />

maneira.<br />

Percebi ain<strong>da</strong> que o Marechal tem uma guerreira ao seu lado: dona Wilma. Ele<br />

começava a contar uma história e ela logo aparecia para completar com alguma coisa<br />

que ele havia esquecido ou para lembrar outros fatos. Dona Wilma é sua companheira<br />

inseparável. Mesmo com a i<strong>da</strong>de avança<strong>da</strong> e com limitações físicas, Geraldo Meirelles<br />

não pára. Todo sábado apresenta um programa sertanejo na Rádio Difusora de Casa<br />

Branca, com boa audiência. Isso o motiva a continuar sua luta em favor <strong>da</strong> música<br />

“raiz”.<br />

A história de vi<strong>da</strong> de Geraldo Meirelles nos mostra um homem compreensivo.<br />

Quando se mudou para São Paulo e teve a primeira oportuni<strong>da</strong>de de trabalhar no rádio,<br />

não pensou duas vezes: decidiu inovar inserindo na programação músicas sertanejas. Na<br />

época, a rádio Nove de Julho tocava muito músicas clássicas e cantores como Francisco<br />

Alves, Orlando Silva e Nelson Gonçalves. O gênero “caipira” caiu nas graças dos<br />

ouvintes. Assim, Geraldo Meirelles passou a mostrar o homem do campo, suas<br />

angústias, seus sofrimentos, suas conquistas. O homem “<strong>da</strong> roça” encontrou seu espaço<br />

numa <strong>real</strong>i<strong>da</strong>de urbana. Suas crenças e mitos, traduzidos em forma de canção,<br />

chegavam ao conhecimento dos que não conheciam a vi<strong>da</strong> do interior e matavam a<br />

sau<strong>da</strong>de <strong>da</strong>queles que migraram <strong>da</strong>s pequenas ci<strong>da</strong>des para São Paulo.<br />

Além <strong>da</strong> <strong>compreensão</strong>, no aspecto do conhecimento, o Marechal <strong>da</strong> música<br />

sertaneja vivia a <strong>compreensão</strong>. Estendia os braços para ensinar os jovens cantores que o<br />

procuravam, em busca de oportuni<strong>da</strong>de. Acolhia-os em sua casa, em seu programa no<br />

rádio e depois na televisão, incluía-os em sua Caravana Canta Viola, apresentando-os<br />

nos shows pelo Brasil. Estar ao lado de Geraldo Meirelles é crescer na <strong>compreensão</strong>.<br />

Nas horas que passamos juntos, pude aprender muitas coisas sobre as diferentes regiões<br />

do país, sobre a vi<strong>da</strong> do nosso povo, sobre nossa cultura. Ele tem muitas histórias<br />

interessantes. Por outro lado, experimentei sua ternura, seu companheirismo e amizade.<br />

Essa é a beleza de uma narrativa <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>real</strong>. Ela transforma. Sei que minha visita<br />

também contribuiu, de alguma maneira, para a vi<strong>da</strong> de Geraldo Meirelles. Além disso, o


124<br />

leitor de uma história de vi<strong>da</strong> como essa também vai ser tocado por ela. Vai aprender e<br />

compreender.<br />

Por isso, penso ser importante para os jornais e outros meios de comunicação, a<br />

inclusão de histórias de vi<strong>da</strong> em suas pautas. Como vimos, é preciso ter um olhar<br />

insubordinado, enfrentar a poeira <strong>da</strong> estra<strong>da</strong>, dialogar, sair do lugar comum para<br />

descobrir diamantes a serem lapi<strong>da</strong>dos pelas ferramentas <strong>da</strong> narrativa. Tanto vi<strong>da</strong> de<br />

Geraldo Meirelles, quanto as de Wilson Maritaca e Sérgio Murilo, só puderam ser<br />

narra<strong>da</strong>s porque alguém se interessou por elas. Essas histórias ficariam adormeci<strong>da</strong>s<br />

numa pequena ci<strong>da</strong>de do interior se não fossem narra<strong>da</strong>s. Quantas outras não estão<br />

escondi<strong>da</strong>s por aí, à espera de alguém para tirá-las do sono? O caminho é árduo, mas<br />

valioso. Vale a pena deixar nossas pega<strong>da</strong>s na estra<strong>da</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> de alguém, por meio de<br />

sua história de vi<strong>da</strong>.


CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />

125<br />

A experiência de narrar é a de viver. Contar uma história, sob o ponto de vista <strong>da</strong><br />

<strong>compreensão</strong>, é colocar para fora do peito o amor; é desatar os nós que prendem os<br />

sonhos; é olhar para frente e ver que existe luz no fim do túnel. Ca<strong>da</strong> frase de uma<br />

narrativa pode ser essa pequena luz que se acende no caminho, apontando o rumo a<br />

seguir.<br />

As histórias de vi<strong>da</strong> publica<strong>da</strong>s em jornais, tema desta dissertação, não são o<br />

ponto de chega<strong>da</strong> ou porto seguro. Constituem, compreensivamente, pequenas trilhas<br />

abertas no meio de uma floresta, clareiras através <strong>da</strong>s quais o sol toca o corpo do<br />

aventureiro, tantas vezes preocupado com os perigos que o cercam.<br />

Quando se liga a televisão, abre-se um jornal, folheia-se uma revista, ouvem-se<br />

notícias no rádio ou acessa-se a internet, muitas vezes fica a impressão de que se é<br />

sufocado pelo excesso de informação. Quem fica ligado nos meios de comunicação,<br />

conectado o tempo todo e pulando de um para o outro, corre o risco de sofrer de<br />

indigestão mental pelo exagero de notícias, em geral iguais e, predominantemente,<br />

ruins. Nesse sentido, a proposta de um Jornalismo de Transformação, feita por Lima,<br />

como apontado neste trabalho, parece se revestir de crescente importância, nestes<br />

tempos de hipertrofia <strong>da</strong> informação. Vez ou outra, nesse turbilhão de ofertas, aparece<br />

uma sobremesa saborosa, especialmente quando alguém conta uma história, uma fábula,<br />

ou oferece canções que falam de amor e de paz, de vi<strong>da</strong>, de esperança.<br />

Se dermos ouvidos a Zygmunt Bauman, uma <strong>da</strong>s referências teórica aqui<br />

estu<strong>da</strong><strong>da</strong>s, vivemos num tempo que ele chama de moderni<strong>da</strong>de líqui<strong>da</strong>, onde as coisas


126<br />

não são duradouras e a intenção é que, de fato, não sejam duradouras. Importa o agora.<br />

No campo <strong>da</strong> informação, importa a notícia já, mesmo que seja do elefante que se<br />

lambuzou de barro na África. Tudo passa numa veloci<strong>da</strong>de assustadora. O que é bom<br />

hoje, amanhã poderá estar na lata do lixo. O que é sucesso agora, no fim do ano pode<br />

não prestar mais para na<strong>da</strong>. Valores e princípios perdem a força, enquanto outros, que<br />

surgem, trazem a marca <strong>da</strong> transitorie<strong>da</strong>de. A ética, a moral, as crenças, os mitos,<br />

costumam ser colocados no baú, desqualificados. A vi<strong>da</strong>, o medo, o amor, tudo tende a<br />

se tornar líquido, fluir. Na visão de Bauman, não há mais segurança e compromissos.<br />

Entretanto, como sabemos, uma árvore morre se perder as raízes ou não estiver planta<strong>da</strong><br />

junto às águas correntes. De onde tiraria sua força? Como produziria flores e frutos no<br />

deserto? Impossível! Eis aí, portanto, o desafio de pensar, nesse mundo de fluidez,<br />

naquilo que pode durar, nas novas identi<strong>da</strong>des, nos novos valores e visões de mundo<br />

emergentes.<br />

Fluido ou não, líquido ou não, é impossível um mundo sem histórias,<br />

personagens, <strong>narrativas</strong>. Como também não se pode imaginar um mundo sem alicerces,<br />

o humano, a compaixão, a busca de harmonia com a natureza. As <strong>narrativas</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>real</strong><br />

mostram como, de fato, o mundo é assim. As águas de um rio, para chegarem ao mar,<br />

precisam <strong>da</strong>s margens. Caso contrário, espalham-se nos pântanos e não chegam ao<br />

destino. Assim é a vi<strong>da</strong> que não se conta, o sorriso que não se vê, as mãos que não se<br />

abrem, os pés que não se movem. Não importa se a história de alguém possa ser<br />

considera<strong>da</strong> desimportante. Se essa história é conta<strong>da</strong>, assume importância. Nesse<br />

sentido, a história de vi<strong>da</strong> de um médico não é mais interessante que a de um lixeiro. A<br />

vi<strong>da</strong> do presidente Lula não é superior à de Evandro, gari que varre a rua onde moro,<br />

com quem converso quase que diariamente. Ca<strong>da</strong> uma dessas histórias, como pudemos<br />

acompanhar por meio do pensamento de Campbell, possui uma estrutura básica,<br />

humana, norteadora <strong>da</strong> jorna<strong>da</strong>. Um pensamento complexo-compreensivo trabalha não<br />

com hierarquias de sentidos ou de pessoas. Junta. Tece e entretece. Põe para conversar.<br />

O repórter que escreve histórias de vi<strong>da</strong> sob o <strong>signo</strong> <strong>da</strong> <strong>compreensão</strong> não pensa a<br />

socie<strong>da</strong>de em forma de pirâmide, colocando os poderosos no topo e os desclassificados<br />

socialmente na base. Ao contrário, pensa uma socie<strong>da</strong>de plural. Sonha que seja justa,<br />

fraterna, solidária, pacífica, igualitária. Narrar a história de vi<strong>da</strong> de uma celebri<strong>da</strong>de ou<br />

de uma pessoa anônima adquire o mesmo peso, porque são histórias de pessoas, de<br />

seres humanos — e o humano é o grande eixo de to<strong>da</strong>s as histórias que se contam. Isso


127<br />

é o mais importante! De modo especial, se essas histórias podem transformar o mundo<br />

ou mesmo aju<strong>da</strong>r alguém a descobrir janelas, onde só se viam grades.<br />

Vimos os teóricos Bauman, Maffesoli, Campbell, Lévy, os <strong>da</strong> Escola de<br />

Frankfurt e outros, mostrando pontos importantes do mundo em que vivemos e suas<br />

histórias. Também autores mais voltados para um pensamento complexo-compreensivo,<br />

como Kunsch, Medina, Lima e Brum. São pensadores que me enriqueceram muito com<br />

seus ensinamentos e intuições sobre a <strong>real</strong>i<strong>da</strong>de.<br />

Além dos teóricos, fui agraciado com textos transformadores, publicados nos<br />

jornais utilizados na pesquisa, e pelas entrevistas concedi<strong>da</strong>s pelos jornalistas que<br />

trabalham nesses veículos de comunicação. Histórias de vi<strong>da</strong> que ficam grava<strong>da</strong>s na<br />

vi<strong>da</strong> <strong>da</strong> gente. Como é bom ler um jornal com notícias e histórias, com informação e<br />

conteúdos mais duradouros. Outros jornais, revistas, sites, livros, poderiam abrir as<br />

páginas para <strong>narrativas</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>real</strong> sob o <strong>signo</strong> <strong>da</strong> <strong>compreensão</strong>. Por que são poucos os<br />

espaços para esse tipo de texto? As universi<strong>da</strong>des podem contribuir de que forma para<br />

que os jornalistas sejam mais compreensivos? O que acontece com personagens,<br />

repórteres e leitores depois <strong>da</strong> publicação de uma história de vi<strong>da</strong>? O que mu<strong>da</strong> na vi<strong>da</strong><br />

de ca<strong>da</strong> um, já que sabemos que todos são transformados pela narrativa?<br />

Perguntas como estas poderiam ser talvez o ponto de parti<strong>da</strong> para um trabalho de<br />

doutorado.<br />

Também tive a felici<strong>da</strong>de de escrever três histórias de vi<strong>da</strong>, a partir do <strong>signo</strong> <strong>da</strong><br />

<strong>compreensão</strong>. O exercício de abertura para o novo é difícil, mas enriquecedor. Conhecia<br />

os personagens <strong>da</strong>s histórias por morarem na mesma ci<strong>da</strong>de que eu moro. To<strong>da</strong>via, ir ao<br />

encontro deles exigiu despojamento, vontade, organização de horário e muito diálogo.<br />

Também fideli<strong>da</strong>de ao que me disseram, ao que vi, ouvi e senti.<br />

Esta dissertação não se pôs como objetivo <strong>da</strong>r respostas, pois, para muitas<br />

coisas, nem respostas existem. Os meios de comunicação, tradicionalmente reféns do<br />

<strong>signo</strong> <strong>da</strong> explicação, saem à procura de solução e de respostas para tudo, como se<br />

existisse solução para todos os problemas que nos afetam, desde o problema do buraco<br />

no asfalto <strong>da</strong> rua até nossos sonhos e nossas angústias mais profun<strong>da</strong>s. Nós, os seres<br />

humanos, somos frágeis, limitados, vasos de barro. Em muitos momentos de nossa<br />

história, somos impotentes, não podemos fazer na<strong>da</strong>. Por isso, precisamos ser<br />

compreendidos e compreender. Valorizar o preto e o branco e todos os outros tons que<br />

existem entre um e outro. É essa visão complexa do ser humano e esse apelo à


128<br />

<strong>compreensão</strong>, tanto no campo do conhecimento quanto <strong>da</strong> ética, que constitui o grande<br />

eixo deste trabalho.


REFERÊNCIAS<br />

129<br />

BRUM, Eliane. A vi<strong>da</strong> que ninguém vê. Porto Alegre: Arquipélago, 2006.<br />

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____________ Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: 2002.<br />

_____________ O Enigma do Homem. Rio de Janeiro: Zahar Editora, 1979.<br />

KUNSCH, Dimas A. Crise, <strong>compreensão</strong> e comunicação: contra a certeza do<br />

pensamento avassalador. Líbero (FACASPER), v. XI, p. 43-52, 2008.<br />

_________________ Comunicação e incomunicação: aproximação complexocompreensiva<br />

à questão. Líbero (FACASPER), v. Ano X, p. 51-59, 2007.<br />

_________________ Comprehendo ergo sum: epistemologia complexocompreensiva<br />

e reportagem jornalística. Communicare (São Paulo), São Paulo-<br />

Brasil, v. 5, n. 1, p. 43-54, 2005.<br />

__________________ Teoria guerreira <strong>da</strong> incomunicação: jornalismo,<br />

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__________________ Elogio à razão luminosa. Communicare (São Paulo), São<br />

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brasileiras e a guerra contra o Iraque. Revista Comunicação Midiática, v. 5, p. 79-98,<br />

2006.<br />

__________________ Maus Pensamentos: os mistérios do mundo e a reportagem<br />

jornalística. São Paulo: Annablume-Fapesp, 2000. 298 p.<br />

KUNSCH, Dimas A. Aquém, em e além do conceito: comunicação, epistemologia e<br />

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KUNSCH, Dimas A. BARROS, Laan Mendes de. "Saber pensar seu pensamento":<br />

reflexões em conjunto sobre epistemologia <strong>da</strong> comunicação. Líbero (FACASPER),<br />

v. Ano X, p. 9-20, 2007.<br />

KUNSCH, Dimas A. MARTINEZ, M. Histórias de vi<strong>da</strong> produzi<strong>da</strong>s por jornalistasescritores:<br />

uma experiência. Communicare (São Paulo), v. 7, p. 31-41, 2007.<br />

RESTREPO, Luis Carlos. O direito à ternura. Petrópolis: Vozes, 2001.


131<br />

SANTOS, Boaventura de Souza. Introdução a uma ciência pós moderna. São Paulo:<br />

Graal, 2003.<br />

VILAS BOAS, Sergio. Biografias & biógrafos. São Paulo: Summus, 2002.<br />

__________________ Perfis e como escrevê-los. São Paulo: Summus, 2003.<br />

__________________ Jornalistas literários. São Paulo: Summus, 2007.<br />

VOGLER, Christopher. A jorna<strong>da</strong> do escritor. Ampersand Editora, 1996.<br />

WOLTON, Dominique. É preciso salvar a comunicação. São Paulo: Paulus, 2006.<br />

Site: www.textovivo.com.br


ANEXOS<br />

132


1. Entrevista: Prof. Dr. Dimas A. Künsch 5<br />

Você é o líder do grupo de pesquisa “Comunicação, jornalismo e epistemologia <strong>da</strong><br />

<strong>compreensão</strong>” <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong>de <strong>Cásper</strong> Líbero. Quais as buscas desse grupo?<br />

133<br />

— Eu penso que, na alma do grupo, está a idéia de pensar sobre o pensamento <strong>da</strong> comunicação.<br />

De propor não tanto um outro pensamento, uma outra teoria, e, sim, uma outra atitude cognitiva.<br />

É no nível <strong>da</strong>s atitudes que nós trabalhamos quando falamos na <strong>compreensão</strong>. Estamos <strong>da</strong>ndo ao<br />

termo “<strong>compreensão</strong>” um estatuto cognitivo, porque nós poderíamos pensar a <strong>compreensão</strong> num<br />

nível apenas intersubjetivo, o que já é muito importante. Um estatuto cognitivo significa que,<br />

pela via <strong>da</strong> atitude compreensiva você está mais habilitado não a <strong>da</strong>r respostas sobre o mundo,<br />

mas a trilhar caminhos mais auspiciosos no conhecimento. Sempre destaco esses dois lados <strong>da</strong><br />

<strong>compreensão</strong>. Quando falamos de dois lados é evidente que é mais para nos entendermos,<br />

porque a <strong>real</strong>i<strong>da</strong>de nunca é forma<strong>da</strong> assim de dois lados. A <strong>real</strong>i<strong>da</strong>de é complexa, tem<br />

muitíssimos lados, os que conhecemos e lados que nos desafiam. Então, para nos<br />

compreendermos, nos entendermos melhor, as atitudes compreensivas, no nível específico do<br />

conhecimento, do trabalho cognitivo, representam um modo de pensar que não se constrói única<br />

e exclusivamente a partir <strong>da</strong> análise, sem desprezar a análise, privilegia a síntese, o olhar<br />

compreensivo sobre diferentes esforços, teorias que se conversam e, mais que teorias, ou de<br />

uma área específica do saber, são modos de saber, diferentes sabedorias, tipos de conhecimento.<br />

No campo cognitivo precisamos fazer, por exemplo, as artes dialogarem com as ciências<br />

empíricas, a filosofia, os saberes religiosos, os saberes comuns. São muitas as <strong>narrativas</strong> que a<br />

humani<strong>da</strong>de constrói para tentar compreender o mundo. São muitas as histórias. São muitas as<br />

maneiras de aproximação que os seres humanos inventam para <strong>da</strong>r conta dessa questão. Quem<br />

sou eu? Que mundo é este mundo? De onde vim? Para onde vou? São as questões básicas <strong>da</strong><br />

humani<strong>da</strong>de. O conhecimento humano no fundo é isso. Buscamos respostas para algumas<br />

perguntas. Isso no âmbito <strong>da</strong> cognição, <strong>da</strong> busca do conhecimento.<br />

E no âmbito intersubjetivo?<br />

— No âmbito intersubjetivo, o que a atitude compreensiva ressalta é que, sendo compreensivos<br />

uns com outros aumentam as chances de nos compreendermos a nós mesmos e ao mundo em<br />

que vivemos. Por que se toma como ponto de parti<strong>da</strong> a idéia de que o ser humano é a peça mais<br />

importante do concerto. Que a vi<strong>da</strong> humana é o que há de mais importante. Então, isso tem que<br />

estar no centro de todo esforço de conhecimento. Por isso, falamos <strong>da</strong> atitude do respeito, <strong>da</strong><br />

atitude de você compreender inclusive a in<strong>compreensão</strong>. De você compreender inclusive o erro,<br />

porque o erro também ensina, tem um valor cognitivo. Não é só a ver<strong>da</strong>de que ilumina. Dentro<br />

de uma visão compreensiva, o erro também tem, digamos, a sua luz, lá onde talvez ele escon<strong>da</strong><br />

a sua luz. Você abre seu pensamento e a sua alma para perceber que conhecimento é uma busca,<br />

e não exatamente chegar a respostas, uma busca constante, às vezes sem resposta alguma, e<br />

nunca com pontos finais. As duas coisas se completam. Tanto no mundo <strong>da</strong> cognição quanto <strong>da</strong><br />

5 Doutor em Ciências <strong>da</strong> Comunicação pela Universi<strong>da</strong>de de São Paulo (2004). Graduado em Filosofia<br />

pela Facul<strong>da</strong>de de Filosofia Nossa Senhora Medianeira (1977), em Teologia pela Leopold-Franzens<br />

Universitat, Innsbruck, Austria (1984). Mestre em Integração <strong>da</strong> América Latina pela Universi<strong>da</strong>de de<br />

São Paulo (1999). É coordenador do Programa de Pós-Graduação <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong>de <strong>Cásper</strong> Líbero e professor<br />

de graduação e pós-graduação na mesma instituição onde lidera também o grupo de pesquisa<br />

“Comunicação, jornalismo e epistemologia <strong>da</strong> <strong>compreensão</strong>”. Tem experiência na área de Comunicação,<br />

atuando principalmente nos seguintes temas: comunicação, educação, jornalismo, livro-reportagem e<br />

pensamento complexo-compreensivo.


134<br />

intersubjetivi<strong>da</strong>de, a <strong>compreensão</strong> nos faz mais aptos a fugir à concorrência, à arrogância, à<br />

disputa pelo poder. E, também a fugir à violência, que é a pior parte de todos esses modos<br />

dualistas de se ver o mundo, modos reducionistas, não complexos, que, no limite, levam à<br />

violência física ou à violência sem sangue, como diz Restrepo no livro O direito à ternura.<br />

Quais as principais diferenças entre <strong>signo</strong> <strong>da</strong> explicação e <strong>signo</strong> <strong>da</strong> <strong>compreensão</strong>?<br />

— A explicação é um procedimento super normal e ordinário no processo humano do<br />

conhecimento. Nós, em vários momentos, temos que explicar. Por exemplo, se você tiver que ir<br />

à minha casa, mas não souber onde fica, tenho que lhe explicar como se chega até lá. O<br />

problema não está na explicação. O problema está em transformar a explicação no horizonte<br />

definitivo de to<strong>da</strong>s as buscas, como se tudo estivesse aí para ser explicado. Não é ver<strong>da</strong>de. Boa<br />

parte <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> não merece ou até rejeita a explicação. Exige outros procedimentos cognitivos.<br />

Então, na<strong>da</strong> contra a explicação, mas tudo contra o <strong>signo</strong> fechado <strong>da</strong> explicação, o reducionismo<br />

<strong>da</strong> explicação. Por que, além <strong>da</strong> explicação, nós temos outros modos de conhecimento, não<br />

lógicos, não racionais no sentido estrito do termo, que possuem tanto valor quanto, não é<br />

ver<strong>da</strong>de? Mesmo lá onde para certas questões você não dá uma explicação, uma resposta, não<br />

significa que não valeu o caminho feito e o ponto a que você chegou de <strong>compreensão</strong> do assunto<br />

ou problema. O <strong>signo</strong> <strong>da</strong> <strong>compreensão</strong> não joga na<strong>da</strong> fora. Ele diz à explicação: “Você tem que<br />

dialogar com outros modos de conhecimento, ser compreensiva”. A mesma coisa se dá em<br />

relação ao tema <strong>da</strong> razão. Ninguém, em sã consciência, pode se voltar contra a racionali<strong>da</strong>de<br />

humana, pois essa é uma capaci<strong>da</strong>de, uma competência que nós, humanos, temos e que às vezes<br />

não usamos, ou usamos mal. Usar mal a razão resulta em coisas ruins. A racionali<strong>da</strong>de humana<br />

contribui para que nós caminhemos num sentido mais humano e positivo. Porém, assim como lá<br />

temos a explicação absolutiza<strong>da</strong>, aqui temos o absolutismo <strong>da</strong> razão.<br />

O racionalismo...<br />

— Sim. O racionalismo não é o mesmo que razão. Inclusive porque a razão pode ser crítica. A<br />

razão pode ser dialógica. A razão pode ser amorosa. A razão pode ser muito humana, muito<br />

compreensiva. Aliás, eu devo dizer que, em sua origem, em seu sentido primeiro, desde o logos<br />

dos gregos, nunca se disse que o logos ou a razão fossem contra o diálogo, contra o<br />

reconhecimento de diferentes pontos de vista, de diferentes saberes. De novo: tudo contra o<br />

racionalismo, a absolutização <strong>da</strong> razão! Na<strong>da</strong> contra a razão! Mas o ser humano é mais do que<br />

razão. Faz parte de uma visão compreensiva mostrar, inclusive, que não temos garantia de na<strong>da</strong>.<br />

Não possuímos as certezas prometi<strong>da</strong>s pelo racionalismo. A razão pode nos levar ao<br />

obscurantismo, à perversi<strong>da</strong>de, à guerra. Quantas vezes instrumentos racionais e tecnológicos,<br />

os mais sofisticados, nos levam à destruição do outro! O mesmo se dá com as emoções. Nós não<br />

estamos num ambiente angelical. Vivemos num ambiente de conflitos, de dúvi<strong>da</strong>s, de<br />

incertezas. Só que o pensamento compreensivo diz: “A dúvi<strong>da</strong>, a incerteza, o erro e mesmo a<br />

in<strong>compreensão</strong>, devem ser colocados para dialogar. Por exemplo, se eu desconheço ou<br />

menosprezo o estatuto cognitivo <strong>da</strong> incerteza, desconheço exatamente uma <strong>da</strong>s coisas que mais<br />

nos acossam o tempo todo. O tempo todo a gente tem incertezas. Só que o pensamento de<br />

recorte mais racionalista, analítico, explicativo, sempre trabalhou com a idéia de que podemos<br />

chegar a certezas, conclusões, a ver<strong>da</strong>des. Isso é muito perigoso. Porque não conseguimos<br />

chegar a isso. E arriscamos, com isso, de perder de vista até onde, de fato, podemos e às vezes<br />

devemos chegar.<br />

Sobre a questão <strong>da</strong>s <strong>narrativas</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>real</strong>, uma <strong>da</strong>s suas características é a capaci<strong>da</strong>de<br />

de transformar o caos em cosmos. Hipócrates aplicava isso na medicina. Cremil<strong>da</strong> Medina<br />

valoriza o ato de narrar. Edvaldo Pereira Lima afirma que a narrativa nos aju<strong>da</strong> a <strong>da</strong>r<br />

um salto de consciência. E você?<br />

— Só posso concor<strong>da</strong>r. Para nós, humanos, o mundo e a vi<strong>da</strong> existem se forem narrados. Nós<br />

falamos sobre as coisas. Nós representamos as coisas. Nós sentimos e criamos símbolos sobre


135<br />

as coisas. Tudo isso faz parte desse esforço de compreendermos o mundo em que vivemos.<br />

Temos nossas utopias, nossos sonhos, erros, limites. Pessoalmente, tenho uma visão muito<br />

ampla sobre narrativa. Vejo, por exemplo, a própria ciência empírica como uma grande<br />

narrativa, altamente qualifica<strong>da</strong>, primorosa em muitos dos seus aspectos, mas uma narrativa, um<br />

discurso sobre o mundo. Um discurso nem melhor nem pior, diferente. Temos também as<br />

<strong>narrativas</strong> míticas, as <strong>narrativas</strong> populares, os “causos”, as histórias humanas. Por que é assim?<br />

Porque, como dizia Joseph Campbell em seus estudos sobre o mito, as histórias humanas são as<br />

mais varia<strong>da</strong>s possíveis. São inúmeras. Incontáveis. Mas, no fundo, a humani<strong>da</strong>de está sempre<br />

falando <strong>da</strong>s coisas que lhe interessam. São as questões de fundo. E essas questões freqüentam a<br />

filosofia, a ciência, a religião... Você não consegue escapar delas. É a questão do sentido <strong>da</strong><br />

vi<strong>da</strong>, a questão do amor, a questão <strong>da</strong> felici<strong>da</strong>de, a questão <strong>da</strong> origem <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e <strong>da</strong> morte... Ou<br />

seja, não podemos não falar dessas coisas. E, ao falar, estamos encontrando um lugar para nós<br />

mesmos enquanto humanos, não necessariamente uma resposta. Quem tem resposta para a<br />

questão <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e <strong>da</strong> morte? Mas temos, como dizia Kant, por sermos humanos, a necessi<strong>da</strong>de e<br />

o dever de perguntar, o dever de contar. Nós nos fazemos humanos enquanto narramos o<br />

mundo, as experiências, os sonhos, as utopias. Nesse sentido, acredito, sim, que as <strong>narrativas</strong>,<br />

to<strong>da</strong>s elas, de qualquer tipo, em verso, em prosa, visuais, to<strong>da</strong>s elas têm, em princípio, essa<br />

preocupação básica de nos situar, de nos aju<strong>da</strong>r na construção de nossa identi<strong>da</strong>de de humanos.<br />

Não de anjos ou de deuses, mas de humanos. Do modo como somos, com nossos potenciais,<br />

nossos defeitos, nossos erros, nossas buscas. No nível prático, eu diria que a narrativa, a palavra<br />

enquanto tal, tem um poder terapêutico. Ela cura. Porque a pessoa, ao falar, ao assumir o direito<br />

que lhe cabe de se expressar, em qualquer situação, assume o seu protagonismo.<br />

Torna-se alguém...<br />

— Torna-se alguém, é isso. E esse é o primeiro passo de todo processo curativo, no plano <strong>da</strong><br />

saúde física, ou psíquica, espiritual. Eu penso que um senhor chamado Sigmund Freud percebeu<br />

muito bem isso, tendo se preocupado em criar um espaço terapêutico para que a pessoa falasse.<br />

Temos exemplos, na vi<strong>da</strong> prática, de pessoas que, desespera<strong>da</strong>s, quando começam a falar<br />

percebem que os grandes problemas diminuíram. Vejo que hoje as pessoas têm menos tempo de<br />

falar, contar, se expressar, por isso mesmo e ca<strong>da</strong> vez maior, tendo necessi<strong>da</strong>de dos terapeutas.<br />

Estamos nos tornando uma socie<strong>da</strong>de de farmácias e terapeutas. Acho isso uma coisa muito<br />

séria. Nossos ancestrais tinham uma sabedoria que precisa ser resgata<strong>da</strong>. É por isso que eu falo<br />

com prazer de Hipócrates e de sua visão <strong>da</strong> arte médica, porque o pensamento compreensivo<br />

não cria uma hierarquia assim, dizendo: “Olha, lá atrás estavam os primitivos...”. Em algum<br />

sentido continuamos primitivos, em outros avançamos, em outros estamos devendo muito aos<br />

povos antigos, àqueles que não consideramos, aos diferentes de nós. O mundo precisa mu<strong>da</strong>r<br />

para escutar as mais diferenças <strong>narrativas</strong> <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de. Elas ensinam.<br />

Pensadores como Bauman e Maffesoli afirmam que a socie<strong>da</strong>de está mu<strong>da</strong>ndo. Vivemos<br />

na “moderni<strong>da</strong>de líqui<strong>da</strong>”, na “pós-moderni<strong>da</strong>de”. Onde entra a narrativa nesse contexto<br />

de novo milênio?<br />

— Esses autores se situam no mundo <strong>da</strong> ciência e <strong>da</strong> academia. Suas <strong>narrativas</strong>, nós as<br />

chamamos de teorias. Na ver<strong>da</strong>de, trata-se de tentativas de <strong>compreensão</strong>, que é o que teoria<br />

significa. Então, o pensamento compreensivo tenta tecer essas teorias, não para afirmar que são<br />

certas. Teorias não são certas nem erra<strong>da</strong>s, são teorias. Essa é uma primeira observação. No<br />

campo próprio do jornalismo, neste nosso mundo novo que buscamos às custas compreender, eu<br />

acho que se abrem possibili<strong>da</strong>des muito amplas para trabalhos de reportagens, de histórias de<br />

vi<strong>da</strong>, perfis, — mas eu diria que todo trabalho jornalístico, sem qualquer rótulo, mais ou menos<br />

bem-sucedi<strong>da</strong>, é uma tentativa de contar a história do que está acontecendo, com instrumentos<br />

analíticos, muito mais com instrumentos de apuração, de contato, de levantamento de histórias<br />

etc. Hoje, com o acúmulo muito grande de informações, nunca antes imaginado, surge o desafio<br />

<strong>da</strong>s <strong>narrativas</strong>, dos contadores de histórias. Por quê? Por que precisamos tecer os sentidos do<br />

que está acontecendo. Por exemplo, não quero ter um milhão de informações sobre a Copa do


136<br />

Mundo. O que eu faço com milhões de informações? Me dá desespero. Então, preciso de<br />

contadores de história. Tenho que saber e ser formado para administrar as informações e<br />

perceber os grandes eixos de significados, os grandes desafios que aparecem. Veja a Copa do<br />

Mundo de Futebol, neste momento, na África do Sul. Muitos sentidos humanos são levantados<br />

ali! Muitas <strong>narrativas</strong> são construí<strong>da</strong>s. Veja a luta contra o Apartheid, que possibilitou esse<br />

momento. Tudo isso é muito bonito.<br />

Na minha dissertação, fiz um mergulho nas histórias de vi<strong>da</strong> publica<strong>da</strong>s por três jornais<br />

fazendo uso de cinco elementos: personagem, imersão, diálogo dos afetos, <strong>compreensão</strong> e<br />

transformação. Qual sua visão sobre eles?<br />

São pontos de parti<strong>da</strong> muito ricos. Aqui presto um crédito a meu colega e amigo Edvaldo<br />

Pereira Lima, quando ele insiste na narrativa como um salto de consciência. Não<br />

necessariamente, eu diria, uma vez que existem <strong>narrativas</strong> de todos os tipos, inclusive <strong>narrativas</strong><br />

altamente desumanas, desrespeitosas, etnocêntricas, racistas. Mas a narrativa do modo como<br />

está sendo proposta aqui, de busca de <strong>compreensão</strong>, tendo como centro o ser humano com suas<br />

buscas e apreensões, essa narrativa resulta em transformação, porque, como dizíamos, através<br />

dela, estamos pondo ordem na casa. Não significa que tenhamos chegado ao paraíso. Essas<br />

<strong>narrativas</strong> estão trazendo para o centro do debate o ser humano e, sempre que o ser humano é<br />

colocado no centro <strong>da</strong>s preocupações, os resultados são transformadores. Esse é o sentido de<br />

to<strong>da</strong> busca humana de <strong>compreensão</strong>. É como se falássemos assim: “Conversando a gente se<br />

entende”, para lembrar uma expressão que o meu colega Prof. Luís Mauro Martino gosta de<br />

utilizar nesse contexto. Lá onde as pessoas conversam, contam histórias, tecem <strong>narrativas</strong>, elas<br />

não se matam. Há um filme, dos mais emocionantes de que eu me lembro, já antigo. O título em<br />

português é Feliz Natal. Um filme sobre a Primeira Guerra Mundial, baseado num<br />

acontecimento <strong>real</strong>. Havia, de um lado, sol<strong>da</strong>dos alemães e austríacos, e de outro, ingleses,<br />

escoceses e outros aliados. Era noite de Natal. Eles estavam próximos uns dos outros quando<br />

alguém ouve uma música natalina e aquele ambiente se transforma numa festa natalina.<br />

Diferentes povos se reúnem, pára a guerra, as pessoas conversam umas com as outras. Isso leva<br />

à <strong>compreensão</strong>. Mas existem várias maneiras de se conversar. Você pode conversar oprimindo,<br />

não <strong>da</strong>ndo ao outro o direito de se expressar, estabelecendo o domínio <strong>da</strong> opressão. Por isso,<br />

quando as pessoas contam histórias, narram sobre seus heróis, que podem ser pessoas muito<br />

simples, comuns, essas histórias sempre provocam uma transformação nas pessoas que as lêem<br />

e as contam. Você não sai igual. Para dizer a ver<strong>da</strong>de, ninguém sai igual <strong>da</strong> história: nem quem<br />

é o protagonista <strong>da</strong> história, nem quem é o protagonista do texto, nem quem é o protagonista <strong>da</strong><br />

leitura. `<br />

Os três se enriquecem...<br />

— Se enriquecem. Se modificam. Se questionam. Às vezes, é uma história dessas que salva uma<br />

vi<strong>da</strong>, por exemplo. Quando alguém fala assim: “Olha, eu estava pensando aqui na vi<strong>da</strong>. Veja o<br />

testemunho dessa pessoa...” Isso nos emociona, nos toca, nos faz pensar que a vi<strong>da</strong>, apesar de<br />

to<strong>da</strong>s as dificul<strong>da</strong>des, vale a pena, sim, ser vivi<strong>da</strong>.


2. Entrevista: Ivan Marsiglia 6<br />

Fale sobre sua carreira profissional<br />

137<br />

— Minha trajetória jornalística não é muito ortodoxa do ponto de vista <strong>da</strong> grande imprensa. Eu<br />

trabalhei quase to<strong>da</strong> a minha vi<strong>da</strong> em revista, o que influenciou muito o meu estilo de escrever.<br />

Eu fiz jornalismo na Metodista em São Bernardo do Campo-SP. A partir do segundo ano, um<br />

professor me convenceu de que valeria a pena fazer um outro curso para ter uma bagagem<br />

humanística. Acabei fazendo Ciências Sociais na Universi<strong>da</strong>de de São Paulo. Eu estu<strong>da</strong>va e<br />

trabalhava ao mesmo tempo. Terminei a graduação em jornalismo no ano de 1993 e entrei na<br />

Abril. Tive a sorte de cair numa re<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> revista Playboy. Era uma re<strong>da</strong>ção estelar. Logo que<br />

entrei o diretor era o Juca Kfouri ain<strong>da</strong>, que é um ótimo jornalista. Trabalhava lá também, como<br />

escritor sênior o Eugênio Bucci. Quando o Juca Kfouri saiu para trabalhar na revista Placar, o<br />

Ricardo Setti, um jornalista fenomenal, que já trabalhou aqui no Estadão, virou o diretor de<br />

re<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> Playboy. O re<strong>da</strong>tor chefe <strong>da</strong> revista era Humberto Werneck, um dos grandes nomes<br />

do New Jornalism no Brasil. Trabalhei com outros profissionais importantes como Guilherme<br />

Cunha Pìnto. Estou dizendo tudo isso para mostrar que tive uma ótima escola. A Playboy, de<br />

fato, tinha um esmero, um cui<strong>da</strong>do com o texto, além <strong>da</strong>s grandes entrevistas com uma técnica<br />

incrível. Ali a gente aprendia com outras estrelas que eram convi<strong>da</strong><strong>da</strong>s para fazerem essas<br />

entrevistas, como Ruy Castro. Isso tudo foi muito bom pra mim, pois fui ser jornalista porque<br />

gosto de escrever. Há jornalistas que têm paixão pelo texto e outros que têm paixão pela notícia,<br />

pelo furo. Eu não me encaixaria tanto nesse perfil. Minha paixão maior é pelo texto. Depois<br />

desse período consegui uma bolsa para morar em Paris e trabalhar numa revista chama<strong>da</strong><br />

Europa, com jornalistas de vários países, numa integração para conhecer a União Européia.<br />

Voltei para a Abril e tive uma proposta <strong>da</strong> revista Trip, no ano 2000, que eu considerava uma<br />

revista muito rica do ponto de vista <strong>da</strong> linguagem e <strong>da</strong> pauta muito criativa. E eu fui pra lá.<br />

Fiquei até 2004 quando recebi um convite do jornalista Ricardo Kotscho para trabalhar na<br />

assessoria do presidente Lula em Brasília-DF. Nunca tinha imaginado isso, mas achei que seria<br />

uma experiência boa e fui para o terceiro an<strong>da</strong>r do Palácio do Planalto. Aí o Ricardo Kotscho<br />

saiu, chegou o André Singer, depois veio o Franklin Martins. Foi então que tive um convite do<br />

Aliás. Um grande amigo meu, Fred de Melo Paiva, trabalhava aqui. Estou aqui no Aliás desde<br />

setembro de 2008.<br />

Como você escolhe os personagens <strong>da</strong>s histórias que você conta. Como são feitas as pautas<br />

<strong>da</strong>s matérias do Aliás?<br />

— Dentro do jornal somos considerados privilegiados, pois temos um pouco mais de tempo<br />

para trabalhar. O caderno é semanal. Só que a vi<strong>da</strong> não é tão colori<strong>da</strong> assim porque a gente<br />

nunca tem uma semana para fazer uma matéria. O nome do caderno é Aliás, a semana revista.<br />

Ele é calcado nos acontecimentos <strong>da</strong> semana. Temos que esperar a semana acontecer ou pelo<br />

menos parte dela pra vermos para onde ela vai para podermos fechar a pauta. Começamos a<br />

discutir a pauta na segun<strong>da</strong>-feira, com uma reunião <strong>da</strong> equipe interna. Ele é fechado na sexta e<br />

ro<strong>da</strong>do na madruga<strong>da</strong> do sábado. Hoje quem edita o caderno é a Mônica Manir. Mas é a partir<br />

de terça para quarta que a pauta se consoli<strong>da</strong>. Aí temos de dois a três dias para fecharmos a<br />

página oito do Aliás, com um texto, entre aspas, em estilo de revista, com uma apuração mais<br />

rigorosa, mais tempo, mais detalha<strong>da</strong>. É corrido do mesmo jeito.<br />

6<br />

Jornalista do jornal O Estado de S. Paulo. Escreve histórias de vi<strong>da</strong> aos domingos, no<br />

Caderno Aliás.


Então, vocês ficam atentos aos acontecimentos?<br />

138<br />

— Sim. A pauta é discuti<strong>da</strong> muito em função <strong>da</strong> semana e nos acontecimentos também que<br />

Humberto Werneck sempre dizia, os cadáveres que a imprensa deixa por aí sem pesquisar, uma<br />

notícia de jornal que saiu, um episódio. Veio agora à minha cabeça por exemplo um episódio de<br />

racismo que houve num estacionamento do Carrefour há uns meses atrás. Um homem negro<br />

num carro Eco Sport foi dominado e jogado no chão na frente <strong>da</strong> mulher. Uma matéria que saiu<br />

“pequininha” num jornal, onde o rapaz diz ter sido humilhado. Esta é uma história fantástica.<br />

Quem é esse homem? De onde ele veio, onde trabalhou, como conseguiu comprar aquele carro?<br />

É uma matéria que pode ser explora<strong>da</strong> no final de semana para a página oito do caderno,<br />

considera<strong>da</strong> uma página em estilo Jornalismo Literário.<br />

Na apuração <strong>da</strong>s informações você tem um assunto, mas não leva tudo pronto...<br />

— Quando tenho a pauta decidi<strong>da</strong> procuro pensar qual seria uma abor<strong>da</strong>gem interessante<br />

também do ponto de vista do texto. Não só o conteúdo, a notícia, mas começo a imaginar o<br />

todo. Mas, quando vou a campo, a <strong>real</strong>i<strong>da</strong>de se impõe. Percebo que a matéria fica boa quando o<br />

formato do texto está relacionado com o fato, seja ele acontecido agora ou não. Quando escrevi<br />

o texto Dor sem remédio, sobre a morte do estu<strong>da</strong>nte de medicina <strong>da</strong> USP, Edison Tsung Chi<br />

Hsueh, resgatei um fato acontecido há dez anos, em 1999. Fazia exatamente uma déca<strong>da</strong> <strong>da</strong><br />

morte do jovem, num trote na piscina. Simplesmente a ação foi suspensa. Havia quatro<br />

veteranos acusados e eles sequer foram ouvidos. A ação foi tranca<strong>da</strong> por um mecanismo<br />

jurídico estranho, um habeas corpus, um man<strong>da</strong>to de segurança que congelou a ação. É um caso<br />

flagrante de injustiça perpetua<strong>da</strong>.<br />

A gente fica triste com uma situação dessas. A família saiu lá de Taiwan, veio para o Brasil<br />

e não tem apoio diante de um fato desses...<br />

— Eu me perguntei muito isso. O que teria acontecido se eles não fossem imigrantes de<br />

Taiwan? Se aquele taiwanês, aquele menino, não fosse pobre, mas de classe média-alta,<br />

digamos assim, que estudou num bom colégio, como a maioria dos estu<strong>da</strong>ntes de medicina. Será<br />

que a justiça teria agido <strong>da</strong> mesma maneira? Será que na<strong>da</strong> teria acontecido? A família tinha<br />

direito à indenização. Eu digo isso no início <strong>da</strong> matéria. A USP alegou que a piscina do centro<br />

acadêmico não era parte <strong>da</strong> USP. A facul<strong>da</strong>de sequer se responsabilizou. Há quem diga que ele<br />

foi recolocado na piscina. A procuradora até hoje não se conforma com isso. Essa é um tipo de<br />

matéria que o Aliás faz. Como disse anteriormente, pega os cadáveres que foram deixados para<br />

trás e vê como estão as pessoas depois de tanto anos.<br />

Edvaldo Pereira Lima defende um jornalismo que vai muito além <strong>da</strong> informação, mas que<br />

transforma a vi<strong>da</strong> <strong>da</strong>s pessoas e <strong>da</strong> <strong>real</strong>i<strong>da</strong>de. Você acha que um texto, além de informar,<br />

pode transformar, fazer as pessoas terem uma nova consciência?<br />

— Isso é uma coisa que eu gostaria que acontecesse. Mas não sei se isso sempre acontece, se<br />

to<strong>da</strong> pessoa toca<strong>da</strong> pelo texto se esquece <strong>da</strong> história quando fecha o jornal? Uma amiga minha<br />

que trabalha com cinema me disse “Sempre pensei no cinema contando uma história e<br />

transformando a vi<strong>da</strong> <strong>da</strong>s pessoas. Depois me dou conta, saindo de uma sessão arrebatadora, que<br />

as pessoas vão lá comer uma pizza... Aquilo até as tocou, mas elas não lembram mais”. Eu me<br />

pergunto isso também. No caso do jovem morto na USP, não sei se, inconscientemente, eu dizia<br />

em algum lugar matéria que em algum lugar do Brasil tinha um médico, no seu consultório, que<br />

viu, ele participou, sabe o que aconteceu. Talvez, quando escrevi aquilo eu quisesse que essa<br />

pessoa lesse a matéria e dissesse: “Não, eu vou dizer que <strong>real</strong>mente o menino foi afogado,<br />

tiraram ele <strong>da</strong> água, quem jogou ele na água, mas isso nunca aconteceu. Por outro lado eu soube<br />

que a matéria chegou nas mãos do ministro Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal onde


está uma apelação do Ministério Público e a ação está tranca<strong>da</strong> até hoje. Soube que ele leu a<br />

matéria.<br />

Você disse que fez isso inconscientemente. Você acha válido o repórter fazer isso<br />

conscientemente?<br />

139<br />

— Eu acho que isso não cabe ao jornalista. Por isso disse que foi um pouco inconscientemente.<br />

Não cabe ao jornalista determinar isso. A ele cabe mostrar uma <strong>real</strong>i<strong>da</strong>de, e o conhecimento<br />

dessa <strong>real</strong>i<strong>da</strong>de pode ou não ser transformados, de acordo com as forças sociais. Pode ter havido<br />

reportagens que transformaram a consciências <strong>da</strong>s pessoas, mas eu acho que tocar as pessoas é<br />

uma missão do jornalismo. Você não quer que as pessoas leiam sua matéria? Você não quer só<br />

encher o leitor de informações. O leitor precisa ser seduzido pelo texto, ter prazer naquele<br />

momento. Não que a apuração dos fatos não seja importante, mas é essencial a questão de como<br />

se conta a história. Uma coisa que o Humberto Werneck dizia sempre que não gostava <strong>da</strong>s<br />

matérias de revistas e jornais que desidratavam a <strong>real</strong>i<strong>da</strong>de <strong>da</strong> emoção sob o pretexto de que só<br />

os fatos objetivos devam ser relatados. A <strong>real</strong>i<strong>da</strong>de está aí e ela tem sua carga de emoção. Para<br />

que desidratar a <strong>real</strong>i<strong>da</strong>de? O que não significa ir para o lado oposto, como diz João Cabral de<br />

Melo Neto: “Perfumar a flor”. Você não precisa expurgar a flor do jornalismo, mas não precisa<br />

dizer que a flor é perfuma<strong>da</strong>, ou seja, enfeitar o texto.<br />

O sociólogo francês Michel Maffesoli diz estar havendo atualmente um reencantamento do<br />

mundo, um novo olhar para o conhecimento ordinário, ou <strong>da</strong> praça pública, “uma mistura<br />

de rigor e poesia, de razão e paixão, de lógica e mitologia”. Há espaço no jornalismo atual<br />

para o não-racional, o mitólogico, o conhecimento comum?<br />

— Eu acho que isso está presente na vi<strong>da</strong> <strong>da</strong>s pessoas, nos fatos. A vi<strong>da</strong> é drama, é emoção. Ela<br />

é composta de sentimentos de vingança, de justiça. Isso é parte <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. Isso não é um<br />

subjetivismo a ser eliminado. Tudo o que é humano diz respeito ao jornalismo, sempre. Eu acho<br />

que essa dimensão tem que fazer parte. Embora a gente veja poucos espaços para o não racional.<br />

Talvez porque, por muito tempo, os jornais ficaram perplexos com a televisão e a internet e<br />

tentaram reproduzir a linguagem fragmenta<strong>da</strong> desses meios. Nos últimos tempos descobriu-se<br />

que isso foi um erro, pois o jornal pode <strong>da</strong>r o que a internet não consegue como a interpretação,<br />

o aprofun<strong>da</strong>mento <strong>da</strong> notícia. Dificilmente alguém ficaria diante de uma tela de computador<br />

lendo um texto de vinte mil caracteres, ou de dez mil como as matérias que escrevo para o Aliás.<br />

A pesquisadora Cremil<strong>da</strong> Medina defende a relação sujeito/sujeito e não sujeito/objeto<br />

entre o repórter e a personagem. O mesmo pensamento vemos no trabalho <strong>da</strong> jornalista<br />

Eliane Brum. O que você diria sobre isso?<br />

— Eu sinto que é necessário, sim, maior interação entre repórter e personagem. Se você quer<br />

<strong>da</strong>r profundi<strong>da</strong>de para sua matéria, quer compreender o drama do outro, você não pode chegar<br />

lá de uma maneira totalmente distancia<strong>da</strong>. Você não pode ignorar o outro, mas buscar uma<br />

empatia. Mas, você não pode se envolver tanto a ponto de perder as outras dimensões, o que<br />

está em torno dele. É preciso ter senso crítico e capaci<strong>da</strong>de de observação. Não sou partidário<br />

dessa relação fria, géli<strong>da</strong> e distancia<strong>da</strong> com a fonte. Mas não sou como a Brum que diz que<br />

chorou abraça<strong>da</strong> com a pessoa. Não censuro isso nela, pois ela é uma excelente jornalista. Seus<br />

textos são muito fortes, muito bonitos. Acho que não conseguiria chegar a esse ponto, pois isso<br />

é próprio dela, do estilo dela. Mas tento interagir, ouvir o que a pessoa tem a dizer. Fico<br />

comovido com as coisas. Não é que choro, mas me sinto tocado com o universo <strong>da</strong>s pessoas.<br />

Por exemplo, eu fiz uma matéria recentemente no Aliás sobre Bergson Gurjão Farias 7<br />

, morto<br />

7 O cearense Bergson Gurjão Farias era estu<strong>da</strong>nte de Química <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Federal do Ceará e vicepresidente<br />

do Diretório Central dos Estu<strong>da</strong>ntes (DCE), em 1967. No ano seguinte, mudou-se para<br />

Caianos, na região do Araguaia e desapareceu em 8 de maio de 1972, após ter sido ferido em combate.<br />

Seu corpo foi levado para Xambioá, todo deformado, tendo sido pendurado em uma árvore de cabeça


140<br />

por tropas do Exército na guerrilha do Araguaia em maio de 1972. Foi o primeiro morto na<br />

guerrilha do Araguaia, cuja ossa<strong>da</strong> só foi identifica<strong>da</strong> este ano. A ossa<strong>da</strong> foi devolvi<strong>da</strong> à família<br />

depois de trinta anos. Quando essa ossa<strong>da</strong> foi finalmente identifica<strong>da</strong>, depois de vários percalços<br />

na Justiça brasileira. Passaram-se muitos anos para Bérgson deixar de ser um desaparecido para<br />

ser um morto e poder ser enterrado. Então, fui a Fortaleza acompanhar o enterro que aconteceu<br />

trinta anos depois <strong>da</strong> morte. Fui ao encontro de uma mãe que esperou trinta anos pela volta do<br />

filho. Quando eu cheguei para fazer a entrevista com a mãe de Bergson, que tinha noventa anos,<br />

que não queria morrer sem ter visto Bergson voltar, sem poder enterrá-lo, eu cheguei na casa<br />

dela, já tinha falado com as irmãs dele, que foram muito receptivas, num primeiro momento a<br />

mãe estava muito cansa<strong>da</strong>. Tinha voltado do enterro depois de passar a noite inteira no velório.<br />

Teve político que discursou, estu<strong>da</strong>ntes do PC do B que discursaram, a família estava<br />

devassa<strong>da</strong>. Eu me lembro que cheguei na casa para falar com ela finalmente, ela estava<br />

dormindo, exausta, ela se levantou por volta <strong>da</strong>s 10h, nunca dormia até essa hora, ela saiu e<br />

disse que não queria falar. Aí os filhos começaram a dizer: “Mãe, esse jornalista é bacana, veio<br />

lá de São Paulo, vai ser bom etc., mas demorou muito tempo até eu estabelecer uma empatia<br />

com ela. Tive que esperar o tempo dela, não forçar para a entrevista acontecer. Dali a pouco,<br />

naturalmente, ela foi se achegando, sentou-se e me deu a entrevista. Se eu pensasse “estou aqui<br />

para fazer meu trabalho” sem me soli<strong>da</strong>rizar com ela acho que não teria conseguido fazer a<br />

entrevista como foi feita. Por isso não acho que o jornalista tem que ser neutro, frio, indiferente<br />

à <strong>real</strong>i<strong>da</strong>de, tudo “no preto e no branco”.<br />

Você foi compreensivo... Outra pergunta: Edvaldo Pereira Lima diz que o jornalista<br />

precisa ir a campo, mas depois fazer silêncio antes de redigir o texto. Dar tempo para o<br />

amadurecimento de tudo o que foi vivido. Você faz isso, ou o tempo curto não lhe permite?<br />

— Eu sinto necessi<strong>da</strong>de de decantar a história. Não consigo sentar e escrever, imediatamente.<br />

Até achava que era uma resistência ou falta de concentração chegar e fazer o trabalho. É preciso<br />

um tempo para a história maturar na sua cabeça para você encontrar o caminho para escrevê-la.<br />

Dentre vários textos que li de sua autoria, gostei muito <strong>da</strong> história <strong>da</strong> Beatriz, o texto<br />

Contamina<strong>da</strong> pela vi<strong>da</strong>. Você poderia contar como foi a produção dessa matéria?<br />

— A gente definiu a pauta depois que vimos uma pesquisa do Ministério <strong>da</strong> Saúde dizendo que<br />

os casos de AIDS tinham reduzido, a sobrevivência aumentado, mas numa certa faixa etária,<br />

acima dos cinqüenta, aumentou sensivelmente, principalmente em mulheres. Decidimos<br />

procurar uma mulher, idosa, portadora do HIV para escrevermos a matéria. Foi um pouco difícil<br />

encontrar. Mas um amigo meu que trabalhava num grupo de DST indicou a Beatriz, que já<br />

havia participado de alguns encontros. Aí eu fui para Porto Alegre numa quinta-feira, à tarde.<br />

Fui, fiz a entrevista na casa dela e voltei no mesmo dia. O prazo para eu terminar a matéria era<br />

sexta-feira à tarde. Eu me lembro que foi muito difícil. Foi uma <strong>da</strong>s matérias que eu levei mais<br />

tempo pra achar um caminho. Chegou um momento, eu me lembro, por volta <strong>da</strong>s seis <strong>da</strong> tarde,<br />

eu tinha que entregar o texto, estava meio em pane. Aí eu achei um caminho. Comecei a<br />

escrever e a coisa estava mais ou menos pronta. Aquele tempo que eu levei sofrendo, pensando,<br />

tentando achar uma maneira correta de escrever, sem banalizar a história, pois a Beatriz tem<br />

muita digni<strong>da</strong>de, fala de camisinha, sexo etc. Era uma história digna, de alguém que se<br />

apaixonou, casou-se com um homem para cui<strong>da</strong>r dela por causa <strong>da</strong> AIDS, mas que acaba sendo<br />

cui<strong>da</strong>do pela Beatriz, pois desenvolve um câncer e morre. Para mim aquele tempo com ela não<br />

foi em vão. Foi muito interessante. Eu cheguei num apartamento de classe média, com<br />

fotografias de netos, filhos, uma vovó que não tinha na<strong>da</strong> de maluca. Alguém que teve três<br />

homens na vi<strong>da</strong>: um que lhe deu um filho, outro que lhe deu o HIV e outro que lhe deu amor e<br />

que foi seu grande amor. Beatriz não era uma mulher promíscua, mas uma mulher tranqüila.<br />

para baixo. O desaparecimento do jovem guerrilheiro foi denunciado em juízo pelos presos políticos<br />

Genoino Neto e Dower Moraes Cavalcante. De acordo com os presos, Bergson teria sido morto a<br />

baioneta (www.opovo.com.br, acessado em 08/02/2010).


141<br />

Alguém que encontrou na doença uma maneira de colaborar. Continua <strong>da</strong>ndo palestras, mesmo<br />

depois <strong>da</strong> morte do marido. O casal, durante as palestras, se beijava na casa e tomavam água no<br />

mesmo copo para demonstrar que a AIDS não se transmite dessa maneira. Eu passei a tarde<br />

com ela. Me lembro que durante a entrevista ela colocou sobre a mesa muita coisa que utiliza<br />

nas palestras; espalhou camisinhas de diversas cores. E assim nasceu o texto, um dos que eu<br />

gostei mais de ter feito.<br />

Para finalizar, o que você acha deste intercâmbio entre a Academia e a Re<strong>da</strong>ção, a<br />

parceria entre pesquisa em jornalismo e produção de textos num grande jornal como o<br />

Estadão?<br />

— Não é por acaso que eu cursei Ciências Sociais, já pensei um dia em fazer mestrado. Acho<br />

muito importante essa dimensão, porque a Re<strong>da</strong>ção é um ambiente muito exigente, muito<br />

estressante, que à vezes não deixa muito espaço para a reflexão. A pior coisa para um<br />

trabalhador, seja ele quem for, especialmente quem trabalha com o jornalismo, é você não ter<br />

reflexão sobre seu trabalho, não ter tempo para refletir sobre o que você faz. Então, eu acho que<br />

tudo o que se produz sobre o jornalismo fora <strong>da</strong> Re<strong>da</strong>ção é essencial. Acho que deveria haver<br />

mais troca, mesmo, porque, como o jornal é lido não só pelo leitor, mas também pela crítica,<br />

pelos que fazem o pensamento sobre a comunicação. Por isso penso que as pesquisas em<br />

comunicação precisariam ser mais divulga<strong>da</strong>s. Às vezes, o jornalista pensa de uma maneira<br />

ortodoxa e precisa de alguém com uma idéia mais areja<strong>da</strong> para lhe dizer que você está errado.<br />

Por exemplo, uma história curiosa. Certa vez questionaram Gay Talese sobre o que ele fazia era<br />

jornalismo, afinal de contas “como você pode ter escrito que o fulano de tal disse tal coisa e<br />

pensou tal coisa. Você estava pensando o que quando disse isso?”. Claro que isso pode ser<br />

jornalismo. Depende de quem faz. Se faz bem feito, <strong>da</strong> maneira correta. Se você tiver um<br />

paradigma muito convencional nunca vai prestar atenção neste tipo de coisa. Se disse ou se<br />

calou. Só não há espaço para a ficção. Os instrumentos literários ou instrumentos de percepção<br />

do mundo podem aju<strong>da</strong>r. Até que ponto? Talvez seja uma questão para ser discuti<strong>da</strong> pelos<br />

pesquisadores. O que interessa para o leitor? O jornalista pode colocar suas impressões pessoais<br />

no texto? A subjetivi<strong>da</strong>de pode estar presente? É claro que o olhar de quem está lá determina<br />

como a <strong>real</strong>i<strong>da</strong>de vai ser escrita. Temos que tomar cui<strong>da</strong>do para não distorcemos a <strong>real</strong>i<strong>da</strong>de.<br />

Acho muito importante a integração entre Academia e Re<strong>da</strong>ção.


3. Entrevista: Fabiano Ormaneze 8<br />

142<br />

Fabiano Ormaneze é formado pela PUC de Campinas em 2004. Pós graduado em Jornalismo<br />

Literário. Trabalhou em assessoria de imprensa, jornal impresso e produção editorial de livros<br />

em editoras. Mesmo quando fazia assessoria de imprensa seu foco eram as histórias de vi<strong>da</strong>.<br />

Algo que desde a facul<strong>da</strong>de o interessou. Seu projeto de conclusão de curso foi um livroreportagem<br />

sobre histórias de vi<strong>da</strong>, Vi<strong>da</strong>s parti<strong>da</strong>s, histórias de mães que enfrentaram a morte<br />

dos filhos.<br />

Quando você começou a trabalhar no Correio Popular?<br />

— Estava na pós graduação. Recebi o convite para trabalhar no jornal. Comecei na coluna Um<br />

rosto na multidão. A coluna não tinha um titular, nem periodici<strong>da</strong>de. Hoje ela é publica<strong>da</strong> todos<br />

os sábados.<br />

E a empresa?<br />

— A Rede Anhanguera de Comunicação publica em Campinas os jornais Correio Popular,<br />

Diário do povo, Notícias Já, a Gazeta do Cambuí. Também o site Cosmos on-line. Também<br />

possui a Gazeta de Ribeirão Preto e a Gazeta de Piracicaba. Minhas matérias são quase to<strong>da</strong>s<br />

para o Correio, sobretudo as matérias especiais publica<strong>da</strong>s aos sábados e domingos. O jornal<br />

circula em Campinas e nas dezenove ci<strong>da</strong>des <strong>da</strong> região metropolitana.<br />

Que espaço tem hoje o Jornalismo Literário e as histórias de vi<strong>da</strong> em jornais impressos?<br />

— Eu nunca tive problemas por escrever textos um pouco diferentes. Aliás, esse estilo é minha<br />

marca. No Correio já se sabe que meu estilo é esse. Não sofri nenhuma represaria por escrever<br />

no estilo Jornalismo Literário. Mas percebo que o estilo não é o que chama mais a atenção dos<br />

leitores, e sim as histórias de vi<strong>da</strong> que conto. Talvez o estilo ajude, atraia, mas são os<br />

personagens quem cativam. Quanto mais ousado é o texto, mais tenho retorno dos leitores.<br />

Qual a proposta <strong>da</strong> coluna Um rosto na multidão?<br />

— A proposta não é falar de celebri<strong>da</strong>des, de gente conheci<strong>da</strong>, mas de pessoas anônimas que<br />

fazem uma coisa diferente ou que tenha uma história de vi<strong>da</strong> pitoresca, que chame a atenção, ou<br />

que tenha um trabalho de doação <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, que sirva de exemplo para a socie<strong>da</strong>de. Essas histórias<br />

chamam a atenção dos leitores porque geram uma identificação. “É alguém anônimo como eu”,<br />

“alguém que eu conheço”, “que mora no meu bairro”. Outro aspecto: são histórias “boas” num<br />

jornal que traz notícias “ruins”, como todo jornal, apenar de o Correio não ser sensacionalista,<br />

voltado para o público A e B. As histórias de vi<strong>da</strong> são como um momento de alívio para quem<br />

acabou de ler um fato violento que aconteceu na ci<strong>da</strong>de ou na região. O jornal muitas vezes é<br />

árido e um texto mais suave aju<strong>da</strong> o leitor a compreender melhor as coisas. Por exemplo: você<br />

lê uma matéria falando <strong>da</strong> fome e de repente se depara com um texto diferente, mostrando que<br />

existem pessoas lutando para matar a fome de outras. Isso mostra que a vi<strong>da</strong> social não é só<br />

tragédia. Nós precisamos de exemplos para seguir. As histórias de vi<strong>da</strong> alimentam a esperança<br />

<strong>da</strong>s pessoas.<br />

Quais são suas fontes para a descoberta de personagens?<br />

8 Trabalha no jornal Correio Popular. Jornalista, pós-graduado em Jornalismo Literário, escreve aos<br />

sábados histórias de vi<strong>da</strong> na coluna “Um rosto na multidão”.


143<br />

— As formas como essas pessoas chegam são as mais varia<strong>da</strong>s possível. Você tem desde um<br />

telefonema na re<strong>da</strong>ção, sugerindo uma história. A própria periodici<strong>da</strong>de <strong>da</strong> coluna Um rosto a<br />

multidão me aju<strong>da</strong> a encontrar mais personagens. Outras pessoas ligam na re<strong>da</strong>ção para <strong>da</strong>r<br />

alguma informação e aí a gente descobri que por detrás <strong>da</strong>quele fato existe um ser humano.<br />

Exemplo: alguém liga dizendo que vai acontecer uma grande ceia para moradores de rua. Você<br />

começa a investigar e descobre que há uma pessoa organiza<strong>da</strong> essa ceia, que sua história de vi<strong>da</strong><br />

é muito mais legal que o próprio evento em si. Isso acontece muito perto <strong>da</strong>s <strong>da</strong>tas<br />

comemorativas, como o Natal. Outra fonte é o próprio olhar do repórter. Às vezes você está em<br />

algum lugar e observa alguma coisa que lhe chama a atenção, uma pessoa, um acontecimento.<br />

Esse é o início talvez de uma boa história de vi<strong>da</strong>.<br />

A Eliane Brum faz muito bem isso.<br />

— Exatamente.<br />

Depois que você tem o personagem e a história, como você faz o trabalho de campo?<br />

— Em 98% dos casos eu faço as matérias pessoalmente. Por telefone é em último caso mesmo.<br />

Eu vou ao encontro <strong>da</strong> pessoa. Por e-mail, não faço.<br />

E seu relacionamento com o personagem. Como é?<br />

— Acho fun<strong>da</strong>mental ir ao lugar onde está a pessoa. Você indo ao lugar, você recebe tantas<br />

informações sobre a pessoa que por telefone você não consegue e por e-mail menos ain<strong>da</strong>.<br />

Porque o lugar em que a pessoa vive fala sobre ela. As coisas que ela possui, as pessoas ao seu<br />

redor, falam sobre ela. Você chega num lugar e procura pela pessoa e todo mundo a conhece, já<br />

demonstra que ela e popular. É preciso ouvir também as pessoas que convivem com o<br />

personagem de sua matéria. O relacionamento repórter personagem precisa ser entre o Eu e o<br />

Tu. Recentemente, fui fazer uma matéria com um casal que estava completando 80 anos de<br />

casamento. Aí eu fui até a casa deles, os dois estavam sentados, eu cheguei. Colocaram uma<br />

cadeira para eu sentar e estava longe deles. Decidi sair <strong>da</strong> cadeira e me sentei no chão para<br />

conversar com eles. Foi até engraçado, pois tenho metade <strong>da</strong> metade <strong>da</strong> i<strong>da</strong>de deles, quando<br />

terminei, aquela senhora entendeu-me as mãos e me disse: “Você quer que eu te ajude a se<br />

levantar?” Ela se aproximou de mim. Criei uma empatia com ela.<br />

Você percebe que seus textos levam as pessoas a terem uma nova visão <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, <strong>da</strong><br />

socie<strong>da</strong>de e do mundo?<br />

— Sim. As histórias de vi<strong>da</strong> podem transformar a vi<strong>da</strong> <strong>da</strong>s pessoas. Por exemplo: uma vez eu<br />

fiz uma matéria sobre a dificul<strong>da</strong>de que era <strong>da</strong>s crianças com alguma deficiência terem acesso a<br />

brinquedos. É uma coisa muito difícil para uma criança cega, por exemplo, encontrar um<br />

brinquedo apropriado para ela. Fiz uma matéria sobre isso. Dois dias depois recebi um e-mail de<br />

uma pessoa que estava abrindo uma loja de brinquedos em Campinas e que, motivado pela<br />

matéria, decidiu abrir um pe<strong>da</strong>ço <strong>da</strong> sua loja com brinquedos para crianças portadoras de<br />

deficiência, cegas, sur<strong>da</strong>s, mu<strong>da</strong>s, paralíticas etc. Nesse sentido eu penso que contar a história<br />

<strong>da</strong> criança que não tem brinquedo, não por que não tem dinheiro, mas por não ter acesso, por<br />

que não pensaram nela quando foram fabricar os brinquedos, provoca uma transformação. Acho<br />

que, se existe um jornalismo que transforma, esse jornalismo é o que conta boas histórias de<br />

vi<strong>da</strong>. Procuro contar histórias que trazem bons exemplos para as pessoas, que possam servir de<br />

transformação. Mas não fico preocupado se transformou ou não. Eu planto as sementes.<br />

Você utiliza a Jorna<strong>da</strong> do Herói de Campbell na construção de suas histórias de vi<strong>da</strong>?


144<br />

— A jorna<strong>da</strong> do Herói é uma estratégia extremamente váli<strong>da</strong> para se escrever histórias de vi<strong>da</strong>.<br />

Eu não sei se nos meus textos dá para você perceber ou identificar to<strong>da</strong>s as etapas <strong>da</strong> jorna<strong>da</strong>. A<br />

jorna<strong>da</strong> é algo que tenho na cabeça. Quando a história de vi<strong>da</strong> é de superação, de doação ao<br />

próximo, para mim está muito clara na entrevista a necessi<strong>da</strong>de de investigar as etapas <strong>da</strong><br />

jorna<strong>da</strong>. Para mim esse esquema é muito claro. Mas, não necessariamente eu preciso utilizar a<br />

Jorna<strong>da</strong> do Herói. Para certas histórias a jorna<strong>da</strong> é muito interessante. Se a pessoa passou por<br />

um sofrimento e venceu, a Jorna<strong>da</strong> do Herói é perfeita. Como disse, na entrevista utilizo a<br />

jorna<strong>da</strong>. Na re<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> história não me preocupo em seguir to<strong>da</strong>s as etapas que a Jorna<strong>da</strong> do<br />

Herói propõe. Eu gosto de deixar o texto fluir.<br />

E as metáforas?<br />

— Eu uso metáforas. Mas não posso criar uma metáfora que o meu leitor precise ficar<br />

pensando. Por outro lado, a metáfora não pode ser um clichê, aquela coisa desgasta<strong>da</strong>. Muitas<br />

vezes a metáfora está nas próprias palavras do personagem. Esses elementos vão aparecer na<br />

história naturalmente.<br />

Dimas Kunsch e nosso grupo de pesquisa na <strong>Cásper</strong> Líbero propomos uma narrativa<br />

complexo-compreensiva. Uma narrativa que une, tece e entretece, que informa, mas<br />

transforma as pessoas, faz compreender e leva as pessoas a serem compreensivas. Você<br />

acha que o jornalista pode compreender melhor a <strong>real</strong>i<strong>da</strong>de e ser mais compreensivo a<br />

partir de suas experiências no cotidiano?<br />

— O jornalismo narrativo leva o jornalista a fazer imersão. Sempre vai haver um triângulo no<br />

trabalho: o repórter, o personagem e o leitor. Nesse triângulo geralmente acontece uma coisa<br />

interessante que é a identificação. Eu, como repórter, vou me identificar com aquela história,<br />

pois o personagem é um ser humano como eu, que passou ou passa por dificul<strong>da</strong>des.<br />

Obviamente o leitor vai se identificar com a história do personagem. Nesse triângulo acontece a<br />

transformação. Todos nós, repórter, personagem e leitor, somos tocados de alguma maneira.<br />

Passamos a ter mais respeito pelas diferenças, a ser mais humanos e mais compreensivos.


4. História de vi<strong>da</strong> publica<strong>da</strong> pelo jornal O Estado de S. Paulo 9<br />

Contamina<strong>da</strong> pela vi<strong>da</strong> 10<br />

Aos 60 anos e portadora do HIV, esta avó trabalha pela prevenção <strong>da</strong> AIDS na<br />

terceira i<strong>da</strong>de<br />

145<br />

SÃO PAULO - Beatriz, 60 anos, teve três homens na vi<strong>da</strong>. O primeiro deu a ela quatro<br />

filhos. O segundo contaminou-a com o vírus HIV. O terceiro foi seu único e ver<strong>da</strong>deiro amor.<br />

Gaúcha de Porto Alegre, ela nunca usou drogas nem foi infiel a nenhum de seus maridos.<br />

Entretanto, o perfil "careta", como ela própria define - tão distinto do que se costumava chamar<br />

"grupo de risco" <strong>da</strong> síndrome <strong>da</strong> imunodeficiência adquiri<strong>da</strong> nos anos 80, quando a doença foi<br />

populariza<strong>da</strong> no Brasil pela voz aterrorizante de Hélio Costa no Fantástico - não a salvou <strong>da</strong>s<br />

estatísticas <strong>da</strong> Aids.<br />

A história de vi<strong>da</strong> de Beatriz cabe no <strong>da</strong>do mais alarmante de um estudo divulgado essa semana<br />

pelo Programa Nacional de DST e Aids do Ministério <strong>da</strong> Saúde. Entre 1996 e 2006, a incidência<br />

<strong>da</strong> doença entre maiores de 50 anos mais que dobrou no País, passando de 7,5 para 15,7 casos<br />

por 100 mil habitantes. Cerca de 70% dos pacientes são do sexo masculino e 75%, casados, que<br />

freqüentemente acabam por contaminar suas mulheres - uma vez que, por questão de hábito<br />

geracional, menos de 20% dos brasileiros nessa faixa etária usam preservativo.<br />

Educa<strong>da</strong> nos rígidos padrões gaúchos, Beatriz emancipou-se como pessoa e como<br />

mulher a partir de encontros, decepções e tragédias entre as quais a Aids não seria a pior - e,<br />

bem ao contrário, estaria presente quando a vi<strong>da</strong> lhe proporcionou uma experiência única e<br />

madura com o amor. Além disso, seria a doença também a conferir sentido existencial e<br />

profissional à advoga<strong>da</strong> de hoje, defensora intransigente e bem-humora<strong>da</strong> do "direito ao amor<br />

<strong>da</strong> pessoa com Aids", como diz. Missão a que dedica quase tanto tempo e carinho quanto a seus<br />

três netos, Bibiana, de 12 anos, Bruna, 9, e Bernardo, 4.<br />

Maria Beatriz Dreyer Pacheco, a Neca no apelido de família, estudou em colégio de<br />

freira e casou-se virgem no final <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 50 com um rapaz vizinho de porta <strong>da</strong> família,<br />

escolhido por seu pai. "Eu tinha 19 anos", lembra-se, "e achava estranho o fato de que não se<br />

podia nem pegar na mão antes de assinar o papel. Depois, tudo ficava permitido." O tudo, no<br />

caso, não era lá grande coisa. Mas logo vieram os filhos, com suas alegrias, a diluir aquela vi<strong>da</strong><br />

"insípi<strong>da</strong>, inodora e incolor", como definiria anos mais tarde. Certa noite, pouco antes <strong>da</strong>s bo<strong>da</strong>s<br />

de prata do casal, o marido, gerente <strong>da</strong> Caixa Econômica Federal, confessou estar diversificando<br />

sua carteira de investimentos: no caso, em uma moça 15 anos mais nova.<br />

Mulher de família, mas com a faca na bota, Beatriz pôs o marido para correr no meio <strong>da</strong><br />

madruga<strong>da</strong>. Recusou pensão alimentícia e pediu apenas que os bens do casal fossem para o<br />

nome dos filhos. Mas os tempos que vieram foram difíceis. "Eu era muito dependente", conta.<br />

"Fui cria<strong>da</strong> de uma maneira que me fazia pensar que não seria na<strong>da</strong> sem o casamento."<br />

Desespera<strong>da</strong>, chegou a tentar o suicídio. Mas decidiu recompor a vi<strong>da</strong>, a começar pelas<br />

9 Esta e as duas histórias de vi<strong>da</strong> seguintes, respectivamente dos jornais Correio Popular e Gazeta do<br />

Cambuí, foram eleitas para uma análise em profundi<strong>da</strong>de (pp. 85-101), tendo em conta os cinco<br />

princípios estabelecidos pelo autor para essa análise: personagem, imersão, diálogo dos afetos,<br />

<strong>compreensão</strong> e transformação.<br />

10 O Estado de S. Paulo, caderno Aliás, 30 de novembro de 2008, p. J8.


146<br />

finanças. Foi quando conheceu, em 1991, aquele que viria a ser seu segundo marido. Outro<br />

gerente, dessa vez do Banco do Brasil.<br />

"Ele me chamou e fez uma proposta bem de bancário: não era casamento, mas parceria.<br />

Tinha sido alcoólatra e sofria de cirrose hepática. Propôs aju<strong>da</strong>r a mim e a meus filhos se eu<br />

cui<strong>da</strong>sse dele." O contrato virou um relacionamento de afeto e respeito mútuos, que durou dois<br />

anos e meio, até a morte do parceiro por complicações de saúde. Com os filhos criados e aos 42<br />

anos de i<strong>da</strong>de, Beatriz decidiu que não havia mais lugar para homens em sua vi<strong>da</strong>.<br />

Isso até encontrar Carlos Antônio Aleixo, "o único de quem você pode publicar o nome,<br />

porque foi quem eu amei de ver<strong>da</strong>de", em março de 1996, na sala de espera do Tribunal do<br />

Trabalho, em Porto Alegre. Ele era auditor fiscal, também tinha filhos e estava recém-separado.<br />

Simpatizaram um com o outro e, no meio <strong>da</strong> conversa, deram-se conta de que já tinham se<br />

conhecido, 30 anos atrás. "Você não é a Neca?", perguntou Carlos, que estivera na casa dos<br />

Pachecos quando era apenas um garoto de 14 anos e ela tinha 18. "Na hora, não me dei conta.<br />

Mas quando ele me telefonou, convi<strong>da</strong>ndo para jantar, ouvi sua voz e senti um frio na barriga.<br />

Aí me dei conta de que estava gostando dele." O jantar foi no sábado. Segun<strong>da</strong>-feira, os dois já<br />

estavam morando juntos.<br />

O ano que se seguiu foi maravilhoso para Beatriz e Carlos. "Vivi a sexuali<strong>da</strong>de mais<br />

rica <strong>da</strong> minha vi<strong>da</strong> entre os 50 e os 60 anos", conta ela. "Nossos filhos notavam quanto éramos<br />

felizes e nos chamavam de “envelhecentes", ri.<br />

Foi em 1997 que ela começou a apresentar os sintomas. Uma infecção de pele<br />

persistente intrigou os médicos, até que um deles pediu a Beatriz, "só por segurança", que<br />

fizesse um exame de HIV. "Tive um acesso de riso, porque àquela época eu também associava a<br />

Aids à conduta moral <strong>da</strong>s pessoas." No dia de buscar o exame, chegou a brincar com os colegas<br />

antes de ir ao laboratório: "Vou lá buscar meu diagnóstico de Aids".<br />

Beatriz abriu o envelope na rua, a caminho de casa. "Quando li “reagente”, primeiro<br />

interpretei que fosse bom sinal, de que minha saúde estava reagindo, veja só. Aí dei dois passos<br />

e estanquei. Era um dia de sol como hoje, mas tive a níti<strong>da</strong> sensação de que havia uma nuvem<br />

negra na minha cabeça." Como na maioria dos casos, é difícil determinar quando e como a<br />

infecção se deu exatamente. Beatriz acha que ela ocorreu devido às constantes transfusões de<br />

sangue feitas por seu segundo marido entre 1991 e 1992. "Ele não tinha nem saúde para me<br />

trair", acredita. "Fui infecta<strong>da</strong> por causa de relação sexual desprotegi<strong>da</strong>. Ponto."<br />

A primeira reação de Carlos foi de fúria. Gritou que a culpa era dela, que ele era filho<br />

único, iria morrer e deixar sua mãe desampara<strong>da</strong>. De repente, empalideceu e desabou. Ela teve<br />

que chamar uma ambulância. "Tinha certeza de que seria abandona<strong>da</strong>", relembra. Mais calmo,<br />

Carlos disse que a amava, que os dois juntos fariam do limão limona<strong>da</strong> e enfrentariam o<br />

problema sem medo.<br />

A primeira infectologista consulta<strong>da</strong> por Beatriz deu-lhe 18 meses de vi<strong>da</strong>. Pergunta<strong>da</strong><br />

sobre qual deveria ser a conduta do casal <strong>da</strong>li para frente - se podiam se tocar, se beijar, se era<br />

preciso separar as louças - a doutora limitou-se a dizer: "Sabe-se muito pouco sobre a Aids até<br />

hoje". Carlos submeteu-se ao exame, que, à época, levava quase 20 dias para ficar pronto. Deu<br />

negativo. Repetiu os testes 90 dias depois, com igual resultado: apesar de um ano de vi<strong>da</strong> sexual<br />

freqüente, ele não estava infectado. Os dois eram um caso raro de casal sorodivergente. Carlos<br />

pediu desculpas a Beatriz e chorou de vergonha por tê-la acusado.<br />

Os filhos começaram a se despedir dela. Uma ocasião os quatro repetiram com a mãe o<br />

passeio preferido de infância: foram ao circo juntos e comeram algodão-doce. Natal e<br />

aniversários foram celebrados como se fossem os últimos. O casal também enfrentou o drama<br />

junto. Nos primeiros quatro meses, Beatriz e Carlos tiveram que pagar o tratamento do bolso.<br />

"Gastávamos US$ 2 mil por mês em medicamentos", conta ela, que precisou se endivi<strong>da</strong>r e teve<br />

um automóvel tomado pelo oficial de Justiça. Quando o coquetel antiaids foi descoberto e o<br />

Ministério <strong>da</strong> Saúde passou a fornecê-lo gratuitamente pelo Sistema Único de Saúde, a situação<br />

melhorou.<br />

Os dois tiveram que redescobrir a vi<strong>da</strong> sexual e aprender a usar camisinha. Também<br />

começaram um trabalho de militância contra o preconceito e pelo amor nos tempos de HIV.<br />

Beatriz fundou o Movimento Nacional <strong>da</strong>s Ci<strong>da</strong>dãs Posithivas, de prevenção e apoio aos<br />

infectados. Já em 1999, ela publicou no jornal do Gapa, Grupo de Apoio à Prevenção <strong>da</strong> Aids,


147<br />

um artigo intitulado Nós, as HIVéias, que tocava no tema tabu <strong>da</strong> infecção de mulheres de meiai<strong>da</strong>de<br />

casa<strong>da</strong>s. Dispensar a camisinha nas relações estáveis? Fazendo o exame antes, tudo bem,<br />

ensinava Beatriz, contanto que a proteção seja regra nas relações extraconjugais: "Se pular a<br />

cerca, traz a guampa (chifre, no dialeto gauchês) sem o HIV pendurado nela". Para mostrar que<br />

o contágio <strong>da</strong> Aids não se dá senão por via sexual ou transfusão de sangue, os dois faziam<br />

palestras durante as quais bebiam água do mesmo copo e eram invariavelmente encerra<strong>da</strong>s por<br />

um apaixonado beijo na boca.<br />

Tudo estava bem e o amor era mais forte do que a morte. A pior tragédia para Beatriz<br />

Pacheco, no entanto, ain<strong>da</strong> estava por vir. Em 2005, dirigindo para o trabalho, Carlos sentiu<br />

uma intensa dor abdominal. Tabagista inveterado havia déca<strong>da</strong>s, teve diagnosticado um câncer<br />

de bexiga, em fase de metástase. "Ele sentiu muita revolta, não aceitava que nosso sonho não<br />

existiria e que ele estava morrendo", conta Beatriz, que teve mais dificul<strong>da</strong>de de se conformar<br />

com o diagnóstico do marido do que com o seu: "Havia um acordo informal entre nós de que eu<br />

morreria nos braços dele".<br />

A agonia durou dez meses e Carlos definhou lentamente. Uma ocasião, disse a ela: "Ter<br />

Aids é fácil". Seu olhar era de raiva e desesperança. Já na UTI, fez um pedido a uma de suas<br />

filhas: "Diga à Neca para ela não sair <strong>da</strong>qui porque a morte tem medo dela". Após outra noite ao<br />

lado do amado no hospital, Beatriz saiu para tomar um banho e trocar de roupa. Foi o tempo de<br />

chegar em casa e o telefone tocar: Carlos tinha ido. Neca não estava, e a morte chegou.<br />

O homem que enfrentava qualquer desafio e sempre sabia ver o lado bom <strong>da</strong>s coisas não<br />

estava mais ali. Mais uma vez, Beatriz sofreu, mas não perdeu a alegria de viver: "Muita gente<br />

nem sequer teve um grande amor na vi<strong>da</strong>".


5. História de vi<strong>da</strong> publica<strong>da</strong> pelo jornal Correio Popular<br />

Casamento muito especial em Socorro 11<br />

148<br />

O que se viu na última quinta-feira, na Igreja Matriz de Socorro (a 104 quilômetros de<br />

Campinas), foi uma cena para cerimonial nenhum colocar defeito. Maria Gabriela Demate, de<br />

28 anos, como to<strong>da</strong> noiva, chegou um pouquinho atrasa<strong>da</strong>, cerca de dez minutos, e já era<br />

espera<strong>da</strong>, com ansie<strong>da</strong>de, pelo noivo, Fábio Marchetti de Moraes, de 29 anos. A <strong>da</strong>ta também<br />

não foi escolhi<strong>da</strong> por acaso: fazia um ano que Valentina, a filha do casal, nascera. Falando<br />

assim pode parecer uma história comum, com uma coincidência de <strong>da</strong>tas. E <strong>real</strong>mente seria, se o<br />

casal não tivesse ficado conhecido desde a gestação <strong>da</strong> garotinha.<br />

Maria Gabriela tem síndrome de Down e Fábio possui um pequeno atraso mental por causa<br />

de um problema na hora do parto. Em 19 de março do ano passado, Valentina nasceu sem<br />

nenhuma deficiência. A gravidez de mulheres com síndrome de Down é um fato raro: apesar de<br />

elas terem os órgãos reprodutivos bem formados, a taxa de fertili<strong>da</strong>de é menor, além de ser<br />

grande o risco de um aborto natural. A estimativa é de que haja, no mundo todo, pouco mais de<br />

50 filhos de mães com Down.<br />

Quando Valentina nasceu, na Materni<strong>da</strong>de de Campinas, começou um impasse que só foi<br />

solucionado três meses depois na Justiça. A menina teve o registro de nascimento negado, sob a<br />

alegação de que Fábio não teria o discernimento necessário para declarar, por si só, ser o pai,<br />

como prevê a legislação brasileira. A única saí<strong>da</strong> seria registrá-la como filha de pai não<br />

declarado, o que ficou fora de cogitação pela família. Chegou-se a falar, inclusive, que seria<br />

necessário um exame de DNA, o que acabou não sendo necessário. A autorização para o<br />

registro foi concedi<strong>da</strong> depois que Fábio foi ouvido por uma juíza. A garotinha, que começa a <strong>da</strong>r<br />

os primeiros passos, teve uma participação especial no casamento: no colo <strong>da</strong> avó e mãe <strong>da</strong><br />

noiva, Laurin<strong>da</strong>, ela levou as alianças para o casal.<br />

Sonho<br />

Maria Gabriela sonhava com o casamento fazia tempo. Nos últimos anos, era comum<br />

encontrá-la na Praça Matriz de Socorro observando as noivas saírem <strong>da</strong> igreja. Depois do<br />

nascimento de Gabriela, ela passou a pressionar Fábio, a família e até o padre para que o<br />

casamento fosse <strong>real</strong>izado. “Ela dizia que eu estava enrolando”, contou o sacerdote Juzemildo<br />

Albino <strong>da</strong> Silva na cerimônia.<br />

Noiva exigente, que dizia que queria “tudo como se fosse uma princesa”, Maria Gabriela<br />

fez questão de ter viagem de lua de mel. O casal partiu ontem à tarde para um hotel-fazen<strong>da</strong> em<br />

Águas de Lindóia (a 102 quilômetros de Campinas), onde ficará até amanhã. Enquanto isso,<br />

dona Laurin<strong>da</strong> vai cui<strong>da</strong>r de Valentina. “O casamento foi lindo, como nós todos sonhávamos.<br />

Foi o final feliz esperado para esta história”, disse a mãe <strong>da</strong> noiva.<br />

O romance de Fábio e Maria Gabriela começou na infância, quando os dois já trocavam<br />

presentes na Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae). O namoro sério teve início<br />

em 2005. “Foi tudo do jeito que eu sempre sonhei”, disse a noiva.<br />

11 Correio Popular, caderno Ci<strong>da</strong>des, 21 de março de 2009, p. A12.


6. História de vi<strong>da</strong> publica<strong>da</strong> pelo jornal Gazeta do Cambuí<br />

Que nem José 12<br />

149<br />

O nome não é de santo, mas o sobrenome sim: Antonio, o casamenteiro. Se bem que a<br />

profissão de Ilson está liga<strong>da</strong> a outra santi<strong>da</strong>de, José. Tal como o carpinteiro de Nazaré, na<br />

Galileia, o de Campinas dedica sua vi<strong>da</strong>, desde a época de meninote, ao ofício com a madeira.<br />

Serra, lixa e enverniza. Na rotina de trabalho em construções, sejam elas de casas, prédios,<br />

escolas e até de igrejas, Ilson tem como fiéis escudeiros ferramentas de ontem, pouco utiliza<strong>da</strong>s<br />

hoje, como serrote e uma plaina manual. Ele as mantém por um único motivo: pertenciam ao<br />

seu pai, Felício Verginelli, que morou seus 93 anos no Cambuí e fez fama como um dos<br />

melhores carpinteiros <strong>da</strong>s redondezas. O pai já morreu, mas o filho ain<strong>da</strong> continua no ofício que,<br />

na próxima quinta (19), dia de São José, recebeu uma <strong>da</strong>ta especial de comemoração.<br />

Na família Verginelli são sete carpinteiros. O estreante na profissão foi o próprio<br />

Felício. Ao invés de seguir a profissão do pai, um italiano que resolveu se firmar no Brasil como<br />

boiadeiro, o menino caiu numa carpintaria. Tinha apenas 12 anos. Aprendeu o ofício com<br />

Lombello, um profissional respeitado na época, morador do Cambuí, mas com oficina no<br />

Parque Industrial. Levou seus dois irmãos para o trabalho: Domingos e Geraldo. Ao lado do<br />

velho mestre, Felício atuou numa grande obra: a construção do telhado <strong>da</strong> Igreja Nossa Senhora<br />

<strong>da</strong>s Dores, <strong>da</strong> Maria Monteiro. Era uma de suas prediletas: "Ele sempre contava que descia <strong>da</strong><br />

altura do teto amarrado por cor<strong>da</strong>s", lembra Ilson, com a plaina manual do pai nas mãos. "Esta<br />

deve ter mais de cem anos. Serve para <strong>da</strong>r forma arredon<strong>da</strong><strong>da</strong> à madeira".<br />

Com o passar dos anos e <strong>da</strong>s construções, o jovem aprendiz foi se tornando mestre.<br />

Sempre amparado por São José, seu santo de devoção (até hoje há uma imagem exposta num<br />

oratório na porta <strong>da</strong> casa <strong>da</strong> família Verginelli, no Cambuí). Na falta de auxiliares, já que não<br />

gostava muito de empregados, o velho carpinteiro trouxe os filhos para li<strong>da</strong>r com a madeira:<br />

Felício (já falecido), Izaldo, Ilson e Paulo. "Apenas eu e o Izaldo que demos continui<strong>da</strong>de na<br />

profissão", frisa.<br />

Felício trabalhou até os 80 anos. "Ele nos acompanhava na obra ou, quando<br />

comentávamos de algum serviço, sempre queria nos ensinar a fazer". Só parou quando a vista<br />

começou a enfraquecer. Lúcido e elétrico, o velho carpinteiro revelava apenas para os filhos o<br />

segredo do sucesso <strong>da</strong> profissão de São José: inteligência para executar o madeiramento;<br />

agili<strong>da</strong>de para an<strong>da</strong>r em cima dos telhados, e força, "tem que conseguir carregar as madeiras,<br />

né?".<br />

Mesmo aposentado, Ilson não desgrudou <strong>da</strong>s madeiras. Continua a tirar o pão de ca<strong>da</strong><br />

dia em obras. Ao contrário do pai, não quis levar o herdeiro para o seu ofício. Rafael foi para a<br />

área de exatas: fez matemática computacional, tirou a licenciatura para <strong>da</strong>r aulas, mas hoje é<br />

funcionário <strong>da</strong> Petrobras. "Ele nunca pisou numa obra. Nunca teve interesse", conta Ilson, que<br />

na juventude tentou prestar engenharia civil, mas não levou a ideia adiante. A carpintaria, gosta<br />

de afirmar, não é uma profissão fácil de se levar: "Judia muito <strong>da</strong> pessoa", reconhece. Por isso,<br />

não há carpinteiro que se preze sem nenhuma marca de corte ou sem protagonizar um tombo<br />

<strong>da</strong>queles. "Meu pai, mesmo, caiu de uma altura de quase cinco metros. Ficou mais de um ano<br />

sem an<strong>da</strong>r". Apesar dos contras, Ilson não troca a carpintaria por na<strong>da</strong>. Gosta dos desafios que a<br />

profissão proporciona. "Sempre faço coisas diferentes, porque nenhum telhado é igual ao<br />

outro".<br />

12 Gazeta do Cambuí, 13 de março de 2009, p. 7.


Carpinteiro x marceneiro<br />

150<br />

Para muitos, as profissões de carpinteiro e marceneiro são idênticas. Mas não: há muitas<br />

diferenças entre esses dois profissionais. A principal delas está na maneira de trabalhar a<br />

madeira. Enquanto o primeiro atua na confecção de coberturas, esca<strong>da</strong>s, assoalhos e forros; o<br />

segundo dedica seu tempo a entalhar peças e construir objetos, como peças decorativas e até<br />

móveis. Geralmente, o carpinteiro é encontrado num canteiro de obras e serviços (sua atuação<br />

requer mais esforço físico), já o marceneiro, fica na banca<strong>da</strong> de sua oficina, uma vez que seu<br />

trabalho é mais delicado e pede muita paciência. Sem dúvi<strong>da</strong>, o ofício <strong>da</strong> carpintaria pode ser<br />

considerado como um dos mais antigos do homem. Antigamente, era dividido em quatro áreas<br />

de atuação: naval, militar, civil e industrial. Não é à toa que o profissional desta área precisa ter<br />

noções de geometria e boa habili<strong>da</strong>de para li<strong>da</strong>r com a madeira maciça.<br />

Dia de São José<br />

A origem do Dia do Carpinteiro está liga<strong>da</strong> às comemorações de São José, pai de Jesus<br />

Cristo. Na ver<strong>da</strong>de, o culto no dia 19 de março ao santo foi oficializado pelo papa Pio IX em<br />

1870, <strong>da</strong>ta em que o religioso proclamou o esposo de Maria como o patrono universal <strong>da</strong> Igreja.<br />

Além de ser o padroeiro dos profissionais <strong>da</strong> carpintaria, o santo, tido como um dos mais<br />

populares entre os seguidores do catolicismo, é também patrono dos trabalhadores, dos pais, <strong>da</strong>s<br />

famílias, <strong>da</strong> boa morte e <strong>da</strong> justiça social. Foi ele o responsável por passar as artimanhas <strong>da</strong><br />

profissão com a madeira ao Messias. Antes de começar sua pregação, o próprio Cristo atuou ao<br />

lado do pai: "Não é este o carpinteiro, filho de Maria, e irmão de Tiago, e de José, e de Ju<strong>da</strong>s e<br />

de Simão?..." (Marcos 6:3). Na Paróquia São José, na Vila Industrial, há uma programação de<br />

celebrações e festivi<strong>da</strong>des dedica<strong>da</strong>s ao santo.


7. Simplesmente Mulata 13<br />

Domingos<br />

151<br />

O domingo era o único dia de descanso para Domingos. Ele passava a semana inteira<br />

pulando cedo <strong>da</strong> cama: cinco <strong>da</strong> manhã. Ia ao pasto, colocava o cabresto no seu burro e<br />

colocava-o na carroça. Passava o dia do canavial para o engenho e do engenho para o canavial.<br />

Transportava cana-de-açúcar que os empregados de seu pai, Marcelino, cortavam para a<br />

fabricação de aguardente e açúcar mascavo. No fim <strong>da</strong> tarde, ia para a ci<strong>da</strong>de, Santa Rosa de<br />

Viterbo, interior de São Paulo, levar a produção do sítio. Era verão de 1935.<br />

Domingos era baixo, magro como uma vara de anzol. Desde pequeno, convivia com um<br />

problema sério: um de seus braços era bambo, encostado sempre na perna. Sua mão direita,<br />

vira<strong>da</strong> para trás, servia apenas para apoiar alguma coisa que a esquer<strong>da</strong> pegava. Mesmo assim,<br />

Domingos fazia todo o serviço que o pai lhe <strong>da</strong>va: enchia a carroça de cana e cortava lenha<br />

apenas com a mão esquer<strong>da</strong>. Teve que aprender a fazer tudo o que seus irmãos faziam, mesmo<br />

com a deficiência. Ele precisava se superar. Não adiantava ficar reclamando <strong>da</strong>s dificul<strong>da</strong>des.<br />

Nem tinha tempo para isso. Precisava batalhar muito para <strong>da</strong>r conta de tanto serviço que o pai<br />

lhe ordenava, diariamente.<br />

O jovem, aos dois anos, tivera paralisia infantil.<br />

— Na época, não havia muitos recursos. Os médicos fizeram de tudo para eu ficar curado.<br />

Mas... não foi possível. Fiquei assim, com o braço sem força e a mão vira<strong>da</strong> para trás. Lembrome<br />

como se fosse hoje: eu chorava ao ver meus irmãos brincando. Queria fazer a mesma coisa.<br />

Eles subiam em árvores para pegar filhotes de passarinhos. Saíam escondidos para a lagoa.<br />

Como era gostoso vê-los mergulhando nas tardes quentes do verão. Jogavam futebol. Caçavam<br />

cigarras para assustar minha mãe. Minha mãe se escondia e <strong>da</strong>va tudo o que eles pediam. Ela<br />

tinha pavor de cigarras! Ríamos sem parar. Mas minha mãe me segurava em casa.<br />

Assim, crescia Domingos. Ele foi aprendendo com as que<strong>da</strong>s que a vi<strong>da</strong> lhe <strong>da</strong>va a ser<br />

resistente e corajoso para enfrentar os desafios. Em muitas situações superava o irmão.<br />

Ninguém enchia a carroça antes dele. Nem conseguia cortar mais lenha que ele. Só perdia<br />

quando o assunto era tirar leite, pois seu irmão puxava as tetas <strong>da</strong>s vacas com as duas mãos e<br />

Domingos com uma só.<br />

O sítio dos Coelho<br />

Marcelino Coelho, pai de Domingos, homem severo, filho de imigrantes portugueses, além<br />

de cachaça e açúcar, produzia arroz, feijão, milho e mandioca para fazer farinha. Também,<br />

criava porcos, galinhas e bois. Tinha nove filhos. Dois homens e sete mulheres. O mais novo era<br />

Domingos. Contratara vários empregados para auxiliar na lavoura. A deman<strong>da</strong> era grande.<br />

Vendia a produção para os comerciantes <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de e até para São Paulo. Uma vez por semana,<br />

levava pinga, café e açúcar para a estação <strong>da</strong> Companhia Mogiana de Estra<strong>da</strong>s de Ferro, em<br />

Santa Rosa de Viterbo. Os trilhos passavam perto do sítio, em direção a Casa Branca.<br />

O sítio dos Coelho era um dos mais importantes <strong>da</strong>quela região.<br />

— Havia escola para as crianças dos sítios vizinhos, igreja onde o padre celebrava missa<br />

uma vez por mês e telefone. Recordo, certa vez, em que houve missões na capela. Muitos padres<br />

ficaram hospe<strong>da</strong>dos em casa. Não podíamos <strong>da</strong>r um “piu” que minha mãe fazia cara feia. Eu<br />

era bem pequeno e tinha muita vergonha dos padres. Quando terminava a missa, eles jantavam<br />

em casa. Eu corria para o quarto e me escondia debaixo <strong>da</strong> cama. Meu pai ia lá com uma<br />

vassoura na mão e ficava me cutucando. “Sai já <strong>da</strong>í, moleque. Parece bicho do mato”. Minha<br />

13 História de vi<strong>da</strong>, escrita pelo autor <strong>da</strong> dissertação, e publica<strong>da</strong> no livro Jornalistas literários: <strong>narrativas</strong><br />

<strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>real</strong> por novos autores, Summus Editorial, p. 275, organizado por Sergio Vilas Boas. Exemplo de<br />

narrativa complexo-compreensiva.


152<br />

casa vivia cheia de gente. Meu pai era exigente demais, mas fazia o que podia para aju<strong>da</strong>r as<br />

pessoas — conta Domingos.<br />

As casas do sítio eram simples, mas confortáveis. A maior era a de Marcelino. Fogão a<br />

lenha, fornos para assar biscoitos e bolachas, chão de cerâmica vin<strong>da</strong> de Tambaú, ci<strong>da</strong>de<br />

vizinha, quartos com várias camas, e uma imensa varan<strong>da</strong> ao redor.<br />

— Eu gostava de ir num quarto bem grande que ficava no fundo <strong>da</strong> casa. Ali minha mãe<br />

escondia as pencas de banana que meu pai cortava até ficarem amarela<strong>da</strong>s. Tinha de todo tipo,<br />

mas minha preferi<strong>da</strong> era a ourinho, uma banana pequena, mais doce que o melado do engenho.<br />

Como Domingos era baixinho, quando ouvia os passos <strong>da</strong> mãe se aproximando <strong>da</strong><br />

despensa, abaixava-se rapi<strong>da</strong>mente e nem respirava.<br />

— Ah! Se ela visse alguém comendo as bananas sem ordem dela...!<br />

Os filhos iam se casando e ficando por ali. Marcelino jamais aceitaria um filho longe do<br />

ninho. Como as galinhas que ciscavam o dia todo em volta do paiol, queria sua prole debaixo<br />

<strong>da</strong>s asas.<br />

— Meu pai construía uma casa por perto quando alguém se casava. Quem namorava meu<br />

irmão ou uma de minhas irmãs já sabia: ou ia morar no sítio ou não haveria casamento. Ele<br />

não aceitava ver os filhos longe de seu bigode. Controlava tudo!<br />

Domingos não via dinheiro nas mãos. Se precisasse de alguma coisa, pedia ao pai. E como<br />

era muito difícil convencer o velho português!<br />

— Ele era muito teimoso. Falava até a boca espumar. Minha mãe ficava a maior parte do<br />

tempo cala<strong>da</strong>. Também, meu pai não <strong>da</strong>va folga para a garganta!<br />

Assim viveu Domingos até os vinte e um anos, quando conheceu Resplandina ou Mulata,<br />

como, carinhosamente, todos a chamavam.<br />

Quando a viu pela primeira vez, sentiu uma coisa muito estranha: seus horizontes se<br />

ampliaram. O sítio tornou-se uma pequena estrela no oceano celeste. Os sentimentos mais<br />

escondidos no convés <strong>da</strong> alma vieram à tona. Domingos percebeu que Mulata seria sua bússola.<br />

O encontro<br />

Mulata não tinha mais o pai perto de si. Havia morrido com queimaduras na maior parte do<br />

corpo. Bebia demais. Até que, depois de uma briga com a mulher, pôs fogo na casa de taipa. A<br />

mãe de Mulata conseguiu tirá-la do meio <strong>da</strong>s chamas e fugir para a ci<strong>da</strong>de. A viúva arrumara<br />

outro marido e deixara a menina, ain<strong>da</strong> pequena, sob os cui<strong>da</strong>dos de Maria Antônia, a madrinha,<br />

dona de pensão na ci<strong>da</strong>de. Servia refeição para as moças que vinham de outros lugares para<br />

estu<strong>da</strong>r em Santa Rosa de Viterbo.<br />

Na pensão <strong>da</strong> madrinha, Mulata foi coloca<strong>da</strong> na cozinha. Fazia de tudo: picava cebolas,<br />

descascava alho, fritava batatas e cozinhava carne. Com apenas quatorze anos, passou a tomar<br />

conta <strong>da</strong> cozinha. Maria Antônia era exigente e implicante. Fiscalizava ca<strong>da</strong> detalhe do serviço<br />

<strong>da</strong> afilha<strong>da</strong>. E ai se alguma coisa estivesse fora do lugar!<br />

Quando tudo parecia encaminhado na vi<strong>da</strong> de Resplandina, a mãe foi atrás dela. Queria que<br />

a filha a acompanhasse para Cravinhos, região de Ribeirão Preto. A mãe e o padrasto se<br />

mu<strong>da</strong>riam para lá. Mulata resistiu, mas não adiantou. Chorou, gritou:<br />

— Eu não quero!<br />

Mas foi.<br />

E não deu certo. Morou em Cravinhos alguns meses. A menina ficava em casa sozinha,<br />

cui<strong>da</strong>ndo de tudo, enquanto a mãe e o padrasto trabalhavam. Ganhavam muito pouco na roça e<br />

Mulata foi emagrecendo a ca<strong>da</strong> dia, pois a comi<strong>da</strong> era pouca para três pessoas. A mãe quis então<br />

que ela voltasse para a pensão <strong>da</strong> madrinha, mas Maria Antônia disse:<br />

— Não. Já ajudei demais.<br />

Mulata ficou sem saber para onde ir.<br />

Enquanto isso, Domingos puxava seu burro para lá e para cá. Às vezes, encontrava a<br />

professora <strong>da</strong> pequena escola que Marcelino instalara no sítio, em parceria com a prefeitura.<br />

Não imaginava, porém, que aquela professora levaria sua futura Mulata para morar na escola,<br />

onde, além <strong>da</strong> sala de aula, havia uma casa simples, mas confortável.


153<br />

Maria Antônia conhecia a professora do sítio de Marcelino e lhe implorou para levar a<br />

afilha<strong>da</strong> para morar com ela.<br />

— Ela sabe fazer de tudo. Cui<strong>da</strong> <strong>da</strong> cozinha melhor que eu. Eu garanto. Também é muito<br />

educa<strong>da</strong>.<br />

A professora aceitou.<br />

Domingos passava perto <strong>da</strong> escola várias vezes ao dia. A janela de madeira <strong>da</strong> casa<br />

permanecia sempre aberta. Mulata gostava de ficar ali, espiando o movimento, enquanto o fogão<br />

a lenha cozinhava o arroz e a polenta. O carroceiro foi atraído pelo olhar <strong>da</strong> jovem Mulata, que<br />

tinha olhos de jabuticaba. Foi o começo de um amor perene. Eles não imaginavam que esse<br />

sentimento duraria setenta anos e traria ao mundo nove crianças.<br />

Marcelino logo percebeu que Domingos queria ficar perto de Mulata. Quando o rapaz<br />

desarreava o burro e guar<strong>da</strong>va a carroça debaixo do paiol, tomava um banho apressado para<br />

beirar a escola.<br />

— Eu não quero esse namoro, viu Domingos!!! — berrava o pai, mais alto que o touro do<br />

sítio.<br />

O rapaz parecia um corisco. Corria do pai, pois o velho percebera seu coração enfeitiçado<br />

pela lin<strong>da</strong> Mulata.<br />

Marcelino não aceitava o namoro porque Resplandina não tinha pele branca. Além do mais,<br />

o pai morrera embriagado e a mãe era amasia<strong>da</strong>. Um escân<strong>da</strong>lo!<br />

— Meu pai achava que Mulata não merecia ser <strong>da</strong> família. O que seria de mim com uma<br />

pessoa <strong>da</strong>quele jeito?<br />

Domingos sofria. Marcelino não tirava o olho dele. Quando não, man<strong>da</strong>va um dos filhos<br />

son<strong>da</strong>r se o rapaz estava conversando com Mulata na escola.<br />

Apesar <strong>da</strong> perseguição do pai, Domingos insistiu no namoro, que durou dois anos.<br />

Timi<strong>da</strong>mente, um olhava para o outro e riam. Acenos de mãos. Olhares desconfiados. Romance<br />

puro, como o beijo dos joões-de-barro.<br />

A perseguição foi tanta, que Marcelino mandou Mulata de volta para a pensão na ci<strong>da</strong>de.<br />

Foi falar com Maria Antônia e obrigou-a a acolher a afilha<strong>da</strong> em Santa Rosa de Viterbo.<br />

Domingos ficou com a alma nubla<strong>da</strong>. Um dilúvio, maior que o de Noé, caiu na sua casa<br />

interior.<br />

O padre com o nome de filósofo<br />

E o tempo foi passando...<br />

Domingos teve uma idéia: sair bem escondidinho do pai e ver a Mulata. Arreou o burro,<br />

colocou sua melhor roupa e logo estava batendo na janela de madeira <strong>da</strong> pensão. A rua estava<br />

completamente vazia. A noite não tinha estrelas. Mulata abriu a janela e mostrou os dentes mais<br />

brancos que roupa alveja<strong>da</strong>. Eles se beijaram no rosto. Tudo parecia bem. Até que....<br />

— Mulata. Você está vendo o que eu estou vendo?<br />

— Sim.<br />

— Tem alguém son<strong>da</strong>ndo a gente.<br />

— Psiu! Quieto! É o padre Sócrates. Ele é nosso vizinho e muito bravo.<br />

O padre Sócrates tinha uma barriga como de elefante. Domingos tentou esconder o rosto<br />

com a aba do chapéu.<br />

Todo final de semana era assim: Domingos e Mulata namorando na janela, e o padre<br />

espiando com olhar de censura. Até que, numa noite de lua cheia, o padre chamou os jovens:<br />

— Mulata, vem aqui com seu namorado.<br />

Domingos aproximou-se com as pernas bambas.<br />

— Você é filho do Marcelino, não é?<br />

— Sim, padre.<br />

— Quero conversar com ele aqui na casa paroquial, no domingo que vem, depois <strong>da</strong> missa.<br />

E você vem também. Certo?<br />

— Sim, padre! — respondeu, querendo esconder a cabeça dentro do paletó.<br />

O domingo chegou logo para Mulata e Domingos. Eles pensaram que seria o fim de tudo.<br />

Na casa paroquial, Marcelino ficou em frente do padre Sócrates.


154<br />

— Chamei você aqui, Marcelino, porque há muito tempo observo o namoro do seu filho<br />

com a Mulata, minha vizinha. Eu acho que você deveria fazer o casamento deles. Eles se amam<br />

demais. Parecem dois querubins conversando na janela do céu. É um namoro santo. Eu<br />

garanto!<br />

Marcelino falava o que vinha na boca:<br />

— Essa moça, padre, não serve para o meu filho. O senhor sabe a história do pai dela.<br />

Bebia mais pinga que água. A mãe dela é amiga<strong>da</strong>. Ela também não é <strong>da</strong> nossa cor.<br />

— Mas, Marcelino, eu conheço a Mulata desde quando ela veio para a pensão <strong>da</strong><br />

madrinha. Ela é uma excelente pessoa. Não falta <strong>da</strong> missa, é trabalhadeira. E o que é mais<br />

importante, ama seu filho apesar do problema no braço dele — disse o padre.<br />

O sitiante encheu os olhos de lágrimas. O padre tinha razão.<br />

Chegou o dia 5 de fevereiro de 1937. Mulata de noiva, Domingos de terno, gravata e bigode<br />

aparado. Padre Sócrates no altar e, depois <strong>da</strong> bênção, os jovens com a aliança no dedo. Não<br />

houve festa. Apenas um jantar para os padrinhos.<br />

A lua de mel aconteceu numa <strong>da</strong>s casas <strong>da</strong> fazen<strong>da</strong>, prepara<strong>da</strong> com zelo por Marcelino para<br />

ser a mora<strong>da</strong> do filho.<br />

— Mobília simples. A coisa mais chique que meu pai deu pra gente foi um rádio que<br />

ocupava quase a sala inteira.<br />

Naquela primeira noite, Domingos sentou-se num banco de madeira que Maria Antônia<br />

doara para a afilha<strong>da</strong>. Ligou o rádio para saber as notícias do governo. Mulata arrumava o<br />

quarto e guar<strong>da</strong>va os poucos presentes nas prateleiras <strong>da</strong> cozinha. De repente, ele gritou:<br />

— Mulata, vem aqui! Corre! Depressa!!!<br />

É que o rádio estava fazendo uma homenagem à noiva, tocando o sucesso de Lamartine<br />

Babo:<br />

O teu cabelo não nega mulata porque és mulata na cor.<br />

Mas como a cor não pega mulata, Mulata eu quero o teu amor.<br />

Tens um sabor bem do Brasil. Tens a alma cor de anil.<br />

Mulata mulatinha meu amor. Fui nomeado teu tenente interventor.<br />

Quem te inventou meu pancadão teve uma consagração.<br />

A lua te invejando faz careta porque mulata tu não és deste planeta.<br />

Quando meu bem vieste à terra Portugal declarou guerra.<br />

A concorrência então foi colossal. Vasco <strong>da</strong> Gama contra o batalhão naval.<br />

Mulata pulou nos braços de Domingos e, antes do primeiro beijo, ela disse:<br />

— Quem mandou a rádio tocar essa música para mim?<br />

Domingos sorriu:<br />

— Foi Deus!<br />

Abraçaram-se fortemente. Nunca haviam se abraçado. Lábios tocaram-se inseguros.<br />

— Eu amo você, minha Mulata.<br />

— Vamos dormir?<br />

Foi a primeira <strong>da</strong>s vinte e cinco mil, quinhentas e cinqüenta noites que dormiriam juntos.<br />

O conflito chegou logo<br />

Marcelino queria que o filho, depois de casado, continuasse trabalhando com a carroça <strong>da</strong><br />

fazen<strong>da</strong>, levando a produção aos mercados e à estação de trem de Santa Rosa de Viterbo. Mas,<br />

Domingos, com vi<strong>da</strong> nova, queria uma vi<strong>da</strong> nova também no trabalho. Seu pai não lhe deu outra<br />

opção:<br />

— Ou você trabalha com a carroça ou vai embora <strong>da</strong>qui.<br />

Ele bateu o pé e não aceitou a proposta.<br />

Ao ouvir o “não” do filho, Marcelino expulsou-o do sítio. O pai lhe deu prazo curto para se<br />

retirar: uma semana.


155<br />

Antes de o sol separar-se <strong>da</strong> montanha, Domingos saiu para pedir serviço num sítio vizinho,<br />

onde muitos machadeiros cortavam e transportavam lenha. Deram-lhe uma área para desmatar.<br />

Pagariam por metro cortado.<br />

O jovem trabalhou apenas um dia. Cortara muitos metros de lenha. Mas, seu pai, vendo seu<br />

sofrimento, passou por debaixo <strong>da</strong> cerca, arrependido.<br />

— Filho, volte para casa. Eu preciso de você. Sem sua carroça, meu serviço não an<strong>da</strong>.<br />

Volte!<br />

Domingos, com lágrimas nos olhos, deixou a lenha corta<strong>da</strong> sem amontoar, subiu na carroça<br />

e, em poucos minutos, amarrou o burro na cerca de madeira, próxima ao paiol. Marcelino era<br />

bravo, como um cavalo que ain<strong>da</strong> não usou cabresto. Mas, ao mesmo tempo, parecia um<br />

pelicano, capaz de alimentar os filhos com a carne do próprio coração.<br />

Marcelino deu um pe<strong>da</strong>ço de terra para o filho plantar, colher, vender e criar sua família.<br />

Assim, Domingos foi desenvolvendo seu trabalho. Marcelino só exigiu uma coisa: o filho não<br />

podia parar de puxar a cana para o engenho. Essa era a paga pela terra recebi<strong>da</strong>.<br />

Como Domingos queria <strong>da</strong>r um futuro melhor para a esposa, passou a trabalhar ain<strong>da</strong> mais.<br />

Não reclamava. Afinal, no pe<strong>da</strong>ço de terra, cedido pelo pai, o milho havia brotado com as<br />

primeiras chuvas <strong>da</strong> primavera. Muitas galinhas com pintinhos circulavam em volta <strong>da</strong> casa. E<br />

até que o porquinho caipira crescesse, no chiqueiro improvisado debaixo <strong>da</strong> mangueira, Mulata<br />

usaria a gordura e a carne que ficavam armazena<strong>da</strong>s numa lata de vinte litros, no canto <strong>da</strong><br />

cozinha, doação de Marcelino. Além disso, em cima do fogão, Mulata improvisara um varal de<br />

arame. Quem chegava ali, não via o arame, mas lingüiça e pele de porco pendura<strong>da</strong>s.<br />

A liderança de Mulata<br />

Ano a ano nascia uma criança na casa. Domingos só pensava em trabalhar. Saía cedo e<br />

voltava quando o escuro como o breu revelava a presença <strong>da</strong> lua. A esposa rezava o terço todos<br />

os dias. Colocava os filhos ajoelhados no quarto. Rezavam por volta <strong>da</strong>s quatro <strong>da</strong> tarde. As<br />

crianças brincavam muito em volta <strong>da</strong> casa e ficavam bravas quando a mãe as chamava.<br />

No quarto do casal, havia um pequeno oratório de madeira com uma imagem de Nossa<br />

Senhora Apareci<strong>da</strong>. Na época do Natal, montavam o presépio embaixo do oratório.<br />

Mulata era exigente. Conduzia os filhos apenas com o olhar. Domingos era amoroso com as<br />

crianças. Colocava as menores senta<strong>da</strong>s nos pés e ficava balançando-as. Mas, achava que a<br />

esposa estava certa:<br />

— Filho é a melhor coisa do mundo, mas se for obediente.<br />

Depois do jantar, Mulata e Domingos pegavam espigas de milho, colocavam numa vasilha,<br />

<strong>da</strong>vam-se as mãos e iam ao mangueirão jogar para os porcos e galinhas. Ficavam ali<br />

conversando e namorando.<br />

Todos dormiam às oito <strong>da</strong> noite e levantavam-se depois do canto do galo, porque, apesar de<br />

as crianças estu<strong>da</strong>rem na escola do sítio, tinham que pular cedo <strong>da</strong> cama.<br />

— Deus aju<strong>da</strong> quem cedo madruga — dizia Mulata.<br />

Mulata organizava o trabalho <strong>da</strong> casa com todos os filhos. Ca<strong>da</strong> um tinha um serviço. Eles<br />

buscavam água numa mina perto do engenho. Tomavam banho de bacia. Havia um barril na<br />

cozinha e as crianças tinham a tarefa de enchê-lo, todos os dias. Se desobedecessem, a mãe batia<br />

sem dó. Todos tinham muito medo dela. Mulata fazia as roupas <strong>da</strong>s crianças com sacos de<br />

açúcar e as tingia. Eram nove filhos: José Maria, Maria José, Maria Eugênia, Luiz Antônio,<br />

Sebastião, Maria Olívia, Marcelino, Maria Regina, Antônio Carlos.<br />

A primeira de muitas mu<strong>da</strong>nças<br />

Domingos trabalhou durante muitos anos no sítio do pai, depois do casamento. Mas, qual<br />

filhote de pássaro empenado, chegara a hora de alçar vôos mais altos. Pensava que, na ci<strong>da</strong>de de<br />

Santa Rosa de Viterbo, a vi<strong>da</strong> seria melhor que na roça, com maiores possibili<strong>da</strong>des e menos<br />

monotonia. As crianças cresceriam e arrumariam um bom emprego. Na ci<strong>da</strong>de também existiam<br />

mais recursos médicos. Seu pai falava que isso não <strong>da</strong>ria certo. Mas, Domingos teimou. E o pai<br />

tinha razão.


156<br />

A família de Domingos Coelho permaneceu em Santa Rosa de Viterbo por apenas cinco<br />

meses.<br />

— Na ci<strong>da</strong>de não havia fartura como no sítio. Na roça, a gente criava galinha, plantava<br />

mantimentos, colhia frutas de todo tipo. Não vou mentir: em Santa Rosa, a barriga roncava e<br />

muitas vezes a panela estava vazia — confessou Domingos.<br />

Voltar para o sítio do pai não <strong>da</strong>va mais. O serviço diminuíra demais com a mu<strong>da</strong>nça dos<br />

seus irmãos casados para outras ci<strong>da</strong>des e fazen<strong>da</strong>s <strong>da</strong> região. Para agravar a situação,<br />

Marcelino e a esposa, já velhos, não conseguiam mais manter tantos empregados. O engenho<br />

estava desativado. Não existia mais cana-de-açúcar. A escola fora fecha<strong>da</strong>. Na igreja, não havia<br />

mais missa, pois os moradores dos sítios vizinhos deixaram também a terra.<br />

Não demorou muito tempo para Marcelino fechar os olhos para este mundo.<br />

Domingos mudou-se para um sítio no município de Casa Branca. A esperança que tinha no<br />

coração era semelhante a fênix: capaz de renascer <strong>da</strong>s cinzas. Plantou algodão, milho e feijão.<br />

— Deus me abençoou.<br />

Foi uma colheita que deixou todo mundo com brilho nos olhos.<br />

Mas a alegria duraria pouco. No fim do ano, José Maria, o filho mais velho, veio visitar<br />

Domingos. O moço, já casado, mu<strong>da</strong>ra-se para o Paraná. Chamou o pai e to<strong>da</strong> a família para<br />

melhorar de vi<strong>da</strong>. Domingos tinha um bom dinheiro ganho na colheita.<br />

— Fiquei entusiasmado. Iludido. E fui.<br />

Mulata, o marido e os filhos solteiros permaneceram apenas vinte e três dias em Arapongas,<br />

no Paraná. Era tudo propagan<strong>da</strong> enganosa. O clima era bem diferente. Estava muito frio. Mas<br />

nunca Domingos pensara que estaria entrando em tamanha fria.<br />

Na fazen<strong>da</strong>, havia um cafezal com milhares de pés.<br />

— Os grãos estavam todos vermelhinhos, quase no ponto <strong>da</strong> colheita.<br />

Ele teria uma boa porcentagem quando o café fosse colhido e vendido. Mas, aconteceu algo<br />

inesperado. Numa manhã, Mulata levantou cedo para coar o café e percebeu que a plantação<br />

estava debaixo de gelo. Havia caído uma forte gea<strong>da</strong> durante a madruga<strong>da</strong>.<br />

— Não sobrou nenhum pezinho de café.<br />

Secara tudo. Era preciso serrar pé por pé, esperar a brota, o crescimento dos galhos, as<br />

flores e, enfim, os grãos vermelhos para colher. Demoraria mais de um ano.<br />

Domingos desanimou. Arrumou um caminhão, ajeitou as tralhas, botou a família dentro e<br />

voltou para Casa Branca, em busca de uma nova oportuni<strong>da</strong>de.<br />

Depois de receber tantos açoites <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, Domingos sossegou. Ficou no mesmo sítio em<br />

Casa Branca, com a família, até se aposentar com um salário mínimo. Aposentado, decidiu<br />

trocar o campo pela ci<strong>da</strong>de. Mulata achou arriscado. Lembrou-se <strong>da</strong> péssima experiência de<br />

anos atrás, quando se mu<strong>da</strong>ram para Santa Rosa de Viterbo. Concordou para não desanimar o<br />

marido.<br />

O burro e a carroça não conseguiram aposentadoria<br />

Em Casa Branca, Domingos e Mulata alugaram uma pequena casa num bairro chamado<br />

Vila Industrial: cozinha e sala juntas, banheiro, quarto e varan<strong>da</strong>. Para manter laços com o<br />

passado, construíram um fogão a lenha na cozinha. Penduraram algumas fotos amarela<strong>da</strong>s nas<br />

paredes e uma do papa João Paulo II.<br />

E os filhos?<br />

— Todos estavam casados e tinham a sua vi<strong>da</strong>.<br />

Viver com a aposentadoria estava sendo difícil.<br />

— Também, não conseguia ficar parado. Graças a Deus eu ain<strong>da</strong> tinha um animal e minha<br />

carroça.<br />

Mas fazer o quê? Domingos pensou... pensou e surgiu uma luz. An<strong>da</strong>ndo pelo bairro, viu<br />

um depósito de ferro velho. Ele foi até lá. O dono disse ao aposentado que uma coisa que <strong>da</strong>va<br />

dinheiro era papel e que quase ninguém catava na ci<strong>da</strong>de.<br />

Mulata apoiou a idéia.<br />

No outro dia, pela manhã, Domingos arreou o burro, subiu na carroça e desceu para o centro<br />

de Casa Branca. Várias lojas colocavam caixas de papelão na rua. Ele parava, descia, pegava


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caixa por caixa, abria-as e ia colocando na carroça. Aos poucos, foi ficando conhecido nas ruas<br />

e muitos passaram a guar<strong>da</strong>r papelão para ele.<br />

— Enchia tanto a carroça que as pessoas riam e brincavam comigo. Mas <strong>da</strong>va um bom<br />

dinheirinho. Pagava o aluguel, comprava remédio, pão, leite e outras coisas.<br />

Domingos passou a ganhar um pouco mais com papelão quando começou a pegar sacos<br />

vazios de cal e cimento, nas casas em construção. Dava até duas viagens por dia com a carroça<br />

abarrota<strong>da</strong>. De repente, apareceu uma tosse quase incontrolável.<br />

— Precisa parar com isso, pai. Essa tosse é por causa do cimento e <strong>da</strong> cal que sobram nas<br />

embalagens que o senhor carrega — diziam os filhos.<br />

Mas ele não aceitava palpites em seu trabalho.<br />

— Sei o que estou fazendo. Essa tosse é por causa <strong>da</strong> poeira aqui do bairro.<br />

Os problemas de saúde foram aumentando, assim como a i<strong>da</strong>de. Domingos já tinha mais de<br />

oitenta anos e a força dos braços estava minguando, como as águas dos rios no inverno. Teve<br />

que parar. Mas Mulata deu-lhe ânimo e coragem para vender a carroça e o burro. Ele precisava<br />

descansar. Foi a maior tristeza que o velho sentiu em to<strong>da</strong> sua vi<strong>da</strong>.<br />

O começo do fim<br />

Certo dia, Mulata, cabelos brancos como as flores do cafezal, passou mal no quarto. O<br />

esposo gritou. A filha, Maria Regina, que morava na casa ao lado, correu. Ela desmaiara.<br />

Perdera os sentidos. Foi leva<strong>da</strong> ao hospital. Começava ali o seu calvário.<br />

Depois de alguns exames, Domingos levou a esposa para casa. Ela parecia estar melhor.<br />

Mas logo começaram a perceber que ela an<strong>da</strong>va esquecendo facilmente as coisas. Confundia os<br />

nomes dos filhos. Chamava Marcelino de José Maria e Maria Regina de Maria José. Isso<br />

aumentava dia após dia. Levaram-na ao médico e o diagnóstico: Alzheimer.<br />

Domingos, em pouco tempo, tornou-se Cirineu. Sua Sexta-feira <strong>da</strong> Paixão duraria três anos<br />

e três meses. Ficava com Mulata noite e dia. Ao lado <strong>da</strong> cama, num pequeno quarto, numa<br />

pequena casa, dedicava à esposa todo amor do mundo.<br />

Mulata não falava. Não o reconhecia mais. Mas, Domingos cui<strong>da</strong>va dela. Dormia ao seu<br />

lado. Bastava <strong>da</strong>r um suspiro diferente e o velho companheiro corria para acudir. Mulata<br />

definhava e Domingos definhava junto. Não desgru<strong>da</strong>va dela.<br />

O dia <strong>da</strong> despedi<strong>da</strong> chegou: 14 de dezembro.<br />

O último beijo<br />

Domingos ficava em volta <strong>da</strong> cama o tempo todo. Mulata perdera a voz, depois de um ano<br />

lutando contra a doença. Não conhecia mais ninguém. O marido conversava com ela, mesmo<br />

não obtendo resposta.<br />

— Você está olhando para mim? Você me ama? Você está com fome?<br />

Os filhos pediam para o pai sair do quarto para descansar, mas ele desobedecia.<br />

Mulata ficou quinze dias interna<strong>da</strong> na Santa Casa de Misericórdia de Casa Branca antes de<br />

morrer. Todos os dias, Domingos ia vê-la. Lá, chorava o tempo todo, segurando nas mãos <strong>da</strong><br />

esposa e falando com ela. Antes de sair do quarto, beijava-a e chorava copiosamente.<br />

No dia <strong>da</strong> morte <strong>da</strong> esposa, Domingos estava na cozinha. Era por volta <strong>da</strong>s sete <strong>da</strong> manhã. A<br />

enfermeira que cui<strong>da</strong>va dela mediu a pressão e viu que tudo estava parado. Chamou o médico,<br />

mas Mulata havia morrido. Domingos correu ao quarto. Soluçava. Não acreditava. Saiu para a<br />

cozinha e tirou a fotografia <strong>da</strong> mulher que estava pendura<strong>da</strong> na parede. Abraçou-a e chorou.<br />

Dizia:<br />

— Mulata, fique calma. Logo estarei aí com você. Já estou chegando, viu?<br />

E beijava a fotografia.<br />

Mulata fora embora, deixando seu companheiro com as lembranças de setenta natais e<br />

setenta carnavais. Setenta anos de convivência, lágrimas e sorrisos.<br />

Hoje, Domingos senta-se na velha poltrona <strong>da</strong> cozinha. O fogão a lenha está apagado. O<br />

chão de vermelhão não brilha com o mesmo brilho do escovão <strong>da</strong> Mulata. Ele fala devagar, mas<br />

o pensamento corre veloz. Viaja de 2007 a 1930 mil vezes mais rápido que a águia saltando do


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penhasco. Domingos é Águia, voando solitário nos penhascos <strong>da</strong> solidão. O vento <strong>da</strong> morte<br />

desmanchou o ninho onde ele pousava ao chegar a noite. A sau<strong>da</strong>de está secando as águas<br />

cristalinas do amor, que há setenta anos correm pelas fen<strong>da</strong>s do seu coração.<br />

Os olhos úmidos de Domingos esperavam sementes de flores. Mas a semeadora, sua<br />

Mulata, partiu, levando a esperança para um lugar bem longe. Ele não sabe medir a distância<br />

que os separa, mas sabe que Mulata está viva em algum lugar, to<strong>da</strong> enfeita<strong>da</strong> para a sua<br />

chega<strong>da</strong>!

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