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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB<br />

DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO CAMPUS I<br />

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO E CONTEMPORANEIDADE<br />

Artebagaço Odeart<br />

Ecos que entoam a mata africano-brasileira do Cabula<br />

Janice de Sena Nicolin<br />

Salvador-Ba.<br />

Julho de 2007


JANICE SENA NICOLIN<br />

ARTEBAGAÇO ODEART<br />

ECOS QUE ENTOAM A MATA AFRICANO-BRASILEIRA DO CABULA<br />

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-<br />

Graduação em Educação e Contemporaneidade da<br />

Universidade do Estado da Bahia (UNEB) como<br />

requisito parcial para a obtenção do grau de Mestra<br />

em Educação e Contemporaneidade.<br />

Orientadora: Profª Drª Narcimária Correia do<br />

Patrocínio Luz.<br />

.<br />

Salvador<br />

2007


N634a<br />

Cabula/<br />

Nicolin, Janice de Sena<br />

Artebagaço Odeart ecos que entoam a mata africano-brasileira do<br />

Janice de Sena Nicolin – Salvador, 2007.<br />

403f. :<br />

Orientador: Narcimária Correia do Patrocínio Luz<br />

Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado da Bahia. Faculdade de<br />

Educação. Programa de Pós Graduação em Educação. Mestrado em Educação e<br />

Contemporaneidade<br />

Bibliografia: 399-403.<br />

1-Educação Pluricultural. 2 - Arte-educação. I – Titulo II.<br />

CDD 370.193408


TERMO DE APROVAÇÃO<br />

JANICE SENA NICOLIN<br />

ARTEBAGAÇO ODEART<br />

ECOS QUE ENTOAM A MATA AFRICANO-BRASILEIRA DO CABULA<br />

Dissertação aprovada como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Educação e<br />

Contemporaneidade, Universidade do Estado da Bahia – UNEB, pela seguinte banca<br />

examinadora:<br />

Eduardo Nunes _________________________________________________________________<br />

Doutor em<br />

Universidade do Estado da Bahia – UNEB<br />

Inaicyra Falcão dos Santos ________________________________________________________<br />

Doutora em<br />

Universidade de Campinas - UNICAMP<br />

Ana Célia da Silva _____________________________________________________<br />

Doutora em<br />

Universidade do Estado da Bahia.<br />

Narcimária Correia do Patrocínio Luz – Orientadora ____________________________________<br />

Doutora em Educação<br />

Universidade do Estado da Bahia<br />

Salvador, _____de ___________________de 2007.


Para meus ancestrais: minha avó Diocleciana, Dona Amorzinha, fonte<br />

de inspiração da minha escolha pela pedagogia.<br />

Aos meus pais, Manuel e Romilda pelas trilhas construídas que<br />

encorajaram-me à luta.<br />

Aos meus filhos, Andréia e Ivo, sentido de continuidade.<br />

A minha neta Cauane Moara, o brotar de novas caçadas.


AGRADECIMENTOS<br />

Esta composição é constituída por muitos ecos que entoam vivências tradutoras da<br />

comunalidade africano-brasileira, sua natureza poética expressa o lirismo da<br />

coletividade que o trâmite da tradição oral, que pôde colaborar para que este cenário<br />

fosse um lugar de resguardo, respeito e enaltecimento do patrimônio civilizatóriobrasileiro,<br />

assim como para que a recriação artístico-teatral fosse uma expressão de<br />

acolhimento de diversas linguagens artísticas, como a emoção e a sensibilidade, que<br />

animam e expandem a trajetória daqueles que lutam pela afirmação de suas alteridades<br />

próprias e culturais:<br />

A Deoscóredes Maximiliano dos Santos, Mestre Didi Axipá, Alapini, por me permitir<br />

beber da fonte do seu milenar acervo literário, por me inundar de entusiasmo e coragem<br />

para recriar cenários artístico-culturais em educação que abrem caminhos de<br />

reconhecimento e respeito aos valores da tradição africano-brasileira, a exemplo da<br />

tradição plantada pela família de linhagem de sacerdotes do culto Ketu-Nagô e da<br />

realeza nagô, da qual Mestre Didi é o mais antigo membro.<br />

A minha orientadora, Profa. Dra.Narcimária Correia do Patrocínio Luz, pela paciência e<br />

pelos impulsos que me animaram e encorajaram a romper com os obstáculos<br />

ideológicos que impediam o brotar e desenrolar desta perspectiva mítico-poética.<br />

Aos jovens e adolescentes das três gerações do Grupo Teatral Artebagaço Odeart – sem<br />

vocês, este trabalho não existiria –, pelo convívio e desfrute da alegria e entusiasmo<br />

que me impulsionaram à concepção da perspectiva Artebagaço Odeart e ao Projeto<br />

Odeart: Fabiana, Andréa, Maurício, Frana Carine, Anderson, Patrícia, Alcinéia, Cíntia,<br />

Lindinalva, Gilmara, Jorge Alex, Jorge Cipriano, Larissa, Dainho, Kalango, Daniela,<br />

Hudson, Cláudia, Cássia, Jaqueline, Márcia Rogéria, Cristiane, Lílian e muitos outros<br />

mais, mil cabuleiros que compuseram esta dinâmica político-pedagógica,<br />

socioexistencial e artístico-cultural.<br />

Ao PRODESE – Programa Descolonização e Educação, e a toda a equipe, Lea Ferreira,<br />

Ronaldo Martins, Edileuza Souza, Valdecir Nascimento, Jaqueline Pinto, Marcio Nery,<br />

Ana Rita Santiago, pelos incentivos e sugestões.<br />

Ao Prof. Dr. Marco Aurélio Luz, pelas conversas, palestras e orientações que me<br />

ajudaram a criar as trilhas do vivido-concebido, a seiva que umedeceu a semente desta<br />

perspectiva de abordagem poética.<br />

A Diego Nicolin, pelas diversas conversas que me ajudaram a compor o entendimento<br />

da linguagem teatral, sobretudo das raízes da linguagem teatral lírico-satírica do<br />

Artebagaço Odeart.<br />

A Beni Moraes, pela paciência nas entrevistas, pela ajuda no entendimento da<br />

linguagem da informática e pelas orientações de busca das fontes históricas.<br />

Ao Tata Kamuguengue, Eldon Araújo Laje, Gijo do Onzo Nsumbo Tabula Dico a Meia<br />

Dandalunda, Terreiro São Roque, da Nação Angola, que muito colaborou para a<br />

composição da memória social e da tradição africana fincada no Cabula.


À Mameto N’kisi Indaramucaia do Ganzuá Mogambo Monunguzu, que colaborou<br />

oferecendo dados sobre a memória social do Cabula.<br />

A Dona Bernadete Pereira, filha de Sr. Elpídio Pereira Nepomuceno, pela receptividade<br />

e grandiosa ajuda ao compartilhar o saber herdado de seus ancestrais, tradutor da<br />

história social do Cabula.<br />

ATia Lili, Dona Dadá, Marota, Senhor Cosme, Senhor Gildásio, Valdelice, Zezé,<br />

Domingos Sérgio, Jorge Cipriano pai, Maria Guilhermina Santos, moradores que<br />

colaboraram para compor neste trabalho a memória social do Cabula.<br />

Aos professores Maria Cleusa, Elairdes Borges, Sônia Regina, Maria de Fátima Pires e<br />

Hipólito Brito, que muito colaboraram para concepção do cenário de educação<br />

pluricultural.<br />

À Profa. Dra. Jaci Meneses que, em muitas conversas sobre a História da Educação,<br />

muito colaborou para que pudesse trilhar os caminhos da memória da educação.<br />

À Profa. Dra. Ana Célia da Silva, pelos diálogos nos encontros na ABPN – BA –<br />

Associação dos Pesquisadores Negros da Bahia, os quais fortaleceram o sentido de<br />

afirmação da linguagem artístico-teatral Artebagaço Odeart.<br />

Ao Programa de Pós-Graduação – Mestrado em Educação e Contemporaneidade – PEC,<br />

na pessoa da Profa. Dra. Nadia Hage, pela compreensão sobre a necessidade de<br />

ampliação espaço-temporal de minha vivência nesta experiência. E também a Hildete,<br />

Gina, Solange, Daniela, Ricardo, funcionários do Mestrado, que estiveram sempre<br />

dispostos a prestar ajuda no que fosse preciso.<br />

À Associação dos Pesquisadores Negros – Bahia, representada por Ivanilde Mattos,<br />

Dr.Wilson Mattos, Patrícia Pena, Romilson Souza por acolher esta proposta de<br />

educação.<br />

A Solange Fonseca e Cidália Carvalho, amigas que com muita paciência e otimismo<br />

ajudaram a reoorganizar a tecitura deste texto, revisando e sugerido formas de<br />

expressões tradutoras do cenário da pesquisa.<br />

Ao bibliotecário do Mosteiro de São Bento, Reinaldo, pela ajuda na busca das<br />

referências histórico-geográficas do Cabula.<br />

E a todos aqueles que contribuíram de diversas formas para o enriquecimento deste<br />

trabalho.


O que caracteriza o processo histórico negro-africano é o fato de<br />

notarmos uma linha de continuidade ininterrupta de determinados<br />

princípios e valores que são capazes de engendrar e estruturar<br />

identidades e relações sociais.<br />

Marco Aurélio Luz


RESUMO<br />

Artebagaço Odeart são perspectivas de linguagens mítico-poéticas que apelam para a<br />

episteme africano-brasileira, com o intuito de superar o etnocentrismo que alicerça as<br />

políticas públicas de Educação. A pesquisa parte da análise da experiência vivida pelo<br />

Grupo Teatral Artebagaço Odeart, num colégio público de Ensino Médio, na área de<br />

Língua Portuguesa, no bairro do Cabula em Salvador, Bahia. O Cabula é a<br />

territorialidade onde moram os fundadores do Grupo Teatral Artebagaço Odeart, a<br />

saber: três educadores, que, ao longo de 16 anos da experiência educacional,<br />

conseguiram reunir, aproximadamente, mil estudantes. A temática que caracteriza a<br />

pesquisa Ecos que entoam a mata africano-brasileira exprime a origem das distintas<br />

linguagens da territorialidade em estudo, que comunicam a experiência concebida e<br />

recriam um cenário artístico teatral que aborda a história e a tradição cultural africanobrasileira<br />

plantada no Cabula. Assim, a pesquisa se constitui num mosaico pluricultural<br />

que afirma a África recriada e resguardada na “mata africano-brasileira”, caracterizada<br />

pelas comunalidades tradicionais e suas dinâmicas de sociabilidade no Cabula. A<br />

abordagem teórico-metodológica é composta por autores cujas produções acadêmicocientíficas<br />

têm como referência o patrimônio africano-brasileiro, e que permite também<br />

o acesso a categorias analíticas fundamentais, a saber: arkhé, eidos, ethos,<br />

territorialidade, comunalidade, alteridade, civilização africano-brasileira, educação<br />

pluricultural. Adotou-se a abordagem etnográfica para atender à dinâmica espaçotemporal<br />

da territorialidade do Cabula, o que permitiu utilizar procedimentos<br />

metodológicos envoltos nas perspectivas “desde dentro para desde fora” e “vividoconcebido”,<br />

que enfatizam as elaborações mais profundas do conhecimento acumulado<br />

pelas comunalidades, e estabelecer um modelo operacional de análise e interpretação,<br />

intercambiando com os códigos de valores da territorialidade do Cabula e os códigos de<br />

valores da sociedade urbano-industrial etnocêntrica. Como principais resultados<br />

alcançados, destacam-se: as proposições pedagógicas que apelam para o repertório<br />

civilizatório africano-brasileiro, estabelecendo linguagens criativas para o cotidiano<br />

escolar, visando a promoção do direito à alteridade própria dos jovens do Ensino<br />

Médio; sua afirmação no âmbito do currículo escolar especialmente na área de Língua<br />

Portuguesa e suas perspectivas transdisciplinares, a exemplo daquelas relacionadas às<br />

áreas de História e Artes, capazes de promover os valores que estruturam as dinâmicas<br />

das comunalidades africano-brasileiras do Cabula.<br />

Palavras-chaves: arkhé, alteridade, comunalidade, educação pluricultural.


RÉSUMÉ<br />

L’ Artebagaço Odeart sont des perspectives de langages mytique-poétiques que attirent<br />

pour la épistemologie afro-brésilienne avec l’objectif de surpasser l’ethonocentrisme<br />

qu’engendrent les politiques publiques de l’éducation. La recherche est partie de<br />

l’analisy de l’expérience vécue pour le groupe théâtral Artebagaço Odeart qui travaillait<br />

avec la langue portugaise, dans un lycée public situé dans le quartier de Cabula,<br />

Salvador, Bahia, Brésil. Le quartier de Cabula est le territoire où habitent les fondateurs<br />

du groupe théâtral Artebagaço Odeart, à savoir: trois educateurs qui tout au long de<br />

seize ans d’éxpérience educative ont réussi rassembler, approximativement, mille<br />

lycéens. La thématique qui caractérise la recherche Les echos que entonnent la fôret<br />

Afro- brésilienne exprime l’origine des différents langages de la territorialité, en étude<br />

qui transmettent l’éxpérience conçu qui recréent un décors artistique théâtral concernant<br />

à l’histoire et a la tradition culturelle afro-brésilienne établie au Cabula. Ainsi, la<br />

recherche est constituée par un mosaïque pluriculturel qu’affirme l’Afrique recriée et<br />

protegée dans la forêt afro-brésilienne caractérisée par les communautés traditionelles<br />

et leurs dynamiques de la sociabilité dans le Cabula. L’abordage théoriquemethodologique<br />

est composé par des auteurs dont prodcution academiqué-scientifique a<br />

comme référence le patrimoine afro-brésilienne, et qui permet aussi l’accès aux<br />

catégories analitiques fondamentales, à savoir: arkhé, eidos, ethos, territorialité,<br />

communauté, altérité, civilisation afro-brésilienne, éducation pluriculturelle. On a<br />

adopté l’abordage ethnographique pour accueillir la dynamique spatio-temporelle de la<br />

territorialité du Cabula. Ce qu’a permi employer des procédures methodologiques<br />

envelopés dans les perspectives “dès dedans pour dès dehors” et “vécu-conçu” qui<br />

soulignent les élaborations les plus profondes de la connaissance accumulée pour les<br />

communauté, et établir un modèle opérationnel de l’analyse et de l’interprétation qui<br />

échange avec les codes de valeurs de la territorialité du Cabula et les codes de valeurs<br />

de la société urbain-industrielle ethnocentrique. Comme les principaux résultats<br />

obtenus, ont peut mettre en évidence: les propositions pédagogiques qu’appelent au<br />

répertoire de la civilisation afro-brésilienne en établant des langages créatreurs pour le<br />

quotidien scolaire, en visant à la promotion du droit à la altérité propre des jeunes du<br />

lycée; l’affirmation dans le champ d’action de matiéres scolaires, en particulier dans<br />

l’espace de la Langue Portuguaise, dans ses relations avec l’Histoire et de l’Art au<br />

Lycée, qui ont la faculté de promovoir les valeurs qui structurent les dynamiques des<br />

comunnautés afro-brésilienne du Cabula.<br />

Chefs de mots:arkhé, alterité, comunnauté, éducation pluriculturelle.


Figura 001<br />

Figura 002<br />

Figura 003<br />

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Figura 038<br />

Figura 039<br />

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Figura 041<br />

Figura 042<br />

Figura 043<br />

LISTA DE FIGURAS<br />

– Iya Oba Biyi, Mãe Aninha.......................................................................<br />

– Barracão de Xangô: Ilê Axé Opô Afonjá................................................<br />

– Mãe Senhora Axipá, Iya Oxum Miuwa., Iyanassô............................<br />

– Mãe Mestre Didi Axipá....................................................................<br />

– Horto Arraial do Retiro. 2005...........................................................<br />

– Horto. Mais próximo. 2005.............................................................<br />

– Horto. Mata Escura. 2006................................................................<br />

– Horto. Arraial do Retiro. 2005.........................................................<br />

– Horto. Estrada das Barreiras. 2004...................................................<br />

– Engomadeiras e Beiru. 2005.............................................................<br />

– Rainha Nzinga de Angola e Matamba................................................<br />

– Mapa do Centro de Salvador e áreas circunvizinhas. Destaque para o<br />

Cabula..............................................................................................<br />

– Sobre as terras da Engomadeira........................................................<br />

– Sobre terras do Bate Folha, do São Gonçalo e outros........................<br />

– Jorge Alex, Arraial do Retiro. Local Terreiro Egungun......................<br />

– Jorge Alex. Antiga Casa de Culto Egungun. 2006.............................<br />

– Grupo Percussivo Odeart: Dainho, Kalango e J. Alex. 2005...............<br />

– Dainho e J. Alex nos atabaques Kalango noTimbau. 2005...................<br />

– Dainho tocando brimbau na oficina de corpo. 2005..............................<br />

– Kalango e Dainho. 2006....................................................................<br />

– Odeart e Pesquisadores do Canadá....................................................<br />

– Odeart e canadenses; trocas. 2006.....................................................<br />

– Jaqueline em cenas do apàló: espetáculo A de Ó . 2005....................<br />

– Márcia em cenas: Reza do espetáculo A de ó.....................................<br />

– Moradores: de tarde, na porta da casa................................................<br />

– No domingo, na praça improvisada.................................................<br />

– Rua: lugar de brincar, conversar, passear.........................................<br />

– Uma idosa em fim de tarde: Arraial do Retiro 2006...........................<br />

– Festa de aniversário Est. Barreiras. .....................................................<br />

– Aniversário na Engomadeira. ...........................................................<br />

– À noite: aniversário entre amigos. .....................................................<br />

– EACBB. Em Frente ao Conselho 2005. ................................................<br />

– EACBB. Em campo. 2005. ...............................................................<br />

– EACBB. Pose de Atleta. 2005. ..........................................................<br />

– Apàló Artebagaço Odeart em cena. 2006. ............................................<br />

– Dieli tradicional: Mali.......................................................................<br />

– Apàló, Linguagem Recriada: A de Ó.. 2006. .......................................<br />

– Maestro Kangalha orientando as crianças. 2005................................<br />

– Maestro Kangalha conduzindo a percussão. 2005.............................<br />

– Conselho: casa branca ao fundo. 2005..............................................<br />

– Zelando o campo. 2005....................................................................<br />

– Encontro do Artebagaço Odeart, 2005. ...................................................<br />

– Momento concentração chegada :dos grupos no Festival Engoma,<br />

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Figura 090<br />

início da Engomadeira..........................................................................<br />

.......................................................................................................<br />

– Saída do Festival: carro de som, grupos de capoeira, caminhada com<br />

participação do Cabula.....................................................................<br />

........................................................................................................<br />

– A participação do Bumba-meu-boi, o grupo de passista com o bumba,<br />

as barracas reterritorializando o comércio local....................................<br />

.........................................................................................................<br />

– Da concentração à apresentação. Grupo Artebagaço Odeart..................<br />

........................................................................................................<br />

........................................................................................................<br />

– Grupo de dança de matriz africana Artebagaço Odeart: apresentação<br />

no Festival Engoma, 2005.................................................................<br />

........................................................................................................<br />

– Mapa da região do Cabula subdividido por fazendas no século XIX.<br />

– Mapa da região do Cabula subdividido por fazendas no século XIX<br />

(cont.). ................................................................................................<br />

– Eldon Araújo Lage, Gijo, 2005.........................................................<br />

– Tronco do Tamarineiro. 2006...........................................................<br />

– Galhos e troncos. 2005.....................................................................<br />

– Raízes: local da antiga lagoa da Vovó...............................................<br />

– Mameto N’kisi Indaramukaia. 2005....................................................<br />

– Zezé na Fundação Gregório de Matos.................................................<br />

– Zezé no palco do Festival Engoma, 2005............................................<br />

– Frente da casa de Sr. Firmino, 2004..................................................<br />

– Lateral, casa de duas águas. 2004. .....................................................<br />

– Fundo da casa Modificado. 2004.....................................................<br />

– Terras de Sr. Firmino e Conselho Moradores........................................<br />

– Crianças no balanço, gangorra. Terras Sr. Firmino...............................<br />

– Colégio Mun. Anfrísia Santiago. 2006...............................................<br />

– Rua da Igreja Católica. 2005...............................................................<br />

– Est. Barreiras. Terreiro Viva Deus, 2006...............................................<br />

– Local do Antigo Largo do Tanque do Meio, 2005. ................................<br />

– Janice Nicolin, 2006..........................................................................<br />

– Diego Nicolin e Patrícia Barbosa , 2007. ..............................................<br />

– Beni Moraes, 2006............................................................................<br />

– Grupo Pré-Artebagaço, 1994. ...........................................................<br />

– Grupo Artebagaço, 1997....................................................................<br />

– Grupo Artebagaço, 2000. .................................................................<br />

– Oficina de corpo e expressão, no COMOBA. 2006...............................<br />

– A vestimenta e um dos emblemas, o ofá, 2005......................................<br />

– A coroa contendo o símbolo de Odé, o ofá. 2005..................................<br />

– Dinâmica do soldado, 2005...............................................................<br />

– Quebrando a linearidade grupal.,2005. .................................................<br />

– Dinâmica de liberação do corpo., 2005. .................................................<br />

– Leitura do texto “O caçador e a caipora”. 2004. ....................................<br />

– Oficinas de dança no colégio público. 2005. ........................................<br />

– Ensaio aberto do espetáculo de dança “A Chuva dos Poderes”...........<br />

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Figura 134<br />

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Figura 136<br />

Figura 137<br />

Figura 138<br />

– O brinquedo e o corpo em repouso.....................................................<br />

– A platéia participante. .............................................................................<br />

– A platéia saindo da cadeira................................................................<br />

– Circulando em busca de liberdade. .....................................................<br />

– Refletindo a vivência no claustro. .....................................................<br />

– Quebrando o ritmo do confinamento. .....................................................<br />

– Gilmara. Expressão artística de Iyemanjá. .............................................<br />

– Conversando. Expressando o arquétipo. ................................................<br />

– Escuta sensível no grupo. 2005. .....................................................<br />

– Preparando o figurino. 2005.............................................................<br />

– Compondo o figurino. 2005..............................................................<br />

– A cooperação. 2005..........................................................................<br />

– O público. Abertura de “O Caçador”. 2005...........................................<br />

– O caçador saindo para caçar. 2005. .....................................................<br />

– Grupo de dança Odeart. Fechando. 2005. ..............................................<br />

– Sambando, requebrando, cantando. 2000. .............................................<br />

– Dramatizando com uma platéia ativa. 2000. ..........................................<br />

– Caruru. Foto artebagaço. Larissa e Jorge...............................................<br />

– Jorge Cipriano. Capoeira Maré. 2005. .................................................<br />

– Jorge Cipriano na roda. 2005............................................................<br />

– Dainho de costa. Capoeira Maré. 2005..................................................<br />

– Mestre de Capoeira Maré com agogô. ...................................................<br />

– Alex e Kalango. Capoeira Maré. 2005. ..................................................<br />

– Odeart Dance e Grupo Maré. ...........................................................<br />

– Odeart Dance na sede do G. Maré. .....................................................<br />

– Grupo de Capoeira Maré. 2005. .....................................................<br />

– Sr. Gildásio – Tio. 2006. .................................................................<br />

– O zelo pelo espaço. .........................................................................<br />

– A lição de comunalidade. .................................................................<br />

– Adriano. Lei 10639/203. ..................................................................<br />

– Gijo. Religiosidade Africana. .................................................................<br />

– Hipólito. Contra-Racismo. ................................................................<br />

– Cantando um Oriki. ...........................................................................<br />

– A percussão Odeart. ........................................................................<br />

– Os filhos de Adriano. .......................................................................<br />

– A platéia . Professores. ....................................................................<br />

– Samba de roda. .................................................................................<br />

– A culinária Africana. ........................................................................<br />

– Participação no samba de roda. .......................................................<br />

– Odeart Dance. ..................................................................................<br />

– Itana e figurino da tradição africana. .....................................................<br />

– O ambiente de arte e pedagogia. ........................................................<br />

– Mata. Trilhas dos riachos. 2005. .....................................................<br />

– A lagoa entre as pedreiras. 2006. .....................................................<br />

– Local da Nascente da Lagoa da Vovó. ....................................................<br />

– Cruzamento Cabula/ Barreiras/Paralela...................................................<br />

– Estrada das Barreias............................................................................<br />

– Avenida Silveira Martins....................................................................<br />

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Figura 186<br />

– Caminhar na rua. 2005. ...................................................................<br />

– Transportes. Cavalo, moto, a pé. 2005.....................................................<br />

– Caminhar na rua. 2005. ....................................................................<br />

– Barracas de folhas e ervas medicinais. ....................................................<br />

– Objetos à venda dependurados.........................................................<br />

– O vendedor ambulante. Olhe a seta. .....................................................<br />

– Condomínios sentido Paralela. ........................................................<br />

– Condomínio sentido Mata Escura. .....................................................<br />

– Prédios. Ladeira do Cabula. À <strong>Uneb</strong>. .....................................................<br />

– Condomínio Arraial do Retiro. .........................................................<br />

– Prédios comerciais. Est. Das Barreiras....................................................<br />

– Prédios Residenciais. Engomadeira.....................................................<br />

– Colégio Municipal. Anfrísia Santiago.....................................................<br />

– Complexo Escolar. ..........................................................................<br />

– Continuidade do Complexo. ................................................................<br />

– Estrada das Barreias.........................................................................<br />

– Engomadeira......................................................................................<br />

– Barreiras/ Engomadeira. ....................................................................<br />

– Vista de fora para dentro 2006..........................................................<br />

– Vista de dentro. 2006........................................................................<br />

– No interior da grade 2006................................................................<br />

– Artebagaço, maio 2006.......................................................................<br />

– Artebagaço, novembro 2006..............................................................<br />

– Portão de entrada 2004......................................................................<br />

– Pavilhão visto de fora. 2004.....................................................................<br />

– Pavilhão. Vendo o interior. 2004.......................................................<br />

– Prólogo. A voz autoral. 1993..............................................................<br />

– Abertura de Emília no país................................................................<br />

– O respeito a ancianidade. .................................................................<br />

– A alteridade.......................................................................................<br />

– Epílogo. A voz autoral encerra a peça.....................................................<br />

– O elenco composto de 25 pessoas. .....................................................<br />

– Outra parte do elenco. 1993..............................................................<br />

– Texto, professor. 1994....................................................................<br />

– Carlo Martelo. A donzela e o rei.......................................................<br />

– O menestrel. 1994............................................................................<br />

– A corrente........................................................................................<br />

– Segundo ato. Peça. “Eu concordo e Você?”.........................................<br />

– O público do Grupo Nós 1994...........................................................<br />

– O balde vira um chapéu. 1999..............................................................<br />

– O chapéu de Mágico é seu mundo.......................................................<br />

– A mala vira uma cama para dormir ........................................................<br />

– Cangaceiros do Auto. 2000.................................................................<br />

– Torcedores de Futebol. 1997................................................................<br />

– O padeiro e a mulher. Auto. 2000.....................................................<br />

– Personagem de “Tá bom...” 1998.....................................................<br />

– Outra face de O grilo. 1997.................................................................<br />

– Personagem O bêbado. 1997................................................................<br />

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Figura 234<br />

– A cortina de papel higiênico, 1997.....................................................<br />

– Prólogo: O bêbado. 1997......................................................................<br />

– “Eu me chamo G”. 1997....................................................................<br />

– “Os cocos”. 1997................................................................................<br />

– “Antena Ligada". 1997..........................................................................<br />

– O Carnaval, na praça Castro Alves. 1997...............................................<br />

– Castro Alves vendo a violência policial, 1997.......................................<br />

– Cena com diretora, vice e jornalista......................................................<br />

– Cena. Segurança aponta arma p/ louco...................................................<br />

– O louco reage com dinamite. 1999.....................................................<br />

– Início. Chico e João Grilo no Bar Bagaço................................................<br />

– Chico e o padre. Igreja.......................................................................<br />

– Chico e Coronel. Bar............................................................................<br />

– A mulher do Padeiro............................................................................<br />

– Expressão corporal, cenário e figurino.....................................................<br />

– A expressão corporal. Expressão e figurino.........................................<br />

........................................................................................................<br />

..........................................................................................................<br />

– O ator e o texto.........................................................................................<br />

– A expressão de dor...............................................................................<br />

– O cortejo fúnebre................................................................................<br />

.........................................................................................................<br />

– Visão holística do cenário recriado. 2000...............................................<br />

– Parte do elenco fazendo agradecimento.................................................<br />

– O Grilo. O símbolo Artebagaço. 1998...................................................<br />

– História é uma história. 1998.................................................................<br />

– “Quem roubou meu sonho”. J. P e Coro.................................................<br />

– “A venda” ..........................................................................................<br />

– Cartaz do Grupo Odeart – Convite de inscrição (2005) .........................<br />

– Cartaz do Grupo Odeart – Divulgação (2005) ........................................<br />

– As palmas. J. Alex e J. Cipriano. 2005..................................................<br />

– O toque no atabaque. Rafael, 2005......................................................<br />

– Rafael no atabaque e J. Alex palmas......................................................<br />

– Os primeiros passos na busca. 2005......................................................<br />

– Os movimentos se afirmando. 2005......................................................<br />

– O movimento solo autoconfiante. 2005..................................................<br />

– O grupo na casa de Janice. 2005......................................................<br />

– Ensaio no colégio. Jorge de Costa. 2005.................................................<br />

– Hudson do Break na dança de matriz......................................................<br />

– Hudson M. Grupo Atitude Break no colégio. 2005...............................<br />

– Hudson, ator da peça “A venda”, na Ucsal. 2005....................................<br />

– Dinâmica da Capoeira........................................................................<br />

– Dança de Matriz..................................................................................<br />

– Dinâmica de Voz.................................................................................<br />

– Grupos de Leitura.............................................................................<br />

– Dinâmica de Ator.................................................................................<br />

– O solo da origem Cacade......................................................................<br />

– Entrada da Escola Cacade..................................................................<br />

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– A frente da escola...................................................................................<br />

– As professoras e as crianças.....................................................................<br />

– Grupo de crianças de 3 a 4 anos............................................................<br />

– Oficina de Expressão Corporal............................................................<br />

– Oficina de Montagem Cênica................................................................<br />

– Abertura. Rap. A de ó. 2005....................................................................<br />

– O prólogo. Voz Autoral.......................................................................<br />

– “A Reza”. Monólogo do I Ato.............................................................<br />

– Break. Fechando o I Ato....................................................................<br />

– A percussão abrindo o II Ato............................................................<br />

– Final. Agradecimentos ao público......................................................<br />

– Público do Labtec. 2005....................................................................<br />

– Dra. Narcimária. Abertura do encontro...................................................<br />

– Grupo Odeart Dance..........................................................................<br />

– Público do encontro. 2005.................................................................<br />

– Ronaldo. Montagem da Expo..............................................................<br />

– A palestra – manhã............................................................................<br />

– Palestra. Tarde.....................................................................................<br />

– O encontro. “Bate-papo”...................................................................<br />

– A chegada das crianças do CPM........................................................<br />

– Repassando o texto antes da encenação..................................................<br />

– Expo. da turma. Simbologia africana......................................................<br />

– Exposição sobre as Iyás.....................................................................<br />

– Gijo. Apreciando a exposição.............................................................<br />

– Público noturno na palestra de Gijo.........................................................<br />

– Início de auto Odé..............................................................................<br />

– Primeira caçada de Odé.......................................................................<br />

– Chegada do Pinto na cabana................................................................<br />

– Atitude Break. Hudson.......................................................................<br />

– Narcimária Luz Awon Esó................................................................<br />

– Camarim. Alunos CPM......................................................................<br />

– Janice Nicolin e a percussão Odeart......................................................<br />

– Camarim. Odeart Dance.....................................................................<br />

– Público. Alunos de 5 a a 8 a .................................................................<br />

– Alunos do Curso Fundamental............................................................<br />

– Grupo Cultural Ganhadeiras de Itapuã.....................................................<br />

– Atitude Break.....................................................................................<br />

– Grupo Percussivo Odeart....................................................................<br />

– Odé, o caçador africano......................................................................<br />

– Atitude Break....................................................................................<br />

– No colégio. Palco arena e platéia......................................................<br />

– Retocando a maquiagem....................................................................<br />

– Representação teatral.........................................................................<br />

– Apresentação do Atitude Break...........................................................<br />

– Odeart Dance. Seminário........................................................................<br />

– Seminário Cotas. Odeart.........................................................................<br />

– Janice. Mesa – Cotas..............................................................................<br />

– Monólogo - Reza..................................................................................<br />

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– Público Cotas.........................................................................................<br />

.........................................................................................................<br />

– Personagens de A de ó. I Ato.................................................................<br />

– Personagem Apàló de A de ó...................................................................<br />

– Domingo Sérgio e o filho.......................................................................<br />

– O interior da Escola...........................................................................<br />

– Escola – Quitanda e Biblioteca...........................................................<br />

– Grafite. A linguagem escrita.................................................................<br />

– Frente do Barracão. 2006......................................................................<br />

– O espaço externo...............................................................................<br />

– Ruas das casas dos Inkice.....................................................................<br />

– Casa de Inkice........................................................................................<br />

– Casa de Caboclo. 2006.......................................................................<br />

– Espaço Mata do Terreiro......................................................................<br />

– Espaço Mata......................................................................................<br />

– Leitura Interpretativa. 2005...................................................................<br />

– Roda de Leitura Interpretativa e cênica..................................................<br />

– Jorge: leitura cênica - dança...............................................................<br />

– Sensibilidade e Liberação...................................................................<br />

– Corpo e Dança.....................................................................................<br />

– Formação do ator................................................................................<br />

– Interpretação cênica.............................................................................<br />

– Maria: Oficina Costura......................................................................<br />

– Cláudia. Adereços..............................................................................<br />

– Cássia e Jack. Costura.......................................................................<br />

– Jorge. Pintura......................................................................................<br />

– Emblema de Xangô.............................................................................<br />

– O Apàló e o palco.................................................................................<br />

– O coro de A engrenagem....................................................................<br />

– Solo de A engrenagem.........................................................................<br />

– Apàló e público. Fim do ato I...............................................................<br />

– Lavadeiras. Início do II ato.................................................................<br />

– O Caçador..........................................................................................<br />

– A caçada.............................................................................................<br />

– Os orixás. Fm de A de ó.....................................................................<br />

– Maria apreciando sua criação. 2005......................................................<br />

– Maria. Figurino e atores. 2005...........................................................<br />

– Expressão Artebagaço Odeart.............................................................<br />

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373<br />

373<br />

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373<br />

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380<br />

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392<br />

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392<br />

392<br />

392<br />

392


INTRODUÇÃO<br />

SUMÁRIO<br />

1 OKÊ-ARÔ! ECOS DO ALVORECER<br />

1.1 ARKHÉ AFRICANO-BRASILEIRA: ELOS DE COMUNALIDADES<br />

1.1.1 Arkhé Quiilombola do Cabula<br />

1.2 O CENÁRIO SOCIOEXISTENCIAL DO CABULA<br />

1.2.1 A Dinâmica Histórica do Cabula<br />

1.3 VIVIDO-CONCEBIDO NO VENTRE DA MATA AFRICANO-<br />

BRASILEIRA<br />

2 NAS TRILHAS DO “VIVIDO-CONCEBIDO<br />

2.1 O MOVIMENTO AGACHADO<br />

2.2 ULTRAPASSANDO OS OBSTÁCULOS IDEOLÓGICOS<br />

3 PEDAGOGIA DA SERVIDÃO NEOCOLONIAL<br />

3.1 ENTOANDO A MATA: ROMPENDO OS GRILHÕES DA<br />

INFERIORIDADE AFRICANA<br />

3.2 OS CENÁRIOS ETNOCÊNTRICOS DO CURRÍCULO ESCOLAR NO<br />

CABULA<br />

3.3 ECOANDO TROMPE L’OEIL<br />

3.4 SAINDO DO “LUGAR” DEMARCADO PARA O/A PROFESSOR/A: A<br />

EXPERIÊNCIA ARTEBAGAÇO<br />

3.4.1 Do Artebagaço à Mata Africano-brasileira Odeart<br />

3.4.2 “É preciso derrubar os muros”<br />

4 ODÉ DÊ NILÉ - CAÇADOR CHEGOU EM CASA<br />

4.1 ENTOANDO E ELABORANDO O CENÁRIO MÍTICO-POÉTICO<br />

4.2 A MONTAGEM CÊNICA: A DE Ó – ESTAMOS CHEGANDO<br />

4.3 OS DESDOBRAMENTOS METODOLÓGICOS<br />

4.4 O ESPETÁCULO TEATRAL<br />

19<br />

36<br />

39<br />

55<br />

68<br />

88<br />

119<br />

148<br />

149<br />

163<br />

173<br />

190<br />

206<br />

250<br />

277<br />

293<br />

320<br />

334<br />

344<br />

374<br />

378<br />

381


EMI OMÔ ODÉ – SOU FILHO DE CAÇADOR: UMA CONCLUSÃO<br />

REFERÊNCIAS<br />

ANEXOS<br />

393<br />

399<br />

404


INTRODUÇÃO<br />

Às vezes na tu’ alma que adormece<br />

Tanto e tão fundo, alguma voz escuto<br />

De timbre emocional, claro, impoluto<br />

Que uma voz bem amiga me parece.<br />

Cruz e Sousa<br />

A experiência pedagógica dinamizada pela atividade artística torna-se uma excelente<br />

situação para se refletir o currículo oficial e, quando se trata de recriações teatrais, tanto o<br />

educador quanto o estudante são impulsionados a analisar suas próprias vivências e concebêlas<br />

de maneira crítica, apelando para novos cenários educacionais.<br />

A experiência de professora do sistema público de ensino, produtora, coordenadora,<br />

diretora cênica do Grupo Artebagaço Odeart e mestranda do Programa de Pós-Graduação em<br />

Educação e Contemporaneidade da UNEB/ Campus I – Salvador, permitiu a percepção de que<br />

a escola, em todos os níveis de ensino, concebe a arte como um mero decalque da realidade<br />

simulada e torna o fazer artístico um complemento diversificador dos cenários de<br />

representação de um assunto copiado e colocado em prática sem nenhuma reflexão.<br />

Nesta dissertação, propõe-se uma reflexão sobre o currículo oficial a partir do jogo<br />

cênico e da estética teatral combinada à dança e à polirritmia percussiva, atendendo à<br />

necessidade de motivação do potencial criativo dos atores sociais que realizam o espetáculo<br />

pedagógico, constituído por linguagens de referências teórico-epistemológicas africanas<br />

favoráveis ao diálogo sobre a dinâmica curricular de educação pluricultural.<br />

É importante dizer que a metodologia usada partiu de estudos e análises enriquecidos<br />

pela abordagem etnográfica que permitiu estabelecer elos fundamentais para a compreensão<br />

da dinâmica socioexistencial da territorialidade do Cabula.<br />

Toda a estrutura – forma e conteúdo – que alicerçou a pesquisa baseou-se em<br />

procedimentos metodológicos envoltos nas perspectivas “desde dentro para desde fora” e<br />

“vivido-concebido”, que enfatizam as elaborações mais profundas do conhecimento<br />

acumulado pela “comunalidade africano-brasileira” (LUZ, M. A., 2005, p. 101).<br />

Por esse caminho, surgem as análises a partir das quais fomos capazes de intercambiar<br />

códigos de valores da territorialidade do Cabula e códigos de valores da sociedade urbanoindustrial<br />

etnocêntrica. Nestes, encontramos sinais que nos ofereceram o cenário (histórico)<br />

sociopolítico e cultural característico (das dinâmicas pedagógicas pluriculturais africano-


asileiras) e do currículo que legitima as bases da educação brasileira, tanto do ponto de vista<br />

prático quanto teórico.<br />

Em Artebagaço Odeart: ecos que entoam à mata africano-brasileira do Cabula,<br />

deixamos as impressões sobre a experiência pedagógica vivida por três educadores,<br />

adolescentes, jovens moradores e estudantes do Cabula, caracterizada como Grupo Teatral<br />

Artebagaço Odeart, que brota num colégio público de Ensino Médio no bairro do Cabula, em<br />

Salvador, estendendo-se a experiência a outros colégios deste bairro da Capital através das<br />

encenações e oficinas de criação teatral.<br />

É importante dizer que nossa pesquisa de base etnográfica dedica-se a caracterizar as<br />

dinâmicas socioculturais do Cabula e apresenta desdobramentos importantes, a exemplo de<br />

palestras, oficinas teatrais e apresentações cênicas de teatro e dança de matriz africana, que<br />

reúnem a linguagem da arte como um canal de aproximação entre contextos socioculturais<br />

distintos ainda desconhecidos pelas unidades escolares da rede pública estadual.<br />

Outra contribuição importante da pesquisa são os cenários favoráveis à reflexão sobre<br />

Educação Pluricultural e as perspectivas propostas pela Lei 10.639/2003, tudo isto<br />

relacionado ao trabalho que vem sendo desenvolvido há 16 anos, levando as linguagens das<br />

comunalidades para a escola, que constituem formas de criar dizeres e saberes ancorados,<br />

sobretudo na tradição africano-brasileira.<br />

Para realizar o estudo, foi necessário lançar-se à busca do segredo do riquíssimo<br />

patrimônio africano-brasileiro existente no Cabula, o que envolveu mais 24 meses,<br />

percorrendo caminhos que permitiram descobrir valores socioexistenciais que poderão<br />

contribuir para o diálogo sobre educação pluricultural em escolas do Município de Salvador.<br />

A busca de compreensão das referências africano-brasileiras se constitui em uma<br />

maneira de caracterizar a territorialidade do Cabula, para entender e respeitar as referências<br />

simbólicas civilizatórias. Foram realizados, então, muitos esforços a fim de ultrapassar os<br />

obstáculos ideológicos etnocêntricos, com certos cuidados que ajudaram a lidar com a<br />

singularidade do conhecimento simbólico da comunalidade tradicional.<br />

Assim, ousamos a analisar formas, a “como”, para romper as amarras impostas pelo<br />

poder absoluto neocolonizador presente no cotidiano escolar, na tentativa de “formar” sujeitos<br />

individualistas dispostos a atuar sempre no papel de copista das linguagens e dos valores do<br />

mundo urbano-industrial, a estratégia, aliás, que impede este mesmo sujeito de atuar como<br />

ator social criativo e profundamente vinculado aos modos de sociabilidade africanobrasileiros<br />

característicos do Cabula.<br />

20


Diante disso, houve uma preocupação em afirmar a arte cênica como um canal<br />

essencial para encorajar educadores a desenvolver uma atitude política de oposição a tais<br />

condutas recalcadoras e de afirmação das linguagens de criação e autoria.<br />

Compreendemos que a arte, entendida como necessidade de criação, apaga a idéia<br />

deturpada de produção artística como um decalque de uma realidade simulada porque, por<br />

esta via de expressão, o sujeito criador recria e transmite infinitas formas de realização,<br />

enquanto a uniformidade e a universalidade são imposições de um traçado político-social<br />

totalitarista que limita a experiência criativa. A arte, contudo, é a oportunidade de recriação de<br />

cores, sons, sabores, cheiros, sensações táteis que tornam o corpo vivo e dinâmico, gerando o<br />

sentido da afirmação socioexistencial.<br />

O teatro é a linguagem política impulsionadora do viver cotidiano Artebagaço Odeart.<br />

É política [...] “porque políticas são todas as atividades do homem, e o teatro é uma delas”<br />

(BOAL, 1991, p. 13), é política, sobretudo, porque é uma escolha que depende do eu querer<br />

ou não querer e depende também de nós, uma coletividade que impulsiona o eu para o cenário<br />

da afirmação socioexistencial.<br />

Nesse sentido, não há como pensar a função propulsora do teatro sem pensar nos seus<br />

efeitos desmecanizadores dos “corpos dóceis” (FOUCAUT, 2004, p. 117), formados pelas<br />

políticas pedagógicas etnocêntricas.<br />

O Artebagaço Odeart foi gerado de nossa atuação como professora na área de Língua<br />

Portuguesa em uma escola pública do Cabula. Nesta vivência, a educadora constata que os<br />

corpos de seus/suas alunos/as carentes de vitalismo social tendiam a fixar-se nas carteiras<br />

escolares para repetir a cena cotidiana do ato de copiar e reproduzir esta cópia, eram corpos<br />

que rejeitavam a atitude de ler, recriar, ousar propor e transcender!<br />

Eram corpos de adolescentes e jovens com tamanho vigor físico que, porém, quando<br />

recebiam os apelos para criação e autoria, entravam em conflitos e tensões caracterizados por<br />

um querer e não querer. Diante desta realidade, elaboramos e propusemos a linguagem<br />

artístico-dramática que contradiz as normas do currículo oficial vigente, com ênfase na<br />

comunicação oral para, em seguida, impulsionar a composição escrita de autoria pessoal.<br />

Os estudos desenvolvidos levaram a descobertas como conhecimento geral do<br />

universo escolar, reconhecimento da uniformidade do currículo oficial e seu intuito<br />

universalista para fortalecer a monocultura européia na educação brasileira.<br />

Também emergiram pensamentos de poder e de força de atuação para romperem a<br />

densa cortina do silenciamento dos estudantes, que os afasta do educador criativo e,<br />

consequentemente, do cenário de criação, de maneira que a maioria dos estudantes concluiu<br />

21


que seria necessária uma tomada de decisão corajosa para romper com os obstáculos<br />

ideológicos do cotidiano escolar e realizar cenários com linguagens herdadas da<br />

comunalidade.<br />

Começamos, então, o desafio de nos aproximarmos dos textos dados na área de<br />

Língua Portuguesa e, a partir da apreciação artística destes textos, poder gerar um novo<br />

contexto socioescolar. Desta forma, estávamos engatinhando na constituição do espetáculo<br />

artístico ancorado nos textos escritos e orais, e estes últimos eram constituídos por histórias<br />

contadas pelos mais velhos das comunidades do Cabula.<br />

Regina Zilberman (1987, p. 23) atenta para um fato importantíssimo sobre a qualidade<br />

estética da obra literária: “[...] a literatura infantil atinge o estatuto de arte literária e se<br />

distancia de sua origem comprometida com a pedagogia, quando apresenta textos de valor<br />

artístico a seus pequenos leitores.” E foi esta a nossa intenção, no início: dar ênfase ao<br />

artístico.<br />

A pedagogia a que Zilberman se refere trata-se do intuito educativo formal e estático,<br />

que transforma texto artístico, sobretudo para criança, numa relação na qual “Literatura<br />

infantil e escola, inventada a primeira e reformada a segunda, são convocadas para cumprir<br />

uma missão”. Esta relação repudia a arte porque sua finalidade é pragmática.<br />

Realmente, vivemos esta experiência no âmbito Artebagaço Odeart ao explorarmos<br />

textos legitimados pelo território da pesquisa, contudo em nosso caso era o contrário da<br />

escola. Por isso partimos do respeito à linguagem do Cabula, uma territorialidade que abriga a<br />

maioria dos estudantes da escola pública. Foi assim que os textos orais, que eram carregados<br />

de sinais e códigos de referências sensório-emocionais e socioculturais, colaboraram para o<br />

entendimento do ethos local que resguarda a tradição e a memória da civilização africanobrasileira.<br />

Decerto que uma experiência estética desta natureza, a princípio, gera desconforto,<br />

mas com o tempo vai-se tornar desencadeadora do processo motivador de questionamentos<br />

sobre o lamentável cenário de descrédito nas formas de realizar educação oficial.<br />

Logicamente, o estudante estranha, mas, depois do entendimento, torna-se um dos maiores<br />

motivadores do grupo de criação.<br />

É bom entender que, ao propormos um currículo que permita a atuação do educador<br />

artista, pensamos num sujeito que cria estratégias sensoriais e emocionais para devolver<br />

atividades práticas no seu grupo pedagógico dentro e fora da sala de aula. Logo, compreender<br />

a cumplicidade como elemento fundamental para gerar novas perspectivas educacionais é a<br />

intenção estratégica primordial deste educador na sociedade contemporânea.<br />

22


Esse educador artista e pesquisador, presente em territorialidades profundamente<br />

marcadas pelas comunalidades africano-brasileiras, caracteriza-se por aquele que transmite o<br />

saber constituído, recria cenários pluriculturais e reterritorializa elementos-signos de<br />

referência sociocultural de adolescentes e jovens como os que inicialmente formaram a<br />

geração do Grupo Teatral Artebagaço, e posteriormente, a geração que cria o Odeart.<br />

Deve-se ressaltar que as questões teóricas relacionadas à função do educador-artista<br />

orientam as práticas e vice-versa, e a arte atua como uma porta aberta que deixa fluir nuances<br />

da vida para que os criadores possam dialogar com o saber da educação pluricultural.<br />

É por isso que estas novas linguagens utilizadas em sala são questionadas e<br />

desqualificadas pelas chefarias e pelos educadores que concordam com a educação<br />

monocultural, responsáveis por conduzirem o cotidiano tecnoburocrático da escola, na<br />

verdade, um espaço atrofiado para os desdobramentos do universo de linguagens das<br />

vivências comunais.<br />

Deparamos-nos, portanto, com outro desafio: a criação de um grupo que transgrediu a<br />

ordem positivista do currículo escolar. Não era só dar um nome, mas fundamentalmente<br />

marcar nossa identidade de sujeitos que recusam a sujeição voluntária ao aparelho reprodutor<br />

escolar. Nasce, então, o nome: Artebagaço!<br />

Artebagaço representa a síntese da nossa resistência e enfrentamento ao recalque<br />

institucionalizado pela ambiência escolar. Aqui a arte expressa as recriações da linguagem<br />

artístico-teatral, que valorizam e enaltecem os cenários da comunalidade africano-brasileira,<br />

referência de afirmação dos adolescentes e jovens moradores e estudantes das escolas do<br />

Cabula.<br />

Já o termo “bagaço” é uma expressão irônica criada pelo próprio grupo em face das<br />

rejeições, críticas, repressões e discriminações sofridas pelos seus membros no interior da<br />

escola. Também se aproxima do que compreendem as chefarias do sistema escolar e de<br />

muitas perspectivas pedagógicas unidimensionais, sobretudo que contraria a perfeição das<br />

certezas absolutas dos conceitos formalizados e estruturados como invioláveis pelo<br />

etnocentrismo.<br />

Artebagaço é o termo que expressa o sentido da arte como uma atitude de criação e de<br />

transformação que é “ [...] inevitavelmente política, ao apresentar os meios de realizar essa<br />

transformação, [...]” ( BOAL, 1991, p. 17), e, por possuir um poder compartilhado, consegue<br />

modificar cenários opressores, constituindo-se, desta forma, numa territorialidade de<br />

afirmação africano-brasileira, apresentada em três oficinas de criação de teatro e dança.<br />

23


A arte expressa pelo Artebagaço é considerada antiestética ou “bagaço” porque revela<br />

tudo aquilo que não carrega em si, ou seja, os traços da simulação da realidade social que a<br />

escola insiste em manter como modelo de educação. É a simulação que denominamos trompel’oeil<br />

(literalmente: “engana-olho”)” (SODRÉ, 2002, p. 35), porque apenas simula uma<br />

existência.<br />

O trompe-l’oeil é uma linguagem técnica da pintura renascentista que simula a<br />

existência de um objeto numa superfície quando, na realidade, é uma mera pintura em relevo<br />

com o intuito de gerar a ilusão do real vivido, por isso acreditamos que a realidade<br />

educacional pública assemelha-se bastante com a forma de expressar a arte do século XV.<br />

A dinâmica de arte cênica do Grupo Artebagaço contradiz essa situação por expressar,<br />

realmente, uma vivência, inclusive contradiz o sistema trágico aristotélico, porque a tragédia<br />

para Aristóteles, diz Boal (1991), se realiza com a presença de um herói trágico que<br />

estabelece uma empatia com a platéia. Este herói reconhece uma falha trágica no seu<br />

comportamento e, em seguida, é punido com sua própria morte ou a de alguém que ama.<br />

No entender de Boal (1991), é passiva a platéia que se aterroriza com a morte desse<br />

herói. Tal passividade ocorre por identificação com o sofrimento deste e, para purificar-se de<br />

uma falha que não cometeu, o espectador purga suas sensações e idéias opostas à sociedade<br />

oficial. Como o herói vive esta experiência, ele transmite à platéia esta culpa por algo que não<br />

fez, e tal situação já foi incondicionalmente determinada pelo trágico e fatídico destino da<br />

tradição mitológica greco-romana.<br />

Este tipo de poética, em que o espectador se realiza punindo-se, aproxima-se bastante<br />

do esquematismo estrutural pedagógico da escola porque esta se desenvolve de modo<br />

semelhante ao funcionamento do esquema aristotélico: o aluno da escola oficial sente-se<br />

culpado por não conseguir enquadrar-se no padrão universal, por isso pune-se a cada<br />

momento que tenta expressar-se de acordo com os códigos de valores culturais herdados de<br />

seus ancestrais ou africanos ou aborígines.<br />

A poética do Artebagaço traça um caminho inverso, busca compreender as várias<br />

realidades que se recalcam à alteridade para despertar o sentido crítico da realidade vivida na<br />

escola promotora do “recalcamento ideológico” (LUZ, M. A, 1994, p. 15). Por este caminho,<br />

a dinâmica pedagógica consegue acordar os “corpos dóceis” (FOUCAULT, 2004, p. 117),<br />

submetidos ao mecanicismo pedagógico.<br />

O Artebagaço, como poética, não traz mensagens propondo mudar o mundo, pois<br />

acreditamos que não é uma tarefa da arte mandar mensagem, sua tarefa é transformar o<br />

mundo através dela própria, portanto nada transfere para alguém ou para algo. Também não<br />

24


encena situações coercivas, pois nestas encenações reside a força da representação do poder<br />

monocultural, algo que não faz parte da concepção da arte teatral artebagaciana. A linguagem<br />

escolhida pelo Artebagaço expressa a pluralidade da realidade vivida.<br />

É função da linguagem do Artebagaço exprimir diferentes formas e modos de<br />

comunicação, cujos traços identitários socioculturais, predominantemente africano-brasileiro<br />

e aborígine-brasileiro, marcam a pluralidade das manifestações artísticas através dos<br />

movimentos dos corpos e vozes dos adolescentes e jovens da comunidade do Cabula que<br />

compõem seu elenco teatral e de dança.<br />

Essas pessoas expressam sua arte, que é diferente da arte que a escola copia do modelo<br />

hegemônico, é criando e recriando cenários em que arte e conhecimento se entrelaçam, tanto<br />

durante as realizações intergrupais no Artebagaço, quanto nas formas de resolver situações<br />

durante as tarefas pedagógicas em sala de aula. Contudo esta naturalidade é considerada pela<br />

pedagogia oficial como “bagaço” e transformada, pela “ordem normal” de reprodução do<br />

conceito equivocado de arte, em estética feia.<br />

O termo bagaço foi extraído do que vivemos como experiência de rejeição da nossa<br />

estética teatral, por exemplo: quando há eventos no colégio, as chefarias nos excluem<br />

dizendo: “Aqui não dá para coisas como as suas”; em outros momentos: “O que vocês fazem<br />

não serve para o que queremos”.<br />

Atualmente, nossa recriação teatral ancora-se nos códigos de valores da matriz<br />

africano-nagô, o colégio só convida o grupo para a Semana de Consciência Negra. Aliás,<br />

primeiro propomos, depois as chefarias estudam se permitem ou não o acesso. A rejeição<br />

atual volta-se para os traços identitários africanos, mesmo sabendo que convites não faltam<br />

para apresentações em outros colégios e instituições, dentro e fora do Cabula.<br />

Procuramos entender essa rejeição ao trabalho atual do grupo e constatamos que é a<br />

rejeição, principalmente, à estética de valores culturais africanos que ancoram nossas<br />

recriações cênicas, uma referência que reafirma nossa característica de grupo de insurgência<br />

africano-brasileira na escola que realiza a crítica ao currículo oficial que veda o acesso de<br />

outras culturas não-européias.<br />

A trajetória do Artebagaço vai de 1990 a 2001, e, durante este período, tivemos duas<br />

interrupções: a primeira foi de 1995, etapa final das atividades de 1990 a 1995, coordenada<br />

por Janice e Diego Nicolin com as estudantes do curso de Magistério com habilitação para o<br />

segundo grau e ocorreu por uma questão de renovação do fôlego e da própria estética.<br />

Também, nesta ocasião, Janice Nicolin estava grávida e saiu em licença-maternidade.<br />

25


A segunda interrupção foi em 2001, etapa final das atividades de 1996 a 2001 que<br />

caracteriza a organização e desenvolvimento de sua estrutura comunal – coordenada por<br />

Benivalda Moraes (Beni), Diego Nicolin e Janice Nicolin com estudantes de vários cursos.<br />

Ela ocorreu por vários motivos: Diego Nicolin, fazendo Graduação em Artes Cênicas pela<br />

Ufba, trazia muitas linguagens que confundiam a expressão dinâmica da linguagem técnica<br />

teatral do grupo; Janice Nicolin foi convidada para participar do projeto cognitivista do<br />

Estado, no Programa de Enriquecimento Instrumental, cujo grupo de estudo ancorava-se na<br />

Teoria da Modificabilidade Estrutural Cognitiva, e Beni Moraes estava na sua primeira<br />

gravidez, hoje é uma menina de 5 anos. Consideramos estes breaks como apelos de renovação<br />

da estética.<br />

Depois de três anos de silêncio da dinâmica artebagaciana 1 , a partir de 2004, vivendo<br />

profundamente os modos de sociabilidade do Cabula e adquirindo maturidade teóricometodológica<br />

no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Educação, e Contemporaneidade<br />

e com a orientação do PRODESE – Programa Descolonização e Educação retomamos os<br />

trabalhos artístico-teatrais na mesma escola pública para realizar uma nova experiência .<br />

Desta feita, estávamos cientes das armadilhas e atentos aos grilhões do etnocentrismos<br />

e seguíamos o forte apelo de ultrapassar as fronteiras da “ideologia do recalque” (LUZ, M. A.<br />

1994) cultural, pois já estávamos alicerçados nos saberes adquiridos nos estudos sobre o mito<br />

caçador, que pertence ao acervo literário de Deoscóredes Maximiliano dos Santos, Mestre<br />

Didi Axipá, e na observação participativa da dinâmica de comunalidade africano-brasileira<br />

africana plantada no Cabula. Com estes saberes, retornamos a afirmação de nosso espaço na<br />

escola, desdobrando uma pedagogia de reestruturação da identidade de estudantes africanobrasileiros<br />

no Ensino Médio.<br />

A esse momento chamamos de ODEART, porque, nas elaborações recentes que<br />

envolvem o sistema de pensamento africano, sua filosofia e formas de visão de mundo,<br />

encontram-se as referências simbólicas tão preciosas para os jovens que freqüentam a escola e<br />

que as compõem e expressam no interior do grupo. O cenário do conto de Deoscóredes<br />

Maximiliano dos Santos, o Mestre Didi, “O caçador e a caipora” (2004) é o “divisor de<br />

águas” necessário a nossa aproximação com a episteme africano-brasileira. Esta aproximação<br />

1 O termo expressa sentido de referência da origem de quem introjecta os valores ético-estéticos do estilo<br />

Artebagaço, traduzido por: dinâmica socioexistencial e dinâmica de linguagem artístico-teatral de transformação<br />

da realidade simulada na escola pública em real. No dizer de Antônio Houaiss o sufixo ano refere-se à “origem,<br />

procedência” (2001: 26). Então, artebagaciano é quem mergulha na luta do Artebagaço Odeart, realizando<br />

insurgência africano-brasileira na escola publica através da arte..<br />

26


nos ajudou a estabelecer perspectivas de linguagem para superarmos o etnocentrismo que<br />

alicerça as políticas públicas de Educação.<br />

Com o conto, compreendemos que o Cabula é o solo de origem dos nossos<br />

adolescentes, jovens e professores envolvidos no grupo, e representa a floresta simbólica<br />

africano-brasileira que é possível conceber um cenário de expansão do direito à alteridade e a<br />

existência de muitos descendentes de africanos.<br />

O aproach africano-brasileiro que extraímos do conto de Mestre Didi Axipá “O<br />

caçador e a caipora” permitiu a descrição de situações que retratam o modo de viver das<br />

comunalidades africano-brasileiras no Cabula, além de esforço e muita prudência para saber<br />

lidar com um universo simbólico, outrora desconhecido por todos nós e por boa parte dos<br />

colegas da rede pública de ensino.<br />

Por outro lado, tivemos a satisfação de conhecer a história da Mini Comunidade Oba<br />

Biyi, primeira experiência de Educação Pluricultural no realizada no Brasil nos anos 70, na<br />

comunidade-terreiro Ilê Axé Opô Afonjá no Cabula, sob a coordenação da Sociedade de<br />

Estudos da Cultura Negra no Brasil – SECNEB.<br />

É desse aprendizado pedagógico da Mini Comunidade Oba Biyi organizado por<br />

Mestre Didi Axipá, até então inédito para nós, que adquirimos o ânimo para continuarmos<br />

investindo em proposições curriculares que fortalecessem a identidade dos jovens Artebagaço<br />

Odeart.<br />

Um dos aspectos valorosos da Mini Comunidade Oba Biyi é que:<br />

27<br />

A experiência concreta da Mini Comunidade Oba Biyi, felizmente,<br />

mostrou que esses mecanismos utilizados pela escola oficial, no<br />

sentido de recalcar as possibilidades de expressão do ethos e do eidos<br />

da comunalidade africano-brasileira, são minados à medida que<br />

esbarram na pujança da dinâmica da tradição civilizatória africana,<br />

quando as crianças reagem e enfrentam as situações adversas à sua<br />

existência própria. (LUZ, N., 2000, p.222).<br />

Esse entendimento amplo de educação pluricultural se deve muito às formas de<br />

linguagem pedagógicas ancoradas no saber mítico e recriadas por Mestre Didi na Mini-<br />

Comunidade Oba Biyi. Acreditamos que este dado favoreceu nossa aproximação do mito. “A<br />

concepção e a linguagem pedagógica de Mestre Didi estavam relacionadas à dinâmica<br />

civilizatória da tradição Nagô” (LUZ, N., 2000, p.184). Tal como fez Mestre Didi, também<br />

vamos recriar um contexto de educação pluricultural aproximando-nos do mito constituinte do<br />

seu acervo literário, do qual fizemos uma adaptação que apresentamos nesta Introdução.


Mestre Didi conta uma história muito interessante que veio da África trazida pelos<br />

nossos ancestrais Nagôs. Foi assim..<br />

.<br />

Certa vez um Odé, um homem caçador que vivia na Mata, foi caçar. Quando<br />

chegou, não encontrou nada e nada, não tinha nem um animal. Ele ficou<br />

preocupado! E pensou: como é que vou voltar pra casa sem o alimento do<br />

meu povo? Pois é! Odé é o caçador protetor da mata e provedor da aldeia.<br />

Foi ai que ele resolveu pedir ajuda ao pai do mistério para saber de seu<br />

destino, o Babaláwo, este assim lhe disse: Você não tem dado presente ao<br />

protetor da mata. Quem tira da mata precisa devolver. Vou lhe ensinar como<br />

fazer pra agradar os protetores da mata e ensinou a fazer uma oferenda.<br />

Odé saiu da casa de Babaláwo e foi correndo fazer a oferenda, um ebó. Ai<br />

pegou um pedaço de fumo de corda, uma garrafa de cachaça e uma cabaça<br />

de mel e colocou no pé de Irokò, uma árvore sagrada para os povos iorubas<br />

que aqui no Brasil se chama gameleira. E pensou: “Agora é só esperar!”<br />

Depois da oferenda os animais apareceram e Odé fez muitas caçadas.<br />

Acontece que ele se esqueceu de continuar presenteando a mata, sempre que<br />

fizesse uma caçada, mesmo assim levou um tempão caçando. Um dia, Odé<br />

estava tão satisfeito com as boas caçadas que resolveu matar um bocado de<br />

animais: nambus, cotias, pacas, teiús, perdizes e coelhos, mas foi tanto<br />

animal, tanto animal que nem o cesto não cabia.<br />

Odé pegou as caças e levou pra sua cabana na mata. Quando estava<br />

tratando uma das caça para fazer sua comida começou a chover, uma<br />

chuvinha delicada, nisto chegou um pintinho todo molhado e se encostou ao<br />

fogo para se esquentar. Odé, espantado pensou: “Oxente! Nunca vi pinto<br />

pro estas bandas, rapaz! Que estranho!”. E foi muito desconfiado moquear a<br />

carne: “Que coisa estranha!”.<br />

Do nada, quando ele mexia a panela, surge do fundo da mata uma voz<br />

ecoante: “Estevão”. O pinto que estava quietinho se levantou e colocou a<br />

cabeça na posição que pudesse ouvir melhor. De novo a voz: “Estevão!<br />

Estevão!” Era um eco se espalhando na mata. Ai o pinto respondeu:<br />

“Diga”. A voz disse: “Venha e traga os outros.” O pinto apontou para Odé<br />

que tremia que nem vara verde e perguntou: “Também ele?” A voz disse:<br />

“Não. Deixe pra depois. Depois, depois...”. Ai a voz foi se distanciando aos<br />

poucos.<br />

O pinto dançando no meio dos animais mortos, de vez em quando tocava em<br />

um animal morto dizendo: “Ô didê,” quer dizer levante-se, “Babá un pê,”<br />

quer dizer o pai está chamando. E cada animal tocado levantava. Depois ele<br />

fez uma fila com os animais mortos, se colocou na frente, saiu cantando e<br />

dançando: Ô didê! Bábá Un pê! Quer dizer: “Levante que o pai está<br />

chamando”.<br />

Odé, o caçador, pegou suas tralhas que escorregava das mãos, trôpego e<br />

muito assustado saiu correndo e jurando que nunca mais voltaria à mata<br />

para caçar.<br />

Como podemos ver, Odé constitui um princípio inaugural de origem africana Nagô,<br />

referência simbólica dos valores culturais do continuum africano nas Américas, de modo<br />

28


especial na Bahia. No conto, apresenta-se como uma das possibilidades de reflexão da<br />

existência social, o respeito do homem a seu habitat, natural e cultural.<br />

O conto destaca um universo de valores desconhecidos pela escola, por trazer uma<br />

filosofia de vida diferente da ideologia neocolonial que a escola sustenta como universo de<br />

valores únicos, a sociabilidade. Neste conto, o personagem é um caçador provedor cuja<br />

função é alimentar e proteger sua comunidade.<br />

Encontram-se, nesta narrativa, ensinamentos cujos princípios de valores culturais<br />

simbolizam: o respeito aos mais velhos através da imagem simbólica do Babalaô, pessoa que<br />

guarda o saber e o transmite, aconselhando; a pedagogia ético-estética africana nagô,<br />

demonstrada nas etapas da caçada vivida por Odé caçador, aquele que comete falha até<br />

compreender que estas não responsabilidades de um Odé, pois sua função é garantir a<br />

expansão da vida de sua comunidade, atitude que faz parte da filosofia de vida desta cultura,<br />

conforme assinalam os estudos de Marco Aurélio Luz ( 1995).<br />

A pedagogia contida no conto mítico-nagô “O caçador e a caipora” (SANTOS, D.M.,<br />

2004, p. 174) gera um cenário de reflexão, a partir das atitudes do caçador, Odé, que é aquele<br />

que aprende assumindo uma postura de respeito diante de quem lhe ensina, o Babalaô. Muito<br />

embora o caçador, personagem mítico africano-nagô, cometa equívocos entendemos que<br />

sejam os equívocos naturais do processo de iniciação pedagógica por parte do iniciado,<br />

entendemos que estas são referências simbólicas trazidas ao contexto funcional pedagógico do<br />

conto, para gerar a compreensão dos desdobramentos do sistema de valores da sociedade<br />

africano-nagô.<br />

Outro valor transmitido por esse conto é o significado conceitual da palavra ebó, que<br />

“[...] implica numa concepção de ciclo vital. O ciclo vital caracteriza o ritmo do universo por<br />

sucessivos processos de renascimentos” e também significa “[...] abrir caminhos, restituir axé<br />

e assim melhorar o fluxo do destino.” (LUZ, M.A., 1995, p.35). Odé, o caçador, quando<br />

descobre que algo não vai bem, ou seja, não consegue caçar, faz um ebó, simbolizando, assim,<br />

o sentido de busca e de restituição dos valores perdidos, por não cumprir o que fora<br />

estabelecido no acordo sagrado socioexistencial.<br />

Diante desses atos de respeito aos valores civilizatórios, intuímos que esta seja uma<br />

forma de repor princípios e valores herdados, restituindo um novo viver, uma nova chance<br />

para atuar, em suma, implica uma atitude de respeito de um Odé aos códigos de valores<br />

culturais de sua comunidade.<br />

M.arco Aurélio Luz (1995) nos diz que, nas sociedades africanas, o caçador é a<br />

pessoa que recebe as honrarias de um Odé, um guerreiro que aprende a conviver<br />

29


espeitosamente com a floresta e os seres que nela habitam como os animais, as plantas e<br />

árvores e os espíritos:<br />

Nas sociedades africanas, os caçadores detêm importante papel.<br />

Primeiramente, eles representam a abundância de alimento resultante da<br />

caça; segundo, porque passando longos períodos no mato, aprendem o valor<br />

medicinal das folhas, e, terceiro, são eles que encontram os melhores sítios<br />

para instalação de uma nova roça ou duplicação da cidade.( LUZ, M.A.,<br />

1995, p 64.) .<br />

Na comunalidade Nagô, Odé é o orixá Oxóssi, um grande conhecedor dos espíritos da<br />

mata e zelador da mata virgem, é o orixá “[...] patrono da caça e do caçador, dos batedores<br />

fundadores de territórios, conhecedores da floresta” (LUZ, M.A., 1995 p.581), estas<br />

referências simbólicas encontradas neste estudo de Luz Marco Aurélio (1995) nos conduziram<br />

à compreensão de que Odé é o guia das proposições pedagógicas do Grupo Artebagaço<br />

Odeart.<br />

No contexto desta pesquisa, Odé simboliza a força que reconduz o Grupo Artebagaço<br />

Odeart a motivações de participação dos seus componentes no sentido da busca de<br />

conhecimentos que afirmem a valorização do território “africano-brasileiro”, através das<br />

atitudes características do cenário da luta pela afirmação socioexistencial, como a valorização<br />

e enaltecimento dos signos e símbolos da cultura ancestral africano-brasileira.<br />

Odé é a metáfora que inspira a recriação de linguagens de elaborações cênicas que<br />

expressam os modos de sociabilidade do Cabula e a pujante presença africano-brasileira.<br />

Portanto, Artebagaço Odeart: ecos que entoam a mata africano-brasileira do Cabula<br />

é a comunicação que enuncia não apenas uma territorialidade constituída por referências da<br />

tradição africana, a mata africano-brasileira, mas também que, apesar da imposição ascética<br />

da urbanização produtivista da Razão de Estado, a mata resiste e expande seus poderes.<br />

É daqui da mata africano-brasileira que vemos nossos/as jovens do Grupo Artebagaço<br />

Odeart nascerem, crescerem, sonharem, estruturarem suas identidades e lutarem pelo direito<br />

ao existir. É nesta mata africano-brasileira que aprendemos, com os mais velhos, o<br />

conhecimento ancestral constituinte do nosso solo de origem.<br />

Odé e sua presença na mata africano-brasileira representam um dos princípios<br />

cósmicos do povo nagô. É, como diz o Mestre Didi,<br />

[...] o orixá patrono dos caçadores é Oxossi. Representado pela cor azul<br />

celeste, ela se refere a madrugada e ao alvorecer do dia. É também o<br />

alvorecer da humanidade quando através da criação de instrumentos aqui<br />

30


epresentado pelo ofá,arco e flecha, a espécie emerge como a mais<br />

capacitada em se expandir pelo mundo.<br />

Oxossi representa também a passagem da atividade restrita da caça para<br />

outras ações que concorrem para prover a sociedade de alimentos. Assim<br />

com a criação e domesticação de animais no surgimento das cidades,<br />

intensifica-se as trocas comerciais. Ele passa também a ser o patrono dos<br />

fundadores das cidades, o que descobre os sítios adequados que garantem a<br />

provisão do grupo.<br />

Na história da humanidade, aspectos da vida nômade e da vida sedentária<br />

estão aí representados e estão presentes na narrativa de Odé e os Orixá do<br />

Mato:<br />

Kofe pa eran<br />

Ma lo<br />

Ko lo. (SANTOS, D. M.; LUZ, M.A, 2007, p. 63).<br />

É através da simbologia de Odé que nos sentimos instigados a propor uma dissertação<br />

que expressasse os “ecos que entoam a mata africano-brasileira do Cabula”, apresentando<br />

vivências mítico-poéticas e linguagens cênicas que aproximam os/as jovens dos valores que<br />

estruturam as dinâmicas das comunalidades africano-brasileiras que constituem o Cabula.<br />

Os signos e símbolos que os componentes do Artebagaço Odeart carregam em si são<br />

transmitidos pelos moradores mais antigos das comunalidades do Cabula, herdeiros dos<br />

códigos e valores ancestrais africanos, os quais estes transmitem aos mais jovens.<br />

O cenário escolar, nesse contexto, é interpretado como um “território” do poder<br />

hegemônico de valorização e legitimação dos valores culturais da “ideologia neocolonial”<br />

local onde o ethos luso-europeu (a começar pela língua portuguesa, padrão culto, e as<br />

religiões judáico-cristãs) é imposto como única forma de pensamento e expressão. Sendo<br />

assim, contestamos este espaço através das referências artístico-culturais de afirmação<br />

existencial e identitária do Grupo Teatral Artebagaço Odeart, tradutor de uma educação<br />

pluricultural ancorada nas raízes da tradição “africano-brasileira” (LUZ, M.A., 1995) 2 .<br />

É preciso deixar claro que concebemos a escola como um espaço hegemônico de um<br />

poder absoluto e opressor, que tenta impossibilitar a atuação dinâmica criativa dos<br />

componentes do Artebagaço Odeart, portadores dos signos e símbolos da população<br />

cabuleira 3 para impor sua “pedagogia de servidão neocolonial” 4 .<br />

2 A expressão africano-brasileira compõe o significado de identidade civilizatória do descendente de africano do<br />

brasileiro, pode ser melhor entendida ao longo da leitura da obra Agadá, dinâmica da civilização africanobrasileira<br />

de Marco Aurélio Luz (1995)<br />

3 O uso do sufixo-eira é usado para designar lugar, mas lugar de criação, reprodução e conservação de tais como<br />

se diz de viveiro, de acordo com o dicionário de Houaiss (2001, p. 457).<br />

4 Expressão criada nesta pesquisa para caracterizar normas e formas de linguagem pedagógica de alteração do<br />

africano-brasileiro e aborígine brasileiro nos seus direitos de liberdade, mas que o induzem a servir ao<br />

neocolonizador.<br />

31


Nosso desejo se constitui na realização de um sonho: apresentar às escolas do<br />

Município de Salvador um projeto político-pedagógico que caracteriza a riqueza territorial<br />

africano-brasileira resguardada no Cabula, o Projeto Odeart.<br />

O nosso propósito, nesta Introdução, além de aproximar o leitor da infinitude de<br />

linguagens que têm mobilizado o Grupo Artebagaço Odeart, é também informar aspectos que<br />

dão estrutura, forma e conteúdo à dissertação, a saber, que responde questionamentos como:<br />

Qual a origem do Artebagaço? Quais os principais desdobramentos político-pedagógicos?<br />

Como se desdobram as linguagens político-artístico-culturais do Artebagaço Odeart? Qual a<br />

arkhé das referências de linguagens que promovem a dinâmica de comunicação intergrupal<br />

Artebagaço Odeart?<br />

Assim, Artebagaço Odeart: ecos que entoam a mata africano-brasileira do Cabula,<br />

apresenta quatro capítulos que se intercambiam enfatizando os principais objetivos/metas:<br />

caracterizar o projeto político-pedagógico concebido pelo grupo Artebagaço Odeart para<br />

atender a alunos de escolas públicas do Cabula; caracterizar a territorialidade africanobrasileira<br />

fincada no Cabula<br />

Além disso, busca identificar os valores e as linguagens da matriz africana<br />

características do Cabula, que representam um rico acervo de proposições curriculares;<br />

compor linguagens estéticas para o cotidiano escolar que contemplem a riqueza da<br />

territorialidade africano-brasileira do Cabula; recriar, através das composições políticopedagógicas<br />

do Artebagaço Odeart, perspectivas de linguagens ético-estéticas para o currículo<br />

escolar valorizando e enaltecendo as comunalidades tradicionais, referência dos jovens das<br />

escolas públicas do Cabula.<br />

Cabe introduzir aqui algumas noções fundamentais sobre as elaborações que repassam<br />

toda a composição desta dissertação: arkhé, eidos e ethos.<br />

Utilizamos a noção de arkhé para entendermos o complexo de linguagens<br />

características da civilização africano-brasileira e, com ele, intercambiarmos o que é essencial<br />

para a constituição de uma Educação Pluricultural.<br />

Sobre o eidos, entendemos:<br />

32<br />

Quando nos referimos a arkhé estamos lidando com princípios<br />

inaugurais, origem, começo, continuum, dinâmicas de criaçãorecriação,<br />

transcendências que orientam o devir-futuro, estabelecendo<br />

a relação visceral entre tradição e contemporaneidade (LUZ, N. 2003,<br />

p.67).


33<br />

[...] desdobra-se a compreensão da dimensão ontológica da<br />

diversidade humana marcada pela angustiante procura de respostas<br />

sobre o estar no mundo, no universo, a pulsão da existência<br />

enriquecida pela linguagem mítica presentificada e absorvida no viver<br />

cotidiano das comunalidades. (LUZ, N. 2003, p.67).<br />

E a noção de ethos vem enfatizar nossas elaborações, pois:<br />

O que realmente podemos reter da riqueza da linguagem que<br />

caracteriza a comunidade africano-brasileira, no que tange às<br />

suas relações manifestas, é que estas proporcionam o ethos, o<br />

discurso significante, o enunciado da linguagem, a configuração<br />

estética, o estilo ou modo de vida. (LUZ, N., 2000, p.105).<br />

Assim, é importante dizer que o elo entre as abordagens temáticas carregadas de<br />

arkhé, eidos e ethos, de cada capítulo, tem a referência mítica de Odé, o caçador/provedor da<br />

comunalidade, guardião do patrimônio da mata africano-brasileira, orientando todo tempo<br />

esta composição e assegurando o enredo expresso no tema-título Artebagaço Odeart ecos que<br />

entoam a mata africano-brasileira do Cabula.<br />

Insisto em afirmar que a alusão metafórica a Odé apresenta os temas que serão<br />

entoados desde dentro da mata “cabuleira”, apelando para estratégias de linguagem que<br />

recriam os cenários socioexistenciais da territorialidade do Cabula.<br />

O primeiro capítulo, “Ôkê-arô! Ecos do alvorecer”, apresenta de forma poética a<br />

vivência cotidiana da população do Cabula através de um cenário de recriação territorial no<br />

qual a simbologia Odé, caçador, entoa sua saída do fundo da mata, onde está resguardado o<br />

patrimônio africano-brasileiro, em direção ao espaço urbano-industrial etnocêntrico. Neste<br />

caminho, ainda no espaço mata ele entoa as referências da arkhé civilizatória africana<br />

plantada no Cabula e, sobretudo, apresenta as formas de os ancestrais enfrentarem, no<br />

passado, as ideologias do recalque, destacando, nesta dinâmica de arkhé, as primeiras<br />

iniciativas realizadas pelas Iyás fundadoras do culto Nagô, que também plantaram a<br />

socioexistência africana no Brasil e asseguraram a continuidade da tradição mítico-sagrada<br />

Nagô na Bahia. Destaca também a presença dos ancestrais quilombolas e bantos do império<br />

Congo-Angola no Cabula. Ainda neste capítulo, está uma autobiografia da autora desta<br />

dissertação, contendo referências pessoais dos fundadores do Grupo Teatral Artebagaço, que<br />

demonstra, com esta atitude, a importância e a influência da sua inserção comunitária no<br />

Cabula, tornando-se uma das legítimas vozes que entoam a mata africano-brasileira, criando


espaços institucionais, a exemplo da área de Educação, fundamentais ao crescimento das<br />

futuras gerações como é o exemplo do Grupo Artebagaço Odeart.<br />

No segundo, “Nas trilhas do vivido-concebido”, é entoada a opção metodológica da<br />

pesquisa, de onde nesta brota o movimento agachado, que consiste na trajetória de iniciação<br />

do pesquisador educador-artista manifestando a busca metodológica no cenário pedagógico de<br />

caçada africana, que se aproxima bastante das vivências da população da pesquisa, o<br />

cabuleiro. Aqui, os instrumentos de coleta de dados e os principais impactos da análise de<br />

dados presentificam-se.<br />

O terceiro capítulo, “Pedagogia da Servidão Neocolonial”, traz a crítica às ideologias<br />

neocoloniais da sociedade oficial, sobretudo ao etnocentrismo no sistema escolar, e descreve<br />

as formas de romper com os grilhões verbais e não-verbais ou obstáculos ideológicos à<br />

expansão socioexistencial africano-brasileira. Entoa-se a crítica às perspectivas<br />

unidimensionais, que caracterizam a urbanização imposta à territorialidade do Cabula, através<br />

da arquitetura da fachada das instituições oficiais que caracterizamos pela metáfora trompel’oeil<br />

(SODRÉ, 2002, p.35) e à universalidade espaço-tempo escolar constituído por valores<br />

neocoloniais que nos permitem caracterizar o sistema escolar como uma “Casa Grande e<br />

Senzala” (LUZ, N. 2001, p. 24), ambas constituintes do sistema escolar .<br />

O quarto e último capítulo, “Odé Dê Nilé - Caçador Chegou em Casa”, dedica-se a<br />

relatar as vivências criativas político-pedagógicas das linguagens cênicas do Artebagaço<br />

Odeart através do espetáculo teatral “A de ó – Estamos chegando”, um cenário míticopoético<br />

africano-brasileiro recriado em dois atos; no primeiro, composto por textos do<br />

Artebagaço, e, no segundo, por adaptações recriadas a partir de textos de Mestre Didi Axipá<br />

para o grupo, a saber: o conto “O caçador e a caipora” (SANTOS, D.M., 2004, p. 174) e o<br />

auto coreográfico “Odé e os orixás do mato” (SANTOS, D. M.; LUZ, M.A., 1989, p.19-23).<br />

Nas Considerações Finais, apresentamos “Emi Omo Odé”, quer dizer: sou filho de<br />

caçador (SANTOS, D. M.; LUZ, M. A., 1989, p.23), que enuncia o fim da caçada na mata e<br />

reafirma a identidade civilizatória Odé, que prenuncia novas caçadas ao amanhecer. Este<br />

cenário corresponde ao apagar das luzes naturais da “mata”. Destaque para os impactos e<br />

contribuições da pesquisa com o intercâmbio realizado com o Programa Descolonização e<br />

Educação UNEB/CNPq que também contribuiu para a expansão do Grupo Artebagaço<br />

Odeart.<br />

Bem, através desta perspectiva mítico-poética, da episteme africana realizamos o<br />

entrelace da linguagem acadêmico-científica com a arte, tal como aconteceu no Artebagaço<br />

Odeart, durante esta experiência de pesquisa. Nosso propósito é contribuir para a abertura de<br />

34


palcos pedagógicos nas escolas do Cabula, propondo um diálogo constituído por linguagens<br />

político-pedagógicas de ação transdisciplinar que respeite, valorize e enalteça a tradição<br />

africana plantada no Cabula, enfim, uma concepção de educação pluricultural.<br />

Esperamos que este seja o primeiro caminho de composição de cenários favoráveis à<br />

elaboração de um currículo pluricultural nas escolas do Cabula. Quem sabe se, por este<br />

caminho, a escola “veja” o estudante como uma pessoa, ou melhor, como árvore que são os<br />

filhos de Oxalá, símbolo da vida? Quem sabe, seja possível replantar a “mata” que respeita e<br />

resguarda a alteridade própria e cultural?<br />

Agora, caro leitor, fazemos um convite: venha conosco dar os primeiros passos nesta<br />

experiência que é viver a mata africano-brasileira do Cabula. Vamos lá?<br />

35


1 ÔKÊ-ARÔ! ECOS DO ALVORECER<br />

O Caçador sai da cabana e se dirige ao mato, dançando, carregando o arco e<br />

flecha e o seu emblema, iruquerê. Nesse momento, todos os animais fogem,<br />

procurando se esconder por detrás das árvores, na densdade do mato.<br />

Mestre Didi Axipá<br />

É ao cantar do galo na comunalidade do Cabula que os ritos de Odé, caçador por<br />

excelência se anunciam: o choro da criança, o acender das luzes, o cheiro de café, o rádio que<br />

toca música percussiva, aproximadamente entre quatro e cinco horas da manhã, tudo isto<br />

simboliza o som dos oge, os ecos que entoam apresentando o ritual que celebra a luta<br />

guerreira dos filhos de Odé que ritualizam a existência africano-brasileira ao amanhecer.<br />

É ao alvorecer que eles saem para caçada cotidiana, com seus passos rotineiros vão<br />

subindo e/ou descendo as ladeiras que os levam para rua principal, lá pegam um ônibus ou<br />

seguem a pé. A caminhada é a mesma de sempre, é aquela de quem vai caçar o que a vida lhe<br />

proverá para guardar a tradição.<br />

Esse rito metafórico que apresentamos corresponde à saída de Odé da mata para o<br />

“espaço urbano”, um espaço artificialmente construído pelo neocolonizador na mata<br />

brasileira, porém entendemos que é necessário caçar os saberes deste território desde que<br />

sejam preservadas as referências da mata africano-brasileira, pois os/as herdeiros/as de Odé,<br />

que caracterizam a caça, assim podem proteger seu território. Mas vamos conhecer a<br />

sabedoria acumulada pelo princípio Odé que impulsiona seus/suas herdeiros/as, Omo-Odé, a<br />

manter a continuidade civilizatória.<br />

Nas celebrações e festivais de homenagem à Ancestralidade, os primeiros a abrirem<br />

os ritos são aqueles que alimentam os vínculos de comunalidade caracterizados pelo animal<br />

leopardo, tal como Marco Aurélio nos conta sobre o Festival de Epa da região de Ekiti, na<br />

Nigéria:<br />

[...] o povo reunido com autoridades religiosas, aguarda a passagem dos<br />

ancestrais, que através das esculturas simbólicas que portam sobre a cabeça,<br />

narram aspectos fundamentais dos princípios que regem a trajetória da<br />

humanidade e da comunalidade nagô-yorubá.<br />

Aparece Oloko, o senhor do campo, da savana, trazendo a escultura do<br />

leopardo abatendo o antílope, representação do predador, o caçador, no<br />

alvorecer da humanidade é um dos seus principais aspectos desde os seus<br />

inícios enquanto espécie. Depois surge na área de danças dramáticas o<br />

ancestre que traz a escultura do Ologun, o guerreiro, Elexin, o cavaleiro com<br />

lança, o caçador, o desbravador. Depois das evoluções desses ancestres,<br />

saudando as autoridades religiosas, e dançando envolvidos pelo povo, abre-


E mais,<br />

se espaço para o aparecimento de Ao, ancestre que traz a representação dos<br />

poderes do Babalawo, o consultor do oráculo, pai dos mistérios do fluxo dos<br />

destinos e do Onixegun ou Babalosaiyn, o sacerdote conhecedor das folhas e<br />

das poções e preparos religiosos e medicinais. (LUZ, M. A., 2006, p.3).<br />

O Festival atinge um clímax com a chegada de Eyelaxé a representação<br />

simbólica da escultura que magnifica e qualifica a mãe que possui o poder.<br />

Também conhecida como Iyá Ibeji mãe dos gêmeos, significando fertilidade<br />

feminina. Finalmente surge o Orangun, título de um dos reis da região, sua<br />

escultura-símbolo é do rei cavaleiro rodeado de tudo que é gente das<br />

comunidades aldeãs ou das cidades, caçadores, guerreiros, ferreiros, músicos<br />

que estão todos sob um pálio protetor, ou imenso guarda-sol. Podemos<br />

entender que através da representação simbólica dos princípios do processo<br />

contínuo da sociabilidade humana acontece num aqui e agora a articulação<br />

da temporalidade litúrgica a seqüência da participação de cada ancestral com<br />

a temporalidade da narrativa que fala por assim dizer, de cada aspecto<br />

ontológico da historicidade, isto é, do devir da humanidade. (LUZ, M.A.,<br />

2006, p.4).<br />

Oxóssi, orixá fundador e protetor de território, é a entidade com poderes existenciais<br />

de provedor, garante o alimento necessário que assegura a vida do grupo social. “Trata-se de<br />

um òrisà muito importante na Bahia particularmente nos três “terreiros” Ketu. Com efeito,<br />

Òsôsì é considerado como um dos òrisà reais e por isto é chamado Alaketú, título oficial do<br />

rei de Ketu.“ (SANTOS, J., 2002b, p.94). É uma das primeiras referências sagradas<br />

ritualizada pelos ancestrais caçadores invocando proteção e alimento.<br />

O culto ao orixá Oxóssi é originado de Oyó, capital do império Nagô, porém no século<br />

XIX “Seu culto foi introduzido na Bahia por uma das fundadoras do àse do primeiro<br />

“terreiro” público na Barroquinha, e Ôsôsì é considerado fundador dos três “terreiros” que<br />

derivam dele.” (SANTOS, J., 2002b, p.94) e foi reterritorializado para garantir a implantação<br />

de novos territórios africano-nagôs no Brasil.<br />

Devido a esta qualidade de restituidor de poder da existência guerreira caçadora,<br />

Oxossi é considerado pelos Nagôs do Brasil como Axexê, isto é, Oxossi é orixá que participa<br />

do rito mortuário que celebra a renovação de vida quando há morte no lugar, a entidade<br />

mítico-sagrada que tem poder de restituir as forças de quem se foi ao orun, mundo<br />

sobrenatural, para aqueles que ficam no aiyê, mundo em que vivemos.<br />

Os poderes de Oxóssi são invocados por iniciados ao seu culto através de seus<br />

emblemas sagrados: o ofá, o ogé e o erukeré. O ofá, quer dizer arco e flecha, é o símbolo do<br />

poder e da infalibilidade, com os poderes do ofá, o ancestral africano caçador foi reconhecido<br />

37


como caçador por excelência e detentor do título Osówusí, caçador de uma flecha, o título<br />

enuncia o poder certeiro do ofá,<br />

Inclusive foi no Opô Afonjá que ouvimos de uma das sacerdotisas da casa a narração<br />

do conto que guarda o aspecto inaugural de transmissão do axé de Oxóssi para o primeiro<br />

ancestral, Wussi, caçador que com uma única flecha abateu um pássaro gigantesco que<br />

ameaçava de extinção o reino de Ijexá. Depois do feito, o povo agradecido gritava: Oxó<br />

Wussi. Oxó quer dizer “popular”, Wussi é a representação do arkhé caçador que plantou o<br />

culto de Oxóssi, representa a referência simbólica do mito caçador por excelência, Odé.<br />

Oxóssi deriva do nome Osówusí, título que recebia o corpo de cavalaria de Oyó,<br />

formado por caçadores, cuja função era fazer a guarda noturna da comunalidade (Cf., LUZ,<br />

M.A. 1995 p. 64), por isto eles eram os únicos autorizados a usar o ofá, instrumento caça e de<br />

guarda, ou seja, o ofá simboliza arma de proteção e defesa. Este dado refere-se à função de<br />

guardiães protetores do lugar, e isto pode estar relacionado com seu material, o ferro.<br />

Além do poder infalível do ofá, o iniciado ao culto de Oxóssi recebe o poder assentado<br />

no ogé, um emblema caracterizado por dois chifres de touro, que emite o poder de<br />

comunicação do iniciado com o órun, o sobrenatural, e o aiyê, os humanos, são chamados<br />

olukoohum, quer dizer: “senhor, escuta minha voz”. Além do oge existe o erukeré, um<br />

instrumento preparado com pêlo do rabo do touro e que recebe um axé específico para<br />

assegurar proteção do caçador na mata (LUZ, M.A., 2006). É também o que controla os<br />

espíritos na mata.<br />

A cor de Oxóssi está relacionada ao alvorecer, quando o céu se abre na manhã e deixa<br />

transparecer o azul-claro, a cor de suas vestimentas e colares.<br />

O “grito” de Oxóssi é um grito de guerreiro, sendo através dele que, nas celebrações e<br />

festividades, os zeladores se comunicam com a entidade mítico-sagrada e com o ancestral<br />

fundador. A saudação de um Odé é Ôkê-arô! Como já dissemos, esta saudação expressa o<br />

poder da presença mítico-sagrada que se relaciona com o homem zelador do culto.<br />

Na dinâmica da arkhé africana, entre tradição e contemporaneidade, os herdeiros da<br />

mata cabuleira detêm os poderes que magnificam este princípio ancestral, Odé.<br />

Okê-Arô!<br />

O que precisávamos era justamente dessa aproximação com esses princípios ético-<br />

estéticos da nossa ancestralidade que regem a trajetória da humanidade e da comunalidade<br />

africano-brasileira.<br />

Agora, caro leitor, fazemos um convite para seguirmos juntos a nossa caminhada<br />

orientada pelas trilhas compostas por um Odé. Nossos próximos passos nos levarão a<br />

38


conhecer os constituintes civilizatórios da arkhé africano-nagô, sobretudo os feitos das Iyas da<br />

linhagem Axipá responsáveis pela implantação da tradição do império Nagô no Brasil, das<br />

Iyas da linhagem Axipá ou não, mas que deram continuidade preservando e expandindo os<br />

valores erguidos pelos princípios e valores transplantados da África para o Brasil, contudo<br />

reconhecendo a presença marcante das referências masculinas que zelam pelo culto Egungun<br />

como Mestre Didi Axipá, o Alapini, Supremo Sacerdote do Culto aos ancestres e ancestrais, o<br />

mais velho representante da família Axipá no Brasil.<br />

Entretanto, ressaltamos que, quando falamos em arkhé agregamos o sinal da luta<br />

quilombola iniciada pelos ancestrais bantos desde o século XVI, e, em seguida os povos dos<br />

contínuos nagôs e jejes que fortaleceram e expandiram esta luta a parte dos meados do século<br />

XVIII. Por isso nossas trilhas surgiram de imagens constituintes do passado com estas<br />

referências histórico-sociais e culminaram com o que vemos no presente, na<br />

contemporaneidade, como forma de luta plantada nos quilombos, nas irmandades, na<br />

comunalidades tradicionais conhecidas por candomblé.<br />

1.1 ARKHÉ AFRICANO-BRASILEIRA ELOS DE COMUNALIDADES<br />

1. Iya o bogunde 1. A guerra trouxe a Mãe,<br />

2. Omo Afonjá o bogunde. 2. Filha de Xangô que chegou com guerra.<br />

3. E ma be ru ja, 3. Mas não tema a batalha,<br />

4. Iya asa o. 4. Pois a Mãe perdeu o medo.<br />

5. Eni ma be orisa 5. Roguemos aos Orixás,<br />

6. Aiyê b’ode 6. Para que a alegria se expanda no<br />

Mundo<br />

39<br />

(SANTOS; SANTOS, 1993, apud LUZ, N., 2000, p. 137).<br />

O entendimento da trajetória de luta pela afirmação da alteridade Artebagaço Odeart<br />

começou quando reconhecemos que suas dinâmicas político-pedagógicas ancoram-se em<br />

linguagens constituídas por referências simbólicas civilizatórias africano-brasileiras herdadas<br />

da arkhé africana Odé, ancestral que detém os princípios da existência do mistério da caça<br />

cujos valores civilizatórios caracterizam a tradição guerreira de um provedor, protetor e<br />

guardião.<br />

Esse entendimento foi percebido no rico cenário da trama sócio-histórica das<br />

experiências erguidas no passado, desde a África, quando os ancestrais africanos tiveram sua<br />

liberdade violentamente arrancada e direitos humanos negados e, por isto, criaram estratégias


para romper com a dinâmica das ideologias de escravização 1 e do neocolonialismo e, assim,<br />

foram implantados os territórios políticos da comunalidade africano-brasileira, na qual o<br />

princípio da caça foi o poder mítico e simbólico da luta pela afirmação da alteridade africana,<br />

em que as Iyas, mães, foram presenças memoráveis.<br />

Com esse poema laudatório africano-nagô, oriki em iorubá, abrimos esta temática para<br />

falar da arkhé africano-nagô plantada no Cabula, o oriki resguarda um pouco da história desta<br />

luta, e em seus versos encontramos o lirismo coletivo mítico-sagrado de celebração e<br />

homenagem a Iya Oba Tosi, sacerdotisa de Xangô, Marcelina da Silva, nome católico da<br />

primeira Ialorixá do Ilê Iya Nassô, Casa Branca, localizado no Engenho Velho da Federação,<br />

Iya Oba Tosi, sacerdotisa de Xangô. O oriki também rende homenagens as Iyas seguidoras de<br />

Oba Tosi:<br />

É com esta perspectiva da arkhé africana no Brasil que apresentamos um<br />

longo poema e/ou oriki qu celebra e comunica, no seio das comunidadesterreiros<br />

há cinco gerações, a homenagem a primeira Iyá do mais antigo<br />

terreiro da Bahia, Marcelina da Silva, a Obatosi, que era sacerdotisa de<br />

Xangô, filha da lendária Odanadana, da tradicional linhagem dos Asipá.<br />

(LUZ, N., 2000, p.137)<br />

Os versos do poema traduzem o sentimento de quem está num cenário de ameaça<br />

“Mas não tema a batalha” e, ao mesmo tempo, busca forças místicas para enfrentar esta<br />

realidade: “Pois a Mãe perdeu o medo”, nesta trama histórica, a continuidade civilizatória<br />

resguarda-se nos versos “A guerra trouxe a Mãe, / Filha de Xangô que chegou com a guerra”,<br />

que apresenta a real causa da chegada dos Nagôs do Brasil, no final do século XVIII a início<br />

do século XIX, a guerra que houve entre Daomé e o reino Ioruba. Vejamos a narração de<br />

Juana Elbein:<br />

Os ataques contínuos dos daomeanos dirigidos contra seus vizinhos do Sul,<br />

do Norte e do Leste, e a pressão dos Fulani sobre Òyó, a capital do reino<br />

Yorubá, impedindo seus exércitos de defender os territórios mais distantes<br />

do seu império, tiveram como resultado a captura e, em seguida, a venda de<br />

numerosos grupos Egba, Egbado e Sábé, particularmente dos Kétu,<br />

embarcados em Huida (Ajuda) e em Cotonu. Esses contingentes agregaramse<br />

— depois da queda de Òyó e de desapiedadas lutas intestinas que<br />

culminaram com a revolta e a perda de Ilorin — grupos provenientes do<br />

próprio território Òyó, grupos Ijesa e Ijebu. Os Kétu foram os mais<br />

profundamente atingidos pelos daomeanos de Abomey. (SANTOS,J., 2002,<br />

p. 28).<br />

1 Leia-se o recalque cultural produzido pelo racismo e outras ideologias etnocêntricas forjadas maldosamente<br />

pela arrogância e soberbia da ganância burguesa européia.<br />

40


Com a queda de Oyó e o aprisionamento dos ancestrais africanos nagôs, contínuos<br />

culturais chegaram ao Brasil trazendo as Iyás guerreiras como Iya Oba Tosi, descendente da<br />

linhagem dos Asipá, originária de Oyó, e membro de uma das sete famílias fundadoras do<br />

reino de Ketu cujo patrono era o orixá da caça Oxossi. Ressaltamos que Asipá foi um dos<br />

líderes do corpo de cavalaria de Oyó 2 que fundou Ketu. A função da cavalaria real, que era<br />

composta por membros de realeza, era proteger, guardar e prover alimento para a comunidade<br />

e procurar novos sítios ou territórios político-sociais para população em crescimento. Vem de<br />

Juana Elbein a contribuição sobre as referências históricas dos nossos ancestrais africanonagôs<br />

:<br />

A história de Kétu é preciosa como referência direta no que no concerne à<br />

herança afro-baiana. Foram os Kétu que implantaram com maior intensidade<br />

sua cultura na Bahia, reconstruindo suas instituições e adaptando-as ao novo<br />

meio, com tão grande fidelidade aos valores mais específicos de sua cultura<br />

de origem, que ainda hoje elas continuam o baluarte dinâmico dos valores<br />

afro-brasileiros. (SANTOS, J., 2002, p. 28).<br />

Retomando os versos do oriki, devemos dizer que esta luta é de povos que,<br />

violentamente retirados do seu solo de origem, Sul e Centro de Daomé e Sudoeste da Nigéria,<br />

“de uma vasta região que convenciona chamar de Yoru baland, são conhecidos no Brasil sob<br />

o nome genérico de Nagô.” (SANTOS, J., 2002, p. 29) foram transportados como “coisas”,<br />

“objetos” para servir à prepotência de uma hegemonia neocolonial. Destes povos herdamos,<br />

especialmente Salvador, na Bahia: “[...] costumes, suas estruturas hierárquicas, seus conceitos<br />

filosóficos e estéticos, sua língua, sua música, sua literatura oral e mitológica. E, sobretudo,<br />

trouxeram para o Brasil sua religião,” (SANTOS, J., 2002, p. 29).<br />

No oriki estão os códigos de religiosidade africano-nagô “Roguemos aos orixás. / Para<br />

que a alegria se expanda no mundo.”. Nestas expressões estão as forças de poderes míticosimbólicos<br />

dos orixás e dos ancestrais que as três africanas livres transplantaram da África à<br />

Bahia e no início do século XIX fundaram a primeira casa pública de culto africano do Brasil<br />

da nação Nagô na Bahia, o Ilê Iya Omi Ase Airá Intile, “[...] numa casa situada próxima à<br />

igreja da Barroquinha, na rua hoje chamada Visconde de Itaparica” (LUZ, M.A., 1995, p.<br />

503). Esta tradição é preservada por cinco gerações de Iyas.<br />

Vejamos outros versos do Oriki que homenageiam esta força guerreira feminina:<br />

2<br />

O corpo de cavalaria era o corpo de caçadores, os caçadores eram homens que pertenciam às famílias de<br />

linhagem, como é o caso do Axipá.<br />

41


1. Omo Iya de a ose ni aimo! - Os filhos, os descendentes da Mãe estão<br />

aqui.<br />

2. Omo Iya de a ose ni aimo! - Os filhos, os descendentes da Mãe estão<br />

aqui.<br />

3. Awa ose ni aimo - Eles são bem conhecidos por nós,<br />

4. Awa ose ni aimo. - Eles são bem conhecidos por nós,<br />

5. Omo Iya de a ose ni aimo! - Os filhos, os descendentes da Mão estão<br />

aqui.<br />

(Apud LUZ, N., 2000, p. 138).<br />

Nesses versos, as homenagens referem-se à continuidade civilizatória realizada por Iya<br />

Oba Tosi que, após a morte de Iyanassô, funda o Ilê Iya Nassô no Engenho Velho da<br />

Federação e continua o culto da tradição Nagô junto com Bambose Obitiko, um alto sacerdote<br />

do culto a Xangô, que viera em sua companhia da África. Bambose recebeu o nome católico<br />

de Rodolfo Martins de Andrade e se passou como escravo de Oba Tosi, Marcelina da Silva<br />

para entrar no Brasil, e juntos fizeram várias iniciações ao culto do império Nagô. (LUZ,<br />

M.A., 1995).<br />

Nos estudos de M. A. Luz (1995), consta que Iya Oba Tosi diversas vezes teve sua<br />

casa invadida pela polícia que aprisionava pessoas que cultuavam seus orixás e ancestrais, e<br />

retinham os instrumentos sagrados. Muitos destes instrumentos sagrados foram recuperados,<br />

agora, no final do século XX. Estavam em posse da polícia caracterizados como armas e não<br />

instrumentos sagrados. Mas o que fica como lição em relação a Oba Tosi foi sua atitude<br />

política de enfrentamento da polícia e de afirmação da alteridade africana diante da força de<br />

legitimação imposta pela religião católica e pelo Estado neocolonial e escravagista.<br />

Quanto ao poder de expansão, este contido nestes versos: “Os filhos, os descendentes<br />

da Mãe estão aqui! / Eles são bem conhecidos por todos.” Destacamos duas grandes filhas por<br />

laços de feitura no ato litúrgico: uma foi Júlia Maria de Conceição Nazaré, com oruku Dada<br />

Baayáni Ajáku que, após a morte de Oba Tosi, vai expandir os valores da cultura nagô<br />

fundando na Federação, no sítio cujo antigo dono chamava-se Gantois, a comunalidade Ilê Iya<br />

Omi Ase Iyámase, que ficou conhecida como Candomblé do Gantois.<br />

A outra filha foi Eugênia Anna dos Santos, filha de Xangô, orixá do fogo, da guerra,<br />

da justiça e do poder de expansão da realeza, da vida ininterrupta na Terra, que, também após<br />

a morte de Oba Tosi, vai expandir os valores nagôs em outro lugar: “[...] uma roça no alto de<br />

São Gonçalo do Retiro, onde organizou seu terreiro, fazendo uma grande casa para todos os<br />

orixás e as pessoas velhas que a acompanhavam.” (SANTOS, D. M., 1988, p. 11).<br />

42


1. Awa de tere tere, - Chegamos e estamos aqui com divertimento.<br />

2. Awa de t’aiyo, - Estamos aqui com muita alegria,<br />

3. Lesi emi omo Alagogo, - Somos os adoradores e filhos de Xangô,<br />

4. Oba alapa ni ka bori! - Poderoso Rei onipotente!<br />

5. Boro um eku aseke - A pantera não pode ser facilmente caçada.<br />

6. Ekun olé ekun aje, - Ela pode também comer.<br />

7. Eni e gangan. - Ela tem poderosos dentes.<br />

(Apud LUZ, N., 2000, p. 139).<br />

Quando Iya Oba Tosi falece em 7 de junho de 1885, a Casa Branca ou Ilê Iya Nassô<br />

ficou sob a liderança de Omonike, Iyalode Erelu, pessoa que organizava a sociedade feminina<br />

de culto as mães ancestrais Iya-mi-Agba 3 , hoje extinta. Omonike, quando falece, não teve<br />

sucessora neste culto e os objetos do culto foram levados para o Ilê Opô Afonjá.<br />

É importante saber que Iya Oba Tosi, cujo título era Ia Nassô Oió Acala Magbo<br />

Olodumaré, o mais alto título sacerdotal feminino da sociedade nagô, quando foi para o<br />

orun, 4 deixou sua força, sopro de vida, entre nós.<br />

Iya Oba Biyi, Eugênia Anna dos Santos, a Mãe Aninha, assim como Oba Tosi na Casa<br />

Branca, também dinamizou os valores civilizatórios nagôs sob a proteção de Xangô: “Awa de<br />

t’aiyo, / Chegamos e estamos aqui com divertimento”. De fato, os mais antigos diziam que as<br />

festas, os encontros do Ilê Axé Opô Afonjá eram fonte de vitalidade, eram a alegria do Cabula<br />

e continuam sendo em pleno século XXI.<br />

Figura 01<br />

Iya Oba Biyi, Mãe Aninha.<br />

Acervo. www.geocities.com<br />

3 Gelede era uma sociedade secreta cujo culto reverenciava Iya-mi. Agba, as mães ancestrais cuja função<br />

concedida por Olorun, entidade suprema dos Nagôs, é de procriar e alimentar os filhos, assim os princípios se<br />

relaciona à fecundidade, a maternidade e a fertilidade da Terra para gerar alimentos, é o princípio da existência<br />

Oxun. Nos rituais sagrados Efe, o pássaro filho, representa os poderes das aje. Símbolos como: sereia, mulher<br />

pássaro, mulher-peixe caracterizam o mistério das Iya-mi. Agba. (Cf. Luz, 1995, p. 103 - 104)<br />

4 Orun, mundo invisível do sobrenatural onde estão os espíritos, o mistério da existência.<br />

43


Foram inúmeras as iniciativas de Mãe Aninha para realizar intercâmbios entre a<br />

sociedade oficial e a sociedade pluralista nagô. Sua linha de ação político-cultural abrange<br />

Cabula, outras áreas de Salvador e Rio de Janeiro, sendo todas as suas ações de valor<br />

inestimável. Antes de fundar o Opô Afonjá, no Cabula, Mãe Aninha, Iya Oba Biyi, iniciou<br />

várias pessoas no culto nagô na roça do Rio Vermelho, na comunalidade tradicional de Tio<br />

Joaquim Vieira, Obá Saniá. No Alto da Santa Cruz, em outra comunalidade tradicional,<br />

também fez outras iniciações. Neste ínterim, fez a iniciação de Maria Bibiana do Espírito<br />

Santos, Iya Oxum Miuwa, bisneta de Oba Tosi, Marcelina da Silva, e mãe sanguínea de<br />

Mestre Didi Axipá, membro da família de linhagem Asipá.<br />

Em 1910, Mãe Aninha morava ao lado da Igreja do Rosário dos Pretos, na Ladeira do<br />

Pelourinho, onde tinha uma barraca sortida com iguarias da África, quando comprou as terras<br />

do Opô Afonjá. Na igreja, participava da irmandade (que continua existindo), na qual tinha<br />

uma posição de destaque, assim como na igreja da Barroquinha.<br />

No Ilê Opô Afonjá, Iya Oba Biyi fez a primeira iniciação da casa e foi de uma filha de<br />

Xangô, Agripina de Souza, pessoa que fundou o Ilê Opô Afonjá do Rio de Janeiro, em Coelho<br />

da Rocha. Mesmo em meio às perseguições da polícia, que fechava casas de culto africano,<br />

Mãe Aninha, seguia a dinâmica de expansão dos valores do império Nagô, no Opô Afonjá;<br />

por exemplo, ela foi expandindo o espaço topográfico, construindo novas casas e assentos.<br />

Mãe Aninha criou, ainda, posto e funções de confiança como Alabê, Axogun, Ogan, no Opô<br />

Afonjá.<br />

Figura 2 - Barracão de Xangô: Ilê Axé Opô Afonjá.<br />

Fonte. www.geocities.com<br />

Em 1921, Iya Oba Biyi, em Itaparica, faz a iniciação de Ondina Valéria Pimentel, filha<br />

de Oxalá e filha consangüínea do Balé de Xangô do Ilê Opô Afonjá José Theodoro Pimentel,<br />

Mãe Ondina depois se tornou Ialorixá substituta de Mãe Senhora, em 1967. É preciso<br />

44


entender que o processo de iniciação à cultura é muito importante como referência de<br />

identidade africana sendo, esta uma das formas de a população brasileira reconhecer os<br />

valores culturais herdados da ancestralidade africana. Estas iniciações constituem de fato o<br />

que o oriki diz: “Boro um eku aseke, / A pantera não pode ser facilmente caçada”, e também:<br />

“Ekun olé ekun aje, / Ela pode também comer”. Neste cenário, há um enunciado de caçada<br />

que corresponde à guerra pela afirmação da alteridade negra, e que quer dizer: continuamos a<br />

lutar, também somos fortes e não tememos a ameaça de silenciamento.<br />

1. A de o!<br />

2. Kosi me fara e awa re!<br />

3. Kosi me fara e awa re!<br />

- Chegamos e estamos aqui<br />

- Nada há no mundo que possa<br />

contra mim, aqui estamos.<br />

- Nada há no mundo que possa<br />

contra mim, aqui estamos.<br />

45<br />

(Apud LUZ, N., 2000, p, 139)<br />

Realmente, desde a liderança de Mãe Aninha, o Opô Afonjá se expande. Foi em 1935<br />

que Oba Biyi iniciou seu neto espiritual, Mestre Didi, Ojé Korikouê, e teve a idéia de compor<br />

o corpo de Obá, 12 Obás de Xangô, quer dizer Ministros do rei, rei Xangô, uma tradição nagô<br />

que só existe na Bahia e além daqui, só na África: “O restabelecimento da antiga tradição dos<br />

Obás de Xangô veio dar ainda maior prestígio ao Opô Afonjá e demonstrar as qualidades e<br />

conhecimentos da Iyalorixá Aninha Iyá Obá Biyi” (SANTOS, D. M. 1988, 13). É bom<br />

ressaltar que o título Obá de Xangô só existia na África, os Obás são os ministros do Alaafin,<br />

o rei do palácio, seis da direita e seis da esquerda, Mãe Aninha instituiu esta cultura no Brasil.<br />

Em 1936, Iya Oba Biyi assenta a pedra da construção da Sociedade Beneficente Cruz<br />

Santa Opô Afonjá, assim como participa do II Congresso Afro-Brasileiro no mesmo ano, com<br />

uma comunicação sobre a culinária africano-nagô. Foi assim que Mãe Aninha iniciou suas<br />

aproximações com a sociedade urbano-industrial, com esta envergadura de quem conhece o<br />

solo de origem etnocêntrica e por isto sabe como se desdobrar sem perder as raízes culturais.<br />

Assim, a ousadia, a garra, a ausência do medo da opressão e a necessidade de romper<br />

os obstáculos ideológicos etnocêntricos fizeram com que Iya Oba Biyi realizasse algumas<br />

iniciativas político-sociais para expandir o território político-social nagô implantado por Iya<br />

Nassô e Iya Obatosi. Existem outras iniciativas, contudo vamos agora nos deter em algumas


expressões herdadas de Iya Oba Biyi cujo simbolismo expressa a pujança do ethos africanobrasileiro.<br />

Uma das expressões de Mãe Aninha caracteriza a estética sagrada Odara, bom, belo e<br />

útil, por deter um princípio de sabedoria milenar, a lei da pantera – ela sabe que também pode<br />

morder, daí a expressão sábia da filha de Xangô, Iya Oba Biyi: “A Bahia é uma Roma<br />

Negra”.<br />

É interessante observar que essa expressão, metaforicamente procura<br />

caracterizar de um lado, a Bahia como uma polis que confere existência<br />

transatlântica a África Negra; e de outro, se constitui num marco<br />

fundamental de referência à compreensão da arkhé que funda, estrutura,<br />

revitaliza, atualiza e expande a energia mítico-sagrada da comunalidade<br />

africano-brasileira. (LUZ, N., 2000, p.126).<br />

Essa expressão 5 se contrapõe ao domínio da religião católica sobre as outras culturas<br />

do Brasil, Mãe Aninha com isto alerta para o fato de que vivemos na Bahia num cotidiano de<br />

valores herdados da ancestralidade banto, nagô, jeje em sua maioria, embora a lei neocolonial<br />

nos empurre a língua portuguesa e o poder religioso católico através de feriados santificados.<br />

É a lei da restituição do axé que garante o equilíbrio da existência individual e social.<br />

A “Roma Negra” a que Mãe Aninha se refere, reside no fato de que o pensamento<br />

africano não separa a relação entre a totalidade existencial humana e a entidade cósmica, ou<br />

seja, a pessoa se relaciona com todos os elementos que a circundam de forma dialética. Na<br />

tradição africana, o ser humano, a entidade cósmica, os ancestrais diversos, animais, plantas,<br />

água, pedra, estão todos implicados numa única concepção de existência social. Então Roma<br />

Negra está impregnada dos valores milenares da tradição africana.<br />

A concepção do nosso cenário mítico-poético da episteme africano-brasileira surge<br />

desse entendimento de existência social. Inclusive o espaço reterritorializado e concretizado<br />

por Iyá Oba Biyi do império Nagô no Opô Afonjá aproxima-se da “Roma Negra” vejamos<br />

como Juana Elbein descreve a topografia do Ilê Axé Opô Afonjá:<br />

Na diáspora, o espaço geográfico da África genitora e seus conteúdos foram<br />

transferidos e restituídos no “terreiro”. Fundamentalmente, a utilização do<br />

espaço e a estrutura social dos três “terreiros” tradicionais Nagô<br />

mantiveram-se sem grandes mudanças. Por sua extensão, reputação e<br />

organização complexa, o Àse Opô Afonjá da “roça” de São Gonçalo do<br />

Retiro constitui um modelo exemplar.<br />

5 A expressão foi encontrada nos estudos de Narcimária Luz, (2000, p. 134).<br />

46


O “terreiro” contém dois espaços com características e funções diferentes: a)<br />

um espaço que qualificamos de “urbano”, compreendemos as construções de<br />

uso público e privado; b) um espaço virgem, que compreende as árvores e<br />

uma fonte, considerado como mato, equivalente à floresta africana...<br />

(SANTOS, J., 2002, p. 217).<br />

Nos estudos de Marco Aurélio Luz (1995), encontramos a descrição da estrutura<br />

topográfica do império Nagô, tal como Mãe Aninha recriou no Ilê Axé Opô Afonj., Neste<br />

espaço, tudo se transcorre em torno do afin, o palácio real, onde se faz o culto a Xangô que<br />

agrega o culto do panteão 6 Nagô. Não nos deteremos a descrever este espaço, visto que ele se<br />

encontra em outro momento desta abordagem, mas o sentido de “mata” que buscamos se<br />

relaciona a esta estrutura.<br />

Em todo o espaço do império Nagô, existe uma relação de acesso permitido ou<br />

negado, por exemplo, na floresta, que fica no fundo do afin, não existe acesso permitido<br />

livremente, é o lugar de resguardo do sobrenatural, logo a “mata” é o lugar do mistério, do<br />

que é invisível, o orun. Esta forma foi por Mãe Aninha preservada no Ilê Opô Afonjá.<br />

Vale ressaltar no conjunto dessas elaborações que:<br />

Mãe Aninha, a Iyá Oba Biyi, marca que a potência exuberante de sua<br />

existência, procurou expressar as várias possibilidades de constituição do<br />

ethos negro no Brasil, numa época cheia de mudanças profundas na<br />

sociedade oficial.<br />

Incluam-se aí a luta pela independência, fim da escravidão, racismo,<br />

genocídio, e exploração da força de trabalho. Há na existência de Iyá Oba-<br />

Biyi, uma tendência radical de afirmação sócio-existencial da identidade<br />

negra, através da implantação e expansão do continuum civilizatório africano<br />

no Brasil. Nesse exemplo tenaz de vida, vimos que a comunidade-terreiro, é<br />

o centro irradiador de valores da tradição, de onde se desdobram formas de<br />

atuação frente à sociedade neo-colonial imposta.(LUZ, N., 2000, p. 217).<br />

Por isso, quando se fala em arkhé africana é importante também destacar a<br />

participação do culto aos ancestrais fundadores da cultura na África. Quando os africanos<br />

chegaram ao Brasil trouxeram consigo a maneira de cultuar seus mortos, Mãe Aninha teve<br />

este cuidado de recriar o lugar do culto aos ancestrais: “O culto aos ancestrais marca<br />

acentuadamente a continuidade transatlântica do processo civilizatório negro.” (LUZ, M.A.,<br />

1995, p.110). Esta foi uma forma de preservar a memória social e de marcar a presença<br />

6 O culto a Xangô compreende o culto aos orixás: Oduduá, Oxalá, Exu, Ogum, Oxossi, Oxum, Iemanjá, Oiá,<br />

Obá, Nanã, Obaluaiê, Oxumaré e outros. Xangô é título dos reis de Oyó, capital do reino Nagô, é também o<br />

princípio do fogo, da justiça e da expansão ininterrupta de vida.<br />

47


fundante que simboliza a referência de realeza, dinastia, lembrando que todos os povos<br />

africanos mantêm culto aos seus ancestrais, o que se trata de referência a uma realeza.<br />

O culto Egungun no Brasil compõe a dinâmica da tradição do império Nagô,<br />

representando o culto à ancestralidade plantado desde a África. No culto, é estabelecido o<br />

sentido de arkhé através da linguagem mítico-sagrada que expressa o sentido de força entre o<br />

homem do presente e o homem do passado, de forma viva e atuante. Hoje, na Bahia, Mestre<br />

Didi é o Alapini 7 , Supremo Sacerdote do culto aos ancestrais masculinos (LUZ, N., 2000). O<br />

culto:<br />

[...] à ancestralidade está assentado em reforçar o axé necessário à<br />

continuidade ininterrupta dos ciclos vitais. Os ancestres e ancestrais são<br />

homenageados por se dedicarem a manutenção, preservação e expansão da<br />

comunidade dedicada a tradição, ou melhor, à tradição religiosa, às relações<br />

entre esse mundo e o além, capacidade de mobilização do axé.(LUZ, M. A.,<br />

2006, p. 3).<br />

Mestre Didi é tetraneto de Iya Oba Tosi, Marcelina da Silva, uma das três africanas<br />

fundadoras do culto do império Nagô na Bahia, neto de Iyá Oba Biyi, Mãe Aninha, e filho de<br />

sangue de Mãe Senhora, Iya Nassô Oxum Miuwa. “É o membro mais velho da família Asipá<br />

no Brasil. Podemos afirmar que é um Omo-Bibi, um bem-nascido”. (LUZ, N., 2000, p. 143).<br />

Além disso,<br />

Mestre Didi, foi iniciado na tradição do culto Egungun por Marcos Alapini,<br />

aos 8 anos de idade, recebendo o título de Korikouê Olukotun. Quando fez<br />

quinze anos, a Iyá Oba Biyi, deu-lhe o título de Assogbá – Sumo Sacerdote<br />

do culto de Obaluaiyê, no Ilê Axé Opô Afonjá. Esse título significa o<br />

consertador de cabaças, renovador da vida, sacerdote supremo do templo de<br />

Obaluaiyê. Em 1980 Mestre Didi funda o Ilê Axipá, comunidade-terreiro de<br />

culto Egungun que caracteriza a continuidade dos valores do império Nagô<br />

na Bahia. No Ilê Axipá está reunida a tradição fundada pelo Alapini Marcos,<br />

do antigo terreiro de Tuntun, e engloba o culto aos espíritos ancestrais, as Iya<br />

Agbá, as Mães ancestrais zeladoras e transmissoras de Axé, que, quando<br />

falecidas, integram a poderosa corrente mítica da comunidade. (LUZ, N.,<br />

2000, p. 143).<br />

É importante dizer que toda esta riqueza da matriz africana que temos no Cabula se<br />

deve em parte às iniciativas de mulheres que plantaram a força guerreira como Iya Oba Tosi,<br />

Iya Oba Biyi, Iya Oxum Miuwa, a sucessora de Iya Oba Biyi, que faleceu em 3 de janeiro de<br />

1938. Mestre Didi conta que antes de morrer Mãe Aninha: “Chamou então seu neto Didi, o<br />

7 Alapini é o mais alto cargo do sacerdócio africano-nagô, assim como entre as sacerdotisas é Iya Nassô. O<br />

Alapini é iniciado cedo no culto e passa por vários postos em ascensão.<br />

48


Assogbá 8 ,o Obá Aré Miguel de Sant’ Anna, e a Osi Dagan Senhora”, (SANTOS, D.M., 1988,<br />

p.15) e pediu-lhes que, juntos, cada um dentro de suas funções, dessem continuidade a<br />

tradição plantada por Oba Tosi, que ela levara ao Cabula e sua sucessora, Mãe Senhora,<br />

bisneta de Oba Tosi, expandirão.<br />

Uma outra expressão que caracteriza Mãe Aninha como uma agbara 9 : “Quero ver<br />

minhas crianças amanhã de anel no dedo e nos pés de Xangô” (LUZ, N., 2003, p.63). Tal<br />

como “Roma Negra”, as metáforas de Mãe Aninha traduzem seu sentido mítico-poético sobre<br />

a existência num cenário paradoxal e excludente por ser demarcado pela desigualdade e não<br />

pela diferença. Com aquela expressão, Mãe Aninha levou seu neto, Mestre Didi Axipá, em<br />

1976, a fundar a primeira escola de educação pluricultural do Brasil, a Mini Comunidade Oba<br />

Biyi. Em outro capítulo, estaremos penetrando neste cenário.<br />

Mãe Senhora, Iya Oxum Miuwa, é outra referência de coragem, de pulso, diante dos<br />

obstáculos gerados pela política do embranquecimento. Sua liderança transcorreu com<br />

equilíbrio e desafio. De um lado, ela realiza o culto aos Orixás e, de outro, seu filho, Mestre<br />

Didi Axipá, zela pelos ancestrais masculinos Egunguns. Mãe Senhora até 1967, ano do seu<br />

falecimento, zelou pelos Orixás e manteve a palavra dada a Mãe Aninha no leito de morte.<br />

Foram muitas as iniciativas de Mãe Senhora, pois, além de expandir o grupo de iniciados,<br />

ampliou o intercâmbio entre a comunalidade do Opô Afonjá e o poder oficial.<br />

Figura 3 - Mãe Senhora Axipá, Iya Oxum Miuwa., Iyanassô.<br />

Fonte. www. Geocities. com<br />

Foi em 1952 que ela recebeu de Pierre Verger um xeré e um Edun 10 – Ará Xangô que<br />

fora confiado a Verger pelo Alaafin de Oyó, para ser entregue a Mãe Senhora, junto com uma<br />

carta cujo teor era um documento de título de Iyanassô para Mãe Senhora.<br />

8<br />

Sumo sacerdote do culto a Obaluaê.<br />

9<br />

Agbara. Agba quer dizer ancião. Ara quer dizer corpo. Quer dizer pessoa com sabedoria.<br />

10<br />

Xeré é um chocalho especial para saudar Xangô: são duas cabaças com um cabo. Edun quer dizer nome<br />

próprio.<br />

49


Em 9 de agosto de 1953, Iya Oxum Miuwa confirma o título diante da comunalidade<br />

do Opô Afonjá: “[...] este fato marca o reinício das antigas relações religiosas entre a África e<br />

a Bahia.” (SANTOS, D.M., 1988, p. 19). Mãe Senhora também amplia o intercâmbio iniciado<br />

por Mãe Aninha com a sociedade oficial ao receber no Opô Afonjá, autoridades do governo e<br />

de outros segmentos, uma destas ocasiões foi o seu cinqüentenário de orixá, e, entre as<br />

autoridades, estava o Ministro da Educação do Governo JK, Dr. Clovis Salgado.<br />

É de autoria de Mãe Senhora, Iya Oxum Miuwa, a metáfora “da porteira pra dentro, da<br />

porteira pra fora”, siginificante, em outras palavras, que da porteira pra dentro existe a:<br />

[...] continuidade dinâmica e ininterrupta da prática litúrgica e ritual, seus<br />

valores de linguagem, hierarquias. É o espaço e o tempo onde se dá a<br />

mobilização do axé. [...] da porteira pra fora se refere aos contatos com o<br />

mundo exterior à comunidade, para onde se irradiam suas diversas<br />

dimensões culturais, e que estabelecem uma relação dinâmica e dialética que<br />

promove mudanças históricas excepcionais. (LUZ, M. A., 1992, Apud, LUZ,<br />

N., 2000, p. 147).<br />

A dinâmica da porteira só fez ampliar e renovar o que Mãe Aninha criou no Opô<br />

Afonjá. Salvador foi sede do IV Colóquio Luso-Brasileiro, em 1959, promovido e organizado<br />

pelo Ufba, Universidade Federal da Bahia e o Ilê Opô Afonjá foi o lugar da confraternização,<br />

onde foi servido o Amalá, caruru, de Xangô. Neste encontro estava presente o escritor Jorge<br />

Amado, que era Oba Otun Arolu do Opô Afonjá, filho de Oxóssi.<br />

É importante saber que, entre as dinâmicas de expansão político-cultural da referência<br />

reterritorializada do império Nagô criada por Mãe Aninha, foi Mãe Senhora que fez algumas<br />

alterações, preservando o que fora plantado, tal como descreve Narcimária Luz:<br />

Mãe Senhora, Oxum Miuwa, sucessora de Mãe Aninha, dando continuidade<br />

a essas táticas de expansão e de afirmação de fronteiras, criou para o corpo<br />

dos Obás ou Ministros de Xangô do Ilê Opô Afonjá, os títulos de Otun e Osi<br />

que significam a direita e a esquerda de cada Obá, impulsionando desta<br />

forma o axé da comunidade. (LUZ, N., 2000, p. 48).<br />

Mãe Senhora, devido a sua força e ao empenho no zelo da tradição, no cuidar dos<br />

filhos místicos, era chamada de Iyami, mãe poderosa. Mestre Didi Axipá (1988) conta que<br />

Mãe Senhora conseguiu reunir, em postos do Opô Afonjá, cientistas, artistas, escritores, de<br />

maneira que a dinâmica “da porteira pra dentro, da porteira pra fora” (LUZ, N., 2000, p. 146)<br />

se constituísse de fato uma realidade de coexistência:<br />

50


Entre as pessoas que têm postos na hierarquia do terreiro encontram-se<br />

nomes conhecidos como o de Jorge Amado, Pierre Verger, Carybé,<br />

Vasconcelos Maia, Antônio Olinto, Moysés Alves, Vivaldo e Sinval Costa<br />

Lima, Zora Seljan, Zélia Amado, Lênio Braga, Rubem Valentim.<br />

Teve Mãe Senhora sua mão na cabeça do poeta Vinicius de Moraes, do<br />

etnólogo Edison Carneiro, do compositor Dorival Caymmi, do cantor João<br />

Gilberto, dos escultores Mário Cravo e Mirabeau Sampaio... (SANTOS,<br />

D.M., 1988, p. 27).<br />

Foi em maio de 1965 que Mãe Senhora recebeu, no Rio de Janeiro, no Estádio do<br />

Maracanã, o título de “Mãe Preta do Ano”, um reconhecimento da comunalidade africanobrasileira<br />

à pessoa de Maria Bibiana do Espírito Santo, a Iyá descendente de príncipes e reis<br />

originários do Império Nagô e fundadores do reino de Ketu, um título apropriado para quem<br />

se dedicou a zelar de seus filhos, como fazem as Iyás e todas as filhas de Oxum.<br />

Mãe Senhora, em 22 de fevereiro de 1967, após ter feito as obrigações do Axexê da<br />

Iyalorixá do Ilê Axé Opô Afonjá do Rio de Janeiro, Agripina Souza, retorna a Salvador e, de<br />

repente, falece, vai para o órun, mundo do sobrenatural. A notícia de sua morte foi assim<br />

anunciada em jornais: “Os atabaques estão silenciosos. Todos se vestem de branco, que é a<br />

cor do verdadeiro luto. Morreu a Iyalorixá mais famosa da Bahia.” (apud SANTOS, 1988, p.<br />

33). O ritual do enterro nagô conduziu o corpo de Mãe Senhora ao Cemitério das Quintas do<br />

Lázaro, todos subiram a colina carregando o esquife nas mãos, e de vez em quando,<br />

suspendiam e depois arriavam o caixão três vezes, em seguida colocavam no ombro. Vejamos<br />

como Mestre Didi descreve o ritual:<br />

O Babalorixá Nezinho de Cachoeira elevou sua voz num cântico funerário<br />

iorubá. O enterro seguiu, três passos para frente, três passos para trás, no<br />

ritmo do cântico sagrado. As janelas se encheram, pessoas vieram de todos<br />

os lados para assistir ao raro espetáculo. A dança tomou a rua, ao som das<br />

cantigas de despedida. De costas e carregando o esquife, cruzam os portões<br />

do cemitério. (SANTOS, D. M., 1988, p. 32).<br />

Assim Mãe Senhora, no alto dos ombros dos Ogãs e Obás, foi levada para dentro do<br />

cemitério.<br />

Foi ao lado dessas grandes mulheres que Mestre Didi Axipá assimilou uma postura de<br />

realeza Nagô, pois nasceu e cresceu ao lado de Mãe Aninha, aprendendo com esta os saberes<br />

ancestrais africanos da tradição Nagô, foram as Iyás Oba Biyi e Iyanassô Oxum Miuwa que o<br />

alimentaram da sabedoria ancestral Nagô, do culto Egungun do qual Mestre Didi é o Alapini,<br />

51


Supremo Sacerdote, que constituem o incalculável acervo do patrimônio imaterial da<br />

memória Nagô reterritorializada no Brasil.<br />

Figura 4 - Mestre Didi Axipá<br />

Fonte. www.geocities.com<br />

É importante saber que Mestre Didi Axipá foi quem inaugurou a tradição carnavalesca<br />

do Cabula, e que hoje vem sendo cultivada por grupos culturais como a Associação Cultural<br />

Comunitária e Carnavalesca Arca do Axé, iniciativa do poeta, compositor e cantor Domingos<br />

Sérgio da comunalidade da Engomadeira.<br />

Tudo surgiu de uma brincadeira de criança do Ilê Axé Opô Afonjá em 1935, portanto<br />

o Opô tinha ainda a liderança de Iya Oba Biyi, Mãe Aninha. Como dizíamos foi, numa<br />

brincadeira de picula, que Didi, junto com outras crianças, encontrou um tronco de araçazeiro<br />

e percebeu que era parecido com um homem. Didi, elegeu o tronco como protetor do grupo e<br />

“Deram-lhe o nome de Abê 11 , fizeram o caramanchão onde o colocaram e saíram pedindo<br />

dinheiro entre as pessoas conhecidas dali mesmo, para fazer a festa de seu padroeiro”,<br />

(SANTOS, D.M., 1988, p. 80).<br />

Mestre Didi Axipá conta que Mãe Aninha reclamou das atitudes dos garotos,<br />

sobretudo ao usar o nome da entidade na brincadeira e recomendou-lhes que criassem outro<br />

nome. Foi neste ínterim que um dos componentes propõe o nome de Burukô, então ficou o<br />

nome Pai Burukô. Também fizeram um outro um boneco de madeira com o mesmo nome e<br />

continuaram recolhendo proventos em dinheiro e outras iguarias para realizar festas,<br />

cerimônias. Estas festividades ficaram, porém, na fase de infância.<br />

Mestre Didi (1988) conta que, quando rapazes, contando com 30 participantes (sócios)<br />

organizaram a “Troça do Pai Burukô”, em 1942:<br />

11 Nome que é dado ao orixá Ossanha, princípio africano-nagô que detém o poder mítico-sagrado da vegetação,<br />

entidade protetora de toda a floresta e também da medicina do povo africano.<br />

52


[...] elegendo uma diretoria assim constituída: um presidente, um vicepresidente,<br />

um secretário, um tesoureiro, um cobrador, dois portaestandartes,<br />

dois diretores de cânticos, seis fiscais, um feiticeiro que saía<br />

com o boneco, dois tocadores de atabaques para o Ijexá, dois tocadores de<br />

xekerê (cabaça), seis tocadores de surdo, dois tocadores de agogô, quatro<br />

tocadores de tamborim e mais três pessoas para controlar a corda isolante.<br />

(SANTOS, D.M., 1988, p. 81).<br />

O grupo fazia os ensaios no Axé Opô Afonjá e, com o dinheiro arrecadado, fizeram<br />

abadás e compraram alpargatas. Mestre Didi conta que, antes da saída no domingo de<br />

Carnaval, os membros da diretoria tomavam banho no riacho, junto à Lagoa da Vovó.<br />

Acredita que este riacho seja um trecho do rio Negrão que cortava as matas de Mata Escura,<br />

Arraial do Retiro, Beiru, Engomadeira e outros lugares.<br />

Esse riacho pertence ao Rio da Prata (TEIXEIRA, 1978) e ou Negrão, acreditamos<br />

que, por esta razão, um trecho do Cabula que liga a Estrada de Mata Escura à entrada do São<br />

Gonçalo, tenha a denominação Estrada das Barreiras. Hoje está mudado, mas, até 1970, esta<br />

divisão era mais evidente, como, veremos mais adiante, quando falarmos do urbanismo no<br />

Cabula.<br />

Nos escritos de Cid Teixeira (1978), esta área, assim como muitas outras pertencentes<br />

ao Mosteiro de São Bento entre o período de 1609 a 1917 por doação de Garcia D’ Ávila, fora<br />

depois comprada pela prefeitura na gestão de Antônio Pacheco Mendes, tendo como tabelião<br />

interino J. Eduardo Bahia e como representante da Igreja o abade D. Ruperto Rudolf.<br />

Agora, voltando à organização sociocultural Pai Burukô, depois de se banharem nas<br />

águas do Negrão voltavam ao Opô Afonjá, quando ia chegando o conjunto de associados:<br />

Só se vendo que beleza! Calçava alpargatas de couro cor de vinho, vestia<br />

calça branca, o abadá de chitão vermelho e branco, usava dois ojá a tiracolo,<br />

em cores diversas, um outro amarrado na cintura, vermelho com bordados,<br />

filá branco com plumas, com contas, lantejoulas, argolas africanas, fio de<br />

contas e luvas. Tinha o rosto pintado de preto com traços vermelhos<br />

imitando os lanhos que os africanos usavam e usam no rosto para identificar<br />

sua nação. (SANTOS, D. M., 1988, p. 83).<br />

Na saída, era feito o tradicional ritual a Exu 12 como expressão de busca do poder<br />

místico simbólico. Quando todos estavam juntos, saíam após o toque do apito por três vezes,<br />

realizado pelo jovem Didi, presidente do Pai Burukô, todos cantando o hino do Pai Burukô,<br />

12 Juana Elbein esclarece sobre Exu: “É um princípio dinâmico e, como o ase que ele representa e transporta,<br />

participa forçosamente de tudo. Princípio dinâmico e de expansão de tudo que existe, sem ele todos os elementos<br />

do sistema e seu devir ficariam imobilizados, a vida não se desenvolveria” (SANTOS, J., 2002, p. 131).<br />

53


saudando a Xangô, rei do império Nagô; “Burukô obá ibo, / Burukô obá aiyê. / Burukô obá<br />

orun, / Burukô babá Omo ó n’ile ô / Obá ibo aiyê ô / Burukô obá ibo / Obá ibo, obá l’orun ô /<br />

Burukô obá ibo.” (SANTOS, D.M., 1988 p. 83- 84) e partiam por todo o São Gonçalo,<br />

atraindo a multidão e inundando o lugar de dayó, alegria.<br />

Com o tempo, Pai Burukô transcendeu os limites do Cabula e começou a participar do<br />

Carnaval de Salvador, saindo do São Gonçalo e indo até o Centro da cidade. É bom pensar<br />

que, do Opô Afonjá, praticamente surge a expressão pluricultural africano-brasileira do<br />

Cabula, e na contemporaneidade, com a pujança plantada por aqueles jovens de 1942 em<br />

diante, muitos blocos de Carnaval repetem os gestos renovados do Pai Burukô, porém muitos<br />

jovens precisam conhecer quem e como plantou este rito de celebração à vida. Ressaltamos<br />

que Mestre Didi contava com o apoio das Iyás do Opô Afonjá.<br />

Está na garra da mulher africano-baiana a maior riqueza patrimonial da arkhé<br />

civilizatória herdada, mulheres como Iya Nassô, Iya Oba Tosi, Iya Oba Biyi, Omonike, Iya<br />

Dada Bayaani Ajaku, Iya Oxum Miuwa ati Iya Nassô Oya Akalamabo Olodumaré Ase Adetá,<br />

Iya Ajimuda Oba Até, todas estas, assim como outras, às quais aqui não nos referimos,<br />

contribuíram, juntamente com Marco Theodoro Pimentel, o Alapini confirmado, em 1935,<br />

para compor o conhecimento milenar de Mestre Didi Axipá, nosso atual Alapini, Supremo<br />

Sacerdote do culto Egungun.<br />

É dessa arkhé que estamos falando, foi com essas riquezas que constituímos o cenário<br />

da “floresta” africano-brasileira que usamos através da metáfora “mata”, pois acreditamos que<br />

ela traz a história da tradição e os princípios de Odé, caçador guerreiro provedor, protetor de<br />

território, fundador de novos espaços para garantir a expansão da comunalidade, poder este<br />

que anima a existência da insurgência Artebagaço no cenário público escolar.<br />

Neste cenário cheio de contradições e tensões, a “mata africano-brasileira” e o “asfalto<br />

urbano-industrial do automóvel” constituem o antagonismo social, forças contrárias à<br />

natureza cósmica, por isso, em nossa perspectiva mítico-poética, realizamos uma crítica ao<br />

cenário do “asfalto”, por sinal constituído por políticas de “recalque ideológico”, e também<br />

por isso enaltecemos as políticas de enfrentamento deste antagonismo social porque<br />

acreditamos que o enfrentamento é uma forma de preservar a tradição africana herdada pela<br />

comunalidade Cabula e, como fez Mãe Aninha, como continuou Mãe Senhora, como faz o<br />

Opô Afonjá, desde suas primeiras realizações, preservando as dinâmicas político-sociais<br />

54


acolhedoras da tradição e da contemporaneidade, propor o que Narcimária Luz denomina<br />

“ética do futuro”. 13<br />

Essa é uma ética que, ancorada no mito ancestral, oferece a possibilidade de recriar o<br />

passado no presente, sempre apontando para a frente, por isso arkhé refere-se a princípios<br />

inaugurais que determinam origem e começo constituintes do continuum civilizatório.<br />

A “ética do futuro” estabelece a relação visceral da existência no passado ritualizada<br />

na existência do presente, não é um tempo estático constituído de lembranças saudosistas de<br />

um passado heróico, como são os exemplos de Tiradentes e outros heróis recriados no<br />

contexto ocidentalizado no Brasil. Ao contrário, são vivências renovadas e adaptadas por<br />

modos e formas de viver o mais próximo possível do passado no presente. A luta Artebagaço<br />

Odeart é isto, são heranças dos modos e formas de lutar da arkhé ancestral Odé para prover,<br />

proteger e guardar a tradição. Nosso herói é o morto que empresta seus gestos aos vivos e<br />

determina o devir-futuro, é o ancestral.<br />

E o que chamamos de “mata africano-brasileira” corresponde alusivamente ao lugar<br />

que guarda a tradição, aqui em destaque o Ilê Opô Afonjá, devido aos aspectos relacionados<br />

com o grupo fundador – arkhé civilizatória – da tradição, que muito colaborou pela<br />

socioexistência africana de Salvador e, em especial para nós, do Cabula, ressaltando que a<br />

saga das Iyas corresponde à luta coletiva das mães afro-baianas que, no dia-a-dia, lutam para<br />

fortalecer e alimentar seus filhos biológicos e sócio-comunal, são milhares, milhões destas<br />

espalhadas no Brasil, na Bahia e no Cabula.<br />

1.1.1 Arkhé Quilombola do Cabula<br />

É importante entender que o sentido de arkhé civilizatória não se dinamiza, apenas,<br />

pelo axé que foi plantado na comunalidade tradicional africano-nagô, há também no Cabula<br />

outras referências de comunalidade tradicional, a exemplo do Bate Folha, que foi fundado em<br />

1916 pelo Tata Manoel Bernardino da Paixão. Trata-se de uma casa de nação Congo-Angola.<br />

Há também, entre os ecos dos entrevistados de nossa pesquisa, referências de lideranças como<br />

Maria Neném, Miguel Arcanjo e Ciriaco, com suas respectivas casas. Mais adiante<br />

abordaremos a presença do povo de Angola no Cabula.<br />

13 Em texto da Revista Sementes, diz Narcimária Luz: “O que concebemos como ética impostergável para o<br />

futuro, no contexto deste mito, apresenta-se como valores, linguagens, modos e formas de sociabilidade que<br />

contemplam a transcendência do ancestral-esse pai que, mesmo morto, determina.” (LUZ, N., 2002, p. 86).<br />

55


Esta pesquisa reconhece a importância dessas iniciativas, mas não estudamos as<br />

referências da arkhé congo-angola e jeje, povos que contribuíram para a constituição da<br />

comunalidade africano-brasileira. Seguimos apenas, os dados referentes aos povos Nagôs e,<br />

neste espaço, penetramos nas trilhas que caracterizam o nascedouro, o pouso e as passagens<br />

dos quilombolas no Cabula, ressaltando que vale a pena pensar que não foram apenas os<br />

Nagôs que deixaram aqui os ecos de sua cultura. Nos estudos de João Reis (2003), porém,<br />

encontramos indícios que nos levam a crer que os Nagôs formavam maioria no início do<br />

século XIX, quando aumentaram, significativamente, os levantes e rebeliões a favor da<br />

libertação da alteridade africana do Brasil.<br />

Do que pudemos averiguar, o Cabula, até o século XIX, abrigava em suas matas<br />

vários pousos e roças constituintes de uma comunalidade plantada por africanos rebelados<br />

contra a escravização e o colonialismo, embora este dado fosse ocultado pela Razão de Estado<br />

colonial e imperial da época. Nas matas do Cabula, estavam os mais valentes e fortes<br />

guerreiros que batalharam arduamente, derramaram sangue e plantaram o sentido de luta<br />

contra a servidão voluntária, contra a aceitação passiva de escravizados.<br />

O lugar Cabula situa-se em um morro em Salvador e, mesmo, atualmente, século XXI,<br />

apesar da avassaladora devastação da natureza, o lugar ainda possui uma imensa reserva de<br />

Mata Atlântica, que é possível ver percorrendo ruas, ladeiras, becos, baixadas, estreitos<br />

caminhos, saltando pontes que separam a terra dos riachos, atualmente poluídos, compondo<br />

uma natureza geográfica de rico relevo.<br />

É possível que, pela própria localização geográfica constituída por uma mata fechada,<br />

muito intensa até as cinco primeiras décadas do século XX, enquanto havia ocupação natural<br />

da população interna originária daquele lugar, tenha sido a condição favorável à forma social<br />

de quilombo no Cabula. Não sabemos quando chegaram os primeiros habitantes deste lugar,<br />

mas sabemos que fora constituído por uma territorialidade quilombola. Talvez este seja<br />

também um dado para analisarmos em futura pesquisa, assim como as origens e a expansão<br />

das comunalidades da nação Angola, que são muitas no Cabula.<br />

Figura 5 Figura 6 Figura 7<br />

Horto Arraial do Retiro. 2005 Horto. Mais próximo. 2005 Horto. Mata Escura. 2006<br />

56


Figura 8 Figura 9 Figura 10<br />

Horto. Arraial do Retiro. 2005 Horto. Estrada das Barreiras. 2004 Engomadeiras e Beiru. 2005<br />

Essas imagens mostram caminhos implantados pelos ancestrais africanos e seus<br />

descendentes no Cabula, um espaço que abriga sacrários de entidades africanas, como o horto,<br />

um sacrário dos cultos aos orixás, inquices e voduns, plantados em territórios políticocomunais<br />

quilombolas a partir do século XVII, assim como os territórios políticos de culto<br />

aos orixás como o Ilê Axé Opô Afonjá fundado por Mãe Aninha, Ialorixá Oba Biyi, em<br />

1910a, que já nos reportamos ao falar de arkhé civilizatória.<br />

É importante reconhecer que, para conhecer a territorialidade plantada no Cabula é<br />

necessário também identificar as referências de afirmação político-sociais fincadas pela<br />

territorialidade ancestral quilombola. Nestas, encontram-se as constituintes do estilo de vida<br />

comunal, assentado numa dinâmica de recriação de linguagem que comunica a concepção de<br />

mundo vitalista enraizada na estrutura de pensamento de seus habitantes.<br />

A referência histórica “vivido-concebido”, no lugar, é a maior trilha de composição do<br />

saber tradutor da territorialidade fincada na comunalidade do Cabula, como já dito, tendo sido<br />

composta por africanos quilombolas que se embrenharam pela mata em busca de refúgio e<br />

fundaram bases de sociabilidade. Após a Abolição, chegaram às comunidades-terreiros,<br />

primeiro, africano-nagô, que finca o axé, e, depois, o congo-angola, que finca o muntu.<br />

Contudo, sabemos que a origem da luta quilombola, que é uma luta de libertação das<br />

ideologias eurocêntricas, foi implantada desde a África. Marco Aurélio Luz (1995) refere que,<br />

com a “invasão” luso-européia no império do Congo, sobretudo no reino Ndongo, que é<br />

território de Angola, durante os séculos XVI e XVII, os ancestrais africanos bantos travaram<br />

uma árdua luta contra os portugueses, para defender seus territórios.<br />

No século XVII, Ndongo tinha como governante a rainha Nzinga Kiluanji, que criou<br />

uma estratégia diplomática com outros reinos e a coroa portuguesa. Mas Portugal, de 1580 a<br />

1640, estava sob o domínio espanhol que desconsiderou os acordos militares realizados em<br />

pacto com a rainha Nzinga, e, por isso a rainha viu-se obrigada a criar novas estratégias de<br />

libertação, entre elas os quilombos: “Nzinga, através dessas táticas, teve de abandonar a<br />

capital Mbaka, e o reino se caracteriza pela constante movimentação de tropas e mudança de<br />

acampamentos, conhecidos pelo nome de Kilombo.” (LUZ, M. A., 1995, p. 373).<br />

57


Figura 11<br />

Rainha Nzinga de Angola e Matamba 14<br />

Fonte: www.nzinga.org.com.br<br />

Os primeiros ancestrais africanos que chegaram à Bahia, Salvador, foram de origem<br />

banto, nos finais do século XVI, e vão-se estendendo ao longo do século XVII. Dos navios<br />

tumbeiros, saíram e foram espalhados pela lavoura da cana-de-açúcar do Recôncavo e nas<br />

aldeias de Salvador. Eram oriundos do império Congo e do reino Ndongo, os povos bacongo<br />

e ambundo. Muitos se rebelaram e formaram, nas matas de Salvador, como no Cabula,<br />

territórios de quilombos.<br />

Deduzimos que, tal como aconteceu em Ndongo, onde a rainha autorizou<br />

assentamentos de quilombo em terras livres devido à situação de guerra, no Brasil, os<br />

ancestrais fizeram o mesmo: onde havia mata, formaram a resistência. Como o Cabula<br />

constituía uma mata cerrada, logo foi um local favorável à implantação de firmamentos de<br />

liberdade através da construção de quilombos móveis e fixos.<br />

Textos de Gregório de Mattos (séc. XVII, apud MENDES, 1998, p. 37-38) mostram,<br />

nesta época, o vaivém da territorialidade de Salvador, indo à busca do muntu, a força míticosagrada<br />

do povo banto, emanada das entidades sagradas que garante o poder de expansão<br />

vital. A luta pela liberdade dos quilombos era fortalecida pelo poder místico simbólico do<br />

muntu, uma vez que, até o final do século XVIII, a territorialidade africana era constituída por<br />

povos Bantos, e só depois chegaram outros povos dos contínuos Nagô e Jeje.<br />

Os Nagôs que vieram para Bahia chegaram da região de Daomé, atual República de<br />

Benin, e todos se consideravam descendentes de Ifé, cidade mítica tida como início da<br />

sociabilidade da existência na Terra plantada pelo orixá genitor feminino Odud,uwa, orixá<br />

criador da Terra. Junto com os Nagôs vieram os sudaneses, jejes de Daomé (SANTOS, J.,<br />

14<br />

Dados sobre esta rainha podem ser encontrados no site do Instituto Nzinga de Capoeira Angola:<br />

.<br />

58


2002b), contudo a luta quilombola já estava implantada com os povos Bantos, oriundo, do<br />

império Congo, em especial, de Angola.<br />

No estudo de Reis (2003), encontram-se dados que registram a presença do<br />

movimento quilombola em crescimento no início do século XVIII, nos arredores de Salvador,<br />

em locais longe da vigilância acirrada da polícia da província embora se situassem nos<br />

arredores das casas-grandes, aos olhos do “Senhor” colonizador.<br />

Foi com a chegada dos Nagôs que as rebeliões aumentaram, e tal fato sucedeu porque<br />

entre eles havia sacerdotisas e sacerdotes da capital do império Nagô, Oyó, pessoas que<br />

tinham o poder mítico simbólico emanado de Xangô, orixá do fogo, da guerra e do poder de<br />

expansão da vida, sendo muitos fundadores de Ketu, um reino do império Nagô.<br />

As rebeliões vinham desde Mares, Plataforma, Cajazeiras, Itapuã, Brotas, mas<br />

sobretudo do Cabula, lugar montanhoso, com uma riquíssima e densa Mata Atlântica, cheio<br />

de depressões para fazer esconderijos, e de elevações para construir vigilância. Apesar das<br />

mudanças sofridas, o Cabula ainda preserva esta topografia em quase todas as comunidades<br />

que o constituem.<br />

Tendo toda natureza como companheira, o Cabula constituí pouso e firmamento da<br />

ancestralidade africana, pois o lugar preserva os elementos de coexistência, tais como rios,<br />

lagoas, animais para caça, árvores frutíferas e madeireiras para construções de casas de<br />

sopapo ou até mesmo de palha, para os casos de quilombo-pouso, aqueles de passagem e<br />

fugiam das tropas, ou mesmo para realizar o ritual de caça, por isto este foi o lugar de<br />

Salvador onde se travaram as mais duras batalhas de africanos contra o colonialismo.<br />

Mesmo assim, não se pode afirmar em que século o Cabula começou a tomar feições<br />

quilombola. Reis (2003), por exemplo, relata que, no decorrer da primeira metade do século<br />

XVIII, a resistência negra aumentou, consideravelmente, com a chegada dos Nagôs, de<br />

maneira que, até mais da metade do século XIX havia vários territórios de quilombos em<br />

Salvador e, entre todos os territórios, o Cabula era considerado o mais temido pela polícia<br />

provinciana.<br />

Outra referência sobre a constituição da territorialidade do Cabula foi o embate dos<br />

ancestrais africanos com a força policial da Província da Bahia, por ordem do então<br />

governador João Saldanha da Gama, Conde da Ponte, considerado um férreo inimigo dos<br />

africanos rebelados. Os registros de prisão em cárcere de delegacia mostram que a maioria<br />

detida entre homens e mulheres era nagô (REIS, 2003).<br />

59


Para o Conde da Ponte, reprimir as ações dos ancestrais em fuga para o quilombo era<br />

uma questão de honra luso-européia, Reis apresenta um documento que traduz o desprezo do<br />

conde pelos africanos, quando ele escreve aos superiores:<br />

Sendo repetidas e muito freqüentes as deserções de escravos do poder de<br />

seus senhores, em cujo serviço se ocupavam há anos [...] entrei na<br />

curiosidade (importante neste estabelecimento) de saber que destino<br />

seguiam, e sem grande dificuldade conheci que nos subúrbios desta capital, e<br />

dentro do mato de que toda ela é cercada, eram inumeráveis os ajuntamentos<br />

desta qualidade de gente, as quais dirigidos por mãos de industriosos<br />

impostores aliciavam os crédulos, os vadios, os supersticiosos, os<br />

roubadores, os criminosos e os adoentados e, com muita liberdade absoluta,<br />

danças, vestuários caprichosos, remédios fingidos, bênçãos e orações<br />

fanáticas, folgavam, comiam e regalavam com a mais escandalosa ofensa de<br />

todos os direitos, leis, ordens e pública quietaçãos. (REIS, 2003, p. 70).<br />

Nesse documento, do Conde da Ponte, está evidenciada a “bacia semântica” lusoeuropéia<br />

racista, e ainda há quem pergunte, hoje, como surgiu o racismo no Brasil. Esse texto<br />

é um dos vários documentos que registram, desde a época colonial, as intenções ideológicas<br />

luso-européias de introjetar no País o discurso sobre a inferioridade dos povos africanos no<br />

seio da sociedade – “desta qualidade de gente.”, assim disse o Conde da Ponte em 1807. Esta<br />

ainda é uma expressão viva, na contemporaneidade, no discurso de muitos que subjugam o<br />

africano-brasileiro.<br />

Sobre as ocupações africanas no Cabula, Nina Rodrigues (apud SODRÉ, 2002), por<br />

exemplo, fala de um culto secreto e rural chamado Cabula da nação Jeje-Nagô, no século<br />

XIX, realizado nas matas dos arredores de Salvador. Nos estudos da etnolingüista Dra. Yeda<br />

Castro (2001) Cabula / kimbula é uma palavra de origem banto das línguas kicongo.<br />

Os estudos de M. A. Luz (1995, p.110) mostram que a: “Referência à realeza estão<br />

presentes também na Umbanda, religião que incorpora elementos do complexo nagô-jeje, mas<br />

é originária da Cabula, antigo culto aos ancestrais Bantu”. Todas as referências caracterizam a<br />

relação de ancestralidade e realeza preservada na forma litúrgica. Nos quilombos, dois<br />

símbolos mantiveram o sentido de poder mítico-simbólico de lutar – a realeza e a<br />

religiosidade; a realeza refere-se ao homem ancestral, o rei da nação, o fundador do império,<br />

já a religiosidade refere-se à entidade cultuada por este homem, o orixá para os Nagôs,<br />

inquice para os Bantos e o vodum para os Jejes.<br />

Já nos estudos de João Reis (2003, p.71), vemos, claramente, as pistas que nos<br />

levaram a pensar que o Cabula foi um lugar de quilombo: “Os espiões do conde haviam<br />

detectado e os policiais varejaram duas das áreas principais de “ajuntamentos”: os atuais<br />

60


airros de Nossa Senhora dos Mares e o do Cabula”. Pela extensão do lugar, é possível ter<br />

havido vários acampamentos quilombolas, caracterizando-se naturalmente com uma<br />

organização própria, ou seja, era quilombo, embora não tivesse a mesma organização social<br />

de Palmares. Por isso, o lugar, ao invés de ser um quilombo, que seria o quilombo Cabula<br />

como falam algumas pessoas do movimento negro do Cabula – poderia ser lugar de<br />

quilombos, o que fica em aberto.<br />

Do que colhemos nos estudos de Reis (2003) e Luz (1995), os lugares afastados do<br />

Centro de Salvador foram palcos de resistência africana e firmamento da liberdade, mas não<br />

devemos esquecer que estas rebeliões constituem a continuidade da luta plantada em<br />

Palmares.<br />

Convém dizer sobre Palmares que “Mais do que um quilombo, o reino afro-brasileiro<br />

dos Palmares se desenvolveu e teve diversos desdobramentos no decorrer da história. Seus<br />

valores inspiradores da luta anti-neocolonialista permanecem até os dias atuais” (LUZ, M.A.,<br />

1995, p. 401). Ele espelha uma luta iniciada com a fuga de 40 negros de engenhos da<br />

Capitania de Pernambuco, que se embrenharam pela mata até chegar a um local montanhoso<br />

de difícil acesso onde firmaram a liberdade.<br />

Palmares desafiou as milícias particulares do engenho e as frotas de capitães de mato.<br />

Como o local era constituído por uma floresta abundante, cheia de rios e riachos, animais para<br />

caçar e terras para plantar, isto possibilitou a implantação e expansão do território político e<br />

socioexistencial de Palmares. Ironicamente, enquanto nas terras colonizadas o povo passava<br />

necessidade por falta de provisões, em Palmares tinham tudo para garantir a existência. Era<br />

uma área geográfica em torno de 27 mil quilômetros quadrados de superfície montanhosa,<br />

abrigando várias cidades, cada uma com seu Ganga, chefe em banto:<br />

Estendiam-se a perder de vista... Vinha desde o planalto dos Garanhuns, no<br />

sertão Pernambuco... até as serras dos Dois Irmãos e do Bananal, no<br />

município de Viçosa (Alagoas),compreendendo, entre outras, as serras do<br />

Cafuji, da Juçara, da Pesqueira, do Comonati e do Barriga – o ‘Outeiro da<br />

barriga’[...] (CARNEIRO, 1936, apud. LUZ, M.A., 1995, p. 401).<br />

Em Palmares, viveu-se um exemplo único de organização político-social de quilombo<br />

nas Américas, ali havendo roças coletivas para abastecer a comuna, roças individuais dos<br />

lotes distribuídos para cada família, organização social ético-estética liderada pelo chefe do<br />

conselho de comunidades, ressaltando que a produção econômica era comunal e garantia da<br />

socioexistência.<br />

61


Sendo o maior espaço de resistência, Palmares transmitiu aos outros ancestrais<br />

quilombolas um poderoso legado de força mítica de continuidade da luta pela liberdade<br />

africano-brasileira. Em Palmares, foi possível formar três gerações de líderes, mas apenas dois<br />

ficaram conhecidos: Ganga-Zumba e Zumbi. Muitas táticas de guerra foram recriadas,<br />

contudo o fundo comum da luta foi mantido, o sentido de liberdade social garantido na ação<br />

de comunalidade.<br />

Palmares foi um grande exemplo na história da luta africana do Brasil, foram quase<br />

cem anos de resistência banto, que, por sinal, se constituiu em uma grande preocupação do<br />

governador da capitania de Pernambuco, pois o quilombo só fazia expandir-se, de maneira<br />

que foram necessárias muitas tentativas de derrubada do quilombo até ocorrer, em 1695, a<br />

queda de Macaco, a capital do reino dos Palmares, que tinha uma excelente estrutura<br />

topográfica de proteção.<br />

Na comuna palmarina, as cidades eram cercadas, fortificadas, sobretudo a capital,<br />

Macaco, onde ficava o palácio de Ganga-Zumba e Zumbi, os dois líderes guerreiros de maior<br />

relevância para o povo do quilombo. Marco Aurélio Luz (1995) observa que Macaco era a<br />

fortaleza de Palmares, de fato foi neste lugar que Zumbi resistiu até os últimos ataques do<br />

exército composto por sete mil homens.<br />

A topografia do espaço palmarino é algo a se apreciar: as casas ficavam juntas,<br />

formando um contínuo, com uma praça central e um pátio onde se realizavam os cultos aos<br />

deuses africanos; um mercado, a cisterna, oficina, com a forja onde os ferreiros fabricavam<br />

armas e outros utensílios, além da residência do líder com sua família.<br />

Em Palmares, havia uma cidade específica para treinamento militar, as armas eram<br />

feitas em madeira e pedra, e sua localização era afastada do centro comunal, pois sua função<br />

era guardar o quilombo.<br />

Apesar de haver dado destaque a uma liderança Palmares não teve rei, mantendo a<br />

estrutura sociopolítica do império Congo, e os valores civilizatórios africanos, na presença<br />

mítica da rainha Nzinga, a liderança real, sinal preservado nos dias atuais no pensamento dos<br />

novos quilombolas.<br />

Palmares semeou novos quilombos no Brasil e, em Salvador, foram vários conforme<br />

relatam Reis (2003) e Marco Aurélio Luz (1995) sobre as rebeliões africanas, muitos com a<br />

liderança de Nagôs: “A cidade era rodeada de quilombos. Esses quilombos, porém, eram<br />

móveis, devendo ter poucos residentes e permanentes. Eram compostos por pousos e locais de<br />

reuniões da comunidade negra, especificamente as voltadas para celebrações da religião<br />

africana.” (LUZ, 1995, p. 476).<br />

62


O Cabula, além de ter sido palco de enfrentamento das tropas de Conde da Ponte em<br />

1807, tendo entre os rebelados baixas com mortos, feridos e aprisionados com penas de<br />

trabalhos forçados, participação de mulheres como a sacerdotisa Nicácia, “[...] que entrou<br />

presa em Salvador sobre uma carroça acompanhada de numerosos séqüitos” (REIS, 2003, p.<br />

71), teve também outros embates. Era um lugar de resguardo de africanos guerreiros e<br />

destemidos que mostravam que, em momento algum, sentiam-se escravizados e, por isto,<br />

criaram o palco de guerra pela liberdade da alteridade africana.<br />

Em 1822, um grupo de rebelados, cerca de duzentos escravos, atacou forças militares<br />

do batalhão de Mata Escura e Saboeiro, e o general francês Pedro Labatut manda executar 52<br />

dos rebelados e açoitar os demais (REIS, 2003). Mas foi em 1826 que ocorreu o mais violento<br />

e sangrento embate dos rebelados com as tropas da província baiana, no quilombo Urubu, no<br />

subúrbio de Salvador.<br />

Na realidade, a rebelião começa no dia 16 de dezembro na mata de Cajazeiras, local<br />

conhecido na época por distrito de Pirajá. Durante o trajeto os quilombolas foram munindo-se<br />

de provisões de quem eles encontraram pela frente e rumaram para o Cabula, ao Sítio de<br />

Urubu (REIS, 2003). Pelo que descreve João Reis, o Cabula era uma imensa faixa de mata<br />

densa que abrangia dimensão próxima onde hoje estão as comunalidades São Bartolomeu em<br />

Plataforma, Pirajá, Mata Escura. No mapa a seguir é possível localizar a extensão da mata que<br />

caracteriza o lugar e suas fronteiras.<br />

63


Figura 12-<br />

Mapa do Centro de Salvador e áreas circunvizinhas. Destaque para o Cabula<br />

Fonte: Reis (2003, p. 134).<br />

Como se percebe, o Cabula faz fronteira ao Norte com Pirajá, ao Sul com Brotas e Rio<br />

Vermelho, ao Leste com a Orla Marítima, Oeste com Mares e Calçada, vias de acesso dos<br />

quilombolas a outros lugares de Salvador. São as trilhas que, atualmente, constituem as<br />

grandes avenidas que ligam o Cabula aos diversos locais de Salvador e que o formam um<br />

local centralizado.<br />

Mas, durante as rebeliões, a estrutura de mata densa favoreceu a formação dos<br />

quilombos, não foi como em Palmares que formou cidades, mas o local era montanhoso, com<br />

rio, riachos e lagoas, muitas árvores frutíferas, como a murta e o abricó, muitos animais para<br />

64


caçar pois eram alimentos necessários, ainda por cima, como até hoje, com muitos locais de<br />

difícil acesso, o que era apropriado para esconderijo, pouso para poucos dias na mata fechada.<br />

Aliás, ìgbedú, em iorubá, quer dizer mata escura, e este é o nome de uma das<br />

comunalidades do Cabula, daí indagamos: qual outro nome poderia expressar melhor a<br />

característica deste lugar com tantas referências culturais africanas? Cabula é um nome de<br />

origem banto, o local tinha uma densa mata, hoje, apenas existe uma faixa em volta da antiga<br />

Fazenda Bate Folha, entre a Mata Escura, Arraial do Reito e Estrada das Barreiras. Sendo um<br />

local cheio de mistério, resguarda, na memória dos moradores antigos, lembranças dos cultos<br />

às forças cósmicas da força mítica da ancestralidade, lugar de oferenda às entidades guerreiras<br />

que vivem na floresta.<br />

A mata é lugar das Iya-mi-Agba, as mães ancestrais, lugar dos Egunguns, ancestrais<br />

masculinos, lugar do resguardo do material que possibilita o axé às folhas e, por isso, é aí que<br />

se encontra o orixá patrono da vegetação, Ossãiyn, que os africanos bantos, jejes e nagôs<br />

chamam de caipora. O Cabula, realmente, era uma imensa mata escura, igbedú.<br />

Voltemos à luta quilombola. No Sítio Urubu, o enfrentamento com as tropas foi direto.<br />

João Reis (2003), a partir do depoimento de um dos soldados, conta que havia homens e<br />

mulheres portando facas, facões, espadas, lanças, navalhas, foices, lazarinas, parnaíbas e<br />

espingardas, e que caminhavam entoando um grito de guerra “morra branco e viva negro”.<br />

Neste enfrentamento, alguns morreram, poucos foram presos e muitos embrenharam-se pela<br />

mata.<br />

A rebelião do quilombo do Urubu, apesar de contar com pessoas de várias nações,<br />

teve a maioria nagô, de acordo com os dados estáticos das baixas e vestígios colhidos pela<br />

polícia depois que conseguiu prender vários rebelados, inclusive a temida africana Zeferina:<br />

Uma extraordinária mulher, Zeferina, que armada de arco e flecha enfrentou<br />

os soldados. Durante a luta comportou-se como verdadeira líder, animando<br />

os guerreiros, insistindo para que não se dispersassem. O presidente da<br />

província, num elogio involuntário, referiu-se a ela como “rainha”, título que<br />

deve ter ouvido dizer que ela carregava entre os rebeldes. (REIS, 2003, p.<br />

102).<br />

Quando presa, Zeferina revelou o plano do levante e as nações dos povos<br />

participantes:<br />

Zeferina mais tarde declarou que seus súditos esperavam a chegada de<br />

muitos escravos de Salvador, na véspera de Natal, ocasião que em que<br />

planejavam invadir a capital para matar os brancos e conseguir a liberdade<br />

65


Ela também revelou que a maioria deles eram nagôs, tanto escravos como<br />

libertos. Neste caso um candomblé existente nas matas de Urubu era<br />

provavelmente nagô. Segundo o testemunho de um sargento, três dias<br />

depois, “se achou várias coisas de danças de preto”, no interior de três<br />

casebres erguidos no mato próximo. Entre os objetos rituais confiscados<br />

havia búzios (ou “conchas”), chocalhos, atabaques, estatuetas de “vacas<br />

pintadas de encarnado” e “um chapéu encarnado com três plumas”. Os<br />

panos, torsos e varinhas encontrados eram também pintados<br />

predominantemente de vermelho, o que podia indicar o culto de<br />

Xangô.(REIS, 2003, p. 102.).<br />

Apesar do impedimento do avanço da luta africana no quilombo do Urubu, as<br />

rebeliões e os quilombos não paravam de crescer, sendo possível que se aqueles que<br />

embrenharam pela mata do Cabula tenham sido os primeiros a plantar a sociabilidade no<br />

lugar. A africana Zeferina era quem os liderava e pelo que foi descrito, ela portava um ofá,<br />

arco e flecha, símbolo de força mítica de um Omo Odé, filho de caçador ancestral.<br />

Zeferina podia ser um Omo-Odé porque portava o ofá, arco e flecha, e liderava um<br />

corpo guerreiro, tal como a cavalaria Nagô fazia para proteger o território político-social de<br />

Xangô, o Obá, rei em ioruba. Mas isto é apenas uma dedução. Do que percebemos sobre tudo<br />

que foi vivenciado pelos ancestrais, na realidade recalcadora neocolonial, ressalta-se a falta de<br />

liberdade, embora vejamos, no sentido da luta, a possibilidade de não-sujeição ao rigor<br />

escravagista neocolonial.<br />

Como conclusão deste estudo sobre a arkhé civilizatória do Cabula temos a dizer que<br />

dois aspectos caracterizam a presença da arkhé africana como fundadora da dinâmica<br />

socioexistencial do Cabula: um aspecto refere-se aos modos e formas de linguagens e modos<br />

de realizar; o outro aspecto refere-se à característica da ocupação territorial lenta e silenciosa,<br />

por ser considerada ilegal aos olhos da lei neocolonial.<br />

No que se refere ao primeiro aspecto, este desdobra-se em duas formas de organização<br />

social: a primeira, pela realização político-social da luta quilombola, começando pelos<br />

ancestrais bantos a partir do final do século XVI e no século XVII, vindo expandir-se com a<br />

chegada dos guerreiros nagôs no final do século XVIII. A segunda, pela realização de<br />

implantação político-religiosa do culto às entidades cósmicas e aos ancestrais, junto com a<br />

ação das irmandades católicas, que não atuaram diretamente no Cabula, mas criaram<br />

caminhos para o fortalecimento das comunalidades tradicionais.<br />

No que se refere ao segundo aspecto, à questão da ocupação territorial, houve algo em<br />

comum entre o caminho de instalações quilombolas e o caminho de instalações políticolitúrgicas<br />

pois ambos foram formas de enfrentar a do sistema ideológico neocolonial<br />

66


escravagista e desmistificar a linguagem etnocêntrica do catolicismo, que imperou como<br />

aparelho transmissor do estereótipo de inferioridade da cultura africana.<br />

Contudo esta forma de ocupação considerada irregular pela Razão de Estado, não foi<br />

considerada como maneira própria de organização socioexistencial, sobretudo após a política<br />

urbanística da década de 70, no século XX. No próximo item, que o Cabula, após a inserção<br />

neocolonial nos meados do século XIX, foi transformado em fazendas ou pouso de descanso<br />

dos barões, viscondes, menos do negro que fora o primeiro a pisar neste solo, depois do<br />

indígena brasileiro, real do dono do território de Salvador.<br />

O cenário da socioexistência plantada no Cabula tem cheiro de perfume de mulhermãe<br />

e tem a força do homem guerreiro, pois ambos lutaram neste solo e deixaram seu sopro<br />

de vida, animando aos que aqui lutam para coexistir, como os componentes do Grupo<br />

Artebagaço Odeart. Por isso, não poderíamos deixar de concordar com Mãe Aninha, quando<br />

afirma que o solo do Cabula está impregnado de axé, de força mística guerreira dos ancestrais<br />

que travaram árduas batalhas neste lugar:<br />

Em relação aos quilombos, sabe-se que a finada Iyalaxé Aninha, famosa<br />

sacerdotisa suprema do terreiro Axé Opô Afonjá, implantou a comunidade<br />

nas imediações do Cabula, por considerar o local profundamente associado<br />

ao passado heróico, à continuidade cultural e, segundo a tradição, pleno de<br />

axé, de poder místico emanado dos antepassados africanos e crioulos<br />

enterrados nesta terra.O sítio se impregnou de profundo significado histórico<br />

para a população crioula que nele reimplantou várias comunidades da<br />

tradição africana, embora nada prove que o terreiro Opô Afonjá realmente<br />

esteja no local exato onde existiram as roças e arraias que constituíram o<br />

quilombo do Cabula. (SANTOS, J. 2001, p. 16).<br />

O contexto histórico que descrevemos revela o que ocultam o conhecimento das<br />

políticas educacionais neocoloniais, ocultam a verdadeira formação de sítios sociais do Brasil.<br />

Enfim, o que realmente percebemos é que o patrimônio material que registra a passagem da<br />

ancestralidade que plantou a sociabilidade e construiu sítios arqueológicos e históricos<br />

africanos do Cabula está sendo tamponado por edificações modernas, a saber a própria<br />

Universidade que acolheu nossa pesquisa, se fizer uma escavação em qualquer lugar do<br />

Cabula, muito há de encontrar como referências materiais da arkhé civilizatória fincada no<br />

lugar. Vejamos o que dizem estes ecos na fala de Dona Valdelice, uma moradora do Cabula,<br />

na Estrada das Barreiras desde a década de 60:<br />

Eu vim morar no Cabula com oito anos de Idade, quando minha mãe mais<br />

meu pai compraram no Cabula um terreno e começou a construir; fizeram<br />

67


casa de taipa, depois com o tempo foi fazendo de bloco por fora, aos poucos,<br />

mas chamam de tijolo. Mas, na escavação, meu pai e minha mãe<br />

encontraram muitas coisas, não só eles como outros vizinhos como Seu Ato,<br />

Dona Dinorá, eles encontraram: colares, roupas em baú, baús com santos,<br />

prato de barro com aquelas coisas de ferro que não se consegue<br />

destruir.(Valdelice, 2006).<br />

Por esses ecos, percebem-se os locais de vestígios da memória ancestral. O chão do<br />

Cabula resguarda relíquias patrimoniais, embora a população não saiba reconhecer o valor<br />

que estes instrumentos e vestes simbolizam para compor a história transplantada da África<br />

para o Brasil, nem muito menos que são pedaços da história da humanidade plantada no<br />

Cabula, que são partes de sua própria história. Mas vamos aos ecos das lembranças de<br />

Valdelice (2006):<br />

Depois conversando com as pessoas, minha mãe ficou sabendo que aqui,<br />

antigamente, era e tinha muitas casas de candomblé, tinha muitas aldeias<br />

assim... [tenta mostrar com gestos corporais as formas de casas pequenas<br />

onde ficam os assentamentos de orixá, vodum ou inquice],aqueles<br />

quartinhos onde se guardavam estas coisas. Então com o tempo foi<br />

destruído. Sr. Nezinho foi vendendo, cada um foi loteando, aí acabou com<br />

tudo, mas dizem que aqui foi lugar de muitos candomblés, casas grandes<br />

mesmo. Eu cheguei aqui foi em 60, pelos recibos de compra do terreno foi<br />

60 e pouco.<br />

Mas, independente do que constitua patrimônio material, é inegável a força<br />

permanente do axé ou muntu plantado pela ancestralidade africana, do poder místico guerreiro<br />

dos ancestrais quilombolas, que se encontra no pensamento do morador do Cabula, sem<br />

contar o legado cultural constituinte da organização social, arquitetônica, produção<br />

econômica, base lingüística e a linguagem gestual. Enfim, o Cabula respira um ar de África<br />

reterritorializada pela ancestralidade africana, que nele plantou sua força guerreira. Estes são<br />

os elos da comunalidade plantados pelos ancestrais bantos, nagôs e jejes.<br />

Nosso próximo pouso se dirige ao cenário socioexistencial do Cabula, para que<br />

possamos conhecer os princípios e valores da sociabilidade do cabuleiro, herdados da<br />

ancestralidade africana.<br />

1.2 O CENÁRIO SOCIOEXISTENCIAL DO CABULA<br />

“Cabuleiro” é a expressão que caracteriza a existência da dinâmica social constituída<br />

por formas e modos de linguagens herdados dos primeiros fundadores de territórios políticosociais<br />

quilombolas e das primeiras casas de culto africano nagô, banto e jeje. As recriações<br />

68


de linguagem do cabuleiro ou eidos são códigos que asseguram a continuidade civilizatória da<br />

África reterritorializa no Cabula.<br />

A socioexistência do Cabula pode ser percebida na vivência constituída de vínculos<br />

comunais realizados no dinâmico cenário natural durante as situações repetitivas e<br />

imprevisíveis que podem ser entendidas pelo que Narcimária Luz (2002, p. 86) atribui a<br />

noção de “sociabilidade africano-brasileira”, tais situações são realizadas em conjunto pelas<br />

comunidades e corresponde ao que Marco Aurélio Luz (2005) atribui a noção de<br />

“comunalidade africano-brasileira.<br />

Estas noções descrevem o borbulhar da existência social cabuleira, “[...] a vivência é<br />

um arquétipo, talvez um arquétipo essencial, em torno do qual se estrutura toda socialidade.”<br />

(MAFESSOLI, 2001, p. 182). Em verdade, é a manifestação da arkhé ancestral coletiva<br />

plantada no lugar reatualizando os valores que fortalecem a coexistência.<br />

O Cabula, após a derrubada dos quilombos, antes do meado do século XIX até o início<br />

do século XX, começou a ser fatiado, por exemplo, as terras da Engomadeira. Consta dos<br />

escritos de Cid Teixeira (1978) que em 29 de dezembro de 1882, elas foram compradas pela<br />

Condessa de Pedrosa e Albuquerque na “Campanha do Queimado” conforme nota do tabelião<br />

Augusto de Abranches. As terras são da Fazenda Bate Folha, dita pelos antigos moradores<br />

que há um local de culto e um assentamento Jeje, desde antes da data de fundação da casa de<br />

culto Angola Bate-Folha, em 1916, a Fazenda São Gonçalo e da Corcunda da Yaiá, hoje<br />

entre Sussuarana e Pau da Lima, a fazenda São Bento, que é parte do atual Beiru, tal como<br />

apresentam os dados da obra A Grande Salvador, cap. III elaborada por Cid Teixeira (1978).<br />

Figura 13 Figura 14<br />

Sobre as terras da Engomadeira. Sobre terras do Bate Folha, do São Gonçalo e outros.<br />

(Fonte: Teixeira, (1978, Livro III, p 28). Fonte: Teixeira (1978, Livro III, p 27).<br />

A partir de 1900, o Cabula começou a receber novos moradores com a desapropriação<br />

de terras feita pela prefeitura, principalmente em 1917, de maneira que moradores antigos –<br />

como o pai de Dona Bernadete Pereira – receberam documentação imobiliária para<br />

69


pagamento. Consta, por exemplo, termo de posse para arrendamento de uma área localizada<br />

na Fazenda São Gonçalo. Ressaltamos que seu pai, Sr. Elpídio Nepomuceno, nasceu neste<br />

lugar em 1888, e o solo foi herdado do pai, avô de Dona Bernadete, Sr. João Nepomuceno,<br />

que vivia nestas terras.<br />

Pessoas como Dona Bernadete, Jorge Alex do Grupo Artebagaço Odeart e outros que<br />

têm suas raízes seculares plantadas no Cabula, outras como Sr. Cosme, Sr. Gildásio, Dona<br />

Valdelice que residem no lugar a partir de 1960, e a Mameto N’kisi Indaramukaia, contudo,<br />

introjetaram a dinâmica socioexistencial africano-brasileira plantada pelos ancestrais<br />

africanos e por isso sabem descrever com naturalidade como o legado de princípios e valores<br />

herdados manifesta-se no cotidiano.<br />

Essas pessoas são os ecos que descrevem eidos e ethos cabuleiros que enunciam o<br />

sentido de força renovada do axé ou muntu 15 dos ancestrais que ali morreram em batalha pela<br />

liberdade nos quilombos do Cabula ou os que viveram nas comunalidades tradicionais.<br />

Jorge Alex Dantas Pereira é um artebagaciano que caracterizamos por cabuleiro<br />

porque nasceu e cresceu no Cabula, introjetando os valores da arkhé africana. Sua família foi<br />

uma das primeiras a habitar no Arraial do Retiro, o avô de Alex faleceu em abril de 2006,<br />

com 90 anos vividos neste lugar. Pelas descrições da sua avó, Dona Francisca de Assis,<br />

conhecida como Chica, a família de Jorge Alex já vive há mais de cem anos neste lugar.<br />

Dona Chica é Mameto N’kisi do Ganzuá Magambo Monunguzu do Arraial do Retiro,<br />

sendo esta a terceira comunalidade de Angola cuja matriz, Terreiro Viva Deus, encontra-se na<br />

Estrada das Barreiras, fundada pelo Tata Kwa N’kisi Feliciano Alves dos Santos em 1994; a<br />

segunda casa encontra-se na Engomadeira, Ganzuá Viva Deus Filho, na liderança de Antônia<br />

Ferreira de Almeida, Mameto Kwa N’kisi Kixima 16 .<br />

Mameto Indaramukaia, Dona Chica, não sabe quando os parentes de seu falecido<br />

marido, avô de Jorge Alex, chegaram ao Cabula, mas assegura que está nos documentos de<br />

compra do terreno, inclusive conta que, no local, tinha uma jaqueira que dava jaca mole e<br />

dura ao mesmo tempo e que o bisavô de Alex chamava de jaqueira nagô devido ao poder de<br />

se multiplicar em duas qualidades de jacas. Dona Chica conta que: “Os pais deles vieram do<br />

Cabula, moravam lá dentro do Cabula, nos Pernambués, Primeiro veio o tio deles que se<br />

chamava Totentino, depois a mãe dele que é bisavó de Alex, se chamava Maria de São Pedro,<br />

15 Muntu é a força vital dos povos bantos ou povo congo-angola;, equivale ao poder do axé para o povo banto.<br />

16 Informações da Mameto Indaramucaía e confirmadas na Acbanto - Associação Cultural de Preservação do<br />

Patrimônio Bantu, liderada por Raimundo Alberto de Souza Dantas, Tata Kivoonda Kewaanzé.<br />

70


“eles eram do axé” (Dona Chica, 2006), Dona Chica chegou depois do seu casamento, pois<br />

morava no São Caetano.<br />

Jorge Alex é um daqueles jovens do Cabula que gosta de sentir no corpo o frescor do<br />

orvalho, o vento frio que sopra do mar, os raios do sol queimando seu rosto, para tal prefere<br />

caminhar com os pés descalços nos corta-caminhos intercomunais do Cabula do que ter a<br />

falsa certeza de que a tecnologia de um ônibus ou automóvel, que libera hidróxido de<br />

carbono, que acaba com a mata, irá oferecer-lhe algo melhor para coexistência.<br />

Figura 15 Figura 16<br />

Jorge Alex, Arraial do Retiro. Local Terreiro Egungun Jorge Alex. Antiga Casa de Culto Egungun. 2006<br />

Jorge Alex também é um daqueles estudantes do sistema público escolar do Cabula,<br />

que, desde a primeira série do ensino básico, reluta para continuar preservando os valores<br />

ancestrais africanos herdados de seus familiares da comunalidade do Arraial do Retiro e<br />

Pernambués. Como nenhum dos outros artebagaciano, este adolescente é o que mais<br />

simboliza a característica cabuleiro. Mas vamos buscar entender melhor o que é ser cabuleiro.<br />

Um cabuleiro sente a musicalidade que dinamiza o cotidiano das comunalidades do<br />

Cabula em seu próprio corpo e faz desta uma forma de comunicação, como fez Jorge Alex ao<br />

levar a musicalidade herdada ao Grupo Artebagaço Odeart: “E no caso do Artebagaço, a<br />

gente 17 botou este toque porque ele é um toque que pode se assemelhar ao samba um pouco,<br />

bem longe um pouco, e é um som que chama atenção do público entende?”.<br />

Nos ecos emanados de Jorge Alex (Figura 16 na foto, com camisa branca), há o “[...]<br />

saber mítico que constituía o ethos da africanidade no Brasil [...]” (SODRÉ, 2001, p.68); o<br />

som, a música negra, chama o público para que este conheça as referências ocultadas em si<br />

mesmo.<br />

17 Jorge Alex, Dainho e Kalango são os três criadores do grupo percussivo Artebagaço Odeart, em abril de 2005.<br />

71


Figura 17 Figura 18<br />

Grupo Percussivo Odeart; Dainho, Kalango e J. Alex. 2005 Dainho e J. Alex nos atabaques Kalango noTimbau. 2005.<br />

Não é um chamado qualquer: “Então, quando está começando o espetáculo, o toque é<br />

como se fosse assim: Gente, o espetáculo vai começar. Mas eu acho que os sons dos<br />

atabaques vão um pouco mais além, entendeu?” (J. Alex, 2006). É interessante entender que a<br />

linguagem Artebagaço, que é apresentada no capítulo seguinte, é uma forma de luta. Este<br />

chamado é a convocação dos novos “guerreiros caçadores”, ou componentes do Grupo de<br />

Odé, caçadores filhos de Odé, lembrando que, para o povo de Ketu, Odé é Oxóssi.<br />

Observa-se o que diz Dainho, Adailson Conceição da Silva, que não é Alabê (Figura<br />

16, camiseta preta), mas toca atabaque em várias comunidades-terreiros de origem Angola e<br />

vive intensamente esta experiência através da arte, na companhia de Jorge Alex, pois são<br />

vizinhos do Arraial do Retiro, colegas de colégio durante o ensino fundamental, e também<br />

componentes do Grupo de Capoeira Maré: “Os sons dos atabaques chamam atenção, então, ao<br />

começar, as pessoas estão dispersas, quando escutam já vão chegando para saber o que vai<br />

acontecer; a música chama atenção das pessoas” (J. Alex, 2006).<br />

Figura 19<br />

Dainho tocando brimbau na oficina de corpo.<br />

2005.<br />

O chamamento musical foi uma estratégia de luta quilombola, pois havia os que<br />

usavam o batuque que é um ritual sagrado, pois, para o africano, os toques dos tambores têm<br />

significações, anunciando o bom ou o ruim. Há sons que são formas de comunicação, por<br />

exemplo, o agogô, relógio em Iorubá, é um determinante temporal de ritmo durante as<br />

72


cerimônias litúrgicas, mas é também um demarcador de atividades nas sociedades tradicionais<br />

africanas.<br />

Mestre Didi Axipá apresenta um conto mítico africano-nagô, que também foi adaptado<br />

para uma ópera negra, na qual a estética musical africana Odara, quer dizer, em Iorubá, bom,<br />

útil e belo. O conto recriado é chamado “A fuga do ti Ajayi” (SANTOS, D.M., 2004, p. 84), e<br />

sua estrutura cênica assenta-se em eidos constituintes de música e cantoria, que compõem a<br />

tática de fuga característica de formas de guerra pela liberdade africana.<br />

Sobre essa obra de Mestre Didi Axipá, Marco Aurélio Luz amplia o<br />

conhecimento: Tio Ajayi narra a história de um tio da Costa que estando<br />

escravizado numa fazenda, no século passado, convoca seus irmãos a<br />

fazerem obrigações aos seus orixás. Traído por um dos seus companheiros<br />

de infortúnio, ele e sua gente começam a ser perseguidos pelos capitães-de-<br />

mato, até que, com a proteção dos orixás, alcançam a liberdade, enquanto os<br />

perseguidores acabam pelo caminho. (LUZ, M.A., 1995, p. 641).<br />

O conto transmite um saber que favorece ao entendimento do que Santos (2002, p. )<br />

atribui à noção de “experiência iniciática”, por oferecer uma leitura sugestiva, que faz brotar<br />

imagens constituintes do cenário onde se desdobram as cenas vividas por Tio Ajayi, o<br />

personagem-herói que atua no pensamento do leitor, no cenário virtual recriado pela<br />

dramaturgia do conto, que é cheia de significados mediadores entre o leitor e o universo<br />

cultural africano-nagô de Tio Ajayi. Esta é a “pedagogia iniciática” à cultura desconhecida, e<br />

se realiza a partir da musicalidade nagô contida na obra.<br />

O mesmo acontece com o chamamento musical da batida Artebagaço Odeart, como se<br />

fosse uma cantoria motivacional, convidativa, pujante, porque é carregada de axé, força<br />

mítico-sagrada dos africano-nagôs, encontrada na dramaturgia dos contos de origem africanonagô<br />

escritos por Mestre Didi Axipá. Quando os atabaques do Artebagaço Odeart tocam,<br />

pessoas de vários espaços da instituição escolar deambulam para onde se desdobra a<br />

encenação teatral, seguindo o som dos atabaques até chegar ao espaço cênico, no palco.<br />

Figura 20 Figura 21 Figura 22<br />

Kalango e Dainho. 2006 Odeart e Pesquisadores do Canadá Odeart e canadenses; trocas. 2006<br />

73


A música e o canto que abrem as atividades artísticas do Artebagaço Odeart, a partir<br />

de 2004, se assemelham às táticas políticas quilombolas, que, através da linguagem, ao<br />

mesmo tempo em que pedem licença aos orixás para realizar a atividade, também convocam<br />

seu povo para participar da luta pela afirmação existencial, luta reterritorializada nos textos<br />

cênicos do Artebagaço e transmitidos pela força da palavra oral dos atores artebagacianos.<br />

Figura 23 Figura 24<br />

Jaqueline em cenas do apàló: espetáculo A de Ó . 2005. Márcia em cenas: Reza do espetáculo A de ó.<br />

O cabuleiro artebagaciano sabe da força contida em suas palavras, força de<br />

transmissão da “tradição oral” implantada pelos ancestrais quilombolas, e o toque dos<br />

tambores funciona de modo semelhante àquele aviso que o vizinho dá ao mais próximo e<br />

assim vai passando até que todos saibam o que acontece, sem precisar de anúncio na TV, nem<br />

tampouco ler o jornal, até porque leitura, no Cabula, parece um processo de tortura, a maioria<br />

gosta é do sistema boca-a-boca, e a comunicação se faz mais fácil entre as pessoas, desta<br />

forma.<br />

Durante o dia e a noite, é fácil encontrar grupos de bate-papo nas portas da casas, uma<br />

dinâmica da comunidade africana. Observando-se com atenção, é possível perceber que,<br />

desde cedo, as 6 horas da manhã, a maioria se dirige ao trabalho no centro urbano de Salvador<br />

e muitas mulheres levam crianças pequenas para casa de outras mulheres que se incubem de<br />

cuidar destas, o que favorece a transmissão do conhecimento herdado.<br />

Há também o velho e costumeiro bate-papo aos domingos na praça, um campo de<br />

futebol improvisado pelas crianças, que muitas vezes não dispõem de outro lugar para brincar.<br />

É assim que a continuidade civilizatória socioexistencial se expande para fora do egbé ou do<br />

ganzuá, comunidade-terreiro.<br />

74


Figura 25 Figura 26 Figura 27<br />

Moradores: de tarde, na porta da casa No domingo, na praça improvisada Rua: lugar de brincar, conversar, passear.<br />

Como muitos moradores não percebem que os modos se foram modificando e as<br />

formas de linguagem se renovando, expressam certo saudosismo, contudo, observando com<br />

mais atenção, é possível ver a sutileza oculta da comunicação socioexistencial:<br />

As pessoas eram mais dadas com os outros, existia a solidariedade bem<br />

maior do que hoje. Eu me lembro que, em dias de festas, o vizinho fazia<br />

questão de trocar pratos de doce, de salgado, e se fazia questão de<br />

presentear o vizinho com um prato. Hoje não, as pessoas fazem as coisas<br />

com individualismo, hoje, as pessoas são mais individualistas. (Jorge<br />

Cipriano, 2006).<br />

Esses ecos da memória grupal são de Jorge Cipriano, pai do artebagaciano Jorge<br />

Cipriano Filho, cuja vivência foi, até os três anos, em Amélia Rodrigues, uma cidade afastada<br />

mais ou menos 100 km de Salvador. Depois, passa viver nas redondezas da comunalidade da<br />

Liberdade: Pero Vaz, Cidade Nova e, aos 13 anos, chega ao Cabula, na década de 70. Sua<br />

visão de mundo socioexistencial está relacionada à sua vivência de africano-brasileiro que não<br />

percebe mais os princípios renovados e os valores modificados no cotidiano, mas que ainda<br />

conseguimos encontrar nos ecos de seus descendentes.<br />

Por exemplo, muitas “mães comunitárias”, que poderíamos ousar dizer que têm sua<br />

força emanada das Iyás, nossas Mães Ancestrais, ainda cuidam das crianças, fazendo o<br />

mesmo ritual de outras mulheres no passado; enquanto umas se dirigiam à lida diária no<br />

desempenho de função de ganhadeiras e ama-de-leite, outras ficavam a cuidar dos pequenos<br />

africano-brasileiros.<br />

Aqui, no Cabula, isso pouco mudou, embora devamos ressaltar que se renovou. Hoje,<br />

essas ações dinamizam-se na forma de escola comunitária onde as crianças ficam desde meio<br />

turno ao dia todo, à espera do retorno de suas mães da dura lida.<br />

O nosso olhar também observa aquelas mulheres que não vão à lida e também não<br />

cuidam de crianças, mas ou são muito jovens ou muito idosas, e ficam observando a<br />

deambulação das crianças que estão na rua a brincar. Então, zelam indiretamente, pois,<br />

75


durante a dinâmica do bate-papo na porta da rua, há um aguçado olhar anotando tudo o que se<br />

passa, como se fossem o “jornal” da rua. Realmente, elas são os cronistas do lugar, muitas são<br />

mal-entendidas pela sua função e chamadas de fofoqueiras.<br />

É interessante observar cenas, sobretudo à tardinha, quando os idosos colocam bancos<br />

e cadeiras na porta da casa de um deles, onde se sentam e passam “em revista” os assuntos do<br />

dia. Neste momento é que se percebe o respeito aos mais velhos, os mais jovens ouvem<br />

atentamente o que eles dizem: falam de doenças e de remédios caseiros, falam de alimentação<br />

saudável, falam de métodos de educar, falam do respeito aos orixás e às forças ancestrais. É a<br />

lição do terreiro nas ruas, pois muitos destes idosos são Omo-orixás, filhos de orixás, são<br />

sacerdotes e sacerdotisas de comunidades-terreiros de formação Nagô e Banto.<br />

É, sobretudo, sobre esta dinâmica de rua que Narcimária Luz (2000) fala em seus<br />

estudos, esta é a estética de valores existenciais Odara, pois o belo está nas inter-relações, o<br />

bom na transmissão do saber, o útil na forma de manter a tradição, sem impor, mas<br />

transmitindo saberes que asseguram a afirmação da identidade africano-brasileira.<br />

Antigamente, havia o lugar marcado para essas conversas, dizem os mais antigos, hoje<br />

se fazem nas vendas, nas portas das igrejas, na frente do Conselho de Moradores, nos bancos<br />

improvisados do campo de futebol do bairro. Foi observando esta dinâmica que vimos uma<br />

vivência costumeira de uma senhora no Arraial do Retiro. No lugar onde ela sentava para<br />

conversar com outras vizinhas, houve mudanças físicas, mas ela sempre senta em final de<br />

tarde ali, outras pessoas chegam e conversam, e assim a vida vai passando. Veja-se a foto da<br />

Figura 28:<br />

Figura 28<br />

Uma idosa em fim de tarde: Arraial do Retiro 2006.<br />

É interessante esta dinâmica de rua, pois com esta os vínculos se fortalecem e o<br />

parentesco comunal expande-se. Por exemplo, quando há festejos de aniversário, formatura,<br />

casamento, homenagem aos orixás Ibeji e Iansã, ocasião em que oferecem o Amalá, um<br />

caruru, geralmente todos estes festejos concentram-se na rua, isto é, vai desde a porta de quem<br />

76


promoveu o evento, regado com muita comida e samba no pé, até tomar toda rua ou na laje da<br />

casa quando chove, como mostram as fotos das figuras a seguir.<br />

Figura 29 Figura 30 Figura 31<br />

Festa de aniversário Est. Barreiras. Aniversário na Engomadeira. À noite: aniversário entre amigos.<br />

Outro aspecto interessante da experiência socioexistencial no Cabula encontra-se no<br />

ato de zelar, por parte dos homens, pois não são apenas as mulheres que cuidam de educar as<br />

crianças. Entre os homens, também existe esta atitude, que antes era realizada através da<br />

aprendizagem de ofícios como pedreiro, carpinteiro, ferreiro, sapateiro, estofador de móveis,<br />

marceneiro, pintor de parede ou de automóvel. Hoje é o futebol que atrai o interesse dos<br />

meninos, e existem muitos trabalhos desta natureza, geralmente o treinador é uma pessoa que<br />

trabalha durante a semana e treina a criançada aos finais de semana, promovendo torneios<br />

junto com os conselhos de moradores, associações desportivas, etc.<br />

Senhor Marinaldo F. da Cruz é uma das pessoas que se dedicam a realizar um<br />

trabalho de Odé, protetor, provedor e guardião, sem receber um centavo das crianças. Ao<br />

contrário, busca cooperação entre a vizinhança para conseguir formar um plantel ou adquirir<br />

jogo de camisa do time, ou materiais para fazer comemorações e festividades que promovem<br />

atitudes motivacionais das crianças da Estrada das Barreiras.<br />

Morador da Estrada das Barreiras no Cabula por volta de 40 anos, senhor Marinaldo é<br />

funcionário público da Secretária Estadual de Educação. Mesmo sendo uma importante<br />

liderança comunitária, no colégio onde trabalha, onde se desdobra na função de auxiliar geral<br />

do corpo administrativo e pedagógico, sua participação político-pedagógica na comunalidade<br />

não é considerada nem aceita pelas normas curriculares. Vejamos algumas fotos de sua forma<br />

de luta quilombola na Escolinha de Futebol ACBB – Aluno Craque Bom de Bola:<br />

77


Figura 32 Figura 33 Figura 34<br />

EACBB. Em Frente ao Conselho 2005. EACBB. Em campo. 2005. EACBB. Pose de Atleta. 2005.<br />

Ser cabuleiro é entender que, por qualquer sinal do destino, houve a possibilidade de<br />

coexistir num território político quilombola, é sentir-se uma privilegiada territorialidade<br />

africano-brasileira por perceber que se assentam, em seu corpo, códigos de valores culturais e<br />

princípios ético-estéticos da comunalidade reterritorializada pelos primeiros ancestrais<br />

africanos que, com a cooperação dos indígenas brasileiros, implantaram este tipo de<br />

coexistência.<br />

Por isso, a musicalidade africana é uma das grandes referências identitárias do<br />

cabuleiro. Muitos jovens gostam de tocar atabaque, timbau, surdo, pandeiro, agogô desde<br />

pequenos, pois, para eles, isto é definir o ritmo africano-brasileiro, é a afirmação da<br />

autenticidade herdada da luta quilombola, conforme entoa Dainho, ao falar sobre a<br />

importância de terem colocado o toque Cabula também no final da apresentação cênica<br />

teatral:<br />

É [no] final todo mundo não vê que está acabando. Então, fechamos com<br />

ritmos africanos para mostrar que a maioria das coisas que foram<br />

apresentadas ali, no teatro, foram críticas, é a gente fazendo crítica à<br />

política de várias [...]terminamos com toques africanos que são tão<br />

discriminados, mas estamos querendo mudar esta história. Por isto é que<br />

temos a função de abrir e fechar o teatro. (Dainho, 2005).<br />

O que Dainho acabou de dizer aproxima-se das duas condições apresentadas por<br />

Hampatê Bâ (1982), que caracteriza a dinâmica da tradição oral dos povos bambara, do<br />

Komo 18 : reconhecer, a força da palavra como poder de criação no processo de interlocução<br />

durante a iniciação; a outra é reconhecer nos dieli 19 , (sangue em bambara), o poder<br />

patrimonial civilizatório.<br />

Como nosso cenário ancora-se na episteme africano-nagô, vimos que a expressão que<br />

caracteriza um dieli em iorubá-nagô é apàló, são recriadores de linguagens poéticas:<br />

18 Komo é a escola de iniciação do povo Mali, da África Ocidental colonizada por europeus de língua francesa.<br />

19 Dieli, é uma pessoa da tradição africana que Hampatê Bâ (1982) apresenta como um animador de recriações,<br />

mas que possui posição privilegiada na sociedade africana devido ao conhecimento que tem da história social do<br />

lugar, uma espécie de tradição deambulante; é um contador da tradição histórica na ordem transcendental.<br />

78


Os contos que originalmente, em nossa terra por um lado, fazem parte do<br />

acervo das comunidades-terreiro, também eram parte da narrativa dos<br />

contadores de histórias, os apalo que percorriam cidades e fazendas de nosso<br />

interior, se apresentando com música e danças dramáticas, ensinando lições<br />

de vida e de existência baseado nos valores éticos e estéticos e visão de<br />

mundo nagô. Nessas narrativas, personagens de animais, especialmente o<br />

jabuti, ocupam a cena principal. (LUZ, M.A, 2006, p. 15-16).<br />

Entre os diversos tipos de apàló há músicos, os quais tocam músicas antigas em<br />

qualquer instrumento, e também cantores e compositores; há apàló mediadores entre as<br />

grandes linhagens, famílias tradicionais, em caso de conflito forte, geralmente estão próximas<br />

à família da qual é mediador. No Artebagaço Odeart, recriamos um personagem apàló, aquele<br />

que conta a história do grupo, que anuncia os eventos, fazendo o elo entre as cenas.<br />

Figura 35 Figura 36 Figura 37<br />

Apàló Artebagaço Odeart em cena. 2006. Dieli tradicional: Mali 20 . Apàló, Linguagem Recriada: A de Ó.. 2006.<br />

Fonte: www. Djembedon. com<br />

Há apàló, também historiadores ou poetas, “genealogistas”, estes nem sempre estão<br />

ligados a uma família, viajam bastante e têm a possibilidade de coletar histórias, reuni-las e<br />

contá-las. Os apàló são contadores de histórias, mesmo que sejam apenas músicos, poetas,<br />

historiadores, mediadores, ou até tudo isto junto, como são os apàló genealogistas:<br />

Uma vez que a sociedade africana está fundamentalmente baseada no<br />

diálogo entre os indivíduos e na comunicação entre as comunidades ou<br />

grupos étnicos, os apàló são os agentes ativos e naturais nessas<br />

conversações. Autorizados a ter “duas línguas na boca”, se necessário pode<br />

se desdizer sem que cause ressentimentos. [...]. Um griot chega até mesmo a<br />

arcar com a responsabilidade de um erro que não cometeu a fim de remediar<br />

uma situação ou salvar a reputação de um nobre. (HAMPATÊ BÂ, 1982, p.<br />

204). (Grifos nossos).<br />

20 A foto 36 és disponível em: < www.djembedon.com/don-aldeia.pht>.<br />

79


O cabuleiro tem um pouco ou até muito de um apàló. É aquele que, por sinal do<br />

destino, tal como Jorge Alex, nasceu e se criou no Cabula e herdou diretamente o<br />

conhecimento resguardado no patrimônio mítico-simbólico existencial, ou memória ancestral<br />

da África e, por isso, sabe muito de sua história comunal. Muitos destes cabuleiros são<br />

zeladores de orixás na nação Ketu, zeladores de inquices na nação Congo e na Angola, e<br />

zeladores de voduns na Jeje, e chegando a se assemelharem aos apàló genealogistas.<br />

Temos, no Grupo Artebagaço, o próprio Jorge Alex, que, apesar da idade, 16 anos,<br />

guarda um conhecimento milenar, pois é um grande observador de cenas da vida cotidiana<br />

social, além de um grande contador de histórias, de crônicas do Arraial do Retiro, que seu avô<br />

lhe contava como herança do bisavô Jorge Alex também é um conhecedor da presença da<br />

tradição no cotidiano da comunidade, e acredita que, por via dos laços de amizade, se<br />

transmite a cultura preservada nas comunidades-terreiros:<br />

A tradição africana, aqui, é muito parecida com a da África, esa coisa de<br />

sair junto, se abraçar e não ter aquele negócio de homem, é homem, isso é<br />

coisa de pensamento europeu, porque na África não tem isso, se abraça, há<br />

o toque corpora., Nosso corpo fala muito isto, a gente não tem isso não, a<br />

gente beija mesmo. O homem requebra, e vai até o chão e não tem esse<br />

negócio que é homem. Eu acho que a comunidade [fala do Cabula] herdou<br />

muito isto. Esta coisa de comunicação com o corpo, para falar, eu acho que<br />

veio da África. Outra coisa que acho muito interessante onde moramos é<br />

que parece uma aldeia africana, Você não vê isso? [Olha para Dainho que<br />

balança a cabeç, afirmando com um sorriso largo nos lábios]. (Jorge Alex,<br />

2005).<br />

É uma conversa espontânea, J.Alex entoa a África reterritorializada no Arraial do<br />

Retiro: “O povo gosta muito da rua, rapaz! Não tem esse negócio de só ficar dentro de casa<br />

não, lá todo mundo fica conversando e fica alegre, é isto que faz muito o festejar; veja a época<br />

de Copa, todo mundo enfeitando as ruas, é uma festa atrás da outra” (J. Alex, 2005). E mesmo<br />

a pessoa que está em um lugar fazendo algo, daqui a pouco está em outra porta de casa<br />

conversando com outro vizinho. Esta deambulação é que faz a comunicação e a transmissão<br />

da história no lugar.<br />

É através do sentido da dinâmica de rua que outras iniciativas quilombolas realizam-se<br />

nas comunalidades do Cabula como a Banda Latimgueto, uma forma comunal liderada por<br />

um jovem percussionista que iniciou o conhecimento musical no Bloco Olodum, seu nome,<br />

na sociedade oficial, é Eduardo Nascimento, mas na comunalidade da Estrada das Barreiras,<br />

80


Vila Moisés onde ele mora, Vila II Irmãos onde moram muitas das crianças que ele ensinar a<br />

tocar, é kangalha 21 . Vejamos algumas imagens da Latimgueto:<br />

Figura 38 Figura 39<br />

Maestro Kangalha orientando as crianças. 2005. Maestro Kangalha conduzindo a percussão. 2005.<br />

O interessante da Banda Latimgueto é que os instrumentos são feitos por eles com<br />

latas de tinta de vinte litros, cujo material assemelha-se à folha de zinco. Eles abrem as latas e<br />

depois dão forma à armação do instrumento, pintam, decoram e colocam a película que dá a<br />

sonoridade. O surpreendente é que os proventos que sustentam a arte do Latimgueto vêm da<br />

própria comunidade, dos esforços de Kangalha e de outros participantes adultos. Além de<br />

maestro, Kangalha também é juiz de futebol durante as partidas de futebol no campo da<br />

Estrada das Barreiras e em outras comunidades do Cabula.<br />

Outra iniciativa socioexistencial é o Quilombo Beiru, que se desdobra através da<br />

linguagem de jornal e desenvolve uma atividade com adolescentes e jovens de afirmação da<br />

alteridade africano-brasileira. Vejamos os ecos de Márcia Guena, uma dos três fundadores do<br />

jornal, moradora do Cabula e jornalista:<br />

Cheguei aqui sem conhecer quase ninguém, tinha Fábio que conhecia,<br />

Norma que já militou aqui um tempo e entrou em contato com Velame 22 e<br />

ela conheceu um grupo de meninos que tinha feito um vídeo, eles eram<br />

alunos do Helena Magalhães 23 ; ela tinha um grupo já articulado com<br />

discussões sobre a história do Beiru, sobre a memória do Bairro. Na<br />

realidade, antes de entrar em contato com eles, já havia feito uma reunião<br />

no Terreiro de Gijo. Então iniciamos com o pequeno grupo. Nossa idéia era<br />

que fosse um grupo de sustentação, porque, além de temer a manipulação,<br />

também queríamos ver a capacidade de autogestão, mas este discurso era<br />

nosso. O nome Beiru era para desconstruir o estigma que tinha em cima do<br />

nome: que é Beiru, por que o lugar foi chamado de Beiru? O nome foi<br />

intencional, a gente sabia que ia causar impacto, desavença, que muita<br />

21 Palavra de origem banto, da língua kicongo, que quer dizer armação que se bota no lombo de burro, mula, etc.<br />

Ver kangalha em CASTRO, Yeda Pessoa. Falares africanos na Bahia: um vocabulário afro-brasileiro. Rio de<br />

Janeiro. Topbooks, 2001. p. 197.<br />

22 É um comerciante conhecido na Estrada das Barreiras, proprietário de uma papelaria.<br />

23 Colégio do sistema público do ensino fundamental, localizado no Beiru.<br />

81


gente não ia gostar, mas a gente tinha uma proposta: trabalhar com a<br />

história e com a memória local. A nossa intenção era: olhe, Beiru é um<br />

nome de origem africana e tudo que é de origem africana a gente vai<br />

trabalhar e valorizar, a partir deste momento é que se muda a referência<br />

histórica negativa, também muda a sonoridade. Então, o jornal foi um<br />

instrumento de ressignificação mesmo, dos nomes das pessoas, da forma que<br />

fosse olhar as pessoas afro-descendentes mais velhas do bairro: “Olha<br />

Dona Maria que apareceu no jornal!”, “Nossa, nosso bairro era bonito,<br />

aquela rua tinha árvore!.”.<br />

Daí a trabalhar com a história dos terreiros de candomblé: “O terreiro é<br />

um espaço bonito, tem árvore mesmo”! Hoje a gente tem uma rede de<br />

colaboração que pode ajudar: Fundação Palmares, Secretaria de<br />

Reparação, Todo, Movimento Negro, estamos participando do Erêgege, o<br />

jornal está bastante conhecido, mas a estrutura está bastante precária com<br />

a saída de jovens, a gente vai traçar outros caminhos.<br />

O Jornal Beiru é uma espécie de oficina daquela época, você atua como<br />

mestre e mostra a possibilidade através de uma ferramenta que é o poder.<br />

O interessante é que o jornal me proporcionou [prestígio]<br />

profissionalmente porque ministro aula em uma disciplina na Faculdade<br />

Jorge Amado que é Jornalismo Comunitário, então eu vi que o que eu fazia<br />

tinha nome pela academia... (Márcia Guena, 2005).<br />

Esse é o único jornal comunitário que fala da experiência de desmistificação do<br />

estereótipo de inferioridade negra no Cabula, e sendo uma experiência com a linguagem<br />

escrita, como disse Márcia Guena, é “uma ferramenta que é o poder”. Na realidade, a forma<br />

quilombola Jornal Quilombo Beiru é riquíssima, pois transmite aos jovens o valor da<br />

comunicação oral herdada dos ancestrais que formaram a socioexistência do Beiru mas, ao<br />

mesmo tempo, transmite a forma que alija o africano-brasileiro do espaço de poder que é a<br />

escrita, originariamente ocidental, uma linguagem gráfica, áfona e totalmente contrária as<br />

linguagens verbais africanas, que são tonais.<br />

Fazemos um destaque também para importância dos Conselhos de Moradores, em<br />

especial, trazemos dois destes para nossa reflexão, por serem os que acompanhamos e que<br />

acolhem iniciativas como o Grupo Artebagaço oferecendo o espaço físico para ensaios,<br />

reuniões, apresentações, sem pedir nada em troca, exceto uma atitude de cooperação no<br />

sentido da união durante as manifestações de luta pela afirmação. Não fizemos entrevistas<br />

com os presidentes e vice-presidentes destas instituições, mas nossa vivência de grupo de<br />

inserção nos permite perceber, com profundidade, a luta destes conselhos para criar espaços<br />

de sustentação econômica, de educação para os jovens e de preservação da tradição cultural<br />

africana.<br />

No tocante ao Conselho de Moradores das Barreiras, vemos que, desde sua fundação,<br />

na década de 70, tem procurado desenvolver trabalhos de parcerias com várias entidades<br />

82


sociais do local que vão desde as iniciativas da Igreja Católica, da comunalidade tradicional<br />

Viva Deus, do Grupo Artebagaço Odeart, da Escolinha ACBB, do posto de saúde, etc.<br />

Contudo sua linguagem de expressão maior é o futebol, desenvolvido com grupos de diversas<br />

instituições e classificações.<br />

Há quem pense que este Conselho dos Moradores seja sede de futebol, mas sabemos<br />

que ele agrega outras linguagens e tem função de espaço social da comunalidade, como, por<br />

exemplo: é local de realização de comemorações, como festas de aniversários das famílias<br />

quando a rua não agrega os convidados. Vejam a estética africana Odara do Conselho das<br />

Barreiras:<br />

Figura 40 Figura 41 Figura 42<br />

Conselho: casa branca ao fundo. 2005. Zelando o campo. 2005. Encontro do Artebagaço Odeart, 2005.<br />

O Conselho de Moradores da Engomadeira é outro espaço de acolhimento de crianças,<br />

jovens e adultos do lugar, sob a liderança de uma grande mulher, Dona Antonieta, que<br />

mantém uma escolinha, um curso pré-vestibular, o Quilombo Cabula, que desenvolve um<br />

enfoque na temática das ações afirmativas, e atividades de teatro, com a liderança de<br />

Paulinho, seu filho, que é compositor e cantor.<br />

A instituição é ponto de reunião de interesses político-culturais africano-brasileiro do<br />

bairro, inclusive foi neste espaço que o Grupo Artebagaço Odeart foi convidado a participar<br />

da Rede Engomadeira-Cabula e teve a oportunidade de dialogar sobre a luta contra a<br />

hostilidade eurocêntrica e pela afirmação da alteridade negra. Neste espaço de comunalidade,<br />

o Artebagaço Odeart pôde dialogar, em 2005, com a Fundação Gregório de Matos e outras<br />

entidades locais, num encontro que culminou com a composição de um artigo sobre o grupo<br />

de autoria de Janice Nicolin (2005), publicado pela própria Fundação Gregório de Matos.<br />

Uma das entidades de grande relevo da Comunalidade da Engomadeira é a Associação<br />

Cultural Comunitária e Carnavalesca Arca do Axé, uma criação da grande liderança<br />

Domingos Sérgio, compositor e cantor, promotor de eventos culturais com enfoque nas<br />

linguagens da matriz africana, que se dedica sobretudo, a motivar jovens a usar palavras das<br />

línguas banto e iorubá. A Arca do Axé foi fundada, em março de 1999, por moradores do<br />

83


airro da Engomadeira, podemos até falar no Cabula, pois na sua expansão socioexistencial,<br />

agrega garotos, jovens e adultos de outros locais do Cabula, a exemplo da Estrada das<br />

Barreiras, Beiru, São Gonçalo, etc.<br />

Do que podemos viver e conceber das iniciativas de Domingos Sérgio junto àquela<br />

entidade, é uma luta incansável contra as desigualdades sociais, o racismo. Para desmistificar<br />

o estereótipo de inferioridade africana, a Arca do Axé realiza as oficinas de percussão,<br />

atualmente contando com 20 músicos na base, são percussionistas, instrumentistas de corda e<br />

cantores.<br />

É grande a luta de Domingos Sérgio com seus companheiros na Arca do Axé, muitos<br />

deles adolescentes e jovens do sexo masculino e feminino. Conta com a ajuda das grandes<br />

lideranças femininas, que compõem o corpo de costura do bloco, e da Escolinha comunitária<br />

Engenho dos Negros. É a força mítico-ancestral da Iyás-mi, as mães ancestrais da mata<br />

africano-brasileir, auxiliando seus filhos e filhas a manterem a alegria de viver, assumindo sua<br />

identidade africano-brasileira.<br />

A Associação Cultural Carnavalesca Arca do Axé tem a ala de dança e a ala das<br />

baianas, esta última é a homenegem simbólica às Iyas que muito lutaram para implantar um<br />

sistema de coexistência ancorado no universo de valores pluriculturais africanos no Brasil, a<br />

exemplo de Iya Nassó, Iya Oba Tosi, Iya Oba Biyi, Iya Nassó Oxum Miuwa, entre outras<br />

ancestrais que plantaram e renovaram o axé.<br />

Para manter viva a memória dos antigos, a liderança Domingos Sérgio e seus<br />

companheiros na Arca do Axé recriam linguagens inaugurada pela arkhé ancestral africana<br />

em festejos, por exemplo: o bumba-meu-boi, o teatro de bonecos na liderança de seu filho<br />

mais velho, uma criança de 12 anos que leva às comunidades do Cabula a alegria de recontar<br />

histórias contadas pelos africanos, imbuídas da estética Odara, estas por ser em cheias de<br />

beleza e alegria e por estarem ligadas à naturezas; por isso são também boas e úteis, porque<br />

traduzem o saber ancestral.<br />

O bloco Arca do Axé sai no sábado de Carnaval no circuito Batatinha, com a ala das<br />

baianas à frente, grupos de capoeiristas, dançarinos de maculelê, outra ala de dançarinas que<br />

expresam o tema da nação em destaque.<br />

Em 2005, que tivemos a oportuniddae de participar do desfile na avenida, vivendo e<br />

concebendo também outras cenas num festival promovido pela Rede Engomadeira-Cabula.<br />

Este festival contou com o grande empenho de Domingos Sérgio, Zezé do Erêgege, de Dona<br />

Antonieta do Conselho de Moradores da Engomadeira, do incansável Esquerdinha da Radio<br />

84


Comunitária Hitz, do Grupo Artebagaço Odeart, do Sr. Pituquinha, um apàló recriado no<br />

cenário africano da Engomadeira.<br />

Ressaltamos aqui a grande participação “desde dentro” do grupo de liderança nesta<br />

realização da Fundação Gregório de Matos, que não apenas apoiou financeiramente, mas<br />

principalmente dialogou com a rede Engomadeira-Cabula, em torno de 90% no espaço<br />

Engomadeira, um dado raro em se tratando de uma instituição governamental. Foram várias<br />

reuniões semais, às vezes, de mais de uma por semana, de maneira que eles puderam viver de<br />

fato a experiência que Marco Aurélio denomina “comunalidade africano-brasileira”,<br />

repetimos este termo para que seja entendido no contexto da vivência. ´<br />

Vejamos algumas imagens da culminância de uma possibilidade de coexistência que<br />

continua em plena deambulação. Estas situações respondem ao que Narcimária Luz de<br />

denomina de “ética do futuro”, por se tratar de uma dinâmica de arkhé ancestral, é o passado<br />

ritualizando o presente com eidos renovados, ou recriações de linguagem, traduzindo assim a<br />

visão de mundo do africano-brasileiro.<br />

Figura 43 Figura 44 Figura 45<br />

Momento concentração chegada: :dos grupos no Festival Engoma, início da Engomadeira.<br />

Figura 46 Figura 47 Figura 48<br />

Saída do Festival: carro de som, grupos de capoeira, caminhada com participação do Cabula.<br />

Figura 49 Figura 50 Figura 51<br />

A participação do Bumba-meu-boi, o grupo de passista com o bumba, as barracas reterritorializando o comércio local.<br />

85


Figura 52 Figura 53 Figura 54<br />

Da concentração à apresentação. Grupo Artebagaço Odeart<br />

Figura 55 Figura 56 Figura 57<br />

Grupo de dança de matriz africana Artebagaço Odeart: apresentação no Festival Engoma, 2005.<br />

No Festival Engoma 24 , o Grupo Artebagaço Odeart realizou a experiência de<br />

linguagem da dança de matriz africano-nagô, logo figurinos, músicas, gestos emprestados das<br />

expressões cênicas foram fruto de um dedicado estudo iniciado em 2004 junto com a<br />

pesquisa. O festival foi participativo e memorável, sobretudo para as crianças do lugar, que<br />

desconheciam aquela forma de expressão de vida social que a Engomadeira teve um dia,<br />

como um cenário de aldeia africana onde toda a efervescência desdobra-se no entorno do<br />

mercado que fica em frente ao afin, palácio do rei, pelo menos era assim nos antigos reinos do<br />

império Nagô.<br />

Jorge Cipriano 25 , morador da Engomadeira desde a década de 70, assim descreve a<br />

dinâmica ancestral:<br />

Bem, apesar de ter chegado aqui aos 13 anos, deu pra observar um pouco o<br />

movimento do bairro do Beiru, hoje Tancredo Neves, Estrada das Barreiras,<br />

São Gonçalo e Engomadeira. Eram comunidades bem mais simples, tinha<br />

mais simplicidade [realça o termo com a voz] que hoje. O movimento que<br />

existe hoje é uma coisa que surgiu a partir da instalação da <strong>Uneb</strong><br />

(Universidade do Estado da Bahia). A partir do momento que a <strong>Uneb</strong> surge,<br />

foram surgindo os conjuntos Cabula IV, Cabula V na antiga estrada do<br />

Saboeiro, disto ai o Cabula começa a evoluir [abre os olhos] um pouco<br />

mais. Antes, tinham casas de taipa, naquela época não se tinha água<br />

encanada, aqui nesta área da Engomadeira não tínhamos água encanada,<br />

energia elétrica só tinha em poucas casas, a água tinha que pegar em fontes,<br />

tinham várias fontes [outro realce com o corpo e voz afirmando o dado<br />

24<br />

Engoma, palavra de origem africano-banto da língua kimbundo e kikongo cuja origem é ngoma. Nome dado<br />

ao atabaque no culto Congo-Angola. Desta palavra, ngoma, surge ngomadele, engomadeira. Ver em Yeda Castro<br />

(2001, p. 229; 357).<br />

25<br />

Pai do artebagaciano Jorge Cipriano Filho, o adolescente que dança vestido de azul claro nas duas últimas<br />

fotos.<br />

86


natural], e pessoas que vendiam água em burros, em lata de gás. Nós,<br />

quando garotos, vendíamos água que era carregada em latas de gás (10 ou<br />

vinte litros) e cobrávamos para encher tonéis dos vizinhos, além de ter que<br />

encher o de casa também.<br />

Tinha o comércio, só que não era como hoje, não existiam os chamados<br />

supermercados, eram os antigos armazéns que vendia um pouco de tudo, de<br />

cereal, enlatado, bolachas, alguns biscoitos simples, este é o armazém.<br />

Naquela época, a construção era bastante simples, por maior que ela fosse,<br />

por exemplo; não tinha laje, era telhado com aquelas telhas de barro antigo,<br />

aí o pacote de biscoito, latas de “kitute”, os enlatados ficavam da maneira<br />

que o comerciante tinha que mostrar seu produto que eram pendurados num<br />

cordão e amarrado ao teto, isto nos armazéns.<br />

Tinham as bibocas também, eram chamadas de quitanda 26 , que eram<br />

estabelecimentos bem menores onde a gente comprava a retalho, era assim:<br />

quem não podia comprar um quilo comprava 250 gramas, 100 gramas de<br />

café, açúcar, farinha. Como não tinha energia elétrica, pouquíssimas casas<br />

tinham energia elétrica, a maioria da população utilizava candeeiro,<br />

quando não usavam vela; quem usava candeeiro tinha que comprar<br />

querosene nos armazéns que vendiam ½ litro, 1 litro, para iluminar a casa.<br />

Nas ruas, existiam postes, mas a distância era muito mais acentuada do que<br />

é hoje, então a claridade era bastante reduzida, então a lua era que ajudava<br />

na claridade natural. Também não existia calçamento, era barro, as casas a<br />

maioria do chão era de barro batido. As casas tinham formato de duas<br />

águas nas laterais, tinham formato de duas águas na frente e no fundo e<br />

tinha o formato de uma água só que era como lá em casa: a frente alta e o<br />

fundo baixinho, hoje é uma construção de dois andares numa área de 5<br />

metros de frente por 12 metros de fundo. Na época era uma casa de taipa<br />

no meio do terreno, um quarto e sala com banheiro no fundo. (Jorge<br />

Cipriano, pai, 2007).<br />

O que Jorge Cipriano pai descreveu-nos, traduz uma realidade presente nas<br />

comunalidades do Cabula, é bem verdade que a arquitetura das casas mudou, a iluminação<br />

elétrica ampliou, mas outras linguagens traduzem o sentido de armazém e quitanda, por<br />

exemplo, a venda de um tomate no lugar de 1 quilo. O festival Engoma trouxe um pouco do<br />

passado para celebrar que ele é presente.<br />

Bem, em relação ao legado socioexistencial do Cabula, ele está na presença atuante de<br />

dona Dadá 27 , líder comunitária da Igreja Católica do Cabula, especificamente na Estrada das<br />

Barreiras e em São Gonçalo. Com sua irmã Marota, elas herdaram isto de Tia Lili, sua mãe<br />

26 Quitanda é uma palavra de origem africano-banto das línguas kikongo e kimbundo. Caracteriza-se por um<br />

comércio de frutas, verduras, ervas medicinais, hortaliças, leguminosos. Em comunidades tradicionais africanas,<br />

realiza-se uma cerimônia pública denominada Kitanda de Iyawô, nesta as Iyaôs, ainda noviças, sem ter<br />

completado o tempo de iniciação que vai de 3 a 7 anos, manifestadas por Erês (orixás crianças) furtam as<br />

comidas, objetos que estão à venda. Este eidos, recriação de linguagem, faz parte dos festejos da tradição fincada<br />

no Cabula, pode haver em outras casas de culto fora do Cabula, mas nossa descrição resguarda-se em enunciar o<br />

que, da tradição africana está vivo e pujante no Cabula.<br />

27 Dadá, palavra africano-nagô, da língua Iorubá, que quer dizer grande irmã.<br />

87


que conta com 95 anos vividos no Cabula, tendo nascido na Fazenda São Bento no Beiru. Tia<br />

Lili foi uma das parteiras do Cabula, aprendeu com sua irmã numa época em que as primeiras<br />

mães do Cabula tinham ajuda destas mulheres para trazer ao aiyê, mundo dos vivos, um<br />

africano-brasileiro. Muitas gerações cabuleiras introjetaram e expandiram os valores<br />

ancestrais africanos a partir da possibilidade dada por mulheres como tia Lili.<br />

Bem, ficamos por aqui, nosso próximo passo é conhecer a história do Cabula,<br />

sobretudo o aspecto geográfico do lugar que os jovens cabuleiros não conhecem como<br />

Cabula, mas pelo que enunciam as diversas porções fatiadas a partir de 1970 por Cabula I,<br />

Cabula II, Cabula, XVIII. Dizemos o mesmo para a Estrada de Mata Escura que, de 2006 para<br />

cá, foi transformada em Avenida Cardeal Brandão Vilela.<br />

1.2.1 A Dinâmica Histórica do Cabula<br />

A vasta e densa mata que corta quatro tradicionais comunalidades do Cabula – Mata<br />

Escura, Estrada das Barreiras, Arraial do Retiro, Estrada de Saboeiro e fronteiras com<br />

Pernambués – foi a referência real que nos inspirou a reflexão sobre a trajetória dinâmica<br />

artístico-cultural do Artebagaço Odeart, num cenário de história da experiência vivida pelos<br />

ancestrais africanos no passado, sendo este o lugar de refúgio, resguardo da tradição<br />

transplantada da África para o Brasil e símbolo de proteção mítico-sagrada africano-brasileira.<br />

Neste mapa, em que o Cabula encontra-se “fatiado” nos finais do século XIX,<br />

notadamente a partir da “Campanha do Queimado”, tentaremos visualizar algumas<br />

localidades que foram Cabula, no que se refere ao espaço do território quilombola, ou seja, as<br />

terras desconsideradas pelos sistemas político-sociais neocoloniais de capitanias, provincias e<br />

até mesmo republicano como áreas habitadas.<br />

Até hoje, ondese encontram os herdeiros dos quilombolas no Cabula e de outros<br />

lugares que continuam sendo ignorados nos seus direitos existenciais pela Razão do Estado<br />

neocolonial, são chamadas habitações irregulares ou mesmo “ocupações territoriais<br />

impróprias”. Vejamos o mapa do século XIX (Figuras 58 e 59)<br />

88


Figura 58<br />

Mapa da região do Cabula subdividido por fazendas no século XIX.<br />

Fonte. Diógenes Rebouças (1996).<br />

Figura 59<br />

Mapa da região do Cabula subdividido por fazendas no século XIX (cont.).<br />

Fonte. Diógenes Rebouças (1996).<br />

Em termos de entendimento do espaço considerado Cabula pelos documentos oficiais<br />

não há como coincidir como o território geográfico-político que caracteriza as trilhas feitas<br />

89


pelos ancestrais quilombolas, expresso no mapa apresentado por João Reis (2003), mas isto<br />

pode ser entendido pelo simples fato de que, tanto para o governo provincial quanto para o<br />

governo republicano, responsáveis pelos mapas oficiais, ignorar a presença quilombola nestas<br />

terras significa evitar impasses de brigas por várias razões de intereses políticos de posse da<br />

terra, envolvendo a questão do direito de quem ocupou realmente o território nestas três<br />

décadas, do século XVII ao XIX.<br />

O nosso interesse em caracterizar a mata africano-brasileira do Cabula a partir das<br />

referências reais da mata é que, por centenas de anos, este lugar foi refúgio e resguardo das<br />

tradições herdadas por cabuleiros e cabuleiras. As histórias de vida falam do valor da mata<br />

para a socioexistência cabuleira, por isso resolvemos ouvir as de alguns dos que aqui vivem e<br />

conhecem a história.<br />

“Apàló” como Eldon Araújo Laje, Mameto ‘Nkisi Indaramucaía, Dona Francisca de<br />

Assis, Dona Bernadete e outros, como Sr. Cosme, Dona Valdelice, Professora Elairdes,<br />

completaram as trilhas históricas. Estes, contudo, não são considerados como apàló. São<br />

moradores e testemunhas das mudanças que houve no Cabula, mas não resguardam o<br />

conhecimento da tradição como um apàló.<br />

Eldon Araújo Laje, conhecido como Gijo, é um daqueles cabuleiros que dedicam<br />

parte de sua vida a recolher e transmitir o conhecimento da mata africano-brasileira do<br />

Cabula, desde feitos dos ancestrais quilombolas aos que ergueram as primeiras comunalidades<br />

tradicionais como o Ilê Axé Opô Afonjá e o Bate-Folha.<br />

Figura 60.<br />

Eldon Araújo Lage, Gijo, 2005.<br />

Em nossas conversas, Gijo começa afirmando a identidade africana: “Meu nome é<br />

Eldon Araújo Laje, mais conhecido como Gijo, sou filho do terreiro Onzo Nsumbo Tabula<br />

Dico a Meiã Dandalunda, mais conhecido pelo nome do Terreiro São Roque, pela conjuntura<br />

dentro do catolicismo dentro dos terreiros de candomblés”, (2005). Esta é comunalidade<br />

tradicional de nação Angola, plantada em 1943 no Beiru.<br />

90


Foi durante as conversas informais e entrevistas gravadas para a pesquisa que<br />

percebemos a atuação de Gijo, que se dedica a colher frutos constituídos pela história da<br />

população cabuleira e transmiti-los aos jovens nas escolas, associações e outros lugares.<br />

Vamos começar seguindo as trilhas constituintes do espaço físico-geográfico:<br />

O que pude ler e ver sobre o Cabula é o seguinte: O Cabula vinha daquela<br />

região da Rótula do Abacaxi, um pouco mais além de onde, hoje, está o<br />

Mercado Extra, e vinha beirando toda aquela região da Br 28 subindo ali no<br />

sentido da Brasilgás, hoje em dia, na mediação onde hoje fica o Santo<br />

Inácio. Beirando aquela região por baixo e subindo a região da Mata<br />

Escura, vai seguindo a Estrada de Sussuarana, fazendo fronteira com Pau<br />

Java, ali depois da Penitenciária, e vai descendo pra se encontrar com<br />

Matas de Oitis, fazendo beirar a Mata dos Oitis e aquela região... [pára um<br />

tempo fazendo um curso de memórias percebido com os movimentos dos<br />

olhos e do dedo indicador] de Pau da Lima, vai descendo onde é Centro<br />

Administrativo hoje em dia, passando onde hoje é a Paralela 29 , subindo<br />

para o Cabula VI 30 , mas não tinha Cabula VI era a Fazenda Campo Seco e<br />

a Fazenda Saboeiro porque tinha o Rio Saboeiro, tinha o rio denominado<br />

Saboeiro, não tido como bairro. Do Saboeiro descia e se encontrava com<br />

aquelas terras que já ia para o Exército, acho que o Exército chegou aqui<br />

em 1940 e pouco, aí se encontrava com aquele caminho que vinha do<br />

Curralinho nos Pernambués, só tinha um caminho para sair na Boca do Rio,<br />

não tinham aqueles caminhos todos da Paralela, só tinha o caminho do<br />

Curralinho que ia perto do areal da Boca do Rio, praticamente onde é o<br />

Sara 31 hoje, mas na lateral tinha um caminho que ia dar na Bolandeira e<br />

depois saia na Lagoa da Moenda, atrás do Centro de Convenções, ainda<br />

tem um pedaço da Lagoa da Moenda, é aquela área semi-árida, meio seca.<br />

Daí vinha para subida do Cabula, daquela região dos Pernambués que se<br />

encontrava com o Curvalinho que chegava à Rótula do Abacaxi. (Gijo,<br />

2006).<br />

Este é um percurso feito por quem saía do Cabula até a década de 70, são trilhas e<br />

veredas feitas pelos ancestrais quilombolas no interior, a pé ou com animais como mulas e<br />

burros, entre 1900 e 1960, desta imensa extensão de terras, mas Gijo continua:<br />

Então, toda esta área era considerada Cabula, era uma grande extensão de<br />

Salvador, o grande caminho da Cabula era o quê? O Arraial do Retiro e<br />

São Gonçalo do Retiro, primeiro o Arraial do Retiro, por quê? Porque era<br />

caminho pra chegar naquela parte do escoamento de Salvador, tinha aquela<br />

região do alto de São Gonçalo onde o escoamento era naquela parte ali da<br />

28<br />

Br 324, trecho constituído do sentido saída de Salvador para outros municípios da Bahia e Estados do Brasil.<br />

29<br />

Está falando da grande Avenida Paralela que separou o Cabula da Boca do Rio, e hoje faz limites do Cabula e<br />

seus arredores com toda a orla de Salvador.<br />

30<br />

Referência de lugar no espaço urbano-industrial do Cabula, este é um dos conjuntos habitacionais que<br />

constituem a referência do Cabula contemporâneo.<br />

31<br />

Hospital Sara Kubitschek, especializado em tratamento orto-molecular, próximo ao lugar denominado,<br />

atualmente, Costa Azul.<br />

91


San Martins, por ali descendo chega ao SESI 32 , onde tinha o primeiro<br />

matadouro de Salvador, inclusive o rio servia para captar água para lavar o<br />

boi ali mesmo, o rio que, hoje, é esgoto. (Gijo, 2006).<br />

Devido ao detalhamento da descrição, acreditamos que o domínio do espaço territorial<br />

de Gijo seja fruto do próprio processo de iniciação dos povos bantos. Neste, o indivíduo,<br />

através do seu corpo, aprende a se relacionar com o invisível, e ao descrever este percurso, ele<br />

não o faz pelo mero decalque ou ação mnemônica racional dos lugares, as trilhas e veredas<br />

são sentidas no corpo.<br />

Essa situação ocorre porque o ethos 33 do Banto caracteriza-se por uma ancoragem de<br />

arkhé civilizatória africana que reforça os sentidos de compreensão da totalidade existencial,<br />

que leva a entender o corpo como uma família de que todos têm a obrigação de zelar.<br />

Vejamos como Gijo apresenta esta relação de totalidade:<br />

Tata:veja uma coisa: é o irmão de meu pai, é um tio, mas o tio-pai. Então,<br />

na falta de meu pai, meu tio é meu pai. É esta a iniciação, o corpo é<br />

direcionado para família, o cargo é de família. Kota é o quê? Irmã mais<br />

velha, ali no candomblé quem está na família é kota, para a gente no<br />

terreiro de Angola quem o cargo está relacionado ao laço de família. (Gijo,<br />

2006).<br />

Entre essas explicações sobre o sistema social do africano de origem Banto, surgem as<br />

histórias das relações entre as comunalidades tradicionais que abordam as referências de<br />

limites territoriais do Cabula até antes de 1950, conforme os dados de Gijo:<br />

Contam os mais velhos que havia uma política, quando Joãozinho da<br />

Goméia [Tata famoso da comunalidade do São Caetano] soltava seus fogos<br />

na casa dele, na Goméia, muitas vezes Bernardino soltava de cá<br />

respondendo para ele. Os fogos que soltava Bernardino do Bate Folha eram<br />

também soltados na casa de Joãozinho da Goméia, há muitos anos atrás.<br />

Isto dá pra ver como eram próximos. (Gijo 2005).<br />

Gijo continua falando das comunalidades sociais de Salvador próximas ao Cabula:<br />

Eram próximos, tanto sim que Maria Neném 34 partia daqui do Pau Javá e ia<br />

pelas regiões da Mata Escura por baixo e depois chegava em sua casa. Ela<br />

32 Serviço Social da Indústria. Trata-se de um complexo escolar da Federação das Indústrias do Estado da Bahia<br />

– FIEB - com ensino de primeiro e segundo grau para trabalhadores da indústria e seus filhos. Escola Reitor<br />

Miguel Calmon.<br />

33 A visão do mundo, de existência social.<br />

34 Sobre Maria Neném, ver Acbanto – Associação Cultural Bantu. Maria Neném, nascida em 1865, é<br />

considerada uma matriarca de uma família Banto que originou várias comunalidades tradicionais de Angola na<br />

Bahia. Maria Neném faleceu em abril de 1945. Disponível em . Acesso em: 19 jan. 2006.<br />

92


tinha um terreiro no Pau Javá, é naquela região vai dar mais ou menos<br />

entre a Penitenciária Lemos de Brito na Mata Escura, seguindo horizonte<br />

ao nordeste. Ela ocupou toda aquela área. O Cabula, como área de<br />

denominação, só tinha: Mata Escura, Pau Javá, Sussuarana, Campo Seco,<br />

que depois passou a ser Beiru, Sussuarana, Arraial do Retiro, que era um<br />

dos maiores na época, porque ficava próximo ao escoamento de Salvador,<br />

na época.(Gijo, 2005).<br />

Enquanto falava, Gijo buscava na memória as histórias contadas sobre o lugar pelos<br />

mais velhos, como Faustino 35 dos cocos, já falecido, que tem familiares morando no Beiru.<br />

Este senhor era uma das pessoas mais velhas do lugar que conversava com Gijo, detalhando a<br />

dinâmica de produção do lugar, do Beiru ou Fazenda Campo Seco, propriedade dos Silva<br />

Garcia, de onde saía grande escoamento da produção de abricó. Continuemos seguindo o<br />

mapa traçado por Gijo:<br />

Para chegar ao Cabula saindo da San Martins subia o São Gonçalo, descia<br />

a Lagoa da Vovó e saia dentro do Arraial do Retiro; quem ligava o Arraial<br />

do Retiro ao São Gonçalo era a Ladeira da Vovó, até hoje tem um pé de<br />

tamarindo na entrada do lado esquerdo, está dentro de uma oficina de<br />

consertos de carros, aquela árvore é a mãe da região. No Arraial também<br />

tinha duas grandes pedreiras. Quem começou a explorar foi a cidade de<br />

Salvador desde 1700. O Cabula não exportou só frutas para cidade,<br />

exportou pedras e areais. Isto fez com que muitas pessoas que falavam de<br />

dentro do Arraial do Retiro também fizessem a exploração das pedras, que<br />

também tinham fazenda, grandes fazendas de plantações no Cabula, no<br />

Arraial era o lugar onde moravam e dos que tomavam conta, tinha terras da<br />

Marquesa Dionísia, do Visconde do Rio Vermelho.<br />

A primeira desapropriação de terras no Cabula, em 1910, foi feita pela<br />

Prefeitura de Salvador que comprou toda a Baixa do Cabula, Mata de Oitis,<br />

Sussuarana na mão do Mosteiro de São Bento; no livro de Tombo das terras<br />

do Cabula do Mosteiro de São Bento está lá. Como falei, o arraial do Retiro<br />

era lugar de morada, era local que tinha casas de Nobres para descansar<br />

até 1850, era como se fosse casa de veraneio, lugar de descanso longe da<br />

cidade. (Gijo, 2005).<br />

Devido aos relatos de Gijo, estivemos no Mosteiro de São Bento para encontrar<br />

referências no Livro de Tombo. De fato, o livro traz detalhes sobre o Cabula e se constitui em<br />

um grande acervo de Memória geográfica do local, o próprio Arraial é do Retiro, uma<br />

expressão da “bacia semântica” da Igreja Católica 36 cujo significado é local de descanso ou<br />

isolamento social. Gijo usa o termo “exportou” como se o lugar Cabula não fosse Salvador,<br />

35 Ver. Correio da Bahia, 19 de setembro de 2005. (apud. , 20/ 9/ 2005<br />

36 O local onde se encontra o Sesi era próximo à Fazenda Bate Folha e a Fazenda São Gonçalo. Nestes arredores,<br />

está o Engenho do Retiro, que era do Mosteiro de São Bento, assim como, no Beiru, fazendo fronteira com a<br />

Sussuarana, era a Fazenda São Bento da mesma ordem religiosa.<br />

93


mas era assim que pensavam os mais antigos quando diziam: “Vamos pra cidade”, realmente<br />

até hoje o cabuleiro antigo considera o Cabula um espaço não-urbano.<br />

E se existe algo que conta esta história de vida na “roça” 37 cabuleira é uma referência<br />

de presença da arkhé africana localizada na entrada do Arraial, o tamarindeiro secular que<br />

pode ser considerado um onilé, senhor da terra em iorubá, por ser uma das poucas árvores<br />

centenárias que resistem ao desmatamento.<br />

Figura 61 Figura 62 Figura 63<br />

Tronco do Tamarineiro. 2006. Galhos e troncos. 2005. Raízes: local da antiga lagoa da Vovó.<br />

Gijo, agora, expressa sua opinião sobre os responsáveis pela cultura urbano-industrial<br />

no Cabula:<br />

Quem terminou colocando o Cabula aos olhos da comunidade que vai mexer<br />

com a questão imobiliária, quem botou cobiça dos brancos ricos foram os<br />

grandes negros que formaram o quilombo do Cabula, porque o Mosteiro de<br />

São Bento não queria estas terras, achavam-nas longe, mas não tinha<br />

dimensão da riqueza das terras. Então quem plantou e quem reproduziu foi<br />

o negro. É ai que vem as plantações de abricó, da murta que diz o pessoal<br />

antigo ter substância, tinham também outras frutas, depois que o negro foi<br />

se colocando mais longe, cada vez mais distante.<br />

Mata Escura, Engomadeira pra cá, Beiru, já não terras tão bem olhadas. O<br />

Cabula começou a crescer em final de 1800, depois disso vieram:<br />

Damasceno que era, na Engomadeira, dono de toda aquela área, aqui<br />

(Beiru) tinha a fazenda Campo Seco, tinha a família de Conde dos Arcos,<br />

tinha a Corcunda de Iaiá fazendo fronteira com o Beiru, a Sussuarana fazia<br />

fronteira com a Fazenda São Bento do Mosteiro de São Bento.<br />

A especulação imobiliária começou naquela região da parte baixo do<br />

Cabula, onde antes havia um Centro o primeiro Centro Agrícola do Estado<br />

da Bahia, era uma fazenda enorme arrendada da Fazenda São Gonçalo,<br />

penso que o documento de Mãe Aninha 38 foi feito por este arrendamento,<br />

não sei, penso. A Fazenda São Gonçalo vai de onde está, hoje, o Bom Preço<br />

37 Roça tem sentido de lugar de vida social em contato com a natureza, embora o termo roça venha da palavra em<br />

Iorubá “(oká), outra palavra para “terreiro” e que conota as comunidades litúrgicas como situadas no mato, fora<br />

do contexto urbano” (SODRÉ, 2002, p. 53).<br />

38 Gijo fala do documento de posse de propriedade da compra das terras do Ilê Opô Afonjá, fundado em 1910,<br />

justamente na mesma época em que a prefeitura desapropria as terras do Cabula e fica como proprietária da<br />

Fazenda São Gonçalo.<br />

94


até os Pernambués; como estradas tinham as trilhas criadas pelos Bantos 39<br />

que fizeram seus corta-caminhos.<br />

O Cabula dá em todos os pontos da Cidade de Salvador, logo as vielas,<br />

becos, foram pistas criadas pelos ancestrais africanos para se locomoverem<br />

mata fechada e compreende também a subida onde está a Baixinha de Santo<br />

Antônio no São Gonçalo.(Gijo, 2005).<br />

Esse mapa descritivo, verbalmente constituído, das terras do Cabula foi transcrito do<br />

jeito como Gijo entoou, e seus ecos nos deram grandes referências de um Cabula<br />

desconhecido pelos jovens moradores. Pessoas como Gijo atuam como contador de história<br />

do passado africano, como a África foi reterritorializada no Cabula, por isso reafirmamos:<br />

para nós, Gijo é um apàló cabuleiro.<br />

O mais interessante, em termos de semelhança, é que todos que encontramos são bons<br />

contadores de história, ou cronistas do Cabula. Associam a palavra à música ou contam e<br />

cantam, ou contam e tocam, ou até mesmo tocam, cantam e contam a história deste lugar.<br />

Assim, concebem suas próprias experiências e aquelas vividas por seus ancestrais<br />

quilombolas, embora saibam que alguns destes desconheçam o dado de serem descendentes<br />

de fundadores de quilombos em Salvador, dado ocultado pela história oficial.<br />

Outra pessoa é Mameto N’kisi Indaramukaia, Dona Francisca de Assis Dantas, Dona<br />

Chica, avó de Jorge Alex, outro eco da pesquisa, que descreve o Cabula como um lugar de<br />

mata banhada por riachos e rios e de roças até 1970. A mata que nos inspirou a cena desta<br />

perspectiva mítica, era cortada por muita água:<br />

Quando precisava pegar água, a gente ia nos riachos e nas fontes. Tinha a<br />

roça do finado Samuel, na roça do finado Augustinho e do finado Elpídio<br />

que era no Cabula e numa fonte de bica na Mata Escura, descendo aqui na<br />

rua saía na Mata Escura, o riacho é do lado de cá [usa o corpo com gesto<br />

como indicador de orientação espacial] que faz divisa com o São Gonçalo.<br />

Os riachos eram de pessoas, tinham donos, mas era o riacho que fazia as<br />

divisões das roças do lado de cá e do lado de lá. Tinha a mata, mas aqueles<br />

pés de eucalipto não tinham não, foram plantados, foram plantados. (Dona<br />

Chica, 2006).<br />

Durante a conversa, observávamos seus gestos, a fala lenta bastante reflexiva de quem<br />

não tinha pressa para dizer algo, e, de vez em quando, olhava profundamente em nossa<br />

direção e respirava, depois continuava a falar:<br />

Ah! Esta mata é antiga! [Faz um sinal de muito tempo esfregando os dedos].<br />

Eu era criança e de lá do São Caetano eu via esta mata aqui. Todo mundo<br />

39 Ressaltamos que agrupamentos Nagôs também ergueram pousos no Cabula, conforme Reis (2003).<br />

95


andava nela pra pegar feixe de lenha pra cozinhar, que não tinha fogão<br />

desses, o fogão que tinha era de carvão, muita gente tirava madeira desta<br />

mata pra fazer casas. Esta mata é tão bonita! Quando eu era menina, ouvia<br />

dizer que nessa mata andava a caipora, não sei se era mesmo, mas sei dizer<br />

que tinha ela na mata, mas ninguém via. Minha mãe dizia, minha mãe vem<br />

de candomblé, era uma crioulona bem escura, que ela enganava as pessoas<br />

que eram da seita. Minha mãe me contou que foi enganada na mata pura.<br />

Foi assim: As pessoas vinham aí catar feixe de lenha pra cozinhar, aí ela<br />

disse que não era para ficar chamando a pessoa mais distante pelo nome<br />

porque, quando chama, quem responde é ela. Era assim, a pessoa dizia:<br />

Fulano, aí a pessoa ouvia: Uh! Uh! Aquele Uh! Uh era para pessoa ir<br />

entrando na mata e ir se perdendo, tanto que minha mãe que era do axé,<br />

quando ia entrar na mata pegar lenha levava alho e não ficava gritando e,<br />

antes de começar a catar lenha, tinha uma espécie de fumo pra botar lá ou<br />

alho. Ela levava um pedaço de fumo e ficava em paz. Minha mãe nunca foi<br />

enganada pela caipora. O alho não era oferenda, era para proteger o<br />

corpo, agora o fumo eu sei que era para ela.<br />

Tinha uma trilha de caboclo na mata, era uma trilha da Mata Escura até<br />

estas alturas aqui pra baixo [aponta a direção correspondente ao local do<br />

Arraial próximo a Mata Escura], tinha uns penduricalhos com um bocado<br />

de coisas que às vezes tarde da noite a gente ouvia aquele assobio longe,<br />

dizem que é a linguagem do Caboclo. Era mesmo onde é hoje a estrada pra<br />

Sussuarana. (Dona Chica, 2006).<br />

Dona Chica, Mameto N’kisi Indaramukaia, é conhecedora dos valores africanos,<br />

nascida e criada em casa de cultos africanos. Melhor do que ninguém conhecia as pretensões<br />

“desde fora” de muitos pesquisadores, por isto, quando falava comigo, tinha um olhar<br />

desconfiado de quem olha de baixo para cima, busca um momento de falha ou descaso sobre<br />

o seu conhecimento. Esta expressão foi, aos poucos, sendo substituída pelo sorriso e prazer<br />

em descrever o vivido-concebido.<br />

Figura 64<br />

Mameto N’kisi Indaramukaia. 2005.<br />

Também pudera, a cultura africana é alvo de estudos depreciativos feitos por<br />

estudiosos “desde fora” que de nada sabem sobre o universo simbólico que alimenta o<br />

imaginário do africano, mas, mesmo assim, sentem-se seguros, dotados de certezas absoutas<br />

96


positivistas para emitir um parecer cientificista, como Arthur Ramos (1934), que, ao ouvir de<br />

informantes sobre um antigo culto que havia no Cabula, (A Cabula), assim descreve:<br />

“A Cabula”: Houve alguein que disse ser grande e mais prejudicial do que<br />

pensamos, a influencia exercida pelos africanos sobre os brasileiros. Parece<br />

mesmo que muito se tem escrito nesse sentido.<br />

Em certa região de nossa Diocese, tivemos, em nossa ultima excursão,<br />

opportunidade de observar a verdade desse asserto.<br />

Encontramos tres freguezias largamente minadas por uma seita mysteriosa<br />

que nos parece de origem africana.<br />

Nossa desconfiança mais se accentuou, quando nos asseveraram que antes da<br />

libertação dos escravos, taes cerimonias só se praticavam entre os pretos e<br />

mui reservadamente prefixe-, as n-ngana is from nqana. Umbanda.<br />

Depois da aurea lei de 13 de Maio, porém, generalizou-se a seita, tendo<br />

chegado, entre as freguesias, a haver para mais de 8.000 pessoas iniciadas.<br />

Bem que esteja agora privada dos elementos mais importantes, que<br />

infelizmente possuiu outr’ora, ainda encontramos crescido numero de<br />

adeptos.<br />

O tom mysterioso e timido com que nos falavam a seu respeito e a noticia da<br />

grande quantidade de iniciados ainda existentes, nos levaram, não só a<br />

procurar do pulpito invectivar essa tremenda anomalia, como também a<br />

tomar algumas notas que offerecemos à consideração e ao estudo dos<br />

curiosos.<br />

Graças a Deus, nosso trabalho não foi inutil. Tivemos a “consolação” de ver<br />

centenares de cabulistas abandonarem os campos mimigos e voltarem<br />

novamente a N. S. Jesus Christo, ao mesmo tempo que, de muito bom grado,<br />

nos forneciam informações sobre a natureza, fins, etc..., da associação, a que<br />

pertenciam.<br />

A nosso ver a Cabula é semelhante ao Espiritissno e á Maçonaria, reduzidos<br />

a proporções para a capacidade africana e outras do mesmo grau.<br />

Como o Espiritismo, acredita na direcção immediata de um bom espirito,<br />

chamado Tatá, que se incarna nos indíviduos e assim mais •de perto os dirige<br />

em suas necessidades temporaes e espirituaes. Como a Maçonaria, obriga<br />

seus adeptos, que se chamam çamanás (iniciados), para distinguir dos<br />

caidios (profanos), a segredo absoluto, até sob pena de morte pelo<br />

envenenamento; tem suas iniciações, suas palavras sagradas, seus tactos,<br />

seus gastos, recursos particulares para se reconhecerem em publico os<br />

irmãos.<br />

Como em todas as innovações congeneres, ha muito charlatanismo e<br />

exploração, sendo alguns centros por isso desprezados; tambem outros<br />

misturam o caiholicissno e suas venerandas ceremonias com essa seita<br />

97


exotica, ta,lvez, canso é sempre plano, para attrahir os incautos e os<br />

innocentes,<br />

Em vez de sessão, a reunião dos cabulistas tem o nome de Ha duas mesas<br />

capitulares; a de Santa Barbara e a de Santa Maria, subdividindo-se em<br />

muitas outras, com as mesmas denominações. Disseram-nos que havia uma<br />

terceira mesa de S. Cosme e S. Damijo, — mas mysteriosa e mais central,<br />

que exercia uma espécie de fiscalização suprema sobre as duas outras, cujos<br />

iniciados usavam nas reuniões compridas tunícas pretas, que cobriam o<br />

corpo todo, desde a cabeça até os pés — uma especie de sacco dos antigos<br />

penitentes. Nada, porém, podemos asseverar nesse sentido.<br />

Graças às boas informações, ministradas occultamente, podemos fazer unia<br />

idéa perfeita desta perigosa associação. (RAMOS, 1934, p.89-91).<br />

Aos poucos, fui aproximando-me e as expresões desconfiadas foram sendo<br />

substituídas pelo sorriso e prazer em descrever o “vivido-concebido”, por exemplo, agora ela<br />

descreve a dinâmica para pegar areia na praia que ornamentava os chãos das casas em dias<br />

festivos:<br />

Agora eu acho importante você saber isto. Há! Há! Há [foi uma larga<br />

gargalhada]. Eu acho importante pra você saber. A gente ajuntava algumas<br />

mocinhas, alguns filhos meus, os mais velhos ainda foram, quando chegava<br />

perto das festas e quando estava chegando Natal se ajuntava aquela<br />

turminha pra sair daqui às cinco horas da manhã, pegando estas pistas por<br />

ai a fora, comendo jaca que caía do pé, era aquela folia. A gente fazia<br />

aquela merenda, ou era bacalhau ou carne do sertão frita pra ir comendo<br />

pelo caminho, ou para quando chegar no areal se ajeitar pra comer e beber<br />

água.<br />

Era assim: saía daqui e chegava à <strong>Uneb</strong>, seguia em frente até chegar lá<br />

embaixo que entrava num lugar chamado beco da coruja que descia e saia<br />

lá embaixo para pegar a Boca do Rio. Eram pistas antigas de barro com<br />

caminhos estreitos ou ia pelo Saboeiro direto, a gente ia pegar areia alva e<br />

trazia a quantia que agüentasse, no caminho de volta passava e comprava<br />

um beijuzinho naquelas palhocinhas que vendiam também pamonha. Eram<br />

casinhas que não sei explicar, eram de palha e vendiam aqueles peixes<br />

secos.<br />

A casa era de sopapo, tinha 70 anos, se olhasse dizia que era de bloco.<br />

Muito bem feita! Depois teve que derrubar para fazer esta aqui, estava velha<br />

demais. Naquele tempo, o piso era chão puro ou cimento brabo, aqui já<br />

encontrei cimentado porque as casas daqui eram cimentadas, a casa que<br />

não tinha cimento era a casa do finado Samuel, porque a dele não terminou.<br />

Na arrumação da casa, a gente botava a areia no chão em cima do cimento,<br />

botava folhas de pitanga, enfeitava tudo com galhos nos jarros, também os<br />

feixes de pitanga eram cortados para vender. Era tudo roça aqui e as<br />

trilhas eram de caboclos; carro? Nem pensar, era um fenômeno. (Dona<br />

Chica, 2006).<br />

98


Com a expressão “Agora eu acho importante você saber isto”, Mameto N’kisi<br />

Indaramukaia, Dona Chica, apresentou um cenário amplo do ethos cabuleiro, com seus<br />

princípios e valores herdados, a expressão “minha mãe dizia” é presente nos diálogos com os<br />

alunos na escola, quando estes apresentam suas concepções sobre o modo de elaborar a<br />

realidade vivida, esta expressão tem um tom de autoridade legitimadora do conhecimento.<br />

As expressões: “seita” e “mata” mostram a tradição herdada dos antigos africanos que<br />

viam a relação mata e religiosidade como possibilidade de venerar as entidades sagradas, de<br />

realizar as ritualizações. A mata é lugar de orixá, inquice e vodum. Dona Chica sabe disto e<br />

lamenta não poder entrar no pouco espaço que resta da mata que, atualmente, se transformou<br />

em espaço de violência e de risco de estupro.<br />

Tudo isto passou a acontecer a partir da entrada brusca do projeto urbanístico do<br />

Cabula, moradores como Jorge Cipriano, o jovem Zezé, sabem como esta imposição mudou a<br />

dinâmica socioexistencial do lugar. Vejamos o que dizem os ecos do jovem militante do<br />

Grupo Erêgege, estudante da rede pública do ensino médio no Cabula, morador da<br />

Engomadeira e que também faz suas críticas ao desrespeito da ação urbanística no Cabula:<br />

Na verdade, uma das castradoras de todo espaço físico e importante para o<br />

culto e pra nossas manifestações é a própria universidade, a própria <strong>Uneb</strong>.<br />

Sabe, aqui existia um espaço onde eram arriados os ebó, a comunidade ia<br />

fazer suas preces, orações. Tem outro espaço que tem muito de magia, tem<br />

muita coisa, mas é restrito pra caramba, é o espaço do Batalhão 19 Bc.<br />

Sabe, todos os dias escuto gente contar histórias de soldados que saem<br />

correndo pela mata porque vêm coisas que não sabem o que é. Então lá tem<br />

muito de magia, tem muita coisa que se a comunidade negra pudesse tomar<br />

posse, nem que fosse para uma pesquisa arqueólogica daquele espaço, iria<br />

descobrir muita coisa. O horto florestal não precisa nem falar é o São<br />

Bartolomeu do Cabula que está sendo perdido. Aqui a gente tem terreiros<br />

antigos que preserva ainda muita coisa boa é o Ilê Axé Opô Afonjá para<br />

mim, é o terreiro do São Gonçalo. Outro terreiro está na Engomadeira na<br />

Rua 4 de Maio, um terreiro que a responsável tem 82 anos. Tem o terreiro<br />

de Gijo que a gente conhece como Terreiro São Roque, Gijo é um membro<br />

do terreiro que preserva muito a tradição Angola. (Zezé, 2005).<br />

Zezé reforça a relação entre a religiosidade do homem africano e o espaço da mata, tal<br />

como Mameto N’kisi descreveu, o mistério continua na mata, isto é, enquanto a especulação<br />

imobiliária não a destruir completamente.<br />

99


Figura 65 Figura 66<br />

Zezé na Fundação Gregório de Matos. Zezé no palco do Festival Engoma, 2005<br />

Outra pessoa que conta a história do Cabula em seus pormenores é Dona Bernadete<br />

Pereira da Silva, moradora da Estrada das Barreiras, na Vila II Irmãos 40 , Dona Bernadete<br />

também tem muita história vivida e concebida das suas reflexões do passado ancestral:<br />

100<br />

Nasci aqui, em casa de sopapo, telhado de palha de pindoba e chão batido<br />

em 1929, meu pai Elpídio Pereira Nepomuceno, filho de João Nepomuceno,<br />

nasceu aqui em 1888. Aqui se chamava Fazenda São Gonçalo, ainda tenho<br />

a planta, tudo isto aqui era chamado de Beiru; a Estrada das Barreiras era<br />

chamada Estrada dos Bois, como na Liberdade também tinha outra, aqui<br />

passava o gado que vinha da Br para o Matadouro do Retiro. Os nomes<br />

Engomadeira, Beiru, Sussuarana, São Gonçalo já tinham, mas, em 1972, o<br />

governo Roberto Santos entrou com o projeto Narandiba e mudou tudo, foi<br />

quando nasceram estes apartamentos. Mas o primeiro conjunto do Cabula<br />

foi em 1969, Conjunto dos Bombeiros, que depois passou a ser chamado<br />

Conjunto ACM. O nome Narandiba veio por causa do quartel do exército.<br />

(Dona Bernardete, 2005).<br />

Bem, a partir daqui, estaremos dialogando com Dona Bernadete e o Sr. Raimundo<br />

Gaspar do Santos, conhecido por Cosme, que, diferente de Dona Bernadete que nasceu no<br />

Cabula, e é morador da Estrada das Barreiras desde a década de 60, isto é, antes de realizar a<br />

urbanização Vamos continuar nossa conversa como Sr. Cosme:<br />

Quando vim da Liberdade... morava na Liberdade no Largo do Ouro, no<br />

Sieiro. Eu saí de lá porque lá eu morava num quarto e sala e estava recémcasado<br />

e não dava para reconstruir família ali, então[comprei] uma terra<br />

aqui e fiz um barraco, depois fizemos uma casa de construção. Vim pra<br />

porque foi o único lugar que pude comprar porque ganhava pouco e a<br />

família foi crescendo. (Sr. Cosme, 2006).<br />

Vemos o sentido de expansão e ocupação territorial, por parte de uma pessoa que<br />

pertence à mesma cultura. A Liberdade foi outro local que agregou a comunalidade africanobrasileira.<br />

Sr. Cosme trouxe da Liberdade a forma de viver dos antigos africanos, formas<br />

40 O termo II Irmãos refere-se a ela, Dona Bernardete, e seu irmão, falecido, herdeiros diretos de Sr. João<br />

Nepomuceno, ancestral mais velho que eles conhecem.


simples de quem se sentia bem estabelecendo vínculos sociais. Ele, agora, descreve a<br />

população encontrada:<br />

101<br />

Eram 4 ou 5 casas de taipas e os moradores eram: Sr. Elpídio, Firmino, O<br />

Terreiro Viva Deus, Dona Neide, que morava ali no horto florestal e a mãe<br />

de Nilson que está velhinha, ela mora aí ainda, tem uns noventa nos, mas diz<br />

coisa com coisa. Também quando vim pra aqui era estrada de chão não<br />

tinha ônibus. (Sr. Cosme, 2006).<br />

Dona Bernadete também fala sobre os primeiros vizinhos, as terras onde nasceu hoje<br />

chama-se Vila II Irmãos em homenagem a ela e seu irmão, que não mora mais entre nós:<br />

Menina, dos antigos moradores que alcancei era primeiro Sr. Firmino, que<br />

morava aqui em frente, pai de Maurição, o marido de Abigail. Sr. Firmino<br />

era estivador, tinha posses, tinha umas cabeças de vaca na cocheira, era<br />

posseiro como meu pai; depois vem meu padrinho Ricardo que pega do<br />

Loteamento Vila Moisés e vai até onde hoje é o Conjunto ACM, do outro<br />

lado onde tem a garagem São Francisco tem Sr. José (Dona. Bernadete,<br />

2005).<br />

Figura 67 Figura 68 Figura 69.<br />

Frente da casa de Sr. Firmino, 2004. Lateral, casa de duas águas. 2004. Fundo da casa Modificado. 2004<br />

Essas imagens mostram a casa de um antigo morador conhecido em todas as<br />

comunidades do Cabula, Sr. Firmino, em vida contribuiu para a socioexistência do Cabula.<br />

Era estivador, lavrador, foi fornecedor de vários produtos para Salvador e todo o Cabula:<br />

mandioca, leite, água, a famosa laranja do Cabula, assim como Sr. Elpídio Nepomuceno, que<br />

morou em frente, ao lado da Cesta do Povo da Estrada das Barreiras. Em suas terras, hoje<br />

estão o Horto Florestal do Cabula, o Conselho de Moradores das Barreiras, o campo de<br />

futebol, local de brincadeiras das crianças:


Figura 70 Figura 71<br />

Terras de Sr. Firmino e Conselho Moradores Crianças no balanço, gangorra. Terras Sr. Firmino<br />

Dona Bernadete continua a descrição com emoção (muitos suspiros, olhar para o<br />

espaço como quem busca, no fundo da mata, as lembranças) descreve a realidade vivida:<br />

102<br />

Onde hoje é o Conjunto Maestro Wanderlei morava Isabel da Goma. Esta<br />

criou suas filhas, que brincavam comigo, fazendo goma, ela fazia goma e<br />

vendia para cidade, as mulheres daqui trabalhavam, trabalhavam [Pausa,<br />

respira]. Mais acima, perto, em frente ao ACM, tinha Paulo, na rua Paulo<br />

Magalhães de seu mesmo nome, ele era irmão do músico e orquestrador<br />

famoso Otaviano Pitanga. Voltando aqui pra cima tinha Sr. Feliciano do<br />

Candomblé Viva Deus. (D. Bernardete, 2005).<br />

Ao falar “as mulheres daqui trabalhavam”, sua expressão gestual transcende milhões<br />

de anos da história da humanidade, são gestos que vêm ao presente dizer que força auxilia<br />

estas mulheres: com uma mão na cintura, voltada para trás e a outra levantando o dedo,<br />

simbolizava segurar em punho uma espada, ora colocava as mãos cruzadas para trás junto às<br />

costas, ora presa, cada uma, na cintura e sacudia o corp. São os eidos, arquétipos, traduzindo a<br />

presença da ancestralidade, mesmo que a pessoa não saiba, mesmo que não aceite, mas os<br />

gestos se presentificam na cena.<br />

Agora, antes aqui, em primeira mão, era Fazenda São Gonçalo, agora não<br />

sei se incluía onde é o Saboeiro hoje, mas incluía a parte do São Gonçalo,<br />

mas pela planta aqui você vê aqui [pega o documento amarelado pelo tempo<br />

e com muito cuidado retira-o da pasta e mostra-me]. Olhe, isto aqui é uma<br />

planta antiga que tenho aqui da prefeitura, isto aqui foi do tempo de meus<br />

pais que eles tiraram, foi o rapaz da prefeitura que veio e a planta. Esta<br />

área aqui era mil hectare. Esta área aqui era que meu pai ocupava, viu? A<br />

posse foi dada pela prefeitura municipal.(D. Bernardete, 2005).<br />

Com bastante detalhe, Dona Bernadete descreve como a terra chegou ao domínio de<br />

sua família:<br />

Este aqui é o recibo que todo mês meu pai ia e pagava esta área toda aqui<br />

[circula o dedo indicador na planta]. Olhe aqui o total em cruzeiros. Esta<br />

área vem desde o meu avô, meu avô faleceu, aí meu pai tomou a frente para


103<br />

pagar Meu pai me contava que meu avô contou a ele que aqui era posse de<br />

uma baronesa, que era a povo, era rainha, naquele tempo chamavam de<br />

baronesa, ela tomava conta de toda esta área aqui: Beiru, Barreiras. Não<br />

sei se os Pernambués, não se sabe, só sei desta parte de São Gonçalo,<br />

depois ela dividiu e deu a cada um deles o seu pedaço de chão pra trabalhar<br />

pra si próprio, foi aqui que meu pai foi criado. Aqui tudo era Fazenda São<br />

Gonçalo, depois é que dividiu e foi distribuindo e dando os nomes de Cabula<br />

a tudo aqui. (D. Bernmadete, 2005).<br />

Vamos ver o que Sr. Cosme tem a nos dizer sobre a expansão natural do lugar:<br />

Lá na frente o exército melhorou, a gente pegava um carro de praça e ficava<br />

lá no exército, ninguém queria nos trazer até aqui. A gente vinha a pé,<br />

menina. Para fazer as casas, a gente conseguia madeira por aqui mesmo, a<br />

gente fazia casa de sopapo, de taipa como dizem. No dia de fazer, a gente<br />

fazia uma feijoada, comprava pinga à vontade e num dia a gente levantava a<br />

casa. Era muita gente que ajudava, chamava mutirão. Então, as pessoas<br />

faziam casas assim um ajudando o outro.(Sr. Cosme, 2006).<br />

O que o Sr. Cosme chama de mutirão tem suas origens no Brasil a partir das tentativas<br />

de afirmação africano-brasileira, isto desde as estruturais quilombolas, irmandades e<br />

comunalidades tradicionais, formas de sociabilidade: “As formas de cooperação extensa<br />

foram implantadas no Brasil, constituindo a instituição chamada mutirão” (LUZ, M.A., 1995,<br />

p. 116) e se mantém nos dias atuais.<br />

Do que percebemos, quanto mais ações imperialistas e neocoloniais avançam para<br />

dificultar a vida comunal do descendente de africano, multiplicam-se formas recriadas, isto<br />

desde as relações de produção econômica ao fortalecimento dos laços constituídos por valores<br />

sociais quilombolas.<br />

Sr. Cosme não se esforça muito para lembrar do que viveu até antes de 1970, estas<br />

parecem atuais, e entre levantar os braços e se afastar da poltrona em que está recostado, ele<br />

larga suavemente sinais da memória social que caracterizam os eidos de constituição e<br />

expansão da instituição comunal. São gestos de quem, com um facão na mão, vai cortando o<br />

mato e fazendo trilhas, gestos como um braço levantado balançando, mão inclinada com três<br />

dedos fechados, o indicador e polegar esticados:<br />

Quando eu vim pra aqui trouxe dois moradores da Liberdade: Edi Calazans,<br />

que não está mais aqui entre nós, e Durval. Eu não sou fundador porque,<br />

quando cheguei, já tinha gente, encontrei Sr. Elpídio, encontrei Maurição,<br />

talvez os pais deles fossem fundadores, tinha Firmino e o Candomblé Viva<br />

Deus com Sr. Feliciano, mas dele tinha outro. Tinha Sr. Nezinho, o conheci<br />

muito pouco, ele morava mais pra lá, quando cheguei ele já estava. (Sr.<br />

Cosme, 2006).


Sr. Cosme foi uma das pessoas que mais lutarem para a chegada de água, luz, asfalto<br />

para o lugar, foi sua a idéia de criar o Conselho dos Moradores da Estrada das Barreiras, veja<br />

como ela conta:<br />

104<br />

Bem, é o seguinte: nós tínhamos necessidade de tudo. Os primeiros<br />

moradores que chegaram aqui [faz um sinal circular com o dedo mostrando<br />

o trecho pequeno onde ele mora] foram: Edi Calazans, Durval e eu; agora,<br />

alguns moradores já tinham aqui, então resolvemos fundar o Conselho dos<br />

Moradores das Barreiras. Na ata, consta que foi aqui [na casa dele] a<br />

primeira reunião, aqui na Rua Edi Calazans, n 0 3, Barreiras. Depois em 78,<br />

fizemos a primeira eleição [...] de onde fui eleito presidente. (Sr. Cosme,<br />

2006).<br />

É interessante perceber como as situações se repetem em tempos diferentes e lugares<br />

diferentes. Nos quilombos, os ancestrais se organizaram para a rebelião, nas comunalidades<br />

tradicionais, Iyas como Oba Biyi, Mãe Aninha, e Iyanassô Oxum Miuwa, Mãe Senhora,<br />

criaram alternativas de fortalecimento da sociabilidade. Agora, Sr. Cosme e outros renovam a<br />

experiência.<br />

Por isso reafirmamos que a presença do mito ancestral nos guarda, acompanha e<br />

protege nossa existência. Acreditamos que o arquétipo coletivo impulsiona as pessoas a<br />

buscarem e realizarem formas e modos de recriação de espaços civilizatórios. Sr. Cosme cita<br />

os objetivos do Conselho de Moradores, ao descrever suas vivências:<br />

Queríamos reivindicar os nossos direitos junto à prefeitura naquela época,<br />

como existia o loteamento e não tinha rua e nem nada. Aí, Calazans falou<br />

com um amigo dele da Coelba 41 – na época os postes eram 9 mil reis e aqui<br />

ninguém tinha como pagar – aí, Edi Calazans conversando com amigo dele<br />

trouxeram o engenheiro até aqui, todos os moradores contaram a situação<br />

[...] e daí com 15 dias instalaram os postes com a linha vinda de Mata<br />

Escura – Calabetão, o primeiro lugar que teve luz aqui foi o Candomblé,<br />

depois as casas, muito depois a Vila II Irmão, que a linha vinha da<br />

cidade.(Sr. Cosme, 2006).<br />

Mas a expansão moderna não pára:<br />

Conseguimos o posto de saúde depois, foi Sr. Feliciano do Terreiro Viva<br />

Deus quem doou o terreno, foi o primeiro posto do Cabula; depois teve o do<br />

Beiru. Já a escola, o Anfrísia Santiago, foi através de Sr. Nezinho, ali era de<br />

Sr. Nezinho, mas eu não tinha aproximação com ele. A Igreja Católica foi<br />

um terreno doado pelo finado Maurição [filho de Sr. Firmino, que já tinha<br />

41 COELBA. Companhia de Eletricidade do Estado da Bahia


105<br />

falecido] um pedaço, depois a igreja comprou outro e foi ampliando, porque<br />

o primeiro terreno doado por Maurição era em frente ao candomblé, mas o<br />

Padre Maurício achou por bem não querer, em sinal de respeito ao<br />

candomblé. A primeira missa foi celebrada aqui [pisa forte no chão de sua<br />

casa] em casa; na época, não tinha igreja,hoje tem 40 e poucas<br />

comunidades no Cabula, tudo de religião católica era no São Gonçalo do<br />

Retiro, nós já a encontramos lá. (Sr. Cosme, 2006).<br />

Figura 72 Figura 73 Fgura 74<br />

Colégio Mun. Anfrísia Santiago. 2006. Rua da Igreja Católica. 2005. Est. Barreiras. Terreiro Viva Deus, 2006<br />

Gostaríamos que entendessem que esses ecos contam o processo de expansão comunal<br />

de um lugar. É comunal porque as ações são de dentro para fora, são as necessidades dos<br />

moradores que reivindicam o que eles acreditam ser o melhor para comunidade. A escola<br />

instalada na década de 60 foi fruto de um esforço coletivo, de iniciativas conjuntas que<br />

buscavam o melhor para o local.<br />

Dona Bernadete nos fala agora sobre a dinâmica do lugar: a paisagem, as pessoas, os<br />

transeuntes, a produção econômica até 1970.<br />

Aqui tudo [faz o movimento circular com o indicador para cima] era área<br />

de roça. Aqui tinha mangueira, prova que ainda tem aí no fundo a<br />

mangueira. A laranjeira era cultivo de meu pai; mandioca, era daí que fazia<br />

a farinha para comer e vender. Era colocado num burro, nos caçuás e<br />

levava. Em tempo de laranja se colhia era laranja, era a laranja do Cabula<br />

muito falada. Cultivava tanto meu pai quanto os outros, cada qual tinha seu<br />

pedaço: Tinha ali Sr. Firmino, tinha outro lá adiante chamado Ricardo, eu<br />

lhe chamava de padrinho, cada um tinha seu pedaço de terra grande,<br />

menina, cultivavam e o cultivo daqui do Cabula era laranja e manga.( Dona<br />

Bernadete, 2005)<br />

Essa parte invisível, no século XXI, só se poderia se tornar visível aos olhos dos<br />

jovens moradores do Cabula que nem têm mais lugar para mexer os pés, pois cada milímetro<br />

de terra, a cada dia, é encoberto pela especulação imobiliária, ou por ocupações naturais da<br />

população local que cresce, porém, sem estrutura adequada para beneficiar a eles mesmos que<br />

ocupam as terras, ou por edificações dos projetos imobiliários de urbanização oficial.<br />

Voltemos a ouvir dona Bernardete:


106<br />

A gente aqui vivia daquilo, se mantinha, comprava roupa, pagava colégio,<br />

não tinha colégio aqui, era mais colégio particular: as pessoas que sabiam<br />

mais ensinavam. Depois é que foi melhorando e surgiu o colégio, o primeiro<br />

colégio daqui do governo no Cabula foi o Colégio Antônio Eusébio, fica na<br />

ladeira do Cabula, na ladeira velha do Cabula, era onde descia o bonde. O<br />

bonde fazia fim de linha na Barroquinha e na Calçada, aqui é onde hoje é<br />

aquele posto de gasolina, Largo do Cabula 42 que era Largo do Tamarineiro<br />

do Cabula, no Pau Miúdo tem outro Largo do Tamarineiro. Aqui tudo era<br />

Cabula.(D. Bernadete, 2005).<br />

Dona Bernadete repete constantemente que toda a extensão de terra, fatiada<br />

atualmente, era um único lugar, é como se quisesse registrar que os povos que fundaram<br />

foram aqueles do qual ela descende:<br />

Minha mãe era santamarense, fica perto de Cachoeira. [...] Eu tenho parte<br />

com índio e com negro. A parte de índio é a parte de minha mãe [que] era<br />

tirada a cabocla e veio de lá do Ceará; minha avó era cearense. Era índia<br />

mesmo [falava com convicção]. Meu avô foi nascido aqui mesmo nesta área<br />

do Cabula, era lavrador. Meu pai contava que meu avô o levava pra roça<br />

pra plantar manaiba. Manaiba era a cultura da mandioca, o caule da<br />

mandioca e a raiz que é mandioca de onde a gente extrai a farinha, né?<br />

Então, ele aprendeu a cultura da mandioca que foi um costume dos índios e<br />

dos negros, meu pai aprendeu com índio e com negro, meu avô era africano.<br />

(D. Bernadete, 2005).<br />

É a identidade territorial brotando e se afirmando através da linguagem – “meu avô era<br />

africano”, “minha avó era índia” – e não se faz por uma afirmação de uma nacionalidade<br />

imposta pela Razão de Estado, com o sentido de nacional, não. São as referências simbólicas<br />

que traduzem o complexo processo socioexistencial, constituído por símbolos-signos, que<br />

orientam os intercâmbios durante as vivências comunais neste sentido:<br />

Aqui nos interessa compreender que um determinado grupo social e/ou<br />

comunidade, só se consolida quando estabelece formas e/ou modos próprios<br />

de comunicação, dos quais derivam-se as linguagens em que está contido um<br />

rico repertório de signos que desenvolvem relações simbólicas que<br />

configuram uma identidade. (LUZ, N., 2000, p. 100).<br />

Ao assumir a identidade afro-indígena, Dona Bernadete comunica seu solo de origem,<br />

enuncia o pensamento que rege suas elaborações e afirma suas atitudes de cabuleiro, de<br />

quilombola, descendente de negros e índios que, juntos, lutam pela liberdade, e não importa o<br />

42 Atualmente, é local onde fica o Posto BR e foi batizado pelos jovens de Espaço Útil, nome de um bar que ali<br />

está constantemente cheio de pessoas de várias idades, perdeu o físico de praça, mas a ordem de largo está viva.


lugar de onde cada ancestral nasceu no Brasil, se no Ceará ou na Bahia, o que importa é que o<br />

espírito de busca foi um apenas – a liberdade.<br />

Essa liberdade fora ameaçada pelo pequeno burguês 43 , no próprio Cabula, a ponto de<br />

ver áreas que foram demarcadas pelo poder absoluto do convívio urbano-industrial, que se<br />

restabelecerem pela coexistência comunal, como mostra Dona Bernadete:<br />

107<br />

À parte do Cabula chamada Tomás Gonzaga, aquela área que entra para os<br />

Pernambués, no meu conhecimento, os negros não iam, não iam ali porque<br />

eram discriminados, nós éramos discriminados [respira profundamente].<br />

Isto até hoje, ali estava a área que chamavam de chácaras, tem esta<br />

diferença dos antigos do Cabula.(D. Bernardete; 2005).<br />

Nesses ecos, existe a enunciação de que se assume descendente de onilé, fundador, “os<br />

antigos”, mas também deixa escapar a denúncia do racismo que há no Cabula quando mostra<br />

que os habitantes do trecho da Avenida Silveira Martins, tendo como ponto de partida a <strong>Uneb</strong><br />

sentido Rótula do Abacaxi – Bairro do Resgate e Planalto e início dos Pernambués –<br />

mostram-se superiores aos que moram no trecho ao longo da Estrada das Barreiras.<br />

Essa diferenciação é histórica, nem por isso Dona Bernadete nega sua referência afroindígena,<br />

ao contrário, volta a entoar sobre os antigos:<br />

Todos aqui plantavam a mesma coisa, mas quando um não tinha farinha em<br />

casa pra comer ia à casa do vizinho, não tinha que comprar, tinha união,<br />

eram poucos, mas todos unidos. Se você tivesse uma dor ou estivesse doente,<br />

a vizinha ia pra sua casa cuidar de seus filhos, de sua casa, fazer comida,<br />

entendeu?(D. Bernadete, 2005).<br />

E logo vem uma história dessa vivência:<br />

Eu mesma, minha mãe me esperava [grávida] preocupada, pensando como<br />

ia ser quando eu nascer, foi quando ela recebeu um cesto de uma vizinha<br />

que morava ali onde hoje é o Maestro com tudo. Acontece que aqui a<br />

maioria era comadre, uma batizava o filho da outra.(D. Bernadete, 2005).<br />

Acreditamos que é nesse aspecto de realidade vivida, nas formas e modos de realizar a<br />

linguagem identitária que o africano-brasileiro se diferencia do neocolonizador ou daqueles<br />

cujas formas e modos de recriação de linguagens se realizam por vias abstratas, ou seja,<br />

reprimem as emoções para dar lugar absoluto à razão.<br />

43 Aquele que orienta sua vivência urbano-industrial pelas normas de poder do patrimônio material civilizador<br />

imperialista-colonial e se beneficia do produtivismo realizado pela força dos braços e gotas de suor do africanobrasileiro.


Pessoas como Dona Bernadete, que desfrutou do que a natureza lhe ofereceu no<br />

Cabula e convive com os sinais da modernização, vivem uma situação conflituosa de<br />

entendimento do que pode ser melhor para viver. De um lado, tiveram todos os mananciais<br />

constituintes da Mata Atlântica, do outro, têm os sinais do progresso que seduzem. Observese<br />

o que ela fala da natureza, da mata, da vivência, da coexistência:<br />

108<br />

Aqui tinha a lagoa da Vovó, não existe porque tamparam, uma amiga minha<br />

morreu lá porque era funda e ela foi pro fundo; às pessoas tomavam banho<br />

na beira, as pessoas lavavam roupa e, às vezes, se pescava.O horto era área<br />

de Sr. Firmino, seu Firmino era posseiro como meu pai. Ele era empregado<br />

da alfândega, tinha posses, tinha uma cocheira e gado, da vaca tirava leite,<br />

nestas terras tem o tanque do Prata, mas o Ibama plantou eucalipto. Esta<br />

área aqui era muito isolada porque dava impaludismo [malária], mas as<br />

pessoas daqui sabiam cuidar. (D. Bernadete, 2005).<br />

E com tanto entusiasmo, ao lembrar do que foi vivido, vai descobrindo sua mata<br />

existencial. Tivemos interesse em saber como as pessoas se locomoviam ali e como<br />

realizavam os partos, já que o lugar era isolado:<br />

A casa era feita de uma palmeira própria para casa. Nasci em casa de palha<br />

com paredes de barro, se chamava casa de sopapo. Pegavam o barro,<br />

faziam aquele manuseio [faz o gestos com as mãos], fazia o bolo e jogava.<br />

Primeiro fazia aquele gradamento com varinhas. Algumas madeiras<br />

buscavam em Mata dos Oitis e o transporte era encomendado, era tudo de<br />

burro, mula. Quem não tinha burro ia andando. Os partos. Tinham<br />

parteiras, ou aparadeiras, eram consideradas madrinhas ou mãe, se tinha<br />

respeito porque era uma pessoa que lhe colocou no mundo. (D. Bernadete,<br />

2005).<br />

Por outro lado, os ecos de Dona Bernadete apresentam as dificuldades que tinham os<br />

moradores para se locomoverem, como o Senhor Cosme já mostrou anteriormente, porém este<br />

é um dado que a faz ora acreditar que os sinais da modernização são bons, ora a achá-los<br />

angustiantes e desconfortáveis:<br />

Não tinha luz. A gente comprava facho. Eu mesma estudava na primeira<br />

série de ginásio dos Dois Leões, no Leopoldo Reis, quando terminava a aula<br />

ia andando até o Retiro e a gente comprava facho para iluminar pra<br />

estrada. O facho era feito de palha de nicuri ou dendê enrolado até parecer<br />

uma vela. Então, antigamente a gente saía daqui e se despencava pro Retiro,<br />

onde hoje é o Sesi, pegava o bonde, [Respira, inclina a cabeça pra direta e<br />

indica pra o início do Cabula]. O bonde só ia até o largo do Tamarineiro,<br />

mas só que para nós era mais fácil ir para o Retiro com o corta-caminho.<br />

(D. Bernadete, 2005).


Nesse momento, Dona Bernadete recria a linguagem de orientação espacial, brota um<br />

pequeno mapa constituído pela expressão simbólica usada por todos os cabuleiros e, com isto,<br />

não podemos dizer que eles não sabem Geografia como dizem muitos professores desta área.<br />

O que eles sentem é a dificuldade de conceber algo através de uma linguagem distante da sua<br />

compreensão do que ele vive que são os mapas criados pela geometria analítica do século XV.<br />

O mapa cartográfico vem a ser o espaço global, estéril e universal, ou seja, a referência de<br />

linguagem puramente sígnica do civilizador:<br />

109<br />

Dá-se, assim, nos albores da modernidade, aquilo que Schmitt 44 chama de<br />

nomos (palavra derivada de nemein; que significa tanto “dividir” como<br />

“apascentar”), isto é, “à medida que distribui e divide o solo do mundo numa<br />

ordenação determinada e, em virtude disto, representa a forma de ordenação<br />

política social, e religiosa”.(SODRÉ, 2002, p. 29).<br />

Contudo essa linguagem de orientação simbólica, plenamente orgânica por ser<br />

elaborada pelo hálito, respiração, gestos, olhares, não é considerada pela escola como uma<br />

possibilidade de natureza textual oral. Mas vamos a orientação de Dona Bernadete, que é uma<br />

forma de sabermos nos orientar no Cabula Antigo:<br />

Antigamente, o contato nosso era: descia ali a ladeira do Arraial, subia o<br />

São Gonçalo, aí chegava ao Retiro, lá tomávamos o bonde para ir pra<br />

Calçada e o outro até a Barroquinha. Lá na Barroquinha a gente pegava o<br />

bonde para cidade alta ou cidade baixa. Isto não era bom porque a gente<br />

tinha que andar, tinha que enfrentar muitos bois porque passava nestes<br />

caminhos a boiada que vinha da Br para chegar ao Retiro, aqui era estrada<br />

de boiada até antes de fazer a BR que cortou o Retiro do São Gonçalo, aí<br />

acabou o caminho, o contato daqui passou a ser Barreiras-Cabula.(D.<br />

Bernardete, 2005).<br />

Sr. Cosme fala sobre o comércio local:<br />

O armazém que tinha tudo era o de Lalau, em frente ao Maestro Wanderlei<br />

(atualmente é o Motel Êxtase), na entrada do Arraial era onde tinha um<br />

lugar chamado a Lagoa da Vovó, eu passava por ali para ir ao São<br />

Gonçalo, a gente só ia pro Retiro por ali, não tinha Ladeira do Cabula, esta<br />

foi construída depois. Então, a gente ia a Sr. Lalau, depois ia ao São<br />

Gonçalo no Armazém Correia, lá no Largo do São Gonçalo que hoje são as<br />

pedreiras do São Gonçalo, a gente ia lá pra Águia do Norte pro campo de<br />

futebol.(Sr. Cosme, 2006).<br />

44<br />

SCHMITT, Carl. El nomos de la tierra en el derecho de gentes del jus publicum europaeum. Madrid: Centro<br />

de Estúdios Constitucionales, 1979, p. 21.


Sr. Cosme continua falando sobre a ligação Arraial e São Gonçalo do Retiro:<br />

110<br />

Não tinha tanta separação como hoje, porque não existia a BR e a ladeira<br />

verdadeira do Cabula era aquela de cá onde a gente saía em frente à<br />

ladeira Marquês de Maricá, onde tem os conjuntos, subindo sai no Pau<br />

Miúdo. A gente fazia um único caminho porque não tinha BR. A BR cortou o<br />

Arraial do Retiro do São Gonçalo do Retiro, tanto sim que quem morava no<br />

Águia do Norte era registrado morador do São Gonçalo até o Retiro tudo<br />

era São Gonçalo, agora dividiu e não sei como ficou a parte de lá e a parte<br />

de cá.(Sr. Cosme, 2006).<br />

Quando Sr. Cosme e Dona Bernadete falam da expansão territorial do Cabula, eles não<br />

esquecem que a modernização chegou e imperou e que, em alguns momentos, teve que se<br />

negociar para que algumas famílias não fossem removidas do lugar onde viveram seus avós.<br />

O primeiro lugar de sinais de modernidade foi onde hoje chamam conjunto ACM, construído<br />

em 1969, não foi a <strong>Uneb</strong>, nem foi o conjunto habitacional Cabula I:<br />

É o seguinte: Antônio Carlos era o prefeito naquela época, era também<br />

ditadura, então foi desapropriada aquela terra, que era para fazer o<br />

Conjunto dos Bombeiros, porque tinha gente morando ali, mas ninguém<br />

pagava nada. Era para ser morada dos bombeiros, depois não sei por que<br />

cargas d‘água tirou a placa e ficou Conjunto ACM. Hoje ninguém conhece<br />

como Conjunto dos Bombeiros, só nós conhecemos porque morávamos aqui<br />

e vimos a placa aí. Outra placa foi no Maestro Wanderlei, ali tinha uma<br />

placa bem grande, mas como ia desapropriar até a Engomadeira, houve<br />

uma reunião da Igreja Católica, Padre Maurício com as comunidades, e a<br />

gente levou ao conhecimento de Roberto Santos, que veio até aqui e ele<br />

achou melhor se desapropriar aquela fazenda onde é hoje construído o<br />

Hospital Roberto Santos, assim tirou a placa daqui.(Sr. Cosme, 2006).<br />

Um dos assuntos que o Sr. Cosme fez questão de mostrar foram as vias de acesso ao<br />

Cabula, antes da modernização, inclusive as que o levavam até a orla de Salvador:<br />

Sobre a depredação do lugar:<br />

Os Pernambués era chão também, era barro e não tinha acesso para o<br />

Iguatemi, nem para a Avenida Paralela, tinha um caminho, mas era brejo.<br />

Eu ia jogar no Campo do Águia do Norte e nos Pernambués, nos<br />

Pernambués tinha areia alva. Agora, quem ia pro lado do Roberto Santos<br />

tinha um caminho que ia dar em Amaralina e pra Pituba e depois pro<br />

Pernambués, a gente saía aqui pra Amaralina pra ver puxada de rede de<br />

xaréu, até isto eu alcancei.(Sr. Cosme, 2006).


111<br />

Arenoso é Beiru, no lugar tinha muito arenoso e quando precisavam de<br />

arenoso: “Vamos pegar no arenos.”. Ai pegou Arenoso, mas conheci ali<br />

como fim de linha de Beiru, ali era um morro alto de onde se tirava muito<br />

arenoso. Outro lugar foi na entrada de Sussuarana, onde tem aquele<br />

buracão, ali tudo era arenoso, era tudo nivelado, era tudo certinho, mas não<br />

tinha controle. Hoje é que pra cortar uma árvore, é aquele problema<br />

todo.(Sr. Cosme, 2006).<br />

Sr. Cosme lamenta as perdas dos mananciais nativos do Cabula:<br />

Tinha muita coisa aqui, tinha muita madeira, pra fazer casa tiravam muita<br />

madeira daqui deste posto [aponta o horto], ele vai direto pra BR, hoje<br />

acabaram tudo. Eu andava aí e até hoje ainda ando, hoje já não é mais<br />

IBAMA, agora mesmo estamos fazendo uma campana pra fazer uma praça<br />

ai, então Dadá, Messias e outras pessoas já fizeram um mobilização porque<br />

já tem gente querendo vender, a prefeitura não liga pra nada, isto aí é dela.<br />

[..]. Só sei que está todo mundo invadindo aí, todo mundo morando e<br />

passando a dono. (Sr. Cosme, 2006).<br />

Por aqui se encerram os ecos de Sr. Cosme, ele deixa um recado à Razão de Estado de<br />

Salvador, um apelo para que cuidem do que restou de mata nativa do Cabula. Dona Bernadete<br />

também dá seu recado:<br />

Meu pai era um homem ignorante, quando digo que ele era ignorante é<br />

porque ele não sabia ler e uma pessoa que não sabe ler ignora muitas coisas<br />

da vida, mesmo assim no conceito dele estava nos educando [mostra o chão<br />

e bate forte com os pés como quem diz: aprendemos com ele a valorizar a<br />

terra nativa]. Nunca penso em sair daqui, mas precisava ser mais<br />

valorizada, uma vez mandei um e-mail pra Varela pedindo que, ao invés de<br />

quebra-mola, fizessem sinaleiras. Eu falo em reconhecimento porque já<br />

tenho esta idade, minha filha, aqui [respira forte]. Quando vem um carro...<br />

[faz gesto de susto brusco]. Quando não tinha ele [o quebra-mola], eu<br />

dormia melhor, hoje eu já não posso, tarde da noite, no silêncio, quando<br />

passa uma caçamba, chega estremecer e eu me assusto. (Dona Bernadete,<br />

2005)<br />

Assim como Dona Bernadete, Sr. Cosme e outros moradores se preocupam com a<br />

perda da mata nativa, da mata virgem do Cabula. Com estas conversas nos levaram a pensar:<br />

posso estar morando debaixo de um ou mais assentamento de divindade africana, pois a<br />

Estrada das Barreiras, trecho onde, hoje, fica a comunidade tradicional da nação Angola Viva<br />

Deus, o primeiro posto médico do Cabula, a igreja das Barreiras e a Cesta do Povo, foi uma<br />

das áreas encobertas por uma grande extensão de floresta da Mata Atlântica até o início da<br />

década de 70 do século XX.


Agora é Dona Valdelice que retorna para falar do comércio que abastecia este trecho<br />

Cabula-Barreiras desde 1960 até os dias atuais:<br />

112<br />

Minha mãe fazia compras no Beiru porque tinha muitas barracas, vendia<br />

frutas, vendia carne pesada na balança, açúcar, farinha, feijão, era num<br />

saco de papel, lembro que pesava e embrulhava e amarrava um cordão, que<br />

a gente chamava de barbante. Minha mãe comprava tudo no Beiru, lá<br />

sempre foi um lugar desenvolvido. (Valdelice, 2005).<br />

O que é apresentado como desenvolvimento do Beiru é uma organização políticoecnômica<br />

própria, pois, naquela época, o Beiru era a única comunidade do Cabula que tinha<br />

isto e que hoje vemos em quase todas, mesmo assim o Beiru é uma espécie de Baixa dos<br />

Sapateiros do Cabula. Agora, D. Valdelice entoa sobre a expansão do lugar com os sinais da<br />

modernidade:<br />

Agora hoje mudou, mudou, mudou, melhorou bastante a moradia aqui nas<br />

Barreiras, tanto aqui como no Beiru: aumentou mais, tem supermercados,<br />

lojas, que a gente comprava na feira, no largo ali no Beiru, aqui não tinha<br />

loja de calçado e roupas. Para comprar uma roupa melhor tinha que ir à<br />

Baixa dos Sapateiros. Eu lembro que chamavam a Baixa dos Sapateiros de<br />

Barroquinha, hoje a gente chama de Baixa dos Sapateiros, lá vendiam os<br />

balaios de calçados, roupas, a gente comprava assim. (Valdelice, 2005).<br />

Da mesma forma que ela elogia os sinais da modernização do lugar: lojas,<br />

supermercados, ônibus, escolas, também lamenta a falta dos sinais que constituíam as<br />

vivências comunais de sua infância, sem expressar saudosismo, mas críticas ao que vive<br />

atualmente, quase quarenta anos depois de sua chegada:<br />

Naquela época eu brincava e não tinha maldade, eu tomava banho no dique<br />

com meu marido, que na infância era meu amigo, com meu irmão e com<br />

vizinhos, eu ficava de calcinha, a gente brincava de se esconder, bater na<br />

lata. Hoje em dia não tem nada disto, hoje em dia as meninas não podem ter<br />

mais amizades, inclusive com os rapazinhos, porque têm maldade, violência,<br />

são meninos mal-educados que xingam, a criação de hoje os meninos não<br />

respeitam. (Valdelice, 2005).<br />

Neste momento, levando-se, pois estava sentada numa poltrona, e, de pé, caminha<br />

falando muito mais com o colo e os braços abertos como quem pega um recém-nascido do<br />

que com as palavras. Assim, gesticula como dramatizam as filhas de Oxum durante as<br />

cerimônias sagradas, e, em seguida, diz:


113<br />

Vou dizer: minhas filhas não tiveram a infância que eu tive. Eu vivia solta,<br />

eu vivia solta! [respira profundamente, e a angústia expõe a revolta do que,<br />

hoje, é vivido e os gestos de uma filha de Oxum se acentuam]. Eu vivia solta<br />

igual a um pássaro, voando, pegando e comendo frutas. É que aqui, no<br />

Cabula onde eu moro, tinham muitas árvores, muitos pés de frutas: mangas,<br />

oitis, goiaba, coco, jaca,...; então, minha mãe não comprava nada disto, isto<br />

tudo a gente colhia, né? [Faz um sinal de quem pegava no quintal do<br />

vizinho]. Colhia com as próprias mãos. Hoje, minhas filhas não acham nada<br />

disto, quem quiser chupar uma manga tem que comprar, porque não tem<br />

mais aquilo: subir na mangueira e tirar a manga. Então eu acho que<br />

antigamente era melhor nisso aí. (Valdelice, 2005).<br />

É sua preocupação com a alimentação das crianças que hoje depende exclusivamente<br />

do dinheiro. D. Valdelice faz questão de contar as aventuras por que toda criança que chegou<br />

ao Cabula na década de 60 passou, pois sua família, assim como muitas outras, viera do<br />

interior ou de outras áreas de Salvador cuja vivência fora também comunal quilombola:<br />

E entendo que antigamente a gente não pegava, chamavam de roubar, tinha<br />

um senhor aqui [aponta uma direção] aí em cima, Sr. Nezinho, já é morto,<br />

era proprietário de tudo isto aqui, de toda esta área aqui das Barreiras<br />

[mostra com o corpo o que significa esta área das Barreiras]. Ele colocava<br />

o cachorro atrás da gente, a gente ficava pendurada no arame. Então, hoje<br />

pra minhas filhas, pra os filhos dos meus vizinhos, da minha amiga, minha<br />

neta, eles vão ter que batalhar demais, tem que trabalhar, estudar e<br />

encontrar meios para adquirir recursos, hoje em dia não tem mais<br />

(Valdelice, 2005).<br />

Não pense que esse é um pensamento apenas de Valdelice, pois estes ecos simbolizam<br />

os gritos empalhados de uma maioria oprimida que nasceu e viveu na fartura da mata, sem se<br />

preocupar com o que iria comer amanhã, mas que hoje sabe que não irá encontrar ainda<br />

aquela árvore com frutos para colher e comer, aquele rio para pescar e banhar-se, aquele<br />

manguezal com crustáceos para se alimentar, aquela terra para plantar mandioca, colher e<br />

alimentar a todos da comunalidade.<br />

D. Valdelice nasceu em Buracica, um povoado próximo a Alagoinhas, no sertão<br />

baiano. Ela fala que nasceu num colchão de capim e foi criada respeitando os mais velhos:<br />

Eu fui criada assim: minha mãe tentava passar boa educação, boas<br />

maneiras de tratar os vizinhos e os idosos: “Bênção minha mãe, bênção<br />

minha tia, bênção Dona não sei quem. Como vai o senhor?”. Era assim;<br />

nunca virar as costas, nunca ficar mal-humorado, tinha que tomar a bênção,<br />

tinha que procurar saber como o outro estava e ajudá-lo. Minha avó<br />

plantava, na roça, mandioca, fazia farinha, mas a roça depois não deu<br />

certo, tinha época que colhia, tinha época que não dava nada, então viemos<br />

pra Salvador. Cheguei aqui e encontrei boas amizades, fomos casando,


114<br />

engravidando, tendo filhos e ficou aquela coisa de família, porque, às vezes,<br />

o vizinho é mais importante que um parente de sangue, né? Uma confiança<br />

como se tivesse um filho, um irmão, uma tia, ou até como se fosse a própria<br />

mãe. (Valdelice, 2005).<br />

Do que vimos em alguns depoimentos de moradores do Cabula que habitam nos<br />

conjuntos habitacionais, “nos prédios”, como falam os moradores que residem em ruas com<br />

casas individuai, fruto da ocupação territorial natural como aquela em que mora D. Valdelice,<br />

a força de união e ajuda mútua que possibilita cuidar da criança, do idoso, dos doentes, dos<br />

que se encontram nos perigos do uso de drogas, torna-se cada vez mais presente, não existe<br />

mais no lugar, mas Valdelice diz que existe, sim, o gesto de comunalidade:<br />

O vizinho, como um amigo de infância, tenho muitos aqui, minhas filhas<br />

também têm muitos assim, mais eu tenho mais. Gosto de minha vizinhança e<br />

não tenho nada a dizer, às vezes, tem um aborrecimentozinho, assim sem<br />

querer um ofende ao outro, a gente se aborrece e depois se esquece.<br />

(Valdelice, 2005).<br />

Estas são uma das formas de se entender, o que Marco Aurélio Luz atribui à noção de<br />

“comunalidade africano-brasileira”, e a que Narcimária Luz (2002, p.86) denomina<br />

“sociabilidade africano-brasileira”. São linguagens da socioexistência plantada pelos<br />

ancestrais africanos no Cabula que se encontram também além da “porteira pra fora” e tal<br />

como Mãe Senhora, Iyanassô Oxum Miuwa, orientou seus filhos e filhas na comunalidade<br />

tradicional do Ilê Axé Opô Afonjá, a adquirir sabedoria para manter a força de união, que é<br />

alimentada nos ritos de fortalecimento do axé, nos cultos às forças cósmicas e aos ancestrais,<br />

no espaço urbano, mães como D. Valdelice, Dona Bernadete, Dona Dadá também fazem o<br />

mesmo com seus filhos no cenário urbano-industrial.<br />

Quando fizemos uma aproximação do jeito de ser de D. Valdelice com o seu arquétipo<br />

ancestral Oxum é porque a entidade Oxum é o “Orixá que detém princípios femininos da<br />

existência, está relacionada às águas correntes, ao corrimento menstrual, à fertilidade e à<br />

riqueza” (LUZ, M.A., 1995, p.75). É também protetora das crianças deste o feto e o vai<br />

acompanhando até nascer e chegar à vida de adulto. É deste arquétipo que falamos e,<br />

observando a atuação e os movimentos dos corpos da pessoa que o possuem e que o<br />

expressam durante a comunicação. É algo que não está apenas na força da palavra, no sopro<br />

da vida, são gestos naturais:<br />

Têm adultos, às vezes, que gosta de aborrecer a criança e os adolescentes,<br />

estes não se dão respeito e depois querem ser respeitados, pois para ser


115<br />

respeitado tem que respeitar as crianças. Como, às vezes, os meninos<br />

querem brincar aqui no meio da gente, não tem outro local que eles possam<br />

brincar 45 , querem brincar, querem jogar uma bola, quer jogar gude,<br />

empinar uma arraia, dizem os incomodados que é zuada, às vezes os<br />

vizinhos adultos xingam 46 as crianças e lá vêm as crianças que dizem: “Vá<br />

pra isto assim, assim”, e, aí, a gente chama atenção, mas a gente sabe que é<br />

o adulto quem incomoda a criança, que incomoda o adolescente.(D.<br />

Valdelice, 2005).<br />

A mediação da linguagem, nos momentos de desentendimentos, entra em ação para<br />

apaziguar os ânimos de briga entre adultos, crianças e adolescentes. Quem tem poder de uso<br />

da palavra para promover a transcendência da existência social o faz: “Portanto, a palavra,<br />

para a comunalidade africana, configura-se como poder gerador da existência civilizatória,<br />

perpassando gerações, numa temporalidade infinita.” (LUZ, N., 2000, p. 102), desta forma,<br />

pessoas como, D. Valdelice mantêm a alegria e harmonia do lugar.<br />

D. Valdelice, além de falar do desrespeito dos moradores novos, que chegam ao local,<br />

para com as crianças filhos e netos dos que aqui já viviam, também fala da falta de lugar para<br />

brincar, inclusive ela nos pediu para colocar esta sua queixa, não sei por que, mas estamos<br />

aqui a fazer jus a quem muito merece:<br />

E continua:<br />

Aqui não tem onde brincar, na minha infância [uns 30 anos atrás] tinha um<br />

campo de futebol, um campo que era pura areia alva, assim olhe: [mostra o<br />

monte com as mãos], tinha fontes; uma para beber e outra para lavar, outra<br />

pra tomar banho, tinha o dique, nele o pessoal lavava roupa, mas vieram os<br />

prédios e jogavam os esgotos aí, aí tudo cai no dique. Aqui tinha muitas<br />

águas, muitos animais. (Valdelice, 2005).<br />

No finado Maurição [filho de Sr. Firmino] mesmo, ele era pai de meus<br />

amigos de infância e adolescência, a gentia ia pra lá brincar: ficava num<br />

jeguinho, olhando as crias que a gente gostava de ver, tinha muitos jegues,<br />

tinha cavalos, era tudo aberto. Ele dava banho nos cavalos e carregava<br />

água de lá embaixo nos barris no caçuá. Quem morava mais distante da<br />

fonte, pegava água no jegue, se carregava água num jegue. Tinha muitos<br />

animais, muitas árvores, muitas frutas. Hoje acabou tudo e os animais ficam<br />

sem ter como se locomover,estão cortando as árvores, queimando, tocando<br />

45 Há uma leve crítica à falta de espaço público para brincadeiras das crianças do Cabula, sobretudo na Estrada<br />

das Barreiras onde a área em que morou Sr. Firmino, um dos fundadores do lugar, foi desapropriada e está sendo<br />

invadida por casas comerciais.<br />

46 Nestes ecos, Dona Valdelice entoa muitas palavras da herança africana: xingam, zuada, traz também a arraia,<br />

uma simbologia de diversão da criança africano-brasileira. Narcimária Luz descreve uma situação que houve na<br />

Mini Comunidade Oba Biyi, primeira escola de educação pluricultural do Brasil localizada no Ilê Opô Afonjá,<br />

que aborda a relação da arraia, feita de triângulos, com Xangô, princípio de realeza, dinastia, de expansão<br />

familiar. (LUZ, N., 2000).


116<br />

fogo; elas [as cobras] se sentem ameaçadas, ai correm pra procurar onde se<br />

esconder; como o pessoal encontrou na semana passada uma jibóia, às<br />

vezes entregam para o IBAMA, às vezes matam pra comer, ai tem teiú,<br />

muitas aves, no outro dia chegou aqui um urubu, já viu? Ele ficou perdido!<br />

[ri levemente] É engraçado, de certa forma está tudo ameaçado. (D.<br />

Valdelice, 2005).<br />

Anteriormente, descrevemos esse espaço, onde fica a casa de Sr. Firmino. Faz tempo<br />

que os moradores da Estrada das Barreiras lutam para transformar este lugar num centro de<br />

cultura, arte e educação, numa praça de esportes e geração de fonte de renda para<br />

comunidade.<br />

Há certa simplicidade na sabedoria dessa senhora, o interessante foi quando lhe<br />

perguntei se ela poderia falar-me um pouco sobre sua vida no Cabula, seus laços de<br />

vizinhança, e ela me indagou: “Será que o que sei presta para seu trabalho”? Depois afirmou:<br />

“Acho que o que eu sei não serve para seu estudo”.<br />

Se seu conhecimento pode parecer banal aos seus próprios olhos, diríamos que ele é o<br />

que Maffesoli (2001, p. 165), chama de “enraizamento dinâmico”, é a memória social<br />

traduzindo a presença destes ecos de D. Valdelice, mostra que nossa experiência de pesquisa<br />

agrega outras experiências da realidade vivida.<br />

Ela não está nos dando uma entrevista para uma pesquisa, é como se ela relembrasse<br />

suas experiências como se estivesse vivendo-as, naqueles encontros, (foram uns cinco) em<br />

foram feitas as gravações,como também ela aproveita o momento em que tem a voz<br />

legitimada pela pesquisa para lançar seu apelo à coexistência. Observemos estes ecos de quem<br />

sabe da tradição ancestral africana e, muito mais, sabe que a forma de vida que arrebata o<br />

Cabula caminha para destruição destes sinais.<br />

Aqui mesmo no “Viva Deus” era tudo cercado de pitanga, tanto sim que, em<br />

final de ano, nas festas, tirávamos folha de pitanga para enfeitar a casa.<br />

Antigamente, não tinha piso, era chão de barro, aí pegávamos areia alva,<br />

que hoje é areia que reboca casa, pegava areia e jogava no chão de barro, a<br />

gente vinha com as folhas de pitanga e jogava. Dizia que era bom, que<br />

atraía fluídos bons, traz sorte e influências boas. Minha mãe mesmo<br />

enfeitava o jarro, fazia licor com as folhas, dizia que era muito bom, ela<br />

fazia muita ciência com a pitanga. (Valdelice, 2005).<br />

Ficamos por aqui com os ecos de D. Valdelice, uma africano-brasileira que, assim<br />

como Dona Bernadete, Sr. Cosme e outros moradores, se preocupa com a perda da mata<br />

nativa, da mata virgem do Cabula.


Uma outra pessoa que mostra sinais de descontentamento com a urbanização do<br />

Cabula é a professora Elairdes Costa Borges, inclusive expressa seus sentimentos de<br />

oprimida, de uma pessoa que escolheu vir morar no Cabula na década de 60, nos trechos das<br />

chácaras, próximo ao antigo Largo do Tamarineiro, onde hoje existem três shopings, mas que<br />

foi obrigada a migrar por falta do que ela veio buscar, uma vida na mata.<br />

Elairdes Costa descreve como presenciou a destruição das primeiras árvores para<br />

erguer os condomínios que ficam ao lado da empresa de telefonia Telemar:<br />

117<br />

Com a construção do condomínio veio um outro tipo de ar, era tudo de<br />

cimento e sofri fisicamente porque meu filho pegou uma alergia braba com<br />

isto. Com a construção daquele condomínio 47 que demorou, não foi assim<br />

tão rápida e com isto veio o progresso da construção de construção, de<br />

condomínio que logo veio, o Planalto, praticamente junto e com ele veio<br />

crescendo a população, veio crescendo o número de veículos. Esse<br />

crescimento veio rápido, logo [pára um tempo e se põe a lembrar de algo,<br />

enquanto isto esfrega as mãos uma na outra]. Veio na década de 70, meus<br />

filhos nasceram em 70. Aí foi muito rápido este progresso, a própria<br />

estrutura do bairro, principalmente para Silveira Martins, a principal via do<br />

Bairro, ela recebia mais carros, mais veículos, houve necessidade de<br />

aumentar transporte coletivo porque o fluxo foi maior de pessoas, o<br />

comércio foi crescendo. Foi tudo muito rápido [abre os braços e joga-os<br />

para baixo como quem estava cansada de falar, mas na realidade era a<br />

insatisfação de lembrar daquelas cenas]. (Profa. Elairdes, 2005).<br />

A professora Elairdes é vocalista de um coral, está-se iniciando na dinâmica<br />

Artebagaço, é pedagoga e leciona no sistema público de ensino médio no Cabula. Mas vamos<br />

a seu relato, a voz da professora está acelerada, demonstra indignação, perplexidade e com<br />

olhos arregalados, mãos esfregando, corpo inclinado, parece reviver as cenas de destruição:<br />

E as árvores foram sendo derrubadas, por conta disto, de repente, me vi<br />

dizendo: “Meu Deus, eu preciso sair do Cabula!”, Não sei por que, mas<br />

acabei me identificando, na realidade eu me identifico muito com mato e de<br />

repente me dizendo: “Eu preciso sair daqui!”, É porque já estava me<br />

sentindo sufocada, gosto do bairro é como se fosse um filho crescendo, mas<br />

de repente é hora da gente partir, não é? Com mais 25 anos morando, nisto<br />

aí já estava sufocada, houve um inchaço de tudo, é como se o lugar não<br />

suportasse mais aquela quantidade de veículo, de transporte, de pessoas<br />

(Profa. Elairdes, 2005).<br />

Neste momento, surge o paradoxo existencial da professora:<br />

47 Elairdes fala do segundo condomínio feito no Cabula; em termos de dimensões espaciais, fora o maior já feito<br />

no Cabula, é aquele em cujo trecho ficavam às chácaras, ao lado da Telemar e com o fundo para BR.


118<br />

Com o crescimento, veio o CETEBA – Centro Tecnológico da Bahia, que<br />

depois se transformou na Universidade do Estado da Bahia – <strong>Uneb</strong>. Eu<br />

trabalhei nela, estudei nela, então partilhei desta revolução. Durante o<br />

tempo em que morei, observei que as pessoas de fora do Cabula tinham<br />

preconceito com o lugar. Havia , sim, um grande preconceito, elas tinham<br />

medo de vir para aqui (Profa. Elairdes, 2005).<br />

Mas Elairdes não saiu do Cabula, mudou de lugar, pois antes morava numa chácara e<br />

depois foi morar num Condomínio em frente à comunalidade da Engomadeira, portanto pode<br />

conviver com os dois Cabula, um que se situa na Avenida Silveira Martins e outro na Estrada<br />

das Barreiras. Foi uma nova experiência, pois os vizinhos eram completamente diferentes<br />

daqueles que estavam próximos às chácaras.<br />

Com a mudança, as pessoas que chegaram, assumiram nomes como<br />

Tancredo Neves no lugar de Beiru não é? Então esta mudança de<br />

comportamento das pessoas se vê nos ônibus, pessoas de Beiru são<br />

diferentes de Mata Escura, que é outro barro, é diferente do Cabula VI, e<br />

muito diferente. No próprio condomínio que eu por último morei, vou lhe<br />

dar um exemplo: quando fui morar no condomínio, foi há 22 anos atrás, as<br />

pessoas que lá moravam vieram de outros lugares, mas tinham pessoas<br />

também daqui do Cabula que já moravam e adquiriram apartamentos; a<br />

própria estrutura do condomínio foi mudando e aí o que foi que observei –<br />

que muitas pessoas que moravam aqui tinham perdido o poder aquisitivo,<br />

eram pessoas que moravam na Pituba, no Itaigara, no Imbuí, mas foram<br />

perdendo o poder aquisitivo, nos anos 80, aquela classe média que foi sendo<br />

tragada e foram forçadas a virem para cá. Eu observei quando perguntava:<br />

– Onde você morava? –“Eu morava no Itaigara.”; –“Eu morava na<br />

Pituba”. E, aí, vieram morar no Cabula, morrendo de medo e de repente<br />

foram-se integrando. Então, foi assim: de um lado, os nativos foram-se<br />

adaptando [aos novos] e, do outro lado, a quebra do preconceito que estas<br />

pessoas tinham, as pessoas dos bairros ditos melhores tinham daqui. (Profa.<br />

Elairdes, 2005).<br />

Foram longos os ecos de Elairdes Borges, mas necessários para nosso entendimento<br />

do que se constitui o Cabula hoje: um lugar que guarda as heranças da ancestralidade africana,<br />

resguarda os códigos de valores de vida comunal, mas também é aquele que tenta unir<br />

tradição à contemporaneidade trazida pelos condomínios habitacionais, pelas edificações de<br />

empresas, supermercados, escolas, faculdades.<br />

É como mostra a professora Maria Cleuza, coordenadora pedagógica do colégio de<br />

onde emergiu o Artebagaço. Moradora do Cabula deste a década de 70, viera, atraída pelos<br />

sinais da modernidade, trabalhar no Colégio Roberto Santos, inaugurado em 1979, e morar no<br />

condomínio “Morada do Sol", na Estrada das Barreiras, trecho da Mata Escura, que há alguns<br />

meses se transformou em Avenida Dom Avelar Brandão Vilela: “Eu moro num, num


conjunto residencial, e..., a gente vê o quê? Diferenças que, às vezes, no mesmo prédio é uma<br />

dificuldade danada pra se obter um grupo solidário” (M. Cleuza, 2004).<br />

O Cabula de que estamos falando sobre socioexistência atravessou o curso da história<br />

erguida com as experiências vividas pelos ancestrais quilombolas, pelos ancestrais das<br />

comunalidades tradicionais que formaram a rede de alianças e implantaram o território<br />

político-social africano-brasileiro. Mas o estilo de vida dos condomínios não abraça o estilo<br />

de comunalidade plantado pelos ancestrais africanos: ”Dentro do condomínio se ensaia uma<br />

interação solidária, mas ainda é pouco, não é como no interior, aqui é cidade grande e as<br />

pessoas estão muito correndo, buscando e não dá para perceber o outro” (M. Cleuza, 2004).<br />

Então, além do aspecto de vida isolada que há nos condomínio, existem aqueles que<br />

buscam ajuda mútua, mas são tragados pelos sinais modernos – o individualismo e a<br />

homogeneização – sendo através desta forma que a modernização define o que é igualdade –<br />

uno e universal e acabou – como diz Maria Cleuza: “É cidade grande”.<br />

E como ela veio de Cachoeira para trabalhar e morar em Salvador há quase 30 anos, e<br />

no Cabula, não se adapta ao modo de vida moderno e vai tentando uma aproximação de vida<br />

comunal que ela chama de solidária.<br />

Ficamos por aqui com a dinâmica histórica de Cabula a cabuleiro. A história dos<br />

ancestrais nos oferece as pistas constituintes do patrimônio africano-brasileiro, dos sinais da<br />

socioexistência presente nos meandros da comunalidade e ocultada pelas iniciativas da<br />

política social do espaço hegemônico urbano-industrial, mas este é o caminho da experiência<br />

de um Odé, o caçador africano, aquele que conhece os hábitos da caça.<br />

Vamos entrar, agora, no cenário da experiência vivida pela autora da dissertação que<br />

descreve suas iniciativas tanto no espaço da mata quanto no espaço urbano-industrial. No<br />

próximo item, vamos conhecer o vivido no ventre da mata africano-brasileira. Siga-nos, caro<br />

leitor.<br />

1.3 VIVIDO-CONCEBIDO NO VENTRE DA MATA AFRICANO-BRASILEIRA<br />

A descrição do nosso cenário começa com a simbologia do ancestral Odé, caçador,<br />

manifestando sua saída do fundo da mata em direção ao cenário urbano-industrial, contudo,<br />

antes de sair do espaço “mata africano-brasileira”, uma autobiografia é incluída com o intuito<br />

de destacar o quanto nossas iniciativas e participação criativa, inclusive como educadora e<br />

pesquisadora no âmbito do Artebagaço Odeart, são atravessadas pela nossa inserção comunal<br />

119


no Cabula. Também os outros fundadores do Grupo Artebagaço, Diego Nicolin e Benivalda<br />

Moraes, encontram-se neste espaço, apresentando traços biográficos que dão sentido social a<br />

esta experiência vivida.<br />

A autobiografia tenta expressar sentimentos que são próprios de quem vive nessa<br />

“mata”, caracterizando o firmamento da alteridade africano-brasileira, por isso a pesquisadora<br />

pode entoar suas críticas ao poder absoluto neocolonial expressando por meio de seu “Eu”<br />

entoante imbuído de sentimentos de coletividade artebagaciana quilombola, o que começa<br />

agora e na primeira pessoa do singular.<br />

Peço licença, caro leitor, para falar-lhe daqui de dentro da mata, foi aqui que pude ver,<br />

sentir e elaborar as experiências vividas pelos ancestrais africanos que foram transformados<br />

em “peças” dos interesses mercantis do colonizador, mas, nem por isto, se abateram e<br />

recriaram formas e modos de linguagens constituintes de cenários de liberdade existencial ou<br />

territórios de coexistência que, hoje, recriamos como continuidade civilizatória africana nas<br />

Américas.<br />

Daqui da “mata”, posso intuir que as insurgências africanas não param de acontecer,<br />

os ecos do passado encontram-se no presente, borbulhando como lavas do “vulcão” que nunca<br />

adormeceu, Eu, por exemplo, sou uma das vozes do Cabula que estarei compondo este<br />

cenário, contando minha história de vida para simbolizar a dinâmica de enfrentamento e de<br />

afirmação socioexistencial de um africano-brasileiro, desdobrando-se num cenário hostil e<br />

agressivo de negação de sua alteridade. Vamos começar?<br />

Nasci de parto natural em casa de sopapo coberta por telhas miúdas, com chão de<br />

barro batido, em julho de 1954, fruto do encontro de dois enamorados pela vida. A parteira<br />

que me aparou foi Dona Dadá, quer dizer grande irmã em iorubá, chamava-a de mãe e pedialhe<br />

a benção, este era um dos valores culturais de minha família e herança ancestral comunal.<br />

Minha mãe disse-me que nasci empelicada, envolta num saco protetor do feto, isto<br />

quer dizer ter sorte na vida na concepção da tradição africana herdada por minha mãe,<br />

também contou-me que chorei na barriga, em cultura de arkhé ou cultura de matriz africana<br />

isto quer dizer que eu posso saber meu futuro.<br />

Logo, por questão de cuidados com meu destino, minha avó Amorzinha, Deocleciana<br />

Ramos dos Prazeres, tia-mãe * de minha mãe, enterrou o saco e o umbigo no quintal de sua<br />

casa numa mangueira, que fica em Matarandiba um lugarejo da ilha de Itaparica. São estes<br />

atos que entendo como tradição, como “arkhé cultural” africana (LUZ, N., 2000, p. 106).<br />

Depois de um mês do meu nascimento, fomos morar na comunalidade do Tanque do<br />

Meio, em Salvador, numa casa alugada por meu pai, e que, ao mesmo tempo, era nosso pouso<br />

120


de morada e também de sustentação econômica. Com o tempo, meu pai tornou-se um dos<br />

mais respeitados negociantes varejistas de secos e molhados do lugar.<br />

O Tanque do Meio é uma transversal da Avenida San Martins, um morro que avista do<br />

outro lado o morro do Curuzu. Neste lugar, vi nascer os sons dos tambores do Bloco Afro Ilê<br />

Aiyê, cresci ouvindo os sons dos atabaques e do agogô (relógio em iorubá), das três<br />

comunidades-terreiros que fortalecem as inter-relações comunais das diferenças africanobrasileiras.<br />

Cresci correndo, brincando de picula e batalha de mamonas nas áreas permitidas do<br />

solo sagrado das comunalidades tradicionais, inclusive minhas vizinhas e companheiras de<br />

várias brincadeiras eram as filhas, sobrinhas e os parentes consangüíneos das Ialorixás. Estas<br />

Iya, ao transmitirem seus saberes herdados da arkhé cultural africana aos seus filhos<br />

consangüíneos, também os destinavam às outras crianças do lugar.<br />

O lugar é uma importante referência para dizer de si mesmo e de nós mesmos, uma<br />

referência que, aos poucos, vai sendo ocultada pelos freios das condutas educacionais do<br />

sistema público escolar, freios que avançam até homogenizar e recalcar corpo e mente, até<br />

silenciar o nosso “solo de origem” das experiências onde a alteridade africana se afirma e<br />

constitui seu nascedouro e pouso existencial.<br />

Na comunalidade, pude perceber o sentido orgânico do real vivido no arrepio de frio<br />

ou calor, no cheiro de suor dos corpos ou no olor das plantas, no sabor de lágrimas de alegria<br />

ou de tristeza pelo que sentia. Percebia-o também quando aprendi a ouvir a gargalhada<br />

expressa no movimento do corpo livre que corre, subindo e descendo ladeiras, no esconder-se<br />

atrás das moitas da intensa mata do entorno de si mesmo, no agachar-se para rastrear o colega<br />

ao brincar de esconde-esconde numa lúdica caçada da vida na infância. Foi assim que cresci,<br />

brincando de caçar, caçar sinais de vida, como uma criança aprendendo na mata a ser um<br />

Omo-Odé, filho de Odé.<br />

O Tanque do Meio, geograficamente, é um lugar que fica entre o Largo do Retiro e o<br />

Largo do Tanque, e sua entrada é uma ladeira curta e íngreme na Avenida San Martins.<br />

Subindo-a, chega-se ao largo onde muito brinquei e aprendi a coexistir na diferença.<br />

121


Figura 75<br />

Local do Antigo Largo do Tanque do Meio, 2005.<br />

Nesse largo, hoje pequeno porque perdeu o sentido de praça e foi ocupado pelo<br />

asfalto e casas, está o coração do Tanque do Meio e, bem aí, onde se encontra esta estrela, a<br />

cosmogonia existencial borbulhava e ainda borbulha, onde tudo acontecia e ainda acontece,<br />

porém renovado, e, não se enganem, as referências míticas, incansavelmente, animam o lugar.<br />

Ali morei até os 17 anos. Onde hoje se encontra uma casa branca de dois andares e<br />

outra com parede branca e telhas miúdas. Seguindo em frente, encontra-se o caminho que vai<br />

às “comunidades-terreiros” de Pai Marcos ou de Íaô, 48 como a maioria se referia, e a casa de<br />

Mãe Dofona (LUZ, M.A., 1995). 49 Mas à sua direita, após a parede branca com telhado,<br />

encontra-se outra casa branca, onde está a casa de culto de caboclo 50 de Mãe Helena, cujo<br />

quintal limitava com o nosso. Hoje, tudo isto está em seu lugar, menos minha presença. Até<br />

1972, quando daí sai para morar em vários lugares até chegar, definitivamente, ao Cabula em<br />

1976, o lugar era constituído por um cenário de mata: casas com quintais cheios de jaqueiras,<br />

mangueiras, araçazeiros, fruta de pobre, fruta-pão, mamoeiros, bananeiras. Logo, de fome não<br />

se morria. O que temos como imagem em 2006 é o que a foto mostra.<br />

Mostra que a mata foi substituída por um cenário inerte de asfalto no lugar do chão de<br />

barro, de blocos de cimento das novas casas no lugar das árvores e plantas que alimentavam<br />

vidas. No lugar onde está a casa de cor branca com dois andares e seu entorno, situava-se a<br />

48<br />

Iyawo – em ioruba – significa noviça, iniciada na cultura nagô. Ver em SANTOS, Juana Elbein. Os nagô e a<br />

morte. Petrópolis: Vozes, 2002. P. 44-45.<br />

50<br />

Sobre o termo Dofona, quer dizer: “a mais velha” na ordem de iniciação no barco. Já “Barco é uma palavra de<br />

origem jeje e caracteriza a ordem de iniciação e os graus hierárquicos estabelecidos no processo ritual.” (546<br />

547). Ou seja, o barco é composto por várias Yawô, a primeira é dofona ou dofono.<br />

50 “Não poderíamos deixar de mencionar a existência dos chamados candomblés de caboclos, que cultuam os<br />

espíritos indígenas na forma tradicional africana Bantu de homenagear os donos da terra, fundadores de um<br />

território.” (LUZ, M.A., p.529).<br />

122


venda de Seu Manuel, meu pai, no fundo da venda estava outra casa com um imenso quintal,<br />

que era onde morávamos e onde, por muitas vez, cacei passarinhos e borboletas.<br />

É interessante dizer que, na comunalidade Tanque do Meio, a força de atuação da vida<br />

comunal girava em torno deste pequeno largo e das comunalidades de cultos africanos e<br />

africano-brasileiros. Nesta efervescência de vida, fui crescendo e aprendendo a respeitar o<br />

espaço da alteridade, onde ora via as rodas de capoeira, o samba de roda nos domingos ou em<br />

dias festivos, do terno de reis, do bumba-meu-boi, nego-fujão, corrida de saco, entre outras<br />

festividades.<br />

Os festejos eram organizados por Seu Mané Dedé, um negro alto e forte com mais de<br />

70 anos, que “falava nagô”, era assim que diziam os mais velhos. Acredito que poderia ser<br />

uma língua africana iorubá: “Há quarenta anos atrás, a língua franca mais falada na Bahia era<br />

o Nagô” (SANTOS, D.M.; SANTOS, J., apud. LUZ, N., 2000 p. 102). Mas não era apenas<br />

Seu Mané Dedé quem falava Nagô, pois outras pessoas mais velhas “trocavam língua” com<br />

ele, cotidianamente.<br />

Seu Dedé preenchia sua existência com a arte de esculpir estatuetas, atabaques,<br />

tambores, pandeiros, máscaras, bandeirolas, apitos, mané-gostoso (bonecos), estandartes,<br />

entre outras recriações de arte própria da vivência africano-brasileira..<br />

Seu Dedé era uma das pessoas mais idosas do lugar, era também quem recriava e<br />

organizava as brincadeiras para a meninada: quebra-pote, corrida de saco, pau-de-sebo, cabracega.<br />

Eu era sua fiel auxiliar, pessoa de confiança na guarda dos enfeites e materiais de arte,<br />

boa parte do que tenho como concepção de arte veio de Seu Mané Dedé.<br />

O seu trabalho com arte tinha um sentido de realização e de afirmação existencial,<br />

pois, quando organizávamos os eventos, ele esquecia a idade expressa pelas queixas das dores<br />

na coluna e nas pernas e saltitava transbordando de alegria a comunalidade, provocando a<br />

comoção necessária para o envolvimento de todos que realizavam os contínuos palcos dayó<br />

(alegria em iorubá), alegria expressa nos eidos que caracterizavam o ethos africano.<br />

Essa referência de arte da comunalidade onde cresci se realiza com o elemento estético<br />

Odara, porque há beleza que expressa dayó, (alegria) e torna o fazer artístico em algo bom e<br />

útil à vida pessoal e à existência comunal, porque o recriar de uma festividade africanobrasileira<br />

tem sabor de esculpir a própria existência, pois Odara é a vivência comunal<br />

africana:<br />

123<br />

Portanto, toda cultura africana de origem Nagô é Odara. Ritualmente, todos<br />

os elementos estéticos visam magnificar o sagrado e estão relacionados aos


124<br />

conteúdos e às estruturas de uma determinada visão de mundo, manifestada<br />

esteticamente por intermédio do apelo a todos os sentidos (tato, audição,<br />

visão, paladar e olfato) que, numa síntese harmônica e conjunta, são capazes<br />

de transmitir conceitos. (LUZ, M.A., 2003, p. 72).<br />

É nesse contexto Odara que vejo a importância de Seu Mané Dedé no Tanque do<br />

Meio. Ele era o responsável pelo educar através da arte e me faz lembrar o que Marco Aurélio<br />

Luz descreve como concepção de pessoa idosa para o povo africano-nagô: “O conceito nagô<br />

para pessoa forte, com grande poder, é agbara, quer dizer agba = velho, ancião, e ara = corpo”<br />

(LUZ, M.A., 2003, p. 113). O idoso é aquele que detém o conhecimento acumulado e o poder<br />

de força para transmiti-lo.<br />

O reconhecimento do saber que detém o idoso lhe dá status de autoridade na<br />

comunalidade, estes são princípios de valores que se encontram no solo sagrado africano, aqui<br />

no Brasil, das comunalidades tradicionais. Por exemplo, em Vivaldo da Costa Lima (2003, p.<br />

169), vimos que “Os filhos geralmente acatam e obedecem às ordens de seu pai ou mãe-desanto<br />

51 sem protestos ou reservas” e, como sabemos, a Ialorixá é a maior autoridade do saber<br />

emanado dos orixás no espaço sagrado, pois detém os princípios de existência dos orixás.<br />

Na dinâmica existencial do Tanque do Meio, havia uma atitude de respeito aos mais<br />

velhos, havia também uma constante ajuda mútua e troca de experiências entre as mulheres.<br />

Geralmente, a liderança era de uma das mulheres mais velhas que, cotidianamente, estava a<br />

aconselhar as mais jovens, havendo um grande “entra e sai” da casa de uma para outra.<br />

É importante entender que esse “entra e sai” caracteriza o aspecto de família grande<br />

que havia no lugar. Estas entradas eram fáceis já que as portas das casas estavam sempre<br />

abertas, tanto as do fundo que nos levavam ao quintal quanto às portas da frente onde ficava a<br />

saleta de visita, não havia demarcação de lugar e hora dos encontros.<br />

Além do sistema de cooperação entre as mulheres que se ajudavam no processo de<br />

educar as crianças, todas tinham a liberdade de corrigir os costumes das crianças, inclusive<br />

puni-las quando em erro grave. Isto ocorria também entre os homens, jovens e adultos, no<br />

momento de realizar alguma atividade que beneficiasse um dos moradores. Lembro-me da<br />

união em forma de mutirão para levantar paredes das casas de taipa, um tipo de casa muito<br />

usado na década de 60, fora das áreas consideradas nobres, como Barra, Graça e todo o<br />

Centro de Salvador.<br />

51 Vemos como equivalente a mãe-de-santo a expressão em iorubá Iyálôrisà, ou Iyalorixá. Iyá quer dizer mãe +<br />

orixá =divindades, logo é mãe que possui o orixá.<br />

Em Marco Aurélio Luz (1995), Juan Elbein Santos (2002) e Narcimária Luz (2002).


O território, como solo de origem, 52 é assim: a comunidade promove a vida social, a<br />

criança cresce e aprende durante o trabalho e tudo isto tem sentido de arte como forma de<br />

realização das experiências vividas, embora se saiba que, muitas vezes, durante a atuação das<br />

alteridades, os conflitos podem instaurar-se. Tais conflitos são mediados pela linguagem da<br />

tradição oral, os ensinamentos e a aprendizagem cotidianos que afirmam a arkhé na dinâmica<br />

comunal.<br />

A comunidade tradicional costuma ritualizar tanto a sua origem quanto seu destino, e<br />

as outras culturas ditas arcaicas são as que não racionalizam, ritualizam.<br />

125<br />

Os gregos usavam apenas uma palavra: arkhé, que indica tanto o início<br />

originário, quanto o futuro que está adiante, somente como uma<br />

possibilidade, não como uma necessidade, pois existem vários futuros<br />

possíveis. (SODRÉ, 2003, p. 18).<br />

Mas é preciso saber que a ética que promove a coesão comunal africano-brasileira não<br />

nasce do solo racionalista ocidental, ancorado nos ideais democráticos da “arkhé civilizatória<br />

greco-romana” (LUZ, N., 2001, p. 23) que preservam a virtude e a glória como códigos<br />

relacionados à riqueza material, nem tampouco transformam o aprendizado diário em algo<br />

negativo delimitado por prêmios ou punições, ou em culpa, como fazem aqueles ancorados<br />

por valores judaico-cristãos.<br />

A virtude e a culpa são conceitos da ética ocidental que colaboram para a<br />

padronização do viver moderno, principalmente no sistema de educação oficial, cujo cenário é<br />

constituído de putrefações projetais positivistas “recheadas” de hipocrisias, que caracterizam a<br />

denominação comunidade escolar concretamente ela não existe, por ser “uma comunidade<br />

imáginária” (SODRÉ, 2003, p, 18), feita sob medida para atender aos interesses dos grupos de<br />

poder da sociedade neocolonial.<br />

Já a comunalidade do Tanque do Meio é o real orgânico, possui o que Maffesoli<br />

(2001) chama “enraizamento dinâmico” porque há uma ética que imprime sentido estético de<br />

liberdade de ser e de agir, e o respeito aos mais velhos – pai, mãe, avós, irmãos e parentes por<br />

vizinhança – e se alimenta dos vínculos constituintes da memória comunal.<br />

52 Solo de Origem. Título da entrevista feita por Marcella Punzo com Muniz Sodré. Nesta, o estudiosos do<br />

patrimônio civilizatório africano-brasileiro aborda o tema sobre a diferenciação cultural. (Sementes: Caderno de<br />

Pesquisa, lugar de arkhé, lugar onde se inauguram os princípios da existência humana e seus valores éticosestéticos<br />

culturais.


Sobre isso, lembro-me que um simples olhar de minha avó Amorzinha, de minha mãe<br />

e de um vizinho-parente 53 ou até mesmo o uso da respiração profunda, por parte de um deste,<br />

era suficiente para saber que havia feito algo transgressor do código de ética grupal.<br />

O interessante de observar a renovação dos valores ancestrais é que permitir ver esta<br />

realidade atualmente durante as entrevistas da pesquisa em casas de Omo-Orixá, quer dizer<br />

filho de orixás ou mesmo sacerdotisas que cultuam seu orixá, dono do corpo e da cabeça.<br />

Assim, observe, no cenário fora da comunidade litúrgica, em suas residências que um simples<br />

olhar era um ato de educar que exprime respeito, não era o medo ou temor que prevalece no<br />

cenário escolar.<br />

É a ética ancestral, aquela que, no empenho de unir o que houve com o que haverá,<br />

estabelece a relação visceral, que é o oposto do atual conceito de comunidade ou agrupamento<br />

de pessoas num lugar ideal sempre tranqüilo e demarcado pelo poder hegemônico.<br />

126<br />

Comunidade, por sua vez, não é um espaço utópico de trocas beatificadas,<br />

isenta de conflito e luta. É, antes, o lugar histórico possível em que a tradição<br />

se instala como uma dimensão maior que a do indivíduo singular, levando-o<br />

a reconhecer-se nela como algo diferente de si mesmo, como um grande<br />

outro que inclui tanto pedras, plantas, animais e homens, como a própria<br />

morte, com a qual se institui uma troca simbólica na forma de culto<br />

ancestral. (SODRÉ, 2002, p. 171).<br />

Quando a coesão do grupo ocorre por interesses monetários, valores materialistas,<br />

como acontece nos contextos comunitários modernos, em que a comunhão gira em volta dos<br />

bens capitais de cada pessoa ou de grupo social de poder, o conceito moderno de comunidade<br />

ergue-se com moldes rígidos do pensamento ocidental. Morar é submeter-se às decisões do<br />

poder como “melhor lugar”. Por isso, viver é a hipocrisia de conceitos modernos tais<br />

como:“estar bem” e “viver melhor” 54 que alimentam os discursos governamentais.<br />

Ressalto que entrei neste tema porque minhas lembranças vão para outro lugar da<br />

minha infância, fora do Tanque do Meio, foi quando aos 10 anos, após a morte de meu pai,<br />

tive a experiência de viver no centro de Salvador, no bairro do Tororó, com um casal de<br />

idosos: ela, maranhense descendente de português, e ele, judeu. Este casal sugeriu para minha<br />

mãe que eu fosse estudar em colégio público do Centro que eles consideravam os melhores.<br />

53 Com esse termo tenho a intenção de designar e caracterizar o parentesco por vizinhança, que nasce na<br />

comunalidade africano-brasileira para garantir o cuidar do outro, sobretudo da criança..<br />

54 O termo bem se refere ao ideal de vida urbana de Platão. A República (politéia)., Livro V, século IV, a.C. São<br />

Paulo: Martin Claret, 2006. O mesmo para Aristóteles no que se refere aos cidadãos. Política (Politikón), Livro<br />

III, século IV a.C.


Como vivíamos distante do centro de Salvador, o casal sugeriu que eu morasse com<br />

eles durante a semana e nos finais de semana e feriados iria para o convívio de minha família.<br />

Neste período de um ano, fui obrigada a rejeitar modos e forma aprendidos na comunalidade<br />

africana, ou seja: no lugar de tomar bênção, era bom-dia, no lugar de beber aruá bebia suco de<br />

uva, no lugar de comer efó, caruru, moqueca e vatapá, comia suflê, rocambole e lasanha.<br />

Enfim, a cada dia os hábitos criados nas vivências comunais foram sendo subtraídos<br />

por outros considerados pelo casal como civilizados, eles diziam: “agora parece gente”,<br />

sobretudo quando levava o dia inteiro calçada. A acontece que, no Tanque do Meio, eu vivia<br />

descalça brincando de picula, e até na escola da professora Noélia eu podia ficar descalça.<br />

Nessa situação, o entendimento de comunidade passou para a ordem dos conceitos da<br />

forma restrita, resumida em saber quem eram os moradores de cada casa da rua, fazer<br />

saudações tipo bom-dia quando passava por um vizinho e um leve abraço na missa dominical<br />

na hora sugerida pelo padre, “abraçai uns aos outros”. A noção foi substituída pelo conceito e<br />

pessoa passou a ser compreendida por alguém importante do lugar que detinha alto cargo<br />

público e elevado poder monetário.<br />

É neste ponto da mata que reservo um tempo para falar de recalque, pois até aqui não<br />

havia falado sobre isto, sobre as conseqüências negativas carimbadas no corpo e no espírito de<br />

uma criança africano-brasileira, na expressão “parece gente”. Na época, tinha 10 anos e não<br />

entendia que nesta expressão estava também resguardada a ideologia do racismo, criada para<br />

sobredeterminar a hegemonia branca da arkhé euro-americana que entrava no Brasil desde a<br />

década de 50, chegando à década 60 com mais vigor. Estavam ali os valores que fazem muitas<br />

crianças descendentes do africano e do aborígine rejeitarem a si mesmas e sua comunalidade,<br />

local de sua pujança existencial.<br />

Convém dizer que sou filha de um descendente de africano, nascido e criado numa<br />

roça de Cruz das Almas, município do Recôncavo baiano, um brasileiro quilombola que veio<br />

a Salvador expandir sua existência e começou como vendedor de um doce chamado quebraqueixo<br />

e, logo depois, transformou-se em dono de venda, comerciante de secos e molhados e<br />

pai de cinco filhos. Meu pai era chamado pela população do Tanque do Meio de Seu Manuel<br />

da venda.<br />

Meu pai, Manuel Bernardino de Sena, faleceu aos 33 anos, em 1963, com tuberculose<br />

adquirida na frieza dos bueiros sujos e escuros de quem recebia o aluguel que ele pagava em<br />

troca de um pouso para o exausto corpo que apenas descansava da lida diária, mas era o que<br />

ele podia pagar.<br />

127


Minha mãe, Dona Romilda Maria de Sena, filha de negro com aborígine Tupinambá<br />

de Itaparica, nascida na Rua do Canal em Itaparica, era uma brava mulher que, aos 29 anos de<br />

idade, ficou viúva com a incumbência de criar cinco filhos num crescente cenário de valores<br />

urbano-industriais da arkhé “euro-americana”, (LUZ, N., 2002, p. 80). Isto foi difícil porque a<br />

“ordem para o progresso” foi de destruição das fontes mananciais (manguezais e mata) de<br />

coexistência para erguer, nos lugares depredados, suas estruturas inertes de canalização de<br />

bens monetários.<br />

Para ultrapassar os obstáculos socioeconômicos, minha mãe desdobrou-se com os<br />

saberes culinários aprendidos na comunalidade, que são os quitutes da África: acarajé, abará,<br />

queijadas, cocadas, como possibilidades de geração de renda para sobrevivência, uma<br />

vivência de produção econômica recriada das vivências dos ancestrais africanos durante a<br />

colonização, que se renova e estende-se aos dias atuais.<br />

Antes do falecimento, meu pai expandiu bastante seus “negócios” comerciais. A venda<br />

de Seu Manuel simboliza muitas outras que, até hoje, representam uma inserção de produção<br />

comunal africana no espaço urbano-industrial e constitui uma possibilidade de expansão<br />

existencial da família africano-brasileira na comunalidade.<br />

A venda não era apenas um meio mercantilista, uma forma abrupta de acumular bens<br />

de capital por parte de Seu Manuel, era um lugar de “ganho” (Cf. LUZ, M.A., 1995, p. 470)<br />

com características de pouso de lazer e de discussões sobre políticas sociais do Brasil. Mesmo<br />

pequena, tinha entre seis a sete anos lembro-me bem das discussões.<br />

Lembro-me, nitidamente, do cenário: era um balcão que separava o espaço de meu pai<br />

do espaço dos outros companheiros de prosa, tinha tamboretes com homens sentados a beber<br />

ou recostados nas paredes, em seus efervescentes diálogos sobre a política socioeconômica<br />

opressora da “Razão de Estado” (LUZ, N., 2000, p. 30), que representa e defende as<br />

ideologias neocoloniais.<br />

Falavam da política JK 55 e do automóvel que ali não chegava, pois as crateras que<br />

separavam as casas de um lado ao outro, ao longo da única rua, só permitiam cadeiras como<br />

improviso de transporte para levar os adoentados à Avenida San Martins, onde pegavam uma<br />

condução. Ressalto que, nesta época, o presidente era Jânio Quadros, mas J K era o tema.<br />

55 Juscelino Kubitschek (1956–1960). Presidente responsável pela instalação do capital estrangeiro no País, ou<br />

modernização econômica. Na realidade, o que houve foi a invasão da cultura imperialista americana em todos os<br />

lugares da vida urbana, que se aliou aos existentes valores europeus.<br />

128


Neste ínterim, senhoras, moças, crianças entravam e saíam com compras nas mãos,<br />

poucos levavam dinheiro, mas tinha um caderno de anotações de “fiado” e outro caderno de<br />

anotações de doações que meu pai fazia àqueles que não tinham recursos para pagamento.<br />

Lembro-me que as discussões aferventavam-se entre os homens quando os temas eram<br />

novos interesses recalcadores do neocolonizador, trabalho forçado e pouco remunerado para o<br />

africano-brasileiro, privilégios governamentais ao “burguês” ou falta de escolas.<br />

Foi nesse espaço da mata “cabuleira” que pude perceber que, há tempos, os pais<br />

acreditam no modelo neocolonial de escola pública, que este é o lugar e o caminho de<br />

expansão de seus filhos. Os pais acreditam que os filhos precisam ter acesso a “uma boa<br />

educação” através da escola oficial, tal como pensava meu pai. Mas o que seria mesmo uma<br />

boa educação?<br />

Naquela época, poucos pais e mães liam e escreviam na imposta língua oficial, o<br />

português. Meu pai, por exemplo, mal sabia ler, mas sabia fazer muito bem contas complexas<br />

de memória, suas anotações eram por questões de honestidade com o comprador, que era seu<br />

vizinho. Já minha mãe concluiu o curso de ginásio, fez formatura, tal como exigiam as<br />

normas escolares, com colação de “grau” e tudo mais.<br />

Meu pai via sinais de nossa expansão social através dos saberes da escola Já minha<br />

mãe sabia que era o lugar de adquirir conhecimentos para obter status social, mas me 56<br />

advertia: “Não é porque você alisa o banco da ciência que vai empinar o nariz para mim, não<br />

é? Lembre que somos nós quem lhe assegura vida”, (fazia um gesto com o dedo<br />

caracterizando um círculo e depois apontava para o chão, mostrando a comunalidade e a<br />

família). “Abra o olho, viu?”. E esticava um dos olhos para baixo.<br />

Sábias palavras! Estas pareciam que anunciavam o futuro, de fato deixei-me<br />

influenciar e, às vezes, pensava que existia uma verdade absoluta e que esta verdade estava na<br />

episteme racionalista do Ocidente, presente no livro didático. Contudo a comunalidade com<br />

suas possibilidades territoriais, tinha sinais viscerais que me trazia de volta as referências<br />

civilizatórias comunais. De fato, nunca deixei de acreditar que, pela via de elaboração própria<br />

das vivências comunais, se realizava o conhecimento, assim estou aqui a usá-la.<br />

Na realidade, fui pela primeira vez à escola aos 4 anos acompanhando minha irmã e<br />

mais velha de sete anos, que iniciava ali seus estudos. A escola era da comunalidade do<br />

Tanque do Meio, comecei os estudos com esta idade porque chorava nos braços de minha<br />

mãe que levava minha irmã à escola. Por este motivo, a professora Maria carregava-me ao<br />

56 A mim, porque fui, dos seus cinco filhos, a única a ultrapassar o primeiro grau de escolaridade, todos pararam<br />

neste ponto. São os netos que seguem os estudos, mesmo assim com muita dificuldade financeira.<br />

129


colo, dava-me um papel e lápis e, assim, comecei a rabiscar e fui ficando entre os outros.<br />

Minha mãe contava-me que consegui ler primeiro do que minha irmã, aos cinco anos de<br />

idade.<br />

Professora Maria era idosa, tinha seus 60 anos, sua voz era rouca e branda, lembro-me<br />

vagamente da escola, mas sei que era uma ampla sala como uma mesa comprida tendo dois<br />

bancos em cada lado com capacidade para dez ou mais crianças e lá fora tinha um longo pátio<br />

com uma árvore e uma gangorra, balanço. Professora Maria faleceu, logo depois, fomos<br />

estudar com a professora Noélia, que me colocava sempre de castigo por ser muito inquieta e<br />

como já lia, 57 que entre meus vizinhos era uma raridade, fazia logo a tarefa e ficava<br />

transitando entre os demais colegas.<br />

Com professora Noélia, aprendi a lidar com o espaço-tempo do outro, a respeitar mais<br />

o grupo, embora na função de líder nos trabalhos comunais de festividade, junto com minha<br />

mãe e Seu Mané Dedé, estes ensinamentos fizessem parte da dinâmica educacional do lugar.<br />

Ressalto que fui intuindo o que era a dinâmica educacional comunal no convívio com<br />

minha avó Amorzinha, que era professora e diretora da única escola de Matarandiba na ilha<br />

de Itaparica, isto até os inícios da década de 60. Com Dona Amorzinha, não só aprendi a ouvir<br />

algumas “histórias de Nagô” (era assim que ela chamava), mas aprendi a apreciar o<br />

movimento de vaivém da maré, o borbulhar dos pontos de mariscagem, os olhos da população<br />

de caranguejo, aprendi a usar o jereré (rede para pegar siri), enfim, a caçar também no mar.<br />

Aprendi a perceber a mudança de tempo através da escuta da natureza: revoada dos<br />

pássaros, agitação do mar, mudança do vento vindo para terra no lugar de ir para o oceano,<br />

como também aprendi que educação, em Salvador, era ler e escrever na língua do branco.<br />

Lembro-me que minha avó tinha uma palmatória na mesa segurando os papéis, mas<br />

nunca senti o toque no meu corpo, era um símbolo de impulso a ler e escrever, tarefa chata<br />

para mim e para minha avó, que assim dizia: “Eles só dão valor a quem sabe ler e escrever.”<br />

Ler e escrever não era o nosso grande obstáculo. Como já havia dito, com o<br />

falecimento de meu pai, sobreviver no contexto mercantilista urbano de Salvador era bem<br />

mais difícil, sobretudo porque, depois que meu pai morreu, minha avó adoeceu e minha mãe<br />

teve que trazê-la da ilha de Itaparica para viver conosco em Salvador e isto foi desarmônico<br />

para todos.<br />

Mesmo assim, minha mãe estava sempre sorridente, contando e dramatizando histórias<br />

nagôs que minha avó lhe transmitiu e as histórias árabes das Mil e Uma Noites, o único livro<br />

57 Aprendi a ler em casa com minha mãe quando ela ensinava minha irmã Eunice. Eu era a segunda dos seus<br />

cinco filhos que tivera com meu pai, embora, depois da morte deste, passassem a ser sete filhos.<br />

130


de história que tínhamos e que ela lia, às vezes, para dormirmos. Além disto, gostava de<br />

cantar canções de ninar, gostava também de sambar: samba-duro, samba de roda, sambaraiado<br />

...<br />

É daqui da mata “cabuleira” que me lembro de seus ensinamentos nas vivências,<br />

mostrando-nos sua garra de mulher guerreira, filha e mãe, garra de quem aprendeu a lutar e<br />

entender que, após a morte, a vida continua, pois minha mãe viu dois caixões mortuários em<br />

sua sala com entes que foram ao órun 58 , mundo sobrenatural de meu pai, em 1963, e de minha<br />

avó, em 1964.<br />

Mas tarde em 1975, foi minha irmã mais velha, artista plástica e escultora, que morreu<br />

aos 23 anos vítima de atropelamento, mas, como minha mãe dizia – “Não deixo a peteca<br />

cair”, e continuou com a espada em punho lutando. Ademais, a morte é elaborada pelo<br />

africano de outra forma que no mundo ocidental. Para mim mãe, as forças dos entes que<br />

foram para o órun têm o sentido de renovar a afirmação da alteridade para lutar contra o<br />

recalque cultural.<br />

E não deixava de lutar, de maneira que para aliviar seus “apertos” financeiros e das<br />

mulheres da comunalidade, minha mãe fazia “caixas” 59 , uma outra referência de produção<br />

comunal criada pelos ancestrais: “Nas juntas ou caixas de empréstimos, que visavam<br />

estabelecer fundos para pagamento do resgate através da aquisição da carta de alforria, e<br />

outras necessidades...” (LUZ, M.A., 1995, p.485), estava outra forma econômica de inserção<br />

africana, que não é muito diferente de hoje.<br />

As dificuldades de viver do africano-brasileiro não acabaram com a Abolição, ao<br />

contrário, o desrespeito aos valores de sua cultura pode ser percebido nas políticas públicas<br />

educacionais que são ancoradas nas perspectivas positivistas que procuram deslegitimar a<br />

tradição, aculturar, embranquecer, torná-la sincrética, considerando-a “primitiva” e “atrasada”<br />

(LUZ, N., 2000) e provocando, assim, a desigualdade e exclusão social, principalmente no<br />

cenário escolar, onde os privilégios aos apadrinhados do poder submetem o aluno ao vazio.<br />

Fui à escola pública, aos sete anos de idade na segunda série. O colégio era Antônio<br />

Bahia na Avenida San Martins, hoje é Rubem Dario 60 ; já da terceira à quinta série, cursei no<br />

58 Na concepção de existência Nagô: “O orun é um mundo paralelo ao mundo real que coexiste com todos os<br />

conteúdos deste. Cada indivíduo, cada árvore, cada animal, cada cidade etc. possui um duplo espiritual e abstrato<br />

no orun; no orun habitam todas as sortes de entidades sobrenaturais” (SANTOS, J., 2002b, p. 54).<br />

59 “Caixa” uma espécie de poupança sorteada, na qual um grupo de pessoas (limitado) vai depositando toda<br />

semana, ou ao mês, ou quinzena, a mesma quantia, por certo tempo (2 meses, 1 ano...). A dinâmica da caixa tem<br />

uma ordem de recebimento do ponto (número correspondente do ganhador) feito por um sorteio antes de iniciar<br />

o pagamento.. (LUZ, M.A., 1995, p. 485).<br />

60 Creio que estas mudanças de nomes sejam maneiras de demonstrar a arrogância do poder: destrói o que o<br />

outro já fez pelo simples fato de firmar o absoluto poder que tem sobre tudo e todos.<br />

131


colégio Abrigo do Povo na Liberdade. Nestes colégios, pude sentir os diferentes sinais que<br />

caracterizam a educação que minha avó dizia: um conjunto de normas rígidas<br />

comportamentais, leis, língua, religião e arte, ditas como conhecimento sobre a vida, cuja via<br />

de elaboração era a abstração pura.<br />

E tem mais: era comum soarem dos lábios convictos de minhas professoras palavras<br />

que enunciavam a escola como lugar para o exercício da cidadania: – “Vocês vêm à escola<br />

aprender a ser cidadão e encontrar a ideologia do saber”. Enfim, apenas sei que saí da escola<br />

sem saber o que era ser cidadão, também nunca encontrei a dita ideologia.<br />

E como ecoa Narcimária Luz (2002, p.76):<br />

132<br />

O ato de educar nas sociedades impregnadas pelos valores industriais é<br />

submeter os sujeitos ao espaço e tempo de produção, ao consumo, é aprender<br />

a acumular riqueza monetário-financeira, aprender a TER.<br />

Na realidade havia uma preocupação com o futuro do estudante, certamente<br />

preparando-o para o “perfil” do operário.<br />

Com efeito, a direção apontada era o ingresso na indústria, pelo menos os incentivos<br />

ao estudo eram justificados no preparo ao trabalho e não no preparo do ser humano para os<br />

relacionamentos socioexistenciais, como apresentavam as professoras da comunalidade do<br />

Tanque do Meio e minha avó Amorzinha, em Itaparica.<br />

E continua Narcimária Luz (2002, p. 78): “A existência das gerações que vivem os<br />

valores da sociedade urbano-industrial, estará ancorada na estruturação da identidade do homo<br />

industrialis. Aqui, a existência será reduzida à racionalização do mundo do<br />

trabalho/produção/consumo”. E, para quem é criado na tradição da comunalidade, estes atos<br />

constituem um “estado de violência” (LUZ, N., 2002, p. 84) 61 .<br />

Concordo inteiramente com o que diz Narcimária Luz. Realmente, ao terminar o<br />

primeiro grau, minha maior preocupação era entrar no mercado de trabalho, pois, de um lado,<br />

minha mãe já estava cansada do trabalho exaustivo, ora no tabuleiro de acarajé, ora nas<br />

grandes panelas preparando refeições para trabalhadores da construção civil e marmitas<br />

dietéticas para particulares; de outro, eu era a mais velha de todos seus filhos, portanto seria a<br />

única que podia ajudá-la enquanto meus irmãos cresciam e esta é a grande violência.<br />

Fiz meu primeiro grau numa lida dura, pela manhã estudava no centro da cidade, pela<br />

tarde, alfabetizava 20 crianças da comunalidade, além disto, à noite, três vezes na semana,<br />

61 Mais adiante, estaremos falando sobre o que Narcimária Luz denomina “estado de violência” , quando<br />

abordaremos a temática do currículo como lei que regula a tirania escolar.


alfabetizava 10 adultos e, nos intervalos, cuidava dos rendimentos do comércio de minha mãe:<br />

caixa, balanço das compras, baixa de material, enquanto minha mãe e irmãos cuidavam da<br />

culinária. Mesmo assim, nunca deixei de transmitir meus saberes aos vizinhos.<br />

Quando passei a ensinar aos adultos no Tanque do Meio, era na época do Mobral<br />

(Movimento Brasileiro de Alfabetização), contudo meus vizinhos desconheciam o acesso ao<br />

Programa de Alfabetização Nacional ou não queriam ir à escola, pois eram pais e, muitos,<br />

grandes marceneiros, pedreiros, quituteiras, e não viam a escola como lugar de respeito a seus<br />

saberes. O certo é que alfabetizei, gratuitamente, pessoas que poderiam ser meus pais, na sala<br />

da casa de minha mãe.<br />

Foram duras jornadas: pela manhã, ia ao colégio, no centro da cidade, o Colégio<br />

Severino Vieira. Os ônibus eram cheios e, quando chovia, tinha que levar sapato e meia<br />

colegiais num saco plástico e uma garrafa de água para lavar os pés, pois passava pelo<br />

lamaçal. A partir das 14h, começava a alfabetização das crianças, algumas tinham minha<br />

idade, 12 a 14 anos.<br />

A necessidade de ensinar as primeiras letras às crianças e adultos do lugar, aos 12 anos<br />

de idade, não foi uma escolha, foi uma motivação do sentido da ética comunal introjetada nas<br />

vivências deste lugar. Havia carência de pessoas que soubessem ler e escrever com vontade de<br />

transmitir este saber. Apenas sei que, ainda criança, comecei a reflexão sobre o paradoxo<br />

existencial: ser professora na comunidade e aluna da escola pública da “cidade”.<br />

Além do mais, o local tinha poucas pessoas que liam e escreviam o português oficial,<br />

tinha também muitas crianças precisando de professor comunitário, foi assim que comecei,<br />

em minha casa, a transmitir os conhecimentos dos primeiros códigos da língua portuguesa<br />

escrita 62 para outras existências africano-brasileiras.<br />

É neste ponto da “mata”, caro leitor, que se encontra minha primeira experiência de<br />

professora. Declaro, agora, que, neste período, comecei a ocultar minhas referências de<br />

criança para obter o sinal de respeito que tinham as professoras Maria e Noélia. Tive que<br />

realizar muitos sacrifícios, mas creio que valeu a pena, pois todos aprenderam a ler e não<br />

desistiram.<br />

Creio não ter sido uma professora severa, pois minha mãe me orientava neste aspecto:<br />

– “Não seja severa demais”, assim me dizia, para acalmar meu ânimo e motivar-me nesta<br />

busca. Era muita responsabilidade, pois não queria ser como minhas professoras da escola<br />

pública: arrogantes, altivas.<br />

62 É o mesmo que alfabetizar, evitei o uso da palavra porque teria que admitir haver analfabetos, cujo sentido<br />

político não é o mesmo de dizer que é a pessoa que desconhece o código porque tem outra cultura.<br />

133


Minhas inspirações para a função de professora foram: minha avó Amorzinha, as<br />

professoras Maria e Noélia, pois com elas pude aprender que o distanciamento do outro criava<br />

rejeição, recalque 63 e gerava o medo, como houve comigo em relação às minhas professoras<br />

da escola pública. Pude aprender a observar melhor quem transmitia o saber e colher deste<br />

olhar o fruto da comunicação que favoreceu nosso diálogo durante as aulas.<br />

Por outro lado, pude compreender que ler e escrever em português era tudo que as<br />

crianças e adultos do Tanque do Meio mais queriam alcançar e não era porque eles<br />

considerassem importante esta meta, mas por reconhecer que era a condição para sermos<br />

considerados “humanos” e “civilizados” pelo ethos ocidental.<br />

Sem ler e escrever, vivem muitas comunidades que se ancoram na “tradição oral”<br />

(BÂ, 1982, p. 183) 64 , coexistem e expandem seus saberes, por via do diálogo inaugurado pela<br />

força da transmissão da palavra acompanhada do hálito e da respiração.<br />

Esta experiência educacional desdobrou-se até o término do segundo grau, quando<br />

tivemos que sair do Tanque do Meio, pois a casa que morávamos era de aluguel. Meu pai teve<br />

planos para comprá-la, mas com o falecimento tudo mudou. Em 1972, saí do Tanque do Meio<br />

e fui morar na Fazenda Grande do Retiro. Neste lugar, na Igreja Católica da Vila Natal,<br />

ministrei algumas aulas de Redação para jovens, enquanto isto buscava emprego para efetur o<br />

pagamento da pequena taxa de inscrição do Vestibular.<br />

Enquanto os obstáculos econômicos impediam a continuidade dos meus estudos,<br />

recriava e realizava outras estratégias como: fiz vestibular para a Escola Técnica Federal da<br />

Bahia, sendo aprovada para o curso de Instrumentação Industrial. No final deste curso, tentei<br />

entrar em várias indústrias, entre elas a Petrobrás e a CEMAN – Central de Manutenção de<br />

Camaçari, mas, embora fosse aprovada, nunca fui chamada ao trabalho. Depois, fiz cursos de<br />

aperfeiçoamento no SENAI – Serviço Nacional da Indústria, mas continuei sem emprego.<br />

Em 1976, fui morar no Cabula, o que não foi uma novidade, pois desde seis anos de<br />

idade, quando morava no Tanque do Meio, já passava finais de semana, feriados longos entre<br />

o São Gonçalo e o Arraial do Retiro em casas de tios. Aliás, após os oito anos, minha diversão<br />

63 Cabe esclarecer que o termo ideologia do recalque se origina das elaborações de Marco Aurélio Luz,<br />

inclusive no seu livro Cultura Negra e Ideologia do Recalque (1983), onde o autor, utilizando-se de uma<br />

estratégia multidisciplinar realizou uma combinação de conhecimentos, enfatizando as estratégias de<br />

desmistificação para afirmação das territorialidades africano-brasileiras que vencem os obstáculos da<br />

subjugação.<br />

66 Tradição viva. In: História da África: metodologia e pré-história da África. São Paulo: Ática, 1982. Sobre a<br />

tradição, refiro-me à dimensão muito mais ampla que os domínios da fala, da linguagem, que é uma das<br />

referências, mas é uma noção que “Fundada na iniciação e na experiência, a tradição oral conduz o homem à sua<br />

totalidade e, em virtude disto, pode-se dizer que contribui para criar um tipo de homem particular, para esculpir a<br />

alma africana” (BÂ, 1982, p.183).<br />

134


era caçar passarinhos e colher frutas no Cabula com um grupo de amigos da comunalidade<br />

Tanque do Meio. Minha definição por morar no Cabula foi pela oportunidade que tivemos de<br />

comprar um pedaço pequeno de terra na Estrada das Barreiras, onde vivo até hoje, porém em<br />

outra casa. Nessa época, já ganhava algum dinheiro na informalidade e ajudei minha mãe a<br />

pagar o pedaço de terra.<br />

Em 1979, fiz diversos cursos na área de saúde, sendo o último de um ano e meio,<br />

Curso Técnico de Enfermagem, onde consegui a primeira assinatura da minha carteira do<br />

trabalho na rede COT – Clínica Ortopédica e Traumatológica, em 1980. Nesta empresa, levei<br />

seis anos, saí porque não suportava mais ver tantas perdas físicas e psicológicas irrecuperáveis<br />

sofridas por africano-brasileiros com mutilação nos corpos e na alma.<br />

E o pior é que muitas destas pessoas, sempre homens, culpavam-se por não ter<br />

conseguido superar os obstáculos dos estudos impostos pelo sistema público escolar, esta era<br />

rotina da clínica; viver a experiência dos lamentos de muitos destes homens que, em meio à<br />

dor da perda de parte do corpo, pilheriavam: – “Tá vendo, João, não quis estudar, viu no que<br />

deu?” O que desconhecíamos, tanto eles quanto eu era que ali estávamos vivenciando um<br />

grande desrespeito humano, pois éramos e somos herdeiros de planos educacionais que<br />

insistem em nos desqualificar para que outros se mantenham como superiores culturalmente.<br />

O projeto educacional vigente insiste em divulgar o estereótipo de inferiorizado do<br />

africano-brasileiro como se fosse referência de diferença: “Essas formas de práticas sociais,<br />

representações e percepções constituem o ponto de sustentação e referência das ideologias<br />

teóricas colonialistas e neocolonialistas” (LUZ, N. 1994 p. 20), que, por sinal, têm a escola<br />

como o mais forte palco de fortalecimento destas ideologias apoiadas pelas políticas públicas.<br />

Foi na Universidade Federal da Bahia que fiz o curso de Graduação em Letras<br />

Vernáculas com Francês. Ressalto que diálogos com Dr. Jorge Lima, neto do poeta Jorge de<br />

Lima, autor de “Esta Nega Fulô”, e o apoio do Dr. Elpídio Luz e do Dr. Nilson Ramos,<br />

ambos médicos ortopedistas da Clínica Ortopédica da Bahia, impulsionaram-me a ultrapassar<br />

os obstáculos durante minha vivência como estudante da Universidade.<br />

As dificuldades eram várias, neste ínterim, ao mesmo tempo em que era mãe de uma<br />

filha, trabalhadora em hospital e filha de uma mãe que levou um ano em coma, tinha que me<br />

fortalecer para ultrapassar as barreiras gigantescas. Mas o vulcão não deixava o fogo apagar,<br />

nem muito menos os ogé deixavam de tocar aos meus ouvidos. Em 1986, minha mãe falece<br />

aos 56 anos de idade, e, nesse mesmo ano, para terminar o curso, pedi demissão do hospital e<br />

sustentei-me dando aulas particulares, rendimentos do fundo de garantia, e fui levando.<br />

135


Nessa época, indagava-me: se é de trabalhar na área de saúde, que mata rapidamente,<br />

não seria melhor trabalhar em educação que mata lentamente; quem sabe, nas lacunas da<br />

linearidade dimensional, não possa fazer algo por alguém ou com alguém que mude o sentido<br />

de morte? A partir deste questionamento, resolvi trabalhar apenas em educação.<br />

De 1986 a 1989, como militante do Diretório Acadêmico de Letras, participei da<br />

montagem de peças, com a direção e produção de Michele Del Vecchio, apresentadas no<br />

Teatro Santo Antônio da Escola de Teatro da Ufba, e comecei a resgatar um pouco do<br />

“vivido-concebido” na infância e adolescência no Tanque do Meio.<br />

Acontece que, desde que passei a morar no Cabula, em 1976, percebi que as<br />

festividades desdobravam-se nas igrejas católicas, as relacionadas a tradição africana<br />

desdobravam-se nas comunalidades tradicionais, mas não havia o sentido de praça que<br />

promovia a comoção e favorecia a elaboração das vivências comunais que existiam no<br />

Tanque do Meio.<br />

Durante o período em que fiz o curso de Letras dediquei-me às tarefas relacionadas à<br />

arte em educação, buscando um sentido de realização existencial no ato de educar. Pude, na<br />

Associação dos Moradores da Vila II Irmãos, na Estrada das Barreiras, no Cabula, recriar um<br />

curso de Redação para vestibular e concurso publico aos sábados, direcionados a jovens, e<br />

também pude trabalhar em colégios da rede particular com turmas do curso fundamental,<br />

lecionando língua francesa, e do ensino médio, lecionando língua portuguesa, tudo sempre<br />

regado pela arte.<br />

Entre 1998 e início de 1990, atuei como estagiária do Proesp – Programa de Educação<br />

do Servidor Público da Ufba, uma das vivências em educação em que pude colher muitos<br />

frutos, pois comecei a apropriar-me de algumas noções sobre políticas educacionais nos<br />

encontros em que elaborávamos e apreciávamos as atividades educacionais.<br />

Foi em início de 1990 que conheci Diego Nicolin, que se tornou meu marido, e, nos<br />

meados desse ano, começamos os trabalhos em educação. Juntos, contribuímos para a<br />

transformação de um espaço ocioso, palco para discursos de políticos partidários em época de<br />

eleição, em uma escola para crianças de 3 a 10 anos, na Vila II Irmãos no Cabula, foram mais<br />

de 100 crianças acolhidas, compreendendo os turnos matutino e vespertino.<br />

Para mantermos a estrutura gera, criamos um sistema de ajuda mútua entre os<br />

comerciantes do lugar: cada comerciante se responsabilizava em doar uma pequena quantia<br />

referente à quantidade de criança que pudesse ajudar, para outros havia a ajuda na merenda<br />

escolar.<br />

136


Com a ajuda financeira, que era arrecadada pela professora mais antiga do lugar e que<br />

ali ensinava, pagávamos os gastos com luz e água, a contribuição de um salário mínimo para<br />

cada uma das três professoras e compras do material escolar produzido pelas professoras; não<br />

usamos livro didático, houve até quem quis doar, mas preferimos recriar as tarefas.<br />

Também, em 1990, entrei na rede pública de ensino. Na ocasião, estávamos<br />

implementando as ações da escola da comunalidade, sendo Dona Lourdes, a professora mais<br />

antiga. Conseguiu ficar à frente da escolinha por quatro anos, depois o sistema começou a<br />

decair por falta de constância da ajuda. Não sei como se encontra, atualmente, a escola, nem<br />

sei se ainda existe, pois iniciei uma nova caminhada, a trajetória Artebagaço Odeart.<br />

Por aqui, encerro a descrição de minhas vivências na “mata africano-brasileira”. Com<br />

este tema, abordei o universo da minha trajetória de vida, tentando destacar a força da<br />

presença mítica que anima a linguagem estética da comunalidade africana. Acredito que,<br />

desta forma, a arte pode ser compreendida como a linguagem da possibilidade de afirmação<br />

existencial no contexto de racismo que recalca o africano-brasileiro.<br />

Nesta história, as referências estéticas Odara caracterizam, claramente, a arkhé<br />

civilizatória ou códigos de valores da tradição mítico-ancestral plantada no lugar. Com efeito,<br />

as realizações de Seu Mané Dedé, minha avó Amorzinha e minha mãe certamente são da<br />

tradição africano-nagô, pois Seu Dedé falava nagô, minha avó e minha mãe contavam-me<br />

histórias de nagô que lhes foram contadas por minha bisavó, de quem não sei o nome, apenas<br />

o apelido, Menininha. Bem, aqui encerro minha fala e retomemos, agora, a voz da pesquisa.<br />

Figura 76<br />

Janice Nicolin, 2006<br />

Realmente, todas essas referências histórico-sociais constituem o cenário de metáfora<br />

“mata africano-brasileira” e simbolizam o território político-social de resguardo da tradição<br />

mítica ancestral Odé, a força guerreira transplantada da África à Bahia pelos Axipá e<br />

referência mítica, guia dos caminhos que nos conduziram, primeiro ao encontro de Janice com<br />

137


Diego, depois com Beni para fecundar o território da experiência vivida Artebagaço Odeart, e,<br />

por fim, ao encontro do Prodese que tornou possível a experiência concebida Artebagaço<br />

Odeart.<br />

É bom esclarecer, caro leitor, que esta descrição simboliza muito mais do que a<br />

história de vida da pesquisadora, ela transcende ao aspecto do “mito” individual porque traduz<br />

a trajetória da luta quilombola realizada por inúmeros africano-brasileiros. Aqui, neste<br />

cenário, encontram-se tanto os obstáculos que, por mais de dois séculos (falamos dos Nagôs),<br />

temos conseguido ultrapassar, quanto as estratégias de afirmação que desmistificam as<br />

referências negativas do recalcamento ideológico de inúmeros africano-brasileiros.<br />

Assim como trouxemos as referências autobiográficas de Janice Nicolin, traremos, a<br />

partir de agora, as referências biográficas dos outros fundadores do Grupo Artebagaço, Diego<br />

Nicolin e Beni Moraes. Com esta atitude, buscamos ampliar o cenário de conhecimento dos<br />

constituintes históricos e político-sociais que possibilitaram o encontro dos três, a ponto de<br />

compor a forma social e político-pedagógica de linguagem artístico-cultural Artebagaço<br />

Odeart..<br />

Sendo assim, seguiremos a hierarquia constituinte da vivência, por isso, primeiro<br />

serão os ecos de Diego que representam o que a sua vivência do passado até chegar ao<br />

Artebagaço. E seguimos este caminho porque Diego, em 1991, foi a segunda pessoa a integrar<br />

os trabalhos iniciados por Janice Nicolin no colégio em 1990:<br />

138<br />

Sou Diego Nicolin, nascido na Itália, na década de 60,em 61. Minha<br />

formação médio-superior é em Eletrônica, especializado em<br />

Informática, programação por assim dizer, mas, depois, debandando<br />

para as terras brasileiras, onde estou morando há 16 anos mais ou<br />

menos. É inútil dizer toda minha vida aqui, mas o que ela tem com<br />

relação à experiência Artebagaço é o meu envolvimento político<br />

estudantil, na Itália. E uma coisa que me deixava aborrecido na<br />

Itália, digamos mesmo com raiva, era em ver estes intelectuais, gente<br />

do movimento, fazendo um bocado de discurso, absolutamente<br />

“corretos”, mas política e absolutamente chatos, que só eles<br />

agüentavam entre eles. E os jovens, que deveriam ser criados para<br />

dar seguimento ao movimento, eram sempre deixados de lado, porque<br />

não entendiam o linguajar, falar complexo, falar politiquês e se<br />

afastavam sozinhos. Desde aquela época me dizia: “Não, não é assim<br />

que funciona, se a gente quer que os jovens” – “novatos” como<br />

chamavam na época. – se interessem e tomem consciência do que<br />

queremos e acreditamos, será preciso fazer algo como um discurso<br />

que os interesse e, no meu ver, o discurso que podia interessar<br />

politizando estes jovens era o discurso da ironia, era a sátira e a<br />

ironia ridicularizando as estruturas “dominantes”, para depois<br />

deixar que eles analisem como eram e como não eram determinadas<br />

coisas e [...].


Figura 77<br />

Diego Nicolin e Patrícia Barbosa. 2007 65<br />

O que Diego quis dizer é que, desde o início do nosso trabalho com o Grupo Nós, o<br />

Grupo Pré-Artebagaço, nosso discurso partia da vivência para a concepção da experiência,<br />

sobretudo não havia imposição da linguagem dele, que era um ítalo-europeu, às estudantes.<br />

No entanto, ao propor o uso da metáfora, não havia entendimento sobre o significado<br />

constituinte da linguagem figurada. Vejamos o que ele fala sobre sua vivência na mata<br />

africano-brasileira:<br />

139<br />

Quando cheguei, aqui, no Brasil me deparei com uma situação esquisita,<br />

percebi que algumas pessoas, pode ser até impressão minha, coisa pessoal,<br />

não estavam acostumadas com a metáfora, não estavam acostumadas com a<br />

sátira. De alguma forma, percebi isto: quando você propõe uma mensagem<br />

cujo texto possui “entrelinhas” 66 , não se entendem, é tal como diz uma de<br />

nossas peças: “Ele não vê o que está na cara, muito menos o que está<br />

escondido”. E a metáfora, a ironia e a sátira é a base desta nossa educação,<br />

que a criança deveria ser estimulada desde pequena para que isto nos<br />

permita depois, na vida adulta, a reconhecê-las no falar demagógico, em<br />

casos de discursos que nos são propostos. (Diego Nicolin, 1990).<br />

O que Diego apresenta como “o que está nas entrelinhas” consiste no modo de dizer<br />

que caracteriza o que está ocultado por razões de dominação da natureza criativa. Isto se deve<br />

ao fato de que, desde a infância, a escola retira da existência africano-brasileira e aborígine a<br />

possibilidade de uso destas expressões comuns no seu cotidiano comunal. Daí, a falta de<br />

percepção ampla das estudantes de Magistério, e a dificuldade de entender o que se<br />

encontrava oculto nas entrelinhas textuais, durante as conversas de sala de aula, era enorme<br />

obstáculo às nossas realizações cênicas.<br />

65<br />

Nesta imagem: Diego conversando com Patrícia Barbosa, uma das artebagacianas, que atuou no grupo entre<br />

1997 e 1998. Hoje, faz Graduação em Administração com Marketing. Este momento foi de um encontro<br />

realizado em dezembro de 2006 entre os membros antigos de 1997 a 2001 e os atuais de 2004 a 2006.<br />

66<br />

Entrelinhas: Diego que dizer o que está ocultado pelo autor, mas é entendível com um pouco de esforço de<br />

análise da realidade vivida.


E estamos falando do texto oral, de conversas, do contar a história cotidiana, do<br />

entendimento do uso irônico para expressar não apenas o que apresenta o texto escrito, mas<br />

também o que essas estudantes vivenciam na realidade aprisionadora da sociedade<br />

neocolonial. Na realidade o texto escrito na escola tem a função de padronizar a interpretação<br />

do estudante, ele é um grande condutor do processo de docilização do corpo da criança e do<br />

jovem:<br />

140<br />

Por todos os aspectos, a escola participa do processo de manipulação da<br />

criança, conduzindo-a ao acatamento da norma vigente, que é também a da<br />

classe dominante, a burguesia, [...] A literatura infantil, por sua vez, é outro<br />

dos instrumentos que tem servido à multiplicação da norma em vigor.<br />

Transmitindo, via de regra, um ensinamento conforme a visão adulta de<br />

mundo, ela se compromete com os padrões que estão em desacordo com os<br />

interesses do jovem. (ZILBERMAN, 1987, p. 20).<br />

Muito antes de Diego Nicolin abraçar diretamente a nossa causa, Janice Nicolin, em<br />

sala de aula, já havia observado este desconhecimento da linguagem metafórica. Na realidade,<br />

este é um dos conhecimentos que constam da lista 67 pedagógica elaborada a partir do que<br />

apresentam os livros didáticos como conhecimento não importante.<br />

Na realidade, a metáfora é considerada por Maffesoli (2001, p. 147) 68 como poderoso<br />

meio de se conhecer o que ele chama de “globalidade societal”, contudo é desconsiderada<br />

como importante referência de linguagem figurada pelas políticas pedagógicas, por ser a<br />

linguagem ampla e acolhedora de várias idéias.<br />

De fato, Diego sabia o que falava em relação às estudantes de Magistério, pois o fato<br />

de ficarem silenciadas por muito tempo na sala de aula retirou-lhes a sensação de liberdade de<br />

expressão natural, usada nas vivências comunais do Cabula, e por isso recusavam o<br />

entendimento da metáfora no lugar escola, porque acreditavam serem palavras “fora da lei”<br />

do padrão culto.<br />

Vejamos mais um pouco sobre o que dizem os ecos de Diego a este respeito.<br />

Enquanto isto, caro leitor, aproveite para ir conhecendo Diego. Ele não nos contou sua<br />

“história de vida”, mas o que estamos apresentando responde à indagação sobre a sua vida:<br />

Sem querer entrar na antropologia política tanto das mídias formais,<br />

imprensa, sobretudo da tv, quanto ao sistema educacional, no Brasil, sempre<br />

67 Conteúdo programático.<br />

68 “Sendo a imagem suspeita, sendo sedutora por natureza, ou sendo da ordem do lazer, estava fora de questão<br />

integrá-la à régia marcha que a razão instrumental empreendia para conquistar e dominar o mundo”<br />

(MAFFESOLI, 2001, p. 147).


141<br />

se guardou bem de ensinar isso [a linguagem figurada] ao povo, porque é<br />

uma arma poderosa nas mãos do povo. Reservou isto para as elites, para<br />

que o povo não tivesse conhecimento desta arma e logo começaria a<br />

desconstruir e destruir todas as coisas ditas, todas as mentiras, todos os<br />

fatos que nos são enfiados goela abaixo, assim ironizando e tornando-os<br />

ridículos, portanto tornando ridículas as instituições que as propõem.<br />

Portanto o uso da metáfora não é uma questão cultural.<br />

A metáfora é igual ao mito e por isso é universal e própria, e por isso se<br />

torna extremamente perigosa quando revestida pela ironia, quando utilizada<br />

com ironia, com sarcasmo. Às vezes, se você pensa “todo político é ladrão”,<br />

quando falo isto com ironia, com sarcasmo, diria assim: “É verdade, nem<br />

todo político é ladrão, como nem toda prostituta é santa” [solta um riso<br />

sorrateiro]. Isto destruiria muitos “lugares comuns”. Esse é um enorme<br />

território de lugares comuns que fazem parte do acervo cultural do povo,<br />

que muitas vezes não são completamente entendidos pela profundidade<br />

irônica que eles têm e por isto o poder guarda bem de não ensinar isto ao<br />

povo porque isto causaria graves problemas depois para eles. (Diego<br />

Nicolin, 2004).<br />

Diego Nicolin trabalhou conosco até 2001, portanto foram dez anos de Artebagaço,<br />

sempre dedicando-se aos trabalhos de direção e montagem teatral e a tradução dos textos de<br />

Giorgio Gaber Dario Fó e outros. Em alguns textos, teve a parceria de Janice. Em anexo,<br />

apresentamos alguns destes textos, enquanto outros fazem parte da estrutura dos capítulos<br />

desta dissertação.<br />

Acreditamos que o vínculo comunal que permitiu a fundação do Grupo Nós e do<br />

Grupo Teatral Artebagaço, se deve à herança cultural da arkhé civilizatória de Diego. Sua<br />

família tem uma história de luta na Itália, seu pai foi militante do Partido Comunista Italiano,<br />

teve parentes na Resistência italiana durante a Segunda Guerra Mundial, e, além disto, o solo<br />

de origem de suas referências culturais caracteriza um cenário fora do cenário urbanoindustrial<br />

da Itália, Diego nasceu em Vicência, uma pequena cidade da Itália, e sua<br />

adolescência e juventude transcorreram em Verona, uma cidade um pouco maior que<br />

Vicência.<br />

Atualmente, ele é professor de teatro e faz doutorado na Ufba, em sua insistente luta<br />

pelo processo de afirmação da liberdade da alteridade. Acredita que a arte teatral é a<br />

linguagem capaz de quebrar os grilhões verbais e não-verbais e que permite que a pessoa<br />

possa perceber o ocultamento dos seus direitos nas políticas públicas para que, a partir deste<br />

ponto, possa elaborar formas de romper com a desculturação imposta pelo etnocentrismo.<br />

Pelo tempo que passou conosco, acreditamos que, para Diego, o ator é o sujeito que sabe<br />

buscar os caminhos da caça, do mistério que está ocultado entre as diversas moitas da mata.<br />

No espaço da mata, ele foi provedor dos jovens artebagacianos.


Vamos, agora, conhecer um pouco sobre Benivalda Moraes, que gosta de ser chamada<br />

de Beni Moraes, cantora, compositora, mãe de Ana Beatriz, que nasceu em 25 de dezembro<br />

de 2001, ano em que o Artebagaço entra em silêncio. Beni é licenciada em História, leciona<br />

no sistema público estadual, na mesma unidade escolar em que Janice ensina, mas detalhes de<br />

sua vivência como uma africano-brasileira a própria Beni, a partir de agora, irá nos<br />

apresentar:<br />

142<br />

Nasci ali no Uruguai, nos Mares, fui criada por ali assim. Minha mãe se<br />

mudava muito porque morávamos de aluguel, não tínhamos casa própria e<br />

por isto estávamos sempre por ali, pela Calçada, Mares, Uruguai. Perto da<br />

adolescência, fomos morar nos Pernambués, que foi a melhor fase que<br />

passei, porque consegui me identificar com as pessoas. Lá, eu não fui<br />

discriminada; quando morava nos Mares e no Uruguai, sofria<br />

discriminação, inclusive por parte de meu pai.<br />

Meu pai deixou a casa quando eu tinha oito anos de idade, mas antes<br />

quando ele morava com a gente... Eu sou gêmea, então, eu me lembro de<br />

uma festa de Natal que ele me disse assim: – “coloque seu sapatinho na<br />

janela que Papai Noel vai lhe dar presente”. Fiquei feliz da vida! Mesmo<br />

sendo gêmeas, temos características diferentes, eu sou mais negra e minha<br />

irmã mais clara, e meu pai é considerad, pela sociedade brasileira, um<br />

branco e minha mãe, uma negra. Minha irmã puxou a ele e eu puxei a minha<br />

mãe, do lado de minha avó.<br />

No dia, acordei e estavam lá duas bonecas. Então, ele disse-me: – “Esta<br />

boneca é sua e aquela é de sua irmã. Minha irmã abriu a caixa estava lá a<br />

boneca loira de olhos azuis. Aí, eu abri a minha caixa e minha boneca era<br />

negra, cabelos crespos e parecida comigo. Eu me senti discriminada naquele<br />

momento, aí pela primeira vez, eu tive sentimento racista, não por ser<br />

racista, mas se passou alguma coisa diferente entre mim e minha irmã, que<br />

até aquele momento eu não tinha visto que era diferente dela.(Beni, 2005).<br />

Figura 78<br />

Beni Moraes, 2006<br />

Façamos uma breve reflexão, meu caro leitor, mas imagine uma criança com menos de<br />

oito anos tentar sozinha compreender esta realidade hostil, tendo como elemento provocador


da situação racista o próprio pai que, submetido às normas da “política ideológica do<br />

embranquecimento”, como diz Narcimária Luz (2000, p.65.), rejeita a própria filha e cumpre<br />

o rigor etnocêntrico.<br />

143<br />

Esses exemplos que exploramos abordam o estado de violência fomentado<br />

pelos poderes instituídos e, geralmente, invisível. Mas o que nos comove e<br />

nos angustia profundamente são as formas de reação manifestadas pelas<br />

crianças e jovens a esta violência institucionalizada que lhes impõe, no<br />

cotidiano escolar [...] (LUZ, N., 2000, p.84).<br />

Muito embora Narcimária Luz se refira à violência da escola, é preciso saber que o pai<br />

de Beni é o resultado do processo de educação institucionalizada ancorada na ideologia do<br />

estereótipo de subjugação das referências africanas. Continuemos com Beni (2006):<br />

Então quando fui morar nos Pernambués, a maioria das pessoas são negras,<br />

afro-descendentes, então, logo me identifiquei mais e fiquei mais à vontade,<br />

também fomos muito bem recebidas. É uma comunidade que a gente batia na<br />

porta da vizinha e pedia açúcar: “Tem um fermento aí vizinha? E – “Tem<br />

fermento, sim”. Entendeu? Até o bolo pra assar se faltasse gás ia de casa em<br />

casa e botava o bolo pra assar e assim também ela fazia. Então, eu me<br />

identifique nos Pernambués mais que em lugares que morei posteriormente,<br />

que foi no Rio Vermelho.<br />

No Rio Vermelho, foi um terror, porque estava rodeada da sociedade que se<br />

diz branca e minha família para eles tinha dois problemas: minha mãe era<br />

negra e desquitada, então diziam que minha era..., um termo muito chulo,<br />

muito pobre, porque era como se fosse à-toa, então diziam isto de minha<br />

mãe. E minha mãe era separada, mas não tinha ninguém e a vida inteira de<br />

minha mãe foi pra criar suas duas filhas, só isto. Então, de meu pai pouco<br />

me lembro, quando lembro é das cenas piores. Eu tenho medo de barata<br />

porque meu pai fechou a porta e desligou a luz comigo dentro e ficou do<br />

lado de fora. Meu pai era militar e ficou frustrado porque a própria entidade<br />

militar o botou pra fora, foi no governo Café Filho, minha mãe é quem conta<br />

isto, e Eduardo Gomes era ministro da Aeronáutica [...] Ele saiu da<br />

organização porque estava na lista porque foi expulso da escola pública e<br />

não atendeu às necessidades da educação da época [Há, há, há].<br />

É sobre a trajetória constituinte da existência de artista até chegar ao processo de<br />

fundação do Grupo Artebagaço que os ecos de Beni Moraes se põem a entoar:<br />

Eu me lembro quando eu era pequenininha, perguntaram-me certa vez: –<br />

“Beni, você quer ser o quê quando crescer”? Olhe que continuo pequena,<br />

com 1,55 m [diz isto gesticulando e falando baixinho] e não cresci ainda.<br />

Este crescer eu acho interessante. Bem, eu sempre dizia que queria ser atriz,<br />

eu não sei o que era, mas estava na minha cabeça que eu queria ser atriz,


144<br />

então olhava as novelas e achava aquilo lindo e maravilhoso. Hoje, eu<br />

detesto novelas, mas, para mim, na época, única atração era novela devido a<br />

minha condição social. Aliás, únicas atrações eram novela e praia. Eu me<br />

lembro que tinha uma novela chamada Duas Vidas, que tinha um menininho,<br />

aí eu ficava olhando como se estivesse no lugar, então ficava fantasiando.<br />

Antes de atuar no Artebagaço eu fiz, com oito anos de idade, a peça” Lobo<br />

Mau”, imagine ninguém queria ser o Lobo Mau, mas eu estava louca para<br />

entrar na peça que disse: “Quem vai ser o Lobo Mau sou eu”. Na peça<br />

“Chapeuzinho Vermelho”, eu disse: “ – Quero ser o Lobo Mau”. E fiquei<br />

orgulhosa quando botei a máscara do Lobo Mau e fiz tudo para pegar a<br />

vovozinha, achei tudo isto um máximo, fui estrela do momento.<br />

Já na Faculdade 69 fiz uma peça,e montei a peça Cangaço, com o intuito de<br />

arrancar do professor a nota máxima, pois ele era um professor que tinha<br />

dito que tinha uns dez anos que não sabia o que era dar uma nota oito<br />

quanto mais dez. Nisto prometi pra mim mesma que tiraria 10 pra minha<br />

equipe e tomei toda responsabilidade de montar a peça, texto e tudo enfim e<br />

disse: A nota que vou tirar e que vocês vão tirar vai ser dez, não vai ser zero.<br />

Fiz tudo, tudo: direção, música, fui um trovador, cartazes, como era a única<br />

coisa que não sabia fazer, que é desenhar, tive que apelar para meu noivo,<br />

meu marido agora, ele desenhou tudo.<br />

Então, levei tudo simplesmente prontinho para os colegas e eles só tiveram o<br />

trabalho de ler e fazer a encenação. Eu não fui atriz para fazer a direção do<br />

que construí na peça, fui autora, mas cantei e a música também era minha,<br />

foi justamente aquela música Ser Nordestina e estava bem encaixada dentro<br />

do contexto do cangaço. (Beni, 2005).<br />

Por esses caminhos, vamos colhendo os traços identitários que carregam o sentido<br />

pluricultural de arte do Grupo Artebagaço. Agora, Beni fala de sua arkhé cultural, seus<br />

ancestrais consangüíneos, do sentido de força herdada, dos contextos de hostilidade e<br />

subjugação, e o que também fez para não se influenciar pela dominação imposta pelos<br />

obstáculos constituintes do “recalcamento ideológico” (LUZ, M.A., 1994, p.15), que modifica<br />

a forma de pensar do africano-brasileiro e o faz rejeitar suas referências civilizatórias:<br />

Minha mãe, quando jovem, saiu de Maragogipe, porque ela é de<br />

Maragogipe. O nome de meu avô é João Morais. Engraçado, era branco dos<br />

olhos azuis, e casado com minha avó, que era negra, negra. Saí do lado<br />

negro graças a Deu, porque não ia agüentar ser de outro jeito, não e estou<br />

muito satisfeita como sou. Então, houve uma separação entre eles que não<br />

ficaram juntos devido ao preconceito sofrido por minha avó que, por ser<br />

negra, não foi recebida pela família dele. Nisto separou minha avó de<br />

minha mãe,que ficou com meu avô, num contexto de branco e tem mais, tem<br />

mais mesmo! Era complicado para ela ter que conviver com coisas do tipo:<br />

ficar procurando em Maragogipe, sem saber, quem era sua mãe e, ai,<br />

69 Licenciatura em História, pela Universidade Católica de Salvador, no turno noturno. Beni trabalhava no<br />

comércio e não pôde estudar na Universidade Federal da Bahia devido aos horários.


145<br />

alguém falou-lhe: – “Aquela ali é sua mãe”. Ela achou isto estranho porque<br />

o pai era branco e a mãe, negra: – “Como é que aquela ali é minha mãe?”.<br />

Mas ela nunca tinha atentado o detalhe da cor de sua pele, ela achava que<br />

estava no mundo e alguma coisa aconteceu para que de fato tenha nascido<br />

daquela cor, na verdade minha mãe é negra, mas até ela entender que esta<br />

era a sua mãe demorou muito. Na verdade, também meu avô tentava<br />

esconder minha mãe de minha avó. Depois de adulta é que minha mãe teve<br />

contato com minha avó e a conheceu.<br />

Outra situação foi quando ela morava com meu avô e ele arrumou uma<br />

outra mulher em Maragogipe. Quando minha mãe completou 18 anos, ela<br />

disse: – “Está na hora desta menina sair pra trabalhar”, praticamente meu<br />

avô colocou minha mãe pra fora, como minha mãe não podia ir pra casa da<br />

mãe dela, veio parar em Salvador com meu avô sustentando, mas veio morar<br />

em uma casa de negros, justamente, na casa do pessoal que não era parente,<br />

mas foi recebida como parente.<br />

Então resultado, foram eles que estavam inseridos no contexto arte e a partir<br />

daí a tia dela, como ela falava, trabalhava com Petrovich, trabalhava<br />

fazendo artesanato e doces para famílias, casais, etc. Toda parte de<br />

artesanato ela aprendeu ali no convívio com aquelas pessoas, mas aí chegou<br />

a hora da questão do teatro que ela se interessou e meu pai interferiu e<br />

minha mãe sofreu outro preconceito, pois ela tentou trabalhar com<br />

Petrovich, o nome da peça se não me engano era “Retorno d’alma”.<br />

Foi assim, ela conta sempre isto para mim: na peça, precisava de alguém<br />

para substituir e ela foi chamada, só que ela era negra e o personagem era<br />

loiro, ela teve que pintar o cabelo de loiro, porque no teatro não tem a coisa<br />

de ser daquela forma, você é negro e de repente pode se transformar seja lá<br />

no que for e, neste caso, foi só uma questão de pintar os cabelos e fazer o<br />

acontecer da cena. Bem, aí ela foi, fez o teste e foi chamada. Quem dirigia a<br />

peça era o próprio Petrovich. Mesmo tendo pintado os cabelos, meu avô<br />

João Moraes disse: “Olha, teatro é coisa de mulher ruim, mulher que<br />

freqüenta teatro...”.<br />

Bem, isto quer dizer não vai, imagine! Minha mãe jamais iria imaginar que<br />

Petrovich viesse se transformar no que foi, na época era década de 40 a 50,<br />

minha mãe é de 1934, na época era década de 50 e morava no Pelourinho, e<br />

o Pelourinho é o foco, exatamente, de todas as artes que você pode<br />

imaginar. Resultado ela ficou na maior frustração e meu avô disse: –“Não<br />

vai participar não”.<br />

Então é assim, na família de minha mãe do lado de descendência africana,<br />

por parte de minha avó, do outro casamento dela, ela tem um irmão que é<br />

músico; o lado branco não gosta de artes e não tem ninguém envolvido com<br />

artes, é o preconceito. Tudo que minha mãe aprendeu foi com a família<br />

Ataíde Bispo. Foi por isto que ela me apoiou nas artes. Ela primeiro me deu<br />

um violão, eu era doida para aprender a tocar violão. Quando fui morar no<br />

Rio Vermelho, o violão era minha única atração.<br />

Estudei no Colégio Manuel Devoto, lá tinha um teatro e eu ficava com os<br />

olhos brilhando quando olhava o teatro. Quando houve o primeiro festival<br />

de música do colégio, como não sabia tocar o violão, ficava olhando e<br />

pensava: – “Que lindo uma pessoa tocando violão!”. Foi ai que pedi um<br />

violão a minha mãe, ela juntou seus meses de salário, então eu disse: “eu


146<br />

tenho que ter o maior carinho por este violão”. E tenho, Jane, até hoje.<br />

Aquele violão tem décadas Ela pagou, com muito sacrifício, um pessoal para<br />

ensinar-me, só que não aprendi com o professor e terminei aprendendo<br />

violão com meus colegas da escola pública. Eles me ensinaram a tocar até<br />

quando deu, não sou grande violonista, mas dá pra quebrar o galho. A<br />

partir daí, comecei a participar do festival de música, fiquei em segundo<br />

lugar.<br />

Tinha um festival de música entre as escolas, concorri pelo Devoto, fiquei<br />

em segundo lugar, aí consegui ir ao Balbininho e, no Balbininho, de novo<br />

consegui o segundo lugar, fiquei chateada porque quem ganhou o primeiro<br />

foi Miss Mara, que hoje é Mara Maravilha, era a menina de Tia Arilma 70 e<br />

era conhecida por todos os jurados, não sei se ouve alguma coisa.<br />

Quando gravei o primeiro disco, tinha 24 anos, tinha uma música de um<br />

colega e uma minha chamada ”Mistério”. Fomos pra Recife, mais um<br />

sacrifício de minha mãe, ela tinha um apartamento em Cajazeiras e vendeu<br />

pra poder investir em minha vontade. Fomos pra Recife, pagamos a<br />

gravação e depois aquela luta pra correr atrás de emissora para tocá-las,<br />

mas, para tocar, precisava de um tal de “jabá”, que é uma “grana” que<br />

disponibiliza ao programador para que ele todo dia, toda hora, fique<br />

botando sua “musiquinha” [faz gestos da aspas], mas a gente não tinha<br />

condições para isto.<br />

Com isto, resolvi fazer Vestibular, minha mãe foi pedir ao dono do Curso<br />

Ucba 71 uma bolsa, também por isso tenho que amar muito minha mãe maís<br />

do que tudo... [fica muito emocionada e pára um pouco, respira, libera um<br />

olhar profundo lacrimejado e retoma o relato]. Aí foi pedir, ele concedeu,<br />

estudei, estudei, mas de novo não consegui passar no Vestibular, teve uma<br />

época que ela disse assim: – “Olha, se você não passar neste vestibular<br />

você vai ter que trabalhar nas casas dos outros” 72 , assim mesmo: – “Você<br />

pode procurar emprego que eu não vou maís lhe sustentar”. Isto era como<br />

se ela estivesse me dizendo: – “Você está brincando de Vestibular, está<br />

pensando em gastar dinheiro”. Bem, agora tá na hora, e comecei a pegar<br />

tudo que era livro e consumir, saía devorando tudo, chamei uma colega que<br />

sabia redação que ia, uma vez na semana, lá em casa. E minha mãe dizia: –<br />

“na minha família vaí ter que saír alguém para ir à faculdade, não é<br />

possível este negócio”. E tinha que ser eu? Tinha, porque Niva, minha irmã,<br />

já tinha arrumado o diploma dela chamado Diego Fernandes, meu sobrinho.<br />

Comecei a estudar, estudar, estudar. Um professor do Nobel 73 me<br />

perguntou: “Você vaí passar?”. Eu dizia: – “Se não passar, minha mãe tira<br />

meu pescoço fora. Neste Vestibular tenho certeza que vou passar.”. Passei.<br />

Foi a força de minha mãe. (Beni, 2005).<br />

Diferente de Diego, que se afastou do Grupo Artebagaço devido aos seus interesses<br />

políticos e artístico-culturaís, sobre o que não entraremos em detalhes por não ser assunto do<br />

70 Refere-se à apresentadora de um programa de televisão da Bahia, TV Itapoã, década de 80, da antiga rede de<br />

comunicação, Diários Associados: TV Itapoã, Rádio Sociedade e Jornal Diário de Notícias, etc.<br />

71 Cursinho preparatório para universidade, localizado no Canela, centro de Salvador.<br />

72 O sentido de outro refere-se ao processo de escravização neocolonial; “outros” são os novos colonizadores.<br />

73 Outro cursinho pré-vestibular também localizado no Centro de Salvador, na Fazenda Garcia.


nosso interesse de pesquisa, Beni Moraes continua no Grupo Artebagaço Odeart, pois o<br />

vínculo comunal, a relação visceral, a mantém imbricada nos modos de composição artística<br />

Odeart, que não é muito diferente dos modos Artebagaço, a diferença está na possibilidade<br />

que o Odeart tem de reconhecer, em seus modos e formas de linguagem, a simbólica<br />

gestualidade civilizatória e a organização socioexistencial africano-brasileira.<br />

Bem, chegou a hora de sabermos como foi feito o caminho que conduziu à experiência<br />

vivida no cenário da pesquisa, desde os caminhos que orientaram a metodologia, a vivência<br />

com a população da pesquisa, os instrumentos de coleta de dados constituintes do<br />

conhecimento elaborado. Siga-nos, caro leitor, vamos conhecer as “trilhas do vividoconcebido”.<br />

147


2 NAS TRILHAS DO “VIVIDO-CONCEBIDO”<br />

É estando desapegado em relação aos diversos ideais impositivos e<br />

universais, é estando enraizado no ordinário, que o conhecimento<br />

responde melhor à sua vocação: a libido sciendi. Por que não dizer: um<br />

saber erótico que ama o mundo que descreve.<br />

Michel Maffesoli<br />

Sem nenhuma dúvida, alguma que os primeiros sinais que brotam desta experiência de<br />

pesquisa foram as sugestões de leitura sobre o patrimônio civilizatório africano durante as<br />

aulas ministradas pela Dra. Narcimária Correia do Patrocínio Luz na disciplina Educação e<br />

Pluralidade Cultural, em 2003, um ano antes de iniciar oficialmente este estudo.<br />

Nossa abordagem metodológica está constituída do acervo do PRODESE - Programa<br />

Descolonização e Educação, é uma iniciativa motivacional de pesquisa sobre a civilização<br />

africana no âmbito do PRODESE - Programa Descolonização e Educação Grupo de pesquisa<br />

UNEB/CNPq coordenado pela Dra. Narcimária Luz.<br />

Com efeito, estes estudos teóricos da história trazem como referência o enfrentamento<br />

das políticas neocoloniais realizado pelos ancestrais africanos, sobretudo os nagôs,<br />

desdobrando-se nos quilombos, e comunalidades tradicionais para preservar a tradição<br />

plantada pelos primeiros ancestrais na África e reterritorializada no Brasil.<br />

Desses estudos, extraímos as referências de composição da nossa base teórica, e estes<br />

proventos vieram de: Deoscóredes Maximiliano dos Santos, Mestre Didi Axipá, Juana Elbein<br />

dos Santos, Marco Aurélio Luz, Narcimária C. do P. Luz e Muniz Sodré, que entendemos ser<br />

nosso ponto de partida para entrar no universo simbólico de uma das culturas que<br />

caracterizam a dinâmica socioexistencial e a linguagem pluricultural de comunicação do<br />

Grupo Artebagaço Odeart.<br />

No início oficial do estudo em 2004, ao mesmo tempo em que fazíamos as disciplinas<br />

do curso, também buscávamos referências que caracterizassem a abordagem da pesquisa,<br />

sobretudo um enfoque metodológico que respeitasse as vivências do grupo; uma dinâmica de<br />

elaborações de cenários teatrais cujo significado mediador da linguagem cênica era a crítica<br />

ao currículo e sociedade oficial.<br />

Aprofundando e expandindo os conhecimentos, chegamos à colaboração de Elisa<br />

Larkin Nascimento e Inaicyra Falcão dos Santos cujos repertórios de conhecimentos<br />

ampliaram a fundamentação das metáforas “ecos” e “mata” como elementos enunciadores do<br />

cenário de Educação Pluricultural africano-brasileira, agregando a arte e elaborando o cenário.


Assim, encontramos a “bacia semântica” (DURAND, G. 1960, apud. MAFFESOLI,<br />

2001, p. 66) necessária para elaborarmos a trajetória do Artebagaço Odeart, compondo um<br />

cenário como se a arte fosse um útero carregando o corpo fecundado em crescimento que é o<br />

conhecimento da nossa perspectiva de educação pluricultural africano-brasileira.<br />

Depois, encontramos nos estudos etnográficos de Carmen Lúcia G. de Mattos (2004,<br />

p. 66) a contribuição que precisávamos para caracterizar nossa abordagem que é constituída<br />

por uma experiência de vivência comunal:<br />

149<br />

A etnografia como abordagem de investigação científica traz algumas<br />

contribuições para o campo das pesquisas qualitativas que se interessam<br />

pelo estudo das desigualdades e exclusões sociais: primeiro, por preocuparse<br />

com uma análise holística ou dialética da cultura, isto é, a cultura não é<br />

vista como um mero reflexo de forças estruturais da sociedade, mas como<br />

um sistema de significados mediadores entre as estruturas sociais e a ação<br />

humana; segundo, por introduzir atores sociais com uma participação ativa<br />

e dinâmica no processo modificador das estruturas sócias. O objeto de<br />

pesquisa agora sujeito da pesquisa, é considerado como agência humana,<br />

imprescindível no ato de fazer sentido das contradições sociais; e terceiro<br />

por revelar as relações e interrelações ocorridas no interior da escola[...].<br />

(MATTOS, 2004, p. 67).<br />

Sendo assim, a cultura pode ser expressa como possibilidades geradas das formas e<br />

modos de elaboração da linguagem com o intuito de comunicação e de interação intergrupal<br />

num contexto de significados existenciais próprios herdados pelos componentes do grupo,<br />

“Na verdade, as culturas de Arkhé conhecem a passagem do tempo, têm memória do passado,<br />

vivenciam esperanças” (SODRÉ, 2002, p.174); neste reconhecimento, o simbólico consiste no<br />

saber da tradição plantada e a linguagem é a forma de mediar este saber.<br />

Por isso entendemos que este era momento de mergulharmos nos desdobramentos<br />

metodológicos, afinal nosso maior esforço de pesquisa era a composição de uma recriação<br />

teatral ancorada no estilo da vivência Artebagaço Odeart trazendo no seu corpo o<br />

conhecimento que caracteriza a ancestralidade que o dinamiza, visto que estas vivências são,<br />

simplesmente, constituídas por linguagens.<br />

2.1 O MOVIMENTO AGACHADO<br />

Foi através de observações iniciais do cenário Pré-Artebagaço e Artebagaço que<br />

lançamos um novo olhar no universo simbólico africano, buscando na linguagem expressa nas


fotos das encenações de 1990 a 2001, os sinais de sociabilidade socioexistencial africana do<br />

grupo.<br />

Era um acervo composto por 400 imagens, duas fitas de vídeos VHS, uma dezena de<br />

cartazes de divulgação de oficinas e de apresentação das encenações, em um recorte de jornal<br />

que anunciava a maior encenação que realizamos em termos da maior platéia para nós, o<br />

espetáculo “Tá bom pra cachorro”, cerca de duas dezenas de textos criados e adaptados. Com<br />

estes instrumentos, começamos a análise de dados.<br />

De vez em quando, indagava-nos: como encontrar as referências da arkhé herdada<br />

pelos componentes do grupo? Quais seriam os símbolos tradutores das linguagens<br />

civilizatórias que o Grupo Artebagaço resguardava na sua dinâmica da educação? Estariam,<br />

nos nossos modos e formas próprias peculiares da linguagem teatral, as expressões simbólicas<br />

da arkhé cultural? De que maneira é possível realizar este reconhecimento?<br />

Nesse ínterim, só tínhamos uma certeza, embora frágil: é a linguagem que promove<br />

nossa dinâmica de educação e esta transcende tempo e espaço mediados e oferece proventos<br />

para vivência do grupo. Desta forma, com questionamentos, fomos mergulhando nas imagens<br />

do passado constituinte da trajetória do Artebagaço.<br />

Ao mesmo tempo em que fazíamos a seleção do acervo constituinte da análise de<br />

dados, mergulhávamos nos estudos teóricos sobre o patrimônio civilizatório africanobrasileiro.<br />

Na tentativa de encontrar as características simbólicas culturais da linguagem<br />

artebagaciana, percebemos que muito mais do que se contentar com o estudo da linguagem<br />

teatral, era necessário aprofundar-nos nos conhecimentos mais abrangentes da função da<br />

linguagem como instrumento de comunicação e de interação social.<br />

E mais, era preciso relacionar este conhecimento extraído da noção que a função da<br />

linguagem exerce num cenário de referência civilizatória que agrega a arte como forma de<br />

realização do processo criativo da composição do conhecimento. Foi andando nessas trilhas<br />

da investigação, bastante introspectivas, que reconhecemos a necessidade de entender que<br />

metodologia era esta que nos arrastava para uma busca interior, a ponto de percebermos que<br />

os desdobramentos de pesquisa caracterizam-se por uma dinâmica de busca de grupos que se<br />

voltam para si mesmos, para falar de um si mesmo coletivo.<br />

Decerto que os desdobramentos metodológicos nos arrastavam para o interior das<br />

lembranças de tudo que havíamos vivido e constituído como memória social do Artebagaço.<br />

Contudo não era nada equivalente àqueles esquematismos prontos, pré-ditos e, por isso, quem<br />

os utiliza segue a linearidade unidimensional. Conosco era diferente, eram sinuosidades que<br />

nos arrastavam à profundidade das cenas vividas, e foi neste ínterim que chegamos aos<br />

150


estudos teóricos de Juana Elbein dos Santos (2002ª/b) e descobrimos que estávamos<br />

totalmente mergulhados na perspectiva metodológica “desde dentro para desde fora”.<br />

O que Juana Elbein denomina “desde dentro” são desdobramentos do saber, no<br />

cenário intrínseco do pesquisador, mas foi esta atitude de observação participante que nos<br />

permitiu recriar os cenários que representavam os vínculos, a emoção e a afetividade<br />

construídos durante a elaboração do conhecimento sobre o Grupo Artebagaço:<br />

151<br />

A convivência, passiva como observadora no começo e ativa à medida que se<br />

foi desenvolvendo progressivamente a rede de relações interpessoais e minha<br />

conseqüente localização no grupo, foi-me iniciando no conhecimento “desde<br />

dentro”. (SANTOS, J., 2002b, p. 16).<br />

A observação “desde dentro” orienta os passos da pesquisa para:<br />

[...] agilizar, revisar, modificar e, às vezes, rejeitar, mesmo inteiramente,<br />

teorias e métodos inaplicáveis ou desprovidos de eficácia para compreensão<br />

consciente e objetiva dos fatos. Isto nos leva a defrontar-nos como dois<br />

problemas: 1) como ver e 2) como interpretar. (SANTOS, J. 2002b, p. 16-<br />

17).<br />

“Como ver e interpretar” são modos e formas de analisar o conhecimento vivido, e já<br />

que desejávamos reconhecer os valores civilizatórios da tradição africana plantada no Cabula,<br />

intuímos que signo e símbolo seriam os únicos elementos de possibilidade desta<br />

compreensão, logo a busca dedicava-se primeiro a identificar os elementos constituintes do<br />

universo simbólico africano-nagô.<br />

Como vivemos na sociedade urbano-industrial, digamos que um “[...] espaço dito<br />

euclidiano, onde tudo passa a ser dominado pelo olho do observador,” (SODRÉ, 2002, p. 24),<br />

esta movimentação metodológica realizava-se num espaço contrário, por sinal guiado pela<br />

criatividade gerada do encontro da emoção e da abstração:<br />

Quando propomos a abertura da conscientização, do reconhecimento<br />

da diversidade humana pela criatividade, pelo emocional lúcido, é<br />

porque toda atividade existencial se processa e é resultado de uma<br />

combinação de fatores emocionais e intelectuais. (SANTOS, J.,<br />

2002a, p. 38).<br />

Com isto indagávamos: Como encontrar, nas imagens que estamos agora vendo, as<br />

referências de arkhé civilizatória? Para “desde dentro” mergulharmos profundamente na que


uscávamos, era preciso também caracterizar a linguagem simbólica de elaboração do<br />

conhecimento que nutre as vivências do Artebagaço Odeart.<br />

Figura 79 Figura 80 Figura 81<br />

Grupo Pré-Artebagaço, 1994. Grupo Artebagaço, 1997. Grupo Artebagaço, 2000.<br />

Foi seguindo os caminhos “desde dentro”, buscando nas lembranças as manifestações<br />

dos gestos, sonoridade, respiração, hálito, olhares profundos que vimos nestas imagens a<br />

possibilidade de reconhecer um rico acervo de expressões simbólicas culturais africanas,<br />

entretanto o desconhecimento dos constituintes simbólicos bloqueava a passagem que<br />

favorecesse ao reconhecimento dos códigos culturais.<br />

Esse movimento era cauteloso, delicado e habilidoso, é um movimento de Odé, que é<br />

a manifestação de quem caça no território invisível e precisa, sobretudo, reconhecer o lugar da<br />

memória ancestral guardada no corpo, que decerto são lembranças da experiência do passado<br />

vivido pelos ancestrais. Este era o desafio: desenvolver a experiência metodológica de<br />

conhecer o novo a partir de si mesmo.<br />

Na verdade, esta experiência foi um tanto quanto pretensiosa, porém necessária ao<br />

entendimento do sentido de simbólico, por isto Juana Elbein a atribui à noção de<br />

“desenvolvimento iniciático” e esclarece-nos:<br />

152<br />

O etnólogo, com várias exceções, não tem desenvolvimento iniciático, não<br />

convive suficientemente com o grupo, suas observações, são, na maioria das<br />

vezes, efetuadas “desde fora”, vistas através de seu próprio quadro de<br />

referências; raramente ele fala a língua de seus pesquisados e<br />

frequentemente recebe informações por intermédio de tradutores que, por<br />

sua vez, conhecem mal a língua do etnólogo (SANTOS, J., 2002b, p. 18).<br />

O “desenvolvimento iniciático” são manifestações que nos levam a conhecer os<br />

valores simbólicos civilizatórios da cultura ocultada, por exemplo, ao estudar uma referência<br />

como os ogé, chifre de touro, que é o símbolo de comunicação do iniciado ao culto de Odé,<br />

caçador, orixá Oxóssi, avançamos no estudo do cenário socioexistencial civilizatório do


caçador africano-nagô. Foi no conto de Mestre Didi Axipá, “O caçador e a caipora” (2004),<br />

que conhecemos os códigos simbólicos das funções práticas de uma caçada, inclusive as<br />

funções de poderes místicos dos emblemas sagrados.<br />

Esse entendimento foi abrindo acesso ao universo imaginário sociocultural africanobrasileiro,<br />

vivenciado na infância e adolescência, de maneira que o acesso ao passado de certa<br />

forma, um retorno ao lugar vivido, foi encontrado pela grande ajuda de Agadá, dinâmica da<br />

civilização africano-brasileira, de Marco Aurélio Luz (1995).<br />

Essa obra foi uma espécie de “abre caminho” das trilhas constituintes do vivido.<br />

Metaforizando, era como se fosse algo que, ao mesmo tempo, demolia as rígidas paredes dos<br />

obstáculos ideológicos e também cortava as moitas que tamponavam a passagem que nos<br />

levaria ao encontro do universo africano.<br />

Nós sabíamos que, mesmo sendo sujeitos 1 da experiência, na qual o pesquisador é<br />

parte do grupo, tínhamos a necessidade de conhecer o cenário amplo da realidade cultural que<br />

caracteriza as linguagens civilizatórias desse grupo. Conhecer a cultura vai além de conhecer<br />

certos modos e formas de alguns componentes do grupo, conhecer a cultura é desenvolver um<br />

procedimento de iniciação nos espaços ocultados pela sociedade oficial.<br />

Contudo, isto não é fácil de ser realizado, é preciso preparar o corpo para enfrentar os<br />

obstáculos ideológicos positivistas e médico-evolucionistas, e este foi o nosso grande esforço<br />

de pesquisa, que consideramos o “desenvolvimento iniciático”. Com o tempo, o corpo foi<br />

ajustando-se, ora ia em frente, ora recuava, mas de fato o impulso “desde dentro” era mais<br />

forte que as orientações das perspectivas “desde fora”.<br />

A perspectiva metodológica ”desde dentro para desde fora” orienta para que os<br />

desdobramentos das propostas, que buscam ancoragem na episteme constituída dos valores<br />

culturais do patrimônio civilizatório africano, realizem-se em três direções para que se possa<br />

ver e elaborar o saber: nível fatual, revisão crítica e interpretação simbólica, como sugere<br />

Juana Elbein dos Santos (2002b, p. 18).<br />

No nível factual, pudemos reunir as referências históricas e simbólicas míticosagradas<br />

dos nossos ancestrais africano-nagôs, procurando introduzir no cenário as linguagens<br />

capazes de promover um elo entre este passado e o presente, que abraçam as três gerações do<br />

Grupo Artebagaço, tudo isto com muito cuidado porque, apesar de compor a mesma<br />

1<br />

MATTOS (2003, p.2) considera que: ”sujeitos, é considerado como agência humana imprescindível n ato de<br />

fazer sentido das contradições sociais”.<br />

153


ealidade, esta era múltipla e diversa, como mostra Andréia Monteiro 2 (2006), ao descrever os<br />

traços identitários dos componentes da segunda geração da terceira:<br />

154<br />

O Artebagaço era um grupo de trabalho, tinha trabalho, na ora de fazer<br />

trabalho era trabalho, na hora de estar se divertindo o grupo se reunia<br />

para se divertir, na hora de estar ensaiando a gente se reunia e não<br />

esperava que você,Beni e Diego mandassem começar não. Enquanto você<br />

estava vindo a gente estava ensaiando, pois a gente sempre queria<br />

surpreender vocês, pelo menos eu pensava assim, já que os outros faziam a<br />

mesma coisa eu entendia que era o mesmo.<br />

Este grupo de agora não. Eles ficam esperando, eles têm, realmente, esta<br />

necessidade de indicação: você vai fazer isto, você vai fazer aquilo, não<br />

têm aquela atitude voluntária: “Olha gente, eu estava pensando de fazer a<br />

roupa assim, assim, assim, com vermelho, azul, cor de abóbora.” Não, não,<br />

eles não trazem, eles recebem muito. (Andréia, 2006).<br />

Além disso, o conhecimento é transdisciplinar, pois, no que se refere ao campo<br />

temático, devemos ter muito cuidado com o que colhemos como traços dos aspectos<br />

geográficos, históricos, lingüísticos, sociológicos. No nível fatual, as políticas das dinâmicas<br />

de linguagem histórico-social, político-pedagógica e artístico-cultural são colocadas em<br />

destaque para constituir o conhecimento empírico da comunalidade no grupo, no lugar onde<br />

mora, na escola.<br />

O nível fatual descreve a vivência: “Isto é, a descrição mais exata possível do<br />

acontecer ritual, de seus aspectos e elementos constitutivos – passado e presente – e daqueles<br />

que técnica e materialmente instrumentam sua existência.” (SANTOS, J., 2002b, p.18-19).<br />

Isto é, a descrição da cena deve aproximar-se ao máximo do real, embora nunca atinja o real<br />

vivido. Observa-se a cena na Figura 80, a seguir:<br />

Figura 82<br />

Oficina de corpo e expressão, no COMOBA 3 . 2006<br />

2 Foi uma das estudantes da segunda geração, em 1997, hoje é educadora graduada em Licenciatura em Artes<br />

cênicas pela Ufba e coordena as oficinas de montagem do grupo junto com Janice Nicolin.<br />

3 Conselho de Moradores das Barreiras


Indaga-se o que traduz esta cena? O ritmo de uma oficina de corpo e expressão;<br />

Andréia Monteiro, de blusa azul, coordena a cena com o movimento sonoro das palmas, da<br />

palavra de ordem e o bater dos pés. O som recebido pelo corpo de cada artebagaciano<br />

manifesta o arquétipo, que livremente, se apresenta em forma de gestos, respiração<br />

diferenciada, olhar próprio e natural, sopro lento ou ofegante, ou seja, linguagens que estavam<br />

resguardadas, às vezes reprimidas e por isto recalcadas ideologicamente, no próprio corpo<br />

mecanizado no cenário do confinamento existencial.<br />

Com o desenvolvimento da observação “desde dentro”, os rituais dinâmicos das<br />

vivências foram descritos de acordo como foi vivido. Quando:<br />

155<br />

A observação parcial, a pouca convivência, não permitem ao pesquisador<br />

distinguir os fatos acidentais ou excepcionais, nem distinguir os ciclos de<br />

seqüências, nem as relações entre objetos dispersos ou de ritos<br />

aparentemente diacrônicos (SANTOS, J., 2002b, p. 18).<br />

De fato, o cenário cultural é corrompido e cria-se um saber deturpado. Contudo, os<br />

estudos teóricos histórico-político-sociais dos ancestrais africanos nos ajudaram a<br />

compreender o espaço socioexistencial e nossa inserção no cenário cultural de forma<br />

orgânica; sentindo o corpo, vivendo a experiência do passado Nagô, evitou-se a observação<br />

parcial no Grupo Artebagaço Odeart, de maneira que a dinâmica de caçada dos valores<br />

culturais desdobrou-se respeitosamente.<br />

O nível de revisão crítica foi o mais complexo da abordagem, porque tivemos que<br />

lidar com aspectos teórico-epistemológicos da bibliografia clássica etnocêntrica sobre<br />

Educação, tentando superar os obstáculos ideológicos que a compunham. Nossa maior<br />

dificuldade porém, era compor um texto que respeitasse e valorizasse as referências e que<br />

enaltecesse o patrimônio civilizatório africano-brasileiro.<br />

Fomos estimulados a estabelecer argumentações críticas sobre as ideologias<br />

neocoloniais que motivaram questionamentos sobre os conceitos elaborados pela episteme<br />

ocidental e as bases das concepções das políticas educacionais racistas que recalcam o<br />

africano-brasileiro dentro e fora do espaço escolar. É neste momento que a noção de “bacia<br />

semântica” brota para nós e nos faz rever nossos preconceitos 4 .<br />

4 A expressão encontra-se em destaque para mostrar que é tramite as palavras que as ideologias ganham forças,<br />

não é uma atitude, o preconceito, é o uso da palavra etnocêntrica ideologicamente tendenciosa.


De fato, a bacia semântica é o que simboliza uma política cultural, e, como estávamos<br />

elaborando um cenário ancorado na episteme africano-nagô, buscamos na língua iorubá<br />

referências verbais como Odara 5 para nos referirmos à estética de valores africano-nagôs que<br />

caracterizam a arte do Artebagaço Odeart, que é a mesma que reforça o vigor das recriações<br />

artísticas das entidades culturais das comunalidades africanas.<br />

O nível de interpretação simbólica nos permitiu entender o cenário holístico da<br />

realidade vivida. Na realidade em nível fatual, a apreensão do real vivido nos permitiu ver e<br />

elaborar os detalhes, as cenas isoladas. Foi no nível de interpretação simbólica, porém, que<br />

tivemos a possibilidade de compor o mosaico pluricultural, ou seja, é neste nível que<br />

compreendemos que, numa caçada como a apresentada no conto “O caçador e a caipora” cada<br />

caçada corresponde a uma etapa do rito de iniciação do caçador, logo o conjunto de caçada<br />

relacionada ao tempo-espaço é a referência de educação do caçador e de certo que o<br />

conhecimento por este adquirido.<br />

Quando analisamos cada caçada, interpretamos o símbolo simples com poucas<br />

referências contextuais, já, ao analisarmos as três caçadas de forma totalizante, surge um<br />

conjunto de referências que expressam a natureza simbólica constituída de referências<br />

civilizatórias. Vejamos como Juana Elbein Santos (2002b, p. 24) nos esclarece sobre a<br />

interpretação simbólica: “Complementarei esta exposição tão clara com uma distinção: a do<br />

símbolo-signo, menor unidade simbólica, do símbolo complexo, totalidade de uma estrutura<br />

dada”.<br />

É fácil perceber a complexidade da relação “símbolo-signo” e “símbolo-complexo”<br />

quando constituintes de um mesmo cenário, este é o sentido de pluricultural, pois existem<br />

vários pensamentos, princípios e valores, constituindo, ao longo do tempo, o mesmo<br />

instrumento. Vejamos aqui uma vestimenta para a expressão recriada Odé da peça produzida<br />

e adaptada pelo Grupo Artebagaço Odeart intitulada “Odé, o caçador do alvorecer”, a<br />

recriação parte do conto “O caçador e a caipora” (2004) e do auto coreográfico” “Odé e os<br />

orixás do mato”(1989), ambos recriados por Mestre Didi Axipá.<br />

5 Expressão verbal de origem africano-nagô usado por M.A. Luz e N. C. do P. Luz em seus escritos.<br />

156


Figura 83 Figura 84<br />

A vestimenta e um dos emblemas, o ofá, 2005 A coroa contendo o símbolo de Odé, o ofá. 2005<br />

Para interpretar as referências simbólicas de Odé, o caçador africano-nagô, foi<br />

necessário conhecer uma série de símbolos-signos no seu dinâmico cenário sociocultural.<br />

Tomemos por base a referência à cor predominante, que é o azul claro, cor do céu, cor do<br />

alvorecer, momento em que o caçador sai para a caçada. A coroa expressa o título de rei de<br />

Ketu de Odé, símbolo de realeza, de Alaketu, já o ofá, arco e flecha, é o símbolo da entidade<br />

Oxóssi que detém o princípio do poder da caça. A linguagem plástica não-verbal realiza esta<br />

simbologia plena de um saber milenar, mas a palavra oral realiza a comunicação entre cada<br />

integrante do grupo e, assim, fomos apropriando-nos das referências da arkhé cultural.<br />

Nesse sentido, os objetos ou instrumentos do símbolo sagrado do ancestral e da<br />

entidade sagrada em que o mesmo ancestral plantou o culto, são transformados em expressão<br />

artística, porém tudo isto requer bastante conhecimento da parte de quem o compõe o sentido<br />

de arte. O mesmo ocorreu com a atriz que portava a vestimenta, Daniela Costa, que estudou o<br />

significado da totalidade simbólica Odé, o símbolo-complexo, o símbolo-signo como ofá,<br />

para saber manuseá-lo durante as expressões dramáticas da dança da caçada.<br />

O símbolo é o que alimenta as referências de valores socioculturais do africano-nagô,<br />

Victor Turner (1957), para realçar o valor do símbolo no mundo africano, põe o rito em<br />

destaque por acreditar que neste está o conjunto de signo-símbolo:<br />

157<br />

Entendo por rito um comportamento um comportamento formal prescrito para<br />

ocasiões não consagradas à rotina tecnológica, mas referidas à crença em<br />

seres ou poderes místicos. O símbolo é a menor unidade do rito que conserva,<br />

contudo, as propriedades particulares da conduta ritual... Segundo o Concise<br />

Oxford Dictionary, um símbolo é uma coisa considerada por consenso geral<br />

como caracterizando naturalmente ou representando ou relembrando algo por<br />

possuir qualidades análogas ou por associação de fato do pensamento. Os<br />

símbolos que pude observar no campo eram empiricamente objetos,<br />

atividades, relações, acontecimentos, gestos e unidades espaciais numa<br />

situação ritual... Os símbolos estão particularmente envolvidos no processo<br />

ritual... O símbolo associa-se a interesses, propósitos, fins e meios dos<br />

homens, quer eles sejam formulados explicitamente, quer devam ser<br />

deduzidos do comportamento observado. A estrutura e as propriedades de um


158<br />

símbolo transformam-se nos de uma entidade dinâmica, ao menos no quadro<br />

de seu contexto de ação própria. (Apud SANTOS, J., 2002b, p. 23-24).<br />

Os desdobramentos “desde dentro para desde fora” foram crescentes de criatividade<br />

que nos conduziu ao cenário vivido pelos ancestrais nagôs, a ponto de sentirmos no próprio<br />

corpo a cena vivida com emoção, afetividade. Assim, mergulhados nesta dimensão oculta<br />

diante da razão positivista, pudemos estar em dois espaços – no passado ancestral e no<br />

presente-passado da contemporaneidade Artebagaço Odeart.<br />

E foi assim que brotaram os primeiros sinais simbólicos do cenário holístico de<br />

realidade empírica vivida através da metáfora “a mata africano-brasileira”. Vivendo e<br />

concebendo cenas da tradição de luta contra a hostilidade de ontem e hoje, era como se o<br />

presente afirmasse o passo que está bastante vivo entre nós, como se nada houvesse mudado<br />

exceto estratégias de luta, mas os modos de linguagens eram os mesmos.<br />

É importante ressaltar que o entendimento da referência simbólica civilizatória Odé se<br />

deve ao entrelace formado, durante o desenvolvimento iniciático, com a dinâmica de<br />

dimensão dialética do “vivido concebido” (LUZ, M. A., 1994) que construiu as trilhas do<br />

saber que nos levaram a descobrir como se interpreta o símbolo. A partir daí, foi possível<br />

identificar os princípios e valores mítico-sagrados que caracterizam o ancestral provedor e<br />

protetor da comunidade e guardião da “mata”.<br />

Com essa metodologia, constituída de trilhas do saber africano-nagô, pudemos<br />

conceber um acervo vocabular 6 apropriado para descrever o cenário holístico Artebagaço<br />

Odeart, estabelecendo vínculos com o passado vivido pelos ancestrais africanos. Narcimária<br />

Luz, que elabora suas experiências de episteme africana ancorada nesta dinâmica, assim se<br />

pronuncia sobre a dinâmica do vivido concebido.<br />

A metodologia que utilizamos compreendeu a dimensão dialética do vividoconcebido,<br />

em que as nossas relações sócio-comunitárias, principalmente<br />

aquelas que nos vinculam ao culto aos ancestres, nos aproximam do universo<br />

simbólico da tradição africana. Fomos capazes de viver profundamente, e<br />

conceber com muita sensibilidade [frisamos que, para o trabalho que<br />

desenvolvemos, a emoção, os sentimentos e a afetividade são fundamentais]<br />

o contexto simbólico norteador do continuum civilizatório africano das<br />

Américas (LUZ, N., 1998, p.162-163).<br />

6 A “bacia semântica”. Relembramos que é a metáfora criada por Gilberto Durand (1997. Apud. MAFFESOLI,<br />

2001, p.66) para simbolizar a dinâmica de renovação da linguagem, ele mostra que as palavras de um texto<br />

possuem um solo de origem, o lugar político onde as palavras nascem e se renovam, tal como as águas do rio que<br />

passam por lugares diferente, mas escoam na bacia de onde se originou.


Com esse caminho percebemos que, com apenas o acervo do Pré-Artebagaço ao<br />

Artebagaço não iríamos compor o devido cenário do conhecimento sobre o patrimônio<br />

africano-brasileiro, mas, quando começamos a nos apropriar das referências simbólicas,<br />

percebemos a necessidade de recorre ao auxílio da entrevista. Neste momento, ela seria a<br />

grande ferramenta capaz de abrir as moitas densas que impediam o livre acesso ao passado<br />

ancestral constituinte da mata africano-brasileira.<br />

De vez em quando, nós nos perguntávamos: como romper esta densa proteção? É que<br />

a mata é protegida, logo não é fácil penetrar em recônditos espaços, por isso cada vez mais<br />

nos curvavámos aos saberes do “vivido-concebido”, na concepção de Marco Aurélio Luz<br />

(1995), Juana Elbein Santos (2002ª/b) e Narcimária Luz (2000), constituído do patrimônio<br />

civilizatório africano-brasileiro.<br />

Mas, quando se recorreu à entrevista, não fomos seguindo o roteiro das “cartilhas” de<br />

orientação dos novatos positivistas, os questionários cheios de belas, justas e boas perguntas,<br />

porém ótimas para o pensamento conceitual, absolutamente racionalista. Como diz Maffesoli<br />

(2001, p. 38), “[...] é preciso saber reconhecer o que está morto naquilo que parece vivo e, ao<br />

mesmo tempo, poder detectar os germes do renascimento”. Esta era uma de nossas cautelas ao<br />

caçar: evitar o reducionismo, os esquematismos, e a entrevista previamente estruturada é uma<br />

das armadilhas da razão abstrata.<br />

Resolvemos dar início às entrevistas com Beni Moraes e Diego Nicolin, ao mesmo<br />

tempo em que fazíamos a seleção do acervo do grupo; das 400 fotos, elegemos cem,<br />

correspondentes ao período que vai de 1990 a 2001; da cerca de uma dezena de cartazes,<br />

selecionamos cinco; de duas fitas de vídeo VHS, selecionamos uma; de quase 30 textos,<br />

extraímos dez e, de dez encenações, selecionamos três. Além disto, havia dois eventos de<br />

intercâmbio do Grupo Artebagaço com as turmas de Janice Nicolin que não foram destacados,<br />

nesta análise, e dos quais apenas se fez uma abordagem simples, sem detalhamento, como os<br />

outros instrumentos não selecionados.<br />

Nesse mesmo tempo, os impulsos de busca nos encaminhavam ao cenário das<br />

vivências das dinâmicas político-pedagógicas do Artebagaço. Ao mexer com a história,<br />

porém, as cenas vivas fizeram também renascer o sentido de luta, daí Janice Nicolin resolveu<br />

retomar os trabalhos, convocando novos jovens do mesmo colégio para compor um grupo de<br />

teatro.<br />

Ressaltamos que este impulso foi gerado pelo poder que tem a linguagem de atualizar<br />

ritos do passado no presente. Ao viver as cenas, como a pesquisadora, sentimos no corpo os<br />

momentos de realização das oficinas de criação teatral e percebemos que o olhar não buscava<br />

159


meramente os constituintes da linguagem teatral, como no início das análises. Cremos que<br />

eram os resultados do entendimento das referências simbólicas que estavam sendo caçadas<br />

nos gestos, nos olhares, na respiração, no sopro, na sonoridade da linguagem verbal, ou nãoverbal<br />

expressas pelo corpo do ator artebagaciano.<br />

Ao convocar um novo grupo estes traços passaram a ser valorizados e enaltecidos,<br />

junto com palavras, como herança pluricultural africano-brasileira, logo a oficina de criação<br />

de expressão corporal começa por reconhecer o corpo recalcado, por exemplo, na dinâmica do<br />

soldado, há aquele que repete o gesto de obediência, e há também a quebra da linearidade<br />

quadrangular durante as atividades de dança, dinâmica de grupos e o início de jogos que<br />

impulsionam a naturalidade do corpo. Assim, observamos “desde dentro” que as expressões<br />

corporais dos jovens deste grupo eram próximas dos artebagacianos.<br />

Figura 85 Figura 86 Figura 87<br />

Dinâmica do soldado, 2005 Quebrando a linearidade grupal.,2005. Dinâmica de liberação do corpo., 2005. 7<br />

E foi a partir da leitura do conto nagô de autoria do Mestre Didi Axipá: “O caçador e a<br />

caipora” (2004, p. 174) que o novo grupo começou, inicialmente com 10 e chegando a 80<br />

adolescentes e jovens, depois se fixando em 38 e, assim, vai-se renovando até os dias atuais.<br />

Com a observação participante, começamos a perceber o que poderia caracterizar cultura,<br />

sobretudo cultura de arkhé. Os frutos desta observação alimentaram-nos para realizar as<br />

entrevistas no grupo, com os artebagacianos antigos, componentes do Pré-Artebagaço e<br />

Artebagaço, moradores antigos do Cabula que nasceram no lugar ou passaram a habitar neste<br />

antes das mudanças na década de 70, e professores do colégio onde brotou a experiência<br />

vivida pelo Artebagaço.<br />

7 Esta é uma seqüência de dinâmica do reconhecimento das potencialidades do corpo. Começa por descobrir um<br />

corpo a serviço do poder: dinâmica do soldado, depois por perceber o corpo preso ao quadriculado unilateral, por<br />

fim a liberação do corpo no espaço para explora as potencialidades.<br />

160


Figura 88<br />

Leitura do texto “O caçador e a caipora”. 2004.<br />

Por este caminho, a pesquisa aprofunda-se ainda mais nos modos de ver e elaborar<br />

“desde dentro” seguindo as cenas extraídas do rico acervo que tínhamos para análise da<br />

pesquisa: do acervo do Artebagaço até 2001, o conto de Mestre Didi Axipá, a história de luta<br />

dos ancestrais africanos desde os quilombolas aos fundadores das comunalidades tradicionais<br />

públicas, no século XIX, em destaque os africano-nagôs fundadores do culto público do<br />

império nagô no Brasil, e as observações extraídas do convívio com o Grupo que veio a se<br />

chamar Odeart até agosto de 2005.<br />

O acervo fotográfico, que era composto de 100 imagens do momento até 2001, passa<br />

para mais de 300 no final, pois a vivência do Grupo Odeart foi registrada pelo critério da<br />

pesquisa que capta a arte e o conhecimento juntos, compondo o cenário holístico do<br />

espetáculo cênico pluricultural africano-brasileiro e também de imagens de linguagens das<br />

oficinas de criação do grupo, que os grupos anteriores não possuíam.<br />

Essas novas imagens são acrescidas das ocasiões festivas dentro e fora do grupo, das<br />

comunalidades sociais, de algumas comunidades litúrgicas tradicionais que cederam o espaço<br />

para fotos, das apresentações em público. Na realidade, há um arquivo com 520 fotos, mas<br />

deste foram selecionadas mais de 200 imagens para compor o texto etnográfico e para fazer<br />

um arquivo foto-som em DVD como resultado desta pesquisa. Trata-se de um arquivo da<br />

memória da pesquisa Artebagaço Odeart, ecos que entoam a mata africano-brasileira com as<br />

imagens que vão além das apresentadas na dissertação.<br />

É importante saber, caro leitor, que as imagens que trazem a referência fonte são<br />

aqueles que não pertencem ao acervo do Artebagaço, cerca de uma dezena, como o acervo do<br />

Artebagaço Odeart é também da pesquisa e conta com mais de 300 fotos, já falei, optamos por<br />

colocar nestas fotos, apenas, referências sobre conteúdo e a ordem de colocação na etnografia.<br />

Assim, a experiência de iniciação ao olhar uma cultura que não nos era alheia, mas<br />

que estava distante do nosso forçado olhar estrangeiro e positivista, imposto durante décadas<br />

161


de estudos no sistema público escolar, foi abrindo o mundo das possibilidades de conhecer a<br />

alteridade africana.<br />

É neste momento que surge a necessidade de reconhecer que está no olhar alicerçado<br />

no ethos eurocêntrico, esquadrinhador, reducionista médico-evolucionista o processo<br />

instalado na escola e em outras instituições modernas, que humilha e subestima a cultura<br />

africana e aborígine brasileira.<br />

É preciso reconhecer, nesse gesto preconceituoso, o poderoso acervo do poder<br />

colonial que aprisiona o educador quando não ciente das políticas de inferiorização da<br />

alteridade africana e indígena. Deve-se reconhecer também que tal gesto pode aniquilar<br />

possibilidades sonhadas como projeto de vida de uma criança africano-brasileira e indígena<br />

brasileira.<br />

E não nos resguardamos em afirmar que reaprendemos a olhar a nós mesmo como<br />

somos, pelo caminho da experiência vivida pela via de “desenvolvimento iniciático” cujo<br />

alcance foi intuir que noção de pluralidade não se reconhece dizendo, mas é vivendo e<br />

concebendo como estamos aqui a fazer.<br />

A entrevista semi-estrutural contribuiu bastante para o entendimento desta realidade<br />

cultural. Ela foi a técnica, no sentido de criação de ritos naturais e intencionais repetitivos,<br />

que melhor colheu o conhecimento resguardado na memória social e individual dos<br />

moradores descendentes de africanos e afro-indígenas.<br />

Sem as entrevistas, a metáfora “mata africano-brasileira” não teria ecos, seria um<br />

documental histórico extraído de outras produções acadêmicas com registro sobre a bravura<br />

da passagem dos ancestrais africanos, num cenário de luta pela afirmação da liberdade<br />

socioexistencial civilizatória. Os ecos que entoam cantam e contam esta história.<br />

Do acervo dessas entrevistas, constam 38 gravações em CD-R com a participação de<br />

44 pessoas moradoras de diversos lugares do Cabula. É fruto da caminhada composta por<br />

sobe e desce ladeiras de acesso intercomunal, verdadeiros corta-caminhos, de maneira que,<br />

assim, pudemos reconhecer o relevo original constituído de depressões e vales por onde<br />

passavam os ancestrais quilombolas, nas veredas do Rio Negrão, hoje esgotos, dos morros<br />

altos que dão para observar outros lugares circunvizinhos ao Cabula, como São Caetano e<br />

Fazenda Grande do Retiro, a Orla da Boca do Rio, Brotas, Mares e subúrbio ferroviário.<br />

Assim, as entrevistas não nos ofereceram, apenas, o registro histórico do Cabula,<br />

foram fontes geográficas; lingüísticas, com um português inundado de expressões africanas<br />

das línguas banto e nagô-iorubá; biológica e medicinal, resguardados nas plantas e árvores da<br />

162


mata original; artístico-culturais, preservadas pelos blocos de afoxé e afro, e sociológicas,<br />

compostas pelas vivências comunais africano-brasileiras.<br />

Por elas pudemos intuir que a dinâmica de quilombo encontra-se preservada no lugar e<br />

está expressa nos ritos da produção econômica sustentada por um comércio local peculiar, que<br />

emprega e alimenta moradores, e nos ritos herdados as relações socioeducacionais plantadas.<br />

Ressaltamos que, neste espaço, também se encontram os constituintes do cenário urbanoindustrial<br />

que avançam destruindo o espaço físico da mata natural.<br />

A entrevista é um dos elementos da pesquisa que dinamizaram a metáfora “movimento<br />

agachado”, que consiste num conjunto de linguagens características dos desdobramentos<br />

realizados durante a orientação da metodologia “desde dentro para desde fora” e também da<br />

dimensão dialética “vivido-concebido”. Este movimento simboliza “como” mergulhamos no<br />

universo simbólico africano-nagô.<br />

Caracteriza-se por movimentos de dentro para fora, que se parecem com o do caçador<br />

agachado, rasteando cuidadosamente para caçar o que pode alimentar vidas e possibilitar, no<br />

ambiente da caça, a expansão dos proventos.<br />

É, principalmente, ressaltamos o movimento de respeito do pesquisador em relação à<br />

pesquisa, que se propõe a valorizar e enaltecer a ancestralidade africana Este gesto manifestase<br />

pelos gestos de quem, observando e vivendo, vivendo e observando, vai compondo a<br />

concepção do cenário metafórico da “mata africano-brasileira”. Esta é a linguagem de<br />

recriação que trouxemos para esta abordagem com o intuito de falar sobre nosso entendimento<br />

de “desenvolvimento iniciático”.<br />

2.2 ULTRAPASSANDO OS OBSTÁCULOS IDEOLÓGICOS<br />

Os espaços recalcados pelo cenário urbano-industrial, ancorado nos valores da arkhé<br />

neocolonial, deixam prevalecer o estereótipo de inferiorização da cultura africana e aborígine,<br />

e, se ficássemos submetidos a ele, correríamos o risco de realizar uma investigação “desde<br />

fora”. Por isso, o despojar das referências etnocêntricas presente no olhar estrangeiro e<br />

positivista, que introjetamos durante décadas de estudos no sistema público escolar, foi<br />

necessário para reaprender a olhar a mata africano-brasileira.<br />

Com o estudo, sabíamos que a compreensão que desejávamos de pluralidade cultural<br />

dependia de conhecermos as “duas faces da moeda”, o signo e o símbolo e este entendimento<br />

só foi possível quando elaboramos o luto das orientações positivistas e evolucionistas que<br />

163


predominam nos estudos acadêmicos, tal como apresenta a critica realizada por Narcimária<br />

Luz (1998, p. 103):<br />

164<br />

As produções acadêmicas sobre o processo civilizatório africano no Brasil<br />

sempre estiveram sobredeterminadas pela visão de mundo europeu, de onde<br />

transbordam ideologias antropológicas de representação do colonizado frente<br />

ao colonizador. Erguidas no processo de exploração colonial e das tentativas<br />

de desculturação do outro, essas ideologias estabeleceram suas fronteiras<br />

conceituais preocupadas em justificar as relações de exploração colonialista.<br />

O luto dessas ideologias que alimentam as condutas pedagógicas do sistema oficial foi<br />

nosso ponto de chegada no mundo de valores pluriculturais africano-brasileiros, uma vez que<br />

o luto caracteriza a necessidade do enfoque no universo simbólico de matriz africana 8 que<br />

ancora o ethos elaborador dos cenários do Artebagaço Odeart.<br />

O luto simboliza nossa iniciativa de realizar um texto próprio e original dissociado do<br />

rigor científico obsessivo que se realiza pela imposição do uso de: “Conceitos como<br />

‘animismo’, ‘fetichismo’, ‘primitivismo’, ‘pré-logismo’, ‘litolatria’, ‘sincretismo’, e ‘metaraça’[...]”<br />

(LUZ, N., 1997, p. 154) que desqualificam as referências de arkhé civilizatória<br />

africana que é a ancoragem das linguagens artístico-culturais Artebagaço Odeart.<br />

Assim como a ancoragem sobre o patrimônio civilizatório africano-nagô foi nosso<br />

ponto de partida para os estudos que caracterizam a linguagem pluricultural do Grupo<br />

Artebagaço, a metodologia de dimensão dialética “vivido-concebido”, elaborada por Marco<br />

Aurélio Luz (1994, 1995), se constituiu trilhas para entramos no universo africano-nagô ser o<br />

nosso ponto de chegada ao mundo de valores culturais africano-brasileiros, tradutores do<br />

ethos que elabora os cenários de realidade da nossa experiência vivida.<br />

A metodologia que utilizamos compreendeu a dimensão dialética do vividoconcebido,<br />

em que as nossas relações sócio-comunitárias, principalmente<br />

aquelas que nos vinculam ao culto aos ancestres, nos aproximam do universo<br />

simbólico da tradição africana. (LUZ, N., 1998, p.162).<br />

É muito importante também dizer que o sentido de “mata” se fortalecia a proporção<br />

que mergulhava cada vez mais no passado ancestral, impulsionada pela orientação “desde<br />

dentro para desde fora” na dinâmica dialética do invisível espaço de introspectividade da<br />

experiência concebida pelo Artebagaço Odeart.<br />

8 Ressaltamos que nossa escolha política foi o universo africano-nagô devido ao amplo uso das expressões nagôs<br />

por parte dos componentes do grupo e também dos moradores do Cabula que não foram iniciados em culto de<br />

determinada nação africana, por isto desconhecem as particularidades do idioma e usam referências nagôs. O<br />

grande exemplo é a expressão orixá que é nagô, seu correspondente em banto da nação Angola é inkice.


Neste ínterim o corpo manifestava-se como se estivéssemos na mata caçando uma<br />

preciosa presa. O “vivido-concebido” desdobrava-se como se fosse um guia na mata, o lugar<br />

de resguardo do patrimônio civilizatório, ao mesmo tempo em que abria caminhos e também<br />

plantava as sementes que aguçavam a curiosidade de conhecer outros constituintes cênicos<br />

vividos pelos ancestrais ao enfrentar o poder neocolonial e, também, implantando a luta pela<br />

afirmação da alteridade africana no Brasil.<br />

As trilhas do vivido-concebido não são visíveis, mas são elaborações profundas sobre<br />

o existir. De fato, foi preciso um enorme esforço para quebrar as amarras etnocêntricas e, para<br />

que, assim, o elo foi realizado, mas foi vivendo a cultura ancestral e concebendo a forma de<br />

traduzir esta experiência que chegamos a compor o cenário que chamamos de “mata africanobrasileira”.<br />

O corpo da “mata africano-brasileira” não foi esculpido, foi composto, brotando da<br />

criatividade alimentada na dimensão invisível caracterizada pela “dinâmica dialética da<br />

relação “vivido-concebido” (LUZ, M. A., 1994), e consiste em cenas vividas, desenrolandose,<br />

e depois transformando-se em cenas concebidas para o cenário holístico. Esta<br />

manifestação realiza-se “desde dentro para desde fora”, perfazendo uma dinâmica de<br />

iniciação ao universo simbólico da civilização africano-brasileiro.<br />

Detalhe importante a ressaltar é que, para realizar tal ação, foi preciso aprender a<br />

“andar agachado”, com cuidado, observando e vivendo, vivendo e observando, caracterizada<br />

como etapa da iniciação.<br />

Muniz Sodré (2002, p. 65) traz um exemplo dos povos bantos aos falar da<br />

“territorialidade do corpo”. O banto cresce aprendendo a se relacionar com o espaço vivido,<br />

que vai desde o entendimento do que é família ao que é aldeia e, depois, mundo. Tudo isto<br />

introjetado por uma relação vivida numa experiência com os mais velhos e com outras<br />

pessoas do entorno.<br />

Jorge Alex Dantas (2005), 16 anos, jovem fundador do grupo percussivo Artebagaço<br />

Odeart, cuja iniciação é banto, durante as vivências conosco transmitem este saber milenar<br />

para os outros companheiros do grupo. Ele sempre dizia que o africano aprende vivendo a<br />

experiência: “Este negócio de ficar olhando um papel para dizer que aquilo que olhamos na<br />

figura é alguma coisa não passa pela minha cabeça”. E ainda acrescenta: “Quando pergunto<br />

alguma coisa a minha avó 9 ela diz: você vai ver. É depois, vendo e fazendo que você vai<br />

aprender” .<br />

9 Avó de Alex é Mameto de N’kisi Indaramukaia, cuja referência foi no capítulo I.<br />

165


Desta maneira, conforme diz Sodré (2002, p. 66): “A iniciação é, portanto, uma<br />

entrada num espaço, de ordem sagrada, que define plena socialização do indivíduo aos olhos<br />

do grupo”. A ordem sagrada para o povo banto refere-se à própria experiência que apenas se<br />

realiza com o conhecimento da introjecção do muntu, que para o povo Nagô corresponde ao<br />

axé, força vital que dinamiza a existência nagô.<br />

Quando falamos em “experiência iniciática”, reconhecemos que nossa situação é de<br />

alusão à realidade vivida nas comunalidades tradicionais, e aqui estamos trabalhando com a<br />

possibilidade de nos aproximar do entendimento do símbolo africano-nagô.<br />

A “experiência iniciática” à cultura africana começa pela transmissão dos valores<br />

inaugurais dos velhos para os mais jovens. São estes valores que estabelecem as relações<br />

sociais entre as pessoas: do homem, da mulher, dos filhos e dos mais velhos, o que<br />

corresponde ao que Marco Aurélio Luz (1995, p. 51) atribui à noção de “pedagogia negra<br />

iniciática”.<br />

Daquele momento em diante, o cenário teatral concebido começou a se expandir num<br />

ritmo dinâmico como se fosse o momento em que uma criança descobre quais caminhos a<br />

levam aos vários lugares do saber e, por isso, começa a espreitá-los e experimentá-los com<br />

indagações. A descrição metodológica pára por aqui, pois agora nos dedicamos a desenvolver<br />

a elaboração da estrutura metafórica concebida que originou o tema-título de nossa pesquisa e<br />

que traduz toda a dinâmica de ver, elaborar e compor a experiência concebida..<br />

O que apresentamos a partir deste momento, que corresponde também a metáfora<br />

“movimento agachado”, é o detalhamento dos desdobramentos que constituíram o símbolo<br />

Artebagaço Odeart. Logo, a ênfase ao simbólico relaciona-se à concepção do cenário<br />

metafórico “mata africano-brasileira” e à linguagem que o constituiu. Trouxemos esta<br />

abordagem para este ponto do trabalho porque entendemos que esta etapa faz parte do<br />

“desenvolvimento iniciático”.<br />

A concepção metafórica do cenário “mata africano-brasileira” surgiu durante o nível<br />

de interpretação simbólica e desdobrou-se das indagações: Que universo simbólico alimenta a<br />

concepção mata? Por que mata africano-brasileira? Qual referência mítica simboliza a relação<br />

da pesquisa com o espaço “mata”? Tais questionamentos nos exigiram aprofundamentos nas<br />

busca de referência da arkhé civilizatória do Cabula.<br />

Foi muito interessante aquele momento porque o corpo simbólico crescia motivado<br />

por circunstâncias intuitivas não relevadas na episteme ocidental, os “[...] aspectos<br />

profundamente reveladores por seu simbolismo oculto, ou mesmo elementos-signos que<br />

constituem a trama manifesta dos conteúdos inconsciente” (LUZ, N., 1997, p. 158). Assim, ao<br />

166


atribuir um significado de importância ao lugar onde crescia o corpo outros lutos realizavamse<br />

das certezas positivistas que atuavam como grilhões de nossa criatividade, logo, o cenário<br />

de “mata” se expandiu cada vez mais.<br />

Ao descobrirmos o caminho como se interpreta o símbolo, foi possível identificar o<br />

símbolo mítico-sagrado que corresponde ao protetor da “mata”, que também atua fora desta –<br />

Oxóssi, orixá caçador, protetor, provedor que nutre seu povo para que este possa fundar<br />

firmamentos de coexistência. Mas descobrimos, também, seu solo de origem: Oxóssi é<br />

Alaketu, rei de Ketu. Isto foi interessante porque, ao buscar a referência simbólica do lugar da<br />

pesquisa – “mata”, encontramos também o solo de origem da arkhé civilizatória plantada no<br />

Cabula, a cultura de Ketu é dos povos do império Nagô<br />

Do que sabemos dos africanos nagôs que vieram para Bahia, muitos eram fundadores<br />

de Ketu. Mas quais feitos deste povo constituiriam a história da trama social? Neste ponto, já<br />

tínhamos o símbolo mítico, a referência de lugar de onde vem o mito que apresenta o ethos<br />

civilizatório e a referência Artebagaço Odeart.<br />

Contudo, para falar da metáfora “mata”, era necessário encontrar outras referências, e<br />

foi seguindo as trilhas do “vivido-concebido” que, nos estudos de Marco Aurélio Luz, (1995)<br />

e Narcimária Luz (2000), encontramos os constituintes históricos que nos fortaleciam para<br />

alimentar o corpo com saberes da história sobre a família 10 Asipá, a referência mítica sagrada<br />

que se relaciona com a trajetória desta família e a importância dessa referência para<br />

compormos perspectivas de linguagem para o Artebagaço Odeart.<br />

Neste ponto, a trama histórico-social estava composta, mas faltavam as referências que<br />

caracterizassem uma dinâmica de floresta do tipo: como é constituída uma mata africana para<br />

reterritorializá-la? Quais os espaços de deambulação do símbolo mítico na mata? Quais são os<br />

habitantes da mata e onde ficam? Estes são pontos fundamentais para a elaboração da<br />

cenografia teatral, e com estes dados foi possível ver e elaborar a marcação cênica e outros<br />

aspectos.<br />

Para conhecer estes espaços recorremos a um estudo de Narcimária Luz (1999), que<br />

apresenta uma adaptação do auto coreográfico de autoria de Deoscóredes Maximiliano dos<br />

Santos, Juana Elbein dos Santos e Orlando Senna, com o intuito de efetuar uma abordagem<br />

mais consistente sobre Pluralidade Cultural e Educação.<br />

10 A família Axipá é originária de Oyó, capital do império Nagô, fundadora do reino de Ketu cujo patrono é<br />

Oxossi, pois seus fundadores são da linhagem (sinal de realeza) de caçadores ou pessoas que compunham o<br />

corpo de cavalaria real de Oyó. Mas adiante, em outro cenário da “mata” apresentaremos esta temática.<br />

167


Narcimária Luz considera o Mestre Didi um educador contemporâneo e tem elaborado<br />

suas produções a partir do universo de linguagens que transbordam do acervo mítico-poético<br />

por ele realizado.<br />

168<br />

[...] um dos ensinamentos do Mestre Didi, Alapini a todos seus filhos/as da<br />

comunidade Ilê Asipá: “trabalhando feito cupim”. É através dessa sabedoria<br />

acumulada que reúne ancestralidade , visão de mundo e universo<br />

existencial africano-brasileiro ,que vimos expressando nossas idéias em<br />

educação. Sem sombra de dúvidas, o universo existencial africano e todo o<br />

seu complexo sistema simbólico ,é a matriz da nossa produção acadêmicocientífica.<br />

Ele influencia o nosso pensamento educacional mobilizando-nos<br />

e/ou desafiando-nos a atualizar , reelaborar e afirmar a linguagens e valores<br />

das comunalidades de origem africana no âmbito das políticas oficiais de<br />

educação. Vejam que é um movimento radical , pois apela para o exercício<br />

de estratégias de luta , memória e continuidade que ultrapassa gerações,<br />

organizando, conduzindo e transmitindo o legado dos nossos antepassados.<br />

(LUZ, N., 2007, p. 47).<br />

E, mais adiante (p. 54), a autora ressalta:<br />

O movimento e “trabalho“ do cupim ao qual se refere Mestre Didi , é a<br />

metáfora de estratégias da luta secular dos africanos , cuja a temporalidade<br />

se presentifica e influencia o viver cotidiano das populações de<br />

descendência africana.<br />

O ensaio “Awasojú: dinâmica da expansão existencial das diversas<br />

contemporaneidades”, publicado na Revista da FAEEBA em 1999, é uma referência nas<br />

discussões sobre Educação e Contemporaneidade no âmbito do Mestrado em Educação e<br />

Contemporaneidade.<br />

Nesse ensaio, a autora ressalta um contexto dinâmico da floresta africana de iniciação<br />

através da saga de Ajaká, o Awasoju, quer dizer aquele que abre caminho. Da leitura deste<br />

estudo, percebemos que toda dinâmica de iniciação africana parte de um sentido de busca por<br />

algo que, quando “vivido-concebido”, constitui a iniciação, pois a: “[...] busca pela Folha da<br />

Vida, absorve conhecimentos ancestrais infinitos.” (SANTOS et al., apud LUZ, N., 1999, p.<br />

54), este era o desafio ao Awasoju, o jovem Ajaká, neto do rei nagô Oduduwa, ancestral<br />

primordial.<br />

No rito, logo ao chegar à floresta, o iniciado foi acolhido pelos espíritos das Mães<br />

Ancestrais, Iya-mi Agba, que o orientam: “[...] terá de aprender em seu próprio corpo. Com a<br />

cabeça, como os pés e o coração [...] Com o estômago, como as vísceras, com a saliva, o<br />

esperma e o sangue, com a pele e o pensamento.”, também o preparam, através do vinho da<br />

palmeira, que o fazem beber para que ele se transforme em “irmão de Aroni, orixá da folhas”.


Aroni ensina Ajaká os mistérios da floresta e lhe diz: ‘Os mistérios da vida estão em outros<br />

pontos da natureza, como em certas partes dos animais. Para sabê-los você terá de aprender a<br />

transformar-se em bicho”, sendo este um segredo das Mães ancestrais (Apud LUZ, N., 1999,<br />

p. 54).<br />

O iniciado cujo nome é Ajaká invoca outra vez as Mães ancestrais que lhe dizem:<br />

169<br />

“Você precisa da força do búfalo, da ferocidade e da agilidade da pantera; e<br />

da serpente, que lhe dirá como é possível renascer, renascer, renascer; você<br />

será se souber a mágica multicor do camaleão... O macaco fala com os<br />

mortos, os que sabem; Egun, Egun, Egun. O corpo do macaco é feito de dor,<br />

dor, dor[...]” (Apud LUZ, 1999, p. 54).<br />

É transformando o corpo em corpo de macaco que o jovem Ajaká consegue chegar até<br />

Egungun, espíritos ancestres masculinos que o acolhem e o conduzem através de ciclone ao:<br />

“[...] ponto mais secreto da parte desconhecida da floresta, a região mais escura e úmida, a<br />

mais sossegada protegida pelos espíritos” (apud LUZ, N., 1999, p.55). Neste ponto, Ajaká<br />

consegue a Folha da Vida e torna-se um grande iniciado que respeita seu ancestral, recebe a<br />

espada de Ogun, o símbolo do poder emanado desta entidade, e recebe o título de Awasoju.<br />

A abordagem geral dessa análise realizada por Narcimária Luz faz parte do acervo do<br />

PRODESE, inclusive, “Este mito iniciático integra o corpo teórico-epistemológico do<br />

Programa Descolonização e Educação” (LUZ, N., 1999, p.72), através dele, pudemos<br />

conhecer os símbolos-signos constituintes do espaço sagrados da floresta, que para nós é a<br />

mata. Após esta vivência com Ajaká, o corpo fecundado cresceu, havia clareza na<br />

compreensão de em qual espaço mata estávamos inseridos.<br />

É importante ressaltar aqui que, durante o nível de interpretação do símbolo, dois<br />

contos de Mestre Didi Axipá nos orientaram na dinâmica de identificação da simbologia<br />

sagrada nagô. De um conto já falamos, foi “O caçador e a caipora” (2004), no qual pudemos<br />

apreciar a dinâmica da caçada a partir de uma dinâmica pedagógica, e em que foi importante<br />

perceber a relação do ancestral com a entidade Odé e a mata.<br />

O outro conto foi “Chuva de poderes” (apud LUZ, N., 2003), que aborda um cenário<br />

mítico-sagrado de relações de poder entre as próprias entidades do panteão Nagô. Foi<br />

interpretando junto com o grupo de dança Artebagaço Odeart, no ano de 2005, que surgiu<br />

uma montagem coreográfica.


Figura 89 Figura 90<br />

Oficinas de dança no colégio público. 2005. Ensaio aberto do espetáculo de dança “A Chuva dos Poderes”.<br />

Local Posto de Saúde das Barreiras. 2005.<br />

Entretanto, o motivo principal da leitura deste conto “Chuva de poderes” foi a disputa<br />

de poder no grupo. Como o enfoque temático do conto era o conflito entre os orixás durante o<br />

início da criação à Terra, conseguimos mediar a situação, e um outro aspecto importante foi a<br />

possibilidade de realizar uma abordagem temática da pluralidade cultural através das<br />

principais características de oito entidades e depois recriá-las artisticamente.<br />

Por fim, o movimento agachado é a manifestação simbólica do corpo de quem faz a<br />

pesquisa em relação à cultura que observa, para conhecer e, assim, compor a estrutura míticopoética,<br />

é o “ver e elaborar ‘desde dentro para desde fora’” que Juana Elbein (2002) afirma<br />

ser experiência bipessoal integradora, que faz introjetar saberes da cultura desconhecida.<br />

Enfim, com este movimento, conseguimos compor uma dinâmica metodológica que se<br />

desdobra em três etapas: na primeira etapa, fizemos um documentário constituído de todas as<br />

referências que caracterizam a trajetória do Artebagaço: fotos, textos, dois vídeos, material de<br />

propaganda e entrevistas com depoimentos de artebagacianos, moradores do Cabula que<br />

conhecem a história do lugar e as referências históricas sobre a cultura africano-nagô.<br />

Na segunda etapa, fizemos uma análise do sistema escolar a partir do que apresentam<br />

os estudos sobre educação pública, em destaque o currículo oficial e a educação pluricultural,<br />

sobre a função da linguagem da arte no PCN do ensino médio e na escola, e o entendimento<br />

desta linguagem em educação para a sociedade oficial brasileira; analisamos a lei 10639/2003<br />

a partir do que colhemos das entrevistas com educadores de colégios do Cabula. Na terceira<br />

etapa, reunimos o conhecimento e o transformamos numa recriação cênica.<br />

Contudo a gênese do cenário mata vai além destes sinais, ela reside na forma<br />

topográfica do império Nagô mantida até enquanto os ancestrais viviam nos seus domínios<br />

político-territoriais, sem interferência da cultura urbana da arkhé européia. Esta estrutura fora<br />

170


eterritorializada pela Iyá Oba Biyi, Mãe Aninha, em 1910, na comunalidade tradicional Ilê<br />

Axé Opô Afonjá, na comunalidade do São Gonçalo do Retiro, no Cabula.<br />

Essa estrutura foi encontrada nos estudos de Marco Aurélio Luz (1995), quando<br />

realizávamos as buscas dos elementos constituintes do universo social, sobretudo algo que<br />

falasse sobre o território político numa dinâmica de relações sociais e econômicas, mas<br />

cremos que seja interessante apresentar um pequeno cenário do que colhemos nesta<br />

deambulação metodológica do “vivido-concebido.” (1995).<br />

Conta Marco Aurélio Luz (1995) que, de acordo com o mito da criação do mundo<br />

Nagô Oduduwa foi quem criou a terra e quem reinou antes de qualquer Alaafin 11 . Sua<br />

primeira cidade foi Ilê Ifé, capital sagrada dos iorubas, e neste lugar nascem sete<br />

descendentes, o último, Oraniyan, sai dos limites de Ilê Ifé e implanta o sistema do império<br />

Nagô em outro lugar, em Oyó, que passa a ser a capital política do império Nagô. Como<br />

Oraniyan, está relacionado com Xangô, que foi o terceiro rei de Oyó e tornou-se o orixá<br />

patrono da dinastia de Alaafin.<br />

Então, Xangô é o rei do território Nagô, e o império fica desta forma com duas cidades<br />

importantes Ilê Ifé, cidade sagrada, e Oyó, cidade política, mas o império tem outras cidades e<br />

cada uma tem o culto ao orixá patrono, assim como em Oyó é Xangô: na cidade-reino,<br />

Oshogbo é terra de Oxum, em Abeoukuta, terra de Iemanjá, em Ire, terra de Ogum, em Ketu<br />

terra de Oxóssi e assim vai.<br />

Mesmo tendo sua independência política, o Oba, rei em ioruba, de cada reino deve<br />

reverenciar o Oni, rei de Ifé, capital mítico-sagrada e o Alaafin, rei de Oyó, capital do reino,<br />

isto quer dizer garantia do equilíbrio socioexistencial.<br />

O reino de Oyó, assim como nas outras cidades-reinos, era composto por grandes<br />

extensões de terras nas quais havia o afin 12 murado com material em barro; em sua frente,<br />

ficava o mercado principal do reino, o oja oba, mercado do rei, e, ao fundo, estava a floresta<br />

que agregava o mausoléu dos reis anteriores, local de obrigações religiosas do rei, reserva<br />

vegetal de plantas medicinais e para os preceitos, os ojubo, assentamentos das entidades<br />

cósmicas, os orixás patronos das dinastias e da cidade.<br />

Então, em torno do afin, palácio do rei, a vida social da comunalidade transcorria, o<br />

afin geralmente se situava numa colina, por isso o rei sabia de tudo que se passava e podia<br />

11 Rei dos Nagôs<br />

12 “A palavra afin significa unicamente a residência oficial de um Oba.” (LUZ, M. !995, p. 131) O mesmo se diz<br />

para palavra Oba, que ser dizer rei, porém incomparável ao sentido de rei no solo político-cultural de arkhé<br />

ocidental.<br />

171


mediar os conflitos, os grupos de músicos que usavam os tambores falantes eram uma das<br />

formas de comunicação que inteirava o rei sobre o ocorrido. Ressaltamos que um oba, rei<br />

nagô, tem um Egungun que ele cultiva no interior do palácio. Outra referencia importante é o<br />

que circunda o afin, o compounds que abrigava os chefes consagrados e respeitados pelo<br />

reinos, e os quarteirões.<br />

De todo esse espaço destacado, de que o Ilê Opô Afonjá mantém a representação<br />

topográfica, a floresta é o lugar sagrado a que poucos têm acesso e, quando o têm recebem<br />

autorização para uso do espaço. Este é o lugar onde podem adorar os primeiros ancestrais<br />

reais que implantaram e deram continuidade à tradição, é o lugar onde o Oba faz a caçada e<br />

também revigora as forças que alimentam seu dinamismo existencial.<br />

Foi assim que intuímos nosso cenário mata africano-brasileira, inspirada no sentido<br />

existencial da floresta africana do império Nagô, por isso esclarecemos que a concepção de<br />

“mata africano-brasileira do Cabula” agrega o sentido desta tradição do império Nagô<br />

resguardado na comunalidade tradicional Ilê Axé Opô Afonjá que a reterritorializou ao recriar<br />

a estrutura topográfica deste império na sua “roça”.<br />

Outrossim, a concepção agrega o sentido de mata natural do Cabula que traz os sinais<br />

da existência guerreira em suas trilhas de caminhadas, feitas durante as insurgências<br />

quilombolas, e o sentido de mata como lugar de resguardo desta memória ancestral abrigada<br />

no corpo do cabuleiro, tanto referente ao conhecimento vivido e concebido, quanto o<br />

conhecimento herdado, expresso pelas linguagens verbal e não verbal.<br />

Os ecos entoam essa complexidade existencial desta alteridade africana, sendo uma<br />

expressão de uma luta para manter os sinais da expansão da vida no planeta, e, no Brasil, uma<br />

luta exigindo respeito por deter este modo próprio e herdado, naturalmente, de quem assim<br />

entendeu o mundo.<br />

A “mata africano-brasileira” é o refúgio de Odé e daqueles que têm a linguagem<br />

corporal enunciando a herança ancestral guerreira de provedor, protetor e guardião da tradição<br />

africano-brasileira. Mesmo saindo do lugar de resguardo, um Odé carrega em seu corpo as<br />

funções herdadas de protetor, provedor e guardião da tradição ancestral.<br />

Na próxima abordagem, comporemos o cenário que rompe os grilhões de<br />

homogeneidade existencial, quando penetraremos no espaço urbano-industrial e elaboraremos<br />

um melhor entendimento do sentido de Odé fora do espaço mata, dimensão espaço-tempo<br />

onde se situam nossas críticas às ideologias neocoloniais da sociedade oficial,<br />

especificamente à instituição escolar. Vamos lá.<br />

172


3 PEDAGOGIA DA SERVIDÃO NEOCOLONIAL<br />

Mas é urgente (re)afirmar que EDUCAR é repor os valores e<br />

princípios herdados e reelaborados – legado ancestral. É a<br />

expansão socioexistencial da diversidade humana, fruto de<br />

civilizações milenares que inauguram esse território, e lutam há<br />

séculos, tenazmente, par mantê-lo viável à vida. (LUZ, N.,<br />

2002, p.86).<br />

As políticas educacionais no Brasil, por mais belas que possam parecer aos<br />

enganados olhos, fazem tudo para esconder o que está velado; em outras palavras, o<br />

currículo oculta que favorece apenas a um grupo econômico capitalista e conservador<br />

dos valores de exploração neocolonial. Na verdade, desde que os interesses coloniais<br />

das nações européias voltaram seus olhos para a África, começou a vigorar uma política<br />

de submissão das nações africanas a uma visão hegemônica: “No final do século XV foi<br />

que começaram efetivamente a se engendrar e a se processar as relações coloniais<br />

escravistas, que demarcaram a presença do homem europeu no continente negro<br />

africano.” (LUZ, 1995, p.161).<br />

Com a diáspora, a sobrevivência dos povos africanos nas várias regiões para<br />

onde foram transportados, na condição de escravos, no Brasil inclusive, fez parte de<br />

uma luta permanente para afirmação de suas crenças, sua cultura.<br />

Historicamente, a política colonial escravista foi mudando de roupagem, e se<br />

evidencia, hoje, na visão neocolonialista, cujo projeto educacional é excludente e<br />

desqualificador das diferenças.<br />

Essa política, ocultada nas normas do currículo oficial, pode ser compreendida<br />

pelas insistentes reformas educacionais desde a chegada dos jesuítas em 1549 com o<br />

primeiro Governador, Tomé de Sousa, às terras usurpadas dos aborígines brasileiros,<br />

para servirem de instrumento do poder absoluto neocolonial representado pelo senhor<br />

da casa grande no solo urbano mercantil e pelo senhor de engenho no solo<br />

agroprodutivista.<br />

Estão no bojo subsidiário das reformas educacionais os ajustes de regulação que<br />

mantêm este poder hegemônico ocultado pela desfaçatez maquiada como política social<br />

brasileira, logo o que elas ocultam está longe de ser percebido sem o devido<br />

conhecimento do processo de colonização e escravização dos africanos e aborígines<br />

brasileiros nas chamadas “terras achadas”. É difícil perceber as intenções dessas<br />

reformas devido à sutileza da densa maquiagem realizada, sobretudo nas políticas de


174<br />

regulação das dinâmicas pedagógicas do sistema escolar. E como percebê-las, se estão<br />

tão ocultadas?<br />

Em nosso tempo de busca investigativa, 24 meses mergulhados totalmente em<br />

espaços das comunalidades do Cabula e de unidades do sistema escolar, olhar que<br />

poderia ser desnecessário se não fosse intencional e orientado pelos critérios de pesquisa<br />

“desde dentro”, tais observações nos levaram a uma profunda reflexão sobre a realidade<br />

histórica vivida como espaço educacional brasileiro.<br />

De maneira que, para refletir sobre a política pedagógica na escola brasileira e<br />

baiana, foi necessário criarmos um caminho “vivido-concebido” pelo colonizador no<br />

Brasil para erguer o espaço idealizado de seu poder absoluto desde a chegada de Pedro<br />

Álvares Cabral, tendo como ponto de chegada na cultura ocidental a ênfase nos<br />

desdobramentos de escritos do seu escrivão-mor, Pero Vaz de Caminha.<br />

A experiência Artebagaço Odeart começa opondo-se ao cenário monocultural do<br />

sistema público escolar. Mas o que seria monocultural? É a imposição da estética ideal e<br />

perfeita da linguagem “pedagógica da salvação” herdada dos aconselhamentos do<br />

escrivão-mor da esquadra de Pedro Álvares Cabral, Pero Vaz de Caminha quando este<br />

deixou em seu registro ao El-Rei de Portugal, D. Manuel, a seguinte mensagem: “Mas,<br />

o melhor fruto que nela 1 se pode fazer, me parece, que será salvar esta gente, e esta deve<br />

ser a principal semente que Vossa Alteza nela deve lançar”, (apud SIMÕES, 1997, p.<br />

18). Acreditamos que este seja o princípio fundador da educação brasileira oficial.<br />

Ora, desde as primeiras missões jesuítas com Pe. Manoel da Nóbrega e José de<br />

Anchieta, e depois com Antônio Vieira, que os princípios éticos dos valores<br />

civilizatórios são os mesmos definidos por Caminha para os moradores das chamadas,<br />

por ele mesmo, “terras achadas” 2 : desculturação dos modos herdados e imposição dos<br />

modos ocidentais do sentir e pensar o mundo que os circunda, daí a necessidade de uma<br />

“educação reguladora” que aprisiona, encarcera, enclausura até ficar ciente da função<br />

determinada pelo poder absoluto neocolonial.<br />

E quem idealizou o primeiro plano educacional? Uma mente com uma visão<br />

totalmente cartesiana, Pero Vaz de Caminha, um habilidoso e detalhista escrivão<br />

ocidental, logo um pesquisador “desde fora”, que depositava o olhar dissecador,<br />

esquadrinhador e cheio de julgamentos ético-morais judaico-cristãos na sociedade<br />

aborígine que vivia em terras que os portugueses chamaram de Brasil.<br />

1 Refere-se à terra do Brasil.<br />

2 Inserem-se, nesse contexto, os povos africanos na África.


175<br />

Logo, a incapacidade de interpretar a cultura aborígine brasileira “desde<br />

dentro”, como alguém que conhece o símbolo-signo e o símbolo-complexo, gerou a<br />

arrogante compreensão “desde fora”, alheia, tirânica 3 , da linguagem das pinturas no<br />

corpo, do corte de cabelos, dos adornos dos aborígines brasileiros.<br />

Ora, o mesmo ocorreu na África 4 , mas a prepotência reforçada pelo rigor das<br />

ciências racionalistas não permitiu aos célebres escrivãos ocidentais reconhecerem a<br />

estética pluricultural das culturas constituintes das sociedades tradicionais africanas.<br />

Veja, caro leitor, como Caminha descreve a arte plástica aborígine brasileira: “E<br />

lá andavam outros, quartejados de cores, metade da sua própria cor e a outra metade de<br />

tintura negra, maneira azulada e outros quartejados d’escaques” 5 (apud SIMÕES,1997,<br />

p.9). Esta foi uma das formas que o escrivão encontrou para reproduzir as referências da<br />

cultura aborígine, não havia nenhum envolvimento, nem tampouco interesse de<br />

conhecer de fato o significado pluricultural do ethos da comunidade tupinambá, seus<br />

escritos de perspectivas racionalistas ocidentais logo instituíram o estereótipo de<br />

inferioridade.<br />

É esta a linguagem educativa das perspectivas etnocêntricas que se encontram<br />

nos livros didáticos, que reprime os corpos do descendente de africano e do aborígine<br />

brasileiro e corresponde ao conhecimento oficial a que Narcimária Luz (2000, p.29)<br />

atribui a noção “denegação da alteridade”, que aqui chamamos de ceifação da<br />

criatividade.<br />

E foi percebendo, aos poucos, que não era nem por incapacidade criativa – já<br />

dissemos que esta é inerente ao querer humano – nem por vontade própria, que os<br />

estudantes do sistema público escolar dedicavam-se, apenas, a copiar, faz parte de uma<br />

quadricentenário projeto político de dominação civilizatória que impõe “obstáculos<br />

político-ideológicos” (LUZ, N., 1998, p.153) à dinâmica pedagógica do sistema público<br />

e impede o educador e o estudante de abordarem outros conhecimentos sobre o mundo<br />

que os circunda, sobretudo ancorados nas expressões herdadas da vivência em<br />

comunalidade.<br />

3 Tirânico é uma referência encontrada na tragédia de Sófocles, Édipo-Tyrannikós, palavra traduzida do<br />

grego para o português e significa estrangeiro.<br />

4 Nossa afirmação parte do conhecimento da história de genocídio vivida pelos ancestrais africanos e<br />

aborígines, pois o interesse de Portugal era tornar-se uma nação rica e poderosa diante das demais nações<br />

européias através da usurpação das terras da África e América (Brasil) e da exploração dos habitantes<br />

autóctones. Ver Marco Aurélio Luz em “Mundo dos Valores Brancos” (1995, p. 161).<br />

5 Em forma de xadrez.


176<br />

Quando iniciamos as atividades do Pré-Artebagaço, final de 1990, com 3 turmas<br />

de 5 a série do ensino fundamental, 140 crianças com 10 aos 14 anos, sabíamos que<br />

estávamos diante de uma pedagogia própria para manter o poder de uma sociedade<br />

universalista que atribui valores unidimensionadores.<br />

Por isso, Janice Nicolin não mediu esforços para realizar as iniciativas de<br />

oposição ao “recalque ideológico” porque, nesta situação de aprisionamento existencial,<br />

de apagamento da identidade de arkhé civilizatória, ao povo de tradição guerreira só<br />

restou o sentido de lutar, só restou o poder místico dinâmico de opor-se ao<br />

constrangimento, à humilhação e ao desagradável cumprimento do gesto de educador<br />

manipulador que também se deixava manipular, a oposição evita, assim, tornar-se o que<br />

Boal (1991) atribui à noção de “espectador, ser passivo”.<br />

O sentido de servidão colonial percebe-se no apegamento ao uso constante do<br />

estreito espaço sala de aula, ao limitante e controlador horário rígido dimensionado de<br />

50 minutos em 50 minutos no diurno e de 45 em 45 minutos no noturno, ao aprisionador<br />

regime de avaliação, prova e teste, que está muito próximo ao estático e restrito<br />

conhecimento do livro didático. Tudo isto tem a função de transformar o corpo bem<br />

mais do que em um mero “espectador”, pois esta pedagogia é formativa de sujeito dócil<br />

e servil às leis do produtivismo neocolonial.<br />

E tem mais: o fardamento como exigência de higienização, a sirene que regula<br />

as emoções que quebram a frieza imposta pelos congelados corredores, sem sinal de<br />

vitalidade, as cadernetas de freqüência e de notas que amarguram a satisfação de ensinar<br />

e aprender, as mesmas disciplinas que repetem sempre os mesmos conteúdos<br />

estabelecidos por programas antiqüíssimos, fora da realidade vivida na<br />

contemporaneidade, esta é a rotina do estudante do sistema público. É a desfaçatez do<br />

vaivém ideológico impondo-se no lugar do vivido, é como argumenta Sodré:<br />

A ideologia é a máscara com que o conhecimento cobre,<br />

semantizando, semiotizando, toda e qualquer simbolização. É a lógica<br />

de objetivação do mundo, que hoje opera com códigos hiperracionalistas,<br />

em favor da reprodução cultural da força de trabalho e<br />

das relações de produções.(SODRÉ, 2002, p.10).<br />

A ideologia, tal como mostra Sodré, é uma forma engendrada para organizar um<br />

mundo social à distância, de forma uníssona e unidimensional. Mesmo sabendo que a<br />

natureza é pluridimensional e polissêmica, o poder de Estado não se importa com isto


177<br />

porque o importante é ter sempre o controle do espaço que lhe permite o jogo<br />

hegemônico, tal como apresenta a luz da verdade platônica.<br />

Em nossos estudos, percebemos que o espaço homogeneizado não se encontra<br />

apenas na escola, ele começa fora da escola, no território político-social inserido na<br />

comunalidade, interferindo na arquitetura das casas e do comércio, a escola é também<br />

parte destes artefatos do poder unidimensional.<br />

O espaço de simulação social imposto para ser real é o que determina o poder de<br />

Estado através dos discursos de “qualidade de vida” ditos democráticos. Consideramos<br />

tal atitude como truculência, hipocrisia e enclausuramento existencial. É neste ponto<br />

que chamamos os ecos de Beni, outra fundadora do Artebagaço, moradora do Cabula e<br />

historiadora, para falar de democracia:<br />

A gente não tem essa liberdade chamada democracia desde Atenas,<br />

quando Péricles pregou a Democracia. Tem que saber para que povo<br />

ele a pregou, porque as pessoas falham ao dizer: “A democracia é<br />

governo do povo”. Qual é o povo? A democracia é governo do povo<br />

que está no poder, que não sou eu nem é você, Péricles pregou pra<br />

quem estava no poder que, hoje, corresponde à elite que nós já<br />

conhecemos que, aqui, sempre domina a mídia e todos os<br />

instrumentos de comunicação e que está dentro da própria política de<br />

governo.(Beni, 2006).<br />

Na realidade, a palavra serve aos discursos que justificam as iniciativas<br />

arbitrárias que compõem as estratégias de controle do poder de Estado, mesmo assim<br />

ganham apoio popular devido ao modo tirânico 6 de governar que, primeiro, investe na<br />

necessidade básica do povo e, depois, agrega ao espaço da comunalidade uma<br />

arquitetura maquiada para manter a aparência de vida moderna. Agora, vejamos o que<br />

Beni diz sobre isto:<br />

A tirania é a busca pelo poder absoluto, a gente tem muitos tiranos<br />

por aqui [refere-se ao Estado] sem precisar citar nome Em termos de<br />

educação, o sistema colonial consegue ser tanta coisa, ele consegue<br />

nos surpreender, ele é tirano a partir do momento em que começa a<br />

monopolizar e dar ordens, começa a buscar aquilo que venha<br />

favorecer só a ele e não a comunidade, desde quando ele não<br />

pergunta a sociedade o que é que ela quer, ele nunca pergunta impõe<br />

e prontamente a gente obedece, é um aparelho repressor. (Beni,<br />

2006).<br />

6<br />

“O modo tirânico é estender sua autoridade para além das leis”. ARISTÓTELES. Política. São Paulo:<br />

Martin Claret, 2006, p. 206).


178<br />

A conduta tirânica está sendo abordada para mostrar a forma multifacetada do<br />

poder de Estado, vestindo-se de democracia, com artefatos de proteção tirânica para<br />

impor as normas de funcionamento da engrenagem global que alimenta a ordem<br />

produtivista urbano-industrial. Tal situação caracteriza a alteridade como “bagaço”.<br />

Com efeito, o saber e a linguagem resguardada pelo currículo oficial foram o<br />

que assegurou ao cenário escolar a elaboração da metáfora pejorativa “bagaço” para<br />

caracterizar a cultura 7 do Grupo Artebagaço. Esta expressão atua como mola propulsora<br />

da desculturação, da desqualificação das referências civilizatórias africanas, que<br />

caracterizam a riqueza patrimonial contida no corpo do africano-brasileiro.<br />

Em Salvador, as linguagens dos contínuos civilizatórios africanos nagô, banto e<br />

jeje dinamizam a sociabilidade realizada pelas insurgências africano-brasileiras na<br />

escola, a maioria presente nas dinâmicas artístico-pedagógicas dos estudantes, isto é,<br />

nos modos de organização das tarefas e formas de linguagem de interação e<br />

comunicação das atividades, embora nem eles mesmos reconheçam as origens destas<br />

referências.<br />

Convém dizer que a insurgência africana não parte apenas do estudante, também<br />

poucos professores propõem aos estudantes formas de contestação das normas<br />

curriculares, embora desconheçam os caminhos, de maneira que juntos, professora ou<br />

professor com estudantes, constituam grupamentos de rebelados às formas de sujeição<br />

ao “trabalho escravo” ou mesmo ao preparo para ingresso neste.<br />

Vimos que a rebelião acontece porque o conhecimento transmitido aos<br />

estudantes pelos professores é uma prática de reprodução (APLE, 2002) com o objetivo<br />

de transformar pessoas em “bagaço”, ou seja, existe o cenário de confinamento das<br />

idéias tradutoras da liberdade para que o estudante aceite passivamente o que se diz,<br />

sem reclamar: “O corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o<br />

desarticula e o recompõe. Uma anatomia política, que é também igualmente uma<br />

mecânica de poder” (FOUCAULT, 2004, p. 119). Quando ocorre a desobediência, o<br />

estudante é caracterizado como desinteressado ou fraco.<br />

Foi a partir da reflexão da dinâmica de “formação educacional” do sujeito<br />

produtivista que fomos, buscar em Narcimária Luz (2001), a noção que melhor<br />

caracteriza a estrutura de poder neocolonial do sistema escolar que legitima semânticas<br />

que estigmatizam as referências culturais de adolescentes, jovens e professores, como a<br />

7 Cultura Artebagaço quer dizer: modos e formas de organização comunal, de elaboração, composição e<br />

comunicação da linguagem de referência civilizatória.


179<br />

expressão “bagaço”, que desqualifica a linguagem pluricultural de composição do saber<br />

da experiência Artebagaço Odeart, por ser referência civilizatória herdada da<br />

ancestralidade africana e aborígine.<br />

O enunciado que melhor caracteriza a constituição arrogante, prepotente e com<br />

arroubos de superioridade civilizatória da pedagogia da servidão neocolonial, é o que<br />

Narcimária Luz (2001, p. 24) atribui à noção de “casa grande”:<br />

Assim, temos a “casa grande”, espaço territorial eivado dos valores de<br />

prolongação colonial-imperialista, onde chefarias e tecnoburocracia<br />

do Estado oficial circulam atualizando: leis; normas; prescrições;<br />

discursos e teorias geopolíticas que delineiam arquiteturas escolares<br />

para territórios que se insurgem e afirmam valores africanos; enfim,<br />

estratégias que favorecem as metas que consolidem a “casa grande.”<br />

A metáfora “casa grande” nos permitiu compreender a relação de espacialidade<br />

do trompe-l’oeil da servidão pedagógica neocolonial e sua possibilidade de vida<br />

concreta no sistema oficial. A “casa grande” é o que caracteriza as iniciativas de<br />

políticas públicas que docilizam primeiro o educador, na instituição acadêmica, nos<br />

cursos de formação para professores, depois o estudante desde o pré-escolar ao término<br />

do ensino médio. Em seguida, a formação acadêmica constrói o educador “formado” e<br />

habilitado para a função de inculcador dos conceitos positivistas e evolucionistas das<br />

produções cientificistas e do livro didático legitimado pelo poder de Estado.<br />

Com efeito, nossas críticas às dinâmicas pedagógicas ancoradas, absolutamente,<br />

no livro didático penetram no território da legalidade do saber, embora muitos<br />

professores não percebam o livro didático contribui para reforçar as amarras da<br />

educação, para manter as limitações que ampliam a desigualdade social entre os<br />

brasileiros. Os argumentos de Ana Célia Silva se posicionam sobre isto:<br />

O livro didático não é colocado nas escolas de forma aleatória, como<br />

pode parecer ao primeiro momento. Ele é controlado pelo Estado, que<br />

se constitui em censor do mesmo através da legislação criada em 1938<br />

pelo Decreto-lei n 0 1.006, consolidado em 1945 pelo decreto n 0 8.460.<br />

A partir de então, os livros só podem ser adotados em todo território<br />

nacional com autorização prévia do Ministério de Educação e Cultura.<br />

(SILVA, 2004, p. 52).<br />

É dessa forma que o poder de Estado realiza o que Apple (2002, p.103) atribuía<br />

a noção de “controle simbólico”:


180<br />

Historicamente, tem ocorrido, com freqüência, como uma negociação<br />

para atender às metas apoiadas pelo Estado e aos desejos de grupos de<br />

fora da esfera estatal. As elites econômicas, políticas e culturais<br />

buscam ao máximo de apoio de outros grupos para suas políticas<br />

educacionais, oferecendo, em troca, uma quantidade mínima de<br />

diversificação.<br />

Tal situação tem levado tanto a política cultural quanto a educacional a<br />

participarem do que os críticos Horkheimer e Adorno atribuíram à noção de “indústria<br />

cultural”. Sem querer entrar nesta temática, apenas a citamos por estar muito próxima às<br />

nossas críticas, mas compreendemos a estética como um elemento imbricado aos<br />

valores éticos, portanto os entendemos, neste conjunto, como bens inegociáveis, em<br />

termos do câmbio socioexistencial.<br />

Contudo, uma estética de valores universais pode muito bem caracterizar as<br />

encomendas de “fachada” para produzirem os “efeitos” de ilusão de ótica do trompel’oeil<br />

neocolonial. Assim, podem ser atreladas a bens de consumo tanto a cultura quanto<br />

a educação e se realizam com linguagens estéticas. Neste ponto, se há elementos<br />

culturais à venda e com valor puramente econômico, não existe uma preocupação com a<br />

valorização do patrimônio simbólico das civilizações fundadoras dos cultos que<br />

celebram a vida, cujos bens são inegociáveis.<br />

Por isso que o conhecimento das disciplinas obrigatórias ou complementares<br />

curriculares tem seus critérios de unilateralidade, e aí não cabe a pluralidade: “O<br />

conhecimento original das disciplinas acadêmicas, de grupos sociais divergentes, é<br />

apropriado por aqueles grupos de pessoas que têm poder no novo contexto” (APPLE,<br />

2002, p.104). É neste ponto que, na relação “casa grande e senzala” (LUZ, N., 2001, p.<br />

24), o “controle simbólico” do saber cabe à “casa grande” que autoriza o discurso<br />

universal que oculta a pluralidade que dinamiza o metafórico espaço “senzala”, que é a<br />

escola.<br />

A pedagogia da servidão neocolonial é protegida pelo grande empenho dos<br />

gestores e seus auxiliares na defesa dos pilares normativos do sistema escolar. Na<br />

realidade, o que eles defendem são seus cargos e privilégios:<br />

Os funcionários valem-se dos seus cargos como se fossem títulos, de<br />

maneira privatista, arbitrária e ineficiente, razão pela qual o Estado<br />

burocrático-patrimonialista, autônomo frente à sociedade, é percebido<br />

como algo à parte, um “monstro sem alma”, “titular da violência”.<br />

(SODRÉ, 2000, p.75).


181<br />

As chefarias, incluindo os gestores escolares, sempre “decoraram” e “aplicaram”<br />

as regras de obediência que o poder da mais alta escala hierárquica da “casa grande”<br />

determinou como função da escola: “injeção” da cultura universal para “desculturação e<br />

repressão ideológica” (LUZ, M.A., 1994, p.20). Estas representações fazem tudo para<br />

formar um “trabalhador escravo” exemplar.<br />

Essa é meta única da “casa grande”, por isso as conveniências legais são<br />

constituídas pela “pureza” da ética-moral judaico-cristã e pela estética grega que<br />

Nietzsche (1998) denomina “apolínea”, porque, por este caminho, jovens e adolescentes<br />

acreditam que tiveram uma “boa educação” escolar. Na realidade, a política<br />

contemporânea da “casa grande” mantém: “Como na época colonial: um feito para<br />

obedecer e trabalhar, o outro, para mandar e dirigir.” (LUZ, M.A., 1994, p.24).<br />

A árdua vivência de aprisionados na escola aí se reflete porque todos são<br />

obrigados a seguir e cumprir as normas curriculares ou, caso as ignorem, sofrem<br />

perseguições de cobranças diretas das “chefarias” que fazem tudo, sem poupar esforços,<br />

inclusive fazem uso do poder através de atos como tornar um professor excedente 8 .<br />

Para cumprir o “receituário” administrativo, as chefarias empurram professores<br />

e estudantes de “arkhé kilombola” (LUZ, N., 2001, p. 25) ao cenário de desculturação.<br />

Estes, para romper com tais injunções, criam espaços de insurgência africano-brasileira<br />

como outrora fizeram os ancestrais africano aliados com comunidades aborígines no<br />

Brasil. Decerto que, em tudo isto, há um desgaste emocional, por isso a luta em grupo<br />

promove a renovação das atitudes rebeladas.<br />

A professora Sônia Regina que trabalha em escola do ensino fundamental do<br />

Cabula, em conversas informais em três entrevistas contribuiu para nossa crítica desta<br />

forma:<br />

Uma escola que trabalhei, a diretora era branca e ela falava com<br />

orgulho que a família teve escravos, a bisavó dela era dona de<br />

escravos, a avó e tal, e ela se colocava muito neste papel de “capitão-<br />

do-mato” e feitor, aquela [...] com o livrinho cheio de regras para<br />

você cumprir [aponta para seu peito]. No caso aí ela põe as<br />

coordenadoras para fazer este papel, muitas fazem porque gostam e<br />

concordam com o pensamento dela, outras, coitadas, fazem porque<br />

são obrigadas, é um trabalho, tem que fazer. Mas a gente vê, eu já<br />

8 Um fenômeno novo surgido no sistema público de ensino após o ano 2000, e que cresce<br />

assustadoramente, consiste na faltas de aulas na unidade escolar para onde o educador foi designado por<br />

via de concurso público para lecionar; a falta de aulas está relacionada à diminuição do número de alunos<br />

nas unidades escolares, principalmente no turno vespertino.


182<br />

peguei pessoas com coordenação e direção que fazem porque gostam,<br />

acham que a escola é dela e é ela quem está certa. (Sônia, 2006).<br />

A professora Sônia é moradora do Cabula desde 1992, antes morava em Belém<br />

do Pará, seu solo de origem. Ela possui fortes traços identitários do ethos indígena<br />

brasileiro. Sua herança cultural pode ser percebida por seus eidos ou presença da<br />

linguagem mítica ancestral expressa nos gestos, a forma de entoar soante, que ela<br />

mesma diz ser da arkhé civilizatória aborígine fincada no Pará. Ela ensinou no Pará e<br />

veio para a Bahia depois que casou com um africano-baiano, daí sua indignação por<br />

reconhecer a política da “casa grande e senzala” tão forte no sistema escolar.<br />

E também existe isto aí: “Sou diferente de você e sou superior e você<br />

tem que cumprir.”. Entra a hierarquia e com todas as letras, numa<br />

escola que trabalhei, a direção dizia: Você fula está abaixo porque<br />

tem hierarquia, você está abaixo por ser professora, fulana que é a<br />

coordenadora está acima de você. O colonialismo está sim presente,<br />

diariamente, na escola e faz questão de estar. A maioria dos diretores<br />

reza por esta cartilha, eles estão sempre assim, são opressores e são<br />

sempre assim, como o senhor de engenho. Quando não estão na linha<br />

de frente é porque não quer se desgastar ou querem sair de<br />

“bonzinho”, então põe o feitor ou o capitão do mato, que no caso é<br />

um coordenador ou uma pessoa do administrativo para cumprir seu<br />

papel. (SÔNIA, 2006).<br />

O diálogo com a professora Sônia não é para provar, absolutamente, nada em<br />

relação à política neocolonial da “casa grande e senzala”, pois estamos lidando com<br />

vivências. Na realidade, buscamos fortalecer a função dos ecos que, tal como a função<br />

dos ogé, instrumento de comunicação da referência mítica Odé, têm o poder de<br />

comunicação dinamizada pela força emanada da ancestralidade. Sônia, agora, desabafa:<br />

A gente vive na escola clássica que está com o pé no colonialismo, é<br />

aquela escola que vem de lá [lá quer dizer a época do Renascimento].<br />

Mudou a época, mudou a era, mas continua a mesma coisa, se você<br />

for ver tem gente escravizada dentro da própria escola. Como é que<br />

uma escola, que se diz “objeto” de educação, deixa você oprimida,<br />

deixa você amarrada sem liberdade para nada,e você é coagida?<br />

O chicote é invisível na mão, mas está ali lhe chicoteando, lhe<br />

batendo nas costas, lhe sangrando. Tem professor que é omisso,<br />

professor que adoece, professore que não agüenta mais, mas, pela<br />

questão salarial, pela questão do emprego, ele vai se calando, não é<br />

que aceite, mas é obrigado a ficar lá porque o chicote está fazendo-o<br />

calar e, infelizmente, aqui, o dinheiro fala mais alto. (SÔNIA, 2006).


183<br />

Os ecos da professora Sônia nos fazem perceber porque a estrutura escolar que o<br />

Ocidente criou para os povos colonizados não pode constituir um lugar de educação.<br />

Como já disse Narcimária Luz, (2000), “EDUCAR é repor valores culturais herdados e<br />

negados”. Esta é a possibilidade de expandir conhecimentos que garantam a<br />

continuidade civilizatória humana, porém a pedagogia da servidão neocolonial rasga<br />

estes valores.<br />

O diálogo com a professora Sônia é muito rico pois consiste numa crítica que<br />

abrange todos os segmentos de representação com seus designados “papéis” na escola,<br />

que vão desde o administrativo ao pedagógico, representados, respectivamente, por<br />

gestores e coordenadores e professores.<br />

As evidências do “recalque cultural” descritas pelos ecos de Sônia Regina<br />

encontram ancoragem na abordagem “formação de educadores: nem gregos nem<br />

baianos” (LUZ, 2001, p. 24) um estudo no qual N. Luz reconhece a fragilidade do<br />

educador quando inserido no cenário da “casa grande e senzala”.<br />

Sua crítica se dirige, então, à política neocolonial em educação e faz com que<br />

educadores como Sônia Regina percebam o “tipo” de conhecimento e linguagem de<br />

comunicação que lhes foram transmitidos pelo currículo de formação acadêmica e<br />

sintam-se encorajados a buscar outros caminhos que reponham os valores negados ou<br />

desqualificados.<br />

A crítica de Sônia Regina encontra ressonância nos argumentos de Narcimária<br />

Luz (2001, p.26): “Esses analistas simbólicos 9 tendem e são reduzidos a reproduzir a<br />

linguagem acadêmica científica ancorada na ‘casa grande’, e transformam-se em<br />

“feitores, ‘capitães-do-mato’ vigiando, punindo, boicotando as iniciativas daqueles que<br />

se insurgem [...]”.<br />

Essa argumentação de Narcimária Luz encontram os ecos de Beni Moraes<br />

quando esta tece críticas à submissão do professor à educação colonizadora do sistema<br />

público:<br />

Penso que quando a gente está obedecendo demais, sem contestar,<br />

sem questionar, nós estamos colocando o sistema espartano na<br />

educação, eles [o poder da casa grande] mandam pra que a gente<br />

obedeça [escola] a regra; vem tudo escrito e tal são as leis, tipo<br />

9 Narcimária Luz (2001, p.26) abre nota de esclarecimento desta expressão: ”Muniz Sodré esclarece que<br />

se trata de uma nova classe social em ascensão nas metrópoles do Ocidente, composta por grupos<br />

tecnoburocráticos que representam novas elites profissionais e empresariais, a saber: jornalistas,<br />

professores universitários, artistas, consultores, arquitetos, médicos, economistas”.


184<br />

receitas de bolo, assim: “Você tem que colocar isto, isto e isto. Se<br />

você não fizer assim, o bolo vai solar. Se você não fizer assim o bolo<br />

vai solar”. Então, isto é a mesma coisa que o sistema não vai<br />

funcionar e, neste caso, quem vai ser punido? É aquele que não come<br />

do bolo, é aquele que está no processo de fazer o bolo, aquele que<br />

está dentro do sistema.(Beni, 2006).<br />

E compara a educação contemporânea ao modelo educacional espartano:<br />

Então a gente tem regras a cumprir e quando estamos obedientes a<br />

estas regras estamos fazendo exatamente o que em Esparta se fez:<br />

manipular a educação e manipular o pensamento, que é pior,<br />

entendeu? Você não tem direito de questionar do tipo; “Não é por aí<br />

não, pode ser por aqui?”. Tal como em Esparta o sujeito não podia<br />

pensar assim, pois ele foi feito para obedecer. (Beni, 2006).<br />

Os ecos de Beni denunciam a forma fechada de controle disciplinar e a<br />

vigilância da educação, reforçam sua visão crítica ao sistema escolar quando ela<br />

descreve a dinâmica dos corpos na escola em uma dimensão espaço-temporal espartana:<br />

ouvir e obedecer:<br />

Então, a educação está ainda assim, não mudou, não existe nenhum<br />

projeto de governo que venha fazer isto, é preciso que alguém tenha<br />

uma estratégia melhor para que a gente [os participantes da escola]<br />

consiga questionar e fazer da educação um lugar autônomo, livre<br />

para que o aluno pense mais, para que o professor ajude ao aluno a<br />

pensar mais. Quando digo pensar mais, estou falando da falta de<br />

expressão da liberdade que não existe. (Beni, 2006).<br />

Essa parafernália que constitui a “pedagogia da servidão neocolonial” tem,<br />

apenas, um único interesse: estigmatizar o africano-brasileiro e o aborígine brasileiro. É<br />

um propósito que deixa a alteridade ferida, assim estas pessoas passam a sentir-se,<br />

culturalmente, inferiorizadas por ver os valores herdados dos seus ancestrais submetidos<br />

à depreciação e, com isto, passam também a enaltecer os valores culturais do<br />

neocolonizador.<br />

Esse é o “chicote invisível”. Vejamos o que Lindinalva lembra de sua infância<br />

na escola. Ela foi uma das estudantes do grupo Pré-Artebagaço e, atualmente, é<br />

professora do sistema público e trabalha com educação infantil:<br />

Era uma escola grande e eu tinha medo, eu era pequena e tinha muito<br />

medo [encolhe-se para falar medo]. Eu tinha medo de ir para escola.<br />

Eu achava a diretora muito autoritária, brigava muito e gritava


185<br />

muito. Era no tempo da palmatória, hum! [ri, estica as sobrancelhas,<br />

estica os braços que entre as pernas esfregam as mãos], ela tinha a<br />

palmatória na mão. Eu nunca tinha apanhado dela porque eu tinha<br />

medo e estudava muito e também queria tirar notas boas, mas o<br />

ensino era tradicional. As professoras eram boas, lembro da minha<br />

primeira professora, mas... [pausa para olhar o além] (Lindinalva,<br />

2005).<br />

Logo pedimos que descrevesse o que era tradicional e ela disse: “É aquele<br />

ensino antigo. Aquele ensino onde o aluno nunca sabe nada, não sabe e não pode falar,<br />

não tem o direito de se expressar porque só o professor é quem sabe. O aluno não sabe<br />

e...,” [pausa para respirar].<br />

O interessante é que, nessas pausas, a ancestralidade expressa-se através do<br />

corpo, e é importante dedicar atenção ao não-verbal para entender o sentido oculto do<br />

corpo que luta contra o silenciamento. Então, questionamos: – E se alguém tentasse<br />

falar alguma coisa como seria feito?<br />

Na verdade, as pessoas nem tentavam falar porque se tentassem o<br />

professor mandava calar a boca e dizia: “Você não sabe nada, fique<br />

calado e escute o que estou falando, é falta de educação, quando um<br />

burro fala o outro murcha as orelhas.”. E nós ouvíamos isto, então<br />

não nos ousávamos falar. (Lindinalva, 2005).<br />

Insistimos em saber como era seu relacionamento com a professora:<br />

Eu não tinha medo da professora porque eu via a professora como<br />

uma mãe porque ela era bem idosa, e de uma certa forma, era<br />

carinhosa, principalmente comigo, não sei por que, mas eu era muito<br />

quietinha, caladinha, então ela gostava do meu jeito. Não falava<br />

nada. (Lindinalva, 2005).<br />

O interessante é que, ao mesmo tempo em que Lindinalva diz que ser<br />

“quietinha, caladinha” era seu jeito, mais adiante mostra, tanto no discurso verbal<br />

quanto no não-verbal (expressões corporais como abrir e fechar das mãos e o<br />

encolher dos ombros), que este é o jeito entendido pela escola.<br />

Neste momento, trazemos algumas imagens, fruto de uma pesquisa feita<br />

em 2000 10 , extraídas de um espaço de educação infantil do sistema público no<br />

Cabula.<br />

10 Fruto dos desdobramentos do curso em especialização em educação infantil da <strong>Uneb</strong> entre 1999 a 2000,<br />

foi uma pesquisa de campo que durou 10 meses, primeiro com a observação e depois com a participação<br />

com jogos cênicos, com platéia e público infantil.


Figura 91 Figura 92 Figura 93<br />

O brinquedo e o corpo em repouso A platéia participante. A platéia saindo da cadeira 11<br />

186<br />

A dinâmica pedagógica consistia em manter ao máximo, crianças de 5 a 6<br />

anos sentadas. Na primeira foto (Figura 87), uma criança mostra a influência<br />

imperialista americana através de um boneco personagem de um desenho<br />

televisivo, mas as outras estão atentas à história. Na segunda imagem, as crianças<br />

ouvem atentas a história.<br />

Na terceira imagem, cada criança tenta fazer uma recriação do seu animal<br />

preferido da história, a criança que está com os olhos fechados não está dormindo,<br />

esta foi a linguagem para dizer seu personagem, a preguiça, foi isto que ela falou<br />

para Janice Nicolin. Este foi o início de um trabalho para desmecanizar o corpo<br />

em pouso por 8 horas, pois ficavam na creche das 7 às 17 horas e dormiam por<br />

duas horas ou, pelo menos, se deitavam.<br />

O surpreendente é a forma como a criança desde cedo é tratada como se<br />

fosse uma existência oca, que vai à escola para receber o preenchimento. Com<br />

isto, a escola impõe a língua portuguesa padrão, a escrita como forma correta de<br />

comunicação e os princípios da ética judaico-cristã. Neste ponto, concordamos<br />

com Narcimária Luz que a pedagogia é terapêutica, haja vista que a criança não é<br />

um ser oco e por isso as dinâmicas atuam no sentido de desculturá-la.<br />

Parece-nos bastante apropriado destacar, aqui, que, enquanto a<br />

população de ascendência africana luta para dar legitimidade aos seus<br />

valores dentro dessa dinâmica dialética que ilustramos, criada por Mãe<br />

Senhora 12 , persistem as estruturas jurídico-políticas das instituições<br />

que constituem o Estado Terapêutico, erigindo, como já vimos uma<br />

panacéia de escrituras, tratados, leis, enfim, todo um aparato movido<br />

pela retórica taxionômica etnocêntrica, que visa o controle social, o<br />

estabelecimento da ordem, de um ideal de normas moralmente aceitas,<br />

ou de padrões comportamentais eurocêntricos. (LUZ, N., 2000, p.36).<br />

11 Imagens extraídas de uma atividade em que Janice Nicolin contava a história; no final, pedia que eles<br />

vivessem a história cujo enredo era uma comunidade de animais onde o rei era um Leão.<br />

12 Narcimária Luz (2000) aborda o universo de significação da expressão “da porteira pra dentro, da<br />

porteira pra fora”, criada pela Ialorixá Oxum Miuwa, Mãe Senhora Axipá ou Maria Bibiana do Espírito<br />

Santo, mãe de Mestre Didi Axipá.


187<br />

Realmente, o sentido expresso em “o jeito” de que a professora gosta, consiste<br />

em conseqüências das ações terapêuticas realizadas pelas condutas pedagógicas, tanto<br />

pela diretora (palmatória, gritos) quanto da professora (a ordem para emudecer os<br />

corpos). O colega de Lindinalva foi punido como um transgressor desta origem<br />

(silenciar) que visa totalmente submeter os corpos para formatá-los em padrão único de<br />

obediência ilimitada.<br />

E, “[a]ssim, se exige o imobilismo destas crianças, criando-lhes um sentimento<br />

de culpa, muitas vezes relacionando o fracasso escolar à própria criança e sua<br />

família”(LUZ, N., 1989, p.46), por isso não é muito difícil encontrar, nos corredores das<br />

escolas públicas, crianças e adolescentes perambulando ou sentados nas escadas<br />

conversando, jogando baba na quadra do colégio no lugar de ir à sala de aula, alguns<br />

dizem: – “Sou burro mesmo, Pró, não adianta mais estudar”.<br />

Figura 94 Figura 95 Figura 96<br />

Circulando em busca de liberdade. Refletindo a vivência no claustro. Quebrando o ritmo do confinamento.<br />

A repressão exercitada por parte da escola sobre a linguagem<br />

comunitária e, simultaneamente, da sua representação e forma de vida,<br />

leva as crianças negras a recalcarem-se diante dos desafios e a<br />

viverem-nos como problemas relacionados à sua origem familiar de<br />

ancestralidade africana, inculcando um complexo de inferioridade que<br />

tende a levá-la a não acreditar em si, no seu jeito de ser e na sua<br />

história etnocultural. (LUZ, N., 1989, p.46).<br />

Será que o estabelecido no Art. 35, III da LDB 9.394/1996 para o ensino<br />

médio 13 , [...] “o aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a<br />

formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico.”<br />

(BRASIL, 1999, p.46), seria mais uma das reformas “desde fora”. Pois o que diz a Lei,<br />

na prática, é inviável, o sistema de ensino não oferece nenhuma possibilidade do uso da<br />

criatividade que a atitude crítica exige para seus desdobramentos.<br />

13 A experiência político-pedagógica Artebagaço Odeart desdobra-se num cenário de ensino médio.


188<br />

Como é possível estabelecer como critério de educação desenvolver<br />

“pensamento crítico” se a dinâmica administrativa e pedagógica, legitimamente, denega<br />

a alteridade dos estudantes que não aceitam a subjugação e, inclusive, são punidos a<br />

repetir o ano por não ter aceito as injunções legais?<br />

Quanto aos professores rebelados, aqueles que não aceitam as leis impostas, tal<br />

como os alunos rebelados, recebem punição, por exemplo: falta-lhes oportunidades de<br />

indicação para realizar cursos que melhorem sua carreira, sofrem prejuízos na política<br />

de distribuição de carga horária (fenômeno atual no Estado da Bahia, conhecido por<br />

“professor excedente”). Será que, em muitos casos, o excedente não seria o rebelado?<br />

É isto que o projeto de sociedade neocolonial oculta: a real vivência da escola e<br />

as mais cruéis formas de sujeição das potencialidades criativas do estudante e do<br />

professor que afirmam sua identidade africano-brasileira ou aborígine brasileira. Ambos<br />

os segmentos são perseguidos, ridicularizados, até apagar o conhecimento vivido para,<br />

apenas, acreditar na inculcação da realidade ideológica positivista e médicoevolucionista,<br />

dando-lhe preferência. Vejamos o que Marco Aurélio Luz diz sobre a<br />

implantação do sistema de ensino nos países colonizados:<br />

O sistema de ensino que foi implantado e desenvolvido nesses países<br />

em geral é uma herança do colonialismo e, como tal, se constitui num<br />

aparelho ideológico do Estado, voltado a reproduzir e divulgar os<br />

valores evolucionistas, etnocêntricos ou eurocêntricos, assim como<br />

para atender às necessidades técnicas de uma economia atrelada ao<br />

mercado de trocas comerciais neocoloniais. (LUZ, M.A., 1989, p.9).<br />

É importante destacar que, apesar de o Art. 35 estabelecer uma educação<br />

formadora ancorada na ética, na intelectualidade e no pensamento crítico, no terceiro<br />

parágrafo do Art. 36 transparece um sistema de valores educacionais atrelado ao<br />

“mercado de trabalho”: “O ensino médio, atendida a formação geral do educando<br />

poderá prepará-lo para o exercício da profissões técnicas.” (BRASIL, 1999, p.47).<br />

(Grifos nossos).<br />

Questionamos então: Quais valores civilizatórios asseguram essa ética?<br />

Seguindo o pensamento de Marco Aurélio Luz (1989), o sentido de ética se resguarda<br />

numa estética de valores civilizatórios ocidentais, logo o que prevalece é uma política<br />

educacional de confinamento dos estudantes para inocular as normas impostas por um<br />

Estado neocolonial.


189<br />

Assim, a identidade referida no currículo traduz um ethos que desqualifica os<br />

valores civilizatórios da herança africana e aborígine brasileira. Em seu lugar, a<br />

pedagogia da servidão força a introjeção de padrões monoculturais, como mostra<br />

Narcimária Luz, ao argumentar sobre as políticas públicas da educação brasileira:<br />

O totalitarismo neocolonial e imperialista, que impulsiona o capital<br />

industrial no Brasil, não admite conviver com as diferentes<br />

identidades culturais, e forja ideologias que procuram conceber um<br />

Estado que erige, em relação ao seu funcionamento, a organização e<br />

estabilidade, valores que constituirão padrões de comportamentos<br />

concentrados numa perspectiva una, unidimensional, totalizante,<br />

absoluta, tentando assegurar, dessa forma, o índice de “normalidade”<br />

necessário à sua afirmação (LUZ, N., 2000, p. 30).<br />

E, assim, todos que não se encontram em consonância com a lei da<br />

“normalidade”, se transformam-se em “fora-da-lei” para o Estado neocolonial. Logo,<br />

não acreditamos em concentrar a luta apenas no sistema escolar para atingir as bases<br />

hegemônicas neocoloniais e quebrar os grilhões da servidão. A experiência Artebagaço<br />

Odeart transcendeu os espaços da sala de aula, os muros da escola e levou a luta à<br />

comunidade para que esta acorde e veja que pode transformar a escola.<br />

Do solo filosófico grego clássico, com Sócrates, Platão e Aristóteles, ao solo<br />

filosófico-cientificista europeu, com Comte, Darwin e Taine o etnocentrismo só faz<br />

mudar a “casca”, mas o preenchimento da forma que o caracteriza é o mesmo; o<br />

estereótipo de inferioridade do africano e do aborígine.<br />

As teorias do evolucionismo e o do positivismo, que dão sustentação às<br />

perspectivas neocoloniais de educação, são os pilares de legitimação dos aparatos da<br />

pedagogia da servidão neocolonial, que está pronta para realizar a desculturação dos<br />

herdeiros dos princípios ético-estéticos e dos valores africanos plantados no Brasil e em<br />

qualquer lugar do mundo. Elas são a base do etnocentrismo que ceifa os processos de<br />

criatividade humana.


190<br />

3.1 ENTOANDO A MATA: ROMPENDO OS GRILHÕES DA INFERIORIDADE<br />

AFRICANA<br />

A dinâmica político-pedagógica Artebagaço Odeart ancora-se num solo de<br />

cultura pluralista, que é a pluralidade cultural expressa pela linguagem que caracteriza<br />

as diversas culturas que compõem o universo 14 simbólico africano-brasileiro.<br />

A vida transcorre nesse solo do jeito que ela é, polissêmica, cheia de<br />

contradições e antíteses existenciais. É o paradoxo do qual falamos, por isso, o solo<br />

hegemônico ocidental coloca grilhões nas expressões corporais dos herdeiros deste<br />

patrimônio, para controlar o corpo dinâmico nas “gaiolas” da servidão neocolonial.<br />

Entretanto é esta a função do Grupo Artebagaço Odeart: quebrar os grilhões que<br />

aprisionam os corpos do cabuleiro, rasgar as amarras verbais do silenciamento. Através<br />

dos ecos de Diego Nicolin é descrito como estas vivências se realizaram com as<br />

estudantes de Magistério no período de 1991 a 1995:<br />

Precisávamos instrumentalizar o aluno para que ele pudesse fazer<br />

algo próprio. É inútil colocar uma caneta na mão de uma criança,<br />

provavelmente ela não irá escrever Hamlet [sorri sorrateiramente],<br />

precisa, pelo menos, ensiná-la a segurar a caneta, antes de ela<br />

produzir algo, e trabalhar com experimentos. Entre as “loucuras”<br />

[sorri outra vez] que foram feitas, surge a idéia: por que a gente não<br />

monta uma peça? Foi escolhido um grupo de Magistério e a<br />

adaptação de Monteiro Lobato, “Emília no País da Gramática”.<br />

Nossa inexperiência era total, não tínhamos nenhuma base cênica,<br />

nem nada, o que a gente tinha era garra e vontade de fazer, que acho<br />

que seja a coisa mais “importante”; e ali pegamos o texto,<br />

adaptamos, remodelamos, usamos mais ou menos as mesmas<br />

personagens que Lobato usou, criamos novas, retiramos outras,<br />

fizemos aquelas coisas que um grupo de alunos [ele fala de estudante<br />

de teatro] fazem quando vão montar uma peça. Eu diria, com os olhos<br />

de hoje, que aquela peça foi extremamente banal, extremamente<br />

simplória. Não tinha nada de inovativo, pois tinha os esquemas que a<br />

escola queria, que o mundo acadêmico até propõe sob certos<br />

aspectos, mas era um grande experimento. Isto foi feito nos intervalos<br />

de aula, valendo nota. E por quê? Conceito nosso: “O aluno só faz<br />

isto por nota. Se não for por nota ele não faz”. Ali nos olhamos na<br />

cara e pensamos: Será que é mesmo isto? Nasceu o desafio. Vamos<br />

tentar fazer algo que não seja pra nota. (Diego, 2004).<br />

14 Mostramos que, no império Nagô, na capital Oyó, havia o culto a cada orixá patrono de cada reino que<br />

compõe a totalidade do império, o que implica respeitar a cultura do lugar.


191<br />

Esse momento que Diego descreve corresponde ao início da quebra dos<br />

“grilhões”. Na realidade, havia um trabalho em sala de aula de que Diego não<br />

participava. Os obstáculos ideológicos etnocêntricos atuam na mente do estudante como<br />

um comando eletrônico num robô, pois desde cedo, ele aprende que tudo que faz na<br />

escola resulta em nota (avaliação quantitativa), logo, também tudo se desdobra na busca<br />

desta nota.<br />

Quebrar este ritmo, então, exigiu estratégias de nossa parte. Durante o ensaio,<br />

realizávamos a desmecanização dos corpos rígidos e estáticos porque ficavam sempre<br />

sentados na cadeira. Em nossos encontros, sentávamos, nós e os estudantes, no chão ou<br />

na cadeira, onde quiséssemos. Ficávamos descalços ou não, gritávamos, às vezes,<br />

gargalhávamos, sorríamos, olhávamos uns aos outros como se nos estivéssemos vendo<br />

pela primeira vez ou como se nos estivéssemos vendo todos os dias. O reconhecimento<br />

das potencialidades corporais vinha aos poucos.<br />

Antes da leitura, havia a dinâmica de falar de si mesmo, dos relacionamentos<br />

familiares, conjugais, da vizinhança, dos gostos ou não gostos, e tudo isto implicava<br />

uma dinâmica socioexistencial. Com o tempo, passamos a nos encontrar nas casas um<br />

dos outras, mas os ensaios eram sempre feitos, primeiro no curso Jansen, de propriedade<br />

de Janice e Diego Nicolin, depois, quando o grupo cresceu de 35 estudantes, uma turma<br />

em 1991, para 120, três turmas em 1992, os ensaios passaram a ser na laje da casa de<br />

Janice e Diego Nicolin.<br />

A obtenção de nota foi perdendo sentido até 1995, era um ponto em final de ano.<br />

Na realidade, as estudantes que participavam estavam ali para libertarem seus corpos e<br />

ganharem confiança para se expressarem de acordo com os conhecimentos acumulados<br />

dentro e fora da escola; poucas queriam a nota, contudo havia ouças mais intrigantes,<br />

que só queriam leitura, escrita e prova.<br />

É importante dizer que, à proporção que o corpo se soltava, ganhava mais<br />

elasticidade e o crescimento da expressão verbal do ator era visível, por exemplo, havia<br />

textos mais complexos que outros (havia um aluno em meio a 39 alunas, a partir de<br />

1993) e muitas estudantes que recuavam diante desses textos. Logo no início, contudo,<br />

quando ganhavam confiança em si mesmas diziam: – “Janice, posso pegar aquele texto<br />

tal? Quero ver se consigo”. E tentava.<br />

Diego não pode acompanhar de forma tão intensa quanto Janice acompanhou a<br />

restituição da vitalidade dos corpos do estudante e das estudantes de Magistério. Foram<br />

três turmas que se formaram em 1993, 1994 e 1995. Todos os estudantes, no primeiro


192<br />

ano, formavam a “cortina de silenciamento”, o não-poder falar, o medo, o temor de<br />

serem repreendidos, desqualificados, subjugados. Eram corpos recalcados e alienados<br />

de si mesmos.<br />

No segundo ano, a expressão corporal ganha realce: era o pisar firme no chão,<br />

levantar-se para ir ao quadro escrever ou para se sentar ao lado de outra colega. No<br />

terceiro ano, quando preparávamos a peça, com a experiência da dramatização, o corpo,<br />

que dialogava com a voz interior, exteriorizava o que fora elaborado nos ensaios, por<br />

isso, voz e corpo andavam lado a lado, confiantes em si mesmos. Era a estética da<br />

linguagem pluricultural afirmando a alteridade:<br />

O domínio de uma nova linguagem oferece, à pessoa que a domina,<br />

uma nova forma de conhecer a realidade, e de transmitir aos demais<br />

esse conhecimento. Cada linguagem é absolutamente irresistível.<br />

Todas as linguagens se completam no mais perfeito e amplo<br />

conhecimento real. (BOAL, 1991, p.137).<br />

Para Janice e Diego, a luta tinha como meta transformar o que Foucault (2004,<br />

p.117) caracteriza como “corpos dóceis” em corpos com vitalismo próprio da<br />

comunalidade do Cabula. Para tal, partiam da percepção de qu, na escola, o indivíduo<br />

está sujeito a condições deploráveis de obediência aos esquematismo, pedagógicos<br />

etnocêntricos que realizam a servidão neocolonial para se tornar o que Narcimária Luz<br />

(2000, p.52) caracteriza por “sujeito produtor e consumidor”. Assim, as iniciativas do<br />

Pré-Artebagaço de 1990 a 1995 desdobravam-se em acordar este corpo e quebrar as<br />

amarras da servidão neocolonial.<br />

Ressalte-se que o corpo de discente era composto por pessoas que faziam curso<br />

de formação de educador e, o que era pior, eram futuros educadores sendo “treinados”<br />

para realizar “cegamente” “[...] dinâmica da ideologia evolucionista e seus<br />

desdobramentos, ou seja, o racismo, o etnocentrismo e a ideologia do<br />

embranquecimento veiculada pela política terapêutica do Estado 15 ” (LUZ, N., 2000,<br />

p.48) no espaço escolar.<br />

Nesta fase, uma das situações mais difíceis de realizar foi a dinâmica da escrita.<br />

A pessoa copista não percebe que sua escrita é uma cópia, pois faz parte do<br />

condicionamento unidimensional pedagógico tirar da pessoa a capacidade de perceber<br />

15 Ver, em Narcimária Luz (2000, p.30-31), a referência ao poder do “Estado Terapêutico” que caracteriza<br />

as ações etnocidas do totalitarismo neocolonial, que impõe valores etnocêntricos, estabelece padrões de<br />

comportamento universal que desqualificam os valores africanos e aborígines brasileiros e por isso<br />

subjugam e recalcam, ideologicamente, os descendentes destas culturas.


193<br />

seus próprios estímulos e conduzi-la ao processo de individualismo que gera a<br />

experiência unilateral.<br />

É preciso que se diga, que a escola é a institucionalização da<br />

forma escrita de comunicação, além de ser o espaço em que<br />

circulam e se divulgam os valores e visão de mundo<br />

europocêntricos. A prática pedagógica instituída nas escolas<br />

legitima a escrita, impondo-a como forma de comunicação<br />

universal, e a partir dessa “verdade”, denega, deforma,<br />

desqualifica e alija as outras formas de comunicação que<br />

emergem dos demais contínuos civilizatórios. (LUZ, N., 2004,<br />

p.41).<br />

Essa unilateralidade gráfica desdobra-se na forma larga e comprida da escrita do<br />

Ocidente, em outras palavras, devido as imposições e acúmulos de tantas regras<br />

gramaticais, nos textos existem palavras e fatos, porém os significados simbólicos<br />

contextuais que geram a profundidade do dizer ou a mensagem poética, ou mesmo a<br />

visão crítica do autor não aparecem e tornam-se desnecessários e desconhecidos no<br />

conceito de quem escreve. Mas este é o resultado de uma escrita sem referência da visão<br />

crítica da própria realidade<br />

Quando eram feitas perguntas como “Por que você apresenta esta opinião sobre<br />

este fato?”, as respostas eram: – “Porque vi na televisão”, ou “Porque no livro de<br />

português fala assim”. O que percebemos era que havia muito mais preocupação das<br />

estudantes em repetir um pensamento já cristalizado do que elaborar um texto próprio,<br />

além de revelarem uma preocupação formal vinculada às regras gramaticais da língua.<br />

Do que sabemos o padrão lingüístico idealizado é o que a escola reconhece<br />

como conhecimento sobre a língua português. Isto também se constitui em um grande<br />

obstáculo ideológico para desenvolver a compreensão de que vivemos num país<br />

pluricultural, que é o reconhecimento da nossa herança milenar da civilização africana.<br />

Para as sociedades contemporâneas detentoras do legado civilizatório<br />

africano e aborígine, que apresenta uma riqueza fabulosa de formas e<br />

códigos de comunicação, esse contexto homogeneizador da escrita<br />

constitui uma verdadeira ditadura, pois impõe a todos que convivem<br />

com outras referências ético-culturais o paradigma existencial do<br />

nomos eurocêntrico. (LUZ, N., 2004 p.41).<br />

O “nomos” (SODRÉ, 2002, p.29) eurocêntrico corresponde à base políticojurídica,<br />

religiosa, lingüística do Ocidente, ou seja, todos os pilares sociais constituintes


194<br />

do obstáculo ideológico etnocêntrico. A escrita, a partir das regras ideológicas, é um dos<br />

pilares do nomos.<br />

Uma das nossas atitudes de ultrapassar o obstáculo da escrita foi propor às<br />

alunas um sistema de escrita ancorado na escuta do próprio corpo, por exemplo: Janice<br />

sugere que o estudante sinta a respiração, o movimento dos braços quando escreve para<br />

fazer a pontuação, uma respiração leve e uma vírgula, para um questionamento o corpo<br />

se interroga e sempre pára, um parágrafo pede uma respiração profunda. Estas são<br />

possibilidades de quebrar os grilhões verbais, tanto na escrita quanto na fala.<br />

Quanto aos grilhões não-verbais, estes desdobravam-se quando, no<br />

reconhecimento das potencialidades do corpo, o estudante as percebia como elemento<br />

de comunicação e interação no espaço vivido. Os resultados foram percebidos,<br />

geralmente, no final do terceiro e último ano do curso de Magistério, quando muitas<br />

alunas e o aluno sentiam-se confiantes para: discordar ou concordar em relação a um<br />

fato; propor novas dinâmicas em sala de aula; fazer Vestibular. Esta última opção era<br />

uma possibilidade remota, pois os futuros professores acreditavam que o curso era<br />

“fraco”, era assim que diziam, porque não abordava conhecimentos de outros cursos do<br />

ensino médio que orientavam o estudante para o Vestibular.<br />

É Marco Bagno quem introduz a noção de “crime pedagógico” para se referir ao<br />

tempo perdido na escola estudando um conhecimento idealizado. Ele se refere ao ensino<br />

de gramática normativa: “Ora, há algum tempo já sabemos que boa parte das<br />

classificações, dos conceitos e das definições gramaticais da Gramática Tradicional são<br />

falhos, incoerentes e muitas vezes contraditórios” (BAGNO, 2002, p.51), mas<br />

ultrapassar os obstáculos que inibem a criatividade nos estudos lingüísticos é um grande<br />

desafio para romper a cortina do silenciamento escolar.<br />

O obstáculo ideológico reside nos grilhões da legitimidade da língua portuguesa<br />

quando seu padrão culto é declarado como única expressão válida da a chamada língua<br />

materna, uma imposição do Estado às territorialidades africano-brasileiras, como estes<br />

estudantes de Magistério e outros, e às territorialidades aborígines. Desta forma, o poder<br />

de Estado denega estas alteridades, sobretudo autoriza o uso desta língua para dinamizar<br />

a “pedagogia da servidão neocolonial” que, através das normas curriculares 16 e dos<br />

conteúdos pré-ditados criam amarras equivocantes do saber.<br />

16 A LDB 9394/1996 reforça o que dizem as leis anteriores a legitimidade do ensino da língua portuguesa<br />

como língua de comunicação e de interação social. (BRASIL, 1999, p.139).


195<br />

Os estudantes chegam ao Ensino Médio com o conhecimento equivocado da<br />

estrutura “aulas de Língua Portuguesa”. Para eles, é o idealizado estudo de gramática<br />

normativa é o que se constitui em saber lingüístico. O etnocentrismo invade os campos<br />

disciplinares: português, geografia, matemática, física, história, etc. Enfim, o<br />

etnocentrismo sustenta-se pela estética idealizada do Ocidente cuja forma<br />

unidimensional tem duas metas sociais: a cidadania e a civilidade. E a escrita constitui o<br />

elemento de representação da estética idealizada, pois consiste na forma etnocêntrica<br />

formadora do “cidadão brasileiro civilizado”.<br />

Narcimária Luz tece críticas às formas de imposição da escrita como única<br />

referência de transmissão do saber, de cultura. Devemos considerar que estamos numa<br />

cidade na qual a população descendente de africano é de 83%, de acordo com o<br />

CEAFRO – Centro de Estudos Afro da Ufba, (2005) e, no Estado, é de 73% de<br />

africano-brasileiros, significando que temos uma maioria que realiza a interação social<br />

por via da comunicação oral.<br />

A idéia de civilização fica reduzida ao ensino de leitura-escrita, o<br />

“batismo da instrução” (basicamente europocêntrico). Civilizado, no<br />

entender dessas ideologias, é o domínio da escrita que, como sabemos,<br />

sobredetermina os modos e formas de comunicação do Ocidente,<br />

visando atender às exigências do mundo urbano, industrial e<br />

produtivista moderno. Dentro desta perspectiva da civilização, os<br />

povos da África e da América são vistos como incapazes de<br />

civilização, ficam relegados, recalcados, [...] ao racionalismo colonial,<br />

que vê a escrita como um código universal e absoluto, para dinâmica<br />

civilizatória da máxima positivista da ordem e progresso. (LUZ, N.,<br />

2000, p.59).<br />

Esta situação é um equivoco social, visto que, dessa forma, na sociedade oficial<br />

moderna o que prevalece é o momento parado e idealizado determinado pelo poder<br />

absoluto. A escrita é uma das formas de regular o que Platão chamou de “formas<br />

imperfeitas”, ou seja, a vivência da “comunalidade” que Marco Aurélio Luz (2005)<br />

descreve como “dinâmica de socialização comunitária”, que são também descontínuas<br />

realizações de possibilidades de coexistência criadas pela arkhé ancestral africanobrasileira.<br />

Arkhé, como já falamos, é uma categoria que encontramos no acervo do<br />

PRODESE – Programa Descolonização e Educação e faz parte dos estudos de<br />

Narcimária Luz, Marco Aurélio Luz, Muniz Sodré, Juana Elbein dos Santos e outros<br />

autores, logo:


196<br />

Arkhé corresponde aos princípios inaugurais que imprimem sentido,<br />

força, direção e presença à linguagem, recriando as experiências. No<br />

seio da Arkhé estão contidos os princípios de começo-origem e podercomando,<br />

e não deve ser associado a antiguidade e/ou anterioridade, a<br />

exemplo de um passado rural, não-tecnológico e mesmo selvagem. A<br />

arkhé também está referida ao futuro, caso, principalmente, não se<br />

entenda como o vazio de onde se subtraem as tentativas puramente<br />

racionais de apreensão, mas como algo que se projeta na energia<br />

mítica, renovando valores que dão continuidade à linguagem<br />

característica do sistema histórico cultural da comunidade (SANTOS,<br />

SANTOS, 1993, apud. LUZ, N., 2000, p.106).<br />

Muniz Sodré (2002) traz a noção “cultura negra” para caracterizar as dinâmicas<br />

africanas de comunalidade. Na realidade, é a tradição plantada pela ancestralidade que<br />

se renova a partir dos investimentos de recriação da linguagem herdada. Este é o<br />

contexto de pluralidade que caracteriza o paradoxo aos olhos de quem vê com um “olho<br />

só”, pelo unidimensionamento sugerido por Platão aos humanos em “O mito da<br />

caverna” (2006) 17 . Na cultura de arkhé, o olhar é amplo e acolhedor da totalidade<br />

existencial.<br />

Com efeito, “Arkhé traduz-se também por tradição, por transmissão da matriz<br />

simbólica do grupo [...] Mas tradição não implica necessariamente a idéia de um<br />

passado imobilizado, a passagem de conteúdos inalterados de uma geração para outra.”<br />

(SODRÉ, 2002, p.170). É, justamente, esta noção de cultura que agrega o entendimento<br />

da relação arte e conhecimento que constrói misticamente este cenário, tal como nas<br />

elaborações da comunalidade.<br />

Foi a arkhé que dinamizou as diversas manifestações de linguagem que<br />

devolveram a espontaneidade criativa e o vitalismo do corpo aos 395 estudantes de<br />

Magistério, nos cinco anos de vivência Pré-Artebagaço. A arkhé é a força mística<br />

herdada do ancestral que plantou a atitude guerreira de lutar contra as limitações da<br />

liberdade da alteridade africano-brasileira.<br />

Constitui, o símbolo de ancoragem no enfrentamento ao cenário hostil da<br />

adversidade no cenário urbano e se encontra no grito de afirmação da identidade<br />

africano-brasileira guerreira contida na crítica Artebagaço Odeart, que agora<br />

apresentamos pelos ecos de Gilmara Cruz, artebagaciana de 16 anos, moradora da<br />

Engomadeira, ao enunciar o ethos que caracteriza sua identidade civilizatória africana:<br />

17 Livro VII (A República).


197<br />

Cultura pra mim é o cabelo [pega em suas tranças] que certa ”gente”<br />

diz que é feio, é cabelo duro lá em cima, é a sandália de couro que a<br />

gente usa, ganhei uma novinha! [Há, há, há!]. É a discriminação que<br />

a gente passa quando vai arrumar um emprego [fecha o sorriso e bate<br />

os dedos das duas mãos uns nos outros, torce a boca ao falar], é a<br />

exigência de uma foto, é.... [joga o olhar para o teto, respira, olha em<br />

nossa direção profundamente e recomeça]. É o conhecimento que a<br />

gente tem que não é o mesmo da escola. É nada do que a escola nos<br />

ensina. [Outra parada. Olha para seus pés, olha para rua e sorri]. É<br />

o meu bairro... (Gilmara Cruz, 2005).<br />

Gilmara é uma das jovens que resiste ao que Marco Aurélio Luz (1994) atribui à<br />

noção de “ideologia do recalque”. Nos ecos da adolescente, há uma abordagem crítica e<br />

sarcástica (observem a gargalhada), há um tom irônico ao tratar das formas ideológicas<br />

recalcadoras e uma atitude de quem faz questão de afirmar sua cultura de arkhé africana<br />

como sinal de desmistificação da estigmatização.<br />

Figura 97 Figura 98 Figura 99<br />

Gilmara. Expressão artística de Iyemanjá. Conversando. Expressando o arquétipo. Escuta sensível no grupo. 2005.<br />

Gilmara também já sabe, pois aprendeu durante as vivências do grupo, que os<br />

discursos ideológicos de recalcamento existem para que o próprio descendente de<br />

africano acredite na existência desta inferioridade, pois é assim que o africano-brasileiro<br />

torna-se alvo da “dominação política, cultural e étnica.” (LUZ, 1994, p.21). Os<br />

artebagacianos, ao conhecer as “bases do estereótipo” de inferioridade, criam as<br />

estratégias de preservação da tradição.<br />

Nossos ecos têm esta função, atuar dentro e fora do cenário da “mata”, por isso é<br />

importante nos aprofundarmos um pouco mais na crítica às produções etnocêntricas<br />

evolucionistas e positivistas, para que se entenda por que os ecos da nossa poética<br />

mítico-africana são nossas expressões de comunicação, tal como os ogé simbolizam o<br />

poder de comunicação de Odé, caçador, dentro e fora da “mata”.<br />

Nossos ecos, quando nascidos e alimentados dentro da “mata africanobrasileira”,<br />

lugar de resguardo da cultura a arkhé africana – a comunalidade tradicional<br />

– têm a função de alimentar e proteger para expandir a possibilidade de afirmação da


198<br />

alteridade da comunalidade do Cabula; quando fora, têm a função de proteger para<br />

realizar a defesa territorial, sendo o enfrentamento ao genocídio eurocêntrico.<br />

No Brasil, a política da desculturação e do racismo recebeu a contribuição dos<br />

estudos de Nina Rodrigues: (Africanos no Brasil) e de Arthur Ramos: (O negro no<br />

Brasil). Por exemplo, vem de Nina Rodrigues a seguinte argumentação:<br />

Abstraíndo, pois, da condição de escravos em que os negros foram<br />

introduzidos no Brasil, e apreciando as suas qualidades de colonos<br />

como faríamos com os de qualquer outra procedência: extremando as<br />

especulações teóricas sobre o futuro das raças humanas, do exame<br />

concreto das conseqüências imediatas das suas desigualdades atuaís<br />

para o desenvolvimento do nosso país, consideramos a supremacia<br />

imediata ou mediata de raça Negra nociva à nossa nacionalidade,<br />

prejudicial: em todo caso a sua influência não sofreada aos progressos<br />

e a cultura de nosso povo [...] (apud LUZ, M.A., 1994, p.22).<br />

Esses discursos influenciaram profundamente os estudos sobre o africano, foram<br />

âncoras da hegemonia ideológica luso-européia do Brasil e fortaleceram a legitimidade<br />

do espaço do poder para os brasileiros “embranquecidos”, que são os descendentes<br />

diretos dos senhores de engenho e da casa grande, que se tornaram, assim, legítimos<br />

governantes daqueles que foram apontados pelas ideologias racistas como inferiores, tal<br />

como fez Nina Rodrigues:<br />

Ao brasileiro mais descuidado e imprevidente não pode deixar de<br />

impressionar a possibilidade de oposição futura, que já se deixa<br />

entrever entre uma nação branca, forte e poderosa, provavelmente de<br />

origem teutônica, que está se constituindo nos estados do Sul, donde o<br />

clima e a civilização eliminarão a Raça negra ou a submeterão de um<br />

lado, e de outro lado, os estados do Norte, mestiços, vegetando na<br />

turbulência estéril de uma inteligência viva e pronta, mas associada a<br />

mais decidida inércia e indolência, ao desânimo e por vezes à<br />

subserviência... É esta, para um brasileiro patriota, a evocação<br />

dolorosa do contraste maravilhoso entre a exuberante civilização<br />

canadense e norte-americana e o barbarismo guerrilheiro da América<br />

Central. (apud LUZ, M.A., 1994, p.22).<br />

Decerto que discursos semelhantes, atualmente, escamoteiam a realidade, mas<br />

também que os seguidores de Nina Rodrigues e defensores da episteme ocidental<br />

moderna continuam buscando nesta “bacia semântica”, expressões verbais capazes de<br />

reforçar o que Nascimento (2003) chama de “supremacismo branco” ou discursos<br />

racistas de exaltação ao “mestiço”, porque eles são os mesmos que defendem a<br />

argumentação cientificista de que africanos e indígenas são incapazes de “governar”.


199<br />

Marco Aurélio Luz (1995), ao falar sobre o racismo, contextualizado na temática<br />

do futebol como esporte de poder de Estado capitalista, conclui:<br />

O racismo, como já vimos, não estava apenas na Alemanha nazista,<br />

mas está entre nós, procurando fracionar a identidade nacional,<br />

articulando-se com a inaudita exploração da nossa força de trabalho,<br />

com o genocídio, com a exploração de nossas riquezas minerais, de<br />

nossos produtos agrícolas, [...] (LUZ, M.A., 1995 p. 609).<br />

O racismo é um suporte da política neocolonial, logo, teorias, perspectivas<br />

sociais, econômicas, educacionais são instrumentos do poder de Estado com o intuito de<br />

desqualificar culturalmente o africano e o indígena, para desculturalizá-los. Estes<br />

instrumentos são os sustentáculos do estereótipo de inferioridade que recalca as<br />

existências das culturas pressionadas.<br />

São, sobretudo, alicerces da política do embranquecimento que renova a força<br />

do colonizador: “O neo-colonialismo procura transformar o Brasil numa colônia de<br />

exploração e povoamento de europeus” (LUZ, M.A., 1995, p.609). Basta observar onde<br />

vivem os descendentes de africanos no cenário urbano-industrial, as dificuldades<br />

impostas, que são barreiras com o intuito de impedi-los a ascenderem socialmente.<br />

Tudo isso é fruto do neocolonialismo, a matriz ideológica social que se<br />

desdobra em forma de uma rede de composição de subsidiárias ideologias, tal como a<br />

“ideologia do recalque”, que, por sua vez, agrega a ideologia do racismo como sua<br />

forma de sustentação. Essas ideologias subsidiárias elaboram os discursos neocoloniais<br />

de superioridade tal como este que foi feito por Afrânio Peixoto em Clima e saúde<br />

(1938):<br />

O território nacional brasileiro pertence ao conquistador branco, já que<br />

os proprietários naturais, os índios (sem cultura, sem governo, sem<br />

religião) foram dizimados. Os negros não têm direito sobre este<br />

território, desde quando não são nativos nem conquistadores. (Apud<br />

LUZ, M.A., 1994, p.22).<br />

Tal discurso busca reforço nos estudos de Nina Rodrigues e de outros<br />

equivalentes. Decerto que muitas considerações do pós-Abolição foram sendo tecidas a<br />

partir destes estudos, e a escola, lugar em que a política do racismo tem seu lugar<br />

reservado tanto para reelaborar novas teorias ideológicas de desculturação quanto para<br />

“injetar” os saberes destas teorias em crianças e jovens de origem africana e indígena, é<br />

o palco destes conhecimentos.


200<br />

A outra fonte de conhecimento da “bacia semântica” 18 racista neocolonial é<br />

Arthur Ramos, quando analisa as manifestações religiosas ao negro e considera que são<br />

normais em grupo ainda atrasado culturalmente, utilizando um conceito de cultura bem<br />

próprio de sua época e que representa a visão eurocêntrica colonialista:<br />

Estudando, neste ensaio, às representações coletivas das classes<br />

atrasadas da população brasileira, no setor religioso, não endosso<br />

abruptamente, como várias vezes tenho repetido, os postulados de<br />

inferioridade do negro e de sua capacidade de civilização. Essas<br />

representações coletivas existem em qualquer grupo social atrasado<br />

em cultura. (RAMOS, 1934, apud LUZ, 1994, 1994, p.23).<br />

É, assim, que essas fontes ditas científicas geram a estigmatização do<br />

descendente de africano e do indígena brasileiro. Nelas, encontram-se os conceitos que<br />

negam a condição humana civilizatória dos nossos ancestrais, que foram fruto de<br />

estudos especulativos, tiveram seus corpos “mapeados” como se fossem criminosos<br />

como fez Nina Rodrigues, que era médico-evolucionista criminalista. Elisa Narkin<br />

Nascimento (2003) observa que Nina Rodrigues chegou a receber da Academia Real de<br />

Medicina da Itália, em 1933, o prêmio Lombroso de Antropologia Criminal.<br />

Cesare Lombroso era um teórico determinista: “[...] tornou-se célebre pela<br />

associação do fenótipo e da identidade à atribuição de tendências inatas dos indivíduos a<br />

cometerem crimes.” (NASCIMENTO, 2003 p.148). Foi seguindo os caminhos<br />

positivistas e as técnicas evolucionistas do Dr. Lombroso que Nina Rodrigues ampliou<br />

algumas medidas, de “apuração” do “tipo criminoso”, que a polícia, até hoje, utiliza<br />

como parâmetros para justificar a abordagem de um africano-brasileiro nas ruas. Nos<br />

ecos da fala de Dainho, Adailson Conceição, percussionista artebagaciano, ressoam as<br />

lembranças de um momento como este:<br />

Muitas vezes a polícia me parou, já teve época que eu e mais dois ou<br />

três colegas estávamos juntos, mas a polícia só parou a mim e com os<br />

outros colegas não fez nada. Não sei se estou certo, mas os outros<br />

colegas são de cor clara, eu sou escuro. Os outros colegas não têm<br />

cabelo grande. Ele, quando vei, me revistou, tirou meu boné e<br />

“bagunçou” meu cabelo, me revistou e disse: “não tem nada, não.” E<br />

colocou de novo. Ele não fez nada com os outros. (Dainho, 2005.<br />

18 Bacia semântica encontra-se no acervo do Prodese. Expressão originada dos estudos de Gilberto<br />

Durand (1982) para se referir à rede de ligações entre as palavras e ao lugar de origem de sua formação<br />

política, G. Durand compara o processo de renovação do texto como o processo de renovação das águas<br />

dos rios, que nascem num lugar, correm outros lugares, corta mata, montanhas, caem de penhasco, mas<br />

retornam ao local de origem a “bacia hidrográfica” que o originou (apud MAFFESOLI, 2001., p. 66).


201<br />

O desabafo revoltado de Dainho reforça o sentido dos nossos ecos,<br />

caracterizando a função dos ogé fora da “mata”. Através desses discursos é que<br />

denunciamos as práticas racistas que provocam e, ao mesmo tempo, ocultam as seqüelas<br />

que afetam a criança, o adolescente e o jovem africano-brasileiros quando submetidos a<br />

atitudes de inferiorização.<br />

É neste ponto que nos ancoramos na noção “ideologia do recalque” (LUZ, M.A.,<br />

1994) para realizar críticas a situações com estas caracterizadas obstáculos políticos<br />

sociais legitimados pelo poder de Estado, pois tais procedimentos são<br />

institucionalizados por órgãos públicos que reforçam o ethos ocidental .<br />

Tais procedimentos interferem sobre o direito à cidadania e à liberdade de<br />

jovens como Adailson de 16 anos, que já sentiu, como outros jovens africano-brasileiros<br />

e indígenas brasileiros, a “mão” do “legado lombrosiano” de Nina Rodrigues<br />

(NASCIMENTO, 2003, p.150) porque eles afirmam sua alteridade africana e indígena<br />

brasileira através dos valores ancestrais que negam a “ordem” expressa da<br />

universalidade unidimensional do Ocidente.<br />

As pesquisas antropológicas de Lévi-Strauss (apud LUZ, M.A., 1994) não só<br />

denunciam a prática racista nas teorias evolucionistas como constroem bases de<br />

afirmação da capacidade civilizatória de qualquer ser humano, daí muitos estudos sobre<br />

os contínuos africano e indígena, no Brasil, mudaram sua direção.<br />

E, se, inicialmente, Lévi-Strauss elaborou conceitos, como o de pré-logismo que<br />

invalidam a intelectualidade africana e aborígine e supervalorizam as culturas ocidentais<br />

através do discurso evolucionista, esta visão teve de ser alterada, pois,<br />

[...] a partir do próprio processo de descolonização e libertação dos<br />

povos colonizados, Lévi-Strauss demonstrou que qualquer<br />

manifestação cultural humana possui estruturas lógicas, sejam os<br />

sistemas de parentesco, mitos, classificações botânicas, zoológicas,<br />

minerais [...] (LUZ, M.A., 1994, p.50).<br />

A abordagem sobre as teorias etnocêntricas que colaboram para a exclusão do<br />

africano-brasileiro, neste espaço da reflexão, quer aqui apontar um caminho para que o<br />

educador e a sociedade em geral fiquem em alerta para o que foi ocultado no cenário<br />

político brasileiro como prática ideológica de desculturação e recalcamento das<br />

alteridades africano-brasileiras. Sobretudo, compreendemos que o reconhecimento desta


202<br />

visão neocolonial hegemônica se constitui em quebra das amarras do etnocentrismo e o<br />

começo para a elaboração de novas perspectivas administrativas e pedagógicas de<br />

educação pluricultural.<br />

No Brasil, estudos como os de Deoscóredes Maximiliano dos Santos, Guerreiro<br />

Ramos, Abdias do Nascimento, Roger Bastide, Florestan Fernandes, Marco Aurélio<br />

Luz, Muniz Sodré, Narcimária Luz, Vivaldo da Costa Lima, Elisa Nascimento, entre<br />

outros, têm desmistificado o que o evolucionismo e o positivismo engendraram como<br />

política de animalização ou de objetivação do africano e aborígine brasileiro.<br />

Sem dúvida alguma, esses esforços de estudo nos impulsionaram a ultrapassar os<br />

obstáculos ideológicos do etnocentrismo que favoreceram a recriação da estética de<br />

mosaico pluricultural que caracteriza a nossa etnografia, um cenário em “[...] que o<br />

afro-brasileiro só pode ser entendido dentro de uma trama que o liga à sociedade como<br />

um todo” (BASTIDE, 2002, p. 52), compreendido pela totalidade existencial constituída<br />

de passado, presente e futuro.<br />

Roger Bastide (2002, p.52) afirma: “É assim que a sociedade brasileira deve ser<br />

estudada, como uma sociedade pluralista de agora em diante, mais do que uma série de<br />

segmentos separados, incluindo um bem separado segmento negro”. É assim que<br />

gostaríamos que nosso cenário fosse entendido, como uma expressão de pluralidade<br />

cultural que reconhece, no paradoxo da existência da social, a alteridade negada em<br />

ambientes ocidentalizados.<br />

Em “entoando o aiyê”, um dizer de dentro para fora denuncia a política<br />

etnocêntrica do recalque cultural do africano-brasileiro durante sua permanência no<br />

espaço moderno institucional do sistema público de ensino médio. Neste espaço,<br />

procuramos mostrar cenas de desculturação do africano-brasileiro e do aborígine<br />

brasileiro, e também indicamos caminhos que favorecem a quebra dos grilhões que<br />

impedem a dinâmica de criatividade que alimenta a estética criadora ancorada nos<br />

valores herdados da ancestralidade africana plantada no Cabula.<br />

Aiyê é uma palavra de origem iorubá, língua Nagô que os ancestrais da atual<br />

República de Benin e da Nigéria, no final do século XVIII, trouxeram para a Bahia,<br />

principalmente Salvador, como referência lingüística de comunicação e de interação<br />

social da comunalidade africana que originou a territorialidade africano-brasileira. Félix<br />

Ayoh’Omidire (2004) atenta para um riquíssimo dado sobre a herança lingüística e<br />

cultural africana na Bahia:


203<br />

Sendo que as múltiplas “nações” oriundas do estoque lingüístico<br />

cultural fundado por Oduduwa, o pai da nação iorubana cujos netos se<br />

espalharam pelos quatros pontos cardeais para fundar cidades-reinos<br />

acabaram se identificando individualmente como Ifè, Ègbá, Ìjèbú,<br />

Èkitì, Òyó, Ìgbómina, Sèpètèrí, [...] cada cidade-reino reunindo outras<br />

pequenas cidades e povos distribuídos ao seu redor, falando um<br />

dialeto da língua Yorùbá que ao mesmo tempo servia para identificar<br />

os integrantes da nação que reconhecia a autoridade do seu reifundador<br />

cuja linhagem exercerá para sempre a autoridade tradicional<br />

sobre os súditos [...] (AYOH’OMIDIRE, 2004, p.56).<br />

O aiyê é uma referência de espaço onde se desdobram as cenas comunais<br />

vividas e, neste aspecto, a língua iorubá é o que une e identifica a referência<br />

civilizatória. Vejamos como Juana Elbein dos Santos (2002b, p.53) descreve a<br />

concepção de mundo dos povos nagôs:<br />

Os Nagô concebem que a existência transcorre em dois planos: o aiyê,<br />

isto é, o mundo, e o orun, isto é, o além. O aiyê compreende o<br />

universo físico concreto e a vida de todos os seres naturais que<br />

habitam, particularmente os ará-àiyê ou aráyé, habitantes do mundo, a<br />

humanidade. (p, 53)<br />

A concepção vitalista da existência nagô estabelece-se numa relação de<br />

equilíbrio entre estes dois mundos inseparáveis: aiyê e orun 19 que intercambiam poder<br />

de força vital que é o axé, o mesmo que para o povo congo-angola é muntu: “Axé é um<br />

conceito que exprime a idéia de forças circulantes capazes de engendrar a criação e a<br />

expansão da vida”(LUZ, M.A., 1995, p.35).<br />

Em nossa pesquisa, o termo aiyê foi reterritorializado pela expressão metafórica<br />

“mata africano-brasileira do Cabula”, um local fora do espaço demarcado pela<br />

modernidade como suas referências cartesianas, tipo os espaços institucionais do Estado<br />

como a escola. Em nosso entender, no aiyê encontra-se a referência mítica expressa na<br />

manifestação de quem “batalha” para fazer guarda da tradição resguardada na mata, que<br />

é o refúgio da tradição contida na comunicação oral dos artebagacianos.<br />

E, por falar na comunicação oral, trazemos a lembrança de duas das recriações<br />

teatrais de quebrar os grilhões do etnocentrismo. A primeira foi no convívio da geração<br />

Artebagaço no ano 2000, quando, em uma das encenações, o Grupo Artebagaço<br />

apresentou um ensaio aberto com uma cena de 20 minutos da encenação teatral “Do<br />

outro lado do espelho”, no colégio onde existe uma insurgência negra.<br />

19 Ver em Juana E. Santos (2002, p. 53-58 ) e Marco Aurélio Luz (1995, p.34-35).


204<br />

Naquela apresentação, tínhamos uma platéia constituída por 120 jovens<br />

estudantes do ensino médio, uma dezena de professores e uma representação da direção<br />

escolar. A cena transcorreu como todos esperavam: atores no palco dizendo o texto<br />

buscando a cumplicidade da platéia que participava ativamente.<br />

A encenação saía do palco oficial para o palco improvisado junto à platéia que<br />

ria, falava, assobiava e se envolvia de forma crescente. Chegou um momento em que os<br />

atores saíram sem nenhuma despedida do público e uma funcionária entrou para limpar<br />

o espaço que estava cheio de papel picotado, mas o público estava lá esperando que<br />

alguém anunciasse a continuidade ou o final da peça que se chamava “O vazio da cena”.<br />

Após cinco minutos corridos, a funcionária disse: – “Vocês estão esperando o<br />

quê? O pessoal do teatro está do outro lado esperando, aqui já acabou, podem ir<br />

embora”. Do outro lado, ríamos por compreender que a platéia preencheu o vazio sem<br />

ter percebido, contudo apenas a representação da direção se indignou e achou uma<br />

ofensa, os demais riram bastante e intuíram o que era o vazio da cena, sobretudo viram a<br />

vida orgânica que o espelho não mostra porque está do outro lado, excluído das<br />

projeções idealizadas.<br />

Um outro momento impactante de quebra dos grilhões foi em 2005 com a<br />

geração Artebagaço Odeart, quando o grupo foi convidado para apresentar numa “Feira<br />

de Saúde” na comunalidade das Barreiras, promovida pelo posto de saúde do Estado, a<br />

recriação teatral “Odé, o caçador do alvorecer”, adaptada do texto de Mestre Didi<br />

Axipá, Deoscóredes Maximiliano dos Santos, intitulada “O caçador e a caipora” (2004).<br />

Aliás, o pedido foi para apresentar uma peça teatral, acreditamos que pensavam ser<br />

coisa do tipo “chapeuzinho vermelho na cidade”, isto é, alguma bobagem, mas ficaram<br />

perplexos com o que viram como linguagem cênica.<br />

O surpreendente foi o local que escolhemos para apresentar encenação: a<br />

recepção do Posto onde todos foram para ouvir uma palestra sobre “Qualidade de vida”,<br />

numa linguagem civilizatória ocidental médico-evolucionista, e lá estávamos, no meio<br />

da cena, realizando a inserção e apresentando uma concepção de “Qualidade de vida” a<br />

partir da concepção vitalista africano-nagô, respaldada nos saberes do conto de Mestre<br />

Didi Axipá.<br />

A quebra dos grilhões não se deu apenas pelo conteúdo da montagem que<br />

contextualiza um modo de quem vive na “mata”, o caçador, Odé, mas os corpos<br />

dinâmicos dos artebagacianos apresentavam, assim como o pensamento que os<br />

orientam, uma estética de valores culturais diferentes dos apresentados na palestra. A


205<br />

palestra concebia uma vida idealizada porque apresentava dados quantitativos que não<br />

refletiam a realidade do lugar.<br />

A territorialidade descrita era constituída de “doentes” cardíacos, hipertensos,<br />

diabéticos, jovens gestantes, crianças desnutridas, e tudo isto contrastava com os<br />

vigorosos corpos artebagacianos que mostravam por via da arte que não precisavam de<br />

“cura”, “tratamento” ou ação de profilaxia que a medicina moderna aconselha, pois se<br />

nutriam da criatividade da arte da dança, do teatro, da tradição da capoeira, do break.<br />

Vejamos algumas fotos que mostram a inserção nos consultórios transformados em<br />

camarins, na área ociosa e gramada transformada em palco para dança:<br />

Figuras 100 Figura 101 Figura 102<br />

Preparando o figurino. 2005 Compondo o figurino 2005 A cooperação. 2005<br />

.<br />

Figura 103 Figura 104 Figura 105<br />

O público. Abertura de “O Caçador”. 2005. O caçador saindo para caçar. 2005. Grupo de dança Odeart. Fechando. 2005.<br />

É evidente que, tanto na vivência da instituição educacional quanto da<br />

instituição de saúde, nossa linguagem não é compreendida de imediato, contudo<br />

abrimos espaço para esse diálogo com a alteridade africano-brasileira. No que se refere<br />

ao posto de saúde, a equipe médica, enfermeiros, diretores administrativos elogiaram a<br />

iniciativa que eles chamaram de “corajosa” e nos convidaram outras vezes.<br />

Contudo, muitos evangélicos constituíam o corpo de auxiliares do posto de<br />

saúde e não aprovaram a idéia de compartilhar o mesmo espaço de atuação com<br />

referências da simbologia africana, mesmo sabendo que a linguagem do Artebagaço<br />

Odeart caracterizam uma expressão cênica de estética teatral e de dança.


206<br />

Quanto à escola, a encenação “O vazio da cena” se constituiu em uma referência<br />

de reflexão sobre as políticas públicas para a educação. Muitos professores relacionaram<br />

o vivido pelos atores na cena com o que é vivido por eles na realidade escolar, a<br />

constante espera de cumprimento das promessas dos governantes do Estado de melhoria<br />

para a educação. Quanto aos estudantes, poucos entenderam a nossa atitude de quebra<br />

do ritmo unidimensional, embora tenha ficado claro que se tratava de uma nova forma<br />

de fazer teatro e bem interessante. Levaram semanas comentando a apresentação.<br />

Retomando o que iniciamos nesta abordagem, temos a dizer que a criatividade é<br />

a possibilidade de propor um entendimento de educação pluricultural. A quebra do<br />

ritmo linear da estética da universalidade é entendida por nós como maneira de<br />

desmistificar o sentido unilateral contido nas construções verbais dos textos escritos e<br />

dos textos copiados cujo conhecimento resguarda os valores neocoloniais. Esta é a<br />

nossa forma de quebrar os grilhões que alijam o africano-brasileiro do cenário das<br />

relações de poder de decisão do Estado e favorecer o desenvolvimento das políticas de<br />

afirmação da identidade africana do Brasil.<br />

3.2. OS CENÁRIOS ETNOCÊNTRICOS DO CURRÍCULO ESCOLAR NO CABULA<br />

A estética é o que nos impulsiona para vencer os obstáculos ideológicos do<br />

etnocentrismo, é a função poética da linguagem de recriação deste cenário intencionado<br />

a sensibilizar e emocionar pessoas como você, meu caro leitor, que também deseja<br />

ultrapassar os limites de qualquer impedimento da expansão criadora.<br />

Aqui estamos, então, a negar o conhecimento oficial cheio de certezas universais<br />

das disciplinas curriculares, transmitido nas práticas da pedagogia da servidão colonial.<br />

Nossa estética da linguagem pluricultural africano-brasileira aceita o desafio de elaborar<br />

um conhecimento amplo da realidade educacional vivida.<br />

Como política pública educacional, a dinâmica curricular não determina, apenas,<br />

a universalidade do conteúdo, também impõe a forma de comunicação, “[...] os<br />

currículos se originam em relações de poder diferencial, num conjunto de relações<br />

sociais que desempenham um forte papel em determinar que capital cultural (de que<br />

grupos) será tomado disponível e realocado [...]”(APPLE, 1999, p.104), de maneira que<br />

linguagem e saber absolutos constituem referências de poder ideológico.<br />

É importante saber que a característica de universalidade do conhecimento e da<br />

linguagem curricular tem a função de assegurar os valores da arkhé civilizatória grega


207<br />

clássica, que a partir do século XV, se expande e se renova como ideologia moderna da<br />

arkhé européia, a versão mais contemporânea é a arkhé imperialista euro-americana<br />

(LUZ, N., 2001).<br />

A fórmula universal consegue convencer boa parte da sociedade brasileira que<br />

acredita no que lhe oferece o currículo como conteúdo disciplinar. Vejamos o que nos<br />

dizem os ecos de Fabiana Rocha, uma estudante do Curso Técnico em Contabilidade,<br />

entre o período de 1995 e 1997, e uma das componentes fundadoras do Grupo<br />

Artebagaço em 1996, e, hoje, com 25 anos, cursa a Graduação em Ciências Sociais com<br />

concentração em antropologia na Universidade Federal da Bahia:<br />

A escola que fiz meu segundo grau foi um horror. Agora, eu tive bons<br />

professores, felizmente. Os de Contabilidade todos eram bons, porque<br />

eu fiz Curso Técnico de Contabilidade, né? A professora de inglês era<br />

ótima, tive poucos professores ruins. O professor de matemática, meu<br />

Deus! Ele gostava de teatro, mas ele não era um bom professor, mas<br />

por isto a gente ficou com a nota máxima. Tinha Janice, foi o máximo<br />

na minha vida, na vida da escola, na vida da família, foi uma<br />

referência muito boa para mim, foi muito importante. Ela era de<br />

Literatura e Língua Portuguesa, inclusive no inicio causava certo<br />

medo, mas os alunos a respeitavam muito porque ela impunha<br />

respeito e respeitava as pessoas. Eu sinto isto deles, porque tinham<br />

aqueles que não queriam nada com a “Hora do Brasil”, não queriam<br />

estudar, tinham os que buscavam problemas porque não se<br />

encaixavam no contexto da escola e só estão cumprindo uma<br />

trajetória, mas até estes tinham admiração por Janice e continuam<br />

tendo. (Fabiana Rocha, 2005).<br />

Esses ecos é de quem teve a possibilidade de, na adolescência, coexistir num<br />

grupo de estudo sobre a educação brasileira, o Grupo Artebagaço Fabiana não se deixou<br />

enganar pelo currículo: “A escola que fiz o segundo grau foi um horror” – neste<br />

enunciado, está implícito que a escola não cumpriu o que ela entende como educação:<br />

“Marlene quando era a diretora da Escola [no 1º grau], ela acolhia a todos, ela lutava<br />

contra as manifestações de discriminações, tudo era muito melhor do que esta escola<br />

que encontrei no segundo grau” (Fabiana, 2005).<br />

Ela, aos 15 anos de idade, tinha uma referência ético-estética de educação<br />

escolar, o acolhimento às alteridades e o repúdio ao racismo e à “ideologia de recalque<br />

cultural” (LUZ, M.A., 1994). Contudo, em relação ao conhecimento oficial Fabiana não<br />

tinha alicerces de saber que negassem o que lhe era imposto. Na verdade, poucos têm e<br />

tanto para Fabiana quanto para qualquer estudante, os pais e a sociedade em geral, o<br />

conhecimento oficial é que caracteriza a boa educação. Mesmo assim, a escola não tinha


208<br />

oferecido isto a Fabiana, embora seus professores fossem meigos, acolhedores,<br />

comprometidos com uma educação de coexistência.<br />

Em nosso entender, o conhecimento oficial não representa interesses e<br />

necessidades da população a qual o sistema escolar se propôs educar, representa a<br />

prepotência dos grupos imperialistas econômicos neocoloniais, o que significa “geração<br />

de aumento capital”. Estes grupos exigem uma escola que “forme” o sujeito que<br />

Narcimária Luz enuncia como “produtor-consumidor”. Neste sentido, Apple (1999, p.<br />

25) argumenta:<br />

Conhecimento oficial analisa as disputas acerca do currículo, ensino e<br />

política, numa variedade de níveis e aponta para possibilidades – não<br />

apenas limitações – na situação atual. Ele argumenta que as formas<br />

dos currículos, ensino e avaliação nas escolas são sempre os<br />

resultados dos acordos ou compromissos nos quais os grupos<br />

dominantes, para manter seu domínio, necessitam levar em conta as<br />

preocupações dos menos poderosos.<br />

De fato, foi o olhar crítico ao currículo que impulsionou o brotar da experiência<br />

vivida pelo Grupo Artebagaço Odeart. Este olhar contraria as normas do rígido controle<br />

unidimensional do conhecimento estático e de suas amarras verbais e conceituais que<br />

garantem a “modelagem” dos corpos e que compõem o cenário pedagógico de repetição<br />

mecânica.<br />

O currículo tecnicista nasce no início do século XX com Bobbitt (1918), sendo<br />

divulgado por Ralp Tyler (1949) apud SILVA (1999) 20 . Mesmo que o educador<br />

desconheça a história da trajetória curricular é possível perceber o modelo curricular,<br />

introduzido no Brasil nos fins da década de 60, com a Lei de Diretrizes e Bases de<br />

Educação (5.540/1968) totalmente influenciada pela proposta taylorista 21 , sustentáculo<br />

da ideologia imperialista americana fordismo, nega a política cultural de educação.<br />

O simples fato de desconhecer a tentativa de dominação política e<br />

socioeconômica imperialista neocolonial não tira do educador a sensibilidade para<br />

perceber que pessoas não são “coisas” para serem comparadas a “objetos” em linha de<br />

produção fabril, como consta do currículo tecnicista que orientou os estudos de<br />

20<br />

“Na perspectiva de Bobbitt, a questão do currículo se transforma numa questão de organização. O<br />

currículo é simplesmente uma mecânica”.<br />

21<br />

A proposta de Taylor consiste num modelo de funcionamento da indústria, cujos critérios de eficiência<br />

e eficácia garantem a produção em massa, o que interessava à fábrica Ford, daí chamar-se de<br />

taylorista/fordista, pois um completa o outro, ou mesmo de fordismo.


209<br />

Contabilidade de Fabiana. Mas a maioria dos educadores cumpre, cega e surdamente,<br />

porque acredita no que determina os conteúdos curriculares.<br />

Como a instalação de escolas no Cabula começa a se acelerar a partir do Colégio<br />

Polivalente 22 , instalado em 1971, a demanda mobilizou moradores de áreas<br />

circunvizinhas como Avenida San Martins, Fazenda Grande, São Caetano, Avenida<br />

Barros Reis sentido Pau Miúdo e IAPI, resolvemos realizar nossas investigações<br />

curriculares a partir das reformas da década de 70 em diante.<br />

De 1970 a 1996, foram duas reformas e seus ajustes para haver uma adequação à<br />

ideologia da pedagogia da servidão neocolonial. O Cabula era um lugar cheio de roças,<br />

chácaras e sítios com uma territorialidade predominantemente africano-brasileira, que<br />

passa a se conformar às estruturas sociais modernas porque seus moradores foram<br />

considerados portadores de “desvios sociais” pela leitura etnocêntrica do sistema<br />

público escolar, daí que pela “Razão de Estado” 23 , se fez necessário criar instituições<br />

aptas a desenvolver o que Narcimária Luz (2000) denomina “Estado Terapêutico”.<br />

Isso significa fazer a população descendente de africanos e aborígines acreditar<br />

que o nomos, conjunto de códigos legais modernos, é que irá prevalecer naquele lugar<br />

como sistema de valores éticos. Assim se fez, e a escola foi a instituição da<br />

desculturação do que fora implantado e de “injeção” dos valores culturais ocidentais.<br />

Na realidade, o desdém aos valores culturais africanos e aborígines origina-se do<br />

oculto temor de quem não quer ver as “podres” estruturas monoculturais desabarem por<br />

completo diante da pluralidade cultural contida nas atitudes do africano-brasileiro e do<br />

aborígine brasileiro, por exemplo. Os rebelados corpos artebagacianos negam o<br />

currículo oficial ancorados nos fundamentos ético-estéticos da própria comunalidade de<br />

origem, que dinamiza as vivências do grupo, os ecos de Diego Nicolin, fundador do<br />

Grupo Artebagaço, podem nos dizer sobre isto:<br />

Desde o início, o Artebagaço começou a produzir um tipo de arte<br />

extremamente sofisticada pelo seu nível de texto, que é a grande base<br />

do Artebagaço. Só que nossa visão política visava a tomada de<br />

consciência da realidade para criar a consciência de desconstruir<br />

22 Colégios como o Polivalente atendiam aos objetivos e metas do PREMEN (Programa de Expansão e<br />

Melhoria do Ensino Nacional) e do PROFAZ (Projeto com Fundo de Participação de Apoio ao<br />

Desenvolvimento Social) da Secretaria de Educação e Cultura da Bahia, no Governo Roberto Santos, na<br />

década de 70.<br />

23 “Razão de Estado”, categoria criada por Narcimária Luz para caracterizar as ideologias contidas nas<br />

políticas educacionais positivistas e evolucionistas, legitimadas pelo Estado, para atender aos interesses<br />

neocoloniais e imperialistas que garantem uma sociedade resguardada nos valores de bens de produção e<br />

consumo.


210<br />

“certas” visões, “certos” paradigmas que decerto nunca foram<br />

analisados, mas devido a esta concepção constante e completa por<br />

parte da família, da sociedade, da escola eram dadas como certas,<br />

sem nunca terem sido questionadas. Ali nós partimos com os textos<br />

desconstrutivos... (Diego Nicolin, 2005).<br />

Por nossa vivência, percebemos que há nas atitudes mecânicas das chefarias, ao<br />

cumprir as ordens do poder superior, um tanto de hipocrisia e outro de desconhecimento<br />

dos conteúdos ideológicos. Logo, a persona 24 que está atrás do discurso “bagaço”, é a<br />

face oculta das atitudes de temor de quem representa o poder absoluto através das<br />

chefarias institucionais públicas. Estas sabem que a ideologia é uma aparência, por isso<br />

este tipo de poder teme a vivência que é modificável e modificadora da realidade, logo é<br />

imprevisível ao olhar cartesiano escolar.<br />

As instituições do sistema público escolar chegaram ao Cabula ancoradas na Lei<br />

5.692/71, que fixa como objetivo geral de ensino de 1 0 e 2 0 graus “a formação ao<br />

desenvolvimento de suas potencialidades como elemento de auto-realização,<br />

qualificação para o trabalho e preparo para o exercício consciente da cidadania”<br />

(BRASIL, 1971) e na Lei 9.394/1996, cujo Art. 1 0 estabelece que a educação escolar<br />

“deverá vincular-se ao mundo do trabalho e à prática social” (BRASIL, 1996). Em<br />

todos os sentidos, as políticas educacionais estão voltadas para a sustentação do poder<br />

dos grupos mercantis neocoloniais europeus e imperialistas americanos.<br />

É nesse sentido que entendemos o currículo oficial, como o elemento<br />

legitimador do conhecimento do grupo cultural de poder absoluto no Estado, por isso:<br />

“[...] é sempre parte de uma tradição seletiva, resultado da seleção de alguém, da visão<br />

de algum grupo acerca do que seja conhecimento legítimo” (APPLE, 2002, p. 59),<br />

isento de referências da linguagem político-cultural, justamente para que haja, sempre,<br />

um campo maior de realização absolutamente mecanicista que fica a serviço da<br />

ideologia neocolonial-imperialista. Apple ressalta:<br />

Ao mesmo tempo, e isto é importante para meus argumentos em<br />

Currículo e Ideologia, é vital perceber que, embora nossas instituições<br />

educacionais de fato operem para distribuir valores ideológicos e<br />

conhecimentos, sua influência não se resume a isso. Como sistema<br />

institucional, elas também ajudam, em última análise, a produzir o<br />

tipo de conhecimento (como se fosse um tipo de mercadoria)<br />

necessário à manutenção das composições econômicas, políticas e<br />

culturais vigentes. Chamo-o “conhecimento técnico”, no presente<br />

contexto. (APPLE, 2000, p.45).<br />

24 Maquiagem, que, em grego, correspondia à máscara que usava o ator para mudar de personagem.


211<br />

É sobre esse conhecimento técnico que, na verdade, seria uma forma de manter<br />

um corpo a serviço da exploração, que Diego Nicolin se contrapõe, ao enaltecer a<br />

estética de valores culturais do Grupo Artebagaço Odeart:<br />

A proposta do grupo político-cultural era uma proposta de luta. Era<br />

uma grande guerra. Tanto que nós, a gente dizia: “a gente não fazia<br />

guerra à fome que era uma idiotice, era uma grande guerra isto aqui<br />

[aponta para o espaço simbolizado da luta, o próprio corpo] porque a<br />

fome é uma conseqüência da idiotice e não adianta nada combater a<br />

fome que a idiotice é mais forte. Nosso problema era como combater<br />

a idiotice sem cair no banal porque, na realidade, nos debates [sobre<br />

a desigualdade social] o que se diz, muitas vezes, já estão<br />

acostumados a falar e é sempre a mesma coisa: “Como combater as<br />

doenças transmissíveis? Ou: “Use camisinha”. Esta gente repete<br />

para o público adolescente, para adultos, para crianças dez mil vezes<br />

e não dizem nada. (Diego Nicolin, 2005).<br />

Diego entoa a dinâmica de valores ético-estéticos do grupo, a crítica aos valores<br />

ético-morais judaico-cristãos e conteúdos puritanos do currículo. E não o faz por,<br />

simplesmente, discordar da metodologia de A ou B. Sua discordância reside numa<br />

política cultural em educação e, sendo um europeu, natural de Verona na Itália, sabe que<br />

muitos esforços teve e tem de realizar para compreender a pujança do ethos e do eidos<br />

pluriculturais africano-brasileiros que caracterizam a comunalidade do Cabula, local<br />

onde reside há 17 anos e vê seu filho, de 11 anos, crescer introjetando e transmitindolhe<br />

os valores herdados que foram plantados pela ancestralidade africana.<br />

O que ele denuncia pela metáfora “guerra à idiotice” pode ser entendido como<br />

propostas de desculturação das territorialidades “neoafricanas” 25 . São imposições<br />

políticas de homogeneização dos corpos que travam e neutralizam novas experiências<br />

vivenciais contidas nos programas e projetos educacionais, que vêm maquiados por uma<br />

língua “áfona”, que é o alfabeto, para ungir e impor normas de valores neocoloniais.<br />

Em situações como essas, onde a escola é um lugar de confinamento para a<br />

desculturação da criança, do jovem e do adulto, Narcimária Luz (2001, p.35) propõe<br />

que o educador rasgue este papel e assuma seu corpo vivaz através “perspectiva<br />

kilombola”. Foi isto que aconteceu quando, no ano 2000, Janice Nicolin chegou a uma<br />

25 O termo neoafricano compõe a bacia semântica do PRODESE – Programa Descolonização e Educação<br />

e encontra-se em muitos trabalhos de Narcimária C. do P. Luz. É o mesmo que dizer novos descendentes<br />

de africanos.


212<br />

escola-creche no Cabula 26 . Aos poucos, o ritmo mecânico das práticas pedagógicas da<br />

“salvação” foi sendo quebrado e, por isto, foi sendo possível introduzir a linguagem da<br />

comunalidade. Só então as crianças soltaram o corpo nas brincadeiras.<br />

Figura 106 Figura 107<br />

Sambando, requebrando, cantando. 2000. Dramatizando com uma platéia ativa. 2000.<br />

É lógico que a atividade não foi bem aceita pelas professoras, e uma delas disse:<br />

“Você está fazendo isto porque não fica com eles todos os dias” (2000). Mas, todos os<br />

dias, eles tinham que rezar o Padre Nosso, a Ave Maria e fazer o Sinal da Cruz porque a<br />

professora era católica. Estas são as propostas “boazinhas” a que Diego se refere.<br />

Nos trabalhos de Narcimária Luz (2000), encontramos referências que se<br />

aproximam da crítica realizada por Diego quando alerta sobre a proposta “boazinha”<br />

que inventam “bagaços”:, são as chamadas propostas democráticas progressistas,<br />

abertas ao diálogo, contudo sempre pré-ditando “receituários” que contêm o que os<br />

“outros” devem fazer:<br />

Devemos ficar muito atentos, pois estamos geralmente diante de um<br />

sistema etnocêntrico de crenças, práticas e conceitos articulados, que<br />

procura a todo custo atravessar e estruturar a realidade brasileira,<br />

numa perspectiva que a torna una e homogênea, submetida à<br />

produção, acumulação, circulação e ao funcionamento da Razão do<br />

Estado. (LUZ, N., 2000, p. 29-30).<br />

A hegemônica pedagogia da servidão neocolonial desconhece a escola como um<br />

lugar constituído por um corpo orgânico que “Possui, certa maneira forças inatas que<br />

são causa e efeito de sua própria vida” (LUZ, N., 2001, p.66), sua noção de cultura<br />

nasce de um solo inerte, estético e ideológico.<br />

Seu sentido de herança cultural aproxima-se do que Bourdieu (1998, p.42)<br />

denomina “o capital cultural”, ao realizar suas críticas ao sistema escolar francês da<br />

26<br />

Esta situação encontra-se na temática “Pedagogia da Servidão Neocolonial”. Aqui apresenta a<br />

continuidade.


213<br />

década de sessenta: “Na realidade, cada família transmite aos seus filhos, mais por vias<br />

indiretas que diretas, um certo capital cultural e um certo ethos, sistema de valores<br />

implícitos e profundamente interiorizados”. Nesta situação, a política de educação<br />

cultural desdobra-se como se fosse moeda de um sistema produtivista industrial.<br />

Pelo modelo crítico curricular perpassam as críticas equivocadas dos educadores<br />

e gestores que estão descontentes com a pedagogia da servidão por se sentirem a<br />

obrigados agir como “feitores”, “capatazes”, e até aqueles que tramitam fora do espaço<br />

da “senzala”, a escola, e da “casa grande”, o espaço do poder absoluto, que agem como<br />

se fossem “capitães-do-mato”. É quem “caça” os rebelados e os aponta como fora-dalei,<br />

também apresenta as mesmas críticas.<br />

As críticas resguardam-se na política neoliberal e no conceito de relações de<br />

poder de classe social: “O capital cultural e o ethos, ao se combinarem, concorrem para<br />

definir as condutas escolares e as atitudes diante da escola, que constituem o princípio<br />

de eliminação diferencial das crianças das diferentes classes sociais”. (BOURDIEU,<br />

1998, p.50). O equívoco está no entendimento de classe social quando, na realidade, o<br />

sentido de “ethos de classe” (BOURDIEU, 1998, p.49) não acolhe uma política cultural<br />

para educação.<br />

O currículo escolar é inerte e preserva o ethos cultural ideológico da arkhé euroamericana,<br />

que ignora o sentido de coexistência comunal porque elabora a vida social,<br />

desdobrando-se num cenário dicotômico de classe social que pressupõe a existência de<br />

pessoas vivendo em diferentes níveis sociais.<br />

Esta dinâmica regida por critérios de valores absolutamente materialistas está<br />

agregada à concepção de educação do currículo oficial, por isso pessoas são tratadas<br />

como coisas 27 : os funcionários, alunos, professores, gestores, todos têm como<br />

referência, na “casa grande”, um número chamado cadastro pessoal e, fora disto, não<br />

são absolutamente nada, não tem nenhuma importância para o sistema oficial.<br />

É um equívoco realizar críticas ao currículo ancoradas na relação de classe<br />

porque partem do entendimento do que Marco Aurélio Luz (1994, p.20) já alertou: “[...]<br />

neste contexto, a diferença sempre é representada e percebida como desigualdade”. O<br />

próprio Bourdieu faz uso de expressões como salariado e assalariado, operariado,<br />

classe média, classe alta como referência características da existência humana.<br />

27 “É coisa todo objeto do conhecimento que a inteligência não penetra de maneira natural”.<br />

(DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. São Paulo Nacional, 1977, p. 21).


214<br />

Tudo vale uma moeda, assim, “privação cultural” refere-se “[...] herança cultural<br />

que difere, sob dois aspectos, segundo classes sociais, [e] é a responsável pela diferença<br />

inicial das crianças diante da experiência escolar e, conseqüentemente, pelas taxas de<br />

existo” (BOURDIEU, 1998, p.42), mas refere-se, também, ao não acesso ao poder<br />

através de bens de consumo, logo este caminho não elabora uma política de educação<br />

cultural.<br />

O currículo da arkhé civilizatória da “casa grande” faz investidas de controle<br />

ético-moral e sociocultural eurocêntrico. A luta Artebagaço Odeart está atenta a este<br />

moralismo: “Porque, simplesmente, o sistema de ensino é a imagem, é feito à imagem e<br />

semelhança do sistema político de regras e confecções do sistema ético-moral da<br />

sociedade oficial”, (Diego, 2005, grifos nossos), Só investindo no estudo destas<br />

estruturas repetitivas nos obrigamos “[...] a pensar na ruptura com o espaço da “senzala”<br />

de uma educação unidimensional” (LUZ, N., 2001, p.25), tendo como oposição a<br />

educação pluricultural quilombolas.<br />

A educação é contraluz da verdade do currículo da servidão neocolonial, no<br />

Brasil, assim como, em todo país colonizado das Américas, as disciplinas ou “matérias”<br />

compõem o cenário de “cura” da política educacional do Estado Terapêutico 28 , e sua<br />

ancoragem é oficializada pelos aparatos citados por Narcimária Luz. Eles são as<br />

regulagens capazes de atingir o padrão do modelo individualista “produtorconsumidor”,<br />

a meta principal da educação terapêutica.<br />

E, mesmo que haja reformas, mudanças de regime governamental, capitanias,<br />

província, império, república o currículo nacional não perde o sentido de um corpo<br />

inerte idealizado a serviço de uma oligarquia mercantilista, pois, no âmago deste corpo,<br />

encontra-se a meta global de vida social que é a colonização.<br />

A “liberdade” no sistema escolar consiste em cumprir o que determina o<br />

currículo oficial da maneira que convier. Foi em suas vivências pedagógicas, através da<br />

observação “desde dentro”, que Janice Nicolin pôde apreciar os resultados da política de<br />

homogeneização do educador em algumas unidades escolares. Na realidade é uma<br />

obediência “cega” aos padrões, aos aparatos administrativos e pedagógicos, aos<br />

28 O Estado Terapêutico é uma metáfora recriada por Narcimária Luz (2001, p.80 que consiste em<br />

reterritorializar no Bahia o cenário elaborado por Dr. Tomas Szasz em A fábrica da loucura: “Szasz<br />

demonstra que o Estado erige em relação ao seu funcionamento, organização e estabilidade, valores que<br />

constituirão padrões de comportamento aceitos pela razão de Estado, e aqueles que não aceitam esses<br />

padrões são considerados divergentes, desviantes, selvagens, primitivos”.


215<br />

métodos ditados pelos projetos da “casa grande”, sobretudo muitos são féis defensores<br />

da dimensão espaço-tempo matematizado no restrito espaço da sala de aula.<br />

Janice Nicolin foi, por três anos, supervisora de um programa cognitivista do<br />

sistema público estadual que tinha duas metas: primeira, realizar a formação continuada<br />

do educador, orientando-o para o uso de métodos e formas de linguagem dinamizados<br />

exclusivamente pela razão instrumentalizada; segunda, por via deste educador<br />

“treinado”, transmitir estas formas de linguagens universais ao estudante africanobrasileiro<br />

da Bahia.<br />

O surpreendente é perceber que a imposição universal ancorou-se no ato legal da<br />

Lei 9394/1996 de Diretrizes e Bases da Educação Nacional quando determina que o<br />

currículo oficial alicerça-se em duas bases: Base Comum e Base Diversificada no Art,<br />

26. Como diversificada, a proposta positivista ignorou a cultura local, mesmo o artigo<br />

deixando bem claro “[...] uma parte diversificada, exigida pelas características regionais<br />

e locais da sociedade, da cultura [...]” (BRASIL, 1988, p.30).<br />

Contudo a proposta ancorou-se na lacuna que o Art. 26 deixou: [...] “por uma<br />

parte diversificada, exigida pelas características regionais e locais da sociedade, da<br />

cultura, da economia e da clientela” (BRASIL, 1988, P.30), logo, a mesma lei que<br />

assegura a condição da pluralidade nega ao afirmar também a universalidade:<br />

“economia da clientela”. Do que sabemos, o que é considerado legal como meio de<br />

produção econômica são as linguagens da política imperial-mercantilista euroamericana.<br />

O mais surpreendente foi ver a conduta de servidão neocolonial dos professores<br />

e gestores em relação às normas de imposição deste programa governamental: Programa<br />

de Enriquecimento Instrumental, que era uma das estratégias do Projeto Governamental<br />

Educar para vencer. Poucos educadores conseguiam “rasgar” as condutas de padrão<br />

homogêneo, poucos diretores conseguiam compreender que, naquele jogo de<br />

desculturação do africano-brasileiro, seu “papel” era de âncora do “esquematismo<br />

terapêutico”, inclusive alguns alunos já se haviam condicionado ao padrão de linguagem<br />

universal devido à ação “curativa” ou de “profilaxia”, quem sabe até “milagrosa”, para<br />

alguns educadores da razão instrumental.<br />

Outros educadores, mesmo sem gostar, mantinham a rotina mecanicista e, por<br />

vezes, reclamavam do método unidirecional, mas eram pequenos suspiros do vazio<br />

existencial, afinal a rotina da escola é mecanicista por natureza, pois dedica-se em<br />

repetir, repetir e repetir o já dito pelas perspectivas positivistas e o resultado é a


216<br />

submissão à escrita, à gramática como a tábua da salvação, ao livro didático, ao<br />

fardamento, enfim, ao que consiste em ser “normal” na escola. É o princípio da<br />

“salvação” ditado por Pero Vaz de Caminha.<br />

Há um grande investimento do Estado Terapêutico, são cursos de formação de<br />

educador já habilitado e treinado para treinar o outro culturalmente inferiorizado, desde<br />

os centros acadêmicos até os que sobrevivem nas unidades escolares, mesmo assim,<br />

existem aqueles que conseguem resistir às doses cavalares da “ação terapêutica”, como<br />

a professora Maria de Fátima Pires:<br />

Bem, hoje em dia, minha postura em relação ao trabalho,<br />

principalmente de metodologia que minha formação é em Pedagogia,<br />

tento realizar um trabalho voltado para o lado afetivo que o ensino<br />

tradicional (leia-se tecnicista), sobretudo porque a escola tradicional<br />

tocava um ensino conteudista, se preocupava muito com a<br />

transmissão deste e esquecia o lado afetivo do aluno. Hoje a minha<br />

postura é mais de orientação afetiva, é mais de orientação da autoestima<br />

porque há uma preocupação também na história de vida do<br />

aluno, porque esta história de vida faz com que ele aprenda ou não,<br />

que ele goste mais de si mesmo ou não, com que ele tenha vontade de<br />

estudar. (Maria de Fátima, 2006).<br />

A professora Maria de Fátima tem mais de 25 anos de Magistério e pôde viver as<br />

ações ditadas por várias reformas na educação que forçam sua atuação como docente<br />

em várias disciplinas. Graduada em Pedagogia, ela é natural do Recôncavo baiano,<br />

Muritiba e moradora do Cabula há mais de 30 anos, também acompanhou as mudanças<br />

de urbanização do bairro, além de conhecer seu aluno como seu vizinho.<br />

Sua preocupação é curricular: “É assim que entendo esta preocupação do lado<br />

afetivo, acho que ele anda ao lado do conhecimento, da informação da busca do<br />

conhecimento de si mesmo e também da melhoria da qualidade de ensino” (Maria de<br />

Fátima, 2006). No currículo, insere-se uma reflexão política do que se constitui o<br />

conhecimento na escola: “conhecimento de si mesmo”.<br />

Esse conhecimento está tão ocultado pela escola, que, nas palavras da<br />

professora, embora ele ressurja, esta não consegue identificá-lo como códigos de<br />

valores herdados da ancestralidade, como vivências comunais que alicerçam a base<br />

existencial de seu aluno.<br />

E esta é a grande perversidade das políticas públicas de currículo nacional:<br />

impor legitimidade universal do conhecimento de uma só cultura, a ponto de o próprio


217<br />

educador, ao trabalhar com outros saberes (resistência à imposição), não conseguir<br />

identificá-los como referência de valor de outra cultura.<br />

Logo, a resistência existe, mas o educador que a realiza, muitas vezes,<br />

desconhece o solo de origem de sua luta. Seria este um dado importante na formação do<br />

professor – a identificação dos códigos de valores culturais do território político<br />

caracterizador de sua luta contra a imposição de políticas públicas pedagógicas?<br />

Nosso solo de pesquisa acredita que sim, mas o fato de negar o padrão já é um<br />

bom indício para chegar ao reconhecimento do solo onde está a origem da força de luta<br />

que tem seus motivos políticos para existir, como mostra a professora Maria de Fátima<br />

(2006):<br />

Eu, até hoje, sinto muito a falta do Curso de Magistério, porque, além<br />

da integração do corpo docente, a gente também tinha um vínculo<br />

afetivo muito forte com nosso alunado. E, hoje, terminado o curso de<br />

Magistério, por força da legislação, da Lei 9394/96, a gente sente,<br />

[...], pois era uma hortazinha que cuidávamos com muito carinho, era<br />

amor mesmo que a gente tinha.<br />

A revolta gera, ora desânimo durante as condutas pedagógicas de resistência, e<br />

ora aumento da força por ver que o aluno é o alvo principal da ação terapêutica:<br />

O aluno de hoje 29 é o aluno que não cria vínculos afetivos, nem com a<br />

família nem com a própria escola, nem consigo próprio, é o aluno que<br />

é assim [pára e joga um olhar distante com sentido de profundidade]<br />

perdido, fragmentado, um aluno que é [mexe muito com as mãos,<br />

baixa a cabeça, levanta, curva o corpo aproximando-o em direção do<br />

meu olhar e olho a olho diz]. Parece que ele está buscando algo que<br />

ele próprio não sabe. [Respira profundamente e seus olhos brilham<br />

quase como que chora, é brilho do olhar].<br />

Esses ecos descrevem a presença de um currículo que orienta as atitudes de<br />

oposição do currículo imposto pelo Estado, nele se encontra o conhecimento ocultado<br />

pelas perspectivas racionalistas positivistas. Muitos professores e estudantes só<br />

reconhecem o que está no livro didático ou em publicações científicas positivistas e<br />

médico-evolucionistas que chegam à escola pública do ensino fundamental e médio.<br />

29 A professora fala do curso de Formação Geral com base na Lei 9.394/1996, que substituiu os cursos<br />

profissionalizantes como o curso de Magistério, que não atendia as exigências mercantilistas neocoloniais<br />

de acúmulo de capital.


218<br />

Por tudo isto, consideramos importante que a população de<br />

descendência africana adquira um conhecimento reflexivo sobre si<br />

mesma, não só para distinguir e assumir plenamente sua originalidade,<br />

sua riqueza étnico-cultural, mas para permitir um exame analítico de<br />

sua situação, de seu destino na sociedade envolvente, para poder<br />

participar ativamente na condição desses destino, considerado seu<br />

próprio enfoque, experiência, concepção e interesses.(LUZ, N., 2000,<br />

p.35).<br />

É importante que haja uma reflexão sobre a dinâmica social orgânica da escola<br />

a partir da própria comunidade escolar em seu contexto local, a unidade escolar e o<br />

lugar onde ela se insere. Há uma necessidade de busca da referência cultural, que é um<br />

dado considerado importante pela professora Maria de Fátima (2006):<br />

Então, é importante que ele próprio tenha uma referência histórica<br />

[leia-se cultural], é importante que ele saiba aonde quer ir e quer<br />

chegar. Acho que, sobretudo, falta-lhe perspectiva de referência, do<br />

referencial do pai, mãe, professor, escola, tudo isto que falta para ele<br />

a gente sente que compromete a qualidade do ensino e do<br />

aprendizado.<br />

Contudo não é só o aluno que precisa, é o todo escolar local. Quando lhe<br />

indagamos sobre cultura, já que está falando de referência histórica, ela assim responde:<br />

O aluno traz cultura. Cultura é tudo aquilo que o indivíduo produz,<br />

tudo aquilo que [leva um tempo em pausa a pensar]. É criação<br />

humana, cultura. Então, com isso, essa transmissão da cultura que a<br />

gente percebe que estes alunos têm das gerações mais velhas, das<br />

gerações passadas, a gente vê que a rejeição desta estrutura que eles<br />

recebem é rejeição da escola como modelo ultrapassado, como<br />

modelo que a gente vê assim que... [recua o corpo que estava<br />

inclinado a falar com toda gesticulação que a face permite, pois está<br />

sentada, logo solta a palavra] não aceita o aluno do jeito que ele é.<br />

(Maria de Fátima, 2006).<br />

A expressão do “jeito que ele é” traduz o que a professora Maria de Fátima<br />

elabora como noção de cultura, porém, para ser tradutor de herança cultural, há de<br />

reconhecer as referências culturais da arkhé civilizatória de que a mesma está falando,<br />

por isso reafirmamos: é importante que o professor reconheça seu próprio solo de<br />

origem para depois reconhecer as referências do estudante, sendo assim, ele poderá<br />

intercambiar poderes e saberes no campo da luta pela afirmação da alteridade, o<br />

professor precisa assumir sua identidade civilizatória.


219<br />

É neste momento que propomos uma reflexão a partir do que diz Tomás Tadeu<br />

da Silva (1999, p. 145): “Currículo: uma questão de saber, poder e identidade”, pois, no<br />

cenário do poder hegemônico, entendemos ser este um documento de status oficial da<br />

ideológica neocolonial, que impõe um ritmo de vida uniforme à comunalidade cujo solo<br />

de origem de referência dinamiza-se pela diversidade.<br />

Essa situação aumenta a desmotivação do educador que acreditou que algo<br />

poderia fazer para transformar o ideal em real, espaço de vivência. A professora Maria<br />

de Fátima é um dos ecos que entoa um longo desabafo sobre isto, digamos que seja um<br />

“grito empalhado”, que traduz o esmaecer da criatividade de muitos educadores:<br />

Hoje eu trabalho no curso de Formação Geral, mas sinto que não tem<br />

a mesma resposta que a gente tinha no curso de Magistério, o<br />

comprometimento do alunado é outro [...] com o curso de Formação<br />

Geral, o aluno não tem uma profissão, então eles ficam soltos sem<br />

saber o que fazer. Já no curso de Magistério, a gente sentia que as<br />

alunas tinham vontade, tinham amor ao que faziam. Então eu lamento<br />

mesmo, até hoje eu lamento, sinto muito. Eu mudei a minha postura<br />

pelo fato, exatamente, do curso ter acabado e da gente ter uma outra<br />

clientela, então, eu mudei minha postura e sinto muito. É uma falta<br />

enorme que me faz 30 . (Maria de Fátima, 2006).<br />

– O colégio sofreu o impacto da reforma?<br />

Sofreu sim, o colégio sofreu porque até o lado externo da escola, o<br />

cuidado que a gente tinha com a escola, as hortas que a gente via as<br />

meninas [alunas] fazerem, terrários, aquários, tudo que elas faziam:<br />

os enfeites, as festas, os cartazes, tudo que elas faziam e faziam com<br />

muito amor, hoje, a gente vê que o aluno não está preparado para<br />

estas situações. A gente vê que o aluno de Formação Geral não tem<br />

esta maturidade que as meninas do Magistério tinham de cuidar das<br />

coisas com amor, carinho, pois a gente coloca um cartaz agora,<br />

quando passa depois está riscado e com nome pornográfico, então é<br />

uma pena isto!<br />

[...]<br />

Eu me lembro que a gente trabalhava muito preocupada com a<br />

postura das alunas do Magistério, a conduta delas, a linguagem, a<br />

oralidade. Janice, enquanto professora de Português, com a<br />

oralidade dessas alunas, e nós professores tínhamos um trabalho<br />

voltado ao teatro: Janice, Edilene, Isabel, Vera Itaparica. [...]. Tudo<br />

voltado para o lúdico e oralidade.<br />

30 Neste momento desligamos o gravador, a linguagem da emoção é protagonista no cenário, são os eidos<br />

revelando o que Maffesoli chamou de “subliminal”, o “desde dentro para desde fora”, a força arquétipica<br />

junguiana expressando o sentimento da coletividade docente reprimida.


220<br />

Os ecos da professora Maria de Fátima descrevem sua vivência cotidianas na<br />

escola, uma vida de dedicação e crença no educar através das normas de tabulação do<br />

currículo oficial, as decepções estão neste ponto: entender que as disciplinas ou matérias<br />

não podem responder por um conhecimento que traduz a realidade vivida, que os temas<br />

transversais 31 constituem um diálogo sobre educação pluricultural.<br />

A decepção também está em acreditar que, ao criar um curso como Magistério<br />

com Habilitação no segundo grau, o poder de Estado não atende, apenas, aos interesses<br />

da comunidade local, ao contrário esta é a forma conveniente de organizar a<br />

comunidade escolar para atender à cultura ditada pelo currículo, a cultura eurocêntrica.<br />

O professor precisa entender que aluno é metro quadrado 32 para o poder de<br />

Estado. A palavra recriada numa bacia semântica ocidental é tridimensional, as<br />

referências são homogêneas e desdobram-se num contínuo retilíneo desprovido de<br />

códigos de valores civilizatórios, a palavra deste solo de origem é uma grande armadilha<br />

para quem não se coaduna com o unidimensionamento e a universalidade do<br />

pensamento.<br />

A formatação do corpo homogêneo é um dos temas debatidos por Foucault<br />

(2004), e, embora seus estudos concentrem-se entre os séculos XVII e XVIII, na era<br />

clássica, o estudioso acredita que estas condutas não se realizam para moldes<br />

escravagista, mas para obter um corpo de soldados para servir ao Estado. Concordamos<br />

em parte, acreditamos que um corpo que se torna inerte, fica a dispor do poder, ao que<br />

este convier; se soldados ou tecnoburocratas, sempre haverá chefaria e trabalhador<br />

escravizado.<br />

Essas desigualdades sociais asseguram “a posse do poder” (SODRÉ, 2000, p.75)<br />

sempre aos mesmos e mesmos. O “Decreto Lei n 0 1.331, de 17 de fevereiro de 1854,<br />

estabelecia que nas escolas públicas do país não seriam admitidos escravos, e a previsão<br />

de instrução para adultos negros dependia da disponibilidade de professores” (BRASIL,<br />

2004, p.7). O trabalhador africano submetido à escravização não podia ir à escola nem<br />

muito menos seus descendentes na condição legal de “papéis” caracterizados como<br />

libertos ou livres. Esta situação mostra-nos a arkhé pedagógica que desencadeou uma<br />

31 Mais adiante, abordaremos sobre o equívoco que este termo cria durante as elaborações dos planos<br />

pedagógicas idealizados semanalmente nas reuniões de Acs, atividades de coordenação, nas escolas<br />

públicas.<br />

32 Em encontros com a representação da APLB – Sindicato (outubro 2006), a representação do professor<br />

anunciou o que há em lei: o aluno deve ocupar um espaço, por metro quadrado, em sala de aula, desta<br />

medição pode-se fazer o cálculo de gastos com o aluno, logo, quanto vale um aluno para o Estado.


221<br />

sucessão de moldes com objetivo de esculpir o corpo do trabalhador-escravo desde o<br />

Brasil império.<br />

Em 1878, no Brasil, a farsa social democrática que caracteriza o esquematismo<br />

político neocolonial, montou um cenário de suposta aceitação do homem negro na<br />

escola, mantendo como padrão a forma imperial da Escola Normal inaugurada em 1836<br />

na Bahia (LUZ, N., 2000, p.49) Assim, abre o suposto acesso ao descendente de<br />

africano, porém à noite, com restrições do tipo se houver vagas suficientes, mas que<br />

fique claro que os valores culturais preservados eram do ethos ocidental e atuavam<br />

como ações terapêuticas.<br />

A educação terapêutica do Império transfere-se para a genocida da República.<br />

Expressões de caráter curativo como: “tratamento”, “diagnóstico”, “melhoria”, “dose de<br />

conhecimento eficaz”, que ouvimos atualmente na escola, acompanham outras mais<br />

severas de caráter punitivo como: “aplicar um corretivo”, “manter as rédeas”, “botar do<br />

nosso jeito”.<br />

Atualmente, século XXI, apenas descendentes de africanos e aborígines vão à<br />

escola pública, já que as “elites” patrimonialistas neocoloniais criaram seus espaços<br />

escolares, ampliaram o distanciamento do acesso ao saber e demarcaram limites<br />

fronteiriços. Neste sentido, o conhecimento oficial da territorialidade africano-brasileira<br />

concentra-se na dedicação exclusiva para formação do trabalhador produtorconsumidor,<br />

um protótipo de escravizado pelo consumismo industrial.<br />

O interessante é compreender que, apesar da dicotomia escola pública e<br />

particular, o conhecimento universal também é dominante nos espaços do sistema<br />

particular onde estudam os filhos das “elites” neocoloniais, ser ditado pelo currículo<br />

oficial.<br />

Contudo, em relação aos espaços do sistema público, os conteúdos mudam a<br />

feição e se mantêm como efeito de função disciplinar: “A disciplina fabrica assim<br />

corpos submissos e exercitados, corpos ‘dóceis’. A disciplina aumenta as forças do<br />

corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos<br />

políticos de obediência)” (FOUCAULT, 2004, p.119).<br />

Neste caso, a disciplina se constitui em matéria e o conhecimento que formava o<br />

colono obediente submisso ao Senhor de engenho, o equívoco de monarca, agora, na<br />

república brasileira, vai para os descendentes de africanos e africano-indígenas,<br />

inclusive aqueles que sobrevivem no cenário urbano-industrial são mais afetados pela<br />

“luz” da verdade universal disciplinar.


222<br />

Essa tradição curricular constitui-se em investidas sempre olhando<br />

retilineamente para o futuro, negando a valorização do conhecimento plantado pelas<br />

arkhé civilizatórias simbólicas africanas e aborígines. Educar consiste numa política de<br />

desculturação dos valores herdados, por isso não podemos nunca esquecer que:<br />

Um dos problemas mais graves enfrentados pelos países do Terceiro<br />

Mundo e ex-colonizados diz respeito ao sistema de ensino.<br />

[...]<br />

O sistema de ensino que foi implantado e desenvolvido nesses países<br />

em geral é herança do colonialismo e, como tal, se constitui um<br />

aparelho ideológico do Estado, voltado para reproduzir e divulgar os<br />

valores etnocêntricos ou eurocêntricos, assim como para atender às<br />

necessidades técnicas de uma economia atrelada ao mercado de trocas<br />

comerciais neocoloniais”. (LUZ, M.A., 1989, p.9;17).<br />

A desculturação é compreendida em nossos estudos como uma forma de racismo<br />

que a escola sempre pratica, aumentando o território de recalcados ideologicamente. Por<br />

falar em recalque, é importante ouvir o que Beni Morais tem a nos dizer sobre recalque<br />

cultural na escola, a partir de sua vivência como professora de História.<br />

Antes, porém, fiquemos atentos ao eidos em que ela se assenta para enunciar o<br />

ethos africano-brasileiro, pois, enquanto fala Beni Moraes gesticula bastante, seu corpo<br />

manifesta a ginga da capoeira, expressando o vaivém das ondas do mar e também se<br />

retraí, sobretudo ao falar do recalque sofrido pelo aluno que vê a negação de sua própria<br />

cultura no espaço de educação:<br />

Toda vez que tem um evento na escola e tem alguém [estudante] que<br />

quer trazer uma pessoa pra falar sobre seu conhecimento a escola<br />

reage contra: “Ah! Bote só este grupo, bote só não sei quem.” A<br />

gente sente pelos próprios olhares que está incomodando [a proposta<br />

do desconhecido conhecimento]. Agora, quando alguém diz vamos<br />

falar de Português, Matemática, todo mundo aplaude [o corpo<br />

colonizado] e também vem ainda o discurso vazio que ninguém<br />

agüenta mais, nem eu que sou professora de História quero saber, se<br />

foi Pedro quem descobriu ou foi Colombo quem trouxe o ovo e botou<br />

em pé, eu não agüento mais, entendeu? Isso é sério não é para rir, é<br />

muito sério!(Beni, 2006).<br />

O interessante é perceber que nesses ecos, está um apelo à mudança no cenário<br />

escolar, também estes ecos revelam que quem trará o conhecimento é o aluno, porque a<br />

expressão mudança pode ser traduzida por possibilidade da linguagem pluricultural de<br />

quem foi sempre ocultado nas entrelinhas legais das reformas educacionais, vejamos o<br />

que Beni entoa sobre a participação do ocultado pelas normas do sistema escolar:


223<br />

A vivência do aluno é importante, por exemplo: as entidades negras<br />

que são formadas aqui mesmo no Cabula, onde já estão várias<br />

organizadas, trabalhando com a função de transmitir para aqueles<br />

alunos um conhecimento sobre a vida. Esses meninos aprendem é<br />

coisa: a capoeira, os meninos enchem a escola de capoeira e não é só<br />

a dança e o próprio conhecimento. (Beni, 2005).<br />

Adriano de Andrade, corpo da platéia Artebagaço e estudante do colégio onde<br />

Beni e Janice lecionam e território da insurgência artebagaciana, é uma força de atuação<br />

cabuleira na escola. Quando a pesquisa lhe indagou sobre o conhecimento e a cultura da<br />

escola, ele assim respondeu:<br />

E continua:<br />

A cultura da escola, no meu modo de ver, não é a da comunidade. A<br />

cultura da comunidade, em termos de assunto, todos se envolvem: um<br />

se envolve com o outro e há união por todos e na escola não. E, na<br />

escola, apesar de ser pregada a cultura do negro, quando se fala do<br />

negro [...] como algumas lutas citando história do Brasil, se fala de<br />

Zumbi dos Palmares, se fala dos negros libertos, não é a idéia de luta<br />

que prevalece na escola.<br />

Eu acredito que existe uma cultura de branco no colégio: quando se<br />

fala de educação o comer de mão, por exemplo, comer o alimento<br />

com as mãos dizem que a comida é mais saborosa, na escola não, já<br />

bota na cabeça do aluno que comer de mão é falta de educação,<br />

então, tem de usar garfo e faca, então já foge da cultura africana.<br />

Esta cultura prevalece por quê?(Adriano Andrade, 2006).<br />

Adriano é um africano-brasileiro se afirma assentado em eidos herdado da<br />

vivência com a comunalidade tradicional, ele diz: “Sou Omo-Xangô”, quer dizer filho<br />

de Xangô; no contexto urbano-industrial, ele é um estudante que nasceu no Cabula, na<br />

comunalidade do Beiru e criado em Narandiba. Quando o lhe indagamos – “Esta cultura<br />

prevalece, por quê?”<br />

Porque o professor jamais vaí dizer pro aluno que ele pode comer de<br />

mão que a comida é saborosa, o professor vai dizer que para o aluno<br />

que para ele ser civilizado deve comer de garfo e faca, jamais [tom<br />

enfático e com repulsa]. O professor vai dizer pra o aluno que ele<br />

deve andar com os pés no chão, o professor vai dizer pra o aluno que<br />

ele tem que andar bem calçado, de tênis, e esta influência na cabeça<br />

do indivíduo fica que deve ter um bom tênis, porque, para ele ser<br />

civilizado tem que seguir aquele padrão. A cultura africana. Neste<br />

sentido, não prevalece, vindo do professor para o aluno.


224<br />

Adriano também denuncia o fato de que algumas crianças da comunalidade<br />

tradicional, ao irem à escola oficial, perdem os valores herdados da ancestralidade:<br />

Na maioria das vezes, sim. Eu, por exemplo, não perdi graças a Deus,<br />

mas na maioria das vezes a criança entra até em confronto com a<br />

família porque a mãe libera um filho para ir à escola, quando retorna<br />

a casa é outro filho, porque a mãe vai ver que há diferença naquele<br />

filho até em certas palavras, ela vai usar a palavra da cultura<br />

africana e ele vai dizer: “Não, minha mãe, não é assim, não”.<br />

Entendeu? Ele aprendeu na escola que é assim [faz um gesto como se<br />

fosse um tijolo assentando]. (Adriano Andrade, 2006).<br />

Adriano é pai de dois filhos e o mais velho de três irmãos e por isso pode falar<br />

“desde dentro” sobre os obstáculos ideológicos no cenário urbano-industrial que<br />

imperam na vida do africano-brasileiro que preserva suas referências de arkhé<br />

civilizatória:<br />

Vamos citar um exemplo de palavras: muitas mães em casa, quando<br />

está conversando, usam palavras como né, mas o filho chega e a<br />

corta: – Não minha mãe, é não é. Ele quer passar uma coisa mais<br />

explicativa para mãe, mais bonita na visão da escola, sendo que aí ele<br />

já perdeu o valor da linguagem africana, ele perdeu o valor dos<br />

hábitos africanos e, se ele, quando chegava em casa tirava os sapatos<br />

para pisar no chão e sentir a Mãe-Terra, ele não vai mais tirar<br />

sapatos; é uma coisa que vai perdendo os valores sim, mas eu<br />

acredito que muitos guardam e vão continuar a guardar. (Adriano<br />

Andrade, 2006).<br />

Observe-se que o território da linguagem se constitui na fonte de conhecimento<br />

tanto para resguardar e transmitir valores culturais herdados quanto para a<br />

desculturação. É através do que percebe como valor de linguagem, significantes<br />

simbólicos, que Adriano mostra como as crianças perdem as referências civilizatórias<br />

que o território escolar nega a existência, inclusive deprecia, a forma de pensar e trava a<br />

criatividade. Adriano (2006) desoculta a ação recalcadora:<br />

No momento que ele [o professor] pega o aluno, guia e faz aquele<br />

guia na sala de aula “tem que ser assim”, “tem que ser desta forma,<br />

dessa maneira”, ele não está deixando o aluno se desenvolver.<br />

Quando há uma negociação entre o a aluno e o professor passa o<br />

trabalho e o aluno diz: “– Posso fazer assim?” E o professor diz sim,<br />

aí sim, ele está dando oportunidade ao aluno porque dali ele vai<br />

pesquisar, vai adquirir mais conhecimentos para aquele trabalho.<br />

Quando ele diz para o aluno que tem que ser assim, então ele está<br />

dizendo ao aluno que não precisa ser criativo.


225<br />

Agora Adriano apresenta sua linguagem de resistência à formação do “sujeito<br />

produtor-consumidor”:<br />

Agora eu, na maioria das vezes sou rebelde com o professor, com o<br />

assunto que o professor passa geralmente quando vou resolver uma<br />

questão O professor dá um texto, geralmente ele requer que a gente<br />

retire as palavras daquele texto para “aplicar” [ faz sinal das aspas]<br />

nas perguntas que fez. Mas eu modifico algumas palavras porque ali é<br />

do li e entendi. Na sala de aula já teve professor que leu e corrigiu:<br />

“Não é isto aqui que está no texto”. Ele queria que tirasse as mesmas<br />

palavras que estão no texto [os braços gesticulam sinais de irritação<br />

com o movimento para cima e para baixo expressando repetição] e<br />

colocasse ali [aponta a folha do caderno], sendo que as palavras que<br />

coloco são palavras sinônimas, mas eles não querem aquilo ali. É<br />

como estou dizendo, querem guiar o indivíduo para que ele só faça<br />

aquilo, mas eu sou um pouco rebelde. (Adriano Andrade, 2006).<br />

Adriano não participa das oficinas do Grupo Artebagaço Odeart, porém nossa<br />

concepção de existência guerreira artebagaciana capaz de transformar cenários de<br />

estigmatização do africano-brasileiro e aborígine brasileiro é o que apresenta este jovem<br />

lutador no cenário escolar. É como ele mesmo diz: “Sou um pouco rebelde”, a<br />

resistência é formada por rebelados, não é se fazendo de “coitadinho” que se transforma<br />

o cenário hostil em um território de afirmação da alteridade. Vamos a seu cenário de<br />

luta:<br />

Em questão de filosofia, discutindo em sala de aula a cultura grega e<br />

romana, a cultura dos filósofos e a mitologia, a professora foi<br />

discordar do mito. Em plena aula eu me levantei e disse que<br />

acreditava em mito. E aí [larga uma densa e prazerosa gargalha ao<br />

lembrar]. Bem, eu não discorri muito, porque ela não que eu passasse<br />

pra turma o que eu estava querendo falar, o que eu estava querendo<br />

dizer. Foi exatamente assim que ela me silenciou: escreveu no<br />

quadro, falando sobre bom senso, falando de mitologia, sobre ciência<br />

e onde tinha escrito mito ela escreveu: “Não acreditar em mito”. E<br />

então, como os alunos estavam todos voltados ao quadro [ ele faz<br />

gesto com os braços caracterizando um corredor ou o<br />

unidimensionamento] escreveram, é óbvio, em seus cadernos. Mas<br />

com minhas palavras eu disse que acreditava em mito. Inclusive eu<br />

disse para ela que todo assunto colocado pelas religiões, todas as<br />

religiões são formadas por mito, tanto as evangélicas quanto<br />

catolicismo, candomblé, enfim todas as religiões a base é o mito,<br />

porque o mito vai explicar como chegamos até ali. Então o ponto de<br />

partida é o mito. Levantei e levantei [fica em pé, puxa a barra da<br />

camisa, bate no peito] a mão e disse que acreditava em mito, ela fez<br />

uma discordância rápida e tal, não entrou em discussão e escreveu no


226<br />

quadro: “Não devemos acreditar em mito”. E pronto. (Adriano<br />

Andrade, 2006).<br />

A entrevista com Adriano Andrade é ampla riquíssima o jovem é daqueles que<br />

vai à escola em busca do saber ocidental, contudo sabe preservar os valores culturais<br />

herdados dos ancestrais africanos. Em seu caso particular, são ancestrais nagôs oriundos<br />

da atual Nigéria e territórios ocupados do Benin. Adriano reconhece, na desigualdade<br />

social, a ideologia do recalque, por isso também concebe a escola como um<br />

enclausuramento cultural.<br />

Com efeito, toda esta engenharia de clausura não poderia ser considerada algo<br />

agradável, é neste ponto que voltamos a pensar na política do “bagaço” que nos indigna<br />

e por isto questionamos: o que é, realmente, educar no espaço urbano-industrial? A<br />

artebagaciana Alcinéia dos Santos também já fez este questionamento e nos responde:<br />

O que é o educar? Como eu venho debatendo antes, desde quando a<br />

pessoa nasce já existe aquela coisa de como preparar aquela pessoa<br />

de acordo com seu crescimento, que a gente tem sempre uma cautela<br />

em dizer: “Não pode falar determinadas cosas na frente da criança”.<br />

[Muda a voz e a postura do corpo que curva para frente e com o<br />

indicador de ambas as mãos aponta fazendo a teatralidade corporal<br />

como se estivesse imitando quem educa alguém]. Por quê? Porque<br />

tudo aquilo que a criança vê aprende e aprende rápido, então tem<br />

aquele dinamismo entre o convívio com as pessoas.(Alcinéia, 2005).<br />

Alcinéia mostra sua arkhé educacional através do ethos que caracteriza a<br />

linguagem da comunalidade, é a presença pujante de eidos, reelaborando o sentido da<br />

tradição plantada no lugar: “Porque tudo aquilo que a criança vê aprende e aprende rápido,<br />

então tem aquele dinamismo entre o convívio com as pessoas”. Alcinéia continua:<br />

E na escola tem o quê? Tem aquela coisa de você aprender de forma<br />

didática (formal, distante) e tem de aprender com o relacionamento<br />

que você tem com os professores, com seus colegas de sala de aula,<br />

com os diretores. Tem aquela diferença por quê? Porque diretores,<br />

professores têm alguns que se acham sempre superiores e, aí, acaba<br />

passando aquela imagem de superioridade mesmo arisca, fazem<br />

questão de dizer: “Eu sou autoridade vocês têm quem me respeitar”.<br />

33 . (Alcinéia, 2005).<br />

33 O corpo teatralizar: ombros altos, postura de quem está em saltos finos e altos que representa o poder<br />

arrogante que substitui a postura natural de um corpo livre, quando fala da arte. Na realidade, são os eidos<br />

ocidentais representados num corpo africano-brasileiro como quem desafia alguém para o campo de luta.


227<br />

E continua fazendo sua denúncia: “É educar pressionando, acaba, às vezes, não<br />

dando para pessoa dizer: eu aprendi. Eu fui educada da seguinte forma. Isto não é ser<br />

educado, é ser alienado”, (Alcinéia, 2005). Com efeito, a criança desde pequena, como é<br />

o caso de Ivo, o artebagaciano com 11 anos de idade, reconhece que a ética da escola é<br />

inviável à vida, por isso, na escola pública os adolescentes e jovens rebelam-se e não<br />

ficam em sala de aula. Agora os ecos de Alcinéia apresentam o sentido de educação<br />

vivida no Artebagaço e na comunalidade do Beiru:<br />

Tem aquela educação do convívio, que é o quê? Você expõe o que<br />

você é você mostra na realidade o que você é, e você acaba colhendo<br />

coisas das pessoas do jeito que elas são, você acaba mesclando tudo:<br />

o que você é e o que as pessoas são e ... Acaba também se deixando<br />

impor pela autoridade daquelas pessoas que realmente educam.<br />

(Alcinéia, 2005).<br />

Retornamos às críticas à realidade educacional do sistema público escolar a<br />

partir do que ela chama de “imagem de superioridade” ou representações legítimas da<br />

escola:<br />

Eles fazem questão de se colocar, como se estivesse colocando uma<br />

cortina inteira e, na metade dela, eles colocam uma parte um<br />

pouquinho transparente e, na parte baixa, outra cortina preta, que é<br />

naquela parte preta que você não vê nada para que na parte de cima<br />

(transparente) se veja o que eles querem que você veja. Eles têm que<br />

botar aquela parte boazinha, porque eles também têm superiores e<br />

que não querem que outros superiores vejam a parte escura deles.<br />

Esta parte escura somos nós que vemos e, como ainda não podemos<br />

fazer nada, não podemos falar nada. [...] Você vê o que está errado,<br />

você quer falar, às vezes, mas não pode porque tem que aprender a<br />

contornar a situação, [...] mas indiretamente, como nas peças mesmo<br />

fazemos. (Alcinéia, 2005).<br />

Pelo discurso de Alcinéia, a luta pela preservação dos eidos e ethos africanobrasileiros,<br />

elementos tradutores da arkhé civilizatória plantada no Cabula, está na<br />

escola, ela é caracterizada pelas perspectivas positivistas de “crise social”, “crise<br />

educacional”, “crise pedagógica”.<br />

Bem, se nos colocarmos ao lado de quem não conhece as referências históricas<br />

da luta pela preservação da tradição africana no Brasil, realmente chegaríamos a<br />

interpretar as atitudes de rebeldia, semelhante às do Artebagaço, que caracterizam a<br />

evasão da sala de aula e para realizar a resistência em outros locais na escola como<br />

“crise”.


228<br />

E buscaríamos apoio nas perspectivas “terapêuticas” e estaríamos convictos de<br />

que educar é “salvar” a humanidade dos riscos de se colocar em contato com existências<br />

sociais cujos hábitos, costumes, língua e religião caracterizam a cultura dos povos<br />

africanos e aborígines. Logo, educar significa, neste cenário de recalque, criar<br />

obstáculos ao sentido de lutar pela alteridade, mas Alcinéia cria uma metáfora para<br />

explicar este jogo do sistema escolar: cortina transparente e cortina preta:<br />

É, Jane, porque você tem vontade de crescer, você tem vontade de<br />

falar, você vê o que está errado, você quer falar às vezes, mas não<br />

pode e tem que contornar as situações para dizer, mesmo não sendo<br />

de forma direta, mas indireta, como nas peças que dizíamos e as<br />

pessoas nos aplaudiam por não ter a consciência do que estão lhe<br />

atingindo. Então pra desabafar usava a arte [gargalha]. É nesta hora<br />

que eles, como já citei, nos aplaudiam por estarmos denunciando os<br />

“podres” deles.<br />

Olhe Jane, se eles dizem que a cor é rosa e você sabe que é verde,<br />

você é obrigada a dizer que é rosa, mas você cochicha com o ouro do<br />

lado e diz: Não, mas aquela cor é verde, estou dizendo que não é<br />

verde só pra não discordar dele. (Alcinéia, 2005).<br />

A crise faz parte da ilusão de ótica feita com a intenção de “efeitos-verdade”.<br />

Como o estudante, do ano 2000 para cá, tem rompido o “cerco” e não aceita fazer como<br />

Alcinéia fez entre 1996 e 1998, simular acreditar, período em que ela fez o curso de<br />

Técnico em Contabilidade no sistema público e tinha entre 15 e 17 anos, queixas sobre<br />

o recalque cultural são inúmeras de todos os setores da “senzala” escolar. São<br />

incalculáveis.<br />

Com efeito, o sentido de trágico no cenário escolar só pode ser entendido pelo<br />

que Maffesoli (1988) chama de “astênico”, ou seja, aquilo que é vivo e por isso de<br />

transforma, morre, renova-se, contudo, é também trágico por se constituir em um<br />

cenário inexistente aos olhos do poder que o concebeu para ser uma representação de<br />

fora.<br />

E não se trata de negar a representação que alicerça todas as construções<br />

institucionais oficiais modernas, mas queremos mostrar que o espaço escolar é a<br />

representação da representação imposta para ser entendida como real orgânico, por<br />

exemplo: se um professor precisa de textos para realizar aulas com 50 alunos, vem uma<br />

cópia do texto; se precisa passar um filme complementar do conhecimento, vem apenas<br />

o aparelho de televisão sem o cabo que conecta ao vídeo; é a filmagem de um evento na<br />

escola que não é feita porque não sabem onde está a filmadora.


229<br />

E mais: nesta análise, reside a necessidade de compreendermos que um espaço<br />

virtual se cria, tal como o quadrilátero foucaultiano (FOUCAULT, 2002, P.163), no<br />

qual elementos se combinam e outros se opõem, gerando a representação do que se quer<br />

representar que nossa crítica entende como realidade simulada educacional.<br />

Assim, quando vemos a exigência da ação disciplinar, logo, intuímos que na<br />

realidade nada disso é real, quem vive a escola sabe que é apenas a ação do<br />

“quadrilátero da linguagem” (FOUCAULT, 2002, P.163), ou seja, é um discurso com o<br />

objetivo de nomear as ações de representação do simulacro para que todos entendam<br />

que o cenário ideológico do recalque é o que prevalece.<br />

As leis da “casa grande” encobrem tudo que elas consideram “padrão desviante”<br />

e sua pedagogia denega a alteridade, sobretudo para que a observação “desde fora”<br />

(SANTOS, 2002, p. 18) não tenha a percepção clara do lixo ocultado no escuro que fica<br />

“embaixo do tapete”, restando-lhe, apenas, a aparência do que é autorizado, para que<br />

seja visto, talvez apenas, pelo poder superior imediato, a feitoria e os capatazes, os<br />

“carrascos pedagógicos”.<br />

É a partir deste ponto que entramos na abordagem da Lei 10.639/2003 que, nos<br />

últimos dois anos, protagoniza a cena da simulação do real, não por parte dos<br />

conscientes africano-brasileiros que estão muito confiantes na lei, mas falamos das<br />

chefarias, sobretudo, aqueles que são os herdeiros dos privilégios assegurados pela<br />

ética-moral judaico-cristã do “Estado patrimonialista” (SODRÉ, 2000, p.74).<br />

A lógica burguesa, erguida desde o regime de capitanias hereditárias, passando<br />

pelo período imperial e na atual republica, empreendeu uma política de<br />

embranquecimento ancorada nas normas racistas étnico-culturais por via dos conceitos<br />

mulato, moreno e caboclo para excluir os “de cor”, considerada “raça” inferior por<br />

terem a pele negra, traços fisionômicos da maioria dos povos africanos que chegaram a<br />

Brasil. Mas a farsa encobre uma política genocida e etnocida, pois o que avulta, nesta<br />

situação, é a grande população de descendentes de africanos que, juntos com os povos<br />

aborígines brasileiros, formam a maioria ocupacional ativa do Brasil.<br />

As pessoas que detém os privilégios patrimoniais luso-europeus são as<br />

verdadeiras promotoras da “farsa educacional” diante da Lei 10.639/2003 (BRASIL,<br />

2003). Por ocuparem cargos na “casa grande”, as leis curriculares estão sob seu<br />

domínio, e aos de “cor” que ficam na “senzala”, cabe o alerta diante das leis. Porém<br />

mesmo com os dois olhos abertos não conseguiram freá-las, e somente os sentidos<br />

seriam o melhor aliado, pois eles captam os significados ocultos da dissimulação.


230<br />

Um dos exemplos claros dessa simulação são os encontros ecumênicos,<br />

geralmente quem tem direito a voz são, nesta ordem, católicos, evangélicos e espíritas,<br />

enquanto os segmentos das religiões africanas são subtraídos do espaço de<br />

religiosidade. Depois da lei, passaram a ser convidados, geralmente, por parte de um<br />

aluno, o professor omite-se, mas resta uma luz no fim do túnel, deixam-lhe gotas de<br />

segundos para falar algo sobre sua religião.<br />

Tal situação acontece de forma clara e direta em muitas unidades de ensino,<br />

sendo percebidos por Janice Nicolin em suas andanças como supervisora do citado<br />

projeto educacional. Dessa forma, os estudantes das comunalidades tradicionais se vêem<br />

excluídos deste espaço que se diz de educação.<br />

Outra situação é o “ti, ti, ti” entre educadores, coordenação e direção quando se<br />

trata de receber uma liderança religiosa de matriz africana. Neste cenário, sempre<br />

acontece um jogo de “empurra-empurra” até decidir, como num jogo de par ou ímpar,<br />

quem vai receber a pessoa que foi transmitir o milenar conhecimento civilizatório de<br />

que a escola tanto precisa se informar.<br />

Temos ainda mais exemplos: no momento atual, as providências de realização<br />

da Lei 10.639/2003 (BRASIL, 2004), sancionada em 9.01.2003, alterando a Lei 9.394<br />

(de 20.12.1996), já estão nas unidades escolares dos municípios e Estados do Brasil,<br />

mas, sempre que ocorrem as reuniões e encontros para deliberação sobre essas<br />

providências, os ofícios que chegam às unidades sugerem a presença da representação<br />

das áreas de Língua Portuguesa, História e Artes, sendo esta uma indicação imposta por<br />

superiores da “casa grande”, é o cuidados do que falamos referente ao alerta à<br />

simulação.<br />

O alerta é necessário, pois sabemos que a Lei 10.639/2003 resulta de uma<br />

histórica luta pela afirmação da liberdade da alteridade africana nas Américas, logo ela<br />

instala-se com a luta quilombola a partir dos ancestrais bantos, que também criaram as<br />

primeiras irmandades católicas como tática de ocultamento da luta e fortalecimento da<br />

pluralidade religiosa da tradição africana.<br />

Lembramos também que a luta cresce com as Iyás que fundam as primeiras<br />

casas de culto público da tradição Nagô, destacando-se a forte presença de Iyá Nassô,<br />

Iyá Oba Tosi, Iyá Oba Biyi, Iyanassô Oxum Miuwa. Destacamos também as iniciativas<br />

dos primeiros jornais que compuseram a imprensa negra nas três primeiras décadas do<br />

século XX, a formação da Frente Negra e a força do Movimento Negro Unificado, a<br />

partir das décadas de 60 e 70.


231<br />

O recalque cultural na escola resulta das práticas racistas escamoteadas pela<br />

desculpa de que abordar a cultura e a história africano-brasileira é abordar o cenário de<br />

religiosidade africana 34 . Existem muitos funcionários, diretores e professores<br />

evangélicos nas escolas públicas que têm ojeriza aos símbolos culturais que<br />

caracterizam o ethos do africano-brasileiro.<br />

Essa situação se torna grave quando percebemos que uma cultura é constituída<br />

por códigos ético-estéticos expressos por uma língua que ritualiza e resguarda a<br />

dinâmica de comunicação dos gestos sagrados religiosos e de interação social africanobrasileira.<br />

A Lei 10.639 aponta:<br />

[...] “para a necessidade de diretrizes que orientam a formulação de<br />

projetos empenhados na valorização da história e cultura dos afrobrasileiros<br />

e dos africanos, assim como comprometidos com a<br />

educação de relações étnico-raciais 35 positivas” (BRASIL, 2004,<br />

p.9).<br />

Indagamos então: Como a escola vai realizar, efetivamente, dinâmicas<br />

pedagógicas de valorização da cultura africana com tantos evangélicos e católicos<br />

mantendo-se nos cargo públicos de orientação das políticas administrativas e<br />

pedagógicas?<br />

E mais: como o sistema escolar irá desmistificar referências simbólicas que ele<br />

mesmo criou em produções acadêmicas e assegurou nas práticas pedagógicas da<br />

servidão neocolonial para desqualificar legitimamente essa cultura, há quase dois<br />

séculos, desde o advento da Escola Normal em 1836?<br />

É importante entender que uma lei não faz vivência, ao contrário, acreditamos<br />

que sua implementação por obrigação irá ampliar o conjunto de “prescrições” e<br />

“receituários” do “Estado Terapêutico” (LUZ, 2000), logo será entendida como uma<br />

nova “dose para sanar sintomas” comportamentais de africano-brasileiros.<br />

Nosso entendimento sobre as políticas de afirmação africano-brasileira parte de<br />

nossas vivências como excluídos na escola porque esta rejeita nossa linguagem, herdada<br />

da ancestralidade durante as interações de comunalidade.<br />

34 Este pensamento demonstra o total desconhecimento do universo cultural africano, ou a negação desta<br />

forma de pensar. O ethos africano não dicotomiza a relação homem e divindade como acontece no solo<br />

judaico-cristão, que é a arkhé da religiosidade ocidental européia.<br />

35 Nossa pesquisa não entra nos aspectos étnico-raciais, dedicamo-nos aos estudos sobre patrimônio<br />

civilizatório africano e africano-brasileiro, mas respeitamos os estudos que seguem por este caminho,<br />

desde que o trabalho seja para valorizar e enaltecer a cultura de matriz africana.


232<br />

Vejamos algumas situações de recalque cultural na escola e na comunalidade<br />

para compreender o quanto é difícil a viabilidade dessas políticas sem o devido preparo<br />

do espaço-tempo viável para seu entendimento e o respeite às particularidades do local.<br />

Quem ecoa, agora, sobre o racismo é Jorge Alex, percussionista do Grupo Artebagaço<br />

Odeart, jovem de 16 anos e Tata Xicarangoma da comunalidade tradicional Angola<br />

Ganzuá Mogambo Monunguzu.<br />

Logo no começo, quando fui suspenso para Ogã, já tem quatro anos,<br />

eu tinha 12 anos, eu não sabia direito o que era e não tinha muito<br />

conhecimento. Eu estudava no Adroaldo, tinha um professor, ele era<br />

de química e eu estava no penúltimo ano, na 7 a série, ele deu um<br />

exemplo na sala que não tinha nada a ver com a aula. Mas eu não sei<br />

por que ele pegou no nome candomblé para falar e falou: “– Se você<br />

gosta de macumba, por exemplo, você é de macumba e não está<br />

entretido no mundo,você é uma pessoa diferente, está entendendo? Se<br />

você é da macumba é diferente da gente, porque a gente acredita em<br />

Deus e você no não sei o quê. Aí, como eu estava começando, fiquei<br />

calado. (Jorge Alex, 2005).<br />

Márcia Regina tem 23 anos, já terminou o ensino médio e faz curso prévestibular.<br />

Para falar de sua africanidade rejeitada por colegas na escola, ela entoa sobre<br />

a noção de cultura:<br />

Cultura não é só arte como dança e teatro, mas os gestos, né?<br />

Percebe-se o povo africano, hoje em dia eu percebo; muitos gestos<br />

africanos são impulsionados porque a gente faz, mas não sabe o que<br />

é, mas a gente precisa saber que é a africanidade e aí a gente vai<br />

começando a perceber as coisas em volta. Eu já discuti várias vezes<br />

com pessoas evangélicas, cristãos sobre o candomblé que diz assim:<br />

“– Você faz parte do candomblé é macumbeira”. Então a pessoas não<br />

vê que ali é da ancestralidade da gente, Iansã, Oxóssi não é o diabo.<br />

Na Igreja Universal, fica invocando o orixá no corpo do povo e dizem<br />

que não é candomblé, tem sessão de descarrego, banho de folha,<br />

banho de sal grosso, eles dizem que é da religião cristã. (Márcia,<br />

2005).<br />

A outra referência está relacionada com o racismo na sala de aula, são os ecos de<br />

Gilmara Cruz que já apresentamos antes:<br />

Não está bem claro que o racismo é uma coisa negativa, mas já flui<br />

na cabeça das pessoas de uma forma mais avançada, não só o<br />

professor, mas o todo escolar já tem consciência do que é o racismo.<br />

Ele pode até provocar uma distância tão grande daquela pessoa que<br />

ataca, que ofende diretamente. Tenho um exemplo em sala de aula<br />

que aconteceu isto e todo mundo percebeu. A professora solicitou a


233<br />

apostila a todo mundo e pediu que um aluno se responsabilizasse.<br />

Uma colega, com a pele bem negra, bem negra mesmo, pediu: “–<br />

Professora deixe que eu fico com as apostilas”. Ela nem olhou para a<br />

menina e delegou a outra colega. Todo mundo viu que foi racismo<br />

pelo fato de que a aluna que ela deu a apostila era bem branquinha<br />

mesmo e ela é uma professora que não tem muito contato com os<br />

alunos, que na minha sala a maioria é negra mesma, e sei porque<br />

todos se consideram negros, as pessoas de cor clara são contadas de<br />

dedo. Então, o professor pode não falar diretamente como fazia<br />

antes: “eu não quero porque você é negro”, mas há uma manobra.<br />

(Gilmara Cruz, 2005).<br />

As palavras em destaque são para reforçar o discurso de Gilmara sobre a sutileza<br />

das atitudes racistas na escola, seus eidos, a linguagem herdada recriada, que fala da<br />

professora que faz questão de se manter afastada dos estudantes e funcionários, porém<br />

estes professores não reconhecem, em seus próprios corpos, os fortes traços da herança<br />

africana e também do racismo.<br />

O racismo encontra-se fora da escola, sobretudo nas residências daqueles que<br />

perderam contato com suas raízes. Os ecos de Jorge Cipriano, um adolescente de 16<br />

anos, ator do Grupo Artebagaço, aluno do Balé Folclórico da Bahia e membro do Grupo<br />

de Capoeira Maré, fala do racismo que se ergue no meio da comunalidade da<br />

Engomadeira:<br />

Eu não tenho contato com protestantes, aliás, tenho pouco e os que<br />

tenho não são nada bons porque quando levo instrumento para casa e<br />

estou tocando lá em cima [refere-se à laje da casa] tem um vizinho,<br />

que é da igreja Batista, bem na casa ao lado da minha, tem outra na<br />

casa do fundo, que causam um transtorno quando começo a tocar.<br />

Eles começam a botar Cds evangélicos nas alturas que é para não<br />

escutar a “macumba” e dizem: “Tão fazendo macumba aí em cima,<br />

tão transformando a casa num terreiro, eu comprei isto aqui e<br />

ninguém me disse que iam fazer um terreiro em frente”. Ou então vem<br />

gente na porta de casa para fazer zuada e parar os ensaios: “Tem um<br />

bocado de macumbeiro na casa em frente, não agüento mais”. Os<br />

relacionamentos que tenho com evangélicos são muito desagradáveis.<br />

(Jorge Cipriano, 2005).<br />

Esses últimos ecos comunicam o que constitui cenários hostis de negação da<br />

alteridade africana. Buscando entender, nessas vivências, o sentido de respeito e<br />

valorização da alteridade é que acreditamos na desmistificação do estereótipo de<br />

inferioridade do africano-brasileiro.<br />

Sabemos que é uma tarefa árdua desde quando não contamos com maioria na<br />

escola para criar palcos dialógicos como o Grupo Artebagaço Odeart, que, como muita


234<br />

sensibilidade, tem feito isto através da arte teatral, da dança, da música. Contamos com<br />

o poder de união do grupo, a comunalidade, mas nas escolas esta realidade é difícil de<br />

acontecer, pois a formação ocidental do educador trava sua capacidade de abrir espaços<br />

dialógicos sobre a pluralidade cultural.<br />

O texto das Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações<br />

Étnico-raciais que trata das “Questões introdutoras”, diz que:<br />

O parecer procura oferecer uma resposta, entre outras, na área da<br />

educação, à demanda da população afrodescendente, no sentido de<br />

políticas de ações afirmativas, isto é, de políticas de reparações, e de<br />

reconhecimento e valorização de sua história, cultura, identidade.<br />

Trata, ele, de política curricular, fundada em dimensões históricas,<br />

sociais, antropológicas oriundas da realidade brasileira, e busca<br />

combater o racismo e as discriminações que atingem particularmente<br />

os negros. (BRASIL, 2004, p.10).<br />

O texto enuncia uma política curricular e compreendemos que, neste caso, há<br />

necessidade de estudos profundos sobre a cultura local para que se proponha um<br />

conhecimento sobre a história e a cultura das matrizes africanas fincadas no lugar. Em<br />

entrevista com o professor Hipólito Brito, professor do sistema público há 17 anos,<br />

morador há 25 anos do Cabula e militante do Movimento Negro Unificado da Bahia,<br />

membro do Grupo de Trabalho de Educação, ele apresenta uma leitura sobre a Lei<br />

10.639/2003:<br />

A Lei 10.639 vem resgatar para educação o que são as características<br />

da população brasileira, da população baiana e soteropolitana em<br />

especial. Ela altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação para<br />

tornar obrigatório o ensino da História e da Cultura dos afrodescendentes<br />

e dos afro-brasileiros. Então, ela é importante porque<br />

traz para o chão da escola as características das origens, das raízes, as<br />

matrizes da contribuição africana na formação da sociedade brasileira.<br />

(Hipólito Brito, 2007).<br />

O que o professor Hipólito nos apresenta como “traz para o chão da escola as<br />

características das origens das raízes, as matrizes da contribuição africana” requer do<br />

educador o que Santos (2002b, p.17) denomina “experiência iniciática”, que implica<br />

dizer que o educador necessitará realizar uma dinâmica de experiência vivida através do<br />

envolvimento na cultura, compartilhando os conhecimentos, vendo, introjetando,<br />

intuindo, para conceber o significado dos elementos símbolos-signos que constituem o


235<br />

cenário de vida sociocultural de seus alunos. Continuemos com os ecos de Hipólito<br />

Brito (2007):<br />

Então, na escola, isto vai proporcionar uma série de ações para que,<br />

de fato, fortaleça a cultura. Primeiro temos a lei, mas, para que ela se<br />

efetivasse, tivemos que ter um governo popular, esta lei foi<br />

sancionada exatamente no início do Governo Lula; ela está sendo<br />

retardada, digamos assim, no campo das ações em todo o país, aqui<br />

na Bahia, principalmente. Nós estamos em 2007 e até agora não<br />

houve nenhuma iniciativa governamental para implantação da lei,<br />

passaram, portanto, quase quatro anos e a lei está aí para ser<br />

cumprida. O município da Bahia que tomou a iniciativa de<br />

implementação da lei foi o município de Salvador, no ano passado em<br />

2006, com apoio do CEAFRO – Centro de Cultura Afro-brasileira,<br />

com a equipe de Vilma Reis colaborando com a prefeitura de<br />

Salvador, Ministério de Educação através da Secad – Secretaria de<br />

Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade.<br />

Muito antes, havíamos colocado como obstáculos ideológicos o que há na<br />

própria Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, a Lei 9.394/96, quando<br />

“amarra”, nos eixos interdisciplinaridade e contextualização, os elementos norteadores<br />

das ações curriculares. Tais evidências, porém, não significam discordar do que propõe<br />

a Lei, mas a inviabilidade na prática de educação disciplinar que para existir submete-se<br />

a Lei tirana do tempo-espaço matematizado, com aulas de 50 minutos para cada<br />

disciplina, o que fragmenta a composição do saber.<br />

Agora, o professor Hipólito Brito, com bastante otimismo no que se refere ao<br />

que espera na prática da lei que aponta o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e<br />

Africana como caminho para desmistificar o racismo na escola, nos mostra aspectos da<br />

indisposição governamental brasileira para autorizar as políticas públicas que se<br />

encontram tramitando nos espaços secretos da “casa grande”, que já conhece nomes dos<br />

que iniciaram, esta luta, com produções científicas sobre o africano-brasileiro. Na “casa<br />

grande”, porém, nada aconteceu, então, o professor Hipólito aponta quais são os<br />

principais obstáculos que emperram a realização da lei:<br />

O certo é que o primeiro obstáculo foi o político; a decisão política de<br />

implementar a lei; nós esperamos que agora, com este novo governo,<br />

apesar de não termos muitas expectativas, apesar de ser um governo<br />

democrático popular eleito por maioria do povo de Salvador e da<br />

Bahia, que é uma população negra, infelizmente os gestores são<br />

brancos, então nós sabemos que são de uma elite intelectual branca,<br />

herdeira do processo de escravização e nós sabemos que eles não têm<br />

interesse em aprofundar este tema. (Hipólito, 2007).


236<br />

Por esses últimos ecos do professor Hipólito, que é um militante negro que se<br />

tem debruçado na luta contra o racismo dentro e fora da escola, é possível perceber que<br />

ele tem os “pés no chão”. Todos nós que estamos na luta pela afirmação da alteridade<br />

africano-brasileira e aborígine brasileira reconhecemos que as chefarias – os “feitores”,<br />

capitães do mato da “casa grande” escolar não se disponibilizam e nem disponibiliza<br />

um espaço-tempo para desmistificar os equívocos propositais de desqualificação da<br />

cultura africana e aborígine realizados por seus ancestrais. Estes obstáculos são<br />

administrativos, como mostra Hipólito:<br />

A ação administrativa envolve, por exemplo, o planejamento,<br />

requalificação do professor, são ações que devem deflagrar o que de<br />

fato fará acontecer a lei, todo debate sobre o conhecimento até<br />

chegar à sala de aula. O administrativo colocam a disposição dos<br />

professores do sistema de ensino, os recursos e condições necessárias<br />

para que a lei seja implementada. Precisamos orientar o conteúdo de<br />

referência, bibliografia, primeiro para preparação do professor que<br />

têm uma formação centrada na cultura européia e, segundo, fazer<br />

com que, de fato, os planos político-pedagógicos de cada instituição e<br />

os planos das disciplinas tenham estes conteúdos concebidos de forma<br />

transversal não para tratar isto no campo da História e da Geografia.<br />

(Hipólito, 2007).<br />

O interessante é que inúmeras cautelas, no campo das dinâmicas pedagógicas,<br />

serão necessárias para a implantação desta lei. Acreditamos que a dificuldade de<br />

implementá-la se devia ao fato de que quem sanciona sua viabilidade é um descendente<br />

do colonizador, mas a própria “casa grande” não possui aparatos político-sociais para<br />

lidar com tamanha complexidade.<br />

Acreditamos que a implantação da lei passa por uma política de reconhecimento<br />

dos códigos de valores ético-estéticos dos contínuos civilizatórios africanos, que são os<br />

eidos, recriação da linguagem ancestral africana, e ethos, a linguagem que enuncia a<br />

alteridade africano-brasileira que se expressam pelos modos e formas de realização do<br />

pensamento. A valorização de uma cultura exige de quem a enuncia a capacidade de<br />

identificar e classificar os valores ético-estéticos desta cultura, o que não é fácil, desde<br />

quando tudo isto foi ocultado ou distorcido.<br />

Contudo o professor Hipólito esclarece: “Além das medidas administrativas a<br />

gente precisa encarar isto como verdadeiro, creio que este seja o maior obstáculo da<br />

escola e não podemos esperar da “casa grande” esta iniciativa”. Durante este capítulo,


237<br />

apresentamos o cenário escolar como um simulacro educacional do projeto neocolonial<br />

a partir da metáfora “casa grande e “senzala” extraída dos estudos de Narcimária Luz<br />

(2001), e que reterritorializamos em nosso cenário mítico-poético de mata africanobrasileira,<br />

atribuindo a noção de lugar de elaboração das ações coercitivas à “casa<br />

grande” e de realização à “senzala”, que, por sua vez, engendra ações coibidoras para<br />

afastar o rígido controle sobre o estudante africano-brasileiro.<br />

Acreditamos que, para quebrar as amarras que viabilizar a Lei 10.639/2003, é<br />

importante que, de fato, haja uma comunalidade africana na escola. Não estamos<br />

falando de segregação racial, mas propomos que cada escola do Cabula possa compor<br />

um corpo de Odé, o corpo de guarda provedor e protetor das riquezas patrimoniais da<br />

territorialidade africano-brasileira fincada do Cabula, constituído por pessoas que,<br />

realmente, conheçam os princípios sagrados plantados pelos ancestrais e os códigos<br />

ético-estéticos dos valores civilizatórios que caracterizam o ethos do descendente de<br />

africano. E para que se respeitasse<br />

“[...] o direito dos negros, assim como de todos os cidadãos<br />

brasileiros, cursariam cada um dos níveis de ensino, em escolas<br />

devidamente instaladas e equipadas, orientados por professores<br />

qualificados para o ensino de diferentes áreas de conhecimento”<br />

(BRASIL, 2004, p.11).<br />

É preciso que as iniciativas saíam do “papel” legal para as vivências<br />

sóciopedagógicas, dentro e fora da escola. E, enquanto a “Razão de Estado” não decide<br />

a implementação da lei, fazemos uma sugestão para que esta seja respeitada e torne-se<br />

uma vivência real e orgânica, que é o mesmo que propõe Narcimária Luz (1997, p.199):<br />

“páwódà” – “mudar o sistema”. É preciso investir corajosamente numa mudança de<br />

ethos cultural, que não apague a cultura européia, mas que acolha e dê legitimidade de<br />

poder com eqüidade às culturas de matriz africana do Brasil e aborígines brasileiras.<br />

Para mudar o sistema, consideramos a vivência, com a participação da<br />

comunalidade cabuleira, como a melhor forma de conhecer a cultura que borbulha no<br />

sistema escolar do Cabula. Trazemos aqui dois exemplos de convivência pedagógica<br />

fora da escola: o primeiro descreve o intercâmbio do Grupo Artebagaço Odeart com o<br />

Grupo de Capoeira Maré de que os adolescentes artebagacianos também fazem parte,e o<br />

outro foram os encontros como Sr. Gildásio que faz um plantio medicinal aberto à<br />

população, num pedacinho de terra do ocultado Cabula.


238<br />

Trazemos também o conhecimento erguido dentro da escola a partir de uma<br />

pesquisa 36 sobre africanidade brasileira que a professora de História Maria do Socorro<br />

solicitou aos alunos da primeira série do Ensino Médio e estes, por serem alunos de<br />

Janice Nicolin na disciplina Língua Portuguesa e Literatura Brasileira, pediram-lhe<br />

acolhida, realizada com o intercâmbio do Grupo Artebagaço Odeart. Com esta brecha,<br />

criamos uma perspectiva de arkhé quilombola, tal como Narcimária Luz (2001)<br />

descreve:<br />

A arkhé kilombola indica modos e formas de superação do recalque e<br />

a promoção dos valores transcendentes da civilização africana que<br />

marcam e singularizam o Brasil. Também favorece a reflexão sobre o<br />

cenário de vivência africano-brasileira e da ideologia ocidental, “que<br />

pode transcender em função de uma ética do futuro ( LUZ, N., 2001,<br />

p. 25).<br />

Em relação ao Grupo de Capoeira Maré, nossa dinâmica inicia-se observando os<br />

gestos dos adolescentes durante as conversas no grupo. Fora dali observamos as<br />

estruturas físicas das casas residenciais e do comércio, o cuidar da natureza pelo<br />

vizinho, que não apresenta nenhum recalque ideológico, ao contrário, mantém no<br />

espírito a força de luta pela liberdade. Josenilson Santos, Kalango, membro do grupo<br />

Maré, pode entoar sobre o jeito de ser africano do Cabula:<br />

Eu acho que o africano vive muito mais de troca do que de dinheiro,<br />

não vou dizer que minha família não seja ligada só em dinheiro, mas<br />

não tem aquela coisa carinhosa com o outro, aquele chamego todo,<br />

aquele abraço, só tem conversa e cada um por si. Eu aprendi muito<br />

com a comunidade, com os amigos [olha para Alex]. Houve um<br />

momento que Alex olhou para mim e disse: “– Kalango, tô com<br />

medo.” Eu disse – “De que ,veio?” Ele disse: –“Daqui a pouco sua<br />

mãe tá pensando que eu estou levando você pra o candomblé.”. É<br />

porque ele [olha de novo para Alex] me ensinou muito, aí eu fui<br />

aprendendo, com ele me olhava no espelho, aí fui descobrindo, fui<br />

indo, fui indo. (Kalango, 2005).<br />

Kalango é artebagaciano desde 2005, chegou ao grupo convidado por Jorge Alex<br />

que também convidou Dainho, Adailson Conceição da Silva, embora seja aluno do<br />

colégio onde o Artebagaço faz suas oficinas, juntos tocam a música percussiva do<br />

grupo. A comunalidade se faz pela diferença. Cada um destes meninos tem sua própria<br />

36<br />

Consta de temas como: Intolerância religiosa, Quilombos dos Palmares, Movimentos sociais com o<br />

foco no Bloco Afro Ilê Aiyê.


239<br />

história de vida, mas o território de luta pela afirmação da liberdade os une, possibilitalhes<br />

uma territorialidade própria de cultura de arkhé civilizatória africana e também<br />

entendem que “nestes lugares”, se encontram as raízes africano-brasileiras que eles<br />

buscam, é “lugar próprio” (SODRÉ, 2002, p. 49) do saber ancestral resguardado no<br />

Cabula:<br />

Quando eu vejo a mata fechada assim, eu fico com medo. Eu<br />

acho que o medo é de respeito porque eu falo com minha avó: –<br />

“Minha avó, quando eu entro na mata meu coração fica<br />

palpitando mais forte.”. Minha avó, minha avó é mãe-de-santo,<br />

né? Aí ela fala que é meu orixá. Aí eu falei: –“O que é que o<br />

orixá tem a ver com isto?” Aí ela fala: – “Seu orixá pode não<br />

ter nada a ver, mas Oxóssi, que é dono da mata, ele está lhe<br />

olhando sempre, por isto acontece este medo”. Todo mundo<br />

fica assim, não com medo de entrar na mata e que vaí<br />

acontecer alguma coisa, mas é aquele medo de entrar na mata<br />

e pensar: eu não vou fazer nada errado, eu não vou tirar nada<br />

do que não é meu, o que não é meu vou deixar lá. É..., isto você<br />

tem que levar pra mata, o que pode dela tirar, entendeu? (Jorge<br />

Alex, 2005).<br />

É interessante entender que o saber que Jorge Alex nos transmite foi transmitido<br />

pelo que Sodré (2002, p. 65) chama de “Lição do terreiro”. Sendo sua avó Mameto<br />

Indaramukaia, ele nasceu e cresceu bebendo desta fonte de que brotam ensinamentos<br />

constituintes de seu processo de iniciação à cultura africana banto, congo-angola.<br />

Depois que a pessoa é iniciada, ela começa a aprender, é tudo oral,<br />

tudo é oral e se aprende com a convivência ,não é “me diga isto e me<br />

diga aquilo”, é fazendo. Minha ave não gosta que eu pergunte as<br />

coisas para ela, ela responde: –“Quando tiver você percebe, você vê<br />

e aprende”. Então, eu fico com a pulga atrás da orelha, depois, no<br />

outro dia, que já percebi, eu digo: –“Minha avó aquilo que te<br />

perguntei é isso, não é?” Ela diz: –“É”. Então, é mais vivência que a<br />

gente aprende.<br />

Na transmissão desse conhecimento, encontra-se a força vital que alimenta o<br />

respeito por tudo que a natureza cósmica nos permite usufruir. O medo que Jorge Alex<br />

disse que tem quando entra na mata não é o pavor causado pela dor da opressão, como<br />

no solo urbano-industrial do neocolonizador, medo é a linguagem mítico-sagrada,<br />

religiosa, que exprime respeito à divindade, ao invisível que nos acompanha a todo<br />

momento; a força é o axé para os nagôs e muntu para os bantos.<br />

A comunicação é realizada pela mística da tradição oral: “Essa linguagem<br />

estabelece uma relação de constante tensão dialética entre esse mundo e o além, entre o


240<br />

aiyê e o orun, conforme a conceituação nagô.” (LUZ, M.A., 1995. p.34). Convém<br />

lembrar que aiyê é o mundo em que vivem os seres humanos vivos, e orun é o espaço<br />

invisível que nos rodeia com a força dos ancestrais, os mortos, dos ancestres ilustres,<br />

fundadores de territórios de afirmação e de harmonia social, e as forças cósmicas que<br />

são os orixás.<br />

A comunalidade africano-brasileira é sempre reforçada nos limites do egbé,<br />

“comunidades-terreiros” como denomina Juana Santos (2002a p. 52) ou comunalidade<br />

tradicional como chamamos. Mesmo aqueles que não vão até lá receber a força do axé<br />

dos nagôs ou muntu dos bantos, que transcende os limites da egbé, e também os<br />

membros do egbé, omo-orixás, recebem o poder da força vital transmitido-o a todos<br />

para que a harmonia, mesmo momentânea, se realize no intercambio de poderes entre o<br />

aiyê e o orun:<br />

A comunicação entre esses dois mundos se dá através de uma<br />

concepção vitalista do mundo, que se caracteriza pelo conceito de axé<br />

para os nagôs ou muntu para os bantos. Axé é um conceito que<br />

exprime a idéia de forças circulantes capazes de engendrar a criação e<br />

a expansão da vida. Ele implica também em restituição que se<br />

concretiza através do conceito de ebó, isto é, oferenda ou sacrifícios.<br />

(LUZ, M.A., 1995, p.34).<br />

Neste ponto, entro para fazer uma ressalva: conversando com pessoas que<br />

oferecem caruru 37 , moradores do Cabula (Engomadeira, Estrada das Barreiras, Mata<br />

Escura, Beiru, Saboeiro, Sussuarana, São Gonçalo, Pernambués, Santo Inácio, Cabula<br />

VI), buscando saber se elas tinham conhecimento do que este ato simboliza na cultura<br />

africana, não obtive entendimento, por parte destas pessoas, de que poderia ser o ato<br />

mítico-social do ebó.<br />

37 Caruru comida africana que se oferece aos deuses e as pessoas que participam dos festejos aos deuses:<br />

orixá, inkice e vodum. A palavra é do tronco banto das línguas quimbundo e quicongo é feita com quiabo<br />

cortado, camarão seco, cebola ralada, dendê, amendoim moído, gengibre.


Figura 108<br />

Caruru. Foto artebagaço. Larissa e Jorge<br />

241<br />

Ebó, como já mostrou Marco Aurélio, é oferenda por se ter obtido uma graça<br />

dos deuses africanos ou em sacrifício por parte de quem não devolveu o que fora<br />

retirado da natureza, logo ficou em dívida. Basta lembrar a preocupação de Jorge Alex<br />

em não retirar da mata o que não precisa, o medo era tirar o desnecessário para sua<br />

existência.<br />

Foi em conversas informais com Gilmara Cruz Santos, outra artebagaciana de<br />

16 anos, atriz e criadora do grupo de dança Odeart em 2005, junto com Jorge Cipriano,<br />

hoje grupo de dança Artebagaço Odeart, que conversei sobre o caruru que a mãe dela<br />

oferece aos Ibejis, orixás crianças nascidos gêmeos. Mesmo sua avó sendo uma pessoa<br />

confirmada em comunidades-terreiros, ela desconhecia esta referência de que o caruru<br />

oferecido era um ebó. Naturalmente assim me respondeu: –“Foi uma promessa feita por<br />

mainha”.<br />

O caruru palavra de origem banto, é comida dos deuses, aqui, na Bahia, durante<br />

o mês de setembro, sobretudo no dia 27 de setembro, algumas pessoas rendem<br />

homenagens aos deuses gêmeos crianças que, na nação Nagô são orixás Ibejis – Tayo e<br />

Keiyde – e, quando em três, acresce Doú: são orixás vinculados ao poder de fertilidade.<br />

Na nação Angola, correspondem ao inkice Mabasa.<br />

O ebó, oferenda ou sacrifício, pode ser o caruru dos Ibejis ou de Iansã, a feijoada<br />

de Ogum, que Jorge Cipriano oferece, um culto começado por um sacrifício feito pelo<br />

babalorixá Procópio de Ogunjá na comunidade-terreiro do Ogunjá 38 , assim como tem a<br />

“flor do Velho Obaluaê ou Omolu 39 . Estes são eidos presentificáveis e reelaboradores<br />

de uma dinâmica social mítico-sagrada da tradição oral.<br />

A comunalidade africano-brasileira do Cabula expande-se, dessa forma, através<br />

dos ensinamentos constituídos por pequenos diálogos da tradição oral, de maneira que,<br />

38 Ver LIMA (2003, p.174).<br />

39 Na nação Angola é Kavungu, Nsumbu, Mpaanzu e outros.


242<br />

mesmo aqueles que não sabem o que está acontecendo ao seu redor, acabam usufruindo<br />

do conhecimento mítico-social transmitido por pessoas como Jorge Alex e sua avó,<br />

Dona Chica, assim como os mestres de capoeira de Jorge Alex, Jorge Cipriano, Dainho<br />

e Kalango, que também zelam para manter vivo o patrimônio ético-estético durante as<br />

sessões de capoeira:<br />

A capoeira como o candomblé tem seus fundamentos, tem sua a sua<br />

história; quanto à questão da capoeira ser uma dança, varia do ponto<br />

de vista, por exemplo: você pode usar a capoeira como uma dança,<br />

neste caso você está usando como expressão artística, e pode usar a<br />

capoeira como uma luta, porque o movimento, dependendo de como,<br />

da forma como você usa, serve de defesa pessoal também. (Jorge<br />

Cipriano, 2005).<br />

É preciso entender a diferença que há na atitude livre deste mesmo jovem de 15<br />

anos, nascido e criado na Engomadeira, ao falar do conhecimento movimento, adquirido<br />

nas vivências comunais da capoeira e na dança de matriz africana que ele transmite,<br />

como educador desta linguagem, no Grupo Artebagaço, que não existe quando ele tem<br />

que falar deste mesmo conhecimento: – movimento – nas disciplinas de Física,<br />

Matemática. É que o movimento dos corpos na dança de matriz africana se entende no<br />

convívio mítico-social e mítico-litúrgico preservados nas comunidades-terreiros e na<br />

capoeira:<br />

Então, nos toques de capoeira, cada música identifica histórias da<br />

música; é preciso sentir o que a música vem dizendo, o toque e o<br />

ritmo que está sendo tocado para você ter uma idéia do que estão<br />

tentando passar [a pedagogia e o saber]. Então, você escutando, você<br />

sentindo o ritmo, escutando a letra, sabendo da história daquele<br />

toque, você tem a idéia [orgânica] do que e como pode manipular o<br />

jogo. (Jorge Cipriano, 2005).<br />

O corpo que se movimenta na capoeira, seja dança ou luta, é o mesmo, mas a<br />

maneira de pensar este movimento se divide e separa-se pela fronteira dos códigos<br />

culturais que imprimem a existência da linguagem que caracteriza os eidos.<br />

No capítulo anterior, vimos que, no sistema oficial de ensino, a pedagogia<br />

oferece um conhecimento preconcebido, idealizado fora do cenário socioexistencial<br />

humano. Esta forma de recriação é puramente sígnica, sem referência de vida orgânica,<br />

bem diferente da “pedagogia negra iniciática”, a que Marco Aurélio Luz (1995) se


243<br />

refere e que também embebe o pensamento do africano-brasileiro durante as vivências<br />

da capoeira, dança, música, teatro, ou qualquer linguagem artística quando entendida<br />

pela via simbólica:<br />

Figura 109 Figura 110<br />

Jorge Cipriano. Capoeira Maré. 2005. Jorge Cipriano na roda. 2005<br />

Tanto na primeira imagem, de costa para nós, em salto, quanto na segunda<br />

imagem, agachado, esperando o momento de realizar a linguagem, é Jorge Cipriano que<br />

apresentamos. Na primeira imagem, vemos um corpo que desliza no ar representando,<br />

artisticamente, uma das formas com que nossos ancestrais combatiam em defesa da sua<br />

e da nossa liberdade, através de golpes pacientemente elaborados.<br />

O ritmo é de cadência e síncope, a quebra do corpo, o molejo, o vaivém cíclico<br />

como se fosse a ritualização da vivência cotidiana, que nasce ao amanhecer e morre ao<br />

entardecer. “A capoeira, arte marcial libertária, se caracteriza por imprimir uma<br />

cadência, um ritmo de envolvimento, procurando criar o vazio para o adversário para<br />

então arrematar sobre ele o golpe inusitado” (LUZ, M.A., 1995, p.615). É, como no<br />

samba, a mão levada ao instrumento (tambor, timbau, atabaque, etc.) acompanha o<br />

movimento e também faz todo o corpo gestualizar a batida.<br />

Entre um ritmo e o outro há o vazio da cena, nele se encontra o<br />

imprevisível porque ele mesmo é surpreendente; “O vazio está onde<br />

não se espera. Prá morrer basta estar vivo. O golpe nasce às avessas,<br />

as mãos no chão, os pés no alto, a surpresa contida nos Aús, S.<br />

dobrado, Pulo do gato, bananeira, Ponte pra frente, Vôo de morcego,<br />

Pulada, etc.” (LUZ, M.A., 1995, p.615).<br />

O interessante é que todos esses gestos vêm a ser o que chamamos de ginga, que<br />

não se encontra só na capoeira, mas no jeito de ser do baiano. A ginga é o sistema<br />

cíclico presente na roda de samba, na capoeira, no modo de contar histórias imprimindo


244<br />

a “lição do terreiro”, que é pedagogia africana, é também a estética negra se realizando,<br />

é odara, “bom, útil e bonito”.<br />

A ginga é a expressão natural do corpo africano-brasileiro de se anunciar<br />

jogando o corpo para a frente; de fazer a defesa, jogando o corpo para trás; de dizer que<br />

faz mas não faz, e apenas apela para a sedução da arte de jogar o corpo, ora para direita<br />

ora para esquerda, e, ainda por cima, com estes últimos gestos é possível se comunicar<br />

com seu vizinho da direita ou da esquerda.<br />

Porém, na capoeira, a estética negra, odara, se evidencia através de uma riqueza<br />

sem igual. Nela, as linguagens da dança e da música unem-se à cantoria,<br />

proporcionando a realização da ginga, o jogo de corpo, que se esquiva do perigo para<br />

gerar uma nova criação, onde sempre se terá oportunidade para recriar novas gingas,<br />

parece um balé de perna de pau, onde a quebradeira gestual dá oportunidade para serem<br />

recriadas novas composições poéticas simbolizadas pelas cantigas da roda. Na tradição<br />

da capoeira, preserva-se a transmissão do axé, esta é a relação de religiosidade aí implícita.<br />

Local onde se pratica capoeira deve haver muito respeito, deve haver<br />

consciência de preservação do espaço como os ancestrais africanos<br />

faziam dentro de suas aldeias. É uma questão de respeito dentro do<br />

grupo, e de proteção de um com o outro. (Jorge Cipriano)<br />

Figura 111 Figura 112 Figura 113<br />

Dainho de costa. Capoeira Maré. 2005 Mestre de Capoeira Maré com agogô. Alex e Kalango. Capoeira Maré. 2005.<br />

Nosso propósito de trazer o Grupo Maré para nosso diálogo está em mostrar não<br />

só a pujança da cultura ancestral africana e sua valorização entre os grupos de<br />

resistência negra, como a relação de comunalidade entre todos os grupos que realizam a<br />

luta pela liberdade africano-brasileira. Como resultado, estas ações terminam<br />

desaguando em um único lugar, no território de coexistência negra do Brasil.


Figura 114 Figura 115 Figura 116<br />

Odeart Dance e Grupo Maré. Odeart Dance na sede do G. Maré. Grupo de Capoeira Maré. 2005.<br />

245<br />

Com o Mestre Papa Léguas, na Estrada das Barreiras, realizamos eventos, desde<br />

a lavagem do Planalto (Figura 110) até em sua academia onde se realizam as vivências<br />

Maré, no conjunto Maestro Wanderlei no Cabula II (Figuras 111 e 112), e atuando<br />

“desde dentro”, vivendo as cenas tradutoras do que Marco Aurélio Luz (1995)<br />

denomina comunalidade africano-brasileira. É assim que o encorpamento simbólico<br />

civilizatório africano-brasileiro do Artebagaço vaí se realizando, expandindo e<br />

constituindo suas características culturais Odeart.<br />

O convívio com outros grupos é uma realidade do cotidiano dinâmico do<br />

Cabula, e este convívio torna possível dizer, caro leitor, que o Artebagaço Odeart é um<br />

lugar de troca de experiência entre várias culturas e linguagens tradutoras de eidos<br />

africano-brasileiros. Se Dainho, Kalango, Jorge Alex e Jorge Cipriano, no Grupo Maré,<br />

aprendem capoeira, já no Artebagaço, aprendem a fazer arte cênica. Nossa envergadura<br />

de pesquisa também tenta captar esta sensibilidade humana que alimenta os grupos de<br />

resistência africano-brasileiros.<br />

A linguagem é o elemento que une os povos e culturas, ela marca a diferença. O<br />

esforço em compreender as diversas linguagens que caracterizam a arkhé civilizatória,<br />

pode ser um gesto de afirmação da alteridade e de abominação da desigualdade social.<br />

Esta desqualifica porque se prende ao reducionismo dos conceitos e à limitação formal<br />

de comunicação idiomática, o padrão de língua nacional.<br />

Rompemos esse obstáculo ao buscar um entendimento da dinâmica<br />

socioexistencial e pedagógica do Grupo Maré, mas também buscamos outras referências<br />

ainda mais ocultadas pelo trompe-l’oeil moderno. Fomos conversar com Senhor<br />

Gildásio Valença dos Santos, morador do Cabula, que criou um pequeno espaço de<br />

mata com plantas medicinais. Fomos ali caçar saberes herdados dos ancestrais africanos<br />

e indígenas brasileiros do Sr. Gildásio (2005):<br />

Eu vim de Iaçu, próximo a Itaberaba, lá nós tínhamos nossa casinha,<br />

nossa plantação. Aí, eu aprendi a cuidar das plantas. Eu vim da<br />

própria terra, sabe? Vim de um lugar onde o povo cuidava da terra e


246<br />

com isto aprendi estes conhecimentos, foi com o povo que fui<br />

conhecendo. As pessoas aqui até que cuidam do horto, mas o cuidado<br />

é muito pouco, a gente precisava cuidar mais, estar olhando mais. Do<br />

horto não se deve tirar sequer uma palha, tem que cuidar para<br />

preservar a natureza.<br />

Senhor Gildásio é conhecido por Tio, e recriou um cenário de mata em terras<br />

desprezadas pelo condomínio que fica no fundo de sua casa. Quando lhe perguntei se a<br />

área do plantio feito e zelado apenas por ele, mas de colheita coletiva, era pública, ele<br />

me respondeu:<br />

É do condomínio, mas eles não cuidam. Eu como morador que moro<br />

próximo cuido para eles, que me viram cuidando da terra, fazendo<br />

plantio e não deixando colocar lixo aí, pois estavam colocando<br />

bastante lixo aqui. Estou falando com o pessoal pra ver se preserva a<br />

natureza, inclusive eles falam: –“Plante mais, plante mais”. Eles não<br />

têm a experiência, mas gostam de ver a plantinha assim aqui.(Tio,<br />

2005).<br />

Tio, Seu Gildásio, começa a enumerar as personagens de sua experiência de<br />

guardião da natureza no solo urbano do Cabula:<br />

Esta planta aqui é alumã; se ela sente um pouco o lado da barriga<br />

doendo toma um pouquinho de chá de alumã, ela é realmente muito<br />

boa para o intestino. Aqui tem o nativo. [Pára, olha profundamente<br />

para mim, respira e recomeça a falar]. Eu encontrei esta planta no<br />

lixo, mas eu achei que podia dar uma vida para ela e plantei e está<br />

sendo aqui esta beleza. Aqui tem o pé de araçá que dá umas frutinhas,<br />

mesmo assim, as crianças aqui passam e tiram. Aqui temos o boldo,<br />

cidreira, capim santo e temos também [com tom grave] algodão.<br />

Todas são plantas medicinais para chá.<br />

Temos aqui o quioiô, se comer alguma feijoada e fizer mal faz o chá<br />

do quioiô. Aqui está o mangalô, é uma plantazinha que enrama pelos<br />

galhos das árvores e dá um feijãozinho, a gente cata e cozinha. Aqui<br />

dá mangalô todo ano, dá pra fazer uma boa feijoada. Agora, aqui,<br />

está tendo camaleão, eles vêm e se escondem, aqui, pelas folhas [abre<br />

uma moita da planta e mostra o camaleão] e eu fico sempre<br />

protegendo para o pessoal não matar.<br />

Além do camaleão tem teiú, tem cobras, filhos de sucuri, estes tempos<br />

sumiram. Tinha também mico, mas agora estão do lado de lá. Tem<br />

muito papa-capim, pico de jaca, garrinchazinhas. É uma alegria ficar<br />

assim ouvindo. Aqui a gente se junta e fica na pracinha que se chama<br />

Praça do Curió, nela vêm as pessoas cada uma com seu curió, traz<br />

pra apresentar pra gente, é sempre dia de domingo. Isto é uma<br />

alegria entre os moradores conhecidos, assim a gente está chamando<br />

gente para conhecer nossa Barreira. Aqui a gente encontra nossos<br />

amigos.


247<br />

Tio, enquanto conversava, fazia muitos gestos que se assemelham aos de Dona<br />

Chica. Estava sempre atento à correspondência, no outro, de sua fala. O olhar de baixo<br />

para cima é uma forma de comunicação dos moradores do Cabula e o utilizam para<br />

checar se estão sendo respeitados durante os diálogos. Agora, ele começa a falar dos<br />

cuidados que tem com as plantas:<br />

A senhora está vendo aqui? Esta planta está, realmente, sadia, a<br />

gente pode observar que está viçosa. Às vezes pela idade dela, pelo<br />

cuidado que as pessoas não têm, aí ela adoece. O que a gente faz?<br />

Entre tantos produtos, passa um pouco de cal, porque é muito bom. A<br />

gente passa um pouquinho no caule, não precisa passar na planta<br />

toda. O preparo é um pouco d’ água e um pouco de cal, depois passa<br />

um pouquinho nela e joga outro pouquinho na terra. Esta doença<br />

[mostra uma planta com a cal] vem da terra, da raíz da planta e vaí<br />

subindo. Se não cuidar, o que acontece? Os frutos não dão bem, as<br />

folhas começam a amarelar. As plantas são que nem a gente,<br />

adoecem. (Tio, 2005).<br />

Os ecos de Tio, senhor Gildásio, carregam um conhecimento não muito diferente<br />

dos que possuem Gijo, Tata Kamukenge e Mameto N’kisi Indaramukaia em relação às<br />

plantas e árvores. Na concepção de existência africano-nagô, as folhas pertencem aos<br />

orixás e representam entrelace do interior da terra com a chuva.<br />

O axé das folhas resulta desta interação: “As folhas concentram o poder<br />

resultante desta interação de princípios masculinos, caracterizados pela chuva, com os<br />

princípios femininos, caracterizados pelo interior da terra, que gera nascimento e<br />

proporciona alimentos” (LUZ, 1995, p.69). Na cultura africana religião e medicina<br />

interligam-se promovendo a expansão da vida na Terra.<br />

Uma pessoa como Tio, Senhor Gildásio, no âmbito da comunalidade tradicional<br />

é reconhecida como um Omo-Ossãiyn, filho do orixá Ossãiyn, orixá patrono da<br />

vegetação, das folhas. Este sacerdote tem iniciação bastante cautelosa, diz Luz (1995),<br />

pois a folha participa de todas as dinâmicas ritualísticas das culturas africanas. No início<br />

deste capítulo, falamos um pouco sobre isto porque, sem folhas, não há como cultuar<br />

orixás nem eguns.


Figura 117 Figura 118 Figura 119<br />

Sr. Gildásio – Tio. 2006. O zelo pelo espaço. A lição de comunalidade.<br />

248<br />

Sabemos que todo esse conhecimento encontra-se ocultado pelas normas<br />

curriculares, insistimos em dizer que sabemos porque vivemos esta experiência no<br />

cotidiano escolar e sociocomunal do Cabula. Os cabuleiros mais conhecedores destes<br />

saberes, que se sentem orgulhosos dele, como Senhor Gildásio, Jorge Alex, Jorge<br />

Cipriano por serem portadores deste saber, representam o mesmo estudante recalcado<br />

que vê sua cultura sendo desvalorizada, principalmente,nas disciplinas da área de<br />

Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias, vez que, nesta área, o que<br />

prevalece são os conceitos positivistas e evolucionistas do etnocentrismo.<br />

O que chamamos de envergadura simbólica é a capacidade de o cabuleiro,<br />

estudante e professor descendente de africano e de aborígine, “gingar”, driblar as<br />

imposições curriculares da política pedagógica de servidão colonial, capacidade esta<br />

que o faz ultrapassar os obstáculos, mesmo repetido ano, ou dando pequenos intervalos<br />

para tomar o fôlego e se adequar ao esquematismo do poder hegemônico sem perder<br />

suas referências da arkhé africana e indígena.<br />

A parceria da turma 9m4, liderada por Adriano Andrade, no colégio onde o<br />

Artebagaço Odeart realiza a insurgência africana, constituiu um dos objetivos do Projeto<br />

Odeart – encorajar jovens e adolescentes das comunalidades tradicionais a realizações<br />

artístico-culturais tradutoras da linguagem e do conhecimento da arkhé africana.<br />

Vejamos algumas imagens do evento ocorrido em setembro de 2006 que contou,<br />

mais uma vez, com o Tata Kamuguengue Eldon Araújo Laje, conhecido por Gijo do<br />

Onzo Nsumbo Tabula Dico a Meiã Dandalunda, da comunalidade do Beiru, professor<br />

Hipólito Brito do Movimento Negro da Bahia, da Iyalorixá Marinalva do Ilé Axé<br />

Tunadení da Comunalidade Rua Amazonas, localizada ao redor do colégio.


Figura 120 Figura 121 Figura 122 Figura 123.<br />

Adriano. Lei 10639/203. Gijo. Religiosidade Africana. Hipólito. Contra-Racismo. Cantando um Oriki.<br />

Figura 124 Figura 125 Figura 126 Figura 127<br />

A percussão Odeart. Os filhos de Adriano. A platéia . Professores. Samba de roda.<br />

Figura 128 Figura 129 Figura 130<br />

A culinária Africana. Participação no samba de roda. Odeart Dance.<br />

249<br />

Tudo isso responde à necessidade de rasgar a cortina que protege a insistente<br />

pedagogia mecanicamente repetitiva em que se tenta explicar tudo sem nada obter como<br />

entendimento. Também tudo isto reafirma a presença da pedagogia herdada da tradição<br />

oral, a comunicação oral das vivências que transmite o saber, por exemplo, quanto à<br />

palavra ebó: é na experiência educacional que se compreende ser o ebó um elemento<br />

esteticamente belo,bom e útil para expansão individual e social.<br />

Esta situação nos traz à lembrança a conversa que tivemos com Mameto N’kisi<br />

Damuraxó, Itana Maria Ribeiro das Neves, que foi iniciada no Viva Deus, da Estrada<br />

das Barreiras. Hoje, ela dá continuidade aos seus compromissos com a tradição Angola<br />

no Unzó Bakisse Sasaganzua Gongara Kaianga, também na Estrada das Barreiras,<br />

próximo ao conjunto ACM. Ela nos diz: “Meu sonho é construir uma escola para<br />

crianças pequenas e também transmitir o que aprendi para outras pessoas”.<br />

As pessoas da tradição africana, desde os mais antigos aos mais jovens, gostam<br />

de transmitir o saber milenar, o que Mameto Damuraxó fala é da tradição dos bordados<br />

que herdara da “lição do terreiro”, vejam estas imagens:


Figura 131 Figura 132<br />

Itana e figurino da tradição africana. O ambiente de arte e pedagogia.<br />

250<br />

Como é possível ver, mostramos inúmeras possibilidades de a escola se articular<br />

com a comunidade e aprender a se relacionar com as pessoas que detêm o conhecimento<br />

da milenar cultura africana, contudo é preciso que a escola entenda que não são com<br />

suas formas pedagógicas estáticas, copistas, sobretudo ancoradas apenas na escrita, que<br />

esta transmissão se fará, mas pela palavra oral numa dinâmica de ritos renováveis.<br />

Quem compreende a palavra ebó, elaborou este saber por uma dinâmica social<br />

ritualística através de gestos que imprimem sinais de transmissão de força vital. Ebó<br />

pode ser elaborado com o sentido de oferenda ou sacrifício de quem o faz para uma<br />

entidade sagrada. O caruru, por exemplo, é um gesto de oferenda ou um sacrifício e,<br />

simbolicamente, se realiza pela comunicação oral, pela tradição herdada dos<br />

antepassados da família e da comunidade.<br />

É esta a nossa visão de currículo, algo vivido e concebido como uma<br />

necessidade de realização do entendimento sobre o mundo real, entretanto, para chegar<br />

a esta compreensão, é preciso criar território sem os limites e obstáculos ideológicos da<br />

pedagogia da servidão neocolonial. Narcimária Luz (2001, p.35) fala em “perspectiva<br />

quilombola”, que favorece a estrutura de coexistência. Basta lembrar que, em Palmares,<br />

viviam africanos, crioulos, indígenas e euro-brasileiros. Precisamos quebrar os grilhões<br />

curriculares da “casa grande e senzala” para quebrar os muros neocoloniais.<br />

3.3. ENTOANDO O TROMPE-L’OEIL<br />

A expressão páwódà quer dizer, em iorubá, mudança do sistema. No contexto<br />

político, e aqui nos referimos à sociedade oficial, sabemos que, no ethos ocidental, este<br />

“[...] é o domínio de um espaço simulado que está à frente do poder, que a política não é<br />

uma função ou um espaço real, mas um modelo de simulação, cujos atos manifestos são<br />

apenas efeitos realizados” (BAUDRILLARD, 1978, apud SODRÉ, 2002, p.35). Esta é a


251<br />

maneira própria de dominação colonizadora, o que importa é o domínio territorial<br />

contido no jogo das aparências.<br />

A política de dominação se realiza pela homogeneidade dos padrões de vida<br />

social, a estrutura arquitetônica. Esta situação vem, de fato, evidenciar-se em 1808 com<br />

a chegada de D. João VI ao Brasil, quando o padrão de vida do colono brasileiro<br />

começa a “imitar” a vida de ilusão, as idealizações da Corte portuguesa. Mas estas<br />

aparências mudaram o ritmo dos espaços sociais urbanizados, pois os locais afastados<br />

do centro do poder neocolonizador mantiveram os valores da comunalidade africana e<br />

aborígine.<br />

O trompe-l’oeil, ou engana-olho, como já explicamos, é uma expressão de<br />

origem francesa usada para nomear a obra renascentista e cuja função era criar uma<br />

ilusão de ótica, isto é, fazer entender a quem a olhasse que era real. Por exemplo; em<br />

uma parede, no lugar de se colocar uma janela, colocava-se uma pintura em alto relevo<br />

para dar impressão que era real. Encontramos esta expressão nos estudos de Sodré<br />

(2002).<br />

No Cabula o trompe-l’oeil chega ao final da década de 60 através da nova<br />

estrutura urbanística de Salvador, e praticamente se inicia com a instalação do Conjunto<br />

Antônio Carlos Magalhães na Estrada das Barreiras, depois chegou o projeto Narandiba<br />

que fatiou o lugar em Cabula I, Cabula II, Cabula III. Tudo isto poderia ser considerado<br />

natural se não alterasse, profundamente, a dinâmica da tradição socioexistencial<br />

africano-brasileira plantada desde o século XIX no lugar.<br />

A política de urbanização visava homogeneizar os aspectos de vida social do<br />

lugar, e programas habitacionais e programas educacionais juntam-se para realizar<br />

aceleração da especulação imobiliária, alegando a “melhoria” do lugar.<br />

O resultado, após 37 anos, é de um local que, antes constituído por uma grande<br />

reserva de mata virgem que carregava no bojo todas as referências que a natureza nos<br />

abrilhantou – rios, riachos, lagoas, rica fauna e uma vivaz dinâmica de comunalidade –<br />

transformou-se num grande cenário de concreto quadriculado, aglomerados<br />

habitacionais “ditos irregulares” e a imposição da individualidade em detrimento da<br />

sociabilidade africano-brasileira.


Figura 133 Figura 134 Figura 135<br />

Mata. Trilhas dos riachos. 2005. A lagoa entre as pedreiras. 2006. Local da Nascente da Lagoa da Vovó. 40<br />

252<br />

Essa “melhoria”, por sinal, foi bem-vindo a, inicialmente, para os antigos<br />

moradores que se sentiam excluídos do direito da “gloriosa” cidadania anunciada como<br />

direito democrático, como mostram os ecos de Senhor Cosme, morador do Cabula, na<br />

Estrada das Barreiras desde a década de 60:<br />

Quem melhorou isto aqui foi Roberto Santos até a Mata Escura<br />

porque não existia asfalto, construiu hospital, as estradas, fez o<br />

CETEBA, que hoje é a UNEB – Universidade do Estado da Bahia, fez<br />

o colégio Roberto Santos; depois que Antônio Carlos entrou, do lado<br />

de lá fez o Centro Administrativo na Sussuarana. A Sussuarana<br />

melhorou com a construção do Centro Administrativo. (Sr. Cosme,<br />

2006).<br />

Mais adiante, Senhor Cosme volta atrás ao dizer: “Tinha muita coisa aqui, tinha<br />

muita madeira, pra fazer casa tirava madeira aí deste posto [aponta o que ainda resta da<br />

mata] ele ia até a Br, hoje acabaram tudo” (Sr. Cosme 2006). Nestes ecos, encontra-se o<br />

paradoxo da vida moderna, implícito nas expressões “melhorou” e “acabaram tudo” que<br />

caracterizam o espaço imaginário instalado no lugar sem referência simbólica e sem<br />

significado para comunalidade.<br />

Os ecos de Dona Bernadete (2005), moradora cabuleira desde 1929, entoam<br />

sobre os sacrifícios dos jovens, antigos moradores do Cabula, para estudar: “Eu mesma<br />

estudava na 1 a série de ginásio nos Dois Leões, Escola Leopoldo Reis. Quando<br />

terminava a aula, ia até o Retiro; pra subir o Cabula, a gente comprava um facho para<br />

iluminar a estrada. Aí vinha todo mundo” 41 .<br />

Na realidade, a urbanização do Cabula, como de vários lugares de Salvador, foi<br />

uma necessidade da política de industrialização do Estado da Bahia. Com a implantação<br />

do CIA – Centro Industrial de Aratu na década de 60 e do Pólo Petroquímico de<br />

40<br />

Essas imagens retratam o que temos na atualidade. No lugar da Lagoa da Vovó, temos aquela trilha que<br />

guarda a nascente, no lugar existe um condomínio e habitações que depois ocuparam o lugar.<br />

41<br />

Dona Bernadete diz que facho era uma espécie de iluminador feito com palhas de nicuri ou dendê<br />

enroladas no formato de uma vela.


253<br />

Camaçari, na década de 70, o espaço geográfico de “arkhé euro-americana” (LUZ, N.,<br />

2001) 42 insere-se no Cabula, e a escola cumpre a função de realizar a desculturação de<br />

crianças e jovens descendentes de africanos para atender aos interesses imperialistas<br />

americanos e neocoloniais do Ocidente. Vejamos as críticas de Narcimária Luz sobre<br />

isto:<br />

Por conseqüência, a escola que se proclama única e democrática<br />

constitui-se numa mistificação; não há qualquer relação entre o que<br />

ela afirma fazer e o que realmente faz; sua ideologia democrática é o<br />

oposto da sua existência reprodutiva. A escola consegue dissimular<br />

muito bem a função que desempenha. Trata-se de uma escola<br />

montada, maquinada para confortar e fortalecer aqueles que se<br />

submetem à visão eurocêntrica de mundo. (LUZ, N., 1989, p.44).<br />

No Brasil, todos os espaços colonizados pertencem ao poder hegemônico do<br />

Estado que sempre esteve a serviço da política econômica neocolonial, contudo, após a<br />

Segunda Guerra Mundial (1945), embora sejam os EUA que vêm impondo seu domínio<br />

político imperialista, em termos civilizatórios, a ideologia do Ocidente é que determina<br />

a forma de desculturação por via do sistema de ensino, tal como acontece com o<br />

ordenamento do espaço geográfico de habitação, como mostra Marco Aurélio Luz<br />

(1989, p.9):<br />

Outro aspecto importante a destacar é que esses países se<br />

constituíram, de modo geral, a partir e em função dos interesses das<br />

metrópoles européias em dividir entre si as áreas territoriais de<br />

exploração das riquezas e da força do trabalho na forma específica do<br />

modo de produção colonial mercantil escravagista.<br />

No Cabula, após a destruição dos acampamentos quilombolas no século XIX<br />

(REIS, 2003), o governador da Província da Bahia fez investidas imobiliárias no local<br />

fatiando-os para famílias ilustres, como conta o Tata Kamuguengue, (pai pequeno),<br />

Eldon Araújo Lage, da comunalidade tradicional Angola, Onzo Nsumbo Tabula Dico a<br />

Meiã Dandalunda, conhecido como Terreiro São Roque, localizado na comunalidade do<br />

Beiru:<br />

O Cabula começou a crescer nos finais de 1800, depois disto vieram:<br />

Damasceno que era, na Engomadeira, dono de toda aquela área,<br />

42<br />

A expressão agrega a noção de princípios inaugurais de valores coloniais e princípios de valores<br />

urbano-industriais.


254<br />

tinha a Fazenda Campo Seco no Beiru, já tinha a família Conde dos<br />

Arcos, no Arraial tinha a Marquesa de Niza e as terras do Visconde<br />

do Rio Vermelho. Agora, não encontrei nenhum documento que<br />

comprove que antes de 1800 algum Barão tenha querido vir para o<br />

Cabula, do que sei era que aqui era uma grande área do Mosteiro de<br />

São Bento, abandonada.(Edson Lage, 2005).<br />

A nova investida, no século XX, consiste em mais uma etapa de ocupação<br />

hegemônica civilizatória, por isso a arquitetura de fachada euro-americana que começa<br />

a apagar os vestígios da arquitetura africana erguida neste lugar. De repente, duas<br />

grandes avenidas – a Silveira Martins e a Estrada das Barreiras –, prédios modernos das<br />

instituições e os condomínios residenciais modificam a dinâmica de sociabilidade<br />

africano-brasileira do lugar.<br />

Figura 136 Figura 137 Figura 138<br />

Cruzamento Cabula/ Barreiras/ Estrada das Barreias Avenida Silveira Martins<br />

Paralela.<br />

O Cabula do Século XIX 43 que João Reis apresenta, o Cabula que Dona<br />

Bernadete descreve, foi aos poucos sendo espremido, acuado pelos sinais da<br />

homogeneidade urbanística do Cabula moderno, que não são tão desnecessários, mas<br />

que constituem o espaço da arrogância ocidental imperialista, neocolonial e<br />

desrespeitosa. Se apelamos para a crítica é para dizer que a falta do reconhecimento da<br />

pujança da tradição africana no lugar amplia as possibilidades de expansão sobre o<br />

espaço mítico-sagrado africano-brasileiro no Cabula tradicional.<br />

O Cabula moderno agrega um cenário de educação escolar com: dois campi<br />

universitários – um público, o da <strong>Uneb</strong> – Universidade do Estado da Bahia, e um<br />

particular, a Escola Bahiana de Medicina; dezenas de colégios públicos do ensino<br />

fundamental e médio, menos de uma dezena de unidades do pré-escolar 44 e dezenas de<br />

colégios de ensino fundamental e médio da rede particular; no cenário jurídico, uma<br />

penitenciaria do Estado; no setor de segurança, uma delegacia e um batalhão do<br />

Exército; no cenário da saúde, um hospital geral, um hospital para doentes mentais e<br />

43 Vide capítulo I, deste trabalho.<br />

44 Falamos do sistema escolar da Educação Infantil dedicado a cuidar de crianças de 0 a 6 anos.


255<br />

menos de uma dezena de postos de saúde, além de dezenas de consultórios e clínicas<br />

particulares (dentários e médicos).<br />

Agrega um comércio atuante com uma dezena de shoping center de pequeno<br />

porte territorial, duas grandes redes de supermercados, centenas de pequenas lojas<br />

espalhadas ao longo de suas duas avenidas, uma dezena de motéis, uma empresa de<br />

telefonia fixa e outra móvel, etc.<br />

Todos esses espaços, muitos institucionais públicos e privados, formam a cortina<br />

urbanística que tenta silenciar a crescente tradição de comunalidade ocultada. São<br />

formas de repressão através das quais a linguagem da ideologia ocidental se faz<br />

imponente e recalcadora. Chegamos a acolher, promover e fortalecer movimentos<br />

culturais como o hip-hop no grupo, Hudson Moreira, é um jovem deste movimento que<br />

faz uma parceria com o Artebagaço Odeart com a linguagem do break, é uma das<br />

expressões do hip-hop que combate tais aparências e afirma a cultura negra:<br />

Para eles 45 quem nasce na periferia é burro e que nunca vai<br />

melhorar. Com isso, eu posso mostrar para eles que quem nasce na<br />

periferia e convive com eles também pode ter o conhecimento deles,<br />

porém para eles terem nosso conhecimento é mais difícil, tanto que,<br />

para sobreviverem, precisam de cinco ou seis seguranças do lado.<br />

Nós sabemos onde entrar, por onde sair, como vai entrar, dizer<br />

obrigado, pedir um favor, falar com as pessoas nas ruas e eles, não.<br />

Eles precisam do segurança para saber aonde ir a tal lugar, para<br />

saber onde é o lugar e nós não, nós procuramos onde fica o lugar.<br />

Nós sabemos a linguagem que aprendemos nas ruas, que é muito<br />

diferente da que eles aprendem nas escolas. (Hudson Moreira, 2005).<br />

O movimento cultural hip-hop das comunalidades Engomadeira, Beiru, Estrada<br />

das Barreiras, Sussuarana, São Gonçalo, Arraial do Retiro, Mata Escura, Pernambués<br />

busca afirmar a cultura de vivência nas ruas plantada pela ancestralidade africana,<br />

embora eles ressaltem sua linguagem de rua mais atualizada. Com isto, realizam críticas<br />

à prepotência urbanística moderna que tem retirado este lugar apropriado aos encontros<br />

de pessoas e mudado a dinâmica de sociabilidade.<br />

O trompe-l’oeil urbanístico do Cabula tem modificado tanto o modo de vida do<br />

lugar que a concepção de vida social de muitos jovens tornou-se a referência da arkhé<br />

euro-americana contida na aparência transmitida pela topografia dos condomínios,<br />

incluindo modos de vestir e meios de comunicação, substituindo dinâmicas rituais<br />

cotidianas como o andar a pé, pois, atualmente, mesmo de dia, os jovens se locomovem<br />

45 “Eles” refere-se às pessoas do poder hegemônico guiadas pelo pensamento imperialista neocolonial.


256<br />

em pequenos espaços, do tipo dois pontos de ônibus, por via de conduções automotivas<br />

e ônibus.<br />

Do que soubemos, os antigos moradores que foram morar nos condomínios<br />

abandonaram esta moradia e retornaram ao solo de origem na comunalidade africanobrasileira,<br />

que em nossa pesquisa enuncia-se por “mata africano-brasileira”, pois a<br />

moradia nos prédios com fachadas modernas é que nem as asas do pavão:<br />

deslumbrantes, mas apenas para olhar e só para olhar.<br />

Muitos alegaram que, entre os vizinhos, não havia comunicação, talvez porque o<br />

“pavão” seja arrogante, prepotente e não se relacione com outras aves por se achar<br />

superior. Situação assim impôs mudança geral nos hábitos do lugar e das<br />

territorialidades, vejamos como Sodré (2002) descreve a inserção da arquitetura de<br />

fachada no Rio de Janeiro no século XIX:<br />

As fachadas arquitetônicas, com novos clichês sígnicos, passaram<br />

assim a preencher novas funções ideológicas. Mas tais fachadas<br />

concentram-se principalmente em certos edifícios monumentais (como<br />

o Teatro Municipal e a Escola de Belas-Artes), porque a “escrita<br />

social” que antes investia a maior parte dos objetos arquitetônicos da<br />

cidade transfere-se progressivamente para mercadoria. (SODRÉ,<br />

2002, p.133).<br />

O Cabula, anos depois, passa por semelhante situação, por isto passou a ser<br />

reconhecido apenas por duas grandes avenidas: Silveira Martins e Estrada das Barreiras<br />

ou por Cabula I, Cabula II, Cabula III, Cabula X, locais onde muitas vivências<br />

consistem nas aparências de um mundo de consumo dos que se dizem “civilizados”.<br />

De fato,<br />

[...] estas começam a ser socializadas em sua produção, mas também<br />

em sua definição formal. A loja torna-se o lugar da conversão do<br />

social no individual pelo mecanismo da compra. – um lugar<br />

geométrico de produção e da representação” (SODRÉ, 2002, p.133).<br />

É desta forma que a arkhé euro-americana invade os espaços amplamente<br />

constituídos pela tradição comunal e desvaloriza os princípios e valores herdados da<br />

arkhé cultural africana e aborígine para se supervalorizar.<br />

É neste ponto que questionamos: Quem pratica a violência em quem? Se o<br />

cenário novo expulsa os hábitos dos antigos que se sentem agredidos e reagem, por


257<br />

exemplo, com quebra-quebra de aparelhos telefônicos públicos, das vidraças de lojas,<br />

dos brinquedos nos condomínios, de ônibus...<br />

Se os antigos moradores, portadores dos códigos de valores da vida social na<br />

rua, do caminhar lento nas estradas, mantêm esta tradição, é comum vermos pessoas<br />

caminhando na rua ao lado ou na frente dos carros, uso de cavalo em meios às motos e<br />

automóveis. São constantes sinais de insatisfação e enfrentamento da forma social<br />

imposta, o que percebemos pelo uso dos espaços nas ruas.<br />

Figura 139 Figura 140 Figura 141<br />

Caminhar na rua. 2005. Transportes. Cavalo, moto, a pé. 2005 Caminhar na rua. 2005.<br />

Essa dinâmica traduz a linguagem de quem se rebela com o<br />

unidimensionamento, é o quebrar de ritos universais subvertendo a ordem moderna, mas<br />

caso se olhe com os sentidos e a razão pode-se ver que é possível a tradição ancestral<br />

coexistir com a contemporaneidade, pois, no mesmo espaço em que se encontra o<br />

cavalo, também passa uma moto, pessoas e o carro, expressando o sinal de acolhimento<br />

da alteridade.<br />

O mesmo se diz do comércio de tradição africano-brasileira, que se sustenta com<br />

firmeza diante da aparência unidimensional das butiques e supermercados, conforme<br />

espelham as fotos das Figuras a seguir.<br />

Figura 142 Figuras 143 Figura 144<br />

Barracas de folhas e ervas medicinais. Objetos à venda dependurados O vendedor ambulante. Olhe a seta. 46<br />

46 Imagens tiradas em 2005. A primeira no Beiru, as duas últimas na Engomadeira.


258<br />

Por outro lado, as reações do jovem descendente dos valores culturais do<br />

fundador da comunalidade são interpretadas como atitudes fora da ordem. Como<br />

solução, o poder de Estado ordena reforços da ação policial, e é claro que a ação policial<br />

é terapêutica porque se ancora nos aparatos ideológicos que inferiorizam o descendente<br />

de africano.<br />

Nesse contexto, a autoridade de segurança pública nunca vê o morador antigo, o<br />

africano-brasileiro, como o agredido e sim como o agressor, tal como argumenta<br />

Narcimária Luz (2000, p.32): “Nesse labirinto ideológico, há um sistema de crenças e<br />

práticas, e conceitos que se interpenetram, constituindo dessa forma convicções éticas e<br />

prescrições intolerantes que dão corpo ao Estado Terapêutico”. E, assim, a atitude de<br />

defesa dos moradores quanto ao que lhe é usurpado transforma-se em anomalia e<br />

anormalidade.<br />

Contudo, o poder de Estado conhece melhor do que qualquer ser individual e<br />

social os motivos que levam uma pessoa a reagir desta maneira, sabe também que a<br />

ação policial é recalcadora e reguladora dos modos de vida social neocolonial e, muitas<br />

vezes, toma atitudes injustas como dizem os ecos de alerta do artebagaciano Dainho:<br />

Também tem que ficar atento mais atento porque tem tipo de policiais<br />

que vê que você é uma pessoa negra, que vê que a pessoa é.... É... de<br />

pouca, de pouca..., pouca renda e não tem poder, aí [faz sinal com os<br />

braços simbolizando chicotadas]. Um dia os policiais foram atrás de<br />

um bandido e, como não encontraram aquele bandido, eles voltaram.<br />

A viatura voltou e, sem mais nem menos, enquadrou quem tava e<br />

bateu em todo mundo. Eu acho que foi com raiva deles mesmos de<br />

não ter conseguido pegar quem eles foram buscar. Por isto meu pai<br />

não gosta das coisas que já viu e fica com receio de acontecer comigo<br />

alguma coisa como já falei que aconteceu lá. Minha mãe fala para<br />

não fazer tatuagem... (Dainho, 2005).<br />

Tais situações mostram que a segurança pública é mais privada do que pública,<br />

pois os jovens das comunalidades africano-brasileiras são sempre alvo dos resultados<br />

previstos por lei, é sendo o “bode expiatório” dos “fracassos” dos planos ideológicos da<br />

vida social urbana.<br />

Cenas como essas, cotidianas nas comunalidades do Cabula, correspondem à<br />

falta de respeito aos fundadores da sociabilidade do lugar. A cada dia que passa, estes<br />

sentem-se mais recuados para um espaço de destruição da socioexistência herdada. A<br />

comunalidade africano-brasileira pode ser entendida pelo que descrevem os ecos de<br />

Beni:


259<br />

Quando saí dos Pernambués [comunalidade do Cabula] e fui morar<br />

no Rio Vermelho foi um choque daqueles, porque eu estava<br />

acostumada com minha galera, é como a gente costumava chamar os<br />

amigos lá nos Pernambués. Tínhamos um convívio bem próximo, era<br />

aquela coisa de entra e sai nas casas. Quando se faz uma festa em<br />

Pernambués, a comunidade está toda ali, você nem precisa convidar,<br />

mas estão ali e você tem por obrigação ética de convivência atender<br />

todo mundo do mesmo jeito, convidados e não convidados. Então, era<br />

isto que a gente tinha por lá.. Não sei se continua assim, mas era<br />

assim que chegavam: –“Oi, vizinha, como vai? Parabéns!”<br />

Chegavam de forma muito delicada. (Beni, 2005).<br />

Pelos ecos de Beni Moraes, é possível entender as reações contrárias dos antigos<br />

moradores do Cabula ao quebrarem os materiais colocados no condomínio como<br />

constituintes cênicos sociais. Para quem vive o calor humano no aconchego da<br />

vizinhança, as referências materiais são apenas aparências, elas não substituem<br />

expressões sorridentes como: Oi, vizinho!, o abraço forte batendo levemente nas costas<br />

que diz: – Quem bom lhe ver mais uma vez!<br />

Mas, da década de 70 em diante, o espaço de representação da vida social<br />

idealizada cresce e começa a compor o cenário do Cabula. Mesmo sem autorização dos<br />

que ali viviam chega para teatralizar a vida urbana e realizar o controle da ocupação<br />

territorial, tal como foi feito em outros tempos: ”Tanto assim que a Coroa Portuguesa,<br />

na segunda metade do século XVII, ao ver aumentar a força da colônia, procurou<br />

ampliar seu domínio político sobre as populações também por meio de dispositivos de<br />

urbanização” (SODRÉ, 2002, p.33), o traçado unidimensional que caracteriza as<br />

hierarquias de poder dos que “podem governar”:<br />

A “traça” é o plano geral da cidade, obra da planimetria européia do<br />

século XVI e XVII, que representava o olhar, ao mesmo tempo ideal e<br />

realista, do Poder. O plano, como se vê, vinha pronto do Velho<br />

mundo. Ele decidia sobre a simetria das ruas, das casas, sobre a<br />

demarcação das praças, às vezes frisando nos documentos de fundação<br />

de cidades a importância do emprego de novos métodos de avaliação e<br />

medição dos espaços [...] (SODRÉ, 2002, p. 33-34).<br />

Essa descrição apresentada por Sodré caracteriza o modelo de urbanização<br />

européia que praticamente construiu Salvador, isto até enquanto não chegaram os<br />

modelos americanos, que são construções de bairros com edificações verticais, todas<br />

iguais em tamanho e cor, e caracterizam as habitações de trabalhadores das fábricas.


260<br />

São esses tipos de habitação que têm apagado o vigor da mata natural do Cabula<br />

e ocultando, cada vez mais, a “mata africano-brasileira”, a tradição plantada pelos<br />

ancestrais nagôs, bantos e jejes, fundadores deste lugar.<br />

É o trompe-l’oeil urbanístico moderno que justifica a Razão de Estado<br />

neocolonial, e não se pense que tal situação não se relaciona com nossa temática de<br />

educação pluricultural. O trompe-l’oeil é reservado também à crítica à arquitetura dos<br />

prédios escolares da educação etnocêntrica, e se aproxima bastante do padrão dos<br />

modelos dos condomínios habitacionais. Quanto mais novos, a verticalidade aumenta e<br />

a arborização, as plantas, a referência da rua com o sentido de praça diminuem também.<br />

Vejamos, a seguir, algumas imagens de habitações modernas.<br />

Figura 145 Figura 146 Figura 147<br />

Condomínios sentido Paralela. Condomínio sentido Mata Escura. Prédios. Ladeira do Cabula. À <strong>Uneb</strong>.<br />

Figura 148 Figura 149 Figura 150<br />

Condomínio Arraial do Retiro. Prédios comerciais. Est. Das Barreiras. Prédios Residenciais. Engomadeira 47<br />

Vejamos agora duas estruturas arquitetônicas escolares modernas do Cabula:<br />

Figura 151 Figura 152 Figura 153<br />

Colégio Municipal. Anfrísia Santiago. Complexo Escolar. Continuidade do Complexo. 48<br />

47 Imagens tiradas em 2006.<br />

48 A Escola Anfrísia Santiago foi uma das primeiras instituições escolares instalada no Cabula, na década<br />

de 70. Dedica-se ao ensino fundamental, nível I. O complexo agrega o primeiro colégio instalado em<br />

1979, Colégio Governador Roberto Santos, para o Ensino Médio. Na década de 90, passou por mudanças<br />

e passa a agregar a Escola de Primeiro Grau – 1 a à 8 a série e aceleração Nível Fundamental – Governador


261<br />

Assim como acontece nos condomínios, em que os corpos dos moradores ficam<br />

isolados nas residências verticais, na escola acontece entre as salas de aula e muitas<br />

entre andares. Este é um dado que cria e alimenta o distanciamento dos corpos isolados<br />

por corredores “congelados” para refrear emoções e, quanto mais se moderniza, esta<br />

arquitetura se fortalece.<br />

Muito embora reconheçamos que a verticalidade, atualmente, também seja uma<br />

realidade nas ocupações territoriais que chamam vulgarmente de “invasões”, por serem<br />

consideradas ilegítimas pela “Razão de Estado”, estas habitações, que surgiram no<br />

Cabula após as instalações dos primeiros condomínios a partir de 1969, só possuem a<br />

arquitetura vertical, pois a comunicação continua de janela em janela, no entre e sai de<br />

portas que não ficam mais abertas, mas estão sempre dispostas a receber o vizinho.<br />

Figura 154 Figura 155 Figura 156<br />

Estrada das Barreias Engomadeira Barreiras/ Engomadeira.<br />

Nesses casos, não temos por que relacionar essas construções ao trompe-l’oeil,<br />

contudo a estrutura não deixa de ser uma influência reterritorializada para a realidade do<br />

cabuleiro. Lembramos que o trompe-l’oeil é a expressão metafórica que simboliza o<br />

cenário social neocolonial no Cabula, que se caracteriza a fachada arquitetônica<br />

unidimensional que seduz o africano-brasileiro a acreditar nos valores ditados pelas<br />

instituições modernas.<br />

A “fachada” tem a função de produzir efeitos de simulação de algo idealizado<br />

para parecer que é real. É, justamente, transformar algo inexistente em corporificado,<br />

que é a função primordial da escola pública, simular uma realidade que pareça ao<br />

máximo possível com um lugar de expansão socioexistencial.<br />

E cabe às políticas educacionais etnocêntricas promoverem os projetos da<br />

desculturação do descendente de africano e do aborígine, cabe à coordenação de<br />

Roberto Santos, o Colégio Francisco da Conceição Meneses do Ensino Fundamental - 5 a a 8 a , Curso de<br />

Aceleração Níveis Fundamental e Médio e a Creche Álvaro da Franca Rocha.


262<br />

imprensa e propaganda da “Razão de Estado” produzir anúncios conativos de<br />

convencimento desta aparência.<br />

Tal como nos condomínios, a realidade recalcadora é ocultada na escola. “É em<br />

redor desta repressão que se organizam todas as práticas pedagógicas” (LUZ, N., 1989,<br />

p.45), apresentando-se como condutas de “melhoria” de vida social, “tábua da salvação”<br />

da ignorância e de perspectiva de vida digna democrática, mas, na realidade, aponta os<br />

retilíneos caminhos que levam à alteridade própria, à luz da verdade universal platônica.<br />

Por isso a escola ainda é o espaço político-social de realização das expectativas<br />

ideológicas do projeto hegemônico neocolonial, já que tudo que preenche seu bojo é<br />

quase real e assemelha-se ao que Muniz Sodré nos apresenta como trompe-l’oeil:<br />

Tudo leva à evocação do trompe-l’oeil (literalmente: “engana-olho”),<br />

invenção renascentista. Trata-se de uma pintura, que, por meio de um<br />

jogo mimético de terceira dimensão, oferece ao olhar uma ilusão, mas<br />

fazendo crer que são reais os objetos nela representados. Vê-se uma<br />

uva e tem a impressão de que a fruta realmente existe a ponto de um<br />

pássaro ser levado a bicá-la. (SODRÉ, 2002, p.35).<br />

E deixamos claro que o trompe-l’oeil, tal como a caverna de Platão, não é uma<br />

estrutura oca embora seja apenas uma casca. Sua forma tridimensional cria o espaço<br />

interior de tramitação dos aparatos políticos da hegemonia neocolonial que asseguram a<br />

“pretensa “superioridade” do colonizador” (LUZ, M.A., 1994, p.24).<br />

É como argumenta Sodré (2002 35): “O trompe-l’oeil é, na verdade, uma<br />

simulação do real (e não a sua representação), os objetos pintados são verdadeiros<br />

simulacros”. Tal simulação favorece e surgimento de brecha na qual o vazio é<br />

preenchido por políticas pluriculturais que sempre estiveram ali, porém, excluídas do<br />

espaço do poder de ação devido a sua característica pluridimensional.<br />

Acontece, meu caro leitor, que a dinâmica do trompe-l’oeil urbanístico no<br />

espaço escolar é dramática, mesmo mostrando longos muros, pinturas anuais<br />

novíssimas da área externa. É, porém, no seu interior que percebemos que o jogo de<br />

simulações da “casa grande para a senzala”, ou dos órgãos superiores para a unidade<br />

escolar não passa de portarias coibitivas.<br />

Foi acompanhada da mãe em 1995 que Fabiana Rocha, aos 14 anos, entrou pela<br />

primeira vez numa escola pública e, ao mesmo tempo, foi inserida na dinâmica de vida<br />

urbano-industrial de Salvador, visto que ela, a mãe e três irmãos eram recém-chegados<br />

de Santo Amaro da Purificação, localidade do Recôncavo baiano. Para a adolescente


263<br />

que compôs, dois anos depois, o grupo fundador da comuna Artebagaço, foi um choque<br />

por medo de não ser respeitada como um ser humano, como sempre foi onde vivia.<br />

Aqui tudo era diferente, o deslocamento, roupa, alimentação,<br />

aluguel, a gente tinha ido estudar em escola pública, eu tinha medo de<br />

ser mais uma, de ser indiferente para as pessoas, de não ser notada,<br />

de somar, não sei mais explicar. (Fabiana, 2005).<br />

O medo de Fabiana era devido às histórias que sabia sobre o descaso do poder<br />

público com o zelo do espaço escolar e de quem esteja no seu interior.<br />

Sua mãe a encorajava, pois para Fabiana tudo era novo; a cidade e a escola, e<br />

faltavam amigos: “Quando entrei na escola, meu Deus! Fiquei arrasada com aquilo que<br />

vi. Meu Deus! O que é isso? Era uma escola feia, pichada, sem pintar, o aspecto das<br />

pessoas... [arregala os olhos e ergue o corpo]. Eu entrei num mundo que não conhecia,<br />

Jane”. Enquanto falava, esfregava as mãos uma na outra, os olhos expressavam sinais de<br />

indignação e o corpo sentado na cadeira realizava um movimento de vaivém, ora para<br />

frente, ora para trás.<br />

Indagamos, então: – “Como era que você via as pessoas?”: – ”Eu via muita falta<br />

de vontade, via sofrimento e pesar, via vadiagem, digamos que eu via um cenário<br />

marginal, marginalizado, vi sim. Eu fiquei arrasada porque vim de outro lugar”<br />

(Fabiana, 2005). É por esta descrição de Fabiana que reforçamos nossas convicções de<br />

que o trompe-l’oeil urbanístico da escola encobre a dinâmica da “senzala”, o<br />

sofrimento, a dor e também a luta contra todas estas linguagens.<br />

A dinâmica da “senzala” é percebida pelo estudante porque tudo que acontece<br />

realiza-se nos espaços fechados da escola como nas salas de aula onde a “luz” da<br />

verdade absoluta se constitui em única estrela. Temos uma seqüência de fotos para<br />

reflexão, sobre a tirania do “espaço-prisão”. Ressaltamos que as imagens são exclusivas<br />

de nossa pesquisa:<br />

Figura 157 Figura 158 Figura 159<br />

Vista de fora para dentro 2006 Vista de dentro. 2006 No interior da grade 2006 49<br />

49 Professora Maria Cleuza, coordenadora pedagógica e fundadora do colégio esclarece que, quando<br />

inaugurado em 1979, o colégio não tinha grades, estas foram colocadas no final da década de 80, início do


264<br />

Com essas imagens tentamos compor um cenário que aborda a situação real de<br />

evasão e repetência de aluno. Acreditamos que em uma existência social reduzida à<br />

mecânica do poder unidimensional, o corpo vai travando aos poucos e o processo de<br />

criação vai também recalcando o vitalismo corporal.<br />

Esta estrutura aproxima-se do que Foucault atribuiu a noção “recursos para bom<br />

adestramento” (2004, p.143), ela impõe uma dimensão espaço-temporal matematizada<br />

que cumpre a função de espaço de confinamento, clausura e isolamento da<br />

comunalidade, para territorialidade africano-brasileira. Este espaço inexiste como<br />

possibilidade de crescimento humano. Traremos ecos de três artebagacianos com idade,<br />

série e cursos diferenciados para que eles mesmos nos digam o que pensam da escola:<br />

Ivo, Gilmara e Daniela.<br />

Ivo tem 11 anos, é o mais jovem do grupo, cursa a 5 a série do ensino<br />

fundamental: “Pra mim a escola é uma questão de ficar preso e só falar aquele negócio:<br />

tan, tan, tan e tan, tan, tan... Só tem um momento pequeno 50 que você pode se divertir.<br />

Não se diverte de tudo, só algumas coisas, tipo uma prisão que você fica ali toda hora.”<br />

(Ivo, 2006).<br />

Temos Gilmara Cruz, cursa a segunda série do curso de Formação Geral, tem 15<br />

anos e faz parte da terceira geração caracterizada como Artebagaço Odeart:<br />

A escola passa, ela passa alguma coisa da comunidade, mas de forma<br />

negativa, esta é a única forma dela demonstrar seu lado positivo. A<br />

escola vê a comunidade como marginal, periferia, quando passam por<br />

uma pessoa da comunidade se torce toda. O que fica claro pra gente é<br />

que o lugar onde eles vivem é bom, isto inculca mais a nossa cabeça;<br />

achar que é ruim, e isto é maldade do ser humano, pois, mesmo que<br />

você não esteja passando por aquela coisa, não custa nada ajudar,<br />

mas eu acho mesmo que o dinheiro é uma estratégia para esta<br />

divisão, essas panelinhas foram criadas para isto mesmo. (Gilmara,<br />

2006).<br />

Temos Daniela que Costa, faz curso pré-vestibular, já terminou o segundo grau,<br />

tem 25 anos, entre os jovens, é a mais velha do grupo que forma a geração Artebagaço<br />

Odeart:<br />

governo Waldir Pires, devido aos constantes roubos do imobiliário, vaso sanitário, carteiras, mesas, nos<br />

finais de semana e à noite. Realmente, em 1990, faltavam cadeiras para os alunos sentarem.<br />

50 A criança, ao falar, a sonoridade divide as sílabas da palavra e com o movimento das mãos cruzadas<br />

comprime o abdômen e fecha os olhos: Pe- que- no.


265<br />

Eu, como já cansei, pra mim colégio é um estorvo. Tirei o segundo<br />

grau na raça, a pulso porque odiava ir ao colégio; que era sentar e<br />

ouvir o professor falar, falar e falar, e pronto. Na hora da prova, eu<br />

não estudava nada porque nada do que ela me falava me lembrava<br />

para colocar na prova. Então o que eu botava era o que eu achava<br />

que entendia, mas para ele não valia nada. Então, sempre ia para<br />

recuperação e era reprovada 51 . (Daniela Costa, 2006).<br />

.<br />

Esses ecos expressam a profundidade do recalcamento cultural. Ao falar, o corpo<br />

de cada um dos três denuncia a insatisfação de viver em um do lugar que tem como<br />

função a “cura” ou apagamento da história e da cultura ancestral através do<br />

“tratamento” disciplinar.<br />

As três últimas imagens caracterizam o isolamento absoluto do mundo exterior,<br />

que é a comunalidade. O espaço-tempo de permanência na escola não se caracteriza<br />

pela relação corpo e lugar físico, como acontece com a espacialidade africano-brasileira<br />

em que o universo social consiste na relação da pessoa com tudo que constitui seu<br />

vitalismo socioexistencial, mas, no espaço-tempo escolar, a vida dicotomizada denega a<br />

existência.<br />

Por isso Ivo, uma criança de 11 anos, diz: “tipo uma prisão que você fica ali a<br />

toda hora”. O interessante é que ele está coberto de razão, a prisão é o controle da<br />

dinâmica pedagógica para formatar peças da engrenagem que transformam o jeito<br />

próprio da pessoa descendente de africano e aborígine indígena em “papel” de<br />

estudantes, professores, funcionários, isto é, corpos obedientes controlados pela ação<br />

disciplinar ocidental.<br />

Buscamos em Foucault (2004) referências sobre o espaço e tempo, pois ele nos<br />

mostra que, desde a época clássica 52 , experimentos científicos racionalistas moldam<br />

corpos como objeto de manipulação do poder. “Corpo útil, corpo inteligível”. Assim<br />

fala Foucault: (2004. p.118): “É dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser<br />

utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado”. Neste sentido, a regulagem do<br />

jeito de ser da pessoa, através da imposição do tempo e do espaço controlados ajuda a<br />

fortalecer o estado de tirania da “casa grande” escolar.<br />

51 O tom da voz muda, e torna-se grave, ao dizer “reprovada”.<br />

52 Foucault apresenta um comentário cujos argumentos históricos nos fornecem dados do solo ocidental:<br />

primeiro com Descartes, depois com teóricos, políticos, que se propunham a corrigir corpos de<br />

camponeses e moldá-los como serem honrados, quer dizer soldados obedientes às normas institucionais<br />

modernas: “corpos dóceis”.


266<br />

Então, quando, em cada colégio do sistema público, o educador defende a<br />

rigidez temporal e o uso obrigatório das ações no restrito espaço sala de aula; quando as<br />

perspectivas metodológicas de conduta pedagógica restringem sua dimensão de ação<br />

renovadora na sala de aula, e quando as políticas públicas pedagógicas e de gestão só<br />

entendem o educar no interno e restrito espaço-temporal do colégio, podemos intuir que<br />

estamos diante desta formatação.<br />

Figura 160 Figura 161<br />

Artebagaço, maio 2006 Artebagaço, novembro 2006<br />

É nesse espaço infértil, como mostram as imagens, das Figuras acima, que a<br />

impossibilidade de nutrir o potencial criativo se realiza tal e qual Gilmara, Daniela e Ivo<br />

entoaram. O estudante está sempre sentado, ouvindo e vendo a verdade absoluta<br />

reproduzida pelo professor, para assegurar o modelo do trabalhador escravo. Desta<br />

forma, o estudante de escola pública fica alijado do campo do saber que o leva à<br />

reflexão da própria condição de submetido, num cenário que o impele a lutar pela sua<br />

alteridade negada.<br />

As imagens mostram a rotina mecânica do ato de escrever. Mas, como num<br />

clima de amor e ódio, também se reclama quando não existe a escrita. Esta é a<br />

referência que temos para falar da cópia que existe na escola, ela é um grande equívoco<br />

de escrita: o estudante não escreve, ele copia, reproduz o discurso de outro elemento, o<br />

que constitui um grande obstáculo para a criação de textos originais em todos os níveis<br />

de educação.<br />

Essas imagens nos levam a refletir sobre o novo tema que ainda não abordamos,<br />

mas está relacionado ao estereótipo da inferioridade, “bagaço”. Tudo, todo o<br />

desenvolvimento do conhecimento que desmistifica este termo, está contido na crítica<br />

que fazemos à ideologia social neocolonial de hegemonia de poder universal que, aqui,<br />

é referida pela metáfora trompe-l’oeil, e a sua forma idealizada para ser real é a da “casa


267<br />

grande e senzala”, visto que, em nosso cenário de crítica, esta é a política de denegação<br />

da alteridade não-ocidental. No caso do Brasil, são os povos africanos e aborígines.<br />

É bom que esteja claro, caro leitor, que nosso interesse em desmistificar as<br />

imagens estigmatizadas como “bagaço”, que o território político-social neocolonial<br />

também desqualifica por “pobre”, “carente”, “desengonçado”, é uma atitude<br />

Artebagaço, isto é, consiste em recriar a palavra negativa em um cenário de crítica e,<br />

desta forma, poder gerar uma reflexão ancorada na noção de arkhé civilizatória que<br />

gerou o estereótipo. Acreditamos que esta seja uma possibilidade de descolonizar a<br />

educação pública das escolas do Cabula.<br />

São quase duzentos anos de escola oficial 53 e de apego ao livro didático e à<br />

escrita. Esta devoção é semelhante à que uma pessoa evangélica tem pela Bíblia e um<br />

católico, pelos livros de orações aos santos. Ressaltamos que não estamos negando as<br />

escolhas religiosas, estamos refletindo sobre o condicionamento do estudante ao que é<br />

escrito, e também reconhecemos, nestes instrumentos, a função de limitador da<br />

liberdade criativa e de aparatos de controle do poder.<br />

Contudo, para aprofundarmos a crítica ao uso, com exclusividade, da língua<br />

escrita, como referência de aquisição e domínio do saber universal, fizemos uma busca<br />

no campo dos estudos lingüísticos (BAGNO, 2004) e gramaticais (HOUAISS, 1985).<br />

Segundo estas fontes, por volta dos séculos II a III a.C., os filósofos ocidentais, no<br />

território ideológico grego clássico, elaboraram a concepção de língua como uma<br />

abstração, algo inalcançável, este é o ponto de partida da celebração da escrita.<br />

A tradição dos Nagôs é oral, e estes, talvez, sejam os povos dos quais tenhamos<br />

herdado a maioria dos valores socioexistenciais. Para os Nagôs, os ogé, por exemplo,<br />

caracterizam a possibilidade dinâmica de realização da fala. Contudo, no solo de arkhé<br />

grega, a expressão puramente sonora perdeu um pouco do seu prestígio para uma forma<br />

áfona de transmissão do conhecimento, o alfabeto.<br />

Além da forma gráfica, surgem as regras ortográficas, cujo exagero o escritor<br />

Fernando Sabino denomina de “doença da língua”. São normas de enclausuramento da<br />

possibilidade de expressar o que vem do interior humano para o exterior social que é<br />

restringido pelo uso da língua escrita como único elemento de comunicação num<br />

contexto ocidentalizado.<br />

53<br />

Ver Narcimária Luz (2000, p. 49), sobre a criação da Escola Normal, em 1836, que oficializa o ensino<br />

público no Brasil, já referenciado.


268<br />

Nesse cenário, a ortografia passa ser o código legal ou instrumento de<br />

legitimação da língua que só é reconhecida como elemento de valor para a sociedade<br />

oficial se for escrita. Desta forma, surgiram infinitos “fora-da-lei” de que a “cadeia<br />

gramatical” 54 nunca conseguiu dar conta, tal como acontece com os “ditos” criminosos<br />

na sociedade oficial.<br />

É importante entender que essa foi uma das formas de a elite torna-se sentir-se<br />

superior àqueles que não necessitam, em suas elaborações, do saber da escrita como<br />

forma de comunicação: “A escrita se constitui historicamente como meio de<br />

comunicação dominante, característico dos arquivos da Razão de Estado, do poder<br />

político imperialista.” (LUZ, N., 2000, p.36) e, assim como a arquitetura urbanística<br />

moderna se constitui em uma forma de aparência para criar ilusão de ótica, a escrita<br />

também cumpre este papel: representar-se como única possibilidade de comunicação<br />

oficial do trompe-l’oeil colonial ditado pelo Ocidente:<br />

É preciso que se diga que a escola ocidental é a institucionalização da<br />

forma escrita de comunicação, alem de ser o espaço em que circulam<br />

e se divulgam os valores e a visão de mundo europocêntrico. A prática<br />

pedagógica instituída nas escolas legitima a escrita, impondo-a como<br />

forma de comunicação universal, e, a partir dessa “verdade”, denega,<br />

deforma, desqualifica e alija as outras formas de comunicação que<br />

emergem das demais tradições civilizatórias. (LUZ, N., 2000, p.38).<br />

A alteridade é compreendida num cenário social de liberdade e “[a] ação<br />

comunicativa é assegurada pela linguagem, da qual a língua natural é apenas um dos<br />

dispositivos possíveis, a sua manifestação social e formal” (LUZ, N., 1996, p.11-12). É<br />

função da linguagem assegurar a liberdade de comunicação e de interação social,<br />

contudo a alteridade também se realiza através da língua natural, desde que os<br />

constituintes desta língua sejam referências da herança ancestral, aqueles transmitidos<br />

no convívio da comunalidade.<br />

Na escola, o estudante se depara com uma realidade estranha às suas vivências,<br />

uma vez que a escola apenas reconhece a língua comprometida com os códigos de vida<br />

idealizada. Desta forma, o estudante se posiciona entre o impossível ato de transmitir de<br />

forma idealizada e a possível forma natural.<br />

54 Cadeia se refere aos estudos normativos de língua portuguesa cujas condutas pedagógicas consistem<br />

em decorar estruturas frasais estáticas, provando que consegue identificar cada elemento disposto naquela<br />

ordem sem retirar ou colocar nada. É cadeia porque é esta metodologia que aprisiona a fala do estudante<br />

na sala de aula, é também cadeia porque se constitui em um aprendizado inerte, sucessivo e imbricado,<br />

um dependendo do outro.


269<br />

O estudante que elabora seu conhecimento por via natural do pensamento, que é<br />

a intuição acompanhada da abstração, quando se vê diante da única forma de expressão<br />

que é a escrita, sente que o ato de aprender na escola é enfadonho, apesar de necessário<br />

para cumprir as normas de aprovação do que a democracia chama de “cidadão”. É neste<br />

ponto que a “fachada” se apresenta, pois a escrita é criação de um texto com idéias<br />

próprias e os textos que muitos estudantes apresentam, quando apresentar, na maioria,<br />

não expressam seu pensamento, constituindo-se cópias do “já-dito” pelo livro ou pelo<br />

professor.<br />

Esperamos que nos entenda, caro leitor. Não é que estejamos discordando do ato<br />

de escrever, mas de sua exclusividade, sobretudo no Brasil, em que a forma de<br />

comunicação legítima é a língua do colonizador, a língua portuguesa.<br />

E por que as línguas dos povos de tradição civilizatória africana e aborígine não<br />

podem ser legitimadas também como línguas oficiais, visto que tanto o luso-europeu<br />

quanto o africano vieram de outros continentes?<br />

Existem várias respostas de cunho racista para tal, já mostramos que, nos<br />

estudos de Nina Rodrigues e Artur Ramos (apud LUZ, M.A.,1995), este dado<br />

corresponde ao aspecto político social da ideologia do racismo. Estes estudiosos,<br />

adeptos do etnocentrismo, colaboraram muito para “enquadrar” as referências do<br />

africano como inferiores culturalmente, logo língua, religião, referências ético-estéticas<br />

da linguagem civilizatória foram subjugadas.<br />

O poder decretou o português como língua materna e sua valorização dar-se-á,<br />

absolutamente, pela forma escrita, porém esta imposição tem como conseqüência o<br />

desinteresse do estudante pela escola, houve uma época que o motivo era a aula de<br />

português. Hoje admitimos, a partir do que vivemos no interior da escola pública, que o<br />

estudante, a cada dia, afasta-se cada vez mais da escola e a resposta disto encontra-se no<br />

que falou Daniela: “A escola pra mim é um estorvo”. Acreditamos que o motivo é o<br />

ensino condicionador da existência, que apenas se realiza pela presença obrigatória da<br />

escrita em língua portuguesa no padrão culto. Vejamos o que dizem os ecos da<br />

artebagaciana Gilmara Cruz:<br />

É como diz uma professora minha que a gente é máquina e estamos<br />

prontos para copiar. Então, a escola é o lugar de copiar, lá a gente<br />

transcreve tudo que eles falam. É a falta de oportunidade de criar, é<br />

sempre estar naquela mesmice, todo dia a mesma coisa, pois mesmo


270<br />

que seja para fazer uma atividade é sempre o mesmo assunto chato 55<br />

de um jeito diferente, mas é sempre a mesma coisa: olhar e escrever,<br />

olhar e escrever, olhar e escrever o tempo todo. (Gilmara, 2006).<br />

Os ecos denunciantes de Gilmara ao lado dos argumentos de Narcimária Luz<br />

reforçam nossa crítica ao uso de uma “língua natural” selecionada por critério de<br />

universalidade hegemônica, e também ditada por imposição oficial, como característica<br />

“materna”, vejamos:<br />

Ergue-se, aí, uma pedagogia do embranquecimento que, mediante a<br />

comunicação escrita, exigirá um corpo adaptado aos valores<br />

ocidentais e submisso a uma disciplina incessante, individualizando-o,<br />

docilizando-o e adestrando-o em função de um espaço e tempo<br />

fincados em paradigmas positivistas, produtivistas e ascéticos,<br />

organizadores do sistema social da modernidade. (LUZ, N., 2000,<br />

p.38).<br />

O que Narcimária Luz aborda reforça as nossas críticas à política unidimensional<br />

e uníssona da língua oficial do Brasil, dita “materna”. Em nosso entender, o português<br />

não é a língua materna na Bahia, materno vem de mãe, cujo significado é origem 56 , logo<br />

é referência de arkhé civilizatória.<br />

Nosso estudo da episteme africano-nagô percebe que a arkhé civilizatória baiana<br />

possui fortes influências africana e aborígine; aborígine porque corresponde à maior<br />

parte de povos de tradição civilizatória fincada no Brasil no século XV, e africana<br />

devido às referências históricas e socioeconômicas que a apontam como maioria<br />

populacional que contribuiu para a expansão da sociedade brasileira.<br />

Essas referências de participação ativa na dinâmica sociocultural brasileira<br />

encontram-se em escritos jesuíticos e literários do poeta Gregório de Matos datados do<br />

século XVII, nos estudos de João Reis (2003), Juana Elbein dos Santos (2002), de<br />

Marco Aurélio Luz, (1995) de Narcimária C. do P. Luz (2000) e nos estudos de Antônio<br />

Houaiss (1985), entre outros, quando descrevem a dinâmica etnocida eurocêntrica do<br />

tráfico de povos africanos às Américas.<br />

O trompe-l’oeil participa também da forma arquitetônica da língua do brasileiro,<br />

por exemplo, Antonio Houaiss (1985) oferece um denso panorama da história da língua<br />

portuguesa no Brasil. Por este estudo, pudemos perceber que a primeira tentativa de<br />

55<br />

O termo chato acompanha o gesto dos dois braços sendo arriados de vez, para demonstrar sinal de<br />

cansaço.<br />

56<br />

HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro Sales. Minidicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro,<br />

Objetiva, 2001, p. 282.


271<br />

homogeneidade da comunicação lingüística (língua enquanto fala) foi o esboço<br />

Gramática da língua mais usada na costa do Brasil; feito pelo Pe. José de Anchieta, no<br />

século XVI, Antônio Houaiss fala que nesta época existiam um contingente de 30.000<br />

negros e 30.000 brancos e mestiços, 1,5 milhão de aborígines.<br />

Mais adiante, século XVII, o número de africanos pula para 400 mil e foi<br />

crescendo. Acontecia o inverso com a comunalidade indígena que recuava para o<br />

interior, abrigando-se na mata (que dificultou o censo) enquanto os que ficaram nos<br />

aldeamentos foram exterminados.<br />

Contudo, foram os estudos de João Reis (2003) que nos deram maior clareza<br />

para afirmar a presença majoritária da arkhé africana na Bahia, notadamente em<br />

Salvador. Os dados por ele apresentados, registram 71,8% entre africanos e africanobrasileiros<br />

(negros nascidos no Brasil, libertos e não libertos) e 28, 2% de brancos (o<br />

autor faz uma ressalva sobre a cor branca).<br />

Uma contribuição para a compreensão do que se constitui língua materna na<br />

Bahia foi proporcionada pelos estudos da etnóloga Juana Elbein (2002) quando diz que<br />

a maioria do continente populacional baiano por volta de 1835 era de nagôs. Estes<br />

dados foram colhidos pela estudiosa sobre o patrimônio civilizatório africano-brasileiro<br />

no acervo do historiador Varnhagen, que identificou como sinal de comunicação e de<br />

interação da comunalidade africana de Salvador a língua nagô.<br />

Narcimária Luz nos apresenta dados bem próximos à nossa contemporaneidade<br />

colhidos dos estudos de Deoscóredes Maximiliano dos Santos e de Juana Elbein dos<br />

Santos:<br />

Há quarenta anos, a língua franca mais falada na Bahia era o Nagô<br />

(Santos & Santos, 1993, p. 43), envolvendo as comunidades-terreiros<br />

e fora delas, entre os descendentes de africanos, configurando-se dessa<br />

forma um patrimônio mítico litúrgico. A língua, quando dispersa e/ou<br />

perdida como meio cotidiano de comunicação, se refaz como<br />

linguagem a partir de uma rica cadeia de vocábulos, nomes, textos,<br />

cânticos, parábolas, gestos, etc., capazes de manter viva a tradição<br />

sócio-política, ética e estética dos nossos ancestrais africanos. (LUZ,<br />

N., 2000, p.102).<br />

Da análise destes estudos, intuímos que a língua materna é a forma verbalizada<br />

da linguagem civilizatória das vivências comunais do Cabula e de outros territórios<br />

políticos de Salvador. Esta língua antagoniza com a língua imposta pela ideologia<br />

neocolonial. Pelo que sabemos uma língua é viva e dinâmica quando não submetida aos


272<br />

artifícios de idealização humana e, portanto, se realiza do jeito que a comunicação do<br />

grupo social favorece ao seu acontecer. A língua oficial é um obstáculo ideológico.<br />

Esse obstáculo foi iniciado por José de Anchieta, o primeiro a tentar impor às<br />

comunalidades aborígines uma estrutura de língua padrão. Outra tentativa foi o decreto<br />

assinado pelo Marques de Pombal, em 1557, ao expulsar os jesuítas do Brasil. No bojo<br />

deste decreto, estavam as políticas coloniais da Coroa portuguesa na pedagogia, no<br />

conhecimento oficial e na forma de comunicação da língua. Neste ponto, entendemos<br />

que a determinação do português como língua oficial das instituições coloniais foi uma<br />

política seletiva de exclusão das alteridades aborígines e africanas.<br />

No Império, o Brasil passou por uma reforma a partir da fundação da Escola<br />

Normal, em 1836 (LUZ, 2000, p.49). A partir daí, o que Estado começou a impor os<br />

padrões de alfabetização universal ou letramento 57 , atualmente. Tal empenho veio<br />

mesmo “apertar o cerco” a partir da década de 70 com a expansão veloz do urbanismo<br />

em Salvador, que exigiu mudanças na política educacional. Já falamos sobre a Lei<br />

5.696/ 71, em que há artigos que legitimam o português como única língua falada no<br />

Brasil.<br />

Nesse período começa a “caça as bruxas”, aqueles considerados analfabetos. O<br />

Mobral, já nos referimos no Capítulo 1, foi um exemplo, a comunalidade africanobrasileira<br />

e a africano-indígena do Brasil que viviam nos centros urbanos sentiram-se<br />

obrigadas a “ingerir” uma língua que não herdou. Muitos, a exemplo da pesquisadora<br />

desta temática, tinham avós, tios, vizinhos, falando nagô, a alfabetização em outra<br />

língua os afastava das referências lingüísticas dos ancestrais.<br />

E não pára por aí, percebe-se que quando dizemos que o trompe-l’oeil não é uma<br />

forma oca apesar de ser uma realidade simulada. Tudo é feito para parecer real, sabemos<br />

que existe um esforço enorme para o brasileiro escrever de forma idealizada, imposta<br />

por uma língua padrão, legitimada para o uso absoluto no contexto escolar.<br />

Foi fazendo uma pequena análise do que os PCNs, – Parâmetros Curriculares<br />

Nacionaís propõem como ensino da língua que vimos, no “Referencial Curricular<br />

Nacional para Educação Infantil” (BRASIL, 1998), que não existe possibilidade de<br />

pensar as experiências educacionais da criança de zero a seis anos num território<br />

57 O termo letramento compõe a bacia semântica dos estudos lingüísticos aplicados à prática do uso da<br />

língua oficial. Não abrange os estudos de outras línguas que caracterizam a diversidade cultural, ele<br />

agrega a linguagem escrita e a leitura oral e escrita, mas em português. Digamos que é o mesmo que<br />

alfabetizar, renovado por outras estratégias consideradas pelo grupo que realiza estas políticas<br />

pedagógicas como mais próximas à realidade social do estudante.


273<br />

pluricultural, pois para esta fase nem especifica qual é a língua materna, pois já está<br />

subentendido nos seus objetivos o unidimensionamento lingüístico do que é proposto<br />

como: “A aprendizagem da linguagem oral e escrita”.<br />

E mais: “Aprender uma língua não é somente aprender as palavras, mas também<br />

seus significados culturais, e, como eles, modos pelos quais as pessoas do seu meio<br />

sociocultural entendem, interpretam e representam a realidade” (BRASIL, 1998, p.117).<br />

Logo, traduzindo para nosso contexto crítico de perspectiva mítico-poética africanobrasileira,<br />

digamos que é impossível uma experiência educacional respeitar eidos (a<br />

linguagem recriada pela criança) e ethos (o enunciado do contexto simbólico ancestral),<br />

portanto estamos diante do trompe-l’oeil escolar.<br />

Os Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Fundamental (BRASIL,<br />

1998, p.58) apresentam como área de conhecimento o movimento de “[...] abordagens<br />

mais ampla em direção à mais especificas e particulares”, para que as práticas de<br />

linguagem sejam uma ação reflexiva.<br />

Entretanto, o texto escrito e oral também só são reconhecidos como “língua<br />

natural” (SODRÉ, 1996) 58 se for na língua oficial. Então, o objetivo “ler e escrever<br />

conforme seus propósitos e demandas sociais” (BRASIL, 1998, p.59) refere-se aos<br />

interesses mercantis do neocolonizador, nunca da comunicação dos atos da fala própria<br />

da territorialidade humana africano-brasileira e aborígine brasileira.<br />

Os Parâmetros Curriculares do Ensino Médio (BRASIL, 1999) dão ênfase aos<br />

antagonismos que inviabilizam a liberdade existencial no cotidiano escolar: a<br />

interdisciplinaridade e a contextualização são as duas dinâmicas de composição da<br />

proposta educacional brasileira. Está claro que qualquer proposta curricular deve<br />

adequar-se a estas duas dinâmicas de implementação das práticas pedagógicas.<br />

Por que elas compõem o bojo do trompe-l’oeil escolar? Porque são os pilares<br />

dos projetos político-pedagógicos de educação monocultural positivista e amarras dos<br />

projetos político-pedagógicos de educação pluricultural. A contextualização apenas se<br />

realiza quando se conhece a realidade simbólica sociocultural da comunalidade que<br />

circunda a escola. No que se refere ao Cabula, muitos professores, sobretudo os<br />

evangélicos e católicos, não respeitam os modos e formas de comunicação e de<br />

interação social dos estudantes portadores dos códigos de valores africanos.<br />

58<br />

“Configurem ou não uma língua natural, os atos de produção de linguagem ou atos da fala [...]”<br />

(SODRÉ, 1996, p.11).


274<br />

É comum ouvir –“melhore esta linguagem, não é assim que um rapaz direito, ou<br />

moça direita, fala”. Existem situações do tipo –“Isto que você aprendeu onde você mora<br />

ignore, deixe lá”; “É aqui que tem o que você precisa aprender para ser gente”. Estes<br />

discursos negam a contextualização. Para nós, contextualizar é agregar valores do<br />

legado civilizatório ancestral africano e aborígine brasileiro, e não existe melhor e maior<br />

legado do que as manifestações de linguagem introjetadas durante os vínculos de<br />

sociabilidade.<br />

A interdisciplinaridade é uma farsa que nunca saiu do papel, não tem atores para<br />

representá-la devido à incongruência do cenário “casa grande e senzala”. Que o caro<br />

leitor nos acompanhe na seguinte reflexão: o tempo escolar nos cursos fundamental (a<br />

partir da 5 a série) e médio é demarcado pelos 50 minutos de aula no diurno e 45 minutos<br />

no noturno. Toda a dinâmica existencial é controlada por esta forma matematizada.<br />

Outra situação são as distribuições disciplinares por área 59 que demarcam o território<br />

rígido das Acs – Atividades de Coordenação.<br />

Cada área se reúne em um dia específico com horários desencontrados dos<br />

professores; por exemplo: dois professores trabalham com a 1 a série do ensino médio na<br />

disciplina Língua Portuguesa; enquanto um professor tem horário de coordenação nos<br />

primeiros horários, o outro, muitas vezes, está em sala de aula. Tratando-se de outros<br />

professores das outras disciplinas desta área denominada Linguagem e Códigos:<br />

Educação Física, Língua Estrangeira e Arte, muitas vezes o “cordão das vaidades” não<br />

permite o acolhimento das alteridades.<br />

Este é um grande exemplo do trompe-l’oeil escolar, feito para simular uma<br />

realidade educacional, por isso consiste na pedagogia da servidão colonial, pois que se<br />

presta a realizar tamanho absurdo, sobretudo acredita que seja verdade estar mergulhado<br />

totalmente nos códigos de servidão da feitoria instaurada na “senzala” escolar.<br />

É claro que existem os feitores, são aqueles que, por força das leis da simulação<br />

do real, entendem que tudo deve ser feito como foi ordenado. Contudo não é isto que<br />

está acontecendo na realidade cotidiana da escola, pois os estudantes foram os primeiros<br />

59 O currículo oficial é organizado para garantir sua universalidade; para tal, toma por base a estratégia de<br />

dicotomização do espaço-tempo e do conhecimento que o alicerça, seus eixos norteadores são:<br />

interdisciplinaridade e contextualização, contudo a ação disciplinar especifica-se em dois blocos de<br />

conveniências: Base Nacional Comum, reservada ao direito das disciplinas indicadas para formação geral<br />

da pessoa; Parte diversificada, indicada como preparação ao mundo do trabalho. Tudo isto consiste em<br />

uma estrutura formal fragmentada e oca, que é preenchida pelos saberes disciplinares divididos em três<br />

áreas do conhecimento oficial: Linguagem e Códigos; Ciência da Natureza e Matemática; Ciências<br />

Humanas. A todas as três áreas reserva-se o direito de uso de uma linguagem tecnológica ( “e suas<br />

tecnologias”) .


275<br />

a descobrir que tudo não passa de uma grande ilusão de ótica, o trompe-l’oeil está sendo<br />

demolido pelo estudante e caí aos pedaços como dejetos apodrecidos. Quanto aos<br />

feitores, muito angustiados, chamam isto de crise.<br />

Uma língua materna imposta é um grande exemplo do trompe-l’oeil. Pense bem,<br />

caro leitor, como pode a língua do português, língua ocidental, ser um sistema natural<br />

de comunicação como “reza” o currículo oficial, se a maioria populacional é<br />

descendente de africano e de aborígine brasileiro em Salvador?<br />

Outra situação também a ser refletida: como podem ser consideradas, apenas, as<br />

línguas ocidentais línguas de referência estrangeira de composição do currículo? Onde<br />

fica o estudo das línguas dos povos que mais colaboraram e colaboram para a<br />

composição do patrimônio material e imaterial do Brasil?<br />

Sendo assim, ao refletirmos sobre o trompe-l’oeil não estamos nos fixando no<br />

espaço territorial topográfico ou geográfico, estamos desocultando os elementos<br />

constituintes do unidimensionamento neocolonial que circulam no espaço urbanoindustrial<br />

e legitimam-se através do currículo oficial, “documento de identidade”<br />

(SILVA, 1999) ontem imposto ao colono brasileiro, hoje ao trabalhador brasileiro<br />

portador dos códigos de valores culturais africanos e aborígines.<br />

Figura 162 Figura 163 Figura 164<br />

Portão de entrada 2004 Pavilhão visto de fora. 2004 Pavilhão. Vendo o interior. 2004.<br />

Logo, o trompe-l’oeil não se refere, apenas, à arquitetura dos prédios escolares,<br />

cujo interior já mostramos, através de fotos, anteriormente. Refere-se ao controle<br />

completo para garantir a colonização Assim, a vigilância virtual que se desdobra para<br />

manter a prisão que reprime a criatividade, não é a “fachada” moderna do trompe-l’oeil<br />

urbanístico. Ela é real, mas inviável de acontecer com dinamismo porque se assegura,<br />

de forma rígida, repetitiva e mecânica. Tal como a vigilância foucaultiana, é o olhar<br />

punitivo do funcionário aos alunos e professores rebelados.<br />

É o que “reza” a cartilha, renovada pela última portaria da “casa grande” ditada<br />

pela direção; é a reclamação do aluno condicionado a exercícios estruturais de


276<br />

gramática e a questionários de história, geografia e literatura, lamentando os apelos da<br />

pedagogia de pesquisa prática, tudo isto dá um sentido de real ao trompe-l’oeil.<br />

Tem mais, a ação disciplinar virtual é a punição para quem resolveu tentar<br />

plantar a coexistência na escola, basta perceber a altura dos muros, o gradeamento dos<br />

pavilhões, a sirene, a prova, o teste, a caderneta de freqüência que pune o faltoso,<br />

estudante e professor, por fim, o isolamento da vida.<br />

As janelas altas das salas de aula são para que todos não vejam os eidos<br />

africano-brasileiros que se movimentam nos corpos perambulantes dos corredores onde<br />

ficam os pavilhões de aula isolados, por grades, da dinâmica existencial de outros<br />

pavilhões, enfim há uma vida carcerária orgânica expressando o cenário de prisão que<br />

caracteriza a “senzala”<br />

Por fim, o trompe-l’oeil tem a mesma estrutura da caverna criada por Platão em<br />

A República ( Livro, VII). Veja o cenário:<br />

Suponhamos uns homens acorrentados numa habitação subterrânea<br />

em forma de caverna, com uma entrada aberta para a luz que se<br />

estende a todo o comprimento dessa gruta. Estão lá dentro desde a<br />

infância, algemados de pernas e pescoços, de tal maneira que só lhes é<br />

dado permanecer no mesmo lugar e olhar em frente; são incapazes de<br />

voltar a cabeça, por causa dos grilhões; serve-lhe de iluminação um<br />

fogo que se queima ao longe, numa elevação, por detrás deles; entre a<br />

fogueira e os prisioneiros há um caminho ascendente, ao longo do<br />

qual se constitui um pequeno muro, no gênero dos tapumes que os<br />

homens dos “robertos” colocam diante do público, para mostrarem as<br />

suas habilidades por cima deles. (PLATÃO, 2006, p.210).<br />

Pode até ser semelhança, mas que a arquitetura dos dois espaços ideológicos tem<br />

algo em comum é inegável. Ressaltamos que Platão é um dos pilares, junto com<br />

Aristóteles, da ideologia social que engendrou, como forma de poder, o colonialismo e<br />

o escravismo, a desigualdade social e a implantação do Estado como forma de poder<br />

absoluto.<br />

Para nossa perspectiva – Artebagaço Odeart: ecos que entoam a mata africanobrasileira<br />

do Cabula –, se existem grilhões, existem formas também de rompê-los, mas<br />

para que isto venha a acontecer é preciso rasgar o papel que a “Razão de Estado”<br />

demarcou para o desempenho do serviçal professor ou professora.


3.4 SAINDO DO “LUGAR” DEMARCADO PARA O/A PROFESSOR/A<br />

277<br />

Anteriormente, falamos que a experiência Artebagaço pode ter tido um ponto de<br />

partida, o momento em que Janice Nicolin prestou concurso para o ingresso no sistema<br />

público escolar para regente de classe da disciplina Língua Portuguesa, em 1989. Foi,<br />

então, nomeada e designada, em 1990, para lecionar em uma unidade de ensino no<br />

Cabula.<br />

Ao contrário do que sempre vivenciou, desta feita houve a oportunidade de fazer<br />

uma escolha; lecionar em um colégio no lugar onde mora. Não porque tivesse algum<br />

privilégio, mas porque, na década de 90, a comunalidade do Cabula era considerada, por<br />

muitos professores que moravam em “áreas nobres”, como lugar perigoso devido ao<br />

olhar preconceituoso orientado pelo estereótipo de inferioridade do africano-brasileiro<br />

que compunha a população deste lugar.<br />

Ao chegar, foram-lhe designadas três turmas compostas por crianças da 5 a série<br />

do ensino fundamental, cada turma com 45 crianças na idade entre 11 a 14 anos. Logo<br />

no primeiro dia, ao entrar em classe, percebeu que mal respondiam à saudação de “bomdia”<br />

que lhes dava, em seguida observou que gestos atentos a acompanhavam, na<br />

espreita da mínima palavra que entoasse, observando-a atentamente tudo que dizia ou<br />

escrevia no quadro-de-giz, mas ao contrário do que a educadora esperava, esta atenção<br />

era apenas para desenvolver o ato de copiar.<br />

Quando lançava alguma pergunta sobre o que haviam copiado ficavam calados,<br />

qualquer questionamento não havia correspondência. Sendo assim, a educadora passou<br />

a questionar o que havia por trás daqueles gestos mecanizados, da falta de palavras que<br />

impedia a comunicação e emperrava a relação dialógica entre professora e alunos.<br />

A situação incomodava, entretanto, reconhecia que já esperava encontrar um<br />

quadro hostil de imposição de valores unidimensionais, porque esta foi uma situação<br />

que viveu desde criança na condição de aluna: a imposição do rito da escrita.<br />

Este foi um dos motivos que levou Janice Nicolin a escolher o curso de<br />

Graduação em Letras Vernáculas com Francês, na Universidade Federal da Bahia:<br />

encontrar formas de superar os obstáculos criados pela imposição da escrita. A intenção<br />

de Janice não era entender melhor a língua do colonizador, não foi por reconhecê-la<br />

como única língua oficial, na realidade era uma tática de coexistência, pois acreditava<br />

que, apropriando-se no mundo da palavra escrita, poderia ser entendida em contextos<br />

sociais ancorados por esta estética de valores éticos neocoloniais.


278<br />

Contudo, o comportamento das crianças de 5ª série lhe era angustiante, por isso<br />

resolveu sair do “lugar demarcado ao professor” 60 , fazê-los sentar em círculo, onde<br />

todos juntos, alunos e professores, se olhavam como na sala não cabia um único círculo,<br />

foram feitos dois e começou-se a realizar os jogos cênicos: eram sucessivos gestos<br />

naturais compondo uma situação, proposta inicialmente por Janice, mas, um mês<br />

depois, sempre alguma criança iniciava o jogo. Bem, o ano letivo acabou, e houve sua<br />

transferência para o turno vespertino.<br />

No colégio em questão, o Ensino Fundamental era no turno matutino e o Ensino<br />

Médio no turno vespertino e noturno. Logo Janice passou a conviver com estudantes<br />

adolescentes, jovens e adultos do ensino médio, contudo, desta vez, pôde escolher as<br />

turmas e a série para trabalhar: foram três turmas iniciais do curso de Formação do<br />

Educador com habilitação no ensino médio e duas no segundo no mesmo curso, para<br />

lecionar a disciplina Língua e Literatura.<br />

Cada turma tinha 35 a 40 pessoas em média, do sexo feminino; das três turmas<br />

do primeiro ano, uma era formada por pessoas que tinham idade acima de 35 anos, já as<br />

duas turmas do segundo ano, uma era composta de alunas de 16 a 18 anos e, de outra,<br />

havia pessoas com idade acima de 35 anos. Apesar da distância de idade em relação à<br />

maioria das crianças de 5 a série, Janice encontrou um cenário muito próximo, o<br />

silenciamento se constituía no ponto em comum entre eles, pois as estudantes do curso<br />

de Magistério também estavam dispostas apenas a ver, ouvir e copiar.<br />

Neste ponto, a educadora investiu no uso de jogos, porém as projeções<br />

pedagógicas mudavam o conteúdo das proposições. Por exemplo, com as crianças, os<br />

jogos estavam voltados para a reflexão sobre a vivência deles como crianças, eram<br />

muitos mais desdobrados na forma de brincadeiras que eles faziam no bairro. Estas<br />

brincadeiras davam espaço para iniciar o contar história, que, na realidade, era o tema<br />

do texto a ser lido depois dos jogos.<br />

As atividades feitas com as estudantes do curso de Magistério eram diferentes:<br />

os jogos eram cenários recriados de realidade vivida por elas mesmas na própria escola,<br />

assumindo várias funções, já, em outros momentos, eram cenários recriados na<br />

comunalidade onde moravam, assumindo as funções de liderança do lugar.<br />

60 Este lugar é um dos aparatos reais do trompe-l’oeil escolar que asseguram a simulação pedagógica; é<br />

aquele espaço em frente ao quadro-de-giz, com uma carteira e cadeira que é exclusivo ao uso do<br />

professor.


279<br />

No início, Janice fez muitas cenas para impulsionar a espontaneidade das<br />

estudantes, e seu corpo, ao mesmo tempo, foi linguagem e território, sua intenção era<br />

promover o acordar do corpo, a motivação que faz brotar a existência corporal limitada<br />

ao ato mecânico de copiar. Mas não havia correspondência, as estudantes ignoravam o<br />

convite ao “dizer”, continuavam emudecidas.<br />

Com três meses de trabalho, uma das três turmas do primeiro ano abriu espaço<br />

para negociar a elaboração do saber pelo poder de fala. Foi assim que começaram as<br />

iniciativas Pré-Artebagaço, que não tinha ainda nome Artebagaço. Eram apenas<br />

projeções pedagógicas de sala de aula, voltadas para motivar a liberdade de “expressão<br />

oral” (uso livre do discurso próprio) da diferença individual, eram meios para quebrar as<br />

amarras do silenciamento pela improvisação cênica:<br />

A finalidade do jogo teatral na educação escolar é o crescimento<br />

pessoal e desenvolvimento cultural dos jogadores por meio do<br />

domínio da comunicação e do uso interativo da linguagem teatral,<br />

numa perspectiva da improvisação teatral, ou seja, a comunicação<br />

emerge da espontaneidade das interações entre os sujeitos engajados<br />

na solução cênica de um problema de atuação. (JOPIASSU, 2001,<br />

p.20).<br />

De fato, o jogo é uma excelente ferramenta de quebra de grilhões. Entre 1991 e<br />

1993, Janice e as estudantes fizeram juntas várias recriações de linguagem constituídas<br />

por pequenas cenas extraídas da realidade vivida, relacionadas aos conteúdos literários<br />

da disciplina.<br />

Dessas vivências, surgiram os jogos cênicos pedagógicos: um conjunto de<br />

recriações de linguagens, eidos, que quebravam o ritmo dos corpos obedientes e<br />

subservientes às condutas pedagógicas de mecanização existencial e provocavam a<br />

espontaneidade do potencial criativo que, por sua vez, libertado das amarras verbais,<br />

alicerces do silenciamento, passavam a compor o cenário de afirmação da diferença<br />

pessoal.<br />

Em 1993, o processo de afirmação individual se expande para uma estruturação<br />

social, ainda que frágil, uma proposição para realizar dramatizações. Neste ponto, é<br />

interessante perceber “[...] que o sentido positivo de liberdade está associado a relações<br />

de poder. O direito à distribuição da cultura é em parte dependente de condições<br />

econômicas e políticas [...](APPLE, 1999, p.102). A liberdade motivou estas estudantes<br />

à busca do questionamento do conhecimento escolar, de maneira que os


280<br />

desdobramentos metodológicos foram “regulando o conhecimento oficial” (APPLE,<br />

1999, p.97) e criando uma ruptura com a tradição escolar.<br />

Por ocasião, os desdobramentos eram com cinco turmas de Magistério, duas<br />

eram do terceiro ano, justamente aquelas turmas com as quais o trabalho foi iniciado em<br />

1991; as outras três eram turmas novas do segundo ano. Apenas uma turma do terceiro<br />

ano, porém, manifestou interesse em realizar uma encenação teatral.<br />

As demais ficaram com os jogos cênicos pedagógicos, nos domínios restritos da<br />

sala de aula, mesmo assim, “o controle simbólico” (APPLE, 1999, p.101) das políticas<br />

públicas educacionais passava a perder espaço para novas atividades mediadas pelos<br />

eidos africanos.<br />

Neste ínterim, surgem dois obstáculos que emperraram nosso sonho: a falta de<br />

“espaço” no colégio para realizar ensaios e a necessidade de alguém com conhecimento<br />

da linguagem técnica de dramatização, sobretudo de montagem cênica, mas estes<br />

obstáculos foram ultrapassados com uma só “flechada”.<br />

Este alvo foi o posicionamento direto de Diego Nicolin, que passa a integrar<br />

nossas atividades assumindo a coordenação das atividades de montagem num espaço<br />

fora dos domínios territoriais do colégio. Ressaltamos que Diego, desde o início, sempre<br />

esteve ao nosso lado, mas seu apoio realizava-se à distância, através de em que surgiam<br />

sugestões, mas não havia vivência prática com as estudantes.<br />

Diego assume os trabalhos da preparo à montagem dramática, formando, justo<br />

com Janice e as 35 estudantes dessa turma de Magistério, o Grupo Nós, que não era um<br />

nome, era uma forma de tratamento para diferenciar o grupo de trabalhos com<br />

dramatização do grupo que expandia as iniciativas com jogos cênicos pedagógicos em<br />

sala de aula, para composição da encenação teatral didática.<br />

O outro obstáculo a ser superado foi o lugar dos ensaios que se passou a fazer<br />

no Curso Jansen, um curso de Redação e Matemática, propriedade de Janice e Diego na<br />

Estrada das Barreiras no Cabula. Esclarecemos que Diego era marido de Janice e este<br />

curso foi uma das formas que encontraram para nutrir e encorajar jovens deste lugar que<br />

terminavam o ensino médio na escola pública e não se sentiam seguros para prestar<br />

concursos públicos e vestibulares. Quanto ao tempo dos ensaios, ficou definido que<br />

seriam os sábados e em possíveis dias em final de tarde, após as aulas no colégio, pois o<br />

curso era próximo.<br />

Com essa organização, montamos a encenação “Emília no país da gramática”.<br />

Por que essa abordagem tão radical diante do que o Grupo Artebagaço Odeart


281<br />

desenvolve hoje? Há duas respostas para esta indagação: a primeira reside no dado de<br />

que o escritor José Bento Monteiro Lobato sempre foi alvo das críticas de Janice<br />

Nicolin, quanto à divulgação dos valores culturais da arkhé civilizatória neocolonial que<br />

o próprio Lobato resguarda em sua vasta obra etnocêntrica, crítica a sua defesa por uma<br />

língua nacional brasileira ancorada na comunicação e interação da aristocracia lusoportuguesa<br />

do Brasil, aliás é neto do Visconde de Tremembé e fora educado por este.<br />

“Emília no país da gramática” não foi a peça didática que muitos professores<br />

apreciaram como diversão na escola, também não foi algo para mudar a rotina escolar<br />

como pensam os gestores etnocêntricos. Era uma crítica ao ensino e à língua oficial<br />

imposta por grupos dominantes neocoloniais, contudo na ocasião realizávamos a luta,<br />

mas desconhecíamos as bases políticas dos fundamentos que a alicerçava.<br />

Em termos de técnicas teatrais, Janice usou o que herdara das vivências de atriz<br />

dirigida por Seu Mané Dedé e por Michele Del Vecchio, sua colega do curso de<br />

graduação em Letras na Ufba e também diretora teatral. Diego trazia a experiência do<br />

teatro amador no movimento estudantil na Itália na década de 70, de maneira que assim<br />

diz sobre a vivência durante a montagem de Emília:<br />

Nossa inexperiência era total e absoluta, não tínhamos nenhuma base<br />

cênica, nem nada, o que a gente tinha era garra, vontade de fazer, que<br />

acho que seja a coisa mais “importante”. E ali pegamos um texto, o<br />

adaptamos, remodelamos, usamos mais ou menos personagens que<br />

Monteiro Lobato usou, criamos novos e tiramos velhos [...] (Diego<br />

Nicolin, 2004).<br />

Foram quatro meses de ininterruptos ensaios até o dia da estréia em setembro de<br />

1993. Neste intervalo de tempo, muitas águas rolaram, por exemplo, as críticas ao uso<br />

das aulas para ensaio no lugar das célebres aulas tecnicistas, que foram levadas por<br />

poucas alunas, à direção e aos demais professores. Estes se amparavam nestas queixas<br />

para criarem o cenário “bagaço” que julgavam ser arte e onde começavam a brotar os<br />

primeiros sinais de liberdade do Grupo Nós.<br />

O que foi feito para conciliar tal situação? Neste momento, lembramos da<br />

dinâmica da “porteira pra dentro e da porteira pra fora” de Mãe Senhora, Iyanassô<br />

Oxum Miuwa, mãe de Mestre Didi Axipá. Era preciso saber criar linguagens de atuação<br />

no nomos escolar sem perder a identidade guerreira africano-brasileira. Deste modo,<br />

elaborou-se o espaço-tempo curricular do Grupo Nós na escola: das três aulas de Língua<br />

Portuguesa e Literatura, em uma, fazia-se leitura corrida dos textos para a encenação


282<br />

didática, leitura interpretativa e cênica; nas outras duas, as aulas participativas<br />

abordavam temas do Vestibular, que era preocupação das estudantes, porém cominava<br />

com jogos cênicos de recriação da realidade atualizada extraída das análises do<br />

conteúdo de literatura.<br />

Praticamente a montagem de “Emília no país da gramática” foi no curso<br />

Jansen, pois na escola não tinha como realizar os jogos de expressão corporal<br />

promotores do desrecalque ideológico e impulsionadores da espontaneidade criativa.<br />

No espaço do Curso, podiam gritar, pular, correr, ri, chorar, sim, às vezes<br />

choravam sem saber o porquê. Logo o grupo acudia e resolvia tudo sem se preocupar<br />

que a ação era terapêutica, pois não era, assim pensamos, de maneira que, com o corpo e<br />

a mente livres, era possível dar vida aos personagens das cenas com humor e crítico.<br />

Esta é uma dinâmica que se assemelha ao que sugere Iyanassô Oxum Miuwa, a saber, é<br />

reconhecer que linguagem dinamiza as ações africano-brasileira dentro e fora da “mata<br />

africano-brasileira”.<br />

A encenação didática ficou pronta para apresentação quatro meses depois, em<br />

setembro de 1993, o que ocorreu durante a SEMANOL – Semana da Normalista,<br />

promoção e realização do Colégio. Nesse dia, estavam presentes representantes do MEC<br />

– Ministério de Educação, da UNEB – Universidade do Estado da Bahia, da SEC –<br />

Secretaria de Educação e Cultura do Estado da Bahia e o Adido Cultural da Embaixada<br />

Francesa no Brasil, que compunham o corpo técnico do Projeto Pró-Leitura que<br />

dinamizava ações de incentivo à leitura, sobretudo a ênfase na comunicação oral.<br />

Acontece que o Grupo Nós não fazia parte desse grupo de estudo porque as<br />

normas legais o excluíram através do critério de carga horária da professora Janice<br />

Nicolin que trabalhava apenas 20 horas na escola 61 . No final, durante uma roda<br />

pedagógica em que todos falavam como foram feitos seus trabalhos, perceberam a<br />

riqueza que existia no trabalho e convidaram a professora para participar das reuniões<br />

técnicas, inclusive em Minas Gerais (em Belo Horizonte) e no Rio Grande do Norte (em<br />

Natal), para realizar oficinas com os jogos cênicos.<br />

Esse convite rendeu inimizades na escola, professores descontes questionavam a<br />

validade legal da escolha, pois eram eles que participavam do Programa há dois anos e<br />

não a professora Janice Nicolin que fora escolhida. Agora vejamos algumas cenas de<br />

“Emília no país da gramática”:<br />

61 O trompe-l’oeil. Contabilizando o tempo de preparo das estudantes no curso Jansen, ultrapassava as 40<br />

horas, mas este tempo é invisível aos olhos das lei curriculares.


Figura 165 Figura 166 Figura 167 Figura 168<br />

Prólogo. A voz autoral. 1993. Abertura de Emília no país. O respeito a ancianidade. A alteridade.<br />

Figura 169 Figura 170 Figura 171<br />

Epílogo. A voz autoral encerra a peça. O elenco composto de 25 pessoas. Outra parte do elenco. 1993.<br />

283<br />

Essa encenação representou, para Janice e Diego Nicolin, a sensação de poder<br />

realizar uma dinâmica estética Odara, que se trata da dimensão estética de “pulsão de<br />

comunalidade” (LUZ, N., 2003, p.67), como já dito, constituído de elementos plenos do<br />

que é bom para o crescimento humano, do belo que há em cada um de nós e do útil,<br />

porque é uma atividade para compreender o mundo e não um comando curricular como<br />

o vestibular.<br />

Digamos que, com o olhar de hoje inserido no contexto de pesquisa orientada<br />

pela episteme africano-nagô, seria o sentido de “[...] compreensão sobre os princípios<br />

seminais – arkhé, eidos e ethos – estruturadores da comunalidade [...]” (LUZ, N., 2003,<br />

p.67), proveniente da luta contra a hostilidade à alteridade africana no Brasil fincada por<br />

nossos ancestrais africanos e reatualizada por autoridades litúrgicas como Mestre Didi<br />

Axipá, Deoscóredes Maximiliano dos Santos, que alimenta o legado ético-estético<br />

sagrado das Américas.<br />

Em 1994, com a colação de grau das estudantes do elenco, compõe-se um novo<br />

grupo de montagem. As três turmas do segundo ano de Magistério de 1993 foram<br />

reduzidas a duas turmas do terceiro ano, e todas as duas manifestaram interesse em<br />

fazer a montagem cênica devido ao espaço de afirmação da alteridade própria criado<br />

pelas estudantes que concluíram o curso em 1993.<br />

No entanto, a estrutura se tornou mais complexa, pois antes era uma turma com<br />

35 estudantes, em termos de elenco eram 25, as demais trabalhavam na produção.<br />

Agora, com 80 pessoas, a dinâmica da “porteira pra dentro e da porteira pra fora” de


284<br />

Mãe Senhora, Iyanassô Oxum Miuwa, era bem mais presente. Começamos a ampliar os<br />

acordos, eles eram mais práticos e diretos.<br />

Outro problema surgiu: o espaço no curso não era suficiente. Neste ponto, mais<br />

uma vez Diego e Janice entraram em acordo e cederam o espaço da cobertura da casa,<br />

que no Cabula africano-brasileiro se denomina de laje. Pois, na laje da casa dos dois, a<br />

segunda turma do Grupo Nós realizou suas iniciativas pedagógicas.<br />

Assim, com duas turmas e o mesmo espetáculo didático, a invisibilidade do<br />

espaço-tempo concreto matematizado era muito maior. Mais uma vez, o diálogo<br />

favoreceu o consenso, embora com constantes conflitos mediados pela linguagem<br />

mítico-poética Odara que propiciou a recriação de outra realidade pedagógica, cujo<br />

conhecimento se dá<br />

[...] apenas por ser aprendido mediante as relações interpessoais,<br />

incorporado em situação iniciática, possibilitando a introjecção de<br />

emoção e sentimentos, que se atualizam e se elaboram por meio de<br />

diferentes formas estéticas. (LUZ, N., 2003, p.72).<br />

O sentido de iniciática se deve ao fato de que tanto para quem aprende quanto<br />

para quem transmite o saber, neste contexto pedagógico de dinâmica Odara, é despojado<br />

ou se despoja da prepotência e arrogância positivista. Em cena, protagoniza a troca de<br />

experiência, o respeito aos valores da cultura desconhecida e predominante.<br />

Com isso, compõe-se uma montagem cênica livre das técnicas pré-ditadas, mas<br />

a força mística dinâmica alimenta a necessidade de realizar o sonho, a montagem da<br />

encenação didática. Todos tinham o mesmo desejo: sonhar a experiência de conhecer<br />

um ao outro, em decorrência, temos a realização deste sonho, a encenação didática do<br />

Grupo Nós: “Eu concordo”. E você?”.<br />

Vejamos como Cíntia Nascimento Santos, atualmente estudante de pedagogia,<br />

professora da educação infantil há 12 anos, entoa sobre estes momentos:<br />

Eu fui aluna do curso de Magistério da turma que terminou em 94, foi<br />

aí que conheci professora Janice e o trabalho dela era uma nova<br />

forma de apresentação na escola com teatro. E não foi só pra mim,<br />

mas pra todas as meninas, foi uma ocasião especial na vida, saímos<br />

do contexto sala de aula partindo para o teatro. Foi realmente um<br />

desenvolvimento em nossas vidas, principalmente pra trabalhar com<br />

público. (Cíntia, 2006).


285<br />

A quebra do ritmo mecânico, realmente, torna gratificante o sentido de ensinar e<br />

aprender. Continuemos com os ecos de Cíntia:<br />

Os ensaios eram feitos na casa da professora, aos sábados, reuníamos<br />

a turma toda. Isto não era visto com bons olhos pela coordenação e a<br />

direção. Naquele momento achei que foi uma forma de repressão<br />

contra essa nova forma de apresentação e nova didática para a gente.<br />

Sentia este obstáculo por parte da supervisão, porque não aceitaram<br />

logo, não davam apoio, então a gente só encontrou apoio de Janice e<br />

de..., como era o nome dele mesmo? [atrita dois dedos expressando<br />

busca de lembranças aquietadas na mente] Diego. Diego também foi<br />

muito importante pra gente, fazendo caras e bocas nos ensinou a<br />

aprender”. (Cíntia, 2006).<br />

Cíntia relembra das apresentações e a contribuição desta linguagem para sua<br />

afirmação existencial e de suas colegas.<br />

E acrescenta:<br />

Foi uma fase muito boa, esta foi uma fase de conhecimento mesmo,<br />

foram muitas descobertas. A gente saía, fez apresentação em hotel 62 e<br />

a turma gostava porque era coisa nova e a gente queria a busca do<br />

novo. Eu acho que a se desenvolveu bem, aprendeu a..., acredito que<br />

na minha turma 63 foi a primeira experiência com teatro, que não tinha<br />

ninguém de grupo de teatro e foi visto como muito prazer por todo<br />

mundo que estava fazendo parte do projeto. (Cíntia, 2006).<br />

Quando a gente se reencontra, pessoas daquela turma, daquele<br />

tempo, daquele período, sempre a gente fala do teatro, marcou mesmo<br />

a nossa vida. Basicamente, o teatro foi o que ficou na nossa memória<br />

mesmo. Eu me encontro com Rose, com Josélia, com Renilda, Andréia<br />

e a gente diz:–“E aquelas peças, meninas?” A gente lembra porque<br />

nossa turma ficou com aquele texto, aquela parte do professor, é<br />

assim: –“Você é perfeito, você não tem defeito / Você é um pro-fessor”.<br />

Então, a gente sempre fala sobre isto. Quando me encontro com<br />

Jocélia sempre falo esta palavra para ela: –“Você é perfeita” e ela<br />

fica –“Você não tem defeito. Você é um... Pro-fes-sor” (Cíntia, 2006)<br />

Contudo Cíntia lembra que houve resistência à pedagogia com jogos cênicos:<br />

O novo assusta muito a gente. Havia um comentário: –“Esta<br />

professora quer fazer, quer botar esta nova forma de aprender, a<br />

gente já está copiando há tempo”. É copiar e gravar [Faz gestos de<br />

62 Encontro Regional do Projeto Pró-Leitura, em 1994.<br />

63 Faixa de idade entre 17 a 19 anos, no terceiro ano de Magistério.


286<br />

quem fala no pé de ouvido]. –“E..., isto não vaí dar certo”. E era<br />

aquela agonia, até a gente mesmo teve resistência por nossa parte,<br />

mas depois dos ensaios, depois com o passar do tempo, a gente foi se<br />

desenvolvendo com a peça. Hoje, agora, neste momento em que estou<br />

vivendo é que estou vendo que aquela era a forma de ensinar, era a<br />

convivência com a prática. (Cíntia, 2006).<br />

Relaciona também o que aprendeu com a vida profissional e pessoal:<br />

Eu ensino desde que me formei, são 12 anos em sala de aula<br />

trabalhando com educação infantil. Eu acredito que o teatro é uma<br />

forma da gente pode r se expressar na sala de aula. Eu conheci vários<br />

valores naquela época, acredito que foi uma formação muito boa<br />

para aquela turma de 94 de Colégio Roberto Santos [..]. Hoje com<br />

minha vida acadêmica no curso de Pedagogia, vemos que temos mais<br />

liberdade, podemos nos expressar, podemos criar, somos capazes,<br />

somos criativos, somos pessoas que podem produzir. Antes não<br />

tínhamos esta liberdade, antes precisávamos decorar para passar o<br />

que tinha decorado. Hoje não, a gente pode estar buscando,<br />

completando o que a gente já tem de pesquisa da nossa opinião, o que<br />

antes não era possível. Eu me lembro que na disciplina de Literatura<br />

que podia se expressar criar, podia produzir junto com a professora.<br />

Hoje, no curso de Pedagogia, nós podemos ver que estamos livres, a<br />

gente busca o que a gente quer porque na Faculdade eles dão a base<br />

e a gente tem que procurar, pesquisar. (Cíntia, 2006).<br />

Por fim, Cíntia entoa sua crítica de afirmação da pedagogia dos jogos cênicos<br />

composta pelo Grupo Nós:<br />

Eu acredito que foi a forma da professora trabalhar, realmente, ela<br />

saiu do papel dela de professora e veio ficar do nosso lado,<br />

aprendendo junto com a gente, também mostrando a gente, como<br />

agora eu sei como pesquisar. Esta busca estou entendendo agora com<br />

o curso de Pedagogia porque antes não, eu achava que era a<br />

introdução de uma nova doutrina que não ia pra lugar algum, na<br />

realidade, ia ser uma peça da escola, mas realmente foi um grande<br />

trabalho que surtiu efeito. (Cíntia, 2006).<br />

“Eu concordo, E você?” Foi a encenação com que transcendemos o espaço de<br />

apresentação que era apenas no colégio, passamos então a apresentar além dos muros do<br />

colégio. Esta foi a primeira recriação teatral didática que apontaria traços que, no futuro,<br />

iriam marcar o estilo Artebagaço, que é constituído de pequenos quadros, com<br />

predominância de monólogos, no quais o ator ou poucos atores simbolizam uma<br />

projeção existencial expressando seu entendimento crítico da realidade social urbanoindustrial<br />

e escolar.


287<br />

“Eu concordo. E você?” traz um texto de Janice e Diego Nicolin com este<br />

mesmo nome, mais três textos de Giorgio Gaber, um militante italiano que lutava 64<br />

contra as desigualdades sociais, digamos assim. Era um cantor e compositor de<br />

preferência de Diego Nicolin, que traduziu os textos com a revisão de Janice. Ambos<br />

acreditam que os conhecimentos da crítica deste autor sejam referências reflexivas sobre<br />

as desigualdades sociais e a exclusão do mundo ocidental para o Grupo Nós e o Grupo<br />

Artebagaço.<br />

Entendemos que a luta de Giorgio Gaber expressa em seus textos o caracteriza<br />

uma pessoa engajada no movimento socioexistencial, daí o nosso apego aos seus textos.<br />

Vejamos algumas imagens de Eu concordo. E você.<br />

Figura 172 Figura 173 Figura 174 Figura 175<br />

Texto, professor. 1994. Carlo Martelo. A donzela e o rei O menestrel. 1994. A corrente. 65<br />

Figura 176 Figura 177<br />

Segundo ato. Peça. “Eu concordo e Você?” O público do Grupo Nós 1994. 66<br />

Com as turmas de 1995, sentimos necessidade de renovação da estrutura social,<br />

os jogos cênicos pedagógicos não conseguiam mais quebrar o silenciamento das novas<br />

estudantes que chegavam com corpos mais docilizados. A disciplina mecanicista da<br />

64 Faleceu, aproximadamente, em 2003.<br />

65 O conjunto de texto forma o primeiro de “Eu concordo. E você?” O primeiro é um quadro cênico com<br />

música, dança e declamação, que apresenta a crítica à visão etnocêntrica social do ser humano professor.<br />

O segundo é Carlo Martelo, é a visão crítica da sociedade européia medieval, sobretudo a dissimulação<br />

ética-moral dos reis católicos que vão às Cruzadas. Neste, tem três personagens desmascarados em sua<br />

moral hipócrita: o rei, a donzela e o menestrel satírico. A foto seguinte é quem conta a história de maldizer.<br />

Por fim, tem a brincadeira da corrente, que é uma crítica ao sistema político-eleitoral, enfocando o papel<br />

do candidato desde as campanhas até depois que assume o mandato. A crítica é ao regime democrático.<br />

66 Segundo ato. Inicia-se com a dramatização da peça de 30 minutos que deu origem à encenação; ela<br />

fecha, no final , com o público agradecendo.


288<br />

pedagogia da servidão neocolonial, imposta desde o pré-escolar até o final do ensino<br />

fundamental, criou camadas de rigidez corporal.<br />

Resolvemos dar uma parada, nas atividades com o Grupo Nós, porque<br />

precisávamos reelaborar novas formas e modos de recriar cenários da luta pela<br />

afirmação da diferença existencial. Sentíamos que estava na hora de realizarmos uma<br />

profunda reflexão sobre nossa dinâmica artístico-pedagógica, pois não queríamos<br />

transformar o que escolhemos como estética política de realização da liberdade humana<br />

em grilhões. “E o teatro é a forma artística mais perfeita de coerção. Que o diga<br />

Aristóteles.” (BOAL, 1991, P.53). Acreditamos que muitas pessoas detestam teatro<br />

porque a ideologia dramática é o que imediatamente sustenta a linguagem do teatro<br />

pedagógico realizado por professores, que desconhecem completamente a qualidade<br />

estética teatral.<br />

E não estamos falando da abordagem teatral no campo disciplinar quando o<br />

professor de teatro atua como um transmissor de técnicas mecânicas, estáticas, retiradas<br />

de algum manual de técnicas rígidas teatrais.<br />

Estamos falando das práticas de sustentação do trompe-l’oeil educacional, que<br />

constituem o “espetáculo pedagógico”, em produções desprovidas de experiência<br />

estética, do próprio conhecimento vivido que será mediado pela linguagem teatral.<br />

Neste caso, o conhecimento é retirado de um livro didático com reducionismos, logo<br />

elaboram cenários de distorções tanto da linguagem artística quando do conhecimento a<br />

ser transmitido por esta.<br />

Isso ocorre porque é quase impossível perceber, em qualquer unidade escolar,<br />

um educador com formação acadêmica em teatro. Quando há, tiram-lhe todos os<br />

espaços de poder de realização desta linguagem para que a unidade escolar possa<br />

realizar o “espetáculo pedagógico”, dito atividades com teatro, constituído de tons<br />

destoantes que desqualificam totalmente esta arte.<br />

Contudo não é colocando um professor graduado em teatro que se resolverá a<br />

questão do descaso, do desprestígio, do uso do teatro como propósito terapêutico ou<br />

como cenário de lazer e diversão, desde quando “[a] inclusão do teatro como<br />

componente curricular da educação formal de crianças, jovens e adultos nas principais<br />

sociedades ocidentais deu-se com o processo de escolarização em massa” (JAPIASSU,<br />

2001, p.20). É este sentido de massificar tudo que constitui educação que o estudante<br />

aprende na escola.


289<br />

Dessa forma, a linguagem teatral também passa por esta desvalorização e<br />

descrédito por parte do estudante, que, além de não querer participar de atividades que<br />

respeitam esta linguagem, também criam preconceitos sobre a própria arte.<br />

É bom pensar que o ethos escolar, sobretudo, encontra na atividade teatral<br />

formas de realizar uma educação com fins terapêuticos, coercitivos tal como na<br />

proposta de Aristóteles. Consistem em colocar, em cena, diferentes ethos no mesmo<br />

palco, desde que o ethos do personagem seja inferior ao da sociedade oficial. Com isto,<br />

o estudante-ator não consegue estabelecer uma relação de proximidade do seu ethos (o<br />

mesmo do personagem) com o da sociedade oficial, e entra em agonia, desenvolvendo<br />

sentimento de culpa, recalca-se e por fim desqualifica o que lhe é próprio, sua cultura.<br />

Com esse princípio, que rege muitos “espetáculos pedagógicos”, sobretudo na<br />

educação infantil, a ação é corretiva e disciplinar, e também terapêutica, feita para<br />

regulação dos desviantes.<br />

Esse é o princípio aristotélico cujo modelo muitos professores, sem saber,<br />

acabam por reproduzir e multiplicar. Tudo isto acontece por falta da pesquisa sobre a<br />

linguagem do teatro que ajude a criança a conhecer o mundo que o circunda por meio da<br />

imaginação criativa. Como podemos ver na imagem de uma criança de três anos em<br />

completa liberdade em casa, dramatizando seu mundo:<br />

Figura 178 Figura 179 Figura 180<br />

O balde vira um chapéu. 1999. O chapéu de Mágico é seu mundo. A mala vira uma cama para dormir. 67<br />

Na cena, adultos, mãe e pai, observam a criança. Nesta situação, geralmente os<br />

adultos esperam ser convidados pela criança para participar do jogo. Já a criança, depois<br />

de um tempo de elaboração 68 junto com objetos, terra, animais, plantas, árvores, mar,<br />

rio, lago e cachoeira, fogo, ou seja, todas as imagens que completam sua relação com o<br />

67<br />

Ivo Leonardo aos três para quatro anos. Hoje compõe o elenco do Artebagaço. É filho de Janice e<br />

Diego Nicolin.<br />

68<br />

Esta abordagem é fruto do trabalho realizado por Janice Nicolin com jogos dramáticos e teatrais e na<br />

educação infantil. A criança é seu filho, que caracteriza o estudo de uma criança com liberdade de criar<br />

em casa, comparada com as crianças na pré-escola.


290<br />

mundo invisível, seu órun, na faixa etária de três a seis anos, talvez convide o adulto a<br />

participar do seu cenário.<br />

Sem a observação “desde dentro para desde fora”, os aspectos socioculturais da<br />

criança não podem ser respeitados pelo educador. Durante a cena, a linguagem dos<br />

movimentos, a forma de organizar o espaço-tempo, disposição dos objetos, a<br />

comunicação que realiza com o invisível, que nem sempre é vocalizada em tons altos, às<br />

vezes nem falam, mas gesticulam, usam olhares, respiração diversificada, tudo completa<br />

o jogo dramático da educação infantil. Ele é natural e dinâmico e precisa ser entendido<br />

como uma linguagem da pedagogia infantil característica da educação pluricultural.<br />

E o que há de fato na escola infantil? O “espetáculo dramático didático”: um<br />

texto com tom, nuance e conteúdo do ethos ideológico ocidental, cujo herói é alguém<br />

que comete a “falha trágica”, algo que realiza por desconhecer as regras morais do<br />

ambiente idealizado.<br />

Este é o teatro que os estudantes conhecem na escola e por isso repudiam esta<br />

forma de arte, Cíntia diz: “[...] depois dos ensaios passei a gostar”. É nossa<br />

metodologia de “lição do terreiro” (SODRÉ, 2001) que prevalece: é ouvindo, vendo,<br />

fazendo na vivência comunal que se conhece a cultura do outro, se respeita e também se<br />

faz respeitar.<br />

De 1990 a 1995, não sistematizamos a metodologia do Grupo Nós,<br />

simplesmente a vivemos, contudo ao conceber a cena, nesta pesquisa, tivemos como<br />

forma concebida a estrutura próxima ao Projeto O Dizer Teatral, que, por sinal, é<br />

bastante inocente quando diante do conhecimento político-cultural constituinte das<br />

dinâmicas do Grupo Nós que concebidas em nossa perspectiva mítico-poética.<br />

Janice Nicolin, ao sair do lugar imposto, demarcado, de professora, assume a<br />

dinâmica de um corpo orgânico coletivo educacional num contexto comunal, junto com<br />

as alunas do Curso de Formação do Educador com habilitação no ensino médio. Sua<br />

postura e a forte atuação de direção cênica de Diego Nicolin construíram o que a escola<br />

tenta idealizar e não consegue, uma dinâmica de relacionamento da comunidade com a<br />

escola, algo que propõe a Lei 10.639/2003 que já abordamos, anteriormente, mas a<br />

escola não consegue realizar.<br />

E não consegue por quê? Porque é vivência. Pelo que nos consta, o que é vivido<br />

não pode ser idealizado para simulação do real, para uma ação ideológica protagonizada<br />

pelo poder neocolonial, a vivência não é como no espetáculo pedagógico, ela não “[...]<br />

delega poderes ao personagem para que ele atue nem para que ele pense em seu lugar”


291<br />

(BOAL, 1991, P.138), na vivência, não há espectador, todos realizam a ação de recriar a<br />

cena.<br />

Na vivência, o sujeito “[...] ao contrário, ele mesmo assume o função<br />

protagônica, transforma a ação dramática inicialmente proposta, ensaia soluções<br />

possíveis, debates projetos modificadores:” (BOAL, 1991, P.138). O que houve no<br />

Grupo Nós foi uma primeira atitude, que chamamos de Pré-Artebagaço, porque esta é a<br />

etapa que abre os caminhos de atuação da “mata africano-brasileira” no sistema escolar<br />

do Cabula.<br />

Não tivemos as oficinas concebidas, mas suas linguagens. Não tivemos o estilo,<br />

concebido, mas tímidos traços estilísticos. Não identificamos a estética de valores éticos<br />

comunais, mas recriamos trilhas do território político-comunal Artebagaço.<br />

Recriamos, acima de tudo, um sistema de jogos cênicos para o curso de<br />

Formação de Educador, que nos levou a entender que não fizemos teatro como<br />

linguagem artístico-cultural, mas dramatizações didático-pedagógicas primárias com<br />

função de quebrar os grilhões ideológicos e devolver aos corpos a espontaneidade<br />

criativa que caracteriza a afirmação existencial do descendente de africano cabuleiro.<br />

Com o Grupo Nós, tivemos o objetivo de quebrar as amarras verbais que<br />

inviabilizavam as manifestações não-verbais, a meta alcançada foi mudar a ênfase da<br />

comunicação escrita para a comunicação oral, sem desprezar a primeira, apenas tornar<br />

consciente que a importância dada, exclusivamente, a esta linguagem era nociva ao<br />

desenvolvimento das outras funções que contribuem para a expansão civilizatória<br />

plural.<br />

Os jogos cênicos consistiram em três etapas de trabalho: na primeira, dava-se<br />

ênfase a comunicação oral, partindo da atitude da educadora/educador de realizar a<br />

leitura do texto, que consistia na forma de contar histórias de autores brasileiros que<br />

retratam o cotidiano de forma crítica; uso de recursos corporais e sonoros vocais: jogo<br />

de corpo, olhares, respiração, hálito, gritos, palmas, linguagens que não eram forçadas,<br />

mas eram familiares.<br />

A segunda etapa partia da recriação cênica teatral no contexto de comunalidade<br />

cabuleira, porém o conteúdo crítico era extraído dos estudos literários, como por<br />

exemplo: o estudo sobre o estilo Barroco do Brasil trazia a sociedade colonial do século<br />

XVII e XVIII ao cenário contemporâneo de uma feira-livre no Beiru, com pessoas<br />

comprando, vendendo, conversando. Esta metodologia, praticamente era realizada pelas<br />

estudantes, a professora só dirigia a cena realizando a marcação da leitura cênica.


292<br />

A terceira etapa era de fato a de montagem cênica didático-pedagógica e<br />

consistia em dois momentos: o primeiro momento era coordenado por Janice, eram<br />

leituras interpretativas e recriações cênicas dos textos cênicos escritos por Janice e<br />

Diego, dos subgrupos com suas respectivas cenas; o segundo momento era a montagem<br />

geral da encenação com direção geral de Diego Nicolin, co-direção de Janice.<br />

A avaliação não era uma etapa destacada, pois a cada encontro se fazia uma roda<br />

de discussão, diálogos em torno do que tinham feito, de maneira que não havia acúmulo<br />

de dificuldades, que eram levantadas no final dos encontros, sendo revistas no próximo<br />

ou nos próximos encontros.<br />

O que temos como acervo de memória Artebagaço Odeart desta fase? Que um<br />

processo natural de descoberta da identidade civilizatória não se reconhece nos últimos<br />

momentos da luta contra a hostilidade. Esta é a primeira etapa desta busca, nela<br />

encontram-se os sinais de luta pela afirmação da alteridade, das referências que<br />

caracterizam o significado simbólico existencial de pessoa, de ser humano. Nestes<br />

sinais, estão ocultados os códigos que afirmam o conjunto de saberes e valores éticos e<br />

estéticos, as expressões de raízes e das fragilidades existenciais, que Diego denomina<br />

banalidade, inexperiência, experimentos, sendo também a afirmação da alteridade.<br />

Muitos ridicularizam por não querer compreender que se trata de um momento<br />

comparado ao processo de uma criança tentando engatinhar levantando o joelho preso<br />

ao chão. Por ora, enfraquece e descansa o corpo no quadril, depois, recomeça até correr<br />

“de quatro pés”, depois fica em pé, e trêmula começa a andar, depois, já com as pernas<br />

firmes, corre, corre e corre, mas não entende muito quem é e quem são todos os que<br />

estão em seu redor, por isso busca, busca e busca, até crescer e descobrir que tudo isto<br />

que o circunda constitui seu grupo de luta.<br />

Pensamos, sobre esses aspectos, que o educador/educadora precisa estar<br />

preparado e fundamentado nos saberes da dinâmica corporal, relacionando-se com a<br />

comunicação oral civilizatória, isto é, a dinâmica do corpo de uma criança de zero a 10<br />

anos em desenvolvimento encontra, na fala que cruza com o pensamento, a<br />

compreensão da noção de tudo que conduz sua atividade de criação. Tal<br />

desenvolvimento quando se respeitam os códigos de valores da memória civilizatória,<br />

que caracteriza a história da ancestralidade, planta raízes neste pensamento constituinte<br />

da identidade da criança que ele/ela cuida.<br />

A dinâmica de jogos cênicos permite que o educador perceba estes traços<br />

arquetípicos identitários da criança e do jovem estudante, desde a pré-escola ao ensino


293<br />

médio. Nenhum deles possui “déficit” ou “privação cultural”, isto é conversa<br />

preconceituosa e racista etnocêntrica, seus traços são da alteridade sociocultural<br />

civilizatória, são “[...] eidos e ethos característicos das relações sociais próprias da<br />

comunidade” (LUZ, N., 2000, p.104). O conhecimento desta linguagem é o da<br />

identidade cultural da criança, e, ao reconhecê-la, o educador poderá junto com a<br />

criança elaborar um cenário sem gerar recalques ideológicos e as atrofias musculares<br />

dos corpos docilizados dos estudantes.<br />

3.4.1 Do Artebagaço à Mata Africano-brasileira Odeart<br />

A compreensão das vivências do Grupo Nós se faz importante para percebermos<br />

a continuidade da experiência vivida do Grupo Teatral Artebagaço, o corpo fecundado<br />

por dois educadores, Janice e Diego Nicolin, começa a ganhar consistência históricocultural<br />

grupal constituída por uma dinâmica da linguagem de poética teatral como<br />

poderosa política pedagógica contra o sistema educacional de servidão neocolonial.<br />

Nessa dinâmica, assoma um entendimento de atuação reanimadora dos “corpos<br />

dóceis” desdobrando-se numa dimensão invisível no espaço concreto positivista, e cuja<br />

função é promover a quebra dos grilhões da servidão existencial.<br />

Também entendemos que tal corpo por não se reconhecer parte deste lugar, a<br />

escola do sistema oficial, busca em si mesmo sinais civilizatórios de fortalecimento da<br />

alteridade e identidade. Até este momento, a luta é a busca na referência de linguagem<br />

pessoal de sua memória corporal. Assim se desdobrou o Grupo Nós.<br />

Por isso, ao pensar no final de 1995, quando Diego e Janice decidem parar as<br />

atividades, momento em que Janice entrava de licença-maternidade, é bom saber que<br />

algo movia a busca para além das referências de criatividade que caracteriza a<br />

identidade pessoal humana, já havia uma nova etapa aproximando-se.<br />

Neste ínterim, surgem às novas reformas educacionais de fortalecimento da<br />

ideologia neocolonial mercantil-produtivista, a Lei 9.394/1996 que anula a Lei<br />

5.692/197 que regulava e autorizava o curso de Formação do Educador no ensino<br />

médio, o “treinador” do futuro “trabalhador padrão”.<br />

A nova lei 9.394/1996 tem como meta um sujeito individualista, desgarrado dos<br />

seus entes, da comunalidade: “Eis o espelho da política educacional brasileira, que tem<br />

a referência euroamericana, que sempre inspirou o processo de ensino-aprendizagem,<br />

que visa o aluno padrão, sujeito produtor e consumidor” (LUZ, N., p.29), uma pessoa


294<br />

que entende o propósito da educação como lugar para se obter um diploma ou um<br />

passaporte para ter acesso ao poder constituído pela política econômica produtivista.<br />

Essa é a formação geral proposta pela Lei 9.394/1996, seu intuito é moldar um<br />

corpo desgarrado de suas origens civilizatórias, ao distanciar o adolescente e o jovem de<br />

sua realidade comunal do Cabula, por meio da interdisciplinaridade e contextualização<br />

universal greco-romana. As políticas pedagógicas da servidão leva-os a ignorar ou<br />

esquecer, caso saibam, que este lugar foi palco das maiores insurgências a favor da<br />

liberdade existencial dos seus e nossos ancestrais até o final do século XIX.<br />

Foi em final de 1996, em uma reunião convocada pela direção para ditar as<br />

novas “normalizações” educacionais, que Janice Nicolin conheceu Beni Moraes e<br />

iniciaram um diálogo constituído de críticas às reformas educacionais. Vejamos como<br />

Janice Nicolin faz a descrição das atividades que brotam do Grupo Teatral Artebagaço .<br />

Enquanto a reunião decorria, ditando o ordenamento unilateral das<br />

políticas públicas, eu e Beni, trocávamos idéias sobre educação. Bem,<br />

a reunião acabou, mas em outro momento tivemos oportunidade de<br />

conversar melhor sobre arte e educação. Nesta altura, eu já sabia que<br />

ela também realizava trabalhos com teatro para quebrar a<br />

passividade dos corpos docilizados em sala de aula. Neste encontro,<br />

surge-me à idéia de convidá-la para criarmos juntas um grupo de<br />

teatro.<br />

– Mas nosso trabalho é livre e desapegado do que impõe o currículo,<br />

está certo? – assim lhe disse. Beni respondeu-me: –Claro que sim, há,<br />

há, há!<br />

Assim, foi feito o acordo entre nós. Porém, até aquele momento não lhe<br />

havíamos falado sobre Diego, nem ela também sabia algo a nosso respeito, pois era<br />

“novata” no colégio e ainda não tinha ouvido os discursos maldosos e depreciativos<br />

sobre os trabalhos do Grupo Nós, que foram realizados com as estudantes de<br />

Magistério.<br />

No início de 1997, chegam os primeiros alunos do curso de Formação Geral.<br />

Neste ponto, juntamente com Beni começamos o trabalho, convocando alunos para<br />

compor um grupo de teatro através de cartazes afixados nos muros do colégio. Neles,<br />

havia apenas o dia e o horário da primeira reunião para contato inicial.<br />

Para nossa surpresa, três dias depois de termos colocado estes cartazes, às<br />

17h50min, no horário combinado, surgem, numa sala de aula (o auditório vivia fechado,<br />

sendo aberto apenas em momentos de festividades com pessoas “de fora” e de


295<br />

prestígio), 82 adolescentes com idades entre 14 e 18 anos. Tal foi a nossa surpresa que<br />

nos olhamos uma na cara da outra e nos perguntamos: – “Será que daremos conta?”<br />

Demos. Beni compôs uma peça intitulada “Pedaços dos anos 60”, um espetáculo<br />

satírico constituído por recortes da história político-social do Brasil na década de 60,<br />

antes e depois do início da ditadura militar. Nos dois primeiros meses, fizemos ensaios,<br />

sendo Beni quem estava na direção; nossa parte de colaboração era na co-direção cênica<br />

e na dedicação às atividades pedagógicas voltadas para a sociabilidade do grupo em<br />

composição.<br />

Durante essas atividades, pedagógicas, observávamos “desde dentro” as atitudes<br />

de cada um, buscando em seus gestos formas próprias de comunicação promotoras de<br />

vínculos comunais. Com isto, foi possível identificar aqueles que naturalmente<br />

desempenhavam funções de liderança e, naturalmente, ficaram como responsável por<br />

determinada linguagem, como, por exemplo: havia quem se dedicasse melhor ao<br />

trabalho de maquiagem, outros dedicavam-se exclusivamente ao desempenho de ator.<br />

Assim, pudemos colher o saber e o gosto de todos em geral. Enfim, durante esse tempo,<br />

formamos vínculos de afetividade próprios da comunalidade africano-brasileira.<br />

Depois de três meses de ensaio, estréia “Pedaços dos anos 60”. Quando Diego<br />

foi apresentado a Beni, ela perguntou-lhe: – “E você, quando aparece?” Ele respondeu:<br />

–“Daqui a pouco.” E gargalhou. Neste momento, firma-se o tripé da coordenação<br />

político-pedagógica de fundação da forma comunal Artebagaço, embora ainda não<br />

existisse um nome para o grupo.<br />

Ressaltamos que os diálogos com Diego nunca deixaram de existir, antes mesmo<br />

de fazer a proposta para Beni Moraes, já tínhamos decidido formar um grupo<br />

independente, só que os ensaios seriam realizados no espaço de nossa casa.<br />

Com a entrada de Diego, houve mudanças na forma de ensaiar, por exemplo, a<br />

ênfase nos exercícios sensoriais para sensibilizar o corpo mecanizado, tal como<br />

fazíamos no Grupo Nós. As atividades de leitura interpretativa e cênica, realizadas em<br />

nossa atividade docente, foram reintroduzidas após a dinâmica de contar história. Era o<br />

outro lado de quem acreditava em atividades como ouvir primeiro o que diz o texto<br />

escrito da montagem cênica para, depois, fazer a leitura da linguagem gráfica.<br />

Essas mudanças provocaram a desistência de muitos adolescentes que não<br />

queriam ler, não queriam conhecer as diferentes formas de linguagem do outro, enfim,<br />

daqueles 82 que entraram ficaram 50 até o dia da estréia de “Pedaços dos anos 60”, em


296<br />

maio de 1997. Em junho, tínhamos cerca de 30 estudantes, com isto resolvemos fazer<br />

uma nova “chamada” para inscrição de novos componentes.<br />

Ressaltamos que, na escola existiram muitos jovens que buscavam espaço<br />

apenas para música ou dança, mas nossa ênfase era no teatro. Cremos que também este<br />

detalhe tenha sido um dos motivos da desistência de alguns estudantes, embora, para<br />

outros, significava não estavam dispostos a participar dos trabalhos de desmecanização<br />

do corpo, criar novos hábitos constituintes da dinâmica corporal do ator.<br />

O trabalho de ator consiste no uso da cada palavra oral, que exige da pessoa<br />

muita vontade de realizar a cadência, o ritmo do mistério que empresta ao seu corpo<br />

uma movimentação gestual. Além disso, o trabalho do ator é social e sociável, sua<br />

expansão depende das inter-relações grupais, porém muitos adolescentes e jovens<br />

tinham e têm uma idéia de que fazer teatro é fazer o que quisessem, como uma<br />

brincadeira egoísta e individualista, pois muitos o relacionam com o que vêem na<br />

televisão:<br />

É, é... como eu falo, em casa não tinha nada para ocupar a minha<br />

mente, nada mais para me interessar. Por mim, eu não pensava em<br />

aprender nada, pensava em fazer teatro, eu entrei foi para fazer<br />

teatro e teatro para mim, no Francisco, era beijo na boca. [Há, há,<br />

há]. Aí, depois disso, vi que era totalmente diferente: as dinâmicas, já<br />

as dinâmicas foram que me puxou mais para o teatro [...] Fiquei no<br />

Artebagaço com o pensamento fora do que é Artebagaço, todo fora<br />

mesmo, todo ao contrário. (G. Cruz, 2006).<br />

Aos poucos, com o trabalho de ator, esse conhecimento vai-se elaborando,<br />

porque neste espaço de teatro há cultivo da liberdade, pois não existem provas, testes e<br />

notas em caderneta. Há uma vivência em jogo sendo avaliada em grupo e ancorada nos<br />

compromissos com vínculos de sociabilidade, entendimento, reciprocidade e confiança<br />

no grupo. Fabiana Rocha (2005) descreve sua vivência compondo corpo comunal:<br />

O teatro me trouxe questionamento sobre o que estava fazendo. Eu<br />

tinha uma atitude, não gostava da escola, mas não via possibilidade<br />

de mudar aquele quadro e o teatro me deu esta possibilidade, porque,<br />

além de me incentivar ao teatro, eu tive contato com meus colegas, eu<br />

comecei a ter mais contato, a conhecer, a ter mais intimidade e aí eu<br />

passei a sentir-me pertencente à escola.<br />

Havia de fato uma diversidade no grupo, o grupo era o lugar de acolhimento,<br />

como refere Fabiana (2005):


297<br />

No teatro era uma turma, lá eu encontrava a escola, várias<br />

realidades, várias pessoas, e com vontade própria, que não era<br />

avaliada 69 , não ia pra o currículo, não ia pra o currículo 70 , e tinham<br />

pessoas com vários interesses: de ser atriz, de querer questionar ou<br />

de questionar pelo prazer de conhecer, de estar em grupo ou por<br />

status ou por alguma coisa. Cada um tinha o seu interesse e o meu<br />

interesse – sempre gostei de arte, sempre gostei de dançar desde<br />

quando era pequena – era ser atriz, quis ser atriz, sempre quis, e o<br />

teatro era a oportunidade que a gente tinha de realizar, isto é, de me<br />

expressar. Como eu queria me expressar! Vim me libertar porque me<br />

sentia presa na escola e, assim, o teatro foi muito importante para que<br />

eu me sentisse inserida na escola [...] de fazer-me pensar mais no<br />

outro, pessoas que eu pensava que tinha uma realidade diferente da<br />

minha por causa da formação escolar 71 que tive. Naquele momento,<br />

eu era a mesma na história. O teatro veio me mostrar o que eu não<br />

gostava, veio mostrar-me, exatamente, como funcionavam as coisas,<br />

me deu esta abertura.<br />

A composição do grupo foi ancorado numa ética herdada, (principalmente por<br />

Diego, Beni e por mim) e esta ética resguardava-se nos princípios de cooperação e<br />

respeito mútuo, respeito às alteridades e aos mais velhos, que eram os fundadores.<br />

Alguns adolescentes eram desapegados dos vínculos sociais desta natureza, por isso os<br />

fundadores promoviam esta dinâmica de educação ancestral africana:<br />

Deixe-me falar do início. Era o contato com os professores Jane,<br />

você, Beni, Diego foi depois. Eu não tinha contato com Diego, era<br />

com Beni e você. Foi muito interessante porque o contato era muito<br />

próximo, além de vocês estarem ensinando, vocês passaram muita<br />

coisa pra gente, em relação aos textos, à educação, vocês tinham esta<br />

preocupação com a educação, com o respeito ao outro, o incentivo ao<br />

estudo, tinha demais o respeito.<br />

Eu sentia uma relação de igualdade, coisa que não sentia na escola,<br />

no grupo eu passei a ter igualdade de condições, mesmo vocês, você e<br />

Beni, estando em posição diferente da nossa, como professoras, como<br />

educadoras, sentia que havia uma igualdade, um respeito mútuo, uma<br />

preocupação, uma atenção, um carinho, uma vontade de fazer alguma<br />

coisa boa. Eu sentia isto. (Fabiana, 2005).<br />

Era um desafio constante aprender sobre a singularidade que constitui o universo<br />

simbólico africano-brasileiro que desconhecíamos, mas vivíamos a experiência, o<br />

respeito às referências culturais que caracterizam o modo de viver cotidiano da<br />

69 O sentido é: “não era julgada”.<br />

70 Arregala os olhos que brilham e, em tom firme, faz a repetição: “não ia pra o currículo”.<br />

71 Fez pré-escolar e fundamental em escola particular de grande porte, em Santo Amaro.


298<br />

territorialidade do Cabula, formas e modos de linguagens da sociabilidade<br />

transplantadas da África e recriadas na Bahia.<br />

Todos estes desdobramentos realizavam-se em torno do desejo de compor uma<br />

recriação teatral. Para todos nós, esta era uma forma de alcançar a liberdade existencial<br />

e de fincar um espaço político-territorial, pois o grupo já estava composto. Após a<br />

segunda inscrição, contávamos com 42 estudantes dos cursos Técnico em<br />

Contabilidade, de Administração e de Magistério. Todos os três cursos eram compostos<br />

por últimas turmas por força do Decreto-lei 9.394/1996 que os extinguia, mas a maioria<br />

era do curso que chegava, Formação Geral.<br />

A força de comunalidade nos encorajou a ocupar o mini-auditório que vivia<br />

desocupado, como vive até hoje, terras ociosas por força do “nomos” do trompe-l’oeil<br />

escolar. Esta atitude política de ocupar este espaço ocidental e reterritorializar um lugar<br />

próprio para os desdobramentos de uma dinâmica ético-estética político-comunal<br />

herdamos dos ancestrais quilombolas desde os bantos, das comunalidades tradicionais,<br />

desde a iniciativa das três Iyás africanas nagôs, em destaque homenageando Iyá Nassô,<br />

Iyá Oba Tosi, Marcelina da Silva, tetra-avó de Mestre Didi Axipá.<br />

Em termos de atitude político-criativa, concordamos com Augusto Boal (1991,<br />

p.139): “O espectador liberado, um homem íntegro, se lança a ação! Não importa que<br />

seja fictícia: importa que é uma ação”. Considerando que se o corpo está liberado, livre,<br />

ele deixa de ser espectador, nós sempre fomos atores, nossa função era encorajar o<br />

espectador a realizar a transformação que lhe devolveria o corpo de ator.<br />

A dimensão física do mini-auditório do colégio, além de palco, era um simbólico<br />

gesto político de ocupação territorial do espaço escolar que nos era, constantemente,<br />

negado. A ocupação tem sentido de conquista por ser algo vivido com muita emoção,<br />

temor, coragem e ousadia.<br />

No território que ocupamos, discretamente, realizávamos nossas reuniões, nossas<br />

oficinas, nossos ensaios cênicos, era o centro da coesão comunal, era o teatro, lugar de<br />

apresentação, era nossa casa, nossa fortaleza, nosso quilombo. Nossa lei maior era a<br />

arte, tínhamos, no teatro, na dança e na música, as linguagens de afirmação da<br />

liberdade.


299<br />

Falar disto me deixa emocionada, falar do teatro! Foi uma<br />

experiência, assim fantástica demais! 72 . Eu passei a amar aquelas<br />

pessoas, era uma festa! Era uma paixão, eu não queria nem saber de<br />

namorar, imagine! Eu tinha até uma paixão na época, mas enquanto<br />

estava no teatro, ligada no texto recebido, aquela pessoa que era o<br />

namorado não me interessava. Eu vou pro teatro me encontrar com<br />

meus amigos e pronto. Era um lance de amizade, era uma coisa<br />

muito boa, era muito gostosa. Andréia foi ótima, Maurício com aquele<br />

jeito... (Fabiana Rocha, 2005).<br />

Beni Moraes entoa também sobre a dinâmica socioexistencial Artebagaço:<br />

Eu convivi tanto com aqueles meninos que, durante aquele meu<br />

problema na gravidez 73 , a gente chorou juntos. Eu gostava do<br />

Artebagaço, eu gosto do Artebagaço. Eu nasci ali dentro, nós<br />

nascemos ali dentro 74 . Foi supergratificante e, quando a gente vê<br />

nossos meninos que estão aí, hoje, na faculdade, que estão todos<br />

andando pra frente, o trabalho que a gente fez está indo em frente.<br />

(Beni Moraes, 2004).<br />

A diversidade de funções surge da necessidade de realizar outras linguagens que<br />

dão sustentação à recriação teatral, assim nosso corpo comunal artístico-cultural foi<br />

compondo-se com atores, dançarinos e músicos, cada um tinha sua função escolhida por<br />

si mesmo, tinha maquiador, figurinista, Beni, por exemplo, se dedicou quase que 100%<br />

da vivência Artebagaço cuidando do figurino.<br />

Figura 181 Figura 182 Figura 183<br />

Cangaceiros do Auto. 2000. Torcedores de Futebol. 1997. O padeiro e a mulher. Auto. 2000. 75<br />

72 Fabiana chora ao lembrar das cenas vividas que, agora na entrevista, registra para nossa pesquisa. Suas<br />

mãos trêmulas, o corpo que inclina para a frente e para trás, os olhos que brilham, são eidos que traduzem<br />

o ethos africano-brasileiro.<br />

73 Foi um aborto espontâneo aos dois meses de gravidez, foi o primeiro momento de luto do grupo.<br />

74 A fala é ofegante, cheia de pausas, suspiros, sopros, olhares profundos, traduzindo a emoção.<br />

75 A primeira e última foto da coluna é o figurino da adaptação “O auto da compadecida”, de Ariano<br />

Suassuna. A segunda foto refere-se ao quadro “Antena Ligada”, uma peça que, com humor, aborda a<br />

relação futebol e escola, é parte da encenação intitulada: “Fundo de garrafa”, de 1997.


300<br />

Havia Jaime (com óculos) e Jô, Josevaldo (blusa vermelha), que cuidavam da<br />

maquiagem:<br />

.<br />

Figura 184 Figura 185 Figura 186<br />

Personagem de “Tá bom...” 1998. Outra face de O grilo. 1997. Personagem O bêbado. 1997. 76<br />

Dos três componentes, Diego dedicou-se à direção teatral, tal como fez no<br />

Grupo Nós, Janice às oficinas de leitura e interpretação de textos, à seleção de textos<br />

para leitura e interpretação e aos cuidados com a revisão gramatical das traduções e<br />

adaptações para recriações literárias do cenário artístico-teatral, além de dirigir algumas<br />

cenas junto com Beni, sobretudo fazíamos as oficinas de corpo do grupo de iniciantes.<br />

Diego trabalhava mais com aqueles que saíam das oficinas com o corpo mais<br />

liberado. Além do mais, todos faziam tudo, independente do que cada um se propôs a<br />

fazer com especificidade, na hora todos trabalhavam para o grupo.<br />

Com as novas inscrições e a saída de outros, conseguimos fixar um número de<br />

pessoas. Eram 45, sendo 42 estudantes e três na coordenação. Neste ponto, passamos<br />

para a estruturação do trabalho em forma de rede de proteção, alianças, despertando o<br />

sentido de união, mostrando a necessidade de estarmos juntos porque, na vida, um<br />

precisa do outro.<br />

Andréia Monteiro, atualmente diretora teatral do Grupo Artebagaço Odeart,<br />

entoa sobre sua sensação naquele momento:<br />

Quando o grupo se formou, que ficaram mesmo aqueles, depois que<br />

saíram muitas pessoas, 42 mais ou menos, não me recordo bem, só sei<br />

que era muita gente, lembro que era em uma sala ampla e Janice deu<br />

76 As duas primeiras imagens traduzem a dinâmica de maquiagem do personagem que faz a abertura,<br />

intercala e fecha a encenação de 01h10min intitulada: “Tá bom pra cachorro”. O outro personagem foi o<br />

que fez o Prólogo, intercalação e epílogo da primeira encenação teatral com estilo e estética Artebagaço<br />

intitulada: “Fundo de Garrafa”.


301<br />

os textos, distribuiu os textos para que cada um lesse e se identificasse<br />

com o que lera e... (2005)<br />

Neste intercâmbio de diferentes valores culturais, os conflitos tinham sua<br />

presença garantida, mas havia negociação do uso de espaço de poder para elaborar o<br />

conhecimento, que se fundamentava na vivência comunal, na imprevisibilidade, pois a<br />

vida cotidiana repousa na empiria e por isso “é, estruturalmente, polissêmica”<br />

(MAFFESOLI, 2001, p.14) e paradoxal.<br />

Para a maioria dos componentes do grupo, Diego constituiu a possibilidade de<br />

conhecer outra cultura diferente, de conhecer a visão do europeu descortinada por um<br />

próprio europeu, mas houve aqueles que não souberam realizar estas negociações não<br />

apenas com Diego, mas com as outras duas componentes, além de outros. Estes não<br />

conseguiram ser Artebagaço, saber desdobrar-se num cenário de hostilidade, realizando<br />

negociações que respeitem os valores culturais de cada um dos componentes.<br />

O grupo Artebagaço crescia com uma estrutura social herdada de muitas formas<br />

de organização das vivências do Grupo Nós. Para Beni, era uma iniciação naquele lugar,<br />

mas para Janice e Diego, que há sete anos vinham na luta pela ocupação de um espaço<br />

de reconhecimento e respeito à nossa diferença, entendíamos que eram passos largos<br />

mas cautelosos que garantiam a continuidade da luta, do respeito a nossa linguagem de<br />

comunicação, que nos permite compreender o mundo.<br />

Havia também uma organização econômica; uma “caixinha” para reserva de<br />

economias, pois existiam aqueles que pagavam o transporte do outro e aqueles que não<br />

tinham recursos econômicos suficientes para ir aos locais fora da escola, mas nem por<br />

isso deixavam de ir ao museu, se o grupo tinha que ir ao museu, ao teatro, se o grupo ia<br />

ao teatro. Assim, desdobravam-se e expandiam-se os valores do território políticocomunal<br />

Artebagaço:<br />

Quanto à questão do território de afirmação, havia um território virtual<br />

do indivíduo, do próprio espaço, é claro que isto vem da alma de cada<br />

um de nós, das próprias experiências com familiares, comunais, de<br />

casa mesmo. Eu diria claramente que éramos um grupo montado num<br />

território físico relativamente fechado, a maioria era do Cabula, por<br />

isto respondia a um modelo de pensamento 77 , não que isto fosse<br />

consciente, mas seguíamos as formas e modos de ver as coisas típicas<br />

de certas famílias, de certos bairros, de certas ruas até chegar à<br />

banalidade, brasilidade, à humanidade; na realidade, estes são círculos<br />

concêntricos.<br />

77 Ele fala do ethos cabuleiro que a busca da pesquisa identificou como africano-brasileiro.


302<br />

Mas são coisas tangíveis, são coisas pequenas do dia-a-dia, da<br />

vivência do dia-a-dia que se transmite de uma forma dialética, não são<br />

ensinadas são vivenciadas, e por isto são internalizadas de forma<br />

muito sutil e se constituem bases do nosso pensamento, por isto são<br />

simbólicas e necessárias. (Diego Nicolin, 2005).<br />

Outra situação foi o nome do grupo, passou por uma grande discussão interna,<br />

teve até eleição, dos 45 componentes 42 queriam Arte & Bagaço, uma sugestão vinda<br />

de Beni Moraes e interpretada pelos outros dois coordenadores como expressão da<br />

realidade vivida no cenário escolar, realizando composições críticas artístico-teatrais e<br />

por isso éramos alvo do processo político neocolonial de exclusão.<br />

A exclusão era realizada pelo colégio, que nos tratava como lixo, como algo<br />

horrível: –“Isto é coisa de doidos! Isto é coisa de quem não tem o que fazer! É gente que<br />

trabalha de graça pra o Estado”; e mais: –“Quando vê assim, estão ganhando alguma<br />

coisa por debaixo do pano”. As provocações e depreciações eram e são inúmeras.<br />

Além de todos os defeitos colocados, negavam ajuda material e até do local, por<br />

isso ocupamos o espaço e por isso insistiam na idéia de o grupo ter o nome do colégio.<br />

Tudo isto deixava-nos irritados, principalmente os estudantes, pois nos esforçávamos<br />

bastante para conseguir um pedaço de papel metro do colégio, que nos era sempre<br />

negado, depois, quando lembravam e lembram de nossa existência, era sempre para<br />

exibição de poder, principalmente quando perceberam o reconhecimento por parte de<br />

outras instituições da sociedade oficial. Do colégio, nunca tivemos reconhecimento<br />

público.<br />

Gente, o teatro era discriminado! O teatro não era bem visto, a gente<br />

não tinha um apoio, então bagaço está, nesta parte da nossa luta de<br />

vencer, no não, o não que era dado à gente: Não. Não. E não [Há<br />

uma ênfase gestual e sonora envolvente na articulação da negação<br />

recebida.]. E a arte foi a nossa luta e de ter alcançado a beleza que a<br />

gente conseguiu alcançar. Beleza porque pra mim arte é bela, belo no<br />

sentido de realização no sentido de criar prazer, de alegria, de<br />

contemplação, sensibilidade, presença. (Fabiana Rocha, 2005).<br />

É impossível falar no nome Artebagaço sem descrever o sentimento e<br />

pensamento que sustentam este enunciado denominativo do grupo, é com emoção que<br />

Fabiana fala do nome Artebagaço:<br />

O belo é muito amplo, é fantástico, misterioso, e a arte é..., veio ser<br />

no Artebagaço um sucesso, pois foi tudo cantado, foi tudo resultado


303<br />

que, hoje, para mim foi muito importante, tão importante que fico<br />

sentida porque minha mãe, minha família não entendia, não dava<br />

importância. Ela sabe que eu evoluí, que cresci, mas ela nunca<br />

atribuiu ao teatro, eu atribuo a teatro.(Fabiana, 2005).<br />

Maurício de Jesus, que participou desta etapa de fundação da comuna<br />

Artebagaço, também entoa sobre o nome do grupo que ele ajudou a colocar:<br />

O nome Artebagaço reflete exatamente o que é que aquele grupo<br />

fazia; pegar o bagaço que nós sempre vivemos com a educação, com<br />

a política, e fazer arte com aquilo, dizendo pra todo mundo o que eles<br />

[o poder] muitas vezes não querem ouvir É mostrar pra escola<br />

pública que ela não ia bem e mostrar também pra escola particular,<br />

que se acha muito superior, que ela não era tanto assim e, talvez,<br />

fosse menos. É fazer da política, do bagaço da política que a gente via<br />

e que não podia dizer, mas nós dizíamos com nossas expressões,<br />

dizíamos além do que muita gente poderia ter dito. (Maurício, 2005).<br />

É com o olhar artebagaciano e o pensamento de um jovem universitário que faz<br />

o último semestre de Graduação em Ciências da Computação na Ucsal, (Universidade<br />

Católica de Salvador), que, hoje, Maurício entoa sobre o enunciado do grupo que ele<br />

ajudou a fundar e a crescer em 1997:<br />

O nome Artebagaço reflete exatamente o que é que aquele grupo<br />

fazia; pegar o bagaço que nós sempre vivemos com a educação, com<br />

a política e fazer arte com aquilo, dizendo pra todo mundo o que eles<br />

[o poder], muitas vezes não querem ouvir. É mostrar pra escola<br />

pública que ela não ia bem e mostrar também pra escola particular<br />

que se acha muito superior que ela não era tanto assim e, talvez, fosse<br />

menos. É fazer da política, do bagaço da política que a gente via e<br />

que não podia dizer, mas nós dizíamos com nossas expressões,<br />

dizíamos além do que muita gente poderia ter dito.<br />

O nome refletia e reflete justamente aquilo que se dizia nas<br />

entrelinhas, não é? Tudo aquilo que nós expressávamos e que,<br />

permita-me dizer, muitos professores, havia ressalva, se viam naquele<br />

contexto e refletiam: “Nossa, isso é verdade!” Outros estão e estavam<br />

tão envolvidos naquela engrenagem política que riam da própria<br />

situação sem saber que estavam fazendo aquilo. Aquilo, aquilo era,<br />

era... Aquilo era arte, o que fazíamos era arte, arte daquilo que<br />

víamos, muitas vezes, que era o bagaço que vivemos. (Maurício,<br />

2005).<br />

Frana Carine é também componente fundador do Grupo Artebagaço e, no<br />

Colégio, cursava Técnico em Administração. Hoje, aos 25 anos, é graduada em<br />

Pedagogia pela Ucsal e esposa de Maurício de Jesus. Frana assim entoa:


304<br />

Desde que a gente começou a trabalhar é que surgiu a questão do<br />

nome Artebagaço, eu entendi que era transformar uma mente que não<br />

está acostumada a trabalhar [as mãos batem uma na outra buscando<br />

as palavras], a criar olhos que não estão acostumados a enxergar<br />

como pode ser enxergado, é não enxergar só como o sistema quer que<br />

veja. Eu sempre vi o Artebagaço transformando o bagaço em arte. É<br />

aquele aluno que está ali “bitolado” na sala de aula, só vendo aquilo<br />

que o sistema quer e que, para ele aquilo é imposto, depois se<br />

transformar num ser que, realmente, pense, critique e construa sua<br />

história e que não viva aquela história que lhe é colocada, que lhe é<br />

imposta. (Frana, 2005).<br />

Agora trazemos, outra vez, os ecos de Fabiana Rocha, que entoa sobre o nome<br />

Artebagaço:<br />

Este nome remete a minha história e também um pouco da história<br />

do grupo, que era de transformar aquela porcaria, que a gente vivia,<br />

a escola, e transformar aquela porcaria em arte, beleza, em<br />

resistência e sucesso. É... [Seu corpo fala com gestos, acompanhando<br />

as palavras, ora inclina-se para frente, às vezes freia, ora para trás;<br />

ora inclina a cabeça para um lado, ora para o outro e arregala os<br />

olhos.] Assim, bagaço, arte, eu não falo Artebagaço, eu falo Bagaço<br />

Arte, esta é a minha explicação, era transformar tudo aquilo, a gente<br />

não tinha apoio da escola, a gente lutava pra conseguir um papel<br />

metro!(Fabiana, 2005).<br />

As palavras em negrito chamam a atenção para o aspecto da socioexistência<br />

guerreira do legado ancestral africano do Brasil. Nelas, há a enunciação do sentimento<br />

de grupo caçador, guardião e protetor (“a gente vivia, a gente lutava”), do sentido de<br />

estética de valores (arte, beleza) e da ética que garante a sociabilidade africanobrasileira<br />

(resistência), por sinal com humor, que Alcinéia Santos, ironicamente,<br />

apresenta:<br />

Tinham uns comentários que a gente ouvia no colégio como:<br />

“Artebagaço! A diretora faz a arte, e vocês que são os bagaços, ela<br />

está pensando em lhe aproveitar”. Há! Há! Há! Estes comentários a<br />

gente, às vezes, gostava muito, mas sabíamos que bagaço eram eles e<br />

nós os aproveitávamos com a arte. O inverso. (Alcinéia Santos, 2005).<br />

O nome nasce dos lábios de Beni Moraes: Arte & Bagaço, embora fosse<br />

modificado e confirmado por outros significados atribuídos pelo grupo, que transcendeu<br />

o sentido dado por Beni, em entrevista, que é longa e riquíssima, Ela fala sobre isto e<br />

diz que, inicialmente, o significado estava relacionado ao aspecto da montagem de


305<br />

“Pedaços dos Anos 60”, uma encenação teatral que foi montada com materiais que<br />

familiares dos adolescentes doaram por não quererem mais.<br />

Beni pensou o termo “bagaço” como restos, mas isto foi mudando porque no<br />

grupo não há “controle do simbólico” (APPLE, 2002), não há uma política pedagógica<br />

unidimensional do conhecimento. A própria Beni participou da dinâmica de<br />

“reterritorialização” (SODRÉ, 2002) da palavra ou de composição da bacia semântica<br />

do grupo:<br />

Portanto a sugestão do nome veio, justamente, daquilo que as pessoas<br />

iam desprezar, iam jogar fora, mas era utilizado na nossa arte, então<br />

nada melhor do que Artebagaço porque não caía bem dizer Bagaço<br />

da Arte, não era isto, era Arte & Bagaço, foi o que melhor se adaptou<br />

à nossa realidade.<br />

Também tem esta situação: as pessoas [pensamentos etnocêntricos da<br />

escola] ficavam assim: “caras e bocas” diante do nosso jeito de<br />

atuar, as pessoas reagiam porque nós estávamos o tempo todo<br />

fazendo críticas à sociedade, ao comportamento das pessoas e tudo [o<br />

ethos neocolonial]. Desde a montagem das peças que as pessoas já<br />

ficavam na crítica e, muitas vezes, fomos chamados atenção em<br />

relação ao barulho que fazíamos quando encenávamos [usa uma<br />

entonação irônica que diz: “ridículas”]. Era a comunidade da<br />

própria escola que dizia: –“Então, que zuada é esta? O que é que está<br />

acontecendo?” Muitas vezes nós pedíamos ao grupo para fazer<br />

silêncio numa atividade que precisava, falar e gritar. Isto era para<br />

que fizéssemos de conta, naquele momento, para que somente na hora<br />

de realizar o evento extravasasse [abre os braços como quem diz:<br />

Pode?!]. (Beni, 2005).<br />

Com o tempo, o nome foi mudando: de Arte & Bagaço, chegamos à fusão<br />

Artebagaço, mas neste ponto já foi uma elaboração nascida do diálogo que tivemos,<br />

várias vezes, em grupo com Diego sobre a nossa vivência na escola, afirmando-se com<br />

nosso jeito de comunalidade africano-brasileira. Nossa linguagem simbolizava a<br />

incansável luta pela afirmação de nossa diferença cabuleira. Os dois nomes fundiram-se<br />

em 1998, desta maneira manteve-se o corpo lírico-satírico autodenominativo<br />

Artebagaço até 2001.<br />

O Grupo Teatral Artebagaço, do período de sua fundação em 1996 até 2001,<br />

reorganizou linguagens poéticas de composição dos três tipos de oficinas de criação<br />

atualizadas com atividades de dramatizações didáticas: expressão de corpo e voz; leitura<br />

interpretativa e cênica; fundamentos para montagem e ensaios. Estas oficinas são frutos


306<br />

das sementes plantadas nas vivências do Grupo Nós, quando ainda estávamos sob o<br />

olhar absoluto e normativo do poder escolar, na limitada dimensão espaço-temporal da<br />

sala de aula.<br />

Este trabalho foi acontecendo e, aos poucos, elaborando e realizando recriações<br />

de cenários artístico-teatrais. A meta era refletir sobre a política socioexistencial de<br />

“uma relação dialética vivido-concebido” (LUZ, M.A., 1994, p.55), de maneira ampla<br />

para compreender a existência num contexto de humanidade, num cenário de<br />

continuidade civilizatória e, repetimos, embora fizéssemos tudo isto com esta intenção,<br />

faltava-nos a visão da referencialidade cultural, um dado que esta pesquisa nos<br />

possibilitou.<br />

As três oficinas de criação teatral colaboraram para a composição de um corpo<br />

ativo e consciente do seu passado histórico de lutador e promotor de condições que<br />

podem erguer territórios de expansão dos primeiros valores da humanidade plantados<br />

pelos primeiros ancestrais: “E então a partir da dinâmica interpessoal do sujeito com o<br />

outro, que se processarão diversas trocas de identificações que permitirão o nós”. (LUZ,<br />

M.A., 19994, p.53).<br />

Os ecos de Diego Nicolin entoam sobre a herança da linguagem Artebagaço:<br />

De certa forma, falamos do homem ancestral porque a acepção do<br />

homem histórico é a acepção épica, por isto, o homem é um ser<br />

histórico, o homem não é o elemento que Heidegger 78 queria propor<br />

que tende ser o “ideal”. O homem é um ser que pode ser<br />

condicionado pela economia, pela sociedade, e por isto as discussões<br />

sobre ele nem sempre são livres. Não é o homem quem decide por si<br />

mesmo, mas o homem tem vontade de fazer algo e o faz de acordo<br />

com o que está ao seu redor, que são suas referências simbólicas, por<br />

isto ele é um ser histórico, um ser épico.(Diego Nicolin, 2005).<br />

Pela fala de Diego, até aquele momento nós não havíamos alertado para o fato<br />

que, ao pensarmos nossa estrutura comunal ancorada na ancestralidade, estávamos<br />

realmente, nos ancorando numa linguagem africana de matriz reterritorializada no<br />

Brasil, reatualizada para adequar-se às novas situações sem perder a base dos princípios<br />

e valores plantados pelos ancestrais africanos.<br />

A dinâmica político-pedagógica do Grupo Artebagaço, tal como no Grupo Nós,<br />

porém intencionalmente estruturada, ancora-se em um princípio de iniciação do corpo<br />

docilizado pelo esquematismo unidimensional da pedagogia da servidão neocolonial,<br />

78 Ver em Sodré (2002, p. 21), em que há um comentário sobre a relação do homem e o espaço.


307<br />

um corpo mecanizado, dinamizado pelo automatismo conceitual estático de sustentação<br />

do eurocentrismo.<br />

São corpos e mentes recalcados pelos obstáculos que imobilizam a ação<br />

voluntária e inibem o desenvolvimento do potencial criativo. Ao respeitar o indivíduo<br />

como um iniciante em busca da pulsão vital, a estética artebagaciana oferece, nos<br />

primeiros encontros (aproximadamente 10 encontros com 3 horas), uma série de<br />

exercícios corporais que visam devolver o dinamismo natural e a ação voluntária de<br />

criar<br />

Esses exercícios que não são técnicas 79 , são o que Diego chama de “conjunto de<br />

experimentos corporais”, e que denominamos jogos cênicos, em outras propostas<br />

realizadas para atender ao campo acadêmico no uso da disciplina curricular Teatro.<br />

Podem ser chamados de “o jogo teatral e o jogo dramático” (JAPIASSU, 2001) 80 , mas<br />

para nós, que desconhecíamos estas elaborações, eram situações de improviso<br />

emergidas da nossa espontaneidade criativa.<br />

Para melhor entendimento da situação, faremos um esforço para uma breve<br />

exposição didática da dinâmica metodológica político-pedagógica da linguagem<br />

artístico-teatral Artebagaço.<br />

● Oficinas de expressão corpo e voz<br />

Esta linguagem desdobra-se com a intenção de desmecanizar as ações de<br />

recalque ideológico que reprimem o corpo docilizado Usamos duas formas de<br />

linguagem: uma para o corpo; sensibilização e liberação. Outra para a voz: entonação e<br />

dicção.<br />

● A dinâmica de sensibilização<br />

Esta inicia com caminhadas lentas mas se vai aumentando os passos até o corpo<br />

não mais suportar. É o “acordar”. Em seguida, vêm atividades como sentir os pés<br />

tocando o chão, levantando, pousando; vem o jogar de um objeto pelo coordenador para<br />

que o corpo se curve e levante; pede-se que caminhe olhando um ao outro, percebendo<br />

seus gestos e buscando no seu jeito de ser, o que lhe é familiar; há sempre pausas, com<br />

palmas, de uma atividade a outra. No final, uma roda é feita para apreciar os<br />

desdobramentos e os efeitos sentidos no corpo conforme expresso por cada um,<br />

79 Técnicas são movimentos rígidos repetitivos impostos por um método, que é convencional, formal.<br />

80 O autor traz uma interessante discussão que aborda a diferença entre jogo dramático e jogo teatral. No<br />

jogo dramático, todos participam como jogadores; já no jogo teatral, há quem atue e há quem observe, a<br />

platéia.


308<br />

buscando, no indivíduo, uma reflexão do que foi “vivido” e relacionando-o com a<br />

realidade circundante.<br />

● A dinâmica liberdade<br />

Desdobra-se em um conjunto de exercícios improvisados com cenas<br />

verbalizadas, uso da voz natural sem orientação técnica vocal, que tem como finalidade<br />

expressar sentimentos e emoções, liberar o sentimento recalcado ideologicamente.<br />

Há ênfase em duas formas de linguagens: a primeira é conversação natural do<br />

grupo, que nos deixa perceber ethos cabuleiro característico da cultura de arkhé<br />

africano-brasileira, em uma espécie de intervalo das atividades, feita como tal para que<br />

se desenvolva a comunicação típica da comunalidade. A segunda é contando história<br />

em grupo, desdobrando-se com o ato de contar histórias da vizinhança, do colégio até<br />

chegar à vida pessoal e familiar. Com os olhos vendados, o corpo que não ganhou<br />

confiança no grupo, começa a emitir os primeiros sinais de confiança, cumplicidade e<br />

engajamento, depois, quando familiarizados, não usam mais a venda 81 .<br />

Com a oficina de expressão corpo e voz, o ator, além de ser encorajado a mover<br />

os impulsos de descoberta das potencialidades gestual e sonora de seu próprio corpo,<br />

desenvolve o poder de conceber sua vivência numa linha histórico-corporal. Neste<br />

sentido, encontramos uma aproximação com o trabalho de Augusto Boal:<br />

Podemos mesmo afirmar que a primeira palavra do vocabulário teatral<br />

é o corpo humano, principal fonte de som e movimento. Por isso, para<br />

que se possa dominar os meios de produção teatral, deve-se<br />

primeiramente conhecer o próprio corpo, para poder depois torna-lo<br />

expressivo, o “espectador” estará habilitado a praticar formas teatrais<br />

que, por etapas, ajudem-no a liberar-se de sua condição de<br />

“espectador”e assumir a de ‘ator”, deixando de ser objeto e passando a<br />

ser sujeito, convertendo-se de testemunha em protagonista. (BOAL,<br />

1991, P.143).<br />

● Oficina de voz<br />

Na realidade, ela começa na oficina de liberdade gestual, durante a conversação<br />

em grupo e na dinâmica de contar história. Contudo a técnica não é uma linguagem<br />

desconhecida pelo corpo, ela é técnica porque o ator toma consciência do que a<br />

constitui, para que serve e, com isto, pode ele mesmo regulá-la e utilizá-la no momento<br />

necessário.<br />

81 A venda só é usada para contar histórias da família biológica e próprias. É conhecida também como<br />

técnica de liberação intitulada: “Quem sou eu”.


309<br />

São dois os exercícios vocais: de aquecimento e relaxamento das cordas<br />

vocais. O aquecimento consiste em conhecer as técnicas vocais antes de usar a voz para<br />

não prejudicar as cordas. O relaxamento é feito depois do uso da voz, quando as cordas<br />

são exploradas com excesso de verbalizações diversificadas, recriadas, não naturais. Em<br />

ambos, forjam-se jogos simulados de sons diversos, ou seja, há imitação de vozes de<br />

pessoas de várias faixas etárias, de animais, de objeto, dos fenômenos da natureza como<br />

a chuva, o vento, as ondas do mar. Neste contexto, há uma política de educação vocal.<br />

Com as oficinas de expressão corpo e voz, houve êxito em reconhecer, por<br />

exemplo, a importância do reconhecimento corporal, auxiliado por exercícios que<br />

ajudam o indivíduo a identificar os limites da ação corporal; a importância da<br />

expressão voluntária verbalizada e não-verbalizada.<br />

● Oficinas de leitura: interpretação textual e interpretação cênica<br />

A ênfase inicial é dada ao texto oral, uma história contada, inicialmente, por<br />

quem coordena a cena. Depois de introjetada na dinâmica de leitura, outros membros do<br />

grupo começam a apresentar sua abordagem. Depois, aos anos, se introduzem textos<br />

escritos. 82<br />

● Leitura e interpretação textual<br />

Eram distribuídos vários textos para montagem para que cada um buscasse o que<br />

melhor lhe agradasse. Esta era uma maneira de cada um se inserir em cena, sem a<br />

conduta de determinação ou ordem expressa da coordenadora, (Janice), junto-com Beni<br />

Moraes na co-coordenação. Beni fazia a abordagem do contexto histórico.<br />

Não tem como descrever a dinâmica de leitura porque era muito viva,<br />

imprevisível e cheia de imperfeições positivistas, típicas de vivência, aquilo que<br />

depende do “já”, do surpreendente. Mas havia uma rotina pedagógica repetitiva e<br />

naturalmente reatualizada: a abordagem a partir da busca das palavras-chave, a dos fatos<br />

que traduzem o espaço-tempo histórico e das idéias tradutoras da realidade vivida.<br />

Cremos que esta dinâmica pedagógica traduza a prática transdisciplinar da educação<br />

pluricultural.<br />

● Leitura cênica<br />

Consiste em atos de ler o texto emprestando seus movimentos corporais às cenas<br />

extraídas. Ela está relacionada ao trabalho de ator envolvido na cena extraída do texto<br />

82 Há um precedente: existe um cuidado com a seleção do textos; a linguagem deve estar mais próxima<br />

possível da compreensão de quem lê, mas os textos não são inócuos, são complexos com temáticas<br />

simplórias aos inocentes olhos desprovidos de conhecimento histórico político-cultural.


310<br />

para a montagem. Este trabalho é realizado em duas etapas: na primeira etapa,<br />

desdobra-se a dinâmica de composição da personagem que se realiza com o trabalho<br />

individualizado de ator que irá “completar-se” na próxima oficina; na segunda etapa,<br />

desdobra-se o trabalho do ator inserido no contexto, e dedicará atenção aos movimentos<br />

emprestados ao personagem que se relaciona com outros personagens que dão sentido<br />

político à dinâmica sociocultural.<br />

Com esta oficina, que dura em torno de quatro a oito semanas, com oito horas<br />

semanais, fora a dedicação do ator fora do grupo, pois muitos ensaiam entre si em<br />

outros espaços, semanalmente. Praticamente, as ações do recalque tornam-se inválidas,<br />

contudo não são esquecidas, apenas não causam temor, medo ou motivo de reprimir a<br />

espontaneidade criativa.<br />

Nessa etapa, nasce o ator livre, o caçador disposto não só a fazer a guarda do<br />

território para bloquear as ameaças do solo político homogeneizador, mas que passa a<br />

caçar proventos que alimentam o grupo e o cenário pluricultural. Andréia Monteiro,<br />

pessoa que, atualmente, desempenha a função de coordenadora (junto com Janice) das<br />

oficinas de montagem, fala sobre estas oficinas em 1997:<br />

[...] lembro que era em uma sala ampla e Janice deu os textos,<br />

distribuiu os textos para que cada um lesse e se identificasse com o<br />

que lera e... Aí eu li todos os textos, gostei de tudo, mas tinha que<br />

escolher um, tinha “Os cocos”, tinha “A engrenagem”, tinha... e<br />

agora eu não me lembro mais o quê, mas tinha muitos textos e eu<br />

fiquei assim, olhando, é que eu nunca tinha visto um trabalho como<br />

aquele, né? Pra mim, tudo aquilo ali era novo, eu estava muito<br />

empolgada e ficava imaginando: como era que ia fazer para criar a<br />

personagem. Será que já iria logo pra o palco? (Andréia Monteiro,<br />

2007).<br />

Realmente, este foi o pensamento de todos, pensavam logo em palco. Vamos em<br />

frente:<br />

E não sabia que antes de ir ao palco primeiro haveria um estudo do<br />

texto, entender um pouquinho e criar. Eu não tinha visto aquilo, eu<br />

não sabia o que dizer, mas Janice, Benivalda, ajudou muito nesse<br />

sentido. Fizeram com que a gente pensasse como ia descobrir um<br />

outro mundo de argumentações, de pensamentos, que tinha a nossa<br />

capacidade. A partir da, eu comecei. Mesmo a parte prática..., tinham<br />

alguns exercícios que era Diego [quem]entrava, mesmo assim eu<br />

nunca me senti podada em relação a minha criatividade, eu tinha<br />

aquela coisa de gostar dos desafios. (Andréia Monteiro, 2005).


Diego também entoa sobre a dinâmica de composição do ator Artebagaço:<br />

311<br />

Na própria visão de mundo que se construía a liberdade por cada um<br />

deles, nascia uma ideologia, que ideologia nada mais nada menos é<br />

que a visão de mundo que se tem à frente é a idéia de mundo que se<br />

constrói. O que acontece com a arte do Artebagaço, que é<br />

extremamente peculiar, não é a nível mundial. Claramente a gente<br />

não inventou nada, não inventou e nem reinventou, mas é algo de<br />

novo no panorama cênico baiano. Por quê? Porque nós utilizávamos<br />

textos que se explicavam sozinhos. “Você tem que ler estes textos, o<br />

não ler fica, ou nunca vaí entender o que fazemos” 83 . Eles são<br />

extremamente refinados 84 , sensíveis 85 sobre isto. Não se segue um<br />

esquema bem definido, os espetáculos, bem, na verdade, desde o<br />

início eram baseados em contar história intercalada com vários<br />

quadros. Eram fragmentos de situações, de idéias e conceitos que<br />

definiriam o que ficava entre o épico e o absurdo.<br />

Realmente esta era a dificuldade dos estudantes; por estarem acostumados ao<br />

unidimensional não conseguiam ver que os textos apresentavam, em seu conjunto, uma<br />

continuidade histórico-social. Esta era nossa função, como coordenador, nas oficinas de<br />

interpretação: impulsionar ao máximo as forças recalcadas, reprimidas, da<br />

espontaneidade criativa. Com elas, abriam-se as portas ao entendimento do<br />

conhecimento que os textos guardavam, com elas brotava a compreensão de nossos<br />

coordenadores, estávamos ali para colaborar com este entendimento. Mais uma vez<br />

Andréia fala desta experiência:<br />

Justamente eu ficava ensaiando em casa, do meu jeito, com as minhas<br />

vozes, observava que tinha uma impostação de voz muito boa,<br />

conseguia projetar a minha voz, tinha muita expressão. Eu queria o<br />

melhor cada vez mais e isto não me foi podado por nenhum dos três<br />

86 , ao contrário, Diego quando via que estava atingindo o ponto, aí é<br />

que ele impulsionava ainda mais, ainda que eu ficasse irritada, eu<br />

dizia a ele:<br />

- Até aqui eu posso.<br />

Mas ele dizia:<br />

- Não, você pode mais.<br />

E também Janice me ajudava no sentido da compreensão, não só da<br />

expressão, não só da prática, mas de entender o que estava fazendo,<br />

porque, quando a gente entende o que a gente lê, agente tem<br />

facilidade de se expressar o que cria.<br />

83 Esta fala refere-se ao que diz o ator durante as oficinas de leitura.<br />

84 Fala da complexidade simbólica que Juana E. Santos (2002 a, p.24) denomina “símbolo-complexo”.<br />

85 “A dimensão emocional lúcida capaz de transformar, mobilizar e abrir caminhos que possam concorrer<br />

para uma maior conscientização e compreensão sobre a importância da criação emocional e da cultura do<br />

mundo contemporâneo” (SANTOS, J., 2002a, p. 63).<br />

86 Ela fala dos coordenadores: Diego, Beni e Janice.


312<br />

Nas Oficinas de Leitura, os adolescentes e jovens descobrem os princípios da<br />

estrutura político-comunal Artebagaço, a ética e a estética. É introjectando os princípios<br />

e valores que alicerçam a dinâmica socioexistencial do grupo que eles se tornam atores<br />

artebagacianos. Sem a compreensão do que dizem os textos, a pessoa não se sente<br />

envolvida na dinâmica do grupo, perambula nas reuniões até o próprio grupo orientá-lo<br />

para este caminho, ou a pessoa termina saindo do grupo.<br />

Nessas oficinas, principalmente a de Leitura Cênica, os jogos de cena com<br />

situações cotidianas vivenciais e/ou presenciais desdobram-se em duas dimensões<br />

invisíveis e reais: o palco, com atores vivendo as cenas extraídas do texto, elaborando,<br />

intuindo e dizendo; e a platéia, com atores apreciando as cenas, vivendo-as e<br />

concebendo-as sem usar a palavra, a platéia cria tipos variados recriados com o uso<br />

apenas de uma pequena gestualidade, respiração e o olhar profundo e atento. Por isso<br />

não se delegam poderes apenas aos atores, a platéia, o ator invisível, cria seu órun 87 e<br />

entra em cena.<br />

Sempre, depois das encenações, ouvimos nos corredores trechos dos textos<br />

sendo ditos pela platéia que brinca e expande as cenas para além do palco. A dinâmica<br />

da platéia começa no próprio grupo, com o elenco de outra cena e a coordenação do<br />

grupo, sobretudo a direção cênica geral. Esta é a primeira platéia a fazer a apreciação<br />

cênica, depois é que temos a platéia externa, quando saímos para a encenação pública.<br />

● Oficinas de Fundamentos e Montagem Cênica<br />

A dinâmica destas oficinas começa na oficina anterior, de maneira que Diego<br />

Nicolin que, geralmente, estava à frente da direção 88 teatral, participava das Oficinas de<br />

Leitura Cênica junto com Beni Moraes, que estava atenta à criação do figurino e<br />

instrumento para o cenário. Conseguimos sistematizar quatro etapas complementares,<br />

descritas a seguir.<br />

Fundamentos para encenação: caracteriza-se por uma roda de conversas em<br />

torno da encenação onde se montam grupos responsáveis por cada linguagem e<br />

definem-se prazos aproximativos de cumprimento das tarefas, como, por exemplo, o<br />

grupo de figurino providenciar roupa, maquiagem, o grupo de divulgação estabelecer<br />

87 Relembrando que órun é uma possibilidade real e vivida no universo africano-nagô, é a dimensão<br />

invisível que se desdobra, paralelamente à dimensão concreta e visível, o aiyê, mundo em que vivemos.<br />

88 Ressaltamos que Janice e Beni também faziam os trabalhos de direção, por uma questão de acúmulo de<br />

tarefas, ou distribuição dos poderes no grupo. Janice dedicava-se mais às Oficinas de Leitura e Expressão<br />

de Voz, Beni, com figurino, divulgação e cenário; Diego à direção geral teatral, mas a produção era do<br />

Grupo Artebagaço.


313<br />

pontos de distribuição do material. Nesta oficina, adolescentes e jovens descobrem<br />

como se realiza uma produção cênica, nela discute-se, passo a passo, o que é necessário<br />

para realização do espetáculo ou encenação.<br />

Ensaio parcial ou cena semi-individualizada: nesta segunda etapa, elabora-se<br />

a montagem dos quadros isolados compostos por pequenos grupos, geralmente em<br />

quadros como prólogo e epílogo, que se caracteriza por monólogos. O trabalho<br />

desdobra-se na relação ator/atriz e o diretor compondo a cena. Também nesta etapa, o<br />

artebagaciano apropria-se da dinâmica de composição cênica do monólogo.<br />

Ensaio geral ou cenas socializadas: terceira etapa é quando se reúnem todos os<br />

quadros cênicos, e os artebagacianos adolescentes e jovens passam a ter uma visão<br />

ampla da realidade que conceberam. Neste momento, o nome da encenação torna-se<br />

mais próximo e a compreensão da totalidade sócio-histórica, da qual ele é parte, vaí<br />

alargando-se cada vez mais e sempre que apresenta a encenação para uma nova platéia.<br />

Encenação ou espetáculo 89 teatral: é neste momento que se colhem os frutos,<br />

pois o espetáculo é a recriação do cenário real da luta. É neste espaço se guerreia, isto é,<br />

o texto que diz o ator é uma arma contra o poder neocolonial, os representantes das<br />

“feitorias”, dos grupos de “compadrismos”, dos “privilégios” mantidos pela “Razão de<br />

Estado” (LUZ, N., 2000), que se sentem ofendidos com o que vêem e ouvem ditos pelo<br />

corpo e voz dos atores. Logo os artebagacianos em palco se sentem no campo de divisão<br />

do poder e do saber.<br />

Quem melhor entoa sobre esta situação é Diego Nicolin, que esclarece este dado<br />

abordando a relação entre o épico e o absurdo desta estética Artebagaço:<br />

Épico por quê? Porque a função disto 90 é fazer pensar tanto o ator<br />

quanto o público qual o seu papel na sociedade, quando ele desculpa<br />

a palavra, quando ele é feito de bobo a cada dia, a cada situação, a<br />

cada momento do seu existir, este é o papel do épico.<br />

Do absurdo por quê? Porque a realidade é absurda 91 e por isto<br />

mesmo nós tentamos fazer com que o nosso ator, em palco, lute, ser<br />

um ator incrível, que o público acreditasse no que ele estava dizendo,<br />

no que ele estava fazendo. A situação, em certo momento, em certo<br />

ponto, da ação dramática se revelava como absurda, como<br />

contraditória, irreal, porém extremamente verdadeira. Nisto aparece<br />

o quê? O homem absurdo, o homem que não acredita mais no<br />

89 É importante compreender que o termo espetáculo não se relaciona ao sentido de espetacularidade,<br />

espalhafatoso que está a serviço da industria cultural. Espetáculo refere-se a “[...] apresentação pública de<br />

teatro, canto ou dança. 2. o que atrai atenção. 3. panorama, visão,” (HOUAISS, 1985 p. 179).<br />

90 O esforço cênico do ator no espetáculo para ser compreendido, mesmo que negativamente, pela platéia.<br />

91 Absurda porque é vivência que, diante dos olhos positivistas deve ser petrificada.


314<br />

paradigma que aí está, nos dogmas que são impostos pela sociedade e<br />

que ele tem que buscar novos caminhos, novas respostas, buscar nele<br />

o que é verdadeiro, despojado, desvestido, nu na sua verdadeira<br />

existência e por isto aberto a toda e qualquer experiência que tenha<br />

sentido para sua experiência de viver. Talvez isto tenha acontecido na<br />

segunda fase do Artebagaço, no Odé, que busca na ancestralidade, às<br />

vezes nos antigos temas do Artebagaço, esta destruição dos mitos<br />

modernos para reconstrução de um caminho que ainda está em<br />

formação, desse novo indivíduo que está na sociedade, não como uma<br />

ovelha que está junto às outras, simplesmente, seguindo o líder, sem<br />

ter consciência do que ela esteja fazendo, no conjunto dos outros, mas<br />

como uma identidade própria, como a própria vontade de ser, (Diego<br />

Nicolin, 2005).<br />

Por esses ecos de Diego, é possível perceber que o termo espetáculo não se<br />

refere ao “produto final”, não é o “espetáculo pedagógico” do “trompe-l’oeil escolar”<br />

cuja meta técnico-produtivista é apresentar “corpos dóceis”, soldados perfeitos e<br />

prontos para compor o exército de produção fabril 92 , dos que recebem e transmitem<br />

ordens capitalistas, nem tampouco, os “corpos dóceis”, do trabalhador escravizado, dos<br />

que garantem a expansão da linha de produção em massa, dos que apenas recebem<br />

ordens e cumprem-nas sem questionamentos.<br />

A política cultural comunal Grupo Teatral Artebagaço, entre o período de 1997 e<br />

2001, compôs sete espetáculos artístico-culturais para adultos e um infantil. Seis destes<br />

apresentaram o estilo lírico-satírico com traços épicos, constituído por metáforas<br />

carregadas de ironia e sarcasmo, tradutores não só do paradoxo existencial, que é<br />

próprio das vivências comunais, como da estética pluricultural africano-brasileira que já<br />

apresentamos.<br />

O primeiro espetáculo “Pedaços dos anos 60”, composto por um elenco de 40<br />

atores, não apresentou nenhuma característica do estilo Artebagaço. Teve a produção,<br />

direção e texto de Beni Moraes e caracteriza-se por uma crítica aos valores impostos<br />

pela ditadura militar, sem aprofundamentos, pois era apenas para aquecer os ânimos do<br />

elenco em composição. Um grande destaque foi a cortina feita de papel higiênico.<br />

Contribuiu para afirmação da proposta de formação de platéia Artebagaço no<br />

colégio, tivemos um público com mais de 50 pessoas nos eventos e para o dinamismo e<br />

interesse em participar da proposta do grupo.<br />

92 “Suprir o mercado de trabalho”


Figura 187<br />

A cortina de papel higiênico, 1997.<br />

315<br />

No mesmo ano, agosto de 1997, estréia “Fundo de Garrafa”. Primeiro espetáculo<br />

com o estilo próprio Artebagaciano, apresentava uma composição lírico-satírica, com a<br />

estrutura triangular estabelecendo a relação platéia, personagem e ator, através de um<br />

monólogo que abria, intercalava e fechava o espetáculo, expressando os sentimentos de<br />

um bêbado, uma referência simbólica excluída da sociedade oficial, mas presença<br />

constante nas comunidades africano-brasileira e conhecida por todos.<br />

Esse personagem simboliza a voz autoral Artebagaço, que, aliás, a partir deste<br />

espetáculo, participa com esta estrutura monológica lírico-satírica de todas as seis<br />

encenações, pois tem a função simbólica de enunciado crítico tradutor do ethos do<br />

grupo comunal. É ele quem traz o questionamento sobre o significado “Fundo de<br />

garrafa”, restos ou aquilo que a sociedade “produz”, suga e joga fora, logo, bagaços,<br />

que, para o Grupo Arte & Bagaço, é referência de renovação em arte. O elenco tinha 30<br />

atores.<br />

O espetáculo foi composto por cinco quadros: o Prólogo, feito por um bêbado;<br />

“Eu me chamo G”, outro monólogo, “Os cocos”, uma cena social. “Os burgueses,<br />

também social, “Antena ligada”, uma crítica à escola socializada em grupo, o epílogo. A<br />

cortina de papel higiênico volta outra vez, pois foi alvo de críticas pela representação do<br />

poder neocolonial que disse ser “mal gosto”.<br />

Figura 188 Figura 189 Figura 190.<br />

Prólogo: O bêbado. 1997. “Eu me chamo G”. 1997. “Os cocos”. 1997.


Figura 191<br />

“Antena Ligada”. 1997<br />

316<br />

Em agosto de 1997, também montamos “Onde estás que não respondes”. O<br />

elenco tinha 40 atores e contou com um público de 800 pessoas no Teatro ICEIA. Foi<br />

uma encenação para atender ao pedido da direção que queria inscrever o colégio num<br />

festival estudantil promovido pelo órgão superior do sistema escolar em comemoração à<br />

Semana do Estudante, inclusive nos disse como deveríamos montar as cenas, nos<br />

ofereceu fontes e tudo mais. O tema era: 150 anos da morte de Castro Alves.<br />

Resolvemos aceitar, afinal os meninos e meninas do Arte & Bagaço estavam<br />

animados. Para nós que admiramos não só a literatura como o poeta Castro Alves, foi<br />

também gratificante. Para Beni, era poder viver a história da escravização à luz de<br />

Castro Alves. Então, num final de semana dois dos coordenadores, Janice e Diego<br />

montaram as cenas ao modo Artebagaço, desprezando os textos recomendados.<br />

Pegamos nosso acervo, adaptamos as cenas num contexto de Carnaval, concentradas em<br />

frente à estátua do poeta.<br />

Nestas cenas passaram Jorge Amado, Caetano Veloso, Carlinhos Brown, Ildásio<br />

Tavares, a imprensa especulativa, a polícia contra os atos dos negros e ignorando os atos<br />

dos brancos, espancando mendigos. Sobretudo pusemos a alegria do Carnaval em palco,<br />

a euforia, o dinamismo e a dinâmica africano-brasileira sendo apreciada por Castro<br />

Alves e Virgília 93 , sua amada, que o trouxe para apreciar a vida do povo que lutou para<br />

ser livre, logo eles eram a platéia que viviam as cenas.<br />

Foi bem aceita porque trazia o humor da alegria do afro-baiano, mas trazia os<br />

trechos originais da obra de Castro Alves, o próprio título da peça: “Onde estás que não<br />

respondes?”. Este foi retirado do poema “Vozes d’África”, ei-lo: “Deus! O’ Deus! Onde<br />

estás que não respondes? / Em que mundo, em qu’estrela tu t’escondes/ Emburaçado<br />

93<br />

Virgília, personagem criada por Diego, inspirada na Divina Comédia, quando Dante coloca o poeta<br />

romano Virgílio em busca de Deus.


317<br />

nos céus?” (apud SOUZA, 1997, p. 60) Esta peça com duração de 15 minutos irá<br />

compor um dos quadros do próximo espetáculo teatral.<br />

Figura 192 Figura 193<br />

O Carnaval, na praça Castro Alves. 1997. Castro Alves vendo a violência policial, 1997.<br />

Em 1998, após quatro meses de trabalhos de iniciação e aprofundamentos nos<br />

textos, conseguimos fazer a montagem do espetáculo “Tá bom pra cachorro”. O<br />

espetáculo ultrapassou os muros do colégio, com várias apresentações em teatro, foi o<br />

maior espetáculo apresentado pelo grupo. Destacaremos, depois, este espetáculo por ser<br />

o que melhor expressou o ethos artebagaciano.<br />

Em 1999, no segundo ano de apresentação do espetáculo “Tá bom pra<br />

cachorro”, preparávamos “Do outro lado do espelho” –, peça que trouxe a reflexão<br />

sobre as formas de exclusão do sistema de ensino, retratada pela morte de um estudante,<br />

que passa a ser investigada por um personagem multifacetário que assume diversos<br />

papéis, desde um louco fingindo-se de agente policial de investigação do caso, um<br />

arcebispo e até um médico. Em seus disfarces, é reconhecido, apenas, pelo segurança do<br />

colégio. Ao mesmo tempo em que aterroriza, também tranqüiliza, de maneira que<br />

consegue descobrir o assassinato, embora não fosse o policial recomendado. Por isso,<br />

quando o policial designado chega, é considerado um farsante. Também há muito<br />

humor e traz três quadros com prólogo e epílogo: “Morte acidental de um estudante”<br />

adaptado de um texto escrito Dário Fó, que ganhou o Prêmio Nobel de Literatura,<br />

intitulado “Morte acidental de um anarquista”, além de “História é uma história”, texto<br />

de Milor Fernandes, e “Trapalhada”, texto do Artebagaço.<br />

Este último foi pela primeira vez aposentado num Congresso Nacional de<br />

Leitura, promovido pelo Projeto Pró-Leitura em 1998, no IAT (Instituto Anísio<br />

Teixeira), órgão da Secretaria de Educação do Estado, que rendeu aplausos e<br />

reconhecimento da crítica artebagaciana ao todo social político-cultural neocolonial.


318<br />

Vejamos algumas imagens de “Morte acidental de um estudante” em que a abordagem<br />

cênica principal é a violência social urbana.<br />

Figura 194 Figura 195 Figura 196<br />

Cena com diretora, vice e jornalista. Cena. Segurança aponta arma p/ louco. O louco reage com dinamite. 1999.<br />

Em 2000, estréia “O Auto da Compadecida”, espetáculo adaptado da obra de<br />

Ariano Suassuna. Vem com um elenco novo, pois alguns dos antigos atores tinham<br />

ingressado na universidade e se afastaram para enfrentar os obstáculos do novo espaço,<br />

para eles, do nomos ocidental. Esta encenação foi um experimento que não agradou,<br />

principalmente, a Diego, pois, para fazê-lo, fugimos totalmente dos propósitos políticoculturais<br />

de oposição à monocultura, que era a razão da existência Artebagaço.<br />

Contudo tivemos a oportunidade de criar um excelente cenário, figurino,<br />

desenvolver um trabalho de expressão corporal e de diversidade vocal fantástica que<br />

transcenderam a expectativa até mesmo do grupo. Foi o espetáculo mais caro do grupo,<br />

que possuía uma auto-sustentação econômica. Observem-se algumas imagens para<br />

perceber a diferença de linguagem, em relação às demais 94 , que caminha cada vez mais<br />

para o sentido consciente de educação pluricultural:<br />

Figura 197 Figura 198 Figura 199 Figura 200<br />

Inicio. Chico e João Grilo no Bar Bagaço. Chico e o padre. Igreja Chico e Coronel. Bar. A mulher do Padeiro. 95<br />

94 Sugerimos que analisem as fotos desde o grupo de Magistério, e vejam que o cenário é enriquecido<br />

num crescendo de cores e códigos simbólicos variados.<br />

95 Nesta cena, a mulher do padeiro chora, lamenta a morte do cachorro e exige uma missa de sétimo dias<br />

para o cachorro, sob a alegação de retirar os proventos caso não tenha sua ordem acatada pelo padre. Em<br />

cena, o padeiro e a mulher, o padre e o cachorro morto nos braços da mulher.


Figura 201 Figura 202 Figura 203 Figura 204<br />

Expressão corporal, cenário e figurino. Expressão e figurino<br />

Figura 205 Figura 206 Figura 207 Figura 208<br />

O ator e o texto: A expressão de dor. O cortejo fúnebre.<br />

.<br />

Figura 209 Figura 210<br />

Visão holística do cenário. 2000. Parte do elenco fazendo agradecimento.<br />

319<br />

Este foi o último espetáculo com a direção geral de Diego Nicolin no<br />

grupo. Depois, estudos acadêmicos conduziram-no a outros olhares cênicos que<br />

não favoreciam a expansão da dinâmica socioexistencial, nem a dinâmica de<br />

linguagem artístico-teatral do Artebagaço. Ao contrário, eram dinâmicas bem<br />

aceitas no âmbito acadêmico, sistematizadas por celébres estudiosos ocidentais,<br />

mas que agrediam o corpo do ator artebagaço que reagia tão contrário a isto<br />

quando as normas curriculares. Foi mais um experimento que, sabemos, hoje,<br />

não era bem-vindo.<br />

Em 2001, o grupo compõe “A comparecida”, inspirado na temática de<br />

Ariano Suassuna, influenciado pelo olhar de valorização das linguagens de<br />

manifestações culturais herdadas do africano-brasileiro e do indígena brasileiro.


320<br />

“A comparecida” recriou um cenário de teatro de rua, foi apresentado no<br />

colégio e na FUNDAC (Fundação de Desenvolvimento ao Adolescente e a<br />

Criança), em Brotas, mas depois deste espetáculo, nós mesmos propusemos,<br />

apesar do choro e das lágrimas dos adolescentes e jovens, que encerassem as<br />

atividades.<br />

A decisão parte do nosso entendimento de que o Grupo Teatral<br />

Artebagaço foi criado para gerar e alimentar um cenário de experiências com<br />

vida, para dinamizar os valores recalcados pela política social neocolonial,<br />

sobretudo educacional, para criar lagoas dayó, alegria em iorubá, divertimento,<br />

ampliação do conhecimento pluricultural herdado da humanidade e isto deixou<br />

de acontecer, por isto entramos em silêncio profundo para manter a vida:<br />

3.4.2 “É Preciso derrubar os muros”<br />

O Artebagaço para mim era tudo, lá eu fazia teatro e hoje eu vejo que<br />

não faço teatro como antes, hoje vejo que sou podada na<br />

Universidade Federal, sou podada. Quando decidi fazer teatro, entrar<br />

na universidade, foi para ampliar mais meus conhecimentos, mas<br />

quando cheguei, realmente, me frustrei porque a universidade lhe dá<br />

um embasamento teórico, você estuda o que é teatro, você estuda a<br />

história do teatro, mas em relação à criatividade você é podado, você<br />

não tem a oportunidade de mostrar, não o que Andréia cria, mas o<br />

que o Artebagaço fez por mim com relação à função de atriz.<br />

(Andréia, 2005).<br />

De todos os espetáculos realizados, “Tá bom pra cachorro” foi o maior desafio<br />

do Artebagaço. Levamos dois anos com esta peça em cartaz, produzimos outra para<br />

motivar o elenco, mas o público pedia sua continuidade. Estivemos em vários colégios<br />

de Salvador e do interior de Estado. Apresentamos em três teatros relacionados à<br />

Fundação Cultural do Estado da Bahia e em vários eventos culturais e educativos de<br />

Salvador, como na reunião técnica do Projeto Pró-Leitura, em 1998, no Instituto Anísio<br />

Teixeira, (IAT).<br />

O espetáculo consiste na crítica aos valores da sociedade urbano-industrial, por<br />

isso traz, desde sua abertura, um personagem denominado Grilo que simboliza a voz<br />

autoral Artebagaço, expressa o “emocional lúcido” (SANTOS, 2002a), através da<br />

análise dos obstáculos ideológicos impostos por esta sociedade monocultural que<br />

agridem a alteridade cultural, a alteridade própria.


321<br />

A peça é carregada de tons irônicos, sarcásticos, que revelam o lirismo crítico da<br />

existência artebagaciana, porém sempre mantendo resguardado no épico o sentido<br />

histórico-político-social o conhecimento que leva a platéia ao alcance do que oculta as<br />

políticas educacionais a serviço do imperialismo da arkhé americana, que impõe uma<br />

formação escolar mantida na relação “sujeito produtor-consumidor” e da arkhé<br />

eurocêntrica neocolonial, que impõe a ideologia da escravização por meio do estigma de<br />

inferioridade civilizatória africana e aborígine brasileira.<br />

Na peça, o texto não detalha a situação sociocultural, mas nuances deixam<br />

escapar as situações de recalque cultural que se percebe na entonação e gestos dos<br />

atores. O espetáculo feito em dois atos, pode ser visto no DVD 96 , é aberto pelo<br />

personagem Grilo, a voz autoral do Artebagaço. Vejamos trechos de cada um dos<br />

quadros que compõem a totalidade cênica.<br />

O Grilo entra no palco, saltitante, gargalhando, portando bermuda e camisa com<br />

mangas longas de cor preta, olha bem a platéia, gesto de quem pensa, sempre<br />

caminhando de um lado ao outro do palco, de repente pára e diz:<br />

Talvez agora, esperem quem ache o culpado. Não, não! Isto aqui não é<br />

um filme onde os bonzinhos chegam sempre no último instante. Este<br />

aqui é o teatro! E se a polícia chegar para nos prender? Sim, somos<br />

uma companhia de ladrões, roubamos tudo, não fazemos distinção de<br />

cor, raça e religião, queremos e pegamos. Já roubamos muitas coisas<br />

valiosas. Por exemplo: os sonhos de muitas crianças, o sono de muitos<br />

adultos, a dívida dos pobres e o orgulho dos ricos, de tudo já<br />

roubamos um pouco. Trapaceamos e nunca nos arrependemos.<br />

Muitas vezes, tivemos que nos esconder no mato, no esgoto como<br />

ratos. Anos atrás, sim, não muito na verdade, queriam que calássemos<br />

a boca: nos perseguiram, nos torturaram, mas não conseguiram nada!<br />

Então, pensávamos ter ganho a guerra.... Quando de repente: Tchan,<br />

tchan, tchan...! A imbecilidade nos derrotou, nós falamos e os outros<br />

não entendem: completamente idiotas, mentecaptos, imbecis...<br />

Eles haviam ganho! Como não conseguiram fechar a boca dos<br />

saltimbancos, fecharam a mente do povo! Aí sobrou-nos apenas o<br />

roubo para sobrevivermos, roubamos tudo e roubamos a todos. Se<br />

você tiver um trocadinho, um tempinho, nós roubamos. Mas, agora<br />

olhe a história que vamos apresentar, quando acordar... Há, há, há!<br />

O Grilo sai, deixando uma grande interrogação, como sempre. Ele representa a<br />

nossa criatividade, nossa intuição, nossa mente criadora que vive escondida, às vezes,<br />

para não ser totalmente apagada pela repressão unidimensional.<br />

96 O material é em forma de mídia, não foi editado para preservar a fonte.


322<br />

Quando sai, entra outra peça “A brincadeira da corrente”, uma peça na qual a<br />

platéia também é ator, a temática gira em torno da crítica à política democrática das<br />

eleições no solo urbano-industrial e aponta as intenções do político que sempre promete<br />

antes de eleito e, depois, realiza as mesmas ações de qualquer político.<br />

Volta ao palco o ator que saiu da última cena fazendo o Grilo (aparência de<br />

preocupado).<br />

(A1) – Pessoal, o nosso elenco está com problemas, por isso não<br />

vamos continuar agora, mas não se preocupe, pois pensei em fazer<br />

uma brincadeira enquanto esperamos. É um jogo simples, o nome é a<br />

brincadeira da corrente, quem usa a corrente conduz o jogo e os<br />

outros fazem o que ele mandar. Quando cansar escolhe-se um outro<br />

para botar a corrente e assim pra frente. Entenderam? Bem eu vou<br />

começar porque já sei como é.<br />

(A2) – Tá certo comece logo.<br />

(A1) - Tudo bem, agora todos juntos: Parapá!<br />

(Gr) – Parapé<br />

(A1) – Tá fraco, tá fraco, outra vez. Parapaaa!<br />

(Pu) - Parapaaa.<br />

(A1) – Ótimo! Bom mesmo. Perepee!<br />

(Pu) - Perepeee.<br />

(A1) - Piripi, perepe, piripi, perepe!<br />

(Gr) - Piripiii perepee piripiii perepeee<br />

.<br />

(A2) - (Levanta-se aborrecido e com sinais de aprovação do grupo)<br />

Basta! Você quer que façamos coisas absolutamente idiotas!<br />

Queremos mudar!<br />

(A1 insatisfeito) - Se é isso que vocês desejam... Tudo bem, vamos<br />

fazer novas eleições, ( coloca quem reclamou para disputar o lugar<br />

com ele) mas pensem bem em quem vaí votar, ele conduzirá o jogo,<br />

escolham com calma, não se deixem influenciar e, enquanto pensam,<br />

olhem bem esta luzinha aqui... Sim, assim, muito bem! Escolheram?<br />

(A3) - Sim. (indica o que reclamou) Votamos em você.<br />

(A3) - (Levanta e sobe em um cachote, depois de ter recebido a<br />

corrente, e com ar cerimonioso discursa). Agradeço a todos pela<br />

honra e pela confiança que investiram em mim. Prometo trabalhar<br />

com honestidade, para nós e para nossos filhos! Agora, todos juntos,<br />

rumo um futuro melhor! Parapá!


(Gr) - Parapaaa.<br />

(A3) - Perepé. (Gr) - Perepeee. (A3) - Parapá perepé<br />

323<br />

(Gr) – Parapaaa e Perepeee. (continuando assim, todos saem do<br />

palco.)<br />

A – ator PU – Publico Gr – grupo.<br />

Todos saem do palco dizendo “parapaa”, enquanto isto, a música “Imagine” de<br />

Jonh Lenon dá início à segunda peça, que é uma coreografia movida pela música, tendo<br />

como pano de fundo a temática da gravidez sendo abordada como algo desprezível e<br />

abominável por parte do jovem do solo urbano-industrial. Aprofunda-se nos valores de<br />

celebração do ato sexual como fonte de prazer, mas traz a reflexão sobre a fecundação,<br />

que representa o contrário para este jovem. Esta peça não teve texto escrito.<br />

A próxima peça foi escrita por Millôr Fernandes e apresenta uma abordagem<br />

crítica da trajetória histórica da humanidade, constituída por um amplo cenário que<br />

apresenta a vivência social desde o homem ancestral africano aos tempos atuais,<br />

chegando à política etnocêntrica médico-evolucionista e ao imperialismo americano. A<br />

peça denominada A história é uma história, (1978) traz muito humor e crítica aos<br />

valores imperialistas. Com esta peça, fechamos o I ato. Vejamos um trecho:<br />

Apresentando<br />

Vamos contar aqui a História, do ponto de vista de 1976: como todos<br />

sabem, um ano que não aconteceu. Os personagens históricos, como<br />

também ninguém ignora, são todos inventados, para que os jovens<br />

gastem a juventude se aprofundando no que eles näo disseram nem<br />

fizeram. As roupas, cenários e atores do espetáculo também são de<br />

mentira. Por isso näo entrem em pânico se, de vez em quando,<br />

sentirem aquela estranha sensação do passageiro que viaja num<br />

avião sabendo que a bagagem, com tudo que possui, viaja em outro.<br />

O resto é normal<br />

ATOR I<br />

(Entra. Preocupado. Caminha. Depois de um tempo percebe o público<br />

e começa a contar uma história) – A senhora, uma dona-de-casa,<br />

estava na feira, no caminhão que vende aves abatidas. O vendedor<br />

ofereceu a ela uma galinha. Ela olhou bem a galinha, puxou a pele da<br />

nuca da galinha, passou a mão em baíxo das asas da galinha,<br />

apalpou o peito da galinha, alisou as coxas da galinha, enfiou o dedo<br />

no fiofó da galinha, depois tornou a colocar a galinha na banca e<br />

disse para o vendedor: “Não presta”. Aí o vendedor olhou para ela e<br />

disse:<br />

–“Também, madame, num exame assim nem a senhora passava.”


MORAL – A gente näo deve catucar demais a história.<br />

324<br />

O segundo ato de “Tá bom pra cachorro” penetra nas questões de vivência do<br />

homem brasileiro no mesmo cenário de negação da sua alteridade. Para tal, três quadros<br />

abordam o universo de recalque desde o nascimento à fase de adulto. O primeiro é um<br />

quadro recriado por Janice Nicolin “Quem roubou meu sonho”; em seguida, vem o<br />

quadro “A venda”, que aborda o universo dos “corpos dóceis”, com o pensamento<br />

travado pelo etnocentrismo. É perseguido um membro do grupo que desperta para a<br />

realidade subjugadora e rompe com a servidão e, por isso, é capturado e punido. Por<br />

fim, “A trapalhada”, um quadro construído numa linguagem crítica e humorada, que<br />

apresenta um cenário com o personagem Monteiro Lobato vivendo cenas no Brasil<br />

cinqüenta anos depois de sua morte, para fazer um relatório da vivência atual da<br />

sociedade brasileira, ao Deus Todo Poderoso que o aguarda no Paraíso “A trapalhada”<br />

traz teatro música e dança.<br />

Vejamos os trechos de “Quem roubou meus sonhos”:<br />

JN - Quando nasci disseram: "Que lindo, vaí ser um presidente da<br />

República." Não sabia o que era isto. Aos três anos disseram-me: “Já<br />

é tempo de ir à Escola.”. Também não sabia do que se tratava e<br />

perguntei:<br />

J.A - O que era Escola?<br />

C - É um lugar onde se aprende a ler, escrever e encontrar Ideologia.<br />

J.A - Ideologia? Que palavra bonita. Gostei. Fiquei feliz, porém<br />

esperava ansiosamente encontrar-me com esta tal de Ideo... Deixa pra<br />

lá, mas aquelas vozes continuavam...<br />

C - Vamos logo! O paraíso lhe espera !<br />

JN – Empurravam-me, esticavam-me! Eu estava feliz, eufórico,<br />

ansioso! Ia encontrar-me, finalmente, com Ideologia e melhor, com<br />

Deus! É sim com Deus, se estava indo para o paraíso, portanto ia<br />

viver com Deus.<br />

P - ( Com o dedo no rosto de um menino ) Fique quieto, se não fica de<br />

castigo sem merendar.<br />

JA - (Cabisbaixo) Eu não fiz nada, estava só olhando!<br />

JN - Mesmo assim sonhava...<br />

JA - Quando crescer serei professor, talvez médico. Não. Professor,<br />

aquele que ajuda a encontrar Ideologia. Bem, ainda não a encontrei,<br />

mas com certeza, a pró vaí me ajudar.


325<br />

JN - É, mas no segundo grau... (amostra a sala de aula: professor<br />

vendado e alunos fumando, alunos se agredindo e ao professor<br />

também. ( MÚSICA ) J1. bate palmas e todos congelam.) Muitas<br />

coisas mudaram, inclusive minhas esperanças. (Se afasta e dois<br />

alunos do coro viram-se de frente para o público conversando)<br />

A - E aí, cara vaí fazer Vestibular pra quê?<br />

JA - Ainda não sei. Não consigo pensar! E você consegue?<br />

A - Pensar! Qual é, isto é coisa de Primeiro Mundo, eu não estou a<br />

fim de esquentar minha. (aponta a cabeça) Tá ligado?<br />

J.A - Quem lhe disse que pensar esquenta a cabeça?<br />

A - Todo mundo. Me diga que você ainda não ouviu Todo Mundo<br />

dizendo isto? (J.A balança a cabeça negando)<br />

J.A- Que mais fala Todo Mundo?<br />

A - Que Ninguém é que faz bem, pois tem cabeça fria. Ele não pensa,<br />

cara. Vamos para aula?<br />

J.A- Não sei, (pensativo se dirige para o público), acho que vou ligar<br />

para Primeiro Mundo... Sim vou perguntá-lo como se faz para<br />

esquentar a cabeça. Quem sabe também ele me diga onde vou<br />

encontrar Ideologia? Quem sabe? ( Sai do palco. Música, sala de<br />

aula satisfatória. J. fala. )<br />

J.N – Jovem Narrador J.A. Jovem Ator A – Aluno. P. Professora C –<br />

Coro.<br />

“Quem roubou meus sonhos” é a criação do Artebagaço que mais se aproxima<br />

da realidade vivida na escola, inclusive consegue ser tradutora da relação estabelecida<br />

entre o significado que os pais atribuem à escola, como lugar de educação<br />

transformadora da criança num adulto livre e consciente de seus atos, e o que a<br />

sociedade oficial deseja que todos pensem.<br />

A crítica reside em mostrar que tudo se realiza ao contrário. Assim, J. A. (Jovem<br />

Aluno) é o personagem que entra na escola para encontrar os valores ideológicos do<br />

mundo ocidental, a visão social do homem burguês, contudo o que ele encontra é uma<br />

realidade social adversa caracterizando a violência escolar.<br />

O título “Quem roubo meus sonhos” traduz a frustração da criança que vê sua<br />

alteridade denegada, porque nenhuma criança vai para a escola em busca de ideologia,<br />

vai em busca de um novo espaço de alegria que lhe ofereça mais satisfação que a<br />

família e a comunidade oferecem: “Ideologia? Que palavra bonita. Gostei. Fiquei feliz,<br />

porém esperava ansiosamente encontrar-me com esta tal de Ideo...”. Quer dizer, houve<br />

um sonho que fora roubado.


326<br />

O outro quadro é “A venda”, que é continuidade do processo ideológico só que<br />

visto de outro ângulo, a partir de uma política de perseguição da “casa grande a<br />

senzala”. Aproxima-se muito do que acontece dentro e fora da escola quando o jovem, o<br />

adulto ou qualquer pessoa percebe que a ideologia escolar é uma armadilha para mantêlos<br />

presos à política do escravismo neocolonial e do imperialismo americano. Neste<br />

ponto, estas pessoas deixam de ser vendadas, cai-lhes a venda e elas descobrem um<br />

mundo de matizes diversos. É o acordar do corpo docilizado e a iniciação do corpo<br />

Artebagaço. Vejam a narração de “A venda”:<br />

(At) - Vendópolis: uma cidadezinha limpa, ordenada, pequenininha,<br />

porém organizada. Nasci aqui há 33 anos atrás, sou casado, sinais<br />

particulares: Venda de várias cores. ( sinalizando para alguém que<br />

passa) - Como vaí? Muito bem obrigado. Fui também ao médico que<br />

achou-me, perfeitamente, sadio: visão das coisas..., zero, nevrose<br />

aguda, condicionamento total. Normal, enfim. Porém têm alguns dias<br />

que acho que esta Venda não funciona muito bem. Esquisito é<br />

novinha, novinha! Hoje as fazem assim bonitinhas: com cores, de<br />

vários tecidos e formas...Nada a ver com as vendas depois de 64...<br />

Primeiro eram preta, obscuridade total... Outras vendas, outras<br />

espessuras... Cada jogada a cabra-cega! Porém têm uns dias que<br />

acho que esta venda deixa enxergar alguns objetos, algumas caras,<br />

intuir alguns movimentos. Estou um pouco preocupado... Será que<br />

ficou folgada? Se for só isso posso eu mesmo apertá–la, é muito fácil.<br />

Talvez um pouco arriscado, mas é bastante prestar muita atenção...<br />

Assim... Sim, assim... Afé Maria, caiu a venda! Oi!Estou sem venda! É<br />

a primeira vez na minha vida que fico sem venda! Pois acho que não<br />

fica tão ruim assim!<br />

(Gr) - É louco, É louco.<br />

(At) - Não, não estou louco. Digo que talvez se possa viver sem venda.<br />

(Gr) - É louco perigoso, É louco perigoso!<br />

(At) - Mas nãoo... , ao contrário, aliás vos digo: eu, a venda, não a<br />

uso nunca mais!<br />

“A trapalhada” fecha as apresentações dos quadros, antes do Grilo, que faz o<br />

epílogo. É uma peça que reforça o pensamento crítico Artebagaço da ideologia<br />

eurocêntrica. A peça escrita por Diego Nicolin reafirma que a ideologia encontra-se em<br />

todos os espaços da sociedade, não apenas na escola, por isso este texto faz uma crítica<br />

aos valores ético-morais judaíco-cristãos da sociedade oficial, ressaltando a denúncia da<br />

servidão colonial do Estado que se deixa subordinar por uma política externa de<br />

exploração de seu povo.


327<br />

Cenário vazio, no máximo algumas nuvens azuis pintadas penduradas<br />

no fundo com um fio bem visível que as seguram. Deus é uma mulher<br />

preferivelmente mulata ou negra. Veste mortalha branca ou azul,<br />

máxima simplicidade.<br />

DEUS - Monteiro! Monteirooo! Monteirooo! Mas em que buraco<br />

divino é que foi se enfiar este moleque? Monteiro!!! Monteirooo!!!<br />

Fica buscando Monteiro enquanto, acompanhado por uma música<br />

celestial, entra Monteiro absolutamente tranqüilo quase em êxtase<br />

perambulando pelo palco sem enxergar a Deus. Deus aproxima-se de<br />

fininho e gritando repentinamente:<br />

DEUS – Monteiroooooo!!!<br />

MONTEIRO –(Assustado e jogando-se aos pés de Deus em sinal de<br />

prostração) Estou aqui sua Santíssima Trindade Imaculada cheia de<br />

graç...<br />

DEUS - Cale a boca ! Seu puxa-saco e me escute com atenção...<br />

MONTEIRO – (Muito nervoso, farfalhando) Nem mais um pio sua<br />

Santíssima Trindade imacul...<br />

DEUS - (Irritado) Se não calar a boca vou te transformar em um<br />

papagaio roxo! (Monteiro engolindo faz sinal de lacrar a boca).<br />

DEUS – (Se recompondo) Já são uns 50 anos que tu chegastes aqui<br />

no meu reino e ainda não fizestes nada de bom... Tá na hora de<br />

começar a ser um ser... perdão um espírito produtivo: Tenho uma<br />

missão para você.<br />

MONTEIRO - (Espantado) Pera aí, Sua Magnitude, este aqui não é<br />

o paraíso não? Que eu saiba é no inferno ou na terra que as almas<br />

têm que trabalhar, penar, suar...<br />

DEUS - (Divertido) Deixa de bobagens quero que você volte pra terra<br />

e...<br />

MONTEIRO – (Zombando) Com licença que dia é hoje? Não me<br />

engana não, hoje deve ser o primeiro de abril nos altos dos céus.. Eh<br />

eh engraçadinho queria me pregar uma pegadinha mas eu não caí<br />

nessa não. Tente com são Pedro que é já meio gagá, vaí ter mais<br />

sorte, eu garanto...<br />

DEUS - (Irado) Papagaio não, em um verme ou talvez em um gambá<br />

fedorento e peidão...<br />

MONTEIRO - (aterrorizado) Pelo amor de Deus! Oh! Perdão, pelo<br />

seu amor, diga-me que está brincando!<br />

DEUS - Brincadeira uma ova! Quero que você volte ao Brasil e faça<br />

um relatório de como estão indo as coisas por lá.


328<br />

MONTEIRO - Mas por que mesmo eu? Olhe, meu Deus, não é por<br />

nada não, mas a última vez que o Senhor mandou alguém...(Aludindo<br />

a Jesus) lembra como acabou?? e não foi um escritor qualquer foi o<br />

seu próprio filho. (Bota os braços como se fosse na cruz).<br />

DEUS - (Irônico) Eu sei, eu sei, mas aqueles eram outros tempos já<br />

não se costuma mais fazer isso. Hoje são mais civilizados, até<br />

inventaram a guilhotina, o carro bomba, a decapitação em direita<br />

pela Internet, uma maravilha posso garantir.<br />

MONTEIRO - Que bom já me sinto bem melhor, mas ainda não<br />

entendi porque logo a mim esta (sarcástico) honra.<br />

DEUS –Muito simples, meu rapaz! Se mandar alguém mais novo,<br />

quero dizer morto mais recentemente, pode ser reconhecido e aí daria<br />

um bolo danado e se for mais velho não entenderia mais nada. Além<br />

do fato que já tentei com um novato qualquer e foi um fracasso total:<br />

o coitado fez um relatório tão atrapalhado, tão cheio de erros com<br />

idéias tão confusas que nem ele mesmo conseguia entender o que<br />

estava escrito. Eu que sou Deus o todo poderoso não consegui<br />

entender patavina nenhuma! Eu, Deus, o que tudo pode, tive que<br />

desistir! Mas isso me deu a idéia de mandar alguém que não fosse tão<br />

velho de não entender mais nada, nem tão jovem de ter aprendido a<br />

ler e escrever nas escolas de hoje. Há, há, há!<br />

MONTEIRO - Mas eu sozinho lá embaixo depois de 50 anos...<br />

DEUS - Não se preocupe, já pensei em tudo. Dois velhos amigos seus<br />

estarão lá para recebê-lo confie em mim!<br />

MONTEIRO – Não quero, tenha piedade de mim!<br />

DEUS- Vá! É uma Ordem (Levanta o dedo e Monteiro começa<br />

simular a queda do Paraíso enquanto Deus saí. Som de trovoada<br />

Black).<br />

O Grilo retorna e fecha o espetáculo:<br />

Não entenderam nada? Eu sei, sou grilo sábio e sabido, se algum<br />

tivesse entendido alguma coisa já teriam chamado o exército, a<br />

polícia, os feitores, o capitão.<br />

Vou embora, por enquanto, mas me esperem, quem sabe talvez<br />

devolva-lhe o sonho roubado e nele quem sabe... EU reapareça<br />

Vejamos algumas imagens de “Tá bom pra cachorro”:


Figura 211 Figura 212<br />

O Grilo. O símbolo Artebagaço. 1998. História é uma história. 1998.<br />

Figura 213 Figura 214<br />

“Quem roubou meu sonho”. J. P e Coro. “A venda”<br />

329<br />

Relembramos que “Tá bom pra cachorro” foi o espetáculo que levou maior<br />

tempo em cartaz, dois anos. Durante este período, tivemos o prazer de pisar no palco do<br />

Teatro Miguel Sant’ Anna, de 1998 a 2000. Era nosso sonho e dos adolescentes,<br />

ficamos radiantes. Em 1999 apresentamos “Do outro lado do espelho”, e, em 2000,<br />

apresentamos o “Auto da Compadecida”.<br />

Convém dizer que, na época, desconhecíamos a importância da Miguel Sant’<br />

Anna para a continuidade civilizatória africano-brasileira, assim como outras<br />

informações sobre o patrimônio civilizatório africano. Miguel Sant’Anna foi uma<br />

personalidade da tradição Nagô, membro da nação Tapa ou Nupe, era Oba Aré do Ilê<br />

Axé Opô Afonjá, alto título conferido por Mãe Aninha, que muito antes de falecer<br />

recomendou-lhe cuidado e proteção do patrimônio nagô junto com Mãe Senhora Axipá<br />

e Mestre Didi Axipá.<br />

O título de Oba Aré é anteposto a outros títulos de grande importância na<br />

tradição africana (LUZ, M.A., 1995). Miguel Sant’Anna foi alto Sacerdote do culto<br />

Idako do povo Tapa ou Nupe. O culto encontra-se resguardado no Ilê Axipá onde<br />

Mestre Didi Axipá, o Alapini, Supremo Sacerdote do Culto Egungun, é a liderança que<br />

dá continuidade às elaborações litúrgicas.<br />

Além da atuação no palco do Miguel Sant’Anna, o Artebagaço esteve também<br />

no Teatro Boa Vista de Brotas, um lugar que pertenceu à família do poeta abolicionista


330<br />

Castro Alves. Foi outro momento emocionante, pois, além desta referência, que<br />

sabíamos por ser parte do conhecimento legitimado pela sociedade oficial, levamos dois<br />

meses realizando negociações deste espaço, e mais dois meses numa luta quase diária,<br />

negociando com o sistema escolar para que este conduzisse alunos de vários colégios<br />

públicos ao teatro. Esta era nossa proposta pedagógica de formação de platéia,<br />

Depois desta “batalha”, conseguimos a liberação de 14 ônibus, sete para o<br />

matutino e sete para o vespertino. Desta forma, conseguimos lotar este teatro com mais<br />

de 500 estudantes de sete escolas de Salvador, por turno. Neste cenário, havia<br />

professores acompanhando alunos e os estudantes compuseram uma platéia animada e<br />

atenta a cada palavra entoada pos nossos atores.<br />

O espetáculo “Tá bom pra cachorro” consta desta pesquisa numa edição arquivo<br />

vídeo-som em DVD. O som não é muito bom, devido à qualidade da gravação e,<br />

também, por causa da voz dos atores, que, pela primeira vez, atuavam num espaço com<br />

ar condicionado. Isto favoreceu um baixo desempenho na voz, mas as imagens mostram<br />

as expressões corporais, figurino, maquiagem, cenário e a voz do público, que não fora<br />

filmado, pois o vídeo foi feito por uma admiradora do grupo que compunha a platéia.<br />

Nesse vídeo, filmado no Teatro Boa Vista de Brotas, o Grilo apenas abria o<br />

espetáculo. Esta foi uma das modificações e incidiu no final, que passa ser um desfecho<br />

com canto, música e dança. Depois deste espetáculo introduzimos também mais duas<br />

peças: “Onde estás que não respondes?” E “A engrenagem”.<br />

Nesses cinco anos de convívio, 1997 a 2001, muitas situações novas e<br />

impactantes concorreram para a dinâmica de afirmação da comuna Artebagaço nestas<br />

vivências: os primeiros artebagacianos ingressaram em diversas universidades em<br />

cursos de graduação, alguns, hoje, se preparam para concorrer à vaga em mestrados de<br />

Salvador, mas nunca devemos esquecer que estes eram considerados os piores alunos da<br />

escola, considerados casos “sem jeito de gente”, por muitos professores.<br />

Um outro impacto positivo, de ordem particular, foi o impulso que Diego teve<br />

dessas vivências com arte em educação, que o levaram a realizar Graduação em Teatro,<br />

direção e licenciatura, Mestrado nesta área e, hoje, dedica-se ao Doutorado em<br />

dramaturgia na Ufba.<br />

Por outro lado, no que se refere a minha própria vivência, em decorrência de<br />

uma especialização em Educação Infantil da UNEB, com estudo concentrado no uso de<br />

jogos dramáticos como estruturante da existência na infância, eu comecei a dedicar-me<br />

aos estudos cognitivos, porém tentava relacionar as descobertas referentes aos avanços


331<br />

de aquisição de linguagem às possibilidades favorecidas ao cultural através dos jogos,<br />

ou seja, a criança se apropriava da linguagem da comunicação devido aos meios<br />

culturais de composição que estavam a seu redor.<br />

Diego, por outro lado, terminava o curso de Graduação em Direção Teatral e o<br />

que trazia dali como motivação eram técnicas teatrais. Hoje, com o conhecimento da<br />

vivência, ressaltamos que aquelas técnicas se constituem em linguagem com pouca<br />

capacidade para devolver ao corpo mecanizado sua espontaneidade criativa.<br />

Por sua vez, Beni estava em “estado de graça” pela primeira filha, foi uma<br />

gravidez muito esperada por muitos anos. Inclusive, quando anunciou a chegada de Ana<br />

Beatriz, foi uma festa. Assim, o grupo sentiu a presença de vida e morte se anunciando<br />

outra vez. Quando foi proposto o encerramento das atividades do Grupo Nós, eu estava<br />

grávida de Ivo Leonardo, primogênito de Diego e meu primeiro filho, mas tenho uma<br />

filha, Andréia de Sena, de um casamento anterior. Naquele momento era Beni com a<br />

gravidez de Ana Beatriz. Com todas essas situações pessoais, entramos em silêncio em<br />

2001 por quase três anos.<br />

Motivada pelas atividades realizadas no convívio de alguns colegas da disciplina<br />

do Mestrado em Educação e Contemporaneidade da <strong>Uneb</strong>, Pluralidade Cultural e<br />

Educação, ministrada pela professora Dra. Narcimária Luz, em 2003, quando era aluna<br />

especial desta disciplina, e também impulsionada pelas análises das vivências no grupo,<br />

retomo em 2004 as atividades artístico-teatrais com um novo grupo de adolescentes e<br />

jovens estudantes de vários colégios do Cabula. Fundamos, então, o grupo ODEART.<br />

Aqui, encerramos a participação, outra vez, dos ecos de Janice Nicolin que nos<br />

contou a história do Grupo Teatral Artebagaço, que consideramos um símbolo de<br />

resistência africano-brasileira no sistema público escolar, uma forma de atuação da<br />

comunalidade na escola, implantando um território político-cultural próprio das<br />

dinâmicas sociais herdadas dos antigos africanos que foram trazidos ao Brasil.<br />

Mesmo sem conhecer a referência de sua arkhé cultural, o grupo brotou, cresceu<br />

e plantou o cenário territorial virtual, invisível, de força atuante de quem protege,<br />

alimenta e guarda o sentido de renovação da existência social.<br />

Acreditamos que seja a força mítica ancestral do caçador que orientou as<br />

iniciativas do grupo, inclusive quando entra em silêncio. “Silêncio não se define pela<br />

falta de algo [...]. É uma realidade que engendra a si mesma e apresenta-se à consciência<br />

ética na Arkhé como virtude fundamental” (SODRÉ, 2000, p.185). Foi a manifestação<br />

da ética Artebagaço.


332<br />

Com os olhos de hoje, comparando a trajetória do grupo ao desenvolvimento de<br />

uma criança, digamos que seja a fase de expansão da existência quando ela se dá conta<br />

da força interior de afirmação da identidade comunal, da força mística guerreira de<br />

comunalidade que acontece entre a fase de jovem e a de adulto.<br />

Intuímos que foi isto que aconteceu com o grupo, não é à toa que os<br />

componentes desta etapa ainda se intitulam artebagacianos, uma característica criada<br />

por Janice Nicolin para falar da origem da consciência de luta pela liberdade comunal<br />

que cada um tinha no grupo. Quase todos ainda se encontram e dão muitas risadas sobre<br />

aquela época. Fechemos com as falas de alguns sobre o que o grupo deixou-lhes como<br />

legado civilizatório:<br />

A minha formação hoje, trabalhando com Recursos Humanos, o<br />

tempo todo com o grupo, grupos diferentes, saber ali administrar o<br />

tempo todo [...] eu queria agradecer por este eu que tenho hoje ao<br />

teatro, esta questão de saber conversar, de saber me colocar, de saber<br />

entender o outro, aprendi mesmo trabalhando com o teatro e com<br />

vocês, com o grupo. Eu acho que se tivesse, realmente, continuado na<br />

escola daquela forma que é trabalhada a escola pública, não sei se<br />

teria a visão que tenho hoje, entendeu? ( Frana Carine, 2005).<br />

Também Maurício, o criador do personagem Grilo, fala sobre o legado do<br />

Artebagaço:<br />

Hoje, eu me sinto uma pessoa com a capacidade de expressão, em<br />

público principalmente. Eu era muito inibido, hoje já não tenho<br />

qualquer problema quanto a isto, graças ao Grupo Artebagaço. Lá<br />

nós aprendemos também, é claro, a ter uma visão crítica. A criticar<br />

mesmo: ideologias, idéias, criticar a situação política, criticar.<br />

Nossa! Aprendemos o que é a crítica, a ironia, o que é a ambigüidade,<br />

aliás, o que utilizava muito, a questão do duplo sentido, eu adorava<br />

aquilo! Aquilo eu tomei para mim como parte da minha personalidade<br />

e acredito que com o conhecimento que tinha da época conseguiria<br />

utilizar satisfatoriamente. Este é meu ponto de vista.<br />

O Artebagaço enfim de grande valia pra mim, eu guardo<br />

saudosamente estas lembranças. (Maurício de Jesus, 2005).<br />

É esta a função do teatro, criar e recriar caminhos de liberdade, existencial, tanto<br />

da existência individual quanto social, mas, para que isto se realize, é “preciso derrubar<br />

muros”, é preciso ter coragem para demolir os conceitos mortos que só produzem e<br />

multiplicam cadáveres. O teatro é vida, é a função dinâmica da linguagem criativa, é a<br />

manifestação da ancestralidade animando os corpos dos que podem recriar.


333<br />

A política pedagógica do Grupo Teatral Artebagaço criticava a visão holística da<br />

realidade vivida na sociedade global e no sistema escolar em geral. A escola era<br />

considerada a responsável pela reprodução “das desigualdades sociais” (BOURDIEU,<br />

1998, p. 41), por sustentar uma herança cultural da arkhé greco-romana. Acreditamos<br />

que sua função é de mantenedora dos valores etnocêntricos que asseguram a política<br />

mercantil neocolonial. Repetimos que a luta do Grupo Teatral Artebagaço consistia em<br />

oposição à monocultura.<br />

Nesse cenário, não havia uma visão dicotomizada da realidade social, apenas<br />

estávamos cansados de colocar a atenção sempre na escola, desde quando ela é parte de<br />

uma decrepitude social que se nutre de cadáveres ou elementos artificiais engendrados<br />

pela industrialização que faz agonizar os ambientes naturais.<br />

Nesse período, também criamos um núcleo de atores, ativo, dinâmico e<br />

renovado constituído, em três contínuas gerações: 1997 a 1998, 1998 a 2000 e 2001.<br />

Com estes núcleos, fortalecemos os vínculos de vida comunal e fizemos várias<br />

composições constituintes de sete espetáculos e uma peça infanto-juvenil, pequenos<br />

quadros curtos, um festival, uma amostra literária com alunos do colégio citado, tudo<br />

isto com a mediação da linguagem artística Artebagaço.<br />

Durante a experiência, nunca perdemos de vista que, no espaço escolar,<br />

estávamos lutando para afirmar nossa alteridade própria e nossa identidade comunal e,<br />

mesmo quando nos convidavam para algum evento, sabíamos que nossa postura era de<br />

quem negocia o espaço de coexistência, não era de quem estava dentro da<br />

“engrenagem” social urbano-industrial curvando-se ao individualismo e o materialismo<br />

absolutos.<br />

Bem, caro leitor, agora vamos entrar na fase Odeart, a fase que se denomina<br />

Artebagaço Odeart. Neste momento, retornamos à mata. É bom lembrar que a expressão<br />

Artebagaço refere-se à força comunal de guerreiro africano-brasileiro no espaço urbanoindustrial<br />

e a forma peculiar de linguagem lírico-satírica do grupo. Odeart brota no<br />

espaço “mata africano-brasileira”, embebe-se dos saberes da cultura africano-nagô,<br />

inicia-se na cultura africano-nagô do Brasil, orientando-se pelos passos desta pesquisa<br />

que também se ancora na episteme africano-nagô, e é a referência civilizatória da luta<br />

pela afirmação da alteridade e identidade africano-brasileira.<br />

Por isto, convido-o a que fique atento, pois estamos retornando à mata, estamos<br />

nos caminhos do solo de origem Odé, é por estas trilhas que penetraremos em nossa<br />

última temática. Venha conosco.


4 “ODÉ DÊ NILÉ - CAÇADOR CHEGOU EM CASA.”<br />

O artista, entre os iorubanos, interliga o homem com o sagrado. O artista é<br />

um perito de sua cultura, é atualizador de princípios, valores, noções que<br />

remetem ao sagrado. O corpo humano é escultura feita por Obatalá –<br />

entidade que criou os seres humanos.<br />

Juana Elbein<br />

O trajeto de retorno à mata é o que simboliza o ritual de volta para casa ou solo de<br />

origem de Odé, caçador africano, guardião e protetor da mata virgem, o território políticosocial<br />

da tradição africana que, para nós, consiste na mata africano-brasileira do Cabula.<br />

Com um pouco de esforço de memória, caro leitor, é possível lembrar que o nosso<br />

ponto de partida, início da caminhada de busca das referências civilizatórias africanas<br />

transplantadas da África ao Brasil, realiza-se pela saída do caçador da mata virgem rumo ao<br />

cenário urbano-industrial, onde irá sobreviver em meio à destruição dos víveres naturais<br />

que restam e garantem a socioexistência tradicional constituinte da mata africano-brasileira.<br />

Nesta caminhada, percebemos que o caçador se alimenta do conhecimento histórico<br />

resguardado na mata, contudo, ao chegar no cenário urbano-industrial constituído de<br />

referências como o “trompe-l’oeil” urbanístico arquitetônico moderno se depara com a<br />

estrutura político-educacional unidimensionadora etnocêntrica da “casa grande e senzala”.<br />

A caminhada realiza-se em meio ao conflito que é a resistência às normas<br />

etnocêntricas e a vivência necessária neste espaço unidimensional. Mesmo assim, o<br />

caçador, que caça as referências civilizatórias africano-brasileiras consegue percorrer<br />

íngremes caminhos sem perder suas referências civilizatórias herdadas.<br />

É momento de voltar ao lugar de onde saiu, até porque é seu solo de origem e lugar<br />

onde o caçador reabastece suas forças perdidas no solo urbano-industrial, espaço carente de<br />

proventos naturais. Neste, não há mata para fazer caçada, não há mistério para ser<br />

desvendado, inclusive a morte é permanente e reina absolutamente, o que torna o lugar<br />

inerte e estático. O caçador volta pra casa e pode, enfim, realizar a caçada que reabastece<br />

suas forças perdidas durante a resistência ao etnocentrismo.<br />

A incansável busca desse entendimento foi que nos impulsionou a andar por<br />

caminhos de composição das referências simbólicas contidas em nossa proposta de


educação pluricultural. Tanto o território de recalque eurocêntrico quanto o território de<br />

afirmação da existência africano-brasileira podem ser compreendidos pelos símbolos<br />

complexos que os representam: mata africano-brasileira para o solo de afirmação e trompel’oeil<br />

e “casa grande e senzala” para o solo neocolonial do recalque ideológico.<br />

A mata tem uma ampla e complexa abrangência socioexistencial, ela é também<br />

lugar de inspiração dessa perspectiva mítico-poética africano-brasileira por nos fazer<br />

refletir sobre a relação intrínseca que há entre o poder criador natural e o poder recriador<br />

ancestral, entidade cósmica e arkhé. Nesta relação, cabe-nos intuir a função de educador e<br />

de artista que recria cenários bem diferentes dos que existem no cenário urbano-industrial,<br />

o qual carece de referências da natureza criadora 1 que inspirem a criatividade.<br />

Compreendemos que na mata encontram-se os valores identitários, princípios e<br />

linguagens do universo “vivido-concebido” pelos ancestrais africanos. A “emoção é<br />

prioritária” (BOAL, 1991) para os desdobramentos do processo de criação. Ela nos inspirou<br />

à recriação do universo holístico, ao lado das abstrações que brotaram das análises das<br />

experiências vividas tanto pelos ancestrais africanos quanto pelo Artebagaço Odeart, ambos<br />

protagonizando a compreensão da realidade vivida neste estudo.<br />

Essa compreensão começa em maio de 2003, com a análise da recriação literária de<br />

Mestre Didi Axipá, o conto africano-nagô “Chuva dos poderes”, e a recriação de Leonardo<br />

Boff, o conto da comunalidade indígena Cinta Larga, “As diferenças na unidade sagrada da<br />

vida”, que deu origem à montagem cênica “A chuva dos poderes na Educação”, parte do<br />

evento artístico com o mesmo nome, porém em várias linguagens africanas: plástica,<br />

culinária, musical e outras, que caracterizam a totalidade. A composição artístico-cultural<br />

ou proposta de educação pluricultural africano-brasileira foi realizada em 21de agosto de<br />

2003.<br />

O evento foi uma sugestão da professora Dra. Narcimária C. do P. Luz, que<br />

ministrava a disciplina Educação e Pluralidade Cultural do Curso de Mestrado em<br />

Educação e Contemporaneidade da <strong>Uneb</strong>, Campus I, como atividade de encerramento das<br />

atividades pedagógicas do semestre. A realização do evento reativou as lembranças de<br />

1 Falamos de um espaço floresta, lugar de acolhimento dos animais, vegetais, espíritos, entidades cósmicas e<br />

minerais, todos, elementos reais de composição da vida na Terra.<br />

335


Janice Nicolin no âmbito das iniciativas político-pedagógicas do Grupo Teatral Artebagaço,<br />

na verdade, como o acordar do vulcão adormecido.<br />

É importante, neste momento, perceber que o que nos “[...] nos conduziram a tecer<br />

considerações sobre o papel do emocional possibilitando promover a aproximação entre<br />

diversas manifestações estético-culturais, suas dimensões de encantamento” (SANTOS, J.,<br />

2002a, p.63), foi a iniciativa do PRODESE, a partir do que sugeriu a Dra. Narcimária Luz,<br />

a realização desta recriação artística. Com isto, sentimo-nos fortalecidos e encorajados a<br />

realizar a ousada experiência de vivência estética africano-brasileira no espaço do nomos<br />

escolar.<br />

Naturalmente, o “emocional lúcido” (SANTOS, J., 2002a, p.38) 2 foi o maior<br />

responsável por reanimar a dinâmica de espontaneidade criativa que estava escondida no<br />

silêncio da pessoa educador-artista Janice Nicolin que, mesmo não tendo uma formação<br />

acadêmica na área de artes, assim como os fundadores do Grupo Artebagaço na época não<br />

tinham, pôde elaborar as recriações artístico-teatrais orientadas pelas referências<br />

civilizatórias míticas que encontram-se no conto de Mestre Didi Axipá “O caçador e a<br />

caipora” (SANTOS, D.M., 2004).<br />

Ressaltamos que a expressão de arte que brotou do nosso interior foi a força guia de<br />

todas as nossas iniciativas criativas. É como diz Muniz Sodré (1996, p.128-129): “Não resta<br />

dúvida de que a palavra “arte” devido ao peso de seu compromisso histórico com a Estética<br />

(controle do acabamento das formas) é hoje muito problemática. É uma palavra de que<br />

talvez devamos nos desembaraçar”. Por isso, a noção de artista é tão complexa quanto a<br />

noção de arte.<br />

O entendimento de arte e artístico, arte e artista, em nosso modo de ver, realiza-se<br />

pela sensibilidade de quem respeita e aprecia a manifestação da força interior no seu<br />

próprio corpo. A apreciação consiste numa linguagem transbordante de beleza que favorece<br />

o desdobramento de uma criação boa e com utilidade ao mesmo tempo.<br />

Nosso cenário assim foi constituído transbordado pelo elemento estético Odara e<br />

por isto tornou-se algo bom e capaz de realizar a transformação da pessoa pesquisadora, da<br />

educadora e artista Janice Nicolin quando diante do mistério da arte da cultura africana.<br />

2 Emocional lúcido, categoria criada por Juana Elbein dos Santos para expressar a noção das manifestações<br />

realizadas pelos desdobramentos de reflexão orientados pela emoção e pelas abstrações das análises.<br />

336


Reconhecemos na criatividade, sem dúvida alguma, a forma expressiva mais natural<br />

e dinâmica da existência humana por ser enriquecida pelos poderes místicos. Estes poderes,<br />

sim, permitem a dinâmica do “emocional lúcido” no processo da recriação artística. Esta<br />

última, por sua vez, tem a função de transformar recriador e apreciador concomitantemente.<br />

Entendemos que a criatividade é o impulso do mito ancestral fundador. No universo<br />

africano-nagô, o mito é simbolizado pela expressão de comunicação e interação do<br />

ancestral fundador animada pela força cósmica que o orientou em vida.<br />

Nossa criatividade brotou do ânimo liberado da arkhé civilizatória, o mito fundador<br />

caçador Odé, que guiou nossas trilhas e nutriu nossos processos criativos. Sobre o mito<br />

Inaicyra Santos (2006, p.75) aqui se pronuncia:<br />

337<br />

Pressupõe-se que o mito presentificado nos eventos ritualísticos pode<br />

exercer influência na criação artística. Os gestos, os movimentos corporais<br />

fazem parte do vocabulário da linguagem de comunicação nas danças,<br />

independente de uma função específica. O corpo, como instrumento de<br />

expressão, é o elemento a serviço do simbólico que revive as experiências<br />

míticas e criativas.<br />

A arte como necessidade de criação apaga a idéia deturpada de produção artística<br />

como decalque de uma realidade simulada. Neste cenário, o sujeito criador se expressa<br />

através das infinitas formas de realização porque percebe que a uniformidade e a<br />

universalidade são imposições de um traçado político-social de domínio do poder absoluto<br />

e totalitarista. Percebe, também, que as oportunidades são as portas abertas para a entrada<br />

de cores, sons, sabores, cheiros, enfim, sensações táteis que tornam o corpo vivo e<br />

dinâmico, gerando assim o sentido da luta existencial.<br />

Esse é o sentido da relação arte e artista que deveras traduz a espontaneidade da<br />

linguagem criadora. Inaicyra dos Santos (2006, p.77) entende que: “O artista cria de acordo<br />

com o seu intuito, com seus interesses ideológicos e expressa-se por meio de uma<br />

linguagem recriada e elaborada, transformando elementos com o objetivo de comunicar<br />

[...]”, que, possivelmente, expressa seu ethos que é o mesmo de sua arkhé cultural<br />

reatualizado.<br />

O mesmo pode ser dito quando o educador é artista e traduz sua linguagem de arkhé<br />

civilizatória através da cadência, do ritmo e da sonoridade gestual de seu corpo,


caracterizando suas expressões de ancestralidade denegadas nos espaços etnocêntricos,<br />

eurocêntricos, promotores do recalque ideológico.<br />

O educador-artista, quando impulsionado pelo “emocional-lúcido”, sente-se<br />

confiante em atuar tanto no ambiente externo político-social de afirmação da alteridade<br />

quanto no território político-social que o reprime e recalca ideologicamente. Este impulso o<br />

leva a romper os grilhões dos obstáculos ideológicos, tal como aconteceu com Janice<br />

Nicolin antes de iniciar esta pesquisa, quando pôde, em 2003, recriar novos cenários<br />

artístico-teatrais constituídos por traços da identidade africano-brasileira.<br />

Com a pesquisa que iniciou em 2004, Janice Nicolin, então pesquisadora, educadora<br />

e artista produtora, dramaturga e coordenadora das oficinas de teatro do Grupo Artebagaço,<br />

encerrado em 2001, retoma com as lembranças do que fora vivido como se estivesse<br />

vivendo tudo outra vez. Fora motivada, acreditamos, pelo impulso mítico, a voltar ao<br />

território de realização das atividades onde brotou e expandiu o Grupo Teatral Artebagaço.<br />

Que mito promoveu o envolvimento da arte na pesquisa? Como caracterizá-lo? Pelo<br />

conjunto de gestos que originou o movimento agachado, que já apresentamos no Capítulo<br />

2, gestos de quem ao mesmo tempo caça respeitando a natureza do animal que está sendo<br />

caçado e tudo que está em torno deste animal, é possível dizer que se refere àquele que<br />

protege e preserva o equilíbrio do habitat natural para manter o cenário de coexistência.<br />

É bom que fique claro que o cenário da caçada brotou da necessidade de criação de<br />

uma pesquisa viva, constituída de etapas de entendimento da composição de uma floresta<br />

africana expressa na relação entre a mata africano-brasileira e a manifestações simbólicas<br />

de Odé, o caçador africano.<br />

Nessa intenção, crescem a vontade de expressar que a tradição e a<br />

contemporanização podem ser mediadas pela linguagem da arte no território da educação<br />

oficial. Isto implica afirmar que está na relação entre o lugar de origem da pesquisa e o de<br />

origem do pesquisador educador-artista, a linguagem do favorecimento destas etapas, que<br />

não foram idealizadas para realização, foram vividas e depois concebidas como<br />

composições artístico-teatrais.<br />

Ressaltamos que, naturalmente, a educadora-artista do cenário de realizações<br />

político-pedagógicas do Artebagaço até 2001, foi aos poucos, a partir de 2004,<br />

transformando-se num caçador das referências culturais africano-brasileiras, ou seja, houve<br />

338


um processo de transformação da pessoa educador-artista que vive e concebe a experiência<br />

da pesquisadora educador-artista devido às necessidades que emergiram das análises<br />

impulsionadas pelo “emocional-lúcido”.<br />

O ato de caçar as referências civilizatórias africanas constituiu nossa recriação da<br />

composição artístico-cultural africano-brasileira e pôde ser visto no movimento da dança e<br />

das expressões do teatro, linguagens que juntas, animadas pela música percussiva e a<br />

palavra, recebem da sonoridade as forças que vibram e orientam todos os movimentos<br />

corporais do ator. Esta dinâmica desdobrou-se como se fosse um cenário de caçada na<br />

floresta africana, de forma que gerou a nova experiência de perspectiva mítico-poética<br />

africano-brasileira.<br />

O resultado dessa caçada pode ser apreciado na montagem cênica do auto<br />

coreográfico “Odé, o caçador do alvorecer”, uma recriação literária de Janice Nicolin<br />

adaptada primeiro do conto “Odé e a caipora”, de Mestre Didi Axipá (2004). Meses depois,<br />

quando realizávamos a busca da música que anima a recriação dramática ou toques<br />

característicos das manifestações da ancestralidade Odé, o caçador da mata virgem, foi que<br />

encontramos o auto coreográfico “Odé e os orixás do mato”, de Mestre Didi (1989), que<br />

confirmou nossa seleção musical e deu um ritmo apropriado ao contexto de floresta<br />

africano-nagô que queríamos.<br />

Contudo, a dinâmica pedagógica constituinte da montagem cênica foi além de<br />

recriar o cenário africano-nagô, pois transcende a linguagem pluricultural de uma tradição<br />

africana e recria um amplo cenário cultural constituído da realidade vivida pelo africanobrasileiro<br />

sendo estruturado em dois atos que deram origem ao espetáculo artístico-teatral<br />

“A de ó”.<br />

“A de ó” é a proposta de linguagem de educação pluricultural Artebagaço Odeart.<br />

No primeiro ato, apresenta reflexões críticas da existência africano-brasileira na<br />

contemporaneidade que sobrevive no cenário urbano-industrial, resistindo ao recalque<br />

ideológico eurocêntrico e preservando a tradição da comunicação oral como prioritária.<br />

Esse ato expressa a sensação da existência Artebagaço: o sujeito crítico consciente<br />

da situação de confinamento ideológico imposta pela sociedade neocolonial produtora em<br />

massa dos “bagaços existenciais” que movem sua engrenagem burguesa mercantilista, que<br />

339


moem os mananciais de vida natural, por isso a força de identidade civilizatória Odeart<br />

reluta e não aceita a submissão humana e através da arte busca reafirmar sua alteridade.<br />

No segundo ato, “A de ó” apresenta a continuidade da luta, é proposta de<br />

celebração da vida no cenário socioexistencial da arkhé africano-nagô que respeita a<br />

natureza dinâmica, mítica, cósmica da floresta e valoriza o lugar como fonte de reanimação<br />

da existência africano-brasileira supostamente abalada pelas políticas genocida e etnocida<br />

da arkhé euro-americana.<br />

Esta proposta é o auto coreográfico “Odé, o caçador do alvorecer”, a que nos<br />

referimos antes, por ele brotam sinais extraídos dos desdobramentos artístico-textuais<br />

mítico-poéticos que caracterizam uma dinâmica pedagógica de caçada africano-nagô, a<br />

plurissignificação 3 e o sentido ético-estético da cultura ancestral, constituintes deste cenário<br />

que contribui para afirmação, valorização e enaltecimento da tradição africana no Brasil.<br />

Basta pensar que, no segundo ato, o que predomina é o discurso mítico Odé, o<br />

ancestral caçador, constituído pela linguagem visual que nos permite perceber o ambiente<br />

simbólico da floresta africana na qual viveram nossos ancestrais na África, e, podemos<br />

dizer, também no Brasil até enquanto não começou o desmatamento que dizima as espécies<br />

naturais.<br />

O discurso mítico também se afirma pela linguagem polifônica que é expressa por<br />

diversas vozes 4 que entoam na mata, como os recriados diálogos entre Odé e o Babalaô,<br />

entre o pinto e a voz que entoa do fundo da mata, personagens da interlocução e<br />

constituintes do enunciado político-histórico do africano-nagô.<br />

É interessante buscar uma compreensão através da noção de caçada a partir da<br />

relação entre a recriação estabelecida nos textos escritos por Mestre Didi Axipá – o conto<br />

“O caçador e a caipora” e o auto coreográfico “Odé e os orixás do mato” – e os textos<br />

recriados por Janice Nicolin que são o conto e o auto coreográfico “Odé, o caçador do<br />

alvorecer”.<br />

3 O termo refere-se aos vários sentidos que a linguagem poética permite explorar devido a sua intenção<br />

estética de amplo domínio na sensibilidade, na emoção e na ação reflexiva do leitor, no campo da lingüística<br />

isto fica a cabo noção conotação.<br />

4 Não cabe aqui, simplesmente, explicar pelo que a lingüística discursiva denomina de “discurso polifônico”,<br />

pois este se refere ao campo da língua como instrumento de comunicação, falamos da linguagem mítica que<br />

transcende ao que é visível, porém são detalhes entendíveis ao leitor que recria estes sons.<br />

340


Acontece que os textos de Janice Nicolin, sendo elaborados a partir de uma<br />

recriação de cenário simbólico mítico-poético de caçada do ancestral, sofrem as influências<br />

da realidade histórica vivida pelo ancestral caçador, extraída do conhecimento colhido pela<br />

pesquisa. Nesse caso a arte imitia a natureza ou mimesis como se refere Aristóteles em Arte<br />

Poética (2005). A recriação “Odé o caçador africano” se inspira também na realidade<br />

vivida.<br />

Por isso não implica cópia desta realidade: “Como a imitação se aplica aos atos das<br />

personagens e estes não podem ser senão bons ou maus [...], daí resulta que as personagens<br />

são representadas ou melhores ou piores ou iguais a todos nós”(ARISTÓTELES, 2005,<br />

p.26). Como nos guiamos pela atuação do mito, presente no conto de Mestre Didi Axipá,<br />

que simboliza a expressão da natureza “o caçador”, protetor e provedor de seu povo e<br />

guardião da floresta africano-nagô, fomos a Augusto Boal buscar entendimento de mimesis:<br />

341<br />

Aristóteles, contudo, quis dizer uma coisa completamente diferente. Para<br />

ele, imitar (mimesis) não tem nada que ver com a cópia de um modelo<br />

exterior. A melhor tradução da palavra mimesis seria “recriação”. E<br />

“natureza” não é o conjunto das coisas criadas e sim o próprio princípio<br />

criador de todas as coisas. Portanto quando Aristóteles diz que a arte imita<br />

a natureza, devemos entender que esta afirmação, que pode ser encontrada<br />

em qualquer tradução moderna da Poética, é uma má tradução, originada<br />

talvez em uma interpretação isolada do texto. “A arte imita a natureza” na<br />

verdade quer dizer “A arte recria o princípio criador das coisas criadas.”<br />

(BOAL, 1991, p.19).<br />

Nossa recriação literária da dinâmica pedagógica do próprio mito caçador Odé<br />

permitiu-nos gerar o sentido de existência criadora do cenário vivido pelo ancestral Odé.<br />

Esta relação intertextual não pode ser esclarecida pela noção de “intertextualidade” 5 que<br />

fragmenta a compreensão da totalidade socioexistencial, por isso, mais uma vez nossa<br />

perspectiva rompe e transcende os obstáculos ideológicos etnocêntricos da língua, ou seja,<br />

dos limites da lingüística descritiva e vai buscar ancoragem na literatura africano-brasileira,<br />

que oferece uma fonte inesgotável da significação pluricultural.<br />

Tratando-se, então, da compreensão do leitor da educação infantil que está aberto às<br />

inesgotáveis fontes da imaginação, a caçada realizada pelo ancestral Odé poderá permitirlhe<br />

uma orientação com liberdade para que ele, como leitor, possa também caçar os sinais<br />

5 Uma noção da lingüística discursiva que estabelece critérios para o que há entre dois textos.


do habitat do ancestral caçador e, assim, conhecer, respeitar e valorizar a estrutura éticoestética<br />

da comunalidade africano-nagô, tal como aconteceu durante a elaboração da<br />

composição “Odé, o caçador africano”, sob nossa perspectiva mítico-poética.<br />

Quanto ao sentido artístico do texto “Odé, o caçador africano”, recriado para o<br />

cenário artístico-teatral “A de ó - Estamos chegando”, o que prevalece na caçada é a<br />

preservação dos códigos de valores culturais da tradição africana. Tivemos este cuidado ao<br />

voltar à mata africano-brasileira.<br />

De maneira que caçamos tudo que foi permitido pela comunalidade africanobrasileira<br />

e o adequamos ao que nos ofereceram o conto e o auto coreográfico de Mestre<br />

Didi Axipá. Evitamos dicotomias, isto ou aquilo, andamos pelas veredas para não nos<br />

distanciarmos das fontes enriquecedoras do nosso cenário.<br />

Quanto à estrutura, aceitamos alguns conselhos de Zilberman:<br />

E mais:<br />

342<br />

Em outras palavras, a criação artística é uma mensagem que se orienta<br />

necessariamente para seu recebedor, reproduzindo, neste aspecto, o<br />

processo usual de comunicação. Mas ela se particulariza na medida em<br />

que provoca estranhamento; portanto, precisa ser sempre uma mensagem<br />

original, uma criação no amplo sentido do vocabulário, o que lhe assegura<br />

o caráter permanente renovador. (ZILBERMAN, 1987, p.68).<br />

A ruptura com certas expectativas 6 pode ser verificada sob dois ângulos:<br />

de um lado, significa um rompimento com as modalidades ordinárias de<br />

expressão; de outro lado, com os clichês ou ideologias de uma certa<br />

época. Assim, um texto autenticamente criativo explora formas inusitadas<br />

de linguagens; porém, como a ideologia – isto é, as noções comuns em<br />

circulação num determinado momento histórico – se inscreve na língua,<br />

torna-se evidente que a obra literária pode romper também com os<br />

padrões vigentes em termos de visões da realidade. (ZILBERMAN, 1978,<br />

P.68-69).<br />

Quanto ao contexto recriado referente aos aspectos dos constituintes cênicos,<br />

buscamos, na abordagem de Marco Aurélio Luz sobre o acervo literário de Mestre Didi,<br />

alicerces de profundidade da temática, resguardando o ethos africano-nagô:<br />

6<br />

Zilberman (1987) fala da formulação textual, a exemplo do que ditou o estruturalismo e o formalismo para a<br />

criação literária.


343<br />

Os contos são uma forma desta transmissão, combinados com outras<br />

formas que caracterizam a chamada “cultura oral”. Os textos e os contos<br />

“são transmitidos e aprendidos lentamente através da convivência e da<br />

iniciação ritualística”. Como forma pedagógica específica negra, os textos<br />

das comunidades têm uma finalidade e função. [...] Eles ilustram uma<br />

maneira pela qual os nagô procuram promover a adaptação ou<br />

socialização de seus integrantes, através do aspecto pedagógico,<br />

assegurando assim uma forma própria de obter a coesão social. (LUZ,<br />

M.A., 1994, p.72-77).<br />

Quanto ao conteúdo ético de valor cultural, buscamos em Mestre Didi Axipá e<br />

Marco Aurélio Luz (2007), obra em conjunto, referências como:<br />

O Caçador, ou ainda, o princípio da caça que caracteriza o predador em<br />

quanto poder, deve ser usado com equilíbrio e parcimônia para que não se<br />

esgote o processo.<br />

Esse ensinamento é característico de tradições civilizatórias afroameríndios,<br />

fora do contexto da sede de acumulação de bens ou<br />

capital,valor primordial de civilização européia moderna e seus<br />

desdobramentos pelo mundo. (SANTOS, D.M.; LUZ, 2007, p. 62).<br />

Acreditamos que, dessa forma, nossa caçada cautelosa, com o movimento agachado,<br />

preserva tanto o respeito que temos em relação ao autor e a sua criação literária, ou seja,<br />

Mestre Didi Axipá e sua integração a seu acervo literário, seu vínculo com a criação de<br />

matriz africano-nagô, quanto à relação de importância que tem a transmissão da simbologia<br />

social do ethos africano-nagô às crianças e aos jovens africano-brasileiros que vivem no<br />

cenário global. Quanto a isto M. A. Luz (1994, p.73) assim esclarece:<br />

No caso de Mestre Didi, observamos a integração do autor com sua<br />

comunidade. Sua identidade não se fragmenta, pois apenas se utiliza da<br />

comunicação literária para transmitir os valores da comunidade àqueles<br />

que não convivem diretamente com ela. Os contos, então, não se<br />

caracterizam pelos problemas da integração social individual, onde são<br />

sublinhados os estigmas de raça e de cor, mas sim pela necessidade<br />

coletiva de esclarecer os valores civilizatórios de uma importante parcela<br />

da população brasileira que luta por se integrar e ser reconhecida pela<br />

sociedade global.


Assim se constitui e caracteriza a linguagem teatral artístico-cultural africanobrasileira<br />

da montagem “A de ó - Estamos chegando” 7 . Suas etapas de elaboração serão<br />

mostradas na próxima abordagem. Até aqui, meu caro leitor, mostramos os primeiros<br />

passos do poder de recriação literária do cenário reflexivo de coexistência africanobrasileira,<br />

a nossa proposta de linguagem de educação pluricultural “A de ó – Estamos<br />

chegando”.<br />

4.1 ENTOANDO E ELABORANDO O CENÁRIO MÍTICO-POÉTICO<br />

O entoar é o dizer poético da composição cênica mítica africano-brasileira<br />

constituinte da pesquisa dinâmica com sentido de renovação de linguagem, característica da<br />

educação pluricultural. Sugerimos que, para isto, seria importante, caro leitor, que seu<br />

olhar, mais uma vez, volte-se ao início da pesquisa em 2004, quando fundamos um novo<br />

grupo.<br />

No recomeço, Janice fez o mesmo trajeto que deu origem ao Grupo Artebagaço:<br />

convidou Beni e Diego. Beni Moraes ofereceu ajuda à distância, ou seja, não participa das<br />

reuniões do grupo, cuida da produção do site do grupo reunindo material, produz material<br />

áudio-visual, DVD, fazendo fotografias em eventos. Alegou a falta de tempo porque tem<br />

que dedicar atenção à filha de cinco anos.<br />

Quanto a Diego, este realizou algumas oficinas no grupo novo, mas não assumiu a<br />

nova linguagem do grupo que ancora-se nos conhecimentos do patrimônio civilizatório<br />

africano, pois, desde o curso de Mestrado em Dramaturgia, já havia feito sua escolha de<br />

linha em teatro e educação. Lembramos que Diego, atualmente, faz doutorado em<br />

Dramaturgia na Ufba (Universidade Federal da Bahia).<br />

Bem, quanto à convocação de novos estudantes para compor o grupo, os cartazes<br />

foram afixados, era final de ano, novembro de 2004, por isso poucos compareceram, aliás,<br />

os que compareceram mostravam-se interessados em iniciar só no ano seguinte. Em<br />

verdade, eles estavam relacionando o tempo escolar, ano letivo, ao tempo do grupo, que<br />

não pára, aliás, é contínuo, com break somente para renovação.<br />

7 Estamos chegando é a tradução de A de ó, expressão em iorubá.<br />

344


Mesmo assim, dos 20 jovens e adolescentes que participavam, 10 permaneceram;<br />

três eram estudantes do colégio onde brotaram as iniciativas político-pedagógicas em 90,<br />

duas eram da última geração do Grupo Teatral Artebagaço que haviam terminado o curso<br />

médio e os demais de outras escolas do Cabula do ensino fundamental e médio.<br />

Com este pequeno grupo, as atividades foram reiniciadas, porém mantendo o estilo<br />

lírico-satírico do Artebagaço, partindo do humor à crítica promotora da reflexão sobre o<br />

recalque ideológico.<br />

Também não houve mudanças na estética de criação cênica: a reanimação do<br />

movimento corporal de quebra da mecanização gestual, a liberdade de interpretação, o<br />

entendimento de espaço cênico, enfim, tudo se ancorou nos jogos cênicos das Oficinas de<br />

Expressão Corpo e Voz, e da Oficina de Interpretação Textual que parte da temática da<br />

recriação literária do texto “Eu me chamo G”, de Giorgio Gaber, traduzido por Diego e<br />

Janice Nicolin.<br />

Bem, o estilo e a estética de valores comunais também continuavam e a maneira de<br />

se comportar dos novos componentes não era diferente, todos estavam sempre calados a<br />

espera de alguém para dizer-lhes o que fazer. Isto permaneceu até enquanto não<br />

conheceram no mês de dezembro a recriação literária de Mestre Didi Axipá “O caçador e a<br />

caipora”, do livro Contos Crioulos da Bahia (2004).<br />

Meses depois 2005, encontramos nos estudos de M.A. Luz, a referência sobre o<br />

“[...] auto coreográfico chamado Odé ati awon Orixá ibo, o caçador e os orixás do mato”,<br />

descoberta que mudou a estética pedagógica das atividades de expressão corpo e voz.<br />

Surgem os apelos ao olhar indireto, aos movimentos em giro do corpo em relação ao espaço<br />

físico, à sonoridade e ao silêncio que foram caçados na descrição da dinâmica de<br />

movimento do personagem no auto coreográfico.<br />

Essas eram linguagens exigidas para desdobramentos de uma dimensão contrária às<br />

interpretações teatrais da mata concebida no cenário urbano, esta era a expressão de busca<br />

da iniciação à elaboração do cenário mata, correspondente à floresta africana dos ancestrais.<br />

É interessante, no momento, fazermos uma reflexão sobre nossa noção de estilo.<br />

Compreendemos estilo como algo diferente da estilística moderna cartesiana, “enquadrada”<br />

aos parâmetros rígidos de uma estética que Nietzsche (1998) denomina “beleza apolínea”<br />

ou “aparência da aparência”. Estilo, para nós, refere-se ao modo de pensar e agir, de sonhar<br />

345


e realizar, de elaborar e transmitir um conhecimento por meio de uma linguagem enunciada<br />

do grupo, digamos que o estilo é o ethos cultural que dinamiza a comunalidade.<br />

No estilo do novo grupo, a cadência e o ritmo de realização da oposição aos valores<br />

neocoloniais do Grupo Teatral Artebagaço eram os mesmos, contudo a estética pluricultural<br />

foi alterando e sendo modificada à proporção que nos apropriávamos dos saberes do conto.<br />

Era como se fosse um ser humano jovem transformando-se num adulto que atinge o<br />

amadurecimento e a profundidade da reflexão sobre sua existência histórico-social.<br />

A estética, a linguagem que anima as inter-relações sociais, aos poucos foi<br />

adentrando num espaço característico da tradição africano-nagô. Estes eram os sinais do<br />

mito Odé nos orientando através do conto, assim, a mata africano-brasileira foi brotando.<br />

Ressaltamos que tal situação é considerada por nós como novidade na trajetória da<br />

experiência artístico-teatral, a saber, desde o Grupo Nós ao Grupo Teatral Artebagaço<br />

nossas linguagens traziam a característica de afirmação do africano-brasileiro, mas eram<br />

elaboradas no contexto urbano-industrial e, por isso, traziam as influências deste cenário<br />

idealizado e cheio de fragmentações que impediam o reconhecimento da continuidade<br />

histórica da tradição de luta africana contra a prepotência hegemônica do Ocidente desde a<br />

África.<br />

Citamos como exemplo a realização apenas da crítica, porém não saíamos desta<br />

situação por falta do conhecimento dos valores culturais e da história dos africanos. Nossos<br />

ancestrais quilombolas tinham iniciativas criticas da realidade, mas também recriavam<br />

espaços africanos no Brasil, constituídos de valores culturais africanos. Este foi o<br />

entendimento que brotou de linguagem característica de floresta africana.<br />

Essa linguagem desdobra-se para além da crítica e realiza-se na vivência com quem<br />

herdou e viveu e vive no cenário da mata, a comunalidade tradicional africana do Brasil,<br />

com quem sabe e consegue resguardar o saber no silêncio, um querer ficar calado, como diz<br />

Sodré (2000), mas nunca esquecerá o que herdou porque o corpo é o lugar de resguardo da<br />

linguagem de arkhé civilizatória e o corpo é o museu vivo dos humanos.<br />

Quando o conto passou a ser a referência temática de leitura favorável à iniciação ao<br />

conhecimento da cultura ancestral africano-nagô, as dinâmicas dos jogos cênicos e das<br />

oficinas do Artebagaço receberam novas expressões, por exemplo: no jogo cênico, como o<br />

cenário socioexistencial recriado era na mata, o jogo era caçar as referências da mata<br />

346


africano-brasileira para assim conhecê-la e poder caminhar livremente nos espaços<br />

recriados. Logo, os desdobramentos ético-estéticos que alicerçavam a caçada geravam uma<br />

nova compreensão de existência social mais agradável, da inesgotável vida na mata.<br />

Para que haja uma melhor compreensão do conto, recomendo-lhe, outra vez, leitor,<br />

que volte algumas páginas e revisite o conto por nós recriado, no Capítulo 1, caro leitor.<br />

Bem, assim de posse dos sinais da tradição resguardada no conto, poderá nos compreender<br />

melhor.<br />

Cremos que seja interessante saber que o conhecimento elaborado pelos primeiros<br />

dez componentes do grupo adquire significado a partir deste conto e, como eles já estavam<br />

acostumados com determinados códigos de vida social nas vivências com vizinhos e<br />

familiares, tipo como agir diante dos mais velhos na comunalidade social e litúrgica, logo<br />

tornou-se fácil a compreensão da relação de respeito do caçador com o Babalaô, de maneira<br />

que faziam o mesmo gesto ao olhar para Janice Nicolin, a pessoa que coordenava as<br />

oficinas.<br />

Estas manifestações de vontade das alteridades próprias são assim esclarecidas por<br />

M. A. Luz (1995, p.115): “As relações de respeito e veneração pelo mais velho decorrem<br />

de um interesse de adesão dos mais novos, motivados, pelos valores que regem a coesão<br />

grupal”.<br />

Por outro lado, Inaicyra dos Santos ressalta: “Isto é o reflexo da cultura Yorubá na<br />

qual é considerado rude para uma pessoa jovem olhar diretamente no rosto do mais velho.<br />

Na dança, a mulher raramente olha pra cima. Os homens, por outro lado, colocam-se bem<br />

direcionados, mostrando coragem” (AJAYÍ, 1983, apud. SANTOS, 2006, p.62). Esta<br />

linguagem é percebível na dinâmica socioexistencial do grupo durante a organização das<br />

funções de desempenho.<br />

Em março de 2005, no reinício do ano letivo, já tínhamos escolhido o nome do<br />

grupo, com isto colocamos outros cartazes convidando novos componentes:<br />

347


Figura 215.<br />

Cartaz do Grupo Odeart – Convite de inscrição (2005) 8<br />

Fonte: Arquivo do Artebagaço Odeart.<br />

Figura 216<br />

Cartaz do Grupo Odeart – Divulgação (2005)<br />

Fonte: Arquivo do Artebagaço Odeart.<br />

QUER SABER MAIS?<br />

VENHA NOS CONHECER.<br />

E, para nossa surpresa, apareceram mais de 50 adolescentes de várias escolas do<br />

Cabula, a maioria não era do colégio de origem das vivências. Assim, com estes novos<br />

brotos, fizemos muitas mudanças no estilo, que mantiveram o fundo comum da proposta<br />

inicial, que é a nossa postura política de oposição ao currículo oficial, aos valores da<br />

sociedade neocolonial, cuja crítica fundamenta-se nos textos do Artebagaço.<br />

O enunciado do cartaz que atraiu tantos jovens ao nosso convívio foi o mesmo que<br />

afastou alguns destes quando souberam do significado simbólico cultural do nome Odeart<br />

8 Originais constarão do Apêndice.<br />

OLÁ, PESSOAL!<br />

Convidamos aos adoradores de TEATRO que Estamos Aqui<br />

fazendo inscrições para quem se interessa por esta forma de<br />

ARTE.<br />

Quando? Próxima segunda-feira, 28/02/2005, às 16h00min...<br />

Onde? Aqui, no Colégio Governador Roberto Santos Segundo<br />

Grau.<br />

28/02/2005<br />

348


através da leitura interpretativa do conto de Mestre Didi Axipá, “O caçador e a caipora” 9 .<br />

Vejamos como Gilmara, que ingressa em 2005, entoa sobre sua chegada no grupo:<br />

349<br />

Eu vi um cartaz anunciando um grupo chamado Odeart, cheguei me<br />

interessei, sabe? Aí, eu, Rafa e Janaina fomos, quando chegamos lá foi<br />

para saber o horário, só que quem estava lá era Daniela, Cláudia e<br />

Janice, nós ficamos conversando, na verdade eu não tinha visto lá nada<br />

de teatro, daí pensei: “vou entrar, não faço nada em casa”. Aí, eu fiquei<br />

com Rafa, que depois saiu, é um mistério até hoje, e Janaína, que também<br />

saiu pelo fato da religião, ela é cristã, e quando viu como estava se<br />

sucedendo, até pelo nome Odeart, quando soube o que era Odeart, se<br />

afastou e eu fiquei, né?(Gilmara, 2006).<br />

O que estava sucedendo? A maioria que ali chegou conhecia o significado<br />

simbólico mítico-sagrado Odé, muitos eram iniciados, ou confirmados, ou suspensos na<br />

dinâmica litúrgica africana banto, pois não conhecemos nenhum jovem da comunalidade<br />

nagô no grupo. O certo é que, dos 50 participantes ingressos entre março e o início de maio,<br />

uma média de 38 pessoas ficou no grupo, esta foi a base média quantitativa de participantes<br />

deste grupo entre 2005 e o final de 2006.<br />

Ressaltamos que, em termo de fluxos de passagem, existem aqueles adolescentes<br />

que levam apenas um mês ou dois nas oficinas porque buscam, no grupo, apenas, formas de<br />

libertar o corpo e desenvolver a linguagem travada pelo etnocentrismo, além do<br />

aprendizado diversificado de leitura. Se contarmos com estes, o grupo chega a compor um<br />

corpo com cem pessoas ao ano. Esta quantidade está presente desde o Grupo Artebagaço e<br />

agora se repete no Grupo Odeart.<br />

Entre os 38 adolescentes e jovens, havia quatro adolescentes que tocavam<br />

instrumentos de percussão, um deles, de que já falamos, é Jorge Alex, que é Tata<br />

Xicarangoma, na língua banto kimbundo, tocador e zelador de atabaque. Com o tempo,<br />

surge divergência em torno do tipo de toque que deveria ser usado para cada nação africana<br />

do Brasil. Deste conflito, ficamos com três tocadores, Jorge Alex, Dainho e Kalango,<br />

Rafael saiu do grupo.<br />

A linguagem da percussão definiu a nova estética, interferiu desde a leitura, que<br />

passa a usar a marcação do tempo com toques no agogô, ou no surdo, ou no timbau 10 e, dos<br />

9 Ressaltamos que, até esse momento, o grupo desconhecia o auto coreográfico “Odé e os orixás do mato”.<br />

10 Timbau: palavra da língua africana quicongo, de origem banto, povo do império Congo/Angola.


atabaques, brota o dinamismo de uma nova linguagem que aflora a dinâmica dos ensaios<br />

cênicos teatrais até na dança, que passa a ancorar-se no conhecimento mítico do ancestral<br />

Odé, arkhé civilizatória que funda princípios e valores da família de linhagem e do<br />

território político africano-nagô, sobretudo Ketu, reino de Oxossi, entidade patrona deste<br />

lugar.<br />

Os tocadores contribuíram muito para mudança rítmica, sem eles não comporíamos<br />

o cenário de pluralidade cultural africano-brasileira. A polirritmia marca os territórios de<br />

atuação cênica, a chamada marcação cênica. Digamos que, numa encenação<br />

contextualizada na sociedade tradicional africana, os atabaques protagonizam com o ator<br />

que também é um dançarino. Vivemos esta experiência de conhecer a importância da<br />

dialética entre as linguagens da música, dança e teatro. Observe-se o esclarecimento de<br />

Inaicyra Santos sobre os atabaques no cenário sociocultural africano:<br />

350<br />

O atabaquista, ou alagbe, é o tocador do instrumento. Na maioria das<br />

vezes mora, nasceu, ou tem ligações muito fortes com o terreiro de orixá<br />

ou de eguns. Pode ser escolhido pela Iyalorixá, pelo Babalorixá, ou pelo<br />

orixá, mas sempre se leva em conta a sua virtuosidade como tocador.<br />

Entre os Yorubás na Nigéria é uma arte hereditária.<br />

A orquestra do ritual Yorubá na Bahia tem a seguinte composição: 1)<br />

rum: atabaque principal que produz som grave, é o maior em tamanho do<br />

grupo e tem a mesma função do Iya-ilu 11 . Seu tocador é o alagbe, aquele<br />

que cria as variações dos ritmos; 2) rumpi: atabaque médio é tocado pelo<br />

otun alagbe 12 . 3) le, atabaque menor que é tocado pelo osi algbe 13 . O<br />

rumpi e o le mantêm o ritmo básico dando suporte para que o rum faça<br />

suas variações. Os atabaques tocam com auxílio do agidaví, varetas finas<br />

e resistentes de galhos de árvores. O rum é tocado somente com um<br />

agidaví na mão esquerda. Nos terreiros de Angola os agidaví não são<br />

utilizados, toca-se com as mãos. (SANTOS, 2006, p.69-70).<br />

Além dos atabaques, a polirritmia africano-nagô utiliza instrumentos como o agogô<br />

e o xequerê:<br />

O primeiro é um instrumento bitonal, formado por dois cones, ou outro<br />

material semelhante, unidos. O som é produzido quando se bate com uma<br />

varetinha de ferro. O agogô mantém o ritmo básico da orquestra. A cabaça<br />

11 “Tambor mestre ou tambor falante – maior em cumprimento que lidera o grupo” (SANTOS, 2006, p. 67).<br />

12 Otun, à direita de um cargo, otun alagbe, quer dizer tocador sentado à direita do rum.<br />

13 Osi, à esquerda, osi alagbe, quer dizer tocador sentado à esquerda.


351<br />

ou sekerê possui uma forma arredondada e é envolvida por uma rede onde<br />

estão enfiadas as contas de Nossa Senhora; seu som é produzido quando é<br />

chocalhada. (SANTOS, 2006, p.70).<br />

Essas variações de linguagem decorreram da necessidade de realização da<br />

montagem cênica que ainda era, apenas, Odé, o caçador africano.<br />

Figura 217. Figura 218 Figura 219.<br />

As palmas. J. Alex e J. Cipriano. 2005. O toque no atabaque. Rafael, 2005. Rafael no atabaque e J. Alex palmas.<br />

O grupo, com esses novos valores, não acresceu apenas o enriquecimento musical, a<br />

dança também começa a destacar-se, a gestualidade da caçada caracteriza os saberes do<br />

ancestral africano-nagô Odé no cenário da floresta do império Nagô. Como todos que se<br />

fixaram no grupo conheciam um pouco do contexto mítico-litúrgico herdado das vivências<br />

nas comunalidades tradicionais, a música e a dança inundaram o ambiente do elemento<br />

estético Odara, favorecendo o desenvolvimento de um cenário bom, belo e útil.<br />

Figura 220 Figura 221 Figura 222<br />

Os primeiros passos na busca. 2005. Os movimentos se afirmando. 2005. O movimento solo autoconfiante. 2005.<br />

Figura 223 Figura 224 Figura 225<br />

O grupo na casa de Janice. 2005. Ensaio no colégio. Jorge de Costa. 2005. Hudson do Break na dança de matriz.


Enquanto a percussão iniciou com Rafael, Jorge Alex, Dainho e Kalango (no final,<br />

Rafael afastou-se, ficando os três que estão até hoje), em 2007, a dança, ao contrário,<br />

iniciou com Jorge Cipriano que orientava Gilmara, Daniela, Larissa, Jaqueline e Cássia. Em<br />

seguida, acresce da presença de Márcia Rogéria que divide poderes com Jorge, e desta<br />

união brota o grupo de matriz africana Odeart Dance. Inaicyra Santos (2006, p.43)<br />

esclarece que:<br />

352<br />

A dança integra o físico, o psíquico, o intelecto e o emocional. Pode ser<br />

considerada não só como estímulo da imaginação, mas como um<br />

constante desafio para o intelecto e um cultivo do senso de apreciação.<br />

Tudo isso leva-nos a perceber a dança como elemento integrador e<br />

integrante do processo educacional.<br />

A dança foi, realmente, o elemento que uniu o teatro à música, pois a atividade<br />

cênica teatral africana encontra na dança a linguagem criativa de expressão da identidade<br />

cultural do comportamento ritualístico sagrado. A dança aproxima o ator do cenário real<br />

vivido pelo ancestral e lhe oferece a sensação de viver a cena da caçada como acontece no<br />

ritual sagrado do iniciado ao culto de Oxóssi.<br />

A saída de Rafael, que era o dono do atabaque, nos deixou sem este instrumento,<br />

sendo necessário comprar um atabaque, mas compramos o conjunto dos três atabaques<br />

rituais (rum,rumpi e lé). Antes era um e fazia diferença, com dos três instrumentos o<br />

dinamismo expandiu bastante.<br />

Entretanto, no colégio, os toques incomodavam, as reclamações ficavam por conta<br />

do “atrás das cortinas”, ou seja, diretamente não reclamavam, mas as chaves do lugar onde<br />

fazíamos os ensaios, no mini-auditório, começaram a sumir outra vez, sem contar a falta de<br />

limpeza no local de ensaio, éramos nós que fazíamos.<br />

Além da dança de matriz, da música percussiva, da linguagem teatral, o grupo<br />

acolhe outra referência de linguagem africana das Américas, o break dance, dança de rua,<br />

originada nos “guetos” dos EUA, recriada por jovens que reivindicavam espaço de atuação<br />

nos esportes e nas artes, por isso agregamos também estes valores afro-americanos. Era<br />

Hudson Moreira quem liderava este trabalho e, em troca, ganhava conhecimentos no teatro,<br />

com atividades de ator e de dançarino do corpo matriz africana.


Figura 226 Figura 227<br />

Hudson M. Grupo Atitude Break no colégio. 2005 Hudson, ator da peça “A venda”, na Ucsal. 2005.<br />

No grupo, havia duas fortes lideranças, um dado que não houve nos grupos<br />

anteriores, pois todos, antes, ouviam as sugestões dos coordenadores: Diego, Janice e Beni<br />

e, depois, a dos demais. Os componentes do Grupo Odeart estabelecem uma relação<br />

respeitosa para com Janice Nicolin, tanto pela idade quanto pelo saber que esta detém e lhes<br />

transmite.<br />

No entanto, duas lideranças erguiam-se tentando impor sua respectiva<br />

superioridade, uma coordenada por Gilmara Cruz, que possui uma gestualidade natural<br />

próxima da ancestral Oya ou Iansã, a outra, Claudia Fiúza, com gestualidade natural<br />

próxima do ancestral Ogun.<br />

De um lado, Gilmara liderava as pessoas da percussão e da dança, ela é atriz e<br />

dançarina no grupo; do outro, Cláudia liderava as pessoas do break onde estavam os<br />

antigos membros do Artebagaço que foram atores como Cláudia, ou platéia. Este impasse<br />

gerou o conflito em relação ao nome, os novos queriam o nome confirmado Odeart, os<br />

antigos queriam Artebagaço, inclusive este era o nome bem aceito pela sociedade oficial, a<br />

escola, que não aceitava nem a linguagem artística africana nem o nome Odeart.<br />

O interessante é que o colégio nunca prestigiou o nome Artebagaço, mas, diante do<br />

nome Odeart, resolveu optar por Artebagaço: “Cadê o Artebagaço, quando vai se<br />

apresentar?” – era assim que nos indagavam sobre a estréia do grupo.<br />

A discussão sobre o nome do grupo decorreu entre maio e julho, enquanto isto<br />

penetrávamos cada vez mais na busca dos saberes da “mata africano-brasileira”, os<br />

alicerces da nossa montagem artístico-teatral “A de ó - Estamos chegando”. Além disso,<br />

com os textos Artebagaço, fomos compondo nossas críticas ao eurocentrismo e<br />

etnocentrismo.<br />

353


Neste ínterim, Hudson Moreira, nosso poeta, dançarino de break, jovem de vinte<br />

anos na ocasião, recria um rap inspirado na discussão em torno do nome e do conteúdo de<br />

um poema escrito por Janice Nicolin, que seria o prólogo da montagem cênica. Vamos<br />

conhecê-lo:<br />

Refrão<br />

Ade ó e estamos chegando.<br />

A de ó e estamos chegando.<br />

A de ó e estamos chegando.<br />

1.Chegamos aqui com muito prazer<br />

2.Artebagaço é pura humildade<br />

3.Pode crer.<br />

4.A galera é unida, é pura animação,<br />

5.Mas o nosso caso é sério,<br />

6.Não tem brincadeira não.<br />

7.Pensamos para agir<br />

8.Não agimos sem pensar,<br />

9.Se ligue nessa idéia<br />

10.Que agora vamos passar,<br />

11.Se ligue nesta idéia,<br />

12.Preste muita atenção:<br />

13.Esta é nossa cultura,<br />

14.Guarde bem, meu irmão.<br />

15.Vamos seguindo nos ritos<br />

16.Como negros assumidos<br />

17.Afirmando o jeito afro,<br />

18.Este é o nosso compromisso.<br />

A de ó e estamos chegando<br />

A de ó e estamos chegando<br />

A DE Ó<br />

A de ó e estamos chegando<br />

1.Chegamos aqui pra te mostrar<br />

2.O espetáculo bem alegre<br />

3.Que foi feito pra abalar.<br />

4.Um espetáculo bem alegre<br />

5.Que é pura animação<br />

6.E a galera toda grita<br />

7.A de ó é som.<br />

8.E pra toda gente que acredita<br />

9.Em seu sonho.<br />

10.Que vai em frente, sem medo de<br />

arriscar,<br />

11.Sem medo de sofrer<br />

12 O que aprende com a vida a se<br />

defender.<br />

13.Estimulamos o que acreditam<br />

14.Ter um “Som”<br />

15.A lutar pelo seu sonho<br />

16.Que A de ó é o Som.<br />

Refrão<br />

A de ó e estamos chegando<br />

A de ó e estamos chegando<br />

A de ó e estamos chegando<br />

(Hudson Moreira, 2005).<br />

Quando Hudson chegou ao grupo, era início de junho, a discussão sobre o nome<br />

estava bastante esquentada, os textos recriados por Janice Nicolin – o auto coreográfico<br />

“Odé, o caçador africano” e o poema de abertura do espetáculo teatral intitulado “A de ó” –<br />

já estavam prontos, também os textos do Artebagaço já tinham sido selecionados e faziam<br />

parte das oficinas de criação de leitura interpretativa e cênica.<br />

Praticamente já estava pronta a estrutura cênica de “A de ó - Estamos chegando”, o<br />

que Hudson iria introduzir seria o estilo break neste poema de abertura do espetáculo,<br />

354


contudo ele foi além, recriou um novo poema adaptado ao estilo hip hop, inclusive deu o<br />

mesmo nome “A de ó”. Durante entrevista dada a Janice Nicolin para pesquisa, Hudson<br />

entoa sobre a dinâmica desta recriação:<br />

355<br />

A música nasce de um texto que você me deu que era muito grande. Então<br />

eu fiz a música mostrei pra o grupo 14 , Luís Carlos mesmo achou o<br />

máximo eles acharam legal. Depois quando cheguei até você, você achou<br />

melhor ainda! Ai, quando mostrei a rapaziada de A de ó 15 todos gostaram<br />

e apreciaram. Então foi isso aí.<br />

A música é estilo hip-hop mesmo, é um rap, que A de ó, como você tenta<br />

explicar, quer dizer estamos chegando, então eu preferi botar “A de ó” e<br />

“estamos chegando” um atrás do outro, A de ó e a tradução ao lado no<br />

refrão. No final termina todos juntos cantando. (Hudson Moreira, 2005).<br />

Hudson, mesmo sem conhecer a dinâmica do Grupo Teatral Artebagaço, acabou<br />

tendo uma atitude de Diego Nicolin: alguns textos criados por Janice, Diego recriava para<br />

linguagem de dramaturgia, “Trapalhada” 16 foi um dos exemplos. Na realidade, foi em final<br />

de maio que “A de ó” foi confirmado como nome da primeira montagem cênica do Grupo<br />

Odeart.<br />

“A de ó” é uma expressão da língua iorubá extraída de um verso do oriki Iya O<br />

Bogunde que apresentamos no primeiro capítulo, mas vale a pena trazer o trecho de onde<br />

foi extraído o verso para possibilitar uma melhor compreensão do sentido “A de ó” no<br />

recriado cenário pluricultural do Grupo Odeart:<br />

Boro mu ekun aseke,<br />

A pantera não pode ser facilmente caçada.<br />

Ekun olé ekun aje,<br />

Ela pode também comer,<br />

Eni e gangan.<br />

Ela tem poderosos dentes.<br />

A de o!<br />

Chegamos e estamos aqui!<br />

14 Ele fala do grupo que Cláudia liderava e que se caracterizava por jovens que apreciam o estilo hip-hop,<br />

participam de movimentos sociais oriundos dos guetos americanos, inclusive este grupo tentava entender, ao<br />

seu modo, a linguagem de matriz africana, com respeito e admiração.<br />

15 Fala do elenco que abre o espetáculo, antes de iniciar o primeiro ato.<br />

16 Texto que fecha o espetáculo “Tá bom pra cachorro” (1998–1999).


356<br />

Kosi mi fara e awa re!<br />

Nada há no mundo que possa contra mim, aqui estamos!<br />

Kosi mi fara e awa re! (SANTOS; SANTOS, 1993, apud LUZ, N.,<br />

2000, P.139).<br />

O oriki reafirma a existência guerreira dos filhos da Iyá que plantou a luta contra a<br />

hostilidade neocolonial e a afirmação da preservação do patrimônio africano-nagô no Brasil<br />

a partir do século XVIII. Fala de bravura, coragem e perseverança e lembra: o que foi<br />

transformado em caça no solo neocolonial não é presa fácil para ser considerada caça, ao<br />

contrário, ele pode transformar o caçador arrogante e pretensioso em caça também porque o<br />

grupo detém princípios e poderes místicos simbólicos que asseguram a força guerreira da<br />

resistência, simbolizadas pelos “dentes afiados” da pantera.<br />

Os Nagôs se consideram descendentes, filhos míticos de Xangô e herdeiros da<br />

força mística deste ancestral: “A guerra trouxe Iyá fundadora das comunidades-terreiros,<br />

que trouxe consigo Xangô, Orixá do fogo, Alaafin, rei de Oyó, dinastia, origem,<br />

ancestralidade e arkhé” (LUZ, N., 2000, p.140). Está neste poder de renovação das forças<br />

invisíveis a capacidade inesgotável de resistência ao condicionamento à política<br />

socioeconômica do neocolonialismo e da escravidão dos povos africanos e aborígines.<br />

De certa forma, o rap se aproxima do canto sagrado sem ter a conotação do oriki,<br />

que é um texto de homenagem e celebração sagrada a uma das Iyas fundadoras da tradição<br />

Nagô no Brasil, Iya Oba Tosi, Marcelina da Silva 17 , tetra-avó de Mestre Didi Axipá. O<br />

sentido de aproximação refere-se ao dado que ambos os cantos contêm a força de afirmação<br />

da existência guerreira marcando o território político de atuação, transmitindo força de luta<br />

e de afirmação aos demais para continuar lutando contra a hostilidade.<br />

Contudo há sempre um ponto que nos une ao passado, o oriki refere-se à afirmação<br />

da força de Xangô trazida e plantada pela ancestral da família Axipá Iyá Oba Tosi, “Nada<br />

há no mundo que possa contra mim, aqui estamos”. Já o rap anuncia a força do Grupo<br />

Artebagaço no corpo do Odeart: “Artebagaço é alegria” e mais adiante: “Vamos seguindo<br />

nos ritos / Como negros assumidos/ Afirmando o jeito afro! Este é o nosso compromisso”.<br />

Observe que há um ritmo cíclico, isto não é casual, é a continuidade civilizatória.<br />

17 Marcelina da Silva, Oba Tosi, é prima de Iyanassô, uma das três primeiras fundadoras da primeira casa de<br />

culto público no Brasil na primeira metade do século XIX.


Todos esses desdobramentos constituíram o projeto ODEART, ele brota num<br />

cenário de necessidade de reorganização comunal e de recriação artístico-teatral, ancorado<br />

num sistema de pensamento africano. Sua filosofia são formas de elaboração do mundo<br />

preciosas para os jovens que freqüentam a escola pública, sobretudo as do Cabula, e<br />

compõem as expressões naturais do grupo que caracterizam as territorialidades cabuleiras.<br />

A dinâmica do projeto encontrou tanto no conto “O caçador e a caipora” quanto no<br />

auto coreográfico “Odé e os orixá do mato” de Deoscóredes Maximiliano dos Santos, o<br />

Mestre Didi Axipá, proventos da tradição de caçador africano para a estruturação da<br />

proposta político-pedagógica de educação pluricultural.<br />

Por exemplo, a dinâmica musical da montagem cênica mítico-poética desdobra-se<br />

como a relação do barro com a água para gerar a massa que compõe os corpos de uma<br />

escultura. No caso da música, são os toques que animam a expressão corporal do ator que<br />

representa o caçador. Estão nestas obras o “divisor de águas” necessário e também o meio<br />

de aproximação da episteme africano-brasileira.<br />

É divisor porque os toques possuem referências civilizatórias do universo simbólico<br />

africano que o território político-cultural, educacional, jurídico, artístico universal de<br />

valores etnocêntricos denega, subestima e inferioriza, contudo é a base de nossa crítica.<br />

Assim também, a linguagem civilizatória é a base de nossa pós-crítica, que nos<br />

aproxima deste universo simbólico denegado por esse poder hegemônico neocolonial, um<br />

dado que nos ajudou a compreender e recriar nossa perspectiva de linguagem e superar o<br />

etnocentrismo que alicerça as políticas públicas de Educação.<br />

É a pós-critica que “[...] permite a expressão de uma linguagem contextual e<br />

estética, de onde transbordam expressões de dança, música, dramatização, vestuário,<br />

instrumentos, emblemática, culinária, polirritmia percussiva [...]” (LUZ, N., 2003, p.72),<br />

que, na realidade, é a dinâmica estética Odara que inunda o território de realização de<br />

alegria, satisfação e poder de afirmação do grupo no cenário, majoritariamente, de<br />

imposição etnocêntrica.<br />

Por isso, os constituintes cênicos de “A de ó – Estamos chegando” não são<br />

linguagens idealizadas para expressar vida preexistente, ao contrário, foi constituído ao<br />

longo da vivência desta pesquisa, com acúmulos do que se viveu no passado Pré-<br />

Artebagaço e Artebagaço. Conseguimos, então, compor um cenário holístico pluricultural,<br />

357


caracterizado pelo espaço do etnocentrismo, espaço do recalque da alteridade, e pela<br />

política de afirmação desta alteridade no espaço mata africano-brasileira.<br />

Para compor “A de ó – Estamos chegando”, nossa proposta político-pedagógica<br />

mítico-poética do Projeto Odeart lançou mão, (ou melhor, nós lançamos o corpo inteiro), de<br />

uma pesquisa itinerante preocupada com o que cada um deseja saber de si e de todos que o<br />

circundam. Procuramos observar nossos passos no grupo, apreciar nosso público, sobretudo<br />

o público do Cabula e de todos os ambientes educacionais onde estivemos e da<br />

comunalidade tradicional ou fora desta. Enfim, foi o caminhar “agachado” que nos levou à<br />

montagem da peça.<br />

Figura 228 Figura 229 Figura 230 Figura 231 Figura 232<br />

Dinâmica da Capoeira. Dança de Matriz. Dinâmica de Voz. Grupos de Leitura. Dinâmica de Ator.<br />

A partir de julho de 2005, o grupo parte em caminhada com os ensaios abertos ao<br />

público, localizados fora dos locais fixos de ensaios: no colégio público do Ensino Médio<br />

Gov. Roberto Santos e no Conselho de Moradores das Barreiras.<br />

Por essa época, o consenso em torno do nome do grupo favoreceu a união dos dois<br />

nomes, Grupo Artebagaço Odeart, uma sugestão de Janice, em homenagem à história de<br />

luta do Artebagaço, um nome que fala da história, do que o grupo plantou com seu estilo<br />

próprio recriador de linguagens crítica. Odeart é um nome que expressa a identidade<br />

cultural do grupo.<br />

Bem, com a poeira assentada passamos a fazer ensaios abertos da montagem cênica.<br />

Mas antes, em maio, Janice Nicolin realiza uma Oficina de Artes Cênicas com professores<br />

da educação infantil no município de Candeias, na localidade Passagem dos Teixeiras,<br />

sendo esta uma iniciativa político-pedagógica do Projeto Dayó – PRODESE, <strong>Uneb</strong>/<br />

Campus I que, entre outros objetivos como este, cria espaço de atuação de políticas<br />

públicas de educação pluricultural.<br />

Vejamos algumas imagens do local e das oficinas de criação realizadas com<br />

educadores da CACADE (Casa da Criança e do Adolescente de Candeias), coordenada por<br />

Mãe Raidalva.<br />

358


Figura 233 Figura 234 Figura 235 Figura 236<br />

O solo da origem Cacade Entrada da Escola Cacade. A frente da escola. As professoras e as crianças.<br />

Figura 237 Figura 238 Figura 239<br />

Grupo de crianças de 3 a 4 anos. Oficina de Expressão Corporal. Oficina de Montagem Cênica.<br />

Na Casa da Criança e do Adolescente de Candeias, pudemos, junto com outros<br />

educadores do Prodese, através do projeto Dayó, observar o interesse dos educadores pela<br />

proposta do Projeto Odeart que ainda brotava, lá foi possível recriar cenários míticopoéticos<br />

tendo como referência personagens da história vivida no cotidiano daquele lugar,<br />

personagens que repetem formas de coexistência e gestos corporais recriados da<br />

ancestralidade. Lembremos da mimesis a partir de Boal (1991), os gestos são recriações dos<br />

ancestrais que muitos, na comunidade, desconhecem, é a arkhé civilizatória manifestandose.<br />

Em julho de 2005, a montagem “A de ó - Estamos chegando” fez seu primeiro<br />

ensaio aberto – fizemos vários ensaios abertos até chegar o dia da estréia, em outubro – um<br />

dos primeiros lugares a nos acolher foi o Laboratório de Desenvolvimento e Tecnologias<br />

Sociais, uma iniciativa da UNEB/ PEC e UNIFACS/ PPDRU – FAPESB, iniciativa política<br />

do Programa Agenda 21, coordenado por Dr. Eduardo Nunes.<br />

Figura 240 Figura 241 Figura 242 Figura 243<br />

Abertura. Rap. A de ó. 2005. O prólogo. Voz Autoral. “A Reza”. Monólogo do I Ato. Break. Fechando o I Ato.<br />

359


Figura 244 Figura 245 Figura 246<br />

A percussão abrindo o II Ato. Final. Agradecimentos ao público. Público do Labtec. 2005.<br />

Em setembro, no auditório do PROEX (Programa de Pesquisa e Extensão da <strong>Uneb</strong>),<br />

outro ensaio aberto foi realizado no encontro promovido pelo Prodese, através do Projeto<br />

Dayó, coordenado pela Dra. Narcimária Luz. Dayó quer dizer alegria, e, com esta sensação<br />

apresentamos nosso corpo Odeart Dance e o Projeto Odeart:<br />

Figura 247 18 Figura 248 Figura 249<br />

Dra. Narcimária. Abertura do encontro. Grupo Odeart Dance. Público do encontro. 2005.<br />

Em setembro, promovemos o evento I Fórum da Diversidade africano-brasileira do<br />

Cabula, uma iniciativa que fez parte das comemorações da Semana da Cultura do Colégio<br />

Governador Roberto Santos – Ensino Médio. O tema foi “Cabula território africanobrasileiro”,<br />

e o Fórum desdobrou-se do dia 12 ao dia 14 daquele mês.<br />

Nesse cenário, fizemos a parceria com a turma 11N4 do colégio na qual o Grupo<br />

Artebagaço Odeart participou com a composição artístico-teatral, o auto coreográfico “Odé,<br />

o caçador africano” e o grupo Odeart Dance, com uma coreografia inspirada no conto de<br />

Mestre Didi Axipá “Chuva dos poderes”. Já a turma apresentou os resultados da pesquisa<br />

prática 19 orientada por Janice Nicolin, professora de Língua Portuguesa da turma, que<br />

seguiu o tema: “Cabula: território africano-brasileiro”.<br />

Nesse evento, no dia 12, tivemos a participação do artista plástico Ronaldo Martins,<br />

membro do Prodese e criador do “Projeto Agbon – arte, beleza e sabedoria ancestral<br />

18 Narcimária Luz abrindo o encontro no Proex.<br />

19 O objetivo foi colher dados empíricos no campo para conhecer o universo cultural sem se comprometer em<br />

adentrar nos pormenores da pesquisa metodológica “desde dentro”.<br />

360


africana”, com a exposição seguida de palestra, nos três turnos, sobre a temática de sua<br />

pesquisa. No turno vespertino, acresce-se a exposição à apresentação da peça “Porque<br />

Oxalá usa Ekodidê”, adaptada do acervo literário de Mestre Didi Axipá por Ronaldo<br />

Martins e pela professora Nicolai Brito para um elenco composto por alunos da 5 a série do<br />

CPM – Colégio da Polícia Militar dos Dendezeiros.<br />

No segundo dia, terça-feira, dia 13, uma mesa-redonda iniciou os trabalhos<br />

debatendo o tema “Cotas na universidade”, tendo como palestrantes, no turno vespertino,<br />

Gabriel Swahili do UBUNTU – Núcleo dos Estudantes Negros da <strong>Uneb</strong>, nos turnos<br />

vespertino e noturno, Elairdes Borges, Edna Argolo, professoras da casa, e Janice Nicolin,<br />

coordenadora do evento.<br />

Na quarta-feira, dia 14, nos turnos vespertino e noturno, com palestra “Dinâmica<br />

Histórica do Cabula”, realizada pelo Tata Kamukenge, Eldon Araújo Lage, mas conhecido<br />

por Gijo do Onzo Nsumba Tabula Dico a Meia Dandalunda da comunalidade do Beiru,<br />

encerramos os trabalhos teóricos e o auto coreográfico “Odé, o caçador africano” fecha o<br />

evento. Trazemos algumas imagens deste momento nas Figuras a seguir.<br />

Figura 250 Figura 251 Figura 252 Figura 253<br />

Ronaldo. Montagem da Expo. A palestra – manhã. Palestra. Tarde. O encontro. “Bate-papo”.<br />

Figura 254 Figura 255 Figura 256<br />

A chegada das crianças do CPM Repassando o texto antes da encenação. Expo. da turma. Simbologia africana.<br />

361


Figura 257 Figura 258 Figura 259<br />

Exposição sobre as Iyás. Gijo. Apreciando a exposição. Público noturno na palestra de Gijo.<br />

Relembramos que essas atividades tiveram como guia das ações a recriação do<br />

conto “O caçador e a caipora” e o auto coreográfico “Odé e os orixás do mato”, as nossas<br />

fontes de inspiração deste rico cenário de intercâmbios de valores culturais, símbolos de<br />

resistência à hostilidade e de força de afirmação do patrimônio africano-brasileiro.<br />

O conto nos fez perceber que, no Cabula, solo de origem dos nossos jovens e<br />

professores envolvidos no grupo, encontra-se a floresta simbólica africano-brasileira, e nela<br />

é possível a expansão do direito à alteridade e a existência de muitos descendentes de<br />

africanos que mantêm vivos todos os códigos comunais fincados pelos ancestrais.<br />

Nesse encontro, fizemos uma estrutura social acolhedora das representações da<br />

comunalidade africano-brasileira, tanto dos movimentos sociais quanto das comunalidades<br />

tradicionais, de maneira que estas pessoas sentiram-se parte do espaço escolar,<br />

desdobraram suas atividades sem perda das referências da identidade civilizatória africana.<br />

Sobre isso, é interessante destacar um precioso artigo de Marco Aurélio Luz sobre<br />

os 25 anos da comunalidade Ilê Asipá, especialmente no subtema intitulado: “Árvores são<br />

cultuadas como representação dos ancestres” (2006, p. 4), que aborda a filosofia nagô sobre<br />

a concepção de pessoa, ser vivo a quem devemos respeitar.<br />

Antes porém é bom lembrar que este artigo ancora-se nos saberes de um dos mitos<br />

de criação do mundo e apresenta o momento em que Obatalá ou Oxalá necessitou da<br />

matéria-prima para fazer os seres humanos e pediu aos orixás que fossem em busca da<br />

matéria, contudo, Iku, orixá Morte arrancou a força a matéria da lama, ipori:<br />

362<br />

Como a lama, ipori, ficou vertendo água chorando; quando Iku arrancou o<br />

pedaço para levar a Oxalá, ele ordenou que lhe caberia a função de depois<br />

de certo tempo, levar de volta realizando a restituição.<br />

Para cada ser humano, Oxalá fazia uma árvore, e no Ilê Asipá<br />

determinadas árvores são cultuadas usando o parâmetro de oja funfun, um


E mais:<br />

363<br />

pano branco em volta do tronco. Convém fazermos uma referência à<br />

relação significativa do culto aos ancestres, com as árvores, especialmente<br />

ao igi Akoko, que é cultuada pela tradição nagô-yorubá e tem presença<br />

simbólica efetiva na liturgia e nos rituais.<br />

Oxalá foi também quem deu movimento e ação ao Egungun, depois que<br />

consegui ter acesso ao segredo guardado no quintal de Oduduwa. O<br />

calendário do Ilê Asipá começa no início de cada ano com um ebó odun, a<br />

oferenda do ano para que o destino dos participantes da comunidade flua<br />

sem muitas atribulações. (LUZ, M.A., 2006, p. 4).<br />

Em seguida, em torno do dia de Reis, ocorre o festival Litúrgico de Baba<br />

Olukotun, olori egun, senhor da direita, um dos ancestrais masculinos<br />

mais antigos, o cabeça dos Egungun representa o alvorecer, os primórdios<br />

à ancestralidade está assentado em reforçar o axé necessário à<br />

continuidade ininterrupta dos ciclos vitais. Os ancestres e ancestrais são<br />

homenageados por se dedicarem a manutenção, preservação e expansão<br />

da comunidade dedicada a tradição religiosa, às relações entre esse mundo<br />

e o além, capacidade de mobilização do axé.<br />

Em junho, a homenagem se refere ao Baba Alapalá, que representa na<br />

historicidade dá espécie humana p período de conquista do fogo, a<br />

domesticação do fogo para diversos fins, mas para nós é importante frisar<br />

o início da sociabilidade, os seres humanos reunidos em volta da fogueira<br />

para pensar e refletir sobre os mistérios da existência, o estar nesse<br />

mundo, se aproximar através do re-ligare, da religião do ritual em volta do<br />

fogo. Estes ancestrais vieram para o Brasil através da família Theodoro<br />

Pimentel, nas pessoas de Marcos O Velho e seu filho Marcos. (LUZ,<br />

M.A., 2006, p. 4).<br />

Essas referências foram guiais de orientação para o que precisávamos, foram,<br />

justamente, formas para realizarmos a aproximação, de forma dinâmica e natural, com as<br />

pessoas que zelam a tradição e resguardam-se nos princípios ético-estéticos da nossa<br />

ancestralidade que rege a trajetória da humanidade.<br />

Nossa busca não acabou no mês de setembro, pois participamos de vários encontros<br />

científicos a exemplo do Seminário Ítalo-brasileiro de Educação Comparada, promovido<br />

pela UNEB, Departamento de Educação I, Università Degli Studi di Padova na Ucsal e


Mestrado em Educação, apresentando a proposta numa comunicação científica 20 , contudo<br />

este artigo foi escrito em março de 2005.<br />

Em outubro no SEMOC (Semana de Mobilização Científica), realização pela Ucsal<br />

(Universidade Católica de Salvador) apresentamos um artigo 21 que penetra nos territórios<br />

africano-brasileiros no dia 19 no campus da Federação, e, no dia 20, no campus de Pituaçu<br />

apresentamos as linguagens com o último ensaio aberto de “A de é – Estamos chegando”:<br />

Figura 260 Figura 261 Figura 262 Figura 263<br />

Inicio de auto Odé. Primeira caçada de Odé. Chegada do Pinto na cabana. Atitude Break. Hudson.<br />

Em outubro realizamos nossa estréia, no “Festival Awon Esó – Frutos do Prodese”,<br />

atividade comemorativa do VI ano do Prodese, iniciativa do próprio programa do<br />

Departamento de Educação I da Universidade do Estado da Bahia. O Festival Awon Esó se<br />

constituiu em uma grande fonte de conhecimento socioexistencial político-pedagógico<br />

africano-brasileiro. Nele pudemos participar da coordenação das atividades – “Dayó:<br />

Mosaico de Linguagens africano-brasileiras”.<br />

É interessante trazer esta experiência para nossas reflexões porque aí se encontram a<br />

sabedoria sociopolítica da comunalidade africano-brasileira, a maneira de organizar eventos<br />

participativos com alegria e emoção e a preservação da tradição festiva dos ancestrais.<br />

O mosaico Awon Esó foi composto por mostra de arte africano-brasileria de<br />

esculturas de Marco Aurélio Luz e quadros de Ronaldo Martins, que também foi<br />

coordenador desta amostra, de Januária C. do Patrocínio e Peterson Freitas dos Santos,<br />

concomitante às palestras, tudo isto pela manhã.<br />

Durante a tarde, houve apresentações de vários grupos culturais: Capoeira das<br />

Crianças Raízes do Abaeté-CRA, Ganhadeiras de Itapuã, Atitude Break, Projeto AGBON,<br />

com as crianças do Colégio da Polícia Militar apresentando a peça Porque Oxalá Usa<br />

20 Título: “O dizer teatral: proposta metodológica de teatro em educação no ensino médio”.<br />

21 “Artebagaço: estilo peculiar – estética teatral – sentido de ode, afirmando identidades africano-brasileiras<br />

no ensino médio. (Apresentado na sessão de Comunicação afro-brasileira).<br />

364


Ekodidé, o Odeart Dance e Percussivo, o Artebagaço Odeart, com o espetáculo teatral “A<br />

de ó – Estamos chegando”. O evento encerrou com o lançamento da revista Sementes<br />

Caderno de Pesquisa 22 . Esta foi uma das caçadas mais abundantes e respeitosas que<br />

vivemos, pois, através desta, todos que participaram ganharam a experiência de uma<br />

vivência de cinco meses, a começar em maio, como as iniciativas do Cacade que<br />

culminaram com o Festival Awon Esó em 26 de outubro.<br />

Essa vivência é o Projeto Dayó, alegria em iorubá, foi assim que todos se sentiram<br />

durante e após a primeira etapa desta experiência, uma alegria que Narcimária Luz, a<br />

coordenadora geral do evento, compartilha e agradece a todos que participaram:<br />

365<br />

No dia 26 de outubro de 2005 tivemos a oportunidade de ver transbordar<br />

na UNEB a infinitude de linguagens e projeções socioexistenciais que<br />

deveriam inspirar e/ou incentivar políticas públicas de valorização das<br />

populações caracterizadamente africano-brasileiras.<br />

A imponência da estética que se ergueu em todos os espaços do Festival<br />

AWON ESÓ expressava a erudição de conhecimento africano<br />

transportando emoção, alegria, indicando modos e códigos de<br />

comunicação originais e desdobramentos de distintas territorialidades[...]<br />

(LUZ, N., 2005).<br />

Vejamos algumas imagens Awon Esó - Frutos do Prodese:<br />

Figura 264 Figura 265 Figura 266<br />

Narcimária Luz Awon Esó. Camarim. Alunos CPM. Janice Nicolin e a percussão Odeart.<br />

Figura 267 Figura 268 Figura 269<br />

Camarim. Odeart Dance. Público. Alunos de 5 a a 8 a . Alunos do Curso Fundamental.<br />

22 Produção literária acadêmico-científica que divulga resultados de pesquisa do Prodese, composição de<br />

conhecimento referente à diversidade cultural contemporânea - Sementes Caderno de Pesquisa v. 4, 6/7,<br />

2003.


Figura 270 Figura 271 Figura 272<br />

Grupo Cultural Ganhadeiras de Itapuã. Atitude Break. 23 Grupo Percussivo Odeart.<br />

Depois do Festival, fizemos várias modificações na estrutura cênica teatral e de<br />

dança, continuamos caçando na mata e indo aos espaços externos apresentar trabalhos. O<br />

festival se constituiu em uma grande referência para recriarmos contextos africanobrasileiros,<br />

este evento nos enriqueceu novos valores artísticos.<br />

Por ele compreendemos que o aproach africano-brasileiro que extraímos da<br />

recriação literária de Mestre Didi, “Odé e os orixá do mato”, nos permitiu a descrição de<br />

situações que retratam o modo de viver das comunalidades africano-brasileiras no Cabula.<br />

Foi com esforço e muita prudência que caminhamos para saber lidar com um universo<br />

simbólico desconhecido por boa parte dos colegas da rede pública de ensino.<br />

Neste ponto, resolvemos colher a apreciação do público de algumas escolas do<br />

Cabula, citamos, aqui, um colégio do Curso Fundamental, Francisco da Conceição<br />

Meneses, que nos acolheu com respeito e valorização do patrimônio africano, mais de uma<br />

vez.<br />

Figura 273 Figura 274 Figura 275<br />

Odé, o caçador africano. Atitude Break. No colégio. Palco arena e platéia.<br />

Em 2006, penetramos ainda mais na convivência comunitária em diversos<br />

encontros, conhecendo outros grupos, um deles foi o Grupo de Capoeira Maré de que já<br />

falamos. Foram raros os momentos em que saímos do território Cabula, não por falta de<br />

23 Foto do Acervo de memória de Ronaldo Martins cedida pelo artista.<br />

366


convite, foi por necessidade de caçar o que nos fortalecia. Apenas saímos para a Ucsal,<br />

Campus da Lapa, porque fomos convidados a participar da homenagem ao Dia do Teatro.<br />

Figura 276 Figura 277 Figura 278<br />

Retocando a maquiagem Representação teatral Apresentação do Atitude Break<br />

Outro momento foi no seminário sobre ações afirmativas e no IV Congresso<br />

Brasileiro de Pesquisadores Negros/ABPN em parceria com a <strong>Uneb</strong>. Nesta ocasião, o<br />

Grupo Artebagaço Odeart apresentou o primeiro ato de “A de ó – Estamos chegando” e o<br />

“Odeart Dance”.<br />

Figura 279 Figura 280 Figura 281 Figura 282<br />

Odeart Dance. Seminário. Seminário Cotas. Odeart. Janice. Mesa – Cotas. Monólogo - Reza.<br />

Figura 283 Figura 284 Figura 285 Figura 286.<br />

Público Cotas. Personagens de A de ó. I Ato. Personagem Apàló de A de ó.<br />

Caminhamos muito para definir a estrutura de “A de ó – Estamos chegando”, pois<br />

nossa preocupação era compor os dois atos, sendo que o segundo ato fosse a continuidade<br />

do primeiro, um cenário amplo em que fosse possível a compreensão de que há a crítica ao<br />

etnocentrismo, no primeiro ato, e a pós-crítica, que é o cenário de afirmação da alteridade<br />

africano-brasileira no segundo ato. É desta forma que entendemos uma dinâmica Odara,<br />

onde há morte (eurocentrismo), mas também há vida (a tradição africana).<br />

367


Outro aspecto que fortalece a estética Odara da dinâmica político-pedagógica do<br />

Artebagaço Odeart é a história da Mini Comunidade Oba Biyi, primeira experiência de<br />

Educação Pluricultural realizada no Brasil, na década de 70, na comunidade-terreiro Ilê<br />

Axé Opô Afonjá no Cabula, sob a coordenação da Sociedade de Estudos da Cultura Negra<br />

no Brasil (SECNEB).<br />

Desse aprendizado pedagógico da Mini Comunidade Oba Biyi, criado e organizado<br />

por Mestre Didi, inédito para nós, adquirimos o ânimo para continuar investindo em<br />

proposições curriculares que fortalecessem a identidade dos jovens Artebagaço Odeart.<br />

Um dos aspectos valorosos da Mini Comunidade Oba Biyi é que:<br />

Além do mais,<br />

368<br />

[...] a linguagem pedagógica utilizada na Mini Oba Biyi, se desenvolvia à<br />

partir do universo simbólico nagô da comunidade-terreiro Ilê Axé Opô<br />

Afonjá, onde ocorreu a experiência.Os temas semestrais norteadores do<br />

currículo,se desenvolviam à partir de uma compreensão transdisciplinar<br />

da experiência, demonstrando a possibilidade de intercâmbio e/ou<br />

interação com o currículo do sistema oficial de ensino; e o êxito no que se<br />

refere à auto-estima das crianças e jovens envolvidos. Ao vivenciarem a<br />

Mini Comunidade Oba Biyi,as crianças fortaleceram tanto a sua<br />

identidade, a ponto de enfrentarem e superarem a política de denegação à<br />

sua alteridade própria, imposta pela pedagogia do embranquecimento<br />

instituída pela Razão de Estado. (LUZ,N., 2000, p.37).<br />

“[...] o que motivou a criação da Mini-Comunidade Oba Biyi, foi o desejo<br />

das crianças de terem a oportunidade de se sentirem bem, e aceitas na<br />

escola, o que não conseguiam no sistema de ensino oficial,<br />

caracterizadamente europocêntrico, uno e totalitário, que rejeita a<br />

diversidade de valores, linguagem e identidade de nossa pluralidade<br />

cultural, promovendo o recalque[...] A experiência da Mini-Comunidade<br />

Oba Biyi, provoca novas reflexões no campo educacional, especialmente<br />

porque não se restringe em denunciar o recalque, o preconceito<br />

empiricamente constatados, mas, sobretudo, porque propõe uma nova<br />

linguagem pedagógica baseada nos valores da tradição africano-brasileira<br />

e no respeito à alteridade e à diversidade cultural. (LUZ, N., 2000, p.48).<br />

Tornou-se um desafio, o esforço de identificar, classificar, sistematizar, interpretar e<br />

a escrever em textos, aspectos dos valores que a tradição africano-brasileira plantou como<br />

modos de sociabilidade, e, a partir desses exercícios de análise, recriar linguagens


pedagógicas capazes de dignificar, valorizar e enaltecer o patrimônio africano, referência<br />

para muitos jovens que freqüentam as escolas públicas no Cabula.<br />

O conto “Odé e os orixás do mato” nutriu o currículo pluricultural da Mini<br />

Comunidade Oba Biyi e tornou-se uma referência valiosa para o grupo Artebagaço Odeart,<br />

que, munido do universo simbólico apresentado por Mestre Didi e sua sabedoria<br />

acumulada, recria-o, estabelecendo novos horizontes de atuação pedagógica fincada na<br />

tradição africano-brasileira, tal como aborda Mestre Didi Axipá e Marco Aurélio Luz<br />

(2007, p.62) sobre o conhecimento da concepção mundo nagô extraído do conto pela Mini<br />

Oba Biyi:<br />

369<br />

Ele fala também da relação e intervenção dos dois mundos; do aiyê,<br />

existência-concreta, e orun, existência genérica, o mundo dos ancestrais e<br />

das forças e princípios que regem o universo. Refere-se à religião, sua<br />

ordem institucional hierárquica, isto é, seus lugares institucionais, através<br />

do personagem do sacerdote babalaô, babalawo, baba + awo = pai do<br />

mistério; seu poder de re-ligare, proporcionar ações e reações numa<br />

dinâmica sagrada de mundo.<br />

A Mini Comunidade Oba Biyi nos fortaleceu e encorajou nossa proposta, sobretudo<br />

por ser a primeira escola de educação pluricultural no Brasil que, orgulhosamente, temos o<br />

prazer de dizer que foi fundada por Mestre Didi Axipá no Cabula, no Ilê Axé Opô Afonjá,<br />

em 1976. Vamos, agora, tecer um longo diálogo com Narcimária Luz sobre a Mini Oba<br />

Biyi:<br />

As crianças da Mini Comunidade Oba Biyi, na sua interação com os<br />

“objetos”, os elementos-signos que promovem a sistematização do saber,<br />

aprendiam através de parábolas, analogias, formas plásticas e dinâmicas,<br />

cânticos, textos míticos, vestuário, dança, dramatização, música<br />

percussiva, culinária, cenários, esculturas, todo um universo estético<br />

gerador e sistematizador de saberes aprendido de modo ativo, de relações<br />

intergrupais concretas.<br />

Como a dinâmica pedagógica, naturalmente, concebia a noção de pessoa na<br />

[...] Mini Comunidade Oba Biyi, a criança era considerada uma pessoa<br />

que tende a crescer socializando-se plenamente com os valores<br />

comunitários, respeitando-os, tornando-se, no decorrer do tempo, um


370<br />

adulto capaz de expandir o patrimônio da comunidade. (LUZ, N., 2000,<br />

p.203).<br />

Sobre a linguagem de referência pedagógica, ressalta Narcimária Luz (2000, p.203):<br />

“A arte permeava todo cotidiano escolar da Mini. O lúdico e o estético estavam presentes<br />

todos os dias, a toda hora, ao contrário das escolas oficiais, em que a arte aparece<br />

excepcionalmente como apêndice”.<br />

Em relação à arquitetura educacional Narcimária Luz (2000, p.165) diz terem sido<br />

Mestre Didi e Juana Elbein dos Santos que projetaram o espaço de educação: “[...] uma<br />

casa com estilo da Bahia, com telhas, varandas, pátio e um amplo salão. A concepção era<br />

de um espaço livre para as crianças explorarem e desenvolverem todos os sentidos do<br />

corpo”; neste lugar a arte era a linguagem primordial de elaboração do acontecer<br />

pedagógico.<br />

Na história da Mini Comunidade Oba Biyi, colhemos referências que caracterizam a<br />

dinâmica das vivências comunais no cenário de educação pluricultural, a saber, a própria<br />

linguagem é a do lugar de vivência das crianças, a pedagogia proposta por Mestre Didi,<br />

Juana Elbein e, depois, Marco Aurélio Luz não cria barreiras lingüísticas intransponíveis<br />

que provocam a evasão escolar, além de que o espaço onde se aprende também é outra<br />

referência de educar.<br />

Por isso Narcimária Luz (1997, p.199) nos diz: “Para melhor elucidar o sentido das<br />

nossas reflexões, é oportuno acentuar que o conceito de educação pluricultural deve estar<br />

referido, sempre, a arkhé cultural, que lhe dará legitimidade e potência para afirmar-se”,<br />

através dos códigos reterritorializados no Brasil por nossos ancestrais.<br />

Na mata africano-brasileira do Cabula, além do território das comunalidades<br />

tradicionais, abrigam-se outras referências que conseguimos caçar e que caracterizam<br />

iniciativas de educação pluricultural, uma delas é a Escola Comunitária Engenho dos<br />

Negros, criada e coordenada por Domingos Sérgio. Vamos conversar um pouco com ele<br />

para colher de seus ecos com esta experiência, sobretudo saber o sentido do nome Engenho<br />

dos Negros.<br />

Meu nome é Domingos Sérgio Freitas e Silva, tenho 36 anos, sou neto de<br />

Joana Pereira Rocha da Usina de São Félix, nasci na rua do Trilho,<br />

próximo à Federação, mas depois fui morar próximo ao Gantois [...]


371<br />

estudei em escola particular, mas aos 13 anos fui para escola pública e<br />

passei a sentir a diferença. Foi em 80 mais ou menos, quando fui morar<br />

no Beiru. Mas eu já estava influenciado pelo Calabar, eu vi o movimento<br />

do Calabar, tinha 7 anos a 8 quando comecei a ver a forma da<br />

comunidade se articular. Sei que tinha um curso de costura, não sei<br />

mesmo, mas o que Mainha mesmo ia era para o curso de costura, era a<br />

juventude negra unida do Calabar, hoje tem Fernando Conceição que<br />

está formado em Magistério, mas eu não morava no Calabar, ia passar<br />

final de semana e via e aprendi como a comunidade se organiza, aí vi<br />

todas estas experiências.(Domingos Sérgio, 2006).<br />

Domingos Sérgio é um dos exemplos que temos de perseverança da luta contra a<br />

hostilidade da sociedade oficial e de preservação do patrimônio africano-brasileiro fora dos<br />

limites da comunalidade tradicional. A Escola Engenho dos Negros é um dos maiores<br />

esforços político-pedagógicos, que há dez anos vem resistindo ao neocolonialismo para<br />

oferecer possibilidades às crianças, jovens e adultos africano-brasileiros da comunalidade<br />

da Engomadeira e adjacências.<br />

Teve uma advogada que procurei para uma assinatura... Aí me<br />

perguntou: por que Engenho dos Negros? Aí eu disse: porque é de<br />

engenhoso, de criativo, a gente é muito criativa, pois tem vezes que não<br />

temos nada, mas do nada a gente faz muito, até dividir o pão em dez<br />

pedaços, pegar palha de bananeira e dizer que é palha da costa, faz<br />

mágica. Então, eu comecei a descobrir que a gente tem potencial né? E<br />

não pode deixar cair. Então, comecei a usar este potencial, foi no<br />

Engenho dos Negros, antes não tinha Engenho, na realidade era<br />

quilombo, mas a gente queria dizer que era engenho, pois era mais<br />

utilizado por nós.<br />

Hoje a gente tem aqui a educação infantil, educação de jovens e adultos,<br />

com isto conseguimos que muitas pessoas retornassem à escola, estão se<br />

formando. São dez anos de escola com curso profissionalizante,<br />

capacitação solidária com costura, curso de língua estrangeira, roupas<br />

artesanais, informática. Foi em 99 que começamos com informática, este<br />

foi o nosso melhor projeto de parceria com a <strong>Uneb</strong>, foi o primeiro projeto<br />

que fechamos parceria Ficamos dentro do Laboratório de Informática da<br />

<strong>Uneb</strong> [...] foi um projeto de qualidade, hoje tem jovens que mudaram a<br />

vida, outros não precisam estudar mais.<br />

Em relação às políticas de desigualdade social, Domingos Sérgio denuncia:<br />

Ele não lê, mas vem do fundo das cantigas na época de Nobertão, Peixe<br />

Frito, que transitava e passava daqui para o Beiru. No Beiru era Hobby<br />

Word, mas aqui era bando. Agora, a gente viu estes meninos pequenos,


E tem mais:<br />

372<br />

eram meninos com talento, tinha um chamado Foguinho, vinha todo<br />

mundo atrás de Foguinho, quando de repente o pegaram, ele tomou o<br />

tiro, mas atirou no cara mesmo! Aí ele saiu baleado e não morreu, a bala<br />

atravessou o corpo. Foguinho era um bom menino não bulia com<br />

ninguém, só roubava fora. Mas também sem opção, se a gente for olhar o<br />

lado dos meninos, eles também não têm opção de um projeto como têm<br />

alguns hoje, mas ainda é pouco. Eles não têm educação, ai vem o<br />

problema da educação, os pais, a situação precária onde a maioria é o<br />

resultado do pós-escravidão que não teve escola, não teve isto. Eles são<br />

resultados deste processo de maltrato de desprivilegio, não é? São os<br />

desprivilegiados do sistema, que ai é o sistema que faz isto.<br />

Quando a gente vê a maioria oprimida, sem nada, busca uma forma. Os<br />

blocos afros e afoxés, blocos travestidos que saem pra brincar, mantêm<br />

aquela tradição de brincadeira, claro que muitos já estão fazendo o lado<br />

comercial, como dizem as pessoas aqui: “sem dinheiro a gente não faz<br />

nada”. A gente não vai ficar com o negócio de pouco com Deus é muito<br />

porque não quero saber disto não, eu quero dinheiro, quero os recursos,<br />

eu vou buscar, porque senão a gente vai acabar, tem pagar água, pagar<br />

as taxas, tudo para sobreviver tem que ter recursos, aí o pessoal pira<br />

comigo.<br />

Um dia me botaram num lugar num conselho para ser delegado, então<br />

joguei duro: tem que ter transporte tem que ter lanche, tem que ter<br />

almoço, tem que ter tudo. Aí o cara pirou comigo, se os vereadores têm,<br />

se os deputados têm. Tudo pra gente é... Aí que a senhora falou da<br />

militância, se tiver uma necessidade e a gente tiver que ir lá ajudar, sem<br />

cobrar a gente sempre fez. (Domingos Sérgio, 2006).<br />

E que quanto mais eles oprimem, mais o povo acha saídas, é claro que a<br />

gente não está tendo a atenção, mas é uma questão muito antiga, não é?<br />

O negro não tem chance porque não tem escolaridade, quando tem é<br />

porque é negro. Outra coisa: quando chega usando contas: “Êta rapaz<br />

este cara é do candomblé, olha lá”.<br />

Eis algumas imagens da realidade vivida por Domingos Sérgio:<br />

Figura 287 Figura 288 Figura 289 Figura 290<br />

Domingo Sérgio e o filho. O interior da Escola. Escola – Quitanda e Biblioteca. Grafite. A linguagem escrita


Outra pessoa que contribui para a preservação do acervo da tradição ancestral<br />

africana do Cabula, no sentido de criar espaços de educação, é Eldon Araújo Lage, que se<br />

esforça com os irmanados da comunalidade Terreiro São Roque para manter uma<br />

arquitetura apreciável e um pequeno espaço de estudo com alguns livros, cuja meta é<br />

compor uma biblioteca com acervo sobre o patrimônio civilizatório africano-brasileiro.<br />

Figura 291 Figura 292 Figura 293 Figura 294<br />

Frente do Barracão. 2006. O espaço externo. Ruas das casas dos Inkice. Casa de Inkice.<br />

Figura 295 Figura 296 Figura 297<br />

Casa de Caboclo. 2006. Espaço Mata do Terreiro. Espaço Mata.<br />

Mãe Aninha, Iya Oba Biyi, através da expressão “Quero ver nossas crianças de<br />

hoje, no dia de amanhã de anel no dedo e aos pés de Xangô” (apud LUZ, N., 2000, p.161),<br />

manifestou seu desejo de ver os filhos de Xangô, os descendentes do povo Nagô, detendo o<br />

saber da cultura do colonizador, mas sempre zelando pela tradição dos orixás. É isto que<br />

estamos vendo, o africano-brasileiro preservando sua tradição.<br />

Bem, vários foram os argumentos que apresentamos para caracterizar nosso cenário<br />

de mata africano-brasileira, que vai desde a dinâmica socioexistencial de composição do<br />

Grupo Artebagaço Odeart, a música de Hudson marcando lugar da ordem do acolhimento<br />

da alteridade, a Mini Comunidade Oba Biyi criada por Mestre Didi Axipá, a referência<br />

ímpar tradutora de educação pluricultural no Brasil, até, sobretudo, os textos de Mestre<br />

Didi: o conto “O caçador e a caipora” do qual fizemos nossa recriação em 2005 e o auto<br />

coreográfico “Odé e os Orixás do mato” que inspirou pormenores do cenário da mata<br />

africano-brasileira.<br />

373


Neste capítulo, “Odé dê nilê, O caçador chegou em casa”, estão as referências de<br />

caçada constituídas pelos valores civilizatórios africano-nagôs que caçamos para erguer o<br />

ethos cultural de “A de ó”, uma perspectiva cênica mítico-poética que, em dois atos,<br />

compõem o mosaico pluricultural mata africano-brasileira, principal espaço cênico por ser<br />

o solo de origem do protagonista mítico-africano Odé, que abre e fecha o cenário.<br />

Lembramos que todo o nosso percurso tem a orientação do mito que sai da mata<br />

para o solo urbano-industrial, para fazer crítica às políticas neocoloniais, etnocêntricas<br />

curriculares. Depois, retorna à mata para caçar alimento e se abastecer, realizando a caçada.<br />

Vejamos a caçada.<br />

4.2 A MONTAGEM CÊNICA: “A DE Ó – ESTAMOS CHEGANDO”<br />

A montagem de “A de ó” é a referência de uma caçada simbólica. Descrevemos,<br />

inicialmente, a linguagem técnica que caracteriza qualquer espetáculo artístico, aquela que<br />

fala do que precisa um espetáculo para apreciação, é o plano de montagem cênica. De certo<br />

que esta parte brota a partir das Oficinas de Leitura Cênica e de Fundamentos para a<br />

montagem cênica. Vamos ao plano.<br />

O Plano de Montagem Cenográfica requer 1 hora para montagem e 30 minutos<br />

para desmontagem do cenário. A cenografia deste espetáculo caracteriza-se por um espaço<br />

holístico constituído por: um plano dimensional urbano ocupando 30% da totalidade do<br />

palco localizado próximo ao público; um plano dimensional mata africano-brasileira, que é<br />

mais recuado e corresponde a 70% do restante do palco, possivelmente, de arena.<br />

Os elementos cênicos são distribuídos em dois planos assim diferenciados: o plano<br />

mata africano-brasileira contém folhas verdes no chão e, também, três ou mais galhos<br />

verdes ou plantas grandes simbolizando árvores. No fundo, está o espaço mata virgem com<br />

três atabaques centralizados, se possível, encostados na parede; do lado esquerdo, tem a<br />

cabana de Odé feita de folhas de coqueiro e o teto de folhas de bananeira, paredes com<br />

tecido kami verde mata; do lado direito, bem mais à frente está a casa do Babalaô e, por<br />

fim, na divisória, entre a casa do Babalaô e o solo urbano industrial, está a aldeia onde<br />

transitam todos os habitantes externos à mata virgem. No espaço urbano-industrial,<br />

374


distribuído na frente e na lateral da mata africano-brasileira, há folhas e galhos secos,<br />

garrafas vazias de plástico e outros dejetos industriais que agridem o habitat natural.<br />

O palco é em forma de arena, porém o ator pode ir ao público e vice-versa.<br />

Plano de Luz: contém dois refletores brancos de frente. Contraluz composta por<br />

dois Fresnel independentes, com gelatina azul-clara. Laterais: dois refletores brancos de<br />

cada lado. Centro: dois brancos do meio para a frente. É claro que tudo isto é dispensável<br />

quando não é possível.<br />

Plano de som: amplificador com caixa de som com 200 W no mínimo, leitor de Cd,<br />

dois microfones sem fio.<br />

Ficha técnica:<br />

Espetáculo: “A de ó – Estamos chegando”.<br />

Direção Geral: Janice de Sena Nicolin<br />

Direção de Montagem. Janice Nicolin e Andréia Monteiro (I ato)<br />

Coordenação e Orientação Pedagógica. Janice de Sena Nicolin<br />

Direção Geral Coreográfica: Jorge Cipriano dos Santos<br />

Co-direção Coreográfica: Márcia Rogéria e Gilmara Cruz<br />

Figurino: Maria Guilhermina dos Santos, Jorge Cipriano<br />

Direção de Artes Plásticas: Daniela Costa<br />

Fotografia: Janice Nicolin<br />

Criação de Cenário. Janice de Sena Nicolin.<br />

Montagem de Cenário: Maquiagem, Sonorização, Camareira: Equipe de Produção<br />

Artebagaço Odeart.<br />

Divulgação: Janice Nicolin, Gilmara Cruz e Claudia Fiúza.<br />

Produção de Vídeo – DVD: Benivalda Moraes, Janice Nicolin e Jorge Alex Dantas<br />

Produção Geral: Grupo Artebagaço Odeart - Artes Cultura e Educação.<br />

Realização: Projeto ODEART.<br />

Elenco: Adailson da Conceição, Andréia Monteiro, Cássia Santos, Cláudia Fiúza,<br />

Cristiane Reis, Daniela Costa, Flávia Goreth Almeida, Gilmara Cruz, Hudson<br />

Moreira, Ivo Leonardo, Jaqueline Cruz, Jorge Alex, Jorge Cipriano, Lília<br />

Nascimento, Luiz Carlos Borges, Larissa Bevenuto, Patrícia Daiane, Viviane dos<br />

Santos.<br />

375


Duração do espetáculo. 1 hora.<br />

TEXTOS:<br />

I Ato:<br />

“A de ó” – Texto de Hudson Moreira. É um rap que através do estilo hip-hop,<br />

dramatiza a manifestação de liberdade do africano-brasileiro no cenário urbano-industrial.<br />

“Apàló Odeart” – Texto de Janice Nicolin. É um monólogo lírico-satirico,<br />

carregado de sarcasmo. O personagem Apàló é a voz autoral Artebagaço Odeart, que abre o<br />

espetáculo, expressando o movimento do caçador saindo da mata para o solo urbanoindustrial.<br />

“Reza” – Monólogo de Giorgio Gaber, recriado por Diego Nicolin, e consiste na<br />

crítica lírico-satírica que desafia os valores hegemônicos neocoloniais judaico-cristãos.<br />

“Eu me chamo G” – Monólogo recriado por Diego Nicolin e Janice Nicolin, a<br />

partir do poema de Giorgio Gaber, que faz uma crítica indireta às desigualdades sociais.<br />

Os cocos – Texto sarcástico de Giorgio Gaber, traduzido por Diego Nicolin, e que<br />

apresenta um cenário social constituído por um grupo ideológico fundador do Estado<br />

Democrático.<br />

“A engrenagem” – Texto recriado por Diego Nicolin, revisado por Janice Nicolin a<br />

partir de um poema de Giorgio Gaber, e que apresenta um cenário de crítica à linguagem de<br />

manipulação e convencimento da existência não-ocidental levando-o a sobreviver à<br />

ideologia do TER em detrimento do SER. A dramatização traz um personagem livre<br />

contracenando com um grupo ideológico do recalque cultural.<br />

“Awa de! - Aqui estamos” – Monólogo recriado por Janice Nicolin, inspirado<br />

neste verso do oriki de Iyá que apresenta o cenário de afirmação socioexistencial africanonagô<br />

e convida o público a entrar na mata africano-brasileira para compartilhar da caçada.<br />

II Ato:<br />

“Odé, O caçador africano” – Texto de Janice Nicolin, em adaptação das<br />

recriações literárias de Mestre Didi Axipá, conto e auto coreográfico Odé e os orixás do<br />

mato. O texto recria o cenário da busca de um Odé pela compreensão do mundo vivido. O<br />

personagem mítico africano-nagô realiza três caçadas que mostram sua função de provedor<br />

e protetor da comunidade, contudo comete enganos por desconhecer alguns valores<br />

376


africanos de afirmação civilizatória. Estes enganos realçam a finalidade pedagógica do<br />

texto, que é um instrumento de iniciação à cultura de Odé, caçador que caça sem causar<br />

prejuízo à expansão da vida.<br />

Sinopse:<br />

“A de ó” é uma linguagem mítico-poética africano-nagô que apresenta a concepção<br />

de coexistência na temática de educação pluricultural. O conteúdo de reflexão sobre o<br />

simbólico cenário holístico africano-brasileiro, composto em dois atos, apresenta um<br />

contínuo de ação cênica, com quebra de ritmos no primeiro ato, para gerar a reflexão sobre<br />

o vazio existencial no solo urbano-industrial; já no segundo ato, as expressões<br />

transbordantes de valores ético-estéticos de coexistência preenchem este vazio ao apreciar a<br />

vida na caçada.<br />

“A de ó” apresenta a atitude do personagem mítico caçador, Odé, que sai da mata<br />

para o solo urbano-industrial, lugar recriado para expressar a hegemonia de poder<br />

neocolonial, inserido como dominador nos arredores da mata. Neste lugar, o personagem<br />

Odé faz guarda, anima a crítica, por fim, rompe a cortina da servidão pedagógica<br />

neocolonial e apresenta seu retorno à mata para fazer a caçada que o reabastece de valores<br />

mítico-simbólicos. Ela é a expressão simbólica de restituição da força mística apresentada<br />

no auto coreográfico de Mestre Didi Axipá, é também a “lição de terreiro”, como diz Sodré<br />

(2002), por corresponder à fonte de saberes patrimoniais africano-nagôs.<br />

Com esta sinopse, afirmamos que “A de ó” não pretende mandar as<br />

“mensagenzinhas” prontas, os clichês ideológicos que defendem a estrutura de bom<br />

comportamento dos “bem quietinhos”, do “bom selvagem” transformados em corpos<br />

docilizados. Ao contrário, esta concepção de educação demonstra que nossa recriação<br />

expressa o acordar dos corpos “anestesiados” pela pedagogia da servidão neocolonial que<br />

reafirma os valores etnocêntricos do sistema público de ensino, para que estes possam lutar<br />

por direitos à liberdade da alteridade própria e de identidades africano-brasileira e indígena<br />

brasileira.<br />

“A de ó” intenciona mostrar que os “poderosos dentes” 24 da pantera não permitem<br />

que seus filhos sejam caçados para colaborar com as políticas genocidas e etnocidas do<br />

Ocidente, investidas sobre o africano e o aborígine. É, principalmente, um convite desde o<br />

24 Ver o verso no poema laudatório completo, o oriki de Iyá. (LUZ, N., 2000, p. 139).<br />

377


mais ilustre ao mais simples brasileiro a vencer o desafio da coexistência e, se o governante<br />

quiser, porque pode, se os gestores educacionais existirem, porque se ocultam, é possível<br />

recriar espaços com linguagens pluriculturais acolhedoras dos valores africano-brasileiros e<br />

aborígines brasileiros para apreciá-los, respeitá-los e enaltecê-los.<br />

4.3 OS DESDOBRAMENTOS METODOLÓGICOS<br />

Na realidade, já apresentamos as oficinas Artebagaço o Projeto Odeart manteve este<br />

mesmo alicerce pedagógico, o que mudou foi o sentido da estética pluricultural, que<br />

atualmente se realiza ciente de que os códigos culturais das manifestações da linguagem<br />

recriada pelo ator artebagaciano são os eidos africano-brasileiros herdados por cada<br />

componente do grupo da sua ancestralidade guia.<br />

● Oficina de criação corpo e expressão.<br />

Com um elenco composto por 18 a 25 adolescentes e jovens, sendo 18 fixos, os<br />

demais faziam parte das oficinas mas não participavam do evento, realizamos algumas<br />

práticas: andar reto, movimentar o corpo de modo lento, médio e rápido, curvar-se, andar<br />

agachado, rasteiro, olhar frontal, indireto, para o chão, para cima, olhar entre as moitas,<br />

parar o corpo, prender a respiração e soltar, arrastar-se no chão como cobra, pular de galho<br />

em galho como macaco, atacar como um felino, recuar como animal acuado, olhar uns aos<br />

outros, aprumar o corpo para ouvir o barulho e o silêncio, andar em giro, jogando as<br />

braçadas de capoeirista, portar o ofá, arco e flecha – esta era a busca da dança da caça e do<br />

caçador.<br />

Nesta oficina, os desdobramentos seguem a pedagogia de quem vive na mata. Na<br />

realidade, era através do intercâmbio entre Janice Nicolin, com o olhar na linguagem<br />

teatral, e de Jorge Cipriano, com o olhar na linguagem da dança, que se realizava esta<br />

dinâmica.<br />

Na busca da composição cênica, a interação entre o teatro com a dança, das<br />

sensações do movimento corporal da caça e do homem caçador, brota o aspecto lúdico do<br />

jogo cênico. É a caça que se deixa seduzir pelo sedutor caçador, e os movimentos do ator<br />

desdobram-se, caracterizando as manifestações de forças cósmicas que traduzem a<br />

necessidade da labuta do ser humano no seu cotidiano socioexistencial.<br />

378


● Oficina de voz<br />

Há maior esforço para o/a ator/atriz que participa do primeiro ato, porque neste há<br />

predomínio de monólogos, daí a necessidade de maiores cuidados na impostação da voz.<br />

Para tal, dedicamo-nos a transmitir conhecimentos orientados pelo domínio dos<br />

movimentos corporais que ajudam no controle da voz: corpo erguido e cabeça alongada,<br />

diafragma liberado para voz alta, sem gritar. Após o uso abundante da voz, sugerem-se<br />

gargarejos e exercícios de relaxamento das cordas vocais, assim como há orientação de<br />

exercícios para aquecimento vocal antes do uso da voz e cuidados como evitar gelados,<br />

café e chá quente. Nossas orientações em relação à voz não mudaram, sempre foram assim.<br />

● Oficina de leitura interpretativa<br />

O texto era colocado num lugar visível para que cada pessoa lesse e escolhesse,<br />

exceto o do caçador, que era único. Este quem o pegava buscava um entendimento sobre a<br />

escolha do personagem. A dinâmica de leitura do I ato era bastante complexa, pois eram<br />

vários textos pequenos em relação à quantidade de palavras, mas profundos e diversificados<br />

enquanto conteúdo histórico, econômico, político-social. Mas a orientação da leitura era<br />

mesma para o elenco do II ato; era a dinâmica de Odé, caçador: olhar, mover-se, parar e<br />

agarrar a presa, neste caso o conhecimento.<br />

Essas atitudes correspondem a três gestos simultâneos: caçar palavras que lhes são<br />

estranhas e, depois, jogar na roda de discussão; caçar os fatos que chamam mais atenção,<br />

jogando-os na roda de discussão, e caçar as idéias das áreas mais profundas dos textos.<br />

No primeiro gesto, colhem-se os elementos desconhecidos do território e se<br />

familiariza com eles; no segundo gesto ainda na superfície textual colhe-se a referência<br />

histórico-social africana e brasileira; no terceiro gesto, deve-se mergulhar nos espaços de<br />

recriação da visão de mundo político-social que está entre as linhas textuais e, com isto,<br />

despertar-se para necessidade de realizar a critica.<br />

Essas três etapas geram uma nova visão enriquecida e renovada. Esta é nossa<br />

dinâmica de leitura interpretativa 25 . Desta maneira, foi possível levantar aspectos políticosociais<br />

sobre dominação social, econômica e religiosa, o que não é comum ser tema de<br />

abordagem na escola oficial, por serem vivências cotidianas, logo são ocultadas.<br />

25 No texto “O caçador e a caipora”, este processo decorreu em torno das referências civilizatórias do caçador,<br />

da curiosidade em conhecer o espaço mata, da busca histórica sobre o ancestral desde a África.<br />

379


● Oficina de leitura cênica<br />

Esta se dividiu em dois grupos: um grupo ficou com Jorge Cipriano na dança, pois o<br />

auto coreográfico se realiza com a dança e o canto, mas não tivemos o canto por falta de<br />

cantoras e cantores, a percussão e o público da oficina improvisavam. O outro grupo, que<br />

compunha o primeiro ato, ficava com Janice no início e depois com Janice e Andréia<br />

Monteiro. A leitura cênica e dizer entoando, é o dizer poético livre das marcas textuais<br />

escritas. No lugar desta última, o ator dedica sua atenção à impostação, voz guiada pela<br />

linguagem da respiração, e empresta movimentos variados ao corpo do personagem que<br />

nasce neste momento enquanto diz o texto escrito.<br />

A leitura cênica do conto mítico foi mais trabalhosa: primeiro, atores/atrizes<br />

aprenderam a ser dançarinos, depois trabalhamos o dizer poético junto com os movimentos<br />

dos personagens em ritmo de dança, foi difícil, mas Jorge Cipriano ajudou bastante.<br />

Enquanto Janice motivava o uso das expressões dramáticas do caçador ou da caça,<br />

do Babalaô, do pinto, Jorge Cipriano mostrava como se realizavam os movimentos em que<br />

predominavam o giro, o olhar indireto circulando ao redor da presa, mostrava que o caçador<br />

olhava muito pra frente e pouco para cima, porém, diante do Babalaô o olhar era indireto<br />

porque este era o mais velho em idade e sabedoria ancestral.<br />

Figura 298 Figura 299 Figura 300<br />

Leitura Interpretativa. 2005. Roda de Leitura Interpretativa e cênica. Jorge: leitura cênica - dança<br />

• A Oficina de Montagem Cênica<br />

Esta foi subdividida em dois momentos: ensaios internos e ensaios abertos ao público, estes<br />

últimos sendo realizados em vários eventos até cinco dias antes da estréia em 26 de outubro<br />

no Festival Awon Esó.<br />

Os ensaios internos foram subdivididos também, tal como aconteceu na leitura<br />

cênica, porém desta feita não foi uma vivência imediata, foi uma vivência intencionalmente<br />

380


concebida como estratégia prático-pedagógica. Enquanto o grupo do I ato realizava ensaios,<br />

o grupo do II ato era público e fazia as apreciações cênicas.<br />

Neste ínterim, as anotações orais necessárias para a melhoria da encenação foram<br />

brotando, o mesmo acontecia quando eles estavam ensaiando o grupo do I ato, quando se<br />

faziam a apreciação e a avaliação nas rodas de estruturação do cenário.<br />

Com isto, conseguimos alcançar duas finalidades recriadas deste o Grupo Nós: uma<br />

foi a formação de platéia, criando o sentido de público apreciador das artes como teatro e<br />

dança; a outra foi a composição do ator constituído de uma compreensão de cenário<br />

holístico de coexistência ou de um mosaico de educação pluricultural.<br />

4.4 O ESPETÁCULO TEATRAL<br />

O interessante do espetáculo “A de ó” é o sentido real de história vivida que brota<br />

durante a abordagem, que põe em evidência a reflexão sobre a contemporaneidade, no I ato,<br />

e sobre a tradição de Odé implantada no Brasil pela família Axipá que é preservada por<br />

Mestre Didi Axipá e transmitida para uma maioria através de suas recriações literárias, no<br />

II ato. A seguir apresentamos o espetáculo através dos textos que o compõem.<br />

I ato:<br />

O espetáculo é aberto com o toque Cabula 26 em homenagem ao ancestral africano<br />

que colocou este nome no lugar, que desconhecemos. Cabula é um nome de origem banto e<br />

um toque da Nação Angola. Em seguida, entra a multidão como se fosse o ditirambo<br />

puxado pelo som do rap “A de ó”. No final, saem todos cantando e dançando juntos ao som<br />

de “A de ó” e, do fundo do palco, no plano mata surge o Apàló Odeart, que, caminhando,<br />

anuncia a história no plano urbano.<br />

381<br />

Olá.<br />

Antes de começar peço-lhe licença, só por uns minutos, por uns minutoos.<br />

Licença para... Conceder a voz ao homem que pensas que é um homemmáquina,<br />

homem roto, rotativo e comprimido na vontade de ser Homem.<br />

Homem que, neste ato, vem apresentar reflexões sobre... Civilizados, ou<br />

26 Relembramos que o toque é da Nação Angola, mas é a maneira que recriamos para demonstrar a<br />

pluralidade das nações africanas que constituem o lugar Cabula; a Nação Nagô é nossa referência de episteme,<br />

mas reconhecemos a presença de outras nações no lugar, apenas não as estudamos aqui.


382<br />

melhor, civilizadas ordens que garantem o progresso MODERNO. Pêra<br />

ai, não pense que as aparências vão impor onipresença entre nós, pois<br />

antes de nos concederes a licença, já nos sentimos autorizados. E então,<br />

no lugar das aparências, trazemos as vivências, estas não se deixam<br />

representar, são cenas... simplesmente, humanas e, por isto, são...<br />

ocultadas, aqui.<br />

E logo, logo, pulsações de vida, aqui, quebrarão as amarras e dirão como<br />

essa engrenagem move, move, move sem parar.(Saindo, pára e retorna<br />

andando de ré. Para e faz sinal de cochicho).<br />

Ah! Se por acaso, tiveres a sensação de que já vivestes estas cenas,<br />

ESQUEÇA, foi um... sonho e pode ser que tenhas cochilado. Por acaso<br />

esquecestes que, aqui, é Teatro?<br />

É... Teatro Artebagaço Há, há, há...<br />

O Apàló sai, no caminho cruza com o personagem Reza que apresenta andar reto,<br />

olhar de quem busca algo na platéia, pára em frente à platéia e libera um sorriso irônico que<br />

preserva em todo o entoar do texto.<br />

Senhor dos ricos e dos fortunados, tente sê-lo, se puder,<br />

também daqueles que não tem nada<br />

também daqueles que tem medo e sofrem<br />

também de quem pena e sofre<br />

também de quem trabalha, trabalha e trabalha<br />

e sofre, sofre, e sofre.<br />

Senhor dos gentis e dos bons, tente sê-lo, se quiser,<br />

também daqueles que são ruins e violentos<br />

porque não sabem como defender-se neste nosso mundo.<br />

Senhor das igrejas e dos Santos<br />

Senhor das Freiras e dos Padres tente sê-lo, se achar,<br />

também dos cortiços, das fábricas, das prostitutas, dos ladrões...<br />

Senhor, Senhor dos Vencedores, tente sê-lo, se existes,<br />

também dos vencidos.<br />

Amém.<br />

O personagem Reza sai sem olhar para trás, pelo lado direito; do lado esquerdo,<br />

entram duas personagens crianças saltitantes, cantarolando, sentam juntas de costas presas<br />

ao recosto de cada cadeira, viram-se e estranham-se demonstrando pelo olhar:


383<br />

(R) – Nasceu no campo uma flor colorida. A flor colorida foi bem<br />

adubada.<br />

(P) – Nasceu no campo uma flor toda murcha. A flor toda murcha foi<br />

desprezada.<br />

(R) – Oi!<br />

(P) – Oi!<br />

(R) – Eu me chamo "G".<br />

(P) – Eu me chamo "G".<br />

(R) – Não. Você não entendeu, sou eu que me chamo "G".<br />

(P) – Foi você que não entendeu, também eu me chamo "G".<br />

(R) – Minha mãe é alta, loira e bonita, parece Vera Fischer.<br />

(P) – Minha mãe é baixa, quase sem cabelos e feia... parece... minha mãe<br />

não parece mesmo.<br />

(R) – Meu pai é engenheiro e fala fluentemente oito idiomas.<br />

(P) – Meu pai é desempregado, fala só baiano, porém mal, porque é<br />

gago.<br />

(R) – Meu pai é muito rico ganha 31 milhões por mês que divididos por<br />

30 que são os dias que têm um mês... dão 1 milhão por dia.<br />

(P) – Meu pai ‚ muito pobre, paupérrimo, ganha 10 reais por mês que<br />

divididos por 30 que são os dias que têm um mês dão ... 10 reais ao<br />

dia..., no primeiro dia, depois mais nada.<br />

(Q) – Eu sou filho único e moro em uma mansão com l8 quartos.<br />

(P) – Eu vivo em um barraco, um só quarto, porém tenho 18 irmãos.<br />

(R) – Eu para o ano, vou estudar em um grande colégio na Suíça.<br />

(P) – Eu para o ano, vou estudar de pedreiro, no barraco do Sr. Pedro.<br />

(R) – Nasceu no campo uma flor colorida. A flor colorida foi bem<br />

adubada.<br />

(P) – Nasceu no campo uma flor toda murcha. A flor toda murcha foi<br />

desprezada<br />

.<br />

(R) – Enfim, para que aquela flor (aponta a pobre), no confronto não<br />

perca, damos-lhe um pouco de MERDA!


R – Rico. P. Pobre.<br />

É importante perceber que, neste texto, a voz que apresenta a solução, no final, é do<br />

representante do cenário urbano-industrial. A ironia deste texto está neste dado, em<br />

denunciar as políticas de solidariedade de quem destrói a natureza e os mananciais de<br />

coexistência para, depois, apresentar solução com o produto industrializado que polui e<br />

dizima. Esta solução se constitui ou base da hipocrisia do solo ideológico ocidental.<br />

Na saída das duas crianças, uma apenas saltita (R) e a outra se interroga, neste<br />

ínterim entra um grupo com quatro a cinco pessoas, é o cenário de “Os cocos”. Vejamos:<br />

G = Grupo. A =Ator. AG = Ator do grupo<br />

Entram vários atores: Tom grave, devagar.<br />

(G + A)<br />

(G + A)<br />

(G + A)<br />

(A)<br />

(G)<br />

(A)<br />

(G)<br />

(A)<br />

(G)<br />

(A)<br />

(G)<br />

(A)<br />

(G)<br />

(A)<br />

(A)<br />

(AG)<br />

(A)<br />

384<br />

– Que fome!<br />

– Que fome!<br />

– Que fome!<br />

– Que fome!<br />

– Que fome!<br />

– Que fome!<br />

– Que fome!<br />

– Aqui, nesta ilha deserta, não tem nada para comer...<br />

Que fome!...<br />

– Que fome!<br />

– Pobre de nós, assim unidos, assim juntos, solidários,<br />

todos iguais, sem nada para comer. Que fome!<br />

– Que fome... Que fome...<br />

– Ué,. Ué!. Vejo alguns cocos!!! Sim, tem muitíssimos<br />

cocos!<br />

– (gristos de alegria do grupo) Achamos os cocos!<br />

Achamos os cocos!!!<br />

– (Firme, convicto) Não! Fui eu que achei os cocos!<br />

(pausa, sinais de desaprovação do grupo)<br />

– Pensem bem. Fui eu quem achou os cocos, por isso<br />

é justo que seja eu quem vai comê-los!.<br />

– Mas também nós temos fome...<br />

– Não é bom assim. Olhem rapazes, vamos refletir: na<br />

vida, nem todos os homens são iguais: têm homens<br />

normais e homens criativos. Não foi por acaso que fui<br />

eu quem achou os cocos.


(AG)<br />

(A)<br />

(AG)<br />

(A)<br />

(G)<br />

(A)<br />

385<br />

– Mas, o que vai fazer com tantos cocos?<br />

(Ameaçador) Você está sozinho e nós somos muitos.<br />

– (disfarçando o medo) Não é o número que conta, é a<br />

inteligência do indivíduo.<br />

– (Ainda mais ameaçador) Você está só e nós somos<br />

muitos!<br />

– (Ainda mais preocupado, quase em pânico) Não<br />

pensem de me colocar medo com as ameaças...<br />

– (Fechando o círculo ao redor de A, extremamente<br />

ameaçador) Você está só e nós somo muitos!<br />

– (Grupo congela. A sai do grupo e fala ao público) É<br />

verdade, eu estou só e eles são muitos. (pensativo).<br />

Preciso acalmá-los... (curta pausa) claro, não com os<br />

cocos... Preciso inventar algo, alguma coisa..., algo<br />

que seja justo, civil, (empolgado) nunca cair na<br />

violência, preciso manter o respeito do que somos<br />

(enfatizando), do que temos, preciso de algo que seja<br />

sério, importante (com ênfase), democrático... (Pausa<br />

de pensamento depois feliz, contente) Batata! Achei!<br />

(Convicto, retumbante para o grupo). Invento o<br />

Estado!<br />

Palmas e gritos de viva do grupo. Começa a tocar o<br />

Hino Nacional e todos saem cantando com A na<br />

frente, enquanto um ator do G bota uma faixa<br />

presidencial, verde e amarela.<br />

“Os cocos”, como já falamos, é uma crítica à criação do Estado democrático, claro<br />

que isto está sendo interpretado a partir do solo de origem de sua criação, a Grécia clássica,<br />

sobretudo a partir do que dizem as orientações de Platão (século IV a.C.) em A República.<br />

O grupo cênico de “Os cocos” sai e entra outro grupo com cinco a oito pessoas<br />

cantando, dançando break. Em meio a estas pessoas, uma transforma-se em estátua e fica<br />

no fundo do palco no plano urbano-industrial, enquanto as outras dançam e cantam e<br />

iniciam a peça “A engrenagem”:<br />

I parte (cantada)<br />

Uma engrenagem.<br />

Mi- (lentíssimo)<br />

Uma engrenagem, assim absurda e complexa, assim perfeita e envolvente.


386<br />

Mi Sol Lá<br />

Uma engrenagem, feita de rodas misteriosas, impiedosa e massacrante.<br />

Mi Sol Lá<br />

Uma engrenagem, como um monstro sempre vivo, que mói as coisas, que<br />

mói a gente,<br />

Mi Sol Lá. Sol<br />

sim também eu, sim também eu.<br />

Mi Sol Mi<br />

II¦ parte (O pêlo)<br />

(At)<br />

(1at)<br />

(2at)<br />

(3at)<br />

(At)<br />

(1at)<br />

(2at)<br />

(3at)<br />

(At)<br />

(1at)<br />

(2at)<br />

(3at)<br />

(At)<br />

(Gr)<br />

(At)<br />

(Gr)<br />

(At)<br />

(Gr)<br />

(At)<br />

– Não, eu não! Eu sou um homem feliz! Bem, talvez a<br />

felicidade não exista, eu sou um homem sereno. Para<br />

mim é suficiente, mesmo pouco. Pensem: eu não tenho<br />

nada.<br />

– Eu não tenho nada.<br />

– Eu não tenho nada.<br />

– Eu tenho um pêlo!<br />

– E daí?! Ele tem um pêlo, quem sabe que utilidade tem<br />

um pêlo? Ele tem um pêlo e eu não tenho nada...<br />

Pois... Precisa admitir que um pêlo..., um pêlo hum...<br />

Tem quem o tem e quem não o tem. Eu, por exemplo,<br />

não o tenho,que pensando bem, um pêlo seria também<br />

útil; é, sim, hoje como hoje quem não tem um pêlo...<br />

Precisa que o procure. Sim eu preciso ter um pêlo...<br />

(grito desesperado)<br />

Eu tenho um pêlo!<br />

– Eu tenho um pêlo.<br />

– Eu tenho um pêlo.<br />

– Eu tenho dez pêlos!<br />

– Bom para ele que tem 10 pêlos, não, eu não me queixo,<br />

o meu pêlo o tenho. Bem... Claro, um que tem dez<br />

pêlos já está em uma outra posição, um com dez pêlos<br />

praticamente já está resolvido, dez pêlos já são uma<br />

pelúcia... Precisa que os procure, sim eu preciso ter<br />

dez pêlos. (grito desesperado)<br />

Eu tenho dez pêlos!<br />

– Eu tenho dez pêlos.<br />

– Eu tenho dez pêlos.<br />

– Eu tenho dez pêlos!<br />

– Maldição! Ele tem cem pêlos, cem, e eu estou cansado,<br />

destruído. Não agüento mais, mas fica o fato que ele<br />

tem cem pêlos e eu só dez e dez pêlos hoje o que são?<br />

Não são mais nada, uma miséria.<br />

– Nós temos cem pêlos.<br />

– Preciso reagir.<br />

– Nós temos mil pêlos.<br />

– Também eu preciso ter muitos pêlos.<br />

– Nós temos dez mil pêlos.<br />

– Para mim, para os meus filhos.


(Gr)<br />

(At)<br />

(Gr)<br />

(At)<br />

– Nós temos cem mil pêlos.<br />

– Também eu terei muitos pêlos.<br />

– Nós temos um milhão de pêlos.<br />

– (desesperado) Também eu.<br />

III parte (final cantado)<br />

É precisa ir sempre em frente sem parar por um momento<br />

Dó Sol. Fá. Sol Dó<br />

Trabalhar e trabalhar, continuar a trabalhar.<br />

Fá. Sol Dó Fá. Sol Dó<br />

Não é que falte vontade ou falte coragem é que já tô dentro da<br />

engrenagem<br />

Fá < Sol Dó Fá Sol Dó<br />

Não é que falte vontade ou falte coragem é que já tô dentro da<br />

engrenagem.<br />

Fá Sol Dó Fá Sol > Dó<br />

At. Ator. Gr. Grupo.<br />

A engrenagem completa a visão cênica do I ato cuja finalidade pedagógica é:<br />

mostrar, a partir dos argumentos do texto “Reza”, que a sociedade urbano-industrial não<br />

cria espaço de coexistência, basta lembrar que em “Reza” há uma fala que diz: “Senhor dos<br />

domingos, tente sê-lo/ Também das segundas, das terças...”, reforçado em “Eu me chamo<br />

G”, fórmula para a desigualdade social que é a valorização do produto inerte, especulativo,<br />

arrogante e orgulhoso, dos bens materiais e do individualismo, presentes também em “Os<br />

cocos”, onde o grupo social representa a farsa do “Estado democrático”. A engrenagem é o<br />

resumo de tudo, é a crítica à pedagogia de supervalorização de uma sociedade materialista e<br />

individualista.<br />

Fechamos o primeiro ato com o apàló que entra enquanto o grupo de “A<br />

engrenagem” sai. O Apàló passeia pelo palco, olha bastante o cenário urbano industrial,<br />

respira e diz o texto “Awa de! – Aqui estamos”:<br />

387<br />

Apàló – Awa de! Estamos aqui! Se por acaso pensam que todos os<br />

povos, sociedades e culturas vivem esta órbita monetária e pensam que<br />

sem esta tudo acabou e ponto final. Há, há, há! Enganam-se –“O mundo<br />

é tão grande” – diziam velhos ancestrais africanos.


388<br />

Nesta cultura (pisa forte o solo urbano-industrial), o tempo é efêmero e<br />

passageiro. O espaço é matematizado, limitado e estático, é isto ou<br />

aquilo.<br />

Força... Força é dinheiro – poder absoluto. Caçar, aqui, é perigoso e<br />

nocivo: extermina tudo e todos: devasta floresta, seca rios, poluem mares,<br />

dizima animais e civilizações.<br />

E ainda exibe o troféu de vitorioso; pura demonstração da ordem, da<br />

organização, da verdade e... do progresso. Sim. Aqui TER é Poder.<br />

(Toque do agogô. Com movimento em giros chega ao plano mata<br />

africano-brasileira na aldeia.)<br />

II ATO - ODÉ, O CAÇADOR AFRICANO.<br />

- Apalo - Iyá - Odé B – Babalaô P – Pinto V – Voz da mata A – Animais<br />

● Dimensão Aldeia<br />

Apàló – Esta é nossa cultura. A awa de! – Estamos aqui! Aqui vida e<br />

morte andam entrelaçadas, é destino, é continuidade. O Tempo é infinito,<br />

o Espaço é móvel, um lugar de força com poder de troca, sabedoria e<br />

garantia de expansão da vida. É... Aqui, caçar é viver o mistério da<br />

existência – caça e caçador expressam a necessidade socioexistencial.<br />

(Sai com movimentos de caçador. Toque de samba de roda. Entram,<br />

sambando, no espaço da aldeia, três mulheres com trouxas de roupa,<br />

deixam-nas no chão e sambando vão ao espaço urbano-industrial<br />

recolher os dejetos e espalhar folhas verdes em todo o palco,<br />

transformando-o num único espaço de preservação da tradição e da<br />

natureza. Agacham e manifestam movimentos de lavadeiras na beira do<br />

rio e o toque vai abaixando até começar o diálogo)<br />

Iyá 1 – Amanhã é dia da festa de Odé.<br />

Iyá 2 – Já preparei minha roupa, está daqui, olhe, vou abalar!<br />

Iyá 3 – Eu também. Mas vamos logo acabar para prepararmos a cozinha<br />

pra quando a caça chegar.<br />

● Dimensão Mata Virgem<br />

Toque corrido, ou adarun, e entram dez atores, cinco representam os<br />

orixás do mato - Oxóssi, Ogum, Ossanha – Iansã e Oxum, entidades que<br />

têm poder de circulação de força na mata, cinco animais que se<br />

espalham. Toque de cada entidade e cada ator-dançarino manifesta a<br />

respectiva dança e pára. Toque corrido outra vez, todos saem, excetos os<br />

animais que se espalham na mata e o caçador que se dirige à cabana,<br />

troca de roupa. Toque aguerê, o caçador sai da cabana para caçar, os<br />

animais se escondem, saem de cena.<br />

O – Puxaaaa! Que é que aconteceu? Os animais sumiram. Tá ruim, viu?<br />

(Odé insiste na caçada, toque adarun baixinho. Só caça um animal).


389<br />

- Tem alguma coisa errada. Como é que vou voltar só com este alimento<br />

para meu povo?<br />

(Toque corrido Odé retorna à cabana e os animais correm na floresta.<br />

Odé retorna para segunda caçada.Toque corrido forte, Odé busca as<br />

caças que se escondem e não consegue pegar sequer uma caça).<br />

O - Não sei não! O que é que está acontecendo (pensativo). Já sei, já sei!<br />

O Babalaô, sim o Babaláwo vai me ajudar.<br />

(Odé sai da mata em direção a aldeia, toque do agogô, ao chegar à casa<br />

do Babalaô toque do xequerê)<br />

O – (Bate palmas) Ó de casa.<br />

B – (movimento de quem sai de casa para receber alguém) Ô! Ore mi.<br />

Eku abo? (O que é que lhe traz por estas bandas?)<br />

O – Oh, Baba, nem te conto! Conto, sim. Imagine que fui caçar e não<br />

encontrei nadinha de nada. E agora com tanta gente pra comer, como<br />

vou alimentar? Andei, andei e andei e nada, sem saber caçar não posso<br />

ser Odé, não é, meu velho?<br />

B – Verdade, meu filho. Ser Odé é ser como um rei dos caçadores, o pai<br />

Oxóssi, é ser guardião da floresta e protetor de seu povo, ser também<br />

provedor que alimenta vidas, dá força e sabedoria para haver harmonia<br />

no universo.<br />

O – (desesperado) E aí, Babalaô? O que foi que eu fiz pra desmerecer a<br />

função de Odé?<br />

B – (tranqüilo, voz branda) Calma. Vamos ver. (Babalaô joga os búzios,<br />

enquanto isto o agogô toca baixinho, depois pára quando o Babalaô<br />

saúda os orixás do mato) - Ogun ê! (toque do xequerê) Êuê! (toque do<br />

xequerê) Ô Kê – Arô! (toque do xequerê mais longo, mas o caçador<br />

demonstra-se mais aflito ainda, Babalaô termina olha Odé, este não olha<br />

indiretamente o Babalaô) 27<br />

O – Sim!<br />

B – Você está em divida com orixás do mato, meu filho. É a lei da mata,<br />

quem tira devolve depois, você só tira. Não tem nada de ruim aqui com<br />

você, viu?<br />

O – Sim Babalaô.<br />

B – Mas você precisa fazer uma oferenda aos orixás do mato, um ebó. É<br />

assim: cachaça, mel de abelha e fumo de corda. Coloque no pé de Rokó 28 ,<br />

uma gameleira, não esqueça.<br />

Odé – Oré mi. (Muito obrigado) Oré mi, Baba.<br />

(Caçador, dançando, volta pra cabana, toque corrido alto, diminui<br />

enquanto caçador prepara a oferenda. Aumenta o toque quando Odé sai<br />

com a oferenda até colocar no pé de Rokó, gameleira. Muitas caças<br />

aparecem: preá, cotia, pacas, coelho, perdizes , etc. Toque aguerê e Odé,<br />

dançando, exibe os poderes, mata muitos animais. Depois leva-os para a<br />

cabana, feliz e satisfeito pela grande caçada. Para comer, trata uma das<br />

caças e coloca no fogo, quando vê um pinto todo molhado perto do fogo)<br />

O – Que coisa estranha! Nunca vi galinha por estas bandas, quanto mais<br />

pinto!<br />

P – Piu! Piu! Piu! (Odé, muito desconfiado, olhava o pinto com certo<br />

receio)<br />

27 Ogun ê! – Saudação a Ogum. Êuê! – Saudação a Ossanha. Ô Kê – Arô! Saudação a Oxóssi.<br />

28 Rokó ou Irokó. Árvore sagrada dos nagô-iorubás.


390<br />

O – Eu, heim! É cada coisa. (De repente, uma voz grave entoa do fundo<br />

da mata)<br />

V – Estevão...<br />

P – (Levanta o corpo, inclina a cabeça num sinal de quem busca ouvir<br />

melhor)<br />

V – Estevão! Estevão!<br />

P – Diga, homem. (O caçador largou a panela e correu para o fundo da<br />

cabana espantado).<br />

V – Vem e traga os outros. (Caçador começa a tremer num canto da<br />

cabana)<br />

P – Ele também? (Dançando com movimentos da caça. Toque corrido<br />

baixinho) (Caçador abaixa-se, encolhe-se e cobre o rosto).<br />

V – (Grave) Não, ele deixe pra depois, depois, depois...<br />

P – Odidê! Baba un pê (Levante-se! O pai chama). (Dançando<br />

acompanhando o toque tanibobé, toca em cada animal, que fica em pé<br />

formando uma fila, depois que todos os animais estão enfileirados, exceto<br />

os que foram moqueados, o pinto se põe em frente e saem cantando e<br />

dançando.) 29<br />

P – Odidê!<br />

A – Baba um pê!<br />

O – ( Tremendo) Puxa! Desta me safei, devo ter feito algo errado, vou<br />

procurar Babalaô. Desta forma não volto mais a caçar (Pegando seus<br />

pertences, que caem sempre, sai correndo para aldeia, deixando a mata).<br />

Toque corrido como iniciou e os cinco atores retornam fazendo o mesmo<br />

movimento, Odé, orixá Oxóssi, exibe a dança do caçador fechando o auto<br />

coreográfico.<br />

O espetáculo artístico-pedagógico “A de ó – Estamos chegando” é composto por<br />

estas linguagens pluriculturais, plurissignificativas e plurigestuais, juntas formam<br />

combinações complexas da manifestação ritual civilizatória marcada pela pujança da<br />

polirritmia percussiva, dramatização teatral e dança.<br />

Acreditamos que essas sejam as combinações de linguagens a que a escola<br />

brasileira, a sociedade ocidental e a sociedade oficial do Brasil, como um país pluricultural,<br />

precisam se abrir para acolhê-lhas e compreendê-las como formas de educação<br />

contemporânea.<br />

Esses espaços são extremamente fechados à supervalorização das expressões<br />

artísticas do Ocidente herdeiro dos valores greco-romanos, por isso se faz urgente a<br />

abertura dos saberes africanos e indígena, sobretudo porque o que estes espaços chamam de<br />

crise de valores, nós aqui, os ecos que entoam a mata africano-brasileira do Cabula,<br />

chamamos de desconhecimento proposital político-social neocolonial, alimentados<br />

29<br />

O canto é a função do coro, conforme foi criado por Mestre Didi Axipá; como não tivemos coro,<br />

improvisamos com os próprios atores.


intencionalmente para subestimar a riqueza patrimonial africana e indígena, que é também<br />

da humanidade Não há crise, há imposição de valores genocidas.<br />

A dança e a música combinadas com o teatro proporcionaram o amadurecimento do<br />

Grupo Artebagaço Odeart. Seus componentes, atualmente cerca de 20 jovens e<br />

adolescentes fixos, estão comprometidos com a iniciativa de transmitir estas artes<br />

ancoradas na tradição oral porque reconhecem o valor desta combinação, como aborda<br />

Inaicyra Santos (2006, p.74):<br />

391<br />

A maioria dos eventos no ritual da tradição africana possui uma forte<br />

comunicação entre as diferentes artes, o que permeia também os aspectos<br />

da sociedade como um todo e a arte teatral. Vimos que o processo de<br />

aprendizagem é feito pela tradição oral e que a comunicação caracterizase<br />

por ser interdinâmica e interpessoal, como uma simbologia que se<br />

relaciona com um contexto específico.<br />

O cenário mítico-poético africano-brasileiro brota quando o educador cria os passos<br />

da pesquisa ancorados na episteme civilizatória do mito fundador de formas e modos de<br />

linguagens socioexistenciais que intencionam compreender o mundo em que vivemos.<br />

Dessa escolha, decerto político-pedagógica e político-social, brota a perspectiva<br />

mítico-poética que, na realidade, é a visão de mundo, o ethos que enuncia a recriação da<br />

realidade vivida, o eidos, do educador-artista comprometido com sua escolha política.<br />

A escolha que deveras sente e pensa o educador-artista é ancorada nos valores<br />

simbólicos do mito criador que o pesquisador e educador-artista acredita ser a referênciaguia<br />

do cenário de uma educação alicerçada na tradição socioexistencial herdada da arkhé<br />

fundadora. Lembramos que isto implica fortalecer a expansão da vida na<br />

contemporaneidade.<br />

O mito “Odé e os orixás” do mato foi nosso caminho, nosso saber e nossa<br />

possibilidade de recriar ecos que entoam a mata africano-brasileira do Cabula. Eis algumas<br />

imagens do conjunto da elaboração deste espetáculo, a começar das oficinas.


Figura 301 Figura 302 Figura 303 Figura 304<br />

Sensibilidade e Liberação. Corpo e Dança. Formação do ator. Interpretação cênica.<br />

Figura 305 Figura 306 Figura 307 Figura 308 Figura 309<br />

Maria: Oficina Costura. Cláudia. Adereços. Cássia e Jack. Costura. Jorge. Pintura. Emblema de Xangô.<br />

Figura 310 Figura 311 Figura 312 Figura 313<br />

O Apàló e o palco. O coro de A engrenagem. Solo de A engrenagem. Apàló e público. Fim do ato I.<br />

Figura 314 Figura 315 Figura 316 Figura 317<br />

Lavadeiras. Início do II ato. O Caçador. A caçada. Os orixás. Fm de A de ó.<br />

Figura 318 Figura 319 Figura 320<br />

Maria apreciando sua criação. 2005. Maria. Figurino e atores. 2005. Expressão Artebagaço Odeart. 30<br />

30 A antepenúltima e penúltima imagens são para homenagear e agradecer a Maria Guilhermina dos Santos,<br />

mãe de Jorge Cipriano, que esteve conosco criando a oficina de costura, fazendo e ensinando aos que tiveram<br />

interesse em fazer o figurino Artebagaço Odeart. A última imagem expressa a representação de Odé.<br />

392


EMI OMÔ ODÉ – (SOU FILHO DE CAÇADOR): UMA CONCLUSÃO<br />

A estética foi o elemento que desafiou os três educadores a criarem a experiência<br />

político-pedagógica de linguagem teatral Artebagaço no cenário etnocêntrico do sistema<br />

público educacional brasileiro. Este, tal como o pensamento de Platão, (Livro VII, 2006) de<br />

A República, que abomina qualquer referência à arte por considerá-la imitativa e incapaz de<br />

colaborar com a atividade de pensar, também orienta suas políticas pedagógicas a<br />

desvalorizar a estética.<br />

A arte, na escola, é aceita apenas no campo disciplinar, presa às normas<br />

curriculares. Desta forma, a educação brasileira insiste em esquecer que, desde os<br />

primórdios, os ancestrais africanos estampavam nas grutas desenhos retratando sua<br />

dinâmica de caçador, fizeram objetos em barro e cerâmica, descobertos em escavações<br />

arqueológicas, e que revelam a tecnologia inaugural da humanidade da época.<br />

Contudo o maior legado que temos do ancestral africano encontra-se bastante<br />

atuante na contemporaneidade, é a tradição oral, resguardada nos contos mítico-sagrados e<br />

mantida em pleno dinamismo social pela atividade ritualística litúrgica da egbé,<br />

comunalidade tradicional ou comunidades-terreiros.<br />

A perspectiva Artebagaço Odeart ecos que entoam a mata africano-brasileira do<br />

Cabula, ancorada nos estudos do continente teórico-epistemológico do patrimônio<br />

civilizatório, encontra, na dinâmica socioexistencial do Cabula e na dinâmica gestual dos<br />

componentes do Grupo Artebagaço Odeart, este legado civilizatório da tradição oral sendo<br />

utilizado com a mesma pujança com que pode ter sido realizado no passado. A<br />

comunalidade cabuleira se orienta, organiza-se e realiza sua necessidade de coexistência<br />

pela comunicação oral, visual, gestual.<br />

Quando colhemos, na mata africano-brasileira do Cabula, as referências<br />

civilizatórias que ancoram as decisões de manter a luta contra a hostilidade ao patrimônio<br />

simbólico herdado dos ancestrais africanos, a partir do exemplo de perseverança e coragem<br />

da família de linhagem Axipá, representante da realeza Nagô-Ketu, que tem Mestre Didi<br />

como seu mais antigo representante, entendemos que nossa intenção de apreciar o<br />

conhecimento plantado pela ancestralidade africano-nagô, a partir da estética recriadora do<br />

conto mítico Odé, foi a melhor maneira de fortalecer a crítica Artebagaço e de recriar


cenários pós-crítica curricular que repõem e expandem os valores herdados da<br />

ancestralidade.<br />

É a presença do mito Odé em nossas recriações teatrais que renova o saber e a<br />

linguagem plantados pelo Grupo Artebagaço e ritualiza as manifestações de enfrentamento<br />

da realidade hostil da sociedade oficial, as quais orientam e encorajam os passos de<br />

adolescentes e jovens que contrariam as normas da política pedagógica da servidão<br />

colonial.<br />

Intuímos que o poder místico simbólico da arkhé civilizatória africano-nagô<br />

transplantada para o Brasil e plantada por Iyanassô, membro da família de linhagem Axipá,<br />

resguardada pela tradição do Opô Afonjá, no Cabula, e por Mestre Didi Axipá no Ilê Axipá,<br />

no Bairro de Piatã, é o fortalecimento do africano-brasileiro dentro e fora da escola.<br />

Daqui da mata africano-brasileira, percebemos que essa força alimenta e inunda de<br />

coragem estudantes e professores e os orienta para a luta organizada socioexistencialmente<br />

como sinal de preservação da alteridade própria e da identidade civilizatória. Esta força se<br />

confirma na presença do mito Odé, força guerreira de caçador, protetor, provedor e<br />

guardião da tradição da mata, a floresta africano-brasileira.<br />

E a política pedagógica do Grupo Artebagaço, composto por pessoas de religiões<br />

diferentes, mas do mesmo solo de origem, visão de mundo ancorada nos valores sociais do<br />

seu legado ancestral consegue ignorar a ordem ocidental de poder absoluto, de nivelamento<br />

unidimensional, para intercambiar valores herdados e dividir poderes de atuação no grupo,<br />

o qual se manifesta com ousadia e coragem, no interior do nomos escolar, desafiando as<br />

normas da servidão neocolonial.<br />

Do que caçamos e colhemos na mata, foi possível identificar os valores<br />

civilizatórios africano-brasileiros do Cabula e caracterizar a matriz civilizatória guerreira<br />

Odé. Colhemos o que exibia desde os quilombos fincados no Cabula, que traziam a<br />

bandeira vermelha de Xangô, entidade sagrada que garante a expansão da vida, e o ofá,<br />

arco e flecha, símbolos de Oxóssi, entidade protetora do território político dos povos Nagô-<br />

Ketu, caçamos nas comunalidades tradicionais de matriz, como o Ilê Axé Opô Afonjá, que<br />

iniciou várias pessoas na cultura ancestral, pessoas que deram origem a outras casas de<br />

culto Nagô.<br />

394


A matriz civilizatória Nagô é reforçada pela presença da comunalidade tradicional<br />

Ilê Axé Opô Afonjá, fundada por Mãe Aninha, Iya Oba Biyi, filha mítica de Xangô, uma<br />

das mulheres guerreiras que garantiram a expansão do território político-sagrado Ketu-<br />

Nagô na Bahia, assim como Mãe Senhora, Iyanassô Oxum Miuwa, bisneta de Iya Oba Tosi<br />

e mãe biológica de Mestre Didi Axipá.<br />

Daqui da mata, pudemos ver outra matriz ancestral do Império Congo, reino de<br />

Angola, o Terreiro Bate-Folha, embora não tenhamos estudado a comunidade tradicional de<br />

Angola, a forte presença de Maria Genoveva do Bonfim, conhecida por Maria Neném,<br />

considerada arkhé civilizatória por pessoas da comunalidade Angola do Cabula, por ter<br />

sido a matriarca fundadora e responsável pela expansão dos domínios do território políticosagrado<br />

dos bantos no Cabula e na Bahia.<br />

Esta é a matriz afriicano-brasileira do Cabula de que tem brotado filhos em todo o<br />

Brasil, que, mesmo alguns não sendo iniciados na tradição sagrada como filhos míticos de<br />

orixá, de inquice ou de vodun, têm toda expressão de gestualidade manifesta pela pulsão<br />

mítica simbólica, atuando em seus pensamentos de cabuleiro.<br />

E são, justamente, algumas dessas pessoas que estão no sistema escolar sendo<br />

controladas pelas amarras verbais e não-verbais da política da servidão neocolonial<br />

sugerida por Pero Vaz de Caminha a el-rei de Portugal D. Manuel I, no século XV, como<br />

única forma de impor o universalismo social aos povos submetidos à colonização.<br />

Assim, o sistema escolar não permite abrir um espaço para o diálogo com a tradição<br />

africana do Cabula, falamos de duas matrizes fincadas no lugar, o Ilê Axé Opô Afonjá do<br />

Império Nagô, e o Terreiro Bate-Folha e o Tumbensi do Império Congo-Angola, e,<br />

repetimos, a cultura da maioria dos estudantes da Bahia, tratando-se da territorialidade<br />

Cabula, tem suas referências simbólicas nestas duas grandes matrizes.<br />

Podemos até arriscar que seja a totalidade existencial, pois sabemos que existem<br />

aqueles que, confinados pelas normas da pedagogia do solo judaico-cristão, repudiam suas<br />

próprias expressões corporais e de pensamento, logo eidos e ethos, respectivamente, devido<br />

às fortes “doses” pedagógicas da catequese e do evangelismo que estigmatizam o africano.<br />

Do que colhemos da tradição, vimos que as linguagens civilizatórias que alimentam<br />

as manifestações de vontade, de elaboração e realização de experiências das pessoas no<br />

cotidiano das diversas comunalidades do Cabula, estão nas escolas deste lugar, e da Bahia.<br />

395


É a presença da “lição do terreiro” que a escola chama de solidariedade, e em nossa<br />

perspectiva, via Prodese, chamamos de comunalidade africano-brasileira 1 , atuando de<br />

forma pujante.<br />

O patrimônio imaterial africano-brasileiro é possível perceber na gestualidade, na<br />

dinâmica de organização social – estrutura de comunalidade –, na organização econômica –<br />

intercâmbios de recursos materiais –, na maneira de evocar poderes místicos simbólicos –,<br />

buscando uma força que está ao seu lado ou mesmo em seu interior e não um Deus<br />

onipotente e onipresente.<br />

O Projeto Odeart, encorajado pelo Prodese e elaborado durante esta pesquisa,<br />

apresenta a linguagem da estética teatral Artebagaço Odeart como a possibilidade de<br />

realizar intercâmbio entre as escolas do Cabula, uma proposta real porque se trata de<br />

vivência deste grupo nas escolas, criando oportunidades para crianças, adolescentes e<br />

professores desta comunalidade. Juntos, buscam reconhecimento, respeito, valorização e<br />

enaltecimento do patrimônio simbólico civilizatório africano-brasileiro a partir de um<br />

cenário de educação pluricultural.<br />

Assim, por meio da estética teatral Artebagaço Odeart, o Projeto Odeart: Educação,<br />

Artes e Cultura Africano-Brasileira recria palco e platéia, ambos intercambiam a estética<br />

Odara e o conhecimento milenar africano. A arte e o conhecimento compõem espaço para<br />

platéia e atores, e vice-versa. Boal (1991, p.139) diz que o teatro é uma linguagem de ação<br />

do povo: “O teatro é uma arma e é o povo quem deve manejá-la” 2 , por isso o teatro foi<br />

nosso instrumento de luta, daí nosso maior respeito a esta linguagem tanto quanto à cultura<br />

que ela expressa.<br />

O espetáculo teatral, que tem como finalidade pedagógica realizar uma educação<br />

pluricultural que respeita o universo simbólico recriado, o patrimônio civilizatório ou o<br />

conjunto de referências simbólicas dos personagens da história e da cultura constituinte do<br />

enredo, requer apreciação sensível destas minúcias da comunalidade africano-brasileira.<br />

É, justamente, por podermos desfrutar da vivência da mata africano-brasileira, caro<br />

leitor, que falamos em conhecimento que caracteriza o simbólico. Foi a possibilidade de<br />

identificar um símbolo-signo como os ogé, dois chifres de touro, instrumento simbólico de<br />

1 Expressão criada por Marco Aurélio Luz.<br />

2 Na realidade, arma tem o sentido de poder de luta.<br />

396


comunicação do iniciado no culto da entidade protetora da mata, Oxóssi, que pudemos<br />

conhecer o símbolo-complexo que envolve o entendimento deste símbolo-signo no<br />

universo cultural africano-brasileiro.<br />

O símbolo complexo é toda simbologia que envolve a relação do ancestral mítico, a<br />

arkhé fundadora da tradição, como a entidade sagrada. Neste conhecer e se relacionar, o<br />

primeiro Odé, caçador que fundou a tradição de culto, pode aproximar-se de sua entidade<br />

sagrada e implantar o culto, que é a tradição. É preciso criar caminhos para que estas<br />

referências sejam desmistificadas do estereótipo de inferioridade do africano-brasileiro.<br />

Nossa perspectiva acolhe uma concepção pedagógica transdisciplinar, o enfoque<br />

disciplinar que sustenta a organização do conceito de interdisciplinaridade requerido pela<br />

reforma curricular da educação no Ensino Médio 3 , que pode atender à nossa proposta desde<br />

que as políticas da gestão pedagógica que regulam as reuniões isoladas de AC – Atividade<br />

de Coordenação, assim como os horários rigidamente cumpridos com presença prioritária<br />

do professor em sala de aula para cumprir o pré-dito, possam favorecer a criação do espaço<br />

do diálogo pedagógico. No Grupo Artebagaço Odeart, não há planejamento prévio, há a<br />

experiência sendo vivida para ser concebida.<br />

E repetindo o que diz Marco Aurélio Luz (1994, p.55), “[a] compreensão de um<br />

outro simbólico só pode ser entendida na relação dialética vivido-concebido”, logo a atitude<br />

transdisciplinar pode ocorrer na AC, basta mudar o sistema de gestão escolar na prática, na<br />

vivência. É preciso perceber que o conhecimento imposto pelo currículo oficial é estático<br />

para ser universal. A história, a língua, a religião, a geografia, a matemática, a biologia, a<br />

química, a física são disciplinas constituídas de conceitos parados, resultantes de uma<br />

concepção de mundo abstrata, inócua e inerte.<br />

A concepção de mundo das vivências cabuleiras, como a nossa do Artebagaço<br />

Odeart, carrega sinais civilizatórios de uma sociedade vitalista cujo ethos celebra e<br />

compreende a morte como sensação de quem cumpriu seu destino e transmite sua força<br />

para a nova geração.<br />

Reafirmamos nossas convicções de uma pedagogia ancorada no que Narcimária Luz<br />

(2002, p.86) concebe como educação pluricultural: “[...] EDUCAR é repor valores e<br />

3 LDB, Lei de Diretrizes e Base para Educação.<br />

397


princípios herdados e reelaborados – legado ancestral”, e, por este caminho, elaboramos<br />

nossa concepção pedagógica transdisciplinar, uma dinâmica de caça que, baseada na<br />

estética pluricultural, busca compor noções de história e cultura, língua materna, geografia<br />

político-territorial, sociologia, filosofia, matemática, uma visão de mundo ancorada na<br />

comunalidade.<br />

Esta é nossa visão de pedagogia quilombola, é a estética africana Artebagaço<br />

Odeart que, pela necessidade de conhecer o mistério da existência, alimenta-se aos poucos<br />

da cultura ancestral, e se “de grão em grão a galinha enche o papo”, nós também, aos<br />

poucos, nos alimentamos do conhecimento de um Odé.<br />

Emi omô Odé – Sou filho de caçador. Esta é a identidade do Artebagaço Odeart que<br />

se tornou ciente disto a partir da descoberta da referência cultural da luta contra o<br />

etnocentrismo iniciada pelo Grupo Nós, fortalecida pelo Grupo Teatral Artebagaço e, por<br />

fim, pelo Grupo Odeart. “Emi omô Odé” (SANTOS, M.D., 1989, p.23) é a expressão<br />

tradutora do rito da continuidade civilizatória da luta pela afirmação da alteridade e da<br />

identidade africano-brasileira.<br />

Neste ritmo, homens e mulheres moradores do Cabula sobem e descem as ladeiras<br />

de retorno às suas moradas depois de um dia de labuta no solo urbano-industrial; o cheiro<br />

do café, o gargalhar da criança, o sorriso largo de quem fica são linguagens que anunciam o<br />

anoitecer da mata africano-brasileira do Cabula.<br />

Amanhã, ao alvorecer, naturalmente, reiniciaremos uma nova caçada, este é o rito<br />

contínuo da socioexistência africana herdada por cabuleiros.<br />

Agradecemos por sua companhia, caro leitor.<br />

398


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403


Anexos<br />

Anexo A – Textos de Peças do Artebagaço<br />

Anexo B – Textos de Divulgação<br />

Anexo C – Alguns Contos e Crônicas Usados Nas Oficinas de Interpretação<br />

Anexo D – Roteiro de Entrevistas Semi-Estruturais.


ANEXOS A


Antena Ligada<br />

Ator sentado num barzinho, com um rádio de pilha, ouvindo jogo. Levanta<br />

fala para o público.<br />

Pai - O que não faz um pai para os filhos. Ontem mesmo troquei a tevê<br />

preto-e-branco por uma a cores, de cinqüenta polegadas com um tira-teima<br />

incorporado e tudo mais. Estou endividado até o ano 2005. (Entra no palco<br />

o filho)<br />

Filho - Pai, pai, o professor, desta vez, mandou fazer um trabalho sobre<br />

Sócrates...<br />

Pai - É gozação, filho! Você, Gavião da fiel, fazer um trabalho sobre um<br />

santista! Pêra ai, vou lhe ajudar a diminuir a humilhação, por sorte sua<br />

tenho várias revistas Placar que fala sobre isto. Vamos pesquisar.<br />

Filho – Tá legal paizão! Então, comece ai que eu vou para casa ver se tem<br />

alguma coisa na tv.(Sai do palco e fica o pai escrevendo rapidamente em<br />

várias folhas de papel ao mesmo tempo.O filho retorna)<br />

Filho - E daí, paizão?<br />

Pai - Chegou na hora certa. (Entrega a tarefa ao filho.)<br />

Filho - Obrigado paizão. (Sai do palco com andar de malandragem).<br />

Pai – (falando com o companheiro de mesa) É... meu guri caprichou do<br />

primeiro ao quinto! (Fica gesticulando ao vizinho na mesa do bar e<br />

explica como fez a tarefa. O filho retorna chorando) - Que foi, meu<br />

coração?<br />

Filho - Tirei zero, hum, hum...(Sai do palco)<br />

Pai - Mas, que jogada ‚ esta? Assim é demais! É perseguição no meu<br />

campeão. Vou falar com ele. Aliás, ai vem ele chegando.(Dá uns passos<br />

em direção ao professor)<br />

Prof. - Bom-dia,senhor, Zapinto. Deseja algo?<br />

Pai - Sim (Irritado) Quero saber por que meu filho tirou zero num<br />

trabalho que caprichou bastante?<br />

Prof. - Bem, o Sócrates que eu falei foi um craque das palavras que<br />

morreu ao tomar cicuta. Foi um filósofo grego...<br />

Pai - (Ao público) É gentil, mas ninguém me tira da cabeça que ele ‚<br />

palmeirense disfarçado de são paulino.<br />

Prof. - Com licença, preciso ir, mas fique sossegado, pois já passei<br />

outra tarefa. Converse com seu filho. (Sai do palco.)<br />

Filho - (Entra correndo, tropeça, cai e fica dando palavrões. O pai o<br />

chama)<br />

Pai - Zafrango, Zafrango que diacho de tarefa passou aquele...<br />

Filho - (Deitado no chão) - É um trabalho sobre O guarani, pai.<br />

Pai - Antes ele me explica que o Sócrates que ele falou era um craque da<br />

redonda que tomou cicuta. Agora quer um trabalho sobre o Guarani. Deixe<br />

que eu chuto. Eu mesmo vou fazer sozinho. (O pai volta para mesa e começa<br />

a escrever, enquanto o filho imitando um cachorrinho se aproxima da<br />

mesa.O pai acaba de escrever e coloca a pesquisa na boca do filho.)<br />

Pai - Não se esqueça de pegar em casa a camisa 8 autografada pelo jogador<br />

do Guarani.(o filho sai e o pai fala ao público)<br />

Pai - Ah!(esfrega as mãos, com um largo sorriso explica ao vizinho de<br />

mesa. Botei a escalação completa do Guarani. Coloquei Neneca no gol e fiz<br />

a maior apologia ao time da Terra das Andorinhas. Meu filho vai ganhar<br />

uma medalha de honra ao mérito, pois o trabalho ficou um luxo. (Filho<br />

entra cabisbaixo, com duas orelhas enormes,gritando e chorando<br />

desesperadamente)<br />

Filho - Ah! Tirei zero.<br />

Pai - (Descontrolado). Este homem deve ser... Nem devolveu a camisa 8.<br />

(Coloca as mãos na cintura) - Vou logo as falas. Ele vai ver...<br />

(Quando vai saindo entra o professor. O pai em tom sarcástico se dirige<br />

ao ao professor)


Pai - O'Ilustre, com perdão das palavras. Que diabo de safadeza o senhor<br />

anda aprontando para o meu filho, gavião da fiel?<br />

(O professor olha o pai assustado e tenta abrir a boca, mas o pai<br />

continua...) – Então, eu perco tempo, consulto, pesquiso e o meu garoto<br />

ganha cartão vermelho?<br />

Prof. - (Perplexo coçando a cabeça). Foi o senhor quem fez a pesquisa?<br />

Pai - (Sem graça) - Bem, fazer não fiz... Dei apenas uma orientação<br />

didática. Sabe como é, pai é pra estas coisas...<br />

Prof. - Aceite um conselho. Pare de fazer as tarefas do seu filho, pois O<br />

senhor não sabe nada, muito menos do Guarani...( Sai)<br />

Pai -(Andando pensativamente. Falar na minha cara que eu não sabia nada<br />

do Guarani. Tive que engolir esta. Me jogou para escanteio.(Volta para<br />

mesa).<br />

Viz. - Como foi, Zapinto?<br />

Pai - O professor me disse que no Guarani tem uma dupla de área chamada<br />

Peri e Ceci e que muda de técnico todo dia, onde o atual ‚ um tal de Zé<br />

de Alencar. Bem, ele deu outra colher de chá para meu menino.<br />

Filho -(Entra ) - Pai, o professor quer que leia os capítulos do Guarani.<br />

Pai - (Coça a cabeça) - Já sei!<br />

Viz. (Surpreso). - O quê?<br />

Pai - Este romance é qualquer cosa de índio sioux, que se vê obrigado a<br />

salvar uma mulher biônica das águas da enchente. Deve ser telenovela a<br />

cores<br />

Filho - (Pulando de alegria.) - Em que canal, pai?<br />

Pai - (Com a mão no queixo.) - Para complicar a sua vida, ele não me<br />

revelou o canal, nem horário.<br />

Viz. - (Olhando para o pai) - Como você vai fazer agora?<br />

Pai - (Pensativo.) - Pela dica do enredo que deixou escapar, deve ser<br />

mais uma dessas coisas violentas que engolimos da tevê,.<br />

Filho - (Contentíssimo) - Não vou ler nada, não é?. É só vê tv, assim é<br />

melhor!<br />

Pai - (Com olhar e jeito de malandro.) É..., mas agora ele não me engana<br />

não. Estou de Antena ligada, meu rei.<br />

(Adaptado do texto "Antena ligada" de Laurêncio Diaféria, em 1997)<br />

2


Os Burgueses<br />

Monólogo<br />

(At) - Quando era pequeno não estava muito bem, era magricelo e não ia bem<br />

na escola.<br />

(Pr) - (Professor dando aula monotonamente a poucos alunos) Adjetivo é a<br />

palavra que dá qualidade aos seres. Eles podem ser classificados em:<br />

simples, compostos, primitivos e derivados. Também eles podem ser<br />

biformes ou uniformes...<br />

(At) - Depois de alguns instantes que o observava ele transformava-se: a boca<br />

fechava-se, o olhar bloqueava-se, a cor desaparecia. Parado. Imóvel. De<br />

pedra. Sim todo de pedra. E eu já via o seu busto lá na secretaria da<br />

escola com escrito "Professor Malipedro. Uma vida para a educação".<br />

E enquanto vivia esta alucinação, lembrava-me de uma antiga cantiga que<br />

dizia mais ou menos assim:<br />

Os burgueses são todos porcos<br />

mais são gordos, mais são lerdos<br />

mais são lerdos, mais tem os milhões<br />

os burgueses são todos...<br />

Deixa pra lá . Depois de alguns anos entrei no segundo grau, já maiorzinho<br />

estava sempre magro, porém muitas coisas mudaram, por exemplo:<br />

(Pr) - (igual como acima)<br />

(At) - Depois de alguns minutos que eu o observava transformava-se: os movimentos<br />

preparados, um ator, ator experiente que diz a frase e espera o efeito. E eu estava<br />

ali como figurante, vivia a comedia! Não, melhor a farsa.<br />

E quem sabe porque enquanto vivia esta alucinação lembrava-me sempre de uma<br />

esquisita cantiga que dizia mais ou menos assim:<br />

Os burgueses são todos porcos...<br />

Deixa pra lá ! Quando entrei na universidade, já tinha 1,80m mais estava<br />

muito magro, as idéias estavam mais claras, e participava com assiduidade<br />

a todas as aulas...<br />

(Pr) - (igual como acima)<br />

Depois de algumas horas que eu o observava ele transformava-se, um dragão<br />

que vomitava fogo e chamas do saber, pela boca, pelo nariz, e eu como São<br />

Jorge tentava matá-lo mas quando cortava uma cabeçaa, no lugar, nasciam<br />

duas.<br />

Enquanto vivia esta alucinação cantava uma estranha cantiga que dizia<br />

mais ou menos assim:<br />

Os burgueses são todos porcos...<br />

Agora que sou adulto, dou graças a Deus, passaram todos os distúrbios,<br />

sem nem precisar ir ao médico, não estou mais doente, não entendo o que<br />

tenha-me feito bem, engordei e nunca mais vivi aquelas alucinações.<br />

Meu filho, meu filho preocupa-me um pouco, ‚ assim magro e tem sempre<br />

estranhas alucinações. De vez em quando vem perto de mim, me olha, e<br />

canta, canta uma esquisitíssima cantiga que eu nunca ouvi antes e que<br />

faz mais ou menos assim:<br />

Os burgueses são...<br />

3


Eu Se Fosse Deus<br />

(monólogo)<br />

Agora, Agora quero lhe falar sobre um assunto. Como posso dizer; um assunto um<br />

pouco "delicado". Não, não é sexo, nem tampouco de política, mas de Deus.<br />

Ontem à noite estava deitado na cama, nada de bom na TV. Nenhuma revista para<br />

ler... Que fazer? Daí comecei a pensar... Pensei se Eu, Fosse Deus. Sim por quê poderia<br />

também sê-lo?! Se, não, Eu, não vejo Quem.<br />

Eu, Se Fosse Deus, não me deixaria enrolar pelo jeitinho dos malandros. Não seria<br />

um calouro, estaria sempre presente, estaria mesmo em qualquer lugar a espionar, ou<br />

melhor a "criticar", como faz o povão. Por exemplo: O Pequeno Burguês, como ele é<br />

chato! Nunca faz grandes pecados. Nunca é intensamente pecaminoso! De outro lado,<br />

coitadinho, é demais pequeno e insignificante e mesmo<br />

sabendo que Deus é mais preciso do que um relógio suíço, acha que o pecado<br />

pequenininho não seja visto, ou revelado. Por isso, Eu, Se Fosse Deus preferiria o século<br />

passado, onde se odiava e depois se amava e matava os inimigos.<br />

Eu, Se Fosse Deus teria feito um homem melhor. Tá bom, admito que não saiu<br />

muito bem, mas é por isso, para dizer o certo que de vez em quando mando alguém, mas<br />

depois o povo gosta de interpretar e faz ainda mais bagunças. Eu, não teria feito os erros de<br />

meu filho e, sobre o amor e a caridade, teria explicado-me um pouco melhor. Em efeito<br />

não é normal que uma pessoa por bobagem como: compaixão e fome na Índia tenha tanto<br />

amor de reserva que nem se imagina depois, no dia-a-dia, na verdade é um safado, um<br />

sacana. Tudo bem, até agora temos brincado, logo mais com esta história de Eu Se Fosse<br />

Deus pego gosto e tenho vontade de dizer tudo aquilo que acho justo, e, assim como um<br />

Deus inventado, como um Deus fajuto tomo coragem e amaldiçoarei os jornalistas,<br />

especialmente todos. Que, com certeza, não são pessoas.<br />

"Companheiros jornalistas. tens demasiada sede e não sabes aproveitar a liberdade<br />

que tens, tens ainda: a liberdade de pensar, mas isso não o fazes e, em troca exiges a<br />

liberdade de escrever, de fotografar imagens geniais e interessantes de presidentes<br />

comovidos e de mães chorosas e, neste Brasil, cheio de<br />

desespero, como são corajosos vocês! Vocês que se jogam, sem temer um momento.<br />

Canibais! Necrófilos! Vocês se jogam sobre o desastre humano, com o sabor de lágrima,<br />

em primeiro plano.<br />

Sim, talvez o desaparecimento da imprensa seria uma loucura, mas Eu, Se Fosse<br />

Deus, em frente a tanta demência, com certeza, não ficaria com a superstição de<br />

democracia.<br />

Eu, Se Fosse Deus naturalmente fecharei a boca de muita gente e, no reino do céu,<br />

não quereria ministros, nem gente de partidos, porque a política é nojenta e faz mal a pele.<br />

E, todos aqueles que fazem este jogo nojento é contagioso como a lepra e o tífo; têm cada<br />

caras que só em vê-las dá nojo; sejam eles aristocratas liberais ou cinzas camaradas<br />

operário (nasceram mesmo feios ou pelo menos todos acabam assim).<br />

Eu, Se Fosse Deus não teria mais paciência, inventaria novamente uma moral e<br />

chamaria o dia do juízo universal. Mas, no fundo, tudo isso é estúpido porque Eu, Se Fosse<br />

Deus veria a terra bastante de longe e talvez não conseguiria aborrecer-me, esquentar-me<br />

com essas guerras cotidianas.<br />

Eu, Se Fosse Deus não me interessaria pelo ódio, ou pela vingança e nem pelo<br />

perdão, porque ficar de longe é a única vingança, o único perdão.<br />

4


Assim acaba que, Eu, Se Fosse Deus iria me refugiar no campo, como fiz Eu.<br />

5<br />

Texto de 1994


Sou Uma Merda Eu!<br />

(monólogo)<br />

Introdução<br />

(Bebado zangado ruim)<br />

Quem sou eu? Ninguem. Já fui um dia. Hoje... (dedo polegar para baixo)<br />

Antigamente chamavam-me de sátira, irónia, hoje... (polegar para baixo)<br />

Nem sabem quem eu sou!<br />

Revivo de vez em quando, tó duro á… morrer, ninguém entende mais nada.<br />

Não entendem o que está escrito na cara, tanto menos do sentido escondido atrás<br />

das palavras, as ambiguidades, a irónia enfim!<br />

Mas eu insisto! Agonizo mas não morro.<br />

Agora estou aqui para olhar-vos na cara, ver de vez, quantos sobreviveram á idio-<br />

tice.<br />

Vou testar-vos, secionar-vos, penetrar-vos no fundo da alma, para espionar, des-<br />

cobrir se existe ainda vida inteligente na terra.<br />

Agora chega de palavras. Que comece a minha Missa de Requiem!<br />

Ep¡logo<br />

Já não espero mais a Terceira Guerra Mundial.<br />

O que esperam? Que diga que gostei? Que minta?<br />

Não, Sou Uma Merda Eu! Odeio todos vocês, burocrátas do pensamento, odeio a hu-<br />

manidade! Sou Uma Merda Eu!<br />

Eu! Bateram palmas, veja só. Mas se não entenderam porra nenhuma! Não gosto<br />

de ver gente rindo, brincando, Sou Uma Merda Eu!<br />

Só uma vez na minha vida tive medo!<br />

Desmaiei na rua e, todo mundo, foi ajudar-me:<br />

Uns falavam-me e outros sorriam-me, todos gentis, bonzinhos, afetuosos, queriam<br />

ajudar-me!<br />

Tive medo! Tive medo. Tive medo de ser como eles, de não ser nem uma merda.<br />

6


(Prólogo, Abertura) Reza.<br />

Onde Estais que não respondes ?<br />

Senhor dos domingos, tente sˆ-lo, também das segundas e de todos<br />

os dias tristes que temos aqui na terra.<br />

Senhor dos ricos e dos fortunados, tente sê-lo, se puder,<br />

também daqueles que não têm nada, também daqueles que têm<br />

medo e sofrem, também de quem pena e sofre também de quem<br />

trabalha, trabalha e trabalha e sofre, sofre e sofre.<br />

Senhor dos gentis e dos bons, tente sê-lo, se quiser,<br />

também daqueles que são ruins e violentos, porque não sabem<br />

como defender-se em este nosso mundo.<br />

Senhor das igrejas e dos Santos, Senhor das Freiras e dos Padres<br />

tente sê-lo, se achar, também dos cortiços, das fábricas, das<br />

prostitutas, dos ladrões...<br />

Senhor, Senhor dos Vencedores, tente sê-lo, se Existes, também dos<br />

vencidos.<br />

Amém.<br />

No palco encontram-se: (1 Ator em cima de uma cadeira imitando estátua<br />

de Castro. Vozes do carnaval no fundo, outro ator representa um bêbado<br />

caminhando. O bêbado pára em frente a estátua e urina nesta. Assim Castro<br />

Alves desperta).<br />

CA - Senhor Deus dos Desgraçados!<br />

Dizei-me vos, Senhor Deus !<br />

Se eu delírio ou se ‚ verdade<br />

Tanto horror perante os céus!<br />

BB - (Espantado foge) Minha Nossa Senhora, Maria Santíssima! Sai<br />

Satanás !!!<br />

VG - Enfim despertastes, meu amo.<br />

Faz séculos que vos espero para,<br />

Neste caminho lhe conduzir<br />

Onde a alma, ainda no corpo cativa,<br />

Nos prazeres da carne retorna vida.<br />

CA - Não entendi muito bem! O que quisestes dizer... .<br />

(Passa atenção ao um grupo de mulheres passando e vai seguindo-as<br />

declamando) - São Anjos do meu passado que desfilando vão. (Estira os<br />

braços ao declamar, mas é interrompido por um homem que passa).<br />

OS -<br />

PS - Não Tenho Dinheiro Não, veio. Sai da frente...<br />

VG - Calma, calma mal acordastes e já quer ir luta...<br />

Já me disseram que, neste sonho dantesco, a minha tarefa<br />

7


seria difícil, mas você esta exagerando....<br />

(Castro Nota que VG é bela e tenta um cortejo)<br />

CA - Mulher do meu amor!... / Amar-te ‚ melhor que ser Deus.<br />

VG - Quieto ! Ai ! Foi Enviada apenas para segui -lo, nesta praça<br />

CA - A Praça ! A praça ‚ do povo!. / Como o céu é do Condor...<br />

VG - Olha lá, está chegando Carlinhos Marrom ,quero que vocês<br />

se Conheçam...<br />

CB - Diga ai, Broder, est gostando? Já tomou água mineral?<br />

CA - (Olha perplexo para Virgília por não entender e vê mulheres e<br />

crianças dançando no Carnaval)- Negras mulheres suspendendo as tetas/<br />

magras crianças,cuja bocas pretas/ Regam o sangue das mães.<br />

CB - O Quê !!!???<br />

CA - Vejo que a multidão faminta cambaleia/ e chora e dança ali.<br />

(Apontando<br />

para os que pulam, dançam Carnaval).<br />

VG - No entanto, poeta, o capitão ri, e obriga os inconscientes a<br />

cantar e a dançar. Eles fazem , mas não sabem por quê fazem. É<br />

diferentes dos seu ancestrais africanos que dançavam para seus protetores<br />

sagrados e por isto sabiam porque faziam.<br />

CA - Quer dizer que eles são ainda escravos?<br />

CB - Não, não! Já faz muito tempo que a escravidão foi substituída<br />

pelo salário mínimo.<br />

CA - Deus! O'Deus! Onde estás que não respondes? / Em que mundo, em<br />

que<br />

estrela tu t'escondes/ Emburaçado nos céus?!!!<br />

CB - Bem, poeta, o papo está bom, mas o carnaval da Bahia não pára.<br />

Este<br />

ano, vou até quinta-feira com os meus timbaleiros e o povo com a<br />

gente. Foi legal prosear contigo, viu mestre. Tchau.<br />

CA - Adeus! (Fica olhando perplexo a timbalada e a multidão quea<br />

acompanha) - Onde estás, Senhor Deus?!(Chega uma repórter com a equipe)<br />

RP - Estamos , aqui, embaixo da estátua de CA para entrevistar...<br />

Ué, cadê a estátua? Cortaaaaaa!.<br />

CA - (Castro Alves se aproxima curiosamente)<br />

RP - Quem é você? Cadê a estátua que estava aqui?<br />

VG - É ele. Ele é Castro Alves, o poeta.<br />

RP - Poetaaa? Não é politico nãoo? Cortaaaa! Olha lá vem chegando um<br />

bando<br />

de literatas famosos. Jorge Amado, João Ubaldo... Ubaldo,<br />

(lendo).Diga-me, Jorge Amado que obra você mais gosta de Castro Alves?<br />

(Enquanto isto CA tenta se aproximar, porém é repetidas vezes afastado).<br />

8


JA - Vozes d' África, pois nesta obra ele pede a Deus que ajude ao<br />

povo<br />

negro. É emocionante e...<br />

RP - E você Ildásio Tavares, você que ‚ um estudioso de Camões, Pessoa<br />

e Castro Alves o que acha das obras do poeta dos escravos continuar atuar<br />

mesmo depois de 150 anos de sua morte?<br />

IT - É u m acervo enorme.Em Vozes D’África, em Espumas Flutuantes a<br />

tem tica da luta negra pela liberdade...<br />

RP - Corte... Vamos agora para o grande Tom Zé. Como vai? Castro Alves<br />

era um grande orador; declamava, discursava e debatia com veemência, ao<br />

ponto<br />

de magnetizar as platéias. Ser por isto que sua, estátua tem os braços<br />

estendidos?<br />

TZ - Não só os braços também o olhar contemplativo repousado na baia<br />

de todos os Santos. Nesta posição o poeta contempla o sonho de liberdade<br />

simbolizado pelo vôo do condor. Liberdade conquistada pelo povo negro...<br />

RP - Cooorta! Muito obrigada a todos e bom carnaval.<br />

(Neste momento chega uma mendinga sendo espancada por dois policiais).<br />

CA - Que vejo ali! Que quadro de amargura / Que canto funeral<br />

Que tétricas figuras / Que cena infame e vil<br />

(A mendinga implorando)<br />

MN - Nós somos como lixo. Não temos casa, trabalho, comida! Nem sequer<br />

somos respeitados como seres humanos... Bote isto na tv, bote.<br />

CA - Meu Deus! Meu Deus! Que horror!<br />

(Os Policiais continuam batendo na mendinga..)<br />

PL1 - Vagabunda! Aqui é lugar de trabalhar e não de vadiagem, viu?. Se<br />

quiser vadiar escolha um outro lugar bem longe daqui.<br />

PL2 - Vá logo andando se não quiser apanhar mais. Vá embora ou lhe<br />

matamos<br />

de porradas sua parasita. Trabalhar não quer, mais pedir sim. (A<br />

Mendinga é arrastada pelos policiais do lugar).<br />

MN - De que vale a liberdade? Para viver assim, sendo tratado como<br />

nada? Isto não é liberdade...<br />

CA - Homens simples, fortes e bravos / Hoje, míseros escravos<br />

Sem ar, sem luz, sem razão. / A vontade por poder<br />

Hoje cúmulo da maldade / Não são livres nem para morrer.<br />

VG - Que palidez, meu poeta/ se estende na face tua?...<br />

CA - São os raios decorados.<br />

VG - Que mancha ‚ esta.../ Que no teus lábios flutua?<br />

9


CA - São as sombras de uma nuvem.<br />

VG - Que nuvem ‚ que ti atormenta ?<br />

CA - Estou vendo o povo dançando, mas não sei se ‚ verdadeira jóia ou<br />

a tola<br />

alegria do moribundo entregue aos fumos do álcool para esquecer esta<br />

miserabile existência imposta. Enfim, de todos os meus ideais, as minhas<br />

esperanças o que sobrou? De tanta luta do negros guerreiros dos<br />

quilombos, o que sobrou?<br />

VG - Talvez aquele velha preta possa lhe responder, porém não sei se<br />

a resposta seria do teu agrado<br />

VP - Já sei das tuas perguntas, eu não tenho nunca uma só resposta.<br />

Talvez nem tenha resposta, mas olhe ao seu redor... Queria ser livre,<br />

livre como o homem que precisa expressar sua própria fantasia,<br />

imaginação, sonho. E o que acha? É este espaço somente, chamado de<br />

democracia: direito de votar para passar a vida delegando seu poder e<br />

assim deixar de participar. Será que achou a liberdade?<br />

O homem negro quer ser livre. Livre como o homem mais evoluído que se<br />

eleva com a própria sabedoria de viver desafiando e enfrentando os eu lhe<br />

humilham. Mas o que tem é: a força da ciência racional e<br />

materialista. Então, meu fio, na pele você pode ver o entusiasmo de<br />

expressar esta vontade de ser humano, única forma de Liberdade.<br />

Mas a Liberdade não é ficar em cima de uma árvore olhando pra baixo, não<br />

é ter uma Opinião do que nunca se faz, não é o vôo da mosca que faz<br />

zigue-zague e nunca se afirma. A Liberdade é participação.<br />

CA - Entendi. 150 anos olhei para o mar. Um século e meio esperei ver<br />

surgir o vôo livre do condor. Voltei, olhei e não vi o que queria ver. A<br />

eternidade espera-me, a eternidade espera-vos. Eu sempre terei 24 anos,<br />

sempre ficarei jovem e com a juventude manterei a minha força, sede de<br />

justiça e liberdade<br />

Volto ao meu túmulo. Volto olhar a imensidão do mar. Volto, mas Morto na<br />

carne, vivo na alma, assim se renova a imortalidade, a imortalidade do<br />

pensamento de afirmação da liberdade.<br />

(Beija Virgília e volta a ser uma estátua)<br />

Epílogo: (Declamado -Solene-)<br />

VG - E … tarde, quando o sol - condor sangrento -<br />

No ocidente se aninha sonolento,<br />

Como a abelha na flor.<br />

(Entram os atores cantando)<br />

4: Música (Renato-Beni-Coral)<br />

(Fecha-se a cortina)<br />

Observ. Estima-se que com duas Canções (Timbalada e a Final) e com a<br />

apresentação<br />

Duração 30 Minutos.<br />

Personagens: (Em Ordem de Aparição)<br />

10


Sigla Nome por Extenso Função<br />

XX Poeta Declama abertura (VG ??)<br />

CA Castro Alves Ator Principal<br />

BB Bêbado Comparsa<br />

VG Virgilia Guia, Acompanha Castro Alves<br />

PS Passante Comparsa<br />

CB Carlinhos Braun Cantor<br />

RP Repórter Repórter<br />

JA Jorge Amado Escritor<br />

IT Ildásio Tavares Escritor<br />

TZ Tom Zé Escritor<br />

MN Mendingo Comparsa<br />

PL1 Policial Comparsa<br />

PL2 Policial Comparsa<br />

VP Velha Preta Voz Autoral<br />

Escrita em Agosto de 1997.<br />

11


Quem Roubou meus sonhos?<br />

J - Quando nasci disseram: "Que lindo, vai ser um presidente da República."<br />

Não sabia o que era isto. Aos três anos disseram-me: Já é tempo de ir aEscola.<br />

"Também não sabia do que se tratava e perguntei o que era Escola.<br />

V ( coro ) - É um lugar onde se aprende a ler, escrever e encontrar Ideologia.<br />

J - Ideologia? Que palavra bonita. Gostei. Fiquei feliz, porém esperava<br />

ansiosamente encontrar-me com esta tal de Ideo... Deixa pra lá, mas aquelas<br />

vozes continuavam...<br />

V - Vamos logo que o paraíso lhe espera .<br />

J - Empurravam - me , esticavam - me, mas estava feliz, eufórico, ansioso ia<br />

encontrar- me, finalmente, com Ideologia e melhor, com Deus! É sim com Deus,<br />

se estava indo para o paraíso, portanto ia viver com Deus.<br />

P - ( Com o dedo no rosto de um menino ) Fique quieto, se não fica de castigo<br />

sem merendar.<br />

J1 - ( Cabisbaixo ) Eu não fiz nada, estava só olhando!<br />

J - Mesmo assim sonhava...<br />

J1 - Quando crescer serei professor, talvez médico. Não. professor, aquele que<br />

ajuda a encontrar Ideologia. Bem, ainda não a encontrei, mas com certeza, a pró<br />

vai me ajudar.<br />

J - É, mas no segundo grau...( amostra a sala de aula : professor e alunos<br />

fumando, alunos se agredindo e ao professor. ( MúSICA ) Ele bate palmas e<br />

todos param..) Muitas coisas mudaram, inclusive minhas esperanças. Se afasta e<br />

dois alunos do coro viram-se de frente para o público conversando<br />

A - ai, vai fazer Vestibular pra que?<br />

J1 - Ainda não sei. Não consigo pensar! E você consegue?<br />

A - Pensar! Qual é, isto é coisa de Primeiro Mundo, eu não estou a fim de<br />

esquentar minha. Tá ligado?<br />

J1 - Quem lhe disse que esquenta a cabeça?<br />

A - Todo mundo. Me diga que você ainda não ouviu Todo Mundo dizendo<br />

isto? ( J. balança a cabeça negando )<br />

J1- Que mais fala Todo Mundo?<br />

12


A - Que Ninguém é que faz bem, pois tem cabeça fria.Ele não pensa, cara.<br />

Vamos para aula?<br />

J1- Náo sei, ( pensativo se dirige para o público ) acho que vou ligar para<br />

Primeiro Mundo... Sim vou perguntá-lo como se faz para esquentar a cabeça.<br />

Quem sabe também ele me diga onde vou encontrar Ideologia? Quem sabe? (<br />

Sai do palco. Musica, sala de aula satisfatória. J. fala. )<br />

J - Lembro-me que assistia as aulas e também buscava Primeiro Mundo e não o<br />

encontrei. Disseram-me que precisa de grana para ir até lá, e, eu , não a<br />

tinha.Vou esperar mais um pouquinho. Cheguei a Universiade e não os<br />

encontrei, nem Primeiro Mundo, muito menos Ideologia. Tinha a cabeça fria, ou<br />

morna. Sim Ninguém falou isto porque não pensa, mas Alguém mandou- me<br />

tomar cuidado, minha cabaça já esteva morna. Acho que Ideologia se aproxima.(<br />

afasta-se e P. começa a aula. )<br />

P - Vamos trabalhar, gente?<br />

A2 - Professor, responda-me, realmente, por que a gente está aqui?<br />

P - Para ser cidadãos.<br />

A2- O quê? Ci que?<br />

P - Cidadãos. Você vem para escolar estudar como se forma um cidadão. Mais<br />

tarde, assim sabendo, você executará a cidadania.<br />

A2- É muito cumplicado. Não devo esquentar a cabeça. Olhe pro, Ninguém<br />

esquenta viu? Acho que você tá perdendo tempo.<br />

P - Acho que você não entendeu o que é ser cidadão. Vou lhe explicar: é uma<br />

pessoa que conhece seus direitos e deveres na sociedade. Como direito a estudar<br />

e ter assistência médica gratuíta. Deveres como pagar impostos, conservar sua<br />

escola, ou qualquer lugar. Entenderam?<br />

A3- Sim. Que só temos deveres, nunca direitos. Hospital e Escola até que temos,<br />

mas ruins, abandonados, sem vidas, só com zumbins.<br />

P - Se vocês cumprissem seus deveres, teriam seus direitos. Não quebrem,<br />

conservem, caso o governo não faça manutenção exijam, pois este é um dever<br />

do cidadão, exigir do governo os cumprimentos dos seus deveres. Pensem,<br />

viram?<br />

A - Se Todo Mundo tem cabeça fria, como é que vai pensar? Tá por fora, pro,<br />

Ninguém quer esquentar a cabeça , viu?<br />

A4 - Pro, Terceiro mundo desde pequeno tenta esquentar a cabeça, pensar, mas<br />

Alguém não deixa. Terceiro Mundo procura desesperadamente Ideologia, mas<br />

13


ela brinca de esconde- esconde. Terceiro Mundo só vê Alguém para distraí-lo<br />

com Pagode, Lambada, Axé e futebol . Ele também vê que Ninguém<br />

não sabe de nada e não quer saber. Enfim , ele coitado vê Todo Mundo de<br />

cabeça fria.<br />

P - É, mas um dia a gente, ainda, muda este país. Vamos à aula. ( Música )<br />

J - Estava quase saindo da universidade e cheguei a conclusão que devia<br />

concordar com Todo mundo, pensar esquenta a cabeça. A, mas resisto, agonizo e<br />

não desisto. Eu, Terceiro Mundo vou me encontrar com Ideologia. Sim, sei que<br />

ela está longe, mas me espera. ( Entra uma mulher olhando-o com desprezo...)<br />

I - Sabe quem sou eu?<br />

J - Vejo-a em meus pesadelos( aponta para o coro ), mas não consigo saber<br />

quem sejas.<br />

I - Sou Inconsciência, portanto para de me aborrecer e cumpra as minhas ordens:<br />

Não pense. ( Gritando )<br />

V - É preciso ser igual.<br />

I - Não me amola, ouviu? ( em cima do J )<br />

V - É preciso ir em frente irracionalmente.<br />

I - Vegete, ouviu?Seja igual a todos.<br />

J - ( caminhando pra trás e I. em sua frente ) Eu só quero os meus sonhos!<br />

I - Poucos têm o privilégio de pensar e, estes, são os que controlam<br />

vocês, vegetais.<br />

V - Você tem fome de que? (cercando J.) Você tem sede do quê ?<br />

J - (Assustado ) Do pensar.<br />

I - Leve- o para umas longas férias, com roteiro na Bahia e Rio de Janeiro.<br />

Mostre- o como se vive bem, como deve ser Ninguém. Mostre-lhe músicas que<br />

balance o corpo e não a mente.<br />

J - Mestres, meus pais, sociedade, sei que nada fizeram até agora, mas salve-me,<br />

pois sou, ainda, o único que quero pensar, neste pedaço.<br />

V - Não devemos pensar, só badernar.<br />

J - Escola, Educação,Todo Mundo, ajude-me a ver Ideo...<br />

14


I - Eles só podem me ver. Os homens não se vêem, eles se comem,igual aos<br />

peixes, que comem uns aos outros.<br />

V - Vamos participar de um banquete.<br />

J - Ideologia apareça, fui à Escola para encontrá-la. Escola falhou, mas eu não,<br />

ainda quero ser cidadão. Sou jovem não mereço isto.<br />

I - ( Para o público com ar de deboche ) Insistente o rapazinho, não é ?<br />

V - Esqueça de Ideologia, adore Inconsciência )<br />

J - Não. É preciso salvar Educação e Escola, coitadas: Educaçáo é um paciente<br />

agonizando e Escola um hospital abandonado.<br />

I - ( Para o público sorrindo ) Educação está à beira da morte, então vou pedir ao<br />

Nina para fazer plantão permanente e mandar a TV preparar um documentário<br />

sobre sua vida. É inimiga, mas tenho que cuidar da minha imagem de<br />

benemérita. Deve ter um enterro com honrras de heroína.<br />

J - Família, sociedade, acordem, lutem, acabem com esta bruxa e toda a sua<br />

corte que destroem nosso subconsciente, nossa razão.<br />

V - Escola, Família. Todos para Educação e Educação para Todos.<br />

J - Ideologia, sei que você chegará. Sou jovem, sou da geração coca-cola, sou<br />

neto da revoluçao, filho dos filhos da revolução, mas você irá nos encontrar . Eu<br />

estou indo, mas Ideologia chegará e outros jovens completarão a minha estrada<br />

para salvar esta humanidade tão desumana. Acordem,já, e salvem Escola desta<br />

bruxa.( Sai levado pelo coro )<br />

V - Você está dormindo, você está dormindo...<br />

I - Isto é apenas um sonho, ou melhor um pesadelo.<br />

J – Jovem Narrador<br />

JI – Jovem Ator<br />

I – Ideologia<br />

V – Vozes ( coro)<br />

P - Professora<br />

AI – Aluno<br />

A2 – Aluno<br />

Texto Original criado em 1998.<br />

!999 – Sofre adaptações. Na versão II a Inconsciência passa ser Ideologia. O<br />

Jovem busca Identidade e nega a ideologia.<br />

15


Prólogo de A História É uma História<br />

At 1 - Terra Terra! Os portugueses chegam ao Brasil<br />

At 2 - E logo deu pau!<br />

At 3 - O famoso pau-brasil<br />

At 1 - Cabral Toma posse das novas terras em nome do rei de Portugal<br />

At 3 - Mas logo teve que enfrentar o Movimento dos sem terra<br />

At 2 - Tinha que ter os índios para estragar a festa!<br />

At 3 - Raça de preguiçosos nem como escravos servem<br />

At 1 - Logo começou a moda de importar tudo até a mão de obra!<br />

At 2 - Os escravos negros<br />

At 3 - Não diga besteiras palavra de Anchieta “Tudo o que se planta dá”<br />

At 1 - Para os outros claro<br />

At 2 - Logo os capitães formaram as capitanias<br />

At 3 - Depois foram promovidos a coronéis formando a Bahia<br />

At 1 - O imperador chega ao brasil!<br />

At 2 - Chega de imperador no brasil<br />

At 3 - A republica!<br />

At 2 - Mas antes o fim da escravidão<br />

At 1 - O negro tá livre<br />

At 2 - O mulato tá livre!<br />

At 3 - O índio tá livre<br />

At 1 - O Brasileiro tá ferrado<br />

At 3 - Getulio inventa o salário mínimo<br />

At 2 - Estoura a segunda guerra mundial<br />

At 1 - Golpe militar, todos ficam felizes<br />

At 3 - Falem baixinho.....<br />

At 2 - Ai 2,3,4,5<br />

At 1 - Sorria você está sendo filmado<br />

At 2 - Não tendo mais índios para exterminar começa a caça aos comunistas<br />

At 1 - É para o bem de todos<br />

At 3 - Todos calados!<br />

At 1 - O boom econômico<br />

At 2 - Estoura o orçamento<br />

At 3 - A inflação, o novo inimigo<br />

At 2 - Matar o dragão com um só tiro!<br />

At 1 - Prrrr Bala de festim!<br />

At 3 - Errar Humano Est!<br />

At 2 - Fernando chega ao puder<br />

At 1 - Acaba a inflação<br />

At 3 - E de sobra acaba o aposentado<br />

At 1 - Os salários<br />

At 2 - Os empregos<br />

At 1 - Fernando vem reeleito!<br />

At 3 - Diabólico perseverar<br />

At 1 - Acaba o plano Real<br />

At 2 - Tudo um dia tem que acabar!<br />

At 3 - Tomara!<br />

At 1 - Mas enfim que história é esta?<br />

Juntos - A HISTORIA Ë UMA HISTORIA<br />

16


O Cego e o Paralítico<br />

(Texto livremente inspirado no monólogo de Dario Fó)<br />

(Paralítico no chão e cego perambulando pelo palco até tropeçar no<br />

Paralítico).<br />

Pa - Por que não olha onde vai, estais cego???<br />

Cg - Quer gozar com a minha cara! seu safado! estou cego sim !!<br />

é muita maldade fazer que eu tropece e talvez quebre a cara!!<br />

Pa - Você quebrar a cara?? Se foi eu que peguei uma porrada na cara<br />

que quase desmaio.<br />

Cg - Podia sair do caminho.<br />

Pa - Sair como? Não está vendo que sou paralítico??<br />

Cg - Já falei que sou cego. Por acaso você também é surdo??<br />

Pa - Surdo uma ova, quer brigar êh! venha que você não é Homem<br />

bastante para mim.<br />

Cg - Não lhe basta ser paralítico que ser também ridículo? Somos<br />

dois desgraçados, ao invés de brigar deviríamos nós ajudar...<br />

Pa - Você até que não é burro não, tem razão... olha (Hm no senso figurado)<br />

tenho uma idéia..<br />

Cg - Diga logo<br />

Pa - Você é forte mas não sabe onde vai. Eu, sou pequeno, mas enxergo uma<br />

mosca à centenas de metros de distancia.<br />

Cg - E daí??<br />

Pa - Ouça bem: você me carrega nas costas, assim, eu serei os teus<br />

olhos e tu as minhas pernas!<br />

Cg - Boa idéia! pera ai que te carrego... Onde está você?<br />

Pa - Aqui em baixo, mais para direita... Não Esquerda.. Não Direita..<br />

- Em frente... Mas você sabe qual é a direita e qual a esquerda?<br />

Cg - Nunca aprendi a ler, nem a escrever!<br />

(Finalmente o cego Acha o paralítico e não sem dificuldade<br />

carrega-o nas costas. Começa chegar uma procissão com Jesus na frente).<br />

Pa - Poxa, que belo panorama que tem aqui! Dá pra ver todinho todinho.<br />

Cg - Que zoada é essa?<br />

Pa - Deixa ver... Parece que está chegando...Meu Deus Vamos Embora logo!<br />

Cg - Mas me diga quem é!<br />

Pa - Bora!<br />

Cg - Não, se não me disser quem é.<br />

Pa - É o tal de Jesus, aquele que dizem fazer milagres como ressuscitar<br />

os mortos e coisas parecidas. Boraaaa!<br />

Cg - Vamos esperar um pouco...<br />

(Enquanto Jesus passava, involuntariamente, os toca)<br />

Pa - Já se foi vamos.<br />

Cg - Bem que tinha uma cara simpática...<br />

Pa - Como é que você sabe??<br />

Cg - Sei porque o vi! Milagre! Milagre! Tô Vendoooo!!!!<br />

(O cego eufórico larga o paralítico no chão, mas ele fica de pé)<br />

Pa - Cuidado! Quer que me arrebente todo!! Ué tô em Pé, consigo caminhar!!!<br />

Cg - Sempre quis ver as cores, as flores, as mulheres, olha que B..<br />

17


Pa - Da até para dançar....<br />

Cg - Vamos atrás dele para agradece-lo.<br />

Pa - Vamos para ver se ele desfaz o milagre!<br />

Cg - Tá maluco? Desfazer o milagre?<br />

Pa - Sim! Desfazer o milagre ele não tinha o direito de fazer<br />

milagres assim a toa sem ninguém pedir.<br />

Cg - Consertou suas pernas mas esqueceu de sua cabeça!<br />

Pa - Minha cabeça nunca foi tão boa<br />

Cg - Pirou de vez, sim!<br />

(Neste Trecho o Pa. Fala também ao Publico).<br />

Pa - Enquanto cegos, paralíticos vivíamos de esmola, porém livres,<br />

sem nenhum dono, sem dever prestar conta a ninguém.<br />

Agora, para viver, vamos precisar arranjar emprego, trabalhar<br />

como escravos para ganhar uma micharia, apanhar do patrão<br />

pagar impostos, fazer o serviço militar, ou pior, nos casar!<br />

Cg - Meu deus! Vamos logo buscar este tal de Jesus!<br />

(Os dois Saem Gritando Juntos).<br />

PaCg - Jesus, Jesus, Pelo Amor de Deus, tenha piedade de nós,<br />

desfaça o milagre! Jesus, Jesus....<br />

18


ATO 1 - O circo<br />

Amostra Artebagaço<br />

Chegada circense com grupo de artistas mambembes. Um deles segura um estandarte. Um<br />

outro com uma placa faz a divulgação do auto PATROCÍNIO. Depois a apresentação das<br />

dinâmicas do grupo.<br />

TEXTO – “O mundo é uma caneca, onde nada se bebe, mas tudo se engole.”<br />

ELO - A polícia procura a identidade do apresentador do circo.<br />

ATO 2 - Identidade cultural I.<br />

Grupo localizado ___________________________ Com dois cães, um personagem busca<br />

a identidade cultural. Outros completam o quadro.<br />

TEXTO – Falta de objetividade, de planejamento, descaso, de significação.<br />

ELO – Pensar a chegada dos Portugueses. “TERRA A VISTA”<br />

ATO 3 - A chegada dos Portugueses ao Brasil<br />

Grupo que mostra uma performance com demonstração de expressão corporal. Toda ênfase<br />

é dada a linguagem verbal para descrever a chegada dos portugueses e seus contatos<br />

iniciais com os nativos do Brasil.<br />

TEXTO – Cabral se aproveita da situação para revelar-se. A conquista portuguesa e depois<br />

a exploração violenta, seguidas de torturas aos índios; citação de trechos de Anchieta,<br />

Vieira e Gregório.<br />

ELO – Entra Alguém dizendo: corta - corta - cortaaa! Vamos voltar a cena não foi isto<br />

que aconteceu!<br />

ATO 4 - A Metalinguagem: Um assalto<br />

Grupo tenta ensaiar uma cena de violência. Dois personagens entram: mãe e filha...<br />

TEXTO – Mostrar a dificuldade de montar uma cena, quando o elenco não sabe o<br />

significado do que faz. Deve-se ambientar ao período de 1600, com um trecho de<br />

Gregório de Matos.<br />

ELO – Acho melhor trabalhar com repentistas improvisados do agreste sertão do que com<br />

este bando de malucos fanáticos por palco.<br />

ATO 5 - Cordel<br />

Um Grupo tentando ser repentistas...<br />

ATO 6 - Fusão – Identidade Cultural II<br />

Um grupo entra falando da identidade cultural. Procurando ainda referência, legado...<br />

TEXTO – Trechos de autores famosos.<br />

ELO – É um sonho dantesco! Embora a orquestra irônica ri e o povo chore.<br />

Ator - pede-se um abraço coletivo e contam a história do Colégio.<br />

19


Depois começam a contar uma outra história: “Um dia, numa bela manhã chuvosa<br />

Os portugueses chegaram ao Brasil!<br />

E vestiram os índios.<br />

Que pena! Se fosse uma bela manhã de sol<br />

O índio! O índio. É... tinha despido os portugueses”<br />

Mas com o andar da carruagem nasce “cafuzo”,<br />

nasce “mulato”, nasce branco e MORRE ÍNDIO<br />

E nasce e morre negro<br />

Sobram muitos mestiços?<br />

Vige, quantas asneiras!<br />

Com o passar dos tempos, “ neste mundo<br />

É mais rico o que mais rapa!<br />

Quem dinheiro tiver, pode ser Papa.<br />

Triste Bahia! Oh quão dessemelhante! “<br />

Mesmo assim a aldeia foi crescendo<br />

“E multidão faminta cambaleia,<br />

E chora e dança ali! “<br />

Na praça Castro Alves e No Farol da Barra...<br />

O ano inteiro. E como dança!<br />

E a orquestra irônica, de barriga cheia, incentiva as pomposudas dizendo:<br />

“Tapinha não dói. Tapinha não dói. Bomba.!<br />

É... É a turma do TIGRÃO.<br />

O poeta da praça se desespera<br />

Ao ver um bando de marionetes sendo comandados por um marionete em cima<br />

De um troço, um... Trio elétrico;<br />

Levanta os braços. “Todos juntos, galera, andem de quatro. Assim, assim, assim.<br />

É beleza pura. É tudo maravilhoso. Vamos lá galera maravilhosa. Isto só existe na Bahia.<br />

A TERRA DA FELICIDADE.”<br />

O poeta desesperado; “Senhor Deus dos desgraçados/ Dizei-me vós, Senhor Deus!<br />

Se é loucura... se é verdade/ tanto horror perante.. Quem são estes desgraçados.../<br />

São filhos do deserto, / A tribo dos homens nus”<br />

O poeta abaixa-se “Ontem simples, fortes e bravos/ hoje míseros escravos. /<br />

Sem luz, sem ar, sem razão.”<br />

O poeta afastou-se, mas outro poeta, anos depois, retrucou indignado:<br />

“Se Dom Pedro II vier com conversa ponho ele na cadeia.“<br />

O mais interessante foi que dois poetas contemporâneos convidaram-nos a subir ao adro da<br />

Fundação Casa de Jorge Amado para ver cenas como “ a fila de soldados, quase todos<br />

pretos / dando porrada na nuca de ..pretos, ... mulatos ou quase brancos tratados como<br />

pretos.<br />

20


Com o passar do tempo os soldados aumentaram seu vigor “ Só pra mostrar aos quase<br />

pretos... E aos quase brancos pobres como pretos, como é que pretos, / Pobres e mulatos e<br />

quase brancos... são tratados..../ Ninguém é cidadão./ Se for ver a festa do Pelô, e se você<br />

não for.<br />

Pense no Haiti, reze pelo Haiti / O Haiti é aqui – O Haiti não é aqui.<br />

Um sujeito confuso por tantas situações contraditórias perguntou: - Afinal é Brasil ou<br />

Haiti? Quero saber logo pra saber para quem vou torcer?<br />

A nossa história continua nos próximos capítulos, pelo visto não encontraram a identidade<br />

cultural.<br />

Outro cara chega: “ Chega de lero-lero que já temos costumes bastantes: Comemos<br />

Hamburguer, Hot-dog, isto aqui se chama folder, vamos ao WC. OK?<br />

Cadê os Contadores de História. OH YES!<br />

04/04/2001.<br />

Texto criado em abril de 2001 por Janice de Sena Nicolin para o espetáculo homenagear os<br />

21 anos do Colégio Estadual Governador Roberto Santos.<br />

21


Homens trabalhando na terra.<br />

PEÇA CANGAÇO<br />

Severino: Compade eu num sei até quando nós vai aguentar, é só trabaio, trabaio e agente<br />

continua comendo rapadura com farinha.<br />

Zélito: O que me deixa triste compade é que neste sertão carece de chuvê, num sabe? O sol<br />

queima como brasa e é de dá uma sede danada.<br />

Severino: Pára de trabalhar e fica sem graça ao ver entrar no meio do sertão pessoas que<br />

vem enterrar uma criança. E mostra a Zelito que se aproxima. Os dois tiram o chapéu.<br />

Música Morte e vida Severina após a música todos rezam. Sai de cena todos. Música Ser<br />

Nordestino.<br />

Entra em cena uma mulher e começa a arrumar as coisas para ir embora, logo em seguida<br />

entra em cena o marido dela que pergunta:<br />

Marido: O que é que deu em tu, em muié?<br />

Mulher: Arcanjo o coroné Pedrosa expulsou Agripino das terra e não carece nós ficar aqui,<br />

vamos imbora home, ele pode expulsar nós tabém.<br />

Marido: Daqui num saio, só morto muié.<br />

Entra em cena o coronel Pedrosa e seus jagunços.<br />

Coronel: Arcanjo! Ocê tem dez sigundos para abandonar as terras, ou nós vai meter bala,<br />

home.<br />

Marido: Pois pode meter bala seu cabra da peste que daqui só saio morto, seu desgraçado.<br />

Apareça ocê, se tu é home.<br />

Mulher: Vamo sair daqui Arcanjo ou nós vai morrer.<br />

Coronel: Eu vou contar até dez e é bom que tu comece a rezar. 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9 e 10.<br />

Marido: Vamo sair pelos fundos que ele não avista agente.<br />

Coronel: Vamo entrar, cabra.<br />

(Os jagunços entram na casa)<br />

Jagunço: Coroné eles foram embora.<br />

Coronel: (se aproxima) Eu sabia que esse cabra era frouxo.<br />

22


(O Coronel coloca uma placa com o nome dele).<br />

Todos saem.<br />

Música Olê muié redeira.<br />

Entra em cena Maria Bonita e esta se arruma. Entra Lampião segurando um garrafão.<br />

Maria Bonita: A água presta? (toma o garrafão da mão dele e cheira)<br />

Lampião: Pelo menos é mior que a cacimba véia. Aquela talhava o sabão. Cadê os frascos<br />

de cheiro?<br />

Maria Bonita: Estão aqui no embernal.<br />

Lampião: E o café?<br />

Maria Bonita: Guardei quentinho pra ocê.<br />

(Lampião mexe o café com a colher de prata)<br />

Maria Bonita: Credo cruz home, até de mim tu disconfia?<br />

Lampião: Até do meu anjo da guarda.<br />

Maria Bonita: Se eu fosse ocê não tinha essa fé tão grande nessa tal cuié de prata. Já me<br />

disseram que existe um veneno que não escurece a prata.<br />

Lampião: (com agressividade) Quem ti disse? Quem anda te ensinando a me dar veneno?<br />

Maria Bonita: Se eu quisesse matar ocê, não precisava de ensino de ninguém. Há muito<br />

jeito no mundo de se acabar com um home.<br />

Lampião: Maria, quem lhe ensinou que existe veneno novo que não escurece a cuié de<br />

prata?<br />

Maria Bonita: Ninguém me ensinou. Faz muito tempo que o finado Antonio Ferreira me<br />

vendo arear sua cuié, disse que não é todo veneno que escurece a prata. Há muito veneno<br />

que dixa ela branca.<br />

Lampião: Coisa fácil é encher boca de difunto com conversa que ele não teve.<br />

Maria Bonita: De primeiro quando ocê começava com essas coisas eu tinha uma raiva,<br />

dispois mi dava vontade de chorar. Agora me dá é aquele desânimo, será possível que<br />

depois de tantos anos, tanta luta, tanto sangue derramado sangue meu, seu, dos seu irmãos,<br />

dos companheiros, ocê ainda pensa em traição?<br />

De que me servia a vida sem ocê? Não vê que eu sou como a outra banda de ocê. Se ocê<br />

um dia cair morto ao meu lado só o que me resta é ficar na linha de tiro e esperar que eles<br />

23


me chumbem também, ocê já pensou no que os macacos haveria de fazer se pegassem a<br />

muié de Lampião “viva”?<br />

Lampião: O que eu sei é que home como Lampião é sozinho no mundo, nem muié, nem<br />

filho, nem irmão, nem parente. Por ele só mermo os Santos no céu.<br />

Maria Bonita: Te beze home. Quem renega os seus, morre sozinho.<br />

Lampião: A isso é que não morro. Sozinho não. No dia em que eu morrer vai ter tanto<br />

difunto que até urubu enfarta. Isso eu prometo. Por que meu destino é morrer atirando e<br />

quando eu atiro bala não se perde. Sereno se chegue home.<br />

Sereno: Diga capitão.<br />

Lampião: Prepara o bando que nós vai fazer uma vizitinha na fazenda do Coroné Pedrosa.<br />

Sereno: A munição tá quase acabando capitão.<br />

Lampião: Nem se preocupe não home, dispois dessa visitnha o que não vai fartar é onde<br />

enfiar bala.<br />

Todos se arrumam e vão à casa do Coronel. Saem de cena. Entra em cena após a música.<br />

(Já na casa do Coronel)<br />

Lampião: (senta e põe as pernas em cima da mesa, fala com o jagunço). Vá chamar o<br />

Coroné, avisa a ele que nós veio lhe fazer uma vizitinha. (enquanto isso os outros estão<br />

saqueando a casa do Coronel. Entra em, cena o Coronel Pedrosa)<br />

Coronel: Tu não precisava assustar meus jagunços, eu nunca proibi sua entrada nessa<br />

fazenda.<br />

Lampião: Eu sei Coroné, tanto sei que já entrei e sentei; mais o negócio Coroné é que<br />

agente nunca sabe como vai ser recebido. Eu só vim aqui te fazer aquela vizitinha<br />

costumeira. Lembrar da dívida que vós micê tem com nós pelo serviço prestado na fazenda<br />

do seu adversário político.<br />

Coronel: Foi bom tu Ter aparecido aqui, nesta humilde casa, eu tava mesmo precisando<br />

dos teus serviços por mais uma vez.<br />

Lampião: Infelizmente Coroné os teus serviços num pode ser feito por minha pessoa, nós<br />

já tá de saída, vamo imbora dessa região antes do sol nascer.<br />

Coronel: E posso saber pra onde tu vai Capitão?<br />

Lampião: Home como Lampião não dá indereço, não se preocupe que de vez em quando<br />

venho te fazer uma vizitinha igual a essa para que o sinhor não sinta a minha farta.<br />

24


Coronel: Eu tenho o endereço de um coitero, se tu precisar tá as suas orde.<br />

Lampião: Eu agradeço sua hospitalidade, mas preciso ir, até mas vê Coroné.<br />

(todos saem)<br />

Coronel: Acompanhe o Capitão.<br />

Maria Bonita: Num precisa, nós já conhece o caminho.<br />

Hora do voto, Música:<br />

(entra em cena o Coronel e o Jagunço).<br />

Coronel: Já é tarde e aquele cabra safado ainda não chegou, eu tenho impressão que ele<br />

esqueceu a dívida que tem comigo.<br />

Jagunço: O Coroné quer que nós vá buscar ele?<br />

Coronel: Isto não é idéia de se jogar fora, num sabe? Tu parece que tá ficando inteligente<br />

das idéias. Tragam o infeliz nem que seja na corda e se ele resistir tragam nem que pelo<br />

menos o difunto.<br />

Jagunço é pra já Coroné.<br />

(Jagunço sai, entra em cena um capial cheio de vontade de votar).<br />

Capial: Bom dia Coroné. (tira o chapéu).<br />

Coronel: Pensei que o cabra tinha esquecido do nosso compromisso.<br />

Capial: Que é isso Coroné, eu tô as suas orde, e vim cumprir meu dever e o nosso<br />

compromisso, eu sou home de palavra. Pode dizer o nome do candidato.<br />

Coronel: Mostra pra ele, o nome do candidato que ele esqueceu.<br />

(O Jagunço abre o cartaz que tem o nome do candidato e número).<br />

Capial: (começa a escrever e dizer em voz alta) Pronto Coroné, precisando é só me<br />

procurar, o sinhô sabe que pode contar sempre comigo e se num fosse o sinhô quem é que<br />

ia mandar rapadura com farinha pra alimentar meus fios?<br />

Coronel: Vá em paz home. (ele sai e em seguida entra o jagunço com outro capial que irá<br />

votar por obrigação).<br />

Jagunço: Aqui está o Home Coroné, imagine o sinhô que o cabra tentou até fugir, só que<br />

ele esqueceu que tenho faro de urubu, sinto cheiro de coisa ruim com muita facilidade.<br />

25


Coronel: Eu tinha certeza que ocê não ia negar um pedido meu e até tô serpreso com a sua<br />

espontaneidade de vir aqui cumprir seu dever. Prossiga, o candidato tu já sabe quem é.<br />

(com as mãos tremendo, escreve o nome do candidato, o Jagunço aponta um a arma na<br />

cabeça do Capial).<br />

Coronel: Jagunço dê uma pequena colaboração ao cabra da peste, a mão dele treme mais<br />

do que fêmea quando tá no cio.<br />

(Depois de ajudar a votar, expulsa o cabra e o Coronel faz ameaça).<br />

Coronel: Da próxima vez só vou precisar do teu nome.<br />

(Todos vão saindo aos poucos de cena com a urna na mão).<br />

Coronel: Vamo imbora comemorar a vitória do nosso candidato eu tinha certeza que o meu<br />

povo não ia me trair. Se farta algum voto, tu mermo coloca Bilico.<br />

(Saem de cena).<br />

Lampião chega com o seu bando em algum lugar e vai se alojando. Entra em cena um dos<br />

homens do bando.<br />

José Sereno: Capitão a polícia tá a caminho, temo que sair daqui.<br />

Maria Bonita: Mas nós nem chegou home e já tamo de saída, pra onde nós vai Virgulino?<br />

Lampião: Cambada nós vamo para Anjicos, lá é seguro, ninguém acha nós. Baiano, cuide<br />

de achar o cabra que ensinou o caminho pros macacos que mais tarde vai Ter insopado de<br />

lígua pro almoço.<br />

Maria Bonita: Virgulino tu falou em ir para Anjicos, não é que eu seja muié frocha não,<br />

mas eu sentir gosto de sangue na boca.<br />

Lampião: Tu tá ficando véia muié, tá cheia das idéias na cabeça, vamo imbora. Baiano<br />

cuide para que nenhum do bando se perca, porque se eu descobrir um ordinário traidor,<br />

vou fazer picadinho e se tu tá sentindo gosto de sangue Maria é bom que se acustume,<br />

porque quem tá nessa vida é pra matar e morrer.<br />

(Todos saem).<br />

Escrito em 1993 por Beni Moraes. Peça para 2001.<br />

26


Não deixe esta<br />

escapulir!<br />

Quem vai levar? Quem vai<br />

querer?<br />

O Gato que descome dinheiro.<br />

Quer saber mais?<br />

Então veja o...<br />

O auto da<br />

compadecida<br />

Dias 17, 18, 19 e 20/10. Nesta semana!<br />

Local?<br />

Produção: Grupo Teatral Artebagaço


ARTEBAGAÇO<br />

APRESENTA:<br />

O AUTO<br />

DA<br />

COMPADECIDA<br />

A PEÇA<br />

(Texto Original sem as fantasias do filme)<br />

DIAS 17, 18, 19 e 20 de outubro de 2000.<br />

Mini-auditório do COLÉGIO<br />

ESTADUAL GOV. ROBERTO<br />

SANTOS – CABULA


ARTEBAGAÇO<br />

APRESENTA:<br />

A COMPARE<br />

CIDA<br />

A PEÇA<br />

(Espetáculo de rua, inspirado na obra de Ariano Suassuna)<br />

DIAS: 20, 25 e 30 de agosto de 2001<br />

Local: Da quadra aos espaços vazios do<br />

Colégio Estadual Gov. Roberto Santos -<br />

Cabula


Na Vida,<br />

Nem Toda Besta<br />

Tem<br />

Quatro Rodas.<br />

Dúvidas!!!?<br />

Retire-as No<br />

Artebagaço Odeart<br />

Inscrições Abertas – 2007<br />

Local:<br />

Horário:<br />

Procurar:


O mundo é uma<br />

caneca,<br />

onde nada se bebe,<br />

mas tudo se engole.<br />

Quer Saber Por quê?<br />

Então<br />

Venha Para o Artebagaço<br />

Odeart.<br />

Inscrições Abertas – 2006<br />

Local:<br />

Horário:<br />

Procurar


O GRUPO ARTEBAGAÇO ODEART<br />

APRESENTA<br />

A DE Ó (Estamos Chegando)<br />

PRIMEIRA PARTE<br />

A DE Ó<br />

PRÓLOGO<br />

A REZA<br />

OS COCOS<br />

A Engrenagem<br />

SEGUNDA PARTE<br />

Autocoreográfico: ODÉ: O Caçador do Alvorecer<br />

LOCAL E HORÁRIO:<br />

CONTATO: (71) 33849530 e/ou 99224394/<br />

Email. janicenicolin@hotmail.com


O GRUPO ARTEBAGAÇO ODEART<br />

APRESENTA<br />

A DE Ó (Estamos Chegando)<br />

PRIMEIRA PARTE<br />

A DE Ó<br />

PRÓLOGO<br />

A REZA<br />

OS COCOS<br />

A Engrenagem<br />

SEGUNDA PARTE<br />

Autocoreográfico: ODÉ: O Caçador do Alvorecer<br />

LOCAL E HORÁRIO:<br />

ANO: 2006<br />

CONTATO: (71) 33849530 e/ou 99224394/<br />

Email. janicenicolin@hotmail.com


ALÔ, GALERA<br />

A PARTIR DE 21 DE<br />

FEVEREIRO de 2005<br />

INSCRIÇÕES PARA AS<br />

OFICINAS DE CRIAÇÃO:<br />

Teatro<br />

Dança de Matriz<br />

Africana<br />

Break<br />

Percussão<br />

PROCURAR:


A DE Ó<br />

(Estamos chegando)<br />

A produção atual do Artebagaço Odeart é<br />

realizada por mais vinte e cinco pessoas que<br />

formam o corpo de atores, músicos,<br />

dançarinos, pessoal de apoio e as<br />

coordenadoras Janice Nicolin e Benivalda<br />

Moraes.<br />

O espetáculo que se forma em dois<br />

cenários: o primeiro traz uma reflexão<br />

sobre o homem recalcado culturalmente,<br />

reprimido em suas ações e atitudes<br />

legitimas de criação e recriação. Denuncia<br />

formas institucionais, ou não, que denegam<br />

as identidades e inibem as alteridades.<br />

O segundo traz uma reflexão, ancorada na<br />

pedagogia africano-nagô de valores<br />

culturais da existência humana e sua relação<br />

com o poder e o respeito à coexistência..<br />

QUEM SOMOS?<br />

O Grupo Teatral Artebagaço foi fundado<br />

em janeiro de 1997 por Diego Nicolin,<br />

Benivalda Moraes e Janice Nicolin, em<br />

repostas às necessidades de criação de um<br />

território de afirmação da identidade<br />

cultural sociocomunitária. As ações e<br />

atitudes políticas do grupo desdobram-se<br />

ancoradas na análise objetiva da realidade<br />

subjetiva dos sujeitos recalcados pela<br />

ideologia monocultural européia, que<br />

impera na sociedade moderna.<br />

Suas iniciativas datam de 1990, com<br />

trabalhos em sala de aula, no colégio<br />

público do ensino médio Governador<br />

Roberto Santos, no Cabula, expandindo<br />

para além muros deste colégio, atualmente<br />

é composto por alunos e ex-alunos dos<br />

colégios do ensino médio do Cabula. Suas<br />

oficinas se realizam<br />

.<br />

O GRUPO ARTEBAGAÇO<br />

APRESENTA<br />

A DE Ó<br />

PRIMEIRA PARTE<br />

A DE Ó<br />

PRÓLOGO<br />

A REZA<br />

OS COCOS<br />

A “CORRENTE”<br />

SEGUNDA PARTE<br />

ODÉ O CAÇADOR DO ALVORECER<br />

PARA CONTATO: ( 33849530) 99224394<br />

E-mail: janicenicolin@hotmail.com<br />

em vários lugares: colégio, associações ...<br />

O estilo peculiar do Artebagaço consiste na<br />

utilização mínima de recursos técnicos<br />

modernos como, por exemplo: luzes,<br />

cenários carregados, figurino com intuito de<br />

imitar o real, no entanto reforça seus<br />

princípios fundantes ao dar ênfase às<br />

linguagens corporal, sonora e a força da<br />

palavra que expressam os tons irônicos e<br />

satíricos existentes em seus textos.<br />

O Artebagaço Odeart não tem fins<br />

lucrativos, autofinancia-se através de<br />

rede das alianças compostas por amigos<br />

e admiradores de sua proposta políticopedagógica,<br />

cuja ética e estética<br />

resguardam valores da ancestralidade<br />

ameríndia e africana.<br />

Em 2004 o Artebagaço cria o núcleo<br />

ODEART, que se renova ao percorrer<br />

trilhas impulsionadoras da busca pelos<br />

valores erguidos pela ancestralidade<br />

africana na territorialidade Cabula,<br />

valores presentes no cotidiano das<br />

comunalidades deste lugar


Êta chão de estrelas!<br />

Elaborado o plano no dia anterior, as três formiguinhas executaram a ação previamente<br />

planejada: o encontro para ir à instituição que defende seus interesses. Por falar seus<br />

interesses, deixe-me apresentar as nossas personagens em questão: Edego, Benego e<br />

Janego, parece nome de homens, na verdade são três grandiosas figuras femininas fortes.<br />

O motivo principal do encontro reudeu-lhes momentos laboriosos mentais, Edego<br />

rememorou e contagiou as duas companheiras com suas lembranças de adolescência. Ah,<br />

como ela descrevia seus feitos sapientes, que só Deus pode dar aos seres femininos!<br />

Neste momento não houve um simples relato, mas o viver uma época passada, na qual as<br />

personagens eram aquelas três formiguinhas, emboras o fato tenha sido de uma formiga<br />

todas viveram através do contágio emocional passado pela narrativa emocionante..<br />

A mente e o poder da linguagem! Como pode seres viverem o que o outro viveu, sem nunca<br />

ter ido, nem passado por aquilo. Realmente a narradora foi boa, através da empatia<br />

arrebatou suas duas amigas ao seu espaço, reservado apenas ao plano secreto das<br />

satisfações sigilosas e sagradas de sua mente.<br />

Bem, o que nos importa são as aventuras das três. Será que elas conseguirão as respostas<br />

para suas dúvidas? Será que realmente seus direitos estavam sendo defendidos pela<br />

instituição que elas pertenciam? Ou será mais uma destas falsas aparências que existe em<br />

Brasego, o país de origem e moradia das nossas heroinas?<br />

Chega de perguntas! Isto atrasa a narrativa, afinal o que interessa ao leitor não é lerolero,mas<br />

as ações. Vamos lá. As formiguinhas de fato souberam que o chefão, ou<br />

empregador, o explorador ou o manipulador das vidas alheias havia prometido alguma<br />

coisa, tipo dar umas migalhas, como uma tal de licença para descansar. Mas o aumento foi<br />

só mais trabalho. Segundo o chefe das heroínas falta trabalho, pois nas 24 horas do dia,<br />

elas só trabalham 38, portanto estão devendo.<br />

Em Brasego as horas trabalhadas são contabilizadas em saldo negativo: o trabalhador ganha<br />

mais do que trabalha. De fato o chefe tem razào: é preciso aumentar os números do relógio,<br />

de doze para 24 , de forma que ao olhar para o relógio, o trabalhador necessite correr mais,<br />

para cumprir a carga horária de 48 horas diária que o patrão quer.<br />

Parece até cena de filme, mas acontece realmente, as formiguinhas lutadoras, que não<br />

gostam de ser exploradas sabem disto tudo. Sabem que os números relativos negativos<br />

estão presentes em seus bolsos, ( não se pode falar em conta bancária, esta só existe o<br />

número) pois existe muito suor e reais negativos, enfim saldo devedor.<br />

Voltemos a história. Elas saíram com todo otimismo dos “cidadãos” braseguense: foram<br />

ver vitrinas, passear em Shoppings, andar pela bela cidade que está bastante produzida e<br />

maquiada pelo último prefeito, coisa para inglês ver. Elas viram de tudo um pouco, mas<br />

nada comprou, com saldo negativo e dívidas empenduras só podiam olhar.<br />

O otimismo ilusório de nossas amigas é tamanho que elas experimentavam tudo, se<br />

informavam dos preços, pediam orçamentos dos objetos mais variadas, de forma que<br />

qualquer vendedor certificava-se que realmente haveria uma compra. Tudo isto para criar<br />

um novo dia ,diante de um futuro implanejável, pois agora até o salário vem em duas<br />

parcelas.<br />

Neste ínterim algo foi concreto: Janego fazia orçamentos de uns óculos, que não levou,.<br />

embora não conseguisse enxergar que uma ladra, que lhe seguia na rua, queria roubá-la e<br />

até tentou levá-la à uma ótica obscura. Coitada! De quem? Da ladra, é claro, Janego sabia


de tudo, mas era dia de contemplar, passear, aspirar esta falsa liberdade. Ela pensou: “Um<br />

dia ainda compro meus óculos! Não sei se será bom ver o suficiente! Não sei não, mas<br />

tentarei ver o melhor.”<br />

Assim se foi mais um dia das nossas antiheroínas.<br />

Eurego Nascimento Diário.<br />

Junho de 2000<br />

2


O CLIMA NÃO PÁRA<br />

Recentemente tivemos o desprazer de ver o derramamento do dinheiro público: os tais<br />

festejos da chegada dos portugueses há 500 anos atrás, no Brasil. Pode até ser mau humor,<br />

mas não acredito que um país que possui tantas dificuldades como a fome, o desemprego,<br />

falta de universidades e escolas públicas dignas para o primeiro e segundo grau possa se<br />

preocupar em festejar. É descabível tamanho descaso social.<br />

Vendo tais ocorrências e com tamanha veemência defendidas por algumas celebridades,<br />

ditas intelectuais do país, penso que, realmente, sou um ser insatisfeito com tudo e com<br />

todos, pois todo povo brasileiro gosta de festas, em especial o baiano, que festeja até o<br />

crescimento da asa do pombo que pousa na casa do vizinho.<br />

A impressão que se tem é que, este povo vive num país das maravilhas, os que reclamam,<br />

como eu reclamo, sofrem do baço, ou algo parecido. Mas sei que a história não pode<br />

construir derrotados, apenas vitoriosos, como os heróis americanos e este povo apenas vê e<br />

acredita no que o dominante diz. Sempre foi assim, daí os festejos em abundância.<br />

Bem, na verdade, como se pode ter gostos e opiniões próprias se o direito ao exercício do<br />

pensar é retirado quando o ser humano ainda está pequeno, na primeira infância?<br />

Existem várias proibições discretas para que o sujeito não perceba o que se passa, tanto<br />

visual quanto auditiva. Pensar significa perceber primeiramente, sentir no corpo o<br />

percebido e reagir cautelosamente a esta ação sofrida.<br />

Pergunto: pode um povo passar por este processo, já que vive eternamente em festas,<br />

descontraído, relaxando, sem permissão ao ato reflexivo, que o raciocínio lógico pede?<br />

Pode aprender a perceber que o oferecido pelos grupos dominantes não é realmente algo do<br />

seu interesse, nem da coletividade da qual ele faz parte? É difícil também fazer isto com a<br />

péssima educação escolar que tem recebido, pois as escolas públicas são apenas fachadas.<br />

Compreende-se que o papel do estado é oferecer aos seus cidadãos uma educação de<br />

“qualidade padrão”. Compreende-se que o mestre deve ter um “padrão de vida” apropriado<br />

para o exercício de sua função profissional, mas quem entende assim são poucos: os<br />

dominantes, as pessoas que escapuliram da lavagem cerebral ( não me pergunte como) e o<br />

restante são os possibilitadores do esvaziamento mental de uma grande massa popular.<br />

Se a sociedade não-oficial soubesse que os manipuladores massacram quem realmente faz<br />

educação diferenciada da que deseja a monocultura ideológica, poderia mudar o cenário de<br />

servidão e demência discreta que assola o Brasil imposto pela programação dos meios de<br />

comunicação que invadem os lares a todo o momento. Estes dizem tudo ao contrário ao que<br />

ocorre: que tudo está ótimo, que os professores tem os melhores salários do país, que as<br />

escolas foram “recuperadas.”..<br />

Mais uma vez usam e abusam da ignorância popular, criada e alimentada por este maus<br />

elementos que correspondem ao mínimo da população do país. Por que tanta perversidade?<br />

Por que tanta amargura? Por que tanto desamor?<br />

Analisando um grupo deste, que financia a criação e desenvolvimento de seres<br />

absolutamente condicionados, sem capacidade de realizar seu menor desejo, que é sonhar<br />

seu próprio sonho, concluo que a perversidade reina, por isto não conheço mais o homem.<br />

Um grupo que cria seres amorfos, que não investe em educação diversificada e coloca seus<br />

filhos em escolas que possuem políticas contrárias criadas para manter o povo que lhe<br />

alimenta subjugado, deve ser composto por abutres.<br />

3


Diante deste canibalismo cerebral reafirmo que sou mau humorado, que não gosto de<br />

festejos , mas admiro as comemorações, afinal isto é memória, é herança ancestral.<br />

4<br />

Eurego Nascimento Diário.<br />

Março de 2001.


Mesmo Sem Querer... Não Somos Iguais<br />

Circula nos últimos dias, na imprensa, que a justiça se faz presente para crime ambiental. Ótimo!<br />

Mas isso seria muito bom se punisse as grandes empresas que poluem o ambiente, o Estado que<br />

polui o ser humano com tantas propagandas enganosas, aqueles juizes que não examinam e julgam<br />

as ações movidas pelos trabalhadores que reclamam os baixos salários e alta taxa de tributos<br />

fazendários e de previdência social.<br />

Acontece que, meu amigo ou amiga, se assim posso falar, o bode expiatório, desta vez, foi um<br />

pobre lavrador, analfabeto que tirou um pedaço de casca de uma árvore. O infeliz levou cinco dias<br />

na cadeia. Entretanto um certo ex-senador da República, só levou um dia por ter participado dos<br />

esquemas de corrupção (desvio de verbas, obras superfaturadas...).<br />

Segundo Arnaldo Jabor, “seu erro é ser pobre e fraco”. Bem, na verdade ser pobre e fraco é uma<br />

manobra ideológica do Ocidente, mas, na verdade, o que falta neste país é vergonha, nunca vi tantas<br />

caras lavadas, “caras de pau”. Acredito que isto não é crime, não é erro, ao contrário é “glória”.<br />

Um certo dia caminhando na Avenida Sete de Setembro, no centro da cidade de Salvador, no<br />

cantado e versado estado da Bahia perguntei a uma criança moradora de rua se ela queria ir à<br />

escola. Ela disse-me que sim, claro! Perguntei-lhe o porquê. Ela me respondeu com um projeto de<br />

vida futura.<br />

Se aquele lavrador tivesse ido à escola que o respeite sua origem, tivesse comida na natureza para<br />

pegá-la a vontade, moradia digna e um bom salário não precisaria agredir a pobre árvore, retirando<br />

pequenas e míseras cascas do tronco na busca de algo para sua sobrevivência. Se aquele lavrador<br />

tivesse a vida que os filhos dos “poderosos” têm, cheia de farturas e esperdícios, talvez fosse uma<br />

pessoa mais precavida, crítica e conhecedora dos limites ambientais e sociais.<br />

A miséria social se nutre da autovalorização do ego de alguns que detém o poder e, enquanto isto,<br />

as pessoas mais simples revolvem o lixo para sobreviver.<br />

O quadro da ignorância amplia-se no país, as pessoas vivem febrilmente, apenas vêem o que a rede<br />

de comunicação mais poderosa do país determina, o que as emissoras de tevê e rádio querem. Os<br />

manipuladores usam suas marionetes (o povo) ao bel-prazer.<br />

Esta situação agrava-se e o governo tem se tornado um coparticipante, ao assumir seu papel omisso,<br />

como muitos cidadãos considerados de bem. Acredito que o poder executivo público, em todas as<br />

estâncias, não vai resolver esta situação lastimável, pois a desigualdade social amplia<br />

estupidamente, mas a população letrada e instruída, os intelectuais devem exigir dos governantes o<br />

cumprimento de uma política sociocultural para acolher a infância e a juventude.<br />

Vejo na força e organização da solidariedade ações drásticas que tentam amenizar esta situação de<br />

exclusão social. São poucos, mas lutam contra o “canibalismo cerebral”, contra o uso e abuso do<br />

poder sobre mentes “cheias de vazio”. O terreno baldio, resultante da omissão do estado, está sendo<br />

ocupado por pessoas que não querem morrer por nada e nem querem ver muitos inocentes<br />

morrendo pelo mesmo motivo.<br />

Quanto aos poderosos é melhor esquecer, garanto que se aparecerem como voluntários devem estar<br />

vendo cérebros frescos e saborosos, não acredito que queram ajudar a eliminar algo que lhe faz<br />

bem.<br />

Sempre olho à distância estes fatos, sinto e penso. Que prazer têm os arrogantes sobre a miséria<br />

humana? Por que as pessoas preferem dar esmolas do que o direito à vida? Como os “hipotentes”<br />

podem dizer que vivem bem? Será que este meu olhar está provocando frustração em alguém? Ou<br />

será ignorar tudo isto e assumir o ideal utópico se omitindo ou se alienando para sobreviver como<br />

alguém o faz?<br />

5


Eurego Nascimento Diário. 1<br />

1 Codnome de Janice de Sena quando escreve crônicas e contos<br />

6


UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA<br />

DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÂO I<br />

MESTRADO EM EDUCAÇÂO E CONTEMPORANEIDADE<br />

MESTRANDA: JANICE DE SENA NICOLIN<br />

ORIENTADORA: NARCIMÀRIA CORREIA DO PATROCÍNIO LUZ<br />

SALVADOR – BA.<br />

2004<br />

Roteiro semi-estrutural de entrevista<br />

Característica da população entrevistada: morador do Cabula, no mínimo 20 anos,<br />

participante do Grupo Artebagaço e Artebagaço Odeart , a partir de 1991, platéia que<br />

acompanha o grupo e professores de unidades escolares do Cabula.<br />

1 – Qual seu nome?<br />

2 – A quanto tempo mora no Cabula?<br />

3 - Houve muitas mudanças de comportamento dos moradores a partir de 19970,<br />

quando o Cabula passou a ser urbanizado?<br />

4 – Como entende a relação da escola com a comunidade?<br />

5- Como você se sente na escola?<br />

5 – Como os mais antigos descrevem a vivência do Cabula? E você o que sabe sobre o<br />

Cabula antes de 1970?<br />

OBserv. As entrevistas foram realizadas com rodas de conversas, com naturalidade.

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