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1<br />
v.6, n.2, jul./dez. 2005<br />
Territorios e Fronteiras_v6_n2_jul_dez_2005.p65 1<br />
24/1/2007, 11:01
2<br />
Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT<br />
Reitor<br />
Paulo Speller<br />
Vice-Reitor<br />
Elias Alves de Andrade<br />
Pró-Reitora Administrativa/Planejamento<br />
Adriana Rigon Weska<br />
Pró-Reitora de Ensino de Graduação<br />
Matilde Araki Crudo<br />
Pró-Reitora de Ensino de Pós-Graduação<br />
Marinêz Isaac Marques<br />
Pró-Reitor de Pesquisa<br />
Paulo Teixeira de Sousa Júnior<br />
Pró-Reitora de Vivência Acadêmica e Social<br />
Marilda Esteves Calhao Matsubara<br />
Diretora do ICHS<br />
Tereza Cristina Cardoso de Souza Higa<br />
Chefe do Departamento de História<br />
Pio Penna Filho<br />
Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em História<br />
Leny Caselli Anzai<br />
Comissão Editorial<br />
Fernando Tadeu de Miranda Borges<br />
Leny Caselli Anzai<br />
Luiza Rios Ricci Volpato<br />
Secretaria Executica<br />
Mônica Cristina dos Anjos Acendino<br />
Conselho Consultivo<br />
Ana Silvia Volp Scott – NEPO/Unicamp – UniABC<br />
Antonio Torres Montenegro – UFPE<br />
Hilda Pívaro Stadniky – UEM<br />
Artur César Isaias – UFSC<br />
Janaina Amado – UNB<br />
Jerri Roberto Marin – UFMS<br />
Luis Otávio Ferreira – Fundação Oswaldo Cruz<br />
Margarida de Souza Neves – PUC/Rio<br />
Maria de Fátima Costa – UFMT<br />
Maria Helena Rolim Capelato – USP<br />
Maria Norberta Amorim – Universidade do Minho – Portugal<br />
Regina Beatriz Guimarães Neto – UFMT<br />
Ronaldo Vainfas – UFF<br />
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REVISTA DO PROGRAMA DE<br />
PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA DA<br />
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO<br />
3<br />
ISSN 1519-4183<br />
v.6, n.2, jul./dez. 2005<br />
Territorios e Fronteiras_v6_n2_jul_dez_2005.p65 3<br />
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UFMT<br />
Ed
4<br />
©<br />
Copyright by Programa de Pós-graduação em História da UFMT, 2005.<br />
Reservados todos os direitos.<br />
Os artigos são de inteira responsabilidade de seus autores.<br />
Territórios e Fronteiras – Revista do Programa de Pós-Graduação<br />
em História da Universidade Federal de Mato Grosso, v. 6, n. 2,<br />
jul./dez. 2005 – Cuiabá-MT.<br />
Semestral<br />
248 p.<br />
Projeto Gráfico, Capa e Editoração Eletrônica<br />
Carlini & Caniato Editorial<br />
Revisão Ortográfica<br />
Eliete Hugueney de Figueiredo<br />
Maria Auxiliadora Silva Pereira<br />
Sueli Ferraz Afonso<br />
ISSN 1519-4183<br />
Programa de Pós-Graduação em História – ICHS<br />
Universidade Federal de Mato Grosso<br />
Avenida Fernando Corrêa da Costa, s/n – Campus Universitário<br />
Coxipó da Ponte – CEP: 78060.900 – Cuiabá – MT<br />
Telefax: (65) 3615-8493<br />
e-mail: pghist@ufmt.br<br />
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5<br />
Sumário<br />
Apresentação ........................................................................................................... 7<br />
DOSSIÊ: FRONTEIRAS POLÍTICAS E CULTURAIS<br />
Fronteira Brasil-Uruguai: espaço nacional, lugar regional<br />
Carlos Roberto da Rosa Rangel ..................................................................... 9<br />
Terrorismo, cidades e relações internacionais na crise das fronteiras<br />
Hugo Arend ................................................................................................. 33<br />
Fronteiras sociais e culturais: a infância desvalida e suas formas de “proteção”<br />
Rosa Alves Ferreira Barbosa ......................................................................... 51<br />
Os skinheads e suas fronteiras<br />
Alessandro Bracht ........................................................................................ 73<br />
ARTIGOS:<br />
Trilhas metodológicas: história, ciência e memória<br />
Antonio Torres Montenegro ......................................................................... 91<br />
Cartografia da tradição: memória e história<br />
Noé Freire Sandes ...................................................................................... 117<br />
A instituição do imaginário e a história política:<br />
apontamentos sobre o imaginário alemão no entre-guerras<br />
Vinícius Liebel ............................................................................................ 129<br />
Presença alemã no sul de Mato Grosso: breve relato<br />
Mariza Santos Miranda .............................................................................. 143<br />
Empresas estrangeiras e participação política na Primeira República<br />
Alexandre Macchione Saes ......................................................................... 159<br />
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6<br />
Urbanização da cidade de São Paulo: trabalhadores,<br />
ocupação do espaço e salubridade (1911-1930)<br />
Fábio Alexandre dos Santos ....................................................................... 183<br />
A Companhia Estrada de Ferro Rio Claro e o acesso ao oeste paulista<br />
Guilherme Grandi...................................................................................... 205<br />
José Gabriel: uma ponte entre o “arcaico” e o “moderno” na<br />
modernização urbana de Santa Bárbara d’Oeste (1892-1918)<br />
Osana de Almeida ..................................................................................... 229<br />
Notícias do Programa .......................................................................................... 243<br />
Normas editoriais ................................................................................................ 247<br />
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A Revista Territórios & Fronteiras, ao apresentar seu número 11, continua o<br />
trabalho de divulgação da produção historiográfica brasileira. Os artigos que compõem<br />
esta edição nos chegam de regiões diversas do país, o que evidencia a<br />
aceitação do periódico do Programa de Pós-graduação em História da UFMT.<br />
O dossiê deste número, “Fronteiras políticas e culturais” apresenta artigos<br />
que refletem sobre os múltiplos significados contidos na palavra “fronteira”.<br />
Carlos Roberto da Rosa Rangel, em “Fronteira Brasil-Uruguai: espaço<br />
nacional, lugar regional”, focaliza as alterações provocadas nas formas de<br />
sociabilidade na fronteira entre os dois países, na década de 1930, e Hugo<br />
Arend, em “Terrorismo, cidades e relações internacionais na crise das fronteiras”,<br />
problematiza a noção de “confiança”, por considerá-la fundamental<br />
na discussão de aspectos ligados às relações internacionais. Rosa Alves Ferreira<br />
Barboza em “Fronteiras sociais e culturais: a infância desvalida e suas<br />
formas de proteção” discute a concepção de fronteira e do conceito de pobreza,<br />
aplicando-os à análise das instituições voltadas ao atendimento de<br />
“crianças de rua”, e Alessandro Bracht, em “Os skinheads e suas fronteiras”,<br />
enfoca a constituição dos movimentos e grupos juvenis a partir da evidência<br />
de que todos passam necessariamente pelo estabelecimento de fronteiras<br />
que delimitam os espaços entre o “eu” e o “outro”.<br />
Os oito artigos seguintes apresentam temáticas diferenciadas e contribuem<br />
para a discussão de importantes questões historiográficas. Antônio<br />
Torres Montenegro, em “Trilhas metodológicas. História, ciência e memória”<br />
focaliza a necessidade de se repensar a relação da história com a ciência<br />
para, a partir dessa reflexão, privilegiar o debate em torno dos relatos orais<br />
de memória e pensar o fazer historiográfico.<br />
Noé Freire Sandes, ao elaborar suas considerações acerca do território<br />
das representações coletivas, em “Cartografia da tradição: memória e história”<br />
analisa a persistência no Brasil de uma cartografia política que determina<br />
o lugar do outro, eliminando as diferenças com o discurso das três raças<br />
formadoras da nacionalidade.<br />
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7<br />
Apresentação
8<br />
Vinícius Liebel, em “A instituição do imaginário e a história política:<br />
apontamentos sobre o imaginário alemão no entre guerras”, buscou, por intermédio<br />
do estudo do imaginário germânico, vislumbrar a atuação da propaganda<br />
e seu papel no interior da esfera política. Com o interesse também<br />
centrado na cultura alemã, Mariza Santos Miranda, em “Presença alemã<br />
no sul de Mato Grosso: breve relato”, artigo sobre a imigração no Brasil em<br />
fins do século XIX e primeira metade do século XX, discute os problemas<br />
relacionados à educação das crianças e as estratégias desenvolvidas para<br />
superá-los em uma colônia de imigrantes.<br />
Alexandre Macchione Saes, em “Empresas estrangeiras e participação<br />
política na Primeira República”, ressalta a atuação de empresas estrangeiras<br />
no Brasil nos primeiros anos do século XX, especialmente a Light e o<br />
empresário Farquhar, e a intervenção do capital estrangeiro na política nacional.<br />
Também enfocando os primeiros anos do século XX, Fábio Alexandre<br />
dos Santos em “Urbanização da cidade de São Paulo: trabalhadores,<br />
ocupação do espaço e salubridade 1911-1930” retrata o processo de constituição<br />
dos serviços públicos voltados à salubridade para, por intermédio deles,<br />
analisar seus efeitos na capitalização do solo da cidade.<br />
Ao abordar a história de uma companhia ferroviária, criada em fins do<br />
século XIX em importante zona cafeeira paulista, Guilherme Grandi, em “A<br />
Companhia Estrada de Ferro Rio Claro e o acesso ao oeste paulista” evidencia<br />
as estratégias utilizadas pelas companhias ferroviárias para garantir lucratividade.<br />
Também com foco temático em uma cidade do interior paulista Osana de<br />
Almeida, em “José Gabriel: uma ponte entre o ‘arcaico’ e o ‘moderno’ na<br />
modernização urbana de Santa Bárbara d’ Oeste (1892-1918)”, concentra suas<br />
observações no político José Gabriel, cujo intento era desenvolver uma sociedade<br />
“civilizada, livre da barbárie”, na cidade de Santa Bárbara d´Oeste.<br />
Nas “Notícias do Programa” são divulgados os resumos das dissertações<br />
de três novos mestres: Juliano Moreno Kersul de Carvalho, “Do sertão<br />
ao litoral: a trajetória do escritor Ricardo Guilherme Dicke e a publicação do<br />
livro Deus de Caim na década de 1960”; Valdinéia Souza de Araújo, “Da<br />
pecuária ao turismo: transformações no viver pantaneiro, no entorno da Transpantaneira,<br />
em Poconé - MT”, e Regiane Cristina Custódio, “Sorriso de<br />
tantas faces: a cidade (re) inventada. Mato Grosso pós 1970”.<br />
Observamos como fato novo desta edição, as atuais normas editoriais,<br />
que deverão ser seguidas a partir do próximo número.<br />
A Comissão Editorial<br />
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Resumo<br />
O presente artigo busca sintetizar as características<br />
sociais, políticas e econômicas da região<br />
de fronteira Brasil-Uruguai, presentes na<br />
década de 1930, e descrever como as medidas<br />
centralizadoras e nacionalistas dos governos<br />
de Getúlio Vargas (Brasil) e Gabriel Terra<br />
(Uruguai) alteraram as formas de sociabilidade<br />
experimentadas naquele espaço.<br />
Palavras-chave:<br />
fronteira – centralização política e administrativa<br />
Fronteira Brasil-Uruguai:<br />
espaço nacional, lugar regional<br />
Carlos Roberto da Rosa Rangel *<br />
9<br />
Abstract<br />
This article summarizes the social, economical<br />
and political characteristics of the<br />
frontier region Brazil-Uruguay in the<br />
1930s. Also, it describes as Gabriel Terra<br />
and Getulio Vargas’ government changed<br />
those characteristics through centralized<br />
and nationalist measurement.<br />
Keywords:<br />
frontier – centralized and nationalist measurement<br />
* Mestre em História Regional pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Doutorando em História pela<br />
UFRGS. Professor do Centro Universitário Franciscano – UNIFRA – Santa Maria-RS.<br />
REV. TERRITÓRIOS E FRONTEIRAS – PROG. DE PÓS-GRAD. EM HISTÓRIA – UFMT – V.6 – N.2 – JUL./DEZ. 2005<br />
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10<br />
Introdução<br />
No mundo contemporâneo, vivemos um constante movimento de retração<br />
e expansão do olhar. Além dos horizontes do local e do regional, surge a<br />
possibilidade de um mundo sem fronteiras, cosmopolita, aberto às múltiplas<br />
experiências, aos intercâmbios culturais e às formas de organização social da<br />
vida. No entanto, a pretensa “aldeia global” continua sendo um mosaico complexo<br />
de províncias e nações, povos e etnias, línguas e dialetos, seitas e religiões.<br />
No centro dessa contradição está o “lugar” – seja qual for a sua dimensão<br />
–, espaço que comporta conflitos e solidariedades, forças centrífugas e<br />
centrípetas, cada qual com sua forma particular de definição das relações<br />
sociais, econômicas e políticas ali estabelecidas. Como historiadores, devemos<br />
entender esse processo de identificação das pessoas com o espaço e o<br />
tempo historicamente constituídos, sua lógica interna, as suas mais diversas<br />
contextualizações, conforme a região afetada. Além disso, devemos lembrar<br />
que, desde o esforço de “estatização” do território até a sua atual “transnacionalização”,<br />
permaneceu existindo a forma particular de vida dos habitantes<br />
de um espaço definido por Milton Santos 1 como “lugar banal”: locus da solidariedade<br />
coletiva, da contigüidade, da vizinhança e do território compartido.<br />
Nessa perspectiva, no presente estudo pretende-se discutir as múltiplas<br />
transformações ocorridas na região de fronteira Brasil-Uruguai, entre 1928-1938,<br />
diante do esforço de estatização do território, promovido pelo governo federal<br />
brasileiro. Sabemos que essa região, especialmente a fronteira viva Santana do<br />
Livramento-Rivera, presta-se a esse fim, pois testemunhou, ao longo de seu<br />
processo histórico de formação, a simultaneidade entre a integração local e a<br />
imposição de interesses metropolitanos, regionais e nacionais.<br />
O período escolhido remete-se ao colapso dos regimes políticos liberais<br />
e ao surgimento generalizado de governos centralizadores e o conseqüente<br />
endurecimento das fronteiras entre países limítrofes, que passaram<br />
a controlar com mais rigor a entrada e a saída de pessoas, mercadorias,<br />
armamentos e dinheiro. Em especial, os contextos históricos do Brasil e do<br />
Uruguai, caracterizados pelas ditaduras de Getúlio Vargas (1930-1945) e<br />
Gabriel Terra (1933-1937), fornecem elementos importantes para compreendermos<br />
a dinâmica interna da região de fronteira em relação às políticas<br />
fiscais, aduaneiras, comerciais e também de apoio recíproco ao con-<br />
1 SANTOS, Milton. O retorno do território. In: SANTOS Milton et al. Território: globalização e fragmentação.<br />
2. ed. São Paulo: Hucitec, 1996, p. 15-20.<br />
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trole de grupos oposicionistas que transitavam de um lado para outro da<br />
tênue linha divisória dos dois países.<br />
11<br />
Fronteira: lugar regional<br />
Rosa Silveira 2 destaca a necessidade de tratar o conceito de “região”,<br />
como produção, processo histórico concreto, atravessado pela temporalidade<br />
e nela interferente, opondo a essa abordagem a “concepção positivista”,<br />
em que ocorre a “transposição dos métodos das ciências naturais para fenômenos<br />
sociais, com o naturalismo implicando na submersão do homem na<br />
paisagem ou na superfície terrestre”. Henrique Padrós 3 particulariza a discussão<br />
em torno desse mesmo conceito, ao examinar as diferentes percepções<br />
do espaço fronteiriço. Segundo o autor, a “percepção tradicional” toma a fronteira<br />
como corte, limite, descontinuidade, barreira entre estados nacionais, enquanto<br />
a “geopolítica” a vê como “órgão periférico do Estado que tanto pode<br />
ser receptora de influências como pode ser pólo de irradiação, projetando-se<br />
sobre os países vizinhos”. Dentro de uma “perspectiva integracionista”, Padrós<br />
destaca que “a integração fronteiriça sintetiza o fluxo e as forças de atração<br />
de diversa intensidade que origina um novo espaço conjunto onde anteriormente<br />
existiam dois espaços separados e impermeáveis entre si” 4 .<br />
Concordamos com Pierre Bourdieu 5 quanto ao fato de que a definição<br />
de uma região está intimamente ligada ao campo da luta simbólica de “fazer<br />
crer e fazer ver, de dar a conhecer e fazer reconhecer, de impor as definições<br />
legítimas das divisões do mundo social e, por este meio, de fazer e desfazer<br />
os grupos”. Particularizar a região de fronteira Brasil-Uruguai é, sobretudo,<br />
destacar a contínua oposição entre a sua permeabilidade e a rigidez com que<br />
os Estados Nacionais tentaram estabelecer seus limites, entre os esforços de<br />
definição do espaço nacional – através de normas, aparatos policiais, aduaneiros,<br />
jurídicos e burocráticos – e uma certa autonomia com que os limites<br />
eram rompidos e apropriados por uma forma singular de estar no mundo.<br />
Desde o fim do século passado, essa região fronteiriça foi o ambiente<br />
onde proliferaram as manifestações das oposições sul-rio-grandense e<br />
2 SILVEIRA, Rosa Maria Godoy. Região e História: questão de método. In SILVA, Marcos. A República em<br />
migalhas: história regional e local. São Paulo: Marco Zero, 1990, p. 17-19.<br />
3 PADRÓS, Enrique Serra. Fronteiras e integração fronteiriça: elementos para uma abordagem conceitual. Revista<br />
do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Porto Alegre, v. 17, n. 1/2, janeiro/dezembro, 1997, p. 63-85.<br />
4 Idem, p. 72.<br />
5 BOURDIEU, Pierre. A identidade e a representação: elementos para uma reflexão crítica sobre a idéia<br />
de região. In: O poder simbólico. Lisboa , Difel /Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989, p. 113.<br />
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12<br />
uruguaia. Através da linha divisória passaram homens, cavalos, armas e<br />
munições, quer nos ataques dos federalistas ao governo de Júlio de Castilhos<br />
6 (1893-1895), quer nas investidas dos blancos contra o governo colorado<br />
de José Batlle y Ordoñes (1903-1904) 7 .<br />
Pode-se afirmar que a fronteira e sua área de influência estiveram submetida<br />
a um processo histórico singular, atribuindo-lhes uma fisionomia original.<br />
O vai-e-vem através da linha divisória, os constantes conflitos armados, a<br />
relativa autonomia em relação ao governo nacional, a atividade econômica<br />
em torno da pecuária, a responsabilidade pela conquista e manutenção do<br />
território e o forte vínculo de lealdade pessoal das classes subalternas com a<br />
classe senhorial reforçaram o caráter militar dessa comunidade e serviram<br />
para a conformação de uma sociedade patriarcal, latifundiária, pastoril e com<br />
forte acento caudilhista.<br />
Na dimensão econômica, destacamos a sensibilidade diante das políticas<br />
monetárias e tributárias nacionais, uma vez que “a fronteira vive dessa<br />
diferença de nacionalidade e, dela, das diferenças de normas e moedas” 8 .<br />
Como o avesso dessa característica segue-se esta: a relativa autonomia dos<br />
indivíduos frente às normas econômicas nacionais. Referimo-nos à prática do<br />
contrabando, que se intensificou quanto mais graves se tornaram as diferenças<br />
monetárias e fiscais entre os países limítrofes.<br />
Ainda quanto às duas características anteriores, temos de destacar a<br />
constante busca de complementaridade comercial existente entre as cidades<br />
geminadas. Susana B. de Souza 9 destaca que “a fronteira brasileira e a<br />
fronteira uruguaia tinham seus pontos de soldagem sob a forma dessas<br />
cidades geminadas que são bicéfalas no nível administrativo, mas perfeitamente<br />
complementares no nível econômico”. Da mesma forma, não poderíamos<br />
desprezar na caracterização econômica da fronteira Brasil-Uruguai o<br />
6 Júlio de Castilhos foi um importante político do Rio Grande do Sul - Brasil, responsável pela implantação<br />
do Parido Republicano no estado, logo após a queda da monarquia no país. Teve de sufocar violentamente<br />
seus oposicionistas para impor uma férrea disciplina política e partidária.<br />
7 Blancos, ou Partido Nacional, eram os oposicionistas ao Partido Colorado. No final do século XIX,<br />
conseguiram, por meio das armas, controlar politicamente alguns departamentos ao Norte do Uruguai,<br />
diminuindo a preponderância dos colorados na política uruguaia. Ver mais em RECKZIEGEL, Ana Luiza S.<br />
A diplomacia marginal. Vinculações políticas entre o Rio Grande do Sul e o Uruguai (1893-1904). Passo<br />
Fundo: UPF Editora, 1999.<br />
8 SCHÄFFER, Neiva Otero. Urbanização na fronteira: a expansão de Santana do Livramento. Porto<br />
Alegre: Editora da UFRGS, 1993, p. 86.<br />
9 SOUZA, Susana B. de. Os caminhos e os homens do contrabando. In: CASTELLO, Iara Regina (Org.)<br />
Práticas de Integração nas fronteiras: temas para o Mercosul. Porto Alegre: Editora da Universidade/<br />
UFRGS, 1996, p.83. Além das cidades Santana do Livramento-Rivera (separadas apenas por uma rua),<br />
existem as cidades Jaguarão-Rio Branco, Quaraí-Artigas, Barra do Quaraí-Bela Unión.<br />
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predomínio da atividade pastoril ligada à pecuária, que engloba valores e<br />
práticas fortemente vinculadas à campanha gaúcha e dentro dela a região<br />
que estamos definindo 10 .<br />
Os fatores de distinção econômica dessa região, apontados anteriormente,<br />
ainda hoje se prestam para compreendermos a especificidade do<br />
nosso objeto de investigação. Entretanto, o mesmo não pode ser dito sobre<br />
os fatores políticos, uma vez que se alteram sensivelmente de acordo com as<br />
mudanças conjunturais.<br />
Na conjuntura das décadas de 1920 e 1930, as características são facilmente<br />
identificáveis, em virtude das medidas centralizadoras promovidas pelo<br />
governo federal brasileiro. Como primeiro aspecto, apontamos a forte atividade<br />
conspiratória promovida por exilados políticos contra os governos que os<br />
expulsaram de seus países. A presença de elementos subversivos (que ameaçavam<br />
os governos nacionais) na fronteira Brasil-Uruguai era realidade amplamente<br />
conhecida nas revoltas dos anos 1920, quando ali se instalaram federalistas<br />
11 e representantes do tenentismo, que buscavam evitar a prisão sem se<br />
afastar demasiadamente do Brasil. João Luso 12 relata um episódio revelador<br />
dessa permeabilidade existente entre as cidades de Rivera e Livramento:<br />
Em Rivera reside e trabalha um grupo de revolucionários de 1924, mantendo<br />
uma indústria que tem do lado de cá a sua principal clientela. À<br />
tarde ou à noite os brasileiros proscritos vêm, até a divisa, onde falam<br />
com os compatriotas, trocando sobre a linha limítrofe, cordiais e fraternais<br />
apertos de mão. E a propósito dessa amizade e desse carinho, alguém<br />
me disse, no tom mais natural do mundo: – Realmente eles não podem<br />
retornar do exílio... Que importa, porém, se todos nós aqui os anistiamos?<br />
Com a Revolta Constitucionalista de 1932, a maior parte da elite política<br />
sul-rio-grandense, unida em Frente Única (FUG), e alguns integrantes dos<br />
partidos Republicano e Democrático paulista instalaram-se nas cidades fronteiriças<br />
de Rivera (Uruguai) e Passo de Los Libres (Argentina), ou nas capitais<br />
do Uruguai e da Argentina. Algum tempo depois, com o golpe de estado<br />
10 COSTA, Rogério H. RS: Latifúndio e identidade regional. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988, p. 36.<br />
11 Federalistas eram membros de um partido político oposicionista, no estado do Rio Grande do Sul –<br />
Brasil, contrários ao Partido Republicano (situacionista). Entre 1894 e 1895, e no ano 1923 esses dois<br />
partidos chocaram-se em violentos conflitos, envolvendo os países vizinhos (Uruguai e Argentina), o<br />
que resultou em centenas de mortos.<br />
12 LUSO, João. Terras do Brasil. In: FORTUNATO, Pimentel. Aspectos gerais de Livramento. Porto Alegre:<br />
Livraria Continente, 1943, p. 11.<br />
Territorios e Fronteiras_v6_n2_jul_dez_2005.p65 13<br />
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13
14<br />
promovido pelo Presidente do Uruguai, Gabriel Terra, em março de 1933, o<br />
Rio Grande do Sul tornou-se o abrigo para políticos do extinto Comitê Nacional<br />
de Administração e demais opositores uruguaios 13 .<br />
Não eram apenas os exilados os focos de resistência ao situacionismo<br />
regional e nacional. A região de fronteira caracterizou-se por sua ambivalência,<br />
ao reunir a mais expressiva oposição partidária sul-rio-grandense, através<br />
dos partidos Federalista e Libertador, ao mesmo tempo em que detinha verdadeiros<br />
redutos situacionistas estabelecidos em importantes cidades como<br />
Livramento, Uruguaiana e São Borja. Essa ambivalência, associada à presença<br />
dos exilados políticos, criava um ambiente potencialmente explosivo, e disso<br />
advinham relevantes características sociais e culturais, ou seja, a freqüente<br />
estigmatização daquela região como um lugar violento e afastado das normas<br />
básicas de convivência democrática. Benjamin Cabello, importante líder<br />
político da FUG, exilado em Rivera após o fracasso de 1932, descreveu o<br />
ambiente onde esteve residindo por quase dois anos como um lugar licencioso<br />
e violento, utilizando-se da seguinte argumentação:<br />
Livramento fornece gêneros de primeira necessidade e Rivera artigos<br />
importados. Mas isso não é contrabando. À tarde os brasileiros vão às<br />
lojas riverenses e à noite os riverenses vem à Sant’Ana na procura de<br />
seus cafés, casas de chá, cigarrarias, cinemas, os cabarés e as casas de<br />
tavolagem. As Leis uruguaias são severíssimas com as casas de tolerância<br />
e com os jogos de azar. Estas duas cidades, por todos esses motivos,<br />
naturalmente que sempre constituíram a atração de todos os cidadãos<br />
caídos em desgraça, em seus respectivos países, tanto políticos como<br />
aventureiros de toda a espécie [...] As autoridades aproveitavam esses<br />
bandidos para práticas criminosas, como mercenários nos corpos provisórios<br />
destinados a combater os movimentos revolucionários, nos serviços<br />
do contrabando, na polícia municipal ou como votantes em cidades<br />
vizinhas, ou nos jogos de azar. 14<br />
As atividades de contrabando, os freqüentes confrontos armados entre diferentes<br />
facções políticas e partidárias, a presença de exilados políticos e suas atividades<br />
conspiratórias, assim como a atuação violenta de chefes políticos locais 15<br />
13 IMAZ, Ricardo R. Los Blancos – de Oribe a La Calle. 5 ed. Montevidéu: Ediciones Blancas, 1990.<br />
14 Jornal Correio do Povo, 11 de março de 1938, p.1.<br />
15 FÉLIX, Loiva O . Coronelismo, borgismo e cooptação política. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1987.<br />
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constituíam um conjunto articulado de características que serviam para definir<br />
a região de fronteira como o lugar da barbárie, impermeável à racionalidade<br />
normativa e administrativa do Estado.<br />
Percebe-se, do que foi exposto até o momento, que os fatores de<br />
ordem econômica, política e social articulavam-se, atribuindo uma fisionomia<br />
particular para a região de fronteira. Durante a década de 1930, essa diferenciação<br />
tornou-se mais aguda devido aos conflitos políticos ali estabelecidos e<br />
a maneira singular de seus habitantes adaptarem-se às diferentes legislações<br />
e políticas nacionais, justamente no momento em que ocorria o aprofundamento<br />
do intervencionismo estatal, evidenciado por meio da burocratização,<br />
racionalização e centralização da tomada de decisões, tendo como pólo impulsionador<br />
o governo federal 16 .<br />
15<br />
Fronteira: espaço nacional<br />
Com base na caracterização construída nas páginas anteriores, iremos<br />
apontar algumas mudanças que abalaram os comportamentos característicos<br />
da fronteira, como a prática do contrabando, a migração para o outro lado da<br />
linha divisória em busca de melhores condições de trabalho, as atividades de<br />
exilados políticos e o comércio complementar entre as cidades geminadas.<br />
Tais mudanças foram provocadas por um progressivo enrigecimento dos<br />
limites internacionais entre os países limítrofes que, de maneira coordenada,<br />
passaram a controlar ostensivamente as relações econômicas, sociais e políticas<br />
que, até naquele momento, aconteciam com uma certa autonomia e<br />
permeabilidade, ou seja, o lugar vivido foi duramente combatido por uma<br />
ideologia nacionalista e sua concepção de espaço (território) nacional.<br />
As medidas de centralização adotadas pelo governo provisório (1930-<br />
1934) deixavam clara a intenção de Getúlio Vargas e de setores mais radicais,<br />
como o Clube 3 de Outubro e as legiões Revolucionárias, governarem o<br />
país sem a tradicional negociação com os Estados federados autônomos –<br />
São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul – 17 e seus partidos políticos<br />
regionais. Foi com essa intenção que o poder legislativo foi EXTINTO em<br />
todas as instâncias, e os governadores dos estados foram afastados – com<br />
16 FONSECA, Pedro C. D. Vargas e o capitalismo em construção (1906-1954). São Paulo: Brasiliense, 1989, p. 183.<br />
17 LOVE, Joseph. O regionalismo gaúcho e as origens da revolução de 1930. São Paulo: Perspectiva, 1995,<br />
p. 117, define estes estados federados como autônomos devido a sua preponderância eleitoral e<br />
econômica, fortes polícias estaduais que rivalizavam com o Exército, bem como a presença constante e<br />
ativa junto às principais decisões do governo federal.<br />
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16<br />
exceção de Minas Gerais – vindo no lugar deles os interventores. Na mesma<br />
direção, a estrutura burocrática herdada dos governos da Primeira República<br />
(1889-1930) foi desfeita – exceção feita ao Banco do Brasil e à Polícia do<br />
Distrito Federal –, e o Código dos Interventores foi instituído, cerceando a<br />
autonomia dos estados, sob o pretexto da racionalização administrativa e<br />
diminuição da dívida pública.<br />
Sob os efeitos do reformismo do governo provisório e da resistência<br />
dos políticos liberais, surgiu a estratégia na qual o “Estado Nacional passou a<br />
ocupar, institucionalmente, por meio de sua própria ampliação, espaços nos<br />
quais, tradicionalmente, o poder privado local se instalara” 18 . No Rio Grande<br />
do Sul, os vínculos existentes entre as lideranças das localidades e os dois<br />
partidos tradicionais foram sendo minados pela interferência direta e personalista<br />
do governo estadual, entregue ao republicano Flores da Cunha, e, por<br />
extensão, do próprio Getúlio Vargas, que o havia nomeado interventor.<br />
Esse processo que caminhou no sentido de integrar o município à estrutura<br />
do Estado brasileiro, através do esvaziamento da capacidade mobilizadora<br />
dos partidos tradicionais de dimensão regional, implicou na mudança<br />
de vínculos e relacionamentos entre o Estado e a sociedade. E falar dessas<br />
mudanças é o mesmo que falar d transformação de sentido da nacionalidade.<br />
O Estado só se torna Nacional no momento em que existe a explícita reciprocidade<br />
entre Estado e nação, a tal ponto que se torne difícil uma diferenciação<br />
conceitual clara entre esses termos 19 .<br />
Para o Estado ser aceito, legitimado, consagrado, para haver toda uma solidariedade<br />
comunitária que lhe dê sustentação, para ele representar uma entidade<br />
política e social soberana, é necessária a afirmação da nacionalidade como uma<br />
realidade construída a partir da reconciliação ideológica entre a dominação burocrática<br />
e a solidariedade social. Para uma sociedade sentir pertencente a um Estado<br />
Nacional, para poder prevalecer toda uma ordem jurídica responsável pela articulação<br />
entre Estado e Sociedade, torna-se necessária a expansão da crença na existência<br />
do Estado-Nação, visando garantir a coesão e a mobilização sociais.<br />
O Estado-Nação, como uma instituição ideologicamente formulada, passa<br />
a ser o suporte sobre o qual a elite dirigente veicula o seu projeto de organização<br />
da sociedade, seu modelo de desenvolvimento e unidade nacionais 20 .<br />
18 COLUSSI, Eliane L. Estado Novo e municipalismo gaúcho. Passo Fundo: EDIUPF, 1996, p. 27.<br />
19 HOBSBAWM, Eric J. Nações e nacionalismos desde 1870: programa, mito e realidade. Rio de Janeiro: Paz<br />
e Terra, 1990, p. 14-18.<br />
20 REIS, Elisa P. O Estado Nacional como ideologia. O caso Brasileiro In CUNHA, Cristina M. P. da (Org.)<br />
Identidade Nacional, São Paulo: Vértice, 1988, p. 187-203. (Estudos Históricos, 2).<br />
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A arbitrariedade e a relação de poder que se estabelecem nesse programa,<br />
entre os setores dirigentes e populares, são minimizadas e mesmo negadas<br />
através do apelo à solidariedade coletiva em torno de uma identidade comum.<br />
Já não se trata da imposição vertical, de cima para baixo, de um projeto<br />
de desenvolvimento ou de um caminho em busca da modernidade, mas<br />
da crença de que é necessária a união de governantes e governados, pobres<br />
e ricos, empregados e patrões em torno do ideal da grande nação.<br />
Na região de fronteira Brasil-Uruguai, não tardaram a surgir os efeitos<br />
desse discurso e das medidas centralizadoras, expedidas pelo governo federal.<br />
Por meio do Decreto n.º 19.482, de 12 de dezembro de 1930, o governo<br />
voltou os seus olhos para os estrangeiros que buscavam trabalho no Brasil,<br />
limitando a sua entrada no território nacional por um ano (Art. 1º), os quais,<br />
ainda, para permanecerem no país por mais de 30 dias, teriam de dispor de<br />
até três contos de réis (Art. 2º). Também segundo essa legislação, as empresas<br />
que mantinham contratos com o setor público teriam de empregar no<br />
mínimo 2/3 de brasileiros (Art. 3º) e todos os desempregados, estrangeiros<br />
ou não, deveriam se cadastrar nas delegacias de polícia ou no Ministério do<br />
Trabalho, sob pena de serem submetidos ao processo de vadiagem (Art. 4º).<br />
A justificativa para essas medidas foi a seguinte:<br />
Considerando que a situação econômica e a desorganização do trabalho<br />
reclamam a intervenção do Estado em favor dos trabalhadores [...]<br />
uma das mais prementes preocupações da sociedade é a situação do<br />
desemprego forçado de muitos trabalhadores que, em grande número,<br />
afluíram para a capital da República e para outras cidades principais<br />
[...] Uma das causas do desemprego é a entrada desordenada de<br />
estrangeiros que nem sempre trazem o curso útil de quaisquer capacidades,<br />
mas freqüentemente contribuem para o aumento da desordem<br />
econômica e da insegurança social. 21<br />
Percebe-se que o Estado era colocado como o grande responsável pela<br />
racionalização das relações do trabalho e como a entidade que teria de zelar<br />
pelo bem-estar dos trabalhadores nacionais, no momento em que os problemas<br />
advindos da urbanização e da mecanização do campo provocavam os<br />
fenômenos tipicamente modernos do desemprego e do êxodo rural, pois<br />
21 LOPES, Américo. Atos do governo provisório. Rio de Janeiro: J. Ribeiro dos Santos Editor, 1931, v. 1, p.<br />
103-111.<br />
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17
18<br />
[...] a partir de 1930 começou no Brasil um ‘novo tipo de desenvolvimento<br />
capitalista’. Em linhas gerais, este consistiu em superar o capitalismo<br />
agrário e comercial assentado nas atividades exportadoras de produtos<br />
primários, rumando para outro cuja dinâmica iria depender gradualmente<br />
da indústria e do mercado interno. 22<br />
O espaço fronteiriço, por sua própria natureza, torna-se centro convergente<br />
da população desempregada, oriunda do campo e dos excedentes de<br />
outros núcleos urbanos, quer pela possibilidade de compra de comida mais<br />
barata no país vizinho, quer pelas múltiplas oportunidades de trabalho informal<br />
que surge da proximidade internacional – em virtude do fluxo de turistas<br />
e consumidores 23 . Além disso, na fronteira Brasil-Uruguai, o trabalho esporádico<br />
oferecido pelo frigorífico nas safras de matança atraía grande contingente<br />
de mão-de-obra, independente de suas nacionalidades. Em números<br />
retrospectivos, em 1918 o Frigorífico Armour empregava 1.380 operários,<br />
sendo 50% de brasileiros, 40 % de uruguaios e 10% de argentinos, norteamericanos,<br />
italianos e ingleses.<br />
Além do frigorífico, havia outras indústrias de transformação dos produtos<br />
primários, as quais, em 1932, totalizavam 48 estabelecimentos com 3.000<br />
operários e, em 1937, somavam 50, embora o número de operários tivesse<br />
decrescido para 2.757. A esmagadora maioria dos trabalhadores era empregada<br />
pelo frigorífico, que, em 1943, durante a safra de matança, ocupou 2.100<br />
pessoas. Percebe-se, através dos números apontados, a grande importância do<br />
setor secundário na economia santanense, que na década de 1930 era o terceiro<br />
parque industrial do Rio Grande do Sul, abaixo de Porto Alegre e do Rio<br />
Grande, convertendo-se, assim, em centro de atração de mão-de-obra 24 .<br />
Para a classe trabalhadora de menor renda, a nacionalidade tinha um<br />
caráter restritivo das possibilidades de emprego, daí a existência abundante<br />
de cidadãos binacionais, nesse período. Falamos daquelas pessoas que possuíam<br />
duas certidões de nascimento – até com nomes diferentes – ou que,<br />
nascidas no Brasil, se valiam do critério do parentesco para conseguir a cidadania<br />
uruguaia, sem abandonar a brasileira, ou ainda aqueles que, não tendo<br />
22 FONSECA, op. cit, p. 184.<br />
23 BENTANCOR, Gladys Teresa. Frontera y integración. In: CASTELLO, Iara Regina (Org.) Práticas de<br />
Integração nas fronteiras: temas para o Mercosul. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 1996,<br />
p. 100-101.<br />
24 MENDONÇA, Nadir Domingues. O impacto da fronteira sobre uma comunidade (Rivera-Livramento).<br />
Dissertação de Mestrado em História, PUC-RS, 1980, p. 139-140.<br />
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paradeiro fixo, se passavam ora por brasileiros, ora por uruguaios. Essa situação<br />
não era desconhecida das autoridades públicas, a ponto de o governo<br />
federal, através do Decreto nº 19.572, de 7 de janeiro de 1931, tentar restringir<br />
a expedição dos títulos de naturalização ao transferir a responsabilidade<br />
pela concessão do ministro da Justiça para o presidente da República. A<br />
resolução destacava:<br />
[...] o estrangeiro que pretenda naturalizar-se cidadão brasileiro deverá<br />
redigir uma petição ao presidente da República, por intermédio do<br />
ministro da Justiça, com firma reconhecida por tabelião, declarando nacionalidade,<br />
filiação, domicílio, profissão, estado civil e prole de legítimo<br />
consórcio. 25<br />
Que significado teria uma linha divisória de duas nações para essa<br />
multidão, cuja sobrevivência dependia do trabalho esporádico surgido tanto<br />
de um lado quanto do outro da fronteira? Embora o motivo essencial do<br />
Decreto não estivesse relacionado com a realidade da fronteira Brasil-Uruguai,<br />
e sim com o ingresso indiscriminado de estrangeiros (sobretudo àqueles<br />
ligados ao comunismo), a nova legislação teve grande impacto sobre a<br />
população fronteiriça, pois estava implícita na condição de homem da fronteira<br />
a possibilidade de migrar, como mão-de-obra, para o outro lado da<br />
linha divisória, toda a vez que a situação do mercado de trabalho, num dos<br />
países limítrofes, tornava-se precária.<br />
Essa tendência de enrigecimento da fronteira tornou-se mais visível<br />
com a implantação do Estado Novo, em novembro de 1937, no Brasil. O<br />
jornal Correio do Povo, na edição de 6 de maio de 1938, informou que o<br />
governo federal proibiu a entrada de estrangeiros que se enquadrassem nos<br />
seguintes perfis: aleijados, mutilados, inválidos ou cegos, surdos, mudos, indigentes,<br />
ciganos e congêneres, com afeição nervosa ou mental de qualquer<br />
natureza, alcoolistas, toxicômanos, doentes de doença infecto-contagiosa,<br />
menores de 18 anos e maiores de 60 que viajam sós, sem profissão lícita ou<br />
sem capital para se manter, de conduta manifestadamente nociva à ordem<br />
pública, à segurança nacional ou à estrutura das instituições, os já expulsos<br />
anteriormente, condenados em outro país, que se entreguem à prostituição<br />
ou a explorem ou tenham costumes manifestadamente imorais. Os estrangeiros<br />
ilegais no país deveriam procurar as autoridades em 30 dias e em 4<br />
25 LOPES, op. cit., p. 18-20.<br />
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19
20<br />
meses legalizar a situação, junto às delegacias de polícia municipais, quando<br />
receberiam o selo de imigração em seus documentos. As restrições eram<br />
tantas, e tão complexos eram os trâmites burocráticos para a naturalização,<br />
que o governo federal sentiu a necessidade de editar uma manual de orientação<br />
aos estrangeiros, com detalhadas explicações sobre a legislação e preenchimento<br />
do formulário padrão 26 .<br />
Como conseqüência dessa determinação, iniciou-se a campanha de regulamentação<br />
dos obreros uruguaios em Livramento, causando tal comoção<br />
popular que os chefes de governo das duas localidades tiveram de assumir<br />
um posicionamento público diante do problema. O jornal El Riverista de<br />
Rivera, na sua edição de 27 de agosto de 1938, informou que o prefeito de<br />
Livramento respondeu ao pedido de esclarecimento do intendente departamental<br />
sobre o que estava ocorrendo com os uruguaios na cidade vizinha,<br />
com uma carta datada de 24 de agosto de 1938, na qual informava: “O<br />
governo do meu país, no afã patriótico de normalizar a vida nacional, impondo<br />
o mais exato cumprimento das leis, editou um Decreto-lei normativo da<br />
imigração e permanência de estrangeiros”. Procurava, ainda, esclarecer que<br />
“a Lei era dirigida à infiltração indesejável de todas as procedências, que se<br />
praticam por fronteiras abertas, por elementos que não possuam conduta<br />
nem antecedentes que lhes façam imigração aceitável”.<br />
Também o governo uruguaio, desde os primeiros anos da década de<br />
1930, promoveu uma legislação restritiva para a imigração, atendendo às<br />
pressões dos jornais que exigiam a vigência da Lei dos indeseables. Para a<br />
imprensa uruguaia mais conservadora, como o jornal El país, a imigração de<br />
pessoas indesejáveis era compreendida da seguinte maneira:<br />
Es publico y notorio que en estos últimos tiempos se han volcado en<br />
nuestro país, corridos o deportados por gobiernos vecinos, – sin que<br />
pretendamos mezclar entre ellos los deportados políticos, – núcleos<br />
numerosísimos de elementos indeseables. La inmensa mayoría de los<br />
cuales poseen antecedentes de la peor especie. Amparados en la amplia<br />
generosidad de nuestro régimen, esos elementos de tan deplorable<br />
catadura moral han encontrado campo propicio para continuar en<br />
sus fechorías, sin ocultar para nada sus aviesos propósitos. 27<br />
26 CARVALHO, Péricles Melo. (Prefácio). Guia do estrangeiro. Rio de Janeiro: Empresa de Divulgação<br />
Técnica, 1939.<br />
27 Jornal El país, 13-01-1932, p. 5.<br />
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O poder legislativo uruguaio, por meio da Lei nº 9.604, de 13 de outubro<br />
de 1936, regulamentada pelo poder executivo, em dezembro do mesmo<br />
ano, definiu quem eram os indesejáveis: os condenados por delito comum<br />
no país de origem; os meleantes e vagos, entendidos como aqueles<br />
sem habilidades profissionais ou meios conhecidos para o trabalho regular e<br />
legal; os viciados em tóxicos ou reconhecidamente ébrios; todos aqueles<br />
portadores de qualquer deficiência física ou mental, bem como de doenças<br />
infecto-contagiosas; os já expulsos de outros países; os estrangeiros que não<br />
tenham o visto do consulado uruguaio sediado no país de origem, atestando<br />
não pertencerem a qualquer organismo defensor de meios violentos para a<br />
alteração da ordem social ou política 28 .<br />
As restrições não se limitaram ao trânsito das pessoas de um lado para o<br />
outro da linha divisória. Igualmente o contrabando foi visado pela política<br />
nacionalista de Getúlio Vargas, que através do Decreto n.º 19.703, de 13 de<br />
fevereiro de 1931, adotou medidas de melhor organização do serviço de<br />
repressão ao contrabando nas fronteiras do Rio Grande do Sul. Essa legislação<br />
criava a figura do chefe da repressão ao contrabando, responsável pelo que<br />
antes fazia a Delegacia Fiscal do Rio Grande do Sul, passando a se subordinar<br />
diretamente à Delegacia Fiscal do Tesouro Nacional.<br />
Já em 1903, o ministro da Fazenda Leopoldo Bulhões destacava, num pronunciamento<br />
na Câmara de Deputados, a necessidade de um convênio aduaneiro<br />
entre os países do Prata para reprimir o contrabando, com estes argumentos:<br />
Com as larguezas que oferecem as fronteiras, ou seja pela via fluvial, ou<br />
pela terrestre, proporcionando as maiores facilidades para o transporte<br />
de mercadorias em infração; com o corpo de desocupados que ali existem<br />
perfeitamente aclimatados, porque ali nasceram, se criaram e vivem<br />
entregues àquela ocupação que lhes é como uma profissão, difícil é com<br />
efeito a repressão à prática criminosa e que, estou convencido, não cessará<br />
enquanto não for aplicada a providência sempre lembrada e sempre<br />
desatendida até hoje: o convênio aduaneiro internacional. 29<br />
Embora a região de fronteira Brasil-Argentina não seja o objeto do presente<br />
trabalho, é importante destacar que os dois países deram o primeiro<br />
28 Arquivo do Ministerio de las Relaciones Exteriores. Registros de leyes y decretos nacionales, ano 1936,<br />
p. 987-991 e 749-753.<br />
29 VASCONCELLOS, Henrique Pinheiro. Uruguay-Brasil. Rio de Janeiro: Imprensa nacional, 1929, v. 1, p. 643.<br />
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21
22<br />
passo para realizar o conselho dado por Leopoldo Bulhões, quando em 1933<br />
assinaram um convênio de prevenção e repressão ao contrabando, estabelecendo<br />
que: 1) cada uma das partes contratantes obrigava-se a tomar providências<br />
para que fossem prevenidas, descobertas e punidas as contravenções;<br />
2) as autoridades dos ministérios da Fazenda de cada uma das partes<br />
deveriam informar à outra as contravenções apuradas; 3) tornava-se proibido<br />
o depósito de mercadorias suspeitas próximo à fronteira, as quais deveriam<br />
ser guardadas à distância mínima de 15 Km da linha divisória, se ali não<br />
houvesse aduana; 4) não poderia haver depósito de mercadorias em quantidade<br />
superior a capacidade de consumo local; 5) adotava-se o regime de<br />
torna-guias entre as aduanas e outras medidas preventivas e repressivas 30 .<br />
Com a implantação do Estado Novo foi desencadeado um esforço coordenado<br />
de repressão ao contrabando nas fronteiras do Rio Grande do Sul<br />
com a Argentina e o Uruguai, esforço amparado financeiramente através do<br />
Decreto-lei n.º 173, de 5 de janeiro de 1938, que abriu um crédito especial<br />
de 111:500$000 para atender as despesas com pessoal e material 31 . O jornal<br />
“A Razão”, de Santa Maria, na edição de 6 de abril de 1938, veiculou que este<br />
recurso foi administrado pelo Sr. Eduino Vaz Ferreira, nomeado superintendente<br />
da repressão ao contrabando no estado, passando a contar com o<br />
apoio da 3ª Divisão de Cavalaria.<br />
O acordo aduaneiro com o Uruguai só foi efetivado com a conferência<br />
dos ministros da Fazenda do Uruguai, Argentina, Paraguai e Brasil, na cidade<br />
de Montevidéu, em janeiro de 1939, quando foram firmados acordos alfandegários,<br />
bancários e migratórios, visando coibir o trânsito ilegal de pessoas,<br />
mercadorias e capitais. Dentro da mesma lógica de afirmação dos Estados<br />
Nacionais, em julho de 1939 ocorreu, em Montevidéu, sob a presidência do<br />
Dr. José Irureta Goyena, uma reunião de jurisconsultos americanos com o<br />
objetivo de buscar uma conciliação das legislações civil, penal, comercial<br />
terrestre, de navegação e processual entre os Estados 32 . Os resultados não<br />
chegaram a alterar o isolacionismo que tradicionalmente caracterizou a política<br />
internacional latino-americana, mas pôde-se perceber que a informalidade<br />
nas relações internacionais – característica congênita do espaço fronteiriço<br />
– estava em questão e que os Estados Nacionais buscavam uma via co-<br />
30 BRASIL, MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES, Atos internacionais firmados entre os governos do<br />
Brasil e Argentina, 1933, p. 71-77.<br />
31 DIAS, J.C. (Org.) Colectânea de Decretos Leis – Legislação do Estado Novo. 2. ed. São Paulo: Cultura Moderna,<br />
1938, p.70.<br />
32 OLIVERA, Enrique Arocena. Evolución y apogeo de la diplomacia uruguaya – 1828-1948. Montevidéu, 1984.<br />
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mum para coibir qualquer iniciativa de particulares no estabelecimento dessas<br />
relações.<br />
A crescente ascendência dos governos centrais do Brasil, Uruguai e<br />
Argentina, subordinando as peculiaridades regionais por meio de normas<br />
coordenadas com seus países vizinhos, reduziram a autonomia dos habitantes<br />
da região de fronteira, que até então atuavam com maior informalidade.<br />
Já mencionamos esse processo nos parágrafos anteriores, quando destacamos<br />
a reação do governo federal à migração ilegal de trabalhadores e ao<br />
contrabando, atividades que permitiam uma relativa autonomia dos indivíduos<br />
frente às estruturas policiais e judiciárias do Estado. Vamos nos deter, agora,<br />
na repressão aos exilados políticos.<br />
Os exilados brasileiros oriundos do fracassado levante de 1932 tinham<br />
dois comitês revolucionários instalados nos países do Prata: um em Rivera,<br />
composto por Raul Pilla, Waldemar Ripoll, Firmino Paim e Maciel Terra, responsáveis<br />
pelo levante no Rio Grande do Sul; outro em Buenos Aires, liderado<br />
por João Neves, Batista Lusardo, Lindolfo Collor 33 e alguns militares paulistas,<br />
que tinham a tarefa de angariar o apoio no restante do país 34 . Tais conspirações<br />
não passavam despercebidas, pois o embaixador brasileiro em Buenos<br />
Aires, Orlando Leite, mantinha Getúlio Vargas constantemente informado<br />
das atividades dos exilados na Argentina e, para isso, contava com a<br />
simpatia e o apoio do governo daquele país 35 .<br />
O apoio era retribuído com o mesmo tipo de informação acerca dos<br />
integrantes do Partido Radical, que armazenavam armamento em Uruguaiana<br />
(cidade brasileira fronteiriça com a Argentina) e dali planejavam uma<br />
invasão do território argentino 36 . E o auxílio não se restringiu apenas à troca<br />
de informações secretas. Benjamim Vargas – vulgo Beijo –, irmão do Presidente<br />
da República, tratou de reprimir pessoalmente uma tentativa de invasão<br />
do território argentino por revolucionários contrários a Agustín Justo, em<br />
dezembro de 1933 37 . Cumpre destacar que esse empenho de Benjamim só<br />
ocorreu graças à pressão exercida por Getúlio Vargas, como forma de com-<br />
33 Esses homens eram políticos ligados a Getúlio Vargas durante a revolução de 1930 e tinham forte<br />
comprometimento com o Rio Grande do Sul. Nos dois primeiros anos de governo provisório, Getúlio<br />
libertou-se dos compromissos regionais e passou a defender um governo de caráter nacional, o que<br />
prejudicou os planos dos gaúchos em ascender ao alto escalão federal, levando-os a união com os<br />
políticos paulistas, na revolta de 1932.<br />
34 RANGEL, Carlos R. da R. Crime e castigo: conflitos políticos no Rio Grande do Sul. Passo Fundo: UPF, 2001.<br />
35 Arquivo Getúlio Vargas, CPDOC, Rio de Janeiro, doc 33-09-22.<br />
36 Arquivo Getúlio Vargas, CPDOC, Rio de Janeiro, doc 33-11-26.<br />
37 Arquivo Getúlio Vargas, CPDOC, Rio de Janeiro, doc 33-12-30.<br />
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23
24<br />
pensar o incidente diplomático provocado por Beijo, que invadiu a Argentina<br />
para seqüestrar o exilado brasileiro Jovelino Saldanha, do que resultou a<br />
morte de dois sobrinhos e no esfriamento das relações diplomáticas entre os<br />
dois países vizinhos 38 .<br />
A relação do Brasil com o Uruguai não era muito diferente, mas tinha<br />
certas peculiaridades. O governo uruguaio de Gabriel Terra era favorável ao<br />
Presidente Getúlio Vargas e mantinha severa vigilância sobre os exilados<br />
brasileiros, conforme relata Fernades Caldas a Raul Pilla:<br />
Todas as nossas lutas estiveram numa dependência muito imediata da<br />
situação dos países vizinhos: Argentina, Uruguai e, recentemente, o<br />
Paraguai. [...] A nossa situação de revolucionários em face do governo<br />
Terra é das mais precárias. Esta gente está totalmente entregue aos<br />
interesses da ditadura brasileira. Todos os nossos telegramas, sejam de<br />
simples cortesia e ainda mesmo quando trafegam por linhas estrangeiras,<br />
são remetidos em cópia ao consulado, à legação, aos governos do<br />
Rio Grande e Nacional. A devassa é completa. Em fins de abril, precisamente<br />
quando mais se falava em anistia, o governo brasileiro transitava<br />
a nossa internação junto ao governo Terra. [...] A Argentina ainda é o<br />
melhor lugar. O Paraguai como ponto de escoamento de armamentos a<br />
baixo custo pelo porto de Esperança. 39<br />
A particularidade ficava por conta da intermediação realizada por Flores<br />
da Cunha, que mantinha uma atitude simpática ao governo de Terra, como<br />
forma de manter os exilados políticos brasileiros constantemente vigiados.<br />
Contudo, o mesmo chefe político do Rio Grande do Sul não abria mão da<br />
amizade que tinha com os caudilhos uruguaios contrários ao presidente Terra,<br />
e fazia isso com a intenção de impedir que os membros da FUG se unissem-se<br />
militarmente a tais caudilhos numa provável invasão ao Estado. Essa<br />
estratégia já fora usada por Júlio de Castilhos em 1893, como forma de garantir<br />
o isolamento militar da oposição no exterior, que deixava de contar com a<br />
possibilidade de união com as forças revolucionárias uruguaias 40 . Esse vínculo<br />
de Flores da Cunha com “caudilhos” uruguaios ficou claro quando as ativida-<br />
38 VARGAS, Getúlio. Diário. São Paulo: Siciliano; Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1995, v. 1 (1930-<br />
1936), p. 245.<br />
39 Arquivo Raul Pila, NUPERGS-UFRGS, Porto Alegre, doc. 20-06-1933.<br />
40 RECKZIEGEL, Ana Luiza S. A diplomacia marginal. Vinculações políticas entre o Rio Grande do Sul e o<br />
Uruguai (1893-1904). Passo Fundo: UPF Editora, 1999.<br />
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des revolucionárias dos “constitucionalistas” gaúchos tornaram-se mais intensas,<br />
e Nepumuceno Saravia, companheiro de Flores da Cunha na revolução 41<br />
de 1923, empenhou seu apoio com as seguintes palavras:<br />
[...] el dia 15 estaré en Rivera, a su entera disposición, en cuyo sentido, ya<br />
escribí a su hermano, mi amigo Coronel Chico Flores. De acuerdo com<br />
nuestra vieja y leal amistad y como consecuente a ella al llegar a Rivera<br />
estaré completamente a sus ordenes y quiero expresar a mi digno y<br />
noble amigo, en la forma mas radical, que en esta emergencia por la cual<br />
atraviesa su pais lo acompañaré a vd. personalmente sin analisis de tendencia<br />
alguna, vale decir, que estoy con el amigo, en cualquier terreno,<br />
por lo cual puede disponer y transmitirme sus instrucciones a Livramento<br />
donde estaré a fecha indicada. No escapa a mi compenetración la dificil<br />
situación de la política brasileña y principalmente de Rio grande, por lo<br />
cual, el amigo poderá apreciar la significación de mi adhesión personal,<br />
expresada en forma tan amplia, en que la formulo. 42<br />
Contudo, o apoio que os oposicionistas uruguaios esperavam encontrar<br />
das autoridades sul-rio-grandenses não veio com a intensidade desejada. Na verdade,<br />
Gabriel Terra – Presidente do Uruguai – contava com larga simpatia de<br />
Getúlio Vargas, pois ambos protagonizavam regimes autoritários e tinham o interesse<br />
comum de manter sob controle os seus exilados políticos no país vizinho.<br />
Esse apoio recíproco ficou evidente quando, em 1935, o Uruguai enfrentou mais<br />
um período de turbulência interna, por conta dos nacionalistas independentes,<br />
liderados por Basilio Muños. Tal apoio dos setores políticos dominantes do Rio<br />
Grande do Sul ao governo uruguaio pode ser observado nesse radiograma circular,<br />
enviado a todos os prefeitos dos municípios da fronteira com o Uruguai:<br />
Interventor recomenda, com máxima severidade atuação autoridades<br />
municipais e policiais fronteira, sentido ser mantida absoluta neutralidade<br />
conflito pais vizinho e amigo, determinando responsabilidades mesmas<br />
autoridades que auxiliem rebeldes na subversão da ordem. 43<br />
41 Em 1923, forças oposicionistas ao governo republicano no Rio Grande do Sul promoveram uma<br />
revolução sangrenta para derrubar o governador do estado, Borges de Medeiros. Flores da Cunha era<br />
republicano e combateu os federalistas ao longo da fronteira com a Argentina e o Uruguai, obtendo<br />
significativas vitórias.<br />
42 Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, carta de Nepumuceno para Flores da Cunha, doc. 02-08-1932.<br />
43 Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, carta do Secretário do Interior aos prefeitos, doc s/nº.<br />
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26<br />
Segundo Salomon de Leon 44 , no período 1933-38 ocorreu um intenso<br />
apoio recíproco entre os governos uruguaio e brasileiro, ambos envolvidos<br />
no combate às forças subversivas de seus países. Esse apoio foi especialmente<br />
valioso para Terra quando tropas federais brasileiras confiscaram o<br />
armamento que saía do Brasil para o Uruguai, com destino ao revolucionário<br />
Basilio Muños, que, não podendo contar com o dito armamento, foi derrotado<br />
em 28 de janeiro de 1935 no Passo Morlán, extinguindo-se, assim, mais<br />
um foco de resistência armada ao governo de Terra.<br />
O sentimento de afinidade e solidariedade entre o Uruguai de Terra e o<br />
Brasil de Getúlio tornou-se nítido quando o Jornal O Globo, na edição de 31<br />
de dezembro de 1935, informou emotivamente a decisão do Presidente uruguaio<br />
de romper relações diplomáticas com a URSS, como protesto pela<br />
Intentona Comunista ocorrida no Brasil. A matéria, cujo título é “Honra ao<br />
Uruguai”, concitou o povo brasileiro a participar de uma grande manifestação<br />
ao país amigo, no campo da praia do Russel, na tarde do sábado – 04 de<br />
janeiro de 1936 –, onde seria realizado um cerimonial. O jornalista encerrou<br />
a reportagem informando como seria montada a programação: “a nossa preocupação,<br />
escolhendo a forma ou ritmos foi a de tudo condensar na força<br />
pura dos símbolos”. Igualmente, o governo Uruguaio tratou de retribuir a<br />
solidariedade contra o comunismo internacional, que tinha forte base estratégica<br />
em seu território (sede do bureau da Internacional Comunista), proibindo<br />
qualquer manifestação pública de apoio aos revolucionários brasileiros.<br />
A mesma sintonia de pensamento existente entre Brasil e Uruguai, em<br />
relação ao tratamento dado aos conspiradores do país vizinho, asilados em<br />
seus territórios, pôde ser percebida em dezembro de 1933, durante a 7ª<br />
Conferência Interamericana, que regulou as condições para a concessão do<br />
asilo político. O acordo internacional estabelecia:<br />
Art. 1º – Não é lícito dar asilo aos criminosos comuns julgados e aos<br />
desertores de terra e mar. As pessoas assim classificadas devem ser<br />
entregues às autoridades locais.<br />
Art. 2º – Compete ao Estado que dá asilo a classificação do asilo político.<br />
Art. 3º – O asilo político tem caráter humanitário e qualquer nacional<br />
pode pedir asilo sem que haja acordo entre os Estados. Aqueles Estados<br />
que criarem barreiras só terão reciprocidade, mediante acordos. 45<br />
44 LEÓN, Joel S. Dicionario riverense. Rivera: 1997, p. 897.<br />
45 BRASIL, MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, Anuário da Legislação Federal, 1938, p. 153.<br />
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Embora as cláusulas do acordo atribuíssem ao asilo político um caráter<br />
humanitário e vinculassem ao país acolhedor do exilado a competência pela<br />
distinção entre os crimes comum e político, a inclusão dos desertores entre<br />
aqueles que não teriam guarida em solo estrangeiro limitou drasticamente a<br />
possibilidade da trama revolucionária. A título de exemplo, é interessante<br />
lembrar que boa parte dos revolucionários brasileiro,s que conspiravam no<br />
exílio em 1933, eram praças e oficiais de baixa patente, desertores da Força<br />
Pública do Rio Grande do Sul e do Exército, e que como a coordenação<br />
militar dos comitês revolucionários de Rivera e Buenos Aires estavam nas<br />
mãos dos coronéis insubmissos Figueiredo e Taborda, respectivamente.<br />
Na mesma época, os governos do Getúlio Vargas e Agustín Pedro Justo<br />
(1932-1938) firmaram um acordo de extradição mais detalhado e mais brando<br />
em relação aos exilados políticos e desertores, nos seguintes termos: 1) o<br />
crime seria cometido no território do estado requerente, ser comum, excetuando-se<br />
os de natureza política e puramente militar/religioso; 2) somente o<br />
estado solicitado poderia avaliar a natureza do crime; 4) o extraditado não<br />
poderia ser julgado por tribunal de exceção; 5) o poder judiciário do país<br />
requerido poderia julgar se o extraditado estava sofrendo algum constrangimento<br />
de suas garantias individuais; 6) poderia ser solicitada a prisão preventiva<br />
por até 60 dias; 7) não caberia o recurso da fiança ao extraditado; se a pena<br />
fosse de morte ou corporal, o estado solicitante deveria convertê-la em prisão 46 .<br />
Percebemos que existia um certo alinhamento internacional entre Brasil,<br />
Uruguai e Argentina naqueles aspectos que se referiam ao comprometimento<br />
da estabilidade política interna, assim como havia o interesse comum<br />
em normatizar as relações econômicas ocorridas ao longo da faixa fronteiriça,<br />
com base numa rigorosa legislação aduaneira e tributária. Esse “enrigecimento”<br />
da fronteira acabou por causar alterações na complementaridade econômica<br />
das cidades geminadas, existentes ao longo da linha divisória entre<br />
Brasil e Uruguai, conforme veremos a seguir.<br />
A crise dos primeiros anos da década de 1930 afetou profundamente a<br />
economia de Rivera, o que fez aumentar a reivindicação por uma melhor participação<br />
do comércio riverense nos lucros auferidos pelos turistas, que vinham<br />
de diferentes lugares do Uruguai e do Rio Grande do Sul para brincar o carnaval<br />
na fronteira e participar das famosas noites nos cassinos e cabarés de Livramento.<br />
Um passo decisivo do governo uruguaio na tentativa de compensar a<br />
atividade comercial e pastoril deficitária, com o incremento do turismo, foi<br />
46 BRASIL, MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES, op. cit, p. 81-85.<br />
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28<br />
dado com a Lei 9.936, de 1936, que elevou Rivera à situação de “Cidade de<br />
Turismo”, o que implicava no apoio do governo central à combalida economia<br />
riverense. Joel S. de León explica essa iniciativa do governo de Montevidéu<br />
através do contexto político da época. Em Rivera predominavam as forças anticolegialistas<br />
- apoio fundamental do presidente Terra –, o que a colocava em<br />
situação privilegiada em relação ao governo central. Conforme esclarece o autor:<br />
La vecina Livramento habia sido a lo largo de toda su história – como<br />
Rivera lo fué para ella – refugio (y asilo) de las corrientes opositoras y<br />
centro de formación de intentos revolucionarios. Era vital, por lo tanto,<br />
tener un dominio claro en la zona y, mejor todavia, contar com el<br />
apoyo de sus principales fuerzas políticas. Terra tenia esse apoyo. Pero<br />
como todo apoyo requería ser compensado. 47<br />
Contemplar Rivera com franquias comerciais e favorecer o regime de<br />
trânsito, assim como incentivar as indústrias de carne na região, acarretaria<br />
um choque de interesses com o governo brasileiro, choque esse descartado<br />
em função do apoio dado por Vargas ao governo de Terra, por ocasião da<br />
revolta de 1935, contra os rebeldes comandados por Basilio Muñoz. A opção<br />
foi declarar Rivera “Cidade de Turismo”, possibilitando a instalação de um<br />
cassino em Rivera, pois uma legislação de 1911 determinava que somente<br />
as cidades de interesse turístico poderiam ter estabelecimentos desse tipo.<br />
A elevação da cidade à condição de centro turístico favorecia a implantação<br />
de um cassino que faria frente aos famosos cabarés de Livramento,<br />
como podemos observar nestas palavras transcritas do jornal Tradición Colorada<br />
de Rivera, em 20 de julho de 1938:<br />
tou:<br />
[...] seguinmos sosteniendo que no se resolverá el problema del drenaje<br />
de dineros uruguayos ejercidos por Livramento desde largos años, que<br />
como se dice nos transforma en un barrio de la ciudad vecina, mientras<br />
no tengamos un Hotel-teatro-cassino... La causa principalisima del dreneje<br />
de dineros que soportamos, son los juegos de azar tolerados en<br />
Livramento [...].<br />
Na edição de 20 de agosto do mesmo ano, o referido jornal acrescen-<br />
47 LEON, op. cit, p. 896-897.<br />
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[...] a fin de dar efectividad a esa aspiración unánime de nuestra población<br />
para salir de la situación de tributarios en el progresso de Livramento,<br />
que com sus leyes proteccionistas, liberales e patrioticas, en el afan<br />
de embellecer su município, facilita y transige com ciertos convencionalismos,<br />
reglamentando diverciones y juegos imposibles de extirpar.<br />
A campanha pela inauguração do cassino coincidia com as medidas moralizadoras<br />
adotadas pelo governo federal brasileiro, que em princípios de dezembro<br />
de 1937 mandou fechar todas as casas de jogos de azar, com exceção dos<br />
cassinos nas praias de banho e estações balneares, conforme descreve o jornal<br />
de Passo Fundo O nacional, na sua edição de 18 de dezembro de 1937. Como<br />
é fácil deduzir, tal medida afetou a vida econômica de Livramento e favoreceu a<br />
campanha pela inauguração de um Hotel-Teatro-Cassino em Rivera.<br />
Efetivamente, a cidade tornou-se um grande centro de turismo no interior<br />
uruguaio, enquanto Livramento amargava a decadência de sua tradicional<br />
vida noturna. Os encontros no café “Ponto Chique”, os passeios e flertes<br />
na praça matriz e o burburinho em torno das roletas dos cabarés cederam<br />
lugar ao glamour da Av. Sarandi, que, por suas luzes, ganhou a designação<br />
especial de via blanca. Suas calçadas foram tomadas pelas cadeiras dos cafés<br />
e bares, enquanto o recém-inaugurado Hotel Cassino criava e desfazia fortunas<br />
nas mesas de “Bacará” e na excitante roleta.<br />
A partir desse período, Rivera deixou para trás os piores efeitos da crise<br />
dos anos 1930 e passou a monopolizar a vida noturna daquele espaço fronteiriço.<br />
Essa evolução pôde ser observada a partir de 1938, quando se iniciaram<br />
as excursões fonoelétricas, organizadas pela empresa Ferrocarril Central<br />
48 . No ano seguinte, inaugurou-se o Parque Grã-Bretanha, a seis quilômetros<br />
da cidade, junto a Cochilha Negra; em janeiro de 1941, implementou-se<br />
a Comisión de Fiestas y Turismo; em janeiro de 1942, estabeleceu-se a nova<br />
sede do Club Uruguay , um dos melhores do país; nesse mesmo ano, iniciaram-se<br />
as atividades do Hotel Cassino; em fevereiro de 1943, inaugurou-se a<br />
Praça Internacional e, em agosto, iniciou-se a pavimentação da Avenida Sarandi,<br />
o que logo se estendeu às principais ruas da cidade, transformando<br />
significativamente a sua fisionomia urbana.<br />
O que se viu nesse processo foi mais um exemplo do movimento<br />
pendular que tem caracterizado a vida econômica da fronteira. A prosperida-<br />
48 PINTOS, Anibal Barrios. Rivera: una historia diferente. Montevidéu: Ministerio de Educación y Cultura,<br />
1990, Tomo II, p. 248-249.<br />
Territorios e Fronteiras_v6_n2_jul_dez_2005.p65 29<br />
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29
30<br />
de de um setor, numa das duas cidades, implica na decadência desse setor na<br />
outra. Além disso, percebe-se a clara interferência que as políticas econômicas,<br />
desenvolvidas pelos governos centrais, exerciam na vida cotidiana dessas<br />
duas comunidades, forçando a busca de acomodações que garantissem a<br />
sobrevivência de populações que viviam, basicamente, das diferenças monetárias,<br />
fiscais e aduaneiras entre os dois países.<br />
Contudo, Livramento também teve seu desenvolvimento incrementado,<br />
mas por outra via – a industrialização. Foi um processo que teve seu nascimento<br />
já na década de 1910, quando o frigorífico Armour lá se instalou-se, ocasião em<br />
que os setores ligados à transformação dos produtos primários da pecuária tiveram<br />
grande impulso. Com uma população de aproximadamente 40 mil habitantes<br />
e contando com a quarta renda do Rio Grande do Sul (2.961.000$000), em<br />
1941 Livramento posicionava-se como o terceiro parque industrial gaúcho, tendo<br />
quatro frigoríficos, três torrefações de café, 11 charqueadas e uma cervejaria<br />
de renome, a Gazapina, de um conjunto de aproximadamente 50 estabelecimentos<br />
industriais, que empregava cerca de três mil operários 49 .<br />
As alterações de ordem econômica e política na região de fronteira,<br />
provocadas pela crescente interferência do governo federal nos assuntos<br />
antes regulados de maneira mais informal, estavam dentro do contexto de<br />
substituição da política regionalista e liberal postulada pelos partidos tradicionais<br />
(Partido Libertador e Partido Republicano), por outra política de cunho<br />
mais autoritário e centralizador, que se aprofundou significativamente após a<br />
implantação do Estado Novo. Como reflexo dessas alterações, na cidade de<br />
Livramento, a hegemonia do clã Flores da Cunha foi suprimida com a passagem<br />
do poder executivo municipal para as mãos dos oposicionistas, representados<br />
pelo ex-integrante do Partido Libertador João Jacinto Costa, ao mesmo<br />
tempo em que Getúlio Vargas desenvolvia uma sistemática campanha desmoralizadora<br />
do seu antigo aliado, Flores da Cunha.<br />
Há uma idéia da ideologia centralista, moralizadora e nacionalista do<br />
novo regime político, implantado em novembro de 1937, por esse extrato<br />
do jornal “A Razão”, editado em 6 de abril de 1938, quando destacou o novo<br />
perfil de governante que Livramento passava a ter, com as seguintes palavras:<br />
É um jornalista por temperamento e um homem ilustrado. O Estado<br />
Novo, selecionando os verdadeiros valores para a administração públi-<br />
49 SCHÄFFER, Neiva Otero. Urbanização na fronteira: a expansão de Santana do Livramento. Porto<br />
Alegre: Editora da UFRGS, 1993, p. 42-50.<br />
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ca, confiou o governo municipal ao Dr. João Jacinto Costa, espírito<br />
empreendedor e decisivo, com uma larga visão da coisa pública e das<br />
necessidades reais da comuna.<br />
O novo prefeito prometeu medidas modernizadoras como o calçamento<br />
de algumas ruas e a pavimentação asfáltica para o centro da cidade, a<br />
ampliação da rede de esgotos, o aumento dos estabelecimentos de ensino e<br />
a construção de um mercado público e de um hospital. Além dos investimentos<br />
na infra-estrutura urbana, acenava-se para a moralização pública e<br />
administrativa. A partir daquele momento, os crimes seriam severamente<br />
punidos e a população estaria definitivamente liberta da barbárie a que estava<br />
sendo sujeitada pelo clã Flores da Cunha, conforme se observa nessa<br />
apologia à nova administração de Livramento, encontrada no jornal “A Razão”,<br />
de 20 de abril de 1938:<br />
A imprensa de Livramento registra a prisão imediata dos ladrões de<br />
uma casa comercial como ‘algo inédito’ [...] Era bem essa a situação de<br />
Livramento na época do caudilhismo e do contrabando. Os criminosos<br />
ou eram amigos dos mandões, ou eram por estes protegidos. Dessa<br />
forma, a polícia sempre encontrava empecilhos à sua ação moralizadora.<br />
A polícia sempre existiu. O que não existia era autonomia das autoridades<br />
policiais que não sabia que grau de amizade ou parentesco ligava o<br />
criminoso ao chefe político do momento. E, ou não agiam de imediato,<br />
ou deixavam o criminoso transpor pacatamente a rua que divide Livramento<br />
e Rivera. O novo regime não permite mais essa situação.<br />
Importante destacar que, a partir da implantação do Estado Novo, a<br />
fronteira brasileira teve seus quadros aduaneiros completamente reformulados,<br />
e novas leis fiscais e de controle de pessoas e mercadorias foram promulgadas.<br />
Entretanto, o pequeno contrabando continuou existindo, pois faz<br />
parte da estratégia de sobrevivência das populações fronteiriças, independentemente<br />
do rigor com que os governos nacionais tentam impedir essa<br />
forma subterrânea de integração comercial.<br />
31<br />
Considerações finais<br />
Não pretendemos esgotar o assunto sobre as alterações que caracterizaram<br />
o processo de estatização do território, ocorrido na região de fronteira<br />
Territorios e Fronteiras_v6_n2_jul_dez_2005.p65 31<br />
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32<br />
Brasil-Uruguai, mas suscitar o debate em torno da lógica de conformação dos<br />
lugares, sobre as diferentes forças que alteram o padrão de comportamento<br />
de seus habitantes, a respeito de como esses lugares são definidos, construídos<br />
ou contestados em função do confronto entre diferentes grupos de interesses<br />
e diversas interpretações do mundo social.<br />
Com tais alterações, essa região passou a gravitar em torno de uma<br />
nova ordem centralizadora, de teor nacionalista e moralizante. O contrabando<br />
passou a ser interpretado como um crime contra o desenvolvimento nacional.<br />
Para combatê-lo e preveni-lo, ocorreu um alinhamento entre Brasil,<br />
Uruguai e Argentina e a reestruturação das normas e entidades públicas responsáveis<br />
por sua execução. Os preparativos revolucionários dos exilados<br />
políticos brasileiros foram reduzidos a proporções mínimas, se comparados<br />
com os que eram promovidos antes de 1937. O ambiente potencialmente<br />
explosivo existente na região de fronteira foi substituído pela estabilidade<br />
política – em boa medida conquistada por uma severa repressão e vigilância<br />
aos opositores do novo regime.<br />
O domínio florista foi combatido e substituído por outros setores políticos<br />
que propunham, em seus discursos, a substituição da corrupção pública pela racionalidade<br />
e moralidade administrativa, onde não haveria lugar para os desmandos<br />
de chefes políticos locais, crimes sem julgamento e criminosos impunes. No discurso<br />
estado-novista, passava-se, por assim dizer, de um ambiente bárbaro para<br />
um civilizado, propenso ao desenvolvimento econômico e à paz social.<br />
A complementaridade existente entre as duas cidades geminadas passou<br />
a ter novo enfoque. Enquanto Livramento ostentava a imagem de uma<br />
“progressista” cidade brasileira, com suas indústrias, Rivera garantia, para si, a<br />
imagem de uma moderna e civilizada cidade uruguaia. Dessa maneira, uma<br />
e outra assumiam parte da ideologia propagada pelos Estados Nacionais: o<br />
Brasil industrializado, o Uruguai civilizado; Livramento, uma cidade brasileira;<br />
Rivera, uma cidade uruguaia.<br />
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Terrorismo, cidades e relações internacionais<br />
na crise das fronteiras *<br />
Resumo<br />
Vivemos em cidades-mundo. Cidades multiétnicas<br />
e multicivilizacionais. Os choques<br />
de civilizações não ocorrem nas “linhas<br />
de fratura” de dois ou mais estados, mas<br />
sim nas ruas de cada cidade-mundo. Eles<br />
não acontecem “entre” civilizações, mas<br />
“na” civilidade. Eles desgastam a “confiança”.<br />
Neste artigo problematizamos a<br />
“guerra contra o terrorismo” em seus efeitos<br />
para as relações de “confiança” entre<br />
estados. A noção de “confiança” é central<br />
para compreender as relações internacionais<br />
na globalização. Como elaborar políticas<br />
externas, atrair aliados, garantir a interdependência<br />
complexa sem confiança<br />
mútua? Creio ser necessário, mais do que<br />
nunca, empreender uma hermenêutica da<br />
“confiança” nas relações internacionais, notadamente<br />
para compreender os impactos<br />
do novo fenômeno do terrorismo.<br />
Palavras-chave:<br />
terrorismo – choque de civilizações – relações<br />
internacionais<br />
33<br />
Hugo Arend**<br />
Abstract<br />
We live in world-cities. Multicivilizacional<br />
and multiethnic cities. The clashes of<br />
civilizations do not happen at the level<br />
of lines of fracture between two or more<br />
states, but on the streets of every worldcity.<br />
They do not happen between civilizations<br />
but in civility. They wear out the<br />
trust. I question the “war on terrorism”<br />
and its effects on the relations of trust<br />
between states. The notion of trust is central<br />
for us to understand international relations<br />
in a globalized era. How to elaborate<br />
foreign policies, attract allies, and<br />
guarantee the complex interdependence<br />
without mutual trust? I believe it is necessary,<br />
more than ever, for us to consider<br />
a hermeneutic of trust on international<br />
relations, especially to understand the<br />
impacts of this new kind of terrorism we<br />
are facing.<br />
Keywords:<br />
terrorism – clash of civilizations – international<br />
relations<br />
* Os argumentos deste ensaio foram apresentados em comunicações no XXIII Simpósio Nacional de<br />
História – História e Guerra, organizado pela ANPUH (17-22/07/2005) sob o título: Conflitos na<br />
civilidade: terrorismo global e relações internacionais. Agradeço a todos que fizeram comentários e<br />
ajudaram a enriquecer esta pesquisa.<br />
** Mestre em História pela PUCRS.<br />
REV. TERRITÓRIOS E FRONTEIRAS – PROG. DE PÓS-GRAD. EM HISTÓRIA – UFMT – V.6 – N.2 – JUL./DEZ. 2005<br />
Territorios e Fronteiras_v6_n2_jul_dez_2005.p65 33<br />
24/1/2007, 11:01
34<br />
“Agora as fronteiras passam por dentro das cidades”.<br />
Prefeito da Filadélfia, 1977.<br />
Objetiva-se neste ensaio esboçar uma problematização acerca do terrorismo<br />
como fenômeno das relações internacionais. É importante deixar claro<br />
que se trata de um trabalho propositivo e não de um artigo conclusivo. Isso<br />
significa que as considerações feitas aqui são ainda embrionárias e têm validade<br />
enquanto provocações para a renovação das pesquisas sobre as implicações<br />
do terrorismo no que respeita às relações internacionais. Acredito que a<br />
disciplina de Relações Internacionais em si esteja passando por um momento<br />
delicado de tensão em suas perspectivas. Nesse sentido, a reformulação de<br />
perguntas me parece mais pertinente do que a busca por respostas definitivas.<br />
Tendo feito essa ressalva, divido o texto em três partes: na primeira,<br />
abordo a questão das fronteiras na crise da modernidade e suas implicações<br />
para as relações internacionais em geral. Proponho pensar a crise enfrentada<br />
tanto pela noção de fronteiras quanto pelas fronteiras físicas propriamente<br />
ditas, uma crise que impõe uma re-interpretação do estado como ator principal<br />
das relações internacionais.<br />
Na segunda parte, interpreto os efeitos da velocidade e da ubiqüidade<br />
no contato entre diferentes civilizações dentro de um mesmo mundo: as<br />
cidades. A partir do exposto na primeira parte, penso a questão das cidades<br />
e o modo como a convivência entre as civilizações em “cidades-mundo”<br />
podem tensionar as relações internacionais. Dessa forma, pretendo sublinhar<br />
a importância dos estudos sobre as cidades para essas relações. Pretendo<br />
pensar de que modo os problemas inicialmente locais podem implicar problemas<br />
e relações em nível global, fazendo com que os conflitos que hoje<br />
permeiam as relações internacionais não sejam apenas aqueles que brotam<br />
dos choques de interesses entre os guias das políticas externas 1 , mas também<br />
os que surgem de surpresa, de forma impactante e impressionante,<br />
como os espetáculos na TV, tais como o terrorismo.<br />
Na terceira parte, diante do exposto nos dois blocos anteriores, penso a<br />
passagem do terrorismo por uma “escalada ao extremo”, ou seja, a potencialização<br />
quase infinita de sua capacidade de destruição e geração de espetáculos<br />
macabros. Essa característica atraiu a atenção da mídia, das populações<br />
e, é claro, dos governos. Reside na magnética força midiática do terrorismo<br />
sua potencialidade para a desestabilização do sistema internacional num mundo<br />
1 ARON, Raymond. Paz y guerra entre las naciones. México: Fondo de Cultura Económica, vol.1, 1985, p. 81-82.<br />
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globalizado e informacionalmente conectado. Neste contexto e nesse sentido,<br />
que tipo de ameaça representa hoje o terrorismo para a construção da<br />
confiança entre os países? Mais especificamente: de que forma os sentimentos<br />
de confiança experimentados em cidades multiétnicas e híbridas pelos<br />
diferentes grupos civilizacionais podem ser objeto de preocupação para as<br />
alianças entre governos?<br />
35<br />
As fronteiras em mutação:<br />
cidades e estados nas relações internacionais<br />
Pode-se dizer que, em grande medida, a noção de fronteira que permeia<br />
os discursos políticos e também as disciplinas acadêmicas foi, aos poucos,<br />
estruturada pela modernidade. Para compreender essa estruturação, é<br />
necessário compreende-la, primeiro, como crise 2 . Uma crise religiosa, política,<br />
social, cultural, enfim, uma crise que mexeu profundamente com a vida<br />
das pessoas a partir do século 12. Nada entrou ou saiu incólume da modernidade.<br />
A Reforma protestante, o Renascimento, a Guerra dos Trinta Anos, os<br />
Grandes Descobrimentos e a Revolução Científica reformularam os parâmetros<br />
de como os homens viam o mundo e a si mesmos. Essas reformulações<br />
não vieram, contudo, sem um sentimento de que tudo o que era conhecido<br />
até então parecia perder a legitimidade. Todos os chãos dos europeus foram<br />
retirados e reestruturados ao longo de séculos. Um poderoso sentimento de<br />
irreferencialidade tomou conta de corações e mentes. De forma acentuada,<br />
esse sentimento foi proporcionado, justamente, pelas novas descobertas científicas<br />
e geográficas, pelas novas contestações religiosas, pelas novas perspectivas<br />
cosmológicas, enfim, pelo desenvolvimento mesmo do saber e de<br />
seus choques com as muitas facetas do conservadorismo.<br />
A crise secular da modernidade foi, contudo, solucionada a partir de um<br />
reordenamento das coisas, da vida política e civil como um todo. Essa dimensão<br />
da modernidade pode, portanto, ser compreendida como a face da estabilidade,<br />
da permanência, das certezas e da previsibilidade. O sujeito foi<br />
compreendido em sua racionalidade e em sua capacidade de conceber científica<br />
e empiricamente o mundo; este, em si, permaneceu cognoscível através<br />
do uso da Razão e dos experimentos. As fronteiras entre o conhecido e<br />
o desconhecido, entre o dentro e o fora, entre o sujeito e Deus, entre um<br />
2 HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Império. Rio de Janeiro: Record, 2001, p. 87-110.<br />
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36<br />
estado soberano e outro, entre o certo e o errado foram estabelecidas de<br />
forma a tornar o mundo previsivelmente confortável, uma vez que “a precisão<br />
é necessária para o exercício do poder” 3 .<br />
Assim sendo, compreender as fronteiras significa também compreender<br />
seus usos em termos de poder, de ordenamento e de previsibilidade. Em<br />
grande medida, a noção de fronteira erguida pela modernidade permeia todas<br />
as noções de sujeito, nação, homem, estado e ciência na medida em que é a<br />
noção mesma de fronteira conforme moldada pela modernidade vencedora<br />
daquela crise que estabelece a diferença um tanto rígida entre o eu e o outro,<br />
o cidadão e o estrangeiro, o humano e o desumano, o estado e seu exterior, e<br />
assim por diante. Essa noção de fronteira, com a rigidez que lhe é inerente, não<br />
passou intacta pelo final do século 19, sendo alvo de críticas desde Nietzsche,<br />
passando por Sigmund Freud, Martin Heidegger e Max Weber, até Michel Foucault,<br />
Jacques Derrida, Gilles Deleuze, Felix Guatarri, entre outros. A percepção<br />
de inúmeros intelectuais de que aquele mundo estável e ordenado, apresentado<br />
pelos modernos, fazia muito pouco sentido quando chocado com a<br />
radicalidade da experiência humana, levou a noção de fronteira, em particular,<br />
e a modernidade, como um todo, a uma profunda crise de referência, de<br />
legitimação das metanarrativas e do projeto moderno, a que se dá o nome de<br />
pós-modernidade 4 . Faz parte de minha tarefa compreender as implicações<br />
dessa crise das fronteiras, da crise da modernidade mesma, para a disciplina de<br />
Relações Internacionais, tomando como norte as questões que giram em torno<br />
das interpretações do terrorismo como nova ameaça às relações entre estados.<br />
É facilmente perceptível que, com freqüência, quando são pensadas as<br />
relações internacionais, parte-se de dois tipos de agentes, ligados diretamente<br />
às estruturas políticas e militares dos Estados modernos, a saber, os diplomatas<br />
e os soldados 5 . Por muito tempo estes atores possuíram, e ainda possuem,<br />
papel preponderante na maior parte dos estudos da disciplina. Em<br />
3 HISSA, Cássio Eduardo Viana. A mobilidade das fronteiras: inserções da geografia na crise da modernidade.<br />
Belo Horizonte: UFMG, 2002, p. 35.<br />
4 LYOTARD, Jean-François. O pós-moderno. Rio de Janeiro: José Olympio, 1988. Não pretendo entrar<br />
aqui no debate acerca do prefixo pós e sua relação com uma visão linear e cronológica do tempo<br />
histórico. Não pretendo, tampouco, discutir acerca das diferentes denominações dadas ao período ou à<br />
condição que prefiro chamar de pós-moderna. Se se trata de pós-modernidade, modernidade tardia<br />
(Habermas), neo-modernidade (Sérgio Paulo Rouanet), hipermodernidade (Jean Baudrillard), supermodernidade<br />
(Marc Augé) ou de outras denominações não me interessa aqui. Apesar de reconhecer as<br />
importantes implicações inerentes a uma conceituação mais precisa, interesso-me, tão somente, pelo<br />
reconhecimento, como a todos os autores, de que o século 20 como um todo desafiou e desestabilizou<br />
profundamente os parâmetros, a comodidade, a estabilidade, os ordenamentos previstos pelos projetos<br />
modernos, desafiando, acima de tudo, a noção de fronteira estruturada e legitimada pelo pensamento<br />
ocidental desde os séculos 12 e 13.<br />
5 ARON, R. Op. cit., p. 81-82.<br />
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muitos casos, decisões de líderes mundiais são colocadas no centro dos acontecimentos.<br />
São eles que comandam a história. Mobilizam exércitos, realizam<br />
acordos e tratados, selam alianças, iniciam e põem fim a conflitos.<br />
Essas características são desenvolvidas a partir da noção de que cada<br />
estado possui um interesse nacional bem-definido e homogêneo, que segue<br />
um plano intencional e conscientemente elaborado por aqueles agentes.<br />
Normalmente, doutrinas são empregadas para dar sentido aos projetos dos<br />
governos. O que permeia muitas análises das relações internacionais, portanto,<br />
é a competição entre agentes de diferentes estados soberanos. Nessa<br />
disputa, normalmente o mais forte vence. Isso faz parte da maioria das hipóteses,<br />
uma vez que elas pretendem justamente comprovar que o palco das<br />
relações internacionais é aquele no qual não há uma ordem estabelecida,<br />
reinando, assim, um estado de natureza em que a solução dos conflitos é, na<br />
maior parte das vezes, baseada na força ou na ameaça de seu uso. A noção<br />
de fronteira perpassa significativamente essa perspectiva.<br />
O desenvolvimento dos Estados modernos foi marcado pelo aprimoramento<br />
das fronteiras como limite, como locais onde eram verificadas as credenciais<br />
dos que nelas pretendiam entrar, negando ou aprovando sua inserção<br />
no território. Nesse sentido, a longa história das fronteiras é também a<br />
história da formação dos estados (e, mais tarde, dos Estados-nações), uma<br />
vez que elas, aos poucos, também passaram a ser consideradas como as<br />
responsáveis pela inclusão, segurança e identificação de uma população com<br />
tradições históricas comuns. Aqui, não traço essa história. Deve, contudo,<br />
ficar claro que a noção de fronteira implica o reconhecimento de que existem<br />
os que estão dentro, identificados como “nós”, e os que estão “fora”,<br />
pensados freqüentemente como estranhos e até mesmo perigosos. As relações<br />
acontecem por oposição. Uma oposição que deve ser preservada, evitando<br />
o contágio. Se o contato for feito, que seja para estabelecer algum tipo<br />
de superioridade cultural. Civilizar os bárbaros 6 .<br />
A formação das fronteiras como limite, como locais de contínua preocupação,<br />
reflete a inquietação com a invasão, a penetração do estranho em um<br />
mundo que precisa permanecer puro e imaculado. Na realidade, essa concepção<br />
de fronteira como local de eterna vigília é própria da noção estratégicomilitar<br />
cunhada pela noção moderna de fronteira 7 . Não é novidade, contudo, que<br />
6 HARDT, M.; NEGRI, A. Op. cit., p.131.<br />
7 HARDT, M. e NEGRI, A. Op. cit.; MARTINS, Rui Cunha. Fronteira, referencialidade e visibilidade. Estudos<br />
Ibero-americanos, PUC-RS, Edição Especial, n.1, 2000, p.7-19.<br />
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38<br />
a eficácia das fronteiras vem sendo ameaçada pelas novas tecnologias de comunicação<br />
e de estratégia militar. Hoje, como afirmou o presidente da IBM, “as<br />
fronteiras que separam uma nação de outra são tão reais quanto o equador” 8 .<br />
Para meus propósitos, basta deixar claro que as novas tecnologias de<br />
comunicação e de transportes e os vetores militares tornam o cruzamento de<br />
fronteiras algo inevitável. Há muito pouco que os Estados possam fazer a<br />
esse respeito. Se, há duzentos anos, Victor Hugo já proclamava que “os exércitos<br />
[poderiam] ser detidos, mas as idéias não”, hoje essa percepção provase<br />
ainda mais adequada. De fato, hoje, sequer os exércitos podem ser detidos,<br />
uma vez que mísseis podem ser disparados intercontinentalmente, violando<br />
todas as fronteiras e limites geográficos. Mesmo as defesas antimísseis<br />
perpassam as fronteiras. A interceptação acontece normalmente fora do território-alvo.<br />
Dessa forma, a antiga geopolítica está moribunda 9 .<br />
Em 1977, em plena atmosfera de terror da Guerra Fria, o prefeito da<br />
Filadélfia afirmava: “Agora as fronteiras passam por dentro das cidades” 10 . A esse<br />
respeito, o dromólogo e filósofo francês Paul Virilio assegura: “Desde a guerra<br />
mundial, já não se pode mais falar propriamente de guerras estrangeiras, externas”<br />
11 . Os vetores militares e a velocidade das telecomunicações fazem com que<br />
as antigas portas das cidades, as muralhas, as linhas de defesa fixas, percam suas<br />
funções. Ciente dessa condição, haveria como continuar analisando as relações<br />
internacionais dentro de concepções modernas de soberania e fronteiras? É imperativo<br />
encarar os desafios contemporâneos com seriedade.<br />
Não foram apenas as tecnologias militares e de comunicação que desafiaram<br />
a noção moderna de fronteira. Foram também os contatos cada vez<br />
mais acentuados e definitivos entre diferentes culturas e civilizações, proporcionados<br />
pelas migrações em massa evidenciadas desde o início do século<br />
20 histórico (1870-1890).<br />
As metrópoles foram sendo, cada vez mais, marcadas pela diversidade<br />
cultural e civilizacional. A infeliz realidade é que seguidamente esse convívio<br />
provocou tensões e conflitos, as quais foram binariamente definidas e identificáveis:<br />
chicanos contra negros, asiáticos contra brancos, judeus contra negros,<br />
negros contra brancos, brancos contra todos, etc. Apesar da microfísica<br />
8 STELZER, Joana. Relações internacionais e corporações transnacionais: um estudo de interdependência<br />
à luz da globalização. In: OLIVEIRA, Odete Maria de (org.). Relações internacionais e globalização. Ijuí:<br />
UNIJUÍ, 1999, p.104.<br />
9 ARON, R. Op. cit., p. 263 ; VIRILIO, Paul. Velocidade e política. São Paulo: Estação Liberdade, 1996.<br />
10 VIRILIO, P. Op. cit., p. 114.<br />
11 Idem, p. 114.<br />
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dos poderes envolvidos, na maior parte das vezes eles são apresentados<br />
como tendo fronteiras bem-definidas, condizendo com as fronteiras dos bairros<br />
e guetos habitados por cada etnia: Little Italy, Chinatown, favelas, malocas,<br />
subúrbios, condomínios. São combates entre “zonas de segurança” e<br />
“zonas selvagens”, como apontou John Urry 12 .<br />
É nas cidades multiétnicas e multicivilizacionais que brota grande parte<br />
dos dilemas que hoje assolam tanto os governos quanto à comunidade internacional.<br />
Não é a invasão de um país por outro que desestabiliza o sistema<br />
internacional – apesar desse tipo de ação, é claro, continuar sendo um tipo<br />
evidente de casus belli. Basta que se proíba o uso de símbolos religiosos em<br />
escolas e repartições públicas, como foi visto na França, para que conflitos<br />
surjam entre o governo francês e os governos de países muçulmanos; basta<br />
que se ofenda ou se abuse do Alcorão para que protestos se alastrem pelo<br />
mundo, causando morte e destruição; basta que um grupo de homens seqüestrem<br />
quatro aviões e matem três mil pessoas, para que Estados sejam responsabilizados<br />
e se inicie uma verdadeira cruzada em nome da “guerra contra o<br />
terrorismo”. Enfim, todos esses problemas nascem “na” civilidade e não “entre”<br />
Estados de civilizações diferentes. Ocorrem na civilidade, na medida em<br />
que ocorrem nas ruas de cada cidade multiétnica e multicivilizacional. A convivência<br />
internacional fica ameaçada por eventos que se dão no local.<br />
O terrorismo hoje se coloca como um problema para o estudo das<br />
relações internacionais, em parte porque, cada vez mais e de forma mais<br />
decisiva, uma etnia, ou melhor, uma religião vem sendo identificada como o<br />
Mal, como o inimigo intransigente, a saber, o islamismo. O perigo desse tipo<br />
de identificação simplista e absurda é que os muçulmanos vêm sendo caracterizados<br />
como sanguinários e implacáveis terroristas. Essa bizarra identificação<br />
tem gerado inúmeros conflitos nas principais metrópoles mundiais, os<br />
quais, evidentemente, não estão acontecendo “entre estados-núcleos” de<br />
civilizações diferentes 13 , mas “na” civilidade.<br />
39<br />
Conflitos na civilidade<br />
O que aqui denomino de “conflitos na civilidade” são os que surgem no<br />
seio de cada cidade-mundo, que brotam, principalmente, dos choques entre<br />
12 URRY, John. “The global complexities of September 11th”. Theory, Culture & Society, London, vol.19, n.4,<br />
2002, p.57-69.<br />
13 HUNTINGTON, Samuel P. O choque de civilizações. Rio de Janeiro: Objetiva, 1997, p.109.<br />
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40<br />
diferentes culturas que habitam uma mesma comunidade.<br />
O 11 de Setembro e a “guerra contra o terrorismo” que o seguiu só<br />
fizeram aumentar os conflitos na civilidade, na medida em que, como nunca<br />
antes, os muçulmanos em geral foram identificados como os criminosos<br />
mundiais por excelência. Os jornais de 12 de setembro de 2001 publicaram<br />
vários casos de ataques a muçulmanos – ou a pessoas que condissessem<br />
com o estereótipo desse povo – como forma de vingança aos atentados. A<br />
charge abaixo capta perfeitamente esse sentimento 14 :<br />
Essas manifestações de ódio e de perseguição não foram isoladas nem<br />
tampouco cessaram conforme os dias passaram. Pelo contrário, elas aumentaram<br />
de intensidade e se espalharam pelo mundo. A fim de compreender as<br />
potencialidades desestabilizadoras desses conflitos para as relações internacionais,<br />
faço uso de vários trabalhos que atestam as dificuldades de convivência<br />
entre diferentes culturas pela identificação dos muçulmanos como terroristas.<br />
A socióloga Louise Canikar, num estudo sobre o impacto das políticas<br />
pós-11 de Setembro sobre as comunidades muçulmanas em Chicago, conclui<br />
que “a identificação de membros destas comunidades de forma indiscriminada”<br />
é o maior problema atual. Dentre vinte políticas internas adotadas pelo<br />
governo norte-americano após os ataques, quinze diziam respeito diretamente<br />
a muçulmanos que lá viviam ou que para lá pretendiam viajar 15 . Den-<br />
14 AUTH, Tony. They are insane. New York Times, 13 de setembro de 2001. Disponível em: www.coping.org/<br />
911/pixmood/cartoon/3.gif. Acesso: 1° de julho de 2005. (–Que tipo de ódio cego pode levar as<br />
pessoas a ser tão más?/ – Vamos espancar alguns árabes!).<br />
15 CANIKAR, Louise. Post 9/11 policies affecting U.S. Arabs and Muslims: a brief review. Comparative<br />
Studies of South Asia and the Middle East, vol.24, n.1, 2004, p.245.<br />
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tre elas, Canikar ressalta: a interrupção ou o maior rigor na emissão de vistos,<br />
a suspensão de bolsas de estudos e, inclusive, de tratamentos a pacientes<br />
que necessitavam de quimioterapia, assim como o monitoramento da vida<br />
privada. Esse tipo de preconceito civilizacional institucionalizado refletiu-se<br />
também na imagem que as pessoas nutriam dos muçulmanos em geral. Antes<br />
do 11 de Setembro, pelo menos 80% dos americanos pensavam ser errado<br />
envolver perfis raciais na aplicação da lei, como o direito de policiais suspeitarem<br />
de um motorista negro. Após os ataques, 60% tornaram-se favoráveis ao<br />
uso de perfis, “pelo menos se o suspeito [fosse] árabe ou muçulmano” 16 .<br />
Esses problemas não são encontrados apenas nos Estados Unidos, mas<br />
em praticamente todos os países que possuem comunidades islâmicas. Na<br />
Austrália, foram reportados inúmeros casos de violência contra muçulmanos<br />
ou contra instituições que ajudam imigrantes e auxiliam exilados de países<br />
como Afeganistão e Irã. A historiadora Victoria Mason apresenta alguns impressionantes<br />
relatos: uma mulher fazia compras quando foi alvejada por<br />
ovos e insultos; outra dirigia para casa, após pegar suas filhas na escola,<br />
quando foi seguida por uma mulher, que xingou a ela e às suas filhas por<br />
serem islâmicas e não pertencerem àquele país 17 .<br />
Os casos de agressões são quase infindáveis. Há um aumento das relações<br />
de antagonismo, desconfiança, medo e temor entre as diferentes etnias<br />
e culturas. Evidentemente que as populações muçulmanas também reagem<br />
às ações do Ocidente 18 . Exemplar é o espancamento sofrido pelo repórter<br />
norte-americano Robert Fisk na fronteira entre o Afeganistão e o Paquistão.<br />
Eles começaram apertando mãos. Nós dissemos, ‘Salam aleikum’ – que a<br />
paz esteja com você – daí as primeiras pedras começaram a passar pelo<br />
meu rosto. Um garoto tentou pegar minha mochila. Então outro. Alguém<br />
me socou as costas. Aí um jovem quebrou meus óculos, começou a jogar<br />
pedras na minha cabeça e rosto. Eu não conseguia enxergar porque o<br />
sangue descia pela minha testa e inundava meus olhos. E mesmo neste<br />
momento eu compreendi. Eu não os conseguia culpar pelo que estavam<br />
fazendo. De fato, se eu fosse os refugiados de Kila Abdullah, perto da<br />
16 MAIRA, Sunaina. Youth Culture, Citizenship and Globalization: South Asian Muslim Youth in the United<br />
States after 9/11. Studies of South Asia, Africa and the Middle East, vol.24, n.1, 2004, p.219.<br />
17 MASON, Victoria. Strangers within the ‘Lucky Country’: Arab-Australians after 9/11. Comparative<br />
Studies of South Asia and the Middle East, vol.24, n.1, 2004, p.234.<br />
18 Não quero dizer que tudo o que o mundo muçulmano faz é uma reação mecanicista às agressões do<br />
ocidente e vice-versa.<br />
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fronteira afegã-paquistanesa, eu teria feito o mesmo com Robert Fisk.<br />
Ou com qualquer outro ocidental que eu conseguisse encontrar. 19<br />
O que está em jogo é que os “choques de civilizações” teorizados<br />
por Samuel Huntington, em 1996, inspiradores de muitos autores, desde<br />
então 20 , não acontecerão nas “linhas de fratura” de civilizações diferentes<br />
e não terão, tampouco, “estados-núcleos” de cada civilização como<br />
líderes. Huntington pensa os conflitos dessas linhas como um tipo que<br />
ocorre em “nível local ou micro [...] entre estados vizinhos de civilizações<br />
diferentes, entre grupos de civilizações diferentes dentro de um<br />
mesmo estado e entre grupos que estão tentando criar novos estados<br />
com os destroços do antigo estado” 21 . Contudo, ao longo de toda sua<br />
argumentação, o autor não teoriza seriamente a respeito da natureza<br />
dos conflitos que podem ocorrer dentro das cidades por que eles podem<br />
alcançar o nível internacional. Apesar de as teorizações de Huntington<br />
serem bastante mal-compreendidas por muitos intelectuais que<br />
preferem negar a validade ou adotar suas teses tout court, é preferível<br />
ficar atento a algumas de suas perspectivas. A crítica que faria diz respeito,<br />
por ora, à excessiva atenção que, a meu ver, ele presta ao Estado<br />
e à noção de fronteira que o estrutura e compõe.<br />
Voltando à “guerra contra o terrorismo”, por mais que os Estados Unidos<br />
e os países que a apóiam se esforcem em dizer que não se trata de<br />
uma guerra contra o islã, mas de uma guerra em busca de criminosos 22 , eles<br />
não conseguem convencer as populações, que continuam vendo a questão<br />
em branco e preto, ou entre bons muçulmanos e maus muçulmanos 23 . A<br />
agressividade das políticas externas da “Coalizão dos Desejosos” (Coalition<br />
of the Willing) não minimiza, de forma alguma, os conflitos que ocorrem<br />
nas ruas de cada país. Pelo contrário: ela os intensifica, de maneira cada vez<br />
mais perigosa.<br />
19 FISK, Robert. My beating by refugees is a symbol of the hatred and fury of this filthy war. In: SCRATON,<br />
Phil (coord.). Beyond September 11th: an anthology of dissent. London: Pluto Press, 2002, p. 211.<br />
20 Veja-se, por exemplo: SCHILLING, Voltaire. Ocidente versus Islã. Porto Alegre: L&PM, 2003; WAINBERG,<br />
Jacques A. Mídia e terror. São Paulo: Paulus, 2005.<br />
21 HUNTINGTON, S. Op. cit., p. 260.<br />
22 WOODWARD, Bob. Bush em guerra. São Paulo: Arx, 2003, p. 209.<br />
23 MAMDAMI, Mahmood. Good Muslim, bad Muslim: a political perspective on cultural terrorism. American<br />
Anthropologist, vol.104, n.3, 2002, p. 766-775.<br />
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Confiança, interdependência e relações internacionais<br />
Segundo o sociólogo espanhol Jose António Sáinz de la Peña, “em toda<br />
relação entre pessoas e grupos surgem inevitavelmente mal-entendidos,<br />
desacordos, e tensões que podem levar a conflitos econômicos, políticos,<br />
sociais, culturais e de segurança” 24 . Nesse sentido, e com base na idéia de<br />
que a violência entre diferentes culturas tem aumentado tanto em decorrência<br />
da identificação dos muçulmanos com o terrorismo, como em decorrência<br />
da agressividade dos países ocidentais, prova-se ser necessário, mais do<br />
que nunca, empreender um estudo dos impactos desses conflitos locais na<br />
política internacional.<br />
Estudos comprovam que o crime está em transformação. O sociólogo<br />
Sérgio Adorno, apesar de não ter pensado precisamente sobre o terrorismo,<br />
apontou o que considero uma “escalada ao extremo” da criminalidade em<br />
geral e do terrorismo em particular:<br />
Trata-se de um novo paradigma que está a dizer algo além do mero crime.<br />
Parece dizer respeito à mudança de hábitos cotidianos, à exacerbação de<br />
novos conflitos sociais, à adoção de soluções que desafiam tradições democráticas,<br />
à demarcação de novas fronteiras sociais, ao esquadrinhamento<br />
de novos espaços de realização pessoal e social, ao sentimento de<br />
desordem e caos que se espelha na ausência de justiça social. 25<br />
Adorno ainda salienta que “a violência vem adquirindo o estatuto de<br />
uma categoria explicativa do mundo contemporâneo que atravessa e articula<br />
as relações sociais, desde o âmbito das relações internacionais até o âmbito<br />
privado das relações domésticas” 26 .<br />
É conhecido o longo debate entre as duas grandes correntes de pensamento<br />
das relações internacionais, a tradicionalista e a pluralista 27 . Em linhas<br />
gerais, o debate é colocado da seguinte forma: para os tradicionalistas, o<br />
mundo internacional é anárquico. Não há um poder supranacional capaz de<br />
24 SÁINZ DE LA PEÑA, Jose Antonio. Medidas de confianza y diálogo cultural. UNISCI Discusión Papers,<br />
Madri, oct., 2003, p. 1.<br />
25 ADORNO, Sérgio. Violência e civilização. In: SANTOS, José Vicente dos, GUGLIANO, Alfredo Alejandro.<br />
A sociologia para o século 21. Pelotas: Educat, 1999, p. 79.<br />
26 ADORNO, S. Op. cit., p. 96.<br />
27 OLIVEIRA, Odete Maria de. Relações Internacionais e o dilema dos paradigmas: configurações tradicionalistas<br />
e pluralistas. In: OLIVEIRA, Odete Maria de, e DAL RI Jr., Arno (orgs.). Relações internacionais:<br />
interdependência e sociedade global. Ijuí, R.S.: UNIJUÍ, 2003, p. 114.<br />
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garantir a paz e a segurança. Dessa forma, os fortes tendem a vencer e a<br />
conseguir o que querem. Os estados são, por conseqüência, os atores principais<br />
essas relações. Já para os pluralistas, no mundo internacional há a possibilidade<br />
de convivência entre estados. Existe a possibilidade kantiana de uma<br />
“paz perpétua”. O mundo internacional exige não apenas a força, mas também<br />
o diálogo e a cooperação, uma vez que os fortes não conseguem exercer<br />
seu poder em todas as frentes. Eles precisam formar alianças, fazer pactos e<br />
acordos, estabelecer blocos, enfim, desenvolver a confiança mútua. Os atores<br />
não são apenas os Estados, mas as empresas multinacionais, as organizações<br />
não-governamentais, blocos econômicos, grupos de pressão e até indivíduos.<br />
Em face ao mundo atual, é fácil desmerecer ou corroborar as teses<br />
tanto de uma quanto de outra perspectiva. Pensar em termos de escolas ou<br />
correntes de pensamento, contudo, pode ser problemático. Se, por um lado,<br />
a divisão facilita o aprendizado das matrizes de pensamento, por outro, ela<br />
esconde as singularidades de cada pensador. Por ora, é necessário ter em<br />
mente que a questão do desenvolvimento de uma hermenêutica da confiança<br />
nas relações internacionais exigirá um grande esforço de releitura tanto<br />
dos clássicos como dos trabalhos mais recentes, na teoria das relações internacionais<br />
e nas disciplinas afins.<br />
A questão da confiança nessa área hoje se impõe na medida em que –<br />
como venho argumentando – os dilemas internacionais não nascem apenas<br />
dos interesses divergentes de estados diferentes. Não são diplomatas e militares<br />
de cada país que representam as grandes ameaças aos demais. As estruturas<br />
de poder estão em franca metamorfose. As ameaças estatais estão<br />
sendo – e na verdade já foram – substituídas pelas que brotam de conflitos<br />
nascidos localmente. Em parte, o dilema que se impõe às relações internacionais<br />
está ligado à imagem pública que certo governo pode nutrir externa e<br />
internamente. Segundo Joseph S. Nye “A política se torna mais teatral e mais<br />
voltada para públicos globais” 28 .<br />
O mundo internacional é permeado por “interações globais”, por “movimentos<br />
de informação, dinheiro, objetos físicos, povos e outros itens que,<br />
tangíveis ou intangíveis, atravessam as fronteiras estatais” 29 . O terrorismo, em<br />
grande medida, vale-se de todos esses movimentos para conseguir seus objetivos.<br />
Note-se a importância do uso da internet para a elaboração das operações;<br />
o uso de contas bancárias internacionais e a impossibilidade de rastre-<br />
28 NYE Jr., Joseph S. O paradoxo do poder americano. São Paulo: UNESP, 2002, p. 110.<br />
29 OLIVEIRA, O. Op. cit., p. 98.<br />
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amento das pequenas somas necessárias para seu financiamento; os intensos<br />
fluxos de turistas e pessoas em negócios que lotam os aeroportos das metrópoles,<br />
tornando a fiscalização rígida de cada passageiro algo impraticável 30 .<br />
Enfim, o mundo da globalização é também o mundo do terrorismo global, e,<br />
nesse sentido, como o caracterizou o secretário norte-americano Colin Powell<br />
“O terrorismo é o lado negro da globalização” 31 .<br />
Voltando a Sáinz de la Peña “a confiança é, portanto, não o resultado de<br />
um ato isolado e pontual senão o de um processo acumulativo no tempo, com<br />
altos e baixos, que pode inclusive deter-se ou retroceder-se”. O processo de<br />
“construção de confiança” é lento e demanda grandes aberturas ao diálogo.<br />
Num mundo de fluxos econômicos, humanos e informacionais tão intensos, a<br />
interpretação da ordem internacional deve passar pela interpretação dos modos<br />
pelos quais as diferentes culturas têm conseguido ou não conviver entre si.<br />
Proponho a interpretação de dois acontecimentos recentes que podem<br />
ser pensados dentro do quadro interpretativo que venho delineando 32 . O<br />
primeiro diz respeito à imagem dos Estados Unidos perante a opinião pública<br />
internacional após o 11 de Setembro. Parece inegável que logo depois dos<br />
ataques o sentimento de consternação mobilizou o mundo numa corrente de<br />
solidariedade pelas vítimas. Milhares de flores foram depositadas nas embaixadas<br />
norte-americanas pelo mundo todo; minutos de silêncio foram respeitosamente<br />
feitos nas principais capitais do planeta. Esses tipos de manifestações,<br />
por si só, atestam o grau de globalidade das relações políticas hoje.<br />
Logo após os ataques, o mundo político internacional também se mobilizou<br />
para dar sua resposta. Tony Blair declarou guerra aos terroristas e total<br />
e incondicional apoio aos Estados Unidos, antes mesmo de o presidente<br />
norte-americano ter saído de seu esconderijo e se pronunciado. Pela primeira<br />
vez na história a cláusula cinco da OTAN foi invocada. Líderes dos principais<br />
países se solidarizaram com o governo norte-americano lhe prometeram<br />
apoio ao combate ao terrorismo. No entanto, assim que a “guerra contra<br />
30 9/11 COMMISSION REPORT, The. Washington, D.C.: Congress of the United States, 2004, p. 174, 54,<br />
237, 390, respectivamente.<br />
31 URRY, J. Op. cit., p. 57.<br />
32 Faz-se necessário esclarecer que a o quadro interpretativo que venho esboçando não é uma metateoria,<br />
ou seja, uma teoria que tenha a pretensão de interpretar os conflitos em geral das relações<br />
internacionais contemporâneas. Penso, tão somente, em alguns tipos de conflitos, os conflitos na<br />
civilidade, que considero hoje como uma importante ameaça à ordem internacional, mas que não são, de<br />
modo algum, os únicos a se manifestarem. Tomemos como exemplo as ainda rixas entre o Irã e a Coréia<br />
do Norte com o ocidente capitalista no que diz respeito à proliferação ou aquisição de armamentos<br />
nucleares. Em grande medida, estes conflitos nos lembram momentos da antiga Guerra Fria, da luta<br />
entre estados e ideologias divergentes apesar de, é claro, também terem de ser lido sob outra ótica<br />
devido ao novo contexto no qual estão inseridos.<br />
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o terrorismo” começou a tomar seus primeiros contornos, os aliados se dividiram.<br />
A charge de Jeff Danziger, publicada logo após os ataques, capta<br />
perfeitamente essa tendência e poupa palavras 33 :<br />
É inegável que a imagem do governo Bush antes dos ataques era<br />
interna e externamente problemática. O abandono do protocolo de Kyoto,<br />
a política agressiva em relação ao Oriente Médio e seu perceptível conservadorismo<br />
na política doméstica já lhe rendiam antipatias. No entanto, parece-me<br />
também inegável que a Casa Branca poderia ter aproveitado melhor<br />
o momento de comoção generalizada, proporcionado pelo 11 de Setembro,<br />
e valorizado seu soft power, seu poder ideológico e cultural 34 .<br />
A ameaça do terrorismo pede uma solução global: políticas que vão<br />
desde o incremento da qualidade de vida das populações nas regiões<br />
onde são recrutados jovens para ações terroristas, até políticas policiais<br />
que já vêm sendo tomadas. Nesse sentido, é indiscutível a importância<br />
dos Estados Unidos como líder mundial com presença militar em todo o<br />
33 DANZIGER, Jeff. The alliances so far. New York Times, 18 de setembro de 2001. Disponível em:<br />
www.danziercartoons.com Acesso: 01/07/2005 (- Nossos amigos sauditas, alemães, britânicos, franceses,<br />
italianos, e mesmo os russos, estão todos conosco em nosso caminho para a GUERRA... /–<br />
“GUERRA? Mm... bem, tenho que ir pra casa agora, acho que deixei o chuveiro ligado.../– Eu não sei nada<br />
sobre guerra..../– Coloque a chaleira no fogo.../ – Refresque minha memória... Nós fizemos algo na<br />
última guerra? Não ... Acho que não./ - Entrar em guerra com o Afeganistão... muito engraçado... Rá! Rá!).<br />
34 NYE, J. Op. cit., p. 14.<br />
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globo e com capacidade técnica e logística para encabeçar uma frente<br />
global. No entanto, “esta racionalidade e particular raison du système<br />
parece eminentemente resistível; e nós precisamos nos perguntar claramente<br />
por que” 35 .<br />
A resposta mais simples a essa resistência é fornecida por um tradicionalista:<br />
“as unidades políticas se esforçam em impor, umas às outras, sua<br />
própria vontade” 36 . Dessa forma, parece haver mais desconfiança do que<br />
confiança no sistema internacional. A imagem negativa dos Estados Unidos<br />
após o 11 de Setembro perante a opinião pública internacional deve-se,<br />
essencialmente, a essa sensação de desconfiança das pretensões das políticas<br />
externas do presidente norte-americano. No entanto, pluralistas como<br />
Joseph Nye asseguram, com grande margem de acerto, que o mundo internacional<br />
da globalização não suporta mais o exercício do hard power – do<br />
poder militar – de maneira exacerbada. É necessário balanceá-lo com o soft<br />
power, o poder brando 37 .<br />
O antiamericanismo vem crescendo de forma impressionante 38 , e não<br />
apenas no mundo muçulmano. Manifestações antiestadunidenses – e, por<br />
extensão, antiocidente – ocorrem sempre que o presidente ou seus representantes<br />
pisam o solo de qualquer país. Isso é um fato novo. A imagem<br />
negativa dos Estados Unidos tem contribuído para dificultar a consolidação<br />
de alianças na necessária política contra o terrorismo. Estando o país em<br />
crescente “tensão” com a ordem legal internacional, o grande problema para<br />
Washington (e, em conseqüência, para o mundo) será o de encontrar parceiros<br />
uma vez que uma aliança com eles significará “a perda de prestígio interno”<br />
por parte dos governos 39 .<br />
Um exemplo dessa tendência foi a desistência da Espanha em fazer<br />
parte da aliança de intervenção no Iraque, após os atentados de 11 de março<br />
de 2004 em Madri. Num misto de indignação interna e de manifestação<br />
antiamericana, a Espanha ficou em polvorosa por alguns dias. Primeiro veio a<br />
perda das eleições de Jose Maria Aznar para Jose Rodrigues Zapatero. Num<br />
segundo momento, e em grande medida em conseqüência do primeiro, a<br />
35 HURRELL, Andrew. There are no rules’ (George W. Bush): International order after September 11.<br />
International Relations, London, vol.16, nº2, 2002, p. 190.<br />
36 ARON, R. Op. cit., p. 107.<br />
37 NYE, J. Op. cit., p. 14.<br />
38 NYE, J. Op. cit.; RUSHDIE, Salman. Antiamericanismo exige olhar sóbrio dos Estados Unidos. Folha de<br />
São Paulo, p. A3, 1º de Setembro de 2002.<br />
39 HURRELL, A. Op. cit., p. 201.<br />
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Espanha retirou-se da aliança, dando o primeiro grande golpe na “guerra<br />
contra o terrorismo”. Note-se que Zapatero havia se pronunciado de forma<br />
clara que seria necessária uma aliança com os Estados Unidos no sentido de<br />
garantir a segurança internacional. Logo após ser eleito, ele se manteve coerente<br />
a seus primeiros posicionamentos na medida em que ele havia assegurado<br />
que a resposta ao terrorismo deveria partir de uma “aliança multilateral”<br />
voltada a mudanças profundas nas “situações de desespero” das quais o terrorismo<br />
se alimenta, como a falta de perspectivas sociais, a marginalidade, a<br />
pobreza e as ditaduras, e não de uma “guerra” absurda contra o Afeganistão<br />
e, muito menos, contra o Iraque 40 .<br />
O segundo acontecimento a ser compreendido como conflito na civilidade<br />
são as recentes manifestações que se espalharam pelo mundo por<br />
causa da suposta violação do Alcorão por oficiais norte-americanos na base<br />
de Guantanamo. A notícia tomou o mundo de forma imediata. Manifestações<br />
antiamericanas foram registradas em várias partes do mundo muçulmano,<br />
principalmente naqueles países que apóiam a intervenção no Afeganistão,<br />
como o Quirguistão, o Tadjiquistão e o Cazaquistão. Mais de setecentas<br />
pessoas morreram nos enfrentamentos entre policiais e manifestantes.<br />
As relações entre governos e opinião pública foram seriamente abaladas.<br />
De maneira significativa, a atmosfera negativa e tensa gerada sobretudo<br />
pelo 11 de Setembro nesses dois episódios atesta, pontualmente, a paulatina<br />
perda de aliados por parte dos Estados Unidos no cenário internacional<br />
e o choque entre ocidente e islã, em nível global. Os sentimentos antiamericano<br />
e antiocidental, bem como os sentimentos antimuçulmanos e antiorientais,<br />
têm aumentado ao longo dos últimos cinco anos de forma bastante<br />
surpreendente. Aos exemplos anteriores poderiam ser somados outros tantos.<br />
Os conflitos gerados por uma única notícia local em Guantânamo, por<br />
exemplo, serviram como catalisadores dos conflitos no mundo globalizado.<br />
Considerações finais<br />
É importante notar que muitas das atuais crises das relações internacionais<br />
não nasceram da agressividade “entre” Estados. Elas se desenvolveram a<br />
partir de crises locais, de atentados terroristas, de manifestações de rua, de<br />
40 RODRÍGUEZ ZAPATERO, José Luis. España y Europa ante la crisis. Política Exterior, Madrid, vol. 84, 2001,<br />
p. 28-29.<br />
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conflitos entre diferentes culturas e etnias, que, de maneira acentuada, fizeram<br />
aflorar tensões mundiais que já eram, estruturalmente, latentes. Os conflitos<br />
na civilidade surgemdo local – em Nova Iorque, Madri, Gauntánamo,<br />
Paris, Londres, Kabul – e se espalham pelas relações entre os Estados. Nessa<br />
nova realidade, as categorias de análise das relações internacionais precisam<br />
ser repensadas.<br />
Compreender a potencialidade de os conflitos na civilidade tensionarem<br />
esas relações a ponto de tornarem as cidades campos de estudos das<br />
relações internacionais, faz parte do mesmo esforço em teorizar, hoje, a respeito<br />
da ubiqüidade das notícias, da transformação e da permeabilidade das<br />
fronteiras, da globalização da política, enfim, do sentimento de que o mundo<br />
é hoje um só mundo, uma grande cidade-mundo. Esse esforço requer que se<br />
tome bastante cuidado com as teorias e aproximações empregadaspara interpretar<br />
as relações entre Estados. Nenhuma escola de pensamento das<br />
relações internacionais é mais apropriada do que as demais para se embrenhar<br />
nessa empreitada. De fato, o abandono de leituras calcadas em escolas<br />
faz-se urgente. É necessário se debruçar, cada vez mais, nas leituras dos<br />
clássicos da área tomando-os não como membros de “escolas”, mas sim como<br />
autores, como sujeitos complexos que possuem certezas, incongruências e<br />
contradições. O mundo pós-Guerra Fria – com a especial ameaça do terrorismo<br />
extremo – desafia a disciplina de Relações Internacionais e suas categorias.<br />
Esbocei aqui apenas um breve e sucinto quadro de análise que fornece,<br />
tão somente, algumas pistas para a abertura desse caminho. Os desafios à<br />
frente são enormes e requererão ainda muitas páginas de leituras e discussões.<br />
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Fronteiras sociais e culturais:<br />
a infância desvalida e suas formas de “proteção”<br />
Resumo<br />
Ao nos referirmos ao termo fronteiras, estamos<br />
falando de populações, social, histórica<br />
e culturalmente constituídas. Assim<br />
sendo, o presente artigo tem o propósito<br />
de apresentar algumas discussões presentes<br />
em nossa pesquisa de mestrado, na<br />
linha de “Fronteiras populações e bens<br />
culturais”, onde tentamos perceber como<br />
a grande imprensa paranaense apreendeu,<br />
reproduziu e representou a infância<br />
em situação de rua ao público leitor. Desta<br />
forma, apresentaremos algumas questões<br />
de fundamental importância para a compreensão<br />
da problemática, quais sejam: a<br />
concepção de fronteiras; o conceito de<br />
pobreza; um breve histórico da infância<br />
abandonada, bem como as instituições<br />
voltadas ao atendimento dessas crianças.<br />
Palavras-chave:<br />
fronteiras – crianças de rua – formas de<br />
proteção<br />
* Mestranda em História pela Universidade Estadual de Maringá.<br />
51<br />
Rosa Alves Ferreira Barbosa*<br />
Abstract<br />
When we refer to the word frontiers, we<br />
are talking about social, historic and culturally<br />
established population. Then, this<br />
article aims to present some discussions,<br />
which take part in my master’s research,<br />
in the line of Frontiers Population and<br />
Cultural Possessions, where we try to<br />
understand how the great paranaense<br />
press, grasped, reproduced and represented<br />
the childhood in situation of street<br />
to the reader public. So, we are going<br />
to present some important questions for<br />
the comprehension of the problematic<br />
issue, which are the concept of frontiers;<br />
the concept of poverty; a brief historical<br />
of the abandoned childhood, as well as<br />
the institution that takes care of these<br />
children.<br />
Keywords:<br />
frontiers – children that are in the streets<br />
– ways of protection<br />
REV. TERRITÓRIOS E FRONTEIRAS – PROG. DE PÓS-GRAD. EM HISTÓRIA – UFMT – V.6 – N.2 – JUL./DEZ. 2005<br />
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A fronteira é o espaço próprio de encontro de sociedades e culturas<br />
entre si diferentes, como as sociedades indígenas e a chamada sociedade<br />
“civilizada”; lugar da pretensa epopéia da frente pioneira e dos<br />
também chamados “pioneiros” e “civilizadores”. É o lugar da busca<br />
desenfreada de oportunidades, mas também do genocídio dos povos<br />
indígenas, do massacre dos camponeses pobres, da subjugação dos<br />
frágeis e desvalidos. A fronteira é um lugar privilegiado de observação<br />
sociológica e de conhecimento dos conflitos e dificuldades próprios da<br />
constituição da humanidade do homem, no encontro conflitivo das sociedades,<br />
inclusive a nossa, que tem ali o seu limite e que estão no<br />
limiar da história. É na fronteira que se pode observar melhor como as<br />
sociedades se formam, se desorganizam ou se reproduzem. 1<br />
Considerando as reflexões de José de Souza Martins, onde ele define fronteira<br />
com grande propriedade, a fronteira é ao mesmo tempo lugar da alteridade<br />
e expressão da contemporaneidade dos tempos históricos. No que se refere<br />
especificamente ao Brasil, ele afirma que as pesquisas de campo realizadas por<br />
geógrafos e antropólogos, entre os anos 30 e 50, foram essenciais para a construção<br />
da concepção de fronteira neste país, e o conflito social por sua vez seria<br />
o que há de mais relevante para caracterizar e definir a fronteira 2 .<br />
Como podemos observar, os debates sobre fronteiras são discussões<br />
ainda bastante recente no Brasil. Assim sendo, não é de se estranhar, que<br />
geralmente o primeiro pensamento que vem à mente das pessoas diante do<br />
termo fronteiras seja a idéia de barreira, de limite geográfico. Contudo, o<br />
conceito possui um sentido mais amplo, assim como o conceito de cultura,<br />
aliás, atualmente o mais correto seria utilizá-los no plural, devido à multiplicidade<br />
de significados atribuídos aos termos. Tal diversidade seria conseqüência<br />
da busca de respostas aos questionamentos das sociedades, bem como<br />
da variedade cultural que pode existir dentro de uma fronteira. No que se<br />
refere especificamente à cultura, o conceito pode ter vários significados correlatos,<br />
dependendo do objetivo e da base teórica de quem irá utilizá-los.<br />
Entenda-se cultura enquanto uma constelação mais ampla de sistemas de<br />
crenças, visões do mundo implícitas, formas de compreensão, rituais e expressões<br />
artísticas populares.<br />
1 MARTINS, José de Souza Fronteiras: a degradação do outro nos confins do humano. São Paulo: Hucitec,<br />
1997, p. 1.<br />
2 Idem, Ibidem, p. 7-31.<br />
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Para Zientara, “a fronteira é constituída pelos inumeráveis pontos sobre<br />
os quais um movimento é obrigado a parar”, entretanto, a mobilidade lhe é<br />
intrínseca, assim como as comunidades econômicas, política, religiosa, étnica<br />
e lingüística são seus fatores constitutivos. A fronteira traria consigo ainda os<br />
movimentos de expansão e contração os quais estariam ligados à força interna<br />
do grupo e ao receio dos grupos limítrofes. Para esse autor, “as fronteiras<br />
também se relacionam com a idéia de repartição do mundo pelos grandes<br />
impérios, religiões, etc”. Segundo esse entendimento, a idéia de fronteira<br />
“teria um sentido de mobilidade, instabilidade e porosidade, pois as sociedades<br />
não são estáticas: os elementos da cultura assim como as fronteiras estão<br />
sempre em movimento. Sendo, portanto, socialmente construída” 3 .<br />
Dentro desse raciocínio, porém numa visão mais antropológica, Ulf<br />
Hanners ao discutir a idéia de fronteiras no mundo globalizado, defende a<br />
cultura enquanto fluxo e processo. Para ele é falsa a idéia de que a globalização<br />
vai homogeneizar o mundo. O que poderia acontecer segundo ele, seria<br />
o surgimento de uma cultura de fronteira, pois, apesar do discurso de um<br />
mundo globalizado ainda existe muitas fronteiras, culturais, ideológicas e<br />
geográficas, tendo como exemplo as fronteiras entre Israelenses e Palestinos,<br />
e Estados Unidos e o México.<br />
Nesse sentido, a globalização diria respeito apenas à mercadorias e<br />
capitais, não as pessoas. O autor contesta ainda a idéia de aculturação, pois<br />
os fluxos e as trocas culturais também não se dariam de formas iguais e<br />
harmônicas, já que a população tende a incorporar ou rejeitar determinados<br />
elementos. Ë nesse sentido que autores como F. Barth afere que apesar do<br />
contato, não existe uma homogeneização das culturas. Assim, existem conflitos<br />
de classes e contradições, os quais o discurso universal dos dominadores<br />
buscaria ignorar 4 .<br />
Em “aflições de um homem de fronteira”, J. Hector St. John de Crevecouer<br />
tenta nos transmitir através de uma longa carta o desabafo, a angústia<br />
e o desespero de um homem de fronteira com a sua condição, da sua família<br />
e das pessoas que ali vivem ameaçados pela violência, pelos interesses, o<br />
medo, e a intolerância. Tais personagens em muito se parecem com tantos<br />
outros que vivem, ou seria mais apropriado dizer sobrevivem, nas diversas<br />
fronteiras. Fronteiras e sujeitos como os de minha investigação 5 .<br />
3 ZIENTARA, Benedkt. Fronteira. Enciclopédia Einauldi – Estado e Guerra. Lisboa: Imprensa nacional –<br />
Casa da moeda, 1989, v.14, p. 317-320.<br />
4 HANNERZ, Fluxos, fronteiras, híbridos: palavras-chave da antropologia transnacional. Mana, 1997, p. 1-4.<br />
5 CREVECOEUR, J. Hector de. Aflições de um homem de fronteiras. Texto traduzido na Internet. 1782, p. 1-20.<br />
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Entenda-se fronteiras aqui não como uma barreira geográfica, um local<br />
de separação, mas fronteiras móveis e permeáveis, enquanto um espaço<br />
de trocas e de encontros da diversidade cultural, bem como de alteridade,<br />
de confrontação de experiências históricas, sociais, ideológicas, culturais<br />
e religiosas, de conflitos entre os diferentes grupos sociais. Fronteiras,<br />
que José de Souza Martins tão bem define em toda a sua sensibilidade e<br />
conhecimento. A idéia de fronteiras traz consigo a idéia de movimento,<br />
expansão e retração, que está ligada à força interna da população. E tanto<br />
como um lugar de separação, de confrontação ou de trocas, são constituídas<br />
socialmente. Tornando-se cada vez mais porosas, mas, longe de desaparecerem<br />
elas se movem e se transformam, assumindo novos significados<br />
nas relações sociais vividas.<br />
[...] Mais do que fronteira demarcada pela expansão demográfica da<br />
economia capitalista, tem sido, sobretudo, fronteira do humano. Nesse<br />
sentido, ela tem um caráter litúrgico e sacrificial, porque nela o Outro é<br />
degradado para, desse modo, viabilizar a existência de quem o domina,<br />
subjuga e explora. Ë ela um lugar de antropofagia simbólica, de desencontro,<br />
na busca de destino dos que se perderam nas veredas e no<br />
abismo do incógnito e desconhecido. 6<br />
Portanto, é segundo essa compreensão que o trabalho que buscamos desenvolver<br />
vincula-se à linha de pesquisa: fronteiras populações e bens culturais.<br />
É ainda nesse sentido que acredito ser o conceito de representação social de<br />
Chartier o mais apropriado para essa discussão, pois, para esse autor a cultura é<br />
um campo de lutas, lutas entre as classes sociais. Desta forma, “nos diversos<br />
espaços em que os homens atuam o poder se manifesta e está atrelado ao<br />
universo cultural, as práticas, aos valores e às representações” 7 . Esse raciocínio<br />
nos remete ainda a Foucault, segundo o qual, o poder não se encontra presente<br />
apenas no Estado, estende seus tentáculos a outros espaços, a outras esferas<br />
da sociedade, assim, um determinado grupo social ao exercê-lo busca impor<br />
seus valores, sua visão de mundo, sua dominação sobre outro grupo 8 .<br />
Enfim, a cultura possui nesse trabalho um papel de destaque, pois conforme<br />
ressalta Ronaldo Vainfas,<br />
6 MARTINS, 1997, p. 1.<br />
7 CHARTIER, 1991, p. 84.<br />
8 CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa, Difel, 1997, p. 8-84.<br />
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a história cultural não recusa de forma alguma as expressões culturais das<br />
elites “letradas”, mas, revela um especial apreço pelo popular, pela manifestação<br />
das massas anônimas, preocupando-se em resgatar o papel<br />
das classes sociais, da estratificação e do conflito, sendo sobretudo plural<br />
ao apresentar caminhos alternativos para a investigação histórica. 9<br />
É nesse sentido, que nos propomos a perceber as fronteiras sociais e<br />
culturais dos sujeitos de nossa investigação.<br />
Nesta perspectiva, a história é um processo de construção humana de<br />
grupos sociais que promovem a transformação histórica ao longo do tempo.<br />
Assim, a produção do conhecimento histórico tem se mostrado um grande<br />
desafio. O surgimento de novos problemas e questionamentos oriundos das<br />
transformações pelas quais as sociedades humanas têm passado levam à<br />
superação de modelos explicativos e ao surgimento de novos paradigmas<br />
que busquem dar conta da explicação histórica. Desta forma, as diversas<br />
maneiras de se fazer e de se escrever a história vem sendo discutida por<br />
diversas correntes e tendências historiográficas tais como: positivismo; marxismo;<br />
estruturalismo, annales, nova história, história das mentalidades e história<br />
cultural. Cada uma buscando dentro de seus princípios compreenderem<br />
e explicarem os fatos históricos a partir da sua visão de mundo.<br />
Na historiografia tradicional ou rankiana predominante nas primeiras<br />
décadas do século XX, a produção historiográfica era centrada nas idéias,<br />
decisões e ações dos “grandes homens”. Os indivíduos que não faziam parte<br />
da esfera política permaneciam à margem da sociedade e da história, pois<br />
suas ações não eram “dignas” de registro. Neste contexto, ao historiador cabia<br />
apenas verificar a veracidade dos documentos e transcrevê-los sem interferência,<br />
pois estes “falavam por si mesmo”. O objetivo maior era manter a cientificidade,<br />
o documento era tido como detentor da verdade e/ou conhecimento,<br />
tanto que a imprensa escrita, a qual constitui minha fonte de investigação, não<br />
era concebido como fonte fidedigna para a produção do conhecimento, tal<br />
como os sujeitos de nossa investigação, igualmente eram ignorados.<br />
No entanto, a partir de 1929 a Escola dos Annales, fundada por Marc<br />
Bloc e Lucian Febvre vieram transformar os rumos da historiografia mundial.<br />
De uma história tradicionalista, positivista, feita a partir de documentos oficiais,<br />
privilegiando os fatos políticos e militares, os grandes feitos dos grandes<br />
homens, passou a uma nova concepção de história, uma história no campo<br />
9 CARDOSO, Ciro Flamarion e VAINFAS, R. Domínios da História. Rio de Janeiro: Campos, 1997, p. 9-24.<br />
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econômico-social-mental, uma história-problema que busca novas fontes,<br />
novos métodos, novos temas, bem como a interdisciplinaridade 10 .<br />
Para Hebe Castro, é difícil, senão quase impossível, começar um trabalho<br />
sobre história social sem a referência ao movimento dos annales, pois,<br />
este se tornara um marco, real ou simbólico, de constituição de uma nova<br />
história em oposição às abordagens rankianas predominantes entre os historiadores<br />
profissionais até a primeira metade do século XX. Assim, “a história<br />
não será mais a narrativa de indivíduos vencedores. Ela é a pesquisa, a análise,<br />
a teoria e o cálculo do coletivo. Dentro dessa nova concepção, a demografia<br />
histórica, tomada como método pela história social, daria dimensão até<br />
então inusitada à história da família e da criança” 11 .<br />
Nessa mudança de rumo, a partir do século XX, numa maior aproximação<br />
com a antropologia e a sociologia os historiadores passaram a despertar um<br />
interesse todo especial pelos estudos da cultura, buscando resgatar o conflito e<br />
preocupando-se com as manifestações das massas anônimas, trazendo à tona<br />
os marginalizados e excluídos, os deserdados do poder e do grande capital.<br />
Atores sociais que se encontram fora do processo produtivo, como as crianças<br />
“de rua”, sujeitos e objeto de nossa investigação”.<br />
Assim sendo, o objetivo da pesquisa consiste em analisar o discurso<br />
expresso nas páginas dos jornais do Paraná: O Diário do Norte do Paraná; A<br />
Folha de Londrina; e O Estado do Paraná, acerca das crianças pobres que se<br />
encontram em situação de rua, compartilhando os mesmos espaços urbanos<br />
com outros habitantes. De uma forma mais precisa, buscaremos perceber<br />
a partir das fotorreportagens o olhar dos referidos jornais sobre a infância<br />
em situação de risco e abandono, como elaboram seus discursos e que<br />
imagem passam desses pequenos desvalidos ao público leitor, partindo do<br />
princípio de que o jornal é um veículo de discurso social, formador de<br />
idéias e opiniões que representa e transmite escala de valores e modelos<br />
de comportamentos sociais, morais e políticos. A escolha dos referidos jornais<br />
deve-se ao fato de serem os jornais de maior circulação não só na<br />
região, mas também no período analisado, sendo portanto, os de maior<br />
influência na formação da opinião pública.<br />
O recorte temporal desta pesquisa está modulado entre os anos de<br />
1990 e 2000. A data inicial é justificada em função da promulgação do Esta-<br />
10 CASTRO, Hebe. História social. In: CARDOSO, Ciro Flamarion e Vainfas, Ronaldo. Domínios da História.<br />
Rio de Janeiro: Campos, 1999, p. 23-34.<br />
11 CASTRO, 1999, p. 23.<br />
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tuto da criança e do adolescente que substituiu o equivocado código de<br />
menores em vigor desde 1979. Assim, o novo código determinou procedimentos<br />
diversos e diferentes em relação ao tratamento às crianças e aos<br />
adolescentes, em situação de risco e abandono. Desta forma, 1990 é considerado<br />
um marco pelas pessoas voltadas ao atendimento da infância desvalida,<br />
pois só a partir de então, a criança deixou de ser objeto de medidas para<br />
se tornar sujeito de direitos. O recorte final em 2000 justifica-se por ser um<br />
momento de balanço, reflexão e análise por parte dos vários setores da sociedade<br />
que, após uma década da implantação do referido estatuto, ainda lutam<br />
contra ou a favor das medidas estabelecidas por essa lei 12 .<br />
Portanto, ao fazermos a correlação texto/imagem, buscaremos perceber<br />
através de uma metodologia apropriada para o trato da fonte jornalística,<br />
mas especificamente do fotojornalismo, como a imprensa paranaense representa<br />
a infância em situação de rua em suas páginas, ao mesmo tempo evidenciando,<br />
a partir das reportagens, onde o discurso jornalístico se encontra<br />
de acordo e onde destoa do estabelecido no Estatuto da Criança e do Adolescente,<br />
bem como, tentaremos perceber as mudanças e permanências no<br />
trato à infância excluída, após uma década da promulgação do referido Estatuto,<br />
o qual determina proteção integral a todas as crianças, independente de<br />
raça, credo, ou posição social.<br />
A criança desvalida, sujeito e objeto desta pesquisa, não fala e não<br />
deixou nenhum documento escrito, conforme nos esclarece Maria Luiza Marcilio<br />
e José de Souza Martins 13 :<br />
[...] ela surge para nós muda, sem sentimento, sem vontade própria<br />
expressa. O resgate da criança exposta, como sujeito da História, foi<br />
feito de forma indireta, sinuosa, a partir de análises de conjuntos e da<br />
visão do outro”. As “Histórias” que conhecemos sobre elas, nos chegam<br />
por meio de fontes produzidas por várias autoridades responsáveis:<br />
mordomos dos expostos, provedores das santas casas, médicos, juristas,<br />
presidentes de províncias, presidentes de câmaras municipais, legisladores<br />
em geral, padres, bispos, educadores, jornalistas, filantropos,<br />
12 (ECA) Estatuto da criança e do adolescente, lei 8069 de 13 julho de 1990. Determina proteção integral<br />
a todas as crianças e adolescentes, independente de raça, credo ou posição social. Devido ao desconhecimento<br />
da nova lei, existe a crença de que tal lei só prevê direitos, ignorando assim os deveres e<br />
responsabilidades. O que não procede.<br />
13 MARCILIO, M. L. e VENÂNCIO, R. P. Crianças abandonadas e primitivas formas da sua proteção, séculos<br />
XVIII e XIX, Brasil. Belo Horizonte: Abep/CNPq, 1999, V. I p. 41-53. MARTINS, José de Souza. O<br />
massacre dos inocentes. São Paulo: Hucitc, 1993, p. 115-126.<br />
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diretores de instituições de crianças abandonadas, etc. Sempre como se<br />
vê um olhar adulto e oficial.<br />
Há os que falam e há os que silenciam e falam por meio do silêncio.<br />
São os que forma calados, excluídos e marginalizados das tribunas da<br />
vida, obrigados a dissimular o seu dizer no gesto e na metáfora. 14<br />
Nesta pesquisa daremos nosso olhar, adulto, também cercado da formalidade<br />
que a academia requer de uma dissertação. No entanto, esperamos<br />
chegar o mais perto possível das histórias efetivamente vividas por esse<br />
segmento, contemplando aspectos de sua vida de criança e sujeito da história.<br />
Nossa preocupação com a infância abandonada explica-se face à constatação<br />
feita através dos meios de comunicação, das instituições voltadas ao<br />
atendimento dessas crianças, e por nós mesmos, de que vivemos em um<br />
país onde milhares de crianças desvalidas perambulam pelas ruas, onde miséria,<br />
abusos, violência, drogas, prostituição, roubo, medo da morte, cenas de<br />
chacinas, perseguição policial, espancamentos, descaso, e exploração sexual<br />
fazem parte do cotidiano desses pequenos despossuídos que vivem nas ruas,<br />
praças e semáforos de nossas cidades, crianças que possuem pouca ou nenhuma<br />
perspectiva de futuro.<br />
Desta forma, ao analisarmos o histórico da infância abandonada, podemos<br />
constatar que entre os autores que discutem a problemática, a maioria<br />
aponta a pobreza como a primeira e maior causa do abandono de crianças<br />
em todos os tempos. A miséria faz parte da existência diária de uma grande<br />
parcela da população brasileira. Paupérrimas condições de moradia, alimentação<br />
e exploração nas relações trabalhistas, resultado de políticas desumanas<br />
e da má distribuição de renda, faz com que famílias inteiras vivam em<br />
condições subumanas, sem poder oferecer sequer o mínimo necessário para<br />
a sobrevivência de seus filhos, levando-os assim, ao abandono e a ter que<br />
lutar nas ruas pela própria sobrevivência.<br />
Segundo esse entendimento, ao analisarmos a história da infância desvalida,<br />
faz-se necessário a abertura de um espaço para uma discussão sobre o conceito<br />
de pobreza, pois a problemática da criança abandonada está intimamente<br />
ligada a uma questão mais ampla; que é a da pobreza, esta que é apontada por<br />
vários autores como a maior causa da exposição da infância em todos os tempos.<br />
Buscando entender o sentido que adquiriu o conceito de pobreza na<br />
literatura européia, entre os anos de 1400 e 1700, Bronislaw Geremek mer-<br />
14 MARCILIO, 1999, p. 49.<br />
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gulha nas controvérsias ideológicas em torno do problema da pobreza e dos<br />
princípios de proteção aos pobres que faziam parte do pensamento europeu<br />
daquela época 15 . Para esse autor: “A pobreza não foi uma ‘invenção’,<br />
não teve certidão de nascimento, antes, esteve presente em todas as sociedades<br />
históricas, manifestando-se por meio da diferenciação das condições<br />
materiais e da força física dos homens” 16 .<br />
Observamos que, ao longo do tempo, modifica-se a forma de encarar o<br />
pobre, visto antes pelo cristianismo medieval como um humilde mendigo,<br />
através do qual poderia se exercitar a caridade e alcançar o reino dos céus,<br />
este passa a ser encarado no mundo moderno como uma figura incômoda e<br />
indesejável, um câncer, um vagabundo que infringe a lei, uma ameaça a<br />
sociedade, um ser que precisa ser vigiado e reprimido. Assim, em diferentes<br />
épocas, muda a função da imagem do pobre, altera-se a ordem dos valores e<br />
modifica-se a avaliação ética desse personagem. Sendo assim, a visão do<br />
homem pobre despertou piedade e desprezo, provocou admiração e escárnio.<br />
Todavia, as diferentes forma de olhar o pobre não se deram somente<br />
através do tempo, mas também do espaço. Isto pode ser observado no processo<br />
de formação das sociedades modernas, nas diferentes imagens que o<br />
“marginal” adquiriu de acordo com as condições sociais e locais. Um exemplo<br />
disso é o contraste entre a severidade com que a Inglaterra tratou seus<br />
pobres – as sanguinárias leis contra a vadiagem – e o olhar de simpatia que<br />
a Espanha, mergulhada numa profunda crise política, econômica e social<br />
lançou aos “pícaros” nas páginas de Lazarilho de Tormes.<br />
Segundo Geremek, as mudanças se deram num longo processo que ocorreu<br />
na Europa, paralelo à desestruturação da sociedade feudal de cunho marcadamente<br />
agrário e a formação de uma ordem urbana. Como os processos de<br />
urbanização da Europa eram lentos demais para permitir às cidades absorver a<br />
imigração em massa da população rural, expulsa do campo, as massas de miseráveis,<br />
para os quais não havia lugar nem no campo nem na cidade, tornaram-se<br />
elemento constante da paisagem social da Europa. Estes ganhavam a vida com<br />
trabalhos ocasionais e esmolas, seus componentes às vezes se sustentavam, se<br />
tornando parasitas, aventureiros, vigaristas ou até mesmo criminosos 17 .<br />
Percebemos, assim, que a carga de valor associada à pobreza e a condição<br />
de pobre passou por uma mudança. “Apagou-se a auréola da perfeição<br />
15 GEREMECK, Bronislaw. Os filhos de Caim. São Paulo: Cia. das Letras, 1995.<br />
16 GEREMEK, 1995, p. 20.<br />
17 GEREMEK, 1995, p. 7.<br />
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que na Idade Média circundava a pobreza voluntária” 18 e em parte se estendia<br />
também à pobreza por necessidade. Desta forma, na sociedade moderna<br />
a miséria aparecia, sobretudo, como uma praga social e o pobre como uma<br />
figura perigosa para a ordem pública.<br />
Sendo a pobreza um fenômeno universal, faz-se necessário a ordenação<br />
de uma regulamentação voltada a essa grande e incômoda parcela da<br />
população. Assim as primeiras ordenações francesas e inglesas da segunda<br />
metade do século XIV enfatizaram a questão do trabalho e da capacidade de<br />
trabalhar: “os indivíduos de ‘condição baixa’, aqueles que vivem do artesanato<br />
ou da lavoura, devem trabalhar e não exigir salários excessivos” 19 .<br />
Os textos que seguem a tradição justiniana separam os vários tipos de<br />
pobres: em primeiro lugar os pobres por enfermidade, isto é, órfãos, cegos,<br />
velhos, aleijados e incuráveis; em segundo lugar, os pobres por desgraça,<br />
como, por exemplo, soldados feridos e mutilados, patrões empobrecidos e<br />
enfermos; e, em terceiro lugar, os pobres por dissipação ou desperdício:<br />
pândegos, vagabundos, patifes e meretrizes. Essas classificações faziam parte<br />
da opinião comum e, dessa forma, era o ponto de partida da assistência<br />
social tanto da Igreja, quanto do Estado 20 .<br />
Segundo esse pensamento da época, as duas primeiras categorias deveriam<br />
ser ajudadas de forma organizada e a partir de coletas públicas semanais<br />
em cada paróquia, em conformidade com as Ordenações Reais que<br />
proibiam a mendicância nas cidades e no campo. Entretanto, se os pobres<br />
dessas duas categorias não quisessem se submeter aos rigores da Ordenação<br />
e continuassem a mendigar, em vez de esperar em casa pela ajuda que lhes<br />
era devida, a lei obrigava a tratá-los como os da terceira categoria, sendo<br />
castigados severamente. Dessa forma, “a associação entre pobreza e criminalidade<br />
propiciou o surgimento das instituições de recolhimento, onde mendigos<br />
e vadios passaram a ser encarcerados” 21 .<br />
No caso do Brasil, o fenômeno não se deu de forma muito diferenciada.<br />
Surgindo paralela à colonização, a pobreza encontrou terreno fértil, no grande<br />
latifúndio e na produção escravista, voltado para a exportação. Uma vez<br />
que a escravidão foi a forma predominante de trabalho, e a terra era privilégio<br />
dos grandes senhores, agraciados por serviços prestados ao rei, aos ho-<br />
18 Entende-se por pobreza voluntária, aquela em que, o indivíduo mesmo dispondo de bens materiais faz<br />
opção por viver na pobreza. Ex: ordem dos frades mendicantes.<br />
19 GEREMEK, 1995, p. 43.<br />
20 Idem, p. 43 e 129.<br />
21 ibidem, p. 130.<br />
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mens livres e pobres só restava a economia de subsistência. Assim, esses<br />
homens vagavam pelos campos, passando a ser tachados de preguiçosos,<br />
indolentes e vadios. Aliado ao modelo de colonização, o fato do trabalho<br />
estar ligado de modo direto à escravidão, fez os homens livres e pobres<br />
associarem trabalho à humilhação, desta forma produzindo apenas para a<br />
sobrevivência. Assim, a relação entre indolência, preguiça e pobreza ficou<br />
tão arraigada que fez com que, até mesmo autores que encontravam no<br />
modelo de colonização a explicação para a miséria da maioria da população,<br />
atribuíssem aos homens livres e pobres dos tempos coloniais a pecha de<br />
ignorante, atrasado e vadio.<br />
Aliás, o resgate de tais marginalizados e excluídos é algo que se pode<br />
dizer recente dentro da historiografia tanto brasileira quanto européia. Visto<br />
de forma negativa em relação ao operário, os homens pobres, desvinculados<br />
do trabalho, eram ignorados, não fazendo parte da história. Assim, somente a<br />
partir de 1978 e 1980 tais personagens foram resgatados dentro do âmbito<br />
acadêmico, através das obras de Michel Mollat e Bronislaw Geremeck.<br />
Estudando o sentido da pobreza, mostrando os diferentes significados<br />
que o conceito se revestiu no tempo e no espaço, através do estudo da pobreza<br />
urbana que habitava a cidade de São Paulo, no período de 1933 a 1942,<br />
Silvia Helena Zanirato nos mostra que: a pobreza pode ser pensada como juízo<br />
de valor, ser discutida pelo viés econômico ou a partir da estrutura sóciopolítica<br />
da sociedade. Dentre os autores que estudam o conceito, prevalecem as<br />
análises que buscam entender o fenômeno da pobreza como algo concreto e<br />
observável, caracterizado pela falta de recursos de um indivíduo, grupo ou de<br />
uma classe. Mesmo que se considere a existência de um consenso quanto à<br />
destituição, enquanto característica da pobreza, as interpretações ainda divergem<br />
entre campos explicativos que a vêem como absoluta ou relativa 22 .<br />
Por pobreza absoluta, a autora refere-se à situação na qual os recursos<br />
não são suficientes para satisfazer os requisitos mínimos necessários à sobrevivência.<br />
As pessoas que se situam aquém desse mínimo são consideradas pobres,<br />
independente do nível de riqueza em que as outras possam se encontrar.<br />
A partir desse entendimento, Zanirato procura levar em consideração<br />
as interpretações dos autores que procuram explicar a pobreza dentro do<br />
campo econômico, social, cultural e político. Essas interpretações favorecem<br />
o trabalho com uma documentação que ora mostra a pobreza como fruto da<br />
22 ZANIRATO, Silvia Helena. Artífices do ócio: mendigos e vadios em São Paulo (1933 – 1942). Londrina:<br />
Editora UEL, 1997.<br />
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apatia e desmotivação dos homens pobres para o trabalho, ora entende que<br />
o atraso e ignorância dos despossuídos justificam as condições em que vivem.<br />
Além dessas explicações, não podem deixar de ser consideradas aquelas<br />
que vêem, em meio à pobreza, o campo fértil para o despertar da criminalidade<br />
e da “delinqüência infantil”.<br />
Dentro deste quadro lastimável, dados do IBGE apontam para mais de<br />
24 milhões de brasileiros vivendo na mais completa miséria e abandono. A<br />
desproteção por falta de amparo político adequado e inoperância dos direitos<br />
básicos de cidadania, que incluem garantias à vida e ao “bem estar”, não deixa<br />
muita escolha a essas pessoas. Vistas como indesejáveis, vivendo nas fronteiras<br />
do humano, e à margem da sociedade, tais personagens vêm ao longo da<br />
história da humanidade desenvolvendo múltiplas estratégias de sobrevivência.<br />
Entre essas estratégias, estaria o abandono de crianças, onde famílias<br />
miseráveis sem verem outra saída, expõem seus filhos na esperança de que<br />
alguém com melhores condições os acolha. Portanto, não há dúvida, de que<br />
entre as causas do abandono, a pobreza seria a maior. Dentre os muitos autores<br />
que apontam a pobreza como a grande causa do abandono, Maria Luiza Marcílio<br />
vem afirmar: “em quase totalidade, as crianças que eram abandonadas provinham<br />
dessa faixa de miseráveis, de excluídos. A pobreza foi a causa primeira<br />
– e de longe a maior – do abandono de crianças em todas as épocas” 23 .<br />
Dando seqüência ao rumo traçado para o desenvolvimento deste trabalho,<br />
passaremos agora a uma discussão mais direcionada à questão da infância<br />
em situação de risco e abandono, bem como das instituições voltadas ao<br />
atendimento dessa criança, na tentativa de entendermos um pouco do que<br />
foi feito no sentido da assistência a essa infância desvalida em nosso país.<br />
Buscaremos perceber como eram essas instituições, o que mudou e o que<br />
permaneceu após a instalação do ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente.<br />
Desta forma, não podemos esquecer que o autoritarismo presente na<br />
sociedade brasileira influenciou tais instituições a exercer uma atitude de<br />
controle e repressão a essa parcela marginalizada da sociedade.<br />
Para Jean Claude Schmitt, a dominação, a exclusão, bem como a reclusão<br />
de pessoas marginalizadas: prostitutas, bêbados, desocupados, e entre elas as<br />
crianças que se encontram em situação de rua, não tem por objetivo apenas<br />
garantir a ordem pública e a paz social, “busca também pelo trabalho forçado<br />
reformar os pobres, sobretudo, o espaço fechado do internamento delimita o<br />
campo diversificado do desatino e da inutilidade social”. Assim, tais persona-<br />
23 MARCÍLIO, 1998, p. 257.<br />
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gens tornam-se alvos das autoridades e da imprensa, que buscam por meio da<br />
repressão limpar o centro das cidades dessas figuras indesejáveis 24 .<br />
No século XVIII, o termo criança abandonada dizia respeito fundamentalmente<br />
às crianças infratoras, aos “delinqüentes”, “contraventores” ou “vadios”,<br />
sendo raramente empregada por nossos antepassados para designar<br />
os antigos enjeitados ou expostos dos tempos coloniais. Aliás, a infância, tal<br />
como entendemos hoje, era algo inexistente antes do século XVII. A concepção<br />
de infância foi sendo construída ao longo dos séculos XVI e XVII, a<br />
partir de uma nova sensibilidade da moderna sociedade burguesa. Só então a<br />
infância passou a ser encarada como uma fase singular da formação do homem,<br />
anterior a isto, tão logo a criança pudesse andar com as suas próprias<br />
pernas, sendo imediatamente misturada aos adultos.<br />
Neste contexto, o amor maternal não era considerado como instinto, tal<br />
qual em nossos dias. Para a Igreja Católica, o amor exigia um aprendizado,<br />
sendo inclusive uma forma de avaliar o grau de cristianização; a criação dos<br />
filhos pelos pais era uma obrigação sagrada, e todo aquele que ajudasse na<br />
criação de um desses expostos estava prestando um grande serviço a Deus,<br />
ao passo que, as mães que enjeitavam seus filhos eram comparadas a hereges,<br />
animais selvagens e cobras peçonhentas.<br />
Para Ailton J. Morelli, o século XX pode ser visto como “o século em<br />
que os adolescentes passaram a ocupar um amplo espaço na sociedade ocidental.<br />
De forma direta ou não, tornaram-se o centro das atenções, tanto<br />
para a família, como para os especialistas de várias áreas” 25 . Para esse autor,<br />
nos últimos anos, diferentes questões relacionadas à infância e à adolescência<br />
vêm sendo levantadas e enfrentadas, tanto por pesquisadores, como por<br />
profissionais que atuam diretamente na área 26 .<br />
Morelli ressalta que atualmente as crianças recebem muita atenção no<br />
mundo da propaganda, por representar um dos principais focos de consumo.<br />
Também possuem espaço garantido no campo jornalístico, mas nesse<br />
caso, normalmente a preferência é dada às matérias relacionadas à “não crianças”<br />
o menino ou a menina “de rua”, aqueles que vivem ou passam muito<br />
tempo na rua, a criança que quando possui família se enquadra em “desestruturada”,<br />
“não segue o padrão pai (supridor) e mãe (zeladora do lar), são<br />
24 SCHMITT, Jean Claude. A História dos Marginais. In: LE GOFF, Jacques. A Nova História. São Paulo:<br />
Martins Fontes, 1999, p. 273-279.<br />
25 MORELLI, José Ailton. A criança, o menor e a lei: uma discussão em torno do atendimento infantil e da<br />
nação de impunidade, 1996, p. 27.<br />
26 Idem, p. 6-8.<br />
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crianças envolvidas em furto, que usam drogas; enfim, crianças que não são<br />
mais tidas como crianças, que são reconhecidas como “menores” 27 .<br />
É interessante observarmos que o termo “menor” não diz respeito<br />
indiscriminadamente a todas as crianças, mas refere-se a um tipo específico<br />
de criança, aquelas das classes pobres, em situação de risco. Nesse sentido,<br />
ao buscar entender como se deu a construção do termo “menor”, Eliana<br />
Silvestre ressalta que:<br />
A trajetória percorrida pela infância na história brasileira revelou (e revela)<br />
múltiplas facetas, situações e olhares diferentes. Crianças quando<br />
se referia a um determinado grupo social, preferencialmente aquele<br />
vinculado às camadas mais abastadas e “menor”, quando se tratava<br />
desses personagens em situação irregular, qual seja, os ‘filhos dos outros’,<br />
aqueles oriundos de famílias das classes populares. Por um bom<br />
tempo esse termo correspondeu a tudo que se referia à criança pobre,<br />
abandonada, órfã e desviante das normas sociais estabelecidas. 28<br />
Esta situação se protelou durante muito tempo, e mesmo depois de<br />
1959 com a “Declaração dos Direitos da Criança”, promulgada pelas Nações<br />
Unidas, houve uma longa e árdua jornada para que a infância fosse considerada<br />
sujeito de direitos. Ainda assim, crianças continuam sendo exploradas,<br />
massacradas por trabalhos pesados, vagando pelas ruas, expostas a todo tipo<br />
de violência, ou aprisionadas nas FEBEMS e similares, instituições arcaicas,<br />
obsoletas e viciadas, onde os tristes noticiários ao seu respeito, infelizmente,<br />
já se tornaram rotina nos meios de comunicação. Para se ter uma idéia do<br />
absurdo de tal instituição, somente no primeiro trimestre do ano de 2005<br />
foram registradas mais de 20 rebeliões, com 37 tentativas de fugas entre os<br />
mais de 900 internos. Como conseqüência da “indisciplina”, 1700 funcionários<br />
foram demitidos, e foi anunciada a construção de 10 unidades com 1680<br />
novas vagas (Jornal Hoje, 18/03/2005).<br />
É essa a forma de assistência dispensada aos jovens institucionalizados,<br />
desagregados socialmente e desassistidos pelo Estado. Sendo assim, a<br />
própria representação social do menino “de rua” em nosso imaginário é um<br />
obstáculo à sua inserção. O que faz com que a criança cometa o delito é a<br />
falta de alguma coisa, a falta de liberdade não educa ninguém, um terço<br />
27 Idem, p. 4.<br />
28 SILVESTRE, 2002, p. 49.<br />
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dos adolescentes internos na FEBEM são reincidentes. Para não falar no<br />
absurdo da despesa mensal de cada jovem que gira em torno de Hum Mil<br />
e Setecentos a Dois mil Reais, (Jornal TV Paraná, 25/02/2005). Os recursos<br />
precisam ser melhor empregados. É necessário dar voz a essas crianças,<br />
despertar sua auto-estima, a partir da informação, do acesso a uma educação<br />
de qualidade, e, de oportunidades.<br />
A maioria dos autores que analisam as instituições voltadas ao atendimento<br />
da infância em situação de risco e abandono concorda que existem<br />
três fases distintas na evolução da assistência à criança desvalida no Brasil, as<br />
quais, a partir da segunda fase se justapõem. A primeira, de caráter caritativo,<br />
a qual iria até meados do século XIX, a segunda fase evolui para o caráter<br />
filantrópico, entretanto mantendo ainda aspectos caritativos até a década de<br />
1960. A terceira, no final do século XX, surge quando se instala entre nós o<br />
“Estado de bem-estar social” ou o estado-protetor 29 . Todavia, a criança e o<br />
adolescente só se tornam efetivamente sujeitos de direito com a promulgação<br />
do Estatuto da Criança e do Adolescente no ano de 1990, o qual demarcou<br />
um novo paradigma no trato as pessoas em formação.<br />
O procurador da justiça e colaborador na elaboração do novo Estatuto,<br />
Dr. Olímpio de Sá Solto Maior, em sua palestra voltada a analisar os dez anos<br />
dessa lei de proteção a infância, destaca que diante da proposta neoliberal,<br />
temos que globalizar a resistência, pois há quase quarenta anos atrás os mais<br />
elementares direitos dos seres humanos foram encarados por governantes<br />
como subversão. No caso do Brasil, o campeão das desigualdades sociais, a<br />
riqueza produzida por todos é distribuída para poucos, gerando o país dos<br />
sem-terra, dos sem teto, dos sem educação, dos sem nada. Onde o grave<br />
problema da infância abandonada vira um joguete, no qual, a família joga<br />
para o Estado e o Estado para a sociedade, tratando a criança desvalida como<br />
se esta tivesse escolhas, como se tivesse optado por viver na marginalidade.<br />
Segundo esse jurista, O Estatuto da Criança e do Adolescente poderia ser<br />
resumido em uma frase: “devemos querer para os filhos dos outros, o mesmo<br />
que queremos para os nossos filhos”.<br />
O problema da infância abandonada é sem dúvida alguma uma das<br />
grandes questões de nossa sociedade. Todavia, essa é uma discussão que se<br />
remete a tempos imemoráveis, pois, o abandono de crianças faz parte da<br />
história da humanidade. O que tem mudado ao longo do tempo é a forma<br />
como esse fato foi encarado, aceito, rejeitado, e porque não dizer tolerado,<br />
29 MARCILLIO, 1998, p. 132.<br />
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pela Igreja, os letrados, o Estado, e a sociedade de forma geral. No que diz<br />
respeito ao Brasil, esses pequenos desvalidos encontram-se nas ruas a quase<br />
500 anos, e vêem despertando a atenção de pesquisadores e profissionais<br />
de diversas áreas, que buscam “ajudá-los”, ou controlá-los. Sendo assim, tais<br />
crianças sempre foram objetos de preocupação, despertando a piedade de<br />
uns, ou, o medo, o repúdio, e a indiferença de outros.<br />
Portanto, buscar entender quem são essas crianças, por que elas estão<br />
nas ruas, e como se dá o seu relacionamento com o restante da sociedade,<br />
são questões de fundamental importância para se tentar entendê-las, decifrar<br />
seus símbolos, códigos e significados, e desta forma buscar penetrar em seu<br />
universo cultural. Ë nesse sentido, que Chartier entende ser “necessário repensar<br />
a realidade social, política e econômica utilizando como entrada o<br />
particular e o cultural, e através da cultura buscar as correspondências, as<br />
clivagens, as tensões existentes no social” 30 .<br />
Segundo esse raciocínio, o problema da “criança de rua” não é só uma<br />
questão econômica e social, mas, é também cultural. Nessa perspectiva, a<br />
pesquisadora Lígia Costa Leite entende que para a criança que se encontra<br />
em situação de rua, o roubo, que seria um dos comportamentos que mais<br />
amedronta e incomoda a sociedade, não seria um ato criminoso. Ele possui<br />
vários significados, além do fato de se conseguir dinheiro para suas necessidades<br />
mais urgentes, como a fome. É também uma brincadeira, uma forma<br />
de se divertir, de amedrontar as pessoas, de provar seu poder, de fugir da<br />
passividade de aguardar uma esmola, de ser reconhecido perante o grupo e,<br />
buscar uma identidade, mesmo que seja a de “trombadinha”. Assim sendo,<br />
novamente me remeto a Chartier que entende a representação enquanto a<br />
presença de uma ausência ou a exibição de uma presença, onde cada grupo<br />
exibe uma maneira própria de estar no mundo 31 .<br />
Maria Luiza Marcílio, ao buscar as origens das instituições voltadas ao<br />
atendimento da criança abandonada, afirma que na Europa no final do século<br />
XII os responsáveis pelas comunidades urbanas resolveram assumir o<br />
controle dos serviços sociais para melhor organizar a assistência comunal.<br />
Assim, “a responsabilidade da assistência foi assumida pelos governos locais,<br />
dando origem ao longo processo de evolução para uma assistência<br />
secular e pública. Entretanto, essas mudanças ocorreram sem que o caráter<br />
30 Chartier é um dos mais expressivos autores da nova história cultural, faz parte da terceira geração dos<br />
Annales e foi influenciado pelos trabalhos de Michel Foucault, Nobert Elias e Pierre Bordieu. Entende<br />
a cultura enquanto prática, e sugere para o seu estudo as categorias de apropriação e representação.<br />
31 CHARTIER, 1990, p. 8-17.<br />
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eligioso da caridade desaparecesse” 32 .<br />
Das associações e confrarias de caridade, surgiram as primeiras instituições<br />
de proteção à infância desvalida, visto que a organização tradicional da<br />
caridade, no plano individual, não respondia mais às novas e crescentes necessidades<br />
da sociedade. Assim, alguns hospitais medievais passaram a acolher os<br />
pequenos enjeitados, como o Hospital do Santo Espírito in Saxia (ao lado do<br />
Vaticano) no qual, segundo as ordens do Papa Inocêncio III (1198-1216) foi<br />
instalada uma Roda para receber os bebês abandonados. Isso se deu devido ao<br />
grande número de crianças mortas que eram retirados do rio Tibre pelos pescadores.<br />
Segundo Maria Luiza Marcílio, esta teria sido, seguramente, a primeira<br />
Roda de expostos da cristandade e, esse sistema montado em Roma tornou-se<br />
paradigmático para toda a Europa nos sete séculos seguintes, bem como em<br />
outras áreas de outros continentes colonizadas pelo ocidente católico 33 .<br />
Todavia, as instituições criadas em fins do século XIX e início do século XX<br />
(asilos, reformatórios, colônias agrícolas, colônias penais, correcionais, etc.), estruturas<br />
arcaicas e viciadas, mantiveram a filosofia de capacitação profissional dos<br />
jovens abandonados, ou infratores, porém feita dentro dos estabelecimentos,<br />
através de oficinas de artesanato (marcenarias, sapatarias, corte e costura, alfaiataria,<br />
funilaria, etc.) que buscavam introduzir os adolescentes em uma atividades<br />
profissional. “Busca-se assim transmitir não só um ensino profissional diversificado,<br />
mas também valores caros à filantropia científico-burguesa, ou seja, o<br />
gosto e o hábito pelo trabalho, o amor à ordem e a crença no progresso” 34 .<br />
A ideologia filantrópica-burguesa, ao proporcionar capacitação profissional<br />
ao jovem desamparado, visava “torná-lo útil a si e a nação”, incutindolhe<br />
não apenas o amor ao trabalho, mas também comportamentos de submissão<br />
e disciplina.<br />
O código penal de 1890, pouco trazia de novo para esta questão. Somente<br />
em 1921 apareceu uma iniciativa legal que culminaria na primeira lei<br />
brasileira voltada a regular o tratamento que deveria ser dispensado pelos<br />
vários segmentos da sociedade às crianças e aos adolescentes em situação<br />
de risco. Assim, estaria pronto e sancionado em 1927 o primeiro Código de<br />
Menores. O Código estava voltado a uma parcela dos menores de 18 anos,<br />
os abandonados e “delinqüentes”. Com o discurso educativo e assistencial do<br />
Código, “nos defrontamos com a idéia equivocada de que os menores não<br />
32 MARCÍLIO, 1998, p. 48.<br />
33 Idem, p. 51.<br />
34 MARCÍLIO, 1998, p. 294.<br />
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estariam sujeitos à penas, ou seja, não poderiam cumprir penalidade como um<br />
adulto. A inimputabilidade mal compreendida, quando chegou ao grande público,<br />
permitiu discursos que contribuiriam para ser encarada como impunidade” 35 .<br />
Morelli entende que, a implantação dos institutos disciplinares possuía a<br />
clara intenção da organização social brasileira, ao menos no que tange à reorganização<br />
das pessoas que já viviam à margem desta sociedade. A preocupação<br />
em “limpar as ruas” das pessoas nocivas, aquelas que não se enquadrassem na<br />
nova forma de organização capitalista, seguindo as idéias higienistas, caracterizou<br />
a proteção aos “menores”. Diante disso, “solicitar a colaboração da polícia<br />
civil no serviço de repressão a essas crianças, tornou-se ponto alto. Desta forma,<br />
o que era um problema social, transformou-se em uma questão policial” 36 .<br />
Quanto à situação das instituições oficiais destinadas ao atendimento do<br />
“menor” abandonado e especialmente do “menor” infrator, tais institutos estavam,<br />
e estão, longe de oferecer um atendimento digno diante da demanda<br />
crescente. A falta de organização, de profissionais capacitados e de uma<br />
política clara nessa área, não mudou muito a prática anterior de internar esses<br />
“menores” em estabelecimentos destinados a adultos. Além disso, segundo<br />
vários estudiosos do assunto, internavam “menores” sem muito critério quanto<br />
às diferenças de idade e às características que originaram a internação.<br />
Segundo Edson Passetti, em São Paulo, em 1954 foi criado o Recolhimento<br />
Provisório de Menores (RPM), objetivando selecionar infratores na<br />
faixa etária entre 14 e 18 anos. A mesma lei que criou tal instituição serviu de<br />
base para, em 1959, ser criado seu correlato, o Centro de Observação Feminina<br />
(COF). Esses dois órgãos ficaram sob a orientação da Secretaria de Promoção<br />
Social até 1975. Assim, no governo Laudo Natel criou-se o balão de<br />
ensaio do que é a FEBEM até hoje, a Fundação Paulista da Promoção Social<br />
do Menor (Pró-menor), através da lei 185 de 12/12/1973, seguindo as diretrizes<br />
e normas da Política Nacional do Bem-estar do Menor 37 .<br />
Para esse autor, em plena ditadura militar tal trajeto tornou, por vezes,<br />
obscuros alguns conceitos emitidos pelas autoridades, ao mesmo tempo em<br />
que deixou sempre claro que qualquer crítica ou proposta que não se apoiasse<br />
na concepção oficial seria antipatriótica. Os pais passaram a ser considerados<br />
incapazes para responder pelos filhos menores e, assim sendo,<br />
coube ao Estado justificar-se como agente capaz, criando para as crianças a<br />
35 MORELLI, 1996, p. 85.<br />
36 Idem, p. 91.<br />
37 PASSETTI, Edson. História da criança no Brasil. São Paulo: Contexto, 1991, p. 124-165.<br />
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FUNABEM, e para seus pais bloqueios policiais às reivindicações. 38<br />
Ao analisar o juízo de menores criado em 1923, o qual estabelecia um<br />
novo padrão com relação à prática jurídica dirigida ao “menor”, Irene Rizzini<br />
entende que este passou a ser estudado, examinado e qualificado, levando<br />
ao seu enquadramento dentro de certas características morais, físicas, sociais,<br />
afetivas e intelectuais. Assim, com este objetivo, eram aplicados exames<br />
“pedagógicos”, “médico-pedagógicos”, de “discernimento” e de “qualificação<br />
do menor”. A utilização de tais exames permitia dar o diagnóstico, o qual<br />
atribuía ao menor uma personalidade normal ou patológica, assumindo um<br />
caráter de cientificidade. Segundo a autora, na maioria dos casos, os “menores”<br />
apresentaram algum tipo de anomalia mental ou afetiva. As indicações podiam<br />
partir de métodos psicológicos, porém, também na maioria dos casos, passavam<br />
pela internação em estabelecimento disciplinar. Desta forma, “recorriam<br />
aos saberes científicos para justificar a necessidade de reforma do “menor”,<br />
buscando a comprovação científica de uma prática discriminadora e excludente<br />
para a reclusão de crianças e adolescentes sem direito à defesa” 39 .<br />
Com o código de menores, lei n.17.943-A, de 12 de outubro de 1927 o<br />
poder judiciário com o apoio policial assumiu o papel de “proteger” e “tutelar”<br />
as crianças e os adolescentes pobres e órfãos no Brasil. Tal código acabou com<br />
as rodas dos expostos, regulamentou a intervenção do Estado na questão social,<br />
tornando disponíveis os direitos de pátrio poder dos pais que fossem qualificados<br />
como vagabundos, mendigos, exercessem trabalhos proibidos, ou não possuíssem<br />
condições de sustentar seus filhos, o que levou muitas vezes a retirada<br />
de tais crianças do convívio de seus pais, punido ainda mais essas famílias já<br />
tão massacradas. Esse código classificou ainda de “expostos”, os menores de<br />
sete anos, e de “abandonados” os menores de dezoito anos.<br />
A aprovação do código penal em 1940 ampliou o limite da inimputabilidade<br />
penal para 18 anos. Todavia as garantias previstas com o decreto lei 2024/<br />
1940, “que estabeleceu as bases da organização da proteção à maternidade, à<br />
infância e à adolescência em todo o país”, não conseguiram competir com a<br />
prioridade estabelecida de regulamentar à prática de controle de crianças e adolescentes.<br />
Em 1941, o decreto-lei n. 3.799, criou o Serviço de Assistência ao<br />
Menor (SAM), voltado a atuar junto à infância em situação de risco, subordinada<br />
ao Ministério da Justiça e ao Juízo de Menores do Distrito Federal 40 .<br />
38 Idem, p. 154.<br />
39 RIZZINI, Irene. A criança no Brasil hoje. Rio de Janeiro: Universidade Santa Ursula, 1993, p. 83-112.<br />
40 PEREIRA Júnior, Almir. Um país que mascara o seu rosto. Os impasses da cidadania: Infância e adolescência<br />
no Brasil. Rio de Janeiro, IBASE, ED, Graphos, 1992, p. 13-35.<br />
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70<br />
Posteriormente, a legislação de 1940 foi sendo completada por outras<br />
leis esparsas, como a lei 4.655, de 02 de junho de 1965, que dispunha sobre<br />
as medidas aplicáveis aos menores de 18 anos autores de infrações penais, a<br />
qual foi substituída pela lei 5.439/68. Tais leis foram revogadas pela lei 6.697,<br />
de 10 de outubro de 1979, que instituiu um código de menores baseados na<br />
teoria da situação irregular. “Essa teoria pressupunha uma visão estreita da<br />
ordem social. Assim, a função das agências de controle da ordem pública era<br />
fundamentalmente reprimir os comportamentos “desviantes”, enquanto a da<br />
legislação era proteger a ordem social contra quaisquer ataques’ 41 .<br />
Neste sentido a legislação de proteção ao “menor delinqüente” vem<br />
conhecendo, segundo Adorno, sucessivas transformações societárias, cujos<br />
efeitos incidem sobre as formas de organização familiar, sobre o papel das<br />
instituições encarregadas de controle e preservação da ordem pública e,<br />
particularmente, sobre o papel repressivo da agência policial, os limites de<br />
intervenção judiciária, o desempenho das instituições incumbidas de tutela e<br />
guarda e a cooperação das associações da sociedade civil 42 .<br />
Neste contexto, a lei 6.697/79 colocou em vigor o código de menores de<br />
1979, o qual veio substituir o antigo código de 1927. Tal código oficializou o papel<br />
da FUNABEM, definindo que ali se atenderia não só a condição dos desvalidos,<br />
abandonados e infratores, mas também a adoção dos meios tendentes a prevenir<br />
ou corrigir as causas do desajustamento. “Essas medidas trouxera maior rigidez à<br />
legislação e instituíram juridicamente a categoria “menor em situação irregular”<br />
agravando assim ainda mais a situação das crianças e dos adolescentes” 43 .<br />
Para Sérgio Adorno, o Código de 1979 formalizou, de fato, o que já<br />
vinha ocorrendo desde o início de 1970, período em que as agências policiais<br />
levadas pelo governo militar dispunham de um poder quase interdito. O<br />
Ministério Público restringia-se a conferir caução legal aos atos praticados por<br />
agentes policiais, e a justiça especializada se limitava a executar a fria letra<br />
do texto legal. Daí, o empreendimento dos executivos estaduais, no sentido<br />
de edificarem verdadeiros monumentos de confiscos da liberdade de crianças<br />
e adolescentes. Nesse período de ditadura militar, as medidas persistiam<br />
na ambivalência entre repressão e paternalismo 44 .<br />
No entanto, a partir de meados dos anos oitenta, determinados setores da<br />
41 ADORNO, Sérgio. A gestão filantrópica da pobreza urbana. São Paulo em perspectiva. Junho de 1999,<br />
p. 94-109.<br />
42 Idem, p. 103-104.<br />
43 SILVESTRE, 2002, p.114.<br />
44 Idem, p. 107.<br />
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sociedade brasileira, preocupados com a caótica situação da criança em nosso<br />
país, reagiram contra as diretrizes jurídicas e políticas, reclamando liberar a criança<br />
e o adolescente dessa “menorização” a que foram confinados desde o século<br />
XIX. Desta feita, o antigo Código de Menores foi revogado pela lei 8.069, de 13<br />
de Julho 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente). Esse novo estatuto legal<br />
veio definir a criança e o adolescente como sujeitos de direito, abolindo sua<br />
condição de objeto de intervenção quer fosse da sociedade ou do Estado.<br />
Nessa perspectiva, os primeiros capítulos do estatuto tratam da proteção<br />
integral. De acordo com essa proposta, todos os recursos devem ser empregados<br />
para garantir às crianças e adolescentes alguns direitos e deveres: direito à<br />
vida, à saúde, à escola, ao lazer, a profissionalização, à liberdade, à convivência<br />
familiar e comunitária, à cultura, à família, à comunidade, à sociedade. E ao<br />
poder público cabe o dever de garantir o cumprimento da lei.<br />
Entretanto, nem tudo são flores, Rizzini entende que a despeito das<br />
inovações introduzidas, o novo estatuto legal não parece ter se desvencilhado<br />
completamente de suas raízes policialescas e repressivas. Para a autora, é<br />
interessante observar que:<br />
Se o Estatuto perfila o princípio constitucional da inimputabilidade penal<br />
aos menores de 18 anos, persiste codificando o comportamento<br />
delinqüencional nos termos do código penal. A efetiva superação desse<br />
passado sombrio dependerá da capacidade do complexo institucional<br />
existente em incorporar transformações e mostrar-se sensível ao<br />
atendimento em meio aberto. 45<br />
Resumindo sua análise a respeito da história do direito do “menor”,<br />
Rizzini esclarece que esta conheceu três fases: a primeira (1927-1973) marcada<br />
pela execução de normas e diretrizes repressivas e discriminatórias. A<br />
segunda (1973-1989), na qual se delineia uma política nacional caracterizada<br />
pela proteção e amparo paternalista. A terceira, inaugurada a poucos anos<br />
(1990), fundada na concepção da criança e do adolescente como cidadãos,<br />
passíveis de proteção integral, vale dizer, de proteção quanto aos direitos de<br />
desenvolvimento físico, intelectual, afetivo, social e cultural 46 .<br />
Desse modo, esperamos que, de fato, o Estatuto venha a inaugurar uma<br />
nova fase na forma de tratar a criança e o adolescente abandonados em nosso país.<br />
45 RIZZINI, 1993, p. 110.<br />
46 RIZZINI, 1993, p. 109.<br />
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71
72<br />
No que diz respeito à imprensa, a qual se constitui em fonte de minha<br />
investigação, Maria Helena Capellato nos mostra que com a ampliação da<br />
noção de documento, e entendendo que todo documento é uma construção<br />
humana, bem como de que por onde o homem passou e deixou seus vestígios<br />
ali está a história, chega-se a conclusão de que o jornal é uma fonte de<br />
pesquisa como outra qualquer. De acordo com esta compreensão, as fotorreportagens<br />
serão analisadas, segundo as orientações metodológicas a respeito<br />
da fonte jornalística, sobretudo quanto à suposta imparcialidade dos jornais e<br />
à produção de um veículo que “objetiva produzir uma verdade” 47 .<br />
Todavia, não podemos esquecer que as notícias dos jornais, assim como<br />
qualquer outro documento, não constitui uma verdade, mas sim uma construção<br />
que tem a pretensão de ser verdadeira. O importante é buscar perceber<br />
como a notícia foi produzida, quem a produziu e qual foi o contexto e o<br />
interesse da sua produção. Enfim, é preciso desmontar o discurso jornalístico<br />
para poder perceber o lugar de onde se fala.<br />
Considerando as implicações ideológicas presentes no fato construído pelo<br />
jornal, importa verificar que por detrás de toda notícia registrada subjaz uma<br />
‘visão de mundo’, dos jornalistas e dos proprietários do jornal, que interferem<br />
fortemente na sua construção. Nesse sentido, as informações e notícias precisam<br />
ser avaliadas enquanto linguagens produtoras de significados em relação a uma<br />
determinada conjuntura ou a uma situação contextualizada historicamente 48 .<br />
Concluindo, o texto e a imagem jornalística serão analisados num segundo<br />
momento, levando-se em consideração essas leituras e suas orientações<br />
metodológicas. Não tendo, no entanto, a preocupação no processo de investigação<br />
da fonte em estabelecer se as informações são verdadeiras ou falsas, mas<br />
compreendê-las no contexto em que foram produzidas. Buscaremos assim, a<br />
partir desse entendimento, e dentro da linha de pesquisa “Fronteiras, populações<br />
e bens culturais”, perceber como os jornais paranaenses, representaram em<br />
suas páginas a infância pobre que se encontrava em situação de rua.<br />
Assim sendo, a fronteira aqui é a fronteira de muitas e variadas coisas,<br />
fronteiras sociais, culturais, de visões de mundo, de valores. Fronteiras enquanto<br />
um espaço de trocas e de encontros da diversidade cultural. Bem<br />
como, de alteridade e de conflitos entre os diferentes grupos sociais. Fronteiras<br />
onde aqueles que detêm o poder de classificar e nomear, tentam impor<br />
sua dominação sobre os demais.<br />
47 CAPELATO, Maria Helena R. Imprensa e história do Brasil. São Paulo: contexto/Edusp, 1998, p. 6-23.<br />
48 ZANIRATO, 1999, p. 7.<br />
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Resumo<br />
A construção dos movimentos juvenis<br />
passa necessariamente pelo estabelecimento<br />
de fronteiras capazes de delimitar<br />
claramente as diferenças entre o ‘eu’ e o<br />
‘outro’. Seguindo essa regra essencial, os<br />
skinheads – subcultura jovem surgida na<br />
Inglaterra no final dos anos 1960 – construíram<br />
as suas a partir de diversos códigos<br />
grupais, sendo a violência o mais visível<br />
destes. Dito isto, o presente artigo<br />
tem por objetivo analisar o surgimento e<br />
a evolução dos skins a partir das fronteiras<br />
forjadas e transformadas ao longo do<br />
tempo e que foram capazes de garantir a<br />
sua sobrevivência até o tempo presente.<br />
Palavras-chave:<br />
skinheads – fronteiras – subcultura – violência<br />
* Mestre em História. Professor na Rede Estadual de Ensino do RS.<br />
73<br />
Os Skinheads e suas fronteiras<br />
Alessandro Bracht*<br />
Abstract<br />
The building of youth movements necessarily<br />
passes by the establishment of frontiers<br />
which should be able to clearly mark<br />
the differences between the “self” and<br />
the “other”. Following this essential rule,<br />
the skinheads – a youngster’s subculture<br />
which appeared in England in the 60s –<br />
built their frontiers throughout a number<br />
of group codes, violence being the most<br />
visible of them. That said, the present<br />
article aims at analyzing the beginning<br />
and the evolution of the skins taking into<br />
account the forged and transformed frontiers<br />
which were able to guarantee their<br />
survival until today.<br />
Keywords:<br />
skinheads – frontiers – subculture – violence<br />
REV. TERRITÓRIOS E FRONTEIRAS – PROG. DE PÓS-GRAD. EM HISTÓRIA – UFMT – V.6 – N.2 – JUL./DEZ. 2005<br />
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74<br />
Introdução<br />
A década de 60 foi um tempo pródigo na criação de manifestações<br />
coletivas cujos integrantes eram exclusivamente jovens. No entanto, apesar<br />
da pluralidade que marcou aquela época, o crédito das agitações juvenis<br />
recai unicamente sobre os hippies, legando aos demais movimentos um quase<br />
esquecimento na ordem do popular. É provável que, em se tratando de<br />
Estados Unidos da América, o flower power tenha sido uma quase unanimidade<br />
entre os jovens. Mas, se rumarmos para a Inglaterra do mesmo período,<br />
além dos hippies, também os mods, skinheads e rockers demarcavam seus<br />
espaços – territoriais e culturais – em Londres e adjacências de formas variadas,<br />
mas poucas vezes dispensando o uso da violência física.<br />
Não há como negar que, entre todos os acima citados, foram, e são, os<br />
skinheads os mais truculentos. E, a partir dessa característica, pode-se também<br />
afirmar que nenhum outro grupo juvenil foi e é capaz de determinar<br />
tantas fronteiras como eles. Do chão que pisam e habitam ao apelo visual,<br />
passando pelos estádios de futebol, pelas rivalidades grupais e pelo discurso,<br />
os skins têm como elemento indispensável atitudes que deixam bem clara a<br />
intenção de verem respeitadas as delimitações que ao longo de uma existência<br />
duradoura foram e vêm sendo definidas e redefinidas.<br />
Assim sendo, frente ao exposto, o objetivo do presente artigo é sintetizar<br />
as diversas fronteiras que definem os skinheads bem como avaliar o<br />
significado delas diante das demandas da realidade e dos meios sociais no<br />
qual pretendem se destacar. E se o ponto de partida é a já referida Londres<br />
dos anos 1960, em um dado momento essa referência espacial única será<br />
naturalmente substituída, por força da expansão internacional registrada a<br />
partir da década de 70 do século passado.<br />
Heranças paternas: os skinheads<br />
como subcultura jovem da classe operária<br />
A criação das fronteiras primordiais dos skinheads britânicos é resultante<br />
de uma herança direta da classe que os apadrinhou. Tanto que,<br />
juntamente com outras coletividades juvenis de estrato operário, foram<br />
merecedores de uma definição antropológica cunhada pelo Center for<br />
Contemporary Studies at Birmingham University (CCCS), ou seja,<br />
Working-Class Youth Subcultures (subculturas jovens da classe operária).<br />
De acordo com Clarke et al:<br />
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Relativas a [...] configurações culturais de classe, subculturas são subgrupos<br />
– menores, mais localizados e de estruturas diferenciadas – dentro<br />
das redes de cultura mais amplas. Nós devemos ver as subculturas em<br />
termos de relação com as redes de cultura de classe da qual elas formam<br />
uma parte distinta. Quando examinamos esta relação entre uma<br />
subcultura e a ‘cultura’, nós chamamos a última de cultura paterna. Isto<br />
não deve ser confundido com a relação particular entre o ‘jovem’ e<br />
seus pais [...]. O que nós queremos dizer é que uma subcultura, embora<br />
direrente em aspectos importantes – em suas prioridades, suas formas<br />
peculiares e atividades – da cultura de que ela deriva, irá dividir também<br />
algumas coisas em comum com a cultura paterna. 1<br />
Apesar de não estar livre de contestação, o conceito apresentado é<br />
adequado aos skinheads originais. Características visuais, comportamento chauvinista<br />
e violento, amor pelo futebol e pela cerveja são heranças históricas<br />
que não devem ser desprezadas.<br />
O princípio de um movimento juvenil, ou ao menos sua notabilidade<br />
pelos de fora, é obra do apelo estético assumido. Entre os skinheads, “o<br />
visual que os identificava era obtido com características dos operários, calças<br />
com suspensórios, botas e jaquetas, cabeça raspada, procurando passar uma<br />
imagem de jovens que adotavam um estilo ‘limpo’” 2 . Mas a questão imagética<br />
apresenta ligação direta com o tempo em que está inserida, uma vez que<br />
os skins levaram para um cenário contestatório o conservadorismo de seus<br />
inspiradores. O cabelo raspado e as cores opacas também serviam como<br />
resposta às cores intensas do flower power. De acordo com Mark S. Hamm,<br />
“cabelo curto era uma rejeição do acid rock elitista, da moda da Carnaby<br />
Streeet e de drogas exóticas como maconha, haxixe e LSD” 3 . O escritor skin<br />
George Marshall não deixa de concordar com Hamm, levando em conta a<br />
anterioridade da subcultura ao nascimento dos hippies: “A palavra skinhead<br />
não entrou em circulação geral até 1969, mas garotos usando botas e cabelos<br />
rentes eram vistos nos círculos mods 4 desde 1964. “[...] Toda a baboseira de<br />
amor e paz chegou três anos mais tarde. Então, argumentar que os skinheads<br />
1 CLARKE et al, Resistance through rituals. London: Routledge, 1976, p. 13.<br />
2 COSTA, Márcia Regina da. Os carecas do subúrbio. São Paulo: Musa, 2000 [1991], p. 26.<br />
3 HAMM. In: DOBRATZ & SHANKS-MEILE, White power, white pride! New York: Tawayne, 1997, p. 93.<br />
4 Os primeiros skinheads são herdeiros diretos da subcultura mod, não fazendo muito mais que reproduzir<br />
e radicalizar o comportamento de seus antecessores, adotando a música negra daqueles dias (soul<br />
music e ska) e marcando posições com violência, sendo inclusive rotulados hard mods.<br />
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de algum modo eram uma reação contra o ‘hippismo’ é colocar firmemente<br />
a charrete antes do cavalo. Rejeição talvez, reação nunca” 5 .<br />
A rejeição a respeito da qual falaram Hamm e Marshall passa também<br />
pelo campo das substâncias alteradoras da mente. Enquanto hippies buscavam<br />
a expansão mental em drogas como a maconha e o LSD, os skinheads<br />
tinham na cerveja o combustível do lazer. Ser aceito nas fronteiras da subcultura<br />
skin significava abdicar do contato com qualquer droga ilegal, o que<br />
servia simultaneamente como um afastamento em relação à juventude hippie<br />
de classe média e uma aproximação ainda mais intensa com a cultura<br />
paterna. Sobre o hábito do operariado inglês de beber cerveja em grandes<br />
quantidades, Hobsbawm o compreende como uma forma de interação meramente<br />
masculina em um universo onde a presença da mulher estava reduzida<br />
ao papel de mão solitária (caso os filhos já estivessem em idade escolar),<br />
com contatos extrafamiliares restritos 6 . E tal visão chauvinista da vida<br />
social é parte integrante da conduta skinhead. O machismo abriu pouco<br />
espaço para a participação feminina em suas ações mais visíveis. O papel<br />
das skinhead girls, ou birdies estava restrito àquilo que lhes permitiam ou<br />
exigiam os ‘machos’: dançar (nunca com estranhos), esconder armas brancas<br />
em seus bolsos ou bolsas e adotar determinados códigos visuais 7 .<br />
O futebol, por sua vez, tornou-se uma febre operária nas últimas décadas<br />
do século XIX e foi absorvido e eternizado pelos skins como uma das<br />
razões de seu viver e morrer em praça pública:<br />
O futebol como esporte proletário de massa – quase uma religião leiga<br />
– foi um produto da década de 1880, embora os jornais do norte, já ao<br />
final da década de 1870, houvessem começado a observar que os resultados<br />
de jogos de futebol, que eles publicavam somente para preencher<br />
espaço, estavam na verdade atraindo leitores. O jogo foi profissionalizado<br />
em meados da década de 1880, quando desenvolveu suas<br />
estruturas – os jogos da “Liga”, a competição arrasadora pela Taça, o<br />
domínio quase completo do jogo por atletas de origem proletária (que<br />
recebiam salários como todos os trabalhadores, embora os dos atletas<br />
fossem mais altos que os dos restantes), a curiosa polarização que divi-<br />
5 MARCHALL, George. Spirit of ’69. A skinhead bible. Lockerbie: S.T. Publishing, 1994, p. 8.<br />
6 HOBSBAWM, Eric. A formação da cultura da classe operária britânica. In: Mundos do trabalho. 3. ed. Rio<br />
de Janeiro: Paz e Terra, 2000 [1984], p. 273 (Coleção Oficinas da História).<br />
7 Para saber mais sobre o papel das garotas nas subculturas jovens da classe operária, recomenda-se a<br />
leitura de McROBBIE, Angela e GARBER, Jenny. Girls and subcultures. In: GELDER, Ken e THORNTON,<br />
Sarah (ed.). The subcultures reader. London: Routledge, 1997.<br />
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dia as cidades industriais acima de um certo porte em partidos rivais<br />
que apoiavam times rivais: Sheffield United contra Sheffielfd Wednesday,<br />
Nottingham County contra Nottingham Forest, Liverpool contra<br />
Everton, Glasgow Rangers contra Glasgow Celtic (com um forte tom<br />
de católicos contra protestantes ou irlandeses contra não-irlandeses,<br />
em cidades onde havia divisão de nacionalidades. 8<br />
Não bastasse a tradição, os skins de 1969 ainda tiveram o benefício da<br />
recente conquista da primeira Copa do Mundo pela Inglaterra, em 1966, em<br />
seu próprio chão, e a proximidade com a edição seguinte do mesmo evento,<br />
1970. Mas nas mãos dos skinheads o futebol assumiu um novo sentido em<br />
termos de rivalidade. Partidos, religiões e nacionalidades (apesar dessas últimas<br />
assumirem lugar de destaque futuramente) referidos por Hobsbawm,<br />
deram lugar à luta territorial. No caso inglês, os grandes centros como Londres<br />
contam com muitos clubes, representativos dos bairros onde estão localizados.<br />
Já as cidades de pequeno porte costumam reunir forças em torno de<br />
um time. Dessa forma, eles impunham à equipe para a qual torciam o papel<br />
de defender limites territoriais assim como o de invadir e derrotar o inimigo<br />
no território dos rivais. Dobratz e Shanks-Meile acreditam que a “Territorialidade<br />
dos skinheads poder ser vista através da lealdade aos seus times locais<br />
de futebol, que poderiam refletir valores de solidariedade coletiva e firmeza”<br />
9 . Já, Costa assinala que “eles fazem parte de um mundo de valores onde<br />
o futebol é vivido como expressão de virilidade, combatividade, força e,<br />
freqüentemente, de desprezo pelo diferente” 10 .<br />
A violência que emergiu entre os skins a partir da relação intensa com<br />
o futebol, além de os conectar eternamente com o hooliganism, como ele é<br />
conhecido hoje, conferiu-lhes notoriedade e gerou perseguições acirradas. A<br />
primeira medida visando coibir os confrontos físicos foi a separação das torcidas<br />
adversárias dentro dos estádios. Em seus portões, a polícia obrigava os<br />
skins a enfrentarem longas revistas visando desarmá-los ou mesmo retirar<br />
das botas os cadarços, como forma de impedi-los de lutar ou correr. Mas, nos<br />
bolsos das calças ou jaquetas, laços de reserva – além de armas como navalhas<br />
e dardos – eram ocultados. À polícia não restou outra alternativa que não<br />
obrigar os skinheads a descalçarem suas botas antes do ingresso na praça e<br />
retirá-las na saída do jogo, mas somente depois que os torcedores visitantes,<br />
8 HOBSBAWM, 2000 [1984], p. 268.<br />
9 HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence. A invenção das tradições. São Paulo: Paz e Terra, 1997, p. 63.<br />
10 COSTA, Márcia Regina da. Os carecas do subúrbio. São Paulo: Musa, 2000 [1991], p. 26.<br />
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skins ou não, estivessem a uma distância segura. No entanto, o sucesso desse<br />
método de controle era bastante limitado. Uma vez liberados, corriam para<br />
as estações de trem e lá enfrentavam seus rivais. Estes, por sua vez, quando<br />
livres da ameaça local, promoviam badernas ou a caminho das estações ou<br />
dentro dos trens que os levavam rumo ao seu bairro ou à sua cidade de<br />
origem. Marshall, em sua visão intra, descreve a afirmação de uma linha<br />
divisória skinhead gerada a partir dos confrontos futebolísticos:<br />
As primeiras torcidas skinhead entraram em ação durante a temporada<br />
1968-1969, quando Leeds United, Liverpool e Everton eram os times a<br />
se derrotar. Nada difundiu mais o estilo skinhead do que as torcidas<br />
visitantes que entravam em ação antes, durante e depois do jogo. Pelo<br />
começo da temporada seguinte, inclusive os amistosos de pré-temporada<br />
esquentaram e a confusão estendeu-se por todas as quatro divisões<br />
na Inglaterra [...]. Em algumas semanas, o The Football Mail estava<br />
colocando reportagens de capa a respeito da ‘ameaça skinhead’ [...].<br />
Times como o Manchester United, com seu abominável Red Army, e<br />
os grandes times de Londres podiam contar seus torcedores skinheads<br />
em milhares. Até clubes menores como o Crystal Palace poderiam ter<br />
algumas centenas no Homesdale End. No norte, futebol era mais importante<br />
para o culto skinhead que a música [...]. Times como o Sunderland<br />
e o Newcastle United eram grandes rivais e ambos tinham em<br />
torno de dois mil skins apostos para a treta do derby. 11<br />
O autor, desde sua perspectiva interna, propõe-se a resolver uma pergunta<br />
fundamental a respeito da relação essencial dos skinheads (europeus,<br />
nesse caso) com ações hooliganistas:<br />
Todas as teorias baratas a respeito de lares destruídos, educação pobre<br />
e áreas carentes estavam dispensadas. Talvez houvesse alguma verdade<br />
nelas, mas a principal razão para que os garotos estivessem e ainda<br />
estejam envolvidos em hooliganism no futebol é porque eles gostam.<br />
Simples assim. 12<br />
E se questão territorial não se manifestava somente através do futebol –<br />
procurar confusão invadindo um pub em território inimigo ou ‘roubar’ uma<br />
garota pertencente a um grupo de skins rivais também eram métodos de<br />
11 MARSHALL, George. Spirit of ’69. A skinhead bible. Lockerbie: S.T. Publishing, 1994, p. 30.<br />
12 Idem, Ibidem, p. 33.<br />
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delimitação –, foi ele o responsável primeiro pela visibilidade conquistada<br />
junto à opinião publica.<br />
A busca por inimigos não estava encerrada em um estádio ou em seus<br />
arredores. O conservadorismo skin tratou de estabelecer outros adversários.<br />
Os hippies eram alvos freqüentes de ataques, por razões já identificadas: a<br />
suposta homossexualidade, a higiene precária, o consumo de drogas ilegais<br />
e até a localização na pirâmide social.<br />
De fato, a agressão contra hippies fez muito para colocar os skinheads<br />
nos jornais. A invasão hippy a uma mansão em Londres era a grande<br />
notícia em setembro de 1969 e os espectadores do lado de fora misturados<br />
com a polícia e as gangues skinheads, que por um momento<br />
tiveram o propósito comum de destruir o squat. Somente a chegada<br />
dos Hells Angels na Piccadilly 144 interrompeu o ataque ao prédio. 13<br />
O pesquisador, contudo, reconhece que o direcionamento da violência<br />
também contra indo-imigrantes encaminhou a dissolução da subcultura skin original.<br />
O paki-bashing (espancamento de paquistanês) gerou, a partir das vistas<br />
da opinião pública britânica, a certeza de que os ataques tinham o caráter de<br />
perseguição racial. Praticamente contemporâneos a essa prática, discursos xenófobos<br />
como “Rivers of blood” (21 de maio de 1968), de Enoch Powell, membro<br />
de longa data do Parlamento britânico pelo Partido Conservador e integrante à<br />
época do chamado shadow cabinet, sugerem a presença de um ambiente propício<br />
à leitura do paki-bashing como forma de perseguição racialmente dirigida:<br />
Há uma semana atrás ou duas eu conversei com um eleitor, trabalhador<br />
simples de meia-idade, empregado em uma de nossas indústrias nacionalizadas.<br />
Depois de uma ou duas frases sobre o tempo, ele disse repentinamente:<br />
‘Se eu tivesse dinheiro para ir, eu não ficaria nesse país’.<br />
Eu dei uma resposta desaprovadora no sentido de que até o atual governo<br />
não permaneceria para sempre; mas ele não deu atenção e continuou:<br />
‘Eu tenho três filhos, todos eles passaram pelo curso secundário<br />
e dois deles estão casados agora, com família. Eu não ficarei satisfeito<br />
até vê-los todos estabelecidos no estrangeiro. Nesse país, em 15 ou 20<br />
anos, o negro terá predomínio sobre o branco’. [...] Em quinze ou vinte<br />
anos, pelas tendências atuais, haverá nesse país três milhões e meio de<br />
imigrantes e seus descendentes. Este não é meu número. Este é o<br />
13 Idem, Ibidem, p. 35-36.<br />
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número oficial dado ao Parlamento pelo porta-voz do Escritório Geral<br />
do Registrador. Não há cifra comparável para o ano 2000, mas deverá<br />
estar na casa de cinco a sete milhões, aproximadamente um décimo da<br />
população total [...]. É claro que esse número não estará uniformemente<br />
distribuído de Margate a Aberystwyth ou de Penzance a Aberdeen.<br />
Áreas completas, cidades ou parte delas através da Inglaterra estarão<br />
ocupadas por seções de imigrantes. 14<br />
Clarke, porém, prefere interpretar a violência contra os indo-imigrantes<br />
de forma mais amena, como uma forma de ‘defesa ritual e agressiva da<br />
homogeneidade social e cultural da comunidade contra suas mais óbvias válvulas<br />
de escape outsiders – em parte por causa da visibilidade particular no<br />
interior da comunidade =...] e também por causa de seus desenhos culturais<br />
diferentes [...]’ 15 . Marshall confirma (mediante a perspectiva do “nós”) a idéia<br />
de Clarke: ‘Os asiáticos tinham seus próprios cafés, cinemas e mesquitas para<br />
irem e estavam aqui realmente só para enviar dinheiro para suas famílias. A<br />
maioria nem inglês falava e, até pior, não sabiam jogar futebol’ 16 . E mesmo<br />
admitindo que a classe operária já não vivesse em dias de segurança plena,<br />
para ele o paki-bashing ‘não era parte de um plano de extrema-direita. Eles [os<br />
paquistaneses] eram somente inimigos a serem adicionados à lista formada por<br />
hippies, gays, pervertidos, greases e qualquer um que te olhasse do jeito errado’<br />
17 . Poutignat e Streiff-Fenart sugerem outra direção para esse fenômeno:<br />
Quando as identidades étnicas estão fortemente correlacionadas a um<br />
sistema de estratificação socioeconômico (ou seja, quando as características<br />
fenotípicas ou culturais são associadas de maneira sistemática a<br />
posições de classe), a fronteira étnica superpõe-se à fronteira social,<br />
uma reforçando a outra. 18<br />
Contra a teoria do racismo como motivação primeira para fúria dirigida<br />
aos pakistanis, os skins da “geração de ouro” tinham em sua defesa a música,<br />
esse elemento absolutamente indispensável de identificação juvenil. Os<br />
skinheads cultuavam o ska e o reggae, ritmos jamaicanos similares, mas com<br />
14 THE Sterling Time Web Site. Disponível em:. Acesso em 13 ago. 2002.<br />
15 CLARKE, John et al. Subcultures, cultures and class. In: HALL, Stuart e JEFFERSON, Tony (ed.). Resistance<br />
through rituals. London: Routledge, 1976, p. 102<br />
16 MARSHALL, George. Spirit of ’69. A skinhead bible. Lockerbie: S.T. Publishing, 1994, p. 38-39.<br />
17 Idem, Ibidem, p. 39.<br />
18 POUTIGNAT, Philippe; STREIFF-FENART, Jocelyne. Teorias da etnicidade. São Paulo: Unesp, 1998, p. 155.<br />
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velocidades de execução diferentes. Ambos foram introduzidos em terras britânicas<br />
por jovens imigrantes que vieram a dividir espaço com os trabalhadores<br />
brancos em áreas de população proletária. Batizados rudeboys ou rudies,<br />
mereceram a boa recepção dos skins, a quem os músicos antilhanos que iam<br />
para a Londres gravar seus discos e realizar concertos prestavam homenagens,<br />
caso de “Skinhead Moonstop”, da banda Symarip, “Skinhead Girl” e “Skinhead<br />
Jamboree”, dos Pyramids e “Skinhead Revolt”, do cantor Joe The Boss.<br />
Carl Gayle sugere que a violência foi um fator que tornou o reggae<br />
atraente para o jovem branco, funcionando como um elemento definidor na<br />
sedimentação do elo entre skins e rudies, já que o seu ideal comum de<br />
masculinidade e machismo era marcante no estilo musical em questão 19 . E,<br />
apesar de numericamente pouco expressivos, skinheads negros formaram<br />
suas próprias gangues ou mesmo passaram a integrar facções inter-raciais<br />
em nome da defesa territorial violenta. Sem a busca de uma afirmação étnica,<br />
ao contrário dos imigrantes asiáticos, não se abriam portas para que os embates<br />
físicos assumissem conotação racial.<br />
O descaso dos rudies em termos de afirmação cultural teve carreira<br />
limitada. No início dos anos 1970, o rastafarism assumiu a liderança ideológica<br />
do reggae e sepultou a integração que, nas palavras de Hebdige, jamais se<br />
enraizou efetivamente:<br />
Este movimento espontâneo rumo a uma integração cultural era inédito,<br />
mas não teria nenhum efeito salutar permanente nas relações raciais entre<br />
as comunidades operárias dos sul de Londres. Assim, apesar do fato de que<br />
o skinhead podia dançar o shuffle ou o reggay com uma certa dose de<br />
estilo, apesar do fato de que ele podia falar algumas frases de patois com<br />
o necessário desdém à sintaxe inglesa, tudo era um pouco artificial. Apesar<br />
de tudo, ele jamais poderia realizar completamente esta transição cultural.<br />
E quando ele se viu incapaz de seguir o espesso dialeto e as densamente<br />
fechadas alusões bíblicas que marcam o reggae mais recente, ele deve ter<br />
se sentido desesperadamente alienado. Excluído até da categoria de excluído,<br />
ele estava lá fora no frio, condenando a passar sua vida na Babilônia<br />
apenas porque a concepção de Zion não fazia sentido. [...] A ‘africanização’<br />
(ou ‘rastafarização’) do reggae [...] militou contra qualquer contato permanente<br />
entre as culturas jovens branca e negra. 20<br />
19 Idem, apud Gelder; Thornton, 1997, p. 345.<br />
20 HEBDIGE, Dick. The meaning of mod. In: HALL, Stuart e JEFFERSON, Tony (ed.). Resistance through<br />
rituals. London: Routledge, 1976, p. 150.<br />
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O autor indica, no entanto, que o momento preciso em que a busca<br />
pela identidade racial produziu a ruptura entre skins e rudies pode ser apenas<br />
expresso miticamente, como no relato de um jovem disc jockey antilhano,<br />
que descreve o impacto do disco “Young, Gifted and Black” (Jovem,<br />
Talentoso e Negro) no público formado por brancos e negros:<br />
Havia aquela canção [...] de Mike and Marcia, e quando nós a tocávamos,<br />
todos os skinheads costumavam cantar ‘young, gifted and white’ e eles<br />
costumavam cortar os cabos para os alto-falantes. Nós tivemos algumas brigas<br />
e cada vez menos pessoas brancas passaram a aparecer depois disso. 21<br />
O relato do jovem dj apenas apresenta um erro: em verdade, a dupla<br />
era formada pelo casal Bob Andy e Marcia Griffits.<br />
Não bastasse essa perspectiva orgulhosa da negritude, a tomada de<br />
poder rastafari, com todos os seus contornos religiosos, trouxe consigo o<br />
ideal de povo escolhido por Jah (Deus), que, após a diáspora da escravidão,<br />
retornaria para a África negra (a terra prometida); os cabelos longos em tranças<br />
(dreadlocks) e a maconha – substância de função espiritual, mas nem<br />
sempre – tornaram-se uma constante entre a comunidade jovem antilhana.<br />
O pacifismo contido no reggae rasta e no ska tornou skinheads e rudies (ou<br />
ex-rudies) irreconciliáveis. Na nova era, os imigrantes antilhanos passaram a<br />
carregar consigo aquilo que os skins mais desprezavam. Como os pakis, buscaram<br />
demarcar seus espaços culturalmente. Como os hippies, cultuavam a<br />
maconha, tinham cabelos longos e discursavam em nome da paz.<br />
A breve trajetória dos skins primordiais é reveladora de uma face conservadora<br />
que entra em conflito com as demais coletividades juvenis do póssegunda<br />
Grande Guerra, usualmente geradas nos termos de um rebelar-se<br />
contra as gerações precedentes. Reforçando a relação subcultural da chamada<br />
“geração de ouro”, os skinheads faziam questão de ser como seus pais,<br />
rebelando-se contra seu tempo e não contra os limites impostos pelo passado.<br />
A eles os skins recorriam para afirmar suas posições. Trata-se de um caso<br />
excepcional, mas não de todo surpreendente na visão de Karl Mannheim:<br />
Quando eu era jovem, a crença corrente era de que a juventude é<br />
progressista por natureza. Desde então isso tornou-se falacioso, pois<br />
aprendemos que movimentos reacionários ou conservadores também<br />
21 Idem, Ibidem.<br />
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podem criar movimentos de juventude. Se dissemos que a juventude é<br />
um agente revitalizador da vida social, convirá indicar claramente os<br />
elementos da adolescência que, se mobilizados ou integrados, auxiliam<br />
a sociedade a dar uma nova saída. 22<br />
Vale a ressalva de que o período que inspirou a assertiva de Mannheim<br />
pouco tem a ver com os tempos sobre os quais o presente artigo se debruça,<br />
visto que em sua juventude ele deve ter assistido de muito perto o surgimento<br />
de coletividades jovens movidas pelo discurso reacionário, caso da<br />
juventude hitlerista. Mas, pensando no que foram e no que se tornaram os<br />
skinheads a partir do final dos anos 1970, a idéia de Mannheim nada possui<br />
de anacrônica. Em verdade, ela somente se reforça.<br />
83<br />
As fronteiras nacionais de uma nova geração<br />
O quadro de violência no qual os skinheads opcionalmente se inseriram<br />
forneceu a tão desejada visibilidade pública ao mesmo tempo em que os<br />
encaminhou para um desaparecimento momentâneo. Não é possível precisar<br />
o tempo exato, porém, segundo os relatos do ex-skin Marshall, 1972 pode ser<br />
considerado o último dos anos de existência da chamada ‘geração de ouro’.<br />
Mas já por volta de 1977, eles haviam voltado às ruas. No quadro desse ressurgimento,<br />
há uma certeza: a renascença teve sua origem em outro movimento<br />
juvenil: o punk. Os limites impostos ao presente artigo não permitirão um<br />
maior aprofundamento no que diz respeito à trajetória do movimento punk,<br />
apesar de sua inegável importância e da perenidade de sua herança. O mais<br />
importante é ressaltar que, de um movimento espontâneo gerado nos conjuntos<br />
habitacionais miserabilizados pela crise do trabalhismo na Inglaterra, de<br />
orientação claramente anárquica (sincretizando o sentido político com o senso<br />
comum) e de acepção musical anticomercial , o punk acabou digerido pela<br />
mídia e tornou-se quase inofensivo em poder dos jovens da classe média.<br />
Dado como morto com o fim de seu principal porta-voz musical – Sex<br />
Pistols –,em 1978, encontrou forças para permanecer ativo através daqueles<br />
que ainda se consideravam seus legítimos representantes: as formações<br />
musicais do chamado street punk. Ao contrário da politização internacional e<br />
sofisticada de outro representante do punk, a banda britânica The Clash, as<br />
poesias de rua eram simplórias e falavam diretamente, e quase unicamente,<br />
22 MANNHEIM, Karl. Diagnóstico de nosso tempo. Rio de Janeiro: Zahar, 1980 [1954], p. 32.<br />
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84<br />
aos seus conterrâneos do Reino Unido. Como forma de afastamento ainda maior<br />
daquilo em que o punk havia se transformado, cabeças voltaram a ser raspadas:<br />
A chegada do street punk também anunciou o retorno do skinhead. Entretanto,<br />
ele não era um revivalismo em papel carbono e naqueles tempos<br />
tinham pouco em comum com a classe de 69 além do nome. De fato, a<br />
maioria da nova geração de skinheads começou não sendo muito mais<br />
que punks carecas que se adiantaram dois passos para se distanciarem<br />
daquilo que a massificação de classe média havia tornado o punk. Ainda<br />
haviam skinheads que acreditavam nos velhos métodos, mas, para a maioria,<br />
simplesmente reviver o visual, o gatilho, a coronha e o cano do<br />
antigo skinhead não estava no roteiro. Muita água tinha passado sob a<br />
ponte e a nova geração refletiu os novos tempos em que eles viviam. 23<br />
Os tempos, disse-se anteriormente, eram de crise para os trabalhadores.<br />
Como evidencia Hobsbawm, “Uma longa era de emprego pleno ou<br />
praticamente garantido chegou ao fim, na década de 1970 na Europa Ocidental<br />
[...]. Desde então, a Europa tem vivido novamente em sociedades<br />
com desemprego em massa e insegurança no trabalho” 24 .<br />
Campo fértil para a disseminação de discursos de nacionalismo exacerbado<br />
e de intolerância com o outro – o ladrão de empregos, o desagregador<br />
cultural, o racialmente inferior –, que habitou a agenda do partido de<br />
ultradireita National Front e o levou, nas eleições municipais de Londres<br />
em 1977, a conquistar 119 mil votos e a se tornar momentaneamente a<br />
segunda força política da Inglaterra, com slogans como “Se são negros,<br />
mande-os de volta” ou “Culpe os patrões pelos negros”. Havia algo da<br />
força jovem branca envolvida nesse crescimento.<br />
A partir daqui, a trajetória do skinheads estará marcada pelas fronteiras<br />
do nacionalismo (circunscrito ao Estado-nação) e do conseqüente racismo,<br />
inseridas mesmo nas características originais de territorialidade. Foram essas<br />
as referências que fizeram os skins superarem os limites do Reino Unido e<br />
chegarem a outros países onde ou a crise do emprego estava em curso –<br />
Alemanha e França, por exemplo – ou o white power era uma realidade<br />
praticamente secular (Estados Unidos da América). O lastro perdido no caminho<br />
da expansão foi justamente o valor mais essencial aos skins primordiais:<br />
23 MARSHALL, George. Spirit of ’69. A skinhead bible. Lockerbie: S.T. Publishing, 1994, p. 69-70.<br />
24 HOBSBAWM, Eric. A formação da cultura da classe operária britânica. In: Mundos do trabalho. 3a. ed. Rio<br />
de Janeiro: Paz e Terra, 2000 [1984]. (Coleção Oficinas da História), p. 279.<br />
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seu vínculo direto com a classe operária na esfera do real. Mas no imaginário<br />
dos skinheads, a ligação permaneceu praticamente inalterada. A persistência<br />
da relação, do princípio dos anos 1980 para cá, foi obra de um esforço discursivo<br />
que pouca legitimação encontra em seu diálogo com a realidade. Até<br />
porque a segunda geração, apesar de renascida em seu berço original, correu<br />
o mundo. O que significa dizer que sua aparição em outros países, especialmente<br />
aqueles externos ao continente europeu, não teve necessária conexão<br />
com uma classe específica. Entrementes, o fato de que a maioria dos skins da<br />
Europa seja oriunda de extratos economicamente desfavorecidos não implica<br />
uma herança classista, mas apenas condição social imposta pelo nascimento.<br />
Se a construção das novas fronteiras é conseqüência de um ambiente<br />
propício inserido em um período específico, também é certo que tais fronteiras<br />
não significam um rompimento com o que houve no passado. Mesmo<br />
que o nacionalismo e o racismo dirigido não dissessem grande coisa para os<br />
skinheads da primeira geração, é fato que muito do que foi feito no passado<br />
teve ressonância naquele presente. Uma ressonância que, com o passar do<br />
tempo, tendeu à radicalização. Sobre o costume de perseguir paquistaneses<br />
surgido nos anos 1960, a organização white power norte-americana Skinheads<br />
of the Racial Holy War (2000) oferece uma interpretação adequada ao<br />
seu discurso de supremacia racial, bastante diferente daquele contido em<br />
Clarke ou Marshall (ver p.6 e 7): “os jovens trabalhadores das fábricas logo<br />
notaram que estes porcos [paquistaneses] estavam trazendo desemprego,<br />
doença, salários mais baixos... etc. Então eles reagiram andando por aí a<br />
procura de um paki para bater, originando o termo paki-bashing” 25 .<br />
Logo, pode se afirmar que os indicadores do conservadorismo skin,<br />
existentes na fonte, precisaram somente de um direcionamento adequado<br />
para se amarrarem a um discurso político vigente e conquistador de uma<br />
certa popularidade, essencialmente entre aqueles que buscavam respostas<br />
simplificadoras para questões de difícil solução. E a direita radical continha (e<br />
contém) tais respostas, falaciosas e dirigidas em toda sua especificidade às<br />
camadas de acesso mínimo ao conhecimento profundo de causas e efeitos<br />
da crise social, um meio onde o contínuo histórico era mera figura de retórica<br />
e apenas as impressões do presente lhes têm algo a dizer. Assim, para a<br />
extrema-direita, e não apenas para ela, existia uma crise. Entretanto, somente<br />
para ela e para seus seguidores os culpados são os imigrantes negros e o<br />
governo, que nada fazia para impedir a sua entrada; eles trabalhavam por<br />
25 Rahowa web site. http://www.rahowa.com/rahowa.<br />
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qualquer salário, retirando os empregos da mão-de-obra nativa, o que prova sua<br />
inferioridade. Além disso, sua presença traz um rompimento com padrões culturais<br />
e com a pureza racial dos agentes nacionais. Excluindo os imigrantes, a nação<br />
terá resolvido grande parte de seus problemas, afirma a extrema-direita. O conteúdo<br />
de tal discurso só pode ser explicado a partir de uma percepção subjetiva<br />
da realidade, como o faz Hobsbawm, face à delicadeza do tema:<br />
Que é, exatamente, que se defende contra os ‘outros’, identificados<br />
com os imigrantes estrangeiros? Quem constitui o ‘nós’ é uma questão<br />
menos problemática, pois a definição costuma ser feita em termos de<br />
Estados existentes. [...] ‘Eles’ são reconhecíveis como ‘não nós’, em<br />
geral pela cor ou por outros estigmas físicos, ou pela língua. [..] Não sei<br />
exatamente até que ponto, sem essas marcas visíveis ou audíveis de<br />
estranheza, ‘eles’ seriam reconhecidos por diferenças culturais, embora,<br />
nas reações racistas, se dê grande importância a essas coisas. [...] o<br />
que se está defendendo contra os estrangeiros são os empregos. Há<br />
alguma verdade nessa proposição. A base nacional dos movimentos<br />
racistas europeus [...] parece estar na classe trabalhadora nativa, os principais<br />
ativistas desses movimentos parecem ser jovens da classe trabalhadora<br />
– skinheads e similares. 26<br />
Com base nas heranças da primeira geração, a proximidade dos skinheads<br />
com o nazismo e outros ideários ligados ao white power, chocantes em<br />
sua violência e no anacronismo (que, ironicamente, garante a permanência<br />
skin), não devem surpreender de todo. Talvez o mais incômodo seja saber<br />
que os demais referenciais da cultura acabaram poluídos por essa forma de<br />
pensar, reorganizando as fronteiras de um modo ainda mais negativo. Os<br />
casos do futebol e da música são sintomáticos nesse sentido. A lembrança de<br />
que uma minoria tentou e ainda tenta manter as origens como pontos de<br />
referência primordias, negando o racismo e evitando a política está longe de<br />
absolvê-los. A visibilidade concentra-se toda naqueles que renegam essa<br />
possibilidade e, desta forma, são os que atraem para o meio novos recrutas.<br />
Levar a violência para o estádio de futebol e para seus arredores, já foi<br />
visto, é uma das marcas mais longevas dos skinheads. À permanência dessa,<br />
alia-se o fato de que esses jogos de futebol pela Europa não apenas concentraram<br />
cenas violentas com resultados trágicos – caso da final da Copa dos<br />
26 HOBSBAWM, Eric. A formação da cultura da classe operária britânica. In: Mundos do trabalho. 3a. ed. Rio<br />
de Janeiro: Paz e Terra, 2000 [1984], p. 279. (Coleção Oficinas da História).<br />
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Campeões da Europa, em Heysel (Bélgica, 1985), entre Juventus (Itália) e<br />
Liverpool, quando uma correria provocada por hooligans ingleses causou a<br />
morte de 38 pessoas, quase todas de nacionalidade italiana –, como também<br />
passaram a tolerar a presença de cânticos e símbolos do nazismo e da supremacia<br />
branca. Cenas grotescas como arremessar bananas na direção de jogadores<br />
negros, estender a mão espalmada na tradicional saudação nazi-fascista<br />
e pichar estádios com dizeres racistas propagaram-se em maior intensidade<br />
após o fracasso do socialismo real, quando a Europa tornou-se um campo<br />
ainda mais fértil para o discurso da extrema-direita. Na Itália, determinadas<br />
equipes, especialmente entre as de menor porte, desistiram de contratar<br />
jogadores negros, temendo represálias de seus torcedores; de lá também é o<br />
clube romano Lazio, que, por ter tido em Benito Mussolini um célebre torcedor,<br />
contava com uma numerosa facção de torcedores racistas, especialmente<br />
voltados para o anti-semitismo. Na Polônia, em pleno final da última década<br />
do século XX, Emmanuel Olisadebe, um jogador nigeriano negro, posteriormente<br />
naturalizado polonês para integrar a seleção nacional, mal podia se<br />
aproximar dos alambrados dos acanhados estádios do país face à chuva de<br />
insultos e bananas que teria de suportar. O mesmo episódio aconteceu com<br />
o negro John Barnes, enquanto jogador estreante do Liverpool em um enfrentamento<br />
contra o Arsenal em 1987. Segundo Hornby, um escritor britânico<br />
de sucesso e fanático apoiador do Arsenal,<br />
[...] antes do pontapé inicial, pudemos ver com total clareza os torcedores<br />
visitantes em seu cercado atirando banana após banana no campo.<br />
As bananas tinham a intenção de anunciar para os pouco versados nos<br />
insultos codificados das arquibancadas que havia um macaco em campo;<br />
e como os torcedores do Liverpool jamais haviam se dado ao trabalho<br />
de trazer bananas para partidas anteriores contra o Arsenal, embora<br />
tivéssemos ao menos um jogador negro na equipe desde a virada da<br />
década [de 1980], podia-se presumir apenas que John Barnes fosse o<br />
macaco a quem se referiam. 27<br />
Do renascimento em diante, a música dos skinheads, por óbvias razões,<br />
não mais poderia ser o ska. Não apenas em função de ser negra, mas<br />
também porque o punk rock havia se dividido em diversas vertentes, uma<br />
delas a oi! music, que acabou adotada pelos skinheads como sendo sua<br />
forma de expressão musical. Funcionando inicialmente como agente inte-<br />
27 HORNBY, Nick. Febre de bola. Rio de Janeiro: Rocco, 2000 [1992], p. 188.<br />
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87
88<br />
grador entre punks e skins 28 , o direcionamento das letras para campos considerados<br />
perigosos e totalmente alheios ao ideário anarco-punk acabou fazendo<br />
da oi! music um produto cultural quase exclusivo dos jovens de cabelos<br />
raspados, apesar da existência natural de exceções. Etmologicamente<br />
falando, “oi” é uma interjeição do english cockney e pode assumir o sentido<br />
de um cumprimento ou até a forma de chamada de atenção quanto a algum<br />
comportamento inadequado. Na música dos skins é pronunciada com força<br />
nos refrões, normalmente em seqüências de três ou quatro vezes, ou usada<br />
como forma de contar o tempo para iniciar a execução da música, substituindo<br />
o “um, dois, três, quatro” do punk rock. A invenção do estilo é creditada<br />
ao Cockney Rejects, banda de hooligans fãs do time londrino West Ham<br />
United, razão pela qual não era raro seus concertos terminarem em violência<br />
entre torcedores rivais.<br />
Se, externamente, a oi! music reforçou a linha de separação entre os<br />
skinheads e outros segmentos da juventude, internamente ela não superou<br />
as barreiras da ambigüidade. Tal fato advém de seu conteúdo diversificado,<br />
criador de intra-rivalidades praticamente invisíveis aos olhos do homem comum.<br />
A dificuldade de fazer um mapa ideológico é proveniente da postura<br />
ambígua de muitos dos militantes da oi! music: nomes de certa fama como<br />
The 4 Skins e Last Resort buscavam freqüentemente se desvincular do neonazismo<br />
e do racismo dele decorrentes. O conteúdo de suas letras, porém,<br />
circulando entre a apologia da força bruta e um nacionalismo difuso, somente<br />
colaboraram para colocar tais bandas na vala comum da extrema-direta,<br />
pois não há como negar que a ambigüidade de um discurso usualmente<br />
desloca os pontos de vista a respeito para o pior dos lugares possíveis. Na<br />
composição “1984”, a The 4 Skins tomam emprestado o título do romance<br />
de George Orwell para apresentar um suposto diagnóstico da decadência da<br />
“civilização” britânica, incluindo aí a possibilidade de a Inglaterra receber a<br />
ajuda de países subdesenvolvidos, como se isso fosse a suprema vergonha 29 .<br />
28 O primeiro registro sonoro oficial de música oi! é o disco Oi! The Album (1980), com a participação das<br />
bandas mais expressivas do referido estilo musical à época. Entre os integrantes da coletânea, encontrase<br />
a banda punk escocesa Exploited, uma das responsáveis pela continuidade do punk após a declaração<br />
de sua morte na esteira do fracasso dos Sex Pistols. O disco “Let´s Start a War... Said Maggie One Day”<br />
(1984) é dedicado a todos os fãs punks e skins. Toy Dolls, outra banda admirada tanto por skinheads<br />
como por punks, na contrapaca do disco “Dig that Groove, Baby”, faz referência à presença de ambos<br />
em seus concertos.<br />
29 “Inglaterra em colapso/ O país está sangrando/ Incapacitado e idoso/ Ninguém combate o sistema<br />
combatendo um ao outro/ Ninguém está rindo, eles temem o big brother/ O que teremos nos tornado<br />
em 1984?/ Os ricos terão seu dinheiro tomado?/ Países do terceiro mundo nos enviando ajuda?/<br />
Pessoas em filas para receberem suas rações?/ Isso não é o nascimento, mas a morte de uma nação” (The<br />
best of 4 Skins, Castle Records, 2000).<br />
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Entretanto, o olhar que generaliza, legando a todo skinhead o rótulo de<br />
neonazista, como visto anteriormente, tem sua razão de ser. Existiam e continuam<br />
existindo realmente skinheads devotados às formas de agir e pensar<br />
da extrema-direita. Hoje, muito provavelmente sejam a maioria. Também já<br />
se disse que entre os novos skins existe a tendência a rumarem-se para o<br />
neonazismo e suas variantes ligadas à idéia de supremacia branca, que é<br />
transferida para a música. Nesta tendência inserem-se nomes como o do<br />
falecido e, por conta disso, cultuado músico oi! inglês Ian Stuart, uma espécie<br />
de Saint George para os skinheads pro-white. Entre 1983 e 1993, ano de sua<br />
morte, Stuart liderou a ala jovem do National Front, criou uma sigla própria<br />
(Blood & Honour) e lançou mais de 30 discos com diversas bandas diferentes,<br />
sendo a Skrewdriver a principal delas, ampliando o raio de ação da white<br />
music para outras tendências como o folk rock e o heavy metal.<br />
Stuart pode ser considerado o mais importante integrador dos skinheads<br />
em torno de uma idéia – o white power – a partir da música, uma linguagem<br />
facilmente assimilável pelos jovens. Não é exagero afirmar que ele e<br />
seus muitos seguidores e continuadores regularam fronteiras então carentes<br />
de um direcionamento indubitável, deixando a ambigüidade do discurso em<br />
forma de música feito por e destinado a skinheads em algum lugar do início<br />
dos anos 1980. É o que pode ser visto em temas como “White Power” –<br />
“Nós vamos sentar e deixá-los chegar?/ Eles puseram o homem branco em<br />
fuga/ A sociedade multirracial é uma sujeira/ Nós não iremos agüentar muito<br />
mais disso/ O que nós precisamos?/ Poder Branco para a Inglaterra/ Poder<br />
Branco hoje/ Poder branco para a Bretanha/ Antes que seja tarde demais 30 –<br />
e “Voice of Britain” – “Agora nós temos um objetivo/ Na televisão e nos<br />
jornais e em toda mídia sionista que gostaria de nos manter calados/ Eles<br />
estão tentando sangrar nosso país, eles são as sanguessugas da nação/ Mas<br />
não nos entregaremos silenciosamente, nós vamos ficar e lutar” 31 .<br />
O que são hoje os skinheads, bem como as demarcações advindas<br />
desse modo de ser, está ordenado a partir da construção ideológica afirmada<br />
no princípio dos anos 1980. Dessa forma, eles também são recebidos e percebidos<br />
na entrada do século XXI. Claro que tanto recepção como percepção<br />
trataram de desmerecer ou condenar o que pensam e fazem os skins.<br />
Até porque grande parte de seus credos são sobras daquilo que o mundo<br />
aprendeu a odiar. A fundamentação de seu nacionalismo é um caldo grosso<br />
30 ”Boots and Braces/Voice of Britain, Rock-o-Rama, 1990.<br />
31 Idem, Ibidem.<br />
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que mistura, nem sempre ao mesmo tempo, superioridade racial branca,<br />
anti-semitismo, anticomunismo e um amor totalmente subjetivo ao Estado<br />
onde nasceram, baseado, na acepção de Hobsbawm e Ranger, em tradições<br />
inventadas. Seus heróis são aqueles redimidos pelo revisionismo anti-semita,<br />
especialmente Adolf Hitler e seus pares, ou qualquer nacionalista ferrenho<br />
de fama fugaz. A violência inerente ao comportamento skinhead pode até<br />
não ser sempre um ritual de ordem racialmente ou politicamente dirigida,<br />
mas apenas por ser violência já se enquadra naquilo que é dever condenar.<br />
Todavia, compreender a permanência dos skinheads passa justamente<br />
por essa marginalização em que se inserem opcionalmente; é ela que garante<br />
a reprodução contínua e reforça as delimitações entre o ‘eu’ e o ‘outro’ da<br />
qual eles dependem para sobreviver. É a partir do medo e do ódio, sejam os<br />
próprios sejam os alheios, que os skins mobilizam suas forças e conquistam<br />
adeptos. Atuando na contracorrente da razão, esses jovens apenas reforçam<br />
suas fronteiras, ainda que parte delas não lhes seja exclusiva.<br />
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Resumo<br />
Este artigo analisa a História a partir de<br />
um debate transversal primordialmente<br />
com a Física quântica e a visão da Matemática<br />
de Wittgenstein, pontuando as interfaces<br />
e as ressonâncias possíveis entre<br />
essas áreas do conhecimento. Nesse percurso<br />
é privilegiado o debate em torno<br />
dos relatos orais de memória, como estratégia<br />
para pensar o fazer historiográfico e<br />
as formas possíveis de tangenciamento<br />
com a ciência, de modo a repensar a perspectiva<br />
construtivista na história.<br />
história – ciência – memória<br />
Palavras-chave:<br />
91<br />
Trilhas metodológicas:<br />
história, ciência e memória<br />
Antonio Torres Montenegro *<br />
Abstract<br />
This article analyses History from a transversal<br />
debate mainly with the Quantum<br />
Physics and Wittgenstein’s Mathematical<br />
view, emphasizing the possible interfaces<br />
and the resonances between these<br />
two areas of knowledge. In this way,<br />
we choose to use the debate around the<br />
oral reports of memory as a strategy to<br />
organize the historiography making and<br />
the possible forms of contact with science<br />
to rethink the constructive perspective<br />
in History.<br />
history – science – memory<br />
Keywords:<br />
* Professor doutor do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da UFPE.<br />
Este artigo é em grande parte resultado das pesquisas que vimos realizando a partir do nosso projeto<br />
de pesquisa ‘Memórias da terra: a Igreja Católica, as Ligas Camponesas e as Esquerdas (1950-1970)’,<br />
com apoio do CNPq.<br />
REV. TERRITÓRIOS E FRONTEIRAS – PROG. DE PÓS-GRAD. EM HISTÓRIA – UFMT – V.6 – N.2 – JUL./DEZ. 2005<br />
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92<br />
– Notícias do nosso povo?<br />
Perguntou o boticário com a voz trêmula.<br />
O alienista fez um gesto magnífico, e respondeu.<br />
– Trata-se de cousa mais alta,<br />
trata-se de uma experiência científica.<br />
Digo experiência,<br />
porque não me atrevo<br />
a assegurar desde já a minha idéia;<br />
nem a ciência é outra cousa.<br />
Machado de Assis, (O alientista.)<br />
Desde a época de minha graduação em Filosofia, passei a nutrir uma<br />
grande admiração por Heráclito de Éfeso. Provavelmente meu mestre Walteir<br />
Silva deve ter tido alguma influência nessa percepção/compreensão,<br />
quando nos ensinava que para aquele filósofo pré-socrático o princípio de<br />
tudo se explicava pelo movimento, e o seu símbolo era o fogo, e a sua<br />
metáfora mais expressiva era a de que não se entrava duas vezes no mesmo<br />
rio. A concepção que regia essas representações se manifestava no enunciado:<br />
Nos mesmos rios entramos e não entramos, somos e não somos 1 .<br />
Naquela época, o fascínio por Heráclito advinha sobretudo da linha evolutiva<br />
que se estabelecia entre seu pensamento, nomeado de dialético, e os<br />
estudos que fazíamos do marxismo. No entanto, a dialética de ambos se diferenciava<br />
num ponto fundamental. Para o marxismo, com o fim do capitalismo<br />
não haveria mais luta de classes, portanto, seria o fim da contradição capital<br />
versus trabalho e, por extensão, essa teoria defendia ser possível alcançar uma<br />
sociedade sem classes. Dessa forma, determinava-se o fim da dialética.<br />
Os anos se passaram, e Heráclito e sua metáfora do movimento vinham<br />
constantemente à tona em minhas leituras, sobretudo porque, ao afirmar que<br />
tudo se encontra em constante mudança, tornou-se uma referência contemporânea<br />
para diversas áreas do conhecimento. Estas durante mais de três<br />
séculos foram regidas pelo método científico, que estabelecia só ser possível<br />
construir um conhecimento certo e seguro partindo daquilo que se apresentava<br />
de forma clara, objetiva e evidente. No entanto, o século XX simbolizou<br />
a ruptura, a desconstrução dessa representação do conhecimento. O estatuto<br />
que remetia ao tempo e espaço absolutos de Newton, bem como ao determinismo<br />
que regia todo o universo segundo Laplace, se esvaecia. A Teoria<br />
1 ÉFESO, Heráclito de. In: Os pré-socráticos. São Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 90.<br />
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Geral da Relatividade e a Mecânica Quântica seriam responsáveis por esse<br />
movimento de quebra do paradigma científico e do conjunto de signos que<br />
ele emitia. Nesse sentido, é reveladora a observação do físico alemão Heisemberg:<br />
“Na escala atômica, esse mundo objetivo do tempo e do espaço<br />
nem sequer existia, e os símbolos matemáticos da física teórica referem-se a<br />
possibilidades e não a fatos” 2 .<br />
Para muitos que trabalham na área das ciências denominadas Humanas,<br />
essas mudanças parecem ainda não ter sido avaliadas amplamente. É o próprio<br />
Hawking quem afirma: “O princípio da incerteza de Heisemberg é uma<br />
propriedade fundamental, inescapável, do mundo e teve profundas implicações<br />
na maneira como vemos o mundo. Mesmo depois de setenta anos,<br />
estas implicações não foram inteiramente compreendidas por muitos filósofos<br />
e ainda são motivo de muitas controvérsias” 3 .<br />
No campo da história poder-se-ia afirmar que a relação com a ciência<br />
tem sido alvo de muitos debates. Não é fortuito que Paul Veyne, no seu hoje<br />
considerado clássico “Como se Escreve a História”, tenha dito: “A história não é<br />
uma ciência e não tem muito a esperar das ciências; não explica e não tem<br />
método; mais ainda a História, da qual se fala muito desde há dois séculos, não<br />
existe.” E concluiu afirmando que “a resposta à questão não mudou desde os<br />
sucessores de Aristóteles: os historiadores narram acontecimentos verdadeiros<br />
que têm o homem como ator: a história é um romance verdadeiro” 4 .<br />
Realmente, em pleno século XXI, podemos repensar a relação da história<br />
com a ciência, ou mais propriamente com o modelo clássico de ciência<br />
que dominou o conhecimento durante três séculos. Paul Veyne provavelmente<br />
estava se referindo a este modelo, que aprendemos nos bancos escolares<br />
e domina o senso comum, ou seja, um conhecimento que descobre<br />
verdades e estabelece leis; que define causas e antecipa conseqüências. Em<br />
que a definição do método é a condição a priori para se obter o conhecimento.<br />
Este método, nomeado então de científico, definia os passos, as etapas,<br />
instituindo antecipadamente o caminho a ser seguido para obtenção da<br />
verdade. No entanto, esse modelo de verdade, desde o final do século XIX,<br />
foi sendo gradativamente desconstruído.<br />
Ao mesmo tempo, as diversas práticas historiográficas que operavam, a<br />
partir de diferentes mediações, com o método científico clássico, em face<br />
2 HEISEMBERG, Werner. A parte e o todo: encontros e conversas sobre física, filosofia, religião e política.<br />
Rio de Janeiro: Contraponto, 1996, p. 98.<br />
3 HAWKING, Stephen. 1942 – Uma nova história do tempo. Rio de Janeiro: Ediouro, 2005, p. 96.<br />
4 VEYNE, Paul. Como se escreve a história. São Paulo: Martins Fontes, 1980, p. 10.<br />
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93
94<br />
das mudanças no campo da Física, da Matemática e de outras áreas, não<br />
romperam com seus métodos e técnicas de pesquisa, seus referenciais teóricos<br />
e procedimentos narrativos de forma automática. Por outro lado, um<br />
caminho possível para pensar uma nova forma de relação entre os diferentes<br />
campos do conhecimento é apresentado por Gilles Deleuze, que recorre ao<br />
termo ressonância, e constrói a representação de que a ciência, a filosofia e a<br />
arte seriam como linhas melódicas estrangeiras, que, por razões intrínsecas,<br />
estabeleceriam relações de troca entre si 5 .<br />
A história foi uma das áreas do conhecimento que na sua busca para<br />
adaptar o método científico à prática historiográfica acabou por agenciar verdades<br />
que hoje nos parecem inconcebíveis. Entre elas, a de que povo sem<br />
escrita seria povo sem história. No entanto, apesar da grande influência do<br />
método científico, observa-se como existiram filósofos que tentaram romper<br />
com o postulado da evidência, haja vista o anticartesianismo de Vico, de<br />
Locke, de Berkeley e de Hume, ao longo do século XVIII. Mas, o positivismo<br />
no século XIX significou um forte retorno ao modelo cartesiano, sobretudo<br />
porque buscava estabelecer um paralelo entre a forma como a natureza era<br />
compreendida (determinista, causal, submetida a leis) e a história. Entretanto,<br />
esta era uma relação que colocava problemas, na medida em que a natureza<br />
era considerada um modelo estático e a história um modelo em constante<br />
progresso. No entanto, com Darwin e sua teoria da seleção natural, o<br />
movimento, a mudança, o progresso, passavam a serem vistos como também<br />
próprios à natureza. Dessa maneira, poder-se-ia afirmar que se estabelecia<br />
uma nova conciliação entre a história e a natureza.<br />
A tradição positivista inspirada em Auguste Comte produziu marcas<br />
indeléveis na história. Especialmente, em face da importância que ele atribuiu<br />
à identificação do que se passou a denominar fato histórico, pois a partir<br />
do estudo deste seria então possível estabelecer leis que regeriam a História,<br />
assim como os cientistas faziam em seus estudos da natureza. Seria, em parte,<br />
no interior desse debate que Ranke defenderia a tese de que a função<br />
precípua da História é relatar o fato como verdadeiramente aconteceu, refutando<br />
o estabelecimento de leis gerais como postulava Comte 6 .<br />
Quando nos debruçamos sobre as várias perspectivas teóricas em que<br />
a historiografia se fundamentou do século XVII ao início do século XX, podemos<br />
perceber a força de um modelo científico que defende a existência de<br />
5 DELEUZE, Gilles. Conversações – 1972-1990. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.<br />
6 Cf. COLLINGWOOD, R. G. A idéia de História. Lisboa: Editorial Presença, 1972.<br />
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uma realidade natural, pronta, matematicamente determinada e submetida a<br />
leis, independente da intervenção ou participação humana. O positivismo<br />
pode ser visto como mais uma apropriação desse modelo, na perspectiva<br />
das ciências humanas, ao aproximar do modelo de natureza da época a concepção<br />
de sociedade. Afinal, desde o século XVIII, as ciências físicas, químicas,<br />
matemáticas, biológicas obtiveram grandes avanços utilizando-se do denominado<br />
método científico. Conhecer era sobretudo uma relação entre<br />
sujeito e objeto na qual o sujeito era determinado pelo objeto. Esta visão do<br />
conhecimento partia do pressuposto de que havia um mundo pronto e acabado<br />
diante de nós e que, para conhecê-lo, bastava utilizar o método corretamente.<br />
Em outros termos, conhecer era aplicar o método científico que<br />
possibilitava descobrir as leis e as verdades prontas e acabadas que governavam<br />
o mundo. A verdade estava para ser descoberta. Logo, o conhecimento<br />
significava uma correspondência entre o conceito ou a palavra e o mundo<br />
material. No esteio dessa perspectiva, muitas expressões como objetivo,<br />
evidente, claro se popularizaram como sinônimos de verdade, e foram incorporadas<br />
ao senso comum. Algo era verdadeiro porque havia uma prova material<br />
– o fato de ser considerado objetivo – que dava suporte ou garantia à<br />
relação entre o conceito e o mundo material. No entanto, como assinalei, as<br />
descobertas no campo da Física<br />
pulverizaram todos os principais conceitos da visão de mundo cartesiana<br />
e da mecânica newtoniana. A noção de espaço e tempo absolutos,<br />
as partículas sólidas elementares, a substância material fundamental, a<br />
natureza estritamente causal dos fenômenos físicos e a descrição objetiva<br />
da natureza – nenhum desses conceitos pôde ser estendido aos<br />
novos domínios em que a física agora penetrava. 7<br />
O campo da história não ficava incólume a este debate. As novas concepções<br />
obrigavam a repensar o conceito de causa e a reavaliar a sua própria<br />
escrita, até então submetida a um tempo linear e cronológico. Ao se estudar<br />
os acontecimentos passados, por meio de documentos, sobretudo os escritos<br />
oficiais, a partir de uma compreensão teórica causal e determinista, observava-se<br />
a própria comprovação no campo da História de um princípio que<br />
imperara na ciência até então. Desse modo, o documento escrito (o oral era<br />
7 CAPRA, Fritjof. O ponto de mutação: a ciência, a sociedade e a cultura emergente. São Paulo: Cultrix,<br />
1991, p. 69.<br />
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considerado incerto e plausível de muitas deturpações) não só era a prova<br />
do acontecido, como deveria possibilitar o “resgate” da verdade histórica,<br />
do significado evidente que se encontrava impresso e expresso no acontecimento.<br />
Nessa perspectiva, o historiador definia técnicas que lhe possibilitavam<br />
verificar a autenticidade e a procedência do documento, e estabelecia<br />
o método que se constituía no caminho seguro para descoberta do<br />
verdadeiro significado dos acontecimentos passados. No interior de toda<br />
essa tradição, os cordéis, os relatos da tradição oral popular, as entrevistas<br />
de história de vida e/ou temáticas, os prontuários de hospitais, os livros de<br />
registros de presidiários, os boletins de ocorrências das delegacias de polícia,<br />
a literatura, a fotografia, o cinema não se constituíam em fontes para o<br />
historiador. Afinal, o que conteriam de verdade documentos de procedências<br />
tão diversas, muitos resultantes da pura imaginação de seus criadores?<br />
Segundo os critérios técnico-científicos da ciência dominante a verdade<br />
científica deveria ser buscada em outras fontes.<br />
Um outro campo em que é possível estabelecer paralelos com a historiografia<br />
pode ser encontrado nas reflexões de Georges Canguilhem acerca<br />
da Biologia e da Medicina. Este, ao estudar como os conceitos de normal e<br />
patológico foram desenvolvidos em Fisiologia e Biologia no decorrer dos<br />
séculos XIX e XX, opera uma série de rupturas com a visão habitual de saúde<br />
e de doença na medicina 8 . Sua pesquisa possibilitará instituir uma representação<br />
da ciência como sistema aberto que espontaneamente faz e refaz sua<br />
própria história a cada instante. Logo, não há lugar para se pensar a ciência<br />
como progresso cumulativo. Antes, sua história estavaá pontuada de descontinuidades,<br />
em que algo considerado errado ou mesmo uma questão secundária<br />
poderia se tornar fundamental para lidar com um problema recémdescoberto.<br />
Um exemplo seria a fermentação não celular – um fenômeno<br />
colateral durante o reinado de Pasteur e sua microbiologia –, que só marcou<br />
uma ruptura essencial quando a fisiologia das enzimas se desenvolveu 9 .<br />
A partir dessa perspectiva teórica da produção do conhecimento como<br />
um campo sem leis pré-determinadas, Canguilhem irá centrar sua análise da<br />
história da ciência no estudo dos meios que possibilitam estabelecer o regime<br />
do verdadeiro e do falso. Dessa forma, o foco não seria mais a verdade<br />
em si, ou o objeto, mas as relações, os regimes enunciativos, as práticas que<br />
produzem, naturalizam o verdadeiro e o falso como coisas em si. E essas<br />
8 Cf. CANGUILHEM, Georges. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1995.<br />
9 Cf. FOUCAULT, Michel. Introdução. In: Canguilhem, op. cit.<br />
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elações estariam marcadas pelas descontinuidades. Assim, o que é considerado<br />
normal não é possível ser compreendido fora da relação entre o ser<br />
vivo e o ambiente social, que o constitui e o nomeia como tal. O normal e o<br />
doente, nessa perspectiva, devem ser estudados como relação provisória e<br />
aberta a constantes mutações.<br />
97<br />
O mundo como invenção<br />
As transformações observadas a partir do final do século XIX, no campo<br />
da Física, da Matemática, da Química, não têm o mesmo significado para os<br />
próprios cientistas. O fato da ciência não ter mais um princípio único que<br />
explique todo o universo não significa que a ciência clássica não continue a<br />
dar suporte a muitas pesquisas, e por extensão à vida prática. A teoria da<br />
relatividade geral, ao afirmar que a menor distância entre dois pontos é uma<br />
curva, e o princípio da incerteza da teoria quântica, ao apontar que a lei<br />
causal é falha e, portanto, que é impossível determinar porque um átomo se<br />
desintegra num dado momento e não no seguinte, irão concorrer para o fim<br />
de uma teoria única para explicação do universo. Em outros termos, a Física<br />
passa a trabalhar com teorias parciais. A Teoria da Relatividade Geral é uma<br />
teoria do espaço, do tempo e da cosmologia; opera com as grandes escalas<br />
e parte significativa das observações que confirmam esta teoria vem da astronomia.<br />
Já a Teoria quântica é capaz de explicar propriedades da matéria e<br />
da radiação, nas escalas moleculares e ainda menores 10 . Assim, o mundo que<br />
nomeamos físico e que nos rodeia é compreendido e estudado a partir de<br />
teorias bastante distintas, dependendo do foco da análise 11 .<br />
O filósofo e matemático austríaco Ludwig Wittgestein responsabilizava<br />
a Matemática, e o fascínio metafísico que ela despertava, pela veneração<br />
que se produzia em torno da ciência. Esse fascínio advinha de se acreditar<br />
que a Matemática seria capaz de descobrir fatos sobre objetos matemáticos<br />
(números, conjuntos, etc.). Ou seja, para Wittgestein “o que se chama descoberta<br />
matemática deveria chamar-se invenção matemática” 12 , porque a Matemática<br />
não oferece a verdade, mas apenas fixa o significado de certos<br />
signos, pois suas proposições são gramaticais 13 .<br />
10 Cf. SMOLIN, Lee. Três caminhos para a gravidade quântica. Rio de Janeiro: Rocco, 2002, p. 13.<br />
11 Cf. EINSTEIN, Albert. Escritos da maturidade: artigos sobre ciência, educação, relações sociais, racismo,<br />
ciências sociais e religião. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994.<br />
12 MONK, Ray. Wittgenstein: O dever do gênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 373.<br />
13 Cf. WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 291-292.<br />
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98<br />
Essa maneira de pensar o conhecimento matemático como invenção<br />
tem se constituído em mais um elemento na desconstrução do modelo clássico<br />
do que se costumou denominar conhecimento científico. Entre as múltiplas<br />
ressonâncias que poderíamos conceber acerca do movimento de aproximação<br />
da História e a Biologia, a Física, a Matemática, em que se privilegia<br />
o conhecimento como relação e construção de modelos explicativos, estaria<br />
a ruptura com o postulado primeiro do método cartesiano, em que Descartes<br />
afirma: “[...] jamais acolher alguma coisa como verdadeira que eu não<br />
conhecesse evidentemente como tal; isto é, de evitar, com todo cuidado, a<br />
precipitação e a prevenção, só incluindo nos meus juízos o que se apresentasse<br />
de modo tão claro e distinto à minha mente que não houvesse nenhuma<br />
razão para duvidar” 14 . Esse postulado, que concorreu de forma dominante<br />
para a produção do conhecimento em diversos campos da ciência durante<br />
séculos, foi alvo de crítica do próprio Einstein, ao afirmar: “Compreendemos<br />
hoje, com especial clareza, o quanto estão equivocados os teóricos que acreditam<br />
que a teoria provém da experiência, por indução. Nem o grande Newton<br />
conseguiu escapar desse erro” 15 . Ou seja, a evidência, que segundo Descartes<br />
se constituiria na garantia da apreensão do objeto, não é considerada mais<br />
como ponto de partida para a obtenção de um conhecimento verdadeiro.<br />
Nesse sentido, Einstein irá detalhar como pensa o desenvolvimento da<br />
Física: “A Física constitui um sistema lógico de pensamento que está em<br />
estado de evolução e cujas bases não podem ser obtidas por destilação das<br />
experiências vividas, através de algum método indutivo, mas somente pela<br />
livre invenção do espírito humano” 16 . Assim, a capacidade de criar, de inventar,<br />
é considerada como um atributo fundamental para o desenvolvimento<br />
científico. Nesse sentido, é bastante reveladora uma passagem do livro autobiográfico<br />
de Heisemberg em que este recorda e descreve o impasse vivido<br />
no período que antecedeu a criação da lei das probabilidades, e como uma<br />
frase de Einstein numa conversa que tiveram fora decisiva: “É a teoria que<br />
decide o que podemos observar” 17 . Ou seja, a ciência constitui uma rede teórica<br />
abstrata que está constantemente formulando modelos de enorme complexidade,<br />
em que sua linguagem há muito abandonou os signos e as metáforas<br />
da linguagem cotidiana para operar com as formulações da Física Atômica.<br />
14 DESCARTES, René. Discurso do Método. In: Obra escolhida. São Paulo: Difel, 1962, p. 53.<br />
15 EINSTEIN, op. cit., p. 76.<br />
16 EINSTEIN, op. cit., p. 99.<br />
17 HEISEMBERG, op. cit., p. 75.<br />
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Por outro lado, é de certa forma surpreendente observar como Einstein, que<br />
concorreu tão fortemente para o fim do modelo único de explicação do universo,<br />
estabelecido pela ciência clássica, tenha ao mesmo tempo demonstrado uma permanente<br />
resistência em aceitar o princípio da incerteza da Física Quântica. O<br />
próprio Heisemberg constrói uma explicação para essa atitude do físico:<br />
Einstein dedicara a vida a investigar o mundo objetivo de processos<br />
físicos que têm lugar no espaço e no tempo, independentes de nós, de<br />
acordo com leis exatas. Os símbolos matemáticos da física teórica representavam<br />
o mundo objetivo e, nessa condição, deveriam permitir<br />
aos físicos fazer afirmações sobre o futuro comportamento do mundo.<br />
Agora, afirmava-se que, na escala atômica, esse mundo objetivo do<br />
tempo e do espaço nem sequer existia, e que os símbolos matemáticos<br />
da física teórica referiam-se a possibilidades, e não a fatos. 18<br />
Dessa forma, a Física Quântica passava a trabalhar com níveis de realidade<br />
que não são objeto da nossa experiência cotidiana, e a representação<br />
de conhecimento como relação entre sujeito e objeto, que herdamos de<br />
toda a tradição do racionalismo iluminista, era ainda mais estilhaçada 19 . É em<br />
parte por ter a compreensão da extensão das mudanças radicais que a teoria<br />
quântica introduz no campo da física e também do conhecimento que Einstein,<br />
apesar de reconhecer que esta forneceu a chave para a interpretação e<br />
o cálculo de um grupo heterogêneo de fenômenos da experiência, irá continuar<br />
afirmando que ela é capaz de induzir a erros porque se constitui numa<br />
representação incompleta das coisas reais 20 .<br />
Poder-se-ia então pensar que a disputa que se apresenta (Teoria da<br />
Relatividade versus Teoria Quântica) estaria relacionada, em última instância,<br />
à questão: ser a favor ou contra a possibilidade de uma nova teoria única que<br />
explicaria todo o universo. E que, na visão de Einstein, a teoria quântica se<br />
distanciava ainda mais dessa possibilidade. No entanto, não seria esta a visão<br />
de Heisemberg, que revela também estar em busca de uma teoria única ao<br />
retratar um diálogo com o físico Wolfgang Pauli, em que afirmara: “Na ciência,<br />
pode-se reconhecer a ordem central pelo fato de podermos usar metáforas<br />
como ‘a natureza foi feita de acordo com tal plano’.” No entanto, o que<br />
18 HEISEMBERG, op. cit., p. 98.<br />
19 Cf. HEISEMBERG, op. cit., p. 145.<br />
20 Cf. EINSTEIN, op. cit., p. 92.<br />
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seria essa ordem central para Heisemberg? Nas suas próprias palavras, seriam<br />
as experiências inteiramente corriqueiras, ou seja: “passado cada inverno,<br />
as flores desabrocham nos prados; terminada cada guerra, as cidades são<br />
reconstruídas. O caos sempre cede lugar à ordem” 21 . O que se observa, em<br />
última instância, é que ambos (Einstein e Heisemberg) continuam a acreditar<br />
na possibilidade de construir uma lei única para explicação do universo.<br />
No entanto, na visão do físico Fritjof Capra, a Mecânica Quântica introduziu<br />
rupturas radicais com os modelos cartesianos de pensar, de perceber e de<br />
agir, e o esforço para encontrar uma teoria única refletiria a força da herança<br />
cartesiana. Para Capra, diversos aspectos da Física moderna operaram uma<br />
completa desconstrução dos referenciais fundadores daquela ciência 22 .<br />
A partir da Física moderna não existem mais coisas com qualidades<br />
intrínsecas; elas dependem do meio ambiente. Ainda no nível subatômico os<br />
objetos materiais sólidos da Física clássica dissolvem-se em padrões ondulatórios<br />
de probabilidades. E estas não são probabilidades de coisas, ou de<br />
objetos, mas de interconexões. Assim, na Teoria Quântica os físicos não lidam<br />
com ‘coisas’, mas com relações. Ou ainda, como escreveu o físico Niels<br />
Bohr, “as partículas materiais isoladas são abstrações, e suas propriedades são<br />
definíveis e observáveis somente através de sua interação com outros sistemas”<br />
23 . Dessa forma, o foco da análise da Física não seria mais o objeto, mas<br />
as relações, porque isoladamente a natureza, no nível subatômico, não revelaria<br />
qualquer objeto 24 . Assim, se não temos objetos, nem um mundo a ser<br />
descoberto, mas relações ou interconexões, as palavras também, ao serem<br />
enunciadas, não oferecem por si a verdade do mundo. Por extensão, não é<br />
possível mais estabelecer definições em que as palavras ou os conceitos<br />
conteriam o próprio sentido e significado do mundo. As palavras, desse modo,<br />
não operam como representação mágica que ao ser enunciada revelaria o<br />
conhecimento, de forma clara e objetiva.<br />
Poder-se-ia encontrar, nessa representação do mundo que a Física moderna<br />
cria, um estreito paralelo com a História, na perspectiva da análise<br />
desenvolvida por Paul Veyne, quando afirma:<br />
Dito de outra maneira, é preciso desviar os olhos dos objetos naturais<br />
para perceber uma certa prática, muito bem datada, que os objetivou<br />
21 HEISEMBERG, op. cit., p. 249-250.<br />
22 Cf. CAPRA, op. cit., p. 73.<br />
23 Cf. CAPRA, op. cit, p. 75.<br />
24 Cf. CAPRA, op. cit., p. 75.<br />
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sob um aspecto datado com ela; pois é por isso que existe o que<br />
chamei anteriormente, usando uma expressão popular, “parte oculta<br />
do iceberg”: porque esquecemos a prática para não mais ver senão os<br />
objetos que a reificam a nossos olhos... Em vez de acreditar que existe<br />
uma coisa chamada “os governados” relativamente à qual os governados<br />
se comportam, consideremos que os governados podem ser tratados<br />
seguindo práticas tão diferentes, de acordo com as épocas, que os<br />
ditos governados não têm senão um nome em comum. 25<br />
Em outras palavras, Veyne está colocando que também na história as<br />
coisas, os objetos, os seres, isoladamente, nada expressam, além do seu significante.<br />
No que tange ao termo governado, por exemplo, este só existe ou<br />
só adquire significado histórico mediante o estudo de suas práticas, analisando<br />
suas relações. Seria essa uma das grandes contribuições de Foucault para<br />
a História, na visão de Veyne.<br />
Foucault observa que “o problema é ao mesmo tempo distinguir os<br />
acontecimentos, diferenciar as redes e os níveis a que pertencem e reconstituir<br />
os fios que os ligam e que fazem com que se engendrem, uns a partir<br />
dos outros” 26 . A partir do estudo das relações, das práticas, dos fios, das ligações,<br />
que são associados a acontecimentos, é que podemos construir formas<br />
de entendimento histórico. Ou ainda, como afirma Deleuze, a questão não é<br />
mais de estudar a origem ou a causa, nem a finalidade ou a conseqüência,<br />
mas o que se passa entre 27 . Dessa maneira, a análise histórica tem como foco<br />
primordial as relações, os percursos, as práticas, porque através do seu estudo<br />
é que se poderão construir outras formas de compreensão, que desnaturalizem<br />
a relação ou a representação que procurava associar de forma unívoca<br />
o objeto ou a coisa à palavra. É nessa perspectiva que Deleuze e Veyne<br />
irão reafirmar a proposta de Foucault de rachar as palavras, e as coisas. Desnaturalizá-las<br />
e ir em busca dos fios que as engendram, que as significam.<br />
Nos caminhos de Mato Grosso<br />
Algumas pesquisas têm trazido à tona relatos que poderão nos acompanhar<br />
no movimento de transformar as reflexões metodológicas desenvolvidas<br />
ao longo deste artigo em prática historiográfica.<br />
25 VEYNE, Paul. Como se escreve a história. São Paulo: Martins Fontes, 1980, p. 243.<br />
26 FOUCAULT, Michel. Verdade e poder. In: Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979, p. 5.<br />
27 DELEUZE, op. cit., p. 151.<br />
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Nesse sentido, é surpreendente como em algumas passagens de depoimentos<br />
de homens e mulheres das camadas pobres opera-se esse movimento<br />
de rachar as palavras, de descrever uma outra prática e, por extensão, alterar o<br />
significado, desconstruindo a associação que se quer natural entre o signo e a<br />
coisa. Ou, ainda, como esse movimento de desnaturalizar as palavras revela<br />
um combate, uma luta na história, um desfazer de laços e armadilhas que<br />
trazem embutido o controle constante sobre a vida e o fazer dos trabalhadores<br />
pobres e, por que não dizer, de todos nós. A historiadora Regina Guimarães,<br />
entrevistando trabalhadores que se dispõem a tarefas avulsas nas fazendas de<br />
soja, algodão ou mesmo em empreitadas de desmatamento nos arredores das<br />
pequenas e ricas cidades de Mato Grosso, entrou em contato com alguns<br />
grupos que são usualmente denominados de “pés-inchados”. Esta expressão –<br />
que se tornou corriqueira nessas áreas 28 – opera como sinônimo de trabalhador<br />
de baixa qualificação, em constante movimento pelas estradas em busca de<br />
novos trabalhos, sem família e, costumeiramente, sob efeito de alguma bebida.<br />
A expressão pé-inchado, ao objetivar essas características, naturaliza e estabelece<br />
um perfil de trabalhador que autoriza uma ação constante da polícia,<br />
reprimindo-os e proibindo sua permanência nas praças e entroncamentos, ou<br />
outras ações do poder público, no sentido de estabelecer práticas de vigilância<br />
constante que cerceiam o direito de entrada e saída, nos limites de algumas<br />
dessas cidades 29 . A experiência relatada pelo próprio trabalhador, no esforço<br />
de desconstruir a denominação que lhe é impingida de pé-inchado, é reveladora<br />
de como ela o torna alvo fácil de uma série de práticas de violência e<br />
desrespeito aos contratos de trabalho. Ao mesmo tempo, aponta a falta de<br />
atuação mais afirmativa do poder público na negociação dos conflitos trabalhistas.<br />
No seu relato, Zenon Silva Santos, natural do estado do Maranhão, afirma:<br />
Pé inchado, todo mundo tem o nome de pé-inchado aqui, é só ficar nessa<br />
área da Rodoviária, pode ir para onde quiser que é sempre pé-inchado!<br />
Mas a gente vive aqui, olha minhas mãos (com enormes calos); isso aqui é<br />
moto serra, é foice, trabalhando tudo aí... Pé-inchado aqui não existe. Eu<br />
estou suando, eu falo na cara de quem quiser, sou vindo da capital, Falo a<br />
verdade, eu não sou mentiroso, aqui eu conheço, sou um trabalhador! 30<br />
28 Estas são áreas de ocupação recente (décadas de 1970, 1980, 1990), em que predominam grandes<br />
propriedades voltadas para o agronegócio.<br />
29 Como Primavera do Leste, Vila Rica, Sorriso.<br />
30 Apud GUIMARÃES NETO, Regina Beatriz. Vira mundo, vira mundo: trajetórias nômades, as cidades na<br />
Amazônia. Revista Projeto Historia, São Paulo, n. 27, 2003, p. 59.<br />
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103<br />
Para Zenon, suas mãos seriam a prova irretorquível da sua identidade. E<br />
ele demonstra uma aguda consciência de que o termo pé-inchado, ao procurar<br />
apagar sua marca de trabalhador, engendra uma série de representações<br />
que o tornam alvo da polícia. Afinal, a linguagem é uma prática 31 . É nesse<br />
território que situa sua fala, seu brado, sua reação indignada contra aquele<br />
termo, signo perigoso que ameaça apagar sua história de trabalhador. Deve<br />
rachar aquela palavra. Mas, reconhece que os próprios colegas, muitas vezes,<br />
ao não reagirem àquele discurso, concorrem para a perpetuação do uso da<br />
violência contra eles: “Sou um lavrador! Vocês derrotam a nós mesmos, nós<br />
não somos pés-inchados. Agora gente safada aqui tem, cadê o pessoal do<br />
Fórum para resolver o nosso problema?” 32 . E aponta a ausência do poder<br />
público como mediador dos conflitos trabalhistas, no que é corroborado pela<br />
fala de um outro trabalhador: “Cadê assistente social? Cadê o pessoal do<br />
Fórum que dá valor ao trabalhador? Aqui em Juína é só ‘cartucho’, um em<br />
cima do outro. Se você deve para mim, se eu for cobrar você, sabe o que eu<br />
vou receber? Um tapa no meio da cara!” Observa-se como vai sendo tecida<br />
uma rede que procura controlar, interditar a prática da cidadania, o livre exercício<br />
de direitos e deveres. Sobretudo se pensarmos que essas são mediações<br />
labirínticas, em que aquele que se pensa e se reconhece pé-inchado<br />
interioriza, subjetiva alguém sem direitos, e passa a agir e a comportar-se a<br />
partir de uma lógica que o anula como cidadão, como trabalhador, como<br />
afirma Zenon: “Vocês derrotam a nós mesmos, nós não somos pés-inchados.”<br />
É nessa trilha que a historiadora Ana Maria de Souza, ao estudar o fluxo<br />
migratório para Cuiabá na década de 1990, mapeia os diversos discursos que<br />
são produzidos pelo poder público (secretarias de governo e órgãos de assistência<br />
social), pela imprensa e por políticos, defendendo a criação de mecanismos<br />
de controle e outras estratégias que barrem ou dificultem a vinda de<br />
pessoas e famílias pobres para a cidade. Segundo aqueles registros, estas ao<br />
desembarcarem com pouco ou nenhum dinheiro vão ocupar as praças, os<br />
logradouros, os viadutos e, algumas vezes, transformam a rodoviária em seu<br />
lar 33 . Numa matéria publicada na imprensa com o título “Rodoviária é morada<br />
de indigentes”, Ana Maria destaca o breve diálogo entre a jornalista que<br />
produziu a reportagem e uma dessas pessoas nomeada de moradora da<br />
31 FOUCAULT, op. cit., p. 7.<br />
32 GUIMARÃES NETO, loc. cit.<br />
33 Cf. SOUZA, Ana Maria de. Relatos da cidade: representações e práticas de apropriações urbanas – Cuiabá,<br />
MT. Dissertação (Mestrado em História) - Instituto de Ciências Humanas e Sociais, UFMT, 2004, p. 47.<br />
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rodoviária. O título da matéria já aponta uma associação considerada não<br />
natural em relação ao termo rodoviária, ou seja, rodoviária e moradia são<br />
termos que assinalam uma incongruência, um elo proibido. Os leitores ao se<br />
depararem com aquela reportagem devem ter sentido o impacto de uma<br />
ruptura, que racha inteiramente com o significado considerado próprio ou<br />
natural da palavra rodoviária. Para o dicionário Aurélio, rodoviária significa<br />
“estação de embarque e desembarque de passageiros...” No entanto, segundo<br />
a imprensa, os indigentes estariam ressignificando aquele lugar, aquele<br />
espaço de passagem, invertendo seu significado, ao transformá-lo em lugar<br />
de permanência. Ao mesmo tempo, uma simples reportagem, entre as inúmeras<br />
que se poderiam relacionar sobre a cidade e seus lugares, e seus<br />
fluxos e seus significados, revela o constante temor da inversão do signo de<br />
uma ordem que se representa como natural. E esse perigo decorre (o que é<br />
considerado mais grave) da ação dos pobres, dos indigentes.<br />
A jornalista, ao trazer para sua matéria a própria fala de uma mulher nomeada<br />
“moradora da rodoviária”, busca validar e oferecer ao leitor o suporte da prova a<br />
seu relato. No entanto, encontra alguém bastante treinada nos perigos e nas<br />
armadilhas que são comuns do viver a contrapelo. A narrativa não transcreve<br />
qual teria sido a pergunta da jornalista, no entanto, o texto nos induz a pensar em<br />
algo como: “a senhora mora na rodoviária? A senhora tem família? Qual o seu<br />
nome?...” Ao ler as respostas encontramos alguém próxima aos personagens<br />
fantásticos de Macondo 34 . Ela rompe com os significantes considerados naturais<br />
e, aproximando-se do comportamento dos loucos, subverte a ordem e a<br />
lógica dominante. Para escapar da captura jornalística, do perigo de um laço,<br />
suas respostas revelam uma fantástica pirueta: “Sou dona da Rodoviária. Minha<br />
família é a família imperial. Não tenho nome, quem sabe é a polícia...” 35 .<br />
Sair do círculo, tornar-se inapreensível, revirar as palavras. Essa foi a<br />
trilha que essa moradora errante criou para escapar, estabelecer sua linha de<br />
fuga e assim transformar-se em fluxo, em puro movimento ou: “um, nenhum,<br />
cem mil” 36 identidades. E, ao mesmo tempo, projeta a jornalista no<br />
mesmo campo da polícia, ao afirmar que não tem nome; mas aquele que a<br />
jornalista procura já está com a polícia, não é o dela, ou mais propriamente,<br />
não se reconhece nele, é o dela – da polícia –, e possivelmente servirá ou<br />
atenderá a jornalista.<br />
34 Cidade imaginária criada por Gabriel García Márquez em Cem Anos de Solidão.<br />
35 Apud BARBANT, Maria. Rodoviária é morada dos indigentes. A Gazeta, Cuiabá, 20 nov. 1991, p. 9.<br />
36 PIRANDELLO, Luigi. Um, nenhum e cem mil. São Paulo: Cosac & Naify, 2001.<br />
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Revisitando o Nordeste<br />
Como tornou-se bastante conhecido na historiografia, de meados da<br />
década de 1950 até as vésperas do golpe militar de 1964, o Nordeste do<br />
Brasil, e em especial o estado de Pernambuco, passou a ser considerado<br />
uma área de grande mobilização de trabalhadores rurais, por intermédio,<br />
sobretudo, das Ligas Camponesas 37 . Para uma parte da imprensa nacional<br />
e internacional, um outro aspecto que tornava esse estado território dominado<br />
pelas esquerdas era o fato de que os cargos do executivo municipal<br />
(Recife) e estadual vinham sendo ocupados de maneira crescente por<br />
políticos como Pelópidas da Silveira (filiado ao Partido Socialista) e Miguel<br />
Arraes (mesmo filiado ao Partido Trabalhista Nacional, era visto como<br />
comunista) 38 .<br />
Sem dúvida, o meio rural era palco de disputas bastante acirradas, principalmente<br />
a partir do momento em que o deputado socialista Francisco Julião<br />
assumiu a defesa de um grupo de trabalhadores arrendatários de um engenho<br />
(Galiléia) no município de Vitória de Santo Antão/PE. A luta em defesa desses<br />
trabalhadores iria transformar as condições de vida e trabalho do camponês num<br />
tema nacional. Por um lado, colocava na ordem do dia a necessidade do cumprimento<br />
da Constituição, que dava aos trabalhadores rurais o direito de sindicalização;<br />
por outro, trazia à tona as condições de exploração, tais como o cambão, o<br />
pulo da vara, a caderneta dos barracões 39 , que o discurso das Ligas tratava de<br />
desnaturalizar. Porém, o destaque que essa temática também adquiria estava<br />
relacionado à reação dos proprietários, que imediatamente associavam toda essa<br />
mobilização a um plano revolucionário, que teria como objetivo transformar o<br />
Brasil em um país comunista. No entanto, não se pode deixar de registrar como<br />
certos segmentos das esquerdas, que se associaram a essa mobilização dos trabalhadores,<br />
faziam um discurso de que o fim da exploração só viria efetivamente<br />
37 Cf. CALLADO, Antônio. Tempo de Arraes: padres e comunistas na revolução sem violência. Rio de<br />
Janeiro: José Álvaro, 1964.<br />
38 Cf. AGUIAR, Roberto de. Recife da frente ao golpe. Recife: Editora Universitária da UFPE, 1993.<br />
39 O cambão significava os dias de trabalho gratuito que o camponês deveria dar ao senhor a cada ano. O<br />
‘pulo da vara’ era uma expressão usada para denunciar a forma como era medida pelos encarregados dos<br />
senhores a área cultivada. A vara, além de ser maior do que deveria (logo, o trabalhador plantava uma<br />
área maior do que efetivamente recebia em pagamento), ao colocá-la no chão para medir, o encarregado<br />
sempre dava um passo à frente, para medir um novo trecho, o que acarretava também perda para o<br />
trabalhador. E as famosas cadernetas anotavam as despesas dos trabalhadores nos barracões onde eram<br />
obrigados a fazer suas compras. Estes, por serem analfabetos (em sua grande maioria), além de pagar<br />
sempre um preço maior do que nas cidades próximas, não tinham condições de questionar as anotações<br />
registradas. Cf. MONTENEGRO, Antonio. Ligas Camponesas e sindicatos rurais em tempo de revolução.<br />
In: FERREIRA, Jorge; NEVES, Lucília (org.). Brasil Republicano. v. III.<br />
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com o socialismo, e a via revolucionária não deveria ser descartada 40 .<br />
Um outro foco possível de análise acerca dos movimentos sociais rurais<br />
nesse período relaciona-se ao controle ou à hegemonia na condução dessas<br />
lutas. O Partido Comunista, que desde a década de 1940 lançara as Ligas<br />
Camponesas, nunca conseguiu, por meio desta forma de organização, dar<br />
visibilidade e força política à luta dos trabalhadores no campo. A fortuita<br />
associação entre Francisco Julião e os trabalhadores do Engenho Galiléia para<br />
impedir inicialmente a expulsão movida pelo proprietário, assim como a<br />
manutenção da sociedade de ajuda mútua fundada pelos mesmos, é que deu<br />
visibilidade à questão da sindicalização rural 41 . Entretanto, mesmo filiado ao<br />
Partido Socialista, Francisco Julião teve o apoio dos comunistas até 1960, quando,<br />
no V Congresso do PCB, uma parcela dos membros do partido vinculada às<br />
Ligas foi derrotada em suas teses sobre a prioridade das lutas. A relação com o<br />
PCB agravou-se ainda mais durante o Congresso Nacional de Lavradores e<br />
Trabalhadores Agrícolas (Belo Horizonte), organizado pelos comunistas e pela<br />
ULTAB, em que os representantes das Ligas, mesmo em minoria, saíram vitoriosos<br />
com a tese da reforma agrária radical (na lei ou na marra) 42 .<br />
No entanto, as Ligas, além da disputa com os comunistas, tinham na<br />
Igreja Católica provavelmente seu mais forte adversário, sobretudo porque<br />
muitos escritos produzidos por elas acusavam-na de aliada dos proprietários.<br />
E mais significativo era que, ao produzir seus textos, as Ligas não criticavam<br />
a religião como “ópio do povo”, mas desenvolviam o que podemos denominar<br />
de sua própria exegese. Ou seja, construíam uma outra leitura bíblica para<br />
o mundo rural, invertendo a ordem sagrada e natural que os proprietários,<br />
padres e pastores difundiam a partir dos princípios cristãos, em que afirmavam<br />
que a condição de pobreza e miséria era natural e protegida por Deus.<br />
Entre as publicações das Ligas, é possível destacar diversos folhetos<br />
como o Guia do Camponês, o ABC, o Recado e, às vésperas das eleições<br />
presidenciais de 1960, a Cartilha do Camponês. Em um certo trecho da cartilha,<br />
escrita numa linguagem coloquial de quem conversa, é afirmado:<br />
Mas enquanto não chega o voto para o analfabeto e não se faz a reforma<br />
agrária, tu não hás de ficar de braços cruzados. Já não acontece o<br />
milagre como no tempo de Moisés, que tocava na rocha e a água<br />
40 Cf. ABREU, Socorro. Revisitando o campo: lutas, organização, contradições – Pernambuco, 1962-1987.<br />
Tese (Doutorado em História) – Programa de Pós-Graduação em História, UFPE, Recife, 2003.<br />
41 Cf. CAVALCANTI, Paulo. O caso eu conto como o caso foi. São Paulo: Alfa-Ômega, 1976.<br />
42 Cf. AZEVEDO, Fernando. As Ligas Camponesas. São Paulo: Paz e Terra, 1982, p. 45-48.<br />
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nascia, ou no tempo de Jesus, que de um pão e de um peixe fazia muitos<br />
pães e muitos peixes. Cada um de nós tem, hoje, de ganhar com o suor do<br />
próprio rosto o pão de cada dia. Assim manda a Escritura que pouca gente<br />
segue. Se não há mais milagre porque Moisés se foi e, depois dele, o<br />
Cristo, tu podes, camponês, mesmo crucificado à terra como um escravo,<br />
alcançar tudo o que quiseres, sem depender de milagre. Podes conquistar<br />
a liberdade, ter o pão com fartura, viver bem agasalhado e na boa paz, se<br />
conseguires unir os teus irmãos sem terra. Nenhuma palavra tem mais<br />
força do que esta – União. Ela é a mãe da liberdade. Aprende a defender<br />
o teu direito junto com o teu irmão, sem terra. Nunca fiques sozinho.<br />
Vai sempre com ele à casa da Justiça já que é junto dele que tu te<br />
encontras na igreja, na festa, no enterro, na feira e no trabalho [...]. 43<br />
O que podemos destacar nesse pequeno fragmento, além da perspectiva<br />
social – isto é, a luta pelo fim do analfabetismo, a reforma agrária e a<br />
união dos trabalhadores –, é a dimensão cristã que se mistura ao texto com<br />
citações bíblicas. Esse artifício não é fortuito, mas de quem sabe os meandros<br />
da escrita, ou como atrair aquele trabalhador do campo, na maioria das vezes<br />
analfabeto, para ouvir (ou algumas vezes ler) temas considerados tabus como<br />
direito do voto para o analfabeto, reforma agrária e união do trabalhador<br />
contra o latifúndio. A esse percurso soma-se o tom professoral, de alguém<br />
que ensina, que defende idéias, que argumenta trazendo para junto de si,<br />
por meio de estratégias múltiplas da escritura, aquele a quem se dirige, o<br />
trabalhador rural. Possivelmente, os tempos de menino, criado no meio rural<br />
até os 13 anos, e depois, a partir dos 18 anos, como dono de uma pequena<br />
escola para crianças pobres próxima ao seminário de Olinda, e também professor<br />
de português, matemática e francês, tenham sido fundamentais nessa<br />
associação de pedagogia e política que os escritos de Francisco Julião revelam.<br />
Mas, não foram apenas os proprietários e os órgãos de segurança pública<br />
que reagiram ao trabalho de propaganda das Ligas 44 .<br />
Segundo Márcio Moreira Alves, a Igreja Católica iria engajar-se num<br />
trabalho que denominou de “promoção do homem do campo”, inicialmente<br />
no Nordeste e depois em todo o Brasil, como forma de opor-se ao trabalho<br />
das Ligas. Já o Papa Pio XI afirmara que o grande escândalo do século XIX<br />
43 JULIÃO, Francisco. A Cartilha do Camponês. Recife, 1960, p. 7-8.<br />
44 Cf. SANTIAGO, Wandeck. Perfil parlamentar – século XX: Francisco Julião. Recife: A Assembléia, 2001,<br />
p. 97-100.<br />
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fora a perda de influência da Igreja sobre o operariado. Logo, devia-se impedir<br />
que forças a-religiosas ou anti-religiosas dominassem o homem do campo 45 .<br />
A disputa pelo controle da organização dos trabalhadores rurais, no que<br />
tange à reforma agrária, teve também a participação do governo federal, por<br />
meio da Sudene, que iniciou um projeto piloto de exploração da monocultura<br />
da cana de açúcar em Pernambuco, conhecido como Cooperativa de Tiriri,<br />
com o arrendamento de cinco engenhos de propriedade de duas usinas,<br />
para serem explorados por 400 famílias de trabalhadores rurais. Apresentava-se<br />
como mais uma experiência do governo João Goulart no campo da<br />
reforma agrária, que vinha se tornando um tema de acirrados debates, no<br />
âmbito da imprensa, dos partidos, das universidades e da sociedade civil 46 .<br />
Pesquisando para sua dissertação de mestrado, Paulo Cândido entrevistou<br />
alguns trabalhadores que participaram ativamente das Ligas Camponesas e da<br />
Cooperativa Agrícola de Tiriri. Através do relato de dois dos seus entrevistados,<br />
percebe-se a influência das forças que disputavam a hegemonia na condução das<br />
lutas dos trabalhadores rurais naquele período. Um deles, José Natalício, afirmou:<br />
Na colônia de Tiriri, nessa época existia uma área de terra no engenho<br />
Tiriri que pertencia a Rede Ferroviária do Nordeste com 144 hectares<br />
de terra, todo desmatado, e um dia 33 camponeses resolvemos invadir<br />
a área. Já com as Ligas Camponesas entrando e nos dando apoio, só por<br />
volta de 1962 eu me encontrei com Doutor Jader de Andrade que na<br />
época era da Sudene. Nós éramos orientados por Francisco Julião, por<br />
Gregório Bezerra e outros que não estou lembrando mais. Veja, daí por<br />
diante nós formamos as Ligas lá na Colônia de Tiriri e decidimos invadir<br />
as terras da Rede Ferroviária do Nordeste. Tivemos a reação da polícia,<br />
mandaram a polícia para lá, mas naquela época o governador já era<br />
Arraes, Miguel Arraes, aí veio em seguida uma luta, a gente plantou,<br />
plantava, não dava, aí veio o Padre Melo, o Padre Melo nos orientou<br />
muito, nos ajudou bastante e ... a gente continuou a luta. 47<br />
Quais leituras, desse curto fragmento do relato de Natalício? Inicialmente,<br />
há de se considerar que ele está rememorando experiências vivenciadas<br />
45 Cf. ALVES, Márcio M. O Cristo do povo. Rio de Janeiro: Sabiá, 1968, p. 68-69.<br />
46 Cf. DABAT, Christine. Os primórdios da Cooperativa Agrícola de Tiriri. Clio, Revista de Pesquisa Histórica,<br />
Série História do Nordeste, Recife: Editora da UFPE, n. 16, 1996.<br />
47 Apud SILVA, Paulo Cândido da. Cooperativismo e política: a ação estatal face à mobilização camponesa.<br />
Dissertação (Mestrado em Sociologia) - Centro de Humanidades da Universidade Federal de Campina<br />
Grande, 2003, p. 67.<br />
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na década de 1950/1960, misturadas a quarenta anos de acontecimentos<br />
vários, leituras múltiplas que a vida lhe foi oferecendo, e que possivelmente<br />
o fazem inferir outros significados daquele passado. Ora, devemos considerar<br />
que aquilo que se torna uma marca, um registro na memória resulta de operações<br />
complexas, seletivas. Desde o momento inicial da percepção de algo,<br />
desencadeia-se uma construção em que as memórias que trazemos (que são<br />
de maneira indissociável individuais e coletivas) atuam reelaborando e ressignificando<br />
aquilo que se apresenta aos sentidos. Em outros termos, não há<br />
percepção pura e não há também memória pura. Dessa maneira, o percurso<br />
que informa a apreensão, interiorização, subjetivação de uma percepção vem<br />
carregado das marcas da memória, porque esta “não consiste, em absoluto,<br />
numa regressão do presente ao passado, mas, pelo contrário, num progresso<br />
do passado ao presente. É no passado que nos colocamos de saída” 48 .<br />
Em razão do trabalho de elaboração, resultante da relação que se estabelece<br />
entre as memórias (passado) e a percepção de algo (presente), as marcas<br />
que se constituem como memórias devem ser compreendidas como registros<br />
híbridos. A partir da memória enquanto passado, se alcança ou se apreende o<br />
presente; ao mesmo tempo, este presente atua relativizando ou deslocando<br />
significados acerca daquele passado. Dessa forma, jamais dever-se-ia pensar a<br />
memória ou a percepção como reflexo ou cópia do mundo, mas como atividade,<br />
como trabalho ininterrupto de ressignificação do presente enquanto leitura, a<br />
partir de um passado que se atualiza enquanto memória informando a percepção;<br />
por outro lado, há que considerar os significados imprevistos que os sentidos<br />
apreendem do presente que podem desafiar a leitura que se projeta a partir do<br />
passado como memória. Assim, a atividade de rememorar voluntária ou involuntária<br />
é uma elaboração que contempla mediações e transformações. Passado e<br />
presente, memória e percepção instituem uma relação tensa em que se abrem<br />
ou não possibilidades de novas redes de significação. A representação do passado<br />
e do presente, como territórios de fronteira, demarcada no tempo torna-se<br />
ainda mais tênue, quando compreendemos que o fio ou a ligação entre estas<br />
atende a ação. Ou seja, todo esse movimento constante e ininterrupto da memória,<br />
percepção, apreensão, interiorização, subjetivação é indissociável do agir,<br />
de uma forma de ser no mundo em que passado e presente desaparecem<br />
enquanto signos de realidades acabadas e distintas 49 . Sobretudo, se também<br />
48 BERGSON, Henri. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. São Paulo: Martins<br />
Fontes, 1990, p. 196.<br />
49 Cf. BERGSON, op. cit., p. 197.<br />
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considerarmos que assim como na Física Quântica o que temos são interconexões,<br />
e não coisas ou objetos definidos no tempo.<br />
Deve-se ainda observar que o relato de Natalício não resulta de uma<br />
conversa entre parceiros de lutas, mas atende a um pesquisador, a um intelectual;<br />
alguém de outra classe, que solicita a um trabalhador informações<br />
sobre um determinado período, em que a sua história de vida esteve associada<br />
a acontecimentos sociais e políticos de grande repercussão no estado e no<br />
país. Por outro lado, a pesquisa que utiliza entrevistas orais, em princípio, está<br />
fundada num encontro entre duas pessoas; e a forma do contato e a relação<br />
que então se estabelece, apesar de assumirem papéis diversos (entrevistador<br />
e entrevistado), também têm influência no relato a ser narrado. Ao mesmo<br />
tempo, há que se compreender o lugar social do pesquisador, seus interesses,<br />
os aspectos técnicos e metodológicos da pesquisa e a operação da escrita.<br />
Institui-se uma relação em que os relatos orais, assim como também na pesquisa<br />
com documentos escritos, iconográficos, literários, se incorporam a um projeto<br />
e são deslocados para atender à lógica e a inteligibilidade do texto a ser<br />
produzido pelo pesquisador. E essa tem sido também a compreensão de muitos<br />
que operam com a teoria quântica, como registra Lee Smolin:<br />
Portanto, parece que há duas espécies de coisas no mundo. Existem<br />
objetos como as rochas e os abridores de latas, que simplesmente existem<br />
e podem ser completamente explicados por uma lista de suas<br />
propriedades. E existem coisas que somente podem ser compreendidas<br />
como processos, somente podem ser explicadas contando uma<br />
história. Para as coisas do segundo tipo, uma simples descrição nunca é<br />
suficiente. Uma história é a única descrição adequada para elas, porque<br />
entidades como as pessoas e as culturas não são de fato coisas, mas sim<br />
processos que se desenvolvem no tempo. 50<br />
Pensando a partir desses pressupostos, Natalício ao construir seu relato<br />
também conta uma história, desloca sentidos, redefine significados. Não está<br />
descrevendo coisas, objetos, enumerando propriedades. Embora reconheça<br />
a influência das Ligas, recupera a participação de Gregório Bezerra (atuante<br />
membro do PCB), de Jader Barbalho, que é apresentado como representante<br />
do órgão federal (a Sudene), e da Igreja, por meio do Padre Melo. Ou seja,<br />
o relato, de alguma forma, mapeia as forças que atuavam em Tiriri (Ligas,<br />
50 SMOLIN, op. cit., p. 60.<br />
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PCB, Sudene e Igreja), sem revelar disputas, diferenças ou hierarquias. Essa<br />
maneira de Natalício construir sua história, nomeando diferentes lideranças<br />
políticas, em que todos aparecem ajudando na luta dos trabalhadores, poderia<br />
ser vista como a leitura de alguém que jamais percebeu diferenças nos<br />
discursos e nas práticas dos representantes dos distintos grupos políticos.<br />
Mas, poderá ser também uma maneira de evitar mostrar-se mais comprometido<br />
com algumas daquelas pessoas e por extensão com algum daqueles<br />
grupos, pois não sabe como seu relato será lido, será narrado pelo pesquisador.<br />
Caso tenha prevalecido essa compreensão, revelará uma consciência de<br />
quem sabe que sua história será apropriada e adquirirá outros sentidos sobre<br />
os quais não terá controle. Atendendo a essa lógica, poder-se-ia ler este<br />
relato, que junta e iguala forças políticas antagônicas, como um relato tático,<br />
de quem conhece os perigos do viver a contrapelo. E mais uma vez retornamos<br />
a Lee Smolin para pensar que um documento (oral, escrito, iconográfico,<br />
literário) não é uma coisa, um objeto, mas também tem uma história,<br />
encontra-se ligado a redes, a fios, a labirintos, e que é fundamental ao historiador<br />
segui-lo, acompanhá-lo, pontuá-lo.<br />
Um outro trabalhador entrevistado que também participou da Cooperativa<br />
de Tiriri foi Minervino. Em seu relato conta como ele próprio fazia o<br />
trabalho de mobilização das Ligas naqueles engenhos de açúcar, visitando a<br />
casa dos trabalhadores e convidando para ouvir o advogado Francisco Julião.<br />
Relembra muitos dizerem que Julião era “comunista e outras coisas ruim” e<br />
que muitos senhores de engenho chegavam a demitir o trabalhador que se<br />
filiasse às Ligas Camponesas. Afirma que Julião pregava a revolução, e não<br />
esquece a seguinte expressão que seria dita pelo líder: “sem terra, camponês<br />
sem pão, tambor da revolução” 51 . Perguntado sobre o que Julião queria<br />
em Tiriri, Minervino responde:<br />
O que ele queria fazer em Tiriri, não era somente em Tiriri, mas em<br />
vários lugares. Era implantar as Ligas Camponesas para fazer uma reforma<br />
agrária de grande tamanho ou de grande proporção, era essa a<br />
intenção que Julião tinha com o povo dessa região aqui de Tiriri. E a<br />
gente ia porque era muita fome que a gente sofria e o desejo nosso<br />
não era de fazer como camponês hoje que faz, era trabalhar. O nosso<br />
desejo era trabalhar, construir um pedaço de terra era o que a gente<br />
queria, de qualquer forma a gente queria um pedaço de terra e conti-<br />
51 Apud SILVA, op. cit., p. 68.<br />
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nuar na terra, como hoje eu ainda tenho todo meu desejo. Estou assim,<br />
não presto mais para fazer nada, mas a minha intenção é terra, minha<br />
intenção toda é na terra, não é para viajar, fazer aquilo, tomar nada dos<br />
outros não. Mas a minha intenção é possuir a terra, ter um lugar, ser<br />
acomodado, não prejudicar meus vizinhos e indicar que Deus deixou a<br />
terra para todo mundo. Então se Deus deixou a terra para todo mundo,<br />
o pobre também tem direito um pedacinho de terra para sobrevivência<br />
dele, dele com a família. Era essa a nossa história. 52<br />
Percorrer a trilha do relato construído por Minervino é visitar um labirinto<br />
de muitas voltas, de muitas dobras, que ao se desfazerem aproximam e<br />
distanciam passado e presente, numa tensão de quem conhece o poder das<br />
palavras, de quem sabe o quanto elas significam: um perigoso campo minado.<br />
Inicia desfraldando a bandeira das Ligas, de Julião, da reforma agrária.<br />
Entretanto, como havia informado ao pesquisador, dizia-se muita coisa ruim<br />
de Julião; logo, revela o cuidado de, após desfraldar a bandeira das Ligas<br />
Camponesas, no início do relato, afastar-se dela, ao afirmar que “ia porque<br />
era muita fome”. Assim, estava com as Ligas e não estava, pois seu desejo<br />
não era revolução. Pelo menos é isso o que afirma ao entrevistador. Entretanto,<br />
também faz uma outra ressalva, toma um outro atalho, um outro desvio<br />
ao dizer que também não se reconhece na luta dos trabalhadores sem terra<br />
na atualidade. Para Minervino, esses trabalhadores não querem a terra para<br />
trabalhar, como ele afirma sempre ter querido. E dá a entender que os trabalhadores<br />
que lutam por terra hoje querem viver viajando, enquanto ele não<br />
quer viver viajando, e também não quer tomar as terras dos outros, nem<br />
incomodar os vizinhos. Após tantas voltas, poder-se-ia indagar: “como acredita<br />
possível ter a terra desejada, sem incomodar o vizinho e sem tomar nada<br />
dos outros e mesmo se reconhecendo não prestando para fazer nada?” E<br />
Minervino realiza uma pirueta, cria sua linha de fuga em Deus, que, ainda<br />
segundo ele, “deixou a terra para todo mundo”. Por meio desse Deus, quem<br />
sabe, os vizinhos entendam que a terra por ter sido dada por “ele” é de<br />
todos, e talvez assim ele, Minervino, também receba o seu pedaço de terra.<br />
E retorna então ao ponto de partida, um imaginário passado, ao decretar que<br />
era essa a nossa história.<br />
Mas, onde terá aprendido sobre esse Deus que afirma ser a terra de<br />
todos? Este não é um argumento que se extraia facilmente através de uma<br />
52 Apud SILVA, op. cit., p. 68.<br />
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leitura solitária dos evangelhos ou de outras passagens bíblicas. Por outro<br />
lado, mesmo hoje, depois da Teologia da Libertação, ainda são poucos os<br />
padres e pastores que debatem ou se envolvem com as questões sociais.<br />
Talvez Minervino, se fosse indagado onde aprendera sobre esse Deus que<br />
deixou a terra para todos, não fosse capaz de lembrar. Entretanto, como<br />
trabalhador que militou pelas Ligas Camponesas, talvez não lhe fosse desconhecida<br />
uma publicação produzida por estas, que tinha como título “A Carttilha<br />
do Camponês” onde se encontra uma passagem em que se lê:<br />
Escuta bem o que te digo, camponês. Se um padre ou um pastor falar<br />
em nome de um Deus que ameaça o povo com peste, guerra e fome,<br />
raios, coriscos e trovões e ainda com o fogo do inferno, fica sabendo<br />
que esse padre ou esse pastor é um espoleta do latifúndio. Não é um<br />
ministro de Deus. Esse padre é falso. Esse pastor não presta. O padre<br />
verdadeiro ou o bom pastor é aquele que se levanta para dizer: “Deus<br />
fez a terra para todos, mas os sabidos tomaram conta dela”. 53<br />
Terá Minervino ouvido ou lido essa cartilha? Será que foi a partir dela<br />
que começou a estabelecer outras associações, a ponto de afirmar que “Deus<br />
deixou a terra para todo mundo e, portanto, o pobre tem direito a um pedacinho<br />
de terra?” Não sabemos, não saberemos. A incerteza sobre como ou<br />
onde Minervino aprendeu tão revolucionário ensinamento continuará a permear<br />
qualquer tentativa de explicação conclusiva.<br />
E assim voltamos ao começo desse nosso percurso, ao movimento, à impossibilidade<br />
de capturar de forma absoluta os significados; ou mesmo determiná-los<br />
mediante uma relação que se deseja natural entre o dito e o vivido ou o<br />
que se imagina real. Rachar as palavras, romper seus liames naturalizados e<br />
evidentes com as coisas, com o que se denomina real. A história como o digladiar<br />
de sentidos, produzidos pelos jogos da linguagem 54 , nos remete a Certeau, quando<br />
afirma: “Parece que não se podendo mais atribuir às palavras uma relação efetiva<br />
com as coisas que designam, elas se tornam tanto mais aptas para formular<br />
sentidos, quanto menos limitadas são por uma adesão real” 55 .<br />
Nesse território, torna-se fecundo privilegiar a postura teórica de Wittgesnstein,<br />
de considerar em suas reflexões filosóficas o discurso comum das<br />
53 JULIÃO, Francisco, op. cit., p. 15.<br />
54 CERTEAU, op. cit., p. 51.<br />
55 CERTEAU, Michel de. A escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000, p. 52.<br />
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pessoas, e não o dos filósofos. E é através dele que iniciamos o último movimento<br />
de análise, ao revisitar o trecho da entrevista do líder comunitário<br />
Arnaldo Rodrigues da Cruz.<br />
Na década de 1970, em pleno regime militar no Brasil, teve inicio uma<br />
mobilização em defesa da moradia, num grande bairro popular, denominado<br />
Casa Amarela, em Recife. Desde a década de 1960, os agentes imobiliários<br />
vinham tentando expulsar os moradores através da cobrança do foro da terra.<br />
Esta tentativa recrudesceu, já que a imobiliária, em princípio, contava com o<br />
apoio oficial para reprimir qualquer manifestação popular de protesto contra<br />
essa cobrança considerada indevida e irregular pela população. A censura<br />
reinante no período, aliada ao medo que muitos cidadãos passaram a sentir<br />
de vir a ser nomeados de comunistas 56 por participar de qualquer movimento<br />
social, era um fator que concorria bastante para a desmobilização popular.<br />
No entanto, mesmo diante desse conjunto de adversidades, um grupo de<br />
moradores iniciou uma organização denominada Terra de Ninguém e, com o<br />
apoio da Igreja Católica e de outros setores, conseguiu, após anos de luta, a<br />
desapropriação das terras e o título de propriedade para seus moradores 57 .<br />
Esse preâmbulo tem como pressuposto apresentar o relato de um dos<br />
moradores que participou ativamente de todo o trabalho de organização e<br />
mobilização contra a imobiliária e seu dono, Rosa Borges. Ao relembrar o que<br />
se denominou luta das Terras de Ninguém, Arnaldo afirma:<br />
Eles [a imobiliária] nunca foram dono de nada e hoje ele se diz dono de<br />
tudo e todo mundo acredita que ele é dono. Mas que eles nunca foram<br />
donos de nada, mas de nada mesmo, isso é preciso vocês [os moradores]<br />
botarem na cabeça de vocês, tirar da cabeça de vocês, porque<br />
tirando da cabeça de vocês, vocês levam para outro conscientes, mas<br />
enquanto estiver na cabeça de vocês, vocês não leva não. Vocês vão<br />
dizer: não, mas... Fica gaguejando. 58<br />
Este pequeno fragmento do relato já revela uma perplexidade, entre<br />
a palavra – dono – e a coisa – as terras de Casa Amarela. Como seria<br />
possível construir uma ligação entre a palavra dono e a coisa, terras de Casa<br />
56 Nesse período, qualquer pessoa nomeada de comunista podia ser interrogada pela polícia ou mesmo<br />
presa.<br />
57 Cf. MONTENEGRO, Antonio. História oral e memória: a cultura popular revisitada. São Paulo: Contexto,<br />
1992, p. 53.<br />
58 Apud CASA Amarela: memórias, lutas, sonhos... Série I – Entrevistados: Antonio Vidal de Lima (Tôta),<br />
Arnaldo Rodrigues da Cruz, João Lopes da Silva (Bubu). Recife: Departamento de Memória de Casa<br />
Amarela (FEACA), 1988, p. 87.<br />
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Amarela, se esta para Arnaldo não existe? A resposta, segundo ele, estaria<br />
no fato das pessoas acreditarem. E lembra que, enquanto os moradores não<br />
retirarem de suas próprias cabeças a proposição “ele é dono”, a luta estará<br />
enfraquecida, porque eles não terão firmeza, ficarão gaguejando. Ou seja,<br />
para Arnaldo não existe a divisão cartesiana entre matéria e espírito, corpo<br />
e alma. A prática das lutas sociais lhe ensinou que o pensamento e a ação<br />
são indissociáveis, estão misturados. A ação e o pensamento constituem<br />
um mesmo conjunto. E em seguida, amplia sua reflexão ao indagar: “E<br />
como ele se diz proprietário? Aí é que é danado. Aí é que está a história. É<br />
o furto, a roubalheira, a ladroíce, que existe dentro da política, junto com<br />
juiz, advogado, não sei quantos diabos, que fizeram isso. Fizeram Rosa Borges<br />
ser dono daquilo que não era dele” 59 .<br />
Para responder a sua própria pergunta, Arnaldo retorna a história e<br />
detalha os procedimentos, os fios, os caminhos trilhados, pois proprietário<br />
não é uma palavra que se associa a uma coisa, a um objeto de maneira<br />
natural. Mas o proprietário que se diz Rosa Borges resultou de operações<br />
complexas. Ao detalhar esses movimentos que associam, estabelecem elos,<br />
colam significados, Arnaldo está quebrando, rachando, desnaturalizando aquela<br />
palavra, aquela história. E acrescenta:<br />
A história ele conta assim. Bom, ele fez tudo isso. E a lei, a própria lei.<br />
É danado é isso. É eu dá uma tapa em você, sem você abusar comigo,<br />
mas eu tenho dinheiro e chego lá na delegacia prendo você, você fica<br />
preso e eu venho embora. Foi isso o que Rosa Borges fez, veio para<br />
Casa Amarela, tomar conta de tudo, dominou tudo, hoje em dia se diz<br />
dono de Casa Amarela, propriedade imensa e ele diz que é dele, mas<br />
Santos Marinho foi que deu a mão a ele. Foi que botou ele aqui e ele<br />
ficou aqui dentro, depois ele passou a ser administrador, ele é que diz.<br />
Passou a ser administrador na história. E, através da administração, como<br />
não tinha dono, ele passou a ser dono. Ele que diz. 60<br />
Ler o relato de Arnaldo é aprender com ele, um ex-operário têxtil, que<br />
ao descrever a experiência de luta em defesa da sua moradia oferece um<br />
breve tratado acerca do combate que se trava na história. Como a história é<br />
o que se diz, resultante de muitos procedimentos de força que delimitam,<br />
59 Apud CASA..., p. 88.<br />
60 Apud CASA..., p. 88.<br />
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cercam, cortam, estabelecem elos, subvertem significados, rompem acordos.<br />
E consciente do perigo da história, Arnaldo torna-se professor, e didaticamente<br />
explica como os signos são trocados, os significados mudados de lugar<br />
pela força do dinheiro. E como quem se sabe um educador, narra uma breve<br />
história: “É eu dá uma tapa em você, sem você abusar comigo, mas eu tenho<br />
dinheiro e chego lá na delegacia prendo você, você fica preso e eu venho<br />
embora.” Para Arnaldo a história da propriedade da terra em Casa Amarela é<br />
plural, resultando num combate entre um dizer do Rosa Borges e outro do<br />
movimento dos moradores. E a vitória destes últimos depende entre outros<br />
elementos da capacidade de mudar o pensar/agir. A história como desafio e<br />
movimento constantes de quem sabe o quanto rachar as palavras exige sabedoria,<br />
táticas, trampolinagens de um viver a contrapelo.<br />
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Resumo<br />
As nações-imaginadas (espaços míticos) refundam<br />
seu tempo, recobrindo o território<br />
das representações coletivas. Cartografia<br />
política que designa o lugar do<br />
outro, ordenando o espaço com base numa<br />
percepção hierárquica e exterior. Paisagem<br />
dominada pela presença da dinastia<br />
bragantina. Apagamento das diferenças na<br />
instituição da narrativa das três raças formadoras<br />
da nacionalidade. Noutro olhar,<br />
se pressente a opacidade dos derrotados,<br />
destituídos da condição de sujeitos, capturados<br />
e incluídos na comunidade imaginária,<br />
a nação.<br />
nação – memória – região<br />
Palavras-chave:<br />
117<br />
Cartografia da tradição: memória e história<br />
Noé Freire Sandes *<br />
Abstract<br />
The nacion-imaginet ones (mythical spaces)<br />
resume its time, recovering the territory of<br />
the collective representations. Cartography<br />
politics that assigns the pace of the other,<br />
commanding the space on the basis of a<br />
hierarchic and exterior perception. Landscape<br />
dominated for the presence of the bragantina<br />
dynasty. Deletion of the differences<br />
in the institution of the narrative of the three<br />
former races of the nacionality. In another<br />
look there is a presentiment it opacitu of the<br />
defeated ones, dismissed of the condition of<br />
citizens, captured and enclosed in the imaginary<br />
communitu, the nacion.<br />
nation – memmory – region<br />
Keywords:<br />
* Professor Adjunto do Departamento de História da UFG/CNPq. Doutor em História pela Universidade<br />
de São Paulo.<br />
REV. TERRITÓRIOS E FRONTEIRAS – PROG. DE PÓS-GRAD. EM HISTÓRIA – UFMT – V.6 – N.2 – JUL./DEZ. 2005<br />
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118<br />
Durante muito tempo a nacionalidade viveu da mescla de três raças<br />
que os poetas xingaram de tristes: as três raças tristes.<br />
(Alcântara Machado. Brás, Bexiga e Barra Funda)<br />
O debate sobre região parece-me essencial para renovação da historiografia<br />
brasileira que permanece, em grande parte, colada a uma representação<br />
temporal e espacial que remonta aos primórdios da formação do Estado<br />
Nacional. Não se trata, pela milésima vez, de denunciar a hegemonia política<br />
do eixo Centro-Sul, mas de compreender a temporalidade que se estabeleceu<br />
como tradição e as possibilidades de diálogo.<br />
Em Goiás, o debate em torno da representação histórica do passado ganha<br />
sentido específico quando nos defrontamos com uma representação acerca do<br />
período colonial centrada, exclusivamente, na presença do ouro. Há um enorme<br />
“vazio” preenchido pela percepção da “decadência” que, pretensamente, se<br />
abateu sobre a região em meados do século XVIII, alargando-se para o seguinte.<br />
A partir de 1930, sob o impulso das forças progressistas, redefine-se um projeto<br />
“moderno” para Goiás. A percepção regional reitera a representação do passado:<br />
somente os rastros do capital (e das elites) permitem a formação de<br />
sentido histórico. De Anhanguera a Pedro Ludovico, retoma-se a percepção<br />
do gesto conquistador: a fundação de uma nova temporalidade se expressa<br />
tanto no mito do bandeirante, colocando fogo na água, quanto na epopéia<br />
de Pedro Ludovico ao liderar a construção de uma nova capital, domando o<br />
sertão goiano. Sob as ruínas do passado ergue-se o monumento, a história.<br />
Os esforços dos que labutam na contramão do gesto do conquistador<br />
residem em fazer do fragmento a pista, restituindo sentido à experiência<br />
humana ao longo do tempo. Experiência difusa, descentrada e, muitas vezes,<br />
distante das formas tradicionais de poder. Exercício de reflexão que se<br />
organiza no tenso espaço entre memória e história. Tensão advinda da clara<br />
percepção de que a leitura da região por meio dos fragmentos atravessa um<br />
terreno minado pela força das regras da narrativa histórica: distância e método<br />
ordenaram representações que reforçam o corte com o passado. Terra<br />
estrangeira ou terra de ninguém? O passado, fixado no deserto, desloca-se<br />
para um não-lugar, acessível apenas por meio da evocação da sua ausência.<br />
No coração dessa tradição desencarnada habita um projeto de memória<br />
historicizada que Nora (1993) a fixou em lugares, cuja especificidade reside<br />
na assimetria entre história e memória 1 . O domínio do discurso historiográfico<br />
1 NORA, Pierre. Entre a memória e a história: a problemática dos lugares. In: Projeto História. Revista do Programa<br />
de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História da PUC-SP. São Paulo, p. 7-29.<br />
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retirou da memória a possibilidade de dar sentido à experiência, restando um<br />
lugar “vazio” preenchido pelos ecos (fantasmagóricos) de um passado, mas<br />
com força simbólica suficiente para postular o problema da sua encarnação 2 .<br />
A historiografia, portanto, se esmera no exercício de crítica sobre si mesma,<br />
desconfiando sistematicamente de sua produção. Autocrítica que produz<br />
movimento duplo: introduz a desconfiança na narrativa histórica, deslocando<br />
as certezas para o exercício crítico que o campo comporta. Assim se estabelece<br />
uma inversão: reconstituem-se, ao máximo, as condições de elaboração<br />
do conhecimento histórico legitimado pela tradição, abalando sua herança,<br />
para refazer percurso noutra direção, ou seja, em vez de crítica da tradição, a<br />
própria crítica ocupa o espaço, outrora reservado à tradição. A inversão sinaliza<br />
o deslocamento da história, ocupando lugares (objetos, acontecimentos<br />
fundadores) simbólicos distantes de qualquer realidade externa, objetos autoreferentes<br />
como sinaliza Nora 3 ao se referir aos lugares de memória.<br />
O “lugar de memória” poderia se aproximar do sentido íntimo atribuído<br />
ao conceito de lugar, conforme certa leitura da Geografia 4 . Aliás, esse sentido<br />
se expressa em Nora, embora marcado por um sentimento difuso de desligamento<br />
que se afirma de modo controverso: se os lugares fantasmáticos ainda<br />
se encontram repletos de significados continuamente venerados, segue-se a<br />
sugestão: o rito rememorativo encarna novos sentidos, desafiando a morte<br />
da memória e o “luto da literatura”. De dentro desses lugares habitados por<br />
“mortos-vivos” retoma-se a perspectiva de fazer história, como operação.<br />
Noutra perspectiva, já anunciada, lida-se com ruínas. Nas duas pontas registra-se<br />
a presença da morte. Mas, para aqueles que estão inclinados à colagem<br />
dos “fragmentos”, a operação histórica requer aproximação com a experiência<br />
? senão do passado, pelo menos do presente. As duas dimensões do<br />
tempo histórico se aproximam no exercício de atualização próprio à memória,<br />
sugerindo a possibilidade do reconhecimento 5 .<br />
A tensão entre história e memória delimita campos de conhecimentos<br />
distintos, diferença que exige diálogo e proposição de problemas. O reconhecimento<br />
de lugares “vazios”, repletos de significados, ou de ruínas, indica<br />
uma direção: percorrer os caminhos, assumindo o risco de se perder. Mas o<br />
vazio que preenche o lugar guarda certa intimidade, advinda dos ritos que<br />
2 NORA, idem.<br />
3 Idem. Ibidem.<br />
4 TUAN, Yi-Fu. Espaço e lugar: a perspectiva da experiência. São Paulo: Brasil, Difel, 1983.<br />
5 RICOUER, Paul. La mémoire, l’histoire, l’oubli. Paris: Éditions du Seuil, 2000.<br />
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celebram a memória. A nação, sem dúvida alguma, é por excelência o lugar<br />
de encontro dessas tradições descarnadas: transformada em coisa, a nação<br />
ressurge na forma de um coletivo anônimo. Nele se encarna um vazio que<br />
nos representa. Restituída ao campo da cultura, a nação restitui o vínculo<br />
entre o indivíduo e sua origem.<br />
Percurso implica deslocamento, carecendo de alguns instrumentos para<br />
sua efetivação: mapa, escala e escolhas. Sem pretender percorrer extenso<br />
território, delimitei aspectos da formação da nação no Brasil como campo,<br />
atento especialmente para os elementos formadores de uma tradição conservadora<br />
que ordenou as representações em torno do lugar. A passagem da<br />
colônia à nação sinaliza uma trajetória obrigatória para o estudo da nacionalidade,<br />
mas a travessia se dá em sentido inverso: da nação à colônia, ou do<br />
presente ao passado. Portanto não caminhamos sozinhos: somos acompanhados<br />
(mesmo a contragosto) pelo pecado do anacronismo.<br />
A nação é o resultado da instituição de uma imaginação coletiva, “nações<br />
imaginadas”, na feliz expressão de Benedict Anderson 6 . Os lugares da<br />
memória formam uma das bases de sustentação dessa imaginação criadora,<br />
cujo registro historiográfico se inscreve no tempo. Os historiadores, desligados<br />
do passado pela imaginação histórica, refundam, por meio de uma visão<br />
retrospectiva, a percepção do processo formador.<br />
As representações históricas traduzem a experiência do passado, sem<br />
gramática alguma que possa conjugar as regras do que foi vivido em sua<br />
transposição para a narrativa histórica, exceto pela conquista da verossimilhança<br />
(derivada do uso de certas regras) atestada no presente. Um dos<br />
textos historiográficos mais conhecidos acerca da formação da nação brasileira<br />
é o do viajante e biólogo Phillipe Von Martius em sua dissertação “Como se<br />
deve escrever a história do Brasil” 7 . Naquele contexto, definia-se um projeto<br />
de escrita da história pelo IHGB, respondendo às inquietações decorrentes<br />
do processo de constituição do estado nacional. A fórmula de Martius, narrativa<br />
permeada pelo contato entre as três raças, abriu um campo imaginativo<br />
capaz de agregar a heterogeneidade política das propostas que se apresentavam<br />
no cenário político brasileiro.<br />
6 ANDERSON, Benedict. Nação e consciência nacional. São Paulo: Ática, 1989.<br />
7 A monografia de Martius motivou inúmeros trabalhos. Destaco o recente trabalho de Temístocles Cezar,<br />
enfatizando o desejo do viajante em encontrar vestígios de civilizações pré-históricas comparáveis às<br />
civilizações encontradas pelos espanhóis na América. César, Temístocles (2003), “Como deveria ser<br />
escrita a história do Brasil no século XIX: Ensaio de História Intelectual “ em Sandra Jatahy Peavento<br />
(org.). História cultural:experiências de pesquisa. Porto Alegre: Ed. UFRGS, p. 173-209.<br />
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Sua dissertação empreende tarefa pedagógica voltada para a defesa da<br />
monarquia constitucional. O grande aprendizado definia hierarquias, recriando<br />
categorias inclusivas definidoras de uma comunidade sôfrega em se representar<br />
coletivamente. Enredado numa concepção histórica marcada por<br />
um tempo linear, Martius propunha uma escrita cautelosa, exigindo o convencimento<br />
dos republicanos:<br />
[...] por uma maneira destra da inexeqüibilidade de seus projetos utópicos,<br />
da inconveniência de discussões licenciosas dos negócios públicos,<br />
por uma imprensa desenfreada, e da necessidade de uma monarquia<br />
em um país onde há um tão grande número de escravos. 8<br />
Com Martius desaprendemos a estranhar a dimensão contraditória das<br />
vivências comuns entre os estrangeiros, em um lugar desconhecido que tomou<br />
o nome de Brasil, e lentamente adentramos, por meio da visão classificatória<br />
do botânico, na nova nacionalidade formada por portugueses, índios<br />
e negros. Carlos Guilherme Mota 9 , registra a representação de Martius como<br />
vertente conservadora e substrato ideológico da contra-revolução vencedora,<br />
promotora da invisibilidade do movimento republicano. Sem adentrar no<br />
terreno da idéia republicana no Brasil, é forçoso reconhecer que a fórmula<br />
contra-revolucionária legou, como herança, os elementos imaginativos da nação,<br />
enquanto a república restringiu-se ao diminuto espaço de experiência das<br />
lutas pela emancipação nacional, especialmente no Nordeste 10 . O cetro e o<br />
centro conduziram os elementos de ordenação política na superação dos conflitos<br />
regenciais. O Regresso não eliminou o poder local, mas estabeleceu um<br />
sentido hierárquico entre as instâncias refundando um novo equilíbrio político.<br />
A monarquia, fiadora da ordem social por mais de meio século, deitou<br />
raízes no imaginário nacional. Decorridos três decênios de vida republicana,<br />
o centenário da independência retomou as representações monárquicas como<br />
matriz da nacionalidade. O retorno do corpo do ex-imperador ao Brasil, em<br />
1922, com honras de chefe de estado, restabeleceu o vínculo da família<br />
8 MARTIUS, Carl F. P. Von (1982), “Como se deve escrever a história do Brasil.”, In: O estado do direito<br />
entre os autóctones do Brasil, São Paulo /Belo Horizonte, Edusp /Itatiaia, Edição original, Revista do<br />
Instituto Histórico e Geográfico do Brasil, Rio de Janeiro, 1844, p. 39-411, p. 106.<br />
9 MOTA, Carlos Guilherme. Idéias de Brasil: formação e problemas (1817-1850). In: MOTA, Guilherme<br />
(Org.). Viagem incompleta. A experiência brasileira (1500-2000). São Paulo: SENAC, 2000, p. 199-238.<br />
10 A identificação do regime monárquico como obra contra-revolucionária abandona a percepção de que,<br />
em contraposição à experiência histórica da Primeira República, o Império, durante o governo de D.<br />
Pedro II, ousou encampar demandas populares como o abolicionismo. José Murilo de Carvalho em<br />
Teatro de Sombras (1996) e Renato Lessa (1999) desenvolvem a comparação.<br />
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imperial, outrora banida, com o solo nacional. Destituída de força política, a<br />
monarquia pôde ocupar o papel de protagonista na representação da nacionalidade,<br />
ainda que fustigada por disputas próprias às artimanhas da memória.<br />
Nessa direção, conservamos do passado à tradição do poder real, atualizando<br />
o sentido político do cetro: não é casual que a inauguração do mausoléu<br />
de Petrópolis, em 1939, tenha sido obra do governo Vargas 11 . Enfim, a<br />
monarquia assumiu o centro das narrativas de fundação, a despeito do desejo<br />
dos grupos derrotados 12 .<br />
O panorama traçado indica a persistência da estratégia de escrita da<br />
história de Martius, assumindo a forma de problema para os historiadores.<br />
Não por acaso, o próprio IHGB considerou a percepção do viajante à frente<br />
de seu tempo, pois nela encontrou o esboço de um mapa da formação<br />
nacional. O estabelecimento de uma hierarquização, com preeminência portuguesa,<br />
garantia a filiação ao mundo europeu. No entanto, a interação entre<br />
elas delineava, simultaneamente, a formação de laços comunitários constatados<br />
no quadro de costumes a ser captado pelo historiador ao descrever a<br />
vida dos homens que se lançaram na aventura de fundar um novo Portugal.<br />
A comunidade esboçada é fruto de observação à distância: deve o historiador,<br />
segundo Martius, transportar o leitor para a casa do colono e do cidadão<br />
brasileiro, desvendando sua interação com vizinhos e escravos. Nessa medida,<br />
os laços se restringem à casa do colono, acrescida dos vínculos necessários<br />
ao seu funcionamento, como abrigo e unidade de produção. A imaginação<br />
do viajante-historiador prefigurou a formação de uma nacionalidade que prescindia<br />
da presença ativa do povo (escravos, índios e homens livres pobres),<br />
embora realçasse a interação entre as “raças” como desdobramento da conquista<br />
e do povoamento da terra.<br />
A força desse suporte imaginativo, no qual a nação se apresenta na<br />
exterioridade do contato entre raças, constituiu a idéia de nação em uma<br />
tradição de grande estabilidade, fornecendo sentido de orientação a diversas<br />
interpretações sobre a singularidade da sociedade brasileira. Joaquim Nabuco<br />
e Gilberto Freyre se destacam na reflexão sobre a presença do negro na<br />
11 SANDES, Noé Freire. A invenção da nação: entre a Monarquia e a República. Goiânia: Editora da UFG, 2000.<br />
12 Hobsbawm qualifica como exagerada a observação de Kosselleck de que “ no curto prazo a história<br />
pode ser feita pelos vencedores. No longo prazo, os ganhos em compreensão histórica têm advindo dos<br />
derrotados” Hobsbawm , Eric, Sobre História, São Paulo, Companhia das Letras, 1998, p. 255. No caso<br />
brasileiro, deve se levar em conta a especificidade do regime monárquico que não se identifica exclusivamente<br />
com os vencedores. A campanha abolicionista apoiada pelo Rei, a despeito da oposição dos<br />
setores tradicionais, é indicio de práticas reformistas presentes no estado. Inversamente, a república<br />
proclamada em 1889 se distanciou dos projetos políticos republicanos derrotados no início do século XIX.<br />
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formação nacional. Não se pretende aqui aprofundar a discussão proposta<br />
por esses autores, mas apenas insistir na estrutura do exercício imaginativo<br />
que constituiu a nacionalidade em meio à vigência do trabalho escravo. Nabuco,<br />
no final do século XIX, convencido da justeza da causa abolicionista,<br />
rompeu com o silêncio então vigente, declarando sua percepção da escravidão<br />
como problema que deveria afetar a consciência coletiva, afirmando:<br />
Já existe, felizmente, em nosso país, uma consciência nacional – em<br />
formação é certo – que vai introduzindo o elemento da dignidade humana<br />
em nossa legislação, e para qual a escravidão, apesar de hereditária,<br />
é uma verdadeira mancha de Caim que o Brasil traz na fronte. Essa<br />
consciência, que está temperando a nossa alma, e há de por fim humanizá-la,<br />
resulta da mistura de duas correntes diversas: o arrependimento<br />
dos descendentes de senhores, e a afinidade de sofrimento dos herdeiros<br />
de escravos. 13<br />
Essa nova consciência histórica introduziu como problema as relações<br />
escravistas. É certo que a denúncia dos males da escravidão é bem<br />
antiga, bastando-nos lembrar os escritos de José Bonifácio quase ignorados<br />
pela a pragmática geração dos homens que fizeram a independência.<br />
Nabuco refere-se a uma consciência nacional em formação, apontando<br />
um sentido de inclusão fundado na redenção, no desarme. É como se o<br />
abolicionista indicasse aos escravos a possibilidade de libertarem seus<br />
senhores da extrema culpa que, porventura, pairasse sobre suas consciências,<br />
operando neles um profundo arrependimento. Nesse sentido a<br />
nação, como consciência, requer um processo de expiação que poderia<br />
promover um novo sentido de solidariedade: a comunhão pela dor. Essa<br />
comunhão redefiniria as fronteiras, rompendo a distância e a hierarquia.<br />
Seu fruto mais doce seria a expressão de um sentimento de intensa solidariedade,<br />
cujo fundamento religioso representava a condição de sua verdade,<br />
na percepção do nosso pregador. Aliás, Nabuco queria gravar nos<br />
proprietários de escravos uma culpa que lhes era estranha.<br />
Em sua pregação, Nabuco surpreende pela transformação da expiação e<br />
da culpa em instrumentos de ação política, alertando a existência efetiva de<br />
précondições necessárias para que o abolicionismo se restringisse ao limite de<br />
uma campanha política:<br />
13 NABUCO, Joaquim. O abolicionismo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.<br />
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124<br />
A escravidão, por felicidade nossa, não azedou nunca a alma do escravo<br />
contra o senhor – falando coletivamente – nem criou entre as duas<br />
raças o ódio recíproco que existe naturalmente entre opressores e<br />
oprimidos. 14<br />
Essa ausência de ódio entre as duas raças implica reconhecer canais de<br />
inclusão, ainda que restritos, para o negro liberto. A ausência de um sentimento<br />
de ódio e de rancor por parte dos negros revelava um complexo jogo<br />
de poder, explicitando a multiplicidade de relações sociais que envolvia brancos<br />
e negros. O abolicionismo, portanto, abraça um amplo espectro de possibilidades,<br />
abrindo um horizonte de expectativas 15 para a sociedade brasileira.<br />
A experiência política acumulada na formação da ordem imperial é posta<br />
ao crivo de um olhar crítico que, na forma de balanço, indica um sentido<br />
negativo na obra de formação nacional. A escravidão é transformada em<br />
peso, em fardo, em obstáculo econômico e moral.<br />
Nabuco antecipa um projeto de inclusão que se transformou em peça<br />
fundamental na construção dos projetos de identidade nacional. Os leitores<br />
de “O abolicionismo” devem reconhecer o escravismo como marca de origem,<br />
criando um campo de tensão que exige duplo movimento: a aceitação<br />
da escravidão como problema nacional e a perspectiva de inclusão do negro<br />
como parte constitutiva da formação social. Para além desse movimento,<br />
sugere-se ao leitor, lançado ao mundo do pecado, uma saída: o arrependimento<br />
e o imediato apoio à causa. No imediatismo da campanha, Nabuco<br />
alimenta um projeto de maior alcance: apagar todos os efeitos do regime<br />
escravista. O desfazimento da herança do regime escravista implica abertura<br />
para o campo da memória, uma vez que a experiência escravista e seus efeitos<br />
deveriam ser lançados ao esquecimento. A superação dos efeitos nefastos<br />
da escravidão é obra política, mas o esquecimento da experiência escravista<br />
sedimenta um campo simbólico mantenedor da ordem hierárquica tradicional.<br />
Esquecer a escravidão seria, mais uma vez, destituir os negros da condição de<br />
sujeitos históricos, capazes de dimensionar sua ação com base na leitura do<br />
passado, em busca de orientação para o enfrentamento do presente.<br />
O abolicionismo, como redenção, restringiu o debate acerca da escravidão<br />
ao terreno da consciência, negando partilhar com os escravos os rumos<br />
da campanha. Feita a abolição, um cenário inesperado se abriu: as expecta-<br />
14 Idem, Ibidem.<br />
15 KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: para uma semántica de los tempos históricos. Barcelona: Paidos, 1993.<br />
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125<br />
tivas do presente se dissolveram na surpresa do golpe republicano. A incompletude<br />
do projeto nacional de Nabuco, no âmbito da política, cedeu lugar à<br />
estratégia do esquecimento da escravidão como questão moral e social. Os<br />
republicanos, enredados na multiplicidade de tendências políticas em disputa,<br />
pouco valor atribuíram ao debate sobre o abolicionismo e seus desdobramentos,<br />
relegando as políticas de inclusão do negro a um plano secundário.<br />
A mobilização popular, que ganhou enorme legitimidade no meio urbano<br />
nas últimas décadas do século XIX, dissolveu-se, como articulação política, na<br />
passagem do império à república.<br />
Em meio a mais um período de turbulência política, decorrente do<br />
golpe político que depôs o presidente Washington Luís, Gilberto Freyre retomou<br />
o debate em torno da escravidão e da formação social brasileira, inserindo<br />
o escravo como elemento fundamental na constituição da nacionalidade<br />
por meio da valorização da miscigenação. Mas nota-se uma clara diferença<br />
de percurso analítico entre Nabuco e Freyre no que diz respeito ao problema<br />
moral da escravidão. Este considera exagerada a apreciação de Nabuco<br />
acerca da negatividade completa do trabalho escravo no desenvolvimento<br />
da sociedade brasileira, destacando o uso retórico do argumento 16 . Se o<br />
discurso de Nabuco está prenhe de um pedagógico arrependimento, diverso<br />
é o ângulo de Freyre, que liberta o senhor de suas culpas. Lançada em 1933,<br />
“Casa-Grande & Senzala” era lida como novidade. Seu estilo coloquial, marcado<br />
por certo erotismo, certamente atiçou a curiosidade do público. A observação<br />
de Lúcio Costa merece reflexão:<br />
O arquiteto Lúcio Costa, diante das casas velhas de Sabará, São João del-<br />
Rei, Ouro Preto, Mariana, das velhas casas-grandes de Minas foi a impressão<br />
que teve: ‘A gente como que se encontra... e se lembra de coisas que<br />
a gente nunca soube, mas que estavam lá dentro de nós; não sei – Proust<br />
devia explicar isso direito. 17<br />
A intimidade do espaço doméstico indica uma sensação de proximidade<br />
com a tradição senhorial testemunhada pelas velhas casas. O leitor é<br />
convidado para um encontro consigo por meio da leitura. Segundo seus críticos,<br />
“Casa-Grande & Senzala” mais intui do que explica e, com alta dose de<br />
ensaísmo, generaliza as impressões do mundo senhorial colhidas por Freyre<br />
16 NABUCO, Joaquim. Perfis parlamentares. Introdução de Gilberto Freyre, Brasília, Câmara dos Deputados,<br />
Centro de Documentação e informação, 1983, p. 15-67.<br />
17 FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala, 1963, p. 20.<br />
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126<br />
em extenuante pesquisa bibliográfica. Aliás, as impressões presentes em “Casa<br />
Grande & Senzala” expressam o atrevimento do autor que, ao romper com a<br />
mera cultura livresca, incorporou fontes relacionadas à oralidade e à cultura<br />
popular, constituindo um repertório de experiências íntimas marcadas por certa<br />
ambigüidade: a insistência na virilidade e na sexualidade desenfreada, como<br />
elemento positivo, é contraposta à preocupante disseminação da sífilis 18 .<br />
O que está dentro de nós, como memória coletiva, como mentalidade,<br />
expressa uma ambivalência entre a crescente importância do ambiente urbano<br />
e seus mecanismos de controle e uma história da vida íntima marcada<br />
pelo mando senhorial, pelo excesso, pelo luxo de antagonismos que, porventura,<br />
teriam dissolvido (ou equacionado) as tensões sociais do mundo<br />
colonial. A ordem senhorial, atingida parcialmente por um lento processo<br />
modernizador, encontra ávidos leitores encantados com o passado colonial, o<br />
que revela dentro de nós um represado repertório de vivências e o desejo<br />
de alguma proximidade com a aventura da colonização. Os leitores, como<br />
turistas, fartam-se no detalhamento da aventura portuguesa guiados pelo<br />
olhar de Gilberto Freyre, conforme pista de Thomas Skidmore 19 . O arguto<br />
brasilianista sugere que a leitura de “Casa Grande & Senzala” prescindia de<br />
qualquer disciplina: poderia ser lida aos pedacinhos, sorvida com curiosidade,<br />
com especial atenção para temas de grande atração, tais como sexo e comida.<br />
Mas a aventura era conduzida sob um ângulo específico, o olhar de Gilberto<br />
Freyre era dominado por uma perspectiva nostálgica: turismo interior, paisagens<br />
reconhecidas com certa exterioridade. Viagem guiada, com permissão, para<br />
adentrar em espaços íntimos, desvendando aspectos formadores da nacionalidade.<br />
Olhar mediado pela distância do passado que produz ambíguo movimento:<br />
organiza sentido de orientação, reafirmando a positividade da experiência de<br />
formação de uma sociedade mestiça, sem abandonar a primazia do domínio<br />
português. A África domina o Brasil na intimidade da cama e da cozinha, nos<br />
caprichos da língua falada e na expressão religiosa, sem que se constitua um<br />
espaço público definidor de regras inclusivas para o mundo dos negros 20 . Freyre<br />
18 ARAÚJO, Ricardo Bnzaquen. Guerra e Paz: Casa Grande e Senzala e a obra de Giberto Freire nos anos 30.<br />
Rio de Janeiro: Editora 34, 1994.<br />
19 SKIDMORE, Thomas E. “Raízes de Giberto Freire” em KOMINSKY, Ethel Volfzon, Claude Lepine,<br />
Fernando Arêas Peixoto. Gilberto Freire em quatro tempos, Bauru, São Paulo: Edusc, 2003, p. 41-64.<br />
20 Jessé de Souza, ao discutir a obra de Freyre, chama atenção para a ausência de discussão da constituição<br />
da esfera pública na sociedade brasileira como contraponto à obra do sociólogo pernambucano e aponta<br />
para um problema moral: a baixa auto-estima dos setores populares submetidos a uma modernização<br />
epidérmica que não integrou o negro no mercado de trabalho. Souza, Jessé, A atualidade de Gilberto<br />
Freyre em Ethel Volfzon Kominsky, Claude Lépine, Fernanda Áreas Peixoto (orgs.) Gilberto Freyre em<br />
quatro tempos. Bauru, SP: Edusc, 2003, p. 65-81.<br />
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127<br />
rompe o silêncio em torno da escravidão que tomou conta da sociedade<br />
brasileira após a proclamação da República, mas estabelece outra distância:<br />
ao contrário da geração de 1870, não impõe expiação alguma ao mundo<br />
senhorial. Ao contrário, inverte o famoso “Retrato do Brasil” de Paulo Prado 21 .<br />
Se esse fez da colonização portuguesa a origem dos nossos males, Freyre<br />
transformou o excesso, a hibridez e a luxúria em elementos plásticos (positivos)<br />
de uma nova sociabilidade.<br />
Entre Martius, Nabuco e Freyre, percebe-se um movimento de ordenação<br />
da experiência histórica centrada na formação da nação. A exterioridade<br />
do sentimento nacional inscrito nos laços entre colonos e colonizadores não<br />
mais respondia aos anseios de uma sociedade em acelerado processo de<br />
urbanização. A imaginação nacional 22 exigia um movimento de redefinição<br />
da experiência histórica capaz de congregar os brasileiros em torno de uma<br />
identidade marcada pela pluralidade étnica e cultural da sociedade brasileira,<br />
em conformidade com a nova leitura do passado. “Casa-Grande & Senzala”<br />
definiu um roteiro imaginativo para quase todos os gostos. A referência indicadora<br />
dos traços autobiográficos do seu livro, definido como autobiografia<br />
de uma geração, aproxima-se do relato memorialístico, rompendo com os<br />
padrões normativos de uma escrita da história pautada por uma objetividade<br />
que transportava o leitor para um lugar distante, cercado por datas, detalhes<br />
e citações eruditas que mediavam o contato com as fontes do passado.<br />
O “mapa” que esboçamos exigiu percorrer parte da tradição conservadora,<br />
adentrando lugares já conhecidos, mas o itinerário revela a escolha de um roteiro:<br />
a percepção externa (olhar de fora) do contato entre as raças presente na<br />
“geografia” de Martius que, ao visitar a casa do colono, revela os limites (verossimilhança)<br />
da narrativa histórica na primeira metade do século XIX. A casa do<br />
colono como centro organizador de um contato distante e hierárquico entre as<br />
raças era coerente com o projeto nacional esboçado naquela conjuntura, marcada<br />
pela afirmação da escravidão como fundamento da economia nacional.<br />
Joaquim Nabuco, filho da aristocracia nordestina, exige um sentimento<br />
interno (olhar para dentro) quase religioso, mas foi recebido com frieza e<br />
distância. A exigência de que a sociedade brasileira se reconhecesse culpada<br />
pelos horrores do cativeiro, carecia dos elementos de plausibilidade necessários<br />
à aceitação e consagração do opúsculo, cujo mérito foi reconhecido em<br />
período bem posterior. Finalmente, Gilberto Freyre, seguindo a trilha de<br />
21 PRADO, Paulo. Retratos do Brasil, ensaio sobre a tristeza brasileira. Rio de Janeiro: F. Briguet, 1931.<br />
22 ANDERSON, op. cit., 1989.<br />
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128<br />
Nabuco, mas despido dos elementos de condenação moral, redimensionou o<br />
sentido da experiência escravista no Brasil, reconhecendo o tenso convívio<br />
entre brancos e negros, mas, sobretudo, ordenando a experiência colonial na<br />
perspectiva da Casa-Grande. Com traços literários, narra à formação de uma<br />
sociedade híbrida como uma aventura que fez o Brasil tornar-se nação. “Casa-<br />
Grande & Senzala” foi recebido com entusiasmo por inúmeras gerações de<br />
brasileiros que nela reconheceram os traços formadores de nossa cultura,<br />
instituindo uma identidade para o Brasil com capacidade plástica de representação<br />
para distintos segmentos sociais, embora permanecesse a referência<br />
hierárquica mantenedora do tenso equilíbrio dos pólos que se integraram<br />
na criação de uma nova nacionalidade.<br />
O percurso indica limites: somos prisioneiros de representações tradicionais<br />
oriundas do processo de centralização política que ordenou as representações<br />
nacionais. Percepção externa que fez da Casa-Grande o centro<br />
da narrativa, deslocando os segmentos populares para recantos ocultos,<br />
escondidos no quarto de despejo. Não se trata de inverter os pólos, redimindo<br />
os oprimidos como se esse gesto voluntarista rompesse com a tradição<br />
que nos envolve. Ao contrário, é de dentro da tradição conservadora<br />
que poderemos analisar, por meio da crítica histórica, os elementos de sua<br />
constituição e os mecanismos que mediaram sua hegemonia no jogo histórico.<br />
Enfim, trata-se da exploração de um sistema simbólico e do modo de<br />
funcionamento de um sistema de administração do passado pelo presente<br />
23 . Nessa perspectiva torna-se possível abrir brechas compreensivas capazes<br />
de ressignificar a experiência dos setores que permaneceram invisíveis<br />
como sujeitos históricos. Para tanto, a tensão entre memória e história<br />
constituí rico instrumento heurístico.<br />
23 NORA, Pierre, op. cit., p. 7-29.<br />
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Resumo<br />
Este artigo apresenta a possibilidade de<br />
se estudarem, dentro da esfera política,<br />
os aspectos subjetivos que permeiam a<br />
existência humana, como os sentimentos<br />
e as paixões. Busca-se, através da<br />
pesquisa do imaginário germânico, visualizar<br />
os campos de atuação da propaganda<br />
e sua inserção na arena política, bem<br />
como seu papel de fomentadora e delineadora<br />
do imaginário. O trabalho segue<br />
a tradição metodológica e teórica<br />
da Nova História Política francesa, escola<br />
cujo papel também é discutido no corpo<br />
do artigo.<br />
Palavras-chave:<br />
imaginário – nova história política –<br />
propaganda<br />
129<br />
A instituição do imaginário<br />
e a História Política: apontamentos sobre<br />
o imaginário alemão no entre-guerras<br />
Vinícius Liebel *<br />
Abstract<br />
This paper presents the possibility of studying,<br />
inside the political sphere, the subjective<br />
aspects that permeate the human<br />
existence, such as feelings and passions.<br />
This paper sought, through the research<br />
about the German imaginaire, visualize<br />
the propaganda’s acting field, and its insertion<br />
in the politics’ scene, as well as<br />
its role of fomenting and delineating this<br />
imaginaire. The research was conducted<br />
according to the theoretic and methodological<br />
tradition of the French New Political<br />
History, school which role is also<br />
brought to debate in the article.<br />
Keywords:<br />
imaginaire – new political history –<br />
marketing<br />
* Mestrando em História pela Universidade Federal do Paraná e bolsista do CNPQ.<br />
REV. TERRITÓRIOS E FRONTEIRAS – PROG. DE PÓS-GRAD. EM HISTÓRIA – UFMT – V.6 – N.2 – JUL./DEZ. 2005<br />
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130<br />
O aspecto político da civilização ocidental foi, como muito já se falou,<br />
desprezado pelos pesquisadores em História durante a primeira metade do<br />
século XX 1 . Várias são as razões para este direcionamento dos estudos. Em<br />
primeiro lugar, podemos apontar a negação de toda a filosofia positivista,<br />
reinante em fins do século XIX. Reflexos desta negação são encontrados na<br />
pesquisa histórica, especialmente com o surgimento da Escola dos Annales,<br />
que relegava ao segundo plano a política e condicionava-a à Economia e à<br />
sociedade, analisada através de filtros sociológicos e psicológicos. Devemos<br />
ainda fazer referência ao crescente interesse por novas vias explicativas e<br />
metodológicas de caráter universalista, dentre as quais se destaca, principalmente<br />
a partir dos anos 50, o Marxismo.<br />
Com a preponderância marxista que se observou a partir de então no<br />
meio acadêmico, podemos verificar o surgimento de novos questionamentos<br />
e novas prioridades nos objetos de estudo, dentre os quais, como observamos,<br />
o político estava ausente.<br />
Em vez de refletir sobre a lógica e sobre as determinações do político,<br />
dava-se prioridade a outras coisas: revelar os motores, estruturais ou<br />
não, da história; compreender as fases dos mecanismos de produção e<br />
reprodução social, esclarecer as modalidades das lutas de classes. Com<br />
isso a política nos seria restituída como a derradeira e transparente<br />
manifestação de um processo mais profundo – faziam-se muitas censuras<br />
a coisa política, tais como a de ser uma fonte de mistificação, mas<br />
sobretudo de lhe faltar força própria. De resto, a dinâmica social, por<br />
exemplo, residia na força de trabalho. 2<br />
Apesar deste distanciamento, a instância política não poderia deixar de<br />
suscitar questionamentos, especialmente diante dos fatos marcantes que o<br />
século XX trouxe à tona. Se podemos compreender a Segunda Guerra Mundial<br />
como uma conseqüência lógica do sistema macroeconômico do período,<br />
também podemos pensá-la a partir das ideologias em conflito, dos planos<br />
políticos internos de cada país envolvido ou ainda como o desgaste da política<br />
externa ou da diplomacia entre os países. Nestes três olhares, o político<br />
ganha em evidência em relação ao social.<br />
1 Sobre o assunto, ver REMOND, René (org.). Por uma História Política. Rio de Janeiro: FGV, 2003. BOURDÉ,<br />
Guy; MARTIN, Hervé. As escolas históricas. Lisboa: Dom Quixote [19—]. ROSAVALLON, Pierre. Por uma<br />
história conceitual do político. In: Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 15, n. 30, p. 9-22, 1995.<br />
2 MAFFESOLI, Michel. A violência totalitária: ensaio de antropologia política. Porto Alegre: Sulina, 2001, p. 13.<br />
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131<br />
Notando esse vácuo existente nas pesquisas históricas, a partir de<br />
meados da década de sessenta um grupo de pesquisadores, em sua maioria<br />
franceses, busca empreender uma pesquisa histórica centrada no político,<br />
mas com vistas nas especificidades que a modernidade nos impõe. A massificação<br />
da cultura, o consumismo, a propaganda política de massas e a relação<br />
do (ir)racional e da paixão com o político são os principais agentes de<br />
reflexão para os novos historiadores políticos. Em especial este último aspecto,<br />
pois se verifica, desde o fim da Segunda Guerra, o surgimento de um<br />
sentimento de “mal-estar” ocasionado pela natureza competitiva dos regimes<br />
pluralistas do Ocidente 3 .<br />
Denominada, correntemente, como “Nova História Política”, essa nova<br />
escola historiográfica lança mão de uma série de artifícios metodológicos na<br />
busca da compreensão da essência do político na contemporaneidade. Disciplinas<br />
anteriormente desprezadas pelos historiadores, como a Psicologia, a<br />
Psicanálise 4 e a Sociologia, ganham em importância, de forma pioneira, em<br />
suas análises. A metodologia empregada pelos pesquisadores vinculados a<br />
essa nova Escola privilegia os estudos acerca do poder, diferenciando os<br />
novos estudos do político daqueles empreendidos pelos positivistas e pelos<br />
metódicos, em fins do século XIX, que ressaltavam em seus estudos as instituições<br />
políticas. Busca-se, assim,<br />
[...] uma história social do poder. Daí a importância atribuída à imagética<br />
e aos sentimentos na formação das vontades coletivas, o aspecto subjetivo<br />
destas mesmas vontades, o poder e a política como fenômenos<br />
integrantes das mentalidades coletivas, as interfaces entre a religião e a<br />
política, a tensão sempre presente entre o racional e o irracional. 5<br />
Na busca pela natureza do poder e por suas nuances, verificou-se a<br />
necessidade de empregarem-se novas nomenclaturas e buscar novas instâncias<br />
determinantes, pois, conforme o século passado nos mostrou, a essência<br />
do poder passa pelo controle do racional, do emocional e do irracional. Bronislaw<br />
Baczko corrobora os seus escritos com estes novos objetos de análise,<br />
3 ANSART, Pierre. Mal-estar ou fim dos amores políticos? História & Perspectivas, Uberlândia, 25 e 26, jul./<br />
dez. 2001 – jan./jul.2002, p. 59.<br />
4 Apesar da Escola dos Annales defender a interdisciplinaridade e a utilização da Psicologia e da Psicanálise,<br />
em momento algum seus pesquisadores mostraram trabalhos que tivessem uma densa e consistente<br />
reflexão acerca dos aspectos psicológicos dos atores históricos ou mesmo que mostrassem propriedade<br />
na utilização de termos técnicos psicanalíticos.<br />
5 BREPOHL DE MAGALHÃES, Marion. Nova história política. Mímeo, p. 4.<br />
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132<br />
considerando que “[...] o princípio que leva o homem a agir é o coração, são<br />
as suas paixões e os seus desejos. A faculdade é a faculdade específica em<br />
cujo leme as paixões se acendem, sendo a ela, precisamente, que se dirige<br />
a linguagem enérgica dos símbolos” 6 . Assim, emprestado da História das Mentalidades,<br />
o conceito de imaginário foi absorvido, visando melhor explicar<br />
algumas das características das diferentes formas de exercer o poder.<br />
A fim de melhor determinar a significação do conceito emprestamos de<br />
Hilário Franco Júnior a seguinte definição:<br />
Por “imaginário” entendemos um conjunto de imagens visuais e verbais<br />
gerado por uma sociedade (ou parcela desta) na sua relação consigo<br />
mesma, com outros grupos humanos e com o universo em geral.<br />
Todo imaginário é portanto coletivo, não podendo ser confundido com<br />
imaginação, atividade psíquica individual. Tampouco pode-se reduzir o<br />
imaginário à somatória de imaginações. Obviamente estas também se<br />
manifestam em quadros históricos, pois mesmo ao imaginar, cada indivíduo<br />
não deixa de ser membro de uma sociedade e de seus valores<br />
objetivos e subjetivos. Porém, por englobar o denominador comum das<br />
imaginações, o imaginário as supera, interfere nos mecanismos da realidade<br />
palpável (política, econômica, social, cultural) que alimenta a<br />
própria imaginação. 7<br />
Algumas características do imaginário são determinantes na condução<br />
de pesquisas políticas. Trata-se, em verdade, de uma instância determinante<br />
que orienta o inconsciente de uma dada sociedade. É possível, desta forma,<br />
falar-se em imaginário renascentista, imaginário brasileiro ou imaginário germânico.<br />
Esta afirmação nos leva a outra característica do imaginário, qual seja<br />
a de ser ele determinado por balizas temporais e/ou civilizacionais. Partindo<br />
deste pressuposto, o imaginário torna-se um elemento constituinte dos cidadãos,<br />
mas também constituído pelos cidadãos, pois o homem só se torna um<br />
ser social e político ao interiorizar as instituições (sociais e imaginárias) que<br />
formam seu ambiente-base. Assim, se um indivíduo interioriza valores, línguas<br />
e todas as demais instituições imaginárias de uma dada sociedade (como,<br />
por exemplo, a alemã no caso dos teuto-brasileiros) e vive em uma socieda-<br />
6 BACZKO, Bronislaw. Imaginação social. In: Enciclopédia Einaudi. Lisboa: Einaudi, [19—]. Vol. 5 –<br />
Anthropos-Homem, p. 301.<br />
7 FRANCO JÚNIOR, Hilário. Cocanha. A história de um país imaginário. São Paulo: Cia. das Letras, 1998,<br />
p. 16-17.<br />
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133<br />
de diferente (a brasileira), é na primeira que se encontrarão os traços da<br />
psique individual e é com ela que ele interagirá e modificará o meio em que<br />
vive (a sociedade brasileira). Portanto,<br />
Antes de todo poder explícito, e muito mais, antes de toda “dominação”,<br />
a instituição da sociedade exerce um infrapoder radical sobre<br />
todos os indivíduos produzidos por ela. Esse infrapoder – manifestação<br />
e dimensão do poder instituinte do imaginário radical – não é localizável.<br />
Certamente, nunca é o poder de um indivíduo ou mesmo de uma<br />
instância designáveis. É “exercido” pela sociedade instituída; todavia,<br />
através desta mantém-se a sociedade instituinte, e assim que a instituição<br />
é estabelecida, o social instituinte desaparece, fica a distância, já<br />
está também em outro lugar. Por sua vez, a sociedade instituinte, por<br />
mais radical que seja a sua criação, trabalha sempre a partir do já instituído<br />
e sobre ele; ela está sempre – exceto num ponto de origem<br />
inacessível – na história. 8<br />
Tais características implicam, para as pesquisas em política, uma análise<br />
mais aprofundada das razões para determinada forma de governo, da natureza<br />
dos discursos dominantes e das formas com que se dão os diferentes<br />
exercícios de poder. Quanto ao último tópico, vários são os autores que<br />
podem nos auxiliar. Porém, neste artigo, destacamos dois dos mais difundidos<br />
pensadores do político e que se mostram, cada vez mais, caros aos pesquisadores<br />
da área: Hannah Arendt e Max Weber.<br />
O poder, para Arendt, “[...] resulta da capacidade humana, não somente<br />
de agir ou de fazer algo, como de unir-se a outros e atuar em concordância<br />
com eles” 9 . Trata-se, portanto, de uma definição que pressupõe, para o exercício<br />
do poder, um diálogo e um convencimento. O poder reside exatamente<br />
na capacidade de convencer outrem a realizar algo sem se utilizar de<br />
qualquer forma de violência: o poder arendtiano pressupõe uma sociedade<br />
livre e igualitária. Do contrário, o conceito de poder deixa de existir e cede<br />
espaço ao conceito de violência arendtiano, que pode ser reconhecido em<br />
diferentes formas, desde a imposição do Terror físico e psicológico na Alemanha<br />
Nazista até a busca da doutrinação pela manipulação do imaginário<br />
8 CASTORIADIS, Cornelius. As encruzilhadas do labirinto III: o mundo fragmentado. Rio de Janeiro: Paz<br />
e Terra, 1992, p. 127.<br />
9 ARENDT apud HABERMAS, Jürgen. O Conceito de Poder de Hannah Arendt. In: FREITAG, Bárbara;<br />
ROUANET, Sérgio (orgs.). Habermas. São Paulo: Ática, 1980, p. 101.<br />
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134<br />
através da propaganda e da educação nas sociedades contemporâneas consideradas<br />
livres. Como a própria Arendt descreve,<br />
Muitos [...] acreditam que livros possam funcionar como armas e que se<br />
pode lutar com palavras. As armas e a luta, entretanto, pertencem à<br />
atividade da violência, e a violência, distinguindo-se do poder, é muda;<br />
a violência tem início onde termina a fala. [...] o resultado de todas as<br />
tentativas desse tipo é a doutrinação. Como tentativa de compreender, a<br />
doutrinação transcende o domínio comparativamente sólido dos fatos e<br />
números, de cuja infinitude procura escapar; como atalho no próprio<br />
processo de transcender – que é arbitrariamente interrompido pelo pronunciamento<br />
de afirmações apolíticas, como se estas fossem tão confiáveis<br />
quanto os fatos e os números –, ela destrói por completo a atividade<br />
da compreensão. A doutrinação é perigosa por nascer principalmente de<br />
uma deturpação não do conhecimento, mas da compreensão. 10<br />
A doutrinação é, portanto, um ato de violência pelo fato de buscar<br />
persuadir indivíduos com opiniões próprias (ou com a possibilidade de desenvolvê-las)<br />
a acatar sua própria opinião. “A persuasão não é o oposto de<br />
governar pela violência, é apenas outra forma de fazer isso” 11 .<br />
Diferentemente da discriminação entre poder e violência arendtiana, Max<br />
Weber elabora em seus escritos sua teoria geral do poder. Para ele, este conceito<br />
remete à possibilidade de um indivíduo (ou um grupo de indivíduos) fazer<br />
impor sua vontade perante outros, não importando os meios que sejam utilizados<br />
para tanto. Em termos gerais, Weber engloba a violência arendtiana no conceito<br />
de poder, elencando, em seu “Os três tipos puros de dominação legítima”, as<br />
formas clássicas de transformar a potencialidade do poder em ação.<br />
Neste texto, Weber diferencia as três formas por ele catalogadas de<br />
exercício de poder: a legal, a tradicional e a carismática. A dominação legal é<br />
definida como legitimada por um código de leis ou estatuto. Enquadram-se<br />
neste caso os poderes exercidos por um chefe de repartição ou por um<br />
governante eleito. Neste caso, a visão de Durkheim sobre a necessidade da<br />
consciência coletiva e a existência de um imaginário que reconheça a legalidade<br />
das leis e legitime o poder é fundamental para a coesão e a sobrevi-<br />
10 ARENDT, Hannah. A Dignidade da Política: ensaios e conferências. Rio de Janeiro: Relume-Dumará,<br />
1993, p. 40.<br />
11 Ibid., p. 96.<br />
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vência da sociedade pluralista. Pelo fato de estar ancorado em uma legalidade<br />
institucionalizada, os poderes monárquicos também podem se enquadrar<br />
na dominação legal, apesar de serem caracterizados pela tradição, a segunda<br />
forma de poder weberiana. Nesta, o poder é exercido em respeito ao passado,<br />
legitimado pela tradição que este outorga. Freqüentemente é fundamentado<br />
em mitos e heróis, que garantem a “aura” necessária ao imaginário que<br />
legitimará a dominação.<br />
O terceiro tipo de exercício de poder, a dominação carismática, tem<br />
suas raízes em características “sobrenaturais” do líder, que podem ser<br />
[...] faculdades mágicas, revelações ou heroísmo, poder intelectual ou<br />
de oratória. O sempre novo, o extracotidiano, o inaudito e o arrebatamento<br />
emotivo que provocam constituem aqui a fonte de devoção<br />
pessoal. Seus tipos mais puros são a dominação do profeta, do herói<br />
guerreiro e do grande demagogo. O tipo que manda é o líder, o que<br />
obedece é o apóstolo. 12<br />
Porém, todas essas formas puras de dominação carismática de que fala<br />
Weber podem ser tomadas como arquétipos ou como parte de uma mitologia<br />
política 13 , e pelo poder da associação, conseguem evocar uma legitimidade<br />
no campo do imaginário da qual não gozariam em estado bruto.<br />
É no próprio centro do imaginário social que se encontra o problema<br />
do poder legítimo, ou melhor, para ser mais exato, o problema da<br />
legitimação do poder. Qualquer sociedade precisa de imaginar e inventar<br />
a legitimidade que atribui ao poder. Por outras palavras, o poder<br />
tem necessariamente de enfrentar seu arbitrário e controlá-lo reivindicando<br />
uma legitimidade. 14<br />
O imaginário é aqui, portanto, reconhecido como campo de batalha<br />
primordial na obtenção e na manutenção do poder weberiano, assim como<br />
tem papel ativo na construção da violência arendtiana.<br />
Consideradas as características gerais do imaginário, podemos buscar<br />
agora qual a natureza de seus constituintes. Alguns elementos sociais, como<br />
o conjunto de valores e a língua, citados neste trabalho como sendo institui-<br />
12 WEBER, Max. Os três tipos puros de dominação legítima. In: COHN, Gabriel (org.). Weber. São Paulo:<br />
Ática, 2001. Col. Grandes Cientistas Sociais, p. 128-141.<br />
13 GIRARDET, Raoul. Mitos e mitologias políticas. São Paulo: Cia das Letras, 1987.<br />
14 BACZKO, op. cit., p. 310.<br />
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ções imaginárias de caráter civilizacional, ou seja, são determinados pela cultura<br />
e pela origem do imaginário radical. Há, entretanto, elementos que não se<br />
limitam a uma civilização ou a uma etnia, mas são universais. São os mitos, as<br />
lendas e os arquétipos que determinam muitas das definições correntes dos<br />
líderes, das ações e dos ocasos presentes em qualquer momento da história.<br />
Penso aqui em Girardet 15 , quando este descreve o mito político do<br />
Salvador ou do grande líder, representado na mitologia sob os arquétipos de<br />
Alexandre (o conquistador), Sólon (o legislador), Moisés (o profeta do tempo<br />
de glória vindouro) e Cincinnatus (o herói que retorna em nome de um bem<br />
maior). São exemplos ainda abordados na mesma obra os mitos da Conspiração,<br />
da Idade de Ouro e da Unidade. Todos se referem a discursos ou arquétipos<br />
constantemente evocados nas experiências políticas e que povoam os<br />
diferentes imaginários em caráter universalista. São exemplos consistentes<br />
que são encarnados nos líderes salvacionistas, nas perseguições políticas ou<br />
nas campanhas eleitorais.<br />
Mas de que maneira estes elementos são ressuscitados e manipulados<br />
no imaginário, a ponto de serem reconhecidos nos discursos modernos? A<br />
experiência que o Nazismo nos outorgou aponta a resposta para a propaganda,<br />
que é a maneira pela qual os atores políticos buscam o reconhecimento<br />
e a legitimidade por parte de seu público-alvo. Trata-se de uma forma<br />
natural de manipulação do imaginário, uma vez que a propaganda encontra<br />
seu lugar no cerne da natureza política, onde as formas de dominação<br />
“[...] exercem-se através de diferentes sistemas de representações coletivas,<br />
nos quais se fundamenta a legitimidade dos respectivos poderes” 16 .<br />
É preciso reconhecer aqui a importância dos meios midiáticos na fragmentação<br />
e na modelação do imaginário na modernidade. Os pesquisadores<br />
da Escola de Frankfurt se prestaram a denunciar, em termos gerais, os perigos<br />
da dominação de uma massificação da cultura e a alienação que os meios<br />
modernos de comunicação podem provocar. Ao alertarem para o fato de<br />
que “[...] a lógica totalitária ainda busca reprimir no indivíduo aquilo que Kant<br />
definiu como sendo essencial para o desenvolvimento da razão: o entendimento<br />
sem a direção de outrem” 17 , Adorno e Horkheimer denunciam os<br />
malefícios da propaganda e também, podemos completar, da persuasão aren-<br />
15 GIRARDET, op. cit.<br />
16 BACZKO, op. cit., p. 307.<br />
17 ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Fragmentos Filosóficos. Rio de<br />
Janeiro: Jorge Zahar, 1985, p. 85.<br />
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137<br />
dtiana. A violência denunciada por Hannah Arendt encontra, nos escritos<br />
frankfurtianos, o apontamento de seus métodos 18 .<br />
A dominação e modelação do imaginário a que se prestam os meios de<br />
comunicação modernos, em favor de ideologias ou atores políticos, alertamnos<br />
para a urgência de pensarmos o político como uma instância não apenas<br />
derivada da sociedade, mas também derivativa.<br />
Nesse sentido, ao pensarmos a colônia teuto-brasileira na década de 30<br />
e o alcance da propaganda nazista sobre ela, não basta afirmarmos que a<br />
consistente adesão destes indivíduos a esta ideologia era devida apenas ao<br />
reerguimento da Alemanha após a Primeira Guerra Mundial. Nossa hipótese<br />
central é de que, para além do alcance interno, a propaganda nacional-socialista<br />
fazia ecos na colônia teuto-brasileira justamente por ambas compartilharem<br />
um imaginário e pelo fato de os nazistas se apropriarem tão profundamente<br />
dele mesmo em seus discursos e propagandas.<br />
Para verificá-la, a análise da natureza da comunidade teuto-brasileira nos<br />
apontará os elementos que corroboram esta hipótese. Em primeiro lugar, a<br />
língua, fator crucial na caracterização do imaginário germânico, continuou sendo<br />
amplamente utilizada entre os colonos. Para além da fala, os teuto-brasileiros<br />
empregavam o alemão na produção de almanaques e panfletos destinados<br />
a eles mesmos, como forma de manter a cultura alemã viva. Estes escritos têm<br />
sua existência inicialmente voltada para as pequenas comunidades germânicas<br />
aqui estruturadas. Porém, sua comercialização e seu campo de influência foram<br />
pouco a pouco aumentando devido à alta taxa de fecundidade entre os<br />
alemães e à influência da igreja protestante nestes grupos, que, além de trazer<br />
uma nova realidade intelectual às colônias, unificava-as sob a aura religiosa.<br />
Apesar de podermos dividir os alemães aqui residentes em dois grupos,<br />
quais sejam, os que viviam em pequenas cidades destinadas à ocupação de<br />
território, agregando somente alemães, e aqueles que viviam nas grandes<br />
cidades e que tinham uma grande interatividade com elementos de outras<br />
culturas e brasileiros nativos, podemos considerar, em ambos os casos, os<br />
alemães como uma cultura relativamente isolada e detentores de um imaginário<br />
próprio. Podemos concluir isso ao analisarmos fontes de duas localidades<br />
distintas, nas quais os alemães coexistiam com brasileiros nativos e colo-<br />
18 Longe de ser uma característica da modernidade, a manipulação do imaginário encontra lugar nas<br />
relações de poder de praticamente todos os períodos históricos, como exemplifica Baczko ao destacar<br />
uma frase de Machiavel: “A famosa frase: ‘Governar é fazer crer’ põe em destaque as relações íntimas<br />
entre o poder e o imaginário, ao mesmo tempo que resume uma atitude técnico-instrumental perante<br />
as crenças e o seu simbolismo, em especial perante a religião”. (BACZKO, op. cit., p. 301.)<br />
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138<br />
nos de outras etnias, mas, como observaremos, mantinham não só a língua<br />
materna em conversas com outros alemães como também seu vocabulário<br />
denuncia a preponderância de um imaginário germânico.<br />
As fontes que aqui trabalharemos são dois cartões postais, um postado na<br />
Alemanha e endereçado para um teuto-brasileiro de Curitiba (PR) e outro destinado<br />
a um descendente de alemães morador da Lapa (PR) e enviado por outro<br />
indivíduo da mesma procedência. O primeiro postal é datado de 12 de setembro<br />
de 1939 e o segundo, de 20 de agosto de 1921. Além destes dois materiais<br />
pictóricos, contamos ainda com um livreto comemorativo à Semana Alemã comemorada<br />
em Curitiba entre 24 de abril de 1937 e 2 de maio do mesmo ano.<br />
O primeiro postal é uma peça de propaganda nacional-socialista que<br />
reivindica aos alemães a região de Danzig, o corredor polonês que garantiria<br />
acesso ao mar para a Alemanha. A data de envio é de onze dias após o ataque<br />
alemão à mesma região, fato que deu início à Segunda Guerra Mundial. A<br />
comunicação entre os dois agentes é feita em alemão e, apesar do conteúdo<br />
da mensagem não fazer referência ao fato político, a imagem que ilustra o<br />
cartão é explícita neste sentido, como verificamos abaixo.<br />
A imagem mostra uma águia, símbolo do Terceiro Reich, pairando so-<br />
Figura 1: DANZIG IST DEUTSCH. Berlin:<br />
Zentralverlag der NSDAP, 1939. 1<br />
cartão postal: cor.<br />
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bre uma cidade da região portuária. Com o aparecimento da águia e da<br />
suástica na cidade, o sol aparece por entre as nuvens que a cobrem. O simbolismo<br />
desta referência é claro ao prometer um novo período de luzes aos cidadãos<br />
da região, assim como mostra o comprometimento com seu futuro aos<br />
observadores externos. Mexe, entretanto, com o imaginário germânico ao lançar<br />
a luz do sol sob uma construção em estilo gótico, herança medieval do Sacro<br />
Império e que é aqui resgatada visando remeter a um período em que, supostamente,<br />
a cultura alemã floresceu e superou as demais. Remete, portanto, a um<br />
período que seria “A Idade de Ouro” 19 , mas que estaria retornando sob a batuta<br />
dos nacional-socialistas. Compartilhando do mesmo imaginário radical, os descendentes<br />
de alemães no exterior recebiam, da mesma forma que os cidadãos<br />
do Reich 20 , o impacto da força da mensagem no imaginário sóciopolítico.<br />
O segundo exemplo é, como já explicitamos, uma correspondência<br />
casual entre dois teuto-brasileiros residentes na cidade da Lapa. Para além<br />
das congratulações do remetente pelo aniversário do destinatário, o postal se<br />
distingue pela imagem estampada na fronte, que analisaremos a seguir:<br />
Figura 2: IN DER HEIMAT IST ES SCHÖN!.[s.l] WBH, 192_. 1 cartão postal, cor.<br />
19 GIRARDET, op. cit.<br />
20 Digo da mesma forma na acepção pura do impacto pela visão da imagem. O contexto alemão era,<br />
obviamente, diverso do contexto brasileiro e contava, para a maior absorção da mensagem, com a ação<br />
da Polícia Secreta e do Terror físico e psicológico, como Arendt nos mostra em sua obra-mestra Origens<br />
do Totalitarismo.<br />
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140<br />
Junto a uma paisagem bucólica e a ramos de flores, a mensagem “In<br />
der Heimat ist es schön! 21 ” revela não só uma visão saudosista da Pátria Mãe,<br />
mas a identidade que está arraigada no grupo dos teuto-brasileiros. A identidade<br />
alemã é denunciada pelo vocabulário empregado na frase, que conta<br />
com a palavra Heimat, que designa lar, sendo uma palavra que denota o<br />
sentimento de carinho para com o país de origem. Contrapõe-se a Vaterland,<br />
que designa simplesmente o país de origem. Expressando o sentimento<br />
de estima pela Alemanha e designando o Brasil como Gastland 22 , os teuto-brasileiros<br />
davam origem, no imaginário, a uma Neue Heimat, um novo lar<br />
que “[...] não é definido pelo território, mas sim por um espaço existencial. A<br />
mística de um paraíso, de uma idade do ouro que se reatualiza nas festas de<br />
domingo ou de casamento, deve revigorar suas forças para o trabalho e, ao<br />
mesmo tempo, instaurar a Alemanha no Brasil” 23 .<br />
O imaginário germânico volta a ser, através da língua e das idéias, explicitado<br />
nas comunicações dos teuto-brasileiros. Mesmo estando no Brasil, mesmo<br />
ajudando na construção do país, este não passa de um Gastland e, se o<br />
destino os levar a se fixarem aqui, o objetivo é fazer do Brasil um pedaço da<br />
Alemanha. O imaginário radical é dominante quando comparado às interações<br />
sociais e à miscigenação cultural que existe no Brasil. Devemos lembrar que<br />
tratamos neste artigo apenas de duas localidades privilegiadas no contato dos<br />
teuto-brasileiros com nativos e estrangeiros de diversos países, e não de comunidades<br />
isoladas de Santa Catarina ou Rio Grande do Sul.<br />
Além dos postais, conforme já pudemos ressaltar, a comunicação entre<br />
os germânicos em terras brasileiras era feita por escritos veiculados nos almanaques,<br />
que versavam sobre temas gerais, mas davam especial atenção à<br />
história da ação alemã no mundo, à religião protestante e à política. Nestes<br />
escritos, encontramos, desde o século XIX, a influência das idéias pangermanistas.<br />
O ideal de arregimentar todos os cidadãos de origem ariana encontrou<br />
ecos também no Brasil, cedendo o vocabulário comentado acima e solidificando<br />
um imaginário germânico. Na década de 20, entretanto, na Alemanha,<br />
o Partido Nacional-Socialista agregou muitos aspectos pangermanistas em<br />
seu discurso, juntamente com outros elementos da ideologia völkish 24 , tor-<br />
21 Tradução: na Pátria é lindo! (aprox.)<br />
22 Trad: Terra Hospedeira. Esta definição passa a idéia de transitoriedade, demonstrando a disposição dos<br />
teuto-brasileiros em voltar para a Alemanha ou de fazer do sul do Brasil uma parte da Alemanha.<br />
23 BREPOHL, Marion. Velhos e novos nacionalismos: Heimat, Vaterland, Gastland. In: História Questões &<br />
Debates, Curitiba, 18 e 19, jun./dez. 1989, p. 97.<br />
24 Ideologia germânica que se baseava na herança militarista e nacionalista prussiana e no arianismo como<br />
norteadores de seu pensamento, agregando elementos neopagãos e anti-semitas no seu discurso.<br />
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nando-se assim o “herdeiro legítimo” desta recente tradição alemã.<br />
Graças a isso, nos escritos patrocinados pelos nazistas podemos encontrar<br />
com clareza a busca por essa aproximação, visando, justamente, à inserção<br />
do NSDAP no imaginário alemão para que, ali instalado, pudesse melhor<br />
manipular seu público-alvo. Reflexos desta ação podem ser encontrados nos<br />
escritos alemães destinados aos teuto-brasileiros, bem como nos escritos destes,<br />
dando provas de que tal estratégia surtia efeitos. Nestes últimos, o sofrimento<br />
com a situação de pilhéria que a Alemanha sofrera nos anos posteriores<br />
à Primeira Guerra Mundial era declarado, mostrando a angústia dos filhos<br />
que, longe da Vaterland, nada podiam fazer para ajudar: “Die Deutschen im<br />
Ausland haben unter der Schmach der Heimat unsäglich mehr leiden müssen<br />
als die nationalbewussten Deutschen im Reich, weil sie Tag für Tag Zeuge<br />
des nationalen Ansehens ihres Gastlandes sein mussten” 25 .<br />
A frase acima é um exemplo cabal da transmissão do sentimento nacional<br />
alemão através da manipulação do imaginário. Nela, como já pudemos escrever,<br />
a utilização do termo Heimat para designar a Alemanha e Gastland para designar<br />
o Brasil aguça o sentimento de pertença à sociedade alemã, mesmo estando<br />
no Brasil. Da mesma forma, a passagem abaixo reproduz, partindo de mecanismos<br />
idênticos, a mesma operação de reconhecimento e de formação identitária:<br />
In diesem Zustand einer nationalen Resignation griffen einige Jahre vor<br />
der Machtergreifung beherzte Männer und Frauen ein, die schon frühzeitig<br />
den Glauben an Adolf Hitler und seine Mission in sich trugen. Ganz<br />
Wenige sind es gewesen, die das heute zur stolzen Reichflagge gewordene<br />
Hakenkreuzbanner draussen in der Welt aufpflanzten. Diese Wenigen<br />
schufen das Fundament für die Auslands-Organisation der nationalsozialistischen<br />
Bewegung, die nach der Machtgreifung des Führers<br />
in zäher und entsagungsvoller Arbeit die Reichdeutschen im Ausland<br />
zusammenfasste und sie an das gewaltige Geschehen in der Heimat<br />
heranbrachte. Durch bahnbrechendes Wirken auf dem Gebiet des sozialen<br />
Ausgleichs bildet heute das einstmalsnationale Auslandsdeutschtum<br />
eine nationalsozialistische Volksgemeinschaft im Sinne Adolf Hitlers. 26<br />
25 ORTSGRUPE CURITIBA DER NSDAP. Deutsche Woche – Curitiba, 1937. Curitiba: Impressora Paranaense,<br />
1937, p. 126. Trad. Os alemães no exterior têm um sofrimento indescritivelmente maior com a<br />
vergonha da Pátria do que os alemães que vivem no Reich, porque eles precisam testemunhar do seu<br />
país hospedeiro, dia a dia, a situação nacional.<br />
26 Ibid. Trad: Nesta situação [de penúria da Alemanha] uma resignação nacional freou por alguns anos a<br />
ascensão ao poder dos homens e mulheres corajosos, ascensão que tão anteriormente já povoava os<br />
planos e a missão que Hitler imaginava. Isso era muito pouco – hoje tremula a orgulhosa bandeira do Reich<br />
com a inscrição da cruz suástica pelo mundo afora. Estes poucos elementos são o fundamento para o<br />
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142<br />
Com esta passagem, o autor do texto engloba os sentimentos que a<br />
“germanidade” trazia aos alemães no exterior e aborda, de modo explícito, a<br />
relação que o imaginário alemão passava a sustentar com o ícone do Führer,<br />
reconhecido então como o líder dos alemães do mundo na sua cruzada pela<br />
Idade do Ouro. Assumindo o arquétipo do herói que resgata a honra alemã,<br />
Hitler consegue atingir não apenas os alemães que vivem sob a tutela do<br />
Estado Nazista, mas todos aqueles que compartilham do mesmo imaginário.<br />
Trata-se, em última instância e sob uma análise mais simplista, de uma<br />
eficiente propaganda empregada pelo NSDAP no exterior. Há que se considerar,<br />
entretanto, as manobras mais profundas que as mensagens passadas<br />
pelos discursos textuais e iconográficos exercem sobre o inconsciente coletivo<br />
alemão e sobre o imaginário germânico. Como bem salienta Castoriadis,<br />
“[...] o dono da significação reina acima do dono da violência” 27 . Já é tempo,<br />
portanto, das pesquisas históricas em política darem ênfase aos aspectos<br />
subjetivos do poder.<br />
movimento nacional-socialista aos quais, desde a ascensão ao poder do Führer, no tenaz e desapegado<br />
trabalho, os alemães no exterior se uniram, voltando-se ao grande acontecimento na Pátria. Através da<br />
desbravadora ação no campo social, a harmonia toma conta hoje da outrora germanidade no exterior,<br />
formando uma grande comunidade nacional-socialista que tem sua razão de ser em Adolf Hitler.<br />
27 CASTORIADIS, op. cit., p. 132.<br />
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Resumo<br />
Este artigo objetiva apresentar algumas<br />
considerações sobre a presença alemã no<br />
Sul do então estado de Mato Grosso e<br />
todo o processo educacional vivido e vivenciado<br />
por essa população. Que escolas<br />
freqüentaram seus filhos? Na ausência<br />
dessas, quais foram as estratégias que<br />
desenvolveram para suprir tal lacuna? A<br />
colônia analisada foi a primeira de que<br />
se tem registro no estado, e foi objeto de<br />
dissertação de mestrado.<br />
Palavras-chave:<br />
educação – diversidade cultural – imigração<br />
alemã<br />
143<br />
Presença alemã no sul de<br />
Mato Grosso: breve relato<br />
Mariza Santos Miranda*<br />
Abstract<br />
This essay takes us back to the very beginning<br />
of the German Presence in the<br />
South of Mato Grosso and its educational<br />
process in this State. What kind of<br />
school had their children attended to?<br />
For lack of it what kind of strategies were<br />
they looking after in order to supply this<br />
gap? The colony focused here was the<br />
very first registered in this brazilian State<br />
as well object of a research for a Master<br />
Degree.<br />
Keywords:<br />
education – cultural diversity – german<br />
immigration<br />
* Mestre em Educação pela UFMS, Campo Grande. Especialista em Alemão como Língua Estrangeira, pela<br />
Universidade de Munique, e pelo Instituto Goethe, de Munique.<br />
REV. TERRITÓRIOS E FRONTEIRAS – PROG. DE PÓS-GRAD. EM HISTÓRIA – UFMT – V.6 – N.2 – JUL./DEZ. 2005<br />
Territorios e Fronteiras_v6_n2_jul_dez_2005.p65 143<br />
24/1/2007, 11:01
144<br />
O senso comum releva a influência e presença alemã no espaço físico<br />
que viria a constituir o Estado de Mato Grosso do Sul, com a divisão do Estado<br />
em 1977. Há que se admitir que o processo de migração dentro das terras<br />
sul-mato-grossenses não se deu de forma tão organizada, regular e, tampouco,<br />
na mesma época em que eclodia no Sul do país.<br />
Um Estado de dimensões enormes e praticamente “vazias”, se considerarmos<br />
apenas a ação do homem branco, porém habitadas por povos indígenas,<br />
donos, de fato e de direito, da terra que lhes foi tomada pelo dito desenvolvimento.<br />
Grupos indígenas que observavam sua religião, preservavam sua cultura,<br />
respeitavam o espaço físico, fauna e flora de acordo com seus preceitos. Sem<br />
dúvida alguma, áreas virgens, com riquezas minerais comprovadas, terras férteis<br />
e muita água, sem dúvida alguma, mas tão distante do poder político, comercial<br />
e cultural do país. Um espaço enorme, como já aventado, voltado para dois<br />
outros países, Bolívia e Paraguai, dos quais se divide por fronteiras extensas e<br />
secas, e com os quais compartilha cor de pele, paladar e gosto musical.<br />
Justamente por essas fronteiras e subindo o fascinante Rio Paraguai<br />
vieram muitos estrangeiros, jovens em busca da sorte e da riqueza. Foram<br />
chegando aventureiros, bandeirantes, apresadores de índios, homens que<br />
acabaram por sedimentar as posses lusitanas em tal solo. O povoamento<br />
destas distantes áreas da Colônia, então, foi se efetivando através de um<br />
intenso fluxo migratório. Lá pelos idos de 1800, tudo se tornou mais fácil<br />
para a chegada de estrangeiros na medida em que se dava a abertura da livre<br />
navegação do rio Paraguai, em 1856, permitindo o acesso direto à capital da<br />
Província, Cuiabá, pela foz do Rio da Prata e pelo Atlântico.<br />
Mercadorias inglesas, louças chinesas, lãs de Cashmere começaram a<br />
alcançar as terras mato-grossenses, através dos portos fluviais, para satisfação<br />
das famílias abastadas. Luxo foi algo de que a população começou a usufruir,<br />
assim como passou a experimentar o consumo ostensivo cheio de significados<br />
próprios do mundo capitalista da época. Surgiram em Corumbá as Casas<br />
Comerciais, que foram o centro nervoso da economia. Os comerciantes atuavam<br />
no comércio de coisas físicas, sendo seu mundo palpável, com tudo<br />
muito bem situado e visível. Não havia lugar para abstração, tampouco para<br />
desconfiança na palavra do caixeiro-viajante e do tropeiro. O primeiro davalhe<br />
cobertura local e o segundo, regional. As Casas Comerciais chegaram a<br />
desempenhar um papel semelhante ao assumido pelas Casas Bancárias, anos<br />
mais tarde, tal a sua importância e confiabilidade junto à comunidade.<br />
A opulência e força monetária desse grupo estão devidamente documentadas<br />
no Álbum Gráfico que as Casas Comerciais de Corumbá mandaram<br />
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imprimir em Hamburgo, Alemanha, a título de propaganda. Nele se identifica<br />
que a direção desses estabelecimentos estava a cargo, basicamente, de mãos<br />
estrangeiras. Havia um bom número de comerciantes alemães, incluindo-se<br />
aqui os dirigentes das firmas alemãs que se faziam representar em Corumbá.<br />
Talvez tenhamos nesses registros a primeira notificação da presença<br />
de alemães que vieram com suas famílias para o espaço que mais tarde<br />
seria Mato Grosso do Sul. E muitos foram ficando. Absorvidos pela cultura<br />
regional, inebriados pelo calor intenso e pela sensualidade da região pantaneira,<br />
seus filhos foram perdendo o vínculo com a cultura alemã e acabaram<br />
constituindo famílias mestiças, multiétnicas. Seus nomes foram se aportuguesando,<br />
adaptando-se à nova realidade. O conhecimento lingüístico<br />
herdado dos pais e avós perdeu-se ao longo do tempo, afogou-se nos<br />
corixos (igarapés) do Rio Paraguai. As tradições foram se transformando.<br />
Alguns ousaram percorrer as regiões do Pantanal em busca de uma vida<br />
mais natural e, muito provavelmente, de riqueza.<br />
Mais tarde, sabedores das semelhanças entre os campos e coxilhas do<br />
Sul do então Mato Grosso e a fronteira do Rio Grande do Sul com a Argentina,<br />
chegaram os gaúchos, nos idos de 1895, com suas carretas e cargueiros<br />
ao sul do Estado, onde acreditavam encontrar tranqüilidade e área bastante<br />
para a criação de gado, coisa da qual se ocupavam na terra natal.<br />
Durante este período inicial, a imigração gaúcha concentrou-se na região<br />
dos atuais municípios de Ponta Porã, Bela Vista e Amambaí. Uma outra<br />
parcela, impedida pela Companhia Mate Laranjeira, que arrendava aquelas<br />
terras, fixou-se em outros campos. Pelas mãos dos gaúchos desenvolveu-se<br />
nestas regiões, paralelamente à erva-mate, a pecuária extensiva. Tal atividade<br />
econômica gozava de muita expressão naquele momento.<br />
É bem possível que os gaúchos que Mato Grosso recebeu, nessa época,<br />
tenham sido migrantes de colônias alemãs e italianas do Sul do país, conforme<br />
atestam seus sobrenomes e os relatos de seus descendentes que residem,<br />
hoje, em Mato Grosso do Sul.<br />
Esse ciclo migratório, engrossado depois em função da Revolução Federalista,<br />
estendeu-se até 1930. Devemos registrar que em algumas cidades<br />
do atual Mato Grosso do Sul a presença de gaúchos é predominante, e elas<br />
acabam sendo redutos não só das tradições gaúchas, bem como alemãs: citamos<br />
Dourados (a segunda maior cidade do Estado), Maracajú e São Gabriel<br />
do Oeste, a título de exemplo. Essa última é fruto do terceiro ciclo migratório<br />
dos gaúchos para o Estado nos anos 50/60 do Século XX, devido ao crescimento<br />
da agricultura nacional e ao boom do plantio da soja.<br />
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Em 1920 iniciou-se um processo de gestação daquilo que viria a ser<br />
uma colônia multiétnica, concretizado em 1924 com a entrada de várias famílias<br />
estrangeiras. A bem da verdade, a discussão política sobre a possibilidade<br />
de se contratar serviço de empresas ou particulares que se propusessem<br />
a criar núcleos coloniais, objetivando a ocupação das “áreas vazias” do<br />
sul do Estado de Mato Grosso, remonta ao início do Século XX. A partir dessa<br />
discussão, procurou-se atrair mão-de-obra estrangeira através de folhetos de<br />
propaganda que deveriam ser distribuídos pelos consulados existentes no<br />
país e nas capitais dos países estrangeiros objetivados 1 .<br />
Esse processo efetivou-se no governo de Pedro Celestino, em 1924,<br />
com a chegada de várias famílias a Terenos, para a constituição daquele que<br />
é considerado o primeiro núcleo de colonização no Estado com caráter definitivo<br />
2 , embora tenha sido uma constituição tardia em relação ao resto do<br />
país. Vieram atraídas pela propaganda distribuída e, através de uma firma, a<br />
Companhia H. Hacker. À Hacker à qual fora concedido uma extensão enorme<br />
de terra devoluta para que assentassem ali, no espaço que seria mais<br />
tarde Terenos, colonos estrangeiros.<br />
Tratava-se de uma colônia multirracial, que albergava búlgaros, polacos,<br />
portugueses, japoneses, austríacos e um grande número de alemães.<br />
Nada havia à disposição deles, a não ser a vontade de vencer na nova terra.<br />
Tiveram que levantar suas próprias casas, cavar seus poços, enterrar seus<br />
mortos no fundo das chácaras, criar “escolas” para seus filhos.<br />
Terenos, um núcleo que se limitava à estação da estrada de ferro,<br />
passou a se desenvolver muito com a implantação da colônia, que mais<br />
tarde se desdobrou em Colônia Velha e Colônia Nova. Entretanto, não podemos<br />
deixar de considerar que isso se deu, também, devido à qualidade<br />
das terras e ao interesse real dos colonos. Haja vista que, ao vencer o prazo<br />
estipulado pelo Governo Estadual, em 1926, a Colônia Velha apresentava<br />
uma população de 454 pessoas, sendo 97 famílias e 17 agregados, numa<br />
área de vários hectares cultivados.<br />
O espaço foi dividido em lotes que foram cedidos aos colonos recebendo<br />
deles o nome de “chácaras”. Em menos de dois anos esses estrangeiros<br />
viram-se obrigados a aprender o português e os costumes da terra nova,<br />
1 MARQUES, Joaquim Augusto da Costa. Mensagem de Abertura ao installar-se a 1ª Sessão da 9ª<br />
Legislatura em 13 de Maio de 1912, Cuyaba, Typ. Official, 1912.<br />
2 CORRÊA, D. Francisco de Aquino. Presidente de Estado. Mensagem dirigida à Assembléia Legislativa,<br />
na installação da 1ª Sessão Ordinária da 12ª Legislatura, em 7 de setembro de 1921, Assembléia<br />
Legislativa, Cuyaba, 1921.<br />
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através do convívio com os poucos moradores da região, que por sua vez<br />
eram atraídos até ali pela possibilidade de comércio.<br />
Os colonos estrangeiros, colocados a freqüentar o mesmo espaço físico<br />
e social, defrontaram-se com a obrigatoriedade do aprender “códigos” para<br />
poder estabelecer uma comunicação e uma certa identidade com o meio e<br />
as pessoas que os acolheram. Um aprendizado forçado pela necessidade,<br />
que não se deu dentro de um caráter formal e/ou normativo, mesmo porque<br />
não havia nenhum tipo de orientação educacional / cultural em Terenos.<br />
Os alemães, homens e mulheres que sabiam ler e escrever, fato que<br />
os diferenciava dos outros imigrantes, preocuparam-se com a formação<br />
escolar de suas crianças e promoveram a criação de salas de aula multisseriadas,<br />
contratando, por conta e riscos próprios, professores aposentados<br />
ou pessoas que pudessem ajudá-los nessa tarefa. O Governo Estadual, nesse<br />
primeiro momento, não se fez representar, portanto não havia em Terenos<br />
escola à espera dos colonos, fossem estrangeiros ou brasileiros 3 . Essa<br />
alternativa encontrada, a contratação de docentes, deixa explícito o cuidado<br />
com a valorização da educação também num contexto de vivência humana<br />
em geral, já que a escola congregava qualquer aluno, desde que<br />
estivesse imbuído do espírito do aprender.<br />
Os percalços enfrentados por essas famílias, que atravessaram o Atlântico,<br />
deixando para trás suas raízes e carregando consigo um balaio de sonhos<br />
e esperanças, foram inúmeros. Vieram de uma terra fria, com 4 estações<br />
determinadas, para um planalto quente, úmido, com duas estações: tempo<br />
da seca e tempo das águas. Enfrentaram uma natureza agreste, pungente,<br />
rica, mas totalmente nova para eles. Viram-se diante das belezas e agruras de<br />
um cerrado. Tiveram que lidar com a solidão e um sentimento novo: saudades.<br />
Como se não bastasse, a simples travessia de um oceano implicava<br />
singrar novos e desconhecidos mares. À frente, o estranho, o que ainda se<br />
revelaria, o novo, a liberdade do vento marítimo e da imensidão do mar. Por<br />
outro lado, o medo, o desconhecido, as tempestades, as dificuldades, a diversidade<br />
a se enfrentar: novos costumes, outra luminosidade na paisagem, outro<br />
clima, outra visão de mundo, uma nova linguagem de vida.<br />
Para trás ficava o velho, conhecido e vivido, ficavam os costumes e a<br />
cultura incorporados ao longo de uma existência sem que desse conta de sua<br />
atuação. Ficava a certeza de sentir-se parte integrante da terra, do ar, das<br />
fragrâncias, daquela gente enfim. Mas carregava-se no peito o entusiasmo e<br />
3 Somente em 1930 foram instituídas escola e igreja em Terenos.<br />
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a ousadia próprios das travessias. Carrega-se, sobretudo, a vontade da mudança<br />
ao longo daquele trajeto distinto.<br />
A ação do “migrar” está repleta de mudanças: implica mudar de habitat,<br />
de idioma, de cultura, sobretudo de status social. Todas essas alterações<br />
inferem a perda dos papéis sociais conhecidos e desempenhados até aquele<br />
momento. Talvez seja esta a maior e mais dolorosa de todas. Na nova terra<br />
há que se elaborar, construir novos papéis sócioculturais em busca de espaço<br />
em todas as áreas, em todos os outros campos sociais, de políticos a religiosos.<br />
O que observamos é que tal processo quase sempre se inicia pela elaboração<br />
do status econômico, através do trabalho.<br />
Por outro lado, o que se desconhece é o fato de que por trás de cada<br />
uma dessas ações e vontades se esconde o aprendizado, que vai se desvelando,<br />
às vezes lentamente, outras de forma abrupta. Deve-se levar em consideração,<br />
portanto, todo o processo social de produção de conhecimento ao<br />
se pensar a própria existência e suas travessias.<br />
O grupo analisado, que se formou e progrediu rapidamente, embora não<br />
vivesse ainda a era da globalização, trocava cobras venenosas por soro antiofídico<br />
com o recém-criado Instituto Butantã, em São Paulo. Muitos representantes<br />
da Colônia participaram de um dos primeiros movimentos divisionistas do<br />
Estado, como atestam os documentos do Arquivo Histórico Estadual/ MS.<br />
À realidade de um processo de aprendizado formal e, sobretudo, informal,<br />
ficaram, então, expostas todas as famílias alemãs vindas para o Mato<br />
Grosso antes e durante 1924, quando se constituiu a Colônia Agrícola de<br />
Terenos. Entretanto não devemos deixar de considerar certas verdades inerentes<br />
a todo processo educacional: ele nunca se dá desvinculado do grupo<br />
social e dos interesses políticos, já que a prática política se apóia na verdade<br />
do poder e a prática educativa, no poder da verdade 4 .<br />
Justamente esses dois elementos, os interesses políticos e a “verdade”<br />
do real, moveram as famílias imigrantes para Terenos, hoje MS. Lá, expostas<br />
a uma realidade que além de desconhecida era agreste, viram-se diante da<br />
necessidade de aprender a todo custo. O aprendizado vitalício nem sempre<br />
lhes trouxe a grande satisfação prevista por Drucker 5 , que apregoa a exigência<br />
de o aprendizado ser atraente, carregando consigo tal satisfação, mas<br />
certamente lhes impôs novo ritmo àquela prendizagem.<br />
Há sempre a existência de um processo social denominado educação,<br />
4 SAVIANI, Dermeval. Escola e dmocracia. São Paulo: Cortez, 1989.<br />
5 DRUCKER, Peter. Sociedade pós-capitalista. São Paulo: Pioneira, 1993, p. 156.<br />
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que atua, entre os seres humanos, embutido no contato social estabelecido e<br />
do qual nem sempre nos apercebemos. Uma ação que, sem dúvida alguma,<br />
se amplia na socialização, mas é singular na medida em que envolve um ser,<br />
suas descobertas e aprendizados. Engloba o universal pelo fato de ser comum<br />
a qualquer ser humano, independente de sua condição social.<br />
Sob essa ótica, o ser humano é, portanto, um ser social, rico e sensível<br />
ao mesmo tempo. Ao se constituírem como membros e atores de um grupo<br />
social, as pessoas partilham, por um lado, de um patrimônio cultural comum<br />
a todos, por outro, cada qual traz consigo diferentes visões, sensações e<br />
concepções de mundo, que lhes conferem divergências derivadas de suas<br />
próprias existências. Essa alteridade traz à tona a diversidade e a riqueza de<br />
formas técnicas e culturais que perpassam o discurso cotidiano do ser. Interessante<br />
acentuar que mesmo tendo sua alteridade, sua leitura singular do<br />
que o envolve, o indivíduo é, sobretudo e ainda, expressão do social.<br />
Reflitamos um pouco sobre o termo cultura, no sentido de formação.<br />
Na língua portuguesa deriva-se, etimologicamente, do verbo colere do latim<br />
medieval, significando cultivo e cuidado a tudo que se relaciona à terra, às<br />
plantas, aos animais e à agricultura.<br />
No idioma alemão Bildung relaciona-se à “educação, conhecimento, saber,<br />
uma postura espiritual e intelectual” , segundo Duden 6 . No entendimento<br />
de Wahrig 7 reporta-se “a uma formação, organização, interior e espiritual do ser<br />
humano”, originando-se da palavra Schöpfung = criação, em primeira instância.<br />
Cultura, então, é um conjunto de regras, um produto social, toda uma<br />
atitude corporal e intelectual onde a história e a estrutura social de um dado<br />
grupo imprimem suas digitais. São códigos comuns a um grupo que podem<br />
ser interpretados e apreendidos por qualquer pessoa que a ele pertença.<br />
Mas é também a possibilidade de se formar, de se obter uma Bildung com o<br />
intuito de um melhor viver.<br />
Gramsci elucida em seu trabalho que a filosofia da práxis não intenciona<br />
manter os “simplórios” na filosofia primitiva do senso comum, “mas busca,<br />
ao contrário, conduzi-los a uma concepção de vida superior” 8 . Entende a<br />
cultura como processo social global, transformando-o em ferramenta angular<br />
para se conseguir o alavancamento de transformação social, à medida que<br />
ele forma a visão do mundo dos grupos sociais. Entende-se com facilidade,<br />
6 DUDEN. Bedeutungswörterbuch Band 10. Mannheim: Duden Verlag, 1970.<br />
7 WAHRIG, Gerhard. Deutsches Wöterbuch. Gütersloh: Bertelsmann Lexikon-Verlag, 1975.<br />
8 GRAMSCI, Antônio. Concepção dialética da História. 9.ed. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1991.<br />
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então, sua perspectiva sobre a cultura como força social transformadora para<br />
a liberdade humana.<br />
Essa concepção valoriza a história e a realidade dos seres humanos,<br />
admitindo a universalidade na medida em que é impossível entendermos<br />
educação sem levarmos em consideração a sociedade, o fio histórico condutor<br />
e o espaço físico que a produz.<br />
Julgamos que o conhecimento é gerado por meio da vivência de situações-problemas.<br />
Sendo assim, os atores de Terenos, expostos a uma natureza<br />
diversa e a uma nova cultura, foram obrigados a equacionar rapidamente<br />
tais realidades. Depararam-se com adversidades concretas e com a perspectiva<br />
da diversidade cultural, tendo sabido, em uma percentagem alta, lidar<br />
bem com elas. Então, foram produzindo interpretações, significados e símbolos<br />
face à nova realidade, referendando a constatação de alguns antropólogos<br />
de que as culturas não desaparecem de fato, mas se mesclam umas as<br />
outras, dando origem a uma nova cultura.<br />
Na avaliação dos teóricos, a educação transmitida pelos pais na família,<br />
no convívio com os amigos e colegas, através da televisão, do rádio, nos<br />
clubes, cinemas, nas ruas, etc. é objeto e tema da educação informal.<br />
O que diferencia a educação não-formal da informal é que na primeira<br />
existe a intencionalidade de dados sujeitos em criar ou buscar determinadas<br />
qualidades e/ou objetivos. A educação informal decorre de processos<br />
espontâneos ou naturais, ainda que seja carregada de valores e<br />
representações, como é o caso da educação familiar. 9<br />
Os personagens que escreveram o texto central da História de Terenos/<br />
MS são, ou foram, pessoas reais, determinadas, apresentando-se como “unidades<br />
concretas, integradas de uma infinidade de predicados, dos quais somente<br />
alguns podem ser ‘colhidos’ e ‘retirados’[...]” 10 . Mas se considerarmos a visão<br />
que temos da aparência que cremos realidade, algo em geral fragmentado e<br />
limitado, constataremos que a dificuldade de lidar com tal situação já aflora<br />
nitidamente. O registro é feito através de uma perspectiva pessoal e unilateral,<br />
já que não somos dotados de uma capacidade de registro global e impessoal,<br />
até mesmo pelo fato de a memória humana não ser tão abrangente e<br />
elástica. Sempre temos uma visão daquilo que nos pareceu realidade.<br />
9 GOHN, Maria da Glória. Educação não-formal e cultura política. São Paulo: Cortez, 1999.<br />
10 ROSENFELD, Anatol. “A personagem de ficção. Boletim n. 284, Teoria Literária e Literatura Comparada<br />
nº 2. São Paulo: EDUSP, 1963.<br />
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Como numa peça teatral, o ser humano, aqui, é o centro da ação e<br />
portanto de todo o universo descrito. Já que embasamos nossa pesquisa também<br />
em entrevistas, detectamos que o reino do possível que nos restitui uma<br />
liberdade fantasiosa e da qual a vida real nos priva, se vê envolvido a todo<br />
instante pela atmosfera sagrada que circunda o narrador, conforme atesta Ecléa<br />
Bosi 11 . Tal narrador, personagem central das entrevistas feitas por nós, lida com<br />
suas memórias, que certamente vêm à tona não de forma impetuosa e linear,<br />
mas como águas que também se misturam às lembranças do passado recente<br />
e do presente. Vêm cumprir sua função social, fazendo ressurgir em desalinho<br />
e em movimentos circulares o passado que se cristalizou.<br />
O caráter livre, espontâneo, quase onírico da memória é, segundo Halbwachs,<br />
excepcional. Na maior parte das vezes, lembrar não é reviver,<br />
mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e idéias de hoje, as<br />
experiências do passado. A memória não é um sonho, é trabalho. Se<br />
assim é, deve-se duvidar da sobrevivência do passado, “tal como foi”, e<br />
que se daria no inconsciente de cada sujeito. 12<br />
Este reconstruir, enfatizamos, nunca é isento: passa necessariamente<br />
pelos canais da afetividade e de emoção. Haja vista que se relaciona, nesse<br />
caso, diretamente com recordar, que tem sua origem etimológica no verbo<br />
latino recordare, significando ter presente no espírito, no coração. Re-prefixo<br />
que indica para trás, cor que significa coração e dare, dar, doar. Portanto<br />
podemos entender o verbo recordar como dar de novo ao coração, ou um<br />
reconstruir colocado novamente no coração.<br />
Com esses dados lidaram as 43 famílias de cultura alemã, vindas das<br />
mais distintas regiões da Alemanha e se lançaram ao mar no Porto de Hamburgo<br />
em direção ao Rio de Janeiro, onde foram imediatamente alojadas na<br />
Hospedaria dos Imigrantes da Ilha das Flores. Ali, ficaram aguardando sua<br />
destinação, como era habitual, enquanto recebiam noções básicas do país<br />
que as hospedava. Estiveram sujeitas, nessa estalagem, a todo um processo<br />
denominado de quarentena, momento em que recebiam vacinas e ficavam<br />
sob observação médica por um período. Eram essas famílias de origem e<br />
profissões urbanas, na sua maioria praticantes da fé católica, que vieram para<br />
o sul de Mato Grosso sacolejando-se a bordo dos trens da Noroeste do Brasil,<br />
numa viagem longa, interminável, se considerarmos as distâncias européias.<br />
11 BOSI, Ecléia. Lembranças de velhos. 2.ed. São Paulo: T.A. Queiroz e EDUSP, 1987.<br />
12 BOSI, Ecléia. Lembranças de velhos.<br />
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Pernoitando em Bauru e Três Lagoas, chegaram a Campo Grande, onde<br />
foram registradas nos livros da Intendência da Cidade, recebendo do Estado<br />
sementes, implementos agrícolas, material para levantarem suas casas, além<br />
de algo comparável a uma cesta básica. Essa ajuda se prolongou por cerca de<br />
2 anos, segundo o Relatório do Intendente Geral de Campo Grande, Arnaldo<br />
E. de Figueiredo, de 1 de dezembro de 1926:<br />
Infelizmente foi supprimido este anno o auxilio o Estado vinha dispensando<br />
à colonia o que permittia incrementar o serviço de assistencia<br />
aos colonos com o fornecimento de machinas agricolas e outros elementos<br />
de trabalho. 13<br />
Nesse espaço de tempo já se auto-abasteciam com frutas, verduras,<br />
arroz, feijão, mandioca, ovos, à guisa de exemplo, o que também era colocado<br />
no mercado de Campo Grande e Aquidauana. Não havia mais necessidade<br />
da ajuda do governo, presente durante esse período inicial.<br />
No âmbito da educação aplicaram o método de Lancaster e Bell, tão a<br />
gosto da época, que consistia na monitoria ou ensino mútuo, suprindo a<br />
precariedade de professores. Ou seja, além dos professores contratados, os<br />
alunos mais capazes, ou mais hábeis, podiam transmitir conhecimentos que<br />
usualmente eram repassados por um profissional da área..<br />
Detectamos pelo menos 5 salas de aulas multisseriadas, que funcionaram<br />
nos lotes dos próprios colonos, cujos prédios eram levantados em sistema<br />
de mutirão por eles mesmos. Faziam as mesas, cadeiras e quadros. Os alunos<br />
eram responsáveis pela limpeza, e os pais, pela manutenção da escola e do<br />
professor contratado. A este cabia a criatividade para montar um texto de<br />
leitura que estivesse intimamente ligado à realidade de seus alunos. As matérias<br />
ensinadas limitavam-se à necessidade do cotidiano deles: o aprendizado da<br />
língua portuguesa, leitura, noções de história e geografia, os fundamentos de<br />
matemática aplicados às necessidades que enfrentavam no dia-a-dia e muita<br />
tabuada: “Olha, era tanta Kopfrechnungen (cálculos de cabeça) e tabuada que<br />
até hoje sei fazer contas sem problemas” (depoente Maria Wehner).<br />
É interessante a constatação da criação espontânea de salas de aulas ou<br />
escolas justamente num momento político em que se debatia a possibilidade de<br />
a ela ser um dos instrumentos que poderia levar à interiorização da idéia de que<br />
os conhecimentos que fossem tratados de uma maneira mais genérica ou gene-<br />
13 FIGUEIREDO, Dr. Arnaldo Estevão de. Intendente Geral de Campo Grande em relatório apresentado à<br />
Câmara Municipal, referente ao exercício de 1926. São Paulo: Companhia Melhoramentos de São Paulo, 1926.<br />
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ralizante seriam superiores aos conhecimentos, aos saberes particulares e/ou 14 .<br />
Ao que tudo indica essas salas de aulas multisseriadas eram implantadas<br />
onde se faziam necessárias. Na medida em que havia crianças em idade escolar,<br />
formava-se uma classe aqui, outra ali, também levando em consideração a extensão<br />
da colônia, que era muito grande, bem como a distância enorme entre<br />
uma “chácara” e outra, difícil para ser coberta por pernas tão pequenas. Isso<br />
explica a existência de tantas salas/ escolas, todas dentro da área da Colônia.<br />
Observamos que o esforço para a manutenção da cultura teuta, da<br />
identidade étnica, deu-se no âmbito da família, quando se reuniam à noite,<br />
depois da lida no campo, para ler o Missal, contar histórias, ler e escrever<br />
cartas. Apesar do hábito de se corresponder, não houve em Terenos uma<br />
atividade de imprensa ou algo similar, o que, do ponto de vista lingüístico,<br />
poderia ter contribuído para a manutenção do idioma alemão.<br />
Provavelmente, para tais imigrantes, a fixação em Mato Grosso, o lidar<br />
com uma natureza agreste, mas exuberante, imprimia-lhes uma luta muito<br />
maior pela sobrevivência. Não sobrava tempo para outras atividades, além<br />
daquelas para a manutenção das necessidades básicas e vitais. A despeito do<br />
espaço físico amplo, faltava-lhes “espaço” para a conservação dos lazeres e<br />
dos hábitos adquiridos no país de origem.<br />
Entretanto, registramos a existência de escolas étnicas, como a Deutsche<br />
Schule (Escola Alemã), criada por volta de 1930 e freqüentada somente<br />
pelos filhos de alemães: um esforço para a conservação da identidade étnica.<br />
O professor, Herr Baasch, era alemão e lhes transmitia em sua língua os<br />
conhecimentos básicos do país de origem.<br />
Pelos idos de 1933, monitores vindos da Alemanha formaram o Jugendring<br />
(Círculo da Juventude), com adesão total dos jovens e crianças filhos dos<br />
colonos. Todo o material – revistas, livros, jogos e adereços – era enviado pela<br />
Alemanha. Esse grupo apresentava fortes semelhanças com a Juventude Hitlerista<br />
Alemã. Tinham uniforme, cânticos e estandartes próprios, reunindo-se ao<br />
ar livre, debaixo de mangueiras na chácara dos colonos, nos fins de semana.<br />
Apesar da dificuldade pela falta de uma escola formal, identificamos,<br />
contudo, nas diferentes atividades voltadas para a educação e desenvolvidas<br />
pela população da Colônia, 3 modalidades de aprendizado:<br />
Educação no âmbito da família – O aprendizado repassado pelos irmãos<br />
mais velhos, bem como a leitura do Missal em língua alemã, o cântico<br />
14 KREUTZ, Lúcio. A educação de imigrantes no Brasil. 500 Anos de Educação no Brasil: In: LOPES, Eliane<br />
M. T. (Org). Belo Horizonte: Autêntica, 2000.<br />
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154<br />
de hinos, a realização de festas em que, através das músicas alemãs os costumes<br />
estavam sendo preservados e transmitidos para as novas gerações em formação;<br />
As classes multisseriadas – Tentativas explícitas de busca da educação<br />
formal ao se organizarem para contratar professores que pudessem ajudá-los<br />
na sustentação dessas classes multiseriadas;<br />
“Jugendring” (Círculo da Juventude) – Novamente uma educação nãoformal<br />
no âmbito dos grupos da Juventude Teuto-Brasileira, onde as crianças<br />
liam revistas e livros em língua alemã, brincavam e jogavam, fazendo uso de<br />
jogos ensinados pelos monitores, alemães, e onde aprendiam a ler e escrever<br />
no idioma dos pais (Lesen und Rechtschreibung).<br />
Este primeiro levantamento da vida dos habitantes da Colônia Agrícola<br />
de Terenos teve sua pedra angular na história oral, na memória factual, narrativa<br />
e afetiva daqueles que a viveram, como já reportado.<br />
Tentamos colocar tal momento histórico sob um processo de análise<br />
possível, sem nos esquecermos dos traços do universal, onde sempre estão<br />
inseridas as especificidades regionais. O pano de fundo foi desenhado por<br />
interesses e necessidades impostas pelo capital, em seu constante movimento<br />
de mutação. Mas detalhes certamente se perderam no tempo ou no<br />
silêncio dos entrevistados, bem como na falta de documentação.<br />
Terenos se fez município graças ao trabalho anônimo de tantos colonos-<br />
estrangeiros pioneiros que tiveram seu imaginário povoado pelo espírito<br />
de conquista e aventura, na tentativa de vencer no Centro-Oeste brasileiro.<br />
No entanto, a fauna e a flora que conheciam eram tão diversas da natureza<br />
bruta, agreste e selvagem que os desafiaram aqui.<br />
Apesar da produção farta e de qualidade, atestada por todos os entrevistados,<br />
a economia de produção agrícola desenvolvida pela Colônia não lhe deu<br />
destaque especial no cenário regional. Tratava-se de uma economia policultural<br />
voltada para a sobrevivência, com venda de seu excedente em mercados locais.<br />
A educação informal adquirida no observar, copiar e reproduzir ampliou<br />
as possibilidades de interlocução dos colonos estrangeiros. Assim, aprenderam<br />
a língua do país que os recebia, e, então, ao interagir com os nativos, os brasileiros,<br />
tiveram condições de crítica e avaliação de mundo ampliadas pela leitura<br />
comparativa feita através desse exercício imposto pelas circunstâncias.<br />
Os anos 20 do século XX marcaram igualmente o crescimento social do<br />
setor médio da população. Tal fato chegou rápido a Mato Grosso, com o<br />
desenvolvimento da pequena burguesia citadina, constituída por funcionários<br />
públicos federais, militares, a classe bancária, as classes liberais (advogados<br />
e médicos, principalmente) e, sem dúvida alguma, os empregados do<br />
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comércio, a qual floresceu muito graças às facilidades oferecidas pela ferrovia<br />
(a partir dos idos de 1914). Esses setores fizeram reivindicações e exigiram,<br />
indiretamente, uma nova postura frente à educação.<br />
A 1ª Escola Estadual de Terenos é resultado deste movimento pedagógico.<br />
Naquele momento, dava-se às crianças noções rudimentares de história<br />
da pátria e de literatura, além do ecercício da observação e o raciocínio<br />
através da matemática. Havia, ainda, o desenvolvimento de atividades manuais.<br />
Ao professor cabia o esforço de adaptar o ensino às particularidades<br />
regionais e ambientais: criando textos, jogos, novas atividades e propondo<br />
aos alunos problemas ligados à realidade local, por exemplo.<br />
O ensino formal não melhorou o desempenho dos estrangeiros naquele<br />
momento histórico. A bem da verdade, eles já haviam buscado, por conta<br />
e riscos próprios, uma solução educacional para seus filhos. Buscaram o aprendizado<br />
da língua portuguesa e o repasse dos conhecimentos básicos de história,<br />
aritmética e geografia. Nesse contexto se evidenciava todo o aprendizado<br />
já adquirido informalmente e que fundamentava um dos preceitos básicos<br />
da educação não-formal: a aprendizagem efetivada por meio da prática<br />
social. A experiência dos pais e dos brasileiros envolvidos e a exposição às<br />
situações-problemas levaram-nos à aquisição de novos saberes.<br />
Os traços do desenho dessa identidade tão peculiar e o texto educacional<br />
escrito pela complexidade e especificidade do Sul de Mato Grosso,<br />
nos anos 20/ 30 do séc. XX se destacam quando se atenta para a incorporação<br />
cultural de “mão-dupla” que mesclou alemães A tantos outros grupos<br />
étnicos, e dão o tom harmonioso à leitura que se faz por trás do texto<br />
em questão.<br />
Analisando cuidadosamente as fontes, poucas e primárias, e ainda não<br />
estudadas pela historiografia e educação em Mato Grosso do Sul, com atenção<br />
minuciosa sobre cada afirmação e cada pausa de nossos depoentes, pudemos<br />
perceber e registrar um movimento imigratório digno de destaque.<br />
Questionamo-nos quanto ao fato de não se ter estabelecido em Terenos<br />
um sistema de ensino semelhante ao construído em outras colônias alemãs,<br />
do Espírito Santo ao Rio Grande do Sul, vigorando até a II Guerra Mundial<br />
com muito sucesso. Acreditamos que as considerações elencadas a seguir<br />
possam responder, ao menos em parte, a tal preocupação.<br />
No caso de Terenos constatamos colônias mistas, multirraciais, tanto a<br />
velha como a nova. Esta disposição contemplava o processo de revisão da<br />
política colonial do governo brasileiro para evitar a formação de enquistamentos<br />
étnicos. Criou-se uma colônia multiétnica ou multicultural. Essa ca-<br />
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racterística dificultou a formação de uma escola só para alemães, uma Deutsche<br />
Schule, fazendo com que ela surgisse mais tarde e não imediatamente.<br />
Um outro dado explicador: a maioria das famílias era de origem urbana<br />
e não rural, o que traumatiza ainda mais qualquer processo de instalação num<br />
espaço desconhecido. Os colonos alemães estiveram expostos a uma realidade<br />
completamente diversa da que conheciam, como também se viram<br />
obrigados a abandonar suas profissões urbanas e a aprender uma nova profissão:<br />
camponês, agricultor. Isso num espaço físico exuberante, novo, mas<br />
agreste; tendo que aprender a lidar com um solo que fugia de tudo o que<br />
eles pudessem conhecer. Novo clima, nova geografia, nova profissão, nova<br />
cultura, levando-os a uma situação de vida social igualmente nova.<br />
Outro item dificultador foi o fato de a maioria das famílias te formação<br />
católica. Se atentarmos para o detalhe de que o sistema educacional alemão<br />
organizado no Brasil teve sua estruturação e sua subvenção apoiadas<br />
pela cultura luterana alemã, entenderemos melhor essa lacuna em Terenos.<br />
As escolas luteranas contavam com apoio de Fundações e Organizações<br />
germânicas ligadas à Igreja Luterana Alemã, que apoiavam e davam<br />
sustentação à constituição das Deutschen Schulen nas inúmeras colônias<br />
teuto-brasileiras em todo o Brasil.<br />
Os colonos alemães da Colônia Agrícola de Terenos, conseqüentemente,<br />
não puderam contar com o apoio dessas Organizações da Prússia,<br />
que enviavam professores, ajudavam com material didático, proporcionavam<br />
toda uma infra-estrutura para o bom funcionamento da escola<br />
alemã no país. Por outro lado, a importação de professores teuto-brasileiros<br />
formados no Sul do Brasil era dificultada, já que a maioria era<br />
luterana, crença religiosa diversa da dos colonos. Isso talvez os tenha<br />
constrangido, pois não partilhavam da intimidade ou da proximidade<br />
com alemães católicos. Não podemos esquecer que a diferença religiosa<br />
dentro do grupo alemão é algo muito forte e respeitado, evitando-se,<br />
inclusive, contatos e inter casamentos.<br />
Reportamo-nos, como última consideração sobre essas diferenças, à duração<br />
relativamente limitada e curta da colônia, gerando a migração de grande<br />
parte das famílias para outros locais, ao longo da década de 30 e início da de 40<br />
do século XX. Isso não concedeu tempo suficiente para que o processo educacional,<br />
de caráter étnico, pudesse ser estabelecido a contento.<br />
Algumas dessas famílias não resistiram ao agreste, à solidão e ao calor,<br />
ou retornando para a Alemanha ou buscando guarida noutras Colônias Alemãs<br />
do país. Outras tantas ficaram e foram se deixando burilar pelas muitas<br />
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águas do tempo das chuvas e pela terra vermelha da região. Perderam o<br />
contato com a origem, esqueceram hábitos próprios de seus avós, casaramse<br />
com outras etnias, deixaram de falar o idioma alemão.<br />
Hoje, defrontamo-nos por todo o Estado com famílias cuja origem têm<br />
bases na cultura alemã, mas ainda não há nada sistematizado ou organizado<br />
sobre essa presença. Os dados estão soltos, as famílias espalhadas e mescladas<br />
aos habitantes da região. Aqui, diferentemente do que ocorre no Sul do país,<br />
eles nunca se concentraram em grupos fechados, mesmo na Colônia. A historiografia<br />
regional, incompreensivelmente, dá pouca ênfase a tais grupos.<br />
O censo de 1960 registrou 232 alemães em Mato Grosso; em 1970,<br />
temos o registro de 279 e em 1980, de 176, de acordo com o IBGE. Vale<br />
observar, entretanto, o questionamento que nos foi segredado pelo Cônsul<br />
Geral da Alemanha ao visitar nosso Estado, em 2002: “Não sabia que<br />
havia tantos alemães por aqui! Por onde eles entraram? Não há registro<br />
deles em São Paulo”.<br />
Em 1977, com a criação do Estado de Mato Grosso do Sul, cuja capital<br />
passou a ser a cidade de Campo Grande, a região tornou-se detentora dos<br />
maiores centros receptores dos migrantes alemães ou de seus descendentes:<br />
Dourados, Maracajú, São Gabriel do Oeste, Terenos e, até mesmo, Bonito,<br />
conforme já nos referimos acima.<br />
Uma característica peculiar desses grupos é a intensa miscigenação:<br />
com japoneses, bugres, negros, árabes, deixando claro sua capacidade de<br />
adaptação à diversidade a que estiveram e/ou estão expostos. Os sobrenomes<br />
alemães foram adquirindo nuances regionais numa tentativa de serem<br />
“pronunciáveis” e compreendidos, como já mencionado.<br />
Independentemente dos grupos familiares, que vieram para o Sul do<br />
Estado em busca de melhores terras, há ainda aqueles profissionais liberais<br />
que, com o intuito de colocar seus conhecimentos e sua força de trabalho a<br />
serviço da região, acabaram ficando. À guisa de exemplo, podemos destacar,<br />
entre tantos outros, o engenheiro responsável pela construção da Estrada<br />
de Ferro Noroeste do Brasil (1914), Emílio Schnoor, e Friedrich Korndörfer,<br />
dos primeiros relojoeiros da cidade de Campo Grande/MS. Nesses<br />
casos as diferentes identidades culturais não redundaram em crises e conflitos;<br />
conviveram calma e harmoniosamente, como nos reportam os descendentes<br />
que viveram naquela época.<br />
As listas telefônicas, hoje, atestam um número considerável de sobrenomes<br />
alemães, assim como os cartórios registram as uniões entre Meiers e<br />
Silvas. Observamos, entretanto, neste breve levantamento não só os ale-<br />
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158<br />
mães de nascimento, (sem esquecermos que a Alemanha de então não tinha<br />
o mesmo perfil físico-geográfico da de agora), mas todos aqueles que têm<br />
sua ascendência na cultura alemã. A História da presença alemã em Mato<br />
Grosso do Sul começa a ter suas primeiras linhas traçadas. Há um longo<br />
caminho, ainda, a ser percorrido e registrado.<br />
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Resumo<br />
O artigo pretende discutir o papel das empresas<br />
estrangeiras, em especial a empresa<br />
Light e o empresário Farquhar, no que<br />
concerne a participação política na Primeira<br />
República. Na historiografia tradicional a<br />
política deste período foi descrita como<br />
defensora dos interesses da burguesia cafeeira.<br />
Entretanto, alguns autores passaram<br />
a criticar essa idéia de hegemonia cafeeira<br />
paulista, destacando a lógica de frações<br />
hegemônicas no poder. Alguns trabalhos<br />
atentaram para o papel do capital estrangeiro<br />
na formulação de políticas federais,<br />
por este ser credor do Estado brasileiro.<br />
Pensa-se que grandes empresas estrangeiras<br />
também intervieram na política nacional<br />
por meio de lobbies e do poder econômico.<br />
Discute-se como, mesmo na cidade<br />
de São Paulo, capital da economia cafeeira,<br />
empresas estrangeiras detinham papel<br />
relevante para decidir questões políticas.<br />
Palavras-chave:<br />
hegemonia cafeeira – capital estrangeiro –<br />
grupos de interesse<br />
159<br />
Empresas estrangeiras e participação<br />
política na Primeira República<br />
* Mestrando em História Econômica – UNICAMP – Bolsista Fapesp.<br />
Alexandre Macchione Saes*<br />
Abstract<br />
This article discusses the importance of<br />
foreign companies in the core politics<br />
of the so-called First Republic, with a<br />
specific focus on Canadian Light Company<br />
and the North-American entrepreneur<br />
Percival Farquhar. Traditional<br />
historiography describes this period as<br />
that of São Paulo’s coffee bourgeoisie<br />
hegemony. More recent authors criticize<br />
that view by emphasizing the fractioned<br />
nature of that hegemonic power.<br />
For example, some texts point out<br />
the strategic position of the foreign<br />
capital in the formulation of Federal<br />
Polices, inasmuch as Brazilian economy<br />
relied on external loans. Thus, this article<br />
discusses the lobbying efforts of<br />
two influential companies in the political<br />
decision making process even in<br />
the State of São Paulo, Brazil’s coffee<br />
economy hub.<br />
Keywords:<br />
coffee hegemony – foreign capital –<br />
interests groups<br />
REV. TERRITÓRIOS E FRONTEIRAS – PROG. DE PÓS-GRAD. EM HISTÓRIA – UFMT – V.6 – N.2 – JUL./DEZ. 2005<br />
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160<br />
A Primeira República, tradicionalmente, é analisada, quanto à sua formação<br />
política, como hegemonicamente representante dos interesses do<br />
grupo cafeeiro paulista. Nesse sentido, as políticas econômicas e as mais<br />
diferentes decisões governamentais buscavam auxiliar o desenvolvimento e<br />
crescimento da economia cafeeira. Afinal, como chegou-se a afirmar, “o café<br />
é um negócio nacional”. Contudo, nas últimas décadas aumentou o número<br />
de trabalhos que questionam a hegemonia cafeeira, considerando em primeiro<br />
lugar que a classe cafeeira era constituída por frações de classe, em<br />
que lavradores e grandes proprietários vinculados ao comércio, ferrovias e<br />
bancos divergiam diante dos interesses econômicos. Em segundo lugar, questiona-se<br />
a hegemonia cafeeira na medida que outros grupos de interesses<br />
influenciavam as decisões políticas, como os industriais, as oligarquias regionais<br />
e o capital estrangeiro.<br />
Nosso objetivo é destacar a participação estrangeira no processo de<br />
elaboração das políticas governamentais. Acreditamos que diante da dependência<br />
econômica ao capital estrangeiro, quer por ser uma economia agrárioexportadora,<br />
quer pela necessidade de endividamento via empréstimos externos,<br />
as políticas nacionais acabavam por incorporar as decisões macroeconômicas<br />
dos interesses internacionais. Entretanto, o que pretendemos enfatizar<br />
neste artigo é a participação estrangeira por meio de empresas e empresários<br />
nos diferentes centros de decisão e em disputas mais específicas, mas<br />
não menos importantes. Discutindo o controle da Light no setor de serviços<br />
urbanos e de Farquhar no controle do sistema ferroviário e das jazidas de<br />
minérios brasileiros, acreditamos que poderemos também tornar relativa a<br />
hegemonia cafeeira paulista.<br />
Hegemonia paulista na Primeira República:<br />
um balanço historiográfico<br />
O regime republicano e federalista foi o sistema político da Primeira<br />
República, um período de aproximadamente quarenta anos que separou<br />
duas sociedades brasileiras bem distintas, uma agrário-exportadora escravista<br />
e outra urbano-industrialista. Supor que o regime federalista da Primeira República<br />
foi interesse de grupos políticos é amplamente pertinente e difundido<br />
na historiografia, já que dava maior liberdade para as regiões em expansão<br />
formarem políticas próprias. A Constituição de 1891 criava mecanismos<br />
descentralizadores, passando uma importante fonte de receita tributária para<br />
os Estados (os impostos de exportação), beneficiando especialmente o Esta-<br />
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161<br />
do de São Paulo que dependia das exportações do café. São Paulo reivindicava<br />
a descentralização e maior liberdade de gastos públicos para viabilizar<br />
políticas de auxílio ao comércio cafeeiro, como a imigração, construção de<br />
estradas de ferro e crédito. Nesse sentido, acreditou-se que o federalismo<br />
republicano desse período correspondia aos interesses da agricultura cafeeira<br />
paulista, e conseqüentemente o controle político durante toda a “república<br />
do café-com-leite” defendia os interesses agrário-exportadores paulistas.<br />
Podemos considerar que dois trabalhos foram os precursores da idéia<br />
de hegemonia paulista durante a Primeira República: numa análise política<br />
sobre as eleições e o federalismo brasileiro, Victor Nunes Leal publicou “Coronelismo,<br />
Enxada e Voto” em 1949, e dez anos depois, Celso Furtado publicaria<br />
a obra clássica “Formação Econômica do Brasil”. Cada autor enfatizou<br />
uma esfera da existência particular, mas seguindo uma mesma linha de análise<br />
defendiam que cabia à estadual o controle político durante a Primeira<br />
República, e como estava em São Paulo o eixo econômico brasileiro, conseqüentemente<br />
o Estado paulista detinha ampla autonomia política.<br />
Victor Nunes Leal escreveu sua obra contra a tradição de Gilberto Freyre,<br />
Nestor Duarte e Sérgio Buarque de Holanda que avaliavam a Primeira República<br />
como espaço do poder local. Gilberto Freyre em “Casa Grande e Senzala”<br />
de 1933 defendia que as relações políticas se instauravam no seio da<br />
família patriarcal, no localismo e na dominação do poder público pelo privado.<br />
Seguindo essa argumentação, Nestor Duarte, com a idéia da “Ordem<br />
privada e a organização política nacional”, de 1939, considerava a população<br />
uma massa amorfa, sem maturidade política, e por isso o Governo Federal<br />
acabava por defender os interesses privados da Casa Grande. Por fim, outro<br />
texto essencial seria publicado em 1936, “Raízes do Brasil”, de Sérgio Buarque<br />
de Holanda. O autor escrevia que as heranças ibéricas tornavam o país<br />
atrasado e o meio rural brasileiro era o espaço em que imperavam os vícios<br />
políticos, das relações paternalistas, o homem cordial e o público pelo privado.<br />
Na esteira das discussões sobre o poder local e o privatismo, no entender<br />
de Victor Nunes Leal, durante a fase republicana os chefes locais estavam<br />
perdendo o prestígio herdado da tradição colonial. O poder executivo na<br />
República Velha, no entender de Victor Nunes, havia buscado consolidar o<br />
controle político das funções administrativas do Estado: o controle do legislativo,<br />
controle das eleições, controle das administrações regionais e processo<br />
de geração de atores políticos. E no governo de Campos Sales, com a implantação<br />
da Política dos Governadores, os partidos estaduais de São Paulo e<br />
Minas dispunham dos instrumentos necessários para o controle político da<br />
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sociedade; a política de troca de favores, os instrumentos eleitorais de voto de<br />
cabresto e curral eleitoral, a nomeação de cargos pelo poder estadual e a Comissão<br />
Verificadora de Poderes garantiam ampla hegemonia da situação no poder.<br />
O coronelismo transformava-se assim, para Nunes Leal, uma formação<br />
política específica da Primeira República, que garantia que os partidos estaduais<br />
pudessem se perpetuar por meio do pacto oligárquico 1 . Os coronéis ainda<br />
mantinham o poder local, principalmente nos municípios predominantemente<br />
rurais, mas de uma maneira mais restrita, afinal eram responsáveis pela coerção<br />
eleitoral, contudo não mais conduziam a política estadual ou federal como<br />
pensava Nestor Duarte. A urbanização era uma barreira para a perpetuação do<br />
coronelismo, cujo “[...] sistema político é dominado por uma relação de compromisso<br />
entre o poder privado decadente e o poder público fortalecido” 2 .<br />
Seguindo a análise de Nunes Leal, Maria do Carmo Campello de Souza<br />
(1977) descreveu de maneira consistente a evolução política da Primeira<br />
República. A autora também defende a importância dos Partidos Estaduais<br />
no período e o coronelismo como sustentação do pacto oligárquico. Na análise<br />
da autora, o movimento republicano paulista buscava materializar o sistema<br />
federalista, já que o federalismo representava autonomia para o centro<br />
dinâmico cafeeiro. “A ação estatal no primeiro período republicano (1889-<br />
1930) vai, portanto, corresponder ao desenvolvimento e às necessidades do<br />
novo setor da economia” 3 afirmava a autora, e por meio da economia cafeeira<br />
a sociedade brasileira passou a se transformar definitivamente, com o crescimento<br />
das cidades, como São Paulo, e com uma economia industrial nascente<br />
relevante mas não contraditória à economia do café.<br />
Enfatizando o processo de desenvolvimento da economia brasileira,<br />
partimos para a análise da segunda obra percursora, “Formação Econômica<br />
do Brasil” de Celso Furtado. No entender de Ângela de Castro Gomes e<br />
1 Na análise historiográfica de Ângela de Castro Gomes e Marieta de Moraes Ferreira, as teses de Victor<br />
Nunes Leal foram criticadas por Maria Isaura Pereira de Queiroz, com o livro “O mandonismo local na vida<br />
política brasileira” (1976). Para Maria Isaura o coronelismo é um conceito muito mais amplo, entendido<br />
tanto como mandonismo como clientelismo e estendido também para as manifestações urbanas como<br />
coronéis comerciantes, médicos e empresários vinculados à propriedade da terra. Mas o que acreditamos<br />
como mais importante na obra de Maria Isaura, é a defesa da manutenção do poder coronelista<br />
expandindo-se para o meio urbano. Enquanto Victor Nunes Leal acredita nos Partidos Estaduais como<br />
centros da organização política, para Pereira de Queiroz o poder local mantém fundamental presença nas<br />
decisões políticas, principalmente o poder local com respaldo econômico, como as elites agrárias<br />
cafeeiras. GOMES, Ângela de Castro & FERREIRA, Marieta de Moraes. Primeira República: um balanço<br />
historiográfico. Estudos históricos. Rio de Janeiro, v.2, n.4, 1989, p. 244-280.<br />
2 LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto. São Paulo: Alfa-Ômega: 1975, p. 252.<br />
3 SOUZA, Maria do Carmo Campello de. O processo político partidário na Primeira República. In: MOTA,<br />
Carlos Guilherme (Org.). Brasil em perspectiva. São Paulo: Difel, 1977, p. 164.<br />
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Marieta Ferreira, “[...] o núcleo central (do argumento de Celso Furtado) pautava-se<br />
no fato de que o Executivo sempre teria atuado no sentido de sustentar<br />
os planos de valorização do café, e que a política financeira sempre esteve<br />
voltada para beneficiar o setor” 4 . Celso Furtado defende a idéia de uma quase<br />
total subordinação da política econômica do governo federal aos interesses do<br />
setor cafeeiro. Como exemplo dessa subordinação, Furtado criou o conceito<br />
de socialização das perdas, em que a sociedade arcaria com os prejuízos causados<br />
pela depreciação cambial, favorável aos cafeicultores que por exportarem<br />
pautavam seus preços pelo mercado externo. Nas palavras de Furtado:<br />
O processo de correção do desequilíbrio externo significava, em última<br />
instância, uma transferência de renda daqueles que pagavam as importações<br />
para aqueles que vendiam as exportações. Como as importações<br />
pagas pela coletividade em seu conjunto, os empresários exportadores<br />
estavam na realidade logrando socializar as perdas que os mecanismos<br />
econômicos tendiam a concentrar em seus lucros. 5<br />
A hegemonia paulista apresentada por Celso Furtado acabou por influenciar<br />
muitas obras durante as décadas de 1960 e 1970, que mantinham a<br />
interpretação da Primeira República como período de desenvolvimento da<br />
economia cafeeira e por conseguinte como domínio político da classe agrário-exportadora<br />
paulista. Nessa linha de interpretação Renato Lessa escreveu<br />
“A invenção republicana”, que defendia a Primeira República como o período<br />
da preeminência da economia exportadora cafeeira, e que os grupos<br />
políticos de São Paulo e Minas Gerais teriam se aliado para manter o controle<br />
político federal. Para Renato Lessa o governo determinante para a consolidação<br />
da república foi o de Campos Sales que, através da aliança entre a principal<br />
economia do país, São Paulo, e o principal colégio eleitoral brasileiro,<br />
Minas Gerais, deu início à conhecida “política dos governadores” ou política<br />
do “café com leite”. A aliança entre os dois Estados pressupunha a troca de<br />
representantes estaduais como presidentes. E, ainda, Campos Sales criou em<br />
seu governo a Comissão Verificadora de Poderes, cuja função era validar as<br />
eleições. Os candidatos eleitos deveriam passar pela aceitação do poder<br />
executivo e, quando eleitos os políticos da oposição, ocorria a “degola”, substituição<br />
do candidato eleito por outro da preferência do presidente. Para<br />
Lessa esse mecanismo garantia a permanência da situação no poder por<br />
4 GOMES, 1989, p. 249.<br />
5 FURTADO, Celso. Formação Econômico do Brasil. São Paulo: Ed. Nacional, 2003, p. 172.<br />
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mandatos sucessivos, fortalecendo o poder executivo como o poder Moderador<br />
durante o Império.<br />
Seguindo essa interpretação Joseph Love publicou em 1982 A locomotiva,<br />
resultado final dos estudos sobre a elite paulista. Para Love a política federal<br />
entre 1889 e 1937 foi comandada pelos interesses de São Paulo, com o apoio<br />
mineiro. Além de maior pólo industrial, São Paulo era o principal Estado exportador<br />
do país, gerando a possibilidade de arrecadar um quinto da renda<br />
nacional. A política econômica implantada por esses governos, no entender<br />
de Love, auxiliava a expansão dos interesses das oligarquias agrárias paulistas.<br />
Por exemplo, São Paulo era o maior tomador de empréstimos no exterior;<br />
em 1911 dois terços dos bancos estrangeiros atuavam em São Paulo; e, em<br />
1937, metade das dívidas brasileiras eram paulistas. Nas palavras de Love:<br />
O programa político mínimo de São Paulo durante os anos de 1889-<br />
1937 consistiu em dominar as políticas federais apenas nas áreas em<br />
que a ação no nível estadual era impossível ou insuficiente – controle<br />
da política monetária e cambial, garantias de empréstimos e representações<br />
diplomáticas. Os seus líderes não esperavam obras públicas nem<br />
o controle das nomeações políticas [...] somente São Paulo podia intervir<br />
na economia por iniciativa própria. 6<br />
São Paulo era, então, o único Estado que podia promover políticas nacionais<br />
independentes, como foram as políticas de imigração e a construção<br />
de todo o aparato de infra-estrutura para a comercialização do café, porto e<br />
ferrovias. E ainda mais importante para Love foi o significado do Convênio<br />
de Taubaté que, liderado por São Paulo, pôde financiar a valorização do café,<br />
demonstrando comprometimento do Estado com os bancos estrangeiros e<br />
adquirindo credibilidade no mercado internacional.<br />
Boris Fausto participando do debate construiu um texto síntese, “Expansão<br />
do café e política cafeeira”, na “História da Civilização Brasileira”.<br />
Para Fausto:<br />
A análise da economia cafeeira e da política do café durante a Primeira<br />
República ganha sentido a partir de dois marcos históricos-estruturais,<br />
6 LOVE, Joseph. Autonomia e Interdependência: São Paulo e a Federação Brasileira, 1889-1937. In:<br />
HOLANDA, S. (Org). História da Civilização Brasileira. O Brasil Republicano, v. III. São Paulo: Difel,<br />
1975, p. 74.<br />
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bastantes conhecidos em sua generalidade: predomínio e hegemonia<br />
da burguesia do café no plano interno e sua dependência do capitalismo<br />
internacional no plano externo. 7<br />
Assim, a interpretação de Fausto se baliza nos conceitos de Gramsci de<br />
predomínio, como dominação no campo econômico, e hegemonia, como<br />
domínio no campo político.<br />
A política cambial era uma das formas de auxílio aos cafeicultores, pela<br />
lógica da socialização das perdas. Entretanto, para Boris Fausto, conforme a<br />
cafeicultura foi se expandindo, cada vez mais era necessário que os grandes<br />
cafeicultores e o governo assumissem dívidas para continuar financiando a<br />
produção, e nesse caso as desvalorizações passavam a piorar as condições<br />
de endividamento. Portanto, os cafeicultores durante a Primeira República se<br />
enfrentavam por interesses mais imediatos e corporativos e por interesses<br />
de longo prazo em âmbito nacional. Para Fausto, esse impasse se explica<br />
pela relação de poder econômico e político. Nas palavras do autor<br />
[...] se contrastarmos a situação dos produtores de café em dois períodos,<br />
indo o primeiro da Proclamação da República à 1894 e o segundo<br />
desta data ao programa de valorização de 1906. No primeiro deles,<br />
embora a hegemonia da burguesia cafeeira ainda não estivesse assentada,<br />
houve um grande avanço no seu predomínio; a partir de 1894,<br />
quando supostamente se implantou a hegemonia, a política governamental<br />
concorreu para a crise da cafeicultura. 8<br />
Para o autor a não-relação direta entre predomínio e hegemonia pode ser<br />
explicada pelas condições do desenvolvimento da economia cafeeira. Ao assumir<br />
o controle do Estado, no entender de Boris Fausto, a burguesia passou a<br />
construir um novo modelo de proteção à cafeicultura, de maneira que mantivesse<br />
o grupo econômico ao longo do tempo no poder, mesmo que para<br />
tanto fossem necessárias medidas contrárias à própria economia. Para Boris<br />
Fausto, enquanto a produção mantinha-se uma atividade de controle nacional,<br />
em que os proprietários de terras e grandes produtores faziam parte da burguesia<br />
nacional, cada vez mais a comercialização e financiamento, atividades<br />
7 FAUSTO, Boris. Expansão do café e política cafeeira. In: História Geral da Civilização Brasileira 8, Brasil<br />
Republicano 3. São Paulo: Difel, 1975.<br />
8 FAUSTO, 1975, 207.<br />
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mais lucrativas, passavam para a responsabilidade do capital estrangeiro.<br />
A subordinação da sociedade à economia cafeeira também se tornou<br />
tema dentre os textos que trabalhavam com gênese industrial. Autores como<br />
Sérgio Silva (1976) João Manuel Cardoso de Mello (1975), Wilson Cano (1977),<br />
Warren Dean (1976), e até mesmo Celso Furtado (2003) e Maria da Conceição<br />
Tavares (1972) destacaram a essencial participação da cafeicultura na<br />
transformação da sociedade. Para estes autores, independentemente da interpretação<br />
da origem industrial, fosse o crescimento das exportações como<br />
em Dean, fosse pela substituição de importações de Celso Furtado e Tavares<br />
ou ainda pela ótica do capitalismo tardio de João Manuel, Wilson Cano e<br />
Sérgio Silva, o complexo cafeeiro era o responsável pela industrialização. E<br />
ainda na interpretação do capitalismo tardio, mesmo que o complexo cafeeiro<br />
subordinasse o restante da economia à sociedade brasileira, esta estava<br />
subordinada ao capitalismo financeiro internacional. Contudo, podemos avaliar<br />
a industrialização paulista como um exemplo da fragmentação dos interesses<br />
políticos dentro da Primeira República, seguindo as interpretações dos<br />
interesses industriais de Nícia Vilela Luz e Maria Antonieta Leopoldi. Para as<br />
autoras, durante já o início do século XX a nascente burguesia brasileira lutava<br />
por auxílio político, muitas vezes ligado ao protecionismo do mercado<br />
nacional. Os industriais eram um grupo autônomo e muitas vezes opositor às<br />
idéias defendidas pelo grupo agrário-exportador.<br />
Já no começo dos anos setenta alguns autores passaram a criticar a<br />
visão tradicional da historiografia que via a oligarquia cafeeira como ator fundamental<br />
na condução da política econômica do país. Nesse contexto, Peláez<br />
(1977) e pouco depois Vilela e Suzigan (1973) começaram a interpretar<br />
a lógica da Política Econômica como obediência aos princípios ortodoxos na<br />
política monetária, fiscal e cambial. O Governo de Campos Sales e as medidas<br />
como o Funding Loan foram importantes exemplos da preocupação em<br />
manter a economia estabilizada, seguindo a lógica ortodoxa. Por isso, as políticas<br />
federais possuíam uma lógica própria e independente dos interesses<br />
cafeeiros, fazendo parte de um ideário dominante no período o liberalismo e<br />
a utilização de políticas ortodoxas.<br />
Winston Fritsch em “Apogeu e crise na Primeira República: 1900-1930”<br />
buscou criticar tanto as visões tradicionais da hegemonia paulista durante a<br />
República Velha como desmontar a argumentação sobre o ortodoxismo político<br />
brasileiro. Questionando especialmente Peláez, o autor defende que as<br />
medidas ortodoxas foram apenas tomadas em situações críticas, constituindo<br />
uma política “na defensiva” que somente passou a influenciar de maneira<br />
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mais definitiva a formulação da política econômica em meados da década de<br />
1920. As determinações ortodoxas se faziam presentes por pressões externas<br />
de credores que defendiam a necessidade de restabelecer a estabilidade<br />
econômic0-financeira ou pelas pressões que exigiam como condição para os<br />
pactos políticos a estabilização.<br />
Para Fritsch a economia paulista era extremamente dependente e vulnerável<br />
aos interesses estrangeiros, afinal de contas, como uma economia<br />
agrário-exportadora o comércio do café brasileiro dependia, além das condições<br />
do mercado consumidor mundial, de investimentos estrangeiros para<br />
financiamento da produção. Para evitar que os choques externos do mercado<br />
internacional influíssem de maneira avassaladora na economia nacional,<br />
os Governos, ora federal, ora estadual, procuraram defender a produção com,<br />
por exemplo, os mecanismos de compra do excesso da produção. Entretanto,<br />
para que a compra fosse efetivada, os Governos necessitavam de empréstimos<br />
externos como aquele adquirido pelo governo paulista no Convênio<br />
de Taubaté em 1906. Não bastasse o importante papel do capital estrangeiro<br />
no investimento das produções, não podemos esquecer a participação<br />
de investidores internacionais na construção de ferrovias, empréstimos para<br />
que o Estado de São Paulo pudesse efetivar políticas imigracionistas e creditícias<br />
e ainda controle das exportações pela casas comerciais responsáveis<br />
pela exportação do café.<br />
Conforme essa participação estrangeira ia se tornando cada vez mais<br />
presente, a vulnerabilidade externa tornava-se ainda maior, fazendo Winston<br />
Fritsch afirmar que os interesses estrangeiros eram defendidos dentro<br />
dos órgãos políticos. A adoção do padrão-ouro era vista com satisfação pelos<br />
banqueiros internacionais, exercendo uma melhor capacidade de endividamento<br />
externo das economias como o Brasil. Assim, para continuar<br />
com acesso ao capital estrangeiro, o governo implementou por dois momentos<br />
o padrão-ouro: 1906-1914 e 1927-1929. No entender do autor, a<br />
organização da política econômica brasileira da Primeira República, antes<br />
de defender interesses da hegemonia cafeeira, ou de qualquer outro grupo,<br />
buscava satisfazer os “princípios” e interesses internacionais para acesso<br />
continuo ás reversas internacionais.<br />
Em seus trabalhos Flávio Saes procurou demonstrar a diferenciação dessa<br />
elite paulista reconhecida como bloco monolítico. Para o autor, antes de<br />
uma classe coesa, existiam diferentes interesses envolvidos entre cafeicultores,<br />
acionistas de empresas ferroviárias e de bancos, e ainda comerciantes.<br />
Nesse sentido auferir a existência de uma hegemonia paulista torna-se rela-<br />
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tivo, na medida em que dentro desse enorme grupo composto pelos interesses<br />
cafeeiros existiam fraturas políticas e interesses distintos.<br />
No livro “As ferrovias de São Paulo (1870-1940)”, Flávio Saes alerta<br />
que entre os principais acionistas das ferrovias estavam os grandes cafeicultores<br />
paulistas da transição do século XIX para o século XX. As ferrovias<br />
que cortavam em direção ao interior, como Mogiana, Paulista, Sorocabana e<br />
outros ramais foram construídos por cafeicultores que recebiam incentivos<br />
e créditos do Estado via empréstimos estrangeiros. Com essa inserção de<br />
grandes cafeicultores em novos negócios como a participação acionária em<br />
ferrovias, passamos a verificar a ruptura dessa oligarquia cafeeira. Afinal de<br />
contas, na média eram as ferrovias as maiores “apropriadoras” do valor final<br />
do café, chegando a reter de 25 a 30% do custo do café. Logo, não é de se<br />
imaginar que os cafeicultores que mantinham negócios em ferrovias passaram<br />
a ter maiores rendas não mais pela produção, mas pela exploração da<br />
classe latifundiária. O café era um produto com facilidade de transporte,<br />
principalmente pelo ganho em escala, entretanto era justamente o produto<br />
mais taxado pelas ferrovias, passando a ser a causa da sua rentabilidade.<br />
E ainda, enquanto os produtores de café muitas vezes dependeram da<br />
desvalorização para sustentar os negócios, para as ferrovias a despesa era<br />
aumentada com a queda do valor da moeda nacional, já que as estradas de<br />
ferro utilizavam as importações de equipamentos, combustíveis e empréstimos<br />
externos que ficavam encarecidos nesse contexto de desvalorização.<br />
“Define-se, desta forma, um conflito entre os interesses de cafeicultores e<br />
de estradas de ferro: o declínio cambial garante a renda do fazendeiro de<br />
café e reduz o saldo operacional das ferrovias” 9 .<br />
Em outro trabalho, “A grande empresa de serviços públicos na economia<br />
cafeeira”, novamente aparece a idéia de expansão e diversificação do<br />
capital cafeeiro. No entender de Saes, o “grande capital paulista” é aquele<br />
capital cafeeiro na origem, com a possibilidade de novos investimentos nas<br />
cidades, essencialmente São Paulo, que passou a diversificar seus negócios e<br />
associar-se a atividades com bases caracteristicamente capitalistas. Desta<br />
maneira para o autor, ao se firmar nas cidades, o grande capital paulista<br />
reforçou a distinção diante da lavoura. As divergências a respeito da política<br />
econômica ampliaram-se entre esses dois grupos, tanto que os produtores<br />
chegaram a propor a formação de um partido da “lavoura” ao final do século<br />
XIX. O grande capital paulista passava a depender cada vez mais dos novos<br />
9 SAES, Flávio. As ferrovias de São Paulo, 1870-1940. São Paulo: Hucitec, 1981.<br />
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negócios urbanos, como as ações de ferrovias e bancos, o comércio e os<br />
serviços urbanos. Como síntese, em texto recente Saes escreve:<br />
Diríamos que São Paulo foi, ao longo da Primeira República, não a<br />
“capital dos fazendeiros”, nem a “cidade do café” e sim a “capital do<br />
capital cafeeiro”. A noção de capital cafeeiro, bastante freqüente na<br />
historiografia recente, procura dar conta de uma característica peculiar<br />
dos empresários paulistas do período [...] Assim, seu capital, embora<br />
circule em torno das atividades ligadas à produção cafeeira, não se<br />
limita à esfera estritamente agrária dessa atividade: é um capital agrário,<br />
mas é um capital comercial, capital financeiro, capital industrial. Daí<br />
a noção de capital cafeeiro, que procura dar conta das múltiplas faces<br />
da atividade desses empresários paulistas da Primeira República. 10<br />
Eduardo Kugelmas concordando com a interpretação de Saes, defende que:<br />
[...] A ascendência do PRP não é uma conseqüência automática de sua<br />
identificação com o Oeste Paulista emergente, mas o resultado de uma<br />
complexa armação de mediação política, que dariam ao novo partido o<br />
papel de ponto convergente das reivindicações autonomistas. 11<br />
Em sua tese de doutorado, Kugelmas enfatizou exatamente a lógica da<br />
“Difícil hegemonia” existente dentro do grupo paulista. Mesma preocupação<br />
de Renato Perissinotto em “Classes dominantes e hegemonia na República<br />
Velha”, que busca analisar as relações entre classes e frações dominantes de<br />
classe dentro do bloco de poder. Para o autor, a hegemonia cafeeira paulista<br />
na Primeira República deve ser vista com resguardo, no sentido de que o<br />
bloco de poder da economia exportadora formou-se num arranjo complexo,<br />
com diferenciação de atores políticos e interesses econômicos. Entre os principais<br />
grupos políticos analisados por Perissinotto estão o grande capital cafeeiro<br />
e a lavoura paulista, o capital estrangeiro, a burguesia industrial e ainda<br />
algumas oligarquias regionais. Entretanto, no entender do autor, dois grupos<br />
se fizeram mais presentes dentro das decisões governamentais: em primeiro<br />
o capital estrangeiro que, guiando sobretudo as decisões do Governo Fede-<br />
10 SAES, Flávio. “São Paulo republicana: vida econômica”. In: PORTA, Paula (org.) História da cidade de São<br />
Paulo. A cidade na primeira metade do século XX (1890-1954). Volume 3. São Paulo: Paz e terra, 2004.<br />
11 KUGELMAS, Eduardo. A difícil hegemonia.Um estudo sobre São Paulo na Primeira República. Tese<br />
(Doutorado em Ciências Políticas) Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, São Paulo, 1987.<br />
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ral, pôde pôr em prática as políticas cambiais e de valorização. Em segundo,<br />
o grande capital cafeeiro assume papel decisivo na produção e reprodução<br />
do capital que, além de assumir a fração hegemônica do bloco de poder<br />
estadual, subordinava a lavoura tanto econômica como politicamente.<br />
Para Perissinotto indícios do fracionamento do grupo dominante paulista<br />
foram as inúmeras associações formadas durante a Primeira República,<br />
como a Associação Comercial de Santos, Associação Comercial de São Paulo,<br />
Sociedade Paulista de Agricultura, Sociedade Rural Brasileira e Liga Agrícola<br />
Brasileira. No entender do autor, mesmo que existisse uma justaposição de<br />
membros entre as associações, estas não deixavam de assumir posições diferenciadas<br />
perante o governo, de maneira que a Liga Agrícola Brasileira era a<br />
principal oposicionista ao governo, enquanto a Sociedade Paulista de Agricultura<br />
posicionava-se normalmente a favor do governo.<br />
Ao mesmo tempo em que a classe dominante era fragmentada na análise<br />
de Perissinotto, as empresas e bancos estrangeiros por meio da internalização<br />
do capital na economia brasileira assumiam o controle sobre as finanças<br />
nacionais e decisões na política econômica. “Em suma, a principal conseqüência<br />
da nossa dependência financeira foi justamente esta: conferir poder<br />
de interferência, veto e decisão ao capital financeiro internacional com relação<br />
às políticas econômicas do Estado brasileiro” 12 .<br />
Portanto, o estudo das classes dominantes durante a Primeira República<br />
passou a considerar a existência de frações de classe e conflitos no interior desse<br />
grupo, ao invés de observar apenas antagonismos entre classe dominante e<br />
dominada. Os conflitos dentro da própria classe dominante podem auxiliar a<br />
compreender as lutas para a busca de vantagens econômicas ou reformulações<br />
de poder que em certas circunstâncias são proeminentes no processo histórico.<br />
Capital estrangeiro e controle político<br />
na Primeira República<br />
A participação do capital estrangeiro como fonte de desenvolvimento<br />
nacional é presente desde os períodos imperiais. Até o início do século XX, a<br />
inserção desse capital estrangeiro na economia brasileira se deu por meio de<br />
empréstimos ou investimentos nos setores vinculados à economia agrário-<br />
12 PERISSINOTTO, Renato. Classes dominantes e hegemonia na República Velha. Campinas: Editora da Unicamp,<br />
1994, p.197.<br />
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exportadora e com predominância absoluta de capitais ingleses. Logo nos<br />
primeiros anos do século XX teve início uma nova fase de inserção do capital<br />
estrangeiro no país, com maior variedade de países presentes como investidores,<br />
estes buscando novos setores ligados ao crescimento industrial, urbanização<br />
e diversificação das atividades primárias da sociedade brasileira 13 . O<br />
chamado “complexo cafeeiro” viria durante meados da Primeira República<br />
dividir espaço com as empresas estrangeiras, fossem elas casas comerciais<br />
de café, bancos, empresas de serviços públicos e transportes. Mesmo que<br />
nem sempre antagônicos, os interesses estrangeiros passavam a assumir autonomia<br />
e deliberar dentro das decisões políticas da Primeira República. A<br />
participação estrangeira diante das políticas macroeconômicas passou a ser<br />
determinante, e “[...] os exemplos são abundantes, desde a política cafeeira,<br />
passando por políticas monetárias e financeiras e indo até sobre as decisões<br />
de política cambial. O capital estrangeiro procurava impor, e não raro conseguia,<br />
os seus interesses nessas decisões” 14 .<br />
Os interesses estrangeiros foram determinantes nas formulações do Convênio<br />
de Taubaté de 1906. A primeira versão de Alexandre Siciliano defendia,<br />
entre outras medidas, a redução da produção de café, a desvalorização<br />
da moeda, abertura de fundo para retenção de moedas (a Caixa de Conversão)<br />
e o estoque do café por parte do Estado. Contudo, os grandes produtores<br />
preocupados com os credores externos não aceitaram a desvalorização<br />
da moeda, mesmo que auxiliasse parte deles. O capital estrangeiro estava<br />
assumindo o financiamento e a comercialização do negócio cafeeiro, e por<br />
isso as desvalorizações da moeda reduziam a lucratividade do negócio. Nesse<br />
período, os antigos comissários brasileiros já haviam sido substituídos por<br />
casas comerciais estrangeiras, e desta maneira, os comissários que serviam<br />
como financiadores das novas produções, desapareceram para a ascensão<br />
dos grandes empresários e bancos internacionais. Entre os dez maiores exportadores<br />
de café entre 1895-1907, apenas a casa Prado Chaves & Co. era<br />
empresa nacional, enquanto Theodor Wille & Co. e Naumann, Greep & Co.<br />
Ltda. dominavam amplamente o negócio 15 . E ainda o Estado estava até perdendo<br />
autonomia pelos estoques de café. Em 1908, o Estado de São Paulo<br />
contratou empréstimo de £15.000.000 junto aos banqueiros J. Henr Schroeder<br />
& Cia., Banque de Paris et Pays Bas e Société Générale de Paris a fim de<br />
13 CASTRO, Ana Célia. As empresas estrangeiras no Brasil, 1860-1913. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1979.<br />
14 PERISSINOTO, 1994, p. 167.<br />
15 FAUSTO, Boris, 1975, p. 211.<br />
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consolidar estoques da política de valorização do café, perdendo os estoques<br />
para as instituições financeiras 16 .<br />
É nesse contexto que Boris Fausto afirma: “A burguesia paulista se implantara<br />
em íntima conexão com uma rede de interesses externos, possibilitando-lhe<br />
encontrar saídas de maior viabilidade, que pressupunham a compatibilização,<br />
em condições desiguais entre produtores e determinados grupos estrangeiros” 17 .<br />
A participação estrangeira aumentava ao mesmo tempo que os programas de<br />
valorização sustentados pelo Estado de São Paulo expressavam a crescente participação<br />
do Estado no nível federal, fazendo dos interesses cafeeiros os interesses<br />
nacionais, reforçando assim a predominância da burguesia cafeeira na classe<br />
dominante. Enquanto a produção mantinha-se uma atividade de controle nacional,<br />
em que os proprietários de terras e grandes produtores faziam parte da<br />
burguesia nacional, cada vez mais a comercialização e financiamento, atividades<br />
mais lucrativas, passavam para a responsabilidade do capital estrangeiro.<br />
As crises de superprodução do café e, ainda, a maior presença internacional<br />
nos setores vinculados à economia cafeeira foram reduzindo a lucratividade<br />
dos produtores nacionais. Neste conflito de interesses, o grande capital<br />
paulista passou a ser acusado como culpado pela crise da lavoura, por<br />
causa dos impostos das ferrovias e juros bancários. De outro lado a burguesia<br />
paulista se abrigava junto à Associação Comercial de São Paulo, defendendo<br />
que a economia cafeeira e o comércio nacional estavam sendo pressionados<br />
pelos especuladores estrangeiros. O capital estrangeiro que já era determinante<br />
na condução da política econômica defendendo estabilidade econômica<br />
e valorização cambial, passou a compor também outro grupo de pressão<br />
por meio de empresas e empresários nas políticas locais. Como veremos,<br />
empresas como Light e empresários como Farquhar passaram a compor as<br />
relações e interesses políticos, defendendo além da estabilidade e valorização<br />
cambial, benefícios particulares, como concessões e tarifas.<br />
Em 7 de abril de 1899, os capitalistas Frederick Pearson, James Gunn,<br />
John Smith e Alexander Mackenzie formavam aquela que seria uma das empresas<br />
mais poderosas na economia brasileira da Primeira República: The São<br />
Paulo Tramway, Light and Power Company Limited 18 , empresa formada para<br />
16 SAES, Flávio. Crédito e bancos no desenvolvimento da economia paulista, 1850-1930. São Paulo: IPE-<br />
USP, 1986a, p. 116.<br />
17 FAUSTO, Boris, 1975, p. 214.<br />
18 A Light era dividida entre a São Paulo Light (1899), a Rio de Janeiro Light (1904), além de negócios em<br />
Sorocaba a São Paulo Eletric Company, a Bahia Light em Salvador e até mesmo a Cidade do México. No<br />
Brasil esses negócios foram unidos em 1912 na Brazilian Traction Light and Power Co. Ltda. Nossa<br />
preocupação nesse artigo é fundamentalmente com os negócios em São Paulo.<br />
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prestação de serviços públicos como produção e distribuição de energia elétrica<br />
e transporte urbano. Nesse mesmo ano, Campos Sales autorizava a<br />
empresa Canadense Light a funcionar no mercado brasileiro, com capital<br />
inicial de 6 milhões de dólares, valor próximo da receita do Estado de São<br />
Paulo e dez vezes maior que a da cidade de São Paulo 19 . Além do evidente<br />
poder econômico da empresa canadense, a Light logo criou uma rede de<br />
lobby que seria fundamental no controle das decisões políticas dentre os<br />
inúmeros conflitos de que a empresa participaria.<br />
A primeira concessão da Light foi conquistada ainda em 1899, outorgada<br />
pela municipalidade paulistana e recebendo os direitos de Gualco e Souza,<br />
que transferiam os privilégios de construção e gerenciamento de linhas<br />
dos modernos bondes elétricos por quarenta anos e autorização de produção<br />
e distribuição de eletricidade para iluminação e força motora para as regiões<br />
da capital que ainda não recebiam tais serviços 20 . A Light acreditava que os<br />
principais setores a investir eram o de transporte urbano e de distribuição de<br />
energia elétrica, portanto a empresa logo iniciou as batalhas para ampliação<br />
do seu mercado. Quanto ao transporte público, a empresa Light enfrentaria a<br />
Companhia Viação Paulista, enquanto, sob comando dos serviços de eletrificação,<br />
estava a Companhia de Água e Luz do Estado de São Paulo.<br />
A Companhia Viação Paulista (empresa que surgiu da fusão de algumas<br />
empresas de transporte em 1897, como Companhia Ferro-Carril de São Paulo,<br />
Companhia City de Santos, Companhia de Carris de Ferro de São Paulo,<br />
Empresa Vila Mathias e Empresa Santista) era quem detinha a concessão dos<br />
transportes urbanos da capital paulista. A empresa, que ainda oferecia o serviço<br />
por tração animal era nacional e entre os principais acionistas estavam<br />
os diretores da Sorocabana, Francisco de Paula Mayrink, João Pinto Ferreira<br />
Leite e até mesmo o prefeito eleito e reeleito de São Paulo (1899-1910),<br />
Antônio da Silva Prado. Pela concessão adquirida e pela lei municipal, a empresa<br />
canadense não poderia oferecer seus serviços nas regiões de controle<br />
da Viação Paulista, as mais antigas e populosas da cidade 21 . Antônio Prado<br />
demonstrava indisposição aos pedidos de expansão da Light, já que a con-<br />
19 SOUZA, Edgar. História da Light. São Paulo: Eletropaulo, 1982, p.39. No entender de SAES (1986, p.<br />
153), mesmo que o capital da Light fosse elevado, os serviços urbanos oferecidos pela empresa<br />
estrangeira podiam ter sido viabilizados por empresas nacionais, já que o capital da Companhia Paulisa de<br />
Estradas de Ferro nesse mesmo ano era de 60.000 contos, equivalente a trinta por cento a mais que o<br />
capital da Light.<br />
20 SOUZA, 1982, p. 29.<br />
21 SILVA, Heloísa Barbosa. “Batalhas pelo Monopólio” in: ELETROPAULO. História e energia. A chegada da<br />
Light. São Paulo: Departamento do Patrimônio Histórico, 1 de maio de 1986, p. 46-49.<br />
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corrência com os bondes elétricos dela dificultaria a situação de sua empresa.<br />
Já a imprensa apareceria como espaço de debate sobre os pedidos da Light,<br />
com apoio de “O Estado de São Paulo” que defendia o regime de “livreconcorrência”,<br />
enquanto o “Diário Popular” questionava se existiria livre mercado<br />
com uma empresa com tanto poder como a Light 22 .<br />
A situação que não parecia tão favorável para a Light, em poucos meses<br />
mudaria. Em primeiro lugar, Alexander Mackenzie desencadeou fortes pressões<br />
econômicas à Viação Paulista, assumindo dívidas da empresa nacional com empresas<br />
terceiras. A influente relação e o poder dos diretores da Light garantiram<br />
a compra de grande parcela das dívidas da Viação Paulista, com empresas como<br />
o Banco Nacional Brasileiro, cuja sede era no Rio de Janeiro. A cobrança das<br />
dívidas da empresa nacional e os novos serviços da empresa canadense fizeram<br />
o prestígio da companhia nacional diminuir perante a população, os meios de<br />
comunicação e a municipalidade. Nessa altura as obras da Light já estavam em<br />
andamento, e mesmo com a série de tentativas de embargo dessas obras por<br />
parte do advogado da Viação Paulista, Dr. Manuel Pedro Villaboim, os advogados<br />
da Light, Carlos e Américo de Campos, conseguiam vitórias no tribunal, e a Light<br />
mantinha seu trabalho. Sem impedir as obras e com profundas dívidas, em 22 de<br />
janeiro de 1900 a Viação Paulista era levada a leilão. O alto valor do leilão de<br />
4.728.661$164 não atraiu licitante e, depois de algumas tentativas de realização<br />
do pregão, a Light assumia a empresa por apenas 810 contos em 1901, e conseguindo<br />
o monopólio dos transportes urbanos de São Paulo 23 .<br />
Nesse mesmo período, a Light adquire também a Companhia de Água<br />
e Luz de São Paulo, empresa criada em 1880. A empresa já enfrentava dificuldades,<br />
antes da chegada da Light, pela pequena demanda de energia elétrica<br />
particular e pelos altos custos de materiais que eram importados. Antônio Prado<br />
também buscou intervir nesse setor, dividindo-o em setores e deixando a<br />
Companhia. Água e Luz com a principal região. A Light assim só poderia distribuir<br />
energia em setores menos vantajosos. Frederick Pearson, diretor da Light,<br />
foi à Prefeitura pedir para Antônio Prado voltar atrás em sua decisão. O resultado<br />
veio rápido, além da Light receber autorização para distribuição de energia<br />
em todos setores, pôde iniciar a compra da empresa pioneira. A compra de<br />
todas as ações da Companhia de Água e Luz demorou alguns anos, mas em<br />
1908 a empresa canadense passava a deter também o monopólio da geração<br />
e distribuição de energia elétrica na cidade de São Paulo 24 .<br />
22 SAES, 1986, p. 145-155.<br />
23 SILVA, 1986, p. 47-48.<br />
24 SILVA, 1986, p. 49-53.<br />
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O final da década de 1900 foi o marco de duas importantes mudanças<br />
na relação de São Paulo com a Light. Em primeiro lugar, a demanda por<br />
energia elétrica passava a ser crescente, com o início dos processos de urbanização<br />
e industrialização. Em segundo lugar, em conseqüência do aumento<br />
do consumo de energia, a Light passou a depender cada vez mais da distribuição<br />
de energia elétrica, ao invés do transporte por bondes para composição<br />
da renda da empresa. Desde a primeira década do século, a São Paulo<br />
Light buscou construir indústrias de produção de energia elétrica para acompanhar<br />
o crescimento da cidade e manter o monopólio sobre os serviços de<br />
energia elétrica, inaugurando Parnaíba (1901), Paula Souza (1912), Itupararanga<br />
(1914), Rasgão (1925) e Cubatão (1927) 25 .<br />
Mesmo com grandes investimentos no setor, a Light entre os anos de<br />
1909 e 1912 enfrentou um profundo debate de contestação de seu monopólio.<br />
A Light mais uma vez mostraria seu poder político para continuar<br />
dominando o mercado paulista. Aproveitando o ambiente de reclamações<br />
urbanas quanto às tarifas da Light, os empresários brasileiros Eduardo Guinle e<br />
Cândido Gaffrée buscaram oferecer à capital o serviço de iluminação pública<br />
por um valor oito vezes menor que a atual concessionária. A Companhia Brasileira<br />
de Energia Elétrica, empresa vinculada ao grupo de Guinle, que entre<br />
outros negócios controlava o Porto de Santos, poderia distribuir energia elétrica<br />
por preços reduzidos por se tratar de um excedente do porto. Além de usufruir<br />
o excedente de energia elétrica produzido na Usina de Itatinga para o<br />
porto, a empresa de Guinle tinha o apoio de seu amigo americano James<br />
Mitchell, representante da General Eletric Co. no Brasil, empresa concorrente<br />
da Light nos EUA, a qual forneceria os materiais para implantar o novo negócio.<br />
O prefeito em exercício, Antônio Prado, aceita inicialmente a entrada<br />
da empresa nacional na capital paulista, acreditando que, primeiro, Guinle<br />
poderia oferecer energia elétrica nos “lugares ainda não ocupados” pela Light<br />
e, segundo, a concorrência poderia favorecer a população com a redução<br />
dos preços. Apoiando Eduardo Guinle, Jorge Street era contra o monopólio<br />
da Light, por esta empresa não ter respondido à solicitação de ampliação<br />
de fornecimento de energia para as fábricas de tecido de Juta do empresário.<br />
Klabin & Irmãos também eram contra o poder da empresa canadense<br />
e, por várias vezes, haviam solicitado autorização para produzir sua própria<br />
energia contra os preços abusivos da Light 26 . Na defensiva, a empresa cana-<br />
25 SOUZA, 1986, p. 21-123.<br />
26 ELETROPAULO. O monopólio contestado. Boletim Histórico 5. São Paulo, fevereiro de 1986.<br />
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dense partiu para uma forte campanha nos meios de comunicação e na<br />
Câmara Municipal, questionando a idéia de “lugares ocupados” e buscando a<br />
renovação e o monopólio dos contratos de serviços urbanos.<br />
Devemos lembrar que a posição da Light na imprensa era relativamente<br />
confortável. Mesmo que jornais como “O Estado de São Paulo” publicassem<br />
notícias contrárias à Light, Mackenzie em 1906 tinha garantido espaço<br />
de defesa nos meios de comunicação. O empresário investiu 5 mil contos de<br />
réis em ações para fundação de um jornal voltado aos interesses da Light.<br />
Nascia “A Gazeta”, em 16 de maio de 1906, sob direção de Adolfo de Campos<br />
de Araújo, jornalista e poeta simbolista. Outro importante golpe publicitário<br />
foi dado em 1918, com a parceria de Assis Chateaubriand que passava<br />
a advogar a favor da Light e logo tornou a escrever, defendendo a empresa,<br />
no “O Cruzeiro”, na “Tupy” e no “Jornal do Brasil”, espaços originalmente<br />
defensores das empresas estrangeiras 27 .<br />
Se nos meios de comunicação a empresa buscava apoio da população,<br />
a Light não deixou de procurar suportes na Câmara Municipal. Além<br />
do apoio de políticos como Carlos Augusto de Carvalho (jurista e ministro<br />
das relações exteriores de Floriano e Prudente) e David Thompon (embaixador<br />
americano), a Light tentava eleger vereadores nas eleições. Como<br />
visto na denúncia do jornal, “A Light arregimenta forças para dar batalha à<br />
politica dominante de São Paulo e não faz mystério que no próximo pleito,<br />
depois de ter alistado eleitores do seu enorme pessoal, reunirá maioria<br />
na Câmara Municipal dessa capital” 28 . Devemos lembrar que durante os<br />
primeiros anos de República poucas pessoas votavam (apenas 4% da<br />
população na primeira eleição), e portanto a Light, empresa que tinha<br />
grande número de funcionários para determinar por “voto de cabresto”<br />
quais os candidatos em que votar, acabava elegendo vereadores que viriam<br />
defender seus interesses.<br />
Uma das demonstrações desse poder da Light está no depoimento de<br />
Walmsley em carta para Alexander Mackenzie sobre a disputa com a Companhia<br />
Brasileira de Energia Elétrica, em que lemos:<br />
Depois, veio o Oswald e confirmou o dito por Asdrubal. Disse que<br />
exceto Duprat e Dias da Silva, provavelmente o balanço da Câmara<br />
seja favorável a nós, porém acha que a lei não é favorável. A questão<br />
27 PONTES, José Alfredo. A Light e a imprensa. In: Memória. ELETROPAULO, n.º22, 1995.<br />
28 American Cold. “Secção livre: A Light e a Câmara”. O Estado de São Paulo, 19 de janeiro de 1913.<br />
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então é tentar passar um novo projeto de lei a ser proposto por Rocha<br />
Azevedo, dando-nos o monopólio. 29<br />
Mesmo com a posição contrária de alguns vereadores representantes<br />
da oligarquia paulista e até mesmo do prefeito Antônio Prado, um dos principais<br />
representantes do significado do capital cafeeiro, a Light tinha grandes<br />
vantagens em suas disputas na Câmara.<br />
Contra a Docas de Santos, a disputa chegou ao fim em 1912, quando a<br />
Light além de não permitir a entrada da concorrente, conseguiu renovar seus<br />
contratos de fornecimento de energia elétrica e de serviços de transporte<br />
urbanos por mais cinqüenta anos. Para tanto, a Light “[...] contribuirá com<br />
grandes somas para diversos melhoramentos para a capital de São Paulo,<br />
além de dar anualmente uma porcentagem de sua renda bruta a Câmara,<br />
concorrendo para os cofres do município com cerca de 40.000 contos” 30 . A<br />
aceitação do monopólio da Light na Câmara passou com uma troca de favores,<br />
com descontos entre 25 e 50 por cento nas tarifas de energia elétrica,<br />
serviço de irrigação gratuito nas ruas gratuito e contribuição à municipalidade<br />
de mais 100 contos de réis 31 . Fica evidente o poder político da empresa canadense<br />
e, acima de tudo, seu poder econômico, iniciando reformas urbanas<br />
como a construção do Viaduto do Chá, pois, ao mesmo tempo em que aproveitava<br />
elogios da população quanto à modernização da cidade, a empresa se<br />
beneficiava com a ligação da Praça da República à Sé, regiões de grande fluxo<br />
de pessoas 32 . O traçado dos bondes urbanos era uma estratégia política essencial<br />
da Light que gratificou alguns daqueles vereadores que defendiam as suas<br />
causas com linhas de bondes para seus lotes, que logo se valorizavam.<br />
Enquanto a Light vencia as questões judiciais na cidade de São Paulo,<br />
Percival Farquhar, importante empresário americano, vinha expandindo seus<br />
negócios no mercado brasileiro. Farquhar iniciou seus negócios vendendo<br />
máquinas agrícolas nos Estados Unidos, ao mesmo tempo em que mostrava<br />
amplas relações com os clubes de Wall Street. Com apoio financeiro em<br />
Nova Iorque e com a política de “uma América para os americanos”, passou<br />
a construir ferrovias em Cuba, Guatemala e El Salvador. Porém, o empresário<br />
buscava mercados maiores e, por isso em 1904, passou a investir no Rio de<br />
Janeiro, tentando adquirir o mercado dividido entre a empresa belga Société<br />
29 São Paulo Light. Carta de Mr. Walmley a Mr. Alexander Mackensie de 22 de março de 1909.<br />
30 Brazil Ferro-Carril, n.º 30, julho de 1912, p. 145.<br />
31 Officios da Light and Power, Anais da Câmara Municipal, São Paulo, 14 de agosto de 1911.<br />
32 BARRO, Máximo. A manipulação da Light na Câmara Municipal. In: ELETROPAULO, n.º 21, 1995.<br />
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Anonyme du Gaz, concessionária dos serviços de iluminação da cidade carioca<br />
que já estava em falência, e a concessão do então Distrito Federal que<br />
tinha sido passada para Willian Reid em 1899. Surge nesse momento a Rio<br />
de Janeiro Light & Power Co., com apoio dos lightianos Pearsen e Mackenzie,<br />
a qual assumiu os serviços de transporte urbanos, iluminação e telefonia.<br />
Entretanto a aquisição dessas concessões não foi simples, porque os empresários<br />
Gaffrée e Guinle novamente buscaram dividir o mercado com a Light.<br />
Diante de uma rede de lobbies e manipulações, a Light e Farquhar conseguiram<br />
sustentar o monopólio da concessão carioca 33 .<br />
Farquhar ainda comandaria tantos outros investimentos importantes, como<br />
o Porto de Belém do Pará (1906), ferrovias como a Estrada de Ferro São Paulo-<br />
Rio Grande (1906), Estrada de Ferro Madeira-Mamoré (1907), fazendas de gado<br />
em Descalvado e no Pantanal, frigorífico em Osasco, hotéis de luxo em São<br />
Paulo, Rio e Guarujá, e até mesmo havia adquirido a região do Amapá para<br />
produção de borracha, recebendo diversos empréstimos oriundos de Londres e<br />
Paris com o apoio do banqueiro parisiense Hector Legru. Farquhar pretendia<br />
dominar o parque ferroviário sul-americano e por isso partiu para a aquisição das<br />
ferrovias paulistas, as mais rentáveis no país: arrendou a E. F. Sorocabana em<br />
1907, contra a concorrência da inglesa São Paulo Railway e, no ano seguinte,<br />
tornou-se acionário majoritário da Mogiana (27% das ações) e Paulista (38% das<br />
ações), transformando-as em parte da sua empresa ferroviária, a Brazil Railway 34 .<br />
Assim como a Light, Farquhar também abusou das relações pessoais<br />
para garantir seu império. O arrendamento da Sorocabana foi tema de grande<br />
polêmica na época, na medida em que o contrato do negócio, além de<br />
beneficiar Farquhar, acabou favorecendo dois altos funcionários do Estado de<br />
São Paulo que antes mesmo de terminar o exercício de seus cargos já assumiam<br />
a diretoria da empresa de Farquhar. Os funcionários do Estado eram<br />
Alfredo Maia (Superintendente da Sorocabana) e Jorge Tibiriçá (Presidente<br />
do Estado). As denúncias ainda apontavam que o último havia recebido secretamente<br />
5.000 réis mensais. Em troca dos cargos e do dinheiro, Jorge<br />
Tibiriçá e Alfredo Maia passavam a Sorocabana para as mãos de Farquhar por<br />
sessenta anos sem concorrência e nem publicação de editais de convocação<br />
para o negócio, já que havia interesse da inglesa São Paulo Railway 35 . O<br />
33 SINGER, Paul. O Brasil no contexto do capitalismo internacional. In História da Civilização Brasileira 8,<br />
O Brasil Republicano v. III. São Paulo: Difel, 1975, p. 377-386.<br />
34 SINGER, 1975, p. 377-386.<br />
35 SAES, 1986, p. 185-187.<br />
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procedimento de inserir representantes do governo e políticos na direção<br />
das empresas de Farquhar passou a ser essencial, diferentemente das empresas<br />
britânicas que teoricamente se mantinham autônomas. Farquhar na<br />
Madeira-Mamoré chamaria para compor a diretoria Geraldo Rocha, antigo<br />
fiscal da ferrovia, que “[...] foi tão bom fiscal para o fiscalizado que se transformou<br />
em seu diretor” 36 .<br />
Não muito diferente acabou acontecendo nos casos das Companhias<br />
Mojiana e Paulista. Recebendo apoio de instituições financeiras francesas,<br />
como o Banque de Paris et dês Pays-Bas, Farquhar pôde comprar grande<br />
parte das ações das Companhias com consentimento dos próprios diretores.<br />
Antônio Prado, presidente da Companhia Paulista, prefeito de São Paulo e<br />
um dos maiores empresários paulistas, foi um dos responsáveis pela venda<br />
dessas ações, acreditando, como relata no jornal “Correio Paulistano”, que<br />
não tinha opinião contrária à intervenção direta do capital estrangeiro no<br />
desenvolvimento econômico do país 37 . No caso da Mojiana, a “velha guarda”<br />
da diretoria se colocou contrária à entrada do capital estrangeiro, e por isso<br />
Farquhar se aliou a outros empresários da Companhia que tinham pretensão<br />
de subir à diretoria. Apesar de em pouco tempo Farquhar ter conseguido<br />
adquirir uma grande rede de ferrovias, antes da Primeira Grande Guerra os<br />
negócios do americano vão entrando em crise. As ferrovias paulistas sofreriam<br />
na Guerra com a queda das exportações de café, e o complexo Amazônico<br />
entraria em crise com a produção de borracha na Índia. Farquhar foi<br />
obrigado a vender grande parte de seus negócios. No entender de Singer:<br />
Farquhar representa uma forma de penetração imperialista que estava<br />
sendo superada. Sua falência justamente em 1914, ano em que começa<br />
a Primeira Grande Guerra, simboliza a passagem de uma época a<br />
outra. Depois da Guerra, as concessões no Brasil deixam cada vez mais<br />
de serem lucrativas, basicamente porque os interesses da nova burguesia<br />
industrial em ascensão requeriam serviços chamados de infra-estrutura<br />
– transporte, energia, comunicação etc. – baratos 38 .<br />
Contudo Farquhar ainda voltaria à cena na década de 1920 na tentativa<br />
de controlar as minas de ferro brasileiras. A luta pelo monopólio das minas de<br />
36 CONGRESSO NACIONAL. Annaes da Camara dos Deputados 1913, volume XIII. Imprensa Nacional, Rio de<br />
Janeiro, 1915, p. 698.<br />
37 SAES, 1986, p. 189.<br />
38 SINGER, 1975, p. 387.<br />
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ferro começou em 1910, justamente quando a expansão das indústrias de<br />
bens de consumo indicava a necessidade de desenvolvimento das indústrias<br />
de bens de produção. O Presidente Nilo Peçanha em 1910 tentou formar<br />
o projeto siderúrgico com o apoio de investimentos ingleses, contudo<br />
Hermes da Fonseca, o sucessor, abandonou o projeto e autorizou a exportação<br />
do minério pelo monopólio da empresa Brazilian Iron & Steel Company<br />
39 . No contexto de industrialização e guerra, as jazidas de ferro tornavam-se<br />
centrais para o desenvolvimento de qualquer país, e por isso mesmo<br />
grandes empresas passaram a se interessar pelas minas brasileiras. Uma<br />
das principais empresas brasileiras era a Itabira Iron Ore Company, em que<br />
Farquhar aparecia como um dos principais donos e receberia investimentos<br />
do sindicato Itabira formado pelos grupos ingleses dos Rothschild, Baring<br />
Brothers, Ernest Cassel 40 .<br />
Epitácio Pessoa acreditava que era essencial a existência de uma siderúrgica<br />
no país e, em 1920, buscou incentivar o grupo Itabira Iron com concessão<br />
de estradas de ferro, porto, minas de ferro que receberiam carvão e<br />
não teriam cobrança de impostos sobre importação, para que a empresa<br />
tentasse construir a siderúrgica. Esse projeto de Pessoa deveria ser aprovado<br />
também pelo governo mineiro, ocupado por Arthur Bernardes, que se posicionou<br />
contrário à distribuição de tantos benefícios sem a garantia da construção<br />
da siderúrgica. Bernardes acusava Farquhar de tentar vencer os políticos<br />
mineiros pelo suborno, afinal só faltava essa última barreira para que a Itabira<br />
Iron usufruísse de tamanhos incentivos. A defesa de Epitácio Pessoa foi encarada<br />
como uma aproximação do governo brasileiro com a Casa Branca. Não<br />
contavam os diretores da Itabira Iron que o presidente sucessor de Pessoa<br />
seria justamente Bernardes, que barraria definitivamente o projeto, sendo<br />
acusado de antiindustrialista. Com isso, o projeto nacional de independência<br />
industrial foi atrasado por quase vinte anos, em parte pela não-existência de<br />
um projeto nacionalista de desenvolvimento coeso e em parte pela posição<br />
estratégica do capital estrangeiro que se beneficiava com o controle das<br />
matérias-primas brasileiras para beneficiamento no exterior. O caso foi rediscutido<br />
e considerado caduco em 1939 por Vargas. Farquhar mantinha importantes<br />
fontes de minério, fundando a Companhia Brasileira de Mineração,<br />
39 BANDEIRA, Moniz. A presença do Estados Unidos no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1973.<br />
40 SILVA, Lígia Osório. A crise política no quadriênio Bernardes: repercussões políticas do caso Itabira Iron.<br />
In: LORENZO, Helena; COSTA, Wilma. A década de 1920 e as origens do Brasil moderno. São Paulo:<br />
Unesp, 1997, p. 22.<br />
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enquanto o governo federal arrendava as jazidas restantes da Itabira Iron,<br />
criando a Companhia Vale do Rio Doce em 1942 para, em 1943, finalmente<br />
construir a Usina Siderúrgica de Volta Redonda 41 .<br />
Conclusão<br />
A interpretação ainda recorrente sobre a Primeira República brasileira<br />
apresenta a classe cafeeira paulista como hegemônica, enfatizando a<br />
transposição do poder econômico para o poder político. Devemos lembrar<br />
que mesmo sendo a economia cafeeira a principal fonte de renda do<br />
país neste período, a sociedade brasileira durante os quarenta anos iniciais<br />
de período republicano estava em profundo processo de transformação.<br />
No plano interno, a economia cafeeira apresentava condições de<br />
diversificação de atividades, gerando meios de investimento em ferrovias,<br />
bancos, casas comerciais e indústrias. A classe industrial começava a se<br />
organizar e a exigir demandas políticas, ao mesmo tempo em que oligarquias<br />
estaduais também pressionavam as políticas econômicas. No plano<br />
externo, o Brasil tornou-se um importante centro de investimentos estrangeiros,<br />
fosse por meio de empréstimos governamentais, fosse por<br />
meio da entrada de empresas estrangeiras.<br />
No nosso entender, as políticas brasileiras devem ser compreendidas<br />
dentro desse múltiplo de interesses e grupos políticos diferentes, não<br />
negando a classe cafeeira como grupo central no processo que não deve<br />
ser encarado como um bloco homogêneo no poder. Contudo nossa preocupação<br />
foi mostrar como o capital estrangeiro durante todo o período<br />
representou parte essencial na formulação das políticas. Não só o capital<br />
estrangeiro como a política geral, mas os interesses particulares de empresas<br />
como a Light e as Companhias de Farquhar que, por meio de<br />
lobby e poder econômico, dirigiam certas decisões políticas. Finalmente,<br />
acreditamos que durante as duas primeiras décadas a presença estrangeira<br />
na política se mostrou mais sólida e vitoriosa, de maneira que os anos<br />
vinte marcariam maiores embates e conflitos entre nacionalistas e capital<br />
estrangeiro, num rumo que possibilitou a ascensão de um projeto como<br />
de Getúlio Vargas em 1930.<br />
41 SILVA, 1997.<br />
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Resumo<br />
O objetivo deste artigo é conhecer a<br />
constituição dos serviços públicos voltados<br />
à salubridade da cidade e seus<br />
efeitos na capitalização do solo, captando<br />
sua relação com as demandas dos<br />
trabalhadores por melhores condições<br />
de vida. Para tanto, busca-se inter-relacionar<br />
os fatores que contrapunham trabalhadores,<br />
poderes públicos e empresas<br />
privadas – especialmente as imobiliárias<br />
e as concessionárias de serviços<br />
públicos. Questões ligadas aos problemas<br />
de limpeza urbana, retificações e<br />
canalizações de rios, moradia, carência<br />
nos serviços de água e esgoto, especulação<br />
imobiliária, entre outras, são os<br />
pontos convergentes deste estudo, pois<br />
permitem determinar posições, ações e<br />
reações de cada setor da sociedade.<br />
Palavras-chave:<br />
urbanização – salubridade – São Paulo<br />
183<br />
Urbanização da cidade de São Paulo:<br />
trabalhadores, ocupação do espaço<br />
e salubridade (1911-1930)<br />
Fábio Alexandre dos Santos*<br />
Abstract<br />
The aim of this article is to know the<br />
improvements of the city’s water and<br />
sewerage public services and their results<br />
in the valorization of the urban<br />
ground, as well as their relation to the<br />
laborer demands for better conditions of<br />
life. For that, we try to indicate and to<br />
correlate the different factors so contrapose<br />
workers, public authorities and business<br />
companies took part – specially the<br />
real estate offices and public services companies.<br />
Important issues studied in this<br />
article are those related to the urban cleanliness<br />
problems, rectifications and water-course<br />
of rivers, housing, lack of water<br />
and sewerage services, and real estate<br />
speculation, among others, as they<br />
allow determining positions, actions and<br />
reactions of each sector of the society.<br />
urbanization – safety – São Paulo<br />
Keywords:<br />
* Este artigo apresenta algumas reflexões parciais da pesquisa de doutoramento em execução no<br />
Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Econômico – Área de Concentração em História<br />
Econômica, do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), e conta com o<br />
financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).<br />
REV. TERRITÓRIOS E FRONTEIRAS – PROG. DE PÓS-GRAD. EM HISTÓRIA – UFMT – V.6 – N.2 – JUL./DEZ. 2005<br />
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184<br />
Introdução<br />
A urbanização das principais cidades do mundo adquire um caráter peculiar<br />
a partir de meados do século XIX, com intervenções urbanas baseadas<br />
nas transformações econômicas, técnicas e sociais até então desconhecidas.<br />
Londres, por exemplo, com 2,5 milhões de habitantes já era uma grande<br />
cidade, que avançava em todas as direções graças ao incremento nos serviços<br />
de transportes, ampliando os espaços de habitação. A cidade cresceu<br />
desordenadamente e os poderes públicos não conseguiam responder à demanda<br />
por higiene pública, drenagem de rios, recolhimento de lixo, abastecimento<br />
de água etc. Ao final do século XIX, o problema das classes pobres<br />
já se enquadrava em medidas científicas de combate a um mal com altos<br />
custos econômicos: a pobreza e a degeneração urbana 1 .<br />
É interessante ressaltar que algumas dessas cidades representativas da<br />
transformação demográfica e industrial e que foram erigidas por meio das fortunas<br />
burguesas, tenham sido já no século XIX alvo de intensos programas de<br />
intervenção urbana, como as reformas de Haussmann, em Paris, na segunda<br />
metade do século, as quais serviram de modelo em várias capitais do mundo.<br />
Com o objetivo de “minimizar” os problemas decorrentes da grande<br />
concentração de pessoas num determinado espaço, a burguesia industrial, os<br />
higienistas e os poderes públicos elaboraram formas de intervir nas cidades<br />
que ao mesmo tempo pretendiam dar conta de uma nova gestão do contexto<br />
urbano. Argumenta Rago:<br />
Ocupam-se da medicalização da cidade, com a desinfecção dos lugares<br />
públicos, com a limpeza dos terrenos baldios, com a drenagem<br />
dos pântanos, com o alinhamento das ruas, com a arborização<br />
das praças. E alarmam-se com os surtos epidêmicos que dos bairros<br />
pobres se alastram pela cidade, ameaçando invadir as casas elegantes<br />
dos recentes bairros ricos; com a ausência de esgotos e instalações<br />
sanitárias privativas; com a exalação dos odores fétidos e miasmáticos<br />
gerados pela aglomeração perniciosa da população pobre<br />
em cubículos estreitos. 2<br />
1 BRESCIANI, Maria Stella. Londres e Paris no século XIX. O espetáculo da pobreza. São Paulo: Brasiliense,<br />
1982, pp. 20 e segs. Consultar também sobre o tema Lewis Munfort. A cidade na História. Trad., 4.ed.,<br />
São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 483 e segs.<br />
2 RAGO, Margareth. Do cabaré ao lar. A utopia da cidade disciplinar: Brasil, 1890-1930. 3. ed., Rio de<br />
Janeiro: 1985, p. 163.<br />
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Como o fenômeno da industrialização na Inglaterra, as cidades passaram<br />
cada vez mais a representar as transformações econômicas advindas do<br />
sistema capitalista; mas, junto com elas, uma brutal gama de contradições e<br />
problemas se fizeram notar, instaurando relações econômicas, sociais e culturais<br />
próprias ao contexto 3 .<br />
Da mesma forma, no Brasil, o crescimento e o desenvolvimento das<br />
cidades encontram respaldo na expansão do capitalismo, porém na condição<br />
de país fornecedor de matérias-primas e alimentos. Mesmo diante de uma<br />
população e uma produção predominantemente rural, explica Ana Lanna, as<br />
cidades “começaram a funcionar como verdadeiros pólos de atração de mãode-obra,<br />
das elites e de investimentos” 4 . Esses fatores permitem definir os<br />
diversos aspectos exógenos que explicam a urbanização das principais cidades<br />
brasileiras, especialmente São Paulo.<br />
Entre eles estava o fato de os países fornecedores de matérias-primas e<br />
alimentos tornarem-se atrativos pólos de investimentos de capitais oriundos<br />
dos países centrais do sistema capitalista, que investiram pesadamente em<br />
setores ligados à infra-estrutura, entre eles os sistemas exportadores (ferrovias,<br />
portos), além de terem estabelecido melhoria nos equipamentos urbanos<br />
(transportes, iluminação, sistemas de água e esgoto).<br />
A partir de 1870, São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul passaram<br />
a atrair cada vez mais esses capitais. Num primeiro momento essa expansão<br />
estendeu-se pela segunda metade do século XIX e, em linhas gerais, caracterizou-se<br />
pelo predomínio absoluto do capital inglês e por sua estreita relação<br />
com as atividades agro exportadoras. Já num segundo momento, dos primeiros<br />
anos do século XX até a 1ª Grande Guerra, a posição hegemônica inglesa foi<br />
abalada pela maior competição entre os países exportadores de capital, associada<br />
à diversificação setorial que também se ampliava, abrindo novas oportunidades<br />
lucrativas de investimentos advindas do crescimento das cidades, da expansão<br />
industrial e do movimento de diversificação das atividades primárias 5 .<br />
No caso de São Paulo, a partir de 1881, a província acabou por sobrepujar<br />
o Rio de Janeiro como mercado atrativo à aplicação desses capitais.<br />
Segundo Flávio Saes, no período de 1906 a 1918, essa tendência estava<br />
circunscrita às excepcionais condições de produção e comercialização dos<br />
3 HOBSBAWM, Eric. A cidade, a indústria, a classe trabalhadora. In: A era do capital. Trad., Rio de Janeiro:<br />
Paz e Terra, 1996.<br />
4 LANNA, Ana Lúcia Duarte. Santos. Uma cidade na transição, 1870-1913. São Paulo/ Santos: Hucitec/<br />
Pref. Mun. de Santos, 1996, p. 15.<br />
5 CASTRO, Ana Célia. As empresas estrangeiras no Brasil: 1860-1913. Rio de Janeiro: Zahar, 1979, p. 12.<br />
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produtos brasileiros no momento, além, é claro, da situação de internacionalização<br />
da economia do país 6 . Na capital paulista, o crescimento do investimento<br />
estrangeiro se verificou principalmente no setor bancário e nos serviços<br />
de energia elétrica e transporte urbano.<br />
No início do século XX, os bancos nacionais eram beneficiários do maior<br />
volume de depósitos e responsáveis pelos maiores empréstimos se comparados<br />
aos bancos de capital externo, porém esse movimento inverteu-se nos<br />
anos seguintes em direta relação com o aparecimento das primeiras indústrias<br />
na cidade de São Paulo. Até 1899, os serviços de geração e distribuição de<br />
energia elétrica e de transporte urbano, até então oferecidos por empresas<br />
locais, também passaram às mãos do capital estrangeiro, quando surgiu a multinacional<br />
de origem canadense, a São Paulo Light, Tramway & Power Ltd., que<br />
gradualmente monopolizou os serviços de transportes, gás e telefone 7 .<br />
Endogenamente, os resultados auspiciosos de uma conjuntura internacional<br />
favorável à inserção do principal produto brasileiro no mercado internacional<br />
– o café – definiram as condições econômicas e políticas que possibilitaram<br />
o enriquecimento do complexo econômico paulista. Essa acumulação deu<br />
margem aos primeiros empreendimentos industriais em São Paulo, que, mesmo<br />
baseado em técnicas rudimentares, receberam inversões (injeções) de<br />
capitais oriundas tanto de fazendeiros quanto de imigrantes estrangeiros.<br />
Nesse sentido, a história da urbanização do Estado de São Paulo está<br />
diretamente ligada à riqueza gerada pelo complexo cafeeiro e ao surto industrial<br />
dela decorrente, as quais atingiram as cidades estratégicas do complexo.<br />
A capital do estado, nesse contexto, vivenciou esse impacto de forma<br />
mais contundente, passando, no último quartel do século XIX, de pequeno<br />
burgo de estudantes à fase de crescimento urbano-industrial.<br />
Dentre os fatores endógenos acrescente-se ainda a transformação nos<br />
símbolos de riqueza, em curso desde meados desse século, que gradativamente<br />
reduzia o valor do “escravo” enquanto equivalente simbólico da riqueza,<br />
ao passo que tomava forma e conteúdo na valorização de outros bens,<br />
como “imóveis” e “ações”. As mudanças nesses referenciais refletiam a complexidade<br />
de uma nova economia em gestação, momento em que o fazendei-<br />
6 SAES, Flávio A. M. de. A grande empresa de serviços públicos na economia cafeeira, 1850-1930. São<br />
Paulo: Hucitec, 1986, especialmente o capítulo 3 – A expansão do capital estrangeiro e as reações<br />
internas (1906-1918).<br />
7 SAES, Flávio A. M.; SZMRECSÁNYI, Tamás. “El papel de los bancos extrangeiros em la industrialización<br />
inicial de São Paulo.” In: Carlos Marichal (coord.). Las inversiones extranjeras em América Latina, 1850-<br />
1930. Nuevos debates y problemas em historia económica comparada. México: Fondo de Cultura Económica,<br />
1995, p. 235-241.<br />
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ro se “liberou do escravo e não o escravo que se liberou do fazendeiro” 8 ,<br />
redirecionando investimentos antes dirigido aos escravos para as cidades.<br />
Um dos setores beneficiado por essa transformação e que deu impulso ao<br />
complexo cafeeiro e, ulteriormente, à urbanização e industrialização da capital<br />
paulista foi o serviço ferroviário. O primeiro alento aconteceu em 1867, com a<br />
inauguração da São Paulo Railway (Santos-Jundiaí), que ligava a principal zona<br />
cafeeira do interior ao porto exportador, Santos, passando pela capital. Em seguida,<br />
a partir de Jundiaí, abriram-se outros ramais férreos rumo ao interior, o que<br />
permitia sua comunicação com a capital paulista e incentivava também, o processo<br />
de absenteísmo dos fazendeiros de café, que se deslocaram do interior<br />
para São Paulo. Na década seguinte, em 1877, foi efetivada a ligação férrea da<br />
capital brasileira, o Rio de Janeiro, com a paulista, por meio da Estrada de Ferro<br />
do Norte (Central do Brasil), permitindo a formação de um entroncamento ferroviário<br />
em São Paulo e a promoção de uma série de serviços em seu entorno. A<br />
região transformava-se numa área tributária privilegiada, como uma encruzilhada<br />
de caminhos, na qual a atividade comercial foi largamente favorecida 9 .<br />
Numa outra esfera da realidade, o protecionismo, que marcou o período<br />
de 1880 a 1914, no que tange ao comércio de mercadorias, não atingiu as<br />
transações financeiras internacionais nem os movimentos migratórios, essencialmente<br />
de trabalhadores, que se mantiveram livres e relativamente constantes,<br />
salvo algumas oscilações, como no caso brasileiro, o Decreto Prinetti<br />
– que proibiu a migração dos italianos para São Paulo devido às más condições<br />
de vida e de trabalho – ou, ainda, o período da 1ª. Grande Guerra.<br />
Mesmo diante de fluxos migratórios originários da Europa para o Brasil,<br />
com a da descentralização fiscal instaurada com a República que o movimento<br />
adquiriu nova conotação. A partir de então, o estado de São Paulo implementou<br />
a política imigratória de trabalhadores advindos da Europa através do<br />
pagamento das passagens daqueles que desejassem para lá se dirigir.<br />
A medida foi decisiva para a urbanização da capital paulista, diferenciando-a<br />
de outras capitais e contribuindo decisivamente para o adensamento<br />
populacional que se verificaria ulteriormente, além de responder, também,<br />
à demanda crescente por trabalhadores em função das indústrias que<br />
surgiam. Por outro lado, tal processo também foi incentivado, por volta de<br />
8 MARTINS, José de Souza. O cativeiro da terra. 2.ed., São Paulo: LECH, 1981, p. 110; MELLO, Zélia Maria<br />
Cardoso de. Metamorfoses da riqueza. São Paulo, 1845-1895. Contribuição ao estudo da passagem da<br />
economia mercantil-escravista à economia exportadora capitalista. São Paulo: Pref. Mun. de São<br />
Paulo/ Hucitec, 1985.<br />
9 SINGER, Paul. Desenvolvimento econômico e evolução urbana: análise da evolução econômica de São<br />
Paulo, Blumenau, Porto Alegre, Belo Horizonte e Recife. São Paulo: Editora Nacional, 1974, p. 363.<br />
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1890, pelo endividamento da chamada Crise da Baring Brothers, na Argentina,<br />
seguido por um período de crise financeira, motivou o desvio para o<br />
Brasil, de parcela considerável de migrantes que se dirigiam àquele país 10 .<br />
Neste contexto, portanto, sob a dinâmica da inter-relação dos fatores<br />
endógenos e exógenos, a cidade de São Paulo passou por transformações<br />
peculiares, baseadas no surgimento e no desenvolvimento das primeiras indústrias<br />
e no conseqüente adensamento populacional. Isso posto, o crescimento<br />
demográfico, a ocupação do espaço, a especulação imobiliária, enfim,<br />
o surgimento de questões típicas da urbe, promoveram desigualdades e recrudesceram<br />
as mazelas nas condições de vida de largos setores de população,<br />
com graves repercussões materiais, sociais, econômicas e políticas.<br />
Nesse quadro, os trabalhadores ocupados nas primeiras indústrias paulistas<br />
foram diretamente envolvidos pelo processo de urbanização, que os<br />
obrigou a constantes buscas por melhores condições de vida numa cidade<br />
que se organizava desigualmente e os “remetia” às áreas da cidade consideradas<br />
insalubres e sem condições mínimas de vida, pois eram as mais baratas<br />
da cidade, enquanto o contrário acontecia com outra parcela da população<br />
que se instalava nas regiões consideradas mais salubres, porém, mais caras.<br />
Este artigo, dessa forma, focaliza o modo como os trabalhadores, majoritariamente<br />
de imigrantes, que para São Paulo se dirigiram em busca de melhores<br />
condições de vida, vivenciaram as conseqüências dessa urbanização. Vale destacar<br />
que todos eles, especialmente os advindos da Itália, denotaram aspectos socioculturais,<br />
políticos e econômicos ímpares à capital paulista, como o inspirado Juó<br />
Bananére, por exemplo, imigrante italiano, barbeiro, poeta e jornalista que zombava<br />
dos acontecimentos políticos, econômicos e sociais da cidade de São Paulo.<br />
Seus textos permitiam a contra-posição e a vingança ante os atos e acontecimentos<br />
que atingiam a população, consideradas arbitrárias, advindas dos poderes públicos<br />
ou da iniciativa privada. Bananére diferenciava-se do Zé Povinho, meio bronco<br />
mas atinado, “rombudo na letra, mas agudo na treta”, que se deixava levar e<br />
poderia ser ludibriado, sofredor enquanto isso, Juó se vingava dos impostos, dos<br />
políticos e dos acontecimentos da cidade com piadas e sátiras amargas 11 .<br />
10 COSTA, Wilma Peres. Economia primário-exportadora e padrões de construção do Estado na Argentina<br />
e no Brasil. In: Economia e Sociedade. Campinas: nº 14, jun. de 2000, p. 184-190.<br />
11 Juó Bananére, na verdade, era o pseudônimo do engenheiro paulista Alexandre Ribeiro Marcondes<br />
Machado, natural de São Paulo (1892-1933), que fazia a caricatura do italiano padrão. Tornou-se o<br />
“cronista social e político de São Paulo. A ele incumbia a vaia, a missão ridicularizadora” aos principais<br />
fatos e pessoas da cidade, diz Alcântara Machado na apresentação de Juó Bananére. La divina increnca.<br />
São Paulo: Editora 34, 2001, edição fac-similar, pp. XVI-XVII; Eduardo Silva. As queixas do povo. Rio de<br />
Janeiro: Paz e Terra, 1988, p. 77 e segs.<br />
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Imigração e urbanização<br />
A partir de 1870, o fluxo migratório de trabalhadores europeus em<br />
direção às atividades agrícolas no Brasil, especialmente a São Paulo, tornouse<br />
contínuo, mesmo diante de turbulências que marcaram as relações de<br />
trabalho entre fazendeiros e imigrantes e que repercutiram nos países fornecedores<br />
de trabalhadores, que chegaram a suspender temporariamente a<br />
entrada de estrangeiros no país.<br />
Mesmo assim, desde agosto de 1871, com a Associação Auxiliadora da<br />
Colonização e Imigração subsidiando parte das despesas dos imigrantes,<br />
mediante empréstimos do governo provincial, a imigração prosseguiu 12 .<br />
Em 1884, foi implantada a taxa anual de 1 mil-réis por escravo que entrasse<br />
na província e fosse dirigido às lavouras e 2 mil-réis para os não destinados<br />
a esse ofício, com objetivo de direcionar os recursos para o financiamento<br />
da importação de imigrantes.<br />
O grande fenômeno imigratório só se concretizou a partir de 1886, com<br />
a Sociedade Promotora da Imigração, levado a cabo por um grupo de fazendeiros<br />
que tinha o objetivo de inundar as lavouras com mão-de-obra. Foi com<br />
a Proclamação da República, contudo, em 1889, associada ao fim do sistema<br />
escravista no ano anterior, que o processo adquiriu nova conotação ao ir ao<br />
encontro dos principais interesses dos homens ligados ao complexo cafeeiro<br />
e que estavam no poder. Inaugurava-se uma nova fase da imigração para São<br />
Paulo, cujos resultados para a capital paulista seriam únicos 13 .<br />
Os fundamentos que permitiram a efetivação de tais interesses foram<br />
balizados pelo novo marco institucional republicano, que, com o Federalismo,<br />
permitiu aos estados intervir nas áreas que mais lhes interessavam, pois,<br />
naquele momento, os estados passavam a contar com a receita oriunda dos<br />
impostos de exportações, enquanto as receitas provenientes dos tributos de<br />
importações eram direcionadas ao governo Federal. Associado a esse quadro<br />
político e fiscal, São Paulo obteve um brutal incremento financeiro no período,<br />
em função das exportações de café, motivando o governo, portanto, a<br />
12 Esta associação tinha como vice-presidente Antonio Prado. Desta forma, seus interesses, enquanto<br />
fazendeiro, estavam diretamente ligados à entrada de imigrantes para as lavouras, enquanto sua preocupação<br />
com escravismo seguia secundariamente. Flávio A. M. de Saes. Op. cit., 1986, p. 93 e segs.<br />
13 Da mesma forma, os motivos e fundamentos que explicam o processo de expulsão destes trabalhadores<br />
também eram marcados por novos e diferentes fatores se comparados com as fases anteriores da<br />
migração. Sobre a questão ver os estudos de Herbert S. Klein. “Migração internacional na História das<br />
Américas.” In: Boris Fausto (org.). Fazer a América. A imigração em massa para a América Latina. São<br />
Paulo: Edusp, 1999; Angelo Trento. Do outro lado do Atlântico. Um século de imigração italiana no Brasil.<br />
Trad., São Paulo: Nobel/ Istituto Italiano di Cultura di San Paolo/ Instituto Cultural Ítalo-brasileiro, 1988.<br />
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tomar algumas medidas efetivas que respondessem a suas necessidades, e<br />
uma delas foi a política de imigração subsidiada 14 .<br />
Estavam postos, portanto, os fundamentos do processo de formação do<br />
mercado de trabalho em São Paulo, que, de 1889 ao início do século XX,<br />
acarretou a chegada de cerca de 750.000 estrangeiros no Estado, dos quais<br />
80% subsidiados pelo governo; já da abolição do escravismo à Depressão de<br />
1930, aportaram em terras paulistas 2.250.000 imigrantes, sendo que 58%<br />
foram auxiliados, porém muitos dos que vieram após 1900 pagaram suas<br />
próprias despesas de viagens 15 .<br />
Ao fim da primeira década do século XX, a cidade de São Paulo<br />
abrigava uma população de 375.000 almas, passando ao final da década<br />
de 1910, a quase 600.000 e, em 1930, a aproximadamente 900.000 habitantes.<br />
No período de 1910 a 1920, a região apresentou uma taxa de<br />
crescimento de 56%, enquanto o Distrito Federal, de 28%; já entre 1920<br />
e 1930, a cidade de São Paulo cresceu 51%, e o Distrito Federal, 30%. Ao<br />
se tomar o período de 1910 a 1930, o índice de crescimento populacional<br />
da cidade de São Paulo aumentou em torno de 136%, enquanto a<br />
capital brasileira apresentou uma taxa de 66%.<br />
Na capital paulista, as condições da oferta de trabalho também se ligavam<br />
diretamente às atividades industriais, que adequavam a oferta de mãode-obra<br />
aos seus interesses e promoviam a formação de um mercado de<br />
trabalho que consolidava um dos principais elementos do capitalismo – um<br />
exército reserva de mão-de-obra. Para o historiador Boris Fausto, o processo<br />
de formação desse exército de reserva deu-se antes da decisiva arrancada<br />
das indústrias em São Paulo, pois:<br />
[...] uma parcela significativa desta sobrepopulação transferiu-se para os<br />
centros urbanos tendo-se em conta as fases de depressão do setor<br />
cafeeiro e as dificuldades de acesso à propriedade da terra. [...] [desse<br />
modo] quando São Paulo iniciou esta arrancada em 1905, [...] não se<br />
14 Segundo Nozoe, devido à descentralização financeira e administrativa ocorreu em São Paulo um “extraordinário<br />
aumento da receita” no exercício de 1892 ante ao ano anterior à reforma: “em 1890-1891 a receita<br />
foi de 9.100 contos de réis e, em 1892 chegou a 388.100 contos de réis.” Igualmente importante para o<br />
resultado alcançado no exercício de 1892, complementa o autor, foi o aumento da quantidade de café<br />
exportado, que saltou de 137.898.061 kg em 1888/90 para 245.456.719 kg em 1892; somado a isso, o<br />
preço do produto, cujo valor médio do quilograma fora de $586 em 1889-1890, subiu para 1$026 em<br />
1892. Nelson Hideki Nozoe. São Paulo: economia cafeeira e urbanização. Estudo da estrutura tributária e<br />
das atividades econômicas na capital paulista (1889-1933). São Paulo: IPE/ USP, 1984, p. 18.<br />
15 HOLLOWAY, Thomas H. Imigrantes para o café. Café e sociedade em São Paulo, 1886-1934. Trad., Rio<br />
de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 68 e 84.<br />
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registrou nenhuma crise de mão-de-obra, o que de resto favoreceu o<br />
processo de acumulação. 16<br />
É inegável o papel desempenhado pelos imigrantes no processo de<br />
urbanização das cidades que os receberam. Por meio de seus negócios, eles<br />
tiveram preponderante participação na introdução de hábitos e aspectos<br />
culturais que influenciaram decididamente a formação da vida econômica,<br />
social e cultural da população por onde passaram, estabelecendo e consolidando<br />
o que acreditavam ser seus direitos.<br />
No caso de São Paulo, a introdução de novos pratos no cardápio alimentar,<br />
já em meados do século XIX, exemplifica a inserção cultural do imigrante<br />
e sua influência nas relações de sociabilidade. Antes baseado essencialmente<br />
no consumo do arroz, feijão, milho, farinha, porco e derivados 17 , o paulista<br />
aos poucos conheceu os laticínios e a cerveja introduzidos pelos alemães, os<br />
vinhos introduzidos pelos portugueses, as massas pelos italianos, etc., inclusive,<br />
a delimitação de padrões de qualidade.<br />
Tais fatos aparentemente secundários possuem singular importância,<br />
pois permitem perceber como as diferentes etnias estabelecidas nas mais<br />
variadas regiões, inseriram-se no mundo urbano, inserções estas que gradativamente<br />
lhes deram a exata noção de pertencimento, de modo a lhes permitir<br />
que tivessem uma idéia sobre os problemas da cidade, conferindo-lhes<br />
o direito a reivindicações e muitas vezes à luta por elas.<br />
Dessa forma, desde o período anterior à imigração subvencionada, que<br />
desviou grande parcela de trabalhadores para as cidades, já estava em curso<br />
a projeção e a constituição de um processo no qual eles se reconheciam<br />
conscientemente diante da noção de “pertencimento” à sociedade em que<br />
estavam inseridos. Com a chegada em massa de trabalhadores imigrantes, a<br />
partir da última década do século XIX, era natural que o reconhecimento já<br />
estivesse minimamente estabelecido e se expandisse também entre os recém-chegados,<br />
estendendo-se ainda à necessidade de lutar pelo que consideravam<br />
ser, também, direitos seus, principalmente com relação aos benefícios<br />
que lhes foram prometidos, porém, não atendidos.<br />
16 FAUSTO, Boris. Trabalho urbano e conflito social (1890-1920). São Paulo/ Rio de Janeiro: Difel, 1976,<br />
p. 23-24.<br />
17 HOLANDA, Sérgio Buarque de. “Prefácio do tradutor.” In: DAVATZ, Thomaz. Memórias de um colono no<br />
Brasil. Trad., Belo Horizonte/ São Paulo: Itatiaia/ Edusp, 1980, p. XXXIII e segs.; Fábio Alexandre dos<br />
Santos. Rio Claro: uma cidade em transformação, 1850-1906. São Paulo: Annablume/ Fapesp, 2002, p. 46<br />
e segs.<br />
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Com relação a essas lutas, o próprio fenômeno migratório já as configura,<br />
uma vez que permitiu a importação de diferentes ideologias e culminou<br />
na eclosão do movimento operário. Essas idéias, num meio permeado de<br />
contradições, desigualdades e injustiças, acabaram adquirindo forma e volume,<br />
pondo em perspectiva, assim, as condições de exploração objetivas,<br />
que deram forma à movimentação. Estavam postas, pois, nessa cidade, as<br />
possibilidades de coletivização das angústias 18 .<br />
Do final do século XIX até a eclosão da 1ª. Guerra Mundial, a mobilização<br />
operária mostrou-se frágil, com baixa representatividade e descontinuidade<br />
sindical. Os sindicatos nasceram de um pequeno núcleo, mas os esforços<br />
muitas vezes resumiram-se em entusiasmos passageiros. Em fins de 1905<br />
foi criada a Federação Operária de São Paulo, reunindo diversas Ligas ou<br />
Uniões Operárias (geralmente sem expressão no interior da própria categoria),<br />
“como conseqüência dos esforços destes grupos e não como resultado<br />
do crescimento das ligas a integram”. Em alguns momentos mostraram-se<br />
bastante ativas e combatentes, como durante a greve dos ferroviários da Cia.<br />
Paulista, em 1906, mas em outros se revelaram ineficientes, promovendo<br />
alguns comícios e desaparecendo pouco antes da 1ª. Guerra Mundial 19 .<br />
Decorrente do nascente movimento operário, cabe destacar o surgimento<br />
dos inúmeros periódicos que focavam a situação dos trabalhadores e<br />
suas condições de vida e trabalho, os quais fornecem importantes subsídios<br />
para a compreensão da visão que eles próprios tinham sobre os problemas<br />
que enfrentavam cotidianamente. As notícias sobre as Ligas Operárias esta-<br />
18 Mesmo admitindo o papel dos imigrantes no movimento operário, Paulo Sérgio Pinheiro questiona sua<br />
importância, dizendo que sua atuação fora “marginal” na sociedade, e por isso suas ações se restringiam<br />
aos locais de menores contingentes operários e aos círculos intelectuais que os apoiavam. Nesse<br />
quadro, as reivindicações se limitavam à busca de melhorias nas condições de trabalho e na revolução<br />
social, sendo a greve o principal instrumento de luta, contudo, nenhuma análise de conjuntura da<br />
formação sócio-econômica brasileira entrava nas pautas de discussões desses trabalhadores. Paulo<br />
Sérgio de M. S. Pinheiro. Política e trabalho no Brasil (dos anos vinte a 1930). Rio de Janeiro: Paz e<br />
Terra, 1975, p. 96-97. Já Boris Fausto, Op. cit., 1976, p. 33, afirma que diante da heterogeneidade da<br />
massa de imigrantes e das oportunidades que se abriam na cidade, muitos imigrantes conseguiram se<br />
inserir no mercado de trabalho, em razão disto, somente uma parcela dessa população imigrante que<br />
se manifestará nos primeiros movimentos reivindicatórios, entre eles os não-qualificados, dos quais<br />
eclodirá a contradição entre suas aspirações como imigrantes e a realidade de suas condições de vida<br />
e de trabalho.<br />
19 FAUSTO, Boris. Op. cit., 1976, p. 119-120. Sobre a greve de 1906, especificamente, consultar as obras<br />
de Dulce M. P. de Camargo Leme. Trabalhadores e ferroviários em greve. Campinas: Edunicamp, 1986;<br />
Robert H. Mattoon. The companhia Paulista de Estradas de Ferro, 1868-1900 a local railway enterprise<br />
in São Paulo. Tese de doutoramento, Yale University, 1971; Liliana R. Petrilli Segnini. Ferrovia e<br />
ferroviários: uma contribuição para análise do poder disciplinar na empresa. São Paulo: Autores Associados/Cortez,<br />
1986; Fábio Alexandre dos Santos. “Rio Claro e a greve dos trabalhadores da Cia. Paulista<br />
de Estradas de Ferro em 1906.” In: Revista de Investigación. América Latina em la Historia Económica.<br />
México: Instituto Mora, nº 25, enero/ junio 2006.<br />
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vam freqüentemente nesses jornais, que traziam seus informes e anúncios. A<br />
Plebe, por exemplo, em todas as suas edições trazia a coluna “Mundo Operario”,<br />
com informações sobre greves, manifestações etc. Em 16 de junho de<br />
1917, pouco antes de explodir a movimentação que resultaria em greve<br />
geral, o jornal veiculava a ação das Ligas Operárias da Mooca e do Belenzinho,<br />
enfatizando os trabalhos de organização dos trabalhadores 20 .<br />
Desse modo, fossem trabalhadores engajados no movimento operário<br />
fossem trabalhadores alheios à movimentação, eles compunham uma faixa da<br />
população que percebia os problemas e as intervenções urbanas postas em<br />
prática na cidade, ora pelos poderes públicos ora pela iniciativa privada. Por<br />
isso, tanto a imprensa engajada quanto a chamada grande imprensa permitiam<br />
apreender a visão e, quiçá, os conflitos, as estratégias, as ações ou reações<br />
desse grupo frente aos empreendimentos ou aos problemas da cidade, levando<br />
em consideração a relação entre a ocupação do espaço, os interesses econômicos<br />
envolvidos e os serviços públicos destinados à salubridade da urbe.<br />
Trabalhadores na cidade de São Paulo<br />
Nas primeiras décadas do século XX, em São Paulo, os imigrantes perfaziam<br />
a maioria dos trabalhadores empregados na indústria, fato que se manteve<br />
até a década de 1930, quando o motor do adensamento urbano passou<br />
a ser a migração interna. Mesmo assim, ao final da década de 1920, a cidade<br />
de São Paulo ainda era considerada o centro industrial, operário e estrangeiro,<br />
majoritariamente de imigrantes italianos ou de seus filhos, mesmo com eles<br />
deixando de ser a maioria dos imigrantes a aportar em terras paulistas desde<br />
a 1ª Grande Guerra, quando passaram a chegar muitos árabes (sírios, libaneses,<br />
armênios, egípcios), judeus e japoneses.<br />
Segundo o censo de 1907, havia no Estado de São Paulo, nesse ano,<br />
cerca de 22.000 trabalhadores empregados em 326 empresas, enquanto o<br />
censo de 1920 registrava 4.000 empresas com 84.000 trabalhadores. Já na<br />
cidade de São Paulo, por volta de 1920, esses indivíduos compunham 52%<br />
da mão-de-obra da indústria paulistana e o distrito do Brás:<br />
[...] localizado na parte baixa da cidade, a leste do antigo centro urbano,<br />
tornou-se uma das zonas residenciais que mais concentravam traba-<br />
20 Arquivo Edgard Leuenroth (AEL) – Unicamp – Campinas (AEL) Jornal A Plebe. 16 de junho de 1917, p. 3.<br />
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lhadores. Em 1910, cerca de um terço da população da capital vivia ali. Os<br />
vereadores que representavam o distrito trabalhavam duramente para conseguir<br />
que o governo municipal fornecesse a seus habitantes a mesma<br />
qualidade de serviços públicos que gozavam os bairros mais abastados. 21<br />
Nesse quadro, Paulo Garcez Marins demonstra como a instabilidade dos<br />
empregos foi decisivamente marcante na vida dos estrangeiros instalados em<br />
São Paulo, bem como de ex-escravos e seus descendentes, que acabaram se<br />
movimentando constantemente em busca de formas improvisadas de trabalho.<br />
No interior desses meios de garantia de sobrevivência, contudo, outras maneiras<br />
eram criadas e recriadas, entre elas as formas de morar, de comer, de se<br />
vestir etc. Por aí se apreende por que muitos desses trabalhadores passaram a:<br />
[...] inchar as ruas, casas e cômodos do Brás, Mooca, Cambuci, Bom<br />
Retiro, Barra Funda, Pari e Bexiga, ou ainda das áreas ao longo das<br />
estações férreas do futuro ABC – Santo André, São Bernardo e São<br />
Caetano – já integradas no processo de industrialização e urbanização<br />
das cidades em fins do Oitocentos. 22<br />
Com a emergência do crescente adensamento, a problemática da ocupação<br />
do tecido citadino caminhou paralelamente, instaurando uma nova<br />
questão a ser enfrentada, tanto pelos poderes públicos quanto pela população,<br />
e entre eles os interesses do capital imobiliário especulativo cada vez<br />
mais presentes, principalmente quando conjugados aos anseios das elites<br />
instaladas no poder, que almejavam colocar a cidade nas linhas da modernidade,<br />
simbolizada pela Belle Époque.<br />
Os espaços da cidade eram definidos e redefinidos, da mesma forma que as<br />
populações destinadas a eles. É o que conta Rômulo Carraro, nascido na Província<br />
de Villa Doze, em Vêneta, em 1904, o qual chegou em São Paulo em 1911,<br />
juntamente como o pai, a mãe, a avó, e mais 7 irmãos. Sua primeira residência foi<br />
na Vila Penteado, e o fundo de sua casa dava para a Fábrica Penteado.<br />
Segundo as lembranças do sr. Rômulo, pelas 5 horas da manhã o apito<br />
da fábrica soava para acordar os trabalhadores que entravam às 6 horas, cuja<br />
maioria costurava sacos: “cada um tinha um carrinho de mão, feito de madei-<br />
21 LOVE, Joseph. A locomotiva. São Paulo na Federação, 1889-1937. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982, p.<br />
122.<br />
22 MARINS, Paulo César Garcez. “Habitação e vizinhança: limites da privacidade no surgimento das<br />
metrópoles brasileiras.” In: SEVCENKO Nicolau (org.). História da vida privada no Brasil. República: da<br />
Belle Époque à era do rádio. São Paulo: Cia. das Letras, 1998, vol. 3, p. 173.<br />
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ra, para ir buscar pano, costurá-lo e levá-lo de volta. Então às seis horas da manhã<br />
o pátio da Vila se enchia daqueles carrinhos, rangendo e fazendo um barulhão”.<br />
Eram novos ruídos na cidade, que simbolizavam as mudanças em curso, por mais<br />
que para o depoente fossem apenas mais um fator de aclimatação ao novo<br />
habitat. Mas o “barulhão” era outro detalhe originário da nova fase que a cidade<br />
passava a vivenciar cotidianamente, da mesma forma que o apito da fábrica, que<br />
servia, inclusive, para despertar o trabalhador para a jornada diária, além de lhe<br />
impor o tempo de trabalho, marcando o ritmo da produção 23 .<br />
A cidade demonstrava vitalidade em meio ao processo de crescimento<br />
econômico em nível nacional. Enquanto isso, no âmbito municipal a urbanização<br />
em curso dava mostras de encampar o mesmo ritmo e, com a abertura<br />
de oportunidades de trabalho, “o imigrante estrangeiro buscava fazer o seu<br />
pé de meia. Vinha para São Paulo querendo o seu bem-estar, independente<br />
de ser cidade ou campo”, conta o paulistano, nascido em 1901, o sr. Luiz<br />
Matoso 24 . É o que também demonstra dona Florentina Robles Castanho, espanhola,<br />
nascida em 1897, que chegou em São Paulo na década de 1920 25 .<br />
Da mesma forma, o sr. Manoel Francisco Espíndola, alagoano nascido em<br />
1915, destaca os mesmos motivos que o levaram a migrar, décadas mais<br />
tarde, em 1957: “[...] cheguei a São Paulo, com a finalidade de me promover,<br />
afinal todos querem promoção” 26 .<br />
Nos interstícios dessas falas pouco ouvidas, surgem trilhas e histórias<br />
de vida que indicam como cada personagem viveu e conquistou seu espaço<br />
e seus direitos na cidade de São Paulo, a exemplo do sr. Manoel, que<br />
faz questão de relembrar as vasta aprendizagem durante as batalhas que<br />
enfrentou pelos direitos dos moradores da favela da Vila Prudente. Por<br />
outro lado, o que quase todos destacam em suas lembranças é a forma<br />
desenfreada como a cidade cresceu, e afirmam que não esperavam um<br />
crescimento dessa magnitude. Tampouco previam o crescimento dos pro-<br />
23 “Sou italiano de nascimento, brasileiro de coração e português de formação”. Depoimento de Rômulo<br />
Carraro. In: Memória urbana: a grande São Paulo até 1940. São Paulo: Arquivo do Estado/ Imprensa Oficial,<br />
2001, p. 153-155. As lembranças revelam várias facetas da vida citadina através do olhar de quem os<br />
relembra, e cada uma delas depende da ação passada e da presente, que por sua vez é diferente para cada<br />
pessoa. É um tempo concreto e social a marcar a importância da vida destas pessoas, pois correspondem<br />
a um “tempo represado e cheio de conteúdo, que forma a substância da memória”. BOSI, Ecléa. Memória<br />
e Sociedade. Lembranças de velhos. 10.ed. Cia. das Lestras, 1994, p. 422.<br />
24 “É interessante que, com o pouco que se ganhava, dava para comer e beber suficientemente”. Depoimento<br />
de Luiz Matoso – ‘Feitiço’. In: Memória urbana: a grande São Paulo até 1940. Op. cit., p. 113.<br />
25 “Estendíamos roupa num varal no Parque D. Pedro II”. Depoimento de Florentina Robles Castanho. In:<br />
Memória urbana: a grande São Paulo até 1940. Op, cit., p. 163.<br />
26 “A favela foi a maior das minhas escolas”. Depoimento de Manoel Francisco Espíndola. In: Memória<br />
urbana: a grande São Paulo até 1940. Op. cit., p. 113.<br />
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blemas que acompanharam o “progresso” da urbanização.<br />
Eram pessoas simples, à margem das movimentações trabalhistas, mas<br />
suficientemente capazes de demonstrar sua visão diante do monstro urbano<br />
em fase de crescimento. Por outro lado, os jornais operários dedicavamse<br />
em mobilizar os trabalhadores em prol da luta contra a exploração no<br />
mundo do trabalho, essencialmente, mas também extrapolavam suas concepções<br />
ao universo citadino, e entre os alvos de discussões e questionamentos<br />
estavam os serviços públicos, os quais refletiam diretamente sobre<br />
as condições de vida dos operários.<br />
Ao final da década de 1910, por exemplo, os serviços de água na Mooca<br />
eram retratados como ineficientes. Segundo a nota publicada pelo Jornal<br />
A Plebe, em 1º de outubro de 1919, a falta d’água num bairro majoritariamente<br />
de trabalhadores aparece em contraposição à oferta abundante do<br />
mesmo serviço nas regiões, segundo o redator, dos “palacetes do alto da<br />
Avenida” 27 . Essa constatação alude a dois pontos fundamentais do processo<br />
de urbanização ocorrido na cidade de São Paulo. Num primeiro aspecto, o<br />
autor, baseando-se na teoria científica miasmática, se refere à ocupação de<br />
espaços que, por apresentarem baixa altitude e se localizarem próximos às<br />
várzeas e aos charcos etc., eram mais propícios à geração e propagação de<br />
doenças. Num segundo aspecto, essas mesmas regiões, por serem consideradas<br />
insalubres, também eram mais baratas do ponto de vista do mercado<br />
imobiliário, ao contrário das regiões elevadas, por isso mesmo salubres, como<br />
a avenida Paulista, os Campos Elíseos etc, que abrigavam palacetes.<br />
Um caso sintomático da falta d’água em algumas regiões da cidade foi a<br />
solução cogitada para se resolver o problema no Brás, bairro também de<br />
maioria trabalhadora, quando, ao final do século XIX, instalou-se a polêmica<br />
de se utilizar ou não as águas do Tietê para o abastecimento, já eram consideradas<br />
contaminadas por alguns 28 .<br />
Mesmo assim, o Brás recebeu água in natura desse rio, do final de<br />
1898 até 1907:<br />
[...] quando começou a ser alimentado pelo manancial do Cabuçú e da<br />
Bomba, consideradas de péssima qualidade, muito “colibaciladas” e con-<br />
27 (AEL) Jornal A Plebe. 2 de outubro de 1919, p. 2.<br />
28 A problemática está retratada em RIBEIRO, Maria Alice R. R. História sem fim... Inventário da saúde<br />
pública. São Paulo – 1880-1930. São Paulo: Edunesp, 1993, pp. 146 e segs. Ver também as memórias de<br />
Jacob Penteado. Belenzinho, 1910 (retrato de uma época). 2.ed., São Paulo: Carrenho Editorial/ Narrativa<br />
Um, 2003, p. 146.<br />
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tendo germens patogênicos; o restante do Brás era abastecido pelos<br />
mananciais do Ipiranga. O Belenzinho, por sua vez, foi abastecido pelas<br />
águas do Tietê, também in natura, até 1909, quando também passou<br />
a receber as águas do Cabuçú. A Mooca recebia, tanto as águas do<br />
Cabuçú, como as dos mananciais do Ipiranga. Por inúmeras vezes, com<br />
a constante falta d’água que se verificava na cidade, principalmente no<br />
Brás, na Mooca e no Belenzinho, o abastecimento era garantido novamente<br />
pelas águas, in natura, do rio Tietê. 29<br />
Por volta de 1922, a extensão da rede de água, segundo dados de<br />
Aroldo de Azevedo, chegava a 660.000 metros, um crescimento de 10,4%<br />
em relação aos 598.000 registrados entre 1916/1917. Já a extensão da rede<br />
de esgoto, em 1916 e 1917 era de 1,6 milhão, com um crescimento de<br />
44,9% em relação aos 1,1 milhão de metros, em 1911. Mesmo assim, segundo<br />
o Relatorio da Commissão de Obras do Saneamento de 1927, por<br />
volta de 1926-1927, a situação dos serviços de água e esgotos na cidade de<br />
São Paulo ainda era caótica, requerendo urgentes soluções, devido à “precaria<br />
situação dos esgotos de S. Paulo, vem, de muito, reclamando dos<br />
poderes publicos providencias immediatas e enérgicas”.<br />
O reflexo da carência de tais serviços, entretanto, já estava estabelecido<br />
na cidade há tempos, e os mais prejudicados eram os trabalhadores<br />
pobres. Por volta de 1894, por exemplo, o tema da saúde da população<br />
já levantava questionamentos, como o realizado por Torquato Tapajóz,<br />
que especulava sobre os motivos das altas taxas de mortalidade infantil<br />
naqueles anos:<br />
Em 1892 ocorreram 4561 fallecimentos de creanças, excluidas as 280<br />
nascidas mortas; 2443 mortes em crianças de 0 a 7 anos, sendo de 2613<br />
este numero extraordinario si ao precedente aggregarmos 170 fallecimentos<br />
de creanças entre 8 e 15 annos! No anno que corre [1894], até<br />
30 de novembro ultimo, entre 4854 fallecimentos, excluidas já 347<br />
creanças nascidas mortas, o algarismo factidico que representa a mortalidade<br />
das creanças até 7 annos é de 2909 e será de 3042 si a ella<br />
juntarmos o das creanças fallecidas entre 8 e 15 annos. 30<br />
29 PASQUA, Suzana P.. Mortalidade e população no processo de urbanização da cidade de São Paulo (1890-<br />
1920) – o caso do Brás. São Paulo: Dissertação de Mestrado, FFLCH, USP, 1998, p. 126, grifo da autora.<br />
30 INSTITUTO DE ESTUDOS BRASILEIROS (IEB) – USP – São Paulo – Torquato Tapajóz. Saneamento de São<br />
Paulo. São Paulo: Typ. da Companhia Industrial de S. Paulo, 1894, p. 14 e segs.<br />
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Nos anos 1914 e 1915, uma epidemia de febre tifóide assolou São<br />
Paulo, atingindo em 15 dias a população do Belenzinho (outro bairro operário),<br />
juntamente com inúmeras doenças do aparelho digestivo. Nesse<br />
caso, a água contaminada foi reconhecida como o agente causal do problema.<br />
Segundo Suzana Pasqua, entre 1894 e 1913, havia um risco maior<br />
de se morrer no Brás, em comparação ao restante do município, em torno<br />
de 9,52%. Ao passo que, de 1913 a 1920, o Belenzinho apresentou, em<br />
média, um risco 26,31% maior de se morrer em comparação ao restante<br />
da cidade. Já no período da gripe espanhola, em 1918, tanto o Belenzinho<br />
quanto o Brás e a Mooca registraram altos índices de mortalidade,<br />
respectivamente de 34,71%, 33,55% e 31,23%, enquanto o município<br />
acusou uma média de 27,93% 31 .<br />
Nas primeiras décadas do século XX, a mortalidade infantil estava entre<br />
os temas mais preocupantes, e suas repercussões extrapolavam os limites<br />
dos médicos e institutos de saúde ou de pesquisa; da mesma forma, as causas<br />
também despertavam debates e denúncias, mobilizando os trabalhadores<br />
na tentativa de se reduzir e evitar o problema. Entre eles estavam os jornais<br />
libertários, que procuravam expor a situação, em direta relação com as condições<br />
de vida dos trabalhadores:<br />
Pungente o desfilar de pequeninos esquifes, roseos ou azues, atravessando<br />
a cidade, para o cemiterio. A mortalidade infantil é assombrosa:<br />
(...) Os lares se despovoam: a alma das mães, toda carinho e<br />
meiguice, confrange-se na dôr acerba. (...) O ambiente rarefeito,<br />
negras paredes enfumadas, onde a mão avara o senhorio não atirou<br />
nunca o conforto hygienico de uma brochada de cal; a agua, morta<br />
nas cisternas fundas, sem arejamento, carregada de pérfidos venenos,<br />
de detritos, mau grado o poderoso philtro que é a terra; (...) o<br />
leite que o organismo reclama, de milhões de microbios contaminado,<br />
vendido em vasilhas de folha ou zinco, impuro, corrompido, ou<br />
pela fraude dos leiteiros, ou pela insufficiencia dos pastos de má<br />
qualidade, da agua deleteria dos banhados. E os esquifes passam,<br />
roseos ou azues, levados que são por mãos de outras crianças, na luz<br />
indifferente, caminho do tumulo. Certo, D. Morte é natural, mesmo<br />
sympathica, e mesmo piedosa. 32<br />
31 PASQUA, Suzana P. Op. cit., p. 155.<br />
32 (AEL) Jornal A Obra. 10 de junho de 1920.<br />
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Os discursos, anônimos ou engajados, revelavam uma cidade cada vez<br />
mais cindida, cujos recortes intervencionistas visavam inseri-la nas linhas da<br />
modernização, fundada na Belle Époque. Seus efeitos, contudo, não abarcavam<br />
o conjunto da população, por isso a urbanização paulistana foi marcada<br />
por um efeito centrífugo, que derrubava, construía e expulsava os indesejáveis;<br />
heterogêneo, isto é, com intervenções diferenciadas para cada faixa da<br />
população, que repercutia em expulsar o pobre do cen tro, seguindo-se o<br />
saneamento da área e de seus hábitos e valores; e de caráter privado, em<br />
que os serviços públicos se transformaram em mercadorias, utilizadas como<br />
forma de agregar valor ao espaço, em contraposição à idéia de universalidade<br />
do bem público, o que reforçava os dois primeiros aspectos.<br />
“A avenida paulista era bonita”, conta o sr. Ariosto, com calçamento de<br />
paralelepípedo, palacetes; já as outras ruas eram “semicalçadas”, com árvores<br />
e matas. À noite, os lampioneiros iam acender os lampiões e, de madrugada,<br />
voltavam para apagá-los. A rua em que nasceu, em 1900, era uma<br />
travessa da avenida Paulista, onde existiam poucas casas, mas eram grandes,<br />
com pé-direito alto 33 . Já na região do Brás, Cambuci, Belenzinho, Mooca, Pari,<br />
“era tudo uma pobreza, ruas sem calçadas, casas antigas, bairros pobres”,<br />
conta o sr. Amadeu, filho de imigrantes, que nasceu na rua Celso Garcia, no<br />
Brás, em 1906. Para se chegar ao centro da cidade, era preciso passar inevitavelmente<br />
por “um matagal, que hoje é o Parque D. Pedro, onde está o<br />
Palácio 9 de Julho”, depois tinha que atravessar o rio Tamanduateí, “era um<br />
lugar lamacento, perigoso”, relembra. Na região havia um campo de futebol,<br />
de um clube chamado Torino, “meu pai vinha me buscar com o cinto porque<br />
não queria que eu jogasse futebol” 34 .<br />
O dinamismo da cidade é perceptível nas falas desses cidadãos, que<br />
retomam à memória os fatos que marcaram suas vidas na cidade, e em muitas<br />
delas, essa percepção deixa entrever que também durante aqueles dias a<br />
população tinha noção do que representava esse dinamismo. Refletia o progresso,<br />
mas junto com ele também havia possibilidade de perdas, ou seja, o<br />
progresso, para eles, estava associado a possíveis prejuízos, materiais ou não.<br />
Segundo o sr. Amadeu, na várzea do Carmo existia um campo de futebol<br />
que em seguida deu lugar ao Parque D. Pedro II. Da mesma forma, ele<br />
relembra como a região em que morava – cheia de italianos, portugueses,<br />
espanhóis – se transformou, pois “chegou o progresso e as famílias se muda-<br />
33 Depoimento do Sr. Ariosto. In: BOSI, Ecléa. Op. cit., p. 161.<br />
34 Depoimento do Sr. Amadeu. In: BOSI, Ecléa. Op. cit., p. 132.<br />
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ram. Nossa casa foi derrubada para dar passagem aos ônibus da Água Rasa<br />
que vão para o largo do Paissandu. Com essa abertura, a ruazinha ficou pela<br />
metade, toda de armazéns de cereais e casas de negócios” 35 . O progresso,<br />
deixar transparecer, nesses casos, algo destrutivo, por isso visto com desconfiança<br />
por quem teme a perda, inclusive da própria história, como diz dona<br />
Alice, sobre o lugar onde viveu na juventude: “aquele bairro ficou horrível;<br />
quando passo por lá, naqueles Campos Elíseos, ai, dá uma dor no coração.<br />
Aquilo era maravilhoso, aquelas ruas quietas, aqueles jardins, aquela coisa... O<br />
quarto em que morei não deve existir mais, vou fazer setenta anos, aquilo<br />
com certeza já foi demolido 36 . Ou, ainda, suscitar dúvidas sobre o que realmente<br />
significava progresso, como faz Juquinha ao interpelar o pai, Washington<br />
Coelho Penteado, quando este exaltava a ausência de carros de bois nas<br />
ruas da região do Parque do D. Pedro, antiga várzea do Carmo, enquanto seu<br />
Chevrolet andava a 60 por hora e se perdia em meio à poeira, na década de<br />
1920: “Pó quer dizer progresso!”, questionou 37 .<br />
Se o pó poderia ser progresso, as várzeas poderiam abrigar seus símbolos,<br />
porém, de progresso que exclui. Nesse caso, ele emerge nas lembranças<br />
do sr. Amadeu, mas junto com ela também surge sua explicação de<br />
especulação imobiliária. Conta o sr. Amadeu que existiam mais de 1.000<br />
campos de futebol espalhados pelas várzeas da cidade, mas “agora tudo<br />
virou fábrica, prédios de apartamentos. O problema da várzea é o terreno.<br />
Quem tinha um campo de 60 por 120 metros acabou vendendo pra fábrica”.<br />
A lógica dos campos de futebol, em sua visão, extrapolava o contexto<br />
do esporte. Segundo ele, eram muitos os jogadores de futebol, e como<br />
cada campo tinha um clube, o resultado era muito jogador de futebol na<br />
cidade. Por essa razão a “maior parte dos campos eram dados pelos donos<br />
para o lugar progredir, popularizar. O dono é que pedia pra fazerem um<br />
campo nesses terrenos baldios. Quando tinha um clube, vinha o progresso,<br />
e começava o comércio, o progresso”. Foi uma estratégia dos donos de<br />
terrenos para dar visibilidade aos terrenos disponíveis na cidade, e foi justamente<br />
em decorrência da venda e posterior ocupação que o número de<br />
jogadores foi reduzindo na cidade, pois os espaços para os jogos foram<br />
cada vez mais escasseando:<br />
35 Depoimento do Sr. Amadeu. In: BOSI, Ecléa. Op. cit., p. 132.<br />
36 Depoimento de dona Alice. In: BOSI, Ecléa. Op. cit., p. 99.<br />
37 “O patriota Washington (Doutor Washington Coelho Penteado).” In: MACHADO, Antonio de Alcântara.<br />
Brás, Bexiga e Barra Funda/ Laranja da China. São Paulo: Martin Claret, 2002, p. 87.<br />
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O jogo da várzea era o que atraía a maior parte do público. De grande,<br />
havia o campo da Ponte Pequena, do Corinthians velho, e o campo do<br />
Sírio. (...) O Pacaembu veio mais tarde, acho que em 38 ou 40. Aí<br />
começou a massa, antes o pessoal estava espalhado nas várzeas e nos<br />
bairros, jogando mesmo. 38<br />
As manifestações e reclamações também estavam nos jornais da chamada<br />
grande imprensa, como no caso do Jornal O Estado de S. Paulo, que<br />
também trazia freqüentemente em suas páginas inúmeras insatisfações de<br />
moradores sobre os problemas que assolavam o dia-a-dia da cidade, como a<br />
coluna “Queixas e Reclamações”. Ali era expresso o descontentamento da<br />
população diante de questões citadinas, sob os mais variados pontos de vista<br />
e exigências, cuja natureza se alterava também segundo o bairro de origem<br />
do reclamante. No cerne de cada uma delas, qualquer que fosse o periódico,<br />
portanto, encontravam-se representações e demandas de diferentes grupos<br />
sociais, classes e interesses, que às vezes podiam até ser coincidentes 39 .<br />
Em 5 de março de 1913, por exemplo, uma reclamação oriunda da<br />
periferia da cidade apontava da falta de calçamento, situação esta que provocava<br />
muita poeira e prejudicava a saúde de seus moradores 40 . Alguns dias<br />
depois, outra queixa referia-se aos imundos terrenos existentes em Higienópolis<br />
41 . Em outro caso, a reclamação recaía sobre as águas estagnadas nas<br />
imediações da avenida Paulista 42 .<br />
Tais insatisfações demonstravam as reais possibilidades de expressão<br />
das condições de vida, mas também revelavam as variações em função do<br />
bairro, do reclamante e do grau de intensidade do serviço que demandavam<br />
para se sanar o problema registrado. Um exemplo foi uma reclamação publicada<br />
pelo “O Estado de S. Paulo” em 9 de dezembro de 1912, no qual o item<br />
apontado foi a água que ficava estagnada nas ruas – já calçadas – localizadas<br />
38 Depoimento do Sr. Amadeu. In: BOSI, Ecléa. Op. cit., p. 138-139. Por volta de 1916, segundo o jogador<br />
de futebol Feitiço, o Ítalo-Lusitano era o melhor time de São Paulo e também estava localizado em uma<br />
várzea. “É interessante que, com o pouco que se ganhava, dava para comer e beber suficientemente”.<br />
Depoimento de Luiz Matoso – ‘Feitiço’. In: Memória urbana: a grande São Paulo até 1940. Op. cit., p. 115.<br />
39 Como esta preocupação SILVA, Eduardo. Op. cit., p. 20, aborda como uma coluna do Jornal do Brasil<br />
registrava as demandas populares na cidade do Rio de Janeiro no início do século XX. Entre as principais<br />
queixas estavam a ineficiência nos serviços de saneamento, luz, transporte, limpeza; mas como estes<br />
serviços eram prestados por particulares, as queixas eram direcionadas a eles e não diretamente ao<br />
governo, o que não lhes tirava o direito de encaminhar as mesmas aos poderes públicos, pois<br />
reconheciam que os serviços eram concessões públicas.<br />
40 Arquivo do Estado de São Paulo (AESP) – São Paulo – Jornal O Estado de São Paulo. 5 de março de 1913, p. 5.<br />
41 (AESP) Jornal O Estado de São Paulo. 25 de abril de 1913, p. 6.<br />
42 (AESP) Jornal O Estado de São Paulo. 15 de janeiro de 1913, p. 4.<br />
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202<br />
entre a 21 de Abril e a Uruguaiana, problema provocado pela passagem dos<br />
veículos. As reivindicações coletivas também eram comuns nos jornais, como<br />
a divulgada em novembro de 1912, em nome dos moradores da Bela Vista<br />
que solicitavam providências quanto ao péssimo cheiro existente na região 43 .<br />
Outra forma de manifestação, muito comum diante do emergente movimento<br />
operário, foi a greve, como a greve geral que marcou a cidade em 1917,<br />
deflagrada após longo processo de depressão dos salários, associado à resolução<br />
patronal que prolongava o trabalho noturno. Dentre as reivindicações dos trabalhadores,<br />
relacionadas com os objetivos aqui propostos, há que captar as ligadas<br />
às suas más condições de vida, quais sejam os aumentos nos preços dos gêneros<br />
de primeira necessidade, a adulteração de alimentos e o valor dos aluguéis 44 .<br />
Os efeitos do movimento paredista, de 1917, estenderam-se pelos<br />
anos seguintes, dando vazão a angústias que refletem como os trabalhadores<br />
vivenciavam a realidade das más condições de vida na cidade. E esse<br />
quadro de insatisfação era cotidianamente expresso nas páginas dos periódicos,<br />
na maioria ligados ao movimento operário, mas também presente<br />
em menores proporções em o Estado de São Paulo. Entretanto, não somente<br />
as greves foram utilizadas como forma de ação, o boicote foi outra maneira<br />
de os trabalhadores reivindicarem o que achavam ser seus direitos,<br />
como por exemplo o boicote levado a cabo pela Federação Operária contra<br />
a Cia. Antarctica, em 1919 45 .<br />
Considerações finais<br />
A urbanização da cidade de São Paulo configurou-se para os trabalhadores<br />
de maneira desigual quanto ao acesso às condições de vida. Moradias<br />
mal-iluminadas e insalubres, carência de serviços públicos e alimentos conta-<br />
43 (AESP) Jornal O Estado de São Paulo. 24 de novembro de 1912, p. 4.<br />
44 (AEL) Jornal A Plebe. 9 de julho de 1917, p. 3.<br />
45 (AEL) Jornal A Plebe. 14 de junho de 1919, p. 3. A prática do boicote teve origem contra o administrador<br />
de terras, o capitão Boycott, em 1880, na Irlanda. Na ocasião, o administrador aproveitando-se de uma<br />
crise de seus arrendatários abaixou o valor pago pela colheita. Em um dos condados houve uma<br />
paralisação, e em função da necessidade da colheita fora concedido o aumento. Entretanto, os mesmos<br />
acabaram sendo expulsos das terras por ocasião da renovação do arrendamento. Com o ocorrido<br />
decidiu-se condenar o capitão ao ostracismo social, ninguém na região trabalhava ou comercializa com<br />
ele. Foi quando o jornalista americano James Redpath chamou a movimentação de boycott. FERRERAS,<br />
Norberto O. No país da cocanha: aspectos do modo de vida dos trabalhadores de Buenos Aires (1880-<br />
1920). Campinas: Tese de Doutoramento, IFCH, Unicamp, 2001, especialmente o Tópico – O boicote:<br />
a radicalização da solidariedade.<br />
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minados (além de falsificados), traziam conseqüências que acabavam atingindo<br />
principalmente a população pobre, imigrante, negra e alheia das benesses<br />
desse processo de urbanização calcado na busca da cidade moderna e<br />
civilizada, visando saneá-la em seus aspectos físicos e morais.<br />
Isso posto, na confluência das ações justificadas pelas legislações sanitárias<br />
(em que a de 1911 destina especial atenção à situação urbana da capital<br />
paulista), atreladas aos interesses imobiliários de então, definiram-se locais<br />
específicos de moradia e trabalho para cada grupo social. Nesses novos espaços,<br />
nem sempre aparelhados por serviços públicos que garantissem condições<br />
mínimas de vida salubre, os trabalhadores passaram a alvos de intervenções<br />
urbanas pelos poderes públicos, com vista à saúde do corpo social<br />
– por meio do combate aos males urbanos –, mas sem a devida contrapartida<br />
de investimentos públicos que lhes assegurassem os mesmos serviços e direitos<br />
que tinham os moradores dos abastados bairros localizados em pontos<br />
altos ou saneados da cidade. Isso, contudo, não excluiu o fato de que muitos<br />
desses trabalhadores, organizados ou não em torno do movimento operário<br />
nascente, tentassem fazer ecoar suas necessidades, suas reclamações e suas<br />
frustrações na busca por melhores condições de vida.<br />
Um caso extremamente emblemático e revelador da situação gerada<br />
pela urbanização desigual, destinando aos trabalhadores posições e acessos<br />
marginais aos bens da cidade, o qual, entretanto, demonstra ao mesmo tempo,<br />
que possuíam consciência de seus direitos e procuravam meios para<br />
melhorar suas condições de vida – independentemente da estratégia adotada<br />
–, encontra-se personificado na pessoa de Carolina Maria de Jesus: mãe<br />
solteira, negra, migrante (nascida em Minas Gerais), semi-analfabeta e moradora<br />
da favela Canindé, na cidade de São Paulo.<br />
Carolina escreveu o cotidiano de sua vida como moradora da favela, o<br />
qual foi publicado em 1960, revelando as estratégias de sobrevivência em<br />
meio às péssimas condições de vida. Por si só seu relato demonstra como<br />
se reproduziu uma desigualdade gritante no processo de urbanização da<br />
cidade de São Paulo, representado pela emergência das favelas anos mais<br />
tarde ao período aqui delineado. Mas os relatos deixados por Carolina evidenciam<br />
muito mais.<br />
Diferenciando-se do Zé Povinho e aproximando-se de Juó Bananére na<br />
indignação, Carolina Maria de Jesus colocava nas páginas de seus cadernos<br />
(coletados nas sobras dos lixos da cidade) sua visão de mundo. Devido aos<br />
limites aqui impostos cabe o registro de uma de suas observações, realizada<br />
em 7 de novembro de 1958, que resume a força de luta dessa cidadã:<br />
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204<br />
[...] Deixei o lêito e fui carregar agua era 5 ½. Acendi o fôgo e não fui<br />
comprar pão porque não tinha dinheiro. Fiz mingau de fubá e pedi aos<br />
filhos se faziam o favôr de comer. Concordaram a Vera não quiz. Eu fui<br />
pedir o carrinho da Rosalina emprestado para eu levar uns ferros no<br />
deposito. Ela disse que havia emprestado o carrinho. Que quando o<br />
homem retornasse do mercado eu podia usa-lo. Preparei o João para ir<br />
na escola e fui buscar o carrinho. Esperei o homem desocupá-lo. Fui<br />
vender os ferros. Levei a Vera, e o Jose Carlos.<br />
- Quando ia chegando perto da padaria Guine, tinha uma mulher lavando<br />
a calçada e chingando o dr. Adhemar. [prefeito de São Paulo]<br />
- Quem devia morar nesta rua chêia de pó, é o Prefêito. A unica coisa<br />
que êle quer, é o nosso dinheiro. Ele podia mandar molhar a rua. Eu<br />
canso de limpar o pó, e a casa esta sempre suja – pensei no Circulo<br />
Vicioso se chove, e tem lama, o prefêito não presta porque não calça as<br />
ruas. Se faz sol e tem pó, o Prefêito não presta porque não molha as<br />
ruas. Quando será que o povo vae compreender que quando chove<br />
tem lama. E quando tem sol tem pó. A carreira política é espinhosa. O<br />
senhor Manoel pesou os ferros ganhei 70. Comprei pão, e média para<br />
os filhos [...] 46 .<br />
46 JESUS, Carolina Maria de. Meu estranho diário. São Paulo: Xamã, 1996, p. 51. Obra organizada por José<br />
Carlos S. Meihy e Robert M. Levine, cuja edição traz a íntegra do texto publicado em 1960, sob o título<br />
“Quarto de despejo”, no qual a autora conta sua vida na favela e, anos depois, em “Sala de Alvenaria”,<br />
sua vida ao deixar a favela. Uma pesquisa em andamento sobre a autora é de PERES, Elena Pájaro.<br />
Batalha da favela. A invisibilidade como tática, a sombra como inserção na cidade de São Paulo (1942-<br />
1964). Trabalho apresentado durante o XXIII Simpósio Nacional de História. Londrina: ANPUH, 2005.<br />
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Resumo<br />
O presente artigo analisa a história de<br />
uma companhia ferroviária constituida em<br />
12 de agosto de 1882 numa importante<br />
região cafeeira paulista. O objetivo é, a<br />
partir da experiência da Companhia Estrada<br />
de Ferro Rio Claro, demonstrar que<br />
uma das formas encontradas pelas companhias<br />
ferroviárias para garantir a lucratividade<br />
era se expandir através da construção,<br />
da fusão com outras companhias e<br />
da compra de pequenos e médios ramais<br />
ferroviários.<br />
Palavras-chave:<br />
ferrovia – Companhia Estrada de Ferro<br />
Rio Claro – São Paulo<br />
205<br />
A Companhia Estrada de Ferro Rio Claro<br />
e o acesso ao oeste paulista<br />
Guilherme Grandi*<br />
Abstract<br />
The following article analyses the history<br />
of a railway company established in August<br />
12 th 1882, in an important coffee cultivating<br />
region in the State of São Paulo.<br />
The aim of the paper is to demonstrate,<br />
by focusing on the experience of the<br />
Companhia Estrada de Ferro Rio Claro,<br />
that one of the ways found by railway<br />
companies to garantee profitability was<br />
to expand by means of construction, of<br />
merging with other companies and of<br />
buying small and medium branch lines.<br />
Keywords:<br />
railway – Companhia Estrada de Ferro<br />
Rio Claro – São Paulo<br />
* Mestre em Economia pela UNESP (FCL-Araraquara). Professor da Faculdade de Comunicação Social<br />
Cásper Líbero.<br />
REV. TERRITÓRIOS E FRONTEIRAS – PROG. DE PÓS-GRAD. EM HISTÓRIA – UFMT – V.6 – N.2 – JUL./DEZ. 2005<br />
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206<br />
Existe uma vasta bibliografia no campo da história econômica que focaliza<br />
a introdução do transporte ferroviário e suas conseqüências econômicas<br />
para a experiência de diversos países do globo. É notória a grande quantidade<br />
de trabalhos que desenvolvem estimativas a respeito dos impactos econômicos<br />
e sociais advindos da construção e operação das ferrovias. Muitos<br />
desses trabalhos discutem a participação do transporte ferroviário no PIB<br />
nacional e os benefícios econômicos e sociais gerados pela inovação no segmento<br />
de transporte. A abordagem predominante nesses trabalhos, denominada<br />
the social saving approach, vincula-se diretamente aos trabalhos clássicos<br />
sobre o sistema ferroviário norte-americano de autores como Robert Fogel<br />
(1960 e 1964) e Albert Fishlow (1965). John Coatsworth (1972) e William<br />
Summerhill (2003) também aplicam essa metodologia, em estudos sobre<br />
os impactos diretos e indiretos, decorrentes do setor ferroviário em países<br />
como o México e o Brasil 1 .<br />
William Summerhill, analisando as conseqüências da introdução das ferrovias<br />
no Brasil, afirma que durante o século XIX a maioria das companhias<br />
ferroviárias não gozava de níveis altos de lucratividade. Apenas nas regiões<br />
onde o nível de renda era mais elevado, havia maiores possibilidades de<br />
ganhos às empresas ferroviárias, como era o caso da região sudeste do Brasil.<br />
Este artigo analisa a trajetória de uma companhia ferroviária situada<br />
numa importante região cafeeira paulista: a Companhia Estrada de Ferro Rio<br />
Claro. Para alguns autores a Companhia Rio Claro foi o maior empreendimento<br />
jamais tentado pelos fazendeiros, situados além do município de Rio<br />
Claro, e que não contava com a política de dividendos garantidos pelo Governo.<br />
Summerhill argumenta que em 1887, ano em que a Companhia Rio<br />
Claro conclui a extensão total de suas linhas, o transporte ferroviário de carga<br />
contabilizou uma economia de 78,4 milhões de mil-réis, equivalente a aproximadamente<br />
12% do PIB brasileiro da época 2 .<br />
Durante a segunda metade do século XIX a cultura cafeeira se expandiu<br />
por toda a região do Oeste Paulista. A partir de meados da década de<br />
1870, fazendeiros locais exigiam que o Governo aprovasse a concessão de<br />
uma ferrovia que, passando pela região, minimizasse o custo do transporte<br />
de suas produções agrícolas. Antônio Carlos de Arruda Botelho, o Conde do<br />
Pinhal, e José Estanislau de Melo Oliveira, o Visconde de Rio Claro, perten-<br />
1 SUMMERHILL, W. R. Railroads in Imperial Brazil, 1854-1889. In: Coatsworth J. H. and Taylor, A. M. (eds).<br />
Latin America and the World Economy Since 1800. Cambridge, Mass., 1998, p. 390.<br />
2 SUMMERHILL, Railroads in Imperial Brazil,Cambridge, Mass, 1998, p. 389.<br />
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207<br />
centes à mesma oligarquia local, também pressionavam o Governo e conseguiram<br />
influenciar decisivamente na determinação do traçado da ferrovia em<br />
direção as suas propriedades e a vasta região compreendida entre os municípios<br />
de Rio Claro e Araraquara 3 . Desde a aprovação da concessão da ferrovia<br />
no início da década de 1880 até os anos 1890, o empreendimento foi<br />
alvo de disputa entre diversos grupos nacionais e estrangeiros que manifestavam<br />
interesses políticos e econômicos em torno do traçado e, principalmente,<br />
dos lucros que a localização estratégica da Companhia nas promissoras<br />
terras do Oeste Paulista garantia.<br />
O objetivo do presente artigo é, a partir da experiência da Companhia<br />
Rio Claro, demonstrar que uma das formas encontradas pelas companhias<br />
ferroviárias paulistas para garantir a lucratividade era se expandir através da<br />
construção, da fusão com outras companhias e da compra de pequenos e<br />
médios ramais ferroviários. O texto está dividido em quatro partes. A primeira<br />
analisa a tentativa de fusão entre as Companhias Rio Claro e Paulista. A segunda<br />
focaliza a administração da Companhia Rio Claro pelo capital inglês e o seu<br />
desempenho econômico-financeiro durante todo o período anterior a sua aquisição<br />
pela Companhia Paulista em 1892. A terceira parte compara os desempenhos<br />
econômico-financeiros do ramal de Rio Claro e da Seção Fluvial durante<br />
o período de 1892 a 1903, dessa forma, buscou-se compreender a estratégia<br />
da Companhia Paulista de desativar a via fluvial no rio Mogi-Guaçu e direcionar<br />
seus investimentos na ampliação das linhas do ramal ferroviário de Rio<br />
Claro. A quarta e última parte refere-se as considerações finais.<br />
A Companhia Estrada de Ferro Rio Claro e<br />
a tentativa de fusão com a Companhia Paulista<br />
A Estrada de Ferro Rio Claro pode ser caracterizada como uma ferrovia<br />
de pequeno porte. Com uma extensão de 264,5 quilômetros tal ferrovia<br />
teve seu primeiro trecho inaugurado em 1884 ligando os municípios de<br />
Rio Claro e São Carlos do Pinhal, numa das principais regiões cafeeiras da<br />
Província de São Paulo.<br />
A história da Companhia Estrada de Ferro Rio Claro vincula-se direta-<br />
3 A respeito da Companhia Rio Claro ver também: DINIZ, D. M. de F. L. Rio Claro e o café: desenvolvimento,<br />
apogeu e crise (1850-1920). Rio Claro. Tese de Doutorado, Unesp, 1973; SANTOS, F. A. dos, Rio<br />
Claro: uma cidade em transformação, 1850-1906. Campinas. Dissertação de Mestrado, Unicamp, 2000.<br />
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208<br />
mente à questão do prolongamento da estrada de ferro da Companhia Paulista.<br />
Desde o contrato de 1873 firmado com o Governo Provincial, a Paulista<br />
detinha o direito de prolongamento além de seu ponto terminal no município<br />
de Rio Claro, aberto ao tráfego em 1876. Porém, antes mesmo em 1873,<br />
o Governo Imperial encomendou estudos a respeito da viabilidade de implantação<br />
de uma via de comunicação entre as Províncias de São Paulo e<br />
Mato Grosso. Indicado pelo Governo para fazer o reconhecimento das regiões<br />
e levantar as possíveis plantas, o engenheiro Francisco Antônio Pimenta Bueno<br />
ofereceu para a escolha do traçado férreo a partir de Rio Claro a cumeada<br />
entre os rios Tiête e Mogi-Guaçu.<br />
Nos anos de 1879 e 1880, a questão do prolongamento da estrada de<br />
ferro da Paulista toma força no debate político da época envolvendo os fazendeiros<br />
locais, o Governo e a própria Companhia Paulista. Flávio Saes<br />
afirma que no momento da publicação da concessão do prolongamento a<br />
Paulista insistia no projeto em direção a Brotas e Jaú, contrariando interesses<br />
de fazendeiros de São Carlos, Rio Claro e Araraquara 4 .<br />
Para um dos engenheiros da Companhia Paulista na época, Adolpho<br />
Pinto, o traçado mais conveniente ao interesse geral das zonas a serem servidas<br />
era o que conduzisse ao Morro Pelado (Itirapina). No entanto, este traçado<br />
não agradava os familiares do Visconde de Rio Claro, grandes proprietários<br />
de terras em Cuscuzeiro, atual município de Analândia 5 .<br />
O traçado que foi objeto de estudo encomendado pelo Governo Imperial,<br />
conhecido como "traçado Pimenta Bueno", tornou-se referência básica<br />
para o projeto de concessão do prolongamento da estrada de ferro da Paulista.<br />
Todavia, após intensos debates proferidos nas Assembléias Provinciais, no<br />
dia 20 de maio de 1880 a Companhia Paulista abdicou do direito de prolongamento<br />
por não concordar com o traçado proposto na concessão 6 .<br />
Adolpho Pinto afirma que após a desistência da Paulista, não houve<br />
interessados em aceitar a concessão nos termos da lei votada na Assembléia<br />
Legislativa Provincial do dia 10 de abril de 1880, que exigia a construção da<br />
estrada em bitola de 1,60m 7 .<br />
4 SAES, F. A. M. de. A grande empresa de serviços públicos na economia cafeeira. São Paulo: Hucitec, 1986,<br />
p. 68-69.<br />
5 TRUZZI, O. M. S. Café e indústria no interior de São Paulo (o caso de São Carlos). São Paulo, Dissertação<br />
de Mestrado, FGV, 1985, p. 110-11.<br />
6 RELATÓRIO da Diretoria da Companhia Paulista para a Sessão de Assembléia Geral de Acionista de 29<br />
de agosto de 1880. São Paulo: Typographia do “Correio Paulistano”, p. XV-XVI (referenciado a partir de<br />
agora como RCPEF).<br />
7 PINTO, A. A. História da viação pública de São Paulo. 2.ed. São Paulo: Governo do Estado, 1977, p. 65.<br />
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209<br />
Para atrair o interesse de possíveis concessionários o Governo publicou<br />
editais de concorrência para a construção de uma ferrovia de acordo com o<br />
traçado Pimenta Bueno, compreendendo um ramal para Brotas, Dois Córregos<br />
e Jaú, mas em que se alterava a bitola de 1,60m para a de 1,00m 8 .<br />
Diante de toda disputa que envolveu a questão do prolongamento, a<br />
concessão finalmente foi feita ao próprio engenheiro da Paulista, Adolpho<br />
Pinto, ao seu irmão Luis Augusto Pinto e a Benedito Antônio da Silva através<br />
do Decreto Imperial n° 7838 de 4 de outubro de 1880. Segundo as determinações<br />
do Decreto, os concessionários tomariam a responsabilidade de organizar<br />
uma companhia que construísse uma estrada de ferro sem a garantia de<br />
juros do Governo, cujo prazo do privilégio de construção, uso e gozo passara<br />
de 90 para 50 anos 9 . Este fato é extremamente relevante para a história do<br />
desenvolvimento ferroviário em São Paulo, pois a Companhia Rio Claro foi<br />
uma das primeiras ferrovias a ser construída e operada sem os dividendos<br />
garantidos pelo poder público.<br />
No mesmo ano de 1880, o Barão do Pinhal comprou a parte da concessão<br />
dos irmãos Pinto e logo se mobilizou na intenção de levantar capital para<br />
a construção da ferrovia. Após um curto período de captação de recursos, a<br />
Companhia Rio Claro foi elevada à categoria de sociedade anônima e autorizada<br />
a funcionar através do Decreto n° 8639 de 12 de agosto de 1882. Sob<br />
um capital inicial de 1.800 contos de réis, a Companhia em seu primeiro ano<br />
de operação (1884) passou a integralizar 2.300 contos de réis e logo após a<br />
conclusão total de seu trajeto apresentou o capital social de 5.000 contos de<br />
réis, estando ele dividido em 25.000 ações de 200 mil réis cada uma e subscritas<br />
por 253 acionistas 10 .<br />
Até o ano de 1889, a extensão da E. F. Rio Claro era de 264 quilômetros,<br />
sendo 127 na linha principal entre os municípios de Rio Claro e Araraquara,<br />
e os restantes 137 quilômetros no ramal que partia da estação do<br />
Visconde do Rio Claro no quilômetro 57 de linha principal. O ramal que<br />
atingia o município de Jaú continha 10 estações e a linha-tronco comportava<br />
11, totalizando 21 estações ao longo de toda a estrada 11 .<br />
8 Ibidem, p. 65; RCPEF de 29 de agosto de 1880, p. XVII.<br />
9 DINIZ, Rio Claro e o café, p. 147.<br />
10 RCPEF n° 38 de 30 de setembro de 1888, p. 66, anexo n° 8.<br />
11 RCPEF n° 38 de 30 de setembro de 1888, p. 65.<br />
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210<br />
Figura 1. Mapa parcial dos traçados ferroviários de São Paulo. Em destaque, o traçado da Companhia Rio Claro (1889)<br />
Durante todo esse período de construção e ampliação da Companhia Rio<br />
Claro, a Companhia Paulista viu-se impossibilitada de expandir seus trilhos em<br />
função, principalmente, das concessões oferecidas a Companhia Rio Claro e a<br />
Companhia Mogiana. Como estratégia de expansão dos serviços de transporte,<br />
a Paulista após ter alcançado Porto Ferreira em 1880 seguiu rumo ao oeste em<br />
Territorios e Fronteiras_v6_n2_jul_dez_2005.p65 210<br />
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211<br />
direção a Descalvado e estabeleceu a navegação a vapor no rio Mogi-Guaçu.<br />
Em seu estudo sobre a Seção Fluvial da Paulista, Hilário D. Neto identifica<br />
dois objetivos básicos da Companhia com o estabelecimento da navegação<br />
no Mogi-Guaçu: primeiro, criar infra-estrutura de transporte que atendesse<br />
às demandas da economia cafeeira, tanto na exportação de café quanto<br />
no abastecimento das fazendas e dos novos centros produtores e, segundo,<br />
atrair para o tráfego da Companhia o mercado da pecuária da frente de<br />
expansão que se encontrava no sul de Mato-Grosso, Goiás e Minas Gerais.<br />
Para o pesquisador, nos primeiros anos de atividade da hidrovia constatou-se<br />
a prática do monopólio do comércio de sal pela Paulista com o mercado da<br />
frente de expansão 12 .<br />
A produção ligada à pecuária de Minas Gerais e Mato Grosso fez do<br />
Triângulo Mineiro uma das regiões mais atrativas aos interesses mercantis das<br />
companhias ferroviárias que, em seus projetos de expansão, procuravam<br />
ultrapassar a frente pioneira do café que se estendia por todo o vale do<br />
Mogi-Guaçu. Os fazendeiros de Goiás e Mato-Grosso conduziam suas boiadas<br />
para o leste a fim de comercializá-las em Minas Gerais. Uberaba era o<br />
destino não só daqueles que demandavam do Santana do Parnaíba, mas também<br />
de outros oriundos do vale do Miranda e Taquarí, em Goiás, além dos<br />
procedentes de campos mais distantes como os de Cuiabá 13 .<br />
A crescente importância desse mercado despertou o interesse da Paulista<br />
que decidiu, como única alternativa de expansão para o seu tráfego, investir<br />
na navegação do rio Mogi-Guaçu. Em 1882, procedeu-se à exploração do rio<br />
para o levantamento de suas condições. Em 17 de janeiro de 1883, a Paulista<br />
requeria à Assembléia Provincial a concessão do privilégio para a navegação<br />
dos rios Mogi-Guaçu e Pardo até a barra do Rio Grande. Porém, somente em<br />
1886 definiu-se a questão da concessão do privilégio à navegação através do<br />
Decreto nº 9753, de 6 de maio de 1886, onde o Governo Imperial concedeu<br />
a Paulista o privilégio de dez anos, que, em agosto, elevou-se para trinta anos<br />
o direito de navegação pelos rios Pardo, Mogi-Guaçu e Grande 14 .<br />
Construída numa extensão de 200 quilômetros, de Porto Ferreira ao Pontal<br />
do Rio Pardo, a Seção Fluvial da Paulista conheceu rapidamente o fracasso.<br />
A baixa receita com o transporte de passageiros e a intensa concorrência com<br />
12 DOMINGUES NETO, H. Singrando o Mogi Guaçu: um estudo sobre a formação de um mercado interno<br />
regional (1883-1903). Araraquara, Dissertação de Mestrado, Unesp, 2001, p. 15.<br />
13 Ibidem, p. 51.<br />
14 DOMINGUES NETO, Singrando o Mogi-Guaçu, p. 65.<br />
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212<br />
a Mogiana, principalmente em relação ao comércio de sal, fez com que a<br />
Paulista, a partir de 1887, buscasse novas alternativas na intenção de concorrer<br />
melhor com as empresas rivais no transporte de um tráfego de mercadorias e<br />
passageiros cada vez mais expressivo, em função da expansão cafeeira 15 .<br />
Em trabalho sobre a legislação ferroviária, o engenheiro Clodomiro Pereira<br />
chama a atenção com relação ao erro cometido pela Paulista em não ter<br />
se engajado na construção da linha de Rio Claro a Araraquara.<br />
Desde 1883, ou mesmo desde a concessão das linhas do Rio Claro a<br />
Araraquara, e seu ramal, que a Companhia Paulista por um erro, jamais<br />
perdoável, não quis construir ... viu-se esta entalada por todos os lados,<br />
não podendo nem prolongar-se nem alargar sua rede, salvo dentro da<br />
zona privilegiada. Daí os esforços desordenados que a partir de 1887<br />
começou a empregar para sair desta situação. Veio-lhe primeiro a mania<br />
de fusão com as linhas vizinhas, e depois a de compra. 16<br />
No dia 16 de abril de 1888, a Paulista dirigiu-se formalmente à Diretoria<br />
da Companhia Rio Claro para manifestar-lhe sua intenção de fusão. Em resposta<br />
ao ofício, na data de 17 do mesmo mês, o Dr. Firmiano de Morais Pinto,<br />
presidente da Companhia Rio Claro, manifestou-se favoravelmente em relação<br />
à possibilidade da Rio Claro unificar seus direitos e interesses com a<br />
Paulista e informou que iria reunir os membros da Companhia para estudar e,<br />
assim, poder chegar a um juízo a respeito da questão proposta. Pouco tempo<br />
depois, a 14 de maio de 1888, uma comissão representando a Companhia<br />
Rio Claro apresentou um relatório sobre o movimento financeiro de<br />
cada Companhia, que estabelecia as seguintes bases para a unificação:<br />
1º. Ambas as Companhias entram para a comunhão com o seu capital,<br />
saldo, materiais, propriedades e direitos, de modo a constituírem uma<br />
só Companhia.<br />
2º. As Companhias Rio Claro e Paulista tornam-se solidárias e reciprocamente<br />
responsáveis pelas suas respectivas obrigações.<br />
3º. Para o efeito da comunhão os títulos ou ações de ambas as Companhias<br />
são indistintamente do valor nominal de 200$000 cada uma. 17<br />
15 Ibidem, p. 157-58.<br />
16 SILVA, C. P. Política e legislação de estradas de ferro. 2 vols. São Paulo: Laemmert, 1904, p. 531.<br />
17 RCPEF n° 38 de 30 de setembro de 1888, p. 14.<br />
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A Diretoria da Paulista também encaminhou os engenheiros Walter Hammond<br />
e Adolpho Pinto para procederem ao exame técnico da linha férrea da<br />
Companhia Rio Claro, com o objetivo de formalizarem um parecer definitivo<br />
a respeito da união de ambas as Companhias.<br />
Feita a análise das condições técnicas e econômicas de ambas as ferrovias,<br />
em 27 de outubro de 1888 a Paulista informou à Companhia Rio Claro<br />
que sua proposta do valor de ambas as ações serem de 200 mil réis cada<br />
uma, só trazia vantagens à Companhia Rio Claro. De acordo com a Paulista,<br />
as ações da Rio Claro rendiam cerca de 25% menos em comparação às suas.<br />
A Companhia Paulista, portanto, propunha que a base do valor das ações<br />
fosse de duas ações suas para três da Rio Claro 18 .<br />
Tal proposta não foi aceita pelos diretores da Companhia Rio Claro,<br />
que argumentavam em favor da primeira base formulada por eles. Adolpho<br />
Pinto considerava estas bases ainda vantajosas para a Companhia Paulista: "...<br />
julgamos que pode a Companhia Paulista, sem prejuízos de seus interesses,<br />
aceitar a fusão mesmo em base mais favorável à Companhia Rio Claro" 19 . A<br />
opinião de Adolpho Pinto, porém, não foi o suficiente para que os diretores<br />
da Paulista aceitassem a paridade de ações. Na Assembléia de Acionistas de<br />
31 de março de 1889 ficou decidido que a Companhia Paulista deixaria de<br />
prosseguir na negociação 20 .<br />
Malograda a tentativa de fusão, não foi difícil ao Conde do Pinhal encontrar<br />
estrangeiros interessados em comprar a Companhia E. F. Rio Claro. No dia 5 de<br />
julho de 1889, o capital inglês vinculado ao English Bank of Rio de Janeiro<br />
comprou a Companhia que durante as últimas décadas do século XIX era muito<br />
bem conceituada pelos analistas de carteira de investimentos de Londres 21 .<br />
A questão da venda da Companhia Rio Claro figura como um mistério para<br />
a historiografia, uma vez que os seus demonstrativos apresentam consideráveis<br />
18 Segundo as observações dos engenheiros da Paulista, levando-se em consideração o período que<br />
compreende todo o ano de 1887 até o primeiro semestre de 1888, a Paulista produziu a receita líquida<br />
de 743:192$597 réis enquanto a Rio Claro gerou a receita líquida de 148:758$505 réis, assim concluíram<br />
que cada ação da primeira no valor de 200 mil réis distribuía o dividendo semestral de 8,6%,<br />
enquanto que cada ação da segunda rendia 5,6%. RCPEF n° 38 de 30 de setembro de 1888, p. 97.<br />
19 PINTO, História da viação pública, p. 196.<br />
20 RCPEF n° 39 de 31 de março de 1889, p. 27.<br />
21 Segundo várias edições do Stock Exchange Yearbook as estimativas mais altas construídas para a<br />
avaliação dos investimentos ferroviários no Brasil eram as correspondentes à Companhia Rio Claro. Por<br />
exemplo, as séries temporais de retorno médio dessa ferrovia são dadas a seguir para o período de<br />
1891 a 1899 (%): 8,5; 7,0; 15,0; 17,0; 14,0; 14,0; 14,0; 14,0; 14,0. Entretanto, Roberto Fendt Jr. ressalta<br />
que o retorno médio disfarça o risco do investimento, que no caso se associa a variância do retorno.<br />
FENDT Jr, R. Investimentos ingleses no Brasil, 1870-1913 – uma avaliação da política brasileira. Revista<br />
Brasileira de Economia 31, n° 3, 1977, p. 533, nota de roda pé n° 17.<br />
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aumentos de receita. Há divergências entre alguns autores sobre os motivos que<br />
levaram os proprietários cafeicultores a venderem a ferrovia que se encontrava<br />
em pleno progresso e franco desenvolvimento durante a década de 1880.<br />
Diana Diniz observa que as incertezas provocadas pela conjuntura política<br />
ao final da década de 1880 aliadas ao bom preço oferecido pelos investidores<br />
ingleses são suficientes para explicar a venda da Companhia Rio<br />
Claro 22 . Warren Dean já é mais enfático ao afirmar que o Conde do Pinhal não<br />
tinha interesse especial em operar a ferrovia 23 .<br />
Saes (1986) argumenta que na década de 1890 iniciou-se uma reestruturação<br />
do grande capital dentro da economia cafeeira. Nesse momento, em<br />
meio às crises inter-relacionadas de diversas ordens (cambial, do mercado<br />
cafeeiro, bancária), eclodia no seio da relação entre cafeicultura e capital<br />
(mais precisamente o capital aportado no setor ferroviário) o início de um<br />
conflito de interesses envolvendo fazendeiros, investidores estrangeiros e o<br />
capital não gerado exclusivamente pela lavoura.<br />
Porém, ao que nos parece, a observação de Adolpho Pinto esclarece a<br />
situação econômica da época, ao afirmar que no final da década de 1880 e<br />
início de 1890 "... se desenvolveu e alastrou no país a febre dos negócios,<br />
esse desenfreado espírito de especulação que invadiu e contaminou todas as<br />
classes ativas da nação..." 24 .<br />
É importante também lembrar que, a abolição dos escravos em 1888<br />
acarretou para a maioria dos fazendeiros uma sobrecarga de gastos com o<br />
novo encargo de pagamento de salários. Esse fato, aliado às limitações do<br />
sistema de crédito ao setor cafeicultor, talvez tenha incentivado o Conde a<br />
vender a Companhia para investir no setor financeiro e na comercialização<br />
do café. Vendida a Companhia, o Conde fundou o Banco de São Paulo e a<br />
Casa Comissária Arruda Botelho 25 .<br />
Acreditamos que a opção do Conde de transferir suas opções de investimentos<br />
justifique-se por sua obstinação em aumentar seus rendimentos<br />
com sua principal atividade econômica, a cafeicultura.<br />
Diante das restrições de crédito agrícola e das dificuldades com a mediação<br />
da comercialização do café em Santos, o fundador da Companhia Rio<br />
22 DINIZ, D. M. de F. L. Ferrovia e expansão cafeeira: um estudo da modernização dos meios de transporte.<br />
Revista de História, n° 104. São Paulo, 1975, p. 848.<br />
23 DEAN, W. Rio Claro: um sistema brasileiro de grande lavoura, 1820-1920. Rio de Janeiro: Paz e Terra,<br />
1977, p. 54.<br />
24 PINTO, História da viação pública, p. 198-99.<br />
25 GORDINHO, M. C. (org.). Casa do Pinhal. São Paulo: Margarida Cintra Gordinho, 1985, p. 89.<br />
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Claro, na primeira Assembléia preparatória de fundação do Banco de São<br />
Paulo, subscreveu cinco mil apólices ouro emitidas pelo Governo Imperial.<br />
O Banco ainda contava com um agente em Santos para as transações financeiras<br />
de exportação do café e teve como seu presidente o próprio Conde<br />
que exerceu o cargo até 1901 26 .<br />
A gestão inglesa e o desempenho econômico-financeiro<br />
da Companhia Rio Claro no período de 1884 a 1891<br />
A partir de 30 de setembro de 1889 a Companhia Rio Claro, segundo<br />
Adolpho Pinto (1977), teve a sede de sua Diretoria transferida para Londres<br />
e passou a se chamar The Rio Claro-São Paulo Railway Company.<br />
No contrato de compra da ferrovia, firmado em 5 de julho de 1889<br />
entre a Diretoria da Companhia Rio Claro e os investidores ingleses, estabeleceu-se<br />
que o capital de 600.000 libras da Companhia estaria dividido em<br />
60.000 ações de 10 libras cada, e que 5% desse capital formaria o estoque de<br />
títulos (debêntures). A emissão do capital acionário correspondente em réis<br />
seria de 450.000 libras e os pagamentos das debêntures poderiam ser feitos<br />
no valor total das parcelas pré-definidas ou, nas datas de vencimento (15 de<br />
outubro ou 15 de novembro), com um desconto de 2% ao ano. Os juros<br />
sobre as debêntures seriam pagos semestralmente sempre no primeiro dia<br />
de janeiro e julho, com o primeiro pagamento a se realizar em 1° de janeiro<br />
de 1890. Dessa forma, o English Bank of Rio de Janeiro foi autorizado a<br />
receber as subscrições das ações e das debêntures acima mencionados 27 .<br />
Os investidores ingleses vinculados ao banco supracitado, a São Paulo<br />
Railway Company e ao Union Bank of London adquiriram a Companhia Rio<br />
Claro com todos os seus materiais, dependências, privilégios e direitos, os<br />
quais foram transacionados mediante um pagamento de garantia feito ao<br />
fundo de reserva do Tesouro Nacional de aproximadamente 42:000$000<br />
réis (ao câmbio de 27 dinheiros, equivalente a 4.725 libras). O pagamento à<br />
vista em dinheiro foi de 1.050.000 libras e o prêmio pela emissão das debêntures<br />
forneceu 12.000 libras de capital de giro à Companhia 28 .<br />
26 GORDINHO, Casa do Pinhal, p. 89.<br />
27 LONDON, Prospectus. The Rio Claro-São Paulo Railway Company, Limited. 2ª Moorgate Street, London<br />
(5/July/1889), p. 2.<br />
28 LONDON, Prospectus. The Rio Claro-São Paulo Railway Company, Limited. 2ª Moorgate Street, London<br />
(5/July/1889), p. 3.<br />
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Adolpho Pinto observa que os ingleses investiram cerca de 8.000 contos<br />
de réis (ou 320 mil réis por ação) na compra da Companhia, que tinha<br />
uma extensão total de 264 quilômetros e uma receita líquida média orçada<br />
em 400 contos de réis para o ano de 1889 29 .<br />
A administração inglesa da Companhia Rio Claro adquiriu logo a concessão<br />
para novas linhas e iniciou a construção dos ramais de Água Vermelha e<br />
Ribeirão Bonito, além do prolongamento de Araraquara a Jaboticabal, numa<br />
extensão de 201 quilômetros a mais para o desenvolvimento de sua linha.<br />
Diniz afirma que durante o controle inglês grandes quantidades de café<br />
ficaram paradas nas estações estocadas nos armazéns da The Rio Claro Railway<br />
Company, causando descontentamento entre os produtores insatisfeitos<br />
com a insuficiência dos meios de transportes. Os fazendeiros reclamavam<br />
através dos jornais da região da deficiente capacidade de transporte da ferrovia.<br />
Em 1890, o Inspetor Geral da Companhia acusou a Paulista de não colocar<br />
um número suficiente de vagões no ponto de baldeação da estação de<br />
Rio Claro para o transporte necessário de café. Em ata da 22ª Sessão da<br />
Câmara de Rio Claro, do dia 6 de dezembro de 1890, registrou-se que os<br />
chefes de estação da The Rio Claro Railway Company se recusavam a receber<br />
mais sacas de café por não terem como recolher e armazenar quantidades<br />
cada vez mais vultosas do gênero 30 .<br />
Esse último dado comprova de fato a emergência do conflito entre o grande<br />
capital estrangeiro (representado pela The Rio Claro Railway) e a cafeicultura.<br />
Se por um lado, a insuficiência nos transportes acarretou grandes perdas aos<br />
rendimentos dos produtores paulistas, por outro, a depreciação cambial característica<br />
deste período afetou diretamente a rentabilidade dos investimentos ferroviários,<br />
a ponto das despesas com a importação de combustíveis e lubrificantes<br />
terem aumentado substancialmente. Saes acrescenta que a queda do câmbio<br />
também elevou o custo de vida dos trabalhadores ferroviários, o que se refletiu<br />
no aumento dos salários pagos pelas estradas de ferro 31 .<br />
Segundo Dean, os investidores ingleses administraram mal a ferrovia<br />
que não deixou de ser lucrativa apesar das reclamações por parte da opinião<br />
pública. O lucro, sob um investimento inicial de 850.000 libras, foi de<br />
1.950.000 libras 32 .<br />
29 PINTO, História da viação pública, p. 198.<br />
30 DINIZ, Rio Claro e o café, p. 166.<br />
31 SAES, A grande empresa de serviços públicos na economia cafeeira. São Paulo: Hucitec, 1986, p. 115-16.<br />
32 DEAN, Rio Claro: um sistema brasileiro de grande lavoura, 1820-1920. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977, p. 55.<br />
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Para Adolpho Pinto, o balanço da The Rio Claro Railway Company de<br />
31 de março de 1892 contabilizou o gasto de 1.356.460 libras com a compra<br />
da estrada e sua ampliação, ao mesmo tempo em que a receita líquida do<br />
exercício na mesma data elevara-se à aproximadamente 1.242:869$400 réis,<br />
ou seja, um acréscimo nominal de 210,7% em comparação a receita líquida<br />
média de 1889 que foi de 400:000$000 réis 33 .<br />
Ao analisarmos o desempenho econômico da Companhia Rio Claro nos<br />
primeiros nove meses do ano de 1888, período que antecedeu a compra<br />
efetivada pelos investidores ingleses, observamos que as despesas representavam<br />
47,2%, ou um pouco menos da metade da receita total desse período<br />
que foi de 593:968$760 réis, com um saldo de 314:084$050 réis. Isto<br />
demonstra a excelente condição financeira da empresa que distribuiu no mesmo<br />
ano o dividendo de 6$200 réis por ação (6,2%), e tinha no movimento de<br />
seu tráfego uma variedade relativa de gêneros a serem transportados 34 .<br />
É possível constatar também o excelente desempenho da E. F. Rio<br />
Claro durante o curto período de gestão do capital inglês. Isto porque entre<br />
1889 e 1891 o valor médio da participação das despesas na receita ferroviária<br />
(o coeficiente de tráfego) foi de apenas 41,3% (Tabela 1).<br />
Pode-se afirmar com segurança que o frete cafeeiro foi o grande responsável<br />
pelo bom desempenho econômico-financeiro da ferrovia. Segundo os<br />
Relatórios da Companhia Paulista, a The Rio Claro Railway transportou 23.940<br />
e 28.900 toneladas de café nos anos de 1890 e 1891 respectivamente 35 .<br />
Outros dados contidos nesses Relatórios apontam, para o exercício do<br />
ano de 1890, a maior receita de tráfego em trânsito, aquela gerada pelas<br />
linhas da The Rio Claro Railway. Por receita de tráfego em trânsito, entendese<br />
a receita absorvida pela Paulista, mas produzida por outras linhas férreas<br />
com as quais ela se entroncava. O transporte realizado pela The Rio Claro<br />
Railway nesse ano gerou uma receita de 1.027:520$880 réis à Paulista, enquanto<br />
que a segunda companhia ferroviária mais rentável, segundo esse<br />
termo específico, foi a Mogiana, responsável pela receita de 1.007:262$570<br />
réis 36 . Já em 1891, essa mesma receita (tráfego em trânsito) produzida pelo<br />
serviço de transporte da The Rio Clara Railway foi orçada a 1.298:276$610<br />
33 PINTO, História da viação pública, p. 198.<br />
34 RELATÓRIO apresentado à Assembléia Legislativa Provincial de São Paulo pelo Presidente da Província<br />
Dr. Pedro Vicente de Azevedo no dia 11 de janeiro de 1889. São Paulo: Typographia a vapor de Jorge<br />
Seckler & Company, p. 130-32.<br />
35 RCPEF nº 47 de 30 de abril de 1896, p. 72.<br />
36 RCPEF n° 42 de 26 de abril de 1891, anexo n° 7, p. 57.<br />
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réis, ou seja, 26,4% a mais do que no ano anterior 37 .<br />
Segundo os Relatórios da The Rio Claro Railway Company, no ano de<br />
1891, quando o coeficiente de tráfego atingiu 49,7%, foram investidas cerca<br />
de 1.388.161 libras na ferrovia e as despesas de custeio somaram 84.775<br />
libras 38 . Este último dado justifica a elevação de 31,8% do coeficiente de<br />
tráfego de 1891 em relação ao ano anterior.<br />
De modo geral, entre 1884 e 1891, isto é, durante todo o período anterior<br />
àcompra da Companhia Rio Claro pela Paulista, a Estrada de Ferro Rio Claro<br />
apresentou um desempenho econômico-financeiro favorável (Tabela 2). Nesse<br />
período, o coeficiente de tráfego da Companhia Rio Claro apresentou uma tendência<br />
média de queda de 0,72% ao ano. A redução da participação das despesas<br />
na receita evidencia uma tendência de lucros crescentes da ferrovia.<br />
Figura 2. Tendência média do coeficiente de tráfego da Companhia Rio Claro (1884-1891)<br />
Apesar dos resultados favoráveis, ainda resta a dúvida sobre os motivos<br />
que levaram os investidores ingleses a venderem a próspera Companhia Rio<br />
Claro. A princípio, a intenção dos investidores ingleses em adquirir a Companhia<br />
parece estar relacionada ao reconhecimento de sua excelente situação<br />
financeira por parte dos analistas de carteira de investimentos de Londres.<br />
Nesse sentido, acreditamos que a venda da ferrovia à Companhia Paulista esteja<br />
associada à frustração do capital inglês, com respeito à conjuntura econômica<br />
por que passava o Brasil no início da década de 1890, e não com o desempenho<br />
interno da Companhia Rio Claro na prestação do serviço ferroviário.<br />
37 RCPEF n° 43 de 30 de abril de 1892, anexos 1 e 3.<br />
38 RELATÓRIOS da The Rio Claro Railway Company, 1890-1892.<br />
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Durante toda a década de 1890 observou-se uma vasta especulação<br />
financeira aliada a depreciação contínua do câmbio. Monbeig nota que o milréis<br />
caiu de 27 dinheiros em 1889, para 16,10 em 1892 e 6 em 1898 39 .<br />
Para os diretores da The Rio Claro Railway as questões relativas às<br />
chamadas perdas de câmbio consistiam, sem dúvida, no maior obstáculo à<br />
possibilidade de lucratividade dos investimentos com a ferrovia. No triênio<br />
de 1890-92 essa questão monetária acarretou as seguintes perdas respectivamente:<br />
2.467, 27.889 e 72.544 libras 40 .<br />
As perdas nos momentos de conversão da receita ferroviária em libras<br />
esterlinas apresentam-se como evidências significativas em relação à desistência<br />
do capital inglês em administrar a linha férrea da Rio Claro. Assim, depois<br />
de manifestada a intenção de outras companhias ferroviárias em adquirir a<br />
estrada, os investidores ingleses decidiram se desfazer do empreendimento<br />
em troca de outras fontes de investimento lucrativamente mais garantidas.<br />
Entendemos que a administração inglesa da Companhia Rio Claro aproveitou-se<br />
da conjuntura econômica do Brasil na época, para aumentar seus rendimentos,<br />
não por via do investimento em capital físico demandado pela ferrovia,<br />
mas sim através da transação definitiva, e muito vantajosa, que culminou em sua<br />
venda à Companhia Paulista no ano de 1892. O próprio comentário do presidente<br />
da Assembléia da The Rio Claro Railway denota a frustração de seus diretores<br />
com respeito à dinâmica interna do sistema econômico brasileiro:<br />
...que o Governo tinha o poder de diminuir a tarifa, logo que a renda<br />
aumentasse; que o país se achava em condições instáveis, e que o<br />
câmbio havia descido extraordinariamente, tudo isso fazia com que a<br />
direção se mostrasse temerosa pelo futuro da estrada. 41<br />
Diante dos fatos e especificidades que envolvem a venda da The Rio<br />
Claro Railway, esta foi adquirida pela Companhia Paulista de Vias Férreas e<br />
Fluviais com todas as suas concessões por 2.775.000 libras, sendo 25.000<br />
pagas em dinheiro e o restante de 2.750.000 em debêntures, com vencimento<br />
de 5% de juros ao ano, pagos semestralmente com o primeiro pagamento<br />
a realizar-se em 1 o de outubro de 1892 42 .<br />
39 MONBEIG, P. Pioneiros e fazendeiros de São Paulo. São Paulo: Hucitec/Polis, 1984, p. 108.<br />
40 RELATÓRIOS da The Rio Claro Railway Company, 1890-1892.<br />
41 SÃO PAULO. O Estado de São Paulo, 12/02/1892, p. 1.<br />
42 RCPEF n° 43 de 30 de abril de 1892, p. 12.<br />
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220<br />
Análise comparativa do desempenho<br />
econômico-financeiro do ramal de Rio Claro e da Seção<br />
Fluvial da Companhia Paulista no período de 1892-1903<br />
Esta terceira parte do texto tem por objetivo comparar os desempenhos<br />
econômico-financeiros de duas seções de transporte da Companhia<br />
Paulista: a Seção Rio Claro e a Fluvial.<br />
O período selecionado até 1903 se justifica em função da desativação<br />
do que antes era a principal concorrente no transporte da extinta Companhia<br />
Rio Claro, a navegação fluvial no Mogi-Guaçu. Esta experimentou um processo<br />
progressivo de desativação, que teve início em 1895 com o fechamento<br />
dos portos de Cunha Bueno e Cedro 43 . Todavia, é com a abertura ao<br />
tráfego em 1900/1901 do trecho ferroviário entre as estações de Rincão e<br />
Martinho Prado, que o ramal de Rio Claro passou a absorver grande parte do<br />
volume de tráfego fluvial, acarretando assim, a supressão total e definitiva da<br />
navegação no Mogi-Guaçu em 1903.<br />
Ao compararmos os desempenhos financeiros das Seções Rio Claro e<br />
Fluvial, observa-se que além da expressiva diferença entre as receitas de<br />
cada seção, as variações anuais do ramal de Rio Claro mostram-se maiores e<br />
mais positivas do que as da Seção Fluvial (Tabela 3).<br />
De fato, desde o início de sua atividade, a via fluvial da Paulista se<br />
deparou com graves problemas operacionais dada a concorrência com o<br />
modal ferroviário que, por sua vez, realizava um transporte com maior rapidez,<br />
regularidade e segurança. Isso explica, em grande medida, a desativação<br />
da navegação fluvial em 1903, quando a Paulista decide investir maciçamente<br />
na expansão das linhas da Seção Rio Claro.<br />
Em 1903 a Seção Rio Claro compreendia cinco ramais além de sua<br />
linha tronco, num total de 709 quilômetros de extensão. Deste total, 276<br />
quilômetros correspondiam à linha principal que ligava os municípios de<br />
Rio Claro e Bebedouro. Os restantes 431 quilômetros estavam distribuídos<br />
pelos ramais de Jaú (143 quilômetros), Água Vermelha (63 quilômetros),<br />
Ribeirão Bonito (40 quilômetros), dos Agudos (94 quilômetros) e do Mogi-<br />
Guaçu (93 quilômetros) 44 .<br />
Durante toda a primeira década do século XX, a Paulista prolongou as<br />
linhas de bitola de 1,00m do ramal de Rio Claro. De Bebedouro, a linha<br />
43 DOMINGUES NETO, Singrando o Mogi-Guaçu, p. 167.<br />
44 RCPEF nº 54 de 30 de junho de 1903, p. 27; Relatório do Inspector Geral, p. 1.<br />
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221<br />
principal alcançou o município de Barretos, ramificou-se de Rincão pelo vale<br />
do Mogi-Guaçu até Pontal; de Dois Córregos (no ramal de Jaú), os trilhos<br />
chegaram a Pederneiras, Agudos e Piratininga; e de Pederneiras seguiram em<br />
direção a Bauru, onde se entroncou com a E. F. Noroeste que ligava o Estado<br />
de São Paulo ao de Mato Grosso 45 .<br />
Esses prolongamentos denotam a importância da Seção Rio Claro para<br />
o projeto de expansão ferroviária da Companhia Paulista. Desde a compra<br />
da The Rio Claro Railway até o ano de 1910, quando a ferrovia alcançou o<br />
município de Bauru, os investimentos da Paulista se resumiram quase que<br />
exclusivamente à ampliação do ramal de Rio Claro.<br />
Dentre as principais fontes de rendimentos destacamos a participação<br />
do frete do café para a geração de receita da Companhia Paulista de Vias<br />
Férreas e Fluviais (Tabela 4). É interessante notar o aumento da participação<br />
da Seção Rio Claro em relação ao transporte total de café realizado pela rede<br />
ferroviária da Paulista nos últimos três anos do período selecionado. A partir<br />
de 1901 observa-se um aumento considerável dessa participação e, conseqüentemente,<br />
da receita proveniente desse frete. Isto se explica, como já<br />
dissemos, devido a abertura do trecho ferroviário no vale do Mogi-Guaçu<br />
que passou a absorver grande parte do volume de tráfego que anteriormente<br />
era transportado pela Seção Fluvial.<br />
De 1892 a 1901 houve um acréscimo de 28,5% da participação do<br />
frete cafeeiro na receita da Seção Rio Claro. Aliado a esse aumento no<br />
transporte ferroviário de café, Verena Stolcke afirma que em 1902 o<br />
estoque mundial desse produto atingiu 11 milhões de sacas, para uma<br />
demanda mundial anual de 14 milhões de sacas 46 . Para Sergio Silva, a<br />
produção que em 1897-98 foi de pouco mais de 7 milhões de sacas,<br />
aumentou para 9 milhões e 500 mil em 1889-1900. A colheita de 1901-<br />
02 chegou a mais de 16 milhões de sacas, aproximadamente 82% da<br />
produção mundial 47 .<br />
O Relatório da Paulista, de 30 de junho de 1902, destaca o aumento de<br />
73% no volume do café transportado pela Seção Rio Claro em relação ao<br />
período anterior. Numa narrativa entusiasmada, o engenheiro fiscal da Paulista<br />
ressalta que nenhuma outra linha apresentou resultado comparável. As<br />
45 CPEF, Apontamentos históricos da Companhia Paulista de Estradas de Ferro. Jundiaí, Departamento de<br />
Engenharia Civil, s/d, p. 7.<br />
46 STOLCKE, V. Cafeicultura. Homens, mulheres e capital. (1850-1980). São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 56.<br />
47 SILVA, S. Expansão cafeeira e origens da indústria no Brasil. 7.ed. São Paulo: Alfa-Omega, 1986, p. 60.<br />
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222<br />
outras companhias ferroviárias que também aumentaram a extensão de<br />
suas linhas e o volume transportado, como a Araraquarense e a E. F. do<br />
Dourado, não eram mais do que ramificações da Seção Rio Claro. Paralelamente,<br />
o engenheiro fiscal não deixou de expor a situação da via<br />
fluvial da Paulista:<br />
Não deixaremos de observar que a diminuição do tráfego que apresenta<br />
a linha fluvial do Mogy-Guassú é devido a motivo puramente<br />
acidental. É que se tendo inaugurado nos últimos dias de dezembro<br />
de 1901 o trecho da via férrea da estação de Rincão e Martinho Prado,<br />
grande quantidade de café que, a não se dar esta circunstancia, teria<br />
sido carregado em novembro e dezembro pela via fluvial, ficou entulhada<br />
nas fazendas á espera da abertura da nova estrada, a qual recebeu,<br />
pelas estações de Guarany, Guatapará e Martinho Prado, nos<br />
meses de janeiro e fevereiro do corrente ano, 101.584 sacas de café<br />
ou 6.095 toneladas. 48<br />
O trecho destacado identifica a preferência dos fazendeiros pelo transporte<br />
ferroviário em detrimento do serviço da Seção Fluvial. De fato, a viabilidade<br />
econômica da via férrea mostrou-se muito superior à apresentada pela<br />
Seção Fluvial. A citação abaixo reforça esse nosso argumento.<br />
Com a inauguração do trafego do ramal férreo que parte da estação de<br />
Rincão e se desenvolve pela margem direita do rio Mogy-Guassú, tornou-se<br />
dispensável o serviço de navegação ali mantido, que, a partir do<br />
dia 1° de fevereiro ultimo, foi suspenso de Porto Amaral para baixo, e,<br />
depois do 1° de maio, também no trecho de Porto Ferreira a Amaral,<br />
desde que se verificou ter ficado nesta parte o trafego reduzido ao<br />
transporte de mui diminuta tonelagem de cargas e poderem estas transitar<br />
via Descalvado ou pela estação de Tombadouro, do ramal de Santa<br />
Rita, com sensível economia nos fretes, segundo o plano de redução<br />
de tarifas que breve entrará em vigor. 49<br />
Comparando-se os coeficientes de tráfego das Seções Rio Claro e Fluvial<br />
observa-se, com clareza, as vantagens econômicas da primeira seção em<br />
48 RCPEF nº 53 de 30 de junho de 1902, p. 6.<br />
49 Idem, nº 54 de 30 de junho de 1903, p. 29.<br />
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223<br />
relação à segunda. A figura abaixo ilustra uma tendência média de alta de 6%<br />
ao ano da participação das despesas na receita da Seção Fluvial entre 1892 e<br />
1903. Este resultado confirma a idéia sobre a ineficiência, em termos de<br />
lucratividade, da navegação fluvial no rio Mogi-Guaçu.<br />
Figura 3. Tendência média do coeficiente de tráfego da Seção Fluvial (1892-1903)<br />
Nota-se, também, que o coeficiente de tráfego da Seção Fluvial manteve-se<br />
num patamar muito elevado (Tabela 5). Isto se justifica devido ao<br />
altíssimo coeficiente de 422,2%, correspondente ao ano de 1903, quando o<br />
serviço de navegação ficou limitado à apenas 66 km de operação no Mogi-<br />
Guaçu. Durante o período assinalado, o valor médio do coeficiente da Seção<br />
Fluvial ficou em 136,3%, enquanto a Seção Rio Claro apresentou o coeficiente<br />
de tráfego médio de 45,9% (Tabela 6).<br />
Mesmo desconsiderando o extraordinário coeficiente do ano de 1903, a<br />
Seção Fluvial apresenta o coeficiente de tráfego médio de 110,3%, o que corrobora<br />
a tese sobre sua extrema ineficiência econômica representada por seus resultados<br />
altamente deficitários.<br />
Finalmente, a Figura 4 elucida a vantagem do desempenho econômico-financeiro<br />
do ramal ferroviário de Rio Claro em relação ao desempenho<br />
da navegação fluvial no Mogi-Guaçu.<br />
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224<br />
Figura 4. Tendência média do coeficiente de tráfego da Seção Rio Claro (1892-1903)<br />
De modo geral, a análise do coeficiente de tráfego sugere que a Seção<br />
Rio Claro manteve um desempenho operacional relativamente estável, mesmo<br />
com a ocorrência de alguns coeficientes atípicos, como os relativos aos<br />
anos de 1893, 1894 e 1903.<br />
É importante assinalar que, apesar da figura ilustrar uma trajetória um<br />
tanto despadronizada, o coeficiente de tráfego da Seção Rio Claro apresentou<br />
uma variação muito pequena comparada à apresentada pelo coeficiente<br />
da Seção Fluvial no decorrer do mesmo período.<br />
Do ponto de vista do gerenciamento da ferrovia, a questão da estabilidade<br />
dos resultados operacionais é fundamentalmente importante, pois diminui<br />
o grau de incerteza em relação ao empreendimento, isto é, reduz o<br />
risco associado a sua continuidade operacional.<br />
Considerações finais<br />
Com base na análise dos desempenhos econômico-financeiros das duas<br />
seções de transporte da Companhia Paulista, entendemos que o fato da Seção<br />
Fluvial ter apresentado altos coeficientes de tráfego (sempre acima de 80%)<br />
aliado a maior estabilidade operacional da Seção Rio Claro foram determinantes<br />
na decisão da Paulista de desativar a navegação no Mogi-Guaçu e direcionar seus<br />
investimentos mais intensamente na expansão do ramal férreo de Rio Claro.<br />
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225<br />
Acrescenta-se que a intenção da Paulista de ampliar o ramal de Rio<br />
Claro pelo vale do Mogi-Guaçu, em substituição à via fluvial, denota um<br />
objetivo muito claro: aumentar a concorrência ferroviária com a Companhia<br />
Mogiana. Esse avanço sobre a margem direita do rio Mogi-Guaçu proporcionou<br />
uma competitividade maior entre as duas Companhias que passaram a<br />
disputar mais intensamente o escoamento das produções cafeeiras dos municípios<br />
de São Simão, Ribeirão Preto e Sertãozinho, região cujo domínio era<br />
tradicionalmente da Mogiana.<br />
Como exemplo de típicas "ferrovia do café", a Paulista e a Mogiana se<br />
orientavam em seus planos de expansão de modo a atingirem o maior número<br />
de municípios produtores de café. Ademais, o alto valor do frete cafeeiro,<br />
em comparação aos fretes dos demais produtos transportados, contribuía<br />
para que as ferrovias paulistas condicionassem seus planos de expansão<br />
às áreas de avanço da cultura cafeeira.<br />
Todavia, diante das peculiaridades que envolvem os projetos de expansão<br />
ferroviária, ressalta-se que a compra da The Rio Claro Railway pela<br />
Companhia Paulista consubstancia a tese de que para garantir a lucratividade,<br />
as grandes companhias paulistas buscavam expandir suas linhas por meio de<br />
novas construções, fusões com outras companhias ou através da aquisição de<br />
pequenos e médios ramais ferroviários.<br />
Tabelas<br />
Tabela 1. The Rio Claro Railway Co. Demonstração de resultados e coeficiente de tráfego,<br />
1884-1891 (mil réis)<br />
Fonte: Relatório do Ministério da Indústria, Viação e Obras Públicas, (1893-1895).<br />
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226<br />
Tabela 2. Companhia Rio Claro. Demonstração de resultados<br />
e coeficiente de tráfego, 1884-1891 (mil réis)<br />
Fonte: RCPEF nº 38 de 30 de setembro de 1888; BRASIL. Relatório do Ministério da<br />
Indústria, Viação e Obras Públicas, 1893.<br />
Tabela 3. Companhia Paulista de Vias Férreas e Fluviais. Receita das Seções Rio<br />
Claro e Fluvial, 1892-1903 (mil réis)<br />
Fonte: RCPEF nº 55 de 30 de junho de 1904, p. 11<br />
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Fonte: RCPEF nº 55 de 30 de junho de 1904, p. 32-33<br />
227<br />
Tabela 4. Companhia Paulista. Participação relativas da Seção Rio Claro no total de café<br />
transportado 1892-1903.<br />
Tabela 5. Companhia Paulista de Vias Férreas e Fluviais. Demonstração de resultados e<br />
coeficiente de tráfego da Seção Fluvial, 1892-1903 (mil réis)<br />
Fonte: RCPEF nº 55 de 30 de junho de 1904, p. 59.<br />
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228<br />
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Resumo<br />
Este trabalho pretende analisar o processo<br />
de modernização urbana de Santa Bárbara<br />
d’Oeste durante os últimos anos do<br />
século XIX e os primeiros do XX, a partir<br />
de uma perspectiva centrada na administração<br />
municipal de José Gabriel. Político<br />
destacado, participou direta e ativamente<br />
da transformação urbana da cidade<br />
idealizando projetos modernizadores<br />
que procuravam desenvolver uma sociedade<br />
“civilizada”, livre da “barbárie”.<br />
Palavras-chave:<br />
urbanização – moderno/arcaico – Primeira<br />
República<br />
229<br />
José Gabriel: uma ponte entre o “arcaico”<br />
e o “moderno” na modernização urbana de<br />
Santa Bárbara d’Oeste (1892-1918)<br />
Osana de Almeida*<br />
Abstract<br />
This present work intends analyzing the<br />
urban modernization process in Santa<br />
Bárbara d’Oeste during the last years of<br />
the XIX century and the first ones of the<br />
XX century, starting from a centered<br />
perspective in the city administration of<br />
José Gabriel. Great politician, took part<br />
direct and actively of the transformation<br />
of the urban city idealizing modernizing<br />
projects to develop a “civilized” society,<br />
free of “barbarie”.<br />
Keywords:<br />
urbanization – modern/archaic – First<br />
Republic<br />
* Professora da Secretaria Estadual de Ensino / SP. Doutoranda em História pela UNESP/Franca.<br />
REV. TERRITÓRIOS E FRONTEIRAS – PROG. DE PÓS-GRAD. EM HISTÓRIA – UFMT – V.6 – N.2 – JUL./DEZ. 2005<br />
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230<br />
As cidades do século dezenove, as que são frutos de uma nova era que<br />
se construiu sob o signo da “moda-cadáver” 1 , uma era obcecada pelo novo,<br />
um novo sempre desvalorizado por um novo novo que é deferido pelo<br />
simples fato de ser novo, transformaram-se em um depósito de acessórios<br />
que tinha como tarefa essencial acolher os ícones destinados a representar<br />
esse seu tempo gerador denominado modernidade.<br />
No Brasil, a expansão da economia cafeeira e a instalação do Regime<br />
Republicano, experiências deste “novo tempo”, foram os componentes essenciais<br />
da fórmula que provocou as diversas mudanças que atingiram a concepção<br />
de ocupação e de organização/reorganização das cidades brasileiras.<br />
Desde os tempos do Império, a França teve lugar privilegiado junto às<br />
elites brasileiras nos campos da cultura, da política e da técnica, e o modelo<br />
francês de modernidade sempre esteve presente no Brasil, ao longo do século<br />
XIX até as primeiras décadas do XX. O alcance dessa relação entre os dois países<br />
chegou, sem dúvida, até as formas de tratamento dos problemas urbanos 2 .<br />
Dentro de um projeto republicano que ansiava forjar um Estado-Nação<br />
moderno no Brasil, eficaz em todas as suas múltiplas atribuições diante do<br />
mundo dito civilizado, os primeiros administradores republicanos brasileiros<br />
consideraram necessário que um contraste com a administração anterior se<br />
estabelecesse, e que os ideais de progresso e modernidade o identificassem.<br />
Muitos discursos foram usados ao perseguirem esse objetivo, e o discurso<br />
republicano manifestou-se, também, através da linguagem urbanística. Dessa forma,<br />
seus projetos de renovação do espaço urbano procuraram, a partir de então,<br />
conferir à cidade uma imagem que rejeitasse lembranças de um passado recente.<br />
A cidade do Rio de Janeiro, capital do país e alvo do projeto político<br />
republicano, representa um exemplo desta dinâmica. A cidade carioca tinha<br />
que ser capaz de representar eficientemente, para o mundo exterior, a nova<br />
nação que emergia. Para cumprir tal tarefa ela passou por uma compulsória<br />
reforma em sua estrutura físico-espacial.<br />
Uma suíte carioca emergiu das ruínas da “velha” cidade que foi posta<br />
abaixo e se transformou então num palco ilusionista montado para representar<br />
os tempos modernos com todos os seus aparatos.<br />
O Rio “civilizou-se” tendo como paradigma o mundo europeu. Sua<br />
reforma urbana, uma releitura das reformas urbanas de Paris, promovidas<br />
1 BOLLE, Willi. Fisiognomía da metrópole moderna. Brasília: Ed.UnB, 1994.<br />
2 RIBEIRO, Luiz César de Queiroz. Transferências, empréstimos e traduções na formação do urbanismo no<br />
Brasil. In: RIBEIRO, Luiz César de Queiroz; PECHMAN, Robert. Cidade, povo e nação. Rio de Janeiro: Ed.<br />
Civilização Brasileira, 1996.<br />
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231<br />
pelo barão Haussmann, durante a segunda metade do século XIX, colaborou<br />
para o ritual de aceitação de um país que procurava inserir-se na economia<br />
de comércio internacional.<br />
Esse processo de remodelamento urbano que alcançou o Rio de Janeiro<br />
e outros grandes centros urbanos transportou-se para o interior paulista e<br />
realizou-se exibindo uma releitura própria.<br />
Os estudos sobre Bento de Abreu, em Araraquara, e sobre Washington<br />
Luís, em Batatais 3 , são exemplos de trabalhos que discutem as possibilidades<br />
de surgimento de experiências urbanísticas num interior paulista onde a economia<br />
cafeeira pululava de um local a outro.<br />
A intenção deste trabalho é analisar alguns aspectos da modernização urbanística<br />
de Santa Bárbara, uma cidade localizada também no interior de São Paulo,<br />
de 1892 a 1918. Tal período se justifica pela notada mudança no espaço físico e<br />
estrutural da cidade, marcada pela contribuição da administração pública.<br />
Santa Bárbara d’ Oeste não foi uma cidade com produção significativa<br />
de café, sendo sua cultura principal a cana-de-açúcar, transformada em açúcar<br />
e em aguardente. Localizada na região de Campinas, a cidade não contou<br />
com a força de grandes agricultores de café para ligá-la ao complexo cafeeiro.<br />
Foi o complexo cafeeiro que se projetou, por meio da ferrovia, em Santa<br />
Bárbara. Inaugurado em 1873 o ramal da Companhia Paulista, através do<br />
trem ferroviário, ligou a cidade a Campinas, São Paulo, Rio Claro, Santos,<br />
Jundiaí; logo depois a Piracicaba e Nova Odessa. Assim, introduzida no complexo<br />
cafeeiro a cidade barbarense não poderia deixar de ser afetada pelos<br />
padrões que a caracterizava.<br />
Ao privilegiarmos, em nossa reflexão, a administração municipal como<br />
principal condutora do processo de modernização urbana barbarense, estaremos<br />
nos centrando na figura de José Gabriel de Oliveira e Souza, pois naquele<br />
momento era ele quem monopolizava o poder da administração pública local.<br />
A política barbarense contava com representantes de dois partidos: o<br />
Partido Republicano Histórico (P.R.H.) e o Partido Republicano Governista<br />
(P.R.G.), ambos lutando pelo controle político local e ligados ao Partido Republicano<br />
Paulista. Fundado em 1886, o P.R.H. de Santa Bárbara detinha o<br />
controle político sendo que seus maiores representantes eram os membros<br />
3 Consecutivamente, ver VARGAS, Claudia Regina. As várias faces da cidade: Bento de Abreu e a<br />
modernização de Araraquara (1908-1916). Franca, 2000. Dissertação (Mestrado em História)- Faculdade<br />
de História, Direito e Serviço Social, UNESP e PEREIRA, Robson Mendonça. O municipalismo em<br />
Washington Luís em sua atuação em Batatais (1893-1900): aspectos da modernização urbana no interior<br />
paulista na República Velha. Franca, 1999. Dissertação (Mestrado em História)- Faculdade de História,<br />
Direito e Serviço Social, UNESP.<br />
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232<br />
da família Oliveira, participantes do mandonismo local.<br />
José Gabriel de Oliveira e Souza, líder reconhecido da família Oliveira,<br />
da elite local e fundador do P.R.H., acabou ocupando um lugar de destaque<br />
ao tomar a dianteira dos atos que se referiam à administração pública do<br />
município. Exerceu grande influência sendo vereador, juiz de paz, presidente<br />
da Câmara, intendente e, posteriormente, prefeito. José Gabriel despontou<br />
no cenário político barbarense na década de 80 do século XIX e, somente<br />
na década de 30 do século XX, foi que o abandonou.<br />
A escolha da década de 1890 para o início da análise não é aleatória. É<br />
a partir deste período que José Gabriel é mais presente no cenário político<br />
barbarense. A cidade, desde 1885, vinha sofrendo, de forma lenta, melhorias<br />
urbanas, porém, nota-se que a partir da data por nós escolhida uma considerável<br />
intensificação no processo de urbanização aconteceu. Portanto, há essa<br />
coincidência: a latente presença de José Gabriel no cenário político e na<br />
administração pública concomitantemente à intensificação da urbanização.<br />
Já 1918, momento escolhido como mais adequado para o encerramento<br />
da análise, justifica-se por notarmos um fortalecimento, na política local, da<br />
presença de imigrantes italianos, mais notadamente com a família Cillo. Neste<br />
momento, José Gabriel, apesar de permanecer na administração pública barbarense<br />
até a década de 1930, tem sua influência política fortemente questionada<br />
e, conseqüentemente, enfraquecida. Isso não significa que o processo de<br />
modernização urbana sofrera estancamento, mas como escolhemos analisar a<br />
ação de José Gabriel como condutor da modernidade urbana de Santa Bárbara,<br />
o momento do declínio de sua atuação fecha o recorte de nosso trabalho.<br />
A análise da intrínseca atuação de José Gabriel no processo de modernização<br />
e transformação do espaço urbano barbarense acorda com uma imagem<br />
sua que foi construída como a de um coronel tradicional. Este coronel é por<br />
nós compreendido como uma persona que, utilizando-se de suas máscaras na<br />
teatralidade cotidiana encena vários papéis: representante da elite local, chefe<br />
político, comerciante, benemérito e agente modernizador. Sua ação dentro do<br />
organismo urbano foi mediada pela representação destes papéis. De acordo<br />
com Maffesoli 4 , na persona harmoniza-se uma variedade de características,<br />
onde as “máscaras mutáveis” são utilizadas para reforçar sua voz na encenação.<br />
O fato de este personagem ter ocupado cargos públicos não o impedia<br />
de atuar de acordo com seus interesses particulares. A promoção das obras<br />
4 MAFFESOLI, Michel. O tempo das tribos: o declínio do individualismo nas sociedades de massa. Rio de<br />
Janeiro: Forense-Universitária, 1987.<br />
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233<br />
públicas que se realizaram sob seu comando está ligada a seus interesses<br />
privados, de forma que a modernização urbana de Santa Bárbara tenha se<br />
caracterizado como fruto do confronto entre os interesses das esferas do<br />
público e do privado associando-a com a ambigüidade expressa por Berman :<br />
uma nova síntese entre o poder público e o poder privado que simboliza a<br />
união do predador e executor privado das obras sujas, Mefistófeles, e Fausto,<br />
o administrador público que dirige todos os trabalhos 5 .<br />
A fundação da Casa de Saúde de Santa Bárbara foi exemplo desta dinâmica.<br />
Durante a atuação de José Gabriel como administrador público, a Casa<br />
de Saúde foi construída e, no entanto, usada para manipulações políticas,<br />
conforme mostra o Jornal “A Verdade” de 22/10/1916, a partir de um depoimento<br />
de um italiano, cujo nome era Zanacan: “Eu não posso votar contra a<br />
política do coronel, porque quando deu as febres lá no bairro nós precisamos<br />
de socorro, de quinino, e o coronel nos disse que se deixássemos de votar<br />
tínhamos que pagar tudo para a Câmara”.<br />
A declaração, descrita acima, e feita por esse morador da cidade a um<br />
jornal local, é testemunho de como José Gabriel usava de suas realizações<br />
como administrador municipal para manipular os eleitores locais e transformar<br />
os resultados dos pleitos de acordo com sua vontade particular.<br />
Um outro exemplo a ser citado é o caso do Grupo Escolar, que também<br />
foi construído sob sua administração, mas que, assim como a Casa de Saúde,<br />
era tomado como mais um meio promotor de realizações privadas. Era comum<br />
que os professores ligados à política coronelística local pressionassem<br />
os pais dos alunos para que estes apoiassem todas as suas atitudes políticas.<br />
Os jornais locais que faziam oposição à administração de José Gabriel,<br />
periodicamente, conseguiam que pais de alunos, que estudavam no Grupo<br />
Escolar e que se sentiam coagidos de alguma forma, dessem depoimentos<br />
de maneira a concretizar publicamente suas reclamações.<br />
Apesar de os depoimentos deixarem a impressão de que as atitudes de<br />
José Gabriel fossem rispidamente coercitivas, não podemos acreditar piamente<br />
nesta hipótese. De certa forma, a população reconhecia a autoridade do coronel<br />
6 José Gabriel. No momento em que o poder público não atendia às necessidades<br />
populares, o coronel vestia a máscara de protetor e benfeitor, o que lhe<br />
rendia o prestígio político necessário para a realização de suas vontades.<br />
5 BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade.São Paulo: Companhia<br />
das Letras, 1986.<br />
6 Sobre esse tema ver, por exemplo: FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato<br />
brasileiro. Vol.2. São Paulo: Ed. Globo; Publifolha, 2000.<br />
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Esses casos explicitados são demonstrações das relações complexas<br />
existentes entre as esferas pública e privada, na Primeira República. Homens<br />
públicos como José Gabriel investiam em obras públicas, atendendo às necessidades<br />
locais e ao mesmo tempo tiravam proveito realizando seus interesses<br />
privados: o progresso material da localidade posssibilitava-lhes prestígio<br />
político e um conseqüente controle social sobre a população local.<br />
Essa dinâmica pode ser compreendida ao pensarmos que durante a<br />
Primeira República, quadro político que marcou a ascensão política de José<br />
Gabriel, a dificuldade de se identificarem com clareza os domínios da administração<br />
pública dos interesses privados era latente.<br />
Essa dificuldade pode ser explicada por uma relação de interpenetração<br />
entre as esferas pública e privada e pela definição que o Estado brasileiro<br />
assume quando este deixa de ser um Estado-tutelar para ser um Estadoinstrumento<br />
7 .<br />
Hannah Arendt 8 caracteriza o Estado Nacional como produto tanto da<br />
ascensão da sociedade como de uma preocupação privada que se tornava<br />
pública: a proteção para o acúmulo de riquezas, ou de uma forma mais específica,<br />
a emergência de um público de proprietários ascendendo a uma esfera<br />
pública e exigindo desta a proteção da propriedade. Desta forma conformou-se<br />
a base da plutocracia no Brasil, onde é dominante a confusão entre o<br />
público e o privado.<br />
O Estado, no Brasil da Primeira República, tomou também características<br />
contraditórias quando o poder foi tomado. Uma classe de proprietários,<br />
que tomou “feições burguesas”, constituiu uma esfera pública que transformou<br />
a administração pública em instrumento a serviço de seus interesses.<br />
Essa esfera pública no Brasil teria surgido com a consolidação de uma<br />
plutocracia formada por proprietários de terras que, antes da República, teria<br />
se solidificado como esfera política, comparativamente ao esquema proposto<br />
por Habermas 9 em sua obra sobre a transformação da esfera pública ,<br />
quando tratou destas fases de transformação.<br />
O autor analisa a consolidação de uma esfera pública constituída por<br />
um público burguês de pessoas privadas que se torna politicamente ativo<br />
através de um fórum de debates onde a autoridade do estado e suas atitudes<br />
podiam ser questionadas.<br />
7 PEREIRA, Robson Mendonça. Op.cit.<br />
8 ARENDT, Hannah. A condição humana. São Paulo: Ed. Forense Universitária, 1995.<br />
9 HABERMAS, Jurgen. Mudança estrutural da esfera pública: investigações quanto a uma categoria da<br />
sociedade burguesa. Rio de Janeiro: Ed. Tempo Brasileiro, 1984.<br />
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Com o passar do tempo, fatores econômicos e políticos permitiram que<br />
transformações ocorressem nesta emergente esfera pública, de uma maneira<br />
que seu potencial original fosse quase anulado, a ponto de fazer emergir um<br />
mundo de fraudes e de manipulações.<br />
O que era antes formado por um princípio crítico contra o poder estabelecido,<br />
transforma-se num instrumento de interesses preestabelecidos. Com<br />
isto, vai surgindo um modelo que permite que a burguesia se efetive no<br />
poder e se difunda, tomando suas especificidades no caso do Brasil.<br />
Aqui, uma plutocracia assumirá feições onde suas ações serão coordenadas<br />
de maneira que elevem o interesse privado e econômico ao político,<br />
transformando o Estado. Essa situação demonstrará a confusão entre o que é<br />
público e os interesses privados, durante a Primeira República.<br />
Esse modelo de esfera pública estendeu-se até Santa Bárbara, e os<br />
políticos locais utilizaram-se das ruas, da Câmara, das praças.., para promoverem<br />
suas comunicações públicas e seus debates políticos.<br />
Como já dissemos, a busca por tudo que significasse moderno se acelerou<br />
no período da Primeira República. No interior paulista, a cidade de Santa<br />
Bárbara representou um aspecto da modernização brasileira.<br />
A administração municipal, desde os primeiros anos de 1890, firmou pé<br />
no seu propósito de impulsionar melhoramentos na cidade como abertura,<br />
alinhamento, calçamento e arborização de ruas; ajardinamento de praças; a<br />
instalação dos serviços de iluminação à luz elétrica; a construção da Câmara e<br />
cadeia; a construção do Teatro, do Grupo Escolar, da Igreja Matriz...<br />
A modernização em Santa Bárbara se configurou de acordo com um<br />
processo de intervenção urbanística, que foi aprofundado na República e<br />
que consolidou algumas formas de intervenções do Estado: um ‘Estado jardineiro’<br />
10 que encontrou forças no pensamento moderno de luta por um projeto<br />
civilizador – no sentido entendido por Norbert Elias, um constante moldar<br />
e disciplinar de hábitos e comportamentos que alcança desde as pequenas<br />
normas, atitudes e etiquetas, até a normatização e coerção que garantem<br />
o controle do Estado e do poder 11 – que priorizasse a execução da ordem e<br />
do progresso sobre o espaço da cidade.<br />
10 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 1999. Bauman usa<br />
o termo ‘Estado jardineiro’ para definir metaforicamente algumas funções do Estado moderno que<br />
emerge com a ambição da ‘jardinagem’: colocar a ordem e eliminar as ‘ervas daninhas’ que não se<br />
encaixassem em seu projeto homogenizador. Para isso, esse Estado jardineiro vai utilizar todas as<br />
realizações e conquistas que a modernidade proporcionou: a ordem como questão de projeto, o<br />
desenvolvimento cientifico e tecnológico, e uma medicina com ambições de ‘engenharia social’.<br />
11 ELIAS, Norbert. O processo civilizador: uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994.<br />
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A ocorrência de freqüentes e devastadoras epidemias em várias localidades<br />
do Estado colaborou para que as intervenções urbanísticas acontecidas<br />
em Santa Bárbara estivessem intimamente ligadas à necessidade de controle<br />
da ordem (e da vida da população) urbana, construído a partir da apropriação<br />
da experiência européia no Brasil, sem esquecer que as transferências<br />
de modelos são indissociáveis das condições de possibilidades ligadas às práticas<br />
locais que as transformam 12 .<br />
A constante preocupação de José Gabriel em combater as doenças<br />
epidemiológicas que assaltavam Campinas, região que abriga Santa Bárbara,<br />
transformou suas realizações e reformas no urbano em um empreendimento<br />
respaldado por uma ciência e uma medicina preocupadas em considerar o<br />
“sertão” como metáfora de um Brasil cheio de patologias, onde só a higiene<br />
é apontada como conhecimento e conjunto de práticas capazes de fazer a<br />
mediação entre o estado de caos – o estado natural – e a civilização 13 .<br />
A aspiração pela modernidade – já que esta trazia a crença em uma<br />
sociedade ordeira e harmoniosa – que se espraiava pela sociedade barbarense<br />
racionalizou as práticas higienistas e também as filantrópicas, num esforço<br />
em encerrar os sofrimentos humanos, já que a fragilidade e a pobreza não<br />
combinavam com a imagem de civilidade e altivez que ansiosamente se<br />
buscava. Portanto, cabia à municipalidade atender aos desvalidos e aos doentes<br />
infecciosos, contando com o auxílio da iniciativa privada e regulando a<br />
assistência com a disciplinarização moral e social.<br />
Às entidades voltadas para o confinamento das pessoas impunha-se a<br />
tarefa de esquivar da circulação das ruas os mendigos, os pedintes, os loucos,<br />
os marginais, pois, com seus comportamentos tidos como perigosamente<br />
desviantes, abalavam as bases de uma modernidade desejada que se tentava<br />
impor. Segundo Sennett 14 , a modernização do espaço urbano, aquela que foi<br />
orientada por uma sociedade que se guiava pelo capitalismo, implicou confinamentos<br />
compulsórios predominando, nos bastidores da filantropia, objetivos<br />
racionais e práticos. Neste sentido, atenção especial era dedicada aos doentes<br />
infecciosos e pedintes, com seus corpos “chocantes”. Com o “aburguesamento”<br />
das relações sociais, a própria sensibilidade assumia outra face, e tanto a<br />
12 SALGUEIRO, Heliana Angotti. O pensamento francês na fundação de belo Horizonte: das representações<br />
às práticas. In: SALGUEIRO, Heliana Angotti (org.). Cidades capitais do século XIX: racionalidade,<br />
cosmopolitismo e transferência de modelo. São Paulo: Ed. USP, 2001, p.167.<br />
13 LANNA, Ana Lúcia Duarte. A cidade controlada: Santos 1870-1913. In: RIBEIRO, Luiz César de Queiroz<br />
e PECHMAN, Robert. 1996.<br />
14 SENNETT, Richard. Carne e pedra. Rio de Janeiro: Ed. Record, 1997.<br />
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pobreza como a doença passavam a causar apreensão na “cidade sã”.<br />
Lembrando o Rio de Janeiro, com a reforma urbana de Passos que foi<br />
orientada por um projeto e uma imagem de modernidade baseados em um<br />
modelo externo que trouxe, em si, a aceitação implícita da exclusão, da<br />
mesma forma, em Santa Bárbara, exemplo da conjunção entre o discurso<br />
médico e a orientação autoritária do rumo histórico da modernidade brasileira<br />
15 , a criação da Casa de Isolamento de Santa Bárbara, em local bem distante<br />
do centro urbano e que tinha como função abrigar corpos doentes de impaludismo,<br />
varíola e febre amarela, mostrou que a preocupação com a saúde<br />
do “corpo” social barbarense, bem como o do carioca, passou pela “higienização”<br />
dos papéis sociais.<br />
Ao examinar a biografia do Tenente-Coronel José Gabriel, nota-se que<br />
uma imagem de grande benemérito foi criada ao redor de sua figura, e que<br />
tal fato se deve ao caráter social de seus empreendimentos. Como administrador<br />
do que era para o “bem coletivo”, em muitas situações era tido por<br />
parte da população local como homem zeloso, bem como a Casa de Saúde,<br />
referida em páginas anteriores, e a de Isolamento eram tidas como objeto<br />
nascido de sua filantropia; era freqüente os jornais locais, como O Barbarense<br />
em 06/01/1904, anunciarem festas apoiadas ou por ele organizadas, que<br />
possuíam caráter beneficente. Arrecadar dinheiro e usar parte da renda para<br />
a constituição de instituições asilares fazia parte da vida pública de José Gabriel.<br />
Porém, José Gabriel era um grande ator político, e o seu caráter de<br />
benemérito era mais uma máscara constituída como uma forma de ocultar<br />
seu mandonismo. Lembrando Balandier , ele<br />
[...] não saberia governar mostrando o poder desnudo ( como está o Rei no<br />
conto) e a sociedade em uma transparência reveladora. Tomemos pois o<br />
risco de uma fórmula; a aceitação resulta em grande parte das ilusões da<br />
ótica social. O grande ator político comanda o real através do imaginário. 16<br />
No cerne do processo civilizador que estava sendo promovido, o olhar<br />
das posturas municipais, neste caso um olhar guiado pelas idéias do “coronel”<br />
José Gabriel e pela elite barbarense, deteve-se, sem dúvida, nos espaços<br />
públicos bem como nos privados. Nestes espaços uma série de situações<br />
15 VECCHI, Roberto. Seja moderno, seja brutal: a loucura como profecia da história em Lima Barreto. In:<br />
HARDMAN, Francisco Foot (Org). Morte e progresso: cultura brasileira como apagamento de rastros. São<br />
Paulo: Ed. UNESP,1998, p. 115.<br />
16 BALANDIER, Georges. O poder em cena. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1982, p. 6.<br />
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propiciava a violentação do que era entendido como decoro, higiene, silêncio,<br />
justiça e convívio social.<br />
Lembrando Hannah Arendt, a relação e a diluição das noções de público<br />
e privado no mundo moderno podem explicar melhor a ampliação da<br />
esfera do poder dos coronéis republicanos:<br />
No mundo moderno, as esferas social e política diferem muito menos<br />
entre si [...] a ascendência da sociedade, isto é, a elevação do lar doméstico<br />
ou das atividades econômicas ao nível público, a administração<br />
doméstica e todas as questões pertinentes à esfera privada da família<br />
transformaram-se em interesse coletivo. No mundo moderno, as duas<br />
esferas recaem uma sobre a outra. 17<br />
Nesse encalço, em Santa Bárbara, desde 1894, dois anos após a entrada<br />
de José Gabriel na administração pública municipal, naquele momento como<br />
vereador, muitas leis que possuíam um claro caráter invasor e saneador-excludente<br />
foram instituídas. Juntamente com a vacina obrigatória, ocorrida em 1895,<br />
as invasões nas casas para a promoção das defumações, a interdição e até a<br />
condenação de casas e edifícios que houvessem abrigado doentes ocorreram.<br />
Proibiu-se, ainda, sob pena de multa, as construções de casas de meiaágua,<br />
bem assim as cobertas de sapé e capim, dentro dos limites da cidade;<br />
criaram-se impostos prediais que obrigavam que construções e terrenos fossem<br />
murados e que passeios calçados de tijolos ou lajes 18 fossem construídos.<br />
A Câmara Municipal de Santa Bárbara, pela Lei nº13, de acordo com a<br />
“Ata da Câmara Municipal de Santa Bárbara”, sessão de 05/08/1894, exigia<br />
que a frente dos prédios que possuíssem aspectos “desolados” fossem imediatamente<br />
reconstruídos, impondo que a pena para os que infringissem a lei<br />
fosse de 30$000(trinta mil réis) cada vez que fosse intimado.<br />
Em nome do progresso e seguindo o lema destruição/construção, característico<br />
da modernidade dos séculos XIX e XX, como atestou Marsall Berman<br />
19 , ruas foram abertas/alargadas, tratadas como “coisas” abstratas destinadas<br />
a atender ao fluxo da compra e venda.<br />
Já que o desenho urbano ia se tornando cada vez mais difícil de se<br />
decifrar, de tantas demolições, reconstruções, superposições... ao elemento<br />
17 ARENDT, Hannah. 1995, p. 338.<br />
18 Ata da Câmara Municipal de Santa Bárbara, sessão de 27/01/1905.<br />
19 BERMAN, Marshall. Op. cit., p. 29.<br />
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humano que se percebia cada vez mais desenraizado e com um sentimento<br />
de despertencer cada vez mais àquele espaço que constantemente se recriava,<br />
restava-lhe apoiar-se as manifestações culturais da tradição já que esta –<br />
diferentemente da modernidade que é um constante avançar sem referências<br />
fixas – “impõe a consciência de uma permanência sob a superfície dos<br />
acontecimentos, uma sensação reconfortante de continuidade ao longo das<br />
sucessivas metamorfoses” 20 . No entanto, a modernidade é mesmo implacável,<br />
nasceu rompendo com a ordem de todas as coisas e amaldiçoando suas<br />
heranças e passado, fazendo tábula rasa de todos os seus legados 21 .<br />
Renato Cordeiro Gomes, ao questionar o pensamento de alguns intelectuais<br />
modernos, analisa uma crônica de Olavo Bilac 22 que traduz a adesão<br />
do autor a um Rio de Janeiro civilizado. Bilac traz o progresso e a modernidade<br />
para o centro da cena, ao louvar o Rio como cenário de mudanças, portador<br />
da Avenida Central como símbolo da fruição, do novo e da regeneração.<br />
Para ele, a cidade carioca não é mais lugar para o incivilizado, para o atraso e<br />
para manifestações bárbaras como a festa popular da Penha, tema central de<br />
sua crônica. Fazendo um paralelo com Santa Bárbara, em 1907, José Gabriel,<br />
atendendo a pedidos de uma elite barbarense que já não conseguia mais<br />
conviver com as manifestações “grotescas” de gente “diminuta”, criou um<br />
projeto de lei que proibia as “[...] danças, cantorias denominadas batuques,<br />
racha-péz (sic) e samba sem a respectiva licença do Intendente”, sob pena<br />
de multa de 10$000 (dez mil réis) 23 .<br />
Sob a ótica que se organiza o texto de Bilac e as proibições das danças<br />
e cantorias em Santa Bárbara, percebemos que a modernidade foi mesmo<br />
uma cruzada cultural, possuidora de um ímpeto extirpador e ignorador das<br />
várias possibilidades de manifestações culturais, de valores, estilos de vida,<br />
costumes, linguagens, crenças e comportamentos públicos 24 .<br />
20 BALANDIER, Georges. A desordem: elogio do movimento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997, p. 47.<br />
21 CARVALHO, Sérgio Lage. A saturação do olhar e a vertigem dos sentidos. Revista Usp. São Paulo, dez./<br />
fev 1996-7,no. 32,p.126-155, p. 126.<br />
22 A crônica de Bilac, publicada pela Revista Kosmos em 10/1909, transcrita por Renato C. Gomes, traduz<br />
claramente o desejo de excluir, dos novos logradouros públicos, aqueles que não soubessem se<br />
comportar dentro dos novos padrões de civilidade: “Num dos últimos domingos, vai passar pela<br />
Avenida Central um carroção atulhado de romeiros da Penha; e naquele boulevard esplêndido, sobre o<br />
asfalto polido, entre as fachadas ricas dos prédios altos, entre as carruagens e os automóveis que desfilavam,<br />
o encontro do velho veículo, em que seus devotos urravam, me deu a impressão de um monstruoso<br />
anacronismo; era a ressurreição da barbaria – era a idade selvagem que voltava, como uma alma do outro<br />
mundo, vindo perturbar e envergonhar a vida da cidade civilizada”. GOMES, Renato Cordeiro.Todas as<br />
cidades, a cidade: literatura e experiência urbana. Rio de Janeiro: Rocco, 1994, p. 107-108.<br />
23 Ata da Câmara Municipal de Santa Bárbara, sessão de 05/02/1907.<br />
24 BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.<br />
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240<br />
As idéias contidas na concepção de modernidade que Santa Bárbara<br />
absorve não acontecem só na reorganização do espaço físico; as relações<br />
complexas do viver citadino também alcançaram a fabricação de símbolos<br />
que valorizassem a vida cultural e o lazer barbarense.<br />
Peças teatrais, que desde tempos anteriores apresentavam textos quase<br />
sempre de cunho religioso, eram encenadas por grupos amadores locais,<br />
compostos por José Gabriel, que ocupava o cargo de diretor, e membros<br />
da sociedade barbarense. Porém, já no fim do século XIX, o teatro municipal<br />
apresentava peças de companhias teatrais e musicais vindos dos mais<br />
diferentes locais.<br />
A “Companhia Carrara” estreou num prédio totalmente novo. Fachadas,<br />
ornamentos e decorações cuidados por profissionais gabaritados vindos de<br />
São Paulo davam o tom elegante à festa anunciada. A estréia, que foi dedicada<br />
a homenagear José Gabriel, como citou o jornal “O Barbarense” de 17/02/<br />
1901, contou com uma pequena multidão disposta a pagar 3$000(três mil<br />
réis) para fazer parte daquele “baile de máscaras”.<br />
Muitos enredos foram encenados: “Apanhei-te cavaquinho”, “Amor e<br />
honra”, “A experiência... ”<br />
O teatro se tornava um local produtor de símbolos significativos de<br />
estados de civilização. Era “chic”, nobre e ambiente adequado para uma<br />
platéia que procurava aprender hábitos civilizados. A importância do teatro<br />
não se resumia em trazer fantasias e sonhos para o deleite da elite, era<br />
também importante porque, como palco que era, era ambiente para a “fina”<br />
sociedade barbarense tornar manifesta a sua realidade e procurar seus reflexos<br />
complacentes.<br />
Era local de ostentação onde uma dama podia exibir as suas chitas e<br />
casimiras francesas que foram adquiridas nas casas comerciais do Largo da<br />
Matriz , apresentar, enfim, a “nova” identidade sua que fora construída através<br />
da mediação das “plumas e paetês”, aqueles mesmos “trajes” que foram<br />
comprados no comércio do Largo da Matriz e que possuíam a aparente missão<br />
de somente cobrir-lhe o corpo.<br />
Tempos depois da chegada da Companhia teatral na cidade, é a vez do<br />
cineographe. Suas fotografias em movimento extasiavam o olhar do distinto<br />
público que esperava ansioso para admirar a anunciada última maravilha do<br />
século. Os filmes “A Grande exposição de Paris”, “O Palácio das Nações<br />
Européias, “ O Champ de Mars”, “O Boulevard Parisiense”, “A grande Avenida”,<br />
“O Gabinete Mephistophélico”, “Escravo de uma Paixão”, estrelado pela<br />
“bela e famosa actriz franceza Theda Bara”, enchiam o olhar de um público<br />
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que ansiava por conhecer a última façanha moderna.<br />
José Gabriel, assim como outros muitos coronéis deste período, imaginava-se<br />
agente civilizador. Promover empreendimentos que a “fina” sociedade<br />
considerasse marco separador da “barbárie” era também seu papel,<br />
mesmo sendo a “selvageria bárbara” não apenas passível de ser habitual<br />
nas classes julgadas como inferiores, como capaz de permanecer às<br />
escondidas na alma de qualquer homem, inclusive na daquele que demonstra<br />
polimento 25 .<br />
A análise do processo de modernização urbana de Santa Bárbara e da<br />
importância da figura de José Gabriel nessa dinâmica integra uma proposta<br />
mais ampla que resultará em dissertação de Mestrado. A proposta desse texto<br />
foi tentar entender como José Gabriel atuou na modernização urbana de<br />
Santa Bárbara de 1892 a 1918. Percebemos que José Gabriel, como muitos<br />
administradores urbanos dos tempos modernos, imaginou o espaço citadino<br />
como locus do civilizado e do progresso e, para que isso se materializasse,<br />
atuou como uma ponte entre o “arcaico” e o “moderno” e lutou para dotar a<br />
cidade de empreendimentos que isso simbolizassem.<br />
Cidade pertencente a uma região que sofrera grandes reveses por<br />
causa de seguidas epidemias, acontecidas durante a segunda metade do<br />
século dezenove e início do vinte, Santa Bárbara foi exemplo de um projeto<br />
civilizador que esperava encontrar na ciência e medicina sanitaristas,<br />
naquele momento, grandemente valorizadas pelo pensamento moderno,<br />
respostas quando travava lutas pela domesticação de seus “sertões” dominados<br />
por patologias.<br />
Um embate entre o arcaico e o moderno, entre o natural incivilizado e o<br />
agente civilizador, foi travado. Inventaram-se vacinas, demolições, reconstruções,<br />
instituições asilares, orfanatos, todo um conjunto de medidas que se moveu<br />
em torno de uma prática visando àbusca da urbanidade e controle social.<br />
Inserido num mundo moderno e sendo um homem “moderno”, José<br />
Gabriel não hesitava em ser um “jardineiro”. Classificou, praticou a operação<br />
inclusão/exclusão e mesmo assim não conseguiu “cortar o mal pela raiz”. Os<br />
excluídos, os ambivalentes, nesse processo, não cansaram de “semear-se”, e<br />
seus lamentos e reclamos ecoaram por todos os cantos da cidade. Das longínquas<br />
instituições asilares, das casas de confinamento, orfanatos, periferias,<br />
eles multiplicavam-se, já que a jornada classificatória não cessava, gerando<br />
mais e mais ambigüidade.<br />
25 STAROBINSKI, Jean. As máscaras da civilização: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.<br />
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242<br />
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243<br />
Notícias do Programa<br />
Resumos de dissertações de mestrado<br />
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244<br />
Do sertão ao litoral: a trajetória do escritor<br />
Ricardo Guilherme Dicke e a publicação do<br />
livro “Deus de Caim”, na década de 1960<br />
Esta dissertação apresenta alguns aspectos da trajetória do escritor Ricardo<br />
Guilherme Dicke, refaz os caminhos da publicação do romance “Deus de<br />
Caim”, aponta a presença na elaboração estética do livro de uma forte crítica à<br />
concepção de progresso impulsionada pela modernização conservadora, promovida<br />
pelo regime ditatorial militar após o golpe de 1964, e deduz que a<br />
crítica contida no livro, além de constituir uma narrativa reflexiva sobre seu<br />
momento histórico de produção, também objetiva os sentimentos dos intelectuais<br />
simpatizantes de um pensamento de esquerda na década de 1960.<br />
Das três partes que compõem a pesquisa, a primeira intitulada “Colcha<br />
de retalhos da vida brasileira de 1945 a 1968” tem a função de deixar evidenciado<br />
para o leitor a existência de um tensionamento entre os liberalconservadores<br />
e os nacional-desenvolvimentistas. Esse tensionamento contribuiu<br />
na produção de políticas públicas de cultura, atitudes e sentimentos<br />
que influenciaram a produção artística do período. Na segunda, “Do sertão<br />
ao litoral: a trajetória de vida de Ricardo Guilherme Dicke em 1960 e a<br />
publicação do livro “Deus de Caim”, o objetivo foi entender os “porquês” da<br />
migração de Dicke de Mato Grosso para o Rio de Janeiro, e seguir a trilha<br />
que levou a publicação do livro “Deus de Caim” editado em 1968 pela editora<br />
Edinova. A reflexão construída nesta parte fareja as estratégias que o<br />
agente-autor dispunha para ser legitimado como parte do campo literário, e<br />
quais foram os canais de produção de capital simbólico que serviram de<br />
chave para o sistema editorial. O caso de Dicke tem um caráter modal para<br />
se pensar tal configuração, e auxiliar no entendimento da condição do intelectual<br />
mato-grossense dos anos 60. A terceira parte “Cultura popular e intelectualidade<br />
na década de 1960 em “Deus de Caim” tem como foco o<br />
romance, e como a crítica a modernização feita pelo autor se estruturou<br />
enquanto forma estética, ou seja, de que maneira o contexto, o elemento<br />
externo, se tornou elemento estético e temático da obra.<br />
Palavras-chave:<br />
Literatura – Mato Grosso – Ricardo Guilherme Dicke<br />
Juliano Moreno Kersul de Carvalho<br />
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Da pecuária ao turismo: transformações no<br />
viver pantaneiro, no entorno da<br />
Transpantaneira, em Poconé - MT<br />
Valdinéia Souza de Araújo<br />
O pantanal foi habitado por longo tempo por povos indígenas que<br />
tinham uma relação de equilíbrio com a natureza. Com a ocupação deste<br />
espaço por não indígenas, houve a introdução da atividade pecuária, primeiramente,<br />
para abastecer os núcleos mineradores e, posteriormente, como<br />
uma atividade voltada ao mercado. A pecuária foi a melhor alternativa da<br />
utilização de recursos naturais, por ser a atividade que melhor se adaptou a<br />
este espaço, cujo ambiente natural possui características muito particulares.<br />
Os pecuaristas pantaneiros, tiveram na dificuldade de locomoção do gado<br />
um dos maiores problemas para o desenvolvimento da pecuária, contando por<br />
um longo tempo apenas com as comitivas para o deslocamento do gado para<br />
os locais de abate no litoral. Com a construção da Estrada de Ferro Noroeste do<br />
Brasil as dificuldades foram atenuadas, contudo, esta ferrovia não contemplou<br />
os pecuaristas do Pantanal norte. Na década de 1970, iniciou-se a construção<br />
da Transpantaneira, cujo projeto inicial era ligar Cuiabá (MT) a Corumbá (atualmente<br />
MS) via Poconé (MT), tendo como objetivo melhorar as condições de<br />
escoamento da produção pecuária. O projeto não foi concluído na íntegra,<br />
tendo sido construídos apenas 145,3 Km entre Poconé e Porto Jofre, dos aproximadamente<br />
400 Km projetados, não atendendo portanto seus objetivos.<br />
Na década de 1980, houve a interiorização do turismo ecológico no Brasil<br />
e no Pantanal. Com a decadência da pecuária em Poconé, na década de 1970,<br />
o advento do turismo ecológico apresentou-se como uma nova perspectiva<br />
econômica para a população. A Transpantaneira, a partir de então, passou a<br />
funcionar como um corredor para o desenvolvimento desta modalidade turística<br />
no Pantanal norte, sendo visitada por turistas provenientes de todas as<br />
partes do Brasil e do mundo. A mudança de atividade econômica propiciou o<br />
contato com o modo de viver dos grandes centros, que resultou no distanciamento<br />
do modo de viver tradicional. A identidade da população tem sido<br />
ressignificada, tendo como marca a alteridade.<br />
Palavras-chave:<br />
transpantaneira – turismo ecológico – representação – identidade<br />
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Sorriso de tantas faces: a cidade (re)<br />
inventada. Mato Grosso pós 1970<br />
Regiane Cristina Custódio<br />
Originário de um projeto privado de colonização que data de 1976, o<br />
município de Sorriso, em Mato Grosso, foi povoado por grupos sociais originários<br />
de várias regiões do Brasil, sobressaindo-se os originários da região Sul.<br />
Eram, em grande parte, pequenos produtores rurais capitalizados.<br />
Após três décadas, sua economia é predominantemente agrícola, com<br />
uma significativa produção de algodão, arroz, milho e soja para exportação.<br />
O município de Sorriso é representado na imprensa nacional como ‘o maior<br />
município agrícola do mundo’, lugar ideal para se ‘fazer a vida’. Estas representações<br />
contribuíram para atrair migrantes de várias partes do Brasil.<br />
Considerando a multiplicidade das experiências vivenciadas, a questão<br />
central desta dissertação será, através da análise das fontes (escritas, orais e<br />
iconográficas), trazer à baila uma discussão sobre outra possibilidade de leitura<br />
relacionada à história daquele município, diferentemente das leituras produzidas<br />
naquela localidade. Objetiva-se, além de discordar da idéia de homogeneidade,<br />
apresentar Sorriso como espaço múltiplo, composto de particularidades,<br />
sobretudo no que diz respeito a pessoas, que por razões as mais<br />
diversas, são diferentes entre si, o que culmina na discussão da identidade e<br />
da alteridade.<br />
Palavras-chave:<br />
colonização – migração – memória – pluralidade/multiplicidade<br />
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Normas editoriais<br />
A Revista Territórios & Fronteiras, do Programa de Pós-Graduação em<br />
História da UFMT é uma publicação semestral, que divulga produção historiográfica<br />
inédita, na forma de artigos, traduções, pontos de vista, conferências,<br />
notas de pesquisa e documentos. Os trabalhos recebidos serão submetidos<br />
à seleção prévia dos editores, e a avaliação será realizada pelo conselho<br />
consultivo da Revista.<br />
A apresentação de trabalho para publicação subentende a autorização<br />
do autor. Os artigos – de no máximo 25 páginas -, devem ser enviados em<br />
disquete, em programa compatível com o Word for Windows, acompanhado<br />
de duas cópias impressas, digitadas em Times New Roman 12, espaço de<br />
1,5 e margens de 2,5 cm. O artigo deverá vir acompanhado de um resumo<br />
em português e de sua versão para o inglês, com no máximo 100 palavras,<br />
e três palavras chaves/keywords.<br />
Os textos deverão ser precedidos de identificação do(s) autor(es)<br />
(nome, instituição de vínculo, cargo, título, últimas publicações, endereço e<br />
correio eletrônico), não ultrapassando cinco linhas, colocados em rodapé,<br />
com nota numérica arábica.<br />
As notas no corpo do texto (de até 3 linhas) serão transcritas entre<br />
aspas, acompanhando o tamanho da letra do texto (Times New Roman 12),<br />
e referenciadas ao final da citação: (Freire, 1974, p. 57). Caso o nome do<br />
autor já tenha sido referido antes da citação, basta colocar: (1974, p. 57). As<br />
citações, em recuo de 2 cm, deverão utilizar letra tamanho 11, espaço 1,5<br />
cm, sem aspas. O uso do itálico deverá ser aplicado apenas para palavras em<br />
língua estrangeira, e deve-se evitar o negrito. Quadros, tabelas, gráficos e<br />
ilustrações devem ser apresentados no original, e em folhas separadas, preparados<br />
para reprodução gráfica. Sua localização deve ser indicada no texto<br />
por dois traços horizontais e com a numeração correspondente. No caso de<br />
fotografia, somente em preto e branco, nome do fotógrafo, e autorização<br />
para publicação, assim como autorização das pessoas fotografadas devem<br />
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ser anexados.<br />
Todos os textos serão submetidos a dois pareceristas do Conselho Consultivo.<br />
Caso haja um parecer contrário, a Comissão Editorial enviará o trabalho<br />
a um terceiro consultor. À Comissão Editorial cabe a decisão da publicação<br />
das contribuições recebidas.<br />
As notas explicativas deverão se restringir ao mínimo necessário, e serão<br />
apresentadas no rodapé. As referências serão digitadas em ordem alfabética,<br />
no final do texto. Exemplos:<br />
Livro:<br />
CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa:<br />
Difel, 2002.<br />
Documento com autoria de entidade:<br />
MATO GROSSO. Presidência da Província. Relatório: 1852. Cuiabá, 20 mar.<br />
1853. Manuscrito. 26 p. In: APMT, caixa 1852.<br />
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO. Relatório: 2003, Cuiabá, 2004.<br />
96 p.<br />
Como instrumento de intercâmbio, a Revista dará prioridade à divulgação<br />
de resultados de pesquisa externos à UFMT. Os artigos deverão, obrigatoriamente,<br />
apresentar ao final, a data da remessa.<br />
Endereço para envio de contribuições:<br />
Revista Territórios & Fronteiras<br />
Programa de Pós-graduação em História da UFMT – IL<br />
Universidade Federal de Mato Grosso<br />
Av. Fernando Corrêa da Costa, s/nº - Coxipó<br />
78060-900 - Cuiabá - MT<br />
e-mail: pghist@ufmt.br<br />
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