Antropofagia à moda da casa - Conexão Professor
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OUTUBRO - DEZEMBRO/2009<br />
SECRETARIA DE ESTADO DE EDUCAÇÃO<br />
DO RIO DE JANEIRO<br />
Ano III n.º 10<br />
<strong>Antropofagia</strong> <strong>à</strong> <strong>mo<strong>da</strong></strong> <strong>da</strong> <strong>casa</strong><br />
Oswald de Andrade, a utopia Antropofágica O Rio <strong>da</strong> Bela Época <br />
A descoberta do mundo Oléééé!!... Deus, a Beleza e a Arte<br />
O menino Antonio Salim Miguel – encontro & reencontros
REVISTA ELETRÔNICA ANO III, N.º 10<br />
GOVERNADOR<br />
SERGIO CABRAL<br />
VICE-GOVERNADOR<br />
LUIZ FERNANDO SOUZA<br />
SECRETÁRIA DE ESTADO DE EDUCAÇÃO<br />
TEREZA PORTO<br />
CHEFE DE GABINETE<br />
JOSÉ RICARDO SARTINI<br />
SUBSECRETÁRIO EXECUTIVO<br />
JULIO CESAR MIRANDA DA HORA<br />
SUBSECRETÁRIO DE GESTÃO E RECURSOS DE<br />
INFRAESTRUTURA<br />
SÉRGIO MENDES<br />
SUBSECRETÁRIA DE GESTÃO DA EDUCAÇÃO<br />
TERESA PONTUAL<br />
SUBSECRETÁRIA DE COMUNICAÇÃO E PROJETOS<br />
DELANIA CAVALCANTI<br />
EDITORES RESPONSÁVEIS<br />
JOHN WESLEY FREIRE E HELENICE VALIAS<br />
ILUSTRADORES<br />
ANTONIO SILVÉRIO CARDINOT DE SOUZA<br />
E RAFAEL CARNEIRO MONTEIRO<br />
CONSELHO EDITORIAL<br />
ANTONIO OLINTO - in memoriam<br />
CARLOS NEJAR<br />
CECILIA COSTA JUNQUEIRA<br />
ELIANA REZENDE FURTADO DE MENDONÇA<br />
EVANILDO BECHARA<br />
HAROLDO COSTA<br />
LAURA SANDRONI<br />
NELSON RODRIGUES FILHO<br />
ROBERTO CORRÊA DOS SANTOS<br />
AGRADECIMENTOS<br />
Aos acadêmicos <strong>da</strong> ABL: Cícero Sandroni – Presidente,<br />
Antonio Olinto (in memoriam), Carlos Nejar e Néli<strong>da</strong><br />
Piñon; a Antonio Edmilson Martins Rodrigues, Augusto<br />
Dias Carneiro, Carlos Eduardo (Cau) Barata, Carlos Lessa,<br />
Carlos Lima, Cecilia Costa Junqueira, Claudio Mendonça,<br />
Gilberto Mendonça Teles, Haroldo Costa, Jean Lauand,<br />
João Baptista Vargens, Lan, Leo Martins, Luiz Raul<br />
Machado, Nelson Rodrigues Filho, Nicolás Extremera<br />
Tapia (Espanha), Paolo Spedicato, Reginaldo Sah e Rubem<br />
Alves, pela cessão graciosa de textos e/ou imagens.<br />
Às editoras Grua, Gryphus, do Senado Federal, <strong>da</strong><br />
UNESP, EdUERJ e seus autores, em especial a Jean-<br />
Michel Massa. À ABL e suas bibliotecas, ao Instituto<br />
Cultural Antonio Olinto, ao Museu de Arte Brasileira–<br />
FAAP (Conselho e Diretoria), ao Projeto Portinari e <strong>à</strong><br />
família de Tarsila do Amaral.<br />
A Alice Gianotti, Ana Cristina Bellard Freire, Beth<br />
Almei<strong>da</strong>, Cristina Riche, Fatima Ribeiro, Helena Ferreira,<br />
Ione Teresinha de Carvalho, Joaquim Campelo Marques,<br />
Laura Suzana Rodrígues, Luciana Freire Rangel, Luisa<br />
Trias Folch, Luiz Antonio de Souza, Luiz Marchesini,<br />
Marília de Andrade, Monica Nogueira, Nadir Antonia<br />
Peinado, Rubens Piovano, Suely Avellar e Valéria Luz,<br />
pela colaboração <strong>à</strong> feitura deste número.<br />
À Angela Duque, por seu projeto gráfico, tratamento<br />
<strong>da</strong>s imagens e arte-final <strong>da</strong> revista. Aos colegas <strong>da</strong><br />
SEEDUC Antonio Silvério Cardinot de Souza e Rafael<br />
Carneiro Monteiro, pelas expressivas ilustrações; a Ailce<br />
Malfetano Mattos, Elaine Batalha, Fernan<strong>da</strong> Martins,<br />
Gisela Cersósimo, Lívia Diniz, Mag<strong>da</strong> Sayão, Maria<br />
de Lourdes Machado, Mariana Garcia, Paulo Roberto<br />
Bahiense, e a todos os que anonimamente nos aju<strong>da</strong>ram<br />
a viabilizar esta edição.<br />
SUMÁRIO<br />
03 Palavra <strong>da</strong> Secretária<br />
04 Editorial<br />
05 A descoberta do mundo<br />
09 Sobre os professores e as cozinheiras<br />
11 O menino Antonio<br />
12 Salim Miguel – encontro & reencontros<br />
14 João Cabral de Melo Neto, um diálogo com Espanha<br />
17 Oswald de Andrade – A utopia Antropofágica: uma<br />
utopia sem história<br />
20 O “gremial” e “ordeiro” Oswald de Andrade<br />
23 <strong>Antropofagia</strong> <strong>à</strong> <strong>mo<strong>da</strong></strong> <strong>da</strong> <strong>casa</strong><br />
26 O chá, o fino, o tinto e o chope: uma viagem<br />
28 O mobiliário urbano como memória do Rio<br />
30 A sábia imperatriz que morreu de amor<br />
33 O Rio <strong>da</strong> Bela Época, não tão bela assim<br />
36 <strong>Antropofagia</strong>, apropriação e carnaval<br />
39 O livro e o mar<br />
40 Oléééé!!... Deus, a Beleza e a Arte<br />
43 Euclides e a Amazônia<br />
45 História de paixão<br />
46 O bazar do Renascimento / Al-Garb 1146. Viagem<br />
onírica ao Portugal muçulmano<br />
47 Um paraíso perdido: ensaios amazônicos / A juventude<br />
de Machado de Assis (1839-1870): ensaio de biografia<br />
intelectual<br />
48 Braguinha, poeta do Rio<br />
50 Artistas, Cientistas e Artesãos<br />
52 Concurso Público<br />
53 Do baú do Cau Barata, o traço satírico francês<br />
54 Fala, leitor<br />
Os conceitos emitidos representam unicamente as posições de seus autores.<br />
Permiti<strong>da</strong> a transcrição, desde que sem fins comerciais e cita<strong>da</strong> a fonte.<br />
Edições digitais: educacao.rj.gov.br/educacaoemlinha<br />
Impressa na Clicheria Cromos Lt<strong>da</strong>.<br />
Tiragem <strong>da</strong> edição impressa: 5 mil exemplares<br />
Periodici<strong>da</strong>de: Trimestral<br />
Distribuição gratuita. Ven<strong>da</strong> proibi<strong>da</strong><br />
Contato com os editores: educacaoemlinha@educacao.rj.gov.br
PALAVRA DA SECRETÁRIA<br />
Na sequência<br />
analítica <strong>da</strong>s<br />
contribuições<br />
<strong>à</strong> formação cultural<br />
do Brasil, esta edição<br />
<strong>da</strong> Educação em<br />
linha não se detém<br />
particularmente na de<br />
um povo, mas explora<br />
facetas de culturas já<br />
focaliza<strong>da</strong>s. Ela trata<br />
do que Oswald de Andrade<br />
e outros modernistas<br />
denominaram<br />
“antropofagia cultural”<br />
ou seja, a apropriação<br />
e ressignificação<br />
de peculiari<strong>da</strong>des<br />
de diversas culturas<br />
pelos brasileiros. E<br />
que, magistralmente,<br />
Carlos Lessa, Carlos<br />
Lima, Gilberto Mendonça<br />
Teles e Nelson Rodrigues Filho corporificam<br />
em seus artigos.<br />
Ao apresentarmos a 10. a edição, destacamos<br />
fatos significativos: na XIV Bienal do Livro, com<br />
a revista recém-impressa, professores, editores e<br />
autori<strong>da</strong>des que a receberam foram unânimes nos<br />
elogios <strong>à</strong> impressão, ao conteúdo e <strong>à</strong> forma.<br />
Em outubro, mês de comemoração do Dia<br />
do Mestre, outras ocorrências o tornaram mais<br />
memorável para a SEEDUC/RJ – fomos honrados<br />
pela Academia Brasileira de Letras, guardiã e<br />
cultora maior <strong>da</strong> língua e literatura pátrias, que<br />
nos franqueou suas dependências para o lançamento<br />
<strong>da</strong> revista impressa. Cícero Sandroni, jornalista<br />
e escritor, Presidente <strong>da</strong> Casa, enalteceu<br />
o feito diante <strong>da</strong> dificul<strong>da</strong>de de editar e manter<br />
em circulação um periódico <strong>da</strong> quali<strong>da</strong>de de<br />
Educação em linha.<br />
Mais recentemente, a revista foi apresenta<strong>da</strong><br />
pelos editores a Secretários Municipais de<br />
Educação e ao Conselho Estadual de Educação,<br />
a convite de seu Presidente, Prof. Paulo Alcantara,<br />
em sessão itinerante na UCP, em Petrópolis. E<br />
ALÔ, PROFESSOR<br />
TEREZA PORTO<br />
a Biblioteca do Congresso<br />
dos Estados<br />
Unidos nos solicitou<br />
exemplares <strong>da</strong> revista<br />
para seu acervo.<br />
Por tudo isto,<br />
destaque-se o coroamento<br />
<strong>da</strong> persistência<br />
<strong>da</strong> pequena equipe <strong>da</strong><br />
revista; a prestimosa<br />
ação dos membros do<br />
Conselho Editorial; a<br />
crescente cooperação<br />
de autores, e a confiança<br />
de que o veículo,<br />
antes apenas eletrônico,<br />
agora impresso,<br />
desperta no público<br />
leitor: a comprovação<br />
de que a Secretaria de<br />
Estado de Educação/RJ<br />
acertou integralmente<br />
ao acolhê-la.<br />
Chamo a atenção para o artigo <strong>da</strong> acadêmica<br />
Néli<strong>da</strong> Piñon, pela acui<strong>da</strong>de com que trata o tema<br />
educação, ao afirmar: “Educar é prender o aluno<br />
<strong>à</strong> escola, empenhar todos os recursos para<br />
evitar a evasão escolar, a fuga <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. É despertar<br />
nele o desejo de vir a ser um projeto existencial<br />
magnífico, sem brechas, fissuras. De vir<br />
a ser no futuro um congressista, um artista, um<br />
escritor, um operário, um mestre. Alguém que,<br />
ao explorar sua irrenunciável voca ção para a<br />
vi<strong>da</strong>, nela inclua como meta o saber, o desven<strong>da</strong>mento<br />
<strong>da</strong> inteligência, o coração ardente,<br />
a mira<strong>da</strong> camaleônica e reveladora”.<br />
Reiterando agradecimentos a todos os que<br />
contribuíram <strong>à</strong> concretização do sonho Educação<br />
em linha, comprometemo-nos, no novo ano<br />
que se aproxima, a envi<strong>da</strong>r esforços por seu crescimento<br />
quantitativo e qualitativo. Aos leitores e<br />
colaboradores <strong>da</strong> revista e aos colegas <strong>da</strong> SEEDUC<br />
os votos de paz e prosperi<strong>da</strong>de em 2010.<br />
Anunciação de Maria, do escultor catalão Joan Flotats (1847-<br />
1917). Cripta do Templo <strong>da</strong> Sagra<strong>da</strong> Família, Barcelona<br />
TEREZA PORTO<br />
Secretária de Estado de Educação<br />
3
Em 2009 Educação em linha completou mais<br />
um ano de existência. Tão agradável diálogo<br />
se manteve graças <strong>à</strong> conjugação de esforços<br />
de servidores <strong>da</strong> SEEDUC, editores, colaboradores e<br />
membros do Conselho Editorial <strong>da</strong> revista, e a interação<br />
com os leitores.<br />
Em linha com a educação, Néli<strong>da</strong> Piñon, acadêmica<br />
e professora, apresenta magnífica reflexão<br />
com A descoberta do mundo, e Rubem Alves, professor<br />
e psicanalista, faz interessante analogia entre os<br />
misteres <strong>da</strong> sala de aula e <strong>da</strong> cozinha em Sobre os<br />
professores e as cozinheiras.<br />
Na busca de melhor compreensão <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de<br />
nacional, fez-se releitura <strong>da</strong> temática <strong>da</strong> <strong>Antropofagia</strong>:<br />
o ritual de devoração canibal do europeu por<br />
nossos índios, objeto dos relatos e fantasias dos cronistas<br />
que por aqui estiveram; a retoma<strong>da</strong> simbólica<br />
do tema no discurso dos anos 20, dos primeiros modernistas,<br />
dos quais se destaca Oswald de Andrade; e<br />
a analogia do processo de apropriação e assimilação<br />
cultural estrangeira feita pelos brasileiros, ao longo<br />
dos cinco séculos de construção <strong>da</strong> nossa brasili<strong>da</strong>de.<br />
Quatro magistrais artigos tratam do assunto: <strong>Antropofagia</strong><br />
<strong>à</strong> <strong>mo<strong>da</strong></strong> <strong>da</strong> <strong>casa</strong>, de Carlos Lessa; Oswald<br />
de Andrade – a utopia antropofágica: uma utopia<br />
sem história, de Carlos Lima; O “gremial” e “ordeiro”<br />
Oswald de Andrade, de Gilberto Mendonça Teles; e<br />
<strong>Antropofagia</strong>, apropriação e carnaval, de Nelson Rodrigues<br />
Filho.<br />
Se um escritor só morre<br />
quando morrer seu último<br />
leitor. Sempre que houver<br />
leitores ou for lembrado, permanecerá<br />
presente. O leitor<br />
dá sobrevi<strong>da</strong> ao autor, numa<br />
espécie de imortali<strong>da</strong>de. Ilustram<br />
isto Antonio Olinto, que<br />
há pouco nos deixou, apresentando<br />
Euclides e a Amazônia,<br />
homenagem a outro imortal<br />
escritor, cujo precioso legado<br />
inclui Um paraíso perdido:<br />
ensaios amazônicos. Carlos<br />
Nejar, acadêmico como os citados,<br />
com a delica<strong>da</strong> palavra<br />
sobre o “menino” Olinto.<br />
Cícero Sandroni, Presidente<br />
<strong>da</strong> ABL, fala sobre o<br />
amigo que recentemente recebeu<br />
o Prêmio Machado de Assis,<br />
Salim Miguel – encontro<br />
& reencontros e a realização<br />
conjunta <strong>da</strong> revista Ficção<br />
que “marcou fundo a história<br />
recente <strong>da</strong> literatura brasileira”.<br />
Da Espanha, o professor<br />
Nicolás Extremera Tapia lembra<br />
outro amigo, o acadêmico<br />
João Cabral de Melo Neto, um<br />
4 4<br />
ALÔ, PROFESSOR<br />
EDITORIAL<br />
Anjos musicistas. Agostino di Duccio.<br />
Templo Malestiano, Rimini, Itália<br />
diálogo com Espanha. Os paradigmáticos Monteiro<br />
Lobato e Cervantes são focalizados por Luiz Raul<br />
Machado, em História de paixão.<br />
Como a música também imortaliza, Haroldo<br />
Costa recor<strong>da</strong> Braguinha, poeta do Rio, ci<strong>da</strong>de lembra<strong>da</strong><br />
por Antonio Edmilson Martins Rodrigues em<br />
O Rio <strong>da</strong> Bela Época, não tão bela assim, e por Reginaldo<br />
Sah com O mobiliário urbano como memória<br />
do Rio. Por sua vez, Do baú do Cau Barata, aberto<br />
aos editores, o traço satírico francês – o olhar malicioso<br />
e crítico de franceses que por aqui estiveram<br />
no séc. XIX. O professor Jean Lauand surpreende<br />
ao demonstrar que o olé <strong>da</strong>s toura<strong>da</strong>s e do futebol<br />
tem origem árabe e religiosa, com: Oléééé!!... Deus,<br />
a Beleza e a Arte.<br />
Tratando de memórias, a jornalista Cecilia Costa<br />
Junqueira recor<strong>da</strong> A sábia imperatriz que morreu<br />
de amor, e o professor João Baptista Vargens nos oferece,<br />
com sua experiência por outras terras: O chá, o<br />
fino, o tinto e o chope: uma viagem. O professor italiano<br />
Paolo Spedicato estabelece curiosa ponte poética<br />
entre Ligúria e a costa brasileira, especificamente<br />
a Bahia, onde vive, através de O livro e o mar.<br />
O bazar do Renascimento, de Jerry Brotton, e<br />
Al-Garb 1146: viagem onírica ao Portugal muçulmano,<br />
de Alberto Xavier – dois livros reveladores sobre<br />
as relações religiosas, políticas, econômicas e culturais<br />
entre os mundos cristão, islâmico e ju<strong>da</strong>ico.<br />
Revelador por excelência dos primeiros anos<br />
<strong>da</strong> carreira do nosso Bruxo – e<br />
para melhor compreensão de<br />
sua obra, somando o biográfico<br />
ao literário –, a reedição<br />
de A juventude de Machado de<br />
Assis, do professor Jean-Michel<br />
Massa, confirma “a mestria com<br />
que sabe associar o faro de investigador<br />
ao espírito crítico” e<br />
“traça o panorama de uma época<br />
menos conheci<strong>da</strong> <strong>da</strong> nossa<br />
literatura”.<br />
Os recursos humanos são<br />
tratados em Artistas, Cientistas<br />
e Artesãos, pelo “caçador” de talentos<br />
Augusto Dias Carneiro, e<br />
Claudio Mendonça, Presidente <strong>da</strong><br />
Fun<strong>da</strong>ção Educacional de Niterói,<br />
questiona aspectos do Concurso<br />
Público, tal como ele ocorre.<br />
Por fim, dedicamos o<br />
sucesso de nosso trabalho aos<br />
que para ele contribuíram: colaboradores<br />
e leitores. Seja 2010<br />
um ano de fecun<strong>da</strong>s realizações<br />
para todos!<br />
HELENICE VALIAS E<br />
JOHN W. FREIRE<br />
Editores
Bem sabemos que to<strong>da</strong>s as civilizações meditaram<br />
so bre o destino humano. Elas, ain<strong>da</strong> hoje, estão<br />
presentes no ato de falar, de pensar, de intuir, de<br />
ser quem somos. O fazer contemporâneo depende de<br />
considerações pretéri tas que atualizamos até os nossos<br />
dias. Não há como aper feiçoar os tempos modernos,<br />
ou modelar um ponto de vista <strong>da</strong> época atual, sem<br />
cultivar estes legados. Sem deixar de alimentar o sentimento<br />
sinestésico estabelecido com aque les que nos<br />
antecederam na inesgotável batalha <strong>da</strong> sobre vivência<br />
e <strong>da</strong> sucessão. Afinal, o que somos senão sombras que<br />
florescem, vozes que entoam epifanias?<br />
Assim, o patrimônio cultural está presente no<br />
esforço do mestre de filtrar os encontros civilizadores,<br />
de encaixá- los na sensibili<strong>da</strong>de do aluno, de captar os<br />
ruídos do lar, que é a miniatura <strong>da</strong> escola, e de onde<br />
todos procedem. Pois, quem melhor que a escola e o<br />
lar, para oferecer ao aluno a essência e os restos de<br />
um saber instalado no coração dos homens, e fazê-lo<br />
eclodir <strong>à</strong> medi<strong>da</strong> que lhe pro voque a inteligência, o interesse,<br />
a convicção <strong>da</strong> própria humani<strong>da</strong>de.<br />
O universo escolar, onde se operam as metamorfoses<br />
sociais, foge do meu ajuizamento. Rondo o<br />
prédio <strong>da</strong> es cola, que em geral leva gravado no frontispício<br />
o nome de um ilustre brasileiro, e quase na<strong>da</strong> sei<br />
de sua efervescência. Neste campo, embora brasileira<br />
apaixona<strong>da</strong>, sou incapaz de propor um modelo em oposição<br />
ao atual e que gere resultados positivos. Afinal,<br />
vem de muito longe o fracas so educacional brasileiro.<br />
EDUCAÇÃO EM DIÁLOGO<br />
NÉLIDA PIÑON<br />
A<br />
DESCOBERTA<br />
DO MUNDO*<br />
Vem <strong>da</strong> incúria pública, <strong>da</strong> in sensibili<strong>da</strong>de social, <strong>da</strong><br />
falta de uma decisão política capaz de assegurar uma<br />
eficaz revolução educacional cobra<strong>da</strong> pela socie<strong>da</strong>de.<br />
E igualmente não me ocorre a forma pela qual aliciar<br />
ao mesmo tempo o Estado e o conjunto social.<br />
De envolvê-los em um projeto disposto a liberar os<br />
grilhões impostos <strong>à</strong> escola e ao professor e a criar<br />
um porvir libertário. Ignoro como erigir uma escola<br />
que em seu ful cro, além de atender <strong>à</strong>s deman<strong>da</strong>s <strong>da</strong><br />
educação básica, concilie antagonismos, estimule<br />
controvérsias, enseje o debate contestatório. Ingredientes<br />
que, em conjunto, ou isolados, impulsionam<br />
educação e cultura, enlaça<strong>da</strong>s e inseparáveis, a criar<br />
um ci<strong>da</strong>dão livre.<br />
Não sei, assim, como divisar uma escola que<br />
expresse as mu<strong>da</strong>nças há muito crava<strong>da</strong>s no coração<br />
social. E cuja sabedoria, intrínseca, repudie a<br />
pasteurização <strong>da</strong> reali<strong>da</strong> de a pretexto de impor ao<br />
cérebro dos alunos uma simpli ficação que justifique<br />
seus desacertos, sua incompetência, sua omissão. A<br />
ausência, enfim, de um sentimento visio nário com o<br />
qual construir um grande país.<br />
Talvez a escola dos sonhos seja simultaneamente<br />
o ter ritório <strong>da</strong> crise e o lugar <strong>da</strong> solução. Em<br />
tal escola, deve subsistir, perdurar, como prova até<br />
do seu magnetismo secular, o eterno conflito entre o<br />
individualismo e o ideal coletivo. Nesta escola, enquanto<br />
o ideal coletivo, desde uma perspectiva solidária,<br />
combate o código elitista que isola a maioria<br />
5
Foto: Euzivaldo Queiroz<br />
<strong>da</strong> população brasileira, o individualismo, em defesa<br />
do espírito libertário no qual se estriba, assu me<br />
a responsabili<strong>da</strong>de social que lhe é devi<strong>da</strong> graças<br />
aos benefícios provindos do exercício <strong>da</strong> própria liber<strong>da</strong>de.<br />
Nesta espécie de escola, cabem to<strong>da</strong>s as perguntas<br />
e a admissão de todos os problemas nacionais.<br />
E nem po deria ser diferente, se o Brasil in<strong>da</strong>ga-se<br />
<strong>à</strong> exaustão como agir perante o aluno que,<br />
recém-chegado <strong>à</strong> escola, traz consigo, como única<br />
bagagem, uma cultura primária, o conhecimento<br />
escasso, quase inexistente, <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de circun<strong>da</strong>nte.<br />
Um aluno que, marginalizado <strong>da</strong>s benesses<br />
culturais, e ofuscado pelo brilho do mundo, apenas<br />
dis põe <strong>da</strong>s migalhas que a grei familiar, desfalca<strong>da</strong><br />
de tudo, assegurou-lhe como única herança de<br />
amor e de atribu to moral.<br />
Este quadro social, a condenar os brasileiros<br />
ao de gredo, impõe, em contraparti<strong>da</strong>, a in<strong>da</strong>gação:<br />
acaso cabe <strong>à</strong> escola consoli<strong>da</strong>r estes valores, conservar<br />
o aluno em um estado indigente, a pretexto<br />
de não desmoronar suas convicções familiares, de<br />
não ofender suas raízes, seu orgulho cultural? Acaso,<br />
em nome de uma ideologia hi pócrita, de uma<br />
valorização cultural localista, é válido privá-lo dos<br />
benefícios provindos de uma revolução mental,<br />
mantê-lo afastado de um sistema linguístico sofisticado,<br />
isolá-lo do protagonismo social? E negar-lhe,<br />
Escola indígena waimiri atroari. Norte <strong>da</strong> Amazônia.<br />
Acervo Proindio/UERJ<br />
6<br />
EDUCAÇÃO EM DIÁLOGO<br />
como consequência, o privilégio de usufruir de uma<br />
reali<strong>da</strong>de progressista, só por haver nascido em um<br />
berço social mente condenado?<br />
As respostas doem, assim como as perguntas.<br />
Contu do, o que impulsiona a socie<strong>da</strong>de moderna<br />
é a inabalável convicção de que educação e cultura<br />
se destinam, indis crimina<strong>da</strong>mente, a pobres e<br />
ricos, <strong>à</strong> mulher e ao homem, sem distinções de credos,<br />
etnias, gênero, preferências sexuais, <strong>da</strong>s categorias<br />
que expressam a diversi<strong>da</strong>de e o pluralismo<br />
do planeta. Um príncípio soberano a reque rer que<br />
as cama<strong>da</strong>s desfavoreci<strong>da</strong>s do Brasil ingressem<br />
preferencialmente nas projeções <strong>da</strong>s estatísticas<br />
oficiais que, em geral, pautam suas decisões considerando<br />
os seg mentos sociais produtivos.<br />
Vivemos todos em uma galáxia humanística.<br />
E não devemos perder de vista aqueles conceitos<br />
que cobram <strong>da</strong> escola e <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de uma<br />
poética <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de. Uma poética capaz de valorizar<br />
ao mesmo tempo a aventura de viver e o convívio<br />
com o saber. Empenha<strong>da</strong> em acreditar que<br />
o pensar, mesmo de alta elaboração, não sendo<br />
em si excludente, arrasta em seu interior, em sua<br />
disciplina expansionista, to<strong>da</strong>s as categorias sociais,<br />
todos os sentimentos engendrados pelo ser<br />
humano.<br />
Como consequência desta crença, há que<br />
humanizar o humano. Recuperar o logos na sua<br />
dimensão dupla, de razão e de conteúdo de linguagem.<br />
Há que reconhe cer a escola e a socie<strong>da</strong>de<br />
como responsáveis por uma pe<strong>da</strong>gogia que, havendo<br />
falhado na formação de princípios que alargam<br />
o espírito humano, terminou por vertebrar<br />
o sujeito social. E que, ao oferecer ao ci<strong>da</strong>dão o<br />
arremedo de uma democracia plena, concede-lhe,<br />
isto sim, falsas prerrogativas. Em especial quando<br />
se descui <strong>da</strong> de seus direitos e imprime <strong>à</strong> ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia<br />
ilusões irrea lizáveis.<br />
Com frequência desconfio de sermos vítimas<br />
de uma impostura social por parte de quem,<br />
a pretexto de adiar soluções de problemas asfixiantes,<br />
cria nomenclaturas vácuas, alia-se ao politicamente<br />
correto, com tal artifício dissimulando<br />
questões reais.<br />
Dificilmente o Brasil será uma nação soberana<br />
se não proclamar a cartilha como uma alavanca<br />
simbólica. Sem ela, uma legião de desesperados,<br />
desfalca<strong>da</strong> de fé no siste ma social, há de refugiar-se<br />
na violência, na morte preco ce. Para estes revoltados,<br />
a cela, substituindo a educação que redime o<br />
homem, torna-se uma impiedosa carta de alforria.<br />
A despeito, contudo, do fracasso dos sucessivos<br />
gover nos de enfrentarem a falência educacional,<br />
subsiste a fi gura heroica do professor que, levando<br />
a mochila nas costas, com os pés cansados, rastreia<br />
o Brasil. E oferta aos alunos, assombrados ante as<br />
primeiras manifestações <strong>da</strong> educação formal, as pa-
EDUCAÇÃO EM DIÁLOGO<br />
lavras que são o<br />
Foto: João Guilherme Cunha – Acervo Projeto Portinari<br />
procede de quem<br />
alento <strong>da</strong> presença<br />
aju<strong>da</strong> a crescer,<br />
civilizadora.<br />
de quem impul-<br />
Às margens<br />
siona o próximo<br />
dos igarapós e dos<br />
a transformar-se,<br />
igarapés, próximo <strong>à</strong><br />
a modificar-se,<br />
choupana de sapé<br />
a sofrer a meta-<br />
que é a escola, enmorfose<br />
que a<br />
quanto tremula no<br />
educação impõe.<br />
mastro a bandeira<br />
Educar, po-<br />
brasileira em franrém,<br />
não é empogalhos,<br />
ele mostra<br />
brecer quem é po-<br />
aos alunos o pribre,<br />
quem padece<br />
meiro livro que co-<br />
<strong>da</strong> penúria social,<br />
nhecem. Uma cena<br />
para oferecer-lhe<br />
que de certa feita<br />
uma educação de<br />
presenciei no Ama-<br />
segun<strong>da</strong> classe, a<br />
zonas e persegueme<br />
até hoje. Ali<br />
pretexto de fazê-<br />
Suely Avellar apresenta Portinari aos ribeirinhos. Pantanal Matogrossense lo entender o que,<br />
está ele, investido<br />
de outro modo,<br />
de autori<strong>da</strong>de quase litúrgica, a falar- lhes do que é não estaria <strong>à</strong> altura <strong>da</strong> sua compreensão.<br />
novo. A fazer-lhes ver que ca<strong>da</strong> aluno, de onde proce- Educar não é humilhar o aluno privando-o<br />
<strong>da</strong>, pertence <strong>à</strong> esfera <strong>da</strong> língua portuguesa, graças <strong>à</strong> de um sa ber que o pode elevar a um patamar supe-<br />
qual expressa sua humani<strong>da</strong>de, suas urgências oníririor. Nem lhe ofertar o ensino idêntico ao que tem<br />
cas, a geografia tridimensional de sua terra que, por ele em <strong>casa</strong>, no seu cotidiano espezinhado.<br />
si, é um projeto imaginativo.<br />
Educar não lhe é <strong>da</strong>r a metade de uma língua<br />
Ao atraí-los para o centro <strong>da</strong> gravi<strong>da</strong>de cultu- que con sagra os erros trazidos de <strong>casa</strong>, a caricatura<br />
ral, o pro fessor demonstra-lhes que são um a mais do que ele representa, e fazer dele um experimen-<br />
na extensa ca deia de pequenos heróis. Enquanto to pe<strong>da</strong>gógico que ignora a redenção civilizadora.<br />
assegura-lhes que o prazer, originário do conheci- Não é privá-lo de um co nhecimento que o leve um<br />
mento, <strong>da</strong> sabedoria, corresponde ao gozo <strong>da</strong> carne, dia a igualar-se ao saber de quem pode mais que<br />
<strong>à</strong> alegria do amor, ao misteri oso sentimento que ele, teve mais chances que ele, ouviu melhor que<br />
invade a todos quando a inteligência, uma vez ma- ele, leu melhor que ele.<br />
nifesta, ilumina a floresta.<br />
Educar é também desconsiderar os obstácu-<br />
Aristóteles, no livro Política, dizia que para los <strong>da</strong> mi séria e do obscurantismo, e fazer a crian-<br />
governar é preciso haver sido antes um governado. ça sonhar, o ado lescente derrubar os entraves cul-<br />
Parafraseando o filósofo, para ser um professor há turais, para que pleiteiem um mundo <strong>à</strong> altura <strong>da</strong><br />
que ter sido um aluno. Uma perspectiva que, apli- sua imaginação.<br />
ca<strong>da</strong> ao mestre, jamais esgota o seu processo edu- Educar é fazer o aluno fruir dos bens do placacional.<br />
Uma vez que o saber, em uma progressão neta em to<strong>da</strong>s as suas manifestações. Para que sua<br />
insaciável, está sempre desatualizado, ignora ain- fantasia, seu verbo, sua linguagem, sejam libertárias,<br />
<strong>da</strong> o que será forçado a registrar no dia seguinte. destemi<strong>da</strong>s, sem freios. É fazer do ato de pensar um<br />
Daí ser forçoso reconhecer que o estatuto cultural feito tão natural quan to respirar. Um dom ao alcance<br />
atualiza-se mediante a absoluta rendição em face de todos, independente de sua condição.<br />
de novos saberes.<br />
Educar é defender o exercício e a prática que<br />
Mas, enquanto o professor padece de contí- transfor mam o sujeito passivo em sujeito <strong>da</strong> própria<br />
nua trans formação, é <strong>da</strong> sua liturgia apresentar- história. É <strong>da</strong>r fé a quem esteja na sala de aula de ser<br />
se diante do aluno como uma figura transcendente ele uma enti<strong>da</strong> de inviolável, uma aposta do futuro.<br />
que, mediando o saber e a ignorância, exerce seu Educar é prender o aluno <strong>à</strong> escola, empenhar<br />
ofício com inconteste autori<strong>da</strong> de. Uma autori<strong>da</strong>de todos os recursos para evitar a evasão escolar, a<br />
que dispensa a intimi<strong>da</strong>de licenciosa, o uso do tra- fuga <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. É despertar nele o desejo de vir a ser<br />
tamento desrespeitoso, a pretexto de distor cidos um projeto existencial magnífico, sem brechas,<br />
direitos democráticos.<br />
fissuras. De vir a ser no futuro um congressista,<br />
Assim, mestre é mestre, aluno é aluno. Ambos um artista, um escritor, um operário, um mestre.<br />
guar <strong>da</strong>ndo entre si a distância propícia ao afeto e ao Alguém que, ao explorar sua irrenunciável voca-<br />
respeito, que consoli<strong>da</strong> a autonomia de ca<strong>da</strong> qual, os ção para a vi<strong>da</strong>, nela inclua como meta o saber, o<br />
direitos de todos. Mesmo porque a palavra autori<strong>da</strong>de des ven<strong>da</strong>mento <strong>da</strong> inteligência, o coração arden-<br />
7
te, a mira<strong>da</strong> camaleônica e<br />
reveladora.<br />
Educar é também convencer<br />
alunos e ci<strong>da</strong>dãos de<br />
que o professor é a única enti<strong>da</strong>de<br />
social capaz de modificar<br />
a socie<strong>da</strong>de e torná-la<br />
melhor. É um ser aparelhado<br />
para opor-se <strong>à</strong> barbárie. Pois<br />
quem, senão o Mestre, tem<br />
a habi li<strong>da</strong>de de chegar mais<br />
perto e rapi<strong>da</strong>mente ao coração<br />
jovem que recém deixou<br />
as paredes <strong>da</strong> <strong>casa</strong>?<br />
Educar é aju<strong>da</strong>r a traduzir<br />
historicamente o que sepa ra<br />
os indivíduos, enquanto lhes<br />
explica o que pode uni-los sob a<br />
tutela <strong>da</strong> lei e <strong>da</strong> soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de<br />
ci<strong>da</strong>dã. É auxiliar a distinguir o<br />
que pertence <strong>à</strong> órbita do individual<br />
e o que emerge do coletivo.<br />
Educar é combater a reali<strong>da</strong>de<br />
reducionista do aluno,<br />
é introjetar em sua caixa de<br />
memória o desejo irrenunciável<br />
de apropriar-se do conhecimento. É fomentar-lhe<br />
o gosto pela leitura que, por si mesmo, combate a<br />
resignação, a passivi<strong>da</strong>de, e concede-lhe, em troca,<br />
infindáveis oportu ni<strong>da</strong>des, <strong>da</strong>ndo-lhe o acesso ao infinito<br />
mundo.<br />
Educar é fazer crer ao aluno, e por consequência<br />
<strong>à</strong> so cie<strong>da</strong>de, que a imaginação está ao alcance de<br />
todos. Com ela, esgrime-se o cotidiano, compatibiliza-se<br />
sonho e rea li<strong>da</strong>de, apropria-se do que até então<br />
não havíamos apren dido.<br />
Educar é combater o trivial, o frívolo, o que<br />
permane ce na área dos equívocos acumulados. É aju<strong>da</strong>r<br />
a formar um indivíduo para que ele possa decidir,<br />
com rara proprie <strong>da</strong>de, de que modo conduzir sua<br />
vi<strong>da</strong>. É permitir que a matéria humana, <strong>da</strong><strong>da</strong> a sua<br />
transcendência moral, con verta-se finalmente em um<br />
ser, uma pessoa, um bem in tangível.<br />
O ser educado nasce, no entanto, de intricado<br />
puzzle, que não se termina de armar. Sua interpretação<br />
<strong>da</strong>s coi sas não se origina de atos espontâneos, ou <strong>da</strong><br />
falsa intui ção que dita regras do saber. Se nosso corpo<br />
é uma legítima obra de arte, há que buscar correspondência<br />
entre este corpo e a mente. É forçoso atravessar<br />
o intenso processo de aprendizagem de modo a alcançar<br />
a maturação <strong>da</strong> in teligência, a desfrutar de uma<br />
matriz com fecun<strong>da</strong>s irra diações culturais.<br />
E sendo todos partícipes desta epopeia cultural,<br />
ja não podemos aceitar, passivos, que a população<br />
brasileira, manti<strong>da</strong> <strong>à</strong> margem do processo educacional,<br />
seja vítima de uma prática que corresponde a um<br />
genocídio. Pois há várias maneiras de matar sem o<br />
8<br />
EDUCAÇÃO EM DIÁLOGO<br />
uso de arma. Mata-se também<br />
mantendo o brasileiro<br />
afásico, cancelando-lhe o<br />
ar bítrio, o livro, confinando-o<br />
<strong>à</strong> ignorância, não lhe<br />
cedendo ocasião para refletir<br />
sobre o universo.<br />
A ver<strong>da</strong>deira separação<br />
de classe reside, de<br />
fato, em quem tem cultura<br />
e quem não a tem. Em<br />
quem dispõe de informação<br />
e quem não a pode utilizar<br />
como instrumen tal de vi<strong>da</strong>.<br />
Pois que é parte intrínseca<br />
<strong>da</strong> educação mani pular os<br />
segredos inerentes <strong>da</strong> linguagem,<br />
do pensamento.<br />
É saber distinguir<br />
entre o que é objeto de uma<br />
reflexão personaliza<strong>da</strong> e o<br />
que aflora sem esforço <strong>à</strong><br />
superfície. É estabelecer<br />
relações de força entre os<br />
vários saberes e apro ximar<br />
os diversos nexos e articulações<br />
culturais, <strong>da</strong>ndo- lhes, como consequência, um<br />
sentido e destino. É aju<strong>da</strong>r a pensar de maneira a<br />
auferir a reali<strong>da</strong>de e examinar sua conveniência.<br />
Portanto, mais que espelhar a informação obti<strong>da</strong>,<br />
a educação auxilia a li<strong>da</strong>r com ela. De forma que o<br />
acúmulo de informações não asfixie o desenvolvimento<br />
do pensa mento. Não torne o ci<strong>da</strong>dão um adicto <strong>da</strong><br />
informação, em prejuízo do ato mesmo de pensar, incapaz<br />
de expurgar o que desserve <strong>à</strong> vocação reflexiva.<br />
Esta educação, que pleiteia preparar o indivíduo<br />
para o exercício <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia plena, para a digni<strong>da</strong>de<br />
do em prego, para vir a ser o bom governado<br />
e o bom governante, tem em vista conclamar que um<br />
país só se torna viável se enseja a educação de todos.<br />
Porque educar, acima <strong>da</strong>s benesses pe<strong>da</strong>gógicas, é repartir<br />
entre os alunos os con ceitos que emanam <strong>da</strong><br />
nossa humani<strong>da</strong>de. É acreditar que, fora <strong>da</strong> educação<br />
e do saber, tudo se converte em um caos anticriativo,<br />
turbulento. É apostar na civilização contra o obscurantismo<br />
e a barbárie.<br />
É, finalmente, reverenciar, hoje e sempre, a figura<br />
do professor que nos tomando pela mão, enlaçados<br />
pelo mes mo ideal, leva-nos a frequentar o próprio<br />
mistério, o cora ção alheio, a visitar a memória, as<br />
civilizações pretéritas que residem em nós.<br />
NÉLIDA PIÑON<br />
Escritora<br />
Membro <strong>da</strong> Academia Brasileira de Letras<br />
Autora, entre outros, de Vozes do deserto, Aprendiz de<br />
Homero e Coração an<strong>da</strong>rilho (Ed. Record)<br />
*Excerto do capítulo, pp. 229-39, <strong>da</strong> obra Aprendiz de Homero
EDUCAÇÃO EM DIÁLOGO<br />
Sobre os <strong>Professor</strong>es e as Cozinheiras*<br />
Olho para a educação com olhos de<br />
cozinheira e me pergunto: que comi<strong>da</strong>s se<br />
preparam com os corpos e mentes <strong>da</strong>s crianças<br />
e adolescentes nesses imensos caldeirões<br />
chamados escolas?<br />
Ridendo dicere severum.<br />
(Brincando, dizem-se coisas sérias.) Nietzsche<br />
Antes de dizer o que tenho<br />
a dizer sobre educação<br />
sinto necessi<strong>da</strong>de<br />
de <strong>da</strong>r aos meus leitores<br />
uma informação sobre minha<br />
i<strong>da</strong>de. Sei que isso pode parecer<br />
irrelevante, de um ponto<br />
de vista científico, pois para a<br />
ciência a ver<strong>da</strong>de não tem i<strong>da</strong>de.<br />
Mas eu não sou um cientista.<br />
Apenas sigo um conselho<br />
de Kierkegaard, que dizia<br />
que “a pessoa que fala sobre<br />
a vi<strong>da</strong> humana, que mu<strong>da</strong><br />
com o passar dos anos, deve<br />
ter o cui<strong>da</strong>do de declarar sua<br />
i<strong>da</strong>de aos seus leitores”. Isso<br />
para que os leitores, conscientes<br />
do tipo de olhos que estão<br />
sendo usados por aquele que<br />
escreve, possam fazer os devidos<br />
ajustamentos nos seus<br />
próprios olhos.<br />
(O mundo, visto através<br />
de um olhar matinal, não<br />
é o mesmo, quando visto<br />
através de um olhar crepuscular.<br />
Uma lin<strong>da</strong> ilustração<br />
deste fato se encontra nas telas<br />
de Monet, que pintava o<br />
mesmo monte de feno muitas<br />
vezes, pelas diferentes horas<br />
do dia: sob ca<strong>da</strong> luz diferente<br />
o monte de feno se transformava<br />
em outra coisa. Meu<br />
olhar é crepuscular.)<br />
É possível que Barthes<br />
tenha lido Kierkegaard, pois<br />
o fato é que, ao final de sua<br />
Aula, ele confessa que o seu<br />
jeito de pensar decorria do momento<br />
crepuscular em que vivia.<br />
Partindo dessa confissão,<br />
ele descreve os três momentos<br />
na vi<strong>da</strong> de um professor.<br />
RUBEM ALVES<br />
Imagens <strong>da</strong> Catedral de Rouen, França, pinta<strong>da</strong>s<br />
por Monet (1893-94), em diferentes horas<br />
do dia, mostrando influências que a luz pode<br />
exercer sobre a percepção <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de<br />
Há um tempo na vi<strong>da</strong> em que o professor ensina<br />
aquilo que sabe: transmite aos seus alunos os<br />
conhecimentos sedimentados, as receitas que a experiência<br />
passa<strong>da</strong> testou e aprovou. Vem depois o<br />
tempo em que o professor ensina o que não sabe.<br />
Havendo navegado por muitos mares, o professor se<br />
encontra com o aluno, que lhe diz: “Quero navegar<br />
naquele mar!” – e ao dizer isso aponta para um<br />
vazio nos mapas que pendem na parede. “Aquele mar<br />
eu não conheço” – responde o<br />
professor. “Nunca fui lá. Mas<br />
posso lhe <strong>da</strong>r um saber que<br />
o aju<strong>da</strong>rá a se aventurar pelo<br />
desconhecido...” É o tempo <strong>da</strong><br />
pesquisa. Na pesquisa o mestre<br />
ensina o que não sabe.<br />
Mas aí, surpreendentemente,<br />
Barthes anuncia que a<br />
passagem do tempo o fizera<br />
chegar a um novo momento: o<br />
momento de esquecer e desaprender<br />
os saberes que o passado<br />
sedimentara sobre o seu<br />
corpo. Esquecer e desaprender,<br />
a fim de chegar a um<br />
saber esquecido, sapientia, que<br />
quer dizer: na<strong>da</strong> de poder, uma<br />
pita<strong>da</strong> de saber, uma pita<strong>da</strong> de<br />
sabedoria, e o máximo de sabor<br />
possível. É possível tomar<br />
essa confissão de Barthes como<br />
manifestação <strong>da</strong> suave loucura<br />
que, frequentemente, se apossa<br />
dos velhos. Ou é possível ouvir<br />
nele o barulho <strong>da</strong>s asas <strong>da</strong> coruja<br />
de Minerva, levantando<br />
voo ao crepúsculo, tal como<br />
Hegel profetizara: Barthes, o<br />
sábio.<br />
Sábio se prende etimologicamente<br />
a sapio, eu saboreio,<br />
e sapientis é conhecimento<br />
saboroso. Barthes, ao ficar<br />
velho, libertava-se <strong>da</strong> maldição<br />
ocular <strong>da</strong> filosofia denuncia<strong>da</strong><br />
por Bachelard, um jeito de<br />
pensar a partir do olhar, pensar<br />
para ver – e se transferia<br />
para o lugar do sabor: a boca.<br />
Filosofar a partir <strong>da</strong> boca, pensar<br />
para ter prazer...<br />
(Atrevo-me, assim, sob a<br />
proteção <strong>da</strong> velhice, a confessar<br />
9
que o meu pensamento<br />
sobre a educação, <strong>à</strong><br />
semelhança do pensamento<br />
de Barthes, se<br />
faz a partir do lugar<br />
onde o prazer é preparado:<br />
a cozinha...)<br />
Se, aos que<br />
só sabem pensar de<br />
maneira ocular, tal<br />
proposta parece ser<br />
coisa não séria, lembro<br />
que as semelhanças<br />
entre processos<br />
<strong>da</strong> inteligência, aos<br />
quais a educação se<br />
liga, e processos digestivos já foram amplamente<br />
reconhecidos por filósofos respeitáveis. Lembro-me<br />
de que entre eles estão Santo Agostinho,<br />
Nietzsche, Ludwig Feuerbach, que chegava ao<br />
ponto de afirmar que “somos o que comemos”.<br />
E bem no nosso quintal se encontra o movimento<br />
antropofágico, que propunha uma teoria de<br />
assimilação cultural, de educação, portanto, <strong>à</strong><br />
semelhança de canibalismo.<br />
As especialistas nos prazeres <strong>da</strong> boca são as<br />
cozinheiras. Gostaria de, preguiçosamente, poder<br />
me dedicar a fazer “meditações sobre o método<br />
culinário”, implícito na opção filosófica de Barthes,<br />
mas espaço de jornal mais se parece com espaço<br />
de lanchonete, em na<strong>da</strong> parecido aos salões<br />
de banquetes <strong>da</strong> Babette e <strong>da</strong> Tita. É preciso ser<br />
breve. O pensamento <strong>da</strong> cozinheira se inicia com<br />
um sonho de amor. Babette e Tita queriam matar<br />
de amor aqueles que iriam provar a sua comi<strong>da</strong>.<br />
Eram especialistas no kamasutra <strong>da</strong> mesa. Não<br />
comendo, mas apenas provando a comi<strong>da</strong> que preparavam,<br />
elas se alimentavam <strong>da</strong> pura fantasia<br />
do prazer que os convi<strong>da</strong>dos iriam ter. É com este<br />
sonho que se inicia o preparo do banquete, muito<br />
antes de qualquer coisa prática seja feita. O sonho,<br />
apossando-se magicamente do corpo, convoca a<br />
inteligência, a razão prática para o trabalho. A inteligência<br />
é a Bela Adormeci<strong>da</strong>: só acor<strong>da</strong> do seu<br />
sono quando toca<strong>da</strong> por um beijo de amor.<br />
(Assim são os corpos <strong>da</strong>s crianças e dos adolescentes,<br />
castelos de muitos quartos, em ca<strong>da</strong> um<br />
deles dormindo uma inteligência, <strong>à</strong> espera de alguém<br />
que as acorde.)<br />
Acor<strong>da</strong><strong>da</strong>, a inteligência se põe a trabalhar<br />
para realizar o sonho. A ciência é serva do amor.<br />
Isso é a essência <strong>da</strong> minha filosofia de educação.<br />
(Blake disse que “o prazer engravi<strong>da</strong>; o sofrimento<br />
faz parir”. O trabalho de produção do objetivo<br />
do amor é o sofrimento alegre do parto, que se<br />
iniciou com o prazer <strong>da</strong> concepção.)<br />
Assim, pois, as cozinheiras, mestras, resumem<br />
a sua filosofia: o sabor, o prazer, é o objetivo <strong>da</strong><br />
vi<strong>da</strong>, o fim de to<strong>da</strong>s as coisas. Para ele vivemos. O saber,<br />
a ciência <strong>da</strong>s receitas e dos utensílios, é apenas o<br />
meio necessário e indispensável para o fim último do<br />
prazer. Isto que digo <strong>da</strong> filosofia <strong>da</strong>s cozinheiras Santo<br />
Agostinho, quinze séculos atrás, o disse teologica-<br />
10<br />
EDUCAÇÃO EM DIÁLOGO<br />
mente sobre a vi<strong>da</strong> inteira.<br />
Todos os objetos do mundo,<br />
ele diz, se dividem em<br />
duas classes. De um lado<br />
está a classe <strong>da</strong>s utili<strong>da</strong>des:<br />
utensílios, ferramentas,<br />
panelas, facas, canetas,<br />
martelos, a técnica, as<br />
receitas, o conhecimento.<br />
Esses objetos, úteis e indispensáveis,<br />
são apenas<br />
meios e pontes. Por isso,<br />
não nos dão felici<strong>da</strong>de.<br />
De outro lado está<br />
a classe dos objetos de<br />
fruição, que nos dá prazer:<br />
a fruta, a sonata, o poema, o quadro, o pôr<br />
do sol, o beijo. É o mundo do sabor. Esses são os<br />
objetos que nos dão felici<strong>da</strong>de. Para eles vivemos.<br />
São o propósito <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. Olho para a educação com<br />
olhos de cozinheira e me pergunto: que comi<strong>da</strong>s se<br />
preparam com os corpos e mentes <strong>da</strong>s crianças e<br />
adolescentes, nesses imensos caldeirões chamados<br />
escolas? Porque educação é isso: um processo de<br />
transformações alquímicas que acontece pela magia<br />
<strong>da</strong> palavra. Que prato se pretende servir? Que<br />
sabor está sendo preparado?<br />
Reconheço a hipertrofia <strong>da</strong> classe <strong>da</strong>s utili<strong>da</strong>des:<br />
teses sem fim sobre os mecanismos psicológicos,<br />
sociais, econômicos e políticos <strong>da</strong> educação,<br />
uma infini<strong>da</strong>de de métodos para o controle<br />
de quali<strong>da</strong>de e avaliação de aprendizagem e uma<br />
exuberância <strong>da</strong> parafernália tecnológica (ah, o fascínio<br />
dos micros!) a ser usa<strong>da</strong> no ensino.<br />
Mas as panelas não garantem a quali<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />
comi<strong>da</strong>. Os meios não resolvem os fins. Para que<br />
se educa? Por que enviamos nossos filhos <strong>à</strong>s escolas?<br />
Responde a nossa filosofia econômica que é<br />
para formar bons profissionais, para que os jovens<br />
consigam se encaixar no mercado de trabalho. Mas<br />
isso equivale a dizer que o objetivo <strong>da</strong> educação<br />
é transformar crianças e adolescentes em ferramentas,<br />
utensílios, objetos úteis. Pois é isso que<br />
é um profissional: um corpo que foi transformado<br />
em ferramenta. Mas isso não pode ser o objetivo<br />
<strong>da</strong> educação. Como disse o professor do filme A<br />
Socie<strong>da</strong>de dos Poetas Mortos, engenharia, medicina,<br />
química, eletrônica e saberes semelhantes são<br />
coisas boas, meios para se viver. Mas estes saberes<br />
não nos dão razões para viver.<br />
É isso que aprendi <strong>da</strong>s cozinheiras: que é preciso<br />
pensar a partir do fim. E é isso que não vejo acontecendo.<br />
Sabemos muito sobre a ordem dos meios.<br />
Pouco ou na<strong>da</strong> sabemos sobre a ordem dos fins. É<br />
compreensível. Para se pensar nos fins é preciso ser<br />
sábio. Mas sabedoria é coisa fora de <strong>mo<strong>da</strong></strong>, <strong>da</strong> qual<br />
os próprios filósofos se envergonham. Coisa <strong>da</strong> velhice,<br />
o momento <strong>da</strong> coruja de Minerva...<br />
RUBEM ALVES<br />
Psicanalista, <strong>Professor</strong> aposentado <strong>da</strong> Unicamp<br />
Autor de Histórias de quem gosta de Ensinar e outros<br />
* In O Estado de São Paulo, 11/06/95
Acervo ICAO<br />
Habituei-me a chamar Antonio Olinto de<br />
“menino” e ele ria, com riso maior que o<br />
rosto. Assim chamava não só pelo poeta<br />
que tem invetera<strong>da</strong> infância, ou pelo ficcionista<br />
magistral de A <strong>casa</strong> de Água, uma <strong>da</strong>s mais<br />
consagra<strong>da</strong>s obras de nossa ficção. Ou porque<br />
o menino tinha dentro de si a própria “<strong>casa</strong> de<br />
água” <strong>da</strong> palavra, justamente aquela que toca o<br />
coração. Ou porque a palavra <strong>à</strong>s vezes era maior<br />
do que ele e se manifestava, ora na crítica (quem<br />
se esqueceu de sua “porta de livraria” do Globo,<br />
aberta aos novos?), ora na percepção de um<br />
mundo que teimava em lhe transbor<strong>da</strong>r. Chamava-o<br />
de “ menino” – não apenas como “pai do<br />
homem”, como queria o nosso Machado, mas<br />
pai do futuro. E os meninos se entendem nalgum<br />
arrabalde <strong>da</strong> meninice, e Ubá se mostrava<br />
constante no que via e sonhava. E era “o menino<br />
e o trem” de suas remotas constelações. Ativista<br />
cultural, como raros, abria bibliotecas (diretor<br />
ENCONTROS COM A LITERATURA<br />
O menino<br />
Antonio Olinto<br />
CARLOS NEJAR<br />
de cultura <strong>da</strong> Prefeitura do Rio), com a alegria<br />
de quem atinava no poder mágico e instaurador<br />
dos livros. Sua vontade minuciosa de viver era<br />
inesgotável. Com Zora, foi uma parte dessa vontade,<br />
mas a outra continuou imperturbável. Não<br />
tinha i<strong>da</strong>de, não precisava de i<strong>da</strong>de, não quis<br />
acatar i<strong>da</strong>de alguma, salvo a incrível volúpia de<br />
amar o que fazia, cercando nobremente as pessoas<br />
com sua sombra operosa. E se agora o sabemos<br />
adormecido, começam a circular também<br />
para sempre as suas palavras. E não tem i<strong>da</strong>de<br />
agora, como antes. E nem carecerá dela para<br />
descansar, como merece, <strong>da</strong> dor, dos trabalhos e<br />
de nossa incongruência humana. Dorme, mas a<br />
infância nele jamais de jamais dormirá.<br />
CARLOS NEJAR<br />
Poeta, ficcionista e critico<br />
Membro <strong>da</strong> Academia Brasileira de Letras<br />
e <strong>da</strong> Academia Brasileira de Filosofia<br />
11
12<br />
CÍCERO SANDRONI<br />
Existe relação entre as quali<strong>da</strong>des do caráter,<br />
padrão de leal<strong>da</strong>de, de generosi<strong>da</strong>de,<br />
de honesti<strong>da</strong>de, de bon<strong>da</strong>de e outras virtudes<br />
termina<strong>da</strong>s em “ade”, além <strong>da</strong> capaci<strong>da</strong>de<br />
de doar-se com entusiasmo a uma causa, to<strong>da</strong>s<br />
essas virtudes, e o talento de um escritor? Parece<br />
que não. Os exemplos de bons escritores, alguns<br />
de grande mestria, cujo caráter deixa a desejar,<br />
não são raros. Mas quando um ser humano combina<br />
em si as virtudes do bom caráter e o vigor<br />
literário, algo o distingue e ilumina, algo o destaca<br />
entre os seus semelhantes.<br />
Eu soube <strong>da</strong> existência do escritor Salim<br />
Miguel no início dos anos 50, ao ler o suplemento<br />
literário do Correio <strong>da</strong> Manhã, então dirigido<br />
por Álvaro Lins. Com Eglê Malheiros ele viera ao<br />
Rio para participar de um congresso de escritores<br />
e o Correio registrou a presença do <strong>casa</strong>l, com<br />
direito a entrevista sobre o grupo Sul, e publicação<br />
de um dos seus primeiros contos.<br />
Interessado em assuntos literários, embora<br />
<strong>à</strong> época nem jornalista fosse, acompanhei, de<br />
longe, a trajetória de Salim e de seus companheiros<br />
de geração. Vi<strong>da</strong> que segue, como dizia João<br />
Sal<strong>da</strong>nha, toquei meu barco mais na direção do<br />
jornalismo do que <strong>da</strong> literatura. Em 1965, eu dirigia<br />
uma gráfica arcaica (mesmo para aquela época)<br />
e ain<strong>da</strong> assim, resolvi lançar uma revista de<br />
contos, chama<strong>da</strong> Ficção, com o apoio de Antonio<br />
Olinto, Roberto Braga e de Pedro Penner <strong>da</strong> Cunha.<br />
Por razões financeiras, a revista só teve duas edições.<br />
Mais tarde soube que Salim e Eglê, vindo de<br />
Florianópolis para escapar <strong>da</strong> perseguição política<br />
que lhe moviam os alcaguetes do regime militar,<br />
estavam no Rio de Janeiro sob a proteção de Adonias<br />
Filho, e acompanharam a publicação <strong>da</strong> revista.<br />
Pensaram em entrar em contato conosco, mas,<br />
quando Ficção desapareceu, desistiram.<br />
Mais uma vez a vi<strong>da</strong> seguiu. E só voltei<br />
a encontrar Salim na re<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> revista Man-<br />
ENCONTROS COM A LITERATURA<br />
SALIM MIGUEL<br />
encontro & reencontros<br />
chete, nos anos 70, onde também trabalhavam<br />
outros escritores que, para sobreviver, ralavam<br />
nas publicações Bloch. Entre eles, o acadêmico<br />
R. Magalhães Júnior, Carlos Heitor Cony, Macedo<br />
Miran<strong>da</strong>, Juarez Barroso, João Antônio, Helonei<strong>da</strong><br />
Stu<strong>da</strong>rt, Muniz Sodré, Marcos Santarrita e<br />
José Carlos Oliveira, muitos deles consagrados e<br />
premiados. Também colaboravam com os Bloch<br />
nomes de peso <strong>da</strong> cultura nacional, que sempre<br />
apareciam nas re<strong>da</strong>ções, no Russel: Otto Maria<br />
Carpeaux, Josué Montello, Antônio Houaiss, Pedro<br />
Bloch e tantos outros.<br />
Mas encontrar e conhecer Salim Miguel, entre<br />
tantos literatos, constituiu não só um prazer<br />
pela amizade fraterna que logo se formou entre<br />
nós, na base <strong>da</strong>s afini<strong>da</strong>des eletivas, mas também,<br />
pelo saber literário de Salim que, generoso,<br />
compartilhava com os colegas, em conversas infindáveis<br />
quando terminava o expediente. A cultura<br />
literária de Salim foi demonstra<strong>da</strong> quando<br />
o escritor alemão Hemann Broch recebeu o prêmio<br />
Nobel de Literatura: a notícia chegou numa<br />
segun<strong>da</strong>-feira pela manhã e ele foi o único re<strong>da</strong>tor<br />
<strong>da</strong> editora Bloch, com mais de dez títulos de<br />
revistas na praça, capaz de redigir uma nota sobre<br />
Broch, para ser envia<strong>da</strong> <strong>à</strong>s oficinas naquele<br />
mesmo dia, o do “fechamento” <strong>da</strong> Manchete, que<br />
circulava <strong>à</strong>s quartas-feiras. Salim conhecia bem
Salim Miguel, libanês – 1924, chegou ao<br />
Brasil com 3 anos, radicando-se na infância em<br />
SC. Reconhecido como um dos mais destacados<br />
ficcionistas, é também contista, cronista e<br />
ensaísta. Participou do movimento modernista<br />
catarinense, Grupo Sul, a partir de 1940. Com<br />
a mulher, a escritora Eglê Malheiros, foi coautor<br />
do primeiro longa-metragem catarinense – O<br />
Preço <strong>da</strong> Ilusão.<br />
Em 1965, depois de ser preso pelo Regime<br />
Militar, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde<br />
editou a revista Ficção e trabalhou para a Editora<br />
Bloch. Foi diretor <strong>da</strong> Editora <strong>da</strong> UFSC e dirigiu a<br />
Fun<strong>da</strong>ção Cultural Franklin Cascaes, 1993-96.<br />
Entre seus livros destacam-se os romances<br />
Nur na escuridão, A voz submersa e Jorna<strong>da</strong><br />
com Rupert; O Sabor <strong>da</strong> Fome, e uma seleta na co-<br />
o escritor alemão e, numa época sem<br />
Internet, Google e outras ferramentas<br />
do tipo, só mesmo apelando para sua<br />
cultura literária.<br />
Das nossas conversas surgiu a<br />
idéia de relançar Ficção. Eglê e Laura,<br />
entusiasma<strong>da</strong>s com o projeto, incentivaram<br />
os maridos, preocupados com<br />
os aspectos financeiros <strong>da</strong> empreita<strong>da</strong>.<br />
Convi<strong>da</strong>mos Fausto Cunha para<br />
participar do grupo e os cinco, feito<br />
um exército Brancaleone literário,<br />
lançamos a revista, e logo correu pela<br />
praça a pergunta: que grupo econômico<br />
estaria por trás de Ficção? Mal<br />
sabiam os interessados que o único<br />
grupo financeiro a sustentar a Ficção<br />
eram os nosso pálidos contracheques.<br />
Nesta aventura literária na qual<br />
nos empenhamos com entusiasmo,<br />
uma certa dose de ingenui<strong>da</strong>de e muito<br />
trabalho, seria difícil dissociar a<br />
ativi<strong>da</strong>de de Salim e Eglê. Ambos escritores,<br />
intelectuais inseridos na discussão<br />
(e na ação) <strong>da</strong>s lutas sociais<br />
<strong>da</strong>quela hora, encontravam tempo<br />
para, ao nosso lado e de Fausto, ler<br />
originais, escolher os melhores textos,<br />
aconselhar os que se mostravam<br />
promissores e até mesmo encontrar<br />
formas para dizer aos me<strong>da</strong>lhões,<br />
que não podíamos publicar este ou<br />
aquele texto retirado do fundo <strong>da</strong> gaveta<br />
e enviado para revista.<br />
Com o sacrifício do tempo que<br />
poderia utilizar no desenvolvimento<br />
de sua própria obra literária, Salim<br />
ENCONTROS COM A LITERATURA<br />
leção Melhores Contos<br />
lançado este ano<br />
pela Global.<br />
Recebeu entre<br />
outros o Troféu<br />
Juca Pato, como intelectual<br />
do Ano de<br />
2002, e o Prêmio<br />
Zaffary-Bourbon,<br />
para melhor romance<br />
publicado<br />
entre 1999-2001.<br />
Em julho passado,<br />
pelo conjunto <strong>da</strong><br />
obra, foi agraciado com o Prêmio Machado de<br />
Assis, <strong>da</strong> ABL, para autores expoentes de nossa<br />
literatura.<br />
dedicou-se a um trabalho que, durante<br />
quatro anos, agitou a vi<strong>da</strong> literária brasileira.<br />
Em quarenta edições, Ficção revelou<br />
nomes novos, valorizou escritores<br />
esquecidos e despertou em muitos leitores<br />
o desejo de narrar experiências, contar<br />
casos ou registrar em prosa ficcional<br />
aspectos <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de brasileira.<br />
Um trabalho cultural de repercussão<br />
internacional, comprovado pelas várias<br />
assinaturas de universi<strong>da</strong>des estrangeiras<br />
registra<strong>da</strong>s no ca<strong>da</strong>stro de Ficção,<br />
realizado por uma equipe que, já nos anos<br />
maduros, mostrava entusiasmo juvenil na<br />
preparação de ca<strong>da</strong> edição. E no qual Salim,<br />
com seu imenso coração, sua capaci<strong>da</strong>de<br />
de trabalho, talento e cultura era<br />
sempre o primeiro a acolher os textos dos<br />
mais jovens, alguns dos quais, hoje, passados<br />
mais de vinte anos, se destacam<br />
na literatura brasileira.<br />
Conviver e trabalhar com Salim<br />
Miguel e Eglê Malheiros naquela época,<br />
e falo por mim e pela Laura, enriqueceu<br />
nossas vi<strong>da</strong>s, não só do ponto de vista<br />
literário e cultural, mas pela amizade<br />
generosa que nos ofereceram e que só<br />
fez aumentar desde os anos nos quais,<br />
com o nosso querido, saudoso e sempre<br />
lembrado Fausto Cunha, fizemos uma revistinha<br />
que na reali<strong>da</strong>de marcou fundo<br />
a história recente <strong>da</strong> literatura brasileira:<br />
a Ficção.<br />
CÍCERO SANDRONI<br />
Jornalista e escritor<br />
Presidente <strong>da</strong> Academia Brasileira de Letras<br />
13
A<br />
relação de Cabral com Espanha não começa<br />
nem acaba com sua presença física<br />
neste país; a continui<strong>da</strong>de dessa relação<br />
dá ideia de sua reitera<strong>da</strong> presença como diplomata<br />
ou como simples viageiro desde 1947, quando<br />
foi destinado a Barcelona como vice-cônsul, até<br />
1994, momento em que lhe foi concedido o Premio<br />
Reina Sofía de Poesía Iberoamericana. É difícil<br />
encontrar na história <strong>da</strong>s relações interculturais<br />
casos tão surpreendentes por sua extensão, continui<strong>da</strong>de<br />
no tempo, e também sua intensi<strong>da</strong>de.<br />
Muitos são os poetas influenciados por<br />
outra cultura. Se fosse possível estabelecer uma<br />
gra<strong>da</strong>ção, diríamos que Cabral se situa no extremo<br />
mais definido dessa influência. A ver<strong>da</strong>deira<br />
relação surge quando o que se toma de outra<br />
cultura não é postiço, acidental, circunstancial<br />
ou episódico. A ver<strong>da</strong>deira relação surge quando<br />
o que se toma de outra cultura está situado no<br />
14<br />
ENCONTROS COM A LITERATURA<br />
A POESIA DE JOÃO CABRAL DE MELO NETO,<br />
Um diálogo com Espanha<br />
NICOLÁS EXTREMERA TAPIA<br />
Parque Guell, Barcelona,<br />
projeto do catalão Gaudí<br />
próprio âmbito espiritual em que o artista se desenvolve.<br />
No caso que nos ocupa, umas vezes o<br />
que se produz é uma extensão do já conhecido,<br />
seja por ampliação ou por elevação ao simbólico:<br />
outras, uma descoberta <strong>da</strong>quilo que é próprio por<br />
contraposição ou contraste com o que é alheio.<br />
Em Cabral encontramos um diálogo permanente<br />
entre duas culturas, a própria, local quase<br />
sempre, reduzi<strong>da</strong> ao âmbito no qual se desenvolve<br />
a sua infância e adolescência e a outra, a alheia,<br />
não livresca, mas vivi<strong>da</strong>, na qual o poeta mergulha<br />
para compreender desde o estranhamento necessário<br />
<strong>à</strong>quilo que lhe é consubstancial.<br />
Cabral é quase um órfão poético no Brasil e<br />
dificilmente pode ser incluído numa tradição poética<br />
defini<strong>da</strong>; sua relação com Portugal é ain<strong>da</strong><br />
mais difusa: de indiferença. Para quem acredita<br />
em que na<strong>da</strong> há de gratuito na obra de Cabral, a<br />
primeira frase que utiliza em espanhol: Riguroso
Fotos: J. W. Freire<br />
Templo <strong>da</strong> Sagra<strong>da</strong> Família, Barcelona, projeto de Gaudí<br />
horizonte (É o primeiro verso do poema El horizonte<br />
de Jorge Guillén, que pertence <strong>à</strong> primeira<br />
edição de Cántico, 1928. Desde 1936, figura na<br />
seção 2.ª, Las horas situa<strong>da</strong>s), que o poeta faz<br />
servir de epígrafe ao livro Psicologia <strong>da</strong> Composição,<br />
não pode passar inadverti<strong>da</strong>; e menos<br />
ain<strong>da</strong> se a inserirmos na sequência de epígrafes<br />
com que Cabral vinha preludiando seus livros de<br />
poemas: “Solitude, récif, étoile...” de Mallarmé,<br />
em Pedra de Sono; “João amava Teresa que amava<br />
Raimundo/que amava Maria/que amava Joaquim<br />
que amava Lili...” de Carlos Drummond de<br />
Andrade, em Os Três Mal-Amados; “...machine <strong>à</strong><br />
émouvoir...” de Le Corbusier, em O Engenheiro.<br />
E de fato, Mallarmé, Drummond e Le Corbusier<br />
constituem a bagagem fun<strong>da</strong>mental de<br />
Cabral quando, em 1947, desembarca em Barcelona.<br />
Ele afirma:<br />
“A Espanha foi o primeiro país estrangeiro<br />
onde eu vivi. De forma que eu não<br />
tinha cultura clássica nenhuma, porque<br />
aqui no Brasil, naquele tempo, ninguém<br />
tinha cultura clássica. Camões era um ci<strong>da</strong>dão<br />
que nos obrigava a fazer análise lógica<br />
com os textos e aquilo nos <strong>da</strong>va enjoo<br />
de Camões para o resto <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. E quando<br />
cheguei <strong>à</strong> Espanha, eu comecei a estu<strong>da</strong>r<br />
sistematicamente a literatura espanhola.<br />
Foi uma coisa que me libertou dessa influência<br />
francesa que eu tinha através do<br />
Willy Lewin e ao mesmo tempo abriu horizontes<br />
para mim enormes”. 1<br />
ENCONTROS COM A LITERATURA<br />
Cabral considera que este novo horizonte,<br />
rigoroso e enorme, é configurado pelo Velho<br />
Mundo, pois ele faz uma descoberta <strong>à</strong>s avessas;<br />
só que o Velho Mundo, o novo horizonte, não é,<br />
para Cabral, Portugal, mas sim Espanha, e não só<br />
porque ele descobre Espanha e não Portugal, mas,<br />
também, porque, para Cabral, são os espanhóis e<br />
não os portugueses os descobridores do Brasil.<br />
Vicente Yáñez Pinzón<br />
Ele o primeiro a vê-lo, e a vir,<br />
(na barra do Suape) ao Brasil,<br />
não deixou lá quandos nem ondes:<br />
só anos depois confessou-se.<br />
(in A Escola <strong>da</strong>s Facas)<br />
Uma vez definido o seu novo horizonte,<br />
Cabral estabelece, a partir <strong>da</strong>í, um diálogo permanente<br />
entre as duas culturas: a própria, local<br />
quase sempre, reduzi<strong>da</strong> ao âmbito no qual se desenvolve<br />
a sua infância e adolescência, <strong>da</strong> qual<br />
precisa afastar-se para redescobri-la, “A Espanha<br />
deu-me um afastamento suficiente, não excessivo,<br />
para poder escrever sobre o Nordeste” 2 e outra,<br />
não completamente alheia, e profun<strong>da</strong>mente<br />
popular, na qual o poeta mergulha para compreender,<br />
desde o estranhamento necessário, aquilo<br />
que lhe é consubstancial. O livro seguinte, O<br />
Cão sem Plumas, é cronologicamente posterior<br />
<strong>à</strong> sua primeira esta<strong>da</strong> na Espanha: é um regressar,<br />
nessa oscilação que vai caracterizar desde<br />
esse momento sua poesia, ao seu âmbito original.<br />
Aparecem aqui já importantes pontos de<br />
conexão entre Cabral e a poesia espanhola – o<br />
popular, o prosaico, o narrativo: “A literatura espanhola<br />
é grande porque é, sobretudo, a mais<br />
realista do mundo. É a que tem bases mais profun<strong>da</strong>mente<br />
populares. Até mesmo nos clássicos,<br />
como Cervantes, Quevedo, mesmo em Góngora, se<br />
encontra a presença do povo, do popular”. 3 E em<br />
outro lugar: “O que esse pessoal me mostrou, e me<br />
impressionou muito,<br />
é que não vale a pena<br />
escrever para o povo<br />
sem usar a forma que<br />
ele usa. É por isso<br />
que eu utilizo a forma<br />
narrativa”. 4<br />
Assim, O Cão<br />
sem Plumas, escrito<br />
em Barcelona, um livro<br />
inteiramente dedicado<br />
a Pernambuco<br />
e também o primeiro<br />
em que Cabral fala de<br />
Pernambuco, representa<br />
também uma<br />
viragem radical em<br />
15
elação a sua poesia anterior.<br />
Não há símbolos,<br />
não há emoções, não<br />
há lírica no sentido habitual.<br />
Impõe-se o prosaico<br />
na sua espessura,<br />
anuncia-se a lírica tradicional<br />
ou de cordel:<br />
é a descrição sem emoção,<br />
a entomologia <strong>da</strong><br />
reali<strong>da</strong>de essencial.<br />
O livro seguinte,<br />
O Rio, põe de manifesto<br />
nova vinculação de<br />
Cabral com a cultura<br />
espanhola. “Quiero que<br />
compongamos io e tu<br />
una prosa” é a citação<br />
de Berceo que lhe serve<br />
de epígrafe. Outra<br />
vez podemos afirmar<br />
que na<strong>da</strong> em Cabral<br />
é gratuito. O Rio marca<br />
a transição entre a<br />
influência <strong>da</strong> lírica de<br />
cordel, na qual Cabral<br />
procurava até então a<br />
expressão do popular,<br />
e a influência, a partir<br />
<strong>da</strong>í, constante dos versos pareados do romancero<br />
e <strong>da</strong> lírica primitiva espanhóis.<br />
“Eu me interessei pela literatura de<br />
cordel desde menino. Mas não creio que<br />
ela tenha maior influência na minha poesia.<br />
Para comprovar isso, comparem-se<br />
as estruturas estróficas complica<strong>da</strong>s <strong>da</strong><br />
literatura de cordel com os versos pareados<br />
do romancero e <strong>da</strong> poesia primitiva <strong>da</strong><br />
Espanha. Esses, principalmente a poesia<br />
primitiva, me marcaram muito mais do<br />
que os folhetos dos poetas populares do<br />
Nordeste”. 5<br />
Paisagem com Figuras é um livro que<br />
inaugura esse diálogo permanente entre as duas<br />
culturas a que estamos aludindo. Dos dezoito<br />
poemas que o compõem, oito estão dedicados a<br />
Pernambuco e dez <strong>à</strong> Espanha, repartidos estes últimos<br />
do seguinte modo: dois <strong>à</strong> paisagem de Castela,<br />
três <strong>à</strong> paisagem de Catalunha, um ao poeta<br />
Joan Brossa, um ao poeta Miguel Hernández, um<br />
aos toureiros, um <strong>à</strong> An<strong>da</strong>luzia, que Cabral ain<strong>da</strong><br />
não conhece fisicamente, representa<strong>da</strong> pelo cante<br />
e os touros, e finalmente um de que compartilham<br />
Catalunha e Pernambuco.<br />
Cabral trata neste livro de estabelecer um<br />
diálogo a três vozes entre o masculino: Pernambuco,<br />
representado por paisagens estáticas; o feminino:<br />
Catalunha, e Castela: “mulher virago”.<br />
16<br />
ENCONTROS COM A LITERATURA<br />
Sevilha de noite: a Giral<strong>da</strong>, /ilumina<strong>da</strong>, dá a lição /de<br />
sua elegância fabulosa /de incorrigível proporção.<br />
(J.Cabral)<br />
Posteriormente, quando<br />
Cabral conhece An<strong>da</strong>luzia,<br />
perderá interesse por<br />
Catalunha e por Castela,<br />
e a oposição se estabelecerá<br />
já de modo permanente<br />
entre Pernambuco,<br />
como elemento masculino,<br />
e An<strong>da</strong>luzia, que<br />
encarnará na poesia de<br />
Cabral o feminino.<br />
Para concluir, sublinho<br />
que os dois últimos<br />
livros de poesia que Cabral<br />
publicou: Sevilha An<strong>da</strong>ndo<br />
e An<strong>da</strong>ndo Sevilha vão<br />
respectivamente precedidos<br />
de epígrafes em espanhol:<br />
En el cielo que pisan<br />
las sevillanas (Popular<br />
sevilhano) e Quien no vio<br />
a Sevilla no vio maravilla<br />
(Popular espanhol). Estes<br />
dois livros são as últimas<br />
homenagens do poeta a<br />
uma língua, a uma cultura<br />
e a uma ci<strong>da</strong>de, Sevilha,<br />
com a qual identificou sua<br />
poesia, sua esposa Marly e até o destino <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de,<br />
inventando, por ela, o verbo sevilhizar.<br />
SEVILHIZAR O MUNDO<br />
Como é impossível, por enquanto,<br />
civilizar to<strong>da</strong> a terra,<br />
o que não veremos, verão,<br />
de certo, nossas tetranetas,<br />
infundir na terra esse alerta,<br />
fazê-la uma enorme Sevilha,<br />
que é a contra-pelo, onde uma viva<br />
guerrilha do ser, pode a guerra.<br />
(in An<strong>da</strong>ndo Sevilha)<br />
Referências<br />
1 Entrevista a André Pestana, O que eles pensam, Rio<br />
de Janeiro, Tagore, 1990.<br />
2 Entrevista ao poeta J.P. Moreira <strong>da</strong> Fonseca in<br />
Diário Popular, Lisboa 7-VI-1968<br />
3 Entrevista a Eduardo Mattos Portella, Diário de<br />
Pernambuco, Recife, 19 out. 1952<br />
4 Entrevista a José Carlos de Vasconcelos, Diário<br />
de Lisboa, Suplemento Semanal (Vi<strong>da</strong> Literária e<br />
Artística, Lisboa, 16 jun. 1966<br />
5 Entrevista ao poeta J.P. Moreira <strong>da</strong> Fonseca, op. cit.<br />
NICOLÁS EXTREMERA TAPIA<br />
Catedrático de Filologia Portuguesa<br />
<strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de Grana<strong>da</strong>
O<br />
Brasil é uma invenção recente. Os românticos<br />
tentaram ser brasileiros reinventando os<br />
heróis autóctones. Os nossos modernistas,<br />
inspirados pela ordem do dia <strong>da</strong>s vanguar<strong>da</strong>s europeias,<br />
acredita ram que o acesso <strong>à</strong> moderni<strong>da</strong>de nos<br />
valeria o di reito <strong>à</strong> carteira de identi<strong>da</strong>de de brasileiros.<br />
Os pós-modernistas bateram a carteira dos<br />
nossos sonhos condenando-nos ao fim <strong>da</strong> história e<br />
<strong>à</strong> morte <strong>da</strong> utopia.<br />
A herança benjaminiana nos ensinou que o<br />
centenário é o momento de redenção de um autor e,<br />
por isso mesmo, o melhor momento para arrancá-lo <strong>à</strong>s<br />
garras do conformismo que a tradição conser vadora<br />
possa tê-lo aprisionado. Nesse resgate que tem muito<br />
de hybris e melancolia, nem o vulto do homem, nem<br />
ENCONTROS COM A LITERATURA<br />
OSWALD DE ANDRADE<br />
Retrato de Oswald de Andrade, por Tarsila Amaral, 1923. Museu<br />
de Arte Brasileira / FAAP – SP. Coleção Marília de Andrade<br />
A UTOPIA ANTROPOFÁGICA:<br />
uma utopia sem história*<br />
O Brasil me tornou inteligente<br />
FERNANDO BRAUDEL<br />
CARLOS LIMA<br />
o vulto <strong>da</strong> obra podem nos fazer es quecer as armas <strong>da</strong><br />
crítica. Desde os gregos até Hegel nós sabemos que não<br />
existe conhecimento sem paixão. A história <strong>da</strong> filosofia<br />
pode ser vista como um longo discurso amoroso entre<br />
aquele que conhece e o objeto do conhecimento. Daí,<br />
haver sempre em filosofia uma certa afini<strong>da</strong>de entre sujeito<br />
e objeto, e os jardins filosóficos se construírem a<br />
partir do estabelecimento <strong>da</strong>s afini<strong>da</strong>des eletivas. Mas,<br />
ao mesmo tempo, todo saber não existe sem a sua crítica,<br />
pois só assim pode se constituir como saber. E o<br />
próprio termo crítica na sua origem significa se parado,<br />
afastado. Temos, então, uma afini<strong>da</strong>de que elege o seu<br />
objeto, mas que para alcançá-lo tem que paradoxalmente<br />
se separar dele. Como nos lembra a Ciência <strong>da</strong> Lógica<br />
de Hegel, “a contradição é uma existência efetiva na<br />
dor dos viventes”.<br />
Desse modo, a filosofia é menos a posse do<br />
seu objeto que a busca desespera<strong>da</strong> para constituí-<br />
17
lo. Por isso Adorno, contra Wittgenstein, na sua Terminologia<br />
Filosófica, adverte, “a filosofia é o esforço<br />
permanente e inclusive desesperado de dizer o que<br />
propriamente não se pode dizer”.<br />
A Teoria Crítica nos demonstrou e Peter Burger<br />
sublinha que o que distingue a ciência tra dicional <strong>da</strong><br />
ciência critica é que esta, ao contrário <strong>da</strong> primeira, reflete<br />
as implicações sociais nas quais ela é produzi<strong>da</strong>. Ou<br />
seja, a perspectiva do pesquisador é determina<strong>da</strong> pela<br />
posição que ele adota frente <strong>à</strong>s forças históricas <strong>da</strong> sua<br />
época, consequentemente, é o ser social que ele é (como<br />
diria Marx) que condiciona a sua consciência crítica.<br />
A importância de Oswald de Andrade, por ele<br />
constata<strong>da</strong>, foi ter acertado o relógio império <strong>da</strong> nossa<br />
literatura: “O trabalho <strong>da</strong> geração futurista foi ciclópico.<br />
Acertar o relógio império <strong>da</strong> literatura nacional”.<br />
Mas, ao mesmo tempo que atualizou a prosa,<br />
esta geração também retirou a camisa de força parnasiana<br />
que mantinha a nossa poesia na prisão domiciliar<br />
do soneto. Em Oswald coloca-se de for ma como<br />
nunca antes em nossa literatura a relação entre poesia<br />
e liber<strong>da</strong>de: “Nenhuma fórmula para a contemporânea<br />
ex pressão do mundo. Ver com olhos livres”.<br />
Essa visão dos olhos livres junto a outra expressão<br />
– “a alegria é a prova dos nove” – fun<strong>da</strong>menta sua<br />
poesia, sua prosa, e to<strong>da</strong> a sua vi<strong>da</strong>. Sejam quais forem<br />
os excessos, os equívocos de sua obra, Oswald fica<br />
como um exemplo de intelectual e poeta que lutou por<br />
uma nova forma de ação inte lectual e por uma poesia<br />
militante numa socie<strong>da</strong>de onde a única militância dos<br />
intelectuais é a de serem “palhaços <strong>da</strong> burguesia”, e<br />
como ele mesmo definiu: “Pais de dores anônimas. Doutores<br />
anônimos. Socie<strong>da</strong>de de náufragos eruditos”.<br />
Oswald foi uma heroica exceção como um militante<br />
<strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. Assumindo o engajamento po lítico <strong>da</strong><br />
sua época, como ele mesmo disse, vestiu a <strong>casa</strong>ca de<br />
ferro <strong>da</strong> Revolução Proletária e entrou para o Partido<br />
Comunista. E no sentido barthesiano preferiu a solidão<br />
do estilo <strong>à</strong> segurança <strong>da</strong> arte. É essa<br />
ação de militante <strong>da</strong> poesia<br />
que vai levá-lo nos anos 50<br />
a alcançar a consciência antecipadora<br />
que fun<strong>da</strong>menta<br />
to<strong>da</strong>s as utopias, e fará de<br />
Oswald um dos herdeiros <strong>da</strong><br />
Poética <strong>da</strong> Utopia inaugura<strong>da</strong><br />
por Rimbaud no final do<br />
sécu lo 19. Oswald é o nosso<br />
primeiro poeta sem cul pa, é o<br />
Macunaíma <strong>da</strong> nossa poesia<br />
que ain<strong>da</strong> não tinha o pecado<br />
original <strong>da</strong> burocracia literá ria.<br />
Depois os nossos poetas começaram<br />
a se benzer e fazer poesia<br />
fazendo o sinal <strong>da</strong> cruz nas<br />
novenas reza<strong>da</strong>s por Augusto<br />
Frederico Schmidt, aquilo que<br />
os críticos chamaram depois de<br />
gera ção de 45. Uma característica<br />
do modernismo brasileiro<br />
foi a fome, fome estética e fome<br />
de utopia. Oswald e Mário foram<br />
18<br />
ENCONTROS COM A LITERATURA<br />
Capa do livro A utopia antropofágica<br />
dois esfomeados. Poder-se-ia fazer uma história do<br />
modernismo com base na história dos salões que os<br />
modernistas e as suas fomes frequentavam.<br />
A definição de arte <strong>da</strong><strong>da</strong> por Ernst Bloch é a<br />
que melhor se aplica ao nosso modernismo: “A obra<br />
de arte é o laboratório e a festa dos possíveis”. O modernismo<br />
foi esta consciência dos possíveis, foi esta<br />
“Festa dos Possíveis”.<br />
A consciência de que o Brasil podia ser transformado,<br />
de que o Brasil podia ser reinventado, é o que<br />
está presente no modernismo. Por isso o movi mento<br />
pôde trilhar to<strong>da</strong>s as três fases do caminho do possível:<br />
o possível formal, o possível provável e o possível dialético.<br />
Aqui entramos mais uma vez no território <strong>da</strong> utopia,<br />
conceitua<strong>da</strong> de forma extensiva nos três volumes<br />
do Princípio Esperança de Ernst Bloch. Faremos uma<br />
descrição bastante sumária <strong>da</strong> análi se de Bloch sobre<br />
as três categorias:<br />
Possível formal é o possível dos otimistas puros,<br />
que ignoram os obstáculos e acreditam na possibili<strong>da</strong>de<br />
de um progresso linear. São os otimistas cegos que acreditam<br />
mais no milagre que no proces so de transformação<br />
<strong>da</strong> consciência no conflito com a reali<strong>da</strong>de.<br />
Possível provável é quando o homem chega<br />
<strong>à</strong> consciência antecipadora e nele se fun<strong>da</strong>menta a<br />
imaginação (“O artista é o especi alista do imaginário”<br />
– Bloch), a possibi li<strong>da</strong>de do homem colocar novos problemas,<br />
imaginar novas soluções e desenvolver o domínio<br />
sobre o real. É neste momento do possível que<br />
o homem toma consciência <strong>da</strong> sua liber<strong>da</strong>de.<br />
Possível dialético é o motor do princípio esperança.<br />
É nesta fase que se pode entender a relação necessária<br />
entre a ativi<strong>da</strong> de humana e o dinamismo <strong>da</strong><br />
matéria. Só o ho mem pode <strong>da</strong>r uma finali<strong>da</strong>de para<br />
a matéria no seu dinamismo. É a ação consciente do<br />
homem que liberta a matéria do seu dinamismo cego.<br />
No possível dialético o homem, na posse <strong>da</strong> consciência<br />
<strong>da</strong> sua liber<strong>da</strong>de, efetiva o processo de dominação<br />
e de trans formação <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de. É o momento<br />
antecipador <strong>da</strong> utopia concreta.<br />
O modernismo brasileiro, como já<br />
dissemos, trilhou todo esse caminho dos<br />
possíveis, só que o dis tanciamento entre<br />
os intelectuais e o povo frustrou a possibili<strong>da</strong>de<br />
de uma revolução estética se<br />
transfor mar numa revolução de cunho<br />
social. Pois teria sido preciso que no<br />
terreno <strong>da</strong> educação se desse o mes mo<br />
processo de consciência dos pos síveis<br />
para a transformação de uma massa<br />
analfabeta num bloco <strong>da</strong> so cie<strong>da</strong>de civil<br />
consciente dos seus di reitos de ci<strong>da</strong>dãos.<br />
Só, então, teria sido possível uma<br />
revolução cultural que se estendesse<br />
a outras cama<strong>da</strong>s <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de. Sem<br />
essa possibili<strong>da</strong>de a revolução estética<br />
do modernismo fi cou isola<strong>da</strong>, tendo<br />
pouca repercussão fora dos círculos<br />
intelectuais, e acabou sendo derrota<strong>da</strong><br />
pelo autoritarismo <strong>da</strong>s elites no golpe<br />
de estado de 1937, que iniciou a ditadura<br />
de Getúlio Vargas.
Em 1950/1953, Oswald escreve A<br />
Crise dos Filosofias Messiânicas e A Marcha<br />
<strong>da</strong>s Utopias. O primeiro escrito em<br />
1950 como tese para o concurso <strong>da</strong> Cadeira<br />
de Filosofia do USP, o segundo como uma<br />
série de artigos em jornal, e postumamente<br />
publicado pelo MEC em 1966. Esses ensaios<br />
nascem num período de crise em que<br />
Oswald, descrente do marxismo e dos rumos<br />
do socialismo no estado estalinista, depois<br />
de 15 anos de militância, afasta-se do Partido<br />
Comunis ta. Oswald aqui procura acertar o<br />
passo <strong>da</strong> cultura brasileira com a lógica <strong>da</strong><br />
utopia. Ain<strong>da</strong> que equivoca<strong>da</strong>mente, ele acerta, acerta<br />
no varejo e erra no atacado. Pois, enquanto Bloch busca<br />
a lógica <strong>da</strong> utopia no movimento dialético <strong>da</strong> história,<br />
procuran do perceber o processo que transforma a<br />
utopia abstrata em utopia concreta, Oswald faz o caminho<br />
inverso, partindo do matriarcado e <strong>da</strong> antropofagia<br />
é levado a conceber uma utopia crônica, ou seja,<br />
a utopia fora do tempo histórico. Quando dizemos que<br />
Oswald acerta é que ele procura fazer, ain<strong>da</strong> que, equivoca<strong>da</strong>mente,<br />
o resgate <strong>da</strong> utopia, numa época em que<br />
só Bloch havia descoberto a dimensão revolucionária<br />
<strong>da</strong> utopia. Oswald no Brasil foi o primeiro a tentar recuperar<br />
a tradição utópica do socialismo, procurando<br />
se desviar do marxismo positivista, que to mou conta<br />
<strong>da</strong> filosofia marxista de Engels a Stalin. Contra o burocratismo<br />
estalinista Oswald afirmava que o caminho<br />
do socialismo passava pela utopia. A tese de Oswald<br />
desenvolve-se <strong>da</strong> seguinte maneira: a) a história divide-se<br />
em Matriarcado e Pa triarcado; b) corresponde ao<br />
primeiro a antropofagia e ao segundo o messianismo;<br />
c) o renascimento do Matriarcado levaria ao fim do<br />
Estado; d) restauração tecniza<strong>da</strong> <strong>da</strong> antropofagia; e)<br />
crença na ideologia do progresso.<br />
Nessa confusão geral Oswald confunde uma<br />
fase <strong>da</strong> história (Matriarcado/Patriarcado) com o desenvolvimento<br />
<strong>da</strong> história em si mesma. Essa confusão<br />
<strong>da</strong>s premissas leva a que as conclusões sejam<br />
ain<strong>da</strong> mais confusas. Como notou Benedito Nunes<br />
em seu ensaio “Oswald Canibal”: “Os Tupinambás<br />
que praticavam a antropofa gia ritual não conheceram<br />
nem o matriarcado nem deram <strong>à</strong> mulher qualquer<br />
posição de relevância social”.<br />
Nessa tese de Oswald de que o retorno <strong>à</strong> antropofagia<br />
seria o retorno a uma suposta l<strong>da</strong>de de Ouro<br />
do homem, apenas acentua-se o equívoco de Oswald<br />
em pregar um retorno <strong>à</strong> pré-história do homem, como<br />
se a história, como um carro alegó rico, pudesse <strong>da</strong>r<br />
marcha a ré.<br />
Por outro lado, para fun<strong>da</strong>mentar a sua cren ça<br />
na ideologia do progresso Oswald usa como re ferência<br />
o livro A Revolução Gerencial, de James Burnham, um<br />
dos gurus do imperialismo norte-ame ricano. O positivismo<br />
dessa tese levou Oswald a crer que o trabalho<br />
como exploração do trabalhador desapareceria<br />
no capitalismo avançado, que no futuro o capitalismo<br />
conseguiria superar a contradição entre capital<br />
e trabalho. Segundo Oswald, deixaríamos o reino do<br />
negócio e entraríamos no paraíso do ócio. Tese claramente<br />
equivoca<strong>da</strong>, não le vando em conta que a mais-<br />
ENCONTROS COM A LITERATURA<br />
Capas de Oswald Plural e do catálogo <strong>da</strong> exposição<br />
valia absoluta sempre se harmonizou com a maisvalia<br />
relativa na história do processo de acumulação<br />
do capitalismo. Assim como Marx afirmava, a citação<br />
é do próprio Oswald, que na passagem para o capitalismo<br />
na Inglaterra os carneiros comeram os homens,<br />
hoje a barbárie tecnológica devora os homens<br />
de forma muito mais sofistica<strong>da</strong>. A tese de Oswald de<br />
que numa socie<strong>da</strong> de controla<strong>da</strong> o Estado junto com<br />
o patriarcalismo seriam suprimidos, leva-nos ao estarrecimento,<br />
pois lembra-nos a socie<strong>da</strong>de controla<strong>da</strong><br />
que foi a Ale manha nazista com seus campos <strong>da</strong><br />
morte. Serve de exemplo também a socie<strong>da</strong>de na qual<br />
vivemos, que é a socie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> reificação total, cujo<br />
controle extensivo é exercido pelo poder do capital.<br />
Pode mos dizer que Oswald acertou quando trouxe<br />
para o centro <strong>da</strong> discussão o tema <strong>da</strong> utopia, mas<br />
que apesar do seu otimismo militante ele colocou no<br />
futuro a máscara do passado.<br />
A cotação <strong>da</strong> utopia está em baixa, o horizonte<br />
utópico e, portanto, os planos de uma socie<strong>da</strong>de mais<br />
justa num mundo mais humanizado estão fora de<br />
<strong>mo<strong>da</strong></strong>. As teses pós-modernistas dão como certo o fim<br />
<strong>da</strong> história e assinam o atestado de óbito <strong>da</strong> utopia<br />
socialista. Nesse ver<strong>da</strong>deiro apocalipse <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de<br />
“pós-industrial”, os teóricos pós-modernos afirmam<br />
a canonização do mundo burguês e a eterni<strong>da</strong>de do<br />
burguesia capitalista. Mas sabemos que o espaço <strong>da</strong><br />
esperança usur pado pelos especuladores <strong>da</strong> razão neoconservadora<br />
não nos levou, apesar dos vaticínios<br />
que fizeram, ao fim <strong>da</strong> história, nem sequer ao fim<br />
de um período <strong>da</strong> história. Neste tempo de crise do<br />
socialismo, a dialética do ser e <strong>da</strong> história concentra<br />
a sua capaci<strong>da</strong>de de resistir no novo espírito <strong>da</strong> utopia.<br />
Um espectro ron<strong>da</strong> o século XXI – o espectro <strong>da</strong><br />
utopia concreta do socialismo, contido no princípio<br />
esperança, que aponta para o futuro já presente no<br />
coração dos homens, que nos faz afirmar com as palavras<br />
do poeta Drummond:<br />
Estou preso <strong>à</strong> vi<strong>da</strong> e olho meus companheiros.<br />
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.<br />
Entre eles, considero a enorme reali<strong>da</strong>de.<br />
O presente é tão grande, não nos afastemos.<br />
Não nos afastemos muito, vamos de mãos <strong>da</strong><strong>da</strong>s.<br />
CARLOS LIMA<br />
Poeta<br />
<strong>Professor</strong> de Cultura e Literatura Brasileira <strong>da</strong> UERJ<br />
Autor de Genealogia Dialética <strong>da</strong> Utopia (Contraponto,<br />
2008), e Phosphoros (Comunicarte, 2007)<br />
* in Oswald Plural (EdUERJ, 1995)<br />
19
É<br />
difícil ou pelo menos incrível<br />
imaginar um escritor<br />
como Oswald de Andrade<br />
fazendo cem anos, assim como é<br />
difícil conceber uma história literária<br />
<strong>da</strong>s vanguar<strong>da</strong>s, sem cair<br />
em contradição. Um movimento<br />
de vanguar<strong>da</strong> vive o tempo de<br />
seus manifestos e contradições,<br />
como se deu com o futurismo e<br />
o <strong>da</strong><strong>da</strong>ísmo. Uma vanguar<strong>da</strong> é<br />
sempre uma presença incô<strong>mo<strong>da</strong></strong>,<br />
ain<strong>da</strong> que <strong>à</strong>s vezes agradável.<br />
Ora, Oswald de Andrade, como<br />
homem e como escritor, foi sempre<br />
uma presença incô<strong>mo<strong>da</strong></strong>, abrindo-se<br />
continuamente para o novo<br />
e muitas vezes se queimando na<br />
sua própria renovação. Este sentido<br />
de insatisfação e de inconstâncias<br />
nós o encontramos numa de<br />
suas autobiografias, quando ele<br />
diz, acentuando o contraste, que<br />
fez “uma conferência na Sorbonne<br />
e outra no Sindicato dos Padeiros,<br />
confeitarias e Anexos”. E a seguir<br />
informa, de maneira enumerativa<br />
e brincalhona: “Viajei, fiquei pobre,<br />
fiquei rico, casei, enviuvei,<br />
casei, divorciei, viajei, casei... Já<br />
disse que sou conjugal, gremial e<br />
ordeiro”. Mas acrescenta que foi<br />
preso treze vezes. Nesse mesmo<br />
texto, ele considera a sua “obra<br />
literária acima <strong>da</strong> compreensão<br />
brasileira”, uma coisa assim<br />
como a famosa tira<strong>da</strong> de Joaquim<br />
de Sousa Andrade, para quem a sua<br />
obra (a dele, Sousândrade) só poderia ser compreendi<strong>da</strong><br />
cinquenta anos depois. E olhem que já<br />
se passaram cem anos...<br />
No caso de Oswald de Andrade, vi<strong>da</strong> e obra<br />
se identificaram na volubili<strong>da</strong>de e até na volup-<br />
20<br />
ENCONTROS COM A LITERATURA<br />
O “gremial e ordeiro”<br />
OSWALD DE ANDRADE *<br />
GILBERTO MENDONÇA TELES<br />
tuosi<strong>da</strong>de do novo, mas de um novo<br />
que se queria estranho para ser autenticamente<br />
moderno, um novo que<br />
se queria revolucionário para mu<strong>da</strong>r<br />
os velhos hábitos estéticos dos escritores<br />
e leitores brasileiros deste século.<br />
Para isso, não bastava apenas<br />
a audácia <strong>da</strong> agitação polêmica: era<br />
preciso que o talento literário descobrisse<br />
uma linguagem adequa<strong>da</strong> e<br />
eficaz, que contivesse na sua própria<br />
estrutura as forças novas <strong>da</strong> contestação.<br />
E é por aí que a obra de<br />
Oswald de Andrade (Oswáld e não<br />
Ôswald, como nos ensinam Mário<br />
<strong>da</strong> Silva Brito e Antonio Candido,<br />
que o conheceram de perto), é por aí<br />
que a sua obra – tudo o que ele escreveu<br />
de poesia, de romance, de<br />
teatro, de polêmica, de manifesto<br />
– contribuiu e continua a contribuir<br />
para a consagração <strong>da</strong> nossa<br />
moderni<strong>da</strong>de.<br />
A ousadia na invenção dos<br />
temas e na construção <strong>da</strong> linguagem<br />
nova está patente em romances<br />
como Memórias sentimentais<br />
de João Miramar, de 1924, e Serafim<br />
Ponte Grande, de 1934. No primeiro<br />
capítulo de João Miramar, o<br />
narrador em primeira pessoa (pois<br />
é um romance memorialístico) se<br />
vale <strong>da</strong> técnica do simultaneísmo<br />
para expressar de uma só vez as<br />
duas ordens de ideias que an<strong>da</strong>vam<br />
na cabeça do menino, que rezava:<br />
“– Senhor convosco, bendita sois<br />
entre as mulheres, as mulheres não<br />
tem pernas, são como o manequim de mamãe até<br />
em baixo. Para que pernas nas mulheres, amém”.<br />
Mas é com os manifestos, tendo como modelo os<br />
cinquenta e tantos manifestos de Marinetti, que<br />
Oswald de Andrade contribuiu ostensivamente
para mu<strong>da</strong>r os padrões <strong>da</strong> inteligência<br />
brasileira na déca<strong>da</strong> de<br />
20. O Manifesto <strong>da</strong> poesia paubrasil<br />
(ou manifesto pau, como<br />
diziam os seus inimigos) e o<br />
Manifesto antropófago se valem<br />
<strong>da</strong> descontinui<strong>da</strong>de do pensamento<br />
e <strong>da</strong> linguagem para<br />
subverter a maioria dos valores<br />
consagrados pela nossa tradição<br />
cultural. No Manifesto paubrasil<br />
critica o nosso “lado doutor”,<br />
a nossa bacharelice, e diz:<br />
“Eruditamos tudo. Esquecemos<br />
o gavião de penacho”. Contra a<br />
gramatiquice <strong>da</strong> época ele pede<br />
“A língua sem arcaísmos, sem<br />
erudição. Natural e neológica.<br />
A contribuição milionária de<br />
todos os erros. Como falamos.<br />
Como somos”. E contra a repetição<br />
dos processos poéticos ele<br />
vai dizer que “Só não se inventou<br />
uma máquina de fazer versos”<br />
porque “já havia o poeta<br />
parnasiano”. Mas é no Manifesto antropófago, de<br />
1928, que Oswald de Andrade vai atingir o melhor<br />
<strong>da</strong> sua subversão estética, gritando que “Só a antropofagia<br />
nos une” e fazendo uma belíssima paródia<br />
de Shakespeare ao escrever: “Tupy, or not tupy,<br />
that is the question”.<br />
Valendo-se <strong>da</strong> psicanálise e dos modernos<br />
significados de “totem” e “tabu” tomados <strong>à</strong> antropologia<br />
cultural, ele pede aos intelectuais que “deglutam”<br />
os nossos mitos, assim como os índios caetés<br />
fizeram com D. Pêro Fernandes Sardinha. Foi<br />
essa antropologia ritualista que deu novo sentido<br />
ao nacionalismo modernista que já havia <strong>da</strong>do Macunaíma<br />
e ia <strong>da</strong>r Cobra norato.<br />
Esse novo sentido de nacionalismo ele o expressou<br />
pela primeira vez na revista Klaxon; ampliou-o<br />
para o prefácio “Falação” de Pau-brasil, o<br />
livro de poemas: foi esse prefácio que serviu de<br />
base ao primeiro manifesto. O exemplo de Macunaíma,<br />
que Mário começou a publicar em 1927,<br />
levou Oswald de Andrade ao manifesto e <strong>à</strong> Revista<br />
de <strong>Antropofagia</strong>. Esta idéia de antropofagia<br />
<strong>da</strong> nossa cultura nunca mais o abandonou, mas<br />
também não foi mais aprofun<strong>da</strong><strong>da</strong>, como é fácil<br />
perceber na sua tese A crise <strong>da</strong> filosofia messiânica,<br />
já no fim <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>.<br />
Quanto <strong>à</strong> sua poesia, quiseram transformála<br />
na coisa mais importante do modernismo, mas<br />
ela (vale o cacófato) não parece resistir muito <strong>à</strong><br />
análise que preten<strong>da</strong> ver a renovação por dentro<br />
ENCONTROS COM A LITERATURA<br />
Na Revista de <strong>Antropofagia</strong> (l928-<br />
29), um contundente balanço crítico<br />
do saldo deixado pela rebeldia<br />
literária <strong>da</strong> Semana de Arte Moderna,<br />
1922.<br />
<strong>da</strong> linguagem, mas sem perder<br />
o fio <strong>da</strong> tradição, como<br />
em Manuel Bandeira e mais<br />
corrosivamente em Mário de<br />
Andrade. Não se a<strong>da</strong>ptando<br />
por temperamento ao conhecimento<br />
<strong>da</strong> retórica tradicional,<br />
a poesia de Oswald,<br />
para bem e para mal, teve de<br />
se produzir fora <strong>da</strong> tradição<br />
ou, melhor, contra a tradição<br />
poética. Não resta dúvi<strong>da</strong> de<br />
que ele contribuiu com uma<br />
série de elementos novos<br />
para a poesia modernista.<br />
Dentre esses, talvez o mais<br />
importante sejam as reduções<br />
epigramáticas, isto é,<br />
as reapropriações de textos<br />
dos cronistas coloniais como<br />
Pêro Vaz Caminha, Gân<strong>da</strong>vo,<br />
Claude D’Abbeville, Frei Vicente<br />
do Salvador, Frei Manoel<br />
Calado e outros. Trata-se do<br />
que a poética atual denomina<br />
intertextuali<strong>da</strong>de, inclusão<br />
de discursos estranhos no espaço do poema ou<br />
aproveitamento <strong>da</strong> dicção do texto anterior, como<br />
no conhecido “Meninas <strong>da</strong> gare”:<br />
Eram três ou quatro moças bem moças e bem gentis<br />
Com cabelos mui pretos pelas espáduas<br />
E suas vergonhas tão altas e tão saradinhas<br />
Que de nós as muito bem fitarmos<br />
Não tínhamos nenhuma vergonha<br />
Mas Oswald inverte o pensamento de Caminha,<br />
cria situações novas e realmente bem logra<strong>da</strong>s<br />
do ponto de vista do estranhamento. A sua<br />
experimentação é aqui excepcional, criando imagens<br />
belíssimas como no poema “As aves”, visual<br />
e dinâmico por causa <strong>da</strong> superposição de imagens<br />
que conotam a relação mar e sertão:<br />
Há águias de sertão<br />
E emas tão grandes como as de África<br />
Umas brancas e outras malha<strong>da</strong>s de negro<br />
Que com uma asa levanta<strong>da</strong> ao alto<br />
Ao modo de vela latina<br />
Corre com o vento.<br />
Neste sentido é que fez paródias e carnavalizou<br />
muito antes <strong>da</strong> teoria de Bakhtine e <strong>da</strong> <strong>mo<strong>da</strong></strong><br />
<strong>da</strong> carnavalização haver atingido os estudos literários<br />
no Brasil. Oswald de Andrade inaugurou entre<br />
os modernos o novo sentido <strong>da</strong> paródia, como<br />
no “Canto de regresso <strong>à</strong> pátria” (onde glosa versos<br />
de Gonçalves Dias) e em “Meus oito anos”, onde<br />
joga com versos de Casimiro de Abreu. É por aí que ele<br />
21
passa <strong>à</strong> inclusão de palavras tupis e negras, como no<br />
poema “Brasil” de notável efeito humorístico:<br />
22<br />
O Zé Pereira chegou de caravela<br />
e perguntou ou pro guarani <strong>da</strong> mata virgem<br />
– Sois cristão?<br />
– Não. Sou bravo, sou forte, sou filho <strong>da</strong> Morte<br />
Tererê tetê Quizá Quizá Quecê.<br />
Lá longe a onça resmunga Uu! – ua! uu!<br />
O negro zonzo saído <strong>da</strong> fornalha<br />
tomou a palavra e respondeu<br />
– Sim pela graça de Deus<br />
Canhem Babá Canhém Babá Cum Cum!<br />
E fizeram o Carnaval.<br />
É por aí que ele chegou a um tipo de metalinguagem<br />
primária como nos poemas “Vício na<br />
fala”, “O gramático” e “Pronominais”, de grande<br />
efeito humorístico e de notável sarcasmo perante<br />
a crítica tradicional que, por volta de 1920, não<br />
conseguia sair do policiamento gramatical. Eis o<br />
“Pronominais”:<br />
Dê-me um cigarro<br />
Diz a gramática<br />
Do professor e do aluno<br />
E do mulato sabido<br />
Mas o bom negro e o bom branco<br />
Da Nação Brasileira<br />
Dizem todos os dias<br />
Deixa disso camara<strong>da</strong><br />
Me dá um cigarro.<br />
Mesmo assim, abolindo a pontuação, não<br />
deixa de pagar tributo <strong>à</strong> tradição <strong>da</strong>s maiúsculas<br />
iniciais do verso.<br />
ENCONTROS COM A LITERATURA<br />
Não tendo longo fôlego poético<br />
– o que se transformou numa<br />
de suas quali<strong>da</strong>des – Oswald pôde<br />
realizar o que Haroldo de Campos<br />
chamou poema-minuto, como na<br />
original redução de<br />
AMOR<br />
HUMOR<br />
em que o poema está praticamente<br />
reduzido a uma só palavra,<br />
<strong>da</strong>do que amor funciona como título,<br />
mas que se integra na estrutura<br />
minúscula do poema. Dentro desta<br />
linha de redução é que pode chegar<br />
a poemas semiconcretos como “A<br />
Europa curvou-se ante o Brasil”,<br />
poema denotativo sobre futebol internacional<br />
na déca<strong>da</strong> de 20:<br />
7 a 2<br />
3 a 1<br />
A injustiça de Cette<br />
4 a 0<br />
2 a 0<br />
3 a 1<br />
e meia dúzia na cabeça dos portugueses<br />
O espírito brincalhão de Oswald o levou <strong>à</strong><br />
construção de um dos seus poucos poemas metrificados,<br />
mas de sete sílabas e, portanto, de feição<br />
bem popular. É o que se lê em “Epitáfio”, onde se<br />
aproveita a repetição de uma palavra expressiva<br />
como “redondo” e se cria a montagem de redon<strong>da</strong><br />
e ilha = redondilha. O poema de Oswald, além de<br />
trocadilho e de crítica <strong>à</strong>s formas tradicionais, nos<br />
mostra também como o poeta soube tirar proveito<br />
de associações como redondo (gordo) e redondilha<br />
a explorar uma referência fantástica (o riso <strong>da</strong> caveira)<br />
para introduzir o eco de uma risa<strong>da</strong> e quebrar<br />
o verso de sete sílabas:<br />
Eu sou redondo, redondo<br />
Redondo, redondo eu sei<br />
Eu sou uma redond’ilha<br />
Das mulheres que beijei<br />
Por falecer de oh! amor<br />
Das mulheres de minh’ilha<br />
Minha caveira rirá ah! ah! ah!<br />
Pensando na redondilha.<br />
É como se o próprio poeta, morto ou vivo,<br />
estivesse rindo de quem compõe redondilhas ou<br />
rindo de si mesmo, pelo fato de haver também feito<br />
esses versos redondilhos. Ou rindo, talvez, <strong>da</strong><br />
pronúncia inglesa de seu nome entre os universitários,<br />
sobretudo no Rio de Janeiro.<br />
GILBERTO MENDONÇA TELES<br />
Poeta, ensaísta<br />
<strong>Professor</strong> Emérito <strong>da</strong> PUC-Rio e <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Federal de Goiás<br />
<strong>Professor</strong> Titular do Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora<br />
* in Oswald Plural (EdUERJ, 1995)
LEITURA, LEITURAS<br />
Índios brasileiros em ritual antropofágico, gravura de Theodore de Bry, in Voyage au Brésil, 1592<br />
ANTROPOFAGIA <strong>à</strong> <strong>mo<strong>da</strong></strong> <strong>da</strong> <strong>casa</strong><br />
Na déca<strong>da</strong> dos 20, o Brasil e os brasileiros foram<br />
“descobertos”. É emblemática desta descoberta<br />
a proposta de Oswald de Andrade de<br />
converter a <strong>da</strong>ta em que os aimorés comeram o Bispo<br />
Sardinha em primeira manifestação histórica brasileira.<br />
Festejar o ato canibal – suprema barbárie para<br />
o olhar europeu – em afirmação de uma protonacionali<strong>da</strong>de<br />
confere transcendência no comer o importado<br />
e o resultado dessa transformação torna-se algo<br />
virtuoso. O gênio de Oswald transformou o tabu em<br />
totem; sabia que o escân<strong>da</strong>lo é pe<strong>da</strong>gógico.<br />
No século XIX, houve o esforço de buscar no<br />
índio a origem <strong>da</strong> nacionali<strong>da</strong>de brasileira. Gonçalves<br />
Dias transformou o ato canibal em ritual de perpetuação<br />
do inimigo valente. Em I-Juca Pirama a comi<strong>da</strong><br />
luta como herói grego em busca do resgate de sua<br />
imagem ante o pai. As virtudes do índio são coteja<strong>da</strong>s<br />
em convívio com o colonizador em José de Alencar,<br />
que cunha Iracema como “a virgem dos lábios de<br />
mel”. O índio de Alencar é uma réplica europeia.<br />
“Comer” a cultura importa<strong>da</strong> não é um retorno<br />
<strong>à</strong> natureza. No plano simbólico, foi o colonizador que<br />
CARLOS LESSA<br />
importou o Bispo “comido”. O aimoré não tecnizado lançou<br />
mão do que sabia para “experimentar” o colonizador.<br />
Ao longo de séculos a colônia – através de sua elite<br />
de poder, de ter e de saber – importou cultura, no amplo<br />
sentido antropológico, e despiu o nativo de seus saberes<br />
e haveres, inclusive dos ventres de suas mulheres para<br />
produzir os caboclos mestiços. A importação de africanos<br />
– objeto de canibalização cultural – foi uma tentativa<br />
radical de o colonizador desconhecer o nativo. No<br />
terreiro do candomblé, o africano agradeceu ao “caboclo”<br />
a cessão <strong>da</strong> terra. O ingênuo movimento indianista<br />
procurou no nativo o “doador” de um Paraíso Tropical e<br />
legitimizou a proprie<strong>da</strong>de do território brasileiro. Pedro<br />
II se coroou utilizando um manto com papos de tucanos<br />
e folhas de bananeira, estilizados e bor<strong>da</strong>dos em fios de<br />
ouro. Valorizou, superficialmente, apenas bugigangas<br />
do Paraíso Tropical, indisponíveis na Europa. Afirmou:<br />
“são minhas”. Ao combinar o tucano nativo com a musa<br />
paradisíaca africana, não canibalizou, apenas importou<br />
o formato europeu; quem “canibalizou” o imperador<br />
foi o povão que, no século XX, reprocessa a história<br />
do império como enredo de escola de samba e com-<br />
23
ina baianas, índios, condessas, colombinas e o que<br />
mais dispuser na mistura antropofágica do carnaval.<br />
O prestígio europeu foi visceralmente abalado pela<br />
I Guerra Mundial. A Belle Époque seria a preliminar<br />
de um processo contínuo de ascese em direção <strong>à</strong> civilização.<br />
A Europa teria domesticado os cavalos do<br />
Apocalipse e seus cavaleiros, desempregados, teriam<br />
se convertido em cavalheiros nos salões <strong>da</strong> burguesia<br />
ascendente. Com a I Guerra Mundial, o banho de sangue<br />
<strong>da</strong> juventude europeia e as matanças industriais<br />
de populações civis desmentiram a profecia positivista.<br />
A razão e a ciência não eram dominantes, mas<br />
sim domina<strong>da</strong>s pela evolução capitalista. As guerras<br />
coloniais haviam sido introjeta<strong>da</strong>s pela “civilização”<br />
europeia.<br />
Jovens brasileiros perceberam o fracasso cultural<br />
do Velho Mundo. Não precisaram, como Picasso,<br />
procurar inspiração nas esculturas de Benin, como<br />
Brancusi, nos totens esquimós ou como Matisse, no<br />
cromatismo japonês e polinésio. Estes jovens perceberam<br />
que, olhando para o “povão” brasileiro, tinham<br />
formas e conteúdos a serem deglutidos. Tarsila do<br />
Amaral busca a plastici<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s<br />
len<strong>da</strong>s índias; Di Cavalcanti busca a<br />
sensuali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> mestiça brasileira;<br />
Menotti Del Picchia, o linguajar caipira;<br />
Portinari, os pés do trabalhador<br />
do café; Villa Lobos, to<strong>da</strong>s as tonali<strong>da</strong>des<br />
musicais; Câmara Cascudo,<br />
todo e qualquer folclore. Uma plêiade<br />
de escritores se debruça sobre fatos,<br />
coisas e falares regionais: o gaúcho,<br />
o jangadeiro, o mascate, o engenho<br />
açucareiro, a fazen<strong>da</strong><br />
de cacau, a mulher<br />
nordestina, o cangaceiro,<br />
o mineiro, o colhedor<br />
de erva-mate,<br />
de borracha etc. A<br />
antropofagia tropical<br />
resgata a versão colonial<br />
digeri<strong>da</strong> de Portugal:<br />
descobre Ouro<br />
Preto, Mariana e o<br />
Aleijadinho. A feijoa<strong>da</strong><br />
e a goiaba<strong>da</strong> com<br />
queijo caminham do<br />
trivial para o banquete<br />
orgulhoso. O violão<br />
substitui o piano na<br />
sala de visitas. O gigante<br />
Gilberto Freire<br />
faz a prospecção dos<br />
desvãos <strong>da</strong> <strong>casa</strong> senhorial<br />
como lugar de<br />
simbioses, sincretis-<br />
mos e metamorfoses<br />
de protobrasili<strong>da</strong>de;<br />
24<br />
LEITURA, LEITURAS<br />
Erro de Português<br />
vê no senhor de escravos um canibal dominante e faminto<br />
e explicita uma dialética <strong>casa</strong> grande-senzala.<br />
O Rio de Janeiro serve como ilustração <strong>da</strong> redescoberta.<br />
O francófilo Pereira Passos, apoiado pelo<br />
paulista Rodrigues Alves, fez do Rio um porto moderno<br />
e um cartão de visitas dizendo ao mundo que<br />
“somos civilizados; construímos a Paris dos Trópicos;<br />
temos um Theatro Municipal que copia o Opéra de<br />
Paris; temos uma Aveni<strong>da</strong> Central”, com edifícios de<br />
telhados próprios para a neve escorregar. Não permitimos<br />
nenhuma perturbação tropical nos jardins geométricos<br />
<strong>da</strong> Beira Mar. Aclimatamos os par<strong>da</strong>is – uma<br />
praga – para evocar os Jardins de Luxemburgo. Na<br />
déca<strong>da</strong> de 30, o desfile <strong>da</strong>s escolas de samba passou<br />
a ser um evento <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de. Nos anos 50, o Rio, o<br />
fraque e a estola de vison (manti<strong>da</strong> climatiza<strong>da</strong> pela<br />
Casa Canadá) para a frequência ao Municipal foram<br />
substituídos pelo pré-biquíni e calção de banho em<br />
Copacabana, Princesinha do Mar. O Copacabana Palace<br />
permitiu a construção de um colar art déco de edifícios<br />
para emoldurar as areias; os “fechos” do colar,<br />
os fortes militares, completavam a ilusão que fez do<br />
Rio objeto de desejo. A Ci<strong>da</strong>de Ma-<br />
OSWALD DE ANDRADE<br />
Quando o português chegou<br />
Debaixo de uma bruta chuva<br />
Vestiu o índio<br />
Que pena!<br />
Fosse uma manhã de sol<br />
O índio tinha despido<br />
O português<br />
Manufacture des Gobelins (1692-1700), visão europeiza<strong>da</strong><br />
dos nossos índios<br />
ravilhosa apagou a Paris Tropical.<br />
A elite do poder, do ter e do<br />
saber importa desde a fórmula federativa<br />
(no Novo Mundo, os Estados<br />
Unidos <strong>da</strong> América do Norte e os Estados<br />
Unidos do Brasil) até o neoliberalismo,<br />
o modelo de metas de<br />
inflação, a sugestão de autonomia<br />
para o Banco Central, o baile funk,<br />
o jazz, sabores, tonali<strong>da</strong>des e ameni<strong>da</strong>des.<br />
Importa cultura e<br />
o povão canibaliza para<br />
subsistir. Ao canibalizar,<br />
o povo cria. A geriatria<br />
do objeto durável<br />
faz o veículo automotor<br />
sobreviver <strong>à</strong> segun<strong>da</strong>,<br />
terceira, enésima mão<br />
– existe o neoartesão<br />
mecânico, que reproduz<br />
a peça de reposição do<br />
modelo fora de uso no<br />
primeiro mundo; existe<br />
o lanterneiro genial<br />
que, como um Pitanguy<br />
do povão, preserva geladeiras,<br />
televisões e, mais<br />
recentemente, computadores.<br />
Com a geriatria,<br />
o povo cria empregos e<br />
ren<strong>da</strong>, microempresas<br />
e viabiliza o acesso popular<br />
<strong>à</strong>s mercadorias<br />
importa<strong>da</strong>s; a geriatria<br />
permite <strong>à</strong> montadora de
veículos um mercado<br />
ampliado de primeira<br />
mão e ao banco endivi<strong>da</strong>r<br />
a família que<br />
não presta atenção ao<br />
juro, calcula apenas o<br />
valor <strong>da</strong> prestação.<br />
A criativi<strong>da</strong>de<br />
popular transformou<br />
o football importado<br />
pelo inglês colonizador.<br />
A elite do ter, com<br />
a miragem do anglicismo,<br />
fundou clubes<br />
de football e regatas.<br />
A bola é redon<strong>da</strong>, barata<br />
e pode ser improvisa<strong>da</strong><br />
com meia velha;<br />
o campo pode ser<br />
qualquer terreiro – e o<br />
povão canibalizador<br />
inventou o futebol.<br />
O inglês chutava a<br />
ball, mas o brasileiro<br />
quer dominar a bola.<br />
Futebol virou paixão.<br />
Qualquer lugar pode<br />
ter seu time de várzea e disputar com o time do lugar<br />
vizinho fazendo o ritual de construção de identi<strong>da</strong>de,<br />
que Lévi-Strauss identificou pela oposição ao idêntico.<br />
Viramos, em 1958, campeões do mundo. Garrincha,<br />
torto, surgiu em Pau Grande (RJ), a partir do<br />
time de uma fábrica de tecidos de proprie<strong>da</strong>de britânica.<br />
No final dos 50, completamos nosso desempenho<br />
construindo Brasília mais além do território real<br />
ocupado.<br />
Em resumo, o povão cria e a elite come criação.<br />
O povão foi expulso <strong>da</strong>s escolas de samba do grupo<br />
especial, não tem ren<strong>da</strong> para comprar a fantasia, nem<br />
para um lugar na arquibanca<strong>da</strong>. O Sambódromo é negócio<br />
e o espetáculo é para a elite. O criativo povão já<br />
fez renascer o bloco de rua.<br />
A feijoa<strong>da</strong> é guloseima em hotéis de luxo para<br />
atrair turista, mas em qualquer botequim tem uma<br />
boa feijoa<strong>da</strong>. O povão já superou o fast-food com a<br />
comi<strong>da</strong> a quilo, que permite ao brasileiro canibal misturar<br />
feijão com sashimi, sala<strong>da</strong> verde com talharim<br />
e o que mais a imaginação e o apetite permitirem.<br />
O povão, com pouco ter e poder, preserva o saber<br />
cultural brasileiro. Recicla tudo naturalmente, do<br />
auto <strong>à</strong> latinha de alumínio. Inventa a favela, a música<br />
popular, idealiza o malandro, tropicaliza o salpicão e<br />
faz com este prato uma multiplicação do frango. Organiza<br />
festas e novas religiões (é capaz de praticar várias<br />
ao mesmo tempo). Preserva o idioma, pois o maneja<br />
dinamicamente. O léxico é campo de aclimatação dos<br />
pe<strong>da</strong>ços que canibaliza. Enquanto a elite procura uma<br />
residência alternativa em Miami, seus epígonos procu-<br />
LEITURA, LEITURAS<br />
ram reproduzir o subúrbio<br />
norte-americano nas Alphavilles<br />
e socializar seus<br />
filhos no condomínio e no<br />
shopping, o povão canibaliza<br />
o baile funk. O estu<strong>da</strong>nte<br />
brasileiro despreza<br />
Camões e, em vez de imprimir<br />
e apagar, “printa” e<br />
“deleta”; o povão pega no<br />
funk uma música importa<strong>da</strong><br />
que se refere a tonight<br />
e a transforma na “Melô<br />
do Tomate”. Ligado nas<br />
sonori<strong>da</strong>des, este cultor de<br />
Camões transmuta o sítio<br />
do irlandês O’Higgins em<br />
Favela do Arrelia; o sítio<br />
do escocês William em um<br />
bairro, a Ilha. O Visconde<br />
de Asseca deu origem <strong>à</strong><br />
Praça Seca.<br />
Ao invés de constatar<br />
um Brasil com uma<br />
elite que importa e um povão<br />
que canibaliza, espero<br />
um projeto nacional para o<br />
Brasil de amanhã, onde estaremos abertos ao mundo e<br />
conscientes de nossa identi<strong>da</strong>de e soberania. Parafraseando<br />
Martinho <strong>da</strong> Vila, iremos “devagar, devagarzinho”<br />
em direção <strong>à</strong> premonição de Duque Estra<strong>da</strong>, que<br />
intuiu o “berço esplêndido” e atribuiu aos nossos bosques<br />
mais vi<strong>da</strong> e <strong>à</strong> nossa vi<strong>da</strong> mais amores. Neste Brasil<br />
de amanhã, Zeca Pagodinho não precisará se referir<br />
a caviar com “não sei, nunca vi, eu só ouço falar”. Zeca,<br />
estamos precisando de um samba que fale do futuro, que<br />
veja no baiano a vanguar<strong>da</strong> <strong>da</strong> civilização brasileira; que<br />
veja no mineiro a sabedoria; no paulista o maquinista <strong>da</strong><br />
locomotiva; no forró do nordestino a criativi<strong>da</strong>de lúdica<br />
do povão; no carioca, o brasileiro que não tem medo de<br />
praça cheia e que faz a maior festa mundial de fim de ano<br />
(três milhões reunidos, sem polícia nem violência) para<br />
recuperar o sonho de um futuro sempre postergado.<br />
A sugestão modernista <strong>da</strong> Semana de Arte Moderna<br />
de 1922 combina<strong>da</strong> <strong>à</strong> geniali<strong>da</strong>de de Gilberto<br />
Freire lastreou a redescoberta pela qual a elite canibalizou<br />
o povão. Nos últimos 25 anos, a elite praticamente<br />
deixou de lado o Brasil e mergulhou gostosamente<br />
na “Globalização”. Abandonou a cultura popular,<br />
<strong>da</strong> qual o culto <strong>à</strong> boa cachaça é a nova deglutição<br />
<strong>da</strong> elite. Tenho a esperança que estejamos próximos<br />
a um tempo em que, dialeticamente, povão e elite,<br />
juntos, superem o ritual recorrente <strong>da</strong> canibalização e<br />
haja a afirmação <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de brasileira explicitando<br />
nosso potencial civilizatório.<br />
CARLOS LESSA<br />
Economista<br />
<strong>Professor</strong> Emérito e ex-Reitor <strong>da</strong> UFRJ<br />
25
No segundo semestre de 1993, estava eu<br />
ministrando um curso de língua portuguesa<br />
e cultura brasileira na Universi<strong>da</strong>de<br />
Abdel Malik As-Saadi, em Tetuão, ci<strong>da</strong>de do<br />
norte do Marrocos, quando tive a satisfação de<br />
receber a visita de meus pais. Certa manhã, saí<br />
de <strong>casa</strong> acompanhado de meus hóspedes, para<br />
cumprir os afazeres habituais no centro <strong>da</strong>quela<br />
ci<strong>da</strong>de verde e branca, localiza<strong>da</strong> em um profundo<br />
vale.<br />
No caminho de retorno, meu pai observou:<br />
– Aquele ali deve estar vivendo algum<br />
problema. Quando passamos por aqui, há 3 horas,<br />
estava na mesma cadeira, na mesma mesa.<br />
Quem sabe tomando o mesmo chá com hortelã?<br />
Respondi-lhe imediatamente:<br />
– Então, grande parte <strong>da</strong> população masculina<br />
aqui tem graves problemas. Repare o número<br />
de cafés na ci<strong>da</strong>de e a grande frequência<br />
em qualquer parte do dia.<br />
Por força de meu doutoramento na Universi<strong>da</strong>de<br />
de Lisboa, uma vez por mês percorria o<br />
caminho feito, há quase 13 séculos, por Tárik<br />
Ibn Ziad e seus companheiros, que seduziram os<br />
26<br />
LEITURA, LEITURAS<br />
O Chá, o Fino, o Tinto e o<br />
Chope: uma Viagem<br />
JOÃO BAPTISTA M. VARGENS<br />
habitantes <strong>da</strong> Península Ibérica, apresentandolhes<br />
uma cultura rica e multifaceta<strong>da</strong>. Algumas<br />
vezes, atravessava o Estreito e, em Algeciras,<br />
tomava um ônibus, que me deixava, 7 horas depois,<br />
em Lisboa. Em outras ocasiões, galgava as<br />
terras <strong>da</strong> An<strong>da</strong>luzia e <strong>da</strong> Estremadura sem pressa.<br />
Quando avistava uma <strong>da</strong>s inúmeras vilas<br />
aprazíveis <strong>da</strong> região, era o momento de parar.<br />
Isso acontecia normalmente no arrebol. Entrava<br />
num bar, geralmente na varan<strong>da</strong>, e, invariavelmente,<br />
pedia um fino, vinho típico <strong>da</strong> região, que<br />
era sorvido, acompanhado de um legítimo pata<br />
negra. Adentrava a noite e aquela gente conversando,<br />
conversando... As histórias sucediam-se.<br />
A História fixava-se.<br />
No dia seguinte, a viagem continuava. As<br />
oliveiras <strong>da</strong>vam lugar <strong>à</strong>s pastagens, onde cerdos<br />
nutriam-se e caminhavam, mal sabendo que se<br />
tornariam apetitosos patas negras. Planícies e<br />
planaltos alternavam-se e, como um oásis, surgia<br />
Ba<strong>da</strong>jós, com suas floreiras adornando os<br />
muxarabiês. Do outro lado <strong>da</strong> fronteira, que não<br />
mais existe, avistava-se o alcácer de Elvas, no<br />
alto do monte, a desafiar os tempos. Na<strong>da</strong> me-
lhor do que tornar a ouvir a língua<br />
de Camões, mais tarde adocica<strong>da</strong> por<br />
Machado.<br />
Em um bar-café cor-de-rosa, em<br />
torno <strong>da</strong> mesa, o fino, que fora chá,<br />
torna-se um tinto, que rega a palavra<br />
de sempre, no intrigante e revolucionário<br />
Alentejo.<br />
Era preciso chegar ao destino.<br />
Prosseguia a viagem, até vislumbrar<br />
o Tejo e suas pontes majestáticas. Era<br />
hora do jantar. Na<strong>da</strong> melhor do que<br />
as tascas <strong>da</strong> Mouraria ou do Bairro<br />
Alto. Em suas vielas, ouvia-se o fado,<br />
acompanhado de suas guitarras, que<br />
pareciam, melancolicamente, buscar<br />
um passado de que foram testemunhas<br />
muros e pedras.<br />
Após cumprir as missões acadêmicas no<br />
Marrocos e em Portugal, retornei ao Brasil.<br />
Cheguei junto com o real. Como num passe<br />
de mágica, a moe<strong>da</strong> brasileira valia mais que<br />
o dólar americano. Difícil de entender. Principalmente<br />
para aquele que, a ca<strong>da</strong> mês, via diminuírem<br />
seus minguados cruzeiros, convertidos<br />
em cédulas, cuja estampa, invariavelmente, era<br />
o rei Hassan II.<br />
Depois <strong>da</strong>s sau<strong>da</strong>ções de praxe, familiares,<br />
amigos, colegas, alunos, urge um passeio<br />
pelo Rio de todos os janeiros.<br />
Queria rever o Centro,<br />
talvez pelo fato de, naquele<br />
lugar, ter estu<strong>da</strong>do e trabalhado<br />
durante muitos anos.<br />
Por força do hábito, conduzi-me<br />
<strong>à</strong> esquina <strong>da</strong> Lavradio<br />
com a Mem de Sá. Entrei no<br />
Bar Brasil, rebatizado na<br />
2.ª Guerra, chamava-se Alemão<br />
e assim é conhecido até<br />
hoje pelos frequentadores<br />
assíduos. Fui recebido pelo<br />
A<strong>da</strong>uto, garçom legendário,<br />
com entusiasmo. Naquele<br />
lugar, onde é servido um<br />
dos melhores chopes do Rio,<br />
acomodei-me. Percebi que a<br />
mesa era a mesma, em torno<br />
<strong>da</strong> qual sentava com os amigos<br />
<strong>da</strong> Facul<strong>da</strong>de de Letras,<br />
entre eles o saudoso <strong>Professor</strong><br />
Celso Cunha. A espuma<br />
<strong>da</strong> bebi<strong>da</strong>, tão aprecia<strong>da</strong> pe-<br />
LEITURA, LEITURAS<br />
los cariocas, tira<strong>da</strong> com a pressão exata, formava<br />
um elegante colarinho. Era a dose certa.<br />
Sozinho, notava a sucessão de ro<strong>da</strong><strong>da</strong>s de<br />
chope e os discos-horóscopos avolumarem-se sobre<br />
as mesas, prenunciando uma conta salga<strong>da</strong>.<br />
Refletia sobre meu itinerário: Marrocos,<br />
Espanha, Portugal, Brasil. Pensava sobre a história,<br />
a geografia, a cultura, os hábitos. Naquele<br />
instante, transpareceram-me, niti<strong>da</strong>mente, liames<br />
de comportamentos, díspares <strong>à</strong> luz de olhos<br />
incautos, mas próximos sob a mira de uma observação<br />
sensível. No Bar<br />
Brasil, havia pessoas em<br />
torno <strong>da</strong> mesa. Havia comi<strong>da</strong>,<br />
conversa, bebi<strong>da</strong>. Do<br />
outro lado do Atlântico,<br />
em pátria árabe-africana a<br />
mesma coisa, assim como<br />
acontecia do outro lado de<br />
Gibraltar. O chope, o tinto,<br />
o fino e o chá regavam mentes<br />
e entorpeciam o tempo.<br />
Os calendários, solar e lunar,<br />
paravam. As histórias<br />
multiplicavam-se, traçando<br />
a crônica dos tempos e, na<br />
maioria <strong>da</strong>s vezes, contrariando<br />
a letra peremptória<br />
<strong>da</strong> historiografia.<br />
Uma rua na Mouraria, Lisboa<br />
Palácio Real de Tetuão, Marrocos<br />
JOÃO BAPTISTA M. VARGENS<br />
Doutor pela Facul<strong>da</strong>de de Letras <strong>da</strong><br />
Universi<strong>da</strong>de de Lisboa<br />
<strong>Professor</strong> do Setor de Estudos Árabes<br />
<strong>da</strong> UFRJ<br />
<strong>Professor</strong>-Visitante do Instituto de<br />
Letras <strong>da</strong> UERJ<br />
27
Monumento <strong>à</strong><br />
Abertura<br />
dos Portos<br />
(100 anos)<br />
em frente<br />
ao Hotel<br />
Glória<br />
Uma <strong>da</strong>s<br />
Pirâmides<br />
do Mestre<br />
Valentim no<br />
Passeio<br />
Público<br />
Bebedouro Stella<br />
do Val D’Osne no<br />
Campo de Santana<br />
Fonte em ferro<br />
fundido do<br />
Val d’Osne<br />
na Praça<br />
M. Gandhi,<br />
Cinelândia<br />
LEITURA, LEITURAS<br />
O Mobiliário Urbano como Memória<br />
<strong>da</strong> Ci<strong>da</strong>de do Rio de Janeiro<br />
Parte integrante <strong>da</strong> cultura, a ideia de<br />
“memória” aplica<strong>da</strong> ao meio urbano<br />
significa também “evolução”. Portanto,<br />
os artefatos que foram implantados ao longo<br />
do tempo num cenário urbano, representam,<br />
enquanto memória, cultura urbana e medi<strong>da</strong><br />
de evolução.<br />
Já se disse que as ci<strong>da</strong>des nunca envelhecem,<br />
e uma <strong>da</strong>s formas para se comprovar<br />
isso são os artefatos implantados em ruas<br />
e praças, na formação de determinado meio<br />
urbano. Tais artefatos, denominados de “mobília<br />
ou mobiliário urbano”, se diversificam,<br />
abarcando os com funções específicas (postes<br />
ou bancos de praças); os simbólicos (marcos<br />
e monumentos históricos); os contemplativos<br />
(esculturas e fontes); os culturais (bancas de<br />
jornal, quiosques e coretos); os de diversão<br />
(brinquedos); e os de comunicação (relógios<br />
e mídias), entre outros.<br />
À medi<strong>da</strong> que o meio urbano cresce e<br />
se torna mais complexo, cresce o número e<br />
a quali<strong>da</strong>de de seu mobiliário, não apenas<br />
para atender <strong>à</strong>s funções necessárias a habitantes<br />
e veículos, mas também como marcos<br />
de épocas históricas.<br />
Ca<strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de tem características evolutivas<br />
próprias, e algumas se destacam por serem<br />
ricas num determinado contexto histórico<br />
e cultural e por características únicas do seu<br />
ambiente natural. Esse é o caso <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de<br />
São Sebastião do Rio de Janeiro, que já nasceu<br />
como tal, mesmo quando não passava de<br />
rústica fortificação no Morro Cara de Cão, instala<strong>da</strong><br />
por Estácio de Sá em 1565. Veio de Portugal<br />
sua primeira mobília – o Marco <strong>da</strong> Fun<strong>da</strong>ção<br />
–, implantado nas areias do pequeno<br />
istmo, como símbolo <strong>da</strong>quela que seria uma<br />
<strong>da</strong>s mais belas ci<strong>da</strong>des do mundo. Após mais<br />
de quatro séculos ele ain<strong>da</strong> existe, escondido<br />
e isolado na Igreja dos Capuchinhos na Tijuca,<br />
mas testemunho vivo <strong>da</strong> criação <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de.<br />
Durante quase dois séculos após sua<br />
fun<strong>da</strong>ção, a ci<strong>da</strong>de teve crescimento lento <strong>à</strong>s<br />
custas do estatuto colonial que não a favorecia,<br />
porém, a partir do início do século XVIII,<br />
REGINALDO SAH<br />
o sítio urbano começou a mu<strong>da</strong>r e, com ele,<br />
surgiram artefatos que aju<strong>da</strong>ram a torná-la<br />
uma ci<strong>da</strong>de de fato e de direito. Nos adros <strong>da</strong>s<br />
igrejas surgiram os cruzeiros de pedra e madeira,<br />
acompanhados dos sempre presentes<br />
“fradinhos de pedra”, tão frequentes atualmente<br />
nas ruas.<br />
Como símbolo do poder colonial, troncos<br />
e pelourinhos se instalaram para o castigo<br />
de escravos e criminosos e para divulgar<br />
os editais do governo. Entretanto, infelizmente,<br />
eles se perderam na poeira <strong>da</strong>s ruas.<br />
O mais importante dos mobiliários<br />
com função de serviço urbano implantado<br />
dessa época foi o chafariz. Com o primeiro<br />
no Largo <strong>da</strong> Carioca, em 1745, mudou-se a<br />
feição <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de. Não por acaso este espaço<br />
se tornou o centro mais movimentado desde<br />
então e, até hoje, é um dos pontos de maior<br />
expressão de mobiliários <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de.<br />
No cais do Largo do Paço, surgiu em<br />
1789 o imponente chafariz do Mestre Valentim,<br />
como símbolo <strong>da</strong> época de riquezas <strong>da</strong>s<br />
Minas Gerais e <strong>da</strong> capaci<strong>da</strong>de de transporte<br />
dos produtos que iam e vinham de além-mar.<br />
É nossa mais importante peça de mobília do<br />
período colonial, e suas linhas, ao mesmo<br />
tempo austeras e limpas, se aliam <strong>à</strong> arquitetura<br />
do Palácio do Paço e <strong>da</strong> antiga catedral,<br />
impondo-se, mesmo em escala menor, aos<br />
prédios modernos em volta.<br />
No entanto, a maior expressão de salvaguar<strong>da</strong><br />
<strong>da</strong> memória urbana <strong>da</strong> época colonial<br />
foi a criação do Passeio Público, em 1783,<br />
berço do mobiliário urbano no Brasil, projeto<br />
de Valentim, o maior artista carioca <strong>da</strong> época<br />
colonial e patrono de todos os belos e úteis<br />
artefatos implantados na paisagem construí<strong>da</strong><br />
do Rio de Janeiro, posteriormente.<br />
Nos jardins do Passeio, surgiram pela<br />
primeira vez numa ci<strong>da</strong>de brasileira: uma<br />
escultura abstrata (as pirâmides), uma escultura<br />
figurativa fundi<strong>da</strong> em bronze, um<br />
chafariz com elementos representativos <strong>da</strong><br />
nossa fauna (jacarés), bancos de pedra, pavilhões,<br />
muretas, postes de luz ordenados, etc.
Hoje, como complemento desse exemplo de<br />
ousadia de um Vice-Rei e de criativi<strong>da</strong>de de<br />
um artista mulato, o Passeio acolhe o maior<br />
número de bustos por metro quadrado <strong>da</strong><br />
América Latina, homenageando pessoas que<br />
foram importantes para as artes e a cultura<br />
brasileiras, como atestado de memória e reconhecimento.<br />
Com a chega<strong>da</strong> de D. João (mais tarde,<br />
VI) a ci<strong>da</strong>de se modificou: por sua determinação,<br />
criaram-se as primeiras normas urbanas,<br />
e a cultura floresceu. A memória do Segundo<br />
Império foi preserva<strong>da</strong> pelos primeiros<br />
monumentos históricos, como o de D. Pedro<br />
I, na Praça Tiradentes, de 1862; o de José Bonifácio,<br />
de 1872; e os primeiros mobiliários<br />
funcionais em rede pública, como os postes<br />
de iluminação pública do Barão de Mauá, as<br />
colunas de ventilação de esgoto de Gary e os<br />
diversos tipos de bancos de praças.<br />
Outros mobiliários importantes do final<br />
do século XIX foram as bancas de jornal<br />
e os quiosques, estes maltratados por Pereira<br />
Passos, mas que hoje representam, mais do<br />
nunca, o modo de vi<strong>da</strong> carioca. Pelo lado artístico,<br />
a ci<strong>da</strong>de passou a ser a segun<strong>da</strong> do<br />
mundo, depois de Paris, com o maior número<br />
de obras em ferro fundido do Val D’Osne: fontes,<br />
esculturas e objetos urbanos decorativos<br />
que se encontram em jardins e praças.<br />
Mas a grande mu<strong>da</strong>nça veio com a<br />
República, graças <strong>à</strong> reforma Pereira Passos,<br />
no começo do século XX. Pela primeira vez<br />
a ci<strong>da</strong>de foi pensa<strong>da</strong> e transforma<strong>da</strong> com a<br />
presença ostensiva de seus mobiliários implantados<br />
nas aveni<strong>da</strong>s Beira Mar, Rio Branco<br />
e na orla <strong>da</strong> Zona Sul: os postes artísticos,<br />
os relógios <strong>da</strong> Glória e do Largo <strong>da</strong> Carioca e<br />
o marco principal dessa mu<strong>da</strong>nça, o obelisco<br />
<strong>da</strong> Av. Rio Branco. O embelezamento urbano,<br />
via feição tipicamente francesa, se completou<br />
pela abertura <strong>da</strong> Av. Atlântica e <strong>da</strong> Praça Paris,<br />
de Alfredo Agache, já na terceira déca<strong>da</strong>.<br />
A memória urbana como cultura e evolução<br />
do Rio de Janeiro está bem representa<strong>da</strong> pelo<br />
trajeto que vai <strong>da</strong> Cinelândia, passando pela<br />
Lapa, atinge o Largo <strong>da</strong> Glória e se encerra<br />
nos jardins do Museu <strong>da</strong> República.<br />
O descenso e o descaso <strong>da</strong> implantação<br />
de mobiliários como memória <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de<br />
iniciaram-se na era getulista e, logo a seguir,<br />
pela presença ostensiva do automóvel. A ci<strong>da</strong>de<br />
não era mais pensa<strong>da</strong> para deleite de<br />
seus habitantes, mas para uso do carro e pelo<br />
valor monetário de seus espaços. A maior<br />
prova disso é a Av. Presidente Vargas e a ocupação<br />
desordena<strong>da</strong> de Copacabana.<br />
LEITURA, LEITURAS<br />
Com a ci<strong>da</strong>de transforma<strong>da</strong> em Estado,<br />
e apesar <strong>da</strong> construção de grandes vias<br />
para o automóvel, a memória se preservou<br />
pela construção do belo Aterro do Flamengo<br />
e suas peculiari<strong>da</strong>des interessantes em mobílias<br />
funcionais, monumentais, simbólicas<br />
e de lazer: o Monumento aos Pracinhas, os<br />
altos postes de iluminação, os diversos tipos<br />
de bancos, os quiosques, os brinquedos, etc.<br />
Mesmo a ci<strong>da</strong>de se voltando para o<br />
automóvel, a boa e tradicional mania dos cariocas<br />
de implantar monumentos históricos<br />
e esculturais não arrefeceu: nas praças e locais<br />
de movimento sempre aparece um monumento,<br />
uma escultura ou um marco, representando<br />
uma administração ou uma época<br />
política. Uma riqueza cultural que deve ser<br />
olha<strong>da</strong> com mais atenção.<br />
A última fase que pode e deve representar<br />
a memória <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, enquanto mobília<br />
urbana, foi o projeto Rio-Ci<strong>da</strong>de, iniciado na<br />
déca<strong>da</strong> de 1990, e que trouxe <strong>à</strong> tona a ideia<br />
de se implantar mobiliários urbanos funcionais<br />
e artísticos em determinados espaços ou bairros.<br />
O Rio-Ci<strong>da</strong>de representa a moderni<strong>da</strong>de e<br />
a civili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de através de sua mobília,<br />
basta ver os artefatos funcionais do Leblon, os<br />
diversos tipos de postes, mobiliários de comunicação<br />
e sinalização e a excelente ideia de se<br />
colocar nos bairros onde o projeto foi executado<br />
esculturas em bronze alusivas a personagens<br />
importantes na cultura citadina e brasileira,<br />
como Noel Rosa em Vila Isabel e Drummond de<br />
Andrade em Copacabana. Embora recente, essa<br />
história tem que ser preserva<strong>da</strong>, porque indica<br />
o caminho <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de em busca <strong>da</strong> melhoria dos<br />
espaços urbanos, do bem-estar dos ci<strong>da</strong>dãos e,<br />
principalmente, <strong>da</strong> importância do mobiliário<br />
urbano como memória e cultura.<br />
Desde o primeiro artefato implantado no<br />
cenário urbano <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de São Sebastião do<br />
Rio de Janeiro – o Marco de Fun<strong>da</strong>ção, de 1565<br />
–, até os que hoje lhe atestam a moderni<strong>da</strong>de<br />
de ci<strong>da</strong>de global, o mobiliário urbano foi e é<br />
parte integrante de sua história e como tal deve<br />
ser mais conhecido, favorecido e preservado.<br />
Assim, a memória enquanto cultura e medi<strong>da</strong><br />
<strong>da</strong> evolução de uma ci<strong>da</strong>de seria expressa sob<br />
o prisma do detalhe e do pontual, e a melhor<br />
representação desse fato é o seu mobiliário urbano,<br />
tão pouco percebido, mas sempre testemunho<br />
presente <strong>da</strong> história <strong>da</strong>s ci<strong>da</strong>des.<br />
REGINALDO SAH<br />
Arquiteto e designer<br />
Pesquisador, com publicações sobre design e<br />
mobiliário urbano<br />
Consultor de Ciência e Tecnologia<br />
Fotos do autor<br />
Cruzeiro<br />
<strong>da</strong> Igreja<br />
do Alto <strong>da</strong><br />
Boa Vista<br />
Fonte<br />
(Val D’Osne)<br />
<strong>da</strong> Ensea<strong>da</strong><br />
de Botafogo<br />
Fonte (Bebedouro) Stella<br />
do Jardim Botânico<br />
Coreto <strong>da</strong> Vista Chinesa no<br />
Alto <strong>da</strong> Boa Vista<br />
Em frente<br />
<strong>à</strong> sede dos<br />
Correios,<br />
Av. Pres.<br />
Vargas
A SÁBIA<br />
IMPERATRIZ<br />
QUE MORREU<br />
DE AMOR<br />
30<br />
CECILIA COSTA JUNQUEIRA<br />
Na madruga<strong>da</strong> do dia 8 de dezembro de 1826, a<br />
imperatriz Leopoldina escreveu uma carta desespera<strong>da</strong><br />
<strong>à</strong> sua irmã Maria Luiza, na qual afirmava<br />
não pedir “vingança, mas pie<strong>da</strong>de”, sobretudo<br />
para os filhos que estava a deixar órfãos no mundo.<br />
Dizendo-se a mais desgraça<strong>da</strong> <strong>da</strong>s mulheres, a mãe<br />
de Maria <strong>da</strong> Glória, Januária, Paula Mariana, Francisca<br />
Carolina e do futuro Pedro II, em seus instantes<br />
finais de vi<strong>da</strong>, contava <strong>à</strong> ex-imperatriz <strong>da</strong> França que<br />
há quatro anos sofria como uma condena<strong>da</strong>, por ter<br />
sido totalmente abandona<strong>da</strong> pelo marido infiel, que<br />
caracterizou como “um monstro sedutor”. Além disso,<br />
confessava, fora obriga<strong>da</strong> a passar por horríveis<br />
humilhações, justamente na presença <strong>da</strong>quela que<br />
era a causa de to<strong>da</strong>s as suas desventuras.<br />
Não cita o nome, mas, é claro, estava se referindo<br />
<strong>à</strong> Domitila de Castro, a Marquesa dos Santos,<br />
que Pedro I, com total descaramento e despudor, levara<br />
para o palácio na Quinta <strong>da</strong> Boa Vista para ser primeira<br />
<strong>da</strong>ma de honra de sua esposa. Esta última carta a<br />
Maria Luiza, a irmã confidente, mais velha seis anos,<br />
na reali<strong>da</strong>de não fora escrita pelo próprio punho de<br />
Leopoldina. Encontrava-se tão fraca – havia sofrido<br />
mais um aborto – que pedira <strong>à</strong> Marquesa de Aguiar<br />
que escrevesse por ela. Horas depois, morreria.<br />
Somente assim, diante <strong>da</strong> morte iminente, é<br />
que Leopoldina, abandonando to<strong>da</strong>s as suas arraiga<strong>da</strong>s<br />
noções de dever, diplomacia, cortesia e bom-tom,<br />
ousou, finalmente, <strong>da</strong>r a entender <strong>à</strong> sua queri<strong>da</strong> Maria<br />
Luiza o quanto fora infeliz no Brasil. Até aquela<br />
fatídica noite de 1826, ela omitira em suas epístolas<br />
as dores, tristezas e os padecimentos, chegando até<br />
mesmo a mentir, quando considerou necessário. Sua<br />
vi<strong>da</strong> no Eldorado tropical aparentemente era um conto<br />
de fa<strong>da</strong>s, ligeiramente chamuscado pelas pica<strong>da</strong>s de<br />
mosquitos e pelo calorão, do qual sempre reclamava.<br />
Desde que aportara no Rio, em novembro de<br />
1817, a jovem nasci<strong>da</strong> em berço de ouro na Áustria,<br />
escritora compulsiva, enviara centenas de cartas para<br />
seus familiares no exterior, tendo como principais des-<br />
LEITURA, LEITURAS<br />
D. Leopoldina, in Cartas de Uma Imperatriz<br />
tinatários a irmã; o pai, o rei Francisco I, e a tia Maria<br />
Amélia, mulher do rei francês Luís Felipe, buscando,<br />
em to<strong>da</strong>s elas, manter as aparências de um <strong>casa</strong>mento<br />
originado por imprescindíveis alianças dinásticas,<br />
numa Europa aterroriza<strong>da</strong> por revoluções e pelo corso<br />
conquistador. Assegurar <strong>à</strong> família que era ao menos<br />
razoavelmente feliz com seu irrequieto maridinho um<br />
ano mais jovem fora a forma que encontrara para proteger<br />
o futuro dos filhos e evitar mais falatórios do que<br />
já havia na corte brasileira. Articuladíssima, sabendo<br />
li<strong>da</strong>r com o baralho dos jogos políticos desde a infância,<br />
Leopoldina sempre esteve ciente de que to<strong>da</strong>s as<br />
suas missivas, apesar de lacra<strong>da</strong>s com seu selo, eram<br />
abertas por espiões maledicentes (principalmente do<br />
marido e <strong>da</strong> sogra) e censura<strong>da</strong>s, antes de chegarem a<br />
seu destino final.<br />
Nas últimas horas de vi<strong>da</strong>, no entanto, a cor<strong>da</strong><br />
arrebentou. Disse <strong>à</strong> sua experiente irmã Maria Luiza<br />
– segun<strong>da</strong> esposa de Napoleão, mãe do rei de Roma<br />
– mais do que devia dizer. Ou pelo menos deixou entrever<br />
um pouco do que já deveria ter dito há muito<br />
mais tempo, mas silenciara. Um pouco, apenas um<br />
pouco. Uma lágrima, uma pita<strong>da</strong> de amargura, um<br />
gemido. Um quase na<strong>da</strong>. Um ai. Pois não devia ter<br />
pedido <strong>à</strong> sua irmã confidente pie<strong>da</strong>de. Devia, isso<br />
sim, ter pedido o que fez questão de frisar que não<br />
queria: vingança!!!!<br />
É ver<strong>da</strong>de. Leopoldina bem que merecia uma<br />
vingançazinha. Sofreu demais. E sofreu até depois de<br />
morta. Já que durante muito tempo, aqui no Brasil, ficou<br />
cerca<strong>da</strong> por um certo mau-trato ou imerecido esquecimento.<br />
Enquanto a Marquesa de Santos chega a<br />
ter um museu, bem próximo <strong>à</strong> Quinta, Leopoldina, na
ci<strong>da</strong>de onde viveu seus últimos 9<br />
anos de vi<strong>da</strong>, só tem uma estação<br />
de trem, caindo em pe<strong>da</strong>ços, e<br />
um ramal ferroviário abandonado.<br />
Deveria, isso sim, ter um palácio<br />
em sua honra. Com vários retratos,<br />
documentos, livros e as aquarelas<br />
que pintou. E, se possível, se ain<strong>da</strong><br />
existirem em algum lugar de nosso<br />
planeta, Áustria ou Portugal, alguns<br />
dos seus pertences ou réplicas. Seu<br />
quarto, seu boudoir, joias, leques,<br />
vestidos, objetos de toucador.<br />
Dentro deste valioso museu,<br />
deveria haver espaço ain<strong>da</strong> para os<br />
minerais e pedras preciosas que tanto<br />
amava, um viveiro de pássaros e<br />
jardins floridos. Interessa<strong>da</strong> em botânica,<br />
a diligente e estudiosa arquiduquesa<br />
colecionava sementes e flores<br />
raras, em Viena, e veio a colecionar<br />
muito mais aqui no Rio. Um pequeno<br />
zoológico também cairia bem. Foi ela quem auxiliou a<br />
encher de bichos e aves dos trópicos o palácio do pai,<br />
na Áustria, enviando-lhe macacos, papagaios, preguiças,<br />
tatus e tucanos. Mas, sem dúvi<strong>da</strong>, o mais importante<br />
seria a biblioteca, uma imensa biblioteca. Nossa<br />
sofredora imperatriz foi leitora voraz, com interesses<br />
intelectuais os mais variados possíveis.<br />
Enfim, pela arte de Metternich, o Brasil ganhou<br />
de presente, em 1817, a jovem austríaca com<br />
mente de estadista, que devorava livros de política,<br />
ciências, história e geografia, encomen<strong>da</strong>dos por ela<br />
<strong>da</strong> Europa, lia diariamente vários jornais – os oficiais<br />
e os de oposição, e, desta forma, se mantinha antena<strong>da</strong><br />
o máximo que podia sobre o que acontecia em<br />
seu redor e no mundo. Só que a estadista caiu de<br />
amores por seu sensual rufião português, compositor<br />
nas horas vagas, bom caçador, cavaleiro e <strong>da</strong>nçarino,<br />
<strong>da</strong>do a alguns opiáceos e estupefacientes. Enfim, o<br />
moreno bonito, espanholado, cheio de vitali<strong>da</strong>de, inquieto,<br />
apaixonado pela vi<strong>da</strong>, era um bon vivant. O<br />
amor foi tanto que ela perdoou sua falta de educação,<br />
Desembarque de D. Leopoldina no Brasil, Debret, c.1818<br />
LEITURA, LEITURAS<br />
Capa do livro Cartas de<br />
Uma Imperatriz<br />
sua ignorância, seus maus modos, suas<br />
infideli<strong>da</strong>des, seus estranhos humores.<br />
Para complicar o quadro, Leopoldina<br />
não era bonita nem feia. Era<br />
passável, com sua pele muito branca,<br />
seus olhos azuis dos Habsburgos,<br />
seus lábios grossos. Falando assim,<br />
parece um primor, só que o conjunto,<br />
de acordo com testemunhas <strong>da</strong> época,<br />
era meio desconjuntado. O que a<br />
jovem importa<strong>da</strong> de Viena tinha mesmo<br />
de belo, muito belo, era seu cérebro.<br />
E o seu sensível coração. Justamente<br />
o que o jovem Príncipe <strong>da</strong><br />
Beira, de 19 anos – ela tinha vinte<br />
quando aqui aportou – preocupado<br />
em sugar <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> grandes emoções<br />
e prazeres, não podia avaliar muito<br />
bem. Pelo contrário, parece que a<br />
sapiência de Leopoldina – dominava<br />
cinco línguas – chegava a afastar<br />
seu maridinho, intimidá-lo. Recorrendo ao mais<br />
castiço português, jocosamente poderíamos dizer que<br />
simplesmente ela era muita areia para o caminhão<br />
dele, já que o rapazinho mimado pela mamãe Carlota<br />
gostava mesmo era de cair numa gan<strong>da</strong>ia. A moça<br />
inteligente, pelo contrário, era séria, muito séria.<br />
Fora ensina<strong>da</strong> a se pautar pela cartilha dos rígidos<br />
preceitos morais e religiosos e obriga<strong>da</strong>, desde muito<br />
cedo, a segurar a língua. Para uma mulher, pensava<br />
rápido e bem demais. Tinha muitas ideias. Tanto que<br />
a ordem, na Áustria, <strong>da</strong><strong>da</strong> por seu severo pai <strong>à</strong>s suas<br />
preceptoras, fora a de freá-la. Contê-la.<br />
Francisco I errou. Amarrou demais a personali<strong>da</strong>de<br />
de nossa Leopoldina, encheu demais a cabeça<br />
<strong>da</strong> filha dileta com noções de dever, equilíbrio e temperança.<br />
Com isso, ela ficou sem condições, no selvagem<br />
Brasil, de ro<strong>da</strong>r a baiana. E tinha tudo para ro<strong>da</strong>r. Pedro<br />
era dela e o pai Francisco, quando decidiu enviá-la<br />
para a Terra de Santa Cruz, voltara a ser um rei bem<br />
poderoso na Europa em recuperação do ataque do vilão,<br />
ou seja, do ambicioso e desmedido Napoleão.<br />
Como sei tudo isso? Sei por que sempre gostei<br />
de Leopoldina. Li sobre ela. Seus abortos. Seus partos<br />
dilacerantes, que a minaram por dentro. Sua saúde frágil.<br />
Sua cabeça forte. Seu interesse por idiomas. Ciências<br />
naturais, medicina, música, arte, teatro. Seu amor<br />
pelo Brasil, sua natureza, suas árvores, seus pássaros.<br />
Seu arguto e decisivo papel político, na questão <strong>da</strong> Independência.<br />
Suas humilhações. E mais ain<strong>da</strong> fiquei a<br />
saber, agora, ao ler o maravilhoso livro que a Estação<br />
Liber<strong>da</strong>de editou no final do ano passado, Cartas de<br />
Uma Imperatriz, que contém 315 missivas e bilhetes<br />
de Leopoldina, seleciona<strong>da</strong>s dentre um conjunto de 800<br />
textos em alemão, português, francês e inglês, objeto<br />
de criteriosa pesquisa por parte de Bettina Kahn e Patrícia<br />
Souza Lima, no Brasil, em Portugal, na Áustria<br />
e nos EUA. Cheio de revelações, o livro traz ain<strong>da</strong> algumas<br />
<strong>da</strong>s aquarelas de Leopoldina, artigos e ensaios<br />
acadêmicos, árvores genealógicas e esclarecedora cro-<br />
31
nologia, que justapõe fatos históricos<br />
ocorridos no Brasil a eventos<br />
acontecidos na Europa, de 1797 a<br />
1826, justamente a linha do tempo<br />
de nossa imperatriz. Ou seja,<br />
meros 29 aninhos, com 20 anos de<br />
felici<strong>da</strong>des, alegrias e privilégios<br />
passados em seu dourado palácio<br />
em Schönbrunn (o mesmo <strong>da</strong> princesinha<br />
Sissi, que se <strong>casa</strong>ria com<br />
um sobrinho de imperatriz brasileira),<br />
e muitas descobertas, êxtases e<br />
infelici<strong>da</strong>des em sua Quinta <strong>da</strong> Boa<br />
Vista. Sim, o livro é ótimo. Bonito e<br />
muito bem construído. Dá vontade<br />
de escrever um romance após lê-lo,<br />
colocando Leopoldina nas alturas<br />
e fazendo a caveira <strong>da</strong> Marquesa<br />
de Santos. Quem sabe, um dia, alguém<br />
o escreva?<br />
Mas é possível tomar partido<br />
assim? Ah, é sim. É claro que<br />
a Marquesa de Santos devia ser<br />
uma pessoa muito, muito interessante.<br />
Esperta, bonita, sensual.<br />
Morreu milionária e <strong>da</strong>ndo fartas<br />
esmolas aos pobres. Mas não<br />
precisava ter desgraçado tanto a vi<strong>da</strong> de Leopoldina<br />
como desgraçou, aproveitando a brecha intelectual<br />
entre Pedro e sua superdota<strong>da</strong> mulherzinha austríaca,<br />
que ele engravi<strong>da</strong>va sem parar. Leopoldina, com<br />
sua cultura e interesses espirituais elevados, devia<br />
cansar o destemperado Pedro, <strong>da</strong>do a galhofas e orgias.<br />
Além disso, ela era rica, e ele nem tanto. Mulher<br />
culta e endinheira<strong>da</strong> tem tudo para ser um grande<br />
problema. Resultado: Pedro a deixava praticamente<br />
trancafia<strong>da</strong> e ain<strong>da</strong> por cima confiscou o seu dote.<br />
Por outro lado, quando sua queri<strong>da</strong> mulherzinha<br />
ganhava algum dinheiro, oficialmente, para poder<br />
se apresentar bem junto a seus súditos, ele também<br />
enfiava este dinheiro em seu próprio bolso, argumentando<br />
estar sempre praticamente sem tostão. Com<br />
isso, ela se via obriga<strong>da</strong> a mendigar junto ao pai e<br />
a seus representantes diplomáticos no Brasil. Consequentemente,<br />
morreu endivi<strong>da</strong><strong>da</strong>. Triste, insulta<strong>da</strong><br />
e terrivelmente endivi<strong>da</strong><strong>da</strong>. Ser imperatriz no Brasil<br />
não era exatamente sentar-se num trono de ouro,<br />
disse ela numa de suas cartas, mas, sim, portar no<br />
pescoço uma canga de escrava.<br />
Não, Leopoldina não merecia na<strong>da</strong> disso. Veio<br />
para cá cheia <strong>da</strong>s boas intenções, com o coração esperançoso,<br />
disposta a aju<strong>da</strong>r aos brasileiros e a amar<br />
seu nobre companheiro, que, já por retrato, havia<br />
considerado um adônis. Nem os ataques epiléticos<br />
de Pedro, durante a lua-de-mel, a assustaram. Devia<br />
amá-lo, servi-lo, <strong>da</strong>r-lhe filhos, auxiliá-lo nas decisões<br />
políticas, e foi o que fez. Leopoldina mereceria<br />
seu trono de ouro. Mas se perdeu em suas devoções,<br />
abnegações, vontade de agra<strong>da</strong>r, submissões. Par delicatesse,<br />
entregou a Pedro, de bandeja, sua sabedo-<br />
32<br />
LEITURA, LEITURAS<br />
D. Leopoldina e Pedro I visitam a Casa<br />
dos Expostos. Fun<strong>da</strong>ção Romão Duarte,<br />
Rio de Janeiro<br />
ria e seu coração.<br />
Enfim, a mocinha rica e<br />
cheia de idéias, vin<strong>da</strong> <strong>da</strong> Áustria,<br />
no Brasil ficou pobre, encarcera<strong>da</strong>,<br />
e emocionalmente<br />
comeu o pão – aliás, a dor – que<br />
o diabo amassou. Mas sua vi<strong>da</strong><br />
continuou sendo rica, e não só<br />
de atribulações. Talvez, sem sua<br />
firme decisão, o Brasil não tivesse<br />
se separado de Portugal, em<br />
1822. Ela foi tão leal, tão leal<br />
aos seus súditos, que deu força<br />
para a separação, tendo aju<strong>da</strong>do<br />
José Bonifácio e Pedro a agir e<br />
pensar, abrindo conscientemente<br />
mão de seu grande e natural<br />
desejo, o de rever sua pátria. Ou<br />
pelo menos sua romântica Europa,<br />
com estações marca<strong>da</strong>s,<br />
outonos de folhas doura<strong>da</strong>s e invernos<br />
de cristais de neve.<br />
Se tivessem atendido ao<br />
pedido <strong>da</strong>s Cortes e ido para Portugal,<br />
naquela ocasião – ela e seu<br />
namorador príncipe encantado<br />
– nossa história teria sido totalmente<br />
diferente. E a de Leopoldina também. Porque foi<br />
exatamente em 1922, em Santos, que Pedro conheceu<br />
Domitila. Logo depois do Grito <strong>da</strong> Independência traria<br />
sua au<strong>da</strong>ciosa mun<strong>da</strong>na para o Rio, para inferno de<br />
nossa boa imperatriz. Sem o Fico, sem a Independência,<br />
Leopoldina teria ido reinar em Portugal. E, talvez, não<br />
tivesse morrido tão jovem. Mas ela era contra parlamentarismos.<br />
Contra as Cortes de Portugal. Temia revoluções.<br />
Idéias libertárias. E queria, tendo como modelo<br />
o pai, que o seu Pedro fosse um todo-poderoso rei<br />
absolutista, em seu grande Brasil, cheio de mosquitos<br />
e belezas naturais. Com isso, em seu papel de eficaz<br />
regente, ganhou a guerra política. Preservou o trono<br />
que viria a ser de seu filho Pedro, o Segundo. Mas, em<br />
compensação, perdeu a guerra do amor.<br />
Cabe a nós agora lembrá-la, em to<strong>da</strong> a grandeza,<br />
e também fraqueza. A fraqueza de grande mulher<br />
que amou. Amou tanto que morreu de amor.<br />
Maria Leopoldina Josefa Carolina de Habsburgo<br />
(Viena, 1797 – Rio de Janeiro, 1826), Arquiduquesa<br />
<strong>da</strong> Áustria, primeira imperatriz do Brasil (1822-26) e,<br />
por oito dias, rainha de Portugal (1826). Foi sepulta<strong>da</strong><br />
no Convento <strong>da</strong> Aju<strong>da</strong>, na atual Cinelândia. O convento<br />
foi demolido em 1911, e seus restos transla<strong>da</strong>dos para<br />
o Convento de Santo Antônio, também no Rio de Janeiro.<br />
Em 1954, eles foram transferidos definitivamente<br />
para um sarcófago de granito verde ornado de ouro, na<br />
Capela Imperial, juntamente com os de D. Pedro I, sob o<br />
Monumento do Ipiranga, na ci<strong>da</strong>de de São Paulo.<br />
CECILIA COSTA JUNQUEIRA<br />
Jornalista e escritora
A<br />
ci<strong>da</strong>de vivia a experiência<br />
<strong>da</strong>s mu<strong>da</strong>nças desde<br />
1870, adequando-se aos<br />
padrões que anunciavam o novo<br />
tempo, o tempo <strong>da</strong> Belle Époque.<br />
Essas transformações colocavam<br />
abaixo as velhas construções coloniais<br />
e desven<strong>da</strong>vam o que cobria<br />
as sensações e vontades de<br />
um novo tempo.<br />
A ci<strong>da</strong>de do Rio de Janeiro<br />
exercitava, assim, as funções de<br />
centro aglutinador dos mecanis-<br />
LEITURA, LEITURAS<br />
Rua Direita, depois 1.º de Março. Marc Ferrez, Arquivo Geral <strong>da</strong> Ci<strong>da</strong>de do Rio de Janeiro, 1865<br />
ANTONIO EDMILSON MARTINS RODRIGUES<br />
mos de superação <strong>da</strong>s crises e de<br />
depositária <strong>da</strong> confiança no progresso<br />
<strong>da</strong> “civilização brasileira”.<br />
O resultado foi o Rio Civiliza-se.<br />
Mas a passagem <strong>à</strong> regeneração<br />
não se efetivou de forma tranquila<br />
e pacífica. A manutenção<br />
de uma direção política e econômica<br />
conservadora fez com que,<br />
nesse processo, não fossem incluí<strong>da</strong>s<br />
as deman<strong>da</strong>s dos setores<br />
sociais mais recentes <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de:<br />
os trabalhadores urbanos.<br />
O Rio <strong>da</strong><br />
Bela Época,<br />
não tão bela<br />
assim<br />
A déca<strong>da</strong> de<br />
1870 configura o início<br />
sistemático de um<br />
processo de modificação<br />
no espaço urbano<br />
carioca. A expansão<br />
demográfica e o crescimento<br />
industrial, especialmente<br />
do setor<br />
têxtil, indicam alterações<br />
no funcionamento<br />
e na distribuição <strong>da</strong><br />
socie<strong>da</strong>de carioca.<br />
Ao lado disso, o<br />
crescimento do setor<br />
de serviços e o aumento<br />
<strong>da</strong>s condições de<br />
acesso <strong>à</strong> riqueza em<br />
função do surgimento<br />
do mercado de trabalho<br />
livre. Iniciava-se<br />
a construção de uma<br />
capital europeia na<br />
imaginação <strong>da</strong>s elites<br />
cariocas. Os jornais,<br />
agentes dessa construção<br />
imaginária, propagandeavam<br />
as novi<strong>da</strong>des e formavam<br />
opiniões a respeito. Tudo<br />
fervilhava no Rio de Janeiro.<br />
O ano de 1880 teve como<br />
destaque a fun<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> Socie<strong>da</strong>de<br />
Brasileira contra a Escravidão<br />
e, também, o Imposto do Vintém,<br />
que agitou e tumultuou a ci<strong>da</strong>de,<br />
mas que embora ampliasse<br />
as condições de investimento <strong>da</strong><br />
municipali<strong>da</strong>de. Mas essas novas<br />
formas de agir sobre a ci<strong>da</strong>de<br />
só se confirmaram em 1884,<br />
quando medi<strong>da</strong>s concretas fo-<br />
33
am toma<strong>da</strong>s: proibição<br />
dos despejos de dejetos<br />
no mercado <strong>da</strong> Candelária<br />
e de estábulos no Centro.<br />
Com a abolição <strong>da</strong><br />
escravatura e a proclamação<br />
<strong>da</strong> República, o panorama<br />
urbano não precisou se<br />
modificar. A ci<strong>da</strong>de já estava<br />
a<strong>da</strong>pta<strong>da</strong> a esse novo tempo,<br />
pois possuía uma grande<br />
população de ex-escravos<br />
vinculados aos setores produtivos<br />
e de obras. No entanto,<br />
houve, efetivamente,<br />
aumento <strong>da</strong> população negra,<br />
a qual, liberta, transferiu-se<br />
para o lugar <strong>da</strong> riqueza, estabelecendo-se<br />
nos ofícios que conheciam ou que aprenderam<br />
e, também, incorporando-se <strong>à</strong>s áreas<br />
industrial e comercial, especialmente no<br />
cais do porto, como estivadores de navios.<br />
Assim, a libertação dos escravos<br />
e sua disponibili<strong>da</strong>de para o trabalho,<br />
ao lado do movimento republicano agitaram<br />
a vi<strong>da</strong> urbana, num momento em<br />
que ela também possuía disponibili<strong>da</strong>de<br />
para recebê-los. As companhias de bondes,<br />
de eletrici<strong>da</strong>de, de abastecimento de<br />
água e <strong>da</strong> construção civil foram<br />
algumas <strong>da</strong>s outras empresas que<br />
utilizaram essa mão de obra, incorporando-a<br />
ao mercado do trabalho<br />
livre.<br />
O século XX foi para a ci<strong>da</strong>de-capital<br />
o momento de sua<br />
definição institucional e cultural.<br />
A vocação de “grande capital europeia”<br />
se delineava, tratava-se<br />
agora de organizar sua estrutura<br />
urbana para garantir essa vocação,<br />
uma vez que ela já era europeia<br />
no imaginário <strong>da</strong>s elites<br />
empreendedoras.<br />
O caminho <strong>da</strong> renovação<br />
era agora idealizado, enquanto<br />
plano racional. Com Felipe Pereira,<br />
em 1900, a prefeitura desenvolveu<br />
a “planta ca<strong>da</strong>stral”,<br />
que possibilitava ao governo o<br />
conhecimento de ca<strong>da</strong> milímetro<br />
<strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de e que se definia como<br />
instrumento de controle <strong>da</strong> circulação<br />
dos habitantes, permitindo<br />
perceber sua movimentação, e<br />
novas localizações.<br />
O ano de 1903 foi decisivo:<br />
Pereira Passos assumiu a prefeitura.<br />
Imagem viva do novo tempo,<br />
mesmo já tendo setenta anos, ele<br />
34<br />
LEITURA, LEITURAS<br />
Repartição <strong>da</strong> Carta Ca<strong>da</strong>stral <strong>da</strong> Prefeitura Municipal (detalhe).<br />
Anônimo<br />
Ci<strong>da</strong>de do Rio de Janeiro. — Não<br />
olhe para minha <strong>casa</strong> feia e suja,<br />
e desculpe-me estar n’este triste<br />
estado...<br />
Esquadra Argentina. — Como<br />
mirar su <strong>casa</strong> se mis ojos estan<br />
maravillados con tan esplendi<strong>da</strong><br />
naturaleza?!<br />
Jornal D. Quixote. Angelo Agostini,<br />
1897. Acervo ABL<br />
era um empreendedor, homem<br />
de comando e decisão. Além<br />
disso, proprietário <strong>da</strong> Estra<strong>da</strong><br />
de Ferro do Corcovado, membro<br />
ativo do Clube de Engenharia,<br />
estudou na França, e ajustavase<br />
perfeitamente ao que a ci<strong>da</strong>de<br />
precisava. Enfim, para os setores<br />
dominantes era o exemplo límpido<br />
<strong>da</strong> regeneração.<br />
Pereira Passos ganhou de<br />
Rodrigues Alves plena autonomia<br />
para realizar as mu<strong>da</strong>nças.<br />
E as realizou a fundo, chocandose,<br />
por vezes, com muitos dos interesses<br />
<strong>da</strong>s elites dominantes.<br />
Os jornais se utilizaram <strong>da</strong>s<br />
polêmicas para veicular posições<br />
contrárias ao plano de reformas.<br />
Mas as reformas continuavam. O<br />
barulho e o movimento provocaram<br />
as pessoas, embora fossem o<br />
sinal do novo, do progresso. A ci<strong>da</strong>de<br />
civilizava-se. Era corta<strong>da</strong> em<br />
todos os sentidos. Todos os lugares<br />
foram afetados. Muitos não acreditavam<br />
que fosse possível acabar a<br />
obra. O medo do fracasso aumentou<br />
a polêmica. Necessitava-se<br />
acabar com as desconfianças.
A construção <strong>da</strong> Aveni<strong>da</strong><br />
Central, grande marco <strong>da</strong> reforma,<br />
criava as condições de comunicação<br />
entre o centro comercial e o<br />
porto, também reformado. Além<br />
disso, integrava-se <strong>à</strong> nova Aveni<strong>da</strong><br />
Beira Mar, facilitando o transcurso<br />
de ricos e estrangeiros que<br />
moravam e se hospe<strong>da</strong>vam na região<br />
de Glória, Catete e Botafogo.<br />
A mobilização provoca<strong>da</strong><br />
pelas mu<strong>da</strong>nças continuava. Ca<strong>da</strong><br />
um buscava garantir novos negócios.<br />
Os restaurantes se enchiam<br />
na hora do almoço e, <strong>à</strong> tardinha, as<br />
confeitarias ofereciam o refrigério<br />
ao calor tropical. Das mesas, a família<br />
burguesa carioca observava a<br />
grande obra: de um lado, pessoas<br />
elegantemente traja<strong>da</strong>s, finamente<br />
vesti<strong>da</strong>s, simpaticamente uniformiza<strong>da</strong>s e, de outro,<br />
com outros olhos, pessoas sobriamente vesti<strong>da</strong>s e<br />
dignas de uma ci<strong>da</strong>de moderna – os trabalhadores.<br />
A finura e a atenção educa<strong>da</strong> – o saber ouvir<br />
–, a singeleza dos modos e gestos e a tranquili<strong>da</strong>de<br />
do an<strong>da</strong>r – que, para João do Rio, decorria do calor<br />
e não <strong>da</strong> elegância – contrastavam com aquela<br />
“antiga” ci<strong>da</strong>de.<br />
No entanto, a “nação subterrânea” mantevese.<br />
Ao lado do requinte do homem moderno, produziram-se<br />
tipos urbanos ligados aos “acampamentos<br />
<strong>da</strong> miséria”. Eram as profissões ignora<strong>da</strong>s, descritas<br />
por João do Rio, em A Alma Encantadora <strong>da</strong>s Ruas:<br />
os “fumadores de ópio”, “os presepes”, “os vendedores<br />
de santinhos” e de “livros populares”, “os marcadores”,<br />
“os trapeiros”, “os ratoeiros”, “os selistas”<br />
e uma infini<strong>da</strong>de de profissões desenvolvi<strong>da</strong>s pela<br />
“academia <strong>da</strong> miséria”.<br />
Esse mundo desconhecido e encoberto foi o<br />
contraste <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de, que efetivamente ganhou<br />
espaço com as alterações provoca<strong>da</strong>s pelas reformas<br />
urbanas. Entretanto, tudo isso representava civilização<br />
para aqueles que defendiam o progresso pela via<br />
dos impulsos capitalistas.<br />
Se de um lado criou-se uma imagem <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de<br />
do progresso, <strong>da</strong> capital-nação, que protegia e<br />
garantia a riqueza e que continha to<strong>da</strong>s as imagens<br />
<strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de parisiense, de outro tinha-se uma<br />
ci<strong>da</strong>de <strong>da</strong> miséria que também protegia, mas não<br />
garantia a sobrevivência e que, no final, mostrava<br />
que a rua acabava na prisão.<br />
O Rio de Janeiro era uma grande metrópole,<br />
avança<strong>da</strong> na sua arquitetura e renova<strong>da</strong> socialmente.<br />
A ci<strong>da</strong>de maravilhosa fora concluí<strong>da</strong>, porém<br />
seu futuro não estava assegurado. A direção<br />
conservadora não sabia <strong>da</strong>r conta dos novos tempos,<br />
não se acostumava com as greves e os movimentos<br />
sociais urbanos.<br />
O cosmopolitismo, sem tradição, excluía<br />
<strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de não os homens, mas as formas<br />
LEITURA, LEITURAS<br />
Obras de ampliação <strong>da</strong> rede de tráfego eletrificado, no Centro do Rio de<br />
Janeiro. Augusto Malta, 1906<br />
de transformá-los, e simultaneamente acentuava<br />
a dependência externa, inviabilizando a formação<br />
de um mercado interno.<br />
Mesmo diante dessas contradições e <strong>da</strong>s imagens<br />
confusas <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, cheias de névoas, o frisson<br />
era total, não se comentava outra coisa. A Light anunciava,<br />
com a clari<strong>da</strong>de <strong>da</strong> luz elétrica, um tempo de<br />
mu<strong>da</strong>nças nas quais as construções eram realça<strong>da</strong>s<br />
assim como eliminados os medos <strong>da</strong> escuridão, abrindo<br />
a ci<strong>da</strong>de <strong>à</strong> noite e com isso ao espetáculo <strong>da</strong>s diversões,<br />
<strong>à</strong> vi<strong>da</strong> boêmia mais intensa.<br />
Os bondes elétricos e os automóveis anunciavam<br />
o novo tempo e com eles as novas <strong>mo<strong>da</strong></strong>s teatrais,<br />
líricas e populares, <strong>da</strong>ndo margem <strong>à</strong> criação de<br />
um gênero particular idealizado por Arthur Azevedo,<br />
as revistas do ano, nas quais eram apresentados os<br />
fatos mais marcantes do ano que decorrera.<br />
A Aveni<strong>da</strong> Central <strong>da</strong>va o tom como ícone <strong>da</strong>s<br />
reformas empreendi<strong>da</strong>s por Pereira Passos e nela estava<br />
representado o progresso <strong>da</strong> nova ci<strong>da</strong>de. Nas<br />
construções art-nouveau, nas <strong>mo<strong>da</strong></strong>s usa<strong>da</strong>s pelas<br />
mulheres elegantes, nas confeitarias onde predominava<br />
o gosto sofisticado pelo sorvete de pistache, nas<br />
livrarias e nos cabarés.<br />
Referências<br />
RODRIGUES, Antonio Edmilson M. João do<br />
Rio, a ci<strong>da</strong>de e o poeta. Rio de Janeiro: Ed. <strong>da</strong><br />
FGV, 2000.<br />
ABREU, Mauricio de Almei<strong>da</strong>. Evolução urbana<br />
do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: IPLANRIO: J.<br />
Zahar, 1987.<br />
NEEDELL, Jeffrey D. Belle époque tropical:<br />
socie<strong>da</strong>de e cultura de elite no Rio de Janeiro<br />
na vira<strong>da</strong> do século. São Paulo: Companhia <strong>da</strong>s<br />
Letras, 1993.<br />
ANTONIO EDMILSON MARTINS RODRIGUES<br />
Livre Docente em História do Brasil pela UERJ<br />
<strong>Professor</strong> Assistente <strong>da</strong> PUC-Rio e Adjunto <strong>da</strong> UERJ<br />
35
36<br />
ANTROPOFAGIA,<br />
APROPRIAÇÃO E CARNAVAL<br />
Somos todos antropófagos. Como cristãos,<br />
exercitamos a nossa antropofagia, quando,<br />
contritamente, participamos do ritual <strong>da</strong><br />
ceia e <strong>da</strong> comunhão. Não mais sacrificamos animais<br />
em louvor de Deus, como está no Velho Testamento.<br />
Crucificado o Salvador, não poderia haver<br />
sacrifício mais persuasivo para a obtenção <strong>da</strong> graça<br />
divina. Seguimos a lição que está na narrativa<br />
“A ceia do Senhor”, de Marcos:<br />
LEITURA, LEITURAS<br />
Memorabili Brasiliae Historiam. Théodore De Bry. In America Tertia Pars, Frankfurt, 1594<br />
NELSON RODRIGUES FILHO<br />
... compreende [a cultura matriarcal] como devoração e a simboliza no rito<br />
antropofágico, que é comunhão. De outro lado a devoração traz em si a imanência<br />
do perigo. E produz a soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de social que se define em alteri<strong>da</strong>de.<br />
Oswald de Andrade<br />
E enquanto comiam, tomou Jesus um pão e,<br />
abençoando-o, o partiu e lhes deu, dizendo:<br />
“Tomai, isto é o meu corpo”.<br />
A seguir, tomou Jesus um cálice e, tendo <strong>da</strong>do<br />
graças, o deu aos seus discípulos; e todos beberam<br />
dele.<br />
Então lhes disse: “Isto é o meu sangue <strong>da</strong> [nova]<br />
aliança”, derramado em favor de muitos.<br />
Manifestação simbólica? Sim. Simbólica<br />
também, a antropofagia indígena. Troca-se o corpo
pelo pão e o vinho, e eis que se tem, na diferença<br />
<strong>da</strong> matéria, a identi<strong>da</strong>de do rito. O mito é o império<br />
<strong>da</strong> conotação. E se interiorizando o pão e o vinho,<br />
no sentido do mito, exercito a metáfora do corpo de<br />
Cristo, abrigando a conotação <strong>da</strong> graça, meu irmão<br />
índio, no ato antropofágico, ambiciona assimilar<br />
as quali<strong>da</strong>des <strong>da</strong> sua comi<strong>da</strong> heroica. Não se deglute<br />
o covarde, não se sacrifica o covarde. O indígena<br />
só consome o herói, despreza o fraco.<br />
Tu choraste em presença <strong>da</strong> morte?<br />
Na presença de estranhos choraste?<br />
Não descende o cobarde do forte;<br />
Pois choraste, meu filho não és!<br />
Quando Oswald decreta a antropofagia, ele<br />
proclama, mais do que um comportamento nacional,<br />
um comportamento cultural e estético do homem.<br />
Veja-se, por exemplo, o Quixote de Cervantes.<br />
No rastro <strong>da</strong> ação e <strong>da</strong> palavra oswaldiana,<br />
caminhavam séculos de história. Desfilava um sem<br />
número de confrades. E evidenciava, no campo do<br />
discurso, um aspecto que, no mais <strong>da</strong>s vezes, é negligenciado.<br />
Um texto é a absorção e transformação<br />
de outros textos, já se disse.<br />
A antropofagia cultural e poética é apropriação.<br />
É isso. Apropriar-se do discurso do outro. Não<br />
torná-lo proprie<strong>da</strong>de, mas tornar próprio o que é<br />
estranho. Machado, sem grandes ginásticas teóricas,<br />
tinha o risco do bor<strong>da</strong>do. E o seguia quando<br />
elaborava a sua ficção ou quando exercia a função<br />
de crítico:<br />
...pode [o autor] ir buscar a especiaria alheia,<br />
mas há de ser tempera<strong>da</strong> com o molho de sua<br />
fábrica... /...tiro de ca<strong>da</strong> coisa uma parte e<br />
faço dela o meu ideal de arte, que abraço e<br />
defendo.../...Que a evolução natural <strong>da</strong>s coisas<br />
modifique as feições, a parte externa, ninguém<br />
jamais negará; mas há alguma coisa que liga,<br />
através dos séculos, Homero e Lord Byron, alguma<br />
coisa inalterável, que fala a todos os homens<br />
e a todos os tempos.<br />
Antropofágico antes de Oswald. Bakhtiniano<br />
antes de Bakhtin. Não é Bakhtin que diz que o único<br />
discurso absolutamente original seria o adâmico?<br />
Carregamos o já-visto, o já-feito, o já-ouvido, o já-lido.<br />
Somos vítimas desse já constitutivo do mundo. Na<br />
ver<strong>da</strong>de o discurso é sempre um mosaico de citações.<br />
Antes, entretanto, <strong>da</strong> pena do riso e <strong>da</strong> tinta<br />
<strong>da</strong> melancolia de Machado, Gonçalves Dias, com a<br />
pena indianista e a tinta do medievo, reescrevia a<br />
cantiga de amor (“Canção do Exílio”) e a cantiga<br />
de amigo (“Leito de folhas verdes”). E Alencar, em<br />
Iracema, usando a mesma pena do maranhense,<br />
mas a tinta cristã, faz a antropofagia de bon sauvage,<br />
colocando a Bíblia no subtexto. O retrato de<br />
LEITURA, LEITURAS<br />
In As escolas de Lan. Ilustração cedi<strong>da</strong> pelo autor<br />
Iracema, que acolhe o herói lusía<strong>da</strong>, é similar ao<br />
retrato de Raquel, a ama<strong>da</strong> de Salomão, no Cântico<br />
dos Cânticos (nigra sum sed formosa), ambas com<br />
talhe de palmeira e os lábios de mel. “Tu és Moacir,<br />
o nascido do meu sofrimento” é a tradução, em<br />
tupi, <strong>da</strong> frase de Raquel, quando próxima <strong>da</strong> morte,<br />
para <strong>da</strong>r vi<strong>da</strong> a Benjamin: “Tu te chamarás Benôni,<br />
filho <strong>da</strong> minha dor”. M. Cavalcanti Proença,<br />
autor <strong>da</strong> empreita<strong>da</strong> de levantar os símiles bíblicos<br />
na novela do cearense, ressalta, ain<strong>da</strong>, que Benôni<br />
e Moacir são similares no fato de que, um, filho de<br />
Jacob, de descendência de reis, a ele Deus prometera<br />
as terra que haviam sido de Abraão e de Esaú;<br />
ao outro, Moacir, de descendência também ilustre,<br />
caberia a herança <strong>da</strong> terra americana.<br />
O que faz a antropofagia oswaldiana é levantar o<br />
véu de Maya, ao promover o encontro <strong>da</strong> antropofagia<br />
com o carnaval, do aimoré com o rei Momo.<br />
O carnaval – ensina-nos Bakhtin – é um espetáculo<br />
sem ribalta, sem divisão entre atores e<br />
espectadores. Nele todos são participantes ativos,<br />
vivendo o efêmero, revoga<strong>da</strong>s as leis, proibições<br />
e restrições <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> comum. Suspende-se, basicamente,<br />
o sistema hierárquico e to<strong>da</strong>s as “formas<br />
conexas de medo, reverência, etiqueta etc”. Festa<br />
profana, sua marca principal é a excentrici<strong>da</strong>de.<br />
Não tem lugar para o absoluto, nem para a hierarquização<br />
que encontramos no dia a dia. O carnaval<br />
37
In As escolas de Lan. Ilustração cedi<strong>da</strong> pelo autor<br />
“desconhece tanto a afirmação absoluta quanto a<br />
negação absoluta. É a alegria do relativo”. É a vitória<br />
do desejo e do paradoxo deleuziano, “a afirmação<br />
de dois sentidos ao mesmo tempo”, que “em<br />
primeiro lugar, destrói o bom senso como sentido<br />
único e o senso comum como designação de identi<strong>da</strong>des<br />
fixas”.<br />
No carnaval, festa profana <strong>da</strong> praça pública,<br />
podemos ser o que desejarmos ser, homem, mulher,<br />
índio, rei, rainha, herói ou qualquer outra coisa que a<br />
nossa imaginação e a nossa vontade determinarem.<br />
O carnaval, na literatura e na arte, é carnavalização.<br />
E um dos instrumentos de força do processo<br />
é a paródia. Do grego para-ode, canto paralelo, é<br />
sempre um texto com dupla referência, ao objeto e a<br />
um outro texto. Pode-se parodiar uma forma, um estilo,<br />
uma ideologia, uma crença etc. O certo é que se<br />
terá sempre o sentido inverso do texto matriz. O que<br />
era objeto de serie<strong>da</strong>de e soleni<strong>da</strong>de torna-se objeto<br />
de humor e riso, acentuando o sentido que se ocultou<br />
no sentido original. Em outras palavras, mostra<br />
que o que dá para chorar também dá para rir.<br />
A proposta modernista de Oswald abriga,<br />
com extremo zelo, a paródia em sua radical carnavalização<br />
textual.<br />
Como na reelaboração do “Pai-nosso”, que<br />
mantém a estrutura rítmica original, mas realiza a<br />
38<br />
LEITURA, LEITURAS<br />
possibili<strong>da</strong>de do par destruição/construção e, pela<br />
remontagem carnavalizadora, suspende a recepção<br />
solene e contrita:<br />
escapulário<br />
No Pão de Açúcar<br />
De Ca<strong>da</strong> Dia<br />
Dai-nos Senhor<br />
A Poesia<br />
De Ca<strong>da</strong> Dia<br />
Ou a reescritura, com recurso do jogo de palavras<br />
e <strong>da</strong> ambigui<strong>da</strong>de, <strong>da</strong> carta de Caminha e <strong>da</strong><br />
história brasileira:<br />
a descoberta<br />
Seguimos nosso caminho por este mar de longo<br />
Até a oitava <strong>da</strong> Páscoa<br />
Topamos aves<br />
E houvemos vista de terra<br />
................................................................<br />
as meninas <strong>da</strong> gare<br />
Eram três ou quatro moças bem moças e bem gentis<br />
Com cabelos mui pretos pelas espáduas<br />
E suas vergonhas tão altas e tão saradinhas<br />
Que de nós as muito bem olharmos<br />
Não tínhamos nenhuma vergonha<br />
Ou mesmo a inversão do sentido do texto romântico,<br />
quase sempre o tornando prosaico, (“Canto<br />
de regresso <strong>à</strong> pátria”, por exemplo), dentre os<br />
muitos momentos do carnaval oswaldiano.<br />
Se há na obra de Oswald essa marca radical<br />
do antropofagismo carnavalizante, outros se<br />
poderiam citar, nesta prática que marcou o nosso<br />
modernismo. Juó Bananére (La divina increnca),<br />
por exemplo, que, com um italiano macarrônico,<br />
dedicou-se a parodiar a poesia clássica, romântica<br />
e parnasiana e, por um tempo significativo, figurou<br />
em publicação dirigi<strong>da</strong> pelo líder do movimento<br />
antropófago.<br />
Antes de todos eles, um romântico genial e<br />
incompreendido ficou acantonado, e continua até<br />
hoje, na literatura brasileira, lendo o indianismo<br />
e a história pelo avesso, com o recurso <strong>da</strong> intertextuali<strong>da</strong>de<br />
e <strong>da</strong> paródia. Talvez por causa disso,<br />
por sua escritura carnavalizante (O Guesa), Sousândrade<br />
paga o preço do ostracismo <strong>à</strong> preguiçosa<br />
incompreensão <strong>da</strong> cultura letra<strong>da</strong> brasileira.<br />
Barthes, Bakhtin, Deleuze, Kristeva, Ricoeur,<br />
M. Cavalcanti Proença, meus bispos Sardinha, neste<br />
exercício antropofágico. Uma forma de deglutição<br />
e homenagem. A antropofagia nos une.<br />
NELSON RODRIGUES FILHO<br />
Mestre em Teoria Literária e Doutor em Letras<br />
nelrofi@uol.com.br<br />
www.nelrofi.blog.uol.com.br
Diz-se habitualmente que o morador <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de<br />
de Salvador an<strong>da</strong> desnorteado no interior, no<br />
sertão. Ele está tão acostumado com a vista e a<br />
presença do mar que não imagina uma natureza sem<br />
água salga<strong>da</strong>, on<strong>da</strong>s, navios cargueiros e a cultura <strong>da</strong><br />
pesca e do mergulho. O universo de Iemanjá é parte<br />
importante do imaginário do povo do litoral baiano e<br />
<strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de Salvador, porto de saí<strong>da</strong> e de chega<strong>da</strong>,<br />
ponto há séculos de viajantes livres ou forçados.<br />
Então pensei que seria oportuno publicar de vez<br />
em quando uma coluna dedica<strong>da</strong> ao tema “O livro e o<br />
mar”, ou seja, obras de literatura ou poesia que têm o<br />
mar como fonte de inspiração e assunto central.<br />
Escolhi como primeiro texto <strong>da</strong> coluna “marítima”<br />
um poema do, provavelmente, maior poeta italiano<br />
do século XX e Prêmio Nobel de Literatura em<br />
1975, Eugenio Montale. Montale nasceu na região <strong>da</strong><br />
Ligúria, no norte <strong>da</strong> Itália, cheia de paisagens deslumbrantes,<br />
com vista para o mar Tirreno. A Ligúria é<br />
também a região de Gênova, pátria de Cristóvão Colombo<br />
e de outros navegantes e descobridores de mundos<br />
novos. Montale brincava dizendo que sua natureza era<br />
de homem que prefere ficar olhando para o mar mais<br />
do que os que se aventuram pelas on<strong>da</strong>s. Mas vamos<br />
ao poema, de 1940, no original e na lin<strong>da</strong> tradução em<br />
português de Mauricio Santana Dias.<br />
LEITURA, LEITURAS<br />
O LIVRO E O MAR<br />
Portofino, na Ligúria, Itália<br />
PAOLO SPEDICATO<br />
Salvador, Bahia<br />
LUNGOMARE<br />
Il soffio cresce, il buio è rotto a squarci,<br />
E l’ombra che tu mandi sulla fragile<br />
Palizzata s’arriccia. Troppo tardi<br />
Se vuoi esser te stessa! Dalla palma<br />
Tonfa il sorcio, il baleno è sulla miccia,<br />
Sui lunghissimi cigli del tuo sguardo.<br />
BEIRA-MAR<br />
O sopro cresce, o breu se rompe em partes,<br />
e a sombra que seu corpo imprime <strong>à</strong> frágil<br />
paliça<strong>da</strong> se enscrespa. E’ muito tarde<br />
querer ser você mesma! Da palmeira<br />
tomba o rato, o relampago é rastilho<br />
nos longuíssimos cílios de sua vista.<br />
Típica do estilo do poeta é a escolha <strong>da</strong><br />
forma do “poema breve”, bom a evidenciar o pensamento<br />
concentrado e antirretórico, e, em geral,<br />
imagens <strong>da</strong> natureza que são quase iluminações,<br />
“relâmpagos” de ver<strong>da</strong>des dramáticas, vagamente<br />
existencialistas.<br />
Outra caraterística do grande poeta italiano é<br />
o constante diálogo com evanescentes personagens<br />
femininas: Evelina, Dora Markus, Clizia…, companheiras<br />
de vi<strong>da</strong> mas também enigmáticas presenças<br />
que aju<strong>da</strong>m a enfrentar as amarguras <strong>da</strong> existência<br />
humana, vista com sentimento pessimista,<br />
ain<strong>da</strong> mais dramático <strong>da</strong><strong>da</strong>s as circunstâncias<br />
<strong>da</strong> Segun<strong>da</strong> Guerra Mundial e <strong>da</strong> época<br />
<strong>da</strong>s ditaduras na Europa, quando o poema foi<br />
escrito.<br />
Impressiona o elemento <strong>da</strong> palmeira na<br />
costa marítima <strong>da</strong> Ligúria, que aproxima visualmente<br />
o poema <strong>à</strong> paisagem brasileira e ao<br />
nosso viver, filosófico e/ou poético, <strong>à</strong> beira do<br />
oceano Atlântico. E, muito particularmente,<br />
ao litoral <strong>da</strong> Bahia, onde vivo.<br />
PAOLO SPEDICATO<br />
Graduado em Letras Italianas – Universi<strong>da</strong>de de Pádua<br />
Doutor em Literatura Italiana – New York University<br />
Foi <strong>Professor</strong> na UFES e Visitante na UFRJ e USP<br />
39
Naturalmente, instintivamente, o homem tende<br />
a evocar Deus quando a beleza inespera<strong>da</strong> ou<br />
intensa o arranca do embotamento quotidiano!<br />
“Meu Deus! Quanta beleza...” exclama o poeta<br />
(Castro Alves, Sub Tegmine Fagi) e com ele – consciente<br />
ou inconscientemente – todos os artistas.<br />
Daí que não chegue a surpreender que o significado<br />
etimológico <strong>da</strong> espanholíssima palavra ¡Olé!,<br />
seja um recurso a Deus. ¡Olé! – diz o Diccionario<br />
de la Real Academia – provém do árabe Wa-(a)llah<br />
(“Por Deus!” – a língua árabe não dispõe <strong>da</strong> vogal<br />
“e” e, por vezes, o “a” tem som semelhante a “e”). E<br />
é uma exclamação de entusiasmo ante uma beleza<br />
(ou alegria) surpreendente ou “excessiva” (no verbete<br />
¡Olé!, o Diccionario de María Moliner exemplifica<br />
com o caso <strong>da</strong>s toura<strong>da</strong>s ou<br />
o do flamenco).<br />
Facilmente intuímos que<br />
a beleza de um ousado lance<br />
de toura<strong>da</strong>, de um golaço sem<br />
ângulo ou de um “taconeo flamenco”<br />
é – de algum modo misterioso,<br />
mas real – participação<br />
na criação, também ela artística,<br />
de Deus: ¡Olééé!<br />
O árabe, como se sabe, é<br />
campeão mundial de invocação<br />
a Deus: Bismillah! (Em nome<br />
40<br />
LEITURA, LEITURAS<br />
¡¡Oléééé!! – Deus, a Beleza e a Arte<br />
JEAN LAUAND<br />
de Deus!), Al-hamdu lillah! (O louvor é para Deus!<br />
– como nossos jogadores, que, após o gol, apontam<br />
o indicador para o Céu), Wa-llah! (Por Deus!), Allahu<br />
Akbar! (Deus é grande! ou Deus é maior!), Allah!<br />
(Deus!) etc. etc. Ante um perigo, ou após escapar<br />
dele, ante uma notícia boa ou má, em qualquer situação<br />
invoca-se a Deus.<br />
Por vezes, a mesma fórmula (como por exemplo<br />
Bismillah) serve para situações contrárias (notícia<br />
boa ou ruim, por exemplo, tal como posso dizer<br />
em português: “Meu Deus!” tanto se meu bilhete foi<br />
sorteado na loteria como se meu carro foi destruído<br />
por um maluco na contramão). E ante a beleza (sobretudo<br />
se é inespera<strong>da</strong> ou muito intensa) é a Deus<br />
que se celebra: Allah!, Ya Allah! Smallah! (Deus! Ó<br />
Deus! Em nome de Deus!) são exclamações<br />
quase obrigatórias, por<br />
exemplo, quando o camelo se levanta,<br />
oferecendo um espetáculo<br />
grandioso ao erguer sua enorme<br />
massa de um só golpe. É tão imponente<br />
que, instintivamente, vem<br />
<strong>à</strong> boca uma interjeição de admiração<br />
e espanto, misto de prece e de<br />
louvor... O efeito é tanto mais surpreendente<br />
quando, ain<strong>da</strong> há um<br />
minuto, ele estava aparentemente<br />
indolente, largado no solo.
A forma que se arraigou<br />
em Espanha foi: Wa-llah! O wa é<br />
a partícula do juramento (cfr. p.<br />
ex. Alcorão 6, 23) e de invocação<br />
<strong>da</strong> autori<strong>da</strong>de de Deus para atestar<br />
um fato aparentemente incrível:<br />
o de uma espantosa beleza!<br />
Na tradição ocidental, já Pín<strong>da</strong>ro,<br />
em seu grandioso “Hino a Zeus”,<br />
revelara que o belo artístico, as<br />
musas, são o remédio que Zeus<br />
concedeu para o embotamento do<br />
homem, esquecido <strong>da</strong> origem divina<br />
do mundo e imerso em sua<br />
visão rotineira.<br />
Como nos inspirados versos<br />
de Adélia Prado:<br />
De vez em quando Deus me tira a poesia.<br />
Olho pedra, vejo pedra mesmo.<br />
Mas o processo artístico é de i<strong>da</strong> e volta: se<br />
Deus dá poesia ao artista para ver (e expressar em<br />
obra de arte) o “algo mais” até na pedra, quem<br />
contempla a beleza <strong>da</strong> obra de arte, que se expressa<br />
talvez a partir de uma pedra, reconhece Deus, o<br />
Criador, o Artista: ¡Oléééé!<br />
Nesse sentido, há uma antiga poesia de<br />
Gilberto Gaspar, que resume – “De uma gota, de<br />
repente, vejam só quanta poesia!” – maravilhosamente<br />
essas teses:<br />
A Gotinha<br />
Já há muito tempo que venho reparando,<br />
Com interesse observando, como é bela a natureza!<br />
Cai o sereno e vai formando, de repente,<br />
Uma gotinha a mostrar tanta beleza.<br />
Equilibrando-se, ela desceu pelo arame<br />
E, na folha do inhame, foi cair com o calor.<br />
Desceu <strong>da</strong>nçando, que bonito o seu bailado<br />
Pelo Sol iluminado, seu vestido é furta-cor.<br />
O vento, soprando a folha verde que balança,<br />
Dá mais ritmo <strong>à</strong> <strong>da</strong>nça <strong>da</strong> gotinha cristalina,<br />
Que rodopia no tapete esverdeado<br />
Qual palco iluminado, como louca bailarina.<br />
E chega a tardinha. Cessa o vento, pára a folha.<br />
A gotinha sem escolha, vai <strong>da</strong>nçar só outro dia.<br />
E eu, feliz, vou para <strong>casa</strong> bem contente.<br />
De uma gota, de repente, vejam só quanta poesia!<br />
(In: http://www.hottopos.com/mirand4/osimples.htm)<br />
Não é de estranhar, portanto, que o grito<br />
“¡olé!”, aplicado ao espetáculo do futebol, tenha<br />
nascido a partir de um “belo inesperado”: em 1958<br />
(a recém-nasci<strong>da</strong> televisão estava apenas começando<br />
a integrar-se ao futebol naquela época),<br />
no México (não por acaso: no México), num jogo<br />
Botafogo x River Plate, base <strong>da</strong> seleção argentina.<br />
A ca<strong>da</strong> incrível drible do incrível Garrincha (o <strong>da</strong>s<br />
pernas tortas, que não era para ser futebolista) no<br />
lateral Vairo, os torcedores mexicanos gritavam<br />
¡olé!, como se estivessem numa toura<strong>da</strong>.<br />
LEITURA, LEITURAS<br />
Se o falante ocidental hoje (não só o torcedor<br />
nos estádios do Brasil, mas também o taurófilo<br />
madrilenho em Las Ventas) não se lembra de que<br />
Olé! é invocação de Deus, no Quijote isto é mais<br />
explícito – o cristão começa a louvar a insuperável<br />
beleza de sua <strong>da</strong>ma e ouve do moro:<br />
Gualá, cristiano, que debe de ser muy<br />
hermosa si se parece a mi hija, que es la más<br />
hermosa de todo este reino. Si no, mírala<br />
bien, y verás cómo te digo ver<strong>da</strong>d.<br />
(capítulo XLI)<br />
As relações entre Deus, a beleza e a arte<br />
foram retoma<strong>da</strong>s por João Paulo II em sua Carta<br />
aos Artistas (1999), rica também em reflexões filosóficas.<br />
Já na primeira linha, uma dedicatória,<br />
chama a obra de arte de “epifania”, manifestação,<br />
<strong>da</strong> beleza, de Deus. E começa falando <strong>da</strong> criação<br />
artística – e não se trata de arte sacra – como participação<br />
do divino:<br />
(Vós, artistas) maravilhados com o<br />
arcano poder dos sons e <strong>da</strong>s palavras, <strong>da</strong>s<br />
cores e <strong>da</strong>s formas, vos pusestes a admirar a<br />
obra nasci<strong>da</strong> do vosso gênio artístico, quase<br />
sentindo o eco <strong>da</strong>quele mistério <strong>da</strong> criação<br />
a que Deus, único criador de to<strong>da</strong>s as<br />
coisas, de algum modo vos quis associar.<br />
E depois de lembrar um sugestivo fato <strong>da</strong><br />
língua polonesa:<br />
A página inicial <strong>da</strong> Bíblia apresenta-nos<br />
Deus quase como o modelo exemplar<br />
de to<strong>da</strong> a pessoa que produz uma<br />
obra: no artífice, reflete-se a sua imagem<br />
de Criador. Esta relação é claramente evidencia<strong>da</strong><br />
na língua polaca, com a semelhança<br />
lexical <strong>da</strong>s palavras stwórca (criador)<br />
e twórca (artífice)...,<br />
conclui:<br />
Deus chamou o homem <strong>à</strong> existência,<br />
<strong>da</strong>ndo-lhe a tarefa de ser artífice. Na<br />
“criação artística”, mais do que em qual-<br />
41
O triunfo de São Tomás de Aquino sobre os hereges. Filippino Lippi (1457-1504)<br />
quer outra ativi<strong>da</strong>de, o homem revela-se<br />
como “imagem de Deus”, e realiza aquela<br />
tarefa, em primeiro lugar plasmando a<br />
“matéria” estupen<strong>da</strong> <strong>da</strong> sua humani<strong>da</strong>de<br />
e depois exercendo um domínio criativo<br />
sobre o universo que o circun<strong>da</strong>. Com<br />
amorosa condescendência, o Artista divino<br />
transmite uma centelha <strong>da</strong> sua sabedoria<br />
transcendente ao artista humano,<br />
chamando-o a partilhar do seu poder criador.<br />
Obviamente é uma participação, que<br />
deixa intacta a infinita distância entre o<br />
Criador e a criatura, como sublinhava o<br />
Cardeal Nicolau de Cusa: “A arte criativa,<br />
que a alma tem a sorte de albergar, não<br />
se identifica com aquela arte por essência<br />
que é própria de Deus, mas constitui apenas<br />
comunicação e participação dela”.<br />
Participação, que é participação também no<br />
bem e no ser. Nesse sentido, João Paulo II estabelece<br />
também a proximi<strong>da</strong>de entre bon<strong>da</strong>de e beleza:<br />
Ao pôr em relevo que tudo o que tinha<br />
criado era bom, Deus viu também que<br />
era belo. A confrontação entre o bom e o<br />
belo gera sugestivas reflexões. Em certo<br />
sentido, a beleza é a expressão visível do<br />
bem, do mesmo modo que o bem é a condição<br />
metafísica <strong>da</strong> beleza. Justamente o<br />
entenderam os gregos, quando, fundindo<br />
os dois conceitos, cunharam uma palavra<br />
que abraça a ambos: “kalokagathía”, ou<br />
seja, “beleza-bon<strong>da</strong>de”. A este respeito,<br />
escreve Platão: “A força do Bem refugiouse<br />
na natureza do Belo”.<br />
42<br />
LEITURA, LEITURAS<br />
Assim, não é de estranhar<br />
que a Filosofia <strong>da</strong><br />
Arte de S. Tomás de Aquino<br />
– como aliás todo o seu<br />
pensamento – repouse sobre<br />
esse conceito fun<strong>da</strong>mental:<br />
o de participação (participatio).<br />
Participar, em sentido<br />
transcendente, é ter em oposição<br />
a ser; participa, o que<br />
tem algo pelo contato com<br />
o que é. O metal, compara<br />
Tomás, tem calor na medi<strong>da</strong><br />
em que se aproxima, participa,<br />
do calor que é no fogo.<br />
A Criação é o ato no<br />
qual é <strong>da</strong>do o ser em participação.<br />
Portanto, tudo<br />
que é, é bom; participa do<br />
Bem. Nesse enquadramento,<br />
situa-se uma sentença<br />
de Tomás que é uma <strong>da</strong>s<br />
chaves principais para sua<br />
Filosofia <strong>da</strong> Arte:<br />
Assim como o<br />
bem criado é certa semelhança<br />
e participação do Bem Incriado,<br />
assim também a consecução de um<br />
bem criado é também certa semelhança e<br />
participação <strong>da</strong> felici<strong>da</strong>de definitiva” (De<br />
Malo 5, 1 ad 5).<br />
Daí também uma outra intuição <strong>da</strong> língua<br />
espanhola: ao provar algo muito gostoso, exclamase:<br />
¡Sabe a gloria!, “tem gosto de céu”. Ora, no<br />
pensamento de Tomás, a contemplação – também<br />
a propicia<strong>da</strong> pela arte – é a forma mais profun<strong>da</strong><br />
de “consecução de um bem criado”, prefiguração<br />
<strong>da</strong> Glória definitiva.<br />
Tais considerações, que expressam o núcleo<br />
profundo de um pensamento filosófico, estão<br />
também ao alcance <strong>da</strong> intuição do conhecimento<br />
comum. Por isso, não chega a ser de todo surpreendente<br />
o depoimento, imensamente profundo, de<br />
Tom Jobim sobre a criação artística, em uma entrevista,<br />
quando foi contemplado nos EUA com a<br />
mais alta distinção com que pode ser premiado um<br />
compositor, o Hall of Fame:<br />
Glória? A glória é de Deus e não<br />
<strong>da</strong> pessoa. Você pode até participar dela<br />
quando faz um samba de manhã. Glória<br />
são os peixes do mar, é mulher an<strong>da</strong>ndo<br />
na praia, é fazer um samba de manhã.<br />
¡¡¡Oléééé!!!<br />
JEAN LAUAND<br />
<strong>Professor</strong> Titular <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong>de de Educação <strong>da</strong> USP<br />
Pesquisador Emérito do Instituto Jurídico Interdisciplinar<br />
<strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de do Porto<br />
Autor de Cultura e Educação na I<strong>da</strong>de Média (Ed. Martins<br />
Fontes)
Fotos: Luciana Sabino<br />
Em comemoração ao Centenário dos<br />
Trabalhos <strong>da</strong> Comissão de Reconhecimento<br />
do Alto Purus, dirigi<strong>da</strong> por Euclides <strong>da</strong><br />
Cunha, publicou a Academia Brasileira de Letras<br />
uma nova edição do livro À Margem <strong>da</strong> História,<br />
em que outros países sul-americanos se conheciam<br />
e se desconheciam. Fruto <strong>da</strong> lucidez de dois<br />
brasileiros – Euclides e o Barão do Rio Branco – a<br />
missão do Alto Purus abriu uma fase nova no entendimento<br />
de uma região que despertava<br />
– como desperta ain<strong>da</strong> – a<br />
cobiça de países estrangeiros.<br />
Naquele momento era Euclides<br />
<strong>da</strong> Cunha re presentante do<br />
mais legítimo idealismo <strong>da</strong> República<br />
brasileira. Um exemplo<br />
disso é a carta que escreveu <strong>à</strong><br />
Gazeta de Notícias em 18 de fevereiro<br />
de 1894, quando se opõe<br />
a declarações de João Cordeiro,<br />
Senador pelo Ceará, de serem os<br />
presos políticos de então executados,<br />
como represália ao aparecimento<br />
de uma bomba na re<strong>da</strong>ção<br />
do jornal O Tempo. Diz em deter-<br />
mina<strong>da</strong> altura, Euclides: “Confesso,<br />
Senhor Re<strong>da</strong>tor, que uma tal<br />
proposição, ousa<strong>da</strong>mente atira<strong>da</strong><br />
LEITURA, LEITURAS<br />
Euclides e a Amazônia*<br />
ANTONIO OLINTO<br />
Retrato de Euclides <strong>da</strong> Cunha, de<br />
Candido Portinari, 1944. Acervo<br />
Projeto Portinari<br />
<strong>à</strong> publici<strong>da</strong>de, num país nobilitado pela forma<br />
republicana, deve cair de pronto sob a revolta<br />
imediata dos caracteres que, na fase dolorosa<br />
que atravessamos, tenham ain<strong>da</strong> o heroísmo<br />
<strong>da</strong> honesti<strong>da</strong>de”.<br />
Aquele “num país nobilitado pela forma<br />
republica na” é todo o Euclides <strong>da</strong> Cunha. O espírito<br />
de liber<strong>da</strong>de, que a república pregava, estava<br />
em tudo de acordo com o tipo de inteligência<br />
lúci<strong>da</strong> que era a de Euclides.<br />
O pioneirismo de Tavares<br />
Bastos, cujo livro O Vale do Amazonas<br />
foi publicado no mesmo<br />
ano do nascimento de Euclides<br />
<strong>da</strong> Cunha – 1866 –, iria produzir<br />
seus melhores frutos com o assomar<br />
<strong>da</strong> República brasileira e<br />
através do entusiasmo idealista,<br />
inclusive no significado filosófico<br />
do adjetivo, dos republicanos.<br />
A escolha de Euclides para chefiar<br />
a missão no Alto Purus revela<br />
a sabedoria administra tiva de<br />
Rio Branco e o livro que Euclides<br />
se preparava para escrever sobre<br />
a Amazônia, O Paraíso Perdido,<br />
deixaria de existir por causa de<br />
uma bala assassina. Mas o que<br />
43
Não se sabe se Euclides<br />
<strong>da</strong> Cunha ouvira falar<br />
sobre ecologia – termo<br />
cunhado em 1869 pelo<br />
cientista alemão Ernst Haeckel<br />
(1834-1919), para<br />
designar o estudo <strong>da</strong>s relações<br />
entre os seres vivos e<br />
o ambiente em que vivem,<br />
e sua distribuição na Terra.<br />
Sabe-se que, antes de<br />
Euclides, outros brasileiros<br />
se preocuparam com a<br />
preservação de nossa natureza<br />
e, principalmente,<br />
de nosso território, como<br />
Alexandre de Gusmão,<br />
José Bonifácio e D.Pedro II.<br />
Para defender nossas<br />
fronteiras, Euclides condenou o envio de tropas<br />
brasileiras ao Alto Purus, 1904, defendendo solução<br />
diplomática para a conten<strong>da</strong>. Propôs, ain<strong>da</strong>, uma<br />
“guerra dos cem anos” contra as secas nordestinas,<br />
com a exploração científica <strong>da</strong> área, a construção<br />
de açudes, poços e estra<strong>da</strong>s de ferro e o desvio<br />
escreveu ficaria, não só em À Margem <strong>da</strong> História,<br />
mas também em Contrastes e Confrontos e Peru<br />
Versus Bolívia.<br />
No livro reeditado em 2006 pela ABL surge<br />
a classifi cação do seringueiro. Se, em Os<br />
Sertões, o nordestino era, antes de tudo, um<br />
forte, em À Margem <strong>da</strong> História, o “seringueiro<br />
obrigatoriamente, profissionalmen te, um solitário”.<br />
Se, em Canudos, havia multidões, homens,<br />
mulheres e crianças por to<strong>da</strong> parte, na<br />
Amazônia dos seringais as pessoas como que<br />
sumiam no meio dos árvores, ficando isola<strong>da</strong>s<br />
em pequenos grupos, ferindo caules e esperando<br />
que o leite se acu mulasse. De modo inteiramente<br />
diverso do que fora sua aproximação com<br />
o Nordeste, a Amazônia exigia festas religiosas<br />
diferentes, que Euclides descreve com a força<br />
de suas palavras, inclusive no mostrar a figura<br />
de Ju<strong>da</strong>s que, amarrado num barco, desce o<br />
rio, enquanto os seringuei ros, com descarga de<br />
seus rifles, atacam a embarcação e destroem o<br />
símbolo detes tado.<br />
Por escolha própria, deixara Euclides de<br />
visitar a Europa ou de aceitar postos no exterior<br />
para ir ao encontro <strong>da</strong> Amazônia, para vingá-la,<br />
para resgatá-la. Foi com uma sensação de cientista<br />
messiânico, de profeta, que ele se dirigiu a<br />
uma região calunia<strong>da</strong>, e disto é sinal o trecho de<br />
carta que enviou então ao Rio de Janeiro e que<br />
Leandro Tocantins reproduz em seu livro Euclides<br />
e o Paraíso Perdido: “...na<strong>da</strong> te direi <strong>da</strong> terra<br />
e <strong>da</strong> gente. Depois, aí, e num livro, Um Paraíso<br />
Perdido, onde procurarei vingar a Hileia maravi-<br />
44<br />
LEITURA, LEITURAS<br />
<strong>da</strong>s águas do rio São<br />
Francisco.<br />
Em 1905, Rio<br />
Branco o nomeou chefe<br />
<strong>da</strong> Comissão Mista Brasileiro-Peruana<br />
de Reconhecimento<br />
do Alto<br />
Purus, que o ocupou<br />
por quase um ano. De<br />
volta, 1906, apresenta<br />
relatório com propostas<br />
sobre a região.<br />
No Jornal do<br />
Commercio, 1908, Euclides<br />
publicou a crônica<br />
“A última visita”,<br />
sobre a homenagem<br />
de um jovem estu<strong>da</strong>nte,<br />
depois identificado<br />
como Astrojildo Pereira (1890-1965), a Machado de<br />
Assis em seu leito de morte. Também em 1908 foi<br />
nomeado professor de Lógica, por concurso, do Ginásio<br />
Nacional (hoje, Colégio Pedro II). Deu apenas<br />
19 aulas, entre julho e agosto de 1909, quando morreu<br />
em duelo com Dilermando de Assis.<br />
lhosa de to<strong>da</strong>s as brutali<strong>da</strong>des que a maculam<br />
desde o Século XVIII”.<br />
E Gilberto Freyre vê, nessa busca do maravilhoso<br />
existente na enxuta reali<strong>da</strong>de, uma<br />
fuga ao realista rotineiro: “No retratar o visto<br />
e o observado, é que dei xou, muitas vezes, de<br />
ser simples fotógrafo, ao modo dos realistas<br />
convencionais, para buscar, em homens e paisagens,<br />
o mais real que o real”.<br />
A Amazônia, conquista portuguesa lega<strong>da</strong><br />
ao Bra sil, provoca paixões, cobiças e muitas<br />
religiões: católicos, evangélicos, protestantes de<br />
várias denominações se misturam ali com uma<br />
nova religião ecológica brasileira, a do Santo<br />
Daime, basea<strong>da</strong> no chá <strong>da</strong> região, no pregar, discutir<br />
e viver a empolgação do Paraíso Perdido ou,<br />
no titulo de Alberto Rangel, do Inferno Verde.<br />
Tento imaginar o livro final e definitivo<br />
que teria escrito Euclides <strong>da</strong> Cunha sobre o Amazonas<br />
e que Antônio Conselheiro poderia ter surpreendido,<br />
agindo sob a verde nave de suas árvores.<br />
Só pensar nessa possibili<strong>da</strong>de antiga faz-nos<br />
lembrar a severa e densa importância de Euclides<br />
<strong>da</strong> Cunha na cultura brasileira.<br />
A nova edição de À Margem <strong>da</strong> História<br />
saiu sob a égide <strong>da</strong> Academia Brasileira de Letras,<br />
com apresenta ção de Alberto Venancio Filho,<br />
projeto gráfico de Victor Burton, produção<br />
editorial e revisão de Nair Dametto.<br />
ANTONIO OLINTO<br />
Escritor<br />
Membro <strong>da</strong> Academia Brasileira de Letras<br />
*Acervo ICAO
á se tornou lugar-comum falar que o gosto pela leitura<br />
se cria em <strong>casa</strong>. A criança que ouve histórias, que<br />
cresce vendo pai e mãe agarrados num livro e só adivinha<br />
o mundo que existe além <strong>da</strong>quelas letrinhas pretas<br />
no papel branco, que tem em <strong>casa</strong> pelo menos um cantinho<br />
especial onde moram os livros é uma criança que tem<br />
maiores chances de vir a ser um leitor ou leitora.<br />
Quando a reali<strong>da</strong>de familiar é difícil, a escola<br />
tenta preencher esta lacuna. <strong>Professor</strong> e biblioteca<br />
passam a ser a ponte de mão dupla mais importante<br />
entre a criança e o livro. Mas, atenção: leitura não<br />
pode ser confundi<strong>da</strong> com obrigação escolar. Ler um livro<br />
não precisa ser dever de <strong>casa</strong>. Livro combina com<br />
liber<strong>da</strong>de. O ideal é ca<strong>da</strong> sala de aula ter um cantinho<br />
de leitura onde os livros sejam oferecidos livremente.<br />
A criança precisa ter liber<strong>da</strong>de de escolha: ela pode<br />
abandonar um que não despertou seu interesse, pode<br />
escolher outro, os alunos podem discutir entre si, sem<br />
a interferência constante dos adultos.<br />
É importantíssimo que haja boa oferta de livros<br />
de literatura. Livros informativos são sempre bem-vindos,<br />
mas a literatura é o campo fun<strong>da</strong>mental <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de<br />
e <strong>da</strong> paixão de ler. É nesse terreno que se formam<br />
leitores para to<strong>da</strong> a vi<strong>da</strong>.<br />
O melhor de tudo é que o professor seja um leitor.<br />
Paixão gera paixão. Um professor apaixonado pela<br />
leitura é meio caminho an<strong>da</strong>do para a criação de novas<br />
gerações de leitores.<br />
Uma biblioteca escolar convi<strong>da</strong>tiva é o território<br />
ideal para alimentar a imaginação de jovens leitores.<br />
Lá, eles vão “conversar” com escritores de ontem, de<br />
hoje e de sempre, como Monteiro Lobato, Cecília Meireles,<br />
Ana Maria Machado, Ruth Rocha, Sylvia Orthof<br />
e centenas de outros. De lá, vão carregar a paixão <strong>da</strong><br />
leitura por to<strong>da</strong> a vi<strong>da</strong>.<br />
Conheço bem o itinerário de um desses leitores<br />
apaixonados. Começou lá atrás, com histórias conta<strong>da</strong>s<br />
pelo padrinho e pela bisavó. Continuou quando ele pedia<br />
de presente de aniversário e de Natal os livros de Monteiro<br />
Lobato, até completar a coleção. Na biblioteca do colégio,<br />
monta<strong>da</strong> por seu pai, encontrou um livro sobre um<br />
NOSSA BIBLIOTECA<br />
HISTÓRIA DE PAIXÃO<br />
LUIZ RAUL MACHADO<br />
cavaleiro an<strong>da</strong>nte deslocado e tresloucado em façanhas<br />
pelo mundo, acompanhado de um fiel escudeiro trapalhão<br />
(Vi<strong>da</strong> e proezas de Dom Quixote, a<strong>da</strong>ptação de Erich<br />
Kästner). Ele já conhecia de sobra o Dom Quixote <strong>da</strong>s<br />
crianças, de Lobato. Tinha lido e relido (quantas vezes?)<br />
a visita do cavaleiro ao sítio de Dona Benta, no livro O<br />
Picapau Amarelo, quando os personagens dos contos e<br />
fábulas de todos os tempos se mu<strong>da</strong>m para o sítio dos<br />
sonhos <strong>da</strong>s crianças brasileiras. Ali, espantosamente,<br />
Emília diz: “Acho D. Quixote o suco dos sucos. A loucura<br />
chegou ali e parou. Adoro os loucos. São as únicas gentes<br />
interessantes que há no mundo”.<br />
Tempos depois, quando este leitor se apaixonou pela<br />
poesia de Carlos Drummond de Andrade, descobriu que ele<br />
fez uma série de poemas sobre o cavaleiro maravilhoso, a<br />
partir de quadros de Portinari:<br />
O DERROTADO INVENCÍVEL<br />
(...) / Doído, / moído, / caído, / perdido, / curtido,<br />
/ morrido, / eu sigo, / persigo / o lunar / intento:<br />
/ pela justiça no mundo, / luto, iracundo.<br />
Descobriu depois, em Euclides <strong>da</strong> Cunha, um belo<br />
soneto ao Quixote. O leitor procurou boas traduções <strong>da</strong><br />
íntegra do romance que muitos e grandes consideram o<br />
primeiro e o mais importante do Ocidente. Deleitou-se<br />
então com as aventuras completas do apaixonado errante<br />
pela cavalaria e pela bela Dulcinéia.<br />
Já beirando a velhice, comprou a edição em espanhol,<br />
comemorativa do quarto centenário <strong>da</strong> obra.<br />
Agora, ele namora o livro em sua estante, pega, folheia,<br />
lê trechos e espera o dia de viajar do prólogo<br />
até o fim. Agora, ao alcance <strong>da</strong> mão e <strong>da</strong> imaginação,<br />
o Quixote na língua em que foi concebido pelo genial<br />
Miguel. O leitor apaixonado alimenta sua paixão.<br />
Este leitor sou eu.<br />
LUIZ RAUL MACHADO<br />
Escritor<br />
Especialista em literatura infantil<br />
Autor, entre outros, de Chifre em cabeça de cavalo, Fulustreca<br />
e História de Oe<br />
45
Bazar do Renascimento, de Jerry Brotton,<br />
Grua Livros, apresenta interessantes revelações:<br />
estu<strong>da</strong> a história “lendo” quadros<br />
famosos e obras de arte, interpretando seus indícios<br />
explícitos e implícitos. Nega a efervescência<br />
renascentista ocorri<strong>da</strong> em parte <strong>da</strong> Europa<br />
como “global”, mostrando que o Renascimento<br />
não é italiano nem repentino como se supõe.<br />
Afirma-o influenciado pelo mundo islâmico que,<br />
por sua vez, resgata, preserva, reflete, expande e<br />
difunde a cultura clássica. Revela que as “guerras<br />
santas” do medievo europeu não impediram<br />
o rico e variado comércio entre cristãos, judeus<br />
e/ou maometanos.<br />
Demonstra quão ricas e varia<strong>da</strong>s eram as<br />
trocas artísticas entre oriente e ocidente, e que Da<br />
Vinci e outros prestavam ou ofereciam seus serviços<br />
como artistas, engenheiros bélicos ou construtores<br />
a antagonistas, cristãos ou muçulmanos.<br />
Assinala que a Reforma e a Contra-Reforma na<strong>da</strong><br />
tinham de religiosas, e só buscavam poder e riqueza.<br />
Assim, a ven<strong>da</strong> de indulgências, que revoltou<br />
46<br />
NOSSA BIBLIOTECA<br />
Bazar do Renascimento<br />
O<br />
al-An<strong>da</strong>lus<br />
(antiga<br />
Van<strong>da</strong>licia<br />
– “terra dos<br />
vân<strong>da</strong>los”) era a<br />
parte muçulmana<br />
<strong>da</strong> Península<br />
lbérica desde a<br />
invasão por Tarique<br />
Ibn Ziyad,<br />
em 711 d.C. O<br />
Gharb-al-An<strong>da</strong>lus,<br />
ou al-Gharb<br />
– compreendia<br />
a ex-Lusitânia<br />
romana e o oeste <strong>da</strong> Estremadura espanhola.<br />
Nesta obra, edita<strong>da</strong> pela Gryphus, a trama<br />
junta Ali, filho de mãe romana e pai greco-bizantino<br />
(convertido ao Islã), administrador fiscal <strong>da</strong><br />
terra, como narrador. O rico, culto e epicurista<br />
junta os Hohenstaufen, embaixadores do Sacro<br />
Império Romano-Germânico; os Fili, mun<strong>da</strong>nos e<br />
cosmopolitas; Ben, médico e cientista judeu e sua<br />
mulher; Antonio e Ordoña, galegos gastrônomos;<br />
Lutero, se destinaria<br />
a financiar<br />
a construção<br />
<strong>da</strong> Basílica<br />
de São<br />
Pedro. Enfatiza<br />
que as<br />
viagens, descobrimentos,<br />
avanços<br />
científicos e<br />
literários mu<strong>da</strong>ram<br />
a visão de mundo. Mostra como a<br />
imprensa foi alavanca do “progresso” humano.<br />
Sobre o autor<br />
Jerry Brotton é professor de Estudos Sobre o<br />
Renascimento, no Queen Mary, University of London.<br />
Autor de outros títulos como Trading territories: mapping<br />
the early modern world (Reaktion, Londres, 1997,<br />
e Cornell University Press, 1998) e The Sale of the Late<br />
King’s Goods: Charles I and his Art Collection (2006).<br />
AI-Gharb 1146<br />
www.grualivros.com.br<br />
o Rei do Sal, administrador almorávi<strong>da</strong>, fetichista<br />
e poeta e lbn, árabe, homossexual e árbitro <strong>da</strong>s<br />
elegâncias, para inaugurar sua residência. Lá degustam<br />
iguarias, compartilham <strong>da</strong> atmosfera, participam<br />
de divertimentos eróticos e refletem sobre<br />
os “grandes do mundo”: Afonso Henriques de Portugal,<br />
Afonso VII de Leão e Castela, Abd el-Mumin,<br />
califa almóa<strong>da</strong>. Discutem geometria, arte, perfumes,<br />
teoria <strong>da</strong>s cores, antissemitismo, interditos e<br />
transgressões, fun<strong>da</strong>mentalismos e terror.<br />
O mundo tolerante em que conviviam as<br />
três religiões monoteístas, ameaça desmoronar:<br />
Afonso Henriques toma Lisboa e os Almorávi<strong>da</strong>s<br />
são dominados pelos ascéticos e reacionários Almóa<strong>da</strong>s.<br />
AI-Gharb 1146 é onírica fantasia sobre<br />
como seria um Portugal muçulmano.<br />
Sobre o autor<br />
Alberto Xavier (1942) é lisboeta, professor e<br />
Doutor em Direito pela Universi<strong>da</strong>de de Lisboa. Radicou-se<br />
no Brasil, onde exerce vi<strong>da</strong> universitária e é<br />
advogado empresarial. Tributarista, é autor de bibliografia<br />
na sua especiali<strong>da</strong>de. Tem publicações no<br />
Brasil, em Portugal e outros países.<br />
www.gryphus.com.br
Um paraíso perdido: ensaios amazônicos, de<br />
Euclides <strong>da</strong> Cunha, publicado pela Editora do<br />
Senado, apresenta prefácio do Senador Jefferson<br />
Peres, estusiasta defensor <strong>da</strong> Amazônia, de quem<br />
emprestamos as palavras para esta resenha.<br />
A Amazônia e o Nordeste conheceram grandes<br />
interpretes, ensaístas que tiveram dessas regiões uma<br />
visão de conjunto, em seus múltiplos aspectos fisiográficos<br />
e sociais. Mas o único a produzir obra de fôlego<br />
sobre ambas foi Euclides <strong>da</strong> Cunha, com Os Sertões<br />
e À margem <strong>da</strong> História. Como homem do Sudeste que<br />
passou apenas alguns meses no Nordeste e na Amazônia,<br />
escreveu dois livros magistrais, contudo neles não<br />
se espere encontrar ver<strong>da</strong>des científicas.<br />
Misto de poeta e homem de ciência, sem a<br />
preocupação de escrever tese acadêmica, descreve a<br />
região como um paisagista, com pincela<strong>da</strong>s de cores<br />
fortes e impressivas. Assinala que seu primeiro<br />
contato com aquela “última página do Gênese” lhe<br />
causou desapontamento, por considerar a visão real<br />
NOSSA BIBLIOTECA<br />
Um paraíso perdido:<br />
ensaios amazônicos<br />
A juventude de Machado de Assis<br />
O<br />
grande mérito de A juventude<br />
de Machado de Assis<br />
(1839-1870): ensaio de<br />
biografia intelectual, de Jean-Michel<br />
Massa, relança<strong>da</strong> pela editora<br />
UNESP após quase quatro déca<strong>da</strong>s<br />
de sua 1.ª edição, em 1971, é que ela<br />
não ignora o excepcional escritor que<br />
Machado de Assis viria a ser entre<br />
1870 e 1908. Revela um período de<br />
juventude fun<strong>da</strong>mental para melhor<br />
e maior compreensão do todo de sua<br />
obra, numa perspectiva ampla que leva<br />
em conta o biográfico e o literário.<br />
A proposta do autor é estu<strong>da</strong>r<br />
os primeiros anos <strong>da</strong> carreira de Machado<br />
em si mesmo, não procurando<br />
fazer, como ain<strong>da</strong> é comum, uma história<br />
<strong>à</strong>s s avessa, ou seja, tentar entender<br />
o começo o de uma carreira por aquilo<br />
que ela se tornou nos seus melhores<br />
momentos.<br />
Um dos aspectos mais interessantes<br />
é que conhecer a origem de Machado significa<br />
mergulhar num universo mais espontâneo em que as<br />
experimentações ocorrem de maneira conti<strong>da</strong>, havendo<br />
uma escrita mais próxima do esperado para sua<br />
época, mas nem por isso menos preciosa sob o aspecto<br />
literário.<br />
inferior <strong>à</strong> imagem<br />
prefigura<strong>da</strong> em sua<br />
mente.<br />
Mostra-se<br />
igualmente magistral<br />
como retratista<br />
<strong>da</strong> paisagem<br />
social e humana.<br />
Irretocável sua descrição do seringal,<br />
que compara a um polvo com tentáculos nas<br />
“estra<strong>da</strong>s”, a sugar as energias do homem, exaurido pelo<br />
brutal sistema de exploração a que era submetido.<br />
Sobre o autor<br />
Euclides Rodrigues Pimenta <strong>da</strong> Cunha (Cantagalo,1866<br />
– Rio de Janeiro,1909), foi escritor, professor, sociólogo, repórter<br />
jornalístico e engenheiro, famoso internacionalmente<br />
por sua obra Os Sertões, que retrata a Guerra dos Canudos.<br />
Autor de 12 livros e centenas de artigos, morreu numa troca<br />
de tiros, por “razões de honra”.<br />
www.senado.gov.br<br />
Como afiança Antonio Candido<br />
sobre Massa, no prólogo pr do livro: “É<br />
notável notá a maneira como traça o panora-<br />
ma de uma época menos conheci<strong>da</strong> <strong>da</strong><br />
nossa literatura, tirando <strong>da</strong> penumbra<br />
agrupamentos, peri periódicos, autores secundários<br />
cund empenhados em criar uma<br />
vi<strong>da</strong> intelectual ponder ponderável na ci<strong>da</strong>de<br />
atrasa<strong>da</strong> e provinciana que ain<strong>da</strong> era<br />
o Rio de Janeiro dos anos de 1850 e<br />
1860”, confirmando “a mestria com<br />
que sabe associar o faro de investigador<br />
ao esp espírito crítico, bem como <strong>à</strong><br />
avalia avaliação correta do papel desempe-<br />
nhado pelo quadro hist histórico”.<br />
Sobre o autor<br />
Jean-Michel Massa é professor emé-<br />
rito <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Rennes 2, França, Fran de<br />
cujo Centro de Estudos Luso-Brasileiros foi<br />
diretor. É autor e organizador de numerosos<br />
livros, artigos e ensaios, dos quais<br />
se destacam, entre outros: Dispersos de<br />
Machado de Assis (1965); Machado de Assis traducteur (1969);<br />
Bibliographie descriptive, analytique et critique de Machado de<br />
Assis – 1957-1958 (1965); e, em co-autoria com Françoise Massa,<br />
Dictionnaire Encyclopédique Bilíngüe Cap-Vert/Cabo Verde<br />
(2001). Por seu excepcional estudo <strong>da</strong> obra machadiana, recebeu<br />
<strong>da</strong> ABL, em 1986, a Me<strong>da</strong>lha Machado de Assis.<br />
www.editoraunesp.com.br<br />
47
Carlos Alberto Ferreira Braga foi um nome<br />
que nasceu para ser precedido pela abreviatura<br />
Dr. Este era o desejo do pai <strong>da</strong>quele<br />
menino que nasceu há cem anos no bairro de Vila<br />
Isabel e que estava destinado a ser um dos construtores<br />
de uma <strong>da</strong>s fases mais ricas de nossa história<br />
musical.<br />
O menino não teve, porque não quis, o Dr.<br />
antes do nome, abandonando a Arquitetura na<br />
Escola Nacional de Belas Artes pela música; em<br />
compensação, ganhou duas designações para ser<br />
identificado: Braguinha e João de Barro. E foi assim,<br />
num revezamento permanente, que ele se tornou<br />
gigante, não obstante seus apenas um metro e<br />
sessenta centímetros, ver<strong>da</strong>deiro mestre em várias<br />
ativi<strong>da</strong>des artísticas.<br />
Já nos tempos de colégio liderou a organização<br />
do conjunto musical ao qual deu o nome de<br />
Flor do Tempo, que passou a ser indispensável nas<br />
festinhas <strong>da</strong>s <strong>casa</strong>s de família do bairro, cantando<br />
e tocando repertório de sambas, marchas e valsas,<br />
o que só fazia aumentar o prestígio dos componentes<br />
junto <strong>à</strong>s meninas.<br />
48<br />
O ASSUNTO É...<br />
BRAGUINHA, poeta do Rio<br />
HAROLDO COSTA<br />
Não demorou muito para que outros jovens<br />
músicos aderissem ao grupo. E assim foram chegando<br />
Henrique Fôreis, que passaria para a história<br />
com a alcunha de Almirante (que mais tarde<br />
se <strong>casa</strong>ria com Ilka, bela irmã de Braguinha), e<br />
um outro, discreto, um tanto desajeitado, mas de<br />
enorme talento, também morador de Vila Isabel e<br />
que tinha o nome de Noel – Noel Rosa. O conjunto<br />
passou a se chamar Bando dos Tangarás, alusão<br />
a um pássaro alegre, cantador e até bailarino. Foi<br />
quando Carlos Braga, o Braguinha, adotou o nome<br />
de João de Barro – o pássaro construtor – pseudônimo<br />
que adotou para não aborrecer o pai, que não<br />
queria o nome <strong>da</strong> família envolvido com artistas,<br />
considerados, naquela época, gente de má fama.<br />
Os outros integrantes eram Henrique Brito, Alvinho,<br />
Almirante e Noel Rosa, unânimes em se declarar<br />
amadores: não aceitavam remuneração sob<br />
pretexto algum, nem mesmo para reembolso <strong>da</strong>s<br />
passagens do bonde.<br />
A descoberta do talento de compositor não<br />
demorou muito. Era quase uma fatali<strong>da</strong>de. A convivência<br />
diária com os colegas do grupo e o exercício
Desenho de<br />
Leo Martins<br />
do canto não poderiam<br />
desembocar em<br />
outra coisa. Mesmo<br />
tendo gravado como<br />
solista-cantor uma<br />
composição de Lamartine<br />
Babo, João<br />
de Barro não prosseguiu<br />
nesta carreira,<br />
investindo mais na<br />
composição, e foi aí<br />
que novo capítulo de<br />
sua vi<strong>da</strong> e <strong>da</strong> nossa<br />
vi<strong>da</strong> musical começou<br />
a ser escrito.<br />
Com seus vários<br />
PASTORINHAS<br />
(Noel Rosa e João de Barro)<br />
A estrela d’alva<br />
No céu desponta<br />
E a lua an<strong>da</strong> tonta<br />
Com tamanho esplendor<br />
E as pastorinhas<br />
Pra consolo <strong>da</strong> lua<br />
Vão cantando na rua<br />
Lindos versos de amor<br />
Lin<strong>da</strong> pastora<br />
Morena <strong>da</strong> cor de Ma<strong>da</strong>lena<br />
Tu não tens pena<br />
De mim que vivo tonto com o<br />
teu olhar<br />
Lin<strong>da</strong> criança<br />
Tu não me sais <strong>da</strong> lembrança<br />
Meu coração não se cansa<br />
De sempre e sempre te amar.<br />
parceiros, destacando-se Alberto Ribeiro, mas sem<br />
esquecer Alcir Pires Vermelho, Noel Rosa, Antonio Almei<strong>da</strong>,<br />
José Maria de Abreu, Norival Reis, Braguinha<br />
inundou o país com músicas que até hoje estão na<br />
memória e na emoção de grande parte de brasileiros<br />
de várias gerações. Criou cantigas de ro<strong>da</strong>, histórias<br />
infantis, letras para músicas de filmes de Walt Disney,<br />
fundou e dirigiu gravadoras (Continental e To<strong>da</strong>mérica)<br />
e sempre se fez presente no carnaval. São quase<br />
mil títulos em todos os gêneros.<br />
Sempre alegre, de bem com a vi<strong>da</strong>, sorriso<br />
permanente nos lábios, Braguinha era um encontro<br />
desejado. Carioca até a medula, dedicou <strong>à</strong> sua<br />
ci<strong>da</strong>de, nossa ci<strong>da</strong>de, algumas <strong>da</strong>s mais lin<strong>da</strong>s<br />
canções de que se tem notícia: Copacabana, Rio<br />
– o gostosão, Fim de semana em Paquetá, Convite<br />
ao Rio, e não se cansou de cantar a beleza<br />
<strong>da</strong> mulher brasileira: Lin<strong>da</strong> Morena, Lourinha, A<br />
Mulata é a tal, O que esquenta é mulher. Sua produção<br />
foi enorme e constante, mesmo quando as<br />
marchinhas carnavalescas, gênero que ele cultivou<br />
como poucos, pareciam ter morrido. Eis que ressurge<br />
nos anos 70, numa gravação de Gal Costa, a<br />
marcha Balancê, sucesso de 1937, e domina todos<br />
os bailes <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, continuando a ser canta<strong>da</strong> nos<br />
salões e nas ruas.<br />
O ASSUNTO É...<br />
Um fato inesquecível, que causou indescritível<br />
emoção em todos quantos o assistiram, de longe<br />
ou de perto, foi no desfile <strong>da</strong>s escolas de samba<br />
do carnaval de 1983, inauguração do sambódromo,<br />
quando a Estação Primeira de Mangueira,<br />
sendo a última a desfilar, deu a volta na praça <strong>da</strong><br />
Apoteose e retornou no sentido contrário, para a total<br />
surpresa e imensa<br />
alegria de todo o<br />
CARINHOSO<br />
público presente. O<br />
(Pixinguinha e João de Barro - letra) enredo era Yes, nós<br />
temos Braguinha,<br />
Meu coração<br />
Não sei por que<br />
título que já havia<br />
Bate feliz, quando te vê<br />
sido usado em um<br />
E os meus olhos ficam sorrindo show de Sidney Mil-<br />
E pelas ruas vão te seguindo ler e Paulo Afonso<br />
Mas mesmo assim, foges de mim Grisolli, no Teatro<br />
Ah! Se tu soubesses<br />
Casa Grande. Em<br />
Como sou tão carinhoso<br />
ambas as ocasiões,<br />
E muito e muito que te quero Braguinha estava<br />
E como é sincero o meu amor integrado ao acon-<br />
Eu sei que tu não fugirias mais de mim tecimento,acres- Vem, vem, vem, vem<br />
centando com a sua<br />
Vem sentir o calor<br />
Dos lábios meus<br />
presença mais sen-<br />
À procura dos teus<br />
tido <strong>à</strong> homenagem.<br />
Vem matar esta paixão<br />
No dia 29<br />
Que me devora o coração<br />
de março de 2007,<br />
E só assim então<br />
Braguinha com-<br />
Serei feliz, bem feliz.<br />
pletaria cem anos.<br />
Muitos festejos<br />
estavam programados,<br />
alguns até aconteceram e, durante o<br />
carnaval, seu nome e sucessos foram evocados<br />
pelos milhares de foliões que invadiram pacificamente<br />
as ruas <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, num banho de alegria.<br />
Aliás, parecia mesmo uma cerimônia de exorcismo,<br />
para afastar os demônios <strong>da</strong> insegurança, <strong>da</strong><br />
impuni<strong>da</strong>de, do desrespeito ao ci<strong>da</strong>dão, do descaso<br />
dos poderosos. As estatísticas apontaram que<br />
nunca tantos cariocas ficaram na ci<strong>da</strong>de durante<br />
o carnaval. Era como um desafio coletivo, imensa<br />
catarse a dizer: estamos aqui, para celebrar a vi<strong>da</strong><br />
e a beleza, nos versos e nas músicas de Braguinha<br />
ou João de Barro, se preferirem.<br />
Ao longo deste texto, alguns dos seus grandes<br />
sucessos foram lembrados; muitos outros poderiam<br />
ser citados com a mesma proprie<strong>da</strong>de. São canções<br />
que o povo canta e continuará cantando – Pirata <strong>da</strong><br />
perna de pau, Chiquita bacana, Toura<strong>da</strong>s de Madri,<br />
A sau<strong>da</strong>de mata a gente, Balancê, Turma do funil.<br />
Mas permitam-me esta observação: se Braguinha<br />
tivesse apenas feito as letras de As pastorinhas<br />
e Carinhoso, já seria um gênio <strong>da</strong> raça.<br />
HAROLDO COSTA<br />
Jornalista<br />
Membro do Conselho Estadual de Cultura/RJ<br />
49
Uns 90% dos executivos estão insatisfeitos<br />
com seu trabalho: sentem-se subempregados,<br />
insuficientemente desafiados e não se<br />
identificam com o que fazem. Presidentes de empresa<br />
falam sobre a carência agu<strong>da</strong> e crescente de talentos,<br />
e a dificul<strong>da</strong>de de atrair e motivar pessoas ver<strong>da</strong>deiramente<br />
prepara<strong>da</strong>s.<br />
Um lado se diz subutilizado, o outro que não há<br />
talentos suficientes. Ambos estão certos, mas há ruído<br />
de comunicação no processo: ou o recrutamento é ineficiente<br />
(e é...), ou o que as pessoas querem é diferente do<br />
que elas dizem querer.<br />
Em que concor<strong>da</strong>m? Todos estão insatisfeitos<br />
com a interface entre Pessoas e Trabalho. O modelo<br />
“quebrou” e não admite consertos parciais ou cosméticos.<br />
É preciso inventar nova maneira de relacionamento<br />
com o Trabalho.<br />
Há uns vinte anos o conceito de Trabalho mudou<br />
muito. Surgiram trabalhadores remotos, profissionais<br />
eternamente em trânsito, e executivos interinos.<br />
O boom do setor de Serviços criou os trabalhadores<br />
do conhecimento, cuja produção é difícil de aferir<br />
e mensurar, quer trabalhem em <strong>casa</strong> ou na empresa.<br />
O primeiro corolário disso é que a definição<br />
<strong>da</strong> palavra “aposentadoria” também mudou muito.<br />
50<br />
O ASSUNTO É...<br />
Artistas, Cientistas, e Artesãos:<br />
Para uma nova interface entre pessoas e trabalho<br />
AUGUSTO DIAS CARNEIRO<br />
Quem chegou ao mercado de trabalho depois que a<br />
Procter & Gamble quebrou sua promessa de nunca<br />
demitir alguém (isto ocorreu na déca<strong>da</strong> de 1970, e é<br />
amplamente aceito pela literatura de business como<br />
o divisor de águas, a partir do qual o emprego vitalício<br />
tornou-se coisa do passado), cresceu num mundo<br />
onde as empresas não têm fideli<strong>da</strong>de para com<br />
as pessoas, e estas também são infiéis para com as<br />
empresas em que trabalham.<br />
Afora essas mu<strong>da</strong>nças, o modelo de Trabalho<br />
que conhecemos hoje sobrevive praticamente intacto<br />
desde o início <strong>da</strong> Revolução Industrial: temos organizações<br />
matriciais, telefones celulares e computadores<br />
rapidíssimos, coexistindo com chefes que se zangam<br />
porque o empregado chega atrasado, sai cedo, ou não<br />
gosta de trabalhar até tarde.<br />
Não penso em propor um novo Modelo de Trabalho.<br />
O objetivo deste artigo é sugerir uma primeira<br />
aproximação ao que será um dia uma metodologia<br />
para se examinar o que ocorre entre Pessoas e Trabalho,<br />
visando chegar-se a um redesenho completo do<br />
que se dá nesta interface.<br />
Considerem minha taxonomia do que é Trabalho.<br />
Se: Arte for a busca <strong>da</strong> beleza e <strong>da</strong> elegância, o<br />
que compreende um componente didático pelo qual o
artista quer compartilhar sua concepção do Belo com<br />
todos; Artesanato, um conjunto de regras ensináveis<br />
para a produção repeti<strong>da</strong> de determinados bens e serviços;<br />
e Ciência, o processo pelo qual o ser humano<br />
põe rédeas nas leis <strong>da</strong> Natureza... então, certamente<br />
todo trabalho humano é a combinação entre Arte, Artesanato<br />
e Ciência, e os três elementos estarão sempre<br />
presentes, embora em proporções muito diferentes.<br />
As empresas, cria<strong>da</strong>s para converter o esforço<br />
humano em valor econômico, direcionam combinações<br />
específicas de Arte, Artesanato e Ciência em benefício<br />
dos acionistas.<br />
Nos últimos 80 anos, essa combinação mudou<br />
de maneira significativa, principalmente no que concerne<br />
<strong>à</strong> Ciência, que expandiu, em detrimento <strong>da</strong> Arte,<br />
todo o território do qual se havia apoderado o<br />
Artesanato durante a primeira fase <strong>da</strong><br />
Revolução Industrial. Isso parecia<br />
inevitável nos primórdios do século<br />
XX. O movimento Bauhaus bradou<br />
aos quatro ventos que “a forma é<br />
consequência <strong>da</strong> função” e isso,<br />
em alguns círculos, até hoje é uma<br />
espécie de mantra. Mas a geração<br />
dos anos 60, resultado <strong>da</strong> expansão<br />
demográfica do pós-Guerra, se rebelou<br />
contra a situação <strong>da</strong> Ciência<br />
devorar a Arte e o Artesanato, e a<br />
humani<strong>da</strong>de redescobriu a ambos.<br />
Mas ferramentas para desenhar<br />
e redesenhar empresas (apesar<br />
<strong>da</strong> advertência de Alfred Chandler,<br />
repeti<strong>da</strong> há déca<strong>da</strong>s, de que a<br />
Estrutura deve refletir a Estratégia)<br />
chamam a atenção pela ausência.<br />
Esse esforço normalmente só recebe<br />
atenção de última hora ou, o que<br />
é pior, acaba vítima do capricho e<br />
<strong>da</strong> <strong>mo<strong>da</strong></strong>. Todos nos lembramos do<br />
entusiasmo surgido com as organizações<br />
matriciais. E, durante o explosivo crescimento<br />
<strong>da</strong>s empresas pontocom, até mesmo formigueiros e<br />
colônias virais foram interpretados como modelos de<br />
organização. Surgiram até modelos híbridos, como<br />
o <strong>da</strong> L’Oréal, francamente bem-sucedido em sobrepor<br />
a matriz bidimensional, combinando geografias<br />
e famílias de produtos, no que chamam de modelo<br />
organizacional de “ban<strong>da</strong> de jazz”, para estimular a<br />
improvisação e a criativi<strong>da</strong>de individuais.<br />
Gostaria de propor um modelo de Arte/Artesanato/Ciência<br />
para investigar a natureza do trabalho e<br />
de que forma as pessoas se organizam para produzir<br />
bens e prestar serviços. Na sequência, descrevo algumas<br />
instâncias interessantes dessa taxonomia.<br />
Empresas de bens de consumo não duráveis<br />
são principalmente Arte (marketing), enquanto seus<br />
produtos são projetados com Ciência e produzidos<br />
com Artesanato. De fato, no tempo em que as pessoas<br />
acreditavam naquelas Declarações de Missão <strong>da</strong>s empresas,<br />
a Coca-Cola insistia em que estava no negócio<br />
do lazer, as empresas de cosméticos diziam estar no<br />
negócio <strong>da</strong> autoimagem, e assim por diante. Todos<br />
O ASSUNTO É...<br />
queriam colocar mais Arte no que faziam, para evitar<br />
o risco de afun<strong>da</strong>r num ambiente dominado pela Ciência<br />
e, assim, perder o contato com o cliente.<br />
A combinação mu<strong>da</strong> conforme a hierarquia: os<br />
executivos de escalão mais alto gastam a maior parte<br />
de seu tempo no domínio <strong>da</strong> Arte, algum tempo no<br />
do Artesanato e muito pouco no <strong>da</strong> Ciência. Exceto<br />
quando tentam criar uma empresa de alta tecnologia,<br />
quando, então, a Arte cede o lugar principal <strong>à</strong> Ciência,<br />
o que pode ser um desastre.<br />
A combinação também mu<strong>da</strong>rá, dependendo do<br />
estágio de desenvolvimento de produto em que se está.<br />
Considerem-se as empresas automobilísticas: novos<br />
modelos começam como Ciência (pesquisa de mercado),<br />
partem para o domínio <strong>da</strong> Arte (projeto dos carros)<br />
e, <strong>da</strong>í, entram em produção, basicamente<br />
como Artesanato. Mas é preciso muita<br />
Arte (publici<strong>da</strong>de) para vendê-los!<br />
Algumas profissões mu<strong>da</strong>m<br />
muito com o tempo. Como mencionei,<br />
o século XX testemunhou a Ciência<br />
devorando a Arte, o Artesanato, ou<br />
ambos. Quando os mecanismos de<br />
armazenamento de computador eram<br />
caros, os programadores faziam cui<strong>da</strong>doso<br />
Artesanato de ca<strong>da</strong> linha de<br />
seus programas, para minimizar o<br />
uso <strong>da</strong> memória. Hoje os programas<br />
demonstram muito mais Ciência do<br />
que Arte.<br />
Às vezes, há diferenças significativas<br />
entre os que exercem a mesma<br />
profissão: os mecânicos de carros alemães<br />
praticam 10% Arte, 40% Artesanato<br />
e 50% Ciência. Os de carros franceses,<br />
praticam 50% Arte, 40% Artesanato<br />
e 10% Ciência!<br />
Há pessoas habilidosas em equili-<br />
brar Arte, Artesanato e Ciência. Ci<br />
Leonardo<br />
<strong>da</strong> Vinci – que enxergava os três como um<br />
continuum – é o seu mestre. E, por último, fazer um bom<br />
vinho é provavelmente um dos poucos exemplos de equilíbrio<br />
perfeito: 1/3 Arte, 1/3 Artesanato, 1/3 Ciência.<br />
Agora, proponho num exercício individual. Divi<strong>da</strong><br />
um círculo em três, representando a configuração<br />
arte/artesanato/ciência no seu atual trabalho. Depois,<br />
imaginando o trabalho dos seus sonhos, redesenhe a<br />
combinação ideal de arte/ciência/artesanato, e se in<strong>da</strong>gue:<br />
quais elementos gostaria que aumentassem,<br />
e quais que diminuíssem? Poderia imaginar uma ativi<strong>da</strong>de<br />
para si em que sua configuração ideal fosse<br />
possível?<br />
Creio que temos o embrião de um modelo – que<br />
está longe de ser suficiente, mas poderão verificar, na<br />
prática, se é bom.<br />
AUGUSTO DIAS CARNEIRO<br />
Graduado no Instituto Tecnológico <strong>da</strong> Massachusetts - MIT<br />
MBA na Universi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Califórnia - UCLA<br />
Autor de Guia de sobrevivência na selva empresarial,<br />
Ed.Campus–Elsevier<br />
augusto@zaitech.com.br<br />
51
O<br />
52<br />
O ASSUNTO É...<br />
Concurso Público<br />
debate sobre<br />
a melhoraria<br />
quali<strong>da</strong>de do<br />
serviço público parece<br />
já ter cansado a<br />
opinião pública. O que<br />
chama a atenção é que o<br />
tema aparentemente se<br />
esgotou pela incapaci<strong>da</strong>de<br />
de se promoverem<br />
mu<strong>da</strong>nças significativas,<br />
coletando modelos<br />
e experiências que justifiquem<br />
ultrapassar os<br />
inevitáveis obstáculos<br />
políticos, corporativos<br />
e jurídicos.<br />
CLAUDIO MENDONÇA<br />
Vários países estão<br />
reeditando modelos<br />
de produtivi<strong>da</strong>de, em especial para o magistério, nos<br />
quais, basicamente, tentam atrelar os ganhos de aprendizagem<br />
dos alunos a remuneração maior aos professores.<br />
Este é o caso do estado do Kansas nos Estados<br />
Unidos, o mais antigo; há, ain<strong>da</strong>, a certificação de professores<br />
no estado de Illinois, além <strong>da</strong> recente proposta<br />
do Secretário (nome <strong>da</strong>do ao Ministro) <strong>da</strong> Educação <strong>da</strong>quele<br />
país, e o programa chileno Docentemás.<br />
Apesar disso, existe uma instituição que não<br />
tem recebido a devi<strong>da</strong> atenção do setor público brasileiro.<br />
Refiro-me ao concurso público. Não pretendo<br />
fazer defesa do que a lei já obriga, nem clamar<br />
por mais concursos, pois nos últimos anos isso tem<br />
acontecido “aos montes”, beneficiando os chamados<br />
cursinhos e as instituições avaliadoras. Não há cobrança<br />
quanto <strong>à</strong> quali<strong>da</strong>de do serviço. Quando não<br />
há escân<strong>da</strong>lo, tudo vai bem, respeitado o elementar<br />
dever de honesti<strong>da</strong>de e transparência.<br />
Mas afinal, quem é o efetivo cliente do serviço<br />
de seleção pública? A maioria vê essa ativi<strong>da</strong>de como<br />
mera contratação de instituição do ou pelo governo,<br />
que o faz para cumprir a lei face <strong>à</strong> necessi<strong>da</strong>de de<br />
pessoal. Só isso. O resto diz respeito ao edital padrão,<br />
<strong>à</strong>s “pegadinhas” nas provas, a prazos, recursos, e paramos<br />
por aí. O estágio probatório em nosso país é<br />
mera formali<strong>da</strong>de burocrática.<br />
Será que aquele jovem mergulhado em livros desde<br />
a tenra infância é capaz de gerir programas e políticas<br />
públicas de alcance social, exarar sentenças, cercear liber<strong>da</strong>des<br />
e definir alocações orçamentárias, por exemplo?<br />
A esmagadora maioria dos aprovados nesses<br />
concursos são alunos recém-formados e sem experi-<br />
ência de atuação. Por<br />
acabarem de sair dos<br />
bancos escolares, encaram<br />
bem a rotina<br />
dos cursinhos onde<br />
são literalmente adestrados.<br />
Mas podemos<br />
abrir mão <strong>da</strong> vivência,<br />
engajamento e experiência<br />
profissional para<br />
aprovar apenas pessoas<br />
comumente sustenta<strong>da</strong>s<br />
pelos pais, com<br />
grande capaci<strong>da</strong>de de<br />
memorizar conceitos e<br />
virar noites de estudo?<br />
As provas, em<br />
raríssimos casos avaliam<br />
habili<strong>da</strong>des e<br />
competências, como ler, interpretar e compreender<br />
textos; capaci<strong>da</strong>de de solucionar problemas, interrelacionar<br />
pensamentos, idéias e conceitos; sistematizar<br />
informações, dentre outras. Em pleno século XXI<br />
ain<strong>da</strong> não oferecemos computadores aos candi<strong>da</strong>tos<br />
– as provas são feitas com papel, lápis e caneta.<br />
Some-se a isto o fato de que ninguém regula ou fiscaliza<br />
as instituições executoras de concurso. E o que<br />
é pior, quem as contrata, a mais <strong>da</strong>s vezes, não é o<br />
responsável pela gestão do serviço público que vive o<br />
problema lá na ponta e sim o chefe do RH junto com<br />
a assessoria jurídica.<br />
Assim os aspectos administrativos do concurso<br />
são amplamente debatidos, mas ninguém se pergunta<br />
sobre o perfil do profissional. Na FESP, após<br />
um processo seletivo, constatou-se que 263 professores<br />
de Filosofia, História, e Língua Portuguesa se<br />
graduaram com baixíssima capaci<strong>da</strong>de de leitura e<br />
interpretação de textos. E aí começa a caríssima e comumente<br />
ineficaz luta do governo pela capacitação<br />
profissional do já empossado no emprego, que exercerá<br />
sua ativi<strong>da</strong>de por 30 a 35 longos anos.<br />
A partir dessa reflexão, ci<strong>da</strong>dãos e governo, temos<br />
que reunir os efetivos empregadores do setor público<br />
com os dirigentes universitários e discutir que<br />
tipo de profissionais estão sendo graduados e depois<br />
selecionados pelos concursos, para definir que processo<br />
seletivo o Brasil efetivamente precisa.<br />
CLAUDIO MENDONÇA<br />
Presidente <strong>da</strong> Fun<strong>da</strong>ção Municipal de Educação de Niterói
ILUSTRAÇÃO E CARICATURA<br />
Fig. 1 – Une vente d´esclaves <strong>à</strong> Rio-de-Janeiro<br />
Do Baú do Cau Barata, o traço satírico francês<br />
JOHN WESLEY FREIRE & HELENICE VALIAS<br />
A<br />
partir <strong>da</strong> Independência, estrangeiros, em especial<br />
franceses, passaram a ter acesso legal ao<br />
Brasil. Aqui vivendo, muitas vezes caricatura-<br />
no Rio de Janeiro e um Retrato do Imperador D. Pedro<br />
II. Biard chegou ao Brasil em 1858, fixando-se no Rio.<br />
Viajou, depois, pelo Amazonas e Pará e retornou para a<br />
vam o exótico que presenciavam e, bem “gaulesamen- Europa em fins de 1859. No Rio de Janeiro, fez desenhos<br />
te”, representando-o com ironia, como fazemos ao con- e procurou, em Paris, artistas para executá-los.<br />
tar pia<strong>da</strong>s sobre estrangeiros. Suas imagens mostravam<br />
Gravou este desenho de Biard o parisien-<br />
a exuberante paisagem, o ridículo <strong>da</strong> mimetização de se Adolphe Gusmand (1821-1905), estabelecido em<br />
usos e costumes europeus e os “cruéis” procedimentos Montmartre, que apresentou diversas de suas gravuras<br />
<strong>da</strong> escravidão, que horrorizaram “civilizados”, como, nos Salões de Paris, entre 1848 e 1880. De sua oficina,<br />
por exemplo, Charles Darwin. Ignoravam muitos deles o muitos trabalhos de Gustave Doré, expostos nos Salões<br />
que seus patrícios faziam nas “colônias de exploração” de Paris, e outros estampados na revista Monde Illustré.<br />
pelo mundo. Se soubessem talvez não nos achassem A ilustração retrata cena freqüente <strong>à</strong> época: num<br />
tão desumanos ou tão pouco “cristãos”.<br />
leilão, velhos “cartolas” bem trajados escolhem escravos,<br />
Pesquisador de nossa história, Carlos Eduardo criança assusta<strong>da</strong> se agarra <strong>à</strong> saia <strong>da</strong> mãe, que tem os<br />
Barata a tem relatado iconograficamente, fruto de “ga- dentes examinados por possível comprador, como se faz<br />
rimpagens” aqui e além-mar. Com<br />
com animais. No ambiente vislum-<br />
imagens e texto, prepara e publica<br />
bram-se móveis, instrumentos mu-<br />
na internet apresentações, audiovisicais<br />
e outros possíveis compradosuais<br />
ou slide-shows como se fala<br />
res de escravos.<br />
em informatês, estranha língua que<br />
Cau considera Biard “artista<br />
quer deletar o português…<br />
com tino caricaturista, retratando<br />
A seguir, algumas pérolas do<br />
satiricamente tipos e costumes ca-<br />
acervo de Cau Barata, conosco comriocas.<br />
O movimento, o relaxamento,<br />
partilha<strong>da</strong>s.<br />
quem sabe até o ‘jeitinho brasileiro’,<br />
Desenho de François-Auguste<br />
jogando conversa fora, enquanto o<br />
Biard, fig.1, (também autor de outros<br />
tempo passa, como em muitas <strong>da</strong>s<br />
quadros), pintor e desenhista (1798-<br />
prosas do nosso interior.”<br />
1882) nascido em Lion e falecido em<br />
Na figura 2, funcionário en-<br />
Fontainebleau. Participou de diversos<br />
trega Uma chave do Palácio (Impe-<br />
Salões de Belas-Artes, entre 1824 e<br />
rial) do Rio de Janeiro (a uma au-<br />
1868. No salão de 1861, apresentou<br />
tori<strong>da</strong>de?). É assinado por Biard e<br />
este desenho Uma ven<strong>da</strong> de escravos Fig. 2 – Une clé du palais de Rio-de-Janeiro<br />
Edouard Riou (1833-1900). Este,<br />
53
nascido em Saint-Servan (Illeet-Vilaine),<br />
participou de Salões<br />
de Belas-Artes em Paris, e no de<br />
1869 apresentou nove desenhos<br />
intitulados Vues de l´Amerique du<br />
Sud. Deixou milhares de desenhos<br />
admiráveis, ilustrando livros de escritores<br />
como Walter Scott, Alexandre<br />
Dumas e Jules Verne. A gravura<br />
é do parisiense Félix-Jean Gauchard<br />
(1825-72), que participou de Salões<br />
de Artes em Paris, entre 1851-72 e<br />
gravou alguns desenhos de Doré.<br />
54<br />
Fig. 3 – Les sapeurs de la garde<br />
nationale de Rio-de-Janeiro<br />
GRAVURA<br />
Para fazer cópias de textos<br />
e imagens, até o séc. XV d.C., produziam-se<br />
cópias a mão feitas por<br />
copistas, processo de resultados<br />
imprecisos, ou entalhava-se o que<br />
se queria reproduzir na madeira<br />
– xilogravura, pedras – litogravura,<br />
ou metal – calcogravura.<br />
A gravura é uma espécie<br />
de “carimbo” sobre o qual se distribui<br />
tinta; em cima dele colocase<br />
folha de papel, que, prensa<strong>da</strong>,<br />
transfere para ela a imagem. Daí<br />
a noção de imprimir. A gravura é<br />
arte cultiva<strong>da</strong> até hoje.<br />
Com a imprensa de tipos<br />
móveis de Gutenberg, não se<br />
entalhavam palavras e imagens,<br />
elas eram compostas com peças<br />
contendo, ca<strong>da</strong> uma, uma letra<br />
–, o processo tipográfico. As imagens<br />
continuaram a ser grava<strong>da</strong>s,<br />
criando os clichês e anexandolhes<br />
textos.<br />
Esta é a razão de se verem<br />
em desenhos e pinturas mais antigas<br />
os nomes do desenhista e do<br />
gravador, como seus criadores.<br />
ILUSTRAÇÃO E CARICATURA<br />
Esta curiosa caricatura de<br />
Riou e Biard, fig. 3, retrata os bombeiros<br />
(negros) em uniformes <strong>da</strong><br />
Guar<strong>da</strong> Nacional do Rio de Janeiro,<br />
portando parte de seus instrumentos<br />
de trabalho. Gravura de J. Facnion,<br />
sobre o qual não há notícias.<br />
Outro interessante desenho<br />
assinado por Riou e Biard, fig. 4, é<br />
esta cena com três “negros gaiatos”,<br />
conversando em rua do Rio de Janeiro.<br />
Nota-se que estão descalços,<br />
o que demonstra serem escravos (só<br />
homens livres podiam an<strong>da</strong>r calçados),<br />
com chapéus, fumando cigarros<br />
de palha e carregando guar<strong>da</strong>chuvas<br />
ou guar<strong>da</strong>-sóis.<br />
Gravado por um certo Lanier.<br />
Fig. 4 – Nègres gandins, <strong>à</strong> Rio-de-Janeiro<br />
A gravura assina<strong>da</strong> pelo parisiense<br />
Charles Maurand, fig. 5, nascido<br />
em 1824, e estabelecido na rua de<br />
Val-de-Grâce, 11, retrata uma <strong>da</strong>ma<br />
brasileira acompanha<strong>da</strong> de um menino<br />
(talvez filho) e seus serviçais,<br />
passeando por uma rua do Rio de<br />
Fig. 5 – Dames brésiliennes <strong>à</strong> Rio-de-Janeiro<br />
Janeiro, 1858. Destaque para o volume<br />
do vestuário, incompatível com o<br />
clima local e o calçamento <strong>da</strong>s ruas,<br />
embora compatível … com a <strong>mo<strong>da</strong></strong><br />
importa<strong>da</strong> <strong>da</strong> Europa.<br />
Maurand participou do Salão<br />
de Belas-Artes de 1881, em Paris.<br />
Fig. 6 – Vêtu de blanc<br />
A gravura é também assina<strong>da</strong><br />
por Gauchard, fig. 6. Pela expressão<br />
dos três negros, o quarto deles (de<br />
costas) estaria sendo satirizado por<br />
se vestir “como branco”, inclusive<br />
usando botas, o que indicaria ser livre<br />
ou estar indevi<strong>da</strong>mente calçado.<br />
Eis pequena seleta do rico<br />
“baú de imagens” que Cau Barata<br />
disponibiliza gratuitamente em<br />
suas muitas apresentações audiovisuais<br />
via internet. Focalizamos<br />
apenas algumas imagens de cariocas<br />
do séc. XIX, vistos pelo olhar<br />
malicioso e crítico de franceses que<br />
por aqui estiveram.<br />
Baú do Cau Barata:<br />
http://www.sport.ifcs.ufrj.br/docs/fotos.html<br />
JOHN WESLEY FREIRE &<br />
HELENICE VALIAS<br />
<strong>Professor</strong>es<br />
Editores <strong>da</strong> Educação em linha
A Library of Congress<br />
Office tem interesse<br />
em receber um exemplar<br />
dos números publicados<br />
<strong>da</strong> revista Educação em<br />
linha para serem incorporados<br />
ao nosso acervo.<br />
HANNE KRISTOFFERSEN,<br />
bibliotecária<br />
O material que vocês têm<br />
publicado é “coisa de cinema”,<br />
lindo e rico. Gostaria<br />
muito de receber os exemplares,<br />
se for possível, pois<br />
em 2010 vamos realizar a<br />
10.ª edição <strong>da</strong> nossa Feira<br />
de Livros e o país homenageado<br />
será a Espanha.<br />
MARCOS BARROZO<br />
Ribeirão Preto/SP<br />
Parabéns pela alta quali<strong>da</strong>de<br />
<strong>da</strong> revista.<br />
CARLOS NEJAR<br />
Nossa, vocês arrasaram! A revista<br />
ficou primorosíssima. Irretocável.<br />
Parabéns uma vez mais.<br />
HELENA FERREIRA<br />
Um feliz lançamento! Pena que<br />
não estarei presente. Cumprimentem<br />
em meu nome ao Presidente Sandroni<br />
e <strong>à</strong> Secretaria Tereza Porto, uma mulher<br />
competente e gentil. (...) Já folheei<br />
os exemplares que me deram na ABL.<br />
Achei-os de grande quali<strong>da</strong>de. Acima<br />
do que eu poderia esperar. Meus parabéns.<br />
Vale guar<strong>da</strong>r estas revistas como<br />
preciosa referência.<br />
NÉLIDA PIÑON<br />
Ficou tudo ótimo e bem paginado.<br />
Grato aos amigos.<br />
ARNALDO NISKIER<br />
Muito obrigado pelas revistas, e<br />
meus sinceros parabéns. Está de alta<br />
quali<strong>da</strong>de gráfica e editorialmente<br />
muito bem urdi<strong>da</strong> e sensível.<br />
MARCO LUCCHESI<br />
O tempo na longa espera pelo<br />
reconhecimento hoje dá frutos. Que<br />
alegria ver que todo o trabalho valeu,<br />
pelo simples afeto de levar cultura <strong>à</strong>s<br />
pessoas.<br />
OSCAR ESPINOLA<br />
Para mim tem sido um prazer<br />
tratar com vocês, e, agora, receber o<br />
número <strong>da</strong> revista dedicado <strong>à</strong> Espanha<br />
representa uma alegria compartilha<strong>da</strong>.<br />
Acho que ficou ótimo...<br />
LUISA TRIAS FOLCH – Grana<strong>da</strong>/Espanha<br />
Estou muito feliz com a notícia<br />
do lançamento. Vocês merecem.<br />
FALA, LEITOR<br />
Nativi<strong>da</strong>de (detalhe), 1470-75. Piero della Francesca. National<br />
Gallery, Londres<br />
Parabéns mesmo! A edição está<br />
lin<strong>da</strong>!<br />
FELIPE FERREIRA<br />
Recebi uns exemplares <strong>da</strong> revista<br />
e fiquei encantadíssima quando<br />
as folhei...Parabéns, parabéns, parabéns...<br />
Será possível ain<strong>da</strong> conseguir<br />
2 exemplares <strong>da</strong> n.º 9, para eu entregar<br />
um conjunto ao nosso IHGB?<br />
ESTHER CALDAS BERTOLETTI<br />
Impedido de ir ao lançamento,<br />
espero que tenha sido um encontro<br />
brilhante, <strong>à</strong> altura do belo trabalho<br />
de vocês.<br />
NIREU CAVALCANTI<br />
Obriga<strong>da</strong> por ter me enviado<br />
este número. Por favor envie sempre<br />
que sair um novo, pois adoro ler e<br />
divulgar entre os professores. Além<br />
<strong>da</strong> excelente quali<strong>da</strong>de dos textos, a<br />
programação visual é maravilhosa!<br />
SUELY AVELLAR – Projeto Portinari<br />
Que notícia boa saber que a<br />
revista foi impressa! Parabéns e<br />
obriga<strong>da</strong>! Afinal, somos todos beneficiários<br />
de sua luta e de seu idealismo.<br />
AIDA HANANIA – USP<br />
Parabéns pela revista, que está<br />
lin<strong>da</strong>. Muito gratos pelo texto sobre o<br />
Reynaldo. Desejamos que a festa na<br />
ABL tenha sido digna de vocês e de<br />
seu trabalho.<br />
MARIA JOSÉ E REYNALDO ALVAREZ<br />
Fiquei muito satisfeito em receber<br />
esta edição <strong>da</strong> revista. É importante<br />
preservar esta ação educacional.<br />
Desejo-lhes sucessos renovados e<br />
contínuos.<br />
ABRAHAM ZAKON<br />
Uma golea<strong>da</strong> espanhola!<br />
Parabéns<br />
CARLOS LIMA<br />
Aproveito para<br />
reiterar minhas congratulações<br />
pelo maravilhoso<br />
trabalho em<br />
Educação em Linha.<br />
JEAN LAUAND – USP<br />
Ca<strong>da</strong> número<br />
<strong>da</strong> Educação em Linha<br />
é uma agradável<br />
surpresa, por seus<br />
maravilhosos artigos<br />
e ilustrações. A ideia<br />
de números temáticos<br />
foi excelente, e<br />
depois de passearmos<br />
por várias culturas,<br />
chegamos agora<br />
<strong>à</strong> “caliente” Espanha<br />
(...). Este número traz, também, mereci<strong>da</strong><br />
homenagem ao Acadêmico<br />
Antonio Olinto, com quem tivemos<br />
enorme prazer de conviver e aprendemos<br />
muito. Vou enviar a revista<br />
aos meus contatos do mailing e tenho<br />
a certeza de que será recebi<strong>da</strong><br />
com auspiciosa alegria por todos.<br />
ANNA MARIA DE ANDRADE RODRIGUES<br />
Sem dúvi<strong>da</strong> o trabalho de vocês é<br />
bem bacana. Espero que agora consigamos<br />
ajudá-los a desenvolvê-lo.<br />
DELANIA CAVALCANTE<br />
Secretaria de Estado de Educação/RJ<br />
Fiquei muito feliz com essa<br />
conquista para nós, profissionais<br />
<strong>da</strong> educação, e para nossos alunos.<br />
Adorei !!<br />
GELMANY MELLO<br />
Parabéns a todos <strong>da</strong> revista e<br />
espero que o lançamento seja um sucesso!<br />
Já vi o que me enviaram e achei<br />
muito interessante, bonito e de conteúdo<br />
bastante cui<strong>da</strong>doso.<br />
MARIANA MARTINS<br />
Vocês encaram os desafios corajosamente<br />
e veem o mundo como um<br />
horizonte que se abre para o sucesso,<br />
necessitando ser conquistado para<br />
tornar os nossos sonhos possíveis.<br />
Otimistas que são, lançam mais luz<br />
sobre a reali<strong>da</strong>de e confirmam que<br />
não basta o “saber” (conhecimento<br />
acumulado), e não é suficiente o “saber<br />
fazer” (habili<strong>da</strong>de de aplicar esse<br />
conhecimento). É preciso, sobretudo,<br />
querer fazer (que é uma atitude,<br />
uma questão de caráter, uma questão<br />
de hábito, de compromisso com o<br />
Outro). Continuem assim, tornando<br />
o mundo mais belo. Nós professores,<br />
educadores e ci<strong>da</strong>dãos agradecemos.<br />
ALBENIDES RAMOS<br />
55
www.educacao.rj.gov.br/educacaoemlinha