a retórica da mulher em polémicas de folhetos de cordel do século ...
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Betina <strong>do</strong>s Santos Ruiz<br />
A RETÓRICA DA MULHER EM POLÉMICAS DE<br />
FOLHETOS DE CORDEL DO SÉCULO XVIII<br />
Os discursos apologéticos <strong>de</strong> Paula <strong>da</strong> Graça, Gertru<strong>de</strong>s Margari<strong>da</strong><br />
<strong>de</strong> Jesus, L.D.P.G. e outros nomes (quase) anónimos<br />
Dissertação <strong>de</strong> Mestra<strong>do</strong> orienta<strong>da</strong> pela Prof.ª Doutora Maria Luísa Malato Borralho <strong>em</strong> Estu<strong>do</strong>s Literários,<br />
Culturais e Interartes<br />
Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Letras <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> Porto<br />
2009
Betina <strong>do</strong>s Santos Ruiz<br />
A RETÓRICA DA MULHER EM POLÉMICAS DE<br />
FOLHETOS DE CORDEL DO SÉCULO XVIII<br />
Os discursos apologéticos <strong>de</strong> Paula <strong>da</strong> Graça, Gertru<strong>de</strong>s Margari<strong>da</strong><br />
<strong>de</strong> Jesus, L.D.P.G. e outros nomes (quase) anónimos<br />
Dissertação <strong>de</strong> Mestra<strong>do</strong> orienta<strong>da</strong> pela Prof.ª Doutora Maria Luísa Malato Borralho <strong>em</strong> Estu<strong>do</strong>s Literários,<br />
Culturais e Interartes<br />
Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Letras <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> Porto<br />
2009
Moto-contínuo<br />
Um hom<strong>em</strong> po<strong>de</strong> ir ao fun<strong>do</strong> <strong>do</strong> fun<strong>do</strong> <strong>do</strong> fun<strong>do</strong> se for por você<br />
Um hom<strong>em</strong> po<strong>de</strong> tapar os buracos <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> se for por você<br />
Po<strong>de</strong> inventar qualquer mun<strong>do</strong>, como um vagabun<strong>do</strong> se for por você<br />
Basta sonhar com você<br />
Juntar o suco <strong>do</strong>s sonhos e encher um açu<strong>de</strong> se for por você<br />
A fonte <strong>da</strong> juventu<strong>de</strong> corren<strong>do</strong> nas bicas se for por você<br />
Bocas passan<strong>do</strong> saú<strong>de</strong> com beijos nas bocas se for por você<br />
Hom<strong>em</strong> também po<strong>de</strong> amar e abraçar e afagar seu ofício porque<br />
Vai habitar o edifício que faz pra você<br />
E no aconchego <strong>da</strong> pele na pele, <strong>da</strong> carne na carne, enten<strong>de</strong>r<br />
Que hom<strong>em</strong> foi feito direito, <strong>do</strong> jeito que é feito o prazer<br />
Hom<strong>em</strong> constrói sete usinas usan<strong>do</strong> a energia que v<strong>em</strong> <strong>de</strong> você<br />
Hom<strong>em</strong> conduz a alegria que sai <strong>da</strong>s turbinas <strong>de</strong> volta a você<br />
E cria o moto-contínuo <strong>da</strong> noite pro dia se for por você<br />
E quan<strong>do</strong> um hom<strong>em</strong> já está <strong>de</strong> parti<strong>da</strong>, <strong>da</strong> curva <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> ele vê<br />
Que o seu caminho não foi um caminho sozinho porque<br />
Sabe que um hom<strong>em</strong> vai fun<strong>do</strong> e vai fun<strong>do</strong> e vai fun<strong>do</strong> se for por você<br />
Edu Lobo e Chico Buarque
Índice<br />
APRESENTAÇÃO........................................................................................................................ 6<br />
INTRODUÇÃO............................................................................................................................ 10<br />
1. O estu<strong>do</strong> <strong>de</strong> textos f<strong>em</strong>ininos............................................................................................ 10<br />
2. A constituição <strong>do</strong> corpus .................................................................................................. 12<br />
3. Biografias <strong>de</strong> quase anónimos .......................................................................................... 19<br />
4. Contexto histórico <strong>do</strong>s textos <strong>em</strong> estu<strong>do</strong>.......................................................................... 22<br />
CAP. I - A RETÓRICA DOS DISCURSOS APOLOGÉTICOS............................................................... 26<br />
1. Mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> <strong>mulher</strong> fortaleci<strong>do</strong>s pela escrita .................................................................... 29<br />
2. A <strong>retórica</strong> <strong>do</strong> rosto ............................................................................................................ 31<br />
3. A <strong>retórica</strong> <strong>da</strong> orali<strong>da</strong><strong>de</strong> ..................................................................................................... 36<br />
4. A <strong>retórica</strong> <strong>do</strong> riso .............................................................................................................. 41<br />
5. A <strong>retórica</strong> <strong>da</strong> máxima ....................................................................................................... 44<br />
6. A <strong>retórica</strong> <strong>da</strong> autori<strong>da</strong><strong>de</strong> ................................................................................................... 46<br />
7. A <strong>retórica</strong> <strong>do</strong> ex<strong>em</strong>plo ...................................................................................................... 50<br />
CAP. II – UMA TÓPICA DO MAL E DA MALÍCIA........................................................................... 54<br />
CONCLUSÃO ............................................................................................................................. 66<br />
PARA UMA FUTURA EDIÇÃO DOS TEXTOS FEMINISTAS DO SÉCULO XVIII: A POLÉMICA ENTRE<br />
G.M. DE JESUS E IRMÃO AMADOR DO DESENGANO (1761)<br />
1. CRITÉRIOS DE TRANSCRIÇÃO ............................................................................................. 69<br />
2. Espelho Critico, no qual claramente se v<strong>em</strong> alguns <strong>de</strong>feitos <strong>da</strong>s Mulheres .................... 74<br />
3. Primeira carta apologetica, <strong>em</strong> favor e <strong>de</strong>fensa <strong>da</strong>s <strong>mulher</strong>es ........................................ 81<br />
4. Segun<strong>da</strong> carta Apologetica, <strong>em</strong> favor, e <strong>de</strong>fensa <strong>da</strong>s <strong>mulher</strong>es ....................................... 89<br />
BIBLIOGRAFIA .......................................................................................................................... 96
APRESENTAÇÃO<br />
Por que a <strong>mulher</strong> e a produção <strong>de</strong> <strong>do</strong>cumentos escritos são nucleares neste<br />
trabalho académico <strong>em</strong> nível <strong>de</strong> mestra<strong>do</strong>?<br />
Porque <strong>de</strong>s<strong>de</strong> muito ce<strong>do</strong> a palavra escrita, cingi<strong>da</strong> à folha <strong>de</strong> papel ou canta<strong>da</strong>,<br />
ecoou <strong>em</strong> nós, abriu caminhos e criou fantasias acerca <strong>do</strong> que é ser <strong>mulher</strong>, e como<br />
preencher os compassos <strong>de</strong> espera que nos impingiam e os t<strong>em</strong>pos <strong>de</strong> <strong>de</strong>scoberta para<br />
que éramos chama<strong>da</strong>s. As quase cinquenta canções <strong>de</strong> Chico Buarque sobre a <strong>mulher</strong><br />
fortaleceram esse fascínio pelo universo f<strong>em</strong>inino, b<strong>em</strong> como as palavras <strong>de</strong> Virgínia<br />
Woolf, <strong>de</strong> Katherine Mansfield, <strong>de</strong> Doris Lessing e <strong>de</strong> tantas escritoras mais. Era um<br />
ingresso. O que interessa compartilhar, no entanto, é uma outra jorna<strong>da</strong>, a académica,<br />
mais disciplina<strong>da</strong> e menos <strong>em</strong>otiva.<br />
Estivéramos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o princípio à procura <strong>de</strong> vozes f<strong>em</strong>ininas que iluminass<strong>em</strong><br />
uma etapa mo<strong>de</strong>rna <strong>da</strong> história <strong>da</strong> <strong>mulher</strong> portuguesa. Já havíamos consulta<strong>do</strong><br />
bibliografia específica por ocasião <strong>de</strong> outra investigação, volta<strong>da</strong> para uma figura<br />
portuguesa f<strong>em</strong>inina <strong>do</strong> <strong>século</strong> XVII 1 . Recortan<strong>do</strong> melhor o cenário <strong>de</strong>ssa segun<strong>da</strong><br />
incursão no universo f<strong>em</strong>inino português, estávamos à procura <strong>de</strong> materiais revela<strong>do</strong>res<br />
<strong>da</strong> inserção <strong>da</strong> <strong>mulher</strong> portuguesa mo<strong>de</strong>rna no mun<strong>do</strong> letra<strong>do</strong>, que permanecia<br />
<strong>do</strong>mina<strong>do</strong> pelos homens.<br />
À altura <strong>de</strong> formarmos o corpus, cogitámos a hipótese <strong>de</strong> analisar três textos <strong>de</strong><br />
cor<strong>de</strong>l <strong>do</strong> ano <strong>de</strong> 1761, relaciona<strong>do</strong>s entre si, e <strong>de</strong> editá-los. São test<strong>em</strong>unhos <strong>do</strong><br />
discurso f<strong>em</strong>inista e <strong>do</strong> anti-f<strong>em</strong>inista. Pareceram-nos bastante atractivos, por ser<strong>em</strong><br />
<strong>do</strong>cumentos raros extraí<strong>do</strong>s <strong>de</strong> Miscelâneas, muito pouco conheci<strong>do</strong>s e ain<strong>da</strong> menos<br />
li<strong>do</strong>s.<br />
Instigou-nos mais o facto <strong>de</strong> o texto <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>a<strong>do</strong>r <strong>do</strong>s <strong>de</strong>s<strong>do</strong>bramentos conter<br />
apenas uma alcunha masculina, ao passo que os <strong>do</strong>is textos subsequentes estavam<br />
<strong>de</strong>vi<strong>da</strong>mente assina<strong>do</strong>s por uma <strong>mulher</strong>. O primeiro <strong>da</strong> série <strong>de</strong> três textos veiculara um<br />
ataque ao carácter f<strong>em</strong>inino, os <strong>do</strong>is seguintes expunham uma <strong>de</strong>fesa <strong>da</strong>s <strong>mulher</strong>es<br />
dividi<strong>da</strong> <strong>em</strong> duas partes. To<strong>do</strong>s foram torna<strong>do</strong>s públicos no mesmo ano, 1761. A<br />
1 Entendi<strong>da</strong> como personag<strong>em</strong> real a qu<strong>em</strong> se po<strong>de</strong> ou não atribuir a autoria <strong>da</strong>s célebres Cartas<br />
portuguesas, Mariana Alcofora<strong>do</strong> foi objecto <strong>de</strong> estu<strong>do</strong> <strong>do</strong> nosso Doutoramento Directo realiza<strong>do</strong> na<br />
Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo por causa <strong>da</strong> projecção que a obra <strong>de</strong>ra ao dito discurso f<strong>em</strong>inino sobre o<br />
amor, a entrega, a consciência <strong>de</strong> si.
oposição entre eles insinuava um conflito curioso, tão mais apelativo quanto mais<br />
dissimula<strong>do</strong> e para<strong>do</strong>xal.<br />
As páginas <strong>da</strong> literatura <strong>de</strong> cor<strong>de</strong>l eram, nesse contexto <strong>de</strong> distanciamento<br />
t<strong>em</strong>poral e <strong>de</strong> omissões proposita<strong>da</strong>s, o canal mais plausível para nós, <strong>em</strong> razão <strong>da</strong><br />
especifici<strong>da</strong><strong>de</strong> que podíamos assimilar e comentar. Transitan<strong>do</strong> por elas,<br />
conseguiríamos contextualizar nossos <strong>do</strong>is ex<strong>em</strong>plos <strong>de</strong> activismo f<strong>em</strong>inino, <strong>da</strong>n<strong>do</strong> a<br />
conhecer meios e finali<strong>da</strong><strong>de</strong>s, isto é, a existência <strong>de</strong> uma linguag<strong>em</strong> própria e a garantia<br />
<strong>de</strong> a<strong>de</strong>são a uma cultura pre<strong>do</strong>minant<strong>em</strong>ente masculina.<br />
Em termos <strong>de</strong> técnica discursiva, interessou-nos a selecção <strong>de</strong> argumentos e <strong>de</strong><br />
ex<strong>em</strong>plos, caros à tentativa ou <strong>de</strong> criticar ou <strong>de</strong> <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r a <strong>mulher</strong> frente a um público<br />
não forçosamente ilustra<strong>do</strong> e mais predisposto ao entretenimento <strong>do</strong> que à observação<br />
pura <strong>do</strong>s ex<strong>em</strong>plos. Eles nos puseram a pensar que uma investigação relativa à forma<br />
como a Retórica servira àqueles propósitos contrários resultaria num contributo útil aos<br />
estu<strong>do</strong>s literários e culturais. Em termos pessoais, ganhávamos a fruição <strong>da</strong> leitura; <strong>em</strong><br />
proveito <strong>da</strong> colectivi<strong>da</strong><strong>de</strong>, avaliávamos uma situação concreta <strong>da</strong> <strong>mulher</strong> portuguesa no<br />
panorama político e intelectual <strong>do</strong> referi<strong>do</strong> <strong>século</strong> XVIII.<br />
A expectativa mais r<strong>em</strong>ota, e mais ambiciosa também, era interferir <strong>de</strong> alguma<br />
forma na i<strong>de</strong>ia cristaliza<strong>da</strong> <strong>de</strong> que os homens legaram muito e bom material à cultura<br />
portuguesa - postulan<strong>do</strong> inclusive sobre o mo<strong>do</strong> como as <strong>mulher</strong>es <strong>de</strong>veriam ser b<strong>em</strong><br />
trata<strong>da</strong>s -, enquanto às <strong>mulher</strong>es coube o papel <strong>de</strong> ficar<strong>em</strong> <strong>em</strong> silêncio perante a palavra<br />
masculina e se <strong>de</strong>dicar<strong>em</strong> a outros campos <strong>do</strong> fazer humano.<br />
A continuação <strong>da</strong> pesquisa bibliográfica, no entanto, resultou <strong>em</strong> muitos mais<br />
textos <strong>de</strong> cor<strong>de</strong>l <strong>do</strong> que os três originalmente <strong>de</strong>fini<strong>do</strong>s como objectos <strong>de</strong> estu<strong>do</strong>. Ela<br />
produziu outro efeito, alargou nossa noção <strong>da</strong> vigência <strong>de</strong>sses textos. Alguns <strong>de</strong>les já<br />
circulavam ao longo <strong>de</strong> um perío<strong>do</strong> extenso. Muitas eram as reedições, <strong>em</strong> alguns casos<br />
elas nos levavam à segun<strong>da</strong> meta<strong>de</strong> <strong>do</strong> <strong>século</strong> XIX. As raízes <strong>da</strong> interlocução, por sua<br />
vez, eram <strong>da</strong> primeira meta<strong>de</strong> <strong>do</strong> <strong>século</strong> XVII. Em vez <strong>de</strong> um texto pontual com direito<br />
a réplica, tínhamos um horizonte b<strong>em</strong> diferente, portanto: tínhamos consegui<strong>do</strong> acesso a<br />
uma tradição que percorrera <strong>do</strong>is <strong>século</strong>s, <strong>da</strong> segun<strong>da</strong> meta<strong>de</strong> <strong>do</strong> XVII à segun<strong>da</strong> meta<strong>de</strong><br />
<strong>do</strong> XIX.<br />
Deparámos como é evi<strong>de</strong>nte com novos autores, cujas preferências iam <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />
criticar, fazen<strong>do</strong> rir, até simplesmente enfraquecer a crítica à <strong>mulher</strong>, passan<strong>do</strong> pelos<br />
que quiseram enfraquecer a crítica e ao mesmo t<strong>em</strong>po contra-argumentar a favor <strong>da</strong>
<strong>mulher</strong>. O que se mantinha <strong>de</strong> texto a texto, <strong>de</strong> polémica a polémica era o t<strong>em</strong>a: a<br />
pon<strong>de</strong>ração <strong>de</strong> vícios e virtu<strong>de</strong>s <strong>da</strong> <strong>mulher</strong>.<br />
Nossa atenção, como se po<strong>de</strong> ver, esteve s<strong>em</strong>pre a ron<strong>da</strong>r o universo f<strong>em</strong>inino,<br />
aten<strong>de</strong>n<strong>do</strong> a duas pr<strong>em</strong>issas: na literatura <strong>de</strong> cor<strong>de</strong>l há muito interesse pela <strong>mulher</strong> - o<br />
que também quer dizer interesse <strong>em</strong> traçar um caminho restritivo para a <strong>mulher</strong> - e,<br />
sobretu<strong>do</strong> por esse motivo, é muito importante conhecer melhor a escassa produção<br />
cultural <strong>de</strong> autoria f<strong>em</strong>inina <strong>em</strong> suas características formais e t<strong>em</strong>áticas.<br />
Não pretendíamos realizar um estu<strong>do</strong> <strong>de</strong> género n<strong>em</strong> esgotar a discussão <strong>em</strong><br />
torno <strong>da</strong>s <strong>mulher</strong>es assumi<strong>da</strong>s como mitos nesta longa trajectória <strong>de</strong> disputas, vetos e<br />
transgressões. Queríamos i<strong>de</strong>ntificar as fontes <strong>da</strong>s autoras portuguesas, apontar os<br />
argumentos mais explora<strong>do</strong>s pelos <strong>do</strong>is la<strong>do</strong>s que disputavam o po<strong>de</strong>r, aferir o nível <strong>de</strong><br />
criativi<strong>da</strong><strong>de</strong> e perceber, finalmente, as razões <strong>do</strong> <strong>de</strong>clínio <strong>da</strong> troca <strong>de</strong> textos<br />
apologéticos.<br />
Com a finali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> evitar probl<strong>em</strong>as <strong>de</strong> interpretação por parte <strong>do</strong> público<br />
universitário a qu<strong>em</strong> o trabalho se dirige, aproveitamos a apresentação para justificar<br />
duas estratégias <strong>retórica</strong>s utiliza<strong>da</strong>s na re<strong>da</strong>cção <strong>do</strong>s próximos tópicos: o uso pontual <strong>do</strong><br />
negrito e a transcrição <strong>de</strong> duas ou três citações mais longas. Procuran<strong>do</strong> evi<strong>de</strong>nciar<br />
<strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s tópicos <strong>do</strong> texto, <strong>em</strong> especial no capítulo I, <strong>de</strong>cidimos colocar algumas<br />
palavras-chave <strong>em</strong> negrito. Acreditamos que a visualização <strong>do</strong> texto assim organiza<strong>do</strong><br />
torna mais fácil a leitura e, por extensão, o entendimento <strong>da</strong> sua estrutura. Nenhuma<br />
outra intenção nos motivou a escolher tal formatação e não nos pareceu que o aspecto<br />
gráfico final tenha si<strong>do</strong> prejudica<strong>do</strong>.<br />
Quanto a uma ou duas citações mais longas, julgámos mais acerta<strong>do</strong> mantê-las,<br />
mesmo que longas, porque guar<strong>da</strong>m informações que permit<strong>em</strong> circunscrever melhor o<br />
tópico que refer<strong>em</strong> e a ligação <strong>do</strong> seu autor com o t<strong>em</strong>a <strong>em</strong> estu<strong>do</strong>. É o caso <strong>do</strong>s<br />
fragmentos extraí<strong>do</strong>s <strong>da</strong> obra <strong>de</strong> Camila Henríquez Ureña: como se trata <strong>de</strong> intelectual<br />
<strong>de</strong> nacionali<strong>da</strong><strong>de</strong> estrangeira muito pouco referi<strong>da</strong> nas bibliografias portuguesas, mas<br />
muito influente na nossa posição crítica, convinha disponibilizar um excerto que<br />
abrangesse um leque maior <strong>da</strong>s suas i<strong>de</strong>ias. Não se trata <strong>de</strong> citação abusiva, <strong>de</strong> excesso<br />
<strong>de</strong> apego à autori<strong>da</strong><strong>de</strong>, mas <strong>de</strong> zelo para que a mensag<strong>em</strong> conti<strong>da</strong> no texto transcrito<br />
cumpra seu papel.
AGRADECIMENTOS<br />
Agra<strong>de</strong>ço às <strong>mulher</strong>es que me ensinam a ser: à minha avó, à minha mãe, às<br />
minhas irmãs e à minha queri<strong>da</strong> amiga Vânia.<br />
Agra<strong>de</strong>ço igualmente ao meu pai e ao meu irmão, meus ex<strong>em</strong>plos <strong>de</strong> tenaci<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />
Agra<strong>de</strong>ço ao António, o hom<strong>em</strong> que coloca to<strong>do</strong>s os dias ao alcance <strong>da</strong>s minhas<br />
mãos os tesouros que conquistou.<br />
Agra<strong>de</strong>ço à amiga Andreia Rosmaninho, pela amabili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>em</strong> fazer algumas<br />
leituras <strong>de</strong>ste trabalho.<br />
Agra<strong>de</strong>ço especialmente à Prof.ª Doutora Maria Luísa Malato, <strong>em</strong> nome <strong>da</strong><br />
paciência que teve para com as minhas hesitações e <strong>do</strong> <strong>de</strong>svelo habitual.
INTRODUÇÃO<br />
Depois <strong>de</strong> garanti<strong>da</strong> a clareza <strong>do</strong>s princípios que a<strong>do</strong>ptámos, cr<strong>em</strong>os ser mais<br />
proveitosa a análise que algumas questões nele mereceram e a leitura <strong>do</strong> material<br />
edita<strong>do</strong> por nós.<br />
A exposição <strong>da</strong>s bases nortea<strong>do</strong>ras <strong>de</strong> nossa análise consiste <strong>em</strong> quê,<br />
precisamente? Antes <strong>de</strong> mais, diz respeito: aos esclarecimentos sobre o estu<strong>do</strong> <strong>de</strong> textos<br />
f<strong>em</strong>ininos, à constituição <strong>do</strong> corpus. Depois às biografias <strong>do</strong>s escritores, ao contexto<br />
histórico <strong>em</strong> que eles viveram e, como não podia <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ser, ao interesse retórico que<br />
o material t<strong>em</strong> e que nos levou a conceber o presente estu<strong>do</strong>. Tratar<strong>em</strong>os pois<br />
segui<strong>da</strong>mente <strong>da</strong>s estratégias <strong>retórica</strong>s <strong>do</strong> discurso f<strong>em</strong>inista ou f<strong>em</strong>inino <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa <strong>da</strong><br />
<strong>mulher</strong>: a <strong>retórica</strong> <strong>do</strong> rosto <strong>do</strong> livro, a <strong>retórica</strong> <strong>da</strong> orali<strong>da</strong><strong>de</strong>, a <strong>retórica</strong> <strong>do</strong> riso, a <strong>retórica</strong><br />
<strong>da</strong> máxima, a <strong>retórica</strong> <strong>da</strong> autori<strong>da</strong><strong>de</strong> e a <strong>retórica</strong> <strong>do</strong> ex<strong>em</strong>plo, que nos parec<strong>em</strong> as mais<br />
importantes nestes textos <strong>do</strong> <strong>século</strong> XVIII.<br />
As consi<strong>de</strong>rações contextuais são to<strong>da</strong>s concisas, uma vez que nosso objectivo é<br />
preparar o leitor para o contacto com o cerne <strong>do</strong> trabalho, a análise. No que tange as<br />
biografias, por ex<strong>em</strong>plo, pouco pud<strong>em</strong>os construir e ofertar além <strong>de</strong> notas, esboços<br />
biográficos. São escassas as informações e a escassez faz com que elas não sejam<br />
<strong>de</strong>terminantes para a leitura <strong>do</strong> material. É muito mais forte o po<strong>de</strong>r <strong>da</strong> interlocução<br />
com ca<strong>da</strong> um <strong>do</strong>s textos apologéticos. Interrogar o texto e contrapor explicações<br />
pessoais e científicas às linhas <strong>de</strong> raciocínio que algumas autori<strong>da</strong><strong>de</strong>s já engendraram é<br />
o processo que oferec<strong>em</strong>os e que contamos seja enriqueci<strong>do</strong> <strong>em</strong> muitas <strong>da</strong>s apropriações<br />
que virão.<br />
1. O estu<strong>do</strong> <strong>de</strong> textos f<strong>em</strong>ininos<br />
Cit<strong>em</strong>os Camila Henríquez Ureña 2 , a fim <strong>de</strong> situar os estu<strong>do</strong>s <strong>do</strong><br />
<strong>de</strong>senvolvimento intelectual f<strong>em</strong>inino:<br />
2 Nasci<strong>da</strong> na República Dominicana, no ano <strong>de</strong> 1894, faleceu <strong>em</strong> 1973. Viveu muitos anos <strong>em</strong> Cuba, on<strong>de</strong><br />
trabalhou como professora e militou no movimento f<strong>em</strong>inista, ausentan<strong>do</strong>-se <strong>de</strong> lá por alguns perío<strong>do</strong>s<br />
apenas e com a finali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> leccionar <strong>em</strong> universi<strong>da</strong><strong>de</strong>s norte-americanas. A participação <strong>em</strong> congressos,<br />
conferências e reuniões para a criação <strong>de</strong> enti<strong>da</strong><strong>de</strong>s liga<strong>da</strong>s aos direitos <strong>da</strong>s <strong>mulher</strong>es <strong>de</strong>u-lhe bases para<br />
escrever muito, sen<strong>do</strong> mais evi<strong>de</strong>nte na actuali<strong>da</strong><strong>de</strong> o interesse pelos ensaios que ela produziu. Os<br />
responsáveis por compilar a obra resultante <strong>de</strong>sse activismo aproveitaram também os apontamentos para<br />
as aulas, os discursos e os esboços biográficos, to<strong>do</strong>s actualmente disponíveis na internet.
“… no es posible <strong>de</strong>cir que existiera antes <strong>de</strong> fines <strong>de</strong>l siglo XIX<br />
una cultura f<strong>em</strong>enina. Lo que se cultivaba en la mujer por medio <strong>de</strong> las<br />
artes <strong>de</strong> a<strong>do</strong>rno y <strong>de</strong> las faenas caseras, y sobre to<strong>do</strong>, por el cui<strong>da</strong><strong>do</strong>so<br />
<strong>de</strong>sarrollo en ella <strong>de</strong>l espíritu <strong>de</strong> sumisión, era un ser cuya existencia se<br />
concebía sólo en función correlativa cuyo término era el varón o era el<br />
hijo”.<br />
Ela especificava:<br />
“No importa cuál fuese la situación <strong>de</strong> la mujer –obrera obliga<strong>da</strong><br />
a ganarse el pan, <strong>da</strong>ma (exquisita flor parasitaria), honesta ama <strong>de</strong> casa<br />
burguesa, monja, criatura caí<strong>da</strong> en el <strong>de</strong>shonor y por ello priva<strong>da</strong> <strong>de</strong>l<br />
<strong>de</strong>recho a la luz <strong>de</strong>l sol <strong>de</strong> acuer<strong>do</strong> con leyes injustas y costumbres<br />
absur<strong>da</strong>s-, ella no podía <strong>de</strong>sarrollar su propia personali<strong>da</strong>d. Era hija,<br />
esposa, madre, hermana, esposa <strong>de</strong>l Señor reclui<strong>da</strong> en un convento que<br />
representaba a veces, relativamente, una liberación; pero no podía ser<br />
ella misma, una individuali<strong>da</strong>d humana” 3<br />
Precisamos reter, nesta justificativa <strong>de</strong> estu<strong>do</strong> <strong>da</strong> produção intelectual f<strong>em</strong>inina<br />
portuguesa <strong>do</strong> <strong>século</strong> XVIII, as observações que Camila Henríquez Ureña fez sobre os<br />
conhecimentos acalenta<strong>do</strong>s pela própria <strong>mulher</strong> <strong>de</strong> um mo<strong>do</strong> geral, no seu percurso<br />
formativo. Até o <strong>século</strong> XIX, segun<strong>do</strong> ela, não havia nasci<strong>do</strong> uma corrente que se<br />
responsabilizasse por sugerir uma disciplina, muito menos um projecto <strong>de</strong> facto (ain<strong>da</strong><br />
que utópico…) que alimentasse essa ou aquela i<strong>de</strong>ologia indissociável <strong>da</strong> <strong>mulher</strong>, para o<br />
b<strong>em</strong> <strong>da</strong> <strong>mulher</strong>; n<strong>em</strong> a própria <strong>mulher</strong> cui<strong>da</strong>va <strong>da</strong> sua ilustração pessoal n<strong>em</strong> o hom<strong>em</strong><br />
zelava por isso inadverti<strong>da</strong>mente. Estava reserva<strong>do</strong> à <strong>mulher</strong> um campo que não lhe<br />
pertencia, por mais contraditório que pareça. Fosse mãe, fosse <strong>do</strong>na <strong>de</strong> casa, fosse<br />
religiosa, nunca seria <strong>da</strong><strong>do</strong> que opinasse acerca <strong>do</strong> que lhe convinha <strong>em</strong> termos <strong>de</strong><br />
liber<strong>da</strong><strong>de</strong> para ir e vir, <strong>de</strong> amiza<strong>de</strong>s, <strong>de</strong> leituras, <strong>de</strong> exercício <strong>de</strong> uma activi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
profissional <strong>de</strong>svincula<strong>da</strong> <strong>do</strong> ambiente <strong>do</strong>méstico etc. Era um fazer s<strong>em</strong> pensar, um<br />
fazer s<strong>em</strong> registo <strong>de</strong> sentimentos, <strong>de</strong> <strong>em</strong>oções, <strong>de</strong> aspirações.<br />
Elisabeth Ravoux-Rallo exprimiu as mesmas certezas, só que partin<strong>do</strong> <strong>do</strong> estu<strong>do</strong><br />
<strong>de</strong> <strong>mulher</strong>es italianas <strong>do</strong> <strong>século</strong> XVIII. Em vez <strong>de</strong> fazer mais <strong>do</strong> mesmo, neste caso<br />
<strong>de</strong>screver a personag<strong>em</strong> Casanova, s<strong>em</strong> dúvi<strong>da</strong> sedutora e lendária, quis <strong>de</strong>scobrir como<br />
eram as <strong>mulher</strong>es que travaram contacto com ele e que <strong>de</strong>ram força à len<strong>da</strong>. Pesquisou a<br />
vi<strong>da</strong> <strong>em</strong> Veneza no intervalo <strong>de</strong> t<strong>em</strong>po que correspondia às conquistas amorosas <strong>de</strong>le e<br />
3 Salomé Camila Henríquez UREÑA, Obras y apuntes, 2006, pp. 110-111.
chegou à conclusão <strong>de</strong> que as <strong>mulher</strong>es eram “<strong>de</strong>corativas” 4 . Presa a este esta<strong>do</strong> tão<br />
pouco abona<strong>do</strong>r para a <strong>mulher</strong>, estava a ausência <strong>de</strong> modificações basilares no perfil<br />
<strong>da</strong>quelas <strong>mulher</strong>es, antes <strong>do</strong> <strong>século</strong> XVIII.<br />
Com relação à proposição <strong>de</strong> Camila Henríquez Ureña, t<strong>em</strong>os então uma<br />
diferença <strong>de</strong> épocas, uma antecipação, mas não mais <strong>do</strong> que isso. Mesmo que Elisabeth<br />
Ravoux-Rallo tenha aponta<strong>do</strong> uma reabilitação <strong>da</strong> <strong>mulher</strong> italiana – e <strong>da</strong> europeia <strong>de</strong> um<br />
mo<strong>do</strong> geral – ao longo <strong>do</strong> <strong>século</strong> XVIII, não significa que tenha ocorri<strong>do</strong> uma<br />
transformação <strong>da</strong> cultura <strong>da</strong> <strong>mulher</strong>. O que ela i<strong>de</strong>ntificou foi basicamente uma maior<br />
facili<strong>da</strong><strong>de</strong> no acesso à biblioteca paterna e uma <strong>de</strong>ssacralização, por parte <strong>da</strong> <strong>mulher</strong>, <strong>da</strong><br />
forma <strong>de</strong> encarar o casamento. Mas na<strong>da</strong> que chegasse às <strong>mulher</strong>es venezianas <strong>da</strong>s<br />
classes baixas, na<strong>da</strong> que rompesse com o geral analfabetismo f<strong>em</strong>inino, na<strong>da</strong> que<br />
quebrasse a tendência à submissão.<br />
Se a escrita (literária e crítica) f<strong>em</strong>inina é globalmente recente, mesmo na<br />
Europa, há motivo acresci<strong>do</strong> para estudá-la. Este estu<strong>do</strong> <strong>de</strong> mestra<strong>do</strong> faz parte<br />
justamente <strong>de</strong> uma reivindica<strong>da</strong> cultura f<strong>em</strong>inina. A natureza inédita <strong>do</strong>s textos<br />
apologéticos (ain<strong>da</strong> mais quan<strong>do</strong> escritos por <strong>mulher</strong>es) parece-nos suficient<strong>em</strong>ente<br />
interessante para que nos <strong>de</strong>diqu<strong>em</strong>os a eles.<br />
2. A constituição <strong>do</strong> corpus<br />
O texto crítico mais antigo estu<strong>da</strong><strong>do</strong> neste mestra<strong>do</strong> r<strong>em</strong>ete-nos para o ano <strong>de</strong><br />
1640. To<strong>da</strong>via, o que parece taxativo nesta afirmação obrigou-nos a algum apuramento<br />
histórico e merece uma ressalva, <strong>em</strong> nome <strong>do</strong> rigor indispensável à realização e à<br />
divulgação <strong>de</strong> uma investigação académica 5 . Tiv<strong>em</strong>os que consi<strong>de</strong>rar, no corpus com<br />
4 Elisabeth RAVOUX-RALLO, A <strong>mulher</strong> no t<strong>em</strong>po <strong>de</strong> Casanova, s/d, p. 34.<br />
5 Cf. Artur ANSELMO, Livros e mentali<strong>da</strong><strong>de</strong>s, 2002. O autor mostra que as edições <strong>do</strong>s <strong>século</strong>s XVIII e<br />
XIX, mesmo nos locais com alguma tradição no ramo livreiro - caso <strong>de</strong> Portugal -, continham erros e<br />
imprecisões que pod<strong>em</strong> ser atribuí<strong>do</strong>s aos censores, aos autores e aos tipógrafos (que acumulavam as<br />
funções <strong>de</strong> tipógrafo propriamente dito, <strong>de</strong> editor e <strong>de</strong> comerciante), sen<strong>do</strong>, portanto, arrisca<strong>do</strong> assegurar<br />
que esta ou aquela prática era constante e consensual. O número crescente <strong>de</strong> publicações, b<strong>em</strong> como o <strong>de</strong><br />
oficinas tipográficas e <strong>de</strong> livreiros fez subir proporcionalmente as variantes qualitativas <strong>do</strong> trabalho com o<br />
livro. Som<strong>em</strong>os a esta contingência inerente à activi<strong>da</strong><strong>de</strong> editorial três el<strong>em</strong>entos pon<strong>de</strong>ráveis passa<strong>do</strong>s<br />
<strong>em</strong> Portugal àquela altura: 1) o ensino estava a ser bastante altera<strong>do</strong> no país, pela expulsão <strong>do</strong>s jesuítas no<br />
ano <strong>de</strong> 1759 e a reforma universitária pombalina; 2) o cosmopolitismo <strong>da</strong> época e o contacto com outras<br />
culturas europeias <strong>da</strong>va aos portugueses um <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> transformação e <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong> (basta que<br />
record<strong>em</strong>os as iniciativas <strong>de</strong> Luís António Verney), uma atenção especial para com os livros, promovi<strong>da</strong><br />
pelo rei D. João V, s<strong>em</strong> contar que a presença <strong>de</strong> livreiros estrangeiros, que tanta contestação gerara,<br />
inflamava o merca<strong>do</strong> <strong>de</strong> livros e acelerava, por isso, as mu<strong>da</strong>nças; 3) o terramoto que <strong>em</strong> 1755 atingiu a<br />
ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Lisboa, en<strong>de</strong>reço <strong>de</strong> muitas oficinas nomea<strong>da</strong>s no corpus <strong>de</strong>ste estu<strong>do</strong> <strong>de</strong> mestra<strong>do</strong>, afectou<br />
necessariamente as condições <strong>de</strong> trabalho <strong>da</strong>s tipografias portuguesas.
que começávamos a trabalhar <strong>em</strong> maior ou menor grau, o facto <strong>de</strong> alguns não possuír<strong>em</strong><br />
<strong>da</strong>ta.<br />
To<strong>da</strong>s as <strong>da</strong>tas incertas aponta<strong>da</strong>s têm como suporte as indicações <strong>do</strong> site <strong>da</strong><br />
Porbase, sedia<strong>do</strong> na Biblioteca Nacional <strong>de</strong> Portugal (BNP), fonte fulcral <strong>da</strong> nossa<br />
pesquisa com vistas à <strong>de</strong>limitação <strong>do</strong> corpus. Em três casos <strong>de</strong> dúvi<strong>da</strong>, a ficha<br />
bibliográfica disponibiliza<strong>da</strong> on-line nos foi ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iramente útil ain<strong>da</strong> que, num outro<br />
caso isola<strong>do</strong>, não tenha si<strong>do</strong> possível inferir uma <strong>da</strong>ta. Nesse caso, justificamos a<br />
<strong>da</strong>tação <strong>em</strong> razão <strong>da</strong> presença <strong>de</strong> alusões <strong>de</strong> outros textos no corpus por nós constituí<strong>do</strong>.<br />
Com base nessas <strong>da</strong>tas indica<strong>da</strong>s ou prováveis, agrupámos <strong>em</strong> quatro blocos os<br />
<strong>do</strong>cumentos encontra<strong>do</strong>s. A lógica que seguimos tinha por objectivo dividir <strong>em</strong> três<br />
conjuntos distintos os textos <strong>de</strong> <strong>folhetos</strong> <strong>de</strong> cor<strong>de</strong>l sobre <strong>mulher</strong>es respondi<strong>do</strong>s por<br />
homens e/ou por <strong>mulher</strong>es, (ressalvamos, contu<strong>do</strong>, que <strong>em</strong> alguns casos a i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
<strong>do</strong>s autores fora protegi<strong>da</strong>, mediante o uso <strong>de</strong> pseudónimo), pois há entre textos <strong>do</strong><br />
mesmo bloco, mas não entre to<strong>do</strong>s os textos - pelo menos não <strong>em</strong> interlocução directa -<br />
evi<strong>de</strong>ntes relações intertextuais. Reunimos <strong>em</strong> um quarto bloco textos alheios às três<br />
<strong>polémicas</strong> f<strong>em</strong>inistas recorta<strong>da</strong>s <strong>do</strong> universo textual setecentista, para <strong>de</strong>ixarmos claro<br />
quais textos <strong>de</strong> cor<strong>de</strong>l dão suporte à reflexão, tanto quanto o aparato puramente teórico<br />
nos po<strong>de</strong> <strong>da</strong>r. No Bloco A estão os três primeiros textos que “conversam”; o primeiro<br />
texto foi escrito por um hom<strong>em</strong> e <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> li<strong>do</strong> por duas senhoras, gerou duas<br />
refutações 6 . O Bloco B t<strong>em</strong> <strong>do</strong>is textos, o primeiro escrito por uma <strong>mulher</strong> e o outro<br />
respondi<strong>do</strong> por um hom<strong>em</strong>. O Bloco C t<strong>em</strong> um texto feito por outro hom<strong>em</strong>, muito<br />
provavelmente, e respondi<strong>do</strong> <strong>em</strong> duas partes, por uma mesma senhora. O Bloco D t<strong>em</strong><br />
cinco textos distintos que aqui são agrupa<strong>do</strong>s por conter<strong>em</strong> importantes <strong>da</strong><strong>do</strong>s<br />
contextuais.<br />
No quadro disposto nas quatro páginas seguintes, incluímos to<strong>da</strong>s as edições <strong>de</strong><br />
que tiv<strong>em</strong>os notícia ao pesquisar tais textos, para além <strong>da</strong>quelas que manuseámos, com<br />
a finali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> compor um panorama tão completo quanto possível.<br />
Não tomamos nossa lista como <strong>de</strong>finitiva: ela é fruto <strong>da</strong> busca que<br />
<strong>em</strong>preend<strong>em</strong>os, mas aceitamos que possa ter outra configuração; no caso <strong>da</strong>s edições <strong>da</strong><br />
6 Na reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, os textos <strong>do</strong> Bloco B também alimentam a polémica lança<strong>da</strong> pelo <strong>do</strong>cumento <strong>de</strong> Baltasar<br />
Dias. Porém, preferimos separá-los <strong>do</strong>s textos <strong>do</strong> Bloco A porque concentrámo-nos numa conexão<br />
intertextual que vai além <strong>da</strong> a<strong>do</strong>pção <strong>da</strong> t<strong>em</strong>ática representa<strong>da</strong> por Baltasar Dias. Com excepção <strong>do</strong>s<br />
textos <strong>do</strong> Bloco D, to<strong>do</strong>s, <strong>em</strong> última análise, r<strong>em</strong>et<strong>em</strong> o leitor atento para a conten<strong>da</strong> <strong>de</strong> Baltasar Dias.<br />
Nosso ponto está na interlocução que se nota <strong>em</strong> termos retóricos; M.D.M.C.D.M.A.E.C. e L.D.P.G., por<br />
ex<strong>em</strong>plo, não optaram pela forma poética, escreveram prosa, por isso repercut<strong>em</strong> o t<strong>em</strong>a <strong>de</strong> Baltasar Dias<br />
s<strong>em</strong> parafrasear.
obra <strong>de</strong> Baltasar Dias, por ex<strong>em</strong>plo, já l<strong>em</strong>os que houve <strong>de</strong>zasseis, e não <strong>do</strong>ze, como<br />
discriminámos e localizámos, mas foi impossível apurarmos tal informação 7 .<br />
Consi<strong>de</strong>rámos os seguintes <strong>do</strong>cumentos, assim dividi<strong>do</strong>s:<br />
• [DIAS, Baltazar]<br />
Bloco A<br />
Malicia <strong>da</strong>s Mulheres, […] porque nella se tratão muitas sentenças,<br />
authori<strong>da</strong><strong>de</strong>s àcerca <strong>da</strong> malicia, que ha <strong>em</strong> algumas <strong>de</strong>llas, […]. Lisboa<br />
Occi<strong>de</strong>ntal : Off. <strong>de</strong> António Alvares, 1640. - 8 pp.<br />
Tiv<strong>em</strong>os conhecimento <strong>de</strong> outras onze edições cataloga<strong>da</strong>s pela BNP e pela<br />
Biblioteca Pública Municipal <strong>do</strong> Porto (BPMP), caso <strong>da</strong> segun<strong>da</strong> edição:<br />
o Lisboa Occi<strong>de</strong>ntal : Off. <strong>de</strong> Domingos Carneyro, 1659;<br />
o Lisboa Occi<strong>de</strong>ntal: Off. <strong>de</strong> Bernar<strong>do</strong> <strong>da</strong> Costa Carvalho, 1720;<br />
o Lisboa : Off. <strong>de</strong> Manoel Fernan<strong>de</strong>s <strong>da</strong> Costa, 1738 ;<br />
o Lisboa : Off. <strong>de</strong> Francisco Borges <strong>de</strong> Sousa, 1759;<br />
o Lisboa : Off. <strong>de</strong> João António Reis, 1794;<br />
o Lisboa : Impressão Régia, 1814;<br />
o Lisboa : Nova Imp. Da Viúva Neves e Filhos, 1815;<br />
o Lisboa : Typ. <strong>de</strong> António Lino <strong>de</strong> Oliveira, 1827;<br />
o Porto : Typ. <strong>de</strong> S.J. Ferreira, 1851;<br />
o Lisboa : Typ. <strong>de</strong> Sebastião José Ferreira, 1856;<br />
o Porto : Livraria Portugueza, 1897.<br />
Consultámos as edições <strong>de</strong>: 1720, 1738, 1759, 1761 e 1814.<br />
• GRAÇA, Paula <strong>da</strong><br />
Bon<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s Mulheres vendica<strong>da</strong> e malicia <strong>do</strong>s Homens manifesta. Papel<br />
métrico, e apologetico, <strong>em</strong> que se <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> a f<strong>em</strong>enina innocencia, contra<br />
outro <strong>em</strong> que injustamente se arguê a sua mal<strong>da</strong><strong>de</strong>, com o titulo <strong>de</strong> Malicia<br />
7 Cf. Fina D’ARMADA, O livro f<strong>em</strong>inista <strong>de</strong> 1715, 2008., p. 19: “Conhec<strong>em</strong>-se pelo menos 16<br />
edições…”.
<strong>da</strong>s Mulheres / por Paula <strong>da</strong> Graça. Lisboa : Off. <strong>de</strong> Bernar<strong>do</strong> <strong>da</strong> Costa <strong>de</strong><br />
Carvalho, 1715. 8 pp.<br />
Há outras duas edições cataloga<strong>da</strong>s pela BNP 8 :<br />
o Lisboa : Off. <strong>de</strong> Pedro Ferreira, 1741;<br />
o Lisboa : Off. <strong>de</strong> Pedro Ferreira, 1743.<br />
Já a BPMP t<strong>em</strong> uma edição cataloga<strong>da</strong>:<br />
o Lisboa : Off. <strong>de</strong> António Gomes, 1793.<br />
Consultámos a edição <strong>de</strong> 1741.<br />
• [Anón.]<br />
Defeza <strong>do</strong> bello sexo ou resposta ao papel intitula<strong>do</strong> ‘Malicia <strong>da</strong>s <strong>mulher</strong>es’,<br />
<strong>da</strong><strong>da</strong> por uma senhora <strong>da</strong> província a uma sua amiga na seguinte epístola.<br />
Lisboa : Impressão Régia, 1812. 7 pp.<br />
• L.D.P.G.<br />
Bloco B<br />
Bon<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s Mulheres contra a malicia <strong>do</strong>s Homens : relação cómica, e<br />
historica, para divertimento <strong>de</strong> qu<strong>em</strong> a comprar e utili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> qu<strong>em</strong> a<br />
ven<strong>de</strong>r : Parte I / escrita por sua authora L.D.P.G, S.l. : s.n., s.d. 8 pp.<br />
Tiv<strong>em</strong>os conhecimento <strong>de</strong> quatro outras edições cataloga<strong>da</strong>s pela Porbase:<br />
o Lisboa : Off. <strong>de</strong> Francisco Borges <strong>de</strong> Sousa, 1759;<br />
o [Lisboa? : s.n., 1805?];<br />
o Lisboa : Off. <strong>de</strong> Joaquim Thomaz <strong>de</strong> Aquino Bulhões, 1805;<br />
o Lisboa : Typ. <strong>de</strong> Mathias José Marques <strong>da</strong> Silva, 1860.<br />
Folheámos a terceira e a quarta edições.<br />
8 A BNP não t<strong>em</strong> <strong>em</strong> seu acervo a edição <strong>do</strong> texto <strong>de</strong> Paula <strong>da</strong> Graça <strong>de</strong> 1715, ele está na Torre <strong>do</strong><br />
Tombo.
• M.D.M.C.D.M.A.E.C.<br />
Malicia <strong>do</strong>s Homens contra a bon<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s Mulheres : <strong>em</strong>bargos, que os<br />
homens põ<strong>em</strong> à primeira parte. Mostra-se os males <strong>de</strong> que são causa: parte<br />
segun<strong>da</strong>, / escrita por M.D.M.C.D.M.A.E.C. Lisboa : Off. <strong>de</strong> Francisco<br />
Borges <strong>de</strong> Sousa, 1759. 8 pp.<br />
Consultámos também outra edição cataloga<strong>da</strong> pela BNP:<br />
o Lisboa : Off. <strong>de</strong> Joaquim Tomás <strong>de</strong> Aquino Bulhões, 1805.<br />
• DESENGANO, Ama<strong>do</strong>r <strong>do</strong><br />
Bloco C<br />
Espelho critico, no qual claramente se v<strong>em</strong> alguns <strong>de</strong>feitos <strong>da</strong>s Mulheres,<br />
fabrica<strong>do</strong> na loja <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> pelo Irmão Ama<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Desengano, ‘que pó<strong>de</strong><br />
servir <strong>de</strong> estimulo para a reforma <strong>do</strong>s mesmos <strong>de</strong>feitos’. Lisboa : Off. <strong>de</strong><br />
António Vicente <strong>da</strong> Silva, 1761. 14 pp.<br />
• JESUS, Gertru<strong>de</strong>s Margari<strong>da</strong> <strong>de</strong><br />
Primeira carta apologetica, <strong>em</strong> favor e <strong>de</strong>fensa <strong>da</strong>s <strong>mulher</strong>es, escrita por<br />
Dona Gertru<strong>de</strong>s Margari<strong>da</strong> <strong>de</strong> Jesus, ao Irmão Ama<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Dezengano,<br />
‘com a qual <strong>de</strong>stroe to<strong>da</strong> a fabrica <strong>do</strong> seu Espelho Critico’. Lisboa : Off. <strong>de</strong><br />
Francisco Borges <strong>de</strong> Sousa, 1761. 14 pp.<br />
• JESUS, Gertru<strong>de</strong>s Margari<strong>da</strong> <strong>de</strong><br />
Segun<strong>da</strong> carta Apologetica, <strong>em</strong> favor, e <strong>de</strong>fensa <strong>da</strong>s <strong>mulher</strong>es, escrita por<br />
Dona Gertru<strong>de</strong>s Margari<strong>da</strong> <strong>de</strong> Jesus, ao Irmão Ama<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Dezengano,<br />
‘com a qual <strong>de</strong>stroe to<strong>da</strong> a fabrica <strong>do</strong> seu Espelho Critico. E se respon<strong>de</strong> ao<br />
terceiro <strong>de</strong>feito, que nelle cont<strong>em</strong>plou’. Lisboa : Off. <strong>de</strong> Francisco Borges <strong>de</strong><br />
Sousa, 1761. 14 pp.<br />
Bloco D
• [Anón.]<br />
Desengano <strong>de</strong> ciosos, atrevimento <strong>de</strong> <strong>mulher</strong>es, perigo que corre a<br />
formosura, ain<strong>da</strong> quanto mais <strong>de</strong>fendi<strong>da</strong>: expressa<strong>do</strong> no sucesso, que<br />
aconteceo na ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Napoles. Conselho para mari<strong>do</strong>s indiscretos, e<br />
velhos rabugentos. Segun<strong>da</strong> parte. Lisboa : Off. <strong>do</strong> Dr. Manoel Alvares<br />
Solano <strong>do</strong> Vale, s.d.. 7 pp.<br />
Tiv<strong>em</strong>os conhecimento <strong>de</strong> outra edição cataloga<strong>da</strong> pela Porbase:<br />
o Lisboa : Off. Alvarense, 1753.<br />
• [LOBO, Francisco Xavier]<br />
Devoção <strong>da</strong>s <strong>mulher</strong>es <strong>da</strong> mo<strong>da</strong> na Igreja, e o mo<strong>do</strong> com que nunca ouv<strong>em</strong><br />
missa. Em dialogo… S.l. : s.n., s.d.. 16 pp.<br />
Tiv<strong>em</strong>os conhecimento <strong>de</strong> outras duas edições <strong>de</strong>ste texto, a primeira<br />
cataloga<strong>da</strong> pela Porbase e a segun<strong>da</strong> pelo Diccionario Bibliographico<br />
Portuguez, <strong>de</strong> Innocencio Francisco <strong>da</strong> Silva e Brito Aranha:<br />
o Lisboa : Off. <strong>de</strong> Francisco Sabino <strong>do</strong>s Santos, 1774;<br />
o Lisboa : Off. <strong>de</strong> Filippe <strong>da</strong> Silva Azeve<strong>do</strong>, 1784.<br />
• Nova relação contra as Mulheres ou parvoices <strong>do</strong>s seus enfeites. S.l. : s.n.,<br />
s.d.. 8 pp.<br />
A ficha bibliográfica presente no site <strong>da</strong> Porbase apresenta o texto como<br />
sen<strong>do</strong> <strong>de</strong> 1750.<br />
• [COELHO, João]<br />
Segun<strong>da</strong> parte <strong>da</strong> pregação <strong>de</strong> João Coelho, feitas as senhoras Mulheres <strong>da</strong><br />
mo<strong>da</strong> para consolação <strong>do</strong>s coita<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s mari<strong>do</strong>s : offereci<strong>da</strong> ás<br />
ferrugentissimas senhoras <strong>do</strong>nas moe<strong>da</strong>s <strong>de</strong> <strong>de</strong>z reis, por mãos <strong>do</strong> <strong>do</strong>utor<br />
Pantaleão Pato Pires Pinto, çapateiro <strong>da</strong>s Musas d’algum dia, e hoje
aposenta<strong>do</strong> <strong>em</strong> R<strong>em</strong>endão <strong>do</strong> Parnaso. Lisboa : Off. <strong>de</strong> Simão Ta<strong>de</strong>u<br />
Ferreira, 1787. 15 pp.<br />
• CARNEIRO, José <strong>de</strong> São Cirilo<br />
Carta e resposta sobre o odio <strong>do</strong>s inimigos francezes, e sobre o ornato <strong>da</strong>s<br />
<strong>mulher</strong>es, occasiona<strong>da</strong>s por hum Sermão, que se prégou na Igreja <strong>de</strong> S.<br />
Paulo <strong>da</strong> Ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Lisboa no primeiro <strong>de</strong> Janeiro <strong>de</strong> 1811… / Fr. José <strong>de</strong><br />
S. Cyrillo Carneiro. - Lisboa : Impressão Régia, 1811. – 197pp.<br />
Omissões s<strong>em</strong>elhantes à que exclui a “Parte I” ou “primeira” <strong>da</strong> edição <strong>de</strong> 1860<br />
<strong>do</strong> texto Bon<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s Mulheres contra a malicia <strong>do</strong>s Homens, mais <strong>do</strong> que um eventual<br />
<strong>de</strong>clínio <strong>de</strong>ssa gama <strong>de</strong> textos apologéticos no <strong>século</strong> XIX, marca<strong>do</strong> pela atenção às<br />
<strong>em</strong>oções <strong>do</strong> sujeito e avesso à imitação <strong>do</strong> estilo setecentista, pod<strong>em</strong> pren<strong>de</strong>r-se com a<br />
<strong>de</strong>svalorização <strong>do</strong>s textos apologéticos escritos por <strong>mulher</strong>es e para <strong>mulher</strong>es: as<br />
bibliotecas guar<strong>da</strong>m e catalogam o que foi, por alguma razão, mais estima<strong>do</strong>.<br />
Realc<strong>em</strong>os também o facto <strong>de</strong> alguns textos ser<strong>em</strong> traduções, ain<strong>da</strong> que livres; Nova<br />
relação contra as Mulheres ou parvoices <strong>do</strong>s seus enfeites, por ex<strong>em</strong>plo, é praticamente<br />
tradução <strong>de</strong> um folheto espanhol 9 . Convém recor<strong>da</strong>r que <strong>em</strong> Espanha, assim como <strong>em</strong><br />
França e <strong>em</strong> Portugal, a exaltação <strong>da</strong>s <strong>mulher</strong>es estava patente na literatura, basta que<br />
assinal<strong>em</strong>os a existência <strong>de</strong> uma outra publicação estrangeira <strong>de</strong> referência <strong>do</strong> <strong>século</strong><br />
XVIII, Galeria <strong>de</strong> mugeres fuertes, tradução <strong>de</strong> um livro <strong>do</strong> padre Pedro Lamotne.<br />
Conforme verificámos, alguns textos <strong>de</strong>stes <strong>folhetos</strong> <strong>de</strong> cor<strong>de</strong>l portugueses<br />
tiveram mais <strong>do</strong> que uma edição. É o caso <strong>de</strong> Malicia <strong>da</strong>s Mulheres, Bon<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s<br />
Mulheres vendica<strong>da</strong> e malicia <strong>do</strong>s Homens manifesta e Desengano <strong>de</strong> ciosos,<br />
atrevimento <strong>de</strong> <strong>mulher</strong>es. Seria contraproducente atermo-nos a ca<strong>da</strong> uma <strong>de</strong>las. Em<br />
primeiro lugar, a consulta a algumas edições era inviável, <strong>em</strong> razão <strong>do</strong> mau esta<strong>do</strong> <strong>de</strong><br />
conservação. Em segun<strong>do</strong> lugar, as edições consulta<strong>da</strong>s não continham, <strong>em</strong> geral,<br />
variantes que foss<strong>em</strong> relevantes, sob o prisma s<strong>em</strong>ântico. É importante realçar, to<strong>da</strong>via,<br />
que nossa restrição neste segun<strong>do</strong> caso foi também qualitativa: os <strong>do</strong>cumentos<br />
abrangi<strong>do</strong>s seriam reedições <strong>de</strong> <strong>do</strong>cumentos <strong>do</strong> Bloco D, que não t<strong>em</strong> textos f<strong>em</strong>inistas,<br />
n<strong>em</strong> dialogavam explicitamente com <strong>do</strong>cumentos f<strong>em</strong>inistas; to<strong>da</strong>s as edições que<br />
constam <strong>do</strong> bloco <strong>em</strong> questão foram somente manti<strong>da</strong>s na investigação porque nos<br />
9 Maria José Moutinho SANTOS, “O luxo e as mo<strong>da</strong>s <strong>em</strong> textos <strong>de</strong> cor<strong>de</strong>l <strong>da</strong> segun<strong>da</strong> meta<strong>de</strong> <strong>do</strong> séc.<br />
XVIII”, Separata <strong>da</strong> Revista <strong>de</strong> História, Porto, Vol. IX, 1989, pp. 137 a 164.
<strong>da</strong>vam oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>senhar melhor o contexto histórico e o <strong>de</strong> género, ambos <strong>em</strong><br />
análise.<br />
Se conseguimos separar nossos objectos <strong>de</strong> estu<strong>do</strong> <strong>em</strong> função <strong>do</strong> t<strong>em</strong>po, é<br />
possível inscrevê-los também <strong>em</strong> um conjunto <strong>de</strong> alguma regulari<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>em</strong> termos <strong>de</strong><br />
apresentação e <strong>de</strong> potencial interesse <strong>do</strong>s tipógrafos e <strong>do</strong> público, ain<strong>da</strong> quan<strong>do</strong> os<br />
autores eram anónimos ou já tinham si<strong>do</strong> edita<strong>do</strong>s há muito. Isto significa que nosso<br />
<strong>de</strong>sejo para este início <strong>de</strong> caracterização <strong>do</strong> corpus - que corrobora o valor <strong>da</strong>s cartas<br />
centrais nesta investigação foi sublinhar correspondências ao nível <strong>do</strong> t<strong>em</strong>po, para<br />
partir, então, para as correspondências ao nível <strong>da</strong> formatação gráfica, <strong>do</strong>s<br />
procedimentos retóricos e <strong>da</strong>s referências i<strong>de</strong>ológicas. Mediante tal exercício <strong>de</strong><br />
circunscrição, tornou-se mais fiável aos nossos olhos a análise <strong>de</strong>sse material e<br />
esperamos que tenha este mesmo resulta<strong>do</strong> aos olhos <strong>do</strong>s nossos leitores.<br />
3. Biografias <strong>de</strong> quase anónimos<br />
Baltasar Dias, <strong>da</strong> ilha <strong>da</strong> Ma<strong>de</strong>ira, poeta cego <strong>de</strong> nascença, foi <strong>da</strong><strong>do</strong> pelo<br />
Diccionario bibliograghico portuguez 10 como o autor <strong>de</strong> mais <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>zena <strong>de</strong> obras<br />
literárias que vão <strong>de</strong> 1612 a 1668 (a última obra atribuí<strong>da</strong> a ele, pela referi<strong>da</strong> fonte, não<br />
está <strong>da</strong>ta<strong>da</strong>). Inocêncio também informava que, no ano <strong>de</strong> 1640, Baltasar Dias publicara<br />
um texto chama<strong>do</strong> Auto <strong>da</strong> malicia <strong>da</strong>s <strong>mulher</strong>es. Havia duas coincidências que<br />
precisávamos ter <strong>em</strong> mente. O nome <strong>de</strong>ste autor estava anota<strong>do</strong> à mão, <strong>em</strong> letra cursiva,<br />
no ex<strong>em</strong>plar impresso com esse título e <strong>da</strong>ta<strong>do</strong> <strong>de</strong> 1814. Isto faria com que Malicia <strong>da</strong>s<br />
Mulheres passasse a ser o texto mais antigo <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong> nosso corpus. Outra informação<br />
<strong>de</strong> Inocêncio que importava é que o Auto <strong>da</strong> malicia <strong>da</strong>s <strong>mulher</strong>es continha quintilhas,<br />
conforme o que tínhamos <strong>em</strong> mãos. A informação não <strong>de</strong>ixava <strong>de</strong> ter suas lacunas, no<br />
entanto, pois a fonte não especificava se to<strong>da</strong>s as edições inventaria<strong>da</strong>s teriam<br />
efectivamente texto <strong>em</strong> quintilhas. O Dicionário <strong>de</strong> literatura portuguesa especificava<br />
também que: “Em 1536 solicitou a D. João III o privilégio <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r imprimir e ven<strong>de</strong>r a<br />
sua obra. Foi-lhe concedi<strong>do</strong> a 20 <strong>de</strong> Fevereiro <strong>de</strong> 1537, figuran<strong>do</strong> no alvará que<br />
‘Nenhum ymprimi<strong>do</strong>r imprima as obras <strong>do</strong> dito Baltesar Dias, ceguo…” 11 . A fonte<br />
também o reconhecia como o autor <strong>de</strong> Auto <strong>da</strong> Malicia <strong>da</strong>s Mulheres, mas nos <strong>de</strong>ixava<br />
<strong>em</strong> dúvi<strong>da</strong> quanto à época <strong>da</strong> publicação. Seria mesmo <strong>de</strong> 1640 a primeira edição <strong>do</strong><br />
texto que estu<strong>da</strong>mos com a <strong>da</strong>ta <strong>de</strong> 1659? Não seria ain<strong>da</strong> mais antiga? O que teria feito<br />
10 Inocêncio Francisco <strong>da</strong> SILVA, Dicionario bibliographico portuguez, Tomo VIII, p. 322.<br />
11 Álvaro Manuel MACHADO, Dicionário <strong>de</strong> literatura portuguesa, p. 163.
com que a obra fosse edita<strong>da</strong> mais <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>zena <strong>de</strong> vezes, trocan<strong>do</strong> inclusive <strong>de</strong><br />
oficina tipográfica? E o que dizer <strong>da</strong> “erudição” a que Diogo Barbosa Macha<strong>do</strong> alu<strong>de</strong>:<br />
<strong>em</strong> que medi<strong>da</strong> ela estaria mesmo por trás <strong>do</strong> texto, isto é, a serviço <strong>da</strong> construção<br />
<strong>retórica</strong>? 12 O certo é que o texto que conhec<strong>em</strong>os, o <strong>de</strong> 1659, <strong>de</strong>u orig<strong>em</strong> a um clássico<br />
<strong>do</strong>s <strong>folhetos</strong> <strong>de</strong> cor<strong>de</strong>l com reedições que vão até 1897, pelo menos.<br />
Os autores <strong>do</strong>s <strong>folhetos</strong> <strong>de</strong> cor<strong>de</strong>l são frequent<strong>em</strong>ente omiti<strong>do</strong>s. Mesmo assim,<br />
não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser significativo que, mesmo quan<strong>do</strong> o folheto <strong>de</strong> cor<strong>de</strong>l assinala o nome<br />
<strong>do</strong> autor, seja muito difícil seguir-lhe o rasto. A marginali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> género reflecte s<strong>em</strong><br />
dúvi<strong>da</strong> <strong>em</strong> parte a marginali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> autor. Assim é que Francisco Xavier Lobo, autor<br />
não <strong>de</strong>clara<strong>do</strong> <strong>de</strong> outro <strong>do</strong>s nossos <strong>do</strong>cumentos volantes, Devoção <strong>da</strong>s <strong>mulher</strong>es <strong>da</strong><br />
mo<strong>da</strong> na Igreja, e o mo<strong>do</strong> com que nunca ouv<strong>em</strong> missa, muitas vezes tenha si<strong>do</strong><br />
confundi<strong>do</strong> com António Lobo <strong>de</strong> Carvalho, conheci<strong>do</strong> poeta satírico <strong>da</strong> segun<strong>da</strong><br />
meta<strong>de</strong> <strong>do</strong> <strong>século</strong> XVIII. O texto <strong>do</strong> Diccionario Bibliographico Portuguez 13<br />
reproduzira ain<strong>da</strong> a informação <strong>de</strong> que ele tinha vocação para compor <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong> género<br />
cómico.<br />
Algumas dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s se nos <strong>de</strong>pararam também com a i<strong>de</strong>ntificação <strong>do</strong> autor <strong>de</strong><br />
Espelho critico, no qual claramente se v<strong>em</strong> alguns <strong>de</strong>feitos <strong>da</strong>s Mulheres. Qu<strong>em</strong> seria o<br />
Irmão Ama<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Desengano, obviamente um pseudónimo? Tratar-se-ia <strong>de</strong> João<br />
Teo<strong>do</strong>ro <strong>de</strong> Neras (ou João Teo<strong>do</strong>ro <strong>de</strong> Nera, como grafou Maria Antónia Lopes 14 )? Ele<br />
publicara <strong>em</strong> 1760 um texto sobre <strong>mulher</strong>es, este sim assina<strong>do</strong>: Metho<strong>do</strong> pratico com<br />
que as senhoras <strong>mulher</strong>es assist<strong>em</strong> nos t<strong>em</strong>plos, principalmente no t<strong>em</strong>po <strong>do</strong>s sermões,<br />
etc, que a Porbase t<strong>em</strong> inventaria<strong>do</strong>. Tal suposição acerca <strong>do</strong> autor <strong>do</strong> Espelho critico,<br />
no qual claramente se v<strong>em</strong> alguns <strong>de</strong>feitos <strong>da</strong>s Mulheres é <strong>de</strong> Maria José Moutinho<br />
Santos, que não fornece, no entanto, as razões pelas quais fez a associação, dizen<strong>do</strong><br />
abruptamente e apenas “João Theo<strong>do</strong>ro <strong>de</strong> Neras, o autor <strong>do</strong> ‘Espelho Crítico’…” 15 .<br />
Mais se sabe sobre o autor <strong>de</strong> Carta e resposta sobre o odio <strong>do</strong>s inimigos<br />
francezes, e sobre o ornato <strong>da</strong>s <strong>mulher</strong>es. Frei José <strong>de</strong> São Cirilo 16 é natural <strong>de</strong> Refoios<br />
e foi Carmelita calça<strong>do</strong>. Tornou-se <strong>do</strong>utor <strong>em</strong> Teologia pela Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Coimbra<br />
no ano <strong>de</strong> 1789; era presbítero secular <strong>em</strong> 1836, quan<strong>do</strong> entregou prospecto para a<br />
12<br />
Diogo Barbosa MACHADO, Bibliohteca lusitana, 1741, p. 446.<br />
13<br />
Inocêncio Francisco <strong>da</strong> SILVA, Dicionário bibliográfico português, Tomo IX, (letras C-G, pp. 390-<br />
391).<br />
14<br />
Maria Antónia LOPES, Mulheres, espaço e sociabili<strong>da</strong><strong>de</strong>, 1989, p. 160.<br />
15<br />
Maria José Moutinho SANTOS, “Perspectivas sobre a situação <strong>da</strong> <strong>mulher</strong> no <strong>século</strong> XVIII”, p. 39.<br />
16<br />
Inocêncio Francisco <strong>da</strong> SILVA, Dicionario bibliographico portuguez, Tomo IV, p. 198, e Tomo XIII,<br />
pp. 303- 304.
impressão <strong>de</strong> várias <strong>de</strong> suas obras. Em 1814 escrevera sobre a clausura f<strong>em</strong>inina,<br />
informação que <strong>de</strong> alguma maneira reforçou nossas suposições <strong>de</strong> que ele se interessava<br />
pela t<strong>em</strong>ática. Morreu <strong>em</strong> Lisboa <strong>em</strong> 1837.<br />
Quanto a um religioso com o nome <strong>de</strong> João Coelho, tal qual o prega<strong>do</strong>r referi<strong>do</strong><br />
com esse nome no texto Segun<strong>da</strong> parte <strong>da</strong> pregação <strong>de</strong> João Coelho, feitas as senhoras<br />
Mulheres <strong>da</strong> mo<strong>da</strong> para consolação <strong>do</strong>s coita<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s mari<strong>do</strong>s […] por mãos <strong>do</strong> <strong>do</strong>utor<br />
Pantaleão Pato Pires Pinto […], pensámos <strong>de</strong> início que seria natural <strong>de</strong> Barcelos,<br />
licencia<strong>do</strong> e prega<strong>do</strong>r <strong>de</strong> renome, mas a época muito distinta <strong>da</strong> indica<strong>da</strong> nesta edição <strong>de</strong><br />
1787 nos fez reavaliar o resulta<strong>do</strong> <strong>da</strong> busca 17 . Uma segun<strong>da</strong> fonte <strong>da</strong>va Pantaleão Pato<br />
Pires Pinto, o outro autor menciona<strong>do</strong> no título <strong>do</strong> texto referi<strong>do</strong>, como André António<br />
Correia, que faleceu a 25 <strong>de</strong> Outubro <strong>de</strong> 1822, mas na<strong>da</strong> constava acerca <strong>da</strong> publicação<br />
que <strong>em</strong> nosso trabalho é referi<strong>da</strong> 18 .<br />
Os outros autores são quase outros tantos ex<strong>em</strong>plos <strong>da</strong>s dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s que nos<br />
acometeram: Gertru<strong>de</strong>s Margari<strong>da</strong> <strong>de</strong> Jesus, a autora <strong>da</strong> Primeira carta apologetica, <strong>em</strong><br />
favor e <strong>de</strong>fensa <strong>da</strong>s <strong>mulher</strong>es e <strong>da</strong> Segun<strong>da</strong> carta Apologetica, <strong>em</strong> favor, e <strong>de</strong>fensa <strong>da</strong>s<br />
<strong>mulher</strong>es, <strong>em</strong> função <strong>da</strong> habili<strong>da</strong><strong>de</strong> com que elaborara tais réplicas ao texto <strong>do</strong> Irmão<br />
Ama<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Desengano, po<strong>de</strong>ria ser assumi<strong>da</strong> como uma <strong>mulher</strong> muito ilustra<strong>da</strong>?<br />
Atentan<strong>do</strong> para o facto <strong>de</strong> que ela extraíra ex<strong>em</strong>plos <strong>de</strong> fontes recentes relativamente à<br />
elocução, sim. É provável que lesse muito e que tivesse vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> b<strong>em</strong> impressionar,<br />
ao sugerir erudição. Consultas aos Índices <strong>de</strong> Registos Paroquiais <strong>de</strong> Lisboa 19 , to<strong>da</strong>via,<br />
não <strong>de</strong>ram bons resulta<strong>do</strong>s. Encontrámos o registo <strong>de</strong> casamento <strong>de</strong> uma certa Gertru<strong>de</strong>s<br />
Margari<strong>da</strong> <strong>de</strong> Jesus, mas no ano <strong>de</strong> 1817, o que torna a figura <strong>em</strong> questão muito<br />
improvável como a autora <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is textos <strong>de</strong> 1761. Também Joaquim Nunes Colares,<br />
outra pista localiza<strong>da</strong> no site <strong>da</strong> Porbase, contraiu matrimónio com uma Margari<strong>da</strong><br />
Gertru<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Jesus, e não com Gertru<strong>de</strong>s Margari<strong>da</strong> <strong>de</strong> Jesus.<br />
A biografia <strong>de</strong> Paula <strong>da</strong> Graça põe-nos <strong>em</strong> s<strong>em</strong>elhante impasse. Ela po<strong>de</strong> ter si<strong>do</strong><br />
aia <strong>da</strong> rainha D. Maria Ana <strong>de</strong> Áustria, not<strong>em</strong>os que as edições <strong>de</strong> 1741 e 1743 foram<br />
impressas na oficina tipográfica régia, conforme explica Fina d’Arma<strong>da</strong> 20 . Na página <strong>de</strong><br />
rosto <strong>do</strong> folheto <strong>de</strong> cor<strong>de</strong>l consta: “assistente nesta Corte”, expressão que po<strong>de</strong> indiciar<br />
alguma confiança estabeleci<strong>da</strong> com a corte. Ela igualmente po<strong>de</strong> ter usa<strong>do</strong> um<br />
pseudónimo (até porque, para publicar um livro, naquela época, uma <strong>mulher</strong> casa<strong>da</strong><br />
17 Diogo Barbosa MACHADO, Bibliotheca lusitana, II, p. 638.<br />
18 Maria Teresa VIDIGAL, O Dicionário <strong>de</strong> pseudónimos <strong>de</strong> Albino Lapa, 1980, p. 139.<br />
19 Luís AMARAL, Índices <strong>de</strong> Registos Paroquiais <strong>de</strong> Lisboa, Lisboa, Guar<strong>da</strong>-Mor, 2006. p. 248.<br />
20 Fina D’ARMADA, O livro f<strong>em</strong>inista <strong>de</strong> 1715, 2008, p. 37.
precisava <strong>da</strong> autorização <strong>do</strong> mari<strong>do</strong>). Também po<strong>de</strong> ter si<strong>do</strong> uma freira, esta foi<br />
justamente a aposta <strong>de</strong> Mário Cesariny 21 .<br />
Sobre os pseudónimos/abreviaturas <strong>de</strong> L.D.P.G. e <strong>de</strong> M.D.M.C.D.M.E.C.,<br />
atribuíveis pelo texto a <strong>do</strong>is autores, o primeiro <strong>do</strong> sexo f<strong>em</strong>inino e o segun<strong>do</strong>, <strong>do</strong><br />
masculino, na<strong>da</strong> pod<strong>em</strong>os adiantar.<br />
4. Contexto histórico <strong>do</strong>s textos <strong>em</strong> estu<strong>do</strong><br />
O interesse que estes textos conservam na actuali<strong>da</strong><strong>de</strong>, ou melhor, o interesse<br />
com que os pesquisa<strong>do</strong>res <strong>da</strong> actuali<strong>da</strong><strong>de</strong> pod<strong>em</strong> olhar para estes textos está liga<strong>do</strong><br />
também ao facto <strong>de</strong> ter<strong>em</strong> nasci<strong>do</strong> <strong>em</strong> “épocas mais apaga<strong>da</strong>s” 22 . Os <strong>século</strong>s XVII e<br />
XVIII representam, para a literatura portuguesa, perío<strong>do</strong>s <strong>de</strong> produção literária mais<br />
obscura e, por isso, vêm merecen<strong>do</strong> pouca atenção por parte <strong>da</strong> crítica, se compara<strong>do</strong>s<br />
aos textos <strong>do</strong> Renascimento e <strong>do</strong> Romantismo, por ex<strong>em</strong>plo. Consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong> a hipótese <strong>de</strong><br />
ter havi<strong>do</strong> um <strong>de</strong>clínio na quali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> literatura portuguesa <strong>de</strong>sses <strong>século</strong>s, a mesma<br />
que ostenta, <strong>em</strong> outras fases, um Gil Vicente, um Camões, um Camilo Pessanha, um<br />
Fernan<strong>do</strong> Pessoa ou um José Saramago, enfim, é importante sabermos <strong>em</strong> que senti<strong>do</strong><br />
se po<strong>de</strong> dizer que estes também venciam a apatia perio<strong>do</strong>lógica e com que mo<strong>de</strong>los e<br />
géneros nós medir<strong>em</strong>os suas próprias figuras e os seus textos. É relevante saber por que<br />
as mo<strong>da</strong>s <strong>da</strong>quela época foram por nós consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong>s estéreis, por que é que, a <strong>de</strong>speito<br />
<strong>do</strong> muito pensar e <strong>do</strong> muito publicar, pouca novi<strong>da</strong><strong>de</strong> cultural inspirava os escritores<br />
portugueses.<br />
Alguma razão haverá, cr<strong>em</strong>os, <strong>em</strong> ver na Inquisição portuguesa uma forma <strong>de</strong><br />
limitação criativa 23 . Para não entrar <strong>em</strong> conflito com os censores, os intelectuais<br />
portugueses ficavam pelos t<strong>em</strong>as mais amenos, pelas repetições.<br />
21 Cf. Mário Cesariny <strong>de</strong> VASCONCELOS, Horta <strong>de</strong> literatura <strong>de</strong> cor<strong>de</strong>l, 1983, pp. 19-20. A afirmação<br />
<strong>do</strong> escritor, no entanto, não é fun<strong>da</strong>menta<strong>da</strong> neste livro, nenhuma fonte é menciona<strong>da</strong> ou cita<strong>da</strong> para<br />
sustentá-la.<br />
22 Thereza Leitão <strong>de</strong> BARROS, Escritoras <strong>de</strong> Portugal, 1924, p. 12.<br />
23 A excepção maior parece-nos ser o Padre António Vieira, autor <strong>de</strong> numerosos sermões construí<strong>do</strong>s com<br />
apuro e <strong>de</strong> mais <strong>de</strong> setecentas cartas. E ain<strong>da</strong> ele se não viu livre <strong>de</strong> apuros com o Santo Ofício. A questão<br />
é que ele não esteve sist<strong>em</strong>aticamente inseri<strong>do</strong> na corte portuguesa como os agentes culturais que<br />
tentamos caracterizar. Esteve no Brasil, esteve <strong>em</strong> Portugal, esteve <strong>em</strong> Itália, percorria vastos territórios<br />
<strong>em</strong> nome <strong>de</strong> causas, <strong>de</strong> convicções, <strong>de</strong> programas firma<strong>do</strong>s com rigor. Dessa forma, sentia ain<strong>da</strong> a pressão<br />
<strong>da</strong> Inquisição e foi por ela con<strong>de</strong>na<strong>do</strong>, no caso <strong>da</strong> <strong>de</strong>fesa <strong>do</strong>s cristãos-novos, mas não sentia directamente<br />
o impacto <strong>da</strong> clausura intelectual. E, muito <strong>em</strong>bora seja um génio, não precisa ser entendi<strong>do</strong> como cria<strong>do</strong>r<br />
<strong>de</strong> uma nova concepção <strong>de</strong> arte, porque é quase um fenómeno isola<strong>do</strong>, um prodígio. Curiosamente é mais<br />
estu<strong>da</strong><strong>do</strong> no Brasil <strong>do</strong> que <strong>em</strong> Portugal, o que v<strong>em</strong> a confirmar nossas suspeitas <strong>de</strong> que é também por<br />
razões políticas, i<strong>de</strong>ológicas que o perío<strong>do</strong> <strong>em</strong> questão atrai poucos investiga<strong>do</strong>res.
Po<strong>de</strong> ser uma conexão muito linear, mas não afast<strong>em</strong>os a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> ser<br />
este um perío<strong>do</strong> <strong>de</strong> eleição <strong>do</strong> género herói-cómico graças à ambigui<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong>s expoentes<br />
no cenário cultural. À falta <strong>de</strong> personali<strong>da</strong><strong>de</strong>s que conduziss<strong>em</strong> o grupo, pequeno ou<br />
gran<strong>de</strong>, rumo a algum tipo <strong>de</strong> projecto nacional, <strong>de</strong> projecto artístico mais <strong>de</strong>fini<strong>do</strong> e<br />
mais arroja<strong>do</strong>, não teria si<strong>do</strong> o género herói-cómico alternativa risível, uma saí<strong>da</strong><br />
honrosa, viável?<br />
Destacamos, é certo, o surgimento <strong>da</strong>s Acad<strong>em</strong>ias neste perío<strong>do</strong> histórico – e<br />
não só <strong>em</strong> Portugal, conforme relata Nicole Castan 24 . Os intelectuais portugueses<br />
pod<strong>em</strong> hoje surpreen<strong>de</strong>r pouco quanto à excelência <strong>do</strong>s textos que produziam, mas se<br />
reuniam ain<strong>da</strong> assim. Ao menos, alargavam o círculo <strong>de</strong> actuação, buscavam outras<br />
formas <strong>de</strong> sociabili<strong>da</strong><strong>de</strong>. Falar com seus pares, usar a palavra, <strong>da</strong>va-lhes uma<br />
compreensão melhor <strong>de</strong> qu<strong>em</strong> eram, <strong>de</strong> como respondiam ao preceito <strong>da</strong> honra, <strong>da</strong><br />
virtu<strong>de</strong>, <strong>da</strong> própria ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia, <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong>s práticas e <strong>da</strong>s aspirações <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
portuguesa <strong>de</strong> então. Em Portugal, ain<strong>da</strong> que num movimento mais tardio que <strong>em</strong> Itália,<br />
<strong>em</strong> França ou mesmo <strong>em</strong> Espanha, foram cria<strong>da</strong>s ou recria<strong>da</strong>s, entre outras: a Acad<strong>em</strong>ia<br />
<strong>da</strong>s Conferências Discretas e Eruditas, a Acad<strong>em</strong>ia Portuguesa, a Acad<strong>em</strong>ia Real <strong>de</strong><br />
História Portuguesa, a Acad<strong>em</strong>ia <strong>do</strong>s Anónimos, a Acad<strong>em</strong>ia <strong>do</strong>s Ocultos, a Acad<strong>em</strong>ia<br />
<strong>do</strong>s Escolhi<strong>do</strong>s, a Acad<strong>em</strong>ia <strong>do</strong>s Aplica<strong>do</strong>s.<br />
Vejamos a partir <strong>de</strong> um levantamento publica<strong>do</strong> num volume t<strong>em</strong>ático <strong>da</strong> revista<br />
Dix-huitième siècle casos pontuais <strong>de</strong> <strong>mulher</strong>es inseri<strong>da</strong>s nas acad<strong>em</strong>ias francesas<br />
consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong>-se a França mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> civilização <strong>da</strong>s Luzes 25 : Ma<strong>de</strong>leine <strong>de</strong> Scu<strong>de</strong>ry, <strong>em</strong><br />
1671, obtivera o primeiro lugar no concurso <strong>de</strong> eloquência <strong>da</strong> Acad<strong>em</strong>ia Francesa.<br />
Quase c<strong>em</strong> anos mais tar<strong>de</strong>, <strong>em</strong> 1761, seria a vez <strong>de</strong> Mad<strong>em</strong>oiselle <strong>de</strong> Berman ganhar o<br />
prémio pela mesma capaci<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>da</strong><strong>do</strong> pela Socie<strong>da</strong><strong>de</strong> Real <strong>de</strong> Nancy. Já <strong>em</strong> 1777, era a<br />
Acad<strong>em</strong>ia <strong>de</strong> Marselha que atribuía a Ma<strong>da</strong>me Brisson prémio equivalente. Alguns anos<br />
<strong>de</strong>pois, <strong>em</strong> 1815, Ma<strong>da</strong>me Dufresnoy foi pr<strong>em</strong>ia<strong>da</strong> na categoria <strong>de</strong> poesia, o que<br />
suce<strong>de</strong>ria a Louise Colet por quatro vezes, <strong>em</strong> 1839, 1843, 1852 e 1854. Da<strong>do</strong>s mais<br />
gerais são: a participação <strong>de</strong> vinte <strong>mulher</strong>es francesas <strong>em</strong> concursos académicos <strong>em</strong><br />
França no <strong>século</strong> XVIII; a preferência <strong>da</strong>s <strong>mulher</strong>es europeias <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> <strong>em</strong> estu<strong>do</strong><br />
pelos concursos <strong>da</strong>s acad<strong>em</strong>ias <strong>de</strong> província, como a <strong>de</strong> Toulouse. Não sen<strong>do</strong><br />
abun<strong>da</strong>ntes os ex<strong>em</strong>plos que escolh<strong>em</strong>os, ficámos a perceber que a presença f<strong>em</strong>inina<br />
24<br />
Nicole CASTAN, “O público e o particular”, capítulo <strong>da</strong> obra dirigi<strong>da</strong> por Philippe ARIÈS e Georges<br />
DUBY, História <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> priva<strong>da</strong>, v. 3.<br />
25<br />
John IVERSON e Marie-Pascale PIERETTI, “‛Toutes personnes […] seront admises à concourir’: la<br />
participation <strong>de</strong>s f<strong>em</strong>mes aux concours académiques”, Dix-huitième siècle nº 36, 2004, p. 330.
nas acad<strong>em</strong>ias era, <strong>em</strong> geral, tão pontual que carecia <strong>de</strong> <strong>de</strong>staque, <strong>de</strong> levantamento, <strong>de</strong><br />
“propagan<strong>da</strong>”.<br />
Ain<strong>da</strong> nas acad<strong>em</strong>ias, como nos textos populares, <strong>em</strong> Portugal ou na Europa,<br />
satirizava-se ou se filosofava sobre a figura <strong>da</strong> <strong>mulher</strong> leitora ou <strong>da</strong> <strong>mulher</strong> fala<strong>do</strong>ra. Os<br />
homens não estavam acostuma<strong>do</strong>s à <strong>mulher</strong> social ou intelectualmente activa porque<br />
consciente <strong>da</strong>s próprias capaci<strong>da</strong><strong>de</strong>s. A excepção ficava por conta <strong>da</strong> <strong>mulher</strong> que<br />
integrava as ass<strong>em</strong>bleias, nas quais o protagonismo f<strong>em</strong>inino era claro, conforme<br />
relatou Raquel Bello Vasquez 26 .<br />
Ao irradiar controvérsias no <strong>do</strong>mínio <strong>da</strong> lógica e ao inventar situações mais<br />
corriqueiras para criticar as <strong>mulher</strong>es, os homens estavam a criar condições para repeli-<br />
las <strong>de</strong> seu espaço <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, ameaça<strong>do</strong>, numa prática que aju<strong>da</strong> a <strong>de</strong>finir o perío<strong>do</strong> <strong>em</strong><br />
questão, <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com a perspectiva <strong>de</strong> Arlette Farge: “A difamação <strong>da</strong> virtu<strong>de</strong><br />
f<strong>em</strong>inina é uma arma que po<strong>de</strong> servir vários alvos, seja o <strong>de</strong> atingir a própria <strong>mulher</strong>,<br />
seja o <strong>de</strong> atingir o hom<strong>em</strong> liga<strong>do</strong> a essa <strong>mulher</strong>” 27 . Esse uso <strong>da</strong> palavra, essa aplicação<br />
<strong>da</strong> palavra <strong>em</strong> prol <strong>de</strong> <strong>polémicas</strong> contra a <strong>mulher</strong> fazia parte <strong>de</strong> um jogo social, era uma<br />
estratégia para garantir um <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> estatuto social. As <strong>mulher</strong>es podiam ser<br />
controla<strong>da</strong>s pelos homens, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que rumores acerca <strong>da</strong> sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>da</strong> honra, <strong>da</strong><br />
virtu<strong>de</strong> f<strong>em</strong>inina foss<strong>em</strong> espalha<strong>do</strong>s. Como Arlette Farge conclui ao analisar os<br />
processos judiciais <strong>em</strong> França, na segun<strong>da</strong> meta<strong>de</strong> <strong>do</strong> <strong>século</strong> XVIII, se a virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma<br />
<strong>mulher</strong> era ataca<strong>da</strong>, se a honra <strong>de</strong> uma <strong>mulher</strong> era posta <strong>em</strong> xeque, a própria <strong>mulher</strong> saía<br />
<strong>de</strong>sacredita<strong>da</strong> e igualmente o hom<strong>em</strong> a qu<strong>em</strong> ela estava liga<strong>da</strong>. A hierarquia social era<br />
regula<strong>da</strong> também mediante esses procedimentos que envolviam a palavra.<br />
Apenas um parêntesis no caso específico <strong>de</strong> Portugal: aqui nos parece muito<br />
importante a <strong>retórica</strong> <strong>do</strong> riso, talvez mais frequent<strong>em</strong>ente <strong>do</strong> que nos textos apologéticos<br />
franceses ou ingleses. Em Portugal, a criação <strong>de</strong> <strong>polémicas</strong> <strong>em</strong> torno <strong>da</strong> <strong>mulher</strong> parece-<br />
nos <strong>de</strong>rivar muitas vezes para a oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> proporcionar chacota, <strong>de</strong> aliviar<br />
tensões. Ou seria mais <strong>do</strong> que isso? Uma versão mais digerível <strong>da</strong> mesma crítica à<br />
<strong>mulher</strong>, <strong>da</strong> mesma necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> controlar a <strong>mulher</strong>? Esperamos que, ao entrarmos no<br />
tópico que examina o riso <strong>da</strong> forma como foi usa<strong>do</strong> nos textos apologéticos, tenhamos<br />
el<strong>em</strong>entos para aprofun<strong>da</strong>r esta nossa suspeita.<br />
26 Raquel Bello VÁSQUEZ, “Sociabili<strong>da</strong><strong>de</strong> e aristocracia <strong>em</strong> Portugal no último quartel <strong>do</strong> <strong>século</strong><br />
XVIII”, VIII Congresso Luso-Afro-Brasileiro <strong>de</strong> Ciências Sociais, Coimbra, Set<strong>em</strong>bro <strong>de</strong> 2004, p. 2.<br />
27 Arlette FARGE, “Famílias. A honra e o segre<strong>do</strong>”, capítulo <strong>da</strong> obra dirigi<strong>da</strong> por Philippe ARIÈS e<br />
Georges DUBY, História <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> priva<strong>da</strong>, v. 3, p. 595.
Hav<strong>em</strong>os <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar, para encerrar esta introdução, outra razão forte a favor<br />
<strong>do</strong> estu<strong>do</strong> <strong>do</strong>s textos <strong>de</strong> cor<strong>de</strong>l <strong>do</strong> Setecentos. Atentámos no facto <strong>de</strong> ao longo <strong>do</strong> <strong>século</strong><br />
XVIII ter existi<strong>do</strong> uma série <strong>de</strong> <strong>mulher</strong>es europeias que nesse formato e <strong>de</strong>ssa forma<br />
publicaram seus textos: <strong>mulher</strong>es <strong>da</strong> nobreza, religiosas e s<strong>em</strong> dúvi<strong>da</strong> até <strong>mulher</strong>es <strong>de</strong><br />
vivência burguesa. A tendência inclui um pormenor interessante: a maior parte <strong>da</strong>s<br />
autoras sobre as quais pesquisámos na tentativa <strong>de</strong> melhor compreen<strong>de</strong>r as autoras<br />
portuguesas <strong>do</strong> mesmo perío<strong>do</strong>, preferiam o género <strong>da</strong> carta 28 . E, que se saiba, longe <strong>de</strong><br />
fazer<strong>em</strong> <strong>da</strong> escrita uma profissão, apenas assinavam uma obra. Razões para a<br />
<strong>de</strong>scontinui<strong>da</strong><strong>de</strong>? É o que cumpre investigar, até sabermos se, no <strong>século</strong> XVIII, elas<br />
ultrapassaram o limite <strong>do</strong> interesse <strong>em</strong> discorrer sobre a materni<strong>da</strong><strong>de</strong>, as viagens <strong>em</strong> que<br />
na maioria <strong>da</strong>s vezes estavam a acompanhar o mari<strong>do</strong> etc.<br />
Enfim, a <strong>mulher</strong> podia “ser ella misma”, durante o <strong>século</strong> XVIII? Camila<br />
Henríquez Ureña externou inquietação frente a essa lacuna; a nós ain<strong>da</strong> é quase um<br />
exercício <strong>de</strong> imaginação <strong>de</strong>scobrir essa <strong>mulher</strong>, se ela mesma se <strong>de</strong>sconhecia, alheia a<br />
tantas práticas sociais e suas múltiplas possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s. Quan<strong>do</strong> se estu<strong>da</strong> a escrita<br />
f<strong>em</strong>inina, cumpre s<strong>em</strong>pre <strong>em</strong> gran<strong>de</strong> parte investigar a autentici<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> discurso (mais<br />
<strong>do</strong> que a verosimilhança <strong>de</strong>le) para, fecha<strong>do</strong>s os livros, perguntarmo-nos qu<strong>em</strong> somos,<br />
se ilhas <strong>de</strong>sconheci<strong>da</strong>s, se <strong>de</strong>scobri<strong>do</strong>ras.<br />
28 GIROU-SWIDERSKI, Marie-Laure - “Surprises et leçons d’un inventaire: la prose féminine nonfictionnelle<br />
au 18 e siècle”, Dix-huitième siècle nº 36, 2004, p. 171.
CAP. I - A RETÓRICA DOS DISCURSOS APOLOGÉTICOS<br />
V<strong>em</strong> merecen<strong>do</strong> estu<strong>do</strong> a utilização <strong>de</strong> estratégias <strong>retórica</strong>s no discurso<br />
f<strong>em</strong>inino, uma vez que a arte <strong>da</strong> <strong>retórica</strong> consciencializa a <strong>mulher</strong> quanto aos<br />
instrumentos <strong>de</strong> que ela po<strong>de</strong> dispor, se <strong>de</strong>sejar partir para uma toma<strong>da</strong> <strong>de</strong> posição<br />
diferente na socie<strong>da</strong><strong>de</strong>. Na posse <strong>do</strong>s segre<strong>do</strong>s <strong>da</strong> Retórica, diz<strong>em</strong> os críticos mais<br />
conscientes <strong>da</strong> força <strong>da</strong> linguag<strong>em</strong>, a <strong>mulher</strong> po<strong>de</strong> re<strong>de</strong>finir-se, individualizar-se. E<br />
como se já não fosse uma façanha a busca <strong>de</strong>sse conhecimento adia<strong>do</strong> tão a contragosto,<br />
a <strong>mulher</strong> po<strong>de</strong> também confrontar o género masculino; po<strong>de</strong> mostrar-lhe que o controlo<br />
<strong>da</strong>s relações po<strong>de</strong> exce<strong>de</strong>r o exercício <strong>da</strong> auto-<strong>de</strong>fesa, <strong>de</strong>ven<strong>do</strong> a linguag<strong>em</strong> ser, antes,<br />
prerrogativa <strong>de</strong> qu<strong>em</strong> é capaz <strong>de</strong> a usar para criar, d<strong>em</strong>onstran<strong>do</strong> integri<strong>da</strong><strong>de</strong>, isto é,<br />
coerência entre a criação e o próprio cria<strong>do</strong>r. Por roubar constant<strong>em</strong>ente o turno a outro<br />
agente social, a outro possível e competente interveniente, não só inibe a expressão livre<br />
<strong>de</strong> um estilo, como mascara o estilo próprio <strong>de</strong> qu<strong>em</strong> tolhe a participação <strong>do</strong> outro.<br />
Ficamos s<strong>em</strong>pre a conhecer menos <strong>de</strong> <strong>do</strong>is corpos e <strong>de</strong> <strong>do</strong>is estilos, quan<strong>do</strong> a <strong>mulher</strong> é<br />
silencia<strong>da</strong>, quan<strong>do</strong> <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> se pronunciar sobre o género f<strong>em</strong>inino e o masculino.<br />
Acontece que ca<strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> alimenta um número varia<strong>do</strong> <strong>de</strong> relações entre seus<br />
m<strong>em</strong>bros, b<strong>em</strong> como <strong>de</strong> relações <strong>de</strong>sses m<strong>em</strong>bros com a expressão <strong>do</strong>s seus anseios<br />
mais autênticos. Nos meios regula<strong>do</strong>s pela pari<strong>da</strong><strong>de</strong> entre os sexos - ou menos<br />
escan<strong>da</strong>liza<strong>do</strong>s e inseguros quanto à hipótese <strong>de</strong> divisão <strong>de</strong> prazeres e espaços<br />
comunitários -, a comunicação flui <strong>de</strong> forma mais espontânea e assim também a<br />
mobili<strong>da</strong><strong>de</strong> entre as esferas <strong>de</strong> influência ou entre as re<strong>de</strong>s que as pessoas <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is<br />
géneros pod<strong>em</strong> criar a partir <strong>do</strong> <strong>do</strong>mínio <strong>da</strong> Retórica. As economias <strong>em</strong> que transitamos,<br />
por ex<strong>em</strong>plo, sen<strong>do</strong> mais rígi<strong>da</strong>s, são mais fecha<strong>da</strong>s ao <strong>de</strong>senvolvimento paralelo <strong>do</strong><br />
género f<strong>em</strong>inino e <strong>do</strong> masculino. Essa condição traduz-nos e até nos afasta mais <strong>do</strong>s<br />
grupos <strong>em</strong> que o equilíbrio – s<strong>em</strong>pre tenso – entre hom<strong>em</strong> e <strong>mulher</strong> teria algo a nos<br />
ensinar.<br />
Muito mais restritiva quanto à <strong>em</strong>ancipação <strong>da</strong> <strong>mulher</strong> era, a socie<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
portuguesa <strong>do</strong> <strong>século</strong> XVIII, conforme se nos apresenta nos <strong>do</strong>cumentos que extraímos<br />
<strong>de</strong> algumas Miscelâneas e nas citações <strong>da</strong> crítica especializa<strong>da</strong>.<br />
Isto posto, com que conhecimentos específicos <strong>de</strong>v<strong>em</strong>os chegar até a <strong>mulher</strong> <strong>do</strong><br />
<strong>século</strong> XVIII, para a ler s<strong>em</strong> incorrer <strong>em</strong> anacronismos? Na altura <strong>da</strong> escrita <strong>do</strong>s<br />
primeiros <strong>do</strong>cumentos que analisámos, ain<strong>da</strong> não havia passa<strong>do</strong> um <strong>século</strong> <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que a<br />
socie<strong>da</strong><strong>de</strong> portuguesa recebera a Carta <strong>de</strong> guia <strong>de</strong> casa<strong>do</strong>s, <strong>de</strong> D. Francisco Manuel <strong>de</strong>
Melo. O livro era fruto <strong>de</strong> muitas leituras sobre o casamento e trazia a novi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
consi<strong>de</strong>rá-lo uma instituição imperfeita, sujeita a probl<strong>em</strong>as. A <strong>mulher</strong> não saía <strong>do</strong><br />
conflito abona<strong>da</strong>, no entanto, pois ela era consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong> o próprio <strong>de</strong>safio <strong>da</strong> vi<strong>da</strong><br />
conjugal, tinha tantos <strong>de</strong>feitos quanto o mari<strong>do</strong> lições a <strong>da</strong>r.<br />
O imaginário <strong>do</strong> público leitor f<strong>em</strong>inino podia estar povoa<strong>do</strong>, também, por<br />
textos para orientação/direcção espiritual, sermões proferi<strong>do</strong>s pelos missionários e<br />
notícias <strong>da</strong> activi<strong>da</strong><strong>de</strong> pastoral <strong>de</strong> personali<strong>da</strong><strong>de</strong>s portuguesas penetrantes e muito b<strong>em</strong><br />
articula<strong>da</strong>s. Não faltavam nomes: Padre António Vieira, Frei António <strong>da</strong>s Chagas, Padre<br />
Manuel Bernar<strong>de</strong>s, Francisco Rodrigues Lobo.<br />
O Padre António Vieira consoli<strong>do</strong>u um mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> discurso apologético. Usou<br />
literalmente a expressão “carta apologética”, mais tar<strong>de</strong> escolhi<strong>da</strong> para o título <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is<br />
textos <strong>de</strong> Gertru<strong>de</strong>s Margari<strong>da</strong> <strong>de</strong> Jesus. Parecia fazer questão <strong>de</strong> <strong>em</strong>pregar a própria<br />
autori<strong>da</strong><strong>de</strong> e o natural <strong>de</strong>s<strong>em</strong>baraço para comunicar e estreitar laços, <strong>da</strong>n<strong>do</strong> com isso<br />
ex<strong>em</strong>plo <strong>da</strong> tenaci<strong>da</strong><strong>de</strong> posta a favor <strong>de</strong> uma causa frágil e nobre. Um pouco <strong>do</strong> espírito<br />
<strong>em</strong>preen<strong>de</strong><strong>do</strong>r português, um pouco <strong>do</strong> espírito aguerri<strong>do</strong> <strong>da</strong> época, o test<strong>em</strong>unho <strong>de</strong>le<br />
po<strong>de</strong> ter servi<strong>do</strong> <strong>de</strong> inspiração para o afinco <strong>da</strong>s autoras <strong>do</strong> <strong>século</strong> XVIII. Em 1735 saiu<br />
pela Oficina <strong>da</strong> Congregação <strong>do</strong> Oratório, <strong>em</strong> Lisboa, o primeiro tomo <strong>da</strong>s Cartas <strong>do</strong><br />
jesuíta. Em 1757, saía a própria Carta apologética <strong>de</strong> António Vieira. No mesmo<br />
senti<strong>do</strong> também Elias J. Torres Feijó, orienta<strong>do</strong>r <strong>de</strong> uma pesquisa acerca <strong>da</strong> produção<br />
escrita f<strong>em</strong>inina <strong>da</strong> segun<strong>da</strong> meta<strong>de</strong> <strong>do</strong> <strong>século</strong> XVIII, afirma que Gertru<strong>de</strong>s Margari<strong>da</strong><br />
tinha <strong>em</strong> mente a produção que acabámos <strong>de</strong> referir, quan<strong>do</strong> preparou as duas <strong>de</strong>fesas<br />
que conhec<strong>em</strong>os 29 .<br />
Frei António <strong>da</strong>s Chagas, que viajou pelo interior <strong>de</strong> Portugal para pregar, sen<strong>do</strong><br />
s<strong>em</strong>pre aguar<strong>da</strong><strong>do</strong> por muitas pessoas, durante vinte anos escreveu cartas e sermões,<br />
géneros permiti<strong>do</strong>s a um público f<strong>em</strong>inino <strong>de</strong>sejoso <strong>de</strong> conselhos e <strong>em</strong> parte por eles<br />
pacifica<strong>do</strong>: “Exercita-se a paciência; <strong>da</strong> paciência nasce a mansidão, <strong>da</strong> qual Deus muito<br />
se enamora” 30 . As cartas foram publica<strong>da</strong>s pela primeira vez <strong>em</strong> 1684 e<br />
compl<strong>em</strong>enta<strong>da</strong>s <strong>em</strong> 1687, e não será estranho supor que Paula <strong>da</strong> Graça, Gertru<strong>de</strong>s<br />
Margari<strong>da</strong> <strong>de</strong> Jesus, L.D.P.G. e outras autoras as pu<strong>de</strong>ss<strong>em</strong> ter li<strong>do</strong>.<br />
29 O texto <strong>de</strong> Elias J. Torres FEIJOO que oferece a informação sobre as presumíveis leituras <strong>de</strong> Gertru<strong>de</strong>s<br />
Margari<strong>da</strong> <strong>de</strong> Jesus é “Cartas apologéticas, cartas pol<strong>em</strong>istas. As cartas apologéticas <strong>de</strong> Gertru<strong>de</strong>s<br />
Margari<strong>da</strong> <strong>de</strong> Jesus. Argumentaçom e inovaçom” e encontra-se no livro Correspondências. Uso <strong>da</strong> carta<br />
no <strong>século</strong> XVIII, 2005, coor<strong>de</strong>na<strong>do</strong> por Van<strong>da</strong> Anastácio.<br />
30 Frei António <strong>da</strong>s CHAGAS, Cartas espirituais, 2000, p. 72.
Pens<strong>em</strong>os também nas cartas <strong>de</strong> Luís António Verney, que no Ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro<br />
méto<strong>do</strong> <strong>de</strong> estu<strong>da</strong>r inseriu a probl<strong>em</strong>ática <strong>da</strong> instrução f<strong>em</strong>inina. Como ele enalteceu a<br />
educação <strong>da</strong>s <strong>mulher</strong>es, ain<strong>da</strong> que <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma lógica <strong>de</strong> aperfeiçoamento <strong>da</strong><br />
economia <strong>do</strong>méstica, po<strong>de</strong> ser que tenha até <strong>de</strong>sperta<strong>do</strong> nelas o interesse pela Retórica,<br />
apresenta<strong>da</strong> e comenta<strong>da</strong> <strong>em</strong> to<strong>do</strong> o livro 31 .<br />
Talvez a <strong>mulher</strong> setecentista houvesse li<strong>do</strong> no original francês a obra atribuí<strong>da</strong> a<br />
Mariana Alcofora<strong>do</strong>, uma vez que a primeira tradução para a língua portuguesa surgiu<br />
apenas <strong>em</strong> 1820 - obra <strong>de</strong> um hom<strong>em</strong>, Filinto Elísio.<br />
Não é possível elaborar um estu<strong>do</strong> exaustivo sobre o que liam as <strong>mulher</strong>es<br />
leitoras: entre as leituras aconselha<strong>da</strong>s e as feitas, haverá s<strong>em</strong>pre as clan<strong>de</strong>stinas e as<br />
inapropria<strong>da</strong>s. Gertru<strong>de</strong>s Margari<strong>da</strong> <strong>de</strong> Jesus dá pistas <strong>de</strong> outras leituras f<strong>em</strong>ininas,<br />
aplicáveis pelo menos ao caso particular <strong>de</strong>la, que conforme supomos era muito<br />
instruí<strong>da</strong> e b<strong>em</strong> informa<strong>da</strong>. Ela mencionou duas fontes: o Dicionário histórico, <strong>do</strong><br />
Monsieur Abba<strong>de</strong> Ladvocat (Primeira carta apologetica, <strong>em</strong> favor e <strong>de</strong>fensa <strong>da</strong>s<br />
<strong>mulher</strong>es, p. 10) e o Theatro Heroino, <strong>de</strong> Damião Froes Perym (Segun<strong>da</strong> carta<br />
Apologetica, <strong>em</strong> favor, e <strong>de</strong>fensa <strong>da</strong>s <strong>mulher</strong>es, p. 12). Elias J. Torres Feijó, para além<br />
disso, associa os ex<strong>em</strong>plos f<strong>em</strong>ininos discrimina<strong>do</strong>s por Gertru<strong>de</strong>s Margari<strong>da</strong> <strong>de</strong> Jesus<br />
aos <strong>da</strong><strong>do</strong>s por um autor galego, o célebre monge beneditino Benito Jerónimo Feijoo,<br />
autor <strong>de</strong> um ensaio intitula<strong>do</strong> “Defensa <strong>de</strong> las Mujeres” 32 .<br />
Era portanto inevitável que a <strong>mulher</strong>, sobretu<strong>do</strong> a <strong>mulher</strong> leitora, absorvesse<br />
instrumentos discursivos <strong>de</strong>ssas fontes, para po<strong>de</strong>r se manifestar e porventura protestar.<br />
L<strong>em</strong>bramos que “as primeiras reivindicações f<strong>em</strong>ininas chegaram até nós pela pena <strong>da</strong>s<br />
<strong>mulher</strong>es <strong>do</strong> <strong>século</strong> XVIII”, como já escreveu Teresa Almei<strong>da</strong> 33 . Tal escrita não nasceu<br />
<strong>do</strong> na<strong>da</strong>, cr<strong>em</strong>os que, <strong>em</strong> gran<strong>de</strong> parte, a orig<strong>em</strong> <strong>da</strong> mensag<strong>em</strong> <strong>da</strong>s escritoras <strong>do</strong><br />
Setecentos <strong>de</strong>ve buscar-se na literatura, nas leituras que influenciaram essas <strong>mulher</strong>es.<br />
31 Luís António VERNEY, Ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro méto<strong>do</strong> <strong>de</strong> estu<strong>da</strong>r, 3ª edição, p. 222: “Estes estu<strong>do</strong>s têm a<br />
particulari<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> não impedir os mais necessários, e que são próprios <strong>da</strong>s <strong>mulher</strong>es: falo <strong>da</strong> economia,<br />
que se po<strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r no mesmo t<strong>em</strong>po que se faz o outro. Diz M. Rolin, com razão, que este é o fim para<br />
que a Providência as pôs [as <strong>mulher</strong>es] neste mun<strong>do</strong>: para aju<strong>da</strong>r<strong>em</strong> os mari<strong>do</strong>s ou parentes, <strong>em</strong>pregan<strong>do</strong>se<br />
nas coisas <strong>do</strong>mésticas no mesmo t<strong>em</strong>po que eles se aplicam às <strong>de</strong> fora”.<br />
32 Cf. Elias J. Torres FEIJÓ, “Cartas apologéticas, cartas pol<strong>em</strong>istas. As cartas apologéticas <strong>de</strong> Gertru<strong>de</strong>s<br />
Margari<strong>da</strong> <strong>de</strong> Jesus. Argumentaçom e inovaçom” que se encontra no livro Correspondências. Uso <strong>da</strong><br />
carta no <strong>século</strong> XVIII, coor<strong>de</strong>na<strong>do</strong> por Van<strong>da</strong> Anastácio, 2005, p. 239. A leitura <strong>do</strong> texto <strong>do</strong> monge revela<br />
visão inova<strong>do</strong>ra e estratégia <strong>retórica</strong> bastante interessante. FEIJÓ menciona e também cita D. Francisco<br />
Manuel <strong>de</strong> Melo e <strong>de</strong>pois fala directamente para as <strong>mulher</strong>es, na conclusão: “Sepan, pues, las mujeres,<br />
que no son en el conocimiento inferiores a los hombres: con eso entrarán confia<strong>da</strong>mente a rebatir sus<br />
sofismas, <strong>do</strong>n<strong>de</strong> se disfrazan con capa <strong>de</strong> razón las sinrazones.” (Fray Benito FEIJOO MONTENEGRO,<br />
“Defensa <strong>de</strong> las mugeres”, p. 36, In http://www.filosofia.org/bjf/bjft116.htm, consulta<strong>da</strong> <strong>em</strong> 13.09.2009)<br />
33 Teresa ALMEIDA, “A longa marcha <strong>do</strong>s f<strong>em</strong>inismos <strong>em</strong> Portugal”, in Ignacio RAMONET, Alain<br />
GRESH e Martine BULARD (orgs.), Mulheres rebel<strong>de</strong>s, 2004, p. 148.
1. Mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> <strong>mulher</strong> fortaleci<strong>do</strong>s pela escrita<br />
Quantas espécies <strong>de</strong> discurso a respeito <strong>da</strong> <strong>mulher</strong> têm preenchi<strong>do</strong> o imaginário<br />
colectivo? Há um incontável número <strong>de</strong> po<strong>em</strong>as <strong>de</strong> exaltação <strong>da</strong>s quali<strong>da</strong><strong>de</strong>s f<strong>em</strong>ininas,<br />
sen<strong>do</strong> que a conjunção <strong>de</strong> alguns <strong>de</strong>les cristaliza retratos: mais ou menos verosímeis,<br />
mais ou menos férteis, mais ou menos perenes, mais ou menos autênticos. Vale a pena<br />
mencionar, à guisa <strong>de</strong> ex<strong>em</strong>plo, casos expressivos e n<strong>em</strong> por isso gastos. Dos versos <strong>de</strong><br />
John Donne <strong>de</strong>dica<strong>do</strong>s aos encantos e ao mistério que a <strong>mulher</strong> partilha com qu<strong>em</strong><br />
partilha o leito (“In<strong>do</strong> para o leito – Elegia”), aos <strong>de</strong> Lord Byron, que compôs<br />
“Estâncias para a música” para falar <strong>da</strong> magia f<strong>em</strong>inina que inflama, mas também<br />
acalma. Do po<strong>em</strong>a “De tar<strong>de</strong>”, <strong>em</strong> que Cesário Ver<strong>de</strong> louvou a simplici<strong>da</strong><strong>de</strong> e a<br />
sensuali<strong>da</strong><strong>de</strong> f<strong>em</strong>ininas num pic-nic burguês, às palavras <strong>de</strong> Alphonsus <strong>de</strong> Guimaraens,<br />
quan<strong>do</strong> <strong>do</strong> outro la<strong>do</strong> <strong>do</strong> oceano se preocupava com a loucura <strong>de</strong> uma “Ismália”<br />
imparável como o sonho e como a noite. Dos versos <strong>em</strong> que João Cabral <strong>de</strong> Melo Neto<br />
falava sobre a langui<strong>de</strong>z <strong>de</strong> um corpo <strong>de</strong> <strong>mulher</strong> compara<strong>do</strong> ao fluxo <strong>de</strong> certo rio fraco 34<br />
aos <strong>de</strong> Victor Segalen <strong>em</strong> um texto que dizia justamente “A minha amante t<strong>em</strong> as<br />
virtu<strong>de</strong>s <strong>da</strong> água”. De Maiakóvski que cantou sua “Lílitchka”, a E.E. Cummings que<br />
<strong>de</strong>finiu o gozo <strong>do</strong> amor <strong>de</strong> uma <strong>mulher</strong> como o <strong>de</strong>sfrutar <strong>do</strong> Paraíso, <strong>em</strong> “Soneto”,<br />
passan<strong>do</strong> por Ramón López Velar<strong>de</strong> que pôs o eu lírico à sombra <strong>de</strong> uma prima <strong>de</strong><br />
nome Águe<strong>da</strong>, ponto <strong>de</strong> luz difusa no seio <strong>da</strong> família austera, <strong>em</strong> “Minha prima<br />
Águe<strong>da</strong>”. Não faltam ex<strong>em</strong>plos <strong>de</strong> textos literários vota<strong>do</strong>s à admiração com que a<br />
<strong>mulher</strong> t<strong>em</strong> si<strong>do</strong> observa<strong>da</strong> e ama<strong>da</strong>. Po<strong>de</strong>ríamos recuar aos ex<strong>em</strong>plos <strong>da</strong> I<strong>da</strong><strong>de</strong> Média,<br />
<strong>da</strong> Antigui<strong>da</strong><strong>de</strong> clássica, <strong>do</strong>s textos <strong>de</strong> muitos mitos primordiais <strong>de</strong> civilizações pré-<br />
históricas.<br />
Invariavelmente os discursos moralistas, no entanto, não <strong>de</strong>scortinam<br />
s<strong>em</strong>elhantes sentimentos <strong>de</strong> admiração, mostram antes <strong>de</strong>sconfiança. As obras<br />
científicas sobre a fisiologia f<strong>em</strong>inina mais <strong>de</strong>pressa corroboraram suspeitas moralistas<br />
<strong>do</strong> que a atracção literária. Na introdução <strong>de</strong> Système physique et moral <strong>de</strong> la f<strong>em</strong>me, <strong>de</strong><br />
Roussel 35 , ficamos a saber que até os médicos (tanto quanto os moralistas) encaravam<br />
como missão <strong>da</strong> medicina a tarefa <strong>de</strong> vigiar as necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>da</strong> <strong>mulher</strong>. O pressuposto<br />
<strong>de</strong> que o autor partia tinha mais um ingrediente contrário à liber<strong>da</strong><strong>de</strong> f<strong>em</strong>inina: o foco<br />
<strong>de</strong>le era a <strong>mulher</strong> aristocrata, como se a <strong>mulher</strong> <strong>do</strong> povo não tivesse a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira<br />
34 Referimo-nos ao po<strong>em</strong>a “Uma <strong>mulher</strong> e o Beberibe”.<br />
35 ROUSSEL, Système physique et moral <strong>de</strong> la f<strong>em</strong>me, 1845.
natureza f<strong>em</strong>inina, como se ela fosse necessariamente mais viril – e duma virili<strong>da</strong><strong>de</strong> que<br />
não a valorizava como valorizava um hom<strong>em</strong> qualquer. Afinal, o que o autor via na<br />
<strong>mulher</strong> aristocrata, para a eleger? A maior quali<strong>da</strong><strong>de</strong>, para ele, era a cari<strong>da</strong><strong>de</strong>, porque a<br />
essência <strong>da</strong> <strong>mulher</strong> seria confirma<strong>da</strong> biologicamente por uma cama<strong>da</strong> externa <strong>da</strong><br />
sensibili<strong>da</strong><strong>de</strong>. Como médico, ele apontava até uma <strong>do</strong>ença associável à sensibili<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
extr<strong>em</strong>a, ele falava <strong>da</strong> sobre-excitabili<strong>da</strong><strong>de</strong> nervosa. O maior <strong>de</strong>feito, por outro la<strong>do</strong>,<br />
seria assim a oscilação moral f<strong>em</strong>inina, fruto <strong>da</strong> sua sensibili<strong>da</strong><strong>de</strong> física extr<strong>em</strong>a.<br />
Di<strong>de</strong>rot d<strong>em</strong>onstrou simpatia pelas <strong>mulher</strong>es, mas foi apenas um raro<br />
contraponto <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma tópica burguesa mais coesa contra a <strong>mulher</strong>. O próprio<br />
Di<strong>de</strong>rot, nos conselhos a sua filha, controlava a <strong>em</strong>ancipação. A própria existência <strong>de</strong><br />
manuais através <strong>do</strong>s quais os ci<strong>da</strong>dãos <strong>de</strong>veriam saber discernir entre os bons e os maus<br />
ex<strong>em</strong>plos f<strong>em</strong>ininos é <strong>em</strong>bl<strong>em</strong>ática, pois limitava os raciocínios, pré-<strong>de</strong>fini<strong>do</strong>s os<br />
mo<strong>de</strong>los a que eles se aplicavam. História <strong>da</strong>s <strong>mulher</strong>es que se t<strong>em</strong> torna<strong>do</strong> celebres<br />
por seus amores, galantarias, fraquezas, e caprichos, etc, obra publica<strong>da</strong> <strong>em</strong> Paris, pela<br />
Bibliothèque Recreative, no ano <strong>de</strong> 1837, t<strong>em</strong> no título quase um índice <strong>da</strong> manipulação<br />
<strong>da</strong>s i<strong>de</strong>ias acerca <strong>da</strong> <strong>mulher</strong>.<br />
A cultura que promovia o casamento ou o convento como espaço <strong>de</strong> segurança e<br />
<strong>de</strong> clausura também nos po<strong>de</strong> aju<strong>da</strong>r a compreen<strong>de</strong>r o papel construí<strong>do</strong> para a <strong>mulher</strong>.<br />
Se procuramos respostas nesse âmbito, <strong>de</strong>scobrimos que houve um t<strong>em</strong>po <strong>de</strong> confiança<br />
no sacramento <strong>do</strong> matrimónio, logo após o Concílio <strong>de</strong> Trento; <strong>em</strong> segui<strong>da</strong> atingiu um<br />
perío<strong>do</strong> <strong>de</strong> crença na perfeição <strong>do</strong> casamento (constatável nos espelhos e guias que<br />
procuravam orientar o hom<strong>em</strong> a escolher a noiva i<strong>de</strong>al). Maria <strong>de</strong> Lur<strong>de</strong>s Correia<br />
Fernan<strong>de</strong>s l<strong>em</strong>bra que ao longo <strong>do</strong> <strong>século</strong> XVI, “… se foi <strong>de</strong>senvolven<strong>do</strong> uma<br />
espirituali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> casamento resultante <strong>do</strong> apelo ao cumprimento <strong>do</strong>s <strong>de</strong>veres sociais,<br />
morais e religiosos <strong>do</strong>s casa<strong>do</strong>s” 36 . As ficções <strong>do</strong> <strong>século</strong> XVII e <strong>do</strong> XVIII parec<strong>em</strong> ser<br />
uma fase <strong>do</strong> insistente relato <strong>da</strong>s guerras conjugais. Foram momentos <strong>de</strong> vulgarização<br />
<strong>do</strong> <strong>de</strong>bate sobre as virtu<strong>de</strong>s <strong>da</strong> <strong>mulher</strong>, <strong>de</strong>bate este acirra<strong>do</strong> pelas características<br />
<strong>de</strong>correntes <strong>do</strong> alarga<strong>do</strong> convívio social 37 .<br />
36<br />
Maria <strong>de</strong> Lur<strong>de</strong>s Correia FERNANDES, Espelhos, cartas e guias. Casamento e espirituali<strong>da</strong><strong>de</strong> na<br />
Península Ibérica. 1450-1700, 1995, p. 67.<br />
37<br />
Cf. Maria Antónia LOPES, Mulheres, espaço e sociabili<strong>da</strong><strong>de</strong>, 1989. A autora fala numa “autêntica<br />
euforia pela vi<strong>da</strong> social”, ao procurar recompor o estreitamento <strong>da</strong>s relações entre famílias no <strong>século</strong><br />
XVIII. O que ela pretendia era introduzir o leitor nas práticas sociais que primavam pela inclusão <strong>da</strong><br />
<strong>mulher</strong>.
Uma parte <strong>do</strong>s impressos inseri<strong>do</strong>s nas Miscelâneas t<strong>em</strong> pistas para a<br />
investigação <strong>da</strong>s transformações sociais e <strong>de</strong> mentali<strong>da</strong><strong>de</strong> que <strong>de</strong>fin<strong>em</strong> o lugar<br />
consenti<strong>do</strong> à <strong>mulher</strong>.<br />
2. A <strong>retórica</strong> <strong>do</strong> rosto<br />
A leitura <strong>da</strong>s marcas visuais comuns no rosto <strong>do</strong>s textos com que trabalhámos<br />
não foi programa<strong>da</strong> n<strong>em</strong> formula<strong>da</strong> com profundi<strong>da</strong><strong>de</strong> que permita ir além <strong>de</strong><br />
reconhecer esta classe <strong>de</strong> publicações <strong>do</strong>s <strong>século</strong>s XVII, XVIII e XIX. Não somos<br />
especialistas n<strong>em</strong> <strong>em</strong> heráldica n<strong>em</strong> <strong>em</strong> artes gráficas, pelo que procurámos, s<strong>em</strong><br />
maiores pretensões, consultar livros <strong>de</strong> especialistas para tentar combinar el<strong>em</strong>entos<br />
visuais e verbais, s<strong>em</strong>pre no intuito <strong>de</strong> enxergar com mais niti<strong>de</strong>z as <strong>polémicas</strong> que<br />
<strong>de</strong>spertaram nossa curiosi<strong>da</strong><strong>de</strong> intelectual.<br />
Dois contributos <strong>do</strong> início <strong>do</strong> <strong>século</strong> XX nos ofereceram informações específicas<br />
sobre as imagens que vinham impressas nas páginas avulsas <strong>da</strong> literatura <strong>de</strong> cor<strong>de</strong>l<br />
portuguesa. Teófilo Braga é o autor <strong>de</strong> um <strong>de</strong>les. Mencionou várias vezes Baltasar Dias,<br />
o autor <strong>de</strong> Malicia <strong>da</strong>s Mulheres. Associava a literatura ingénua <strong>de</strong> Baltasar Dias às<br />
gravuras comuns naquele perío<strong>do</strong>, chegan<strong>do</strong> a utilizar adjectivos pesa<strong>do</strong>s para as<br />
<strong>de</strong>signar (“<strong>de</strong>ploráveis” e “ru<strong>de</strong>s” são <strong>do</strong>is ex<strong>em</strong>plos <strong>de</strong>ssa caracterização) 38 . Também<br />
levantou uma hipótese plausível para a longevi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> texto que estu<strong>da</strong>mos: atribuiu a<br />
duração <strong>do</strong>s investimentos nesse texto, e <strong>em</strong> outros similares, à importância que eles<br />
tinham nos meios pequenos. Segun<strong>do</strong> ele, os autos eram representa<strong>do</strong>s nas al<strong>de</strong>ias, por<br />
isso interessava reimprimi-los, tinham o conteú<strong>do</strong> certo para a curiosi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> povo,<br />
para a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> partilhar/participar <strong>do</strong> povo. L<strong>em</strong>bramos oportunamente que antes<br />
<strong>de</strong> ser <strong>da</strong><strong>do</strong> a público com o título supracita<strong>do</strong>, o texto <strong>de</strong> facto se chamou Auto <strong>da</strong><br />
malicia <strong>da</strong>s <strong>mulher</strong>es. Ressaltamos um apontamento <strong>de</strong> Teófilo Braga que aju<strong>da</strong> a<br />
explicar a repetição <strong>da</strong>s gravuras, a carência <strong>de</strong> novi<strong>da</strong><strong>de</strong>s: “o povo exige s<strong>em</strong>pre as<br />
figuras mais conheci<strong>da</strong>s” 39 .<br />
Também Luís Chaves <strong>de</strong>stacou Baltasar Dias, e mais nenhum outro(a) autor(a)<br />
<strong>de</strong> nossa lista 40 s<strong>em</strong>, no entanto, referir a obra Malicia <strong>da</strong>s Mulheres. No tocante às<br />
imagens <strong>da</strong>s d<strong>em</strong>ais obras volantes, enfatizou alguns pontos que cumpre reproduzirmos,<br />
como o <strong>da</strong> posição <strong>da</strong>s ilustrações: elas apareceriam somente na página <strong>de</strong> rosto, pois<br />
38<br />
Teófilo BRAGA, Sobre as estampas ou gravuras <strong>do</strong>s livros populares portuguezes, [19_ _], p. 506.<br />
39<br />
Id<strong>em</strong>, p. 505.<br />
40<br />
Luís CHAVES, Subsídios para a história <strong>da</strong> gravura <strong>em</strong> Portugal, 1927.
assim logo cativavam o público. Na mesma linha <strong>do</strong> que afirmou Teófilo Braga, não<br />
sab<strong>em</strong>os se antes se <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>le, disse que as repetições existiam porque ca<strong>da</strong> gravura<br />
ou pequeno conjunto <strong>de</strong>las marcava um tipo <strong>de</strong> texto <strong>de</strong> cor<strong>de</strong>l. As narrativas religiosas<br />
tinham a sua gravura <strong>de</strong>fini<strong>da</strong>, as histórias <strong>em</strong> torno <strong>do</strong>s reis e <strong>da</strong>s rainhas, id<strong>em</strong>. As<br />
aventuras que envolviam monstros, por ex<strong>em</strong>plo, pediam uma terceira ilustração, que<br />
não variava… A mesma gravura podia, assim, ser utiliza<strong>da</strong> para textos estilisticamente<br />
muito diferentes. O que ele acrescentou <strong>de</strong> novi<strong>da</strong><strong>de</strong> ao nosso rol <strong>de</strong> informações incidia<br />
porém na in<strong>de</strong>finição entre gravação artística e gravação popular. Ficámos a saber que,<br />
apesar <strong>de</strong> os trabalhos iconográficos, a partir <strong>da</strong>quele perío<strong>do</strong>, ter<strong>em</strong> ganha<strong>do</strong> <strong>em</strong><br />
quali<strong>da</strong><strong>de</strong>, sobretu<strong>do</strong> pela intervenção <strong>de</strong> grava<strong>do</strong>res estrangeiros, n<strong>em</strong> esses artistas<br />
mais prepara<strong>do</strong>s estavam preocupa<strong>do</strong>s com a assinatura <strong>da</strong>s obras. To<strong>da</strong>s elas saíam<br />
s<strong>em</strong> o crédito ao autor a que hoje estamos acostuma<strong>do</strong>s: ao autor <strong>de</strong> gravura mais ain<strong>da</strong><br />
que ao autor <strong>de</strong> texto, que também era muitas vezes omiti<strong>do</strong>. Por fim, salientamos um<br />
pormenor que po<strong>de</strong> fazer a diferença <strong>em</strong> nossa leitura: “S<strong>em</strong> esquecer n<strong>em</strong> admirar que,<br />
<strong>do</strong>s impressores, alguns teriam êles [sic] próprios, feito também a gravura <strong>de</strong><br />
ilustração” 41 .<br />
Duas edições <strong>do</strong> corpus não têm qualquer marca visual específica. Uma <strong>de</strong>las,<br />
significativamente, chama-se Nova relação contra as Mulheres ou parvoices <strong>do</strong>s seus<br />
enfeites. A associação entre as palavras “parvoíces” e “enfeites” faz jus à falta <strong>de</strong><br />
a<strong>do</strong>rnos no impresso. A outra é Devoção <strong>da</strong>s <strong>mulher</strong>es <strong>da</strong> mo<strong>da</strong> na igreja e o mo<strong>do</strong> com<br />
que nunca ouv<strong>em</strong> missa.<br />
Examin<strong>em</strong>os o restante.<br />
Dois textos têm tão-somente os enfeites <strong>de</strong> tipo mais simples. São eles<br />
Desengano <strong>de</strong> ciosos, atrevimento <strong>de</strong> <strong>mulher</strong>es e Segun<strong>da</strong> parte <strong>da</strong> pregação <strong>de</strong> João<br />
Coelho, feitas as senhoras Mulheres <strong>da</strong> mo<strong>da</strong>. O primeiro texto t<strong>em</strong> na página <strong>de</strong> rosto<br />
seis linhas horizontais paralelas, rechea<strong>da</strong>s <strong>de</strong> pequenas estrelas que vão diminuin<strong>do</strong> <strong>de</strong><br />
quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> cima para baixo, <strong>de</strong> forma que a linha <strong>do</strong> alto t<strong>em</strong> sete estrelas e a <strong>de</strong><br />
baixo t<strong>em</strong> só uma. O segun<strong>do</strong> texto possui linha à guisa <strong>de</strong> moldura com traceja<strong>do</strong><br />
suave, <strong>em</strong> uma <strong>da</strong>s páginas.<br />
Já a varie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>senhos mais rebusca<strong>do</strong>s está representa<strong>da</strong>, por ex<strong>em</strong>plo, na<br />
edição <strong>de</strong> 1805 <strong>do</strong> texto Bon<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s Mulheres contra a malicia <strong>do</strong>s Homens, <strong>de</strong><br />
L.D.P.G.: é uma figura pareci<strong>da</strong> com um losango ou com um escu<strong>do</strong>. Dos vértices<br />
41 Id<strong>em</strong>, p. 10.
laterais <strong>da</strong> esquer<strong>da</strong> e <strong>da</strong> direita pend<strong>em</strong> <strong>do</strong>is fios idênticos: mesmo comprimento e com<br />
berloques nas pontas. Há duas linhas horizontais mais grossas, paralelas, muitas linhas<br />
curvas e também arabescos e pétalas. Na<strong>da</strong>, no entanto, que nos aju<strong>de</strong> a atribuir senti<strong>do</strong><br />
inequívoco à imag<strong>em</strong>, o que no fun<strong>do</strong> concorreria para associarmos conteú<strong>do</strong> visual a<br />
conteú<strong>do</strong> verbal. Será este tipo <strong>de</strong> ilustração só um índice <strong>do</strong> capricho, <strong>do</strong> zelo com que<br />
se levava ao público erudito <strong>do</strong> <strong>século</strong> XVIII um texto <strong>de</strong>ssa natureza?<br />
Embora a generali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>stes textos <strong>de</strong> cor<strong>de</strong>l seja parco <strong>em</strong> ilustrações,<br />
encontrámos cinco ex<strong>em</strong>plos <strong>de</strong> vinhetas mais eloquentes: 1) com cenas bucólicas; 2)<br />
com ilustração mor<strong>da</strong>z; 3) com cenário urbano; 4) com cena que representa uma<br />
Fig. 1- Página <strong>de</strong> rosto <strong>de</strong> texto <strong>do</strong> 1º bloco (BNP)<br />
situação <strong>de</strong> instrução; 5) com uma<br />
activi<strong>da</strong><strong>de</strong> humana lúdica/ritualística.<br />
A primeira vinheta pertence a<br />
duas edições <strong>de</strong> Malicia <strong>da</strong>s Mulheres<br />
que consultámos, a <strong>de</strong> 1738 e a <strong>de</strong> 1759.<br />
É interessante que a oficina tipográfica<br />
responsável pela publicação mu<strong>da</strong>, mas<br />
a vinheta permanece 42 . No canto<br />
inferior esquer<strong>do</strong> <strong>do</strong> rectângulo é<br />
representa<strong>da</strong> uma fonte a verter água,<br />
perto <strong>de</strong>la um trabalha<strong>do</strong>r segui<strong>do</strong> por<br />
cães, no canto frontalmente oposto a ela<br />
está um músico que entretém as pessoas<br />
que passam, no alto e ao centro <strong>do</strong><br />
rectângulo v<strong>em</strong>os duas <strong>mulher</strong>es <strong>de</strong><br />
mãos <strong>da</strong><strong>da</strong>s a caminhar<strong>em</strong> pelos campos<br />
(Serão duas amigas? Duas irmãs?), ao<br />
longe, como que noutra colina, estão<br />
algumas casas. A presença <strong>da</strong>s <strong>mulher</strong>es chamou-nos atenção porque elas caminham<br />
<strong>de</strong>scontrai<strong>da</strong>mente, ao passo que o trabalha<strong>do</strong>r (po<strong>de</strong> ser um caça<strong>do</strong>r com seus cães)<br />
caminha para transportar um cesto ou coisa que o valha e o músico t<strong>em</strong> também sua<br />
utili<strong>da</strong><strong>de</strong>, está a entreter outras pessoas. Portanto, a <strong>mulher</strong> é a única que surge<br />
42 “É interessante” porque ou contraria ou relativiza <strong>de</strong> certa forma a informação que nos chegou a partir<br />
<strong>de</strong> Maria José Moutinho SANTOS na dissertação “O folheto <strong>de</strong> cor<strong>de</strong>l: <strong>mulher</strong>, família e socie<strong>da</strong><strong>de</strong> no<br />
Portugal <strong>do</strong> séc. XVIII (1750-1800)”: “… a ca<strong>da</strong> Oficina correspondiam gravuras e vinhetas próprias,<br />
i<strong>de</strong>ntifican<strong>do</strong> assim, e também <strong>de</strong>sta maneira, a proveniência <strong>do</strong>s Folhetos” (p. 8).
epresenta<strong>da</strong> como vã. A Fig 1 aju<strong>da</strong> a visualizar melhor o quadro, s<strong>em</strong> esquecermos<br />
que o site <strong>da</strong> BNP regista “grav. xilogr. com cenas alusivas ao t<strong>em</strong>a <strong>do</strong> texto” e “no<br />
final <strong>do</strong> texto, vinheta xilogr.”.<br />
<strong>da</strong>s Mulheres:<br />
A segun<strong>da</strong> vinheta diferencia<strong>da</strong> está na edição <strong>de</strong> 1720 <strong>do</strong> mesmo texto, Malicia<br />
Fig. 2 - Página <strong>de</strong> rosto <strong>de</strong> texto <strong>do</strong> 1º bloco (BPMP)<br />
Um rectângulo circunscreve uma imag<strong>em</strong> intrigante. À esquer<strong>da</strong>, uma figura que<br />
t<strong>em</strong> corpo humano <strong>do</strong> pescoço para baixo; os pés, no entanto, são os <strong>de</strong> um bo<strong>de</strong> (na<br />
cultura oci<strong>de</strong>ntal essa po<strong>de</strong> ser uma <strong>da</strong>s metamorfoses <strong>do</strong> diabo, talvez mais comum <strong>do</strong><br />
que algumas outras, como a que refere unhas e patas <strong>de</strong> macaco 43 ); a cabeça l<strong>em</strong>bra<br />
também um bo<strong>de</strong> ou outro animal. À direita na gravura, uma <strong>mulher</strong> segura um cálice.<br />
Eles conversam frente a frente. Estão a celebrar um contrato? Estará a <strong>mulher</strong> vota<strong>da</strong> à<br />
<strong>de</strong>rrota, como o diabo estava nas narrativas orais? Difícil fugir, no mínimo, à<br />
constatação <strong>de</strong> que a <strong>mulher</strong> estava a ser equipara<strong>da</strong> a to<strong>da</strong> a carga negativa que se<br />
atribuía e se atribui ao diabo… A misoginia, por conseguinte, é explícita.<br />
43 Cf. Luis <strong>da</strong> Camara CASCUDO, Dicionário <strong>de</strong> folclore brasileiro, 1988, p. 291, e Jean CHEVALIER,<br />
Alain GHEERBRANT, Dicionário <strong>de</strong> símbolos, 1994, p. 264. A primeira fonte dá priori<strong>da</strong><strong>de</strong> à<br />
transmissão <strong>de</strong> informações concernentes ao Brasil e a Portugal, ao passo que a segun<strong>da</strong> t<strong>em</strong> carácter<br />
mais geral e é autori<strong>da</strong><strong>de</strong> mais reconheci<strong>da</strong>.
A terceira vinheta saiu no texto Malicia <strong>do</strong>s Homens contra a bon<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s<br />
Mulheres, edição <strong>de</strong> 1805, <strong>da</strong> autoria <strong>de</strong> M. D.M.C.D.M.E.C.. Um cenário urbano foi<br />
simboliza<strong>do</strong> por edifícios mais ou menos exuberantes, com torres pontiagu<strong>da</strong>s e portais<br />
amplos, tu<strong>do</strong> recorta<strong>do</strong> por linhas ondula<strong>da</strong>s. Seria, por ventura, uma proposta <strong>de</strong><br />
leitura? Subenten<strong>de</strong>ria o leitor <strong>de</strong>ste folheto <strong>de</strong> cor<strong>de</strong>l um discurso <strong>da</strong> urbani<strong>da</strong><strong>de</strong>, dita<strong>do</strong><br />
pela necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> polir os argumentos usa<strong>do</strong>s contra o género f<strong>em</strong>inino, para<br />
melhores frutos colher <strong>de</strong>ssas críticas? De facto o texto t<strong>em</strong> indícios retóricos que<br />
pod<strong>em</strong> ser li<strong>do</strong>s como instrumentos <strong>de</strong> a<strong>de</strong>quação a um outro nível <strong>de</strong> civili<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>da</strong><br />
conversação: há mais citações <strong>em</strong> latim, há muito ex<strong>em</strong>plos, há enfim um esforço<br />
lógico-argumentativo para tornar o <strong>de</strong>bate mais eleva<strong>do</strong>.<br />
A quarta vinheta especial está no texto Bon<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s Mulheres vendica<strong>da</strong> e<br />
malicia <strong>do</strong>s Homens manifesta, <strong>de</strong> Paula <strong>da</strong> Graça. O que o texto verbal representa<br />
concretamente é um caso <strong>de</strong> consulta, <strong>de</strong> aconselhamento, patente também no texto<br />
icónico. Visualizamos um livro/ca<strong>de</strong>rno aberto e uma mesa entre <strong>do</strong>is interlocutores.<br />
Um <strong>de</strong>les, o que está senta<strong>do</strong> numa poltrona <strong>de</strong> costas altas, t<strong>em</strong> os olhos protegi<strong>do</strong>s e<br />
aponta com o <strong>de</strong><strong>do</strong> indica<strong>do</strong>r <strong>da</strong> mão esquer<strong>da</strong> para o texto apoia<strong>do</strong> nessa mesa; com a<br />
mão direita espalma<strong>da</strong>, polegar no alto, gesticula para a <strong>mulher</strong>. A <strong>mulher</strong> que com ele<br />
interage está <strong>em</strong> pé, <strong>do</strong> outro la<strong>do</strong> <strong>da</strong> mesa, t<strong>em</strong> os olhos postos no livro/ca<strong>de</strong>rno e a<br />
mão direita estendi<strong>da</strong> <strong>em</strong> direcção ao mesmo objecto. Ela o está a ensinar? Ela está a<br />
apren<strong>de</strong>r com ele? Ela está a ouvi-lo <strong>de</strong>clamar? Ou a usufruir <strong>de</strong> um momento que só a<br />
cultura letra<strong>da</strong> permite? Ela estaria a assistir e ao mesmo t<strong>em</strong>po a imaginar que os<br />
homens, aqueles que podiam com mais sorte ler e escrever, eram contu<strong>do</strong> cegos, quer<br />
dizer, eram débeis transmissores <strong>da</strong> palavra e <strong>do</strong> conhecimento transmiti<strong>do</strong> por meio<br />
<strong>de</strong>la? Cr<strong>em</strong>os que a escolha <strong>de</strong> uma ilustração como essa é um claro reflexo <strong>do</strong> que a<br />
autora assume ao escrever. A ânsia por rir e fazer rir fora sugeri<strong>da</strong> verbalmente, como<br />
um trunfo f<strong>em</strong>inino; a cumplici<strong>da</strong><strong>de</strong> com as leitoras, <strong>de</strong>clara<strong>da</strong>, porque era busca<strong>da</strong>. O<br />
<strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> participar numa conten<strong>da</strong> estava comunica<strong>do</strong> logo nas primeiras linhas.<br />
Muitos signos visuais convergiam para a assunção, neste texto, <strong>de</strong> uma postura activa<br />
<strong>em</strong> benefício <strong>da</strong> visibili<strong>da</strong><strong>de</strong> f<strong>em</strong>inina, <strong>do</strong> direito <strong>da</strong> <strong>mulher</strong> à instrução e à criação <strong>de</strong><br />
uma atmosfera leve, que se po<strong>de</strong> e se <strong>de</strong>ve aceitar, porque b<strong>em</strong>-humora<strong>da</strong>.<br />
A quinta vinheta digna <strong>de</strong> nota é a excepção neste breve levantamento. A<br />
primeira página <strong>da</strong> edição <strong>de</strong> 1860 <strong>do</strong> texto Bon<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s Mulheres contra a malicia <strong>do</strong>s<br />
Homens mostra duas moças e <strong>do</strong>is rapazes <strong>de</strong> mãos <strong>da</strong><strong>da</strong>s, <strong>em</strong> ro<strong>da</strong>, sobre uma<br />
superfície cujo formato l<strong>em</strong>bra uma folha <strong>de</strong> árvore. Só o estar<strong>em</strong> essas personagens a
“pairar” na folha <strong>de</strong> papel s<strong>em</strong> um qualquer enquadramento já distingue o <strong>de</strong>senho <strong>do</strong>s<br />
restantes <strong>de</strong>scritos. A imag<strong>em</strong> <strong>do</strong> círculo, <strong>da</strong> ro<strong>da</strong>, sugere equidistância, pari<strong>da</strong><strong>de</strong>, que<br />
po<strong>de</strong> b<strong>em</strong> ser a pari<strong>da</strong><strong>de</strong> entre os sexos f<strong>em</strong>inino e masculino. A activi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong>s quatro<br />
el<strong>em</strong>entos t<strong>em</strong> um carácter lúdico e <strong>de</strong> união. Pod<strong>em</strong> estar a confraternizar, respeitan<strong>do</strong><br />
as regras <strong>de</strong> um jogo <strong>em</strong> que a participação f<strong>em</strong>inina e a masculina são igualmente<br />
importantes e necessárias, como numa <strong>da</strong>nça que se estrutura aos pares.<br />
As fontes que nela foram usa<strong>da</strong>s também difer<strong>em</strong> muito <strong>da</strong>s encontra<strong>da</strong>s nos<br />
outros textos. O ex<strong>em</strong>plar <strong>de</strong> 1860 é o único cujas letras variam bastante entre si numa<br />
mesma página. Os tamanhos difer<strong>em</strong>, as próprias fontes difer<strong>em</strong>, apenas na última linha<br />
as palavras estão grafa<strong>da</strong>s <strong>de</strong> maneira a imitar a letra cursiva, nas restantes já foram<br />
utiliza<strong>da</strong>s fontes mais regulares (quadra<strong>da</strong>s), s<strong>em</strong>elhantes às que hoje são recomen<strong>da</strong><strong>da</strong>s<br />
para facilitar a leitura <strong>do</strong>s <strong>do</strong>cumentos académicos, por ex<strong>em</strong>plo. É este também o único<br />
texto com letra a sugerir perspectiva, profundi<strong>da</strong><strong>de</strong>. A palavra “<strong>mulher</strong>es” encabeça a<br />
página, valorizan<strong>do</strong> claramente o t<strong>em</strong>a e visan<strong>do</strong>, talvez, um público preferencial. Além<br />
<strong>de</strong> nos conferir a sensação <strong>de</strong> que sai <strong>do</strong> papel, ela t<strong>em</strong>, <strong>em</strong> ca<strong>da</strong> uma <strong>da</strong>s letras,<br />
pequenos enfeites claros sobre um fun<strong>do</strong> escuro.<br />
Malicia <strong>da</strong>s Mulheres, na edição <strong>de</strong> 1814, Carta e resposta sobre o odio <strong>do</strong>s<br />
inimigos francezes e Defeza <strong>do</strong> bello sexo ou resposta ao papel intitula<strong>do</strong> ‘Malicia <strong>da</strong>s<br />
<strong>mulher</strong>es’ contêm a mesma imag<strong>em</strong>: uma coroa por cima <strong>do</strong>s cinco escu<strong>do</strong>s <strong>de</strong><br />
Portugal, esses protegi<strong>do</strong>s por grossas linhas numa trama. Os três textos são <strong>de</strong><br />
“Impressão Régia”, o que esclarece a representação gráfica. Mas esta chancela <strong>da</strong><br />
Impressão Régia, ain<strong>da</strong> que possa ter si<strong>do</strong> paga pelo autor que nela editava, é também<br />
significativa i<strong>de</strong>ologicamente, parece-nos uma aproximação <strong>do</strong> folheto <strong>de</strong> cor<strong>de</strong>l ao<br />
discurso oficial e um distanciamento <strong>da</strong> circulação popular.<br />
3. A <strong>retórica</strong> <strong>da</strong> orali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
Concentr<strong>em</strong>o-nos <strong>em</strong> outro aspecto, <strong>em</strong> si bastante liga<strong>do</strong> à quali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s<br />
gravuras selecciona<strong>da</strong>s para os <strong>folhetos</strong> <strong>de</strong> cor<strong>de</strong>l. Se elas eram arcaicas, populares e<br />
ingénuas, <strong>em</strong> sua maioria prenunciavam, como vimos, uma linguag<strong>em</strong> verbal que tinha<br />
igualmente que estar ao nível <strong>do</strong> público pouco alfabetiza<strong>do</strong>, interessa<strong>do</strong> <strong>em</strong> instrução<br />
que divertisse (ou não espantasse) pela formali<strong>da</strong><strong>de</strong>. Até as crianças ou as pessoas <strong>de</strong><br />
cultura menos erudita <strong>de</strong>veriam ser capazes <strong>de</strong> ler tais gravuras, b<strong>em</strong> como ler (ou<br />
ouvir) essa mensag<strong>em</strong> verbal <strong>do</strong>s papéis volantes.
Daí s<strong>em</strong> dúvi<strong>da</strong> a aposta <strong>da</strong>s autoras <strong>da</strong>s cartas <strong>em</strong> um tom que se avizinha <strong>da</strong><br />
orali<strong>da</strong><strong>de</strong>. A influência que essa opção exerce ain<strong>da</strong> hoje no leitor é o que nos move a<br />
salientar a <strong>de</strong>spretensão b<strong>em</strong> construí<strong>da</strong>, a flui<strong>de</strong>z <strong>do</strong> discurso e o à vonta<strong>de</strong> <strong>da</strong><br />
orali<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />
Ao enfatizarmos o carácter coloquial usa<strong>do</strong> para captar a atenção <strong>do</strong> público<br />
leitor, ex<strong>em</strong>plificamo-lo sobretu<strong>do</strong> com os textos <strong>da</strong>s autoras Paula <strong>da</strong> Graça e L.D.P.G.<br />
e (ain<strong>da</strong> que <strong>em</strong> menor medi<strong>da</strong>) com o <strong>de</strong> Gertru<strong>de</strong>s Margari<strong>da</strong> <strong>de</strong> Jesus.<br />
Paula <strong>da</strong> Graça, autora <strong>de</strong> Bon<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s Mulheres vendica<strong>da</strong> e malicia <strong>do</strong>s<br />
Homens manifesta, lançou mão <strong>da</strong> expressão “minhas leitoras” no prólogo, antes <strong>da</strong>s<br />
quintilhas, na<strong>da</strong> mais, na<strong>da</strong> menos <strong>do</strong> que nas primeiras palavras <strong>da</strong> elocução. Além<br />
disso, proclamou-se logo procura<strong>do</strong>ra <strong>da</strong>s mesmas leitoras, atitu<strong>de</strong> que, se aproximava<br />
<strong>em</strong>issor e receptor, promovia um elo e, com ele, talvez conquistasse retoricamente<br />
maior a<strong>de</strong>são aos argumentos apresenta<strong>do</strong>s. A parte <strong>do</strong> texto que nasceu como ficção, a<br />
parte poética, traz-nos logo outro vocativo, “filha”, para construir a situação dramática<br />
<strong>de</strong> uma conversa entre uma consulente e uma consultora. Sab<strong>em</strong>os também que a<br />
narra<strong>do</strong>ra é, então, uma <strong>mulher</strong>, tal como é <strong>mulher</strong> a personag<strong>em</strong> com qu<strong>em</strong> o eu lírico<br />
fala.<br />
L.D.P.G., autora <strong>de</strong> Bon<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s Mulheres contra a malicia <strong>do</strong>s Homens,<br />
<strong>em</strong>pregou o termo “senhoras” para <strong>de</strong>finir o público imagina<strong>do</strong>, fazen<strong>do</strong>-o igualmente à<br />
primeira linha <strong>do</strong> seu escrito. E não manifestou <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> intercambiar estilos, projectos,<br />
pensamentos soltos ou o que quer que fosse com o público masculino. T<strong>em</strong>os <strong>de</strong><br />
salientar neste texto setecentista a invulgar exclusão <strong>do</strong> público masculino. Essa<br />
exclusão é essencial para manter a força <strong>da</strong> assertiva e para compreen<strong>de</strong>r que ela<br />
<strong>de</strong>sejava falar para um grupo f<strong>em</strong>inino, com interesses afins. A estratégia discursiva<br />
visava s<strong>em</strong> dúvi<strong>da</strong> angariar simpatia <strong>de</strong>sse público e alimentar o trânsito entre aqueles<br />
que <strong>de</strong>batiam a honra f<strong>em</strong>inina nas páginas <strong>do</strong>s textos leva<strong>do</strong>s a público. É <strong>de</strong> sublinhar<br />
o plural no vocativo “senhoras”, pois, neste contexto, ele é sinal <strong>de</strong> uma consciência <strong>de</strong><br />
género.<br />
Carmen Alborch indica alguns pontos <strong>em</strong> que a cumplici<strong>da</strong><strong>de</strong> entre <strong>mulher</strong>es se<br />
sustenta. Destaca a relação com a mãe, por ex<strong>em</strong>plo, por ser efectivamente a primeira<br />
relação <strong>de</strong> uma <strong>mulher</strong>. Não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> alertar, no entanto, para a ambivalência que está<br />
conti<strong>da</strong> <strong>em</strong> tal relação. É um contacto íntimo e <strong>de</strong> iniciação que produz ao mesmo<br />
t<strong>em</strong>po amor e inimiza<strong>de</strong>, padrões a ser<strong>em</strong> reproduzi<strong>do</strong>s <strong>em</strong> to<strong>da</strong>s as relações posteriores<br />
trava<strong>da</strong>s pelas <strong>mulher</strong>es. A palavra que a tradução portuguesa escolheu para resumir o
que a vivência com a mãe <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ia é “rivali<strong>da</strong><strong>de</strong>” 44 . Mulheres encarariam <strong>mulher</strong>es<br />
como rivais <strong>em</strong> potencial, porque ca<strong>da</strong> uma estaria a competir com as outras pela<br />
atenção <strong>de</strong> um hom<strong>em</strong> e, por trás disso, estariam a competir pelo acesso ao mun<strong>do</strong><br />
patriarcal.<br />
Nesse preciso senti<strong>do</strong>, o <strong>da</strong> ambivalência que rege as interacções <strong>mulher</strong>-<strong>mulher</strong>,<br />
é significativo que as autoras Paula <strong>da</strong> Graça e L.D.P.G. tenham preferi<strong>do</strong> a<br />
cumplici<strong>da</strong><strong>de</strong>, conquista<strong>da</strong> por meio <strong>de</strong> um tom ameno, <strong>da</strong> simpatia f<strong>em</strong>inina, <strong>do</strong> uso<br />
<strong>do</strong> plural nos vocativos “Minhas leitoras” e “senhoras”. Po<strong>de</strong>riam ter simplesmente<br />
d<strong>em</strong>onstra<strong>do</strong> erudição, repetin<strong>do</strong> as citações <strong>de</strong> costume. Seria um mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> atingir o<br />
nível <strong>em</strong> que os homens tradicionalmente se colocavam. Que ganho resi<strong>de</strong>, então, nesta<br />
opção pela orali<strong>da</strong><strong>de</strong> e, como consequência, pela cumplici<strong>da</strong><strong>de</strong>?<br />
Talvez haja uma transgressão mais arroja<strong>da</strong> nessa estratégia. Mais <strong>do</strong> que se<br />
igualar<strong>em</strong> aos homens, elas se igualariam a eles na capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> escrever para logo <strong>em</strong><br />
segui<strong>da</strong> se tornar<strong>em</strong> diferentes <strong>de</strong>les no mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> o fazer. Ousariam escrever e protestar,<br />
mas com uma linguag<strong>em</strong> própria. Afinal, quantas <strong>mulher</strong>es naquela época teriam <strong>da</strong><strong>do</strong><br />
especial ênfase ao estabelecimento <strong>de</strong> um canal discursivo entre <strong>mulher</strong>es? Quantas<br />
<strong>mulher</strong>es teriam <strong>de</strong>seja<strong>do</strong> <strong>em</strong> voz alta que as <strong>mulher</strong>es criass<strong>em</strong> grupos <strong>de</strong> reflexão ou<br />
<strong>de</strong> entretenimento? Quantas <strong>mulher</strong>es teriam vislumbra<strong>do</strong> nos caminhos partilha<strong>do</strong>s<br />
uma hipótese para a in<strong>de</strong>pendência? Em épocas posteriores, autoras como Virgínia<br />
Woolf, Sandra M. Gilbert e Susan Gubar, por ex<strong>em</strong>plo, levariam novamente a público,<br />
na forma <strong>de</strong> ensaios ou <strong>de</strong> grossos volumes, i<strong>de</strong>ias <strong>de</strong>ssa natureza. O próprio estu<strong>do</strong> <strong>da</strong><br />
literatura escrita por <strong>mulher</strong>es no <strong>século</strong> XIX, <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong> pelas duas últimas<br />
menciona<strong>da</strong>s, contou com um clima <strong>de</strong> parceria e <strong>de</strong> companheirismo 45 . O passo <strong>da</strong><strong>do</strong><br />
pelas escritoras setecentistas t<strong>em</strong> <strong>de</strong> ser aludi<strong>do</strong> e valoriza<strong>do</strong>, ressalta<strong>da</strong> a técnica <strong>de</strong> que<br />
lançaram mão.<br />
44 Carmen ALBORCH, Mulheres contra <strong>mulher</strong>es?, 2004, p. 21.<br />
45 Cf. Sandra M. GILBERT e Susan GUBAR, The madwoman in the attic, 2000. Na introdução à<br />
primeira edição <strong>do</strong> livro, as autoras inseriram um comentário oportuno a respeito <strong>do</strong> espírito <strong>de</strong><br />
colaboração entre elas. Haviam lecciona<strong>do</strong> juntas no ano <strong>de</strong> 1974, na Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Indiana, ten<strong>do</strong><br />
como eixo t<strong>em</strong>ático a literatura feita por <strong>mulher</strong>es. Experimentaram naquela ocasião o impacto <strong>da</strong><br />
produtivi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong>s professores, b<strong>em</strong> como a solidão por estar<strong>em</strong> ambas longe <strong>de</strong> casa e <strong>da</strong> família. Tais<br />
professores, <strong>em</strong> maior número <strong>do</strong> que as professoras, pareciam to<strong>do</strong>s <strong>em</strong>beveci<strong>do</strong>s com a própria<br />
capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>dicação ao trabalho académico. A amiza<strong>de</strong> entre as duas <strong>mulher</strong>es começou quan<strong>do</strong><br />
notaram esse “transe” <strong>de</strong>les e passaram a ter pequenos insights sobre a condição <strong>de</strong> <strong>mulher</strong>es intelectuais<br />
naquele contexto. Os mari<strong>do</strong>s eram académicos mais <strong>de</strong>staca<strong>do</strong>s na carreira, os colegas eram obstina<strong>do</strong>s,<br />
os <strong>em</strong>pregos <strong>de</strong>stinavam-se a eles, restava a elas, as esposas, cargos supostamente menos exigentes. A<br />
toma<strong>da</strong> <strong>de</strong> consciência veio e com ela uma sucessão <strong>de</strong> outras percepções que ca<strong>da</strong> uma sabia adivinhar e<br />
estimular na outra.
Vale l<strong>em</strong>brarmos ain<strong>da</strong> a dupla Lilia e Josina, <strong>do</strong> folheto Defeza <strong>do</strong> bello sexo ou<br />
resposta ao papel intitula<strong>do</strong> ‘Malicia <strong>da</strong>s <strong>mulher</strong>es’. A autora <strong>do</strong> texto dizia se chamar<br />
Lilia e nos apresentava uma amiga (“cara”, “terna”, objecto <strong>de</strong> uma “<strong>do</strong>ce amiza<strong>de</strong>”) a<br />
cujos apelos estaria aten<strong>de</strong>n<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> <strong>de</strong>cidiu respon<strong>de</strong>r ao autor <strong>de</strong> Malicia <strong>da</strong>s<br />
Mulheres. Dita<strong>da</strong>s pela convenção literária ou por gosto pessoal, <strong>de</strong>zasseis quadras <strong>do</strong><br />
texto faziam as vezes <strong>de</strong> introdução ao assunto principal. Nelas o eu lírico f<strong>em</strong>inino se<br />
mostrava atormenta<strong>do</strong>. Recapitulou uma cena que não é <strong>de</strong> to<strong>do</strong> inusita<strong>da</strong>: enquanto<br />
pessoas mais felizes <strong>do</strong>rmiam, ela <strong>de</strong>cidira estar <strong>de</strong>sperta para pensar nas relações<br />
próximas e nas relações sociais, não conseguin<strong>do</strong>, por isso, aproveitar a quietu<strong>de</strong> <strong>da</strong><br />
noite para <strong>de</strong>scansar. É importante a referência a este discurso escrito durante a noite,<br />
distancian<strong>do</strong>-se a autora não só <strong>da</strong>s pessoas felizes <strong>do</strong> espaço ou <strong>do</strong> t<strong>em</strong>po solares, mas<br />
também <strong>da</strong> visibili<strong>da</strong><strong>de</strong> solar e diurna. Não <strong>de</strong>ve ser li<strong>da</strong>, cr<strong>em</strong>os, como uma mera<br />
referência pré-romântica (o <strong>do</strong>cumento é <strong>de</strong> 1812), mas sim como indício <strong>de</strong> uma certa<br />
invisibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> escrita f<strong>em</strong>inina. A <strong>mulher</strong>, tantas vezes associa<strong>da</strong> à Lua, a<strong>do</strong>ptaria o<br />
discurso lunar, o <strong>da</strong> humil<strong>da</strong><strong>de</strong>, o <strong>da</strong>s sombras 46 . Lilia aludiu a três cartas <strong>da</strong> amiga e só<br />
então <strong>da</strong>ria início a um discurso sobre as <strong>mulher</strong>es. Após a <strong>de</strong>fesa <strong>do</strong> belo sexo,<br />
terminaria <strong>da</strong>n<strong>do</strong> à amiga recomen<strong>da</strong>ções para que fosse justa, lúci<strong>da</strong> e amasse a Deus.<br />
A mesma tensão entre visibili<strong>da</strong><strong>de</strong> e humil<strong>da</strong><strong>de</strong> se verifica na Primeira carta<br />
apologetica, <strong>em</strong> favor e <strong>de</strong>fensa <strong>da</strong>s <strong>mulher</strong>es e na Segun<strong>da</strong> carta Apologetica, <strong>em</strong><br />
46 Para constituir uma lista sucinta a respeito <strong>da</strong>s significações <strong>de</strong> Sol e <strong>de</strong> Lua nas analogias com homens<br />
e <strong>mulher</strong>es, é oportuno referir: 1) a presença <strong>da</strong> noite associa<strong>da</strong> à <strong>mulher</strong> <strong>em</strong>, no mínimo, alguns mitos<br />
indígenas brasileiros. Na maioria <strong>de</strong>sses textos ficcionais a <strong>mulher</strong> sofre transformações durante a noite,<br />
as quais têm s<strong>em</strong>pre carácter obscuro e/ou sobrenatural, são escondi<strong>da</strong>s <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> (geralmente o mari<strong>do</strong><br />
com qu<strong>em</strong> ela vive), até que ele as <strong>de</strong>smascara e rejeita a face lunar <strong>da</strong> <strong>mulher</strong>. Em algumas versões ele<br />
ain<strong>da</strong> a segue, quan<strong>do</strong> ela retorna <strong>de</strong> outro mun<strong>do</strong> e o convi<strong>da</strong> a acompanhá-la. O en<strong>de</strong>reço eletrónico<br />
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40141996000200015 contém resumos <strong>de</strong><br />
histórias indígenas que ilustram a ligação <strong>da</strong> <strong>mulher</strong> com a noite, feitos por Betty Mindlin.; 2) a Carta <strong>de</strong><br />
guia <strong>de</strong> casa<strong>do</strong>s, <strong>de</strong> D. Francisco Manuel <strong>de</strong> Melo, na qual o hom<strong>em</strong> correspon<strong>de</strong> ao Sol e a <strong>mulher</strong>, à<br />
Lua: “O mari<strong>do</strong> t<strong>em</strong> as vezes <strong>de</strong> sol <strong>em</strong> sua casa, a <strong>mulher</strong>, as <strong>de</strong> lua; alumie com a luz que ele lhe <strong>de</strong>r e<br />
tenha também alguma clari<strong>da</strong><strong>de</strong>”, (2003, p. 62); 3) um conto moçambicano <strong>de</strong> Mia Couto. A edição<br />
portuguesa <strong>do</strong> livro Vozes anoiteci<strong>da</strong>s (Lisboa, Caminho, 1987), <strong>de</strong> Mia Couto, t<strong>em</strong> no conto “Afinal,<br />
Carlota Gentina não chegou <strong>de</strong> voar?” um ex<strong>em</strong>plo <strong>da</strong> crença na existência <strong>de</strong> <strong>mulher</strong>es que “à noite<br />
transformam <strong>em</strong> animais e circulam no serviço <strong>da</strong> feitiçaria” (p. 87); 4) o romance <strong>de</strong> José Saramago,<br />
M<strong>em</strong>orial <strong>do</strong> Convento, <strong>em</strong> que os protagonistas Baltasar e Blimun<strong>da</strong> têm as alcunhas <strong>de</strong>,<br />
respectivamente, Sete-Sóis e Sete-Luas, “Tu és Sete-Sóis porque vês às claras, tu serás Sete-Luas porque<br />
vês às escuras” (Círculo <strong>de</strong> Leitores, 1988, p. 77); 5) os verbetes “Lua” e “Sol”, presentes no Dicionário<br />
<strong>do</strong> Folclore Brasileiro, edita<strong>do</strong> por Luís <strong>da</strong> Câmara Cascu<strong>do</strong> (São Paulo, Editora <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> São<br />
Paulo, 1993), já que neste texto o autor refere estu<strong>do</strong>s que inclu<strong>em</strong> a tradição portuguesa, entre muitas<br />
outras (ele menciona, por ex<strong>em</strong>plo, trabalhos <strong>de</strong> Pierre Loti, Paul Sébillot, Ellworthy). O Sol t<strong>em</strong><br />
conotações positivas, conforme os registos <strong>de</strong> Luís <strong>da</strong> Câmara Cascu<strong>do</strong>, pois “É o gran<strong>de</strong> inimigo <strong>da</strong>s<br />
forças <strong>do</strong> Mal, e raro e difícil será o feitiço que possa operar durante as horas luminosas <strong>do</strong> sol” (p. 716).<br />
De acor<strong>do</strong> com as páginas 443, 444 e 445 <strong>do</strong> dicionário, a Lua liga-se à <strong>mulher</strong>, uma vez que t<strong>em</strong> até<br />
influência na gravi<strong>de</strong>z (diga-se influência negativa, a chama<strong>da</strong> “lua<strong>da</strong>”), e é invoca<strong>da</strong> por moças <strong>de</strong> várias<br />
culturas para trazer um futuro amor e outrora esteva associa<strong>da</strong> a Diana.
favor, e <strong>de</strong>fensa <strong>da</strong>s <strong>mulher</strong>es, <strong>de</strong> Gertru<strong>de</strong>s Margari<strong>da</strong> <strong>de</strong> Jesus. Também esta autora se<br />
apresenta assumin<strong>do</strong> a tarefa <strong>de</strong> <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r as <strong>mulher</strong>es contra acusações falsas feitas por<br />
um hom<strong>em</strong>, neste caso o Irmão Ama<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Desengano. Fa-lo-á pela comparação entre<br />
os po<strong>de</strong>res <strong>do</strong>s sexos e pela alusão à participação <strong>da</strong> <strong>mulher</strong> nas letras. Além disso, ela<br />
logo vai <strong>de</strong>stacan<strong>do</strong>, com subtileza, os seus conhecimentos <strong>de</strong> História ou <strong>de</strong> Latim,<br />
como se o seu interlocutor masculino também <strong>do</strong>minasse tais matérias (ou <strong>de</strong>vesse<br />
<strong>do</strong>miná-las). E termina, contrarian<strong>do</strong> o estilo <strong>do</strong> seu interlocutor: “Fico para servir a<br />
V.C.” (Primeira carta apologetica, <strong>em</strong> favor e <strong>de</strong>fensa <strong>da</strong>s <strong>mulher</strong>es, p. 13) e “Não<br />
molesto mais a V.C.” (Segun<strong>da</strong> carta Apologetica, <strong>em</strong> favor, e <strong>de</strong>fensa <strong>da</strong>s <strong>mulher</strong>es,<br />
p.12) – ain<strong>da</strong> que as fórmulas possam ser li<strong>da</strong>s como irónicas formali<strong>da</strong><strong>de</strong>s. Por to<strong>da</strong>s<br />
essas estratégias <strong>retórica</strong>s não estamos mais a falar somente <strong>do</strong> recurso ingénuo à carta e<br />
à orali<strong>da</strong><strong>de</strong> enquanto formas <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa <strong>da</strong> <strong>mulher</strong>.<br />
Gertru<strong>de</strong>s Margari<strong>da</strong> <strong>de</strong> Jesus igualmente associou a <strong>mulher</strong> à formiga e o<br />
hom<strong>em</strong> ao leão, para dizer que até uma formiga reage, quan<strong>do</strong> está prestes a ser<br />
esmaga<strong>da</strong> (o verbo que ela usa para <strong>de</strong>signar a acção <strong>do</strong> leão é curiosamente “trilhar”).<br />
A quali<strong>da</strong><strong>de</strong> que ela via na formiga – e que <strong>de</strong>sejava ressaltar na <strong>mulher</strong> - era a<br />
humil<strong>da</strong><strong>de</strong>. É possível pensarmos na ambigui<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>ste conceito <strong>de</strong> humil<strong>da</strong><strong>de</strong> ou na<br />
inusita<strong>da</strong> comparação com que a autora introduz a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> humil<strong>da</strong><strong>de</strong>: é humil<strong>de</strong> qu<strong>em</strong><br />
mostra as garras; se a ocasião exige que a formiga lute repentinamente, ela com<br />
humil<strong>da</strong><strong>de</strong> usa as armas que t<strong>em</strong>. Não será esta uma forma diferente <strong>de</strong> envere<strong>da</strong>r pelo<br />
conheci<strong>do</strong> caminho <strong>da</strong> fragili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> sexo? O que t<strong>em</strong> a humil<strong>da</strong><strong>de</strong> com a opção (neste<br />
caso, força<strong>da</strong>) pela luta? Não nos parece, assim, uma estratégia muito clara <strong>da</strong> parte <strong>da</strong><br />
escritora, que para marcar a diferença no rol <strong>de</strong> <strong>mulher</strong>es a <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r<strong>em</strong> a <strong>mulher</strong> ou b<strong>em</strong><br />
se inclinaria pela vertente <strong>da</strong> fragili<strong>da</strong><strong>de</strong> ou b<strong>em</strong> se aventuraria na <strong>da</strong> luta.<br />
Além disso, Gertru<strong>de</strong>s Margari<strong>da</strong> <strong>de</strong> Jesus pon<strong>de</strong>rou ain<strong>da</strong> o facto <strong>de</strong> os homens<br />
ter<strong>em</strong> papel mais sóli<strong>do</strong> no sist<strong>em</strong>a literário, que as <strong>mulher</strong>es. Mas na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, se elas<br />
escrevess<strong>em</strong> tanto quanto eles, tratariam <strong>de</strong> <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r-se na mesma medi<strong>da</strong>. O raciocínio<br />
prossegue: se eles tinham papel mais estável e <strong>de</strong>staca<strong>do</strong> na literatura, era porque se<br />
valiam <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as circunstâncias que os colocavam <strong>em</strong> condições <strong>de</strong> <strong>de</strong>finir e <strong>de</strong>screver<br />
a <strong>mulher</strong> como queriam. Escolhiam, por <strong>de</strong>formação <strong>de</strong> consciência, compor o pior <strong>do</strong>s<br />
retratos. Segun<strong>do</strong> ela, a <strong>mulher</strong> faria o mesmo, caso pu<strong>de</strong>sse. Mais uma vez, fica a<br />
impressão <strong>de</strong> que ela pretendia muito mais tratar <strong>da</strong> luta que <strong>da</strong> humil<strong>da</strong><strong>de</strong>. Ao recusar a<br />
exaltação, a sátira foi mais corajosa, mais combativa, mais erudita e mais serena e por<br />
isso superior <strong>em</strong> tu<strong>do</strong> na maneira <strong>de</strong> argumentar <strong>em</strong> prol <strong>da</strong> <strong>de</strong>fesa <strong>da</strong> <strong>mulher</strong>.
Destacamos outro procedimento retórico <strong>da</strong> autora: ela utilizou “ora veja” (p. 5),<br />
“veja” (p. 5), “ora permita-me” (p. 6) e “ora vá ouvin<strong>do</strong>” (p. 8) na Primeira carta<br />
apologetica, <strong>em</strong> favor e <strong>de</strong>fensa <strong>da</strong>s <strong>mulher</strong>es, repetiu <strong>de</strong>pois a última expressão na<br />
Segun<strong>da</strong> carta Apologetica, <strong>em</strong> favor, e <strong>de</strong>fensa <strong>da</strong>s <strong>mulher</strong>es. As marcas r<strong>em</strong>et<strong>em</strong> para<br />
a orali<strong>da</strong><strong>de</strong> e, através <strong>de</strong>la, para a capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> f<strong>em</strong>inina <strong>de</strong> produzir discurso fluente,<br />
prolixo e com aquela espontanei<strong>da</strong><strong>de</strong> (forja<strong>da</strong>, no entanto, porque <strong>retórica</strong>) <strong>de</strong> qu<strong>em</strong><br />
espera estabelecer uma afável e serena conexão com o interlocutor.<br />
Já quanto ao texto Bon<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s Mulheres contra a malicia <strong>do</strong>s Homens, <strong>de</strong><br />
L.D.P.G., ressaltamos a selecção vocabular <strong>do</strong> subtítulo (Relação cómica e histórica<br />
para divertimento <strong>de</strong> qu<strong>em</strong> a comprar e utili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> qu<strong>em</strong> a ven<strong>de</strong>r). O jogo <strong>de</strong><br />
palavras apoia<strong>do</strong> nos contrastes entre “comprar” e “ven<strong>de</strong>r” e entre “divertimento” e<br />
“utili<strong>da</strong><strong>de</strong>” foi usa<strong>do</strong> na edição s<strong>em</strong> <strong>da</strong>ta e <strong>de</strong>pois perdi<strong>do</strong> na edição <strong>de</strong> 1805. Muito<br />
possivelmente tinha como intenção r<strong>em</strong>eter o leitor (ou a leitora) aos princípios<br />
horacianos (“aut pro<strong>de</strong>sse aut <strong>de</strong>lectare” e “utile et dulce”), segun<strong>do</strong> os quais o texto<br />
<strong>de</strong>ve ser ao mesmo t<strong>em</strong>po proveitoso e prazeroso, isto é, transmitir saber e proporcionar<br />
fruição, estan<strong>do</strong> o <strong>de</strong>ver associa<strong>do</strong> ao <strong>de</strong>leite. Horácio <strong>de</strong> igual mo<strong>do</strong> escrevera que “No<br />
arranjo <strong>da</strong>s palavras <strong>de</strong>verás também ser subtil e cauteloso e magnificamente dirás se,<br />
por engenhosa combinação, transformares <strong>em</strong> novi<strong>da</strong><strong>de</strong>s as palavras mais correntes” 47 ,<br />
outro preceito que parece ter si<strong>do</strong> ouvi<strong>do</strong> por L.D.P.G.. Ain<strong>da</strong> mais se tiver si<strong>do</strong> ela a<br />
autora <strong>do</strong> subtítulo que parodia o preceito horaciano, separan<strong>do</strong> o prazer <strong>de</strong> qu<strong>em</strong> lê <strong>da</strong><br />
utili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> qu<strong>em</strong> escreve…<br />
4. A <strong>retórica</strong> <strong>do</strong> riso<br />
Tenhamos <strong>em</strong> conta que os textos <strong>de</strong> nosso corpus que não possu<strong>em</strong> narra<strong>do</strong>r <strong>de</strong><br />
1ª pessoa e narratário explícito pod<strong>em</strong> não estabelecer um laço com o leitor tão directo<br />
quanto o firma<strong>do</strong> por meio <strong>de</strong> um contrato entre narra<strong>do</strong>res <strong>de</strong> 3ª pessoa e as “leitoras”,<br />
“senhoras” e “filha”. Mas pod<strong>em</strong> criar, ain<strong>da</strong> que por outros caminhos, uma certa<br />
<strong>em</strong>patia com o leitor.<br />
A jocosi<strong>da</strong><strong>de</strong> parece-nos fazer parte <strong>de</strong>ssa estratégia <strong>de</strong> atingir o público mais<br />
intimamente, numa época <strong>de</strong> questionamento <strong>do</strong>s valores tradicionais. Ana Hatherly<br />
refere a jocosi<strong>da</strong><strong>de</strong> como um <strong>do</strong>s “processos <strong>de</strong> persuasão mais correntes na época” 48 .<br />
47 HORÁCIO, Arte poética, 1965, p. 59.<br />
48 Ana HATHERLY, Poesia incurável, 2003, p. 242.
Olh<strong>em</strong>os um pouco para Malicia <strong>da</strong>s Mulheres, <strong>de</strong> Baltasar Dias. Com humor, o<br />
narra<strong>do</strong>r (que evoca a tarefa <strong>de</strong> um “senhor”) aproveita para discorrer sobre o peso <strong>do</strong><br />
casamento. O vocabulário selecciona<strong>do</strong> é trivial, às vezes mais <strong>do</strong> que isso, pois chega a<br />
uma certa grosseria: “O gato <strong>da</strong> nossa Marta, /Que o d<strong>em</strong>o cá foi trazer, /Cagou to<strong>da</strong><br />
esta quarta, /Que tínheis para beber”. Not<strong>em</strong>os no seguinte excerto, “Se vê trazer um<br />
calça<strong>do</strong>, /Ou um vesti<strong>do</strong> à vizinha, É o coita<strong>do</strong> esfola<strong>do</strong>” (p. 4), o nome e o verbo<br />
usa<strong>do</strong>s no último verso. São amostras <strong>da</strong> construção s<strong>em</strong>ântica que apela ao risível, ao<br />
zombeteiro com a finali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> criticar o comportamento <strong>da</strong> <strong>mulher</strong>. Ela, que tu<strong>do</strong><br />
cobiça e tu<strong>do</strong> <strong>de</strong>strói, transforma o hom<strong>em</strong> num animal. O mesmo processo <strong>de</strong><br />
animalização po<strong>de</strong> aliás ser mútuo: à animalização ou <strong>do</strong>mesticação <strong>do</strong> animal, se<br />
respon<strong>de</strong>, afinal, na mesma moe<strong>da</strong>. Voltar<strong>em</strong>os a encontrar vocabulário mais ru<strong>de</strong> no<br />
texto Segun<strong>da</strong> parte <strong>da</strong> pregação <strong>de</strong> João Coelho, feitas as senhoras Mulheres <strong>da</strong><br />
mo<strong>da</strong>: “fedia” (p. 3), “marafona” (p. 4), “jarreta” (p. 4), “ca<strong>de</strong>la” (p. 7).<br />
Paralelamente à escolha <strong>do</strong> vocabulário vejamos que, <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong> primeira<br />
narrativa <strong>de</strong> Malicia <strong>da</strong>s Mulheres, há um segun<strong>do</strong> nível intradiegético, no qual se<br />
encaixa uma história com senti<strong>do</strong> cómico. A voz que fala no po<strong>em</strong>a pe<strong>de</strong> atenção para<br />
incutir na m<strong>em</strong>ória <strong>do</strong> leitor <strong>de</strong>termina<strong>da</strong> história ex<strong>em</strong>plar e principia a contá-la.<br />
Conhec<strong>em</strong>os a partir <strong>de</strong> então duas comadres mal<strong>do</strong>sas, especialistas <strong>em</strong> pregar peças<br />
aos mari<strong>do</strong>s 49 . O que elas quer<strong>em</strong> é a <strong>de</strong>sonra <strong>de</strong>les e o <strong>de</strong>boche, pretend<strong>em</strong> rir <strong>do</strong>s<br />
mari<strong>do</strong>s <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> expô-los a situações ridículas 50 . Assim que a narrativa <strong>da</strong>s peripécias<br />
<strong>de</strong>ssas <strong>mulher</strong>es termina, a voz <strong>do</strong> primeiro nível <strong>de</strong> narração volta ao discurso contra o<br />
casamento, insistin<strong>do</strong> na caracterização baixa, vota<strong>da</strong> ao relato <strong>da</strong> acção bruta e não à<br />
49 Para manter a rima (“folgares” com “manjares” e “galinhas” com “<strong>da</strong>ninhas”, palavra que escapa à<br />
transcrição) e para enriquecer a <strong>de</strong>scrição <strong>da</strong>s comadres, o eu lírico diz que eram “Tão amigas <strong>de</strong> folgares,<br />
/Como <strong>de</strong> comer galinhas /E outros gostosos manjares”. Elas com<strong>em</strong>, beb<strong>em</strong>, <strong>do</strong>rm<strong>em</strong> a sesta e<br />
apimentam o dia-a-dia, como qu<strong>em</strong> está disposto só para os prazeres baixos. Em segui<strong>da</strong> l<strong>em</strong>os sobre<br />
suji<strong>da</strong><strong>de</strong>s que elas aproveitam nas armadilhas e outros instrumentos afins, s<strong>em</strong>pre orienta<strong>da</strong>s para o que<br />
não é eleva<strong>do</strong>.<br />
50 Outra seria a situação, se os autores <strong>de</strong>ssa varie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> textos apologéticos recorress<strong>em</strong> à ironia mais<br />
fina, <strong>em</strong> vez <strong>de</strong> recorrer<strong>em</strong> à troça. Dariam mais ênfase à razão, por ex<strong>em</strong>plo, aban<strong>do</strong>nan<strong>do</strong> a vertente<br />
<strong>em</strong>otiva (que no preciso caso <strong>do</strong>s textos jocosos, busca a produção <strong>de</strong> um esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> ânimo leve, diverti<strong>do</strong>,<br />
inconsequente). Facto é que os textos <strong>de</strong> que tratamos eram eficientes <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que colass<strong>em</strong> à figura<br />
estereotipa<strong>da</strong> <strong>da</strong> <strong>mulher</strong> ou <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> um retrato capaz <strong>de</strong> entreter o leitor e <strong>de</strong> contornar conceitos<br />
<strong>de</strong>bati<strong>do</strong>s nas tertúlias e nos textos impressos <strong>de</strong> outros países. A honra como virtu<strong>de</strong> f<strong>em</strong>inina vinha<br />
sen<strong>do</strong> t<strong>em</strong>a <strong>de</strong> discussão no <strong>século</strong> XVIII; <strong>em</strong> Portugal, nos textos <strong>de</strong> nosso corpus, surgia na forma <strong>de</strong><br />
gran<strong>de</strong> prova <strong>da</strong>s quali<strong>da</strong><strong>de</strong>s f<strong>em</strong>ininas. Tais quali<strong>da</strong><strong>de</strong>s, no projecto <strong>da</strong>s autoras, fariam <strong>da</strong> <strong>mulher</strong><br />
merece<strong>do</strong>ra <strong>de</strong> reconhecimento <strong>em</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong>. Teresa Margari<strong>da</strong> <strong>da</strong> Silva e Orta no subtítulo <strong>da</strong>quela que<br />
muitos críticos consi<strong>de</strong>ram a primeira edição <strong>de</strong> Aventuras <strong>de</strong> Diófanes, utilizou, aliás, uma palavra que<br />
nos interessa, “virtu<strong>de</strong>”, re<strong>de</strong>finin<strong>do</strong>-a <strong>em</strong> conjunção com a formosura <strong>do</strong> belo sexo: Máximas <strong>de</strong> virtu<strong>de</strong><br />
e formosura com que Diófanes, Climenea e H<strong>em</strong>irena, príncipes <strong>de</strong> Tebas, venceram os mais aperta<strong>do</strong>s<br />
lances <strong>da</strong> <strong>de</strong>sgraça, ofereci<strong>da</strong>s à Princesa nossa Senhora D. Maria Francisca Isabel Josefa Antónia<br />
Gertru<strong>de</strong>s Rita Joana (o grifo é nosso).
eflexão: “Há aqui homens tão sofri<strong>do</strong>s, /E <strong>mulher</strong>es tão malva<strong>da</strong>s, /Que quan<strong>do</strong> estão<br />
agasta<strong>da</strong>s /Pelam as barbas aos mari<strong>do</strong>s, /E os mo<strong>em</strong> a panca<strong>da</strong>s” (p. 7).<br />
Se a <strong>mulher</strong> tinha muitas vezes sofri<strong>do</strong> críticas e si<strong>do</strong> alvo <strong>de</strong> chacotas, vingar-<br />
se-ia com estas mal<strong>da</strong><strong>de</strong>zinhas subversivas. Ao invés <strong>de</strong> se comportar <strong>de</strong> maneira<br />
<strong>de</strong>sleal para com o seu sexo, a <strong>mulher</strong> se irmanara com outras <strong>mulher</strong>es, e dirigira para<br />
o hom<strong>em</strong> seu po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> ataque. Baltasar Dias, o autor, provavelmente quis d<strong>em</strong>onstrar<br />
que a <strong>mulher</strong> é, muitas vezes, vil – e isto na época po<strong>de</strong> ter basta<strong>do</strong> para a parcela <strong>da</strong><br />
população que apenas isto queria ouvir -, mas estava a referir, no fun<strong>do</strong>, um tipo <strong>de</strong><br />
trunfo, <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r que a <strong>mulher</strong> t<strong>em</strong>: o <strong>de</strong> se unir contra o sexo masculino.<br />
Paula <strong>da</strong> Graça, <strong>em</strong> Bon<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s Mulheres vendica<strong>da</strong> e malicia <strong>do</strong>s Homens<br />
manifesta, percebeu a fragili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> relato e fez troça, dizen<strong>do</strong>: “Conce<strong>do</strong> que aquelas<br />
duas/ enganass<strong>em</strong> seus consortes, /e que fizess<strong>em</strong> <strong>da</strong>s suas/ travessuras, as mais fortes,/<br />
sen<strong>do</strong> <strong>em</strong> ambas mui comuns./ Mas os <strong>do</strong>us casos referi<strong>do</strong>s/ mostram tal basbaqui<strong>da</strong><strong>de</strong>/<br />
naqueles tolos mari<strong>do</strong>s,/ que só fora iniqui<strong>da</strong><strong>de</strong>/ livrá-los <strong>de</strong> ser corri<strong>do</strong>s./ Só se ensinam<br />
às panca<strong>da</strong>s/ os tolos…” (p. 5). Ela pô<strong>de</strong>, assim, ser irónica, isto é, <strong>de</strong>sfrutar <strong>de</strong> uma<br />
outra forma <strong>de</strong> riso. Paula <strong>da</strong> Graça é, <strong>do</strong>s autores recolhi<strong>do</strong>s, o melhor ex<strong>em</strong>plo <strong>da</strong><br />
importância <strong>de</strong>sta estratégia pelo riso. Já no prólogo manifestou intenção <strong>de</strong> fazer<br />
galhofa e <strong>de</strong> divertir as leitoras, tu<strong>do</strong> <strong>em</strong> nome <strong>da</strong> dita “jocosi<strong>da</strong><strong>de</strong>”.<br />
Como postularia Bergson 51 , a ausência <strong>de</strong> <strong>em</strong>patia para com a vítima acompanha<br />
o riso. O riso, então, é estranho à compaixão. Preten<strong>de</strong>n<strong>do</strong> <strong>de</strong>spertar revolta pela<br />
mal<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s duas <strong>mulher</strong>es, Baltasar Dias fomentou o cómico. Mas Paula <strong>da</strong> Graça<br />
transformou a mal<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s <strong>mulher</strong>es <strong>em</strong> vingança justa, <strong>de</strong>struiu qualquer <strong>em</strong>patia com<br />
as vítimas; o que concorria para <strong>em</strong>ocionar, pela fraqueza <strong>da</strong> construção satírica <strong>do</strong><br />
autor, forneceu no fun<strong>do</strong> substância para o cómico. Não nos conduzin<strong>do</strong> habilmente<br />
para sentir afecto pelos <strong>do</strong>is, antes conseguiu que tivéss<strong>em</strong>os vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> rir, <strong>de</strong><br />
compreen<strong>de</strong>r com inteligência o papel <strong>de</strong> bobo que eles próprios incentivavam. Não<br />
simpatizámos com os mari<strong>do</strong>s, rimos agora com as respectivas <strong>mulher</strong>es (pelo menos à<br />
socapa).<br />
Talvez Paula <strong>da</strong> Graça tenha sabi<strong>do</strong> explorar melhor ain<strong>da</strong> outro ponto <strong>em</strong> que<br />
Bergson insistiu: a função social <strong>do</strong> cómico. Em Portugal, ain<strong>da</strong> que <strong>em</strong> graus diferentes<br />
<strong>de</strong> alguns países ou regiões <strong>da</strong> Europa, crescera o número <strong>de</strong> <strong>mulher</strong>es alfabetiza<strong>da</strong>s e<br />
<strong>de</strong> possíveis leitoras. O momento histórico <strong>de</strong> mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong> <strong>século</strong> XVIII era propício para<br />
51 Henri BERGSON, O riso, 1993.
aguçar a consciência <strong>do</strong>s leitores <strong>em</strong> geral (homens e <strong>mulher</strong>es) acerca <strong>da</strong>s capaci<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />
<strong>da</strong> <strong>mulher</strong>, e a autora o fez por meio <strong>do</strong> riso. S<strong>em</strong> contar que a advertência lógica que<br />
ela fazia seria cativante <strong>em</strong> qualquer época. A narra<strong>do</strong>ra saiu-se com um irónico “Que<br />
martírio não atura/ qu<strong>em</strong> dá c'um <strong>de</strong>sconfia<strong>do</strong>?/ Não vale to<strong>da</strong> a lisura./ A cautela é um<br />
atenta<strong>do</strong>,/ que leva à sepultura” (p. 5).<br />
Charles Bau<strong>de</strong>laire <strong>de</strong>u um peculiar contributo para o entendimento <strong>do</strong> riso. Viu<br />
no riso um sinal <strong>de</strong> superiori<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> qu<strong>em</strong> o provoca e <strong>de</strong> qu<strong>em</strong> o experimenta 52 .<br />
Chamou a atenção para o gozo que o especta<strong>do</strong>r sente diante <strong>da</strong> fraqueza <strong>de</strong> um outro,<br />
um outro distraí<strong>do</strong> ou atrapalha<strong>do</strong>; só aquele que se reconhece como superior está <strong>em</strong><br />
condições <strong>de</strong> rir <strong>do</strong> outro. Voltan<strong>do</strong> ao caso <strong>do</strong>s mari<strong>do</strong>s maltrata<strong>do</strong>s, isso significa que<br />
encarnavam um tipo <strong>de</strong> miséria humana <strong>de</strong> que as <strong>mulher</strong>es pu<strong>de</strong>ram rir e que os<br />
homens consi<strong>de</strong>ravam menos importante <strong>do</strong> que a malícia atribuí<strong>da</strong> às duas comadres.<br />
O po<strong>de</strong>r <strong>do</strong> riso ficou nas mãos <strong>da</strong>s <strong>mulher</strong>es, a autora Paula <strong>da</strong> Graça e as suas<br />
leitoras. A pouca literacia <strong>do</strong>s leitores <strong>de</strong>sse tipo <strong>de</strong> folheto <strong>de</strong> cor<strong>de</strong>l ou qu<strong>em</strong> sabe a<br />
moral <strong>da</strong> época, no entanto, pod<strong>em</strong> ter contribuí<strong>do</strong> para que houvesse tantas edições <strong>do</strong><br />
texto <strong>de</strong> Baltasar Dias; o texto era simplório na sua constituição, mas tinha um público<br />
cativo à medi<strong>da</strong>. Paula <strong>da</strong> Graça aludiu a essa assimilação fácil <strong>da</strong> obra que ele<br />
procurava combater: “…tantas sentenças, quantas são as aprovações que aquele famoso<br />
libelo acha entre as pessoas <strong>do</strong> povo…” (p. 3). O povo que concor<strong>da</strong>ra com Baltasar<br />
Dias havia <strong>de</strong> estar melhor servi<strong>do</strong> e consola<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> risse com ela.<br />
5. A <strong>retórica</strong> <strong>da</strong> máxima<br />
Não conta pela quanti<strong>da</strong><strong>de</strong>, mas pelo teor, o facto <strong>de</strong> haver aproveitamento <strong>de</strong><br />
máximas nos textos <strong>em</strong> apreço. Os ex<strong>em</strong>plos que colh<strong>em</strong>os, no entanto, parec<strong>em</strong> não<br />
correspon<strong>de</strong>r rigorosamente ao que Aristóteles prescrevia ou não correspon<strong>de</strong>r à<br />
totali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong>s conselhos retóricos que ele <strong>da</strong>va 53 . Recomen<strong>da</strong>va ele que as máximas<br />
foss<strong>em</strong> a opção discursiva <strong>do</strong>s mais i<strong>do</strong>sos, <strong>de</strong> preferência, pois não ficava b<strong>em</strong> que as<br />
pessoas novas, s<strong>em</strong> gran<strong>de</strong> experiência <strong>de</strong> vi<strong>da</strong>, opinass<strong>em</strong> e fizess<strong>em</strong> elações a partir <strong>de</strong><br />
acontecimentos passa<strong>do</strong>s apenas com os outros. Além disso, ele também propôs uma<br />
distinção entre as máximas e os entim<strong>em</strong>as, para valorizar a concisão <strong>da</strong> primeira<br />
fórmula. Destacou o papel <strong>do</strong>s provérbios neste quesito, dizen<strong>do</strong> que eles às vezes<br />
assumiam a função <strong>de</strong> máximas. Por fim, sublinhou que não importa quantas vezes as<br />
52 Charles BAUDELAIRE, Da essência <strong>do</strong> riso, 2001.<br />
53 ARISTÓTELES, Retórica, 2005, p. 208.
máximas tenham si<strong>do</strong> repeti<strong>da</strong>s nos discursos <strong>em</strong> geral. Se são boas, é correcto utilizá-<br />
las e o facto <strong>de</strong> ter<strong>em</strong> muito uso quer mesmo dizer que têm boa aceitação.<br />
O que se suce<strong>de</strong>u nos textos aqui <strong>em</strong> apreço?<br />
To<strong>do</strong>s, <strong>em</strong> geral, <strong>de</strong> autoria masculina ou f<strong>em</strong>inina, aproveitaram a força <strong>retórica</strong><br />
<strong>da</strong> máxima. Bon<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s Mulheres vendica<strong>da</strong> e malicia <strong>do</strong>s Homens manifesta fez<br />
alusão a “aqueles dita<strong>do</strong>s <strong>de</strong> Esopo” (p. 6). Abun<strong>da</strong>m sobretu<strong>do</strong> as máximas sob a<br />
forma <strong>de</strong> provérbios. Malicia <strong>do</strong>s Homens contra a bon<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s Mulheres reproduziu a<br />
expressão “cobrir o Sol com uma joeira” (p. 3). O Espelho critico, no qual claramente<br />
se v<strong>em</strong> alguns <strong>de</strong>feitos <strong>da</strong>s Mulheres referiu o axioma “Fogo, mar e <strong>mulher</strong> três males<br />
são” (p. 5). Devoção <strong>da</strong>s <strong>mulher</strong>es <strong>da</strong> mo<strong>da</strong> na Igreja, e o mo<strong>do</strong> com que nunca ouv<strong>em</strong><br />
missa argumentou que “Quan<strong>do</strong> o pão <strong>de</strong> rala tufa, que fará o pão alvo” (p. 1), implorou<br />
que “Água benta nos lave, Jesus Cristo nos salve” (p. 3), assegurou que “o boi solto<br />
lambe-se to<strong>do</strong>” (pp. 4-5), que “n<strong>em</strong> tanto ao mar, n<strong>em</strong> tanto à terra” (p. 5), que “filhas<br />
são pe<strong>da</strong>ços <strong>da</strong> alma” (p. 6), que “o casamento e a mortalha <strong>do</strong> Céu se talha” (p. 7), que<br />
“se tiver <strong>de</strong> suce<strong>de</strong>r, s<strong>em</strong>pre há-<strong>de</strong> ser” (p. 7) e que “filho és, pai serás” (p. 8).<br />
Não pod<strong>em</strong>os asseverar que entre nossos autores, <strong>de</strong> que sab<strong>em</strong>os muito pouco,<br />
houvesse i<strong>do</strong>sos. Mas é curioso que estes discursos satíricos ou apologéticos tenham<br />
utiliza<strong>do</strong> máxima s<strong>em</strong> sinal <strong>de</strong> maturi<strong>da</strong><strong>de</strong>, não <strong>do</strong>s autores, mas <strong>do</strong>s seus raciocínios. A<br />
máxima r<strong>em</strong>ete para a segurança <strong>do</strong> que afirmam, tanto quanto para a antigui<strong>da</strong><strong>de</strong> (cf.<br />
argumento ad vetustum) e logo <strong>em</strong>pírica permanência <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> que afirmam.<br />
Realçamos também a separação a que proce<strong>de</strong>u M.D.M.C.D.M.A.E.C., autor <strong>de</strong><br />
Malicia <strong>do</strong>s Homens contra a bon<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s Mulheres, <strong>de</strong>ixan<strong>do</strong> ficar <strong>de</strong> um la<strong>do</strong> a<br />
expressão “cobrir o Sol com uma joeira” e <strong>do</strong> outro o epílogo ou a explicação para ela,<br />
que é o fragmento “louvar as senhoras <strong>mulher</strong>es foi o seu intento e o meu intento agora<br />
será <strong>de</strong>sfazer to<strong>do</strong>s aqueles louvores e mostrar os males que causam e os bens que não<br />
motivam”. Está observa<strong>da</strong> a concisão que Aristóteles recomen<strong>da</strong>va, mas aqui ela se<br />
explicita num contexto irónico retoricamente consciente.<br />
Chamamos atenção para o uso <strong>de</strong> dita<strong>do</strong>s pelos autores <strong>em</strong> geral. Tanto para<br />
preparar uma resposta no contexto <strong>de</strong> uma polémica, quanto para fazer ficção <strong>em</strong> torno<br />
<strong>de</strong> um assunto polémico, o uso <strong>de</strong> dita<strong>do</strong>s era visto como retoricamente eficaz. O eu<br />
lírico <strong>de</strong> Nova relação contra as Mulheres ou parvoices <strong>do</strong>s seus enfeites avisou-nos<br />
que estava a valer-se <strong>de</strong> um dita<strong>do</strong> (“Porém aquele dita<strong>do</strong> antigo”, p. 3). O <strong>de</strong> Devoção<br />
<strong>da</strong>s <strong>mulher</strong>es <strong>da</strong> mo<strong>da</strong> na Igreja, e o mo<strong>do</strong> com que nunca ouv<strong>em</strong> missa pôs os dita<strong>do</strong>s<br />
nas falas <strong>do</strong> discurso directo, utilizan<strong>do</strong> ligações <strong>do</strong> tipo “S<strong>em</strong>pre ouvir dizer” (p. 7) e
“como lá diz<strong>em</strong>” (p. 13), para ver<strong>da</strong><strong>de</strong>s absolutas e impessoais, que vali<strong>da</strong>m o<br />
argumento <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong> espontanei<strong>da</strong><strong>de</strong> e rapi<strong>de</strong>z <strong>do</strong> discurso directo. O <strong>de</strong> Malicia <strong>do</strong>s<br />
Homens contra a bon<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s Mulheres – que mais nos interessa por ser <strong>de</strong> autoria<br />
f<strong>em</strong>inina – centrou o princípio <strong>da</strong> sua contra-argumentação no dita<strong>do</strong>, d<strong>em</strong>onstran<strong>do</strong><br />
crença nesse tipo <strong>de</strong> estratégia discursiva.<br />
Repensan<strong>do</strong> a Retórica <strong>de</strong> Aristóteles, po<strong>de</strong>r<strong>em</strong>os aqui falar <strong>de</strong> vulgarização e<br />
<strong>de</strong>sgaste <strong>do</strong>s dita<strong>do</strong>s <strong>em</strong>pregues nos textos <strong>de</strong> nosso corpus? É bastante difícil, <strong>do</strong><br />
ângulo <strong>de</strong> visão actual, aferir a frequência <strong>do</strong> uso <strong>de</strong>ste ou <strong>da</strong>quele dita<strong>do</strong>, uma vez que<br />
é evi<strong>de</strong>nte que tal juízo não po<strong>de</strong> vir <strong>da</strong> experiência frente aos actuais falantes.<br />
Em geral, utilizar provérbios <strong>de</strong>nota apreço pela sabe<strong>do</strong>ria – atitu<strong>de</strong> que condiz<br />
com outras práticas discursivas <strong>do</strong>s textos <strong>em</strong> consi<strong>de</strong>ração, conforme nos recor<strong>da</strong><br />
Alfre<strong>do</strong> Bosi 54 . E como é <strong>de</strong> nosso conhecimento, a sabe<strong>do</strong>ria po<strong>de</strong> estar nessas<br />
fórmulas quase literárias, capazes <strong>de</strong> con<strong>de</strong>nsar longas histórias ao justapor el<strong>em</strong>entos-<br />
chave, na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que nos transporta <strong>de</strong> volta à força <strong>da</strong>s metáforas e <strong>da</strong>s imagens<br />
concretas, libertan<strong>do</strong>-nos <strong>da</strong> obsessão oci<strong>de</strong>ntal pela abstracção. Bosi também se<br />
pergunta retoricamente o que significam os adágios, senão “um gesto comunitário <strong>da</strong><br />
fala?” (p. 4). Com a in<strong>da</strong>gação, está a <strong>da</strong>r-nos mais uma pista para a recepção <strong>da</strong><br />
estratégia <strong>da</strong>s escritoras, sobretu<strong>do</strong> Paula <strong>da</strong> Graça e L.D.P.G.: se manejavam<br />
provérbios, ficavam mais próximas <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>da</strong>vam provas <strong>de</strong> pertença a uma<br />
sabe<strong>do</strong>ria colectiva e com isso cativavam um número mais largo <strong>de</strong> leitoras. Estavam a<br />
promover i<strong>de</strong>ntificação com um público habitualmente marginaliza<strong>do</strong> que, se não tinha<br />
acesso à autori<strong>da</strong><strong>de</strong> livresca, reconhecia facilmente a autori<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> provérbio, <strong>em</strong> to<strong>do</strong><br />
o caso, comum no discurso oral.<br />
Alfre<strong>do</strong> Bosi enumera, entre outras, quatro obras portuguesas <strong>de</strong> relevo para a<br />
confiável transcrição e manutenção <strong>do</strong>s provérbios <strong>da</strong> cultura portuguesa: Comédia<br />
eufrósina, <strong>de</strong> Jorge Ferreira <strong>de</strong> Vasconcelos, Feira <strong>de</strong> anexins, <strong>de</strong> D. Francisco Manuel<br />
<strong>de</strong> Melo, publica<strong>da</strong> <strong>do</strong>is <strong>século</strong>s <strong>de</strong>pois <strong>da</strong> morte <strong>do</strong> escritor português, Nova floresta e<br />
Luz e calor, ambas <strong>do</strong> Pe. Manuel Bernar<strong>de</strong>s. Provas <strong>de</strong> que o provérbio é maleável<br />
retoricamente e transita facilmente <strong>do</strong> discurso erudito para o discurso menos erudito e<br />
vice-versa.<br />
6. A <strong>retórica</strong> <strong>da</strong> autori<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
54 Alfre<strong>do</strong> BOSI é o autor <strong>da</strong> Introdução <strong>do</strong> livro <strong>de</strong> Martha Steinberg, 1001 provérbios <strong>em</strong> contraste,<br />
2002, pp. 3-8.
Carmen Alborch, <strong>do</strong>utora <strong>em</strong> Direito e autora <strong>de</strong> textos apologéticos <strong>da</strong> <strong>mulher</strong><br />
cuja obra já foi menciona<strong>da</strong> neste capítulo, refere o simbolismo jurídico <strong>do</strong> episódio<br />
mítico <strong>em</strong> que Afrodite, Hera e Atena, disputan<strong>do</strong> entre si o título <strong>de</strong> mais formosa,<br />
entregam a Páris o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> o <strong>de</strong>cidir irrevogavelmente. O simbolismo <strong>da</strong> disputa entre<br />
as três <strong>mulher</strong>es, ten<strong>do</strong> um hom<strong>em</strong> com árbitro, explica mais <strong>do</strong> que o episódio <strong>em</strong> si ou<br />
<strong>do</strong> que a sequência <strong>da</strong> guerra <strong>de</strong> Tróia. Carmen Alborch consi<strong>de</strong>ra-o o <strong>em</strong>bl<strong>em</strong>a <strong>de</strong> uma<br />
estrutura jurídica e social <strong>em</strong> que o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão é invariavelmente entregue ao<br />
el<strong>em</strong>ento masculino. Fez-nos perceber que os argumentos extraí<strong>do</strong>s <strong>de</strong> mitos f<strong>em</strong>ininos<br />
pod<strong>em</strong> ser usa<strong>do</strong>s contra ou <strong>em</strong> prol <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r <strong>da</strong>s <strong>mulher</strong>es. A investiga<strong>do</strong>ra apoia-se<br />
igualmente no ex<strong>em</strong>plo mítico <strong>de</strong> Lia e Raquel e através <strong>de</strong>le po<strong>de</strong> falar, entre outros<br />
subt<strong>em</strong>as, <strong>de</strong> materni<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>de</strong> beleza e <strong>de</strong> intimi<strong>da</strong>ção.<br />
De acor<strong>do</strong> com a leitura que Alborch faz, as <strong>mulher</strong>es não se reconhec<strong>em</strong> como<br />
“m<strong>em</strong>bros <strong>de</strong> primeira classe” 55 , por isso <strong>de</strong>preciam-se. A voz que introduz a diferença,<br />
seja pelo viés <strong>da</strong> cumplici<strong>da</strong><strong>de</strong>, seja pelo viés <strong>do</strong> riso, invista na agressivi<strong>da</strong><strong>de</strong> ou invista<br />
na erudição, abre um canal para outras <strong>mulher</strong>es, cativa a audiência, inaugura uma<br />
possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> apreciação positiva. Not<strong>em</strong>os que nosso corpus t<strong>em</strong> <strong>mulher</strong>es a<br />
respon<strong>de</strong>r<strong>em</strong> a homens, <strong>mulher</strong>es a iniciar<strong>em</strong> <strong>polémicas</strong> que são prolonga<strong>da</strong>s por<br />
homens, <strong>em</strong> outras palavras, nosso corpus po<strong>de</strong> ser compreendi<strong>do</strong> nesta perspectiva que<br />
aponta a cumplici<strong>da</strong><strong>de</strong> ou a disputa como estabelece<strong>do</strong>ras <strong>de</strong> um diálogo<br />
imprescindível. Propor cumplici<strong>da</strong><strong>de</strong> ou suscitar a polémica, alimentá-la, equivale a sair<br />
<strong>da</strong> marg<strong>em</strong>.<br />
Olh<strong>em</strong>os concretamente os casos <strong>do</strong>s textos <strong>em</strong> apreço.<br />
Existe, entre eles, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> logo, um diferente valor <strong>da</strong> autori<strong>da</strong><strong>de</strong> livresca ou<br />
erudita. Sinal disso é a ausência ou presença <strong>de</strong> citações <strong>em</strong> latim. Os textos <strong>do</strong> Bloco<br />
A, to<strong>do</strong>s <strong>de</strong>riva<strong>do</strong>s <strong>do</strong> auto satírico atribuí<strong>do</strong> a Baltasar Dias, não têm citações <strong>em</strong> latim,<br />
ao passo que <strong>do</strong>is <strong>do</strong> Bloco B, que somente pelo título r<strong>em</strong>et<strong>em</strong> para o texto <strong>de</strong> Baltasar<br />
Dias, mas <strong>de</strong>le se distanciam na forma e no conteú<strong>do</strong>, foram organiza<strong>do</strong>s <strong>de</strong> forma a<br />
exibir<strong>em</strong> citações: Bon<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s Mulheres contra a malicia <strong>do</strong>s Homens t<strong>em</strong> duas,<br />
ambas no final; Malicia <strong>do</strong>s Homens contra a bon<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s Mulheres t<strong>em</strong> várias, mais<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>z, b<strong>em</strong> distribuí<strong>da</strong>s. No Bloco C (na disputa entre o Irmão Ama<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Desengano<br />
e Gertru<strong>de</strong>s Margari<strong>da</strong> <strong>de</strong> Jesus), elas abun<strong>da</strong>m: Espelho critico, no qual claramente se<br />
v<strong>em</strong> alguns <strong>de</strong>feitos <strong>da</strong>s Mulheres conta com uma: “Quid levius fumo? Flam<strong>em</strong>: quid<br />
55 Carmen ALBORCH, Mulheres contra <strong>mulher</strong>es?, 2004, p. 25.
flamine? Ventus: quid vento? Mulier: quid muliere? Nihil.” (p. 10) Gertru<strong>de</strong>s Margari<strong>da</strong><br />
<strong>de</strong> Jesus, subtilmente, “exibe” os seus conhecimentos <strong>de</strong> latim, respon<strong>de</strong>n<strong>do</strong> com esta<br />
citação mais longa, introduzi<strong>da</strong> pelo comentário provoca<strong>do</strong>r: “Permita-me licença que<br />
feche esta Carta com suas formais palavras, pois creio que V.C. também sabe os seus<br />
<strong>do</strong>us <strong>de</strong><strong>do</strong>s <strong>de</strong> Latim. Quis aut<strong>em</strong> dicat naturam maligne cum muliebribus ingeniis<br />
egisse ex virtutes illarum in arctum retraxisse? Par illis (mihi cre<strong>de</strong>) vigor, par ad<br />
honesta (libeat) facultas est. Labor<strong>em</strong>, <strong>do</strong>lor<strong>em</strong>que ex aquo, si consuevere, patiuntur”<br />
(Segun<strong>da</strong> carta Apologetica, <strong>em</strong> favor, e <strong>de</strong>fensa <strong>da</strong>s <strong>mulher</strong>es, p. 12). Os textos <strong>do</strong><br />
Bloco D (dispersos entre 1740 e 1811) têm um uso <strong>de</strong>sigual <strong>da</strong> citação latina: <strong>em</strong><br />
Desengano <strong>de</strong> ciosos, atrevimento <strong>de</strong> <strong>mulher</strong>es, encontrámos “Si aliquid contra fid<strong>em</strong>,<br />
in dictum volo” (p. 8); <strong>em</strong> Carta e resposta sobre o odio <strong>do</strong>s inimigos francezes, e sobre<br />
o ornato <strong>da</strong>s <strong>mulher</strong>es, há expressões soltas (por ex<strong>em</strong>plo: “iniquos odio habui”,<br />
“diligite inimicos vostros”, na p. 10 e <strong>de</strong>pois na p. 17), a par <strong>de</strong> vários fragmentos um<br />
pouco maiores (“Dum t<strong>em</strong>pus hab<strong>em</strong>us, oper<strong>em</strong>ur bomun ad omnes, maxime aut<strong>em</strong> ad<br />
<strong>do</strong>mesticos fi<strong>de</strong>i”, na p. 19).<br />
A primeira tradução <strong>da</strong> Bíblia católica, <strong>da</strong> língua latina para a língua portuguesa,<br />
<strong>da</strong> autoria <strong>de</strong> António Pereira <strong>de</strong> Figueire<strong>do</strong>, é <strong>da</strong> segun<strong>da</strong> meta<strong>de</strong> <strong>do</strong> <strong>século</strong> XVIII. A<br />
<strong>de</strong>speito disso, havia uma cultura oral <strong>em</strong> torno <strong>do</strong>s textos bíblicos, o que explica o<br />
interesse retórico pela alusão ou citação <strong>de</strong>sses textos. O seu reconhecimento, ain<strong>da</strong> que<br />
<strong>em</strong> latim, alimentava leituras conotativas quer no leitor erudito quer no pouco letra<strong>do</strong>.<br />
A construção mais formal e erudita <strong>do</strong> texto Defeza <strong>do</strong> bello sexo ou resposta ao<br />
papel intitula<strong>do</strong> ‘Malicia <strong>da</strong>s <strong>mulher</strong>es’ pô<strong>de</strong> também socorrer-se <strong>do</strong> uso <strong>da</strong> epígrafe,<br />
que serviu <strong>de</strong> ponto <strong>de</strong> parti<strong>da</strong> <strong>do</strong> texto: “Mil vezes cai, qu<strong>em</strong> se não precata,/ Qu<strong>em</strong> a<br />
tu<strong>do</strong> o que cui<strong>da</strong> solta a pena;/ muitas coisas enfeixa, poucas ata.”, <strong>de</strong> Bernar<strong>de</strong>s. A<br />
citação e o autor <strong>de</strong>la confirmam, a nosso ver, esta dignificação <strong>do</strong> género apologético<br />
<strong>da</strong> <strong>mulher</strong>, ao aproximar-se <strong>do</strong> ensaio e sobretu<strong>do</strong> <strong>do</strong> sermão. Esta contaminação <strong>de</strong><br />
géneros parece, aliás, ser confirma<strong>da</strong> também pela utilização recorrente <strong>do</strong>s ex<strong>em</strong>plos<br />
bíblicos. E são muitos os ex<strong>em</strong>plos.<br />
Os textos que ostentam referência bíblica citam <strong>de</strong>s<strong>de</strong> logo o Génesis e recuam<br />
sist<strong>em</strong>aticamente ao mito original, até Adão e Eva. Foi <strong>de</strong>ste mo<strong>do</strong> que proce<strong>de</strong>u<br />
L.D.P.G., <strong>em</strong> Bon<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s Mulheres contra a malicia <strong>do</strong>s Homens. Porém, antes <strong>de</strong><br />
chamar nossa atenção para a questão <strong>da</strong> culpa e <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> saber, encarna<strong>do</strong>s por<br />
Adão e Eva, a autora fez uma rápi<strong>da</strong> incursão no t<strong>em</strong>a <strong>da</strong> Fortuna, como conceito <strong>da</strong><br />
Antigui<strong>da</strong><strong>de</strong> clássica. A firmeza <strong>da</strong>s <strong>mulher</strong>es <strong>de</strong>s<strong>de</strong> s<strong>em</strong>pre teria supera<strong>do</strong> a
inconstância a elas atribuí<strong>da</strong>, muito <strong>em</strong>bora a ro<strong>da</strong> <strong>da</strong> Fortuna tenha trazi<strong>do</strong> à baila mais<br />
vezes esse <strong>de</strong>feito nas <strong>mulher</strong>es. Esgota<strong>da</strong> a introdução ao assunto nuclear, v<strong>em</strong> o<br />
ex<strong>em</strong>plo. A reflexão sobre a Fortuna transforma então as leituras <strong>da</strong> conheci<strong>da</strong> história<br />
bíblica: a autora redime Eva, ao fazer <strong>de</strong> Adão culpa<strong>do</strong> na mesma medi<strong>da</strong> que ela. E a<br />
propala<strong>da</strong> firmeza f<strong>em</strong>inina estaria, então, na resolução com que ela enfrentou a<br />
proibição <strong>de</strong> Deus, a fim <strong>de</strong> obter o conhecimento <strong>da</strong>s coisas <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. A Fortuna, essa<br />
não se controla.<br />
Eva estaria a representar a curiosi<strong>da</strong><strong>de</strong> f<strong>em</strong>inina, mais <strong>do</strong> que isso até, seria<br />
representante <strong>da</strong> fertili<strong>da</strong><strong>de</strong> f<strong>em</strong>inina, a mesma que se observa até sob a forma <strong>de</strong><br />
loquaci<strong>da</strong><strong>de</strong>, às vezes t<strong>em</strong>i<strong>da</strong> pelos homens como per<strong>da</strong> <strong>do</strong> controle <strong>da</strong> fala. Mas não<br />
são a fertili<strong>da</strong><strong>de</strong> e a loquaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>feitos. Dessa fartura f<strong>em</strong>inina, digamos assim, <strong>de</strong>ssa<br />
eloquência tratou Danielle Clarke 56 . Ela concentrou esforços na interpretação <strong>do</strong> mito <strong>de</strong><br />
Eco, basea<strong>da</strong> nas versões com que escritores canónicos vestiram o mito <strong>de</strong>s<strong>de</strong> Ovídio<br />
até Milton. Segun<strong>do</strong> ela, eram os homens que escolhiam o conhecimento retórico que<br />
uma <strong>mulher</strong> <strong>de</strong>veria ter. Sobrava para o género f<strong>em</strong>inino o que não garantia acesso aos<br />
estatutos superiores <strong>da</strong> hierarquia social. Restava à <strong>mulher</strong>, por ex<strong>em</strong>plo, o silêncio. É<br />
bastante intrigante ver que historicamente a noção <strong>de</strong> que a <strong>mulher</strong> era e <strong>de</strong>veria ser<br />
silenciosa se perenizava. Poucos estudiosos <strong>da</strong> Retórica se <strong>de</strong>ram ao trabalho <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>sconstruir tal noção. No contexto inglês, por ex<strong>em</strong>plo, ain<strong>da</strong> que <strong>em</strong> Inglaterra fosse<br />
notável a quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>mulher</strong>es escritoras, isso não se verificou. O que competia a<br />
eles provar caberia <strong>em</strong> um ponto: a <strong>mulher</strong> fora condiciona<strong>da</strong> a silenciar-se, pois nos<br />
textos mais persuasivos o mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> <strong>mulher</strong> virtuosa s<strong>em</strong>pre coincidia com o <strong>da</strong> <strong>mulher</strong><br />
silenciosa ou parca nas palavras. Invariavelmente os textos, a começar pelos mais<br />
antigos, eram concebi<strong>do</strong>s como manuais <strong>em</strong> que a <strong>mulher</strong> lia uma <strong>de</strong>scrição <strong>do</strong> que é ser<br />
uma <strong>mulher</strong>, <strong>de</strong>ven<strong>do</strong> somente correspon<strong>de</strong>r a essa imag<strong>em</strong> silenciosa projecta<strong>da</strong>.<br />
Danielle Clarke saberá valorizar o facto <strong>de</strong> contra a tagarelice f<strong>em</strong>inina os<br />
homens costumar<strong>em</strong> contrapor o argumento <strong>da</strong> utili<strong>da</strong><strong>de</strong>. Pregavam que convinha que<br />
uma <strong>mulher</strong> só falasse quan<strong>do</strong> tinha coisas úteis a dizer, quan<strong>do</strong> tinha conselhos sábios,<br />
instruções específicas etc. Ela chama a atenção para Ovídio que, ao abor<strong>da</strong>r a figura <strong>de</strong><br />
Eco nos seus po<strong>em</strong>as, assumiu postura <strong>de</strong> qu<strong>em</strong> não acreditava na fala f<strong>em</strong>inina, pois<br />
ela seria repetitiva. A <strong>mulher</strong> para ele não tinha a proprie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> começar um discurso<br />
56 Danielle CLARKE, “Speaking women. Rhetoric and the construction off f<strong>em</strong>ale talk”, in Jennifer<br />
RICHARDS e Alison THORME, Rhetoric, women and politics in early mo<strong>de</strong>rn England, 2007 , pp. 70-<br />
88.
porque mal caminhava entre as vozes (<strong>de</strong> coman<strong>do</strong>) que ouvia. Este último <strong>da</strong><strong>do</strong> que ela<br />
foi buscar <strong>em</strong> Ovídio aju<strong>da</strong>-nos a perceber melhor a importância que t<strong>em</strong> uma disputa<br />
ser inicia<strong>da</strong> por uma <strong>mulher</strong> (L.D.P.G., neste caso), mesmo numa altura como o <strong>século</strong><br />
XVIII, tão posterior à época <strong>de</strong> Ovídio. E leva-nos a ler com outros olhos os argumentos<br />
<strong>de</strong> M.D.M.C.D.M.A.E.C., que suce<strong>de</strong> L.D.P.G. na discussão sobre a <strong>mulher</strong>. Nossa<br />
observação fica, entretanto, para momento mais oportuno.<br />
7. A <strong>retórica</strong> <strong>do</strong> ex<strong>em</strong>plo<br />
L.D.P.G., no texto Bon<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s Mulheres contra a malicia <strong>do</strong>s Homens, alargou<br />
ain<strong>da</strong> mais os horizontes <strong>da</strong>s leituras <strong>da</strong> mitologia clássica e <strong>da</strong> mitologia ju<strong>da</strong>ico-cristã,<br />
quan<strong>do</strong> escolheu ex<strong>em</strong>plos novos para provar a força <strong>da</strong>s <strong>mulher</strong>es. Ao la<strong>do</strong> <strong>de</strong> um S.<br />
Francisco, coloca uma Santa Clara, ao la<strong>do</strong> <strong>de</strong> Elias, Santa Teresa. E para os ex<strong>em</strong>plos<br />
negativos f<strong>em</strong>ininos, que ela também <strong>de</strong>nuncia, antecipan<strong>do</strong> os argumentos <strong>do</strong>s<br />
adversários, s<strong>em</strong>pre lhes contrapõe ex<strong>em</strong>plos negativos masculinos. Aristóteles já<br />
ensinara que o ex<strong>em</strong>plo é um <strong>do</strong>s tipos <strong>de</strong> prova que o ora<strong>do</strong>r t<strong>em</strong> à sua disposição; o<br />
ex<strong>em</strong>plo induz o raciocínio, nas situações <strong>em</strong> que não funciona propriamente como<br />
test<strong>em</strong>unho. O mestre igualmente afirmara que o ex<strong>em</strong>plo cria uma atmosfera propícia<br />
ao convencimento ou pelo recurso ao passa<strong>do</strong> ou pela invenção (caso <strong>da</strong> parábola e <strong>da</strong><br />
fábula) e que há partes <strong>do</strong> texto mais a<strong>de</strong>qua<strong>da</strong>s para a inserção <strong>de</strong> um ex<strong>em</strong>plo 57 . É por<br />
isso importante respon<strong>de</strong>r com ex<strong>em</strong>plos a ex<strong>em</strong>plos.<br />
O objectivo por trás <strong>do</strong> esqu<strong>em</strong>a <strong>do</strong> texto <strong>de</strong> L.D.P.G. é salientar que a imag<strong>em</strong><br />
<strong>da</strong>s <strong>mulher</strong>es t<strong>em</strong> si<strong>do</strong> <strong>de</strong>negri<strong>da</strong> proposita<strong>da</strong>mente. A escolha <strong>do</strong>s ex<strong>em</strong>plos é por isso<br />
a prova <strong>de</strong> que a matéria que muitos autores têm difundi<strong>do</strong> está ao nível <strong>da</strong>s opiniões, e<br />
portanto não é isenta. O papel <strong>da</strong> autora seria, assim, o <strong>de</strong> contra-argumentar, isto é,<br />
divulgar finalmente o la<strong>do</strong> correcto <strong>da</strong>s <strong>mulher</strong>es, corrigin<strong>do</strong> a distorção a que autores<br />
<strong>de</strong> renome <strong>de</strong>ram início e continui<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />
A estrutura <strong>do</strong> encerramento <strong>de</strong>ste texto <strong>de</strong> L.D.P.G., cr<strong>em</strong>os, não acompanharia<br />
a abertura. É importante assinalarmos a incongruência argumentativa <strong>do</strong> esqu<strong>em</strong>a. A<br />
abertura ia <strong>do</strong> geral para o particular (<strong>da</strong>s <strong>mulher</strong>es to<strong>da</strong>s a Eva), s<strong>em</strong> ocultar a questão<br />
central, a honra, e se dirigia com espontanei<strong>da</strong><strong>de</strong> para um público f<strong>em</strong>inino. O<br />
encerramento particularizava a questão <strong>da</strong> honra, citan<strong>do</strong> nomes <strong>de</strong> <strong>mulher</strong>es virtuosas e<br />
<strong>de</strong> santas (Santa Clara e Santa Teresa, entre outros), e ia manten<strong>do</strong> pontualmente a<br />
57 ARISTÓTELES, Retórica, 2005, p. 206.
eferência às <strong>mulher</strong>es (ten<strong>do</strong> si<strong>do</strong> usa<strong>do</strong> o plural para isso). Mas a disposição não<br />
correspon<strong>de</strong> ao plano verificável e prometi<strong>do</strong> no início <strong>do</strong> texto. A autora se <strong>de</strong>sculpará<br />
no final por não prolongar o exame <strong>do</strong> t<strong>em</strong>a específico <strong>da</strong> <strong>de</strong>fesa <strong>do</strong> sexo f<strong>em</strong>inino,<br />
falará <strong>em</strong> atribulações <strong>de</strong> ord<strong>em</strong> t<strong>em</strong>poral, <strong>de</strong>legan<strong>do</strong> a principal tarefa num público<br />
in<strong>de</strong>fini<strong>do</strong>, nos seguintes termos: “… mas enquanto o não faço [a <strong>de</strong>fesa que <strong>em</strong> nome<br />
<strong>de</strong> to<strong>da</strong>s pu<strong>de</strong> <strong>da</strong>r], faça ca<strong>da</strong> um por servir a Deus, que é o que mais se <strong>de</strong>ve prezar” (p.<br />
7). Contra-argumentou. Faltava-lhe, tinha consciência disso, argumentar. O próprio<br />
conselho <strong>de</strong> servir a Deus <strong>de</strong>stoava <strong>da</strong> d<strong>em</strong>onstração lógica que o início <strong>do</strong> texto se<br />
esforçara por valorizar, principalmente ao recorrer às personagens e aos valores <strong>da</strong><br />
Antigui<strong>da</strong><strong>de</strong>. A ausência <strong>de</strong> argumentação po<strong>de</strong> ter si<strong>do</strong>, no entanto, uma forma <strong>de</strong> a<br />
escritora retornar ao terreno consenti<strong>do</strong> a uma <strong>mulher</strong>.<br />
O texto Malicia <strong>do</strong>s Homens contra a bon<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s Mulheres, <strong>de</strong><br />
M.D.M.C.D.M.A.E.C., rebaterá esse exacto texto, pelo argumento <strong>de</strong> cariz bíblico; seu<br />
autor reservou as primeiras linhas para dizer que consi<strong>de</strong>rava o trabalho <strong>de</strong> L.D.P.G. o<br />
mesmo que encobrir a reali<strong>da</strong><strong>de</strong>. Aludirá à máxima “cobrir o Sol com uma joeira”, no<br />
intuito <strong>de</strong> afirmar que não se po<strong>de</strong> elogiar a <strong>mulher</strong>, porque ela é evi<strong>de</strong>nte causa<strong>do</strong>ra <strong>de</strong><br />
males e inibi<strong>do</strong>ra <strong>de</strong> bens. A tradição interpretativa <strong>do</strong> mito <strong>de</strong> Eva (argumento ad<br />
seum) bastaria para refutar qualquer interpretação diferente <strong>do</strong> mito.<br />
O autor escreveria com algum senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> humor, visto <strong>da</strong> nossa perspectiva <strong>de</strong><br />
leitores <strong>do</strong> <strong>século</strong> XXI, ao comentar que Eva representava o pior nas <strong>mulher</strong>es, que é a<br />
tendência para engendrar coisas ruins a partir <strong>de</strong> muita conversa, inútil na aparência,<br />
com que exerce influência nefasta. Após o substantivo “conversa” ele até usaria um<br />
ponto <strong>de</strong> exclamação. E oporia a conversação com a serpente a hipotéticas conversações<br />
com um tigre ou um leão – estas seriam ambas conversações legítimas, louváveis, já<br />
que passa<strong>da</strong>s com animais que inspiram respeito. Ele igualmente afirmou que Eva<br />
confiara mais na voz <strong>da</strong> serpente <strong>do</strong> que na voz <strong>de</strong> Deus, o que nos conduz outra vez ao<br />
elo entre a Retórica <strong>do</strong> mal e a <strong>mulher</strong>. Só que <strong>de</strong>sta feita buscamos apoio <strong>em</strong> um texto<br />
<strong>de</strong> Neil Rho<strong>de</strong>s 58 . Ele reforça as afirmações <strong>de</strong> Danielle Clarke, ao apontar a<br />
duplici<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>retórica</strong> <strong>da</strong> <strong>mulher</strong>, que se per<strong>de</strong> entre a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> copiar o discurso<br />
masculino e a <strong>de</strong> criar um novo discurso, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ouvir o masculino. Ele vai além, diz<br />
que a própria Eva já foi <strong>de</strong>scrita como a voz <strong>de</strong> Deus. Isso significaria uma valorização<br />
58 Neil RHODES, “Afterword”, in Jennifer RICHARDS e Alison THORME, Rhetoric, women and<br />
politics in early mo<strong>de</strong>rn England, 2007, pp. 212-222.
<strong>do</strong> seu discurso e que se a <strong>mulher</strong> t<strong>em</strong> pouco discernimento, também t<strong>em</strong>, por outro la<strong>do</strong><br />
e ao mesmo t<strong>em</strong>po, to<strong>do</strong> o potencial para fazer uso <strong>da</strong> palavra.<br />
A questão <strong>do</strong> potencial retórico <strong>da</strong> <strong>mulher</strong> faz-nos recorrer a mais três fontes<br />
compl<strong>em</strong>entares que, aliás, dialogam. É digna <strong>de</strong> nota a observação <strong>de</strong> que a <strong>mulher</strong><br />
tinha “po<strong>de</strong>res rituais e mágicos, po<strong>de</strong>res <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> e <strong>de</strong> morte, po<strong>de</strong>res <strong>de</strong> prejuízo e <strong>de</strong><br />
cura” 59 . Seu autor, o filósofo Gilles Lipovetsky, conclui o raciocínio dizen<strong>do</strong> que esses<br />
po<strong>de</strong>res não se convertiam <strong>em</strong> reconhecimento social. À mesma conclusão chegaram<br />
Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho <strong>da</strong> Costa 60 . As três escritoras<br />
portuguesas criaram textos curtos sobre personagens lendárias e personagens históricas<br />
(Elisabeth <strong>de</strong> Hoven, Maria <strong>de</strong> la Ral<strong>de</strong>, Louise Maillat, Marie Mariagrane, Gabrielle <strong>de</strong><br />
Strées, Cecília, Marguerite <strong>de</strong> Brinvilliers e Ma<strong>da</strong>me Deshoulières) consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong>s<br />
adúlteras, bruxas, <strong>mulher</strong>es que proce<strong>de</strong>ram a envenenamentos <strong>em</strong> série, amantes <strong>de</strong><br />
reis etc. Tentavam inverter a lógica segun<strong>do</strong> a qual tais <strong>mulher</strong>es eram pouco mais que<br />
criminosas. Por tentar<strong>em</strong>, provaram que ain<strong>da</strong> <strong>em</strong> nossa época o po<strong>de</strong>r oculto <strong>da</strong> <strong>mulher</strong><br />
é mais vezes conota<strong>do</strong> como negativo <strong>do</strong> que como positivo. Finalmente, ficamos com a<br />
convicção <strong>de</strong> Maria João Martins: “Apesar <strong>de</strong>ssas soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> coração e<br />
conveniência, talvez, na raiz <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as <strong>mulher</strong>es, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nt<strong>em</strong>ente <strong>da</strong> sua<br />
proveniência, haja um <strong>de</strong>nomina<strong>do</strong>r comum, mais ou menos indiferente à passag<strong>em</strong> <strong>do</strong><br />
t<strong>em</strong>po e, contu<strong>do</strong>, ancestral (…) São mitos milenares que atribu<strong>em</strong> ao sexo f<strong>em</strong>inino os<br />
po<strong>de</strong>res misteriosos e terríficos <strong>de</strong> per<strong>de</strong>r almas com um olhar ou <strong>de</strong> precipitar<br />
acontecimentos pela força <strong>de</strong> um só gesto” 61 .<br />
M.D.M.C.D.M.A.E.C., <strong>em</strong> Malicia <strong>do</strong>s Homens contra a bon<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s<br />
Mulheres, parece ex<strong>em</strong>plificá-lo. Dizia ele que, enquanto Adão repousava na<br />
obediência, “a senhora Eva” preparava o golpe. As três palavras entre aspas foram<br />
transcritas para que percebamos a ironia geral <strong>da</strong> recriminação; já o verbo utiliza<strong>do</strong> <strong>em</strong><br />
outro fragmento, para referir o tom <strong>do</strong> diálogo com a cobra, é “armar” (na forma<br />
conjuga<strong>da</strong> “armasse”), segui<strong>da</strong> <strong>do</strong> substantivo “palestra”. O autor pintou um quadro<br />
bucólico para Adão (“Lá estava Adão, talvez <strong>de</strong>baixo <strong>de</strong> alguma árvore”, p. 3) e um<br />
quadro <strong>de</strong> suspeita e <strong>de</strong> reprimen<strong>da</strong> para Eva. E tu<strong>do</strong> porque leu o texto <strong>de</strong> L.D.P.G. ao<br />
pé <strong>da</strong> letra. O mito, aqui trata<strong>do</strong> como ex<strong>em</strong>plo, é li<strong>do</strong> ao mesmo nível <strong>da</strong> história<br />
verídica: ain<strong>da</strong> que com potencial simbólico, reduz-se à verosimilhança icástica própria<br />
59<br />
Gilles LIPOVETSKY, A terceira <strong>mulher</strong>, 2000, p. 121.<br />
60<br />
Maria Isabel BARRENO, Maria Teresa HORTA e Maria Velho <strong>da</strong> COSTA, Novas cartas portuguesas,<br />
1980.<br />
61<br />
Maria João MARTINS, Mulheres portuguesas, 1994, p. 7.
<strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> histórica. Ao texto <strong>de</strong> L.D.P.G., é interessante que digamos, chama<br />
“papelinho”, usan<strong>do</strong> diminutivo com valor <strong>de</strong>preciativo.<br />
Os d<strong>em</strong>ais procedimentos <strong>de</strong> Malicia <strong>do</strong>s Homens contra a bon<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s<br />
Mulheres são simples, pouca inovação nos surpreen<strong>de</strong>u durante a leitura: o autor refutou<br />
os ex<strong>em</strong>plos <strong>do</strong> outro texto, sen<strong>do</strong> necessário para isso resgatar nomes históricos:<br />
Helena, S<strong>em</strong>iramis etc. Usou também a autori<strong>da</strong><strong>de</strong> literária e filosófica <strong>de</strong> Ovídio, a <strong>de</strong><br />
Virgílio, a <strong>de</strong> Cícero, a <strong>de</strong> Marcial, a <strong>de</strong> Séneca, com mais citações. Entre umas e outras,<br />
surgiu mais <strong>de</strong> uma vez a crítica à tirania <strong>da</strong>s <strong>mulher</strong>es. Se o escritor repetiu <strong>em</strong> muitas<br />
linhas a palavra “bon<strong>da</strong><strong>de</strong>”, que colocou no título, foi para produzir ironia, portanto.<br />
Não tencionava elogiar. O elogio <strong>da</strong> bon<strong>da</strong><strong>de</strong> era um isco com que apanhava pelo<br />
discurso o peixe.
CAP. II – UMA TÓPICA DO MAL E DA MALÍCIA<br />
Os argumentos <strong>do</strong> texto Malicia <strong>da</strong>s Mulheres foram organiza<strong>do</strong>s <strong>em</strong> torno <strong>da</strong><br />
i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que o casamento é um far<strong>do</strong> para o hom<strong>em</strong>. O autor apelou ao senso comum<br />
numerosas vezes (“Em as leis po<strong>de</strong>reis ler /Assim o diz<strong>em</strong> os antigos, / Se nelas o<br />
quereis ver, /Que t<strong>em</strong> trabalho e perigo /Qu<strong>em</strong> t<strong>em</strong> filhos e <strong>mulher</strong>”, p. 2), <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o<br />
princípio, ain<strong>da</strong> que tenha apela<strong>do</strong> também à autori<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Marco Aurélio, <strong>em</strong>bora s<strong>em</strong><br />
citar as palavras <strong>de</strong>le, apenas as resumir, e à <strong>de</strong> Terêncio, ou <strong>de</strong> Cícero - <strong>de</strong> qu<strong>em</strong><br />
rel<strong>em</strong>bra o livro De amicicia -, <strong>de</strong> Diógenes ou <strong>de</strong> Ovídio. Depois que nos r<strong>em</strong>eteu ao<br />
último <strong>do</strong>s “clássicos”, passou a referir ensinamentos <strong>de</strong> “Doutores” (p. 7) e apoiou-se<br />
por último na Bíblia, mais particularmente no Génesis, inverten<strong>do</strong> mas repetin<strong>do</strong> a<br />
tópica já vista <strong>em</strong> outros <strong>do</strong>is textos (Malicia <strong>do</strong>s Homens contra a bon<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s<br />
Mulheres e Bon<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s Mulheres contra a malicia <strong>do</strong>s Homens).<br />
Hav<strong>em</strong>os nesta altura <strong>de</strong> pon<strong>de</strong>rar, para melhor enquadrar a discussão, o facto <strong>de</strong><br />
os argumentos <strong>de</strong>sfavoráveis à boa imag<strong>em</strong> <strong>da</strong> <strong>mulher</strong> ter<strong>em</strong> suporte nas queixas e nos<br />
cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s que alega<strong>da</strong>mente chegavam ao eu lírico. Mas a estes o texto <strong>de</strong> Baltasar Dias<br />
acrescenta test<strong>em</strong>unhos vagamente jurídicos e literários.<br />
Também Baltasar Dias tinha agi<strong>do</strong> como procura<strong>do</strong>r <strong>do</strong>s homens, <strong>em</strong>bora neste<br />
caso significativamente <strong>de</strong>sse aos argumentos/opiniões o estatuto <strong>de</strong> discurso sábio (não<br />
importan<strong>do</strong> se popular ou erudito). Acabou por parecer que o eu lírico cria<strong>do</strong> por ele<br />
<strong>da</strong>va sequência a um discurso alheio (“Porque os vejo queixar”, p. 2), pois era o mais<br />
pru<strong>de</strong>nte a fazer, muito <strong>em</strong>bora ele <strong>de</strong>sejasse casar (“Desejo <strong>de</strong> me casar”, p. 2). É como<br />
se ele se inserisse numa tradição, ao censurar o comportamento <strong>da</strong>s <strong>mulher</strong>es casa<strong>da</strong>s.<br />
Como hom<strong>em</strong> que honra a palavra <strong>do</strong>s outros homens, ele reproduzia o discurso<br />
masculino. Not<strong>em</strong>os que constava <strong>da</strong> primeira quintilha a palavra “espelho”, usa<strong>da</strong> na<br />
literatura moralista, mas que simbolicamente nos r<strong>em</strong>ete também para o discurso <strong>da</strong><br />
ver<strong>da</strong><strong>de</strong> representa<strong>da</strong> e reflecti<strong>da</strong>.<br />
Pesquisa<strong>do</strong>res <strong>do</strong> campo <strong>da</strong> Psicologia social, tais como J. H. Gagnon e W.<br />
Simon, explicam que há <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s comportamentos (neste caso estamos li<strong>da</strong>n<strong>do</strong><br />
com a construção discursiva e não com a acção pura) a que pod<strong>em</strong>os chamar<br />
“encenações culturais” 62 , pois atend<strong>em</strong> a uma estrutura social mais ampla, não<br />
importan<strong>do</strong> tanto assim as questões pessoais como a experiência <strong>de</strong> vi<strong>da</strong>. Quan<strong>do</strong> se age<br />
62 Jorge VALA e Maria Benedicta MONTEIRO, Psicologia social, 1997, p. 127.
<strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com o meio religioso, familiar, económico etc, <strong>em</strong> se tratan<strong>do</strong> <strong>de</strong> sexo, trata-<br />
se <strong>de</strong> obe<strong>de</strong>cer a um esqu<strong>em</strong>a, a um script com sua i<strong>de</strong>ologia sexual própria. Isto, nas<br />
relações interpessoais, aqui transpostas para o plano autor-leitor, traduz-se <strong>em</strong> uma<br />
recusa <strong>de</strong> ver-se no outro. Ao invés <strong>de</strong> dialogar com a i<strong>de</strong>ia que fazia <strong>da</strong> <strong>mulher</strong> e com o<br />
seu público leitor, Baltasar Dias criou um eu lírico que ficou pela segurança, pelo<br />
conforto <strong>de</strong> se <strong>de</strong>finir como qualquer outro hom<strong>em</strong> <strong>da</strong>quela época se <strong>de</strong>finiria, s<strong>em</strong> o<br />
incómo<strong>do</strong> <strong>de</strong> probl<strong>em</strong>atizar, <strong>de</strong> relativizar, <strong>de</strong> expor dúvi<strong>da</strong>s, apropriações mais<br />
particulares <strong>de</strong> uma influência social. O texto não tinha n<strong>em</strong> precisava ter profundi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
psicológica. Em outras palavras, não estamos a pedir, anacronicamente, que na forma <strong>de</strong><br />
interpor hom<strong>em</strong> e <strong>mulher</strong> houvesse a leitura <strong>de</strong> mun<strong>do</strong> que hoje julgamos a<strong>de</strong>qua<strong>da</strong>,<br />
mas não há como esquecer que Malicia <strong>da</strong>s Mulheres teve leitores <strong>em</strong> épocas <strong>de</strong><br />
transição, nas quais seria muito natural que a literatura propusesse mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong><br />
engajamento, <strong>de</strong> consciencialização. A antigui<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> texto <strong>de</strong> Baltasar Dias e o seu<br />
aparente êxito editorial não pod<strong>em</strong> <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ser vistos como um anacronismo<br />
i<strong>de</strong>ológico, sobretu<strong>do</strong> ao longo <strong>do</strong> <strong>século</strong> XIX.<br />
Os argumentos <strong>do</strong> texto <strong>de</strong> Paula <strong>da</strong> Graça, Bon<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s Mulheres vendica<strong>da</strong> e<br />
malicia <strong>do</strong>s Homens manifesta, foram utiliza<strong>do</strong>s para provar o oposto <strong>do</strong> texto <strong>de</strong><br />
Malicia <strong>da</strong>s Mulheres (o título refere a contra-argumentação). Nasceram <strong>da</strong> mesma<br />
lista, <strong>do</strong> mesmo programa ou pauta. O contraponto começa <strong>de</strong>s<strong>de</strong> logo na situação<br />
dramática <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r. Ao conselho <strong>de</strong> um hom<strong>em</strong> a outro hom<strong>em</strong>, contrapõe-se a<br />
apologia <strong>de</strong> uma <strong>mulher</strong> dirigi<strong>da</strong> a outra <strong>mulher</strong>: há uma consultora “antiga” diante <strong>de</strong><br />
uma consulente (a própria voz <strong>da</strong> sabe<strong>do</strong>ria e <strong>da</strong> experiência está aqui, não ouvimos<br />
mais o eco <strong>de</strong>ssa voz, caso <strong>do</strong> texto anteriormente analisa<strong>do</strong>). Há o t<strong>em</strong>a <strong>do</strong> casamento e<br />
o <strong>da</strong> “natural” infelici<strong>da</strong><strong>de</strong>. Em termos <strong>de</strong> Invenção e Disposição também ficámos pelo<br />
mesmo, uma vez que a autora proposita<strong>da</strong>mente fez sucessivamente apologia <strong>da</strong><br />
diversão, d<strong>em</strong>onstrou erudição ao recorrer aos antigos (estão lá Esopo e o par Adão e<br />
Eva) e às histórias <strong>do</strong>mésticas, superficialmente expostas. Concor<strong>da</strong>mos com a<br />
apreciação <strong>de</strong> Fina d’Arma<strong>da</strong>, quan<strong>do</strong> ela diz que Paula <strong>da</strong> Graça foi autora <strong>de</strong> uma<br />
“refutação inteligente” 63 , no geral.<br />
Se o texto <strong>de</strong> Baltasar Dias <strong>de</strong>ra relativa importância à beleza e bastante<br />
importância ao juízo que alega<strong>da</strong>mente faltava às <strong>mulher</strong>es, Bon<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s Mulheres<br />
vendica<strong>da</strong> e malicia <strong>do</strong>s Homens manifesta ressaltava a beleza, a opressão e a<br />
63 Fina D’ARMADA, O livro f<strong>em</strong>inista <strong>de</strong> 1715, 2008, p. 65.
ingratidão, para falar às <strong>mulher</strong>es e <strong>da</strong>s <strong>mulher</strong>es que viviam para os afazeres <strong>da</strong> casa e<br />
à mercê <strong>do</strong>s caprichos <strong>do</strong> mari<strong>do</strong>. Baltasar Dias se restringira à beleza física, o que<br />
notamos <strong>em</strong> função <strong>do</strong> uso <strong>da</strong>s palavras “jóia” e “formosa” (ambas na p. 2), <strong>da</strong>s poucas<br />
que fizeram alusão ao t<strong>em</strong>a. Ele queria dizer que a <strong>mulher</strong> bonita atrai os olhares <strong>do</strong>s<br />
homens e prendê-la <strong>em</strong> casa é uma dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> para o mari<strong>do</strong>. Paula <strong>da</strong> Graça<br />
rapi<strong>da</strong>mente aludiu à beleza física, pois estariam, consulente e consultora, frente a<br />
frente, sen<strong>do</strong> possível que a <strong>mulher</strong> mais experiente tratasse a mais nova com certa<br />
<strong>do</strong>çura <strong>em</strong> nome <strong>do</strong> frescor que test<strong>em</strong>unhava. Porém, ela aprofun<strong>do</strong>u a discussão,<br />
levan<strong>do</strong>-a para o campo <strong>do</strong> proveito que a <strong>mulher</strong> podia tirar <strong>da</strong> formosura: a jov<strong>em</strong><br />
podia se enfeitar com to<strong>do</strong>s os “atavios” oferta<strong>do</strong>s pelo mari<strong>do</strong>; a jov<strong>em</strong> podia ignorar<br />
os atributos físicos e os mimos e <strong>de</strong>sejar que o mari<strong>do</strong> (representante <strong>do</strong>s homens e <strong>do</strong><br />
mun<strong>do</strong> patriarcal) oferecesse um “<strong>em</strong>prego”; a jov<strong>em</strong> podia ignorar os atributos físicos<br />
para não entendê-los como garantia <strong>de</strong> felici<strong>da</strong><strong>de</strong>, no caso <strong>da</strong> aproximação <strong>de</strong> outra<br />
<strong>mulher</strong>, “ranhosa”.<br />
É oportuno verificarmos melhor como ambos se apropriaram <strong>de</strong> uma tópica cara<br />
à construção <strong>da</strong> imag<strong>em</strong> <strong>da</strong> <strong>mulher</strong>. Far<strong>em</strong>os esse balanço a partir <strong>de</strong> um excerto <strong>da</strong><br />
professora Camila Henríquez Ureña 64 . Ela assim se pronunciou sobre as <strong>mulher</strong>es, já no<br />
<strong>século</strong> XX:<br />
“Nuestro probl<strong>em</strong>a es digno <strong>de</strong> atención y <strong>de</strong> estudio. No pod<strong>em</strong>os<br />
preten<strong>de</strong>r seguir a través <strong>de</strong> la vi<strong>da</strong> con fórmulas <strong>de</strong> sustitución. Ten<strong>em</strong>os<br />
que hallar nuestra fórmula <strong>de</strong> realización. Nuestro primer error ha si<strong>do</strong><br />
buscarla en la fórmula masculina. El hombre se realiza cuan<strong>do</strong> hace o<br />
crea en una carrera, arte, profesión, etc. Ese es el centro <strong>de</strong> su vi<strong>da</strong>, se<br />
completa, en el terreno afectivo y familiar, con el amor y la paterni<strong>da</strong>d. Es<br />
<strong>de</strong>cir, parte <strong>de</strong> lo más amplio: <strong>de</strong> lo que lo relaciona con el universo, con<br />
el mun<strong>do</strong>, con la humani<strong>da</strong>d; parte <strong>de</strong> más amplio horizonte mientras<br />
mejor sea su capaci<strong>da</strong>d espiritual, y viene hacia lo para él más personal y<br />
estricto, al círculo familiar.<br />
Estimulan<strong>do</strong> agora mais directamente as <strong>mulher</strong>es, continuou:<br />
Las mujeres estamos tratan<strong>do</strong> <strong>de</strong> hacer otro tanto en busca <strong>de</strong><br />
soluciones: <strong>de</strong> poner nuestro punto <strong>de</strong> parti<strong>da</strong> en lo más amplio y venir<br />
hacia lo personal y restricto. Hasta ahora se había consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> que este<br />
era nuestro centro, y que, partien<strong>do</strong> <strong>de</strong> él, podíamos ir a los más amplios<br />
horizontes, que cuan<strong>do</strong> no en otra forma, se nos ofreciese en el culto <strong>de</strong> la<br />
religión y <strong>de</strong> la cari<strong>da</strong>d, que entendi<strong>da</strong> como ha <strong>de</strong> ser, es el encendi<strong>do</strong><br />
64 Camila Henríquez UREÑA, Obras y apuntes, 2006, pp. 96-97.<br />
65 Gilles LIPOVETSKY, A terceira <strong>mulher</strong>, 2000, p. 109.
amor a to<strong>do</strong>s los seres, y en el culto <strong>de</strong> la belleza, que se nos enseñaba<br />
partien<strong>do</strong> también <strong>de</strong> nuestro propio ser. Ser hermosas, ser buenas,<br />
administrar y or<strong>de</strong>nar y <strong>em</strong>bellecer la pequeña república <strong>do</strong>méstica para<br />
bien <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s, ampliar esa influencia en torno nuestro al radio social,<br />
obra sobre to<strong>do</strong> nuestra, amar a los nuestros, amar a to<strong>do</strong>s los seres y<br />
como último i<strong>de</strong>al elevar ese amor a su perfección metafísica, que es Dios.<br />
Chegou, finalmente, a fazer uma sugestão às <strong>mulher</strong>es, s<strong>em</strong> o receio, ao<br />
que nos parece, <strong>de</strong> parecer antiqua<strong>da</strong> ou conserva<strong>do</strong>ra:<br />
[…](Y no importa aquí, como <strong>de</strong>cía el ruso <strong>de</strong>l cuento, “a quien hayamos<br />
puesto en su lugar”). Creo que valdría la pena para nosotras las mujeres<br />
estudiar este proceso y tratar <strong>de</strong> hallar la ver<strong>da</strong>d esencial que haya en<br />
esto. Naturalezas <strong>de</strong> excepción obras y apuntes habrá si<strong>em</strong>pre que se<br />
realicen plenamente en el último y más amplio senti<strong>do</strong> <strong>de</strong>l amor sin<br />
preocuparse <strong>de</strong>l <strong>do</strong>méstico, y serán Juana <strong>de</strong> Arco, Catalina <strong>de</strong> Sena o<br />
Florence Nightingale. Naturalezas <strong>de</strong> excepción habrá que pue<strong>da</strong>n seguir<br />
el proceso masculino, <strong>de</strong> la periferia al centro. Pero en general es posible<br />
que la mujer como clase no encuentre su satisfacción y su razón <strong>de</strong> ser<br />
sino partien<strong>do</strong> <strong>de</strong> ese centro <strong>de</strong> su yo: amor y belleza que se ofren<strong>da</strong>n, y<br />
afirman<strong>do</strong> en la vi<strong>da</strong> ese íntimo senti<strong>do</strong>, yen<strong>do</strong> <strong>de</strong> la pareja a la familia, a<br />
la socie<strong>da</strong>d, a la nación, al mun<strong>do</strong>, al Universo”<br />
Paula <strong>da</strong> Graça, autora <strong>de</strong> Bon<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s Mulheres vendica<strong>da</strong> e malicia <strong>do</strong>s<br />
Homens manifesta, e Camila Henríquez Ureña expressaram naturalmente <strong>do</strong>is pontos <strong>de</strong><br />
vista um pouco diferentes <strong>em</strong> relação ao papel <strong>da</strong> beleza na vi<strong>da</strong> <strong>de</strong> uma <strong>mulher</strong>. Já<br />
perto <strong>do</strong> final <strong>do</strong> texto, a autora portuguesa assinalou: “… to<strong>do</strong> o gosto /<strong>de</strong> um reino se<br />
dá a um varão. /Se nos limitais o gosto /ao enfeite, que razão /há <strong>de</strong> lançarmo-lo <strong>em</strong><br />
rosto?”. Passa<strong>do</strong>s uns versos, continuou com o seguinte raciocínio: “Mas se só nos<br />
<strong>de</strong>stinastes /os cortejos e atavios, /sustentai o que crestes, /não busquei in<strong>da</strong> <strong>de</strong>svios /ao<br />
pouco que não tirastes” (p. 7). Nesse fragmento setecentista encontrámos (a posteriore)<br />
alguma dissonância relativamente ao texto <strong>de</strong> Camila Henríquez Ureña. Essa<br />
dissonância é o sinal <strong>de</strong> uma toma<strong>da</strong> <strong>de</strong> consciência que os textos portugueses <strong>do</strong> <strong>século</strong><br />
XVIII, f<strong>em</strong>inistas, tinham clara dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>em</strong> afirmar.<br />
A escolha <strong>de</strong> Paula <strong>da</strong> Graça recaiu na reacção ao argumento <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> e pouco<br />
mais. Depois <strong>de</strong> nos mostrar a consultora a tratar a consulente como uma <strong>mulher</strong> bela<br />
(no terceiro verso <strong>da</strong> primeira coluna usa a palavra “beleza”, no sexto verso <strong>da</strong> segun<strong>da</strong><br />
coluna a palavra “formosa” e no antepenúltimo <strong>da</strong> quarta coluna a palavra “formosa”<br />
novamente), o que <strong>de</strong>nota um traço <strong>da</strong> simpatia entre <strong>mulher</strong>es, ela optou por enfatizar a<br />
beleza que os homens gostam <strong>de</strong> ver cultiva<strong>da</strong> pela e na <strong>mulher</strong>. Paula <strong>da</strong> Graça não
investiu contra a circunscrição <strong>da</strong> <strong>mulher</strong> ao <strong>do</strong>mínio <strong>da</strong> beleza, <strong>da</strong> aparência. Pediu<br />
somente (e era, no contexto, muito) que a <strong>mulher</strong> não fosse recrimina<strong>da</strong> por se fazer<br />
valer <strong>da</strong> própria beleza física, já que é uma <strong>da</strong>s poucas coisas que o hom<strong>em</strong> consentiu<br />
<strong>em</strong> <strong>de</strong>ixar para ela.<br />
O que soa como novi<strong>da</strong><strong>de</strong> no texto <strong>de</strong> Paula <strong>da</strong> Graça, se pensarmos nos outros<br />
textos <strong>do</strong> corpus, é a referência à beleza masculina. Justiça seja feita, ela louvou, mesmo<br />
que muito ligeiramente, a beleza masculina: “Só um poeta <strong>de</strong> farrapos /isto podia fazer,<br />
/porque os mais poetas guapos /s<strong>em</strong>pre nos dão <strong>de</strong> comer /<strong>em</strong> mais limpos<br />
guar<strong>da</strong>napos” (p. 5). Po<strong>de</strong> ser que a iniciativa não tenha i<strong>do</strong> adiante porque fora tão-<br />
somente uma saí<strong>da</strong> estilística, ou seja, ela precisava <strong>de</strong> uma rima. A segun<strong>da</strong> vez <strong>em</strong> que<br />
o adjectivo “formosa” surgiu, veio formar um par antitético com “ranhosa”. Outro<br />
reforço para o la<strong>do</strong> cómico <strong>de</strong> Paula <strong>da</strong> Graça: “Não há cousa mais penosa /para uma<br />
<strong>mulher</strong> casa<strong>da</strong>, /sen<strong>do</strong> talvez formosa, /que ser <strong>de</strong> vós <strong>de</strong>spreza<strong>da</strong>, /talvez por uma<br />
ranhosa” (p. 5).<br />
Camila Henríquez Ureña investiu no t<strong>em</strong>a com mais profundi<strong>da</strong><strong>de</strong>. Ela também<br />
não via benefício <strong>em</strong> separar a <strong>mulher</strong> <strong>do</strong> campo <strong>da</strong> beleza e <strong>do</strong> culto ao lar (liga<strong>do</strong><br />
igualmente à beleza porque fala <strong>do</strong> bom gosto, <strong>do</strong> asseio, <strong>do</strong>s rituais para manter a<br />
atmosfera saudável, habitável), mas tentou <strong>de</strong>senhar com tinta mais perene um plano<br />
para a realização f<strong>em</strong>inina. Ela propôs que as <strong>mulher</strong>es reflectiss<strong>em</strong> sobre a vali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
tentar encontrar no percurso masculino alternativa para a felici<strong>da</strong><strong>de</strong>. Não parece ter<br />
senti<strong>do</strong> necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> atrelar as dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s f<strong>em</strong>ininas às imposições masculinas,<br />
falava para as <strong>mulher</strong>es sobre o que competia que elas equacionass<strong>em</strong> pelos próprios<br />
meios. Essa autonomia não é perceptível <strong>em</strong> Paula <strong>da</strong> Graça. Po<strong>de</strong>ria existir na época<br />
<strong>de</strong>ssa escritora? Ao nível <strong>do</strong> pensamento, pelo menos, po<strong>de</strong>ria existir? Como aspiração,<br />
po<strong>de</strong>ria existir?<br />
Se examinarmos a história <strong>do</strong> culto <strong>da</strong> beleza f<strong>em</strong>inina ter<strong>em</strong>os condições para<br />
respon<strong>de</strong>r à pergunta. Gilles Lipovetsky, <strong>em</strong> A terceira <strong>mulher</strong>, situou o início <strong>de</strong>sse<br />
culto no Renascimento. D<strong>em</strong>onstrou com numerosos ex<strong>em</strong>plos <strong>da</strong> literatura e <strong>da</strong> pintura<br />
(principalmente <strong>em</strong> França e Itália) que nos <strong>século</strong>s XV e XVI a <strong>mulher</strong> fora coroa<strong>da</strong><br />
como “personificação supr<strong>em</strong>a <strong>da</strong> beleza” 65 , <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> uma fase anterior <strong>em</strong> que a<br />
beleza estivera associa<strong>da</strong> à mal<strong>da</strong><strong>de</strong>. Insistiu num argumento correlato que chamou<br />
nossa atenção: segun<strong>do</strong> ele, estava instaura<strong>da</strong> a partir <strong>de</strong>sses <strong>do</strong>is <strong>século</strong>s menciona<strong>do</strong>s<br />
uma nova visão <strong>da</strong> beleza, <strong>de</strong> facto, porque ela começava a ser liga<strong>da</strong> ao espírito. Era<br />
uma nova sensibili<strong>da</strong><strong>de</strong> que actuava e que estava associa<strong>da</strong> à imag<strong>em</strong> erudita, além <strong>do</strong>
mais. Nesse perío<strong>do</strong> foram produzi<strong>do</strong>s livros, os entendi<strong>do</strong>s esmeravam-se <strong>em</strong><br />
conselhos, <strong>em</strong> prescrições normativas etc. O conhecimento sobre a <strong>mulher</strong> estava a ser<br />
sist<strong>em</strong>atiza<strong>do</strong>, <strong>em</strong>bora não projectasse transformação social. Muito pelo contrário, ele<br />
serviu como negação <strong>de</strong> outras possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> ver a <strong>mulher</strong>. Ela assumia – assumiam<br />
por ela, melhor dizen<strong>do</strong> – uma aparência e uma aura ain<strong>da</strong> mais vinca<strong>da</strong>s pela<br />
fragili<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />
Basta irmos ao título <strong>de</strong> outro texto <strong>de</strong> nosso corpus, Defeza <strong>do</strong> bello sexo ou<br />
resposta ao papel intitula<strong>do</strong> ‘Malicia <strong>da</strong>s <strong>mulher</strong>es’, para constatar essa i<strong>de</strong>ntificação<br />
limita<strong>do</strong>ra entre género f<strong>em</strong>inino e beleza. A locução “belo sexo” é a mesma que a<br />
tradução portuguesa <strong>do</strong> livro <strong>de</strong> Gilles Lipovetsky tanto <strong>em</strong>pregou… Mas a expressão é<br />
já comum e a mentali<strong>da</strong><strong>de</strong> é a <strong>do</strong> lugar-comum.<br />
Gertru<strong>de</strong>s Margari<strong>da</strong> <strong>de</strong> Jesus, na Segun<strong>da</strong> carta Apologetica, <strong>em</strong> favor, e<br />
<strong>de</strong>fensa <strong>da</strong>s <strong>mulher</strong>es, também abor<strong>da</strong> a questão <strong>da</strong> beleza, dita então “formosura”. Nas<br />
palavras <strong>da</strong> autora, dizer que ela é nociva não passa <strong>de</strong> “<strong>de</strong>satino” <strong>do</strong>s homens (p. 4),<br />
<strong>de</strong>satino que o Irmão Ama<strong>do</strong>r <strong>de</strong> Desengano assumiria. Uma leitura filosófica (que está,<br />
aliás, na base <strong>da</strong> religião católica, como ela afirma) leva a que se divi<strong>da</strong> a beleza <strong>em</strong><br />
exterior e interior, uma apoia<strong>da</strong> na outra. Daí v<strong>em</strong> que não se possa, ou não se <strong>de</strong>va,<br />
con<strong>de</strong>nar a beleza, mais exactamente a exterior, se ela provém <strong>da</strong> plenitu<strong>de</strong> interior <strong>do</strong><br />
ser. Muito oportuna é a observação que ela faz sobre a escolha <strong>do</strong> Irmão Ama<strong>do</strong>r <strong>de</strong><br />
Desengano. Com muita subtileza ela assinala que ele se ocupou <strong>da</strong> beleza que menos<br />
interessa observar, a exterior. Assim a autora termina a conten<strong>da</strong>, relativamente a esse<br />
t<strong>em</strong>a.<br />
Os três textos toma<strong>do</strong>s como representantes <strong>da</strong> probl<strong>em</strong>atização <strong>da</strong> beleza <strong>em</strong><br />
nosso inventário <strong>de</strong>nunciam reflexões distintas. No geral, ficam entre os retratos <strong>de</strong><br />
abor<strong>da</strong>g<strong>em</strong> leve e os <strong>de</strong> abor<strong>da</strong>g<strong>em</strong> penetrante, caben<strong>do</strong> às autoras as intervenções mais<br />
construtivas, isto é, as menos vazias <strong>de</strong> significa<strong>do</strong>.<br />
Para permanecermos no <strong>do</strong>mínio <strong>da</strong> mesma autora, vejamos que Gertru<strong>de</strong>s<br />
Margari<strong>da</strong> <strong>de</strong> Jesus recorreu a alguns nomes <strong>de</strong> <strong>mulher</strong>es portuguesas que teriam agi<strong>do</strong><br />
com bravura viril <strong>em</strong> situações adversas para imprimir força ao seu discurso f<strong>em</strong>inista.<br />
Citou Quitéria Borges e Natália <strong>de</strong> Sousa, ambas referi<strong>da</strong>s por Damião Froes <strong>em</strong> seu<br />
Theatro Heroino… 66 , principal fonte <strong>de</strong> Gertru<strong>de</strong>s Margari<strong>da</strong> <strong>de</strong> Jesus. Por que razão<br />
escolhera as duas? Pelo posicionamento político e pelo atrevimento d<strong>em</strong>onstra<strong>do</strong> num<br />
66 Damião <strong>de</strong> Froes PERYM, Theatro heroino…, 1736-1740, p. 289 e p. 338.
episódio. Citou também Gervásia Antunes, que não t<strong>em</strong>ia o <strong>de</strong>sconheci<strong>do</strong> n<strong>em</strong> trabalhos<br />
pesa<strong>do</strong>s que exigiss<strong>em</strong> bastante <strong>da</strong> força física e sacrifício <strong>de</strong> algumas vai<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />
f<strong>em</strong>ininas: ela partia só com as mãos objectos muito duros, arrancava árvores etc.<br />
Aproveitamos para l<strong>em</strong>brar que len<strong>da</strong>s oci<strong>de</strong>ntais e orientais, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> há muito,<br />
registam ex<strong>em</strong>plos <strong>de</strong> <strong>mulher</strong>es valentes. Walnice Nogueira Galvão fez consi<strong>de</strong>rações<br />
<strong>de</strong> ord<strong>em</strong> geral sobre o t<strong>em</strong>a e comentou estu<strong>do</strong>s portugueses e estu<strong>do</strong>s sobre o lega<strong>do</strong><br />
português nesta área 67 . Personagens como Mu-lan, Joana d’Arc, Atalanta, Electra,<br />
Catarina <strong>de</strong> San Juan, <strong>do</strong>nzelas-guerreiras, enfim, são assexua<strong>da</strong>s, não têm amante n<strong>em</strong><br />
filhos, pois se pren<strong>de</strong>ram à figura <strong>do</strong> pai, quer dizer, <strong>de</strong>dicavam-se a cumprir uma tarefa<br />
árdua <strong>em</strong> nome <strong>de</strong>le. A tarefa também obrigava a que cortass<strong>em</strong> os cabelos, se<br />
vestiss<strong>em</strong> como homens e se engajass<strong>em</strong> <strong>em</strong> guerras. A <strong>de</strong>scrição que Gertru<strong>de</strong>s<br />
Margari<strong>da</strong> <strong>de</strong> Jesus fizera <strong>da</strong>s portuguesas <strong>de</strong>st<strong>em</strong>i<strong>da</strong>s não basta para enquadrarmos suas<br />
personagens exactamente neste grupo, o <strong>da</strong>s <strong>do</strong>nzelas-guerreiras, mas são s<strong>em</strong> dúvi<strong>da</strong><br />
tentativas <strong>de</strong> provar que a <strong>mulher</strong> t<strong>em</strong> quali<strong>da</strong><strong>de</strong>s pouco explora<strong>da</strong>s, ti<strong>da</strong>s como<br />
masculinas e alheias às críticas <strong>do</strong> Irmão Ama<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Desengano.<br />
Transcrev<strong>em</strong>os a seguir a mensag<strong>em</strong> <strong>do</strong> monge espanhol Benito Jerónimo<br />
Feijoo, por sabermos que faz parte <strong>de</strong> um <strong>do</strong>s textos que Gertru<strong>de</strong>s Margari<strong>da</strong> <strong>de</strong> Jesus<br />
provavelmente leu:<br />
“Algunos Autores niegan su existencia, contra muchos más que la<br />
afirman. Lo que pod<strong>em</strong>os conce<strong>de</strong>r es, que se ha mezcla<strong>do</strong> en la Historia<br />
<strong>de</strong> las Amazonas mucho <strong>de</strong> fábula; como es el que mataban to<strong>do</strong>s los hijos<br />
varones, que vivían totalmente separa<strong>da</strong>s <strong>de</strong>l otro sexo, y sólo le buscaban<br />
para fecun<strong>da</strong>rse una vez en el año. Y <strong>de</strong>l mismo juez serán sus encuentros<br />
con Hércules, y Teseo, el socorro <strong>de</strong> la feroz Pentesilea a la afligi<strong>da</strong><br />
Troya; como acaso también la visita <strong>de</strong> su Reina Talestris a Alejandro.<br />
Pero no pue<strong>de</strong> negarse sin t<strong>em</strong>eri<strong>da</strong>d contra la fe <strong>de</strong> tantos Escritores<br />
antiguos, que hubo un cuerpo formi<strong>da</strong>ble <strong>de</strong> mujeres belicosas en la Asia,<br />
a quienes se dio el nombre <strong>de</strong> Amazonas.” 68<br />
67<br />
Cf. Walnice Nogueira GALVÃO, A <strong>do</strong>nzela-guerreira, 2000, p. 13, p. 18, p. 173, p. 188, p. 191 e p.<br />
211.<br />
68<br />
Benito Jerónimo FEIJOO, “Defensa <strong>de</strong> las mujeres”, http://www.filosofia.org/bjf/bjft116.htm,<br />
consulta<strong>da</strong> <strong>em</strong> 13.09.2009, p. 11.
O religioso inseriu o conceito <strong>da</strong>s Amazonas no contexto europeu, <strong>da</strong>n<strong>do</strong> com<br />
isso prova <strong>de</strong> que, mito, fábula, o que quer que seja, po<strong>de</strong> ser expressão <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>:<br />
“En Europa, aunque no hay país <strong>do</strong>n<strong>de</strong> las mujeres <strong>de</strong> intento<br />
profesasen la Milicia, podr<strong>em</strong>os <strong>da</strong>r el nombre <strong>de</strong> Amazonas a aquellas<br />
que en una, u otra ocasión con escuadrón forma<strong>do</strong>, triunfaron <strong>de</strong> los<br />
en<strong>em</strong>igos <strong>de</strong> su patria.”<br />
Com maior ou menor sofisticação literária, a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> reflexos advin<strong>do</strong>s <strong>da</strong><br />
natureza <strong>de</strong>sviante e potente <strong>da</strong>s Amazonas s<strong>em</strong>pre ron<strong>do</strong>u os pensamentos <strong>de</strong> agentes<br />
culturais masculinos e f<strong>em</strong>ininos. L.D.P.G também optou por falar <strong>da</strong>s Amazonas (p.7),<br />
alegan<strong>do</strong> que elas eram muitas e tinham propósito (a fé católica). Segun<strong>do</strong> ela, os<br />
homens tinham <strong>de</strong> se ren<strong>de</strong>r ao argumento <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, fican<strong>do</strong> a maledicência <strong>de</strong>les<br />
anula<strong>da</strong> pela inocência <strong>da</strong>s <strong>mulher</strong>es.<br />
O texto Desengano <strong>de</strong> ciosos, atrevimento <strong>de</strong> <strong>mulher</strong>es contestava aliás a tirania<br />
que alguns mari<strong>do</strong>s exerceriam sobre as esposas e propunha um mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> reverter tal<br />
situação, <strong>em</strong> prol <strong>da</strong> sereni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> casal e <strong>da</strong> <strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong> uma lição para os<br />
“indiscretos zelosos”. Nesta ficção <strong>de</strong> seis páginas, as personagens são Zelin<strong>da</strong>,<br />
Leoni<strong>do</strong>, Arnal<strong>do</strong> e um religioso cuja envergadura moral dispensou o uso <strong>de</strong> nome<br />
próprio. Nenhum <strong>de</strong>les foi apresenta<strong>do</strong> ao pormenor e a fraca consistência <strong>da</strong><br />
caracterização psicológica nos <strong>de</strong>u chance <strong>de</strong> frisar que foram to<strong>do</strong>s pinta<strong>do</strong>s como<br />
figuras <strong>de</strong> boa ín<strong>do</strong>le, a <strong>de</strong>speito <strong>do</strong> mau comportamento pontual <strong>do</strong> mari<strong>do</strong>, por<br />
ex<strong>em</strong>plo. Entre os poucos pormenores, é oportuno sublinharmos, estava a formosura <strong>de</strong><br />
Zelin<strong>da</strong>, atributo permea<strong>do</strong> <strong>de</strong> polémica nos textos <strong>do</strong> nosso corpus que prescindiram <strong>da</strong><br />
ficção. O texto t<strong>em</strong> referências espaciais que também diz<strong>em</strong> respeito à fun<strong>da</strong>mentação<br />
<strong>do</strong>s argumentos, na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que o autor transferiu o ambiente <strong>da</strong> trama para Itália,<br />
on<strong>de</strong> a atmosfera “romântica” outras vezes explora<strong>da</strong> pela literatura contribuiria para a<br />
valorização <strong>do</strong>s traços próprios <strong>da</strong> submissão <strong>da</strong> esposa. A <strong>mulher</strong>, durante longo<br />
t<strong>em</strong>po, foi talha<strong>da</strong> para <strong>de</strong>sfrutar <strong>de</strong> harmonia se inseri<strong>da</strong> na vi<strong>da</strong> familiar/<strong>do</strong>méstica. No<br />
enre<strong>do</strong> <strong>em</strong> questão, essa lógica não falhou: duas alternativas esperavam a <strong>mulher</strong>: ou o<br />
feliz retorno ao lar (ain<strong>da</strong> que um lar recomposto), ou o convento, para on<strong>de</strong> um parente<br />
havia mesmo encaminha<strong>do</strong> a protagonista. Revela<strong>do</strong>r é o facto <strong>de</strong> o autor escrever que<br />
Zelin<strong>da</strong> “estava <strong>de</strong>posita<strong>da</strong>” no convento. V<strong>em</strong>os com clareza que nesse tipo <strong>de</strong><br />
instituição não importava <strong>em</strong> absoluto a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma <strong>mulher</strong> (f<strong>em</strong>inina ou não),
importava o cumprimento <strong>de</strong> um papel e papéis que até as máquinas têm, po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> estas<br />
ser<strong>em</strong> guar<strong>da</strong><strong>da</strong>s <strong>em</strong> <strong>de</strong>pósitos.<br />
Aqui somos obriga<strong>da</strong>s a fazer um contraponto a essa leitura linear <strong>do</strong> texto. O<br />
leitor <strong>do</strong> texto Desengano <strong>de</strong> ciosos, atrevimento <strong>de</strong> <strong>mulher</strong>es recebe, na última página,<br />
mensagens dissonantes quanto ao papel reserva<strong>do</strong> às <strong>mulher</strong>es. O <strong>de</strong>sfecho <strong>da</strong> história<br />
prova que Zelin<strong>da</strong> po<strong>de</strong> viver <strong>em</strong> paz a própria beleza, b<strong>em</strong> como os <strong>do</strong>tes que tinha, o<br />
que significa que ela pô<strong>de</strong> tocar um instrumento musical e usar a inteligência para estar<br />
com as amigas. Não chega a ser <strong>de</strong> to<strong>do</strong> estranha a <strong>de</strong>fesa <strong>da</strong> <strong>mulher</strong> num contexto <strong>de</strong><br />
ataque. Em outra época, mais hostil à <strong>mulher</strong> e mais fiel à tradição, a célebre Carta <strong>de</strong><br />
guia <strong>de</strong> casa<strong>do</strong>s 69 levantou argumento favorável às <strong>mulher</strong>es. Escrita cerca <strong>de</strong> c<strong>em</strong> anos<br />
antes <strong>do</strong>s textos que estudámos, nela exist<strong>em</strong> numerosas críticas e, ao mesmo t<strong>em</strong>po,<br />
algum elogio, mesmo assim dirigi<strong>do</strong> a certos nomes <strong>da</strong> realeza (Marguerite <strong>de</strong> Valois,<br />
D. Luísa <strong>de</strong> Gusmão e D. Catarina <strong>de</strong> Áustria). D. Francisco Manuel <strong>de</strong> Melo muitas<br />
mais vezes aconselhou que os mari<strong>do</strong>s procurass<strong>em</strong> superar a os vícios <strong>da</strong> esposa, para<br />
com essa postura generosa ter condições <strong>de</strong> governar a casa <strong>da</strong> família.<br />
O texto Devoção <strong>da</strong>s <strong>mulher</strong>es <strong>da</strong> mo<strong>da</strong> na Igreja, e o mo<strong>do</strong> com que nunca<br />
ouv<strong>em</strong> missa é inteiramente ficcional e t<strong>em</strong> <strong>de</strong>zasseis páginas. O texto foi escrito para o<br />
teatro, e são indica<strong>da</strong>s oito personagens s<strong>em</strong> nome próprio e “mais amigas que estão na<br />
igreja”. Para além <strong>da</strong> igreja, espaço on<strong>de</strong> as personagens permanec<strong>em</strong> por mais t<strong>em</strong>po,<br />
há algumas cenas no interior <strong>da</strong> casa <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>las. O mais conveniente, no entanto, é<br />
mesmo o ambiente <strong>da</strong> igreja. Lá estão duas conheci<strong>da</strong>s, antigas vizinhas, a falar tanto e<br />
sobre tantos assuntos, que n<strong>em</strong> dão pela missa. A partir <strong>da</strong> página três, passam<br />
<strong>de</strong>senfrea<strong>da</strong>mente por t<strong>em</strong>as tão diversos quanto: 1) a <strong>de</strong>sobediência <strong>do</strong>s filhos; 2) o<br />
vício <strong>do</strong> jogo que tomou conta <strong>do</strong> mari<strong>do</strong>; 3) a promessa <strong>de</strong> casamento para a filha mais<br />
nova; 4) a ilusão <strong>do</strong> início <strong>do</strong>s relacionamentos amorosos entre hom<strong>em</strong> e <strong>mulher</strong>; 5) a<br />
sobrecarga que os i<strong>do</strong>sos representam <strong>em</strong> casa <strong>de</strong> seus filhos; 6) a rapi<strong>de</strong>z <strong>do</strong> padre para<br />
rezar a missa; 7) a insatisfação com as cria<strong>da</strong>s; 8) a mo<strong>da</strong>, critica<strong>da</strong> já no título <strong>da</strong><br />
história; 9) os hábitos <strong>do</strong>s vizinhos novos; 10) os mimos <strong>da</strong><strong>do</strong>s aos filhos pequenos; 11)<br />
o senhorio; 12) as <strong>de</strong>savenças entre irmãos. Finalmente, acaba a missa! Tu<strong>do</strong> com<br />
direito a réplicas, a lamentações e a gestos <strong>da</strong>s personagens. Outro ex<strong>em</strong>plo <strong>de</strong> que era<br />
corrente criticar as <strong>mulher</strong>es por meio <strong>do</strong> argumento <strong>do</strong> <strong>de</strong>scontrolo <strong>da</strong> fala.<br />
69 Utilizámos a edição <strong>de</strong> 2003, organiza<strong>da</strong> pela Editora Campo <strong>da</strong>s Letras.
A Nova relação contra as Mulheres ou parvoices <strong>do</strong>s seus enfeites, composta na<br />
forma <strong>de</strong> quadras, pintou mesmo a <strong>mulher</strong> tal qual bruxa, chegan<strong>do</strong> a usar as palavras<br />
“feiticeiras” e “endiabra<strong>da</strong>s” (estão ambas na p. 6, que não t<strong>em</strong> numeração <strong>de</strong>senha<strong>da</strong>) e<br />
a enumerar ingredientes esquisitos que, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> cobiça<strong>do</strong>s pelas <strong>mulher</strong>es nas montras<br />
e mistura<strong>do</strong>s para os tratamentos <strong>de</strong> beleza caseiros, tinham efeito milagroso - e<br />
mentiroso. Embora não seja obrigatoriamente acção <strong>de</strong> um discreto e n<strong>em</strong> o resulta<strong>do</strong><br />
inequivocamente erudito (há uma menção a Diana e só), r<strong>em</strong>eteu-nos <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> explícito<br />
ao código dito barroco, quan<strong>do</strong> recor<strong>do</strong>u um discurso proferi<strong>do</strong> com “engenho” e<br />
“agu<strong>de</strong>za” na mesma sala e para o mesmo auditório <strong>da</strong> presente enunciação e quan<strong>do</strong><br />
nos brin<strong>do</strong>u com jogos <strong>de</strong> palavras (“Pois digam-me senhores umas caixinhas /que<br />
traz<strong>em</strong> com artimanha, /que traz<strong>em</strong> com arte e manha, /<strong>de</strong> tabaco na algibeira”, p. 5). Os<br />
tópicos são a honra masculina rouba<strong>da</strong> pelas <strong>mulher</strong>es, a vai<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>stas, as artimanhas.<br />
O po<strong>de</strong>r mágico f<strong>em</strong>inino realmente assustava os homens.<br />
Mais uma vez fomos confronta<strong>do</strong>s com a história <strong>de</strong> Adão e Eva, com a ressalva<br />
<strong>de</strong> que nesta abor<strong>da</strong>g<strong>em</strong> o eu lírico conta os passos <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is até a que<strong>da</strong> comum. Em<br />
suma, Eva teria persuadi<strong>do</strong> Adão, para não se ver sozinha após a falta cometi<strong>da</strong>. As<br />
últimas palavras <strong>do</strong> texto são <strong>de</strong> humil<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r: “Agora povo honra<strong>do</strong>, /à vista<br />
<strong>de</strong>sta tragédia, /per<strong>do</strong>ai-me as minhas faltas, /já que sou fraco poeta”.<br />
Nunca po<strong>de</strong>riam ser estas as palavras finais <strong>do</strong> eu lírico <strong>do</strong> texto Segun<strong>da</strong> parte<br />
<strong>da</strong> pregação <strong>de</strong> João Coelho, feitas as senhoras Mulheres <strong>da</strong> mo<strong>da</strong>, pois como vimos<br />
pelo título, ele elaborou um texto espalhafatoso <strong>em</strong> quarenta e oito oitavas muito b<strong>em</strong><br />
articula<strong>da</strong>s, repletas <strong>de</strong> provocações. Em quase to<strong>da</strong>s as situações sugeri<strong>da</strong>s ao leitor <strong>em</strong><br />
forma <strong>de</strong> pergunta, o eu lírico oferece um retrato sórdi<strong>do</strong> <strong>da</strong>s <strong>mulher</strong>es. Ca<strong>da</strong> pergunta é<br />
r<strong>em</strong>ata<strong>da</strong> por um termo que rima com a última palavra <strong>do</strong> último verso e reforça um<br />
senti<strong>do</strong> agressivo (tal como “açoite”, “aguilhão”, “chicota<strong>da</strong>”, “choupa”, “mor<strong>da</strong>ça” e<br />
“murro”) ou inusita<strong>do</strong> para aquele contexto (como “atafona”, “castelo”, “estopa”,<br />
“estoque”, “palha” e “zabumba”).<br />
A leitura atenta faz recor<strong>da</strong>rmos o ritmo <strong>de</strong> um sermão, género evoca<strong>do</strong> no<br />
longo título. A cadência l<strong>em</strong>bra mais especificamente o ritmo <strong>de</strong> alguns versos <strong>de</strong> um<br />
po<strong>em</strong>a <strong>de</strong> Gregório <strong>de</strong> Matos a respeito <strong>da</strong>s injustiças e <strong>de</strong>sman<strong>do</strong>s ocorri<strong>do</strong>s na capital<br />
<strong>da</strong> Bahia: “Que falta nesta ci<strong>da</strong><strong>de</strong>? Ver<strong>da</strong><strong>de</strong>/ Que mais por sua <strong>de</strong>sonra? Honra/ Falta<br />
mais que se lhe ponha Vergonha./ O d<strong>em</strong>o a viver se exponha,/ Por mais que a fama a<br />
exalta,/ numa ci<strong>da</strong><strong>de</strong>, on<strong>de</strong> falta/ Ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, Honra, Vergonha./ Qu<strong>em</strong> a pôs neste
socrócio? Negócio/ Qu<strong>em</strong> causa tal perdição? Ambição/ E o maior <strong>de</strong>sta loucura?<br />
Usura.” 70<br />
Em termos <strong>de</strong> Disposição, vale a pena referir que não houve uma preocupação<br />
s<strong>em</strong>elhante à <strong>do</strong>s outros textos, quer dizer, não há um plano basea<strong>do</strong> na evolução <strong>do</strong><br />
raciocínio. O que há é uma enumeração <strong>de</strong> ex<strong>em</strong>plos negativos que não conduz<strong>em</strong> à<br />
conclusão. A ocorrência <strong>de</strong>ve estar liga<strong>da</strong> ao facto <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> extracto <strong>em</strong> si mesmo ser tão<br />
severo, que dispensa um arranjo final diferente. De to<strong>do</strong> mo<strong>do</strong>, ain<strong>da</strong> há espaço para<br />
reafirmarmos o carácter mun<strong>da</strong>no <strong>do</strong> texto: não se trata <strong>de</strong> crítica à política ou à igreja,<br />
estamos no <strong>do</strong>mínio <strong>do</strong> profano e, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>le, no <strong>do</strong>mínio <strong>do</strong> <strong>do</strong>méstico censurável.<br />
Não bastou ao autor <strong>de</strong> Segun<strong>da</strong> parte <strong>da</strong> pregação <strong>de</strong> João Coelho, feitas as<br />
senhoras Mulheres <strong>da</strong> mo<strong>da</strong> referir a tagarelice f<strong>em</strong>inina, ele teve <strong>de</strong> associá-la à<br />
malícia sexual. A obsceni<strong>da</strong><strong>de</strong> e o sarcasmo estão por muitas vezes subjacentes, como<br />
pod<strong>em</strong>os notar nos seguintes trechos: “Que até lhe diz por tim tim, /tu<strong>do</strong> quanto o seu<br />
Joaquim /lhe comunica <strong>de</strong> noite” e “Que haja <strong>mulher</strong> tão ladina, /que receben<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />
amante /anel custoso e brilhante/ ou fivela diamantina, /se valha logo <strong>da</strong> fina /<strong>de</strong><br />
impingir a seu mari<strong>do</strong>, /que o traste presente há si<strong>do</strong> /que lhe <strong>de</strong>u um seu irmão?”<br />
(ambos ex<strong>em</strong>plos <strong>da</strong> p. 3). Também é <strong>de</strong>sproporciona<strong>da</strong> a reacção <strong>do</strong> eu lírico perante<br />
as dúvi<strong>da</strong>s sobre as <strong>mulher</strong>es. Em muitos casos <strong>de</strong> resposta afirmativa, propôs um<br />
castigo à <strong>mulher</strong>. E os castigos eram invariavelmente físicos.<br />
A Carta e resposta sobre o odio <strong>do</strong>s inimigos francezes é o mais longo <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s<br />
e o <strong>de</strong> estrutura mais metódica. Embora to<strong>do</strong>s os textos examina<strong>do</strong>s tenham título longo,<br />
como era costume, este é longuíssimo e fornece nomes e titulações <strong>de</strong> pessoas<br />
envolvi<strong>da</strong>s na difusão <strong>do</strong> seu conteú<strong>do</strong>. Além disso está dividi<strong>do</strong> <strong>em</strong> muitas partes,<br />
como “Advertência”, “Carta”, “Assunto”, “Parte <strong>do</strong> Sermão”, “Ponto III” e “Índice”.<br />
Logo na “Advertência” t<strong>em</strong>os contacto com o discurso <strong>da</strong> misoginia no sermão<br />
gera<strong>do</strong>r <strong>de</strong> to<strong>da</strong> a reflexão. O terceiro ponto <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong> §1 classifica <strong>de</strong> “peca<strong>do</strong> mortal”<br />
a vai<strong>da</strong><strong>de</strong> f<strong>em</strong>inina, a exposição ao olhar <strong>do</strong> outro e o consentimento <strong>de</strong>ssa prática. Em<br />
segui<strong>da</strong>, mais precisamente no §7 <strong>da</strong> “Carta”, encontrámos o comentário feito por qu<strong>em</strong><br />
assistiu ao sermão (um mari<strong>do</strong> e pai, como ele mesmo se apresenta) e se afligiu com a<br />
70 De facto, o discurso pratica<strong>do</strong> no <strong>século</strong> XVIII guar<strong>da</strong>va as raízes <strong>do</strong>s discursos (sermões, epístolas, até<br />
po<strong>em</strong>as) <strong>do</strong> <strong>século</strong> XVII, ao qual Gregório <strong>de</strong> Matos pertenceu. To<strong>do</strong> o discurso apologético <strong>do</strong> perío<strong>do</strong><br />
que estu<strong>da</strong>mos está atravessa<strong>do</strong> pela herança barroca. A associação entre um texto <strong>de</strong> 1787 e outros <strong>de</strong><br />
cerca <strong>de</strong> c<strong>em</strong> anos antes, portanto, não é abusiva. O Padre António Vieira, b<strong>em</strong> como o próprio Gregório<br />
<strong>de</strong> Matos, foram acérrimos <strong>de</strong>fensores <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ias, foram habili<strong>do</strong>sos na persuasão e isso era muito <strong>do</strong> que<br />
pretendiam os escritores setecentistas quan<strong>do</strong> se tratava <strong>de</strong> atacar a <strong>mulher</strong>, <strong>de</strong> provocá-la ou <strong>de</strong> provocar<br />
risos <strong>de</strong> aprovação às custas <strong>do</strong>s costumes e <strong>da</strong>s manias atribuí<strong>da</strong>s a elas.
força <strong>da</strong>s palavras <strong>do</strong> prega<strong>do</strong>r. Ele utiliza o termo “<strong>de</strong>sabusa<strong>do</strong>” para falar <strong>do</strong> prega<strong>do</strong>r<br />
(que seria o equivalente a mo<strong>de</strong>rno, <strong>de</strong>spoja<strong>do</strong>, no falar <strong>do</strong>s brasileiros), estava a<br />
lamentar a atitu<strong>de</strong> <strong>da</strong>quele hom<strong>em</strong>. Queixava-se <strong>da</strong> permissivi<strong>da</strong><strong>de</strong> para com hábitos<br />
inócuos <strong>da</strong>s <strong>mulher</strong>es (“Que po<strong>de</strong> pois seguir-se <strong>da</strong>s <strong>mulher</strong>es trazer<strong>em</strong> os braços nus e<br />
o pescoço ou peito s<strong>em</strong> lenço; não se seguin<strong>do</strong> cousa alguma <strong>de</strong>las assim trazer<strong>em</strong> a<br />
cara <strong>em</strong> to<strong>do</strong> o lugar e <strong>em</strong> to<strong>do</strong> o t<strong>em</strong>po?”, p. 13). Além disso comparava a exibição a<br />
que elas têm que se sujeitar à que se sujeitam os homens também. To<strong>da</strong>via encerra o<br />
discurso com um comentário <strong>de</strong> certo mo<strong>do</strong> resigna<strong>do</strong>: “…rogo-lhe que me diga<br />
também se é peca<strong>do</strong> mortal assim an<strong>da</strong>r<strong>em</strong>; porque, sen<strong>do</strong>-o, terei <strong>de</strong> obstar a que elas<br />
[<strong>mulher</strong> e filhas] assim and<strong>em</strong>” (p. 13).<br />
Na resposta à carta <strong>do</strong> referi<strong>do</strong> crente está o “Ponto III – Do ornato <strong>da</strong>s<br />
<strong>mulher</strong>es” (pp. 128-184) Qu<strong>em</strong> respon<strong>de</strong>u à carta partiu <strong>de</strong>pressa para a acusação, ao<br />
afirmar que muita gente <strong>de</strong>veria agir como o prega<strong>do</strong>r, quan<strong>do</strong> infelizmente já agia<br />
como “<strong>de</strong>sabusa<strong>do</strong>” (que neste discurso assumiu o senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> “libertino”, palavra<br />
também usa<strong>da</strong> à p. 129). Com astúcia, conduziu a discussão para o louvor <strong>da</strong> dúvi<strong>da</strong>.<br />
Tinha acaba<strong>do</strong> <strong>de</strong> repreen<strong>de</strong>r o interlocutor, passou subtilmente a gabá-lo por ter<br />
alimenta<strong>do</strong> alguma inquietação. Para no final inviabilizar com frontali<strong>da</strong><strong>de</strong> a busca <strong>de</strong><br />
pari<strong>da</strong><strong>de</strong> (ele <strong>de</strong>saconselha mesmo o “argumento <strong>de</strong> pari<strong>da</strong><strong>de</strong>”, locução <strong>da</strong> p. 129).<br />
Eliminou qualquer possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> contestação menos formal, porque discorreu durante<br />
cinquenta e cinco compri<strong>do</strong>s parágrafos sobre os erros <strong>da</strong>s <strong>mulher</strong>es, negan<strong>do</strong> questões<br />
<strong>de</strong> grau: 1) <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>u qu<strong>em</strong> quer que confundisse com prostituta a <strong>mulher</strong> vesti<strong>da</strong> <strong>de</strong><br />
forma sensual, antes <strong>da</strong> sensuali<strong>da</strong><strong>de</strong> no trajar chegar à mo<strong>da</strong>; 2) comparou a a<strong>do</strong>pção<br />
<strong>de</strong> um modismo como esse à união s<strong>em</strong> casamento oficial e ao furto, pois são<br />
“gravíssimos absur<strong>do</strong>s” (p. 131) que o número <strong>de</strong> a<strong>de</strong>ptos não tornava mais bonitos ou<br />
aceitáveis; 3) apresentou ensinamentos <strong>de</strong> Santo António, <strong>do</strong> Profeta Malaquias, <strong>de</strong><br />
Salomão, <strong>de</strong> S.Paulo e <strong>de</strong> vários outros (com direito a citações <strong>em</strong> latim), até chegar às<br />
resoluções <strong>do</strong>s Concílios e à interpretação <strong>de</strong> car<strong>de</strong>ais, arcebispos etc; 4) por volta <strong>do</strong><br />
§50 começa a recolha <strong>da</strong>s d<strong>em</strong>onstrações <strong>de</strong> autori<strong>da</strong><strong>de</strong> para concluir, evi<strong>de</strong>nt<strong>em</strong>ente,<br />
que as <strong>mulher</strong>es pagarão <strong>em</strong> outra vi<strong>da</strong> pelas provocações e pela falta <strong>de</strong> prudência <strong>em</strong><br />
ouvir as advertências <strong>do</strong>s seus confessores. Passan<strong>do</strong> uma vez mais pelos ex<strong>em</strong>plos <strong>de</strong><br />
Eva e Salomé e a vitimização <strong>de</strong> Adão e Hero<strong>de</strong>s. Pouco t<strong>em</strong> <strong>de</strong> novo, afinal.
CONCLUSÃO<br />
Paula <strong>da</strong> Graça, Gertru<strong>de</strong>s Margari<strong>da</strong> <strong>de</strong> Jesus, L.D.P.G. e uma anónima<br />
“senhora <strong>da</strong> província” escreveram e publicaram no <strong>século</strong> XVIII <strong>do</strong>cumentos <strong>em</strong><br />
<strong>de</strong>fesa <strong>da</strong> <strong>mulher</strong>. Com os respectivos <strong>folhetos</strong> <strong>de</strong> cor<strong>de</strong>l, inscreveram na história <strong>da</strong><br />
literatura portuguesa uma perspectiva mais ou menos erudita acerca <strong>do</strong> direito <strong>da</strong><br />
<strong>mulher</strong> à cultura letra<strong>da</strong> e à vi<strong>da</strong> pessoal plena. Depois <strong>de</strong>las, o cânone português<br />
permaneceu impassível; sab<strong>em</strong>os, to<strong>da</strong>via, que as posições <strong>de</strong>fendi<strong>da</strong>s por elas<br />
condiziam com os caminhos trilha<strong>do</strong>s <strong>em</strong> outros países <strong>da</strong> Europa. Ao longo <strong>de</strong>sta<br />
dissertação, tiv<strong>em</strong>os oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> conhecer publicações menos generosas para com a<br />
<strong>mulher</strong> e também referimos títulos portugueses e estrangeiros caros ao elogio <strong>da</strong> <strong>mulher</strong><br />
no privilegia<strong>do</strong> mas insuspeita<strong>do</strong> <strong>de</strong>bate setecentista. Sobre alguns <strong>de</strong>les encontramos,<br />
com uma facili<strong>da</strong><strong>de</strong> muito maior, informações pontuais, citações, interpretações etc <strong>do</strong><br />
que quan<strong>do</strong> <strong>em</strong>preend<strong>em</strong>os uma busca <strong>em</strong> torno <strong>da</strong> produção <strong>de</strong>ssas <strong>mulher</strong>es.<br />
Em princípio, as quatro autoras queriam falar para uma <strong>mulher</strong>, hipotética, que<br />
estivesse à altura <strong>de</strong> um diálogo autêntico e arroja<strong>do</strong>. Pediam implicitamente alguma<br />
imuni<strong>da</strong><strong>de</strong> frente ao insistente discurso misógino - ou alguma reacção, se quisermos,<br />
que podia inclusive passar pelo <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> vingança – além <strong>de</strong> apreço ou pela erudição<br />
ou pelo espírito trocista que permeava os textos <strong>de</strong>las.<br />
Poucas interlocutoras estavam prepara<strong>da</strong>s para o intercâmbio, no entanto.<br />
Faltava-lhes educação formal, leituras que ampliass<strong>em</strong> os horizontes, autonomia para<br />
enfrentar a exposição pública. O <strong>de</strong>bate acerca <strong>da</strong> <strong>mulher</strong> era central naquela época, mas<br />
num círculo mais selecto, ao qual a <strong>mulher</strong> não era chama<strong>da</strong>. Antes <strong>de</strong> mais na<strong>da</strong>, ela<br />
teria que se aventurar, teria que <strong>de</strong>sbravar, ganhan<strong>do</strong> legitimi<strong>da</strong><strong>de</strong> para propor i<strong>de</strong>ias.<br />
O activismo que caracteriza essas autoras, <strong>de</strong> qu<strong>em</strong> sab<strong>em</strong>os tão pouco, e o<br />
encanto <strong>do</strong>s papéis volantes <strong>em</strong> si, faz<strong>em</strong>-nos reflectir sobre as razões <strong>de</strong> as autoras não<br />
ter<strong>em</strong> inaugura<strong>do</strong> uma linha, <strong>de</strong> os textos não ter<strong>em</strong> servi<strong>do</strong> como base para o trabalho<br />
colectivo - ou para mais trabalho solitário, no mínimo.<br />
As quatro escritoras não foram imita<strong>da</strong>s n<strong>em</strong> r<strong>em</strong>ata<strong>da</strong>s. Com uma estratégia<br />
<strong>retórica</strong> diferente <strong>da</strong> <strong>do</strong>s homens, elas buscaram configurar um grupo coeso para alargar<br />
o discurso f<strong>em</strong>inino, mas não obtiveram êxito. Os homens apostaram na repetição <strong>da</strong>s<br />
queixas contra as <strong>mulher</strong>es; nossas quatro escritoras tentaram ser as procura<strong>do</strong>ras <strong>da</strong>s<br />
que não tinham voz. Continuou o silêncio. Em Portugal t<strong>em</strong> havi<strong>do</strong> produção escrita<br />
volta<strong>da</strong> para a t<strong>em</strong>ática f<strong>em</strong>inina, como é espera<strong>do</strong>, porém na<strong>da</strong> que nos r<strong>em</strong>eta
directamente aos textos <strong>da</strong>s quatro autoras <strong>em</strong> questão, ou melhor, na<strong>da</strong> que sobressaia<br />
por este motivo, por explorar esta matriz.<br />
Paralelamente a esse <strong>de</strong>scompasso entre possíveis parceiras intelectuais, a<br />
própria tradição <strong>de</strong> escrever e distribuir <strong>folhetos</strong> volantes foi-se extinguin<strong>do</strong>. O vazio <strong>da</strong><br />
mo<strong>da</strong> setecentista <strong>da</strong>va seus sinais <strong>de</strong> exaustão nos textos portugueses torna<strong>do</strong>s<br />
<strong>de</strong>sestimulantes <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> numerosas edições (Baltasar Dias, só ele, teve mais <strong>de</strong> <strong>de</strong>z),<br />
nos textos estrangeiros traduzi<strong>do</strong>s que já <strong>de</strong>viam estar a per<strong>de</strong>r uma competição com<br />
textos novos, mais sintoniza<strong>do</strong>s com a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> local.<br />
Acreditamos igualmente que a <strong>de</strong>cadência se <strong>de</strong>veu ao esgotamento estilístico<br />
<strong>do</strong>s <strong>folhetos</strong> <strong>de</strong> cor<strong>de</strong>l: os t<strong>em</strong>as eram por d<strong>em</strong>ais pulveriza<strong>do</strong>s, a tentativa <strong>de</strong> abarcar o<br />
austero e o cómico <strong>de</strong>via gerar alguma irregulari<strong>da</strong><strong>de</strong> nas normas que regiam a<br />
produção <strong>do</strong>s <strong>folhetos</strong> (quantas páginas <strong>de</strong>veriam ter, com que periodici<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>veriam<br />
sair), faltava cui<strong>da</strong><strong>do</strong> editorial etc.<br />
Não <strong>de</strong>ixamos <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar, enfim, a força <strong>do</strong> Romantismo, o movimento<br />
artístico que se avizinhava com novi<strong>da</strong><strong>de</strong>s, com outros valores. Contu<strong>do</strong>, no fun<strong>do</strong> é-nos<br />
muito difícil atingir a resposta mais exacta para uma mu<strong>da</strong>nça tão intimamente liga<strong>da</strong> a<br />
um quotidiano longínquo. O somatório <strong>de</strong> vários pontos <strong>de</strong> fragili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong>s <strong>folhetos</strong> é<br />
por ora nossa melhor explicação.<br />
Ain<strong>da</strong> que assim seja, que não tenha si<strong>do</strong> composta uma corrente f<strong>em</strong>ininista<br />
letra<strong>da</strong> a partir <strong>da</strong>s quatro autoras, as quali<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>do</strong>s exactos cinco <strong>do</strong>cumentos que elas<br />
legaram, mais o referi<strong>do</strong> ineditismo, ain<strong>da</strong> convi<strong>da</strong>m o leitor a olhar <strong>de</strong> perto o génio<br />
f<strong>em</strong>inino a manejar as armas <strong>da</strong> Retórica.<br />
As <strong>mulher</strong>es que redigiram as cartas apologéticas e os d<strong>em</strong>ais <strong>do</strong>cumentos para a<br />
<strong>de</strong>fesa <strong>do</strong> sexo f<strong>em</strong>inino transitavam com elegância e com altivez no cenário <strong>da</strong><br />
intelectuali<strong>da</strong><strong>de</strong> portuguesa <strong>do</strong> <strong>século</strong> XVIII, monopoliza<strong>do</strong> por homens, enquanto a<br />
maior parte <strong>da</strong>s <strong>mulher</strong>es portuguesas não lia, não recebia instrução. Souberam <strong>da</strong>r<br />
ex<strong>em</strong>plos favoráveis à liber<strong>da</strong><strong>de</strong> e ao carácter f<strong>em</strong>ininos, souberam seleccionar<br />
argumentos para refutar as acusações masculinas; con<strong>de</strong>naram a violência masculina<br />
para com a <strong>mulher</strong>; <strong>de</strong>ram parâmetros para incr<strong>em</strong>entar a discussão sobre a beleza;<br />
investiram contra a recriminação <strong>da</strong> prolixi<strong>da</strong><strong>de</strong> f<strong>em</strong>inina; ousaram no género cómico,<br />
muito preza<strong>do</strong> naquele perío<strong>do</strong>; assumiram-se como seres capazes <strong>de</strong> opinião. Enfim,<br />
<strong>de</strong>ram inequívocas mostras <strong>de</strong> técnica <strong>retórica</strong>, <strong>de</strong> raciocínio e <strong>de</strong> corag<strong>em</strong>.<br />
Houvesse outras condições para esten<strong>de</strong>r este trabalho académico, gostaríamos<br />
<strong>de</strong> preparar uma edição <strong>de</strong> textos apologéticos f<strong>em</strong>ininos <strong>do</strong> <strong>século</strong> XVIII. Pud<strong>em</strong>os,
consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s os mol<strong>de</strong>s <strong>em</strong> que nosso estu<strong>do</strong> se enquadrava, transcrever por ora apenas<br />
três textos <strong>do</strong> corpus, entre os quais um <strong>de</strong> autoria masculina. A etapa <strong>em</strong> que nos<br />
encontrávamos exigia <strong>de</strong> nós a contraposição <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ias, portanto o confronto <strong>de</strong><br />
conteú<strong>do</strong> e forma masculina com conteú<strong>do</strong> e forma f<strong>em</strong>inina. O exame permitiu que<br />
<strong>de</strong>scobríss<strong>em</strong>os as fontes <strong>de</strong> Gertru<strong>de</strong>s Margari<strong>da</strong> <strong>de</strong> Jesus, por ex<strong>em</strong>plo, que<br />
verificáss<strong>em</strong>os a libertação frente ao <strong>de</strong>bate público instaura<strong>do</strong> a partir <strong>do</strong> texto <strong>de</strong><br />
Baltasar Dias. Isso não esgota a curiosi<strong>da</strong><strong>de</strong> pela boa disposição <strong>de</strong> Paula <strong>da</strong> Graça n<strong>em</strong><br />
pela melancolia <strong>da</strong> senhora <strong>de</strong> província. Ficamos, assim, a <strong>de</strong>sejar e a sugerir um<br />
prolongamento <strong>do</strong> presente trabalho <strong>de</strong> investigação.
PARA UMA FUTURA EDIÇÃO DOS TEXTOS FEMINISTAS DO SÉCULO XVIII: A POLÉMICA ENTRE<br />
G.M. DE JESUS E IRMÃO AMADOR DO DESENGANO (1761)<br />
1. CRITÉRIOS DE TRANSCRIÇÃO<br />
Atentas às características <strong>da</strong> edição diplomático-interpretativa, conceb<strong>em</strong>os um<br />
trabalho que consiste basicamente <strong>em</strong> <strong>da</strong>r a conhecer ao público actual três <strong>do</strong>cumentos<br />
<strong>do</strong> <strong>século</strong> XVIII, facilitan<strong>do</strong> a sua leitura. Optámos, por isso, pela separação <strong>da</strong>s<br />
palavras e pela necessária actualização <strong>da</strong> pontuação. Isto quer dizer que não nos<br />
<strong>de</strong>tiv<strong>em</strong>os com atenção mais minuciosa nas oscilações ortográficas, por ex<strong>em</strong>plo.<br />
Concentramos esforços na interpretação <strong>do</strong> texto, ten<strong>do</strong> <strong>em</strong> conta que esta <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>da</strong><br />
verificação <strong>de</strong> <strong>de</strong>termina<strong>da</strong>s citações, <strong>da</strong> redução <strong>de</strong> senti<strong>do</strong>s s<strong>em</strong>ânticos e <strong>da</strong><br />
recorrência a certos tópicos próprios <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> histórico, entre outros el<strong>em</strong>entos.<br />
Concretamente optamos por actualizar:<br />
- Abreviaturas, nos casos <strong>em</strong> que foi possível assegurar o significa<strong>do</strong> que elas assum<strong>em</strong><br />
na actuali<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />
Ex.: “V.C. & c.” → “V.C. etc. ”.<br />
abreviaturas .<br />
As excepções a esta regra ocorreram só quan<strong>do</strong> não nos foi possível <strong>de</strong>s<strong>do</strong>brar as<br />
- O uso <strong>de</strong> maiúscula e minúsculas nos títulos <strong>da</strong>s obras.<br />
Ex.: “SEGUNDA CARTA” → “Segun<strong>da</strong> Carta”.<br />
- Os acentos gráficos, inclusive nas palavras que eram, no <strong>século</strong> XVIII, homógrafas.<br />
Ex.: “naõ”→ “não”; “Heroinas”→ “Heroínas”; “v<strong>em</strong>”→ “vêm” e “v<strong>em</strong>”→ “vê<strong>em</strong>”;<br />
“expo<strong>em</strong>” → “expõe”/”expõ<strong>em</strong>”.<br />
- O ƒ longo.<br />
Ex.: “neƒta” → “nesta”.<br />
- As consoantes duplas hoje simplifica<strong>da</strong>s.<br />
Ex.: tt → t (“r<strong>em</strong>etti” → “r<strong>em</strong>eti”); ll → l (“illidir” → “ilidir”); ff → f (“soffrer” →<br />
“sofrer”).
- O h etimológico ou <strong>de</strong> falsa etimologia.<br />
Ex.: “huma” → “uma”; “he” → “é”; “Rhetorica” → “Retórica”.<br />
- As letras ou grupos <strong>de</strong> letras <strong>de</strong> orig<strong>em</strong> greco-latina, mesmo nos nomes próprios.<br />
Ex.: th → t (“authora” → “autora”); y → i (“tyrannamente” → “tiranamente”).<br />
- O s e o z ntervocálicos.<br />
Ex.: “Poezia” → “Poesia”; “cosinhan<strong>do</strong>” → “cozinhan<strong>do</strong>”; “Tesalia” → “Tessália”.<br />
- O z <strong>em</strong> final <strong>de</strong> palavra.<br />
Ex.: “atraz” → “atrás”.<br />
- Os grupos nasais aens e oens.<br />
Ex.: “Magalhaens” → “Magalhães”; “paixoens” → “paixões”.<br />
- As palavras separa<strong>da</strong>s ou por lapso na impressão ou, ao contrário, por atenção à regra<br />
gramatical então vigente, s<strong>em</strong>pre que era claro o seu senti<strong>do</strong>.<br />
Ex.: “a manuense”→ “amanuense”; “<strong>em</strong> fim”→ “enfim”.<br />
- As palavras uni<strong>da</strong>s ou por lapso na impressão ou, ao contrário, por atenção à regra<br />
gramatical então vigente, s<strong>em</strong>pre que era claro o seu senti<strong>do</strong>.<br />
Ex.: “senão”→ ”se não”; “alingua” → “a língua”.<br />
- Os grupos consonantais mn, sc e pt, <strong>em</strong>bora seja mais polémica a <strong>de</strong>cisão quanto a esta<br />
actualização, por não se po<strong>de</strong>r garantir a pertinência fonética. Fica no entanto regista<strong>da</strong><br />
esta observação geral, para que se avalie a actualização a que proced<strong>em</strong>os.<br />
Ex.: “somno” → “sono”; “<strong>da</strong>mnosa” → “<strong>da</strong>nosa”; “sciencia” → “ciência”;<br />
“promptidão” → “prontidão”.<br />
- Os grupos vocálicos ae, ao, ea, eo, oa e oe.<br />
Ex.: “moraes” → “morais”; “máos” → “maus”; “fea” → “feia”; “Deozes” → “Deuses”;<br />
“tregoas” → “tréguas”; “<strong>de</strong>stroe” → “<strong>de</strong>strói”.
- O uso <strong>de</strong> i <strong>em</strong> e, nos casos <strong>em</strong> que se suced<strong>em</strong> <strong>em</strong> duas sílabas segui<strong>da</strong>s.<br />
Ex.: “similhantes” → “s<strong>em</strong>elhantes”; “testimunho” → “test<strong>em</strong>unho”.<br />
- A distinta grafia <strong>do</strong> grupo nasal ão <strong>em</strong> acentuação ou grave ou agu<strong>da</strong>.<br />
Ex.: “fizeraõ” → “fizeram”; “estam” → “estão”.<br />
Discrimina<strong>do</strong>s os itens concernentes à ortografia, sublinh<strong>em</strong>os que, quanto à<br />
pontuação <strong>em</strong> particular, obe<strong>de</strong>c<strong>em</strong>os ao mesmo espírito <strong>de</strong> transcrição, isto é,<br />
conservámos to<strong>do</strong> o uso original que ain<strong>da</strong> permite clareza na <strong>de</strong>scodificação <strong>do</strong> texto e<br />
mudámos (ou colocan<strong>do</strong> ou retiran<strong>do</strong> pontuação) o que já não concorria para levar o<br />
leitor à compreensão <strong>de</strong>sse mesmo texto. Assim:<br />
- Acrescentámos vírgula antes <strong>do</strong>s verbos no gerúndio.<br />
Ex.: “Assim o fizeram os Efesinos injurian<strong>do</strong> com feias palavras a Hermo<strong>do</strong>ro…” →<br />
“Assim o fizeram os Efesinos, injurian<strong>do</strong> com feias palavras a Hermo<strong>do</strong>ro”.<br />
- Retirámos a vírgula que antece<strong>de</strong> a conjunção e.<br />
Ex.: “O mar com suas on<strong>da</strong>s acomete assim à soberba Nau, como ao roto, e pobre<br />
baixel” → “O mar com suas on<strong>da</strong>s acomete assim à soberba Nau, como ao roto e pobre<br />
baixel”<br />
- Retirámos a vírgula que antece<strong>de</strong> ou a conjunção ou o pronome relativo que.<br />
Ex.: “Isto tu<strong>do</strong> provém <strong>da</strong> suma ignorância, que nelas milita…” → “Isto tu<strong>do</strong> provém<br />
<strong>da</strong> suma ignorância que nelas milita…”<br />
Houve casos mais polémicos, <strong>em</strong> que procurámos respeitar o senti<strong>do</strong> que a<br />
pontuação conferia ao texto, fazen<strong>do</strong> no entanto alterações <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com a norma <strong>do</strong><br />
séc. XVIII.<br />
- Substituímos o ponto e vírgula com valor <strong>de</strong> vírgula.<br />
Ex.: “…pois assim como a sabe<strong>do</strong>ria é um estímulo para to<strong>do</strong> o b<strong>em</strong>; a ignorância é a<br />
ocasião <strong>de</strong> to<strong>do</strong> o mal.” → “…pois assim como a sabe<strong>do</strong>ria é um estímulo para to<strong>do</strong> o<br />
b<strong>em</strong>, a ignorância é a ocasião <strong>de</strong> to<strong>do</strong> o mal.”
- Substituímos o ponto e vírgula com valor <strong>de</strong> <strong>do</strong>is pontos.<br />
Ex.: “Não é a formosura <strong>da</strong>nosa porque o seja; mas porque os homens disseram e<br />
quiseram que fosse má” → “Não é a formosura <strong>da</strong>nosa porque o seja: mas porque os<br />
homens disseram e quiseram que fosse má”<br />
- Substituímos os <strong>do</strong>is pontos com valor <strong>de</strong> ponto e vírgula.<br />
Ex.: “São como as on<strong>da</strong>s <strong>do</strong> mar, que s<strong>em</strong>pre estão <strong>em</strong> contínuo movimento: são como<br />
as nuvens se água…” → “São como as on<strong>da</strong>s <strong>do</strong> mar, que s<strong>em</strong>pre estão <strong>em</strong> contínuo<br />
movimento; são como as nuvens se água…”<br />
Também no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> respeitar s<strong>em</strong>pre que possível a norma alarga<strong>da</strong> <strong>do</strong> séc.<br />
XVIII, uniformizámos:<br />
- O uso <strong>de</strong> ? e <strong>de</strong> !, o primeiro passan<strong>do</strong> a assumir valor interrogativo/exclamativo e o<br />
segun<strong>do</strong>, apenas exclamativo.<br />
Ex.: “Po<strong>de</strong> haver maior <strong>de</strong>satino!” → “Po<strong>de</strong> haver maior <strong>de</strong>satino?”.<br />
- O uso <strong>de</strong> itálico nos títulos <strong>da</strong>s obras e no discurso directo intratexto, para que<br />
houvesse itálico <strong>em</strong> to<strong>do</strong>s os pontos que o autor escolheu e naqueles que o leitor <strong>de</strong> hoje<br />
está acostuma<strong>do</strong> a ver <strong>em</strong> itálico.<br />
Ex.: “Labirinto <strong>do</strong> Amor”; “Diálogos” → “Diálogos”; “Como é possível, ó<br />
Pitágoras…” → “Como é possível, ó Pitágoras…”.<br />
- O uso <strong>de</strong> maiúsculas para início <strong>de</strong> frase e nomes <strong>de</strong> disciplinas e o uso <strong>de</strong> minúsculas<br />
nos adjectivos quan<strong>do</strong> o substantivo estava grafa<strong>do</strong> com minúscula.<br />
<strong>de</strong> texto.<br />
Nos restantes casos, limitámo-nos a seguir o que é consensual nas transcrições<br />
- Corrigimos erros/ gralhas inquestionáveis.<br />
Ex.: “outro incorpórea”→ “outra incorpórea”; “trevimento” → “atrevimento”;<br />
“renunciliá-la” → “renunciá-la”.<br />
- Mantiv<strong>em</strong>os as palavras que indiciam uma fonética diferente <strong>da</strong> que hoje vigora.
Ex.: “<strong>de</strong>fensa”; “resplan<strong>do</strong>r”; “infelices”; “cousa”; “<strong>do</strong>us”.<br />
- Mantiv<strong>em</strong>os os arcaísmos legíveis.<br />
Ex.: “El Rei”; “Sor”; “baul”.<br />
- Mantiv<strong>em</strong>os qualquer pontuação que pu<strong>de</strong>sse ser legível nos parâmetros actuais, ain<strong>da</strong><br />
que <strong>em</strong> poucas ocorrências.<br />
Ex.: ponto e vírgula com valor <strong>de</strong> ponto final: “…não faço menção <strong>da</strong>s S<strong>em</strong>iramis, <strong>da</strong>s<br />
Zenobias; <strong>da</strong>s Arras; <strong>da</strong>s Thomiris e Art<strong>em</strong>izas e <strong>de</strong> outras muitas que a referir to<strong>da</strong>s<br />
nunca acabaria; concluirei porém…”.<br />
Procurámos ain<strong>da</strong> completar com notas ao texto a nossa transcrição. O t<strong>em</strong>po<br />
reserva<strong>do</strong> para a re<strong>da</strong>cção <strong>de</strong>sta dissertação não era tão prolonga<strong>do</strong> que permitisse<br />
ser<strong>em</strong> mais completas. É morosa a i<strong>de</strong>ntificação <strong>de</strong> textos e <strong>de</strong> autores cita<strong>do</strong>s por vezes<br />
<strong>de</strong> cor e s<strong>em</strong>pre s<strong>em</strong> qualquer indicação bibliográfica.
Espelho Crítico, no qual claramente se vê<strong>em</strong> alguns <strong>de</strong>feitos <strong>da</strong>s <strong>mulher</strong>es, fabrica<strong>do</strong> na<br />
Loja <strong>da</strong> Ver<strong>da</strong><strong>de</strong> pelo Irmão Ama<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Desengano, que po<strong>de</strong> servir <strong>de</strong> estímulo para a<br />
reforma <strong>do</strong>s mesmos <strong>de</strong>feitos.<br />
Lisboa, Na Oficina <strong>de</strong> António Vicente <strong>da</strong> Silva, Ano <strong>de</strong> 1761.<br />
Com to<strong>da</strong>s as licenças necessárias.<br />
Espelho Crítico<br />
Dificultosa seria a <strong>em</strong>presa, a que me arrojo, se acaso me persuadisse a querer<br />
expor os <strong>de</strong>feitos to<strong>do</strong>s que ordinariamente se acham nas <strong>mulher</strong>es; porém como o meu<br />
projecto só é <strong>de</strong>screver alguns <strong>do</strong>s muitos que nelas militam, não me será cousa assaz<br />
difícil o d<strong>em</strong>onstrá-los. Afirmo seguramente que não direi cousa que seja minha e<br />
menos lhes levantarei test<strong>em</strong>unho porque haja <strong>de</strong> retractar-me. Verão (ven<strong>do</strong>-se a este<br />
Espelho) os seus <strong>de</strong>feitos que entre os muitos, <strong>de</strong> que vários Autores fizeram menção,<br />
só me servirei <strong>de</strong> três para o presente argumento: <strong>do</strong>us maus e um péssimo, sen<strong>do</strong> <strong>em</strong> si<br />
bom. Mostrarei (s<strong>em</strong> escân<strong>da</strong>lo, antes sim com to<strong>da</strong> a modéstia) ser<strong>em</strong> ignorantíssimas<br />
e várias: primeiro e segun<strong>do</strong> <strong>de</strong>feito; no terceiro mostrarei, ser a formosura nelas<br />
também <strong>de</strong>feito. Farei por me explicar, valen<strong>do</strong>-me <strong>do</strong> que os Autores e a experiência a<br />
este respeito têm insinua<strong>do</strong>.<br />
Para proce<strong>de</strong>rmos nesta matéria com a clareza que <strong>de</strong>sejo, vamos consultar ao<br />
sábio Filósofo Secun<strong>do</strong>. Este gran<strong>de</strong> hom<strong>em</strong>, sen<strong>do</strong> pergunta<strong>do</strong> pelo Impera<strong>do</strong>r Adriano<br />
que cousa era a <strong>mulher</strong>, respon<strong>de</strong>u assim: A <strong>mulher</strong> é naufrágio <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>, t<strong>em</strong>pesta<strong>de</strong><br />
<strong>da</strong> casa, cativeiro <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, leoa abraçan<strong>do</strong>, animal malicioso e mal necessário. É<br />
naufrágio <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>: pois é raríssima a infelici<strong>da</strong><strong>de</strong> que não tenha sua orig<strong>em</strong> nas<br />
<strong>mulher</strong>es; e por isso já houve qu<strong>em</strong> lhes chamou princípio e fonte <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os males. É<br />
t<strong>em</strong>pesta<strong>de</strong> <strong>da</strong> casa: e esta foi s<strong>em</strong> dúvi<strong>da</strong> a razão porque Pitágoras <strong>de</strong>u sua filha <strong>em</strong><br />
casamento a um seu maior inimigo; e causan<strong>do</strong> isto admiração a to<strong>do</strong>s, lhe perguntaram
alguns: Como é possível, ó Pitágoras, que houvesses <strong>de</strong> <strong>da</strong>r tua filha a um teu inimigo,<br />
negan<strong>do</strong>-a a outros que melhor e com justiça ta mereciam? Ao que ele respon<strong>de</strong>u,<br />
dizen<strong>do</strong>: Não se admir<strong>em</strong>; pois por isso mesmo que ele era meu inimigo, é que lha <strong>de</strong>i:<br />
pois fico certo que me não podia vingar melhor, n<strong>em</strong> meter-lhe <strong>em</strong> casa maior ruína,<br />
pois não po<strong>de</strong> haver para um hom<strong>em</strong> maior flagelo que uma <strong>mulher</strong>. É cativeiro <strong>da</strong><br />
vi<strong>da</strong>; pois com seus males ocasionam a morte a qu<strong>em</strong> com elas trata. Muitos ex<strong>em</strong>plos<br />
pu<strong>de</strong>ra referir a este propósito; mas a brevi<strong>da</strong><strong>de</strong> que <strong>de</strong>sejo não me permite ser muito<br />
difuso; se b<strong>em</strong> que nesta parte a experiência t<strong>em</strong> geralmente a to<strong>do</strong>s <strong>de</strong>sengana<strong>do</strong>. É<br />
leoa abraçan<strong>do</strong>; pois nos seus afagos traz o maior <strong>da</strong>no; é como o crocodilo que com<br />
lágrimas e afagos rouba tiranamente a vi<strong>da</strong> a qu<strong>em</strong> lhe dá ouvi<strong>do</strong>s, e por esta causa se<br />
diz também a <strong>mulher</strong> animal malicioso. É enfim, mal necessário; pois necessariamente<br />
nos hav<strong>em</strong>os servir <strong>de</strong>las na conduta e exercícios <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> humana. B<strong>em</strong> sei que<br />
s<strong>em</strong> elas não po<strong>de</strong>ríamos passar; mas o certo é que com elas passamos b<strong>em</strong> mal: é<br />
sentença <strong>do</strong> Príncipe <strong>do</strong>s Filósofos 1 .<br />
Eu prescin<strong>do</strong> <strong>do</strong>s <strong>de</strong>feitos físicos que nelas diz<strong>em</strong> haver; pois estes consi<strong>de</strong>ro <strong>de</strong><br />
menos circunspecção; e nesta parte não têm falta<strong>do</strong> Autores que têm mostra<strong>do</strong> esta<br />
gran<strong>de</strong> imperfeição. Dos <strong>de</strong>feitos morais somente trato e pelo mo<strong>do</strong> que acima fica<br />
distribuí<strong>da</strong> a matéria; digo pois que as <strong>mulher</strong>es são sumamente ignorantíssimas.<br />
Entre os Gregos era axioma muito trivial este dito: Fogo, mar e <strong>mulher</strong> três<br />
males são. O fogo com suas chamas tu<strong>do</strong> <strong>de</strong>vora; não respeita a soberania <strong>do</strong>s palácios,<br />
n<strong>em</strong> aten<strong>de</strong> ao humil<strong>de</strong> <strong>do</strong> edifício. O mar com suas on<strong>da</strong>s acomete assim à soberba<br />
Nau, como ao roto e pobre baixel. A <strong>mulher</strong> com sua ignorância arruína-se a si, <strong>de</strong>strói<br />
aos homens e atropela ao mun<strong>do</strong> to<strong>do</strong>. Qualquer animal (diz Eurípe<strong>de</strong>s) que não seja a<br />
<strong>mulher</strong>, se é que é mau, é somente <strong>em</strong> um género <strong>de</strong> mal; porém a <strong>mulher</strong> para to<strong>do</strong>s os<br />
males juntos é aptíssima.<br />
Isto tu<strong>do</strong> provém <strong>da</strong> suma ignorância que nelas milita; pois assim como a<br />
sabe<strong>do</strong>ria é um estímulo para to<strong>do</strong> o b<strong>em</strong>, a ignorância é a ocasião <strong>de</strong> to<strong>do</strong> o mal.<br />
Terêncio afirma que as <strong>mulher</strong>es são s<strong>em</strong>elhantes aos meninos, por ser<strong>em</strong> estes<br />
ignorantes e carece<strong>do</strong>res <strong>de</strong> juízo. Eu porém digo com Eurípe<strong>de</strong>s: que sim, carec<strong>em</strong> <strong>de</strong><br />
juízo para o b<strong>em</strong>; mas que são admiráveis artífices para o mal. Pobres e miseráveis são<br />
as <strong>mulher</strong>es (diz ele) para aconselhar<strong>em</strong> e persuadir<strong>em</strong> o b<strong>em</strong>; sábias artífices porém<br />
1 Príncipe <strong>do</strong>s Filósofos: o texto parece atribuir esta antonomásia a Pitágoras, <strong>em</strong>bora mais<br />
frequent<strong>em</strong>ente ela seja atribuí<strong>da</strong> a Platão ou a Aristóteles.
para operar<strong>em</strong> o mal. De to<strong>da</strong>s as cousas anima<strong>da</strong>s a mais nociva e misérrima planta é a<br />
<strong>mulher</strong>.<br />
Teofilato 2 ain<strong>da</strong> clarificou mais esta sentença, dizen<strong>do</strong>: que assim como to<strong>da</strong> a<br />
natureza humana se per<strong>de</strong>u <strong>em</strong> Adão, assim por Eva, leve <strong>em</strong> crer a serpente, passou a<br />
leveza <strong>de</strong> juízo a to<strong>da</strong>s as <strong>mulher</strong>es. Pergunta<strong>do</strong> <strong>em</strong> certa ocasião um Cavalheiro<br />
português a que po<strong>de</strong>ria chegar o juízo <strong>de</strong> uma <strong>mulher</strong>, respon<strong>de</strong>u que a arrumar um<br />
baul <strong>de</strong> roupa; e suce<strong>de</strong>n<strong>do</strong> <strong>em</strong> uma tar<strong>de</strong> ter uma política conversação com uma<br />
Senhora a qu<strong>em</strong> as mais veneravam por Oráculo <strong>da</strong> eloquência, fin<strong>da</strong> a conversa,<br />
perguntou-lhe a dita Senhora com vanglória e jactância: Ora diga-me Vossa Senhoria<br />
que conceito é o que t<strong>em</strong> feito <strong>do</strong> meu juízo, pois me consta dizer Vossa Senhoria que o<br />
mais a que po<strong>de</strong> chegar uma <strong>mulher</strong> <strong>de</strong> muita discrição, é a arrumar b<strong>em</strong> um baul <strong>de</strong><br />
roupa! Assim é, Senhora (respon<strong>de</strong>u o Cavalheiro), que é ao que po<strong>de</strong> chegar o juízo <strong>de</strong><br />
qualquer <strong>mulher</strong> que não for o vosso; porém o vosso é tal que po<strong>de</strong> seguramente<br />
arrumar <strong>do</strong>us baús <strong>de</strong> roupa. Este era o conceito que este nobre e discreto Cavalheiro<br />
fazia <strong>do</strong> juízo <strong>da</strong> mais discreta <strong>mulher</strong>; que, por ser feito <strong>em</strong> outro t<strong>em</strong>po diverso <strong>do</strong><br />
presente, estou seguro que agora n<strong>em</strong> a tanto já pod<strong>em</strong> chegar que, se atar<strong>em</strong> b<strong>em</strong> um<br />
cargo <strong>de</strong> roupa, não faz<strong>em</strong> pouco.<br />
Eu sei que no Direito Civil se acha uma regra que diz assim: As <strong>mulher</strong>es boas<br />
são raras e as más são quasi infinitas. E também esta: As <strong>mulher</strong>es são falsas, são<br />
frágeis e são corruptíveis e esta é a razão porque são r<strong>em</strong>ovi<strong>da</strong>s <strong>de</strong> to<strong>do</strong> o <strong>em</strong>prego<br />
público, ain<strong>da</strong> <strong>da</strong>queles actos <strong>em</strong> que o mais inerte hom<strong>em</strong> é admiti<strong>do</strong>. Tomas <strong>de</strong><br />
Tomassetes, Doutor <strong>em</strong> um, e outro Direito, pon<strong>do</strong> os olhos nestas regras, afirma que<br />
são como aquelas <strong>em</strong> que a Filosofia acha certos e irrefragáveis princípios que não<br />
admit<strong>em</strong> limitação, ou excepção; pelo que não t<strong>em</strong> aqui lugar o axioma que diz que to<strong>da</strong><br />
a regra t<strong>em</strong> sua excepção. Pu<strong>de</strong>ra trazer casos mais particulares <strong>em</strong> abono <strong>de</strong>sta<br />
ver<strong>da</strong><strong>de</strong>; mas como a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> granjeia ódios, r<strong>em</strong>eto o curioso à lição <strong>do</strong>s Autores que<br />
<strong>de</strong>sta matéria têm trata<strong>do</strong> difusamente, e neles verão quanto eu não digo. Vamos ao<br />
segun<strong>do</strong> <strong>de</strong>feito que pon<strong>de</strong>rei, que é a inconstância, ou varie<strong>da</strong><strong>de</strong> nas <strong>mulher</strong>es.<br />
Parece proprie<strong>da</strong><strong>de</strong> nas <strong>mulher</strong>es a varie<strong>da</strong><strong>de</strong>. Assim o dá a enten<strong>de</strong>r Virgílio,<br />
dizen<strong>do</strong> que s<strong>em</strong>pre são várias, mudáveis e inconstantes. Não há que buscar nelas a<br />
causa <strong>da</strong> sua mu<strong>da</strong>nça, pois parece estar radica<strong>da</strong> <strong>em</strong> suas mesmas pessoas. É o coração<br />
<strong>da</strong> <strong>mulher</strong> diss<strong>em</strong>elhante <strong>de</strong> si mesmo. São como as on<strong>da</strong>s <strong>do</strong> mar, que s<strong>em</strong>pre estão <strong>em</strong><br />
2 Teofilato: o Padre António Vieira já citara Teofilato <strong>em</strong> alguns sermões, como o Sermão <strong>da</strong> Sexagésima<br />
e o Sermão <strong>da</strong>s lágrimas <strong>de</strong> S. Pedro.
contínuo movimento; são como as nuvens s<strong>em</strong> água, que com qualquer vento an<strong>da</strong>m <strong>em</strong><br />
perpétuo giro pelos espaços <strong>da</strong> região aérea. O que agora quer<strong>em</strong>, logo aborrec<strong>em</strong>; o<br />
que agora aborrec<strong>em</strong>, isso logo procuram; agora choram e logo ri<strong>em</strong>. São como o Lago<br />
<strong>do</strong>s Trogloditas, chama<strong>do</strong> o Dou<strong>do</strong>; porque três vezes <strong>de</strong> dia e outras tantas <strong>de</strong> noite se<br />
mu<strong>da</strong> <strong>de</strong> salga<strong>do</strong> <strong>em</strong> <strong>do</strong>ce; ou como o mar Euripio, que pa<strong>de</strong>ce sete marés no dia.<br />
Permita-se-me, para confirmação e ex<strong>em</strong>plo, referir o seguinte sucesso que afirmam<br />
bons Autores ter aconteci<strong>do</strong> <strong>em</strong> Éfeso.<br />
Havia ali uma Matrona, diz<strong>em</strong> que honestíssima, que, morren<strong>do</strong>-lhe seu mari<strong>do</strong>,<br />
fez os maiores extr<strong>em</strong>os <strong>de</strong> sentimento que se pod<strong>em</strong> exagerar; <strong>de</strong>sfazia-se <strong>em</strong> lágrimas<br />
e suspiros e não satisfeita com as costuma<strong>da</strong>s cerimónias <strong>da</strong>s mais viúvas, se foi ao<br />
sepulcro <strong>em</strong> que o mari<strong>do</strong> jazia (que naqueles t<strong>em</strong>pos se faziam nos campos <strong>de</strong>baixo <strong>de</strong><br />
abóbe<strong>da</strong>s), e nele se encerrou não queren<strong>do</strong> comer n<strong>em</strong> beber, como fez por quatro dias.<br />
Suce<strong>de</strong>u que perto <strong>de</strong>ste sítio se tinham justiça<strong>do</strong> uns malfeitores e para que não foss<strong>em</strong><br />
os cadáveres tira<strong>do</strong>s <strong>da</strong> forca, lhes puseram corpos <strong>de</strong> guar<strong>da</strong>s <strong>de</strong> sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s. Um <strong>de</strong>stes,<br />
saben<strong>do</strong> que no sepulcro estava a dita <strong>mulher</strong> se foi ter com ela, levan<strong>do</strong>-lhe <strong>da</strong> sua ceia<br />
para que comesse; ao princípio não havia r<strong>em</strong>édio para que assim o fizesse; mas tanto<br />
fez o sol<strong>da</strong><strong>do</strong> que a veio a convencer e fazer que comesse. Passou mais adiante:<br />
persuadiu-a a que se <strong>de</strong>sonestasse com ele e enfim veio a alcançar <strong>de</strong>la a<br />
con<strong>de</strong>scendência. Diverti<strong>da</strong> já assim esta <strong>mulher</strong> e <strong>de</strong>scui<strong>da</strong><strong>do</strong> o sol<strong>da</strong><strong>do</strong> <strong>da</strong> sua<br />
obrigação, suce<strong>de</strong>u que os parentes <strong>de</strong> um <strong>do</strong>s justiça<strong>do</strong>s tirass<strong>em</strong> <strong>da</strong> forca o corpo e o<br />
levass<strong>em</strong>. Saiu o sol<strong>da</strong><strong>do</strong> <strong>do</strong> sepulcro e não achan<strong>do</strong> o corpo a qu<strong>em</strong> <strong>de</strong>via estar <strong>de</strong><br />
sentinela, t<strong>em</strong>en<strong>do</strong> o castigo, tornou a procurar a <strong>mulher</strong>, e cheio <strong>de</strong> contristação e<br />
amargura, lhe referiu a causa <strong>de</strong> sua pena; o que ouvin<strong>do</strong> a boa ou a má <strong>da</strong> viúva lhe<br />
disse: que se não afligisse, que tomasse o corpo <strong>de</strong> seu mari<strong>do</strong> <strong>de</strong>funto (por qu<strong>em</strong> ain<strong>da</strong><br />
há pouco tinha feito tantos excessos) e o pusesse na forca <strong>em</strong> lugar <strong>do</strong> justiça<strong>do</strong> que lhe<br />
haviam rouba<strong>do</strong>; o que assim se fez. Notável inconstância <strong>do</strong> coração <strong>de</strong> uma <strong>mulher</strong>,<br />
mais variável <strong>do</strong> que parece possível! N<strong>em</strong> o vento mu<strong>da</strong> com tanta facili<strong>da</strong><strong>de</strong> a folha<br />
<strong>de</strong> uma planta.<br />
Eu persua<strong>do</strong>-me que aqueles maiores homens, a qu<strong>em</strong> a Gentili<strong>da</strong><strong>de</strong> tributou<br />
respeitos e <strong>do</strong>s quais, para nosso ex<strong>em</strong>plo, ficaram não poucos monumentos,<br />
principalmente nas virtu<strong>de</strong>s morais <strong>em</strong> que alguns pasmosamente se singularizaram,<br />
foram os que mais conheceram as proprie<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>da</strong>s <strong>mulher</strong>es e que mais se lhes<br />
opuseram. Viu-se D<strong>em</strong>ócrito precisa<strong>do</strong> a casar; era este Filósofo <strong>de</strong> altura mais que<br />
ordinária e, fazen<strong>do</strong> eleição <strong>de</strong> <strong>mulher</strong>, a procurou <strong>de</strong> estatura sumamente pequena; e
sen<strong>do</strong> argui<strong>do</strong> <strong>da</strong> imporporciona<strong>da</strong> [sic] eleição que tinha feito, respon<strong>de</strong>u: que ven<strong>do</strong>-<br />
se precisa<strong>do</strong> a valer-se <strong>do</strong> mal, que escolhera <strong>do</strong> mal o menos; aludin<strong>do</strong> à pequena<br />
corpulência <strong>da</strong> <strong>mulher</strong>, pois entre eles era este dito muito vulgar: Não te fies <strong>de</strong> <strong>mulher</strong>,<br />
n<strong>em</strong> ain<strong>da</strong> quan<strong>do</strong> a vejas morta. Séneca disse que a <strong>mulher</strong>, ain<strong>da</strong> quan<strong>do</strong> está só, está<br />
obran<strong>do</strong> mal; e o celebérrimo e b<strong>em</strong> <strong>de</strong>sengana<strong>do</strong> Diógenes, ven<strong>do</strong> estar duas falan<strong>do</strong><br />
<strong>em</strong> segre<strong>do</strong>, disse: Lá está o [sic] Áspi<strong>de</strong> pedin<strong>do</strong> veneno <strong>em</strong>presta<strong>do</strong> à víbora. Ele<br />
conheceu tanto a ruína <strong>de</strong> que elas eram causa que, sain<strong>do</strong> <strong>em</strong> uma tar<strong>de</strong> <strong>de</strong> passeio ao<br />
campo e ven<strong>do</strong> <strong>em</strong> uma árvore sete corpos <strong>de</strong> <strong>mulher</strong>es que por <strong>de</strong>litos tinham si<strong>do</strong><br />
castiga<strong>da</strong>s, cheio <strong>de</strong> alegria e furor, exclamou assim: Oh proveram os Deuses que to<strong>da</strong>s<br />
as árvores <strong>de</strong>ss<strong>em</strong> <strong>de</strong>ste fruto! Finalmente, é a chama mais leve que o fumo; é a <strong>mulher</strong><br />
mais leve que o vento; e não há cousa mais leve que a <strong>mulher</strong>. Assim o <strong>de</strong>cantou um<br />
discreto ao som <strong>de</strong> sua afina<strong>da</strong> Lira, dizen<strong>do</strong>:<br />
Quid levius fumo ? Flamen : quid flamine ? Ventus : quid vento ? Mulier : quid<br />
muliere ? Nihil. 3<br />
O terceiro <strong>de</strong>feito, e <strong>em</strong> notável <strong>da</strong>no, é a formosura <strong>da</strong> <strong>mulher</strong> (único objecto <strong>do</strong><br />
seu maior <strong>de</strong>svelo), <strong>da</strong> qual abusan<strong>do</strong> formam os maiores precipícios; e senão,<br />
pergunt<strong>em</strong>os qu<strong>em</strong> foi a <strong>de</strong>solação e ruína <strong>de</strong> Júlio César, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> se ver triunfante <strong>em</strong><br />
Itália, França, Espanha, Al<strong>em</strong>anha, Inglaterra, Tessália, Arménia e Egipto? E ouvir<strong>em</strong>os<br />
dizer que a formosura <strong>de</strong> Cleópatra. Qu<strong>em</strong> a <strong>de</strong>struição <strong>do</strong> famoso Hércules, senão<br />
Omphala; Me<strong>de</strong>ia, <strong>de</strong> Jasão; Fedra, <strong>de</strong> Hipólito; e outras <strong>de</strong> outros muitos?<br />
Veja-se qu<strong>em</strong> foi a <strong>de</strong>struição <strong>de</strong> Tróia, a mais bela Ci<strong>da</strong><strong>de</strong> na Ásia Menor, e<br />
achar<strong>em</strong>os que a formosura <strong>de</strong> Helena Grega foi a sua total ruína; e a perdição <strong>de</strong> tantas<br />
gentes que por espaço <strong>de</strong> <strong>de</strong>z anos prevaleceram as dissensões e guerras entre os Gregos<br />
e Troianos. Ponhamos também os olhos no palácio <strong>de</strong> El Rei D. Rodrigo e ver<strong>em</strong>os ter<br />
si<strong>do</strong> a beleza <strong>de</strong> Caba 4 , orig<strong>em</strong> <strong>da</strong>s maiores calami<strong>da</strong><strong>de</strong>s que pa<strong>de</strong>ceram as Espanhas,<br />
vin<strong>do</strong> por este motivo a ser<strong>em</strong> reduzi<strong>da</strong>s a b<strong>em</strong> calamitoso espectáculo. Com muita<br />
3 Quid levius fumo? Flamen: quid flamine? Ventus: quid vento? Mulier: quid muliere? Nihil : “O que é<br />
mais leve que o fumo? A chama. E que a chama? O vento. E que o vento? A <strong>mulher</strong>. E que a <strong>mulher</strong>?<br />
Na<strong>da</strong>.”<br />
4 Caba: é o outro nome <strong>da</strong><strong>do</strong> a Florin<strong>da</strong>, a filha <strong>do</strong> Con<strong>de</strong> D. Julião que fora entregue ao Rei D. Rodrigo.<br />
Apaixona<strong>do</strong> por ela, ele a violou.
justiça disse o sábio Aristipo 5 , ven<strong>do</strong> a uma <strong>mulher</strong> pequena <strong>de</strong> corpo, mas rara <strong>em</strong><br />
formosura: Pequena formosura; mas gran<strong>de</strong> mal!<br />
A estimação que as <strong>mulher</strong>es faz<strong>em</strong> <strong>da</strong> formosura, não se po<strong>de</strong> encarecer, n<strong>em</strong> o<br />
<strong>de</strong>svelo que muitas têm para o parecer<strong>em</strong>; para este fim concorr<strong>em</strong> to<strong>da</strong>s as quatro<br />
partes <strong>do</strong> Universo e ain<strong>da</strong> tu<strong>do</strong> é pouco para o seu <strong>de</strong>sejo. Plauto nesta parte as<br />
compara à Nau, dizen<strong>do</strong> haver duas cousas no mun<strong>do</strong> que nunca se acabam <strong>de</strong> aparelhar<br />
<strong>de</strong> to<strong>do</strong>, que são a Nau e a <strong>mulher</strong>: esta nunca t<strong>em</strong> a<strong>do</strong>rnos e enfeites que lhe bast<strong>em</strong>;<br />
aquela nunca leva mercancias que abund<strong>em</strong>. Ain<strong>da</strong> aquela <strong>mulher</strong> que menos cui<strong>da</strong><strong>do</strong><br />
põ<strong>em</strong> [sic] <strong>em</strong> parecer formosa, n<strong>em</strong> por isso <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> lavar o rosto com d<strong>em</strong>asia<strong>da</strong><br />
curiosi<strong>da</strong><strong>de</strong> e afectação.<br />
Há porém uma casta <strong>de</strong> <strong>mulher</strong>es (como refere Kirker 6 ) <strong>em</strong> um reino entre os<br />
muitos <strong>de</strong> Tartária, chama<strong>do</strong> Necal 7 , que naturalmente são feiíssimas, e entre elas a<br />
formosura t<strong>em</strong> pouco preço; estas, para parecer<strong>em</strong> ain<strong>da</strong> mais horren<strong>da</strong>s, costumam<br />
nunca jamais lavar<strong>em</strong> a cara; mas antes ungi-la com uma espécie <strong>de</strong> azeite féti<strong>do</strong> que as<br />
faz mais feias e insoportáveis [sic]. Eu não sei que julgará <strong>de</strong>stes <strong>do</strong>us extr<strong>em</strong>os; só digo<br />
que provera a Deus fizess<strong>em</strong> as nossas Europeias por modéstia, o que faz<strong>em</strong> as<br />
Necalitas por estilo, que po<strong>de</strong>ria ser, passar nas nossas a virtu<strong>de</strong> o que nas estranhas é<br />
loucura. Pouco importaria que se fizess<strong>em</strong> insoportáveis [sic] aos olhos <strong>do</strong>s homens que<br />
isso mesmo se faziam gratas aos <strong>de</strong> Deus.<br />
É <strong>de</strong> ordinário a formosura a ruína <strong>da</strong> mesma <strong>mulher</strong> e <strong>de</strong> qu<strong>em</strong> <strong>de</strong>la se enamora.<br />
É uma espécie <strong>de</strong> Áspi<strong>de</strong> que <strong>em</strong> qu<strong>em</strong> <strong>em</strong>prega a vista, rouba a vi<strong>da</strong>; ela lhe dá audácia<br />
e trevimento [sic] para acometer<strong>em</strong> assim ao ímpio, como ao justo; não aten<strong>de</strong> ao lugar,<br />
ou seja o mais profano, ou seja o mais isento; pois que ela enten<strong>de</strong> que a tu<strong>do</strong> <strong>do</strong>mina e<br />
impera. Isto se prova com o que aconteceu ao Monge Santo Efr<strong>em</strong>: achava-se este<br />
venerável Aba<strong>de</strong> <strong>em</strong> certa ocasião <strong>em</strong> sua humil<strong>de</strong> pousa<strong>da</strong>, cozinhan<strong>do</strong> umas agrestes<br />
ervas para comer; a este t<strong>em</strong>po passou uma <strong>mulher</strong> leviana e, confia<strong>da</strong> na sua bizarria,<br />
teve o atrevimento <strong>de</strong> lançar a cabeça por uma fresta que tinha a tal choça; e ven<strong>do</strong> ao<br />
Santo, lhe perguntou (por não <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> <strong>da</strong>r sinal <strong>de</strong> si) se lhe faltava alguma cousa. O<br />
Santo, cheio <strong>de</strong> <strong>de</strong>sabrimento, lhe respon<strong>de</strong>u que o que lhe faltava eram três ladrilhos e<br />
um pouco <strong>de</strong> barro para entaipar aquela fresta.<br />
5 Aristipo: Aristipo <strong>de</strong> Cirene, filósofo grego discípulo <strong>de</strong> Sócrates e fun<strong>da</strong><strong>do</strong>r <strong>da</strong> Escola Cirenaica.<br />
6 Kirker: é provavelmente o jesuíta al<strong>em</strong>ão Athanasius Kircher (1601-1680), autor <strong>da</strong>s obras Turrius<br />
Babel, Mundus subterraneus, Magna lucis et umbrae etc.<br />
7 Necal: é muito provavelmente o Nepal.
Este foi o mo<strong>do</strong> com que este Santo venceu a mal<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>sta <strong>mulher</strong>, a qu<strong>em</strong> sua<br />
formosura incitava a estes atrevimentos. E é o mais cruel inimigo <strong>do</strong> género humano; e<br />
o que não pod<strong>em</strong> subjugar as forças <strong>do</strong>s homens, po<strong>de</strong> vencer a formosura <strong>da</strong>s<br />
<strong>mulher</strong>es; por isso é necessário haver ou o espírito <strong>de</strong> um Efr<strong>em</strong> para lhe resistir; ou o<br />
valor <strong>de</strong> um Alexandre para a vencer: este famoso Capitão <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter com muito<br />
custo e muito sangue <strong>de</strong>sbarata<strong>do</strong> o exército <strong>de</strong> Dário e a ele mesmo cativo, vieram-lhe<br />
dizer que as filhas <strong>do</strong> venci<strong>do</strong> lhe pediam audiência; o que ouvin<strong>do</strong> Alexandre<br />
respon<strong>de</strong>u generoso: Tal não <strong>da</strong>rei, pois já que venci o Pai à força <strong>de</strong> armas; não quero<br />
ficar venci<strong>do</strong> pelas filhas à violência <strong>de</strong> suas formosuras; e <strong>de</strong>ste mo<strong>do</strong> foram<br />
<strong>de</strong>spedi<strong>da</strong>s.<br />
Tenho acaba<strong>do</strong>. O fruto que <strong>da</strong>qui <strong>de</strong>sejara que to<strong>do</strong>s tirass<strong>em</strong> era que as<br />
<strong>mulher</strong>es foss<strong>em</strong> mais comedi<strong>da</strong>s <strong>em</strong> seus ornatos e os homens mais acautela<strong>do</strong>s <strong>em</strong><br />
suas vistas. Elas mais discretas para o b<strong>em</strong> e ignorantes para o mal e constantes no que<br />
for para honra e glória <strong>de</strong> Deus.<br />
FIM.<br />
J.M.C.<br />
Omnia sub correctione S.R.E.
Primeira Carta Apologética, <strong>em</strong> favor e <strong>de</strong>fensa <strong>da</strong>s <strong>mulher</strong>es, escrita por Dona<br />
Gertru<strong>de</strong>s Margari<strong>da</strong> <strong>de</strong> Jesus, ao Irmão Ama<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Desengano, com a qual <strong>de</strong>strói<br />
to<strong>da</strong> a fábrica <strong>do</strong> seu Espelho Crítico.<br />
Lisboa, na Oficina <strong>de</strong> Francisco Borges <strong>de</strong> Sousa, Ano <strong>de</strong> 1761.<br />
Com to<strong>da</strong>s as licenças necessárias.<br />
Primeira Carta Apologética<br />
Caríssimo irmão, é a <strong>de</strong>fensa tão natural <strong>em</strong> to<strong>do</strong> o género <strong>de</strong> indivíduo que<br />
ain<strong>da</strong> o mais vil insecto, quan<strong>do</strong> se vê ofendi<strong>do</strong>, procura, pelo mo<strong>do</strong> que lhe é possível,<br />
<strong>de</strong>sagravar-se. Trilha o arrogante leão a humil<strong>de</strong> formiga, esta logo abrin<strong>do</strong> a garra, com<br />
ela imagina <strong>de</strong>spicar-se. Assim eu agora <strong>em</strong> <strong>de</strong>fensa <strong>do</strong> meu sexo, quan<strong>do</strong> me vejo<br />
insulta<strong>da</strong>, procuro a <strong>de</strong>fensa com as mesmas armas com que me vejo ofendi<strong>da</strong>.<br />
Se as ofensas, que V.C. 1 incita nos <strong>de</strong>feitos que quer mostrar na lente <strong>do</strong> seu<br />
Espelho Crítico, dissess<strong>em</strong> só respeito à minha pessoa, pouco, ou nenhum caso faria eu<br />
<strong>de</strong>las; pois já <strong>de</strong> ant<strong>em</strong>ão estou preveni<strong>da</strong> a fazer menos apreço <strong>do</strong>s impropérios <strong>do</strong>s<br />
homens, <strong>em</strong> cujos termos s<strong>em</strong>pre me l<strong>em</strong>bro <strong>do</strong> que refere Policrato 2 que, injurian<strong>do</strong> um<br />
hom<strong>em</strong> a outro, disse o injuria<strong>do</strong>: Dize o que quiseres, que eu tenho man<strong>da</strong><strong>do</strong> aos<br />
ouvi<strong>do</strong>s que ouçam; à língua que cale; e ao ânimo que esteja quieto. Mas como são <strong>em</strong><br />
<strong>de</strong>sabono <strong>de</strong> to<strong>do</strong> o meu sexo, indispensavelmente me vejo precisa<strong>da</strong> a <strong>de</strong>fendê-lo.<br />
É certo que os homens n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre falam apoia<strong>do</strong>s na razão; pois ententan<strong>do</strong><br />
[sic] dizer<strong>em</strong> mais, haja ou não haja razão, s<strong>em</strong>pre vão atrás <strong>de</strong> suas inor<strong>de</strong>na<strong>da</strong>s [sic]<br />
paixões. Eu me explico com o apólogo que suce<strong>de</strong>u ao cor<strong>de</strong>irinho com o lobo. Diz<strong>em</strong><br />
1<br />
“V.C.” po<strong>de</strong> ser “Vossa Cari<strong>da</strong><strong>de</strong>”, mas não <strong>de</strong>s<strong>do</strong>brámos a abreviatura, apenas sugerimos esta possível<br />
leitura.<br />
2<br />
Policrato: Policrates, tirano <strong>da</strong> ilha <strong>de</strong> Samos.
que tinham estes feito tréguas por certo t<strong>em</strong>po e, antes que estas se fin<strong>da</strong>ss<strong>em</strong>, se<br />
encontraram ambos beben<strong>do</strong> <strong>em</strong> um regato. Desejava o perverso lobo quebrar as tréguas<br />
e <strong>de</strong>vorar o cor<strong>de</strong>irinho e para formalizar a conten<strong>da</strong> lhe disse muito sanhu<strong>do</strong>: Para que<br />
me turvas a água que estou beben<strong>do</strong>? Respon<strong>de</strong>u o cor<strong>de</strong>irinho: Senhor lobo, como<br />
posso eu turbar a V.M. a água, se ela traz <strong>de</strong> lá a torrente e eu estou cá mais abaxo<br />
[sic]? Enfa<strong>do</strong>u-se o lobo com a evidência <strong>da</strong> satisfação que era mais clara que a mesma<br />
água e replicou assim: Pois se não ma turvas agora, l<strong>em</strong>bra<strong>do</strong> estou muito b<strong>em</strong> que ma<br />
turvastes o ano passa<strong>do</strong>. Veja V.M. senhor lobo (tornou o cor<strong>de</strong>irinho), que isso não<br />
po<strong>de</strong> ser porquanto eu tenho mui poucos meses <strong>de</strong> i<strong>da</strong><strong>de</strong> e ain<strong>da</strong> não era nasci<strong>do</strong> o ano<br />
passa<strong>do</strong>. Então o lobo, não aten<strong>de</strong>n<strong>do</strong> à razão, se tornou <strong>em</strong> cólera e disse: Pois se não<br />
fostes [sic] tu, seria o carneiro teu pai, e logo r<strong>em</strong>eten<strong>do</strong> a ele, o levou nos <strong>de</strong>ntes. Isto<br />
quase é o mesmo que pratica a maledicência <strong>do</strong>s homens e o que se vê no seu Espelho<br />
Crítico: buscam o crime na inocência e, como o não acham, arrebatam por força o que<br />
não pod<strong>em</strong> levar pela razão.<br />
Eu lhe torno a afirmar, ama<strong>do</strong> Irmão, que nunca os louvores <strong>do</strong>s homens me<br />
vangloriaram, como também nunca impropérios <strong>de</strong>sses, a qu<strong>em</strong> V.C. chama Gran<strong>de</strong>s<br />
homens, gran<strong>de</strong>s sábios, e gran<strong>de</strong>s filósofos, me molestaram. Que razão terei eu para<br />
me ressentir <strong>de</strong>les quan<strong>do</strong> vejo a um Favônio louvar as febres quartãs? A Sirêncio a<br />
calva! A Polícrates os ratos! A Luiz Wilichio os gafanhotos! A Betubo os mosquitos! A<br />
Miguel Psello 3 as pulgas! E até o na<strong>da</strong> louvou André Amónio!<br />
Pítaco 4 (a qu<strong>em</strong> V.C. chamará eloquente), <strong>em</strong>pregou to<strong>do</strong> o seu espírito e fez um<br />
volume <strong>do</strong>s louvores <strong>da</strong> mó <strong>da</strong> atafona, sen<strong>do</strong> ela uma cousa b<strong>em</strong> tosca, b<strong>em</strong> grosseira e<br />
b<strong>em</strong> indigna <strong>de</strong> se gastar o t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> a louvar! Crisipo 5 fez um trata<strong>do</strong> <strong>em</strong> louvor <strong>da</strong><br />
couve! Phanias 6 outro <strong>em</strong> louvor <strong>da</strong> urtiga! E Marciano outro, louvan<strong>do</strong> o rabão! Ora<br />
veja V.C. se assim como lhes <strong>de</strong>u para elogiar<strong>em</strong> cousas tão vis e baixas e <strong>em</strong> que se<br />
<strong>da</strong>vam tão poucos motivos para os louvores; se <strong>de</strong>ss<strong>em</strong> <strong>em</strong> engran<strong>de</strong>cer as <strong>mulher</strong>es que<br />
diriam! O certo é que o ânimo <strong>de</strong>prava<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> se expõe a mal dizer, não busca razão<br />
para apoiar sua malícia, pois não po<strong>de</strong> haver razão <strong>em</strong> que a fun<strong>de</strong>.<br />
Eu tenho por evi<strong>de</strong>nte que aqueles que com mais frequência e feal<strong>da</strong><strong>de</strong> pintam<br />
os <strong>de</strong>feitos <strong>da</strong>s <strong>mulher</strong>es, são os que mais solícitos e cui<strong>da</strong><strong>do</strong>sos i<strong>do</strong>latram o mesmo que<br />
3 Miguel Psello: erudito <strong>da</strong> época <strong>de</strong> Constantino.<br />
4 Pítaco <strong>de</strong> Mitilene: este jónico, ten<strong>do</strong> si<strong>do</strong> escolhi<strong>do</strong> como árbitro para restabelecer a ord<strong>em</strong> após as<br />
acções <strong>de</strong> <strong>do</strong>is tiranos, ficou estigmatiza<strong>do</strong> ele mesmo como um tirano. É pouco estu<strong>da</strong><strong>do</strong> hoje.<br />
5 Crisipo: viveu <strong>em</strong> Atenas no séc. III a.C. e é consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> gran<strong>de</strong> mestre estóico, director <strong>do</strong> Pórtico.<br />
6 Phanias: filósofo grego segui<strong>do</strong>r <strong>de</strong> Aristóteles, que viveu no <strong>século</strong> IV a.C.
ofend<strong>em</strong>. Veja Eurípe<strong>de</strong>s, com qu<strong>em</strong> V.C. nos argumenta: foi este hom<strong>em</strong> <strong>em</strong> sumo<br />
maldizente <strong>da</strong>s <strong>mulher</strong>es <strong>em</strong> quantas tragédias fez; e segun<strong>do</strong> Ateneu, era amantíssimo<br />
<strong>de</strong>las no particular, <strong>de</strong> sorte que maldizia-as na praça e a<strong>do</strong>rava-as <strong>em</strong> casa. Boccaccio<br />
foi extr<strong>em</strong>osamente leviano, ao mesmo passo que escreveu contra elas a violenta sátira<br />
que intitulou Labirinto <strong>do</strong> Amor. E que será isto Caríssimo Irmão? Será acaso que, com<br />
a ficção <strong>de</strong> ser <strong>de</strong>ste ditame, ocultar sua péssima inclinação? Será que há hom<strong>em</strong> tão<br />
malévolo que diz que uma <strong>mulher</strong> não é boa, só porque ela não quis ser má; e assim<br />
<strong>de</strong>safoga sua execran<strong>da</strong> paixão <strong>em</strong> atrozes vinganças, abomináveis impropérios e <strong>em</strong><br />
injuriosos test<strong>em</strong>unhos? Não digo isto s<strong>em</strong> muita reflexão e, se quer ver a confirmação<br />
<strong>de</strong>sta ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, l<strong>em</strong>bre-se <strong>do</strong> lastimoso sucesso <strong>da</strong> formosa e discreta [sic] Holan<strong>de</strong>sa<br />
Ma<strong>da</strong>ma Duglas, contra a qual irrita<strong>do</strong> Guilherme Leout, por ela não querer<br />
con<strong>de</strong>scen<strong>de</strong>r com sua pravi<strong>da</strong><strong>de</strong>, chegou este hom<strong>em</strong> a acusá-la <strong>do</strong> nefan<strong>do</strong> crime <strong>de</strong><br />
lesa-majesta<strong>de</strong> e, provan<strong>do</strong>-lhe o <strong>de</strong>lito com test<strong>em</strong>unhas falsas e subordina<strong>da</strong>s, a fez<br />
con<strong>de</strong>nar à morte. Deste género são as mais <strong>da</strong>s ver<strong>da</strong><strong>de</strong>s que contra as miseráveis se<br />
diz<strong>em</strong> 7 .<br />
Dirá V.C. que o meu argumento só convenceria, se acaso um, ou outro hom<strong>em</strong><br />
fosse o que dissesse mal <strong>da</strong>s <strong>mulher</strong>es, mas que asseveran<strong>do</strong>-o a maior e a melhor parte<br />
<strong>de</strong>les, é certo que n<strong>em</strong> to<strong>do</strong>s pod<strong>em</strong> ser maus; n<strong>em</strong> as <strong>mulher</strong>es boas. Ora permita-me<br />
(que é o que basta para V.C.) que eu lhe respon<strong>da</strong> com a história que traz Carduzio nos<br />
seus Diálogos acerca <strong>da</strong> pintura. Foi o caso: iam <strong>de</strong> jorna<strong>da</strong> um hom<strong>em</strong> e um leão e,<br />
disputan<strong>do</strong> ambos se os homens, ou os leões eram mais valorosos, ca<strong>da</strong> qual <strong>da</strong>va<br />
vantag<strong>em</strong> à sua espécie. Chegan<strong>do</strong> por fim a uma fonte que estava guarneci<strong>da</strong> <strong>de</strong> jaspes<br />
e <strong>de</strong> mármores lavra<strong>do</strong>s, advertiu o hom<strong>em</strong> que entre estes se divisava a figura <strong>de</strong> um<br />
hom<strong>em</strong> <strong>do</strong> mesmo mármore, <strong>de</strong>spe<strong>da</strong>çan<strong>do</strong> um leão. Então voltan<strong>do</strong> para seu<br />
competi<strong>do</strong>r, como qu<strong>em</strong> tinha acha<strong>do</strong> contra ele um conclu<strong>de</strong>nte argumento lhe disse:<br />
Agora te acabarás <strong>de</strong> <strong>de</strong>senganar que os homens são mais valentes que os leões, ven<strong>do</strong><br />
ren<strong>de</strong>r a vi<strong>da</strong> aquele leão às mãos <strong>de</strong> um hom<strong>em</strong>. Belo argumento me trazes (respon<strong>de</strong>u<br />
o leão, zomban<strong>do</strong>), se outro hom<strong>em</strong> não fizera esta estátua. Eu te juro que se um leão a<br />
fabricara, tu a verias absolutamente pelo contrário. Agora aplique V.C. a morali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
que está b<strong>em</strong> clara.<br />
Como porém V.C. no seu <strong>de</strong>canta<strong>do</strong> Espelho só faz menção com especiali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> três <strong>de</strong>feitos que diz ser<strong>em</strong> Ignorância, Varie<strong>da</strong><strong>de</strong> ou Inconstância e Formosura pelo<br />
7 Ma<strong>da</strong>ma Duglas: <strong>em</strong> “Defensa <strong>de</strong> las mujeres”, Benito Jerónimo Feijoo cita Ma<strong>da</strong>ma Duglas, mas como<br />
uma irlan<strong>de</strong>sa.
<strong>da</strong>no que causa, vejo-me obriga<strong>da</strong> a <strong>de</strong>ixar estas generali<strong>da</strong><strong>de</strong>s e respon<strong>de</strong>r a ca<strong>da</strong> um<br />
<strong>de</strong>les <strong>em</strong> particular. Farei por me explicar e por convencê-lo.<br />
PRIMEIRO DEFEITO<br />
Ignorância<br />
Não quero (Caríssimo Irmão) l<strong>em</strong>brar a V.C. a nenhuma frequência que as<br />
<strong>mulher</strong>es têm <strong>da</strong>s Cortes, <strong>da</strong>s Aulas e <strong>da</strong>s Universi<strong>da</strong><strong>de</strong>s, que é aon<strong>de</strong> se avultam as<br />
letras e apuram os engenhos, cousa que sen<strong>do</strong> aos homens tão frequente, é raríssimo<br />
aquele que admira. De mil que frequentam as Aulas e as Universi<strong>da</strong><strong>de</strong>s apenas se<br />
encontra um, ou outro que faça admiração aos mais; quan<strong>do</strong> certamente me persua<strong>do</strong><br />
que, se às <strong>mulher</strong>es fosse permiti<strong>da</strong> esta liber<strong>da</strong><strong>de</strong>, seria a maior parte <strong>de</strong>las<br />
sapientíssimas [sic]; pois v<strong>em</strong>os ter<strong>em</strong> havi<strong>do</strong> muitas <strong>de</strong> tão alta compreensão e<br />
engenho que, ain<strong>da</strong> s<strong>em</strong> Mestres e s<strong>em</strong> exercício, têm feito admiráveis progressos,<br />
assim nas letras, como nas manufacturas. E para que se não duvi<strong>de</strong> <strong>de</strong>ste acerto, eu<br />
exponho algumas, entre as muitas que pod<strong>em</strong> abonar esta ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. Ora vá ouvin<strong>do</strong>.<br />
Margari<strong>da</strong>, Rainha <strong>de</strong> Navarra 8 , amou sumamente as letras e os Sábios; foi tão<br />
instruí<strong>da</strong> que compôs muitos papéis, tanto <strong>em</strong> prosa, como <strong>em</strong> verso, entre os quais é<br />
b<strong>em</strong> conheci<strong>do</strong> o que <strong>de</strong>u ao prelo com o título Novelas <strong>da</strong> Rainha <strong>de</strong> Navarra. Obra<br />
certamente <strong>de</strong> admirável engenho.<br />
Amalthea 9 apresentou a Tarquínio Soberbo nove livros compostos por ela, sobre<br />
os <strong>de</strong>stinos <strong>de</strong> Roma, os quais foram tão respeita<strong>do</strong>s e ti<strong>do</strong>s pelos Romanos <strong>em</strong> tanta<br />
veneração que se criaram <strong>do</strong>us Magistra<strong>do</strong>s unicamente <strong>de</strong>stina<strong>do</strong>s para os consultar<br />
nos casos mais extraordinários.<br />
8 Margari<strong>da</strong> <strong>de</strong> Orleans ou <strong>de</strong> Valois: rainha <strong>de</strong> Navarra nasci<strong>da</strong> a 1492, foi louva<strong>da</strong> durante o <strong>século</strong><br />
XVIII como corajosa na toma<strong>da</strong> <strong>de</strong> atitu<strong>de</strong>s <strong>de</strong> projecção política.<br />
9 Amalthea: profetisa que provinha <strong>de</strong> uma ci<strong>da</strong><strong>de</strong> jónia <strong>da</strong> Ásia Menor ou <strong>da</strong> Grécia.
Margari<strong>da</strong> <strong>de</strong> França, Duquesa <strong>de</strong> Berri e <strong>de</strong> Sabóia 10 , filha <strong>de</strong> El Rei Francisco<br />
o I [sic], apren<strong>de</strong>u o Grego e Latim, com tão estranha vivaci<strong>da</strong><strong>de</strong> que mereceu ser<br />
<strong>de</strong>clara<strong>da</strong> Protectora <strong>da</strong>s Ciências e <strong>do</strong>s Sábios; granjeou uma glória imortal por sua<br />
gran<strong>de</strong> pie<strong>da</strong><strong>de</strong> e bon<strong>da</strong><strong>de</strong>, e pelas belas quali<strong>da</strong><strong>de</strong>s com que sua sabe<strong>do</strong>ria e capaci<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
se fazia a to<strong>do</strong>s recomendável, <strong>de</strong> sorte que os seus vassalos a <strong>de</strong>nominavam Mãe <strong>do</strong>s<br />
Povos.<br />
Lucrécia Marinella 11 , Dama veneziana, foi <strong>de</strong> um incomparável juízo, <strong>de</strong> qu<strong>em</strong><br />
há muitas e admiráveis obras; e entre elas um trata<strong>do</strong> <strong>em</strong> que discretamente mostra<br />
o sexo f<strong>em</strong>inino leva vantag<strong>em</strong> ao <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>. Peço a V.C. o queira ver e, se o<br />
não t<strong>em</strong>, como me persua<strong>do</strong>, eu lho r<strong>em</strong>eterei, que o tenho <strong>em</strong> meu po<strong>de</strong>r, e se ignora o<br />
idioma italiano <strong>em</strong> que ela o escreveu, procure-me que eu lho farei enten<strong>de</strong>r.<br />
Isabel Sofia Cheron 12 foi celebérrima na Música, Poesia e Pintura, foi filha <strong>de</strong><br />
Henrique Cheron, natural <strong>de</strong> Paris; ele era protestante; ela porém (que nisto muito mais<br />
mostrou ser sábia), sen<strong>do</strong> <strong>de</strong> pequena instruí<strong>da</strong> na mesma seita, veio a renunciá-la<br />
espontaneamente e abraçar a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira Religião. Monsieur <strong>de</strong> Brun a associou<br />
pela sua alta capaci<strong>da</strong><strong>de</strong>, à Acad<strong>em</strong>ia Real <strong>da</strong> pintura e escultura. Ela apren<strong>de</strong>u Hebreu,<br />
para mais facilmente enten<strong>de</strong>r o senti<strong>do</strong> <strong>do</strong>s Salmos e <strong>do</strong>s Cânticos que ela quis<br />
traduzir. Morreu no ano <strong>de</strong> 1711. Deixou uma obra sua que continha os Salmos e<br />
Cânticos <strong>em</strong> elegante verso, enriqueci<strong>do</strong>s com admiráveis figuras. O Cântico <strong>de</strong><br />
Habacuc e o Salmo 133 traduzi<strong>do</strong>s <strong>em</strong> verso francês, com estampas tão vivas que<br />
<strong>da</strong>vam bastante i<strong>de</strong>ia <strong>da</strong> matéria; e outras infinitas peças <strong>de</strong> Poesia, que to<strong>da</strong>s <strong>da</strong>vam a<br />
conhecer sua Autora e seu raro engenho.<br />
Ana Maria <strong>de</strong> Sehurman <strong>de</strong> Colónia 13 foi <strong>de</strong> tão pasmosa ín<strong>do</strong>le que <strong>de</strong> seis anos<br />
fazia figuras, <strong>de</strong>buxos e <strong>de</strong>lineamentos admiráveis, s<strong>em</strong> mais Mestre que a própria<br />
curiosi<strong>da</strong><strong>de</strong>. De <strong>de</strong>z anos apren<strong>de</strong>u a bor<strong>da</strong>r no t<strong>em</strong>po <strong>de</strong> três horas. Aplicou-se à<br />
Música, pintura e escultura, <strong>em</strong> que fez os mais estupen<strong>do</strong>s progressos. Ven<strong>do</strong> nela seu<br />
Pai tão raro engenho lhe man<strong>do</strong>u ensinar as belas letras. Apren<strong>de</strong>u e soube<br />
perfeitamente os idiomas latino, grego, hebraico e as línguas orientais que têm<br />
correlação com a hebreia. Falava como nacional o Francês, o Italiano e o Inglês.<br />
10<br />
Margari<strong>da</strong> <strong>de</strong> França: nasci<strong>da</strong> a 1527, esta sobrinha <strong>de</strong> Margari<strong>da</strong> <strong>de</strong> Orleans foi uma protectora <strong>da</strong>s<br />
Ciências e <strong>do</strong>s pobres.<br />
11<br />
Lucrécia Marinella: médica <strong>do</strong> <strong>século</strong> XVI.<br />
12<br />
Isabel Sofia Cheron: senhora francesa <strong>do</strong> <strong>século</strong> XVII, liga<strong>do</strong> <strong>de</strong> facto às artes e à religião.<br />
13<br />
Ana Maria <strong>de</strong> Sehurman ou Anna Maria <strong>de</strong> Eschurman: nasci<strong>da</strong> no ano <strong>de</strong> 1607. Seus feitos, b<strong>em</strong><br />
resumi<strong>do</strong>s, são os enumera<strong>do</strong>s pela autora, <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com obra <strong>da</strong> mesma época assina<strong>da</strong> por Damião <strong>de</strong><br />
Froes Perym. Para Benito Jerónimo Feijoo, ela era Ana Maria Schurmán.
Apren<strong>de</strong>u também Geografia, Filosofia, Mat<strong>em</strong>ática e Teologia. Deixou entre muitas<br />
obras suas uma Dissertação <strong>em</strong> Latim na qual disputa esta questão: Se é lícito às<br />
<strong>mulher</strong>es aplicar-se às letras? A qual resolve com elegante estilo e subtil engenho.<br />
Julgo que V.C. à vista <strong>da</strong> presente Relação estará sorprendi<strong>do</strong> [sic] e também<br />
que lhe estou ouvin<strong>do</strong> pedir <strong>de</strong>la certidão. Porém não fique com esse escrúpulo; pois se<br />
quer achar <strong>de</strong> tu<strong>do</strong> isto a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> consulte a Monsieur Aba<strong>de</strong> Ladvocat (Autor <strong>de</strong> to<strong>da</strong> a<br />
veneração e ver<strong>da</strong><strong>de</strong>) no seu Dicionário histórico 14 e nele não só achará as <strong>de</strong> que faço<br />
menção, mas muitas mais que, por não fazer-me fastidiosa, omito. E assim seja bastante<br />
o que fica dito <strong>em</strong> resposta ao primeiro <strong>de</strong>feito. Agora parto ao segun<strong>do</strong>, que é<br />
Inconstância<br />
Confesso que é voz comuníssima que as <strong>mulher</strong>es são inconstantes; como se este<br />
achaque fosse só próprio nelas e se não achasse <strong>em</strong> muitos homens! Eu não quero<br />
eximir to<strong>da</strong>s; mas o certo é que quase tu<strong>do</strong>, quanto <strong>de</strong>las se diz, costuma ser menos<br />
ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, e fun<strong>da</strong>menta<strong>do</strong> só na perversi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong>s homens, <strong>do</strong>s quais neste ponto pu<strong>de</strong>ra<br />
mostrar milhares <strong>de</strong> ex<strong>em</strong>plos b<strong>em</strong> contra eles; porém como esta minha Carta só é<br />
dirigi<strong>da</strong> a <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r-me e não a ofen<strong>de</strong>r, <strong>da</strong>quela e não <strong>de</strong>sta, unicamente trato.<br />
Parece indubitável que se as <strong>mulher</strong>es absolutamente foss<strong>em</strong> várias, instáveis e<br />
inconstantes, b<strong>em</strong> <strong>de</strong>snecessário era aos Magos buscar<strong>em</strong> r<strong>em</strong>édios e encantamentos<br />
para lhes abrir<strong>em</strong> o peito e saber<strong>em</strong> <strong>de</strong>las pela mágica o que <strong>de</strong>las não pod<strong>em</strong> alcançar,<br />
n<strong>em</strong> com rigores, n<strong>em</strong> com afagos; por esta causa enten<strong>de</strong>ram e disseram que o coração<br />
<strong>de</strong> certa ave e a língua <strong>de</strong> certa savandija aplica<strong>da</strong> ao peito <strong>da</strong> <strong>mulher</strong> era admirável para<br />
conseguir este fim. Que é isto, homens? Não dizeis vós que somos inconstantes? Pois<br />
valei-vos <strong>de</strong>ssa mesma varie<strong>da</strong><strong>de</strong> para satisfação <strong>do</strong> que inventais e <strong>de</strong>ixai, esses<br />
encantamentos, que são <strong>de</strong> custo e perigosos.<br />
Desengane-se finalmente V.C. e saiba que n<strong>em</strong> tu<strong>do</strong> o que se diz é certo;<br />
l<strong>em</strong>bre-se <strong>da</strong> infanta <strong>de</strong> Hungria D. Isabel 15 (irmã <strong>de</strong> D. Violante, avó <strong>da</strong> nossa Santa<br />
Isabel Rainha <strong>de</strong> Portugal). Foi ela casa<strong>da</strong> com Lu<strong>do</strong>vico Landgrave <strong>de</strong> Ásia e Turíngia,<br />
14 Dicionário histórico: a obra <strong>de</strong> Jean Baptiste Ladvocat (1709-1765), Dictionnaire historique, foi<br />
publica<strong>da</strong> <strong>em</strong> Paris <strong>em</strong> 1752, ou seja, só nove anos antes <strong>de</strong> ser referi<strong>da</strong> por G.M.J..<br />
15 D. Isabel: Santa Isabel <strong>da</strong> Hungria e <strong>da</strong> Turíngia (1207-1231) era filha <strong>de</strong> André II <strong>da</strong> Hungria e <strong>da</strong><br />
rainha Gertru<strong>de</strong>s <strong>de</strong> An<strong>de</strong>chs-Meran.
amavam-se tão fort<strong>em</strong>ente que pareciam ambos um coração e uma alma; suce<strong>de</strong>n<strong>do</strong><br />
porém roubar a morte a Lu<strong>do</strong>vico a vi<strong>da</strong>, foi tanta a constância <strong>de</strong>sta Princesa que fez<br />
admiração a to<strong>da</strong> a Corte; e para satisfazer aos reparos <strong>do</strong>s vassalos disse assim: A<br />
nenhuma diligência per<strong>do</strong>ei para que meu mari<strong>do</strong> vivesse; porém, visto que morreu<br />
porque Deus Senhor Nosso assim foi servi<strong>do</strong>, n<strong>em</strong> um só cabelo <strong>da</strong> cabeça <strong>da</strong>rei para<br />
que reviva. Notável constância <strong>de</strong> ânimo por certo! Incomparável conformi<strong>da</strong><strong>de</strong> com o<br />
beneplácito Divino!<br />
Eu <strong>de</strong>ixo <strong>em</strong> silêncio uma Mariane; uma Natália; uma Cristina; não faço menção<br />
<strong>da</strong>s S<strong>em</strong>iramis 16 , <strong>da</strong>s Zenobias 17 ; <strong>da</strong>s Arrias 18 ; <strong>da</strong>s Tomiris 19 e Art<strong>em</strong>isas 20 e <strong>de</strong> outras<br />
muitas que a referir to<strong>da</strong>s nunca acabaria; concluirei porém esta minha carta, fazen<strong>do</strong><br />
unicamente menção <strong>de</strong> Damo 21 , filha <strong>de</strong> Pitágoras. Achava-se este Filósofo nos últimos<br />
perío<strong>do</strong>s <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e, entregan<strong>do</strong> a Damo seus escritos to<strong>do</strong>s <strong>em</strong> que se continham os mais<br />
recônditos mistérios <strong>da</strong> sua Filosofia, <strong>da</strong>n<strong>do</strong>-lhe com eles também ord<strong>em</strong> que nunca<br />
jamais os publicasse, n<strong>em</strong> saíss<strong>em</strong> <strong>do</strong> seu po<strong>de</strong>r; ela lhe obe<strong>de</strong>ceu <strong>de</strong> tal sorte que ain<strong>da</strong><br />
ven<strong>do</strong>-se reduzi<strong>da</strong> a uma extr<strong>em</strong>a pobreza e indigência e po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> ven<strong>de</strong>r aqueles papéis<br />
por avulta<strong>da</strong> soma <strong>de</strong> dinheiro, quis antes provar <strong>de</strong> constante à promessa que fez a seu<br />
pai que sair <strong>da</strong>s angústias <strong>da</strong> pobreza.<br />
Não digo mais (Caríssimo Irmão), não porque me falte que dizer; mas porque<br />
me vejo precisa<strong>da</strong> a pôr fim a esta Carta. Não tenho t<strong>em</strong>po para tratar <strong>do</strong> terceiro<br />
<strong>de</strong>feito; porque outros ministérios próprios <strong>da</strong> minha pessoa me levam uma gran<strong>de</strong> parte<br />
<strong>de</strong>le. Eu mesma me obrigo, <strong>em</strong> satisfação, abono e <strong>de</strong>sagravo <strong>do</strong> meu sexo a fazer<br />
segun<strong>da</strong> Carta, <strong>em</strong> que conclua e exponha o que agora <strong>de</strong>via, a qual r<strong>em</strong>eterei a V.C.<br />
para que cotejan<strong>do</strong>-as com seu Espelho veja que ele, se não é que fica quebra<strong>do</strong>, não<br />
<strong>de</strong>ixa contu<strong>do</strong> <strong>de</strong> ficar assaz macula<strong>do</strong> e ofendi<strong>do</strong>. Fico para servir a V.C. etc.<br />
16<br />
S<strong>em</strong>iramis: rainha <strong>da</strong> Síria cujo nascimento <strong>de</strong>u marg<strong>em</strong> a histórias fabulosas; criatura que equilibrava<br />
muito b<strong>em</strong> quali<strong>da</strong><strong>de</strong>s tipicamente f<strong>em</strong>ininas e masculinas, nomea<strong>da</strong>mente as militares. Governante <strong>da</strong><br />
Babilónia.<br />
17<br />
Zenobias ou Zenobia: rainha <strong>da</strong> Síria no perío<strong>do</strong> <strong>do</strong> impera<strong>do</strong>r Adriano, esteve volta<strong>da</strong> para as<br />
activi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> Esta<strong>do</strong> e para a erudição.<br />
18<br />
Arrias: houve duas figuras históricas com este nome: ou uma romana <strong>do</strong> ano <strong>de</strong> 202, segui<strong>do</strong>ra <strong>da</strong><br />
<strong>do</strong>utrina <strong>de</strong> Platão e habili<strong>do</strong>sa nas letras, ou <strong>mulher</strong> envolvi<strong>da</strong> numa conspiração contra o impera<strong>do</strong>r<br />
Cláudio e célebre por corajosamente procurar a morte como saí<strong>da</strong> ao encarceramento <strong>de</strong> seu mari<strong>do</strong>, um<br />
ex-cônsul. O padre Pedro Lamonte, na obra Galeria <strong>de</strong> mugeres fuertes, trata <strong>da</strong> segun<strong>da</strong>.<br />
19<br />
Tomiris: rainha <strong>da</strong> Cítia que vingou a morte <strong>do</strong> filho, ao ter sucesso <strong>em</strong> uma cila<strong>da</strong> contra Ciro.<br />
20<br />
Art<strong>em</strong>isa: houve duas rainhas <strong>da</strong> Antigui<strong>da</strong><strong>de</strong> com este nome, uma ilustre <strong>em</strong> razão <strong>da</strong> corag<strong>em</strong> que<br />
d<strong>em</strong>onstrava <strong>em</strong> questões militares e a outra famosa por ter man<strong>da</strong><strong>do</strong> construir com muito engenho uma<br />
sepultura grandiosa ao seu ama<strong>do</strong>. Na obra Galeria <strong>de</strong> mugeres fuertes, o autor alu<strong>de</strong> a jaspes, rubis,<br />
mármores e metais preciosos a ornar<strong>em</strong> o mausoléu. Registe-se que a palavra “mausoléu” nasceu<br />
precisamente <strong>do</strong> nome próprio <strong>do</strong> referi<strong>do</strong> esposo <strong>de</strong> Art<strong>em</strong>isa, Máusolo.<br />
21<br />
Damo: além <strong>de</strong> ter obe<strong>de</strong>ci<strong>do</strong> ao pai no que diz respeito aos escritos <strong>de</strong>le, consta que se manteve<br />
virg<strong>em</strong> por influência <strong>de</strong>le e teve segui<strong>do</strong>ras.
Omnia sub correctione S.R.E.<br />
J.M.E.<br />
FIM.
Segun<strong>da</strong> Carta Apologética, <strong>em</strong> favor e <strong>de</strong>fensa <strong>da</strong>s <strong>mulher</strong>es, escrita por Dona<br />
Gertru<strong>de</strong>s Margari<strong>da</strong> <strong>de</strong> Jesus, ao Irmão Ama<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Desengano, Com a qual <strong>de</strong>strói<br />
to<strong>da</strong> a fábrica <strong>do</strong> seu Espelho Crítico. E se respon<strong>de</strong> ao terceiro <strong>de</strong>feito que nele<br />
cont<strong>em</strong>plou.<br />
Lisboa, na Oficina <strong>de</strong> Francisco Borges <strong>de</strong> Sousa, Ano <strong>de</strong> 1761.<br />
Com to<strong>da</strong>s as licenças necessárias.<br />
Segun<strong>da</strong> Carta Apologética<br />
A Carta, que r<strong>em</strong>eti a V.C. não há muitos dias, soube ser-lhe entregue e<br />
juntamente soube <strong>do</strong> próprio amanuense que a levou que V.C. dissera <strong>em</strong> falsete (não<br />
duvi<strong>da</strong>n<strong>do</strong> <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> que o podia fazer) que, ven<strong>do</strong> as Heroínas com que eu legalizava<br />
a minha <strong>de</strong>fensa, não encontrava uma só Portuguesa. Eu espero ter t<strong>em</strong>po para lhe<br />
r<strong>em</strong>over este prejuízo; agora porém vou ao principal intento que é nesta segun<strong>da</strong> Carta<br />
<strong>da</strong>r compl<strong>em</strong>ento à primeira, mostran<strong>do</strong> não ser a formosura tão feia e tão <strong>da</strong>nosa, como<br />
V.C. quer que se veja no seu Espelho, cujo intento ilidir e quebrar.<br />
Miseráveis <strong>mulher</strong>es, que caístes na <strong>de</strong>sgraça <strong>do</strong>s homens! Infelices homens, que<br />
quan<strong>do</strong> soçobra<strong>do</strong>s com a ira <strong>da</strong> vossa maléfica paixão até chegais a dizer mal <strong>de</strong> vós<br />
mesmos! Assim o fizeram os Efesinos, injurian<strong>do</strong> com feias palavras a Hermo<strong>do</strong>ro 1 , até<br />
o expulsar<strong>em</strong> fora [sic] <strong>da</strong> Ci<strong>da</strong><strong>de</strong>, exce<strong>de</strong>n<strong>do</strong> ele a to<strong>do</strong>s <strong>em</strong> virtu<strong>de</strong>, constância e<br />
equi<strong>da</strong><strong>de</strong>. O mesmo fizeram os Atenienses a Aristi<strong>de</strong>s, a Címon e a T<strong>em</strong>ístocles 2 ; e os<br />
1 Hermo<strong>do</strong>ro: Hermo<strong>do</strong>ro <strong>de</strong> Éfeso que era amigo <strong>de</strong> Heraclito.<br />
2 Aristi<strong>de</strong>s (no original “Aristi<strong>de</strong>”) e T<strong>em</strong>ístocles: o primeiro era filho <strong>de</strong> Lisímaco; ele e T<strong>em</strong>ístocles<br />
foram adversários e <strong>de</strong>pois, alia<strong>do</strong>s. Címon: filho <strong>de</strong> Milcía<strong>de</strong>s, sucessor <strong>de</strong> Aristi<strong>de</strong>s e T<strong>em</strong>ístocles e<br />
oponente <strong>de</strong> Péricles. Há qu<strong>em</strong> registe <strong>em</strong> português <strong>de</strong> Portugal a forma “Cimone”, como na edição <strong>de</strong><br />
Pelópi<strong>da</strong>s e a supr<strong>em</strong>acia <strong>de</strong> Tebas (Lisboa, Editorial Inquérito, 1939, trad. e notas <strong>de</strong> Lobo Vilela).<br />
Aristi<strong>de</strong>s era chama<strong>do</strong> “o Justo” e quan<strong>do</strong> a quali<strong>da</strong><strong>de</strong> começou a ser inoportuna, foi exila<strong>do</strong>. T<strong>em</strong>ístocles,<br />
que foi lí<strong>de</strong>r <strong>de</strong> Atenas no <strong>século</strong> V a.C., impôs-se pelo engenho e não por influência familiar. Astuto,<br />
gozava <strong>de</strong> prestígio suficiente para convencer a Ass<strong>em</strong>bleia a apoiá-lo na construção <strong>de</strong> uma frota,<br />
estratégia militar fun<strong>da</strong>mental para vencer batalhas nas Guerras Pérsicas. Foi bani<strong>do</strong> <strong>em</strong> 471. Címon,<br />
leva<strong>do</strong> ao ostracismo <strong>em</strong> 461.
Siracusanos a Hermócrates e a Dione 3 ; e os Romanos a Camilo, a Rutílio e a Metelo 4 . E<br />
não ten<strong>do</strong> Catão Uticense nenhuma cobiça, n<strong>em</strong> Hércules nenhuma cobardia, diz<br />
Plutarco 5 que a Catão notaram <strong>de</strong> cobiçoso e a Hércules, <strong>de</strong> cobar<strong>de</strong>. Po<strong>de</strong> haver maior<br />
<strong>de</strong>satino? Assent<strong>em</strong>os nós que os maus, não po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> fazer sofrer os bons e o que é<br />
bom, estu<strong>da</strong>m cavilosamente os meios <strong>de</strong> os arruinar.<br />
Não é a formosura <strong>da</strong>nosa porque o seja: mas porque os homens disseram e<br />
quiseram que fosse má. E bastará isto (ama<strong>do</strong> Irmão) para que se assente e afirme que é<br />
má? Ora vá ouvin<strong>do</strong> V.C. e notan<strong>do</strong>. Pergunta<strong>do</strong> um sábio que cousa era a formosura,<br />
disse: É um resplan<strong>do</strong>r [sic] <strong>do</strong> sumo b<strong>em</strong> que reluz naquelas cousas que se vê<strong>em</strong> e<br />
alcançam com o senti<strong>do</strong> e com o entendimento, pelos quais as quer converter a si. Ora<br />
já não é tão feia como V.C. a pinta. Suponho que V.C. como Católico sabe muito b<strong>em</strong><br />
que há <strong>do</strong>us géneros <strong>de</strong> formosura, uma corporal, outra espiritual; uma corpórea, outra<br />
incorpórea. Da espiritual não trata V.C. e por isso não me <strong>em</strong>prego <strong>em</strong> respon<strong>de</strong>r-lhe;<br />
<strong>da</strong> corporal é to<strong>da</strong> a conten<strong>da</strong>.<br />
Houve um Religioso Capuchinho por nome Fr. Fortunato <strong>de</strong> Quiaromonte; era<br />
este <strong>de</strong> tão rara gentileza que, reflectin<strong>do</strong> nele um herege Luterano, s<strong>em</strong> outra mais<br />
razão se reduziu e converteu ao grémio <strong>da</strong> Religião Católica; e inquiri<strong>do</strong> pela causa que<br />
o motivara a esta tão repentina e voluntária mu<strong>da</strong>nça, respon<strong>de</strong>u: Convenceu-me este<br />
argumento: neste hom<strong>em</strong> está Deus quase visivelmente e não estaria se ele seguisse<br />
Religião falsa; logo a que ele segue é a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira. Tirass<strong>em</strong> os homens to<strong>do</strong>s esta e<br />
s<strong>em</strong>elhantes consequências <strong>da</strong> formosura que acham nas <strong>mulher</strong>es, que eu lhes prometo<br />
que até eles seriam 6 bons; porém como a sua malícia é tal que tira <strong>do</strong> b<strong>em</strong> o mal - à<br />
maneira <strong>da</strong> aranha, que <strong>da</strong> flor que a abelha tira o mel, tira ela o veneno - por isso<br />
chegam a maldizer a formosura. Não assim um <strong>do</strong>s melhores engenhos <strong>de</strong> França que<br />
lhe chamou: Sombra <strong>da</strong>s belas almas e carácter visível <strong>da</strong> virtu<strong>de</strong>.<br />
Em um Panegírico que Pacato 7 , singularíssimo Ora<strong>do</strong>r, fez ao Impera<strong>do</strong>r<br />
Teodósio, disse que a formosura tinha muito <strong>de</strong> divina; e que se a sua virtu<strong>de</strong> lhe<br />
merecera o Império, a sua gentileza acrescentara os votos à virtu<strong>de</strong>. Ao Sol, <strong>em</strong> razão <strong>de</strong><br />
sua formosura, chamou Platão Imag<strong>em</strong> <strong>de</strong> Deus. À formosura chamou Marcílio Ficino<br />
3 Hermócrates: num perío<strong>do</strong> <strong>de</strong> crise no <strong>século</strong> IV a.C., esse general contribuiu para afastar os atenienses,<br />
mas foi <strong>de</strong>rrota<strong>do</strong> e expulso <strong>de</strong> Siracusa. Dione: filósofo e tirano exila<strong>do</strong>.<br />
4 Rutílio: ora<strong>do</strong>r <strong>da</strong> época <strong>de</strong> Júlio César. Cecílio Metelo ou Quinto Metelo?: no fim <strong>do</strong> perío<strong>do</strong><br />
helenístico, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>u a província romana <strong>da</strong> Bitínia face à invasão <strong>da</strong>s tropas <strong>de</strong> Mitri<strong>da</strong>tes.<br />
5 Catão: hom<strong>em</strong> íntegro, estóico avesso à corrupção.<br />
6 No original está a forma verbal conjuga<strong>da</strong> “foss<strong>em</strong>”.<br />
7 Pacato ou Drepánio Pacato: escreveu o Panegírico <strong>em</strong> 389. Era um ora<strong>do</strong>r latino.
Flor <strong>da</strong> bon<strong>da</strong><strong>de</strong>; e outros a apeli<strong>da</strong>ram Iguaria <strong>de</strong> to<strong>do</strong> o b<strong>em</strong>. L<strong>em</strong>bra-me ter acha<strong>do</strong><br />
<strong>em</strong> Eneias Sílvio no seu segun<strong>do</strong> tomo <strong>da</strong> história <strong>de</strong> El Rei D. Afonso <strong>de</strong> Nápoles, que<br />
dizia Bartolomeu Caprano, Bispo <strong>de</strong> Milão, que raras vezes se ajuntava formosura com<br />
mal<strong>da</strong><strong>de</strong>. Nas leis <strong>de</strong> Draco, quan<strong>do</strong> se duvi<strong>da</strong>va qual <strong>de</strong> muitos agressores na briga<br />
fosse o homici<strong>da</strong>, s<strong>em</strong>pre se presumia e procedia contra o mais feio. Na opinião <strong>de</strong><br />
Bal<strong>do</strong>, nascen<strong>do</strong> <strong>do</strong>us meninos gémeos e não se po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> individuar qual nasceu<br />
primeiro, levava o morga<strong>do</strong> o mais formoso. Os povos <strong>da</strong> Gangari<strong>da</strong> (terra além <strong>do</strong><br />
Ganges 8 ) elegiam para Rei o mais formoso, e tanto que algum nascia e chegava à i<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> <strong>do</strong>us meses, o levavam a Juízo, e se era feio, o matavam, dizen<strong>do</strong> que <strong>de</strong> cousa feia<br />
não se podia esperar cousa boa. A Arqui<strong>da</strong>mo 9 , Rei, multaram os seus povos por se ter<br />
casa<strong>do</strong> com <strong>mulher</strong> <strong>de</strong> pouca presença, sentin<strong>do</strong> que <strong>de</strong>ste consórcio não po<strong>de</strong>riam<br />
nascer Reis, senão régulos.<br />
É s<strong>em</strong> dúvi<strong>da</strong> certíssimo que a formosura nasceu para persuadir, reinar e<br />
avassalar os corações e apartar <strong>de</strong> si presunções indignas <strong>da</strong> sua nobreza, porque ela<br />
mesma não é outra cousa que império <strong>da</strong> forma sobre a matéria. Queira Deus que V.C.<br />
enten<strong>da</strong> isto. De Moisés, ain<strong>da</strong> menino, conta Teofilato que, estan<strong>do</strong> já para lhe tirar<strong>em</strong><br />
tiranamente a vi<strong>da</strong>, se riu e olhou com s<strong>em</strong>blante grato e amigável para qu<strong>em</strong> o queria<br />
matar; e <strong>de</strong>ste mo<strong>do</strong> livrou na sua beleza a sua vi<strong>da</strong>. Estes factos são indubitáveis, e b<strong>em</strong><br />
a favor <strong>da</strong> formosura; pelo que fica claro ser ela a motora <strong>de</strong> to<strong>do</strong> o b<strong>em</strong>, e não autora <strong>de</strong><br />
to<strong>do</strong> o mal.<br />
V.C. <strong>de</strong>ve saber, e advertir, que a <strong>mulher</strong> menos feia <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s, posta <strong>em</strong> Grécia,<br />
seria a ruína e incêndio <strong>de</strong> Tróia, <strong>do</strong> mesmo mo<strong>do</strong> que foi a <strong>de</strong>canta<strong>da</strong> Helena; e posta<br />
no palácio <strong>de</strong> El Rei D. Rodrigo, seria, como Caba foi, a perdição <strong>da</strong>s Espanhas. Nos<br />
países <strong>em</strong> que as <strong>mulher</strong>es são menos formosas, como são as Necalitas (<strong>de</strong> qu<strong>em</strong> Deus<br />
nos livre e que V.C. traz para argumento), n<strong>em</strong> por isso <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> haver menos<br />
<strong>de</strong>sor<strong>de</strong>ns; antes acontece pelo contrário, pois no Reino <strong>de</strong> Moscóvia 10 , on<strong>de</strong> as<br />
<strong>mulher</strong>es exced<strong>em</strong> a to<strong>da</strong>s (ao menos às <strong>da</strong> Europa, como é constante) <strong>em</strong> beleza e<br />
formosura, não se vê<strong>em</strong> tantas <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>ns e <strong>de</strong>sacertos. Logo que hav<strong>em</strong>os dizer,<br />
Irmão caríssimo? Dev<strong>em</strong>os dizer que a formosura não é autora <strong>da</strong>s ruínas que lhe<br />
8<br />
No original consta “terra além <strong>do</strong>s Ganges”, mas optamos pela forma “terra além <strong>do</strong> Ganges”, por ser<br />
mais familiar para o leitor actual.<br />
9<br />
Arquid<strong>em</strong>o: trata-se <strong>de</strong> Arqui<strong>da</strong>mo, espartano que viveu na época <strong>da</strong> Guerra <strong>do</strong> Peloponeso.<br />
10<br />
Moscóvia: referência à Rússia, a partir <strong>da</strong> <strong>de</strong>signação original <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> on<strong>de</strong> se inclui Moscovo no<br />
<strong>século</strong> XVIII.
imputam; mas sim a malícia <strong>do</strong>s homens que, abusan<strong>do</strong> <strong>de</strong>la, faz<strong>em</strong> com que seja mau o<br />
mesmo que <strong>em</strong> si é bom.<br />
Persua<strong>do</strong>-me que tenho <strong>da</strong><strong>do</strong> satisfação às objecções <strong>de</strong> V.C.; agora se me não<br />
expliquei b<strong>em</strong> como <strong>de</strong>via, proce<strong>de</strong>rá talvez <strong>de</strong> ser esta a primeira vez que pego na pena<br />
para me <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r. Resta respon<strong>de</strong>r porém a V.C. sobre o reparo que fez <strong>em</strong> eu alegar,<br />
para confirmação <strong>do</strong> que disse, ex<strong>em</strong>plos <strong>de</strong> Heroínas Estrangeiras; se b<strong>em</strong> que<br />
s<strong>em</strong>elhante frioleira faz-se indigna <strong>de</strong> resposta; pois não sei que as Francesas, Italianas,<br />
Holan<strong>de</strong>sas etc. sejam <strong>de</strong> género diverso <strong>da</strong>s Portuguesas; e se isto não é resposta,<br />
po<strong>de</strong>ria eu também dizer (que tal não direi) que os Autores com que V.C. comprova o<br />
seu discurso, são Gregos, Romanos, Atenienses etc. e não Portugueses: logo tanto vale<br />
uma cousa como outra. Porém saiba que t<strong>em</strong> havi<strong>do</strong> inumeráveis Portuguesas e muitas<br />
filhas <strong>de</strong>sta Corte que têm si<strong>do</strong> admiráveis <strong>em</strong> pren<strong>da</strong>s, ciências e constância, ou valor.<br />
E para que o veja, vá ouvin<strong>do</strong>:<br />
D. Maria Infanta <strong>de</strong> Portugal 11 , filha <strong>do</strong> Infante D. Duarte, que casou com o<br />
Príncipe <strong>de</strong> Parma, foi <strong>de</strong> claro juízo e agu<strong>da</strong> inteligência; falava a língua latina,<br />
compreen<strong>de</strong>u a grega, e não ignorava as Filosofias [sic]. Nas Mat<strong>em</strong>áticas foi muito<br />
<strong>do</strong>uta; e na ciência <strong>da</strong> Escritura Sagra<strong>da</strong> teve tal erudição que repetiu <strong>de</strong> m<strong>em</strong>ória os<br />
Oráculos <strong>de</strong> um e outro Testamento.<br />
Sor Ma<strong>da</strong>lena Eufémia <strong>da</strong> Glória 12 , Religiosa b<strong>em</strong> conheci<strong>da</strong> no Convento <strong>da</strong><br />
Esperança, <strong>da</strong> nobre família <strong>do</strong>s Limas e Sousas, escreveu <strong>em</strong> elegante estilo a História<br />
<strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>de</strong> Santa Rosa <strong>de</strong> Santa Maria, que corre impressa <strong>de</strong>baixo <strong>do</strong> Anagrama literal<br />
<strong>de</strong> D. Leonar<strong>da</strong> Gil <strong>da</strong> Gama, <strong>em</strong> oitavo. Outro livro <strong>de</strong> Novelas ex<strong>em</strong>plares <strong>de</strong>baixo <strong>do</strong><br />
mesmo Anagrama que traz por título Bra<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Desengano contra o profun<strong>do</strong> sono <strong>do</strong><br />
esquecimento. E outros muitos manuscritos eruditos e elegantes.<br />
Sor Violante <strong>do</strong> Céu, baptiza<strong>da</strong> na Sé <strong>de</strong> Lisboa, foi Religiosa <strong>da</strong> Roza, teve um<br />
raro engenho para to<strong>do</strong> o género <strong>de</strong> composições métricas nas línguas portuguesa e<br />
castelhana. Ten<strong>do</strong> <strong>de</strong> i<strong>da</strong><strong>de</strong> 16 anos, compôs a Comédia <strong>de</strong> Santa Eugénia intitula<strong>da</strong> La<br />
transformacion por Dios. Entre os encómios que se apresentaram a Filippe III <strong>de</strong><br />
Castela quan<strong>do</strong>, obten<strong>do</strong> este Reino <strong>de</strong> Portugal se achava <strong>em</strong> Lisboa, os seus, pelo voto<br />
<strong>de</strong> to<strong>do</strong>s, tiveram os maiores aplausos. El Rei D. João o IV [sic], a Rainha D. Luísa, o<br />
11 D. Maria Infanta <strong>de</strong> Portugal: nasci<strong>da</strong> a 1521, publicou cartas e teve mestres <strong>de</strong> renome.<br />
12 Sor Ma<strong>da</strong>lena Eufémia <strong>da</strong> Glória: abdicou <strong>do</strong> convívio familiar <strong>em</strong> 1690 e, uma vez no Convento <strong>da</strong><br />
Esperança, continuou a pintar e <strong>de</strong>dicou-se também a compor po<strong>em</strong>as.<br />
13 D. Arcângela Josefa <strong>de</strong> Sousa: à época <strong>da</strong> escrita <strong>da</strong> obra <strong>de</strong> referência que serviu <strong>de</strong> base a Gertru<strong>de</strong>s<br />
Margari<strong>da</strong> <strong>de</strong> Jesus, falava-se <strong>em</strong> mais um livro <strong>de</strong>sta portuguesa, cujo título seria Regras para conservar<br />
a saú<strong>de</strong>.
Príncipe D. Teodósio e to<strong>do</strong>s os Gran<strong>de</strong>s <strong>do</strong> Reino faziam mereci<strong>do</strong> apreço <strong>da</strong>s suas<br />
Poesias. Há <strong>de</strong>la muitos Romances avulsos e outros muitos versos manuscritos. Deixou<br />
duas Comédias que intitulou El Hijo, Espozo y Hermano e La Victoria por la Cruz. Em<br />
o ano <strong>de</strong> 1728 se <strong>em</strong>primiu [sic] nesta Corte um Manual <strong>da</strong> Missa com seus Solilóquios<br />
e algumas Orações <strong>de</strong>votas que ela tinha <strong>de</strong>ixa<strong>do</strong> manuscrito.<br />
D. Arcângela Josefa <strong>de</strong> Sousa 13 , <strong>de</strong> Lisboa, filha <strong>do</strong> Doutor António Carvalho <strong>de</strong><br />
Souza, teve tão felice m<strong>em</strong>ória que sabia <strong>de</strong> cor o primeiro e o segun<strong>do</strong> livro <strong>da</strong>s<br />
Enei<strong>da</strong>s [sic] <strong>de</strong> Virgílio, e <strong>de</strong> Ovídio os cinco livros <strong>do</strong>s Tristes 13 . Em <strong>do</strong>us dias<br />
apren<strong>de</strong>u a bor<strong>da</strong>r primorosamente. Escreveu <strong>em</strong> <strong>do</strong>us tomos <strong>de</strong> fólio a vi<strong>da</strong> <strong>de</strong> Santa<br />
Catarina <strong>de</strong> Sena. Outro, que intitulou Regras para conservar a saú<strong>de</strong>. Traduziu na<br />
língua portuguesa as obras <strong>de</strong> Luís <strong>de</strong> Gôngora ilustra<strong>do</strong> com belas notas e a não morrer<br />
<strong>de</strong> 24 anos <strong>de</strong>ixaria muitas outras.<br />
D. Rosa Maria Clara <strong>de</strong> Lima, natural <strong>de</strong> Lisboa, filha <strong>de</strong> Miguel <strong>da</strong> Silva <strong>de</strong><br />
Lima, nos primeiros anos <strong>de</strong> sua i<strong>da</strong><strong>de</strong> mostrou tão raro engenho que lhe <strong>de</strong>ram seus<br />
Pais Mestres <strong>de</strong> qu<strong>em</strong> apren<strong>de</strong>u com facili<strong>da</strong><strong>de</strong> as línguas latina, italiana, francesa,<br />
al<strong>em</strong>ã e inglesa. Na música e nos instrumentos exce<strong>de</strong>u a to<strong>da</strong>s as Heroínas <strong>do</strong> seu<br />
t<strong>em</strong>po. Também morreu <strong>de</strong> tenra i<strong>da</strong><strong>de</strong>, no ano 1733.<br />
D. Maria <strong>de</strong> Lancastre, Senhora portuguesa, foi <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> juízo e muito aplica<strong>da</strong><br />
aos Estu<strong>do</strong>s; compreen<strong>de</strong>u dificílimos pontos <strong>da</strong> Sagra<strong>da</strong> Teologia especulativa;<br />
penetrou os segre<strong>do</strong>s mais recônditos <strong>da</strong> Filosofia; e na Medicina foi assombro e inveja<br />
<strong>do</strong>s professores <strong>da</strong>quele <strong>século</strong>. Soube tanto regular-se pelas regras <strong>da</strong> Fármaca que<br />
chegou a viver 133 anos. Estan<strong>do</strong> já <strong>de</strong> cama, pela fraqueza lhe impedir os passos,<br />
toman<strong>do</strong>-se o pulso, disse: Para este caso não dá regras a Medicina, salvo mu<strong>da</strong>sse a<br />
natureza. Prepara<strong>do</strong> por sua mão um r<strong>em</strong>édio, o tomou, pediu os Sacramentos e <strong>de</strong>u a<br />
alma ao Crea<strong>do</strong>r.<br />
D. Sebastiana <strong>de</strong> Magalhães 14 , filha <strong>de</strong> Lisboa, <strong>do</strong> Capitão Rui Soares <strong>de</strong><br />
Magalhães, foi sumamente discreta e instruí<strong>da</strong> nas histórias particulares <strong>do</strong> Reino e <strong>do</strong>s<br />
Autores latinos, Cícero e Terêncio, repetin<strong>do</strong> os sucessos com a formali<strong>da</strong><strong>de</strong> que<br />
estavam escritos. Escreveu <strong>em</strong> latim um Epítome <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os Monarcas franceses, o<br />
qual ofereceu a Anna Tanaquel <strong>de</strong> Feure, Senhora francesa. Estu<strong>da</strong>va Filosofia, quan<strong>do</strong><br />
a morte a levou com os estu<strong>do</strong>s que <strong>da</strong>vam esperanças <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s progressos.<br />
13 Tristes: Ovídio escreveu sobre Roma enquanto estava no exílio na Cítia.<br />
14 D. Sebastiana <strong>de</strong> Magalhães: a <strong>de</strong>dicatória parece ter si<strong>do</strong> feita a uma Anna Tanaquil Lefevre, heroína<br />
francesa.
Tomásia Nunes 15 , natural <strong>da</strong> Ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> Guar<strong>da</strong>, <strong>de</strong> humil<strong>de</strong> nascimento,<br />
perfilhou-se ilustre nos estu<strong>do</strong>s <strong>da</strong> Filosofia, Aritmética, Música e Arquitectura. Riscava<br />
e pintava com igual perfeição. Deixou escritos <strong>do</strong>us livros <strong>em</strong> fólio com o título I<strong>de</strong>as<br />
singularíssimas. Or<strong>de</strong>nou uma Arte <strong>de</strong> Retórica, que intitulou Nova Arte <strong>de</strong> b<strong>em</strong> falar.<br />
Paula <strong>de</strong> Sá, portuguesa, foi excelente Poetisa; escreveu muitas obras que se<br />
imprimiram <strong>de</strong>baixo <strong>de</strong> outro nome. Foi célebre na Escultura e nas línguas, que falava<br />
com prontidão. Aplicou-se às histórias e teve vasta erudição na latina e na romana.<br />
Quitéria Borges e Natália <strong>de</strong> Sousa 16 , naturais <strong>de</strong> Coimbra, foram <strong>de</strong> ânimo tão<br />
ar<strong>de</strong>nte que no mesmo dia que chegou a notícia à dita Ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> felice Aclamação <strong>de</strong> El<br />
Rei D. João o IV [sic], saíram à rua arma<strong>da</strong>s com espa<strong>da</strong> e ro<strong>de</strong>la, solicitan<strong>do</strong> os ânimos<br />
<strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os Ci<strong>da</strong>dãos e povo, para as aclamações e vivas. Saíram as Justiças a ron<strong>da</strong>r as<br />
ruas que Quitéria e Natália com vozes <strong>de</strong> liber<strong>da</strong><strong>de</strong> an<strong>da</strong>vam corren<strong>do</strong>, ameaçan<strong>do</strong> <strong>de</strong><br />
morte aos que o não respeitass<strong>em</strong> e reconhecess<strong>em</strong> por ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro e legítimo Rei.<br />
Gervásia Antunes 17 , natural <strong>da</strong> Vila <strong>de</strong> Alma<strong>da</strong>, filha <strong>de</strong> Pais humil<strong>de</strong>s, foi <strong>de</strong><br />
tão intrépi<strong>do</strong> valor, que ouvin<strong>do</strong> dizer que <strong>em</strong> certo lugar <strong>da</strong> Vila an<strong>da</strong>va uma fantasma<br />
[sic], resoluta se armou com um grosso pau na mão e se foi ao dito sítio; avistan<strong>do</strong> o<br />
vulto <strong>da</strong> fantasma, esta se veio chegan<strong>do</strong> para Gervásia, e estan<strong>do</strong> já bastante<br />
aproxima<strong>da</strong>, lhe disse <strong>de</strong>st<strong>em</strong>i<strong>da</strong>, levantan<strong>do</strong> o pau, que lhe <strong>de</strong>clarasse<br />
qu<strong>em</strong> era e o que queria, se não que enten<strong>de</strong>sse que lhe morreria nas mãos. Veio a<br />
conhecer ser indústria <strong>de</strong> um ladrão para lucrar melhor o seu ofício que se se lhe não<br />
<strong>de</strong>clara infalivelmente o mata. Nas forças foi agiganta<strong>da</strong> porque, abalan<strong>do</strong> uma oliveira<br />
<strong>de</strong> vinte anos, a ren<strong>de</strong>u pelo meio. Arrancou uma gran<strong>de</strong> parreira com to<strong>da</strong>s as raízes<br />
pega<strong>da</strong>s. Levantava com os <strong>de</strong>ntes um saco <strong>de</strong> trigo <strong>de</strong> cinco e seis alqueires, e chegou a<br />
quebrar com os <strong>de</strong><strong>do</strong>s uma moe<strong>da</strong> <strong>de</strong> prata <strong>de</strong> três tostões, ganhan<strong>do</strong> por aposta 6.400<br />
.<br />
Agora fico persuadi<strong>da</strong> que V.C. estará plenamente satisfeito; e se acaso conserva<br />
ain<strong>da</strong> algum r<strong>em</strong>orso, veja o Theatro <strong>da</strong>s Heroinas Portuguezas 18 , que são <strong>do</strong>us tomos<br />
15<br />
Tomazia Nunes: para além <strong>do</strong> que G.M.J. extraiu <strong>do</strong> Theatro Heroino, pod<strong>em</strong>os acrescentar que<br />
Tomazia Nunes faleceu <strong>em</strong> 1644.<br />
16<br />
Os verbetes correspon<strong>de</strong>ntes ao historial <strong>de</strong> uma e <strong>de</strong> outra, na obra referi<strong>da</strong> abaixo, são praticamente<br />
reproduzi<strong>do</strong>s aqui por Gertru<strong>de</strong>s Margari<strong>da</strong> <strong>de</strong> Jesus, <strong>em</strong>bora ela não associe os actos <strong>de</strong> uma aos <strong>de</strong><br />
outra.<br />
17<br />
Gervazia Antunes: <strong>de</strong>scrita às páginas 399 e 400 <strong>do</strong> livro <strong>de</strong> Damião <strong>de</strong> Froes Perym, Theatro Heroino,<br />
e abcedário histórico <strong>de</strong> <strong>mulher</strong>es ilustres <strong>em</strong> Sciencias e Artes Liberaes, como “<strong>mulher</strong> forte”, <strong>em</strong><br />
função <strong>da</strong>s mesmas acções narra<strong>da</strong>s por Gertru<strong>de</strong>s Margari<strong>da</strong> <strong>de</strong> Jesus.<br />
18<br />
A referência está, muito possivelmente, incorrecta. O mais provável é tratar-se <strong>da</strong> obra Theatro<br />
Heroino, e abcedário histórico <strong>de</strong> <strong>mulher</strong>es ilustres <strong>em</strong> Sciencias e Artes Liberaes.
<strong>de</strong> fólio, e nele achará para tu<strong>do</strong> razões que lhe bast<strong>em</strong> e <strong>mulher</strong>es que o confun<strong>da</strong>m.<br />
Consulte também a Séneca, Autor grave, e veja que a não dizer muito, constitui as<br />
<strong>mulher</strong>es <strong>em</strong> tu<strong>do</strong> e por tu<strong>do</strong> iguais aos homens; <strong>em</strong> to<strong>da</strong>s as disposições, ou facul<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />
naturais e estimáveis. Permita-me licença que feche esta Carta com suas formais<br />
palavras, pois creio que V.C. também sabe os seus <strong>do</strong>us <strong>de</strong><strong>do</strong>s <strong>de</strong> Latim. Quis aut<strong>em</strong><br />
dicat naturam maligne cum muliebribus ingeniis egisse ex virtutes illarum in arctum<br />
retraxisse? Par illis (mihi cre<strong>de</strong>) vigor, par ad honesta (libeat) facultas est. Labor<strong>em</strong>,<br />
<strong>do</strong>lor<strong>em</strong>que ex aquo, si consuevere, patiuntur 19 . Não molesto mais a V.C. a qu<strong>em</strong><br />
<strong>de</strong>sejo avulta<strong>da</strong>s felici<strong>da</strong><strong>de</strong>s etc.<br />
FIM<br />
Omnia sub correctione S.R.E.<br />
J.M.C.<br />
19 Quis aut<strong>em</strong> dicat naturam maligne cum mulieribus ingeniis egisse ex virtutes illarum in arctum<br />
retraxisse? Par illis (mihi cre<strong>de</strong>) vigor, par ad honesta (libeat) facultas est. Labor<strong>em</strong>, <strong>do</strong>lor<strong>em</strong>que ex<br />
aquo, si consuevere, patiuntur: a citação foi retira<strong>da</strong> <strong>de</strong> “Defensa <strong>de</strong> las mujeres”, <strong>de</strong> Benito Jerónimo<br />
Feijoo, que por sua vez estava a reproduzir palavras <strong>de</strong> Séneca.
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Mulheres <strong>da</strong> mo<strong>da</strong> para consolação <strong>do</strong>s coita<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s mari<strong>do</strong>s : offereci<strong>da</strong> ás<br />
ferrugentissimas senhoras <strong>do</strong>nas moe<strong>da</strong>s <strong>de</strong> <strong>de</strong>z reis, por mãos <strong>do</strong> <strong>do</strong>utor Pantaleão<br />
Pato Pires Pinto, çapateiro <strong>da</strong>s Musas d’algum dia, e hoje aposenta<strong>do</strong> <strong>em</strong> R<strong>em</strong>endão<br />
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Desengano <strong>de</strong> ciosos, atrevimento <strong>de</strong> <strong>mulher</strong>es, perigo que corre a formosura, ain<strong>da</strong><br />
quanto mais <strong>de</strong>fendi<strong>da</strong>: expressa<strong>do</strong> no sucesso, que aconteceo na ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Napoles.<br />
Conselho para mari<strong>do</strong>s indiscretos, e velhos rabugentos. Segun<strong>da</strong> parte. Lisboa : Off.<br />
<strong>do</strong> Dr. Manoel Alvares Solano <strong>do</strong> Vale, s.d..<br />
Defeza <strong>do</strong> bello sexo ou resposta ao papel intitula<strong>do</strong> ‘Malicia <strong>da</strong>s <strong>mulher</strong>es’, <strong>da</strong><strong>da</strong> por<br />
uma senhora <strong>da</strong> província a uma sua amiga na seguinte epístola. Lisboa : Impressão<br />
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DESENGANO, Ama<strong>do</strong>r <strong>do</strong> - Espelho critico, no qual claramente se v<strong>em</strong> alguns<br />
<strong>de</strong>feitos <strong>da</strong>s Mulheres, fabrica<strong>do</strong> na loja <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> pelo Irmão Ama<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Desengano,<br />
‘que pó<strong>de</strong> servir <strong>de</strong> estimulo para a reforma <strong>do</strong>s mesmos <strong>de</strong>feitos’. Lisboa : Off. <strong>de</strong><br />
António Vicente <strong>da</strong> Silva, 1761. DIAS, Baltasar - Malicia <strong>da</strong>s Mulheres, […] porque<br />
nella se tratão muitas sentenças, authori<strong>da</strong><strong>de</strong>s àcerca <strong>da</strong> malicia, que ha <strong>em</strong> algumas<br />
<strong>de</strong>llas, […] . Lisboa Occi<strong>de</strong>ntal : Off. <strong>de</strong> António Alvares, 1640.<br />
GRAÇA, Paula <strong>da</strong> - Bon<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s Mulheres vendica<strong>da</strong> e malicia <strong>do</strong>s Homens manifesta.<br />
Papel métrico, e apologetico, <strong>em</strong> que se <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> a f<strong>em</strong>enina innocencia, contra outro<br />
<strong>em</strong> que injustamente se arguê a sua mal<strong>da</strong><strong>de</strong>, com o titulo <strong>de</strong> Malicia <strong>da</strong>s Mulheres /<br />
por Paula <strong>da</strong> Graça. Lisboa : Off. <strong>de</strong> Bernar<strong>do</strong> <strong>da</strong> Costa <strong>de</strong> Carvalho, 1715.<br />
JESUS, Gertru<strong>de</strong>s Margari<strong>da</strong> <strong>de</strong> - Primeira carta apologetica, <strong>em</strong> favor e <strong>de</strong>fensa <strong>da</strong>s<br />
<strong>mulher</strong>es, escrita por Dona Gertru<strong>de</strong>s Margari<strong>da</strong> <strong>de</strong> Jesus, ao Irmão Ama<strong>do</strong>r <strong>do</strong><br />
Dezengano, ‘com a qual <strong>de</strong>stroe to<strong>da</strong> a fabrica <strong>do</strong> seu Espelho Critico’. Lisboa : Off.<br />
<strong>de</strong> Francisco Borges <strong>de</strong> Sousa, 1761.
JESUS, Gertru<strong>de</strong>s Margari<strong>da</strong> <strong>de</strong> - Segun<strong>da</strong> carta Apologetica, <strong>em</strong> favor, e <strong>de</strong>fensa <strong>da</strong>s<br />
<strong>mulher</strong>es, escrita por Dona Gertru<strong>de</strong>s Margari<strong>da</strong> <strong>de</strong> Jesus, ao Irmão Ama<strong>do</strong>r <strong>do</strong><br />
Dezengano, ‘com a qual <strong>de</strong>stroe to<strong>da</strong> a fabrica <strong>do</strong> seu Espelho Critico. E se respon<strong>de</strong><br />
ao terceiro <strong>de</strong>feito, que nelle cont<strong>em</strong>plou’. Lisboa : Off. <strong>de</strong> Francisco Borges <strong>de</strong> Sousa,<br />
1761.<br />
L.D.P.G. - Bon<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s Mulheres contra a malicia <strong>do</strong>s Homens : relação cómica, e<br />
historica, para divertimento <strong>de</strong> qu<strong>em</strong> a comprar e utili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> qu<strong>em</strong> a ven<strong>de</strong>r : Parte I /<br />
escrita por sua authora L.D.P.G, S.l. : s.n., s.d.<br />
[LOBO, Francisco Xavier] - Devoção <strong>da</strong>s <strong>mulher</strong>es <strong>da</strong> mo<strong>da</strong> na Igreja, e o mo<strong>do</strong> com<br />
que nunca ouv<strong>em</strong> missa. Em dialogo… S.l. : s.n., s.d..<br />
M.D.M.C.D.M.A.E.C. - MalIcia <strong>do</strong>s Homens contra a bon<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s Mulheres :<br />
<strong>em</strong>bargos, que os homens põ<strong>em</strong> à primeira parte. Mostra-se os males <strong>de</strong> que são causa:<br />
parte segun<strong>da</strong>, / escrita por M.D.M.C.D.M.A.E.C. Lisboa : Off. <strong>de</strong> Francisco Borges <strong>de</strong><br />
Sousa, 1759.<br />
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