Revista Volume L 19 01 2008.p65 - Academia Mineira de Letras
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REVISTA DA<br />
ACADEMIA<br />
MINEIRA<br />
DE LETRAS<br />
ANO 85º - VOLUME L - OUTUBRO, NOVEMBRO, DEZEMBRO - 2008
ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
Fundada em 25 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> <strong>19</strong>09<br />
Rua da Bahia, 1466 – Telefax (OXX31) 3222-5764<br />
CEP 3<strong>01</strong>60-<strong>01</strong>1 - Belo Horizonte-MG<br />
www.aca<strong>de</strong>miamineira<strong>de</strong>letras.org.br<br />
atendimento@aca<strong>de</strong>miamineira<strong>de</strong>letras.org.br<br />
Presi<strong>de</strong>nte: Murilo Badaró<br />
1° Vice-presi<strong>de</strong>nte: Miguel Augusto<br />
Gonçalves <strong>de</strong> Souza<br />
2° Vice-presi<strong>de</strong>nte: Orlando Vaz<br />
Secretário Honorário: Oiliam José<br />
DIRETORIA AML<br />
Secretário-Geral: Aloísio Garcia<br />
1° Secretário: Fábio Doyle<br />
2° Secretário: Elizabeth Rennó<br />
Tesoureiro: Márcio Garcia Vilela<br />
1° Tesoureiro: José Henrique Santos<br />
2° Tesoureiro: Bonifácio Andrada<br />
REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
Publicação trimestral<br />
Diretor: Murilo Badaró<br />
Conselho Editorial: Aluísio Pimenta, Antenor Pimenta e Eduardo Almeida Reis.<br />
Revisão: Pedro Sérgio Lozar<br />
Digitação: Marília Moura Guilherme<br />
Capa: Liu Lopes<br />
Diagramação e impressão: O Lutador<br />
Assessoria <strong>de</strong> Divulgação: Petrônio Souza Gonçalves<br />
Ficha Catalográfica<br />
<strong>Revista</strong> da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong> – Ano 85° – volume XLVII<br />
<strong>Revista</strong> da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>/<strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong> / V. XLVIII/ 2008<br />
Belo Horizonte: <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, 2008.<br />
outubro/novembro/<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2008.<br />
Fundada em <strong>19</strong>22<br />
l. Literatura – Periódico. 2. Obras Literárias I. <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong><br />
ISSN <strong>19</strong>82-6680
ÍNDICE<br />
Apresentação ....................................................................................................... 7<br />
A CONDIÇÃO FEMININA DE CAPITU<br />
Fábio Lucas .............................................................................................. 9<br />
MACHADO E A ALMA EXTERIOR<br />
Maria Luísa Ramos ................................................................................ 23<br />
MACHADO DE ASSIS: ATAQUE E DEFESA<br />
Letícia Malard ........................................................................................ 31<br />
MACHADO DE ASSIS E O SEU IDEÁRIO DE LÍNGUA<br />
PORTUGUESA<br />
Evanildo Bechara ................................................................................... 45<br />
DOM CASMURRO: UMA TRAGÉDIA VIRTUAL<br />
Elizabeth Rennó...................................................................................... 59<br />
O CIÚME EM SHAKESPEARE E EM MACHADO DE ASSIS<br />
Antônio Olinto ........................................................................................ 69<br />
A CRÔNICA, OS FOLHETINS E MACHADO<br />
Carmen Schnei<strong>de</strong>r Guimarães ............................................................... 85<br />
MANHAS E ARTIMANHAS DO NARRADOR IRÔNICO<br />
Onofre <strong>de</strong> Freitas ................................................................................... 99<br />
EU TE PERDÔO, CAPITU<br />
José Renato <strong>de</strong> Castro César ............................................................... 107
A CIÊNCIA NA OBRA DE MACHADO DE ASSIS<br />
Thelma Lopes Carlos Gardair e Virgínia Torres Schall .................... 125<br />
MACHADO DE ASSIS: O CRÍTICO LITERÁRIO<br />
Sergio Amaral Silva ............................................................................. 137<br />
MACHADO DE ASSIS, CRONISTA DA GUERRA DO PARAGUAI<br />
Maria <strong>de</strong> Lour<strong>de</strong>s Costa Dias Reis ..................................................... 149<br />
SAGARANA: ANÚNCIO E AMOSTRA DE UMA<br />
REVOLUÇÃO LITERÁRIA<br />
Ângela Vaz Leão .................................................................................. 155<br />
FÉ PROFESSADA QUE ILUMINA RAÍZES E ALCANÇA A VIDA<br />
Murilo Badaró ...................................................................................... 169<br />
O ABORTO<br />
Almir <strong>de</strong> Oliveira.................................................................................. 181<br />
RÚSSIA, EX-URSS, E EUA: NA ROTA DO IMPREVISÍVEL<br />
Fábio Doyle .......................................................................................... 185<br />
OS “PASSEIOS” DE LÚCIA MACHADO DE ALMEIDA<br />
Angelo Oswaldo <strong>de</strong> Araújo Santos ...................................................... <strong>19</strong>1<br />
O MEU NECROLÓGIO ADIADO<br />
Eduardo Frieiro ................................................................................... <strong>19</strong>5<br />
ESPIRITUALIDADE APOSTÓLICA DO<br />
PADRE ANTÔNIO VIEIRA<br />
José Carlos Brandi Aleixo ................................................................... 2<strong>01</strong><br />
AS OITO RENAS<br />
Danilo Gomes ....................................................................................... 207
LITERATURA E MELANCOLIA<br />
Côn. José Geraldo Vidigal <strong>de</strong> Carvalho ............................................. 211<br />
DECLARAÇÃO DE AMOR A BELO HORIZONTE<br />
Abílio Barreto ....................................................................................... 2<strong>19</strong><br />
ÊXITO OU FRACASSO DE UM POVO RESIDE NA EDUCAÇÃO<br />
Beatriz Teixeira <strong>de</strong> Salles .................................................................... 225<br />
AQUELE TEATRO...<br />
Pedro Paulo Cava ................................................................................ 229<br />
SOBRE UM CONCERTO DA ORQUESTRA FILARMÔNICA<br />
DE MINAS GERAIS: SHAKESPEARE E A MÚSICA<br />
Paulo Sérgio Malheiros dos Santos ..................................................... 235<br />
MACHADO DE ASSIS NO CINEMA<br />
Paulo Augusto Gomes .......................................................................... 245<br />
JARBAS JUAREZ<br />
Carlos Perktold .................................................................................... 253<br />
TEATRO EM FOCO<br />
Sábato Magaldi .................................................................................... 259<br />
A MORTE DE ALPHONSUS DE GUIMARAENS FILHO E O<br />
NOSSO ANALFABETISMO LITERÁRIO<br />
João José <strong>de</strong> Melo Franco ................................................................... 265<br />
JOÃO DE MINAS EM BELO HORIZONTE<br />
Leandro Antônio <strong>de</strong> Almeida ............................................................... 271<br />
OS SEVERINOS: DO PARAÍSO RURAL À TRAGÉDIA URBANA<br />
Paulo Fernando Moreira ..................................................................... 279
ANÁLISE DE COMPORTAMENTO EM TUTAMÉIA<br />
Petrônio Braz ....................................................................................... 285<br />
O CENTENÁRIO DE EDUARDO CANABRAVA BARREIROS<br />
Newton Vieira ....................................................................................... 291<br />
O conto mineiro<br />
O PROFESSOR DE DANÇA<br />
Murilo Badaró ...................................................................................... 295<br />
O POETA ESCONDE A POESIA SOB A PÁLPEBRA<br />
Alcione Araújo...................................................................................... 305<br />
A PEDAGOGIA LOGOSÓFICA E A LOGOSOFIA<br />
Vanessa Siuves Murta e Leonicy Viana ............................................... 309<br />
À PALMA DA MÃO DE DEUS<br />
Petrônio <strong>de</strong> Souza Gonçalves .............................................................. 313<br />
MACHADO<br />
Yeda Prates Bernis ............................................................................... 315<br />
NATAL<br />
ABISMO<br />
ANOTAÇÕES DE VIAGEM<br />
Fernando Moreira Salles ..................................................................... 317<br />
MAGMA<br />
Ozório Couto ........................................................................................ 3<strong>19</strong><br />
NATAL EM PEDRA MENINA<br />
José Virgílio Gonçalves ....................................................................... 321
APRESENTAÇÃO<br />
Com esta última edição <strong>de</strong> 2008 da <strong>Revista</strong> da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong><br />
<strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, <strong>de</strong>dicada a Machado <strong>de</strong> Assis, contendo textos completos das<br />
palestras e conferências proferidas durante a semana realizada em<br />
comemoração do centenário do imortal escritor brasileiro, encerramos<br />
mais um ano <strong>de</strong> intenso e profícuo trabalho.<br />
Tivemos a felicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> contar com a compreensão e boa vonta<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> empresas e empresários para sua publicação, a participação <strong>de</strong><br />
intelectuais mineiros e membros da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> Brasileira <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, a<br />
quem dirigimos nosso penhorado agra<strong>de</strong>cimento.<br />
A <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> foi contemplada com o patrocínio do empresário<br />
Vittorio Medioli e sua esposa Laura Medioli, encampando os custos<br />
totais do projeto <strong>de</strong> reforma do Palacete Borges da Costa, se<strong>de</strong> da<br />
entida<strong>de</strong>. A eles o tributo <strong>de</strong> nossa imperecível gratidão.<br />
Merece <strong>de</strong>staque especial a preciosa colaboração do vice-governador<br />
do Estado, professor Antonio Augusto Junho Anastasia, sempre atento a<br />
tudo quanto diz respeito à vida e às ativida<strong>de</strong>s da instituição.<br />
Para o próximo ano comemoraremos o primeiro centenário <strong>de</strong><br />
nossa gloriosa <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong>. Iremos publicar, além das edições trimestrais,<br />
uma edição especial, para o que, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> já, solicitamos a colaboração dos<br />
intelectuais mineiros e brasileiros.<br />
Temos fortes esperanças <strong>de</strong> que, a exemplo do ano ora findo, não<br />
nos faltarão a solidarieda<strong>de</strong> e a ajuda <strong>de</strong> quantos conhecem os relevantes<br />
serviços que a <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong> presta à cultura.
8 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
A CONDIÇÃO FEMININA DE CAPITU<br />
Fábio Lucas*<br />
Dom Casmurro <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis nos convida a examinar, no<br />
idílio narrado por Bentinho, titular da fala, a situação da mulher na<br />
socieda<strong>de</strong> imperial, governada pela aristocracia escravocrata. E permitenos<br />
analisar o drama do insucesso amoroso, articulado no rumo oposto às<br />
expectativas do episódio, <strong>de</strong> início marcado por sinais eloqüentes <strong>de</strong><br />
êxito. Quais os fundamentos psicossociais do drama? É o que nos cumpre<br />
investigar.<br />
A estratificação social que ocorre no mo<strong>de</strong>lo brasileiro do séc. XIX<br />
manifesta-se imediatamente à primeira observação. Sabe-se que quanto<br />
mais a economia <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> da renda da terra, mais<br />
rígidos se apresentam os quadros sociais. Em conseqüência, a mobilida<strong>de</strong><br />
social não é fluida, é antes viscosa. Na tentativa <strong>de</strong> se passar <strong>de</strong> um<br />
estrato para outro, numa movimentação ascen<strong>de</strong>nte, surgem problemas<br />
para o preten<strong>de</strong>nte, que acabam afetando-o em processos <strong>de</strong> rejeição ou<br />
con<strong>de</strong>nação. A propensão natural para o alto sofre perturbações.<br />
No domínio fundiário, como sabemos, a hierarquia social se<br />
assemelha a uma escada <strong>de</strong> dois <strong>de</strong>graus. A expectativa individual é a da<br />
que se permanecerá, para sempre, ou “dono da terra” ou “servo da terra”.<br />
Não se verifica a previsão <strong>de</strong> que alguém mu<strong>de</strong> <strong>de</strong> estrato: que um<br />
“servo” venha a tornar-se “senhor” ou vice-versa.<br />
* A primeira versão <strong>de</strong>ste trabalho saiu na revista Lúmen, no. 1, da Ed. Scortecci, São Paulo,<br />
em janeiro <strong>de</strong> <strong>19</strong>89.<br />
** Palestra proferida na <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, em 20 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 2008, <strong>de</strong>ntro da<br />
Semana Cultural Machado <strong>de</strong> Assis, comemorativa do seu centenário <strong>de</strong> falecimento.
10 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
A mulher, na socieda<strong>de</strong> patriarcal do Segundo Império <strong>de</strong>tém<br />
horizontes limitados. No caso <strong>de</strong> Capitu, um dos primeiros problemas <strong>de</strong><br />
ascensão vem a ser o estado <strong>de</strong> inferiorida<strong>de</strong> econômica em que ela se<br />
encontrava. Ao tentar transferir-se do nível <strong>de</strong> filha <strong>de</strong> funcionário<br />
subalterno para o círculo <strong>de</strong> Bentinho, cujo status é <strong>de</strong>rivado da renda da<br />
terra, con<strong>de</strong>na-se a um risco inevitável. Teria <strong>de</strong> pagar por sua intrusão<br />
num espaço social pouco receptivo.<br />
Boa metáfora do pecado <strong>de</strong> in<strong>de</strong>vido <strong>de</strong>slocamento <strong>de</strong> posição<br />
consiste no intento frustrado <strong>de</strong> Pádua, pai <strong>de</strong> Capitu, <strong>de</strong> carregar uma<br />
das varas do pálio da procissão do Santíssimo Sacramento (cap. XXX).<br />
Havendo uma vara apenas para aquela distinção, meramente formal,<br />
Pádua teve <strong>de</strong> recuar <strong>de</strong> sua pretensão, <strong>de</strong>vido à presença <strong>de</strong> Bentinho e<br />
do agregado José Dias. “A distinção especial do pálio vinha <strong>de</strong> cobrir o<br />
vigário e o sacramento; para tocha qualquer pessoa servia.” No<br />
comentário do narrador, “Pádua roía a tocha amargamente. É uma<br />
metáfora, não acho outra forma mais viva <strong>de</strong> dizer a dor e a humilhação<br />
do meu vizinho.”<br />
O pai <strong>de</strong> Bentinho, Pedro <strong>de</strong> Albuquerque Santiago, era proprietário<br />
<strong>de</strong> uma fazenda em Itaguaí (cap. V) e precisou mudar-se para o Rio<br />
<strong>de</strong> Janeiro, eleito <strong>de</strong>putado. Com a sua morte, a viúva, D. Maria da Glória<br />
Fernan<strong>de</strong>s Santiago, “ven<strong>de</strong>u a fazendola e os escravos, comprou alguns<br />
que pôs ao ganho ou alugou, uma dúzia <strong>de</strong> prédios, certo número <strong>de</strong><br />
apólices e <strong>de</strong>ixou-se estar na casa <strong>de</strong> Matacavalos.” (cap. VII).<br />
Vê-se, portanto, que a riqueza da família <strong>de</strong> Bentinho provinha da<br />
exploração <strong>de</strong> bens imobiliários. E a quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sses bens e sua renda<br />
são extraídos matreiramente do narrador através da curiosida<strong>de</strong> interesseira<br />
<strong>de</strong> Escobar (Ezequiel <strong>de</strong> Souza Escobar), no cap. XCIV. Este se<br />
tornará no suposto comborço <strong>de</strong> Bentinho nos benefícios dos encantos <strong>de</strong><br />
Capitu.<br />
Vocação <strong>de</strong> comerciante e ágil fazedor <strong>de</strong> contas, a pretexto <strong>de</strong><br />
exibir suas qualida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> calculador, Escobar pe<strong>de</strong> a Bentinho que lhe<br />
dite o número <strong>de</strong> casas e respectivos aluguéis, a fim <strong>de</strong> fazer a soma <strong>de</strong><br />
cabeça. Nove casas e aluguéis que variavam <strong>de</strong> 70$000 a 180$000, dando<br />
um total <strong>de</strong> 1:070$000.
A condição feminina <strong>de</strong> Capitu ________________________________________________________ Fábio Lucas 11<br />
O ócio da família patriarcal era preenchido por cerimoniais burocráticos<br />
e religiosos, além <strong>de</strong> complicada etiqueta das classes abastadas,<br />
expressa em convites para jantares, festas, visitas, teatros, etc. Deputados,<br />
padres e advogados se encarregavam, por sua vez, <strong>de</strong> ocupar o vazio<br />
daquelas vidas com espetáculos oratórios, mediante os quais eram<br />
excitadas as paixões políticas, religiosas ou <strong>de</strong> justiça.<br />
O discurso narrativo do romance reproduz o absolutismo do po<strong>de</strong>r:<br />
o titular exclusivo da trama e dos comentários é o narrador <strong>de</strong> primeira<br />
pessoa. Assim, toda informação transmitida ao leitor provém <strong>de</strong> uma só<br />
fonte, permeada, é claro, das contradições inerentes à condição humana e<br />
à organização social.<br />
Diante <strong>de</strong>sse quadro, a Capitu que nos é apresentada encerra em si<br />
todas as virtu<strong>de</strong>s da mulher apaixonada, como também todas as astúcias e<br />
traições <strong>de</strong> que é capaz uma pessoa ambiciosa, empenhada em subir,<br />
numa situação adversa.<br />
A realização do projeto idílico (a implantação do conteúdo poético<br />
no tecido prosaico da socieda<strong>de</strong> burguesa), que constitui a concretização<br />
da plenitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> cada amante, frustra-se <strong>de</strong> ambos os lados.<br />
A tarefa mais imediata <strong>de</strong> Bentinho, interessado nas prendas da<br />
namorada, seria atrair e conquistar Capitu para lograr seu objetivo. O<br />
mo<strong>de</strong>lo senhorial e possessivo prescin<strong>de</strong> <strong>de</strong> maiores sutilezas. É o que<br />
mostrou Graciliano Ramos num dos nossos gran<strong>de</strong>s romances do séc.<br />
XX, São Bernardo, indiretamente influenciado por Dom Casmurro, ao<br />
pintar a ação direta <strong>de</strong> Paulo Honório na captura <strong>de</strong> Madalena.<br />
Aliás, Machado <strong>de</strong> Assis, no conto “Viagem à roda <strong>de</strong> mim<br />
mesmo” oferece, a respeito da atitu<strong>de</strong> masculina, este primor <strong>de</strong> resumo,<br />
na voz da personagem narradora: “Sobre o jantar, peguei casualmente nos<br />
Três Mosqueteiros, li cinco ou seis capítulos que me fizeram bem, e me<br />
abarrotaram <strong>de</strong> idéias petulantes, como outras tantas pedras preciosas em<br />
torno <strong>de</strong>ste medalhão central: as mulheres pertencem ao mais atrevido.”<br />
No conto, faltou atrevimento e a perda foi fatal.<br />
Dom Casmurro narra a sua <strong>de</strong>sventura ao se julgar traído, apresentando,<br />
para documentar sua certeza, provas circunstanciais que repousam<br />
distantes da certeza apodítica que o seu espírito ciumento prefigura e vai
12 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
construindo como um patíbulo. Na verda<strong>de</strong>, a traição <strong>de</strong> Capitu funciona<br />
como um álibi da <strong>de</strong>ficiência humana <strong>de</strong> Bentinho, um inocente que se<br />
transforma num <strong>de</strong>sconfiado amargo, num Dom Casmurro, afinal. As<br />
provas que amealha têm o sinal da ambigüida<strong>de</strong>, tanto po<strong>de</strong>m apoiar uma<br />
hipótese quanto outra, contrária.<br />
A evolução sentimental da personagem obe<strong>de</strong>ce a um <strong>de</strong>terminismo<br />
<strong>de</strong> ampla significação no quadro social do Império. Antes <strong>de</strong><br />
nascer, Bentinho já estava con<strong>de</strong>nado a servir à Igreja, em razão <strong>de</strong> uma<br />
promessa da mãe. Escapando da con<strong>de</strong>nação através da estratégia <strong>de</strong> esta<br />
“pagar” a promessa mediante o compromisso <strong>de</strong> estipendiar a formação<br />
<strong>de</strong> outro sacerdote para a Igreja, Bentinho escraviza-se da atração física e<br />
dos escantos espirituais <strong>de</strong> Capitu.<br />
A sedução do <strong>de</strong>sejo conduz o protagonista às ações <strong>de</strong>stinadas a<br />
buscar sua satisfação. Mas a consciência intranqüila e contraditória <strong>de</strong><br />
Bentinho o impedia <strong>de</strong> lograr a plenitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> seu projeto erótico e <strong>de</strong><br />
alcançar as regalias do amor.<br />
A<strong>de</strong>mais, o enredo preparado para narrar o seu insucesso faz<br />
convergir para a mesma pauta quer a força <strong>de</strong> sua insatisfação interior (o<br />
seu <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> Capitu era exclusivista, como toda posse transformada em<br />
proprieda<strong>de</strong>, a ponto <strong>de</strong> as relações entre ambos se tornarem frias a partir<br />
do nascimento do filho), quer o po<strong>de</strong>r das convenções sociais (na<br />
socieda<strong>de</strong> patriarcal, o arquétipo da conduta masculina exige provas<br />
constantes <strong>de</strong> dominação, que a sua <strong>de</strong>ficiência e esterilida<strong>de</strong> não lhe<br />
permitiam manter), quer, ainda, o concílio do acaso, que lhe retira metodicamente<br />
os suportes afetivos, necessários à vida: morrem sucessivamente<br />
Escobar (cap. CXXI), sua mãe (cap. CXLII), José Dias (cap.<br />
CXLIII) e Ezequiel (cap. CXLVI).<br />
Esta é uma fatalida<strong>de</strong> romanesca, que nada tem a ver com as<br />
condições ambientais. Integra a urdidura narrativa, que não prescin<strong>de</strong><br />
das forças <strong>de</strong>sgovernadas do <strong>de</strong>stino para atestar a mortalida<strong>de</strong> do<br />
homem.<br />
Já a plenitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> Capitu é antes <strong>de</strong> tudo entorpecida pelo quadro<br />
social. A manifestação da mulher é dificultada, principalmente para<br />
aquelas <strong>de</strong> maior iniciativa e forte personalida<strong>de</strong>.
A condição feminina <strong>de</strong> Capitu ________________________________________________________ Fábio Lucas 13<br />
A mulher funciona biologicamente como força reprodutora e i<strong>de</strong>ologicamente<br />
como instrumento <strong>de</strong> confirmação do sistema. Ela somente<br />
po<strong>de</strong> estrelar em circunstâncias preestabelecidas, que incluem a sua<br />
exploração. Como ser moral, <strong>de</strong>ve ser virtuosa e casta, <strong>de</strong> acordo com o<br />
mo<strong>de</strong>lo cultural esculpido pela ética religiosa; na condição <strong>de</strong> mãe <strong>de</strong><br />
família, há <strong>de</strong> ser operosa e econômica; como ser social, tem <strong>de</strong> apresentar-se<br />
ricamente ornada e tentadora, para que a ênfase e o privilégio <strong>de</strong><br />
sua posse recaia sobre o marido ou o preten<strong>de</strong>nte que a ostenta.<br />
A plenitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> Capitu, como vimos, é cerceada pelo status. Ela<br />
integra um po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>rivado, o burocrático, que normalmente se organiza<br />
nas cida<strong>de</strong>s para administrar o po<strong>de</strong>r fundiário e escravocrata. Este, sim,<br />
básico e <strong>de</strong>terminante <strong>de</strong> todos os <strong>de</strong>mais, repartidos entre a Coroa, a<br />
Câmara, o po<strong>de</strong>r judiciário, as forças militares e a Igreja.<br />
O projeto <strong>de</strong> Capitu, no sentido <strong>de</strong> ascen<strong>de</strong>r ao po<strong>de</strong>r central pela<br />
via do casamento, é fadado, <strong>de</strong> pronto, ao fracasso.<br />
A or<strong>de</strong>m afetiva provou-se impossível. O fato <strong>de</strong> a narrativa<br />
pertencer à voz <strong>de</strong> Bentinho/Dom Casmurro constitui um dos vários ardis<br />
<strong>de</strong> subtrair a expressão do <strong>de</strong>sejo feminino, <strong>de</strong> que a literatura oci<strong>de</strong>ntal é<br />
constante. Raramente se conseguirá conhecer a voz da consciência da<br />
mulher na ficção, especialmente quando traduza <strong>de</strong>sejos políticos, morais<br />
ou sexuais, senão <strong>de</strong>pois da Segunda Gran<strong>de</strong> Guerra Mundial.<br />
A conquista <strong>de</strong>sta liberda<strong>de</strong> expositiva é lenta e curiosa. Primeiramente,<br />
o retrato e o <strong>de</strong>sejo da mulher surgem através dos olhos masculinos,<br />
ainda assim vencendo restrições do po<strong>de</strong>r dominante.<br />
Flaubert foi <strong>de</strong>nunciado à justiça pela criação <strong>de</strong> Emma Bovary e <strong>de</strong><br />
cenas consi<strong>de</strong>radas imorais, pois, segundo a <strong>de</strong>núncia, pregava o adultério.<br />
Joyce, por sua ousadia <strong>de</strong> enunciar as cenas eróticas e ao criar o<br />
monólogo <strong>de</strong> Molly, em Ulysses, sofreu censura e acusação <strong>de</strong> obscenida<strong>de</strong><br />
na Inglaterra e nos Estados Unidos. D. H. Lawrence teve seus livros<br />
recusados como obscenos, ao narrar os prazeres da Lady Chaterley,<br />
sendo con<strong>de</strong>nado à censura na Inglaterra e nos Estados Unidos, o que<br />
forçou Lady Chaterley’s Lover a circular clan<strong>de</strong>stinamente. E este<br />
somente foi admitido nos Estados Unidos em <strong>19</strong>34, após longa batalha<br />
judicial.
14 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
Que dizer da expressão do <strong>de</strong>sejo da mulher narrado pela mulher?<br />
Isto é conquista mo<strong>de</strong>rna, dos últimos tempos.<br />
O interdito do narrador em Dom Casmurro é bem compreensível. O<br />
que <strong>de</strong>sejava Capitu é transcrito pelo discurso masculino. A sua figura<br />
moral é projetada na moldura do quadro social, diante do qual o “adultério”<br />
pressupõe a infi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> conjugal feminina, e somente a feminina.<br />
É bem verda<strong>de</strong> que a estratégia narrativa <strong>de</strong> Dom Casmurro<br />
prescin<strong>de</strong> da manifestação das intenções secretas ou explicitas <strong>de</strong> Capitu.<br />
Mas o que se discute aqui é a natureza <strong>de</strong>ssa estratégia, ou seja, porque<br />
em nenhum dos autores <strong>de</strong> romances <strong>de</strong> amor o estratagema se altera. É<br />
preciso recorrer ao quadro social para bem enten<strong>de</strong>r o drama <strong>de</strong>scrito<br />
pelos escritores. No caso, <strong>de</strong>senhado à perfeição por Machado <strong>de</strong> Assis.<br />
Há, em Dom Casmurro, trechos ilustrativos da condição da mulher.<br />
Tão evi<strong>de</strong>ntes que prescin<strong>de</strong>m <strong>de</strong> <strong>de</strong>longas analíticas.<br />
Por exemplo, ao apresentar D. Glória, mãe <strong>de</strong> Bentinho, num<br />
retrato nupcial, no cap. VII, o narrador comenta: “O (retrato) <strong>de</strong> minha<br />
mãe, que esten<strong>de</strong> a flor ao marido, parece dizer: ‘Sou toda sua, meu<br />
guapo cavalheiro!’ O <strong>de</strong> meu pai, olhando para a gente, faz este<br />
comentário: ‘Vejam como esta moça me quer...’“O remate revela a<br />
concepção interiorizada, irônica, inconsciente talvez, do narrador: “São<br />
como fotografias instantâneas da felicida<strong>de</strong>.”<br />
Como seria essa “felicida<strong>de</strong>” arquitetada pelo narrador que evoca a<br />
vida durante o Segundo Império, em meados do século XIX?<br />
A volição feminina se exclui do retrato, ao enunciar-se proprieda<strong>de</strong><br />
alheia: “sou toda sua”.<br />
Quanto ao proprietário, não dispõe <strong>de</strong> outro comentário do que<br />
reforçar a exclamação da coisa possuída, exprimindo aos <strong>de</strong>mais –<br />
“vejam!” seu domínio: “vejam como esta moça me quer...”<br />
Na apreensão <strong>de</strong>sse transcrito do discurso <strong>de</strong> Dom Casmurro, o que<br />
se lê, também, é a palavra irônica do autor, Machado <strong>de</strong> Assis, como<br />
observador da situação social e política <strong>de</strong> seu tempo. O que é relato<br />
ingênuo da personagem po<strong>de</strong> ser entendido como irresistível ironia do<br />
escritor. E a ironia é justamente um dos traços do discurso mo<strong>de</strong>rno, fruto<br />
da consciência crítica que se apo<strong>de</strong>rou da intelectualida<strong>de</strong> e se traduziu
A condição feminina <strong>de</strong> Capitu ________________________________________________________ Fábio Lucas 15<br />
na <strong>de</strong>claração do dilaceramento e da fragmentação do ser sob a vigência<br />
das leis utilitárias da burguesia.<br />
Aquela “felicida<strong>de</strong>”, ou seja, a situação i<strong>de</strong>al <strong>de</strong>sejada por uma<br />
pessoa, socialmente enquadrada pela or<strong>de</strong>m em vigor, será novamente<br />
lembrada no clímax da narrativa, quando a dupla, Bentinho e Capitu,<br />
após vencer as dificulda<strong>de</strong>s opostas à sua união, chega afinal ao<br />
casamento.<br />
Uma pausa aqui para a situação englobante do “casamento” nos<br />
romances <strong>de</strong> amor. O casamento vem a ser o rito consagrado pela socieda<strong>de</strong><br />
para autorizar a união sexual das pessoas, com fins reprodutivos.<br />
Geralmente a narrativa trivial se contenta em relatar as diferentes<br />
barreiras que <strong>de</strong>vem ser transpostas pelas personagens para que logrem o<br />
“fim feliz”: o casamento. Chegado a esse termo, pressupõe-se a plenitu<strong>de</strong>:<br />
os protagonistas lograram obter, finalmente, a licença para procriar.<br />
Licença que inclui naturalmente os prazeres da procriação.<br />
Assim sendo, a <strong>de</strong>scrição da plenitu<strong>de</strong> efêmera <strong>de</strong> Dom Casmurro<br />
vai estar no cap. CI, engenhosamente intitulado “No céu”. Sabemos que<br />
este estado i<strong>de</strong>al irá durar poucos dias. Dias imperceptíveis, conforme o<br />
narrador explica ao abrir o cap. CII, “De casada”: “Imagine um relógio<br />
que só tivesse pêndulo, sem mostrador, <strong>de</strong> maneira que não se vissem as<br />
horas escritas. O pêndulo iria <strong>de</strong> um lado para outro, mas nenhum sinal<br />
externo mostraria a marcha do tempo:<br />
A “felicida<strong>de</strong>” dos dois se retrata na primeira epístola <strong>de</strong> S. Pedro:<br />
“As mulheres sejam sujeitas a seus maridos... Não seja o adorno <strong>de</strong>las o<br />
enfeite dos cabelos riçados ou as rendas <strong>de</strong> ouro, mas o homem que está<br />
escondido no coração... Do mesmo modo, vós, maridos, coabitai com<br />
elas, tratando-as com honra, como a vasos mais fracos, e her<strong>de</strong>iras<br />
convosco da graça da vida...”<br />
No mesmo capítulo, ao referir-se o narrador a Capitu, diz que ela,<br />
“que não sabia Escritura nem latim, <strong>de</strong>corou algumas palavras, como<br />
estas, por exemplo: ‘Sentei-me à sombra daquele que tanto havia<br />
<strong>de</strong>sejado.’ “E a “felicida<strong>de</strong>” <strong>de</strong> Bentinho? O cap.C intitula-se significativamente<br />
“Tu serás feliz, Bentinho”. Antece<strong>de</strong>, portanto, o CI, “No céu”.<br />
O narrador se põe <strong>de</strong> volta à casa, portador <strong>de</strong> carta <strong>de</strong> bacharel. Melhor
16 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
conquista não haveria <strong>de</strong> existir naquele cenário. Equivalia a um título <strong>de</strong><br />
nobreza, pois indicava a inclusão do “doutor” entre os poucos habilitados<br />
ao exercício <strong>de</strong> uma profissão dignificante, que conferia projeção social e<br />
po<strong>de</strong>r econômico ao seu titular.<br />
Por isto, Bentinho “... ia pensando na felicida<strong>de</strong> e na glória. Via o<br />
casamento e a carreira ilustre ...” etc.<br />
Casamento e carreira ilustre... eis aí a síntese do padrão pequenoburguês<br />
do sucesso, fontes <strong>de</strong> estabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma situação social<br />
prepon<strong>de</strong>rante.<br />
Na embriaguez daquelas projeções mentais otimistas, em que felicida<strong>de</strong><br />
e glória entreteciam um sonho, Bentinho se <strong>de</strong>ixa embalar pelos<br />
prognósticos triunfais: “Uma fada invisível <strong>de</strong>sceu ali, e me disse em voz<br />
igualmente macia e cálida: Tu serás feliz, Bentinho; tu vais ser feliz.”<br />
E o confi<strong>de</strong>nte José Dias, no seu costumeiro discurso <strong>de</strong> bajulação<br />
e lisonja, reforça a idéia <strong>de</strong> que a felicida<strong>de</strong> não provém somente da<br />
glória, mas “...é também outra coisa...”, acabando por concluir, por linhas<br />
tortas, que essa coisa era o amor <strong>de</strong> Capitu, “menina travessa e já <strong>de</strong><br />
olhos pensativos” e “flor caprichosa <strong>de</strong> um fruto sadio e doce ...”<br />
E, para completar o quadro <strong>de</strong> avaliação da amada <strong>de</strong> Bentinho,<br />
José Dias, portador das noções convencionais que ditam o bom senso,<br />
acrescenta que a filha <strong>de</strong> Pádua “é que distribui o dinheiro, paga as<br />
contas, faz o rol das <strong>de</strong>spesas, cuida <strong>de</strong> tudo, mantimento, roupa, luz.”<br />
Vale dizer: Capitu era dotada das qualida<strong>de</strong>s esperadas para uma boa<br />
dona <strong>de</strong> casa, principalmente como boa gestora da economia do lar.<br />
Realizado o casamento e passada a semana “no céu”, a Capitu<br />
ocorreu voltar do retiro da Tijuca. No comentário <strong>de</strong> Bentinho: “A alegria<br />
com que pôs o seu chapéu <strong>de</strong> casada, e o ar <strong>de</strong> casada com que me <strong>de</strong>u a<br />
mão para entrar e sair do carro, e o braço para andar na rua, tudo me<br />
mostrou que a causa da impaciência <strong>de</strong> Capitu eram os sinais exteriores<br />
do novo estado. Não lhe bastava ser casada entre quatro pare<strong>de</strong>s e<br />
algumas árvores; precisava do resto do mundo também. E quando eu me<br />
vi embaixo, pisando as ruas com ela, parando, olhando, falando, senti a<br />
mesma coisa. Inventava passeios para que me vissem, me confirmassem<br />
e me invejassem.”
A condição feminina <strong>de</strong> Capitu ________________________________________________________ Fábio Lucas 17<br />
As mulheres, genericamente consi<strong>de</strong>radas, costumam acudir às<br />
personagens masculinas <strong>de</strong> Machado na sua configuração convencional<br />
<strong>de</strong> frivolida<strong>de</strong>, astúcia e dissimulação.<br />
Quando Bentinho recebe a visita do filho, primeiramente dá com<br />
Ezequiel a mirar o busto <strong>de</strong> Massinissa. A referência é carregada <strong>de</strong><br />
significação, já que Massinissa, rei <strong>de</strong> Numídia, em dado momento da<br />
vida, para compor-se melhor na política, mandou à esposa uma taça <strong>de</strong><br />
veneno. Massinissa fôra um fervoroso aliado dos romanos durante a<br />
Segunda Guerra Púnica, tendo sido, entretanto, originariamente aliado <strong>de</strong><br />
Cartago. Depois <strong>de</strong> submetido o rei Syphax, encontrou a mulher <strong>de</strong>ste,<br />
Sofonisba, que lhe pediu proteção, pois, sendo filha <strong>de</strong> Asdrúbal, temia<br />
vingança dos romanos. Massinissa a <strong>de</strong>sposou. Cipião, todavia, convenceu-o<br />
a matar a mulher, pois temia a influência <strong>de</strong>sta sobre o novo<br />
marido. Sophosniba recebeu a taça <strong>de</strong> veneno enviada por Massinissa e<br />
respon<strong>de</strong>u: “Eu aceito este presente matrimonial – um presente não<br />
benvindo, já que meu marido foi incapaz <strong>de</strong> oferecer um melhor à sua<br />
esposa. Mas diga-lhe isto: eu teria morrido <strong>de</strong> melhor morte se não<br />
tivesse casado no dia <strong>de</strong> meu enterro.” A vida <strong>de</strong> Massinissa inspirou<br />
algumas peças teatrais, inclusive uma <strong>de</strong> Corneille.<br />
Ezequiel é apresentado por Bentinho <strong>de</strong> uma forma contrafeita, já<br />
que o narrador se recusa a admiti-lo como filho legítimo. Nisto iria um<br />
motivo inconsciente. O filho viera <strong>de</strong>slocar a preferência <strong>de</strong> Capitu, que<br />
substituiu-lhe a mãe, como afeto e como autorida<strong>de</strong>. Substituiu a mãe<br />
real <strong>de</strong> Bentinho, viúva num lar em que o pai era apenas memória.<br />
Mas, enquanto Bentinho reconhece em Ezequiel traços fisionômicos<br />
que o aproximam <strong>de</strong> Escobar, i<strong>de</strong>ntifica no filho algo singular: o sadismo.<br />
Surpreen<strong>de</strong>-se em Dom Casmurro um tema que fôra magistralmente<br />
<strong>de</strong>senvolvido no conto “A causa secreta”. Antes, lembremo-nos do<br />
cap. CX, “Rasgos da infância”. Ao <strong>de</strong>screver a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Ezequiel<br />
para imitar os outros – “Fazia <strong>de</strong> médico, <strong>de</strong> militar, <strong>de</strong> ator e bailarino” –<br />
insiste no gosto especial da criança pelos militares e pelos <strong>de</strong>sfiles <strong>de</strong><br />
tropas. Quando o pai o presenteia com soldadinhos <strong>de</strong> chumbo, Bentinho<br />
analisa sua reação e comenta: “E todos os seus amores iam para o <strong>de</strong><br />
espada alçada.”
18 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
O episódio que mais interessa aqui é aquele em que Ezequiel se<br />
concentra vivamente na ação <strong>de</strong> um gato que aprisiona um rato: “A única<br />
circunstância particular era estar o rato vivo, esperneando, e o meu<br />
pequeno enlevado.”<br />
O narrador expõe o silêncio que circunda a cena e acrescenta: “O<br />
único rumor eram os últimos guinchos do rato, aliás frouxíssimos; as<br />
pernas mal se lhe moviam e <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>nadamente. Um tanto aborrecido,<br />
bati para que o gato fugisse, e o gato fugiu. Os outros nem tiveram tempo<br />
<strong>de</strong> atalhar-me, Ezequiel ficou abatido.<br />
“– Ora, papai!<br />
“– Que foi? A esta hora o rato está comido.<br />
“– Pois sim, mas eu queria ver.”<br />
Na parte final do romance, quando Ezequiel se prepara para uma<br />
viagem à Grécia, ao Egito e à Palestina, dados os seus pendores<br />
arqueológicos, perguntado relata ao pai que iria viajar com amigos.<br />
“– De que sexo?, perguntei rindo.<br />
“Sorriu vexado, e respon<strong>de</strong>u que as mulheres eram criaturas tão da<br />
moda e do dia que nunca haviam <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r uma ruína <strong>de</strong> trinta<br />
séculos.”<br />
O comentário, posto na boca da personagem, reproduz um estereótipo<br />
sobre a condição da mulher aristocrática na socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> então.<br />
Na verda<strong>de</strong>, os valores salientes em Dom Casmurro falam da<br />
mediação do dinheiro para a realização pessoal dos indivíduos.<br />
Capitu, não obstante sua superiorida<strong>de</strong> afetiva e humana, é sentida<br />
pelo narrador na condição inferior <strong>de</strong> pessoa mais pobre. Portanto, numa<br />
escala social mais baixa.<br />
O trecho do pregão é ilustrativo, logo no início do romance. Enquanto<br />
Capitu é sugerida como calculista e fria e Bentinho como dócil e<br />
submisso, a passagem do preto que apregoa cocadas inverte as posições.<br />
Capitu, ainda sob a emoção do plano que entabolava com Bentinho,<br />
<strong>de</strong>scuidou-se das cocadas. Quanto a Bentinho, “vi que, em meio da crise,<br />
eu conservava um canto para as cocadas.” (cap. XVIII, “Um Plano”).<br />
Capitu, nas palavras do narrador, “... apesar <strong>de</strong> equilibrada e lúcida, não<br />
quis saber <strong>de</strong> doce, e gostava muito <strong>de</strong> doce.”
A condição feminina <strong>de</strong> Capitu ________________________________________________________ Fábio Lucas <strong>19</strong><br />
E o pregão – isto é importante – “... lhe <strong>de</strong>ixara uma impressão<br />
aborrecida.” Qual era o pregão?<br />
“Chora, menina, chora, chora, porque não tem vintém.”<br />
É visível a marca da distância social entre os dois protagonistas. E<br />
o dinheiro era a principal carência <strong>de</strong> Capitu. Não obstante, em termos <strong>de</strong><br />
competência pessoal, estava acima <strong>de</strong> Bentinho, o narrador: “Capitu era<br />
Capitu, isto é, uma criatura mui particular, mais mulher do que eu era<br />
homem.” (cap. XXXI, “As curiosida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Capitu”).<br />
O instrumento <strong>de</strong> preservação da <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> social era justamente<br />
o casamento. Isto porque a organização da família constitui<br />
justamente o meio <strong>de</strong> dar perpetuida<strong>de</strong> à divisão da riqueza.<br />
Daí a explicação que Bentinho dá para a presença <strong>de</strong> Justina na<br />
casa: “Minha mãe queria ter uma senhora íntima ao pé <strong>de</strong> si, e antes<br />
parenta que estranha.” (cap. XXI, “Prima Justina”).<br />
Os laços <strong>de</strong> parentesco instituem a solidarieda<strong>de</strong> confiável. E<br />
Capitu, por ambicionar compartilhar aqueles laços, teve primeiro que<br />
romper obstáculos. E <strong>de</strong>pois sentir a inversão da roda da fortuna.<br />
Toda a crítica social <strong>de</strong> Bentinho vem a ser o produto <strong>de</strong> um<br />
pensamento céptico, prisioneiro das contradições emparedadas da má<br />
consciência. Sua crítica constitui meramente uma vingança intelectual,<br />
sem capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ação ou <strong>de</strong> luta. A irracionalida<strong>de</strong>, que torna opacos<br />
os interesses reais, cobre o seu discurso <strong>de</strong> uma neblina enganosamente<br />
humanística, pois que apoiada nas conveniências e no bom tom, ou seja,<br />
na i<strong>de</strong>ologia produzida pela dominação.<br />
A própria razão religiosa é perpassada <strong>de</strong> equívocos, que a leve<br />
ironia vai dissecando. O compromisso religioso <strong>de</strong> sua mãe pô<strong>de</strong>, enfim,<br />
ser <strong>de</strong>sfeito por um artifício: que a Igreja, como instituição, ganhasse um<br />
sacerdote cuja formação fosse financiada por D. Glória. Tal a solução<br />
milagrosa sugerida pela mente esperta <strong>de</strong> Escobar.<br />
Mas a <strong>de</strong>terminação da mãe <strong>de</strong> Bentinho foi sendo abalada pelo<br />
raciocínio mercantil, como se as relações com o divino tivessem o<br />
mesmo mecanismo do valor <strong>de</strong> troca. Se o amor <strong>de</strong> Capitu e Bentinho<br />
rompesse o compromisso que ela, D. Glória, tinha com Deus, ela estaria<br />
isenta <strong>de</strong> culpa. “Era como se, tendo confiado a alguém a importância <strong>de</strong>
20 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
uma dívida para levá-la ao credor, o portador guardasse o dinheiro<br />
consigo e não levasse nada. Na vida comum, o ato <strong>de</strong> terceiro não<br />
<strong>de</strong>sobriga o contratante; mas a vantagem <strong>de</strong> contratar com o céu é que<br />
intenção vale dinheiro.” (cap. LXXX, “Venhamos ao capítulo”).<br />
A ironia em Bentinho institui a racionalida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro da irracionalida<strong>de</strong>.<br />
É uma forma <strong>de</strong> contradição que anuncia a secreta disputa da<br />
razão dialética. Veja-se o cap. XXVII, “Ao portão”, em que o adolescente<br />
ansioso apela para a magia da oração: “Ao portão do Passeio, um<br />
mendigo esten<strong>de</strong>u-me a mão, José Dias passou adiante, mas eu pensei em<br />
Capitu e no seminário, tirei dois vinténs do bolso e <strong>de</strong>i-os ao mendigo.<br />
Este beijou a moeda, eu pedi-lhe que rogasse a Deus por mim, a fim <strong>de</strong><br />
que eu pu<strong>de</strong>sse satisfazer todos os meus <strong>de</strong>sejos:<br />
“– Sim, meu <strong>de</strong>voto!<br />
“– Chamo-me Bento, acrescentei para esclarecê-lo.”<br />
Muito se tem abusado da transparência onomástica para a<br />
interpretação das personagens. Mas vejamos a contradição existente com<br />
o nome <strong>de</strong> Capitu, que evoca “capítulo”, “cabeça”. Como lembra John<br />
Gledson, em The Deceptive Realism of Machado <strong>de</strong> Assis - A Dissenting<br />
Interpretation of ‘Dom Casmurro’ (Liverpool, Great Britain, Francis<br />
Cairns, <strong>19</strong>84). Capitólio em Roma vem a ser a se<strong>de</strong> do po<strong>de</strong>r, seja<br />
republicano, seja imperial. A força da palavra Capitólio teria ocorrido a<br />
Machado ao batizar sua personagem?<br />
Segundo alguns comentaristas (Massaud Moisés, por exemplo),<br />
Dom Casmurro é mais a história <strong>de</strong> Capitu do que a <strong>de</strong> Bentinho. Mas<br />
Capitu, no entrecho da narrativa, representa justamente uma classe fora<br />
da oligarquia.<br />
E, no romance, embora a personagem mais sedutora, foi a que<br />
menos condições teve <strong>de</strong> realizar suas potencialida<strong>de</strong>s.<br />
Romance <strong>de</strong> Capitu, <strong>de</strong> Bentinho ou <strong>de</strong> D. Casmurro?<br />
Não propriamente <strong>de</strong> nenhum <strong>de</strong>les, embora cada figurante<br />
seja parte da totalida<strong>de</strong>, cujo efeito maior resi<strong>de</strong> nos processos <strong>de</strong><br />
transformação ou <strong>de</strong> conservação (Capitu simbolizaria o elemento<br />
catalizador, dada a incapacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Bentinho realizar-se plenamente com<br />
ela).
A condição feminina <strong>de</strong> Capitu ________________________________________________________ Fábio Lucas 21<br />
O romance narra, <strong>de</strong> certa forma, como Bentinho se transmudou em<br />
D. Casmurro. E, no jogo <strong>de</strong> equivalências, como não foi possível<br />
reproduzir em Engenho Novo a casa <strong>de</strong> Matacavalos.<br />
São insistentes as reflexões sobre esse câmbio. Nos capítulos II,<br />
LXIV e CXLIV encontramos sublinhado um dos conteúdos temáticos da<br />
obra: o narrador tenta controlar e assimilar a parte mais obscura <strong>de</strong> seu<br />
caráter, a recorrente suspeita <strong>de</strong> que somente existem traições a seu redor<br />
e, talvez, nele próprio. Valeria a pena refletir aqui sobre o significado da<br />
citação <strong>de</strong> Montaigne, no cap. LXVIII: “Ce ne sont pas mes gestes que<br />
j’écris; c’est mon essence.”<br />
E mais: o <strong>de</strong> que o tempo <strong>de</strong>strói as coisas e não consolida jamais<br />
as ruínas que espalha. É impossível atar as duas pontas da vida, assim<br />
como, no soneto do cap. LV, torna-se difícil atar o primeiro verso com o<br />
último. O primeiro – “oh! flor do céu! oh! flor cândida e pura!” – parece<br />
dizer mais das reminiscências da primeira fase <strong>de</strong> Capitu. O último. –<br />
“Per<strong>de</strong>-se a vida, ganha-se a batalha!” – e a sua variante – “Ganha-se a<br />
vida, per<strong>de</strong>-se a batalha!” – talvez se refira à segunda parte da vida <strong>de</strong><br />
Capitu. Um per<strong>de</strong>-ganha.<br />
De tudo ressalta a soma <strong>de</strong> fatores sociais e psicológicos que<br />
predispõem os protagonistas a não realizarem seus objetivos. Bentinho<br />
converte Capitu no foco <strong>de</strong> todos os insucessos, naquela atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
reduzir o universo a um só ponto. Atrás <strong>de</strong>le, imperavam circunstâncias<br />
condicionantes que o infelicitaram.<br />
Capitu, por sua vez, simboliza a mulher em busca da liberda<strong>de</strong>,<br />
<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um quadro social opaco e rígido, cujos mecanismos a<br />
<strong>de</strong>svalorizam duplamente na condição <strong>de</strong> mulher <strong>de</strong> origem pobre: por<br />
ser mulher e por ser pobre.
22 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
MACHADO E A ALMA EXTERIOR*<br />
Maria Luiza Ramos**<br />
A minha participação nesta homenagem que a <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong><br />
<strong>de</strong> <strong>Letras</strong> está prestando a Machado <strong>de</strong> Assis em comemoração do<br />
centenário <strong>de</strong> seu falecimento me é duplamente grata, don<strong>de</strong> os meus<br />
agra<strong>de</strong>cimentos serem também redobrados. O primeiro motivo é, certamente,<br />
o honroso convite; o segundo, a oportunida<strong>de</strong> que se me impôs <strong>de</strong><br />
reler Machado, coisa que há tempos eu não fazia. Não por <strong>de</strong>sapreço por<br />
sua obra magnífica, mas pelos compromissos que por um motivo ou<br />
outro a gente tem <strong>de</strong> aceitar e assim vão se acumulando em nossa agenda<br />
e fazendo com que os melhores propósitos fiquem esquecidos na gaveta.<br />
Mas aqui estamos para lembrar esse escritor, que <strong>de</strong>ntre tantos<br />
méritos literários, que têm sido analisados e discutidos por ilustres<br />
estudiosos <strong>de</strong> sua obra, foi também mestre insuperável em ilustrar as suas<br />
narrativas com a criação <strong>de</strong> leis e teorias, muitas <strong>de</strong>las <strong>de</strong> cunho filosófico<br />
e psicanalítico.<br />
Algumas tornaram-se <strong>de</strong> domínio público, sendo repetidas aqui e<br />
ali sem necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> citação, como quando se diz, por exemplo: Fulano<br />
é um medalhão! Essa é uma das mais curiosas teorias, assumida por ele<br />
como tal, e que chega mesmo a dar título a um dos contos. Com o<br />
subtítulo <strong>de</strong> “Diálogo”, reproduz uma conversa entre pai e filho, no fim<br />
da festa em que este comemora a sua maiorida<strong>de</strong>: “– Com que, meu<br />
peralta, chegaste aos teus vinte e um anos”. E logo: “Vou dizer-te coisas<br />
importantes”. A conversa cordial acaba sendo como que um sermão em<br />
* Palestra proferida na <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, em 21 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 2008, <strong>de</strong>ntro da<br />
Semana Cultural Machado <strong>de</strong> Assis, comemorativa do seu centenário <strong>de</strong> falecimento.<br />
** Professora e escritora.
24 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
que o pai prega as vantagens <strong>de</strong> um ofício, na verda<strong>de</strong> uma filosofia <strong>de</strong><br />
vida que ele lamenta não ter seguido, por lhe ter faltado a sabedoria <strong>de</strong><br />
um pai para aconselhá-lo. E essa sabedoria se resume em não ter idéias<br />
próprias e, no caso <strong>de</strong> as ter, não divulgá-las. O essencial é reduzir o<br />
intelecto e usar “as frases feitas, as locuções convencionais, as fórmulas<br />
consagradas pelos anos, incrustadas na memória individual e pública.”<br />
Como sempre, Machado investe com ironia contra o saber institucionalizado:<br />
“Filosofia da história”, por exemplo, é uma locução que <strong>de</strong>ves<br />
empregar com freqüência, mas proíbo-te que chegues a outras conclusões<br />
que não sejam as já achadas por outros. Foge a tudo que possa cheirar a<br />
reflexão, originalida<strong>de</strong>, etc. etc.”<br />
Eu me propus falar aqui sobre a alma exterior e acabei não<br />
resistindo à sedução <strong>de</strong> me esten<strong>de</strong>r sobre a teoria do medalhão que, <strong>de</strong><br />
fato, é das mais ousadas e divertidas páginas do repertório machadiano,<br />
que conta ainda com outras teorias, como a teoria da equivalência das<br />
janelas, a das edições, a teoria do emplasto, a das virtu<strong>de</strong>s e outras mais,<br />
pitorescas, por vezes cínicas e até mesmo sarcásticas, mas sempre cheias<br />
<strong>de</strong> sabedoria.<br />
É sabido que muitas vezes a arte antecipa-se à ciência.<br />
E a obra <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis é testemunho disto. Foi o que<br />
constatei um dia, ao <strong>de</strong>parar, por exemplo, em Jacques Lacan com uma<br />
importante diferença entre o outro, escrito com minúscula, aquele que é<br />
semelhante ao sujeito, sua imagem especular que lhe dá a ilusão da<br />
completu<strong>de</strong>, <strong>de</strong> unida<strong>de</strong> do eu – e o Outro, escrito assim com maiúscula e<br />
chamado, <strong>de</strong> “gran<strong>de</strong> Outro”, aquele que está mais além, numa relação <strong>de</strong><br />
exteriorida<strong>de</strong> para com o sujeito, o simbólico, o inconsciente.<br />
E me lembrei <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis. No conto O espelho, Jacobina,<br />
o Narrador, fala que temos duas almas: uma alma interior, que olha <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>ntro para fora, enquanto uma outra, a alma exterior, que olha <strong>de</strong> fora<br />
para <strong>de</strong>ntro.<br />
E assim como o gran<strong>de</strong> Outro lacaniano não é uma entida<strong>de</strong>, mas<br />
um lugar psíquico, a alma exterior, diz o Narrador, po<strong>de</strong> ser um espírito,<br />
um fluido, um homem, muitos homens, um objeto, uma operação e<br />
mesmo a polca, um livro, um par <strong>de</strong> botas, um tambor, etc. O ofício <strong>de</strong>ssa
Machado e a alma exterior ______________________________________________________ Maria Luiza Ramos 25<br />
segunda alma é transmitir a vida, como a primeira. E <strong>de</strong> tal forma se<br />
completam as duas almas, que quem per<strong>de</strong> uma per<strong>de</strong> a existência inteira,<br />
pois o homem é, “metafisicamente falando, uma laranja”. E cita o<br />
exemplo do ju<strong>de</strong>u que, per<strong>de</strong>ndo os seus ducados, como que per<strong>de</strong>u a<br />
própria vida.<br />
A história <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis não versa, entretanto, nem sobre<br />
ducados nem sobre ju<strong>de</strong>us. A narrativa gira em torno <strong>de</strong> uma farda. Uma<br />
farda <strong>de</strong> Alferes da Guarda Nacional. Esse era um posto bem subalterno<br />
na carreira militar: mais ou menos equivalente ao <strong>de</strong> Segundo Tenente,<br />
hoje. Mas a farda era vistosa e o Alferes se tornou o orgulho da família.<br />
O nosso herói – um jovem <strong>de</strong> vinte e cinco anos e pobre – se viu <strong>de</strong><br />
repente às voltas com a notorieda<strong>de</strong>. De seu nome ninguém se lembrava<br />
mais: era o “Alferes” pra cá, e mesmo “senhor Alferes” pra lá, até que os<br />
agrados culminaram com um espelho, que a tia insistiu em transferir da<br />
sala para o seu quarto. Era um espelho antigo e gran<strong>de</strong>, que o reproduzia<br />
<strong>de</strong> corpo inteiro. E suce<strong>de</strong>u que, segundo diz o Narrador, o alferes<br />
eliminou o homem. A sua alma exterior, que era dantes o sol, o ar, o<br />
campo, os olhos das moças, passou a ser a cortesia, os rapapés, tudo o<br />
que falava do posto, nada do que falasse do homem.<br />
Se a imagem especular lacaniana, o pequeno outro, é aquela que é<br />
semelhante ao sujeito, que lhe dá a ilusão da completu<strong>de</strong>, aquela,<br />
portanto, que segundo o Narrador, olha <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro para fora, não podia ela<br />
ser a imagem que o espelho agora lhe <strong>de</strong>volvia. Isso porque o jovem só<br />
se via como alferes, e era ao alferes que se sentia semelhante. Tal i<strong>de</strong>ntificação<br />
paranóica não tinha nada a ver, portanto, com a alma interior, que<br />
ficou esquecida, uma vez que o jovem assumira por completo a nova<br />
imagem <strong>de</strong> alferes – a alma que olhava <strong>de</strong> fora para <strong>de</strong>ntro, a alma<br />
exterior – que o espelho então lhe proporcionava.<br />
Mas eis que uma viagem inesperada da tia afastou-a <strong>de</strong> casa por<br />
vários dias. Ficando só, viu o alferes que a alma exterior se reduzia, órfã<br />
dos elogios e da bajulação até mesmo dos escravos, que lhe pregaram<br />
uma peça, fazendo uma madrugada e levando tudo que pu<strong>de</strong>ram carregar.<br />
Assim sozinho, ficou suspenso da pêndula do relógio, que <strong>de</strong> um modo<br />
sofisticado, lhe comunicava o passar do tempo: – never, for ever! – For
26 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
ever, never! Suce<strong>de</strong> que, nessa situação esdrúxula, sua única companhia<br />
foi o sono. Em sonhos ignorava a solidão, envergando a farda e recebendo<br />
os elogios. Já se tinham passado dias sem que ele se olhasse no<br />
espelho. Mas <strong>de</strong> repente <strong>de</strong>sejou fazê-lo num impulso inconsciente, dizia,<br />
“num receio <strong>de</strong> achar-se um em dois, ao mesmo tempo, naquela casa<br />
solitária.” E o que não se explica aconteceu: a imagem refletida era uma<br />
difusão <strong>de</strong> linhas soltas, uma <strong>de</strong>composição <strong>de</strong> contornos a ponto <strong>de</strong> ele<br />
não se reconhecer nas feições inacabadas, numa nuvem <strong>de</strong> linhas informes.<br />
Apavorado, foi então que teve a idéia <strong>de</strong> vestir a farda. Assim<br />
enfarpelado, olhou-se no espelho e para seu espanto o vidro reproduziu a<br />
figura integral: “Nenhuma linha <strong>de</strong> menos, nenhum contorno diverso”.<br />
Era ele mesmo, que tinha finalmente reencontrado a sua alma exterior.<br />
Como que não acreditando, ia <strong>de</strong> um lado para outro, recuava, gesticulava,<br />
sorria, e o espelho reproduzia tudo. Daí por diante, cada dia, a<br />
uma certa hora, envergava a farda, sentava-se diante do espelho, lendo,<br />
olhando, meditando, para <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> algumas horas <strong>de</strong>spir-se afinal. E<br />
assim pô<strong>de</strong> aguardar a volta da tia sem sentir a solidão. Estava em paz<br />
com a sua alma exterior.<br />
Entretanto, apesar <strong>de</strong> a alma exterior ser fluida e maleável, como<br />
disse o Narrador, po<strong>de</strong>ndo ser tanto um espírito quanto um par <strong>de</strong> botas,<br />
ou ir mudando conforme ao <strong>de</strong>sejo da criança, do adolescente e do<br />
homem <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>, ou simplesmente conforme os atrativos do dia-a-dia, ela<br />
nem sempre é dócil. E há mesmo as almas empe<strong>de</strong>rnidas, absorventes,<br />
como a pátria no caso <strong>de</strong> Camões e o po<strong>de</strong>r no caso <strong>de</strong> César. Se faltam,<br />
a vida não se torna possível.<br />
Machado citou esses nomes célebres e distantes, no tempo e no<br />
espaço, e não se <strong>de</strong>u conta – ou pelo menos não nos <strong>de</strong>u conta – <strong>de</strong> um<br />
nome dali mesmo do Rio <strong>de</strong> Janeiro, o <strong>de</strong> Raul Pompéia, o romancista <strong>de</strong><br />
O Ateneu, cuja alma exterior o levou à morte.<br />
Claro que essa sua teoria da alma exterior era bastante recente, para<br />
que pu<strong>de</strong>sse aplicá-la assim <strong>de</strong> imediato, e num meio literário <strong>de</strong> que ele<br />
mesmo participava. Se me parecia evi<strong>de</strong>nte que Raul Pompéia conhecesse<br />
a obra <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis, parecia-me pelo menos provável que<br />
este conhecesse o único romance <strong>de</strong> Pompéia, O Ateneu, publicado em
Machado e a alma exterior ______________________________________________________ Maria Luiza Ramos 27<br />
1888. E <strong>de</strong> fato. Consultando as Obras Completas <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis,<br />
encontrei na edição da Aguilar uma crônica publicada em A Semana <strong>de</strong><br />
29 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1895, em que ele comenta com pesar o suicídio do<br />
escritor, por quem revela ter gran<strong>de</strong> admiração.<br />
Vou citá-la quase na íntegra, pelo seu valor literário e humano:<br />
“À beira <strong>de</strong> um novo ano, e quase à beira <strong>de</strong> um novo século, em que<br />
se ocupará esta triste semana? Po<strong>de</strong> ser que nem tu, nem eu, leitor amigo,<br />
vejamos a aurora do século próximo, nem talvez do ano que vem. Para<br />
acabar o ano faltam trinta e seis horas, e em tão pouco tempo morre-se com<br />
facilida<strong>de</strong>, ainda sem estar enfermo. Tudo é que os dias estejam contados...<br />
“A questão do suicídio não vem agora à tela. Este velho tema<br />
renasce como esse pobre Raul Pompéia, que <strong>de</strong>ixou a vida inesperadamente<br />
aos trinta e dois anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>. Sobravam-lhe talentos, não lhe<br />
faltavam aplausos nem justiça aos seus notáveis méritos. Estava na ida<strong>de</strong><br />
em que se po<strong>de</strong> e se trabalha muito. A política, é certo, veio ao seu<br />
caminho para lhe dar aquele rijo abraço que faz do <strong>de</strong>scuidado transeunte<br />
ou do adventício namorado um amante perpétuo. (...)<br />
“Tal morte fez gran<strong>de</strong> impressão. Daqueles mesmos que não<br />
comungavam com as suas idéias políticas, nenhum <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> lhe fazer<br />
justiça à sincerida<strong>de</strong>. Eu conheci-o ainda no tempo das puras letras. Não<br />
o vi nas lutas abolicionistas <strong>de</strong> S. Paulo. Do Ateneu, que é o principal dos<br />
seus livros, ouvi alguns capítulos então inéditos, por iniciativa <strong>de</strong> um<br />
amigo comum. Raul era todo letras, todo poesia, todo Goncourts. Estes<br />
dois irmãos famosos – os irmãos Goncourts – tinham qualida<strong>de</strong>s que se<br />
ajustavam aos talentos literários e psicológicos do nosso jovem patrício,<br />
que os adorava. Aquele livro era um eco do colégio, um feixe <strong>de</strong><br />
reminiscências, que ele soubera evocar e traduzir na língua que lhe era<br />
familiar, tão vibrante e colorida, língua em que compôs os números<br />
escritos da imprensa diária, nos quais o estilo respondia aos pensamentos.<br />
“A questão do suicídio não vem agora a tela. Este velho tema<br />
renasce sempre que um homem dá cabo <strong>de</strong> si, mas é logo enterrado com<br />
ele, para renascer com outro. Velha questão, velha dúvida. Não tornou<br />
agora à tela, porque o ato <strong>de</strong> Raul Pompéia incutiu em todos uma<br />
extraordinária sensação <strong>de</strong> assombro. A pieda<strong>de</strong> veio realçar o ato, com
28 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
aquela única lembrança do moribundo <strong>de</strong> dois minutos, pedindo à mãe<br />
que acudisse a irmã, vítima <strong>de</strong> uma crise nervosa ao vê-lo. Que solução<br />
se dará ao velho tema? A melhor é ainda a do jovem Hamlet: The rest is<br />
silence.” (O resto é silêncio).”<br />
E por que se teria suicidado esse homem apenas entrado nos trinta<br />
anos? Como era ele? Austero, sempre vestido <strong>de</strong> preto e usando o preto<br />
até mesmo no seu papel <strong>de</strong> correspondência, tarjado como em cartas <strong>de</strong><br />
luto; homem excêntrico, <strong>de</strong> poucos amigos, nenhuma mulher, facilmente<br />
irascível, engajado apaixonadamente na política, on<strong>de</strong> <strong>de</strong>fendia pela<br />
imprensa os i<strong>de</strong>ais republicanos e abraçava a causa dos mais fracos. É<br />
claro que havia <strong>de</strong> receber também muitos ataques.<br />
Esse homem sofria crises freqüentes <strong>de</strong> melancolia, que o levavam<br />
a <strong>de</strong>sconfiar até dos companheiros mais próximos. Numa época em que a<br />
imprensa já abrigava polêmicas <strong>de</strong> baixo nível, com ataques à vida<br />
pública e privada <strong>de</strong> intelectuais, Pompéia foi alvo <strong>de</strong> artigos perversos,<br />
como um <strong>de</strong> Olavo Bilac, que se escondia sob o pseudônimo <strong>de</strong> Pierrot,<br />
no qual o autor fazia críticas grosseiras à vida íntima do escritor.<br />
Pompéia se sentiu atingido violentamente na sua honra, que prezava<br />
acima <strong>de</strong> tudo, chegando a <strong>de</strong>safiar o adversário para um duelo, frustrado,<br />
afinal, pela intervenção <strong>de</strong> amigos.<br />
Pouco <strong>de</strong>pois foi a vez <strong>de</strong> um outro artigo, esse <strong>de</strong> Luís Murat, com<br />
o título já por si provocativo <strong>de</strong> Um louco no cemitério. Referia-se a um<br />
discurso pronunciado por Pompéia por ocasião do enterro do Marechal<br />
Floriano Peixoto, <strong>de</strong> quem fora um fanático admirador. Tendo o artigo<br />
sido publicado em São Paulo, Pompéia só tomou conhecimento <strong>de</strong> sua<br />
divulgação dois meses <strong>de</strong>pois, o que prejudicou a possível resposta.<br />
Assim, ofendido como homem e como cidadão, e não tendo conseguido<br />
que um artigo seu fosse publicado, Pompéia se viu privado da sua<br />
honra, da sua “alma exterior”, sem a qual não lhe era possível viver.<br />
Suicidou-se num dia <strong>de</strong> Natal, com um tiro no coração, <strong>de</strong>ixando um<br />
bilhete ao jornal, em que dizia: “À Notícia e ao Brasil, <strong>de</strong>claro que sou<br />
um homem <strong>de</strong> honra.”<br />
A alma exterior, vindo, como diz o Narrador do conto machadiano,<br />
<strong>de</strong> fora para <strong>de</strong>ntro – a pátria para Camões, o po<strong>de</strong>r para César, a honra
Machado e a alma exterior ______________________________________________________ Maria Luiza Ramos 29<br />
para Pompéia – é um elemento do simbólico, do Gran<strong>de</strong> Outro, um lugar,<br />
e como lembra Antonio Quinet, a Outra cena em que se sonha. É o Outro<br />
palco em que se encena. Esse Outro (maiúsculo), distinto do pequeno<br />
outro, que é apenas um semelhante, é o lugar em que o sujeito encontra<br />
não a sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, mas a sua representação. O sujeito personaliza esse<br />
lugar do Outro, pois é o lugar a quem en<strong>de</strong>reça o seu amor, fabricando<br />
um Outro pelo efeito <strong>de</strong> sua palavra. Lacan afirma: “O <strong>de</strong>sejo do homem<br />
é o <strong>de</strong>sejo do Outro”.<br />
Mas nem sempre a alma exterior conduz o sujeito a um trágico<br />
<strong>de</strong>sfecho. Machado <strong>de</strong> Assis mesmo nos mostra isso, numa passagem do<br />
romance Dom Casmurro, capítulo XVI – “O administrador interino”.<br />
Conta o Narrador que o pai <strong>de</strong> Capitu exercera interinamente um cargo<br />
em comissão, substituindo o administrador que viajara para o norte, e<br />
recebendo os respectivos honorários. Viveu assim quase dois anos <strong>de</strong><br />
esbanjamentos, “na suposição <strong>de</strong> uma eterna interinida<strong>de</strong>”. Ao receber,<br />
porém, a notícia <strong>de</strong> que ia per<strong>de</strong>r o lugar, numa dramática <strong>de</strong>cisão<br />
comunicou a todos que ia matar-se: “Não podia sofrer a <strong>de</strong>sgraça.” “Não<br />
hei <strong>de</strong> confessar à minha gente essa miséria. E os outros? Que dirão os<br />
vizinhos? E os amigos? E o público?” “Mas que público, senhor Pádua?”<br />
perguntou dona Fortunata, chamando-o à razão. Ele, porém, se refugiava no<br />
quintal, ao pé do poço e só a custo conseguiram <strong>de</strong>movê-lo da intenção.<br />
Narrado com humor, <strong>de</strong>z anos após o suicídio <strong>de</strong> Raul Pompéia,<br />
esse episódio <strong>de</strong> uma obra <strong>de</strong> ficção guarda, entretanto, uma gran<strong>de</strong><br />
semelhança com o trágico fim do escritor.<br />
Mas todos nós temos a nossa alma exterior, ou as nossas almas<br />
exteriores, uma vez que elas po<strong>de</strong>m mudar ao longo da vida. Coisas,<br />
cargos ou pessoas, a razão <strong>de</strong> ser da alma exterior é a i<strong>de</strong>ntificação com<br />
algo que é fonte <strong>de</strong> gratificação pessoal, <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> prazer, consi<strong>de</strong>rado<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> Freud como objeto libidinoso. Ainda que seja freqüentemente<br />
confundida com a energia sexual, a libido é um nome genérico para<br />
energia: a energia do prazer, seja qual for a sua fonte.<br />
Tratado com humor nesse episódio <strong>de</strong> ficção e com gravida<strong>de</strong> e<br />
respeito no episódio da vida real, o tema ultrapassa os limites do que seria<br />
apenas um objeto libidinoso, para tornar-se a razão <strong>de</strong> uma vida inteira.
30 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
A teoria machadiana da alma exterior revela a importância que tem<br />
o Outro para o sujeito, seja em função da aparência, seja por uma questão<br />
<strong>de</strong> prestígio, <strong>de</strong> status, <strong>de</strong> gratificação amorosa e moral.<br />
É o caso do próprio Machado <strong>de</strong> Assis, que não se matou, mas se<br />
<strong>de</strong>ixou morrer após a morte da esposa, D. Carolina Augusta Xavier <strong>de</strong><br />
Novaes Machado <strong>de</strong> Assis, que reunia todos os atributos para tornar-se a<br />
alma exterior do escritor. Descen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> prestigiosa família portuguesa,<br />
branca portanto, e culta a ponto <strong>de</strong> ajudar nos escritos do marido, era ela<br />
a esposa i<strong>de</strong>al para os mol<strong>de</strong>s da época, ou seja, perfeitamente cordata em<br />
um casamento que durou trinta e cinco anos. É sabido que Machado<br />
<strong>de</strong>negou a morte da mulher, <strong>de</strong>ixando o cestinho <strong>de</strong> costura ao pé <strong>de</strong> sua<br />
ca<strong>de</strong>ira, o lugar à mesa, tudo como se estivesse viva. E viva estava na sua<br />
memória e no seu coração, como disse num soneto que é uma das<br />
melhores peças <strong>de</strong> sua obra:<br />
A CAROLINA<br />
Querida, ao pé do leito <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iro<br />
Em que <strong>de</strong>scansas <strong>de</strong>ssa longa vida,<br />
Aqui venho e virei, pobre querida,<br />
Trazer-te o coração do companheiro.<br />
Pulsa-lhe aquele afeto verda<strong>de</strong>iro<br />
Que, a <strong>de</strong>speito <strong>de</strong> toda a humana lida,<br />
Fez a nossa existência apetecida<br />
E num recanto pôs um mundo inteiro.<br />
Trago-te flores, – restos arrancados<br />
Da terra que nos viu passar unidos<br />
E ora mortos nos <strong>de</strong>ixa e separados.<br />
Que eu, se tenho nos olhos mal feridos<br />
Pensamentos <strong>de</strong> vida formulados,<br />
São pensamentos idos e vividos.
MACHADO DE ASSIS:<br />
ATAQUE E DEFESA*<br />
I – Introdução<br />
Letícia Malard**<br />
O título <strong>de</strong>sta palestra sobre Machado <strong>de</strong> Assis talvez esteja mais<br />
para a Advocacia ou para o Esporte do que para as <strong>Letras</strong>, mas somente o<br />
título. Seu público-alvo é bastante amplo e diversificado, não se restringindo<br />
à área <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>. A matéria será dividida em duas partes: na<br />
primeira, vamos apresentar flashes, entremeados <strong>de</strong> comentários ligeiros,<br />
por questões <strong>de</strong> tempo, da má recepção da obra machadiana por alguns<br />
ícones da nossa intelectualida<strong>de</strong>, do passado e do presente. Escolhemos<br />
intelectuais pressupostamente conhecidos e reconhecidos por nossos<br />
ouvintes/leitores. Na segunda parte, vamos refletir sobre o porquê <strong>de</strong><br />
Machado <strong>de</strong> Assis na atualida<strong>de</strong>, indiferentemente aos ataques que ele<br />
vem sofrendo, pois preten<strong>de</strong>mos abordá-lo profissionalmente e fora das<br />
questões subjetivas <strong>de</strong> gosto.<br />
No que tange à primeira parte, convém alertar para não confundi-la<br />
com o exposto no livro <strong>de</strong> Josué Montello, Os inimigos <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong><br />
Assis (<strong>19</strong>98) 1 . Apesar <strong>de</strong> rico em informações e documentação, seu<br />
* Palestra proferida na <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, em 22 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 2008, <strong>de</strong>ntro da<br />
Semana Cultural Machado <strong>de</strong> Assis, comemorativa do seu centenário <strong>de</strong> falecimento.<br />
** Professora Emérita <strong>de</strong> Literatura Brasileira da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Minas Gerais. Seus<br />
últimos livros são Um Amor Literário (romance) e Literatura e Dissidência Política<br />
(ensaios).<br />
1 MONTELLO, Josué. Os inimigos <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Nova Fronteira,<br />
<strong>19</strong>98. 407 p.
32 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
espectro se restringe praticamente à exposição das polêmicas travadas<br />
pelos contemporâneos <strong>de</strong> Machado a respeito do homem e da obra. Não<br />
po<strong>de</strong> ser classificado como livro <strong>de</strong> análise e interpretação literárias,<br />
ainda mais porque o escritor Montello era romancista e especialista em<br />
Machado <strong>de</strong> Assis, mas não trabalhava com Teoria Literária, o que não é<br />
o nosso caso. Isso posto, vamos à palestra.<br />
II – Atacantes do passado<br />
Há um século morria Machado <strong>de</strong> Assis, que, na opinião da maioria<br />
absoluta dos críticos literários, fazendo par com Guimarães Rosa elevou<br />
a Literatura Brasileira aos píncaros da arte da palavra escrita universal.<br />
Assim, o ano <strong>de</strong> 2008 – centenário da morte <strong>de</strong> Machado e do nascimento<br />
<strong>de</strong> Rosa – se constitui em um marco celebrado por todos aqueles que<br />
apreciam textos literários da melhor qualida<strong>de</strong>. Entretanto, adotando a<br />
frase joco-séria do teatrólogo e comentarista <strong>de</strong> futebol Nelson Rodrigues<br />
– “Toda unanimida<strong>de</strong> é burra” – a apreciação <strong>de</strong> ambos os escritores não<br />
é nem nunca foi unânime. E mais: se é possível comparar, intuitivamente,<br />
a quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> opiniões negativas sobre ambos, diria que a medalha <strong>de</strong><br />
ouro vai para Guimarães Rosa, e disso fui testemunha ocular e auditiva.<br />
Como assim?<br />
A publicação do livro <strong>de</strong> contos Corpo <strong>de</strong> baile e do romance<br />
Gran<strong>de</strong> sertão: veredas, ambos no mesmo ano, me pegou cursando<br />
<strong>Letras</strong> na Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Minas Gerais. Estavam sendo lidos<br />
por professores e colegas meus, dizendo que não sabiam o que era aquilo,<br />
que não estavam enten<strong>de</strong>ndo aquela literatura e, por conseqüência, não<br />
estavam gostando. Mais tar<strong>de</strong>, em <strong>19</strong>82, quando uma emissora <strong>de</strong><br />
televisão realizou a minissérie sobre o romance, este obteve gran<strong>de</strong><br />
vendagem, mas muitos compradores <strong>de</strong>clararam em pesquisa que não<br />
conseguiram passar das primeiras páginas.<br />
Quanto a Machado, a situação era outra, naquelas épocas:<br />
admiração indiscutível, principalmente porque foi assunto <strong>de</strong> tese do<br />
primeiro concurso para professor do Curso <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>. Em <strong>19</strong>75, a<br />
telenovela Helena, baseada no romance homônimo <strong>de</strong> Machado,
Machado <strong>de</strong> Assis: ataque e <strong>de</strong>fesa ___________________________________________________ Letícia Malard 33<br />
provocou gran<strong>de</strong> vendagem e gran<strong>de</strong> leitura do romance. Mas as coisas<br />
nem sempre aconteceram assim. Foi exatamente o mineiro Guimarães<br />
Rosa quem expressou uma das mais severas opiniões sobre Machado:<br />
“[...] acho-o antipático <strong>de</strong> estilo, cheio <strong>de</strong> atitu<strong>de</strong>s para “embasbacar<br />
o indígena”: lança mão <strong>de</strong> artifícios baratos, querendo forçar a nota<br />
da originalida<strong>de</strong>; anda sempre no mesmo trote pernóstico, o que torna<br />
tediosa a leitura. Quanto às idéias, nada mais do que uma <strong>de</strong>soladora<br />
dissecação do egoísmo e, o que é pior, da mais <strong>de</strong>sprezível forma do<br />
egoísmo: o egoísmo dos introvertidos inteligentes.” 2<br />
Sem querer ofen<strong>de</strong>r o escritor regionalista, a quem muito admiro,<br />
creio que, em relação à primeira parte da avaliação, se po<strong>de</strong>ria aplicar a<br />
Rosa o ditado popular “Macaco enrola o rabo e senta em cima”. Afinal,<br />
os <strong>de</strong>feitos <strong>de</strong> estilo que este aponta em Machado eram atribuídos a Rosa<br />
naquele meu distante Curso <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, quando se privilegiava a análise<br />
estilística do texto literário. Em relação à “<strong>de</strong>soladora dissecação do<br />
egoísmo” – no que concordo – é um dos gran<strong>de</strong>s temas <strong>de</strong> que Machado<br />
tratou, o que não significa ter sido ele uma pessoa egoísta.<br />
Mas, recuemos no tempo: em 1897, ano da fundação da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong><br />
Brasileira <strong>de</strong> <strong>Letras</strong> com a presença ativa <strong>de</strong> Machado, o sergipano Sílvio<br />
Romero, um dos maiores críticos literários do século XIX, publicou um<br />
livro <strong>de</strong>tonando o escritor: A respeito da poesia machadiana, diz Romero<br />
que “as Americanas são um verda<strong>de</strong>iro <strong>de</strong>sastre, quase do princípio ao<br />
fim. Nas Crisálidas e Falenas abundam também páginas imprestáveis.”<br />
Sobre Memórias Póstumas <strong>de</strong> Brás Cubas, afirma o crítico: “Tirem do<br />
livro aquela patacoada dos pequenos capítulos com títulos estapafúrdios e<br />
aquelas reticências pretensiosas, que aparecem amiú<strong>de</strong>, e diabos me<br />
levem se há ali humor digno <strong>de</strong>sse nome.”<br />
2 Apud http://marcelocoelho.folha.blog.uol.com.br./arch2007-<strong>01</strong>-14_2007-<strong>01</strong>-20.html.<br />
Acessado em 12/9/2008. Conferido em http://www.revistapiaui.com.br/artigo.aspx?id=<br />
322&pag=2&anteriores=1&anterior=122006. Acessado em 29/9/2008. Esse diário não está<br />
publicado. Existe uma cópia <strong>de</strong>le no Acervo <strong>de</strong> Escritores Mineiros da UFMG e vem sendo<br />
estudado por pesquisadores, entre eles Eneida Maria <strong>de</strong> Souza.
34 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
Romero às vezes compensa suas acerbas restrições com elogios<br />
irônicos, que mais se assemelham a cotas <strong>de</strong> ações afirmativas: não raro<br />
enxerga Machado como produto do meio que imita a Europa em tudo,<br />
que “copia” os escritores <strong>de</strong> lá em vez <strong>de</strong> buscar tons <strong>de</strong> brasilida<strong>de</strong>.” 3<br />
Quanto aos capítulos pequenos, os títulos “estapafúrdios” e as reticências<br />
do Brás Cubas como índices <strong>de</strong> humor, e que não têm humor, segundo<br />
Romero, convém lembrar que o humor é uma categoria filosófica<br />
altamente subjetiva, ou seja, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma série <strong>de</strong> condicionantes e<br />
contextualida<strong>de</strong>s. Assim, o que é humorístico para uns po<strong>de</strong> não o ser<br />
para outros.<br />
Machado <strong>de</strong> Assis ficou aborrecido com essa crítica, além do mais<br />
porque tinha presenteado Romero com uma ca<strong>de</strong>ira na <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong><br />
Brasileira <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, pois comandava a escolha <strong>de</strong> seus primeiros<br />
membros. Dois anos <strong>de</strong>pois veio em seu socorro outro acadêmico,<br />
Lafayette Rodrigues Pereira, sob o pseudônimo <strong>de</strong> Labieno, com a<br />
publicação <strong>de</strong> outro livro, chamado Vindiciae (Vingança), on<strong>de</strong> não só<br />
<strong>de</strong>fendia Machado das acusações como também <strong>de</strong>monstrava tratarem<br />
estas <strong>de</strong> pura vingança <strong>de</strong> política literária. Afinal, antes o escritor carioca<br />
havia repreendido o crítico sergipano <strong>de</strong> promover exageradamente<br />
poetas nor<strong>de</strong>stinos <strong>de</strong> mérito discutível, reprensão essa <strong>de</strong> que Romero<br />
não gostou.<br />
Já no século XX, um monstro sagrado da Literatura <strong>de</strong>sfechou<br />
pesadas críticas a Machado, em ensaio contraditório, on<strong>de</strong> se lêem<br />
também elogios. Estamos falando do paulista Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, que<br />
cito:<br />
“[Machado] foi o antimulato, no conceito que então se fazia <strong>de</strong><br />
mulatismo. Foi intelectualmente o antiproletário, no sentido em que<br />
principalmente hoje concebemos o intelectual. Uma ausência <strong>de</strong> si<br />
mesmo, um meticuloso ocultamento <strong>de</strong> tudo o que ele podia ocultar<br />
conscientemente. E na vitória contra isso tudo, Machado <strong>de</strong> Assis se fez o<br />
3 Cf. MALARD, Letícia. 110 anos <strong>de</strong> crítica literária. <strong>Revista</strong> Brasileira, Fase VII, julhoagosto-setembro<br />
2007, Ano XIII, Nº 52, p. 117.
Machado <strong>de</strong> Assis: ataque e <strong>de</strong>fesa ___________________________________________________ Letícia Malard 35<br />
mais perfeito projeto <strong>de</strong> “arianização” e <strong>de</strong> civilização da nossa gente. Na<br />
língua. No estilo. E na concepção estético-filosófica, escolhendo o tipo<br />
literário inglês...” 4<br />
Acho que Mário foi injusto, sobretudo por não compreen<strong>de</strong>r certas<br />
atitu<strong>de</strong>s do homem face ao contexto, às limitações e aos preconceitos da<br />
época. Dizer que o escritor foi antimulato, quando há documentos que<br />
comprovam sua <strong>de</strong>fesa da abolição da escravatura e não há documentos<br />
que provem seu <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> branqueamento próprio nem da socieda<strong>de</strong>, é<br />
<strong>de</strong>sinformação. Se a assertiva tivesse sido feita hoje, diríamos que Mário<br />
estaria transformando Machado em um Michael Jackson. Afirmar que ele<br />
foi um antiproletário porque não escreveu sobre as precárias condições<br />
dos operários, é <strong>de</strong>sinformação mais grave ainda. Se Machado, <strong>de</strong> fato,<br />
não escreveu sobre operários especificamente, escreveu sobre o<br />
Capitalismo e seus <strong>de</strong>sacertos. Exemplo é o romance Quincas Borba,<br />
passado em 1867, ano da publicação do primeiro volume <strong>de</strong> O Capital,<br />
<strong>de</strong> Marx. Aí o escritor revela com maestria toda a exploração capitalista<br />
que um simples professor interiorano sofre – inclusive pela mulher que<br />
ele ama – <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter recebido a herança <strong>de</strong> um amigo e mudar-se para<br />
o Rio, exploração essa que o leva à miséria e à loucura. 5 Finalmente,<br />
afirmar que Machado arianizou, branqueou o brasileiro na língua e no<br />
estilo e que escolheu a Inglaterra para sua concepção estético-filosófica,<br />
me parece um entendimento reduzido do universalismo que Machado<br />
quis imprimir a sua Literatura. Assim, preferiu ultrapassar os limites do<br />
provinciano e do regional, marginalizar o folclórico, com o intuito <strong>de</strong><br />
revelar, através da vida na Corte, a verda<strong>de</strong>ira face da burguesia brasileira<br />
em suas mazelas sob o Segundo Reinado.<br />
Dessa forma, as acusações <strong>de</strong>scontextualizadas <strong>de</strong> Mário seriam<br />
homólogas àquelas que, equivocadamente, se costuma ouvir hoje em<br />
relação ao próprio Mário: não ter enfrentado a questão da homossexua-<br />
4 ANDRADE, Mário <strong>de</strong>. Machado <strong>de</strong> Assis (<strong>19</strong>39). In: Aspectos da literatura brasileira. São<br />
Paulo: Martins Ed., s.d., p. 104.<br />
5 Cf. MALARD, Letícia. “A leitura da socieda<strong>de</strong> capitalista em Quincas Borba”. Ensaio prépublicação.
36 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
lida<strong>de</strong> – nem na vida real nem nos trabalhos intelectuais – não ter<br />
empunhado a ban<strong>de</strong>ira dos direitos da minoria gay, extremamente<br />
discriminada, ridicularizada e mesmo punida em sua época. Mário<br />
po<strong>de</strong>ria tê-lo feito? Acredito que não. Não tinha meios nem mecanismos<br />
para ultrapassar os limites do possível, para pagar o alto preço que isso<br />
lhe custaria. E mais: a literatura do paulista é completamente diversa da<br />
<strong>de</strong> Machado, fato que só fez agravar a incompreensão.<br />
Às críticas <strong>de</strong> Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> suce<strong>de</strong>ram as <strong>de</strong> Agripino Grieco,<br />
importante crítico literário fluminense, consi<strong>de</strong>rado do contra e contraditório.<br />
Em <strong>19</strong>36 publica o grosso volume Machado <strong>de</strong> Assis, on<strong>de</strong><br />
afirma que ele não é um escritor ma<strong>de</strong> in England, mas ma<strong>de</strong> in France.<br />
Se hoje essa diferença po<strong>de</strong> parecer insignificante, à época era<br />
fundamental para se classificar um escritor como filiado à cultura<br />
britânica ou à francesa, as quais exerciam influências marcantes em nossa<br />
vida literária. Grieco dispara sua metralhadora:<br />
“Faltava a Machado o brilho, a graça, a bonomia na malícia, caindo<br />
ele constantemente na insipi<strong>de</strong>z, ou seja na tediosa monotonia...<br />
Romancista propriamente não foi ele. Juntava contos e pensava<br />
fazer romance, po<strong>de</strong>ndo retirar-se das suas ficções extensas qualquer<br />
trecho, sem que o trecho perca ou perca o conjunto.” 6<br />
E mais adiante:<br />
“[...] Há muito <strong>de</strong> infantil ou <strong>de</strong> simiesco nas suas senhoras.<br />
Catalogou pequenos vícios e manias como outros colecionam selos ou<br />
borboletas.” 7<br />
Trata-se <strong>de</strong> uma crítica impressionista, lugar-comum na década <strong>de</strong><br />
30. De início contradiz Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, afirmando que Machado não é<br />
um escritor à moda inglesa, mas à francesa. Em seguida, <strong>de</strong>squalifica a<br />
6 GRIECO, Agripino. Machado <strong>de</strong> Assis. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Ed. Conquista, <strong>19</strong>60. p. 327.<br />
7 GRIECO, Agripino. Op. cit., p. 331.
Machado <strong>de</strong> Assis: ataque e <strong>de</strong>fesa ___________________________________________________ Letícia Malard 37<br />
sua escrita, adjetivando-a até <strong>de</strong> insípida e monótona, para finalmente<br />
afirmar que ele não foi romancista, mas ajuntador <strong>de</strong> contos pensando<br />
estar fazendo romance. Conclui liquidando com as personagens femininas<br />
machadianas e reduz sua visão do espírito humano a um mero<br />
catálogo <strong>de</strong> coleções <strong>de</strong> objetos congelados ou mortos. Em resumo: nesse<br />
trecho Grieco diz, em outras palavras, que o escritor Machado <strong>de</strong> Assis<br />
não existe enquanto tal. Mas, como estamos diante <strong>de</strong> um crítico<br />
estranhamente contraditório, encerra seu livro com a seguinte frase: “[...]<br />
pela vocação, pela cultura, pela boa produtivida<strong>de</strong>, foi ele o maior<br />
homem <strong>de</strong> letras do Brasil.” 8 De duas, uma: ou o crítico era bastante<br />
<strong>de</strong>scontrolado, ou está afirmando que a literatura brasileira não existe.<br />
III – Atacantes do presente<br />
Prestigiemos agora outro mineiro: Sebastião Nunes – poeta, advogado,<br />
cronista, publicitário, humorista e editor – não gosta <strong>de</strong> Machado<br />
<strong>de</strong> Assis, mas ele não está só, pois outro respeitável humorista, o carioca<br />
Millôr Fernan<strong>de</strong>s, também não. Interessante: dois humoristas rejeitam<br />
aquele que, consensualmente, melhor trabalhou questões <strong>de</strong> humor em<br />
nossa literatura. Estranho... mas, fazer o quê? Afinal, a crítica literária<br />
baseada no gosto sem argumentos é uma prática da <strong>de</strong>mocracia.<br />
Concentremo-nos nas avaliações do nosso Tião Nunes (2008). Para<br />
ele, “Machado é um escritor mediano: tem dois bons romances, dois<br />
outros chatíssimos e um razoável, que é o Dom Casmurro. Quanto ao<br />
famoso conto-novela O alienista... não fe<strong>de</strong> nem cheira.” Procurando ser<br />
justo, Nunes reconhece que o escritor tem uma dúzia <strong>de</strong> contos do mais<br />
alto nível. Informo que ele escreveu mais <strong>de</strong> 170 contos. E Nunes conclui<br />
esses ditos numa crônica para o jornal O Tempo, <strong>de</strong> Belo Horizonte, em<br />
27/4/2008:<br />
8 GRIECO, Agripino. Op. cit., p. 333.
38 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
“Não, não tenho muito a dizer sobre Machado <strong>de</strong> Assis. Exceto<br />
que, até apren<strong>de</strong>r a ler com olhos limpos, sofri o diabo achando que era<br />
burro por não conseguir enxergar tanta genialida<strong>de</strong> num escritor que, para<br />
mim, nunca passou <strong>de</strong> mais ou menos.” 9<br />
A má apreciação do cronista Nunes, totalmente sem argumentos,<br />
ten<strong>de</strong> mais para o humor, para a conversa <strong>de</strong> sala sobre literatura entre<br />
leigos em matéria <strong>de</strong> crítica literária. Afinal, essa é uma das funções do<br />
“gênero” crônica. Gosto não se discute, mas, profissionalmente, como é o<br />
nosso caso, não se po<strong>de</strong> tratar o objeto literário como simples questão <strong>de</strong><br />
gosto.<br />
Outro atacante <strong>de</strong> peso foi Jorge Amado, aborrecido porque<br />
Machado teria previsto o insucesso da peça teatral Gonzaga ou A<br />
revolução em Minas, <strong>de</strong> seu conterrâneo Castro Alves, ícone da<br />
genialida<strong>de</strong> baiana. Contra Machado, Amado escreveu isto:<br />
“Sua voz só encontrava prazer com palavras <strong>de</strong> elogio para aqueles<br />
que não lhe podiam fazer concorrência. Temeu sempre o aparecimento <strong>de</strong><br />
um nome que pu<strong>de</strong>sse ofuscar o seu. Vaidoso <strong>de</strong> ser chamado o primeiro<br />
romancista da língua portuguesa do seu tempo, guardava um pru<strong>de</strong>nte<br />
silêncio sobre as figuras que pu<strong>de</strong>ssem ofuscar a sua luz.” 10<br />
Além <strong>de</strong> tratar-se <strong>de</strong> uma avaliação do homem, não da obra, tratase,<br />
também, <strong>de</strong> uma avaliação inteiramente equivocada. Vejamos:<br />
Machado, em carta <strong>de</strong> 1868 a José <strong>de</strong> Alencar, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> elogiar longa e<br />
entusiasticamente a peça <strong>de</strong> Castro Alves, inédita, pergunta se ela teria<br />
sucesso, afirmando que o obstáculo para o sucesso “é a conspiração da<br />
indiferença”, a qual talvez possa ser vencida pela perseverança. 11<br />
9 NUNES, Sebastião. Um falso gênio chamado Machado <strong>de</strong> Assis. Disponível em<br />
www.otempo.com.br/otempo/colunas/?IdEdicao=906&IdColunaEdicao=5515. Acessado em<br />
12/9/2008.<br />
10 Apud BASTOS, Alcmeno. Fontes para a incompreensão <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis. Disponível<br />
em http://www.alcmeno.com/html/textos1.PDF . Acessado em 12/8/2008.<br />
11 Cf. ASSIS, Machado <strong>de</strong>. Correspondência. Rio <strong>de</strong> Janeiro - São Paulo - Porto Alegre: W. M.<br />
Jackson, <strong>19</strong>44. p. 35.
Machado <strong>de</strong> Assis: ataque e <strong>de</strong>fesa ___________________________________________________ Letícia Malard 39<br />
Acredito que Machado falava o óbvio: Castro Alves tinha apenas vinte e<br />
um anos e nenhum livro publicado; como <strong>de</strong>clamador, recitava seus<br />
versos aqui e acolá. Praticamente <strong>de</strong>sconhecido pelo mundo literário do<br />
Rio <strong>de</strong> Janeiro, era, portanto, forte candidato à indiferença. Assim,<br />
Machado não estava sendo temeroso da concorrência, pois, na prática, ele<br />
ainda nem era escritor, mas realista quanto a glórias literárias: Tinha<br />
vinte e nove anos, publicado textos esparsos e algumas peças teatrais.<br />
Fora isso, apenas um livro: o conjunto <strong>de</strong> poemas intitulado Crisálidas<br />
(1864). Os romances e contos que o consagraram vieram muito <strong>de</strong>pois.<br />
IV – Por que Machado <strong>de</strong> Assis na atualida<strong>de</strong>?<br />
As respostas a esta pergunta irão respon<strong>de</strong>r também, ainda que <strong>de</strong><br />
modo implícito, às acusações que se têm feito ao escritor.<br />
Primeiro, por motivos biográficos, que po<strong>de</strong>m ser exemplares e<br />
elevar a auto-estima <strong>de</strong> tantos talentos que não enxergam uma luz no<br />
horizonte para vencer na batalha das letras. Nesse sentido, Machado<br />
acumulou em vida sucessivas vitórias contra os padrões sociais aceitáveis<br />
em sua época, contra a pobreza e as discriminações: carioca favelado,<br />
ven<strong>de</strong>dor ambulante <strong>de</strong> doces, afro-<strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte, epilético e gago quando<br />
não havia tratamento para essas patologias, portador <strong>de</strong> outras doenças<br />
crônicas, chegou a tipógrafo e alto funcionário do Ministério da<br />
Agricultura. Autodidata num ambiente <strong>de</strong> muitos doutores, foi um dos<br />
maiores e mais produtivos escritores que o Brasil já teve e fundou a<br />
<strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> Brasileira <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>. Deixou 9 romances, quase 200 contos,<br />
inúmeras crônicas, poemas, peças <strong>de</strong> teatro, ensaios, pareceres, relatórios,<br />
vasta correspondência e traduções.<br />
Segundo, porque ele teve a coragem <strong>de</strong> causar uma ruptura nos<br />
padrões tradicionais da narrativa no Brasil, tanto no romance quanto no<br />
conto. Esses <strong>de</strong>ixaram <strong>de</strong> ser uma história contada, com <strong>de</strong>talhes<br />
<strong>de</strong>scritivos – tanto <strong>de</strong> seres humanos, quanto <strong>de</strong> paisagens, situações e<br />
ambientes – para serem uma história entrecortada <strong>de</strong> reflexões,<br />
comentários, referências a outros autores, obras e personagens adaptáveis
40 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
a situações da história narrada. Isso era possível <strong>de</strong>vido à sua gran<strong>de</strong><br />
cultura e apreço à erudição. A biblioteca que <strong>de</strong>ixou é uma prova. 12 O<br />
leitor não vai ler a história para tomar conhecimento do narrado, mas para<br />
refletir sobre este, para viajar na linguagem e na intertextualida<strong>de</strong>. Daí<br />
resulta o tamanho curto ou curtíssimo dos capítulos, quando os das<br />
narrativas do seu tempo eram no geral longos. Daí resultam também as<br />
constantes chamadas da atenção do leitor, a pressuposição <strong>de</strong> que este<br />
está achando isso ou aquilo, assim convidando-o a participar da escrita do<br />
texto. Outro resultado está no apelo à História, à Filosofia, à Ciência, às<br />
religiões em que ele pessoalmente não acreditava a partir da maturida<strong>de</strong><br />
13 , enfim ao conhecimento humano como um todo, para integrá-lo à<br />
sua narrativa. Esta era sua concepção <strong>de</strong> literatura: trabalhar a linguagem<br />
nas constelações intertextuais.<br />
Terceiro, porque o modo <strong>de</strong> escrever <strong>de</strong> Machado é muito econômico,<br />
sintético, medido, frases curtas, <strong>de</strong>scomplicadas quanto à sintaxe.<br />
Ele mesmo tinha consciência disso, <strong>de</strong>monstrado ao começar o Capítulo<br />
CIX, do Dom Casmurro, “Um filho único”: Ezequiel, quando começou o<br />
capítulo anterior, não era ainda gerado; quando acabou, era cristão e<br />
católico.”<br />
Quarto, porque Machado tinha uma visão muito peculiar do<br />
mundo, marcada pela ironia, pelo realismo e pelo pessimismo, no<br />
tratamento das questões humanas que se presentificam no passado, no<br />
presente e no futuro. Alguns pensamentos seus, disseminados pelos<br />
livros, exemplificam sua visão irônica do mundo:<br />
“Não te irrites se te pagarem mal um benefício: antes cair das<br />
nuvens do que do terceiro andar.”<br />
“Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos <strong>de</strong> réis.”<br />
“O país real, esse é bom, revela os melhores instintos; mas o país<br />
oficial, esse é caricato e burlesco.”<br />
12 Cf. JOBIM, José Luís (org.). A biblioteca <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Topbooks<br />
Ed., 20<strong>01</strong>. 393 p.<br />
13 Os textos intimistas da adolescência do escritor são inçados <strong>de</strong> referências religiosas do<br />
catolicismo, as quais foram discretamente retirando-se do seu cenário literário.
Machado <strong>de</strong> Assis: ataque e <strong>de</strong>fesa ___________________________________________________ Letícia Malard 41<br />
“A briga <strong>de</strong> galos é o Jockey Club dos pobres.” 14<br />
Frases e ditos da Cultura Popular, estilizados ou relidos pelo<br />
escritor, dão o tom <strong>de</strong> sua visão realista do mundo, esparzindo sobre este<br />
sua condição <strong>de</strong> <strong>de</strong>cifrador da condição humana, também perpassada pela<br />
ironia:<br />
“Dize-me com quem andas, que te direi quem és”:<br />
“Dize-me com quem comes, dir-te-ei com quem votas.”<br />
“Dize-me como moras, dir-te-ei quem és.”<br />
“A ocasião faz o ladrão.”<br />
“A ocasião não faz o ladrão. Faz o furto. O ladrão nasce feito.<br />
“As ocasiões fazem as revoluções.”<br />
“Deus dá o frio conforme o cobertor.”<br />
“É sabido que Deus dá o frio conforme a roupa; não faz o mesmo<br />
com as idéias; há pessoas bem enroupadas e pouco i<strong>de</strong>adas.”<br />
“Comprar gato por lebre.”<br />
“Ven<strong>de</strong>r gato por lebre.”<br />
“Falar a verda<strong>de</strong> nua e crua”<br />
“Não jurei nunca a verda<strong>de</strong>, porque a verda<strong>de</strong> nua e crua, além <strong>de</strong><br />
ser in<strong>de</strong>cente, é dura <strong>de</strong> roer.”<br />
“O sol é para todos, e a sombra para quem merece.”<br />
“O sol, quando nasce, é para todos, e a chuva é só para alguns.”<br />
“ O homem põe e Deus dispõe.”<br />
“O homem põe e Paris dispõe.”<br />
“Os mortos governam os vivos.”<br />
“Se é verda<strong>de</strong> que os mortos governam os vivos, também o é que<br />
os vivos vivem dos mortos.”<br />
14 Cf. MALARD, Letícia. Pérolas <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis. Corrente, Pirapora, a XXVII, n. 1051,<br />
6 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 2004. p. 15.
42 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
Quinto, porque, contrariando as coor<strong>de</strong>nadas romanescas <strong>de</strong> seu<br />
tempo e antecipando a Psicanálise, ele apresenta uma visão negativista e<br />
frustrante das relações amorosas, que são tomadas como centro da vida:<br />
se o amor como eixo da narrativa é praxe no romance enquanto espécie<br />
literária, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> seu nascimento, o negativismo amoroso não o é. Vejamos<br />
como isso se dá em cinco dos nove romances:<br />
Em Helena, a morte da moça é <strong>de</strong>corrente do fato <strong>de</strong> ela se<br />
apaixonar por um rapaz que julgava ser seu irmão. Quando se <strong>de</strong>scobre<br />
que não é, já não há mais jeito <strong>de</strong> recuperar sua saú<strong>de</strong> e ela morre.<br />
Em Dom Casmurro, Bentinho se casa por paixão com a primeira e<br />
única namorada, que tinha <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a infância. Na perspectiva do narrador,<br />
ela acaba traindo-o com o melhor amigo <strong>de</strong>le e tem um filho que é a cara<br />
do amigo. Mãe e filho morrem no final do romance.<br />
Em Memórias póstumas <strong>de</strong> Brás Cubas, Virgília se torna amante<br />
<strong>de</strong> Brás, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> casada. Conheceram-se quando solteiros, mas não se<br />
interessaram um pelo outro. Ambos acabam no romance como duas<br />
ruínas vivas.<br />
Em Quincas Borba, o milionário Rubião se apaixona por Sofia,<br />
mulher <strong>de</strong> um amigo, a qual lhe dá confiança enquanto ele emprestava/<br />
dava dinheiro para o marido. Quando a fortuna <strong>de</strong> Rubião acaba e ele<br />
enlouquece <strong>de</strong> amor, a mulher afasta-se indiferente. Ele morre mendigo e<br />
louco, na companhia <strong>de</strong> seu cão.<br />
Em Esaú e Jacó, esses são irmãos gêmeos, diferentes em tudo,<br />
exceto numa coisa: amam a mesma mulher. O amor acaba com a trágica<br />
morte <strong>de</strong>la.<br />
Sexto, <strong>de</strong>vido à tematização do ceticismo, da <strong>de</strong>scrença na previsibilida<strong>de</strong><br />
das ações humanas e da total impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se controlar o<br />
Acontecimento – o que exemplificamos com alguns contos:<br />
Em “Missa do galo”, o clima criado entre um jovem e uma mulher<br />
madura na noite <strong>de</strong> Natal parece levar a um caso amoroso entre ambos.<br />
No entanto, o amigo vem chamá-lo para a Missa do Galo e o caso não<br />
acontece.<br />
Em “A cartomante”, esta prediz um belo futuro para o rapaz na<br />
companhia <strong>de</strong> uma mulher casada, afirmando que o marido <strong>de</strong> nada
Machado <strong>de</strong> Assis: ataque e <strong>de</strong>fesa ___________________________________________________ Letícia Malard 43<br />
<strong>de</strong>sconfiava. No entanto, ao sair da casa da cartomante para aten<strong>de</strong>r a um<br />
chamado do marido, o rapaz é assassinado por este, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ver a<br />
amante também assassinada.<br />
Em “O alienista”, Bacamarte, o psiquiatra, inferniza a vida da<br />
cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Itaguaí, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> pren<strong>de</strong>r e soltar, indiscriminadamente,<br />
loucos no hospício que ele fundara, mudando várias vezes sua teorias<br />
sobre a loucura. Por fim, conclui que o louco era ele e morre tentando<br />
curar-se no mesmo hospício.<br />
Pelo exposto e conclusivamente, ouso sugerir um modo <strong>de</strong> ler<br />
Machado <strong>de</strong> Assis com o espírito <strong>de</strong>sarmado, sem ataques nem <strong>de</strong>fesas.<br />
Em suas narrativas, o enredo é secundário. Ele não é o tipo <strong>de</strong> escritor<br />
que, antes <strong>de</strong> mais nada, se propõe a contar bem contada uma história.<br />
Ele prefere histórias mal contadas, quer dizer, histórias que só fazem<br />
sentido em suas ramificações periféricas, suas digressões, suas associações<br />
com outras histórias lembradas, ou com pedaços <strong>de</strong> várias histórias<br />
agenciadas, ou convocando personagens <strong>de</strong> muitas histórias.
44 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
MACHADO DE ASSIS<br />
E O SEU IDEÁRIO DE<br />
LÍNGUA PORTUGUESA<br />
Evanildo Bechara*<br />
É opinião corrente afirmar-se que Machado <strong>de</strong> Assis, se não é o<br />
mais correto escritor da literatura brasileira, é dos que melhor a<br />
praticaram e mais souberam conciliar a construção clássica e a<br />
modalida<strong>de</strong> espontânea do idioma do seu tempo.<br />
Por tudo isto, vale a pena pesquisar como conseguiu construir o seu<br />
i<strong>de</strong>ário lingüístico, ainda que não tenhamos informações seguras sobre os<br />
passos iniciais <strong>de</strong>ssa construção que, começada muito cedo, como se<br />
supõe, continuou por toda a vida do nosso escritor.<br />
Como a mãe é sempre, ou quase sempre a primeira mestra da<br />
linguagem <strong>de</strong> seus filhos, seguida da colaboração dos <strong>de</strong>mais familiares,<br />
o ambiente idiomático <strong>de</strong> casa <strong>de</strong>ve cedo ter chamado a atenção do<br />
menino Machado diante <strong>de</strong> uma mãe açoriana, branca, e do pai pintor,<br />
mulato, ambos com certa instrução: sabiam ler melhor do que, com toda<br />
certeza, os <strong>de</strong>mais moradores do morro do Livramento (atual Providência),<br />
próximo à zona portuária, em que nasceu o futuro escritor.<br />
Acresce a isto a convivência, como agregados <strong>de</strong> uma chácara<br />
vizinha ao morro, <strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> D. Maria José, madrinha do menino,<br />
o que favorecia à criança, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> cedo <strong>de</strong> temperamento solitário, um<br />
* Professor, Filólogo. Ocupa a ca<strong>de</strong>ira nº 33 da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> Brasileira <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>.
46 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
ambiente cultural diferente daquele freqüentado pelos seus vizinhos. A<br />
mãe <strong>de</strong>ve ter coberto o filho <strong>de</strong> atenção e carinho que merecem os<br />
primogênitos e, apesar <strong>de</strong> ter morrido quando Machado mal contava os<br />
<strong>de</strong>z anos, pô<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar nele profundas marcas <strong>de</strong> afeto e lhe ter imprimido<br />
o gosto pelo estudo, adjuvando o trabalho <strong>de</strong> escola primária que<br />
freqüentara e o empenho <strong>de</strong> um padre da Igreja da Lampadosa a quem,<br />
parece, o menino ajudava nas missas, como coroinha. Cinco anos <strong>de</strong>pois<br />
da morte da mãe, casou-se o pai com Maria Inês, madrasta que também<br />
cobriu o enteado com amoroso <strong>de</strong>svelo. Des<strong>de</strong> cedo <strong>de</strong>ve ter nascido em<br />
Machado o gosto da leitura, que também cedo lhe <strong>de</strong>spertou e favoreceu<br />
o melhor aprendizado do idioma, o que possivelmente o preparou para,<br />
entre os ofícios iniciais a que se <strong>de</strong>dicaria, exercer as funções <strong>de</strong> tipógrafo da<br />
Imprensa Nacional até 1858, e, mais à frente, revisor e caixeiro da<br />
Livraria e Tipografia <strong>de</strong> Paula Brito, estágio que o aproximou <strong>de</strong>finitivamente<br />
da literatura e <strong>de</strong> ilustres personagens do meio <strong>de</strong> escritores.<br />
De particular importância para a construção do seu universo<br />
lingüístico foram sem dúvida as reuniões no Gabinete Português <strong>de</strong><br />
Leitura com dois dos mais importantes, à época, cultores dos livros e do<br />
idioma: Ramos Paz e o filólogo Manuel <strong>de</strong> Melo. Se o primeiro <strong>de</strong>ve ter<br />
sido fundamental para a formação literária do nosso Machado,<br />
aproximando-o dos autores nacionais e estrangeiros, Manuel <strong>de</strong> Melo<br />
<strong>de</strong>ve ter exercido nele uma influência seminal sobre a natureza da<br />
linguagem, a posição do escritor diante do idioma, sua ação normativa<br />
para os leitores do seu tempo. Tal influência favoreceu a proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
consi<strong>de</strong>rações que Machado, em vários lugares do seu múltiplo fazer<br />
literário, emitiu sobre fatos da língua, quer <strong>de</strong> natureza gramatical, quer<br />
<strong>de</strong> natureza lexical. Manuel <strong>de</strong> Melo, apesar da sua atuação como homem<br />
do comércio, foi dos mais bem apetrechados filólogos do seu tempo;<br />
escreveu pouco, pelo menos do que chegou até nós, mas <strong>de</strong>ssas lições<br />
sobreviventes, revela-nos uma leitura do que melhor se produzia nos<br />
meios mais adiantados no mundo. Riquíssimo acervo bibliográfico<br />
existente no Gabinete Português <strong>de</strong> Leitura sobre filologia e lingüística,<br />
em alemão, inglês e francês no século XIX resulta da aquisição <strong>de</strong> sua<br />
biblioteca particular, pela instituição <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> sua morte, a fim <strong>de</strong> que
Machado <strong>de</strong> Assis e o seu i<strong>de</strong>ário <strong>de</strong> língua portuguesa ________________________________ Evanildo Bechara 47<br />
não se dispersasse. Seus méritos eram conhecidos e apreciados fora do<br />
Brasil. Leite <strong>de</strong> Vasconcelos nos chamou a atenção para uma nota<br />
necrológica <strong>de</strong> um dos mais conceituados filólogos italianos, Francesco<br />
D’Ovidio , acerca <strong>de</strong> uma resenha <strong>de</strong> autores latinos editados por<br />
Epifânio Dias:<br />
Mentre corrego le bozze, mi sopraggiunge la dolorosa nuova,<br />
che uno di loro (referia-se a filólogos portugueses), Manuel<br />
<strong>de</strong> Mello, è morto. Egli era, per verità, un dilettante<br />
serupoloso e coltissimo, che in nulla differiva da un dotto di<br />
professione. Ne son prova le Notas Lexicológicas (Rio <strong>de</strong><br />
Janeiro, 1880) ch’egli aveva impresso a publicare.<br />
Conosceva la litteratura italiana, dalla più antica alla più<br />
recente, in modo ammirabile, amava vivamente l’Italia; e in<br />
Italia è morto! (In: J. Leite <strong>de</strong> Vasconcelos, Epiphanio Dias,<br />
p. 4, n.2).<br />
Tão ausente está Manuel <strong>de</strong> Melo <strong>de</strong> nossos estudos <strong>de</strong> historiografia<br />
gramatical <strong>de</strong> filólogos portugueses e brasileiros que <strong>de</strong>senvolveram<br />
suas ativida<strong>de</strong>s no Brasil, que o autor merece uma referência,<br />
ainda que breve, neste comentário sobre Machado <strong>de</strong> Assis. Português <strong>de</strong><br />
nascimento, natural <strong>de</strong> Aveiro, on<strong>de</strong> nasceu em 1834. Exercia as funções<br />
<strong>de</strong> guarda-livros e se aplicava no estudo dos mo<strong>de</strong>rnos idiomas da<br />
Europa, particularmente do português. Notabilizou-se entre os contemporâneos<br />
e a posterida<strong>de</strong> com o estudo polêmico contra Adolfo Coelho e<br />
Teófilo Braga, maxime sobre o primeiro, intitulado Da Glótica em<br />
Portugal. A composição <strong>de</strong>ste trabalho começou em 1873 e só terminou<br />
em 1889, cinco anos <strong>de</strong>pois da morte do autor, ocorrida em Milão, na<br />
Itália, aos 4 <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> 1884.<br />
Em contacto com Ramos Paz e Manuel <strong>de</strong> Melo, nas reuniões aos<br />
domingos no Gabinete Português <strong>de</strong> Leitura, penetrou Machado <strong>de</strong> Assis<br />
não só no terreno idiomático dos clássicos lusitanos, mas ainda na boa<br />
conceituação e compreensão da natureza da linguagem e dos usos<br />
lingüísticos.
48 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
Assim é que, em resenha crítica <strong>de</strong> 1862 ao Compêndio da<br />
Gramática Portuguesa, por Vergueiro e Pertence, saído em Lisboa em<br />
1861, o nosso escritor justifica por que consi<strong>de</strong>ra o Compêndio “uma<br />
obra útil”:<br />
Sempre achei que uma gramática é uma coisa séria. Uma<br />
boa gramática é um alto serviço a uma língua e a um país. Se<br />
essa língua é a nossa, e o país é este em que vivemos, o<br />
serviço cresce ainda e a empresa torna-se mais difícil.<br />
(Assis: <strong>19</strong>53, p.21).<br />
E logo adianta:<br />
Quando se consegue o resultado alcançado pelos senhores<br />
Pertence e Vergueiro tem-se dado material para a estima e a<br />
admiração dos concidadãos.<br />
Há na gramática dos Srs. Pertence e Vergueiro aquilo que é<br />
necessário às obras <strong>de</strong>sta natureza, <strong>de</strong>stinadas a estabelecer<br />
no espírito do aluno as regras e as bases, sobre as quais se<br />
tem <strong>de</strong> assentar a sua ciência filológica. (Ibid., pág. 21-22).<br />
Repare-se que Machado <strong>de</strong> Assis estava com 23 anos ao resenhar o<br />
Compêndio, e nessa época já ressaltava o papel importante do<br />
<strong>de</strong>senvolvimento reflexivo da competência lingüística dos alunos<br />
mediante a aplicação das regras e das bases ‘sobre as quais se tem <strong>de</strong><br />
assentar a sua ciência filológica’ [ entenda-se: a sua competência<br />
lingüística]. Note-se que o resenhador não insiste na célebre lição <strong>de</strong> que<br />
a gramática é “arte <strong>de</strong> ensinar a falar e a escrever corretamente a língua”,<br />
como fez o compêndio, mas sim “<strong>de</strong> assentar a sua ciência filológica.”<br />
Essas consi<strong>de</strong>rações do nosso jovem escritor, aparentemente tão<br />
inocentes, que uma leitura ingênua po<strong>de</strong>ria <strong>de</strong>ixar passar em silêncio uma<br />
distinção teórica importantíssima e antiga, que remonta aos primeiros<br />
filósofos gregos que trataram <strong>de</strong> conhecer melhor e com mais profundida<strong>de</strong><br />
a essência da gramática e temas a ela, gramática, correlatos.
Machado <strong>de</strong> Assis e o seu i<strong>de</strong>ário <strong>de</strong> língua portuguesa ________________________________ Evanildo Bechara 49<br />
Discutiam esses gregos se a gramática seria “empeiría”, isto é, pura<br />
e simples experiência em ato, ou se seria uma técnica (em grego<br />
‘téchne”), isto é, um sabor complexo <strong>de</strong> “regras’, <strong>de</strong> noções regidas por<br />
um critério e com o propósito <strong>de</strong> preencher uma finalida<strong>de</strong>. A tese<br />
vitoriosa foi a <strong>de</strong> que a gramática seria um técnica, palavra que os<br />
romanos traduziram por arte (latim ars).<br />
Já a aquisição <strong>de</strong> uma língua resulta <strong>de</strong> uma ativida<strong>de</strong> no âmbito da<br />
“empeiría”, porque é um processo que nasce sob o impulso da imitação,<br />
não se <strong>de</strong>sprezando um mínimo <strong>de</strong> reflexão, isto é, como ensina Pagliaro,<br />
“<strong>de</strong> a<strong>de</strong>rência volitiva a <strong>de</strong>terminado sistema expressivo”, e <strong>de</strong>ssa<br />
imitação “surge a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma norma na qual o ato lingüístico<br />
possa encontrar a sua plena justificação” (Pagliaro: <strong>19</strong>52, p. 295).<br />
Tudo nos leva a acreditar que Machado <strong>de</strong> Assis entendia a gramática<br />
como uma técnica, isto é, um sistema <strong>de</strong> noções <strong>de</strong>stinadas a conseguir<br />
um fim, no seu dizer, “<strong>de</strong>stinadas a estabelecer no espírito do aluno as regras<br />
e as bases, sobre as quais se tem <strong>de</strong> assentar a sua ciência filológica”.<br />
Essas regras e bases no espírito do aluno vão dirigi-lo ao âmbito da<br />
‘empeiría”, já que uma imitação reflexiva o leva a buscar uma norma na<br />
qual, como diz Pagliaro, ‘o ato lingüístico passa a encontrar a sua plena<br />
justificação. Surge assim, por necessida<strong>de</strong> didática, a gramática, que<br />
esclarece a funcionalida<strong>de</strong> do sistema, fixando-o no esquema i<strong>de</strong>al, e<br />
todavia real, da norma.”<br />
Acompanhando os gregos, Machado também parece <strong>de</strong>ixar patente<br />
que a gramática nasceu sob um duplo signo: o lógico – cognoscitivo e o<br />
didático-normativo.<br />
Tais consi<strong>de</strong>rações, ausentes nos compêndios escolares do seu<br />
tempo, Machado não as teria haurido,apesar <strong>de</strong> toda a sua genial<br />
precocida<strong>de</strong>, sem a participação <strong>de</strong> um mentor, e esse mentor, para nós,<br />
não po<strong>de</strong>ria ser outro senão Manuel <strong>de</strong> Melo, dono <strong>de</strong> uma ciência<br />
filológica e lingüística comprovada pela exaustivida<strong>de</strong> bibliográfica <strong>de</strong><br />
livros técnicos relacionadas nas notas <strong>de</strong> rodapé do seu livro Da Glótica<br />
em Portugal.<br />
Outro aspecto que se há <strong>de</strong> ressaltar nas citadas palavras <strong>de</strong><br />
Machado é a relação <strong>de</strong>sse saber filológico <strong>de</strong> cada utente ou usuário da
50 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
língua com o saber dos <strong>de</strong>mais utentes do país na construção <strong>de</strong> uma<br />
unida<strong>de</strong> idiomática mais ampla, <strong>de</strong> caráter nacional, unida<strong>de</strong> que iria<br />
construir aquilo a que ele mesmo, em célebre artigo estampado em O<br />
Novo Mundo, em Nova York, em 1873, chamou Instinto <strong>de</strong><br />
Nacionalida<strong>de</strong>. Vale a pena recordar o que <strong>de</strong>clara o jovem Machado<br />
com apenas 23 anos:<br />
Sempre achei que uma gramática é uma coisa séria. Uma<br />
boa gramática é um alto serviço a uma língua e a um país. Se<br />
essa língua é a nossa, e o país é este em que vivemos, o<br />
serviço cresce ainda e a empresa torna-se mais difícil.<br />
(Assis: <strong>19</strong>53, p.21).<br />
Isto para concluir que uma gramática procura assentar em cada<br />
falante da língua <strong>de</strong> um país a sua ciência filológica [entenda-se: a sua<br />
competência lingüística], cuja unida<strong>de</strong> espelha o instinto <strong>de</strong><br />
nacionalida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>ntro do conjunto <strong>de</strong> outros saberes nacionais, para se<br />
consubstanciar numa futura construção da consciência <strong>de</strong> nacionalida<strong>de</strong><br />
mediante a língua.<br />
Quase cem anos <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>ssa resenha, o italiano Antonino<br />
Pagliaro, um dos cinco mais esclarecidos e geniais lingüistas do século<br />
XX, repetia com maior profundida<strong>de</strong> e agu<strong>de</strong>za, mas com a mesma<br />
essência <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>, do alto <strong>de</strong> sua excelsa competência:<br />
A língua constitui a imagem mais completa e genuína da<br />
fisionomia natural e histórica dos povos. Disse-o, há mais <strong>de</strong><br />
um século, Guilherme von Humboldt, bom conhecedor <strong>de</strong><br />
assuntos <strong>de</strong>sta natureza e, pelo que sei, ninguém jamais o<br />
contradisse. Acrescentava ele que a índole espiritual <strong>de</strong> uma<br />
comunida<strong>de</strong> e a estrutura da língua estão intimamente tão<br />
ligadas entre si que, conhecida uma, a outra <strong>de</strong>via com<br />
facilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>duzir-se da primeira. Sobre isso não há<br />
controvérsia: a língua, representando por um lado a maneira<br />
natural através da qual um povo vê e conhece a realida<strong>de</strong>,
Machado <strong>de</strong> Assis e o seu i<strong>de</strong>ário <strong>de</strong> língua portuguesa ________________________________ Evanildo Bechara 51<br />
sistematizando-a e organizando-a nos sinais <strong>de</strong> classificação<br />
que são as palavras, encerra em si, por outro, o reflexo <strong>de</strong><br />
todas as experiências internas e externas, <strong>de</strong> todas as<br />
conquistas e <strong>de</strong> todos os contrastes, por que esse povo<br />
passou na ca<strong>de</strong>ia das gerações.<br />
De resto, observamos o mesmo na fala individual; nada<br />
revela melhor a fisionomia interior <strong>de</strong> cada indivíduo, a sua<br />
inteligência ou obtusida<strong>de</strong>, a sua cultura ou ignorância, o<br />
seu gosto ou tacanhez, do que a sua expressão lingüística;<br />
mas também as maneiras da sociabilida<strong>de</strong>, o meio, a<br />
ocupação, a companhia que freqüenta, o bairro em que<br />
habita, dão à fala <strong>de</strong> cada um indícios que permitem uma<br />
i<strong>de</strong>ntificação fácil e imediata (Pagliaro: <strong>19</strong>83, p. 95-96).<br />
Por tudo o que vimos até aqui, fácil nos é concluir que estas noções<br />
correm paralelas ao conceito <strong>de</strong> “língua comum”, cuja importância<br />
lingüística, social e histórica tem aguçado o interesse dos lingüistas,<br />
sociolinguísticos e historiadores da cultura.<br />
Essa consciência <strong>de</strong> que os homens <strong>de</strong> uma comunida<strong>de</strong> constroem<br />
e garantem pela língua comum a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> nacional, um evi<strong>de</strong>nte<br />
“instinto <strong>de</strong> nacionalida<strong>de</strong>”.<br />
O já citado Antonio Pagliaro ressalta magistralmente o que<br />
acabamos <strong>de</strong> dizer:<br />
(...) a língua comum é a expressão <strong>de</strong> uma consciência<br />
unitária comum, que po<strong>de</strong> ser cultural em sentido lato, como<br />
acontecia na Itália do século XIV ou na Alemanha <strong>de</strong> Lutero,<br />
e po<strong>de</strong> ser política, como é o caso das atuais línguas<br />
nacionais; nela temos sempre um fator volitivo que leva as<br />
comunida<strong>de</strong>s a superar as diferenças mais ou menos<br />
profundas dos falares locais, para a<strong>de</strong>rir pela expressão a<br />
uma solidarieda<strong>de</strong> diferente e mais vasta. Por outras<br />
palavras, quem, <strong>de</strong>ixando <strong>de</strong> parte o dialeto nativo, passa a<br />
falar a língua comum, exprime através <strong>de</strong>sse ato a sua
52 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
a<strong>de</strong>são volitiva a um mundo mais vasto, <strong>de</strong>terminado cultural<br />
ou politicamente, ou então, como acontece nos estados<br />
nacionais mo<strong>de</strong>rnos, pelas duas formas. (Pagliaro: <strong>19</strong>83,<br />
142-143).<br />
A intuição <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis <strong>de</strong> que o conceito <strong>de</strong> língua<br />
comum cabia perfeitamente à língua portuguesa escrita padrão<br />
praticada em Portugal e no Brasil levou-o a não adotar a opção<br />
daqueles brasileiros para quem as diferenças <strong>de</strong> uso entre os dois<br />
países justificavam, com nítida pressa e pouca fundamentação teórica,<br />
a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se consi<strong>de</strong>rar a existência <strong>de</strong> dois idiomas distintos,<br />
mormente <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> nós nos termos separado da antiga metrópole em<br />
1822 e nos termos constituído como nação in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte. Era a tese,<br />
entre outros, <strong>de</strong> Macedo Soares e Paranhos da Silva, aí pelo último<br />
quartel do século XIX. Machado chega a dizer isto que aqui<br />
afirmamos <strong>de</strong> maneira felicíssima: este princípio é antes “uma<br />
exageração <strong>de</strong> princípios”.<br />
Por essa mesma intuição nosso Machado entendia que a unida<strong>de</strong><br />
lingüística em que se assenta a língua comum não é, em rigor, uma<br />
unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> fato, mas, como ainda mais tar<strong>de</strong> ensinaria Pagliaro, “um<br />
esquema no qual encontram lugar todas as concordâncias substanciais<br />
que se verificam nas varieda<strong>de</strong>s dialetais” (Pagliaro: <strong>19</strong>83, p. 140).<br />
Doze anos <strong>de</strong>pois da resenha do Compêndio da Gramática<br />
Portuguesa, <strong>de</strong> Vergueiro e Pertence, em 1873, no já citado escrito<br />
“Instinto <strong>de</strong> nacionalida<strong>de</strong>”, Machado implicitamente volta à opinião ali<br />
expendida, segundo a qual “uma boa gramática é um alto serviço a uma<br />
língua e a um país”, e se essa língua é a nossa, e o país é o nosso, o<br />
serviço cresce ainda e a empresa torna-se mais difícil:<br />
Entre os muitos méritos dos nossos livros nem sempre figura<br />
o da pureza da linguagem. Não é raro ver intercalado em<br />
bom estilo os solecismos da linguagem comum, <strong>de</strong>feito grave,<br />
a que se junta o da excessiva influência da língua francesa.
Machado <strong>de</strong> Assis e o seu i<strong>de</strong>ário <strong>de</strong> língua portuguesa ________________________________ Evanildo Bechara 53<br />
Aproveita o escritor o momento para aludir à existência daqueles<br />
autores que fogem aos padrões da língua escrita culta pelo propósito <strong>de</strong><br />
diferenciar o uso brasileiro do português, propósito que ainda não<br />
assumirá a opinião iconoclasta <strong>de</strong> Monteiro Lobato que, muitos anos<br />
<strong>de</strong>pois, viria a <strong>de</strong>clarar que, assim como o português saíra dos erros do<br />
latim, o brasileiro sairá dos erros do português:<br />
Este ponto é objeto <strong>de</strong> divergência entre os nossos escritores.<br />
Divergência digo, porque, se alguns caem naqueles <strong>de</strong>feitos<br />
por ignorância ou preguiça, outros há que os adotam por<br />
princípio, ou antes por uma exageração <strong>de</strong> princípios.<br />
E acertando o passo com a melhor lição acerca <strong>de</strong> como se há <strong>de</strong><br />
enten<strong>de</strong>r a correta política idiomática na consolidação normativa da<br />
língua comum, justifica-se:<br />
Não há dúvida que as línguas se aumentam e alteram com o<br />
tempo e as necessida<strong>de</strong>s dos usos e costumes. Querer que a<br />
nossa pare no século <strong>de</strong> quinhentos, é um erro igual ao <strong>de</strong><br />
afirmar que sua transplantação para a América não lhe<br />
inseriu riquezas novas. A este respeito a influência do povo é<br />
<strong>de</strong>cisiva. Há, portanto, certos modos <strong>de</strong> dizer, locuções<br />
novas, que <strong>de</strong> força entram no domínio do estilo e ganham<br />
direito <strong>de</strong> cida<strong>de</strong>.<br />
Mas se isto é um fato incontestável, e se é verda<strong>de</strong>iro o<br />
princípio que <strong>de</strong>le se <strong>de</strong>duz, não me parece aceitável a<br />
opinião que admite todas as alterações da linguagem, ainda<br />
aquelas que <strong>de</strong>stroem as leis da sintaxe e a essencial pureza<br />
<strong>de</strong> idioma. A influência popular tem um limite; e o escritor<br />
não está obrigado a receber e dar curso a tudo o que o<br />
abuso, o capricho e a moda inventam e fazem correr. Pelo<br />
contrário, ele exerce também uma gran<strong>de</strong> parte <strong>de</strong> influência<br />
a este respeito, <strong>de</strong>purando a linguagem do povo e aperfeiçoando-lhe<br />
a razão (Assis: <strong>19</strong>53, p. 147).
54 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
A resenha ao Compêndio da Gramática Portuguesa, <strong>de</strong> Vergueiro<br />
e Pertence nos patenteia que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> cedo Machado <strong>de</strong> Assis, pelas leituras<br />
pessoais e pelo contacto com filólogos amigos como Ramos Paz e,<br />
principalmente, Manuel <strong>de</strong> Melo, tinha da linguagem, da língua, da<br />
gramática e da ação normativa do escritor na normatização da língua<br />
comum, idéias bem avançadas para seu tempo e que hoje po<strong>de</strong>riam ser<br />
repetidas por filólogos e lingüistas profissionais.<br />
O que teve a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> nos <strong>de</strong>ixar nessa resenha <strong>de</strong> 1862 e<br />
no artigo <strong>de</strong> 1872 acreditamos que foi <strong>de</strong> capital importância para o<br />
i<strong>de</strong>ário da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> Brasileira <strong>de</strong> <strong>Letras</strong> relativamente à sua posição e às<br />
suas tarefas sobre a língua portuguesa e a sua unida<strong>de</strong> superior com<br />
Portugal. Esse i<strong>de</strong>ário está bem <strong>de</strong>finido no Art. 1 o dos Estatutos da<br />
Instituição, quando diz que ela “tem por fim a cultura da língua e da<br />
literatura nacional”, e com o substancioso e programático Discurso<br />
inaugural <strong>de</strong> Joaquim Nabuco, na qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Secretário-Geral, quando<br />
<strong>de</strong>clara, ao tratar da língua portuguesa no Brasil: “A língua é um<br />
instrumento <strong>de</strong> idéias que po<strong>de</strong> e <strong>de</strong>ve ter uma fixi<strong>de</strong>z relativa; nesse<br />
ponto tudo precisamos empenhar para secundar o esforço e acompanhar<br />
os trabalhos dos que se consagrarem em Portugal à pureza do nosso<br />
idioma, a conservar as formas genuínas, características, lapidárias da sua<br />
gran<strong>de</strong> época... Nesse sentido nunca virá o dia em que Herculano, Garrett<br />
e os seus sucessores <strong>de</strong>ixem <strong>de</strong> ter toda a vassalagem brasileira. A língua<br />
há <strong>de</strong> ficar perpetuamente pro indiviso entre nós”.<br />
Essa vassalagem <strong>de</strong> que nos fala Nabuco é um aspecto daquela<br />
a<strong>de</strong>são volitiva <strong>de</strong> que nos fala Pagliaro e que um pouco mais <strong>de</strong> meio<br />
século <strong>de</strong>pois do Secretário-Geral da instituição acadêmica repetiria<br />
<strong>de</strong>stacado literato espanhol, Pedro Salinas, imbuído das mesmas<br />
convicções acerca da função niveladora da língua comum e do papel dos<br />
cientistas e artistas envolvidos nessa ação normativa:<br />
La admisión <strong>de</strong> la realidad <strong>de</strong> la norma lingüística no <strong>de</strong>be<br />
enten<strong>de</strong>rse como sometimiento a una autoridad académica<br />
inexistente e innecesaria sino a la compreensión <strong>de</strong>l hecho <strong>de</strong><br />
que en todos los países cultos <strong>de</strong> Iberoamérica se emplea una
Machado <strong>de</strong> Assis e o seu i<strong>de</strong>ário <strong>de</strong> língua portuguesa ________________________________ Evanildo Bechara 55<br />
língua general basada en la fi<strong>de</strong>lidad al espíritu profundo <strong>de</strong>l<br />
lenguaje y a su tradición literaria. La norma lingüística<br />
brota <strong>de</strong> una realidad evi<strong>de</strong>nte. Hay aún algunos filólogos a<br />
caballo en su doctrina naturalista <strong>de</strong> que el lenguaje no tiene<br />
jerarquías <strong>de</strong> excelencia o bajeza y que todas sus formas, por<br />
el simple hecho <strong>de</strong> existir, son igualmente respetables<br />
[Salinas: <strong>19</strong>70, p. 77].<br />
No discurso <strong>de</strong> encerramento do ano acadêmico <strong>de</strong> 1897, o<br />
primeiro da novel instituição, assinala Machado, entre as tarefas para<br />
1898, colher, “se for possível, alguns elementos do vocabulário crítico<br />
dos brasileirismos entrados na língua portuguesa, e das diferenças no<br />
modo <strong>de</strong> falar e escrever dos dois povos, como nos obrigamos por um<br />
artigo do regimento interno”. E <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> dizer que essa tarefa <strong>de</strong>ve ser<br />
levada com muito critério crítico e paciência, conclui com certeiras<br />
pon<strong>de</strong>rações <strong>de</strong> um filólogo:<br />
A <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong>, trabalhando pelo conhecimento <strong>de</strong>sses fenômenos,<br />
buscará ser, com o tempo, a guardiã da nossa língua.<br />
Caber-lhe-á então <strong>de</strong>fendê-la daquilo que não venha das<br />
fontes legítimas, - o povo e os escritores, - não confundindo a<br />
moda que perece, com o mo<strong>de</strong>rno, que vivifica. Guardar não<br />
é impor; nenhum <strong>de</strong> nós tem para si que a <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>de</strong>crete<br />
fórmulas. E <strong>de</strong>pois para guardar uma língua é preciso que<br />
ela se guar<strong>de</strong> também a si mesma, e o melhor dos processos é<br />
ainda a composição e a conservação <strong>de</strong> obras clássicas. A<br />
autorida<strong>de</strong> dos mortos não aflige, e é <strong>de</strong>finitiva.<br />
Esse i<strong>de</strong>ário filológico e lingüístico está patente não só no seu<br />
discurso, mas ainda na sua ação <strong>de</strong> escritor. Assim é que no seu tempo a<br />
caça aos galicismos praticamente resumia a tarefa dos puristas; Machado<br />
criticava o excesso <strong>de</strong> galicismos, mas o agasalhava, quando necessário<br />
ou funcional às necessida<strong>de</strong>s do estilo. Ao ser criticado em nota anônima<br />
por ter empregado no conto O alienista o francesismo reproche,
56 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>u-se dizendo que, além <strong>de</strong> não ser galicismo, pois encontrara nos<br />
clássicos reproche e o verbo reprochar, e ainda porque achava<br />
foneticamente insuportável o correspon<strong>de</strong>nte vernáculo exprobração. E<br />
conclui: Daí a minha insistência em preferir o outro, <strong>de</strong>vendo notar-se<br />
que não o vou buscar para dar ao estilo um verniz <strong>de</strong> estranheza, mas<br />
quando a idéia o traz consigo (Assis: 1882, p. 293).<br />
O esforço <strong>de</strong> cultivar o mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> sua língua literária fez que<br />
Machado acompanhasse a boa lição da normativida<strong>de</strong> proclamada pelos<br />
bons autores. Na última fase <strong>de</strong> sua produção literária o escritor eliminou<br />
solecismos que corriam na língua escrita entre os séculos XVIII e XIX.<br />
Assim é que acomodou o verbo haver no singular, como impessoal,<br />
como sinônimo <strong>de</strong> existir, na última fase dos seus escritos. Essa sintaxe<br />
vingou entre bons escritores do século XVIII como Matias Aires e foi<br />
agasalhada no século XIX. Machado não fez exceção, e até na resenha ao<br />
Compêndio <strong>de</strong> Vergueira e Pertence <strong>de</strong>ixa escapar “Metódico no plano e<br />
claro na <strong>de</strong>finição, não sei que hajam outros requisitos a <strong>de</strong>sejar ao autor<br />
<strong>de</strong> uma gramática (...)” (p.22).<br />
Vale lembrar que na gramática do porte <strong>de</strong> A. G. Ribeiro <strong>de</strong><br />
Vasconcelos, na p. 254 n. 1 <strong>de</strong> sua Gramática Portuguesa (s/d, mas <strong>de</strong><br />
<strong>19</strong>00) consi<strong>de</strong>rava artificial o uso do verbo haver no singular, explicando<br />
o plural por atração.<br />
Também Machado usou o verbo fazer no plural aplicado a tempo<br />
(Fazem três dias) até a fase dos Contos fluminenses, corrigindo-se <strong>de</strong>pois<br />
para Faz três anos, na última quadra <strong>de</strong> seus escritos.<br />
Oxalá tenhamos podido, ainda que esboçado um tema que está a<br />
exigir pesquisa mais aprofundada, fixar os alicerces teóricos e funcionais<br />
do i<strong>de</strong>ário lingüístico <strong>de</strong>ste gran<strong>de</strong> artista da língua portuguesa, e da<br />
influência que, nesta realida<strong>de</strong>, pelo prestígio patente <strong>de</strong> sua estatura<br />
intelectual, exerceu sobre os escritores do seu tempo e dos que <strong>de</strong>pois,<br />
consciente ou inconscientemente, vieram a integrar-lhe a corte e a<br />
vassalagem.
Machado <strong>de</strong> Assis e o seu i<strong>de</strong>ário <strong>de</strong> língua portuguesa ________________________________ Evanildo Bechara 57<br />
Indicações Bibliográficas<br />
Assis, Machado <strong>de</strong> (<strong>19</strong>53) [1862] Crítica Literária. “Resenha ao<br />
Compêndio <strong>de</strong> Língua Portuguesa”, por Vergueiro e Pertence. “In<br />
Crítica Literária, Rio <strong>de</strong> Janeiro, W.M. Jackson. Editores, <strong>19</strong>53.<br />
(<strong>19</strong>53) [1872] “Literatura Brasileira – Instinto <strong>de</strong> Nacionalida<strong>de</strong>”. In<br />
Crítica Literária.<br />
(2000) [1897] “Discurso do Sr. Machado <strong>de</strong> Assis”. Inauguração da<br />
<strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong>. In Discursos Acadêmicos Tomo I – <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> Brasileira<br />
<strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, (Rio <strong>de</strong> janeiro, 2005).<br />
(2005) [1897] “Discurso do Sr. Machado <strong>de</strong> Assis “Encerramento do 1 o<br />
ano acadêmico. In Discursos Acadêmicos, Tomo I.<br />
Discursos Acadêmicos (2005), Tomo I; volumes I-II-III-IV. 1897-<strong>19</strong><strong>19</strong>.<br />
<strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> Brasileira <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, Rio <strong>de</strong> Janeiro, 2005.<br />
Melo, Manuel <strong>de</strong> (1872). Da Glóttica em Portugal. Carta ao autor <strong>de</strong><br />
Diccionario Bibliographico Português. Rio <strong>de</strong> Janeiro, Typographia<br />
Perseverança, 1872.<br />
Nabuco, Joaquim (1897). “Discurso do Sr. Joaquim Nabuco”. In:<br />
Discursos Acadêmicos”, Tomo I, 2005.<br />
Pagliaro, Antonino (<strong>19</strong>83) [<strong>19</strong>51]. A Vida do Sinal. Ensaios sobre a<br />
língua e outros símbolos. Tradução e prefácio <strong>de</strong> Aníbal Pinto <strong>de</strong><br />
Castro. 2 a ed., Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, <strong>19</strong>83.<br />
Vasconcelos, José Leite <strong>de</strong> (<strong>19</strong>22). Epiphanio Dias. Sua vida e labor<br />
científico. Lisboa, Imprensa Nacional <strong>de</strong> Lisboa, <strong>19</strong>22.<br />
Vergueiro – Pertence (18<strong>01</strong>). Compêndio da Gramática Portuguesa.<br />
Lisboa, Imprensa Nacional, 1861.
58 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
DOM CASMURRO:<br />
UMA TRAGÉDIA VIRTUAL<br />
Elizabeth Rennó*<br />
Machado <strong>de</strong> Assis constitui um fenômeno na Literatura Brasileira –<br />
agora também conhecido em outras terras pelas traduções que têm sido<br />
feitas <strong>de</strong> seus livros.<br />
Este fenômeno tem por alcunha O Bruxo do Cosme Velho,<br />
referência ao bairro on<strong>de</strong> morava e à prestidigitação que encaminhava a<br />
pena por suas mãos <strong>de</strong> mágico, narrador onisciente e todo-po<strong>de</strong>roso.<br />
Esmiuçava a alma humana, <strong>de</strong> modo irônico e com tais sutilezas,<br />
que se fazia parte do personagem, e com sua bruxaria, <strong>de</strong>svendava os<br />
segredos do coração e enrodilhava os mistérios da alma humana.<br />
Machado manipulava a palavra e a empregava no momento certo,<br />
com tal precisão e acuida<strong>de</strong>, não fosse ele o brasileiro preocupado com os<br />
rumos da educação no Brasil e com o zelo <strong>de</strong>vido ao nosso idioma.<br />
De sua obra <strong>de</strong>finida como um libelo, disse Nelson Werneck Sodré,<br />
“Quando Machado afirma a literatura como ‘mais do que passatempo e<br />
menos do que apostolado’ compreen<strong>de</strong> que a arte não se <strong>de</strong>stina a<br />
preencher os ócios, como era aceito naquele tempo e em muitos meios,<br />
mas tem missão a cumprir e <strong>de</strong>ve ensinar aos homens as coisas da vida,<br />
mas tal ensino per<strong>de</strong>ria vigor e se diluiria na refratarieda<strong>de</strong> se tomasse a<br />
forma <strong>de</strong> um apostolado, se <strong>de</strong>nunciasse intenção. Assim, realiza a sua<br />
* Mestra em Literatura Brasileira, Presi<strong>de</strong>nte da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> Municipalista <strong>de</strong> Minas Gerais,<br />
Presi<strong>de</strong>te Emérita da AFEMIL. Escritora, ocupa a ca<strong>de</strong>ira 21 da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong><br />
<strong>Letras</strong>.
60 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
obra a mais alta elaborada em nosso país, aquela em que está mais<br />
presente o Brasil, numa fase característica <strong>de</strong> seu <strong>de</strong>senvolvimento.”<br />
Esta obra por artes <strong>de</strong> magia ou melhor, do bem escrever e da<br />
agu<strong>de</strong>za <strong>de</strong> seu autor, continua tão atual e viva e lida e discutida e<br />
assunto para palestras, hoje ainda, como neste admirável Dom Casmurro,<br />
em seus cento e tantos anos.<br />
A partir <strong>de</strong> uma história banal, Machado, o narrador, construtor do<br />
texto, apresenta o “real” da ficção. O narrador, distinto do autor,<br />
representa a fusão entre ele próprio, a personagem e o autor que requer a<br />
participação <strong>de</strong> um leitor que possa interpretar a mensagem que se<br />
repassa. O autor provoca a reação do leitor crítico, já que ele diz<br />
negando.<br />
Na fala do texto, em que as vivências do contexto são <strong>de</strong>scritas, o<br />
autor é o sujeito do discurso e como manipulador da língua coloca o real<br />
para afirmá-lo ou negá-lo, como assegura Barthes. O “real” da ficção<br />
passa a ser mais importante do que o “real” propriamente dito.<br />
Machado <strong>de</strong> Assis era um transfigurador da realida<strong>de</strong>, na colocação<br />
da verossimilhança feita através da ilusão da vida. Seria a exemplificação<br />
daquele “real” bartesiano, que aflorava dos pequenos flagrantes <strong>de</strong> uma<br />
observação <strong>de</strong>talhista, comum nos romances realistas.<br />
Na Antigüida<strong>de</strong>, o real era colocado ao lado da História, em<br />
oposição ao verossímil, próprio do discurso narrativo. As coisas são o<br />
que <strong>de</strong>las sabem os que lêem ou ouvem e não o que sabe o que fala ou<br />
escreve.<br />
O narrador é o personagem central da história, Bento <strong>de</strong> Albuquerque<br />
Santiago, que relembra os episódios <strong>de</strong> sua vida. Quando criança era<br />
Bentinho e <strong>de</strong>pois passa a ser Dom Casmurro. Seguimos o contado<br />
revivido por Bentinho, que aí contrapõe o efeito do “real”, primeiro<br />
porque escreve sobre fatos acontecidos há muito e segundo, por<br />
apresentar somente a sua visão dos acontecimentos acrescida <strong>de</strong> sua<br />
análise particular, <strong>de</strong> seu ciúme doentio, sob o egoísmo, e da sua<br />
incapacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> amar.<br />
Temos assim o romance criado pelo narrador-personagem,<br />
Bentinho, mo<strong>de</strong>lado pelo autor, Machado, que longe <strong>de</strong> um contato com
Dom Casmurro: uma tragédia virtual ________________________________________________ Elizabeth Rennó 61<br />
o mundo exterior e ensimesmado sobre sua emotivida<strong>de</strong> introspectiva,<br />
tenta reviver, e repassar ao leitor, o que narra. Tentativa que se torna<br />
“falta <strong>de</strong>le mesmo e cuja lacuna é tudo, na impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> atar as<br />
duas pontas da vida ou <strong>de</strong> restaurar a adolescência na velhice”, como é<br />
dito no capítulo 2, intitulado DO LIVRO.<br />
Antes do capítulo referido DO LIVRO, Machado, famoso por suas<br />
digressões e interferências em seus relatos, interrompidas sem quê nem<br />
porquê, para abordar outro assunto, traduz o título que <strong>de</strong>u a ele, o livro.<br />
Fruto <strong>de</strong> um vizinho, companheiro <strong>de</strong> uma viagem <strong>de</strong> bon<strong>de</strong>, poeta que<br />
lhe pedira opinião sobre seus versos e que se <strong>de</strong>sgostara com a<br />
casmurrice do interrogado e Dom por consi<strong>de</strong>rar seus ares <strong>de</strong> fidalgo.<br />
Vamos à história, relembrada em sua forma linear.<br />
D. Glória, mãe <strong>de</strong> Bentinho, pagando uma promessa, preten<strong>de</strong> levar<br />
seu filho a ingressar no seminário: seria padre, Bentinho. Porém, sempre<br />
há este “porém”, para que os contos sejam capazes <strong>de</strong> continuação e<br />
criem o tal efeito <strong>de</strong> real. Na casa da rua <strong>de</strong> Matacavalos, on<strong>de</strong> moram o<br />
filho, a mãe, o agregado, figura comum participante das famílias <strong>de</strong><br />
posses, tio Cosme, prima Justina, <strong>de</strong>sfaz-se o projeto. E é o próprio José<br />
Dias, o homem que abusa <strong>de</strong> superlativos em seu linguajar empolado,<br />
que termina por unir as duas famílias vizinhas, os Santiago e os Pádua, a<br />
que pertence Capitu, o pivô <strong>de</strong> toda a questão. José Dias diz a D. Glória<br />
que Bentinho e Capitu andavam aos cantos, em segredinhos, e que<br />
constituiria uma gran<strong>de</strong> dificulda<strong>de</strong> separá-los: “Se eles pegam <strong>de</strong><br />
namoro...” Bentinho ouvira tudo atrás da porta, recurso conveniente para<br />
que se <strong>de</strong>lineie a trama.<br />
Surge, então, o nó da narrativa e aparece um dado significativo da<br />
literatura machadiana: o conflito que guiará o <strong>de</strong>senrolar do romance pela<br />
ciência do individuo do que po<strong>de</strong>rá ser o seu <strong>de</strong>sempenho futuro, <strong>de</strong><br />
acordo com o que se espera <strong>de</strong>le.<br />
O narrador comenta: “Verda<strong>de</strong>iramente foi o princípio <strong>de</strong> minha<br />
vida.” “Com que então eu amava Capitu e Capitu a mim? Realmente,<br />
andava cosido às saias <strong>de</strong>la, mas não ocorria nada entre nós que fosse<br />
<strong>de</strong>veras secreto.” “Tudo isto me era apresentado pela boca <strong>de</strong> José Dias,<br />
que me <strong>de</strong>nunciara a mim mesmo.”
62 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
Machado expõe uma realida<strong>de</strong> que só se concretiza no espaço da<br />
metáfora. O papel <strong>de</strong> José Dias, o agregado, passa <strong>de</strong> secundário a<br />
revelador quando adverte D. Glória, a mãe <strong>de</strong> Bentinho, prometido ao<br />
seminário, que este andava metido pelos cantos com uma adolescente<br />
<strong>de</strong>smiolada, sua vizinha e amiga <strong>de</strong>s<strong>de</strong> criança. Esta visão, preconceituosa,<br />
reflete o que se quer qualificar: o caráter <strong>de</strong> Capitu, a vizinha<br />
dissimulada, calculista.<br />
José Dias é o fio condutor da trama ou da intriga com suas frases<br />
pomposas, superlativas e pelos comentários que o fazem personagem da<br />
mais comprovada ambigüida<strong>de</strong>, situado entre o ser e o parecer, unindo e<br />
<strong>de</strong>sunindo, colocando dúvidas <strong>de</strong>ntro das dúvidas. Até mesmo para<br />
Bentinho, que <strong>de</strong>scobriu que amava Capitu pelas palavras <strong>de</strong> José Dias.<br />
Este encarna o papel do coro do teatro grego, coor<strong>de</strong>nando e<br />
comentando os acontecimentos, que faz, às vezes, precipitar. Também na<br />
tragédia grega, a metáfora e a ambigüida<strong>de</strong> conduzem à inexorabilida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> um <strong>de</strong>stino traçado pelas Parcas. Em A Ética da Aventura, Lêdo Ivo<br />
i<strong>de</strong>ntifica a posição <strong>de</strong> José Dias, na galeria machadiana, que <strong>de</strong><br />
personagem secundário, ilusório, representa um papel <strong>de</strong>cisivo: “Com<br />
efeito, diz ele, extirpemos José Dias do texto e do contexto do romance, e<br />
este per<strong>de</strong>ria a sua razão <strong>de</strong> ser, seqüestrado <strong>de</strong> sua própria e sinuosa<br />
motivação.”<br />
José Dias é um gran<strong>de</strong> dissimulado, por sua condição <strong>de</strong> parasita,<br />
<strong>de</strong> aventureiro, que se mete a conselheiro, que se torna indispensável à<br />
família que o acolheu. É ele que <strong>de</strong>scobre que Capitu “tem olhos <strong>de</strong><br />
cigana oblíqua e dissimulada”, o que faz Bentinho <strong>de</strong>scobrir os “olhos <strong>de</strong><br />
ressaca”, “que traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma<br />
feição nova, uma força que arrastava para <strong>de</strong>ntro, como a vaga que se<br />
retira da praia, nos dias <strong>de</strong> ressaca.”<br />
Esta foi a <strong>de</strong>scoberta, paralela à do amor.<br />
A do amargor foi também feita através dos olhos <strong>de</strong> ressaca,<br />
quando da morte <strong>de</strong> Escobar, o suposto rival: “Momento houve em que<br />
os olhos <strong>de</strong> Capitu fitaram o <strong>de</strong>funto, quais os da viúva, sem o pranto<br />
nem as palavras <strong>de</strong>sta, mas gran<strong>de</strong>s e abertos, como a vaga do mar lá<br />
fora, como se quisesse tragar também o nadador da manhã.”
Dom Casmurro: uma tragédia virtual ________________________________________________ Elizabeth Rennó 63<br />
Para Beda Alleman, a ironia é uma auto-representação, uma<br />
encenação, em que o discurso narrativo é contaminado pela presença do<br />
autor como sujeito critico e analítico <strong>de</strong> uma situação perturbadora.<br />
Machado como condutor <strong>de</strong> uma história coloca a racionalida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>ntro da irracionalida<strong>de</strong> em que Bentinho se <strong>de</strong>bate e como sujeito<br />
analítico passa a ser também o sujeito da ironia.<br />
Com a máscara da ironia e pela luci<strong>de</strong>z, na continuação <strong>de</strong> seu<br />
relato, na sua metonímia, afasta o leitor da superfície do texto para<br />
provocar-lhe a auto-reflexão e o seu engajamento.<br />
Nesta estratégia, que utiliza a ironia e que se assemelha à metáfora,<br />
está a intencionalida<strong>de</strong> do autor.<br />
Bentinho afirma no capitulo 31: “Capitu é Capitu, isto é, uma<br />
criatura mui particular, mais mulher do que eu era homem. Se ainda o<br />
não disse, aí fica. Se disse, fica também. Há conceitos que se <strong>de</strong>vem<br />
incutir na alma do leitor, à força <strong>de</strong> repetição.” Estão aí as palavras do<br />
autor, o sujeito manipulador.<br />
Ou no capítulo 56, Um Seminarista, pois o nosso herói freqüentou,<br />
por algum tempo, o seminário, afim <strong>de</strong> afirmar ou negar a sua pretensa<br />
vocação sacerdotal:<br />
“A alma da gente, como sabes, é uma casa assim disposta, não raro<br />
com janelas para todos os lados, muita luz e ar puro. Também as há<br />
fechadas e escuras, sem janelas, ou com poucas e gra<strong>de</strong>adas, à<br />
semelhança <strong>de</strong> conventos e prisões. Outrossim, capelas e bazares, simples<br />
alpendres ou paços suntuosos.<br />
Não sei o que era a minha. Eu não era ainda casmurro, nem Dom<br />
Casmurro; o receio é que me tolhia a franqueza, mas como as portas não<br />
tinham chaves nem fechaduras, bastava empurrá-las, e Escobar<br />
empurrou-as e entrou. Cá o achei <strong>de</strong>ntro, cá ficou até que...”<br />
A história <strong>de</strong> Dom Casmurro começa com a <strong>de</strong> Bentinho, um<br />
pouco <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>nada sob o peso <strong>de</strong> uma promessa, a <strong>de</strong> sua mãe <strong>de</strong> fazê-lo<br />
padre. Resolvido foi o impasse pela substituição: o custeio dos estudos <strong>de</strong><br />
um seminarista pobre, e <strong>de</strong>pois o curso <strong>de</strong> Direito e o casamento com<br />
Capitu.<br />
Comprove-se a ironia <strong>de</strong> Machado no capítulo 99:
64 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
“Minha mãe, quando eu regressei bacharel quase estalou <strong>de</strong><br />
felicida<strong>de</strong>. Ainda ouço a voz <strong>de</strong> José Dias, lembrando o evangelho <strong>de</strong> São<br />
João, e dizendo ao ver-nos abraçados:<br />
– Mulher, eis aí teu filho! Filho, eis aí tua mãe!<br />
Minha mãe, entre lágrimas:<br />
– Mano Cosme, é a cara do pai, não é?<br />
– Sim, tem alguma coisa, os olhos, a disposição do rosto... o bigo<strong>de</strong><br />
é que a <strong>de</strong>sfaz um pouco...”<br />
Suce<strong>de</strong>m-se os acontecimentos: o casamento, em tar<strong>de</strong> chuvosa <strong>de</strong><br />
março <strong>de</strong> 1865, o presságio <strong>de</strong> D. Glória: “Tu serás feliz, meu filho”, a<br />
mesma frase que Bentinho repetia para si mesmo e cuidava ser <strong>de</strong> uma<br />
fada invisível a voz ouvida.<br />
O nascimento <strong>de</strong> Ezequiel, os mimos com que era tratado, a<br />
amiza<strong>de</strong> continuada entre os dois casais – Escobar, o amigo, casara-se<br />
com Sancha, amiga <strong>de</strong> Capitu. Começam os ciúmes <strong>de</strong> Bentinho e as<br />
armações feitas mentalmente quanto à suposta infi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> da mulher.<br />
Vêm <strong>de</strong>pois a morte <strong>de</strong> Escobar, a separação do casal, o exílio <strong>de</strong> Capitu<br />
e Ezequiel, a visita <strong>de</strong> Ezequiel ao pai, sua morte e a continuação da vida<br />
árida do Dom Casmurro, que diz premonitoriamente no capítulo 68:<br />
“Montaigne escreveu <strong>de</strong> si: ce ne pas mes gestes que j´écris; c´est moi,<br />
c´est mon essence. Ora, há só um modo <strong>de</strong> escrever a própria essência, é<br />
contá-la toda, o bem e o mal. Tal faço eu, à medida que me vai<br />
lembrando e convindo à construção ou reconstrução <strong>de</strong> mim mesmo. Por<br />
exemplo, agora que contei um pecado, diria com muito gosto alguma<br />
bela ação contemporânea, se me lembrasse, mas não me lembra; fica<br />
transferida a melhor oportunida<strong>de</strong>.”<br />
Machado <strong>de</strong> Assis iniciou a montagem e a <strong>de</strong>smontagem dos<br />
caracteres humanos, primeiro nos folhetins, passando para o conto e<br />
<strong>de</strong>pois para o romance. Tanto os romances como os contos e os folhetins<br />
revelam a mesma finura <strong>de</strong> observação, a ironia piedosa ou cética, que<br />
marcam a sua visão do mundo, como bem pontificou Afrânio Coutinho.<br />
O mesmo crítico <strong>de</strong>clara que “vindo do Romantismo, Machado não<br />
se entregou aos exageros do naturalismo, permanecendo num terreno<br />
apenas realista, mas pregando uma teoria formal ou clássica na literatura.
Dom Casmurro: uma tragédia virtual ________________________________________________ Elizabeth Rennó 65<br />
E assim, nesta encruzilhada entre Romantismo e Realismo, colhendo nas<br />
teorias estéticas <strong>de</strong> ambas as escolas aquilo que têm <strong>de</strong> útil e somando-as<br />
aos princípios eternos da arte literária, criou uma doutrina altamente<br />
seminal, ainda hoje válida, graças à in<strong>de</strong>pendência e superiorida<strong>de</strong> com<br />
que se situou. Sua teoria e sua prática encontram-se no mesmo grau <strong>de</strong><br />
excelência.”<br />
Machado respeita o seu personagem, isto é, o Leitmotiv, força e<br />
vida: é in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte, age com objetivida<strong>de</strong> e autonomia, e às vezes<br />
escapa-lhe das mãos. Pela memória, pano <strong>de</strong> fundo, tudo sabe e comenta.<br />
Às vezes per<strong>de</strong> a realida<strong>de</strong> exterior, concentrando-se apenas no íntimo e<br />
o inconsciente metamorfoseia-se no corpo: “As pernas <strong>de</strong>sceram-me os<br />
três <strong>de</strong>graus que davam para a chácara, e caminharam para o quintal<br />
vizinho. Era costume <strong>de</strong>las, às tar<strong>de</strong>s, e às manhãs também. Que as<br />
pernas também são pessoas, apenas inferiores aos braços, e valem <strong>de</strong> si<br />
mesmas, quando a caça não as rege por meio <strong>de</strong> idéias. As minhas<br />
chegaram ao pé do muro.” (Capítulo 13 – Capitu).<br />
Os estados <strong>de</strong> ânimo se diversificam: “Se te lembras bem da Capitu<br />
menina, hás <strong>de</strong> reconhecer que uma estava <strong>de</strong>ntro da outra, como a fruta<br />
<strong>de</strong>ntro da casca.” (Capítulo 148).<br />
Para Machado <strong>de</strong> Assis a natureza é egoísta, numa concepção<br />
antropomórfica, mantém-se impassível diante do ser humano e como os<br />
<strong>de</strong>uses gregos dispensa friamente os bens e os males.<br />
Fábio Lucas adota uma posição sociológica em sua análise: “A<br />
Condição Feminina <strong>de</strong> Capitu”, a partir da situação da mulher na<br />
socieda<strong>de</strong> imperial. Coloca a separação entre Capitu e Bentinho na<br />
estratificação social e no po<strong>de</strong>r da terra. Bentinho é seduzido pelos<br />
atrativos físicos e espirituais <strong>de</strong> Capitu. O seu <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> Capitu era o <strong>de</strong><br />
posse, proprieda<strong>de</strong> que a sua consciência contraditória <strong>de</strong>itou por terra: a<br />
realização <strong>de</strong> uma felicida<strong>de</strong> conjunta. Bentinho vai construindo um<br />
patíbulo, álibi <strong>de</strong> sua <strong>de</strong>ficiência humana. As provas que reúne são<br />
ambíguas, tanto po<strong>de</strong>m ser comprobatórias ou nulas.<br />
A ascensão social <strong>de</strong> Capitu é anulada, a voz narrativa é masculina,<br />
e a narração machadiana, pela boca dos personagens masculinos,<br />
configura as mulheres como dotadas <strong>de</strong> frivolida<strong>de</strong> e dissimulação.
66 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
Capitu, possuindo, como se <strong>de</strong>screve, superiorida<strong>de</strong> afetiva e humana, é<br />
<strong>de</strong>scrita como <strong>de</strong> condição inferior. E acaba o sendo naquele quadro<br />
social, cujos mecanismos <strong>de</strong>svalorizam a mulher, em busca <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong><br />
e autonomia, em sentido duplamente preconceituoso: “Por ser pobre e<br />
por ser mulher.”<br />
D. Casmurro, Bentinho, não consegue ligar as duas pontas da vida,<br />
quando <strong>de</strong> sua tentativa <strong>de</strong> reproduzir no Engenho Novo a casa da rua <strong>de</strong><br />
Matacavalos. (Capítulo 2).<br />
Machado <strong>de</strong> Assis explora, em algumas <strong>de</strong> suas obras o motivo das<br />
“estrelas duplas”, em sua eterna busca <strong>de</strong> uma unificação ou, antecipando-se<br />
à teoria psicanalítica, a busca da complementarieda<strong>de</strong>, em que<br />
yin e yang se conjugam na formação do ser perfeito.<br />
Voltando a Lêdo Ivo: “Obra aberta, Dom Casmurro, assenta a sua<br />
verda<strong>de</strong> romanesca na ambigüida<strong>de</strong>, como já dissemos, sendo, pois,<br />
esteticamente irrelevante interrogar-se se Capitu é culpada ou inocente,<br />
se andou <strong>de</strong> amores escondidos com Escobar ou se tudo não passou <strong>de</strong><br />
imaginações <strong>de</strong> um temperamento ciumento, sensual e doentio como o <strong>de</strong><br />
Bentinho.”<br />
Quanto à semelhança <strong>de</strong> Ezequiel com Escobar, a própria Capitu<br />
alu<strong>de</strong> à casualida<strong>de</strong> e chama a atenção do marido para o olhar <strong>de</strong><br />
Bentinho ser “esquisito” como o <strong>de</strong> seu pai e o <strong>de</strong> Escobar. Muitas<br />
coincidências concorrem para colocar dúvidas <strong>de</strong>ntro das dúvidas.<br />
Pela leitura linear do romance po<strong>de</strong>rá ser admitido o adultério, no<br />
entanto lido em profundida<strong>de</strong>, conhecer-se-à a figura cínica e perversa <strong>de</strong><br />
Bentinho: e é ele quem conta a história.<br />
No capítulo “A mão <strong>de</strong> Sancha”, <strong>de</strong>screve Bentinho a sua intenção<br />
adúltera com a mulher <strong>de</strong> Escobar, amiga <strong>de</strong> infância <strong>de</strong> Capitu,<br />
incentivado pelos olhos <strong>de</strong> Sancha e afirmando mais uma vez que os<br />
“olhos femininos são as portas e as janelas do pecado escondido no fundo<br />
da alma.”<br />
Dom Casmurro mais sugere do que revela, está mais na sombra do<br />
que na luz. O narrador não tem, como o autor, a omnisciência, apenas vê<br />
a realida<strong>de</strong> por um ângulo, insuficiente para revelar o mistério das vidas<br />
que se entrelaçam com a <strong>de</strong>le.
Dom Casmurro: uma tragédia virtual ________________________________________________ Elizabeth Rennó 67<br />
Aí resi<strong>de</strong> a mágica extraordinária do Bruxo Machado, a narração<br />
psicológica, cujo po<strong>de</strong>r emergente firma-se na ambigüida<strong>de</strong> das<br />
interpretações.<br />
Os capítulos “Otelo”, “A Xícara <strong>de</strong> Café”, “Segundo Impulso”, já<br />
no final do processo <strong>de</strong>scritivo da história, dimensionam a dubieda<strong>de</strong>, a<br />
psicose doentia, a vingança criminosa, que quase se perpreta, se não fosse<br />
a pena machadiana sustá-la, dominando a ação <strong>de</strong> Bentinho, ao tentar o<br />
suicídio, e o assassínio <strong>de</strong> seu filho, uma pobre criança. Seria trágico<br />
<strong>de</strong>mais, para a criação machadiana, governada pela ironia e pela<br />
dubieda<strong>de</strong>.<br />
Comprara Bentinho o veneno para ele mesmo... No entanto, após o<br />
teatro, <strong>de</strong>sistiu da idéia: “O último ato mostrou-se que não eu, mas<br />
Capitu <strong>de</strong>via morrer.” E continua: “Ainda assim tive ânimo <strong>de</strong> mexer o<br />
café, os olhos vagos, a memória em Desdêmona inocente; o espetáculo<br />
da véspera vinha intrometer-se na realida<strong>de</strong> da manhã...”<br />
Nesta preparação lúgubre e criminosa, apareceu-lhe o filho, que se<br />
lhe atirou aos beijos. Voltou-lhe o impulso criminoso e tentou fazer com<br />
que o café lhe <strong>de</strong>itasse goela abaixo. “Não sei que senti que me fez<br />
recuar. Pus a xícara em cima da mesa, e <strong>de</strong>i por mim a beijar doidamente<br />
a cabeça do menino.”<br />
Anos <strong>de</strong>pois, Ezequiel vem visitá-lo, antes <strong>de</strong> partir para uma<br />
viagem científica, on<strong>de</strong> morre, após contrair uma febre. Ao receber a<br />
noticia <strong>de</strong> sua morte, este é o comentário <strong>de</strong> Bentinho, no capítulo 146:<br />
“Apesar <strong>de</strong> tudo, jantei bem e fui ao teatro.”<br />
Discute-se a rendição <strong>de</strong> Capitolina, o que representa uma<br />
conspurcação à obra <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis, que, no dizer <strong>de</strong> Carlos<br />
Fuentes, continua a ser o maior romancista das Américas.<br />
Josué Montelo afirmou, em entrevista, que Capitu foi moldada à<br />
semelhança <strong>de</strong> Carolina Novaes, esposa amada e louvada <strong>de</strong> Machado.<br />
Isto <strong>de</strong>rrubaria a hipótese da existência <strong>de</strong> uma adúltera real, personagem<br />
daquele efeito artificioso, expressando o fruto da imaginação <strong>de</strong> um<br />
marido ciumento, na trama do escritor. As mulheres, na sua dubieda<strong>de</strong> e<br />
artificialismo, são assim <strong>de</strong>scritas pela ótica masculina e pelo tom<br />
machista da socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> então. Não seria este também um posiciona-
68 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
mento irônico <strong>de</strong> Machado? Não lançaria o autor mácula sobre o caráter<br />
da esposa nem apreciaria, com certeza, a atitu<strong>de</strong> sensacionalista <strong>de</strong> um<br />
julgamento póstumo, 100 anos após a publicação <strong>de</strong> Dom Casmurro, <strong>de</strong><br />
que participaram figuras do cenário cultural atual.<br />
O que Machado quis, e o fez <strong>de</strong> modo absolutamente brilhante, foi<br />
o <strong>de</strong>svelar <strong>de</strong> um “stream of conscientiouness”, no <strong>de</strong>terminar suspeitas<br />
e vinganças <strong>de</strong> um espírito conturbado e in<strong>de</strong>ciso, presente no casmurro<br />
Bentinho. Penetrando nas íntimas elocubrações psicológicas <strong>de</strong> seu<br />
personagem, ficou este perfil <strong>de</strong> marido, que longe <strong>de</strong> uma fortaleza viril<br />
que <strong>de</strong>veria ostentar, é marcado pela angústia, pela dubieda<strong>de</strong> face a uma<br />
traição fabricada por sua mente exaltada e febril.<br />
Machado <strong>de</strong> Assis <strong>de</strong>screve e expõe uma realida<strong>de</strong> que só se realiza<br />
no espaço da metáfora.<br />
BIBLIOGRAFIA<br />
ASSIS, Joaquim Mana Machado <strong>de</strong>. Dom Casmurro. São Paulo: Abril<br />
Cultural <strong>19</strong>71. São Paulo: Klick Ed., <strong>19</strong>97.<br />
BARTHES, Roland. L’Imagination du Signe. In: Essais Critiques. Paris:<br />
Seuil, <strong>19</strong>80.<br />
COUTINHO, Afrânio. A Literatura no Brasil. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Sul<br />
Americana. <strong>19</strong>69, v. 1, v. II.<br />
IVO, Lêdo. A Ética da Aventura. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Francisco Alves Ed.,<br />
<strong>19</strong>82.<br />
LUCAS, Fábio. A Condição Feminina <strong>de</strong> Capitu. In: <strong>Revista</strong> Numen, ano<br />
1, n º 1, São Paulo: Scortecci, <strong>19</strong>89.<br />
MARTINS, Wilson. História da Inteligência Brasileira. São Paulo:<br />
Cultrix, <strong>19</strong>79, v. IV.<br />
PACHECO. João. O Realismo. São Paulo: Cultrix. <strong>19</strong>71.<br />
SODRÉ, Nélson Werneck. História da Literatura Brasileira. Rio <strong>de</strong><br />
Janeiro: Civilização Brasileira, <strong>19</strong>76.
O CIÚME EM SHAKESPEARE<br />
E EM MACHADO DE ASSIS<br />
Antônio Olinto*<br />
Saber o que é o ciúme po<strong>de</strong> não ser difícil. Difícil será entendê-lo<br />
em todas as suas faces e <strong>de</strong>talhes, principalmente quando quem procura<br />
esse entendimento é a vitima do ciúme. A bibliografia brasileira sobre o<br />
assunto, embora não muito vasta, estuda o ciúme em geral sob o aspecto<br />
médico ou, no caso <strong>de</strong> violência ou morte por ciúme, analisa-o quanto à<br />
maior ou menor culpabilida<strong>de</strong> havida em cada caso. Já em 1860 tivemos<br />
o livro do médico e historiador Manoel Duarte Moreira <strong>de</strong> Azevedo com<br />
seu Honra e ciúme. Em nossos dias, o psiquiatra e psicoterapeuta<br />
Eduardo Ferreira Santos atingiu várias edições <strong>de</strong> seus trabalhos Ciúme,<br />
o medo da perda e Ciúme, o lado amargo do amor. A lista inclui também<br />
O ciúme patológico, <strong>de</strong> Mourão Cavalcanti e Ciúme e crime, <strong>de</strong> Roque <strong>de</strong><br />
Brito Alves.<br />
Foi, porém, a literatura propriamente dita que revelou a existência<br />
<strong>de</strong> um sentimento profundo que po<strong>de</strong>, e costuma, ser <strong>de</strong> amor intenso e<br />
<strong>de</strong> morte. A tal ponto que poucas vezes usamos a palavra “ciúme” que<br />
não seja ligada ao amor. Daí, a universalida<strong>de</strong> indiscutível do ciúme<br />
amoroso, que levou um <strong>de</strong>sses escritores a dizer que, num grupo <strong>de</strong> muita<br />
gente, e alguém gritar: “Se houver entre os presentes quem nunca tenha<br />
ciúme d’amore, por favor levante a mão”. Ninguém se apresentará.<br />
* Crítico literário, escritor. Ocupa a ca<strong>de</strong>ira nº 8 da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> Brasileira <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>.
70 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
Falarei agora sobre o ciúme em Shakespeare e o ciúme em<br />
Machado <strong>de</strong> Assis: Othello e Dom Casmurro. Tão diferentes, tão<br />
próximos, ambos imbuídos da certeza <strong>de</strong> que o ciúme vai ao fundo<br />
mesmo do que somos, do que sabemos ser e até, bem lá no fundo, do que<br />
sabemos ser, mas somos empurrados sem saber como nem por quê. Ao<br />
ciúme se ligam outros sentimentos e outros impulsos: a inveja, a certeza<br />
<strong>de</strong> estar sendo ofendido, menosprezado, jogado fora. Um ciúme completo<br />
<strong>de</strong>smorona toda uma vida.<br />
O ser o Othello, <strong>de</strong> Shakespeare, uma tragédia, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o começo já<br />
nos predispõe a favor do personagem porque toda tragédia atrai o leitorespectador<br />
e, ao invés <strong>de</strong> provocar pena e comiseração, provoca simpatia<br />
e mesmo admiração. É como se apenas homens e mulheres excepcionais<br />
pu<strong>de</strong>ssem agüentar situações trágicas e suportar golpes maiores do<br />
<strong>de</strong>stino. Em Othello, Shakespeare começou por opor o branco ao negro.<br />
Negro no entendimento dos ingleses da época, isto é, não o negro<br />
africano, mas o mouro cuja face era <strong>de</strong> um negror evi<strong>de</strong>nte. Sendo uma<br />
história <strong>de</strong> amor com ciúme, a diferença <strong>de</strong> raças aumenta a força do<br />
<strong>de</strong>senrolar da tragédia, que vai culminar em Iago, a perfeição do ódio e<br />
do gênio do mal. Preterido numa promoção, luta para <strong>de</strong>struir o que está<br />
no po<strong>de</strong>r. Para isto, Shakespeare dá oito solilóquios a Iago e só três a<br />
Othello.<br />
No meio daqueles homens difíceis, estão Desdêmona e Emília, que<br />
tenta consolar Desdêmona dizendo-lhe esta frase: “Men are not gods”,<br />
(“Os homens não são <strong>de</strong>uses”), acrescentando a estas palavras os<br />
seguintes versos:<br />
Não será num ano, nem será em dois,<br />
que a gente po<strong>de</strong> conhecer um homem.<br />
Todos eles são só estômagos, e nós<br />
não passamos <strong>de</strong> simples alimento.<br />
Se estão famintos, com avi<strong>de</strong>z nos comem,<br />
em nós mesmas vomitam se estão fartos.
O ciúme em Shakespeare e em Machado <strong>de</strong> Assis ______________________________________ Antônio Olinto 71<br />
Os três personagens trágicos <strong>de</strong> Shakespeare – Hamlet, Macbeth e<br />
Othello – completam um estudo diversificado e claro da atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> cada<br />
um diante <strong>de</strong> situações insustentáveis. No fundo, quem tem um plano <strong>de</strong><br />
ação é Iago, que <strong>de</strong>sperta o ciúme <strong>de</strong> Othello em quase cada palavra que<br />
usa diante <strong>de</strong>le, e trama o inci<strong>de</strong>nte do lenço <strong>de</strong> Desdêmona que faz<br />
chegar às mãos <strong>de</strong> Cássio e provoca o diálogo em que Othello acusa<br />
Desdêmona <strong>de</strong> falsida<strong>de</strong> e, com um “fora! fora! fora!” expulsa-a <strong>de</strong> sua<br />
presença. A peça é uma tragédia e precisa acabar em morte, não só <strong>de</strong><br />
uma pessoa, mas <strong>de</strong> várias, com a sombra do ciúme caindo sobre todas.<br />
As sugestões <strong>de</strong> Iago vão criando todo um clima que leva a história<br />
a um fim <strong>de</strong>terminado. E surge então o momento mais patético da<br />
tragédia <strong>de</strong> Othello e Desdêmona, num trecho que só Shakespeare<br />
po<strong>de</strong>ria imaginar e realizar. É a parte em que ele a <strong>de</strong>sperta para matá-la.<br />
O ciúme perpassa por todo o diálogo final entre os dois. Desdêmona<br />
dorme. Othelo <strong>de</strong>sperta-a. Ela pergunta: “Vens para a cama, my Lord?”.<br />
Resposta <strong>de</strong> Othello: “Já rezaste hoje, Desdêmona?” Ela diz que sim.<br />
Othello: “Lembra-te <strong>de</strong> algum mal que fizeste e ainda não pediste<br />
perdão? Pe<strong>de</strong>-o agora”. Desdêmona: “Que queres dizer com isto?” Ele:<br />
“Faze-o rápido. Esperarei. Não te matarei sem estares com o espírito<br />
preparado. Não quero matar tua alma”. Ela: “Falas em matar?” Ele:<br />
“Falo”. Ela: “Deus tenha pena <strong>de</strong> mim”. Ele: “Amém, com todo o meu<br />
coração”. Ela: “Espero que não me mates. E contudo tenho medo <strong>de</strong> ti,<br />
não sei por quê”. Ele: “Pensa em teus pecados”. Ela: “Pecado <strong>de</strong> amor<br />
que sinto por ti”. Ele: “E por ele morrerás”. Ela: “Não é justo que se mate<br />
alguém por amar”. Ele: “Lembra-te do lenço <strong>de</strong> que eu tanto gostava e<br />
que <strong>de</strong>ste a Cássio?” Ela: “Juro por minha vida que não o <strong>de</strong>i. Pergunte a<br />
ele mesmo”. Ele: “Ten<strong>de</strong> cuidado em não cometer perjuro. Estás em teu<br />
leito <strong>de</strong> morte.” Ela: “Mas ainda não morri.” Ele: “Mas morrerás. E Deus<br />
tenha pena <strong>de</strong> ti”. Ela: “Nunca te ofendi em minha vida, nunca amei<br />
Cássio, a quem nunca <strong>de</strong>i presente algum”. Ele: “Mas vi o lenço nas<br />
mãos <strong>de</strong>le. Eu vi o lenço”. Ela: “Ele <strong>de</strong>ve tê-lo apanhado em algum lugar.<br />
Não foi dado por mim. Chama-o e pergunta-lhe a verda<strong>de</strong>. Que ele<br />
confesse a verda<strong>de</strong>”. Ele: “Ele já confessou”. Ela: “Confessou o que, meu<br />
Senhor?” Ele: “Que te usou”. Ela: “Ele não falou”. Ele: “Foi o honesto
72 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
Iago que <strong>de</strong>scobriu”. Ela: “E ele morreu?” Ele: “Per<strong>de</strong>u a vida. Foi a<br />
minha vingança”. Ela: “Expulsa-me <strong>de</strong> Veneza, mas não me mates”. Ele:<br />
“Não”. Ela: “Mata-me amanhã. Deixa-me viver esta noite. Deixa-me<br />
rezar uma oração.” Ele: “É tar<strong>de</strong>.”<br />
E mata-a.<br />
Este final <strong>de</strong> uma paixão não foi escrito só para ser lido, mas para<br />
ser vivido no palco, com gente <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>, falando e representando, na<br />
mais bela tragédia romântica do teatro universal.<br />
Apesar <strong>de</strong> o ciúme <strong>de</strong> Othello colocá-lo numa posição negativa,<br />
muitos comentaristas <strong>de</strong> Shakespeare acham que ele é, entre os heróis<br />
shakespeareanos, um dos mais positivos <strong>de</strong>vido à intensida<strong>de</strong> e à paixão<br />
<strong>de</strong> tudo o que faz, mas reconhecem que é um ingênuo se comparado com<br />
Iago, que não <strong>de</strong>ixou sua opinião sobre ele:<br />
Por natureza, o Mouro é confiante...<br />
Julga honesto a quem lhe parece honesto.<br />
Em outro lugar da tragédia, Shakespeare resume a base do ciúme<br />
<strong>de</strong> Othello, a ele atribuindo estas palavras:<br />
E é voz corrente<br />
que ele já andou fazendo as minhas vezes.<br />
Dentro dos meus lençóis. Se é verda<strong>de</strong>, não sei.<br />
Mas só pela suspeita, nesse caso<br />
proce<strong>de</strong>rei como (?) quem tem certeza.<br />
Do lado <strong>de</strong> Iago, seu plano é perfeito. Eis os versos que Shakespeare<br />
a ele atribui:<br />
Simulando esquecê-lo, <strong>de</strong>ixarei<br />
o lenço, <strong>de</strong> propósito, no quarto<br />
<strong>de</strong> Cássio, a fim <strong>de</strong> que ele possa achá-lo.<br />
Para o bom ciumento, ninharias,
O ciúme em Shakespeare e em Machado <strong>de</strong> Assis ______________________________________ Antônio Olinto 73<br />
bagatelas tão leves como o ar,<br />
valem como verda<strong>de</strong>s do Evangelho.<br />
O lenço ajudará... Já sob o efeito<br />
<strong>de</strong> meu veneno o Mouro está mudado.<br />
Nesses temperamentos, as suspeitas<br />
agem como peçonhas, que a princípio<br />
provocam náusea apenas, mas <strong>de</strong>pois,<br />
atuando sobre o sangue, logo queimam<br />
como poços <strong>de</strong> enxofre. Bem que eu disse.<br />
De todas as páginas trágicas <strong>de</strong> Shakespeare, Othello surge como a<br />
que mais se aproxima do homem comum. Numa comparação entre<br />
Macbeth, Hamlet e Othelo, este surge como sendo inteiramente<br />
dominado pela paixão, achando-se capaz <strong>de</strong> assumir o papel <strong>de</strong> Juiz <strong>de</strong> si<br />
mesmo e <strong>de</strong> seu mundo.<br />
De Shakespeare, inglês dos séculos XVI e XVII, e Machado <strong>de</strong><br />
Assis, mulato brasileiro dos séculos XIX e XX, as diferenças po<strong>de</strong>m ser<br />
gran<strong>de</strong>s, mas o exercício <strong>de</strong> uma cultura que há milênios nos vem<br />
formando, não nos afasta <strong>de</strong>masiadamente do sentimento chamado<br />
“ciúme”, presente e atuante em todos os lugares e tempos em que a vida<br />
em socieda<strong>de</strong> se haja estabelecido.<br />
Em Machado, o tema é recorrente. De acordo com pesquisas<br />
muitas, realizadas no Brasil e no exterior, o ciúme aparece em sete <strong>de</strong><br />
seus romances, em enredos <strong>de</strong> <strong>de</strong>z contos e até em crônicas. No conto A<br />
cartomante, por exemplo, a narrativa termina com tiros <strong>de</strong> revólver <strong>de</strong><br />
um marido ciumento que <strong>de</strong>smentiria as cartas positivas da leitora do<br />
futuro. O ciúme, que andara povoando várias <strong>de</strong> suas páginas posteriores,<br />
acaba sendo o fundo mesmo <strong>de</strong> Dom Casmurro. No começo, não. O<br />
namoro é lírico, Bentinho e Capitu po<strong>de</strong>riam, nas páginas iniciais do<br />
romance, figurar como partícipes <strong>de</strong> um caso <strong>de</strong> amor. Bentinho sentia o<br />
amor <strong>de</strong> modo intenso e, quando a menina cresce, diante da frase que<br />
ouviu <strong>de</strong> outrem: “Está uma moça”, Bentinho pensa:
74 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
“Na verda<strong>de</strong>, Capitu ia crescendo às carreiras, as formas<br />
arredondavam-se com gran<strong>de</strong> intensida<strong>de</strong>; moralmente a mesma coisa.<br />
Era mulher por <strong>de</strong>ntro e por fora, mulher à direita e à esquerda, mulher<br />
por todos os lados, e <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os pés até a cabeça. Esse alvorecer era mais<br />
apressado, agora que eu a via <strong>de</strong> dias em dias; <strong>de</strong> cada vez que vinha à<br />
casa achava-a mais alta e mais cheia; os olhos pareciam ter outra<br />
reflexão, e a boca outro império”.<br />
Este era o apaixonado. Mas ainda se encontrava num seminário<br />
para ser padre, o que era promessa <strong>de</strong> sua mãe. Só <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> algum<br />
tempo ela aceitou abandonar essa idéia. Enquanto isto, Escobar, o amigo<br />
<strong>de</strong> todos os momentos, colega <strong>de</strong> seminário, estava sempre presente e<br />
houve a luta para Bentinho abandonar a carreira sacerdotal. Uma viagem<br />
a Roma conseguiria que o Papa liberasse a promessa da mãe <strong>de</strong> ele ser<br />
padre. Capitu protesta: “Vais-me esquecer!” Afinal bastou conseguir a<br />
licença no Brasil mesmo. Houve o casamento <strong>de</strong> Capitu e Bentinho e <strong>de</strong><br />
Sancha, amiga <strong>de</strong> Capitu, com Escobar, o amigo. Os braços, tinha-os<br />
Capitu muito belos, e aí vemos <strong>de</strong> novo uma das fixações <strong>de</strong> Machado<br />
que os usou no seu famoso conto Uns braços. Quando terminou a lua-<strong>de</strong>mel<br />
dos dois casais? O sonho <strong>de</strong> Betinho era ter um filho. Escobar e<br />
Sancha já tinham uma filha e eles, nada. Quando, afinal, Capitu <strong>de</strong>u à luz<br />
um menino, Bentinho se mostrou realizado. Surgiu então o episódio das<br />
<strong>de</strong>z libras, que Escobar negociou a pedido <strong>de</strong> Capitu.<br />
Os primeiros tempos <strong>de</strong>pois do nascimento do filho, que se chamou<br />
Ezequiel, foram <strong>de</strong> felicida<strong>de</strong> completa. O plano foi Escobar ser padrinho<br />
do menino. Bentinho disse que “não cantava <strong>de</strong> alegria na rua por<br />
vergonha, nem em casa para não afligir Capitu convalescente”.<br />
Escobar comprou uma casa no Flamengo. A família <strong>de</strong> Bentinho<br />
passou a freqüentá-la e já se falava do casamento do filho <strong>de</strong> Bentinho<br />
com a filha <strong>de</strong> Escobar. Então aconteceu o que ninguém esperava. Em<br />
manhã <strong>de</strong> ondas fortes Escobar morre no Flamengo, todos os amigos do<br />
morto se reúnem, Bentinho faz o discurso e vê a seguinte cena: “Capitu<br />
olhou alguns instantes para o cadáver, tão fixa, tão apaixonadamente fixa,
O ciúme em Shakespeare e em Machado <strong>de</strong> Assis ______________________________________ Antônio Olinto 75<br />
que não admira lhe saltassem algumas lágrimas poucas e caladas...” E<br />
acrescenta:<br />
“As minhas cessaram logo, fiquei a ver as <strong>de</strong>la; Capitu enxugou-as<br />
<strong>de</strong>pressa olhando a furto para a gente na sala. Redobrou <strong>de</strong> carícias<br />
para a amiga, e quis levá-la, mas o cadáver parece que a retinha<br />
também. Momento houve em que os olhos <strong>de</strong> Capitu fitaram o <strong>de</strong>funto,<br />
quais os da viúva, sem o pranto nem as palavras <strong>de</strong>sta, mas gran<strong>de</strong>s e<br />
abertos, como a vaga do mar lá fora, como se quisesse tragar também o<br />
nadador da manhã.”<br />
Bentinho havia preparado um discurso fúnebre em honra do amigo.<br />
Mal pô<strong>de</strong> dizê-lo <strong>de</strong>pois do que vira. Dias <strong>de</strong>pois com Capitu acompanhou<br />
o testamento, houve o inventário dos bens do morto, com livros,<br />
objetos, móveis. Capitu <strong>de</strong>sta vez chorou muito, mas se compôs <strong>de</strong>pressa.<br />
Sancha retirou-se para a casa <strong>de</strong> parentes no Paraná.<br />
Começou aí o longo ciúme <strong>de</strong> Bentinho. Em capítulo especial<br />
Bentinho pe<strong>de</strong> a Dona Sancha que não leia o livro que ele está<br />
escrevendo ou, se o leu até aqui, que interrompa a leitura. Acrescenta:<br />
“Basta fechá-lo; melhor será queimá-lo, para lhe não dar tentação<br />
e abri-lo outra vez. Se, apesar do aviso, quiser ir até o fim, a culpa é sua;<br />
não respondo pelo mal que receber. O que já lhe tiver feito, contando os<br />
gestos daquele sábado, esse acabou, uma vez que os acontecimentos, e<br />
eu com eles, <strong>de</strong>smentimos a minha ilusão; mas o que agora a alcançar,<br />
esse é in<strong>de</strong>lével. Não, amiga minha, não leia mais.”<br />
Um dia Capitu quis saber por que andava calado e aborrecido. E<br />
propôs uma viagem à Europa, a Minas, a Petrópolis ou a uma série <strong>de</strong><br />
bailes, mil <strong>de</strong>sses remédios aconselhados aos melancólicos. Ele<br />
respon<strong>de</strong>u que eram os negócios que iam mal.<br />
Ficando sozinho, Bentinho escreveu:
76 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
“Fiquemos nos olhos <strong>de</strong> Ezequiel. Nem só os olhos, mas as<br />
restantes feições, a cara, o corpo, a pessoa inteira, iam-se apurando com<br />
o tempo. Eram como um <strong>de</strong>buxo primitivo que o artista vai enchendo e<br />
colorindo aos poucos, e a figura entra a ver, sorrir, palpitar, falar quase,<br />
até que a família pendura o quadro na pare<strong>de</strong>, em memória do que foi e<br />
já não po<strong>de</strong> ser. Aqui podia ser e era. A idéia saiu finalmente do cérebro.<br />
Era noite, e não pu<strong>de</strong> dormir, por mais que a sacudisse <strong>de</strong> mim. Também<br />
nenhuma noite me passou tão curta. Amanheceu, quando cuidava não<br />
ser mais que uma ou duas horas. Saí, supondo <strong>de</strong>ixar a idéia em casa;<br />
ela veio comigo. Sei que escrevi algumas cartas, comprei uma<br />
substância, que não digo, para não espertar o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> prová-la. A<br />
farmácia faliu, é verda<strong>de</strong>; o dono fez-se banqueiro, e o banco prospera.<br />
Quando me achei com a morte no bolso senti tamanha alegria como se<br />
acabasse <strong>de</strong> tirar a sorte gran<strong>de</strong>, ou ainda maior, porque o prêmio da<br />
loteria gasta-se, e a morte não se gasta. Fui à casa <strong>de</strong> minha mãe, com o<br />
fim <strong>de</strong> <strong>de</strong>spedir-me, a título <strong>de</strong> visita.”<br />
Bentinho resolveu ir ao teatro. Para ver o quê? Para ver Othello,<br />
que um teatro da cida<strong>de</strong> levava. Nunca vira a peça nem lera o texto. Conta:<br />
“Vi as gran<strong>de</strong>s raivas do mouro, por causa <strong>de</strong> um lenço – um<br />
simples lenço! – e aqui dou matéria à meditação dos psicólogos <strong>de</strong>ste e<br />
<strong>de</strong> outros continentes, pois não me pu<strong>de</strong> furtar à observação <strong>de</strong> que um<br />
lenço bastou a acen<strong>de</strong>r os ciúmes <strong>de</strong> Otelo e compor a mais sublime<br />
tragédia <strong>de</strong>ste mundo. Os lenços per<strong>de</strong>ram-se, hoje são precisos os<br />
próprios lençóis; alguma vez nem lençóis há e valem só as camisas. Tais<br />
eram as idéias que me iam passando pela cabeça, vagas e turvas, à<br />
medida que o mouro rolava convulso, e Iago <strong>de</strong>stilava a sua calúnia. Nos<br />
intervalos não me levantava da ca<strong>de</strong>ira – não queria expor-me a<br />
encontrar algum conhecido. As senhoras ficavam quase todas nos<br />
camarotes, enquanto os homens iam fumar. Então eu perguntava a mim<br />
mesmo se alguma daquelas não teria amado alguém que jazesse agora<br />
no cemitério, e vinham outras incoerências, até que o pano subia e<br />
continuava a peça. O último ato mostrou-me que não eu, mas Capitu
O ciúme em Shakespeare e em Machado <strong>de</strong> Assis ______________________________________ Antônio Olinto 77<br />
<strong>de</strong>via morrer. Ouvi as súplicas <strong>de</strong> Desdêmona, as suas palavras<br />
amorosas e puras, e a fúria do mouro, e a morte que este lhe <strong>de</strong>u entre<br />
aplausos frenéticos do público.”<br />
Bentinho voltou para casa disposto a tomar o veneno. Antes que o<br />
fizesse, entrou Ezequiel, que estava <strong>de</strong> saída com a mãe para a missa.<br />
Bentinho resolveu dar o café ao menino, chegou a levantar a xícara, <strong>de</strong><br />
repente soltou-a e começou a beijar a cabeça do pequeno, que disse outra<br />
vez:<br />
“– Papai! papai! exclamava Ezequiel.<br />
– Não, não, eu não sou teu pai!<br />
Quando levantei a cabeça, <strong>de</strong>i com a figura <strong>de</strong> Capitu diante <strong>de</strong><br />
mim. Eis aí outro lance, que parecerá <strong>de</strong> teatro, e é tão natural como o<br />
primeiro, uma vez que a mãe e o filho iam à missa, e Capitu não saía<br />
sem falar-me. Era já um falar seco e breve; a maior parte das vezes, eu<br />
nem olhava para ela. Ela olhava sempre, esperando.<br />
Desta vez, ao dar com ela, não sei se era dos meus olhos, mas<br />
Capitu pareceu-me lívida. Seguiu-se um daqueles silêncios, a que, sem<br />
mentir, se po<strong>de</strong> chamar <strong>de</strong> um século, tal é a extensão do tempo nas<br />
gran<strong>de</strong>s crises. Capitu recompôs-se; disse ao filho que se fosse embora,<br />
e pediu-me que lhe explicasse...<br />
– Não há que explicar, disse eu.<br />
– Há tudo, não entendo as tuas lágrimas nem as <strong>de</strong> Ezequiel. Que<br />
houve entre vocês?<br />
– Não ouviu o que lhe disse?<br />
Capitu respon<strong>de</strong>u que ouvira choro e rumor <strong>de</strong> palavras. Eu creio<br />
que ouvira tudo claramente mas confessá-lo seria per<strong>de</strong>r a esperança do<br />
silêncio e da reconciliação por isso negou a audiência e confirmou<br />
unicamente a vista. Sem lhe contar o episódio do café, repeti-lhe as<br />
palavras do final do capítulo.<br />
– O quê? perguntou ela como se ouvira mal.<br />
– Que não é meu filho.<br />
Gran<strong>de</strong> foi a estupefação <strong>de</strong> Capitu, e não menor a indignação que<br />
lhe suce<strong>de</strong>u, tão naturais ambas que fariam duvidar as primeiras<br />
testemunhas <strong>de</strong> vista do nosso foro. Tinha-se sentado numa ca<strong>de</strong>ira ao
78 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
pé da mesa. Podia estar um tanto confusa, o porte não era <strong>de</strong> acusada.<br />
Pedi-lhe ainda uma vez que não teimasse.<br />
– Não, Bentinho, ou conte o resto, para que eu me <strong>de</strong>fenda, se você<br />
acha que tenho <strong>de</strong>fesa, ou peço-lhe <strong>de</strong>s<strong>de</strong> já a nossa separação: não<br />
posso mais!”<br />
Homem rico, <strong>de</strong>terminou que embarcassem os três para a Europa.<br />
Na Suíça arranjou professora brasileira para Ezequiel não esquecer sua<br />
língua e regressou ao Brasil. Alguns meses <strong>de</strong>pois Capitu começou a<br />
escrever-lhe cartas, sem ódio, quase saudosas. Pedia que a fosse ver na<br />
Europa, o que fez mas sem a visitar. Na volta dava notícias <strong>de</strong>la como se<br />
a tivesse visto. Anos mais tar<strong>de</strong> preparava-se para almoçar quando<br />
recebeu um cartão com este nome:<br />
EZEQUIEL A. DE SANTIAGO<br />
Era o filho <strong>de</strong>la. Demorou-se antes <strong>de</strong> o receber, mas precisava<br />
fazê-lo e falar-lhe da mãe:<br />
“– A pessoa está aí? perguntei ao criado.<br />
– Sim senhor, ficou esperando.<br />
Não fui logo, logo; fi-lo esperar uns <strong>de</strong>z ou quinze minutos na<br />
sala. Só <strong>de</strong>pois é que me lembrou que cumpria ter certo alvoroço e<br />
correr, abraçá-lo, falar-lhe na mãe. A mãe, – creio que ainda não disse<br />
que estava morta e enterrada. Estava; lá repousa na velha Suíça. Acabei<br />
<strong>de</strong> vestir-me às pressas. Quando saí do quarto, com ares <strong>de</strong> pai, um pai<br />
entre manso e crespo, meta<strong>de</strong> Dom Casmurro. Ao entrar na sala, <strong>de</strong>i<br />
com um rapaz, <strong>de</strong> costas, mirando o busto <strong>de</strong> Massinissa, pintado na<br />
pare<strong>de</strong>. Vim cauteloso, e não fiz rumor. Não obstante, ouviu-me os<br />
passos, e voltou-se <strong>de</strong>pressa. Conhece-me pelos retratos e correu para<br />
mim. Não me mexi; era nem mais nem menos o meu antigo e jovem<br />
companheiro do seminário <strong>de</strong> José, um pouco mais baixo, menos cheio<br />
<strong>de</strong> corpo e, salvo as cores que eram vivas, o mesmo rosto do meu amigo.<br />
Trajava à mo<strong>de</strong>rna naturalmente, e as maneiras eram diferentes, mas o<br />
aspecto geral reproduzia a pessoa morta. Era o próprio, o exato, o<br />
verda<strong>de</strong>iro Escobar. Era o meu comborço; era o filho <strong>de</strong> seu pai. Vestia<br />
<strong>de</strong> luto pela mãe; eu também estava <strong>de</strong> preto. Sentamo-nos.<br />
– Papai não faz diferença dos últimos retratos, disse-me ele.
O ciúme em Shakespeare e em Machado <strong>de</strong> Assis ______________________________________ Antônio Olinto 79<br />
A voz era a mesma <strong>de</strong> Escobar, o sotaque era afrancesado.<br />
Expliquei-lhe que realmente pouco diferia do que era, e comecei um<br />
interrogatório para ter menos que falar e dominar assim a minha<br />
emoção. Mas isto mesmo dava animação à cara <strong>de</strong>le, e o meu colega do<br />
seminário ia ressurgindo cada vez mais do cemitério. Ei-lo aqui, diante<br />
<strong>de</strong> mim, com igual riso e maior respeito; total, o mesmo obséquio e a<br />
mesma graça. Ansiava por ver-me. A mãe falava muito em mim,<br />
louvando-me extraordinariamente, como o homem mais puro do mundo,<br />
o mais digno <strong>de</strong> ser querido.<br />
– Morreu bonita, concluiu.<br />
– Vamos almoçar.<br />
Se pensas que o almoço foi amargo, enganas-te. Teve seus minutos<br />
<strong>de</strong> aborrecimento, é verda<strong>de</strong>; a princípio doeu-me que Ezequiel não<br />
fosse realmente meu filho, que me não completasse e continuasse. Se o<br />
rapaz tem saído à mãe, eu acabava crendo tudo, tanto mais facilmente<br />
quando que ele parecia haver-me <strong>de</strong>ixado na véspera, evocava a<br />
meninice, cenas e palavras, a ida para o colégio...<br />
– Papai ainda se lembra quando me levou para o colégio?<br />
perguntou rindo.<br />
– Pois não hei <strong>de</strong> lembrar-me?<br />
– Era na Lapa; eu ia <strong>de</strong>sesperado, e papai não parava, dava-me<br />
cada puxão, e eu com as perninhas... Sim, senhor, aceito.<br />
Esten<strong>de</strong>u o copo ao vinho que eu lhe oferecia, bebeu um gole, e<br />
continuou a comer. Escobar comia assim também, com a cara metida no<br />
prato. Contou-me a vida na Europa, os estudos, particularmente os <strong>de</strong><br />
arqueologia, que era a sua paixão. Falava da antiguida<strong>de</strong> com amor,<br />
contava o Egito e os seus milhares <strong>de</strong> séculos, sem se per<strong>de</strong>r nos<br />
algarismos; tinha a cabeça aritmética do pai. Eu, posto que a idéia da<br />
paternida<strong>de</strong> do outro me estivesse já familiar, não gostava da<br />
ressurreição. Às vezes, fechava os olhos para não ver gestos nem nada,<br />
mas o diabrete falava e ria, e o <strong>de</strong>funto falava e ria por ele.<br />
(...) Ao cabo <strong>de</strong> seis meses, Ezequiel falou-me em uma viagem à<br />
Grécia, ao Egito, e à Palestina, viagem científica, promessa feita a<br />
alguns amigos.
80 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
– De que sexo? perguntei rindo.<br />
Sorriu vexado, e respon<strong>de</strong>u-me que as mulheres eram criaturas tão<br />
da moda e do dia que nunca haviam <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r uma ruína <strong>de</strong> trinta<br />
séculos. Eram dous colegas da universida<strong>de</strong>. Prometi-lhe recursos, e <strong>de</strong>ilhe<br />
logo os primeiros dinheiros precisos. Como disse que uma das<br />
conseqüências dos amores furtivos do pai era pagar eu as arqueologias<br />
do filho; antes lhe pagasse a lepra... Quando esta idéia me atravessou o<br />
cérebro, senti-me tão cruel e perverso que peguei no rapaz e quis apertálo<br />
ao coração, mas recuei; encarei-o <strong>de</strong>pois, como se faz a um filho <strong>de</strong><br />
verda<strong>de</strong>; os olhos que ele me <strong>de</strong>itou foram ternos e agra<strong>de</strong>cidos.<br />
Não houve lepra, mas há febres por todas essas terras humanas,<br />
sejam velhas ou novas. Onze meses <strong>de</strong>pois, Ezequiel morreu <strong>de</strong> uma<br />
febre tifói<strong>de</strong>, e foi enterrado nas imediações <strong>de</strong> Jerusalém, on<strong>de</strong> os dous<br />
amigos da universida<strong>de</strong> lhe levantaram um túmulo com esta inscrição,<br />
tirada do profeta Ezequiel, em grego: “Tu eras perfeito nos teus<br />
caminhos.” Mandaram-me ambos os textos, grego e latino, o <strong>de</strong>senho da<br />
sepultura, a conta das <strong>de</strong>spesas e o resto do dinheiro que ele levava;<br />
pagaria o triplo para não tornar a vê-lo.”<br />
Como se vê, Bentinho fez o mesmo que Othello: matou sua<br />
Desdêmona e, como tinha filho, matou-o também. E informa que não lhe<br />
faltaram amigas que o consolassem da primeira. Pergunta-se também<br />
como é que nenhuma das caprichosas o fizeram esquecer a primeira<br />
amada <strong>de</strong> seu coração. Mas a verda<strong>de</strong> é que a sua primeira amiga e seu<br />
maior amigo, tão extremosos ambos e tão queridos também, quis o<br />
<strong>de</strong>stino que acabassem juntando-se e enganando-o. E o Othello<br />
machadiano exprime seu único <strong>de</strong>sejo: “Que a terra lhes seja leve!”.<br />
Minha conferência po<strong>de</strong>ria terminar aqui, se os Estados Unidos não<br />
tivessem provocado uma dúvida séria na história tal como está em Dom<br />
Casmurro. Em primeiro lugar o professor norte-americano William<br />
Grossman, que <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> seu contrato como professor na Universida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> São Paulo, ali se entusiasmou com os livros <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis, <strong>de</strong><br />
quem traduziu para o inglês vários contos. De volta aos Estados Unidos<br />
criou na Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Nova Iorque uma “Cátedra Machado <strong>de</strong> Assis”,<br />
<strong>de</strong>stinada ao estudo da obra do escritor brasileiro. Achava-me como
O ciúme em Shakespeare e em Machado <strong>de</strong> Assis ______________________________________ Antônio Olinto 81<br />
Professor Visitante na Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Columbia e certo dia recebi<br />
telefonema <strong>de</strong> Grossman convidando-me para um ato que haveria na<br />
Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong>le. Quis saber o que era. Resposta: “Vamos fazer um<br />
julgamento <strong>de</strong> Capitu. Traiu ou não traiu?” Todos os alunos haviam lido<br />
a recente tradução <strong>de</strong> Dom Casmurro e haveria um corpo <strong>de</strong> jurados, dois<br />
<strong>de</strong>fensores ou <strong>de</strong>fensoras e dois promotores ou promotoras. Respondi:<br />
“Você acha que vou per<strong>de</strong>r um espetáculo <strong>de</strong>sse?”<br />
Em lá chegando, assisti a um espetáculo diferente. Tanto os<br />
promotores como os <strong>de</strong>fensores trabalharam muito bem e, no final,<br />
Capitu foi absolvida por 8 a 4. O argumento maior da <strong>de</strong>fesa foi que o<br />
autor, isto é, Machado <strong>de</strong> Assis, não con<strong>de</strong>na Capitu no livro. O<br />
personagem, que é Bentinho, é quem toma a história nas mãos do autor e<br />
con<strong>de</strong>na a mulher.<br />
Esse julgamento viria a repercutir na Califórnia, on<strong>de</strong> a professora<br />
Helen Caldwell publicou o livro The Brazilian Othello of Machado <strong>de</strong><br />
Assis, lançado pela Califórnia University Press. Para Helen Caldwell,<br />
Machado <strong>de</strong> Assis não dá a menor chance a Capitu no julgá-la adúltera.<br />
Para ela Bentinho é o Iago <strong>de</strong> si mesmo, a começar por seu próprio nome<br />
que é Santiago, isto é, Santo Iago. Diz Helen Caldwell: O amor <strong>de</strong><br />
Othello fora atacado <strong>de</strong> fora pela inveja, o ódio e o engano <strong>de</strong> Iago ... No<br />
Dom Casmurro, a luta se processou <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um só homem.<br />
Informação que recebi <strong>de</strong>pois do julgamento realizado em Nova<br />
Iorque por William Grossman: outras universida<strong>de</strong>s dos Estados Unidos<br />
que têm <strong>de</strong>partamentos especiais <strong>de</strong> estudos brasileiros promoveram<br />
também julgamentos parecidos como o <strong>de</strong> Nova Iorque.<br />
Assim, dois escritores <strong>de</strong> tempos e idiomas diferentes – um<br />
escrevendo uma tragédia com base no ciúme para ser levada em palco,<br />
diante <strong>de</strong> uma platéia que vê e escuta, mas que po<strong>de</strong> também ser lida num<br />
livro e num país <strong>de</strong> história com mais <strong>de</strong> mil anos no passado; o outro,<br />
escrevendo um romance que também mostra o ciúme, num país mais<br />
jovem, numa literatura também mais jovem, em outro idioma e tendo por<br />
autor um mestiço que dominava cada palavra <strong>de</strong> sua narrativa. Com isto,<br />
ganhamos um entendimento da vida que os gran<strong>de</strong>s escritores surpreen<strong>de</strong>m<br />
e nos entregam para o conhecimento <strong>de</strong> nós mesmos.
84 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
A CRÔNICA, OS FOLHETINS<br />
E MACHADO<br />
Carmen Schnei<strong>de</strong>r Guimarães*<br />
Escrever para jornais constituía tarefa <strong>de</strong> poucos. Escritores<br />
conceituados, muitas vezes, mandavam para a imprensa folhas <strong>de</strong> suas<br />
criações romanescas como colaboração diária ou semanal. A Mão e a<br />
Luva, <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis, escrita por volta <strong>de</strong> 1874, teve a publicação<br />
diária, capítulo por capítulo. Falamos <strong>de</strong>le, porque é <strong>de</strong>ste que vamos<br />
tratar. Famosos livros vieram a lume <strong>de</strong>sta forma. Essa prática operou<br />
transformações no conceito jornalístico, nos idos da segunda meta<strong>de</strong> do<br />
século XIX. Vê-se, por conseguinte, que a arte <strong>de</strong> escrever crônicas soma<br />
pouca ida<strong>de</strong>, e a princípio, chamavam-se apenas: folhetins.<br />
Existiram antes as parábolas, as historietas infantis, as lendas, as<br />
fábulas, com a moral da história em seus finais, todas <strong>de</strong> sotaque<br />
estrangeiro. No Brasil, alguns nomes pontuam como seus principais<br />
cultores. A partir dos folhetins, usados por executivos distintos da<br />
literatura primeva <strong>de</strong>sses Brasis, surgidas principalmente por razões<br />
financeiras, abrangiam, tanto <strong>de</strong> um lado como do outro: boa para o<br />
escritor, que ganhava seus trocadinhos, e sedutora para o editor, que<br />
economizava espaço em suas publicações (pois vinham no término das<br />
páginas) e fazia crescer o número <strong>de</strong> leitores, ávidos do noticiário do dia.<br />
Mas o fato é que a novida<strong>de</strong> foi servindo ao gosto dos aficionados das<br />
letras gráficas, também dos poetas, que escreviam suas criações com<br />
* Escritora, Presi<strong>de</strong>nte Emérita da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> Feminina <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>.
86 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
poemas em prosa. Apareceram nos rodapés semanais, como “critica<br />
maliciosa dos últimos sucessos políticos e sociais”. Já nessa época, com<br />
o Brasil se exercitando para a República, e querendo <strong>de</strong>scobrir-se fora do<br />
costumeiro peso das questões político-doutrinárias da imprensa da Corte,<br />
a novida<strong>de</strong> se fortalecia. Daí por diante, os escritores entusiasmaram-se e<br />
diversificaram suas criações.<br />
A crônica herdou características daqueles primeiros momentos<br />
jornalísticos, e oferece real jogo <strong>de</strong> cintura, isto é, serve a muitos<br />
senhores. Duas acepções principais, entretanto, entre uma <strong>de</strong>zena <strong>de</strong><br />
outras, dão conta <strong>de</strong> que po<strong>de</strong> significar um relato em or<strong>de</strong>m cronológica,<br />
com interesses históricos, ou específicos <strong>de</strong> diversas naturezas, e ou um<br />
comentário sério, circunstancial, publicado pela imprensa, acerca <strong>de</strong> atos<br />
imaginados ou reais. Já se encontrava na língua inglesa algo parecido,<br />
com o nome <strong>de</strong> sketch, mas Machado <strong>de</strong> Assis esclarece, em um <strong>de</strong> seus<br />
artigos, no Espelho, e sob o título “O folhetinista”, publicado em 30 <strong>de</strong><br />
outubro <strong>de</strong> 1859, que “o folhetim é originário da França, on<strong>de</strong> nasceu e<br />
on<strong>de</strong> vive a seu gosto, como em cama no inverno”. E ele continua, agora<br />
<strong>de</strong>finindo “a nova entida<strong>de</strong> literária”. Declara que a íntima afinida<strong>de</strong> do<br />
jornalista com o folhetinista é que este “<strong>de</strong>senha as saliências<br />
fisionômicas na mo<strong>de</strong>rna criação”. Uma famosa frase, tantas vezes<br />
repetida, escrita por Machado, é exatamente esta: “O folhetinista é a<br />
fusão admirável do útil e do fútil, o parto curioso e singular do sério,<br />
consorciado com o frívolo”. E diz mais: “Estes dois elementos, arredados<br />
como pólos, heterogêneos como água e fogo, casam-se perfeitamente na<br />
organização do novo animal”. Vemos que o escritor tanto dá gran<strong>de</strong>za ao<br />
nome “folhetinista”, chamando-o <strong>de</strong> “entida<strong>de</strong> literária”, como o apelida<br />
simplesmente <strong>de</strong> “o novo animal”. As consi<strong>de</strong>rações prosseguem<br />
curiosas e às vezes, satíricas.<br />
A crônica (no Brasil) fez esquecer o folhetim, embora seja sua cria,<br />
e como a vemos no Brasil, escasseia nos <strong>de</strong>mais idiomas, em especial,<br />
porque seu berço foram as plagas fluminenses, <strong>de</strong>claradamente cariocas.<br />
E ali, muita roupa era lavada em casa, isto é, nos “tanques” jornalísticos.<br />
No momento, ela serve muito aos colaboradores em jornais,<br />
revistas e antologias e recebe também <strong>de</strong>nominações específicas, quando
A crônica, os folhetins e Machado ______________________________________ Carmen Schnei<strong>de</strong>r Guimarães 87<br />
en<strong>de</strong>reçadas a <strong>de</strong>terminados setores. Existem cronistas <strong>de</strong> cultura e<br />
sabedoria logo i<strong>de</strong>ntificados pela clareza e profundida<strong>de</strong> com que tecem<br />
sua argumentação em assuntos <strong>de</strong> real importância. Escritores se<br />
especializam nesse mister, e aproveitam suas criações em saborosos<br />
livros. Há alguns anos, quem falava <strong>de</strong> esportes, notadamente futebol,<br />
estava fazendo uma “resenha”, uma espécie <strong>de</strong> relatório minucioso <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>terminado fato esportivo. Hoje, este termo abrange diversas áreas e<br />
nomeia ainda comentários críticos a respeito <strong>de</strong> assunto literário.<br />
A crônica não se posiciona ao lado <strong>de</strong> coirmãos maiúsculos, como<br />
o conto, a novela, o romance, e nem mesmo o ensaio. Suas fronteiras, por<br />
vezes, buscam as proximida<strong>de</strong>s do memorialismo ou da prosa coloquial e<br />
até doméstica. Hoje, ainda, quase tudo que se escreve em espaço<br />
limitado, com alguma imaginação, traços <strong>de</strong> sentimentalismo ou com<br />
discreto humor, vê-se taxado <strong>de</strong> crônica. Até mesmo pequenas<br />
reportagens, <strong>de</strong>screvendo encontros e eventos <strong>de</strong> qualquer natureza,<br />
entram para a categoria. Tristão <strong>de</strong> Ataí<strong>de</strong> foi o primeiro a cunhar a<br />
expressão “cronismo”, quando preten<strong>de</strong>u referir-se a ela como algo que<br />
“alcança superar em parte a circunstância jornalística em que se origina”.<br />
As crônicas seguiriam alternadas com os folhetins, até que a gente<br />
dos jornais começou a <strong>de</strong>svencilhar-se do burgo colonial. E o texto<br />
malicioso, que os cronistas usavam em suas criações diárias, servia<br />
também para uma espécie <strong>de</strong> <strong>de</strong>safogo ou grito <strong>de</strong> perplexida<strong>de</strong> diante <strong>de</strong><br />
fatos do dia-a-dia. Passaram a criar e abusar do real, tirado da via<br />
mundana, e também do imaginário. José <strong>de</strong> Alencar tornou-se famoso<br />
pelo modo muito próprio com que comentava fatos e figuras do Rio<br />
elegante da época: festas, espetáculos teatrais, modas, com um jeito<br />
especial <strong>de</strong> tratar as intrigas políticas e sociais. Tal o volume <strong>de</strong>sses<br />
trabalhos que os reuniu em diversos livros, aproveitando-os em romances<br />
como, Diva, Senhora, Lucíola e alguns mais. Outros escritores passaram<br />
a angariar recursos que a vulgarida<strong>de</strong> da vida lhes favorecia graciosamente.<br />
Todos levaram para os livros o trabalho da novida<strong>de</strong> <strong>de</strong> escrever<br />
rapidamente o que lhes parecera curioso ou peculiar. Joaquim Manuel <strong>de</strong><br />
Macedo também se valeu <strong>de</strong> suas crônicas em duas obras: Passeio Pela<br />
Cida<strong>de</strong> do Rio <strong>de</strong> Janeiro, em 1862, e <strong>de</strong>zesseis anos mais tar<strong>de</strong>,
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Memórias da Rua do Ouvidor. Dessa mesma época, França Junior lançou<br />
com sucesso, Folhetins, e Olavo Bilac, em 1894, publicou: Crônicas e<br />
Novelas. A isto se referiu José Paulo Reis, em dissertação sobre a crônica,<br />
no Pequeno Dicionário <strong>de</strong> Literatura Brasileira.<br />
Não se ignora, no entanto, o entusiasmo com que Machado <strong>de</strong><br />
Assis, que sempre cuidou com especial carinho das “crônicas”,<br />
ultrapassara as barreiras convencionais no gênero. Tornara-se “um az” da<br />
escrita dos pequenos e gran<strong>de</strong>s acontecimentos da cida<strong>de</strong>. O escritor se<br />
<strong>de</strong>dicou à apuração do estilo, com atenção expressiva à palavra, o que lhe<br />
permitiu <strong>de</strong>scobrir novos caminhos <strong>de</strong> observador irônico; e <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong><br />
uma articulação, por vezes, psicológica, muito se valeu quando da<br />
contextura <strong>de</strong> vários <strong>de</strong> seus romances. O intelectual era conduzido pelas<br />
mãos <strong>de</strong> famosos escritores portugueses. Seguia-lhes os passos, ousava o<br />
emprego do galicismo com muita insistência, o que era aceito passivamente<br />
à sua época, o que chegava a enriquecer o texto; ainda or<strong>de</strong>nava as<br />
frases e intercalava as orações com o mesmo critério dos companheiros<br />
lusitanos. Sabe-se que sua visão do mundo era particularmente pessimista<br />
– o que se <strong>de</strong>preen<strong>de</strong> <strong>de</strong> seus romances – mas, soltava-se nas crônicas,<br />
com humor espirituoso, gran<strong>de</strong> vivacida<strong>de</strong>, clareza e muita graça. Foram<br />
tantas e <strong>de</strong> tal valor literário que quatro volumes <strong>de</strong> suas Crônicas<br />
passaram a integrar as Obras Completas do autor, publicadas em <strong>19</strong>59,<br />
pela Editora Mérito S.A., do que trataremos adiante. Mas ele não fora um<br />
criador, <strong>de</strong>ntro da categoria, pois seus editores usaram <strong>de</strong> franqueza ao<br />
<strong>de</strong>clarar que “colaboraram várias penas” (parecidas), em um só espaço<br />
dos jornais, daí a dificulda<strong>de</strong> para separar as <strong>de</strong> Machado.<br />
Muitos outros escritores vieram a trilhar sendas semelhantes às <strong>de</strong><br />
Machado <strong>de</strong> Assis. Desses, Arthur Azevedo; ainda outros: Me<strong>de</strong>iros e<br />
Albuquerque, Coelho Neto, e as pioneiras, que lutaram contra a<br />
discriminação às mulheres escritoras: Júlia Lopes <strong>de</strong> Almeida e Carmen<br />
Dolores. A esta, Machado <strong>de</strong>dicou versos em um <strong>de</strong> seus trabalhos<br />
semanais.<br />
Não po<strong>de</strong>mos esquecer-nos <strong>de</strong> reverenciar um renovador das<br />
crônicas no Brasil, o homem que as levou para as ruas, em novo estilo <strong>de</strong><br />
escrevê-las, e que até então, eram conhecidas como “crônicas <strong>de</strong>
A crônica, os folhetins e Machado ______________________________________ Carmen Schnei<strong>de</strong>r Guimarães 89<br />
gabinete”. Chamava-se João do Rio; na verda<strong>de</strong>, trazia <strong>de</strong> batismo um<br />
soleníssimo nome: João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Coelho<br />
Barreto, que viveu até <strong>19</strong>21. Foi um renovador, tanto da crônica, como da<br />
reportagem, escritas sempre em estilo ágil, ao sabor dos acontecimentos<br />
pitorescos ou dramáticos do dia-a-dia. Seus livros <strong>de</strong> crônicas, A Alma<br />
Encantadora das Ruas e As Religiões do Rio, muito o ajudaram a entrar<br />
para a <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> Brasileira <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, além da significativa obra <strong>de</strong><br />
contista e teatrólogo. Fora alcunhado <strong>de</strong> “sorriso da socieda<strong>de</strong>” por Lúcia<br />
Miguel Pereira, como retratista valoroso, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um período <strong>de</strong><br />
mundanismo em que vivia o Rio. Depois <strong>de</strong>le, Humberto <strong>de</strong> Campos<br />
caricaturou e <strong>de</strong>u vida a um personagem para falar por ele, <strong>de</strong> palavra<br />
apimentada e historietas sentimentais, o “Conselheiro XX”. Menotti Del<br />
Picchia, (Hélios), e alguns outros, vindos da “Semana <strong>de</strong> Arte Mo<strong>de</strong>rna”,<br />
divulgavam e <strong>de</strong>fendiam os i<strong>de</strong>ais próprios, em cuidadas crônicas. Mais<br />
uma referência bastante significativa cabe a Rubem Braga, único autor<br />
que fez nome na história literária pela porta estreita da Crônica, e que<br />
soube erguê-la dignamente, por vezes com ironia, outras com estudado<br />
romantismo. Seu livro O Con<strong>de</strong> e o Passarinho foi editado em <strong>19</strong>36. Até<br />
pouco tempo, tivemos o brilhantismo da pena <strong>de</strong> Rachel <strong>de</strong> Queirós e a<br />
<strong>de</strong> Carlos Drummond <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>.<br />
Cuidaremos particularmente dos quatro volumes <strong>de</strong> crônicas <strong>de</strong><br />
Machado <strong>de</strong> Assis, que era um mago da pena rápida, um feiticeiro da<br />
crítica sem especialização, o conhecido “Bruxo do Cosme Velho”.<br />
En<strong>de</strong>reçava suas antenas <strong>de</strong> repórter na captura do assunto e discorria<br />
sobre os fatos mais corriqueiros: festas religiosas ou profanas, indo ao<br />
extremo <strong>de</strong> criticar peças teatrais, livros recém-editados, e se espraiava<br />
por assuntos <strong>de</strong> regatas, corridas <strong>de</strong> cavalos no Jockey Club, recitais, às<br />
vezes na mesmo espaço <strong>de</strong> jornal. O cronista usava expressões<br />
contemporâneas da fala do letrado e ignorava a palavra chula para o povo<br />
inculto, embora fosse coloquial o seu diálogo. Seu português era fino e<br />
correto. Fazia-o <strong>de</strong> propósito? Para quem Machado <strong>de</strong> Assis escrevia as<br />
crônicas? Seus leitores <strong>de</strong>veriam conhecer sofrivelmente o francês, pois o<br />
escritor empregava frases e até artigos inteiros nessa língua, sem<br />
tradução.
90 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
A prosa do escritor mostrava-se <strong>de</strong> altíssimo calibre, <strong>de</strong> po<strong>de</strong>roso<br />
conteúdo seus argumentos; a sátira <strong>de</strong> sua pena, por vezes, até<br />
envenenada, flechava <strong>de</strong>sprevenidos cidadãos, sem dó nem pieda<strong>de</strong>. Os<br />
incautos políticos e a gente inexpressiva da socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong>veriam andar<br />
sempre com mil cuidados para não lhe cair no <strong>de</strong>sagrado.<br />
Na abertura dos quatro livros <strong>de</strong> suas crônicas, lê-se a “Nota dos<br />
Editores”: “Contêm estes volumes as crônicas que Machado <strong>de</strong> Assis<br />
escreveu no largo período <strong>de</strong> 1859 a 1888 em vários jornais e revistas:<br />
“O Espelho”, 1859; “Diário do Rio <strong>de</strong> Janeiro”, 1861 a1867;” O<br />
Futuro”, 1862 a 1863;” Semana Ilustrada”, 1872 a 1867;” Ilustração<br />
Brasileira”, 1876 a 1878 “O Cruzeiro”, 1878; “Gazeta <strong>de</strong> Notícias”,<br />
1884 a 1888. Acrescenta a “Nota” que o escritor usava diversos<br />
pseudônimos para suas crônicas, entre outros: Gil, Job, Dr. Semana,<br />
Manassés, Eleazer, Lélio. Os editores fizeram ressalvas, alegando que<br />
“nas “Badaladas”, da “Semana Ilustrada”, bem como nas “Balas <strong>de</strong><br />
Estalo”, da “Gazeta <strong>de</strong> Notícias”, colaboraram várias penas”. Acrescentam<br />
que foram reunidas as que, pelo estilo, pareceram-lhes pertencer a<br />
Machado <strong>de</strong> Assis. Além <strong>de</strong>sses pseudônimos, muitos outros foram<br />
coletados em seus trabalhos: Gil, Vitor <strong>de</strong> Paula, Platão, Eliazar, Sileno,<br />
Malvolio e até Lara (que po<strong>de</strong>ria ser sobrenome ou uma assinatura<br />
feminina). Vemos que se contaram 29 anos <strong>de</strong> colaboração contínua,<br />
interrompendo-se, apenas, ao raiar dos novos tempos da República, em<br />
1889.<br />
O primeiro livro traz títulos específicos para seus trabalhos, e só os<br />
últimos <strong>de</strong>sta série <strong>de</strong>nominam-se “Crônicas”. “O Espelho” i<strong>de</strong>ntifica<br />
“Aquarelas”, que se divi<strong>de</strong> em: Os Fanqueiros Literários, O Parasita, O<br />
empregado público aposentado, O folhetinista. Depois <strong>de</strong>stes, duas<br />
seções distintas, <strong>de</strong>nominadas: “Os Imortais” e “ A Reforma pelo<br />
Jornal”.<br />
Buscamos no dicionário C. <strong>de</strong> Figueredo o significado do<br />
substantivo “fanqueiro”, e tivemos a real explicação: ven<strong>de</strong>dores <strong>de</strong><br />
fazendas, especialmente, algodão, sedas, lã. Seriam esses os tais<br />
“fanqueiros <strong>de</strong> Machado? Claro que não”. E encontramos nele mesmo a<br />
explicação para o “apelido” da época, isto é, <strong>de</strong> 11 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 1859,
A crônica, os folhetins e Machado ______________________________________ Carmen Schnei<strong>de</strong>r Guimarães 91<br />
quando ele diz, na própria crônica ou folhetim, como a chamava: “A<br />
fancaria literária é a pior <strong>de</strong> todas as fancarias. É a obra grossa, por vezes<br />
mofada, que se acomoda à ondulação das espáduas do paciente freguês.<br />
Há <strong>de</strong> tudo nessa loja”. Achamos, então, ou presumimos que “fancaria”<br />
fosse o local dos “fanqueiros”, a loja... on<strong>de</strong> eles vendiam suas fazendas.<br />
(E os “fanqueiros literários” seriam os folhetinistas <strong>de</strong> grosso calibre?).<br />
Ele dá uma dica: “Conhece-se o “fanqueiro literário” entre muitas<br />
cabeças pela extrema cortesia. É um tique. Não há homem <strong>de</strong> cabeça<br />
mais móbil e espinha dorsal mais flexível”. Machado é um extraordinário<br />
gozador! Suas crônicas são um primor <strong>de</strong> criativida<strong>de</strong> satírica! Para lêlas,<br />
aconselhamos a companhia <strong>de</strong> um dicionário não muito recente <strong>de</strong><br />
português e um outro <strong>de</strong> francês.<br />
Depois do “fanqueiro”, o “folhetinista”, que parece esclarecer mais<br />
um pouco a crônica anterior. Ele, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> outras consi<strong>de</strong>rações muito<br />
particulares, faz uma curiosa comparação. Diz: “O folhetinista, na<br />
socieda<strong>de</strong>, ocupa o lugar do colibri na esfera vegetal; salta, esvoaça,<br />
brinca, tremula, paira e espaneja-se sobre todos os caules suculentos.<br />
Todo mundo lhe pertence; até mesmo a política. Tem a socieda<strong>de</strong> diante<br />
<strong>de</strong> sua pena, o público para lê-lo, os ociosos para admirá-lo e a blas-bleus<br />
para aplaudi-lo”. E é aí que entra aquela história da folha em branco... e o<br />
Machado (até ele), fala do “dia <strong>de</strong> escrever”, e o chama <strong>de</strong> “dia negro”,<br />
“<strong>de</strong> bronze”, quando o assunto escasseia, naturalmente. Assevera que o<br />
“folhetinista aqui é todo parisiense; torce-se a um estilo estranho, nas<br />
suas divagações sobre o boulevard e o café Tortoni, <strong>de</strong> que está sobre um<br />
mac-adam lamacento. E por aí vai...<br />
Seguindo a mesma linha <strong>de</strong> críticas acerbas, o cronista (ou<br />
folhetinista?) passa a falar do “parasita”. Descobre-o fartamente<br />
espalhado pela socieda<strong>de</strong>, e começa atacando o parasita “da mesa”. Não<br />
se trata do caruncho. O homem indica aquele tipo que inva<strong>de</strong> galantemente<br />
a residência alheia, justamente na hora das refeições, e o autor se<br />
lembra até que Horácio “comia as sopas <strong>de</strong> Mecenas, e banqueteava<br />
alegremente no triclinium”. Mas alivia-o, afirmando que o poeta “lhe<br />
pagava em longa poesia”. E acrescenta que são encontradiços costumeiramente<br />
outros mais, como os da literatura, os da política e ainda os
92 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
da igreja. Diz que é praga antiga. Ele sempre enriquece as crônicas com o<br />
seu eruditismo.<br />
No “O Diário do Rio <strong>de</strong> Janeiro” (1861-1863), usou títulos para<br />
seus trabalhos: Comentários da semana, Queda que as Mulheres têm<br />
para os tolos. Na “Semana Ilustrada” (1861-1864): Crônicas do Dr.<br />
Semana; e finalmente, no “O Futuro” (1862-1863), surgiram suas<br />
“Crônicas”.<br />
Nesse segundo volume das Crônicas, começa a mudar a <strong>de</strong>signação<br />
<strong>de</strong> suas composições, e no “Diário do Rio <strong>de</strong> Janeiro” (1864-1867), M.<br />
<strong>de</strong> Assis escreveu uma série <strong>de</strong> crônicas, sem <strong>de</strong>nominação, cronologicamente<br />
enumeradas, sob o título <strong>de</strong> “Ao Acaso”. Dentre estas, <strong>de</strong> tão<br />
expressivos conteúdos, uma serve <strong>de</strong> amostra: a que fala do “reinado da<br />
virtu<strong>de</strong>”, que <strong>de</strong>veria iniciar-se naquele 31 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1865. Machado<br />
conclama os homens comuns, os prelados, os políticos a que tomassem<br />
conhecimento <strong>de</strong> que “a casta e foragida virtu<strong>de</strong> voltou ao trono da<br />
humanida<strong>de</strong>: o século regenerou-se”. Tudo por causa <strong>de</strong> uma predição <strong>de</strong><br />
um mago, o professor Newmager, <strong>de</strong> Melbourne, a respeito <strong>de</strong> um<br />
cometa. E <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> muito tecer sobre a magia dos tempos, buscando até<br />
os <strong>de</strong>uses “abdicados” <strong>de</strong> sua divinda<strong>de</strong>, refere-se a um “jovem estreante<br />
da poesia, a quem não falta vocação nem espontaneida<strong>de</strong>”: o Sr. Joaquim<br />
Nabuco, com apenas 15 aninhos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>. Era mesmo polivalente o<br />
cronista. Vem ele, a seguir, na mesma crônica, com as notícias da<br />
“ressurreição literária, pois estava “indo à cena, no teatro <strong>de</strong> S. Januário,<br />
o Ângelo, <strong>de</strong> Vitor Hugo”.<br />
Depois <strong>de</strong>ssas, as “Cartas Fluminenses”, com À Opinião Pública e<br />
À Hetaira. Palavra arcaica, que eu não conhecia. E podia ser também<br />
hetera, segundo o dicionário. O cronista começa reverenciando a “rainha<br />
por graça do diabo e unânime aclamação da vaida<strong>de</strong> humana”. Garante<br />
que ela “manda o que quer, quando quer”, que conquista a todos “sem a<br />
lança <strong>de</strong> Alexandre nem a espada <strong>de</strong> Fre<strong>de</strong>rico Magno”. E ficamos a ler<br />
as virtu<strong>de</strong>s <strong>de</strong>ssa hetaira, e a encontramos <strong>de</strong>senhada e enaltecida pelo<br />
cronista, ainda quando afirma: “o que a distingue, porém, é um certo<br />
quid, um certo tom indígena, que só possui quem foi criada nas terras <strong>de</strong><br />
Venus impudica”. Apren<strong>de</strong>mos que se trata da mulher pública, a
A crônica, os folhetins e Machado ______________________________________ Carmen Schnei<strong>de</strong>r Guimarães 93<br />
meretriz, que como as damas <strong>de</strong> Atenas franqueavam suas portas aos<br />
generais e aos políticos. Todo este entusiasmo, porque era notícia a<br />
estréia, em Paris, <strong>de</strong> uma “Venus eqüestre”, Cora Pearl, num teatro <strong>de</strong><br />
Buffos. E afirma que os jornais “chamam-lhe centaureza”. Sem telefone,<br />
televisão ou internet, o homem era um verda<strong>de</strong>iro portento <strong>de</strong> comunicação.<br />
No terceiro volume das “Crônicas”, o escritor subscreve seus<br />
trabalhos com pseudônimos criativos, como dissemos. Na “Semana<br />
Ilustrada”, As Badaladas vêm com a assinatura do “Dr. Semana”, que as<br />
abre com uma notícia curiosa: “Escapamos <strong>de</strong> boa!” e refere-se a um<br />
discurso <strong>de</strong> um padre Alves dos Santos, protestando contra “o escândalo<br />
<strong>de</strong> que é vítima o Santo Padre”. E dá voltas, acabando por contar história<br />
mirabolante a respeito <strong>de</strong> uma tal “macaca admirável”, que na verda<strong>de</strong>,<br />
segundo um livreto publicado em Roma, era a encarnação do <strong>de</strong>mo. A<br />
seguir, ainda sob a assinatura do “Dr. Semana”, a 26 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 1872,<br />
publica a crônica sem título, toda em versos, em francês, que se inicia:<br />
“Hélas! Pour faire ma chronique...” e lá se vão sete páginas.<br />
Um fato interessante, que merece registro, é que nesses intervalos<br />
<strong>de</strong> publicações <strong>de</strong> crônicas, (em 1874), Machado <strong>de</strong> Assis escreveu<br />
fasciculado, o livro: A Mão e a Luva, do qual fala na “Advertência”, que<br />
o livro esteve “sujeito às urgências da publicação diária”.<br />
A continuação do terceiro livro <strong>de</strong> “Crônicas” se dá, agora, <strong>de</strong> 1876<br />
a 1878, em outro jornal, a “ilustração Brasileira”, e com novo<br />
pseudônimo: “Manassés”. As crônicas <strong>de</strong>nominadas pelo autor, a<br />
princípio, <strong>de</strong> Histórias <strong>de</strong> quinze dias”, quando o jornal passou a mensal,<br />
intitularam-se Histórias <strong>de</strong> trinta dias. Um <strong>de</strong>sses seus artigos fala <strong>de</strong> um<br />
fato que a nós interessa, pela relação com o assunto hoje reinante,<br />
dominador. É a inauguração da Bolsa, justamente a 15 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1876.<br />
Afirma que ela sempre existiu, “mas que mudaram-se os tempos <strong>de</strong>sta<br />
ventura, que antes era feito atrás das portas. Diz ele: “Eu, pela minha<br />
parte, sou como a ingratidão humana – sem fundo. Sou homem raso”.<br />
Com Bolsa ou sem Bolsa “é para mim o mesmo”. Elogia a reforma e<br />
sugere que ela seja aplicada aos matrimônios, com leilão <strong>de</strong> noivas: “esta<br />
ou aquela com cento e vinte contos em prédios, apólices com divi<strong>de</strong>ndos,<br />
uma jovem bonita, que fala francês e toca piano...” (Já se viu?)
94 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
Essas “Badaladas” talvez tenham sido sugeridas por uma crônica<br />
en<strong>de</strong>reçada “A S. Excia. Revma. O Sr. Bispo Capelão-Mor” (em Niterói).<br />
O autor chama a atenção da Excelência Reverendíssima para um fato<br />
grave. É a notícia contida em um livro do Dr. Moreira <strong>de</strong> Azevedo <strong>de</strong> que<br />
seriam instalados “sinos musicais” na igreja da Glória, que não era a do<br />
Outeiro, e que muito iriam prejudicar as jovens que viessem a ouvir<br />
aqueles ditos sinos afinados, pois, por certo, eles estariam tocando<br />
músicas não muito “católicas”...<br />
Tratamos ainda do terceiro volume, pois encontramos algo<br />
pitoresco: é o “Capítulo do Chapéu”. Uma história um pouco policial e<br />
um pouco teatral. Depois <strong>de</strong> iniciá-la com farta citação em francês,<br />
colhendo em Molière a abertura: Le Mé<strong>de</strong>cin malgré lui. Act. II, sc.III”,<br />
cita falas dialogadas <strong>de</strong> Geronte e Sganarelle. O homem é um artista da<br />
crônica, daqueles que gastam bem...o francês. O fato que ele <strong>de</strong>screve,<br />
repleto <strong>de</strong> minúcias, é a prisão <strong>de</strong> “<strong>de</strong>z ou doze <strong>de</strong>linqüentes”,<br />
simplesmente ou gravemente, por terem apupado no Fênix (teatro), uma<br />
não muito jovem atriz, Jesuína, estimada pelos outros espectadores. Mas<br />
o motivo da prisão foi a excentricida<strong>de</strong> do fato: atiram-lhe os chapéus.<br />
Ele cita o ocorrido: “Houve uma ocasião em que o entusiasmo subiu <strong>de</strong><br />
ponto: foi às <strong>de</strong>z horas e 55 minutos. Trovejaram as palmas e os bravos, e<br />
então (ó assombro!) <strong>de</strong>z ou doze chapéus caíram aos pés da atriz”. Se tal<br />
fato acontecesse hoje, seriam lançados, com certeza, em vez <strong>de</strong> chapéus,<br />
bonés ou gorros coloridos <strong>de</strong> malha.<br />
A crônica do dia 15 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 1876 <strong>de</strong>nuncia uma In<strong>de</strong>pendência<br />
que não teve grito e nem foi às margens do Ipiranga, segundo um<br />
“ilustrado paulista”, em publicação pela “Gazeta <strong>de</strong> Notícias”, no qual<br />
chama o assunto <strong>de</strong> “Lenda”. M. <strong>de</strong> Assis refere-se aos cinqüenta e<br />
quatro anos <strong>de</strong> um fato que não existiu, segundo “o amigo <strong>de</strong>le”. E<br />
afirma que “os versos” (hino) emendam-se com muito mais facilida<strong>de</strong>s<br />
do que os livros <strong>de</strong> História. E termina o cronista afirmando que: “Não<br />
morreu, nem po<strong>de</strong> morrer a lembrança do grito do Ipiranga”. Entre uma<br />
crônica e outras, surge a que fala da revolução do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul. E<br />
lê-se: “No dia 11: logo <strong>de</strong> manhã, soube-se que no Rio Gran<strong>de</strong> rebentara<br />
uma revolução; que o general Osório ficava na presidência da república;
A crônica, os folhetins e Machado ______________________________________ Carmen Schnei<strong>de</strong>r Guimarães 95<br />
que um general, à frente das forças legais, batia-se com as forças da<br />
revolução: conflito geral, com a <strong>de</strong>rrota do general imperialista”. A<br />
interrupção para a ida ao teatro traz, na volta, a notícia <strong>de</strong> que não<br />
houvera guerra alguma no Rio Gran<strong>de</strong> do Sul.<br />
Constam do quarto e último volume das “Crônicas” <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong><br />
Assis os trabalhos que tiveram sua publicação na folha “O Cruzeiro”<br />
(1878), sob o título <strong>de</strong> “Notas Semanais” e na “Gazeta <strong>de</strong> Notícias”, sob<br />
os títulos “Balas <strong>de</strong> Estalo” (1883-1888) e “Gazeta <strong>de</strong> Holanda” .<br />
As “Notas Semanais” se suce<strong>de</strong>m variadas, e apenas com as datas<br />
<strong>de</strong> edição, sem título próprio. Nelas, há <strong>de</strong> tudo. Na abertura, M. <strong>de</strong> Assis<br />
fala da crônica, quando diz: “A crônica não se contenta da boa vonta<strong>de</strong>;<br />
não se contenta sequer do talento; é-lhe precisa uma aptidão especial e<br />
rara, que ninguém melhor possui, nem em maior grau, do que o meu<br />
eminente antecessor (não cita o nome). Discorre fluentemente, a seguir,<br />
sobre assuntos os mais diversos e confirma, “no meio <strong>de</strong> graves<br />
problemas sociais”, a publicação <strong>de</strong> um livro, “manual <strong>de</strong> confeitaria, que<br />
só po<strong>de</strong> parecer vulgar a espíritos vulgares”. E atesta que o tal livro, com<br />
certeza em tom galhofeiro (estamos até pegando o jeito...) “é um<br />
fenômeno eminentemente significativo”. E <strong>de</strong>clara as razões, referindo-se<br />
ao gosto do carioca pelas guloseimas preferidas: “O princípio social do<br />
Rio <strong>de</strong> Janeiro, como se sabe, é o doce <strong>de</strong> coco e a compota <strong>de</strong><br />
marmelos”. E como bom piadista, acrescenta: “No século passado e no<br />
anterior, as damas, uma vez por ano, dançavam a minueta, ou iam ver<br />
correr argolinhas; mas todos os dias elas faziam renda e todas as semanas<br />
faziam doce; <strong>de</strong> modo que o bilro e o tacho, mais ainda, o que os falcões<br />
pedreiros <strong>de</strong> Estácio <strong>de</strong> Sá lançaram os alicerces da socieda<strong>de</strong> carioca”.<br />
São saborosas as crônicas do homem, que até então, não era conhecido<br />
como o famoso autor <strong>de</strong> Memórias Póstumas <strong>de</strong> Brás Cubas (1881),<br />
embora já tivesse uma bagagem literária <strong>de</strong> publicações, a partir <strong>de</strong> 1864,<br />
com Crisálidas, livro <strong>de</strong> poesias, Contos Fluminenses, Os Deuses <strong>de</strong><br />
Casaca, Ressurreição, Helena e Iaiá Garcia.<br />
E lá vamos nós <strong>de</strong> roldão, em meio a tanta criativida<strong>de</strong> quase<br />
novelesca, neste último livro <strong>de</strong> crônicas. M. <strong>de</strong> Assis fala da “edilida<strong>de</strong>”,<br />
com um homem <strong>de</strong> nariz para o ar, levado por outro, o fiscal da
96 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
Can<strong>de</strong>lária... para tratar <strong>de</strong> um certo incêndio. E a sucessão <strong>de</strong> crônicas já<br />
levanta vivas aos festejos <strong>de</strong> São João; lembra os prodígios; um<br />
congresso agrícola. Relata adiante que a Confeitaria Castelões anuncia<br />
espetáculo das damas e do tenor da companhia Ferrari, vindos do Rio da<br />
Prata; mais uma, quando o cronista fala do telégrafo e do fonógrafo, e<br />
alar<strong>de</strong>ia as virtu<strong>de</strong>s do microfone, que atinge distâncias; com que se<br />
per<strong>de</strong> em divagações, dizendo, que po<strong>de</strong>rão inventar algo “que chegue à<br />
perfeição <strong>de</strong> escutar o silêncio”. A comicida<strong>de</strong> do cronista está evi<strong>de</strong>nte<br />
quando ele cita a novida<strong>de</strong> <strong>de</strong> “uma polca distribuída há algumas<br />
semanas: “Se eu pedir, você me dá?” E continua: “Saiu agora outra polca<br />
<strong>de</strong>nominada: “Peça só, e você verá”. E o escritor faz troça, dizendo que<br />
o compositor <strong>de</strong>veria respon<strong>de</strong>r a si próprio. E instrui com o exemplo:<br />
“On<strong>de</strong> é que se ven<strong>de</strong> o melhor queijo <strong>de</strong> Minas? – melodia. – No beco<br />
do Propósito n. 102 – sonata”. Não po<strong>de</strong>mos fartar-nos com a exuberância<br />
do cronismo machadiano. É um oceano <strong>de</strong> idéias com a criação<br />
espontânea <strong>de</strong> uma singular inteligência. Não esquecer que são quatro<br />
majestosos compêndios <strong>de</strong> crônicas.<br />
“Balas <strong>de</strong> Estalo”, da “Gazeta <strong>de</strong> Notícias, traz um esclarecimento<br />
dos editores, alertando para que Machado <strong>de</strong> Assis assinara os artigos<br />
com o pseudônimo <strong>de</strong> Lélio. Entre tantas, cada qual mais interessante,<br />
<strong>de</strong>stacamos a do dia 28 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 1885, iniciada com um brado em<br />
francês: “Rien n´est sacré pour un sapeur!” diz o homem, ao comentar a<br />
respeito <strong>de</strong> um gran<strong>de</strong> escritor francês: “Leio nas folhas públicas, que a<br />
morte <strong>de</strong> Vitor Hugo tem produzido tanta sensação como os preços<br />
baixos da gran<strong>de</strong> alfaiataria “Estrela do Brasil”. E corrige o cabeçalho<br />
com um trocadilho: “Rien n`est sacré pour um... tailleur!<br />
Acreditamos que essas “Balas <strong>de</strong> estalo” quisessem significar<br />
mesmo alguma coisa que <strong>de</strong>saparecesse <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> um estalido, isto é,<br />
<strong>de</strong>pois da euforia da notícia. Mas o escritor esteve enganado. Ainda hoje,<br />
cem anos <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> sua morte, o viço <strong>de</strong> sua pena e a verve da criação da<br />
crônica machadiana são lembrados e respeitado.<br />
No encerramento do quarto livro das “Crônicas” <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong><br />
Assis, os editores estamparam com muita justiça, uma nova face <strong>de</strong> seus<br />
escritos. Diversificando o estilo <strong>de</strong> se expressar, ele chegou a criar, na
A crônica, os folhetins e Machado ______________________________________ Carmen Schnei<strong>de</strong>r Guimarães 97<br />
“Gazeta <strong>de</strong> Notícias”, <strong>de</strong> 1 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 1886 a 24 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong><br />
1888, uma seção em versos, intitulada “Gazeta <strong>de</strong> Holanda”. Constava<br />
<strong>de</strong> quarenta e oito artigos em quadras, que só vieram para os livros em<br />
<strong>19</strong>59, nesses volumes <strong>de</strong> Crônicas. E cada um <strong>de</strong>les abria-se com o<br />
versículo em francês: “Voilà ce que l`on dit <strong>de</strong> moi?/Dans La Gazette <strong>de</strong><br />
Hollanda”.<br />
As raízes fundadas no universalismo da realida<strong>de</strong> brasileira<br />
mostram o escritor Machado <strong>de</strong> Assis firmemente assentado nos<br />
patamares mais altos da história das letras pátrias. Desconfiamos <strong>de</strong> que<br />
ainda hoje, o “Bruxo do Cosme Velho”, muito vivo, anda a mexer seus<br />
cal<strong>de</strong>irões <strong>de</strong> magia literária.<br />
Livros consultados<br />
Machado <strong>de</strong> Assis, J.M. - Crônicas, Vol. 1, Editora Mérito S.A.,São<br />
Paulo, <strong>19</strong>59.<br />
Machado <strong>de</strong> Assis, J.M. – Crônicas, vol. 2, Editora Mérito S.A. , São<br />
Paulo, <strong>19</strong>59.<br />
Machado <strong>de</strong> Assis, J.M. – Crônicas, vol.3, Editora Mérito S.A., São<br />
Paulo, <strong>19</strong>59.<br />
Machado <strong>de</strong> Assis, J.M. – Crônicas, vol. 4, Editora Mérito S. A., São<br />
Paulo, <strong>19</strong>59.<br />
Pequeno Dicionário <strong>de</strong> Literatura Brasileira – organizado e dirigido por<br />
José .Paulo.Paes e Massaud Moisés, Editora Cultrix, São Paulo, <strong>19</strong>67.<br />
Diversas outras publicações.
98 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
MANHAS E ARTIMANHAS DO<br />
NARRADOR IRÔNICO<br />
UMA PROPOSTA DE RE-LEITURA DO CONTO<br />
“A CARTOMANTE”, DE MACHADO DE ASSIS<br />
I<br />
Onofre <strong>de</strong> Freitas*<br />
Vem comigo, leitor companheiro e fiel, interessado em re-ler,<br />
estruturalmente, pelo prisma da ironia e do humor, o conto “A<br />
cartomante”, <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis (São Paulo: Ática, <strong>19</strong>76, p. 45-52).<br />
Em matéria <strong>de</strong> narração bem urdida, com sutileza irônica e elevado<br />
índice <strong>de</strong> humor, esse texto machadiano efetivamente é mo<strong>de</strong>lar. Nele<br />
<strong>de</strong>paramos não só as artimanhas do ironista sedutor, porém ainda toda<br />
sorte <strong>de</strong> enganos e trapaças que <strong>de</strong>finem o humorista amante <strong>de</strong> jogar<br />
com palavras e sentidos. Vale a pena entrar no jogo e participar, trocar<br />
cartas e adivinhas, mesmo não acreditando em cartomantes.<br />
II<br />
Lembremos inicialmente que a ironia aqui referida é aquela que se<br />
vale <strong>de</strong> expedientes como a intertextualida<strong>de</strong>, o flashback, a alternância<br />
<strong>de</strong> sumários e cenas, o discurso indireto livre – manhas e artimanhas –<br />
com o objetivo <strong>de</strong>spistado <strong>de</strong> envolver e enganar o leitor incauto. Com<br />
* Professor, advogado, escritor. Presi<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> O Ateneu – Centro Mineiro <strong>de</strong> Estudos<br />
Literários.
100 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
isso, um narrador caprichoso consegue seu propósito – que é surpreen<strong>de</strong>r<br />
o leitor no final, <strong>de</strong>ixando-lhe no paladar o gosto amargo da ingenuida<strong>de</strong><br />
com que <strong>de</strong>ixou ser ludibriado. Esse narrador sabe jogar bem, e joga com<br />
a ambigüida<strong>de</strong> que lhe permite ser guia do leitor na escolha das opções<br />
fora da lógica. O leitor não possui – como o narrador – o conhecimento<br />
dos efeitos, e, sem imaginar quais sejam, vai tomando conhecimento dos<br />
fatos, sem perceber a improcedência das conclusões a que vai sendo<br />
induzido, quanto aos acontecimentos que virão.<br />
Da construção do texto, da criativida<strong>de</strong> e novida<strong>de</strong> do dizer e do<br />
contar – do trabalho, enfim, da linguagem – vai <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>r o efeito <strong>de</strong><br />
humor, que nem sempre é o riso, como o não é neste conto, cujo tom é <strong>de</strong><br />
tragédia, <strong>de</strong> início já prevista pela citação shakespeareana, embora <strong>de</strong><br />
forma dúbia e camuflada. O humor, tal como o enten<strong>de</strong>mos e trabalhamos,<br />
se constitui numa saída conformada do conflito (Bergson, <strong>19</strong>77, p.<br />
97). Se a frustração não tem saída, o remédio é aceitá-la resignadamente,<br />
pensando que assim <strong>de</strong>ve ser. E para <strong>de</strong>sopilar, nada há como o riso, que<br />
relaxa o psíquico, se não susta a própria lágrima, que também favorece,<br />
ajudando a suportar a dor e <strong>de</strong>sfazendo a tensão.<br />
Há narrador e narradores. Por exemplo, o narrador intruso –<br />
segundo a classificação <strong>de</strong> Norman Friedman (Leite, <strong>19</strong>87, p. 26) –<br />
aquele que extrapola o seu universo textual, nivelando-se ao leitor<br />
implícito com quem quer dialogar sobre os fatos em foco. Este tipo <strong>de</strong><br />
narrador age geralmente com bastante simpatia, prodigalizando<br />
qualificativos doces e bajulatórios, com que preten<strong>de</strong> entrar e estar até o<br />
fim, na intimida<strong>de</strong> do outro. É meu leitor camarada, é minha leitora<br />
inteligente, é meu leitor fiel, e coisas mais, semelhantes. Aprecio e acho<br />
interessante esse tipo e modo <strong>de</strong> narrar. Todavia o narrador especial que<br />
me parece viver no conto em análise, e está por trás das cartas do baralho,<br />
esse eu vou chamar <strong>de</strong> caprichoso, para não dizer capcioso. Ele faz tudo<br />
o que o intruso faz, mas, sem vir à tona da realida<strong>de</strong> extra-textual, fica-se<br />
no seu mundo ficcional, atento a embaralhar os fatos e dá-los como<br />
cartas, nunca ao acaso, porém marcadas... É um narrador que joga,<br />
trapaceia e escon<strong>de</strong> curingas, tudo especialmente mal intencionado, para<br />
enganar, distrair e, por fim, surpreen<strong>de</strong>r o seu leitor incauto. Para cada
Manhas e artimanhas do narrador irônico ____________________________________________ Onofre <strong>de</strong> Freitas 1<strong>01</strong><br />
narrador caprichoso existirá, pois, um leitor-vítima, que se <strong>de</strong>ixa<br />
ludibriar, <strong>de</strong>sviar e per<strong>de</strong>r-se da real concretu<strong>de</strong> dos fatos, fruindo como<br />
prêmio o instante da surpresa. É bom ser enganado, quando a intenção é<br />
apenas lúdica. Porque o jogo é isso: diverte, instrui, educa, refaz as<br />
energias... do cérebro!<br />
Em termos sucintos e induvidosos colocamos nossa concepção <strong>de</strong><br />
ironia e <strong>de</strong> humor, a partir da qual vamos expor nossas idéias, nossa<br />
opinião, com clareza e simplicida<strong>de</strong>, visando ao entendimento pelo leitor.<br />
Comecemos por examinar o primeiro engodo produzido por esse<br />
narrador irônico. Trata-se da<br />
INTERTEXTUALIDADE<br />
Toda intertextualida<strong>de</strong> – assim nos parece – é irônica porque cria<br />
uma expectativa <strong>de</strong> duas leituras divergentes. Remetendo a outro texto<br />
pré-existente, suscita, pelo menos, duas versões <strong>de</strong> compreensão, sendo<br />
uma a que parafraseia (repete o sentido); e a outra, a que distorce,<br />
contorce, <strong>de</strong>forma e inverte o sentido (paródia).<br />
No caso presente do conto “A cartomante”, a citação inicial da fala<br />
<strong>de</strong> Hamlet a Horácio, se vista como paráfrase, faz o narrador apropriar-se<br />
da afirmação alheia com a intenção <strong>de</strong> dizer o mesmo. Nesse mesmo, a<br />
citação propõe a consi<strong>de</strong>ração filosófica quanto à existência <strong>de</strong> mistérios<br />
fora do alcance do homem. Remete, portanto, ao transcen<strong>de</strong>ntal, pura e<br />
simplesmente. Embora a fala seja <strong>de</strong> Hamlet, o teor citado não pertence à<br />
personagem. Pertence ao autor – William Shakespeare – e este é que está<br />
sendo secundado pela paráfrase citacional. Se a intenção fosse <strong>de</strong> paródia<br />
– o que não fica <strong>de</strong>scartado, apenas camuflado pelo interesse do jogo <strong>de</strong><br />
enganos – a interpretação da intertextualida<strong>de</strong> tomaria a personagem<br />
Hamlet, não como voz portadora da questão filosófica, mas sim como<br />
metonímia ou metáfora, para significar a tragédia vivida por um triângulo<br />
amoroso em <strong>de</strong>corrência <strong>de</strong> traição, ciúme e vingança. Vivenciando o<br />
texto, o que se percebe, todavia, é que o narrador usa <strong>de</strong> <strong>de</strong>spistamentos e<br />
envolvimento, para levar o leitor a só consi<strong>de</strong>rar o problema das<br />
superstições e crendices – única via para entrar na história narrada, sem
102 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
prever o <strong>de</strong>sfecho. O objetivo do narrador é o impacto final, e para isso<br />
trabalha com falácias e insinuações irônicas e humorísticas, remetendo o<br />
leitor a suposições imaginárias, e a conclusões sem correspondência com<br />
o real da história narrada.<br />
Na seqüência, na primeira alternância entre<br />
CENAS e SUMÁRIOS (1)<br />
ocorre a apresentação direta e o diálogo <strong>de</strong> duas das personagens<br />
(Camilo repreen<strong>de</strong> Rita pela visita feita à cartomante). Introduz-se a<br />
questão das superstições e crendices, informando o narrador que o teor<br />
das palavras <strong>de</strong> Hamlet veio pelos lábios <strong>de</strong> Rita. O leitor segue por essa<br />
trilha, mesmo porque, por omissão capciosa do narrador, não conhece<br />
ele, ainda, a verda<strong>de</strong>ira circunstância da relação amorosa das duas<br />
personagens.<br />
O narrador astucioso (este qualificativo bastantemente lhe convém:<br />
é ótimo, bem a<strong>de</strong>quado) se valeu <strong>de</strong> um<br />
FLASHBACK (2)<br />
para instalar a versão filosófico-moral, antecipando-se aos fatos, e<br />
pondo assim o carro à frente dos bois. Consumada mais essa astúcia,<br />
apressa-se em reconhecer que se antecipara e se propõe a recompor a lógica<br />
dos acontecimentos, pela exposição or<strong>de</strong>nada das suas causas e efeitos:<br />
Vilela, Camilo e Rita, três nomes, uma aventura, e nenhuma<br />
explicação. Vamos a ela. (Ibi<strong>de</strong>m, p. 76).<br />
Já nos tinha entretanto sumariado que Rita era ingênua (dama<br />
formosa e tonta:) (p. 76), enquanto Camilo se tornara um cético escolado,<br />
após vomitar os envenenamentos maternos <strong>de</strong> práticas supersticiosas e<br />
atos <strong>de</strong>votos <strong>de</strong> religião:
Manhas e artimanhas do narrador irônico ____________________________________________ Onofre <strong>de</strong> Freitas 103<br />
Também, em criança, e ainda <strong>de</strong>pois, foi supersticioso, teve um<br />
arsenal inteiro <strong>de</strong> crendices, que a mãe lhe incutiu e que aos vinte anos<br />
<strong>de</strong>sapareceram. (Ibi<strong>de</strong>m, p. 76).<br />
Ao ser recomposta a história pelo seu começo, entra em cena<br />
Vilela, o terceiro que faltava para a constituição do triângulo amoroso.<br />
Vinha da província, on<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixara, por opção, <strong>de</strong> ser juiz, e on<strong>de</strong> tomara<br />
Rita por esposa. Aproveita o narrador para <strong>de</strong>linear o caráter da personagem<br />
feminina, mostrando-a em cena bem urdida, que <strong>de</strong>fine sua condição<br />
<strong>de</strong> formosa e tonta e ilustra a amiza<strong>de</strong> antiga e profunda entre seu marido<br />
(Vilela) e o anfitrião que os esperara no porto (Camilo). Daqui para a<br />
frente, até o final, predominam, em extensão e quantida<strong>de</strong>, os sumários,<br />
enquanto a voz do narrador vai tecer, em discurso indireto e indiretolivre,<br />
sua versão direcionada para há mais cousas no céu e na terra do<br />
que sonha a nossa filosofia. Entrementes, é evocada a cartomante, cuja<br />
casa ficava a meio caminho entre Botafogo e o ponto <strong>de</strong> encontro do<br />
casal enamorado. Com isso – conforme vimos insistindo – o narrador<br />
quer <strong>de</strong>spistar sua intenção <strong>de</strong> não nos <strong>de</strong>ixar pensar em outros interesses<br />
(isotopias? veios?) da história que não a problemática das superstições.<br />
Misturados assim os ingredientes, posto o fermento na massa, é<br />
levar o pão ao forno e esperar para vê-lo crescer e assar. O narrador, que<br />
já nos sabe predispostos para a surpresa, começa a <strong>de</strong>linear o clímax.<br />
Põe-nos a par da morte da mãe <strong>de</strong> Camilo, o que o <strong>de</strong>ixou muito abatido<br />
e sozinho, vindo daí a razão da gran<strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong> do casal <strong>de</strong> amigos –<br />
Vilela e Rita – especialmente <strong>de</strong>sta, cuja <strong>de</strong>dicação vai aos extremos da<br />
ternura. Daí ao amor foi uma questão <strong>de</strong> tempo. Ou <strong>de</strong> ocasiões, para que<br />
a repetição <strong>de</strong> atos pu<strong>de</strong>sse quebrar os escrúpulos por causa da amiza<strong>de</strong><br />
que unia amigos tão antigos e sinceros. Camilo não sabia como se<br />
explicar e enten<strong>de</strong>r sua paixão pela mulher do amigo. O narrador com<br />
muita clareza nos propôs o conflito – aquele triângulo amoroso, novo em<br />
si, apenas pela amiza<strong>de</strong> que unia os dois protagonistas. O clímax ocorre<br />
quando cartas anônimas ameaçam <strong>de</strong>nunciar os adúlteros. Temendo<br />
represálias, Camilo e Rita analisam com lógica a situação e, com muito<br />
pesar para ambos, <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>m interromper os encontros, e ficar atentos,
104 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
aguardando o <strong>de</strong>sdobrar dos acontecimentos. Camilo, que já vinha<br />
espaçando as visitas à casa <strong>de</strong> Vilela, põe-se em retirada <strong>de</strong>finitiva. Em<br />
seqüência predominam os sumários e só inci<strong>de</strong>ntalmente aparece um<br />
monólogo. Sempre a voz <strong>de</strong> Rita, para configurar e confirmar a sua<br />
ingenuida<strong>de</strong>.<br />
As coisas estavam nesse pé quando Camilo recebe um bilhete do<br />
amigo, pedindo que viesse à sua casa, com a máxima urgência, já, já (p. 78).<br />
Nesse transe, <strong>de</strong>saparece a participação <strong>de</strong> Rita, que já se afastara<br />
do amante, <strong>de</strong>vido às cartas anônimas. Camilo passa a analisar, sozinho,<br />
buscando uma interpretação razoável para o problema. A princípio, é<br />
lógico e cauteloso, com fundada interpretação dos fatos nas suas causas e<br />
efeitos. A essa altura, o leitor não lembra a referência intertextual da<br />
tragédia <strong>de</strong> Shakespeare, ou nem pensa nela, mesmo lembrando. Absorto,<br />
acompanha o racíocínio <strong>de</strong> Camilo. Entre ir e não ir, aten<strong>de</strong>r ou não<br />
aten<strong>de</strong>r o chamado <strong>de</strong> Vilela, Camilo se <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> pelo sim. Tomando um<br />
tílburi, põe-se a caminho. É quando acontece o imprevisto no trânsito e,<br />
por uma fatalida<strong>de</strong> ou coincidência, <strong>de</strong>fronte à casa da cartomante, a qual<br />
ficava a meio caminho entre a <strong>de</strong>le e a <strong>de</strong> Vilela, em Botafogo. Camilo<br />
fica ansioso com o atraso <strong>de</strong>vido ao aci<strong>de</strong>nte, cresce-lhe no peito a<br />
emoção que lhe afeta o cérebro, e já não raciocina, não questiona, não<br />
distingue entre o real e o imaginário. Fica encantado o nosso herói.Volta<br />
a ser criança, como diria Fernando Pessoa – o menino <strong>de</strong> sua mãe – e<br />
nesse impasse, ou beco sem saída, opta por consultar a cartomante,<br />
estava-lhe à porta. Será um engodo para ele, mas também para o leitor,<br />
que o acompanhará nessa visita a quem lhes restitui a confiança, o<br />
relaxamento dos nervos, como uma dádiva dos <strong>de</strong>uses: à personagem, que se<br />
<strong>de</strong>ci<strong>de</strong> por seguir para o seu <strong>de</strong>stino <strong>de</strong> felicida<strong>de</strong>; ao leitor, que o acompanha<br />
convicto <strong>de</strong> que vai testemunhar o selo duma amiza<strong>de</strong> para sempre.<br />
Sim. O narrador maquiavélico criou todo esse suspense para gozar<br />
logo a seguir, e sem mais somenos, nem comentários judiciosos ou<br />
pernósticos, o susto do leitor enganado, ante a cena brutal da execução do<br />
traidor. A traidora já recebera o seu prêmio. Jazia, morta e ensangüentada,<br />
sobre o canapé. Quanto a Camilo, não se esperava: Vilela<br />
pegou-o pela gola, e, com dois tiros, estirou-o morto no chão. (p. 80).
Manhas e artimanhas do narrador irônico ____________________________________________ Onofre <strong>de</strong> Freitas 105<br />
III<br />
Chegou o momento <strong>de</strong> agra<strong>de</strong>cer ao meu leitor tolerante que me<br />
acompanhou até aqui, sem questionar nem mesmo me advertir por não<br />
haver eu comentado o título – A cartomante. Sendo uma síntese metafórica<br />
ou metonímica do texto, o título do conto constituiu o maior expediente<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>spistamento do <strong>de</strong>sfecho. Não vou me <strong>de</strong>sculpar pela omissão,<br />
porém, justificar dizendo que foi intencional. Embora reconhecendo que<br />
o título <strong>de</strong>scombina com a história, porquanto a cartomante nela intervém<br />
antes como referida do que como atuante, <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>rei sua importância,<br />
porque meu objetivo foi investigar o narrador, que não é quem dá o<br />
título. O título existe por obra e graça do autor implícito.<br />
Temos, pois, <strong>de</strong>snudadas as manhas e artimanhas <strong>de</strong>sse narrador<br />
machadiano – campeão <strong>de</strong> ironia e humor pelos modos como tece e<br />
<strong>de</strong>sconstrói as realida<strong>de</strong>s psicológicas, e vai falseando os fatos para o<br />
prevalecimento só <strong>de</strong> engodos. Foi preciso estar atento. Sua primeira<br />
jogada: propôs uma intertextualida<strong>de</strong> ambivalente. Começou citando uma<br />
frase conceitual, sem dúvida capaz <strong>de</strong> nos remeter ao transcen<strong>de</strong>ntalismo,<br />
e suficiente para nos obrigar a repensar as questões <strong>de</strong> fé e crença:<br />
Hamlet observa a Horácio que há mais cousas no céu e na terra do<br />
que sonha a nossa filosofia. (Ibi<strong>de</strong>m, p. 75).<br />
Se o leitor se <strong>de</strong>u por prestigiado pelo convite a filosofar em nível<br />
<strong>de</strong> alta moral, em verda<strong>de</strong> foi enganado, porque aquilo que <strong>de</strong> fato o<br />
esperava era a terrena tragédia humana: três pessoas infelizes – duas<br />
mortas por se amarem, e uma <strong>de</strong>sgraçada pelo ciúme.<br />
Intertextualida<strong>de</strong>, flashback, alternância <strong>de</strong> cenas e sumários,<br />
discurso indireto livre, esses os expedientes <strong>de</strong> um narrador caprichoso<br />
que busca envolver o leitor para enganá-lo, induzi-lo a erro <strong>de</strong> suposição<br />
e <strong>de</strong> interpretação, com o objetivo final <strong>de</strong> surpreendê-lo, causando-lhe<br />
um gran<strong>de</strong> impacto. O objetivo <strong>de</strong>ste artigo era <strong>de</strong>monstrar como o<br />
narrador <strong>de</strong> “A cartomante” combina tais manhas e artimanhas irônicas<br />
numa extraordinária performance narrativa.
106 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
Passo a passo, conferimos todos os trâmites da criativida<strong>de</strong><br />
machadiana. Atingimos o nosso objetivo. Pois não?<br />
Notas:<br />
1. Valemo-nos da terminologia <strong>de</strong> Norman Friedman (Leite, <strong>19</strong>87, p.<br />
26) para distinguir o discurso direto (diálogo: vozes das personagens)<br />
e o discurso indireto assim como o indireto livre (monólogo do<br />
narrador), presentes numa narrativa como passos da narração. Cenas e<br />
sumários correspon<strong>de</strong>m a showing e telling, na terminologia <strong>de</strong><br />
Wayne Booth (<strong>19</strong>74, p. 47—86). Oportuno lembrar que tais<br />
distinções já tinham sido feitas por Platão, no livro III da República,<br />
on<strong>de</strong> aparecem como mimese e diegese.<br />
2. Flashback: recurso narrativo que consiste em usar o tempo <strong>de</strong>scontínuo,<br />
antencipando o final, para <strong>de</strong>pois recuar até o presente e narrar<br />
os antece<strong>de</strong>ntes dos fatos pelos quais se iniciou a narração.<br />
Referências Bibliográficas<br />
Bergson, Henri. Le rire: essai sur la signification du comique. Paris:<br />
Presses Universitaires <strong>de</strong> France, <strong>19</strong>77.<br />
Booth, Wayne C. A rethoric of irony. Chicago: The University of<br />
Chicago Press, <strong>19</strong>74. p. 47— 86.<br />
Brait, Beth. A personagem. 5. ed. São Paulo: Ática, <strong>19</strong>93.<br />
Carvalho, Alfredo Leme Coelho <strong>de</strong>. O foco narrativo e o fluxo da<br />
consciência: questões <strong>de</strong> teoria literária. São Paulo: Pioneira, <strong>19</strong>81.<br />
Leite, Lígia Chiappini Moraes. 3. ed. O foco narrativo. São Paulo: Ática,<br />
<strong>19</strong>87.<br />
Machado <strong>de</strong> Assis, Joaquim Maria. Contos. Seleção <strong>de</strong> Deomira Stefani.<br />
4. ed. São Paulo: Ática, <strong>19</strong>76.
EU TE PERDÔO, CAPITU<br />
José Renato <strong>de</strong> Castro César*<br />
“Dou-lhe camarote, dou-lhe chá, dou-lhe cama, só não lhe dou<br />
moça” (sic). Assim, um dos amigos <strong>de</strong> Bentinho lhe oferecia hospedagem,<br />
no Rio <strong>de</strong> Janeiro, para tirá-lo <strong>de</strong> sua casmurrice no Engenho Novo.<br />
Para que pu<strong>de</strong>sse dar o ar <strong>de</strong> sua graça e levasse ao seu amigo, que tanto<br />
lhe queria bem, sua simpatia, inteligência e carisma. Relações comuns,<br />
no mundo masculino.<br />
Bentinho é o estereótipo do brasileiro rico, viril, sofrido e<br />
inteligente. De boa linhagem e apaixonado pela vida. Tal como se<br />
encontra <strong>de</strong>scrito em muitos romances e novelas nacionais. Muitos<br />
autores preferem “não quebrar esse ídolo”.<br />
Filho único <strong>de</strong> mãe viúva, Bentinho era homem que gostava <strong>de</strong><br />
mulher. Foi apaixonado, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a sua adolescência, por Capitu. E sofreu<br />
as ‘dores <strong>de</strong> corno’, sem saber bem da verda<strong>de</strong> dos fatos. Um ícone<br />
machadiano ambientado na ‘casa dos três viúvos’; on<strong>de</strong> tanto se falava <strong>de</strong><br />
Deus, como se imaginava o diabo...<br />
Já no primeiro capítulo do seu Dom Casmurro, Machado <strong>de</strong> Assis<br />
traz a peculiarida<strong>de</strong> literária que pretendo salientar, neste ensaio, e que<br />
em suas obras sempre <strong>de</strong>sfia: a da moralida<strong>de</strong> católica confrontada com a<br />
realida<strong>de</strong> plural <strong>de</strong> uma brasilida<strong>de</strong> orgiástica, pancultural, sincrética,<br />
hipócrita e imoral.<br />
* Poeta, escritor e ensaísta. Integrante do Instituto Histórico e Geográfico <strong>de</strong> Minas Gerais,<br />
ca<strong>de</strong>ira 50.
108 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
Peculiarida<strong>de</strong> esta, tão mitológica quanto real no imaginário<br />
artístico, filosófico e psicológico do brasileiro comum e do brasileiro<br />
plástico e literato. A arte <strong>de</strong> viver com arte; entre o joio e o trigo, “entre<br />
Deus e o diabo na terra do sol...” (sic).<br />
Diante da masculinida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>nte, viril, mas pueril; que, nem<br />
aceita nem refuta o liberalismo feminil e o feminismo rebel<strong>de</strong> <strong>de</strong> Herbert<br />
Marcuse; a brasilida<strong>de</strong> se cala diante da ânsia feminina pelo prazer sexual<br />
<strong>de</strong>sregrado, livre do ‘controle do macho-marido’ (que, em geral e<br />
inconscientemente, se faz seu dono). Os homens e as mulheres tentam se<br />
compreen<strong>de</strong>r. Mas, temem a tudo, sem temer ao pecado.<br />
Os homens tentam compreen<strong>de</strong>r a volúpia sexual <strong>de</strong> mulheres<br />
como Capitu. Estigmatizadas e crucificadas; bestializadas; sufocadas;<br />
violentadas; excomungadas e imoladas. A estas mulheres, os homens, em<br />
geral, não as perdoam. Nem pela sincerida<strong>de</strong>, nem, tampouco, pela<br />
inverda<strong>de</strong> ou mentiras. Muito menos pelo silêncio que as amordaça e<br />
sacrifica. Estão todos mudos e hipócritas, diante do Deus vivo.<br />
Mulheres que optam por uma vida dupla, que não são santas nem<br />
putanas, tornam-se neuróticas e frustradas. São infelizes. Escravas <strong>de</strong> um<br />
prazer <strong>de</strong>pravado, mudo, incomunicável. Qual homem, lendo Dom<br />
Casmurro, não amou e <strong>de</strong>sejou rasgar o coração <strong>de</strong> Capitu pra saber tudo<br />
sobre ela? Como não calar diante da mu<strong>de</strong>z <strong>de</strong> Capitu? De sua<br />
frivolida<strong>de</strong>? De sua furtivida<strong>de</strong> planejada, para trair?<br />
Machado dá outro sentido à dor do corno e ao drama. Capitu morre<br />
longe...<br />
Ah, Capitu se tu soubesses o quanto te amo e te <strong>de</strong>sejo...<br />
O quanto sofro por querer dar-te toda minha vida e que <strong>de</strong>sprezas<br />
tanto...<br />
Ah Capitu, como sofro... Por só saber que não me amas, como eu<br />
te amo...<br />
Por só saber que tu, Capitu, és assim tão superficial, tão mundana,<br />
tão vulgar...
Eu te perdôo, Capitu ___________________________________________________ José Renato <strong>de</strong> Castro César 109<br />
A socieda<strong>de</strong> brasileira em sendo infantil, machista e chauvinista,<br />
permite ver em Machado um homem <strong>de</strong> alma feminina. Com ‘coração <strong>de</strong><br />
mulher’. Com respeito superior pelo ‘<strong>de</strong>sejo da mulher’. Esse <strong>de</strong>sejo<br />
sufocado e fragmentado, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> tempos bíblicos. Machado vive num<br />
tempo moralista e imoral. Daí seu realismo.<br />
Daí a ruptura entre santida<strong>de</strong> e pecado. Entre o bem e o mal. O mal<br />
entrou no mundo seduzindo a mulher e levando o homem a pecar. Eis os<br />
sentidos que Machado quer contestar: o <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>; <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>; <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>stino; <strong>de</strong> esperança e <strong>de</strong> imaginário. Sentidos teológicos que vai<br />
sublimar em sua literatura.<br />
Na busca por limites e possibilida<strong>de</strong>s, Machado questiona o projeto<br />
divino na vida humana, para mostrar que Deus não é aniquilamento, mas,<br />
“o intervalo da discrição” tal como sugere Lévinas (apud GESCHÉ, 2005).<br />
Machado expõe a situação moral na socieda<strong>de</strong> escravocrata. Que<br />
tanto era libertina quanto católica. Tanto era católica quanto espírita e<br />
supersticiosa. Uma socieda<strong>de</strong> que é, ainda, um labirinto moral para os<br />
jovens. On<strong>de</strong> a imoralida<strong>de</strong> pulula e on<strong>de</strong> “o ardor político e sexual, e a<br />
gordura acabou com o resto <strong>de</strong> idéias públicas e específicas” (sic, Dom<br />
Casmurro, pág. 816, in COUTINHO, <strong>19</strong>86).<br />
Creio mais na providência divina <strong>de</strong>ssa frase machadiana, que nas<br />
coincidências socioculturais extemporâneas. Mesmo porque, no Brasil, o<br />
tempo histórico passa, mas o chorume político e social não puba nunca.<br />
Revira-se o monte, mas a crença e os valores retrógrados, farisaicos e<br />
selvagens, tupiniquins, não se po<strong>de</strong>m repelir. Só mesmo as graças e<br />
virtu<strong>de</strong>s da Cruz Divina para curar tais males.<br />
É uma civilização em que as pessoas não crêem no perdão. On<strong>de</strong><br />
não se admite perdoar a traição e o inimigo. É uma socieda<strong>de</strong> ao mesmo<br />
tempo cristã e pagã, para <strong>de</strong>lírio do diabo. Melhor assim. Afinal, se todos<br />
fossem bonzinhos e santinhos, que significado melancólico teria a vida<br />
sobre a terra... Um drama chato!<br />
Capitu e Bentinho trilham rumos <strong>de</strong> libertação, no sentido<br />
religioso. No entanto, ela busca o prazer egoísta, mundano, da ascensão<br />
social. Ao passo que ele busca o caminho moral, a superação dos<br />
dualismos e dicotomias ‘Deus – mundo’.
110 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
Bentinho “torna-se o que é”, porque pela religião toma posse da<br />
verda<strong>de</strong> das coisas. Embora seja um santo farisaico, amargurado pela<br />
traição. Con<strong>de</strong>na Capitu até o fim; convencido e enciumado pela “dor <strong>de</strong><br />
corno”. Mas, ele não vê que foi o <strong>de</strong>mônio o responsável. E, por isso, não<br />
se permite o perdão e a reconquista...<br />
Machado se faz, assim, um poeta da moral católica, labutando em<br />
prosa realista. Em suas paginas se lê a luta do diabo tentando aos<br />
homens. Vêem-se “as injustiças da terra e do céu” (sic). E, sente-se Deus<br />
vencendo a malda<strong>de</strong> e a injustiça. Impassível e mudo. Os homens justos<br />
“a bradar contra a iniqüida<strong>de</strong>” (sic) e os malfeitores no limbo, vivendo a<br />
dura sina da “história dos subúrbios” (sic).<br />
“Se a felicida<strong>de</strong> conjugal po<strong>de</strong> ser comparada à sorte gran<strong>de</strong>, eles<br />
a tiraram no bilhete comprado <strong>de</strong> socieda<strong>de</strong>” (sic, pág. 816, opus cit.).<br />
Essa filosofia é <strong>de</strong> Bentinho ou <strong>de</strong> Machado? Ou será tal esperança<br />
filosófico-religiosa, a <strong>de</strong> todos os homens brasileiros casadoiros, tão<br />
interessados na “boceta <strong>de</strong> Pandora” (sic)?<br />
Ora, para Machado, literalmente “a vida é uma ópera. Uma gran<strong>de</strong><br />
ópera” (sic, pág. 817). E, a <strong>de</strong>fine:<br />
“Deus é o poeta. A música é <strong>de</strong> Satanás, jovem maestro <strong>de</strong> muito<br />
futuro, que apren<strong>de</strong>u no conservatório do céu. Rival <strong>de</strong> Miguel, Rafael e<br />
Gabriel, não tolerava a precedência que eles tinham na distribuição dos<br />
prêmios. Po<strong>de</strong> ser também que a música em <strong>de</strong>masia doce e mística<br />
daqueles outros condiscípulos fosse aborrecível ao seu gênio essencialmente<br />
trágico. Tramou uma rebelião que foi <strong>de</strong>scoberta a tempo, e ele<br />
expulso do conservatório. Tudo se teria passado sem mais nada, se Deus<br />
não houvesse escrito um libreto <strong>de</strong> ópera, do qual abrira mão, por<br />
enten<strong>de</strong>r que tal gênero <strong>de</strong> recreio era impróprio da sua eternida<strong>de</strong>.<br />
Satanás levou a manuscrito consigo para o inferno. Com o fim <strong>de</strong><br />
reconciliar-se com o céu, – compôs a partitura, e logo que a acabou foi<br />
levá-la ao Padre Eterno.” (sic).<br />
Capitu e Bentinho brincavam <strong>de</strong> missa! Capitu se fazia <strong>de</strong><br />
sacristão. Bentinho era o padre, pois havia a promessa da mãe <strong>de</strong> que ele
Eu te perdôo, Capitu ___________________________________________________ José Renato <strong>de</strong> Castro César 111<br />
<strong>de</strong>via ser padre. Assim se inicia o drama <strong>de</strong>ssa mulher diante da sua<br />
paixão adolescente. Ela com quatorze anos e Bentinho, que tinha quinze.<br />
Ele fantasiava esse amor muito mais que ela – “às vezes dava por mim,<br />
sorrindo, um ar <strong>de</strong> satisfação, que <strong>de</strong>smentia a abominação do meu<br />
pecado” (sic), como é próprio dos homens <strong>de</strong>ssa socieda<strong>de</strong> infantilizada e<br />
besta, que não forma mais guerreiros. Bentinho se comprazia nesse amor<br />
natural e furtivo, ouvindo o velho coqueiro, a natureza. E Capitu, será<br />
que queria já o pecado?<br />
Tanto <strong>de</strong>scobriu Bentinho que a amava, que pensava nela “durante<br />
as missas daquele mês” (sic). Ao passo que Capitolina escrevia o nome<br />
<strong>de</strong>les pelo muro. Num puro amor juvenil e como bem diz Machado: ‘na<br />
limpeza da intenção; com o céu neles mesmos; num latim que é a língua<br />
católica dos homens’ (sic).<br />
E assim vai Machado, <strong>de</strong>monstrando o dualismo dicotômico que é<br />
a vida nesta terra. Um não sei quê <strong>de</strong> carismas e dons; graças e <strong>de</strong>sgraças<br />
em que se metem homens e mulheres quando se enfronham nas li<strong>de</strong>s do<br />
amor e da paixão. A repercussão antropológica do discurso machadiano<br />
sobre Deus (POPPER, apud GESCHÉ, opus cit.) sugere um estudo<br />
profundo sobre a liberda<strong>de</strong> ampliada na relação homem-mulher. O ser<br />
humano é “ser <strong>de</strong> surpresa” (sic), mas não po<strong>de</strong> se <strong>de</strong>ixar levar pela<br />
irresponsabilida<strong>de</strong>, inconseqüência, imoralida<strong>de</strong> e <strong>de</strong>vassidão.<br />
Essa foi a história <strong>de</strong> Bentinho e Capitolina. De adolescentes<br />
apaixonados, ele quis se fazer homem diante da socieda<strong>de</strong> hipócrita. Ela<br />
querendo ser mulher, não teve boa catequese. (Bentinho se metia em<br />
“metáforas atrevidas e impróprias aos seus quinze anos” (sic). Mas,<br />
Machado faz <strong>de</strong> Capitu uma protagonista implicitamente subjetiva,<br />
colocada na posição realista que a mulher assumia na socieda<strong>de</strong> da<br />
época: sempre em segundo plano com relação à vonta<strong>de</strong>, aos <strong>de</strong>sejos e<br />
escolhas do homem – fossem quais fossem esses <strong>de</strong>sejos).<br />
O fato é que Capitu tentava se fazer mulher, dona <strong>de</strong> si mesma,<br />
com um que <strong>de</strong> rebeldia que enlouquece Bentinho. Porém, pari passu ao<br />
<strong>de</strong>senrolar da trama machadiana, se vê e se sente uma mulher soterrada<br />
num mundo masculino. Um mundo pueril diante do sexo e do prazer<br />
carnal, já tão banalizado.
112 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
Capitu tem que ce<strong>de</strong>r, exclusivamente, à imaginação <strong>de</strong> Bentinho e<br />
à <strong>de</strong> todos os outros homens que a <strong>de</strong>sejam e cobiçam. A sua condição<br />
<strong>de</strong> protagonista – fêmea que se submete à condição dos<br />
protagonistas-machos. Sua imaginação, <strong>de</strong>sejos e vonta<strong>de</strong>s “<strong>de</strong> mulher”<br />
não estão explícitas, nem po<strong>de</strong>m ser explicitadas na socieda<strong>de</strong> da época.<br />
Capitu não po<strong>de</strong> gritar a sua dor nem o seu prazer.<br />
Em sua imaginação, Bentinho sonha com as éguas iberas e como<br />
elas se emprenham pelo vento – relembrando a lenda <strong>de</strong> Ulissipo, sobre a<br />
fundação da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Lisboa – on<strong>de</strong> estão os melhores campos <strong>de</strong><br />
criação <strong>de</strong> éguas <strong>de</strong> toda Europa, tal qual falou Tácito. Numa alusão a um<br />
amor, ao mesmo tempo natural e espiritual. Machado <strong>de</strong>monstra, todo<br />
tempo, sua erudição e seu feminismo liberal.<br />
Bolinando uma pureza impossível, inimaginável e perversa,<br />
Machado coloca Bentinho como único confessor <strong>de</strong> Capitu. E coloca<br />
Capitu a batizar seu primeiro filho com Bentinho-padre. O drama cristão<br />
<strong>de</strong> toda mulher mo<strong>de</strong>rna: restar entre a santida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ter sexo sem paixão,<br />
com o amor e a amiza<strong>de</strong> eterna do seu homem-padre, ou, lutar no pecado<br />
para tê-lo todo, a toda hora, como homem-pecador.<br />
Capitu se torna, assim, a protagonista da ira e da mentira – a filha<br />
<strong>de</strong> satanás, que aos poucos o<strong>de</strong>ia a mãe <strong>de</strong> Bentinho, D. Glória, <strong>de</strong> quem<br />
dizia ser: “Beata! carola! Papa-missas!” (sic, pág. 827).<br />
Aos poucos, Machado vai trabalhando a dicotomia e o dualismo<br />
católico expresso na ânsia sexual <strong>de</strong> Capitu e Bentinho. Aos poucos<br />
<strong>de</strong>monstra a relação do homem que chora pelo rompimento do namoro,<br />
diante da mulher alegre, que sorri, futilmente, ao passar <strong>de</strong> “algum<br />
peralta da vizinhança” (sic, pág. 874, opus cit).<br />
Eis aí o conflito <strong>de</strong> todo homem apaixonado e ciumento. Sucumbir<br />
aos males da paixão <strong>de</strong>sregrada que atiça a malda<strong>de</strong> satânica: a violência,<br />
a vingança, o crime passional <strong>de</strong>rivado da traição – da dor dos cornos. A<br />
mentira é, pois a mãe da morte.<br />
“Separados um do outro pelo espaço e pelo <strong>de</strong>stino, o mal<br />
aparecia-me agora, não só possível, mas certo. E a alegria <strong>de</strong> Capitu<br />
confirmava a suspeita; se ela vivia alegre é que já namorava a outro,
Eu te perdôo, Capitu ___________________________________________________ José Renato <strong>de</strong> Castro César 113<br />
acompanhá-lo-ia com os olhos na rua, falar-lhe-ia à janela, às avesmarias,<br />
trocariam flores, e... ” (sic).<br />
Assim Machado reconhece e explicita a ruptura dicotômica entre os<br />
mundos católico e pagão, na relação amorosa homem-mulher. Nesta<br />
relação, coloca o homem como sofredor e a mulher como a que supera<br />
alegremente a ruptura, sem sofrimentos e dores, sem pensamentos e<br />
rancores. Sem pudores. Coerentemente com o que dizem, hoje, as<br />
mulheres: “ex bom é ex morto”.<br />
Remorso, luxúria, egoísmo, pecado. Virtu<strong>de</strong>s, santida<strong>de</strong>, missa,<br />
catolicismo, fé, religião. Conceitos bem torneados e explícitos em Dom<br />
Casmurro e que Machado trabalha, página por página, em todas as suas<br />
obras. Senão vejamos:<br />
• “Aquele drama <strong>de</strong> amor, que parece haver nascido da perfídia da<br />
serpente e da <strong>de</strong>sobediência do homem, ainda não <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> dar enchentes<br />
a este mundo” (sic, Memorial <strong>de</strong> Aires, pág. 1.187, COUTINHO,<br />
opus cit);<br />
• “A boa moral pe<strong>de</strong> que ponhamos a cousa pública acima das<br />
pessoas, mas os moços nisto se parecem com velhos e varões <strong>de</strong> outra<br />
ida<strong>de</strong>, que muita vez pensam mais em si que em todos” (ibi<strong>de</strong>m, Esaú e<br />
Jacó, pág. 1.056,);<br />
• “Mas que pecado é este que me persegue? pensava ele andando.<br />
Ela é casada, dá-se bem com o marido, o marido é meu amigo, tem-me<br />
confiança, como ninguém... Que tentações são estas?” (Quincas Borba,<br />
pág. 661);<br />
• “Sentia-me tomado <strong>de</strong> uma sauda<strong>de</strong> do casamento, <strong>de</strong> um <strong>de</strong>sejo<br />
<strong>de</strong> canalizar a vida. Por que não? Meu coração tinha ainda que<br />
explorar; não me sentia incapaz <strong>de</strong> um amor casto, severo e puro. Em<br />
verda<strong>de</strong>, as aventuras são a parte torrencial e vertiginosa da vida, isto é,<br />
a exceção; eu estava enfarado <strong>de</strong>las; não sei até se me pungia algum<br />
remorso.” (Brás Cubas, pág. 609);
114 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
Po<strong>de</strong>ria mencionar ainda as mazelas <strong>de</strong> Helena, e <strong>de</strong> sua ânsia por<br />
um amor não correspondido, proibido, em que se sujeita a casar-se com<br />
outro. Mas em Dom Casmurro, em particular, Machado busca questionar,<br />
sutilmente, o sincretismo religioso da socieda<strong>de</strong> brasileira, diante da<br />
relação amorosa homem-mulher.<br />
Deixa transparecer, sutilmente, a impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>cisional da<br />
mulher diante da moralida<strong>de</strong> social, hipócrita e machista, <strong>de</strong>monstrando a<br />
reação odiosa da alma feminina à santida<strong>de</strong>, quando <strong>de</strong>frontada com a<br />
volúpia e a concupiscência carnal.<br />
Como meu objetivo aqui é a questão “da moralida<strong>de</strong> católica<br />
confrontada, subjetivamente, com a realida<strong>de</strong> plural <strong>de</strong> uma brasilida<strong>de</strong><br />
orgiástica, pancultural”, <strong>de</strong>ntro da obra machadiana, <strong>de</strong>verei reavivar a<br />
questão que julgo crucial, que é o aspecto religioso do arquétipo da<br />
brasilida<strong>de</strong> no imaginário coletivo, – dicotômico e dualista, tanto do<br />
ponto <strong>de</strong> vista ético, quanto estético e teorético.<br />
E, estes dualismos e dicotomias precisam ser superados. Suprassumidos.<br />
Para que se possa compreen<strong>de</strong>r o que Machado enten<strong>de</strong>u da alma<br />
feminina diante <strong>de</strong>sse imobilismo cultural que subjugou os sentimentos,<br />
as idéias, os i<strong>de</strong>ais e as sensações da mulher diante dos sentimentos, das<br />
idéias, dos i<strong>de</strong>ais e das sensações dos homens. Ou seja: como Machado<br />
via e contrapunha o universo feminino diante do universo masculino? E<br />
quais os reflexos <strong>de</strong>ssa sua visão?<br />
Loureiro (2000) trata da questão do arquétipo da brasilida<strong>de</strong> do<br />
ponto <strong>de</strong> vista pagão. Apresenta a brasilida<strong>de</strong> como um vitral on<strong>de</strong> se<br />
representa uma <strong>de</strong>nsa festa orgiástica. O que não está <strong>de</strong> todo<br />
incorreto. Afinal, a socieda<strong>de</strong> nacional transita entre o senso estético e<br />
ético pagão e o senso estético e ético cristão, numa dicotomia, num<br />
dualismo secular, perpetuado no confronto cultural judaico-cristão –<br />
ameríndio-africano. É o sincretismo, observado e con<strong>de</strong>nado pela<br />
teologia católica.<br />
Para efetuar este profundo e complexo corte epistemológico,<br />
<strong>de</strong>verei utilizar o ponto <strong>de</strong> vista da teologia sistemática da Igreja Católica<br />
Apostólica Romana. Procurando tratar dos aspectos que realçam a<br />
questão do exercício do perdão.
Eu te perdôo, Capitu ___________________________________________________ José Renato <strong>de</strong> Castro César 115<br />
Um conceito religioso também subjetivo e importantíssimo na obra<br />
machadiana, através do qual se fundamentam as razões <strong>de</strong>le querer<br />
elaborar obra tão realista e tão profunda, nos limites do romantismo e do<br />
parnasianismo da época.<br />
O perdão é necessário ao ser humano. Essencial para sua saú<strong>de</strong><br />
física e mental. E Machado <strong>de</strong> Assis trata <strong>de</strong>sta questão indiretamente e<br />
subjetivamente. Subsume a força das almas, por ele <strong>de</strong>scritas, e as<br />
<strong>de</strong>cepções amorosas e as várias etapas do processo <strong>de</strong> cura, <strong>de</strong> perdão e<br />
<strong>de</strong> libertação dos sentimentos <strong>de</strong> culpa, mentira, vingança e ódio;<br />
vinculando-as à questão pessoal do amor e da paixão.<br />
Procuro, assim, estudar para compreen<strong>de</strong>r a importância do perdão<br />
na relação homem-mulher na obra machadiana, confrontando-a com a<br />
vida atual. Busco, aqui, enten<strong>de</strong>r as formas com que ele se ocupou <strong>de</strong>ssa<br />
questão crucial na relação Bentinho-Capitu. Tento <strong>de</strong>monstrar como a<br />
herança da “imagem do homem” afetou o realismo e o pensamento<br />
contemporâneo, tentando perceber as implicâncias das incoerências nos<br />
conceitos <strong>de</strong> natureza humana e liberda<strong>de</strong>.<br />
Como muitos ilustres eruditos costumam crer que o humanismo<br />
morreu, digo-lhes que não. O humanismo não morreu. Morre a esperança<br />
daqueles que, não crentes, não vêem e tampouco compreen<strong>de</strong>m a<br />
verda<strong>de</strong>ira religião como um advento <strong>de</strong> ‘caminho, verda<strong>de</strong> e vida’ –<br />
on<strong>de</strong> “a verda<strong>de</strong> vos libertará”.<br />
A partir da teologia sistemática católica que trata do pecado<br />
original, e que “passa por transição radical e por pluralismo<br />
consi<strong>de</strong>rável” (sic, HAIGHT, apud GALVIN & FIORENZA, <strong>19</strong>97); é<br />
preciso interpretar e compreen<strong>de</strong>r a afirmação <strong>de</strong> Roger Haight <strong>de</strong> que<br />
“o preço <strong>de</strong> uma liberda<strong>de</strong> humana realmente criativa é situação na<br />
qual o pecar realmente permanece fato contínuo” (sic, pág. 129,<br />
vol. II).<br />
Como explica Haight, o pecado <strong>de</strong>sdobra-se em dois níveis –<br />
individual e social. E em Machado percebemos, sutilmente, a leveza<br />
como ele trata estes dois níveis. Em Dom Casmurro as atitu<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />
Escobar e Sancha e <strong>de</strong> Capitu e Bentinho são típicas da socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
hoje, que vive a eterna separação entre o ser e a ação; dando continuida<strong>de</strong>
116 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
à velha e inseparável questão obscura do sujeito transcen<strong>de</strong>ntal, tal como<br />
a <strong>de</strong>fine Gamarra (apud YARZA, <strong>19</strong>97).<br />
No nível individual, o pecado é uma questão, particularmente,<br />
<strong>de</strong>vida à catequese. Ou seja, trata-se do nível <strong>de</strong> educação religiosa<br />
recebido pela pessoa e do nível das pregações por ela ouvidas (ou não).<br />
Outro aspecto que influencia no conceito <strong>de</strong> pecado é o nível <strong>de</strong><br />
individualismo da pessoa. Como ensina Haight (opus cit. pág. 152, vol.<br />
II):<br />
“O pecado é po<strong>de</strong>r agressivo na liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> cada pessoa que se<br />
projeta cumulativamente na história, na negação recessiva <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong><br />
que falha em ser responsável para o eu e para o mundo em resposta à<br />
graça” (sic).<br />
No nível social, (segundo Haight) “a existência humana é, em si,<br />
pecaminosa” (sic). Entretanto, o mal que está no mundo não proce<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
Deus, mas da concupiscência da carne, dos olhos e da soberba da vida (1<br />
Jo, 2, 16; 1 Ti 12, 16). Assim é que muitas pessoas não se inteiram da<br />
finalida<strong>de</strong> da liberda<strong>de</strong> humana e nem, tampouco, da questão do seu<br />
<strong>de</strong>stino final. As pessoas ‘mundanas’, em geral são escapistas, como <strong>de</strong><br />
resto a cultura <strong>de</strong> massa.<br />
Aqui percebo o clímax da narrativa machadiana, em Dom<br />
Casmurro: quando Capitu pe<strong>de</strong> a Bentinho explicações do seu ciúme e<br />
ele lhe dá o divórcio – a separação, sem querer sequer conversar. On<strong>de</strong><br />
está a bonda<strong>de</strong>, a graciosida<strong>de</strong> e a benevolência <strong>de</strong> Bentinho para perdoar<br />
Capitu? É um perdão impossível a nível social. Mas, possível a nível<br />
pessoal. Bentinho parece querer perdoar Escobar. Não consegue esquecer<br />
seu amor por Capitu, nem mesmo com a ajuda das ‘caprichosas’. E,<br />
tampouco se perdoa pelas suas atitu<strong>de</strong>s farisaicas e infantis.<br />
O significado e o significante escatológico aplicado por Machado<br />
em Dom Casmurro sobrepassa o entendimento comum do leitor<br />
<strong>de</strong>savisado. É preciso compreen<strong>de</strong>r nas entrelinhas <strong>de</strong>ste magnífico<br />
drama nacional, o on<strong>de</strong>, o como, o quando e o por que Machado coloca a<br />
sua interpretação do ‘Reino <strong>de</strong> Deus’. Só assim se po<strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r
Eu te perdôo, Capitu ___________________________________________________ José Renato <strong>de</strong> Castro César 117<br />
como ele consegue retratar ‘o governo <strong>de</strong> Deus’ na vida <strong>de</strong> seus<br />
personagens; e como ele, Machado, retrata tão bem esse processo e esta<br />
consumação, através dos sacramentos a que se submetem.<br />
Com relação a este aspecto, é preciso notar a importância que dá ao<br />
sacramento do matrimônio e a seus pressupostos patriarcais, tão<br />
ameaçados pelo feminismo pueril <strong>de</strong> uma Capitu amordaçada. Uma<br />
mulher cuja personalida<strong>de</strong> foi mo<strong>de</strong>lada em pressupostos antropológicos<br />
e sociais arcaicos e hipócritas, nos quais Machado <strong>de</strong>posita o lixo moral,<br />
ético e estético <strong>de</strong> sua época<br />
O mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> relacionamento matrimonial Bentinho-Capitu é um<br />
retrato da socieda<strong>de</strong> brasileira <strong>de</strong>s<strong>de</strong> então. O simbolismo <strong>de</strong> Bentinhopadre<br />
(santo) Capitu-traidora (pecadora) é um retrato dramático <strong>de</strong> uma<br />
socieda<strong>de</strong> que permanece cultivando seus medos, frustrações e neuroses.<br />
A cultura brasileira transita entre: a imagem do homem no papel<br />
conjugal como governante e salvador, re<strong>de</strong>ntor sofredor e da mulher<br />
como pecadora, obediencial e subordinada; e uma ‘nova’ imagem trazida<br />
por Walter Kasper para a teologia sistemática, do matrimônio como um<br />
‘sacramento do espírito’, que segue a posição <strong>de</strong> Peterson, Schlier e<br />
Ratzinger (apud FIORENZA, opus cit., pág. 422).<br />
On<strong>de</strong> se situam Bentinho, Capitu e Escobar em relação a tais<br />
imagens antropológicas? Que metáfora intentou Machado? Qual<br />
paradigma <strong>de</strong>screve este drama, quando se ouve uma mulher dizer: “Foi<br />
bom, valeu, tchau”?<br />
“Já sabes que a minha alma, por mais lacerada que tenha sido,<br />
não ficou aí para um canto como uma flor lívida e solitária. Não lhe<br />
<strong>de</strong>i essa cor ou <strong>de</strong>scor. Vivi o melhor que pu<strong>de</strong>, sem me faltarem<br />
amigas que me consolassem da primeira. Caprichos <strong>de</strong> pouca dura, é<br />
verda<strong>de</strong>.” (sic).<br />
Bentinho não apren<strong>de</strong>u e nem tampouco Capitu que “um matrimônio<br />
entre dois indivíduos é o início <strong>de</strong> nova comunida<strong>de</strong>, comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
discípulos iguais e parceiros sob o impacto e o po<strong>de</strong>r do Espírito” (sic,<br />
FIORENZA, opus cit., pág. 423).
118 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
O casamento, <strong>de</strong> Bentinho e Capitu, ocorreu numa tar<strong>de</strong> chuvosa <strong>de</strong><br />
março <strong>de</strong> 1865, e, pareceu ser mais importante para Bentinho que para<br />
Capitu. Valheu-lhe o céu, como se <strong>de</strong>para no capitulo 51, à página 908<br />
(COUTINHO, <strong>19</strong>86). E foi para Bentinho motivo <strong>de</strong> ciúmes por toda a<br />
vida. A ponto <strong>de</strong> culpar o <strong>de</strong>stino pela traição <strong>de</strong> sua esposa com seu<br />
melhor amigo.<br />
Vejo, assim, a se<strong>de</strong> escatológica <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis diante do<br />
paradoxo religioso da socieda<strong>de</strong> brasileira. Vejo a sua busca pelas fontes<br />
simbólicas da doutrina católica diante do pecado, diante do ciúme, diante<br />
do juízo e da con<strong>de</strong>nação que cada um <strong>de</strong> nós faz, dia a dia, neste mundo<br />
<strong>de</strong> pecadores.<br />
“... nenhuma tinha os olhos <strong>de</strong> ressaca, nem os <strong>de</strong> cigana oblíqua e<br />
dissimulada” (sic). É assim que, ao final <strong>de</strong> Dom Casmurro, Machado<br />
quer con<strong>de</strong>nar Capitu e absolver Bentinho. Mas ele, também, con<strong>de</strong>na<br />
Bentinho pelo seu erro. E o faz diante das escrituras, por ele ter sentido<br />
ciúmes <strong>de</strong> Capitu.<br />
Eis aí o enigma do estereótipo da “dor <strong>de</strong> corno” – a <strong>de</strong>sconfiança<br />
que, a todos os apaixonados, consome: a traição e a mentira. Os<br />
caprichos, ensina Machado, não nos fazem esquecer as dores do amor e<br />
da paixão e nem as aliviam.<br />
Sua perfeição como escritor vai mais longe. Machado transcen<strong>de</strong> a<br />
natureza humana. Para o Pe. Léo “o ser humano está ficando enfastiado<br />
em conseqüência <strong>de</strong>ssa moral subjetiva, feita sob medida, em que colhe e<br />
acolhe somente aquilo que é agradável, <strong>de</strong>sfazendo-se dos valores mais<br />
exigentes” (sic). Machado, ao dizer das “dores espiritualizadas” <strong>de</strong><br />
Bentinho, “diluídas no prazer”, confirma a assertiva.<br />
O leitor mais arguto <strong>de</strong>verá superar o individualismo ético <strong>de</strong><br />
Bentinho e o subjetivismo individualista <strong>de</strong> Capitu para compreen<strong>de</strong>r que<br />
a vida requer mais <strong>de</strong> cada um. A vida não dá chances. A vida é pecado,<br />
sacramentos, graça e perdão.<br />
A semântica machadiana é, ao mesmo tempo, intencional e<br />
compreensiva. Porém, sutil com relação aos valores cristãos mais<br />
profundos. Machado se faz teólogo na sua subjetivida<strong>de</strong>. É um Charles<br />
Taylor do drama nacional, e transita do romantismo ao realismo,<br />
retratando a imagem antropológica <strong>de</strong> sua época.
Eu te perdôo, Capitu ___________________________________________________ José Renato <strong>de</strong> Castro César 1<strong>19</strong><br />
Em Dom Casmurro apreen<strong>de</strong>-se um pouco da teleologia machadiana.<br />
Apreen<strong>de</strong>-se sutilmente o significado das palavras e das almas, nas suas<br />
profundas intenções compreensivas <strong>de</strong> visitação, <strong>de</strong> mudança <strong>de</strong> escala e<br />
<strong>de</strong> transgressão. Ave Machado <strong>de</strong> Assis! Que a terra te seja leve! Quanto<br />
a mim, já perdoei Capitu.<br />
“A mulher possui um lugar, <strong>de</strong>la tão-somente. Reconhecer esse<br />
lugar é uma questão <strong>de</strong> justiça, reparação e bem-querer. Quem, senão a<br />
mulher, a mãe <strong>de</strong> todo homem, manifesta alta capacida<strong>de</strong> para amar e<br />
sofrer?” (sic, PE AIRTON, 2006).<br />
Eu te perdôo, Capitu<br />
Não te direi <strong>de</strong> quantas Capitus eu já amei...<br />
Mas, te direi da fome <strong>de</strong> perdão que soçobrou em meu coração...<br />
Não te direi dos ‘olhos <strong>de</strong> ressaca’ e nem dos olhares<br />
dissimulados que nelas vi.<br />
Quimeras...<br />
Dir-te-ei dos dissabores <strong>de</strong> estar tão só. Dos vícios mundanos. E<br />
das dores...<br />
Meus e <strong>de</strong>las, também... Tão contrastantes, consternados,<br />
anoiados...<br />
Vícios e dores e o choro adolorado <strong>de</strong> um coração trucidado...<br />
Semimorto pelos pecados...<br />
Ah, Capitu, eu te perdôo. Eu te perdôo, Capitu.<br />
Por não me teres amado como eu sonhei. Por não me teres dito<br />
todas tuas meias-verda<strong>de</strong>s.<br />
Eu te perdôo, Capitu, por me teres traído. Eu que tanto, tanto te<br />
amei...<br />
Perdoa-me, Capitu, também...
120 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
Eu me perdôo, também, por te ter idolatrado.<br />
Por te ter amado mais que a mim e por não te ter compreendido.<br />
Nem a tua dor...<br />
Que a terra não te leve, meu amor, longe <strong>de</strong> mim...<br />
Perdoa-me, Capitu! E perdoa-te,... sim?!<br />
Nota<br />
Segundo o Prof. Rui Chamone Jorge (Ca<strong>de</strong>rnos <strong>de</strong> Terapia<br />
Ocupacional, Ano III, No 1, GES.TO, <strong>19</strong>91), referindo-se ao esclarecimento<br />
dado por Pe. Henrique Cláudio <strong>de</strong> Limas Vaz; “suprassumir é um<br />
neologismo cunhado por Paulo Menezes, para traduzir o verbo alemão<br />
AUFHEBEN, correspon<strong>de</strong>nte ao verbo latino SUSTOLLERE e significa:<br />
tomar um conceito e elevá-lo a uma significação superior, sem negar a<br />
significação primitiva. Suprassumir é antípoda a subsumir. O primeiro<br />
significando o movimento do particular para o universal e o segundo, do<br />
universal para o particular” (sic, A Mediação na Terapia Ocupacional,<br />
pág. 56).<br />
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Tavares, Hênio. Teoria literária. 5ª. Edição. Itatiaia, Belo Horizonte<br />
(<strong>19</strong>74).
122 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
124 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
A CIÊNCIA NA OBRA DE<br />
MACHADO DE ASSIS:<br />
Adaptação do espetáculo teatral<br />
“Lição <strong>de</strong> Botânica” em um Museu <strong>de</strong> Ciências<br />
A ciência não é tudo, minha senhora. Há alguma<br />
coisa mais, além do espírito, alguma coisa<br />
essencial ao homem (...) o mundo intelectual é<br />
estreito para conter o homem todo.<br />
Machado <strong>de</strong> Assis<br />
Thelma Lopes Carlos Gardair*<br />
Virgínia Torres Schall**<br />
Assim como o mundo intelectual é estreito para conter o homem<br />
todo, a tentativa <strong>de</strong> enquadrar Machado <strong>de</strong> Assis, seja pelo aspecto dos<br />
gêneros literários ou pela predominância <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminados temas em sua<br />
obra, será igualmente estreita para conter a exuberância do autor. Uma<br />
vez lembrados os perigos das estreitezas, nos sentimos livres para<br />
<strong>de</strong>bruçar-nos sobre um dos temas recorrentes na obra <strong>de</strong> Machado: a<br />
Ciência. O autor escreveu com sensibilida<strong>de</strong> e ironia sobre a alma<br />
feminina, o ciúme, a loucura, a ciência e tantos outros temas que o<br />
inquietaram. História, Psicologia e Biologia são algumas das Ciências<br />
* Doutoranda do Programa <strong>de</strong> Ensino em Biociências e Saú<strong>de</strong> do Instituto Oswaldo Cruz;<br />
Ciência em Cena, Museu da Vida, Casa <strong>de</strong> Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz. Rio <strong>de</strong><br />
Janeiro.<br />
** Doutora em Educação; pesquisadora; chefe do Laboratório em Educação e Saú<strong>de</strong>, Instituto<br />
René Rachou, Fundação Oswaldo Cruz (IRR/Fiocruz). Belo Horizonte.
126 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
relacionadas à obra <strong>de</strong> Machado, consi<strong>de</strong>rado um dos mais importantes<br />
escritores da Literatura <strong>de</strong> língua portuguesa. A Ciência e a Filosofia<br />
foram temas caros a este autor <strong>de</strong> contos, romances, poesias, crônicas,<br />
artigos <strong>de</strong> jornal e peças <strong>de</strong> teatro. Em diversas <strong>de</strong> suas obras é possível<br />
encontrar alusões à Ciência e aos cientistas. No conto “O Alienista”,<br />
publicado entre os anos <strong>de</strong> 1881 e 1882, o protagonista, Doutor<br />
Bacamarte, absolutizando a Ciência e utilizando argumentos pretensamente<br />
científicos, aprisiona em sua “Casa Ver<strong>de</strong>” todos aqueles que<br />
classifica como loucos. No conto, Machado <strong>de</strong> Assis critica e satiriza o<br />
cientificismo aplicado ao estudo da loucura e assinala a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
construir novas visões <strong>de</strong> Ciência.<br />
(...) a ciência tem o inefável dom <strong>de</strong> curar todas as mágoas;<br />
nosso médico mergulhou inteiramente no estudo e na prática<br />
da medicina. Foi então que um dos recantos <strong>de</strong>sta lhe chamou<br />
especialmente a atenção, – o recanto psíquico, o exame da<br />
patologia cerebral. Não havia na colônia, e ainda no reino,<br />
uma só autorida<strong>de</strong> em semelhante matéria, mal explorada, ou<br />
quase inexplorada. Simão Bacamarte compreen<strong>de</strong>u que a<br />
ciência lusitana, e particularmente a brasileira, podia cobri-lo<br />
<strong>de</strong> louros inacessíveis. (ASSIS, <strong>19</strong>83, p. 94).<br />
Em “A sereníssima república”, conto publicado originalmente em<br />
1882, Machado critica o processo eleitoral brasileiro. Na conferência<br />
realizada pelo personagem Vargas – um cônego cientista, Machado<br />
também questiona o materialismo científico do final do século XIX. O<br />
conto tem início com um narrador que discursa sobre uma <strong>de</strong>scoberta<br />
brasileira que seria superior àquela realizada por um “sábio inglês”,<br />
referindo-se a Charles Darwin.<br />
Minha <strong>de</strong>scoberta não é recente; data do fim do ano <strong>de</strong> 1876.<br />
(...) Esta obra <strong>de</strong> que venho falar-vos, carece <strong>de</strong> retoques<br />
últimos, <strong>de</strong> verificações e experiências complementares. Mas<br />
o Globo noticiou que um sábio inglês <strong>de</strong>scobriu a linguagem<br />
fônica dos insetos, e cita o estudo feito com as moscas. (...)
A ciência na obra <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis _____________ Thelma Lopes Carlos Gardair e Virgínia Torres Schall 127<br />
Citando Darwin e Büchner, é claro que me restrinjo à<br />
homenagem cabida a dois sábios <strong>de</strong> primeira or<strong>de</strong>m, sem <strong>de</strong><br />
nenhum modo absolver (...) as teorias gratuitas e errôneas do<br />
materialismo. (ASSIS, <strong>19</strong>94).<br />
Lição <strong>de</strong> Botânica foi a última peça teatral escrita por Machado <strong>de</strong><br />
Assis, dois anos antes <strong>de</strong> sua morte, em <strong>19</strong>06.<br />
A peça é uma <strong>de</strong>licada história <strong>de</strong> amor, na qual o Barão<br />
Sigismundo <strong>de</strong> Kernorberg, “botânico <strong>de</strong> vocação, profissão e tradição”,<br />
discute a relação entre ciência e sentimentos com a doce Helena: “só uma<br />
coisa lhe acho inaceitável: a teoria <strong>de</strong> que o amor e a ciência são<br />
incompatíveis”, diz Helena, convidando o cientista a sentir a ciência <strong>de</strong><br />
outra maneira. (LOPES, 2007, p. 166-167).<br />
A peça conta a história do Barão Sigismundo <strong>de</strong> Kernoberg,<br />
cientista sueco especializado em taxionomia tal qual Karl von Lineu, que<br />
ao tentar impedir o casamento do sobrinho, acaba se apaixonando.<br />
Segundo o Barão, para se <strong>de</strong>dicar à Ciência o cientista <strong>de</strong>ve isolar-se do<br />
mundo e reprimir seus sentimentos. Ele tem a Ciência como esposa e rejeita<br />
as relações <strong>de</strong> amor concretas. Entretanto ao dirigir-se à chácara <strong>de</strong> Dona<br />
Leonor Gouvêa para tentar impedir o namoro do sobrinho Henrique, se<br />
<strong>de</strong>para com Helena, a qual, ao criar uma estratégia visando a possibilitar o<br />
casamento da irmã Cecília com Henrique, <strong>de</strong>sperta a paixão no cientista.<br />
Lições <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis no campus da Fiocruz<br />
O “Ciência em Cena”, originalmente concebido em <strong>19</strong>91 pela<br />
pesquisadora Virgínia Schall (GADELHA e SCHALL, <strong>19</strong>99), é uma das<br />
áreas <strong>de</strong> visitação do Museu da Vida (MV), <strong>de</strong>partamento da Casa <strong>de</strong><br />
Oswaldo Cruz (COC), localizado no campus da Fiocruz e tem como<br />
principal objetivo a pesquisa e o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s que<br />
relacionem Arte e Ciência. Na programação atual <strong>de</strong>stacam-se a<br />
produção <strong>de</strong> eventos científicos, exposições, mostras <strong>de</strong> Teatro e Ví<strong>de</strong>o,<br />
oficinas interativas que relacionam Biologia, Física, Arte e Cultura e os<br />
espetáculos teatrais. A peça Lição <strong>de</strong> Botânica está em cartaz <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 2003<br />
e até o momento já foi vista por 22.987 espectadores.
128 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
O espetáculo foi concebido em parceria com cientistas da COC e<br />
com artistas profissionais que integram a equipe do “Ciência em Cena”.<br />
Gustavo Ottoni assina a direção da peça. A escolha <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis<br />
para compor o repertório <strong>de</strong> peças do Museu da Vida, se <strong>de</strong>ve, principalmente,<br />
ao fato <strong>de</strong> este autor ter escrito com sensibilida<strong>de</strong> e ironia<br />
sobre a alma feminina, o ciúme, a loucura, a ciência e tantos outros temas<br />
que o inquietaram, como acima comentado.<br />
A estréia ocorreu por ocasião do “I Seminário Arte e Ciência na<br />
Boca <strong>de</strong> Cena”, no qual o dramaturgo João Bethencourt e o físico<br />
Henrique Lins discutiram com o público sobre possíveis relações entre<br />
Ciência e Arte na peça <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis.<br />
Na Botânica <strong>de</strong> Machado as flores são mais belas... O espetáculo<br />
teatral como ativida<strong>de</strong> voltada para Educação em Ciências<br />
A ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvida no “Ciência em Cena” com a peça Lição<br />
<strong>de</strong> Botânica, consiste na apresentação do espetáculo teatral, seguido <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>bate com a platéia e apresentação <strong>de</strong> CD-rom no qual a peça é<br />
contextualizada histórica e artisticamente, e os conteúdos <strong>de</strong> Botânica<br />
que constam no texto <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis são explorados. A duração<br />
total da ativida<strong>de</strong> é <strong>de</strong> uma hora e vinte minutos, compreen<strong>de</strong>ndo a<br />
recepção do público, apresentação <strong>de</strong> espetáculo, <strong>de</strong>bate com a platéia,<br />
apresentação do CR-rom e consi<strong>de</strong>rações finais. Após a recepção do<br />
público, que recebe um prospécto do espetáculo e orientações básicas,<br />
tem início o espetáculo teatral.<br />
Ao término, o público é convidado a apresentar sugestões, críticas e<br />
dúvidas. Em seguida, é mostrado um CD-rom cujo conteúdo é<br />
fundamental para consolidar algumas questões que surgem ao longo do<br />
<strong>de</strong>bate, estabelecer relações entre diferentes campos do conhecimento<br />
indicados na peça, e, principalmente, <strong>de</strong>svelar alguns conteúdos que são<br />
apresentados ao longo do espetáculo e que, muitas vezes, ficam<br />
embotados pela exuberância do texto machadiano. O referido CD-rom,<br />
elaborado por Thelma Lopes, em colaboração com equipe multidisciplinar,<br />
apresenta dados biográficos <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis <strong>de</strong> modo a
A ciência na obra <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis _____________ Thelma Lopes Carlos Gardair e Virgínia Torres Schall 129<br />
humanizar a imagem do autor e explora a influência da cultura européia,<br />
principalmente a francesa, na época e na obra <strong>de</strong> Machado. Inclui<br />
também fotos do centro do Rio <strong>de</strong> Janeiro, então capital fe<strong>de</strong>ral, no início<br />
do século XX, exibe esboços do cenário, imagens <strong>de</strong> pranchas científicas<br />
<strong>de</strong> espécies <strong>de</strong> flores como bromélias, umbelíferas, rubiáceas, oleáceas,<br />
orquí<strong>de</strong>as, bem como explicações sucintas sobre cada uma <strong>de</strong>las.<br />
Dados biográficos sobre Karl von Lineu e pequenos textos sobre<br />
taxionomia e História da Botânica no Brasil também são apresentados.<br />
Ao longo da exibição do CD-rom, o público intervém quando assim<br />
<strong>de</strong>seja, buscando dirimir eventuais dúvidas ou tecer comentários. As<br />
expressões faciais, nem sempre tão fáceis <strong>de</strong> serem corretamente<br />
interpretadas, as interjeições e intervenções ao longo da exibição do CDrom,<br />
parecem apontar que a conjugação <strong>de</strong>ste material didático com a<br />
apresentação do espetáculo mostrou-se fundamental para potencializar<br />
algumas relações propostas por Machado na peça e sobre os conteúdos <strong>de</strong><br />
Botânica que são mencionados pelo autor. Ao final da exibição do CDrom,<br />
conclui-se a ativida<strong>de</strong>, sendo explicitados os motivos pelos quais a<br />
peça Lição <strong>de</strong> Botânica foi selecionada para estimular a reflexão sobre as<br />
Ciências e a atuação do cientista na socieda<strong>de</strong>. Durante os <strong>de</strong>bates, as<br />
perguntas elaboradas pelos estudantes foram registradas por escrito.<br />
Muitas perguntas e algumas respostas...<br />
A maioria das perguntas do público refere-se ao processo <strong>de</strong><br />
criação teatral. Uma interpretação precipitada <strong>de</strong>stes dados po<strong>de</strong>ria<br />
indicar que a ativida<strong>de</strong> não alcança o objetivo <strong>de</strong> seus i<strong>de</strong>alizadores, na<br />
medida em que uma das principais metas a ser atingida seria estimular a<br />
reflexão sobre temas <strong>de</strong> Ciência e não apenas sobre Teatro. Entretanto,<br />
consi<strong>de</strong>ramos que o cumprimento dos objetivos não se encerra<br />
unicamente na apresentação da peça. Diferentemente disto, o espetáculo<br />
teatral, no campo da Educação em Ciências, <strong>de</strong>ve funcionar como ponto<br />
<strong>de</strong> partida para gerar o <strong>de</strong>bate sobre temas relacionados à prática<br />
científica. Ao <strong>de</strong>spertar o questionamento sobre o processo <strong>de</strong> criação<br />
artística, o espetáculo promove excelente oportunida<strong>de</strong> para que os
130 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
mediadores contraponham as características dos processos artístico e<br />
científico, estabelecendo relações <strong>de</strong> modo a i<strong>de</strong>ntificar pontos <strong>de</strong> contato<br />
e afastamento entre os processos em questão, e contribuir para a<br />
construção <strong>de</strong> visões <strong>de</strong> Ciência menos compartimentadas e estereotipadas.<br />
Nota-se também um número expressivo <strong>de</strong> perguntas referentes ao<br />
enredo da peça. Por um lado, isto po<strong>de</strong> <strong>de</strong>monstrar o interesse e a<br />
curiosida<strong>de</strong> que a trama <strong>de</strong>sperta. Por outro, po<strong>de</strong> significar a não<br />
compreensão plena e imediata da história encenada ou, ainda, a não<br />
consciência por parte da platéia <strong>de</strong> que a peça foi compreendida. Aqui é<br />
importante refletir sobre a linguagem <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis. A produção<br />
teatral <strong>de</strong>ste autor foi consi<strong>de</strong>rada muito literária. A crítica <strong>de</strong> que suas<br />
comédias seriam mais para ler do que para encenar é recorrente. No<br />
entanto, <strong>de</strong> encontro a esta crítica histórica ao teatro Machadiano, Loyola<br />
(<strong>19</strong>97) consi<strong>de</strong>ra Lição <strong>de</strong> Botânica um marco no que se refere à<br />
atribuição <strong>de</strong> valor cênico à dramaturgia <strong>de</strong> Machado, na medida em que,<br />
para ela, o Teatro <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis confronta as convenções sociais e<br />
teatrais da época.<br />
A ironia <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis em Lição <strong>de</strong> Botânica,<br />
coinci<strong>de</strong> com a última frase da peça; ao <strong>de</strong>sfecho súbito dado por Helena<br />
diante <strong>de</strong> uma espécie <strong>de</strong> afasia do barão e do espanto <strong>de</strong> Dona Leonor, a<br />
personagem encerra o assunto: “Não se admire tanto, titia, tudo isso é<br />
botânica aplicada”. (LOYOLA <strong>19</strong>97, p. 171)<br />
Machado foi um apaixonado pelo Teatro. Segundo Faria, o autor<br />
“queria um teatro que não fosse mero passatempo das massas (...) pois<br />
acreditava na função educativa da arte, que <strong>de</strong>via caminhar na vanguarda<br />
do povo como uma preceptora” (FARIA, <strong>19</strong>93, p. 152). O Teatro da<br />
época, baseado nos gran<strong>de</strong>s conflitos, nas reviravoltas, lágrimas e finais<br />
apoteóticos, bem como a socieda<strong>de</strong> do período <strong>de</strong> Machado, pautada<br />
excessivamente nos protocolos, mesuras e formalida<strong>de</strong>s, são alvos <strong>de</strong><br />
crítica em Lição <strong>de</strong> Botânica. Não há um gran<strong>de</strong> final no texto e a<br />
maneira abrupta pela qual Machado conclui a história causa estranhamento<br />
ainda hoje. Tal reação po<strong>de</strong> contribuir para gerar a impressão <strong>de</strong><br />
que a história não foi plenamente compreendida, e há outros aspectos que<br />
po<strong>de</strong>m corroborar esta impressão. Embora Lição <strong>de</strong> Botânica apresente
A ciência na obra <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis _____________ Thelma Lopes Carlos Gardair e Virgínia Torres Schall 131<br />
um enredo simples e <strong>de</strong> fácil entendimento, o discurso utilizado pelas<br />
personagens po<strong>de</strong> soar muito sofisticado às platéias atuais. Trata-se <strong>de</strong><br />
uma história simples <strong>de</strong> amor proibido. Entretanto, a colocação<br />
diferenciada dos pronomes em geral, a freqüente utilização <strong>de</strong> mesóclises<br />
e mesmo o vocabulário empregado, por vezes longínquo do léxico atual,<br />
po<strong>de</strong>m gerar a falsa impressão <strong>de</strong> que a peça não foi plenamente<br />
compreendida. Neste momento o mediador assume, novamente, papel<br />
importante no <strong>de</strong>bate, ao i<strong>de</strong>ntificar nas perguntas a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
ressaltar que Machado retrata a fala <strong>de</strong> uma dada época, quando aquele<br />
modo <strong>de</strong> falar era corrente na comunicação <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminada classe social.<br />
É imprescindível que o mediador <strong>de</strong>staque que a compreensão <strong>de</strong> um<br />
espetáculo teatral não implica, necessariamente, conhecimento <strong>de</strong> todas<br />
as palavras proferidas no palco. Pedir que algum integrante da platéia<br />
resuma o espetáculo, po<strong>de</strong> ajudar o público a ter consciência <strong>de</strong> que os<br />
acontecimentos centrais da peça e o entrelaçamento entre eles, na maioria<br />
das vezes, foi suficientemente entendido. O questionamento em relação à<br />
trama da peça e a linguagem empregada são importante mote para<br />
discussão sobre a linguagem científica. O hermetismo do barão po<strong>de</strong> ser<br />
estendido aos cientistas atuais? Se sim, em que medida? Apren<strong>de</strong>r<br />
Ciências implica em dominar esta linguagem? O conflito entre a vida<br />
profissional e a afetiva, vivido pelo barão e refletido em sua maneira <strong>de</strong><br />
se comunicar, se aplicar-se-ia aos cientistas <strong>de</strong> hoje? Salomão observa:<br />
(...) quais diferentes vozes sociais se enunciam no texto da<br />
peça? Quais as características da linguagem científica?<br />
Apren<strong>de</strong>r ciência pressupõe apren<strong>de</strong>r a falar cientificamente?<br />
Quais os diferentes gêneros <strong>de</strong> discursos e linguagens sociais<br />
que se manifestam em aulas <strong>de</strong> ciências? Esse rol <strong>de</strong><br />
perguntas contém articulações possíveis na peça, nesse jogo<br />
<strong>de</strong> buscar relações e atribuir sentidos. (SALOMÃO, 2005,<br />
p. 13)<br />
As perguntas relativas à formação dos atores provavelmente advêm<br />
do estranhamento que a platéia parece sentir ao presenciar pessoas que,
132 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
em princípio, não tendo interesse por temas científicos, falam com<br />
proprieda<strong>de</strong> sobre Ciências. Seja nas vozes dos personagens que<br />
representam no palco, seja no momento em que estão mediando o <strong>de</strong>bate,<br />
os atores se apropriam do discurso científico. Em relação aos comentários<br />
explicitamente elogiosos, estes indicam que o Teatro cumpre um <strong>de</strong><br />
seus papéis primordiais: entreter. Curioso é que se a linguagem <strong>de</strong><br />
Machado é, por vezes, motivo <strong>de</strong> distanciamento do público, ela também<br />
se mostra motivo <strong>de</strong> encantamento e entretenimento, como po<strong>de</strong>mos<br />
i<strong>de</strong>ntificar em alguns comentários <strong>de</strong> integrantes da platéia.<br />
a) Quando passa algum romance do Machado na escola, os alunos<br />
reclamam e dizem que é difícil. Eu digo que não é que Machado seja<br />
difícil, é que ele escreveu para uma época. Aqui no teatro a linguagem foi<br />
usada como feijão com arroz, <strong>de</strong> forma muito natural. Eu achei o<br />
máximo.<br />
b) Gostei da linguagem!<br />
c) Parabéns! Que dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> linguagem!<br />
As perguntas referentes a conteúdos específicos <strong>de</strong> Ciências são<br />
minoria. Embora a peça Lição <strong>de</strong> Botânica apresente termos científicos<br />
do campo da Botânica, tais como: perianto, cálix ou gramíneas, por<br />
exemplo, as perguntas sobre estes itens são raras. Uma das possíveis<br />
explicações po<strong>de</strong> ser a faixa etária do público, entre 11 e 13 anos, que,<br />
em geral, já tem conhecimento do significado <strong>de</strong>stes termos por meio das<br />
aulas freqüentadas, e mesmo por intermédio da peça, na qual alguns dos<br />
termos são elucidados. Outra possível explicação é diametralmente<br />
oposta à primeira, mas <strong>de</strong>ve ser consi<strong>de</strong>rada. O personagem cujas falas<br />
estão relacionadas aos termos em questão, o Barão Kernoberg, o faz <strong>de</strong><br />
modo tão pretensioso e arrogante que o discurso científico parece ter<br />
significado apenas em suas falas, não <strong>de</strong>spertando interesse naquilo sobre<br />
que o Barão disserta. No que concerne às perguntas sobre Machado <strong>de</strong><br />
Assis, estas parecem indicar a curiosida<strong>de</strong> do público em saber um pouco<br />
mais sobre este que é um dos maiores <strong>de</strong> nossos escritores, reconhecido<br />
internacionalmente, mas que, ao mesmo tempo, ainda é visto como um
A ciência na obra <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis _____________ Thelma Lopes Carlos Gardair e Virgínia Torres Schall 133<br />
escritor cuja obra é <strong>de</strong> difícil leitura. Perguntas como “Ele teve filhos?”<br />
ou “Machado também se interessou por Botânica?” parecem <strong>de</strong>monstrar<br />
o interesse da platéia em humanizar o mito. No CD-rom que integra a<br />
ativida<strong>de</strong>, a origem humil<strong>de</strong> do autor, sua condição <strong>de</strong> homem mulato em<br />
uma socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> mentalida<strong>de</strong> escravocrata, bem como o fato <strong>de</strong> ser gago<br />
e epilético são abordados, visando a apresentar a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> superação<br />
do autor, mas principalmente seus limites, buscando contribuir para a<br />
<strong>de</strong>smistificação da imagem <strong>de</strong> Machado. Algumas iniciativas que buscam<br />
integrar Ciência e Arte apontam a veiculação <strong>de</strong> conteúdos científicos<br />
como uma das principais metas a serem atingidas, atribuindo ao texto<br />
teatral o papel <strong>de</strong> facilitador <strong>de</strong> conceitos.<br />
O teatro, por sua forma <strong>de</strong> “fazer coletivo”, possibilita o<br />
<strong>de</strong>senvolvimento pessoal não apenas no campo da educação<br />
não-formal, mas permite ampliar, entre outras coisas, o senso<br />
crítico e o exercício da cidadania. Nosso propósito é também<br />
o <strong>de</strong> <strong>de</strong>smitificar pré-conceitos, grifo nosso, dos conteúdos<br />
científicos adquiridos pelos alunos no <strong>de</strong>correr <strong>de</strong> suas vidas<br />
escolares. Os textos são elaborados com o objetivo <strong>de</strong><br />
transmitir conceitos científicos <strong>de</strong> forma simples, lúdica e<br />
agradável, tendo como perspectiva tornar os conteúdos, às<br />
vezes áridos, em bem humorados diálogos, abrindo os<br />
<strong>de</strong>bates em sala <strong>de</strong> aula. (MONTENEGRO et al. 2005).<br />
Parece ser cada vez mais claro que por meio do Teatro é possível<br />
apresentar conteúdos <strong>de</strong> maneira atrativa. “O Teatro, por seu potencial<br />
comunicativo, configura-se como uma ferramenta fundamental ao<br />
aprendizado e à difusão científica.” (MATOS e SILVA, 2003, p. 256).<br />
Entretanto, é preciso refletir um pouco mais sobre a relação entre forma e<br />
conteúdo, no campo da educação científica associada ao Teatro. É<br />
necessário atentar para o fato <strong>de</strong> que, antes mesmo <strong>de</strong> comunicar<br />
conceitos <strong>de</strong> Ciências, o Teatro traz significados característicos <strong>de</strong> sua<br />
linguagem que dialogam com os conteúdos das peças levadas aos palcos.<br />
O estilo do autor da peça, a direção, o figurino, a atuação dos atores ou a
134 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
iluminação cênica, entre outros, são quesitos que compõem a encenação<br />
teatral e que comunicam seus próprios significados. Um espetáculo <strong>de</strong><br />
inspiração simbolista, por exemplo, dotará a luz cênica <strong>de</strong> inúmeros<br />
significados. Roubine (<strong>19</strong>98), em texto clássico sobre a linguagem da<br />
encenação teatral, <strong>de</strong>screve que “a luz elétrica po<strong>de</strong>, por si só, mo<strong>de</strong>lar,<br />
modular, esculpir um espaço nu e vazio (...) fazer <strong>de</strong>le aquele espaço do<br />
sonho e da poesia ao qual aspiravam os expoentes da representação<br />
simbolista”. (ROUBINE, <strong>19</strong>98, p. 21). Portanto, é imprescindível o<br />
entendimento <strong>de</strong> que reduzir o Teatro à condição <strong>de</strong> veículo seria um<br />
equívoco que apequena a potência da linguagem teatral.<br />
Em consonância com os aspectos <strong>de</strong> forma e conteúdo aqui<br />
<strong>de</strong>senvolvidas, surgem questionamentos sobre a pertinência da escolha da<br />
peça selecionada pela equipe do “Ciência em Cena”. De algum modo, as<br />
perguntas elaboradas revelam certa surpresa por parte do público ao se<br />
<strong>de</strong>parar com um texto que apesar do título, Lição <strong>de</strong> Botânica, e <strong>de</strong> ser<br />
encenado em uma instituição cuja importância no campo da produção<br />
científica é tão imponente, e muitas vezes vista com bastante formalida<strong>de</strong>,<br />
não se propõe a ser uma aula <strong>de</strong> Ciências. Perguntas sobre a<br />
pertinência <strong>de</strong>ste espetáculo em um Museu <strong>de</strong> Ciências constituem ótimo<br />
ensejo para a reflexão sobre a articulação entre linguagem teatral e<br />
educação em Ciências, visando a esclarecer que o Teatro não <strong>de</strong>ve ter<br />
como missão ensinar Ciências, e sim sensibilizar o público para questões<br />
e conteúdos do campo das Ciências. Se, supostamente, a serviço das<br />
Ciências, o Teatro recair em um didatismo excessivo, facearemos a<br />
estreiteza, e então não teremos Teatro nem Ciência, e tampouco Machado<br />
<strong>de</strong> Assis.
A ciência na obra <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis _____________ Thelma Lopes Carlos Gardair e Virgínia Torres Schall 135<br />
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<strong>19</strong>95.
MACHADO DE ASSIS:<br />
O CRÍTICO LITERÁRIO<br />
Perseverança versus amiza<strong>de</strong><br />
Sergio Amaral Silva*<br />
Ainda que se trate provavelmente da face menos estudada da<br />
literatura do imortal Machado <strong>de</strong> Assis (1839-<strong>19</strong>08), a ponto <strong>de</strong> ser<br />
mencionada apenas <strong>de</strong> passagem em algumas biografias, é difundida a<br />
versão <strong>de</strong> que seu trabalho como crítico literário circunscreveu-se a um<br />
período relativamente curto, <strong>de</strong> 1858 a 1879. Segundo esta, teria ocorrido<br />
uma espécie <strong>de</strong> substituição da crítica literária pela <strong>de</strong> costumes,<br />
incorporando-se o espírito crítico à obra do romancista cujo livro <strong>de</strong> 1881<br />
marcaria <strong>de</strong> forma <strong>de</strong>finitiva sua maturida<strong>de</strong> como escritor e transformaria<br />
a própria literatura brasileira: Memórias póstumas <strong>de</strong> Brás Cubas.<br />
Bem maior longevida<strong>de</strong> teria tido sua ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ficcionista,<br />
<strong>de</strong>sempenhada pelo menos <strong>de</strong> 1870 (quando saíram os Contos fluminenses)<br />
até seus últimos meses <strong>de</strong> vida (o lançamento do Memorial <strong>de</strong> Aires<br />
ocorreu no mesmo ano <strong>de</strong> seu falecimento). De fato, a crítica machadiana<br />
iniciou-se quando o jovem <strong>de</strong> menos <strong>de</strong> vinte anos e origem humil<strong>de</strong><br />
procurava aproximar-se do jornalismo cultural como forma <strong>de</strong> sobrevivência,<br />
ao mesmo tempo em que sonhava tornar seu nome conhecido e<br />
sua opinião respeitada no círculo literário da Corte, ressaltando-se que na<br />
época o Brasil cultural praticamente se resumia à cida<strong>de</strong> do Rio <strong>de</strong><br />
Janeiro.<br />
* Jornalista, ganhador do Prêmio Jornalístico Vladimir Herzog <strong>de</strong> Anistia e Direitos Humanos,<br />
categoria Literatura.
138 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
Em <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong><strong>19</strong>02, a Gazeta <strong>de</strong> Notícias publicava seus<br />
comentários sobre dois livros: Horas Sagradas, poemas do amigo Carlos<br />
Magalhães <strong>de</strong> Azeredo, fundador da ca<strong>de</strong>ira nº 9 da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> Brasileira<br />
<strong>de</strong> <strong>Letras</strong>; e Versos, <strong>de</strong> Mário <strong>de</strong> Alencar. Classifica Azeredo como “um<br />
dos primeiros escritores da nova geração”. Sobre Mário, diz que “é outro<br />
que figurará entre os da geração que começou no último <strong>de</strong>cênio”. Filho<br />
do ilustre José <strong>de</strong> Alencar, Mário também era amigo <strong>de</strong> Machado e para<br />
seu ingresso na <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> Brasileira <strong>de</strong> <strong>Letras</strong> como segundo titular da<br />
ca<strong>de</strong>ira nº 21, após a morte do fundador, o jornalista José do Patrocínio,<br />
foi <strong>de</strong>cisiva a opinião do presi<strong>de</strong>nte da instituição. Mais tar<strong>de</strong>, em <strong>19</strong>10,<br />
Mário foi o responsável por reunir postumamente as críticas do Bruxo do<br />
Cosme Velho, organizando-as em volume das Obras completas.<br />
A propósito, uma das dificulda<strong>de</strong>s iniciais <strong>de</strong> quem procura<br />
<strong>de</strong>dicar-se à pesquisa sobre a crítica literária <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis resi<strong>de</strong><br />
no estabelecimento do “corpus” <strong>de</strong> estudo. Dados a varieda<strong>de</strong> dos<br />
periódicos com os quais colaborava, sua produtivida<strong>de</strong> e mesmo o caráter<br />
mais precário do suporte jornal ou revista em relação aos livros, é<br />
temerário afirmar que tal ou qual coletânea reúne a totalida<strong>de</strong> das críticas<br />
<strong>de</strong> Machado. O próprio Mário <strong>de</strong> Alencar, em nota introdutória à sua<br />
compilação, chamou a atenção para a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> alguns textos<br />
críticos não estarem incluídos nesse levantamento. As discrepâncias<br />
existentes entre as principais fontes, embora pequenas, dão suporte a essa<br />
suspeita. Para efeito do presente ensaio, admitiram-se tão somente os<br />
textos veiculados na imprensa em resposta a manifestações estritamente<br />
literárias. Ficaram <strong>de</strong> fora, portanto, além dos prefácios e apresentações,<br />
as críticas teatrais, que o Mestre <strong>de</strong>senvolveu com fervor e brilhantismo.<br />
Aliás, o teatro, em que “a verda<strong>de</strong> aparece nua sem <strong>de</strong>monstração, sem<br />
análise” foi uma das primeiras paixões do jovem que aos vinte anos<br />
sonhava mudar o mundo e ser famoso como dramaturgo.<br />
Raízes<br />
Há que levar em conta o contexto histórico dos mais conturbados já<br />
vividos pelo Brasil, bastando lembrar que, além da Guerra do Paraguai, a
Machado <strong>de</strong> Assis: o crítico literário ______________________________________________ Sergio Amaral Silva 139<br />
segunda meta<strong>de</strong> do século XIX assistiu ainda às intensas campanhas que<br />
resultaram em duas importantes rupturas institucionais: a Abolição e a<br />
República. O estudo da crítica <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis permite traçar um<br />
painel abrangente da literatura brasileira no período, pela repercussão dos<br />
trabalhos <strong>de</strong> vários <strong>de</strong> seus autores mais importantes, principalmente dos<br />
membros da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong> que seria instalada em 1897 e do<br />
estabelecimento <strong>de</strong> relações <strong>de</strong> maior ou menor camaradagem entre eles.<br />
No começo, Machado ressentia-se da inexperiência característica<br />
da ida<strong>de</strong>, que compensava com seu natural talento e com a erudição<br />
resultante das leituras intensivas que cultivou <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a infância, inclusive<br />
nos principais idiomas europeus, <strong>de</strong> autores como Shakespeare. A<br />
propósito, Machado escreveu, testemunhando sua gran<strong>de</strong> admiração pelo<br />
Bardo: “Um dia, quando já não houver império britânico nem república<br />
norte-americana, haverá Shakespeare; quando não se falar inglês, falarse-á<br />
Shakespeare.” Com o <strong>de</strong>correr do tempo, foi conquistando maior<br />
<strong>de</strong>senvoltura, chegando a ser um dos mais produtivos críticos da<br />
imprensa nacional. Os moços, dizia Machado em texto <strong>de</strong> 1879, “estão na<br />
ida<strong>de</strong> em que a irreflexão é condição <strong>de</strong> bravura; em que um pouco <strong>de</strong><br />
injustiça com o passado é essencial à conquista do futuro”. Em outra<br />
ocasião, o autor registrou: “Com os anos, adquiri a firmeza e busquei a<br />
perfeição”.<br />
Dedica um <strong>de</strong> seus primeiros textos sobre literatura, publicado no<br />
Correio da Manhã <strong>de</strong> 10 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1859, a um importante protetor<br />
naqueles primeiros anos: o escritor Manuel Antônio <strong>de</strong> Almeida, o<br />
diretor da Imprensa Nacional em que Machado trabalhava <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1856<br />
como aprendiz <strong>de</strong> tipógrafo, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> um ano na tipografia <strong>de</strong> Paula<br />
Brito. Também aficionado da literatura, o chefe o estimulava a prosseguir<br />
em suas leituras, mesmo no horário <strong>de</strong> expediente.<br />
Des<strong>de</strong> o princípio, o moço Machadinho aprendia a valorizar as<br />
amiza<strong>de</strong>s, que ele, aliás, não tinha dificulda<strong>de</strong> em estabelecer. Aqui, é<br />
oportuno lembrar os versos do poema Bons amigos:
140 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
Benditos sejam todos os amigos <strong>de</strong> raízes verda<strong>de</strong>iras,<br />
Porque amigos são her<strong>de</strong>iros da real sagacida<strong>de</strong>.<br />
Ter amigos é a melhor cumplicida<strong>de</strong>!<br />
Almeida, o Maneco, que na ocasião publicava seu inovador<br />
romance Memórias <strong>de</strong> um sargento <strong>de</strong> milícias em forma <strong>de</strong> folhetim, era<br />
um dos intelectuais que freqüentavam a livraria <strong>de</strong> Francisco <strong>de</strong> Paula<br />
Brito, reuniões <strong>de</strong> que Machado também participava. Foi Maneco quem<br />
apresentou e recomendou seu jovem funcionário a dois jornalistas <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>staque: Quintino Bocaiúva e Francisco Otaviano, este diretor do jornal<br />
Correio Mercantil, que convidou Machado para trabalhar como revisor<br />
<strong>de</strong> provas. Ao mesmo tempo, o jovem começou a escrever para pequenos<br />
jornais, como O Espelho.<br />
Muitos anos mais tar<strong>de</strong>, quando da fundação da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong><br />
Brasileira <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, <strong>de</strong> que Machado seria o primeiro presi<strong>de</strong>nte, o nome<br />
<strong>de</strong> Manuel Antônio <strong>de</strong> Almeida, então já falecido, acabou sendo<br />
escolhido para patrono da ca<strong>de</strong>ira nº 28 da nova agremiação.<br />
Tronco<br />
Uma curiosida<strong>de</strong> daquele artigo <strong>de</strong> 1859, intitulado O jornal e o<br />
livro, é o fato <strong>de</strong> Machado, que foi <strong>de</strong>nunciado como monarquista por<br />
políticos republicanos <strong>de</strong> sua época e que teria acompanhado sem gran<strong>de</strong><br />
interesse o movimento pelo novo regime, já <strong>de</strong>ixara explícita sua posição,<br />
ao menos três décadas antes da queda do Imperador. Em trecho que<br />
enaltecia o caráter <strong>de</strong>mocrático e liberal da Revolução Francesa, ele<br />
concluiu: “A humanida<strong>de</strong>, antes <strong>de</strong> tudo, é republicana.”<br />
Amigo <strong>de</strong> um dos principais lí<strong>de</strong>res republicanos, Quintino<br />
Bocaiúva, este o levou para ser redator do liberal Diário do Rio <strong>de</strong><br />
Janeiro, que dirigia juntamente com Saldanha Marinho. Neste, um dos<br />
maiores jornais da Corte, Machado sentiu pela primeira vez a satisfação<br />
<strong>de</strong> po<strong>de</strong>r ser lido por muitas (e influentes) pessoas. Nesse sentido, po<strong>de</strong>se<br />
interpretar a curiosa tese <strong>de</strong>fendida em O jornal e o livro, da<br />
superiorida<strong>de</strong> daquele sobre este.
Machado <strong>de</strong> Assis: o crítico literário ______________________________________________ Sergio Amaral Silva 141<br />
Desiludido do projeto <strong>de</strong> tornar-se um gran<strong>de</strong> dramaturgo, após<br />
uma avaliação dura e sincera do amigo Bocaiúva sobre duas <strong>de</strong> suas<br />
peças, Machado passa a <strong>de</strong>dicar-se ainda com mais afinco ao jornalismo.<br />
Passa a encarar o exercício da crítica – “pensadora, sincera,<br />
perseverante, elevada” – como autêntica missão, a ser <strong>de</strong>sempenhada <strong>de</strong><br />
forma ética e séria, bem mais que simples ganha-pão, até porque a<br />
remuneração era baixíssima.<br />
“Com tais princípios, eu compreendo que é difícil viver; mas a<br />
crítica não é uma profissão <strong>de</strong> rosas, e se o é, é-o somente no que respeita<br />
à satisfação íntima <strong>de</strong> dizer a verda<strong>de</strong>”, escreveu em O i<strong>de</strong>al do crítico,<br />
publicado em outubro <strong>de</strong> 1865. Nesse artigo, o escritor fez questão <strong>de</strong><br />
explicitar as condições que consi<strong>de</strong>rava indispensáveis à análise literária:<br />
o conhecimento, a consciência, a coerência, a in<strong>de</strong>pendência, a<br />
imparcialida<strong>de</strong>, a tolerância, a urbanida<strong>de</strong> e a perseverança. E o sentido<br />
maior <strong>de</strong>ssa missão, para ele, era tão nobre quanto ambicioso: o<br />
<strong>de</strong>senvolvimento da própria literatura. “Tudo isso <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> da crítica.<br />
Que ela apareça, convencida e resoluta, – e a sua obra será a melhor obra<br />
dos nossos dias”, sintetizava o autor.<br />
Em <strong>de</strong>corrência, Machado procurava se aplicar no exame bastante<br />
<strong>de</strong>talhado das obras sob sua apreciação, com foco principal na forma, no<br />
estilo e na técnica literária, sem todavia <strong>de</strong>scuidar do conteúdo. Na<br />
poesia, costumava avaliar aspectos como a métrica, bem como o<br />
“sentimento” do autor. Na prosa, além da linguagem, dispensava atenção<br />
à construção do enredo e das personagens, valorizando a simplicida<strong>de</strong> e a<br />
verossimilhança. Outra característica recorrente <strong>de</strong> suas críticas era a<br />
preocupação com a perspectiva <strong>de</strong> sobrevivência das obras que analisava.<br />
Machado tinha gran<strong>de</strong> apreço por José <strong>de</strong> Alencar, que escolheu<br />
como patrono <strong>de</strong> sua ca<strong>de</strong>ira na <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong>, a <strong>de</strong> nº 23, e a quem suce<strong>de</strong>ria<br />
após a morte daquele, em 1877, como principal escritor brasileiro vivo.<br />
Em crítica <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1866, saudou o aparecimento <strong>de</strong> Iracema,<br />
romance publicado no ano anterior. Depois <strong>de</strong> uma análise minuciosa do<br />
enredo indigenista, arrematou, profeticamente: “Há <strong>de</strong> viver este livro,<br />
tem em si as forças que resistem ao tempo, e dão plena fiança do futuro.”<br />
E mais, referindo-se ao romancista cearense: “Espera-se <strong>de</strong>le outros
142 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
poemas em prosa. Poema lhe chamamos a este, sem curar <strong>de</strong> saber se é<br />
antes uma lenda, se um romance: o futuro chamar-lhe-á obra-prima”. Dez<br />
anos após o falecimento <strong>de</strong> Alencar, Machado esboçou um perfil da vida<br />
e obra do romancista, a quem ren<strong>de</strong>u respeitosa homenagem ao afirmar:<br />
”Tinha-lhe afeto, conhecia-o <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o tempo em que ele ria, não me podia<br />
acostumar à idéia <strong>de</strong> que a trivialida<strong>de</strong> da morte houvesse <strong>de</strong>sfeito esse<br />
artista fadado para distribuir a vida”.<br />
Folhas<br />
No famoso ensaio Notícia da atual literatura brasileira – Instinto<br />
<strong>de</strong> nacionalida<strong>de</strong>, que saiu em 1873, Machado compôs, a partir dos<br />
princípios do Romantismo ainda dominante, um panorama geral da arte<br />
literária <strong>de</strong> seu tempo, finalizando com um resumo bastante po<strong>de</strong>roso:<br />
“Viva imaginação, <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za e força <strong>de</strong> sentimentos, graças <strong>de</strong> estilo,<br />
dotes <strong>de</strong> observação e análise, ausência às vezes <strong>de</strong> gosto, carência às<br />
vezes <strong>de</strong> reflexão e pausa, língua nem sempre pura, nem sempre copiosa,<br />
muita cor local, eis aqui por alto os <strong>de</strong>feitos e as excelências da atual<br />
literatura brasileira, que há dado bastante e tem certissimo futuro.”<br />
O crítico Machado teve um relacionamento marcado por alguns<br />
conflitos com o escritor português Eça <strong>de</strong> Queirós (1845 – <strong>19</strong>00), tendo<br />
também granjeado antipatias entre alguns admiradores daquele<br />
romancista. No início <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 1878, em sua coluna na revista O<br />
Cruzeiro, publicou uma crítica a O Primo Basílio, <strong>de</strong> Eça, gerando, como<br />
resposta, pelo menos outros dois artigos na imprensa nas duas semanas<br />
seguintes. Em 16 <strong>de</strong> abril, Machado esclarecia: “Notei o esmero <strong>de</strong><br />
algumas páginas e a perfeição <strong>de</strong> um dos seus caracteres. (...) Disse<br />
comigo: – Este homem tem faculda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> artista, dispõe <strong>de</strong> um estilo <strong>de</strong><br />
boa têmpera, tem observação; mas o seu livro traz <strong>de</strong>feitos que me<br />
parecem graves, uns <strong>de</strong> concepção, outros da escola em que o autor é<br />
aluno. (...) Censurei e louvei, crendo assim haver provado duas cousas: a<br />
lealda<strong>de</strong> da minha crítica e a sincerida<strong>de</strong> da minha admiração.” Uma <strong>de</strong><br />
suas aversões mais nítidas era às teorias e escolas literárias, chegando a<br />
propor, sobre os vínculos <strong>de</strong> Eça, <strong>de</strong> quem se disse “adversário das
Machado <strong>de</strong> Assis: o crítico literário ______________________________________________ Sergio Amaral Silva 143<br />
doutrinas”, com o Realismo: “Voltemos os olhos para a realida<strong>de</strong>, mas<br />
excluamos o realismo; assim não sacrificaremos a verda<strong>de</strong> estética.” Fez<br />
restrições também à sua linguagem, e ao seu “dom <strong>de</strong> observação” que,<br />
para ele, “aliás, pujante, é complacente em <strong>de</strong>masia; sobretudo, é<br />
exterior, é superficial.” Guiado mais por sua concepção <strong>de</strong> bom gosto do<br />
que por um suposto moralismo, <strong>de</strong> que foi insistente e injustamente<br />
acusado, criticou ainda “essa pintura, esse aroma <strong>de</strong> alcova, essa<br />
<strong>de</strong>scrição minuciosa, quase técnica, das relações adúlteras.”<br />
Outro episódio que acabou sendo <strong>de</strong>cisivo para a carreira crítica <strong>de</strong><br />
Machado <strong>de</strong> Assis foi a polêmica mantida por ele com um dos mais<br />
consagrados críticos brasileiros da época: o sergipano Sílvio Romero<br />
(1851 – <strong>19</strong>14). Muito influente na imprensa literária e conhecido por seu<br />
espírito polemista, Romero formava, ao lado <strong>de</strong> José Veríssimo (amigo<br />
<strong>de</strong> Machado) e Araripe Júnior, a chamada “Santíssima Trinda<strong>de</strong> da crítica<br />
nacional”, o que dá idéia <strong>de</strong> sua importância. Machado, por sua vez,<br />
juntamente com Rui Barbosa e Joaquim Nabuco (respectivamente,<br />
fundadores das ca<strong>de</strong>iras nº 10 e 27 da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong>), compunha o trio que<br />
Graça Aranha (fundador da ca<strong>de</strong>ira nº 38) chamou <strong>de</strong> a “Santíssima<br />
Trinda<strong>de</strong> da inteligência brasileira”.<br />
Em 1878, recém-chegado à Corte, Romero publicou o livro <strong>de</strong><br />
versos Cantos do fim do século, que foi mal recebido pela crítica.<br />
Machado <strong>de</strong> Assis, no longo artigo A nova geração, divulgado na <strong>Revista</strong><br />
Brasileira em 1º <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1879, em que comentava lançamentos<br />
recentes <strong>de</strong> cerca <strong>de</strong> vinte autores, reconheceu em Sílvio Romero um<br />
autor “laborioso e hábil” ,”um dos mais estudiosos representantes da<br />
geração nova”.<br />
Todavia, apontava como gran<strong>de</strong> lacuna em sua poesia a falta <strong>de</strong><br />
estilo: “Para tudo dizer numa só palavra, o Sr. Romero não possui a<br />
forma poética.” E prosseguia: ”Que o Sr. Romero tenha algumas idéias<br />
<strong>de</strong> poeta não lho negará a crítica; mas logo que a expressão não traduz as<br />
idéias, tanto importa não as ter absolutamente.” Ressalvando a<br />
imparcialida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua apreciação, Machado acrescentou: “Qualquer que<br />
seja, entretanto, minha opinião acerca dos versos do Sr. Sílvio Romero,<br />
lisamente confesso que não estão no caso <strong>de</strong> merecer as críticas
144 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
acerbissimas, menos ainda as páginas insultuosas que o autor nos conta,<br />
em uma nota, haverem sido escritas contra alguns <strong>de</strong>les. “Injuriavam ao<br />
poeta (diz o Sr. Romero) por causa <strong>de</strong> algumas duras verda<strong>de</strong>s do crítico.<br />
Po<strong>de</strong> ser que assim fosse; mas, por isso mesmo, o autor nem <strong>de</strong>veria<br />
inserir aquela nota. Realmente, criticados que se <strong>de</strong>sforçam <strong>de</strong> críticas<br />
literárias com impropérios dão logo idéia <strong>de</strong> uma imensa mediocrida<strong>de</strong>, –<br />
ou <strong>de</strong> uma fatuida<strong>de</strong> sem freio, – ou <strong>de</strong> ambas as cousas; e para lances<br />
tais é que o talento, quando verda<strong>de</strong>iro e mo<strong>de</strong>sto, <strong>de</strong>ve reservar o<br />
silêncio do <strong>de</strong>sdém.” Vale lembrar que, embora em menor escala, os<br />
críticos Araripe Júnior (fundador da ca<strong>de</strong>ira nº 16 da ABL) e José<br />
Veríssimo (i<strong>de</strong>m, nº 18) sofreram restrições a seus trabalhos como<br />
literatos.<br />
Mais <strong>de</strong> vinte anos mais tar<strong>de</strong>, em 1897, Sílvio Romero lançou um<br />
livro em que atacava duramente Machado <strong>de</strong> Assis. Nele, o polêmico<br />
alagoano, que foi o primeiro ocupante da ca<strong>de</strong>ira nº 17 da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong>, não<br />
economizava na tentativa <strong>de</strong> <strong>de</strong>struir a obra do autor <strong>de</strong> Crisálidas e<br />
Falenas, afirmando que “a sua poesia <strong>de</strong> nada vale”. Aproximando-se da<br />
<strong>de</strong>selegância e fazendo suspeitar que na verda<strong>de</strong> não avaliava apenas o<br />
poeta, mas vingava-se do crítico, chegou a dizer que a gagueira <strong>de</strong><br />
Machado contagiara todos os seus textos, em especial os versos: “O<br />
estilo <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis, sem ser notado por um forte cunho pessoal, é<br />
a fotografia exata <strong>de</strong> seu espírito, <strong>de</strong> sua índole psicológica in<strong>de</strong>cisa.<br />
Correto e maneiroso, não é vivace, nem rútilo, nem grandioso, nem<br />
eloqüente. É plácido e igual, uniforme e compassado. Sente-se que o<br />
autor não dispõe profusamente, espontaneamente, do vocabulário e da<br />
frase. Vê-se que ele apalpa e tropeça, que sofre <strong>de</strong> uma perturbação nos<br />
órgãos da linguagem.” Completou opinando que o escritor possuía uma<br />
personalida<strong>de</strong> oposta à autêntica poesia, ao menos como esta era<br />
conceituada na época: “Não era um lírico, nem um épico, sem a força das<br />
emoções e das paixões, requisitos básicos <strong>de</strong> um poeta, faltando-lhe<br />
imaginação e sobrando <strong>de</strong>samor pela paisagem.”
Machado <strong>de</strong> Assis: o crítico literário ______________________________________________ Sergio Amaral Silva 145<br />
No fim, frutos...<br />
Coerente com os princípios expostos hávia duas décadas, Machado<br />
não reagiu com mediocrida<strong>de</strong> ou fatuida<strong>de</strong>: as pesquisas <strong>de</strong> Mário <strong>de</strong><br />
Alencar não localizaram nenhum texto crítico produzido por ele entre<br />
1880 e 1898. Limitou-se a escrever para vários amigos, <strong>de</strong>plorando as<br />
injustiças sofridas. Nessas cartas, reconhecia que as acusações o<br />
ensinaram a ser humil<strong>de</strong>. Uma <strong>de</strong>las , dirigida a Magalhães <strong>de</strong> Azeredo,<br />
contém um bom exemplo do <strong>de</strong>sdém que o escritor reservava a seu<br />
<strong>de</strong>trator, cujas opiniões sequer admitia ter lido: ”Pessoas que me<br />
merecem fé informam-me que o senhor doutor Sílvio Romero me<br />
espanca.”<br />
Roberto Ventura classifica esse comportamento <strong>de</strong> Machado diante<br />
do confronto <strong>de</strong> opiniões como “tédio à controvérsia”, utilizando uma<br />
expressão cunhada por Mário Casasanta para referir-se ao Bentinho,<br />
personagem <strong>de</strong> Dom Casmurro. Mário <strong>de</strong> Alencar, por sua vez, afirmou<br />
sobre ele: “Suscetível, suspicaz, <strong>de</strong>licado em extremo, receava magoar<br />
ainda que dizendo a verda<strong>de</strong>; e quando sentiu os riscos da profissão, já<br />
meio <strong>de</strong>siludido da utilida<strong>de</strong> do trabalho pela escassez da matéria, <strong>de</strong>ixou<br />
a crítica individualizada dos autores pela crítica geral dos homens e das<br />
coisas, mais serena, mais eficaz, e ao gosto do seu espírito.”<br />
Para Luiz Costa Lima, o abandono da crítica foi uma opção<br />
provi<strong>de</strong>ncial, que evitou sérias dificulda<strong>de</strong>s para Machado, notadamente<br />
naquele contexto social e cultural provinciano: “A genialida<strong>de</strong><br />
machadiana teria sofrido o mesmo ostracismo que enterrou um Joaquim<br />
<strong>de</strong> Sousândra<strong>de</strong> se o romancista não tivesse aprendido a usar a tática da<br />
capoeira nas relações sociais (...) Primeiro sinal <strong>de</strong> sua esperteza: não<br />
insistiu no exercício da crítica. Se houvesse perseverado em artigos como<br />
seu Instinto <strong>de</strong> nacionalida<strong>de</strong> (1873), provavelmente teria multiplicado<br />
inimigos ferozes. Em troca, a criação da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> Brasileira <strong>de</strong> <strong>Letras</strong><br />
lhe punha em relações cordiais com os letrados e com os compadres dos<br />
donos do po<strong>de</strong>r.”<br />
Com a repercussão favorável <strong>de</strong> seus primeiros livros publicados,<br />
Machado <strong>de</strong>scobriu na ficção o caminho para a ascensão social que
146 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
perseguia. Para isso, precisava também dos favores dos amigos, como<br />
Quintino Bocaiúva, que lhe conseguiu uma nomeação para o serviço<br />
público, on<strong>de</strong> encontrou estabilida<strong>de</strong> financeira e sucessivas promoções<br />
A crítica a Eça <strong>de</strong> Queirós ren<strong>de</strong>u-lhe manifestações <strong>de</strong> <strong>de</strong>safetos, logo<br />
ele que se orgulhava <strong>de</strong> nunca ter tido um inimigo. Na polêmica com<br />
Sílvio Romero, percebeu que só tinha a per<strong>de</strong>r. Preferiu o silêncio a abrir<br />
mão <strong>de</strong> seus critérios. Era um tempo dominado pelos “ismos”, escolas e<br />
teorias que ele abominava: o aca<strong>de</strong>micismo, o cientificismo, o<br />
sociologismo, o evolucionismo, ente outros. Isso só reforçou sua <strong>de</strong>cisão:<br />
na verda<strong>de</strong>, voltaria a escrever sobre literatura, a partir <strong>de</strong> 1899, mas<br />
apenas para louvar amigos ou fazer elogios póstumos. Naquele ambiente<br />
cultural estreito, já era então presi<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> uma <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong><br />
marcada por laços pessoais e corporativos e que reunia praticamente<br />
todos os seus amigos escritores importantes, como fundadores ou<br />
ocupantes <strong>de</strong> ca<strong>de</strong>iras (além <strong>de</strong> todos os já citados, também Salvador <strong>de</strong><br />
Mendonça, amigo <strong>de</strong> quase toda a vida, na ca<strong>de</strong>ira nº 20), ou quando<br />
falecidos, como patronos (caso do ex-vizinho Joaquim Manuel <strong>de</strong><br />
Macedo, ca<strong>de</strong>ira nº 20, ou dos antigos companheiros <strong>de</strong> jornalismo<br />
Bernardo Guimarães, nº 5; e Pedro Luís, nº 31) . Já era respeitado como o<br />
maior escritor brasileiro. Alto funcionário público, cultivava valiosos<br />
relacionamentos. O menino pobre do morro do Livramento finalmente<br />
chegara aon<strong>de</strong> queria.<br />
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literárias no Brasil – 1870 – <strong>19</strong>14. São Paulo: Companhia das <strong>Letras</strong>,<br />
<strong>19</strong>91.
MACHADO DE ASSIS,<br />
CRONISTA DA GUERRA<br />
DO PARAGUAI*<br />
Maria <strong>de</strong> Lour<strong>de</strong>s Costa Dias Reis**<br />
A imprensa brasileira surgiu no Brasil, sob a proteção oficial, com<br />
a vinda da Corte Portuguesa em 1808, comemorando pois, neste ano,<br />
seus 200 anos. O Ato <strong>de</strong> 31 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 1808 fundava a “Impressão<br />
Régia, on<strong>de</strong> se imprimia exclusivamente toda a legislação e papéis<br />
diplomáticos”. Em setembro do mesmo ano surgiu o primeiro jornal<br />
brasileiro, A Gazeta do Rio <strong>de</strong> Janeiro, <strong>de</strong> cunho oficial.<br />
“Era uma imprensa ainda tímida, quase artesanal e alinhada ao<br />
governo lusitano”. (REIS, 2006: 43).<br />
O Primeiro Reinado conheceu um tipo <strong>de</strong> imprensa não oficial que<br />
se traduzia como voz libertária contra o autoritarismo imperial, por meio<br />
dos primeiros pasquins. No Segundo Reinado a imprensa se <strong>de</strong>senvolve<br />
mais e surgem importantes jornais, quase sempre ligados ao governo,<br />
como A Vida Fluminense, Jornal do Commercio, Semana Illustrada,<br />
Opinião Liberal e outros, on<strong>de</strong> vão atuar nomes <strong>de</strong> prestígio ligados à<br />
literatura e ao teatro.<br />
Durante o período da Guerra do Paraguai (1864-1870) e, posteriormente,<br />
nas lutas pela Abolição e pela República, a imprensa marca a sua<br />
* Palestra proferida na Universida<strong>de</strong> Livre da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong> em 11.9.2008, em<br />
comemoração ao centenário <strong>de</strong> morte do escritor Machado <strong>de</strong> Assis.<br />
** Acadêmica da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> Feminina <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>. Ocupa a ca<strong>de</strong>ira nº 39.
150 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
atuação como arma política, rica <strong>de</strong> protestos e <strong>de</strong> reivindicações. A<br />
fotografia ainda estava surgindo no Brasil e era comum os jornais usarem<br />
do recurso das caricaturas para criarem uma imagem <strong>de</strong> fatos e <strong>de</strong><br />
personalida<strong>de</strong>s para o público leitor. Ainda porque este leitor era, muitas<br />
vezes, analfabeto e a caricatura oferecia uma possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> leitura<br />
visual.<br />
Aliado ao noticiário comum e às caricaturas, foi usado também o<br />
recurso da crônica no jornalismo brasileiro como o folhetim no século<br />
XIX. Era um espaço que os jornais reservavam para os fatos acontecidos<br />
naquele período. A redação era confiada a escritores, ficcionistas ou a<br />
poetas. Escritores como Francisco Otaviano, José <strong>de</strong> Alencar, Raul<br />
Pompéia e Coelho Neto figuravam quase que diariamente nas páginas<br />
dos periódicos mais importantes da Corte com crônicas, editoriais,<br />
trechos <strong>de</strong> peças teatrais e até com poesias.<br />
Os escritores nequela época não tinham condições <strong>de</strong> viver <strong>de</strong><br />
literatura. Dessa forma, recorriam à imprensa como fonte <strong>de</strong> sustentação.<br />
“A imprensa pagava mal, mas pagava em dia. E era também uma<br />
oportunida<strong>de</strong> para que os homens <strong>de</strong> letras conquistassem um público<br />
permanente.” (MELO, <strong>19</strong>85: 113).<br />
Além disso, pelo alto custo, era difícil editarem-se livros no Brasil.<br />
Assim, muitos escritores publicavam seus romances em forma <strong>de</strong> folhetins<br />
diários ou semanais, on<strong>de</strong> o público tinha oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> acompanhar<br />
a evolução <strong>de</strong> uma estória, a módico preço, pelos jornais.<br />
Citamos anteriormente nomes <strong>de</strong> literatos que atuaram na imprensa<br />
brasileira do século XIX. No entanto, não se po<strong>de</strong> esquecer do gran<strong>de</strong><br />
cronista <strong>de</strong> jornal que foi Machado <strong>de</strong> Assis. Diariamente ele escrevia<br />
suas impressões sobre a Guerra do Paraguai e a ação da Monarquia na<br />
região do Prata. Sua escrita possuía uma tônica bem parcial, sempre<br />
<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>ndo o governo imperial e procurando atingir a figura <strong>de</strong> Solano<br />
López, uma vez que era pago por jornais ligados à Monarquia. Tal<br />
Machado <strong>de</strong> Assis, pouco conhecido do público, merece ser pesquisado<br />
sob este novo ângulo.<br />
No início da guerra, ninguém suspeitava que ela seria longa e tão<br />
cruel. Muitos Voluntários da Pátria se alistaram por rasgo <strong>de</strong> patriotismo
Machado <strong>de</strong> Assis, cronista da Guerra do Paraguai _____________________ Maria <strong>de</strong> Lour<strong>de</strong>s Costa Dias Reis 151<br />
e outros até pelas vantagens financeiras oferecidas pelo governo. Um<br />
clima <strong>de</strong> indignação contra a agressão paraguaia po<strong>de</strong> ser notado no<br />
poema <strong>de</strong> Assis “A Cólera do Tropeiro”, publicado no Diário do Rio <strong>de</strong><br />
Janeiro:<br />
De pé – quando o inimigo o solo inva<strong>de</strong>,<br />
Ergue-se o povo inteiro; e a espada em punho<br />
É como um raio vingador dos livres!<br />
Cada palmo do chão vomita um homem!<br />
E do Norte e do Sul, como esses raios<br />
Que vão, sulcando a terra, encher os mares,<br />
À falange comum os bravos correm!<br />
(Doratioto, 2000: 117)<br />
Nesta época, meados do século XIX, Machado <strong>de</strong> Assis ainda não<br />
havia se projetado como escritor e procurava ganhar a vida como cronista<br />
diário <strong>de</strong> vários jornais cariocas como Diário do Rio <strong>de</strong> Janeiro, e<br />
Semana Illustrada, todos alinhados com o governo monárquico. O jornal<br />
Semana Illustrada, pertencia ao alemão Henrique Fleiuss, que “não<br />
escondia sua simpatia pelo trono brasileiro” e um <strong>de</strong> seus colaboradores<br />
mais atuantes era Machado <strong>de</strong> Assis. Desta forma, sua escrita procura<br />
legitimar a guerra, usando com maestria a função social do escritor.<br />
(Sodré).<br />
Machado <strong>de</strong> Assis escreveu mais <strong>de</strong> 700 crônicas nos jornais<br />
cariocas, adotando em alguns pseudônimo, o mais importante, “Dr.<br />
Semana”, na Semana Ilustrada, mas ainda utilizou-se <strong>de</strong> outros como:<br />
Gil, Job, Manassés, Eleazer e Lélio.<br />
No Diário do Rio <strong>de</strong> Janeiro, em plena época da Guerra do<br />
Paraguai, Machado <strong>de</strong> Assis escreveria assim:<br />
“Não freqüento o Paço, mas gosto do imperador. Tem as duas<br />
qualida<strong>de</strong>s essenciais ao chefe <strong>de</strong> uma nação: é esclarecido e honesto.<br />
Amar o país é achar que ele merece todos os sacrifícios.” (Diário do Rio<br />
<strong>de</strong> Janeiro, 5 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 1867).
152 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
O alvo certeiro <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis era certamente o “chefe do<br />
conflito”, Solano López, a quem <strong>de</strong>nominou muitas vezes “tirano”, e aos<br />
paraguaios “selvagens”.<br />
Como outros escritores, Machado <strong>de</strong> Assis era formador <strong>de</strong> opinião<br />
e legitimador do espírito bélico. Para ele, a guerra torna-se um motivo <strong>de</strong><br />
orgulho nacional, quando diz:<br />
“Todos <strong>de</strong>sejam a entrada das forças libertadoras”.<br />
“Todos os espíritos estão voltados para o Sul. A guerra é o fato que<br />
trabalha em todas as cabeças, que provoca todas as <strong>de</strong>dicações, que<br />
<strong>de</strong>sperta todos os sentimentos nacionais”.<br />
“Em suas influentes crônicas, escritas no início do conflito,<br />
Machado realiza esse trabalho, manipulando habilmente os temas da<br />
civilização contra a barbárie.” (Alambert, <strong>19</strong>95: 88).<br />
Usa <strong>de</strong> seu lirismo para extravasar seu nacionalismo, justificando a<br />
guerra:<br />
Então (nobre espetáculo, só próprio<br />
De almas livres!), então rompem-se os elos<br />
De homens a homens. Coração, família,<br />
Abafam-se, aniquilam-se: perdura<br />
Uma idéia, a da pátria (...)<br />
É ele o escritor a serviço da estrutura dominante. (Faoro)<br />
Machado <strong>de</strong> Assis escreveu no Diário do Rio <strong>de</strong> Janeiro, a convite<br />
<strong>de</strong> Quintino Bocaiúva, <strong>de</strong> 1860 a 1867 quando o abandona e é nomeado<br />
Ajudante do Diretor do Diário Oficial, e nele atuou até o ano <strong>de</strong> 1874.<br />
Ele que fora caixeiro <strong>de</strong> livraria, tipógrafo e revisor, tornou-se um<br />
funcionário público remunerado pela Monarquia.<br />
O término da Guerra do Paraguai coinci<strong>de</strong> também com a eclosão<br />
dos movimentos da Campanha Abolicionista e da Campanha Republicana,<br />
consi<strong>de</strong>rados “marcos <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rnismo” para a época, Assim, teve<br />
início um movimento intelectual que atingiu vários setores da área<br />
cultural – literatura, filosofia, e a este se convenceu chamar <strong>de</strong> “Geração
Machado <strong>de</strong> Assis, cronista da Guerra do Paraguai _____________________ Maria <strong>de</strong> Lour<strong>de</strong>s Costa Dias Reis 153<br />
<strong>de</strong> 1870”. Para uns seria chamada <strong>de</strong> “Pré-mo<strong>de</strong>rnista”, ou “pósromântica”<br />
para outros, reunindo intelectuais como Eucli<strong>de</strong>s da Cunha,<br />
Viscon<strong>de</strong> <strong>de</strong> Taunay, Raul Pompéia, que vão refletir sobre as ambigüida<strong>de</strong>s<br />
da nacionalida<strong>de</strong> brasileira, recém-saída <strong>de</strong> uma guerra.<br />
Até esta época, fim da Guerra do Paraguai, em 1870, Machado <strong>de</strong><br />
Assis era mais um cronista <strong>de</strong> jornal que escritor. Após este período<br />
surgiu o escritor <strong>de</strong> idéias fecundas que sabia manusear a língua<br />
portuguesa com a maestria <strong>de</strong> um erudito. Aparecem nesta 1ª fase os<br />
romances Ressurreição (1872), A mão e a luva (1874), Helena (1876) e<br />
Iaiá Garcia (1878), que têm como pano <strong>de</strong> fundo a própria Guerra do<br />
Paraguai. Na 2ª. fase surgiriam outros romances que revelariam um<br />
escritor mais maduro: Memórias Póstumas <strong>de</strong> Brás Cubas (1881),<br />
Quincas Borba (1891), Dom Casmurro (1899), Esaú e Jacó (<strong>19</strong>04) e<br />
Memorial <strong>de</strong> Aires (<strong>19</strong>08).<br />
Nesse i<strong>de</strong>ário <strong>de</strong> escritores da segunda meta<strong>de</strong> do século XIX<br />
transitam imagens que se tornaram verda<strong>de</strong>ira obsessão dos intelectuais<br />
que queriam enten<strong>de</strong>r um mundo em transformação. Justificavam a luta<br />
entre a “civilização e a barbárie”, e a Guerra do Paraguai surge como um<br />
agente civilizador, sendo assim vista por muitos escritores.<br />
Sabia-se que o Brasil <strong>de</strong>sta época já não era mais o mesmo. Nem<br />
seus homens. Machado <strong>de</strong> Assis em uma <strong>de</strong> suas crônicas diz:<br />
“Não há dúvida <strong>de</strong> que os relógios, <strong>de</strong>pois da morte <strong>de</strong> López,<br />
andam muito mais <strong>de</strong>pressa”...<br />
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SAGARANA: ANÚNCIO E AMOSTRA<br />
DE UMA REVOLUÇÃO LITERÁRIA*<br />
Ângela Vaz Leão**<br />
Agra<strong>de</strong>cendo ao Dr. Murilo Badaró o honroso convite para<br />
participar <strong>de</strong>sta série <strong>de</strong> homenagens da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong> a<br />
Guimarães Rosa, quero congratular-me com todos os membros <strong>de</strong>sta<br />
Casa por essa mineira vigilância do seu Presi<strong>de</strong>nte, sempre atento às<br />
marcas que pontuam, no calendário, a história cultural das nossas Minas<br />
Gerais. Este ano <strong>de</strong> 2008 constitui uma <strong>de</strong>ssas marcas, pois assinala o<br />
centenário do nascimento <strong>de</strong> Guimarães Rosa, o mais mineiro <strong>de</strong> todos os<br />
escritores, o mais autêntico representante daquilo que se enten<strong>de</strong> por<br />
mineirida<strong>de</strong>.<br />
Comemorar o centenário do nascimento <strong>de</strong> Guimarães Rosa neste<br />
ano corrente <strong>de</strong> 2008, não nos exime, entretanto, <strong>de</strong> lembrar que a<br />
primeira publicação <strong>de</strong> Sagarana, ocorrida em <strong>19</strong>46, completa os seus<br />
bem vividos sessenta e dois anos. Ao contrário, essa lembrança me<br />
parece, além <strong>de</strong> justa, <strong>de</strong> fundamental importância para a compreensão do<br />
fenômeno da elaboração literária, que não se faz do nada como no mito<br />
bíblico da criação do mundo, mas se faz <strong>de</strong> trabalho persistente, à custa<br />
<strong>de</strong> muito emendar e substituir, ou <strong>de</strong> muita “poda e lima”, no dizer <strong>de</strong><br />
Antônio Ferreira, um <strong>de</strong> nossos gran<strong>de</strong>s clássicos do século XVI.<br />
Guimarães Rosa não escapou a isso. Seu texto é, ao contrário, um dos<br />
melhores exemplos que se conhece do fenômeno da elaboração literária.<br />
* Trabalho apresentado na <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, em agosto <strong>de</strong> 2008, em homenagem ao<br />
centenário <strong>de</strong> nascimento <strong>de</strong> Guimarães Rosa.<br />
** Professora emérita da UFMG e professora titular da PUC-Minas
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Com efeito, por mais revolucionário que seja o romance Gran<strong>de</strong><br />
sertão: veredas em matéria <strong>de</strong> língua e <strong>de</strong> estilo, po<strong>de</strong>-se dizer que não<br />
há nele uma inovação lingüística ou estilística sequer que não se encontre<br />
já, em germe ou embrião, no volume inaugural <strong>de</strong> contos Sagarana. É<br />
evi<strong>de</strong>nte que os <strong>de</strong>z anos que me<strong>de</strong>iam entre a publicação das duas obras<br />
geram uma diferença nos recursos explorados, diferença se não<br />
qualitativa, pelo menos quantitativa. Nem po<strong>de</strong>ria ser <strong>de</strong> outra forma,<br />
num autor tão escrupuloso e ao mesmo tempo tão ciente e consciente das<br />
virtualida<strong>de</strong>s da língua portuguesa quanto Guimarães Rosa.<br />
Em carta a João Condé, conta Guimarães Rosa que pensou muito,<br />
certo dia, quando chegou a hora <strong>de</strong> o Sagarana ser escrito. Depois <strong>de</strong><br />
refletir sobre tudo que representava a palavra arte e <strong>de</strong> estabelecer<br />
algumas relações literárias, teve <strong>de</strong> escolher o terreno em que localizaria<br />
suas histórias. E acabou escolhendo o pedaço <strong>de</strong> Minas Gerais que era<br />
mais <strong>de</strong>le mesmo. Ouçamos as suas palavras:<br />
(...) E foi o que preferi. Porque tinha muitas sauda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> lá.<br />
Porque conhecia um pouco melhor a terra, a gente, bichos,<br />
árvores. Porque o povo do interior – sem convenções,<br />
“poses” – dá melhores personagens <strong>de</strong> parábolas: lá se<br />
vêem bem as reações humanas e a ação do <strong>de</strong>stino; lá se vê<br />
bem um rio cair na cachoeira ou contornar a montanha, e as<br />
gran<strong>de</strong>s árvores estalarem sob o raio, e cada talo do capim<br />
humano rebrotar com a chuva ou estorricar com a seca.<br />
(Carta a João Condé, in Sagarana, 64ª. Edição, 2006, p. 25).<br />
Continuando seu relato epistolar ao Amigo, assim Guimarães Rosa<br />
sintetiza a escolha da ambientação dos seus contos:<br />
(...) Bem, resumindo: ficou resolvido que o livro se passaria<br />
no interior <strong>de</strong> Minas Gerais. E compor-se-ia <strong>de</strong> 12 novelas.<br />
Aqui, meu caro Condé, findava a fase <strong>de</strong> premeditação.<br />
Restava agir.
Sagarana: anúncio e amostra <strong>de</strong> uma revolução literária _______________________________ Ângela Vaz Leão 157<br />
Então, passei horas <strong>de</strong> dias, fechado no quarto, cantando<br />
cantigas sertanejas, dialogando com vaqueiros <strong>de</strong> velha<br />
lembrança, “revendo” paisagens da minha terra, e aboiando<br />
para um gado imenso. (Ibi<strong>de</strong>m, p. 25)<br />
Passada essa fase <strong>de</strong> quase ruminação do livro, Guimarães Rosa<br />
começa a escrevê-lo. Na mesma carta, diz: Lembro-me <strong>de</strong> que foi num<br />
domingo, <strong>de</strong> manhã (p. 25). E conta ainda que o livro foi escrito em sete<br />
meses, quase todo na cama, a lápis, em ca<strong>de</strong>rnos <strong>de</strong> 100 folhas (p. 25).<br />
Contratada uma datilógrafa para passá-lo a limpo, pô<strong>de</strong> Guimarães Rosa,<br />
no último dia do ano <strong>de</strong> <strong>19</strong>37, entregar os originais à Livraria José Olympio,<br />
que teve <strong>de</strong> esperar ainda alguns anos pela or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> sua publicação.<br />
As histórias somavam o total <strong>de</strong> doze, número que se reduziria<br />
posteriormente a nove. Guimarães Rosa eliminaria três <strong>de</strong>las – “Questões<br />
<strong>de</strong> Família”, “Uma História <strong>de</strong> Amor” e “Bicho Mau”, O Autor justifica a<br />
exclusão, na mesma carta a João Condé, da primeira história por ser meio<br />
autobiográfica, da segunda por não ter sido <strong>de</strong>senvolvida razoavelmente e<br />
da terceira por não ter parentesco profundo com as nove outras<br />
conservadas.<br />
Depois, conta o nosso Autor que o livro não foi publicado logo,<br />
mas repousou durante sete anos; e, em <strong>19</strong>45, foi retrabalhado em cinco<br />
meses, cinco meses <strong>de</strong> reflexão e <strong>de</strong> luci<strong>de</strong>z (Ibi<strong>de</strong>m, p. 25)<br />
Após esse longo processo, já relatado pelo próprio Autor, publica-se<br />
em <strong>19</strong>46 a primeira edição da obra, com o título <strong>de</strong> Sagarana.<br />
Se consi<strong>de</strong>rarmos os meses <strong>de</strong> composição dos contos, entre <strong>19</strong>37 e<br />
<strong>19</strong>38, passando pelo longo período em que foram retrabalhados e <strong>de</strong>pois<br />
pelos vários anos <strong>de</strong> elaboração <strong>de</strong> Gran<strong>de</strong> sertão: veredas, até o ano <strong>de</strong><br />
sua primeira publicação em <strong>19</strong>56, vamos encontrar um intervalo <strong>de</strong> perto<br />
<strong>de</strong> duas décadas. São duas décadas <strong>de</strong> observação e <strong>de</strong> exercício da<br />
linguagem, <strong>de</strong> emendas constantes, <strong>de</strong> auto-disciplina e auto-superação<br />
ou, para usar uma comparação esportiva neste tempo <strong>de</strong> Olimpíadas, <strong>de</strong><br />
aquecimento para o gran<strong>de</strong> salto.<br />
Não pretendo analisar aqui essa longa preparação através <strong>de</strong> um<br />
confronto estilístico <strong>de</strong> originais sucessivamente retocados. Pretendo
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apenas voltar a Sagarana, com três objetivos: dar uma visão rápida <strong>de</strong><br />
sua história editorial; pôr em <strong>de</strong>staque algumas <strong>de</strong> suas inovações na<br />
concepção da narrativa; e sugerir que tais inovações já prenunciam a gran<strong>de</strong><br />
revolução literária que virá com o romance Gran<strong>de</strong> sertão: veredas.<br />
Escrito sob o pseudônimo Viator, isto é, ‘caminhante, viandante’,<br />
pseudônimo aliás muito apropriado, o volume, a princípio intitulado<br />
simplesmente Contos, concorre, em <strong>19</strong>38, ao Prêmio Humberto <strong>de</strong><br />
Campos, da Livraria José Olympio. Obtém o segundo lugar, per<strong>de</strong>ndo<br />
para Maria Perigosa, <strong>de</strong> Luiz Jardim.<br />
Só oito anos <strong>de</strong>pois, em abril <strong>de</strong> <strong>19</strong>46, os contos <strong>de</strong> Rosa vêm à luz,<br />
pela Editora Universal do Rio <strong>de</strong> Janeiro, com o novo título, Sagarana,<br />
agora sob o nome civil do autor, assinado J. Guimarães Rosa, com o<br />
prenome abreviado. A coletânea recebe o Prêmio da Socieda<strong>de</strong> Felipe <strong>de</strong><br />
Oliveira, com gran<strong>de</strong> repercussão nos meios literários brasileiros, como<br />
se comprova pelo fato <strong>de</strong> sua primeira edição esgotar-se em poucos<br />
meses, publicando-se a segunda ainda em <strong>19</strong>46, pela mesma Editora<br />
Universal, hoje inexistente.<br />
O aparecimento da segunda edição dá-se cinco anos <strong>de</strong>pois, isto é,<br />
em setembro <strong>de</strong> <strong>19</strong>51, pela Editora José Olympio, que se torna <strong>de</strong>tentora<br />
da tarefa e do privilégio <strong>de</strong> editar, daí por diante, todas as obras <strong>de</strong><br />
Guimarães Rosa, o que fez, aliás, até que os per<strong>de</strong>sse – a tarefa e o<br />
privilégio – para a Editora Nova Fronteira.<br />
Embora a terceira edição tenha sido fruto <strong>de</strong> um minucioso trabalho<br />
prévio <strong>de</strong> revisão por parte do Autor, mais minuciosa ainda foi a revisão<br />
<strong>de</strong> que ela foi objeto <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> publicada. Assim, passados mais cinco<br />
anos, a quarta edição vem a público em janeiro <strong>de</strong> <strong>19</strong>56, com profundas<br />
alterações e com a <strong>de</strong>claração <strong>de</strong> versão <strong>de</strong>finitiva, firmada agora por<br />
João Guimarães Rosa, escrevendo-se o prenome João por extenso, com o<br />
qual o Autor passará a assinar a sua obra <strong>de</strong>s<strong>de</strong> então.<br />
Mas, parodiando Eduardo Frieiro, que viu o diabo na livraria do<br />
Cônego, o crítico <strong>de</strong> hoje talvez veja o diabo nos originais <strong>de</strong> Guimarães<br />
Rosa. Declarar a quarta edição como <strong>de</strong>finitiva pouco significaria para<br />
esse endiabrado perfeccionista, que impulsionava a máquina <strong>de</strong> escrever<br />
e <strong>de</strong>pois, sobre a página datilografada, passava e repassava a caneta.
Sagarana: anúncio e amostra <strong>de</strong> uma revolução literária _______________________________ Ângela Vaz Leão 159<br />
Afinal <strong>de</strong> contas, que compromisso tão coercitivo assumiria ele com seus<br />
leitores e seus editores, ao <strong>de</strong>finir uma edição como <strong>de</strong>finitiva? Que<br />
compromisso o impediria <strong>de</strong> submeter a obra a mais uma série <strong>de</strong><br />
correções? Nenhum. Nenhum compromisso, nem mesmo a palavra<br />
<strong>de</strong>finitiva, o impedia <strong>de</strong> proce<strong>de</strong>r a outra e mais outra acurada revisão.<br />
Assim, a quinta edição sai em abril <strong>de</strong> <strong>19</strong>58, com revisões e com a nova<br />
<strong>de</strong>claração <strong>de</strong> retocada – forma <strong>de</strong>finitiva. Aí, sim, valeu a promessa.<br />
Porque, na sexta edição, <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> <strong>19</strong>64, faz ele apenas alguns<br />
pequenos retoques, que serão os últimos. Esse texto, o da sexta edição,<br />
po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rado o texto <strong>de</strong>finitivo <strong>de</strong> Sagarana. A partir daí, a obra<br />
será objeto <strong>de</strong> duas reimpressões ainda em vida do Autor, isto é, até a<br />
oitava, em maio <strong>de</strong> <strong>19</strong>67, vindo ele a falecer em <strong>19</strong> <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong>sse<br />
mesmo ano. Mas o impacto da obra não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> crescer, chegando a<br />
numerosas reproduções póstumas, a partir da nona, que se dá ainda em<br />
<strong>19</strong>67, um mês <strong>de</strong>pois da morte do Escritor.<br />
Hoje, temos diante <strong>de</strong> nós a sexagésima quarta impressão, feita em<br />
2006, pela Editora Nova Fronteira. Aliás, a ficha catalográfica <strong>de</strong><br />
abertura do livro assinala a data <strong>de</strong> 20<strong>01</strong>. Porém, creio ser mais confiável<br />
a data que se lê no colofão, 2006. Ora, <strong>de</strong> <strong>19</strong>46, data da primeira edição<br />
até hoje, temos sessenta anos. Não há como negar: sessenta e quatro<br />
edições em sessenta anos atestam o sucesso editorial <strong>de</strong> Sagarana,<br />
cifrado na expressiva média <strong>de</strong> mais <strong>de</strong> uma edição por ano.<br />
Essa é, em resumo, a história das sucessivas reelaborações e<br />
simples reimpressões que fizeram dos contos <strong>de</strong> Sagarana o que eles são<br />
hoje. Magnífica lição para alguns escritores aprendizes, que, às vezes,<br />
preten<strong>de</strong>m “produzir” um texto <strong>de</strong> uma só penada, ou melhor, <strong>de</strong> uma só<br />
digitada, sem se darem ao trabalho sequer <strong>de</strong> uma releitura! Pelo menos,<br />
é nessas condições que muitos universitários apresentam hoje seus<br />
trabalhos ao professor: digitados (ou digitalizados), sim, chiquemente<br />
digitalizados, mas sem nenhuma correção ou simples revisão, num estado<br />
lingüístico lamentável. A palavra redação até <strong>de</strong>sapareceu da nomenclatura<br />
pedagógica, diante da pressão consumista e <strong>de</strong> seu termo mágico,<br />
produção. Falar em redação hoje é o mesmo que assinar um autoatestado<br />
<strong>de</strong> velhice. Não se redige mais. Produz-se um texto, como se
160 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
produz batata ou soja. Mas é preciso reconhecer que os estudantes –<br />
coitados! – são os menos responsáveis por tal situação.<br />
Pois bem, Guimarães Rosa não produziu seus textos: ele os redigiu.<br />
E os jovens <strong>de</strong>veriam ter conhecimento disso. Que se mostrem, pois, os<br />
originais do gran<strong>de</strong> estilista da língua portuguesa aos nossos estudantes!<br />
Nesse sentido, os professores <strong>de</strong> Filologia e <strong>de</strong> História da Língua<br />
po<strong>de</strong>riam fazer importante trabalho, se, nas aulas <strong>de</strong> crítica textual, além<br />
<strong>de</strong> estudar manuscritos medievais, estudassem também originais <strong>de</strong><br />
Guimarães Rosa.<br />
Graciliano Ramos, na crônica Conversa <strong>de</strong> bastidores, publicada<br />
originalmente na revista A casa, no Rio <strong>de</strong> Janeiro, em junho <strong>de</strong> <strong>19</strong>46, e<br />
reproduzida em <strong>19</strong>68, no volume Em memória <strong>de</strong> João Guimarães Rosa,<br />
<strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong> da editora José Olympio, relata como se <strong>de</strong>u a<br />
atribuição do Prêmio Humberto <strong>de</strong> Campos a Luiz Jardim, ficando os<br />
Contos do <strong>de</strong>sconhecido Viator em segundo lugar. Narra <strong>de</strong>pois o seu<br />
primeiro encontro com Guimarães Rosa, em fins <strong>de</strong> <strong>19</strong>44, quando<br />
finalmente i<strong>de</strong>ntifica quem era o tal Viator. Passa a interessantíssimas<br />
observações sobre Sagarana, falando justamente da capina e da<br />
<strong>de</strong>puração operada no original dos contos primitivos pelo seu autor.<br />
Quase que à guisa <strong>de</strong> conclusão, diz Graciliano Ramos:<br />
A arte <strong>de</strong> Rosa é terrivelmente difícil. Esse antimo<strong>de</strong>rnista<br />
repele o improviso. Com imenso esforço escolhe palavras<br />
simples e nos dá a impressão <strong>de</strong> vida numa nesga <strong>de</strong> catinga,<br />
num gesto <strong>de</strong> caboclo, numa conversa cheia <strong>de</strong> provérbios<br />
matutos. O seu diálogo é rebuscadamente natural: <strong>de</strong>s<strong>de</strong>nha<br />
o recurso ingênuo <strong>de</strong> cortar “ss”, “ll” e “rr” finais, <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>turpar flexões, e aproxima-se, tanto quanto possível, da<br />
língua do interior. (op. cit, p. 45).<br />
Realmente, a linguagem <strong>de</strong> Guimarães Rosa é uma estilização culta<br />
do dialeto do sertão. Ele não reproduz o falar sertanejo, mas o estiliza,<br />
sem fazer concessões a vulgarismos, sem abdicar <strong>de</strong> sua responsabilida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> escritor que se quer comprometido com a sua língua.
Sagarana: anúncio e amostra <strong>de</strong> uma revolução literária _______________________________ Ângela Vaz Leão 161<br />
Associando esse compromisso lingüístico a um invulgar domínio<br />
da técnica da narrativa, Guimarães Rosa constrói Sagarana. Para quem já<br />
leu e releu várias vezes esse conjunto admirável <strong>de</strong> contos, torna-se<br />
difícil <strong>de</strong>stacar um entre todos, pelas suas qualida<strong>de</strong>s literárias. Seria “A<br />
Hora e vez <strong>de</strong> Augusto Matraga” o melhor <strong>de</strong>les? Ou “Corpo fechado”?<br />
Ou “Duelo”? Ou “O burrinho pedrês”? Qualquer resposta não passaria <strong>de</strong><br />
uma escolha, pessoal e subjetiva, como costumam ser todas as escolhas.<br />
Ou <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ria talvez das circunstâncias <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminado momento, como<br />
o <strong>de</strong> agora.<br />
Pois, neste momento, aqui e agora, sem nenhuma razão lógica<br />
aparente, a minha preferência vai para “Duelo”, muitas vezes lido na<br />
décima edição <strong>de</strong> Sagarana <strong>de</strong> <strong>19</strong>68. Dela serão retiradas todas as<br />
citações <strong>de</strong>ste trabalho.<br />
“Duelo” é uma história que tem como protagonista Turíbio Todo,<br />
seleiro <strong>de</strong> profissão, papudo, vagabundo, vingativo e mau (p. 159), e sua<br />
mulher, Dona Silivana, com belos olhos gran<strong>de</strong>s <strong>de</strong> cabra tonta (p. 147).<br />
O antagonista <strong>de</strong> Turíbio, e ao mesmo tempo amante <strong>de</strong> Silivana, é o exsoldado<br />
Cassiano Gomes, que se diz ex-anspeçada do 1º pelotão da 2ª<br />
Companhia, do 5º Batalhão <strong>de</strong> Infantaria da Força Pública, capaz <strong>de</strong><br />
manejar até metralhadora pesada (p. 141). O marido traído tenta<br />
assassinar o rival, mas é o irmão <strong>de</strong>ste, Levindo Gomes, que é<br />
assassinado em seu lugar. Participa ainda do enredo o capiau Timpim,<br />
que preferia ser chamado <strong>de</strong> Vinte-e-Um, porque a mãe tivera vinte e um<br />
filhos e ele era o <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iro (p. 159). Com menor relevo, várias<br />
personagens mais aparecem na narrativa, como o Chico Barqueiro, o<br />
Clodino Preto, o Exaltino-<strong>de</strong>-Trás-da-Igreja, o Seu Raimundo boticário e<br />
alguns anônimos, tais um pedidor-<strong>de</strong>-esmolas, um ladrão <strong>de</strong> cavalos e<br />
outros que ajudam a compor a história, mas não fazem nem bem nem mal<br />
ao seu <strong>de</strong>senvolvimento.<br />
O título do conto, “Duelo”, parece uma estratégia do autor para<br />
<strong>de</strong>spertar e manter a curiosida<strong>de</strong> dos leitores. Com efeito, a leitura nos<br />
<strong>de</strong>ixa sempre na expectativa <strong>de</strong> um enfrentamento entre o protagonista, o<br />
seleiro Turíbio Todo, e o antagonista, o soldado Cassiano Gomes,<br />
empenhado em vingar a morte do irmão, Levindo Gomes. Esse encontro,
162 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
entretanto, nunca acontece entre os dois, que passam a história toda em<br />
perseguição mútua sem resultados, verda<strong>de</strong>iro jogo <strong>de</strong> escon<strong>de</strong>-escon<strong>de</strong>,<br />
em que nenhum acha o outro, portanto, nenhum mata o outro. O fim <strong>de</strong><br />
Turíbio Todo vai ser obra <strong>de</strong> Timpim Vinte-e-Um, o capiauzinho com ar<br />
<strong>de</strong> bobo, protegido e pago pelo ex-anspeçada Cassiano Gomes. Este, não<br />
resistindo aos males cardíacos que o atormentam durante toda a história,<br />
também morre, mas morre na cama, não obstante os esforços do médico e<br />
do padre. Quanto ao minúsculo Timpim, que recebe <strong>de</strong> Cassiano Gomes<br />
moribundo dinheiro suficiente para salvar o filho recém-nascido, e que,<br />
por gratidão, vingará a morte <strong>de</strong> Levindo Gomes, faz parte da gente<br />
miúda, amarelenta ou amaleitada (p. 158), daquelas paragens, e tem um<br />
sorrizinho cheio <strong>de</strong> cacos <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntes (p. 164). Mas no final da história,<br />
vira outro. Timpim se agiganta pela ação, a sua voz torna-se firme e<br />
crescida, outra voz que Turíbio ainda não tinha escutado ao capiau (p.<br />
167). E é com essa voz que ele anuncia a Turíbio que havia chegado a<br />
sua hora <strong>de</strong> morrer. Personagem e situação nos fazem pensar no mirrado<br />
Xixi Piriá da primeira página <strong>de</strong> Vila dos Confins, <strong>de</strong> Mário Palmério,<br />
que <strong>de</strong>pois aparece agigantado na última página do romance. Mas o texto<br />
<strong>de</strong> Guimarães Rosa é muito mais forte, talvez em virtu<strong>de</strong> da concentração<br />
do conto como gênero e da proximida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>ntro do enredo, entre o<br />
aparecimento <strong>de</strong> Timpim e o <strong>de</strong>sfecho trágico.<br />
Ao intimar Turíbio Todo, o matuto Timpim, que parecia insignificante<br />
até no nome, assume o papel do antagonista e cumpre a promessa<br />
feita a seu benfeitor agonizante, Cassiano Gomes, <strong>de</strong> quem se tornara<br />
compadre quase à hora <strong>de</strong> sua morte, entre lágrimas e rezas. Timpim<br />
mata Turíbio Todo. E não o mata à traição, não <strong>de</strong> emboscada, mas após<br />
longa marcha pela estrada aberta, ambos a cavalo, lado a lado, trocando<br />
conversa amena. O esperto capiau espreita Turíbio e é espreitado por ele,<br />
enquanto vai picando seu fumo <strong>de</strong> rolo e enrolando seu cigarrinho <strong>de</strong><br />
palha. Mas <strong>de</strong> repente Turíbio se assusta com a voz alta, firme e <strong>de</strong>cidida<br />
do matuto, a lhe dizer – Seu Turíbio! Se apeie e reza, que agora vou lhe<br />
matar! (p. 167). E sem respon<strong>de</strong>r às interrogações estupefatas <strong>de</strong> Turíbio,<br />
o homenzinho, garrucha velha na mão, torna a gritar: – Se apeie<br />
<strong>de</strong>pressa, seu Turíbio! O sobressalto não faz Turíbio apear. Segue-se um
Sagarana: anúncio e amostra <strong>de</strong> uma revolução literária _______________________________ Ângela Vaz Leão 163<br />
diálogo tenso, a princípio com ameaças e propostas do malandro papudo,<br />
<strong>de</strong>pois com súplicas suas ao capiau e à Virgem Santíssima. Até que, da<br />
garrucha <strong>de</strong> Timpim, partem duas balas, uma acertando Turíbio na cara<br />
esquerda e a outra na testa (p. 108).<br />
Segue-se o <strong>de</strong>sfecho: O cavalo correu; o pé do <strong>de</strong>funto se soltou do<br />
estribo, o corpo prancheou, pronou, e ficou estatelado (p. 108).<br />
Enquanto isso, o capiauzinho Timpim <strong>de</strong>saparece da estrada e da cena, e<br />
<strong>de</strong>scem as cortinas do último ato do conto, que o narrador/contra-regra<br />
encerra com estas palavras: Então o caguinxo Timpim Vinte-e-um fez<br />
também o em-nome-do-padre e abriu os joelhos, esporeando. E o<br />
cavalinho pampa se meteu, <strong>de</strong> galope, por um trilho entre os itapicurus e<br />
os canudos-<strong>de</strong>-pito fugindo do estradão. (p. 168).<br />
Assim termina o conto, on<strong>de</strong>, entre todas as personagens importantes,<br />
só Silivana, o móvel do crime, não sofre mudança. Enquanto o<br />
marido valentão Turíbio Todo é assassinado pelo capiau Timpim<br />
Vinte-e-Um, o amante Cassiano Gomes morre doente, assistido por<br />
médico e padre, <strong>de</strong>sfazendo-se então o triângulo amoroso. Já Timpim, o<br />
capiauzinho com cara <strong>de</strong> bobo, <strong>de</strong>saparece nas últimas linhas da narrativa<br />
sem que se saiba o seu <strong>de</strong>stino. Fácil é, porém, adivinhá-lo. Talvez<br />
Timpim vá ao encontro da mulher com o filho recém-nascido, para<br />
caírem no mato antes que o prendam, talvez vá gastar com as mezinhas<br />
da botica o dinheiro que lhe <strong>de</strong>u Cassiano Gomes na hora <strong>de</strong> morrer. Não<br />
se sabe. Para Timpim, o final é aberto.<br />
Só Silivana, eu dizia, não sofre mudança. Reiteradamente é<br />
evocada no conto sempre por um só traço físico, os olhos, que eram<br />
gran<strong>de</strong>s e pareciam <strong>de</strong> cabra tonta, e que <strong>de</strong>viam impressionar, ou<br />
melhor, subjugar tanto o marido quanto o amante. Observe-se a maestria<br />
com que Guimarães Rosa, através da reiteração, nos dá conta <strong>de</strong>sse traço<br />
da beleza <strong>de</strong> Silivana e da paixão dos dois homens por ela. O marido<br />
Turíbio Todo, ao <strong>de</strong>scobrir o adultério, logo o aceita graças aos belos<br />
olhos da mulher: Nem por sonhos pensou em exterminar a esposa (Dona<br />
Silivana tinha gran<strong>de</strong>s olhos bonitos, <strong>de</strong> cabra tonta) (p. 142): Algumas<br />
páginas <strong>de</strong>pois, lê-se que o marido (...) estava com sauda<strong>de</strong>s da mulher,<br />
Dona Silivana – aquela mesma, que tinha belos olhos gran<strong>de</strong>s, <strong>de</strong> cabra
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tonta (p. 147). Quanto a Cassiano Gomes, o amante, diz o narrador: (...)<br />
Cassiano continuava se encontrando com a mulher fatal da história,<br />
aquela mesma que tinhas olhos cada vez maiores, mais pretos e mais <strong>de</strong><br />
cabra tonta (p. 157). Voltando ainda ao marido, reitera o narrador pela<br />
última vez: (...) estava com pressa, porque Dona Silivana tinha olhos<br />
bonitos, sempre gran<strong>de</strong>s olhos, <strong>de</strong> cabra tonta (p. 163).<br />
Assim, nas vinte e nove páginas do conto, da décima edição, por<br />
quatro vezes mencionam-se os belos olhos <strong>de</strong> cabra tonta da personagem<br />
feminina, que se tornam, por esse procedimento, um dos motivos<br />
poéticos ou um Leitmotif da narrativa.<br />
Esse fato nos parece comprovar o domínio da arte <strong>de</strong> narrar que<br />
tinha Guimarães Rosa, da mesma forma que o comprovam as várias<br />
expressões metalingüísticas com que o autor vai monitorando a nossa<br />
leitura. Logo no início do conto, por exemplo, Guimarães Rosa nos<br />
apresenta Turíbio Todo, com todos os seus <strong>de</strong>feitos, e termina o primeiro<br />
parágrafo por uma oração adversativa, contendo um sintagma adverbial –<br />
no começo <strong>de</strong>sta história – que, ao sugerir o <strong>de</strong>senrolar do tempo,<br />
também nos faz esperar por mudanças e surpresas: Mas, no começo <strong>de</strong>sta<br />
história, ele estava com a razão (p. 139). Uma página <strong>de</strong>pois, insiste o<br />
narrador: Assim, pois, <strong>de</strong> qualquer maneira, nesta história, pelo menos<br />
no começo – e o começo é tudo – Turíbio Todo estava com a razão (p.<br />
140). Na mesma página, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> qualificar o conto metalingüisticamente<br />
como estória (p. 139) e história (p. 140), portanto, ficção, mas<br />
ficção fi<strong>de</strong>digna, o Autor se refere à <strong>de</strong>scoberta do adultério pelo marido<br />
e, entre parênteses, afirma a veracida<strong>de</strong> dos fatos: (com perdão da<br />
palavra, mas é verídica a narrativa) (p. 141). E ficamos sem saber:<br />
historia acontecida? ou história inventada? Mas, afinal, que importância<br />
tem isso, diante da excelência do conto? É essa excelência que produz a<br />
ilusão <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>. É o estilo, e não uma prova documental ou<br />
testemunhal, que faz do conto uma história fi<strong>de</strong>digna.<br />
As marcações temporais, ou alusões ao tempo narrativo, também<br />
consi<strong>de</strong>radas metalingüísticas, são tão freqüentes que seria difícil<br />
enumerá-las aqui, na totalida<strong>de</strong>. O seu alto índice nos obriga a reduzi-las<br />
a uns poucos exemplos: E isso foi na quarta-feira. ... (p. 141) Quinta-
Sagarana: anúncio e amostra <strong>de</strong> uma revolução literária _______________________________ Ângela Vaz Leão 165<br />
feira pela manhã... (p. 141). (...) Bem quinta-feira <strong>de</strong> manhã,... (p. 142).<br />
E continuam as localizações temporais explícitas, com a função<br />
metalingüística <strong>de</strong> pontuar e esclarecer a narrativa, para ajudar o leitor a<br />
acompanhá-la. Mais adiante lê-se ainda: (...) durante dois meses, (p.<br />
145), (...) nesse <strong>de</strong>pois, (p. 145); (...) já durava cinco ou cinco meses e<br />
meio a correria, monótona e sem <strong>de</strong>sfecho (p. 148). E por aí vai o autor,<br />
sempre pontuando a leitura e monitorando o leitor, lembrando as<br />
seqüências e as intermitências dos fatos, <strong>de</strong> modo que não se perca o fio<br />
da meada.<br />
Essas e outras qualida<strong>de</strong>s literárias presentes no conto “Duelo”<br />
marcam toda a obra <strong>de</strong> Guimarães Rosa, justificando-se a sua indiscutível<br />
posição <strong>de</strong> <strong>de</strong>staque em relação às literaturas <strong>de</strong> língua portuguesa. E,<br />
<strong>de</strong>ntro do conjunto da narrativa rosiana, se Sagarana não se emparelha<br />
com Gran<strong>de</strong> sertão: veredas, também não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ocupar um lugar<br />
importante, quando nada pela sua situação ímpar no que diz respeito a<br />
uma revolução estilística então <strong>de</strong>sconhecida nessas literaturas. Na<br />
verda<strong>de</strong>, os contos <strong>de</strong> Sagarana representam um anúncio, mas também<br />
dão uma amostra, da revolução lingüística e literária que se efetivará, <strong>de</strong>z<br />
anos <strong>de</strong>pois, no romance Gran<strong>de</strong> sertão: veredas.<br />
Essa foi a leitura que pu<strong>de</strong> fazer <strong>de</strong> Sagarana, para apresentá-la<br />
aqui, nos limites <strong>de</strong> uma palestra. Espero que ela tenha servido, pelo<br />
menos, para <strong>de</strong>spertar nos ouvintes o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> ler ou <strong>de</strong> reler o conto<br />
“Duelo”, que foi meu objeto central e que representa, juntamente com os<br />
outros contos do livro, um dos altos momentos da prosa em língua<br />
portuguesa.
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FÉ PROFESSADA QUE ILUMINA<br />
RAÍZES E ALCANÇA A VIDA*<br />
Murilo Badaró*<br />
Sou tentado a iniciar este discurso <strong>de</strong> saudação ao novo acadêmico<br />
com as mesmas palavras com que, no dia 28 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> <strong>19</strong>20, Carlos <strong>de</strong><br />
Laet recebeu Dom Silvério Gomes Pimenta, Arcebispo <strong>de</strong> Mariana, na<br />
<strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> Brasileira <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>:<br />
O reputado intelectual patrício abriu assim seu discurso <strong>de</strong> recepção<br />
ao inesquecível prelado mineiro: “Tudo é extraordinário nesta vossa<br />
entrada para a <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong>: extraordinário, admirável, quase diria<br />
estupendo, se não receasse empregar um epíteto <strong>de</strong>masiado forte nesta<br />
Casa <strong>de</strong> expressões mo<strong>de</strong>radas e comedidas”.<br />
Este o sentimento e a expectativa que a todos dominam.<br />
Cada nova posse possui duas faces: a face triste da sauda<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
quem se foi, reciclada na face alegre da chegada do novo companheiro.<br />
Na simplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong>stes atos rotineiros do nosso sacramentário, no<br />
cumprimento <strong>de</strong>ste ritual, ganhamos mais força e vigor para produzir o<br />
milagre da continuida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sta Instituição, chegando gloriosamente ao seu<br />
primeiro século <strong>de</strong> existência.<br />
* Discurso proferido em 30.5.2008, na posse <strong>de</strong> D. Walmor Oliveira <strong>de</strong> Azevedo na ca<strong>de</strong>ira nº<br />
11 da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>.<br />
** Escritor e homem público, presi<strong>de</strong>nte da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, autor entre outros<br />
livros <strong>de</strong>: Do Jequitinhonha ao Tennessee, Reforma e Revolução, Memorial Político, Alma<br />
<strong>de</strong> Minas, O Bombardino, Vigésimo Mandamento, Floresta <strong>de</strong> Símbolos, Rondó Solitário<br />
(crônicas), José Maria Alkmim, Milton Campos, Gustavo Capanema (biografias).
170 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
Vivaldi Moreira, nosso presi<strong>de</strong>nte perpétuo, tinha especial prazer e<br />
não menor razão em afirmar que esta “<strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> é uma espécie <strong>de</strong><br />
Senado Mineiro”, na sua velha e mais lídima expressão republicana do<br />
século passado, on<strong>de</strong> se agasalham as várias Minas em sua variada<br />
tipologia humana e cultural, para juntas prosseguirem na interminável<br />
faina <strong>de</strong> guardiãs das tradições <strong>de</strong> civismo, bravura, irre<strong>de</strong>ntismo,<br />
religiosida<strong>de</strong>, fidalguia e a inextinguível paixão pela liberda<strong>de</strong>.<br />
“Instituição acima das paixões, dos atropelos, dos ódios, das<br />
cóleras, das preferências, visando ao eterno no registro sereno dos fatos, a<br />
alta reflexão, isenta <strong>de</strong> impureza, e o sentimento estético <strong>de</strong>cantado<br />
orientando a ativida<strong>de</strong> acadêmica”, estou novamente citando Vivaldi,<br />
assim é a <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong> que hoje abre suas portas para vos<br />
acolher, Reverendíssimo Dom Walmor Oliveira <strong>de</strong> Azevedo, Arcebispo<br />
Metropolitano <strong>de</strong> Belo Horizonte.<br />
Vivendo do prazer <strong>de</strong> discordar concordando, mas sem dissidências,<br />
atenta às manifestações do espírito, partam <strong>de</strong> on<strong>de</strong> partirem, “aqui<br />
se acolhem espíritos literários com única preocupação literária, e <strong>de</strong> on<strong>de</strong>,<br />
esten<strong>de</strong>ndo os olhos para todos os lados, vejam claro e quieto”, como<br />
ensinou Machado <strong>de</strong> Assis ao fixar roteiros no discurso inaugural da<br />
<strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> Brasileira <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, há 111 anos.<br />
Recebemos com júbilo vossa figura <strong>de</strong> pastor <strong>de</strong> almas e,<br />
justaposto a ela, o orador eloqüente, o homem <strong>de</strong> vasta cultura<br />
humanística, o requintado estilista, requisitos exigidos para ultrapassar os<br />
umbrais <strong>de</strong>sta Casa <strong>de</strong> Alphonsus <strong>de</strong> Guimaraens, sodalício em<br />
permanente culto do belo, em que se inclui também esta bela coisa<br />
chamada religião.<br />
O que vos trouxe para ocupar a cátedra, antes elevada a altitu<strong>de</strong>s<br />
cimeiras por Dom João Rezen<strong>de</strong> Costa, muito além <strong>de</strong> vossa dignida<strong>de</strong><br />
prelatícia que se liga à fé que muitos <strong>de</strong> nós professamos, foi a<br />
comprovação <strong>de</strong> vosso alto espírito, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> brotam magníficos<br />
ensinamentos assentados nos sólidos pilares da religiosida<strong>de</strong> e da ética.<br />
Estais, Dom Walmor, a cumprir missão num mundo conturbado,<br />
cuja agitação convulsiva dá sinais perturbadores na indiferença <strong>de</strong> sua<br />
socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> prazer e luxo ao lado da pobreza crescente, junto a guerras e
Fé professada que ilumina raízes e alcança a vida _______________________________________ Murilo Badaró 171<br />
catástrofes naturais que assolam com freqüência cada vez maior, num<br />
planeta on<strong>de</strong> construtores <strong>de</strong> muros têm mais proeminência e prestígio do<br />
que aqueles que edificam pontes.<br />
Sintomas <strong>de</strong> uma doença grave chamada “esquizofrenia i<strong>de</strong>ológica”.<br />
Para agravamento <strong>de</strong>sta paisagem <strong>de</strong> impressionante realismo,<br />
i<strong>de</strong>ntificam-se claramente a <strong>de</strong>cadência cultural, as repetidas perdas da<br />
inteligência e da sabedoria, sendo <strong>de</strong> se notar, visíveis em todas as<br />
latitu<strong>de</strong>s e longitu<strong>de</strong>s, milhares <strong>de</strong> pessoas sem apoio, progressivo<br />
aumento dos <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> drogas, relações familiares <strong>de</strong>struídas,<br />
crianças perturbadas pelo abandono resultante da crescente miséria,<br />
enfim, um panorama sombrio que exige esforço em busca dos verda<strong>de</strong>iros<br />
e salvadores caminhos.<br />
Este quadro <strong>de</strong> crise moral está à mostra nos quatro continentes, no<br />
Brasil, em Belo Horizonte, e para a Igreja são”tempos <strong>de</strong> tormenta e<br />
vento esquivo”, tal como em antanho.<br />
Esta triste constatação, com roupagem <strong>de</strong> <strong>de</strong>safio, posta ao então<br />
car<strong>de</strong>al Joseph Ratzinger pelo ex-padre Peter Seewald, fazendo as vezes<br />
<strong>de</strong> um jornalista, encontrou do gran<strong>de</strong> teólogo observação profunda e<br />
sábia ao dizer que “a alegria genuína se tornou mais rara. A alegria está<br />
hoje cada vez mais sobrecarregada <strong>de</strong> hipotecas morais e i<strong>de</strong>ológicas.<br />
Quando uma pessoa se alegra, até tem medo <strong>de</strong> faltar à solidarieda<strong>de</strong> com<br />
os muitos que sofrem. Pensa-se, na realida<strong>de</strong>: eu nem posso me alegrar,<br />
num mundo em que existe tanta miséria, tanta injustiça”. (Sal da Terra –<br />
Joseph Ratzinger, pág. 30).<br />
Hoje, Dom Walmor, vivemos um momento <strong>de</strong> júbilo e intensa<br />
alegria pela vossa presença entre nós. Alegria tão sincera quanto genuína.<br />
E ela é tão mais expressiva porque vem revestida da esperança na força<br />
<strong>de</strong> vossa palavra.<br />
Ao assumir<strong>de</strong>s a ca<strong>de</strong>ira nº 11 está sendo colocada à vossa<br />
disposição mais uma tribuna para exercitar vigorosamente vossa<br />
ativida<strong>de</strong> missionária, à qual vos <strong>de</strong>dicastes <strong>de</strong>s<strong>de</strong> quando, ao entrar para<br />
o seminário <strong>de</strong> Juiz <strong>de</strong> Fora, atento, ouvistes a voz do apóstolo Paulo (I<br />
Cor. 9,16): “Pesa sobre mim um gravame. Ai <strong>de</strong> mim se não pregar o<br />
Evangelho”.
172 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
E neste mister, estareis seguindo fielmente a lição do autor <strong>de</strong> Dom<br />
Casmurro, que no discurso citado atribuiu às aca<strong>de</strong>mias a missão <strong>de</strong><br />
“trabalhar pela extensão das idéias humanas”.<br />
Neste quadro <strong>de</strong> intenso realismo, em que as paixões tornam-se<br />
<strong>de</strong>saçaimadas e incontroláveis, muito tem pa<strong>de</strong>cido a Igreja <strong>de</strong> Cristo<br />
“por cujas frestas penetrou a fumaça do inferno”, como disse certa feita o<br />
Papa Paulo VI.<br />
A presença <strong>de</strong> um pastor jovem, culto e <strong>de</strong>terminado, à frente do<br />
pastoreio <strong>de</strong> milhares <strong>de</strong> pessoas, numa Arquidiocese situada no coração<br />
espiritual e político das Minas Gerais, ansiosas por receberem o<br />
testemunho da verda<strong>de</strong>, é fato significativo pela transformação da<br />
consciência missionária no principal papel da Igreja nos dias <strong>de</strong> hoje, sem<br />
o que serão inúteis os esforços para superar a passivida<strong>de</strong> dos cidadãos e<br />
a maré montante das forças <strong>de</strong>strutivas e as i<strong>de</strong>ologias do mal,<br />
orquestradas em escala mundial sob a batuta <strong>de</strong> invisível e misterioso<br />
maestro.<br />
Proponho a pergunta: por acaso, a coor<strong>de</strong>nação e organização <strong>de</strong><br />
uma “Marcha da Maconha” em escala planetária, não é um incômodo<br />
sinal da tentativa <strong>de</strong> retorno das forças do mal, que tantas lágrimas, fome,<br />
miséria e mortes já causaram ao mundo?<br />
E para cumprir vossa relevante tarefa ten<strong>de</strong>s apenas uma, mas<br />
po<strong>de</strong>rosa arma: a palavra, a mesma do prólogo do Evangelho <strong>de</strong> São João<br />
<strong>de</strong> que no “princípio era o verbo”, maravilha colocada à disposição do<br />
homem pelo Criador.<br />
E quantos milagres ela propicia, falada ou escrita, consolando,<br />
afligindo, estimulando, acalmando, aplaudindo, irritando e igualmente<br />
servindo <strong>de</strong> farol para iluminar os caminhos tenebrosos por on<strong>de</strong> se<br />
insinuam a farsa e a mentira.<br />
Em seu inspirado <strong>de</strong>poimento Memória e I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, o Papa João<br />
Paulo II, <strong>de</strong> quem ainda se ouve por toda parte o ressoar <strong>de</strong> palavras<br />
repassadas <strong>de</strong> fé e sabedoria, fala <strong>de</strong> sua “experiência pessoal com as<br />
i<strong>de</strong>ologias do mal como algo que permanece in<strong>de</strong>lével na minha<br />
memória”. (Memória e I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> – João Paulo II, pág. 24). I<strong>de</strong>ntificavaas,<br />
sem rebuço, pelo nome próprio: o nazismo e o comunismo.
Fé professada que ilumina raízes e alcança a vida _______________________________________ Murilo Badaró 173<br />
Seus resquícios e germens, ainda espalhados pelo mundo,<br />
continuam provocando erosões na plataforma <strong>de</strong> valores que <strong>de</strong>vem<br />
informar a vida civilizada, fazendo com que o “homem rejeite o amor e a<br />
misericórdia <strong>de</strong> Deus, porque ele próprio se consi<strong>de</strong>ra Deus, pensa que é<br />
capaz <strong>de</strong> bastar-se a si mesmo”. (Ibi<strong>de</strong>m, pág. 18). Citamos novamente,<br />
do Papa João Paulo II, palavras que iluminaram a Terra no século XX.<br />
A gravida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sta crise, em que as idéias da liberda<strong>de</strong>, da<br />
fraternida<strong>de</strong> e da esperança foram lançadas no gueto da história, para<br />
serem substituídas pelas i<strong>de</strong>ologias malsãs e o ateísmo, não permite<br />
tergiversações ante a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> enfrentamento dos que se escon<strong>de</strong>m<br />
sob as máscaras do prestígio científico, dos disfarçados com a roupagem<br />
da mendicância e da velhice, fazendo instalar a mentira política no<br />
coração e na mente do povo e, com isto, provocando dano moral<br />
incalculável que atinge zonas profundas <strong>de</strong> todos os seres.<br />
Creio não estar equivocado ao assinalar que vossa presença à frente<br />
da Arquidiocese <strong>de</strong> Belo Horizonte, em face <strong>de</strong> tão gran<strong>de</strong>s e graves<br />
<strong>de</strong>safios, veio como mensagem <strong>de</strong> Deus para clarear caminhos e<br />
transformar eventuais fraquezas em forças, especialmente para lembrar<br />
que, ontem como hoje, a Igreja <strong>de</strong> Cristo experimentou momentos <strong>de</strong><br />
gran<strong>de</strong>s dificulda<strong>de</strong>s e a todas superou e venceu.<br />
A história está aí para nos mostrar que os pa<strong>de</strong>cimentos da Igreja<br />
per<strong>de</strong>m-se na memória dos tempos.<br />
No século <strong>19</strong>, as mesmas i<strong>de</strong>ologias do mal, vestidas <strong>de</strong> falsas<br />
promessas na divulgação <strong>de</strong> seu ateísmo <strong>de</strong>molidor, causaram a perda <strong>de</strong><br />
milhares <strong>de</strong> fiéis, especialmente após o lançamento do Manifesto<br />
Comunista <strong>de</strong> Karl Marx.<br />
Quando o Papa Pio IX organizou o Concílio do Vaticano, instalado<br />
no dia 8 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro no ano <strong>de</strong> 1869, ao qual compareceram bispos <strong>de</strong><br />
todo o mundo para coor<strong>de</strong>nar esforços e orações a fim <strong>de</strong> <strong>de</strong>belar a<br />
investida que contra a Igreja estava em andamento na Europa, com<br />
sementes <strong>de</strong> discórdia e dissolução espalhadas insidiosamente por todas<br />
as partes, vivia-se naquele continente clima muito semelhante ao que<br />
estamos contemplando nos dias <strong>de</strong> hoje, em todo o mundo e, especialmente,<br />
aqui no Brasil.
174 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
O iluminisno europeu e suas fortes raízes francesas pretendiam que<br />
a razão disputasse com a religião o domínio dos homens, algo em muito<br />
parecido com esta perversa e <strong>de</strong>sigual disputa que a Igreja enfrenta em<br />
pleno século XXI para fazer prevalecer sua verda<strong>de</strong>, a verda<strong>de</strong> do<br />
Evangelho.<br />
Denis Di<strong>de</strong>rot, intelectual renomado, porta-voz do pensamento<br />
residual <strong>de</strong> iluministas e enciclopedistas do século XVIII, não se pejava<br />
em qualificar o papa como “suposto vigário <strong>de</strong> Cristo”, <strong>de</strong> “embusteiro<br />
perigoso”, pintando com as cores da ironia a mensagem transfigurada no<br />
“pão e no vinho”.<br />
A chegada <strong>de</strong> Pio IX ao trono <strong>de</strong> São Pedro foi o início da reação<br />
contra o assalto <strong>de</strong>ssas forças <strong>de</strong>molidoras, Napoleão à frente <strong>de</strong>las a dar<br />
sentido prático às pregações e idéias dos iluministas, como que a creditar,<br />
hoje, razão ao Car<strong>de</strong>al Ratzinger quando ele diz que “Deus conduz a<br />
Igreja por caminhos misteriosos”. (ibi<strong>de</strong>m, pág. 18).<br />
Foram do famoso Imperador francês, que seu radical inimigo<br />
Victor Hugo consi<strong>de</strong>rou o “mais po<strong>de</strong>roso sopro <strong>de</strong> vida que jamais<br />
atingiu a argila humana”, as francas palavras com que confessou sua<br />
fragilida<strong>de</strong>: “Minhas armas falharam diante da Igreja”. (René Fülop<br />
Miller in Leão XIII, pág. 32)<br />
Leão XIII assume a Cátedra <strong>de</strong> São Pedro em 20 <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong><br />
1879, conhecedor profundo dos problemas sociais que agitavam o mundo<br />
após seu cardinalato na Bélgica, país que experimentava conflitos<br />
<strong>de</strong>correntes da pobreza e da <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> entre classes.<br />
Desponta o iluminado papado <strong>de</strong> Leão XIII, que lança em 15 <strong>de</strong><br />
maio <strong>de</strong> 1891 a Encíclica Rerum Novarum, abençoada e inspirada<br />
tentativa <strong>de</strong> colocar um dique ao <strong>de</strong>senvolvimento das teses marxistas e<br />
sua perniciosa manipulação pelos inimigos do catolicismo.<br />
A todas essas investidas resistiu a Igreja <strong>de</strong> Roma, o que levou o<br />
historiador inglês Thomaz Macaulay a afirmar que “a Igreja viu os<br />
primórdios <strong>de</strong> todas as instituições que o nosso mundo conhece, e nós<br />
não temos absoluta certeza <strong>de</strong> que não esteja também <strong>de</strong>stinada a lhes ver<br />
o fim”. (René Fülop Miller, ibi<strong>de</strong>m, pág. 33). Acredito que assim será até<br />
a consumação dos séculos.
Fé professada que ilumina raízes e alcança a vida _______________________________________ Murilo Badaró 175<br />
Em tudo semelhante ao que disse Ratzinger sobre a Igreja:<br />
“Fascinante é esta gran<strong>de</strong> história viva. Fascinante é que uma instituição<br />
com tantas fraquezas e falhas humanas se mantenha na sua continuida<strong>de</strong>”<br />
(Sal da Terra – Ibi<strong>de</strong>m, pág 18).<br />
Acadêmico Reverendíssimo Dom Walmor Oliveira <strong>de</strong> Azevedo,<br />
Recentemente, a propósito das invectivas voltadas contra a posição<br />
da Igreja no caso em discussão e <strong>de</strong>cisão no Supremo Tribunal Fe<strong>de</strong>ral,<br />
sobre o uso <strong>de</strong> células-tronco embrionárias, tivestes oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
oferecer a segurança <strong>de</strong> vossa palavra e vossos escritos para colocar um<br />
dique à maré montante da <strong>de</strong>sinformação, não apenas a esta, mas à<br />
informação maliciosamente <strong>de</strong>formada e disseminada em meio a uma<br />
população incapaz <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r a violência e o atentado que se <strong>de</strong>seja<br />
praticar contra a vida.<br />
A Igreja, por <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r o direito à vida, contra toda esta mistificação<br />
inoculada na agenda diária dos brasileiros <strong>de</strong> boa-fé, foi taxada <strong>de</strong> obscurantista,<br />
conservadora, recebendo ainda outras verrinas <strong>de</strong> mau gosto.<br />
Vossas palavras não tardaram, proferidas nas homilias dos púlpitos<br />
ou nos textos escritos com as louçanias da linguagem:<br />
“São inúteis as vociferações que adjetivam levianamente a Igreja<br />
Católica como obscurantista, quando ela entra nas discussões todas,<br />
oferecendo a iluminação singular que vem dos valores do Evangelho <strong>de</strong><br />
seu Mestre e Senhor”. (In Estado <strong>de</strong> Minas).<br />
E mais:<br />
“Pesquisas científicas que têm diante <strong>de</strong> si o problema crucial da<br />
vida, não po<strong>de</strong>m prescindir <strong>de</strong> uma séria base epistemológica com espaço<br />
para contribuição própria <strong>de</strong> cada ciência”. (i<strong>de</strong>m).<br />
Apesar <strong>de</strong> palavras tão pru<strong>de</strong>ntes e sensatas, marcadas pela<br />
clarividência e <strong>de</strong>spidas <strong>de</strong> radicalismo, timbram muitos em assoalhar ser<br />
a Igreja contrária às pesquisas que po<strong>de</strong>m iluminar os caminhos da<br />
ciência biológica.<br />
Assim agem os missionários, confiantes na força da palavra que<br />
vem do verbo <strong>de</strong> Deus feito carne.<br />
Saudada pela imprensa interessada na tese contrária à posição<br />
oficial da Igreja como uma “irretocável peça literária e jurídica”, como a
176 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
<strong>de</strong>sejar <strong>de</strong>monstrar tratar-se do parecer do eminente relator no STF,<br />
aprovado pela maioria dos seus componentes, esqueceram da advertência<br />
<strong>de</strong> Santo Agostinho em suas Confissões <strong>de</strong> que “não se <strong>de</strong>ve pensar que<br />
uma coisa é verda<strong>de</strong>ira porque dita com eloqüência. Nem falsa porque<br />
enunciada sem harmonia”.<br />
A tudo isto redargüistes com sabedoria:<br />
“Um enrijecimento gravíssimo é o risco <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r a laicida<strong>de</strong><br />
como imunida<strong>de</strong>, por exemplo, em relação a abordagens e questionamentos<br />
levantados por <strong>de</strong>terminadas perspectivas e princípios éticos. Neste<br />
sentido, a laicida<strong>de</strong> tem que suportar os embates advindos das abordagens<br />
éticas e morais, que têm estatuto e estratos anteriores à própria<br />
configuração laica do Estado”. (In Estado <strong>de</strong> Minas, dia 18-4-2008, pág. 9).<br />
Este entendimento da circunstância <strong>de</strong> que o Estado laico <strong>de</strong>ve<br />
estar acima <strong>de</strong> quaisquer consi<strong>de</strong>rações, tem como objetivo afastar a<br />
Igreja das questões relevantes na vida social, cultural e política do povo.<br />
Se do ponto <strong>de</strong> vista meramente jurídico-constitucional po<strong>de</strong> não<br />
haver questionamentos com relação ao artigo 5º da lei <strong>de</strong> Biossegurança,<br />
os <strong>de</strong>bates provaram à sacieda<strong>de</strong> que o diploma legal é amplamente insuficiente<br />
para dar garantias à socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> que não serão tolerados <strong>de</strong>svios<br />
éticos nas pesquisas, tão próximas da essência do princípio da vida, em<br />
sua maioria tendo como suporte interesses econômicos e empresariais.<br />
Se existem pessoas <strong>de</strong> boa-fé pa<strong>de</strong>cendo <strong>de</strong> sofrimentos na<br />
angustiosa busca <strong>de</strong> cura e remédio para seus males, vivendo a<br />
expectativa <strong>de</strong> uma panacéia legal, a elas é <strong>de</strong>vido todo respeito e a<br />
esperança <strong>de</strong> que pesquisadores enfrentem os <strong>de</strong>safios para encontrar os<br />
caminhos oferecidos pela ciência, sem <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> resguardar os<br />
fundamentos éticos essenciais.<br />
É inevitável esta inquietação e esta dúvida, especialmente num país<br />
que não prima muito pela serieda<strong>de</strong> no trato <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminadas questões,<br />
não raro mesclando-as com posições político-i<strong>de</strong>ológicas capazes até <strong>de</strong><br />
violentar a natureza das coisas.<br />
Todos esses obstáculos, colocados à vossa frente <strong>de</strong> pastor<br />
missionário, fazem das fraquezas forças e transformam vossa palavra no<br />
“fogo”, <strong>de</strong> que falava o profeta Jeremias. (Jr, 23, 29).
Fé professada que ilumina raízes e alcança a vida _______________________________________ Murilo Badaró 177<br />
Sustentadas pela “ética advinda da fé professada que ilumina raízes<br />
e alcança a vida”, vossas palavras são como clarinadas para <strong>de</strong>spertar<br />
consciências em estado <strong>de</strong> torpor, abatidas diante do avanço cada vez<br />
mais atrevido <strong>de</strong>stas forças do mal, que se avolumam num mundo angustiado<br />
na busca da única opção que se lhe é oferecida: o Evangelho <strong>de</strong><br />
Cristo, pois on<strong>de</strong> não existe fé não vibra a paixão pelas coisas superiores.<br />
A coragem com que afirmais a verda<strong>de</strong>, nesta encruzilhada <strong>de</strong><br />
incertezas em que vivemos, chega a ser temerária. Desassombrado, estais<br />
a repetir como São Paulo: “Eu creio, por isto falo”.<br />
Recentemente, em texto substancioso e clarivi<strong>de</strong>nte, abordastes o<br />
problema da autorida<strong>de</strong> com admirável precisão, i<strong>de</strong>ntificando-a como<br />
“dom e instrumento indispensável para que a humanida<strong>de</strong> encontre o<br />
caminho <strong>de</strong> sua cura”. E concluiu afirmando que “quando a socieda<strong>de</strong> ou<br />
instituições per<strong>de</strong>m o sentido da autorida<strong>de</strong> <strong>de</strong>scambam para o fosso da<br />
<strong>de</strong>linqüência” e todo seu cortejo <strong>de</strong> malefícios representados pela<br />
“<strong>de</strong>sonestida<strong>de</strong> e corrupção, aos absurdos da relativização dos princípios<br />
morais gerando a cultura da permissivida<strong>de</strong> e da imoralida<strong>de</strong>”. Nada mais<br />
claro e transparente, como <strong>de</strong>vem ser as palavras e os conceitos, pois “se<br />
a trombeta só <strong>de</strong>r sons confusos, quem se preparará para a batalha?”,<br />
perguntava São Paulo (Cor. I, 14,8).<br />
Senhor Acadêmico.<br />
Provin<strong>de</strong>s da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Cocos, no estado da Bahia, pequeno<br />
município próximo à fronteira norte-noroeste <strong>de</strong> Minas Gerais. Seu<br />
sistema orográfico indica a vertente da maioria <strong>de</strong> suas águas para o rio<br />
Carinhanha, um curso dágua mineiro, que, como o São Francisco,<br />
fertiliza campos da boa terra baiana.<br />
Há uma misteriosa conspiração <strong>de</strong> circunstâncias geográficas e<br />
hidrográficas vos impulsionando para Minas Gerais, tudo com as bênçãos<br />
<strong>de</strong> Nossa Senhora das Mercês, a Virgem Maria <strong>de</strong> vossa <strong>de</strong>voção <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o<br />
berço transmitida pela vossa mãe, cuja generosa existência vos serve<br />
sempre <strong>de</strong> fanal e guia.<br />
Minas está muito presente em vossa formação intelectual,<br />
influências absorvidas no longo estágio religioso e cultural na casa <strong>de</strong><br />
ensino on<strong>de</strong> estudastes e lecionastes.
178 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
No Seminário Arquidiocesano <strong>de</strong> Juiz <strong>de</strong> Fora fostes or<strong>de</strong>nado<br />
padre em <strong>19</strong>77 e, após 12 anos <strong>de</strong> vicariato e cursos <strong>de</strong> especialização em<br />
Roma, para lá regressastes como reitor e professor. Por vossas mãos<br />
passaram inúmeros presbíteros, que hoje divulgam e espalham a fé pelos<br />
ermos <strong>de</strong>ste gran<strong>de</strong> Brasil, mantendo pelo tempo afora a chama do i<strong>de</strong>al<br />
apostólico que neles inoculastes.<br />
Elevado à titularida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Arcebispo Metropolitano <strong>de</strong> Belo<br />
Horizonte, ten<strong>de</strong>s plena consciência da dimensão <strong>de</strong>safiadora <strong>de</strong> vossa<br />
tarefa. E <strong>de</strong>la, vos estais <strong>de</strong>sincumbindo segundo a missão outorgada por<br />
Deus.<br />
Ireis assentar nesta <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> numa ca<strong>de</strong>ira ilustre.<br />
A ca<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> nº 11, cujo patrono é Santa Rita Durão, autor do<br />
poema épico Caramuru no século 18, guardando fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> ao estilo<br />
camoniano, teve como fundador o filólogo, educador e historiador Carlos<br />
Góes, seguindo-se-lhes Lúcio José dos Santos, um dos mais altos valores<br />
que Minas <strong>de</strong>u ao Brasil, o Cônego Francisco Maria Bueno <strong>de</strong> Siqueira,<br />
poeta e escritor <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> talento e, finalmente, Dom João Rezen<strong>de</strong><br />
Costa, sobre quem falastes com admirável precisão e dos valores<br />
espirituais, morais e culturais daquele sacerdote, que por longos anos<br />
dirigiu espiritualmente a cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Belo Horizonte.<br />
Senhor Acadêmico, senhoras e senhores<br />
Santo Agostinho falava em suas Confissões do perigo representado<br />
pelas “cátedras da mentira” (Confissões, pág. 246), especializadas em<br />
retirar do mercado da loquacida<strong>de</strong> tempero malsão para macular e<br />
<strong>de</strong>svirtuar o sentido das palavras.<br />
Elas estão espalhadas pelas universida<strong>de</strong>s, disseminadas pela<br />
imprensa e meios <strong>de</strong> comunicação, encontram acolhida nos parlamentos,<br />
refugiam-se nos gabinetes, ocultam-se sob a falsa cultura, penetram às<br />
vezes até nos púlpitos das igrejas, constituindo-se em focos <strong>de</strong><br />
permanente tensão ao provocarem o abastardamento da verda<strong>de</strong>, a<br />
propagação do embuste, a mistificação e o crime.<br />
Seu objetivo primordial é a <strong>de</strong>sertificação das almas.<br />
São como fogos <strong>de</strong> artifício, clareiam por instantes mas não<br />
dissipam as sombras. São portadoras das “i<strong>de</strong>ologias do mal” a que se
Fé professada que ilumina raízes e alcança a vida _______________________________________ Murilo Badaró 179<br />
referia o Papa João Paulo II, vigário <strong>de</strong> Cristo titular eterno da nossa<br />
memória.<br />
Para reduzir o sofrimento do mundo, nunca foram tão necessárias<br />
aquelas palavras ditas das cátedras da sabedoria, sacramentadas pelo<br />
tempo por brotarem da rocha in<strong>de</strong>strutível da verda<strong>de</strong> e i<strong>de</strong>ntificarem a<br />
sua aurora.<br />
Este o sentido da confiança que temos em vossa palavra <strong>de</strong><br />
missionário, cuja presença entre nós é motivo <strong>de</strong> honra e alegria.<br />
Nas homilias, pelo rádio e televisão, nos escritos, nos exemplos <strong>de</strong><br />
conduta irrepreensível segundo os cânones <strong>de</strong> vossa religião, estais, Dom<br />
Walmor, inspirando-nos e conduzindo a reler mentalmente, todas as<br />
horas em todos os dias, o belo poema <strong>de</strong> José Luís Borges, “Cristo na<br />
Cruz”, e dizer com ele:<br />
“Eu não O vejo, mas irei procurá-lo até o último dia <strong>de</strong> meus<br />
passos sobre a terra”.
180 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
O ABORTO<br />
Almir <strong>de</strong> Oliveira*<br />
Um dos assuntos mais focalizados pelos meios <strong>de</strong> comunicação,<br />
durante a presença do Papa Bento XVI no Brasil, foi o aborto. S.<br />
Santida<strong>de</strong> foi c1ara e explícita <strong>de</strong> que a Igreja Católica não aprova a<br />
prática do aborto, como não aprova outras práticas relacionadas com a<br />
instituição da família. Os que <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m a legalização <strong>de</strong> tais práticas<br />
saíram ao ataque do Sumo Pontífice, qualificando-o <strong>de</strong> retrógrado.<br />
Discordar é um direito assegurado a todos pela legislação brasileira.<br />
Convém, todavia, que se proceda com <strong>de</strong>cência e mo<strong>de</strong>rada linguagem, o<br />
que nem sempre aconteceu. Outra conveniência é o conhecimento da<br />
matéria da qual se cuida, quando se propõe a discutir para sustentar certa<br />
opinião. O que várias vezes não aconteceu. Muita gente andou a falar do que<br />
não enten<strong>de</strong>, incluindo-se no rol dos manifestantes um ministro <strong>de</strong> Estado.<br />
A Igreja Católica, do mesmo modo que as <strong>de</strong>mais confissões<br />
cristãs, tem por fundamento a Bíblia Sagrada. Não po<strong>de</strong> “mo<strong>de</strong>rnizar-se”,<br />
ou “atualizar-se” a seu bel prazer, ou ao dos que nada têm a ver com ela.<br />
Não é uma associação cultural, nem uma socieda<strong>de</strong> comercial, que<br />
po<strong>de</strong>m reformar seus estatutos consoantes aos interesses do momento.<br />
Ela não é um livro qualquer, do qual se po<strong>de</strong>m tirar novas edições<br />
“ampliadas, corrigidas e melhoradas”. É uma instituição duas vezes<br />
milenar. O que nela é fundamental, essencial, não se muda. No que é<br />
exterior, complementar, ela tem mudado, como o fez no Concílio<br />
Vaticano II e em outros anteriores. Quem algum dia leu a Bíblia, <strong>de</strong>ve<br />
lembrar-se <strong>de</strong> que, logo ali, no livro do Êxodo, encontramos o Decálogo,<br />
* Advogado. Ocupa a ca<strong>de</strong>ira nº 32 da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>.
182 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
on<strong>de</strong> Javé inscreveu este mandamento: “Não matarás”. Pura e simplesmente,<br />
não matarás, sem especificar, seja como for. Porque Caim o<br />
infringiu, o Senhor não o con<strong>de</strong>nou à morte, mas, <strong>de</strong>sterrou-o do seio <strong>de</strong><br />
sua família. Ju<strong>de</strong>us e cristãos não po<strong>de</strong>m, em razão disso, admitir pena <strong>de</strong><br />
morte e, por essa mesma razão, o aborto, que é a morte <strong>de</strong> uma pessoa,<br />
um homicídio, praticado contra quem não tem condições <strong>de</strong> <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r-se.<br />
Perguntará o leitor <strong>de</strong>stas linhas: “O embrião é uma pessoa?”<br />
O Código Civil brasileiro, que é <strong>de</strong> 2002, dispõe no seu artigo 2°:<br />
“A personalida<strong>de</strong> civil da pessoa começa com o nascimento com vida;<br />
mas, a lei põe a salvo, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a concepção, os direitos do nascituro.” Isto<br />
quer dizer que, a partir do momento da concepção, da união do<br />
espermatozói<strong>de</strong> com o óvulo, tem-se uma pessoa humana, cuja<br />
personalida<strong>de</strong> civil e cuja vida estão sob a proteção da lei, e não é<br />
permitido eliminá-las. Esta situação já se encontrava no Código Civil <strong>de</strong><br />
<strong>19</strong>16. Daí porque o Código Penal, que é <strong>de</strong> <strong>19</strong>40, no Título I da Parte<br />
Especial que trata Dos Crimes contra a Pessoa, no Capítulo Dos Crimes<br />
contra a Vida, manda punir o aborto nas seguintes circunstâncias: o<br />
provocado pela própria gestante ou com o seu consentimento, o<br />
provocado por terceiro sem o consentimento da. gestante e o provocado<br />
por terceiro com o consentimento da gestante. As penas variam <strong>de</strong> 1 a 4<br />
anos, conforme o caso. Se do aborto resultar lesão corporal grave para a<br />
gestante, as penas po<strong>de</strong>rão ser aumentadas <strong>de</strong> um terço e serão<br />
duplicadas, se resultar na morte da gestante (artigos 124 a 127). Se o<br />
aborto for provocado por médico não será punido, se ocorrer nos<br />
seguintes casos: se não houver outro meio <strong>de</strong> salvar a vida da gestante; se<br />
a gravi<strong>de</strong>z resultar <strong>de</strong> estupro e o aborto for consentido pela gestante ou,<br />
sendo ela incapaz, por seu representante legal (artigo 128, I e II).<br />
Vê-se que o legislador brasileiro foi muito realista e <strong>de</strong>vidamente<br />
pru<strong>de</strong>nte e mo<strong>de</strong>rado, atendo-se aos casos em que se justifica o aborto e<br />
evitando a plena liberação, que favorece a libertinagem, e põe em risco o<br />
pleno gozo do direito à vida.<br />
A Constituição Fe<strong>de</strong>ral vigente (<strong>19</strong>88), é a primeira das brasileiras<br />
a referir-se à criança como titular <strong>de</strong> direito à vida, ao dispor no artigo<br />
227: “É <strong>de</strong>ver da família, da socieda<strong>de</strong> e do Estado assegurar à criança e
O aborto _______________________________________________________________________ Almir <strong>de</strong> Oliveira 183<br />
ao adolescente, com absoluta priorida<strong>de</strong>, o direito à vida, à saú<strong>de</strong>”, etc. É<br />
a primeira a assegurar a todos a inviolabilida<strong>de</strong> do direito à vida (art. 5°).<br />
Vê-se aí a influência da Declaração Universal <strong>de</strong> Direitos Humanos<br />
(<strong>19</strong>48). Disto resulta que, para se permitir a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> abortar, é<br />
preciso reformar a Constituição e romper com os compromissos do Brasil<br />
com a or<strong>de</strong>m jurídica internacional, que sustenta o direito à vida a todas<br />
as pessoas e apela para que se extinga a pena <strong>de</strong> morte em todos os<br />
países. Liberar o aborto é caminhar em sentido contrário ao que indicam<br />
as normas <strong>de</strong> Direito Internacional a que o Brasil a<strong>de</strong>riu, é opor-se à<br />
tendência civilizadora da or<strong>de</strong>m jurídica internacional, sobretudo no que<br />
se refere à proteção da pessoa humana.<br />
O direito à vida é proclamado pela Declaração Universal dos<br />
Direitos Humanos, cujo artigo 3 está assim redigido: “Todo indivíduo<br />
tem direito à vida, à liberda<strong>de</strong> e à segurança <strong>de</strong> sua pessoa.” E o Brasil é<br />
signatário da Carta, pelo que está obrigado a comportar-se conforme os<br />
seus dispositivos.<br />
E mais. Por iniciativa das Nações Unidas, foi aprovada, em 20 <strong>de</strong><br />
novembro <strong>de</strong> <strong>19</strong>89, a Convenção sobre os Direitos da Criança, que assim<br />
dispõe no seu artigo 6: “Os Estados Partes reconhecem que toda criança<br />
tem o direito intrínseco à vida”. Por sua vez, o Pacto Internacional <strong>de</strong><br />
Direitos Civis e Políticos, <strong>de</strong> 16 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> <strong>19</strong>66, em vigor <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 23<br />
<strong>de</strong> março <strong>de</strong> <strong>19</strong>76, estabelece no seu artigo 6: “O direito à vida é inerente<br />
a toda pessoa humana. Este direito estará protegido pela lei. Ninguém po<strong>de</strong>rá<br />
ser privado da vida arbitrariamente.” Ninguém. Isto inclui o nascituro.<br />
Como ficou dito acima, a lei assegura ao nascituro direitos civis e<br />
econômicos, como a vida, a herança e outros, como o <strong>de</strong> ter um curador,<br />
caso seus pais não possam gerir os bens que lhe caibam. É um ser<br />
humano, uma pessoa, titular <strong>de</strong> direito, em nome da qual se po<strong>de</strong>m<br />
praticar atos jurídicos por meio <strong>de</strong> seus genitores ou <strong>de</strong> um curador, se<br />
for o caso, como se viu acima.<br />
Quem conhece a história <strong>de</strong> nossa legislação civil sabe que houve<br />
tentativa <strong>de</strong> mudar essa situação quando da elaboração do Código, para<br />
eliminar esse direito do nascituro. Tentativa que foi mais <strong>de</strong> uma vez<br />
frustrada, prevalecendo a tradição.
184 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
RÚSSIA, EX-URSS, E EUA:<br />
NA ROTA DO IMPREVISÍVEL<br />
Fábio Doyle*<br />
Este artigo foi publicado na Edição Especial-Internacional<br />
do Estado <strong>de</strong> Minas, no dia 7 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 2008. Acontecimentos<br />
posteriores, envolvendo a Rússia, a República da<br />
Georgia e os Estados Unidos, tornam oportuna sua leitura,<br />
pois alguns dos prognósticos feitos estão sendo confirmados.<br />
A Rússia, a ex-URSS, é sempre imprevisível nos acontecimentos<br />
<strong>de</strong> sua formação política. Uma imprevisibilida<strong>de</strong> histórica. Sempre foi<br />
assim, acredito que continuará a ser assim pelos séculos afora. Po<strong>de</strong>r-seia<br />
dizer que a imprevisibilida<strong>de</strong> política não é uma característica<br />
exclusiva dos russos. É verda<strong>de</strong>. Mas ela ocorre em números e graus mais<br />
acentuados naquele enorme, diversificado e tão dividido país, que já<br />
congregou, nos tempos stalinistas, tristes, sofridos e sangrentos tempos,<br />
uma <strong>de</strong>zena ou mais <strong>de</strong> repúblicas. Repúblicas que eram in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes,<br />
tornaram-se terra conquistada da ditadura comunista, voltaram a ser<br />
in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes, e po<strong>de</strong>m, com as mudanças imprevisíveis, estar<br />
novamente ameaçadas <strong>de</strong> per<strong>de</strong>r sua liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> escolher a forma <strong>de</strong> seu<br />
povo viver e <strong>de</strong> como governar-se.<br />
* Jornalista. Da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, ocupa a ca<strong>de</strong>ira nº 10.
186 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
A revolução <strong>de</strong> <strong>19</strong>17 já seria o ensaio da imprevisibilida<strong>de</strong>. Ela foi<br />
feita, i<strong>de</strong>alizada e comandada por dois lí<strong>de</strong>res <strong>de</strong> peso e <strong>de</strong> talento,<br />
Vladímir Ilítch Lênin e Leão Trotski (nascido Lev Davídovitc Bronstein,<br />
o que indica <strong>de</strong>scendência judaica). Os dois, no comando, <strong>de</strong>rrotaram o<br />
tzarismo ditatorial. Em seu lugar, implantaram outra ditadura, talvez mais<br />
violenta e mais sangrenta, basta lembrar os milhões que foram<br />
executados. Entre eles, <strong>de</strong>pois da morte <strong>de</strong> Lênin, até mesmo aquele que<br />
é consi<strong>de</strong>rado o cérebro do movimento <strong>de</strong> 17, Leão Trotski, assassinado<br />
no México, on<strong>de</strong> se refugiara para tentar escapar da sanha criminosa e<br />
invejosa <strong>de</strong> José Stálin.<br />
O regime imposto e sustentado por Stálin durou muito. Os que a ele<br />
se opunham eram executados impiedosamente. E não apenas os<br />
opositores eram as vítimas: Kírov, por exemplo, assassinado em <strong>19</strong>34, e<br />
tantos outros que participavam da máquina estatal. Um estudioso da<br />
URSS, Jacques Tatu, jornalista francês que foi correspon<strong>de</strong>nte em<br />
Moscou do Le Mon<strong>de</strong>, um jornal <strong>de</strong> esquerda, enfatizou que os sistemas<br />
totalitários, para conservarem o seu dinamismo prepotente, buscam<br />
rejuvenescer-se com revoluções artificiais, marcadas pelos expurgos,<br />
quase sempre, sangrentos. Tatu, autor do livro famoso Le pouvoir en<br />
URSS, editado em <strong>19</strong>67, acreditava que os problemas <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r no<br />
Krêmlin “não terão fim e ainda menos a “kremlinologia”, sua prima<br />
pobre”.<br />
Outro especialista em URSS, o também jornalista David K. Skiper,<br />
correspon<strong>de</strong>nte do The New York Times em Moscou, <strong>de</strong> <strong>19</strong>75 a <strong>19</strong>82,<br />
disse que naquele país – e ele tem autorida<strong>de</strong>, pois viveu lá viveu sete<br />
anos, e registrou que quando o <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong>finitivamente o fez com<br />
sauda<strong>de</strong>, – “tudo parece calmo atrás da fachada monolítica que o regime<br />
apresenta ao seu povo e ao mundo. O Partido <strong>de</strong>clara-se unido “como<br />
nunca” em torno <strong>de</strong> sua direção. De repente, fica-se sabendo que um<br />
grupo <strong>de</strong> dirigentes se encontrava na oposição há muitos meses, senão<br />
anos, e ainda, que aquele que julgávamos um chefe venerado era, há<br />
muito tempo, insuportável para os que formavam o seu círculo <strong>de</strong><br />
colaboradores". Mas sua melhor análise da URSS, especialmente da<br />
então Leningrado e <strong>de</strong> Moscou, cida<strong>de</strong>s em que viveu, está na sua
Rússia, ex-URSS, e EUA: na rota do imprevisível ________________________________________ Fábio Doyle 187<br />
afirmação: "Sempre me senti aliviado ao sair <strong>de</strong> lá e nostálgico quando o<br />
fiz <strong>de</strong>finitivamente”.<br />
O que aconteceu na ex-URSS, <strong>de</strong>smoronada nos tempos <strong>de</strong> Mikhaíl<br />
Serguêivitch Gorbatchov, confirma quanto é imprevisível aquele<br />
fantástico e admirável país. Tive a sorte <strong>de</strong> estar lá, em <strong>19</strong>85, no começo<br />
da mudança, e confesso que ao <strong>de</strong>ixá-lo, num embarque tenso pelo medo<br />
que inspiravam os que examinavam nossos passaportes, pu<strong>de</strong> concordar<br />
com o que Skiper dissera. Recordo-me que resolvi dar um presente a uma<br />
<strong>de</strong> nossas guias e queria sua sugestão. Ela se recusou no começo, mas<br />
aceitou diante <strong>de</strong> minha insistência. Solicitou, apenas, que não o<br />
entregasse ali. Estávamos em uma berioska, as lojas em que os<br />
estrangeiros podiam fazer compras. Discretamente, ela olhou em torno e<br />
pousou a mão em um livro exposto numa bancada. Foi o que eu comprei.<br />
Preocupada – até prova em contrário, todos eram suspeitos <strong>de</strong><br />
espionagem – era o que eu percebia, pediu-me que guardasse o embrulho<br />
comigo até o dia seguinte, o do meu embarque. Ao encontrá-la no saguão<br />
do hotel, no momento das <strong>de</strong>spedidas, retirou discretamente <strong>de</strong> sua bolsa<br />
uma sacola pequena e nela colocou o livro. que havia escolhido. Não<br />
agra<strong>de</strong>ceu e nunca mais tive notícias <strong>de</strong>la. Uma situação absolutamente<br />
normal e inocente, cercada <strong>de</strong> tanto mistério, naturalmente pelo medo que<br />
o regime transmitia.<br />
Percebi, nas conversas que mantive com os que me recebiam em<br />
São Petersburgo, que era ainda Leningrado, e em Moscou, que o<br />
monolítico império fundado por Stalin estava fissurado em muitas partes.<br />
Mudanças estavam sendo esperadas. O regime <strong>de</strong> terror aproximava-se<br />
do fim. Com a ajuda efetiva do Papa João Paulo II e do presi<strong>de</strong>nte norteamericano<br />
Ronald Reagan, a formação liberal <strong>de</strong>sejada pelo simpático,<br />
culto e patriota Gorbatchov e por sua influente mulher Raíssa, afinal<br />
alcançava sua plenitu<strong>de</strong>. A URSS começou a acabar no final dos anos<br />
oitenta, com a glásnost (transparência, abertura) e a perestroika<br />
(reconstrução, reestruturação). A <strong>de</strong>molição da estrutura ditatorial foi<br />
apressada, talvez com mais rapi<strong>de</strong>z do que Gorbatchov <strong>de</strong>sejaria, pelo<br />
seu colaborador e sucessor, Borís Nikoláievitch Yéltsin, que assumiu o<br />
po<strong>de</strong>r e, em <strong>19</strong>91, baniu o Partido Comunista, reconheceu a
188 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
in<strong>de</strong>pendência dos estados do Báltico e da Ucrânia e dissolveu o que era<br />
a URSS, dividindo-a em quinze repúblicas in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes. Com o fim do<br />
império soviético, caiu também, e por conseqüência, o vergonhoso Muro<br />
que dividia Berlim em duas cida<strong>de</strong>s, uma rica e próspera, a do lado<br />
oci<strong>de</strong>ntal, outra pobre e dominada pelo medo, a do lado comunista,<br />
conforme pu<strong>de</strong> constatar, com Rachel, em <strong>19</strong>62. Medo, mais do que<br />
medo, pavor, que se repetia nas repúblicas dominadas pelo terror<br />
soviético, libertadas com a dissolução da até então temida superpotência.<br />
O fim do regime comunista foi seguido por uma <strong>de</strong>terioração<br />
econômica e moral, por todos percebida e lamentada. O excesso do rigor<br />
do Estado foi substituído pela liberação exagerada e incontrolável. O<br />
po<strong>de</strong>roso e ameaçador país, único capaz <strong>de</strong> confrontar o seu maior<br />
adversário, os Estados Unidos, perdia em importância militar e nuclear.<br />
Passados alguns anos, os russos começaram a sentir sauda<strong>de</strong>s dos<br />
velhos tempos. E foram buscar um talentoso ex-chefe da KGB, o temido<br />
serviço secreto soviético, Vládimir Pútin, para tentar restaurar o prestígio<br />
e a or<strong>de</strong>m interna perdidos. Hábil, mas obstinado, ele o conseguiu em<br />
pouco anos. Mas a tendência ditatorial ressurgiu. Pútin não a restabeleceu<br />
por inteiro. Embora parcial, <strong>de</strong>u para ser percebida. Conseguiu, é certo,<br />
recompor parte do prestígio internacional dos velhos tempos. Firme,<br />
quase agressivo, impôs suas idéias e convicções ao seu povo e ao resto<br />
do mundo. Reconquistou o prestígio que almejava, para ele mesmo e para<br />
a nova Rússia.<br />
Pútin cumpriu o tempo <strong>de</strong> mandato que lhe cabia. Escolheu para<br />
substituí-lo um companheiro fiel, Dmítri Medvédiev. Que assumiu a<br />
presidência e nomeou seu antecessor, o próprio Pútin, para o cargo <strong>de</strong><br />
primeiro ministro. Um auxiliar, ou suposto auxiliar, todo po<strong>de</strong>roso, tanto<br />
ou quanto o que o estava nomeando. Quase todos os especialistas em<br />
Rússia vão além: Pútin não é tanto ou quanto, mas certamente o dirigente<br />
mais po<strong>de</strong>roso do país. Mais uma imprevisibilida<strong>de</strong>, que talvez não fosse<br />
tão imprevisível para os que conhecem e estudam os meandros do<br />
Kremlin.<br />
Qual será a nova imprevisibilida<strong>de</strong> que o sistema político da<br />
República da Rússia – quem po<strong>de</strong>ria imaginar há três <strong>de</strong>zenas <strong>de</strong> anos
Rússia, ex-URSS, e EUA: na rota do imprevisível ________________________________________ Fábio Doyle 189<br />
que a URSS seria transformada em República? – nos brindará? O<br />
enfrentamento com os Estados Unidos, que também estarão trocando seu<br />
presi<strong>de</strong>nte, logo caminhando também na rota da imprevisibilida<strong>de</strong>, será<br />
restabelecido? Segundo Zbigniew Brzezinski, no livro Game Plan, “o<br />
confronto americano-soviético não é uma aberração temporária, mas uma<br />
rivalida<strong>de</strong> histórica que continuará a existir por muito tempo”. E afirma:<br />
“É impossível que esta rivalida<strong>de</strong> venha a ser resolvida pela guerra – a<br />
menos que ocorra um erro <strong>de</strong> cálculo”.<br />
Brzezinski, americano <strong>de</strong> muitas consoantes, <strong>de</strong> origem polonesa (a<br />
Polônia foi um dos países invadidos e conquistados pelos soviéticos na II<br />
Gran<strong>de</strong> Guerra), assessor <strong>de</strong> segurança nacional do ex-presi<strong>de</strong>nte Jimmy<br />
Carter (<strong>19</strong>77-<strong>19</strong>81), professor na Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Columbia e do Centro<br />
<strong>de</strong> Estudos Estratégicos e Internacionais da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Georgetown,<br />
fez esta observação antes do <strong>de</strong>smoronamento total do império soviético.<br />
Gostaria <strong>de</strong> ouvir sua opinião diante do quadro atual.<br />
De minha parte, espero que o “confronto histórico”, por ele<br />
anunciado, se tiver mesmo <strong>de</strong> acontecer, seja bem mais ameno e<br />
suportável do que o dos velhos e difíceis tempos da guerra fria. E torço,<br />
como intransigente <strong>de</strong>fensor da paz entre os povos, para que não aconteça<br />
qualquer “erro <strong>de</strong> cálculo”. Os novos tempos, nos Estados Unidos, com<br />
Barack Obama ou John McCain, e com Medvédiev e Pútin, na Rússia,<br />
po<strong>de</strong>m e <strong>de</strong>vem, pois isso é natural entre gran<strong>de</strong>s nações, provocar<br />
<strong>de</strong>sencontros eventuais, mas certamente, acreditamos, superáveis pela<br />
boa, competente e necessariamente habilidosa ação diplomática e pelo<br />
bom senso dos seus governantes, tudo terminando em perfeita e saudável<br />
harmonia. Sem guerras, mesmo que frias.
<strong>19</strong>0 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
OS “PASSEIOS” DE LÚCIA<br />
MACHADO DE ALMEIDA<br />
Angelo Oswaldo <strong>de</strong> Araújo Santos*<br />
Lúcia Machado <strong>de</strong> Almeida <strong>de</strong>ixou obra <strong>de</strong> reconhecida importância<br />
no quadro da literatura infanto-juvenil. Criadora <strong>de</strong> Xisto, personagem<br />
que fascina os jovens e os enreda em aventuras multiplicadas no espaço<br />
si<strong>de</strong>ral, e da borboleta Atíria, que enterneceu o poeta Murilo Men<strong>de</strong>s,<br />
primo da escritora, ela recebeu o prêmio Jabuti, entre outras distinções<br />
importantes.<br />
Legou também ao patrimônio cultural do Brasil os seus inesquecíveis<br />
“passeios” às cida<strong>de</strong>s históricas <strong>de</strong> Minas Gerais. Deve-se à sua<br />
sensibilida<strong>de</strong>, ainda, um saboroso Passeio ao Alto Minho, no qual<br />
estabelece esplêndido itinerário e recolhe referências ancestrais da gente<br />
mineira no Norte <strong>de</strong> Portugal.<br />
Nascida em Nova Granja, em terras <strong>de</strong> Santa Luzia do Rio das<br />
Velhas (hoje município <strong>de</strong> São José da Lapa), irmã do escritor Aníbal<br />
Machado, que nasceu em Sabará, Lúcia <strong>de</strong>scendia <strong>de</strong> Lucas Antônio<br />
Monteiro <strong>de</strong> Barros, ouvidor <strong>de</strong> Vila Rica do Ouro Preto e, na<br />
in<strong>de</strong>pendência, barão <strong>de</strong> Congonhas. Suas raízes se aprofundam, assim,<br />
no chão primeiro <strong>de</strong> Minas e nas vertentes mais genuínas da mineirida<strong>de</strong>.<br />
Foi casada com o museólogo paulista Antônio Joaquim <strong>de</strong><br />
Almeida, irmão do poeta Guilherme, tendo sido sua gran<strong>de</strong> incentivadora<br />
na criação e na direção do Museu do Ouro, pequena jóia incrustada em<br />
* Jornalista, escritor, prefeito <strong>de</strong> Ouro Preto e membro da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>; ocupa a<br />
ca<strong>de</strong>ira nº 3.
<strong>19</strong>2 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
Sabará, na antiga casa do inten<strong>de</strong>nte da gloriosa vila real. Teve papel<br />
<strong>de</strong>stacado em ações que procuraram valorizar e proteger o patrimônio<br />
histórico <strong>de</strong> Minas, numa época <strong>de</strong> incúria e incompreensão.<br />
A Sabará ela <strong>de</strong>dicou o primeiro passeio. Acompanhou-a Alberto<br />
da Veiga Guignard, um dos mais admiráveis artistas brasileiros e gran<strong>de</strong><br />
amigo. O <strong>de</strong>senho guignardiano, leve como as igrejas que se suspen<strong>de</strong>m<br />
nos morros, comovente como os pequenos objetos que retrata e belo<br />
como a paisagem contemplada, ilumina os passos <strong>de</strong> Lúcia, do Caquen<strong>de</strong><br />
ao Largo do Ó, do teatro à Matriz, da Casa Azul e do solar do Padre<br />
Correia às esculturas do Aleijadinho no esplendor do Carmo.<br />
Escritora e artista seguiram para Diamantina, e o antigo arraial do<br />
Tejuco <strong>de</strong>les também mereceu o privilégio concedido a Sabará. A cida<strong>de</strong><br />
do Borba Gato e o po<strong>de</strong>roso burgo da Chica da Silva rebrilham no texto<br />
<strong>de</strong> Lúcia e nas linhas <strong>de</strong> Guignard. Carmo e São Francisco, o Museu do<br />
Diamante, a Casa do Muxarabiê, Amparo, Mercês, Bonfim e o Mercado<br />
se entregam ao gesto do mestre, atento às palavras da autora.<br />
Ouro Preto ficaria para <strong>de</strong>pois, nos planos da pioneira da literatura<br />
voltada para o turismo cultural. O Guia <strong>de</strong> Ouro Preto, obra singular do<br />
poeta Manuel Ban<strong>de</strong>ira, lançado em <strong>19</strong>38 como terceira iniciativa<br />
editorial do recém-criado IPHAN, fixou referência tão precisa que<br />
acabaria por inibir o surgimento <strong>de</strong> congêneres. Apreciadora do livro <strong>de</strong><br />
Ban<strong>de</strong>ira e ligada ao IPHAN pela missão do marido em Sabará, ela<br />
postergou o terceiro livro, que não mais pô<strong>de</strong> contar com a arte <strong>de</strong><br />
Guignard, falecido em <strong>19</strong>62.<br />
A insistência dos amigos e <strong>de</strong>mais leitores levou-a a escrever e<br />
publicar o passeio, que tardava e não haveria <strong>de</strong> faltar, à cida<strong>de</strong>-síntese <strong>de</strong><br />
Minas. Ela o compôs com alegria particular, feliz <strong>de</strong> transformar o amor<br />
a Ouro Preto em convite à estesia que a cida<strong>de</strong> oferece a quem a quer<br />
<strong>de</strong>scobrir. A edição é <strong>de</strong> <strong>19</strong>71. Com fotos <strong>de</strong> Hans Günter Flieg, e<br />
versões em francês e inglês, o Passeio a Ouro Preto foi logo cercado dos<br />
elogios <strong>de</strong> que é merecedor e se tornou um companheiro imprescindível<br />
<strong>de</strong> quem quer, em pouco tempo, conhecer muito da história e da arte da<br />
primeira cida<strong>de</strong> brasileira inscrita, pela Unesco, no patrimônio da<br />
humanida<strong>de</strong> (<strong>19</strong>80).
Os “passeios” <strong>de</strong> Lúcia Machado <strong>de</strong> Almeida __________________________ Angelo Oswaldo <strong>de</strong> Araújo Santos <strong>19</strong>3<br />
A igreja <strong>de</strong> Cambray, para Marcel Proust, era edifício que ocupava<br />
um espaço <strong>de</strong> quatro dimensões – “a quarta era a do Tempo”, diz ele. É<br />
essa a dimensão a que nos remete o guia <strong>de</strong> Lúcia Machado <strong>de</strong> Almeida.<br />
Suas páginas <strong>de</strong>svelam e revelam, em cada casa <strong>de</strong> Ouro Preto, em cada<br />
igreja da antiga Vila Rica, o século do ouro escondido nos <strong>de</strong>svãos dos<br />
paredões e reencontrado nas salas e naves abertas aos visitantes pelo<br />
olhar emocionado da autora.<br />
Lúcia anda pela cida<strong>de</strong> seguindo um roteiro prático e objetivo, que<br />
ela soube estabelecer a fim <strong>de</strong> nos conduzir no labirinto inesgotável <strong>de</strong><br />
valores fascinantes. Busca o essencial. Mas caminha sem pressa, parando<br />
para <strong>de</strong>vanear sobre os segredos da trama histórica ou evocar uma<br />
personagem que sai da sombra, na apreensão <strong>de</strong> um verso que sobrepaira<br />
numa la<strong>de</strong>ira como os balões juninos nas pinturas <strong>de</strong> Guignard. Viajantes<br />
estrangeiros e poetas inconfi<strong>de</strong>ntes intervêm no roteiro, já que Lúcia os<br />
chama a dar testemunho que esclarece fatos ou cobre <strong>de</strong> renovada<br />
emoção os cenários do passado.<br />
Ouvimos o suspiro da escritora, suas quimeras nos arrebatam. A<br />
palpitação acelerada ca<strong>de</strong>ncia a narrativa. Sentimos que Lúcia se<br />
emociona e <strong>de</strong>seja <strong>de</strong>spertar-nos para a partilha <strong>de</strong>ssas sensações<br />
mágicas. Ouro Preto se <strong>de</strong>sdobra em mistério e transparência, claroescuro<br />
barroco que expõe e sobrepõe imagens em lances <strong>de</strong> encantamento.<br />
Vamos ao Pilar, no Fundo <strong>de</strong> Ouro Preto, cida<strong>de</strong>la dos reinóis<br />
mocotós, e passamos ao Antônio Dias, matriz paulista dos jacubas,<br />
subindo e <strong>de</strong>scendo la<strong>de</strong>iras e lendas. O verso <strong>de</strong> Drummond não nos<br />
retém no frontispício <strong>de</strong> São Francisco <strong>de</strong> Assis. Com Lúcia, admiramos<br />
a apoteose do forro do Ataí<strong>de</strong> e do retábulo-mor do Aleijadinho.<br />
Passeio a Ouro Preto é uma das mais lindas e comoventes<br />
introduções à antiga capital <strong>de</strong> Minas e cida<strong>de</strong> monumento nacional, um<br />
bem que faz parte da herança do mundo, <strong>de</strong> acordo com a <strong>de</strong>claração da<br />
Unesco. Lúcia é luz que se acen<strong>de</strong> para nos conduzir pela antiga Vila<br />
Rica tal como se nos levasse para o ponto mais translúcido da alma do<br />
Brasil.
<strong>19</strong>4 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
O MEU NECROLÓGIO ADIADO<br />
Eduardo Frieiro*<br />
O texto anexo rememora, com certa graça, a grave<br />
enfermida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Eduardo Frieiro, então assistido por<br />
ilustre equipe médica, chefiada pelo Urologista Juscelino<br />
Kubitschek. Eduardo Frieiro prolonga sua interminável<br />
querela com Moacir Andra<strong>de</strong>, encarregado <strong>de</strong> elaborar<br />
seu necrológio nas páginas do Minas Gerais. Os dois<br />
acadêmicos conviviam, na prosa e na vida real, com atos<br />
recíprocos <strong>de</strong> ironia fraterna. Extraí do meu arquivo essa<br />
peça já divulgada outrora na imprensa mineira. (Fábio<br />
Lucas).<br />
Uma folha carioca publicou recentemente no seu suplemento<br />
literário uma nota intitulada “Escritores que não morreram”, na qual se<br />
recordava o curioso episódio <strong>de</strong> terem vários jornais portugueses, no ano<br />
<strong>de</strong> <strong>19</strong>31, noticiado a morte – falsa, é claro – do romancista Ferreira <strong>de</strong><br />
Castro, gravemente enfermo na ocasião. Um redator do Diário <strong>de</strong><br />
Notícias, <strong>de</strong> Lisboa, Ol<strong>de</strong>miro César, escreveu um bom necrológio do<br />
escritor, o melhor entre quantos se escreveram, historiando-lhe a<br />
triunfante carreira literária, precocemente truncada. Algum tempo <strong>de</strong>pois,<br />
num banquete ao Prof. Reinaldo dos Santos, eminente crítico literário e<br />
médico-cirurgião, que salvara a vida do ainda jovem romancista <strong>de</strong> A<br />
Selva, este em pessoa leu o seu necrológio, carinhosamente trabalhado<br />
* Escritor. Ocupou a ca<strong>de</strong>ira nº 7 da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>. Faleceu em <strong>19</strong>82.
<strong>19</strong>6 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
por Ol<strong>de</strong>miro César – o que tudo redundava em elogio da ciência médica<br />
do prof. Reinaldo dos Santos.<br />
A nota a que me refiro terminava com este tópico:<br />
“Também no Brasil registrou-se um caso semelhante. Por volta <strong>de</strong><br />
<strong>19</strong>40, o escritor Eduardo Frieiro enfermou gravemente em Belo<br />
Horizonte, on<strong>de</strong> resi<strong>de</strong>. E certa tar<strong>de</strong>, Mario Casasanta, indo visitá-lo no<br />
hospital, voltou com a certeza <strong>de</strong> que o autor <strong>de</strong> O mameluco Boaventura<br />
não amanheceria. Chegando assim ao Minas Gerais, jornal on<strong>de</strong> Frieiro<br />
trabalhava, disse que podiam fazer o necrológio do confra<strong>de</strong>, pois antes<br />
da meia-noite teriam notícia do falecido. O necrológio foi composto e<br />
impresso e Frieiro até hoje conserva prova do mesmo”.<br />
O caso aí referido só é verda<strong>de</strong>iro no principal, sendo inexato nos<br />
pormenores. O jornalista e escritor Moacir Andra<strong>de</strong>, meu antigo<br />
companheiro na redação do Minas Gerais, escreveu há tempos para o<br />
Estado <strong>de</strong> Minas, <strong>de</strong> que é redator, uma série <strong>de</strong> recordações das mais<br />
interessantes da sua carreira <strong>de</strong> homem <strong>de</strong> jornal, publicadas sob o título<br />
“Trinta anos <strong>de</strong> escriba oficial” e que merecem aparecer em livro. Num<br />
dos capítulos <strong>de</strong>ssas recordações, o intitulado “Os necrológios do Minas<br />
Gerais”, contava-se a história do meu necrológio, pronto para sair<br />
impresso, mas que não chegou a sair por motivo óbvio. Referindo-se<br />
rapidamente ao caso, não tocou Moacir Andra<strong>de</strong> em algumas circunstâncias,<br />
dignas <strong>de</strong> ser lembradas (ao menos por mim), que prece<strong>de</strong>ram o<br />
meu quase óbito, duas vezes em oito dias. Circunstâncias dramáticas para<br />
mim, com seus toques <strong>de</strong> humour negro. Gosto <strong>de</strong> recordá-las,<br />
complacentemente, por serem a aventura mais notável da minha vida,<br />
paupérrima em acontecimentos anedóticos.<br />
Fui o maior “abacaxi” cirúrgico que teve o doutor Juscelino<br />
Kubitschek <strong>de</strong> Oliveira na sua brilhante carreira <strong>de</strong> cirurgião. Já ele era<br />
prefeito <strong>de</strong> Belo Horizonte, mas ainda operava os associados do Fundo da<br />
Beneficência da Imprensa Oficial, a cujo corpo médico pertencia. Como<br />
sócio do Fundo, eu havia recorrido a seus serviços.<br />
Tratava-me <strong>de</strong> uma colite com um clínico da cida<strong>de</strong>, que me<br />
aconselhou a operação do apêndice, inflamado, segundo revelara a<br />
radiografia. Mas fui adiando a operação, com medo. Uma tar<strong>de</strong>, disse ao
O meu necrológio adiado __________________________________________________________ Eduardo Frieiro <strong>19</strong>7<br />
diretor da Imprensa Oficial, doutor Olinto Fonseca, em cujo gabinete eu<br />
trabalhava: – “Vou ao médico e é provável que amanhã a esta hora eu<br />
esteja na mesa <strong>de</strong> operações”. Ele sorriu, incrédulo.<br />
À noite <strong>de</strong>sse mesmo dia – <strong>19</strong> <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> <strong>19</strong>40 – vendo-me<br />
encolhido <strong>de</strong> dores, acometido <strong>de</strong> uma crise aguda <strong>de</strong> apendicite, minha<br />
mulher mandou chamar o doutor Juscelino, tar<strong>de</strong> da noite. Lá pela 1 hora<br />
da manhã, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> voltar para casa em companhia <strong>de</strong> sua senhora,<br />
recebeu <strong>de</strong> D. Júlia, sua genitora, o recado que minha mulher lhe havia<br />
transmitido pelo telefone, e correu a ver-me sem <strong>de</strong>mora, no bairro em<br />
que eu morava.<br />
No dia seguinte, às 16 horas, eu estava na mesa <strong>de</strong> operações da<br />
Casa <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> São Lucas. Ajudavam-no na operação os doutores J.<br />
Bolívar Drummond, Ubaldo Pena e Daniel Ribeiro. Não agüentei a<br />
anestesia local, primeiramente tentada, sendo preciso usar o protóxido <strong>de</strong><br />
azoto. Os intestinos nadavam em pus. Apendicite gangrenada. Peritonite.<br />
Antes dos antibióticos, o prognóstico era sombrio.<br />
Logo no outro dia, os doutores Julio Soares e Cílio <strong>de</strong> Oliveira,<br />
bons companheiros do doutor Juscelino, acudiam-me com atenções e<br />
cuidados diários, como se fossem meus médicos assistentes. Felizmente<br />
eu ignorava a extrema gravida<strong>de</strong> do meu estado, do contrário teria<br />
morrido, só <strong>de</strong> medo <strong>de</strong> morrer. Mas eu estava em boas mãos e com a<br />
sorte fenomenal. Jornais noticiaram – péssimo agouro – que eu estava<br />
hospitalizado em estado melindroso.<br />
Sete dias <strong>de</strong>pois cedia a peritonite, à custa <strong>de</strong> soros, clistenas,<br />
lavagens <strong>de</strong> estômago, transfusões <strong>de</strong> sangue, que sei eu?, e surgiam<br />
esperanças. A confiança durou pouco. Na manhã seguinte, outra sextafeira,<br />
alarmei minha mulher, enfermeiros e internos. Febre alta, fortes<br />
dores atravessadas à altura do fígado, náuseas, vômitos. Das sete da<br />
manhã às tantas da tar<strong>de</strong>, médicos e internos entravam <strong>de</strong> instante em<br />
instante no quarto em que me achava, tomavam-me o pulso, conversavam<br />
comigo e saiam com certo ar preocupado que não me enganava. Houve<br />
uma junta médica <strong>de</strong> que participaram os doutores Juscelino, Júlio<br />
Soares, Cílio <strong>de</strong> Oliveira, Bolívar Drummond e o cardiologista Brás<br />
Pelegrino, chamado para me olhar o coração. Que era, que não era? Ficou
<strong>19</strong>8 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
<strong>de</strong>cidida uma laparotomia exploradora, com escassa probabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
êxito.<br />
A notícia <strong>de</strong> que o meu estado era <strong>de</strong>sesperador circulou pela<br />
cida<strong>de</strong>. À hora da operação – 16 horas e pouco – parentes e amigos<br />
enchiam salas e corredores da Casa <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> São Lucas. Recebi por<br />
telegrama a bênção <strong>de</strong> um bispo ilustre, resi<strong>de</strong>nte no interior do estado. Já<br />
se falava <strong>de</strong> mim (soube-o <strong>de</strong>pois) como se fala <strong>de</strong> um morto: falava-se<br />
bem, muito bem.<br />
A segunda operação foi dramática. Esperava-se o pior. O doutor<br />
Juscelino amigo meu e coração boníssimo, estava <strong>de</strong>solado. Quando me<br />
puseram no carrinho, pela segunda vez em oito dias, meu coração batia<br />
120 ou 130 pulsações por minuto e em minhas veias ardia a febre. Pelos<br />
corredores, rumo à sala <strong>de</strong> operações, eu reconhecia pessoas amigas ou<br />
simplesmente conhecidas, que me lançavam mornos olhares <strong>de</strong><br />
curiosida<strong>de</strong>, alguns um tanto espantados, como se vissem pela última vez<br />
alguém con<strong>de</strong>nado a morrer dali a pouco.<br />
Abriram primeiro a região do apêndice, on<strong>de</strong> se havia feito a<br />
primeira operação. Tudo em or<strong>de</strong>m, por esse lado. Depois, foram abrindo<br />
mais, até à altura da vesícula biliar. Ah, a minha miserável viscerazinha,<br />
sempre preguiçosa e inflamada, que fazia <strong>de</strong> mim muito a miúdo um<br />
sujeito irritadiço e <strong>de</strong> mau humor! Lá estava o mal: a infecção pulara para<br />
a vesícula e a gangrena. Operou então o doutor Julio Soares, notabilíssimo<br />
na cirurgia do fígado e das vias biliares.<br />
A operação correra normalmente. Um verda<strong>de</strong>iro acontecimento<br />
no São Lucas. Mas eu, ao voltar no carrinho para o meu quarto fôra<br />
<strong>de</strong>ixado, por bem dizer, à porta do cemitério. Só minha mulher, que se<br />
agarrara aos santos <strong>de</strong> sua <strong>de</strong>voção, tinha alguma esperança <strong>de</strong> que eu<br />
pu<strong>de</strong>sse passar daquela noite. O Moacir Andra<strong>de</strong>, que <strong>de</strong>ra uma<br />
olha<strong>de</strong>la à sala <strong>de</strong> operação, dizia aos que lhe pediam noticias: “Não<br />
passa <strong>de</strong>sta. Imaginem: contei sete médicos em redor <strong>de</strong> Frieiro. Sete<br />
contra um!”.<br />
Eu estava na porta do cemitério, mas não entrei. No combate contra<br />
a morte, eu apostava – sem saber até que ponto era confiado e otimista –<br />
dois a meu favor contra um. E ganhei. Não teria porém apostado em
O meu necrológio adiado __________________________________________________________ Eduardo Frieiro <strong>19</strong>9<br />
mim, se eu estivesse consciente, pouco <strong>de</strong>pois da operação, quando um<br />
padre entrou no quarto para me ministrar a extrema-unção.<br />
Como entrou? Achavam-se no corredor, perto do meu quarto,<br />
alguns amigos dos mais chegados, entre os quais o saudoso Arduíno<br />
Bolivar e o caro Aires da Mata Machado Filho. Bons católicos, ambos<br />
lembraram-se <strong>de</strong> que era o momento <strong>de</strong> se chamar o padre. Dois eu três<br />
outros amigos acharam lúgubre a idéia: eu, alegaram, era agnóstico e a<br />
presença do sacerdote me assustaria em vez <strong>de</strong> confortar. O Aires, firme,<br />
insistiu: “Precisamos salvar a alma do Frieiro!”.<br />
Obtido o consentimento <strong>de</strong> minha mulher, já <strong>de</strong>rrotada pela aflição,<br />
o sacerdote penetrava no quarto pouco tempo <strong>de</strong>pois. Uf! Dessa vez, sim,<br />
funcionou direitinho a minha boa estrela! Ainda fora <strong>de</strong> mim, sob ação da<br />
narcose gasosa, não reconheci o mensageiro que anuncia o fim dos moribundos.<br />
De outro modo, não tenho a mínima duvida, um terror mortal teria<br />
vencido o meu espírito, enfraquecido pela infecção e pelo sofrimento.<br />
O doutor Olinto Fonseca, que passara pelo hospital a fim <strong>de</strong> saber<br />
notícias da operação, disse ainda no corredor ao Moacir Andra<strong>de</strong>,<br />
redator-secretário do Minas Gerais:<br />
– Amanhã cedo vou para o Barreiro no carro <strong>de</strong> meu sogro. Você<br />
fica aí com o meu, <strong>de</strong> sobreaviso. O Frieiro não passa <strong>de</strong>sta noite e o<br />
jornal <strong>de</strong>ve dar uma boa notícia.<br />
O Minas distinguia-se nesse tempo pelos seus necrológios extensos<br />
e bem feitos, especialida<strong>de</strong> da casa, e o Moacir era um gran<strong>de</strong><br />
enten<strong>de</strong>dor. Na verda<strong>de</strong>, já <strong>de</strong>s<strong>de</strong> cedo preparava a noticia <strong>de</strong> minha<br />
morte. Ninguém melhor do que ele, que me conhecia bem, po<strong>de</strong>ria fazêlo.<br />
Já quase <strong>de</strong> madrugada, enquanto ele trabalhava no meu elogio<br />
fúnebre, homenagem <strong>de</strong>vida a um companheiro <strong>de</strong> redação, o linotipista<br />
<strong>de</strong> plantão e o paginador perdiam a paciência, até que, não po<strong>de</strong>ndo mais, um<br />
<strong>de</strong>les explodiu: – “Puxa! Este Frieiro, até para morrer aporrinha a gente!.”<br />
O Moacir telefonou mais uma vez para a Casa <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>. Eu<br />
continuava na mesma, em estado <strong>de</strong> coma. Mandou então fechar a<br />
paginação e <strong>de</strong>ixou o necrológio para a edição seguinte.<br />
Passados meses, mostrou-me o que havia escrito, vários linguados<br />
<strong>de</strong> papel.
200 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
– Veja o que você per<strong>de</strong>u, me disse ele, com a sua enorme piteira<br />
ao canto da boca.<br />
Li e gostei. Reli. Enterro <strong>de</strong> primeira.<br />
– Guar<strong>de</strong>-o bem, disse-lhe eu. Você terá que lhe acrescentar muitas<br />
coisas porque eu ainda viverei muito.<br />
E já vivi mais <strong>de</strong> vinte anos <strong>de</strong>pois que fui ungido sem saber. E eis<br />
aí como aquela aventura, que tantos sofrimentos me <strong>de</strong>u e quase me<br />
mata, se tornou por fim motivo <strong>de</strong> bom humor e entrou para a minha<br />
“hora da sauda<strong>de</strong>”.
ESPIRITUALIDADE APOSTÓLICA<br />
DO PADRE ANTÔNIO VIEIRA<br />
José Carlos Brandi Aleixo, SJ.*<br />
Aluno do Colégio dos Jesuítas em Salvador, o único da cida<strong>de</strong>, mas<br />
aberto a todos e gratuito, ouvindo, na tar<strong>de</strong> <strong>de</strong> 11 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 1623,<br />
pregação do Pe. Manuel do Couto, sentiu sua vocação religiosa e, em<br />
maio do mesmo ano, foi recebido como noviço na vizinha al<strong>de</strong>ia do<br />
Espírito Santo.<br />
Aos 16 anos, fez voto <strong>de</strong> gastar toda a vida na conversão dos<br />
gentios e, neste propósito, apren<strong>de</strong>u uma língua indígena e outra<br />
angolana. Solicitou aos superiores autorização, não concedida, para, ao<br />
término do biênio do noviciado, <strong>de</strong>dicar-se logo ao trabalho <strong>de</strong><br />
Evangelização. Eles enten<strong>de</strong>ram que, com os estudos <strong>de</strong> humanida<strong>de</strong>s,<br />
filosofia e teologia, o talentoso e promissor jovem po<strong>de</strong>ria atingir um<br />
círculo muito maior e mais diversificado <strong>de</strong> auditórios. Antônio Vieira<br />
veio a distinguir-se pelo alto conhecimento, não só das ciências sagradas,<br />
mas também daquelas profanas que pu<strong>de</strong>ssem ser melhor instrumento<br />
para o seu apostolado. O próprio Vieira <strong>de</strong>clarou a seu respeito, em 1665:<br />
“Em Portugal continuei os mesmos estudos, com a aplicação que<br />
todos sabem, sendo mais morador da livraria que do cubículo, não<br />
prejudicando em nada aos ditos estudos as peregrinações <strong>de</strong> Holanda,<br />
França, Inglaterra e Itália, on<strong>de</strong> fui enviado por S. M. porque, sobre<br />
notícia que tinha muito universal dos livros, sendo sempre bibliotecário<br />
em todos os Colégios, pu<strong>de</strong> ver as melhores livrarias do Mundo e tratar<br />
* Professor universitário (UnB), ocupa a ca<strong>de</strong>ira nº <strong>19</strong> da AML.
202 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
os homens mais doutos, consultados e consumados em estudos<br />
particulares e estudar todo gênero <strong>de</strong> controvérsia”... 1<br />
Na verda<strong>de</strong>, quem não o achasse no cubículo a escrever sabia que o<br />
iria encontrar diante do Santíssimo ou na Biblioteca a estudar.<br />
O zelo apostólico <strong>de</strong> Vieira manifestou-se <strong>de</strong> múltiplas maneiras.<br />
São exemplos: a extensão geográfica <strong>de</strong> suas peregrinações, a diversida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> nações por ele visitadas, o número <strong>de</strong> idiomas por ele utilizados, as<br />
categorias sociais várias por ele beneficiadas.<br />
Sete vezes cruzou o Atlântico. A primeira aos seis anos (1614) por<br />
<strong>de</strong>cisão dos pais que se trasladaram <strong>de</strong> Lisboa para Salvador. A segunda,<br />
em 1641, como membro da <strong>de</strong>legação incumbida, por D. Jorge<br />
Mascarenhas, Vice-Rei do Brasil, <strong>de</strong> levar sua a<strong>de</strong>são ao novo monarca<br />
<strong>de</strong> Portugal, Dom João IV, Duque <strong>de</strong> Bragança. Eram seus companheiros<br />
o Pe. Simão <strong>de</strong> Vasconcelos e D. Fernando <strong>de</strong> Mascarenhas, filho do<br />
Vice-Rei. As outras (1652, 1655, 1661 e 1681) estavam estreitamente<br />
relacionadas com sua vocação missionária. Sua voz soou, principalmente,<br />
em púlpitos do Brasil e <strong>de</strong> Portugal europeu, on<strong>de</strong> passou mais <strong>de</strong> oitenta<br />
e três dos seus fecundos oitenta e nove anos <strong>de</strong> vida. Em Roma (1669-<br />
1675) pregou, quer em seu idioma materno, quer em italiano. 2 Seu verbo<br />
ecoou, outrossim, em Cabo Ver<strong>de</strong> (<strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1652 a janeiro <strong>de</strong><br />
1653, com sermões sobre João Batista e a oitava do Natal, na ilha <strong>de</strong><br />
Santiago) e nos Açores (<strong>de</strong> setembro a outubro <strong>de</strong> 1654, com sermão<br />
sobre Santa Teresa, na ilha <strong>de</strong> São Miguel). 3 Três continentes experimentaram<br />
seu zelo apostólico: África, América e Europa.<br />
De 1653 a 1661, em condições geralmente precárias e perigosas,<br />
nas missões amazônicas, navegou mais <strong>de</strong> mil e quatrocentas léguas e<br />
andou <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a Serra do Ibiapaba até o rio Tapajós. Compôs, ao mesmo<br />
tempo, com excessiva diligência e trabalho, seis catecismos que continham,<br />
em suma, todos os mistérios da fé e da doutrina cristã, em seis línguas diferentes:<br />
um na língua da costa do mar, outro na língua dos Nheengaíbas,<br />
outro na dos Bocas, outro na dos Jurimas e dois na dos Tapuias.<br />
Contrasta este período com o que passou na esplendorosa Roma<br />
(1669-1674) on<strong>de</strong> pregou, quer no próprio idioma (na Igreja Santo<br />
Antônio dos portugueses), quer em italiano, para públicos tão seletos
Espiritualida<strong>de</strong> apostólica do padre Antônio Vieira _________________________ José Carlos Brandi Aleixo, SJ. 203<br />
como os que constituíam ou freqüentavam as Cúrias do Sumo Pontífice e<br />
das diversas or<strong>de</strong>ns religiosas, assim como a Corte da Rainha Cristina, da<br />
Suécia, já convertida ao Catolicismo. Vieira participou <strong>de</strong> famosas<br />
Tertúlias por esta organizadas. 4 Absolvido, pelo Papa Clemente X, <strong>de</strong><br />
penas anteriores, e por ele encomiado, conseguiu um Breve Pontifício<br />
que o isentou da jurisdição do Santo Ofício <strong>de</strong> Portugal.<br />
A espiritualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Antônio Vieira era a dos Exercícios Espirituais<br />
<strong>de</strong> Santo Inácio <strong>de</strong> Loyola. Seu entusiasmo pelo fundador da Companhia<br />
<strong>de</strong> Jesus aparece em muitos <strong>de</strong> seus escritos. São exemplos: o magnífico<br />
sermão que pronunciou em Lisboa, no Real Colégio <strong>de</strong> Santo Antão, 5 em<br />
1669, e a exortação doméstica que dirigiu a Noviços e Estudantes<br />
jesuítas, zelosos em empregar e sacrificar a vida à conversão e salvação<br />
dos gentios nas Missões da Or<strong>de</strong>m. 6<br />
O Sermão <strong>de</strong> 1669 está dividido “em dois discursos: Inácio<br />
semelhante a homens, e Inácio homem sem semelhante. Mais breve<br />
ainda: o semelhante sem semelhante” .<br />
Na exortação doméstica comenta o extraordinário zelo apostólico<br />
do Santo. Salienta que ele prescreveu, em suas Regras, que o jesuíta<br />
apren<strong>de</strong>sse a língua da terra <strong>de</strong> sua residência, para maior ajuda dos<br />
naturais <strong>de</strong>la. Comparou três momentos históricos: o da Torre <strong>de</strong> BabeI;<br />
o <strong>de</strong> Pentecostes; e o da época em que viveu Inácio. Neste último, houve<br />
novo e maior conhecimento da Ásia e da América. Consi<strong>de</strong>rando BabeI e<br />
Pentecostes duas Torres, Vieira diz que Inácio levantou uma Terceira,<br />
também fornecida e armada <strong>de</strong> todas as línguas, para que, instruídos<br />
repartidamente seus filhos, em todas pu<strong>de</strong>ssem ensinar e converter, com<br />
elas todas, as mesmas nações. A primeira Torre foi <strong>de</strong> Nembrot, em que<br />
se confundiram as línguas; a segunda torre foi do Espírito Santo, em que<br />
se infundiram as línguas; a Terceira Torre é a <strong>de</strong> S. Inácio, em que não se<br />
confun<strong>de</strong>m nem se infun<strong>de</strong>m. Não se confun<strong>de</strong>m porque se apren<strong>de</strong>m<br />
distinta e or<strong>de</strong>nadamente; nem se infun<strong>de</strong>m porque não são graça, “gratis<br />
data”, como o dom das línguas, mas adquirida e comprada a preço <strong>de</strong><br />
muito estudo e gran<strong>de</strong> trabalho e, por isso, com muitos e gran<strong>de</strong>s<br />
merecimentos. 7 Se aos apóstolos Deus <strong>de</strong>u as línguas <strong>de</strong> fogo, aos que<br />
têm espírito apostólico dá o fogo das línguas, ou seja, o zelo e o fervor
204 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
ar<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> saber estudar e apren<strong>de</strong>r as línguas estrangeiras, para, com<br />
elas, pregar a fé e ampliar a Igreja. Lembra Vieira que no próprio nome<br />
Inácio (Ignacio) está, etimologicamente, a idéia <strong>de</strong> fogo.<br />
Nos Exercícios Espirituais <strong>de</strong> Santo Inácio, Vieira assumiu, como<br />
particular inspiração para suas batalhas apostólicas, a parábola “<strong>de</strong> um rei<br />
humano, escolhido pela mão <strong>de</strong> Deus, Nosso Senhor, a quem reverenciam e<br />
obe<strong>de</strong>cem todos os príncipes e homens cristãos”. Este foi um recurso do<br />
autor <strong>de</strong>ste célebre livro para enten<strong>de</strong>r e seguir o chamamento <strong>de</strong> Cristo,<br />
Nosso Senhor, Rei Eterno.<br />
Também marcou muito a vida <strong>de</strong> Vieira a importância atribuída<br />
mais às obras do que às palavras como explica Santo Inácio na meditação<br />
para alcançar o amor. Diz Vieira:<br />
“Quando perguntaram a João Batista quem era, ele respon<strong>de</strong>u o que<br />
fazia, porque cada um é o que faz e não outra coisa. As coisas <strong>de</strong>finem-se<br />
pela essência. O Batista <strong>de</strong>finiu-se pelas ações, porque as ações <strong>de</strong> cada<br />
um são a sua essência. Definiu-se pelo que fazia para <strong>de</strong>clarar o que era...<br />
O que fazeis isso sois, nada mais! 8<br />
Os escritos proféticos <strong>de</strong> Vieira, como História do Futuro e Clavis<br />
Prophetarum, textos inconclusos e, provavelmente, partes <strong>de</strong> um mesmo<br />
projeto, <strong>de</strong>notam a ânsia pela volta vitoriosa <strong>de</strong> Cristo. Vieira os<br />
consi<strong>de</strong>rou sua principal obra, muito superior às <strong>de</strong>mais. Cabe sublinhar<br />
que Vieira redigiu a Clavis Prophetarum em belo latim porque assim<br />
po<strong>de</strong>ria ser lido no original no mundo acadêmico <strong>de</strong> seu tempo. 9<br />
Mesmo em missões <strong>de</strong> natureza diplomática, Vieira manteve seu<br />
zelo apostólico. Em viagem, em 1648, <strong>de</strong> Holanda a Portugal, trouxe da<br />
Inglaterra, por on<strong>de</strong> passou, quatro índios canarins para que pu<strong>de</strong>ssem<br />
conhecer e viver a fé católica. Durante o trajeto marítimo, ele passou <strong>de</strong><br />
um a outro barco da frota holan<strong>de</strong>sa para assistir e confessar a um<br />
grumete português, ferido da peste, que faleceu após regressar à sua<br />
primeira Igreja. 10 “ Isto fazia sem <strong>de</strong>ixar o trajo do século, por se achar<br />
entre tripulações que lhe não respeitariam a roupeta”. 11<br />
É notável que a obra <strong>de</strong> Vieira continue sendo divulgada, lida e<br />
estudada até nossos dias. Ela está conspicuamente presente, nos mais<br />
diversos idiomas, em livrarias e bibliotecas religiosas e não confessionais <strong>de</strong>
Espiritualida<strong>de</strong> apostólica do padre Antônio Vieira _________________________ José Carlos Brandi Aleixo, SJ. 205<br />
todos os continentes. Isto se <strong>de</strong>ve a razões tais como sua corajosa <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong><br />
direitos <strong>de</strong> indígenas, africanos, ju<strong>de</strong>us e cristãos novos, sua <strong>de</strong>núncia da<br />
corrupção, etc., assim como à excelência <strong>de</strong> seu Vernáculo. Com razão,<br />
Fernando Pessoa chamou-o <strong>de</strong> “Imperador da Língua Portuguesa”.<br />
Consi<strong>de</strong>rando a gran<strong>de</strong> repercussão <strong>de</strong> sua obra, em vida, inclusive<br />
com impressão <strong>de</strong> muitos <strong>de</strong> seus sermões, é fácil imaginar que Vieira<br />
tivesse plena consciência <strong>de</strong> que, ao trabalhar na revisão <strong>de</strong>les e <strong>de</strong> outros<br />
escritos, ele estava prolongando o seu apostolado além do túmulo.<br />
Po<strong>de</strong>ria dizer certamente como Horácio: “Erigi um monumento mais perene<br />
que o bronze. Não morrerei totalmente”. 12 Assim, os frutos do seu trabalho<br />
apostólico não conhecem limites, nem <strong>de</strong> tempo, nem <strong>de</strong> espaço.<br />
Notas<br />
1 VIEIRA, Antônio. Defesa do livro intitulado Quinto Império, que é a<br />
apologia do livro Clavis Prophetarum e respostas das proposições<br />
censuradas pelos senhores inquisidores dadas pelo Padre Antônio Vieira<br />
estando recluso nos cárceres do Santo Ofício <strong>de</strong> Coimbra. Obras<br />
inéditas do Pe. Antônio Vieira, Lisboa, J. M. C. Seabra & T. Q. Antunes,<br />
1856, Tomo I, p. 44; Pe. Antônio Vieira – Obras Escolhidas, volume VI,<br />
Obras Várias IV; Vieira perante a Inquisição, Prefácio e Notas <strong>de</strong><br />
Antônio Sergio e Hernani Cida<strong>de</strong>, Lisboa, Sá da Costa, <strong>19</strong>52, p. 158; De<br />
Profecia e Inquisição. Pe. Antônio Vieira, Brasília, Senado Fe<strong>de</strong>ral,<br />
<strong>19</strong>98, p. 45-46. Ver também: PALACIN, Luis. Vieira: vida e obras.<br />
<strong>Revista</strong> Itaici, nº 29, set. <strong>19</strong>97, p. 34.<br />
2 Sonia N. Salomão organizou, com introdução e notas, o livro Antônio<br />
Vieira. Sermões Italianos. Viterbo, Sette Città, <strong>19</strong>98, 250 p. Aí estão sete<br />
sermões proferidos na língua <strong>de</strong> Dante. As traduções para o português<br />
estão nos tomos XI, XII, e XIV dos 15 tomos da “ editio princeps”.<br />
3 Sermão <strong>de</strong> Santa Teresa In: Obras Completas do Pe. Antônio Vieira –<br />
Sermões. Porto, Lelo & Irmão, <strong>19</strong>93, vol. III, p. 807-848; Sermões. Padre<br />
Antônio Vieira. Organização <strong>de</strong> Luiz Felipe Baeta Neves. Erechim,<br />
EDELBRA, <strong>19</strong>98, vol. III, p. 449-479.
206 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
4 Elas contaram com a presença <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s personalida<strong>de</strong>s, como era o<br />
caso <strong>de</strong> René Descartes. Em 1674, no Palácio da Rainha Cristina, Vieira<br />
participou do certame: “Se o mundo era mais digno <strong>de</strong> riso ou <strong>de</strong><br />
lágrimas: e qual dos dois gentios andara mas pru<strong>de</strong>nte, se Demócrito, que<br />
ria sempre, ou Heráclito, que sempre chorava”. Tendo escolhido o jesuíta<br />
Jerônimo Cataneo a primeira opinião, Vieira <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>u a segunda.<br />
Antônio Vieira. Sermões. Organização <strong>de</strong> Alcir Pécora. São Paulo, Hedra,<br />
20<strong>01</strong>, Tomo II, p. 541-599.<br />
5 Sermão <strong>de</strong> Santo Inácio. In: Obras Completas do Pe. Antônio Vieira.<br />
Sermões. Lello & Irmão. Op. cit. III, p. 416-450.<br />
6 Pe. Antônio Vieira – Sermões. Erechim, RS, EDELBRA, <strong>19</strong>98, vol.<br />
VIII, p. 43-59.<br />
7 I<strong>de</strong>m. Ibi<strong>de</strong>m. p. 47-48.<br />
8 Apud VÁSQUEZ, Ulpiano. Pe. Antônio Vieira. Itaici – <strong>Revista</strong><br />
Espiritualida<strong>de</strong> Inaciana. Indaiatuba, São Paulo, nº 29, ano 8, set. <strong>de</strong><br />
<strong>19</strong>97, p. 47.<br />
9 Utilizaram este mesmo idioma autores contemporâneos <strong>de</strong> Vieira, como<br />
René Descartes (Meditationes <strong>de</strong> Prima Philosophia – 1641), Gottfried<br />
Wilhelm von Leibniz (De Principio Individui – 1663), Isaac Newton<br />
(Philosophiae Naturalis Principia Mathematica – 1687), e John Locke<br />
(Epistola <strong>de</strong> Tolerantia – 1689).<br />
10 AZEVEDO, J. Lúcio <strong>de</strong>. História <strong>de</strong> Antônio Vieira. Lisboa, Livraria<br />
Clássica Editora, <strong>19</strong>18, tomo Primeiro, p. 153. O episódio está narrado na<br />
mesma “Pon<strong>de</strong>ração 8ª acerca do réu” da obra: Defesa do livro<br />
Intitulado Quinto Império do Mundo, p. 53, citado na nota 1. Há<br />
referência ao trajar <strong>de</strong> Vieira na Holanda também à p. 139.<br />
11 I<strong>de</strong>m. Ibi<strong>de</strong>m. O autor cita, na nota 2 da mesma página, <strong>de</strong>poimento a<br />
respeito <strong>de</strong> Lopo Sardinha.<br />
12 “Exegi monumentum ære perennius... Non omnis moriar”. Versos <strong>de</strong><br />
Horácio. O<strong>de</strong>s, Livro III. 30.1 e 6.
AS OITO RENAS<br />
Danilo Gomes*<br />
Era uma vez, oito renas. Era uma vez, na Lapônia. Alberto<br />
Manguel é quem saberia contar esta história. Mas leia assim mesmo.<br />
Naquela noite <strong>de</strong> sábado, no silêncio da varanda atrás da casa, a tv<br />
<strong>de</strong>sligada, Carminiano Sampaio tomava sua cerveja, com roupas largas e<br />
calçando seus sapatos prediletos: mocassins. Mocassins dos índios sioux,<br />
apaches, cherokees, navajos, os mais confortáveis calçados do mundo.<br />
Carminiano Sampaio pegou um pedaço <strong>de</strong> queijo canastra <strong>de</strong> meiacura,<br />
como tira-gosto. Bebeu mais um gole <strong>de</strong> sua cerveja predileta:<br />
nacional, leve, <strong>de</strong> garrafa. Sua mulher dormia, no andar <strong>de</strong> cima. Os<br />
filhos se casaram e mudaram <strong>de</strong> pouso. Três netos.<br />
A noite avançava e o frio <strong>de</strong> julho aumentava. Foi ao quarto e<br />
pegou um agasalho, que outrora ele chamaria <strong>de</strong> capote. Continuou lendo<br />
o livro que o fascinava e que não queria parar <strong>de</strong> ler, sobre a Revolução<br />
Francesa, Luís XVI, Maria Antonieta, a queda da monarquia, o banho <strong>de</strong><br />
sangue que foi aquele radicalismo insano.<br />
Quis pensar em tempos mais amenos, mais idílicos, longe da<br />
guilhotina e dos discursos sangüinários <strong>de</strong> Danton, Robespierre, Saint-<br />
Just, Marat, Desmoulins, Tallien.<br />
Bebeu mais um gole da sua cerveja leve, predileta. Colocou no<br />
aparelho <strong>de</strong> som as Quatro Estações <strong>de</strong> Vivaldi. Acen<strong>de</strong>u um charuto<br />
Villiger. Quis pensar em coisas boas, situações <strong>de</strong> relaxamento como o<br />
som da água <strong>de</strong>scendo <strong>de</strong> uma pequena cascata. Seu pensamento recuou<br />
* Jornalista, escritor. Da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, ocupa a ca<strong>de</strong>ira nº 2.
208 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
no tempo. Como se sentisse o cheiro da goiaba no tacho ou do bolo<br />
chamado queca (<strong>de</strong> cake) que sua mãe fazia, lembrou-se, <strong>de</strong> repente, do<br />
Natal na sua terra, Santoral. Via-se menino, esperando a passagem <strong>de</strong><br />
Papai Noel pelas casas <strong>de</strong> Santoral, na década <strong>de</strong> 40. De <strong>19</strong>40, melhor<br />
dizendo. Acreditava nele, piamente, e no presente que <strong>de</strong>ixaria naquela<br />
noite mágica: um pequeno caminhão <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira, uma piorra, uma<br />
pequena sanfona <strong>de</strong> papelão, um brinquedo qualquer colocado no sapato<br />
pelo pai e pela mãe (o que ele só saberia muitos anos mais tar<strong>de</strong>). Papai<br />
Noel era, então, um personagem real, que morava num país frio e<br />
distante, talvez Lapônia, que na noite <strong>de</strong> 24 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro percorria o<br />
mundo distribuindo presentes para as crianças. Vinha o velho gorducho e<br />
sorri<strong>de</strong>nte sentado num veículo chamado trenó, arrastando atrás <strong>de</strong> si<br />
aquela montanha <strong>de</strong> presentes e guloseimas.<br />
Carminiano Sampaio tomou mais um gole <strong>de</strong> cerveja, estava ouvindo a<br />
estação vivaldiana do inverno e pitando seu charuto quando tentou se<br />
lembrar dos nomes das oito renas que puxavam o trenó <strong>de</strong> Papai Noel.<br />
Não se lembrava <strong>de</strong> nenhum. Jamais se lembraria daqueles nomes lidos<br />
em livros tão antigos. Desistiu, pensou em outras coisas, ainda ouvindo<br />
Vivaldi. Releu algumas páginas do Livro Tibetano dos Mortos.<br />
Naquela madrugada <strong>de</strong> frio, Carminiano Sampaio mergulhou no<br />
sono, <strong>de</strong>pois da cerveja e do charuto.<br />
Lá pelas tantas, quando solitários galos cantavam saudando a<br />
manhã que iria raiar, o arrebol, o <strong>de</strong>albar, o crepúsculo matutino, a aurora<br />
prestes a se abrir em rosicler, Carminiano Sampaio ouviu vozes. E um<br />
galopar <strong>de</strong> renas sobre o gelo, e o tilintar <strong>de</strong> alegres sinos muito antigos.<br />
E uma voz rouca mas alegre, <strong>de</strong> um avô meio cansado <strong>de</strong> viagem,<br />
<strong>de</strong>clarou que aquelas renas, suas velhas companheiras, tinham nomes. E,<br />
enquanto os galos saudavam a aurora, nomeou-as uma por uma: Dasher,<br />
Dancer, Prancer, Vixen, Comet, Cupid, Don<strong>de</strong>r e Blitzen. Eram as renas<br />
voadoras. A voz era a <strong>de</strong> quem criara essas míticas personagens que o<br />
imaginário popular consagrou – essas renas voadoras – numa história<br />
chamada Uma Visita <strong>de</strong> Saint Nicholas. A voz era a <strong>de</strong> C. Clement<br />
Moore e o ano era o <strong>de</strong> 1823, dois anos <strong>de</strong>pois da morte <strong>de</strong> Napoleão<br />
Bonaparte no exílio da ilha <strong>de</strong> Santa Helena.
As oito renas ______________________________________________________________________ Danilo Gomes 209<br />
A voz <strong>de</strong> C. Clement Moore era como a voz do próprio Papai Noel.<br />
O canto dos galos, o galope das renas, o encantamento <strong>de</strong> Vivaldi, a<br />
fantasia do bom velhinho, tudo isso fazia <strong>de</strong> Carminiano Sampaio um<br />
homem feliz. Ele sentia no ar, ainda ao longe, o galope das renas. Era<br />
bom ouvir esse som, acompanhado <strong>de</strong> sinos muito leves, como címbalos.<br />
Era o último sono, o <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iro sonho <strong>de</strong> Carminiano Sampaio.<br />
O tempo corria sem pieda<strong>de</strong> nem misericórdia. Aos 70 anos, a hora<br />
<strong>de</strong> sua morte se aproximava, longe <strong>de</strong> Santoral, antiga Vila do Ribeirão<br />
do Carmo, fundada em 1696. Nenhum minuto a mais. Cumprido<br />
totalmente o tempo neste mundo. A hora do réquiem. Ainda ouviu o<br />
último galope das oito renas <strong>de</strong> Santa Klaus. O medo do purgatório e,<br />
muito mais, do inferno. Para on<strong>de</strong> iria a alma <strong>de</strong> Carminiano Sampaio?<br />
Outra vez menino em Santoral, numa volta à infância, mergulhado<br />
na luz da aurora <strong>de</strong> sua vida, e ouvindo os sinos das velhas igrejas do<br />
século XVIII, Carminiano Sampaio entregou a alma a Deus Nosso<br />
Senhor.
210 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
LITERATURA E MELANCOLIA<br />
Côn. José Geraldo Vidigal <strong>de</strong> Carvalho*<br />
Po<strong>de</strong>-se afirmar que o escritor, mas sobretudo o poeta, não se<br />
subtrai ao domínio da melancolia. É próprio do ser humano conviver com<br />
uma certa tristeza in<strong>de</strong>finida, ainda quando liberto da langui<strong>de</strong>z mórbida.<br />
A porção frágil da pessoa humana é um terreno que a favorece. Ela<br />
convida a um abandono lânguido, a uma aquiescência passiva. A<br />
perplexida<strong>de</strong> é o seu reino. Mefistofélica, age como um acúleo,<br />
<strong>de</strong>safiando o anjo da esperança. A noite é a sua tonalida<strong>de</strong>, dado que ela é<br />
incolor, contrária à varieda<strong>de</strong> que a luz do dia oferece, conduzindo ao<br />
espaço do indistinto. Ela é a forma maternal da morte, seu corpo protetor,<br />
mesmo porque se alimenta do passado, espicaçando por meio <strong>de</strong><br />
lembranças do que não volta mais. Fatiga o espírito, avivando cenas <strong>de</strong><br />
tempos que se foram. Outrora aconteceu o que agora é impossível <strong>de</strong> se<br />
reviver, é seu acre lembramento.<br />
A poesia, sobretudo, se acomoda à melancolia, se encanta com ela,<br />
colorindo o pretérito, para <strong>de</strong>safiar o presente e anuviar o porvir. Surge<br />
então um discurso metafórico, um conhecimento por associação <strong>de</strong><br />
imagens que acabam magoando e envolvendo o coração na penumbra da<br />
consternação. Comprometida fica a realida<strong>de</strong> da vida e <strong>de</strong>sorganizada a<br />
consciência. Por tudo isto sua companhia é sempre a sauda<strong>de</strong>. Com o<br />
passar do tempo lá se vai a mocida<strong>de</strong>, a saú<strong>de</strong> e os entes queridos que<br />
<strong>de</strong>saparecem! Razão teve Metastasio que <strong>de</strong>ste modo se expressou in La<br />
vita:<br />
* Prof. do Seminário <strong>de</strong> Mariana, ocupa a ca<strong>de</strong>ira nº 12 da AML.
212 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
O PASSADO acabou... Mas a sauda<strong>de</strong>,<br />
como inda vero, espicaçada, o finge...<br />
Muito pesar o coração constringe:<br />
Figuração <strong>de</strong> inane realida<strong>de</strong>... . 1<br />
Po<strong>de</strong>-se dizer que a melancolia é uma experiência existencial que<br />
torna mais realista a caminhada pelo <strong>de</strong>serto <strong>de</strong>ste mundo. Daniel Osiecki<br />
mostrou que no período <strong>de</strong> transição da Ida<strong>de</strong> Média para o Renascimento,<br />
mais precisamente no início do século XVII, em 1631, em<br />
Londres, foi lançado o livro The Anatomy of Melancholy – Anatomia da<br />
Melancolia, <strong>de</strong> Robert Burton. Neste livro, Burton tece um estudo<br />
médico e filosófico sobre a melancolia em mais <strong>de</strong> novecentas páginas.<br />
Osiecki, baseado neste livro escreveu que “<strong>de</strong>s<strong>de</strong> a Ida<strong>de</strong> Média já se<br />
faziam associações entre a melancolia e a Bile Negra, ou seja,<br />
secreção do pâncreas. A bile é pesada, espessa, ten<strong>de</strong> a “<strong>de</strong>scer”. No<br />
Renascimento, um dos tratamentos para a “cura” da melancolia era a<br />
sangria, ou fazer com que o “enfermo” bebesse gran<strong>de</strong>s doses <strong>de</strong><br />
vinho (alusão ao sangue), porque, enquanto a bile é negra e ten<strong>de</strong> a<br />
“<strong>de</strong>scer”, o sangue, que é mais vivo, mais enérgico, ten<strong>de</strong> a “subir”.<br />
Metaforicamente falando, melancolia é frieza, secura, enquanto<br />
alegria é úmida e quente” 2 .<br />
Shakespeare curtia sua melancolia e asseverou: “Não tenho a<br />
melancolia do erudito, que é emulação; nem a do músico, que é fantasia;<br />
nem a do cortesão, que é orgulho; nem a do soldado, que é ambição; nem<br />
a do advogado, que é política; nem a da mulher, que é bela; nem a do<br />
amante, que reúne todas essas. Tenho, sim, uma melancolia só minha,<br />
composta <strong>de</strong> muitos elementos, extraída <strong>de</strong> muitos objetos, e, na verda<strong>de</strong>,<br />
a ruminante e múltipla contemplação <strong>de</strong> minhas jornadas acaba por me<br />
envolver, quase sempre, num estado <strong>de</strong> excêntrica tristeza.” 3<br />
Augusto dos Anjos assim a implorava: “Melancolia! Esten<strong>de</strong>-me a<br />
tua asa! / És a árvore em que <strong>de</strong>vo reclinar-me...” 4<br />
Aristóteles chegou a afirmar que “todos os homens que se<br />
distinguiram na filosofia, na política, na poesia, na ciência, foram<br />
melancólicos”. 5
Literatura e melancolia ________________________________________ Côn. José Geraldo Vidigal <strong>de</strong> Carvalho 213<br />
Vitor Hugo diagnosticou assim este estado <strong>de</strong> espírito: “A<br />
melancolia é a felicida<strong>de</strong> triste”. 6<br />
A sabedoria popular diz que a melancolia é uma tristeza sem<br />
motivo 7 .<br />
Por tudo isto se percebe que, na literatura <strong>de</strong> modo geral, a<br />
melancolia se difere da <strong>de</strong>primente baixa estima, que é patológica e<br />
consiste na negação das qualida<strong>de</strong>s que cada um possui <strong>de</strong> acordo com<br />
seu perfil caracterológico, as quais <strong>de</strong>vem ser bem administradas,<br />
conduzindo à imperturbabilida<strong>de</strong>, fruto da auto-realização. Não se trata<br />
<strong>de</strong> uma afecção mental, caracterizada por <strong>de</strong>pressão, por sentimento <strong>de</strong><br />
incapacida<strong>de</strong>, falta <strong>de</strong> interesse pela vida, <strong>de</strong>sgosto <strong>de</strong> viver, angústia<br />
existencial. Não se confun<strong>de</strong> com ansieda<strong>de</strong>, lucubração ou idéias<br />
<strong>de</strong>lirantes <strong>de</strong> auto-<strong>de</strong>struição, indignida<strong>de</strong>, auto-acusação.<br />
Nos literatos não se pinça o en<strong>de</strong>usamento <strong>de</strong> uma psicose<br />
maníaco-<strong>de</strong>pressiva ou exaltação <strong>de</strong> choques afetivos ou expressões<br />
<strong>de</strong>correntes <strong>de</strong> influência <strong>de</strong> involução pré-senil. Não é próprio, porém,<br />
daquele que se <strong>de</strong>dica à literatura, compondo ou escrevendo trabalhos<br />
artísticos em prosa ou verso, anestesiar os viandantes neste vale <strong>de</strong><br />
lágrimas com vazias consolações que significariam uma <strong>de</strong>plorável fuga.<br />
Há, sim, o convite a uma convivência frutuosa com a nostalgia, com os<br />
possíveis tédios e <strong>de</strong>senganos que possam sobrevir, bem diferente da<br />
náusea sartreana.<br />
Segundo o luminoso conselho <strong>de</strong> Goethe é preciso sempre fazer da<br />
dor belo poema! 8 Po<strong>de</strong>-se inclusive falar, sem contradição, que há até um<br />
humor melancólico em muitos textos literários.<br />
Dom Oscar <strong>de</strong> Oliveira, que ocupou a ca<strong>de</strong>ira número 27 da<br />
<strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, colocou como título <strong>de</strong> seu magnífico livro<br />
<strong>de</strong> poesias Estância <strong>de</strong> Sauda<strong>de</strong>s. Quem penetra fundo na obra estética<br />
<strong>de</strong>ste vate, pinça nela laivos <strong>de</strong> melancolia <strong>de</strong>sfrutada, sem per<strong>de</strong>r a visão<br />
otimista do viver.<br />
Seus dizeres confirmam o que supra foi dito:
214 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
De vida me correram tantos anos,<br />
E a sempre-viva flor <strong>de</strong> minha infância<br />
Perdura nesta <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>ira estância,<br />
De formosuras guarda alguns arcanos.<br />
Neste viver <strong>de</strong> agora, em altiplanos,<br />
Coisas belas eu vejo em abundância:<br />
No vale, muitas flores com fragância,<br />
E procissão <strong>de</strong> eventos soberanos.<br />
Estou vivendo, ainda, os meus brinquedos,<br />
Os versinhos da Escola – almos floguedos,<br />
E passeios no campo – áureos momentos.<br />
Mês <strong>de</strong> Maria, virgens coroando,<br />
Para o Presépio enfeite eu apanhando:<br />
Encantamentos sobre encantamentos! 9<br />
Na existência humana se mesclam júbilo e amargura e bem dissera<br />
Salomão que nos extremos do gáudio habita a dor. Na terra misturam-se<br />
o bem com o mal, o encômio com a injúria, a ventura com o <strong>de</strong>sar, a<br />
alegria com a tristeza, a aclamação com o ultraje, o elogio com a calúnia.<br />
A rainha das flores, a rosa, é bem o símbolo <strong>de</strong>sta realida<strong>de</strong>. Os espinhos<br />
circundam a beleza <strong>de</strong>sta flor como que patenteando a vida humana.<br />
Então, como não há nesta vida rosa sem espinho, nem pérola sem limo ou<br />
prata sem liga, nem sol sem sombras, nem céu sem nuvens, nem peixe<br />
sem espinhas, assim não há glória terrena sem o travo dos aborrecimentos.<br />
O triunfo humano conhece sempre o fel da humana inveja. Isto<br />
acontece com rapi<strong>de</strong>z impressionante, pois se no <strong>de</strong>correr do ano há<br />
inverno e verão e entre eles muitos meses; dia e noite e entre eles vinte e<br />
quatro horas, para existirem o elogio e o <strong>de</strong>sprezo, hosanas e clamores <strong>de</strong><br />
morte, loas e injúrias, júbilo e <strong>de</strong>sgosto basta um instante.<br />
O citado Arcebispo <strong>de</strong> Mariana assim se expressou em “Ação <strong>de</strong><br />
Graças”:
Literatura e melancolia ________________________________________ Côn. José Geraldo Vidigal <strong>de</strong> Carvalho 215<br />
No meu caminhar tão longo,<br />
Saboreei alegria<br />
E muita consolação.<br />
Espinhos me não faltaram,<br />
Sobre mim cruzes pesaram.<br />
Sei que tudo graças são! 10<br />
No poema “Retorno” retoma esse tema:<br />
As águas do rio da vida fluíram;<br />
No bosque do espírito as aves cantaram;<br />
Eu tive alegrias, meus lábios sorriram,<br />
E orvalhos <strong>de</strong> dor <strong>de</strong> meus olhos rolaram.<br />
Os livros amados belezas me abriram.<br />
Oh, quantos países meus pés perlustraram!<br />
E <strong>de</strong>les visões <strong>de</strong>ntro em mim se imprimiram.<br />
Fiéis amicícias meu ser enfeitaram.<br />
Tais fatos, a sós, em conjunto os confronto.<br />
Porém, meu jardim é na infância que encontro,<br />
E nela tirei minha última estância.<br />
Ainda bem velho, eu irei, cada dia,<br />
Esse ar matinal aspirar na alegria<br />
Do campo singelo e saudoso da infância. 11<br />
Na terceira ida<strong>de</strong> as recordações da puerícia pululam a memória<br />
como se fora um calidoscópio, numa sucessão rápida e cambiante <strong>de</strong><br />
impressões, <strong>de</strong> sensações inefáveis. Eis por que Dom Oscar fez um belo<br />
paralelo em “Infância e Ancianida<strong>de</strong>”, falando “<strong>de</strong> um sol que ascen<strong>de</strong> e<br />
um sol que <strong>de</strong>sce./ Dois bem juntos do horizonte na planura” .<br />
Sem ilusões, mas numa ótica realista em “Missão do Homem”<br />
<strong>de</strong>ixou escrito:
216 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
Ai, quanta dor a nossa Terra agita;<br />
Dor física e moral! Mas que esplendor<br />
De estrelas e luares! Quanto olor<br />
De flores! Que canção <strong>de</strong> aves palpita! 12<br />
Em “Cântico <strong>de</strong> um idoso” :<br />
Não me intimi<strong>de</strong> a dor nalgum momento.<br />
Com a Paixão <strong>de</strong> Cristo eu a compare.<br />
Para que meu espírito se acelere,<br />
E eu bem a entenda: A dor é complemento. 13<br />
Num instante <strong>de</strong> sublime inspiração, filosoficamente, foi à causa da<br />
inquietação que habita o íntimo do ser pensante e confirma que a ventura<br />
completa é uma planta da eternida<strong>de</strong> que não se aclimata bem nesta terra<br />
e compôs “Futurível” :<br />
Da divinal Beleza originado,<br />
O ser humano prova nostalgia<br />
Do Belo e da Verda<strong>de</strong> – dom sagrado,<br />
Que, às vezes, sem saber, busca à porfia.<br />
O muito gozo <strong>de</strong>ixa-o entediado,<br />
E não encontra nele essa alegria.<br />
Sem paz e sem amor, <strong>de</strong>sesperado,<br />
Então não mais viver <strong>de</strong>sejaria.<br />
Felicida<strong>de</strong> em mundo perecível,<br />
On<strong>de</strong> há borrasca, treva, espinho, dor?<br />
Felicida<strong>de</strong> plena é um futurível.<br />
E amargura, pra que curtir, no entanto?<br />
Aqui também há luz, pássaro, flor!<br />
Os dias tece, Irmão, com doce canto! 14
Literatura e melancolia ________________________________________ Côn. José Geraldo Vidigal <strong>de</strong> Carvalho 217<br />
No fundo <strong>de</strong> toda poesia, mesmo liberta como a <strong>de</strong> Dom Oscar <strong>de</strong><br />
Oliveira, jaz aquela porção <strong>de</strong> tristeza, aquela inerente nostalgia,<br />
Entretanto, para os que são bons resta sempre, por entre os embates da<br />
existência, a beatitu<strong>de</strong> a que este poeta se refere no “Salmo da Paz” :<br />
Vendavais com escuros frutos seus<br />
Me sobrevêm, mas disso não me queixo.<br />
Mora <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> mim a Paz <strong>de</strong> Deus! 15<br />
Esta quietação é venturosamente contagiante pois fervilha lá no<br />
íntimo do coração e se espalha por toda parte, fazendo jorrar mensagens<br />
como esta:<br />
O i<strong>de</strong>al sempre é esperança<br />
Que com coragem se alcança! 16<br />
NOTAS<br />
1. Tradução <strong>de</strong> Dom Oscar <strong>de</strong> Oliveira in: Estância <strong>de</strong> Sauda<strong>de</strong>s, Belo<br />
Horizonte, Imprensa Oficial, <strong>19</strong>87, p.12<br />
2. Daniel Osiecki in: poesiatavolaredonda.blogspot.com<br />
3. I have neither the scholar’s melancholy, which is emulation; nor the<br />
musician’s, which is fantastical; nor the courtier’s, which is proud;<br />
nor the soldier’s, which is ambitious; nor the lawyer’s, which is<br />
politic; nor the lady’s, which is nice, nor the lover’s,which is all<br />
these: but it is a melancholy of mine own, compoun<strong>de</strong>d of many<br />
simples, extracted from many objects; and, in<strong>de</strong>ed, the sundry<br />
contemplation of my travels, in which my often rumination wraps me<br />
in a most humorous sadness. SHAKESPEARE (1564-1616), “Como<br />
Gostais”, Ato IV<br />
4. Augusto dos Anjos (1884-<strong>19</strong>14), Eu.
218 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
5. Citado por Cícero in Tusculanae, I,33<br />
6. Les Travailleurs <strong>de</strong> la Mer, 111<br />
7. Abbagnano, Nicola. Dicionário <strong>de</strong> Filosofia. Tradução <strong>de</strong> Alfredo<br />
Bosi. São Paulo: Martins Fontes, 2000, verbete Melancolia p. 629<br />
8. In Dom Oscar <strong>de</strong> Oliveira, Estância <strong>de</strong> Sauda<strong>de</strong>s, op. cit. p. 79<br />
9. I<strong>de</strong>m, ibi<strong>de</strong>m, p. 7<br />
10. I<strong>de</strong>m, ibi<strong>de</strong>m, p. 8<br />
11. I<strong>de</strong>m, ibi<strong>de</strong>m, p. 10<br />
12. I<strong>de</strong>m, ibi<strong>de</strong>m, p. 18<br />
13. I<strong>de</strong>m, ibi<strong>de</strong>m, p. 24<br />
14. I<strong>de</strong>m, ibi<strong>de</strong>m, p. 33<br />
15. I<strong>de</strong>m, ibi<strong>de</strong>m, p. 16<br />
16. I<strong>de</strong>m, Entre Rios <strong>de</strong> Minas – Versos – Mariana, Editora Dom Viçoso,<br />
p. 5
DECLARAÇÃO DE AMOR A<br />
BELLO HORIZONTE<br />
Abilio Barretto*<br />
Amo **Bello Horizonte com o mesmo enternecido amor que<br />
<strong>de</strong>dico ao meu torrão natal – Diamantina.<br />
Alli nascido em 1883, para aqui vim criança, em fins <strong>de</strong> 1895,<br />
acompanhando “pari passu” os trabalhos da Commissão Constructora da<br />
Nova Capital, <strong>de</strong> que fiz parte como humil<strong>de</strong> empregado contractado,<br />
sem titulo, em a 9ª Divisão, naquelle <strong>de</strong> seus <strong>de</strong>partamentos que<br />
funccionava em um barracão <strong>de</strong> taboas coberto <strong>de</strong> zinco, situado no logar<br />
em que existe hoje a Distribuidora <strong>de</strong> Electricida<strong>de</strong>.<br />
Por esse tempo, fui distribuidor dos dois primeiros jornaes<br />
fundados aqui: o “Bello Horizonte” e a “A Capital”. Nesse humillimo<br />
trabalho, muitas vezes, sempre alegre e optimista, naquella tão ditosa<br />
inconsciencia infantil, indifferente ás fadigas, palmilhei todas as velhas<br />
ruas do antigo arraial, ainda quasi intacto, <strong>de</strong> casa em casa, aos<br />
domingos, pela manhã, levando aos assignantes as duas primeiras folhas<br />
que se editaram em Bello Horizonte. Que sauda<strong>de</strong>s sinto <strong>de</strong>sse lindo<br />
tempo que já vae tão longe!<br />
* Ocupou a ca<strong>de</strong>ira nº 18 da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>. Escritor, jornalista e historiador,<br />
nasceu em Diamantina em 1883 e morreu em Belo Horizonte em <strong>19</strong>59. Primeiro historiador<br />
da capital mineira, foi tambem o fundador do Museu Histórico <strong>de</strong> Belo Horizonte, que traz o<br />
seu nome.<br />
** Mantém-se a ortografia original.
220 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
Depois, successivamente, ao passo que acompanhava o nascer e o<br />
evoluir da Nova Capital, fui aqui exercendo as seguintes funcções:<br />
caixeiro no commercio; apprendiz typographico e typographo na<br />
Imprensa Official, on<strong>de</strong> fui, mais tar<strong>de</strong>, conferente, revisor e chefe <strong>de</strong><br />
revisão; estudante; reporter da “Folha Pequena” collaborador <strong>de</strong> quasi<br />
todos os jornaes e revistas que aqui existiram nos primeiros tempos;<br />
fundador do “Diario <strong>de</strong> Noticias”, com Vasco Azevedo, e da “Folha do<br />
Dia”, com Soares Brandão, jornaes <strong>de</strong> que fui redactor secretario;<br />
fundador <strong>de</strong> associações litterarias e beneficentes, que administrei;<br />
funccionario publico; autor <strong>de</strong> alguns mo<strong>de</strong>stos livros em prosa e em<br />
verso; e finalmente membro do Instituto Historico e Geographico <strong>de</strong><br />
Minas Geraes e da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>.<br />
Aqui vi <strong>de</strong>sabotoarem-se-me todas as illusões e todas as<br />
esperanças; aqui apprendi a trabalhar e a abençoar o trabalho como o<br />
maior bem que Deus tem concedido ao homem para lhe suavisar a<br />
travessia penosa e ingrata da existencia; aqui apprendi a viver e a não<br />
maldizer a vida e os soffrimentos a ella immanentes, que são como que o<br />
chrysol purificador <strong>de</strong> todas as virtu<strong>de</strong>s e um tributo natural que a<br />
humanida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ve á sua propria especie; aqui formei o meu caracter numa<br />
pobreza honrada e dignificadora; aqui cultivei e acalentei os meus sonhos<br />
affectivos e edifiquei o meu lar pelo casamento; aqui nasceram os meus<br />
filhos, os meus livros e as arvores que plantei; aqui repousam as cinzas<br />
queridas da santa e inolvidavel velhinha que foi Minha Mãe; toda a<br />
minha vida está aqui...<br />
Por isso, amo Bello Horizonte com o mesmo enternecido amor<br />
que <strong>de</strong>dico ao meu berço natal – Diamantina. Por isso, tambem, <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />
muito, vinha pensando e acariciando no coração o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> escrever<br />
uma memoria historica, atravez da qual pu<strong>de</strong>sse <strong>de</strong>ixar muito<br />
<strong>de</strong> minha alma agra<strong>de</strong>cida á terra acolhedora que me foi berço<br />
adoptivo, estudando os factos historicos <strong>de</strong> sua existencia dilatada e<br />
victoriosa.<br />
Longo tempo meditei ansioso sobre esse projecto, que se me<br />
affigurava tão bello quanto irrealizavel para a minha <strong>de</strong>bil capacida<strong>de</strong><br />
creadora e realizadora.
Declaração <strong>de</strong> amor a Belo Horizonte _________________________________________________ Abilio Barretto 221<br />
Quantas vezes, recordando os meus dias aqui vividos, com os seus<br />
episodios alegres ou tristes, amigos que se dispersaram e outros que<br />
morreram, aquelle gracioso arraial que aqui encontrei ainda febricitante<br />
na sua gloria <strong>de</strong> se ver <strong>de</strong>stinado a berço <strong>de</strong> uma das mais bellas cida<strong>de</strong>s<br />
da America do Sul, não pensei <strong>de</strong> mim para commigo: – Será possivel<br />
que <strong>de</strong> tudo quanto se foi e se vae no torvelinho dos dias que correm não<br />
consiga eu <strong>de</strong>ixar ao menos algumas paginas <strong>de</strong> recordação e <strong>de</strong> sauda<strong>de</strong>?<br />
Mas serei capaz <strong>de</strong> recompor esse passado em paginas que não <strong>de</strong>sdourem<br />
os factos e o magestoso scenario em que elles se <strong>de</strong>senrolaram?<br />
Ah! Que duvida cruel! Que anseio dorido e formidavel do meu ente<br />
aquella tão extensa, <strong>de</strong>licada, difficil tarefa, que acreditei irrealizavel!...<br />
E os dias da mocida<strong>de</strong> voaram celeres, como tudo quanto é bom<br />
nesta vida, <strong>de</strong>lles somente vingando bem poucos fructos mal sazonados<br />
das tantas flores <strong>de</strong> que se carregaram, tal como acontece a essas lindas<br />
mangueiras horizontinas... E aquella idéa permanecia sempre vívida e<br />
bella, a seduzir-me, sem que eu vencesse o temor <strong>de</strong> enfrental-a, <strong>de</strong><br />
realizal-a, até que, um dia, gran<strong>de</strong> incentivo me veio arrancar daquella<br />
in<strong>de</strong>cisão, ao receber dos Exmos. Snrs. Presi<strong>de</strong>nte Antonio Carlos e<br />
Gu<strong>de</strong>steu Pires, Secretario das Finanças do Estado, a quem revelára o<br />
meu projecto <strong>de</strong> trabalho, franca approvação ao proposito e o conselho<br />
mesmo para leval-o a effeito, por julgarem aquelles illustres conterraneos ser<br />
obra <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> patriotismo e <strong>de</strong> toda utilida<strong>de</strong> a que eu pretendia realizar.<br />
Assim foi que a salutar animação advinda <strong>de</strong> tão honroso conselho<br />
me fez <strong>de</strong>cidir e, num momento <strong>de</strong> enthusiasmo, prometti mesmo a SS.<br />
Excs. executar o projecto, que aliás já estava <strong>de</strong>lineado, em linhas geraes,<br />
no meu espirito.<br />
Des<strong>de</strong> logo, impellido por um enthusiasmo jamais sentido ao<br />
emprehen<strong>de</strong>r qualquer outro dos meus mo<strong>de</strong>stos trabalhos litterarios, e<br />
cheio <strong>de</strong> uma dicidida vonta<strong>de</strong>, apesar <strong>de</strong> falto <strong>de</strong> sau<strong>de</strong>, <strong>de</strong>itei mãos á<br />
obra, entregando-me <strong>de</strong> corpo e alma ao estudo da materia, em pesquisas<br />
pacientes e lentas, muitas vezes infructiferas, em viagens <strong>de</strong> estudo e em<br />
confabulações com pessoas, antigas, que me pu<strong>de</strong>ssem orientar, por<br />
tradição, relativamente a certos factos imprecisos da historia que<br />
estudava.
222 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
Com esse trabalho benedictino e talvez superior ás possibilida<strong>de</strong>s<br />
do meu estado <strong>de</strong> sau<strong>de</strong> precario, não sei o numero <strong>de</strong> <strong>de</strong>salentos que tive<br />
e os receios, que me assaltaram, <strong>de</strong> ser, talvez; forçado a faltar, pela<br />
primeira vez na minha vida, ao cumprimento da palavra dada.<br />
E foi talvez essa circumstancia imperiosa da palavra empenhada<br />
que influiu <strong>de</strong>cisivamente no meu espirito e no meu anim:o, revestindome<br />
da fortaleza necessaria para não <strong>de</strong>sanimar em meio da jornada e<br />
levar a termo a empreza que me impuzera.<br />
Agora, estão, emfim, realizadas as duas primeiras partes da<br />
obra, lacunosas e imperfeitas, é certo, mas trabalhadas com carinho,<br />
com paciencia, com amor, no <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> reunir para as futuras<br />
gerações <strong>de</strong> Bello Horizonte, preciosos dados historicos que andavam<br />
dispersos em velhos alfarrabios dos archivos, em livros, revistas,<br />
jornaes e albuns.<br />
Nestas duas primeiras partes faço, com os elementos que pu<strong>de</strong><br />
adquirir, um historico do arraial <strong>de</strong> Curral d’ El-Rey, <strong>de</strong>pois Bello<br />
Horizonte, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a sua fundação, em 17<strong>01</strong>, por João Leite da Silva Ortiz,<br />
até a época em que aqui se ia installar a Commissão Constructora da<br />
Nova Capital, bem como o historico do problema da mudança da Capital<br />
atravez dos tempos idos.<br />
Claro é que, a não ser a recuadissima antiguida<strong>de</strong> do arraial, que<br />
lhe dá certo relevo tradicional, bem minguados e obscuros são os<br />
acontecimentos <strong>de</strong> sua existencia, sendo por <strong>de</strong>mais restricto e pobre o<br />
campo que offerece para uma memoria historica.<br />
Creio mesmo que nunca houve em Minas outra localida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida<br />
mais morigerada, mais tranquilla, mais uniforme, e, por isso mesmo,<br />
mais sem historia do que o Curral d’ El-Rey, postas <strong>de</strong> lado as suas luctas<br />
politicas <strong>de</strong> campanario, que não passavam <strong>de</strong> brigas <strong>de</strong> compadres ...<br />
Dir-se-ia que, convicto <strong>de</strong> sua maravilhosa belleza topographica e<br />
<strong>de</strong>mais virtu<strong>de</strong>s naturaes que lhe eram peculiares, embalado no seu alto<br />
sonho <strong>de</strong> se ver um dia metamorphoseado na Capital <strong>de</strong> Minas, viveu<br />
sempre dormindo atravez <strong>de</strong> quasi dois seculos, na colonia e na<br />
provincia, só se <strong>de</strong>spertando ao alvorecer da Republica, quando o seu<br />
sonho estava prestes a converter-se em realida<strong>de</strong>...
Declaração <strong>de</strong> amor a Belo Horizonte __________________________________________________ Abilio Barreto 223<br />
Por essas razões, não me foi muito facil vencer a primeira etapa da<br />
tarefa que me propuz <strong>de</strong>sempenhar.<br />
Com vagar irei publicando as outras partes, aliás mais faceis, todas,<br />
como estas, illustradas com photogravuras, e cujos estudos estão<br />
concluidos.<br />
Realizando este trabalho <strong>de</strong> paciencia e <strong>de</strong> amiza<strong>de</strong> á terra tão boa e<br />
bella <strong>de</strong> que me julgo filho adoptivo, <strong>de</strong>vo <strong>de</strong>clarar que não me animaram<br />
o espirito preoccupações litterarias. Tive em mente, antes <strong>de</strong> tudo, o<br />
ponto <strong>de</strong> vista mais singelo da utilida<strong>de</strong> do livro, que consi<strong>de</strong>ro mais um<br />
repositorio <strong>de</strong> materia prima a ser beneficiada...<br />
Si consegui: ou não chegar á finalida<strong>de</strong> do meu gran<strong>de</strong> anseio e não<br />
menor esforço i<strong>de</strong>alistico, não sei. Mas posso affirmar sinceramente que,<br />
para realizar esse trabalho, fiz quanto em mim cabia e me foi possivel,<br />
estimulado por aquelle valioso incentivo do conselho que me <strong>de</strong>ram os<br />
brilhantes espiritos <strong>de</strong>sses amigos prezadissimos, que são os Exmos.<br />
Snrs. Drs. Antonio Carlos e Gu<strong>de</strong>steu Pires, a quem <strong>de</strong>ixo aqui o penhor<br />
do meu sincero agra<strong>de</strong>cimento.<br />
Bello Horizonte, outubro <strong>de</strong> <strong>19</strong>28.<br />
ABILIO BARRETTO
224 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
ÊXITO OU FRACASSO DE UM<br />
POVO RESIDE NA EDUCAÇÃO<br />
Beatriz Teixeira <strong>de</strong> Salles*<br />
“Toda transformação passa pela educação”.<br />
A frase do acadêmico Aloísio Garcia dá boa<br />
mostra da presença e importância do ensino em<br />
sua vida. Na área da educação <strong>de</strong>staca-se seu<br />
trabalho com pessoas acima dos 50 anos, dandolhes<br />
oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> retomada dos estudos. Com<br />
experiência também na vida pública, teve breve<br />
passagem pela Assembléia Legislativa <strong>de</strong> Minas<br />
Gerais, tempo suficiente para lhe trazer <strong>de</strong>scrença<br />
com a ativida<strong>de</strong>. Nesta entrevista, é possível<br />
conhecer um pouco do perfil do ocupante da ca<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> número 36 da<br />
<strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>.<br />
O senhor tem forte ligação com a vida universitária, não?<br />
Presidi a UNA, hoje universida<strong>de</strong>, por nove anos e 10 meses, entre<br />
<strong>19</strong>93 e 2003.<br />
Hoje presido a Mantenedora da Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Ciências Gerenciais<br />
<strong>de</strong> Manhuaçu, criada nos mol<strong>de</strong>s da UNA. No ENADE, antigo<br />
PROVÃO, nossos alunos avaliados pelo MEC em inícios do ano tiraram<br />
* Jornalista.
226 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
conceito 4, quando o conceito máximo era 5 !!!. É a consagração <strong>de</strong> um<br />
esforço pela busca da qualida<strong>de</strong>, possível <strong>de</strong> se alcançar também em<br />
pequenas cida<strong>de</strong>s. Parelhamos com a PUC-Minas, a UNA e só fomos<br />
ultrapassados pela UFMG e pela Milton Campos.<br />
Os alunos <strong>de</strong> hoje estão interessados em uma formação<br />
humanística e cidadã, ou apenas buscam o diploma?<br />
No interior, os alunos têm menos opções <strong>de</strong> cursos e isso leva<br />
muitos a cursarem áreas que logo se mostram fora da sua vocação e<br />
aspirações. Infelizmente, gran<strong>de</strong> parte da juventu<strong>de</strong> está interessada<br />
apenas no diploma, colocando em segundo plano a formação humanística<br />
e da cidadania exercitada.<br />
Como o senhor vê a importância da “<strong>de</strong>scentralização” do<br />
ensino superior, com a criação <strong>de</strong> faculda<strong>de</strong>s em cida<strong>de</strong>s que não<br />
sejam gran<strong>de</strong>s centros urbanos?<br />
É extremamente importante a <strong>de</strong>scentralização do ensino e sua<br />
interiorização, pois famílias mais pobres não po<strong>de</strong>m mandar seus filhos<br />
para os gran<strong>de</strong>s centros para seguirem os estudos.<br />
O senhor ainda presi<strong>de</strong> o Instituto Liberal <strong>de</strong> Minas Gerais?<br />
Na sua opinião, qual a maior contribuição da instituição e quais os<br />
<strong>de</strong>safios e gratificações em presidi-lo?<br />
O Instituto Liberal entrou na era virtual, com seus a<strong>de</strong>ptos se<br />
comunicando pela internet, em um fórum <strong>de</strong> idéias e experiências. Não é<br />
mais uma organização formal, com diretoria e se<strong>de</strong>, a não ser no Rio <strong>de</strong><br />
Janeiro. Lá, é editada a revista Banco <strong>de</strong> Idéias, com a colaboração <strong>de</strong><br />
eméritos professores, ex-ministros, ex-dirigentes <strong>de</strong> Bancos Centrais etc.<br />
com foco na economia e sua relação com o Estado e a socieda<strong>de</strong>. Integro<br />
o Conselho Editorial <strong>de</strong>ssa revista, que circula a cada três meses.
Êxito ou fracasso <strong>de</strong> um povo resi<strong>de</strong> na educação ______________________________ Beatriz Teixeira <strong>de</strong> Salles 227<br />
Alguma outra experiência na área do ensino?<br />
Minha última experiência, já na terceira ida<strong>de</strong>, é dirigir em Belo<br />
Horizonte um pólo <strong>de</strong> ensino à distância, representando aqui a<br />
Universida<strong>de</strong> Castelo Branco, do Rio <strong>de</strong> Janeiro, on<strong>de</strong> pessoas maduras,<br />
muitas acima dos 50 ou 60 anos, voltam aos bancos <strong>de</strong> escola para<br />
recuperar uma oportunida<strong>de</strong> que não tiveram na juventu<strong>de</strong>. É um gran<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>safio, tratar com pessoas que há muitos anos estão distantes <strong>de</strong><br />
qualquer estudo, com famílias criadas, mas com sonhos a serem<br />
realizados! Em geral elas vêm <strong>de</strong> escolas <strong>de</strong> má qualida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>satualizadas<br />
e cabe ao pólo quebrar essa inércia e provocá-las ao estudo.<br />
A vida acadêmica é tradição <strong>de</strong> família? Como o senhor se<br />
dirigiu a esse caminho?<br />
De certa forma, um tio e uma tia, com quem vivi por 12 anos me<br />
influenciaram, pois ambos atuavam na área educacional em instituição<br />
centenária, o Instituto Gammon, <strong>de</strong> Lavras (Minas Gerais). E para eles,<br />
como para mim, toda transformação passa pela educação, e só ela<br />
justifica o êxito ou o atraso <strong>de</strong> nações e <strong>de</strong> pessoas.<br />
O senhor também tem larga experiência na vida pública. Como<br />
vê a atual política no Brasil?<br />
Minha passagem pela vida pública foi obra da confiança que dois<br />
ministros da República <strong>de</strong>positaram em minha pessoa, indicando-me para<br />
presidir duas instituições <strong>de</strong> muito peso na economia nacional da época, a<br />
COBAL, hoje CONAB, e o Instituto Brasileiro do Café. Tive ainda uma<br />
passagem pelo Legislativo Estadual, trazendo-me <strong>de</strong>scrença na classe<br />
política, numa experiência que não ousei repetir.<br />
Naquela época, conduzido pelo governador <strong>de</strong> Minas à Secretaria<br />
da Educação (e temporariamente respon<strong>de</strong>ndo pela Secretaria da<br />
Cultura), pu<strong>de</strong> ver <strong>de</strong> perto as dificulda<strong>de</strong>s do nosso sistema educacional,<br />
cujos resultados colocam o país em lugar constrangedor no concerto das
228 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
nações. Há falta <strong>de</strong> docentes, <strong>de</strong> estímulos à carreira, ausência <strong>de</strong><br />
educação continuada para eles e mesmo <strong>de</strong> materiais como bibliotecas,<br />
computadores etc. Mas foi um <strong>de</strong>safio vencido com trabalho e<br />
perseverança!<br />
Em quais textos o senhor tem trabalhado recentemente?<br />
Tenho escrito para a nossa revista da AML em torno <strong>de</strong> vultos da<br />
história brasileira, como D. Pedro II, D.João VI e o Barão <strong>de</strong> Mauá, cujo<br />
resumo biográfico <strong>de</strong>ve ser publicado em breve.<br />
Na sua opinião, qual a importância da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong><br />
<strong>Letras</strong>, às vésperas <strong>de</strong> completar seu centenário?<br />
O centenário do nosso “Senado Mineiro” é oportunida<strong>de</strong> única para<br />
divulgarmos a Casa, as obras <strong>de</strong> seus membros e enaltecer seus patronos<br />
e fundadores. Será uma gran<strong>de</strong> programação <strong>de</strong> âmbito nacional.<br />
Qual o papel <strong>de</strong>sta revista da AML?<br />
Consi<strong>de</strong>ro a revista da nossa AML muito importante, pelo caráter<br />
eclético, heterogêneo, on<strong>de</strong> prosa, poesia, ensaios e biografia estão postos<br />
à leitura do nosso público.<br />
Quais as suas preferências literárias e o que o senhor está lendo<br />
atualmente?<br />
Minhas atuais leituras são Vida e Obra <strong>de</strong> Paulo Freire, da Ana<br />
Inês, e Uma História do Brasil, do brasilianista Skidmore. Entre minhas<br />
preferências estão, dois autores estrangeiros, os russos Leão Tolstói e<br />
Dostoiévski, e Victor Hugo e Honoré <strong>de</strong> Balzac, da escola francesa.<br />
Clássicos como Guerra e Paz, <strong>de</strong> Tolstói, e Os Miseráveis, <strong>de</strong> Hugo,<br />
além <strong>de</strong> obras <strong>de</strong> Balzac, se mesclam, nas minhas preferências, com romances<br />
<strong>de</strong> suspense e mistério <strong>de</strong> Morris West e Agatha Christie, entre outros.
AQUELE TEATRO...<br />
Pedro Paulo Cava*<br />
“Operário do canto me apresento, sem marca ou cicatrizes...”<br />
Com estes versos do poeta Geir Campos, Paulo Autran abria sua<br />
participação em “Liberda<strong>de</strong>, Liberda<strong>de</strong>”, espetáculo criado por Flávio<br />
Rangel e Millôr Fernan<strong>de</strong>s lá pelos idos dos anos 60 e que inicia<br />
<strong>de</strong>finitivamente o embate entre a arte e o po<strong>de</strong>r instalado no país por<br />
força <strong>de</strong> um golpe.<br />
Como este, vários outros no mesmo tom e com a mesma indignação,<br />
colocavam a palavra brasileira, o tema Brasil, no olho do furacão do<br />
fazer teatral daqueles conturbados e não menos criativos anos <strong>de</strong><br />
chumbo. Era o país em cena fazendo do palco sua mais veemente e<br />
inflamada tribuna contra o arbítrio, contra a falta <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>, contra a<br />
censura que insidiosamente apertava a jugular da criação artística para<br />
que ela não pu<strong>de</strong>sse se expressar.<br />
“...limpas as mãos, minha alma limpa, a face <strong>de</strong>scoberta e, aberto<br />
o peito, expresso documento, a palavra conforme o pensamento...”<br />
continuava o poema que havia se transformado em um canto <strong>de</strong> guerra<br />
dos atores brasileiros. Mais que uma canção do poeta, era agora a voz<br />
garrotada dos atores que o repetiam pelos palcos <strong>de</strong> todo o Brasil e que as<br />
platéias aplaudiam em cena aberta todas as noites em que se abria o pano<br />
nas centenas <strong>de</strong> casas <strong>de</strong> espetáculo.<br />
Que teatro era aquele que ousava <strong>de</strong>safiar tribunos, generais,<br />
políticos, bedéis e até o guarda da esquina? De on<strong>de</strong> vinha todo aquele<br />
* Dramaturgo.
230 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
furor que trazia para a cena um protesto contun<strong>de</strong>nte contra a mediocrida<strong>de</strong>,<br />
contra o estado <strong>de</strong> exceção, contra os valores estabelecidos? Que<br />
dramaturgia era aquela que codificou o gesto parado no ar como uma<br />
arma implacável contra qualquer tipo <strong>de</strong> arbitrarieda<strong>de</strong>? Que língua era<br />
aquela que o público entendia nas linhas e nas entrelinhas, que sorvia<br />
avidamente na palavra franca ou na metáfora mais matreira e assim<br />
reconhecia ali o seu mundo?<br />
“...fui chamado a cantar e para tanto há um mar <strong>de</strong> som no búzio<br />
do meu canto...”, era a palavra <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m do ator brasileiro, compromisso<br />
assumido consigo mesmo e com o <strong>de</strong>terminismo histórico <strong>de</strong> seu papel<br />
social.<br />
Que forma era aquela que fazia do espetáculo um ato político e não<br />
apenas estético? On<strong>de</strong> havia ido parar o bem-comportado teatro que só<br />
pertencia às classes mais abastadas e “cultas” da socieda<strong>de</strong>? De que<br />
escon<strong>de</strong>rijo havia saído aquela multidão <strong>de</strong> espectadores que lotavam as<br />
salas para ouvir as palavras <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m habilmente faladas pelos atores?<br />
Para que limbos haviam sido jogados os dramas açucarados e comédias<br />
burguesas que tanto fascinavam as elites? Afinal que fenômeno era<br />
aquele teatro que expunha as vísceras <strong>de</strong> um Brasil sub<strong>de</strong>senvolvido<br />
econômica, política e culturalmente?<br />
“...Trabalho à noite e sem revezamentos...”, repetiam atores<br />
profissionais e amadores, certos <strong>de</strong> que estavam escrevendo um capítulo<br />
importante da nossa história. E conclamavam: “...se há mais alguém que<br />
cante, cantaremos juntos...” E é claro que o público fazia coro, entoava<br />
a melodia que vinha dos palcos e já não havia mais limites entre palco e<br />
platéia. Os interlocutores da cena já não eram apenas os atores, mas<br />
também o espectador que se sentia dono do espetáculo e centro da ação<br />
dramática. O indivíduo dava lugar ao coletivo e se operava o milagre do<br />
teatro que é a instalação <strong>de</strong> um circuito emocional entre quem faz e quem<br />
assiste ao ato teatral.<br />
O teatro é um ritual <strong>de</strong> magia, uma convenção estabelecida ao<br />
longo dos tempos on<strong>de</strong> o espectador se prepara, sai <strong>de</strong> casa, assume seu<br />
lugar na platéia para se ver em cena como protagonista <strong>de</strong> sua própria<br />
história. E ali é capaz <strong>de</strong> mergulhar num turbilhão <strong>de</strong> sensações que o
Aquele teatro... ________________________________________________________________ Pedro Paulo Cava 231<br />
fazem pensar, rir, chorar, repensar e, vendo-se, ver também o homem<br />
como centro do mundo, mesmo que a vida que o cerca no dia-a-dia seja<br />
uma vida severina, como <strong>de</strong>finia João Cabral em seu mais brilhante<br />
texto, musicado por Chico Buarque e apresentado em quase todos os<br />
palcos brasileiros como sendo o retrato <strong>de</strong> um Brasil que pulava das<br />
estatísticas para o centro da cena.<br />
Para além da <strong>de</strong>finição do que é o teatro, está o ofício da paixão <strong>de</strong><br />
quem o faz. E mais além ainda está o prazer do fazedor em falar em<br />
língua plural ao maior número <strong>de</strong> cúmplices na platéia e inquietá-los, não<br />
com a pequenez da perda <strong>de</strong> um amor, mas com a gran<strong>de</strong>za da tomada <strong>de</strong><br />
consciência <strong>de</strong> que são eles, os espectadores, os donos <strong>de</strong> seu próprio<br />
<strong>de</strong>stino coletivo e os únicos que po<strong>de</strong>m transformar o que está<br />
<strong>de</strong>terminado em uma nova realida<strong>de</strong>.<br />
Este certamente era o diferencial daquele teatro dos anos difíceis,<br />
mas também o <strong>de</strong>safio a ser vencido, o obstáculo a ser transposto para<br />
que a função social do teatro <strong>de</strong>ixasse <strong>de</strong> ser apenas um conceito em um<br />
manual <strong>de</strong> estética.<br />
“...cantaremos juntos sem se tornar menos pura a voz que sobe<br />
uma oitava na mistura...” seguia o poema, e a ele se somavam as vozes<br />
dos estudantes, operários, professores, profissionais liberais, trabalhadores <strong>de</strong><br />
todas as frentes que iam beber no teatro um pouco <strong>de</strong> consciência, comer<br />
um naco <strong>de</strong> realida<strong>de</strong>, sentir o cheiro das novas possibilida<strong>de</strong>s e afinar os<br />
ouvidos para entoar um novo cantar em coro.<br />
Que teatro foi aquele que <strong>de</strong> tão instigante e revigorante foi tão<br />
perseguido, cruelmente mutilado, permanentemente vigiado e duramente<br />
combatido? Nada disso foi à toa. Sabiam os donos do po<strong>de</strong>r que se<br />
<strong>de</strong>ixassem a arte ser livre ela seria a ponta <strong>de</strong> lança <strong>de</strong> uma profunda<br />
mudança histórica neste país. E assim criaram mecanismos <strong>de</strong> cerceamento<br />
da palavra, <strong>de</strong> mutilação dos textos, <strong>de</strong> intrincadas burocracias e<br />
<strong>de</strong> perseguição sem trégua aos artistas-guerrilheiros <strong>de</strong> um tempo em que<br />
se acreditava no po<strong>de</strong>r transformador da arte, especialmente do teatro.<br />
De on<strong>de</strong> surgiram tantos autores com a escrita tão afiada, com o<br />
olhar pousado na realida<strong>de</strong>, com a poética na ponta da língua e com a<br />
pena tão voraz que as palavras lhes saiam como punhais, saltando do
232 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
papel para a vida efêmera do teatro? Que geração foi aquela <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s<br />
escritores teatrais, críticos que faziam das suas colunas em jornais uma<br />
trincheira na luta contra o arbítrio, diretores que se i<strong>de</strong>ntificavam pelo<br />
conteúdo mesmo que divergissem na estética? Que momento era esse<br />
num tempo daqueles?<br />
E veio 68... E com ele o AI-5 que suprimia toda e qualquer<br />
liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> expressão individual e manifestação coletiva e assumia o<br />
ônus <strong>de</strong> perpetuar nos po<strong>de</strong>res apenas um só pensamento ditado pelos<br />
donos das armas e que tratavam a arte como caso <strong>de</strong> polícia. E com eles<br />
recru<strong>de</strong>sceu a repressão e a noite caiu sobre os palcos brasileiros, o<br />
<strong>de</strong>sânimo abateu-se sobre os atores e gradualmente a palavra <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m do<br />
teatro político foi dando lugar à expressão corporal mais hermética, ao<br />
absurdo do teatro <strong>de</strong> absurdo, ao ininteligível gestual dos atores que<br />
foram per<strong>de</strong>ndo a paixão, o público, o objeto <strong>de</strong> sua luta.<br />
Mas houve quem ainda resistisse e se recusasse ao exílio em si<br />
mesmo e repetiam “...não canto on<strong>de</strong> não haja boca limpa e almas<br />
afeitas a escutar sem preconceitos...”, <strong>de</strong>safiavam os poucos corajosos<br />
que ainda militavam sobre a cena nos anos setenta. E do palco para as<br />
manifestações <strong>de</strong> rua, para as entida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>mocráticas, para os partidos ou<br />
agremiações <strong>de</strong> oposição era uma questão <strong>de</strong> cidadania. Apenas o tempo<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>svestir a personagem e assumir seu papel em outros cenários, bem<br />
menos charmosos que o ofício do teatro, mas nem por isso menos<br />
<strong>de</strong>sejados.<br />
E lá se foram uma, duas, três gerações <strong>de</strong> gente <strong>de</strong> teatro. Autores,<br />
atores, encenadores, cenógrafos, críticos, se exilando nas mesas dos bares<br />
on<strong>de</strong> o alto teor etílico lhes dava a sensação <strong>de</strong> que a realida<strong>de</strong> era algo<br />
tão distante que nem mais precisavam exercer o seu ofício, mas apenas<br />
falar sobre ele como que o estivesse praticando. Para alguns foi um hiato,<br />
para outros a mudança <strong>de</strong> rumo, o <strong>de</strong>svio <strong>de</strong> rota.<br />
“...para matar o tempo ou distrair criaturas já <strong>de</strong> si tão mal<br />
atentas, não canto...”, e ai subverteram o poema e o ofício do teatro<br />
passou a ser o diletantismo <strong>de</strong> alguns, o oportunismo dos aproveitadores,<br />
as gerações <strong>de</strong>sinformadas ou mal formadas que vieram na seqüência.<br />
Veio a anistia, a volta dos exilados, campanha das diretas, uma “abertura
Aquele teatro... ________________________________________________________________ Pedro Paulo Cava 233<br />
gradual” e por fim a constituinte e o fim da censura. Novos atores<br />
surgiram no cenário nacional e em outros palcos. Os políticos voltaram a<br />
ocupar seus lugares, os estudantes – o público mais fiel ao teatro –<br />
entraram céleres na onda do ter e esqueceram-se <strong>de</strong> ser, a classe média<br />
foi esvaziando as casas <strong>de</strong> espetáculos atraída por outras formas <strong>de</strong> lazer<br />
e entretenimento e vieram as novas mídias, novas músicas, novos tempos<br />
e estéticas, comportamentos e valores.<br />
A globalização é agora uma or<strong>de</strong>m a ser cumprida à risca e quem<br />
não se internacionalizar, não estiver em sintonia com as novas<br />
experiências estéticas do teatro está “out”. Com as fronteiras rompidas<br />
pela mídia internacional, o teatro brasileiro começou a comprar novas<br />
estéticas on<strong>de</strong> o umbigo <strong>de</strong> cada um passa a ter um papel mais importante<br />
que o i<strong>de</strong>al coletivo, on<strong>de</strong> a arte tem uma função política relevante na<br />
busca constante por justiça social.<br />
Quarenta anos <strong>de</strong>pois daquele teatro, ainda quero concluir o poema<br />
<strong>de</strong> Geir Campos e po<strong>de</strong>r dizer: “...canto apenas quando brilha nos olhos<br />
dos que me ouvem, a esperança...”.<br />
Neo-romântico me situo neste século 21 acreditando que nem tudo<br />
mudou para pior e que as utopias ainda terão uma chance <strong>de</strong> mostrar ao<br />
mundo que sua invenção não foi em vão, que a história é feita <strong>de</strong> ciclos<br />
que se renovam e ainda vai <strong>de</strong>volver ao teatro seu papel <strong>de</strong> vanguarda das<br />
mudanças que a humanida<strong>de</strong> reclama a cada volta do ponteiro.
234 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
SOBRE UM CONCERTO<br />
DA ORQUESTRA FILARMÔNICA<br />
DE MINAS GERAIS:<br />
SHAKESPEARE E A MÚSICA<br />
Paulo Sérgio Malheiros dos Santos*<br />
A Orquestra Filarmônica <strong>de</strong> Minas Gerais apresentou recentemente<br />
um belo concerto com obras, inspiradas em Shakespeare, <strong>de</strong> três<br />
compositores românticos – Men<strong>de</strong>lssohn**, Nicolai e Tchaikóvski.<br />
William Shakespeare (1564–1616) escreveu 38 peças <strong>de</strong> teatro e<br />
mais <strong>de</strong> 150 sonetos <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> lirismo. Sua importância ímpar na<br />
literatura universal <strong>de</strong>ve-se à sua permanência como o autor mais<br />
estudado e discutido nos três últimos séculos. A partir da segunda meta<strong>de</strong><br />
do século XVIII, o pré-romantismo alemão elegeu-o como o mo<strong>de</strong>lo por<br />
excelência do artista original. Até então, a obra do dramaturgo inglês<br />
sofria restrições por parte <strong>de</strong> uma crítica que se mantinha fiel à teoria dos<br />
gêneros artísticos da antigüida<strong>de</strong> greco-romana e aceitava, como mo<strong>de</strong>lo<br />
imutável, as práticas poéticas do Classicismo francês, cristalizadas na<br />
perfeição rigorosa do teatro <strong>de</strong> Racine.<br />
Para o Classicismo, o artista i<strong>de</strong>al <strong>de</strong>veria procurar a perfeição<br />
sujeitando sua criativida<strong>de</strong> ao rigor imposto pelas normas consagradas da<br />
tradição. Para os românticos, que valorizavam a originalida<strong>de</strong> da criação<br />
artística e reivindicavam o direito <strong>de</strong> inventar suas próprias formas para<br />
* Professor <strong>de</strong> História da Música da UEMG e doutor em Literatura pela PUC-Minas.<br />
** O patronímico do compositor tem a acentuação tônica na última sílaba – Men<strong>de</strong>lssôhn –<br />
embora existam similares proparoxítonos – Mên<strong>de</strong>lssohn (nota do revisor)
236 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
além <strong>de</strong> qualquer cânone estético, a obra <strong>de</strong> Shakespeare representou a<br />
transgressão genial. O dramaturgo inglês tornou-se o paradigma do gênio<br />
romântico, mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> sábia <strong>de</strong>sobediência e <strong>de</strong> libertação das normas do<br />
classicismo. Por outro lado, a par das consi<strong>de</strong>rações estéticas iniciais, é<br />
inegável que, antes ou <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> Shakespeare, nenhum escritor forneceu<br />
para a literatura uma série <strong>de</strong> personagens tão diferenciados.<br />
O i<strong>de</strong>al romântico do artista genial, dono <strong>de</strong> uma mensagem<br />
própria, respeitado por sua originalida<strong>de</strong>, consolidou-se nos meios<br />
literários com a recepção do teatro <strong>de</strong> Shakespeare e encontrou um<br />
similar, na Música, com a obra e a forte personalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Beethoven<br />
(1770–1827). Sintomaticamente, quando ainda residia em Bonn, sua<br />
cida<strong>de</strong> natal, o jovem compositor escreveu canções sobre versos <strong>de</strong><br />
Lessing, <strong>de</strong> Schiller e <strong>de</strong> Goethe, três dos principais teóricos e escritores<br />
do pré-romantismo alemão, <strong>de</strong>fensores e admiradores <strong>de</strong> Shakespeare.<br />
Qualquer que tenha sido o efeito da estética romântica sobre Beethoven,<br />
o músico tornou-se um leitor apaixonado do dramaturgo inglês, cuja obra<br />
conhecia pelas recentes traduções <strong>de</strong> Wieland e Schlegel, publicadas<br />
entre 1762 e 1766. Beethoven inspirou-se em Shakespeare em muitas<br />
ocasiões: a última cena <strong>de</strong> Romeu e Julieta, a cena do túmulo, motivou o<br />
movimento lento do Quarteto op. 18, nº 1; a leitura <strong>de</strong> A tempesta<strong>de</strong><br />
associou-se à Sonata para piano op. 31, n.º 2; a Abertura Coriolano op.<br />
62, embora escrita para uma peça medíocre <strong>de</strong> Collin, lembra, por sua<br />
dramaticida<strong>de</strong>, a peça homônima <strong>de</strong> Shakespeare. Finalmente, o último<br />
Quarteto, opus 135, começa com uma interrogação musical instigante,<br />
seguida dos mesmos sons em or<strong>de</strong>m inversa. O compositor escreveu em<br />
cima <strong>de</strong>sse início a eterna pergunta <strong>de</strong> Hamlet – <strong>de</strong>ve ser assim? – para<br />
respon<strong>de</strong>r a ela, simplesmente – assim <strong>de</strong>ve ser.<br />
Em 1826, quando Beethoven terminava seus últimos quartetos, o<br />
jovem compositor Félix Men<strong>de</strong>lssohn (1809–1847), então com <strong>de</strong>zessete<br />
anos, compôs sua primeira obra prima, a Abertura Sonho <strong>de</strong> uma Noite <strong>de</strong><br />
Verão. Neto do filósofo Moses Men<strong>de</strong>lssohn, importante figura do<br />
iluminismo alemão, Felix, filho <strong>de</strong> um rico e culto banqueiro, era amigo<br />
do velho Goethe e leitor assíduo <strong>de</strong> Shakespeare, autor cultuado em sua<br />
família. Recebeu educação sofisticada e musicalmente abrangente,
Sobre um concerto da Orquestra Filarmônica <strong>de</strong> Minas Gerais ___________ Paulo Sérgio Malheiros dos Santos 237<br />
obtendo sucesso completo como regente, pianista e compositor. Seus pais<br />
abraçaram o Protestantismo, em parte com o fim <strong>de</strong> assegurar aos filhos<br />
um acesso à vida cultural, em uma socieda<strong>de</strong> em que o anti-semitismo era<br />
gran<strong>de</strong>. Maestro audacioso, Men<strong>de</strong>lssohn reapresentou a Paixão segundo<br />
São Mateus, <strong>de</strong> Bach, um século após sua primeira audição; executava<br />
freqüentemente os Concertos para Piano <strong>de</strong> Mozart e Beethoven; revelou<br />
ao público a Gran<strong>de</strong> Sinfonia em Dó Maior <strong>de</strong> Schubert e divulgou a<br />
música renovadora <strong>de</strong> seus contemporâneos, com primeiras audições <strong>de</strong><br />
Schumann e Berlioz, entre outros compositores.<br />
Sua trajetória <strong>de</strong> compositor marcou-se pela precocida<strong>de</strong>: antes dos<br />
<strong>de</strong>zenove anos, Men<strong>de</strong>lssohn já compusera muitas <strong>de</strong> suas mais<br />
importantes obras, principalmente para a música <strong>de</strong> câmara e a célebre<br />
abertura do Sonho <strong>de</strong> uma Noite <strong>de</strong> Verão.<br />
A música do Sonho <strong>de</strong> uma Noite <strong>de</strong> Verão representa uma dupla<br />
façanha. Primeiro, porque Men<strong>de</strong>lssohn escreveu a bela Ouverture com a<br />
ida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>zessete anos; segundo, porque ele conseguiu recriar o espírito<br />
<strong>de</strong>ssa peça quando, com o dobro daquela ida<strong>de</strong>, foi convidado por<br />
Fre<strong>de</strong>rico Guilherme IV, rei da Prússia, a complementar a música<br />
inci<strong>de</strong>ntal para a peça <strong>de</strong> Shakespeare. A partitura completa <strong>de</strong>ssa versão<br />
<strong>de</strong> 1842 inclui dois sopranos, um coro feminino e treze números além da<br />
Abertura. Entretanto, atualmente, a peça tornou-se popular na forma <strong>de</strong><br />
uma suíte para orquestra, em seis números:<br />
A Ouverture inicia-se com uns acor<strong>de</strong>s estáticos dos instrumentos<br />
<strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira servindo <strong>de</strong> introdução a um fluxo <strong>de</strong> encantadores temas,<br />
que captam perfeitamente o espírito feérico da comédia. Shakespeare a<br />
escreveu, sob encomenda, para homenagear um casamento entre nobres.<br />
Em uma <strong>de</strong> suas maiores criações, o poeta consegue interligar, em uma<br />
re<strong>de</strong> <strong>de</strong> sonhos encantados, grupos <strong>de</strong> personagens pertencentes a<br />
mundos diversos – mitos <strong>de</strong> lendas clássicas (tirados <strong>de</strong> Plutarco e<br />
Ovídio); elfos e um quarteto infantil <strong>de</strong> fadas (Flor <strong>de</strong> Ervilha, Traça,<br />
Teia <strong>de</strong> Aranha e Semente <strong>de</strong> Mostarda), oriundos do folclore europeu;<br />
artesãos e artífices ingleses, contemporâneos do próprio escritor. A<br />
música <strong>de</strong> Men<strong>de</strong>lssohn também se diversifica. Há o motivo do Reino<br />
das Fadas; <strong>de</strong>pois, o tema solene e processional das fanfarras da corte <strong>de</strong>
238 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
Teseu; em terceiro lugar, a arrebatadora música dos amantes e a burlesca<br />
alegria da seção dos palhaços, o ru<strong>de</strong> divertimento oferecido por Bottom<br />
e seus amigos para a corte, com as imitações cômicas do zurrar <strong>de</strong><br />
Bottom, transformado em asno, por meio dos violinos e dos registros<br />
graves da tuba. No <strong>de</strong>senvolvimento, cheio <strong>de</strong> imaginação, todos esses<br />
elementos, emotivamente contrastantes, fun<strong>de</strong>m-se organicamente. A<br />
recapitulação conduz à repetição dos acor<strong>de</strong>s mágicos da Abertura.<br />
O Scherzo <strong>de</strong>ve executar-se, na representação da peça, após o<br />
primeiro ato, como introdução para as cenas da floresta durante a noite <strong>de</strong><br />
São João. Em constante efervescência, o movimento traz o espírito do<br />
personagem Puck, trapalhão e bom camarada, que, com seu erro ao usar o<br />
sumo mágico das flores, confun<strong>de</strong> os sentimentos dos enamorados,<br />
trocando o objeto <strong>de</strong> seus amores. Musicalmente, esse scherzo apresenta<br />
uma variante endiabrada e mais ou menos artificiosa do tema dos<br />
palhaços da Ouverture. O clima <strong>de</strong> magia concretiza-se na transparência<br />
orquestral e na leveza do gorjeio da flauta em staccato.<br />
O Intermezzo correspon<strong>de</strong> ao fim do segundo ato, quando os pares<br />
<strong>de</strong> namorados (Lisandro e Hérmia, Helena e Demétrio) sucessivamente<br />
procuram-se e se esquivam, com um allegro appassionato traduzindolhes<br />
as idas e vindas, os encontros e <strong>de</strong>sencontros. O movimento termina<br />
com a evocação dos artesãos chefiados por Bottom, tentando, em vão e<br />
<strong>de</strong> modo grotesco, representar a tragédia <strong>de</strong> Píramo e Tisbe.<br />
No Nocturno, Men<strong>de</strong>lssohn homenageia a Noite, tema tão caro aos<br />
românticos, com a orquestração reduzida a ma<strong>de</strong>iras, cordas e duas<br />
trompas. O suave canto <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>ssas trompas conduz a música da noite<br />
e dos amantes, quando os personagens adormecem sob a vigia <strong>de</strong> Puck.<br />
A Marcha Nupcial, uma das mais populares <strong>de</strong> todas as obras<br />
escritas nesse gênero, é uma esplêndida apoteose do Tema da Corte<br />
apresentado na Ouverture, agora adornado por brilhantes fanfarras. A<br />
orquestra é reforçada com uma terceira trombeta, dois trombones e pelos<br />
pratos. E não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser cômico saber que essa música – feita para<br />
acompanhar o ridículo cortejo nupcial do tecelão Bottom, com suas<br />
orelhas <strong>de</strong> burro, e <strong>de</strong> Titânia – tornou-se mundialmente popular nas<br />
cerimônias <strong>de</strong> casamento.
Sobre um concerto da Orquestra Filarmônica <strong>de</strong> Minas Gerais ___________ Paulo Sérgio Malheiros dos Santos 239<br />
No Finale, os acor<strong>de</strong>s mágicos do início da obra ressoam e a<br />
música esmaece suavemente, parecendo dizer “boa noite” aos ouvintes,<br />
embevecidos pela narrativa <strong>de</strong> um conto <strong>de</strong> fadas.<br />
A primeira execução integral da obra – que compreen<strong>de</strong> 14<br />
números – <strong>de</strong>u-se em Potsdam, a 14 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 1843. No entanto, a<br />
primeira execução em concerto seria feita em Londres, a 27 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong><br />
1844, sob a regência do próprio compositor.<br />
A natureza do talento precoce <strong>de</strong> Men<strong>de</strong>lssohn sedimentou-se com<br />
sua inusitada formação musical, viabilizada por um privilegiado<br />
ambiente familiar e por viagens <strong>de</strong> estudos. Aluno <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s mestres, o<br />
jovem pianista soube escolher seus mo<strong>de</strong>los musicais, principalmente o<br />
Beethoven da última fase, cuja influência percebe-se em seus vários<br />
Quartetos <strong>de</strong> cordas e o para o Octeto, escrito aos <strong>de</strong>zesseis anos.<br />
Sobretudo, Men<strong>de</strong>lssohn conseguiu evitar que essa escolha ambiciosa<br />
conduzisse a um previsível <strong>de</strong>sastre. Longe <strong>de</strong> uma mera imitação, essas<br />
obras surpreen<strong>de</strong>m pela originalida<strong>de</strong>. Quanto mais se percebem as<br />
influências, maior a qualida<strong>de</strong> do resultado.<br />
Por outro lado, o apego ao melhor cânone da música oci<strong>de</strong>ntal fez o<br />
compositor menos ousado que o regente. Men<strong>de</strong>lssohn, mesmo em suas<br />
composições mais originais e a <strong>de</strong>speito <strong>de</strong> um agradável colorido<br />
romântico, manteve-se ortodoxamente apegado a esse passado, ainda<br />
recente. Talvez a circunstância <strong>de</strong> estar sempre em gran<strong>de</strong> evidência<br />
tenha inibido a experimentação como prática habitual <strong>de</strong> seu processo<br />
criativo.<br />
Entretanto, a clareza das formas, a elegância da escrita, a suavida<strong>de</strong><br />
das melodias e a engenhosida<strong>de</strong> <strong>de</strong> composição <strong>de</strong>ssas muitas obrasprimas<br />
afastam-no da mediocrida<strong>de</strong> dos “men<strong>de</strong>lssohnianos”, que, no<br />
final do século XIX, transformaram o Conservatório <strong>de</strong> Leipzig, fundado<br />
pelo compositor, em uma fortaleza do aca<strong>de</strong>mismo.<br />
Contemporâneo e admirador <strong>de</strong> Men<strong>de</strong>lssohn, o alemão Otto<br />
Nicolai (1810–1849) nasceu em Königsberg e teve vida breve, mas<br />
intensa. Iniciou os estudos <strong>de</strong> piano com seu pai. Após ter fugido <strong>de</strong> casa,<br />
aos <strong>de</strong>zesseis anos, foi para Berlim, on<strong>de</strong> compôs seus primeiros Lie<strong>de</strong>r e<br />
canções para pequenos grupos vocais. Aos vinte e três anos, morando em
240 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
Roma, tornou-se gran<strong>de</strong> estudioso da obra <strong>de</strong> Palestrina e ren<strong>de</strong>u-se<br />
<strong>de</strong>finitivamente à dupla influência <strong>de</strong> Bellini e Rossini. Do primeiro,<br />
herdou um estilo melódico gracioso e fluente; do segundo, a vitalida<strong>de</strong> e<br />
a verve cômica.<br />
O amor <strong>de</strong> Otto Nicolai pela música italiana distanciou-o, em parte,<br />
da gran<strong>de</strong> corrente do nacionalismo romântico que, na ópera alemã,<br />
acarretou a valorização da língua nacional e o entusiasmo pelo folclore,<br />
pelas lendas e mitos populares. Os compositores alemães rejeitam, então,<br />
os libretos italianos e, <strong>de</strong>sta transformação artística, Weber e Wagner<br />
tornaram-se os principais protagonistas. Otto Nicolai, <strong>de</strong> volta a Viena,<br />
em 1841, quando suce<strong>de</strong>u a Kreutzer como mestre-capela da corte, fez<br />
uma revisão <strong>de</strong> suas óperas compostas na Itália, traduzindo-as para o<br />
alemão. Mas continuou rossiniano, mesmo quando tentou germanizar o<br />
estilo da opera buffa italiana em As alegres comadres <strong>de</strong> Windsor.<br />
O libreto alemão <strong>de</strong> Hermann Salomon adapta a peça homônima <strong>de</strong><br />
Shakespeare, escrita em 1596. O personagem <strong>de</strong> Falstaff, uma das<br />
maiores criações do dramaturgo, aqui reaparece, <strong>de</strong>sta vez ridicularizado<br />
por suas pretensões <strong>de</strong> irresistível sedutor. A nova comédia fora escrita<br />
em apenas quinze dias, entre a composição das duas partes <strong>de</strong> Henrique<br />
IV, drama histórico on<strong>de</strong> o gran<strong>de</strong> e gordo personagem rouba as atenções.<br />
Shakespeare escreveu-a a pedido da Rainha Elizabeth, que queria rever<br />
Falstaff em uma peça on<strong>de</strong> o herói-vilão estivesse apaixonado. Há um<br />
consenso crítico em diferenciar dois Falstaffs: o personagem genial<br />
criado por Shakespeare em Henrique IV e o personagem apenas cômico<br />
que reaparece em As alegres comadres <strong>de</strong> Windsor. No âmbito musical,<br />
não se po<strong>de</strong> falar <strong>de</strong> Falstaff sem mencionar a ópera <strong>de</strong> Verdi, também<br />
baseada nessa comédia <strong>de</strong> Shakespeare. Mas, enquanto a obra <strong>de</strong> Nicolai<br />
prioriza a comicida<strong>de</strong> do enredo, o primeiro Falstaff, o do Henrique IV,<br />
reaparece na ópera <strong>de</strong> Verdi, com toda sua irreverência e inquietante<br />
amoralida<strong>de</strong>. Curiosamente, as carreiras <strong>de</strong> Nicolai e Verdi se cruzaram<br />
em duas outras circunstâncias. Em 1841, após ter produzido óperas com<br />
êxito – Il templario (1840), baseado em Ivanhoé <strong>de</strong> Walter Scott e<br />
Odoardo e Gildippe (1841) – o compositor alemão estreou Il proscritto,<br />
cujo libreto fora recusado pelo mestre italiano. Por sua vez, no ano
Sobre um concerto da Orquestra Filarmônica <strong>de</strong> Minas Gerais ___________ Paulo Sérgio Malheiros dos Santos 241<br />
seguinte, Nicolai recusou a oferta do Nabuccodonosor, <strong>de</strong> Solera, que<br />
haveria <strong>de</strong> se tornar o primeiro sucesso realmente <strong>de</strong>finitivo <strong>de</strong> Verdi.<br />
As alegres comadres <strong>de</strong> Windsor, uma das mais leves e <strong>de</strong>spretensiosas<br />
comédias <strong>de</strong> Shakespeare, é a única em que ele retrata, com<br />
cuidado e atenção, a burguesia provinciana. Talvez por isso, seu enredo<br />
teve um apelo tão gran<strong>de</strong> à época do Bie<strong>de</strong>rmeier. Musicalmente, as<br />
qualida<strong>de</strong>s da última ópera <strong>de</strong> Nicolai colocam-na muito acima das<br />
produções contemporâneas <strong>de</strong> Lortzing (18<strong>01</strong>–1851) e do afrancesado<br />
Flotow (1812–1883), heróis musicais <strong>de</strong> um romantismo caricato.<br />
Gran<strong>de</strong> animador cultural, Otto Nicolau reuniu os músicos da<br />
Orquestra do Real Teatro <strong>de</strong> Ópera para divulgar a música sinfônica,<br />
<strong>de</strong>dicando-se principalmente à obra <strong>de</strong> Beethoven e à execução <strong>de</strong> suas<br />
nove sinfonias. No concerto do dia 28 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 1842, regeu a Sétima<br />
Sinfonia <strong>de</strong> Beethoven, e essa data oficializou-se como a da fundação da<br />
Orquestra Filarmônica <strong>de</strong> Viena que Nicolai dirigiu por mais cinco anos.<br />
Em 1887, sob a regência <strong>de</strong> Hans Richter, a Filarmônica <strong>de</strong> Viena<br />
instituiu um concerto anual em memória <strong>de</strong> seu fundador. Des<strong>de</strong> então, o<br />
concerto comemorativo acontece, todos os anos, no dia 11 <strong>de</strong> maio.<br />
Otto Nicolai faleceu em março <strong>de</strong> 1849, dois meses após a estréia<br />
<strong>de</strong> sua ópera mais famosa. Entre outras composições importantes,<br />
publicou uma Missa, um Concerto para piano e um Quarteto <strong>de</strong> cordas.<br />
Em manuscrito, <strong>de</strong>ixou uma Sinfonia, um Réquiem e um Te Deum.<br />
Ao lado <strong>de</strong> Falstaff, Hamlet é o mais discutido e estudado dos<br />
personagens shakespearianos. O trágico <strong>de</strong>stino do Príncipe da<br />
Dinamarca confun<strong>de</strong>-se com sua missão <strong>de</strong> vingar a morte do pai.<br />
Entretanto, o assassinato paterno, narrado no início da peça por um<br />
fantasma, permanece duvidoso, motivando a hesitação do protagonista.<br />
Para confirmar a veracida<strong>de</strong> do fato, Hamlet (ou Shakespeare) recorre,<br />
então, ao artifício <strong>de</strong> representar o crime, encomendando sua encenação a<br />
uma companhia <strong>de</strong> atores. Sob o impacto da representação teatral, o rei<br />
usurpador é <strong>de</strong>smascarado e o crime confirma-se em todo seu horror.<br />
Como Hamlet, Piotr Ilitch Tchaikóvski (1848-1893) usou sua arte<br />
para <strong>de</strong>svendar sua verda<strong>de</strong>. A abordagem do compositor russo à<br />
composição musical, mesmo à chamada música absoluta, sempre foi
242 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
programática, transformando sua obra em um gesto autobiográfico.<br />
Porém, por mais <strong>de</strong>liberadamente ilustrativa que seja sua gênese, toda a<br />
obra <strong>de</strong> Tchaikóvski impõe-se por suas qualida<strong>de</strong>s especificamente<br />
musicais. O compositor soube, paradoxalmente, conciliar a concepção<br />
intimista <strong>de</strong> sua arte, seu <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> exprimir emoções e sentimentos<br />
pessoais, com o culto rigoroso da forma musical.<br />
O Hamlet <strong>de</strong> Tchaikóvski estreou em São Petersburgo, em 1888,<br />
sob a regência do compositor. O plano da obra segue, fielmente, o<br />
esquema proposto por seu irmão Mo<strong>de</strong>sto. O tema do personagem<br />
principal domina o início da peça e é perturbado por um assustador<br />
fortissimo, evocativo do espectro do rei assassinado. Um allegro vivace e<br />
um tema <strong>de</strong> melancólico lirismo retratam, respectivamente, Polônio e a<br />
loucura da <strong>de</strong>sditosa e doce Ofélia. Todo esse material é <strong>de</strong>senvolvido<br />
com variações, até que uma frase dos violoncelos conduz à retomada do<br />
tema <strong>de</strong> Hamlet, agora apresentado sobre o retumbar dos tímpanos,<br />
impiedosos arautos do <strong>de</strong>stino.<br />
De todas as peças escritas por Shakespeare, nenhuma é tão popular<br />
quanto Romeu e Julieta. Para escrevê-la, em versos <strong>de</strong> um lirismo<br />
inigualável, o gran<strong>de</strong> escritor seguiu fielmente o enredo <strong>de</strong> uma peça <strong>de</strong><br />
Artur Brooke, publicada em 1562. Mas enquanto a monótona e moralista<br />
versão <strong>de</strong>sse autor atribui a trágico <strong>de</strong>senlace da história ao fato <strong>de</strong> os<br />
jovens amantes <strong>de</strong>sobe<strong>de</strong>cerem à vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> seus pais, Shakespeare<br />
<strong>de</strong>sloca o foco narrativo para o ódio entre as famílias rivais, transformando<br />
os namorados em vítimas <strong>de</strong> um <strong>de</strong>stino cruel. Já nas palavras do<br />
Prólogo, com a afirmativa <strong>de</strong> que as estrelas fizeram nascer “um par <strong>de</strong><br />
amantes <strong>de</strong>sditosos”, o Destino torna-se protagonista da tragédia.<br />
Como duas vítimas do Destino, os dois apaixonados <strong>de</strong> Verona<br />
foram os personagens literários prediletos <strong>de</strong> Tchaikóvski, que sempre<br />
atribuiu ao fatum um papel prepon<strong>de</strong>rante em sua vida – um romance<br />
tempestuoso, marcado por problemas pessoais agravados por uma<br />
exacerbada sensibilida<strong>de</strong>. Freqüentemente, em seus escritos, o compositor<br />
referiu-se ao <strong>de</strong>stino como um motivo programático gerador <strong>de</strong> temas<br />
musicais – o primeiro poema sinfônico que escreveu, em 1891,<br />
<strong>de</strong>nominou-se Fatum, a inglória luta do homem contra sua sina.
Sobre um concerto da Orquestra Filarmônica <strong>de</strong> Minas Gerais ___________ Paulo Sérgio Malheiros dos Santos 243<br />
Romeu e Julieta (1886), uma das obras-primas do compositor, foi<br />
<strong>de</strong>dicada a Balákirev, crítico e orientador <strong>de</strong> colegas mais jovens. O lí<strong>de</strong>r<br />
do Grupo dos Cinco não apenas sugeriu o assunto, mas, também,<br />
acompanhou a criação da obra, rasgou rascunhos e foi responsável pelas<br />
várias revisões feitas por Tchaikóvski até a versão final. A Aberturafantasia<br />
não se propõe ilustrar ou seguir a narrativa <strong>de</strong> toda a peça <strong>de</strong><br />
Shakespeare. Tchaikóvski preferiu evocar a tragédia fundamentando sua<br />
composição em três temas que retratam, respectivamente, o fra<strong>de</strong><br />
Lourenço, como testemunha do <strong>de</strong>stino implacável; a guerra entre os<br />
Montéquios e os Capuletos; e o amor dos jovens amantes. O uso <strong>de</strong>sses<br />
três motivos permite uma ampliação da forma sonata; há uma prodigiosa<br />
riqueza <strong>de</strong> idéias e a orquestração é, ao mesmo tempo, brilhante e sutil.<br />
O motivo <strong>de</strong> Frei Lourenço, coral solene e religioso, serve <strong>de</strong><br />
prólogo e <strong>de</strong> epílogo para toda a obra, escrita em forma sonata.<br />
A discórdia entre as duas famílias é retratada pelo primeiro tema,<br />
ritmicamente animado, pontuado por golpes <strong>de</strong> pratos que evocam os<br />
choques das espadas inimigas.<br />
O belíssimo segundo tema confia aos violoncelos uma melodia<br />
doce e envolvente, cantada sobre os acor<strong>de</strong>s da harpa. Divi<strong>de</strong>-se em duas<br />
partes – o motivo do amor <strong>de</strong> Julieta e o motivo da morte <strong>de</strong> Romeu. Na<br />
reexposição, esses dois elementos aparecerão em or<strong>de</strong>m inversa.<br />
No final, o canto <strong>de</strong> amor transforma-se em dueto <strong>de</strong> a<strong>de</strong>us,<br />
<strong>de</strong>saparecendo sob acor<strong>de</strong>s fúnebres associados aos golpes que fecham os<br />
caixões. E a variação do tema coral <strong>de</strong> Frei Lourenço sugere, então, uma<br />
prece pelo triste <strong>de</strong>stino dos amantes.<br />
A abrangência da obra <strong>de</strong> Shakespeare tem sido comparada à da<br />
Bíblia, como uma espécie <strong>de</strong> Escritura secular. Nos contextos mais<br />
improváveis, nas bibliotecas, no teatro, no cinema ou nas salas <strong>de</strong><br />
concerto, <strong>de</strong>spertando e resistindo a várias leituras e releituras,<br />
Shakespeare nos ensinou a compreen<strong>de</strong>r a natureza humana.
244 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
Cinema _______________________________________________<br />
MACHADO DE ASSIS NO CINEMA<br />
Paulo Augusto Gomes*<br />
Hoje em dia, a literatura <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis é muito mais<br />
freqüentada pelo cinema brasileiro do que há 50 anos. A complexida<strong>de</strong><br />
do Bruxo do Cosme Velho provavelmente <strong>de</strong>sestimulou os cineastas <strong>de</strong><br />
gerações anteriores que, a julgar por suas obras, pareciam acreditar que as<br />
imagens se prestavam mais facilmente à <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong> aventuras ou ao<br />
registro <strong>de</strong> documentários. Coube a um mineiro – o gran<strong>de</strong> Humberto<br />
Mauro – a primazia da adaptação <strong>de</strong> textos machadianos, experiência<br />
isolada que, apenas a partir da década <strong>de</strong> 50 do século passado, tornou-se<br />
mais constante.<br />
Machado não é, como José <strong>de</strong> Alencar, um narrador <strong>de</strong> aventuras<br />
exóticas. Suas personagens, quase sempre ambíguas, só po<strong>de</strong>m ser<br />
<strong>de</strong>finidas cinematograficamente à base <strong>de</strong> olhares, silêncios e pequenos<br />
gestos – o que <strong>de</strong>sestimula cineastas menos talentosos. A não ser que o<br />
diretor parta <strong>de</strong> uma obra do escritor para chegar a resultados<br />
inicialmente não previstos – como é o caso <strong>de</strong> Nélson Pereira dos Santos<br />
em “Azyllo Muito Louco” (<strong>19</strong>69), baseado em O Alienista, no qual se<br />
sobressai uma postura anti-ditatorial, reflexo da época em que o filme foi<br />
feito – a recriação do universo machadiano coloca inúmeros problemas.<br />
* Cineasta, membro do Centro <strong>de</strong> Pesquisadores do Cinema Brasileiro.
246 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
O que levou Nélson a escolher O Alienista? Segundo o cineasta,<br />
“foi por causa <strong>de</strong> <strong>19</strong>68, do golpe <strong>de</strong>ntro do golpe”. A narrativa original<br />
<strong>de</strong>staca a figura <strong>de</strong> Simão Bacamarte, médico psiquiatra que chega a<br />
Itaguaí (no filme, o nome da cida<strong>de</strong> foi mudado para Serafim), funda o<br />
hospício da Casa Ver<strong>de</strong> e lá interna quase toda a população, com a<br />
anuência do vigário. Bacamarte tem apoio político e financeiro da<br />
Câmara dos Vereadores, mas a população se rebela e, comandada pelo<br />
barbeiro Porfírio, promove uma sublevação. Chegando ao po<strong>de</strong>r, esse<br />
novo lí<strong>de</strong>r propõe aliança com Bacamarte, que obviamente fica muito<br />
surpreendido: “Unamo-nos, e o povo saberá obe<strong>de</strong>cer”. É o golpe <strong>de</strong>ntro<br />
do golpe. Como Machado, Nélson discute os valores da ciência e da<br />
moral, mas principalmente a política que permite esse tipo <strong>de</strong> manobra.<br />
Ao final, o alienista se internará, solitário, na sua Casa Ver<strong>de</strong>. Ainda que<br />
por vias tortuosas (o filme, à época, não provocou aborrecimento com a<br />
censura), o cineasta fala do Brasil daqueles dias no calor da hora.<br />
Dentre as várias adaptações existentes <strong>de</strong> Machado ao cinema,<br />
pouquíssimas têm importância e valor. Além <strong>de</strong> Nélson e sua reprodução<br />
<strong>de</strong> época, na qual se <strong>de</strong>stacava a presença luminosa <strong>de</strong> Leila Diniz,<br />
merecem ser lembrados o “Brás Cubas” (<strong>19</strong>85) <strong>de</strong> Júlio Bressane, sempre<br />
um diretor instigante e original, embora mesmo ele não se tenha dado tão<br />
bem na empreitada quanto em outros <strong>de</strong> seus filmes. “Quincas Borba”<br />
(<strong>19</strong>87), <strong>de</strong> Roberto Santos, po<strong>de</strong> ser citado mais como homenagem ao<br />
diretor paulista, que conseguiu lavrar um tento com sua adaptação <strong>de</strong> “A<br />
Hora e Vez <strong>de</strong> Augusto Matraga”, mas que, nesse que ficou sendo seu<br />
último filme, acabou naufragando ao trazer a narrativa para os dias atuais.<br />
Para Roberto Santos, o filme acabou sendo traumático: lançado durante o<br />
Festival <strong>de</strong> Gramado, recebeu críticas extremamente <strong>de</strong>sfavoráveis.<br />
Esnobado e abatido, ele tomou o avião <strong>de</strong> volta a sua terra, sem um<br />
prêmio sequer. Ao <strong>de</strong>scer no aeroporto, sofreu um colapso, vindo a<br />
falecer.<br />
Ainda mais radical foi a experiência <strong>de</strong> Fernando Cony Campos,<br />
autor do excelente “Ladrões <strong>de</strong> Cinema”, ao criar o seu “Viagem ao Fim<br />
do Mundo” (<strong>19</strong>68) a partir <strong>de</strong> dois capítulos – “O Delírio” e “O Senão do<br />
Livro” – <strong>de</strong> Memórias Póstumas <strong>de</strong> Brás Cubas. Tomando esse ponto <strong>de</strong>
Machado <strong>de</strong> Assis no cinema __________________________________________________ Paulo Augusto Gomes 247<br />
partida, o cineasta cria uma trama mo<strong>de</strong>rna, na qual um homem,<br />
aguardando a chamada <strong>de</strong> seu vôo, compra na livraria do aeroporto o<br />
livro <strong>de</strong> Machado e, com base no que dizem os textos dos dois capítulos,<br />
entrega-se a uma série <strong>de</strong> divagações sobre a condição humana, que<br />
envolvem os <strong>de</strong>mais passageiros – dos quais fazem parte um time <strong>de</strong><br />
futebol, uma freira que duvida da existência <strong>de</strong> Deus e um homem <strong>de</strong><br />
meia-ida<strong>de</strong>. Como se observa, Machado, no caso, é um pretexto para<br />
mais um trabalho original <strong>de</strong> Fernando Campos e o resultado merece<br />
muitos elogios: o que nos é apresentado é uma leitura muito criativa da<br />
obra em que se baseou.<br />
Nélson Pereira dos Santos, que hoje integra a <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> Brasileira<br />
<strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, fundada por Machado, não poupou elogios ao mestre, em<br />
entrevista que conce<strong>de</strong>u ao jornal Correio da Manhã, em 6 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong><br />
<strong>19</strong>72: “Nenhum outro dos nossos romancistas tinha tanto domínio da<br />
ironia, nem uma penetração psicológica tão admirável e segura. Seus<br />
personagens não são simples sombras saídas da imaginação <strong>de</strong> um<br />
ficcionista. São porta-vozes do pensamento <strong>de</strong> uma época, que sofreu<br />
alteração apenas exteriormente, mas estruturalmente permanece a mesma.<br />
Daí a atualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> O Alienista, que é quase um conto <strong>de</strong> antecipação”.<br />
Estimulado pelo sucesso <strong>de</strong> “Azyllo Muito Louco”, seu primeiro filme<br />
em cores, ele voltaria a Machado duas outras vezes: primeiro, no<br />
documentário “O Rio <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis” (<strong>19</strong>65), no qual utiliza<br />
basicamente fotos e gravuras <strong>de</strong> época para recriar a cida<strong>de</strong> em que viveu<br />
o escritor, empregando seus textos narrados por Paulo Men<strong>de</strong>s Campos.<br />
E “Missa do Galo” (<strong>19</strong>82), no qual a atriz Isabel Ribeiro faz o papel<br />
principal, após ter participado também do elenco <strong>de</strong> “Azyllo Muito<br />
Louco”, é a transposição para o cinema do conto homônimo <strong>de</strong> Machado,<br />
<strong>de</strong>sta vez adaptado com total fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong>, que resultou em um curtametragem<br />
in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> 24 minutos. Por isso mesmo, teve escassa<br />
exibição. Este trabalho <strong>de</strong> Nélson está a esperar uma distribuição em<br />
DVD, quem sabe como complemento do longa-metragem do cineasta<br />
baseado no escritor.<br />
Embora não tão freqüentes, as relações <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis com o<br />
cinema feito em Minas Gerais existem e merecem especial <strong>de</strong>staque.
248 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
Têm início, como foi dito, com Humberto Mauro que, ao tempo em que<br />
trabalhou no Instituto Nacional do Cinema Educativo – INCE, sob as<br />
or<strong>de</strong>ns <strong>de</strong> Roquette-Pinto e a presidência <strong>de</strong> Getúlio Vargas, filmou por<br />
duas vezes o conto Um Apólogo. A primeira versão, co-dirigida pela<br />
escritora Lúcia Miguel Pereira, é <strong>de</strong> <strong>19</strong>36 e dura apenas 7 minutos. Foi<br />
retirada <strong>de</strong> circulação e, hoje, não está mais disponível. Conhece-se a<br />
segunda, feita para comemorar o centenário <strong>de</strong> nascimento <strong>de</strong> Machado,<br />
em <strong>19</strong>39, que apresenta um requinte raro em obras produzidas pelo<br />
INCE. Se a primeira versão foi filmada em 16 milímetros, essa segunda<br />
teve como suporte o filme profissional <strong>de</strong> 35 milímetros, o que <strong>de</strong>ixa<br />
claro que já havia, <strong>de</strong> início, a pretensão <strong>de</strong> exibi-lo nos cinemas <strong>de</strong> todo<br />
o país. Roquete-Pinto, então diretor do INCE, assumiu o papel <strong>de</strong> codiretor,<br />
embora seja <strong>de</strong> Lúcia Miguel Pereira o comentário lido em off.<br />
As duas versões têm o nome <strong>de</strong> “Um Apólogo – Machado <strong>de</strong><br />
Assis”. A segunda, bem maior, dura cerca <strong>de</strong> 15 minutos e, para ela, foi<br />
mandado construir um cenário especial: a caixa <strong>de</strong> costura em tamanho<br />
gigante, muito refinada, com acabamento em cetim, na qual estão os três<br />
personagens inanimados da história – agulha, linha e alfinete, também<br />
recriados em tamanho gigante (e acompanhados da costureira) – que logo<br />
irão se transformar nos atores Déa Selva (que antes havia trabalhado com<br />
Mauro no clássico “Ganga Bruta”), Nelma Costa, Grace Moema e Darcy<br />
Cazarré. O <strong>de</strong>licioso diálogo do conto machadiano é todo encenado nesse<br />
espaço restrito sem que, por um único momento, o espectador se entedie<br />
com o resultado.<br />
A narrativa <strong>de</strong> “Um Apólogo” é curta. Na elaboração do roteiro,<br />
uma introdução através <strong>de</strong> imagens, com <strong>de</strong>scrição minuciosa do<br />
ambiente em que se encontra a caixa <strong>de</strong> costura, é levada a efeito, para só<br />
então ter início o texto machadiano propriamente dito. Este é, sem<br />
dúvida, um dos melhores trabalhos <strong>de</strong> Mauro no INCE, que comemorou<br />
condignamente o centenário <strong>de</strong> nascimento <strong>de</strong> Machado. Também está a<br />
exigir um lançamento em DVD, ao lado <strong>de</strong> outros curtas-metragens do<br />
cineasta.<br />
Muito tempo se passou, até que acontecesse em <strong>19</strong>68 o 1º (e único)<br />
Festival do Cinema Brasileiro <strong>de</strong> Belo Horizonte. O cinema mineiro dava
Machado <strong>de</strong> Assis no cinema __________________________________________________ Paulo Augusto Gomes 249<br />
início, na época, a nova e significativa fase, da qual resultariam obras da<br />
importância <strong>de</strong> “O Homem do Corpo Fechado” <strong>de</strong> Schubert Magalhães,<br />
“Crioulo Doido” <strong>de</strong> Carlos Alberto Prates Correia e “Balada dos Infiéis”<br />
<strong>de</strong> Geraldo Santos Pereira. O cine Palladium foi o espaço no qual se<br />
reuniram as principais figuras do cinema brasileiro <strong>de</strong> então: só não<br />
estava presente Glauber Rocha. Na seleção dos filmes <strong>de</strong> longametragem<br />
que concorreriam aos prêmios, foi excluído “Capitu” (<strong>19</strong>68) <strong>de</strong><br />
Paulo César Saraceni, o que provocou a ira do cineasta baiano, seu amigo<br />
íntimo. O filme dividiu inclusive a crítica mineira, levando a uma<br />
polêmica que se arrastou pelos jornais.<br />
Essa adaptação <strong>de</strong> Dom Casmurro tem roteiro assinado – e<br />
publicado em <strong>19</strong>93, com a segunda edição lançada em 2008 – por<br />
ninguém menos que Paulo Emilio Salles Gomes e Lygia Fagun<strong>de</strong>s<br />
Telles. O diretor Saraceni, um dos nomes <strong>de</strong> frente do Cinema Novo, já<br />
havia levado à tela um argumento original <strong>de</strong> Lúcio Cardoso, “Porto das<br />
Caixas”. Tinha, portanto, familiarida<strong>de</strong> com adaptações literárias. O<br />
elenco apresentava atores <strong>de</strong> primeiríssimo time: Othon Bastos, saído do<br />
triunfo do personagem Corisco em “Deus e o Diabo na Terra do Sol” <strong>de</strong><br />
Glauber Rocha, era Bentinho; Raul Cortez, com sua competência<br />
habitual, fazia Escobar. O que provocou a discórdia na crítica mineira foi<br />
sobretudo a escolha da atriz Isabella, então mulher <strong>de</strong> Saraceni, como<br />
Capitu. Ela teve sua carreira <strong>de</strong> atriz limitada em função <strong>de</strong>sse filme e,<br />
hoje em dia, rarissimamente faz cinema.<br />
Não <strong>de</strong>ve ser mesmo fácil para qualquer atriz interpretar essa que<br />
certamente é a personagem mais enigmática da literatura brasileira.<br />
Capitu traiu ou não Bentinho? Ezequiel é ou não filho <strong>de</strong> Escobar? Essas<br />
são questões para as quais jamais encontraremos respostas – e, se um ator<br />
ou atriz não for suficientemente competente, comprometerá o resultado<br />
final. Isabella fez o melhor que podia, mas foi vencida pela força do texto<br />
<strong>de</strong> Machado – e pagou caro por isso. Saraceni também foi duramente<br />
criticado, ele que vinha do triunfo <strong>de</strong> “O Desafio”, filme mo<strong>de</strong>rno,<br />
reflexão em cima da hora sobre o Brasil da ditadura militar, feito com<br />
câmera na mão. “Capitu” segue outra direção, bem diferente: uma<br />
narrativa mais clássica, o retorno a uma época passada, amparada na
250 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
adaptação ao cinema daquela que é uma das obras maiores <strong>de</strong> um dos<br />
gran<strong>de</strong>s escritores brasileiros. Também Saraceni pagou por sua ousadia.<br />
Algum tempo <strong>de</strong>pois, o cineasta e crítico Ricardo Gomes Leite<br />
viajou ao Festival <strong>de</strong> Cannes, para se informar a respeito da melhor<br />
produção cinematográfica da época em todo o mundo. Lá também estava<br />
Glauber Rocha e, em certa noite, os dois se viram participando <strong>de</strong> uma<br />
mesa, da qual fazia parte Nicholas Ray, um dos maiores diretores <strong>de</strong><br />
cinema <strong>de</strong> todos os tempos, autor <strong>de</strong> obras-primas como “Johnny Guitar”,<br />
“No Silêncio da Noite” e “Sangue Sobre a Neve”. À época, esnobado<br />
pelos estúdios americanos, Ray vivia na Europa, on<strong>de</strong> pensava prosseguir<br />
sua carreira <strong>de</strong> cineasta. Desse encontro, Ricardo lembrava-se vivamente<br />
<strong>de</strong> dois <strong>de</strong>talhes: primeiro, a fúria com que Ray encarou e respon<strong>de</strong>u a<br />
alguns cineastas menores <strong>de</strong> países da Cortina <strong>de</strong> Ferro, que o criticaram<br />
alegando ser o cinema americano vendido ao gran<strong>de</strong> público, incapaz <strong>de</strong><br />
contestar as <strong>de</strong>ficiências do seu próprio país.<br />
Mas o segundo fato foi, sem dúvida, o mais impressionante. Ao<br />
saber que Ricardo e Glauber eram brasileiros, Ray manifestou-lhes seu<br />
apreço pelo Brasil, “por ser a terra do autor do meu livro <strong>de</strong> cabeceira”,<br />
“Epitaph for a Small Winner” – nada menos que Memórias Póstumas <strong>de</strong><br />
Brás Cubas. E disse-lhes como gostaria <strong>de</strong> levar o livro às telas. Glauber,<br />
falastrão como bom baiano que era, não se conteve e respon<strong>de</strong>u<br />
imediatamente, no seu inglês macarrônico: “Come to Brazil! We will<br />
produce the film for you”! Talvez espantado pela fluência e arrojo do<br />
brasileiro, Ray não levou o convite adiante. Pena: certamente teríamos<br />
tido na cinematografia brasileira uma obra da qual muito nos orgulharíamos.<br />
Essa admiração <strong>de</strong> Nicholas Ray também era compartilhada pela<br />
romancista, ensaísta e cineasta Susan Sontag que, em mais <strong>de</strong> uma<br />
oportunida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>clarou publicamente seu entusiasmo pela obra<br />
machadiana.<br />
Em tempos mais recentes, surgiu em Minas Gerais um exemplo<br />
isolado <strong>de</strong> adaptação cinematográfica <strong>de</strong> obra <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis. É o<br />
curta-metragem “A Causa Secreta” (<strong>19</strong>71), adaptação do conto<br />
homônimo feita pelo cineasta José Américo Ribeiro. Sendo a opção <strong>de</strong><br />
manter a época na qual originalmente se passa a ação, as filmagens
Machado <strong>de</strong> Assis no cinema __________________________________________________ Paulo Augusto Gomes 251<br />
tiveram lugar em Belo Horizonte e Ouro Preto, esta última fazendo as<br />
vezes do Rio <strong>de</strong> Janeiro. Milton Gontijo e Ricardo Teixeira <strong>de</strong> Salles<br />
recriam, respectivamente, Fortunato e Garcia, os dois amigos envolvidos<br />
na trama. E José Américo, se se mantém fiel ao texto original, lança mão<br />
<strong>de</strong> uma narrativa clássica para sua leitura <strong>de</strong> Machado. O resultado,<br />
sensível e discreto, é digno <strong>de</strong> elogios.<br />
Hoje em dia, quando a obra <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis caiu em domínio<br />
público, torna-se mais natural que adaptações cinematográficas surjam<br />
em maior número. De Iaiá Garcia a Noite <strong>de</strong> Almirante, <strong>de</strong> O Enfermeiro<br />
a A Cartomante, <strong>de</strong> Pai Contra Mãe a Um Esqueleto, <strong>de</strong> Confissões <strong>de</strong><br />
uma Viúva Moça a Um Homem Célebre, muitas são as obras <strong>de</strong> Machado<br />
<strong>de</strong> Assis já visitadas pelo cinema brasileiro. Algumas – como é o caso <strong>de</strong><br />
Memórias Póstumas <strong>de</strong> Brás Cubas, Dom Casmurro, A Cartomante e A<br />
Causa Secreta – em mais <strong>de</strong> uma ocasião. Isso, para não falar nas<br />
adaptações televisivas, quase sempre novelas, também em gran<strong>de</strong><br />
número. É <strong>de</strong> se prever que, cada vez mais, novas leituras dos textos do<br />
escritor surjam no panorama do cinema brasileiro.
252 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
Artes Plásticas ________________________________________<br />
JARBAS JUAREZ<br />
Carlos Perktold*<br />
Vista aos olhos <strong>de</strong> hoje, a cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Belo Horizonte no final da<br />
década <strong>de</strong> <strong>19</strong>60 parece mais ativa intelectualmente que neste princípio <strong>de</strong><br />
século XXI. Naqueles anos havia a freqüência <strong>de</strong> uma geração inteira no<br />
célebre edifício Maletta, no qual se discutia cinema, literatura, política,<br />
lamentava-se o último amigo preso pela ditadura e quase nunca o último<br />
gol do Pelé. No meio dos integrantes daquela geração havia jovens<br />
estudantes interessados nesses assuntos e distribuídos em bares –<br />
chamados “inferninhos” – no andar térreo e na sobre-loja do prédio. Cada<br />
um freqüentava o grupo <strong>de</strong> amigos que tinha os mesmos interesses e<br />
outros, interessados em tudo, freqüentavam todos os grupos. Havia em<br />
dois andares <strong>de</strong> um edifício belorizontino mais <strong>de</strong>mocracia que no resto<br />
do país. Nestes poucos anos do século XXI, os atuais jovens estão mais<br />
interessados na internet e nos shows <strong>de</strong> cantores famosos espalhados<br />
pelas diversas casas noturnas da cida<strong>de</strong>. As poucas discussões sobre<br />
literatura estão em algumas livrarias-café e os filmes são alugados na loja<br />
ali da esquina e quase ninguém os discute mais. Mudaram o país, os<br />
jovens, a tecnologia e o nosso tempo político é outro.<br />
* Psicanalista, da Associação Brasileira <strong>de</strong> Críticos <strong>de</strong> Arte (ABCA), da Associação<br />
Internacional <strong>de</strong> Críticos <strong>de</strong> Arte (AICA) e do Instituto Histórico e Geográfico <strong>de</strong> Minas<br />
Gerais.
254 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
Mas, <strong>de</strong> tudo <strong>de</strong> literatura que era discutido no Maletta, exibido nos<br />
cinemas da cida<strong>de</strong>, no célebre CEC ou em eventual peça teatral no Teatro<br />
Marília, o que brilhava mais intelectualmente aos olhos <strong>de</strong>ste articulista<br />
era o “Suplemento Literário”, encarte do Minas Gerais, jornal oficial do<br />
Estado. O Suplemento foi criado e era dirigido por Murilo Rubião, então,<br />
como hoje, contista emérito da mesma geração <strong>de</strong> Fernando Sabino,<br />
Paulo Men<strong>de</strong>s Campos e outros mineiros que <strong>de</strong>ixaram a Capital muito<br />
antes <strong>de</strong> <strong>19</strong>64. Murilo resistiu às tentações <strong>de</strong> se mudar para o Rio <strong>de</strong><br />
Janeiro e se consagrou <strong>de</strong> Minas para o Brasil como o primeiro contista<br />
do realismo fantástico na América do Sul. Sua lembrança <strong>de</strong> eminente<br />
escritor está representada na sua obra, que é objeto <strong>de</strong> estudo literário, <strong>de</strong><br />
dissertações <strong>de</strong> mestrado e teses <strong>de</strong> doutorado. O registro <strong>de</strong> sua presença<br />
amiga está na memória <strong>de</strong> cada um que participou da mesa que ele<br />
freqüentava do bar Lua Nova do mesmo edifício Maletta e na memória<br />
<strong>de</strong> quem participou do Suplemento como autor ou ilustrador.<br />
Para este articulista, leitor ansioso <strong>de</strong> cada número, cada texto do<br />
Suplemento era importante, claro, mas o que me encantava eram as<br />
ilustrações dos artistas, pintores e <strong>de</strong>senhistas, alguns já <strong>de</strong>saparecidos e<br />
outros em ativida<strong>de</strong>, ainda hoje, aos 70, 75 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>, a maioria<br />
constituída <strong>de</strong> ex-alunos <strong>de</strong> Guignard.<br />
Jarbas Juarez era um <strong>de</strong>les. Jarbas pertence a um grupo especial que<br />
conviveu pouco com o mestre que consagrou Ouro Preto na pintura.<br />
Perguntado qual a gran<strong>de</strong> lição <strong>de</strong> Guignard na sua vida, ele respon<strong>de</strong><br />
que foi uma viagem com Guignard e suas alunas da primeira geração a<br />
Sabará em que ele estava presente. No horário do almoço, Jarbas preferiu<br />
<strong>de</strong>senhar. Finda a refeição, Guignard pediu para ver os <strong>de</strong>senhos e,<br />
gostando <strong>de</strong>les, recomendou que os assinasse, mas antes lhe fez a<br />
recomendação que abriu os horizontes <strong>de</strong> pintor do jovem aluno e que<br />
modificou sua forma <strong>de</strong> <strong>de</strong>senhar, pintar e ver o mundo: “Ele me ensinou<br />
a ver a paisagem e abriu meus olhos sobre a composição, recomendando<br />
que eu colocasse no <strong>de</strong>senho não somente o que via na minha frente, mas<br />
que adicionasse outros elementos vistos ao redor da cena planejada: a<br />
gaiola com o pássaro pendurada no alpendre da casa vizinha, as<br />
vegetações do seu lado ou a figura humana passando naquele momento.
Jarbas Juarez ____________________________________________________________________ Carlos Perktold 255<br />
Foi aí que o restante do grupo se interessou pelos meus <strong>de</strong>senhos e fiquei<br />
um pouco mais conhecido”. Ele contava então <strong>19</strong> anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>.<br />
Anos <strong>de</strong>pois, o jovem Jarbas trabalhou com Roberto Drummond na<br />
revista Alterosa e jornais <strong>de</strong> Minas, quando conheceu um talentoso<br />
cartunista chamado Henrique <strong>de</strong> Souza Filho, sugerindo-lhe alterar seu<br />
nome artístico para Henfil, aceito para sempre. Jarbas seguiu trajetória <strong>de</strong><br />
diagramador durante pouco tempo, mas trabalhando com ninguém menos<br />
que Amilcar <strong>de</strong> Castro, e finalmente tentou a publicida<strong>de</strong>. Em certo<br />
momento, cansado <strong>de</strong>sta última ativida<strong>de</strong>, largou tudo e se mudou para<br />
Ouro Preto. Ali passou mais <strong>de</strong> um ano pintando o que ele chamou <strong>de</strong><br />
“fase surrealista barroca” <strong>de</strong> sua biografia, que originou trabalhos<br />
premiados, mas pouco lembrados pelos admiradores. Sua casa em Vila<br />
Rica era freqüentada por Edson Moreira, Murilo Rubião, Murilo Badaró<br />
e outros intelectuais que se interessavam por arte, literatura e boemia.<br />
Nos anos <strong>de</strong> chumbo criou alguns trabalhos polêmicos <strong>de</strong> protestos pela<br />
guerra no Vietnam, apreendidos pela ditadura. A guerra asiática lembrava<br />
a daqui e a associação política contida nas obras não passou <strong>de</strong>spercebida<br />
pelos censores <strong>de</strong> plantão. Os trabalhos foram apreendidos e nunca mais<br />
encontrados.<br />
Mas não é somente em pintura e <strong>de</strong>senho que nosso artista <strong>de</strong><br />
Nepomuceno (MG) <strong>de</strong>monstrava seu talento. Algumas <strong>de</strong> suas esculturas<br />
nos anos <strong>19</strong>60 mediam dois metros <strong>de</strong> altura, confeccionadas com ferro,<br />
outras com ferramentas que, bem colocadas, distribuídas e soldadas, se<br />
transformavam em bichos que lembram certas obras que hoje chamamos<br />
<strong>de</strong> arte contemporânea.<br />
Todo este preâmbulo é para informar ao leitor que o que ficou mais<br />
na lembrança <strong>de</strong>ste articulista daqueles anos do Suplemento foram os<br />
<strong>de</strong>senhos limpos, <strong>de</strong> traços <strong>de</strong>licados e linhas seguras e que, lendo o<br />
poema ou conto publicado e vendo a ilustração <strong>de</strong> Jarbas, não sabia o que<br />
mais me encantava e a qual dos dois eu aplaudiria mais. Hoje sei que<br />
meus aplausos eram e são para os seus <strong>de</strong>senhos, erroneamente chamados<br />
“ilustração”, porque, se esqueci os poemas e contos, ainda mantenho<br />
alguns dos seus <strong>de</strong>senhos mnemonicamente registrados. Eles ficaram<br />
retidos na memória pelo mesmo motivo por que nos encantam até hoje: a
256 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
difícil simplicida<strong>de</strong>, habitualmente enganosa ao olhar dos neófitos.<br />
Alguns poucos e econômicos traços formavam figuras humanas, que, em<br />
serenata, ilustravam um poema. Lendo o texto e vendo o <strong>de</strong>senho, era<br />
difícil saber on<strong>de</strong> havia mais poesia.<br />
Jarbas Juarez era e é o nosso Matisse pela beleza e simplicida<strong>de</strong> das<br />
oito ou nove linhas a construir a figura humana a trabalhar ou certos<br />
animais imaginários ou existentes em nossa fauna, cercados <strong>de</strong> vegetação<br />
mineira ou ainda em pinturas <strong>de</strong> tinta acrílica sobre tela com mulheres<br />
servindo café, costurando ou fazendo a goiabada tão mineira. Tudo isso<br />
como se fosse um escritor a criar personagens com seus sentimentos e<br />
conflitos, ansiosos para contar cada estória contida nos olhos misteriosos<br />
das mulheres. Seus <strong>de</strong>senhos são preocupantes, do ponto <strong>de</strong> vista<br />
didático, para quem se propõe a ser artista porque trazem a mesma<br />
preocupação que Matisse tinha quando expunha, preocupação <strong>de</strong>scrita<br />
em carta dirigida ao diretor do Museu da Filadélfia e publicada no<br />
número anterior <strong>de</strong>sta revista em um texto sobre Sergio Teles. Matisse<br />
achava que o jovem artista, vendo a simplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seus trabalhos,<br />
imaginasse que obtê-la era tarefa fácil <strong>de</strong> ser conquistada. Ele ressaltava a<br />
trabalhosa trajetória <strong>de</strong> anos <strong>de</strong> estudo, prática diária, acertos e erros e<br />
muito talento para chegar àquele lugar. A carta foi assinada por Matisse,<br />
mas po<strong>de</strong> ser endossada hoje por Jarbas Juarez e en<strong>de</strong>reçada a quem<br />
preten<strong>de</strong> seguir a carreira <strong>de</strong> pintor. “A um médico é possível formar-se<br />
em vinte e cinco anos, mas a um artista é preciso uma vida”, diz o<br />
Matisse do Brasil. Ninguém é simples quando jovem. Pelo contrário. O<br />
jovem imagina que muitos <strong>de</strong>talhes, habitualmente <strong>de</strong>snecessários,<br />
enriquecem e <strong>de</strong>vem fazer parte do seu trabalho. Custa-se muito a<br />
compreen<strong>de</strong>r que a simplicida<strong>de</strong> é fruto <strong>de</strong> árduo trabalho intelectual e é<br />
adquirida a longo prazo.<br />
Mas nosso herói <strong>de</strong> Nepomuceno não é apenas o escultor dos anos<br />
<strong>19</strong>60 ou o exímio <strong>de</strong>senhista <strong>de</strong> sempre. Sua pintura tem conteúdo<br />
humanístico raro neste mundo pós-mo<strong>de</strong>rno: são sempre mulheres<br />
trabalhando em ativida<strong>de</strong>s que são lembrança da sua adolescência<br />
naquela cida<strong>de</strong>: as célebres apanha<strong>de</strong>iras <strong>de</strong> café, principal produto<br />
agrícola <strong>de</strong> todo o sul <strong>de</strong> Minas e lembrança <strong>de</strong> fazenda da família; outra
Jarbas Juarez ____________________________________________________________________ Carlos Perktold 257<br />
mulher está a bordar e, no fundo <strong>de</strong> cada quadro, há sempre a citação do<br />
nosso barroco, seja pela presença <strong>de</strong> uma igreja <strong>de</strong> Vila Rica, seja pelo<br />
<strong>de</strong>senho <strong>de</strong> uma gra<strong>de</strong> da sua casa naquele ano vivido em Ouro Preto,<br />
seja a fazenda <strong>de</strong> café vista em perspectiva no distante horizonte. Em<br />
todas as composições há a certeza do cálculo do número <strong>de</strong> ouro na<br />
colocação <strong>de</strong> cada elemento, equilibrando o conjunto.<br />
Nas telas, toda a beleza das cores <strong>de</strong>stas mulheres, dos cafezais e<br />
das cida<strong>de</strong>s são confeccionadas pessoalmente pelo, artista que as prepara<br />
para durar “quinhentos anos”. Para isso, <strong>de</strong>pois do quadro pronto e seco,<br />
ele aplica sobre a obra receita aprendida em revistas européias:<br />
saponáceo <strong>de</strong> cera <strong>de</strong> abelha, dissolvido em terebintina, misturado com<br />
algumas gotinhas <strong>de</strong> timol, fungicida que não <strong>de</strong>ixará surgir um único<br />
fungo ao longo da existência do quadro. É a certeza da imortalida<strong>de</strong> da<br />
obra e, conseqüentemente, do artista que veio para ficar, apesar <strong>de</strong><br />
mo<strong>de</strong>sto no seu marketing pessoal.
258 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
TEATRO EM FOCO<br />
Sábato Magaldi*<br />
O teatro não po<strong>de</strong> ser visto como arte literária, não <strong>de</strong>ve almejar a<br />
popularida<strong>de</strong> do cinema e da televisão; não ganhará em prestar-se ao<br />
exibicionismo do encenador, e per<strong>de</strong>rá se se colocar a serviço <strong>de</strong> outros<br />
fins. Essas são algumas verda<strong>de</strong>s que parecem indiscutíveis, hoje em dia,<br />
e se dispõem a nortear as tendências do palco...<br />
A concorrência do cinema e da televisão levou os teóricos e<br />
realizadores do teatro a perguntar o que é especifico, em sua arte, e<br />
portanto merece ser preservado – se é que tem sentido lutar por essa<br />
preservação. Arte artesanaI, o teatro seria uma sobrevivência do passado,<br />
em meio às artes industriais do nosso tempo. Mas o consumo para as<br />
massas não substituiu um certo prazer, que é dado pela presença física do<br />
ator perante o público. E o requinte do <strong>de</strong>bate, que se consegue atingir<br />
nesse diálogo, está fora do alcance dos enlatados.<br />
Como é fundamental no teatro apenas o ator em face das testemunhas<br />
que formam o público, consi<strong>de</strong>ra-se retrógrada e nociva a separação<br />
palco-platéia, consagrada na velha arquitetura <strong>de</strong> tipo itaiiano. Grotóvski,<br />
ao procurar um lugar para as suas apresentações, julgava básico um<br />
espaço que não lembrasse os edifícios tradicionais. Se o teatro almeja<br />
uma comunicação especial, uma premissa é a quebra das antigas<br />
fronteiras. Mas, neste tempo <strong>de</strong> nostalgias, não é <strong>de</strong> estranhar, também,<br />
que se acabe por exigir a volta das separações rígidas, para que o<br />
espectador se sinta verda<strong>de</strong>iramente no teatro.<br />
* Crítico <strong>de</strong> Teatro. Da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> Brasileira <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>.
260 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
A relação ator-público tem sido encarada <strong>de</strong> formas diversas,<br />
segundo o gênero <strong>de</strong> reação que se preten<strong>de</strong> provocar. Falou-se muito em<br />
participação e comunhão, como se o i<strong>de</strong>al a atingir o espectador<br />
sussurrar, juntamente com o intérprete, as palavras a ele pronunciadas.<br />
Veio Brecht e advogou o estranhamento: o público <strong>de</strong>ve saber o tempo<br />
todo que está no teatro e, além da emoção, precisa fazer um raciocínio<br />
crítico. Já Peter Brook, em O Teatro e seu Espaço. (The Empty Space),<br />
afirma: “E assim que entendo um teatro necessário aquele no qual só existe<br />
uma diferença <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m prática – e não fundamental – entre ator e público”.<br />
Muitos realizadores, ao se lembrarem <strong>de</strong> que o teatro havia reunido<br />
verda<strong>de</strong>iras multidões, na Grécia e na Ida<strong>de</strong> Média, se embalaram com a<br />
esperança <strong>de</strong> que o teatro do século passado se tornasse <strong>de</strong> novo popular.<br />
Jean Vilar, que assumiu na década <strong>de</strong> <strong>19</strong>50 a ban<strong>de</strong>ira do Teatro Nacional<br />
Popular francês, via seus espetáculos como um serviço público. De um<br />
lado, foi Grotóvski o responsável pela reformutação <strong>de</strong>sse conceito, ao<br />
reconhecer que o público i<strong>de</strong>al, para não per<strong>de</strong>r nenhuma sutileza da arte<br />
interpretativa, não <strong>de</strong>ve ir além <strong>de</strong> cem pessoas. De outro, Roger Planchon,<br />
diretor do TNP, via como utópica a nova popularida<strong>de</strong> do teatro.<br />
Depois <strong>de</strong> numerosas tentativas, ao longo <strong>de</strong> mais <strong>de</strong> uma década,<br />
Planchon concluiu que o operário só vai ao teatro para construí-Io. Essa é<br />
uma realida<strong>de</strong>, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente das causas que a <strong>de</strong>terminam: o<br />
pequeno po<strong>de</strong>r aquisitivo, a distância das casas <strong>de</strong> espetáculo da<br />
residência ou do local <strong>de</strong> trabalho, o cansaço <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> uma longa<br />
jornada. O público do TNP era constituído somente <strong>de</strong> 6% <strong>de</strong> operários, a<br />
mesma proporção que freqüenta as universida<strong>de</strong>s. Tudo indica que o<br />
teatro não insistirá em <strong>de</strong>masia no i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> nova popularida<strong>de</strong>, embora<br />
ele pretenda falar a uma elite cultural e não financeira.<br />
Outra ilusão que parece ter sido perdida pelo teatro: a capacida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> influir politicamente sobre o público. Vários elencos <strong>de</strong> vanguarda<br />
norte-americanos, verificando que, na prática, não contribuíam muito<br />
para modificar a socieda<strong>de</strong>, <strong>de</strong>cidiram partir para a ação direta. Dessa<br />
forma, os atores se empenhavam numa luta aberta, que não se escondia<br />
sob a capa protetora do espetáculo. Eugênio Barba, discípulo <strong>de</strong><br />
Grotóvski, mentor do Odin Teatret, citado por René Giraudon no livro
Teatro em foco __________________________________________________________________ Sábato Magaldi 261<br />
Démence et mort du théatre (Demência e Morte do Teatro), chegou a<br />
afirmar: “Eu recuso a <strong>de</strong>magogia do teatro que <strong>de</strong>seja mudar o mundo. E<br />
pretensioso. Isso dá boa consciência e é tudo. Na Alemanha, havia trinta<br />
teatros <strong>de</strong> agit-prop e nenhum parou a maré montante dos S. A. Não se<br />
po<strong>de</strong> salvar a socieda<strong>de</strong> pelo teatro. Isso nunca se viu”. O reconhecimento<br />
dos limites do teatro não recomenda, por outro lado, a alienação, no sentido<br />
<strong>de</strong> que o ator <strong>de</strong>ve proporcionar apenas o prazer lúdico do público. O<br />
conhecimento que se busca no teatro exige uma reflexão sincera sobre a<br />
realida<strong>de</strong> integral do homem.<br />
Os conjuntos mais importantes, formados nas últimas décadas,<br />
acharam que era fundamental <strong>de</strong>scobrir uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> comum aos seus<br />
elementos. Não se tratava apenas do problema <strong>de</strong> uma semelhante<br />
formação artística e <strong>de</strong> um valor homogêneo dos vários atores. Um<br />
grupo, trabalhando permanentemente, reclamava uma visão o mais<br />
aproximada possível <strong>de</strong> seus membros, e uma proposta não muito<br />
contraditória <strong>de</strong> vida. Afinal, horas e horas lado a lado, num trabalho<br />
intelectual, não admitem filosofias inconciliáveis.<br />
O inter-relacionamento, que freqüentemente <strong>de</strong>terminou até a formação<br />
<strong>de</strong> comunida<strong>de</strong>s, levou certos grupos a partirem para as criações<br />
coletivas. Seria dificil conciliar as idéias forjadas em convívio diário com<br />
um texto elaborado por um autor, provindo <strong>de</strong> uma experiência diversa.<br />
Mais do que os porta-vozes <strong>de</strong> um dramaturgo distante, mesmo se rico do<br />
ponto <strong>de</strong> vista artístico, os atores sentem necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> transmitir a<br />
própria vivência. Se se compreen<strong>de</strong>, intelectualmente, o surgimento da<br />
criação coletiva, com freqüência ela <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> ter uma fatura literária <strong>de</strong><br />
alto nível. Ou um dramaturgo se integra na criação coletiva, a fim <strong>de</strong> darlhe<br />
a forma <strong>de</strong>sejável, ou ela não satisfaz como literatura e provoca<br />
inevitável cansaço...<br />
A <strong>de</strong>scoberta do fisico do ator como o veículo próprio para a<br />
comunicação provocou, também, os exageros da chamada expressão<br />
corporal. Se o teatro não é literatura, o homem completo não prescin<strong>de</strong> da<br />
palavra e o esvaziamento <strong>de</strong>la acabou por transformar a expressão<br />
corporal em ginástica. Nada mais penoso do que ver, em certos espetáculos,<br />
o exercício fisico substituindo o diálogo. Felizmente, essa fase
262 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
acabou e as novas experiências ten<strong>de</strong>ram a reintegrar a palavra no espetáculo.<br />
Já se ouviu alguns espectadores dizerem que se afastaram do teatro<br />
para não serem agredidos. Na verda<strong>de</strong>, o uso da agressão não foi além <strong>de</strong><br />
duas ou três montagens, que por sinal fizeram muito sucesso <strong>de</strong> público.<br />
O problema reclama um pouco <strong>de</strong> reflexão, já que os atores, cuja atuação<br />
se <strong>de</strong>stina à platéia, não <strong>de</strong>veriam afastar quem lhes assegurava a<br />
sobrevivência e cuspir no prato que comeram. A agressão surgiu num<br />
momento em que o teatro assumiu a própria marginalida<strong>de</strong> e sentia o<br />
<strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> gritá-la para todo o mundo. Era o instante <strong>de</strong> dizer ao público<br />
que ele era burguês e portanto seus valores não podiam ser acatados. A<br />
tendência a seguir, já que o elevado preço dos ingressos só é acessível a<br />
uma classe financeiramente privilegiada, foi a <strong>de</strong> não contestar com o<br />
mesmo ímpeto quem afinal <strong>de</strong> contas alimenta o teatro.<br />
Não se pense, porém, que essa “sabedoria” <strong>de</strong>ve servir <strong>de</strong> freio às<br />
ousadias intelectuais. Mais do que nunca, o teatro sabe que só po<strong>de</strong><br />
sobreviver se constituir um alimento que não é fornecido pelos veículos<br />
<strong>de</strong> comunicação <strong>de</strong> massa. Dói na consciência da gente <strong>de</strong> teatro uma<br />
verificação <strong>de</strong> Peter Brook, no artigo “Em Busca <strong>de</strong> uma Fome”: “Se<br />
fossem fechadas todas as casas <strong>de</strong> espetáculos, o público pouco se importaria”.<br />
Grotóvski, no livro Em Busca <strong>de</strong> um Teatro Pobre, afirma algo<br />
semelhante: “Se um dia todos os teatros fossem fechados, uma gran<strong>de</strong><br />
porcentagem do povo não tomaria conhecimento disto durante algumas<br />
semanas; mas se eliminassem os cinemas e a televisão, toda a população<br />
no mesmo dia entraria em gran<strong>de</strong> alvoroço”. Comentando essa<br />
observação, Anatol Rosenfeld escreveu no primeiro número da revista<br />
Debate e Crítica: “No Brasil, uma gran<strong>de</strong> porcentagem do povo não<br />
perceberia o fechamento dos teatros não só durante alguma: semanas,<br />
mas provavelmente nunca”.<br />
Entretanto, para que o teatro satisfizesse a fome, enveredou para<br />
uma sincerida<strong>de</strong> que os veículos populares não se po<strong>de</strong>m permitir a<br />
nu<strong>de</strong>z, menos que um exibicionismo, valeu como símbolo <strong>de</strong> un diálogo<br />
absolutamente franco: sem os disfarces impostos pela socie, da<strong>de</strong>, o<br />
homem tentava <strong>de</strong>svendar-se na plenitu<strong>de</strong>. O teatro sente cada vez mais<br />
que <strong>de</strong>ve buscar as essências.
Teatro em foco __________________________________________________________________ Sábato Magaldi 263<br />
Nesse quadro, ficaram estranhamente paradoxais as restriçõe:<br />
sempre mais severas impostas ao teatro, felizmente hoje <strong>de</strong>saparecidas Se<br />
ele só tem razão <strong>de</strong> ser em plena liberda<strong>de</strong>, a ausência <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong><br />
constrange e amesquinha. No processo <strong>de</strong> passivida<strong>de</strong> que se preten<strong>de</strong><br />
impor às artes, resultam mais gratificantes, por exemplo, os dramas<br />
sentimentais explorados nas telenovelas.<br />
Mas, se o teatro oci<strong>de</strong>ntal atravessou 25 séculos e ainda tem muito<br />
por fazer é que nunca per<strong>de</strong>u a intuição do seu papel histórico. Quando se<br />
agrava o cerco das interdições, ele apren<strong>de</strong> a falar por metáforas.<br />
Recolhe-se, para reunir forças e voltar com mais firmeza. Na verda<strong>de</strong> o<br />
teatro se tem mostrado o lugar em que permanece acesa a chama sagrada.<br />
Se é essencial para o teatro <strong>de</strong>senvolver-se num clima <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>,<br />
ele acaba sempre por tornar-se uma po<strong>de</strong>rosa arma na conquist; <strong>de</strong>ssa<br />
liberda<strong>de</strong>. Esclarecendo, discutindo aspectos fundamentais da nossa<br />
realida<strong>de</strong>, o teatro brasileiro evitará que prevaleçam as mistificações.
264 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
A MORTE DE ALPHONSUS DE<br />
GUIMARAENS FILHO E O NOSSO<br />
ANALFABETISMO LITERÁRIO<br />
João José <strong>de</strong> Melo Franco*<br />
Na vida dos que se aventuram a exercer ativida<strong>de</strong> voltada para o<br />
mundo das <strong>Letras</strong>, há um momento crítico em que o candidato a poeta,<br />
prosador, cronista, filósofo, ensaísta, enfim, qualquer um <strong>de</strong>ntro do<br />
amplo espectro <strong>de</strong> adjetivos que compõem o universo da literatura,<br />
precisa sabatinar-se e, antes, impor-se uma espécie <strong>de</strong> auto-aprendizado,<br />
que é conquistado simples e tão somente pela leitura <strong>de</strong> literatura. Esse<br />
auto-aprendizado po<strong>de</strong> ser tomado como uma espécie <strong>de</strong> segunda<br />
alfabetização que, para o candidato a “homem <strong>de</strong> letras”, po<strong>de</strong> ser<br />
chamada <strong>de</strong> “alfabetização literária” e esta, para os que <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>m assumir<br />
<strong>de</strong> fato a ativida<strong>de</strong> literária, nunca mais cessará. Será, para este, uma<br />
permanente alfabetização, mesmo <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> superada a condição <strong>de</strong><br />
candidato, pois em literatura há sempre o que apren<strong>de</strong>r. E foi no ápice<br />
<strong>de</strong>sse aprendizado, quando acreditava estar esgotando o meu, que travei<br />
contato com a literatura <strong>de</strong> um dos gran<strong>de</strong>s, a poesia <strong>de</strong> Alphonsus <strong>de</strong><br />
Guimaraens Filho.<br />
Conhecia bem a poesia do pai <strong>de</strong>ste poeta, o marianense Alphonsus<br />
<strong>de</strong> Guimaraens (1870-<strong>19</strong>21), certamente o maior nome entre os<br />
Simbolistas brasileiros, admirado pelos mo<strong>de</strong>rnistas Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>,<br />
* Poeta, publicitário, tradutor e editor da Ibis Libris Editora. Vive no Rio <strong>de</strong> Janeiro.
266 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
Oswald <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, Murilo Men<strong>de</strong>s, Carlos Drummond <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> e<br />
Manuel Ban<strong>de</strong>ira, que sempre lhe <strong>de</strong>votaram, com inteira justiça,<br />
elogiosas palavras. Mas, em <strong>19</strong>85, veio-me a notícia <strong>de</strong> que um outro<br />
Alphonsus, o Filho, vivíssimo; acabara <strong>de</strong> ser agraciado com o hoje tão<br />
celebrado Prêmio Jabuti <strong>de</strong> Poesia, concedido pela Câmara Brasileira do<br />
Livro, por seu livro Nó. Foi como uma pancada, uma reguada <strong>de</strong> mestre:<br />
a minha segunda alfabetização iria continuar! E para exemplificar meu<br />
espanto, cito apenas um entre os muitos e importantíssimos poemas <strong>de</strong>sse<br />
belo livro:<br />
O que contemplei <strong>de</strong> olhos cegos gravou-se para sempre. Inútil<br />
arrancar os olhos.<br />
Inútil atirá-los a um campo <strong>de</strong> on<strong>de</strong> retornam os mortos<br />
com o mesmo ar <strong>de</strong> espanto e insônia. O que toquei com as mãos<br />
já idas,<br />
frias, inertes mãos, agora se faz realida<strong>de</strong> casta e plena.<br />
Inútil atordoá-la. Inútil querer feri-la no seu cerne, à gran<strong>de</strong><br />
esquiva,<br />
se as próprias mãos dos mortos crescem no coto dos braços como<br />
inesperadas flores em ramos secos.<br />
Vou-me no ímpeto das águas. Mas <strong>de</strong> que águas? Flores se<br />
dissolvem,<br />
vidas se dissolvem, mortos se dissolvem. E inútil é arrancar os<br />
olhos.<br />
Inútil mor<strong>de</strong>r a polpa da estrela <strong>de</strong>smaiada numa encosta on<strong>de</strong><br />
Deus vacila e sonha.<br />
“Realida<strong>de</strong> casta e plena” <strong>de</strong> Alphonsus <strong>de</strong> Guimaraens Filho, in<br />
Nó (<strong>19</strong>79-<strong>19</strong>81), in Só a noite é que amanhece – Poemas escolhidos e<br />
versos esparsos. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Record, 2003.<br />
Uma “polpa da estrela <strong>de</strong>smaiada” – eis aí o que se amplificou à<br />
minha frente, uma poesia feita <strong>de</strong> metáforas, capazes <strong>de</strong> nos fazer<br />
repensar as possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> construção das metáforas. E voltei no<br />
tempo. Descobri, por exemplo, que Alphonsus Filho já fora agraciado
A morte <strong>de</strong> Alphonsus <strong>de</strong> Guimaraens Filho e o nosso analfabetismo literário _____ João José <strong>de</strong> Melo Franco 267<br />
com outros importantes prêmios, em <strong>19</strong>41, o Prêmio <strong>de</strong> Literatura da<br />
Fundação Graça Aranha e o Prêmio Olavo Bilac da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> Brasileira<br />
<strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, pelo livro Lume <strong>de</strong> estrelas. Descobri também, que Lume <strong>de</strong><br />
estrelas foi <strong>de</strong>cretado nome <strong>de</strong> rua, em <strong>19</strong>71, na cida<strong>de</strong> do Rio <strong>de</strong><br />
Janeiro, no bairro do Méier. Descobri, enfim, mais um poeta com quem<br />
apren<strong>de</strong>r. E não foi um aprendizado fácil. A poesia <strong>de</strong> Alphonsus Filho,<br />
embora alguns a entronizem na terceira geração dos Mo<strong>de</strong>rnistas, trafega<br />
numa amálgama gigantesca, e agrega tendências que vão <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o<br />
Simbolismo até os dias atuais e, por isso mesmo, tem indissolúvel marca<br />
pessoal, calcada sob cuidadoso labor e extremo rigor. Não tivesse tido o<br />
que ler e só houvesse lido a poesia <strong>de</strong> Alphonsus Filho, penso que ainda<br />
assim teria <strong>de</strong>sejado tornar-me poeta, pois certamente teria, na sua<br />
poesia, um mestre com quem apren<strong>de</strong>r. Para além <strong>de</strong> todos os epítetos,<br />
para além da doce graciosida<strong>de</strong> e gran<strong>de</strong>za com que tratou temas difíceis<br />
como Deus, a Morte e o Amor, a poesia <strong>de</strong> Alphonsus <strong>de</strong> Guimaraens<br />
Filho é uma aula <strong>de</strong> labor poético, é uma oficina <strong>de</strong> poesia feita sob a<br />
égi<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma única e generosa pena.<br />
Em 2005, mu<strong>de</strong>i-me para o Rio <strong>de</strong> Janeiro, mas infelizmente já não<br />
pu<strong>de</strong> conhecê-lo pessoalmente, pois o poeta já estava acometido <strong>de</strong> grave<br />
doença. Mas, em <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2007, a Ponte <strong>de</strong> Versos, sarau da poetisa<br />
Thereza Christina Rocque da Motta, realizou uma homenagem a<br />
Alphonsus <strong>de</strong> Guimaraens Filho e, pasmem, Alphonsus ainda estava<br />
vivo. Sim, estava, pois já não está mais. Morreu semanas atrás (em 28 <strong>de</strong><br />
agosto <strong>de</strong> 2008) e não encontramos, para nosso espanto e indignação,<br />
sequer uma nota nos jornais do Rio, cida<strong>de</strong> on<strong>de</strong> o poeta viveu a maior<br />
parte <strong>de</strong> sua vida. E agora, já não estranha mais o fato <strong>de</strong> que, na citada<br />
homenagem <strong>de</strong> 2007, a gran<strong>de</strong> maioria dos poetas presentes sequer<br />
soubesse que o poeta estivesse então vivo. Daí, que concluo: se o Brasil<br />
não po<strong>de</strong> mais ser chamado <strong>de</strong> um “país <strong>de</strong> analfabetos” (apesar do<br />
calamitoso estado da nossa Educação), po<strong>de</strong>, sim, ser chamado <strong>de</strong> um<br />
“país <strong>de</strong> analfabetos literários”, uma vez que esse analfabetismo é<br />
amplamente exercido exatamente pelos, assim cremos, supra-alfabetizados,<br />
os chamados homens <strong>de</strong> letras: jornalistas, escritores, poetas e todos os<br />
outros que adotam adjetivos literários.
268 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
A morte <strong>de</strong> um poeta, homem como os <strong>de</strong>mais, nada nos revela<br />
além do muro temporal, que um dia teremos todos <strong>de</strong> atravessar. Mas a<br />
morte <strong>de</strong> um poeta da gran<strong>de</strong>za <strong>de</strong> Alphonsus <strong>de</strong> Guimaraens Filho,<br />
diante do obstinado silêncio dos que trafegam, in<strong>de</strong>cisos, entre a ética e o<br />
celebrismo, revela-nos a enorme indigência a que está relegado o papel<br />
da literatura em nosso país, on<strong>de</strong> poucos, além <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis e<br />
Carlos Drummond <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> (e Paulo Coelho, é claro), conseguem<br />
atrair a atenção dos veículos <strong>de</strong> comunicação, ainda que o público em<br />
geral nada <strong>de</strong>ssas eminências tenha lido <strong>de</strong> fato. Aliás, resta-nos conviver<br />
com essa estranha sensação <strong>de</strong> alfabetismo dos homens <strong>de</strong> letras, que<br />
resumem Machado a “...ao vencedor, as batatas”, e Drummond a “No<br />
meio do caminho tinha uma pedra/ tinha uma pedra no meio do<br />
caminho...”. Resta-nos conviver também com esse malfazejo resumo <strong>de</strong><br />
nossos gran<strong>de</strong>s literatos e com a repetição sistemática e <strong>de</strong>sgastante <strong>de</strong><br />
seus versos e frases, que insistem em pôr, naqueles que as pronunciam,<br />
uma máscara <strong>de</strong> homens cultos. Alphonsus <strong>de</strong> Guimaraens Filho não teve<br />
sequer o privilégio <strong>de</strong>ssa papagaiada. E como sei que não haverá quorum<br />
na enorme vergonha a que, como homens <strong>de</strong> letras, estamos obrigados,<br />
envergonho-me por todos, e este texto serve <strong>de</strong> aferição. Pior que viver<br />
num país <strong>de</strong> analfabetos, e analfabetos literários, é resignar-se a viver em<br />
um país <strong>de</strong> pseudo-cegos, surdos e mudos, que aceitam pagar o enorme<br />
preço da cultura do dinheiro e do sucesso e, em seu nome, apagam, com<br />
o <strong>de</strong>scaso, os melhores entre nós. Se servir <strong>de</strong> consolo, não é <strong>de</strong> hoje que<br />
as coisas se dão assim em nossa cultura. Outros gran<strong>de</strong>s, como Jorge <strong>de</strong><br />
Lima e Murilo Men<strong>de</strong>s, também ganharam sua parcela <strong>de</strong> esquecimento e<br />
Hilda Hilst, quase nada lida em vida, mereceu, sim, alguns obituários,<br />
incluindo o mais concorrido <strong>de</strong> todos, o do Jornal Nacional, da Re<strong>de</strong><br />
Globo, mas isto, provavelmente, por Hilda, nos últimos anos <strong>de</strong> sua vida,<br />
ter-se celebrizado mais por seu pornográfico inconformismo, e por falar o<br />
que pensava do mundo literário, do que por sua literatura.<br />
Por outro lado, Alphonsus <strong>de</strong> Guimaraens Filho jamais foi dos que<br />
se esforçam para estar na mídia, sendo um solitário produtivo e<br />
constante. Baseado nas atuais relações do mercado cultural e literário,<br />
po<strong>de</strong>ríamos con<strong>de</strong>nar sua atitu<strong>de</strong> refratária à badalação e a estratégias <strong>de</strong>
A morte <strong>de</strong> Alphonsus <strong>de</strong> Guimaraens Filho e o nosso analfabetismo literário _____ João José <strong>de</strong> Melo Franco 269<br />
marketing, como também o fora seu pai, Alphonsus <strong>de</strong> Guimaraens.<br />
Morreu como viveu, na escrita da poesia que, uma vez realizada a tarefa,<br />
sabe-se entregue ao <strong>de</strong>sconhecido <strong>de</strong> todos. Missão cumprida para<br />
Alphonsus Filho. Mas como não encontrei a tal nota que, penso,<br />
precisaria ter sido dada (ainda que isso em nada mudasse nosso<br />
analfabetismo literário), publico aqui o obituário:<br />
ALPHONSUS DE GUIMARAENS FILHO<br />
Bom filho, marido, pai e avô.<br />
Gran<strong>de</strong> poeta entre os gran<strong>de</strong>s.<br />
3/6/<strong>19</strong>18 – 28/8/2008<br />
Os que chegaram até aqui agora o sabem, Alphonsus <strong>de</strong> Guimaraens<br />
Filho está morto. Mas nós sabemos que sua morte, como a <strong>de</strong> tantos antes<br />
<strong>de</strong>le, como a <strong>de</strong> muitos que ainda virão, está perdida para a maioria <strong>de</strong><br />
nós, analfabetos literários, que não choramos nem a morte do homem,<br />
nem a do poeta e, portanto, não teremos o trabalho <strong>de</strong> lembrá-lo ou <strong>de</strong><br />
esquecê-lo. Resta-me crer que o próprio Alphonsus <strong>de</strong> Guimaraens Filho<br />
o sabia com antecedência:<br />
...<br />
Não seja por isto, noite.<br />
Melhor é que <strong>de</strong>sças. Com toda a tua treva.<br />
E entre nós – embora ressabiados e feridos – até que po<strong>de</strong>rás ficar<br />
à vonta<strong>de</strong>.<br />
Pois <strong>de</strong> qualquer modo há em ti um frêmito vôo informulado,<br />
gran<strong>de</strong> ave <strong>de</strong> asas cegas...<br />
Somos teus, como sabes, todos te pertencemos, constrangidos<br />
embora.<br />
Mas não seja por isto.<br />
A casa é tua – como nestes domínios é hábito dizer aos amigos –<br />
e po<strong>de</strong>rás ficar à vonta<strong>de</strong>.
270 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
“À vonta<strong>de</strong>” <strong>de</strong> Alphonsus <strong>de</strong> Guimaraens Filho, in Transeunte<br />
(<strong>19</strong>63-<strong>19</strong>68), in Só a noite é que amanhece Poemas escolhidos e versos<br />
esparsos. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Record, 2003.
JOÃO DE MINAS EM<br />
BELO HORIZONTE<br />
João <strong>de</strong> Minas quem?<br />
Leandro Antonio <strong>de</strong> Almeida*<br />
Muitas pessoas nada conhecem do escritor que adotou Minas no<br />
pseudônimo. De fato, as informações sobre João <strong>de</strong> Minas são bastante<br />
escassas. Mas contribuições <strong>de</strong> vários pesquisadores permitem hoje traçar<br />
um rápido panorama da sua vida e <strong>de</strong> sua trajetória intelectual. Aqui,<br />
vamos nos centrar em alguns dados que encontramos sobre o período que<br />
este escritor mineiro viveu em Belo Horizonte, e que po<strong>de</strong>m suscitar<br />
pesquisas mais aprofundadas.<br />
João <strong>de</strong> Minas chamava-se na verda<strong>de</strong> Ariosto Palombo e nasceu<br />
em 1896. Vindo muito moço <strong>de</strong> Ouro Preto para Belo Horizonte, iniciou,<br />
na capital da segunda meta<strong>de</strong> dos anos 10, sua carreira jornalística, a qual<br />
estabeleceu na Uberaba da década <strong>de</strong> <strong>19</strong>20, sobretudo no Lavoura e<br />
Comércio, ao lado <strong>de</strong> Quintiliano Jardim. Tornou-se conhecido nos<br />
meios paulistas e cariocas a partir <strong>de</strong> <strong>19</strong>27, com sua colaboração no O<br />
Paiz e no Correio Paulistano, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> <strong>de</strong>rivou suas primeiras obras<br />
Jantando um <strong>de</strong>funto (<strong>19</strong>29), Farras com o <strong>de</strong>mônio (<strong>19</strong>30) e Sangue <strong>de</strong><br />
ilusões (<strong>19</strong>30). As duas primeiras são obras sertanistas e a última,<br />
composta quando já morava no Rio <strong>de</strong> Janeiro, foca sua campanha contra<br />
Antonio Carlos e Getúlio Vargas, quando o escritor fazia parte da<br />
* Mestre em História pela USP.
272 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
Concentração Conservadora que apoiava Júlio Prestes e Mello Viana<br />
para as eleições presi<strong>de</strong>nciais <strong>de</strong> <strong>19</strong>30.<br />
Sua posição perrepista levou-o a se exilar por conta da “Revolução<br />
<strong>de</strong> outubro”, interrompendo temporariamente o lançamento <strong>de</strong> obras.<br />
Retomou-as com Mulheres e monstros em <strong>19</strong>33, quando passou a viver<br />
em São Paulo, e <strong>de</strong>saguou vários livros nos dois anos seguintes: em <strong>19</strong>34<br />
saíram Horrores e mistérios nos sertões <strong>de</strong>sconhecidos, A mulher<br />
carioca aos 22 anos, Uma mulher... mulher!, A datilógrafa loura, Pelas<br />
terras perdidas; em <strong>19</strong>35 saíram A prostituta do céu e Fêmeas e santas.<br />
Pelas terras perdidas e Mulheres e monstros são reedições <strong>de</strong> seus<br />
primeiros livros sertanistas, e o inédito Horrores e mistérios nos sertões<br />
<strong>de</strong>sconhecidos parece um segundo episódio <strong>de</strong> Farras com o <strong>de</strong>mônio.<br />
Todos os outros são “romances sexuais”, que tratam das <strong>de</strong>sventuras<br />
amorosas <strong>de</strong> mulheres bonitas. Em <strong>19</strong>36 <strong>de</strong>spediu-se do meio literário<br />
com Nos misteriosos subterrâneos <strong>de</strong> São Paulo, um romance policial<br />
ambientado na capital paulista.<br />
Além do lançamento <strong>de</strong> livros, inúmeros artigos em jornais e<br />
revistas complementam sua profícua produção intelectual entre <strong>19</strong>27 e<br />
<strong>19</strong>37, que vão <strong>de</strong>s<strong>de</strong> resenhas, crônicas, artigos políticos, narrativas não<br />
publicadas em seus livros, memórias etc., todos esperando para serem<br />
estudados por aqueles que <strong>de</strong>sejam compreen<strong>de</strong>r uma parte da história <strong>de</strong><br />
Minas registrada na pena <strong>de</strong> João <strong>de</strong> Minas.<br />
De <strong>19</strong>35 até pelo menos <strong>19</strong>69, Ariosto <strong>de</strong>dicou-se à religião que<br />
fundou, a Igreja Brasileira Cristã Científica, e veio a falecer somente em<br />
<strong>19</strong>84.<br />
Fragmentos <strong>de</strong> memória<br />
Se a trajetória <strong>de</strong>sse escritor, no período <strong>de</strong> maior produtivida<strong>de</strong>, é<br />
difícil <strong>de</strong> traçar, que dizer <strong>de</strong> sua juventu<strong>de</strong>? As parcas informações<br />
existentes provêm <strong>de</strong> memórias do próprio autor espalhadas por artigos<br />
<strong>de</strong> jornal, indicando sua inserção nos meios intelectuais <strong>de</strong> Belo<br />
Horizonte. Encontramos uma pista em Oiliam José, quando este<br />
acadêmico registrou, nos anos 60, que Ariosto era “o mais antigo dos sete
João <strong>de</strong> Minas em Belo Horizonte _______________________________________ Leandro Antonio <strong>de</strong> Almeida 273<br />
[romancistas mineiros]. Viveu há anos e aqui, em Belo Horizonte, foi<br />
outrora figura conhecidíssima. Possuía e esbanjava talento. Era singular<br />
nos modos <strong>de</strong> vestir, falar e escrever.” (p. 63).<br />
É provável que tenha nascido em Ouro Preto (não se encontraram<br />
registros oficiais que atestam seu nascimento), on<strong>de</strong> seu pai trabalhava no<br />
ramo <strong>de</strong> mineração, e tenha estudado no Caraça. Seixas Sobrinho aponta<br />
que muito novo, em <strong>19</strong>07, Ariosto veio com a família para a capital<br />
mineira, realizando os estudos secundários no renomado Colégio<br />
Mineiro, tendo colaborado a partir <strong>de</strong> <strong>19</strong>13 em revistas acadêmicas como<br />
Vita e Vida <strong>de</strong> Minas. Em <strong>19</strong>15, quando tornou-se revisor <strong>de</strong> O Minas<br />
Gerais, tinha pretensões <strong>de</strong> estudar direito, projeto que não levou adiante<br />
em razão da morte <strong>de</strong> seu pai nesse mesmo ano. Mas “embora não se<br />
realizasse como acadêmico, nunca se afastou da roda <strong>de</strong>les, das redações<br />
dos jornais, das revistas ou da porta das livrarias” (Seixas Sobrinho), pois<br />
manteve-se no Diário Oficial até cerca <strong>de</strong> <strong>19</strong><strong>19</strong>, quando o <strong>de</strong>ixou para ser<br />
redator da revista Tank, sem esperar resultado <strong>de</strong> um concurso no qual<br />
competiu com Eduardo Frieiro, seu companheiro no jornal.<br />
Do relacionamento <strong>de</strong> Ariosto Palombo com as personalida<strong>de</strong>s<br />
mineiras da segunda meta<strong>de</strong> dos anos 10 existem algumas lembranças<br />
esparsamente registradas sobre as idas e vindas nas redações, um dos<br />
lugares on<strong>de</strong> se <strong>de</strong>cidia a vida política da capital mineira e do estado:<br />
Uma noite, pelas onze horas, eu mais Antenor Horta saímos<br />
do Minas Gerais, on<strong>de</strong> éramos revisores, e fomos ao Diário<br />
<strong>de</strong> Minas com a santa intenção <strong>de</strong> esfaquear algum amigo.<br />
Era só uma facadinha <strong>de</strong> <strong>de</strong>z. À porta, parado, sozinho, estava<br />
o Sr. Francisco Campos, hoje secretário do interior <strong>de</strong> Minas.<br />
(...) Eu e Antenor Horta mergulhamos pela redação. Lá <strong>de</strong>ntro<br />
havia um gran<strong>de</strong> jubilo político, com garrafas <strong>de</strong> cerveja<br />
abertas, um tinir especial <strong>de</strong> copos, flores, e pessoas<br />
precavidas que bebiam <strong>de</strong>pressa e sorriam <strong>de</strong>vagar, em<br />
êxtase. O Men<strong>de</strong>s [<strong>de</strong> Oliveira], ao fundo, ao lado <strong>de</strong><br />
Oswaldo Araújo, quase se <strong>de</strong>itava numa poltrona (...)<br />
Ocupado em beber e comer, mudo e <strong>de</strong> olho parado, eu só
274 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
mais tar<strong>de</strong> é que cogitei saber do que se tratava. O Ramo<br />
Arantes ou o Arduíno Bolivar é que me contou que aquela<br />
festa era porque o Sr. Delfim Moreira ia fazer o Men<strong>de</strong>s<br />
<strong>de</strong>putado. (...) Quando eu e Antenor Horta nos retiramos,<br />
meio bêbados, o Sr. Francisco Campos ainda estava no<br />
mesmo lugar, na porta da redação.<br />
Quando <strong>de</strong>ixava as redações dos jornais, acompanhava seus amigos<br />
aos bares. Parece que o principal ponto <strong>de</strong> encontro era o Bar do Ponto,<br />
um centro da boemia belorizontina da época, cujo “dono do bar, o Filipe<br />
Longo, discutia filologia, direito internacional e hebraico, com as<br />
moscas”, na opinião <strong>de</strong> Ariosto. Numa <strong>de</strong> suas crônicas <strong>de</strong> <strong>19</strong>28, conta<br />
suas lembranças <strong>de</strong>sse bar entre <strong>19</strong>15 e <strong>19</strong>18:<br />
gostava muito <strong>de</strong> encontrar Fernando Barbosa em Belo<br />
Horizonte. Ele me convidava logo para tomarmos uma<br />
cerveja, no Bar do Ponto (que certa boemia chamava <strong>de</strong> Bar<br />
dos Prontos), do Felipe Longo. Não tardava a vir a segunda<br />
garrafa, e a terceira, e a quarta... Era <strong>de</strong> noite. Davam 10<br />
horas profundas na matriz <strong>de</strong> S. José. A hoje fascinante<br />
avenida Afonso Pena, nesse tempo, era mo<strong>de</strong>sta, e se<br />
alargava mais benévola, romântica quase, com seus perfumes<br />
e renques <strong>de</strong> magnólias. Tudo estava polvilhado <strong>de</strong> estrelas,<br />
mulheres nuas e sonhos pálidos. Rareavam os vultos práticos<br />
e duros. Surgiam os perfis magros e ermos dos boêmios, dos<br />
noctâmbulos, dos poetas, dos novos.<br />
Nesses encontros o jovem escritor acompanhava várias personalida<strong>de</strong>s<br />
da época:<br />
Era Gastão Itabirano, que acabava <strong>de</strong> lançar o Pólen e que<br />
morreu louco, ferido na honra <strong>de</strong> seu lar <strong>de</strong> marido confiante.<br />
Era Antenor Horta, latinista. Men<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Oliveira, o poeta dos<br />
Prélios Pagãos, amigo do peito <strong>de</strong> Bilac, tinha sempre uma
João <strong>de</strong> Minas em Belo Horizonte _______________________________________ Leandro Antonio <strong>de</strong> Almeida 275<br />
pose, um charuto e um fraque. Era diretor do Diário <strong>de</strong><br />
Minas, com Noraldino Lima, Oswaldo Araújo, Arduíno<br />
Bolivar. Morreu na gripe. Abílio Barreto, Ramos Arantes,<br />
Gentil Romanelli, Sandoval Campos, Ramos César, Eugênio<br />
Detalon<strong>de</strong>, Columbano Duarte, Oscar Lima, Costa Júnior<br />
(Manoca)... Quanta gente <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>iro talento!...<br />
Talvez nessas rodas é que o jovem jornalista tenha conhecido<br />
aquele que lhe inspirou o pseudônimo. Seixas Sobrinho nos informa que<br />
“em <strong>19</strong>16 tornara-se amigo <strong>de</strong> João do Rio, que o visitou, <strong>de</strong>pois, em<br />
Ouro Preto e o recebeu, muitas vezes, em sua residência, no Rio <strong>de</strong><br />
Janeiro”. E Caio Porfírio nos contou como teria ocorrido a apropriação<br />
do pseudônimo, pelo qual Ariosto Palombo ficaria conhecido a partir <strong>de</strong><br />
<strong>19</strong><strong>19</strong>:<br />
me contou o Bernardo Ellis que ele passou a usar o nome<br />
João <strong>de</strong> Minas porque ele admirava muito o João do Rio. O<br />
João do Rio e o João do Norte, que era o Gustavo Barroso.<br />
Certo? Então ele [Ariosto] dizia: ‘Ó, tem o João do Norte que<br />
é do Ceará, tem o João do Rio carioca, que dizem que até era<br />
veado. Porque que é que eu não posso ser o João <strong>de</strong> Minas?<br />
Eu sou o João <strong>de</strong> Minas!’.<br />
Um escrito juvenil<br />
Em Belo Horizonte, “adolescente e moço, robustíssimo, fanático<br />
da literatura”, os autores prediletos do jovem Ariosto eram, em suas<br />
palavras, “Flaubert, Dumas Filho (A Dama das Camélias), o Eça,<br />
Bilac, Verlaine, Bau<strong>de</strong>laire, Gonzaga Duque (Mocida<strong>de</strong> Morta),<br />
Dante (por causa das saias pálidas e muito compridas, em cauda <strong>de</strong><br />
via-láctea, <strong>de</strong> Beatriz), Graça Aranha”; <strong>de</strong>ste último, lembrava-se do<br />
“apaixonado amor que tinha a Canaã”, obra que leu muitas vezes, e<br />
que provavelmente contribuiu para moldar os temas <strong>de</strong> suas obras<br />
sertanejas.
276 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
Mas sua adoração na época, segundo ainda se lembrava em 30 no<br />
livro Sangue <strong>de</strong> Ilusões, era Olavo Bilac. Disse que teve pelo famoso<br />
poeta “uma verda<strong>de</strong>ira loucura pessoal”, quando o vira recitar sonetos<br />
como “Yara” no Clube Belo Horizonte. Bilac fora em fins <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong><br />
<strong>19</strong>16 à capital mineira para fazer campanha pelo escotismo, e o jovem<br />
Ariosto <strong>de</strong>ve ter ido, “como insubordinado repórter do Minas Gerais”,<br />
cobrir a passagem do poeta pela cida<strong>de</strong>.<br />
Existe nas páginas do Minas Gerais uma série <strong>de</strong> reportagens<br />
tratando justamente do assunto, publicadas entre 25 e 29 <strong>de</strong> agosto pela<br />
“reportagem”. Elas não estão assinadas, mas talvez possam ser atribuídas<br />
a Ariosto Palombo, tendo em vista a coincidência das informações dos<br />
artigos com as fornecidas posteriormente em Sangue <strong>de</strong> Ilusões, e os<br />
dados biográficos que atestam sua ativida<strong>de</strong> nesse período.<br />
O estilo dos artigos guarda certa flui<strong>de</strong>z na forma escrita, como<br />
po<strong>de</strong>mos ver no início da série <strong>de</strong> artigos:<br />
Como a imprensa anunciara, chegou ontem a esta capital o<br />
ilustre poeta Olavo Bilac, que aqui vem fazer uma conferencia<br />
e discursos, no sentido da campanha que iniciou em<br />
prol da nossa educação cívica e em torno a outros problemas<br />
do nacionalismo brasileiro. Po<strong>de</strong>-se dizer que a visita que nos<br />
faz o gran<strong>de</strong> cronista e orador brasileiro é um dos gran<strong>de</strong>s<br />
acontecimentos sociais da cida<strong>de</strong>, que, pelos elementos mais<br />
representativos da sua cultura, ontem prestou ao nosso<br />
eminente hóspe<strong>de</strong>, à sua chegada, veementes e espontâneas<br />
manifestações <strong>de</strong> entusiástica admiração e carinhoso apreço.<br />
(O Minas Gerais, 25/8/<strong>19</strong>16, p. 6).<br />
Mas, se comparados aos textos jornalísticos escritos <strong>de</strong>z anos<br />
<strong>de</strong>pois (citados acima), ainda guardam uma forma sóbria e contida, sem<br />
liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> uso das metáforas inusitadas que marcaram o estilo do<br />
futuro João <strong>de</strong> Minas, como em “tudo estava polvilhado <strong>de</strong> estrelas,<br />
mulheres nuas e sonhos pálidos”.
João <strong>de</strong> Minas em Belo Horizonte _______________________________________ Leandro Antonio <strong>de</strong> Almeida 277<br />
Não temos, no momento, como saber se isso era <strong>de</strong>vido a uma<br />
orientação da imprensa oficial da época, que po<strong>de</strong>ria estabelecer padrões<br />
sóbrios <strong>de</strong> reportagens para suas páginas, ou ao estado do <strong>de</strong>senvolvimento<br />
estilístico <strong>de</strong> Ariosto. São hipóteses a serem trabalhadas com<br />
estudos mais aprofundados.<br />
Por conta disso, pedimos encarecidamente aos escritores e<br />
estudiosos <strong>de</strong> literatura mineiros que pesquisem ou divulguem<br />
informações sobre João <strong>de</strong> Minas ou o jovem Ariosto Palombo. Com<br />
isso, a história da literatura e da intelectualida<strong>de</strong> mineira ficará um pouco<br />
mais completa ao se estabelecer o perfil <strong>de</strong> um escritor “singular<br />
nos modos <strong>de</strong> vestir, falar e escrever”, que fascinou e causou repulsa<br />
naqueles que com ele conviveram ao longo das primeiras décadas do<br />
século XX.<br />
Bibliografia<br />
Almeida, Leandro Antonio <strong>de</strong>. Dos sertões <strong>de</strong>sconhecidos às cida<strong>de</strong>s<br />
corrompidas: um estudo sobre a obra <strong>de</strong> João <strong>de</strong> Minas (<strong>19</strong>29-<strong>19</strong>36).<br />
Dissertação <strong>de</strong> Mestrado em História Social, USP, 2008, Disponível<br />
em http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8138/t<strong>de</strong>-08072008-<br />
142247/<br />
Carneiro, Caio Porfírio. Depoimento a Leandro Antonio <strong>de</strong> Almeida.<br />
UBE-SP, 26/10/2006.<br />
Freire Filho, A<strong>de</strong>rbal. Quem é Esse Cara? In: Minas, João <strong>de</strong>. A Mulher<br />
carioca aos 22 anos. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Dantes, <strong>19</strong>99, p 211-266<br />
José, Oiliam. Sete Romancistas Mineiros. RAML, v. XXII, <strong>19</strong>59-<strong>19</strong>64,<br />
Belo Horizonte, p. 61-80.<br />
Minas, João <strong>de</strong>. Sangue <strong>de</strong> Ilusões. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Casa Leuzinger,<br />
<strong>19</strong>30.<br />
Ribeiro, Rui. Nos caminhos <strong>de</strong> João <strong>de</strong> Minas. Boletim Informativo do<br />
Museu da Inconfidência, Ouro Preto, n. 13, ano IV, 2004. Acessado
278 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
em 15 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 2007, disponivel em http://www.<br />
museudainconfi<strong>de</strong>ncia.iphan.gov.br/informativo_13.htm<br />
Seixas Sobrinho, J. Sessenta anos <strong>de</strong>pois tarefeiro da imprensa chega ao<br />
estrelato. Minas Gerais, Belo Horizonte, n. 2, sexta 4/1/<strong>19</strong>91,<br />
p. 8-9.
OS SEVERINOS: DO PARAÍSO<br />
RURAL À TRAGÉDIA URBANA<br />
Paulo Fernando Moreira*<br />
Per<strong>de</strong>ndo o sono numa noite <strong>de</strong>ssas, lembrei-me da família<br />
Severino <strong>de</strong> minha infância e juventu<strong>de</strong>. Quase que po<strong>de</strong>mos comparálos<br />
a uma nação à parte. Era uma família gran<strong>de</strong>, e também uma gran<strong>de</strong><br />
família. Vieram, todos ao mesmo tempo, <strong>de</strong> uma região chamada Serra<br />
do Barroso, on<strong>de</strong> havia gran<strong>de</strong> extensão <strong>de</strong> mata virgem. Instalaram-se<br />
em nossa proprieda<strong>de</strong>, a Fazenda do Tanque, no município <strong>de</strong> Carangola,<br />
como meeiros na lavoura <strong>de</strong> café, e se tornaram parte integrante <strong>de</strong> nós.<br />
A Fazenda do Tanque é o cenário do livro O menino da Mata e seu cão<br />
Piloto, do gran<strong>de</strong> memorialista Vivaldi Moreira, meu primo que é o<br />
presi<strong>de</strong>nte perpétuo da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>.<br />
Os Severinos eram cinco irmãos, cada qual com gran<strong>de</strong> prole:<br />
Mário, Alfredo, José, Avelino e Deja. Nunca soube o nome correto da<br />
Deja. No meu bestiário, a vi solteirona por séculos.<br />
Minha convivência foi maior com a família do seu Mário e dona<br />
Maria. Como esquecê-los! Dona Maria, a comadre Maria, e suas muitas<br />
filhas, eram o tudo <strong>de</strong> minha mãe. Qualquer contratempo, qualquer<br />
emergência, minha mãe apelava:<br />
– Corra lá na comadre Maria e traga pelo menos duas <strong>de</strong> suas<br />
filhas, correndo.<br />
* Empresário. Resi<strong>de</strong> em Sorocaba (SP).
280 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
Por correndo, entenda-se urgente. Trazer duas não era problema.<br />
Havia filhas em penca. O casal tinha onze filhos. Melhor falar filhas, pois<br />
eram <strong>de</strong>z mulheres e um só homem. Todos tinham apelidos curiosos:<br />
Zilda, a mais velha, era Dida; Maria, a segunda, era Miria; Nilda,<br />
chamada <strong>de</strong> Ida; Raimundo tinha dois apelidos: Gazão para a família e<br />
Cão, isso mesmo, Cão, para as irmãs. Ilda, chamada <strong>de</strong> Coisinha;<br />
Antônia, chamada <strong>de</strong> Suruca. No nosso dialeto, suruca era o nome dado à<br />
galinha da qual se cortava o rabo e as penas das asas para não voarem<br />
para fora da galinheiro; Eva, que era Eva mesmo,Tereza, era Tereza<br />
somente. Era também a mais bonita. Aparecida, Tida, era a mais dócil e<br />
<strong>de</strong>ngosa. Muito educada. Maria das Graças, a Gracinha, era muito<br />
quietinha e comportada. Auxiliadora, a Dôra, a caçulinha <strong>de</strong> todas.<br />
Homem <strong>de</strong> poucas palavras e muito trabalhador, o senhor Mário<br />
tinha presença marcante. Visitei com minha mãe a comadre Maria no<br />
leito <strong>de</strong> parto, no quarto escuro, janelas e portas fechadas. Punham-se até<br />
cobertores nas janelas, já que não se conheciam cortinas, para evitar<br />
golpe <strong>de</strong> vento. Visitamos mais <strong>de</strong> uma vez. Todo ano ela ganhava uma<br />
nova filha.<br />
Não há espaço nas minhas recordações da infância e juventu<strong>de</strong> na<br />
fazenda que não esbarre em algum Severino.<br />
Alfredo era uma figura curiosa. De porte baixo, físico atarracado e<br />
muito moreno, mais se parecia com um índio. Casado, tinha um casal <strong>de</strong><br />
filhos: Taninha e José. Lembro-me <strong>de</strong> suas figuras muito sujas, tanto a<br />
roupa como a tez. Não tomavam banho. O senhor Alfredo era asmático, e<br />
dizia que banho <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ava crise <strong>de</strong> asma. Assim, “besuntava” (termo<br />
<strong>de</strong>le, embora usual e correto), o corpo com alguma gordura animal e<br />
trabalhava na enxada o dia todo levantando a maior poeira. Dá pra<br />
imaginar!<br />
José Severino. Gran<strong>de</strong> homem. Amigo e protegido do meu pai.<br />
Aliás, protegiam-se mutuamente. Era o homem <strong>de</strong> confiança e<br />
responsável pelos <strong>de</strong>mais no eito. Corretíssimo e lí<strong>de</strong>r por natureza,<br />
lamentavelmente contraiu hanseníase. Causou gran<strong>de</strong> tristeza ao meu pai<br />
que cuidou <strong>de</strong>le com todo empenho até que ele alcançasse a cura<br />
completa.
Os Severinos: do paraíso rural à tragédia urbana _______________________________ Paulo Fernando Moreira 281<br />
Henrique Severino. Destacava-se sobre os <strong>de</strong>mais irmãos. Era o<br />
mais folclórico <strong>de</strong> todos. Cantador <strong>de</strong> versos, sanfoneiro <strong>de</strong> oito baixos,<br />
rezador e muito namorador, vestia-se <strong>de</strong> maneira única. Usava um chapéu<br />
preto “quebrado na testa”, como se dizia dos homens audazes. Sempre<br />
com um lenço colorido no pescoço, camisa <strong>de</strong> cor chamativa, isso <strong>de</strong>ntro<br />
dos padrões <strong>de</strong> tecidos disponíveis à época.<br />
Possuidor <strong>de</strong> voz grossa e forte. Como cantador <strong>de</strong> versos e<br />
puxador <strong>de</strong> reza, fazia enorme sucesso entre as suspirantes e <strong>de</strong>sejosas<br />
mocinhas do pedaço. No ambiente, ele era o astro. Permaneceu solteiro<br />
por muitos anos. Quando se casou constituiu numerosa família com mais<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>z filhos.<br />
Dos muitos filhos do Henrique, o Juversindo, meu afilhado, foi<br />
confiado aos meus cuidados pessoais para tratamento após ter sido<br />
<strong>de</strong>senganado pelos médicos que ficavam a mais <strong>de</strong> 40 km e sem a menor<br />
condição <strong>de</strong> dar assistência. Acometido <strong>de</strong> permanente disenteria, ao<br />
ponto <strong>de</strong> não reter nenhum alimento, meu tio, farmacêutico, receitou<br />
umas injeções <strong>de</strong> óleo que <strong>de</strong>veriam ser administradas diariamente. Cabia<br />
a mim, e no meu impedimento ao meu pai, empreen<strong>de</strong>r viagem diária <strong>de</strong><br />
cerca <strong>de</strong> 10 quilômetros a cavalo (único meio). Subia montanha acima<br />
para aplicar as injeções.<br />
Juversindo era tão magrinho que seu ânus projetava-se muito além<br />
das ná<strong>de</strong>gas. O fato é que ele se salvou e virou um bom homem no seu<br />
tempo e no seu meio. E também um bom chefe <strong>de</strong> família.<br />
Não tive muitas relações com Avelino e Deja. Eram pessoas muito<br />
fechadas em seu mundo montanhês. Nossos encontros davam-se nas<br />
festas, rezas <strong>de</strong> maio e encontros religiosos para chamar chuva. Isso era<br />
muito comum nos meses <strong>de</strong> seca. Eu era garoto ou adolescente e estava<br />
fora do interesse <strong>de</strong>les. Também tiveram sua prole.<br />
O mais interessante nos Severinos, é que falavam um dialeto<br />
próprio. Quando conversavam entre si, os <strong>de</strong> fora não entendiam<br />
patavina. Nas manifestações artísticas, então, eram únicos.<br />
As rezas eram celebradas durante todo o mês <strong>de</strong> maio. Cada dia em<br />
uma casa. As moças, muito enfeitadas, ensaiavam para seus preten<strong>de</strong>ntes.<br />
Não raro, tudo acabava com um arrasta-pé <strong>de</strong>pois da cerimônia religiosa
282 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
ao som da sanfoninha <strong>de</strong> oito baixos e muita profia (creio que é o mesmo<br />
que porfia) <strong>de</strong> versos com os candidatos a noivos disputando as mocinhas<br />
no gogó e no improviso.<br />
– Não encosta na pare<strong>de</strong><br />
que a pare<strong>de</strong> tem terão;<br />
encosta aqui no meu peito,<br />
do lado do coração.<br />
Nos dias que se seguiam à reza, cada um relatava repetidamente<br />
suas conquistas e paixões, conseqüência <strong>de</strong> uma simplicida<strong>de</strong> quase<br />
inocente.<br />
Havia uma imagem <strong>de</strong> Nossa Senhora, rezava-se o terço em um<br />
dialeto muito estranho, cantavam-se algumas músicas orientadas pelo<br />
puxador (no caso o Henrique) com uma verbosida<strong>de</strong> inédita:<br />
– “Há um só Deus, peço mais treis” (quando <strong>de</strong>veria ser: há um só<br />
Deus, pessoas três).<br />
Havia também uma fita presa à santa, que <strong>de</strong>veria ser beijada por<br />
todos, ao som <strong>de</strong> um apelo que durava o tempo necessário a que todos<br />
beijassem a fita:<br />
Vos beijemo e vos beijemo,<br />
vos beijemo, meus irmão.<br />
Vos beijemo a santa image<br />
cu juei no chão.<br />
As festas ensejavam os noivados. Os casamentos se realizavam em<br />
setembro, época das “cuiêtas”. Cuiêta é o mesmo que colheita e venda<br />
do café. É o momento em que o suor <strong>de</strong> um ano vira dinheiro vivo,<br />
quitam-se as contas do ano findo, casam-se os filhos e abrem-se novos<br />
créditos para o ano que vem. Do enxoval dos noivos fazia parte<br />
obrigatória um guarda-chuva e uma sombrinha.<br />
Aqueles rituais se repetiam ano após ano. Mas a vida era boa. As<br />
famílias eram compostas <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>iros clãs aos quais se juntavam os
Os Severinos: do paraíso rural à tragédia urbana _______________________________ Paulo Fernando Moreira 283<br />
novos membros casados com as filhas. Era sempre assim. A família da<br />
esposa era a catalisadora. A lei era: quem casa uma filha, ganha um filho:<br />
quem casa um filho, per<strong>de</strong> um filho.<br />
Ninguém era empregado. O sistema era <strong>de</strong> parceria ou <strong>de</strong> meia. O<br />
fazen<strong>de</strong>iro fornecia a casa e bancava os gastos durante todo o ano para<br />
<strong>de</strong>scontar no momento da colheita (chamava-se suprimento). O que se<br />
produzia no meio da lavoura <strong>de</strong> café era do meeiro. Eles tinham uma<br />
nesga <strong>de</strong> terra para fazerem horta, criarem porcos e galinhas. As moças<br />
eram sonhadoras e conheciam <strong>de</strong> antemão seu futuro. Os rapazes<br />
sonhavam com isso e eram felizes para sempre. As histórias sempre<br />
acabavam assim.<br />
Com a homologação do Estatuto da Terra no início dos anos 50,<br />
isso tudo ruiu por terra. Famílias <strong>de</strong>spreparadas foram tangidas como<br />
gado para as favelas do Rio <strong>de</strong> Janeiro. Os chefes <strong>de</strong> família saiam <strong>de</strong><br />
madrugada para trabalhar como serventes em um lugar que nem eles<br />
sabiam qual era. Suas filhas e esposas ficavam à sanha dos lobos <strong>de</strong><br />
plantão, sem o mínimo <strong>de</strong> jogo <strong>de</strong> cintura para se <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>rem das<br />
“oportunida<strong>de</strong>s” ali vivenciadas pela gran<strong>de</strong> maioria.<br />
Passado algum tempo encontrei-me com alguns <strong>de</strong>les. Já não eram<br />
mais aqueles. O ambiente os transformara. Seus semblantes refletiam a<br />
ru<strong>de</strong>za do ambiente e registrava suas <strong>de</strong>cepções. Eles tentavam falar na<br />
língua dos novos vizinhos a quem na verda<strong>de</strong> sequer conheciam direito.<br />
Mesmo assim os imitavam. Suas expressões soavam falsas, como se não<br />
soubessem o que estavam falando. Talvez fosse uma <strong>de</strong>fesa para dar a<br />
enten<strong>de</strong>r “nem vem, nós também somos daqui”.<br />
Assim, no Rio <strong>de</strong> Janeiro, como a<strong>de</strong>mais nas outras gran<strong>de</strong>s<br />
cida<strong>de</strong>s brasileiras, começaram a crescer incontrolavelmente as favelas.<br />
Gran<strong>de</strong>s famílias foram <strong>de</strong>smanchadas, apartadas como gado; rasgadas<br />
como uma peça <strong>de</strong> pano que, saindo <strong>de</strong> uma só unida<strong>de</strong>, é loteada em<br />
pedaços. Um para cada lado. A população urbana cresceu <strong>de</strong> 30 para<br />
70%. A rural caiu <strong>de</strong> 70 para 30% em muito pouco tempo. Alguns<br />
chamaram isso <strong>de</strong> progresso. Ganharam votos com essa bravata.<br />
Disseram que estavam <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>ndo “os direitos trabalhistas” daqueles a<br />
quem <strong>de</strong>stroçaram.
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Aceito até que digam que a relação capital-trabalho não era a<br />
melhor das relações possíveis. Mas é somente isso que conta? E a<br />
família? É hoje essa relação é perfeita? Aquelas pessoas, como os<br />
Severinos, tinham casa, comida, relações sociais <strong>de</strong>ntro do seu meio,<br />
sonhavam em casar e ter filhos. Casavam e tinham. Tinham nome e<br />
sobrenome. Tinham dignida<strong>de</strong> e faziam história. Ou será que esse<br />
registro não é história?<br />
De fato eles não tinham aposentadoria e assistência <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>.<br />
Todavia, cada um ao seu tempo, morria em casa. Na casa <strong>de</strong> sua família.<br />
O morto era pranteado, toda a comunida<strong>de</strong> comparecia e a família<br />
permanecia na mesma casa com seus filhos segurando a onda do mesmo<br />
jeito. No entanto, morria-se <strong>de</strong> morte natural, e não do encontro fatal com<br />
a violência, como acontece hoje nas favelas das metrópoles brasileiras.<br />
Morria-se do jeito que Deus or<strong>de</strong>nou.<br />
A fazenda não é mais da nossa família há décadas. Mas até hoje,<br />
quando passamos por lá, mesmo estando tudo retalhado, ainda falamos:<br />
ali é a casa do fulano, aquela é do sicrano, do beltrano, etc. Mesmo não<br />
existindo mais as casas como eram. Na verda<strong>de</strong>, eles nunca foram donos<br />
das casas. Mas ali edificaram suas famílias e fizeram história. Deixaram<br />
suas marcas. Enquanto lá estiveram, eles foram os Severinos, os<br />
Laurentinos, os Guarará, os Meireles e tantos outros que já não são mais<br />
famílias. Com um pouco <strong>de</strong> imaginação, dá para vê-los na lida com seus<br />
sorrisos francos e um aceno <strong>de</strong> mão com a maior alegria.<br />
Este meu relato não é um ato <strong>de</strong> saudosismo, mas um registro da<br />
mutação dos tempos. Lamentamos que a instituição família an<strong>de</strong> se<br />
<strong>de</strong>sgastando e se dissolvendo. O fato é que com menos droga, mais<br />
família e mais Deus, a vida era muito melhor.
ANÁLISE DE COMPORTAMENTO<br />
EM TUTAMÉIA<br />
Petrônio Braz*<br />
Busca-se aqui uma análise psicoliterária das motivações <strong>de</strong> um<br />
conto da última obra do imortal Guimarães Rosa, o gran<strong>de</strong> Viator, o<br />
criador <strong>de</strong> uma linguagem <strong>de</strong> laboratório, como quer Peregrino Júnior,<br />
“com a sábia utilização da extraordinária capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> conhecer idiomas<br />
que <strong>de</strong>tinha, mas também na sua estrutura íntima <strong>de</strong> criador da estrutura<br />
da ficção brasileira”, olhando, como disse Levy Carneiro, “o manto<br />
diáfano da fantasia”, que ele viveu e escreveu “com profundo sentimento<br />
<strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong> humana” ou “trabalhando a palavra até o sacrifício”,<br />
como afirmou Afonso Arinos, inovando sem <strong>de</strong>struir, em absoluto<br />
contraste com Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>.<br />
Com Guimarães Rosa o Brasil <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> ser uma província cultural<br />
no sentido spengleriano, como acertadamente sustenta Assis Brasil.<br />
Muito se tem <strong>de</strong> <strong>de</strong>bruçar sobre a obra <strong>de</strong> Guimarães Rosa, como afirmou<br />
Austregésilo <strong>de</strong> Athay<strong>de</strong> no seu discurso <strong>de</strong> a<strong>de</strong>us ao imortal dos<br />
imortais, “para a percepção da genialida<strong>de</strong> que <strong>de</strong>le transluz, no vigor das<br />
intuições viris que perpassam por tantas páginas <strong>de</strong> SAGARANA a<br />
TUTAMÉIA com enigmas propostos à curiosida<strong>de</strong> e ciência das<br />
gerações”.<br />
* Advogado e escritor. Presi<strong>de</strong>nte da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, Ciências e Artes do São Francisco.<br />
Membro da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> Montesclarense <strong>de</strong> <strong>Letras</strong> e do Instituto Histórico e Geográfico <strong>de</strong><br />
Montes Claros.
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Não será só em TUTAMÉIA, <strong>de</strong> Guimarães Rosa, nem em NOITE,<br />
<strong>de</strong> Érico Veríssimo, que os enigmas se apresentam vivos a exigir<br />
propostas à curiosida<strong>de</strong> e ciência das gerações. Apesar da crise por que<br />
passa a literatura brasileira, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> Guimarães Rosa, como atesta Assis<br />
Brasil, muitas são as obras literárias dignas <strong>de</strong> lugar <strong>de</strong> <strong>de</strong>staque no<br />
conceito da geração presente.<br />
Literatura enquanto arte é pouco razão e muito fantasia, mas<br />
fantasia do imaginário em busca do real. É da divagação pura e simples<br />
que nasce a dinâmica da imaginação, on<strong>de</strong> o real e o imaginário convivem <strong>de</strong><br />
forma convergente como fatores <strong>de</strong>terminantes da criação literária.<br />
Dentro <strong>de</strong>ssa conceituação genérica toda literatura <strong>de</strong> ficção será<br />
uma psicoliteratura, sem que seja necessário extrair da exegese do seu<br />
conteúdo <strong>de</strong>duções freudianas.<br />
Da obra <strong>de</strong> Augusto dos Anjos se escreveria um tratado psíquicoexegético<br />
e o fundo psicológico se assenta no acervo <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong><br />
Assis, voltado para a pessoa, tendo o espírito como condutor do<br />
comportamento humano.<br />
Todo texto literário, como quer Irene Sampaio, advém da dinâmica<br />
criadora, que se instala na intimida<strong>de</strong> psíquica do autor.<br />
Qualquer leitor bem avisado po<strong>de</strong> a<strong>de</strong>ntrar através da observação<br />
introspectiva <strong>de</strong> um personagem, fruto da criação <strong>de</strong> um autor,<br />
explicações para seu comportamento e, por meio <strong>de</strong>le, do comportamento<br />
do próprio autor, sem necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> buscar em Descartes, Leibniz ou<br />
Spinoza o socorro da metafísica, colocando-se no absoluto para <strong>de</strong>duzir<br />
daí o comportamento humano.<br />
Em toda obra literária, como quer Freud, está presente uma relação<br />
entre o autor e o seu próprio <strong>de</strong>vaneio, pois a alma humana, dizia<br />
Leibniz, como produto <strong>de</strong>senvolvido <strong>de</strong> inúmeros elementos, é o espelho<br />
do mundo.<br />
Na primeira leitura <strong>de</strong> TUTAMÉIA, preocupado como o enredo,<br />
escapou-me a percepção dos fatores <strong>de</strong> comportamento dos habitantes <strong>de</strong><br />
“Barra da Vaca” ante a presença <strong>de</strong> Jeremoavo. Das quarenta histórias <strong>de</strong><br />
TUTAMÉIA <strong>de</strong>staquei “Barra da Vaca” para o presente trabalho, que<br />
ouso dar à luz da publicida<strong>de</strong>.
Análise <strong>de</strong> comportamento em Tutaméia _______________________________________________ Petrônio Braz 287<br />
Suce<strong>de</strong>u então vir o gran<strong>de</strong> sujeito entrando no lugar, capiau <strong>de</strong><br />
muito longínquo: tirado à arreata o cavalo raposo, que mancara, apontava<br />
<strong>de</strong> noroeste, pisando o arenoso. Seus bigo<strong>de</strong>s ou a rustiquez – roupa<br />
parda, botinões <strong>de</strong> couro <strong>de</strong> anta, chapéu toda a aba – causavam riso e<br />
susto. Tomou fôlego, feito burro entesa orelhas, ao avistar um fiapo <strong>de</strong><br />
povo mais a rua, imponente invenção humana. Tinha vergonha <strong>de</strong> frente<br />
e <strong>de</strong> perfil, todo mundo viu, <strong>de</strong>via também alentar internas <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>ns no<br />
espírito. Sem jeito <strong>de</strong> acabar <strong>de</strong> chegar, se escorou a uma porta, <strong>de</strong>susado<br />
forasteiro. Requeria, pagados, comida e pouso, com frases pálidas, se<br />
discerniu por nome Jeremoavo. Mesmo lá a Domenha, da pensão, o velho<br />
<strong>de</strong>u à aldrava. Desalongou-se, porém, e – <strong>de</strong> tal sorte que dos lados<br />
dobrava em losango as coxas e pernas <strong>de</strong> gafanhoto – se amoleceu, sem<br />
serenar os olhos.<br />
“Era, pela <strong>de</strong>scrição, Jeremoavo um indivíduo alto (suce<strong>de</strong>u então<br />
vir o gran<strong>de</strong> sujeito), <strong>de</strong> pernas longas (pernas <strong>de</strong> gafanhoto), <strong>de</strong> on<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
pressupõe, como componente do corpo, possuía braços longos. Pelas<br />
características <strong>de</strong>scritas pelo autor-narrador e, segundo Kretschmer,<br />
<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> sua teoria tipológica do comportamento humano, que o Autor<br />
necessariamente conhecia por sua condição <strong>de</strong> médico e pela invejável<br />
cultural geral, indicado ficou que era Jeremoavo taciturno e pouco<br />
comunicativo, <strong>de</strong> comportamento tímido e insociável, incluindo-se no<br />
tipo ectomorfo <strong>de</strong> Sheldon, <strong>de</strong> personalida<strong>de</strong> introvertida. Protegido pela<br />
sugestão do prestígio ou da influência que um ou mais elementos<br />
exercem sobre o comportamento social, Jeremoavo foi sendo aceito pela<br />
comunida<strong>de</strong>.<br />
“Representando homem <strong>de</strong> bem e posses, quando por mais não<br />
fora, a ele razão era <strong>de</strong>vida. Se’o Vanvães disse, <strong>de</strong>terminou. Visitaramno.<br />
“A hipótese levantada <strong>de</strong> ser Jeremoavo um jagunço <strong>de</strong> Antônio<br />
Dó, nascida por acaso, <strong>de</strong> comentário in<strong>de</strong>finido, como estímulo ou<br />
impulso promove uma agitação coletiva excitando emoções variadas<br />
como fenômeno consciente e dinâmico dos motivos que, por seu turno,<br />
excita o surgimento <strong>de</strong> uma frustração social:<br />
“Sem don<strong>de</strong> se saber, teve-se aí sobre ele a notícia. Era bravo<br />
jagunço! Um famoso, perigoso. Alguém disse. Se estarreceu a Barra da
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Vaca, fria, ficada sem conselho. Somente alto e forte, seria um jerê, par<br />
<strong>de</strong> Antônio Dó, homem <strong>de</strong> peleja. Encolhido modorroso, agora, mas<br />
<strong>de</strong>sfadigando po<strong>de</strong>ndo-se <strong>de</strong>smarcar, em qualquer repêlo, tufava. Se’o<br />
Vanvães disse a Seo Astórgio, que a Seô Abril, que a Seô Cor<strong>de</strong>iro, que a<br />
seu Cipuca: – “Que fazer!? – nessas novas ocasiões. Se assentou que, por<br />
ora mais o honrassem.”<br />
Uma excitação sobre outra <strong>de</strong>senvolvida, conduz à fantasia coletiva<br />
da imaginação <strong>de</strong> ser Jeremoavo um jagunço bravo e famoso, conclusão<br />
que lhe dava a condição <strong>de</strong> homem perigoso. O prestígio, <strong>de</strong>corrente da<br />
hipótese, estabeleceu uma forçada facilitação social para sua permanência<br />
na Barra da Vaca, sob custódia:<br />
“Se’o Vanvães, dada a mão, levou-o a conhecer a Barra da Vaca –<br />
o rio era largo, <strong>de</strong> fronte – povoação <strong>de</strong>sguardada, no <strong>de</strong>sbravio. Seo<br />
Astérgio convidou-o. Estimou a boa respondência, por agrado e por<br />
respeito.”<br />
A frustração, como processo <strong>de</strong> interação, antece<strong>de</strong>u à hostilida<strong>de</strong>,<br />
num crescendo. Sua permanência provocava suspeita:<br />
“Não aluía dali, porque patrulho espião, que esperava bando <strong>de</strong><br />
outros, para estrepolirem.”<br />
O estado psíquico, pela narrativa <strong>de</strong> flagrante, nasce com a própria<br />
naturalida<strong>de</strong> do conto, on<strong>de</strong> os estados mentais se multiplicam a cada<br />
instante. Aqui se confirma o conceito <strong>de</strong> emoção emitido por Woodworth<br />
como um estado <strong>de</strong> agitação do organismo, nascido <strong>de</strong> um impulso<br />
consciente, que leva a uma atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong>finida. Sua permanência incomodava,<br />
mas continuava a receber obséquios, pois nada tinham conscientemente<br />
contra ele. Não existiam motivos reais, mas <strong>de</strong> forma inconsciente, e<br />
Freud afirmou que os motivos são quase sempre inconscientes,<br />
confabularam um modo <strong>de</strong> se livrarem <strong>de</strong>le:<br />
E aquela al<strong>de</strong>iazinha produziu uma idéia.<br />
A hostilida<strong>de</strong> não levou a uma brutal agressão, mas a prevalência<br />
do comportamento social <strong>de</strong>terminado por impulsões inativas, como quer
Análise <strong>de</strong> comportamento em Tutaméia _______________________________________________ Petrônio Braz 289<br />
McDougall, ou por reflexos prepotentes se ficarmos com Allport, <strong>de</strong>finiu<br />
a supremacia do instinto <strong>de</strong> conservação sobre a razão. Em evidência “a<br />
primeira lei da natureza”, que levou à rejeição, um dos seis mais<br />
importantes reflexos prepotentes i<strong>de</strong>ntificados por Allport, produzindo a<br />
inconformida<strong>de</strong> com a presença do intruso. Negligenciada a consciência,<br />
como querem os behavioristas, o comportamento dos habitantes <strong>de</strong> Barra<br />
da Vaca foi instintivo, por motivo inconsciente, conduzido pela<br />
necessida<strong>de</strong> coletiva <strong>de</strong> auto<strong>de</strong>fesa.<br />
Ocorre, então, como disse Afonso Arinos, “o frêmito coletivo e<br />
trágico da vida heróica”.<br />
De pescaria, à re<strong>de</strong>, furupa, a festa, assaz cachaças, com honra o<br />
chamaram, enganaram-lhe o juízo. Jeremoavo, vai, foi. O rio era um sol<br />
<strong>de</strong> paraíso. Tão certo. Tão bêbado, <strong>de</strong>pois, logo do outro lado o<br />
<strong>de</strong>ixaram, <strong>de</strong>baixo <strong>de</strong> sombra. Tinham passado também, quietíssimo, o<br />
cavalo raposo.<br />
Fazendo-o bêbado, inconsciente, transportaram-no para a margem<br />
oposta do rio, com esmerado cuidado, prenhe <strong>de</strong> precauções para evitar<br />
represálias. Deixaram-no protegido pela sombra <strong>de</strong> uma árvore qualquer<br />
tendo ao lado o cavalo e seus pertences. De hóspe<strong>de</strong>, transformou-se<br />
Jeremoavo em intruso in<strong>de</strong>sejável, à bala recebido se voltasse:<br />
Lá, os homens todos, até o <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro armados, três dias vigiaram,<br />
em cerca e trincheira! Voltasse, e não seria ele mais confuso hóspe<strong>de</strong>,<br />
mas um diabo esperado, o matavam. Veio, não.<br />
Vencidos os reflexos ou os impulsos inativos, foram chamados à<br />
realida<strong>de</strong>.<br />
Dispersou-se o povo, pacífico. Se riam, uns dos outros, do medo<br />
geral do graúdo estúrdio Jeremoavo. Do qual ou da Domenha sincera<br />
caçoavam. Tinham graça e sauda<strong>de</strong>s <strong>de</strong>le.<br />
Ausente o forasteiro, por uma percepção emotiva consciente do<br />
fato excitante, a expressão corporal do riso suce<strong>de</strong>u à alegria.
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O CENTENÁRIO DE EDUARDO<br />
CANABRAVA BARREIROS<br />
Newton Vieira*<br />
Amigo <strong>de</strong> Drummond, esse curvelano ilustre teve seu livro <strong>de</strong><br />
estréia prefaciado por ninguém menos que João Guimarães Rosa e foi,<br />
segundo Pedro Calmon, historiador inexcedível.<br />
O HOMEM<br />
Se vivo fosse, Eduardo Canabrava Barreiros celebraria cem<br />
primaveras este ano.<br />
Nasceu em Curvelo, a 11 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> <strong>19</strong>08, filho <strong>de</strong> João Barreiros<br />
e Etelvina Canabrava Barreiros. Per<strong>de</strong>u o pai quando criança e viveu<br />
momentos difíceis ao lado dos três irmãos. Tamanha era a pobreza, que<br />
andava constantemente <strong>de</strong>scalço. Botinas? Só nos dias <strong>de</strong> quermesse. Por<br />
isso, nele madrugou a luta pela existência.<br />
Concluiu apenas a 4ª série do grupo escolar. Depois, em épocas<br />
intercaladas, recebeu aulas das professoras Elisa Octaviano <strong>de</strong> Alvarenga<br />
e Maria Hermenegilda <strong>de</strong> Souza, a dona Nhanhá. A pouca freqüência ao<br />
ensino sistemático não o impediu, no entanto, <strong>de</strong> se tornar intelectual<br />
brilhante, a exemplo <strong>de</strong> outros sem diploma <strong>de</strong> curso ginasial, como<br />
Machado <strong>de</strong> Assis, Agripino Grieco e Francisco Fernan<strong>de</strong>s, este mestre<br />
dos mestres em regência verbo-nominal.<br />
* Escritor, trovador, Secretário-Geral da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> Curvelana <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, membro do Instituto<br />
Histórico e Geográfico <strong>de</strong> Minas Gerais e da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> Municipalista <strong>de</strong> <strong>Letras</strong> <strong>de</strong> Minas<br />
Gerais.
292 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
Até a faixa dos trinta, aventurou-se a diversos quefazeres,<br />
inclusive à garimpagem na Serra do Cabral, no Rio das Velhas e no<br />
alto do Jucu (ES). Mais tar<strong>de</strong> profissionalizaria o pendor ao <strong>de</strong>senho e<br />
à pintura.<br />
Mudou-se para o Rio <strong>de</strong> Janeiro em <strong>19</strong>35. Lá conquistou gran<strong>de</strong>s e<br />
célebres amigos, entre os quais o poeta Carlos Drummond <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>,<br />
que <strong>de</strong>le fez carinhosa menção num trecho <strong>de</strong> O Observador no<br />
Escritório (Record, <strong>19</strong>85). Apoiado pela mulher, Conceição, por<br />
hipocorístico Ceicinha, com quem não teve filhos, <strong>de</strong>dicou-se à<br />
cartografia, em escritório muito requisitado por pessoas físicas e<br />
jurídicas.<br />
Conquanto residisse fora, ECB jamais <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> aten<strong>de</strong>r aos<br />
chamamentos da terra natal. Voltou ao solo curvelano em <strong>19</strong>75 para as<br />
festivida<strong>de</strong>s da elevação do distrito-se<strong>de</strong> à categoria <strong>de</strong> cida<strong>de</strong>. Antes, em<br />
<strong>19</strong>71, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>ndo Curvelo na TV Itacolomi, no programa “Mineiros<br />
Frente a Frente”, narrou interessante “causo” e granjeou a simpatia do<br />
júri. Ajudou a divulgar Sinhá Reginalda, a “santa mendiga”, da qual<br />
fez o bico-<strong>de</strong>-pena estampado em edição especial do jornal CN –<br />
Curvelo Notícias. Além disso, notabilizou-se ao mover campanha<br />
contra a incorporação <strong>de</strong> Tomás Gonzaga a outro município, guiado<br />
pelo bom senso <strong>de</strong> historiador emérito: aquela localida<strong>de</strong> representa o<br />
berço <strong>de</strong> nossa História.<br />
Em 31 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> <strong>19</strong>67, tomou posse no Instituto Histórico e<br />
Geográfico Brasileiro. No mesmo ano, <strong>de</strong>u à estampa O Segredo <strong>de</strong><br />
Sinhá Ernestina, distinguido com o prêmio “Afonso Arinos”, da<br />
<strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> Brasileira <strong>de</strong> <strong>Letras</strong> (<strong>19</strong>69). Novas obras viriam ao longo do<br />
tempo: o ensaio Itinerário da In<strong>de</strong>pendência, <strong>de</strong> <strong>19</strong>72, também agraciado<br />
pela entida<strong>de</strong>-mãe das letras nacionais, <strong>de</strong>sta vez com a láurea “Joaquim<br />
Nabuco” (<strong>19</strong>74); Semicírculo (memórias), editado em <strong>19</strong>77; Roteiro das<br />
Esmeraldas – A Ban<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> Fernão Dias Pais e o instigante Das Buscas<br />
e Descobertas.<br />
Os livros sempre vinham com o selo da José Olympio Editora,<br />
prova incontestável do quanto inspiravam respeito e admiração.
O centenário <strong>de</strong> Eduardo Canabrava Barreiros ___________________________________________ Newton Vieira 293<br />
A OBRA<br />
Eduardo Canabrava Barreiros alcançou em vida o merecido<br />
reconhecimento. Críticos abalizados enalteceram-lhe a fluência verbal e a<br />
sólida erudição.<br />
No prefácio <strong>de</strong> O Segredo <strong>de</strong> Sinhá Ernestina, ninguém mais,<br />
ninguém menos que João Guimarães Rosa chamou a atenção para as<br />
qualida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> sua escrita. Asseverou o mago <strong>de</strong> Cordisburgo: “Eduardo<br />
Canabrava Barreiros é <strong>de</strong> fato um contista. O que se vê <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a escolha<br />
dos temas até ao confechamento das composições: e, no meio, em<br />
<strong>de</strong>spachada, gostosa conversa, com finezas e manhas, a renovada<br />
observação, versatilida<strong>de</strong> e ineditismo <strong>de</strong> aspectos (...) jeitosa sensibilida<strong>de</strong>”.<br />
Ambientados em Curvelo e região, os contos retratam a gente<br />
sertaneja e outras coisas muito das nossas. As histórias são <strong>de</strong> uma<br />
verossimilhança incrível. Aliás, encantaram Guimarães Rosa pelo “tom<br />
autêntico e <strong>de</strong>senvolvimento íntimo, o florir do tempo em seu legítimo<br />
espaço”. O autor <strong>de</strong> Sagarana disse conhecer bem os lugares <strong>de</strong>scritos<br />
por Canabrava, mas ressaltou que, “lendo-o, qualquer um po<strong>de</strong> ter<br />
lembrança <strong>de</strong> sítios que nunca viu”.<br />
Saliente-se o cabedal lingüístico canabraviano, amealhado por<br />
meio <strong>de</strong> acutíssimo exame do falar agreste. Vocábulos como “gorgulejo”,<br />
“capanga”, “garatuja”, “berdamerda”, “assuntar” e “zangado” (na<br />
acepção <strong>de</strong> “estragado”) aparecem amiú<strong>de</strong> nos contos. Tropos <strong>de</strong> estilo<br />
brotam daqui e dali, mas nunca em <strong>de</strong>trimento da clareza. A coesão <strong>de</strong><br />
idéias segue impecável. A “Flor do Sertão” <strong>de</strong>sfila na quase totalida<strong>de</strong><br />
das páginas, com os cenários do Santuário <strong>de</strong> São Geraldo, da antiga<br />
Santa Casa, do Tibira, do Alto do Tote, <strong>de</strong>ntre tantos...<br />
Outro aspecto valoroso está no auxílio à pesquisa <strong>de</strong> velhos fatos.<br />
Michel Vovelle, em I<strong>de</strong>ologias e Mentalida<strong>de</strong>s (Brasiliense, <strong>19</strong>87),<br />
ensinou-me o quanto a literatura po<strong>de</strong> <strong>de</strong>itar luzes sobre as investigações<br />
realizadas no campo historiográfico. E eu pu<strong>de</strong> corroborar isso, numa das<br />
releituras <strong>de</strong> O Segredo <strong>de</strong> Sinhá Ernestina. Sem que o preten<strong>de</strong>sse, ECB<br />
alargou-me a compreensão do fenômeno sociocultural do coronelisnmo,
294 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
<strong>de</strong> raízes tão profundas neste torrão do centro-norte <strong>de</strong> Minas. O escritor<br />
perfilou <strong>de</strong> maneira magistral o coronel fazen<strong>de</strong>iro, aquele semelhante ao<br />
senhor <strong>de</strong> engenho, o homem em torno do qual tudo gira e se <strong>de</strong>senvolve.<br />
O personagem é <strong>de</strong>spótico: submete o vigário a seus caprichos (só aceita<br />
nomear festeira-mor a própria mulher), <strong>de</strong>termina a soltura <strong>de</strong> prisioneiros,<br />
<strong>de</strong>tém o controle da política local (manda e <strong>de</strong>smanda no partido<br />
situacionista) e, <strong>de</strong> quebra, empreen<strong>de</strong> invasões em terrenos alheios.<br />
As mazelas do coronelismo já eram, por assim dizer, <strong>de</strong>nunciadas<br />
pelos ficcionistas curvelanos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> antanho, conscientemente ou não,<br />
haja vista a tragédia na qual o extraordinário Lúcio Cardoso, em Maleita,<br />
romance <strong>de</strong> <strong>19</strong>34, envolveu Manuel Capitão, o tropeiro sonhador. Mas<br />
foi ECB quem me <strong>de</strong>spertou para o estudo mais aprofundado <strong>de</strong>sse po<strong>de</strong>r<br />
informal.<br />
Quanto a Itinerário da In<strong>de</strong>pendência, comemorativo do sesquicentenário<br />
do rompimento <strong>de</strong> laços com Portugal e integrante da Coleção<br />
Documentos Brasileiros, trata-se <strong>de</strong> ensaio imponente, digno <strong>de</strong><br />
pesquisador, beletrista e cartógrafo do mais elevado gabarito. Essa a<br />
razão por que, após analisá-lo, Pedro Calmon assim se expressou:<br />
“Ninguém melhor do que Eduardo Canabrava Barreiros para restabelecer,<br />
na sua verda<strong>de</strong> e na sua cartografia, o itinerário da In<strong>de</strong>pendência”. E<br />
acrescentou alhures: “Traçou [ECB] o itinerário da In<strong>de</strong>pendência com<br />
sabedoria que nos permitimos chamar <strong>de</strong> inexcedível”.<br />
A propósito <strong>de</strong> Semicírculo, Aires da Mata Machado Filho se<br />
<strong>de</strong>clarou encantado “com a beleza literária e com a exemplar sobrieda<strong>de</strong><br />
dos quadros sucessivos”, enquanto Américo Jacobina Lacombe<br />
consi<strong>de</strong>rou Roteiro das Esmeraldas “trabalho <strong>de</strong>sbravador das rotas<br />
ban<strong>de</strong>irantes” e Antônio Carlos Villaça, prefaciando Das Buscas e<br />
Descobertas, manifestou-se <strong>de</strong>starte: “Tudo ali me fala. Pois é um texto<br />
muito <strong>de</strong>nso, muito grave, muito humano. A que se refere em suma? À<br />
trajetória da humana condição”.<br />
Garimpeiro <strong>de</strong> sonhos, Eduardo Canabrava Barreiros foi, ao cabo<br />
<strong>de</strong> contas, um gênio da inteligência pátria no século XX. Seu centenário<br />
<strong>de</strong> nascimento não po<strong>de</strong>ria passar in albis em hipótese nenhuma. Urge<br />
torná-lo conhecido <strong>de</strong> seus conterrâneos, sobretudo das novas gerações.
O conto mineiro<br />
O PROFESSOR DE DANÇA<br />
(A vitória <strong>de</strong> Terpsícore sobre Têmis)<br />
Murilo Badaró*<br />
Não é <strong>de</strong> hoje que Rodolfo mantinha correspondência com o doutor<br />
Domício Beltrão, médico que vagueava pelos municípios do norte,<br />
nor<strong>de</strong>ste e Vale do Jequitinhonha à cata <strong>de</strong> informações para lastrear sua<br />
tese <strong>de</strong> mestrado na Universida<strong>de</strong> da Bahia.<br />
Enviava cartas com preciosas notícias sobre a política e a<br />
sociologia dos lugarejos e roças on<strong>de</strong> passava, ouvindo gente <strong>de</strong> variada<br />
procedência e condição social. Nada lhe agradava mais do que se<br />
acomodar num banco <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> uma casa rural, para ouvir o dono<br />
contar os casos mais pitorescos. Com esta ativida<strong>de</strong> meio lúdica vivia<br />
momentos <strong>de</strong> prazer, por mais estranho possa parecer alguém gostar<br />
como norma a instabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> viandante e peregrino.<br />
Ele próprio apreciava dizer, mesmo correndo risco <strong>de</strong> ser tachado<br />
<strong>de</strong> pretensioso, que reprisava, guardadas as respectivas proporções <strong>de</strong><br />
tempo, lugar, capacida<strong>de</strong> e talento, as viagens <strong>de</strong> João Guimarães Rosa<br />
pelo vale do São Francisco, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> extraiu inspiração para composição<br />
* Escritor e homem público, presi<strong>de</strong>nte da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, autor entre outros<br />
livros <strong>de</strong>: Do Jequitinhonha ao Tennessee, Reforma e Revolução, Memorial Político, Alma<br />
<strong>de</strong> Minas, O Bombardino, Vigésimo Mandamento, Floresta <strong>de</strong> Símbolos, Rondó Solitário<br />
(crônicas), José Maria Alkmim, Milton Campos, Gustavo Capanema (biografias).
296 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
das personagens que ganharam imortalida<strong>de</strong> pelo admirável valor e<br />
eternida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua obra.<br />
Longe <strong>de</strong> Domício a intenção <strong>de</strong> escrever livros. Apenas estava<br />
dominado por curiosida<strong>de</strong> insaciável <strong>de</strong> conhecer aquelas regiões, estudar<br />
as situações políticas <strong>de</strong>correntes das disputas locais e, finalmente, fazer<br />
sua tese <strong>de</strong> doutoramento sobre as projeções da sociologia urbana a<br />
respeito da medicina ou <strong>de</strong> como o exercício da medicina po<strong>de</strong> concorrer<br />
para transformações daquela.<br />
Na opinião <strong>de</strong> Rodolfo, Domício não passava <strong>de</strong> um político que se<br />
não realizou por absoluta falta <strong>de</strong> vocação. A frustração pelas <strong>de</strong>sventuras<br />
na política foi compensada por essa estranha movimentação, com todas<br />
as características <strong>de</strong> um misto <strong>de</strong> <strong>de</strong>vaneio e romantismo. Mereceria,<br />
contudo, o abono <strong>de</strong> um julgamento favorável pelo objetivo final da<br />
missão a que se entregava, com toda pompa <strong>de</strong> nobreza.<br />
Nas cartas que enviou a Rodolfo, com quem já havia se afeiçoado<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> quando se conheceram e i<strong>de</strong>ntificaram uma série <strong>de</strong> pensamentos e<br />
i<strong>de</strong>ais comuns, nada restringia no relato. Era abundante e minu<strong>de</strong>nte na<br />
<strong>de</strong>scrição <strong>de</strong> tudo o que via, falava e ouvia. Rodolfo era ouvinte e leitor<br />
atento.<br />
Depois <strong>de</strong> se habituar com os verda<strong>de</strong>iros relatórios em que<br />
algumas missivas se transformavam, tal a riqueza <strong>de</strong> <strong>de</strong>talhes das<br />
histórias narradas, passou a aguardar com certa ansieda<strong>de</strong> a chegada do<br />
correio <strong>de</strong> cada uma das cida<strong>de</strong>s do roteiro traçado por Domício.<br />
Numa das últimas, sua curiosida<strong>de</strong> ainda mais se aguçou. Rodolfo<br />
temeu ser confundido com bisbilhoteiro pela inquietu<strong>de</strong> <strong>de</strong>monstrada<br />
com a <strong>de</strong>mora da correspondência.<br />
Domício avisou-o <strong>de</strong> que iria narrar-lhe sem fantasias a história <strong>de</strong><br />
um servidor da Justiça da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Pequilândia, que dava aulas <strong>de</strong> dança<br />
no salão do fórum, no mesmo local on<strong>de</strong> se processavam as sessões <strong>de</strong><br />
julgamento do júri popular.<br />
Para aumentar a inquietação <strong>de</strong> Rodolfo, <strong>de</strong>sejoso como nunca <strong>de</strong><br />
saber <strong>de</strong>talhes do episódio, <strong>de</strong>sta vez <strong>de</strong>morou além do razoável e do<br />
acostumado para a correspondência, causando expectativa <strong>de</strong>sconfortável<br />
ao seu temperamento irrequieto e buliçoso.
O professor <strong>de</strong> dança ______________________________________________________________ Murilo Badaró 297<br />
Quando já per<strong>de</strong>ra as esperanças <strong>de</strong> receber a esperada missiva,<br />
atribuindo a <strong>de</strong>mora à ineficiência dos correios, sobrecarregados com a<br />
volumosa correspondência do período natalino, Rodolfo vê surgir à porta<br />
<strong>de</strong> seu escritório o mensageiro dos correios com seu traje característico.<br />
Seria a tão esperada carta? Pensou. Era ela.<br />
Rodolfo percebeu pelo incomum volume do envelope que Domício<br />
talvez estivesse enviando fotos para comprovação do relato. Não. Não<br />
eram fotos, mas simplesmente um grosso ca<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> páginas on<strong>de</strong> ele<br />
contava tudo o que havia acontecido na velha Pequilândia, para espanto<br />
<strong>de</strong> quantos conheciam a história.<br />
Tratando logo <strong>de</strong> <strong>de</strong>sfazer qualquer confusão a impressões<br />
<strong>de</strong>formadas sobre sua preferência a respeito do tema, Domício enten<strong>de</strong>u<br />
<strong>de</strong> tecer consi<strong>de</strong>rações sobre a dança ao correr do tempo, especialmente<br />
para afirmar, a cada oportunida<strong>de</strong>, que saraus e bailes também foram uma<br />
<strong>de</strong> suas paixões da mocida<strong>de</strong>.<br />
Lembrou-se dos nomes <strong>de</strong> Anna Pávlova, Tamara Karsávina e<br />
Nijinski, bailarinas e bailarinos famosos que construíram verda<strong>de</strong>iras<br />
lendas em torno do ballet, arrastando aos teatros multidões apaixonadas<br />
pela arte que exibiam.<br />
Domício, para quem o tempo pouco significava no trabalho <strong>de</strong><br />
pesquisa que fazia, discorria com facilida<strong>de</strong> sobre essa arte que marcou<br />
as civilizações <strong>de</strong>s<strong>de</strong> tempos imemoriais, representada nas figuras<br />
encontradas nas pare<strong>de</strong>s e tetos das cavernas no período paleolítico a<br />
indicar que o homem já dançava.<br />
Meneios corporais ao som <strong>de</strong> música ou simplesmente percussão<br />
obe<strong>de</strong>ciam a estímulos <strong>de</strong> diversa natureza, fossem fatos sociais, culturais<br />
ou eróticos, aperfeiçoando-se com o passar dos anos em busca <strong>de</strong> formas<br />
mais harmoniosas e capazes <strong>de</strong> representar a intenção dos anseios e<br />
necessida<strong>de</strong>s da humanida<strong>de</strong>.<br />
Uma das três principais artes cênicas da Antigüida<strong>de</strong>, ao lado do<br />
teatro e da música, doutrinava o médico com certo pedantismo, fosse na<br />
dança livre ou segundo padrões previamente estabelecidos e a<br />
coreografia, pelo tempo afora a dança, em suas diversas varieda<strong>de</strong>s que<br />
cada cultura adotava, percorreu incólume a trajetória gloriosa que a<br />
sedimentou como incorporada a todas as civilizações.
298 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
Fosse no balé, no tango, na valsa, nas danças <strong>de</strong> roda ou nos<br />
folguedos folclóricos, nas sarabandas e nos rituais da magia, essa<br />
manifestação artística adotada em todos os quadrantes do universo<br />
conquistou cada vez maior número <strong>de</strong> a<strong>de</strong>ptos e apaixonados.<br />
Um <strong>de</strong>stes, cuja paixão pela dança havia se transformado em<br />
incurável vício, causando-lhe grau <strong>de</strong> <strong>de</strong>pendência semelhante ao gerado<br />
pelos alucinógenos mais severos, foi o personagem <strong>de</strong> Domício, que<br />
volta ao seu relato para i<strong>de</strong>ntificar o doutor A<strong>de</strong>lmo Gomi<strong>de</strong>, que gostava<br />
<strong>de</strong> ser chamado <strong>de</strong> “doutor Agê”, juiz <strong>de</strong> direito da comarca <strong>de</strong><br />
Pequilândia.<br />
Doutor A<strong>de</strong>lmo, ou “doutor Agê”, estudou direito numas <strong>de</strong>stas<br />
escolas criadas para resolver problemas políticos, bem distantes do<br />
verda<strong>de</strong>iro interesse em formar bons advogados, juristas ou magistrados.<br />
As <strong>de</strong>nominadas faculda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> fins <strong>de</strong> semana, preocupadas mais com o<br />
lucro do que no verda<strong>de</strong>iro ensino.<br />
Nascido em berço pouco provido, <strong>de</strong> cor mais bronzeada do que a<br />
<strong>de</strong> Barack Obama, seco <strong>de</strong> carnes e sem ter merecido os benefícios <strong>de</strong><br />
Afrodite ou <strong>de</strong> Apolo, doutor Agê conseguir bacharelar-se em direito,<br />
uma expressiva vitória que o encheu e à família <strong>de</strong> justificado orgulho.<br />
Na referência a Obama, Rodolfo i<strong>de</strong>ntificou com alguma surpresa<br />
estar seu parceiro <strong>de</strong> cartas bem atualizado com o noticiário internacional.<br />
Doutor Agê começou sua advocacia <strong>de</strong> forma tímida, mas no firme<br />
propósito <strong>de</strong> recolher experiência que lhe assegurasse reservas <strong>de</strong><br />
conhecimento capazes <strong>de</strong> propiciar sucesso no concurso para juiz <strong>de</strong><br />
direito, aberto pelo Tribunal alguns anos <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> sua colação <strong>de</strong> grau.<br />
Domício interrompe a narrativa para observar não ter a intenção <strong>de</strong><br />
macular a imagem do meritíssimo, a quem conheceu durante sua visita à<br />
cida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>le guardando impressão nenhuma.<br />
Seu <strong>de</strong>sejo, diz com ênfase, é apenas dar notícia <strong>de</strong> fato insólito<br />
ocorrido nas brenhas do norte <strong>de</strong> Minas, cujo repertório <strong>de</strong> casos<br />
estranhos e enigmáticos fartaram as páginas das crônicas e das histórias<br />
passadas <strong>de</strong> mão em mão no correr das gerações. Raramente chegavam<br />
aos jornais das cida<strong>de</strong>s gran<strong>de</strong>s. Quando isto acontecia, causavam<br />
espanto.
O professor <strong>de</strong> dança ______________________________________________________________ Murilo Badaró 299<br />
Doutor Agê sabia das dificulda<strong>de</strong>s que encontraria em seu<br />
caminho. Seu temperamento o tornava refratário a papéis, autos <strong>de</strong><br />
processos, audiências, agravos, recursos, sentenças, enfim, a intricada<br />
parafernália jurídico-processual que a profissão lhe impunha tiranicamente.<br />
Ia suportando estoicamente o sacrifício, agravado pela sua<br />
in<strong>de</strong>clinável tendência à solidão. Temperamento é uma espécie <strong>de</strong> cruz <strong>de</strong><br />
ferro que a pessoa traz <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o nascimento. Umas mais, outras menos,<br />
mas está sempre presente <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o <strong>de</strong>albar da vida até o último dia da<br />
existência.<br />
Ao doutor Agê pesava-lhe, além da cruz, uma máscara <strong>de</strong> ferro que<br />
não causava conforto a quem <strong>de</strong>le se aproximava. Se assim acontecia<br />
com homens, imagine com as mulheres.<br />
Fosse qual fosse a causa, não importa muito para nossa história,<br />
doutor Agê era cada vez mais impulsionado à solidão, especialmente<br />
numa cida<strong>de</strong> carente <strong>de</strong> diversões e companhias para folguedos noturnos.<br />
A rotina dos trabalhos forenses ainda mais acentuava seu <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong><br />
fuga daquele ambiente cercado <strong>de</strong> autos processuais por todos os lados,<br />
ouvindo pachorrentamente testemunhas previamente preparadas para<br />
sonegarem a verda<strong>de</strong>, promotores insolentes e também indolentes,<br />
advogados enfadonhamente repetitivos usando terminologia empolada<br />
para simular erudição.<br />
Nas noites vazias e silenciosas da vila que o <strong>de</strong>stino colocara no<br />
seu caminho, doutor Agê resolveu por sua conta e risco promover uma<br />
revolução nos costumes forenses da comarca. Pouco se lhe dava o<br />
acúmulo <strong>de</strong> autos à espera <strong>de</strong> soluções, para ele, assuntos sem<br />
importância. Sua revolução era o não fazer, não julgar.<br />
Velhos meirinhos lhe narraram histórias <strong>de</strong> magistrados que antes<br />
sentaram na ca<strong>de</strong>ira que agora ocupava, algumas enobrecedoras e outras<br />
sepultadas por sua notória inconveniência que seu relato traria ao<br />
prestígio da casa da justiça.<br />
Seu estado <strong>de</strong> infelicida<strong>de</strong> atingia o paroxismo, com reflexos em<br />
sua carreira <strong>de</strong> magistrado que pretendia seguir, tornando-o incapaz <strong>de</strong><br />
estudar, ler, <strong>de</strong>cidir e até mesmo <strong>de</strong> amar.
300 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
Era aí o ponto vulnerável da vida do doutor Agê. Sua fisionomia<br />
era pouco inspiradora para eventuais abordagens femininas, especialmente<br />
em época on<strong>de</strong> os meios <strong>de</strong> comunicação fizeram da beleza <strong>de</strong>usa<br />
tirânica e insaciável.<br />
O feio era proibido <strong>de</strong> aparecer, fosse qual fosse seu formato,<br />
ce<strong>de</strong>ndo lugar para mulheres <strong>de</strong> corpo e rosto trabalhados pelos<br />
esteticistas e os homens espadaúdos e apolíneos, cujas faces os<br />
maquiladores ainda faziam mais belas ao ocultar eventuais sinais<br />
impostos pela natureza.<br />
Sua angústia, contida pela posição <strong>de</strong> relevo que ocupava na<br />
cida<strong>de</strong>, aumentava a aflição e os pa<strong>de</strong>cimentos que experimentava nas<br />
noites <strong>de</strong>sdormidas e sem confi<strong>de</strong>ntes para resgatá-los no mútuo consolo<br />
das revelações.<br />
Reagir, era preciso. As centenas <strong>de</strong> volumosos autos do contencioso<br />
civil ou criminal não mereciam maiores atenções. Não lhes <strong>de</strong>dicava<br />
tempo, lançando neles meros <strong>de</strong>spachos interlocutórios que sempre<br />
obtinham a complacência dos advogados, igualmente interessados em<br />
que não chegassem ao fim.<br />
A vida do doutor Agê era como um barco ancorado no tranqüilo<br />
lago do tempo, sem ondas ou convulsões abaixo da superfície que o<br />
fizessem balançar.<br />
Esta pasmaceira provocava um efeito diverso daquilo que po<strong>de</strong>ria<br />
inspirar esforços concentrados, para dar conta do volumoso trabalho que<br />
o aguardava todos os dias.<br />
Havia já bastante tempo que os livros lhe não faziam companhia<br />
constante. Limitava-se aos códigos <strong>de</strong> processo civil e penal, com os<br />
quais protelava in<strong>de</strong>finidamente os feitos submetidos ao seu julgamento.<br />
Nisto, sua habilida<strong>de</strong> era insuperável, sem problemas <strong>de</strong> consciência pela<br />
noção <strong>de</strong> que não era o único varão sobre a terra da justiça a assim<br />
proce<strong>de</strong>r.<br />
Numa <strong>de</strong>terminada noite resolveu quebrar a tenaz que o aprisionava<br />
à mesmice e à rotina. Convidou algumas pessoas para conhecerem o<br />
salão do juri, ampla sala on<strong>de</strong> se realizavam os julgamentos<br />
populares.
O professor <strong>de</strong> dança ______________________________________________________________ Murilo Badaró 3<strong>01</strong><br />
Uma das visitantes, encantadas com a amplitu<strong>de</strong> daquele local,<br />
aventurou-se a um comentário <strong>de</strong> brinca<strong>de</strong>ira proclamando o quanto<br />
aquele salão seria bom para um baile.<br />
Deu-se o estalo. O doutor Agê encontrou na brinca<strong>de</strong>ira leviana da<br />
convidada a carta <strong>de</strong> alforria <strong>de</strong> que tanto necessitava.<br />
Uma pergunta começou a rondar-lhe o pensamento, à moda<br />
daquelas moscas teimosas <strong>de</strong> que falava Machado <strong>de</strong> Assis. Quanto mais<br />
a espancava, mais ela retornava e cada vez mais enfeitada <strong>de</strong> alternativas<br />
que encantavam seu espírito.<br />
Converter o salão do juri num salão <strong>de</strong> baile, uma vez por quinzena<br />
sequer seria notado pela população. Nos intervalos e durante a noite,<br />
transformá-lo em aulas <strong>de</strong> dança em que era perito.<br />
Doutor Agê colocou toda a força <strong>de</strong> seu pensamento na montagem<br />
<strong>de</strong> estratagema para abrir picadas ao <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> seu projeto <strong>de</strong><br />
libertação através da dança. Que importava o julgamento dos moradores,<br />
nem sempre cordiais e simpáticos a ele, se estava recebendo o habeas<br />
corpus <strong>de</strong> sua prisão psicológica, repetia mentalmente como buscando<br />
um bálsamo.<br />
Certo dia, à porta do fórum e já no final do expediente, vê passarem<br />
duas adolescentes, distraídas e displicentes como num passeio vespertino,<br />
como se houvessem feito um sueto naquele dia.<br />
Convida-as a conhecer o salão. De soslaio e meio <strong>de</strong>sconfiadas,<br />
uma olha para a outra. Afinal, era o juiz <strong>de</strong> direito. Aceitam o chamado<br />
<strong>de</strong> doutor Agê, com quem sobem até o andar superior.<br />
Pediu licença, foi rapidamente ao seu gabinete, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> trouxe um<br />
aparelho <strong>de</strong> som, que imediatamente ligou para <strong>de</strong>leite das convidadas.<br />
Era uma valsa bem dolente, daquelas valsas antigas que provocavam<br />
em quem as ouvia um estado geral <strong>de</strong> tranqüilida<strong>de</strong> e mesmo amolecimento.<br />
Tomou-se <strong>de</strong> coragem e convidou Ambrosina, era o nome <strong>de</strong> uma<br />
<strong>de</strong>las, para dançar. Agê rodopiava pelo salão com a leveza <strong>de</strong> bailarino<br />
profissional, mostrando agilida<strong>de</strong> nos pés sobre os quais corrupiava em<br />
volteios cada vez mais graciosos com que pretendia <strong>de</strong>monstrar sua<br />
habilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> dançarino.
302 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
Tentou realizar num pas algumas “pontas” para impressionar as<br />
convidadas. O sapato comum que usava frustrou-lhe a <strong>de</strong>sejada<br />
exibição.<br />
De fato, doutor Agê exibia competência e agilida<strong>de</strong> bem distantes<br />
<strong>de</strong> sua ação como julgador. Eram dois seres distintos, e aquele que estava<br />
se libertando das amarras psicológicas, encorajou-se a nova contradança<br />
com Rosa para mostrar a Ambrosina, paralisada com o que via e com o<br />
<strong>de</strong> que participava, sua maestria, sepultando <strong>de</strong> vez o outro, a cujo cargo<br />
estava a administração da Justiça.<br />
Têmis não resistiu aos avanços avassaladores <strong>de</strong> Terpsícore.<br />
Vencida a primeira etapa do projeto longamente amadurecido, o<br />
passo seguinte do doutor Agê foi combinar com Ambrosina e Rosa os<br />
dias e horários das aulas <strong>de</strong> dança, <strong>de</strong> que po<strong>de</strong>riam participar suas<br />
colegas <strong>de</strong> escolas e outras moças da cida<strong>de</strong>.<br />
Doutor Agê havia encontrado sua Pasárgada e, invariavelmente,<br />
todas as segundas-feiras lá estava ele rodopiando feliz pelo salão do júri<br />
ante o olhar carrancudo e severo dos antigos juízes que serviram na<br />
comarca, cujas fotos emolduravam o austero local.<br />
Parecia em transe enquanto bailava, sua fisionomia contraída dos<br />
dias <strong>de</strong> tédio e solidão <strong>de</strong>sfranzia-se para dar lugar à caraça transpirando<br />
alegria e prazer.<br />
Domício sentiu que estava se alongando em <strong>de</strong>masia, resolvendo<br />
colocar termo à carta com palavras que, dizia ele, estavam longe <strong>de</strong><br />
representar um julgamento sobre a conduta do professor <strong>de</strong> dança.<br />
Não era professor <strong>de</strong> ética, muito menos tinha vocação para dar<br />
lições <strong>de</strong> comportamento a quem quer que fosse. Outra era sua missão,<br />
mas o episódio <strong>de</strong>spertara sua atenção pelo que possuía <strong>de</strong> insólito e<br />
<strong>de</strong>sproporcional, além <strong>de</strong> abusivo.<br />
Teve notícias <strong>de</strong> que o professor <strong>de</strong> dança fora encaminhado pelo<br />
tribunal a outra comarca, on<strong>de</strong>, com toda certeza, <strong>de</strong>ve ter dado pasto à<br />
sua incorrigível vocação para a dança, e ao lado <strong>de</strong>las a confirmação <strong>de</strong><br />
que os processos se acumularam em Pequilândia a ponto <strong>de</strong> causar<br />
exasperação àqueles que buscavam remédio para seus males no<br />
discernimento, isenção e respeitabilida<strong>de</strong> dos magistrados.
O professor <strong>de</strong> dança ______________________________________________________________ Murilo Badaró 303<br />
Se a dança lhe não daria créditos para promoções na carreira,<br />
validados pela qualida<strong>de</strong> das sentenças e o número <strong>de</strong> processos<br />
concluídos, a antigüida<strong>de</strong> o levaria aos postos mais altos da profissão.<br />
Assim manda a lei, arremata.<br />
Domício encerra sua longa e <strong>de</strong>sconcertante carta a Rodolfo,<br />
pedindo-lhe <strong>de</strong>sculpas por não ter tido tempo <strong>de</strong> ser mais breve.
304 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
O POETA ESCONDE A POESIA<br />
SOB A PÁLPEBRA<br />
Alcione Araújo*<br />
É tão raro ir ao centro da cida<strong>de</strong> que nunca vou <strong>de</strong> carro. É salutar<br />
tornar lazer um <strong>de</strong>ver que me tire do Leblon. Tal idiossincrasia criou a<br />
ocasião em 78 ou 79, não me lembro bem.<br />
Voltando para casa, num fim <strong>de</strong> tar<strong>de</strong>, tomo um ônibus no ponto <strong>de</strong><br />
partida. Sento-me à janela, estico as pernas e me rendo ao prazer do ar<br />
refrigerado. Acompanho passivamente o movimento na calçada, alheio<br />
ao que se passa no ônibus. Ambientado ao silêncio e ao conforto, começo<br />
a ler um livro. Mas não me escapa que o ônibus é ocupado aos poucos.<br />
Ao virar uma página, olho à volta, <strong>de</strong> relance, e <strong>de</strong>paro-me, atônito,<br />
com o inesperado. Avança pelo corredor, à procura <strong>de</strong> um lugar vago,<br />
ninguém menos que o poeta. Meu coração se acelera num ritmo caótico.<br />
Volto ao livro sem nenhuma pretensão <strong>de</strong> ler. As idéias rodopiam ao<br />
sabor das emoções. Ao meu lado, uma poltrona vazia. Quase passo a<br />
mão sobre o assento, à guisa <strong>de</strong> limpá-lo, mas, na verda<strong>de</strong>, sugerindo-o<br />
ao poeta. Falta-me coragem para o gesto. Não consigo mais fingir que<br />
leio. Volto a olhar através da janela, agora tentando me passar por um<br />
<strong>de</strong>sses tipos aéreos, que se mantêm em quieto silêncio, perdidos nos<br />
próprios pensamentos. Embora olhe para fora, todos os canais <strong>de</strong><br />
percepção estão voltados para o poeta que, afinal, senta-se.<br />
* Escritor e dramaturgo.
306 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
Eis que o impensado, o jamais sonhado, o para o qual nunca me<br />
preparara, acontecia. Eu, sentado ao lado <strong>de</strong> ninguém menos que Carlos<br />
Drummond <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>. Se o coração já me escoiceava o peito, agora as<br />
pernas tremiam. Cruzei-as, para pren<strong>de</strong>r uma à outra.<br />
Porém, o poeta me ignora. Simplesmente não me vê. Se olhasse<br />
pela janela, po<strong>de</strong>ria me perceber, pelo menos, <strong>de</strong> soslaio. Mas ele age<br />
como se ali não houvesse ninguém. Abre o livro e lê, nariz quase colado<br />
ao papel. O ônibus parte.<br />
Olho pela janela, fingindo ensimesmamento. Na verda<strong>de</strong>, atento a<br />
cada movimento do poeta, à sua respiração, até ao seu olhar. O poeta não<br />
sabe, nem po<strong>de</strong> saber, que ao seu lado, quase lhe roçando o braço, está<br />
um leitor <strong>de</strong> seus versos, que compartilha tanto <strong>de</strong> sua sensibilida<strong>de</strong> que<br />
se sente cúmplice do olhar, <strong>de</strong> retinas fatigadas, que pousa sobre homens<br />
e coisas. O poeta não sabe, nem po<strong>de</strong> saber, que este que ele ignora a seu<br />
lado, leu todos os poemas, <strong>de</strong> todos os seus livros, assim como todos os<br />
livros sobre os seus livros e que, agora, espicha o pescoço para espiar que<br />
livro ele lê. O poeta não sabe, nem po<strong>de</strong> saber, que ao seu lado está um<br />
mineiro, que também viveu em Belo Horizonte, que um dia também saiu<br />
<strong>de</strong> Minas, e que também veio para o Rio <strong>de</strong> Janeiro, e cessam aí as<br />
analogias. O poeta não sabe, nem po<strong>de</strong> saber, que a seu lado não está um<br />
poeta, mas um escritor, a quem não foi dado o verso.<br />
Recosto a ca<strong>de</strong>ira e ganho liberda<strong>de</strong> para observá-lo <strong>de</strong> viés. Usa<br />
paletó sobre a camisa esporte, abotoada no colarinho. No colo, uma pasta<br />
preta sem alça po<strong>de</strong> confundi-lo com um advogado, um professor ou<br />
mesmo um cobrador. A mão, <strong>de</strong> <strong>de</strong>dos longos, é <strong>de</strong> uma brancura quase<br />
transparente, que <strong>de</strong>ixa à mostra finas veias azuis. Contrasta com o livro,<br />
que segura aberto – pequeno, fino, antigo, <strong>de</strong> capa dura vermelha. Olho<br />
através das lentes dos seus óculos. Somados os graus <strong>de</strong>le aos meus, o<br />
mundo se entorta e <strong>de</strong>forma. Para ler e ver <strong>de</strong> perto, ele aperta os olhos<br />
por trás dos óculos. É <strong>de</strong> olhos quase fechados que vê o mundo. É sob a<br />
pálpebra que o poeta escon<strong>de</strong> a poesia.<br />
Comecei a ser beliscado pela idéia <strong>de</strong> puxar conversa. E se eu<br />
dissesse – conjeturei – “Conheço o senhor.” Fiquei envergonhado só <strong>de</strong><br />
pensar. Desisti. A idéia retornou com outra forma: “E aí, Drummond?”.
O poeta escon<strong>de</strong> a poesia sob a pálpebra ______________________________________________ Alcione Araújo 307<br />
Outra vez me envergonhei com a insinuação <strong>de</strong> uma intimida<strong>de</strong> que<br />
jamais tivemos. Como reagiria se o chamasse <strong>de</strong> Drummond? – pensei.<br />
Ele olharia para mim, não diria uma palavra, não moveria um único<br />
músculo e, ato contínuo, voltaria a ler. E eu, então, saltaria pela janela do<br />
ônibus em movimento. Ocorreu-me, então, utilizar o que tínhamos em<br />
comum: Minas. Eu perguntaria, em tom <strong>de</strong> pilhéria: “Então, o senhor<br />
acha que a nossa Minas não há mais?”. Pergunta mais ridícula, meu<br />
Deus! E o tratamento? Nunca falei senhor Shakespeare, senhor Goethe,<br />
senhor Whitman! Mas não conseguiria dizer: “E então, Carlos...?”<br />
Melhor esquecer esta idéia. Voltei a poltrona à posição vertical, abri o<br />
livro. Não consegui ler, mas mantive o olhar fixo na página aberta. Até<br />
que me ocorreu que se ele me visse lendo, quem sabe não puxaria<br />
conversa? Talvez perguntasse pelo livro, ou se leio sempre, o que gosto<br />
<strong>de</strong> ler, etc. até se <strong>de</strong>clarar poeta e se i<strong>de</strong>ntificar. Eu, então, na euforia <strong>de</strong><br />
conhecê-lo pessoalmente, confessaria minha admiração e recitaria uns<br />
três ou quatro poemas que sei <strong>de</strong> cor. Bastou intuir o interesse do poeta<br />
no que lia para concluir que ele jamais tiraria os olhos daquele livreco e<br />
olharia para mim.<br />
Foi o que aconteceu. O homem não <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> ler um instante. A<br />
certa altura, convencido <strong>de</strong> que não <strong>de</strong>via importuná-lo, eu também voltei<br />
a ler, agora com interesse. Em Ipanema, o poeta <strong>de</strong>sembarcou. Afastouse,<br />
empertigado, pasta à mão, sem olhar para trás. Segui no ônibus para o<br />
Leblon, me mor<strong>de</strong>ndo por ter perdido aquela oportunida<strong>de</strong>.<br />
Passaram-se os anos. Uma tar<strong>de</strong>, na se<strong>de</strong> da Socieda<strong>de</strong> Brasileira<br />
<strong>de</strong> Autores Teatrais, para receber direitos autorais, reencontro o poeta do<br />
mesmo lado do balcão, também recebendo seus direitos. Aten<strong>de</strong>ndo ao<br />
mesmo tempo, o funcionário se confun<strong>de</strong> e troca os nossos cheques. No<br />
curto tempo até o engano ser corrigido, soubemos o quanto o outro<br />
recebera. E o poeta comentou, prosaico: “Você ganha muito dinheiro! É<br />
dramaturgo? Fico até com vergonha <strong>de</strong> você ter visto a mixaria que<br />
recebi.” Rindo às gargalhadas, saímos juntos para o elevador. E eis que o<br />
poeta, <strong>de</strong> voz aguda e frases rápidas, torna-se, aos meus olhos, um mortal<br />
falante, espirituoso e divertido. Culpado e envergonhado por ganhar mais<br />
do que o genial Carlos Drummond <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, me empenho em
308 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
explicar-lhe que uma peça minha estava fazendo sucesso, um fato raro,<br />
nada rotineiro, absolutamente excepcional.<br />
No ônibus <strong>de</strong> volta, lado a lado, voltados um para o outro, falamos<br />
sobre teatro, poesia, crônica, tradução, Itabira, Minas, <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong>, etc.<br />
Quando a conversa chegou à pura galhofa, criei coragem e contei-lhe a<br />
história do nosso encontro <strong>de</strong> anos antes. E ele conce<strong>de</strong>u que voltássemos<br />
a rir como se fôssemos amigos. Como se fôssemos velhos amigos.<br />
Em Ipanema o poeta <strong>de</strong>spediu-se e <strong>de</strong>sembarcou. Afastou-se<br />
empertigado, pasta à mão. Quando o ônibus passou por ele, acenou.<br />
Segui para o Leblon pensando em seus versos: “Que milagre é o homem?<br />
Que sonho, que sombra? Mas existe o homem?” Sim, existe.
A PEDAGOGIA LOGOSÓFICA<br />
E A LOGOSOFIA<br />
Vanessa Siuves Murta*<br />
Leonicy Viana<br />
Em pleno século XV, o gênio <strong>de</strong> Leonardo da Vinci concebeu<br />
máquinas que a humanida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seu tempo não podia construir. Outro<br />
caso, também famoso, se <strong>de</strong>u quatro séculos <strong>de</strong>pois, com Júlio Verne.<br />
Toda uma estrutura científica e tecnológica muito mais avançada seria<br />
necessária para transformar os sonhos daquelas duas mentes prodigiosas<br />
em realida<strong>de</strong>s concretas da vida <strong>de</strong> então.<br />
A educação para a vida. Algo semelhante acontece, em nosso<br />
tempo, com a educação da infância e da juventu<strong>de</strong>, sentida por todos<br />
como tarefa das mais difíceis. Vai-se bem no ensino do Português e da<br />
Matemática, mas não assim quando o assunto é a formação integral, que<br />
inclui a educação para a vida. A humanida<strong>de</strong> não está preparada para<br />
enfrentar o gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>safio. Sobram idéias, objetivos, sonhos, e as<br />
técnicas propostas se ligam mais propriamente a esses sonhos, e não a<br />
resultados práticos que os adultos com função pedagógica tenham<br />
alcançado primeiro em suas vidas.<br />
“Todo ensinamento moral, quando não avalizado com o exemplo<br />
<strong>de</strong> quem o dita, atua em sentido contrário na alma <strong>de</strong> quem o recebe”,<br />
disse um dia González Pecotche (<strong>19</strong><strong>01</strong>–<strong>19</strong>63), criador da Logosofia. A<br />
afirmação parece óbvia, e em certo sentido <strong>de</strong> fato o é, mas há nela outros<br />
* As autoras, alunas do Curso <strong>de</strong> Pedagogia da Universida<strong>de</strong> Castelo Branco, são docentes do<br />
Colégio Logosófico <strong>de</strong> Belo Horizonte .
310 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
sentidos que merecem aqui nossa consi<strong>de</strong>ração.<br />
O processo do docente. Para a Logosofia, o fator mais importante<br />
na pedagogia que forma para a vida é o processo do docente. Trata-se da<br />
auto-educação que o educador precisa realizar, antes <strong>de</strong> entregar-se à<br />
educação dos outros. Em terminologia logosófica, é a realização <strong>de</strong> um<br />
processo <strong>de</strong> evolução consciente, mediante a organização que cada<br />
indivíduo faz em si <strong>de</strong> seus três sistemas psicológicos: o mental, o<br />
sentimental e o instintivo.<br />
Demais está dizer que não se espera que aquele que ensina seja<br />
perfeito antes <strong>de</strong> ensinar. Espera-se, isso sim, que aquilo que queira<br />
ensinar a outrem ele o ensine primeiro a si mesmo, e que o aprenda <strong>de</strong><br />
fato, por haver percorrido com êxito a trilha do conhecer–fazer–e–ser.<br />
Essa será a medida <strong>de</strong> seu po<strong>de</strong>r pedagógico. Já não se trata <strong>de</strong> conhecer<br />
apenas mentalmente teorias sensatas, técnicas e recursos os mais<br />
mo<strong>de</strong>rnos e instigantes; já não se trata <strong>de</strong> estudar a psicologia dos outros,<br />
com prescindência do prévio estudo da própria.<br />
O conhecimento da vida interna. Apresentando-se como criador<br />
<strong>de</strong> uma nova cultura, González Pecotche <strong>de</strong>ixou vasta bibliografia, ainda<br />
inédita em sua maior parte. Apresentou seus ensinamentos em forma <strong>de</strong><br />
romance, conto, tratado, diálogo, conferência, aula, conversação, etc.,<br />
com um sem-número <strong>de</strong> diretrizes específicas para a educação da<br />
infância e da juventu<strong>de</strong>.<br />
Criou também a Fundação Logosófica, em <strong>19</strong>30, para a formação<br />
daqueles que viriam a ser os aplicadores da nova Pedagogia. Cada um<br />
<strong>de</strong>via apren<strong>de</strong>r como encaminhar a própria vida numa constante<br />
superação, e isso <strong>de</strong> forma cada dia mais inteligente, sentida e<br />
aperfeiçoada. Entre os principais objetivos <strong>de</strong>sse aprendizado, vale aqui<br />
<strong>de</strong>stacar o seguinte: “O <strong>de</strong>senvolvimento e o domínio profundo das<br />
funções <strong>de</strong> estudar, <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r, <strong>de</strong> ensinar, <strong>de</strong> pensar e <strong>de</strong> realizar,<br />
com o que o método logosófico se transubstancia em aptidões individuais<br />
<strong>de</strong> incalculável significado para o porvir pedagógico na educação da<br />
humanida<strong>de</strong>”.<br />
A Logosofia ensina o pedagogo a conhecer a sua vida interna, que é<br />
plena <strong>de</strong> recursos e energias. Aproveitando <strong>de</strong> forma lúcida essa riqueza e
A pedagogia logosófica e a logosofia _____________________________ Vanessa Siuves Murta e Leonicy Viana 311<br />
organizando sua estrutura psicológica, mental e espiritual, ele po<strong>de</strong>, num<br />
constante aperfeiçoamento, aprimorar as próprias condições e tornar-se<br />
um melhor colaborador na magna tarefa <strong>de</strong> educação das novas gerações<br />
humanas. Mas, como ficou dito, sempre começando por si mesmo.<br />
Jovens mais solidários e humanos. No laboratório <strong>de</strong> sua vida<br />
diária, tanto interna como externa, e sempre experimentando o que estuda<br />
e estudando o que experimenta, o docente vai-se formando mercê <strong>de</strong><br />
resultados práticos colhidos nos aspectos psicológico, moral, espiritual,<br />
familiar, social, etc. A constância <strong>de</strong>sses resultados cria a base<br />
insubstituível para uma bem-sucedida ação pedagógica na educação <strong>de</strong><br />
crianças e jovens. Para estes, a Pedagogia Logosófica abre imensas<br />
possibilida<strong>de</strong>s, ao oferecer-lhes elementos <strong>de</strong> ajuda para um viver mais<br />
fecundo, orientado, consciente, afetuoso e responsável. Trata-se, na<br />
verda<strong>de</strong>, <strong>de</strong> uma pedagogia da felicida<strong>de</strong>, pois enquanto ensina faz feliz.<br />
Os conhecimentos relacionados com a vida interna têm um alcance<br />
especialíssimo quando se fala em educação integral do ser humano.<br />
Ensinar às crianças <strong>de</strong>s<strong>de</strong> cedo sobre a realida<strong>de</strong> dos seus pensamentos,<br />
entida<strong>de</strong>s com vida própria e responsáveis por todo comportamento<br />
humano; ensinar-lhes sobre a sua inteligência e a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> saber<br />
usar suas faculda<strong>de</strong>s mentais <strong>de</strong> forma metódica e harmoniosa; ensinarlhes<br />
o porquê da vida, sobre o respeito, sobre o afeto e tantas outras<br />
realida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> seu ser psicológico, moral e espiritual, tudo isso propiciará<br />
o surgimento <strong>de</strong> jovens mais bem preparados para o mundo <strong>de</strong> hoje.<br />
Serão pessoas com mais consciência e sentimentos, capazes <strong>de</strong><br />
reconhecer o bem e <strong>de</strong> ser gratos, jovens mais atendidos em suas<br />
necessida<strong>de</strong>s íntimas e portanto mais serenos, menos agressivos, mais<br />
solidários e humanos.<br />
A era da evolução consciente. Diante, pois, <strong>de</strong> um quadro geral<br />
que preocupa, no qual o mundo adulto se mostra pobre e incapaz <strong>de</strong><br />
encarnar um mo<strong>de</strong>lo superior <strong>de</strong> conduta para as novas gerações, a<br />
juventu<strong>de</strong> mais do que nunca requer ser orientada, num trabalho<br />
pedagógico que <strong>de</strong>ve começar <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a infância.<br />
E, para que as concepções <strong>de</strong> cada novo Leonardo e <strong>de</strong> cada novo<br />
Júlio Verne não sigam como meros sonhos quando se trate da educação
312 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
da humanida<strong>de</strong>, é necessário que exista uma humanida<strong>de</strong> preparada, com<br />
estrutura científica e metodológica que torne possível sua realização. Para<br />
tanto, a Logosofia anuncia o advento da era da evolução consciente, uma<br />
era que revoluciona o quadro dos valores pedagógicos que norteiam<br />
nossa espécie e na qual o pedagogo, auto-educador por excelência, é<br />
capacitado no conhecimento <strong>de</strong> si mesmo, do semelhante, das Leis do<br />
Universo e <strong>de</strong> Deus.
À PALMA DA MÃO DE DEUS...<br />
Petrônio Souza Gonçalves*<br />
Cecília Meirelles, entre tantos momentos <strong>de</strong> genial divinda<strong>de</strong>,<br />
revelou-nos que “já não tem mais lugar quem mora em tudo”. Sei que<br />
moro em mim e <strong>de</strong>ntro dos amigos. Habito abismos, estou on<strong>de</strong> sempre<br />
estive e on<strong>de</strong> nunca estarei. Estou na curva do <strong>de</strong>stino, à beira do<br />
caminho. Como jardineiro da eternida<strong>de</strong>, sigo catando cacos espalhados,<br />
estilhaços encontrados aqui e ali, procurando amigos que um dia acreditei<br />
perdidos, esquecidos mundo afora... Agora, estou a revê-los, reencontrálos<br />
em minha casa que tem várias moradas...<br />
Meu Deus, como tudo é significativo, representativo... Neste<br />
momento, enquanto me <strong>de</strong>canto em sílabas, ouço o cd que a bela e<br />
perdida amiga me <strong>de</strong>stinou do interior <strong>de</strong> Minas. Faz uma memória<br />
caduca <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> mim, um instante insano, um momento pleno <strong>de</strong> luz e<br />
tantas coisas que não somos mais capazes <strong>de</strong> perceber, que não ousamos<br />
compreen<strong>de</strong>r... Sonhar é preciso, e acreditar é necessário. Afinal, o que o<br />
tempo nos <strong>de</strong>u além <strong>de</strong> momentos? “Não os percamos agora...”.<br />
De fora, do mundo paralelo e real, o vento sopra à minha janela,<br />
querendo seqüestrar-me o instante. E eu só ‘canto porque o instante<br />
existe’. ‘Sou alegre, sou triste, sou poeta’. Poeta da palavra viva,<br />
da voz que dobra e faz da esquina a curva da lua, da rua que acen<strong>de</strong> em<br />
nós a noite e nos faz sonhar o impossível, o imprescindível, o<br />
impon<strong>de</strong>rável.<br />
* Jornalista e escritor.
314 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
Hoje, quero só viver o impossível, colher manhãs madrugadas<br />
a<strong>de</strong>ntro, fazer minha casa <strong>de</strong>ntro da sombra do tempo, me entregar ao<br />
momento...<br />
É difícil viver assim? Não, é fácil, muito fácil, basta apenas se<br />
alimentar <strong>de</strong> infinito, fisgar o arco-íris no anzol das horas. Fazer com que<br />
o tempo não tenha <strong>de</strong>mora, tenha apenas um minuto para viver e se<br />
entregar, se encontrar nos vários que em nós habita e o coração agita.<br />
Se você não acredita, nada posso fazer... Te dou apenas este<br />
<strong>de</strong>poimento ancorado em palavras, minha verda<strong>de</strong> colhida sobre os<br />
muros cobertos pelas eras nas camadas hereditárias da atmosfera. Se você<br />
jogar a máscara fora, <strong>de</strong>ixar a dúvida, o medo e o engano irem-se<br />
embora, libertar o pensamento aprisionado na palma da sua mão, talvez<br />
enten<strong>de</strong>rá este mundo aqui traduzido, este universo submerso em tantos<br />
sois e seus infinitos girassóis...<br />
Eu, no entanto, vou um mundo novo <strong>de</strong>svendar, uma nova esquina<br />
encontrar, em um novo barco singrar a aurora em direção aos caminhos<br />
secretos dos gran<strong>de</strong>s mistérios <strong>de</strong> Deus, me exilar pela terra etérea, ser<br />
cada vez mais os pedaços que tanto em tudo estou.<br />
On<strong>de</strong>, não sei... Sei apenas que vou, que tenho a nítida, clara e<br />
confortante certeza <strong>de</strong> que eu também sou parte <strong>de</strong>le, do todo. Com a<br />
bênção <strong>de</strong> Deus!
MACHADO<br />
Sangue mulato – um <strong>de</strong>stino.<br />
Algibeiras só <strong>de</strong> sonhos,<br />
o menino vai à escola<br />
respirar o ABC.<br />
De vagar, muitas leituras<br />
nas entrelinhas da vida,<br />
ao <strong>de</strong>pois da letra Z.<br />
Com mágico cinzel mo<strong>de</strong>la e<br />
enredos aos personagens,<br />
pensamentos claro-escuros<br />
com sutilezas azuis.<br />
Amanuense das letras<br />
celebra a palavra em ouro<br />
requinte elegância e arte.<br />
Romperam <strong>de</strong> sua lavra<br />
mulheres <strong>de</strong> sombra e sol.<br />
Só a real Carolina<br />
<strong>de</strong>rrama luar em sua pena.<br />
O eco <strong>de</strong> sua voz<br />
reverbera pelo sempre<br />
e sobrevoa, solene,<br />
nos altiplanos da glória.<br />
* Poetisa. Da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, ocupa a ca<strong>de</strong>ira nº 6.<br />
Yeda Prates Bernis*
316 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
NATAL<br />
Hoje<br />
calo o verso<br />
com que engano<br />
o poeta que me habita<br />
e lembro<br />
um menino<br />
filho <strong>de</strong> carpinteiro<br />
a quem busco<br />
no rastro dos mísseis<br />
na dor das calçadas<br />
na noite indiferente<br />
É Natal<br />
em toda parte<br />
em parte alguma<br />
catedrais do instante<br />
que erguemos<br />
sôfregos<br />
nas valas comuns<br />
da intolerância<br />
e no rancor<br />
que ar<strong>de</strong><br />
em nossa fé<br />
* Poeta, publicou Ser longe e Habite-se. Resi<strong>de</strong> no Rio <strong>de</strong> Janeiro.<br />
Fernando Moreira Salles*
318 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
É Natal.<br />
Dá-nos, menino,<br />
ao menos esta noite<br />
a tua mão<br />
ABISMO<br />
Esse nada<br />
iníquo<br />
todo meu<br />
ANOTAÇÕES DE VIAGEM<br />
Só me sei<br />
on<strong>de</strong> não sou
* Jornalista, poeta, escritor e editor.<br />
MAGMA<br />
Pintar na tela o cenário<br />
<strong>de</strong> cada sertão imaginário!<br />
Pessoalida<strong>de</strong> e sensação<br />
ao reger a semente!<br />
As cores Diadorim<br />
do sertanejo virtual:<br />
pluralida<strong>de</strong> caminhante<br />
na literatura rosiana.<br />
“Nonada” – diria o mestre<br />
da palavra universal<br />
nas trilhas <strong>de</strong> Riobaldo<br />
– e élan parido.<br />
E nas lembranças míticas,<br />
segredadas no alcançar<br />
estrelas e emblemas,<br />
a formulada simbologia.<br />
Um parágrafo na imensidão<br />
do trajeto-diplomacia;<br />
metodologia e pé-no-chão:<br />
As veredas e seu amante gerais.<br />
Ozório Couto*
320 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
Qual será a visão?<br />
Qual arroubo o agreste<br />
aponta no horizonte<br />
ao pôr-do-sol?<br />
Um homem e seu alento<br />
encontram nas minas<br />
o verbo <strong>de</strong>stinado<br />
ao diálogo.<br />
No jogo do vaqueiro,<br />
no pouso do poeta,<br />
a água do tempo<br />
varre a alma,<br />
laça a essência <strong>de</strong> João.<br />
Cafundó e memória<br />
entrelaçam as múltiplicas<br />
feições da palavração.<br />
Cristalina... Deus é,<br />
na Maquiné <strong>de</strong> Cordisburgo,<br />
o cafuné <strong>de</strong> personagens<br />
da reinvenção <strong>de</strong> Rosa.<br />
Será a liberda<strong>de</strong> sonho<br />
constante e miguilina,<br />
mineiramente na linha<br />
curvilínea das montanhas?
NATAL EM PEDRA MENINA<br />
* Poeta. Resi<strong>de</strong> em Ferros.<br />
José Virgílio Gonçalves*<br />
Aos pés da colina,<br />
a capela<br />
tão pobre<br />
revela<br />
ao sapé que a cobre um salmo <strong>de</strong> humilda<strong>de</strong>.<br />
Foi nesta capela<br />
<strong>de</strong> Pedra Menina,<br />
à chama <strong>de</strong> uma vela<br />
<strong>de</strong> luz pequenina<br />
que um menino<br />
viu Jesus<br />
também pequenino.
322 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
324 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
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l – A <strong>Revista</strong> da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Mineira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong> recebe colaborações,<br />
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os critérios abaixo; títulos e nomes não são abreviados.<br />
VIEIRA, José Crux Rodrigues. Obra Poética I. Belo Horizonte: Editora<br />
B, 2006. 444 p.<br />
BOSCHI, Caio; MORENO, Carmen; FIGUEIREDO, Luciano. Inventário<br />
da Coleção Casa dos Contos. Belo Horizonte: Editora PUC, 2006. 560 p.<br />
IGLESIAS, Francisco. “Política Econômica do Estado <strong>de</strong> Minas Gerais<br />
(1890-<strong>19</strong>30)”. In V Seminário <strong>de</strong> Estudos Mineiros. Belo Horizonte: Editora<br />
UFMG, <strong>19</strong>82.<br />
(Observar esta or<strong>de</strong>m: sobrenome do autor em letras maiúsculas; título em<br />
itálico; tratando-se <strong>de</strong> capítulo ou parte <strong>de</strong> obra, entre aspas, ficando em itálico<br />
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b. en<strong>de</strong>reço completo (logradouro, número, bairro, CEP, cida<strong>de</strong>, estado,<br />
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local, tese;
326 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
d. ativida<strong>de</strong> atual, natureza e local;<br />
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