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Antropofagia à moda da casa - Conexão Professor

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OUTUBRO - DEZEMBRO/2009<br />

SECRETARIA DE ESTADO DE EDUCAÇÃO<br />

DO RIO DE JANEIRO<br />

Ano III n.º 10<br />

<strong>Antropofagia</strong> <strong>à</strong> <strong>mo<strong>da</strong></strong> <strong>da</strong> <strong>casa</strong><br />

Oswald de Andrade, a utopia Antropofágica O Rio <strong>da</strong> Bela Época <br />

A descoberta do mundo Oléééé!!... Deus, a Beleza e a Arte<br />

O menino Antonio Salim Miguel – encontro & reencontros


REVISTA ELETRÔNICA ANO III, N.º 10<br />

GOVERNADOR<br />

SERGIO CABRAL<br />

VICE-GOVERNADOR<br />

LUIZ FERNANDO SOUZA<br />

SECRETÁRIA DE ESTADO DE EDUCAÇÃO<br />

TEREZA PORTO<br />

CHEFE DE GABINETE<br />

JOSÉ RICARDO SARTINI<br />

SUBSECRETÁRIO EXECUTIVO<br />

JULIO CESAR MIRANDA DA HORA<br />

SUBSECRETÁRIO DE GESTÃO E RECURSOS DE<br />

INFRAESTRUTURA<br />

SÉRGIO MENDES<br />

SUBSECRETÁRIA DE GESTÃO DA EDUCAÇÃO<br />

TERESA PONTUAL<br />

SUBSECRETÁRIA DE COMUNICAÇÃO E PROJETOS<br />

DELANIA CAVALCANTI<br />

EDITORES RESPONSÁVEIS<br />

JOHN WESLEY FREIRE E HELENICE VALIAS<br />

ILUSTRADORES<br />

ANTONIO SILVÉRIO CARDINOT DE SOUZA<br />

E RAFAEL CARNEIRO MONTEIRO<br />

CONSELHO EDITORIAL<br />

ANTONIO OLINTO - in memoriam<br />

CARLOS NEJAR<br />

CECILIA COSTA JUNQUEIRA<br />

ELIANA REZENDE FURTADO DE MENDONÇA<br />

EVANILDO BECHARA<br />

HAROLDO COSTA<br />

LAURA SANDRONI<br />

NELSON RODRIGUES FILHO<br />

ROBERTO CORRÊA DOS SANTOS<br />

AGRADECIMENTOS<br />

Aos acadêmicos <strong>da</strong> ABL: Cícero Sandroni – Presidente,<br />

Antonio Olinto (in memoriam), Carlos Nejar e Néli<strong>da</strong><br />

Piñon; a Antonio Edmilson Martins Rodrigues, Augusto<br />

Dias Carneiro, Carlos Eduardo (Cau) Barata, Carlos Lessa,<br />

Carlos Lima, Cecilia Costa Junqueira, Claudio Mendonça,<br />

Gilberto Mendonça Teles, Haroldo Costa, Jean Lauand,<br />

João Baptista Vargens, Lan, Leo Martins, Luiz Raul<br />

Machado, Nelson Rodrigues Filho, Nicolás Extremera<br />

Tapia (Espanha), Paolo Spedicato, Reginaldo Sah e Rubem<br />

Alves, pela cessão graciosa de textos e/ou imagens.<br />

Às editoras Grua, Gryphus, do Senado Federal, <strong>da</strong><br />

UNESP, EdUERJ e seus autores, em especial a Jean-<br />

Michel Massa. À ABL e suas bibliotecas, ao Instituto<br />

Cultural Antonio Olinto, ao Museu de Arte Brasileira–<br />

FAAP (Conselho e Diretoria), ao Projeto Portinari e <strong>à</strong><br />

família de Tarsila do Amaral.<br />

A Alice Gianotti, Ana Cristina Bellard Freire, Beth<br />

Almei<strong>da</strong>, Cristina Riche, Fatima Ribeiro, Helena Ferreira,<br />

Ione Teresinha de Carvalho, Joaquim Campelo Marques,<br />

Laura Suzana Rodrígues, Luciana Freire Rangel, Luisa<br />

Trias Folch, Luiz Antonio de Souza, Luiz Marchesini,<br />

Marília de Andrade, Monica Nogueira, Nadir Antonia<br />

Peinado, Rubens Piovano, Suely Avellar e Valéria Luz,<br />

pela colaboração <strong>à</strong> feitura deste número.<br />

À Angela Duque, por seu projeto gráfico, tratamento<br />

<strong>da</strong>s imagens e arte-final <strong>da</strong> revista. Aos colegas <strong>da</strong><br />

SEEDUC Antonio Silvério Cardinot de Souza e Rafael<br />

Carneiro Monteiro, pelas expressivas ilustrações; a Ailce<br />

Malfetano Mattos, Elaine Batalha, Fernan<strong>da</strong> Martins,<br />

Gisela Cersósimo, Lívia Diniz, Mag<strong>da</strong> Sayão, Maria<br />

de Lourdes Machado, Mariana Garcia, Paulo Roberto<br />

Bahiense, e a todos os que anonimamente nos aju<strong>da</strong>ram<br />

a viabilizar esta edição.<br />

SUMÁRIO<br />

03 Palavra <strong>da</strong> Secretária<br />

04 Editorial<br />

05 A descoberta do mundo<br />

09 Sobre os professores e as cozinheiras<br />

11 O menino Antonio<br />

12 Salim Miguel – encontro & reencontros<br />

14 João Cabral de Melo Neto, um diálogo com Espanha<br />

17 Oswald de Andrade – A utopia Antropofágica: uma<br />

utopia sem história<br />

20 O “gremial” e “ordeiro” Oswald de Andrade<br />

23 <strong>Antropofagia</strong> <strong>à</strong> <strong>mo<strong>da</strong></strong> <strong>da</strong> <strong>casa</strong><br />

26 O chá, o fino, o tinto e o chope: uma viagem<br />

28 O mobiliário urbano como memória do Rio<br />

30 A sábia imperatriz que morreu de amor<br />

33 O Rio <strong>da</strong> Bela Época, não tão bela assim<br />

36 <strong>Antropofagia</strong>, apropriação e carnaval<br />

39 O livro e o mar<br />

40 Oléééé!!... Deus, a Beleza e a Arte<br />

43 Euclides e a Amazônia<br />

45 História de paixão<br />

46 O bazar do Renascimento / Al-Garb 1146. Viagem<br />

onírica ao Portugal muçulmano<br />

47 Um paraíso perdido: ensaios amazônicos / A juventude<br />

de Machado de Assis (1839-1870): ensaio de biografia<br />

intelectual<br />

48 Braguinha, poeta do Rio<br />

50 Artistas, Cientistas e Artesãos<br />

52 Concurso Público<br />

53 Do baú do Cau Barata, o traço satírico francês<br />

54 Fala, leitor<br />

Os conceitos emitidos representam unicamente as posições de seus autores.<br />

Permiti<strong>da</strong> a transcrição, desde que sem fins comerciais e cita<strong>da</strong> a fonte.<br />

Edições digitais: educacao.rj.gov.br/educacaoemlinha<br />

Impressa na Clicheria Cromos Lt<strong>da</strong>.<br />

Tiragem <strong>da</strong> edição impressa: 5 mil exemplares<br />

Periodici<strong>da</strong>de: Trimestral<br />

Distribuição gratuita. Ven<strong>da</strong> proibi<strong>da</strong><br />

Contato com os editores: educacaoemlinha@educacao.rj.gov.br


PALAVRA DA SECRETÁRIA<br />

Na sequência<br />

analítica <strong>da</strong>s<br />

contribuições<br />

<strong>à</strong> formação cultural<br />

do Brasil, esta edição<br />

<strong>da</strong> Educação em<br />

linha não se detém<br />

particularmente na de<br />

um povo, mas explora<br />

facetas de culturas já<br />

focaliza<strong>da</strong>s. Ela trata<br />

do que Oswald de Andrade<br />

e outros modernistas<br />

denominaram<br />

“antropofagia cultural”<br />

ou seja, a apropriação<br />

e ressignificação<br />

de peculiari<strong>da</strong>des<br />

de diversas culturas<br />

pelos brasileiros. E<br />

que, magistralmente,<br />

Carlos Lessa, Carlos<br />

Lima, Gilberto Mendonça<br />

Teles e Nelson Rodrigues Filho corporificam<br />

em seus artigos.<br />

Ao apresentarmos a 10. a edição, destacamos<br />

fatos significativos: na XIV Bienal do Livro, com<br />

a revista recém-impressa, professores, editores e<br />

autori<strong>da</strong>des que a receberam foram unânimes nos<br />

elogios <strong>à</strong> impressão, ao conteúdo e <strong>à</strong> forma.<br />

Em outubro, mês de comemoração do Dia<br />

do Mestre, outras ocorrências o tornaram mais<br />

memorável para a SEEDUC/RJ – fomos honrados<br />

pela Academia Brasileira de Letras, guardiã e<br />

cultora maior <strong>da</strong> língua e literatura pátrias, que<br />

nos franqueou suas dependências para o lançamento<br />

<strong>da</strong> revista impressa. Cícero Sandroni, jornalista<br />

e escritor, Presidente <strong>da</strong> Casa, enalteceu<br />

o feito diante <strong>da</strong> dificul<strong>da</strong>de de editar e manter<br />

em circulação um periódico <strong>da</strong> quali<strong>da</strong>de de<br />

Educação em linha.<br />

Mais recentemente, a revista foi apresenta<strong>da</strong><br />

pelos editores a Secretários Municipais de<br />

Educação e ao Conselho Estadual de Educação,<br />

a convite de seu Presidente, Prof. Paulo Alcantara,<br />

em sessão itinerante na UCP, em Petrópolis. E<br />

ALÔ, PROFESSOR<br />

TEREZA PORTO<br />

a Biblioteca do Congresso<br />

dos Estados<br />

Unidos nos solicitou<br />

exemplares <strong>da</strong> revista<br />

para seu acervo.<br />

Por tudo isto,<br />

destaque-se o coroamento<br />

<strong>da</strong> persistência<br />

<strong>da</strong> pequena equipe <strong>da</strong><br />

revista; a prestimosa<br />

ação dos membros do<br />

Conselho Editorial; a<br />

crescente cooperação<br />

de autores, e a confiança<br />

de que o veículo,<br />

antes apenas eletrônico,<br />

agora impresso,<br />

desperta no público<br />

leitor: a comprovação<br />

de que a Secretaria de<br />

Estado de Educação/RJ<br />

acertou integralmente<br />

ao acolhê-la.<br />

Chamo a atenção para o artigo <strong>da</strong> acadêmica<br />

Néli<strong>da</strong> Piñon, pela acui<strong>da</strong>de com que trata o tema<br />

educação, ao afirmar: “Educar é prender o aluno<br />

<strong>à</strong> escola, empenhar todos os recursos para<br />

evitar a evasão escolar, a fuga <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. É despertar<br />

nele o desejo de vir a ser um projeto existencial<br />

magnífico, sem brechas, fissuras. De vir<br />

a ser no futuro um congressista, um artista, um<br />

escritor, um operário, um mestre. Alguém que,<br />

ao explorar sua irrenunciável voca ção para a<br />

vi<strong>da</strong>, nela inclua como meta o saber, o desven<strong>da</strong>mento<br />

<strong>da</strong> inteligência, o coração ardente,<br />

a mira<strong>da</strong> camaleônica e reveladora”.<br />

Reiterando agradecimentos a todos os que<br />

contribuíram <strong>à</strong> concretização do sonho Educação<br />

em linha, comprometemo-nos, no novo ano<br />

que se aproxima, a envi<strong>da</strong>r esforços por seu crescimento<br />

quantitativo e qualitativo. Aos leitores e<br />

colaboradores <strong>da</strong> revista e aos colegas <strong>da</strong> SEEDUC<br />

os votos de paz e prosperi<strong>da</strong>de em 2010.<br />

Anunciação de Maria, do escultor catalão Joan Flotats (1847-<br />

1917). Cripta do Templo <strong>da</strong> Sagra<strong>da</strong> Família, Barcelona<br />

TEREZA PORTO<br />

Secretária de Estado de Educação<br />

3


Em 2009 Educação em linha completou mais<br />

um ano de existência. Tão agradável diálogo<br />

se manteve graças <strong>à</strong> conjugação de esforços<br />

de servidores <strong>da</strong> SEEDUC, editores, colaboradores e<br />

membros do Conselho Editorial <strong>da</strong> revista, e a interação<br />

com os leitores.<br />

Em linha com a educação, Néli<strong>da</strong> Piñon, acadêmica<br />

e professora, apresenta magnífica reflexão<br />

com A descoberta do mundo, e Rubem Alves, professor<br />

e psicanalista, faz interessante analogia entre os<br />

misteres <strong>da</strong> sala de aula e <strong>da</strong> cozinha em Sobre os<br />

professores e as cozinheiras.<br />

Na busca de melhor compreensão <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de<br />

nacional, fez-se releitura <strong>da</strong> temática <strong>da</strong> <strong>Antropofagia</strong>:<br />

o ritual de devoração canibal do europeu por<br />

nossos índios, objeto dos relatos e fantasias dos cronistas<br />

que por aqui estiveram; a retoma<strong>da</strong> simbólica<br />

do tema no discurso dos anos 20, dos primeiros modernistas,<br />

dos quais se destaca Oswald de Andrade; e<br />

a analogia do processo de apropriação e assimilação<br />

cultural estrangeira feita pelos brasileiros, ao longo<br />

dos cinco séculos de construção <strong>da</strong> nossa brasili<strong>da</strong>de.<br />

Quatro magistrais artigos tratam do assunto: <strong>Antropofagia</strong><br />

<strong>à</strong> <strong>mo<strong>da</strong></strong> <strong>da</strong> <strong>casa</strong>, de Carlos Lessa; Oswald<br />

de Andrade – a utopia antropofágica: uma utopia<br />

sem história, de Carlos Lima; O “gremial” e “ordeiro”<br />

Oswald de Andrade, de Gilberto Mendonça Teles; e<br />

<strong>Antropofagia</strong>, apropriação e carnaval, de Nelson Rodrigues<br />

Filho.<br />

Se um escritor só morre<br />

quando morrer seu último<br />

leitor. Sempre que houver<br />

leitores ou for lembrado, permanecerá<br />

presente. O leitor<br />

dá sobrevi<strong>da</strong> ao autor, numa<br />

espécie de imortali<strong>da</strong>de. Ilustram<br />

isto Antonio Olinto, que<br />

há pouco nos deixou, apresentando<br />

Euclides e a Amazônia,<br />

homenagem a outro imortal<br />

escritor, cujo precioso legado<br />

inclui Um paraíso perdido:<br />

ensaios amazônicos. Carlos<br />

Nejar, acadêmico como os citados,<br />

com a delica<strong>da</strong> palavra<br />

sobre o “menino” Olinto.<br />

Cícero Sandroni, Presidente<br />

<strong>da</strong> ABL, fala sobre o<br />

amigo que recentemente recebeu<br />

o Prêmio Machado de Assis,<br />

Salim Miguel – encontro<br />

& reencontros e a realização<br />

conjunta <strong>da</strong> revista Ficção<br />

que “marcou fundo a história<br />

recente <strong>da</strong> literatura brasileira”.<br />

Da Espanha, o professor<br />

Nicolás Extremera Tapia lembra<br />

outro amigo, o acadêmico<br />

João Cabral de Melo Neto, um<br />

4 4<br />

ALÔ, PROFESSOR<br />

EDITORIAL<br />

Anjos musicistas. Agostino di Duccio.<br />

Templo Malestiano, Rimini, Itália<br />

diálogo com Espanha. Os paradigmáticos Monteiro<br />

Lobato e Cervantes são focalizados por Luiz Raul<br />

Machado, em História de paixão.<br />

Como a música também imortaliza, Haroldo<br />

Costa recor<strong>da</strong> Braguinha, poeta do Rio, ci<strong>da</strong>de lembra<strong>da</strong><br />

por Antonio Edmilson Martins Rodrigues em<br />

O Rio <strong>da</strong> Bela Época, não tão bela assim, e por Reginaldo<br />

Sah com O mobiliário urbano como memória<br />

do Rio. Por sua vez, Do baú do Cau Barata, aberto<br />

aos editores, o traço satírico francês – o olhar malicioso<br />

e crítico de franceses que por aqui estiveram<br />

no séc. XIX. O professor Jean Lauand surpreende<br />

ao demonstrar que o olé <strong>da</strong>s toura<strong>da</strong>s e do futebol<br />

tem origem árabe e religiosa, com: Oléééé!!... Deus,<br />

a Beleza e a Arte.<br />

Tratando de memórias, a jornalista Cecilia Costa<br />

Junqueira recor<strong>da</strong> A sábia imperatriz que morreu<br />

de amor, e o professor João Baptista Vargens nos oferece,<br />

com sua experiência por outras terras: O chá, o<br />

fino, o tinto e o chope: uma viagem. O professor italiano<br />

Paolo Spedicato estabelece curiosa ponte poética<br />

entre Ligúria e a costa brasileira, especificamente<br />

a Bahia, onde vive, através de O livro e o mar.<br />

O bazar do Renascimento, de Jerry Brotton, e<br />

Al-Garb 1146: viagem onírica ao Portugal muçulmano,<br />

de Alberto Xavier – dois livros reveladores sobre<br />

as relações religiosas, políticas, econômicas e culturais<br />

entre os mundos cristão, islâmico e ju<strong>da</strong>ico.<br />

Revelador por excelência dos primeiros anos<br />

<strong>da</strong> carreira do nosso Bruxo – e<br />

para melhor compreensão de<br />

sua obra, somando o biográfico<br />

ao literário –, a reedição<br />

de A juventude de Machado de<br />

Assis, do professor Jean-Michel<br />

Massa, confirma “a mestria com<br />

que sabe associar o faro de investigador<br />

ao espírito crítico” e<br />

“traça o panorama de uma época<br />

menos conheci<strong>da</strong> <strong>da</strong> nossa<br />

literatura”.<br />

Os recursos humanos são<br />

tratados em Artistas, Cientistas<br />

e Artesãos, pelo “caçador” de talentos<br />

Augusto Dias Carneiro, e<br />

Claudio Mendonça, Presidente <strong>da</strong><br />

Fun<strong>da</strong>ção Educacional de Niterói,<br />

questiona aspectos do Concurso<br />

Público, tal como ele ocorre.<br />

Por fim, dedicamos o<br />

sucesso de nosso trabalho aos<br />

que para ele contribuíram: colaboradores<br />

e leitores. Seja 2010<br />

um ano de fecun<strong>da</strong>s realizações<br />

para todos!<br />

HELENICE VALIAS E<br />

JOHN W. FREIRE<br />

Editores


Bem sabemos que to<strong>da</strong>s as civilizações meditaram<br />

so bre o destino humano. Elas, ain<strong>da</strong> hoje, estão<br />

presentes no ato de falar, de pensar, de intuir, de<br />

ser quem somos. O fazer contemporâneo depende de<br />

considerações pretéri tas que atualizamos até os nossos<br />

dias. Não há como aper feiçoar os tempos modernos,<br />

ou modelar um ponto de vista <strong>da</strong> época atual, sem<br />

cultivar estes legados. Sem deixar de alimentar o sentimento<br />

sinestésico estabelecido com aque les que nos<br />

antecederam na inesgotável batalha <strong>da</strong> sobre vivência<br />

e <strong>da</strong> sucessão. Afinal, o que somos senão sombras que<br />

florescem, vozes que entoam epifanias?<br />

Assim, o patrimônio cultural está presente no<br />

esforço do mestre de filtrar os encontros civilizadores,<br />

de encaixá- los na sensibili<strong>da</strong>de do aluno, de captar os<br />

ruídos do lar, que é a miniatura <strong>da</strong> escola, e de onde<br />

todos procedem. Pois, quem melhor que a escola e o<br />

lar, para oferecer ao aluno a essência e os restos de<br />

um saber instalado no coração dos homens, e fazê-lo<br />

eclodir <strong>à</strong> medi<strong>da</strong> que lhe pro voque a inteligência, o interesse,<br />

a convicção <strong>da</strong> própria humani<strong>da</strong>de.<br />

O universo escolar, onde se operam as metamorfoses<br />

sociais, foge do meu ajuizamento. Rondo o<br />

prédio <strong>da</strong> es cola, que em geral leva gravado no frontispício<br />

o nome de um ilustre brasileiro, e quase na<strong>da</strong> sei<br />

de sua efervescência. Neste campo, embora brasileira<br />

apaixona<strong>da</strong>, sou incapaz de propor um modelo em oposição<br />

ao atual e que gere resultados positivos. Afinal,<br />

vem de muito longe o fracas so educacional brasileiro.<br />

EDUCAÇÃO EM DIÁLOGO<br />

NÉLIDA PIÑON<br />

A<br />

DESCOBERTA<br />

DO MUNDO*<br />

Vem <strong>da</strong> incúria pública, <strong>da</strong> in sensibili<strong>da</strong>de social, <strong>da</strong><br />

falta de uma decisão política capaz de assegurar uma<br />

eficaz revolução educacional cobra<strong>da</strong> pela socie<strong>da</strong>de.<br />

E igualmente não me ocorre a forma pela qual aliciar<br />

ao mesmo tempo o Estado e o conjunto social.<br />

De envolvê-los em um projeto disposto a liberar os<br />

grilhões impostos <strong>à</strong> escola e ao professor e a criar<br />

um porvir libertário. Ignoro como erigir uma escola<br />

que em seu ful cro, além de atender <strong>à</strong>s deman<strong>da</strong>s <strong>da</strong><br />

educação básica, concilie antagonismos, estimule<br />

controvérsias, enseje o debate contestatório. Ingredientes<br />

que, em conjunto, ou isolados, impulsionam<br />

educação e cultura, enlaça<strong>da</strong>s e inseparáveis, a criar<br />

um ci<strong>da</strong>dão livre.<br />

Não sei, assim, como divisar uma escola que<br />

expresse as mu<strong>da</strong>nças há muito crava<strong>da</strong>s no coração<br />

social. E cuja sabedoria, intrínseca, repudie a<br />

pasteurização <strong>da</strong> reali<strong>da</strong> de a pretexto de impor ao<br />

cérebro dos alunos uma simpli ficação que justifique<br />

seus desacertos, sua incompetência, sua omissão. A<br />

ausência, enfim, de um sentimento visio nário com o<br />

qual construir um grande país.<br />

Talvez a escola dos sonhos seja simultaneamente<br />

o ter ritório <strong>da</strong> crise e o lugar <strong>da</strong> solução. Em<br />

tal escola, deve subsistir, perdurar, como prova até<br />

do seu magnetismo secular, o eterno conflito entre o<br />

individualismo e o ideal coletivo. Nesta escola, enquanto<br />

o ideal coletivo, desde uma perspectiva solidária,<br />

combate o código elitista que isola a maioria<br />

5


Foto: Euzivaldo Queiroz<br />

<strong>da</strong> população brasileira, o individualismo, em defesa<br />

do espírito libertário no qual se estriba, assu me<br />

a responsabili<strong>da</strong>de social que lhe é devi<strong>da</strong> graças<br />

aos benefícios provindos do exercício <strong>da</strong> própria liber<strong>da</strong>de.<br />

Nesta espécie de escola, cabem to<strong>da</strong>s as perguntas<br />

e a admissão de todos os problemas nacionais.<br />

E nem po deria ser diferente, se o Brasil in<strong>da</strong>ga-se<br />

<strong>à</strong> exaustão como agir perante o aluno que,<br />

recém-chegado <strong>à</strong> escola, traz consigo, como única<br />

bagagem, uma cultura primária, o conhecimento<br />

escasso, quase inexistente, <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de circun<strong>da</strong>nte.<br />

Um aluno que, marginalizado <strong>da</strong>s benesses<br />

culturais, e ofuscado pelo brilho do mundo, apenas<br />

dis põe <strong>da</strong>s migalhas que a grei familiar, desfalca<strong>da</strong><br />

de tudo, assegurou-lhe como única herança de<br />

amor e de atribu to moral.<br />

Este quadro social, a condenar os brasileiros<br />

ao de gredo, impõe, em contraparti<strong>da</strong>, a in<strong>da</strong>gação:<br />

acaso cabe <strong>à</strong> escola consoli<strong>da</strong>r estes valores, conservar<br />

o aluno em um estado indigente, a pretexto<br />

de não desmoronar suas convicções familiares, de<br />

não ofender suas raízes, seu orgulho cultural? Acaso,<br />

em nome de uma ideologia hi pócrita, de uma<br />

valorização cultural localista, é válido privá-lo dos<br />

benefícios provindos de uma revolução mental,<br />

mantê-lo afastado de um sistema linguístico sofisticado,<br />

isolá-lo do protagonismo social? E negar-lhe,<br />

Escola indígena waimiri atroari. Norte <strong>da</strong> Amazônia.<br />

Acervo Proindio/UERJ<br />

6<br />

EDUCAÇÃO EM DIÁLOGO<br />

como consequência, o privilégio de usufruir de uma<br />

reali<strong>da</strong>de progressista, só por haver nascido em um<br />

berço social mente condenado?<br />

As respostas doem, assim como as perguntas.<br />

Contu do, o que impulsiona a socie<strong>da</strong>de moderna<br />

é a inabalável convicção de que educação e cultura<br />

se destinam, indis crimina<strong>da</strong>mente, a pobres e<br />

ricos, <strong>à</strong> mulher e ao homem, sem distinções de credos,<br />

etnias, gênero, preferências sexuais, <strong>da</strong>s categorias<br />

que expressam a diversi<strong>da</strong>de e o pluralismo<br />

do planeta. Um príncípio soberano a reque rer que<br />

as cama<strong>da</strong>s desfavoreci<strong>da</strong>s do Brasil ingressem<br />

preferencialmente nas projeções <strong>da</strong>s estatísticas<br />

oficiais que, em geral, pautam suas decisões considerando<br />

os seg mentos sociais produtivos.<br />

Vivemos todos em uma galáxia humanística.<br />

E não devemos perder de vista aqueles conceitos<br />

que cobram <strong>da</strong> escola e <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de uma<br />

poética <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de. Uma poética capaz de valorizar<br />

ao mesmo tempo a aventura de viver e o convívio<br />

com o saber. Empenha<strong>da</strong> em acreditar que<br />

o pensar, mesmo de alta elaboração, não sendo<br />

em si excludente, arrasta em seu interior, em sua<br />

disciplina expansionista, to<strong>da</strong>s as categorias sociais,<br />

todos os sentimentos engendrados pelo ser<br />

humano.<br />

Como consequência desta crença, há que<br />

humanizar o humano. Recuperar o logos na sua<br />

dimensão dupla, de razão e de conteúdo de linguagem.<br />

Há que reconhe cer a escola e a socie<strong>da</strong>de<br />

como responsáveis por uma pe<strong>da</strong>gogia que, havendo<br />

falhado na formação de princípios que alargam<br />

o espírito humano, terminou por vertebrar<br />

o sujeito social. E que, ao oferecer ao ci<strong>da</strong>dão o<br />

arremedo de uma democracia plena, concede-lhe,<br />

isto sim, falsas prerrogativas. Em especial quando<br />

se descui <strong>da</strong> de seus direitos e imprime <strong>à</strong> ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia<br />

ilusões irrea lizáveis.<br />

Com frequência desconfio de sermos vítimas<br />

de uma impostura social por parte de quem,<br />

a pretexto de adiar soluções de problemas asfixiantes,<br />

cria nomenclaturas vácuas, alia-se ao politicamente<br />

correto, com tal artifício dissimulando<br />

questões reais.<br />

Dificilmente o Brasil será uma nação soberana<br />

se não proclamar a cartilha como uma alavanca<br />

simbólica. Sem ela, uma legião de desesperados,<br />

desfalca<strong>da</strong> de fé no siste ma social, há de refugiar-se<br />

na violência, na morte preco ce. Para estes revoltados,<br />

a cela, substituindo a educação que redime o<br />

homem, torna-se uma impiedosa carta de alforria.<br />

A despeito, contudo, do fracasso dos sucessivos<br />

gover nos de enfrentarem a falência educacional,<br />

subsiste a fi gura heroica do professor que, levando<br />

a mochila nas costas, com os pés cansados, rastreia<br />

o Brasil. E oferta aos alunos, assombrados ante as<br />

primeiras manifestações <strong>da</strong> educação formal, as pa-


EDUCAÇÃO EM DIÁLOGO<br />

lavras que são o<br />

Foto: João Guilherme Cunha – Acervo Projeto Portinari<br />

procede de quem<br />

alento <strong>da</strong> presença<br />

aju<strong>da</strong> a crescer,<br />

civilizadora.<br />

de quem impul-<br />

Às margens<br />

siona o próximo<br />

dos igarapós e dos<br />

a transformar-se,<br />

igarapés, próximo <strong>à</strong><br />

a modificar-se,<br />

choupana de sapé<br />

a sofrer a meta-<br />

que é a escola, enmorfose<br />

que a<br />

quanto tremula no<br />

educação impõe.<br />

mastro a bandeira<br />

Educar, po-<br />

brasileira em franrém,<br />

não é empogalhos,<br />

ele mostra<br />

brecer quem é po-<br />

aos alunos o pribre,<br />

quem padece<br />

meiro livro que co-<br />

<strong>da</strong> penúria social,<br />

nhecem. Uma cena<br />

para oferecer-lhe<br />

que de certa feita<br />

uma educação de<br />

presenciei no Ama-<br />

segun<strong>da</strong> classe, a<br />

zonas e persegueme<br />

até hoje. Ali<br />

pretexto de fazê-<br />

Suely Avellar apresenta Portinari aos ribeirinhos. Pantanal Matogrossense lo entender o que,<br />

está ele, investido<br />

de outro modo,<br />

de autori<strong>da</strong>de quase litúrgica, a falar- lhes do que é não estaria <strong>à</strong> altura <strong>da</strong> sua compreensão.<br />

novo. A fazer-lhes ver que ca<strong>da</strong> aluno, de onde proce- Educar não é humilhar o aluno privando-o<br />

<strong>da</strong>, pertence <strong>à</strong> esfera <strong>da</strong> língua portuguesa, graças <strong>à</strong> de um sa ber que o pode elevar a um patamar supe-<br />

qual expressa sua humani<strong>da</strong>de, suas urgências oníririor. Nem lhe ofertar o ensino idêntico ao que tem<br />

cas, a geografia tridimensional de sua terra que, por ele em <strong>casa</strong>, no seu cotidiano espezinhado.<br />

si, é um projeto imaginativo.<br />

Educar não lhe é <strong>da</strong>r a metade de uma língua<br />

Ao atraí-los para o centro <strong>da</strong> gravi<strong>da</strong>de cultu- que con sagra os erros trazidos de <strong>casa</strong>, a caricatura<br />

ral, o pro fessor demonstra-lhes que são um a mais do que ele representa, e fazer dele um experimen-<br />

na extensa ca deia de pequenos heróis. Enquanto to pe<strong>da</strong>gógico que ignora a redenção civilizadora.<br />

assegura-lhes que o prazer, originário do conheci- Não é privá-lo de um co nhecimento que o leve um<br />

mento, <strong>da</strong> sabedoria, corresponde ao gozo <strong>da</strong> carne, dia a igualar-se ao saber de quem pode mais que<br />

<strong>à</strong> alegria do amor, ao misteri oso sentimento que ele, teve mais chances que ele, ouviu melhor que<br />

invade a todos quando a inteligência, uma vez ma- ele, leu melhor que ele.<br />

nifesta, ilumina a floresta.<br />

Educar é também desconsiderar os obstácu-<br />

Aristóteles, no livro Política, dizia que para los <strong>da</strong> mi séria e do obscurantismo, e fazer a crian-<br />

governar é preciso haver sido antes um governado. ça sonhar, o ado lescente derrubar os entraves cul-<br />

Parafraseando o filósofo, para ser um professor há turais, para que pleiteiem um mundo <strong>à</strong> altura <strong>da</strong><br />

que ter sido um aluno. Uma perspectiva que, apli- sua imaginação.<br />

ca<strong>da</strong> ao mestre, jamais esgota o seu processo edu- Educar é fazer o aluno fruir dos bens do placacional.<br />

Uma vez que o saber, em uma progressão neta em to<strong>da</strong>s as suas manifestações. Para que sua<br />

insaciável, está sempre desatualizado, ignora ain- fantasia, seu verbo, sua linguagem, sejam libertárias,<br />

<strong>da</strong> o que será forçado a registrar no dia seguinte. destemi<strong>da</strong>s, sem freios. É fazer do ato de pensar um<br />

Daí ser forçoso reconhecer que o estatuto cultural feito tão natural quan to respirar. Um dom ao alcance<br />

atualiza-se mediante a absoluta rendição em face de todos, independente de sua condição.<br />

de novos saberes.<br />

Educar é defender o exercício e a prática que<br />

Mas, enquanto o professor padece de contí- transfor mam o sujeito passivo em sujeito <strong>da</strong> própria<br />

nua trans formação, é <strong>da</strong> sua liturgia apresentar- história. É <strong>da</strong>r fé a quem esteja na sala de aula de ser<br />

se diante do aluno como uma figura transcendente ele uma enti<strong>da</strong> de inviolável, uma aposta do futuro.<br />

que, mediando o saber e a ignorância, exerce seu Educar é prender o aluno <strong>à</strong> escola, empenhar<br />

ofício com inconteste autori<strong>da</strong> de. Uma autori<strong>da</strong>de todos os recursos para evitar a evasão escolar, a<br />

que dispensa a intimi<strong>da</strong>de licenciosa, o uso do tra- fuga <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. É despertar nele o desejo de vir a ser<br />

tamento desrespeitoso, a pretexto de distor cidos um projeto existencial magnífico, sem brechas,<br />

direitos democráticos.<br />

fissuras. De vir a ser no futuro um congressista,<br />

Assim, mestre é mestre, aluno é aluno. Ambos um artista, um escritor, um operário, um mestre.<br />

guar <strong>da</strong>ndo entre si a distância propícia ao afeto e ao Alguém que, ao explorar sua irrenunciável voca-<br />

respeito, que consoli<strong>da</strong> a autonomia de ca<strong>da</strong> qual, os ção para a vi<strong>da</strong>, nela inclua como meta o saber, o<br />

direitos de todos. Mesmo porque a palavra autori<strong>da</strong>de des ven<strong>da</strong>mento <strong>da</strong> inteligência, o coração arden-<br />

7


te, a mira<strong>da</strong> camaleônica e<br />

reveladora.<br />

Educar é também convencer<br />

alunos e ci<strong>da</strong>dãos de<br />

que o professor é a única enti<strong>da</strong>de<br />

social capaz de modificar<br />

a socie<strong>da</strong>de e torná-la<br />

melhor. É um ser aparelhado<br />

para opor-se <strong>à</strong> barbárie. Pois<br />

quem, senão o Mestre, tem<br />

a habi li<strong>da</strong>de de chegar mais<br />

perto e rapi<strong>da</strong>mente ao coração<br />

jovem que recém deixou<br />

as paredes <strong>da</strong> <strong>casa</strong>?<br />

Educar é aju<strong>da</strong>r a traduzir<br />

historicamente o que sepa ra<br />

os indivíduos, enquanto lhes<br />

explica o que pode uni-los sob a<br />

tutela <strong>da</strong> lei e <strong>da</strong> soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de<br />

ci<strong>da</strong>dã. É auxiliar a distinguir o<br />

que pertence <strong>à</strong> órbita do individual<br />

e o que emerge do coletivo.<br />

Educar é combater a reali<strong>da</strong>de<br />

reducionista do aluno,<br />

é introjetar em sua caixa de<br />

memória o desejo irrenunciável<br />

de apropriar-se do conhecimento. É fomentar-lhe<br />

o gosto pela leitura que, por si mesmo, combate a<br />

resignação, a passivi<strong>da</strong>de, e concede-lhe, em troca,<br />

infindáveis oportu ni<strong>da</strong>des, <strong>da</strong>ndo-lhe o acesso ao infinito<br />

mundo.<br />

Educar é fazer crer ao aluno, e por consequência<br />

<strong>à</strong> so cie<strong>da</strong>de, que a imaginação está ao alcance de<br />

todos. Com ela, esgrime-se o cotidiano, compatibiliza-se<br />

sonho e rea li<strong>da</strong>de, apropria-se do que até então<br />

não havíamos apren dido.<br />

Educar é combater o trivial, o frívolo, o que<br />

permane ce na área dos equívocos acumulados. É aju<strong>da</strong>r<br />

a formar um indivíduo para que ele possa decidir,<br />

com rara proprie <strong>da</strong>de, de que modo conduzir sua<br />

vi<strong>da</strong>. É permitir que a matéria humana, <strong>da</strong><strong>da</strong> a sua<br />

transcendência moral, con verta-se finalmente em um<br />

ser, uma pessoa, um bem in tangível.<br />

O ser educado nasce, no entanto, de intricado<br />

puzzle, que não se termina de armar. Sua interpretação<br />

<strong>da</strong>s coi sas não se origina de atos espontâneos, ou <strong>da</strong><br />

falsa intui ção que dita regras do saber. Se nosso corpo<br />

é uma legítima obra de arte, há que buscar correspondência<br />

entre este corpo e a mente. É forçoso atravessar<br />

o intenso processo de aprendizagem de modo a alcançar<br />

a maturação <strong>da</strong> in teligência, a desfrutar de uma<br />

matriz com fecun<strong>da</strong>s irra diações culturais.<br />

E sendo todos partícipes desta epopeia cultural,<br />

ja não podemos aceitar, passivos, que a população<br />

brasileira, manti<strong>da</strong> <strong>à</strong> margem do processo educacional,<br />

seja vítima de uma prática que corresponde a um<br />

genocídio. Pois há várias maneiras de matar sem o<br />

8<br />

EDUCAÇÃO EM DIÁLOGO<br />

uso de arma. Mata-se também<br />

mantendo o brasileiro<br />

afásico, cancelando-lhe o<br />

ar bítrio, o livro, confinando-o<br />

<strong>à</strong> ignorância, não lhe<br />

cedendo ocasião para refletir<br />

sobre o universo.<br />

A ver<strong>da</strong>deira separação<br />

de classe reside, de<br />

fato, em quem tem cultura<br />

e quem não a tem. Em<br />

quem dispõe de informação<br />

e quem não a pode utilizar<br />

como instrumen tal de vi<strong>da</strong>.<br />

Pois que é parte intrínseca<br />

<strong>da</strong> educação mani pular os<br />

segredos inerentes <strong>da</strong> linguagem,<br />

do pensamento.<br />

É saber distinguir<br />

entre o que é objeto de uma<br />

reflexão personaliza<strong>da</strong> e o<br />

que aflora sem esforço <strong>à</strong><br />

superfície. É estabelecer<br />

relações de força entre os<br />

vários saberes e apro ximar<br />

os diversos nexos e articulações<br />

culturais, <strong>da</strong>ndo- lhes, como consequência, um<br />

sentido e destino. É aju<strong>da</strong>r a pensar de maneira a<br />

auferir a reali<strong>da</strong>de e examinar sua conveniência.<br />

Portanto, mais que espelhar a informação obti<strong>da</strong>,<br />

a educação auxilia a li<strong>da</strong>r com ela. De forma que o<br />

acúmulo de informações não asfixie o desenvolvimento<br />

do pensa mento. Não torne o ci<strong>da</strong>dão um adicto <strong>da</strong><br />

informação, em prejuízo do ato mesmo de pensar, incapaz<br />

de expurgar o que desserve <strong>à</strong> vocação reflexiva.<br />

Esta educação, que pleiteia preparar o indivíduo<br />

para o exercício <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia plena, para a digni<strong>da</strong>de<br />

do em prego, para vir a ser o bom governado<br />

e o bom governante, tem em vista conclamar que um<br />

país só se torna viável se enseja a educação de todos.<br />

Porque educar, acima <strong>da</strong>s benesses pe<strong>da</strong>gógicas, é repartir<br />

entre os alunos os con ceitos que emanam <strong>da</strong><br />

nossa humani<strong>da</strong>de. É acreditar que, fora <strong>da</strong> educação<br />

e do saber, tudo se converte em um caos anticriativo,<br />

turbulento. É apostar na civilização contra o obscurantismo<br />

e a barbárie.<br />

É, finalmente, reverenciar, hoje e sempre, a figura<br />

do professor que nos tomando pela mão, enlaçados<br />

pelo mes mo ideal, leva-nos a frequentar o próprio<br />

mistério, o cora ção alheio, a visitar a memória, as<br />

civilizações pretéritas que residem em nós.<br />

NÉLIDA PIÑON<br />

Escritora<br />

Membro <strong>da</strong> Academia Brasileira de Letras<br />

Autora, entre outros, de Vozes do deserto, Aprendiz de<br />

Homero e Coração an<strong>da</strong>rilho (Ed. Record)<br />

*Excerto do capítulo, pp. 229-39, <strong>da</strong> obra Aprendiz de Homero


EDUCAÇÃO EM DIÁLOGO<br />

Sobre os <strong>Professor</strong>es e as Cozinheiras*<br />

Olho para a educação com olhos de<br />

cozinheira e me pergunto: que comi<strong>da</strong>s se<br />

preparam com os corpos e mentes <strong>da</strong>s crianças<br />

e adolescentes nesses imensos caldeirões<br />

chamados escolas?<br />

Ridendo dicere severum.<br />

(Brincando, dizem-se coisas sérias.) Nietzsche<br />

Antes de dizer o que tenho<br />

a dizer sobre educação<br />

sinto necessi<strong>da</strong>de<br />

de <strong>da</strong>r aos meus leitores<br />

uma informação sobre minha<br />

i<strong>da</strong>de. Sei que isso pode parecer<br />

irrelevante, de um ponto<br />

de vista científico, pois para a<br />

ciência a ver<strong>da</strong>de não tem i<strong>da</strong>de.<br />

Mas eu não sou um cientista.<br />

Apenas sigo um conselho<br />

de Kierkegaard, que dizia<br />

que “a pessoa que fala sobre<br />

a vi<strong>da</strong> humana, que mu<strong>da</strong><br />

com o passar dos anos, deve<br />

ter o cui<strong>da</strong>do de declarar sua<br />

i<strong>da</strong>de aos seus leitores”. Isso<br />

para que os leitores, conscientes<br />

do tipo de olhos que estão<br />

sendo usados por aquele que<br />

escreve, possam fazer os devidos<br />

ajustamentos nos seus<br />

próprios olhos.<br />

(O mundo, visto através<br />

de um olhar matinal, não<br />

é o mesmo, quando visto<br />

através de um olhar crepuscular.<br />

Uma lin<strong>da</strong> ilustração<br />

deste fato se encontra nas telas<br />

de Monet, que pintava o<br />

mesmo monte de feno muitas<br />

vezes, pelas diferentes horas<br />

do dia: sob ca<strong>da</strong> luz diferente<br />

o monte de feno se transformava<br />

em outra coisa. Meu<br />

olhar é crepuscular.)<br />

É possível que Barthes<br />

tenha lido Kierkegaard, pois<br />

o fato é que, ao final de sua<br />

Aula, ele confessa que o seu<br />

jeito de pensar decorria do momento<br />

crepuscular em que vivia.<br />

Partindo dessa confissão,<br />

ele descreve os três momentos<br />

na vi<strong>da</strong> de um professor.<br />

RUBEM ALVES<br />

Imagens <strong>da</strong> Catedral de Rouen, França, pinta<strong>da</strong>s<br />

por Monet (1893-94), em diferentes horas<br />

do dia, mostrando influências que a luz pode<br />

exercer sobre a percepção <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de<br />

Há um tempo na vi<strong>da</strong> em que o professor ensina<br />

aquilo que sabe: transmite aos seus alunos os<br />

conhecimentos sedimentados, as receitas que a experiência<br />

passa<strong>da</strong> testou e aprovou. Vem depois o<br />

tempo em que o professor ensina o que não sabe.<br />

Havendo navegado por muitos mares, o professor se<br />

encontra com o aluno, que lhe diz: “Quero navegar<br />

naquele mar!” – e ao dizer isso aponta para um<br />

vazio nos mapas que pendem na parede. “Aquele mar<br />

eu não conheço” – responde o<br />

professor. “Nunca fui lá. Mas<br />

posso lhe <strong>da</strong>r um saber que<br />

o aju<strong>da</strong>rá a se aventurar pelo<br />

desconhecido...” É o tempo <strong>da</strong><br />

pesquisa. Na pesquisa o mestre<br />

ensina o que não sabe.<br />

Mas aí, surpreendentemente,<br />

Barthes anuncia que a<br />

passagem do tempo o fizera<br />

chegar a um novo momento: o<br />

momento de esquecer e desaprender<br />

os saberes que o passado<br />

sedimentara sobre o seu<br />

corpo. Esquecer e desaprender,<br />

a fim de chegar a um<br />

saber esquecido, sapientia, que<br />

quer dizer: na<strong>da</strong> de poder, uma<br />

pita<strong>da</strong> de saber, uma pita<strong>da</strong> de<br />

sabedoria, e o máximo de sabor<br />

possível. É possível tomar<br />

essa confissão de Barthes como<br />

manifestação <strong>da</strong> suave loucura<br />

que, frequentemente, se apossa<br />

dos velhos. Ou é possível ouvir<br />

nele o barulho <strong>da</strong>s asas <strong>da</strong> coruja<br />

de Minerva, levantando<br />

voo ao crepúsculo, tal como<br />

Hegel profetizara: Barthes, o<br />

sábio.<br />

Sábio se prende etimologicamente<br />

a sapio, eu saboreio,<br />

e sapientis é conhecimento<br />

saboroso. Barthes, ao ficar<br />

velho, libertava-se <strong>da</strong> maldição<br />

ocular <strong>da</strong> filosofia denuncia<strong>da</strong><br />

por Bachelard, um jeito de<br />

pensar a partir do olhar, pensar<br />

para ver – e se transferia<br />

para o lugar do sabor: a boca.<br />

Filosofar a partir <strong>da</strong> boca, pensar<br />

para ter prazer...<br />

(Atrevo-me, assim, sob a<br />

proteção <strong>da</strong> velhice, a confessar<br />

9


que o meu pensamento<br />

sobre a educação, <strong>à</strong><br />

semelhança do pensamento<br />

de Barthes, se<br />

faz a partir do lugar<br />

onde o prazer é preparado:<br />

a cozinha...)<br />

Se, aos que<br />

só sabem pensar de<br />

maneira ocular, tal<br />

proposta parece ser<br />

coisa não séria, lembro<br />

que as semelhanças<br />

entre processos<br />

<strong>da</strong> inteligência, aos<br />

quais a educação se<br />

liga, e processos digestivos já foram amplamente<br />

reconhecidos por filósofos respeitáveis. Lembro-me<br />

de que entre eles estão Santo Agostinho,<br />

Nietzsche, Ludwig Feuerbach, que chegava ao<br />

ponto de afirmar que “somos o que comemos”.<br />

E bem no nosso quintal se encontra o movimento<br />

antropofágico, que propunha uma teoria de<br />

assimilação cultural, de educação, portanto, <strong>à</strong><br />

semelhança de canibalismo.<br />

As especialistas nos prazeres <strong>da</strong> boca são as<br />

cozinheiras. Gostaria de, preguiçosamente, poder<br />

me dedicar a fazer “meditações sobre o método<br />

culinário”, implícito na opção filosófica de Barthes,<br />

mas espaço de jornal mais se parece com espaço<br />

de lanchonete, em na<strong>da</strong> parecido aos salões<br />

de banquetes <strong>da</strong> Babette e <strong>da</strong> Tita. É preciso ser<br />

breve. O pensamento <strong>da</strong> cozinheira se inicia com<br />

um sonho de amor. Babette e Tita queriam matar<br />

de amor aqueles que iriam provar a sua comi<strong>da</strong>.<br />

Eram especialistas no kamasutra <strong>da</strong> mesa. Não<br />

comendo, mas apenas provando a comi<strong>da</strong> que preparavam,<br />

elas se alimentavam <strong>da</strong> pura fantasia<br />

do prazer que os convi<strong>da</strong>dos iriam ter. É com este<br />

sonho que se inicia o preparo do banquete, muito<br />

antes de qualquer coisa prática seja feita. O sonho,<br />

apossando-se magicamente do corpo, convoca a<br />

inteligência, a razão prática para o trabalho. A inteligência<br />

é a Bela Adormeci<strong>da</strong>: só acor<strong>da</strong> do seu<br />

sono quando toca<strong>da</strong> por um beijo de amor.<br />

(Assim são os corpos <strong>da</strong>s crianças e dos adolescentes,<br />

castelos de muitos quartos, em ca<strong>da</strong> um<br />

deles dormindo uma inteligência, <strong>à</strong> espera de alguém<br />

que as acorde.)<br />

Acor<strong>da</strong><strong>da</strong>, a inteligência se põe a trabalhar<br />

para realizar o sonho. A ciência é serva do amor.<br />

Isso é a essência <strong>da</strong> minha filosofia de educação.<br />

(Blake disse que “o prazer engravi<strong>da</strong>; o sofrimento<br />

faz parir”. O trabalho de produção do objetivo<br />

do amor é o sofrimento alegre do parto, que se<br />

iniciou com o prazer <strong>da</strong> concepção.)<br />

Assim, pois, as cozinheiras, mestras, resumem<br />

a sua filosofia: o sabor, o prazer, é o objetivo <strong>da</strong><br />

vi<strong>da</strong>, o fim de to<strong>da</strong>s as coisas. Para ele vivemos. O saber,<br />

a ciência <strong>da</strong>s receitas e dos utensílios, é apenas o<br />

meio necessário e indispensável para o fim último do<br />

prazer. Isto que digo <strong>da</strong> filosofia <strong>da</strong>s cozinheiras Santo<br />

Agostinho, quinze séculos atrás, o disse teologica-<br />

10<br />

EDUCAÇÃO EM DIÁLOGO<br />

mente sobre a vi<strong>da</strong> inteira.<br />

Todos os objetos do mundo,<br />

ele diz, se dividem em<br />

duas classes. De um lado<br />

está a classe <strong>da</strong>s utili<strong>da</strong>des:<br />

utensílios, ferramentas,<br />

panelas, facas, canetas,<br />

martelos, a técnica, as<br />

receitas, o conhecimento.<br />

Esses objetos, úteis e indispensáveis,<br />

são apenas<br />

meios e pontes. Por isso,<br />

não nos dão felici<strong>da</strong>de.<br />

De outro lado está<br />

a classe dos objetos de<br />

fruição, que nos dá prazer:<br />

a fruta, a sonata, o poema, o quadro, o pôr<br />

do sol, o beijo. É o mundo do sabor. Esses são os<br />

objetos que nos dão felici<strong>da</strong>de. Para eles vivemos.<br />

São o propósito <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. Olho para a educação com<br />

olhos de cozinheira e me pergunto: que comi<strong>da</strong>s se<br />

preparam com os corpos e mentes <strong>da</strong>s crianças e<br />

adolescentes, nesses imensos caldeirões chamados<br />

escolas? Porque educação é isso: um processo de<br />

transformações alquímicas que acontece pela magia<br />

<strong>da</strong> palavra. Que prato se pretende servir? Que<br />

sabor está sendo preparado?<br />

Reconheço a hipertrofia <strong>da</strong> classe <strong>da</strong>s utili<strong>da</strong>des:<br />

teses sem fim sobre os mecanismos psicológicos,<br />

sociais, econômicos e políticos <strong>da</strong> educação,<br />

uma infini<strong>da</strong>de de métodos para o controle<br />

de quali<strong>da</strong>de e avaliação de aprendizagem e uma<br />

exuberância <strong>da</strong> parafernália tecnológica (ah, o fascínio<br />

dos micros!) a ser usa<strong>da</strong> no ensino.<br />

Mas as panelas não garantem a quali<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />

comi<strong>da</strong>. Os meios não resolvem os fins. Para que<br />

se educa? Por que enviamos nossos filhos <strong>à</strong>s escolas?<br />

Responde a nossa filosofia econômica que é<br />

para formar bons profissionais, para que os jovens<br />

consigam se encaixar no mercado de trabalho. Mas<br />

isso equivale a dizer que o objetivo <strong>da</strong> educação<br />

é transformar crianças e adolescentes em ferramentas,<br />

utensílios, objetos úteis. Pois é isso que<br />

é um profissional: um corpo que foi transformado<br />

em ferramenta. Mas isso não pode ser o objetivo<br />

<strong>da</strong> educação. Como disse o professor do filme A<br />

Socie<strong>da</strong>de dos Poetas Mortos, engenharia, medicina,<br />

química, eletrônica e saberes semelhantes são<br />

coisas boas, meios para se viver. Mas estes saberes<br />

não nos dão razões para viver.<br />

É isso que aprendi <strong>da</strong>s cozinheiras: que é preciso<br />

pensar a partir do fim. E é isso que não vejo acontecendo.<br />

Sabemos muito sobre a ordem dos meios.<br />

Pouco ou na<strong>da</strong> sabemos sobre a ordem dos fins. É<br />

compreensível. Para se pensar nos fins é preciso ser<br />

sábio. Mas sabedoria é coisa fora de <strong>mo<strong>da</strong></strong>, <strong>da</strong> qual<br />

os próprios filósofos se envergonham. Coisa <strong>da</strong> velhice,<br />

o momento <strong>da</strong> coruja de Minerva...<br />

RUBEM ALVES<br />

Psicanalista, <strong>Professor</strong> aposentado <strong>da</strong> Unicamp<br />

Autor de Histórias de quem gosta de Ensinar e outros<br />

* In O Estado de São Paulo, 11/06/95


Acervo ICAO<br />

Habituei-me a chamar Antonio Olinto de<br />

“menino” e ele ria, com riso maior que o<br />

rosto. Assim chamava não só pelo poeta<br />

que tem invetera<strong>da</strong> infância, ou pelo ficcionista<br />

magistral de A <strong>casa</strong> de Água, uma <strong>da</strong>s mais<br />

consagra<strong>da</strong>s obras de nossa ficção. Ou porque<br />

o menino tinha dentro de si a própria “<strong>casa</strong> de<br />

água” <strong>da</strong> palavra, justamente aquela que toca o<br />

coração. Ou porque a palavra <strong>à</strong>s vezes era maior<br />

do que ele e se manifestava, ora na crítica (quem<br />

se esqueceu de sua “porta de livraria” do Globo,<br />

aberta aos novos?), ora na percepção de um<br />

mundo que teimava em lhe transbor<strong>da</strong>r. Chamava-o<br />

de “ menino” – não apenas como “pai do<br />

homem”, como queria o nosso Machado, mas<br />

pai do futuro. E os meninos se entendem nalgum<br />

arrabalde <strong>da</strong> meninice, e Ubá se mostrava<br />

constante no que via e sonhava. E era “o menino<br />

e o trem” de suas remotas constelações. Ativista<br />

cultural, como raros, abria bibliotecas (diretor<br />

ENCONTROS COM A LITERATURA<br />

O menino<br />

Antonio Olinto<br />

CARLOS NEJAR<br />

de cultura <strong>da</strong> Prefeitura do Rio), com a alegria<br />

de quem atinava no poder mágico e instaurador<br />

dos livros. Sua vontade minuciosa de viver era<br />

inesgotável. Com Zora, foi uma parte dessa vontade,<br />

mas a outra continuou imperturbável. Não<br />

tinha i<strong>da</strong>de, não precisava de i<strong>da</strong>de, não quis<br />

acatar i<strong>da</strong>de alguma, salvo a incrível volúpia de<br />

amar o que fazia, cercando nobremente as pessoas<br />

com sua sombra operosa. E se agora o sabemos<br />

adormecido, começam a circular também<br />

para sempre as suas palavras. E não tem i<strong>da</strong>de<br />

agora, como antes. E nem carecerá dela para<br />

descansar, como merece, <strong>da</strong> dor, dos trabalhos e<br />

de nossa incongruência humana. Dorme, mas a<br />

infância nele jamais de jamais dormirá.<br />

CARLOS NEJAR<br />

Poeta, ficcionista e critico<br />

Membro <strong>da</strong> Academia Brasileira de Letras<br />

e <strong>da</strong> Academia Brasileira de Filosofia<br />

11


12<br />

CÍCERO SANDRONI<br />

Existe relação entre as quali<strong>da</strong>des do caráter,<br />

padrão de leal<strong>da</strong>de, de generosi<strong>da</strong>de,<br />

de honesti<strong>da</strong>de, de bon<strong>da</strong>de e outras virtudes<br />

termina<strong>da</strong>s em “ade”, além <strong>da</strong> capaci<strong>da</strong>de<br />

de doar-se com entusiasmo a uma causa, to<strong>da</strong>s<br />

essas virtudes, e o talento de um escritor? Parece<br />

que não. Os exemplos de bons escritores, alguns<br />

de grande mestria, cujo caráter deixa a desejar,<br />

não são raros. Mas quando um ser humano combina<br />

em si as virtudes do bom caráter e o vigor<br />

literário, algo o distingue e ilumina, algo o destaca<br />

entre os seus semelhantes.<br />

Eu soube <strong>da</strong> existência do escritor Salim<br />

Miguel no início dos anos 50, ao ler o suplemento<br />

literário do Correio <strong>da</strong> Manhã, então dirigido<br />

por Álvaro Lins. Com Eglê Malheiros ele viera ao<br />

Rio para participar de um congresso de escritores<br />

e o Correio registrou a presença do <strong>casa</strong>l, com<br />

direito a entrevista sobre o grupo Sul, e publicação<br />

de um dos seus primeiros contos.<br />

Interessado em assuntos literários, embora<br />

<strong>à</strong> época nem jornalista fosse, acompanhei, de<br />

longe, a trajetória de Salim e de seus companheiros<br />

de geração. Vi<strong>da</strong> que segue, como dizia João<br />

Sal<strong>da</strong>nha, toquei meu barco mais na direção do<br />

jornalismo do que <strong>da</strong> literatura. Em 1965, eu dirigia<br />

uma gráfica arcaica (mesmo para aquela época)<br />

e ain<strong>da</strong> assim, resolvi lançar uma revista de<br />

contos, chama<strong>da</strong> Ficção, com o apoio de Antonio<br />

Olinto, Roberto Braga e de Pedro Penner <strong>da</strong> Cunha.<br />

Por razões financeiras, a revista só teve duas edições.<br />

Mais tarde soube que Salim e Eglê, vindo de<br />

Florianópolis para escapar <strong>da</strong> perseguição política<br />

que lhe moviam os alcaguetes do regime militar,<br />

estavam no Rio de Janeiro sob a proteção de Adonias<br />

Filho, e acompanharam a publicação <strong>da</strong> revista.<br />

Pensaram em entrar em contato conosco, mas,<br />

quando Ficção desapareceu, desistiram.<br />

Mais uma vez a vi<strong>da</strong> seguiu. E só voltei<br />

a encontrar Salim na re<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> revista Man-<br />

ENCONTROS COM A LITERATURA<br />

SALIM MIGUEL<br />

encontro & reencontros<br />

chete, nos anos 70, onde também trabalhavam<br />

outros escritores que, para sobreviver, ralavam<br />

nas publicações Bloch. Entre eles, o acadêmico<br />

R. Magalhães Júnior, Carlos Heitor Cony, Macedo<br />

Miran<strong>da</strong>, Juarez Barroso, João Antônio, Helonei<strong>da</strong><br />

Stu<strong>da</strong>rt, Muniz Sodré, Marcos Santarrita e<br />

José Carlos Oliveira, muitos deles consagrados e<br />

premiados. Também colaboravam com os Bloch<br />

nomes de peso <strong>da</strong> cultura nacional, que sempre<br />

apareciam nas re<strong>da</strong>ções, no Russel: Otto Maria<br />

Carpeaux, Josué Montello, Antônio Houaiss, Pedro<br />

Bloch e tantos outros.<br />

Mas encontrar e conhecer Salim Miguel, entre<br />

tantos literatos, constituiu não só um prazer<br />

pela amizade fraterna que logo se formou entre<br />

nós, na base <strong>da</strong>s afini<strong>da</strong>des eletivas, mas também,<br />

pelo saber literário de Salim que, generoso,<br />

compartilhava com os colegas, em conversas infindáveis<br />

quando terminava o expediente. A cultura<br />

literária de Salim foi demonstra<strong>da</strong> quando<br />

o escritor alemão Hemann Broch recebeu o prêmio<br />

Nobel de Literatura: a notícia chegou numa<br />

segun<strong>da</strong>-feira pela manhã e ele foi o único re<strong>da</strong>tor<br />

<strong>da</strong> editora Bloch, com mais de dez títulos de<br />

revistas na praça, capaz de redigir uma nota sobre<br />

Broch, para ser envia<strong>da</strong> <strong>à</strong>s oficinas naquele<br />

mesmo dia, o do “fechamento” <strong>da</strong> Manchete, que<br />

circulava <strong>à</strong>s quartas-feiras. Salim conhecia bem


Salim Miguel, libanês – 1924, chegou ao<br />

Brasil com 3 anos, radicando-se na infância em<br />

SC. Reconhecido como um dos mais destacados<br />

ficcionistas, é também contista, cronista e<br />

ensaísta. Participou do movimento modernista<br />

catarinense, Grupo Sul, a partir de 1940. Com<br />

a mulher, a escritora Eglê Malheiros, foi coautor<br />

do primeiro longa-metragem catarinense – O<br />

Preço <strong>da</strong> Ilusão.<br />

Em 1965, depois de ser preso pelo Regime<br />

Militar, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde<br />

editou a revista Ficção e trabalhou para a Editora<br />

Bloch. Foi diretor <strong>da</strong> Editora <strong>da</strong> UFSC e dirigiu a<br />

Fun<strong>da</strong>ção Cultural Franklin Cascaes, 1993-96.<br />

Entre seus livros destacam-se os romances<br />

Nur na escuridão, A voz submersa e Jorna<strong>da</strong><br />

com Rupert; O Sabor <strong>da</strong> Fome, e uma seleta na co-<br />

o escritor alemão e, numa época sem<br />

Internet, Google e outras ferramentas<br />

do tipo, só mesmo apelando para sua<br />

cultura literária.<br />

Das nossas conversas surgiu a<br />

idéia de relançar Ficção. Eglê e Laura,<br />

entusiasma<strong>da</strong>s com o projeto, incentivaram<br />

os maridos, preocupados com<br />

os aspectos financeiros <strong>da</strong> empreita<strong>da</strong>.<br />

Convi<strong>da</strong>mos Fausto Cunha para<br />

participar do grupo e os cinco, feito<br />

um exército Brancaleone literário,<br />

lançamos a revista, e logo correu pela<br />

praça a pergunta: que grupo econômico<br />

estaria por trás de Ficção? Mal<br />

sabiam os interessados que o único<br />

grupo financeiro a sustentar a Ficção<br />

eram os nosso pálidos contracheques.<br />

Nesta aventura literária na qual<br />

nos empenhamos com entusiasmo,<br />

uma certa dose de ingenui<strong>da</strong>de e muito<br />

trabalho, seria difícil dissociar a<br />

ativi<strong>da</strong>de de Salim e Eglê. Ambos escritores,<br />

intelectuais inseridos na discussão<br />

(e na ação) <strong>da</strong>s lutas sociais<br />

<strong>da</strong>quela hora, encontravam tempo<br />

para, ao nosso lado e de Fausto, ler<br />

originais, escolher os melhores textos,<br />

aconselhar os que se mostravam<br />

promissores e até mesmo encontrar<br />

formas para dizer aos me<strong>da</strong>lhões,<br />

que não podíamos publicar este ou<br />

aquele texto retirado do fundo <strong>da</strong> gaveta<br />

e enviado para revista.<br />

Com o sacrifício do tempo que<br />

poderia utilizar no desenvolvimento<br />

de sua própria obra literária, Salim<br />

ENCONTROS COM A LITERATURA<br />

leção Melhores Contos<br />

lançado este ano<br />

pela Global.<br />

Recebeu entre<br />

outros o Troféu<br />

Juca Pato, como intelectual<br />

do Ano de<br />

2002, e o Prêmio<br />

Zaffary-Bourbon,<br />

para melhor romance<br />

publicado<br />

entre 1999-2001.<br />

Em julho passado,<br />

pelo conjunto <strong>da</strong><br />

obra, foi agraciado com o Prêmio Machado de<br />

Assis, <strong>da</strong> ABL, para autores expoentes de nossa<br />

literatura.<br />

dedicou-se a um trabalho que, durante<br />

quatro anos, agitou a vi<strong>da</strong> literária brasileira.<br />

Em quarenta edições, Ficção revelou<br />

nomes novos, valorizou escritores<br />

esquecidos e despertou em muitos leitores<br />

o desejo de narrar experiências, contar<br />

casos ou registrar em prosa ficcional<br />

aspectos <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de brasileira.<br />

Um trabalho cultural de repercussão<br />

internacional, comprovado pelas várias<br />

assinaturas de universi<strong>da</strong>des estrangeiras<br />

registra<strong>da</strong>s no ca<strong>da</strong>stro de Ficção,<br />

realizado por uma equipe que, já nos anos<br />

maduros, mostrava entusiasmo juvenil na<br />

preparação de ca<strong>da</strong> edição. E no qual Salim,<br />

com seu imenso coração, sua capaci<strong>da</strong>de<br />

de trabalho, talento e cultura era<br />

sempre o primeiro a acolher os textos dos<br />

mais jovens, alguns dos quais, hoje, passados<br />

mais de vinte anos, se destacam<br />

na literatura brasileira.<br />

Conviver e trabalhar com Salim<br />

Miguel e Eglê Malheiros naquela época,<br />

e falo por mim e pela Laura, enriqueceu<br />

nossas vi<strong>da</strong>s, não só do ponto de vista<br />

literário e cultural, mas pela amizade<br />

generosa que nos ofereceram e que só<br />

fez aumentar desde os anos nos quais,<br />

com o nosso querido, saudoso e sempre<br />

lembrado Fausto Cunha, fizemos uma revistinha<br />

que na reali<strong>da</strong>de marcou fundo<br />

a história recente <strong>da</strong> literatura brasileira:<br />

a Ficção.<br />

CÍCERO SANDRONI<br />

Jornalista e escritor<br />

Presidente <strong>da</strong> Academia Brasileira de Letras<br />

13


A<br />

relação de Cabral com Espanha não começa<br />

nem acaba com sua presença física<br />

neste país; a continui<strong>da</strong>de dessa relação<br />

dá ideia de sua reitera<strong>da</strong> presença como diplomata<br />

ou como simples viageiro desde 1947, quando<br />

foi destinado a Barcelona como vice-cônsul, até<br />

1994, momento em que lhe foi concedido o Premio<br />

Reina Sofía de Poesía Iberoamericana. É difícil<br />

encontrar na história <strong>da</strong>s relações interculturais<br />

casos tão surpreendentes por sua extensão, continui<strong>da</strong>de<br />

no tempo, e também sua intensi<strong>da</strong>de.<br />

Muitos são os poetas influenciados por<br />

outra cultura. Se fosse possível estabelecer uma<br />

gra<strong>da</strong>ção, diríamos que Cabral se situa no extremo<br />

mais definido dessa influência. A ver<strong>da</strong>deira<br />

relação surge quando o que se toma de outra<br />

cultura não é postiço, acidental, circunstancial<br />

ou episódico. A ver<strong>da</strong>deira relação surge quando<br />

o que se toma de outra cultura está situado no<br />

14<br />

ENCONTROS COM A LITERATURA<br />

A POESIA DE JOÃO CABRAL DE MELO NETO,<br />

Um diálogo com Espanha<br />

NICOLÁS EXTREMERA TAPIA<br />

Parque Guell, Barcelona,<br />

projeto do catalão Gaudí<br />

próprio âmbito espiritual em que o artista se desenvolve.<br />

No caso que nos ocupa, umas vezes o<br />

que se produz é uma extensão do já conhecido,<br />

seja por ampliação ou por elevação ao simbólico:<br />

outras, uma descoberta <strong>da</strong>quilo que é próprio por<br />

contraposição ou contraste com o que é alheio.<br />

Em Cabral encontramos um diálogo permanente<br />

entre duas culturas, a própria, local quase<br />

sempre, reduzi<strong>da</strong> ao âmbito no qual se desenvolve<br />

a sua infância e adolescência e a outra, a alheia,<br />

não livresca, mas vivi<strong>da</strong>, na qual o poeta mergulha<br />

para compreender desde o estranhamento necessário<br />

<strong>à</strong>quilo que lhe é consubstancial.<br />

Cabral é quase um órfão poético no Brasil e<br />

dificilmente pode ser incluído numa tradição poética<br />

defini<strong>da</strong>; sua relação com Portugal é ain<strong>da</strong><br />

mais difusa: de indiferença. Para quem acredita<br />

em que na<strong>da</strong> há de gratuito na obra de Cabral, a<br />

primeira frase que utiliza em espanhol: Riguroso


Fotos: J. W. Freire<br />

Templo <strong>da</strong> Sagra<strong>da</strong> Família, Barcelona, projeto de Gaudí<br />

horizonte (É o primeiro verso do poema El horizonte<br />

de Jorge Guillén, que pertence <strong>à</strong> primeira<br />

edição de Cántico, 1928. Desde 1936, figura na<br />

seção 2.ª, Las horas situa<strong>da</strong>s), que o poeta faz<br />

servir de epígrafe ao livro Psicologia <strong>da</strong> Composição,<br />

não pode passar inadverti<strong>da</strong>; e menos<br />

ain<strong>da</strong> se a inserirmos na sequência de epígrafes<br />

com que Cabral vinha preludiando seus livros de<br />

poemas: “Solitude, récif, étoile...” de Mallarmé,<br />

em Pedra de Sono; “João amava Teresa que amava<br />

Raimundo/que amava Maria/que amava Joaquim<br />

que amava Lili...” de Carlos Drummond de<br />

Andrade, em Os Três Mal-Amados; “...machine <strong>à</strong><br />

émouvoir...” de Le Corbusier, em O Engenheiro.<br />

E de fato, Mallarmé, Drummond e Le Corbusier<br />

constituem a bagagem fun<strong>da</strong>mental de<br />

Cabral quando, em 1947, desembarca em Barcelona.<br />

Ele afirma:<br />

“A Espanha foi o primeiro país estrangeiro<br />

onde eu vivi. De forma que eu não<br />

tinha cultura clássica nenhuma, porque<br />

aqui no Brasil, naquele tempo, ninguém<br />

tinha cultura clássica. Camões era um ci<strong>da</strong>dão<br />

que nos obrigava a fazer análise lógica<br />

com os textos e aquilo nos <strong>da</strong>va enjoo<br />

de Camões para o resto <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. E quando<br />

cheguei <strong>à</strong> Espanha, eu comecei a estu<strong>da</strong>r<br />

sistematicamente a literatura espanhola.<br />

Foi uma coisa que me libertou dessa influência<br />

francesa que eu tinha através do<br />

Willy Lewin e ao mesmo tempo abriu horizontes<br />

para mim enormes”. 1<br />

ENCONTROS COM A LITERATURA<br />

Cabral considera que este novo horizonte,<br />

rigoroso e enorme, é configurado pelo Velho<br />

Mundo, pois ele faz uma descoberta <strong>à</strong>s avessas;<br />

só que o Velho Mundo, o novo horizonte, não é,<br />

para Cabral, Portugal, mas sim Espanha, e não só<br />

porque ele descobre Espanha e não Portugal, mas,<br />

também, porque, para Cabral, são os espanhóis e<br />

não os portugueses os descobridores do Brasil.<br />

Vicente Yáñez Pinzón<br />

Ele o primeiro a vê-lo, e a vir,<br />

(na barra do Suape) ao Brasil,<br />

não deixou lá quandos nem ondes:<br />

só anos depois confessou-se.<br />

(in A Escola <strong>da</strong>s Facas)<br />

Uma vez definido o seu novo horizonte,<br />

Cabral estabelece, a partir <strong>da</strong>í, um diálogo permanente<br />

entre as duas culturas: a própria, local<br />

quase sempre, reduzi<strong>da</strong> ao âmbito no qual se desenvolve<br />

a sua infância e adolescência, <strong>da</strong> qual<br />

precisa afastar-se para redescobri-la, “A Espanha<br />

deu-me um afastamento suficiente, não excessivo,<br />

para poder escrever sobre o Nordeste” 2 e outra,<br />

não completamente alheia, e profun<strong>da</strong>mente<br />

popular, na qual o poeta mergulha para compreender,<br />

desde o estranhamento necessário, aquilo<br />

que lhe é consubstancial. O livro seguinte, O<br />

Cão sem Plumas, é cronologicamente posterior<br />

<strong>à</strong> sua primeira esta<strong>da</strong> na Espanha: é um regressar,<br />

nessa oscilação que vai caracterizar desde<br />

esse momento sua poesia, ao seu âmbito original.<br />

Aparecem aqui já importantes pontos de<br />

conexão entre Cabral e a poesia espanhola – o<br />

popular, o prosaico, o narrativo: “A literatura espanhola<br />

é grande porque é, sobretudo, a mais<br />

realista do mundo. É a que tem bases mais profun<strong>da</strong>mente<br />

populares. Até mesmo nos clássicos,<br />

como Cervantes, Quevedo, mesmo em Góngora, se<br />

encontra a presença do povo, do popular”. 3 E em<br />

outro lugar: “O que esse pessoal me mostrou, e me<br />

impressionou muito,<br />

é que não vale a pena<br />

escrever para o povo<br />

sem usar a forma que<br />

ele usa. É por isso<br />

que eu utilizo a forma<br />

narrativa”. 4<br />

Assim, O Cão<br />

sem Plumas, escrito<br />

em Barcelona, um livro<br />

inteiramente dedicado<br />

a Pernambuco<br />

e também o primeiro<br />

em que Cabral fala de<br />

Pernambuco, representa<br />

também uma<br />

viragem radical em<br />

15


elação a sua poesia anterior.<br />

Não há símbolos,<br />

não há emoções, não<br />

há lírica no sentido habitual.<br />

Impõe-se o prosaico<br />

na sua espessura,<br />

anuncia-se a lírica tradicional<br />

ou de cordel:<br />

é a descrição sem emoção,<br />

a entomologia <strong>da</strong><br />

reali<strong>da</strong>de essencial.<br />

O livro seguinte,<br />

O Rio, põe de manifesto<br />

nova vinculação de<br />

Cabral com a cultura<br />

espanhola. “Quiero que<br />

compongamos io e tu<br />

una prosa” é a citação<br />

de Berceo que lhe serve<br />

de epígrafe. Outra<br />

vez podemos afirmar<br />

que na<strong>da</strong> em Cabral<br />

é gratuito. O Rio marca<br />

a transição entre a<br />

influência <strong>da</strong> lírica de<br />

cordel, na qual Cabral<br />

procurava até então a<br />

expressão do popular,<br />

e a influência, a partir<br />

<strong>da</strong>í, constante dos versos pareados do romancero<br />

e <strong>da</strong> lírica primitiva espanhóis.<br />

“Eu me interessei pela literatura de<br />

cordel desde menino. Mas não creio que<br />

ela tenha maior influência na minha poesia.<br />

Para comprovar isso, comparem-se<br />

as estruturas estróficas complica<strong>da</strong>s <strong>da</strong><br />

literatura de cordel com os versos pareados<br />

do romancero e <strong>da</strong> poesia primitiva <strong>da</strong><br />

Espanha. Esses, principalmente a poesia<br />

primitiva, me marcaram muito mais do<br />

que os folhetos dos poetas populares do<br />

Nordeste”. 5<br />

Paisagem com Figuras é um livro que<br />

inaugura esse diálogo permanente entre as duas<br />

culturas a que estamos aludindo. Dos dezoito<br />

poemas que o compõem, oito estão dedicados a<br />

Pernambuco e dez <strong>à</strong> Espanha, repartidos estes últimos<br />

do seguinte modo: dois <strong>à</strong> paisagem de Castela,<br />

três <strong>à</strong> paisagem de Catalunha, um ao poeta<br />

Joan Brossa, um ao poeta Miguel Hernández, um<br />

aos toureiros, um <strong>à</strong> An<strong>da</strong>luzia, que Cabral ain<strong>da</strong><br />

não conhece fisicamente, representa<strong>da</strong> pelo cante<br />

e os touros, e finalmente um de que compartilham<br />

Catalunha e Pernambuco.<br />

Cabral trata neste livro de estabelecer um<br />

diálogo a três vozes entre o masculino: Pernambuco,<br />

representado por paisagens estáticas; o feminino:<br />

Catalunha, e Castela: “mulher virago”.<br />

16<br />

ENCONTROS COM A LITERATURA<br />

Sevilha de noite: a Giral<strong>da</strong>, /ilumina<strong>da</strong>, dá a lição /de<br />

sua elegância fabulosa /de incorrigível proporção.<br />

(J.Cabral)<br />

Posteriormente, quando<br />

Cabral conhece An<strong>da</strong>luzia,<br />

perderá interesse por<br />

Catalunha e por Castela,<br />

e a oposição se estabelecerá<br />

já de modo permanente<br />

entre Pernambuco,<br />

como elemento masculino,<br />

e An<strong>da</strong>luzia, que<br />

encarnará na poesia de<br />

Cabral o feminino.<br />

Para concluir, sublinho<br />

que os dois últimos<br />

livros de poesia que Cabral<br />

publicou: Sevilha An<strong>da</strong>ndo<br />

e An<strong>da</strong>ndo Sevilha vão<br />

respectivamente precedidos<br />

de epígrafes em espanhol:<br />

En el cielo que pisan<br />

las sevillanas (Popular<br />

sevilhano) e Quien no vio<br />

a Sevilla no vio maravilla<br />

(Popular espanhol). Estes<br />

dois livros são as últimas<br />

homenagens do poeta a<br />

uma língua, a uma cultura<br />

e a uma ci<strong>da</strong>de, Sevilha,<br />

com a qual identificou sua<br />

poesia, sua esposa Marly e até o destino <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de,<br />

inventando, por ela, o verbo sevilhizar.<br />

SEVILHIZAR O MUNDO<br />

Como é impossível, por enquanto,<br />

civilizar to<strong>da</strong> a terra,<br />

o que não veremos, verão,<br />

de certo, nossas tetranetas,<br />

infundir na terra esse alerta,<br />

fazê-la uma enorme Sevilha,<br />

que é a contra-pelo, onde uma viva<br />

guerrilha do ser, pode a guerra.<br />

(in An<strong>da</strong>ndo Sevilha)<br />

Referências<br />

1 Entrevista a André Pestana, O que eles pensam, Rio<br />

de Janeiro, Tagore, 1990.<br />

2 Entrevista ao poeta J.P. Moreira <strong>da</strong> Fonseca in<br />

Diário Popular, Lisboa 7-VI-1968<br />

3 Entrevista a Eduardo Mattos Portella, Diário de<br />

Pernambuco, Recife, 19 out. 1952<br />

4 Entrevista a José Carlos de Vasconcelos, Diário<br />

de Lisboa, Suplemento Semanal (Vi<strong>da</strong> Literária e<br />

Artística, Lisboa, 16 jun. 1966<br />

5 Entrevista ao poeta J.P. Moreira <strong>da</strong> Fonseca, op. cit.<br />

NICOLÁS EXTREMERA TAPIA<br />

Catedrático de Filologia Portuguesa<br />

<strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de Grana<strong>da</strong>


O<br />

Brasil é uma invenção recente. Os românticos<br />

tentaram ser brasileiros reinventando os<br />

heróis autóctones. Os nossos modernistas,<br />

inspirados pela ordem do dia <strong>da</strong>s vanguar<strong>da</strong>s europeias,<br />

acredita ram que o acesso <strong>à</strong> moderni<strong>da</strong>de nos<br />

valeria o di reito <strong>à</strong> carteira de identi<strong>da</strong>de de brasileiros.<br />

Os pós-modernistas bateram a carteira dos<br />

nossos sonhos condenando-nos ao fim <strong>da</strong> história e<br />

<strong>à</strong> morte <strong>da</strong> utopia.<br />

A herança benjaminiana nos ensinou que o<br />

centenário é o momento de redenção de um autor e,<br />

por isso mesmo, o melhor momento para arrancá-lo <strong>à</strong>s<br />

garras do conformismo que a tradição conser vadora<br />

possa tê-lo aprisionado. Nesse resgate que tem muito<br />

de hybris e melancolia, nem o vulto do homem, nem<br />

ENCONTROS COM A LITERATURA<br />

OSWALD DE ANDRADE<br />

Retrato de Oswald de Andrade, por Tarsila Amaral, 1923. Museu<br />

de Arte Brasileira / FAAP – SP. Coleção Marília de Andrade<br />

A UTOPIA ANTROPOFÁGICA:<br />

uma utopia sem história*<br />

O Brasil me tornou inteligente<br />

FERNANDO BRAUDEL<br />

CARLOS LIMA<br />

o vulto <strong>da</strong> obra podem nos fazer es quecer as armas <strong>da</strong><br />

crítica. Desde os gregos até Hegel nós sabemos que não<br />

existe conhecimento sem paixão. A história <strong>da</strong> filosofia<br />

pode ser vista como um longo discurso amoroso entre<br />

aquele que conhece e o objeto do conhecimento. Daí,<br />

haver sempre em filosofia uma certa afini<strong>da</strong>de entre sujeito<br />

e objeto, e os jardins filosóficos se construírem a<br />

partir do estabelecimento <strong>da</strong>s afini<strong>da</strong>des eletivas. Mas,<br />

ao mesmo tempo, todo saber não existe sem a sua crítica,<br />

pois só assim pode se constituir como saber. E o<br />

próprio termo crítica na sua origem significa se parado,<br />

afastado. Temos, então, uma afini<strong>da</strong>de que elege o seu<br />

objeto, mas que para alcançá-lo tem que paradoxalmente<br />

se separar dele. Como nos lembra a Ciência <strong>da</strong> Lógica<br />

de Hegel, “a contradição é uma existência efetiva na<br />

dor dos viventes”.<br />

Desse modo, a filosofia é menos a posse do<br />

seu objeto que a busca desespera<strong>da</strong> para constituí-<br />

17


lo. Por isso Adorno, contra Wittgenstein, na sua Terminologia<br />

Filosófica, adverte, “a filosofia é o esforço<br />

permanente e inclusive desesperado de dizer o que<br />

propriamente não se pode dizer”.<br />

A Teoria Crítica nos demonstrou e Peter Burger<br />

sublinha que o que distingue a ciência tra dicional <strong>da</strong><br />

ciência critica é que esta, ao contrário <strong>da</strong> primeira, reflete<br />

as implicações sociais nas quais ela é produzi<strong>da</strong>. Ou<br />

seja, a perspectiva do pesquisador é determina<strong>da</strong> pela<br />

posição que ele adota frente <strong>à</strong>s forças históricas <strong>da</strong> sua<br />

época, consequentemente, é o ser social que ele é (como<br />

diria Marx) que condiciona a sua consciência crítica.<br />

A importância de Oswald de Andrade, por ele<br />

constata<strong>da</strong>, foi ter acertado o relógio império <strong>da</strong> nossa<br />

literatura: “O trabalho <strong>da</strong> geração futurista foi ciclópico.<br />

Acertar o relógio império <strong>da</strong> literatura nacional”.<br />

Mas, ao mesmo tempo que atualizou a prosa,<br />

esta geração também retirou a camisa de força parnasiana<br />

que mantinha a nossa poesia na prisão domiciliar<br />

do soneto. Em Oswald coloca-se de for ma como<br />

nunca antes em nossa literatura a relação entre poesia<br />

e liber<strong>da</strong>de: “Nenhuma fórmula para a contemporânea<br />

ex pressão do mundo. Ver com olhos livres”.<br />

Essa visão dos olhos livres junto a outra expressão<br />

– “a alegria é a prova dos nove” – fun<strong>da</strong>menta sua<br />

poesia, sua prosa, e to<strong>da</strong> a sua vi<strong>da</strong>. Sejam quais forem<br />

os excessos, os equívocos de sua obra, Oswald fica<br />

como um exemplo de intelectual e poeta que lutou por<br />

uma nova forma de ação inte lectual e por uma poesia<br />

militante numa socie<strong>da</strong>de onde a única militância dos<br />

intelectuais é a de serem “palhaços <strong>da</strong> burguesia”, e<br />

como ele mesmo definiu: “Pais de dores anônimas. Doutores<br />

anônimos. Socie<strong>da</strong>de de náufragos eruditos”.<br />

Oswald foi uma heroica exceção como um militante<br />

<strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. Assumindo o engajamento po lítico <strong>da</strong><br />

sua época, como ele mesmo disse, vestiu a <strong>casa</strong>ca de<br />

ferro <strong>da</strong> Revolução Proletária e entrou para o Partido<br />

Comunista. E no sentido barthesiano preferiu a solidão<br />

do estilo <strong>à</strong> segurança <strong>da</strong> arte. É essa<br />

ação de militante <strong>da</strong> poesia<br />

que vai levá-lo nos anos 50<br />

a alcançar a consciência antecipadora<br />

que fun<strong>da</strong>menta<br />

to<strong>da</strong>s as utopias, e fará de<br />

Oswald um dos herdeiros <strong>da</strong><br />

Poética <strong>da</strong> Utopia inaugura<strong>da</strong><br />

por Rimbaud no final do<br />

sécu lo 19. Oswald é o nosso<br />

primeiro poeta sem cul pa, é o<br />

Macunaíma <strong>da</strong> nossa poesia<br />

que ain<strong>da</strong> não tinha o pecado<br />

original <strong>da</strong> burocracia literá ria.<br />

Depois os nossos poetas começaram<br />

a se benzer e fazer poesia<br />

fazendo o sinal <strong>da</strong> cruz nas<br />

novenas reza<strong>da</strong>s por Augusto<br />

Frederico Schmidt, aquilo que<br />

os críticos chamaram depois de<br />

gera ção de 45. Uma característica<br />

do modernismo brasileiro<br />

foi a fome, fome estética e fome<br />

de utopia. Oswald e Mário foram<br />

18<br />

ENCONTROS COM A LITERATURA<br />

Capa do livro A utopia antropofágica<br />

dois esfomeados. Poder-se-ia fazer uma história do<br />

modernismo com base na história dos salões que os<br />

modernistas e as suas fomes frequentavam.<br />

A definição de arte <strong>da</strong><strong>da</strong> por Ernst Bloch é a<br />

que melhor se aplica ao nosso modernismo: “A obra<br />

de arte é o laboratório e a festa dos possíveis”. O modernismo<br />

foi esta consciência dos possíveis, foi esta<br />

“Festa dos Possíveis”.<br />

A consciência de que o Brasil podia ser transformado,<br />

de que o Brasil podia ser reinventado, é o que<br />

está presente no modernismo. Por isso o movi mento<br />

pôde trilhar to<strong>da</strong>s as três fases do caminho do possível:<br />

o possível formal, o possível provável e o possível dialético.<br />

Aqui entramos mais uma vez no território <strong>da</strong> utopia,<br />

conceitua<strong>da</strong> de forma extensiva nos três volumes<br />

do Princípio Esperança de Ernst Bloch. Faremos uma<br />

descrição bastante sumária <strong>da</strong> análi se de Bloch sobre<br />

as três categorias:<br />

Possível formal é o possível dos otimistas puros,<br />

que ignoram os obstáculos e acreditam na possibili<strong>da</strong>de<br />

de um progresso linear. São os otimistas cegos que acreditam<br />

mais no milagre que no proces so de transformação<br />

<strong>da</strong> consciência no conflito com a reali<strong>da</strong>de.<br />

Possível provável é quando o homem chega<br />

<strong>à</strong> consciência antecipadora e nele se fun<strong>da</strong>menta a<br />

imaginação (“O artista é o especi alista do imaginário”<br />

– Bloch), a possibi li<strong>da</strong>de do homem colocar novos problemas,<br />

imaginar novas soluções e desenvolver o domínio<br />

sobre o real. É neste momento do possível que<br />

o homem toma consciência <strong>da</strong> sua liber<strong>da</strong>de.<br />

Possível dialético é o motor do princípio esperança.<br />

É nesta fase que se pode entender a relação necessária<br />

entre a ativi<strong>da</strong> de humana e o dinamismo <strong>da</strong><br />

matéria. Só o ho mem pode <strong>da</strong>r uma finali<strong>da</strong>de para<br />

a matéria no seu dinamismo. É a ação consciente do<br />

homem que liberta a matéria do seu dinamismo cego.<br />

No possível dialético o homem, na posse <strong>da</strong> consciência<br />

<strong>da</strong> sua liber<strong>da</strong>de, efetiva o processo de dominação<br />

e de trans formação <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de. É o momento<br />

antecipador <strong>da</strong> utopia concreta.<br />

O modernismo brasileiro, como já<br />

dissemos, trilhou todo esse caminho dos<br />

possíveis, só que o dis tanciamento entre<br />

os intelectuais e o povo frustrou a possibili<strong>da</strong>de<br />

de uma revolução estética se<br />

transfor mar numa revolução de cunho<br />

social. Pois teria sido preciso que no<br />

terreno <strong>da</strong> educação se desse o mes mo<br />

processo de consciência dos pos síveis<br />

para a transformação de uma massa<br />

analfabeta num bloco <strong>da</strong> so cie<strong>da</strong>de civil<br />

consciente dos seus di reitos de ci<strong>da</strong>dãos.<br />

Só, então, teria sido possível uma<br />

revolução cultural que se estendesse<br />

a outras cama<strong>da</strong>s <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de. Sem<br />

essa possibili<strong>da</strong>de a revolução estética<br />

do modernismo fi cou isola<strong>da</strong>, tendo<br />

pouca repercussão fora dos círculos<br />

intelectuais, e acabou sendo derrota<strong>da</strong><br />

pelo autoritarismo <strong>da</strong>s elites no golpe<br />

de estado de 1937, que iniciou a ditadura<br />

de Getúlio Vargas.


Em 1950/1953, Oswald escreve A<br />

Crise dos Filosofias Messiânicas e A Marcha<br />

<strong>da</strong>s Utopias. O primeiro escrito em<br />

1950 como tese para o concurso <strong>da</strong> Cadeira<br />

de Filosofia do USP, o segundo como uma<br />

série de artigos em jornal, e postumamente<br />

publicado pelo MEC em 1966. Esses ensaios<br />

nascem num período de crise em que<br />

Oswald, descrente do marxismo e dos rumos<br />

do socialismo no estado estalinista, depois<br />

de 15 anos de militância, afasta-se do Partido<br />

Comunis ta. Oswald aqui procura acertar o<br />

passo <strong>da</strong> cultura brasileira com a lógica <strong>da</strong><br />

utopia. Ain<strong>da</strong> que equivoca<strong>da</strong>mente, ele acerta, acerta<br />

no varejo e erra no atacado. Pois, enquanto Bloch busca<br />

a lógica <strong>da</strong> utopia no movimento dialético <strong>da</strong> história,<br />

procuran do perceber o processo que transforma a<br />

utopia abstrata em utopia concreta, Oswald faz o caminho<br />

inverso, partindo do matriarcado e <strong>da</strong> antropofagia<br />

é levado a conceber uma utopia crônica, ou seja,<br />

a utopia fora do tempo histórico. Quando dizemos que<br />

Oswald acerta é que ele procura fazer, ain<strong>da</strong> que, equivoca<strong>da</strong>mente,<br />

o resgate <strong>da</strong> utopia, numa época em que<br />

só Bloch havia descoberto a dimensão revolucionária<br />

<strong>da</strong> utopia. Oswald no Brasil foi o primeiro a tentar recuperar<br />

a tradição utópica do socialismo, procurando<br />

se desviar do marxismo positivista, que to mou conta<br />

<strong>da</strong> filosofia marxista de Engels a Stalin. Contra o burocratismo<br />

estalinista Oswald afirmava que o caminho<br />

do socialismo passava pela utopia. A tese de Oswald<br />

desenvolve-se <strong>da</strong> seguinte maneira: a) a história divide-se<br />

em Matriarcado e Pa triarcado; b) corresponde ao<br />

primeiro a antropofagia e ao segundo o messianismo;<br />

c) o renascimento do Matriarcado levaria ao fim do<br />

Estado; d) restauração tecniza<strong>da</strong> <strong>da</strong> antropofagia; e)<br />

crença na ideologia do progresso.<br />

Nessa confusão geral Oswald confunde uma<br />

fase <strong>da</strong> história (Matriarcado/Patriarcado) com o desenvolvimento<br />

<strong>da</strong> história em si mesma. Essa confusão<br />

<strong>da</strong>s premissas leva a que as conclusões sejam<br />

ain<strong>da</strong> mais confusas. Como notou Benedito Nunes<br />

em seu ensaio “Oswald Canibal”: “Os Tupinambás<br />

que praticavam a antropofa gia ritual não conheceram<br />

nem o matriarcado nem deram <strong>à</strong> mulher qualquer<br />

posição de relevância social”.<br />

Nessa tese de Oswald de que o retorno <strong>à</strong> antropofagia<br />

seria o retorno a uma suposta l<strong>da</strong>de de Ouro<br />

do homem, apenas acentua-se o equívoco de Oswald<br />

em pregar um retorno <strong>à</strong> pré-história do homem, como<br />

se a história, como um carro alegó rico, pudesse <strong>da</strong>r<br />

marcha a ré.<br />

Por outro lado, para fun<strong>da</strong>mentar a sua cren ça<br />

na ideologia do progresso Oswald usa como re ferência<br />

o livro A Revolução Gerencial, de James Burnham, um<br />

dos gurus do imperialismo norte-ame ricano. O positivismo<br />

dessa tese levou Oswald a crer que o trabalho<br />

como exploração do trabalhador desapareceria<br />

no capitalismo avançado, que no futuro o capitalismo<br />

conseguiria superar a contradição entre capital<br />

e trabalho. Segundo Oswald, deixaríamos o reino do<br />

negócio e entraríamos no paraíso do ócio. Tese claramente<br />

equivoca<strong>da</strong>, não le vando em conta que a mais-<br />

ENCONTROS COM A LITERATURA<br />

Capas de Oswald Plural e do catálogo <strong>da</strong> exposição<br />

valia absoluta sempre se harmonizou com a maisvalia<br />

relativa na história do processo de acumulação<br />

do capitalismo. Assim como Marx afirmava, a citação<br />

é do próprio Oswald, que na passagem para o capitalismo<br />

na Inglaterra os carneiros comeram os homens,<br />

hoje a barbárie tecnológica devora os homens<br />

de forma muito mais sofistica<strong>da</strong>. A tese de Oswald de<br />

que numa socie<strong>da</strong> de controla<strong>da</strong> o Estado junto com<br />

o patriarcalismo seriam suprimidos, leva-nos ao estarrecimento,<br />

pois lembra-nos a socie<strong>da</strong>de controla<strong>da</strong><br />

que foi a Ale manha nazista com seus campos <strong>da</strong><br />

morte. Serve de exemplo também a socie<strong>da</strong>de na qual<br />

vivemos, que é a socie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> reificação total, cujo<br />

controle extensivo é exercido pelo poder do capital.<br />

Pode mos dizer que Oswald acertou quando trouxe<br />

para o centro <strong>da</strong> discussão o tema <strong>da</strong> utopia, mas<br />

que apesar do seu otimismo militante ele colocou no<br />

futuro a máscara do passado.<br />

A cotação <strong>da</strong> utopia está em baixa, o horizonte<br />

utópico e, portanto, os planos de uma socie<strong>da</strong>de mais<br />

justa num mundo mais humanizado estão fora de<br />

<strong>mo<strong>da</strong></strong>. As teses pós-modernistas dão como certo o fim<br />

<strong>da</strong> história e assinam o atestado de óbito <strong>da</strong> utopia<br />

socialista. Nesse ver<strong>da</strong>deiro apocalipse <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de<br />

“pós-industrial”, os teóricos pós-modernos afirmam<br />

a canonização do mundo burguês e a eterni<strong>da</strong>de do<br />

burguesia capitalista. Mas sabemos que o espaço <strong>da</strong><br />

esperança usur pado pelos especuladores <strong>da</strong> razão neoconservadora<br />

não nos levou, apesar dos vaticínios<br />

que fizeram, ao fim <strong>da</strong> história, nem sequer ao fim<br />

de um período <strong>da</strong> história. Neste tempo de crise do<br />

socialismo, a dialética do ser e <strong>da</strong> história concentra<br />

a sua capaci<strong>da</strong>de de resistir no novo espírito <strong>da</strong> utopia.<br />

Um espectro ron<strong>da</strong> o século XXI – o espectro <strong>da</strong><br />

utopia concreta do socialismo, contido no princípio<br />

esperança, que aponta para o futuro já presente no<br />

coração dos homens, que nos faz afirmar com as palavras<br />

do poeta Drummond:<br />

Estou preso <strong>à</strong> vi<strong>da</strong> e olho meus companheiros.<br />

Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.<br />

Entre eles, considero a enorme reali<strong>da</strong>de.<br />

O presente é tão grande, não nos afastemos.<br />

Não nos afastemos muito, vamos de mãos <strong>da</strong><strong>da</strong>s.<br />

CARLOS LIMA<br />

Poeta<br />

<strong>Professor</strong> de Cultura e Literatura Brasileira <strong>da</strong> UERJ<br />

Autor de Genealogia Dialética <strong>da</strong> Utopia (Contraponto,<br />

2008), e Phosphoros (Comunicarte, 2007)<br />

* in Oswald Plural (EdUERJ, 1995)<br />

19


É<br />

difícil ou pelo menos incrível<br />

imaginar um escritor<br />

como Oswald de Andrade<br />

fazendo cem anos, assim como é<br />

difícil conceber uma história literária<br />

<strong>da</strong>s vanguar<strong>da</strong>s, sem cair<br />

em contradição. Um movimento<br />

de vanguar<strong>da</strong> vive o tempo de<br />

seus manifestos e contradições,<br />

como se deu com o futurismo e<br />

o <strong>da</strong><strong>da</strong>ísmo. Uma vanguar<strong>da</strong> é<br />

sempre uma presença incô<strong>mo<strong>da</strong></strong>,<br />

ain<strong>da</strong> que <strong>à</strong>s vezes agradável.<br />

Ora, Oswald de Andrade, como<br />

homem e como escritor, foi sempre<br />

uma presença incô<strong>mo<strong>da</strong></strong>, abrindo-se<br />

continuamente para o novo<br />

e muitas vezes se queimando na<br />

sua própria renovação. Este sentido<br />

de insatisfação e de inconstâncias<br />

nós o encontramos numa de<br />

suas autobiografias, quando ele<br />

diz, acentuando o contraste, que<br />

fez “uma conferência na Sorbonne<br />

e outra no Sindicato dos Padeiros,<br />

confeitarias e Anexos”. E a seguir<br />

informa, de maneira enumerativa<br />

e brincalhona: “Viajei, fiquei pobre,<br />

fiquei rico, casei, enviuvei,<br />

casei, divorciei, viajei, casei... Já<br />

disse que sou conjugal, gremial e<br />

ordeiro”. Mas acrescenta que foi<br />

preso treze vezes. Nesse mesmo<br />

texto, ele considera a sua “obra<br />

literária acima <strong>da</strong> compreensão<br />

brasileira”, uma coisa assim<br />

como a famosa tira<strong>da</strong> de Joaquim<br />

de Sousa Andrade, para quem a sua<br />

obra (a dele, Sousândrade) só poderia ser compreendi<strong>da</strong><br />

cinquenta anos depois. E olhem que já<br />

se passaram cem anos...<br />

No caso de Oswald de Andrade, vi<strong>da</strong> e obra<br />

se identificaram na volubili<strong>da</strong>de e até na volup-<br />

20<br />

ENCONTROS COM A LITERATURA<br />

O “gremial e ordeiro”<br />

OSWALD DE ANDRADE *<br />

GILBERTO MENDONÇA TELES<br />

tuosi<strong>da</strong>de do novo, mas de um novo<br />

que se queria estranho para ser autenticamente<br />

moderno, um novo que<br />

se queria revolucionário para mu<strong>da</strong>r<br />

os velhos hábitos estéticos dos escritores<br />

e leitores brasileiros deste século.<br />

Para isso, não bastava apenas<br />

a audácia <strong>da</strong> agitação polêmica: era<br />

preciso que o talento literário descobrisse<br />

uma linguagem adequa<strong>da</strong> e<br />

eficaz, que contivesse na sua própria<br />

estrutura as forças novas <strong>da</strong> contestação.<br />

E é por aí que a obra de<br />

Oswald de Andrade (Oswáld e não<br />

Ôswald, como nos ensinam Mário<br />

<strong>da</strong> Silva Brito e Antonio Candido,<br />

que o conheceram de perto), é por aí<br />

que a sua obra – tudo o que ele escreveu<br />

de poesia, de romance, de<br />

teatro, de polêmica, de manifesto<br />

– contribuiu e continua a contribuir<br />

para a consagração <strong>da</strong> nossa<br />

moderni<strong>da</strong>de.<br />

A ousadia na invenção dos<br />

temas e na construção <strong>da</strong> linguagem<br />

nova está patente em romances<br />

como Memórias sentimentais<br />

de João Miramar, de 1924, e Serafim<br />

Ponte Grande, de 1934. No primeiro<br />

capítulo de João Miramar, o<br />

narrador em primeira pessoa (pois<br />

é um romance memorialístico) se<br />

vale <strong>da</strong> técnica do simultaneísmo<br />

para expressar de uma só vez as<br />

duas ordens de ideias que an<strong>da</strong>vam<br />

na cabeça do menino, que rezava:<br />

“– Senhor convosco, bendita sois<br />

entre as mulheres, as mulheres não<br />

tem pernas, são como o manequim de mamãe até<br />

em baixo. Para que pernas nas mulheres, amém”.<br />

Mas é com os manifestos, tendo como modelo os<br />

cinquenta e tantos manifestos de Marinetti, que<br />

Oswald de Andrade contribuiu ostensivamente


para mu<strong>da</strong>r os padrões <strong>da</strong> inteligência<br />

brasileira na déca<strong>da</strong> de<br />

20. O Manifesto <strong>da</strong> poesia paubrasil<br />

(ou manifesto pau, como<br />

diziam os seus inimigos) e o<br />

Manifesto antropófago se valem<br />

<strong>da</strong> descontinui<strong>da</strong>de do pensamento<br />

e <strong>da</strong> linguagem para<br />

subverter a maioria dos valores<br />

consagrados pela nossa tradição<br />

cultural. No Manifesto paubrasil<br />

critica o nosso “lado doutor”,<br />

a nossa bacharelice, e diz:<br />

“Eruditamos tudo. Esquecemos<br />

o gavião de penacho”. Contra a<br />

gramatiquice <strong>da</strong> época ele pede<br />

“A língua sem arcaísmos, sem<br />

erudição. Natural e neológica.<br />

A contribuição milionária de<br />

todos os erros. Como falamos.<br />

Como somos”. E contra a repetição<br />

dos processos poéticos ele<br />

vai dizer que “Só não se inventou<br />

uma máquina de fazer versos”<br />

porque “já havia o poeta<br />

parnasiano”. Mas é no Manifesto antropófago, de<br />

1928, que Oswald de Andrade vai atingir o melhor<br />

<strong>da</strong> sua subversão estética, gritando que “Só a antropofagia<br />

nos une” e fazendo uma belíssima paródia<br />

de Shakespeare ao escrever: “Tupy, or not tupy,<br />

that is the question”.<br />

Valendo-se <strong>da</strong> psicanálise e dos modernos<br />

significados de “totem” e “tabu” tomados <strong>à</strong> antropologia<br />

cultural, ele pede aos intelectuais que “deglutam”<br />

os nossos mitos, assim como os índios caetés<br />

fizeram com D. Pêro Fernandes Sardinha. Foi<br />

essa antropologia ritualista que deu novo sentido<br />

ao nacionalismo modernista que já havia <strong>da</strong>do Macunaíma<br />

e ia <strong>da</strong>r Cobra norato.<br />

Esse novo sentido de nacionalismo ele o expressou<br />

pela primeira vez na revista Klaxon; ampliou-o<br />

para o prefácio “Falação” de Pau-brasil, o<br />

livro de poemas: foi esse prefácio que serviu de<br />

base ao primeiro manifesto. O exemplo de Macunaíma,<br />

que Mário começou a publicar em 1927,<br />

levou Oswald de Andrade ao manifesto e <strong>à</strong> Revista<br />

de <strong>Antropofagia</strong>. Esta idéia de antropofagia<br />

<strong>da</strong> nossa cultura nunca mais o abandonou, mas<br />

também não foi mais aprofun<strong>da</strong><strong>da</strong>, como é fácil<br />

perceber na sua tese A crise <strong>da</strong> filosofia messiânica,<br />

já no fim <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>.<br />

Quanto <strong>à</strong> sua poesia, quiseram transformála<br />

na coisa mais importante do modernismo, mas<br />

ela (vale o cacófato) não parece resistir muito <strong>à</strong><br />

análise que preten<strong>da</strong> ver a renovação por dentro<br />

ENCONTROS COM A LITERATURA<br />

Na Revista de <strong>Antropofagia</strong> (l928-<br />

29), um contundente balanço crítico<br />

do saldo deixado pela rebeldia<br />

literária <strong>da</strong> Semana de Arte Moderna,<br />

1922.<br />

<strong>da</strong> linguagem, mas sem perder<br />

o fio <strong>da</strong> tradição, como<br />

em Manuel Bandeira e mais<br />

corrosivamente em Mário de<br />

Andrade. Não se a<strong>da</strong>ptando<br />

por temperamento ao conhecimento<br />

<strong>da</strong> retórica tradicional,<br />

a poesia de Oswald,<br />

para bem e para mal, teve de<br />

se produzir fora <strong>da</strong> tradição<br />

ou, melhor, contra a tradição<br />

poética. Não resta dúvi<strong>da</strong> de<br />

que ele contribuiu com uma<br />

série de elementos novos<br />

para a poesia modernista.<br />

Dentre esses, talvez o mais<br />

importante sejam as reduções<br />

epigramáticas, isto é,<br />

as reapropriações de textos<br />

dos cronistas coloniais como<br />

Pêro Vaz Caminha, Gân<strong>da</strong>vo,<br />

Claude D’Abbeville, Frei Vicente<br />

do Salvador, Frei Manoel<br />

Calado e outros. Trata-se do<br />

que a poética atual denomina<br />

intertextuali<strong>da</strong>de, inclusão<br />

de discursos estranhos no espaço do poema ou<br />

aproveitamento <strong>da</strong> dicção do texto anterior, como<br />

no conhecido “Meninas <strong>da</strong> gare”:<br />

Eram três ou quatro moças bem moças e bem gentis<br />

Com cabelos mui pretos pelas espáduas<br />

E suas vergonhas tão altas e tão saradinhas<br />

Que de nós as muito bem fitarmos<br />

Não tínhamos nenhuma vergonha<br />

Mas Oswald inverte o pensamento de Caminha,<br />

cria situações novas e realmente bem logra<strong>da</strong>s<br />

do ponto de vista do estranhamento. A sua<br />

experimentação é aqui excepcional, criando imagens<br />

belíssimas como no poema “As aves”, visual<br />

e dinâmico por causa <strong>da</strong> superposição de imagens<br />

que conotam a relação mar e sertão:<br />

Há águias de sertão<br />

E emas tão grandes como as de África<br />

Umas brancas e outras malha<strong>da</strong>s de negro<br />

Que com uma asa levanta<strong>da</strong> ao alto<br />

Ao modo de vela latina<br />

Corre com o vento.<br />

Neste sentido é que fez paródias e carnavalizou<br />

muito antes <strong>da</strong> teoria de Bakhtine e <strong>da</strong> <strong>mo<strong>da</strong></strong><br />

<strong>da</strong> carnavalização haver atingido os estudos literários<br />

no Brasil. Oswald de Andrade inaugurou entre<br />

os modernos o novo sentido <strong>da</strong> paródia, como<br />

no “Canto de regresso <strong>à</strong> pátria” (onde glosa versos<br />

de Gonçalves Dias) e em “Meus oito anos”, onde<br />

joga com versos de Casimiro de Abreu. É por aí que ele<br />

21


passa <strong>à</strong> inclusão de palavras tupis e negras, como no<br />

poema “Brasil” de notável efeito humorístico:<br />

22<br />

O Zé Pereira chegou de caravela<br />

e perguntou ou pro guarani <strong>da</strong> mata virgem<br />

– Sois cristão?<br />

– Não. Sou bravo, sou forte, sou filho <strong>da</strong> Morte<br />

Tererê tetê Quizá Quizá Quecê.<br />

Lá longe a onça resmunga Uu! – ua! uu!<br />

O negro zonzo saído <strong>da</strong> fornalha<br />

tomou a palavra e respondeu<br />

– Sim pela graça de Deus<br />

Canhem Babá Canhém Babá Cum Cum!<br />

E fizeram o Carnaval.<br />

É por aí que ele chegou a um tipo de metalinguagem<br />

primária como nos poemas “Vício na<br />

fala”, “O gramático” e “Pronominais”, de grande<br />

efeito humorístico e de notável sarcasmo perante<br />

a crítica tradicional que, por volta de 1920, não<br />

conseguia sair do policiamento gramatical. Eis o<br />

“Pronominais”:<br />

Dê-me um cigarro<br />

Diz a gramática<br />

Do professor e do aluno<br />

E do mulato sabido<br />

Mas o bom negro e o bom branco<br />

Da Nação Brasileira<br />

Dizem todos os dias<br />

Deixa disso camara<strong>da</strong><br />

Me dá um cigarro.<br />

Mesmo assim, abolindo a pontuação, não<br />

deixa de pagar tributo <strong>à</strong> tradição <strong>da</strong>s maiúsculas<br />

iniciais do verso.<br />

ENCONTROS COM A LITERATURA<br />

Não tendo longo fôlego poético<br />

– o que se transformou numa<br />

de suas quali<strong>da</strong>des – Oswald pôde<br />

realizar o que Haroldo de Campos<br />

chamou poema-minuto, como na<br />

original redução de<br />

AMOR<br />

HUMOR<br />

em que o poema está praticamente<br />

reduzido a uma só palavra,<br />

<strong>da</strong>do que amor funciona como título,<br />

mas que se integra na estrutura<br />

minúscula do poema. Dentro desta<br />

linha de redução é que pode chegar<br />

a poemas semiconcretos como “A<br />

Europa curvou-se ante o Brasil”,<br />

poema denotativo sobre futebol internacional<br />

na déca<strong>da</strong> de 20:<br />

7 a 2<br />

3 a 1<br />

A injustiça de Cette<br />

4 a 0<br />

2 a 0<br />

3 a 1<br />

e meia dúzia na cabeça dos portugueses<br />

O espírito brincalhão de Oswald o levou <strong>à</strong><br />

construção de um dos seus poucos poemas metrificados,<br />

mas de sete sílabas e, portanto, de feição<br />

bem popular. É o que se lê em “Epitáfio”, onde se<br />

aproveita a repetição de uma palavra expressiva<br />

como “redondo” e se cria a montagem de redon<strong>da</strong><br />

e ilha = redondilha. O poema de Oswald, além de<br />

trocadilho e de crítica <strong>à</strong>s formas tradicionais, nos<br />

mostra também como o poeta soube tirar proveito<br />

de associações como redondo (gordo) e redondilha<br />

a explorar uma referência fantástica (o riso <strong>da</strong> caveira)<br />

para introduzir o eco de uma risa<strong>da</strong> e quebrar<br />

o verso de sete sílabas:<br />

Eu sou redondo, redondo<br />

Redondo, redondo eu sei<br />

Eu sou uma redond’ilha<br />

Das mulheres que beijei<br />

Por falecer de oh! amor<br />

Das mulheres de minh’ilha<br />

Minha caveira rirá ah! ah! ah!<br />

Pensando na redondilha.<br />

É como se o próprio poeta, morto ou vivo,<br />

estivesse rindo de quem compõe redondilhas ou<br />

rindo de si mesmo, pelo fato de haver também feito<br />

esses versos redondilhos. Ou rindo, talvez, <strong>da</strong><br />

pronúncia inglesa de seu nome entre os universitários,<br />

sobretudo no Rio de Janeiro.<br />

GILBERTO MENDONÇA TELES<br />

Poeta, ensaísta<br />

<strong>Professor</strong> Emérito <strong>da</strong> PUC-Rio e <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Federal de Goiás<br />

<strong>Professor</strong> Titular do Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora<br />

* in Oswald Plural (EdUERJ, 1995)


LEITURA, LEITURAS<br />

Índios brasileiros em ritual antropofágico, gravura de Theodore de Bry, in Voyage au Brésil, 1592<br />

ANTROPOFAGIA <strong>à</strong> <strong>mo<strong>da</strong></strong> <strong>da</strong> <strong>casa</strong><br />

Na déca<strong>da</strong> dos 20, o Brasil e os brasileiros foram<br />

“descobertos”. É emblemática desta descoberta<br />

a proposta de Oswald de Andrade de<br />

converter a <strong>da</strong>ta em que os aimorés comeram o Bispo<br />

Sardinha em primeira manifestação histórica brasileira.<br />

Festejar o ato canibal – suprema barbárie para<br />

o olhar europeu – em afirmação de uma protonacionali<strong>da</strong>de<br />

confere transcendência no comer o importado<br />

e o resultado dessa transformação torna-se algo<br />

virtuoso. O gênio de Oswald transformou o tabu em<br />

totem; sabia que o escân<strong>da</strong>lo é pe<strong>da</strong>gógico.<br />

No século XIX, houve o esforço de buscar no<br />

índio a origem <strong>da</strong> nacionali<strong>da</strong>de brasileira. Gonçalves<br />

Dias transformou o ato canibal em ritual de perpetuação<br />

do inimigo valente. Em I-Juca Pirama a comi<strong>da</strong><br />

luta como herói grego em busca do resgate de sua<br />

imagem ante o pai. As virtudes do índio são coteja<strong>da</strong>s<br />

em convívio com o colonizador em José de Alencar,<br />

que cunha Iracema como “a virgem dos lábios de<br />

mel”. O índio de Alencar é uma réplica europeia.<br />

“Comer” a cultura importa<strong>da</strong> não é um retorno<br />

<strong>à</strong> natureza. No plano simbólico, foi o colonizador que<br />

CARLOS LESSA<br />

importou o Bispo “comido”. O aimoré não tecnizado lançou<br />

mão do que sabia para “experimentar” o colonizador.<br />

Ao longo de séculos a colônia – através de sua elite<br />

de poder, de ter e de saber – importou cultura, no amplo<br />

sentido antropológico, e despiu o nativo de seus saberes<br />

e haveres, inclusive dos ventres de suas mulheres para<br />

produzir os caboclos mestiços. A importação de africanos<br />

– objeto de canibalização cultural – foi uma tentativa<br />

radical de o colonizador desconhecer o nativo. No<br />

terreiro do candomblé, o africano agradeceu ao “caboclo”<br />

a cessão <strong>da</strong> terra. O ingênuo movimento indianista<br />

procurou no nativo o “doador” de um Paraíso Tropical e<br />

legitimizou a proprie<strong>da</strong>de do território brasileiro. Pedro<br />

II se coroou utilizando um manto com papos de tucanos<br />

e folhas de bananeira, estilizados e bor<strong>da</strong>dos em fios de<br />

ouro. Valorizou, superficialmente, apenas bugigangas<br />

do Paraíso Tropical, indisponíveis na Europa. Afirmou:<br />

“são minhas”. Ao combinar o tucano nativo com a musa<br />

paradisíaca africana, não canibalizou, apenas importou<br />

o formato europeu; quem “canibalizou” o imperador<br />

foi o povão que, no século XX, reprocessa a história<br />

do império como enredo de escola de samba e com-<br />

23


ina baianas, índios, condessas, colombinas e o que<br />

mais dispuser na mistura antropofágica do carnaval.<br />

O prestígio europeu foi visceralmente abalado pela<br />

I Guerra Mundial. A Belle Époque seria a preliminar<br />

de um processo contínuo de ascese em direção <strong>à</strong> civilização.<br />

A Europa teria domesticado os cavalos do<br />

Apocalipse e seus cavaleiros, desempregados, teriam<br />

se convertido em cavalheiros nos salões <strong>da</strong> burguesia<br />

ascendente. Com a I Guerra Mundial, o banho de sangue<br />

<strong>da</strong> juventude europeia e as matanças industriais<br />

de populações civis desmentiram a profecia positivista.<br />

A razão e a ciência não eram dominantes, mas<br />

sim domina<strong>da</strong>s pela evolução capitalista. As guerras<br />

coloniais haviam sido introjeta<strong>da</strong>s pela “civilização”<br />

europeia.<br />

Jovens brasileiros perceberam o fracasso cultural<br />

do Velho Mundo. Não precisaram, como Picasso,<br />

procurar inspiração nas esculturas de Benin, como<br />

Brancusi, nos totens esquimós ou como Matisse, no<br />

cromatismo japonês e polinésio. Estes jovens perceberam<br />

que, olhando para o “povão” brasileiro, tinham<br />

formas e conteúdos a serem deglutidos. Tarsila do<br />

Amaral busca a plastici<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s<br />

len<strong>da</strong>s índias; Di Cavalcanti busca a<br />

sensuali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> mestiça brasileira;<br />

Menotti Del Picchia, o linguajar caipira;<br />

Portinari, os pés do trabalhador<br />

do café; Villa Lobos, to<strong>da</strong>s as tonali<strong>da</strong>des<br />

musicais; Câmara Cascudo,<br />

todo e qualquer folclore. Uma plêiade<br />

de escritores se debruça sobre fatos,<br />

coisas e falares regionais: o gaúcho,<br />

o jangadeiro, o mascate, o engenho<br />

açucareiro, a fazen<strong>da</strong><br />

de cacau, a mulher<br />

nordestina, o cangaceiro,<br />

o mineiro, o colhedor<br />

de erva-mate,<br />

de borracha etc. A<br />

antropofagia tropical<br />

resgata a versão colonial<br />

digeri<strong>da</strong> de Portugal:<br />

descobre Ouro<br />

Preto, Mariana e o<br />

Aleijadinho. A feijoa<strong>da</strong><br />

e a goiaba<strong>da</strong> com<br />

queijo caminham do<br />

trivial para o banquete<br />

orgulhoso. O violão<br />

substitui o piano na<br />

sala de visitas. O gigante<br />

Gilberto Freire<br />

faz a prospecção dos<br />

desvãos <strong>da</strong> <strong>casa</strong> senhorial<br />

como lugar de<br />

simbioses, sincretis-<br />

mos e metamorfoses<br />

de protobrasili<strong>da</strong>de;<br />

24<br />

LEITURA, LEITURAS<br />

Erro de Português<br />

vê no senhor de escravos um canibal dominante e faminto<br />

e explicita uma dialética <strong>casa</strong> grande-senzala.<br />

O Rio de Janeiro serve como ilustração <strong>da</strong> redescoberta.<br />

O francófilo Pereira Passos, apoiado pelo<br />

paulista Rodrigues Alves, fez do Rio um porto moderno<br />

e um cartão de visitas dizendo ao mundo que<br />

“somos civilizados; construímos a Paris dos Trópicos;<br />

temos um Theatro Municipal que copia o Opéra de<br />

Paris; temos uma Aveni<strong>da</strong> Central”, com edifícios de<br />

telhados próprios para a neve escorregar. Não permitimos<br />

nenhuma perturbação tropical nos jardins geométricos<br />

<strong>da</strong> Beira Mar. Aclimatamos os par<strong>da</strong>is – uma<br />

praga – para evocar os Jardins de Luxemburgo. Na<br />

déca<strong>da</strong> de 30, o desfile <strong>da</strong>s escolas de samba passou<br />

a ser um evento <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de. Nos anos 50, o Rio, o<br />

fraque e a estola de vison (manti<strong>da</strong> climatiza<strong>da</strong> pela<br />

Casa Canadá) para a frequência ao Municipal foram<br />

substituídos pelo pré-biquíni e calção de banho em<br />

Copacabana, Princesinha do Mar. O Copacabana Palace<br />

permitiu a construção de um colar art déco de edifícios<br />

para emoldurar as areias; os “fechos” do colar,<br />

os fortes militares, completavam a ilusão que fez do<br />

Rio objeto de desejo. A Ci<strong>da</strong>de Ma-<br />

OSWALD DE ANDRADE<br />

Quando o português chegou<br />

Debaixo de uma bruta chuva<br />

Vestiu o índio<br />

Que pena!<br />

Fosse uma manhã de sol<br />

O índio tinha despido<br />

O português<br />

Manufacture des Gobelins (1692-1700), visão europeiza<strong>da</strong><br />

dos nossos índios<br />

ravilhosa apagou a Paris Tropical.<br />

A elite do poder, do ter e do<br />

saber importa desde a fórmula federativa<br />

(no Novo Mundo, os Estados<br />

Unidos <strong>da</strong> América do Norte e os Estados<br />

Unidos do Brasil) até o neoliberalismo,<br />

o modelo de metas de<br />

inflação, a sugestão de autonomia<br />

para o Banco Central, o baile funk,<br />

o jazz, sabores, tonali<strong>da</strong>des e ameni<strong>da</strong>des.<br />

Importa cultura e<br />

o povão canibaliza para<br />

subsistir. Ao canibalizar,<br />

o povo cria. A geriatria<br />

do objeto durável<br />

faz o veículo automotor<br />

sobreviver <strong>à</strong> segun<strong>da</strong>,<br />

terceira, enésima mão<br />

– existe o neoartesão<br />

mecânico, que reproduz<br />

a peça de reposição do<br />

modelo fora de uso no<br />

primeiro mundo; existe<br />

o lanterneiro genial<br />

que, como um Pitanguy<br />

do povão, preserva geladeiras,<br />

televisões e, mais<br />

recentemente, computadores.<br />

Com a geriatria,<br />

o povo cria empregos e<br />

ren<strong>da</strong>, microempresas<br />

e viabiliza o acesso popular<br />

<strong>à</strong>s mercadorias<br />

importa<strong>da</strong>s; a geriatria<br />

permite <strong>à</strong> montadora de


veículos um mercado<br />

ampliado de primeira<br />

mão e ao banco endivi<strong>da</strong>r<br />

a família que<br />

não presta atenção ao<br />

juro, calcula apenas o<br />

valor <strong>da</strong> prestação.<br />

A criativi<strong>da</strong>de<br />

popular transformou<br />

o football importado<br />

pelo inglês colonizador.<br />

A elite do ter, com<br />

a miragem do anglicismo,<br />

fundou clubes<br />

de football e regatas.<br />

A bola é redon<strong>da</strong>, barata<br />

e pode ser improvisa<strong>da</strong><br />

com meia velha;<br />

o campo pode ser<br />

qualquer terreiro – e o<br />

povão canibalizador<br />

inventou o futebol.<br />

O inglês chutava a<br />

ball, mas o brasileiro<br />

quer dominar a bola.<br />

Futebol virou paixão.<br />

Qualquer lugar pode<br />

ter seu time de várzea e disputar com o time do lugar<br />

vizinho fazendo o ritual de construção de identi<strong>da</strong>de,<br />

que Lévi-Strauss identificou pela oposição ao idêntico.<br />

Viramos, em 1958, campeões do mundo. Garrincha,<br />

torto, surgiu em Pau Grande (RJ), a partir do<br />

time de uma fábrica de tecidos de proprie<strong>da</strong>de britânica.<br />

No final dos 50, completamos nosso desempenho<br />

construindo Brasília mais além do território real<br />

ocupado.<br />

Em resumo, o povão cria e a elite come criação.<br />

O povão foi expulso <strong>da</strong>s escolas de samba do grupo<br />

especial, não tem ren<strong>da</strong> para comprar a fantasia, nem<br />

para um lugar na arquibanca<strong>da</strong>. O Sambódromo é negócio<br />

e o espetáculo é para a elite. O criativo povão já<br />

fez renascer o bloco de rua.<br />

A feijoa<strong>da</strong> é guloseima em hotéis de luxo para<br />

atrair turista, mas em qualquer botequim tem uma<br />

boa feijoa<strong>da</strong>. O povão já superou o fast-food com a<br />

comi<strong>da</strong> a quilo, que permite ao brasileiro canibal misturar<br />

feijão com sashimi, sala<strong>da</strong> verde com talharim<br />

e o que mais a imaginação e o apetite permitirem.<br />

O povão, com pouco ter e poder, preserva o saber<br />

cultural brasileiro. Recicla tudo naturalmente, do<br />

auto <strong>à</strong> latinha de alumínio. Inventa a favela, a música<br />

popular, idealiza o malandro, tropicaliza o salpicão e<br />

faz com este prato uma multiplicação do frango. Organiza<br />

festas e novas religiões (é capaz de praticar várias<br />

ao mesmo tempo). Preserva o idioma, pois o maneja<br />

dinamicamente. O léxico é campo de aclimatação dos<br />

pe<strong>da</strong>ços que canibaliza. Enquanto a elite procura uma<br />

residência alternativa em Miami, seus epígonos procu-<br />

LEITURA, LEITURAS<br />

ram reproduzir o subúrbio<br />

norte-americano nas Alphavilles<br />

e socializar seus<br />

filhos no condomínio e no<br />

shopping, o povão canibaliza<br />

o baile funk. O estu<strong>da</strong>nte<br />

brasileiro despreza<br />

Camões e, em vez de imprimir<br />

e apagar, “printa” e<br />

“deleta”; o povão pega no<br />

funk uma música importa<strong>da</strong><br />

que se refere a tonight<br />

e a transforma na “Melô<br />

do Tomate”. Ligado nas<br />

sonori<strong>da</strong>des, este cultor de<br />

Camões transmuta o sítio<br />

do irlandês O’Higgins em<br />

Favela do Arrelia; o sítio<br />

do escocês William em um<br />

bairro, a Ilha. O Visconde<br />

de Asseca deu origem <strong>à</strong><br />

Praça Seca.<br />

Ao invés de constatar<br />

um Brasil com uma<br />

elite que importa e um povão<br />

que canibaliza, espero<br />

um projeto nacional para o<br />

Brasil de amanhã, onde estaremos abertos ao mundo e<br />

conscientes de nossa identi<strong>da</strong>de e soberania. Parafraseando<br />

Martinho <strong>da</strong> Vila, iremos “devagar, devagarzinho”<br />

em direção <strong>à</strong> premonição de Duque Estra<strong>da</strong>, que<br />

intuiu o “berço esplêndido” e atribuiu aos nossos bosques<br />

mais vi<strong>da</strong> e <strong>à</strong> nossa vi<strong>da</strong> mais amores. Neste Brasil<br />

de amanhã, Zeca Pagodinho não precisará se referir<br />

a caviar com “não sei, nunca vi, eu só ouço falar”. Zeca,<br />

estamos precisando de um samba que fale do futuro, que<br />

veja no baiano a vanguar<strong>da</strong> <strong>da</strong> civilização brasileira; que<br />

veja no mineiro a sabedoria; no paulista o maquinista <strong>da</strong><br />

locomotiva; no forró do nordestino a criativi<strong>da</strong>de lúdica<br />

do povão; no carioca, o brasileiro que não tem medo de<br />

praça cheia e que faz a maior festa mundial de fim de ano<br />

(três milhões reunidos, sem polícia nem violência) para<br />

recuperar o sonho de um futuro sempre postergado.<br />

A sugestão modernista <strong>da</strong> Semana de Arte Moderna<br />

de 1922 combina<strong>da</strong> <strong>à</strong> geniali<strong>da</strong>de de Gilberto<br />

Freire lastreou a redescoberta pela qual a elite canibalizou<br />

o povão. Nos últimos 25 anos, a elite praticamente<br />

deixou de lado o Brasil e mergulhou gostosamente<br />

na “Globalização”. Abandonou a cultura popular,<br />

<strong>da</strong> qual o culto <strong>à</strong> boa cachaça é a nova deglutição<br />

<strong>da</strong> elite. Tenho a esperança que estejamos próximos<br />

a um tempo em que, dialeticamente, povão e elite,<br />

juntos, superem o ritual recorrente <strong>da</strong> canibalização e<br />

haja a afirmação <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de brasileira explicitando<br />

nosso potencial civilizatório.<br />

CARLOS LESSA<br />

Economista<br />

<strong>Professor</strong> Emérito e ex-Reitor <strong>da</strong> UFRJ<br />

25


No segundo semestre de 1993, estava eu<br />

ministrando um curso de língua portuguesa<br />

e cultura brasileira na Universi<strong>da</strong>de<br />

Abdel Malik As-Saadi, em Tetuão, ci<strong>da</strong>de do<br />

norte do Marrocos, quando tive a satisfação de<br />

receber a visita de meus pais. Certa manhã, saí<br />

de <strong>casa</strong> acompanhado de meus hóspedes, para<br />

cumprir os afazeres habituais no centro <strong>da</strong>quela<br />

ci<strong>da</strong>de verde e branca, localiza<strong>da</strong> em um profundo<br />

vale.<br />

No caminho de retorno, meu pai observou:<br />

– Aquele ali deve estar vivendo algum<br />

problema. Quando passamos por aqui, há 3 horas,<br />

estava na mesma cadeira, na mesma mesa.<br />

Quem sabe tomando o mesmo chá com hortelã?<br />

Respondi-lhe imediatamente:<br />

– Então, grande parte <strong>da</strong> população masculina<br />

aqui tem graves problemas. Repare o número<br />

de cafés na ci<strong>da</strong>de e a grande frequência<br />

em qualquer parte do dia.<br />

Por força de meu doutoramento na Universi<strong>da</strong>de<br />

de Lisboa, uma vez por mês percorria o<br />

caminho feito, há quase 13 séculos, por Tárik<br />

Ibn Ziad e seus companheiros, que seduziram os<br />

26<br />

LEITURA, LEITURAS<br />

O Chá, o Fino, o Tinto e o<br />

Chope: uma Viagem<br />

JOÃO BAPTISTA M. VARGENS<br />

habitantes <strong>da</strong> Península Ibérica, apresentandolhes<br />

uma cultura rica e multifaceta<strong>da</strong>. Algumas<br />

vezes, atravessava o Estreito e, em Algeciras,<br />

tomava um ônibus, que me deixava, 7 horas depois,<br />

em Lisboa. Em outras ocasiões, galgava as<br />

terras <strong>da</strong> An<strong>da</strong>luzia e <strong>da</strong> Estremadura sem pressa.<br />

Quando avistava uma <strong>da</strong>s inúmeras vilas<br />

aprazíveis <strong>da</strong> região, era o momento de parar.<br />

Isso acontecia normalmente no arrebol. Entrava<br />

num bar, geralmente na varan<strong>da</strong>, e, invariavelmente,<br />

pedia um fino, vinho típico <strong>da</strong> região, que<br />

era sorvido, acompanhado de um legítimo pata<br />

negra. Adentrava a noite e aquela gente conversando,<br />

conversando... As histórias sucediam-se.<br />

A História fixava-se.<br />

No dia seguinte, a viagem continuava. As<br />

oliveiras <strong>da</strong>vam lugar <strong>à</strong>s pastagens, onde cerdos<br />

nutriam-se e caminhavam, mal sabendo que se<br />

tornariam apetitosos patas negras. Planícies e<br />

planaltos alternavam-se e, como um oásis, surgia<br />

Ba<strong>da</strong>jós, com suas floreiras adornando os<br />

muxarabiês. Do outro lado <strong>da</strong> fronteira, que não<br />

mais existe, avistava-se o alcácer de Elvas, no<br />

alto do monte, a desafiar os tempos. Na<strong>da</strong> me-


lhor do que tornar a ouvir a língua<br />

de Camões, mais tarde adocica<strong>da</strong> por<br />

Machado.<br />

Em um bar-café cor-de-rosa, em<br />

torno <strong>da</strong> mesa, o fino, que fora chá,<br />

torna-se um tinto, que rega a palavra<br />

de sempre, no intrigante e revolucionário<br />

Alentejo.<br />

Era preciso chegar ao destino.<br />

Prosseguia a viagem, até vislumbrar<br />

o Tejo e suas pontes majestáticas. Era<br />

hora do jantar. Na<strong>da</strong> melhor do que<br />

as tascas <strong>da</strong> Mouraria ou do Bairro<br />

Alto. Em suas vielas, ouvia-se o fado,<br />

acompanhado de suas guitarras, que<br />

pareciam, melancolicamente, buscar<br />

um passado de que foram testemunhas<br />

muros e pedras.<br />

Após cumprir as missões acadêmicas no<br />

Marrocos e em Portugal, retornei ao Brasil.<br />

Cheguei junto com o real. Como num passe<br />

de mágica, a moe<strong>da</strong> brasileira valia mais que<br />

o dólar americano. Difícil de entender. Principalmente<br />

para aquele que, a ca<strong>da</strong> mês, via diminuírem<br />

seus minguados cruzeiros, convertidos<br />

em cédulas, cuja estampa, invariavelmente, era<br />

o rei Hassan II.<br />

Depois <strong>da</strong>s sau<strong>da</strong>ções de praxe, familiares,<br />

amigos, colegas, alunos, urge um passeio<br />

pelo Rio de todos os janeiros.<br />

Queria rever o Centro,<br />

talvez pelo fato de, naquele<br />

lugar, ter estu<strong>da</strong>do e trabalhado<br />

durante muitos anos.<br />

Por força do hábito, conduzi-me<br />

<strong>à</strong> esquina <strong>da</strong> Lavradio<br />

com a Mem de Sá. Entrei no<br />

Bar Brasil, rebatizado na<br />

2.ª Guerra, chamava-se Alemão<br />

e assim é conhecido até<br />

hoje pelos frequentadores<br />

assíduos. Fui recebido pelo<br />

A<strong>da</strong>uto, garçom legendário,<br />

com entusiasmo. Naquele<br />

lugar, onde é servido um<br />

dos melhores chopes do Rio,<br />

acomodei-me. Percebi que a<br />

mesa era a mesma, em torno<br />

<strong>da</strong> qual sentava com os amigos<br />

<strong>da</strong> Facul<strong>da</strong>de de Letras,<br />

entre eles o saudoso <strong>Professor</strong><br />

Celso Cunha. A espuma<br />

<strong>da</strong> bebi<strong>da</strong>, tão aprecia<strong>da</strong> pe-<br />

LEITURA, LEITURAS<br />

los cariocas, tira<strong>da</strong> com a pressão exata, formava<br />

um elegante colarinho. Era a dose certa.<br />

Sozinho, notava a sucessão de ro<strong>da</strong><strong>da</strong>s de<br />

chope e os discos-horóscopos avolumarem-se sobre<br />

as mesas, prenunciando uma conta salga<strong>da</strong>.<br />

Refletia sobre meu itinerário: Marrocos,<br />

Espanha, Portugal, Brasil. Pensava sobre a história,<br />

a geografia, a cultura, os hábitos. Naquele<br />

instante, transpareceram-me, niti<strong>da</strong>mente, liames<br />

de comportamentos, díspares <strong>à</strong> luz de olhos<br />

incautos, mas próximos sob a mira de uma observação<br />

sensível. No Bar<br />

Brasil, havia pessoas em<br />

torno <strong>da</strong> mesa. Havia comi<strong>da</strong>,<br />

conversa, bebi<strong>da</strong>. Do<br />

outro lado do Atlântico,<br />

em pátria árabe-africana a<br />

mesma coisa, assim como<br />

acontecia do outro lado de<br />

Gibraltar. O chope, o tinto,<br />

o fino e o chá regavam mentes<br />

e entorpeciam o tempo.<br />

Os calendários, solar e lunar,<br />

paravam. As histórias<br />

multiplicavam-se, traçando<br />

a crônica dos tempos e, na<br />

maioria <strong>da</strong>s vezes, contrariando<br />

a letra peremptória<br />

<strong>da</strong> historiografia.<br />

Uma rua na Mouraria, Lisboa<br />

Palácio Real de Tetuão, Marrocos<br />

JOÃO BAPTISTA M. VARGENS<br />

Doutor pela Facul<strong>da</strong>de de Letras <strong>da</strong><br />

Universi<strong>da</strong>de de Lisboa<br />

<strong>Professor</strong> do Setor de Estudos Árabes<br />

<strong>da</strong> UFRJ<br />

<strong>Professor</strong>-Visitante do Instituto de<br />

Letras <strong>da</strong> UERJ<br />

27


Monumento <strong>à</strong><br />

Abertura<br />

dos Portos<br />

(100 anos)<br />

em frente<br />

ao Hotel<br />

Glória<br />

Uma <strong>da</strong>s<br />

Pirâmides<br />

do Mestre<br />

Valentim no<br />

Passeio<br />

Público<br />

Bebedouro Stella<br />

do Val D’Osne no<br />

Campo de Santana<br />

Fonte em ferro<br />

fundido do<br />

Val d’Osne<br />

na Praça<br />

M. Gandhi,<br />

Cinelândia<br />

LEITURA, LEITURAS<br />

O Mobiliário Urbano como Memória<br />

<strong>da</strong> Ci<strong>da</strong>de do Rio de Janeiro<br />

Parte integrante <strong>da</strong> cultura, a ideia de<br />

“memória” aplica<strong>da</strong> ao meio urbano<br />

significa também “evolução”. Portanto,<br />

os artefatos que foram implantados ao longo<br />

do tempo num cenário urbano, representam,<br />

enquanto memória, cultura urbana e medi<strong>da</strong><br />

de evolução.<br />

Já se disse que as ci<strong>da</strong>des nunca envelhecem,<br />

e uma <strong>da</strong>s formas para se comprovar<br />

isso são os artefatos implantados em ruas<br />

e praças, na formação de determinado meio<br />

urbano. Tais artefatos, denominados de “mobília<br />

ou mobiliário urbano”, se diversificam,<br />

abarcando os com funções específicas (postes<br />

ou bancos de praças); os simbólicos (marcos<br />

e monumentos históricos); os contemplativos<br />

(esculturas e fontes); os culturais (bancas de<br />

jornal, quiosques e coretos); os de diversão<br />

(brinquedos); e os de comunicação (relógios<br />

e mídias), entre outros.<br />

À medi<strong>da</strong> que o meio urbano cresce e<br />

se torna mais complexo, cresce o número e<br />

a quali<strong>da</strong>de de seu mobiliário, não apenas<br />

para atender <strong>à</strong>s funções necessárias a habitantes<br />

e veículos, mas também como marcos<br />

de épocas históricas.<br />

Ca<strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de tem características evolutivas<br />

próprias, e algumas se destacam por serem<br />

ricas num determinado contexto histórico<br />

e cultural e por características únicas do seu<br />

ambiente natural. Esse é o caso <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de<br />

São Sebastião do Rio de Janeiro, que já nasceu<br />

como tal, mesmo quando não passava de<br />

rústica fortificação no Morro Cara de Cão, instala<strong>da</strong><br />

por Estácio de Sá em 1565. Veio de Portugal<br />

sua primeira mobília – o Marco <strong>da</strong> Fun<strong>da</strong>ção<br />

–, implantado nas areias do pequeno<br />

istmo, como símbolo <strong>da</strong>quela que seria uma<br />

<strong>da</strong>s mais belas ci<strong>da</strong>des do mundo. Após mais<br />

de quatro séculos ele ain<strong>da</strong> existe, escondido<br />

e isolado na Igreja dos Capuchinhos na Tijuca,<br />

mas testemunho vivo <strong>da</strong> criação <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de.<br />

Durante quase dois séculos após sua<br />

fun<strong>da</strong>ção, a ci<strong>da</strong>de teve crescimento lento <strong>à</strong>s<br />

custas do estatuto colonial que não a favorecia,<br />

porém, a partir do início do século XVIII,<br />

REGINALDO SAH<br />

o sítio urbano começou a mu<strong>da</strong>r e, com ele,<br />

surgiram artefatos que aju<strong>da</strong>ram a torná-la<br />

uma ci<strong>da</strong>de de fato e de direito. Nos adros <strong>da</strong>s<br />

igrejas surgiram os cruzeiros de pedra e madeira,<br />

acompanhados dos sempre presentes<br />

“fradinhos de pedra”, tão frequentes atualmente<br />

nas ruas.<br />

Como símbolo do poder colonial, troncos<br />

e pelourinhos se instalaram para o castigo<br />

de escravos e criminosos e para divulgar<br />

os editais do governo. Entretanto, infelizmente,<br />

eles se perderam na poeira <strong>da</strong>s ruas.<br />

O mais importante dos mobiliários<br />

com função de serviço urbano implantado<br />

dessa época foi o chafariz. Com o primeiro<br />

no Largo <strong>da</strong> Carioca, em 1745, mudou-se a<br />

feição <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de. Não por acaso este espaço<br />

se tornou o centro mais movimentado desde<br />

então e, até hoje, é um dos pontos de maior<br />

expressão de mobiliários <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de.<br />

No cais do Largo do Paço, surgiu em<br />

1789 o imponente chafariz do Mestre Valentim,<br />

como símbolo <strong>da</strong> época de riquezas <strong>da</strong>s<br />

Minas Gerais e <strong>da</strong> capaci<strong>da</strong>de de transporte<br />

dos produtos que iam e vinham de além-mar.<br />

É nossa mais importante peça de mobília do<br />

período colonial, e suas linhas, ao mesmo<br />

tempo austeras e limpas, se aliam <strong>à</strong> arquitetura<br />

do Palácio do Paço e <strong>da</strong> antiga catedral,<br />

impondo-se, mesmo em escala menor, aos<br />

prédios modernos em volta.<br />

No entanto, a maior expressão de salvaguar<strong>da</strong><br />

<strong>da</strong> memória urbana <strong>da</strong> época colonial<br />

foi a criação do Passeio Público, em 1783,<br />

berço do mobiliário urbano no Brasil, projeto<br />

de Valentim, o maior artista carioca <strong>da</strong> época<br />

colonial e patrono de todos os belos e úteis<br />

artefatos implantados na paisagem construí<strong>da</strong><br />

do Rio de Janeiro, posteriormente.<br />

Nos jardins do Passeio, surgiram pela<br />

primeira vez numa ci<strong>da</strong>de brasileira: uma<br />

escultura abstrata (as pirâmides), uma escultura<br />

figurativa fundi<strong>da</strong> em bronze, um<br />

chafariz com elementos representativos <strong>da</strong><br />

nossa fauna (jacarés), bancos de pedra, pavilhões,<br />

muretas, postes de luz ordenados, etc.


Hoje, como complemento desse exemplo de<br />

ousadia de um Vice-Rei e de criativi<strong>da</strong>de de<br />

um artista mulato, o Passeio acolhe o maior<br />

número de bustos por metro quadrado <strong>da</strong><br />

América Latina, homenageando pessoas que<br />

foram importantes para as artes e a cultura<br />

brasileiras, como atestado de memória e reconhecimento.<br />

Com a chega<strong>da</strong> de D. João (mais tarde,<br />

VI) a ci<strong>da</strong>de se modificou: por sua determinação,<br />

criaram-se as primeiras normas urbanas,<br />

e a cultura floresceu. A memória do Segundo<br />

Império foi preserva<strong>da</strong> pelos primeiros<br />

monumentos históricos, como o de D. Pedro<br />

I, na Praça Tiradentes, de 1862; o de José Bonifácio,<br />

de 1872; e os primeiros mobiliários<br />

funcionais em rede pública, como os postes<br />

de iluminação pública do Barão de Mauá, as<br />

colunas de ventilação de esgoto de Gary e os<br />

diversos tipos de bancos de praças.<br />

Outros mobiliários importantes do final<br />

do século XIX foram as bancas de jornal<br />

e os quiosques, estes maltratados por Pereira<br />

Passos, mas que hoje representam, mais do<br />

nunca, o modo de vi<strong>da</strong> carioca. Pelo lado artístico,<br />

a ci<strong>da</strong>de passou a ser a segun<strong>da</strong> do<br />

mundo, depois de Paris, com o maior número<br />

de obras em ferro fundido do Val D’Osne: fontes,<br />

esculturas e objetos urbanos decorativos<br />

que se encontram em jardins e praças.<br />

Mas a grande mu<strong>da</strong>nça veio com a<br />

República, graças <strong>à</strong> reforma Pereira Passos,<br />

no começo do século XX. Pela primeira vez<br />

a ci<strong>da</strong>de foi pensa<strong>da</strong> e transforma<strong>da</strong> com a<br />

presença ostensiva de seus mobiliários implantados<br />

nas aveni<strong>da</strong>s Beira Mar, Rio Branco<br />

e na orla <strong>da</strong> Zona Sul: os postes artísticos,<br />

os relógios <strong>da</strong> Glória e do Largo <strong>da</strong> Carioca e<br />

o marco principal dessa mu<strong>da</strong>nça, o obelisco<br />

<strong>da</strong> Av. Rio Branco. O embelezamento urbano,<br />

via feição tipicamente francesa, se completou<br />

pela abertura <strong>da</strong> Av. Atlântica e <strong>da</strong> Praça Paris,<br />

de Alfredo Agache, já na terceira déca<strong>da</strong>.<br />

A memória urbana como cultura e evolução<br />

do Rio de Janeiro está bem representa<strong>da</strong> pelo<br />

trajeto que vai <strong>da</strong> Cinelândia, passando pela<br />

Lapa, atinge o Largo <strong>da</strong> Glória e se encerra<br />

nos jardins do Museu <strong>da</strong> República.<br />

O descenso e o descaso <strong>da</strong> implantação<br />

de mobiliários como memória <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de<br />

iniciaram-se na era getulista e, logo a seguir,<br />

pela presença ostensiva do automóvel. A ci<strong>da</strong>de<br />

não era mais pensa<strong>da</strong> para deleite de<br />

seus habitantes, mas para uso do carro e pelo<br />

valor monetário de seus espaços. A maior<br />

prova disso é a Av. Presidente Vargas e a ocupação<br />

desordena<strong>da</strong> de Copacabana.<br />

LEITURA, LEITURAS<br />

Com a ci<strong>da</strong>de transforma<strong>da</strong> em Estado,<br />

e apesar <strong>da</strong> construção de grandes vias<br />

para o automóvel, a memória se preservou<br />

pela construção do belo Aterro do Flamengo<br />

e suas peculiari<strong>da</strong>des interessantes em mobílias<br />

funcionais, monumentais, simbólicas<br />

e de lazer: o Monumento aos Pracinhas, os<br />

altos postes de iluminação, os diversos tipos<br />

de bancos, os quiosques, os brinquedos, etc.<br />

Mesmo a ci<strong>da</strong>de se voltando para o<br />

automóvel, a boa e tradicional mania dos cariocas<br />

de implantar monumentos históricos<br />

e esculturais não arrefeceu: nas praças e locais<br />

de movimento sempre aparece um monumento,<br />

uma escultura ou um marco, representando<br />

uma administração ou uma época<br />

política. Uma riqueza cultural que deve ser<br />

olha<strong>da</strong> com mais atenção.<br />

A última fase que pode e deve representar<br />

a memória <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, enquanto mobília<br />

urbana, foi o projeto Rio-Ci<strong>da</strong>de, iniciado na<br />

déca<strong>da</strong> de 1990, e que trouxe <strong>à</strong> tona a ideia<br />

de se implantar mobiliários urbanos funcionais<br />

e artísticos em determinados espaços ou bairros.<br />

O Rio-Ci<strong>da</strong>de representa a moderni<strong>da</strong>de e<br />

a civili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de através de sua mobília,<br />

basta ver os artefatos funcionais do Leblon, os<br />

diversos tipos de postes, mobiliários de comunicação<br />

e sinalização e a excelente ideia de se<br />

colocar nos bairros onde o projeto foi executado<br />

esculturas em bronze alusivas a personagens<br />

importantes na cultura citadina e brasileira,<br />

como Noel Rosa em Vila Isabel e Drummond de<br />

Andrade em Copacabana. Embora recente, essa<br />

história tem que ser preserva<strong>da</strong>, porque indica<br />

o caminho <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de em busca <strong>da</strong> melhoria dos<br />

espaços urbanos, do bem-estar dos ci<strong>da</strong>dãos e,<br />

principalmente, <strong>da</strong> importância do mobiliário<br />

urbano como memória e cultura.<br />

Desde o primeiro artefato implantado no<br />

cenário urbano <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de São Sebastião do<br />

Rio de Janeiro – o Marco de Fun<strong>da</strong>ção, de 1565<br />

–, até os que hoje lhe atestam a moderni<strong>da</strong>de<br />

de ci<strong>da</strong>de global, o mobiliário urbano foi e é<br />

parte integrante de sua história e como tal deve<br />

ser mais conhecido, favorecido e preservado.<br />

Assim, a memória enquanto cultura e medi<strong>da</strong><br />

<strong>da</strong> evolução de uma ci<strong>da</strong>de seria expressa sob<br />

o prisma do detalhe e do pontual, e a melhor<br />

representação desse fato é o seu mobiliário urbano,<br />

tão pouco percebido, mas sempre testemunho<br />

presente <strong>da</strong> história <strong>da</strong>s ci<strong>da</strong>des.<br />

REGINALDO SAH<br />

Arquiteto e designer<br />

Pesquisador, com publicações sobre design e<br />

mobiliário urbano<br />

Consultor de Ciência e Tecnologia<br />

Fotos do autor<br />

Cruzeiro<br />

<strong>da</strong> Igreja<br />

do Alto <strong>da</strong><br />

Boa Vista<br />

Fonte<br />

(Val D’Osne)<br />

<strong>da</strong> Ensea<strong>da</strong><br />

de Botafogo<br />

Fonte (Bebedouro) Stella<br />

do Jardim Botânico<br />

Coreto <strong>da</strong> Vista Chinesa no<br />

Alto <strong>da</strong> Boa Vista<br />

Em frente<br />

<strong>à</strong> sede dos<br />

Correios,<br />

Av. Pres.<br />

Vargas


A SÁBIA<br />

IMPERATRIZ<br />

QUE MORREU<br />

DE AMOR<br />

30<br />

CECILIA COSTA JUNQUEIRA<br />

Na madruga<strong>da</strong> do dia 8 de dezembro de 1826, a<br />

imperatriz Leopoldina escreveu uma carta desespera<strong>da</strong><br />

<strong>à</strong> sua irmã Maria Luiza, na qual afirmava<br />

não pedir “vingança, mas pie<strong>da</strong>de”, sobretudo<br />

para os filhos que estava a deixar órfãos no mundo.<br />

Dizendo-se a mais desgraça<strong>da</strong> <strong>da</strong>s mulheres, a mãe<br />

de Maria <strong>da</strong> Glória, Januária, Paula Mariana, Francisca<br />

Carolina e do futuro Pedro II, em seus instantes<br />

finais de vi<strong>da</strong>, contava <strong>à</strong> ex-imperatriz <strong>da</strong> França que<br />

há quatro anos sofria como uma condena<strong>da</strong>, por ter<br />

sido totalmente abandona<strong>da</strong> pelo marido infiel, que<br />

caracterizou como “um monstro sedutor”. Além disso,<br />

confessava, fora obriga<strong>da</strong> a passar por horríveis<br />

humilhações, justamente na presença <strong>da</strong>quela que<br />

era a causa de to<strong>da</strong>s as suas desventuras.<br />

Não cita o nome, mas, é claro, estava se referindo<br />

<strong>à</strong> Domitila de Castro, a Marquesa dos Santos,<br />

que Pedro I, com total descaramento e despudor, levara<br />

para o palácio na Quinta <strong>da</strong> Boa Vista para ser primeira<br />

<strong>da</strong>ma de honra de sua esposa. Esta última carta a<br />

Maria Luiza, a irmã confidente, mais velha seis anos,<br />

na reali<strong>da</strong>de não fora escrita pelo próprio punho de<br />

Leopoldina. Encontrava-se tão fraca – havia sofrido<br />

mais um aborto – que pedira <strong>à</strong> Marquesa de Aguiar<br />

que escrevesse por ela. Horas depois, morreria.<br />

Somente assim, diante <strong>da</strong> morte iminente, é<br />

que Leopoldina, abandonando to<strong>da</strong>s as suas arraiga<strong>da</strong>s<br />

noções de dever, diplomacia, cortesia e bom-tom,<br />

ousou, finalmente, <strong>da</strong>r a entender <strong>à</strong> sua queri<strong>da</strong> Maria<br />

Luiza o quanto fora infeliz no Brasil. Até aquela<br />

fatídica noite de 1826, ela omitira em suas epístolas<br />

as dores, tristezas e os padecimentos, chegando até<br />

mesmo a mentir, quando considerou necessário. Sua<br />

vi<strong>da</strong> no Eldorado tropical aparentemente era um conto<br />

de fa<strong>da</strong>s, ligeiramente chamuscado pelas pica<strong>da</strong>s de<br />

mosquitos e pelo calorão, do qual sempre reclamava.<br />

Desde que aportara no Rio, em novembro de<br />

1817, a jovem nasci<strong>da</strong> em berço de ouro na Áustria,<br />

escritora compulsiva, enviara centenas de cartas para<br />

seus familiares no exterior, tendo como principais des-<br />

LEITURA, LEITURAS<br />

D. Leopoldina, in Cartas de Uma Imperatriz<br />

tinatários a irmã; o pai, o rei Francisco I, e a tia Maria<br />

Amélia, mulher do rei francês Luís Felipe, buscando,<br />

em to<strong>da</strong>s elas, manter as aparências de um <strong>casa</strong>mento<br />

originado por imprescindíveis alianças dinásticas,<br />

numa Europa aterroriza<strong>da</strong> por revoluções e pelo corso<br />

conquistador. Assegurar <strong>à</strong> família que era ao menos<br />

razoavelmente feliz com seu irrequieto maridinho um<br />

ano mais jovem fora a forma que encontrara para proteger<br />

o futuro dos filhos e evitar mais falatórios do que<br />

já havia na corte brasileira. Articuladíssima, sabendo<br />

li<strong>da</strong>r com o baralho dos jogos políticos desde a infância,<br />

Leopoldina sempre esteve ciente de que to<strong>da</strong>s as<br />

suas missivas, apesar de lacra<strong>da</strong>s com seu selo, eram<br />

abertas por espiões maledicentes (principalmente do<br />

marido e <strong>da</strong> sogra) e censura<strong>da</strong>s, antes de chegarem a<br />

seu destino final.<br />

Nas últimas horas de vi<strong>da</strong>, no entanto, a cor<strong>da</strong><br />

arrebentou. Disse <strong>à</strong> sua experiente irmã Maria Luiza<br />

– segun<strong>da</strong> esposa de Napoleão, mãe do rei de Roma<br />

– mais do que devia dizer. Ou pelo menos deixou entrever<br />

um pouco do que já deveria ter dito há muito<br />

mais tempo, mas silenciara. Um pouco, apenas um<br />

pouco. Uma lágrima, uma pita<strong>da</strong> de amargura, um<br />

gemido. Um quase na<strong>da</strong>. Um ai. Pois não devia ter<br />

pedido <strong>à</strong> sua irmã confidente pie<strong>da</strong>de. Devia, isso<br />

sim, ter pedido o que fez questão de frisar que não<br />

queria: vingança!!!!<br />

É ver<strong>da</strong>de. Leopoldina bem que merecia uma<br />

vingançazinha. Sofreu demais. E sofreu até depois de<br />

morta. Já que durante muito tempo, aqui no Brasil, ficou<br />

cerca<strong>da</strong> por um certo mau-trato ou imerecido esquecimento.<br />

Enquanto a Marquesa de Santos chega a<br />

ter um museu, bem próximo <strong>à</strong> Quinta, Leopoldina, na


ci<strong>da</strong>de onde viveu seus últimos 9<br />

anos de vi<strong>da</strong>, só tem uma estação<br />

de trem, caindo em pe<strong>da</strong>ços, e<br />

um ramal ferroviário abandonado.<br />

Deveria, isso sim, ter um palácio<br />

em sua honra. Com vários retratos,<br />

documentos, livros e as aquarelas<br />

que pintou. E, se possível, se ain<strong>da</strong><br />

existirem em algum lugar de nosso<br />

planeta, Áustria ou Portugal, alguns<br />

dos seus pertences ou réplicas. Seu<br />

quarto, seu boudoir, joias, leques,<br />

vestidos, objetos de toucador.<br />

Dentro deste valioso museu,<br />

deveria haver espaço ain<strong>da</strong> para os<br />

minerais e pedras preciosas que tanto<br />

amava, um viveiro de pássaros e<br />

jardins floridos. Interessa<strong>da</strong> em botânica,<br />

a diligente e estudiosa arquiduquesa<br />

colecionava sementes e flores<br />

raras, em Viena, e veio a colecionar<br />

muito mais aqui no Rio. Um pequeno<br />

zoológico também cairia bem. Foi ela quem auxiliou a<br />

encher de bichos e aves dos trópicos o palácio do pai,<br />

na Áustria, enviando-lhe macacos, papagaios, preguiças,<br />

tatus e tucanos. Mas, sem dúvi<strong>da</strong>, o mais importante<br />

seria a biblioteca, uma imensa biblioteca. Nossa<br />

sofredora imperatriz foi leitora voraz, com interesses<br />

intelectuais os mais variados possíveis.<br />

Enfim, pela arte de Metternich, o Brasil ganhou<br />

de presente, em 1817, a jovem austríaca com<br />

mente de estadista, que devorava livros de política,<br />

ciências, história e geografia, encomen<strong>da</strong>dos por ela<br />

<strong>da</strong> Europa, lia diariamente vários jornais – os oficiais<br />

e os de oposição, e, desta forma, se mantinha antena<strong>da</strong><br />

o máximo que podia sobre o que acontecia em<br />

seu redor e no mundo. Só que a estadista caiu de<br />

amores por seu sensual rufião português, compositor<br />

nas horas vagas, bom caçador, cavaleiro e <strong>da</strong>nçarino,<br />

<strong>da</strong>do a alguns opiáceos e estupefacientes. Enfim, o<br />

moreno bonito, espanholado, cheio de vitali<strong>da</strong>de, inquieto,<br />

apaixonado pela vi<strong>da</strong>, era um bon vivant. O<br />

amor foi tanto que ela perdoou sua falta de educação,<br />

Desembarque de D. Leopoldina no Brasil, Debret, c.1818<br />

LEITURA, LEITURAS<br />

Capa do livro Cartas de<br />

Uma Imperatriz<br />

sua ignorância, seus maus modos, suas<br />

infideli<strong>da</strong>des, seus estranhos humores.<br />

Para complicar o quadro, Leopoldina<br />

não era bonita nem feia. Era<br />

passável, com sua pele muito branca,<br />

seus olhos azuis dos Habsburgos,<br />

seus lábios grossos. Falando assim,<br />

parece um primor, só que o conjunto,<br />

de acordo com testemunhas <strong>da</strong> época,<br />

era meio desconjuntado. O que a<br />

jovem importa<strong>da</strong> de Viena tinha mesmo<br />

de belo, muito belo, era seu cérebro.<br />

E o seu sensível coração. Justamente<br />

o que o jovem Príncipe <strong>da</strong><br />

Beira, de 19 anos – ela tinha vinte<br />

quando aqui aportou – preocupado<br />

em sugar <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> grandes emoções<br />

e prazeres, não podia avaliar muito<br />

bem. Pelo contrário, parece que a<br />

sapiência de Leopoldina – dominava<br />

cinco línguas – chegava a afastar<br />

seu maridinho, intimidá-lo. Recorrendo ao mais<br />

castiço português, jocosamente poderíamos dizer que<br />

simplesmente ela era muita areia para o caminhão<br />

dele, já que o rapazinho mimado pela mamãe Carlota<br />

gostava mesmo era de cair numa gan<strong>da</strong>ia. A moça<br />

inteligente, pelo contrário, era séria, muito séria.<br />

Fora ensina<strong>da</strong> a se pautar pela cartilha dos rígidos<br />

preceitos morais e religiosos e obriga<strong>da</strong>, desde muito<br />

cedo, a segurar a língua. Para uma mulher, pensava<br />

rápido e bem demais. Tinha muitas ideias. Tanto que<br />

a ordem, na Áustria, <strong>da</strong><strong>da</strong> por seu severo pai <strong>à</strong>s suas<br />

preceptoras, fora a de freá-la. Contê-la.<br />

Francisco I errou. Amarrou demais a personali<strong>da</strong>de<br />

de nossa Leopoldina, encheu demais a cabeça<br />

<strong>da</strong> filha dileta com noções de dever, equilíbrio e temperança.<br />

Com isso, ela ficou sem condições, no selvagem<br />

Brasil, de ro<strong>da</strong>r a baiana. E tinha tudo para ro<strong>da</strong>r. Pedro<br />

era dela e o pai Francisco, quando decidiu enviá-la<br />

para a Terra de Santa Cruz, voltara a ser um rei bem<br />

poderoso na Europa em recuperação do ataque do vilão,<br />

ou seja, do ambicioso e desmedido Napoleão.<br />

Como sei tudo isso? Sei por que sempre gostei<br />

de Leopoldina. Li sobre ela. Seus abortos. Seus partos<br />

dilacerantes, que a minaram por dentro. Sua saúde frágil.<br />

Sua cabeça forte. Seu interesse por idiomas. Ciências<br />

naturais, medicina, música, arte, teatro. Seu amor<br />

pelo Brasil, sua natureza, suas árvores, seus pássaros.<br />

Seu arguto e decisivo papel político, na questão <strong>da</strong> Independência.<br />

Suas humilhações. E mais ain<strong>da</strong> fiquei a<br />

saber, agora, ao ler o maravilhoso livro que a Estação<br />

Liber<strong>da</strong>de editou no final do ano passado, Cartas de<br />

Uma Imperatriz, que contém 315 missivas e bilhetes<br />

de Leopoldina, seleciona<strong>da</strong>s dentre um conjunto de 800<br />

textos em alemão, português, francês e inglês, objeto<br />

de criteriosa pesquisa por parte de Bettina Kahn e Patrícia<br />

Souza Lima, no Brasil, em Portugal, na Áustria<br />

e nos EUA. Cheio de revelações, o livro traz ain<strong>da</strong> algumas<br />

<strong>da</strong>s aquarelas de Leopoldina, artigos e ensaios<br />

acadêmicos, árvores genealógicas e esclarecedora cro-<br />

31


nologia, que justapõe fatos históricos<br />

ocorridos no Brasil a eventos<br />

acontecidos na Europa, de 1797 a<br />

1826, justamente a linha do tempo<br />

de nossa imperatriz. Ou seja,<br />

meros 29 aninhos, com 20 anos de<br />

felici<strong>da</strong>des, alegrias e privilégios<br />

passados em seu dourado palácio<br />

em Schönbrunn (o mesmo <strong>da</strong> princesinha<br />

Sissi, que se <strong>casa</strong>ria com<br />

um sobrinho de imperatriz brasileira),<br />

e muitas descobertas, êxtases e<br />

infelici<strong>da</strong>des em sua Quinta <strong>da</strong> Boa<br />

Vista. Sim, o livro é ótimo. Bonito e<br />

muito bem construído. Dá vontade<br />

de escrever um romance após lê-lo,<br />

colocando Leopoldina nas alturas<br />

e fazendo a caveira <strong>da</strong> Marquesa<br />

de Santos. Quem sabe, um dia, alguém<br />

o escreva?<br />

Mas é possível tomar partido<br />

assim? Ah, é sim. É claro que<br />

a Marquesa de Santos devia ser<br />

uma pessoa muito, muito interessante.<br />

Esperta, bonita, sensual.<br />

Morreu milionária e <strong>da</strong>ndo fartas<br />

esmolas aos pobres. Mas não<br />

precisava ter desgraçado tanto a vi<strong>da</strong> de Leopoldina<br />

como desgraçou, aproveitando a brecha intelectual<br />

entre Pedro e sua superdota<strong>da</strong> mulherzinha austríaca,<br />

que ele engravi<strong>da</strong>va sem parar. Leopoldina, com<br />

sua cultura e interesses espirituais elevados, devia<br />

cansar o destemperado Pedro, <strong>da</strong>do a galhofas e orgias.<br />

Além disso, ela era rica, e ele nem tanto. Mulher<br />

culta e endinheira<strong>da</strong> tem tudo para ser um grande<br />

problema. Resultado: Pedro a deixava praticamente<br />

trancafia<strong>da</strong> e ain<strong>da</strong> por cima confiscou o seu dote.<br />

Por outro lado, quando sua queri<strong>da</strong> mulherzinha<br />

ganhava algum dinheiro, oficialmente, para poder<br />

se apresentar bem junto a seus súditos, ele também<br />

enfiava este dinheiro em seu próprio bolso, argumentando<br />

estar sempre praticamente sem tostão. Com<br />

isso, ela se via obriga<strong>da</strong> a mendigar junto ao pai e<br />

a seus representantes diplomáticos no Brasil. Consequentemente,<br />

morreu endivi<strong>da</strong><strong>da</strong>. Triste, insulta<strong>da</strong><br />

e terrivelmente endivi<strong>da</strong><strong>da</strong>. Ser imperatriz no Brasil<br />

não era exatamente sentar-se num trono de ouro,<br />

disse ela numa de suas cartas, mas, sim, portar no<br />

pescoço uma canga de escrava.<br />

Não, Leopoldina não merecia na<strong>da</strong> disso. Veio<br />

para cá cheia <strong>da</strong>s boas intenções, com o coração esperançoso,<br />

disposta a aju<strong>da</strong>r aos brasileiros e a amar<br />

seu nobre companheiro, que, já por retrato, havia<br />

considerado um adônis. Nem os ataques epiléticos<br />

de Pedro, durante a lua-de-mel, a assustaram. Devia<br />

amá-lo, servi-lo, <strong>da</strong>r-lhe filhos, auxiliá-lo nas decisões<br />

políticas, e foi o que fez. Leopoldina mereceria<br />

seu trono de ouro. Mas se perdeu em suas devoções,<br />

abnegações, vontade de agra<strong>da</strong>r, submissões. Par delicatesse,<br />

entregou a Pedro, de bandeja, sua sabedo-<br />

32<br />

LEITURA, LEITURAS<br />

D. Leopoldina e Pedro I visitam a Casa<br />

dos Expostos. Fun<strong>da</strong>ção Romão Duarte,<br />

Rio de Janeiro<br />

ria e seu coração.<br />

Enfim, a mocinha rica e<br />

cheia de idéias, vin<strong>da</strong> <strong>da</strong> Áustria,<br />

no Brasil ficou pobre, encarcera<strong>da</strong>,<br />

e emocionalmente<br />

comeu o pão – aliás, a dor – que<br />

o diabo amassou. Mas sua vi<strong>da</strong><br />

continuou sendo rica, e não só<br />

de atribulações. Talvez, sem sua<br />

firme decisão, o Brasil não tivesse<br />

se separado de Portugal, em<br />

1822. Ela foi tão leal, tão leal<br />

aos seus súditos, que deu força<br />

para a separação, tendo aju<strong>da</strong>do<br />

José Bonifácio e Pedro a agir e<br />

pensar, abrindo conscientemente<br />

mão de seu grande e natural<br />

desejo, o de rever sua pátria. Ou<br />

pelo menos sua romântica Europa,<br />

com estações marca<strong>da</strong>s,<br />

outonos de folhas doura<strong>da</strong>s e invernos<br />

de cristais de neve.<br />

Se tivessem atendido ao<br />

pedido <strong>da</strong>s Cortes e ido para Portugal,<br />

naquela ocasião – ela e seu<br />

namorador príncipe encantado<br />

– nossa história teria sido totalmente<br />

diferente. E a de Leopoldina também. Porque foi<br />

exatamente em 1922, em Santos, que Pedro conheceu<br />

Domitila. Logo depois do Grito <strong>da</strong> Independência traria<br />

sua au<strong>da</strong>ciosa mun<strong>da</strong>na para o Rio, para inferno de<br />

nossa boa imperatriz. Sem o Fico, sem a Independência,<br />

Leopoldina teria ido reinar em Portugal. E, talvez, não<br />

tivesse morrido tão jovem. Mas ela era contra parlamentarismos.<br />

Contra as Cortes de Portugal. Temia revoluções.<br />

Idéias libertárias. E queria, tendo como modelo<br />

o pai, que o seu Pedro fosse um todo-poderoso rei<br />

absolutista, em seu grande Brasil, cheio de mosquitos<br />

e belezas naturais. Com isso, em seu papel de eficaz<br />

regente, ganhou a guerra política. Preservou o trono<br />

que viria a ser de seu filho Pedro, o Segundo. Mas, em<br />

compensação, perdeu a guerra do amor.<br />

Cabe a nós agora lembrá-la, em to<strong>da</strong> a grandeza,<br />

e também fraqueza. A fraqueza de grande mulher<br />

que amou. Amou tanto que morreu de amor.<br />

Maria Leopoldina Josefa Carolina de Habsburgo<br />

(Viena, 1797 – Rio de Janeiro, 1826), Arquiduquesa<br />

<strong>da</strong> Áustria, primeira imperatriz do Brasil (1822-26) e,<br />

por oito dias, rainha de Portugal (1826). Foi sepulta<strong>da</strong><br />

no Convento <strong>da</strong> Aju<strong>da</strong>, na atual Cinelândia. O convento<br />

foi demolido em 1911, e seus restos transla<strong>da</strong>dos para<br />

o Convento de Santo Antônio, também no Rio de Janeiro.<br />

Em 1954, eles foram transferidos definitivamente<br />

para um sarcófago de granito verde ornado de ouro, na<br />

Capela Imperial, juntamente com os de D. Pedro I, sob o<br />

Monumento do Ipiranga, na ci<strong>da</strong>de de São Paulo.<br />

CECILIA COSTA JUNQUEIRA<br />

Jornalista e escritora


A<br />

ci<strong>da</strong>de vivia a experiência<br />

<strong>da</strong>s mu<strong>da</strong>nças desde<br />

1870, adequando-se aos<br />

padrões que anunciavam o novo<br />

tempo, o tempo <strong>da</strong> Belle Époque.<br />

Essas transformações colocavam<br />

abaixo as velhas construções coloniais<br />

e desven<strong>da</strong>vam o que cobria<br />

as sensações e vontades de<br />

um novo tempo.<br />

A ci<strong>da</strong>de do Rio de Janeiro<br />

exercitava, assim, as funções de<br />

centro aglutinador dos mecanis-<br />

LEITURA, LEITURAS<br />

Rua Direita, depois 1.º de Março. Marc Ferrez, Arquivo Geral <strong>da</strong> Ci<strong>da</strong>de do Rio de Janeiro, 1865<br />

ANTONIO EDMILSON MARTINS RODRIGUES<br />

mos de superação <strong>da</strong>s crises e de<br />

depositária <strong>da</strong> confiança no progresso<br />

<strong>da</strong> “civilização brasileira”.<br />

O resultado foi o Rio Civiliza-se.<br />

Mas a passagem <strong>à</strong> regeneração<br />

não se efetivou de forma tranquila<br />

e pacífica. A manutenção<br />

de uma direção política e econômica<br />

conservadora fez com que,<br />

nesse processo, não fossem incluí<strong>da</strong>s<br />

as deman<strong>da</strong>s dos setores<br />

sociais mais recentes <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de:<br />

os trabalhadores urbanos.<br />

O Rio <strong>da</strong><br />

Bela Época,<br />

não tão bela<br />

assim<br />

A déca<strong>da</strong> de<br />

1870 configura o início<br />

sistemático de um<br />

processo de modificação<br />

no espaço urbano<br />

carioca. A expansão<br />

demográfica e o crescimento<br />

industrial, especialmente<br />

do setor<br />

têxtil, indicam alterações<br />

no funcionamento<br />

e na distribuição <strong>da</strong><br />

socie<strong>da</strong>de carioca.<br />

Ao lado disso, o<br />

crescimento do setor<br />

de serviços e o aumento<br />

<strong>da</strong>s condições de<br />

acesso <strong>à</strong> riqueza em<br />

função do surgimento<br />

do mercado de trabalho<br />

livre. Iniciava-se<br />

a construção de uma<br />

capital europeia na<br />

imaginação <strong>da</strong>s elites<br />

cariocas. Os jornais,<br />

agentes dessa construção<br />

imaginária, propagandeavam<br />

as novi<strong>da</strong>des e formavam<br />

opiniões a respeito. Tudo<br />

fervilhava no Rio de Janeiro.<br />

O ano de 1880 teve como<br />

destaque a fun<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> Socie<strong>da</strong>de<br />

Brasileira contra a Escravidão<br />

e, também, o Imposto do Vintém,<br />

que agitou e tumultuou a ci<strong>da</strong>de,<br />

mas que embora ampliasse<br />

as condições de investimento <strong>da</strong><br />

municipali<strong>da</strong>de. Mas essas novas<br />

formas de agir sobre a ci<strong>da</strong>de<br />

só se confirmaram em 1884,<br />

quando medi<strong>da</strong>s concretas fo-<br />

33


am toma<strong>da</strong>s: proibição<br />

dos despejos de dejetos<br />

no mercado <strong>da</strong> Candelária<br />

e de estábulos no Centro.<br />

Com a abolição <strong>da</strong><br />

escravatura e a proclamação<br />

<strong>da</strong> República, o panorama<br />

urbano não precisou se<br />

modificar. A ci<strong>da</strong>de já estava<br />

a<strong>da</strong>pta<strong>da</strong> a esse novo tempo,<br />

pois possuía uma grande<br />

população de ex-escravos<br />

vinculados aos setores produtivos<br />

e de obras. No entanto,<br />

houve, efetivamente,<br />

aumento <strong>da</strong> população negra,<br />

a qual, liberta, transferiu-se<br />

para o lugar <strong>da</strong> riqueza, estabelecendo-se<br />

nos ofícios que conheciam ou que aprenderam<br />

e, também, incorporando-se <strong>à</strong>s áreas<br />

industrial e comercial, especialmente no<br />

cais do porto, como estivadores de navios.<br />

Assim, a libertação dos escravos<br />

e sua disponibili<strong>da</strong>de para o trabalho,<br />

ao lado do movimento republicano agitaram<br />

a vi<strong>da</strong> urbana, num momento em<br />

que ela também possuía disponibili<strong>da</strong>de<br />

para recebê-los. As companhias de bondes,<br />

de eletrici<strong>da</strong>de, de abastecimento de<br />

água e <strong>da</strong> construção civil foram<br />

algumas <strong>da</strong>s outras empresas que<br />

utilizaram essa mão de obra, incorporando-a<br />

ao mercado do trabalho<br />

livre.<br />

O século XX foi para a ci<strong>da</strong>de-capital<br />

o momento de sua<br />

definição institucional e cultural.<br />

A vocação de “grande capital europeia”<br />

se delineava, tratava-se<br />

agora de organizar sua estrutura<br />

urbana para garantir essa vocação,<br />

uma vez que ela já era europeia<br />

no imaginário <strong>da</strong>s elites<br />

empreendedoras.<br />

O caminho <strong>da</strong> renovação<br />

era agora idealizado, enquanto<br />

plano racional. Com Felipe Pereira,<br />

em 1900, a prefeitura desenvolveu<br />

a “planta ca<strong>da</strong>stral”,<br />

que possibilitava ao governo o<br />

conhecimento de ca<strong>da</strong> milímetro<br />

<strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de e que se definia como<br />

instrumento de controle <strong>da</strong> circulação<br />

dos habitantes, permitindo<br />

perceber sua movimentação, e<br />

novas localizações.<br />

O ano de 1903 foi decisivo:<br />

Pereira Passos assumiu a prefeitura.<br />

Imagem viva do novo tempo,<br />

mesmo já tendo setenta anos, ele<br />

34<br />

LEITURA, LEITURAS<br />

Repartição <strong>da</strong> Carta Ca<strong>da</strong>stral <strong>da</strong> Prefeitura Municipal (detalhe).<br />

Anônimo<br />

Ci<strong>da</strong>de do Rio de Janeiro. — Não<br />

olhe para minha <strong>casa</strong> feia e suja,<br />

e desculpe-me estar n’este triste<br />

estado...<br />

Esquadra Argentina. — Como<br />

mirar su <strong>casa</strong> se mis ojos estan<br />

maravillados con tan esplendi<strong>da</strong><br />

naturaleza?!<br />

Jornal D. Quixote. Angelo Agostini,<br />

1897. Acervo ABL<br />

era um empreendedor, homem<br />

de comando e decisão. Além<br />

disso, proprietário <strong>da</strong> Estra<strong>da</strong><br />

de Ferro do Corcovado, membro<br />

ativo do Clube de Engenharia,<br />

estudou na França, e ajustavase<br />

perfeitamente ao que a ci<strong>da</strong>de<br />

precisava. Enfim, para os setores<br />

dominantes era o exemplo límpido<br />

<strong>da</strong> regeneração.<br />

Pereira Passos ganhou de<br />

Rodrigues Alves plena autonomia<br />

para realizar as mu<strong>da</strong>nças.<br />

E as realizou a fundo, chocandose,<br />

por vezes, com muitos dos interesses<br />

<strong>da</strong>s elites dominantes.<br />

Os jornais se utilizaram <strong>da</strong>s<br />

polêmicas para veicular posições<br />

contrárias ao plano de reformas.<br />

Mas as reformas continuavam. O<br />

barulho e o movimento provocaram<br />

as pessoas, embora fossem o<br />

sinal do novo, do progresso. A ci<strong>da</strong>de<br />

civilizava-se. Era corta<strong>da</strong> em<br />

todos os sentidos. Todos os lugares<br />

foram afetados. Muitos não acreditavam<br />

que fosse possível acabar a<br />

obra. O medo do fracasso aumentou<br />

a polêmica. Necessitava-se<br />

acabar com as desconfianças.


A construção <strong>da</strong> Aveni<strong>da</strong><br />

Central, grande marco <strong>da</strong> reforma,<br />

criava as condições de comunicação<br />

entre o centro comercial e o<br />

porto, também reformado. Além<br />

disso, integrava-se <strong>à</strong> nova Aveni<strong>da</strong><br />

Beira Mar, facilitando o transcurso<br />

de ricos e estrangeiros que<br />

moravam e se hospe<strong>da</strong>vam na região<br />

de Glória, Catete e Botafogo.<br />

A mobilização provoca<strong>da</strong><br />

pelas mu<strong>da</strong>nças continuava. Ca<strong>da</strong><br />

um buscava garantir novos negócios.<br />

Os restaurantes se enchiam<br />

na hora do almoço e, <strong>à</strong> tardinha, as<br />

confeitarias ofereciam o refrigério<br />

ao calor tropical. Das mesas, a família<br />

burguesa carioca observava a<br />

grande obra: de um lado, pessoas<br />

elegantemente traja<strong>da</strong>s, finamente<br />

vesti<strong>da</strong>s, simpaticamente uniformiza<strong>da</strong>s e, de outro,<br />

com outros olhos, pessoas sobriamente vesti<strong>da</strong>s e<br />

dignas de uma ci<strong>da</strong>de moderna – os trabalhadores.<br />

A finura e a atenção educa<strong>da</strong> – o saber ouvir<br />

–, a singeleza dos modos e gestos e a tranquili<strong>da</strong>de<br />

do an<strong>da</strong>r – que, para João do Rio, decorria do calor<br />

e não <strong>da</strong> elegância – contrastavam com aquela<br />

“antiga” ci<strong>da</strong>de.<br />

No entanto, a “nação subterrânea” mantevese.<br />

Ao lado do requinte do homem moderno, produziram-se<br />

tipos urbanos ligados aos “acampamentos<br />

<strong>da</strong> miséria”. Eram as profissões ignora<strong>da</strong>s, descritas<br />

por João do Rio, em A Alma Encantadora <strong>da</strong>s Ruas:<br />

os “fumadores de ópio”, “os presepes”, “os vendedores<br />

de santinhos” e de “livros populares”, “os marcadores”,<br />

“os trapeiros”, “os ratoeiros”, “os selistas”<br />

e uma infini<strong>da</strong>de de profissões desenvolvi<strong>da</strong>s pela<br />

“academia <strong>da</strong> miséria”.<br />

Esse mundo desconhecido e encoberto foi o<br />

contraste <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de, que efetivamente ganhou<br />

espaço com as alterações provoca<strong>da</strong>s pelas reformas<br />

urbanas. Entretanto, tudo isso representava civilização<br />

para aqueles que defendiam o progresso pela via<br />

dos impulsos capitalistas.<br />

Se de um lado criou-se uma imagem <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de<br />

do progresso, <strong>da</strong> capital-nação, que protegia e<br />

garantia a riqueza e que continha to<strong>da</strong>s as imagens<br />

<strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de parisiense, de outro tinha-se uma<br />

ci<strong>da</strong>de <strong>da</strong> miséria que também protegia, mas não<br />

garantia a sobrevivência e que, no final, mostrava<br />

que a rua acabava na prisão.<br />

O Rio de Janeiro era uma grande metrópole,<br />

avança<strong>da</strong> na sua arquitetura e renova<strong>da</strong> socialmente.<br />

A ci<strong>da</strong>de maravilhosa fora concluí<strong>da</strong>, porém<br />

seu futuro não estava assegurado. A direção<br />

conservadora não sabia <strong>da</strong>r conta dos novos tempos,<br />

não se acostumava com as greves e os movimentos<br />

sociais urbanos.<br />

O cosmopolitismo, sem tradição, excluía<br />

<strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de não os homens, mas as formas<br />

LEITURA, LEITURAS<br />

Obras de ampliação <strong>da</strong> rede de tráfego eletrificado, no Centro do Rio de<br />

Janeiro. Augusto Malta, 1906<br />

de transformá-los, e simultaneamente acentuava<br />

a dependência externa, inviabilizando a formação<br />

de um mercado interno.<br />

Mesmo diante dessas contradições e <strong>da</strong>s imagens<br />

confusas <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, cheias de névoas, o frisson<br />

era total, não se comentava outra coisa. A Light anunciava,<br />

com a clari<strong>da</strong>de <strong>da</strong> luz elétrica, um tempo de<br />

mu<strong>da</strong>nças nas quais as construções eram realça<strong>da</strong>s<br />

assim como eliminados os medos <strong>da</strong> escuridão, abrindo<br />

a ci<strong>da</strong>de <strong>à</strong> noite e com isso ao espetáculo <strong>da</strong>s diversões,<br />

<strong>à</strong> vi<strong>da</strong> boêmia mais intensa.<br />

Os bondes elétricos e os automóveis anunciavam<br />

o novo tempo e com eles as novas <strong>mo<strong>da</strong></strong>s teatrais,<br />

líricas e populares, <strong>da</strong>ndo margem <strong>à</strong> criação de<br />

um gênero particular idealizado por Arthur Azevedo,<br />

as revistas do ano, nas quais eram apresentados os<br />

fatos mais marcantes do ano que decorrera.<br />

A Aveni<strong>da</strong> Central <strong>da</strong>va o tom como ícone <strong>da</strong>s<br />

reformas empreendi<strong>da</strong>s por Pereira Passos e nela estava<br />

representado o progresso <strong>da</strong> nova ci<strong>da</strong>de. Nas<br />

construções art-nouveau, nas <strong>mo<strong>da</strong></strong>s usa<strong>da</strong>s pelas<br />

mulheres elegantes, nas confeitarias onde predominava<br />

o gosto sofisticado pelo sorvete de pistache, nas<br />

livrarias e nos cabarés.<br />

Referências<br />

RODRIGUES, Antonio Edmilson M. João do<br />

Rio, a ci<strong>da</strong>de e o poeta. Rio de Janeiro: Ed. <strong>da</strong><br />

FGV, 2000.<br />

ABREU, Mauricio de Almei<strong>da</strong>. Evolução urbana<br />

do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: IPLANRIO: J.<br />

Zahar, 1987.<br />

NEEDELL, Jeffrey D. Belle époque tropical:<br />

socie<strong>da</strong>de e cultura de elite no Rio de Janeiro<br />

na vira<strong>da</strong> do século. São Paulo: Companhia <strong>da</strong>s<br />

Letras, 1993.<br />

ANTONIO EDMILSON MARTINS RODRIGUES<br />

Livre Docente em História do Brasil pela UERJ<br />

<strong>Professor</strong> Assistente <strong>da</strong> PUC-Rio e Adjunto <strong>da</strong> UERJ<br />

35


36<br />

ANTROPOFAGIA,<br />

APROPRIAÇÃO E CARNAVAL<br />

Somos todos antropófagos. Como cristãos,<br />

exercitamos a nossa antropofagia, quando,<br />

contritamente, participamos do ritual <strong>da</strong><br />

ceia e <strong>da</strong> comunhão. Não mais sacrificamos animais<br />

em louvor de Deus, como está no Velho Testamento.<br />

Crucificado o Salvador, não poderia haver<br />

sacrifício mais persuasivo para a obtenção <strong>da</strong> graça<br />

divina. Seguimos a lição que está na narrativa<br />

“A ceia do Senhor”, de Marcos:<br />

LEITURA, LEITURAS<br />

Memorabili Brasiliae Historiam. Théodore De Bry. In America Tertia Pars, Frankfurt, 1594<br />

NELSON RODRIGUES FILHO<br />

... compreende [a cultura matriarcal] como devoração e a simboliza no rito<br />

antropofágico, que é comunhão. De outro lado a devoração traz em si a imanência<br />

do perigo. E produz a soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de social que se define em alteri<strong>da</strong>de.<br />

Oswald de Andrade<br />

E enquanto comiam, tomou Jesus um pão e,<br />

abençoando-o, o partiu e lhes deu, dizendo:<br />

“Tomai, isto é o meu corpo”.<br />

A seguir, tomou Jesus um cálice e, tendo <strong>da</strong>do<br />

graças, o deu aos seus discípulos; e todos beberam<br />

dele.<br />

Então lhes disse: “Isto é o meu sangue <strong>da</strong> [nova]<br />

aliança”, derramado em favor de muitos.<br />

Manifestação simbólica? Sim. Simbólica<br />

também, a antropofagia indígena. Troca-se o corpo


pelo pão e o vinho, e eis que se tem, na diferença<br />

<strong>da</strong> matéria, a identi<strong>da</strong>de do rito. O mito é o império<br />

<strong>da</strong> conotação. E se interiorizando o pão e o vinho,<br />

no sentido do mito, exercito a metáfora do corpo de<br />

Cristo, abrigando a conotação <strong>da</strong> graça, meu irmão<br />

índio, no ato antropofágico, ambiciona assimilar<br />

as quali<strong>da</strong>des <strong>da</strong> sua comi<strong>da</strong> heroica. Não se deglute<br />

o covarde, não se sacrifica o covarde. O indígena<br />

só consome o herói, despreza o fraco.<br />

Tu choraste em presença <strong>da</strong> morte?<br />

Na presença de estranhos choraste?<br />

Não descende o cobarde do forte;<br />

Pois choraste, meu filho não és!<br />

Quando Oswald decreta a antropofagia, ele<br />

proclama, mais do que um comportamento nacional,<br />

um comportamento cultural e estético do homem.<br />

Veja-se, por exemplo, o Quixote de Cervantes.<br />

No rastro <strong>da</strong> ação e <strong>da</strong> palavra oswaldiana,<br />

caminhavam séculos de história. Desfilava um sem<br />

número de confrades. E evidenciava, no campo do<br />

discurso, um aspecto que, no mais <strong>da</strong>s vezes, é negligenciado.<br />

Um texto é a absorção e transformação<br />

de outros textos, já se disse.<br />

A antropofagia cultural e poética é apropriação.<br />

É isso. Apropriar-se do discurso do outro. Não<br />

torná-lo proprie<strong>da</strong>de, mas tornar próprio o que é<br />

estranho. Machado, sem grandes ginásticas teóricas,<br />

tinha o risco do bor<strong>da</strong>do. E o seguia quando<br />

elaborava a sua ficção ou quando exercia a função<br />

de crítico:<br />

...pode [o autor] ir buscar a especiaria alheia,<br />

mas há de ser tempera<strong>da</strong> com o molho de sua<br />

fábrica... /...tiro de ca<strong>da</strong> coisa uma parte e<br />

faço dela o meu ideal de arte, que abraço e<br />

defendo.../...Que a evolução natural <strong>da</strong>s coisas<br />

modifique as feições, a parte externa, ninguém<br />

jamais negará; mas há alguma coisa que liga,<br />

através dos séculos, Homero e Lord Byron, alguma<br />

coisa inalterável, que fala a todos os homens<br />

e a todos os tempos.<br />

Antropofágico antes de Oswald. Bakhtiniano<br />

antes de Bakhtin. Não é Bakhtin que diz que o único<br />

discurso absolutamente original seria o adâmico?<br />

Carregamos o já-visto, o já-feito, o já-ouvido, o já-lido.<br />

Somos vítimas desse já constitutivo do mundo. Na<br />

ver<strong>da</strong>de o discurso é sempre um mosaico de citações.<br />

Antes, entretanto, <strong>da</strong> pena do riso e <strong>da</strong> tinta<br />

<strong>da</strong> melancolia de Machado, Gonçalves Dias, com a<br />

pena indianista e a tinta do medievo, reescrevia a<br />

cantiga de amor (“Canção do Exílio”) e a cantiga<br />

de amigo (“Leito de folhas verdes”). E Alencar, em<br />

Iracema, usando a mesma pena do maranhense,<br />

mas a tinta cristã, faz a antropofagia de bon sauvage,<br />

colocando a Bíblia no subtexto. O retrato de<br />

LEITURA, LEITURAS<br />

In As escolas de Lan. Ilustração cedi<strong>da</strong> pelo autor<br />

Iracema, que acolhe o herói lusía<strong>da</strong>, é similar ao<br />

retrato de Raquel, a ama<strong>da</strong> de Salomão, no Cântico<br />

dos Cânticos (nigra sum sed formosa), ambas com<br />

talhe de palmeira e os lábios de mel. “Tu és Moacir,<br />

o nascido do meu sofrimento” é a tradução, em<br />

tupi, <strong>da</strong> frase de Raquel, quando próxima <strong>da</strong> morte,<br />

para <strong>da</strong>r vi<strong>da</strong> a Benjamin: “Tu te chamarás Benôni,<br />

filho <strong>da</strong> minha dor”. M. Cavalcanti Proença,<br />

autor <strong>da</strong> empreita<strong>da</strong> de levantar os símiles bíblicos<br />

na novela do cearense, ressalta, ain<strong>da</strong>, que Benôni<br />

e Moacir são similares no fato de que, um, filho de<br />

Jacob, de descendência de reis, a ele Deus prometera<br />

as terra que haviam sido de Abraão e de Esaú;<br />

ao outro, Moacir, de descendência também ilustre,<br />

caberia a herança <strong>da</strong> terra americana.<br />

O que faz a antropofagia oswaldiana é levantar o<br />

véu de Maya, ao promover o encontro <strong>da</strong> antropofagia<br />

com o carnaval, do aimoré com o rei Momo.<br />

O carnaval – ensina-nos Bakhtin – é um espetáculo<br />

sem ribalta, sem divisão entre atores e<br />

espectadores. Nele todos são participantes ativos,<br />

vivendo o efêmero, revoga<strong>da</strong>s as leis, proibições<br />

e restrições <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> comum. Suspende-se, basicamente,<br />

o sistema hierárquico e to<strong>da</strong>s as “formas<br />

conexas de medo, reverência, etiqueta etc”. Festa<br />

profana, sua marca principal é a excentrici<strong>da</strong>de.<br />

Não tem lugar para o absoluto, nem para a hierarquização<br />

que encontramos no dia a dia. O carnaval<br />

37


In As escolas de Lan. Ilustração cedi<strong>da</strong> pelo autor<br />

“desconhece tanto a afirmação absoluta quanto a<br />

negação absoluta. É a alegria do relativo”. É a vitória<br />

do desejo e do paradoxo deleuziano, “a afirmação<br />

de dois sentidos ao mesmo tempo”, que “em<br />

primeiro lugar, destrói o bom senso como sentido<br />

único e o senso comum como designação de identi<strong>da</strong>des<br />

fixas”.<br />

No carnaval, festa profana <strong>da</strong> praça pública,<br />

podemos ser o que desejarmos ser, homem, mulher,<br />

índio, rei, rainha, herói ou qualquer outra coisa que a<br />

nossa imaginação e a nossa vontade determinarem.<br />

O carnaval, na literatura e na arte, é carnavalização.<br />

E um dos instrumentos de força do processo<br />

é a paródia. Do grego para-ode, canto paralelo, é<br />

sempre um texto com dupla referência, ao objeto e a<br />

um outro texto. Pode-se parodiar uma forma, um estilo,<br />

uma ideologia, uma crença etc. O certo é que se<br />

terá sempre o sentido inverso do texto matriz. O que<br />

era objeto de serie<strong>da</strong>de e soleni<strong>da</strong>de torna-se objeto<br />

de humor e riso, acentuando o sentido que se ocultou<br />

no sentido original. Em outras palavras, mostra<br />

que o que dá para chorar também dá para rir.<br />

A proposta modernista de Oswald abriga,<br />

com extremo zelo, a paródia em sua radical carnavalização<br />

textual.<br />

Como na reelaboração do “Pai-nosso”, que<br />

mantém a estrutura rítmica original, mas realiza a<br />

38<br />

LEITURA, LEITURAS<br />

possibili<strong>da</strong>de do par destruição/construção e, pela<br />

remontagem carnavalizadora, suspende a recepção<br />

solene e contrita:<br />

escapulário<br />

No Pão de Açúcar<br />

De Ca<strong>da</strong> Dia<br />

Dai-nos Senhor<br />

A Poesia<br />

De Ca<strong>da</strong> Dia<br />

Ou a reescritura, com recurso do jogo de palavras<br />

e <strong>da</strong> ambigui<strong>da</strong>de, <strong>da</strong> carta de Caminha e <strong>da</strong><br />

história brasileira:<br />

a descoberta<br />

Seguimos nosso caminho por este mar de longo<br />

Até a oitava <strong>da</strong> Páscoa<br />

Topamos aves<br />

E houvemos vista de terra<br />

................................................................<br />

as meninas <strong>da</strong> gare<br />

Eram três ou quatro moças bem moças e bem gentis<br />

Com cabelos mui pretos pelas espáduas<br />

E suas vergonhas tão altas e tão saradinhas<br />

Que de nós as muito bem olharmos<br />

Não tínhamos nenhuma vergonha<br />

Ou mesmo a inversão do sentido do texto romântico,<br />

quase sempre o tornando prosaico, (“Canto<br />

de regresso <strong>à</strong> pátria”, por exemplo), dentre os<br />

muitos momentos do carnaval oswaldiano.<br />

Se há na obra de Oswald essa marca radical<br />

do antropofagismo carnavalizante, outros se<br />

poderiam citar, nesta prática que marcou o nosso<br />

modernismo. Juó Bananére (La divina increnca),<br />

por exemplo, que, com um italiano macarrônico,<br />

dedicou-se a parodiar a poesia clássica, romântica<br />

e parnasiana e, por um tempo significativo, figurou<br />

em publicação dirigi<strong>da</strong> pelo líder do movimento<br />

antropófago.<br />

Antes de todos eles, um romântico genial e<br />

incompreendido ficou acantonado, e continua até<br />

hoje, na literatura brasileira, lendo o indianismo<br />

e a história pelo avesso, com o recurso <strong>da</strong> intertextuali<strong>da</strong>de<br />

e <strong>da</strong> paródia. Talvez por causa disso,<br />

por sua escritura carnavalizante (O Guesa), Sousândrade<br />

paga o preço do ostracismo <strong>à</strong> preguiçosa<br />

incompreensão <strong>da</strong> cultura letra<strong>da</strong> brasileira.<br />

Barthes, Bakhtin, Deleuze, Kristeva, Ricoeur,<br />

M. Cavalcanti Proença, meus bispos Sardinha, neste<br />

exercício antropofágico. Uma forma de deglutição<br />

e homenagem. A antropofagia nos une.<br />

NELSON RODRIGUES FILHO<br />

Mestre em Teoria Literária e Doutor em Letras<br />

nelrofi@uol.com.br<br />

www.nelrofi.blog.uol.com.br


Diz-se habitualmente que o morador <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de<br />

de Salvador an<strong>da</strong> desnorteado no interior, no<br />

sertão. Ele está tão acostumado com a vista e a<br />

presença do mar que não imagina uma natureza sem<br />

água salga<strong>da</strong>, on<strong>da</strong>s, navios cargueiros e a cultura <strong>da</strong><br />

pesca e do mergulho. O universo de Iemanjá é parte<br />

importante do imaginário do povo do litoral baiano e<br />

<strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de Salvador, porto de saí<strong>da</strong> e de chega<strong>da</strong>,<br />

ponto há séculos de viajantes livres ou forçados.<br />

Então pensei que seria oportuno publicar de vez<br />

em quando uma coluna dedica<strong>da</strong> ao tema “O livro e o<br />

mar”, ou seja, obras de literatura ou poesia que têm o<br />

mar como fonte de inspiração e assunto central.<br />

Escolhi como primeiro texto <strong>da</strong> coluna “marítima”<br />

um poema do, provavelmente, maior poeta italiano<br />

do século XX e Prêmio Nobel de Literatura em<br />

1975, Eugenio Montale. Montale nasceu na região <strong>da</strong><br />

Ligúria, no norte <strong>da</strong> Itália, cheia de paisagens deslumbrantes,<br />

com vista para o mar Tirreno. A Ligúria é<br />

também a região de Gênova, pátria de Cristóvão Colombo<br />

e de outros navegantes e descobridores de mundos<br />

novos. Montale brincava dizendo que sua natureza era<br />

de homem que prefere ficar olhando para o mar mais<br />

do que os que se aventuram pelas on<strong>da</strong>s. Mas vamos<br />

ao poema, de 1940, no original e na lin<strong>da</strong> tradução em<br />

português de Mauricio Santana Dias.<br />

LEITURA, LEITURAS<br />

O LIVRO E O MAR<br />

Portofino, na Ligúria, Itália<br />

PAOLO SPEDICATO<br />

Salvador, Bahia<br />

LUNGOMARE<br />

Il soffio cresce, il buio è rotto a squarci,<br />

E l’ombra che tu mandi sulla fragile<br />

Palizzata s’arriccia. Troppo tardi<br />

Se vuoi esser te stessa! Dalla palma<br />

Tonfa il sorcio, il baleno è sulla miccia,<br />

Sui lunghissimi cigli del tuo sguardo.<br />

BEIRA-MAR<br />

O sopro cresce, o breu se rompe em partes,<br />

e a sombra que seu corpo imprime <strong>à</strong> frágil<br />

paliça<strong>da</strong> se enscrespa. E’ muito tarde<br />

querer ser você mesma! Da palmeira<br />

tomba o rato, o relampago é rastilho<br />

nos longuíssimos cílios de sua vista.<br />

Típica do estilo do poeta é a escolha <strong>da</strong><br />

forma do “poema breve”, bom a evidenciar o pensamento<br />

concentrado e antirretórico, e, em geral,<br />

imagens <strong>da</strong> natureza que são quase iluminações,<br />

“relâmpagos” de ver<strong>da</strong>des dramáticas, vagamente<br />

existencialistas.<br />

Outra caraterística do grande poeta italiano é<br />

o constante diálogo com evanescentes personagens<br />

femininas: Evelina, Dora Markus, Clizia…, companheiras<br />

de vi<strong>da</strong> mas também enigmáticas presenças<br />

que aju<strong>da</strong>m a enfrentar as amarguras <strong>da</strong> existência<br />

humana, vista com sentimento pessimista,<br />

ain<strong>da</strong> mais dramático <strong>da</strong><strong>da</strong>s as circunstâncias<br />

<strong>da</strong> Segun<strong>da</strong> Guerra Mundial e <strong>da</strong> época<br />

<strong>da</strong>s ditaduras na Europa, quando o poema foi<br />

escrito.<br />

Impressiona o elemento <strong>da</strong> palmeira na<br />

costa marítima <strong>da</strong> Ligúria, que aproxima visualmente<br />

o poema <strong>à</strong> paisagem brasileira e ao<br />

nosso viver, filosófico e/ou poético, <strong>à</strong> beira do<br />

oceano Atlântico. E, muito particularmente,<br />

ao litoral <strong>da</strong> Bahia, onde vivo.<br />

PAOLO SPEDICATO<br />

Graduado em Letras Italianas – Universi<strong>da</strong>de de Pádua<br />

Doutor em Literatura Italiana – New York University<br />

Foi <strong>Professor</strong> na UFES e Visitante na UFRJ e USP<br />

39


Naturalmente, instintivamente, o homem tende<br />

a evocar Deus quando a beleza inespera<strong>da</strong> ou<br />

intensa o arranca do embotamento quotidiano!<br />

“Meu Deus! Quanta beleza...” exclama o poeta<br />

(Castro Alves, Sub Tegmine Fagi) e com ele – consciente<br />

ou inconscientemente – todos os artistas.<br />

Daí que não chegue a surpreender que o significado<br />

etimológico <strong>da</strong> espanholíssima palavra ¡Olé!,<br />

seja um recurso a Deus. ¡Olé! – diz o Diccionario<br />

de la Real Academia – provém do árabe Wa-(a)llah<br />

(“Por Deus!” – a língua árabe não dispõe <strong>da</strong> vogal<br />

“e” e, por vezes, o “a” tem som semelhante a “e”). E<br />

é uma exclamação de entusiasmo ante uma beleza<br />

(ou alegria) surpreendente ou “excessiva” (no verbete<br />

¡Olé!, o Diccionario de María Moliner exemplifica<br />

com o caso <strong>da</strong>s toura<strong>da</strong>s ou<br />

o do flamenco).<br />

Facilmente intuímos que<br />

a beleza de um ousado lance<br />

de toura<strong>da</strong>, de um golaço sem<br />

ângulo ou de um “taconeo flamenco”<br />

é – de algum modo misterioso,<br />

mas real – participação<br />

na criação, também ela artística,<br />

de Deus: ¡Olééé!<br />

O árabe, como se sabe, é<br />

campeão mundial de invocação<br />

a Deus: Bismillah! (Em nome<br />

40<br />

LEITURA, LEITURAS<br />

¡¡Oléééé!! – Deus, a Beleza e a Arte<br />

JEAN LAUAND<br />

de Deus!), Al-hamdu lillah! (O louvor é para Deus!<br />

– como nossos jogadores, que, após o gol, apontam<br />

o indicador para o Céu), Wa-llah! (Por Deus!), Allahu<br />

Akbar! (Deus é grande! ou Deus é maior!), Allah!<br />

(Deus!) etc. etc. Ante um perigo, ou após escapar<br />

dele, ante uma notícia boa ou má, em qualquer situação<br />

invoca-se a Deus.<br />

Por vezes, a mesma fórmula (como por exemplo<br />

Bismillah) serve para situações contrárias (notícia<br />

boa ou ruim, por exemplo, tal como posso dizer<br />

em português: “Meu Deus!” tanto se meu bilhete foi<br />

sorteado na loteria como se meu carro foi destruído<br />

por um maluco na contramão). E ante a beleza (sobretudo<br />

se é inespera<strong>da</strong> ou muito intensa) é a Deus<br />

que se celebra: Allah!, Ya Allah! Smallah! (Deus! Ó<br />

Deus! Em nome de Deus!) são exclamações<br />

quase obrigatórias, por<br />

exemplo, quando o camelo se levanta,<br />

oferecendo um espetáculo<br />

grandioso ao erguer sua enorme<br />

massa de um só golpe. É tão imponente<br />

que, instintivamente, vem<br />

<strong>à</strong> boca uma interjeição de admiração<br />

e espanto, misto de prece e de<br />

louvor... O efeito é tanto mais surpreendente<br />

quando, ain<strong>da</strong> há um<br />

minuto, ele estava aparentemente<br />

indolente, largado no solo.


A forma que se arraigou<br />

em Espanha foi: Wa-llah! O wa é<br />

a partícula do juramento (cfr. p.<br />

ex. Alcorão 6, 23) e de invocação<br />

<strong>da</strong> autori<strong>da</strong>de de Deus para atestar<br />

um fato aparentemente incrível:<br />

o de uma espantosa beleza!<br />

Na tradição ocidental, já Pín<strong>da</strong>ro,<br />

em seu grandioso “Hino a Zeus”,<br />

revelara que o belo artístico, as<br />

musas, são o remédio que Zeus<br />

concedeu para o embotamento do<br />

homem, esquecido <strong>da</strong> origem divina<br />

do mundo e imerso em sua<br />

visão rotineira.<br />

Como nos inspirados versos<br />

de Adélia Prado:<br />

De vez em quando Deus me tira a poesia.<br />

Olho pedra, vejo pedra mesmo.<br />

Mas o processo artístico é de i<strong>da</strong> e volta: se<br />

Deus dá poesia ao artista para ver (e expressar em<br />

obra de arte) o “algo mais” até na pedra, quem<br />

contempla a beleza <strong>da</strong> obra de arte, que se expressa<br />

talvez a partir de uma pedra, reconhece Deus, o<br />

Criador, o Artista: ¡Oléééé!<br />

Nesse sentido, há uma antiga poesia de<br />

Gilberto Gaspar, que resume – “De uma gota, de<br />

repente, vejam só quanta poesia!” – maravilhosamente<br />

essas teses:<br />

A Gotinha<br />

Já há muito tempo que venho reparando,<br />

Com interesse observando, como é bela a natureza!<br />

Cai o sereno e vai formando, de repente,<br />

Uma gotinha a mostrar tanta beleza.<br />

Equilibrando-se, ela desceu pelo arame<br />

E, na folha do inhame, foi cair com o calor.<br />

Desceu <strong>da</strong>nçando, que bonito o seu bailado<br />

Pelo Sol iluminado, seu vestido é furta-cor.<br />

O vento, soprando a folha verde que balança,<br />

Dá mais ritmo <strong>à</strong> <strong>da</strong>nça <strong>da</strong> gotinha cristalina,<br />

Que rodopia no tapete esverdeado<br />

Qual palco iluminado, como louca bailarina.<br />

E chega a tardinha. Cessa o vento, pára a folha.<br />

A gotinha sem escolha, vai <strong>da</strong>nçar só outro dia.<br />

E eu, feliz, vou para <strong>casa</strong> bem contente.<br />

De uma gota, de repente, vejam só quanta poesia!<br />

(In: http://www.hottopos.com/mirand4/osimples.htm)<br />

Não é de estranhar, portanto, que o grito<br />

“¡olé!”, aplicado ao espetáculo do futebol, tenha<br />

nascido a partir de um “belo inesperado”: em 1958<br />

(a recém-nasci<strong>da</strong> televisão estava apenas começando<br />

a integrar-se ao futebol naquela época),<br />

no México (não por acaso: no México), num jogo<br />

Botafogo x River Plate, base <strong>da</strong> seleção argentina.<br />

A ca<strong>da</strong> incrível drible do incrível Garrincha (o <strong>da</strong>s<br />

pernas tortas, que não era para ser futebolista) no<br />

lateral Vairo, os torcedores mexicanos gritavam<br />

¡olé!, como se estivessem numa toura<strong>da</strong>.<br />

LEITURA, LEITURAS<br />

Se o falante ocidental hoje (não só o torcedor<br />

nos estádios do Brasil, mas também o taurófilo<br />

madrilenho em Las Ventas) não se lembra de que<br />

Olé! é invocação de Deus, no Quijote isto é mais<br />

explícito – o cristão começa a louvar a insuperável<br />

beleza de sua <strong>da</strong>ma e ouve do moro:<br />

Gualá, cristiano, que debe de ser muy<br />

hermosa si se parece a mi hija, que es la más<br />

hermosa de todo este reino. Si no, mírala<br />

bien, y verás cómo te digo ver<strong>da</strong>d.<br />

(capítulo XLI)<br />

As relações entre Deus, a beleza e a arte<br />

foram retoma<strong>da</strong>s por João Paulo II em sua Carta<br />

aos Artistas (1999), rica também em reflexões filosóficas.<br />

Já na primeira linha, uma dedicatória,<br />

chama a obra de arte de “epifania”, manifestação,<br />

<strong>da</strong> beleza, de Deus. E começa falando <strong>da</strong> criação<br />

artística – e não se trata de arte sacra – como participação<br />

do divino:<br />

(Vós, artistas) maravilhados com o<br />

arcano poder dos sons e <strong>da</strong>s palavras, <strong>da</strong>s<br />

cores e <strong>da</strong>s formas, vos pusestes a admirar a<br />

obra nasci<strong>da</strong> do vosso gênio artístico, quase<br />

sentindo o eco <strong>da</strong>quele mistério <strong>da</strong> criação<br />

a que Deus, único criador de to<strong>da</strong>s as<br />

coisas, de algum modo vos quis associar.<br />

E depois de lembrar um sugestivo fato <strong>da</strong><br />

língua polonesa:<br />

A página inicial <strong>da</strong> Bíblia apresenta-nos<br />

Deus quase como o modelo exemplar<br />

de to<strong>da</strong> a pessoa que produz uma<br />

obra: no artífice, reflete-se a sua imagem<br />

de Criador. Esta relação é claramente evidencia<strong>da</strong><br />

na língua polaca, com a semelhança<br />

lexical <strong>da</strong>s palavras stwórca (criador)<br />

e twórca (artífice)...,<br />

conclui:<br />

Deus chamou o homem <strong>à</strong> existência,<br />

<strong>da</strong>ndo-lhe a tarefa de ser artífice. Na<br />

“criação artística”, mais do que em qual-<br />

41


O triunfo de São Tomás de Aquino sobre os hereges. Filippino Lippi (1457-1504)<br />

quer outra ativi<strong>da</strong>de, o homem revela-se<br />

como “imagem de Deus”, e realiza aquela<br />

tarefa, em primeiro lugar plasmando a<br />

“matéria” estupen<strong>da</strong> <strong>da</strong> sua humani<strong>da</strong>de<br />

e depois exercendo um domínio criativo<br />

sobre o universo que o circun<strong>da</strong>. Com<br />

amorosa condescendência, o Artista divino<br />

transmite uma centelha <strong>da</strong> sua sabedoria<br />

transcendente ao artista humano,<br />

chamando-o a partilhar do seu poder criador.<br />

Obviamente é uma participação, que<br />

deixa intacta a infinita distância entre o<br />

Criador e a criatura, como sublinhava o<br />

Cardeal Nicolau de Cusa: “A arte criativa,<br />

que a alma tem a sorte de albergar, não<br />

se identifica com aquela arte por essência<br />

que é própria de Deus, mas constitui apenas<br />

comunicação e participação dela”.<br />

Participação, que é participação também no<br />

bem e no ser. Nesse sentido, João Paulo II estabelece<br />

também a proximi<strong>da</strong>de entre bon<strong>da</strong>de e beleza:<br />

Ao pôr em relevo que tudo o que tinha<br />

criado era bom, Deus viu também que<br />

era belo. A confrontação entre o bom e o<br />

belo gera sugestivas reflexões. Em certo<br />

sentido, a beleza é a expressão visível do<br />

bem, do mesmo modo que o bem é a condição<br />

metafísica <strong>da</strong> beleza. Justamente o<br />

entenderam os gregos, quando, fundindo<br />

os dois conceitos, cunharam uma palavra<br />

que abraça a ambos: “kalokagathía”, ou<br />

seja, “beleza-bon<strong>da</strong>de”. A este respeito,<br />

escreve Platão: “A força do Bem refugiouse<br />

na natureza do Belo”.<br />

42<br />

LEITURA, LEITURAS<br />

Assim, não é de estranhar<br />

que a Filosofia <strong>da</strong><br />

Arte de S. Tomás de Aquino<br />

– como aliás todo o seu<br />

pensamento – repouse sobre<br />

esse conceito fun<strong>da</strong>mental:<br />

o de participação (participatio).<br />

Participar, em sentido<br />

transcendente, é ter em oposição<br />

a ser; participa, o que<br />

tem algo pelo contato com<br />

o que é. O metal, compara<br />

Tomás, tem calor na medi<strong>da</strong><br />

em que se aproxima, participa,<br />

do calor que é no fogo.<br />

A Criação é o ato no<br />

qual é <strong>da</strong>do o ser em participação.<br />

Portanto, tudo<br />

que é, é bom; participa do<br />

Bem. Nesse enquadramento,<br />

situa-se uma sentença<br />

de Tomás que é uma <strong>da</strong>s<br />

chaves principais para sua<br />

Filosofia <strong>da</strong> Arte:<br />

Assim como o<br />

bem criado é certa semelhança<br />

e participação do Bem Incriado,<br />

assim também a consecução de um<br />

bem criado é também certa semelhança e<br />

participação <strong>da</strong> felici<strong>da</strong>de definitiva” (De<br />

Malo 5, 1 ad 5).<br />

Daí também uma outra intuição <strong>da</strong> língua<br />

espanhola: ao provar algo muito gostoso, exclamase:<br />

¡Sabe a gloria!, “tem gosto de céu”. Ora, no<br />

pensamento de Tomás, a contemplação – também<br />

a propicia<strong>da</strong> pela arte – é a forma mais profun<strong>da</strong><br />

de “consecução de um bem criado”, prefiguração<br />

<strong>da</strong> Glória definitiva.<br />

Tais considerações, que expressam o núcleo<br />

profundo de um pensamento filosófico, estão<br />

também ao alcance <strong>da</strong> intuição do conhecimento<br />

comum. Por isso, não chega a ser de todo surpreendente<br />

o depoimento, imensamente profundo, de<br />

Tom Jobim sobre a criação artística, em uma entrevista,<br />

quando foi contemplado nos EUA com a<br />

mais alta distinção com que pode ser premiado um<br />

compositor, o Hall of Fame:<br />

Glória? A glória é de Deus e não<br />

<strong>da</strong> pessoa. Você pode até participar dela<br />

quando faz um samba de manhã. Glória<br />

são os peixes do mar, é mulher an<strong>da</strong>ndo<br />

na praia, é fazer um samba de manhã.<br />

¡¡¡Oléééé!!!<br />

JEAN LAUAND<br />

<strong>Professor</strong> Titular <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong>de de Educação <strong>da</strong> USP<br />

Pesquisador Emérito do Instituto Jurídico Interdisciplinar<br />

<strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de do Porto<br />

Autor de Cultura e Educação na I<strong>da</strong>de Média (Ed. Martins<br />

Fontes)


Fotos: Luciana Sabino<br />

Em comemoração ao Centenário dos<br />

Trabalhos <strong>da</strong> Comissão de Reconhecimento<br />

do Alto Purus, dirigi<strong>da</strong> por Euclides <strong>da</strong><br />

Cunha, publicou a Academia Brasileira de Letras<br />

uma nova edição do livro À Margem <strong>da</strong> História,<br />

em que outros países sul-americanos se conheciam<br />

e se desconheciam. Fruto <strong>da</strong> lucidez de dois<br />

brasileiros – Euclides e o Barão do Rio Branco – a<br />

missão do Alto Purus abriu uma fase nova no entendimento<br />

de uma região que despertava<br />

– como desperta ain<strong>da</strong> – a<br />

cobiça de países estrangeiros.<br />

Naquele momento era Euclides<br />

<strong>da</strong> Cunha re presentante do<br />

mais legítimo idealismo <strong>da</strong> República<br />

brasileira. Um exemplo<br />

disso é a carta que escreveu <strong>à</strong><br />

Gazeta de Notícias em 18 de fevereiro<br />

de 1894, quando se opõe<br />

a declarações de João Cordeiro,<br />

Senador pelo Ceará, de serem os<br />

presos políticos de então executados,<br />

como represália ao aparecimento<br />

de uma bomba na re<strong>da</strong>ção<br />

do jornal O Tempo. Diz em deter-<br />

mina<strong>da</strong> altura, Euclides: “Confesso,<br />

Senhor Re<strong>da</strong>tor, que uma tal<br />

proposição, ousa<strong>da</strong>mente atira<strong>da</strong><br />

LEITURA, LEITURAS<br />

Euclides e a Amazônia*<br />

ANTONIO OLINTO<br />

Retrato de Euclides <strong>da</strong> Cunha, de<br />

Candido Portinari, 1944. Acervo<br />

Projeto Portinari<br />

<strong>à</strong> publici<strong>da</strong>de, num país nobilitado pela forma<br />

republicana, deve cair de pronto sob a revolta<br />

imediata dos caracteres que, na fase dolorosa<br />

que atravessamos, tenham ain<strong>da</strong> o heroísmo<br />

<strong>da</strong> honesti<strong>da</strong>de”.<br />

Aquele “num país nobilitado pela forma<br />

republica na” é todo o Euclides <strong>da</strong> Cunha. O espírito<br />

de liber<strong>da</strong>de, que a república pregava, estava<br />

em tudo de acordo com o tipo de inteligência<br />

lúci<strong>da</strong> que era a de Euclides.<br />

O pioneirismo de Tavares<br />

Bastos, cujo livro O Vale do Amazonas<br />

foi publicado no mesmo<br />

ano do nascimento de Euclides<br />

<strong>da</strong> Cunha – 1866 –, iria produzir<br />

seus melhores frutos com o assomar<br />

<strong>da</strong> República brasileira e<br />

através do entusiasmo idealista,<br />

inclusive no significado filosófico<br />

do adjetivo, dos republicanos.<br />

A escolha de Euclides para chefiar<br />

a missão no Alto Purus revela<br />

a sabedoria administra tiva de<br />

Rio Branco e o livro que Euclides<br />

se preparava para escrever sobre<br />

a Amazônia, O Paraíso Perdido,<br />

deixaria de existir por causa de<br />

uma bala assassina. Mas o que<br />

43


Não se sabe se Euclides<br />

<strong>da</strong> Cunha ouvira falar<br />

sobre ecologia – termo<br />

cunhado em 1869 pelo<br />

cientista alemão Ernst Haeckel<br />

(1834-1919), para<br />

designar o estudo <strong>da</strong>s relações<br />

entre os seres vivos e<br />

o ambiente em que vivem,<br />

e sua distribuição na Terra.<br />

Sabe-se que, antes de<br />

Euclides, outros brasileiros<br />

se preocuparam com a<br />

preservação de nossa natureza<br />

e, principalmente,<br />

de nosso território, como<br />

Alexandre de Gusmão,<br />

José Bonifácio e D.Pedro II.<br />

Para defender nossas<br />

fronteiras, Euclides condenou o envio de tropas<br />

brasileiras ao Alto Purus, 1904, defendendo solução<br />

diplomática para a conten<strong>da</strong>. Propôs, ain<strong>da</strong>, uma<br />

“guerra dos cem anos” contra as secas nordestinas,<br />

com a exploração científica <strong>da</strong> área, a construção<br />

de açudes, poços e estra<strong>da</strong>s de ferro e o desvio<br />

escreveu ficaria, não só em À Margem <strong>da</strong> História,<br />

mas também em Contrastes e Confrontos e Peru<br />

Versus Bolívia.<br />

No livro reeditado em 2006 pela ABL surge<br />

a classifi cação do seringueiro. Se, em Os<br />

Sertões, o nordestino era, antes de tudo, um<br />

forte, em À Margem <strong>da</strong> História, o “seringueiro<br />

obrigatoriamente, profissionalmen te, um solitário”.<br />

Se, em Canudos, havia multidões, homens,<br />

mulheres e crianças por to<strong>da</strong> parte, na<br />

Amazônia dos seringais as pessoas como que<br />

sumiam no meio dos árvores, ficando isola<strong>da</strong>s<br />

em pequenos grupos, ferindo caules e esperando<br />

que o leite se acu mulasse. De modo inteiramente<br />

diverso do que fora sua aproximação com<br />

o Nordeste, a Amazônia exigia festas religiosas<br />

diferentes, que Euclides descreve com a força<br />

de suas palavras, inclusive no mostrar a figura<br />

de Ju<strong>da</strong>s que, amarrado num barco, desce o<br />

rio, enquanto os seringuei ros, com descarga de<br />

seus rifles, atacam a embarcação e destroem o<br />

símbolo detes tado.<br />

Por escolha própria, deixara Euclides de<br />

visitar a Europa ou de aceitar postos no exterior<br />

para ir ao encontro <strong>da</strong> Amazônia, para vingá-la,<br />

para resgatá-la. Foi com uma sensação de cientista<br />

messiânico, de profeta, que ele se dirigiu a<br />

uma região calunia<strong>da</strong>, e disto é sinal o trecho de<br />

carta que enviou então ao Rio de Janeiro e que<br />

Leandro Tocantins reproduz em seu livro Euclides<br />

e o Paraíso Perdido: “...na<strong>da</strong> te direi <strong>da</strong> terra<br />

e <strong>da</strong> gente. Depois, aí, e num livro, Um Paraíso<br />

Perdido, onde procurarei vingar a Hileia maravi-<br />

44<br />

LEITURA, LEITURAS<br />

<strong>da</strong>s águas do rio São<br />

Francisco.<br />

Em 1905, Rio<br />

Branco o nomeou chefe<br />

<strong>da</strong> Comissão Mista Brasileiro-Peruana<br />

de Reconhecimento<br />

do Alto<br />

Purus, que o ocupou<br />

por quase um ano. De<br />

volta, 1906, apresenta<br />

relatório com propostas<br />

sobre a região.<br />

No Jornal do<br />

Commercio, 1908, Euclides<br />

publicou a crônica<br />

“A última visita”,<br />

sobre a homenagem<br />

de um jovem estu<strong>da</strong>nte,<br />

depois identificado<br />

como Astrojildo Pereira (1890-1965), a Machado de<br />

Assis em seu leito de morte. Também em 1908 foi<br />

nomeado professor de Lógica, por concurso, do Ginásio<br />

Nacional (hoje, Colégio Pedro II). Deu apenas<br />

19 aulas, entre julho e agosto de 1909, quando morreu<br />

em duelo com Dilermando de Assis.<br />

lhosa de to<strong>da</strong>s as brutali<strong>da</strong>des que a maculam<br />

desde o Século XVIII”.<br />

E Gilberto Freyre vê, nessa busca do maravilhoso<br />

existente na enxuta reali<strong>da</strong>de, uma<br />

fuga ao realista rotineiro: “No retratar o visto<br />

e o observado, é que dei xou, muitas vezes, de<br />

ser simples fotógrafo, ao modo dos realistas<br />

convencionais, para buscar, em homens e paisagens,<br />

o mais real que o real”.<br />

A Amazônia, conquista portuguesa lega<strong>da</strong><br />

ao Bra sil, provoca paixões, cobiças e muitas<br />

religiões: católicos, evangélicos, protestantes de<br />

várias denominações se misturam ali com uma<br />

nova religião ecológica brasileira, a do Santo<br />

Daime, basea<strong>da</strong> no chá <strong>da</strong> região, no pregar, discutir<br />

e viver a empolgação do Paraíso Perdido ou,<br />

no titulo de Alberto Rangel, do Inferno Verde.<br />

Tento imaginar o livro final e definitivo<br />

que teria escrito Euclides <strong>da</strong> Cunha sobre o Amazonas<br />

e que Antônio Conselheiro poderia ter surpreendido,<br />

agindo sob a verde nave de suas árvores.<br />

Só pensar nessa possibili<strong>da</strong>de antiga faz-nos<br />

lembrar a severa e densa importância de Euclides<br />

<strong>da</strong> Cunha na cultura brasileira.<br />

A nova edição de À Margem <strong>da</strong> História<br />

saiu sob a égide <strong>da</strong> Academia Brasileira de Letras,<br />

com apresenta ção de Alberto Venancio Filho,<br />

projeto gráfico de Victor Burton, produção<br />

editorial e revisão de Nair Dametto.<br />

ANTONIO OLINTO<br />

Escritor<br />

Membro <strong>da</strong> Academia Brasileira de Letras<br />

*Acervo ICAO


á se tornou lugar-comum falar que o gosto pela leitura<br />

se cria em <strong>casa</strong>. A criança que ouve histórias, que<br />

cresce vendo pai e mãe agarrados num livro e só adivinha<br />

o mundo que existe além <strong>da</strong>quelas letrinhas pretas<br />

no papel branco, que tem em <strong>casa</strong> pelo menos um cantinho<br />

especial onde moram os livros é uma criança que tem<br />

maiores chances de vir a ser um leitor ou leitora.<br />

Quando a reali<strong>da</strong>de familiar é difícil, a escola<br />

tenta preencher esta lacuna. <strong>Professor</strong> e biblioteca<br />

passam a ser a ponte de mão dupla mais importante<br />

entre a criança e o livro. Mas, atenção: leitura não<br />

pode ser confundi<strong>da</strong> com obrigação escolar. Ler um livro<br />

não precisa ser dever de <strong>casa</strong>. Livro combina com<br />

liber<strong>da</strong>de. O ideal é ca<strong>da</strong> sala de aula ter um cantinho<br />

de leitura onde os livros sejam oferecidos livremente.<br />

A criança precisa ter liber<strong>da</strong>de de escolha: ela pode<br />

abandonar um que não despertou seu interesse, pode<br />

escolher outro, os alunos podem discutir entre si, sem<br />

a interferência constante dos adultos.<br />

É importantíssimo que haja boa oferta de livros<br />

de literatura. Livros informativos são sempre bem-vindos,<br />

mas a literatura é o campo fun<strong>da</strong>mental <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de<br />

e <strong>da</strong> paixão de ler. É nesse terreno que se formam<br />

leitores para to<strong>da</strong> a vi<strong>da</strong>.<br />

O melhor de tudo é que o professor seja um leitor.<br />

Paixão gera paixão. Um professor apaixonado pela<br />

leitura é meio caminho an<strong>da</strong>do para a criação de novas<br />

gerações de leitores.<br />

Uma biblioteca escolar convi<strong>da</strong>tiva é o território<br />

ideal para alimentar a imaginação de jovens leitores.<br />

Lá, eles vão “conversar” com escritores de ontem, de<br />

hoje e de sempre, como Monteiro Lobato, Cecília Meireles,<br />

Ana Maria Machado, Ruth Rocha, Sylvia Orthof<br />

e centenas de outros. De lá, vão carregar a paixão <strong>da</strong><br />

leitura por to<strong>da</strong> a vi<strong>da</strong>.<br />

Conheço bem o itinerário de um desses leitores<br />

apaixonados. Começou lá atrás, com histórias conta<strong>da</strong>s<br />

pelo padrinho e pela bisavó. Continuou quando ele pedia<br />

de presente de aniversário e de Natal os livros de Monteiro<br />

Lobato, até completar a coleção. Na biblioteca do colégio,<br />

monta<strong>da</strong> por seu pai, encontrou um livro sobre um<br />

NOSSA BIBLIOTECA<br />

HISTÓRIA DE PAIXÃO<br />

LUIZ RAUL MACHADO<br />

cavaleiro an<strong>da</strong>nte deslocado e tresloucado em façanhas<br />

pelo mundo, acompanhado de um fiel escudeiro trapalhão<br />

(Vi<strong>da</strong> e proezas de Dom Quixote, a<strong>da</strong>ptação de Erich<br />

Kästner). Ele já conhecia de sobra o Dom Quixote <strong>da</strong>s<br />

crianças, de Lobato. Tinha lido e relido (quantas vezes?)<br />

a visita do cavaleiro ao sítio de Dona Benta, no livro O<br />

Picapau Amarelo, quando os personagens dos contos e<br />

fábulas de todos os tempos se mu<strong>da</strong>m para o sítio dos<br />

sonhos <strong>da</strong>s crianças brasileiras. Ali, espantosamente,<br />

Emília diz: “Acho D. Quixote o suco dos sucos. A loucura<br />

chegou ali e parou. Adoro os loucos. São as únicas gentes<br />

interessantes que há no mundo”.<br />

Tempos depois, quando este leitor se apaixonou pela<br />

poesia de Carlos Drummond de Andrade, descobriu que ele<br />

fez uma série de poemas sobre o cavaleiro maravilhoso, a<br />

partir de quadros de Portinari:<br />

O DERROTADO INVENCÍVEL<br />

(...) / Doído, / moído, / caído, / perdido, / curtido,<br />

/ morrido, / eu sigo, / persigo / o lunar / intento:<br />

/ pela justiça no mundo, / luto, iracundo.<br />

Descobriu depois, em Euclides <strong>da</strong> Cunha, um belo<br />

soneto ao Quixote. O leitor procurou boas traduções <strong>da</strong><br />

íntegra do romance que muitos e grandes consideram o<br />

primeiro e o mais importante do Ocidente. Deleitou-se<br />

então com as aventuras completas do apaixonado errante<br />

pela cavalaria e pela bela Dulcinéia.<br />

Já beirando a velhice, comprou a edição em espanhol,<br />

comemorativa do quarto centenário <strong>da</strong> obra.<br />

Agora, ele namora o livro em sua estante, pega, folheia,<br />

lê trechos e espera o dia de viajar do prólogo<br />

até o fim. Agora, ao alcance <strong>da</strong> mão e <strong>da</strong> imaginação,<br />

o Quixote na língua em que foi concebido pelo genial<br />

Miguel. O leitor apaixonado alimenta sua paixão.<br />

Este leitor sou eu.<br />

LUIZ RAUL MACHADO<br />

Escritor<br />

Especialista em literatura infantil<br />

Autor, entre outros, de Chifre em cabeça de cavalo, Fulustreca<br />

e História de Oe<br />

45


Bazar do Renascimento, de Jerry Brotton,<br />

Grua Livros, apresenta interessantes revelações:<br />

estu<strong>da</strong> a história “lendo” quadros<br />

famosos e obras de arte, interpretando seus indícios<br />

explícitos e implícitos. Nega a efervescência<br />

renascentista ocorri<strong>da</strong> em parte <strong>da</strong> Europa<br />

como “global”, mostrando que o Renascimento<br />

não é italiano nem repentino como se supõe.<br />

Afirma-o influenciado pelo mundo islâmico que,<br />

por sua vez, resgata, preserva, reflete, expande e<br />

difunde a cultura clássica. Revela que as “guerras<br />

santas” do medievo europeu não impediram<br />

o rico e variado comércio entre cristãos, judeus<br />

e/ou maometanos.<br />

Demonstra quão ricas e varia<strong>da</strong>s eram as<br />

trocas artísticas entre oriente e ocidente, e que Da<br />

Vinci e outros prestavam ou ofereciam seus serviços<br />

como artistas, engenheiros bélicos ou construtores<br />

a antagonistas, cristãos ou muçulmanos.<br />

Assinala que a Reforma e a Contra-Reforma na<strong>da</strong><br />

tinham de religiosas, e só buscavam poder e riqueza.<br />

Assim, a ven<strong>da</strong> de indulgências, que revoltou<br />

46<br />

NOSSA BIBLIOTECA<br />

Bazar do Renascimento<br />

O<br />

al-An<strong>da</strong>lus<br />

(antiga<br />

Van<strong>da</strong>licia<br />

– “terra dos<br />

vân<strong>da</strong>los”) era a<br />

parte muçulmana<br />

<strong>da</strong> Península<br />

lbérica desde a<br />

invasão por Tarique<br />

Ibn Ziyad,<br />

em 711 d.C. O<br />

Gharb-al-An<strong>da</strong>lus,<br />

ou al-Gharb<br />

– compreendia<br />

a ex-Lusitânia<br />

romana e o oeste <strong>da</strong> Estremadura espanhola.<br />

Nesta obra, edita<strong>da</strong> pela Gryphus, a trama<br />

junta Ali, filho de mãe romana e pai greco-bizantino<br />

(convertido ao Islã), administrador fiscal <strong>da</strong><br />

terra, como narrador. O rico, culto e epicurista<br />

junta os Hohenstaufen, embaixadores do Sacro<br />

Império Romano-Germânico; os Fili, mun<strong>da</strong>nos e<br />

cosmopolitas; Ben, médico e cientista judeu e sua<br />

mulher; Antonio e Ordoña, galegos gastrônomos;<br />

Lutero, se destinaria<br />

a financiar<br />

a construção<br />

<strong>da</strong> Basílica<br />

de São<br />

Pedro. Enfatiza<br />

que as<br />

viagens, descobrimentos,<br />

avanços<br />

científicos e<br />

literários mu<strong>da</strong>ram<br />

a visão de mundo. Mostra como a<br />

imprensa foi alavanca do “progresso” humano.<br />

Sobre o autor<br />

Jerry Brotton é professor de Estudos Sobre o<br />

Renascimento, no Queen Mary, University of London.<br />

Autor de outros títulos como Trading territories: mapping<br />

the early modern world (Reaktion, Londres, 1997,<br />

e Cornell University Press, 1998) e The Sale of the Late<br />

King’s Goods: Charles I and his Art Collection (2006).<br />

AI-Gharb 1146<br />

www.grualivros.com.br<br />

o Rei do Sal, administrador almorávi<strong>da</strong>, fetichista<br />

e poeta e lbn, árabe, homossexual e árbitro <strong>da</strong>s<br />

elegâncias, para inaugurar sua residência. Lá degustam<br />

iguarias, compartilham <strong>da</strong> atmosfera, participam<br />

de divertimentos eróticos e refletem sobre<br />

os “grandes do mundo”: Afonso Henriques de Portugal,<br />

Afonso VII de Leão e Castela, Abd el-Mumin,<br />

califa almóa<strong>da</strong>. Discutem geometria, arte, perfumes,<br />

teoria <strong>da</strong>s cores, antissemitismo, interditos e<br />

transgressões, fun<strong>da</strong>mentalismos e terror.<br />

O mundo tolerante em que conviviam as<br />

três religiões monoteístas, ameaça desmoronar:<br />

Afonso Henriques toma Lisboa e os Almorávi<strong>da</strong>s<br />

são dominados pelos ascéticos e reacionários Almóa<strong>da</strong>s.<br />

AI-Gharb 1146 é onírica fantasia sobre<br />

como seria um Portugal muçulmano.<br />

Sobre o autor<br />

Alberto Xavier (1942) é lisboeta, professor e<br />

Doutor em Direito pela Universi<strong>da</strong>de de Lisboa. Radicou-se<br />

no Brasil, onde exerce vi<strong>da</strong> universitária e é<br />

advogado empresarial. Tributarista, é autor de bibliografia<br />

na sua especiali<strong>da</strong>de. Tem publicações no<br />

Brasil, em Portugal e outros países.<br />

www.gryphus.com.br


Um paraíso perdido: ensaios amazônicos, de<br />

Euclides <strong>da</strong> Cunha, publicado pela Editora do<br />

Senado, apresenta prefácio do Senador Jefferson<br />

Peres, estusiasta defensor <strong>da</strong> Amazônia, de quem<br />

emprestamos as palavras para esta resenha.<br />

A Amazônia e o Nordeste conheceram grandes<br />

interpretes, ensaístas que tiveram dessas regiões uma<br />

visão de conjunto, em seus múltiplos aspectos fisiográficos<br />

e sociais. Mas o único a produzir obra de fôlego<br />

sobre ambas foi Euclides <strong>da</strong> Cunha, com Os Sertões<br />

e À margem <strong>da</strong> História. Como homem do Sudeste que<br />

passou apenas alguns meses no Nordeste e na Amazônia,<br />

escreveu dois livros magistrais, contudo neles não<br />

se espere encontrar ver<strong>da</strong>des científicas.<br />

Misto de poeta e homem de ciência, sem a<br />

preocupação de escrever tese acadêmica, descreve a<br />

região como um paisagista, com pincela<strong>da</strong>s de cores<br />

fortes e impressivas. Assinala que seu primeiro<br />

contato com aquela “última página do Gênese” lhe<br />

causou desapontamento, por considerar a visão real<br />

NOSSA BIBLIOTECA<br />

Um paraíso perdido:<br />

ensaios amazônicos<br />

A juventude de Machado de Assis<br />

O<br />

grande mérito de A juventude<br />

de Machado de Assis<br />

(1839-1870): ensaio de<br />

biografia intelectual, de Jean-Michel<br />

Massa, relança<strong>da</strong> pela editora<br />

UNESP após quase quatro déca<strong>da</strong>s<br />

de sua 1.ª edição, em 1971, é que ela<br />

não ignora o excepcional escritor que<br />

Machado de Assis viria a ser entre<br />

1870 e 1908. Revela um período de<br />

juventude fun<strong>da</strong>mental para melhor<br />

e maior compreensão do todo de sua<br />

obra, numa perspectiva ampla que leva<br />

em conta o biográfico e o literário.<br />

A proposta do autor é estu<strong>da</strong>r<br />

os primeiros anos <strong>da</strong> carreira de Machado<br />

em si mesmo, não procurando<br />

fazer, como ain<strong>da</strong> é comum, uma história<br />

<strong>à</strong>s s avessa, ou seja, tentar entender<br />

o começo o de uma carreira por aquilo<br />

que ela se tornou nos seus melhores<br />

momentos.<br />

Um dos aspectos mais interessantes<br />

é que conhecer a origem de Machado significa<br />

mergulhar num universo mais espontâneo em que as<br />

experimentações ocorrem de maneira conti<strong>da</strong>, havendo<br />

uma escrita mais próxima do esperado para sua<br />

época, mas nem por isso menos preciosa sob o aspecto<br />

literário.<br />

inferior <strong>à</strong> imagem<br />

prefigura<strong>da</strong> em sua<br />

mente.<br />

Mostra-se<br />

igualmente magistral<br />

como retratista<br />

<strong>da</strong> paisagem<br />

social e humana.<br />

Irretocável sua descrição do seringal,<br />

que compara a um polvo com tentáculos nas<br />

“estra<strong>da</strong>s”, a sugar as energias do homem, exaurido pelo<br />

brutal sistema de exploração a que era submetido.<br />

Sobre o autor<br />

Euclides Rodrigues Pimenta <strong>da</strong> Cunha (Cantagalo,1866<br />

– Rio de Janeiro,1909), foi escritor, professor, sociólogo, repórter<br />

jornalístico e engenheiro, famoso internacionalmente<br />

por sua obra Os Sertões, que retrata a Guerra dos Canudos.<br />

Autor de 12 livros e centenas de artigos, morreu numa troca<br />

de tiros, por “razões de honra”.<br />

www.senado.gov.br<br />

Como afiança Antonio Candido<br />

sobre Massa, no prólogo pr do livro: “É<br />

notável notá a maneira como traça o panora-<br />

ma de uma época menos conheci<strong>da</strong> <strong>da</strong><br />

nossa literatura, tirando <strong>da</strong> penumbra<br />

agrupamentos, peri periódicos, autores secundários<br />

cund empenhados em criar uma<br />

vi<strong>da</strong> intelectual ponder ponderável na ci<strong>da</strong>de<br />

atrasa<strong>da</strong> e provinciana que ain<strong>da</strong> era<br />

o Rio de Janeiro dos anos de 1850 e<br />

1860”, confirmando “a mestria com<br />

que sabe associar o faro de investigador<br />

ao esp espírito crítico, bem como <strong>à</strong><br />

avalia avaliação correta do papel desempe-<br />

nhado pelo quadro hist histórico”.<br />

Sobre o autor<br />

Jean-Michel Massa é professor emé-<br />

rito <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Rennes 2, França, Fran de<br />

cujo Centro de Estudos Luso-Brasileiros foi<br />

diretor. É autor e organizador de numerosos<br />

livros, artigos e ensaios, dos quais<br />

se destacam, entre outros: Dispersos de<br />

Machado de Assis (1965); Machado de Assis traducteur (1969);<br />

Bibliographie descriptive, analytique et critique de Machado de<br />

Assis – 1957-1958 (1965); e, em co-autoria com Françoise Massa,<br />

Dictionnaire Encyclopédique Bilíngüe Cap-Vert/Cabo Verde<br />

(2001). Por seu excepcional estudo <strong>da</strong> obra machadiana, recebeu<br />

<strong>da</strong> ABL, em 1986, a Me<strong>da</strong>lha Machado de Assis.<br />

www.editoraunesp.com.br<br />

47


Carlos Alberto Ferreira Braga foi um nome<br />

que nasceu para ser precedido pela abreviatura<br />

Dr. Este era o desejo do pai <strong>da</strong>quele<br />

menino que nasceu há cem anos no bairro de Vila<br />

Isabel e que estava destinado a ser um dos construtores<br />

de uma <strong>da</strong>s fases mais ricas de nossa história<br />

musical.<br />

O menino não teve, porque não quis, o Dr.<br />

antes do nome, abandonando a Arquitetura na<br />

Escola Nacional de Belas Artes pela música; em<br />

compensação, ganhou duas designações para ser<br />

identificado: Braguinha e João de Barro. E foi assim,<br />

num revezamento permanente, que ele se tornou<br />

gigante, não obstante seus apenas um metro e<br />

sessenta centímetros, ver<strong>da</strong>deiro mestre em várias<br />

ativi<strong>da</strong>des artísticas.<br />

Já nos tempos de colégio liderou a organização<br />

do conjunto musical ao qual deu o nome de<br />

Flor do Tempo, que passou a ser indispensável nas<br />

festinhas <strong>da</strong>s <strong>casa</strong>s de família do bairro, cantando<br />

e tocando repertório de sambas, marchas e valsas,<br />

o que só fazia aumentar o prestígio dos componentes<br />

junto <strong>à</strong>s meninas.<br />

48<br />

O ASSUNTO É...<br />

BRAGUINHA, poeta do Rio<br />

HAROLDO COSTA<br />

Não demorou muito para que outros jovens<br />

músicos aderissem ao grupo. E assim foram chegando<br />

Henrique Fôreis, que passaria para a história<br />

com a alcunha de Almirante (que mais tarde<br />

se <strong>casa</strong>ria com Ilka, bela irmã de Braguinha), e<br />

um outro, discreto, um tanto desajeitado, mas de<br />

enorme talento, também morador de Vila Isabel e<br />

que tinha o nome de Noel – Noel Rosa. O conjunto<br />

passou a se chamar Bando dos Tangarás, alusão<br />

a um pássaro alegre, cantador e até bailarino. Foi<br />

quando Carlos Braga, o Braguinha, adotou o nome<br />

de João de Barro – o pássaro construtor – pseudônimo<br />

que adotou para não aborrecer o pai, que não<br />

queria o nome <strong>da</strong> família envolvido com artistas,<br />

considerados, naquela época, gente de má fama.<br />

Os outros integrantes eram Henrique Brito, Alvinho,<br />

Almirante e Noel Rosa, unânimes em se declarar<br />

amadores: não aceitavam remuneração sob<br />

pretexto algum, nem mesmo para reembolso <strong>da</strong>s<br />

passagens do bonde.<br />

A descoberta do talento de compositor não<br />

demorou muito. Era quase uma fatali<strong>da</strong>de. A convivência<br />

diária com os colegas do grupo e o exercício


Desenho de<br />

Leo Martins<br />

do canto não poderiam<br />

desembocar em<br />

outra coisa. Mesmo<br />

tendo gravado como<br />

solista-cantor uma<br />

composição de Lamartine<br />

Babo, João<br />

de Barro não prosseguiu<br />

nesta carreira,<br />

investindo mais na<br />

composição, e foi aí<br />

que novo capítulo de<br />

sua vi<strong>da</strong> e <strong>da</strong> nossa<br />

vi<strong>da</strong> musical começou<br />

a ser escrito.<br />

Com seus vários<br />

PASTORINHAS<br />

(Noel Rosa e João de Barro)<br />

A estrela d’alva<br />

No céu desponta<br />

E a lua an<strong>da</strong> tonta<br />

Com tamanho esplendor<br />

E as pastorinhas<br />

Pra consolo <strong>da</strong> lua<br />

Vão cantando na rua<br />

Lindos versos de amor<br />

Lin<strong>da</strong> pastora<br />

Morena <strong>da</strong> cor de Ma<strong>da</strong>lena<br />

Tu não tens pena<br />

De mim que vivo tonto com o<br />

teu olhar<br />

Lin<strong>da</strong> criança<br />

Tu não me sais <strong>da</strong> lembrança<br />

Meu coração não se cansa<br />

De sempre e sempre te amar.<br />

parceiros, destacando-se Alberto Ribeiro, mas sem<br />

esquecer Alcir Pires Vermelho, Noel Rosa, Antonio Almei<strong>da</strong>,<br />

José Maria de Abreu, Norival Reis, Braguinha<br />

inundou o país com músicas que até hoje estão na<br />

memória e na emoção de grande parte de brasileiros<br />

de várias gerações. Criou cantigas de ro<strong>da</strong>, histórias<br />

infantis, letras para músicas de filmes de Walt Disney,<br />

fundou e dirigiu gravadoras (Continental e To<strong>da</strong>mérica)<br />

e sempre se fez presente no carnaval. São quase<br />

mil títulos em todos os gêneros.<br />

Sempre alegre, de bem com a vi<strong>da</strong>, sorriso<br />

permanente nos lábios, Braguinha era um encontro<br />

desejado. Carioca até a medula, dedicou <strong>à</strong> sua<br />

ci<strong>da</strong>de, nossa ci<strong>da</strong>de, algumas <strong>da</strong>s mais lin<strong>da</strong>s<br />

canções de que se tem notícia: Copacabana, Rio<br />

– o gostosão, Fim de semana em Paquetá, Convite<br />

ao Rio, e não se cansou de cantar a beleza<br />

<strong>da</strong> mulher brasileira: Lin<strong>da</strong> Morena, Lourinha, A<br />

Mulata é a tal, O que esquenta é mulher. Sua produção<br />

foi enorme e constante, mesmo quando as<br />

marchinhas carnavalescas, gênero que ele cultivou<br />

como poucos, pareciam ter morrido. Eis que ressurge<br />

nos anos 70, numa gravação de Gal Costa, a<br />

marcha Balancê, sucesso de 1937, e domina todos<br />

os bailes <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, continuando a ser canta<strong>da</strong> nos<br />

salões e nas ruas.<br />

O ASSUNTO É...<br />

Um fato inesquecível, que causou indescritível<br />

emoção em todos quantos o assistiram, de longe<br />

ou de perto, foi no desfile <strong>da</strong>s escolas de samba<br />

do carnaval de 1983, inauguração do sambódromo,<br />

quando a Estação Primeira de Mangueira,<br />

sendo a última a desfilar, deu a volta na praça <strong>da</strong><br />

Apoteose e retornou no sentido contrário, para a total<br />

surpresa e imensa<br />

alegria de todo o<br />

CARINHOSO<br />

público presente. O<br />

(Pixinguinha e João de Barro - letra) enredo era Yes, nós<br />

temos Braguinha,<br />

Meu coração<br />

Não sei por que<br />

título que já havia<br />

Bate feliz, quando te vê<br />

sido usado em um<br />

E os meus olhos ficam sorrindo show de Sidney Mil-<br />

E pelas ruas vão te seguindo ler e Paulo Afonso<br />

Mas mesmo assim, foges de mim Grisolli, no Teatro<br />

Ah! Se tu soubesses<br />

Casa Grande. Em<br />

Como sou tão carinhoso<br />

ambas as ocasiões,<br />

E muito e muito que te quero Braguinha estava<br />

E como é sincero o meu amor integrado ao acon-<br />

Eu sei que tu não fugirias mais de mim tecimento,acres- Vem, vem, vem, vem<br />

centando com a sua<br />

Vem sentir o calor<br />

Dos lábios meus<br />

presença mais sen-<br />

À procura dos teus<br />

tido <strong>à</strong> homenagem.<br />

Vem matar esta paixão<br />

No dia 29<br />

Que me devora o coração<br />

de março de 2007,<br />

E só assim então<br />

Braguinha com-<br />

Serei feliz, bem feliz.<br />

pletaria cem anos.<br />

Muitos festejos<br />

estavam programados,<br />

alguns até aconteceram e, durante o<br />

carnaval, seu nome e sucessos foram evocados<br />

pelos milhares de foliões que invadiram pacificamente<br />

as ruas <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, num banho de alegria.<br />

Aliás, parecia mesmo uma cerimônia de exorcismo,<br />

para afastar os demônios <strong>da</strong> insegurança, <strong>da</strong><br />

impuni<strong>da</strong>de, do desrespeito ao ci<strong>da</strong>dão, do descaso<br />

dos poderosos. As estatísticas apontaram que<br />

nunca tantos cariocas ficaram na ci<strong>da</strong>de durante<br />

o carnaval. Era como um desafio coletivo, imensa<br />

catarse a dizer: estamos aqui, para celebrar a vi<strong>da</strong><br />

e a beleza, nos versos e nas músicas de Braguinha<br />

ou João de Barro, se preferirem.<br />

Ao longo deste texto, alguns dos seus grandes<br />

sucessos foram lembrados; muitos outros poderiam<br />

ser citados com a mesma proprie<strong>da</strong>de. São canções<br />

que o povo canta e continuará cantando – Pirata <strong>da</strong><br />

perna de pau, Chiquita bacana, Toura<strong>da</strong>s de Madri,<br />

A sau<strong>da</strong>de mata a gente, Balancê, Turma do funil.<br />

Mas permitam-me esta observação: se Braguinha<br />

tivesse apenas feito as letras de As pastorinhas<br />

e Carinhoso, já seria um gênio <strong>da</strong> raça.<br />

HAROLDO COSTA<br />

Jornalista<br />

Membro do Conselho Estadual de Cultura/RJ<br />

49


Uns 90% dos executivos estão insatisfeitos<br />

com seu trabalho: sentem-se subempregados,<br />

insuficientemente desafiados e não se<br />

identificam com o que fazem. Presidentes de empresa<br />

falam sobre a carência agu<strong>da</strong> e crescente de talentos,<br />

e a dificul<strong>da</strong>de de atrair e motivar pessoas ver<strong>da</strong>deiramente<br />

prepara<strong>da</strong>s.<br />

Um lado se diz subutilizado, o outro que não há<br />

talentos suficientes. Ambos estão certos, mas há ruído<br />

de comunicação no processo: ou o recrutamento é ineficiente<br />

(e é...), ou o que as pessoas querem é diferente do<br />

que elas dizem querer.<br />

Em que concor<strong>da</strong>m? Todos estão insatisfeitos<br />

com a interface entre Pessoas e Trabalho. O modelo<br />

“quebrou” e não admite consertos parciais ou cosméticos.<br />

É preciso inventar nova maneira de relacionamento<br />

com o Trabalho.<br />

Há uns vinte anos o conceito de Trabalho mudou<br />

muito. Surgiram trabalhadores remotos, profissionais<br />

eternamente em trânsito, e executivos interinos.<br />

O boom do setor de Serviços criou os trabalhadores<br />

do conhecimento, cuja produção é difícil de aferir<br />

e mensurar, quer trabalhem em <strong>casa</strong> ou na empresa.<br />

O primeiro corolário disso é que a definição<br />

<strong>da</strong> palavra “aposentadoria” também mudou muito.<br />

50<br />

O ASSUNTO É...<br />

Artistas, Cientistas, e Artesãos:<br />

Para uma nova interface entre pessoas e trabalho<br />

AUGUSTO DIAS CARNEIRO<br />

Quem chegou ao mercado de trabalho depois que a<br />

Procter & Gamble quebrou sua promessa de nunca<br />

demitir alguém (isto ocorreu na déca<strong>da</strong> de 1970, e é<br />

amplamente aceito pela literatura de business como<br />

o divisor de águas, a partir do qual o emprego vitalício<br />

tornou-se coisa do passado), cresceu num mundo<br />

onde as empresas não têm fideli<strong>da</strong>de para com<br />

as pessoas, e estas também são infiéis para com as<br />

empresas em que trabalham.<br />

Afora essas mu<strong>da</strong>nças, o modelo de Trabalho<br />

que conhecemos hoje sobrevive praticamente intacto<br />

desde o início <strong>da</strong> Revolução Industrial: temos organizações<br />

matriciais, telefones celulares e computadores<br />

rapidíssimos, coexistindo com chefes que se zangam<br />

porque o empregado chega atrasado, sai cedo, ou não<br />

gosta de trabalhar até tarde.<br />

Não penso em propor um novo Modelo de Trabalho.<br />

O objetivo deste artigo é sugerir uma primeira<br />

aproximação ao que será um dia uma metodologia<br />

para se examinar o que ocorre entre Pessoas e Trabalho,<br />

visando chegar-se a um redesenho completo do<br />

que se dá nesta interface.<br />

Considerem minha taxonomia do que é Trabalho.<br />

Se: Arte for a busca <strong>da</strong> beleza e <strong>da</strong> elegância, o<br />

que compreende um componente didático pelo qual o


artista quer compartilhar sua concepção do Belo com<br />

todos; Artesanato, um conjunto de regras ensináveis<br />

para a produção repeti<strong>da</strong> de determinados bens e serviços;<br />

e Ciência, o processo pelo qual o ser humano<br />

põe rédeas nas leis <strong>da</strong> Natureza... então, certamente<br />

todo trabalho humano é a combinação entre Arte, Artesanato<br />

e Ciência, e os três elementos estarão sempre<br />

presentes, embora em proporções muito diferentes.<br />

As empresas, cria<strong>da</strong>s para converter o esforço<br />

humano em valor econômico, direcionam combinações<br />

específicas de Arte, Artesanato e Ciência em benefício<br />

dos acionistas.<br />

Nos últimos 80 anos, essa combinação mudou<br />

de maneira significativa, principalmente no que concerne<br />

<strong>à</strong> Ciência, que expandiu, em detrimento <strong>da</strong> Arte,<br />

todo o território do qual se havia apoderado o<br />

Artesanato durante a primeira fase <strong>da</strong><br />

Revolução Industrial. Isso parecia<br />

inevitável nos primórdios do século<br />

XX. O movimento Bauhaus bradou<br />

aos quatro ventos que “a forma é<br />

consequência <strong>da</strong> função” e isso,<br />

em alguns círculos, até hoje é uma<br />

espécie de mantra. Mas a geração<br />

dos anos 60, resultado <strong>da</strong> expansão<br />

demográfica do pós-Guerra, se rebelou<br />

contra a situação <strong>da</strong> Ciência<br />

devorar a Arte e o Artesanato, e a<br />

humani<strong>da</strong>de redescobriu a ambos.<br />

Mas ferramentas para desenhar<br />

e redesenhar empresas (apesar<br />

<strong>da</strong> advertência de Alfred Chandler,<br />

repeti<strong>da</strong> há déca<strong>da</strong>s, de que a<br />

Estrutura deve refletir a Estratégia)<br />

chamam a atenção pela ausência.<br />

Esse esforço normalmente só recebe<br />

atenção de última hora ou, o que<br />

é pior, acaba vítima do capricho e<br />

<strong>da</strong> <strong>mo<strong>da</strong></strong>. Todos nos lembramos do<br />

entusiasmo surgido com as organizações<br />

matriciais. E, durante o explosivo crescimento<br />

<strong>da</strong>s empresas pontocom, até mesmo formigueiros e<br />

colônias virais foram interpretados como modelos de<br />

organização. Surgiram até modelos híbridos, como<br />

o <strong>da</strong> L’Oréal, francamente bem-sucedido em sobrepor<br />

a matriz bidimensional, combinando geografias<br />

e famílias de produtos, no que chamam de modelo<br />

organizacional de “ban<strong>da</strong> de jazz”, para estimular a<br />

improvisação e a criativi<strong>da</strong>de individuais.<br />

Gostaria de propor um modelo de Arte/Artesanato/Ciência<br />

para investigar a natureza do trabalho e<br />

de que forma as pessoas se organizam para produzir<br />

bens e prestar serviços. Na sequência, descrevo algumas<br />

instâncias interessantes dessa taxonomia.<br />

Empresas de bens de consumo não duráveis<br />

são principalmente Arte (marketing), enquanto seus<br />

produtos são projetados com Ciência e produzidos<br />

com Artesanato. De fato, no tempo em que as pessoas<br />

acreditavam naquelas Declarações de Missão <strong>da</strong>s empresas,<br />

a Coca-Cola insistia em que estava no negócio<br />

do lazer, as empresas de cosméticos diziam estar no<br />

negócio <strong>da</strong> autoimagem, e assim por diante. Todos<br />

O ASSUNTO É...<br />

queriam colocar mais Arte no que faziam, para evitar<br />

o risco de afun<strong>da</strong>r num ambiente dominado pela Ciência<br />

e, assim, perder o contato com o cliente.<br />

A combinação mu<strong>da</strong> conforme a hierarquia: os<br />

executivos de escalão mais alto gastam a maior parte<br />

de seu tempo no domínio <strong>da</strong> Arte, algum tempo no<br />

do Artesanato e muito pouco no <strong>da</strong> Ciência. Exceto<br />

quando tentam criar uma empresa de alta tecnologia,<br />

quando, então, a Arte cede o lugar principal <strong>à</strong> Ciência,<br />

o que pode ser um desastre.<br />

A combinação também mu<strong>da</strong>rá, dependendo do<br />

estágio de desenvolvimento de produto em que se está.<br />

Considerem-se as empresas automobilísticas: novos<br />

modelos começam como Ciência (pesquisa de mercado),<br />

partem para o domínio <strong>da</strong> Arte (projeto dos carros)<br />

e, <strong>da</strong>í, entram em produção, basicamente<br />

como Artesanato. Mas é preciso muita<br />

Arte (publici<strong>da</strong>de) para vendê-los!<br />

Algumas profissões mu<strong>da</strong>m<br />

muito com o tempo. Como mencionei,<br />

o século XX testemunhou a Ciência<br />

devorando a Arte, o Artesanato, ou<br />

ambos. Quando os mecanismos de<br />

armazenamento de computador eram<br />

caros, os programadores faziam cui<strong>da</strong>doso<br />

Artesanato de ca<strong>da</strong> linha de<br />

seus programas, para minimizar o<br />

uso <strong>da</strong> memória. Hoje os programas<br />

demonstram muito mais Ciência do<br />

que Arte.<br />

Às vezes, há diferenças significativas<br />

entre os que exercem a mesma<br />

profissão: os mecânicos de carros alemães<br />

praticam 10% Arte, 40% Artesanato<br />

e 50% Ciência. Os de carros franceses,<br />

praticam 50% Arte, 40% Artesanato<br />

e 10% Ciência!<br />

Há pessoas habilidosas em equili-<br />

brar Arte, Artesanato e Ciência. Ci<br />

Leonardo<br />

<strong>da</strong> Vinci – que enxergava os três como um<br />

continuum – é o seu mestre. E, por último, fazer um bom<br />

vinho é provavelmente um dos poucos exemplos de equilíbrio<br />

perfeito: 1/3 Arte, 1/3 Artesanato, 1/3 Ciência.<br />

Agora, proponho num exercício individual. Divi<strong>da</strong><br />

um círculo em três, representando a configuração<br />

arte/artesanato/ciência no seu atual trabalho. Depois,<br />

imaginando o trabalho dos seus sonhos, redesenhe a<br />

combinação ideal de arte/ciência/artesanato, e se in<strong>da</strong>gue:<br />

quais elementos gostaria que aumentassem,<br />

e quais que diminuíssem? Poderia imaginar uma ativi<strong>da</strong>de<br />

para si em que sua configuração ideal fosse<br />

possível?<br />

Creio que temos o embrião de um modelo – que<br />

está longe de ser suficiente, mas poderão verificar, na<br />

prática, se é bom.<br />

AUGUSTO DIAS CARNEIRO<br />

Graduado no Instituto Tecnológico <strong>da</strong> Massachusetts - MIT<br />

MBA na Universi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Califórnia - UCLA<br />

Autor de Guia de sobrevivência na selva empresarial,<br />

Ed.Campus–Elsevier<br />

augusto@zaitech.com.br<br />

51


O<br />

52<br />

O ASSUNTO É...<br />

Concurso Público<br />

debate sobre<br />

a melhoraria<br />

quali<strong>da</strong>de do<br />

serviço público parece<br />

já ter cansado a<br />

opinião pública. O que<br />

chama a atenção é que o<br />

tema aparentemente se<br />

esgotou pela incapaci<strong>da</strong>de<br />

de se promoverem<br />

mu<strong>da</strong>nças significativas,<br />

coletando modelos<br />

e experiências que justifiquem<br />

ultrapassar os<br />

inevitáveis obstáculos<br />

políticos, corporativos<br />

e jurídicos.<br />

CLAUDIO MENDONÇA<br />

Vários países estão<br />

reeditando modelos<br />

de produtivi<strong>da</strong>de, em especial para o magistério, nos<br />

quais, basicamente, tentam atrelar os ganhos de aprendizagem<br />

dos alunos a remuneração maior aos professores.<br />

Este é o caso do estado do Kansas nos Estados<br />

Unidos, o mais antigo; há, ain<strong>da</strong>, a certificação de professores<br />

no estado de Illinois, além <strong>da</strong> recente proposta<br />

do Secretário (nome <strong>da</strong>do ao Ministro) <strong>da</strong> Educação <strong>da</strong>quele<br />

país, e o programa chileno Docentemás.<br />

Apesar disso, existe uma instituição que não<br />

tem recebido a devi<strong>da</strong> atenção do setor público brasileiro.<br />

Refiro-me ao concurso público. Não pretendo<br />

fazer defesa do que a lei já obriga, nem clamar<br />

por mais concursos, pois nos últimos anos isso tem<br />

acontecido “aos montes”, beneficiando os chamados<br />

cursinhos e as instituições avaliadoras. Não há cobrança<br />

quanto <strong>à</strong> quali<strong>da</strong>de do serviço. Quando não<br />

há escân<strong>da</strong>lo, tudo vai bem, respeitado o elementar<br />

dever de honesti<strong>da</strong>de e transparência.<br />

Mas afinal, quem é o efetivo cliente do serviço<br />

de seleção pública? A maioria vê essa ativi<strong>da</strong>de como<br />

mera contratação de instituição do ou pelo governo,<br />

que o faz para cumprir a lei face <strong>à</strong> necessi<strong>da</strong>de de<br />

pessoal. Só isso. O resto diz respeito ao edital padrão,<br />

<strong>à</strong>s “pegadinhas” nas provas, a prazos, recursos, e paramos<br />

por aí. O estágio probatório em nosso país é<br />

mera formali<strong>da</strong>de burocrática.<br />

Será que aquele jovem mergulhado em livros desde<br />

a tenra infância é capaz de gerir programas e políticas<br />

públicas de alcance social, exarar sentenças, cercear liber<strong>da</strong>des<br />

e definir alocações orçamentárias, por exemplo?<br />

A esmagadora maioria dos aprovados nesses<br />

concursos são alunos recém-formados e sem experi-<br />

ência de atuação. Por<br />

acabarem de sair dos<br />

bancos escolares, encaram<br />

bem a rotina<br />

dos cursinhos onde<br />

são literalmente adestrados.<br />

Mas podemos<br />

abrir mão <strong>da</strong> vivência,<br />

engajamento e experiência<br />

profissional para<br />

aprovar apenas pessoas<br />

comumente sustenta<strong>da</strong>s<br />

pelos pais, com<br />

grande capaci<strong>da</strong>de de<br />

memorizar conceitos e<br />

virar noites de estudo?<br />

As provas, em<br />

raríssimos casos avaliam<br />

habili<strong>da</strong>des e<br />

competências, como ler, interpretar e compreender<br />

textos; capaci<strong>da</strong>de de solucionar problemas, interrelacionar<br />

pensamentos, idéias e conceitos; sistematizar<br />

informações, dentre outras. Em pleno século XXI<br />

ain<strong>da</strong> não oferecemos computadores aos candi<strong>da</strong>tos<br />

– as provas são feitas com papel, lápis e caneta.<br />

Some-se a isto o fato de que ninguém regula ou fiscaliza<br />

as instituições executoras de concurso. E o que<br />

é pior, quem as contrata, a mais <strong>da</strong>s vezes, não é o<br />

responsável pela gestão do serviço público que vive o<br />

problema lá na ponta e sim o chefe do RH junto com<br />

a assessoria jurídica.<br />

Assim os aspectos administrativos do concurso<br />

são amplamente debatidos, mas ninguém se pergunta<br />

sobre o perfil do profissional. Na FESP, após<br />

um processo seletivo, constatou-se que 263 professores<br />

de Filosofia, História, e Língua Portuguesa se<br />

graduaram com baixíssima capaci<strong>da</strong>de de leitura e<br />

interpretação de textos. E aí começa a caríssima e comumente<br />

ineficaz luta do governo pela capacitação<br />

profissional do já empossado no emprego, que exercerá<br />

sua ativi<strong>da</strong>de por 30 a 35 longos anos.<br />

A partir dessa reflexão, ci<strong>da</strong>dãos e governo, temos<br />

que reunir os efetivos empregadores do setor público<br />

com os dirigentes universitários e discutir que<br />

tipo de profissionais estão sendo graduados e depois<br />

selecionados pelos concursos, para definir que processo<br />

seletivo o Brasil efetivamente precisa.<br />

CLAUDIO MENDONÇA<br />

Presidente <strong>da</strong> Fun<strong>da</strong>ção Municipal de Educação de Niterói


ILUSTRAÇÃO E CARICATURA<br />

Fig. 1 – Une vente d´esclaves <strong>à</strong> Rio-de-Janeiro<br />

Do Baú do Cau Barata, o traço satírico francês<br />

JOHN WESLEY FREIRE & HELENICE VALIAS<br />

A<br />

partir <strong>da</strong> Independência, estrangeiros, em especial<br />

franceses, passaram a ter acesso legal ao<br />

Brasil. Aqui vivendo, muitas vezes caricatura-<br />

no Rio de Janeiro e um Retrato do Imperador D. Pedro<br />

II. Biard chegou ao Brasil em 1858, fixando-se no Rio.<br />

Viajou, depois, pelo Amazonas e Pará e retornou para a<br />

vam o exótico que presenciavam e, bem “gaulesamen- Europa em fins de 1859. No Rio de Janeiro, fez desenhos<br />

te”, representando-o com ironia, como fazemos ao con- e procurou, em Paris, artistas para executá-los.<br />

tar pia<strong>da</strong>s sobre estrangeiros. Suas imagens mostravam<br />

Gravou este desenho de Biard o parisien-<br />

a exuberante paisagem, o ridículo <strong>da</strong> mimetização de se Adolphe Gusmand (1821-1905), estabelecido em<br />

usos e costumes europeus e os “cruéis” procedimentos Montmartre, que apresentou diversas de suas gravuras<br />

<strong>da</strong> escravidão, que horrorizaram “civilizados”, como, nos Salões de Paris, entre 1848 e 1880. De sua oficina,<br />

por exemplo, Charles Darwin. Ignoravam muitos deles o muitos trabalhos de Gustave Doré, expostos nos Salões<br />

que seus patrícios faziam nas “colônias de exploração” de Paris, e outros estampados na revista Monde Illustré.<br />

pelo mundo. Se soubessem talvez não nos achassem A ilustração retrata cena freqüente <strong>à</strong> época: num<br />

tão desumanos ou tão pouco “cristãos”.<br />

leilão, velhos “cartolas” bem trajados escolhem escravos,<br />

Pesquisador de nossa história, Carlos Eduardo criança assusta<strong>da</strong> se agarra <strong>à</strong> saia <strong>da</strong> mãe, que tem os<br />

Barata a tem relatado iconograficamente, fruto de “ga- dentes examinados por possível comprador, como se faz<br />

rimpagens” aqui e além-mar. Com<br />

com animais. No ambiente vislum-<br />

imagens e texto, prepara e publica<br />

bram-se móveis, instrumentos mu-<br />

na internet apresentações, audiovisicais<br />

e outros possíveis compradosuais<br />

ou slide-shows como se fala<br />

res de escravos.<br />

em informatês, estranha língua que<br />

Cau considera Biard “artista<br />

quer deletar o português…<br />

com tino caricaturista, retratando<br />

A seguir, algumas pérolas do<br />

satiricamente tipos e costumes ca-<br />

acervo de Cau Barata, conosco comriocas.<br />

O movimento, o relaxamento,<br />

partilha<strong>da</strong>s.<br />

quem sabe até o ‘jeitinho brasileiro’,<br />

Desenho de François-Auguste<br />

jogando conversa fora, enquanto o<br />

Biard, fig.1, (também autor de outros<br />

tempo passa, como em muitas <strong>da</strong>s<br />

quadros), pintor e desenhista (1798-<br />

prosas do nosso interior.”<br />

1882) nascido em Lion e falecido em<br />

Na figura 2, funcionário en-<br />

Fontainebleau. Participou de diversos<br />

trega Uma chave do Palácio (Impe-<br />

Salões de Belas-Artes, entre 1824 e<br />

rial) do Rio de Janeiro (a uma au-<br />

1868. No salão de 1861, apresentou<br />

tori<strong>da</strong>de?). É assinado por Biard e<br />

este desenho Uma ven<strong>da</strong> de escravos Fig. 2 – Une clé du palais de Rio-de-Janeiro<br />

Edouard Riou (1833-1900). Este,<br />

53


nascido em Saint-Servan (Illeet-Vilaine),<br />

participou de Salões<br />

de Belas-Artes em Paris, e no de<br />

1869 apresentou nove desenhos<br />

intitulados Vues de l´Amerique du<br />

Sud. Deixou milhares de desenhos<br />

admiráveis, ilustrando livros de escritores<br />

como Walter Scott, Alexandre<br />

Dumas e Jules Verne. A gravura<br />

é do parisiense Félix-Jean Gauchard<br />

(1825-72), que participou de Salões<br />

de Artes em Paris, entre 1851-72 e<br />

gravou alguns desenhos de Doré.<br />

54<br />

Fig. 3 – Les sapeurs de la garde<br />

nationale de Rio-de-Janeiro<br />

GRAVURA<br />

Para fazer cópias de textos<br />

e imagens, até o séc. XV d.C., produziam-se<br />

cópias a mão feitas por<br />

copistas, processo de resultados<br />

imprecisos, ou entalhava-se o que<br />

se queria reproduzir na madeira<br />

– xilogravura, pedras – litogravura,<br />

ou metal – calcogravura.<br />

A gravura é uma espécie<br />

de “carimbo” sobre o qual se distribui<br />

tinta; em cima dele colocase<br />

folha de papel, que, prensa<strong>da</strong>,<br />

transfere para ela a imagem. Daí<br />

a noção de imprimir. A gravura é<br />

arte cultiva<strong>da</strong> até hoje.<br />

Com a imprensa de tipos<br />

móveis de Gutenberg, não se<br />

entalhavam palavras e imagens,<br />

elas eram compostas com peças<br />

contendo, ca<strong>da</strong> uma, uma letra<br />

–, o processo tipográfico. As imagens<br />

continuaram a ser grava<strong>da</strong>s,<br />

criando os clichês e anexandolhes<br />

textos.<br />

Esta é a razão de se verem<br />

em desenhos e pinturas mais antigas<br />

os nomes do desenhista e do<br />

gravador, como seus criadores.<br />

ILUSTRAÇÃO E CARICATURA<br />

Esta curiosa caricatura de<br />

Riou e Biard, fig. 3, retrata os bombeiros<br />

(negros) em uniformes <strong>da</strong><br />

Guar<strong>da</strong> Nacional do Rio de Janeiro,<br />

portando parte de seus instrumentos<br />

de trabalho. Gravura de J. Facnion,<br />

sobre o qual não há notícias.<br />

Outro interessante desenho<br />

assinado por Riou e Biard, fig. 4, é<br />

esta cena com três “negros gaiatos”,<br />

conversando em rua do Rio de Janeiro.<br />

Nota-se que estão descalços,<br />

o que demonstra serem escravos (só<br />

homens livres podiam an<strong>da</strong>r calçados),<br />

com chapéus, fumando cigarros<br />

de palha e carregando guar<strong>da</strong>chuvas<br />

ou guar<strong>da</strong>-sóis.<br />

Gravado por um certo Lanier.<br />

Fig. 4 – Nègres gandins, <strong>à</strong> Rio-de-Janeiro<br />

A gravura assina<strong>da</strong> pelo parisiense<br />

Charles Maurand, fig. 5, nascido<br />

em 1824, e estabelecido na rua de<br />

Val-de-Grâce, 11, retrata uma <strong>da</strong>ma<br />

brasileira acompanha<strong>da</strong> de um menino<br />

(talvez filho) e seus serviçais,<br />

passeando por uma rua do Rio de<br />

Fig. 5 – Dames brésiliennes <strong>à</strong> Rio-de-Janeiro<br />

Janeiro, 1858. Destaque para o volume<br />

do vestuário, incompatível com o<br />

clima local e o calçamento <strong>da</strong>s ruas,<br />

embora compatível … com a <strong>mo<strong>da</strong></strong><br />

importa<strong>da</strong> <strong>da</strong> Europa.<br />

Maurand participou do Salão<br />

de Belas-Artes de 1881, em Paris.<br />

Fig. 6 – Vêtu de blanc<br />

A gravura é também assina<strong>da</strong><br />

por Gauchard, fig. 6. Pela expressão<br />

dos três negros, o quarto deles (de<br />

costas) estaria sendo satirizado por<br />

se vestir “como branco”, inclusive<br />

usando botas, o que indicaria ser livre<br />

ou estar indevi<strong>da</strong>mente calçado.<br />

Eis pequena seleta do rico<br />

“baú de imagens” que Cau Barata<br />

disponibiliza gratuitamente em<br />

suas muitas apresentações audiovisuais<br />

via internet. Focalizamos<br />

apenas algumas imagens de cariocas<br />

do séc. XIX, vistos pelo olhar<br />

malicioso e crítico de franceses que<br />

por aqui estiveram.<br />

Baú do Cau Barata:<br />

http://www.sport.ifcs.ufrj.br/docs/fotos.html<br />

JOHN WESLEY FREIRE &<br />

HELENICE VALIAS<br />

<strong>Professor</strong>es<br />

Editores <strong>da</strong> Educação em linha


A Library of Congress<br />

Office tem interesse<br />

em receber um exemplar<br />

dos números publicados<br />

<strong>da</strong> revista Educação em<br />

linha para serem incorporados<br />

ao nosso acervo.<br />

HANNE KRISTOFFERSEN,<br />

bibliotecária<br />

O material que vocês têm<br />

publicado é “coisa de cinema”,<br />

lindo e rico. Gostaria<br />

muito de receber os exemplares,<br />

se for possível, pois<br />

em 2010 vamos realizar a<br />

10.ª edição <strong>da</strong> nossa Feira<br />

de Livros e o país homenageado<br />

será a Espanha.<br />

MARCOS BARROZO<br />

Ribeirão Preto/SP<br />

Parabéns pela alta quali<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong> revista.<br />

CARLOS NEJAR<br />

Nossa, vocês arrasaram! A revista<br />

ficou primorosíssima. Irretocável.<br />

Parabéns uma vez mais.<br />

HELENA FERREIRA<br />

Um feliz lançamento! Pena que<br />

não estarei presente. Cumprimentem<br />

em meu nome ao Presidente Sandroni<br />

e <strong>à</strong> Secretaria Tereza Porto, uma mulher<br />

competente e gentil. (...) Já folheei<br />

os exemplares que me deram na ABL.<br />

Achei-os de grande quali<strong>da</strong>de. Acima<br />

do que eu poderia esperar. Meus parabéns.<br />

Vale guar<strong>da</strong>r estas revistas como<br />

preciosa referência.<br />

NÉLIDA PIÑON<br />

Ficou tudo ótimo e bem paginado.<br />

Grato aos amigos.<br />

ARNALDO NISKIER<br />

Muito obrigado pelas revistas, e<br />

meus sinceros parabéns. Está de alta<br />

quali<strong>da</strong>de gráfica e editorialmente<br />

muito bem urdi<strong>da</strong> e sensível.<br />

MARCO LUCCHESI<br />

O tempo na longa espera pelo<br />

reconhecimento hoje dá frutos. Que<br />

alegria ver que todo o trabalho valeu,<br />

pelo simples afeto de levar cultura <strong>à</strong>s<br />

pessoas.<br />

OSCAR ESPINOLA<br />

Para mim tem sido um prazer<br />

tratar com vocês, e, agora, receber o<br />

número <strong>da</strong> revista dedicado <strong>à</strong> Espanha<br />

representa uma alegria compartilha<strong>da</strong>.<br />

Acho que ficou ótimo...<br />

LUISA TRIAS FOLCH – Grana<strong>da</strong>/Espanha<br />

Estou muito feliz com a notícia<br />

do lançamento. Vocês merecem.<br />

FALA, LEITOR<br />

Nativi<strong>da</strong>de (detalhe), 1470-75. Piero della Francesca. National<br />

Gallery, Londres<br />

Parabéns mesmo! A edição está<br />

lin<strong>da</strong>!<br />

FELIPE FERREIRA<br />

Recebi uns exemplares <strong>da</strong> revista<br />

e fiquei encantadíssima quando<br />

as folhei...Parabéns, parabéns, parabéns...<br />

Será possível ain<strong>da</strong> conseguir<br />

2 exemplares <strong>da</strong> n.º 9, para eu entregar<br />

um conjunto ao nosso IHGB?<br />

ESTHER CALDAS BERTOLETTI<br />

Impedido de ir ao lançamento,<br />

espero que tenha sido um encontro<br />

brilhante, <strong>à</strong> altura do belo trabalho<br />

de vocês.<br />

NIREU CAVALCANTI<br />

Obriga<strong>da</strong> por ter me enviado<br />

este número. Por favor envie sempre<br />

que sair um novo, pois adoro ler e<br />

divulgar entre os professores. Além<br />

<strong>da</strong> excelente quali<strong>da</strong>de dos textos, a<br />

programação visual é maravilhosa!<br />

SUELY AVELLAR – Projeto Portinari<br />

Que notícia boa saber que a<br />

revista foi impressa! Parabéns e<br />

obriga<strong>da</strong>! Afinal, somos todos beneficiários<br />

de sua luta e de seu idealismo.<br />

AIDA HANANIA – USP<br />

Parabéns pela revista, que está<br />

lin<strong>da</strong>. Muito gratos pelo texto sobre o<br />

Reynaldo. Desejamos que a festa na<br />

ABL tenha sido digna de vocês e de<br />

seu trabalho.<br />

MARIA JOSÉ E REYNALDO ALVAREZ<br />

Fiquei muito satisfeito em receber<br />

esta edição <strong>da</strong> revista. É importante<br />

preservar esta ação educacional.<br />

Desejo-lhes sucessos renovados e<br />

contínuos.<br />

ABRAHAM ZAKON<br />

Uma golea<strong>da</strong> espanhola!<br />

Parabéns<br />

CARLOS LIMA<br />

Aproveito para<br />

reiterar minhas congratulações<br />

pelo maravilhoso<br />

trabalho em<br />

Educação em Linha.<br />

JEAN LAUAND – USP<br />

Ca<strong>da</strong> número<br />

<strong>da</strong> Educação em Linha<br />

é uma agradável<br />

surpresa, por seus<br />

maravilhosos artigos<br />

e ilustrações. A ideia<br />

de números temáticos<br />

foi excelente, e<br />

depois de passearmos<br />

por várias culturas,<br />

chegamos agora<br />

<strong>à</strong> “caliente” Espanha<br />

(...). Este número traz, também, mereci<strong>da</strong><br />

homenagem ao Acadêmico<br />

Antonio Olinto, com quem tivemos<br />

enorme prazer de conviver e aprendemos<br />

muito. Vou enviar a revista<br />

aos meus contatos do mailing e tenho<br />

a certeza de que será recebi<strong>da</strong><br />

com auspiciosa alegria por todos.<br />

ANNA MARIA DE ANDRADE RODRIGUES<br />

Sem dúvi<strong>da</strong> o trabalho de vocês é<br />

bem bacana. Espero que agora consigamos<br />

ajudá-los a desenvolvê-lo.<br />

DELANIA CAVALCANTE<br />

Secretaria de Estado de Educação/RJ<br />

Fiquei muito feliz com essa<br />

conquista para nós, profissionais<br />

<strong>da</strong> educação, e para nossos alunos.<br />

Adorei !!<br />

GELMANY MELLO<br />

Parabéns a todos <strong>da</strong> revista e<br />

espero que o lançamento seja um sucesso!<br />

Já vi o que me enviaram e achei<br />

muito interessante, bonito e de conteúdo<br />

bastante cui<strong>da</strong>doso.<br />

MARIANA MARTINS<br />

Vocês encaram os desafios corajosamente<br />

e veem o mundo como um<br />

horizonte que se abre para o sucesso,<br />

necessitando ser conquistado para<br />

tornar os nossos sonhos possíveis.<br />

Otimistas que são, lançam mais luz<br />

sobre a reali<strong>da</strong>de e confirmam que<br />

não basta o “saber” (conhecimento<br />

acumulado), e não é suficiente o “saber<br />

fazer” (habili<strong>da</strong>de de aplicar esse<br />

conhecimento). É preciso, sobretudo,<br />

querer fazer (que é uma atitude,<br />

uma questão de caráter, uma questão<br />

de hábito, de compromisso com o<br />

Outro). Continuem assim, tornando<br />

o mundo mais belo. Nós professores,<br />

educadores e ci<strong>da</strong>dãos agradecemos.<br />

ALBENIDES RAMOS<br />

55


www.educacao.rj.gov.br/educacaoemlinha

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