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SÉRIE SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA <strong>UFRJ</strong>


MARIA ALICE VOLPE (org.)<br />

SÉRIE SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA <strong>UFRJ</strong><br />

Rio de Janeiro, 2012<br />

Universidade Federal do Rio de Janeiro<br />

Escola de Música<br />

Programa de Pós-graduação em Música


UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO<br />

Carlos Antônio Levi da Conceição<br />

Reitor<br />

Antônio José Ledo Alves da Cunha<br />

Vice-reitor<br />

Debora Foguel<br />

Pró-reitora de Pós-graduação e Pesquisa<br />

CENTRO DE LETRAS E ARTES<br />

Flora de Paoli<br />

Decana<br />

ESCOLA DE MÚSICA<br />

André Cardoso<br />

Diretor<br />

Marcos Nogueira<br />

Vice-diretor<br />

Afonso Barbosa Oliveira - Diretor Adjunto de Ensino de Graduação<br />

Celso Ramalho - Coordenadora do Curso de Licenciatura<br />

João Vidal - Diretor Adjunto do Setor Artístico Cultural<br />

Miriam Grosman - Diretora Adjunta dos Cursos de Extensão<br />

Marcos Nogueira - Coordenador do Programa de Pós-graduação em Música<br />

Maria Alice Volpe - Editora-chefe<br />

Revisão e copidesque: Mônica Machado e Viviane Vasconcelos<br />

Projeto gráfico, editoração e tratamento de imagens: Márcia Carnaval<br />

Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong><br />

Volume 1: Atualidade da Ópera<br />

Maria Alice Volpe (org.)<br />

Conselho Editorial<br />

André Cardoso<br />

Diósnio Machado Neto<br />

Marcos Nogueira<br />

Maria Alice Volpe<br />

Mário Vieira de Carvalho<br />

Copyright © 2012 by Autores<br />

Catalogação: Biblioteca Alberto Nepomuceno/EM/<strong>UFRJ</strong><br />

500 Exemplares


APRESENTAÇÃO<br />

Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong><br />

Maria Alice Volpe<br />

PREFÁCIO<br />

Maria Alice Volpe<br />

AGRADECIMENTOS<br />

TRÂNSITOS CULTURAIS<br />

A ópera na história e na atualidade: uma perspectiva sociológica<br />

Mário Vieira de Carvalho<br />

Manuscript collections of Italian opera<br />

Philip Gossett<br />

Fantasias operísticas italianas na América Latina<br />

Benjamin Walton<br />

Viaggi dell’opera verso il Rio de la Plata in tempi di migrazioni<br />

Annibale Cetrangolo<br />

Lídia de Oxum: a ópera negra da Bahia<br />

Ilza Nogueira<br />

Dulcineia e Trancoso – uma ópera armorial<br />

Eli-Eri Moura<br />

Uma visão atual da ópera no Brasil: procedimentos cênico-musicais<br />

em Dom Casmurro e n’A Tempestade<br />

Ronaldo Miranda<br />

ESTUDO INTERDISCIPLINAR<br />

Literatura e música: o romance e a ópera no Brasil Oitocentista<br />

Marcus Vinicius Nogueira Soares<br />

ÓPERA NA AMÉRICA PORTUGUESA<br />

O palimpsesto iluminista: a ressignificação dos modelos operísticos<br />

por um estudo de repertório da Casa da Ópera de São Paulo<br />

Diósnio Machado Neto<br />

As óperas de Antônio José da Silva e Antônio Teixeira:<br />

atribuição de autoria e reconhecimento de modelos estéticos<br />

da produção lírica luso-brasileira do século XVIII<br />

Márcio Páscoa<br />

O repertório músico-teatral na Casa da Ópera do Rio de Janeiro,<br />

1778 a 1813<br />

David Cranmer<br />

7<br />

8<br />

9<br />

11<br />

19<br />

31<br />

41<br />

65<br />

85<br />

95<br />

111<br />

123<br />

141<br />

155


ÓPERA EM TRANSIÇÃO<br />

A República e as mudanças na cultura musical e músico-teatral<br />

Mário Vieira de Carvalho<br />

A “batalha dos símbolos”: ópera no Brasil, da Monarquia à República<br />

Maria Alice Volpe<br />

Carlos Gomes no contexto da transição da ópera italiana<br />

Marcos Virmond<br />

A influência do simbolismo nas óperas de Alberto Nepomuceno<br />

Rodolfo Coelho de Souza<br />

ESTILO E RECEPÇÃO<br />

A filiação estética dos autores líricos da Amazônia<br />

no Período da Borracha, a partir de suas óperas<br />

Márcio Páscoa<br />

As óperas de Sant’Anna Gomes<br />

Marcos Virmond<br />

Joanna de Flandres de Carlos Gomes: obra de transição<br />

Lenita W. M. Nogueira<br />

A abertura do drama lírico Pelo amor! (1897)<br />

de Leopoldo Miguez (1850-1902)<br />

André Cardoso<br />

O esvaziamento das tradições operísticas do século XIX<br />

e a influência da mídia nos novos padrões estéticos<br />

Heliana Farah e Murilo Neves<br />

TRAJETÓRIAS<br />

Óperas em português: ideologias e contradições em cena<br />

Vanda Bellard Freire<br />

O teatro lírico no Brasil meridional: origens e percursos<br />

Ezio da Rocha Bittencourt<br />

A ópera Jupyra no contexto geral de Francisco Braga<br />

Rubens Russomano Ricciardi<br />

Damião Barbosa de Araújo e A Intriga Amorosa:<br />

estilo e questões cronológicas no contexto da sua produção lírica<br />

Pablo Sotuyo Blanco<br />

Emílio Soares e a ópera: ressonâncias românticas na Itabira do século XXI<br />

André Guerra-Cotta<br />

Chagas: gênese de uma ópera singular<br />

Alexandre Schubert<br />

165<br />

185<br />

195<br />

223<br />

233<br />

251<br />

269<br />

285<br />

295<br />

303<br />

317<br />

339<br />

355<br />

375<br />

389


A Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong> é composta por<br />

coletâneas temáticas vinculadas ao evento científico de mesmo nome e tem por<br />

objetivo publicar as conferências dos especialistas convidados desenvolvidas em<br />

forma de capítulo. Essa política editorial proporciona textos enriquecidos pela<br />

interlocução com a comunidade científica em versão expandida e depurada por<br />

novo processo de revisão. As temáticas são tratadas de modo intra e interdisciplinar<br />

e dividem-se em tópicos que refletem diversos segmentos da área. Cada volume<br />

oferece uma visão abrangente do estado atual de conhecimento sobre o assunto. A<br />

colaboração de especialistas oriundos de instituições com diversidade geográfica<br />

intensifica o diálogo da comunidade nacional e internacional, de modo a favorecer<br />

a inserção dos estudos brasileiros na musicologia internacional.<br />

A Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong> está dedicada aos<br />

conferencistas convidados e os Anais aos trabalhos selecionados mediante<br />

submissão.<br />

O Conselho Editorial empenha-se em contribuir para a catalisação do avanço<br />

do conhecimento científico na área e para a sistematização e aprofundamento da<br />

temática escolhida para cada volume.<br />

7<br />

APRESENTAÇÃO<br />

Maria Alice Volpe<br />

Editora


8<br />

PREFÁCIO<br />

Os estudos de ópera têm constituído locus privilegiado das inovações<br />

ocorridas recentemente na musicologia, possibilitando abordagens diversificadas,<br />

desde estudos de sociologia, política, ideologia, história e crítica cultural, vocalidade<br />

e corpo, até discussões sobre novas proposições analíticas para um gênero dramáticomusical<br />

que deve ser compreendido, sobretudo, como espetáculo.<br />

A ópera exerceu hegemonia na cultura musical de diversos países desde o<br />

século XVII até início do século XX e constituiu campo de experimentação importante<br />

para o desenvolvimento do discurso musical. Gênero dramático-musical de amplas<br />

possibilidades sociocomunicativas, a plasticidade de suas convenções ensejou no<br />

palco as diversas questões de seu tempo. Suas representações e circundante crítica<br />

nos periódicos constituíram verdadeiros fóruns de formação da opinião pública.<br />

Enquanto espetáculo e ritual, sua prática social foi marcante na determinação das<br />

características do espaço público. Os modelos comunicativos que surgiram no seu<br />

âmbito forjaram os mecanismos de comunicação com as grandes massas, anteriores<br />

ao advento do cinema. Ao reunir e transcender os limites dos gêneros, musicais e<br />

cênicos, a ópera potencializou e consolidou a capacidade da música enquanto arte<br />

de forte catarse comunicativa.<br />

No Brasil, o crescente cultivo da ópera, com sua diversidade de escolas e<br />

subgêneros, refletiu ideologias e atendeu a modos de sociabilidade cada vez mais<br />

secularizados. No decorrer do século XIX, a ópera tornou-se instância indispensável<br />

para o reconhecimento de compositores perante o grande público. A partir do século<br />

XX a ópera teve que competir com outras modalidades de arte e entretenimento,<br />

tornando-se tópico interessante para discussão de seu lugar na atualidade.<br />

O presente volume Atualidade da Ópera oferece um amplo espectro dos<br />

estudos recentes sobre a ópera no Brasil e sua relação com outras áreas culturais da<br />

Europa e América Latina, contribuindo para a crescente reflexão sobre os discursos<br />

históricos construídos sobre a música de tradição européia. A interlocução entre os<br />

estudos aqui apresentados busca ampliar o espaço para as diversas tendências de<br />

análise e crítica, incentivando um encontro teórico-analítico que norteie o impulso<br />

historiográfico futuro.<br />

Maria Alice Volpe


9<br />

AGRADECIMENTOS<br />

Aos membros do Conselho Editorial<br />

E aos apoios de<br />

Faperj<br />

Capes<br />

Banco do Brasil<br />

Fundação Universitária José Bonifácio


TRÂNSITOS CULTURAIS


11<br />

A ópera na história e na atualidade:<br />

uma perspectiva sociológica<br />

Mário Vieira de Carvalho<br />

Universidade Nova de Lisboa<br />

Introdução<br />

Numa abordagem sociológica, o social na música é o comunicativo. A comunicação<br />

musical estrutura-se em sistemas que emergem do todo social como sistemas sociais<br />

de comunicação dotados de certo grau de autonomia, isto é, de autorreferencialidade e<br />

autorregulação. Esses sistemas sociocomunicativos são imanentes à produção, praxis de<br />

execução, mediação e recepção musicais; são imanentes à música, aos comportamentos<br />

ou formas de vida em que ela se manifesta.<br />

Tomando a ópera, na história e na atualidade, como sistema de comunicação,<br />

trata-se de analisar 1) a estrutura do sistema: os elementos que o constituem e os processos<br />

de autorregulação que lhe são inerentes, os tipos de retroações (feedbacks) em presença;<br />

2) a funcionalidade do sistema: as relações com o seu meio social (inputs e outputs trocados<br />

com outros sistemas sociais: sistemas de poder, econômicos etc.); 3) a dinâmica das relações<br />

entre estrutura e função: as mudanças do sistema de comunicação ópera nas suas<br />

relações com diferentes contextos ou environments socioculturais também em mudança.<br />

Nesta intervenção proponho-me à discussão algumas reflexões sobre modelos<br />

de comunicação músico-teatrais na história e na atualidade, a partir de uma breve alusão<br />

retrospectiva a duas experiências históricas paradigmáticas opostas: a de Portugal e a dos<br />

estados germânicos.<br />

Dois modelos opostos de cultura músico-teatral<br />

Em matéria de cultura músico-teatral, Portugal e os estados germânicos encontravam-se<br />

numa situação muito semelhante no início do século XVIII. Eram ambos importadores<br />

de ópera italiana. Portugal continuaria a ser importador desse modelo até o final<br />

da monarquia, em 1910, e nunca desenvolveria, até hoje, uma estratégia consistente de<br />

institucionalização de ópera ou de teatro lírico em língua portuguesa, nem de criação de<br />

estruturas de produção estáveis que promovessem o emprego artístico local nesse domínio<br />

de atividade artística (envolvendo o canto lírico e todas as demais atividades artísticas e<br />

profissionais inerentes à produção de ópera). Os estados germânicos tornar-se-iam, logo<br />

desde o início do século XVIII, exportadores de ópera alemã (composta em sua própria<br />

língua nacional), num processo que tem continuado em franca expansão planetária até<br />

aos nossos dias. Tanto maior é o contraste quanto é certo que a língua portuguesa é hoje<br />

falada por mais de 250 milhões de pessoas, enquanto o alemão é falado por cerca de 100<br />

milhões.<br />

Aspetos estruturais e ideológicos, que se reconduzem ao desenvolvimento sócioeconômico,<br />

às transformações da esfera pública e mesmo a fatores religiosos (conforme<br />

a teoria de Max Weber sobre a relação entre a religião luterana e o espírito do capitalismo)<br />

são algumas das condicionantes que estão, certamente, na origem de percursos tão díspares.<br />

Hoje, há cerca de cinquenta teatros de ópera em pleno funcionamento na Alemanha;<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


12<br />

teatros que abrem diariamente as suas portas ao público ao longo de todo o ano e onde<br />

as diferentes produções do seu respectivo repertório, sempre em permanente renovação,<br />

vão se alternando em cartaz. Pelo contrário, em Portugal, a ópera cinge-se agora apenas<br />

a escassos espetáculos, sobretudo no Teatro de São Carlos, e continua a basear-se na<br />

importação de know how do exterior (mormente, na área do canto lírico). 1<br />

O programa da burguesia esclarecida germânica, baseado na função educativa<br />

atribuída às artes e, nesse caso, à ópera, em contraposição à função de prestígio e<br />

divertimento, traduziu-se numa rede de interações que importa ter em conta. A ideia de<br />

que cada cidade de certa dimensão devia ter ópera em língua alemã (para “promoção da<br />

humanidade” – Christoph Martin Wieland, 1775) favoreceu o aparecimento de múltiplos<br />

centros de produção, estimulando o emprego artístico local em larga escala. A distribuição<br />

regional desses centros associada à ideia de que a ópera não era um “luxo” da corte ou de<br />

uma elite política, financeira e cultural restrita, antes devia ser colocada ao alcance de<br />

todos, foi historicamente determinante para o alargamento a novos públicos. A<br />

necessidade de responder às solicitações das companhias e dos públicos locais levou à<br />

expansão e diversificação do repertório em língua alemã (quer em originais, quer em<br />

traduções) bem como suscitou o aparecimento de uma cultura autóctone de produção<br />

músico-teatral (libretistas, compositores, intérpretes, especialistas em artes cênicas etc.).<br />

Daí a necessidade de escolas, academias e outros estabelecimentos de formação artística,<br />

que foram desenvolvendo o ensino e a investigação nesses diferentes domínios e em<br />

áreas de saber afins (desde a filosofia às tecnologias de palco). A massa crítica técnicoprofissional<br />

gerada e a densidade da esfera pública burguesa contribuíram, por sua vez,<br />

desde cedo, para a constituição de um campo ou sistema artístico forte, com capacidade<br />

de autorreferência e autorregulação, que subtraiu as artes e, neste caso, a ópera, à sua<br />

dependência imediata da função de representação do poder ou de mero divertimento.<br />

As transformações na teoria e praxis decorrentes da rede de interações assim constituídas<br />

conferiram à ópera alemã um dinamismo e uma capacidade de inovação que a tornaram<br />

extremamente influente além-fronteiras.<br />

A rede de atividades ligadas à ópera atuou, por sua vez, como fator de desenvolvimento<br />

socioeconômico. Com efeito, o investimento público que apóia o funcionamento<br />

das várias dezenas de teatros de ópera na Alemanha não reverte somente para a finalidade<br />

cultural, reflete-se também na dinâmica econômica, quer pelo emprego que gera diretamente<br />

(artístico, técnico, administrativo etc.), quer pela repercussão indireta no tecido<br />

das atividades econômicas (fornecedores de materiais para espetáculos, empresas de<br />

produção de conteúdos culturais em suportes audiovisuais, turismo, hotelaria etc.), quer<br />

ainda pelo peso que tem nas exportações, seja de know how artístico, seja no campo da<br />

chamada “indústria cultural”. Quando o já referido Christoph Martin Wieland escrevia,<br />

em 1775, que a ópera não tinha de ser um “luxo”, que antes podia estar ao alcance de<br />

todos e que teria uma função educativa, não podia prever todo esse imenso potencial<br />

que ela viria a adquirir: potencial de emancipação e valorização de forças produtivas na-<br />

...........................................................................<br />

1 Sobre os sistemas sociocomunicativos da ópera em Portugal, do século XVIII ao XX, ver análise detalhada em<br />

“Trevas e Luzes na Ópera de Portugal Setecentista” in M. Vieira de Carvalho, Razão e sentimento na comunicação<br />

musical. Estudos sobre a Dialéctica do Iluminismo, Lisboa, Relógio d’Agua, p. 141-157. Esse estudo<br />

corresponde a uma versão atualizada de parte do primeiro capítulo da monografia que aborda a ópera em<br />

Portugal dos séculos XVIII a XX: ‘Pensar é morrer’ ou O Teatro de São Carlos na mudança de sistemas sóciocomunicativos,<br />

Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1993 (o original alemão, de 1984, tese policopiada,<br />

foi publicado em versão remodelada e acompanhada de iconografia, com o título ‘Denken ist Sterben’.<br />

Sozialgeschichte des Opernhauses Lissabon, Kassel, Bärenreiter, 1999). A relação com as transformações da<br />

esfera pública na Europa é abordada em “A ópera, a esfera pública e a mudança de sistemas sociocomunicativos”,<br />

in M. Vieira de Carvalho, Por lo impossible andamos – A ópera como teatro de Gil Vicente a Stockhausen, Porto,<br />

Âmbar, 2005, p. 37-60. Ver também, neste volume, o meu artigo “A República e as mudanças na cultura musical<br />

e músico-teatral”.<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


13<br />

cionais. A ópera, afinal, não só não era um luxo, como podia ser até um fator de criação<br />

de riqueza. Um eventual colapso dos teatros de ópera alemães não significaria hoje apenas<br />

uma catástrofe cultural. Seria também uma catástrofe econômica...<br />

O papel das políticas públicas<br />

A estrutura de muito longa duração que, por contraste, tem prevalecido em<br />

Portugal 2 foi recentemente comprovada por mais um episódio. Entre 2006 e 2009, o Teatro<br />

Nacional de São Carlos funcionou segundo um novo quadro legal, que previa a criação de<br />

um Estúdio de Ópera para profissionalização de artistas líricos portugueses ou residentes<br />

em Portugal e procurava lançar as bases de uma estrutura de produção residente que<br />

pudesse assegurar um aumento exponencial do número de espetáculos, o alargamento a<br />

novos públicos, promovendo simultaneamente o canto lírico em língua portuguesa, numa<br />

perspectiva moderna de valorização da ópera como teatro. Sem prejuízo de se manterem<br />

as temporadas internacionais: produção local e star system deviam articular-se de forma<br />

equilibrada que favorecesse cada vez mais o desenvolvimento e expansão de uma cultura<br />

músico-teatral com uma forte componente de artistas nacionais (ou residentes em<br />

Portugal) e um papel mais relevante da língua portuguesa. Na verdade, o artigo 2º dos Estatutos,<br />

na parte relativa ao Teatro de São Carlos, previa nomeadamente:<br />

c) A promoção da internacionalização, tanto através de coproduções como através<br />

da valorização da produção própria, visando a afirmação de um projecto de<br />

uma identidade artística susceptíveis de projecção e de potencial atractivo internacionais;<br />

d) A criação e manutenção de um estúdio de ópera que proporcione oportunidades<br />

de profissionalização a jovens artistas e técnicos e se constitua como<br />

pólo de inovação no repertório, na prática de encenação e de representação, incluindo<br />

produção músico-teatral em língua portuguesa;<br />

e) A formação de novos públicos, designadamente através de produções itinerantes<br />

e de um programa educativo, sobretudo dirigido ao público infantojuvenil;<br />

f) A preservação da herança cultural, recuperando e divulgando o património<br />

músico-teatral de origem nacional ou conservado em Portugal;<br />

g) A encomenda a autores portugueses de novas obras musicais ou músico-teatrais<br />

e a sua produção ou programação; […] 3<br />

Em 2006, o aparelho produtivo do Teatro de São Carlos (Orquestra Sinfônica,<br />

Coro, pessoal técnico e administrativo, num total de cerca de 400 trabalhadores) estava<br />

inteiramente subordinado ao star system e, por isso, escandalosamente subaproveitado.<br />

Com um financiamento público anual no montante de 14 milhões euros, o Teatro de Ópera<br />

custava ao Estado 40 mil euros por dia, mas permanecia fechado durante mais de<br />

300 dias por ano. Não ia além de 27 mil espectadores anuais, o que significa que o custo<br />

ao Estado de cada espectador por espetáculo rondava os 500 euros, e o de um assinante<br />

(por oito óperas) equivalia a seis meses de salário mínimo nacional! Tomando como<br />

exemplo a Ópera de Paris (Bastilha), no mesmo ano, o esforço do Estado também era<br />

considerável, mas nada que se comparasse ao “luxo” de Lisboa: 100 euros, para cada es-<br />

...........................................................................<br />

2 Ver caracterização pormenorizada neste volume, “A República e as mudanças na cultura musical e músicoteatral”.<br />

3 Na definição do novo quadro legal – Decreto-Lei nº 160, de 27 de abril de 2007 – eu próprio tive então uma<br />

intervenção decisiva, na medida em que exercia as funções de Secretário de Estado da Cultura do XVII Governo<br />

Constitucional e tinha poderes delegados da Ministra da Cultura, Isabel Pires de Lima, para tutelar a área das<br />

Artes do Espetáculo (funções que exerci entre 14 de março de 2005 e 30 de janeiro de 2008).<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


14<br />

pectador por espetáculo; 20 dias de salário mínimo nacional para o assinante de oito óperas.<br />

Número de espectadores por ano: perto de um milhão.<br />

Ou seja, considerando, além disso, o mais elevado nível de vida em França, era<br />

enorme o diferencial entre os custos sociais da ópera, respectivamente em Lisboa e em<br />

Paris, e tanto maior também o diferencial entre a sua repercussão cultural e até econômica.<br />

O financiamento público de 100 milhões de euros em Paris, para quase um milhão de espectadores,<br />

tinha um efeito reprodutivo indireto na própria economia, enquanto o financiamento<br />

de 14 milhões em Lisboa se traduzia em ônus financeiro, pois que, para<br />

além de servir para subsidiar uma elite muito restrita oriunda das classes mais abastadas<br />

(com meios para pagar 50 euros por um bilhete ou 400 por uma assinatura), 4 não tinha qualquer<br />

efeito relevante no desenvolvimento cultural e socioeconômico do país. Quanto ao<br />

número de espectadores, para se obter em Lisboa um efeito reprodutivo (do investimento<br />

público) proporcional ao de Paris, a atividade do Teatro de São Carlos teria de quase<br />

quadruplicar: passar de apenas 27 mil para cerca de 120 mil espectadores por ano.<br />

Na temporada de 2009-2010, após apenas dois anos de combinação de residência<br />

e star system, sob a direção artística do dr. Christoph Dammann, que cessara funções na<br />

Ópera de Colônia, para assumir o cargo equivalente em Lisboa, os números passaram a<br />

ser completamente diferentes: aumento de 50% do número de espectáculos; 83 mil<br />

espectadores (mais do triplo do número de espectadores de 2006); custo ao Estado de<br />

cada espectador por espetáculo: 156 euros; custo ao Estado de cada assinante de oito<br />

óperas: cerca de dois meses de salário mínimo nacional.<br />

Outro indicador particularmente relevante: enquanto, no triênio de 2003-2006,<br />

as atuações em palco de artistas portugueses ou residentes em Portugal se contavam<br />

apenas por algumas dezenas, nas temporadas de 2007-2010 ascenderam a cerca de um<br />

milhar.<br />

A orientação fundamental foi a de valorizar a recepção do espetáculo como um<br />

todo, sua eficácia teatral (incluindo, naturalmente, a dimensão teatral das componentes<br />

musicais), na base de uma abordagem crítica e inovadora dos conteúdos dramatúrgicos.<br />

Dir-se-ia que tal revolução seria recebida com entusiasmo. E o foi, em termos<br />

de adesão de novos públicos, mas um grupo mais restrito de assinantes e um ou dois<br />

críticos fanáticos do star system desencadearam uma campanha tão exaltada na rádio e<br />

na imprensa que o novo director artístico foi obrigado a rescindir o contrato, seguindose-lhe<br />

também, pouco depois, o demissão do diretor do Estúdio de Ópera, o brasileiro<br />

André Heller-Lopes, que exercera igualmente com a maior competência as suas funções.<br />

O episódio suscita uma ampla discussão. Uma questão que logo se coloca é a de<br />

saber qual é o papel das políticas públicas: financiar, sobretudo, a importação de “bens e<br />

serviços” culturais? Ou promover, sobretudo, o investimento reprodutivo, criando condições<br />

estruturais para o desenvolvimento sustentável de uma cultura músico-teatral local,<br />

que venha a tornar-se parte ativa no intercâmbio internacional? A resposta implica perceber<br />

a relevância da Ópera para a Economia e a relevância da Economia para a Ópera.<br />

Num mundo globalizado multicultural, a interseção entre cultura e economia leva-nos a<br />

identificar fundamentalmente dois sistemas em presença: o hegemônico, baseado no<br />

star system; e o contra-hegemônico, baseado em alternativas locais (ver Figuras 1 e 2).<br />

O primeiro tem como parceiro de comunicação típico o “melômano”, impõe<br />

uma “monocultura” à escala global e se assenta em mecanismos de autorregulação que<br />

excluem alternativas locais. Enquanto ramo da indústria cultural, promove a ópera como<br />

mercadoria de prestígio, mas a sua hegemonia não resulta exclusivamente da dinâmica<br />

...........................................................................<br />

4 Os 14 milhões de financiamento do Estado é que permitiam estes preços. Caso contrário, para o mesmo número<br />

de espectadores, cada entrada avulsa poderia ascender a cerca de 550 ou 600 euros.<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


de mercado, antes é em larga medida suportada por uma ideologia de dominação que leva<br />

os próprios Estados a considerarem-se na obrigação de a apoiar financeiramente como<br />

“serviço público” de cultura.<br />

Em contrapartida, a alternativa contra-hegemônica estimula, também no campo<br />

do teatro lírico, a diversidade das expressões culturais e favorece as conexões estruturais<br />

entre diferentes sistemas de comunicação. A autorregulação destes sistemas de comunicação<br />

contra-hegemônicos, que inclui alternativas locais, visa aprofundar a dialética<br />

entre o local e o universal. Resiste à dominação de uma monocultura que faz estiolar todas<br />

as outras e dá lugar a uma verdadeira esfera pública intercultural, onde o próprio star<br />

system pode continuar a ser um dos interlocutores (mas apenas um entre muitos) (Figura 2).<br />

Uma estratégia contra-hegemônica no teatro lírico baseia-se na abertura radical<br />

a novos públicos, na recepção do espetáculo como um todo, na reintegração da ópera no<br />

domínio global do teatro, na inovação dramatúrgica e cênica, na redescoberta das obras<br />

do grande repertório como verdadeiro teatro por música para um público atual – e essa<br />

foi sem dúvida uma constante da tradição de produção da ópera nos Estados germânicos<br />

15<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


16<br />

(desde o século XVIII). Essa é também a chave para a sustentabilidade da produção local.<br />

Há que “defender a ópera contra os seus entusiastas”, 5 contra aqueles que a esvaziam do<br />

teatro e a transformam num pretexto para o consumo vazio de grandes vozes, reificadas<br />

como um fim em si, sem relação com a dramaturgia – modelo de comunicação<br />

predominante no star system.<br />

Não se trata de impor um sistema de comunicação a outro ou outros, mas sim<br />

de promover o equilíbrio entre eles, pondo em causa a hegemonia do star system como<br />

cânone. Isto leva-nos a outra questão: o problema de interpretação e encenação de ópera.<br />

O problema da interpretação e o papel da musicologia<br />

Qual é a versão ou interpretação autêntica? Não há um ponto de vista absoluto,<br />

fora do espaço e do tempo, que permita estabelecer a versão ou interpretação autêntica<br />

da obra. Não há um ponto de vista único que permita fixar o sentido da obra. Há, sim,<br />

uma reabertura permanente do processo de sentido, o qual é necessariamente contextual,<br />

vinculado às condições concretas locais de produção, performance e recepção.<br />

O encenador alemão Peter Konwitschny (n. 1945), atualmente encenador<br />

residente e chefe de dramaturgia na Ópera de Leipzig, é um dos melhores exemplos de<br />

uma abordagem das obras que não as deixa fecharem-se sobre si próprias como peças de<br />

museu emudecidas, esvaziadas de teatro, sem nada para comunicar de humanamente<br />

interpelante para um público dos nossos dias.<br />

Konwitschny acentua o papel decisivo da música como ponto de partida: tem<br />

de ser interpretada autonomamente, eventualmente em contradição com o texto, e corporalmente,<br />

como um movimento que se expande e se contrai no espaço. A mimesis é entendida<br />

não como mera imitação, mas mais como experiência de um déficit que nos confronta<br />

com a vida real, evocando ex negativo promessas de felicidade não realizadas (inclui,<br />

por isso, uma dimensão de conhecimento social). Há, por isso, uma permanente exploração<br />

de tensões nas suas encenações: tensão entre música e cena, que não duplica aquela;<br />

tensão entre ilusão e desconstrução da ilusão; tensão entre o mundo do autor e o mundo<br />

atual do espectador (separação de horizontes e não “fusão de horizontes” no sentido da<br />

hermenêutica de Gadamer); tensão entre a necessidade de mudança e a impossibilidade<br />

de mudança.<br />

Neste sentido, Konwitschny realiza a síntese entre a herança de Walter Felsenstein<br />

(ópera como teatro, unidade de canto e representação, incorporação plena da personagem<br />

pelo cantor, interação entre cantores como portadores da ação e não subordinação destes<br />

às entradas dadas pelo maestro) e a herança de Brecht (montagem, efeitos de estranhamento,<br />

imagens dialéticas, gesto de mostrar). Konwitschny procura recuperar, como<br />

ele próprio afirma, a ideia de teatro como Politikum (tal como na Grécia antiga), isto é,<br />

como um evento socialmente relevante: “o que é importante para as pessoas tem de ser<br />

discutido coletivamente”. 6<br />

Qual é o papel da musicologia? No plano da investigação filológica, estabelecer<br />

a edição crítica da partitura, as suas variantes, identificar os problemas colocados pelas<br />

fontes. No plano da investigação histórico-sociológica e estética, estudar a obra na sua<br />

...........................................................................<br />

5 Título, parafraseando Adorno, que dei a uma comunicação para a qual remeto: “Defender a ópera contra os<br />

seus entusiastas: ‘Musiktheater’ de Walter Felsenstein a Peter Konwitschny”, in IX Colóquio de Outono – Estudos<br />

Performativos: Global Performance / Political Performance (eds. Ana Gabriela Macedo, Carlos Mendes de<br />

Sousa, Vítor Moura), V. N. Famalicão, Centro de Estudos Humanísticos da Universidade do Minho: Ed. Húmus,<br />

2010, p. 257-272.<br />

6 Sobre a teoria da interpretação musical e músico-teatral, ver discussão aprofundada in M. Vieira de Carvalho,<br />

“A partitura como espírito sedimentado: Em torno da teoria da interpretação musical de Adorno”, in Theoria<br />

Aesthetica (ed. Rodrigo Duarte), Porto Alegre, Escritos Editora, 2005, p. 203-224; e ainda “Defesa da ópera contra<br />

os seus entusiastas”, acima citado.<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


17<br />

estrutura e na sua substância dramático-musical, incluindo a recepção. No plano da dramaturgia<br />

musical, contribuir para o conceito da encenação e para as opções de interpretação<br />

(inclusive no âmbito das equipas de produção).<br />

Não compete à musicologia estabelecer o cânone da produção, da interpretação<br />

e da realização da obra. Não pode haver um cânone de excelência ou de qualidade preestabelecido,<br />

válido para todos os lugares e circunstâncias.<br />

O conceito de integridade do espetáculo tem necessariamente de prevalecer<br />

sobre qualquer preconceito quanto ao que seja considerado “integridade” da obra. Cada<br />

nova produção de uma obra vale por si e não pode deixar de ser aferida pelo sistema de<br />

comunicação e pelo contexto sociocultural específicos da sua realização. A obra não existe<br />

como algo congelado numa partitura. Obra e partitura não são idênticas. Aquela é sempre<br />

de novo reconstruída a partir desta (cf. Adorno). Nesse sentido, aquilo a que chamamos<br />

obra representada num espetáculo é um sistema de comunicação emergente – emergente<br />

de conexões estruturais entre vários sistemas ou subsistemas, nomeadamente: a estrutura<br />

técnico-material ou financeira; a equipa de produção, tendo como figuras centrais o<br />

encenador e o chefe de orquestra; os intérpretes; o contexto sociocultural e os seus interlocutores<br />

institucionais (incluindo os meios de comunicação e os críticos); a investigação<br />

musicológica, que assume as várias responsabilidades acima referidas; e, é claro, a<br />

partitura, como ponto de partida.<br />

Na minha perspectiva é necessária uma reflexão crítica que continue a aprofundar<br />

a teoria da interpretação musical e, em especial, a teoria da interpretação músicoteatral.<br />

A ideia fundamental de que parto é a de que o espetáculo de ópera não é para<br />

servir as expectativas do musicólogo, mas sim as do público. O papel do musicólogo é investigar<br />

as fontes e fornecer material fidedigno àqueles que vão produzir e encenar o espetáculo.<br />

O papel dos artistas é transformar esse material numa experiência de comunicação<br />

atual para um público atual – em que não se trata apenas de música, mas também<br />

de teatro e de eficácia teatral. Na fase da produção e da encenação, o papel do musicólogo<br />

passará a ser então o de coadjuvar os intérpretes na reconstrução da partitura, tendo em<br />

vista fundamentar uma determinada concepção das personagens ou dos conflitos em<br />

jogo, isto é, um determinado universo cênico. Não cabe à musicologia “matar o teatro”,<br />

mas sim ajudar a dar-lhe vida para um público do nosso tempo.<br />

Finalmente, apelo à continuação do desenvolvimento de um espaço de cooperação<br />

luso-brasileiro e lusófono, em que também no domínio do teatro lírico possa vir a<br />

desenvolver-se uma alternativa contra-hegemônica. Não é só no domínio da música popular<br />

ou do fado que a palavra cantada em língua portuguesa pode fazer o seu curso. Pode<br />

e deve também fazê-lo como palavra cênica. A ópera e a “música teatral” têm sido<br />

investigadas na perspectiva histórica, quer no Brasil, quer em Portugal. As abordagens<br />

têm incidido sobre compositores, intérpretes, obras, instituições e recepção. Têm-se<br />

traduzido em edições críticas, monografias e outros trabalhos. Menos investigadas têm<br />

sido as relações luso-brasileiras neste domínio, mormente na era pós-colonial: que companhias,<br />

artistas, empresários, obras circularam entre os dois países, com especial relevo<br />

para repertório em língua portuguesa; que formas de cooperação ou intercâmbio se desenvolveram.<br />

Está ainda por fazer um balanço crítico da investigação já realizada, mas o que<br />

importa, sobretudo, é continuar a expandir a intensa cooperação científica já em curso,<br />

estendê-la decididamente à cooperação artística e definir estratégias para o futuro. Cabenos<br />

refletir sobre o contributo que os investigadores e os artistas portugueses e brasileiros,<br />

conjuntamente, podem dar não só para o estudo das relações luso-brasileiras neste<br />

domínio, mas também para a sua promoção. É preciso ligar a investigação à atividade artística,<br />

e desse modo contribuir, tanto para fazer reviver um patrimônio cultural comum,<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


18<br />

como também para promover projetos inovadores no campo da criação, interpretação,<br />

produção e difusão músico-teatrais, envolvendo os dois países.<br />

Julgo que estamos em condições de dar um grande impulso aos estudos comparativos<br />

que tomem em consideração a ópera e outros gêneros músico-teatrais numa<br />

abordagem histórico-antropológica e histórico-sociológica inclusiva – isto é, aberta<br />

também a manifestações músico-teatrais de origem popular ou tradicional –, na qual os<br />

diferentes sistemas de comunicação sejam analisados nas suas conexões estruturais com<br />

contextos em mudança. Desses estudos deveriam sair propostas fundamentadas que<br />

ajudassem à definição de políticas públicas em ambos os países e no âmbito da CPLP –<br />

políticas públicas que visassem potenciar reciprocamente o valor cultural e o valor econômico<br />

da ópera e de outros gêneros músico-teatrais como fatores de emancipação social<br />

e humana (Figura 4).<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


Manuscript collections of Italian opera<br />

19<br />

Philip Gossett<br />

University of Chicago<br />

For many years, the principal activity of scholars of Italian opera was the<br />

establishment of “authentic” texts (by which was meant any and every version of an opera<br />

for which the composer himself had direct responsibility) and the publication of critical<br />

editions of a repertory that had seemed before to resist such attempts. 1 It was only by<br />

recognizing that composers treated their operas with some flexibility that it became<br />

possible to reject the notion of a Fassung letzter Hand and to insist instead that it was the<br />

function of a critical edition to make available all versions traceable to the composer of<br />

each work. In some cases, place was found even for versions that became inevitably<br />

associated with a title, even if the composer himself was not responsible for devising<br />

them. 2 The success of this operation is clear: more than 30 volumes devoted to Rossini’s<br />

music are currently available, another 15 of works by Verdi, and growing collections of<br />

the music of Bellini and Donizetti. These have not gained universal acceptance in opera<br />

houses (the hold of custom on operatic singers and impresarios remains very strong), but<br />

they certainly have developed a notable constituency of performers, as well as finally<br />

giving these works the kind of musicological respectability that scholars have demanded.<br />

As long as the preparation of such editions of nineteenth-century Italian opera<br />

was the principal goal of musical scholarship pertaining to this repertory, it was clear that<br />

scholars needed primarily to obtain the autograph manuscripts of composers, as well as<br />

manuscript copies, printed editions, and printed librettos that reflected precisely the most<br />

authentic sources. These sources still have a fundamental significance for all those who<br />

care about this repertory. 3 But it should come as no surprise that new questions are<br />

confronting us today as we think about this repertory, new approaches that are becoming<br />

ever more important to younger scholars. While one of my primary goals remains to<br />

complete the textual work that has only been partially accomplished, and as I will suggest<br />

later in this paper the collection of operatic materials in Rio de Janeiro promises to be of<br />

great importance to this effort, other goals are developing, no less interesting and no less<br />

significant for our knowledge of the operatic repertory. Important scholars are concerned<br />

now with the performers, particularly the singers, associated with this music, both in Italy<br />

...........................................................................<br />

1 The first series of critical editions of nineteenth-century Italian opera involved the works of Gioachino Rossini.<br />

It was issued by the Fondazione Rossini of Pesaro, with Ricordi of Milan, as Edizione critica delle opere di Gioachino<br />

Rossini, beginning in 1979. Since 2007, Bärenreiter-Verlag of Kassel has continued the series as Works of Gioachino<br />

Rossini. This project was followed by The Works of Giuseppe Verdi, issued by The University of Chicago Press,<br />

with Ricordi, beginning in 1983. Of later date are publication efforts associated with Gaetano Donizetti (selected<br />

works, beginning in 1991) and Vincenzo Bellini (beginning in 2003).<br />

2 I think particularly of the critical edition of Rossini’s Il barbiere di Siviglia, Patricia Brauner, ed., in Works of<br />

Gioachino Rossini (Bärenreiter-Verlag: Kassel, etc., 2008), which includes pieces from early versions of the opera<br />

not supervised by the composer himself. For a discussion of the theoretical basis for these editions, see Philip<br />

Gossett, Divas and Scholars (The University of Chicago Press: Chicago, 2006), available also in Italian translation<br />

as Dive e maestri (Il Saggiatore: Milan, 2009).<br />

3 Indeed, fundamental to the work on Rossini’s Petite Messe solennelle, Patricia Brauner and Philip Gossett,<br />

eds., for Works of Gioachino Rossini (Bärenreiter-Verlag: Kassel, etc., 2009) was the discovery of a new manuscript<br />

of the Mass, in private hands. Carlida Steffan has been commissioned to produce the new edition of the Soirées<br />

musicales with a lead time of more than five years so that she can try to locate additional autograph sources.<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


20<br />

and abroad. 4 While I would be hesitant to grant as much artistic significance to an Erminia<br />

Frezzolini or a Napoleone Moriani as to a Giuseppe Verdi, to an Isabella Colbran or an<br />

Andrea Nozzari as to a Gioachino Rossini, to a Maria Malibran5 or a Rosine Stolz as to a<br />

Gaetano Donizetti, there can be little doubt that composers worked closely with singers<br />

and sought to make their performing capabilities the measure by which their compositional<br />

art would be judged. It is no surprise that in preparing his Macbeth in 1847, Verdi involved<br />

directly Felice Varesi in the title role and Mariana Barbieri-Nini as Lady, even asking them<br />

to look at their solo music ahead of time and to provide judgments as to whether it suited<br />

properly their vocal proclivities. 6 If not, the composer was prepared to adapt his music to<br />

their capabilities or to modify it as appropriate. Perhaps the composer’s failure to do the<br />

same for Varesi when preparing La traviata was partially responsible for the failure of the<br />

first version of that opera in 1853. 7<br />

By studying the art of individual singers, one can understand better the limits<br />

within which composers were operating. Even though Verdi may have had some doubts<br />

ultimately about the French baritone Victor Maurel, for whom he prepared three roles<br />

(the revised Simon Boccanegra, Iago, and Falstaff), he knew that Maurel’s art was<br />

exceptional. Even when Maurel may have exaggerated (introducing, for example, multiple<br />

reprises of “Quando ero paggio”– the last of which he often sang in his native French), 8<br />

the composer remained relatively loyal to him, knowing that the success of his opera<br />

depended on Maurel’s brilliance. Both Verdi and Muzio may have complained quite bitterly<br />

about Jenny Lind’s “old-fashioned” approach to vocality in the 1847 I masnadieri for London<br />

and Lind herself (as Roberta Marvin has shown9 ) may have had little patience for the new<br />

vocal art he exemplified, still, the composer modified many vocal details in his score so<br />

that it gave Lind a better chance to shine. That was what the public demanded, and he<br />

knew that the public ultimately would determine the fate of any opera.<br />

Among the newer questions being asked today are those that deal with the use<br />

the public around the world made of the musical repertory, especially of opera. 10 While<br />

such questions, which can be grouped generically under the heading of “reception theory,”<br />

...........................................................................<br />

4 Let me cite, in particular, the work of Hilary Poriss, Changing the Score: Arias, Prima Donnas, and the Authority<br />

of Performance (Oxford University Press: New York, 2009), as well as the collection of essays, Roberta Montemorra<br />

Marvin and Prof. Poriss, eds., Fashions and Legacies of Nineteenth-Century Italian Opera (Cambridge University<br />

Press: Cambridge, 2009). There are several articles by Mary Ann Smart which address the problem, including<br />

“The Lost Voice of Rosine Stolz” in Cambridge Opera Journal 6 (1994), 31-50 and “Verdi Sings Erminia Frezzolini”<br />

in Verdi Newsletter 24 (1997), 13-22. See also, Susan Rutherford, The Prima Donna and Opera, 1815-1930<br />

(Cambridge University Press: Cambridge, 2006), and Céline Frigau’s master’s thesis for Paris VIII, 2006 (Une voix,<br />

un geste, un corps : Giuditta Pasta en scène : opinions de spectateurs dans La Pasta nell’Otello, Luigi Morando<br />

de Rizzoni, Vérone, 1830) and her doctoral dissertation of 2010, which deals with performers at the Théâtre-<br />

Italien in Paris during the first half of the nineteenth century.<br />

5 An important series of essays concerning Maria Malibran was recently published, the fruit of research into this<br />

illustrious singer, daughter of the important tenor, Emanuel García: Malibran: Storia e leggenda, canto e belcanto<br />

nel primo Ottocento italiano, Piero Mioli, ed. (Pàtron editore: Bologna, 2010).<br />

6 For further information, see the Preface to the critical edition of Macbeth, David Lawton, ed., in The Works of<br />

Giuseppe Verdi, Series I, vol. 10 (The University of Chicago Press: Chicago, and Casa Ricordi—BMG Ricordi:<br />

Milan, 2006).<br />

7 See the Preface to the critical edition of La traviata, Fabrizio Della Seta, ed., in The Works of Giuseppe Verdi,<br />

Series I, vol. 19 (The University of Chicago Press: Chicago, and Casa Ricordi—BMG Ricordi: Milan, 1996).<br />

8 A recording on Columbia Records, IRCC, N. 4-B (labeled as 1904, but supposedly reflecting a recording sesseion<br />

actually held in London in 1907), demonstrates this: he sings the short aria twice in the original Italian (“Quand’ero<br />

paggio”), then once in his native French (“Quand j’étais page”), accessed on YouTube, 2 June 2011.<br />

9 See the Preface to the critical edition of I masnadieri, Roberta Montemorra Marvin, ed., in The Works of<br />

Giuseppe Verdi, Series I, vol. 11 (The University of Chicago Press: Chicago, and Casa Ricordi—BMG Ricordi:<br />

Milan, 2000).<br />

10 For a particularly astute treatment of the situation in Germany, see Gundula Kreuzer, Verdi and the Germans:<br />

From Unification to the Third Reich (Cambridge University Press: Cambridge, 2010). An important study is about<br />

to be issued by George Martin, entitled Verdi in America: Oberto through Rigoletto (University of Rochester<br />

Press: Rochester, N.Y., forthcoming).<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


21<br />

may not lead to responses that will change the nature of the edited texts, they do help us<br />

understand a great deal about how music was received. The work of Roberta Marvin with<br />

Victorian parodies of Verdian operas, of Emilio Sala with the boulevard theaters in Paris,<br />

of Jeanice Brooks with collections of music in English parlors, of Thomas Christensen with<br />

four-hand arrangements, all this work and much else has enormous resonance today. 11<br />

Many parts of the Rio collection must be understood in these terms. Although a more<br />

profound knowledge of the publishing history associated with Ricordi, Schott, Heugel, or<br />

Novello may have little relevance to the problem of establishing a text for compositions<br />

which exist in autograph manuscripts, it does provide the context in which operas were<br />

received and treasured by large parts of the musical world (even in the form of pianistic<br />

potpourris or arrangement for various instruments), particularly by those individuals that<br />

did not come to know opera primarily from formal performances in theaters devoted to<br />

the operatic repertory. And at a moment when access to theaters was limited to a few<br />

individuals who had the possibility of living and working in major metropolises and no<br />

recordings could substitute – however inadequately – for the pleasure of attending<br />

performances, printed vocal scores or extracts had a significant role to play in spreading<br />

the word about a new work that was worthy of public knowledge. 12 No one, to my<br />

knowledge, has attempted to study publications and extracts made in South America<br />

with questions of this kind in mind. 13<br />

In this context, information about the spread of Italian opera in countries other<br />

than the central European countries (Italy, France, Germany, and Austria) and England<br />

begins to take on a very different level of interest. We know, of course, that the repertory<br />

of Italian opera had enormous resonance in Scandinavia, in Russia, in the Iberian peninsula,<br />

in the Americas (both North and – as the Rio collection demonstrates – South) and<br />

continues to have an important hold on the imagination of audiences in these countries.<br />

When operas are performed regularly, of course, there must be sources that are used by<br />

performers to permit their activities. In some cases, these scores were made available by<br />

an Italian commercial publisher, Ricordi, who had important centers of activity in many<br />

countries (in South America, the most important single city for Ricordi’s distribution was<br />

Buenos Aires). But after much of Ricordi’s performance material was destroyed in a<br />

bombardment of Milan in 1944, the company called back material that had been deposited<br />

in many other countries; as a result, much of that material is no longer to be found in the<br />

countries in which it had been used. Nor does Ricordi seem to have kept today this older<br />

material: it has been replaced by newer products, as demanded by performers. 14<br />

Of great interest to scholars, though, is evidence pertaining to complete<br />

manuscripts that were prepared earlier in the history of the works, during the nineteenth<br />

...........................................................................<br />

11 Roberta Marvin has published several articles on this subject, but in particular see her Verdi and the Victorians.<br />

(Boydell & Brewer: Woodbridge, forthcoming). Emilio Sala has written several articles about Verdi and the<br />

Boulevard theaters in Paris: see, in particular, “Verdi e il teatro di boulevard parigino degli anni 1847-1849,” in<br />

eds., Pierluigi Petrobelli and Fabrizio Della Seta, La realizzazione scenica dello spettacolo verdiano: Atti del<br />

Congresso internazionale di studi, Parma, Teatro Regio—Conservatorio di Musica “A. Boito,” 18-20 settembre<br />

1994 (Parma, 1996), 187-214. Jeanice Brooks is currently engaged in ongoing research into collections of music<br />

used in nineteenth-century England, of which a few articles have appeared, such as “Les collections féminines<br />

d’albums de partitions dans l’Angleterre au début du XIXe siècle”, in Christine Ballman and Valérie Dufour, eds.,<br />

‘La la la Maistre Henri’: Mélanges de musicologie offerts à Henri Vanhulst (Brepols: Turnhout, 2009), 351-65.<br />

See also Thomas Christensen, “Four-Hand Piano Transcriptions and Geographies of Nineteenth-Century Musical<br />

Reception”. Journal of the American Musicological Society 52 (1999), 255-98.<br />

12 For a discussion of Italian theaters in this period, see Carlotta Sorba, Teatri: L’Italia del melodrama nell’età del<br />

Risorgimento (Il Mulino: Bologna, 2001).<br />

13 I do want to acknowledge, however, the work of Benjamin Walton of Jesus College, Cambridge University, who<br />

is actively involved in research on the spread of Italian opera in South America.<br />

14 I make these remarks on the basis of personal contacts at Casa Ricordi of Milan, going back to the early 1970s,<br />

particularly with Fausto Broussard, who was present in the Ricordi Archives during the 1950s, shortly after<br />

these events occurred.<br />

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22<br />

century, and still found in collections around the world. Many of these collections are<br />

very important and quite well known. Thus, King Frederick VI of Denmark, in approximately<br />

1820, ordered a significant collection of Italian manuscripts sent to him as representative<br />

of works that could be performed in his realm: this collection is still found in the Royal<br />

Library in Copenhagen. And the collection includes many works that are known from very<br />

few other sources, since it features works popular during the 1810s. In some cases these<br />

manuscripts have textual importance: they include, for example, some little known works<br />

by Rossini, such as Ciro in Babilonia, Adelaide di Borgogna, and Edoardo e Cristina. No<br />

one has yet made a complete study of these sources, so we cannot say very much about<br />

their significance as a group, but the Rossini operas, at least, have all been photocopied<br />

and are being used currently for textual work on these titles. 15<br />

In Russia, on the other hand, there has been relatively little study of Italian<br />

manuscripts, even though we know that several important Italian composers spent<br />

considerable periods of time working with Russian theaters, composers such as Giovanni<br />

Paisiello, Domenico Cimarosa, Alessandro Nini, and Giuseppe Verdi. In many cases<br />

important sources (some of them autograph) exist in the archives of the Marinsky Theater<br />

and in other Russian libraries. Indeed in the case of an opera first performed at the Marinsky<br />

Theater, such as Verdi’s La forza del destino of 1861-1862, the theater’s well-known<br />

tendency to have kept everything has proven invaluable. 16 On many of the performing<br />

parts we find entries in Verdi’s own hand, annotations written while he was rehearsing<br />

the music with individual singers. 17 It is only from these performing materials, for example,<br />

that we learn that the famous Prayer that forms part of the Scena Osteria in Act II was<br />

originally accompanied only by an arpeggiating clarinet and by pizzicato bass notes in the<br />

violoncelli and contrabbassi. In the printed edition of the opera and the autograph<br />

manuscript, however, there are also wind parts duplicating the choral material of the<br />

Prayer. Because of the nature of the parts, we know for certain that these doubling wind<br />

parts were added during the rehearsal period, presumably to keep singers in tune on<br />

what is a long passage with very little accompaniment. 18 This clearly has significant<br />

ramifications for today’s editions and for possible interpretations of them in contemporary<br />

performance.<br />

Unfortunately, few collections of this importance exist in Italy itself. That lack is<br />

in part a product of the conditions that prevailed in opera archives and of the many fires<br />

that destroyed whatever collections might have once existed, but it is also in part related<br />

to the nature of the social structures that grew up around the performance of opera in<br />

nineteenth-century Italy. One of the ways in which publishers succeeded in rendering<br />

their calling economically viable during this period was to make available performing<br />

materials exclusively by rental agreements, whereby theaters needed to work through<br />

publishers to obtain materials from which to perform. 19 During the first two decades of<br />

the nineteenth century Italian publishers did not even print entire vocal scores of operas.<br />

When it became clear that foreign publishers, particularly those working in Germany,<br />

Austria, and France, were dominating this market, Italian publishers soon began to catch<br />

up. While during the 1810s they published only favorite extracts from new operas, by the<br />

...........................................................................<br />

15 Let me thank Knud Arne Jürgesen, who facilitated my work with these sources.<br />

16 My use of the library was considerably assisted by the kind permissions obtained from the musical director,<br />

Valery Gergiev. I also wish to thank the staff of the Archive for its many kindnesses.<br />

17 Thus, Verdi himself added the revised cabaletta of Don Carlos’ third-act aria, “Urna fatal,” in the vocal part of<br />

Don Carlos. Originally the vocal part had only an earlier version of this cabaletta.<br />

18 The wind parts originally had rests in these measures. The doubling wind parts were added by means of<br />

collettes in the parts, some of which were pasted in on all four sides, so that it is impossible to read what was<br />

originally present, but some of which were pasted in on only two sides, so that it is simple to read the rests that<br />

were originally in the parts.<br />

19 The process is well described in Claudio Sartori, Casa Ricordi 1808-1858 (Ricordi: Milan, 1958).<br />

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23<br />

mid-1820s they had begun to compete with foreign publishers by producing complete<br />

vocal scores. One publisher in Rome, Ratti, Cencetti & Comp., which began life (as did<br />

many other publishers in Italy) as a copying house for manuscripts, decided to issue several<br />

Rossini operas in printed full scores, but they did a particularly poor job of it, producing<br />

scores that had all the worst character of Ratti and Cencetti’s manuscripts and none of<br />

the qualities we expect in fine printed full scores, and so their experiment did not catch<br />

on. 20 Thus, the way was left clear for the continued practice of publishers in Milan (Ricordi<br />

and Lucca), Florence (Cipriani and others), and Naples (Giuseppe, then Bernardo Girard,<br />

Clausetti, and Fabricatore) to print complete vocal scores and to rent complete manuscripts<br />

and performing materials.<br />

At first the performing materials were entirely handwritten. Later, when it became<br />

clear that it was more economically efficient to make some performing materials available<br />

in printed scores (particularly when multiple copies were needed for the strings or for the<br />

chorus), companies such as Ricordi began to produce selected parts in printed copies<br />

while continuing to make manuscript materials when only single parts were needed (an<br />

oboe part or one of the trombone parts). Only when some of Verdi’s works began to be<br />

demanded by many, many theaters at once (works such as Rigoletto, La traviata, or Un<br />

ballo in maschera) did Ricordi prepare entire sets of parts in printed editions. 21 They even<br />

tried, with La traviata, to produce a printed edition of the full score, but the resulting<br />

score was sufficiently defective that the company soon returned to the old-fashioned<br />

mode of providing full scores only in manuscript copies. 22 It was not until the mid-1880s,<br />

with Otello, that Ricordi began seriously to issue printed full scores, at first only for rental,<br />

then for sale.<br />

It is clear, however, that if this material was all expected to be returned to Ricordi<br />

after its use in a given season, ready to be rented to another opera house, the houses<br />

themselves would not have kept important archives. And, indeed, that was what Ricordi<br />

was counting upon: if opera houses did not maintain an archive, they would come back<br />

again and again to Ricordi to rent materials, and so the fortune of the editorial house and<br />

its directors was made. Whether Ricordi over time actually kept materials from the early<br />

or middle years of the nineteenth century is difficult to determine, since the Ricordi archive<br />

as we know it today is only a fragment of what it once was. As World War II got under way,<br />

the directors of Ricordi made the decision to transport the autograph manuscripts, of<br />

which the company owns many, from the archive to a safe destination outside the center<br />

of Milan. But the remainder of the archive was just sitting there; so, when American<br />

planes bombed the center of Milan in 1944, they destroyed the archive as it was then<br />

known. I knew personally some of the people who worked with Ricordi in those years and<br />

they report that items in the archive were “carbonized”: when the fires had dissipated,<br />

they could still tell what had been there, but when they touched a manuscript or a set of<br />

parts, it dissolved into dust. And so, nowhere in Italy (not even in the major collections of<br />

musical manuscripts in the conservatories of Naples, Milan, Rome, or Bologna) can one<br />

today normally locate sets of materials from the nineteenth century. 23<br />

...........................................................................<br />

20 For further information about this publisher, see Bianca Maria Antolini and Annalisa Bini, Editori e librai musicali<br />

a Roma nella prima metà dell’Ottocento (Torre d’Orfeo: Roma, 1988). See also the entry under Ratti and Cencetti<br />

in Bianca Maria Antolini, ed., Dizionario degli editori musicali italiani, 1750-1930 (Edizioni ETS: Pisa, 2000).<br />

21 The history can be followed very nicely in Luke Jensen, Giuseppe Verdi and Giovanni Ricordi, with Notes on<br />

Francesco Lucca: From “Oberto” to “La Traviata” (Garland Publishing Inc.: New York and London, 1989).<br />

22 This edition is discussed in detail by Fabrizio Della Seta in the Preface and Critical Commetnary to the critical<br />

edition of La traviata (see Note 7).<br />

23 There are important exceptions, of course. At the library of the Naples Conservatory, for example, are found<br />

manuscript parts from local churches, including the parts for Rossini’s Messa di Gloria, with important annotations<br />

by the composer. The piece is currently being edited by Martina Grempler.<br />

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24<br />

That is why collections outside Italy have proven so important. The archives of<br />

the Marinsky theater in St. Petersburg is one important location. Another is the Paris<br />

Opéra, which has always had a saving mentality (in English we talk about “pack rats” as<br />

saving everything, so that it is still possible today to examine performing materials from<br />

operas that were given at the Opéra from the eighteenth century and the nineteenth<br />

centuries. For some operas, such as Le comte Ory, for which practically no autograph<br />

manuscripts exist, the new critical edition of the opera depends on the original performing<br />

materials (especially on a score prepared by copyists at the Opéra, but also on the early<br />

performing parts, which must be carefully differentiated from later materials). 24 The same<br />

was true for Guillaume Tell and it will undoubtedly be true for the other operas by Rossini<br />

written for the Paris Opéra. For the Donizetti and Verdi operas prepared for the Opéra, we<br />

have – by and large – the original autograph manuscripts, so the materials at the Opéra´have<br />

slightly less importance, but they nonetheless continue to answer many questions that<br />

the autograph manuscripts leave unanswered (what some of these are I will discuss in a<br />

few moments).<br />

The scholar M. Elizabeth C. Bartlet, who died tragically of breast cancer a few<br />

years ago, knew more about French archives than anyone else in the world. She herself<br />

did critical editions of Jean-Philippe Rameau’s Platée and Rossini’s Guillaume Tell. 25 She<br />

also was certain that materials must have still existed from the archives of the Opéracomique<br />

and the Théâtre Italien, despite the fire that consumed much of the Italian theater<br />

in 1837. Beth, who was a very strong and persistent scholar, made such a pain-in-the-neck<br />

of herself during the 1970s that the staff of the Bibliothèque Nationale, Départment de la<br />

Musique, finally allowed her access to uncatalogued parts of the collection. It was there<br />

that Dr. Bartlet discovered the performing materials pertaining to Rossini’s Il viaggio a<br />

Reims, the first traces we had seen for this unknown and unpublished opera. From her<br />

discoveries, the effort to reconstruct that masterpiece of Rossini’s maturity took wing. 26<br />

Another significant collection of this kind existed for many years in the archives<br />

of Covent Garden in London. Although the theater often insisted that they had nothing, it<br />

wasn’t true: they had a remarkable collection of performing materials, now deposited at<br />

the British Library. The person who particularly insisted that these be made public was<br />

Will Crutchfield, who found important original Donizetti manuscripts in the archive. But<br />

the original performing parts of Verdi’s I masnadieri, which had its first performance at<br />

Covent Garden, were used extensively by Roberta Marvin when she prepared the critical<br />

edition of that opera. These parts showed, for example, that the original prima donna,<br />

Jenny Lind, ornamented the repetition of the cabaletta theme so extensively that it was<br />

necessary to cancel Verdi’s instrumental parts doubling the melody for that repetition.<br />

Since the opera had been performed at Covent Garden only in that original season, there<br />

was no question about the proper dating of these annotations. 27<br />

Still, with all of these discoveries, nothing prepared me for what I would find in<br />

the conservatory library at Rio de Janeiro. Although some of the materials do come from<br />

...........................................................................<br />

24 This edition is being prepared by Damien Colas for Works of Gioachino Rossini (Bärenreiter-Verlag: Kassel,<br />

etc., in preparation). It is hoped that the Colas edition, which has already been successfully performed in Zürich,<br />

with Cecilia Bartoli as the Comtesse Adele, will be in print before the end of 2011.<br />

25 The editions appeared, respectively, in the Opera Omnia of Jean-Philipp Rameau, Series 4, vol. 10 (Bonneuil-<br />

Matours, Socieìteì Jean-Philippe Rameau: France, 2005) and the Edizione critica delle opere di Gioachino Rossini,<br />

Series I, vol. 39 (Fondazione Rossini: Pesaro, 1992).<br />

26 For further information about the discovery and reconstruction of Il viaggio a Reims, see Divas and Scholars,<br />

152-8. A critical edition of the opera, Janet Johnson, ed., was published as Series I, vol. 35 in the Edizione critica<br />

delle opere di Gioachino Rossini (Fondazione Rossini: Pesaro, 1999).<br />

27 This history is described in the Preface to the critical edition of I masnadieri, Roberta Montemorra Marvin, ed.<br />

(see Note 9).<br />

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25<br />

the Ricordi archives and should therefore have been returned to the company after<br />

performances in Rio had taken place, the city was far enough away from Milan as to make<br />

it difficult if not impossible for the Milanese publisher to pursue any action against an<br />

opera house in Rio. And most materials in the archive do not come from Milan at all, but<br />

seem to have been acquired from copying houses and publishers in Naples, companies<br />

which may have had less control over their materials than the Milanese publisher tried, at<br />

least, to exert.<br />

I had only three days to examine the collection, so this is very much a preliminary<br />

report, but suffice it to say that I assembled over forty pages of notes in my computer,<br />

enough to give me a fairly good idea of what is to be found in this collection, which has<br />

been expertly catalogued through the efforts of the director of the library, Dolores Brandão,<br />

and its cataloguer, Maria Luisa Nery de Carvalho. 28 Still, a preliminary report is better than<br />

none, and I hope it will be useful for all of you to know something about the treasures<br />

here in Rio. I know it will be useful for those actively involved in making critical editions of<br />

operas that have not yet been published in the collected works of Rossini and Verdi, not to<br />

mention Donizetti and Bellini.<br />

Let me begin by discussing the complete manuscripts in the collection. None of<br />

them seems to be very early. I do not know the history of these manuscripts except that<br />

they were in a theatrical archive, from whence they came into the possession of the<br />

Conservatory, which already in the nineteenth century became the Instituto Nacional de<br />

Música. 29 They are now housed in the Biblioteca Alberto Nepomuceno of the Federal<br />

University of Rio de Janeiro . We can judge the dating of these complete manuscripts by<br />

those situations in which the names of copyists or publishing houses are included.<br />

Unfortunately, in most cases these indications are found on labels pasted into the scores,<br />

which is a less reliable kind of information than those occasions in which copyists identified<br />

themselves directly by annotating manuscripts in their own handwriting. Still, any<br />

manuscript that is identified with a label specifying that it is from the publishing house of<br />

“Giovanni Ricordi” must date from before 1854, the date of Giovanni’s death. At that<br />

point the company passed into the hands of his son Tito Ricordi (and it was thereafter,<br />

until Tito’s death resulted in the assumption of power by his son, Giulio, known as “Tito di<br />

Giovanni Ricordi”). Thus, the mostly complete manuscript copy of Verdi’s Ernani found in<br />

the Rio collection (it lacks Act II) is identified on a pasted label as coming from ‘Tito di<br />

Giovanni Ricordi,” and the first indicated performance for which the manuscript was used,<br />

written by hand on the score, was in Turin in 1861. Several of the printed performance<br />

parts, however, associated with this title, still bear “Giovanni Ricordi” indications, so it<br />

seems likely that Tito continued to use materials that his father had had prepared earlier.<br />

Whether that means that the score is earlier than 1854 cannot yet be determined. There<br />

are also important groups of scores from a competitor of Ricordi’s in Milan, Francesco<br />

Lucca, whose business flourished from the 1840s throughout the 1860s. He provided the<br />

score of Verdi’s Macbeth, a fine manuscript of the first (1847) version of the opera.<br />

Likewise, for the many complete manuscripts prepared in Naples, we can be<br />

pretty sure that none of these sources date from the 1820s, because none is identified as<br />

being associated with a publisher of this period, such as Giuseppe Girard. Only his son’s<br />

...........................................................................<br />

28 To both of them my heartfelt thanks for all their kindnesses in making the collection available to me over three<br />

long days, including a Saturday and a Sunday, when the library officially should have been closed. Equally I wish<br />

to thank Maria Alice Volpe for having organized this conference, having invited me to participate, and having<br />

assisted me in a host of ways.<br />

29 Benjamin Walton (see Note 3) seems to be primarily interested in very early musical sources, of which Rio has<br />

few. This, however, seems to me an error: we should be grateful for the sources Rio does have and try to<br />

understand what they can tell us.<br />

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26<br />

name is found, Bernardo Girard, as are the names of other companies that did not exist in<br />

the 1820s, such as Clausetti (who ultimately became a partner of Ricordi’s) or Fabricatore.<br />

The Fratelli Fabricatore and Bernardo Girard were important sources for manuscripts and<br />

parts in Rio, and many scores (such as several of the music for Giovanni Pacini) have their<br />

labels, often with double addresses, such as the following from Girard: “Deposito per la<br />

vendita delle proprie edizioni, e di quelle di fondo estero, Largo S. Ferdinando n. 49, /<br />

Copisteria e Archivio di Spartiti manoscritti per uso di rappresentazione, Largo del Castello<br />

n. 73,” clearly differentiating the publisher’s activities as a purveyor of printed editions<br />

and of copies for performance.<br />

Just by way of indicating something of the scope of the collection, it should be<br />

said that there exist some thirteen manuscripts of operas (either complete or of at least a<br />

full act) by Rossini. Not all are usable. There are manuscripts, for example, of Act I of one<br />

of Rossini’s early operas (from 1812), Ciro in Babilonia and of practically the whole of his<br />

later, largely pastiche opera, Edoardo e Cristina, of which autograph manuscripts do not<br />

seem to survive, and so these sources are potentially very useful. But they are in such very<br />

bad shape (worms, in particular, seem to have delighted in eating their paper and paste)<br />

that it is hard to know how it would be possible to employ them effectively. <strong>Digital</strong> copies<br />

could help: work with the originals would clearly be impossible, for every turn of a page<br />

would destroy more of the volumes. 30<br />

While these scores do not always provide significant information for textual<br />

purposes, they do tell important stories. We know, for example, that the censors were not<br />

happy with a chorus in L’Italiana in Algeri of 1813. It was hard enough to stomach Isabella’s<br />

Rondò, “Pensa alla patria,” which was often changed to “Pensa allo sposo” or “Pensa allo<br />

scampo,” but what was truly unacceptable was the text of the preceding chorus, where<br />

Rossini set the text “Quanto vaglian gl’Italiani, nel cimento si vedrà.” In the Rio manuscript<br />

this text has been modified to “Che l’ardir non torna vano nel cimento si vedrà.” The idea<br />

of what Italians are worth disappears altogether. This manuscript is actually entitled not<br />

L’Italiana in Algeri but instead Il naufragio felice, a title in which the opera was known in<br />

Naples. This comes as no surprise since the manuscript was prepared in the copy-house<br />

of “B. Girard,” as written into the source. (Other operas exist in versions modified for<br />

Naples: one source in Rio for Verdi’s Ernani is known, for example, under its Neapolitan<br />

name, as Elvira d’Aragona). There are many indications, though, that the copy of L’Italiana<br />

in Algeri represents a fairly late version of the opera. Rossini wrote L’Italiana in Algeri<br />

without trombones (he did not start using three trombones in his operas until several<br />

years later, in Naples), yet this copy of his score has parts for three trombones. If we look<br />

at copies of the opera found in the library of the Naples Conservatory, we find that some<br />

later copies also have added parts for three trombones, but early copies have no such<br />

parts. In short, this is a dead give-away that the manuscript is a late copy, certainly no<br />

earlier than the 1830s.<br />

I was not surprised to see that the copies of French operas written by Italian<br />

composers in the Rio collection are all to be found in Italian translation. We knew that<br />

these translations were widely used by theaters throughout the world. What surprised<br />

me, on the other hand, was that some of the translations did not agree with what I have<br />

always taken to be the “standard” translations (those preserved in the Ricordi printed<br />

editions and performed continuously until our own time). Thus, even though the translation<br />

of Guillaume Tell as Guglielmo Tell comes from the workshop of Giovanni Ricordi, the last<br />

words of Tell’s response to the Fisherman’s initial song (“Il chante et l’Hélvétie / Pleure,<br />

...........................................................................<br />

30 The library is very kindly providing me with just such digital copies, which allow access to the manuscripts as<br />

they exist today and do not create further damage with each use.<br />

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27<br />

pleure sa liberté”) is rendered not as in the perfectly horrible standard Italian translation<br />

(“Ah-i, quanto piangerà”), which was developed to avoid the word ‘liberté,” but with the<br />

verse “Pasce, pasce una speme il cor”: hardly very elegant, it at least avoids the terrible<br />

“Ah-i” of the standard translation. The Rio manuscript, therefore, is not only important in<br />

itself, but it also raises again the whole issue of how these operas were performed around<br />

the world (and there are complete manuscripts of Rossini’s Moïse and Donizetti’s Les<br />

martyrs, La favorite, and Dom Sébastien, all in Italian, that will require similar study). 31<br />

Add to what I have already mentioned, five complete manuscripts to operas by<br />

Bellini, nineteen to operas by Donizetti, seven of Mercadante’s most mature operas, eleven<br />

of Pacini’s operas, and several operas by Verdi, especially works from the 1840s, and you<br />

can get a hint at the importance of the Rio collection of complete manuscripts, which<br />

rivals most other collections in the world, including in Italy. Remember, too, that many of<br />

these manuscripts contain handwritten annotations, for example, of the ornamentation<br />

employed by singers; as such they contribute in a fundamental way to our knowledge of<br />

nineteenth-century performance practice.<br />

But what is truly remarkable in the Rio collection is not even the complete manuscripts.<br />

It is the evidence provided by the performance materials that accompanied the<br />

manuscripts. To find performance materials anywhere is rare enough (as I said before, we<br />

are fortunate that such collections as those of the Marinsky Theater in St. Petersburg, the<br />

Paris Opéra, and Covent Garden still exist). In Italy such materials are almost impossible<br />

to find. (One exception is the Teatro La Fenice of Venice, which unusually and uniquely<br />

preserved the complete original performing materials for Semiramide. 32 ) There is practically<br />

no opera represented by a complete score in Rio that does not have associated with it a<br />

full set of parts. And these parts have, most of the time, been annotated with indications<br />

of cuts, modifications, etc. That strongly suggests that the operas were actually performed<br />

from this material before it was deposited in the library.<br />

Now, why should this be so important? For operas for which we have complete<br />

manuscripts or even autographs, why should we need also to have access to parts used by<br />

the musicians? Those who have worked preparing critical editions of this repertory know<br />

the answer. While full scores tell us a great deal, they do not tell us everything we (and the<br />

musicians for whom we work) need to know. One simple example should make this clear.<br />

Normally each individual instrument is not given a separate staff in the complete manuscripts.<br />

The two flutes, or the flute and the ottavino, are placed on a single staff; the two<br />

oboes are on a single staff; the three trombones are on a single staff. Sometimes composers<br />

are explicit: they will mark a line “Solo” or “a 2” or even “a 3” in order to communicate specifically<br />

their intentions. More often than not, however, they leave us guessing.<br />

Now, it is sometimes not hard to guess what they have in mind. If the clarinets<br />

are doubling the oboes, there is one melodic line on each staff, the dynamic level is “piano,”<br />

and on the oboe staff the composer has written “Solo,” it seems likely that only Ob I should<br />

be playing and that, even if nothing is said about the clarinets, Cl I alone should play. But<br />

unfortunately matters are not always so simple. We know, for example, that the Italians<br />

tended to use three similar trombones, whereas the French preferred a clearer<br />

...........................................................................<br />

31 I have discussed the problem of translations in Chapter 11 of Divas and Scholars, “Words and Music: Texts and<br />

Translations”, p. 364-406.<br />

32 These turned out to be fundamental for work on the critical edition of the opera, Philip Gossett and Alberto<br />

Zedda, eds., Series I, vol. 34 in the Edizione critica delle opere di Gioachino Rossini (Fondazione Rossini: Pesaro,<br />

2001). Not only did the parts contain information about instruments not included in Rossini’s autograph<br />

manuscript, but found among them was the autograph of Rossini’s spartitino for the opera, a manuscript<br />

containing many of the orchestral parts there was simply insufficient space for the composer to include in the<br />

basic autograph manuscript. I wish to thank, in particular, Patricia Brauner and Mauro Bucarelli for having brought<br />

this spartitino to my attention.<br />

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28<br />

differentiation of three quite independent instruments with different ranges. This works fine<br />

when there are three notes on the staff, and we assign them to Trn I, Trn II, and Trn III accordingly,<br />

but what if there are only two notes on the staff or only one? How many instruments<br />

should play and what parts should they play. Silence. The full autograph allows us to<br />

guess, but it doesn’t tell us explicitly what to do. Here the performance material becomes<br />

crucial. If the notes are found in a part, at least the musician or editor or publisher who<br />

prepared the material believed that the note so indicated should be played by that part<br />

(and normally separate parts were prepared for each oboe or the two clarinets were<br />

placed on two separate staves, or there were separate parts for Trns I and II together and<br />

for Trn III, etc.). So, instead of simply guessing who should play what note, we have at least<br />

some contemporary evidence about the matter.<br />

This proved fundamental in our work with Semiramide, for example, an opera<br />

that uses four separate horns, but in which the autograph is not always clear about what<br />

each part should play. In some cases there were so many parts that not even the larger<br />

paper Rossini used for his score was adequate to contain all this information, so that<br />

Rossini had to write additional parts on separate “spartitini,” as we call them, some of<br />

which were subsequently lost. Thus, it is only from the performance material that we can<br />

reconstruct what actually was performed at the theater.<br />

I have emphasized the problem of the trombones because the handling of Trn II<br />

is particularly tricky. That Trn I should play the upper note of, say, an octave, is clear, just as<br />

Trn III should presumably play the lower note. But what should Trn II do? Should it play<br />

the upper part, the lower part, or simply drop out? What we know from contemporary<br />

evidence is that it did none of the above: it tended to jump around, playing notes that<br />

were comfortably within its register. And so on one octave Trn II plays with Trn I, but on<br />

the next octave it may be playing with Trn III. Thus, our critical editions sometimes seem<br />

to have the peculiar appearance of I and II playing together on the first and third beats of<br />

the measure and II and III playing together on the second and fourth beats: if we do<br />

something of this kind, it is because that is the information we gather from qualified<br />

performance materials of the period.<br />

The Rio parts, of course, cannot pretend to have been used for the earliest<br />

performances of any of these operas, so that we cannot be certain that what they reveal<br />

is what the composer may have had in mind. Yet, they are closer to this reality than pure<br />

guesswork on the part of the editors. Thus, in many cases they will prove invaluable to<br />

those who are preparing critical editions of the repertory of nineteenth-century Italian<br />

opera. I would not want to do a critical edition of Verdi’s I Lombardi, to take one example,<br />

without consulting closely the materials in the Rio collection, some of which stems from<br />

Giovanni Ricordi in Milan (hence pre-1854) and some of which comes from Ricordi’s<br />

Neapolitan colleague, Clausetti.<br />

I could go on about other uncertainties in the autograph manuscripts (ambiguities<br />

about signs of dynamic level, about the length of slurs, etc.) for which performing materials<br />

offer additional information, but I think the example I have given is clear enough.<br />

There is yet another way in which these materials prove fundamental. Ricordi<br />

and other publishers, faced with the growing popularity of Verdi’s operas, in particular,<br />

began to change their procedures. First, instead of preparing all performance materials<br />

by hand, they began to print parts where multiple copies were needed for a performance,<br />

especially choral parts and string parts. But finding this material is a nightmare. There are<br />

a few collections with some of it, but frequently we have had to admit defeat: no copies<br />

had been located in any library or theater collection of parts known before the publication<br />

of the edition. From now on such judgments cannot be made without consulting the Rio<br />

collection, which has many printed parts: for I Lombardi, for example, there are printed<br />

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29<br />

choral parts and string parts. Later, faced with performances of Verdi’s operas in many<br />

theaters simultaneously, Ricordi began to print parts for every instrument. Some of these<br />

parts are found in the Rio collection. For La traviata, for example, there are printed choral<br />

parts, as well as printed orchestral parts for arpa, triangolo, and nacchere e tamburelli.<br />

It is surprising, however, that in some cases editors preferred to avoid the Ricordi<br />

printed parts and continued to provide manuscript parts. This is the case with Un ballo in<br />

maschera of 1859, for which Ricordi prepared a complete set of printed parts (one set<br />

was purchased many years ago by the New York collector James Fuld, who—on his death—<br />

willed it to the Pierpont Morgan Library). 33 So it came as a surprise to find in the Rio<br />

collection not only a complete manuscript of Un ballo in maschera, as the opera was<br />

known after 1859, but also a relatively complete set of manuscript performance materials<br />

(bearing at one point the date of April 1864). I will certainly want the editors of this volume,<br />

which has yet to be published in The Works of Giuseppe Verdi, to consult not only the<br />

printed Ricordi parts, but also these Rio manuscript parts, even if we have no certain<br />

indication of their provenance.<br />

What I have written thus far only begins to suggest the riches of this collection.<br />

I was particularly surprised to find a series of parts for La pie voleuse. This is a version of<br />

Rossini’s two act semiserious opera La gazza ladra of the carnival season of 1817, first<br />

performed at the Teatro alla Scala of Milan. But the opera soon returned during the 1820s<br />

to Paris, from whence the subject first became known as a play by the name of La pie<br />

voleuse, as an opéra-comique, with music by Rossini, but with the musical numbers<br />

connected by spoken dialogue. This is the version represented by these parts, which were<br />

prepared through the “Magasin de Musique / de M. r / D’Harmeville / Directeur du 15. e<br />

Arrondissement,” that is, they are Parisian parts that somehow made their way to Rio in a<br />

version that was certainly never performed in Rio, but may nonetheless represent the<br />

earliest single group of parts in the Rio collection.<br />

Let me report finally on the wonderful band parts found among material in Rio. We<br />

know well that from the late 1810s through the 1850s composers tended to write music<br />

for a “banda sul palco.” The band parts in the Rio collection indicate without doubt that<br />

the banda really was sul palco, as other sources have hinted. 34 The band parts for Verdi’s I<br />

Lombardi are small in format, just the size necessary to attach them to an instrument<br />

which is being walked across the stage.<br />

...........................................................................<br />

33 Before his death, Mr. Fuld kindly made a photocopy of the entire set of parts available to the editors of the<br />

forthcoming critical edition of Un ballo in maschera, Ilaria Narici and Andreas Giger.<br />

34 Particularly clear is a manuscript associated with costuming at the Théâtre Italien of Paris for performances<br />

there of Rossini’s La donna del lago in 1824, which includes costumes for members of the band. This manuscript<br />

is discussed in the Preface to the critical edition of the opera, ed. H. Colin Slim in the Edizione critica delle opera<br />

di Gioachino Rossiini (Fondazione Rossini: Pesaro, 1990), xxvii-xxx.<br />

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31<br />

Fantasias operísticas italianas<br />

na América Latina *<br />

Benjamin Walton<br />

Universidade de Cambridge<br />

O assunto ópera nas Américas surgiu várias vezes nas páginas do Allgemeine<br />

musikalische Zeitung, durante meados da década de 1830; e, em janeiro de 1836, o<br />

correspondente da revista Livorno apresentou uma atualização. Ele começou relembrando<br />

algumas viagens anteriores pela América, principalmente a de Lorenzo da Ponte, então<br />

em meados dos seus 80 anos de idade, a Nova York, e a viagem de Manuel García e família<br />

para os Estados Unidos e México. Também mencionou uma então recente visita a<br />

Milão por um empresário mexicano para contratar um contralto, um baixo e um diretor<br />

musical. Porém, o foco principal do relatório era uma lista detalhada de toda uma companhia<br />

que recentemente partira para Havana. Aí se incluíam uma prima donna soprano,<br />

um primo contralto que também era primeiro músico, mais dois primi contralti, duas<br />

seconde donne, sete primi tenori, dois primi bassi cantanti, um primo basso generico, uma<br />

série de primi e bassi secondi, três coristas, um diretor de música, um diretor de coros, um<br />

copista e ponto, ainda os principais membros de uma orquestra completa: músicos de<br />

cordas e de sopro, um trompetista e um harpista. Havia ainda um suplemento completo<br />

de bailarinas e mímicos, com seus mestres de dança, assim como pintor, maquinista, alfaiates<br />

de ambos os sexos, um médico e um cozinheiro. Todos eram italianos arregimentados<br />

durante o verão anterior em Milão e Bolonha por um empresário de Berlim, Franz Brichta;<br />

a companhia completa totalizava 70 pessoas. A epidemia da cólera atingiu a região enquanto<br />

aguardavam o navio em Livorno. Quando da partida, somavam 67 membros; perderam<br />

um dos tenores, um alfaiate e o infortunado médico (“Theatralische Sommer-Stagione”,<br />

1836, colunas 63-64).<br />

“Se levarmos em consideração”, concluiu o relatório, “que ano após ano, a Itália<br />

fornece cantores para não apenas os seus inúmeros teatros, mas também os de Lisboa,<br />

Madrid, Barcelona, Cádiz, Sevilha, Porto, as ilhas de Maiorca e a América, muitos dos<br />

quais também cantam em vários teatros na Inglaterra, França e Alemanha, e que ainda há<br />

um grande número deles sem qualquer compromisso, temos de nos maravilhar com essa<br />

imensa assembleia; mas, claro, nos campos de Espéria” – isto é, na Itália – “todos cantam,<br />

mesmo quando falam!” (col. 64).<br />

De certa forma, isso não era novidade: já no século XVIII a ópera italiana fora apresentada<br />

em toda a Europa e também desde o Vice-Reino de Lima até a corte Imperial da China,<br />

onde o imperador Qianlong teria sido tão seduzido por La buona figliuola, de Piccinni, que<br />

ele arrumou um grupo de músicos chineses especialmente treinados para executar essa obra<br />

em um teatro especialmente construído para isso (Ginguené, 1800, p. 10-11). 1 O espanto da<br />

...........................................................................<br />

* A pedido do autor, o texto está aqui publicado na tradução para o português, realizada por Maria Alice Volpe<br />

e Régis Duprat.<br />

1 “Esse príncipe havia se emocionado deliciosamente ao constituir uma trupe de músicos incumbidos apenas de<br />

tocar a música dessa peça; pois ele havia feito construir por hábeis operários do país uma espécie de teatro, e<br />

que sobre as muralhas ele havia feito pintar todas as cenas de La Cecchina, a fim de poder vê-la e ouvi-la ao<br />

mesmo tempo”. Tradução livre, do original “Ce prince en avait été si délicieusement ému, qu’il avait établi une<br />

troupe de musiciens chargés seulement de jouer la musique de cette pièce; qu’enfin il avait fait bâtir par d’habiles<br />

ouvriers du pays une espèce de théâtre, et que sur les murailles il avait fait peindre toutes les scènes de la<br />

Cecchina, afin de pouvoir la voir et l’entendre à la fois”. Sou grato a David Irving por chamar minha atenção para<br />

esta referência. Sobre a ópera em Lima no século XVIII, ver Villena, 1945 e Estenssoro, 1989.<br />

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32<br />

retórica do correspondente de AMZ, diante da disseminação de cantores italianos em<br />

toda a Europa e através do Atlântico, sinaliza a possibilidade de que o tipo de viagem<br />

planejada para Havana em 1830 foi diferente de tudo o que havia ocorrido antes; e mesmo<br />

do ponto de vista do historiador posterior, tal evento poderia marcar o verdadeiro início<br />

da globalização da ópera italiana.<br />

Tal afirmação pode parecer desnecessariamente exagerada. Afinal, deixando de<br />

lado esse bando de cantores e dançarinos vinculados a Cuba, muitas óperas fora da Europa<br />

nos anos anteriores a 1850 envolviam um número muito menor de intérpretes –<br />

frequentemente pequeno para realizar um bom trabalho – em produções improvisadas,<br />

em teatros inadequados. Donna Gabaccia (2000, p. 43) estima que, enquanto artistas da<br />

“arte elevada”, ou seja, cantores de ópera e outros músicos, representaram a mais alta<br />

categoria da emigração italiana de elite no início do século XIX, apenas cerca de 2% deles<br />

chegou às Américas. 2 Trata-se de um número suficientemente pequeno, de fato, que<br />

pode ser quase calculável ou pelo menos rastreável pelos nomes dos empresários ou dos<br />

cantores principais de cada companhia. É o caso do grupo que acompanhou o baixo<br />

rossiniano Filippo Galli para o México nos anos posteriores a Garcías, por exemplo, ou a<br />

companhia de Giovanni Montresor em Nova York e Filadélfia, no mesmo período, recrutada<br />

por Da Ponte que acabou por unir forças com uma companhia Brichta anterior em Havana. 3<br />

Mais ao sul, quase tudo irradiava a partir do ponto focal do Rio de Janeiro, o<br />

centro da ópera da América do Sul desde que a corte portuguesa se transferira para lá fugindo<br />

de Napoleão, em 1808, e construiu uma casa de ópera como réplica do São Carlos<br />

de Lisboa. Foi do Rio que o espanhol Pablo Rosquellas reuniu uma companhia para apresentar<br />

as primeiras óperas italianas em Buenos Aires, em 1825 (Gesualdo, 1962; Bourligueux,<br />

1992). E foi também do Rio que, alguns anos mais tarde, outra companhia, liderada<br />

por Domenico Pizzoni, iniciaria sua circunavegação do globo, trazendo a ópera italiana<br />

para as recém-independentes Montevidéu, Santiago e Lima, perfazendo a rota nesta sequência,<br />

e, eventualmente, alcançando lugares além das Américas ainda não conquistados<br />

pela ópera na primeira metade daquele século. 4 Significativo começo, sem dúvida, mas<br />

nada comparável à explosão da ópera e casas de ópera na Europa, inclusive na própria<br />

Itália.<br />

A ideia de globalização, entretanto, traz em seu bojo um conjunto de ideias sobre<br />

a liberalização do comércio e redes de comunicação que pode parecer envolver a ópera<br />

apenas tangencialmente. No entanto, é notável que em sua recente pesquisa panorâmica<br />

do século XIX, o historiador da globalização Jürgen Osterhammel (2009, p. 28) não só<br />

destaque a ópera como a forma de arte característica da época, mas também chame a<br />

atenção para o fato de que, em suas palavras, “a ópera globalizou-se precocemente”. Essa<br />

precocidade é uma qualidade relativa, é claro, e no debate em curso sobre os princípios<br />

da globalização está bem delineada nos títulos dos capítulos centrais de um livro recente<br />

sobre “A globalização na história do mundo” por Peter N. Stearns (2010): “1000 da era<br />

cristã como o ponto de viragem: o nascimento da globalização?”; “1500 como o ponto de<br />

viragem: o nascimento da globalização?”, “a década de 1850 como o ponto de viragem: o<br />

nascimento da globalização?”<br />

...........................................................................<br />

2 Tal figura é inevitavelmente aproximada, dada a dificuldade de coleta de dados; a principal fonte de Gabbaccia<br />

provém das biografias em Imperatori, 1956.<br />

3 Sobre a turnê Galli para o México, 1831-1835, ver Vogeley, 1996 e Reyes de la Maza, 1969. Sobre Montresor e<br />

Brichta, ver Preston, 1993, cap. 3.<br />

4 A companhia não executou nenhuma ópera completa em Montevidéu, mas ofereceu trechos de óperas de<br />

Rossini, em 1829 e 1830 (ver Ayestarán, 1953, p. 303 e ss.), pois, em seguida, apareceram em Santiago, em<br />

1830-1831, e em Lima, em 1831-1832, antes de ir para Macau, na China.<br />

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33<br />

Fiquemos com o último desses referenciais, por razões óbvias – o que nos termos<br />

de Stearns não seria de modo algum muito recuado temporalmente. A ópera posterior a<br />

1850 se encaixa suficientemente bem no relato da crescente integração global facilitada<br />

pelo desenvolvimento dos meios de transporte, especialmente os navios a vapor, e pela<br />

comunicação rápida possibilitada pelo telégrafo. Contudo, em resposta à observação de<br />

Osterhammel, quero considerar a possibilidade de que as viagens das décadas de 1820,<br />

1830 e 1840 criaram uma ideia antecipada de ópera global, baseada mormente no que<br />

Roland Robertson chamou de “uma intensificação da consciência do mundo como um<br />

todo” (Robertson, 1992, p. 8). Essa variante anterior, eu diria tão importante e merecedora<br />

de tanta atenção quanto o circuito de ópera movido pelos navios a vapor que se desenvolveria<br />

mais tarde no mesmo século; na verdade é uma parte geradora da história posterior.<br />

Nesse contexto, a viagem daquela companhia de ópera, robustamente composta<br />

por 70 membros, para Havana não se revela apenas algo maravilhoso por si só; tão notável<br />

foi o fato que a turnê foi relatada em um dos principais periódicos alemães de música<br />

como parte de uma excursão de “ópera italiana”. O jornalismo ajudou a mapear e, assim,<br />

dar existência ao crescente âmbito da ópera na medida em que ela se disseminou ao<br />

redor do globo, de tal modo que as estatísticas sobre o número de intérpretes deixam evidentemente<br />

de indicar. E, como resultado, a própria ópera italiana é transformada, ao receber<br />

um novo conjunto de contextos e significados como uma ideia global.<br />

Aplicar a concepção de ópera global a 20 ou 30 anos atrás, é mover a sua origem<br />

da modernidade tecnológica do navio a vapor para a modernidade mais cataclísmica das<br />

guerras napoleônicas e suas consequências, quer sob a forma de chegada da corte portuguesa<br />

ao Rio ou as guerras de independência que ocorreram em diversas partes do<br />

continente americano. Tal reformulação serve ainda para separar decisivamente a ópera<br />

globalizada das grandes levas de emigração italiana para as Américas, que ocorrerão no<br />

final do século: mais de sete milhões de pessoas, entre 1876 e 1914. Por essa época, e<br />

paralelamente ao seu apelo tradicional de elite, a ópera italiana tinha garantido um contexto<br />

já preparado da diáspora italiana, dulcificado pela nostalgia da pátria. Estimativas<br />

sobre a emigração na primeira metade do século são mais difíceis de encontrar, mas no<br />

caso da América do Sul, os italianos foram, sem dúvida, superados numericamente por<br />

grupos de outras nacionalidades, o que resulta em que a ópera italiana durante as décadas<br />

de 1820 e 1830 certamente não era um produto ligado a qualquer concepção de origem<br />

nacional e muito menos a um público definido nacionalmente.<br />

Voltando-se para um caso específico pode-se esclarecer esse ponto: Woodbine<br />

Parish, o britânico encarregado dos negócios em Buenos Aires no momento da primeira<br />

mania operática naquela cidade, durante os últimos anos da década de 1820, estimava<br />

que, em 1832, de uma população total de 81 mil habitantes na cidade, 15 a 20 mil eram<br />

estrangeiros – vale dizer, da Europa ou da América do Norte – e que dois terços destes<br />

eram britânicos e franceses (1839, p. 30). 5 Como resultado, a ópera italiana – cantada por<br />

uma mistura de cantores italianos, espanhóis e argentinos – era oferecida para uma<br />

audiência visivelmente composta pela elite local governante e pelos ricos comerciantes<br />

do norte da Europa. Para esses grupos, a ópera se denotava tão europeia – uma reminiscência<br />

da ópera em Paris ou Londres para os comerciantes e, de uma forma diferente,<br />

para os argentinos também – quanto qualquer outro produto do norte da Europa a ser<br />

emparelhado com demais bens importados de luxo, moda e misteres da época. “As pessoas<br />

de Buenos Aires”, escreveu um viajante, “estão fazendo rápidos avanços ao copiar os bri-<br />

...........................................................................<br />

5 Sobre uma história mais ampla da emigração italiana para a Argentina, ver Devoto, 2006.<br />

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34<br />

tânicos, tanto no seu mobiliário e na decoração de suas casas como nas atrações da mesa”<br />

(Andrews, 1827, vol. 1, p. 19). Ao assistir à ópera, o mesmo autor observou isso como “o<br />

espelho, em cada país, da moda e do gosto em voga” (p. 17), e os públicos locais em Buenos<br />

Aires parecem tê-lo visto do mesmo modo: um espelho faceado firmemente para o<br />

Nordeste, através do Atlântico.<br />

Sem dúvida, é tão problemático generalizar sobre esse público de Buenos Aires<br />

como qualquer outro. Entretanto, é evidente que a ópera foi tomando forma ali, como no<br />

resto do continente, em uma nova esfera pública, após a independência, promovida pela<br />

explosão da imprensa jornalística. 6 E nesse contexto a ópera servia tipicamente como<br />

marca não apenas da “civilização” como também mais especificamente de um conjunto<br />

alternativo de valores estéticos e éticos ao domínio espanhol anterior. A alta cultura da<br />

ópera italiana poderia, portanto, ser colocada em clara oposição às sainetes e tonadillas<br />

espanholas, herdadas de épocas anteriores, que foram repetidamente condenadas pelo<br />

jornal governista, o Argos de Buenos Aires, como indecentes e maçantes (ver, por exemplo,<br />

a crítica teatral de 12 de outubro de 1825). Como resultado, a ópera tornou-se circunscrita<br />

a certos quadrantes dentro de uma busca mais ampla de civilização europeia não espanhola,<br />

de maneira a tornar praticamente irrelevante qualquer qualidade especificamente<br />

italiana.<br />

As primeiras representações de Rossini em Buenos Aires, por exemplo, foram<br />

em concerto, em outubro de 1822, pelo adolescente compositor argentino Juan Pedro de<br />

Esnaola, recém-retornado de Paris; e seu desempenho foi comentado na Argos (5 de<br />

outubro de 1822) nos seguintes termos:<br />

Todos os presentes deram uma prova indiscutível de seu bom gosto no prazer e<br />

profundo silêncio com que ouviram as diferentes peças sublimes de música vocal<br />

e instrumental. O auditório aplaudiu particularmente o jovem D. Juan Pedro<br />

Esnaola pelo brilho de sua execução de várias composições difíceis para voz e<br />

piano. 7<br />

Em outras palavras, as peças importavam menos que a negociação de dificuldade<br />

por um premiado músico local e a exibição de decoro da audiência. Se isso também soa<br />

como se a revista tivesse sido escrita com olhar para além do público local, isso é confirmado<br />

pelos objetivos proferidos pela organização responsável por Argos, a Sociedade Literária<br />

de Buenos Aires: “dar conhecimento às nações estrangeiras do estado do país e de seu progresso,<br />

difundir a ilustração e organizar a opinião” (apud Shumway, 1991, p. 87).<br />

Abordei em outro estudo como esses primeiros anos da ópera italiana em Buenos<br />

Aires se ajustam ao grandiloquente sonho de civilização do primeiro presidente do país,<br />

Bernardino Rivadavia. De maior interesse aqui, entretanto, é a maneira com que a recepção<br />

da ópera italiana se tornou partícipe ao projeto de levar a cidade a uma fantasia de<br />

civilização global e, ao mesmo tempo, deixou qualquer ideia de “Itália” mais ou menos<br />

velada. O mesmo pensamento pode ser reformulado de uma maneira diferente: na<br />

...........................................................................<br />

6 Discordâncias sobre o papel do jornalismo impresso na formação da esfera pública na pós-independência da<br />

América do Sul continuam a ressoar na esteira de Comunidades Imaginadas, de Benedict Anderson; ver, por<br />

exemplo, Uribe-Uran, 2000 e Guerra, 2003. No caso da ópera, no entanto, é difícil separar a chegada das companhias<br />

itinerantes da circulação dos jornais da pós-independência, tanto dentro como além dos centros urbanos<br />

específicos.<br />

7 “Todos los concurentes dieron pruebas indudables de su buen gusto en el placer y profundo silencio con que<br />

escucharon diferentes piezas sublimes de música vocal y instrumental. El auditorio aplaudió particularmente al<br />

jóven D. Juan Pedro Esnaola por la brillantez con que desempeñó varias composiciones difíciles de canto y piano”,<br />

em tradução livre.<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


35<br />

ausência de qualquer concepção particular da Itália na América do Sul, naquela época, a<br />

ópera italiana em si viria para preencher essa lacuna. Garantido o prestígio por meio de<br />

performances em Paris ou Londres, a ópera veio a substituir uma ideia de Itália ou a constituir<br />

a personificação de uma espécie de italianità que não seria disponível de nenhuma<br />

outra forma.<br />

A presença de um contingente europeu entre esse público de ópera, por sua<br />

vez, significava que o ideal fantástico da ópera italiana conjecturado em algumas dessas<br />

primeiras críticas também poderia ser alcançado com bastante facilidade. Para cada comentário<br />

como aquele encontrado no periódico de Buenos Aires, El Centinela (2 de março<br />

de 1823), sobre uma apresentação de excertos do Barbeiro de Sevilha, de Rossini, pela<br />

companhia Rosquellas – “finalmente temos ouvido alguma coisa em Buenos Aires que se<br />

aproxima da perfeição no canto e que dá uma ideia completa da beleza da música italiana” 8<br />

– há uma falsa alternativa de um viajante europeu, como a de que o teatro em Buenos<br />

Aires “pode ser colocado em pé de igualdade com um dos estabelecimentos mais inferiores<br />

de Londres” (De Bonelli, 1854, vol. 2, p. 312); ou que no mesmo local “os artistas estavam,<br />

talvez, um pouco acima da mediocridade” (Andrews, 1827, p. 17); e mesmo, desta vez sobre<br />

o Rio, em 1828, que “uma detestável companhia italiana, com uma orquestra ainda mais<br />

execrável, assassinava Rossini três vezes por semana” (Jacquemont, 1835, vol. 1, p. 70).<br />

Em ambas as cidades – as duas mais importantes em termos de ópera ao sul de<br />

Havana – um meio termo entre os dois extremos retóricos pode ser rastreado na leitura<br />

dos jornais locais direcionados principalmente para os comerciantes ingleses ou franceses,<br />

ao lado de notícias – incluindo notícias de ópera – de sua terra. Frequentemente contextualizariam<br />

apresentações através da referência a cantores em Londres ou Paris, e mesmo<br />

na Itália, mas normalmente viriam em defesa da experiência local. O crítico do jornal<br />

francês publicado no Rio, L’Indépendant, por exemplo, escreveu, em 28 abril de 1827,<br />

reconhecendo que a voz do então principal tenor Victor Isotta carecia de força e flexibilidade,<br />

mas ponderou, “nós também sabemos que, se a voz de Isotta […] pudesse acrescentar<br />

força e flexibilidade ao seu timbre encantador, ele estaria cantando em La Fenice<br />

ou em La Scala; portanto, quedamo-nos satisfeitos”. 9<br />

Seria simplista colocar essas avaliações muito rigidamente em um continuum<br />

do real ao fantástico; e seria tão falso sugerir que os críticos locais nunca teriam sido rígidos<br />

sobre a qualidade das apresentações quanto sugerir que os visitantes não ficaram,<br />

por vezes, notavelmente impressionados. Contudo, tomadas coletivamente em seus padrões<br />

relativamente previsíveis, torna-se claro que para além de qualquer opinião específica<br />

expressa por um crítico particular, a importância dessas declarações impressas<br />

reside ainda na confirmação da existência da ópera em um determinado local, seja bom<br />

ou ruim. Afinal, dispor de uma casa de ópera de segunda categoria ainda constituía um<br />

vínculo junto ao circuito mais amplo da ópera. Dito de outra forma, a realidade potencialmente<br />

decepcionante da ópera italiana no século XIX sempre pareceu reter os contornos<br />

de sua fantasia norteadora, quer seja em relação à participação na civilização global,<br />

para a imaginação do cantar perfeito, ou uma ainda mais vaga e mais fluida qualidade<br />

italiana, do tipo que pairou nesse relato de um viajante para Lima no início dos anos 1830<br />

(Ruschenberger, 1835, vol. 2, p. 94):<br />

...........................................................................<br />

8 “Por fin hémos oido en BA algo que se aproxîma á la perfeccion del canto, y que dá una idéa completa de la<br />

belleza de la música italiana”, em tradução livre.<br />

9 “[…] nous savons aussi qui se la voix d’Isotta … unissait à son timbre délicieux la force et la flexibilité, Isotta<br />

chanterait à la Phenice ou à la Scala, et nous ici, nous prenons le parti d’en être satisfaits”, em tradução livre.<br />

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36<br />

A Companhia de Ópera Italiana, que de lá partiu em 1832, difundiu um gosto<br />

quase universal pela música italiana; e agora cada jovem sintonizado com a moda<br />

canta e toca as melhores peças de Rossini e Paccini [sic], e muitos aprenderam a<br />

ler italiano.<br />

Corro o risco aqui de mistificar a indefinição da “italianidade” na ópera da<br />

América do Sul mais do que seria credível. Já na década de 1820, havia exilados italianos<br />

em posições de influência em Buenos Aires e em outros lugares, 10 e certamente com o<br />

passar do tempo vários escritores se esforçaram para educar seus públicos sobre o<br />

embasamento da música ouvida na casa da ópera de várias maneiras, seja pela publicação<br />

de extratos de Vie de Rossini, de Stendhal, ou, no tempo em que a companhia de Brichta<br />

chegava a Havana, no final da década de 1830, por meio da exploração das diferenças<br />

entre Rossini, querido dos anos 1820, e outros compositores.<br />

No pólo oposto de tais discussões estava, geralmente, o mais jovem<br />

contemporâneo de Rossini, Vincenzo Bellini, e cada um tinha seus partidários. No primeiro<br />

periódico musical da Argentina, o Boletín Musical (1837), por exemplo, Bellini, em geral,<br />

tinha vantagem e recebia elogios por suas qualidades românticas numa linguagem que o<br />

associava intimamente à melancolia estética da “Joven Generación” argentina, o grupo<br />

político e literário formado em oposição à ditadura populista pós-rivadaviana de Manuel<br />

de Rosas. 11 Enquanto isso, em Montevidéu, local escolhido como exílio para muitas figuraschave<br />

da Generación, o jornal El Iniciador publicou um artigo em 1º de agosto de 1838<br />

(“Bellini em face de Rossini”) que associava o revolucionário Rossini diretamente à excitação<br />

da era napoleônica, mas que, mais de uma vez, celebrou os arroubos angelicais de Bellini<br />

como autêntico sucessor de Rossini. O artigo foi escrito por Miguel Cané, ele mesmo um<br />

argentino que se mudou para Montevidéu em 1835, e um dos editores do jornal. E as<br />

respectivas caracterizações eram familiares o suficiente, mas não deixaram de servir para<br />

lançar uma luz interessante para um artigo publicado anteriormente no Boletín, de 17 de<br />

setembro de 1837, sobre “o gosto musical de Napoleão”, que termina com uma nota prórossiniana:<br />

Nós também, como o primeiro cônsul, e como o povo, amamos a música monótona,<br />

isto é, a música simples no canto e no acompanhamento. Pelo que amamos<br />

a música de Rossini acima de todas as músicas: é a gloriosa música do<br />

povo e este título o coloca acima de todos os músicos do mundo. 12<br />

Tais posições diferentes podem parecer não mais do que uma postura artística,<br />

ecoando debates franceses e italianos do início da década. E mais ainda desde que um<br />

artigo comparando os dois compositores em El Iniciador apareceu em resposta a um artigo<br />

anterior (3 de março de 1838), sob o mesmo título, no La Moda (sucessor do Boletín)<br />

de Buenos Aires, que havia sugerido que Bellini nunca escapara à sombra de Rossini. As<br />

duas revistas compartilhavam vários autores e pode-se facilmente traduzir esses artigos<br />

...........................................................................<br />

10 Ver, por exemplo, Pietro [Pedro] de Angelis, levado a Buenos Aires por Rivadavia, e editor de ambos Crónica<br />

Política y Literária de Buenos Aires (1827) e El Lucero (1829–1832), ambos distribuem notícias da Europa sobre<br />

Rossini.<br />

11 Sobre o lugar de Bellini no Boletín e as possíveis ligações entre a revista e o Generación, ver o excelente ensaio<br />

introdutório à edição fac-símile da revista (Plesch, 2006, p. 25ff). Sobre o Generación, ver particularmente<br />

Shumway, 1991, caps. 5 e 6.<br />

12 “Nosotros tambien, como el primer Cónsul, y como el pueblo, amamos la música monotona; es decir la música<br />

simple en el canto como en el acompañamiento. Por lo cual amamos la música de Rossini sobre todas las músicas:<br />

es el glorioso músico del pueblo, y este título lo realza sobre todos los músicos del mundo”, em tradução<br />

livre.<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


37<br />

como expressões públicas do debate em curso, repetindo argumentos semelhantes da<br />

França ou Itália do início da década. 13<br />

No entanto, dado o clima da época, não é necessário ler muito nas entrelinhas<br />

para perceber, no final da década de 1830, como o popular Rossini da era napoleônica<br />

também pôde se mover facilmente para o papel de um Rossini do regime argentino<br />

opressivamente populista, para ser então rejeitado por Cané em El Iniciador através da<br />

imagem de um Bellini mais irreal. O mesmo tipo de segmentação podia ser visto nas<br />

apresentações musicais: Bellini era conhecido principalmente através de excertos<br />

impressos no Boletín ou La Moda destinados às apresentações semiprivadas dos salões; 14<br />

Rossini mantivera o seu lugar, ao longo dos anos 1830, no repertório padrão das<br />

apresentações públicas das bandas militares de Buenos Aires, tendo os motes musicais<br />

do Tancredi ou de A Italiana a acompanhar os incontáveis desfiles e festivais vespertinos<br />

(Plesch, 1999).<br />

Para dar um único e eloquente exemplo: em março de 1839, exatamente no<br />

momento em que o Uruguai declarou guerra contra o regime argentino, apoiado pelo<br />

governo no exílio em Montevidéu, Rosas retornou a sua residência em Buenos Aires.<br />

Uma multidão de cerca de uma centena de pessoas apareceu para dar as boas vindas,<br />

empurraram um piano até o local e fizeram uma serenata ao seu líder por uma hora ou<br />

mais, primeiro com o hino nacional e com slogans desejando a morte do líder uruguaio,<br />

Fructuoso Rivera, antes de romper no dueto do segundo ato de Tancredi de Rossini, “Ah si<br />

de mali miei”, seguido por um dueto de L’Italiana e uma variedade de outras canções, algumas<br />

operísticas e outras não (British Packet, 13 de março de 1839). Poucas semanas<br />

depois, na Sexta-Feira Santa, as bandas da Marinha e da Guarda da Argentina se reuniram<br />

na ponte levadiça do forte no centro da cidade para tocar mais trechos de Tancredi para<br />

milhares de habitantes da cidade reunidos, antes que quatro bonecos de Judas em trajes<br />

militares fossem suspensos na forca e esquartejados. Em seguida os marinheiros marcharam<br />

até a Praça da Vitória e continuaram a tocar enquanto outro boneco de Judas em<br />

uma gaiola foi dilacerado por moleques de rua (British Packet, 13 de abril de 1839).<br />

Não é fácil estabelecer qualquer associação direta; e ao longo de toda a década<br />

de 1830 Rossini se manteve como o compositor mais tocado no teatro de Montevidéu.<br />

Enquanto isso, as óperas de Bellini permaneceram não encenadas e, portanto, em grande<br />

parte, imaginadas; embora segmentos individuais fossem realizados no palco por membros<br />

da família italiana Piacentini, que havia chegado em Montevidéu alguns anos antes como<br />

uma trupe composta por pai e três filhas. 15 Então, com o surto da guerra em 1839 – que<br />

iria durar mais de uma década – a encenação de óperas em Montevidéu passou por um<br />

período mais ou menos inativo (como já acontecera em Buenos Aires alguns anos antes),<br />

até que um novo repertório chegasse na década de 1850, incluindo representações<br />

completas de várias óperas de Bellini.<br />

Foi durante esse mesmo período negro da década de 1840, no entanto, que<br />

grandes planos foram elaborados para uma nova casa de ópera em Montevidéu, finalmente<br />

inaugurada em 1856, o Teatro Solís, que ainda hoje está de pé. 16 O projeto da casa atenta<br />

para a sua posição simbólica entre as áreas antigas e novas da capital e também à sua<br />

superioridade sobre qualquer outra casa de ópera do continente; caracteristicamente,<br />

...........................................................................<br />

13 O primeiro artigo no Boletín (28 de agosto de 1837) reimprimiu parte de um trecho do parisiense Revue des<br />

Deux Mondes, intitulado “Rossini y Bellini”.<br />

14 O Boletín incluiu uma série de “cuadrillas del Pirata (de Bellini)” em 7 de outubro de 1837; La Moda imprimiu,<br />

tanto uma valsa para piano sobre um “motivo de Bellini”, como também um minueto por Esnaola “à la Bellini”.<br />

15 Ver, por exemplo, o concerto benefício de Justina Piacentini em 26 de setembro de 1836, que incluiu “Casta diva”.<br />

16 Sobre a história do Teatro Solís, ver Salgado, 2003.<br />

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38<br />

isso é articulado explicitamente na descrição constante no manuscrito dos planos do<br />

arquiteto imaginando a visão do teatro visto por um viajante, recém-chegado à cidade,<br />

talvez ao desembarcar provindo de Londres ou Paris – Montevidéu mais uma vez como<br />

parte da civilização global (Antonio, 1841, p. 10). E a dimensão do edifício foi igualmente<br />

ambiciosa, com capacidade para mais de 1.500 pessoas ou, dependendo da estimativa,<br />

algo entre 1/12 e 1/25 de toda a população da cidade. 17<br />

Talvez, os cálculos tenham sido simplesmente realistas: no momento em que<br />

esses planos foram elaborados em 1841, a população de Montevidéu havia mais do que<br />

quadruplicado em uma década e esse aumento foi, em parte, devido à chegada de um<br />

grande número de imigrantes italianos. Entre eles se incluíam alguns trabalhadores, mas<br />

também trabalhadores qualificados, como o arquiteto do próprio Solís, Carlo Zucchi, e a<br />

família Piacentini, juntamente com exilados políticos, como Giovanni Battista Cuneo –<br />

envolvidos com El Iniciador – e Giuseppe Garibaldi, que tinha chegado em 1837 do Rio de<br />

Janeiro e formou fortes alianças com os exilados argentinos. Ambos Cuneo e Garibaldi se<br />

envolveram na guerra; o afamado Garibaldi formando a sua Legião Italiana, e levando-a<br />

para a batalha contra as tropas de Rosas. Como resultado, a campanha uruguaia se tornou<br />

uma causa célebre para os liberais europeus, gerando panfletos ao gosto de Alexandre<br />

Dumas (1850). Lucy Riall também sugeriu (2007, p. 42) que a crença de Garibaldi no<br />

significado da escrita biográfica e do jornalismo polêmico pode ter-se originado<br />

diretamente de seus contatos com os exilados argentinos. Certamente a publicidade de<br />

seu sucesso militar no Uruguai se deu em grande parte através da reportagem jornalística<br />

de Cuneo, a ponto de que, nas palavras de Riall, “o heroísmo de Garibaldi e a Legião<br />

Italiana como um todo foi identificado com italianità” (p. 45).<br />

É uma ligação mais concreta entre um determinado conjunto de valores e uma<br />

noção de “italianidade” do que qualquer coisa que ofereci até agora em relação à música.<br />

E não há dúvida de que os europeus davam mais atenção aos jornais de notícias sobre as<br />

façanhas de Garibaldi do que às histórias de viagens de cantores de ópera italiana, ainda<br />

que maravilhosas. No entanto, é difícil resistir à suposição de que uma legião italiana de<br />

Garibaldi também deveria ter a sua própria banda militar e que ela talvez também tenha<br />

tocado Rossini. Difícil também, a partir desse ponto de vista, duvidar se já não havia algo<br />

de marcial codificado na música, na medida em que tinha extrapolado as casas de ópera<br />

e entrado nos quartéis de Buenos Aires ou Montevidéu, assim como os ouvintes de Rossini<br />

na Itália e na França já haviam reconhecido, logo de início, os sons das bandas militares<br />

napoleônicas penetrando as casas de ópera.<br />

Aqui devemos fazer uma pausa teórica. Primeiro, porque ao buscar elidir a música<br />

com a nova italianidade garibaldiana, repentinamente nos damos conta de que estamos<br />

fazendo ressurgir aquela fantasia trivial do historiador da ópera: a união da música e do<br />

heroísmo, a ópera como trilha sonora para a ação patriótica. E nós estamos, afinal, à<br />

beira da década de 1840, com todas as tentações de coros patrióticos de Verdi e do Risorgimento.<br />

Também quero fazer aqui uma pausa cautelosa porque tal elisão é apenas um<br />

truque de prestidigitação: a partir das bandas documentadas de Rosas para uma banda<br />

imaginária de Garibaldi. Qualquer que fosse o repertório executado pela banda de Garibaldi,<br />

a música de Rossini havia se tornado nessa época também a música da Argentina,<br />

e da Argentina de Rosas, totalmente contra toda e qualquer missão rivadaviana civilizadora<br />

e eurófila. Ao tornar-se global, em outras palavras, a ópera italiana também havia se<br />

...........................................................................<br />

17 Esse cálculo é complicado pela variedade de diferentes estimativas da população de Montevidéu nesse momento.<br />

Muitas fontes impressas contemporâneas sugerem uma estimativa entre 10 a 18 mil, mas um estudo<br />

mais detalhado, de 1843, sugeriu que havia 40 mil pessoas na cidade, 6 mil das quais eram italianos (ver Devoto,<br />

2006, p. 32 e nota 13 anterior).<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


39<br />

tornado recentemente nacional, enquanto a natureza de suas possibilidades e significados<br />

acabou por ser tão mutável como sempre foi.<br />

O que foi feito das outras fantasias operísticas alternativas? Na América Latina,<br />

pelo menos, o fascínio belliniano continuou, por mais tempo do que em outros lugares, e<br />

de maneiras interessantes. Em certa medida, porém, a aproximação da era dos navios a<br />

vapor, da comunicação mais rápida e de maior migração a partir de 1850 traz consigo as<br />

preocupações familiares da globalização e, de certo modo em extinção, com o espaço<br />

para contestar as ideias de italianità encolhendo rapidamente. Alternativamente, podese<br />

dizer que quando da mudança daquela era para o mundo pós-1850, como no caso de<br />

Garibaldi no Uruguai, as fantasias rossiniana e belliniana completaram o seu efeito e poderiam<br />

logo dar lugar a um novo conjunto de imaginações por volta dos anos 1860, diretamente<br />

da nova nação italiana, que poderia então ser levada mundo afora, particularmente<br />

pelas ondas de emigrantes que também fugiram da Itália real na década de<br />

1880 e 1890 e buscaram, mais uma vez, cantores de ópera para lhes cantar, a milhares de<br />

quilômetros de distância.<br />

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Viaggi dell’opera verso il Rio de la Plata<br />

in tempi di migrazioni<br />

41<br />

Annibale Cetrangolo<br />

Università Ca’Foscari, Venezia<br />

Una premessa<br />

La diffusione dell’opera nella società di Buenos Aires determinò che quello lirico<br />

fosse l’ideale culturale egemone della comunità. Il melodramma, durante la rifondazione<br />

della società rioplatense, fu investito di una funzione extramusicale.<br />

Al di là del piacere estetico, la classe dirigente ebbe perfetta coscienza che l’opera<br />

era rito civile utile a conseguire la coesione interna e imprescindibile per la degna rappresentazione<br />

esteriore del paese. Il genere si associò comunque con Italia, il luogo di provenienza<br />

della maggior parte degli stranieri che arrivavano in Argentina.<br />

Le difficoltà di appropriarsi del genere da parte dell’elite di potere coincise, intorno<br />

al 1910, con una visione meno cordiale dello straniero. Il migrante italiano, specificamente,<br />

che prima era considerato elemento essenziale per il progresso del paese, fu bollato di<br />

arretrato invasore dell’ambito urbano. Si rimproverò agli stranieri di essere ingrati con la<br />

terra che gli accoglieva mentre si costatava che, malgrado tutto, quei contadini arrivati<br />

continuavano ad essere i proprietari di emblemi culturali invidiati come l’opera. Il melodramma<br />

fu per ciò un altro dei terreni di battaglia. Pari passo che si sospettavano le difficoltà<br />

di argentinizzare il genere lirico, si cominciava a capire, rassegnati, che il progetto di europeizzare<br />

il paese era in salita: non bastava vendere mucche per accedere gli oggetti pregiati. La<br />

frenesia che gli argentini impegnarono nell’intento di appropriazioni di oggetti culturali<br />

stranieri investiti di prestigio come l’opera e la risentita delusione provata al capire l’impossibilità<br />

di tale impresa portò al rifiuto del melodramma e dei suoi agenti. Tanta passione<br />

mostra l’importanza che acquistano gli oggetti muniti di valore rappresentativo nella contingenza<br />

dell’accoglienza e del rifiuto delle culture.<br />

Anche in Brasile<br />

Il Brasile, di forma analoga ai vicini del Rio de la Plata, ricevette ingenti flussi<br />

migratori provenienti dall’Europa e dell’Italia in particolar modo. Questo fenomeno comune<br />

a queste nazioni atlantiche del Sudamerica, si articola, però, in territori con storie diverse.<br />

Risulta di grande utilità il confronto di questi diversi sviluppi, tale operazione permetterà<br />

di arrivare ad interpretazioni più raffinate delle attuali. L’apparenza mostra a chiara luce le<br />

analogie: anche a Rio il melodramma fu considerato come viatico imprescindibile per<br />

l’appartenenza al “mondo civile”. Scrive Rogerio Budasz che il teatro d’opera a Rio fu<br />

legittimato dalla corte Bragança come scuola di civiltà e risultò nelle mani del potere,<br />

addirittura strumento di propaganda politica. 1 E, se scuola doveva essere, l’insegnamento<br />

...........................................................................<br />

1 Budasz, R. Teatro e Música na América Portuguesa. Ópera e teatro musical no Brasil (1700-1822). Convenções,<br />

repertório, gênero e poder, Deartes Ufpr, p. 181.<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


42<br />

tecnico del mettier acquistava un’importanza che il palazzo non poteva trascurare. Come<br />

in Argentina e in tanti altri luoghi del globo, anche in Brasile la promozione degli stili<br />

europei in campo musicale si articolarono con i tentativi nazionalisti di appropriazione<br />

del genere. Sempre Budasz indica che in Brasile si alternarono i vettori di stimolo ai modelli<br />

didattici europei – nel 1843 già funzionava un conservatorio che rispettava quei paradigmi<br />

– con prove di timida brasilianizzazione del genere. Infatti, essendo l’opera spettacolo<br />

politico “não tardaria muito até que aparecessem compositores sintoniçados com as açoes<br />

ao mesmo tempo modernizantes e nacionalistas de dom Pedro II, que se envolvessem no<br />

projeto de criação de uma ópera nacional”. I fenomeni brasiliano e argentino si mostrano<br />

analoghi: per decenni i compositori rioplatensi impegnati nella composizione di opere su<br />

temi storici o nativisti lo faranno su testi e convenzioni melodrammatiche italiani e anche<br />

il tentativo brasiliano vorrà essere nazionale “mas não excessivamente nacional”. 2 Le azioni<br />

degli intelettuali brasiliani che accompagnarono queste operazioni liriche furono molto<br />

simili a quelle dei colleghi argentini. In Brasile si elaborarono miti fondatori intorno ad<br />

alcuni compositori e si determinarono parametri per misurare una “brasilidade” in funzione<br />

di certe tematiche, di certi paessaggi e dell’accoglienza di certe musiche tradizionali. 3 .<br />

Anche in Brasile, come in Argentina e altrove, il prodotto lirico non doveva essere, nota<br />

sempre Budasz, “eccesivamente nazionale”, cioè non eccesivamente diverso del modello.<br />

Era necessario, cioè, che quelle opere potessero presentarsi in Europa come parenti dei<br />

melodrammi parigini o milanesi; parenti venuti dalla campagna forse, ma parenti dopo<br />

tutto. La solita forma e i suoi derivati, l’articolazione scenica, la “posizione”, la misura e<br />

l’accento del verso e addirittura, in tanti casi, la lingua italiana, assicuravano un saldo<br />

substrato condiviso con il modello europeo capace di soportare senza sussulti le pittoresche<br />

variazioni al tema che tanto anelavano i nazionalisti.<br />

Tutti questi sviluppi ribadiscono tante caratteristiche comuni degli sviluppi argentino<br />

e brasiliano, ma ci sono, come si annotò prima, differenze di sostanza: in Brasile<br />

l’opera ricevete quell’investitura politica che ho descritto, da un impero e non da una repubblica<br />

liberale. Quella repubblica rioplatense era, come le altre ispanoamericane, tanto<br />

bramosa di allontanarsi culturalmente della vecchia metropoli coloniale quanto precaria<br />

istituzionalmente. Questo segna sostanziali differenze già in partenza col Brasile: in quei<br />

poveri teatri, a dispetto dell’ingenuo orgoglio con il quale oggi si presentano, le primizie<br />

rossiniane furono qualche sparuto Barbiere di Siviglia o L’Italiana in Algeri rappresentati<br />

appena nel 1825. Che differenza con Rio! La corte Bragança, prima di quella data aveva<br />

mostrato nella sua nuova sede Tancredi, Aureliano in Palmira, Il Barbiere, L’Italiana in<br />

Algeri, Elisabetta, Regina d’Inghilterra, Adelaide di Borgogna, L’Inganno felice. 4 Negli<br />

anni successivi Berlioz penserà seriamente di trasferirsi a Rio e lo stesso Wagner fu invitato<br />

all’impero.<br />

Per i brasiliani, inoltre, Lisbona rappresenta emblema ben diverso che Madrid<br />

per gli argentini. Per i nazionalisti come Ricardo Rojas o Leopoldo Lugones la Patria si costruisce<br />

contro gli stranieri ma non contro gli spagnoli in un’operazione carica di tensioni e<br />

veemenze. Riconoscere un continuum luso brasiliano per certi studiosi brasiliani, invece,<br />

risulta riflessione matura e serena che muove da un punto di partenza assolutamente<br />

diverso, forse opposto, “menos ufanista”, quello di riconoscere “práticas e experiências<br />

comuns, permutas transformações, adaptações e readaptações”. 5<br />

...........................................................................<br />

2 Budasz, R., op. cit., p. 183.<br />

3 Budasz, R., op. cit., p. 113.<br />

4 Budasz, R., op. cit., p. 10.<br />

5 Budasz, R., op. cit., p. 113.<br />

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43<br />

Per concludere, anche le distanze che l’intellighenzia brasiliana prenderà rispetto<br />

all’opera italiana nel ‘900 risulteranno da motivazioni molto diverse rispetto agli analoghi<br />

rifiuti del quartiere aristocratico di Buenos Aires.<br />

Analogie e differenze dovranno mettersi a fuoco considerando non soltanto le<br />

istanze dell’Ottocento ma anche confrontando le situazioni precedenti, quelle che hanno<br />

legato le terre americane controllate dal Portogallo e dalla Spagna intorno alla circolazione<br />

del melodramma e dei suoi operatori.<br />

II Notizie e proposte<br />

Considero necessario includere in questo testo proposte operative giacché trovo<br />

irripetibile quest’occasione per comunicare con i colleghi del Brasile. È questa, infatti, la<br />

sede più adatta per poter dialogare e fondare delle collaborazioni tra la ricerca brasiliana<br />

ed il gruppo internazionale che rappresenta l’IMLA.<br />

1. Antecedenti<br />

Ai tempi della fondazione dell’IMLA, negli anni ‘80, assieme a Francisco Curt<br />

Lange abbiamo individuato un grave ostacolo che si poneva davanti allo studio delle<br />

migrazioni musicali europee verso l’America Latina durane il periodo coloniale, argomento<br />

che allora ci occupava. Era necessario per studiare il trapianto delle musiche europee<br />

oltreoceano, risolvere un problema a monte: l’assoluta precarietà che allora incombeva<br />

sui contatti scientifici tra studiosi spagnoli, italiani e portoghesi. Sebbene oggi, a pochi decenni<br />

di distanza risulti singolare, era frequente che un italiano studiasse la musica composta<br />

nella Napoli retta dai Borboni spagnoli con scarse informazioni sul mondo culturale<br />

iberico o, viceversa, che uno spagnolo analizzasse l’arrivo dell’opera a Madrid o Barcellona<br />

ignorando gli studi italiani sul melodramma del Settecento. Il Portogallo musicale, per<br />

conto suo era conosciuto malissimo in Italia: persone che sedevano su cattedre universitarie<br />

riuscirono a pubblicare edizioni critiche di melodrammi senza aver consultato gli esemplari<br />

di quelle opere che si conservano in fondi fondamentali come quello dell’Ajuda. Inoltre,<br />

dal punto di osservazione dell’Europa musicologica, salvo scarse eccezioni, occuparsi di<br />

musicologia storica latinoamericana durante l’Ancien Regime era attività segnata quasi<br />

da pittoreschismo. Ricordo in quel contesto, come una nostra speciale riuscita, l’aver festeggiato<br />

gli ottanta anni di Lange con il primo contatto istituzionale tra le musicologie di<br />

Portogallo, Spagna ed Italia: fu in occasione del Convegno su Domenico Zipoli che organizzò<br />

l’IMLA a Prato nel 1987.<br />

Successive preoccupazioni scientifiche dell’IMLA, focalizzate su quelle migrazioni<br />

di massa verso le Americhe che si verificarono tra la fine dell’Ottocento e l’inizio del Novecento,<br />

trovarono nel flessibile oggetto lirico una materia ideale per l’analisi delle migrazioni<br />

culturali. Il positivo sviluppo scientifico delle musicologie dei paesi mediterranei<br />

nel post franchismo e, soprattutto l’espansione degli studi migratori a tutti i rami delle<br />

scienze umane, hanno reso consapevoli gli addetti ai lavori dell’impossibilità di studiare<br />

fenomeni culturali così fluidi come i prodotti musicali senza considerare l’incidenza dei<br />

movimenti di persone e oggetti, nell’attualità illustri studiosi europei e nordamericani<br />

considerano imprescindibile lo studio dei movimenti dell’opera verso il Nuovo Mondo.<br />

Anni fa, John Rosselli dell’Università del Sussex considerò necessario l’esame degli archivi<br />

di Buenos Aires per scrivere i suoi fondamentali testi su impresari e cantanti lirici e in<br />

questa stessa sede, la presenza della massima autorità rossiniana, Philip Gossett, è la più<br />

contundente dimostrazione di quanto la più alta ricerca scientifica consideri lo studio dei<br />

fondi extraeuropei ineludibili per la comprensione della musica europea. Le brillanti<br />

scoperte di Benjamin Walton sugli itinerari dell’opera realizzati grazie all’attenta lettura di<br />

periodici conservati in fondi latinoamericani mostrano da parte sua quanto la ricerca locale<br />

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44<br />

abbia trascurato lo studio dei propri materiali in funzione di una provinciale considerazione<br />

dell’opera come genere subalterno.<br />

Nell’immediato futuro si presenta una nuova occasione di collaborazione intorno<br />

allo studio della ricezione dell’opera italiana nelle Americhe, scopo centrale della rete<br />

International Relationships between Italy and Iberoamerica (RIIA), uno study group<br />

dell’International Musicological Society che coordina l’IMLA. La Tavola Rotonda organizzata<br />

da quella nostra equipe durante il Convegno IMS di Zurigo del 2007 fu l’occasione di<br />

conoscere i colleghi brasiliani con i quali adesso condivido questa sede, tra i quali la Prof.<br />

Volpe, che devo ringraziare per la mia presenza qui. Il miglior risultato di questi sforzi sarebbe<br />

poter contare in una rappresentazione della musicologia brasiliana nella Tavola<br />

Rotonda dello study group, Roma 2012.<br />

A continuazione presento alcuni casi di ricerca lirica che ho intrapreso in questi<br />

anni e che mostro nella loro incompiutezza come occasioni e inviti alla necessaria collaborazione<br />

con gli studiosi brasiliani.<br />

2. Casi<br />

Alcuni esempi possono mostrare brevemente la necessità di questi studi in rete.<br />

Viggiano<br />

Grazie al confronto di testimonianze raccolte a Buenos Aires con documenti<br />

conservati nel porto della città argentina e nell’Archivio di Stato di Potenza ho potuto ricostruire<br />

il viaggio atlantico di musicisti di strada, tra i quali degli arpisti, provenienti anche<br />

dalla zona di Viggiano, in Basilicata. E’ stato così possibile dimostrare la presenza a Buenos<br />

Aires di quegli ambulanti che Roberto Leydi aveva indicato come importanti vie di penetrazione<br />

del melodramma e che Henri Malot aveva raccontato nel suo famosissimo romanzo<br />

Sans Famille.<br />

Ho trovato, infatti, che, negli ultimi anni dell’Ottocento, 428 musicanti della Regione<br />

Basilicata avevano richiesto il passaporto per migrare. Di questi, una percentuale<br />

altissima risiedeva a Viggiano e in paesi molto vicini come Marsico Vetere o Tramutola in<br />

una distribuzione che è la seguente:<br />

Mi domando quanti di loro avevano Buenos Aires come destinazione e se qualcuno<br />

è arrivato effettivamente nella città. Nei documenti argentini non è semplice identificare<br />

un’origine precisa: i documenti indicavano appena, e confusamente, la nazionalità<br />

e il porto d’imbarco, inoltre i migranti, un po’ per pudore e un po’ per farsi capire meglio,<br />

invece di menzionare il piccolo centro urbano di provenienza, indicavano all’ufficiale che<br />

li riceveva la regione di origine oppure il nome di qualche centro importante della zona<br />

d’origine. Ad ogni modo, tra 1892 e 1916, duecento nove persone fecero ingresso nel<br />

porto di Buenos Aires dichiarandosi “musicanti”. Quasi tutti erano viaggiatori che pro-<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


45<br />

venivano da porti italiani (143 da Genova e 14 da Napoli). Soltanto tre si erano imbarcati<br />

a Barcellona.<br />

Combinando i dati degli archivi europei con quelli sudamericani non sembra<br />

azzardato dedurre che anche a Buenos Aires approdarono ambulanti originari dalla zona<br />

di Viggiano. Certo è che se fosse possibile identificare quei viaggiatori come arpisti, i dubbi<br />

sarebbero minori ma le fonti non aiutano. I registri d’ingresso argentini quando registrano<br />

le professioni degli arrivati non scendono in particolari sul tipo di attività musicale di quei<br />

migranti, e d’altra parte questa volta non ci soccorre l’ausilio della letteratura locale. Infatti,<br />

nei testi argentini contemporanei di queste migrazioni come la saga emblematica nazionale,<br />

il Martin Fierro, si trovano frequenti riferimenti a italiani che suonano l’organetto a<br />

manovella ma non ci sono riferimenti ad arpisti. Scrive Hernández:<br />

Allí un gringo con un órgano<br />

Y una mona que bailaba<br />

Haciéndonos rair estaba<br />

Cuando le tocó el arreo,<br />

¡Tan grande el gringo y tan feo!<br />

Lo viera cómo lloraba.<br />

I riferimenti con tono squalificante che identificano quel tipo di suonatore ambulante<br />

con gli italiani sono così numerosi nella letteratura di quegli anni, che si deduce<br />

l’abituale impiego nella società della parola “organillero” per denigrare i migranti peninsulari.<br />

Molto spesso l’identificazione fu più precisa: quel personaggio del musicante fu<br />

sovente caratterizzato come napoletano. Tenendo conto che “napoletano” non indicava<br />

soltanto chi proveniva dalla città partenopea ma più genericamente dall’antico Regno di<br />

Napoli, e dato che la Basilicata era regione apparteneva a quel reame, l’ipotesi delle migrazioni<br />

di ambulanti di Viggiano a Buenos Aires torna a rifiorire come possibile.<br />

Un contatto personale mi fu di particolare aiuto. Ebbi modo di conoscere uno<br />

degli ultimi costruttori di organetti a Buenos Aires, Osvaldo La Salvia, il quale sorprendentemente<br />

mi manifestò che la sua famiglia era originaria di… Tramutola! La conversazione<br />

con La Salvia ha spiegato, sebbene di maniera iperbolica, il rebus del passaggio dall’arpa<br />

all’organetto. Il nostro interlocutore ci racconta che il suo avo, appena arrivato dall’Italia<br />

suonava in realtà l’arpa ma che il mitico Juan Moreira tagliò le corde dello strumento con<br />

il suo facón e così il povero musicante dovette ripiegare sull’organetto. Questa colorita<br />

storia, come in dettaglio spiego altrove 6 , è la mitizzazione di una tragedia sociale: la miseria<br />

dilagante nel sud d’Italia sostituì il fenomeno della forzata migrazione di un gruppo<br />

famigliare in cerca di fortuna con una realtà ancora più cruda: un vero e proprio commercio<br />

minorile. Nella prima situazione, i bambini accompagnano i genitori. Erano gli adulti a<br />

suonare strumenti come l’arpa e gli infanti giravano con il cappello richiedendo un soldo<br />

ai transeunti, al massimo suonavano qualche tamburello. La seconda situazione invece<br />

vede lo sfruttamento dei bimbi. Loro erano consegnati ad un “protettore” che li costringeva<br />

a mendicare per le strade, e, ovviamente, non erano capaci di suonare strumenti tranne<br />

quelli meccanici come l’organetto.<br />

Tornando all’archivio lucano sono stato in grado d’identificare numerosi musicanti<br />

di Tramutola di cognome La Salvia o derivati che chiedono alle autorità salvacondotto per<br />

viaggiare. Molti di loro indicano come destinazione di viaggio il Sudamerica.<br />

...........................................................................<br />

6 Cetrangolo, A. E., Dell’arpa de Viggiano all’organito porteño. In: Etno-folk, Revista de etnomusicologia, nº 14-<br />

15 giugno-novembre 2009, p. 596-621.<br />

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46<br />

Cognome Nome Richiesta Destino dichiarato<br />

Salvia Luigi 1868 Argentina, Buenos Aires<br />

La Salvia Domenico 1862 Algeria<br />

La Salvia Antonio 1863 Argentina, Buenos Aires<br />

La Salvia Antonio 1864 America<br />

La Salvia Benedetto 1865 Spagna<br />

La Salvia Nicola María 1868 Brasile, Rio de Janeiro<br />

La Salvia Benedetto 1868 Egitto, Alessandria<br />

Lasalvia Domenico 1868 Argentina, Buenos Aires<br />

Lasalvia Michele 1868 Argentina, Buenos Aires<br />

Lasalvia Giuseppe 1868 Argentina, Buenos Aires<br />

Lasalvia Francesco 1868 Argentina, Buenos Aires<br />

Lasalvia Benedetto 1870 Egitto<br />

Lasalvia Vincenzo 1870 Argentina, Buenos Aires<br />

Gli estremi del viaggio sembrano così stabiliti e confermano la trasferta a Buenos<br />

Aires di queste famiglie. Si noti che, accanto ai La Salvia, altre famiglie di costruttori di<br />

organetti risiedevano a Buenos Aires. Anch’essi erano originari della stessa zona e<br />

procedevano proprio da Viggiano. Si trattava della famiglia De Cunto che aveva negozio<br />

nel centro della città. Ma se sono chiari la partenza e l’arrivo della traversata, cosa succedeva<br />

nei porti intermedi?<br />

Questa inchiesta risulta incompleta senza l’esame degli archivi dei porti brasiliani.<br />

Ci fu in Brasile un fenomeno analogo? Si trovano famiglie portatrici di quei cognomi “caldi”?<br />

Ci furono fabbriche di organetti a Rio vincolate a italiani procedenti della Basilicata? Trovo,<br />

innanzitutto, già una traccia: tra i personaggi identificati a Potenza scopro dei musicanti<br />

migranti che dichiarano di avere precisamente il Brasile come meta definitiva: così Vincenzo<br />

Nicola De Cunto, nato a Viggiano, che dichiara nel 1865 di voler raggiungere Río de Janeiro,<br />

e Nicola María La Salvia che, tre anni dopo, manifesta di volersi spostare nella stessa città<br />

carioca. 7<br />

Settecento<br />

Un altro stimolo alla collaborazione con gli studiosi brasiliani riguarda i viaggi<br />

che musica e musicisti hanno realizzato nel XVIII secolo. Uno di questi movimenti musicali<br />

mi portò a inseguire le musiche di Giacomo Facco fino al Portogallo di Joao V 8 . Il musicista<br />

che era oggetto dei miei interessi aveva composto melodrammi in occasione del doppio<br />

matrimonio celebrato nel 1729 tra i figli del monarca lusitano con gli eredi di Filippo V di<br />

Spagna. La considerazione che di Facco aveva la corte Bragança fu tale che il fastoso<br />

resoconto dell’evento pubblicato a Lisbona 9 non dimenticò di menzionare la partecipazione<br />

di Facco sebbene trascuri il nome del maestro di musica di uno delle contraenti, la Principessa<br />

Maria Barbara di Bragança, nientemeno che Domenico Scarlatti. Diversi personaggi<br />

che talvolta indirettamente avevano a che vedere con Giacomo Facco, hanno attirato<br />

allora la mia curiosità. Il primo fu Antonio José Da Silva. Di Da Silva avevo notizie soprattutto<br />

attraverso Lange il quale, affidandomi copie da lui conseguite a Vila Viçosa, mi spinse a<br />

restaurare ed eseguire le musiche che furono composte per il suo teatro de bonecos. O<br />

...........................................................................<br />

7 ASP, código: 186515038.<br />

8 Cetrangolo, A. E., Esordi del melodramma in Spagna, Portogallo e America. Giacomo Facco e le cerimonnie del<br />

1729, Olschki, Firenze, 1992.<br />

9 Da Natividade, J., Fasto de Hymeneo ou Historia Panegyrica dos desposorios dos Fidelissimos Reys de Portugal<br />

nossos Senhores, D. Joseph I e D. Maria Anna Vitoria de Borbon, que dedica e consagra à mesma Fidelissima<br />

Majestade, dà Rainha nossa Senhora. Fr. Joseph Da Natividade, Prégador Géral da Ordem dos Prégadores, na<br />

província de Portugal, Oficina de Manoel Soares, Lisbona, 1752.<br />

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47<br />

Judeu, nella ricerca su Facco, si mostrava come un ideale antagonista del mio personaggio<br />

centrale: i suoi spettacoli di teatro musicale sembravano avversare emblematicamente<br />

gli spettacoli di corte come quelli che Facco presentava, tanto è vero che, dopo che l’italiano<br />

mostrò con gran pompa il suo Júpiter y Anfitrión, Da Silva scrisse il suo Amphitrião. In un<br />

senso molto diverso, un personaggio che centrò il mio più vivo interesse in quegl’anni fu il<br />

poliedrico Conte di Ericeira. Ericeira, sebbene nobile, era sedotto da un universo più aperto<br />

rispetto alla soffocante corte Bragança, e nel mio libretto funzionava come trait d’union<br />

tra Da Silva ed il Marchese de los Balbases, protettore di Facco e ambasciatore straordinario<br />

di Filippo V di Spagna a Lisbona. L’ideale cast di quel melodramma – ovviamente serio, se<br />

si tiene conto del tremendo rogo con che conclude la partecipazione in scena del povero<br />

Da Silva – si completava nel mio racconto con l’attuazione di musicisti che non conoscevo<br />

prima: gli italiani residenti in Portogallo Avondano e Mazza.<br />

Sebbene uno dei miei primi lavori in Italia si era già centrato sull’itinerario di<br />

musicisti emigrati nelle Americhe10 , successivamente a quell’interesse per Facco sono<br />

tornato sull’argomento percorrendo un tratto di quel trasloco artistico, quello che, partendo<br />

da Novi Ligure proseguiva verso Lisbona fino ad arrivare a Buenos Aires11 . È chiaro che<br />

urge giustificare un così curioso punto d’inizio di quel viaggio: per ché Novi Ligure? Va<br />

presto detto, Novi era la patria di quei musicisti che avevo conosciuto a Lisbona e che<br />

erano riusciti ad attirare la mia curiosità. Rogerio Budasz12 s’interrogò sull’arrivo di cantanti<br />

d’opera in Portogallo e sugli strumentisti Mazza e Avondano s’interessarono diversi studiosi<br />

lusitani, fondamentalmente Manuel Carlos de Brito. Di questi ultimi personaggi si<br />

conoscevano, però, soltanto dati delle loro attività in Portogallo: non sono mai stati studiati<br />

in Italia e della loro vicenda nella penisola non rimane traccia. Il mio lavoro dunque fu<br />

quello di realizzare un esame degli archivi parrocchiali di Novi per stabilire dati anagrafici<br />

certi e ricostruire legami famigliari, cosa fondamentale giacché, al meno per il caso dei<br />

Mazza che passarono in Portogallo, era chiaro il reciproco vincolo di sangue.<br />

Mazza<br />

Contemporaneamente all’arrivo di cantanti d’opera in Portogallo che hanno<br />

interessato anche Rogerio Budasz 13 e che procedevano dall’Italia, arrivarono anche<br />

strumentisti, fondamentalmente violinisti. Molti di loro procedono da un piccolo centro<br />

vicino Genova, Novi. Si tratta di Pietro Avondano e dell’importante famiglia Mazza. Su di<br />

loro ha scritto tempo fa Manuel Carlos de Brito e personalmente me ne sono occupato di<br />

recente in un testo pubblicato a Madrid 14 dopo aver fatto uno spoglio negli archivi di Novi<br />

per ricostruire i legami famigliari. Ebbene un personaggio di questa famiglia, Bartolomeo<br />

Mazza, violinista e compositore, si trasferì a Buenos Aires in una nave nella quale viaggiavano<br />

anche italiani che avrebbero contribuito notevolmente alla rivoluzione indipendentista<br />

del Rio de la Plata. Un dato notevole sottolinea ancora il bisogno di studi congiunti<br />

che coinvolgano la musicologia del Brasile: quando Mazza arriva a Buenos Aires gli viene<br />

commissionata la composizione di un’opera. Forse si tratta della prima opera composta<br />

nella regione. L’opera aveva come titolo niente meno che Las Variedades de Proteo, uno<br />

dei titoli più celebri del carioca Antonio Jose da Silva. Mazza aveva conosciuto il testo dai<br />

...........................................................................<br />

10 Cetrangolo, A. E., Napoli, Madrid, Messico e Buenos Aires: alcuni dati su musicisti pugliesi in America Latina<br />

nel Settecento in: Musicisti nati in Puglia ed emigrazione musicale tra Seicento e Settecento. Atti del Convegno<br />

Internazionale di Studi Lecce, 6-8 dicembre 1985, La Torre d’Orfeo, Roma, 1988, p. 337-358.<br />

11 Cetrangolo, A. E., Familias de músicos lígures migran hacia Oeste: nuevos datos sobre los Avondano y los<br />

Mazza in Concordis Modulationis Ordo, Ismael Fernández de la Cuesta. In Honorem, Inter-American Music Review,<br />

vol. XVIII, 1-2, 2008, p. 247-264.<br />

12 Budasz, R., op. cit., p. 8.<br />

13 Budasz, R., op. cit., p. 8.<br />

14 Cetrangolo, A. E., Familias de músicos lígures… cit.<br />

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48<br />

suoi parenti residenti in Portogallo? Aveva invece soggiornato in Brasile prima del suo<br />

arrivo a Buenos Aires?<br />

Tutto questo accadde mesi dopo le festività in onore delle nozze tra l’infante<br />

Don Pedro e la Principessa Donna Maria, che hanno motivato le costruzione carioche effimere<br />

che Budasz menziona. Avrà partecipato Mazza a quelle feste? La verità è che lui è<br />

coinvolto subito dopo, a Buenos Aires, nelle analoghe celebrazione encomiastiche dovute<br />

all’esaltazione al trono di Carlo III. 15<br />

Il cognome Mazza richiamava anche un personaggio di enorme importanza per<br />

la storia della musica sudamericana, Bartolomeo Mazza, chi viaggiò a Buenos Aires e morì<br />

a Lima. Fu, molto probabilmente il primo compositore moderno a scrivere un’opera nel<br />

Rio de la Plata. Mazza s’imbarcò a Cadice nel 1752 nel Nuestra Señora del Rosario e condivise<br />

la sua traversata atlantica con italiani che avrebbero posto il seme dell’insurrezione<br />

liberale del Rio de la Plata: il commerciante ligure Domenico Francesco Belgrano ed il<br />

medico veneziano Angelo Veneziano Castelli. I figli di Belgrano e Castelli sarebbero diventati<br />

determinanti nelle lotte indipendentiste del Rio de la Plata contro i Borboni spagnoli.<br />

Ebbene, i risultati di quel lavoro di ricerca a Novi hanno permesso di ricostruire<br />

un albero genealogico dove furono individuati non solo i personaggi che compaiono nei<br />

documenti portoghesi, si stabilì anche il loro rapporto parentale diretto con Bartolomeo<br />

Mazza. Grazie ai documenti di parrocchia fu possibile stabile molte delle date di nascita di<br />

questi musicisti, tra gli altri quella di Bartolomeo, e fu anche chiarito il rapporto di Romão<br />

Mazza, attivo in Portogallo con la sua famiglia di Novi. Fu stabilita anche la corretta grafia<br />

del cognome di questi artisti, cioè Mazza e non Massa.<br />

Attraverso la vicenda di questi musicisti è possibile intuire il nuovo scenario sociopolitico<br />

che tanto avrebbe modificato i meccanismi di produzione artistica, cioè la committenza<br />

e l’impresa. Bartolomeo Mazza, infatti, è chiaro esempio del musicista dei nuovi<br />

tempi, quello che si lancia alla terra sconosciuta senza protezioni tentando un’impresa<br />

personale.<br />

Nella nuova terra, terra di contrabbandieri spregiudicati, Mazza incontra altri<br />

personaggi impavidi come il flautista impresario Domenico Saccomano di Bari. Entrambi<br />

condivisero una rischiosa impresa che vide la fugace costruzione del primo spazio di opera<br />

imprenditoriale a Buenos Aires. L’attività fu mal vista dalle autorità ecclesiastiche, il che<br />

ricorda le censure dell’Ancien Regime, ma il negozio fu disturbato anche, segno invece dei<br />

nuovi tempi, da una litigiosa cantante che portò Saccomano nei tribunali.<br />

Diversi particolari di queste vicende richiamano con forza il bisogno dello spoglio<br />

dei fondi brasiliani.<br />

Infatti, gli studi che hanno trattato la materia16 , non molti in realtà, insistono<br />

sulla pratica di rappresentare a Buenos Aires opere con marionette, come quelle che Antonio<br />

José da Silva aveva utilizzato nella sua sala di Lisbona; si menziona anche sovente che<br />

i cantanti di Saccomano provenivano dal Brasile, cosa che confermerebbe il cognome<br />

della cantante che litiga con Saccomano: Mascarenhas.<br />

Ma ancora di più attira potentemente l’attenzione il titolo dell’opera che presenta<br />

Mazza a Buenos Aires in occasione delle celebrazioni locali in onore d Carlo III, niente<br />

meno che Las Variedades de Proteo, con tutta possibilità quel testo di Da Silva, che Antonio<br />

Teixeira aveva musicato nel teatro del Bairro Alto.<br />

Le domande che s’impongono dunque sono: arrivarono i musicisti Mazza, parenti<br />

di Bartolomeo in Brasile? Bartolomeo ebbe conoscenza del testo di Da Silva in Portogallo<br />

...........................................................................<br />

15 Budasz, R., op. cit., p. 28.<br />

16 Così Trenti Rocamora, J. L., El teatro en la América colonial, Huarpes, Buenos Aires, 1950, e Gesualdo, Vicente,<br />

Historia de la música en la Argentina, Beta, Buenos Aires, 1961.<br />

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49<br />

o in Brasile? Esistono documenti brasiliani che provino la presenza di Saccomano e Mazza<br />

in Brasile?<br />

Ottocento<br />

Il periodo delle grandi migrazioni europee verso le Americhe è, come già s’annunciò,<br />

argomento centrale delle attuali attività dell’IMLA. Strategia fondamentale di questi<br />

studi è l’elaborazione di una banca dati raccoglitrice d’informazioni varie relative all’attività<br />

lirica di quegli anni. Quel contenitore ospita dati desunti tanto dallo spoglio di pubblicazioni<br />

periodiche come di cronologie di teatri lirici italiani, spagnoli, uruguaiani ed argentini. I<br />

materiali sono organizzati tramite due sentieri: quello dei nominativi degli operatori artistici<br />

e quello dei titoli dei melodrammi. Grazie alla fusione all’interno di questo strumento dei<br />

dati che provengono da luoghi diversi, è possibile stabilire relazioni fino adesso sconosciute,<br />

che potrebbero essere utilmente arricchite con l’aggiunta d’informazioni brasiliane.<br />

Il caso Bernardi<br />

La Base Dati Imla portò recentemente tra gli interessi di primo piano una figura<br />

dimenticata: Enrico Bernardi. Questo risultato è dovuto alla prossimità che nell’elenco informatico<br />

hanno trovato dati di provenienza diversa: quelli, scarsissimi della letteratura<br />

musicologica argentina, quelli sostanziosi desunti dalla lettura che membri dell’Imla hanno<br />

realizzato su periodici veneziani e quelli che ha raccolto Márcio Páscoa sul Teatro di Belém.<br />

Di Bernardi si era interessato, nel 1988, Juan María Veniard 17 chi menzionava,<br />

studiando Arturo Berutti, Enrique (sic) Bernardi, 18 compositore dell’opera Juan Moreira,<br />

che avrebbe svolto qualche attività a Buenos Aires, nel malfamato Teatro Doria, e anche<br />

nell’allora appena fondata città argentina di La Plata. Sulle vicende di Bernardi precedenti<br />

quel soggiorno argentino, apparentemente breve, Veniard dà alcune notizie della sua<br />

traiettoria in Brasile oltre che in Italia, sua Patria.<br />

Sono stato attratto dalla personalità di questo italiano in quanto, sebbene rimane<br />

esigua traccia della sua musica scritta, quel melodramma sul mitico personaggio della<br />

pampa ben potrebbe significare l’esordio della serie delle opere composte in Argentina<br />

intorno la figura emblematica del gaucho. Certo, l’operazione era carica di un’indubbia<br />

valenza extramusicale. Attraverso l’opera, genere culturale che allora godeva del più alto<br />

prestigio, l’elite locale anelava a costruire un repertorio nazionale lirico, ed in questa<br />

strategia la figura mitizzata dell’uomo della campagna risultava indispensabile. In tale<br />

contesto sorprende lo stridente disinteresse che su Bernardi hanno dimostrato gli storici<br />

della musica locale, soprattutto se si ricorda che non pochi di loro hanno considerato il<br />

proprio lavoro come un’occasione per “contribuir a la creación del ser nacional”. Si sprecava<br />

così, come direbbe Hobsbawm, una magnifica opportunità per partecipare a “The Invention<br />

of Tradition”. Significativamente, nemmeno la “patriottica” Enciclopedia de música argentina<br />

di Rodolfo Arizaga dedicò una voce alla figura di Bernardi. Trovo probabile che<br />

abbia contribuito a tali silenzi una ferita narcisista all’onore nazionale, cioè l’indissimulabile<br />

nazionalità dell’autore dell’operazione. Mentre sovente furono “argentinizzati”, anche nel<br />

loro nome, musicisti peninsulari attivi in Argentina come Vittorio De Rubertis, Sante Discepolo,<br />

Giovanni Grazioso Panizza o Pietro Melani, l’operazione con quel Bernardi, di fugace<br />

residenza nel paese, era impossibile. Risultava dunque intollerabile per quell’intellighenzia<br />

...........................................................................<br />

17 Veniard, J. M., Arturo Berutti, un argentino en el mundo de la ópera, Instituto Nacional de Musicología “Carlos<br />

Vega”, Buenos Aires, 1988.<br />

18 Il cognome Bernardi è molto diffuso in Italia, soprattutto a Milano e nel veneziano. Sarà necessario evitare di<br />

conffodere questo musicista con un suo collega, attivo in quegli anni nel Veneto. Infatti, G. B. Bernardi è autore<br />

di una romanza di fortuna, “Non ti scordar”, che fu pubblicata a Padova intorno il 1885. Questo è indicato da La<br />

Gazzetta di Venezia, 2 de diciembre de 1886.<br />

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50<br />

argentina che era impegnata nella costruzione di emblemi nazionali, riconoscere che non<br />

solo fu una troupe di genovesi – i Podestà – a portare al teatro la figura del gaucho, ma che<br />

fu ancora un italiano il primo a cantare in un melodramma la vicenda del personaggio<br />

emblematico della Patria.<br />

Ho cercato informazioni di Bernardi fuori dell’Argentina. Dalla base dati Imla<br />

risulta che Enrico Bernardi nacque a Milano nel 1838 e morì nella stessa città nel 1900. Il<br />

musicista fu trombonista e anche compositore.<br />

I cataloghi italiani elencano programmi della Scala che tra 1857 fino il 1862<br />

mostrano il suo nome, a volte scritto “Enrico De Bernardi”. Fino il 1857, il nostro, compare<br />

nelle liste assieme ad un altro trombonista dello stesso cognome di nome Luigi, forse suo<br />

padre. Dai documenti risulta che Bernardi suona in spettacoli che si presentano anche in<br />

un’altra celebre sala milanese: il Regio Teatro alla Canobbiana. 19<br />

La sua attività compositiva è molto estesa e varia sebbene tradisce una predilezione<br />

per la danza. Le sue prime musiche per la scena – un balletto del titolo Le illusioni<br />

d’un pittore presentato nel Teatro della Canobbiana di Milano – sono del 1854. Tre anni<br />

dopo, sempre alla Canobbiana in collaborazione con Luigi Madoglio compone un’”azione<br />

coreografica in sei quadri di Agrippa Pinzuti” del titolo Juanita. Per la stessa sala firma<br />

Una colpa: azione mimica in sei quadri di Federico Fusco. In quel periodo – Bernardi ne è<br />

un esempio – è preponderante negli argomenti per balletti la tematica feèrica e un po’gotica,<br />

così per la Scala compose Zeliska nel 1860, un “balletto fantastico danzante in 3 atti”<br />

essendo ancora Fusco il coreografo dell’occasione. Nell’importante cronologia del Teatro<br />

alla Scala pubblicata in quegli anni20 , sebbene quella fonte citi come produzioni scaligere<br />

due balletti che sono di Bernardi Marco Visconti ed il già menzionato Zeliska, il testo<br />

segnala come unico responsabile degli spettacoli al coreografo Federico Fusco. In quella<br />

fonte si menziona addirittura il nome del pittore delle scene – Filippo Peroni – ma non<br />

quello di Bernardi. Quell’omissione è dovuta forse al carattere esordiente del nostro come<br />

compositore. Bernardi, per la Scala, era innanzitutto un membro dell’orchestra del Teatro<br />

e nel teatro lirico si praticava allora, come anche oggi, una consuetudine scortese: quella<br />

di non considerare artisti di primo piano i componenti dei corpi stabili come l’orchestra ed<br />

il coro. Sono certo che nel ’60 Bernardi era ancora trombonista della Scala giacché trovo il<br />

suo nome in un programma che elenca con dettaglio i nomi degli strumentisti<br />

dell’orchestra. 21 Quei due balletti di Bernardi, comunque, meritarono repliche altrove e i<br />

programmi di sala corrispondenti confermano la sua paternità. Zeliska fu presentato sette<br />

anni dopo al San Carlo di Napoli dove furono inserite anche un paio di danze di Luigi<br />

Madoglio e Giuseppe Giaquinto, Marco Visconti si presentò al Regio di Torino, a Firenze e<br />

Roma. Quest’ultimo balletto si basava nel celebre testo di Tommaso Grossi, Marco Visconti:<br />

...........................................................................<br />

19 Queste le presentazioni che, secondo l’Istituto Centrale per il Catalogo Unico delle Biblioteche Italiane, mostrano<br />

programmi con partecipazione orchestrale milanese di Enrico Bernardi: 1854: Il trovatore, Marco Visconti (di<br />

Domenico Bolognese), 1855: Giovanna De Guzman, I Lombardi alla prima crociata, Ines di Mendoza (di Francesco<br />

Chiaromonte), 1856: Fanciulla delle Asturie (di Benedetto Secchi), 1857: Giovanna De Guzman, Jone (di Errico<br />

Petrella), Nabucco; 1858: Il duca di Scilla (di Errico Petrella), L’ Uscocco (di Francesco Petroncini), Pelagio (di<br />

Mercadante), Simon Boccanegra, Vasconcello (di Angelo Villanis), 1859: Fausta (di Donizetti), Il crociato in Egitto<br />

(di Meyerbeer), Maria de’Ricci (di Ferdinando Asioli), Marta, 1860: Corrado Console di Milano (di Paolo Giorza),<br />

Giuditta (di Achille Peri), Il carnevale di Venezia ovvero Le precauzioni (di Errico Petrella), 1861: I Capuleti ed i<br />

Montecchi, Preziosa (di Ruggero Manna), Tutti in maschera (di Carlo Pedrotti), 1862 Gemma di Vergy.<br />

20 Teatro alla Scala, cronologia di tutti gli spettacoli rappresentati in questo teatro dal giorno del solenne suo<br />

aprimento sino ad oggi con Introduzione ed annotazioni compilate da Luigi Romani, Tip. di Luigi di Giacomo<br />

Pirola, Milano, 1862.<br />

21 Si tratta di una Gemma di Vergy che si presentò nella primavera del 1862, cioè due anni dopo la Zeliska di<br />

Bernardi. Il nome del nostro musicista è compreso nel lungo elenco degli operatori musicali che lavorarono in<br />

quella recita. Il libretto si trova nella Biblioteca del Conservatorio di musica Giuseppe Verdi, Milano - MI [fondo/<br />

segnatura] Libretti K.2 con il numero di catalogo Biblioteca del Conservatorio di musica Giuseppe Verdi, Milano<br />

- MI [fondo/segnatura] Libretti K.2. Il numero di catalogo era BI90132200923.<br />

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51<br />

storia del Trecento, cavata dalle cronache di quel tempo che ispirò anche un melodramma<br />

famoso di Enrico Petrella. Nel 1868 Bernardi presentò un “ballo grande” nel Teatro Ciniselli<br />

dal titolo Gretchen. La musica era stata scritta in collaborazione con Giuseppe Scaramelli.<br />

Scaramelli era autore del primo ballabile e dell’atto secondo. Il balletto comprendeva uno<br />

scottisch e anche una scena fantastica delle Willi. Impossibile non ricordare che questo<br />

brano collegava all’ambiente scenico che il futuro collaboratore di Bernardi, lo scrittore<br />

Fontana, avrebbe sfruttato per la prima opera di Puccini. Gretchen fu presentato a La Fenice<br />

nella Quaresima del 187222 . Arrivò, invece, alla Scala nella Quaresima del 1885 e<br />

questa volta il nome di Bernardi fu pienamente riconosciuto dal teatro come quello di un<br />

compositore23 . Un altro ballo romantico fantastico in sei atti del nome La Fata nix per le<br />

coreografie di Luigi Danesi salì alle scene del Teatro Apollo di Roma nel 1871. La musica<br />

era di Bernardi in collaborazione con altri compositori come Paolo Giorza, Gustavo Rosari<br />

e Leopoldo Angeli. Nella Quaresima del 1872. La Fata nix arrivò alla Fenice, dunque in<br />

contemporanea con la riposizione di Gretchen. Nello stesso 1872 Bernardi presentò il<br />

“ballo storico” Cola di Rienzi con la coreografia di Giovanni Pogna. L’anno successivo Bernardi<br />

tornò al mondo delle fate ed esibì Lo specchio infernale: ballo fantastico in sei quadri<br />

e sette scene del coreografo Luigi Bonesi Da rappresentarsi nel Teatro della Concordia in<br />

Cremona, pel Carnevale.<br />

La disseminazione del nome di Benardi arrivò a luoghi più intimi: molte delle<br />

danze dei suoi balletti, come quelle del famoso Cola di Rienzi24 si ascoltavano nelle case<br />

italiane tramite le abituali trascrizioni per pianoforte. Bernardi le pubblicò indistintamente<br />

con Lucca, Ricordi e Sonzogno e non solo. Nello stesso anno lo stesso editore presentò anche<br />

una “Polka” e un “Valzer dei Cavalieri” del balletto Ate. Tanto quest’ultimo ballo come<br />

Cola di Rienzi erano musiche che sulla scena furono danzate con coreografie di Giovanni<br />

Pogna.<br />

Oltre a queste musiche che il pubblico conosceva dal teatro, Bernardi scrisse<br />

altri brani dedicati al salotto famigliare. Seguì spesso la moda dei balli che allora facevano<br />

furore come uno “Schottisch” dedicato all’attrice Elvira Raspini25 . Due anni dopo, Lucca<br />

stampa il galop “Colpa” dedicato al Maestro della Banda Civica, Gustavo Rossari. Evidentemente<br />

lo stesso editore pensava al mercato francese quando nella copertina di un certo<br />

brano si legge: “Rêve de bonheur, mazurka pour piano par Henri Bernardi”. Nel 1878<br />

Sonzogno gli pubblica la polka “Bordeaux”. Nel 1878 e anche nel 1884, Lucca edita due<br />

titoli di Bernardi: “Grand pot pourri caratteristico: partenza in tramvai – ritorno in Ferrovia”<br />

e “A estrada de Ferro de Bragança, galop dedicato a Ao Illmo Sr. Manuel Jose e Silva Potector<br />

de tudos os artistas”. Tanto quel pot pourri come quel galop riflettono la sensibilità tipica<br />

che per i moderni trasporti di locomozione mostrava la società e che raccoglieva la musica<br />

più leggera. I brani del milanese sono pubblicati contemporaneamente alla più celebre<br />

musica di locomozione: “Funiculì, Funiculà”, che è del 1880. Ricordi pubblicò nel 1886, un<br />

brano che sembrava, come il precedente galop, arrivare dall’estero. Infatti, titolo e autore<br />

sono indicati così “Onca, valsa para piano por Henrique Bernardi” 26 . All’elenco possono<br />

aggiungersi molte altre danze di Bernardi che portano nomi suggestivi come il galop<br />

...........................................................................<br />

22 La Casa di Carlo Goldoni, a Venezia, conserva una copia del libretto di Gretchen per l’edizione lagunare. Il<br />

numero di catalogo è il seguente: BI98102900002.<br />

23 Gretchen: ballo romantico-fantastico in 8 quadri, del Cav. Luigi Danesi; riprodotto da Cesare Coppini; con<br />

musica dei maestri Enrico Bernardi ed Angelo Venanzi. Biblioteca comunale - Palazzo Sormani – Milano. codice<br />

IT\ICCU\LO1\1201808.<br />

24 Lucca pubblicò nel 1873 brani come il “Galop pirrico”, la “Marcia trionfale” del secondo atto e anche un<br />

esotico “Ballabile dei Saraceni.<br />

25 Ricordi, Milano, 1858.<br />

26 Il pezzo è dedicato “Ao exmo. se.r Manoel A. V. de Andrade”. Biblioteca del Conservatorio di musica Giuseppe<br />

Verdi, Milano - MI [fondo/segnatura] 1.A.59.37.<br />

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52<br />

“Sciabolate”, la polka “Passarin” o la mazurka “Sottovoce”. Sovente queste musiche furono<br />

pubblicate in forma di raccolte come un Album musicale che pubblicò il giornale Il Gazzettino<br />

Rosa per omaggiare i suoi abbonati nel 186927 .<br />

Talvolta le pagine sono servite a Bernardi per commemorazioni funebri come<br />

due pezzi del 1873 in memoria di Alessandro Manzoni e di Francesco Lucca. 28 Una certa riduzione<br />

per pianoforte mostra che Bernardi compose anche un Requiem dedicato a Mario<br />

Tiberini29 . Inoltre il brano dedicato a Manzoni reca un’informazione supplementare: l’edizione<br />

menziona Bernardi come “direttore proprietario del corpo di musica di Porta Garibaldi.”<br />

Altri sforzi di Bernardi celebrano cerimonie più leggere come certe musiche di<br />

circostanza che furono dedicate all’Esposizione Nazionale di Milano del 188130 . Esse<br />

risultarono pretesto per inserire il piatto forte di Bernardi: una serie di danze. Questa la<br />

lista: “Introduzione, Suono festivo che annunzia l’arrivo delle Regioni Italiane, Canto del<br />

Meneghino, Piemonte-polka & Polka, Venezia e Napoli - valzer, Napoli-canzone napoletana,<br />

Toscana e Romagna - polka”. Più interessante per il suo carattere transoceanico è un certo<br />

notturno che pubblica Lucca, Saudade do Parà31 .<br />

Dall’inizio della sua carriera Bernardi mostrò grande sensibilità per gli eventi<br />

politici a lui contemporanei ed il suo esordio compositivo coincide con l’epopea del 1861.<br />

Un suo brano di banda precede di poco quell’anno: già nel 1859 Ricordi pubblica Della<br />

gloria e giunto il dì: marcia sopra motivi popolari/composta e ridotta per banda militare<br />

da E. Bernardi. Proprio nel 1861 Bernardi scrive, nel fervore degli eventi, la marcia<br />

“Volturno” per Lucca e che è dedicata “ai militi della 2.a Legione della Guardia Nazionale<br />

di Milano”. Quella musica fu eseguita dalla Banda Garibaldi. Un’ode del titolo “Il 9 gennajo<br />

a Vittorio Emanuele” con versi di Vittore Trevisan che incominciano con “Sperse le schiere”<br />

fu pubblicata dall’Editoria Musicale nella versione per canto e piano. Evidentemente, ai<br />

fini di queste ricerche è del maggiore interesse ritrovare negli scaffali delle biblioteche italiane<br />

una musica per pianoforte che Bernardi pubblicò a Buenos Aires. Si tratta della Marcia<br />

Porta Pia32 che fu distribuita nella colonia argentina di Buenos Aires come supplemento<br />

straordinario del giornale Il vessillo dell’arte del 28 settembre del 1891. In quel momento<br />

Bernardi era in Argentina.<br />

Come non poteva essere diversamente, Bernardi si esercitò in diverse occasioni<br />

come autore di teatro lirico. Il milanese presentò nel 1875 un’opera comica che intonava<br />

versi di Fontana, il Marchionn di gamb avert: opera buffa in tre atti con un cast composito33 ,<br />

che si esibì in prima al milanese Teatro del Castello il 14 luglio di quell’anno34 . Il libretto era<br />

del famoso poeta Ferdinando Fontana, uno “scapigliato” come Ghislanzoni e si basava su<br />

di un testo del 1816 del più famoso poeta dialettale milanese, Carlo Porta. A Milano tutti<br />

conoscevano quei versi che con spavaldo realismo iniziavano:<br />

...........................................................................<br />

27 Biblioteca del Civico Istituto musicale L. Folcioni, Crema – CR, codice IT\ICCU\DE\90131101188.<br />

28 Ad Alessandro Manzoni: per le sue esequie celebratesi a Milano il giorno 29 maggio 1873: preludio funebre,<br />

del maestro Enrico Bernardi direttore proprietario del corpo di musica di Porta Garibaldi / riduzione per pianoforte<br />

solo,: F. Lucca, Milano [1873], Biblioteca del Conservatorio di musica Giuseppe Verdi, Milano, segnatura: 1. A.<br />

59.25 e Alla memoria di Francesco Lucca: preludio funebre / di E. Bernardi; riduzione per pianoforte solo: F.<br />

Lucca, Milano [1873]. Biblioteca del Conservatorio di musica Giuseppe Verdi, Milano, segnatura: 1. A. 59.24.<br />

29 Requiem a Mario Tiberini: elegia, di E. Bernardi; riduzione per pianoforte dell’autore: F. Lucca, Milano, 1882.<br />

30 L’ Esposizione Nazionale del 1881 in Milano: ricordo musicale per pianoforte, di Enrico Bernardi, Editoria<br />

Musicale, Milano, 1881.<br />

31 Una copia nella Biblioteca del Conservatorio di musica Giuseppe Verdi, Milano - MI [fondo/segnatura] 1.A.59.33.<br />

32 Tip. del Vessillo dell’arte, Buenos Aires, 1891.<br />

33 Alessandro Bottero (Marchione), L. Binda (Santina Sgalisa), Eduardo Caracciolo (Scavion), Giuseppe Capello<br />

(Sgonfion), A. Guenoi (Marchesa Fariani); Gaetano Galli (Commissario).<br />

34 Manferrari, U., Dizionario universale delle opere melodrammatiche, Sansoni Antiquariato, (Tip. già G. Civelli),<br />

Firenze, 1954.<br />

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Moros dannaa, tradii de la morosa,<br />

pien de loeuj, de fastidi e pien de corna 35<br />

Quel contatto di Bernardi con Fontana è rilevante in attenzione alle relazioni tra<br />

Milano e ambienti lontani. Il poeta, un milanese come Bernardi, fu un curioso personaggio<br />

che a causa delle sue idee repubblicane dovette migrare in Svizzera dove morì nel 1919. I<br />

versi di Fontana erano molto conosciuti soprattutto quando accompagnavano musiche<br />

più leggere. Le operette viennesi si cantavano in Italia nella sua versione tradotta e Fontana<br />

firmò molte canzoni con il famosissimo Paolo Tosti come: “E morto Pulcinella!”, “Allora ed<br />

oggi!!” e “Senza di te”. La sua collaborazione con Bernardi avrà certamente contribuito<br />

alla notorietà del compositore. Lo scrittore collaborava con altri colleghi come Luigi Illica<br />

con chi scrisse qualche commedia comeINarbonnerie-Latour, ed era in contatto con<br />

Amilcare Ponchielli. Ponchielli, per conto suo, fu il tramite tra Fontana ed il giovane Puccini.<br />

Ma Fontana, poeta delle prime fatiche liriche del compositore toscano – Le villi ed Edgar<br />

– e dell’Asrael di Alberto Franchetti fu anche librettista della Maria Petrowna di João<br />

Gomes de Araújo.<br />

Bernardi fece incursione anche nella composizione dei melodrammi seri. Il primo<br />

di questi lavori, che preparava il ben diverso esordio del genere lirico gauchesco in Argentina,<br />

fu Faustina dramma lirico in un prologo e tre atti che l’autore compose nel 1868<br />

per presentarlo nel Teatro Sociale di Lodi. Faustina intonava un libretto di Giovanni Inverni<br />

e nel giugno del 1869 si cantò nel Teatro Ciniselli con il titolo I Romani nelle Gallie 36 . Dieci<br />

anni dopo, il compositore, nelle stesse scene di Lodi mostrò un titolo molto più pretenzioso<br />

che merita un’attenzione speciale: Patria!... dramma lirico in 4 atti/versi di Ferdinando<br />

Pagavini che fu rappresentato per la prima volta al Teatro Sociale di Lodi la sera del 5<br />

febbrajo 1879. Anche se il cast era esiguo comprendeva due parti per soprano, una<br />

drammatica, il ruolo di Dolores e una leggera, la parte di Raffaela. 37 L’opera si basava su di<br />

una famosa pièce del “maestro del “drammone” ottocentesco, Victorien Sardou”. Il testo<br />

aveva interessato lo stesso Verdi e la possibilità di una collaborazione con il compositore<br />

lusingava molto lo scrittore francese, ma Verdi, dopo un’attenta valutazione della cosa,<br />

come racconta Budden, scartò l’idea 38 . Il compositore, sebbene considerò la creazione di<br />

Sardou, Patrie! “bel dramma, vasto, potente e soprattutto scenico” e foriero di nuove<br />

“situazioni” trovò un ostacolo il ruolo che avrebbe dovuto assumere la prima donna:<br />

“Peccato che la parte della donna sia di necessità odiosa.” In una lettera a Giulio Ricordi<br />

Verdi è molto più lapidario, di quel testo “non vi è da far musica. Vi sono due, tre o quattro<br />

pezzi belli e fatti, ma l’opera non v’è…” Ricorda Budden che lo stesso Verdi: “Si offri di<br />

ottenere da Sardou l’autorizzazione perché fosse il giovane Faccio, in vece sua, a musicarla,<br />

ma non era questo che il drammaturgo voleva, e così per il momento la faccenda non<br />

procedette oltre. Alla fine la Patrie! dello scrittore francese fu trasformata in opera da<br />

Lauro Rossi con il titolo di La contessa di Mons. (1874). 39 Il libretto allora fu di Marco<br />

...........................................................................<br />

35 Amanti dannati, traditi dalla morosa / pieni di tedio, fastidi e pieni di corna. Beretta, C., Letteratura dialettale<br />

milanese. Itinerario antologico-critico dalle origini ai nostri giorni, Hoepli, Milano, 2003, p. 84.<br />

36 Il cast era il seguente: Giuseppe Vagner (Trimalcione, nobile patrizio e Diavolo, patrizio romano), Eusebio<br />

Torriani (Guilerno, schiavo), Giuseppina Levi (Enoria, schiavo), Raffaele Angelini (Clodio, Mercante di Schiavi),<br />

Enrico Geminiani (Faustina, patrizia romana), Francesco Zucchi (Montelibano, gladiatore), Alessandro Trabattoni<br />

(un eunoco servo di Siomar).<br />

37 Il cast era il seguente: il baritono Vincenzo Greco (Conte di Rysoor), il soprano Ginevra Colombo (Dolores), il<br />

tenore Carlo Pizzorni (Karloo), il basso Lorenzo Meneghello (Duca d’Alba), il soprano Giulia Welmi (Raffaella), il<br />

basso Marco Pavesi (Rincon) e il tenore Luigi Minotti (Noircames).<br />

38 Budden, J., Le opere di Verdi, vol III, p. 174, EDT, Torino, 1988 [The Operas of Verdi, Cassel, Londra, 1981], p.<br />

173.<br />

39 Budden, J., op. cit., p. 174.<br />

53<br />

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54<br />

D’Arienzo. Una volta arrivato, in questo modo travagliato, allo scenario lirico, il testo di<br />

Sardou diventò altre volte melodramma. Il lavoro di Bernardi su quel testo rifiutato da<br />

Verdi succedette così di cinque anni il lavoro del compatriota Rossi ma ancora nel 1886<br />

Patrie! divenne, grazie a Émile Paladilhe un dramma lirico in cinque atti cantato in francese.<br />

Il New York Times, del 26 dicembre del 1886, pochi giorni prima della presentazione dell’<br />

opera di Paladilhe, mostra di ignorare i melodrammi di Rossi e Bernardi e non prevede un<br />

grande futuro per l’operazione di Paladilhe: “The play is very scenic and highly spectacular<br />

but I do not think it will be a success, because it wants as a whole, the soul of music. 40 ”<br />

Malgrado questa infausta profezia l’opera del francese riscosse un buon successo e dopo<br />

la prima che ebbe luogo all’Opèra il 30 dicembre del 1886 fu rappresentata sovente prima<br />

della Grande Guerra.<br />

Nell’ambito del teatro musicale più lieve, il poliedrico Bernardi compose El granduca<br />

de Gerolstein: operetta buffa con prosa in dialetto: rappresentata al Teatro Milanese<br />

per la prima volta il 3 gennaio 1871/poesia di Cletto Arrighi. Lo spettacolo, come era abituale<br />

nel genere, riuniva ruoli cantati e recitati41 . Va detto che il sopranome Cletto Arrighi<br />

nascondeva l’identità di Carlo Righetti. Lo stesso anno presenta A Zig-zag. Rivista fantasmagorica<br />

del triennio 1871-3 e nel 1877 la rivista d’indubbio tono leggero, Minimpipi.<br />

Di tutt’altro carattere altre preoccupazioni del milanese: Bernardi, mentre suonava<br />

alla Scala dedicò fatiche alla didattica del flicorno basso42 e pubblicò anche uno schema<br />

didattico organologico43 .<br />

Grazie alla proficua lettura di pubblicazioni periodiche veneziane ho imparato<br />

che Bernardi fu ben noto a Venezia essendo celebrato come direttore della banda cittadina,<br />

quella che si esibiva regolarmente a Piazza San Marco. Da quei dati si conferma che Bernardi<br />

era soprattutto famoso in funzione della sua musica ballabile: la banda, anche se diretta<br />

da altri musicisti, eseguiva spesso galops e polke estratte dai suoi balletti Cola di Rienzi,<br />

Fata Nix e Ate. Ma sempre dalla lettura dello stesso giornale, si evince che i veneziani potevano<br />

seguire anche la fortuna dei suoi melodrammi. Infatti, La Gazzetta di Venezia<br />

pubblica notizie provenienti da Trieste di questo tenore: “ L’opera Patria!, del maestro<br />

Bernardi, nuova per Trieste, ha ottenuto l’altra sera un ottimo successo”. 44<br />

Bernardi fu anche direttore di orchestra, soprattutto di opera, e qualche dato<br />

proveniente dalle fonti italiane può dare idea dell’ambiente musicale che frequentava. Il<br />

musicista diresse sovente nel nord Italia soprattutto a Milano – alla Scala – e Torino. Il suo<br />

repertorio come direttore comprese opere famose del repertorio ma anche titoli marginali<br />

e sembra e la sua attività in tal ruolo sia stata particolarmente intensa dopo il 1872. A Torino<br />

presentò L’Ombra di Flotow e a Milano diresse Reginella di Gaetano Braga, Luce di<br />

Stefano Gobatti, Arrigo II di Antonino Palmintieri, La Valle d’Andorra di Halèvy ma anche<br />

Semiramide e La Gioconda. Una produzione scaligera di Aida, a ridosso della prima italiana<br />

dell’opera, lo trova nel ruolo di “regista supervisore”, niente meno che accanto a Francesco<br />

Faccio. Alla Fenice invece, come responsabile principale della produzione, si presentò nelle<br />

recite straordinarie del 1877 con una compagnia di canto di primissima linea e fu così che<br />

il milanese diresse l’indiscussa diva di quegli anni, Adelina Patti. Il programma di quella<br />

stagione comprendeva, tra dicembre e marzo, diversi titoli ma sicuramente la Patti fu<br />

diretta da Bernardi in La Traviata, Faust ed Il barbiere di Siviglia45 . L’attività di direttore lo<br />

trova anche in luoghi di minore importanza e così Bernardi fu spesso attivo sul podio del<br />

...........................................................................<br />

40 Sardou’s “Patrie” as an opera in: The New York Times, 26 dicembre del 1886.<br />

41 Biblioteche della Fondazione Giorgio Cini, Venezia - VE [fondo/segnatura] Rolandi - BER-BERN:<br />

IT\ICCU\DE\98103003824.<br />

42 F. Lucca, Milano, 1862.<br />

43 Gio. Canti, Milano, [s.d].<br />

44 23 de mayo de 1881.<br />

45 A cura di M. Girardi e F. Rossi, Albrizzi, Venezia, 1989.<br />

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55<br />

Teatro Concordi della città di Padova, da dove scrivo. Qui, tra il Natale del 1881 e il carnevale<br />

successivo presentò Les Huguenots con buon successo e celebre cast. Scrive il giornale<br />

veneziano: “A Padova ebbero prospere sorti gli Ugonotti, e si distinsero specialmente il<br />

soprano Bulicioff, e il tenore Novelli e il maestro concertatore Bernardi. 46 Leggendo con<br />

un po’ di attenzione si può capire che sebbene il critico scrivente era, all’occorrenza, capace<br />

di severità – bolla il coro di mediocre – loda il “chiarissimo” lavoro di Bernardi:<br />

L’orchestra è diretta dal chiarissimo maestro concertatore Bernardi Enrico […].<br />

Le masse corali vennero applaudite nel famoso ra-ta-plan. Nel capo d’opera dalla<br />

congiura sono rimaste nella mediocrità. Il complesso lascia di che dire […]. 47<br />

Ancora, in La Gazzetta di Venezia si legge dell’attività di Bernardi fuori dell’Italia.<br />

Il dato del periodico permette così d’identificare il musico attivo a Venezia e Padova con<br />

lo stesso oscuro personaggio che dirigeva a La Plata, e che collaborava anche con cantanti<br />

importanti e addirittura con il più celebre compositore brasiliano, Carlos Gomes. Il periodico<br />

scrive delle attività musicali di Bernardi a Pernambuco, questo pochi mesi dopo di quel<br />

Meyerbeer padovano. Lo spettacolo in tournée è di altissimo prestigio si annuncia e non<br />

soltanto perché della compagnia partecipa Libia Drog, che è il centro della notizia, ma<br />

anche perché dirigono due maestri che garantiscono il successo: Bernardi e Gomes, citati<br />

ambedue in rapporto di paritaria importanza (!).<br />

Notizie teatrali – Siamo lieti di registrare che la nostra concittadina Lidia Drog,<br />

artista di canto distintissima per voce bella, fresca e poderosa e per ottimo<br />

metodo di canto, meriti che acquistano particolare risalto della rara bellezza del<br />

viso e della figura, ha sollevato, al teatro S. Isabella di Pernambuco, un vero entusiasmo,<br />

in seguito al successo costante che la signorina Drog seppe ottenere<br />

in parecchie opere. – Lo spettacolo importantissimo, il che risulta non solo dai<br />

nomi degli artisti, tutti pregevoli, ma anche dai maestri che concertano e dirigono<br />

gli spettacoli, essendovi colà i maestri Bernardi e Gomez, imprime al successo<br />

della signorina Drog un vero valore artistico, e ci è caro rivelarlo. 48<br />

Il periodico non esagerava rispetto alla Drog. La cantante era un soprano molto<br />

noto, di attività internazionale nei più alti scenari: aveva cantato con divi come Francesco<br />

Tamagno nel primo teatro di New York. 49 L’artista era, infatti, molto conosciuta fuori d’Italia<br />

e la tournée brasiliana era moneta corrente per un’artista che, come ci risulta dal Data<br />

Base IMLA, si era presentata in Europa da Las Palmas a Bucarest e – assieme allo spagnolo<br />

Andrés Antón – in teatri d’America come il Guzmán di Caracas e le principali scene<br />

messicane ed è più che probabile che il maestro abbia accompagnato alla cantante in<br />

altre trasferte. 50 Trovare dunque il nome di Bernardi associato alla Drog prova di rimbalzo<br />

l’importanza del nostro direttore d’orchestra.<br />

L’elenco che fino adesso ho potuto ricostruire, sicuramente parziale, mostra una<br />

intensissima attività di Bernardi nelle diverse attività che ha svolto nel mondo musicale.<br />

La sua carriera lo mostra, soprattutto, inserito proficuamente nel competitivo ambiente<br />

dello spettacolo italiano di quegli anni, un ambiente affollato di personalità di primissimo<br />

...........................................................................<br />

46 28 de diciembre 1881.<br />

47 3 de enero de 1882.<br />

48 3 de septiembre de 1882.<br />

49 Precisamente si dice che la Drog rovinò il debutto del gran tenor al Metropolitan di New York al dimenticare il<br />

testo di “Selva opaca” nel Guglielmo Tell.<br />

50 Data base Imla Mig. Cd Rom, coordinamento, D. Pala, direzione scientifica, A. E. Cetrangolo.<br />

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56<br />

rango. Questo percorso italiano di Bernardi trova il musicista in collaborazione con le<br />

figure più note dell’ambiente artistico a lui contemporaneo. Bernardi ha diviso la scena<br />

con persone come Franco Faccio e Adelina Patti e abitava in una città che era un vero palcoscenico.<br />

Milano allora ospitava una ragnatela di personaggi e in quella rete Enrico Bernardi<br />

è sempre coinvolto. Fu amico di Carlos Gomes che risiedeva nella città e, del collega<br />

brasiliano, sovente diresse le opere. Nel 1884 si trovava a Milano oltre che Gomes anche<br />

un altro compositore, suo compatriota: João Gomes de Araújo e Milano era tanto la città<br />

di Bernardi come di Ferdinando Fontana, librettista di Bernardi, di Gomes de Araujo e perfino<br />

di Gomes e Puccini. L’ambiente meneghino risulta fertile per i contatti transatlantici<br />

come mostrano le collaborazioni dei brasiliani Gomes e Gomes de Araújo con il librettista<br />

di Aida, Antonio Ghislanzoni, ancora un lombardo.<br />

La presenza di quella compagnia italiana a Pernambuco, documentata dai periodici<br />

italiani, stimola lo studio delle fonti brasiliane, attività già in corso grazie all’utile raccolta<br />

di dati che sull’Ópera de Belém do Pará ha svolto Márcio Páscoa. 51 Da questa fonte<br />

apprendo che a Bernardi fu affidata nel 1880, la prima stagione lirica dello stupendo Teatro<br />

da Paz nella quale cantava la Drog. Bernardi, anni dopo, avrebbe avuto analogo onore<br />

inaugurando quel Teatro Amazonas, che il cinema ha reso ancora più famoso. Un altro<br />

dato mostra la rilevanza di Bernardi e della considerazione che di lui aveva Carlos Gomes:<br />

l’ìtaliano diresse la prima assoluta nella regione dell’opera brasiliana più famosa, Il Guarany.<br />

In quell’occasione, l’entusiasmo del pubblico di fronte all’opera del suo compatriota fu<br />

enorme, e secondo quanto si legge nei giornali locali, di fronte all’impossibilità di acclamare<br />

Gomes di persona per osannarlo, gli spettatori in delirio omaggiavano – anche nei finali<br />

d’atto – il direttore d’orchestra Bernardi, simulando fosse Gomes. Bernardi era<br />

rappresentante del Genio assente: “Após o primeiro ato, como o público não podía vitoriar<br />

pessoalmente a Carlos Gomes, chaumou à cena o maestro Bernardi, regente da orquestra,<br />

simulou que tinha em sua presença o imortal paulista e vitoriou-o estrondosamente.” 52<br />

Questo crescendo di foga culminò nel parossismo al finale dell’opera: “até que ao fim da<br />

peça a assistência já estava a delirar atirando ao palco as mais diversas oferendas, flores,<br />

poesias, hinos, presentes, etc.” 53<br />

Bernardi fu allora considerato, al di là dei propri valori musicali, come il sacerdote<br />

di una liturgia musicale patria. In quella stagione del 1880 il milanese presentò un<br />

programma completamente italiano. Ernani, Un Ballo in Maschera, Il Trovatore, Rigoletto,<br />

Norma, Lucrezia Borgia, Ruy Blas.<br />

Due anni dopo, Bernardi tornò a dirigere nello stesso teatro ma questa volta<br />

condividendo la responsabilità della stagione del teatro con lo stesso Gomes. Il brasiliano<br />

fu ricevuto come era facile supporre con una foga “feérica, apoteótica” 54 . Nel 1882, e<br />

questo conferma quell’annuncio del giornale veneziano, viaggia la Drog e la sua presenza<br />

nel cast fa supporre che la compagnia di canto sia stata più che degna. L’orchestra era<br />

completamente formata da italiani e nel suo organico c’erano due strumentisti che forse<br />

erano parenti di Enrico Bernardi. 55 Nel 1882 si presenta una stagione che segue lo schema<br />

del 1880, cioè tutto italiano con una prima locale di Gomes: Salvator Rosa. Bernardi dirige<br />

anche in quell’occasione, con Gomes presente, musiche del brasiliano.<br />

Anche l’importante stagione del 1883, praticamente organizzata da Gomes, vede<br />

la partecipazione di Bernardi come direttore delle opere. La critica locale anche se spesso<br />

si mostra poco soddisfatta con la compagnia di canto, loda la direzione intelligente del<br />

...........................................................................<br />

51 Páscoa, M., Cronología lírica de Belém, Asociaçãon Amigos do Teatro da Paz, Belém, 2006.<br />

52 O Liberal do Pará, 10 de agosto de 1880, cit. da Páscoa, M., op. cit., p. 18.<br />

53 O Liberal do Pará, op. cit.<br />

54 Páscoa, M., op. cit., p. 35.<br />

55 Infatti Márcio Páscoa include i nominativi nei membri di quell’orchestra e li si leggono che un cornista ed un<br />

trombonista si chiamano rispettivamente Aristide e Simone Bernardi. Páscoa, M., op. cit., p. 38.<br />

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57<br />

“distinto maestro Bernardi”. 56 Páscoa ipotizza che tra il 17 ed il 26 giugno si sia presentato,<br />

in mezzo ad altre prime, Patria! di Bernardi nel teatro. 57 L’esperienza di Gomes come organizzatore<br />

teatrale fu fallimentare ed il brasiliano, invece di continuare con l’anelata tournée<br />

brasiliana tornò in Italia. Tutto diverso l’avvenire di Bernardi. Il riconoscimento, l’accoglienza<br />

locali e le possibilità di lavoro stavano convincendo il milanese di congedarsi della<br />

banda di Piazza San Marco e pensare di più a Belém dove dal 1883 fisserà dimora partecipando<br />

attivamente alla vita musicale del luogo. La scena lirica del Teatro da Paz accoglierà<br />

ancora Bernardi come direttore d’orchestra della stagione 1896 con il ritorno della Drog.<br />

Quel dilatato periodo di residenza sudamericana e quel lasso di tempo tra 1883 e 1896 è<br />

quanto attira la mia attenzione. Fu allora che il musico visse a Buenos Aires? Evidentemente<br />

il milanese non avrà avuto vita molto sedentaria se è vero che “Voltou a digressões durante<br />

os anos de 1890, retornando a Belém para suceder Gomes na direção do conservatório<br />

local.” 58<br />

In funzione delle nuove informazioni brasiliane sarà d’uopo tornare all’esame di<br />

dati su Buenos Aires: altre cronologie del Data Base, altre pubblicazioni periodiche.<br />

Rispetto alle cronologie teatrali ho compilato un elenco di opere rappresentate<br />

a Buenos Aries basandomi su pubblicazioni giornalistiche in quanto nessuno studioso locale<br />

aveva realizzato lavori analoghi per questo periodo59 e i fondi della città hanno conservato<br />

materiale teatrale molto scarso. Riguardo l’esame delle pubblicazioni periodiche invece,<br />

risultano preziosi i lavori che giovani studiosi argentini stanno svolgendo su fondi<br />

locali. 60<br />

Risulta da queste indagini che Bernardi svolse un ruolo di prim’ordine nella capitale<br />

argentina durante 1890. Infatti il milanese si presentò come direttore nella massima<br />

sala lirica di Buenos Aires, il Teatro Ópera, e fu, in conseguenza anche in Argentina, inserito<br />

nell’ambiente più prestigioso giacché faceva parte della compagnia dell’onnipossente Angelo<br />

Ferrari. Bernardi collaborava, assieme ad Arnaldo Conti, con un grande maestro di<br />

quegli anni, niente meno che Marino Mancinelli. È abbastanza possibile che a Buenos Aires<br />

Bernardi fosse considerato di fama superiore a Conti giacchè nelle promozioni il suo<br />

nome compare prima di quello del collega e, tra l’altro, non come “sustituto” ma sotto la<br />

dicitura “otro director”. Quella stagione dell’Ópera ospitava artisti di calibro internazionale<br />

che Bernardi ha potuto frequentare, talvolta dirigere, come Adalgisa Gabbi, Elvira<br />

Colonnese, Zina Dalty ed Amelia Stahl e soprattutto comprendeva un gruppo maschile<br />

d’importanza storica. Infatti, il cast poteva vantare tre dei più famosi tenori del momento<br />

– Tamagno, De Lucia e De Marchi –, per non parlare dei due baritoni: Maurel e Kaschmann.<br />

Le vicende successive di Bernardi, almeno quelle che conosco fino adesso, mostrano<br />

un’attività meno brillante, almeno a giudicare dalle sedi: dirige a La Plata nel 1891 e,<br />

tra marzo e maggio del 1894, a Buenos Aires nel Teatro Doria. Il Doria, che le cattive lingue<br />

chiamavano “la ópera barata”, era una sala frequentata dai lavoratori immigranti. La<br />

stagione di questo teatro, tipica produzione di repertorio, quel 1894 presentava una<br />

compagnia capeggiata da Carlos de Mattia e che comprendeva: La Forza del Destino, Il<br />

Trovatore, Aida, Cavalleria Rusticana, La Favorita, Il Guarany, Un Ballo in Maschera, Fausto,<br />

Norma, La Gioconda, Rigoletto, Ernani e Lucrezia Borgia. È evidente che quella serie di<br />

...........................................................................<br />

56 Liberal do Pará, 1 maggio 1883, citato da Páscoa, M., op. cit., p. 42.<br />

57 Páscoa, M., op. cit., p. 46.<br />

58 Páscoa, M., op. cit., p. 244.<br />

59 Tranne che per una sala marginale, il Teatro Doria: Dillon, César A. y Juan Andrés Sala, El teatro musical en<br />

Buenos Aires. Teatro Doria – Teatro Marconi, Gaglianone, Buenos Aires, 1997.<br />

60 Si tratta di lavori che su fonti poco studiate come il periodico El Mundo del Arte stanno sviluppando Ignacio<br />

Weber del Proyecto Ubacyt La música en la prensa periodica argentina e Marina Pruski, Elias Joel Kelly, Pablo<br />

Palomino, Walter Palotta, Esteban Pizá y Jorge Gustavo Torres, partecipanti del seminario Migraciones artísticas<br />

en el Río de la Plata organizzato dall’IMLA, il Cemla e L’Unsam, che ho tenuto a Buenos Aires nel 2010.<br />

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58<br />

titoli ben avrebbero potuto conformare una stagione tipica del Teatro da Paz. Ancora di<br />

più, due dei cantanti che Bernardi diresse al Doria, il baritono Fortunato Cecchini ed il<br />

tenore Egisto Guardenti, furono attivi anche al Teatro da Paz e specialmente interessante<br />

è il caso di Guardenti: il tenore ha cantato, diretto sempre dal maestro milanese, il ruolo<br />

di Pery nella più celebre opera brasiliana, tanto nel Doria come a Belem.<br />

Bernardi, come in Italia, risulta essere stato conosciuto in Argentina anche come<br />

compositore poliedrico giacché scrive con successo tanto musica da ballo per il Jardín Arcadia,<br />

un luogo alla moda, 61 come una Messa per voci bianche e quartetto d’archi, filarmonica<br />

e flauto che si presentò nella cattedrale di La Plata. 62 In poco tempo, dunque, il<br />

maestro era riuscito ad inserirsi nell’ambiente locale e il cronista del brano sacro platense<br />

annota che “musica ed esecuzione nulla lasciarono a desiderare” e che si aspetta di “applaudire<br />

presto il bravo Maestro in qualche nuova opera” già che “egli va giustamente annoverato<br />

fra i migliori compositori”. 63<br />

Forse Bernardi, in tutto si è fermato quattro o cinque anni in Argentina componendo<br />

e dirigendo durante parecchie stagioni. Ma sono altre le attività di Bernardi che lo<br />

rendono così interessante per la ricerca sudamericana: il milanese non soltanto fu il responsabile<br />

della prima argentina di un titolo celebre del repertorio lirico ma compose in quella<br />

terra anche un melodramma molto curioso. I due eventi artistici sono fortemente intrecciati<br />

tra di loro come cercherò di spiegare di seguito.<br />

Bernardi fondatore dell’ópera nacional?<br />

Sia detto subito che la presenza di Bernardi in Argentina fu contemporanea di<br />

un fenomeno che colpiva la società argentina: il successo straordinario della versione teatrale<br />

del Juan Moreira, la storia di un gaucho mitico che era stato portato alle scene da<br />

artisti di circo immigrati. Il milanese approfittò quell’occasione che travalicava il fenomeno<br />

artistico. Al suo arrivo a Buenos Aires fu testimone non della creazione di un personaggio<br />

teatrale ma di un tipo, e questo tipo nacque intorno al paradigma che personificava<br />

l’identità nazionale. José Podestà, figlio dei genovesi Pietro Podestà e María Teresa Torterolo<br />

elaborò un carattere per il suo teatro circense. Il suo Juan Moreira era personalissimo ed<br />

originale, anche se costruito sul protagonista di un romanzo di Eduardo Gutiérrez che a<br />

sua volta si era ispirato su un famoso fuorilegge vissuto poco tempo prima. Il grande studioso<br />

di teatro Mariano Bosch, che visse durante il successo di Podestà, sottolinea infatti<br />

che quella dell’attore fu “creación de la nada”. Chiunque dopo di lui abbia voluto evocare<br />

quell’emblema, ha dovuto fare i conti con il modello coniato da Podestà, cioè l’eroe di<br />

“luengas barbas negras i melena aceitada, chambergo con barbijo i echado para atrás<br />

como descubriendo el letrero de guapo que tenia en los ojos i la frente, tipo noble sin<br />

miedo, atropellador, cantor i poeta, gran jinete”. Il risultato fu che il Moreira di Podestà<br />

risultò più vero che il personaggio del romanzo e più vero che il Moreira in carne ed ossa.<br />

Scrive Bosch che Podestà “tan real lo creó, que despuès de su interpretación, cualquier<br />

otro Moreira seria apócrifo; hasta el propio Moreira que vivió, si resucitara.” Attraverso la<br />

segnalazione di Bosch, si conferma ancora una volta, che tra mito e realtà non corre buon<br />

sangue. Sembra dunque che le liturgie possono organizzarsi soltanto intorno ad una falsificazione<br />

e, come famosamente pronunciò il pioniere di questi studi, le nazioni possono<br />

soltanto crearsi sugli errori. La verità svelata dal “progresso degli studi storici rappresenta<br />

spesso un pericolo per le nazionalità.” 64<br />

...........................................................................<br />

61 Veniard, J. M., La Música Nacional Argentina, Instituto Nacional de Musicología “Carlos Vega, Buenos Aires,<br />

1986, p. 196.<br />

62 Cronica locale in El Mundo del Arte, 18 diciembre di 1981, p. 10.<br />

63 Cronica locale in El Mundo del Arte, 18 diciembre di 1891, p. 10.<br />

64 Renan, E., Che cos’è una nazione? Conferenza tenuta alla Sorbona l’11 marzo 1882. Donzelli, Roma, 1993, p. 6.<br />

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59<br />

Il gaucho di Podestà, ebbe, sempre secondo Bosch, una nobiltà e una valenza di<br />

rivendicazione sociale, di protesta contra l’ingiustizia arbitraria, che riunì l’adesione<br />

entusiasta del pubblico. Al di là dell’ambito del circo, del mondo dell’arte, Moreira fu così<br />

“drama de carácter social.” 65<br />

Altri Moreira<br />

Dalla lettura dei periodici di quegli anni risulta che una miriade di spettacoli di<br />

vario tipo, seguendo il modello di Podestà, drammatizzarono le vicende del gaucho Juan<br />

Moreira cavalcando un successo nato nella modestia del circo.<br />

S’impara da quelle fonti che tra le diverse trascrizioni sceniche del Juan Moreira<br />

ve ne fu una molto particolare. Sulle scene del teatro Doria salì una versione teatrale in<br />

italiano. Il cronista di El Mundo del Arte, periodico bilingue vicino alla comunità peninsulare,<br />

segnalava che “I costumi erano perfettamente imitati; gli artisti si sforzarono, e riuscirono<br />

ad essere dei buoni gauchos…italiani” 66 . La stessa rivista fornisce il nome del responsabile<br />

delle versioni italiane del Juan Moreira e de altre pièces d’ambientazione rurale: “Molta<br />

gente, mi dicono, va alle rappresentazioni della “Figlia del Gaucho” dramma criollo italianizzato,<br />

dal sig. Gismano, lo stesso autore che con bastante fortuna italianizzó il “Juan<br />

Moreira”, e che ridusse per le scene “L’Orfana del Ghetto”. Davvero che l’operosità del Sig.<br />

Gismano è straordinaria…”. 67 Nello stesso anno la compagine si presenta a Mendoza.<br />

José Francisco Navarrete informa che in questo modo il Juan Moreira fu conosciuto in italiano<br />

in città. Soltanto trent’anni dopo, quando l’interesse per queste rappresentazioni<br />

era già spento e Mendoza s’entusiasmava per certe presenze in città tanto reali come<br />

virtuali – Arthur Rubinstein e Charlie Chaplin – poté conoscere il Moreira portato in città<br />

dal proprio José Podestà. Si trattava di una delle ultime fatiche della sua carriera. Il racconto<br />

di Navarrete è prezioso perché ci informa di quella pioniera Compañía Dramática Italiana<br />

G. Modena, diretta da Rómulo F. Lotti. Il gruppo si congedò del pubblico del Teatro<br />

Municipal, prima di proseguire per il Cile con il Juan Moreira che Gismondi aveva scritto<br />

espressamente per la compagnia. Si noti come l’autore della nota accusa Gismondi di<br />

essersi “appropriato” del testo:<br />

En la función de despedida estrenaron el “grandioso drama criollo en seis cuadros,<br />

escrito ex profeso para la compañía por el Sr. D. Gismano ¡Juan Moreira”! Así, este autor<br />

italiano se apoderaba de un texto, al que con seguridad había accedido en Buenos Aires,<br />

y lo daba a conocer en Mendoza pero en idioma italiano. 68<br />

Questa operazione di Gismondi sarà sicuramente un passo che porterà ad<br />

un’azione ancora più sorprendente: la trasposizione lirica della storia del famoso gaucho.<br />

Della cosa si dà notizia nella stessa nota perché si dice che “A proposito di Juan Moreira è<br />

ormai noto che se n’è fatto un libretto d’opera, che un maestro molto conosciuto nella<br />

capitale e nella Plata, sta musicando” 69 . La nota del periodico nasconde nel mistero il<br />

nome tanto del librettista come del compositore. L’arcano dura poco. Nello stesso numero<br />

del periodico s’informa che “i versi sono di un nostro collaboratore e la musica del Cav.<br />

Enrico Bernardi. Il cronista manifesta che ha avuto occasione di ascoltare il primo atto<br />

dell’opera e ci informa delle sue impressioni che, giacché la musica non si conserva, sono<br />

...........................................................................<br />

65 Bosch, M. G., Historia de los orígenes del Teatro Nacional Argentino y la época de Pablo Podestá, Talleres<br />

Gráficos Argentinos L. J. Rosso, Buenos Aires, 1929, p. 42.<br />

66 Battaglia, R., Platea e Palcoscenico. Teatro Doria. Juan Moreira; L’Ebreo Errante in El Mundo del Arte, 1 gennaio<br />

1892.<br />

67 Brontolon, T., [Battaglia, R.], Platea e Palcosecnico. Teatro Doria in El Mundo del Arte, 20 febbraio 1892, p. 2.<br />

68 Navarrete, J. F., Cubillos y el ciclo de la gauchesca en Mendoza in Tendencias criticas en el teatro, a cura de<br />

Osvaldo Pellettieri, Galerna, Buenos Aires 2001, p. 267.<br />

69 Battaglia, R., Platea e Palcoscenico. Teatro Doria. Juan Moreira; L’ebreo Errante in El Mundo del Arte, 1 gennaio,<br />

1892, p. 2.<br />

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60<br />

preziose: “mantenendo in parte quel cachet tipico melanconico proprio del ritmo gaucho<br />

vi si allontana giustamente quando deve esprimere la forte passione, e si slancia vigorosamente<br />

italiana”. Come dire, va bene la malinconica campagna argentina ma senza il<br />

nostro sangue l’opera non funziona70 . Il giornalista ci racconta che il Juan Moreira di Bernardi<br />

ospita un coro di gauchos, il brindisi, una canzone napoletana, un walzer ed il concertato<br />

finale che ha delle “frasi melodiche facili e felicissime” “ 71 . Possiamo dunque farci un’idea<br />

di questa pampa che tanto concede al golfo di Sorrento e ai boschi viennesi. La frase finale<br />

dell’articolo dà un colpo di grazia: Juan Moreira avrà ottimo successo anche se eseguito<br />

da una compagnia italiana. Si scrive, anticipando difese ad attacchi possibili: “sarebbe<br />

strano che le opere potessero eseguirsi bene solo dagli elementi ai quali appartiene per<br />

nazionalità il soggetto del quale si tratta”.<br />

Simili aperture alla libertà creativa intorno alla figura del gaucho, sembrano cozzare<br />

con richieste di segno opposto. È necessario “fare” il Juan Moreira con meno fronzoli e<br />

con più purezza di pampa. Il cronista che si nasconde sotto lo pseudonimo Todero Brontolón<br />

si fa eco di una richiesta di El Diario: “Ni andaluces, ni velas de baño, ni alamares, ni bordados<br />

de seda verde…hay que hacer más rural a Juan Moreira”. 72<br />

Dunque El Mundo del Arte tra informazioni in contagocce sul Juan Moreira, che<br />

significativamente s’incrociano con la singolare operazione di Gismondi, anche se ci informa<br />

sull’autore della musica, non chiarisce chi è il librettista, a cui soltanto allude con quel<br />

“nostro collaboratore”.<br />

A questo punto bisogna chiarire un punto. Il finale del primo degli articoli di El<br />

Mundo del Arte su Juan Moreira dà una notizia come coda: “A proposito di Juan Moreira<br />

è ormai noto che se n’è fatto un libretto d’opera…”. Questo testo chiude la notizia sulle<br />

attività di Gismondi come autore del Juan Moreira in italiano. Si evince con chiarezza<br />

dalle righe precedenti che quell’operazione consistete nello scrivere una versione parlata<br />

in italiano su Juan Moreira ed il periodico non indica, come invece legge Veniard, che Gismondi<br />

sia l’autore di quel libretto che si menziona alla fine dell’articolo.<br />

Veniard fonde nella stessa citazione due diversi articoli della rivista quello del<br />

primo gennaio (I versi sono di un nostro collaboratore” e quello del 20 febbraio (“Teatro<br />

Doria…Molta gente va, …alle rappresentazioni della “Figlia del Gaucho” dramma criollo<br />

italianizzato, dal Sig. Gismano, lo stesso autore che con bastante fortuna italianizzo il “Juan<br />

Moreira”), facendo diventare consequenziale l’incoraggiamento al “bravo signor Gismano”<br />

rispetto all’anonima composizione del libretto. 73<br />

In realtà sembra chiaro che al Doria si recitò e al Nacional si cantò. In effetti,<br />

quando il periodico fa la sua cronaca sullo spettacolo del Doria utilizza sempre il verbo<br />

“recitare”e così l’autore del pezzo, Brontolón, critica l’operazione del Doria: “Il Juan Moreira<br />

deve essere recitato in idioma del paese”. Della stessa maniera manca allusione alcuna a<br />

uno spettacolo lirico nella presentazione mendozina che racconta Navarrete.<br />

...........................................................................<br />

70 Il tema della pampa come paesaggio noioso e poco stimolante all’arte fu argomento di famosa polemica tra il<br />

pittore Eduardo Schiaffino e lo scrittore Rafael Obligado. Scrive Schiaffino: “el paisaje toca los límites de la<br />

mayor pobreza, y las costumbres achatadas por el servilismo, desteñidas por el cosmopolitismo, van perdiendo<br />

gradualmente toda originalidad, sin que se pueda prever aún cuál será el carácter definitivo que afectará nuestra<br />

campaña…. la línea está ausente en la campaña de Buenos Aires, [...] no hay nada imprevisto, triunfa y domina<br />

lo que es chato”, Schiaffino, Eduardo, Pro-Patria. Contribución del ingenio argentino para la reconstrucción de<br />

la “Rosales”. Buenos Aires, José Antonio Berra Impresor, 1893. Perfino i compositori d’opera come Eduardo<br />

García Mansilla, iscritti nel più radicale movimento nazionalista, perciperono inadeguata alla tensione drammatica<br />

la scena della pampa e l’”arricchirono”, all’occorrenza d’improbabili palme tropicali, cf. Cetrangolo, A. E., El<br />

melodrama italiano en Argentina entre 1880 y 1920, Tesi Dottorale, relatore Prof. Enrique Cámara de Landa,<br />

Università di Valladolid, 2010, p. 670.<br />

71 La nostra música in El mundo del Arte, 1 gennaio 1892, p. 10.<br />

72 Brontolon, T., Platea e palcoscenico. Jardín Florida in El mundo del Arte, 20 de febrero de 1892, p. 2.<br />

73 Veniard, J. M., Arturo Berutti, un argentino en el mundo de la ópera, Instituto Nacional de Musicologia, Buenos<br />

Aires, p. 198.<br />

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61<br />

Comunque credo molto possibile che la pièce parlata in italiano di Gismano sia<br />

stata la base del libretto di Bernardi. È possibilissimo che quel passaggio da pièce a libretto<br />

lo abbia fatto lo stesso Gismano ed è molto possibile che invece abbia ragione Veniard<br />

quando suppone Gismano sia Amilcare Evaristo Gismondi. Gismondi era un genovese<br />

nato nel 1853 che si trasferì a Buenos Aires dopo aver studiato musica con Tito Maffei e<br />

pubblicato qualche musica sua con Ricordi. In Argentina si è occupato di commercio e di<br />

industria. Fu il primo a impiantare una fabbrica di olio nel paese. Si dedica al giornalismo<br />

collaborando con La Patria degli Italiani, La Nación e La Prensa firmando con lo pseudonimo<br />

di Mefistófeles. Gismondi fu tra i critici musicali più importanti di allora a Buenos<br />

Aires. Viveva in centro, a Cangallo 1848. 74 Quando Puccini visitò Buenos Aires nel 1905<br />

Gismondi accompagnò e organizzò festeggiamenti in onore del compositore. L’Archivio<br />

Ricordi conserva importante documentazione fotografica di Gismondi.<br />

In una curiosa risurrezione nel Plata della secolare questione della verosimiglianza<br />

nell’opera, il cronista di El Mundo del Arte informa che si compone un melodramma su<br />

Juan Moreira anche se certi impresari locali criticano l’operazione perché il famoso gaucho<br />

“non era cantante” 75 . Lo stesso periodico dà un’informazione che trovo preziosa: il Juan<br />

Moreira lirico ha dei punti di contatto con Cavalleria Rusticana e questo ci porta subito ad<br />

altre attività di Bernardi<br />

Bernardi Pirata?<br />

Non credo che tale associazione del cronista sia affatto casuale: il celebre titolo<br />

di Mascagni era stato presentato in prima assoluta a Roma, nel maggio del 1890, cioè<br />

meno di due anni prima del racconto argentino. Certamente la nuova opera, anche se<br />

d’un compositore novello aveva provocato grande impressione nella città come in tutto il<br />

mondo e si sapeva di produzioni storiche come quella di Budapest diretta da Mahler.<br />

Quando il cronista di El Mundo del Arte scrive, Cavalleria era già stata presentata a Buenos<br />

Aires, precisamente al teatro Nacional nel febbraio del 1891, cioè anticipando di pochi<br />

mesi la prima – nella stessissima sala – del Juan Moreira. Ancora di più, quella versione<br />

dell’opera di Mascagni fu oggetto di uno scandalo i cui echi arrivarono perfino in Italia in<br />

quanto a Buenos Aires era stata utilizzata un’orchestrazione falsa, quasi sicuramente<br />

confezionata in loco. Credo molto possibile che l’autore di quella strumentazione apocrifa<br />

sia stato Bernardi, che fu il direttore di Cavalleria Rusticana in quella prima “imperfetta”.<br />

È comprensibile che quel “contributo” che Mascagni non aveva mai desiderato, e dunque<br />

forzatamente anonimo, abbia spinto Bernardi a tentare un’altra creazione che invece<br />

potesse firmare con nome e cognome. Quasi svelandolo, la rivista argentina si riferisce al<br />

nascente Juan Moreira come la Cavalleria Nazionale.<br />

La rivista pubblica inoltre una parte dell’opera nuova, si tratta niente meno che<br />

di un … “brindisi” particolarmente simile a quello di Mascagni il che ben potrebbe<br />

confermare la parentela tra Giovanni Moreira (sic) y Turiddu. L’invito Bernardi:<br />

Beviamo amici, colmo il bicchier<br />

Beviamo amici che il liquor ci scaccia<br />

i funesti pensier<br />

Ben ricorda la famosa promozione etilica di Mascagni dove ci propone di bere:<br />

...........................................................................<br />

74 Dizionario biografico degli italiani al Plata, a cura degli editori, Barozzi, Baldissini & Cia. Buenos Aires, 1899, p.<br />

173, 174.<br />

75 El Mundo del Arte, 23 novembre di 1891, p. 2.<br />

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62<br />

Intanto amici, qua, beviamone un bicchiere.<br />

[…] il vino ch’è sincero<br />

E che annega l’umor nero,<br />

Pochi anni dopo, persuasi di stare “facendo patria”, alcuni compositori argentini<br />

percorrerranno con perseveranza il sentiero di cantare liricamente le vicende del gaucho.<br />

Il più famoso di questi tentativi, Pampa di Arturo Berutti, intonerà, nel 1897, certi versi<br />

italici – remotissimi discendenti delle arie di paragone metastasiana – che difficilmente si<br />

potrebbero ascoltare tra le immensità della pampa:<br />

Tuona il cielo romba e cade<br />

Sulla Pampa la tempesta,<br />

e il dolor martella, e invade<br />

la mia testa.<br />

In fine<br />

Per concludere, aggiungo la semplice menzione di alcune preoccupazioni, alcuni<br />

dei tanti fili sciolti che aspettano di essere legati ai risultati della ricerca brasiliana. L’esame<br />

di quei argomenti molto potrebbe contribuire a capire meglio l’impiego degli emblemi<br />

lirici nell’incontro di culture diverse che la migrazione provoca.<br />

Così trovo molto interessante la possibilità di approfondire l’analisi di certe prassi<br />

legate alla diffusione del teatro musicale attraverso l’utilizzo delle marionette. Questa<br />

specifica attività drammatica, comune in Brasile e nell’ambiente rioplatense, sembra molto<br />

intensa rispetto alle intonazioni su testi di Antonio José da Silva.<br />

Analogamente si potrebbe seguire anche la traccia della specifica disseminazione<br />

attraverso la letteratura de cordel che secondo David Cranmer costituisce un discrimine<br />

anche per quanto riguarda il repertorio. 76<br />

Un altro sentiero da seguire è certo quello delle committenze in tempi di ancien<br />

regime. Le cerimonie ufficiali sono sicuramente fertili occasioni di collaborazione negli<br />

studi perché allora hanno stimolato la creazione di prodotti musicali. È il caso delle<br />

esaltazioni al trono dei monarchi iberici che hanno provocato occasioni festive anche<br />

nelle colonie americane e le celebrazioni anche periferiche organizzate in circostanza dei<br />

matrimoni tra principi Bragança e Borboni di Spagna o di Napoli. L’arduo compito di spoglio<br />

dei documenti conservati nei diversi archivi delle vecchie metropoli o delle antiche colonie<br />

è soltanto possibile attraverso un lavoro in rete. Il caso già evidenziato dei matrimoni<br />

incrociati tra i quattro futuri regnanti di Spagna e Portogallo celebrato nel 1729 è solo uno<br />

di una serie di eventi che meritano speciale attenzione nella ricerca della committenza<br />

musicale. Altri eventi di quel tipo come l’acclamazione di Don Josè nel 1750 o quella di<br />

Carlos III che Buenos Aires celebrò nel 1760, risultano essenziali per gli sviluppi lirici. Come<br />

fu indicato prima, in quest’ultima occasione Bartolomeo Mazza scrisse un’opera su testo<br />

di Da Silva e nello stesso anno, ma in Brasile, un’altra di queste feste stimolò altre musiche<br />

per il teatro: si tratta di festeggiare nella città carioca il matrimonio principesco tra Donna<br />

Maria e suo zio Don Pedro. Questa produzione è del massimo interesse: in ambito più che<br />

ufficiale, i funzionari di giustizia locali scelgono per omaggiare la dinastia un titolo di Da<br />

Silva. Si trattava dunque di un’opera di quel judeu che vent’anni prima era stato condannato<br />

a morte dal nonno della sposa; inoltre il testo scelto per l’occasione riproponeva il mito di<br />

Amphitrione la stessa storia che era stata intonata da Giacomo Facco per il matrimonio<br />

...........................................................................<br />

76 Cranmer, D., Eighteen-century opera and comedy, manoscritto, 2008, che cita Budasz, R., op. cit. p. 80.<br />

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63<br />

dei genitori di Donna Maria.<br />

Trasversale ai territori dei Bragança e Borboni tanto in Europa come nelle<br />

Americhe è l’attività di teatro musicale dei gesuiti che si produceva abitualmente nei collegi<br />

della Compagnia del Gesù come festa finale degli studi.<br />

Le confraternite religiose che tanto hanno interessato Francisco Curt Lange hanno<br />

conformato una densa rete che legava Napoli, Lima, Buenos Aires e Rio. Le loro promozioni<br />

certo, si riferiscono al prodotto musicale religioso, ma converrà che anche lo studioso<br />

degli sviluppi lirici riesca a monitorare queste reti da vicino: l’operista Pergolesi compose<br />

il suo Stabat Mater incaricato dalla napoletana Confraternita dei Sette Dolori, un’importante<br />

istituzione che aveva ramificazioni tanto italiane quanto americane.<br />

L’attività del data base IMLA ha mostrato, come fu detto nel caso dei musicisti di<br />

Viggiano e anche rispetto alle attività di Enrico Bernardi, l’utilità di seguire il percorso<br />

degli operatori musicali. Lo studio di personaggi come quella rissosa Mascarenhas, la diva<br />

brasiliana attiva a Buenos Aires e Lima, ben potrebbe essere foriera d’importanti informazioni<br />

sulla diffusione dei repertori.<br />

Studiando i letterati vincolati al teatro musicale sarà della maggiore utilità intensificare<br />

gli studi comparativi. Si tratterebbe di approfondire per esempio, i contatti di Metastasio,<br />

poeta cesareo, con José Basilio da Gama, contatti che conosco grazie a Rogerio<br />

Budasz77 , senza dimenticare la produzione del peruviano de las Llamosas che presentò<br />

con successo le sue pièces teatrali alla corte di Madrid.<br />

Nel Settecento, i consuoceri João V e Filippo V non conobbero le rispettive capitali.<br />

In occasione di quelle nozze principesche semplicemente si scambiarono le principesse, e<br />

tornarono alle rispettive corti senza attraversare la frontiera luso-ispana di Caia, mancando<br />

così di partecipare al matrimonio delle proprie figlie. La scienza musicologica adesso dovrà<br />

invece superare quelle barriere e studiare i fenomeni da ambedue i punti di vista.<br />

...........................................................................<br />

77 Budasz, R., op. cit.<br />

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Lídia de Oxum: a ópera negra da Bahia<br />

65<br />

Ilza Nogueira<br />

Universidade Federal da Paraíba<br />

Lídia de Oxum é um dos últimos trabalhos de Lindembergue Cardoso (30 de junho<br />

de 1939 – 23 de maio de 1989), realizado no curto período de março a junho de 1988.<br />

Concebida para a ocasião do centenário da abolição da escravatura (13 de maio de 1988),<br />

a ópera só foi estreada em junho de 1995, 1 no contexto da celebração do tricentenário da<br />

morte de Zumbi (Alagoas, 1655 – Viçosa, 20 de novembro de 1695), o último líder do<br />

Quilombo. O libreto é um drama lírico do poeta e jornalista baiano Ildásio Tavares (25 de<br />

janeiro de 1940 – 31 de outubro de 2010). 2 Obá de Xangô e ogã do terreiro Axé Opô<br />

Afonjá 3 , Ildásio foi um grande conhecedor da cultura religiosa afrobaiana. Lídia de Oxum<br />

é uma elaboração do seu musical “O Barão de Santo Amaro”, escrito em 1978 e nunca encenado,<br />

pela alusão identificável aos governantes da ditadura.<br />

Este trabalho pretende apresentar a ópera de uma forma abrangente e que,<br />

principalmente, reflita as referências culturais utilizadas com a finalidade da caracterização,<br />

já que Lídia de Oxum pode ser considerado um trabalho que retoma, na distância de mais<br />

de um século, o modelo do romance de costumes que marcou a literatura brasileira do final<br />

do século XIX – centrado na caracterização de tipos sociais, usos, costumes, convenções,<br />

paisagens, cenas, épocas e lugares da realidade. Portanto, transformada em enredos imaginários,<br />

abundantes em conflitos entre o indivíduo e os padrões sociais.<br />

O drama lírico será referido apenas para que possamos demonstrar como e<br />

quanto a música de Lindembergue Cardoso projeta as ideias implícitas e explícitas do texto.<br />

Nesse sentido, pode-se observar o compositor enfatizando-as por meio da aderência<br />

– com referências localizadas na época e no espaço geográfico do argumento –, tanto<br />

quanto, ao contrário, salientando-as com a divergência cultural; recontextualizando-as<br />

em ambientes sonoros estranhos, respectivos à linguagem musical contemporânea do<br />

compositor.<br />

Finalmente, pretendemos também situar Lídia de Oxum no contexto estilístico<br />

do conjunto da obra de Lindembergue Cardoso. Para este objetivo, baseamo-nos no artigo<br />

“Lindembergue Cardoso: aspectos de uma obra plural”, de nossa autoria. 4<br />

O argumento<br />

A ação da ópera se situa na penúltima década do século XIX, no Recôncavo<br />

Baiano, nas proximidades do município de Santo Amaro da Purificação. Teodoro Aragão,<br />

o Barão do Santo Amaro, é proprietário do Engenho Corrente. Em sua personalidade<br />

extremamente autoritária, ostentando poder, arrogância e prepotência, Teodoro re-<br />

...........................................................................<br />

1 Salvador, Bahia. Teatro Castro Alves, 29 de junho a 3 de julho de 1995. A montagem, dirigida por Paulo Dourado,<br />

foi levada posteriormente a São Paulo – durante o Festival Internacional de Artes Cênicas, no Teatro Municipal,<br />

19 de outubro de 1995 – e a Brasília – durante a Semana Internacional de Cultura, no Teatro Nacional. Uma<br />

nova montagem foi realizada em Salvador no ano seguinte, ao ar livre – no Parque do Abaeté, 11 e 12 de maio<br />

de 1996), dirigida por Ildásio Tavares.<br />

2 Lídia de Oxum in “Coleção Dramaturgia da Bahia”, Salvador, Secretaria de Cultura e Turismo, 2004, p. 101-141.<br />

3 O terreiro Axé Opô Afonjá, no bairro de São Gonçalo do Retiro (Salvador, BA), é o mais antigo de que se tem notícia<br />

(1910). Xangô é o senhor desse terreiro. O título “obá” é honorífico, concedido a doze amigos e protetores<br />

do terreiro aos quais está entregue o destino civil do mesmo. O “ogã” é um ministro leigo do orixá; não entra em<br />

transe, permanece consciente durante as seções de “trabalhos”.<br />

4 Nogueira, Ilza. “Lindembergue Cardoso: aspectos de uma obra plural”. Artigo no prelo (Per Musi – Revista Acadêmica<br />

de Música, nº 25, jan.-jun., 2012).<br />

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66<br />

presenta a aristocracia açucareira, lusodescendente e escravocrata. Lourenço é o primogênito<br />

do Barão que, havendo concluído os estudos de Direito em Coimbra, regressa à<br />

Bahia depois de longa ausência, quando os negros escravos conspiram uma rebelião pela<br />

sua liberdade. Leitor e admirador da poesia de Castro Alves, contaminado pelas ideias<br />

libertárias da época, Lourenço abraça a causa abolicionista, contra os escravocratas liderados<br />

por seu pai. Pede ao escravo Romão, um companheiro de infância, que o conduza<br />

ao Engenho Esperança, quartel-general do movimento, a fim de se inteirar do levante. A<br />

visita é marcada para a “noite de Olubajé”, uma cerimônia de candomblé em homenagem<br />

a Omolu. 5 Nessa noite, Lourenço se encanta por Lídia de Oxum, 6 a bela mestiça filha do<br />

mulato Bonfim, dono do engenho e chefe da conspiração.<br />

Numa conversa com Romão, Lourenço ouve do amigo a surpreendente revelação<br />

de que seu avô era filho de uma escrava dos seus bisavós. A consciência dessa realidade<br />

impele o jovem advogado à luta ao lado dos negros. Romão e Lourenço participam de<br />

uma reunião estratégica no Engenho Esperança, para planejar a rebelião e, nessa ocasião,<br />

são surpreendidos com a notícia de que os senhores de engenho já se aproximam armados.<br />

As suspeitas de traição incidem sobre Lourenço; entretanto, quando esclarecida a inocência<br />

do jovem, decidem embrenhar-se no canavial para um ataque de tocaia, do qual Lourenço<br />

participa. Durante o combate, chega um emissário da coroa anunciando a assinatura da<br />

Lei Áurea. Os negros comemoram, mas um deles, Tomás de Ogum, 7 líder da revolta e antigo<br />

admirador de Lídia, rebela-se, incrédulo: “Mil anos se passarão/Por cima desse decreto,/Sem<br />

existir igualdade,/Que não se faz num papel./Para mim continua a guerra,/<br />

Uma guerra sem quartel.”<br />

Dividida entre o amor antigo de Tomás e a paixão súbita por Lourenço, Lídia vive<br />

o dilema do conflito de identidade, expresso nesse desabafo ao seu pai: “Oxum, minha<br />

mãe, valei-me,/Tomás é preto, meu pai,/Lourenço é branco e a família/Me tratar bem<br />

nunca vai./Meu lugar é com os negros,/Sou mulata da Bahia”. 8<br />

O drama lírico<br />

Concepção estrutural<br />

O drama lírico é estruturado em sete cenas distribuídas em dois atos. As quatro<br />

cenas do I Ato apresentam os personagens principais, caracterizados em função de uma<br />

problematização sócio-racial em torno de classe opressora contra a classe oprimida sob<br />

jugo e submissão. Centralizada na ópera, a cena final desse ato é a cerimônia festiva do<br />

Olubajé, ícone da identidade cultural afrobaiana. O primeiro ato conclui, portanto, com<br />

uma representação apoteótica dessa cultura, daquilo que a caracteriza como fundamen-<br />

...........................................................................<br />

5 Omolu, Olu ou Obaluaiyê é considerado o “senhor da vida na terra”. Orixá poderoso, guerreiro, caçador, destruidor<br />

e implacável, é extremamente temido e respeitado por enviar as doenças como castigo ou para garantir<br />

uma renovação da vida. Da mesma forma que traz as enfermidades, Omolu traz também a cura. Sua figura<br />

misteriosa (cujo rosto, sob o filá de palha da costa, ninguém vê) esconde os segredos da restauração da vida.<br />

Olubajé é uma cerimônia que se realiza anualmente no mês de agosto, com a finalidade de agradar o orixá com<br />

sua comida predileta, para pedir-lhe saúde e longevidade. No ritual, iguarias típicas servidas sobre folhas de<br />

mamona são oferecidas aos convidados pelos filhos de santo. Como a semente da mamona – o rícino – é tóxica<br />

e mortal, a comida ritual sobre as folhas da “planta assassina” representa, portanto, a vida sobre a morte.<br />

Enquanto servem-na, dançando curvados para frente (a dança do orixá), os filhos de santo cantam “Aiyê ajeum<br />

bó, Olubajé ajeum bó”, incitando os convidados a comerem e saírem. Uma interpretação (mais que uma tradução<br />

literal) de Ildásio Tavares para esse texto em iorubá arcaico é: “Mundo, coma e saia/ coma a comida do<br />

santo (Olu ou Omolu) e saia” (Aiyê = mundo; ajeum = comida; bó = sair).<br />

6 Oxum, orixá feminino, é a rainha de todos os rios e cachoeiras. Considerada a deusa mais bela e sensual do<br />

candomblé; é vaidosa, veste-se de amarelo ouro e traz na mão direita um espelho.<br />

7 Para a compreensão da personagem Tomás de Ogum, deve-se considerar o perfil dos filhos desse orixá guerreiro,<br />

violento, conquistador e implacável, admirado pela bravura e temível pelo seu carácter devastador.<br />

8 Vale lembrar que uma das características que compõem o perfil dos filhos de Oxum é a de não se desesperarem<br />

por paixões impossíveis; por mais que gostem de uma pessoa, o seu amor-próprio é muito maior. Por trás<br />

da sua imagem doce, esconde-se uma forte determinação.<br />

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67<br />

talmente mística, crente e ritualística: o candomblé. 9 E através do ritual, apresenta-se o<br />

tripé da cultura afrodescendente na Bahia: a culinária, a dança e a expressão musical percussiva<br />

e vocal.<br />

Enquanto o I Ato tem caráter contemplativo, concentrando-se em delinear os<br />

personagens em seus respectivos nichos culturais, o II Ato é essencialmente ativo, desencadeando<br />

os acontecimentos e ações que fundamentam o drama: a preparação da rebelião<br />

e o combate entre negros e brancos, interrompido pela notícia da abolição da escravatura.<br />

Sem a efetivação do romance entre Lourenço e Lídia, o final da ópera é sugestivo da continuidade<br />

de um status quo fundamentado em segregação e inconfiabilidade. A saudação<br />

a Ogum, “Ogun yê!”, emitida pelo rebelde Tomás como um “grito de guerra”, dá origem<br />

ao apoteótico grand finale dançante em estilo “afoxé”.<br />

Concepção estética<br />

A concepção estética do drama lírico mistura a simplicidade da poesia popular<br />

de tradição cordelista à estrutura métrica e de rima mais elaborada da poesia clássica. Os<br />

versos livres ou as estrofes simples que caracterizam o cordel (tipo redondilhas) se encontram<br />

nos trechos atribuídos às personagens negras; na ária de Lídia, por exemplo, observa-se<br />

o esquema da redondilha maior, isto é, 7 sílabas com rimas alternadas (Figura 1).<br />

Figura 1. Texto da ária de Lídia.<br />

A metrificação poética mais elaborada caracteriza as falas das personagens que<br />

representam a classe social lusodescendente, a exemplo, a estrutura de métrica mista<br />

com rimas interpoladas da ária de Lourenço (Figura 2).<br />

Figura 2. Texto da ária de Lourenço.<br />

...........................................................................<br />

9 Falando-se em identidade cultural afrobaiana, uma digressão a suas origens étnicas é oportuna, pois poderá<br />

esclarecer as raízes de diferenças observadas entre os cultos de origem africana na Bahia e em outras regiões do<br />

Brasil. Até a segunda metade do século XVIII, os escravos trazidos para a Bahia vinham da África centro-ocidental;<br />

eram banto, matriz importante na formação da religiosidade negro-baiana. A palavra candomblé, por exemplo,<br />

é de origem banto. Ao contrário da região Sudeste do Brasil, onde o mercado escravo banto teve continuidade,<br />

ao longo do século XIX, o tráfico na Bahia deslocou-se para as regiões iorubá (ao sul e centro da atual República<br />

de Benim, parte da República do Togo e todo o sudoeste da atual Nigéria). Kètu, Egba, Egbado e Sabé são<br />

alguns dos segmentos iorubanos ou nagô que vieram para a Bahia; todos eles – com destaque para os Kètu –<br />

contribuíram, decisivamente, para instalar aqui uma espécie de hegemonia cultural nagô na Bahia, ao longo da<br />

segunda metade do século XIX. Inicialmente aliados aos jeje (como eram denominados pelos iorubá os povos<br />

do leste, como os axanti, ewe, fanti, fon, gan, mina e mahin), os nagô competiram com eles e depois os superaram<br />

em Salvador. O Recôncavo, entanto, é tido como terra de jeje. O candomblé baiano hoje é considerado uma<br />

religião de matriz jeje-nagô.<br />

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68<br />

Figura 2. Texto da ária de Lourenço (cont.)<br />

Essa realização poética se reflete na mistura eclética da música de Lindembergue<br />

Cardoso, em que se mesclam tradições operísticas centro-europeias, a canção popular<br />

brasileira e as tradições folclóricas da Bahia: a afrobaiana litorânea e a sertaneja interiorana.<br />

A concepção cênica<br />

Na partitura, orientações sobre a composição do cenário, localização e movimentação<br />

das personagens são econômicas, mas suficientemente sugestivas. A maioria<br />

delas introduz as cenas; no entanto, algumas se encontram no seu desenvolvimento. Paulo<br />

Dourado, diretor geral, da primeira montagem, explicou-se: “Nossa proposta é uma encenação<br />

em que o teatro busque uma identidade através da música”. 10 Se a música ditou<br />

a identidade da concepção teatral e a identidade da concepção musical fundamentada<br />

no drama lírico é essencialmentalmente baseada na cultura afrobaiana, era de se esperar<br />

que a teatralização do argumento usasse e abusasse do elemento coreográfico, uma vez<br />

que os conceitos de música e dança se encontram mais que intimamente relacionados na<br />

cultura em questão, de forma que um implica necessariamente no outro. A grande quantidade<br />

de danças indicadas na partitura, elaboradas em longas coreografias na montagem<br />

de Paulo Dourado, 11 é um dos aspectos marcantes da pregnância da identidade cultural. É<br />

com cantos e dança que a cultura afrodescendente cultua os seus deuses, presta reverência<br />

à natureza e brinda a vida. Na força da dança, Lídia de Oxum tem um expressivo diferencial<br />

do conceito tradicional do gênero. No entanto, como disse o coreógrafo Carlos Moraes, 12<br />

mais que um traço de excepcionalidade, a dança nessa ópera é uma marca decisiva na<br />

narrativa, influindo em toda a mis-en-scène. A concepção da Cena 4 do primeiro Ato – O<br />

ritual do Olubajé –, epicentro da ópera, de que parte o eixo das narrativas dramática e<br />

musical, pode ser entendida como uma grande coreografia, na qual a ação é retida para<br />

focalizar o encontro do par amoroso Lourenço e Lídia.<br />

A concepção musical<br />

Lindembergue Cardoso não deixou referências à concepção musical de sua ópera;<br />

não nutria esperanças de uma encenação após uma tentativa fracassada de que integrasse<br />

as comemorações do centenário da abolição da escravatura. Por isso Lindembergue se<br />

desestimulou a escrever uma abertura, é o que nos informa a viúva do compositor. Ildásio<br />

Tavares, tendo acompanhado a composição da música muito próximamente, inclusive<br />

fornecendo a Lindembergue os materiais musicais oriundos do candomblé e até mesmo<br />

sugerindo-lhe o perfil da ária do Barão Teodoro, foi quem se expressou sobre a concepção<br />

musical da ópera, por ocasião da estreia. Segundo ele, a proposta musical para Lídia de<br />

Oxum era a realização de uma “antiópera neobarroca e brasileira” (Tavares, 1995), valorizando<br />

o recitativo musical (Sprechgesang) e a recitação falada. Subentende-se, portanto,<br />

que essa concepção “antioperística” se refira, principalmente, à tradição novecentista<br />

...........................................................................<br />

10 In Tribuna da Bahia, Caderno 2, capa, 20 de abril de 1995.<br />

11 Em geral, a música concebida para as danças consta de poucos compassos para a orquestra com indicação de<br />

repetição ad libitum, aos quais se adiciona a percussão étnica do palco improvisando.<br />

12 In Bahia Hoje, 8 de maio de 1996.<br />

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69<br />

italiana. Segundo informa o autor do texto, Lídia não deveria ser um pretexto para a exibição<br />

de atributos vocais; no entanto, pretendia referir-se às distintas expressões idiomáticas<br />

do gênero. Assim, encontramos na ópera algumas referências ao belcanto (ampla<br />

extensão, com exploração do registro agudo e grandes intervalos), trechos em estilo arioso,<br />

recitativo secco e recitativo accompagnato, respondendo à funcionalidade do momento:<br />

seja a caracterização da personagem, a construção da dramaticidade, a rápida evolução<br />

da ação, ou, ao contrário, a necessária retenção do tempo nos trechos de natureza reflexiva<br />

ou contemplativa.<br />

Como disse o diretor da primeira montagem, Paulo Dourado: “Em Lídia de Oxum,<br />

a música está construída em função de uma ação dramática”. 13 Isso pode ser observado<br />

em vários aspectos, principalmente no tratamento compositivo do texto, que enfatiza o<br />

recitativo secco e o canto silábico, que utiliza bastante a voz falada, e cuja adaptação à<br />

linha melódica, seja da voz solista ou do coro, projeta-se sobre uma textura orquestral<br />

funcionalmente acompanhante.<br />

A orquestração, geralmente subjacente à concepção vocal, chama a atenção<br />

pelos trechos concebidos em função de efeitos dramáticos, simbólicos, imagéticos e descritivos,<br />

direcionando o processo perceptivo para a compreensão de mensagens subliminares<br />

no texto. Podemos lembrar, por exemplo, o caráter paródico, caricato, portanto, do estilo<br />

marcial da ária do Barão Teodoro, ou a utilização do repente nordestino para, através da<br />

referência explícita à tradição cordelista, satirizar a relação ilícita entre o bisavô de Lourenço<br />

e a negra Luzia. Outro aspecto característico da concepção orquestral é o trabalho motívico<br />

relacionado aos protagonistas do drama, indicativo, portanto, e também cumpridor de<br />

função estruturalizante de um discurso musical que se faz orgânico por meio dessas peças<br />

referenciais reiterativas. A simplicidade da orquestração é maior do que aquela que configura<br />

a formação da orquestra: 2 (picc.). 2. 2. 2 / 2. 2. 2. 1 / perc. (6); cordas. Nela sobressai<br />

o naipe de percussão, com seis integrantes e 16 timbres, 14 podendo ser considerado o<br />

carro-chefe da concepção orquestral. Em trechos como o do Exemplo 1, a percussão<br />

modela o uso dos instrumentos de sopro ou corda em efeitos de caráter essencialmente<br />

percussivo.<br />

Em alguns tutti orquestrais homorrítmicos, como se pode observar no Exemplo<br />

2, sopros e cordas aderem à percussão, intensificando-a com sonoridades complexas, algumas<br />

vezes aleatórias, sendo formadas com alturas indeterminadas em regiões indicadas.<br />

Os instrumentos étnicos no palco (agogô e atabaques) complementam o cenário<br />

coreográfico das danças afrobaianas na senzala e no terreiro de candomblé (Exemplo 3);<br />

devem improvisar sempre, seja quando tocam a sós ou junto à textura escrita da percussão<br />

na orquestra.<br />

Integrando o cenário, a percussão tem função representativa, portanto, é funcional<br />

na definição da ambiência ambivalente entre o universo das culturas afro (dominante<br />

na obra) e eurodescendente (representada em menor parte da obra). Chama atenção a<br />

caracterização musical desses dois universos culturais nos acompanhamentos às ações<br />

vocais dos respectivos personagens.<br />

Além da farta exploração dos timbres da percussão étnica, reforçados pelos diversos<br />

tipos de tambores na orquestra, outros aspectos caracterizam o universo da etnia<br />

negra, como 1) a elocução do texto preferencialmente em recitativo parlando, em métrica<br />

livre, no trecho de um diálogo entre Bonfim, Lídia e Tomás de Ogum (Exemplo 4).<br />

...........................................................................<br />

13 Ver Nota 6.<br />

14 Agogôs (no palco e na orquestra), atabaques (no palco e na orquestra), bumbo, bongôs (2), caxixi, chocalho,<br />

coco, caixa clara, pratos suspensos, (2) pratos, reco-reco, surdo, timpani (2), tomtom (4), triângulo, woodblock.<br />

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70<br />

Exemplo 1. Instrumentos de sopro em efeitos percussivos.<br />

2) Acompanhamentos concebidos em longos ostinati rítmicos, como no trecho<br />

em que as cordas acompanham o dueto entre o escravo Romão e Lourenço (Exemplo 5),<br />

o branco que prega a igualdade racial. Neste exemplo, é interessante notar que a expressão<br />

vocal do Romão se faz na forma ariosa e a de Lourenço, em recitativo, intercambiando os<br />

estilos definidos para as personagens negras e brancas na grande maioria da obra; essa<br />

observação, que pode não corresponder à intenção composicional, é significativa no contexto<br />

do viés analítico-semiológico.<br />

3) Utilização de padrões rítmico-melódicos tradicionais, como na imitação do<br />

toque do berimbau, pontuando o diálogo entre Romão e Lourenço (Exemplo 6) ou na estória<br />

da negra Luzia, narrada no estilo de um desafio de violeiros, sobre o padrão do coco<br />

15 (Exemplo 7).<br />

Nesse contexto de caracterização musical do universo negro, a ária de Lídia no<br />

final do I Ato se reveste de excepcionalidade. Centralizada na ópera, destaca-se principal-<br />

...........................................................................<br />

15 O padrão do coco é o das danças de umbigada (de provável origem banto), que corresponde, na montagem<br />

original, à concepção cênica da dança erótica entre a escrava Luzia e o bisavô de Lourenço.<br />

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Exemplo 2. Sopros e cordas intensificam a percussão com sonoridades complexas.<br />

Exemplo 3. Entrosamento da percussão no cenário com o naipe da orquestra.<br />

71<br />

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72<br />

Exemplo 4. Estilo vocal característico do universo étnico afrodescendente.<br />

mente pelo lirismo dramático, explorando a região aguda. Uma estrutura musical simples<br />

corresponde ao modelo também simples da redondilha maior: cada estrofe de quatro<br />

versos é adaptada a um período musical de duas frases, repetido uma terça menor abaixo.<br />

Ao jogo de rimas alternadas corresponde, então, uma espécie de “rima musical”: os versos<br />

1 e 3 têm a mesma frase, assim como os versos 2 e 4. Muito do caráter lírico-dramático<br />

deve-se às oitavas ascendentes que concluem a segunda frase. A modulação de Fá# maior<br />

para Sol maior na terceira estrofe, leva ao extremo agudo (Si), enfatizando a dramatização<br />

na confissão do medo do amor (Exemplo 8).<br />

Quanto aos aspectos que caracterizam o universo da etnia branca, destacam-se<br />

as referências às tradições operísticas oitocentistas centro-europeias ou à música da<br />

sociedade burguesa do Brasil império. Podemos citar: 1) a elocução do texto preferencialmente<br />

em estilo arioso, com linhas melódicas caracterizadas por gestos amplos ascententes-descendentes,<br />

como pode-se verificar nos trechos correspondentes aos Exemplos<br />

9, 10 e 11; 2) A concepção de motivos condutores no acompanhamento orquestral,<br />

asso-ciados às interlocuções das personagens; no motivo de Lourenço (Exemplo 12), no<br />

motivo da mãe de Lourenço (Exemplo 13) e no motivo marcial do Barão Teodoro (Exemplo<br />

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73<br />

14); e 3) O uso de padrões derivados da tradição musical de salão ao final do segundo<br />

reinado, a exemplo, o dueto entre as mulheres da família Aragão, concebido em “tempo<br />

de valsa brasileira” (Exemplo 15).<br />

Exemplo 5. Acompanhamento orquestral característico do universo étnico afrodescendente.<br />

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74<br />

Exemplo 6. Imitação do toque do berimbau.<br />

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Exemplo 7. Coco.<br />

Exemplo 8. Ária de Lídia.<br />

75<br />

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76<br />

Exemplo 8. Ária de Lídia (cont.)<br />

Exemplo 9. Ária de Lourenço.<br />

Exemplo 10. Dueto da mãe e da irmã de Lourenço.<br />

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Exemplo 11. Ária do Barão Teodoro.<br />

Exemplo 12. Motivo de Lourenço.<br />

Exemplo 13. Motivo da mãe de Lourenço.<br />

77<br />

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78<br />

Exemplo 14. Motivo do Barão Teodoro<br />

Identidade autoral x identidade cultural<br />

Identidade autoral<br />

Lídia de Oxum apresenta a maioria dos aspectos que caracterizam, indiscutível<br />

e preponderantemente, a obra de Lindembergue Cardoso sob o ponto de vista ideológicoestético.<br />

Em primeiro lugar, podemos citar a intimidade com a música folclórica e popular<br />

brasileira, notada em todas as fases da sua produção musical: do início à maturidade profissional.<br />

Essa intimidade chega a ponto de suas alusões estilísticas ao popular ou ao folclore<br />

apresentarem um grau de autenticidade tal que poderíamos apostar tratar-se de uma<br />

citação. Dois trechos da ópera exemplificam esse aspecto. Um deles é a ária de Tomás de<br />

Ogum, onde o compositor indica, na partitura, “Canção à moda popular” (Exemplo 16). O<br />

cantor é essencialmente acompanhado pelas cordas, os metais articulam pequenos elos<br />

motívicos ascendentes entre as frases e uma bateria (tambor surdo no pulso e caixa clara<br />

no soluço do contratempo) sustentam a base rítmica característica: um padrão estrutural<br />

clássico do estilo.<br />

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Exemplo 15. Duteto da mãe e da irmã de Lourenço.<br />

O outro trecho é o já mencionado e demonstrado desafio, que diz respeito à estória<br />

da negra Luzia, sobre o modo misto nordestino e o ritmo do coco (Exemplo 7); e a<br />

cadência típica do duo de flautas em terças paralelas (Exemplo 17).<br />

Outro aspecto característico da obra integral de Lindembergue Cardoso é a convivência<br />

próxima do religioso com o profano; hinos que se referem à Bahia católica (o Hino<br />

ao Senhor do Bonfim foi utilizado em sua Rapsódia Baiana) tanto quanto os cânticos<br />

dos rituais do candomblé baiano (como o Hino a Oxalá, tema central de sua peça Oniçá<br />

Orê) são evocados num discurso em que religiosidade e “mundanidade” se alternam.<br />

Centrada na cultura afrobaiana, em que as fronteiras entre os universos religioso e profano<br />

são particularmente obscuras, a ópera é farta em referências aos ritmos, timbres e cantos<br />

afrodescendentes, aos ijexás e afoxés, ritualísticos, semânticos e ambivalentes no que diz<br />

respeito à funcionalidade nos âmbitos religioso e profano. Na ópera, é na diferenciação<br />

entre o ritmo calmo do ijexá, marcado pelos atabaques, e o andamento vivo do afoxés –<br />

onde também o agogô entra em cena – que se distinguem as representações do universo<br />

religioso (na cena da cerimônia de Olubajé) e profano (o lazer dançante na senzala e a<br />

celebração festiva da liberdade oficializada).<br />

Outra característica ideológico-estética na obra de Lindembergue Cardoso é abertura<br />

à interação criativa do(s) intérprete(s); na ópera, o trecho que acompanha as expressões<br />

de dúvida sobre uma possível traição à rebelião negra tem uma concepção textural<br />

inteiramente deixada ao caos de um improviso orquestral dirigido, com sugestão de atividade<br />

em notação gráfica e indicação de dinâmica (Exemplo 18).<br />

A atitude heterodoxa no uso de sistemas musicais tradicionais, outra característica<br />

da estética do compositor, também se encontra na ópera. Enquanto a concepção<br />

melódica das árias é eminentemente tonal, não se pode dizer o mesmo do acompanhamento<br />

harmônico, o qual pode evocar, temporariamente, um centro tonal irrespectivo<br />

da linha melódica, de forma a promover uma dose de ambiguidade, de estranhamento,<br />

que, em determinados momentos, se resolve. Pode-se dizer que melodia e acompanhamento<br />

saem e entram em fase harmônica, ciclicamente, como num trecho da ária de<br />

Lídia (Exemplo 19).<br />

79<br />

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80<br />

Exemplo 16. Ária de Tomás de Ogum.<br />

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Exemplo 16. Ária de Tomás de Ogum (cont.).<br />

81<br />

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82<br />

Exemplo 17. Cadência do desafio.<br />

Exemplo 18. Improviso orquestral dirigido.<br />

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83<br />

No contexto harmônico respectivo a Sol-maior/ Mi menor, a melodia vocal tem<br />

um acompanhamento instrumental que, inicialmente, refere-se ao contexto de Mi bemol<br />

maior, para concluir em fase com a voz. Isso determina os estranhamentos harmônicos<br />

Mib/Mi natural, Fá natural/Fá #, Si b/Si natural, que turvam a definição tonal do trecho,<br />

até que, finalmente se esclareça o contexto de Sol Maior.<br />

Se as noções de ambiguidade, estranhamento e indeterminação se encaixam<br />

perfeitamente numa ambientação musical para essa personagem, deve-se salientar que<br />

essas características são inerentes à linguagem do compositor, de uma forma geral.<br />

Identidade cultural<br />

Considerando o aspecto da identidade cultural da ópera, devemos lembrar, de<br />

antemão, que Lindembergue Cardoso e Ildásio Tavares, nascidos respectivamente em<br />

1939 e 1940, foram parte da juventude estudantil da década de 1960, que se iniciou profissionalmente<br />

na década de 1970, nos “anos de ferro” da política nacional e no movimento<br />

internacional da contracultura, de contestação dos valores centrais do mundo ocidental.<br />

Foram parte de uma juventude de espírito libertário, inovadora de estilos, constituída de<br />

arautos da cultura underground, alternativa, marginal, focada principalmente nas transformações<br />

da consciência, dos valores e do comportamento. Na época de sua formação<br />

intelectual e ideológica, o mundo ao redor digeria os critérios-chave da estética moderna:<br />

o novo, a ruptura e a vanguarda. Devemos também acrescentar o fato de que Lídia de Oxum,<br />

embora concebida no final da década de 1980, tem um antecedente ideológico nos<br />

anos 70: o musical “O Barão de Santo Amaro”, em que o autor usa do artifício paródico<br />

para denunciar os abusos de poder e prepotência da ditadura militar da época.<br />

Talvez possamos estabelecer uma relação entre esse contexto que circunscreve<br />

o período de formação ética e ideológica dos autores e a proposta estética idealizada<br />

para Lídia de Oxum: “antiópera neobarroca e brasileira”, segundo Ildásio Tavares. Quanto<br />

à conceituação antioperística, Lídia é discutível do ponto de vista musicológico, principalmente<br />

considerando-se o perfil dos gêneros multimidiáticos em evolução a partir dos<br />

anos 1980 (época em que foi concebida) em direção ao contexto ideológico do pós-modernismo,<br />

o qual Lídia de Oxum visita confortavelmente. O que se pode dizer da pretensão<br />

“antioperística” – que poderíamos, sem titubear, atribuir antes a Ildásio Tavares que ao<br />

compositor – é que, certamente, reverberando ainda valores dos anos 1960–1970 (principalmente<br />

a ruptura com as concepções estéticas imediatamente anteriores), não se concretizou<br />

na música de Lindembergue Cardoso. Já nos anos 1980, o compositor se distanciava<br />

dos critérios-chave da estética moderna – o novo, a ruptura e a vanguarda – e certamente<br />

observava a chegada do pós-modernismo com a satisfação de poder, então, aberta e<br />

francamente, sem pressões de recusa ou aceitação, embalar-se nas culturas de suas origens<br />

étnicas – sertaneja e afrobaiana –, as quais, convivendo com ideologias de época e seus<br />

desdobramentos estéticos, sempre estiveram presentes em sua criação. Pode-se dizer,<br />

inclusive, que a música de Lindembergue Cardoso já sintomatiza os problemas advindos<br />

da globalização e sintoniza-se nas tendências estéticas pós-modernas instituídas a partir<br />

dos anos 1990, quando inovação e originalidade já não são palavras de ordem, e o olhar<br />

voltado para o passado, com a retomada de modelos da tradição, é encorajado. Se, de<br />

um lado, pode-se reconhecer na arte de Lindembergue Cardoso a resistência à globalização<br />

pela recorrência, cada vez maior, às identidades locais, de outro lado, nela verificam-se<br />

também a pluralização de referenciais e a descentralização de sistemas e procedimentos<br />

composicionais, aspectos que integram a ideologia pós-moderna.<br />

No que diz respeito à pregnância de brasilidade, se há pontos de contato entre<br />

as concepções do libretista e do compositor (adoção de regionalismos e vernáculo), também<br />

se pode detectar a diferença. Se no libreto, como ressalta seu autor, a grande tragédia<br />

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84<br />

representada é “o abismo de identidade dos personagens, que se agrava após a abolição”<br />

(cf. Bahia Hoje, 1995), a música de Lindembergue Cardoso, certamente, reflete outra<br />

realidade, que se refere ao contexto sócio-histórico da época em que foi concebida, ou<br />

seja, a grande virada de identidade cultural que se reconhece na Bahia contemporânea: a<br />

de que o colonizado, finalmente, colonizou o colonizador.<br />

Exemplo 19. Ária de Lídia (trecho).<br />

Referências bibliográficas<br />

“Começam os ensaios da ópera”. Bahia Hoje, Caderno A, capa, 24 de maio de 1995.<br />

“Dança é diferencial na ópera Lídia de Oxum”. Bahia Hoje, 8 de maio de 1996.<br />

“Salvador monta primeira ópera negra do Brasil”. Tribuna da Bahia, Caderno 2, capa, 20<br />

de abril de 1995.<br />

Tavares, Ildásio. “A ópera é dos operários”. Tribuna da Bahia, Caderno 2, p. 5, 4 de julho<br />

de 1995.<br />

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Dulcineia e Trancoso – uma ópera armorial<br />

85<br />

Eli-Eri Moura<br />

Universidade Federal da Paraíba<br />

A ópera Dulcineia e Trancoso, com música de minha autoria e libreto de W. J.<br />

Solha, 1 foi estreada no dia 18 de dezembro de 2009, no Teatro de Santa Isabel, na cidade<br />

do Recife, Pernambuco. Composta durante o período exato de três meses, de 9 de setembro<br />

a 9 de dezembro de 2009, a obra foi comissionada por Ana Lúcia Altino e Rafael Garcia<br />

(casal a quem é dedicada) para ser apresentada durante o XII Virtuosi Festival Internacional<br />

de Música, evento tradicional dirigido pela mesma dupla, que ocorre todo mês de dezembro<br />

em Pernambuco. A estreia contou com um elenco de solistas de primeira grandeza,<br />

interpretando os oito personagens do drama: Gabriella Pace, soprano (Dulcineia); André<br />

Vidal, tenor (Trancoso); Felipe Oliveira, barítono (Dono do Circo); Sávio Sperandio, baixo<br />

(Cervantes); Flávio Leite, tenor (Ariano); Saulo Javan, barítono (Bozo); e Adriana Clis, mezzo<br />

(A Morte e A Compadecida). A direção musical coube ao maestro Rafael Garcia, que regeu<br />

a Orquestra Jovem de Pernambuco (com um setup instrumental modesto, em função do<br />

tamanho do fosso do Teatro de Santa Isabel 2 ) e um coro local de vinte vozes (SCTB), especialmente<br />

formado para a ocasião. Ainda participaram do projeto seis bailarinos dirigidos<br />

por Maria Paula Costa Rego. A direção cênica ficou a cargo de Luiz Carlos Vasconcelos e o<br />

cenário virtual (criado através de projeções e animações) a cargo de Marcelo Garcia. Em<br />

virtude da exiguidade do tempo para compor a obra, a orquestração foi dividida entre<br />

mim e meus colegas compositores Marcílio Onofre e Carlos Anísio.<br />

O dado curioso inicial, relacionado à composição de Dulcineia e Trancoso, diz<br />

respeito à natureza da encomenda: “escrever a primeira ópera armorial”. A ideia surgiu,<br />

na verdade, a partir do sucesso de outro projeto armorial – o Concerto Duplo Armorialis<br />

para viola, violoncelo e orquestra, também comissionado a mim pelos diretores do Festival<br />

Virtuosi, para um concerto comemorativo dos 80 anos do escritor paraibano Ariano Suassuna,<br />

em dezembro de 2007. O que achei intrigante foi o fato de me requererem obras<br />

em linguagens e estilos aos quais nunca me dediquei na realidade, a não ser em eventuais<br />

projetos de música incidental para teatro e filme. No entanto, mesmo devoto da chamada<br />

música contemporânea de concerto, dois fatores me levaram a aceitar o desafio. Primeiro,<br />

a música associada ao Movimento Armorial sempre esteve em meus ouvidos, seja através<br />

das manifestações folclóricas que a inspiraram, uma vez que fui criado em uma cidade do<br />

interior do Nordeste (Campina Grande, na Paraíba), seja através do contato próximo com<br />

os principais protagonistas dessa música, como o renomado Quinteto Armorial, 3 que atuou<br />

no Departamento de Artes da Universidade Federal da Paraíba (em Campina Grande), on-<br />

...........................................................................<br />

1 Waldemar José Solha (Sorocaba, 1941) é escritor, poeta, dramaturgo, ator e artista plástico. Reside na Paraíba<br />

desde 1962. Autor de livros como Israel Rêmora, A Verdadeira Estória de Jesus, A Batalha de Oliveiros e História<br />

Universal da Angústia, já ganhou numerosas distinções, dentre as quais o Prêmio João Cabral de Melo Neto<br />

(2005) e o Prêmio Graciliano Ramos (2006). Em 2006 foi finalista do Prêmio Jabuti de Literatura. Tive a honra de<br />

dividir com Solha, que considero um dos maiores escritores brasileiros da atualidade, mais de dez parcerias em<br />

peças de teatro e musicais.<br />

2 Duas flautas (segunda flauta dobrando flautim), um oboé, dois clarinetes (segundo clarinete dobrando clarone),<br />

um fagote, duas trompas, um trompete, um trombone, uma tuba, dois percussionistas, piano, cordas (mínimo:<br />

quatro primeiros violinos, quatro segundos violinos, três violas, três violoncelos e dois contrabaixos).<br />

3 Em especial, seus integrantes Antônio José Madureira, Antônio Nóbrega (com quem estudei violino ainda garoto),<br />

Fernando Barbosa, Edílson Eulálio e Fernando Pintassilgo.<br />

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86<br />

de fui aluno, no final da década de 1970. Segundo, sempre foi minha crença que todo<br />

compositor deve desenvolver seu métier dominando uma frente ampla de linguagens,<br />

mesmo que só a título de exercício composicional. Reforça meu pensamento o fato de<br />

vivermos atualmente uma realidade de imensa diversidade de mídias que exigem linguagens<br />

musicais muito específicas – do jingle publicitário à música acusmática, da música<br />

incidental à música abstrata –, uma realidade que força o compositor a desenvolver muitas<br />

vezes o que chamo de camaleonismo composicional, necessário para atender as mais<br />

diversas demandas do mercado.<br />

Quanto a ser a “primeira ópera armorial”, essa é uma questão em aberto, evidentemente.<br />

Sabe-se que em 11 de maio de 1961, o compositor paraibano José Siqueira<br />

(1907–1985) estreou a sua ópera A Compadecida (1959), sobre a peça O Auto da Compadecida,<br />

de Ariano Suassuna, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Escrita onze anos<br />

antes da articulação do Movimento Armorial, A Compadecida (de acordo com relatos de<br />

quem viu a partitura, ainda não publicada, no acervo particular da família do compositor)<br />

é típica da linguagem folclorista de José Siqueira, utilizando-se de temas extraídos diretamente<br />

da música nordestina para caracterizar seus personagens – um traço que a distancia,<br />

em parte, dos ideais armoriais. 4 Sendo a primeira ópera armorial ou não, Dulcineia<br />

e Trancoso causou impacto em virtude de um contexto específico de tempo e espaço,<br />

conforme a visão do crítico musical Carlos Eduardo Amaral.<br />

A estreia de Dulcineia e Trancoso […] não constituiu um marco despercebido<br />

nas artes pernambucanas tão somente pelo fato de ter sido a primeira ópera escrita<br />

a partir das diretrizes do Movimento Armorial (ainda que tenha saudavelmente<br />

evitado a linha estética arraigada pelos grupos musicais armoriais dos<br />

anos 1970), mas sobretudo por ter sido a primeira ópera composta para ser encenada<br />

no Teatro de Santa Isabel desde o final do século XIX, quando Euclides<br />

Fonseca (1854–1929) deu importantes contribuições para o gênero em Pernambuco.<br />

Dulcineia e Trancoso […] também fez história por se tornar a segunda<br />

ópera brasileira contemporânea apresentada no Recife, depois de O Cientista,<br />

de Sílvio Barbato […], em 2007. (Amaral, 2010, p. 33)<br />

Tendo Ariano Suassuna como seu maior articulador, o Movimento Armorial foi<br />

inaugurado em 18 de outubro de 1970, com a realização de um concerto e de uma exposição<br />

de artes plásticas, na Igreja de São Pedro dos Clérigos, no Recife. No que diz respeito<br />

especificamente à arte musical, seu cânon central foi a criação de uma música de concerto<br />

“erudita popular nordestina”. O próprio Ariano dizia estar à “procura de uma composição<br />

nordestina renovadora, de uma música erudita brasileira de raízes populares, de um som<br />

brasileiro, criado para um conjunto de câmera, apto a tocar a música europeia, é claro –<br />

principalmente a ibérica mais antiga, tão importante para nós, mas principalmente apto<br />

a expressar o que a cultura brasileira tem de singular, de próprio e de não europeu” (Suassuna,<br />

1974). Já em 1951, Ariano discutia sobre os caminhos, relacionados de alguma forma<br />

à música popular, que os compositores poderiam explorar.<br />

Partindo da simples imitação das formas populares, passará ela por uma fase de<br />

transposições, para chegar finalmente à recriação, sua forma mais alta. A imitação<br />

é, no caso, o campo do compositor popular; e a transposição o de uma espécie<br />

...........................................................................<br />

4 Durante 45 anos, até a encenação de O Cientista, de Sílvio Barbato (1959–2009), em 2006, A Compadecida<br />

deteve o “título” de última ópera a ser criada no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, e a última em português<br />

ali encenada, até Dom Casmurro (criada em São Paulo), do compositor Ronaldo Miranda, na década de 1980.<br />

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87<br />

intermediária, importantíssima para a criação de uma música nacional. (Suassuna,<br />

1951, p. 44-45)<br />

Esses princípios são muito próximos aos da música nacionalista orientada por<br />

Mário de Andrade, que já na Semana de Arte Moderna de 1922 propôs estágios para a<br />

criação de uma linguagem musical simultaneamente brasileira e moderna, implicando<br />

em diferentes tipos de recontextualização da música popular – desde a adoção fiel de<br />

melodias folclóricas até uma música refletindo o inconsciente nacional, aquela que seria<br />

verdadeiramente nacionalista em espírito (caso da música de Villa-Lobos). O compositor<br />

potiguar Antonio José Madureira, que veio a se tornar um dos ícones da música armorial,<br />

aponta, no entanto, diferenças com o movimento defendido por Suassuna.<br />

Na música, Ariano Suassuna teve um papel muito importante, porque, para mim,<br />

mostrou qual a diferença da música erudita do movimento nacionalista e o que<br />

seria uma música erudita partindo das raízes populares do Nordeste. A nacionalista<br />

parte de uma estrutura já estabelecida, europeia, levando elementos da<br />

cultura popular. A armorial é o inverso: mergulha na música autêntica do Nordeste<br />

e traz alguns elementos da cultura erudita para si. (apud Nóbrega, 2007)<br />

Ademais, nota-se na práxis musical armorial traços que a caracterizam de forma<br />

marcante e a distanciam do movimento nacionalista anterior, dentre eles: uma abordagem<br />

timbrística diferenciada, através da inclusão de novas sonoridades rústicas, primitivas,<br />

ásperas, que trouxe para a sala de concerto instrumentos da tradição popular (rabeca,<br />

viola de arame, marimba, pífanos etc.); a ênfase na relação com a cantoria de viola, o cavalo<br />

marinho, o maracatu e outros folguedos típicos do Nordeste, em especial, dos estados<br />

de Pernambuco, da Paraíba e do Rio Grande do Norte; o uso de supostos elementos da<br />

música antiga (medieval, renascentista e barroca) da Península Ibérica; a aplicação de<br />

determinados procedimentos, desenvolvidos principalmente por Antonio José Madureira<br />

(que, a meu ver, tornaram-se clichês do movimento), como a recorrência de pequenos<br />

fragmentos melódicos, a citação e gradual transformação de temas de cunho folclórico, e<br />

o uso bastante particular dos modos nordestinos, resultando muitas vezes em uma música<br />

cíclica e até certo ponto estática. Tais traços são bem nítidos na música de Antonio José<br />

Madureira, em especial a interpretada pelo Quinteto Armorial, liderado por ele, e de<br />

outros compositores do movimento, como Cussy de Almeida, Clóvis Pereira, Antonio Nóbrega,<br />

Capiba e Jarbas Maciel, dentre outros, além de nomes mais recentes, como o do<br />

potiguar Danilo Guanais.<br />

Os dois primeiros traços citados e em especial o depoimento de Antonio José<br />

Madureira me conduzem a uma pequena reflexão: a de que no patamar da música contemporânea<br />

de concerto, mesmo em uma esfera distinta de linguagem musical, também<br />

tenho aplicado princípios que tangenciam alguns dos pressupostos da música armorial.<br />

Minha pesquisa composicional nesse patamar tem visado desenvolver uma linguagem<br />

baseada em novas relações entre a chamada música de concerto e elementos etnomusicais<br />

brasileiros, buscando alternativas para a produção de uma música que seja regionalmente<br />

contextualizada, mas que transcenda os ideais da chamada música nacionalista – aquela<br />

que, baseada numa estética apregoada por Mário de Andrade, é emblemática de grande<br />

parte da produção brasileira nos séculos XX e XXI. A busca de alternativas se dá na abordagem<br />

das relações em si entre o contextual e o estrutural. Em outras palavras, na interação<br />

entre referências culturais e sistemas composicionais abstratos. Sob meu ponto de vista,<br />

em muito da música que emprega elementos regionais, estes são sugados pelo sistema.<br />

Em vários casos, o sistema concerne práticas harmônicas já estabelecidas, apenas ajustadas<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


88<br />

para abrigar as referências culturais. Dessa forma, o sistema, incorporando o conjunto de<br />

normatizações, convenções e relações, corporifica o todo, e, assim, tem primazia sobre a<br />

cultura. Consequentemente, o todo, ao ser operacionalizado, não se desintegra, se mantém<br />

estável; e atributos musicais, como coesão, consistência, unidade (próprios de sistemas<br />

baseados principalmente na tonalidade), sobrepõem-se sobre as idiossincrasias culturais<br />

como os fatores qualitativos do discurso. Como resultado, os elementos culturais tendem<br />

a ficar na superfície da música, estratificados nos parâmetros das alturas e do ritmo, muitas<br />

vezes gerando apenas um caráter exótico. Achando, pessoalmente, esse caminho já<br />

exaurido (ao menos, no patamar citado), tenho procurado a direção oposta: implementar<br />

a cultura como ponto de partida, de tal forma que sistemas composicionais emerjam sinergicamente<br />

a partir dos elementos etnomusicais. Nesse contexto, os ingredientes culturais<br />

devem estar na base, no início do processo composicional, influenciando a escolha<br />

da matéria prima, dos procedimentos e das estruturas, e funcionando como um fator<br />

causal. Grosso modo, a cultura deverá formar o ambiente, e rotinas sistêmicas devem<br />

emergir em função dela. Nessa abordagem, as referências culturais corporificam o todo e<br />

este, ao ser operacionalizado, mantém-se consistente, perene, enquanto o sistema composicional<br />

torna-se aberto, flexível, passível de transformações. Associada a esse propósito<br />

há a ideia de que uma profunda interação com elementos de uma cultura musical local<br />

ocorra de forma estrutural, envolvendo não apenas alturas e ritmos, mas também outros<br />

parâmetros, a exemplo de timbre, textura, densidade e registro, como elementos constitutivos<br />

do cosmos composicional. O processo composicional que chamo de Desfragmentação<br />

é um modelo catalisador dessas ideias, e aparece em peças como Circumsonantis<br />

para quarteto de cordas, baseada na capoeira, e Noite dos Tambores Silenciosos<br />

para orquestra sinfônica, baseada no maracatu de Pernambuco.<br />

O libreto de Dulcineia e Trancoso sintetiza – como uma grande homenagem – o<br />

universo ficcional do mentor intelectual do Movimento Armorial, Ariano Suassuna. Solha<br />

(2010) diz que “como a ideia era a criação de uma ópera armorial, a primeira coisa que<br />

me ocorreu foi pensar numa história a partir do romance A Pedra do Reino, do Ariano,<br />

considerada por ele mesmo como sua obra mais importante”. No libreto, o autor desdobra<br />

as ideias do escritor paraibano e “abre” a Pedra do Reino (que não ocorre no romance),<br />

revelando a catedral que conteria o Rei Dom Sebastião. 5 O libretista organiza o enredo em<br />

um único ato, dividido em dez cenas, criando diversas situações e plots sobrepostos.<br />

Sabendo que a arte circense é uma das paixões de Ariano, ele parte da ideia de que tudo,<br />

na verdade, é um espetáculo de um circo fantástico, mágico, presidido pelo seu Dono,<br />

conforme descrição a seguir.<br />

Cena 1 – Dono do Circo, Ariano e Cervantes<br />

Com a Pedra do Reino ao fundo, o espetáculo é aberto pelo Dono do Circo,<br />

“uma espécie de Deus, espécie de Lux in Tenebris no mau sentido”, segundo Solha (2009,<br />

p. 3). Na história do picadeiro surgem dois profetas: o próprio Ariano Suassuna e seu ídolo,<br />

Miguel de Cervantes Saavedra. Os dois profetizam (cada um cantando em sua própria<br />

...........................................................................<br />

5 Sabe-se que o jovem rei português foi morto na batalha de Alcácer-Quibir, no Marrocos, em 1578, em uma<br />

cruzada cristã. Desde então, transformou-se em personagem de uma lenda em Portugal, segundo a qual ele<br />

teria sido alçado aos céus durante a citada batalha para um dia voltar como redentor, a fim de instaurar o Quinto<br />

Império (de justiça e fartura) contra os espanhóis. Séculos depois, na década de 1830, no Brasil, ocorrem manifestações<br />

coletivas de um messianismo associado ao rei português, rotuladas de sebastianismo, precisamente<br />

em São José do Belmonte, sertão de Pernambuco, a 470 quilômetros do Recife, onde duas rochas conhecidas<br />

como Pedra Bonita erguem-se a 30 e 33 metros respectivamente. Em 1836, João Antônio dos Santos prega que<br />

Dom Sebastião está encantado na Pedra Bonita e precisa ser libertado para implantar um reino de prosperidade<br />

e liberdade. Dois anos depois, seu cunhado João Ferreira se autointitula rei e proclama que a Pedra só se desencantaria<br />

quando lavada com sangue, o que foi feito com sacrifícios humanos. O massacre da Pedra do Reino<br />

ocorreu entre 14 e 16 de maio de 1838, matando 53 pessoas, incluindo mulheres e crianças.<br />

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89<br />

língua) que dez dragões virão destruir a Pedra num banho de sangue, o que fará acontecer<br />

o milagre: a Pedra se abrirá para surgir de dentro dela uma catedral grandiosa e Dom Sebastião<br />

acompanhado de sua corte (reis, rainhas e príncipes... dos maracatus). O Dono do<br />

Circo ainda esclarece: os dragões são, na verdade, retroescavadeiras.<br />

Cena 2 – Trancoso e Bozo<br />

O Dono do Circo apresenta Trancoso (um ator que interpreta Dom Pixote) e Bozo<br />

(outro ator que interpreta São Chupança), os quais comentam sobre a profecia. Nas<br />

palavras de Solha:<br />

Ah, claro que nesse circo fabuloso em que Cervantes nos visita, não poderia faltar<br />

a imensa figura de seu superstar Dom Quixote, aqui, na verdade, Pixote,<br />

dançando um xote, acompanhado pelo indefectível Sancho Pança, na verdade<br />

São Chupança. Tal Quixote-Pixote, no entanto, não poderia limitar sua referência<br />

à Espanha, daí que nosso herói não é mais do que uma performance do ator<br />

Trancoso, nome que nos remete a Gonçalo Fernandes Trancoso, o pioneiro da<br />

contística lusitana, célebre por suas estórias fantasiosas, donde o rótulo de História<br />

de Trancoso para todo relato de sertanejo, que não passe de flagrante<br />

mentira, como toda esta ópera. (Solha, 2009, p. 3)<br />

Cena 3 – A Morte<br />

O Dono do Circo apresenta a vilã, A Morte, cuja missão é destruir a Pedra para acabar<br />

com o fanatismo. Trancoso sonha com Dulcineia. A Morte avisa: vai dinamitar a Pedra<br />

do Reino e desmantelá-la com suas escavadeiras sombrias. O Coro do Povo responde<br />

com fé.<br />

Cena 4 – A Compadecida<br />

Ocorre uma revelação a Trancoso, que Solha descreve:<br />

[…] e eis que Trancoso, em lugar de botar na cabeça a bacia de barbeiro (que é o<br />

elmo de Quixote), põe, por engano, o chapéu de Lampião, com o que imediatamente<br />

entra em transe […] e o que vê e vemos com ele? A fabulosa Pedra se<br />

abrindo, revelando a maravilhosa Catedral que há dentro dela, da qual saem a<br />

Compadecida e seu coro de anjos para falar com nosso ator. E o que ela quer<br />

com ele? Que lidere o povo contra a Morte e suas tropas [levando-o para proteger<br />

a Pedra], prometendo-lhe, em troca, Dulcineia! (Solha, 2009, p. 3)<br />

Cena 5 – Dulcineia<br />

Ariano e Cervantes entram com Dulcineia, que se pergunta por que foi a escolhida.<br />

Para ser desviada de seus pensamentos acerca de seu futuro sombrio, Dulcineia é<br />

distraída com um Frevo.<br />

Cena 6 – Encontro de Dulcineia e Trancoso<br />

Trancoso e Dulcineia finalmente se encontram. Solha (2009, p. 3): “Não há dúvida<br />

de que o encontro dos dois é uma tremenda maldade criadora de Ariano para o Dono do<br />

Circo, pois o casal é logo levado à Morte, a fim de que o sangue dos dois banhe a Pedra<br />

que, finalmente, deve se escancarar para o Milagre”.<br />

Cena 7 – Lampião e Maria Bonita<br />

No meio da história, Cervantes tem um transe profético (a prefiguração da tragédia):<br />

Lampião e Maria Bonita (que são, na verdade, os modelos de Trancoso e Dulcineia)<br />

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atravessam de barco o rio São Francisco, onde cruzam com uma jazz-band que vem em<br />

outra embarcação na direção oposta – há uma jam session no meio do São Francisco.<br />

Poucos dias depois, Lampião e Maria Bonita são mortos e degolados na Grota dos Angicos.<br />

Cena 8 - A batalha<br />

Ocorre a batalha de Trancoso (liderando o povo) pela Pedra do Reino contra a<br />

Morte, as dragas e as tropas – a batalha é perdida.<br />

Cena 9 - O fuzilamento<br />

No alto da Pedra surgem Trancoso e Dulcineia acorrentados como Prometeu.<br />

Entre eles está Bozo, preso. O Dono do Circo anuncia o pelotão de fuzilamento. Bozo se<br />

queixa – queria uma grande ária. Dulcineia e Trancoso proferem suas últimas palavras. O<br />

fuzilamento é ordenado pela Morte. Trancoso, Dulcineia e Bozo morrem.<br />

Cena 10 - A ressurreição<br />

Finalmente, com o sangue de Trancoso, Dulcineia e Bozo, a Pedra do Reino se<br />

abre, e de lá surgem três Bonecos de Olinda: Trancoso com a faixa “El Rei Dom Sebastião<br />

Trancoso”; Dulcineia Primeira, como Rainha; e Bozo (um boneco pequeno) como Bufão,<br />

dançando maracatu. Vão começar o reinado da grandiosa nação brasileira (e o ciclo<br />

reinicia...).<br />

Ressalte-se que, além da homenagem a Ariano, o enredo de Solha traz em seu<br />

bojo um expressivo número de elementos que referenciam uma arte popular reverenciada<br />

pelo próprio Ariano, uma poética que sempre impregnou o Movimento Armorial em geral:<br />

a Literatura (ou Folheto) de Cordel, própria da Cantoria de Viola. Dentre tais elementos,<br />

sobressaem o espírito profético, o universo mágico, fantástico, o componente épico e espetacular,<br />

o mito, a lenda, o messianismo, o herói, o sacrifício, o milagre, a efusão religiosa,<br />

o humor e a tragédia.<br />

No ambiente imaginário, irreal, apresentado pelo libreto de Solha, proponho<br />

um universo sonoro em que culturas musicais distintas convivem, confrontam-se e se<br />

fundem. E evidenciam traços característicos da tradição operística, referências da música<br />

medieval-renascentista da Península Ibérica, e referências regionais – que incluem maracatu,<br />

frevo, cantoria de viola, xote, baião, caboclinhos, valsa, terno de pífanos etc. –<br />

além de música circense. Há também uma carga de alusões musicais por trás da ópera –<br />

concernente a estilos, não a obras específicas – que permeia compositores tão díspares<br />

quanto Mozart, Verdi, Mahler, Del Tredici, Bernstein e Juan Del Encina, dentre outros,<br />

num diálogo com o armorial. No que concerne os elementos armoriais em si, procurei<br />

evitar o uso explícito de certos clichês melódico-harmônicos muito óbvios do Movimento.<br />

O maior desafio, talvez, foi encontrar o equilíbrio entre esses elementos – incluindo as<br />

referências folclóricas rurais nordestinas, a música secular medieval-renascentista, a música<br />

circense – e a tradição lírica, cuja impostação vocal do bel canto foi respeitada. Não tentei<br />

limar ou modificar esse aspecto para adequá-lo às características armoriais; pelo contrário,<br />

procurei fazer com que ambos dialogassem para enriquecimento do próprio discurso narrativo<br />

e musical.<br />

Minha solução foi articular formalmente o discurso criando uma colagem em<br />

dois níveis, que amparasse simultaneamente seccionamento e continuidade. Em um nível<br />

há a compartimentação sequencial e sobreposta dos conteúdos (de ordem primária, motívico-temática<br />

em especial), de acordo com determinados critérios de ordenamento e<br />

recorrência. Em outro nível há o intercambiamento entre tais conteúdos e diversas caracterizações,<br />

gerando, inclusive, mutações nos primeiros. O objetivo desse intercambiamento<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


91<br />

foi criar uma teia pré-composicional, na qual fosse possível combinar e recombinar, entre<br />

os conteúdos, múltiplas funções e qualidades, tais como: tipos de música (de cunho folclórico,<br />

com evocação de música antiga, com evocação de música circense, de tradição<br />

lírica); desdobramento da narrativa (por meio de diálogos, de descrições, de reflexões);<br />

contorno dramático-musical (para implementar estabilidade, flutuação tensional, instabilidade);<br />

articulação discursiva (através de falas, árias [duetos, trios...], segmentos vocais<br />

vários, inserções orquestrais, quasi-recitativos); elaboração musical (envolvendo simplicidade,<br />

complexidade) etc. Assim, um mesmo material temático e seu desenvolvimento,<br />

ao mesmo tempo que mantivessem seus papéis tradicionais de implementação de coesão<br />

linear e de agentes do discurso musical, poderiam, por exemplo, carregar em determinado<br />

instante música de cunho folclórico, descritiva, estável, em dueto, envolvendo certo grau<br />

de simplicidade e, em outro instante, poderiam carregar música de tradição lírica, reflexiva,<br />

de flutuação tensional, num trio, envolvendo complexidade etc. Nesse contexto, evitouse<br />

a tipificação musical dos personagens (com exceção d’A Morte) e do coro, de tal forma<br />

que os diversos materiais temáticos pudessem também intercambiar livremente entre<br />

eles.<br />

A ópera é governada por uma harmonia abertamente triádica, organizada sobre<br />

uma plataforma tonal e outra modal, as quais se inter-relacionam. Na segunda plataforma<br />

são usados os modos Lócrio, Frígio, Mixolídio (Nordestino), Lídio (Nordestino), Dórico<br />

(Nordestino Menor) e de Tons Inteiros. Dentre os vários tipos de relações e caminhos tonais<br />

sedimentados (sobre os dois tipos de organização de alturas), três se destacam: por<br />

terças (relações de mediantes cromáticas); por quartas; e de acordo com os graus (completos<br />

ou parciais) do modo Lócrio. Essas relações são projetadas tanto em larga escala,<br />

estabelecendo as áreas e os centros tonais da ópera, quanto em pequena escala, definindo<br />

as simples progressões tonais. A Figura 1 mostra um resumo das áreas tonais principais<br />

distribuídas nas dez cenas de Dulcineia e Trancoso, destacando tais relações. Note-se que<br />

certo grau de simetria reflexiva é aplicado ao desenho tonal, considerando as Cenas 5 e 6<br />

como eixo central. As citadas relações também estão presentes nos grandes eixos tonais<br />

da obra: 1) o centro tonal inicial e final de Lá em relação ao de Fá, no meio (terça); 2) o<br />

centro Lá em relação ao de Mib, simetricamente localizado nas Cenas 3 e 8 (trítono da<br />

“dominante” lócria); os centros Fá, Sib e Mib na segunda metade (quartas).<br />

Figura 1. Áreas tonais principais distribuídas nas dez cenas de Dulcineia e Trancoso.<br />

Naturalmente, num plano prático, tais relações são aplicadas visando criar passagens,<br />

tanto de larga quanto de pequena escala, com menor direcionamento (caso das<br />

relações de mediante cromática) e com maior direcionamento e empuxo tonais (caso dos<br />

caminhos por quartas), de acordo com as necessidades dos fluxos textuais e musicais.<br />

Mas há também um uso até certo ponto simbólico, com a aplicação dos caminhos pautados<br />

nos graus do modo Lócrio, em especial os que formam o intervalo de trítono (I e V graus<br />

do modo) – como acontece na Cena 3 (dedicada ao personagem Morte), onde as áreas<br />

tonais seguem as notas de um acorde diminuto, e na segunda metade da ópera (em que<br />

a parte trágica do enredo é desencadeada), onde os grandes centros tonais (exceto Fá#)<br />

seguem os graus de uma escala Lócria de Lá desordenada.<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


92<br />

A exemplo da colagem intercambiante de funções e estruturas que ocorre no<br />

desenho formal, algumas interações acontecem também entre os elementos melódicoharmônicos.<br />

Por exemplo, a passagem tonal apresentada na Figura 2 (cantada pela<br />

Compadecida, na Cena 4) tem em seu baixo e nas fundamentais dos acordes de sua<br />

progressão harmônica uma escala completa (desordenada) do modo Frígio em Ré.<br />

Figura 2. Trecho da Cena 4, cantado pela Compadecida. Pauta inferior mostra modo Frígio em Ré (desordenado).<br />

Já a Figura 3 mostra uma passagem modal em Dórico (cantada pela Morte, na<br />

Cena 3), compassos 137-146, sucedida por uma tonal que tem na melodia o modo Lócrio<br />

em Ré, compassos 147 em diante.<br />

Figura 3. Trecho da Cena 3, cantado pela Morte.<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


Figura 3. Trecho da Cena 3, cantado pela Morte (cont.).<br />

Tais interações tiveram por propósito criar uma espécie de narrativa subliminar<br />

harmônica capaz de carregar com fluidez e coerência tonais os distintos conteúdos<br />

propostos no universo sonoro de Dulcineia e Trancoso.<br />

Em última instância, os procedimentos e elementos de tal universo sonoro,<br />

descritos aqui, objetivaram transcender, em parte, as práticas musicais mais desgastadas<br />

do Movimento em questão, desenvolvidas ao longo das últimas décadas, mas sem perder<br />

a essência do espírito Armorial.<br />

Referências bibliográficas<br />

Amaral, C. E. “Ópera Recifense”. Revista Continente. Recife, ano X, p. 33-35, maio, 2010.<br />

Nóbrega, A. P. “A Música no Movimento Armorial”. In: Anais do XVII Congresso da<br />

ANPPOM. São Paulo, 2007.<br />

Solha, W. J. “Opera Dulcineia e Trancoso” (texto no programa de concertos do XII<br />

Virtuosi Festival Internacional de Música). Recife, dezembro, 2009.<br />

Solha, W. J. Publicação eletrônica [mensagem pessoal]. Mensagem recebida por<br />

em 3 de agosto, 2010.<br />

Suassuna, A. “Notas sobre a música de Capiba”. In: Ferreira, A. É de Tororó. Rio de<br />

Janeiro, Livraria Editora da Casa do Estudante do Brasil, 1951, p. 44-45.<br />

Suassuna, A. “O Quinteto e o Movimento Armorial”. In: Quinteto Armorial – Do<br />

Romance ao Galope Nordestino. Texto na contracapa do LP. Manaus: Sonopress Rimo<br />

da Amazônia, Discos Marcus Pereira, 1974.<br />

93<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


95<br />

Uma visão atual da ópera no Brasil:<br />

procedimentos cênico-musicais<br />

em Dom Casmurro e n’A Tempestade<br />

Ronaldo Miranda<br />

Universidade de São Paulo<br />

A ópera brasileira, em termos de criação musical, teve o seu momento de maior<br />

esplendor na segunda metade do século XIX, com a produção de Antônio Carlos Gomes<br />

(Campinas, 1836 – Belém, 1896), compositor que foi sem dúvida o maior operista do continente<br />

americano.<br />

O autor de Lo Schiavo, Il Guarany e Colombo, contudo, constituiu-se num fenômeno<br />

relativamente isolado e sem continuidade. Os grandes compositores que o sucederam<br />

não se dedicaram com a mesma intensidade ao gênero lírico, preferindo abordar<br />

outras formas de expressão musical e muito raramente se aventurando no terreno da<br />

ópera. Essa constatação pode ser aplicada às figuras de Leopoldo Miguez, Alberto Nepomuceno<br />

e Francisco Braga, este talvez o responsável pela mais importante obra do gênero,<br />

na virada do século: a ópera Jupyra, composta no ano de 1900, sobre libreto de Escragnolle<br />

Doria, a partir de um argumento de Bernardo Guimarães.<br />

Glauco Velásquez deixou inacabada sua ópera Soeur Béatrice, a partir da peça<br />

de Maurice Maeterlinck, o dramaturgo belga eleito por Claude Debussy em sua incursão<br />

no gênero lírico, através de Pelléas et Mélisande.<br />

Em pleno século XX, nosso esfuziante Francisco Mignone não negou suas origens<br />

italianas, mas percorreu um caminho bastante irregular entre sua primeira ópera, O Contratador<br />

de Diamantes, de 1921, e a última, O Sargento de Milícias, composta em 1978.<br />

No ano de 1928, a segunda ópera de Mignone, L’Innocente, que teve libreto em<br />

italiano – tal como a primeira –, despertou controvérsias profundas entre os críticos brasileiros.<br />

Luiz Heitor Correa de Azevedo considerou-a “verdadeiramente notável e marcante”<br />

(Azevedo, 1938), mas Mário de Andrade foi ríspido e nada condescendente com a obra e<br />

com o autor, que, nessa época, tinha apenas 31 anos de idade. Concentrando-se no distanciamento<br />

que esta ópera mantinha em relação a um contexto musical brasileiro, Mário<br />

de Andrade escreveu:<br />

É muito doloroso, no momento decisivo de normalização étnica em que estamos,<br />

ver um artista nacional se perder em tentativas inúteis. Porque em música italiana,<br />

Francisco Mignone será apenas mais um, numa escola brilhante, rica, numerosa,<br />

que ele não aumenta […] O Inocente pertence à Itália. A música brasileira<br />

fica na mesma, antes e depois dessa ópera. (Andrade, 1976)<br />

Quarenta e oito anos se passaram até que Mignone escrevesse sua terceira ópera,<br />

O Chalaça, com libreto de Mello Nóbrega, finalmente em língua portuguesa. Concebida<br />

em apenas um ato, O Chalaça estreou na Sala Cecília Meireles em 1976, com regência de<br />

Mário Tavares e direção de Osvaldo Loureiro. Cantores favoritos do compositor, Paulo<br />

Fortes e Glória Queiroz viveram os papéis principais, representando respectivamente o<br />

personagem título, o Chalaça, e Domitila, a Marquesa de Santos.<br />

Em bela crítica no Jornal do Brasil, Edino Krieger saudou favoravelmente o novo<br />

trabalho de Mignone, considerando-o uma obra “leve, mas consistente, que se mantém<br />

de pé tanto musicalmente quanto cenicamente, da primeira à última nota” (Krieger, 1989).<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


96<br />

Figura polêmica, de talento arrebatador, nosso grande Heitor Villa-Lobos fez<br />

algumas incursões no gênero lírico, mas não foi nesse terreno que obteve o sucesso retumbante,<br />

que o coloca hoje entre os compositores mais destacados do século XX. Sua<br />

ópera mais importante talvez tenha sido Yerma, composta em Paris entre os anos de<br />

1955 e 1956, a partir da peça homônima de Federico Garcia Lorca. Ouvida pela primeira<br />

vez após a morte do autor, no ano de 1971, na Ópera de Santa Fé, Yerma chegou ao Brasil<br />

em 1983, em encenação de Adolfo Celi, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro. O espetáculo<br />

foi saudado por Luiz Paulo Horta, no Jornal do Brasil, com uma boa crítica, ressalvando-se<br />

porém a constatação de um certo clima “monocórdio”, que se instala sobretudo<br />

no primeiro ato (Horta, 1989). Outros trabalhos villalobianos no gênero operístico<br />

são Izath, A Menina das Nuvens e Magdalena, esta última estreada em Los Angeles, no<br />

ano de 1948, com direção cênica de Jules Dassin.<br />

Entre o Malazarte de Oscar Lorenzo Fernandez e o Pedro Malazarte de Mozart<br />

Camargo Guarnieri, a ópera brasileira foi pouco ouvida na primeira metade do século XX. Camargo<br />

voltou ao gênero no ano de 1960, trocando a comédia pelo drama. Compôs Um<br />

Homem Só, belo drama lírico em um ato, a partir de um libreto de Gianfrancesco Guarnieri.<br />

O espetáculo de estreia foi dirigido por Ziembinski, voltando à cena, em 1976, numa nova<br />

versão encenada por Gianni Ratto.<br />

Entre as experiências mais recentes, na criação operística nacional, vale citar<br />

Balada para Matraga, composta em 1985 pelo compositor Rufo Herrera, argentino radicado<br />

em Minas Gerais, a partir do original de Guimarães Rosa, A Hora e a Vez de Augusto<br />

Matraga; Maroquinhas Fru-Fru, escrita em 1976 por Ernst Mahle, alemão radicado em<br />

Piracicaba, a partir da peça homônima de Maria Clara Machado; A Peste e o Intrigante,<br />

ópera infantil de Mário Ficarelli, baseada em Monteiro Lobato e destinada, em 1986, aos<br />

alunos do Conservatório de Tatuí; e Qorpo Santo, de Jorge Antunes, estreada em Brasília<br />

no ano de 1983, com uma visão do compositor sobre a vida do dramaturgo gaúcho José<br />

Joaquim de Campos Leão, o Qorpo Santo.<br />

Na década de 80, duas compositoras – Jocy de Oliveira e Cirlei de Hollanda – entram<br />

em cena nesse processo de consolidação de uma nova linguagem para a ópera no<br />

Brasil. Jocy de Oliveira estreou em 1987, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro,<br />

sua ópera Fata Morgana, contando apenas com a meio-soprano Ana Maria Kiefer e o<br />

violinista Ayrton Pinto, mas utilizando uma variada gama de recursos visuais. Essa característica<br />

de projetar na ópera um espetáculo de perfil multimedia permaneceu em todas<br />

as suas criações subsequentes do gênero. No ano de 1989, Cirlei de Hollanda foi a responsável<br />

pelo espetáculo inaugural do Centro Cultural Banco do Brasil no Rio de Janeiro: sua<br />

ópera Judas em Sábado de Aleluia transpôs para o gênero lírico, com agilidade e competência,<br />

o universo teatral de Martins Penna.<br />

No apagar das luzes do século XX, precisamente em 1998, estreia Alma, ópera<br />

que Cláudio Santoro concluiu em Teresópolis, no ano de 1985. Baseada em Os Condenados,<br />

de Oswald de Andrade, Alma só foi encenada nove anos após a morte do grande compositor<br />

amazonense, em Brasília, em 1989.<br />

No ano 2000, João Guilherme Ripper recebe de André Heller, no Rio de Janeiro<br />

e em São Paulo, a primeira encenação de uma ópera de sua autoria: Domitila. Concentrada<br />

em um ato e contando apenas com uma soprano, um pianista, um clarinetista e um violoncelista,<br />

esta ópera foi a segunda escrita por Ripper, que antes abordou também A Hora<br />

e a Vez de Augusto Matraga, de Guimarães Rosa, em obra ainda inédita.<br />

Foi, contudo, no ano de 2003, no pequeno teatro do Centro Cultural Banco do<br />

Brasil em São Paulo, que João Guilherme Ripper apresentou sua mais bem sucedida incursão<br />

no gênero lírico: a ópera O Anjo Negro. Contando com um valoroso elenco e um<br />

pequeno conjunto instrumental, com regência de Abel Rocha e direção cênica de André<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


97<br />

Heller, O Anjo Negro mostrou plenamente a poderosa força dramática do compositor,<br />

transformando a peça homônima de Nelson Rodrigues numa grande ópera.<br />

O ano de 2006 marcou a estreia de Olga, de Jorge Antunes, sobre libreto de Gerson<br />

Valle. Preparada ao longo de muitos anos, essa densa e eclética criação de Antunes<br />

ganhou vida cênica pelas mãos de William Pereira, responsável pela bela montagem desta<br />

ópera no Teatro Municipal de São Paulo.<br />

É nesse contexto que se inserem minhas duas óperas – Dom Casmurro e A Tempestade,<br />

ambas encenadas em São Paulo. Dom Casmurro foi escrita a partir da Bolsa<br />

Vitae de Artes, entre os anos de 1988 e 1992, quando ocorreu sua estreia no Teatro Municipal<br />

paulistano. A Tempestade foi composta, no tempo recorde de oito meses, por encomenda<br />

da Banda Sinfônica do Estado de São Paulo, estreando em setembro de 2006 no<br />

Teatro São Pedro.<br />

A origem de Dom Casmurro remonta, na verdade, ao ano de 1976, quando eu<br />

concluía meu Curso de Graduação em Composição na Escola de Música da <strong>UFRJ</strong>. Apresentei<br />

nessa época alguns esboços do primeiro ato, como meu trabalho final de composição em<br />

música dramática, já contando com a colaboração do libretista Orlando Codá. Esse trabalho<br />

inicial, porém, resultou apenas numa abordagem juvenil do romance machadiano. Foi<br />

preciso esperar 12 anos, de 1976 a 1988, para que o projeto ganhasse substância dramática<br />

e musical, encontrando uma realidade possível a partir da Bolsa Vitae. Quando obtive a<br />

bolsa, a partir de 1988, libreto e partitura foram reformulados e concluídos num período<br />

de quatro anos: o libretista Orlando Codá atuou comigo nos primeiros 12 meses e em seguida<br />

trabalhei praticamente sozinho nos três últimos anos, face às dimensões gigantescas<br />

dessa ópera de três atos, com música de duas horas e quinze minutos de duração,<br />

consubstanciada numa partitura orquestral de quase mil páginas.<br />

O primeiro problema enfrentado foi comprovar o caráter operístico de Dom<br />

Casmurro. Nesse sentido, encontrei defensores ardorosos em Maria Augusta Wurthmann<br />

Ribeiro, com sua dissertação de Mestrado, de 1981, na ECA/USP, orientada pelo prof. Jacó<br />

Guinsburg (Ribeiro, 1981), bem como no teórico americano Herbert Lindenberger, que<br />

conclui o capítulo “Ópera em romances” de seu livro Opera – the extravagant art com um<br />

epílogo intitulado “A ‘Opera Mundi’ de Dom Casmurro”, ressaltando o tom operístico do<br />

livro de Machado de Assis (Lindenberger, 1984). Tais autores reforçam minha ideia de que<br />

Dom Casmurro é um romance não só teatralizável como totalmente adequado ao gênero<br />

lírico. O aspecto descritivo e a densidade psicológica da narrativa não chegam a inviabilizar<br />

os fortes componentes dramáticos da obra, que se identificam por completo com o universo<br />

operístico: um triângulo amoroso, uma suspeita de traição, uma paixão avassaladora<br />

(que atravessa obstáculos para que o amor se consuma), intrigas familiares e um final<br />

totalmente infeliz.<br />

A teatralização do romance Dom Casmurro, através da ópera, foi objeto de minha<br />

tese de Doutorado na ECA/USP, desenvolvida entre os anos de 1992 e 1997, sob a orientação<br />

de Eudinyr Fraga. Várias questões referentes às relações entre ópera e literatura foram<br />

levantadas nesse trabalho (Miranda, 1997).<br />

Transpor uma obra de arte de um gênero para outro não é tarefa fácil. E, quase<br />

sempre, quem se arrisca a fazer uma adaptação – principalmente quando se trata de<br />

adaptar um consagrado título literário – arrisca-se a ser alvo de críticas e a ter o seu trabalho<br />

comparado (e diminuído) em relação ao original abordado. No entanto, se efetivamente<br />

a maioria das adaptações são inferiores aos seus originais, há também honrosas<br />

exceções, mormente no gênero lírico, onde encontramos transposições que podem ser<br />

consideradas artisticamente equivalentes à matriz adaptada ou, até mesmo, superiores,<br />

em casos de flagrante desnível do romance ou da peça de teatro original.<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


98<br />

Um belo caso de equivalência, por exemplo, pode ser exemplificado com o Otelo,<br />

de Verdi, sobre libreto de Arrigo Boito, se comparado ao Otelo original de William Shakespeare.<br />

Joseph Kermann, professor da Universidade da Califórnia em Berkeley, ressalta a<br />

habilidade de Boito, ao suprimir e deslocar – em seu libreto – várias cenas do original shakespeareano<br />

(Kermann, 1988). Kermann assinala que, ao contrário de Pelleas et Mélisande,<br />

de Debussy – ópera que, segundo ele, segue quase ipsis verbis, e com eficiência, o texto<br />

de Maurice Maeterlinck – o Otelo, de Verdi e Boito, não se prende à peça original: a forma<br />

da ópera não é a de sua matriz teatral, a começar pela supressão do 1º ato pelo libretista,<br />

que abre a 1ª cena do Otelo operístico com a Tempestade que inicia o 2º ato shakespeareano.<br />

Kermann observa que, nessa ópera, Shakespeare teve que se dobrar a uma<br />

bela concepção do teatro musicado, em que compositor e libretista cristalizaram situações<br />

emocionais com regularidade, em seções ou tableaux líricos (sem pausas nem interrupções),<br />

ficando a música à vontade para “contribuir de forma mais forte e inequívoca<br />

para o drama”.<br />

Outra bela adaptação de Shakespeare para o palco, nos moldes de um musical<br />

da Broadway, West Side Story transpôs o cenário de Romeu e Julieta da cidade de Verona<br />

para a Nova York dos anos 50. O espetáculo teve quatro grandes autores: Jerome Robbins<br />

(autor da ideia e da coreografia), Arthur Laurents (responsável pela adaptação teatral e<br />

pelo texto falado), Stephen Sondheim (autor do texto cantado) e Leonard Bernstein (autor<br />

da música). Segundo Joan Peyser, Arthur Laurents negou-se a escrever a letra das canções,<br />

afirmando que “em nenhuma circunstância serviria como libretista para uma grande ópera<br />

de Bernstein”. Em outras palavras, expressou sua veemente relutância em desempenhar<br />

o papel secundário de um Boito para Verdi, “mesmo que isso pudesse resultar num Otelo”.<br />

Em relação às óperas francamente superiores aos originais adaptados, podemos<br />

citar a Carmem, de Bizet, com libreto de Meilhac e Halévy (muito mais reluzente do que a<br />

novela de Prosper Mérimée em que se baseou), bem como La Bohème e Tosca, de Puccini<br />

– ambas com libreto de Giacosa e Illica – a primeira composta a partir de um livro bem<br />

simples de Henry Muger (Scènes de la vie de Bohème) e a segunda baseada numa apagada<br />

peça de Victorien Sardou (La Tosca).<br />

Catherine Clément, com sua linguagem poética e psicanalítica, enaltece as duas<br />

óperas de Puccini, que possuem atmosferas bastante diversas. Em seu livro, A ópera ou a<br />

derrota das mulheres, dedica um capítulo à Tosca, com o subtítulo de Os pés ligeiros da<br />

paixão. Eis um de seus comentários:<br />

Tosca, a vertigem. A vertigem de uma voz a quem acontecem coisas de ópera<br />

em uma ópera. Uma única voz de mulher, pressionada pelos homens, Tosca ou<br />

a corrida louca do canto e do ciúme, os pés ligeiros da paixão. Ela não para de<br />

correr, de entrar, de sair, ofegante, apressada. E quando porventura ela não está<br />

no palco sua voz de cantora enche o espaço de fora e tudo se imobiliza subitamente,<br />

ternamente, como se ela suspendesse por um tempo o drama político<br />

e as intrigas dos homens que a cercam. (Clément, 1993)<br />

Já em relação à La Bohème, a autora francesa destaca a inocência, o imobilismo<br />

e a juventude. No subcapítulo que se intitula Pierrô lunar (numa comparação da figura de<br />

Mimi com o Pierrot da canção francesa Au Clair de la lune), a escritora continua com seu<br />

discurso poético:<br />

[…] Momentos de calma: a ópera permite que o coração respire. La Bohème<br />

passa da tristeza à alegria, da zombaria de caserna à emoção poderosa, da juventude<br />

que vive seus dias mais belos à angústia que vislumbra a velhice que<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


99<br />

virá […] Puccini jamais deixa de ressaltar como a morte é cotidiana. Quando alguém<br />

morre, é um dia como qualquer outro […] É claro que uma mulher perde<br />

a vida. Mas é como se ninguém tivesse culpa, como se nada houvesse, com esse<br />

frio que congela todo mundo, e ao qual essa moça não resiste […] La Bohème é<br />

a morte natural, a ausência total do drama cristão, o coração limpo para sempre<br />

do que há de trágico no amor. (Clément, 1993)<br />

Talvez a opinião mais sintética e precisa sobre essas duas óperas de Puccini seja<br />

a do escritor inglês W. H. Auden, ele próprio um autor de libretos, além de ensaísta e crítico<br />

literário:<br />

Considero La Bohème inferior à Tosca não porque a música seja menos bela,<br />

mas porque os personagens, especialmente Mimi, são demasiadamente passivos:<br />

há um hiato inábil entre a determinação com que os personagens cantam e a indeterminação<br />

com que agem. (Auden, 1993)<br />

Sempre direto e perspicaz, Auden não se acanha em opinar que Rossini obteve<br />

melhor resultado do que Mozart, ao adaptar para o gênero lírico o personagem Fígaro,<br />

de Beaumarchais, citando a ópera mozartiana As Bodas de Fìgaro como uma das adaptações<br />

não tão bem sucedidas. Auden afirma, categoricamente:<br />

Mozart é um compositor melhor do que Rossini, mas, a meu ver, o Fígaro de As<br />

Bodas é menos satisfatório do que o Fígaro de O Barbeiro e a culpa, creio eu, cabe<br />

a Da Ponte, cujo Fígaro (conforme o libreto) é um personagem por demais<br />

interessante para ser musicado, de modo que, ao lado do Fígaro que canta, sentimos<br />

a presença de um Fígaro que pensa com seus botões. O Barbeiro de Sevilha,<br />

por outro lado, que não é propriamente uma pessoa mas um xereta musical,<br />

encaixa-se perfeitamente na música, sem tirar nem por. (Auden, 1993)<br />

Uma opinião que sintetiza com bastante propriedade essa questão das adaptações<br />

no gênero lírico é a de David Hamilton:<br />

Comparar libretos de ópera, retirados de obras-primas da literatura ou do teatro,<br />

com suas fontes (ressaltando frequentemente o desnível dessas adaptações) é<br />

um exercício amado por críticos e acadêmicos. Na verdade, essas comparações<br />

podem ter encorajado a máxima circunspecção observada por alguns compositores<br />

do século XX ao tornarem mais literais suas adaptações de originais<br />

teatrais, considerando – entre outros títulos – Salomé e Electra, de Strauss, Pelléas,<br />

de Debussy, e as óperas de Alban Berg. Essas comparações, contudo, implicam<br />

que as fontes literárias (como voz narrativa e desenvolvimento) são transferíveis<br />

para o palco musical, enquanto ignoram o potencial da música para criar, entre<br />

outras coisas, modos alternativos de expressividade ou poderosas conexões entre<br />

elementos da narrativa. (Hamilton, 1996)<br />

David Hamilton conclui que, ao contrário dos críticos, o público não costuma<br />

comparar as óperas com suas fontes literárias e, sim, comparar as óperas com outras<br />

óperas. Para utilizar um modismo contemporâneo, musicar um texto é realmente transcriálo,<br />

ou seja, recriá-lo dentro de um código completamente diferente.<br />

Foi dentro desse espírito, descrito por Hamilton, que me aventurei a adaptar<br />

para a ópera o romance Dom Casmurro, de Machado de Assis. Estava convencido do espí-<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


100<br />

rito operístico do romance machadiano e creio que consegui teatralizá-lo através da música,<br />

contando com a preciosa colaboração do libretista Orlando Codá. A ação dramática está<br />

dividida em três atos, com duração média de 45 minutos cada um. Tal como no livro de<br />

Machado de Assis, o primeiro ato começa com Dom Casmurro narrando sua vida, já completamente<br />

solitário e metódico em sua triste velhice. O personagem apelidado Dom<br />

Casmurro, cujo nome é Bento Santiago, torna-se, no decorrer da ópera, o narrador da história.<br />

Apenas na primeira e na última cena, ele é ele mesmo, em tempo real.<br />

Em linhas gerais, o primeiro ato retrata a juventude de Bentinho (como era<br />

chamado Bento Santiago pela família) e seu amor por Capitu, sua vizinha na rua de<br />

Matacavalos. Sua mãe, Dona Glória, quer cumprir a promessa de mandá-lo ao Seminário.<br />

A todo momento, o agregado da família, José Dias, uma espécie de preceptor de Bentinho,<br />

lembra à Dona Glória sua promessa de fazer de seu filho um sacerdote. A família toda<br />

participa desse contexto, inclusive Tio Cosme, Prima Justina e o Pai de Capitu, o Senhor<br />

Pádua. Bentinho troca juras de amor com Capitu, prometendo-lhe que não vai ser padre,<br />

mas ninguém consegue demover sua mãe do propósito. O primeiro ato termina com a<br />

partida de Bentinho para o Seminário: toda a família reunida, muitos adeuses, muitas recomendações<br />

e, à parte, trocas juras de amor do jovem Bento com Capitu.<br />

O segundo ato passa-se predominantemente no Seminário. Já o Prelúdio orquestral<br />

oscila entre um neorromantismo mahleriano e sugestões do modalismo gregoriano.<br />

Em cena aberta, a ambientação sonora prevê cânticos litúrgicos para coro masculino<br />

e para coro infantil, incluindo o tradicional Veni creator spitritus. É introduzido o<br />

personagem de Escobar, amigo dileto de Bentinho. Desenvolve-se liricamente a amizade<br />

dos dois jovens. Para quebrar o clima litúrgico e monocórdio do Seminário, Bentinho sonha<br />

com as francesas da rua do Ouvidor e o sonho se materializa em cena coral, projetada<br />

com muita habilidade pelo libretista Orlando Codá. Há também a visita de Escobar à família<br />

de Bentinho, quando se introduz a personagem de Sancha, futura mulher de Escobar.<br />

De volta ao Seminário, Bentinho, com a ajuda de Escobar, consegue convencer José Dias<br />

a tirá-lo daquele lugar, propondo que Dona Glória ordene um substituto em seu lugar.<br />

Pela primeira vez Bentinho vira o patrão de José Dias e o agregado acaba lhe obedecendo.<br />

O ato termina com o casamento de Bentinho e Capitu, na mesma capela do Seminário.<br />

Como sempre, Dom Casmurro, o narrador, pontua a história, reforçando a ação dramática,<br />

fornecendo informações e preenchendo lacunas dos acontecimentos não encenados.<br />

O terceiro ato se passa na Casa da Glória, de frente para o mar da Baía de Guanabara,<br />

onde vão morar Bentinho e Capitu depois de casados. Escobar, que também deixara<br />

o Seminário e havia se casado com Sancha, visita sempre o casal. Aos poucos a presença<br />

constante de Escobar vai despertando os ciúmes de Bentinho. Escobar morre afogado,<br />

por ter insistido em nadar em dia de ressaca, com o mar bravio. Na véspera do afogamento,<br />

há um dueto de bravura dos dois amigos, quando Bentinho tenta demover Escobar da<br />

ideia perigosa de nadar em águas tão agitadas.<br />

Ao descrever o enterro do amigo, Dom Casmurro lembra que Capitu olhava<br />

para o corpo de Escobar com “olhos tristes de viúva”. Os ciúmes de Bentinho progressivamente<br />

aumentam. Por fim, nasce Ezequiel primeiro e único filho de Bentinho e Capitu<br />

e, à medida que ele cresce, vai ficando cada vez mais parecido com a figura de Escobar.<br />

Bentinho enlouquece de ciúmes e se separa de Capitu. Na briga final do casal, literalmente<br />

a acusa de adultério, o que ela nega com veemência.<br />

O final da história é contado por Dom Casmurro. Na penúltima cena, ele reencontra<br />

o filho, já adulto. Ezequiel chega da Europa e pede dinheiro ao pai para empreender<br />

uma expedição arquelógica à Palestina. Bento Santiago vê, no filho adulto, a imagem exata<br />

do amigo Escobar. Eles se despedem. No recitativo final, Dom Casmurro narra laconicamente<br />

a morte de Ezequiel: “Não houve lepra, mas houve tifo. Ezequiel lá ficou. Foi<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


101<br />

enterrado na Terra Santa...” Constatando que está completamente só e que, pouco a pouco,<br />

vai voltando à sua rotina de vida, ele termina exclamando: “Que a Terra lhes seja leve”.<br />

A música que compus para Dom Casmurro procura alternar a linguagem, deixando<br />

em geral os procedimentos atonais para os recitativos do personagem título e as<br />

cores do neotonalismo para os momentos líricos, as situações amorosas e as cenas familiares.<br />

Há quem tenha visto semelhanças com a textura do primeiro movimento das<br />

Bachianas nº 5 de Villa-Lobos no arioso que Capitu canta, na Cena 5 do primeiro ato, ou<br />

certa influência de George Gershwin no dueto de bravura que se segue entre o par romântico<br />

central da ópera. Já o maestro David Machado detinha-se em comentários sobre<br />

a 4ª cena do segundo ato, de caráter estático e interiorizado. Segundo ele, a música ali<br />

refletia um pouco da linguagem de Stravinsky e Alban Berg. Posso assegurar, no entanto,<br />

que essas possíveis influências ou semelhanças não foram intencionais. Já as citações no<br />

estilo de Richard Wagner, ao final do 2º ato e ao meio do terceiro, foram feitas propositalmente,<br />

para sublinhar a admiração textual de Machado de Assis pelo mestre de<br />

Bayreuth. No próprio romance, Dom Casmurro narra sua noite de núpcias com imagens<br />

da Primeira Epístola de São Pedro (sobre o casamento) e do Cântico dos Cânticos de Salomão,<br />

“como se música e texto houvessem nascido juntos, à maneira de uma ópera de<br />

Wagner” (Assis, 1988).<br />

Em vista dessa observação, o libretista Orlando Codá reuniu, a meu pedido, pequenas<br />

citações dessas duas fontes (A Epístola de São Pedro e os Cânticos de Salomão) para<br />

a cena final do segundo ato, que representa o casamento de Bentinho e Capitu. Tais textos<br />

foram por mim musicados à maneira de Wagner, em uma grande seção musical, inserida<br />

na parte central do Gloria in Excelsis Deo com que termino a música do segundo ato.<br />

No decorrer do terceiro ato, procurei estabelecer através da música, uma forte<br />

atmosfera de drama, paixão e angústia, que caracterizam os vários momentos da ação<br />

dramática. Aqui não estamos mais no universo inocente e juvenil do primeiro ato, nem<br />

no clima litúrgico, intimista e, por fim, exultante, do segundo ato. O terceiro ato de Dom<br />

Casmurro caminha progressivamente para a tragédia: tal como no romance, o desfecho<br />

trágico de repente se precipita.<br />

Um dos recursos operísticos que projetei conscientemente foi dar a maior densidade<br />

dramática possível ao dueto de bravura entre Bentinho e Escobar, na véspera do<br />

afogamento. Tendo no palco, respectivamente, um barítono e um tenor, lembrei-me – ao<br />

compor esta cena – do exepcional dueto de Iago e Otelo, com a mesma formação vocal.<br />

Não me lembrei, nem por um minuto, da música específica que Verdi criou para essa<br />

situação, mas sim da força expressiva daquele momento. Acho que consegui a intensidade<br />

pretendida, e acabei – talvez – imprimindo certo tom verdiano à textura musical que criei<br />

para o dueto em questão.<br />

Ainda no terreno da técnica composicional, os leitmotivs, ou motivos condutores,<br />

foram abundantemente por mim utilizados na criação de Dom Casmurro. Passam<br />

das vozes para a orquestra, de um personagem para o outro, de uma para outra cena,<br />

bem como percorrem diversas situações, acentuando um personagem ou uma ideia, bem<br />

como deslocando-se de contexto, no decorrer da ação dramática. As árias, os duetos e os<br />

ensembles nunca estão isolados, mas sempre inseridos, quase que ininterruptamente, na<br />

sequência dos acontecimentos musicais.<br />

A repercussão crítica de Dom Casmurro foi maior nos anos que se seguiram à<br />

estreia da ópera do que propriamente no momento de sua apresentação. Zito Baptista<br />

Filho, em sua coluna Discos Clássicos, de O Globo, assim saudou a primeira transmissão<br />

radiofônica da ópera no Rio de Janeiro, em dezembro de 1992:<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


102<br />

A música de Ronaldo Miranda, já destacado por premiações em obras de piano<br />

e câmara, tem as influências esperadas da arte italiana, francesa e alemã. Ela<br />

cresce expressivamente de ato para ato. Um texto de Machado de Assis seria<br />

impensável cantado em outro idioma. E o cuidado no trabalhar esse texto mostra<br />

o quanto compositor e libretista respeitam e se encantam com a linguagem incomparável<br />

do escritor. (Baptista Filho, 1992)<br />

Vera Lúcia Mello, produtora da Rádio Cultura FM de São Paulo e responsável<br />

pelo programa Ópera Completa, ressaltou a questão do risco e da responsabilidade autoral<br />

na questão da adaptação de romance tão festejado quanto Dom Casmurro. Eis parte do<br />

seu depoimento, dois anos após a estreia da ópera:<br />

Surpreendente transpor Dom Casmurro para o palco lírico! A riqueza da observação<br />

psicológica de Machado de Assis, sua lucidez e ironia, a qualidade literária<br />

de sua escrita em ópera! Cumprir tal tarefa hercúlea é um enorme desafio.<br />

Para nós, brasileiros, só teria um paralelo na transposição de Otelo de Shakespeare<br />

por Boito e Verdi. Além das dificuldades implícitas à adaptação significa<br />

também enfrentar preconceitos – por conservadorismo ou ousadia – o risco de<br />

se expor à crítica por tocar no mito. (Melo, 1994)<br />

O compositor e musicólogo Rodolfo Coelho de Souza, em extenso depoimento,<br />

também escrito no ano de 1994, demonstra uma visão bastante pessoal da linguagem<br />

musical de Dom Casmurro, afirmando:<br />

No primeiro e segundo atos, melodias e harmonias mais tonais e transparentes,<br />

com frequentes ressonâncias com elementos da tradição popular, facilitam ao<br />

compositor desenhar o quadro social no qual se forja a personalidade do futuro<br />

“Casmurro”. No segundo ato, já presenciamos certos recursos de modalismo,<br />

que introduzem um estranhamento, certa volta a um exótico mais primitivo […]<br />

e que sugerem um tipo de conflito psicológico regressivo no personagem. Esse<br />

conflito desemboca coerentemente no terceiro ato, na paranoia acusatória e na<br />

reclusão depressiva do personagem […], conforme a ambiguidade da narrativa<br />

machadiana, que é expressa pelo compositor através da técnica do leitmotiv,<br />

apoiada num quase atonalismo wagneriano, extremamente cambiante na polarização<br />

tonal, sem fazer uso, porém, do excesso de cromatismo. Nesse sentido,<br />

principalmente, no terceiro ato, Dom Casmurro filia-se a uma ascendência da<br />

ópera francesa, realizada magistralmente no Werther de Massenet, com o qual<br />

o Casmurro de Miranda guarda relevantes paralelismos técnico-estilísticos. (Souza,<br />

1994)<br />

O crítico Luiz Paulo Horta, que, na estreia da ópera, mostrou-se bastante incomodado<br />

com a inteligibilidade do canto em português, voltou a comentar Dom Casmurro,<br />

com maior ênfase, em artigo na revista Piracema, tecendo os seguintes comentários:<br />

Depois de tentar a mão tanto na música vocal como na instrumental, um de<br />

nossos melhores compositores jovens – Ronaldo Miranda – saiu-se com um ensaio<br />

serissimo de “operização” do Dom Casmurro […] Havia, realmente, na versão<br />

levada à cena, desequilíbrios entre instrumentação e capacidade vocal (não é<br />

sempre que se dispõe, por aqui, de vozes poderosas). O texto, por causa disso,<br />

quase deixou de ser ouvido; e isso tirava à ópera o seu principal encanto: a deli-<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


103<br />

ciosa dicção que ela encontrou para a história machadiana posta em música<br />

[…]. À primeira vista, o Dom Casmurro, esta suma do romance carioca, não se<br />

prestaria à “operização”. É obra intimista, de um quase filósofo, trabalhando um<br />

personagem introvertido. Mas, para tudo isso, a ópera tem solução. Quando<br />

acertarem finalmente as questões de montagem, esse Dom Casmurro operístico<br />

poderá ser ouvido não só como um passeio por climas da sociedade imperial,<br />

mas também como um exercício precioso no lirismo melódico que Villa-Lobos<br />

provou ser um dos componentes essenciais da alma brasileira. (Horta, 1994)<br />

Tendo assistido à última récita de Dom Casmurro, no Municipal paulista, quando a<br />

ópera já estava totalmente amadurecida e grande parte dos problemas referentes ao equilíbrio<br />

das vozes já havia sido solucionada, Jorge Coli, professor da Unicamp, foi o mais ardoroso<br />

defensor da minha adaptação do romance machadiano para o gênero lírico. Coli escreveu,<br />

ainda no ano de 1994, um extenso depoimento para minha tese de Doutorado, intitulando-o<br />

A ópera e D. Casmurro de Ronaldo Miranda. Trata-se verdadeiramente de um<br />

longo texto, nas dimensões de um artigo, do qual transcrevo apenas alguns momentos:<br />

[…] Dom Casmurro de Ronaldo Miranda torna-se uma experiência muito animadora.<br />

Porque o autor enfrenta as questões específicas do gênero, que fazem<br />

com que ele possa reivindicar – e isto sem preconceito algum – o epíteto de<br />

operista, na medida em que escreve uma obra cujo ponto de partida é, fundamentalmente,<br />

a ideia do espetáculo […] Música que não se pensa jamais voltada<br />

para si mesma. Música que, por felicidade, não hesita em retomar belos contornos<br />

melódicos, para nos fazer acreditar no amor, na amargura, nos ciúmes. Que<br />

faz explodir a orquestra em espasmos, que insiste em ritmos ou cantilenas. E a<br />

força efetivamente emocional do espetáculo é indiscutível – o final, concentrado<br />

na solidão de Bentinho, cerra gargantas e corações. Devemos ser, e somos, propriamente<br />

tomados pela tragédia a que assistimos […]. Dom Casmurro, a ópera,<br />

liga-se àquela que é a característica mais fundamental do gênero: a de ao mesmo<br />

tempo contar uma história e fazer com que o ouvinte experimente, de um modo<br />

denso e veemente, tudo o que habita dentro do peito dos seres que vão sendo<br />

criados diante de nós, sem que saibamos distinguir o que é música, o que é sentimento<br />

[…]. Torniamo all’antico e faremo cosa nuova. O mestre de Falstaff nunca<br />

abandonou suas certezas. Voluntariamente ou não, Ronaldo Miranda procedeu<br />

a um retorno às fontes mais verdadeiras da ópera, esquecidas tantas vezes. Ele<br />

não perdeu de vista de que se tratava de problemas não propriamente musicais,<br />

mas que pertencem à complexidade de um gênero muito intrincado. D. Casmurro<br />

é música impura, impuríssima, como diria José Dias. Música generosa, no sentido<br />

de que sai de si. Como foram as de Wagner ou Puccini, Verdi ou Gluck, Mozart<br />

ou Monteverdi. (Coli, 1994)<br />

Dom Casmurro estreou no dia 19 de maio de 1992, no Teatro Municipal de São<br />

Paulo, por sugestão e projeto da empresária Gaby Leib e iniciativa de Emílio Kalil, recebendo<br />

um total de cinco récitas. O numeroso elenco foi encabeçado pelo barítono Paulo Fortes,<br />

que viveu o papel título. Bentinho e Capitu foram protagonizados pelo barítono Francisco<br />

Frias e pela soprano Celine Imbert. Escobar foi interpretado pelo tenor Mazias de Oliveira,<br />

Dona Glória pela meio-soprano Sílvia Tessuto, José Dias pelo barítono Jeller Felipe e Prima<br />

Justina pela soprano Patrícia Endo. David Machado foi o regente e Marcelo Marchioro o<br />

diretor cênico, contando com cenários de Felipe Crescenti e figurinos de Leda Senise. Par-<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


104<br />

ticiparam da performance a Orquestra Sinfônica Municipal de São Paulo, o Coral Lírico e o<br />

Coral Infantil ECO.<br />

Quatorze anos separam minha primeira ópera, Dom Casmurro, da segunda, A<br />

Tempestade, baseada na peça homônima de William Shakespeare, e estreada em setembro<br />

de 2006, no Teatro São Pedro, em São Paulo.<br />

A Tempestade surgiu a partir de uma encomenda da Banda Sinfônica do Estado<br />

de São Paulo, através do maestro Abel Rocha, diretor musical da instituição, e de Clodoaldo<br />

Medina, diretor executivo do Centro de Estudos Musicais Tom Jobim. A encomenda me<br />

foi feita ao final de 2005 e a nova ópera precisaria estar pronta em menos de um ano.<br />

De imediato, ficou claro que não seria possível pensar na adaptação de um novo<br />

romance, pois não haveria tempo suficiente para teatralizá-lo. A matriz deveria ser uma<br />

peça de teatro, já com os diálogos prontos e as situações cênicas determinadas. Também<br />

não haveria tempo para chamar um libretista e, assim sendo, eu mesmo empreendi essa<br />

tarefa, tal como o fizeram Cirlei de Hollanda no Judas em Sábado de Aleluia, de Martins<br />

Penna, e João Guilherme Ripper, no Anjo Negro, de Nelson Rodrigues. Meu trabalho,<br />

nesse sentido, constituiu-se em consultar três traduções da peça shakespeareana para o<br />

português, bem como o original em inglês e a versão para o italiano. A partir dessas consultas,<br />

criei coragem e encurtei a ação dramática, colocando todo o conteúdo da peça<br />

num espetáculo operístico de duas horas de duração, em dois atos. Foi preciso suprimir<br />

cenas e personagens, sem prejudicar o fio condutor da história, bem como criar árias,<br />

duetos, ensembles e leitmotivs, para contar em música essa maravilhosa fábula shakespeareana.<br />

Uma forte razão para a escolha de A Tempestade como tema de minha segunda<br />

ópera foi uma versão teatral dessa obra, empreendida por Giorgio Strehler para o Piccolo<br />

Teatro di Milano. Assisti a essa montagem no Theatre National de l’Odéon, em Paris, no<br />

ano de 1983 e fiquei simplesmente maravilhado com o poder de sedução cênica e o simbolismo<br />

da obra, capaz de tocar – com extrema leveza e ironia – nos sentimentos humanos<br />

mais profundos. A encenação despojada de Strehler, apoiada em esplêndidos atores e<br />

numa iluminação perfeita, realçava ainda mais as qualidades do texto de Shakespeare e a<br />

mensagem humanística da obra. Movido por essas lembranças e pela releitura da peça,<br />

resolvi enfrentar o desafio e partir para a ação. Resumi os cinco atos da peça em apenas<br />

dois: o primeiro ficou com uma hora e dez minutos, e o segundo com cerca de 50 minutos.<br />

Deusas da mitologia e figuras femininas (entre os espíritos do ar) foram cortadas, bem<br />

como os nobres Adrian e Francisco, que pouco participaram da ação dramática.<br />

Para o personagem de Ariel, o espírito do ar, segui a tradição de apresentá-lo<br />

com uma intérprete feminina. Giorgio Strehler, em sua versão de La Tempesta, em 1983,<br />

convidou para esse papel nada menos do que a atriz Giulia Lazzarini, gloriosa figura da<br />

cena teatral italiana e uma espécie de Fernanda Montenegro de lá. Era fantástico vê-la<br />

atuando literalmente no ar, flutuando e quase voando através de um cabo de aço. Retratei<br />

então o personagem de Ariel na voz de uma meio-soprano, tal como o Cherubino de<br />

Mozart. Já o papel principal da ópera – referente à figura de Próspero, o Duque de Milão,<br />

exilado e possuidor de amplos poderes mágicos – foi escrito para um barítono agudo,<br />

possuidor de grande extensão vocal. Miranda, filha de Próspero, foi destinada a uma<br />

soprano lírico, enquanto Ferdinando, o Príncipe de Nápoles, foi retratado na voz de tenor.<br />

Caliban, ser maligno e deformado, é outro barítono em cena. Na verdade, como todo o<br />

elenco é masculino, há coleções de barítonos e tenores em cena, representando a corte<br />

de Nápoles e a tripulação do navio naufragado numa ilha deserta.<br />

Com direção cênica e cenários de William Pereira, figurinos de Fábio Namatame<br />

e iluminação de Caetano Vilela, A Tempestade teve regência de Abel Rocha, que escalou<br />

o seguinte elenco para esta produção da Banda Sinfônica do Estado de São Paulo: Homero<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


105<br />

Velho (como Próspero), Rosana Lamosa (como Miranda), Fernando Portari (como o Príncipe<br />

Ferdinando), Regina Elena Mesquita (como Ariel), Sebastião Teixeira (como Caliban),<br />

Carlos Eduardo Marcos (como o Rei Alonso), Eduardo Janho-Abumrad (como o Conselheiro<br />

Gonzalo), Jordi Quelart (como Antônio), Márcio Marangon (como Sebastian), Paulo Queiroz<br />

(como Trínculo), Sandro Bodillon (como Stephano), Rubens Medina (como o Contramestre),<br />

Yuri Jaruskevicius (como o Capitão), e Ossiandro Brito, Nick Vila Maior e Osvaldo<br />

Hernán (como Marinheiros e Espíritos).<br />

Tal como na peça shakespeareana, a ópera A Tempestade começa com a cena<br />

que literalmente representa o seu título, uma terrível tormenta em mar aberto. Em poucos<br />

compassos, uma densa introdução orquestral antecede a entrada das vozes angustiadas<br />

da corte e da tripulação do navio. A música está totalmente fora da tonalidade e os intervalos<br />

angulosos, de segundas e sétimas, traduzem a tensão e o drama, que se consumam<br />

no naufrágio inevitável.<br />

Na segunda cena, já em terra firme, Miranda pede a Próspero, seu pai, que<br />

acalme os mares, com o seu poder mágico. Ele a tranquiliza e, em seguida, lhe relata toda<br />

a sua história, contando-lhe quem eles são de fato e como chegaram àquela ilha. Miranda<br />

adormece. Na cena três, Ariel faz um relatório completo ao seu amo, Próspero, sobre<br />

como armou a tempestade e como estão os nobres náufragos. Próspero dá novas tarefas<br />

a Ariel. A quarta cena marca a aparição de Caliban, ser maligno e filho da bruxa Sícorax,<br />

que inicialmente enfrenta Próspero, mas em seguida lhe obedece, com medo de seus poderes<br />

mágicos. Na cena seguinte, Ariel faz com que o Príncipe Ferdinando – sonhador e<br />

perdido na ilha – encontre casualmente Miranda. Os dois jovens imediatamente se apaixonam.<br />

Próspero interfere e finge estar contrariado, enfrentando Ferdinando e obrigandoo<br />

a trabalhar na ilha. Na sexta cena, o Rei Alonso descansa, imaginando que seu filho, Ferdinando,<br />

está morto. O Conselheiro Gonzalo o consola. Enquanto o Rei dorme, Sebastian<br />

e Antonio tentam matá-lo, mas suas espadas se paralisam no ar, pelo poder de Ariel. A sétima<br />

cena é totalmente burlesca, num trio grotesco entre o monstrinho Caliban, o bufão<br />

da corte – Trínculo – e o provedor da adega real, Stephano, este completamente bêbado.<br />

A oitava cena marca o final do Primeiro Ato, num dueto entre Miranda e Ferdinando, que<br />

trocam declarações de amor. Próspero encerra a narrativa, afirmando que muita coisa<br />

ainda está para acontecer.<br />

O segundo ato começa com uma breve Abertura da banda sinfônica. Na primeira<br />

cena, o trio formado por Caliban, Trínculo e Stephano planeja a morte de Próspero. Os<br />

três estão completamente bêbados. Na cena dois, Ariel e os espíritos do ar preparam um<br />

banquete para os náufragos, que se encantam com a música que ouvem de longe e não<br />

sabem de onde ela vem. Repentinamente, Ariel aparece em forma de harpia e acusa os<br />

nobres de terem usurpado o Ducado de Próspero, informando-os de que o Duque se encontra<br />

nesta ilha. Todos pensam que se trata de mera alucinação, mas Alonso, o Rei, é<br />

tomado de culpa e remorso. A terceira cena mostra um casamento simbólico de Ferdinando<br />

e Miranda, sob as bênçãos de Próspero, que aceita o jovem Príncipe como genro. Os espíritos<br />

do ar abençoam a união, trazendo as bênçãos de Íris, Juno e Ceres. Ariel chega repentinamente,<br />

para avisar seu amo de que Caliban, Stephano e Trínculo pretendem atacálo.<br />

Na cena seguinte, Próspero enfrenta os três bufões com a ajuda dos espíritos que se<br />

transformam em cães ferozes. Na cena cinco, Próspero abdica de seus poderes sobrenaturais<br />

e apresenta-se aos nobres, estáticos e imobilizados, dentro de um círculo mágico.<br />

Eles custam a crer que estão diante do Duque de Milão, mas, finalmente, o reconhecem.<br />

Próspero perdoa todos eles e convida-os para pernoitarem em sua gruta. No dia<br />

seguinte partirão para Nápoles e Milão. Próspero voltará a ser o Duque. Chegam Miranda<br />

e Ferdinando. O Rei Alonso transborda de felicidade ao ver que seu filho está vivo. Miranda<br />

se encanta com a corte e exclama: “Ó admirável mundo novo, que tem gente tão bela...<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


106<br />

Que maravilha! Que lindas pessoas eu vejo! Como é bonita a humanidade…”. A sexta e última<br />

cena é dedicada ao monólogo final de Próspero, transformado numa grande ária.<br />

Ele fala em partir para recomeçar vida nova, como um homem comum, despojando-se<br />

mais uma vez de todos os seus poderes mágicos. Entra em cena todo o elenco que repete<br />

num grande coral a frase de Miranda sobre o Admirável Mundo Novo.<br />

Embora haja poucos momentos de livre atonalismo, a linguagem neotonal caracteriza<br />

a maior parte da música de A Tempestade. Há múltiplas influências na partitura e<br />

motivos condutores para caracterizar personagens ou situações dramáticas. Os temas<br />

são recorrentes, vão e voltam às vezes em cenas semelhantes, às vezes em cenas diversas.<br />

As atmosferas musicais se alternam bastante, da seresta brasileira de sabor urbano à tarantela<br />

italiana, cantada por Stephano e Antonio, quando conspiram contra o Rei. Afinal<br />

de contas, são napolitanos e milaneses que estão em cena. No caso da seresta urbana, o<br />

tema mais pungente é cantado no Primeiro Ato pelo Príncipe Ferdinando, em sua ária<br />

“De onde vem essa música?”, e pelo próprio Próspero, na penúltima cena da ópera, quando<br />

se despede emocionado de seu fiel Ariel: “Ah, meu querido Ariel/ Cuide dos ventos ainda<br />

uma vez.../ Depois voe com eles, pra onde quiser/ Até um dia, Adeus!”.<br />

No decorrer do Segundo Ato, há várias pequenas citações de Félix Mendelssohn,<br />

autor que tem uma estreita relação com William Shakespeare, pois colocou em música<br />

outra peça admirável do dramaturgo inglês: o Sonho de uma Noite de Verão. Usei diversos<br />

temas de Mendelssohn em situações as mais variadas possíveis. São eles a Canção sem<br />

Palavras op. 38 n. 2, uma das estrofes da Marcha Nupcial (única melodia efetivamente<br />

retirada do Sonho de uma Noite de Verão), o refrão do Rondó Capriccioso e um curtíssimo<br />

segmento do Concerto n. 2 para Piano e Orquestra. No total, essas referências não ultrapassam<br />

cinco minutos de música, embora sejam bem perceptíveis, cada uma delas, no<br />

momento em que são ouvidas.<br />

Talvez o momento mais pregnante da música de A Tempestade seja o dueto de<br />

amor de Miranda e Ferdinando, ao final do Primeiro Ato. Impregnada de generoso melodismo,<br />

esta cena tornou-se a preferida dos críticos e do público. Lauro Machado Coelho<br />

ressalta o dueto de amor em questão em sua crítica no Estado de São Paulo. Eis parte do<br />

seu comentário:<br />

obra:<br />

A um apólogo de sentido universal e intemporal, como ‘The Tempest’, cai muito<br />

bem a ambientação inequivocamente brasileira criada pela música de Ronaldo<br />

Miranda... Há momentos climáticos em que desabrocham números formalmente<br />

construídos, de cantilena elaborada e melodicamente atraente. Um dos mais<br />

felizes é o dueto de amor de Ferdinando e Miranda, no final do primeiro ato,<br />

que Portari e Rosana Lamosa, em grande forma vocal, executaram com apaixonado<br />

envolvimento. (Coelho, 2006)<br />

Já Clóvis Marques, no site Opinião e Notícia, ressaltou a comunicabilidade da<br />

Conto moral ou fábula política em tom de féerie, A Tempestade, última peça de<br />

William Shakespeare, ganhou pelas mãos de Ronaldo Miranda uma adaptação<br />

operística alegre e comunicativa. […] A música de Miranda tem um pendor para<br />

a expressão solar, o elã e a melodia fluente que dilui as tinturas escuras ou oníricas<br />

dessa especulação sobre o poder e a traição, a pequenez humana e a grandeza<br />

do perdão. Mas também é verdade que A Tempestade é uma obra de claridade<br />

e confiança na capacidade do homem de se reiventar na união, com boa dose<br />

de humor. (Marques, 2006)<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


107<br />

Finalmente, Jorge Coli, mais uma vez, reafirmou opinião positiva e eloquente<br />

sobre minha linguagem operística, afirmando em texto publicado na Folha de São Paulo:<br />

Ronaldo Miranda teve uma experiência prévia no campo da ópera: um excepcional<br />

Dom Casmurro, de 1992, então protagonizado por Paulo Fortes. A excelente<br />

Banda Sinfônica do Estado de São Paulo encomendou agora a ele A Tempestade,<br />

inspirada em Shakespeare. A partitura é impulsionada pelo fluxo poético,<br />

é convincente, cuidada e justa nos detalhes. Maravilhoso o modo como a orquestração,<br />

baseada nos instrumentos de sopro que constituem a banda sinfônica,<br />

se casa com as vozes, aclimatando personagens, sejam eles cômicos,<br />

aéreos, exaltados ou violentos. (Coli, 2006)<br />

O diretor cênico William Pereira, apesar de ter contado com um orçamento exíguo,<br />

muito contribuiu para a delicadeza e sensibilidade da montagem operística de A<br />

Tempestade em suas três récitas no Teatro São Pedro. Eis o início e o fim do seu depoimento<br />

no programa do espetáculo:<br />

Sempre quis encenar A Tempestade de Shakespeare – e já havia me debruçado<br />

sobre a peça, desde os meus tempos de estudante no Departamento de Teatro<br />

da ECA/USP. A última peça do Bardo me fascina, talvez por ser em certos aspectos<br />

uma obra a ser desvendada, tamanhos são os símbolos, desafios, leituras que<br />

esse texto abriga e as infinitas possibilidades que ele aponta ao encenador. […]<br />

Vejo A Tempestade como um microcosmo do próprio fazer-teatral. A ilha de<br />

Próspero é o mundo, próprio palco, e é nesse espaço “mágico”, “encantando”,<br />

que toda a ação se desenrola, tendo como filtro, como diapasão, o Homem, o<br />

Humano, tão caro a Shakespeare e ao Renascimento. […] Nessa ilha-palco […]<br />

habitam Ariel – o espírito do ar (a inspiração?) – e Caliban – ser fantástico, meio<br />

humano, meio animalesco, que simboliza os instintos animais do homem. E entre<br />

esses dois pólos elementares – Água e Ar, Terra e Fogo – Próspero, o Humano,<br />

encenará seu rito de passagem que culminará no perdão aos antigos inimigos e<br />

na promessa de um “admirável mundo novo” […] Quando fui convidado para<br />

encenar a ópera de Ronaldo Miranda com a Banda Sinfônica do Estado de São<br />

Paulo, retomei essa antiga paixão que é A Tempestade de Shakespeare – agora<br />

uma paixão maior, duplicada em forma de música, composta por um dos maiores<br />

compositores eruditos do país. Retomo, melhor, recupero um universo, um texto,<br />

uma concepção, um sonho antigo, uma fascinação e encantamento que o tempo<br />

só aumentou. Transpor o universo shakespeareano em notas musicais é o meu<br />

desafio. Desafio apaixonante. O resto não é mais silêncio... O resto é música!<br />

(Pereira, 2006)<br />

Apoiado pelo excelente elenco, muito bem escolhido e extremamente bem ensaiado<br />

pelo maestro Abel Rocha, William Pereira deu o melhor de si, dentro dos recursos<br />

de que dispunha. Assim como acrescentei o coral O Brave New World ao monólogo de<br />

Próspero, para terminar a ópera, William encenou lindamente a cena final e, após o coral,<br />

enquanto apenas os instrumentos da Banda Sinfônica concluem a partitura, retomando a<br />

atmosfera do tema inicial da Tempestade, todos os cantores-atores se unem para remontar<br />

simbolicamente o navio. Enquanto a cortina se fecha, nobres e plebeus tomam posse da<br />

nave e partem juntos para o “Admirável Mundo Novo”.<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


108<br />

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Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


109<br />

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Souza, Rodolfo Coelho de. Depoimento ao autor. São Paulo, 1994.<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


ESTUDO INTERDISCIPLINAR


111<br />

Literatura e música: o romance e a ópera<br />

no Brasil Oitocentista<br />

Marcus Vinicius Nogueira Soares<br />

Universidade do Estado do Rio de Janeiro<br />

Para lidar com as possíveis relações entre Literatura e Música, optei por uma<br />

abordagem mais propriamente histórica e que se refere à importância da música no<br />

contexto da produção literária brasileira do século XIX. Qualquer pessoa que se embrenhe<br />

na pesquisa da literatura desse período, ou mesmo que dela se aproxime desinteressadamente,<br />

pelo puro prazer da leitura, se depara a todo tempo com textos que remetem<br />

à música, seja pela exploração mais acentuada dos elementos sonoros e rítmicos<br />

do texto, seja pela presença de incontáveis alusões ao universo da arte musical – como títulos<br />

de obras, nomes de compositores, cantores e instrumentistas, trechos de libretos<br />

operísticos e até termos técnicos. É claro que, por um lado, cabe aqui o argumento de que<br />

toda essa musicalidade não se restringe ao contexto brasileiro, mas, sim, ao território<br />

mais amplo do romantismo e, como tal, perceptível nas produções europeias e de outros<br />

países do continente americano. Por outro, nunca será demais recordar o caráter multifacetado<br />

de um movimento cultural que rompeu com o padrão milenar dos classicismos<br />

em favor das diferenças individuais e, consequentemente, nacionais.<br />

Nesse sentido, a relação tipicamente romântica entre música e literatura, que<br />

vê na junção dessas duas artes forte componente de sublimação, na medida em que a primeira<br />

poderia contribuir para a elevação estética da segunda, ganha contornos específicos<br />

ao cruzar o Atlântico e aportar em solo brasileiro. É o que tentarei desenvolver a seguir,<br />

através da produção de três autores, Martins Pena, Joaquim Manuel de Macedo e José de<br />

Alencar, em que as duas primeiras suscitam uma abordagem mais histórica, uma vez que<br />

buscam enquadrar, dramatúrgica e literariamente, determinado modo social de recepção<br />

da música, particularmente da ópera, e a terceira que nos sugere uma perspectiva mais<br />

formal, estética, ligada à concepção dos gêneros em jogo, e que procurarei tratar a partir<br />

das implicações entre a materialidade dos meios envolvidos na comunicação artística e<br />

os seus modos de recepção.<br />

Pena e Macedo: a dessublimação da ópera<br />

Como primeiro exemplo significativo, saliento não um texto propriamente literário,<br />

mas uma peça teatral: refiro-me a O diletante, 1 de Martins Pena. Escrita em 1844 e<br />

encenada em fevereiro de 1845, trata-se de uma comédia sobre um rico proprietário, José<br />

Antônio, cuja paixão pela música, especificamente pela ópera italiana – “arte divina”<br />

(Pena, 1966, p. 225), como ele mesmo diz –, em especial por Norma, de Bellini e Romani,<br />

fundamenta e determina todas as suas relações familiares e sociais: Josefina, a filha para<br />

quem a ópera era apenas um motivo para ir ao teatro, apesar de “louquinha”, cantava<br />

bem; a esposa, ao contrário, sofrivelmente; o abastado fazendeiro paulista, Marcelo, com<br />

quem José Antônio gostaria de casar a filha, preferia o fado à ópera, gênero que o<br />

provinciano só conheceu na noite anterior, quando dormiu na apresentação de Norma;<br />

sendo assim, se o futuro genro não mostrava nenhuma inclinação para a arte lírica, quem<br />

seria o tenor para assumir o papel de Pollione no terceto da música do “sublimíssimo<br />

...........................................................................<br />

1 Palavra de origem italiana com a qual se designavam, no século XIX, os amantes de ópera.<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


112<br />

gênio” italiano, partitura que José Antônio acabara de comprar com a esperança de<br />

executá-la em casa? Nesse momento, entra em cena Gaudêncio, o segundo pretendente<br />

de Josefina, que, ao se fingir de cantor, caiu nas graças do velho diletante. Depois de várias<br />

peripécias, descobre-se que Gaudêncio tem mulher, Perpétua, e dois filhos; além<br />

disso, vem à tona que Perpétua seria a irmã de Marcelo que fora raptada por um pérfido<br />

sedutor, coincidentemente o próprio Gaudêncio. Numa cena que me parece a mais instigante<br />

de toda a peça, Perpétua, acompanhada de seus dois filhos, se dirige à casa da<br />

família para conversar com Josefina. É quando Antônio presencia o seguinte quadro: Perpétua<br />

e Josefina dialogando perante as duas crianças ajoelhadas. A sua atitude não poderia<br />

ser outra:<br />

José Antônio, caminhando para frente – Bravo! Bravíssimo! (as duas surpreendem-se;<br />

os pequenos conservam-se de joelhos.) Continuem, que eu acompanho.<br />

(Vai para o piano)<br />

Perpétua – Ah!<br />

Josefina – Continuar o quê, senhor?<br />

José Antônio – Pois não é o dueto de Norma que estavam cantando?<br />

Josefina – Qual dueto! Que loucura!<br />

José Antônio, caminhando para ela – Ó filha, pois eu pensei que ias cantar. Vi estes<br />

dois pequenos de joelhos, julguei que tu ias fazer de Norma e ali a senhora<br />

de Adalgisa...<br />

Josefina – E não se enganou de todo. Somente trocou os nomes: aqui a Adalgisa<br />

sou eu, e a senhora Norma, porque é a traída e abandonada pelo falso...<br />

José Antônio – Pollione?<br />

Josefina – Qual Pollione! Pelo Dr. Gaudêncio!<br />

José Antônio – Hem? O que estás dizendo? (Pena, 1966, p. 243)<br />

Não é surpreendente que José Antônio interpretasse a cena como se fosse um<br />

dueto de Norma, afinal é o que se espera da reação de um homem cujo quadro de referências<br />

é operístico, no sentido em que ele empresta ao gênero, ou seja, como forma de<br />

arte sublime, uma vez que transcende o aqui e agora da vida cotidiana. Surpreendente<br />

mesmo é a reação de Josefina que, ao não descartar plenamente a interpretação de José<br />

Antônio, entende a ópera do compositor italiano não como manifestação dessa sublimidade,<br />

mas, ao contrário, como possível instrumento de reflexão das mazelas do cotidiano<br />

em geral e das suas próprias em particular. A “ópera trágica” de Bellini, com suas<br />

melodias fortemente expressivas e o seu conteúdo político de valor libertário, na possível<br />

analogia entre a Gália ocupada pelos romanos e a Itália pelos austríacos, transforma-se,<br />

em solo brasileiro, numa comédia de costumes dessublimada, circunscrita à capacidade<br />

de expressar os conflitos comezinhos do dia a dia.<br />

É mais ou menos nesse sentido que a música, e de novo a ópera, reaparece, só<br />

que agora em um texto literário, mais propriamente no segundo romance daquele que é<br />

considerado por muitos o primeiro romancista brasileiro, Joaquim Manuel de Macedo.<br />

Depois de estrear com A moreninha, em 1844, Macedo publica, no ano seguinte, O moço<br />

loiro. 2 Já no primeiro capítulo, dois personagens, Antônio e Otávio, adentram o restaurante<br />

de um hotel. O segundo, há dez meses fora do Rio de Janeiro, tem vivo interesse em assistir<br />

a uma novidade, o “Teatro Italiano”, por sinal, expressão que dá nome ao capítulo. Naquela<br />

noite seria a estreia de Ana Bolena, de Donizetti e Romani. No meio de um diálogo<br />

...........................................................................<br />

2 Embora me reporte aqui só ao segundo romance de Macedo, já no primeiro, A moreninha, a ópera, no caso, O<br />

barbeiro de Sevilha, de Rossini e Sterbini, aparece na articulação textual e de recepção da narrativa de 1844,<br />

como analisa Gimenez (2007).<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


113<br />

sobre compra de bilhetes, Antônio lança a seguinte indagação a Otávio: “Ora, dize lá; tu<br />

és Candianista, ou Delmastriasta?” (Macedo, 2003, p. 14). Se Otávio não entende de imediato<br />

a pergunta, afinal se não conhecia o tal “teatro”, muito menos as referidas expressões,<br />

o mesmo não vale para todos que se encontram presentes no restaurante. A expectativa<br />

pela resposta detona discursos acalorados contra ou favor das duas prima-donas do momento:<br />

Augusta Candiani e Clara Delmastro. Mais tarde, na hora do espetáculo, não será<br />

diferente no interior do teatro de São Pedro de Alcântara. Posicionando-se à esquerda ou<br />

à direita do palco, como nas assembleias francesas revolucionárias, os diletantes partidários<br />

de cada cantora instauram uma algazarra que chega ao ponto de tornar inaudível a própria<br />

apresentação.<br />

É interessante notar as circunstâncias históricas que envolvem os acontecimentos<br />

relatados nesse primeiro capítulo. Como informa o narrador, a história tem o seu início<br />

no dia 6 de agosto de 1844. Como se sabe, foi o ano em que a cidade do Rio de Janeiro retomou<br />

as atividades operísticas, suspensas doze anos antes, exatamente por conta dos<br />

graves conflitos que vinham ocorrendo entre espectadores nas plateias dos teatros e que<br />

culminou com o episódio de 28 de setembro de 1831, quando a sala do Teatro foi transformada<br />

“numa praça de guerra” (Andrade, 1967, p. 194). O retorno dos espetáculos líricos<br />

tem, nesse sentido, certo ar de novidade, como revela a atitude de Otávio; talvez o<br />

próprio Macedo se encontrasse em situação análoga a do personagem, já que, nascido<br />

em 1820, no município de Itaboraí, provavelmente não deve ter visto alguma récita antes<br />

da interrupção mencionada.<br />

Além disso, mais uma vez, como na peça de Martins Pena, a viagem transatlântica<br />

parece realizar transfiguração dessublimadora: a terrível história da segunda esposa de<br />

Henrique VIII, injustamente condenada por adultério, é convertida, nos teatros cariocas,<br />

em pano de fundo de conflitos entre “candianistas” gagos e “ultradelmastristas” surdos, 3<br />

em cenário cuja única opção a um não diletante como Otávio era flertar com as jovens<br />

damas da corte. Menos do que a fruição da ópera, o que se vê aqui representado é um<br />

quadro historicamente configurado de recepção.<br />

Apesar dos exemplos, ambos da década de 1840, aqui citados, serem representativos<br />

do processo de dessublimação, este outro, por sua vez, não corresponde ao<br />

único modo de apropriação literária da música no contexto oitocentista. A obra de José<br />

de Alencar vai instaurar uma nova trilha e, mais uma vez, o caminho será percorrido através<br />

da ópera. Já posso adiantar que, diferentemente de Pena e Macedo, Alencar não vai<br />

enquadrar a ópera no contexto exclusivamente social. Embora essa contextualização não<br />

esteja alijada do modo como o autor de Iracema encara o melodrama italiano, e não só o<br />

italiano, como também o francês, ela me parece secundária na concepção alencariana:<br />

nessa, a ópera é um modelo de arte e, como tal, um manancial de formas e temas para a<br />

elaboração de romances.<br />

Nesse ponto de nosso argumento, creio que seria importante intercalar uma reflexão<br />

um pouco mais conceitual, relacionada à teoria dos gêneros, pois, se os textos de<br />

Pena e Macedo remetem a estereótipos sociais de recepção da ópera, o romance alencariano<br />

aponta para questões de ordem estética, como já assinalava, e que cabe agora desenvolver.<br />

4 Volto, assim, aos termos iniciais do debate: literatura e música.<br />

...........................................................................<br />

3 A cena aqui é literal, já que Otávio acaba se acomodando na plateia exatamente entre um espectador gago e<br />

outro surdo.<br />

4 Cumpre ressalvar que, embora esses estereótipos se aproximem da classificação proposta por Giron (2004, p.<br />

119), na qual haveria três diferentes tipos de receptores de ópera nesse período, “o diletante, o partidista e o<br />

folhetinista”, e que Pena e Macedo estariam satirizando os dois primeiros respectivamente, o que proponho<br />

sobre a obra de Alencar não alude a qualquer forma de tematização do terceiro, nem como estereótipo a ser<br />

satirizado, nem como autorreflexão do gênero, a despeito de seu trabalho como folhetinista. Como se verá, a<br />

questão é estética, logo, literária. Na verdade, caberia um item a mais na tipologia de Giron: o romancista.<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


114<br />

Literatura e música: romance e ópera<br />

Em geral, o ponto de interseção que é mais destacado, quando as duas artes são<br />

comparadas, diz respeito à dimensão sonora. Contudo, se hoje a aproximação depende<br />

de estudos de caráter interdisciplinar, de um lado através da Literatura Comparada, de<br />

outro por meio da Musicologia, isso só se deu devido à ruptura ocorrida em determinado<br />

momento histórico. Como lembra Segismundo Spina (2002, p. 15),<br />

A poesia primitiva não é exclusivamente a poesia dos povos pré-letrados, mas a<br />

poesia que está ligada ao canto, indiferenciada, anônima e coletiva. É a poesia<br />

no seu estágio ancilar, isto é, subordinada à música e às vezes à coreografia, mais<br />

especialmente àquela.<br />

Do ponto de vista que se tornou hegemônico, pelo menos para os estudos literários,<br />

na descrição do processo de formação da cultura ocidental, a identificação da chamada<br />

“poesia primitiva” encontra as suas primeiras formulações na Grécia antiga. Para<br />

Aristóteles (1981, p. 22), em sua Arte Poética, ritmo e melodia, juntamente com a natureza<br />

imitativa do homem, são elementos que estão na própria origem da poesia:<br />

Por serem naturais em nós a tendência para a imitação, a melodia e o ritmo –<br />

que os metros são parte dos ritmos é fato evidente – primitivamente, os bem<br />

dotados para eles, progredindo a pouco e pouco, fizeram nascer de suas improvisações<br />

a poesia.<br />

Bem mais tarde, Jean-Jacques Rousseau (1983, p. 186 e 187), no Ensaio sobre a<br />

origem das línguas, sempre interessado no comércio entre as duas artes, retoma as ponderações<br />

aristotélicas quando sugere que “a princípio não houve outra música além da<br />

melodia, nem outra melodia que não o som variado da palavra; os acentos formavam o<br />

canto, e as quantidades, a medida; falava-se tanto pelos sons e pelo ritmo quanto pelas<br />

articulações e pelas vozes”. Citando o geógrafo grego Estrabão, continua Rousseau: “outrora<br />

dizer e cantar eram o mesmo, o que mostra, acrescenta [Estrabão], que a poesia é a fonte<br />

da eloquência”. Embora, para o pensador genebrino, não se trate de uma relação de<br />

causalidade – afinal, poesia e eloquência possuiriam origem comum –, o que importa<br />

aqui é o reconhecimento de indistinção fundamental, de uma indiferença primitiva, perceptível<br />

historicamente. Além disso, é importante entender o sentido de “ritmo” utilizado<br />

por Rousseau e que se coaduna com aquele empregado pela Retórica quando alude à noção<br />

de numerus, ou seja, “de uma sucessão regulamentada (nas línguas clássicas) de sílabas<br />

longas e breves, dentro da compositio” (Lausberg, 2004, p. 267) que, na poesia, encontra<br />

a sua unidade no verso, no retorno regular de iguais cadências rítmicas, e, na prosa, na<br />

ausência de retorno. Dito de outra maneira, a medida do verso, o seu ritmo, é a sua unidade<br />

métrica, a quantidade de sílabas longas e breves ou, no caso das línguas neolatinas,<br />

de sílabas fortes e fracas, que estabelecem a sua extensão, o seu limite.<br />

Nesse sentido, quando a percepção do que hoje chamamos de literatura consistia,<br />

pelo menos até o século XVIII, em um tipo de experiência eminentemente rítmica do verso,<br />

era possível referir-se ao extrato sonoro do fenômeno literário: na situação primitiva,<br />

como se viu, de modo estrito; em momentos históricos posteriores, de forma ainda bastante<br />

evidente, uma vez que o vínculo se manteve, até certo ponto, presente. Contudo, a<br />

questão se complexifica quando a literatura se transforma naquilo que o seu nome designa:<br />

arte da escrita e da leitura; quer dizer, quando a escrita deixa de ser atividade secundária<br />

ligada ao mero registro documental e se converte em meio privilegiado de transmissão e<br />

recepção de textos, o que se deu a partir do advento dos tipos móveis e da imprensa no<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


115<br />

final do século XV, invenção que permitiu a substituição gradativa dos antigos manuscritos<br />

por material impresso e criação de novos suportes de publicação que, por sua agilidade<br />

técnica, tornaram possível a proliferação até então inimaginável de textos escritos. É no<br />

bojo desses acontecimentos que se desenvolve um gênero literário: o romance. Como<br />

ressalta Bakhtin (1988, p. 188), “ao lado dos grandes gêneros, só o romance é mais jovem<br />

do que a escritura e os livros, e só ele está organicamente adaptado às novas formas da<br />

percepção silenciosa, ou seja, à leitura”. Cabe acrescentar que, ao contrário dos “grandes<br />

gêneros” (a epopeia, a tragédia e a lírica), que valorizaram o verso como unidade rítmica,<br />

o romance vai privilegiar a prosa, ou seja, a variedade do numerus que prescinde de medida.<br />

Assim, tanto pelo ritmo que privilegia quanto pelo modo de recepção que requer, o da<br />

leitura silenciosa, o romance instaura um novo paradigma que é o da própria literatura<br />

enquanto arte, da arte cuja autonomia depende de sua realidade estritamente escrita, e<br />

não de uma possível dimensão sonora, como se prescrevia nas poéticas do passado.<br />

Não é à toa que determinados historiadores literários entendem que não é conceitualmente<br />

adequado empregar o termo literatura, designando uma mesma experiência<br />

estética e cultural desde os gregos. Paul Zumthor, por exemplo, no clássico A letra e a voz:<br />

a “literatura” medieval, grafa o vocábulo entre aspas, uma vez que, para ele, a experiência<br />

moderna de literatura não coincide com aquela que se desenvolveu na Idade Média, pois<br />

lá se tratava ainda de uma prática oral, “vocal” na acepção de Zumthor, 5 que se deu através<br />

do canto e da performance propriamente dita, ou seja, por meio da presença física dos<br />

agentes envolvidos no processo comunicativo, enquanto na modernidade, o corpo humano<br />

deixa de ser veículo de constituição de sentido e fonte do mesmo, consequentemente<br />

toda materialidade decorrente do envolvimento corporal – voz, gesto etc. – desaparece<br />

em favor da virtualidade do ato silencioso de leitura. 6<br />

Sendo assim, não me parece evidente aproximar literatura e música pela suposta<br />

afinidade sonora entre ambas; se, em determinado momento histórico, a afinidade era<br />

intrínseca, com a autonomização do campo literário ela deixa de ser, permanecendo, em<br />

alguns casos, como resquício de uma origem comum, principalmente na sobrevivência<br />

do metro na poesia, e, em outros, como afinidade a ser buscada, como princípio de determinada<br />

proposta criativa individual ou coletiva, como ocorreu no Romantismo e no<br />

Simbolismo literários.<br />

Ora, voltando a José de Alencar, nunca é demais recordar que ele foi escritor de<br />

romances no século em que o gênero atingia o seu apogeu, tornando-se hegemônico na<br />

medida em que se disseminava por todos os meios materiais disponíveis à época (livro,<br />

jornal etc.). Sob esse prisma, o escritor cearense, como boa parte dos escritores do período,<br />

nasceu e se desenvolveu dentro da cultura impressa. 7 Contudo, a que se deve o vivo interesse<br />

do autor de Iracema pela ópera? De imediato, como prática cultural, afinal, em cenário<br />

onde mais de cem récitas eram realizadas em um único ano, era impossível não ser<br />

...........................................................................<br />

5 Zumthor (1993, p. 21) prefere a expressão “vocalidade” ao invés da “oralidade”: enquanto esta se relaciona à<br />

voz como mera “portadora da linguagem”, aquela alude à “historicidade de uma voz”, portanto, ao seu uso, ao<br />

modo de realização material em dado momento.<br />

6 É o que constata Gumbrecht (1998, p. 75): “O corpo humano não era [na Modernidade] mais o veículo de<br />

constituição do sentido; o corpo fora visivelmente separado do veículo de sentido, o livro, pela introdução de<br />

uma máquina, a prensa de impressão. Ao mesmo tempo [...] o corpo era também liberado de sua função de<br />

fonte de sentido”.<br />

7 Nesse ponto, deixo em suspenso, por economia, a discussão sobre a possível precariedade das condições de<br />

desenvolvimento da cultura impressa no Brasil do século XIX; razão pela qual não vou tratar aqui a hipótese que<br />

alguns críticos sustentam de que o amplo interesse dos escritores oitocentistas pela ópera se deva, apenas, à<br />

deficiência ou quase inexistência de um público letrado, o que teria favorecido a produção de formas culturais<br />

cujo meio de transmissão fosse eminentemente oral ou diretamente influenciado pela oralidade, como no caso<br />

da literatura. Seja como for, acredito que tal hipótese não se coaduna com as motivações da obra de José de<br />

Alencar.<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


116<br />

contaminado, positiva ou negativamente, pelos melodramas europeus, como vimos nos<br />

exemplos de Pena e Macedo. Entretanto, no caso alencariano, esse envolvimento vem<br />

acompanhado de determinada concepção de arte que cumpre entender: no que segue,<br />

tentarei confrontar o que até agora apresentei sobre o romance com uma breve reflexão<br />

sobre a ópera na tentativa de analisar a concepção alencariana.<br />

Alencar e a sublimação da ópera<br />

Nesse sentido, é possível dizer, de imediato, que a relação de José de Alencar com<br />

a ópera é, no mínimo, seminal; não seria excessivo afirmar que ela está na origem do próprio<br />

artista que viu nos grandes dramas encenados nos teatros da corte o modelo da arte<br />

sublime.<br />

Alencar vai manifestar esse entusiasmo logo nas suas primeiras produções, no<br />

caso, folhetinescas: primeiramente, na série com que inaugura a sua carreira como escritor<br />

público, intitulada “Álbum”, impressa no Diário do Rio de Janeiro, em 1854; imediatamente<br />

depois, ainda no mesmo ano de 1854, na bem conhecida “Ao correr da pena”, iniciada no<br />

Correio Mercantil e concluída no seu retorno ao Diário do Rio de Janeiro, em 1855. Comentando<br />

os espetáculos líricos, fazendo apologia das principais divas do bel canto que<br />

estrelavam as companhias italianas e francesas em suas temporadas na capital do Império<br />

e, claro, admirando os mais prestigiados compositores da terra de Dante (Rossini, Bellini,<br />

Donizetti e Verdi, entre outros) e alguns franceses (Meyerbeer, Auber, Gounod etc.), os<br />

seus folhetins testemunham um Alencar (2004, p. 54) embevecido com o gênero musical<br />

que era quase toda a música realizada no Brasil em meados do século XIX, como se pode<br />

depreender do artigo de 15 de outubro de 1854 de “Ao correr da pena”:<br />

Para fazer diversão à música italiana, ofereceram-nos, sábado da semana passada,<br />

no Teatro de São Pedro, um outro benefício de música alemã clássica, no<br />

qual os entendedores tiveram ocasião de apreciar coros magníficos a três e quatro<br />

vozes, e de gozar belas recordações dos antigos maestros, hoje tão esquecidos<br />

por causa das melodias de Rossini e Donizetti e das sublimes e originais inspirações<br />

de Verdi e Meyerbeer.<br />

Não é difícil perceber que a música era, para o jovem folhetinista Alencar, ópera.<br />

Na arena literária, a repercussão dessa influência vai se manifestar prontamente.<br />

Logo no seu primeiro romance, Cinco minutos, de 1856, uma frase – “non ti scordar di<br />

me” – retirada de Il trovatore, de Verdi e Cammarano, torna-se o elo da relação entre os<br />

protagonistas cuja história segue de perto outra obra do operista italiano, com texto de<br />

Francesco Piave, La traviata. No romance seguinte, O guarani, de 1857, óperas ou passagens<br />

delas não são aludidas no corpo do texto, o que não é de se estranhar, considerando<br />

que os conflitos se desenrolam no início do século XVII, em cenário inóspito; entretanto,<br />

toda a narrativa é transformada em libreto por Antonio Scalvini com o mesmo título,<br />

cabendo a composição musical, talvez a mais famosa de todo o repertório brasileiro, a<br />

Carlos Gomes, em 1870. Há, em Lucíola, encontros fortuitos entre os protagonistas, durante<br />

eventos operísticos, que determinam a condução da trama. Em relação à Iracema, Joaquim<br />

Nabuco (1978, p. 187) sugeriu, maliciosamente, no calor da famosa polêmica entre ambos,<br />

certa homologia estrutural com a Norma, de Bellini e Romani, quando utilizou a expressão<br />

“Norma tupi” para designar a protagonista da lenda alencariana de 1865. Por sinal, a<br />

mesma ópera do compositor siciliano reaparece em forte cena de Senhora, de 1875, para<br />

acender em Aurélia, quando ela executa uma de suas árias ao piano, o desejo de vingança;<br />

há, ainda, o diálogo entre o último romance do escritor cearense, Encarnação, e Lucia di<br />

Lammermoor, de Donizetti e Cammarano, no qual se percebe como a concepção alen-<br />

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117<br />

cariana de arte se aproxima dos modelos operísticos; por fim, vale destacar o libreto escrito<br />

pelo próprio Alencar, A Noite de São João, musicado por Elias Álvaro Lobo e encenado<br />

em 1860; isso sem contar as narrativas onde óperas são apenas mencionadas como em A<br />

pata da gazela, Sonhos d’ouro e O tronco do Ipê.<br />

Considerando a importância da ópera na produção literária do período, especialmente<br />

na de Alencar, caberia a seguinte pergunta: que quadro de referências artísticas<br />

e culturais, além daquele estabelecido por Martins Pena e Macedo, é possível configurar<br />

a partir da presença da ópera na literatura brasileira oitocentista? Ainda: por que a maior<br />

estima pela ópera e não pela música romântica de concerto como a de Liszt, Chopin,<br />

Schumann, Mendelssohn e Berlioz, entre outros?<br />

O próprio Alencar nos fornece as primeiras pistas. Antes mesmo de se tornar<br />

romancista, no decorrer da famosa polêmica sobre a epopeia de Gonçalves de Magalhães,<br />

A confederação dos tamoios, de 1856, 8 polêmica que, além de Alencar, contou ainda com<br />

a participação, na bancada adversária, de Araújo Porto Alegre e D. Pedro II, o autor de Iracema,<br />

imbuído da concepção lamartiniana da unidade das artes, ou como ele mesmo escreve,<br />

“da união da poesia, da música e da pintura” (Alencar, 1953, p. 25), 9 apresentou<br />

quatro grupos de artistas para exemplificá-la, organizando-os segundo as afinidades criativas<br />

que ele julgava existir entre os escolhidos de cada agrupamento, como se segue: Homero,<br />

Miguel Ângelo e Rossini; Virgílio, Ticiano e Donizetti; Shakespeare, Veronese e Meyerbeer;<br />

Píndaro, Rafael e Verdi. Na poesia, o destaque coube a três autores da antiguidade<br />

clássica (Homero, Virgílio e Píndaro) e um renascentista (Shakespeare); nas artes plásticas,<br />

todos os nomes citados são de criadores renascentistas; por fim, na música, a lista inclui<br />

apenas operistas românticos. Considerando apenas os representantes da poesia e da música,<br />

são as ausências que chamam a atenção: assim como não há romancistas, também<br />

não há compositores de música de concerto. Além disso, é importante ressaltar que a<br />

ópera já seria o resultado dessa união e, nesse sentido, ela não deveria apenas ocupar<br />

uma posição nessas tríades. Tratemos um pouco mais de perto essa questão.<br />

Como o próprio Alencar assinala, a reflexão sobre a unidade das artes advém de<br />

Lamartine, mais propriamente do segundo prefácio a Les Meditations, intitulado “Les<br />

destinées de la poésie”. Embora Lamartine discorra exclusivamente sobre poesia e apenas<br />

mencione de passagem o autor Do contrato social, a ideia da unificação das três artes<br />

aparece no pensamento de Rousseau (1961 apud Starobinski, 2010, p. 23) sobre a ópera,<br />

no verbete correspondente no seu Dictionnaire de musique:<br />

As partes constitutivas de uma ópera são o poema, a música e a cenografia. Pela<br />

poesia se fala ao espírito; pela música, ao ouvido; pela pintura, aos olhos, e o todo<br />

deve somar-se para comover o coração e levar ao mesmo tempo, através de<br />

diversos órgãos, a mesma impressão até ele. 10<br />

Alencar explora, assim como Lamartine, a noção rousseauniana como forma de<br />

assegurar um lugar privilegiado à poesia e, mais ainda, como ideal a ser visado por todo e<br />

qualquer poema que se pretenda grandioso – o que não teria ocorrido, segundo Alencar,<br />

...........................................................................<br />

8 Trata-se da polêmica que foi desencadeada a partir das fortes críticas publicadas, em 1856, no Diário do Rio de<br />

janeiro, pelo jovem Alencar, ao referido poema daquele que era considerado, à época, o introdutor do romantismo<br />

no Brasil e, principalmente, o fundador da Literatura Nacional, Domingos José Gonçalves de Magalhães.<br />

9 Concepção que Alencar (1967, p. 185) vai retomar mais tarde, em 1872, quando da publicação de Sonhos<br />

d’ouro. Reportando-se à capacidade artística de Ricardo, protagonista da história, o narrador escreve: “Deus<br />

criou três linguagens para o artista: a linguagem da forma, a pintura; a linguagem dos sons, a música; e a linguagem<br />

da palavra, a poesia, de todas a mais sublime porque fala não só ao coração, como à inteligência”.<br />

10 Como ressalta Starobinski, essa definição de Rousseau é resultado de suas leituras de Les Caractères de La<br />

Bruyère.<br />

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118<br />

com a epopeia de Magalhães. Acrescente a isso o fato de que Alencar (1953, p. 24) lançava<br />

mão das reflexões lamartinianas como reiteração de determinado princípio poético que<br />

nos parece fundamental: “A descrição dos rapsodes gregos, que eram ao mesmo tempo<br />

poetas, músicos e atores, descrição que li quando ainda pouco me ocupava de literatura,<br />

ficou impressa para sempre no meu espírito como a verdadeira imagem da poesia”. Ora,<br />

não estaria na própria invenção da ópera o mesmo resgate dessa imagem original, na<br />

retomada do drama clássico a busca pelo reestabelecimento da unidade primitiva? Caberia,<br />

então, afirmar que a tarefa romântica encontra um precedente no gênero musical surgido<br />

no século XVII?<br />

Antes de tudo, é preciso ter cuidado com certas aproximações. Afinal, esses<br />

“renascimentos” encontravam-se disseminados, antes ou depois da emergência da ópera,<br />

no quinhentismo português, nos dramas shakespearianos, no Século de Ouro espanhol<br />

ou no classicismo francês, e não foi à toa que, junto do modelo de unidade grego, resgatouse,<br />

também, a mitologia, como atestam Eurídice, de Jacopo Peri, 11 e Orfeu, de Monteverdi,<br />

entre outros, o que em certa medida limitaria a novidade do empreendimento, pelo menos<br />

fora do campo estritamente musical. Contudo, a grande novidade da ópera reside no fato<br />

de que, na sua tentativa de retomada da unidade primordial, ela o fez através de uma<br />

espécie de reconstituição do drama grego e, nesse sentido, a reintrodução da música foi<br />

fundamental, na medida em que se aproximou da desejada unidade enquanto a falta de<br />

um ou de outro elemento teria inviabilizado essa aproximação em outros campos artísticos.<br />

Assim, retornando às perguntas formuladas acima, de fato, estando na constituição<br />

do gênero o referido resgate, a ópera poderia ser tomada como precedente artístico<br />

do romantismo em geral, razão pela qual ela se desenvolve de maneira bastante<br />

acentuada exatamente no período romântico, atingindo o seu auge com Wagner. Todavia,<br />

no caso de Alencar, a questão é outra, sendo ele um romancista: por que a ópera se converte<br />

em modelo para composição de seus romances? A pergunta se complexifica quando<br />

lembramos o percurso histórico aqui apresentado relativo aos dois gêneros, pois se a<br />

ópera extrapola, em certa medida, por conta mesmo da unidade que almeja, os limites<br />

materiais da arte a qual está previamente ligada, ou seja, a música, o romance é o gênero<br />

por excelência do que se passou a entender por literatura no contexto da modernidade;<br />

em outras palavras, o romance é o gênero que estabelece as condições de autonomia da<br />

experiência literária, ou seja, de uma arte da escrita, enquanto a ópera parece refratária a<br />

qualquer forma de autonomização.<br />

Sob esse prisma, quando Alencar traz a ópera para o interior de sua concepção<br />

de arte, o que ele parece ressaltar, além do aspecto sublime – também valorizado, como<br />

se viu, pela personagem diletante de Martins Pena, embora não pela sua peça – é a possibilidade<br />

de reintrodução do corpo no circuito comunicativo através da voz materializada<br />

pela recordação da cena operística. Quer dizer, o romance alencariano recusa a dicção<br />

puramente literária do gênero em favor da experiência totalizadora da arte romântica<br />

representada pela ópera. Entende-se, assim, o contraste entre a recepção dessublimadora<br />

e prosaica da ópera por parte de Pena e, principalmente, de Macedo, e o tratamento poético,<br />

sublimador e transcendente, conferido por Alencar ao melodrama, mesmo, e talvez<br />

só por isso, quando ele se encontra às voltas com temas cotidianos.<br />

Para finalizar, e para que fique mais claro o que acabei de afirmar, tomarei como<br />

exemplo o seu primeiro romance já aqui mencionado: Cinco minutos. Em forma de carta,<br />

o narrador relata à sua prima como, chegando cinco minutos atrasado ao largo do Rossio,<br />

atual Praça Tiradentes, com intuito de tomar o ônibus das seis horas para o bairro do Andaraí,<br />

acabou pegando o das sete e conheceu a mulher com quem acabaria se casando,<br />

...........................................................................<br />

11 O que se percebe, também, no subtítulo: “Tragédia em homenagem ao ideal antigo”.<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


119<br />

Carlota. O encontro dentro do veículo é, no mínimo, curioso: ele se senta ao lado de uma<br />

mulher toda vestida de seda, cujo rosto estava coberto por um véu. Os corpos se tocam,<br />

as mãos se apertam e o narrador, através de várias inferências de natureza axiológica,<br />

procura deduzir da beleza ou feiura da figura enigmática. Absorvido por todo esse enleio<br />

amoroso, o narrador não se dá conta do momento em que ela sai do ônibus:<br />

Senti a sua mão apertar a minha mais estreitamente; vi uma sombra passar<br />

diante de meus olhos no meio do ruge-ruge de um vestido, e quando dei acordo<br />

de mim, o carro rodava e eu tinha perdido a minha visão.<br />

Ressoava-me ainda ao ouvido uma palavra murmurada, ou antes suspirada quase<br />

imperceptivelmente:<br />

– Non ti scordar di me! ...<br />

Lancei-me fora do ônibus; caminhei à direita e à esquerda; andei como um louco<br />

até nove horas da noite.<br />

Nada! (Alencar, 1967, p. 5)<br />

Após o episódio, o narrador, sempre atento à possibilidade de encontrá-la, no<br />

entanto só possui um elemento capaz de identificá-la: a voz. É quando, em um baile,<br />

surge uma nova pista: “quase não dava fé do que se passava junto de mim, quando senti<br />

um leque tocar meu braço, e uma voz que vivia no meu coração, uma voz que cantava<br />

dentro de minha alma, murmurou: – Non ti scordar di me!...” (Alencar, 1967, p. 6). A voz<br />

não era propriamente da pessoa que ele procurava, mas, sim – e algo que ele só vai descobrir<br />

mais adiante –, da mãe da sua desconhecida. Não creio que seja demais especular<br />

que, do ponto de vista de um possível efeito de leitura do romance, Alencar esteja aí<br />

lidando com um horizonte de expectativa bastante claro naquele momento: o leitor de<br />

romance era, também, um espectador de óperas. Assim, a frase lançada de Il trovatore,<br />

de Verdi e Cammarano, no início de um relato escrito, não funciona apenas como mera<br />

alusão a ser buscada por aquele que lê, mas como elemento constitutivo da articulação<br />

que o texto infringe ao leitor, na medida em que requer desse a recordação de um quadro<br />

de referências prévio à leitura, de um quadro moldado pela experiência estética, e até<br />

afetiva, por ele vivenciada nas salas de concertos – é claro que estou sempre me referindo<br />

aqui ao possível leitor de 1856.<br />

Isso fica ainda mais evidente no terceiro encontro entre os personagens que se<br />

dá exatamente no teatro, durante a encenação de La traviata, do mesmo Verdi. Após<br />

avistar mãe e filha, o narrador consegue o bilhete do camarote ao lado e, no decorrer do<br />

último ato da ópera, se dirige a Carlota: “– Não me esqueço” (Alencar, 1967, p. 8). À reação<br />

supostamente fria de Carlota segue o discurso revoltado do narrador contra a vaidade<br />

feminina: “Enquanto eu proferia estas palavras, repassadas de todo o fel que tinha no coração,<br />

a Charton modulava com a sua voz sentimental essa linda ária final da Traviata,<br />

interrompida por ligeiros acessos de uma tosse seca” (Alencar, 1967, p. 8). A oração final<br />

empresta a todo o período uma ambiguidade significativa que pode ser tomada como<br />

sintoma da articulação a que me refiro e da destreza com que Alencar a incorpora na letra<br />

do texto: a frase não deixa claro de onde provém a tosse que “interrompe” a ária, se de<br />

Carlota ou da própria Charton. Mesmo reconhecendo Carlota como a responsável pelo<br />

ato, enfrentar a ambiguidade implica o entendimento de um recurso formal de identificação<br />

por meio da sobreposição de signos de diferentes artes, cujo alcance estaria na<br />

realização de tão desejada unidade: a articulação da ópera no romance se coaduna com<br />

a tentativa de produzir no leitor o efeito que uma ópera produziria, dramatúrgica e musicalmente,<br />

em seu expectador, superando, assim, o limite material da escrita e da “percepção<br />

silenciosa” requerida pela leitura. Nesse sentido, o romance alencariano vai de<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


120<br />

encontro à cultura impressa que lhe deu origem e ao próprio gênero, assim como se volta<br />

contra a distância instaurada pela ausência do corpo do circuito comunicativo; no drama<br />

musical, ao contrário, vida e obra se combinam, e vozes são repercutidas, como as de<br />

Marguerite Gautier, Violeta, Charton e Carlota. 12<br />

Referências bibliográficas<br />

Alencar, José de. “Quarta carta”. In: Castello, José Aderaldo. A polêmica sobre a<br />

Confederação dos Tamoios. São Paulo: FCL/USP, 1953.<br />

Alencar, José de. Romances ilustrados de José de Alencar. Rio de Janeiro: José Olympio,<br />

1967, v. 6.<br />

Alencar, José de. Ao correr da pena. São Paulo: Martins Fontes, 2004.<br />

Andrade, Ayres de. Francisco Manuel da Silva e seu tempo: 1808-1865. Rio de Janeiro:<br />

Tempo Brasileiro, 1967.<br />

Aristóteles. “Arte poética”. In: Aristóteles, Horácio e Longino. A poética clássica.<br />

Tradução de Jaime Bruna. São Paulo: Cultrix/Edusp, 1981.<br />

Bakhtin, Mikhail. “Epos e romance (sobre a metodologia do estudo do romance)”.<br />

Tradução de Aurora Bernardini et al. In: Questões de literatura e de estética: a teoria do<br />

romance. São Paulo: Hucitec/Unesp, 1988.<br />

Gimenez, Priscila Renata. “O teatro e a ópera em A moreninha”. Mosaico. São José do<br />

Rio Preto, v. 6, n. 1, p. 175-182, 2007.<br />

Giron, Luís Antônio. A minoridade crítica: a ópera e o teatro nos folhetins da corte:<br />

1826-1861. São Paulo: Edusp; Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.<br />

Gumbrecht, Hans Ulrich. “O corpo versus a imprensa: os meios de comunicação no<br />

início do período moderno, mentalidades no Reino de Castela e uma outra história das<br />

formas literárias”. Tradução de Lawrence Pereira. In: Modernização dos sentidos. São<br />

Paulo: Editora 34, 1998.<br />

Lausberg, Heinrich. Elementos de retórica literária. Tradução de R. M. Rosado<br />

Fernandes. 5ª ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2004.<br />

Macedo, Joaquim Manuel de. O moço loiro. São Paulo: Ática, 2003.<br />

Nabuco, Joaquim. “Aos domingos VI”. In: Coutinho, Afrânio (org.). A polêmica Alencar-<br />

Nabuco. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1978.<br />

Pena, Luís Carlos Martins. Comédias. Rio de Janeiro: Ediouro, 1966.<br />

Rousseau, Jean-Jacques. Ensaio sobre a origem das línguas. Tradução de Lourdes<br />

Santos Machado. 3ª ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Os pensadores)<br />

Spina, Segismundo. Na madrugada das formas poéticas. 2ª ed. São Paulo: Atelíê<br />

Editorial, 2002.<br />

Starobinski, Jean. As encantatrizes: sedutoras na ópera. Tradução de Ana Valéria Lessa.<br />

Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.<br />

Zumthor, Paul. A letra e a voz: a “literatura” medieval. Tradução de Amálio Pinheiro e<br />

Jerusa Pires Ferreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.<br />

...........................................................................<br />

12 Lembro que La traviata é baseada em A dama das camélias (1848), de Alexandre Dumas Filho, texto com o<br />

qual Alencar dialoga tanto em Cinco minutos, quanto nas peças As asas de um anjo (1859) e A expiação (1868),<br />

bem como em Lucíola, romance de 1862.<br />

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ÓPERA NA AMÉRICA PORTUGUESA


123<br />

O palimpsesto iluminista: a ressignificação<br />

dos modelos operísticos por um estudo de<br />

repertório da Casa da Ópera de São Paulo<br />

Diósnio Machado Neto<br />

Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto<br />

Desde a década de 1750, como vimos referindo, as esferas constituintes da malha<br />

social, como a educação, a economia, a religião e, também, as formas de vivência lúdica,<br />

foram submetidas a conflitos e acomodações cuja base era a intersecção das possibilidades<br />

críticas do indivíduo com um ideal de bem comum, mediado pelo poder absolutista. Assim,<br />

trazendo à razão como justificativa, a ação tratava de mediar novas configurações da<br />

crítica individual, compartimentando o discurso da Igreja a questões místicas.<br />

Para tanto, tratou de desenvolver, por uma censura rígida do poder temporal, a<br />

“utilidade do bem comum” através de uma laicização da compreensão da Natureza e, por<br />

essa, inocular uma compreensão da própria condição humana e sua relação de dependência<br />

com uma ordem estabelecida e representada na figura do déspota. Para impulsionar<br />

essa sociedade a uma consciência virtuosa, o redimensionamento do espaço público,<br />

alterando tanto o ambiente doméstico como o público, era primordial, pois nele se consubstanciariam<br />

os mais altos valores humanos que combateriam a corrupção e, indiretamente,<br />

levariam o Reino e sua população ao desenvolvimento e equilíbrio necessários<br />

para a plenitude da vida. Como já observamos, era uma ordem geométrica.<br />

Sem entrar nos méritos complexos dessas cadeias de conflitos e negociações,<br />

podemos dizer que eles são inerentes à política baseada no acúmulo do capital mercantil,<br />

pretendido por Pombal. Torrão Filho indica que esse processo é marcado pela ampliação<br />

do espaço de discussão privada que se articula, antes de qualquer coisa, nas pequenas dimensões<br />

sociais. Citando Habermas, Torrão Filho forja a ideia desse lento desenvolvimento<br />

da crítica ao redor de um “debate público das pessoas privadas reunidas num espaço<br />

público” (Habermas, 1984 apud Torrão Filho, 2006, p. 153). Esse debate é justamente<br />

consequência do modelo que, ambiguamente, tratava de centralizar o poder, mas ao<br />

mesmo tempo incentivar a iniciativa privada através do desenvolvimento de sua capacidade<br />

de discernimento do “bem” comum. E a ambiguidade, como afirma o autor está<br />

“no interior da família patriarcal burguesa, que não exclui ninguém, mas exige formação<br />

cultural e propriedade para a participação política” (p. 152).<br />

Nesse projeto, tanto o salão familiar como a ópera elevaram-se como espaço de<br />

ruptura do discurso da velha ordem patrimonialista estamental. Apesar da aparente insignificância<br />

diante de um sistema social tão enraizado, essa modificação dos espaços lúdicos<br />

auxiliou uma alteração da sensibilidade social no Brasil. Veremos como esse redimensionamento<br />

deslocou o centro de gravidade da valoração moral, atuando na formação de<br />

uma opinião pública que, tradicionalmente regida pela preponderância do ato privado,<br />

que desconsiderava estatutos, contratos e até mesmo uma moral religiosa, passou a conceber,<br />

mesmo que timidamente, uma relação social fundada numa res publica regida justamente<br />

por um universo de letras e normas, contratos e negociações.<br />

A ópera como elemento esclarecedor<br />

Vivido no tripé da devoção religiosa (Coroa, Ordinário e Santo Ofício) a Real Mesa<br />

Censória constrangia, nos finais da década de 1740, o melodrama da tradição vicentina<br />

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124<br />

ou de sátira social como drama jocoso de Antônio José da Silva. Entre outros fenômenos,<br />

tal postura oficial e vigilante de uma moral casta e proselitiva impedia a introdução plena<br />

dos padrões dramáticos iluministas (Carvalho, 1993, p. 49).<br />

Exemplar dessa mentalidade foi o estabelecimento das imposições comportamentais<br />

e estéticas para a continuidade das funções no Pátio das Comédias, cujas verbas<br />

se revertiam para o Hospital da Santa Casa de Misericórdia. Para “evitar maiores danos<br />

circunstancia a que atenderão sempre as leis que até dissimulam algumas coisas de pecado<br />

público” (apud Brito, 1989, p. 98), em 1730 estipularam-se normas que incidiam sobre o<br />

conteúdo das comédias e as qualidades do público. Tal fato só foi possível diante da determinação<br />

firme do Rei de proibir as comédias em Portugal, após a apresentação de pareceres<br />

de trinta teólogos que não viam constrição moral no ato da promoção das comédias<br />

(Brito, 1989, p. 99). O libelo liberatório foi justamente promovido por um dos principais<br />

membros da elite “ilustrada”, Francisco Xavier de Menezes, o 4º Conde de Ericeira. Outro<br />

fato igualmente revelador foi a suspensão dos espetáculos teatrais pelo impacto místico<br />

que acometeu Dom João V após a decaída de sua saúde. El-Rei foi “aconselhado por um<br />

frade, Frei Gaspar da Encarnação, e apoiado pela Rainha D. Mariana da Áustria, a qual<br />

como exemplo de ocupação mais segura fazia frequentes visitas às igrejas” (Brito, 1989,<br />

p. 103).<br />

Dessa forma, a introdução da ópera italiana e dos gêneros de teatro musical<br />

burguês nos vários círculos da sociedade não freava a aptidão e a disposição consuetudinária<br />

do clero, assim como os preconceitos da mentalidade religiosa inoculada pela tradição<br />

devota de grande parte da nobreza e da própria realeza. No entanto, a ópera bufa<br />

patrocinada pela Câmara Real, a ópera séria frequentada pela nobreza na Academia da<br />

Trindade, e o desenvolvimento do teatro musical de matriz popular, no Teatro do Bairro<br />

Alto pelas óperas de Antônio José da Silva, indicavam já uma mudança trazida pelos ares<br />

das formas de sociabilidade do mercantilismo que se desenvolvia em Portugal. Promovido<br />

pelas arcas de mercadores estrangeiros de grosso calibre, os agentes do divertimento público<br />

venciam espontaneamente as barreiras dogmáticas e estimulavam as apropriações<br />

reformadoras dos costumes.<br />

Para Manuel Carlos de Brito, todo esse fenômeno por si só foi suficiente para<br />

inocular uma renovação no espírito obscurantista e introduzir os modelos melodramáticos<br />

do Iluminismo (Brito, 1989, p. 100). Rui Vieira Nery corrobora a tese:<br />

No seu conjunto, os espetáculos públicos dos Teatros da Trindade e da Rua dos<br />

Condes, por um lado, e do Bairro Alto, por outro, demonstram uma vontade de<br />

apropriação, por parte da sociedade civil, de uma operática italiana que penetra<br />

em Portugal pelos círculos exclusivos da Corte, correspondendo a uma estratégia<br />

deliberada de renovação política, ideológica e artística promovida pelo próprio<br />

monarca, e fora até então fundamentalmente canalizada para a órbita litúrgica<br />

[…] Há indícios de que as óperas italianas da Trindade e da Rua dos Condes seriam<br />

frequentadas principalmente pela aristocracia cortesã, sabendo-se, nomeadamente,<br />

de sessões privadas integralmente contratadas por senhoras nobres<br />

para os seus convidados, enquanto o Teatro do Bairro Alto atrairia um público<br />

de extração majoritariamente burguesa, naturalmente avesso ao uso da língua<br />

italiana e mais sensível à sátira social e às graças por vezes um pouco brejeiras<br />

dos textos do judeu. No entanto, os dois espaços teatrais não terão sido por certo<br />

estanques do ponto de vista sociológico, e mais importante do que a imposição<br />

de quaisquer modelos explicativos apriorísticos é a constatação dessa componente<br />

civilista que lhes é comum e que só será partilhada pela corte já no reinado<br />

de Dom José I (Nery, 1999, p. 94).<br />

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125<br />

Mário Vieira de Carvalho, entretanto, discorda da tese. Para ele o fato da introdução<br />

de modelos discursivos alinhados em outros centros com os movimentos ilustrados<br />

não é suficiente para consolidar o movimento no teatro cantado português. Mesmo<br />

considerando o surgimento de um teatro de crítica social, como o teatro de bonifrates de<br />

Antônio José da Silva, e a recepção de inúmeras obras de Metastasio, 1 como um avanço<br />

contra a prevalência da moral religiosa na determinação e constituição da linguagem teatral,<br />

Carvalho desconsidera-o como signo do Iluminismo. Para ele, o Iluminismo trazia<br />

protocolos e estruturas de recepção que não ocorriam plenamente nas formas de sociabilidade<br />

da nobreza e da burguesia introduzida na relação com o teatro musical.<br />

Segundo Carvalho, o que era fundamental para a ópera na opinião dos iluministas,<br />

entre eles Rousseau, André Grétry e Charles Burney, era a “retroação forte”. Esta ocorreria<br />

quando o envolvimento do público com a ação dramática levasse à transcendência da<br />

consciência da “farsa” teatral para presenciar a própria vida fluindo diante de seus olhos.<br />

A sedução provocada pela ação dramática deveria eliminar simbolicamente, com todos<br />

os recursos possíveis, a parede entre o palco e a plateia. Dessa forma, a mensagem edificante<br />

seria inoculada pela fruição estética e a naturalidade pela qual o discurso artístico<br />

era exercido tanto pelo autor como pelos atores (Carvalho, 1999, p. 62).<br />

Para criar essa “ilusão” alguns elementos do teatro musical aristocrático deveriam<br />

ser rechaçados. A primeira questão era negar o caráter fantasioso, a “poética do<br />

maravilhoso”, da tradição operística que vinha do seiscentos: “despertar, não ‘étonnement<br />

puérile, sobre o ‘maravilhoso’ e o ‘jamais vu’, mas sim interesse através da imitação da<br />

natureza, da verossimilhança da ação e da mais perfeita ilusão” (Carvalho, 1999, p. 36). O<br />

bel canto seria justamente o exemplo da artificialidade que criticavam os iluministas. A<br />

virtuosidade do canto ornamentado era um princípio da ópera barroca, diametralmente<br />

oposto ao desejado por um teatro cujo objetivo era edificar. Ele representava a mácula da<br />

individualidade, do egocentrismo, dos prejuízos opressores das oligarquias dominantes,<br />

o que Rousseau chamava de despojos do homem histórico-social, cujo processo alienava<br />

o homem de sua “verdadeira essência, pois seduzido pelas luzes da ribalta, ele se produz<br />

enquanto espetáculo […] o indivíduo passa a agir segundo as imposições da ‘opinião<br />

pública’” (Freitas, 2003, p. 33). Ademais, essa “exibição do eu opõe à virtuosidade o<br />

envolvimento no drama representado e, ao propósito de provocar espanto, a ilusão. O<br />

ator devia desaparecer no que representava e, deste modo, levar também o espectador a<br />

envolver-se no que era representado. A arte não era para ser mostrada: a maior arte consistia<br />

em ocultar a arte, em apresentá-la como “natureza’” (Carvalho, 1999, p. 43). Essa<br />

seria a única maneira de realizar o projeto iluminista, em que o teatro assume um papel<br />

pedagógico, “cujo núcleo é o conceito de ‘catharsis’” (Freitas, 2003, p. 33).<br />

Para Carvalho, as relações de comunicação para desenvolver um modelo de<br />

identificação entre o público e a obra versavam então sobre a “redução da complexidade<br />

de recepção […] reduzir a complexidade do texto musical foi um artifício para realizar a<br />

superação da exibição do eu e equilibrar a retroação palco/plateia” (Carvalho, 1999, p.<br />

59). Para tanto era necessário reduzir o espaço de intervenção virtuosística do cantor e<br />

...........................................................................<br />

1 Manuel Carlos de Brito (1989, p. 105) relaciona as óperas de Metastasio apresentadas no Teatro da Academia<br />

da Trindade. Entre 1736 e 1742, quando foram suspensas as atividades teatrais, praticamente em todos os anos<br />

houve récitas de óperas do abade italiano, entre elas: Alessandro nell’Indie; Artaserse; Demofonte; L´Olimpiade;<br />

Il Siroe; La Clemenza de Tito; L’Émira; Demétrio; Catone in Utica; Ezio e Didone abbandonata. Na maior parte<br />

das apresentações a música era de Schiassi, que até mesmo permaneceu um tempo em Lisboa. Como afirma<br />

Carvalho, Metastasio representava alguns valores tangentes tanto à monarquia como à religião, principalmente<br />

a “gravidade e caráter exemplar das ações” (Carvalho, 1993, p. 32). Ademais, podemos acrescentar que em<br />

Metastasio a simbologia salvacionista do poder temporal era sempre sufragada pela benevolência espiritual e<br />

realizada nos protocolos da razão onde o poder do soberano era traçado em linhas heroicas. Esse programa<br />

ideológico constituía um capital simbólico fundamental que era importante inocular na consolidação do regalismo<br />

que pretendiam as monarquias setecentistas.<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


126<br />

dessa forma aumentar a prevalência do compositor, um “Deus ex-macchina da racionalização<br />

total” (Carvalho, 1999, p. 61).<br />

A racionalização imarcescível da criação, no entanto, estava na proporção inversa<br />

da recepção, pois, aumentando a complexidade da máquina teatral, a ilusão se realizaria<br />

conduzindo “à percepção de um artifício altamente complexo como ‘simples natureza’”.<br />

(Carvalho, 1999). A estrutura de representação justamente buscava induzir a visão de um<br />

sistema espontâneo, “a supressão da racionalidade através da completa entrega à ilusão”<br />

(Carvalho, 1999, p. 61). O desenvolvimento da técnica de atuação, da cenografia, do vestuário<br />

etc., necessários para efetivar a “ilusão”, era inversamente proporcional à resistência<br />

das formas fechadas do discurso musical, como a aria-da-capo, vista nas óperas de Gluck.<br />

Nesse mesmo princípio da ilusão desdobrou-se um esforço para modificar a<br />

mentalidade da recepção. Era necessária, nesse “novo” sistema, a apreensão total do espectador,<br />

o que contrariava o espírito peregrino da recepção teatral nos modelos seiscentistas...<br />

O teatro não poderia ser um mero divertimento, uma “exibição do eu”, um deleite<br />

para os sentidos primários. A pretensão do teatro iluminista pressupunha a atenção<br />

comovida, o envolvimento sincero, a superação da mentalidade que buscava a “satisfação<br />

da vista e do ouvido”; enfim, o teatro não deveria ser um mero interlúdio para a convivência<br />

social.<br />

Sintetizando em poucas linhas, para Carvalho o teatro frequentado pela nobreza,<br />

principalmente promovendo as óperas de Metastasio, “em vez de tender à difusão das<br />

Luzes, a ópera séria tendia, antes, simplesmente, a favorecer o desenvolvimento da convivência<br />

social” (Carvalho, 1993, p. 33). Igualmente problemático seria o teatro do Bairro<br />

Alto. Mesmo considerando pontos de tangência com o modelo da opéra-comique francesa,<br />

do singspiel alemão ou da ballad opera inglesa, o teatro burguês de Lisboa carecia de um<br />

importante princípio ativo da pedagogia social do teatro iluminista: o envolvimento do<br />

ator no personagem que acabava suprimindo a farsa da dramatização, desvelando a vida<br />

real na identificação do espectador com “outro” vivido, e não representado. O fato do<br />

modelo do Teatro do Bairro Alto concretizar-se em bonecos eliminava completamente<br />

esse princípio básico, na opinião de Mário Vieira de Carvalho. Para o autor, a sátira social,<br />

a crítica do cotidiano, a exposição do conflito entre as classes, até mesmo a utilização<br />

caricaturesca dos motivos mitológicos e das fórmulas da ópera séria italiana, presentes<br />

principalmente nas óperas de Antônio José da Silva, era não mais que um momento do<br />

conflito inicial entre as Luzes e o obscurantismo da herança teatral religiosa (Carvalho,<br />

1993, p. 36).<br />

Importante transformação ocorreu com a subida ao trono do Príncipe do Brasil,<br />

Dom José I. Seu gosto pela ópera italiana o transformou em um dos principais mecenas<br />

do gênero. No início de seu reinado, construiu a Ópera do Tejo, considerada pelos contemporâneos<br />

um dos mais imponentes teatros de ópera da Europa. Infelizmente ele não resistiu<br />

ao terremoto, assim como o arroubo mecênico inicial. Durante os oito anos seguintes ao<br />

terremoto, as atividades operísticas foram interrompidas. O retorno, no entanto, consubstanciou<br />

um importante signo das transformações articuladas por Pombal: a<br />

incorporação da burguesia comercial nos círculos de sociabilidade da Ópera, antes restrita<br />

à nobreza.<br />

A primeira grande transformação foi, como explica Mário Vieira de Carvalho,<br />

admitir o teatro como elemento primordial na formação de redes de sociabilidade. Aqui,<br />

o teatro integrava um “processo de promoção e nobilitação gradual” (Carvalho, 1993, p.<br />

45). Tanto a burguesia como a nobreza dialogavam concreta e simbolicamente, não só<br />

pelos corredores dos camarotes, mas representando reciprocamente os valores de cada<br />

qual, de forma que uma síntese social era, em tese, assentada pela ação pedagógica do<br />

teatro.<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


127<br />

Assim, contribuindo para impulsionar as mudanças nas estruturas de dominação<br />

econômico-políticas pela apologia ao despotismo esclarecido, a capacidade que a ópera<br />

assumia em aglutinar o escol social acabava inoculando novas formas de conhecimento e<br />

gerenciamento da realidade, que mesmo na preservação da matriz religiosa flexibilizava<br />

as operações dos padrões e conceitos da vida cotidiana, até mesmo dentro da mentalidade<br />

devota. Dessa forma, a retroação tornava-se um importante elemento de nivelamento<br />

das consciências. Tão importante foi esse aspecto que, em 1771, o consulado pombalino<br />

reconheceu na ópera o papel pedagógico idealizado pelos iluministas:<br />

Eu El-Rei faço saber […] que os homens de negócios da Praça de Lisboa Me representarão,<br />

que o grande esplendor e utilidade, que resulta a todas as Nações<br />

do Estabelecimento dos Teatros públicos, por serem estes, quando são bem regulados,<br />

escola onde os povos aprendem as máximas sãs da Política, da Moral,<br />

do Amor à Pátria, do Valor, do Zelo, da Fidelidade, com quem devem servir os<br />

seus Soberanos, civilizando-se e desterrando insensivelmente alguns restos de<br />

barbaridade, que neles deixaram os séculos infelizes de ignorância. (Benavides,<br />

1883 apud Carvalho, 1993, p. 45)<br />

Essa declaração traz explícito o corpo conceitual do despotismo esclarecido: a<br />

utilidade da ação pública e especialmente do teatro; a civilização pela educação; o fim<br />

comum que é o Estado e esse o único caminho para o bem comum; a aliança com a burguesia<br />

comercial; e a projeção do futuro glorioso superando os “séculos infelizes de ignorância”,<br />

sustentada na querela primordial do Iluminismo: o debate entre modernos e<br />

antigos. Como sintetiza Mário Vieira de Carvalho, “o teatro, até então somente tolerado<br />

ou, sobretudo, reprimido, quando não ele próprio repressivo (o dos jesuítas), passava a<br />

ser considerado escola dos povos contra a ignorância. Era a primeira vez que surgia em<br />

Portugal um discurso iluminista sobre o teatro. Provinha da burguesia e o Rei homologavao”<br />

(Carvalho, 1993, p. 46).<br />

O papel apologético da ópera, sobretudo na divulgação dos ideais do projeto<br />

pombalino, era outra questão importante. Como vimos, através da Real Mesa Censória o<br />

consulado de Pombal controlava firmemente os parâmetros e paradigmas da atividade<br />

cultural portuguesa e, além disso, promovia suas ações e doutrinas. Dessa forma, a conjuntura<br />

política era um componente primordial dos pareceres dos deputados da Real<br />

Mesa e não raras vezes o órgão censor imprimia o selo da ambiguidade, induzidos pelas<br />

mudanças da marcha ordinária do governo.<br />

Ademais ocorreu toda uma transformação no sistema comunicativo do teatro<br />

musical, alinhando-se, então, com as características iluministas cobradas por Mário Vieira<br />

de Carvalho. A primeira a se destacar era a nova forma de retroação marcada pela mudança<br />

da atitude de recepção. Cabe dizer que alterar os libretos não causava constrangimento<br />

aos editores ou tradutores. Considerável número de libretos publicados com a autorização<br />

da Real Mesa Censória era “adulterado”, até mesmo introduzindo-se novos personagens<br />

ou trechos poéticos que buscavam identificar o herói literário com o Soberano, as “licenzes”,<br />

ou os valores promovidos por este, como a religião católica (Carvalho, 1993, p. 192). Tanto<br />

Brito como Carvalho destacam que o teatro da ópera séria tornou-se lugar do mais completo<br />

silêncio, superando a balbúrdia apontada por tantos nativos e estrangeiros: “as récitas<br />

tinham lugar entre as sete da tarde e dez da noite, e a elas se assistia em silêncio absoluto”<br />

(Brito, 1989, p. 115). Carvalho diz que isso indicava uma assimilação dos protocolos iluministas,<br />

no que diz respeito à consciência edificante do espetáculo teatral. Aponta, no<br />

entanto, outros fenômenos: a intenção declarada de promover a ilusão, alguns espetáculos<br />

contavam com mulheres ou castratis que “pareciam autênticas senhoras”; o número de<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


128<br />

vezes que a ópera era repetida, em que “num modelo de representação ou separação de<br />

competências (eliminação de estruturas de ‘exibição do eu’, silêncio, atenção dos<br />

espectadores centrada no palco), a assimilação do ‘drama’ e das suas implicações morais<br />

e políticas era, naturalmente, favorecida pela repetição de cada obra”.<br />

Mário Vieira de Carvalho, no entanto, aponta para singularidades do modelo da<br />

corte de Dom José. Primeiro diz que o projeto de desenvolvimento de um teatro iluminista,<br />

baseado principalmente no desenvolvimento do discurso burguês ocorre ao “inverso”,<br />

ou seja, não nos braços do teatro nativo, mas na ópera séria italiana, o que subvertia<br />

os princípios declarados pelos movimentos em outros países.<br />

A função institucional declarada [difusão das luzes] e a ‘dissimulada’ [sociabilidade]<br />

vão ter, porém, na prática uma eficácia inversa: o que a burguesia consegue<br />

é assegurar a sociabilidade, mas não organizar o teatro de acordo com os<br />

princípios do Iluminismo. O estatuto da sociedade por ações já era bastante<br />

revelador a este respeito: o teatro melhor apetrechado (Condes) destinava-se à<br />

ópera italiana, o pior e mais barato (Bairro Alto) ao teatro declamado português.<br />

Sobretudo não havia qualquer menção relativa a uma especial promoção do<br />

teatro português ou ao desenvolvimento de um teatro musical português (semelhante<br />

ao singspiel). (Carvalho, 1993, p. 46)<br />

Dessa forma, Vieira de Carvalho considerava que a burguesia não desenvolveu<br />

nada mais do que a sociabilidade, constrangendo o principal elemento da estética iluminista,<br />

ou seja, a manifestação nacional, espontânea que libertaria a burguesia da exibição<br />

do eu, mesmo que fosse no ato social e não musical.<br />

No entanto, esse é um problema complexo, pois o sentido metafórico do movimento<br />

iluminista glosou ideias que, consubstanciadas em estratégias políticas, repercutiram<br />

em diferentes classes sociais, estratégias de governo, formas de uso e vias de<br />

acesso. Dessa forma, mesmo considerando a autoridade que nega todos os adjetivos do<br />

Iluminismo, consideramo-los tão amplos que mesmo dizendo o que eram, eram-lhe negadas<br />

a essência por serem.<br />

De qualquer forma é necessário frisar que a ópera determinou uma mudança<br />

significativa nas formas de relacionamento vertical e horizontal da população e seus<br />

domínios de entendimento da realidade. Independentemente se foi a ópera séria que<br />

melhor articulou as ideias iluministas, o que seria uma contradição só mesmo possível<br />

nas particularidades da mentalidade portuguesa, o fato desse princípio inocular os valores<br />

sociais espalhou-se por todo o Reino. Veremos, em seu tempo, que o governador de São<br />

Paulo, assim como seus congêneres pelo Brasil, incentivou a ópera com despesas muitas<br />

vezes pagas pelo próprio bolso. Ademais, criaram-se modelos de comunicação híbridos,<br />

permitindo a atuação de mulheres ou, como no caso na casa de ópera de São Paulo, representando<br />

no mesmo palco tanto ópera séria italiana como exemplares do teatro<br />

português, como clamava Mário Vieira de Carvalho para selar a estampa iluminista na<br />

vida teatral da corte.<br />

No Brasil, refletindo o laço colonial, o teatro com música esteve sempre presente<br />

acompanhando o desenvolvimento dos núcleos populacionais. Como em Portugal, até<br />

meados do século XVIII o teatro religioso era preponderante, principalmente o teatro<br />

jesuítico. No entanto, nas festas cívicas representava-se em espaço público as chamadas<br />

comédias, que eram basicamente peças alegóricas que dramatizavam simbolicamente os<br />

valores fundamentais para a afirmação da autoridade monárquica, aludindo sempre as<br />

duas devoções: Deus e o Rei.<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


129<br />

Através de uma efervescência oficial no fomento da ópera construiu relações<br />

intensas entre os agentes régios e os empresários do divertimento teatral, principalmente<br />

a partir da década de 1760. O sistema contratualista igualmente regeu as relações entre<br />

os agentes régios e os empresários que buscavam explorar o teatro. Nessa senda, revelase<br />

particularmente o mecenato de dois governantes emergentes no cenário político português:<br />

o Morgado de Mateus e do Vice-Rei do Brasil, Dom Luís de Vasconcelos e Souza,<br />

o Marquês de Lavradio, que governou de 1769 a 1778.<br />

Sobre o Marquês de Lavradio, Ayres de Andrade (1967, p. 67) mostra por farta<br />

documentação que o empresário que substitui o Padre Ventura, o comediante músico<br />

Manuel Luís Ferreira, tornou-se um homem de forte inserção social adquirido nos protocolos<br />

cortesãos, forjando um clientelismo típico do Antigo Regime.<br />

Sem estender a análise desse mecenato, cabe dizer que tanto era o vínculo de<br />

Manuel Luís com o poder que, na opinião de seus contemporâneos, o antigo comediante<br />

não passava de um “alcoviteiro” a serviço do Marquês de Lavradio. A tendenciosa detração<br />

no mínimo sublinhava o vínculo, velando favores escusos, já que o músico-empresário se<br />

estabeleceu de tal forma que monopolizou as funções lírico-teatrais do Rio de Janeiro e<br />

sua influência transpassou o governo de Lavradio. De forma única na história da música<br />

colonial, um músico, feito empresário, recebeu inúmeras comendas, sendo até mesmo<br />

nomeado moço da câmara do Príncipe Regente Dom João VI e Coronel de Milícias do<br />

Quarto Regimento (Andrade, 1967, p. 65).<br />

No entanto, o caso mais intenso de relação de um governador com o “divertimento<br />

da ópera”, segundo as fontes disponíveis, ocorreu em São Paulo, no governo de<br />

Dom Luiz Alberto Botelho de Souza Mourão, o Morgado de Mateus. Esse governador impulsionou<br />

o “divertimento da ópera” por um envolvimento pessoal singular conferindo a<br />

ela até mesmo um caráter revelador de sua visão de mundo em que a arte, de um modo<br />

geral, figurava num papel central de representação e afirmação do poder. 2 E esse desejo<br />

não era constrangido pela visão da inviabilidade cultural da Capitania de São Paulo. A inexistência<br />

de círculos mais ilustrados e padrões de sociabilidade era o que o estimulava,<br />

como ele próprio diz revelando o cunho iluminista que encontrava simbolizado na ópera:<br />

“que com estes meios [a ópera] facilita a civilidade e a convivência desses povos” (Nery,<br />

2006, 44min).<br />

Enfim, enfrentando diversos obstáculos, o governador tratou de organizar uma<br />

inserção de ideias ilustradas que visavam modificar as estruturas da opinião pública,<br />

primordial para o estabelecimento de uma via desenvolvimentista exigida pelo despotismo<br />

pombalino. Assim, além de estimular uma interiorização do conhecimento científico<br />

através de prospecções marcadas pelo signo da ciência possível, promoveu ferramentas<br />

para a inserção do povo de São Paulo nos índices culturais do Iluminismo católico, em que<br />

a renovação de habitus era entendida como a ponte primordial para o desenvolvimento<br />

e consolidação do absolutismo português.<br />

...........................................................................<br />

2 Grande parte do envolvimento de Dom Luiz Alberto com a ópera foi preservado graças ao hábito raro no universo<br />

dos governadores portugueses de registrar o cotidiano de suas atividades em um diário. Belloto (1979) afirma que<br />

somente existe um congênere, feito por um governador das Índias, porém longe da riqueza de detalhes do memorial<br />

do Morgado de Mateus. Em seu “diário de viagem” relatou não só efemérides das atividades operísticas, como os<br />

títulos das obras e as questões sobre a recepção, como os muitos conflitos e dificuldades que envolviam a colocação<br />

em cena das peças lírico-teatrais. Cabe ainda dizer que o códice referido tem um caminho sinuoso. Primeiro porque o<br />

próprio governador fez duas cópias. Uma enviava para a sua esposa em Portugal, como forma de proteção circunstanciada.<br />

A outra, uma espécie de rascunho, ficava em sua posse. O conjunto de manuscritos pertenceu primeiro aos<br />

fundos da Casa de Mateus, em Portugal. Posteriormente foi adquirido pela Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.<br />

Fizemos inúmeras tentativas de localizar esse documento, porém foram sempre infrutíferas. No entanto, o conhecimento<br />

do teor desse diário nos chegou através de Rui Vieira Nery que conseguiu uma cópia dele através da historiadora<br />

Heloísa Bellotto. Em que pese o musicólogo português ainda não ter publicado nenhum trabalho a respeito, promoveu<br />

uma conferência sobre essas memórias em 2006, no Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São<br />

Paulo (Nery, 2006). Referendados nessa conferência, disponibilizada on-line, constituímos nossas fontes sobre o caso.<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


130<br />

A primeira ação do Morgado de Mateus foi montar uma estrutura física e humana<br />

para a ópera paulistana, repetindo, evidentemente, o modelo europeu. Para tanto, e já<br />

demonstrando a organicidade do espaço, anexou a casa da ópera ao seu palácio de<br />

governo. Ao que tudo indica foi em 1767 que se iniciou a construção. Segundo nos relata<br />

Nery (2006), o diário do Governador demonstra sua “obsessão” pela obra, chegando a<br />

inspecionar os trabalhos e relatar detalhadamente o seu progresso: “andam trabalhando<br />

com grande força num excelente teatro que por delegação de Sua Excelência3 se está<br />

fazendo em um dos quartos do colégio [dos jesuítas], onde ele instalou seu palácio de<br />

governo” (Dom Luiz Antônio, 1767 apud Nery, 2006, 42min). A inauguração, que<br />

primeiramente deveria ocorrer na Páscoa, deu-se em 6 de junho de 1767, ou seja, no dia<br />

do natalício de Dom José I. Na ocasião foi apresentada a ópera de Antônio José da Silva,<br />

Anfitrião ou Júpiter e Alcmena.<br />

Figura 1. Casa da ópera de São Paulo (esq. da foto), anexa à Igreja da Companhia de Jesus. 4<br />

Nessas primeiras funções, a música era executada pela gente da terra, usando,<br />

por exemplo, meninos cantores que aprendiam música nos antigos aldeamentos jesuíticos,<br />

em que pese a expulsão, mantiveram a tradição de ensino da arte. 5 Posteriormente, o<br />

Governador contratou pessoalmente o músico mineiro Antônio Manso da Mota, confiando-lhe<br />

a tarefa de organizar integralmente as récitas.<br />

Esse aspecto é importante de se destacar: a preocupação de Dom Luiz Antônio<br />

pela atualização da sua casa de ópera, concretizada na contratação de um músico de um<br />

...........................................................................<br />

3 Num estilo clássico, as memórias do governador sempre estão escritas na terceira pessoa.<br />

4 Disponível em , acessado em 2 de janeiro<br />

de 2008.<br />

5 Pasquale Petrone afirma que missões como as que existiam em São Miguel Paulista mantinham viva a tradição.<br />

Diz que a música dos índios animava as festas religiosas das aldeias, atraindo a população vizinha (Petrone,<br />

1995, p. 331). Na festa que se realizou em São Borja, ainda sob domínio espanhol na década de 1760, podemos<br />

ver a expectativa da população diante da apresentação dos artistas “da terra”: “[…] entraron [os ameríndios das<br />

missões jesuítas de Trinidad, Martyres, y San Thomé] en el Pueblo al son de sus Clarines, Chirimias, y cajas,<br />

todos en ordem, causando grande movimiento, y alegria en todos los Militares, y vivenderos” (Instituto de<br />

Estudos Brasileiros, Coleção Lamego, cód. 68, doc. 1). Sobre essa última memória podemos destacar dois aspectos:<br />

primeiro é a dimensão do grupo musical, 170 integrantes entre cantores e instrumentistas de vários<br />

naipes; e, segundo, a laudatória, que sublinhava a qualidade dos grupos vocais dos ameríndios, equiparando-os<br />

aos das melhores catedrais da Espanha.<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


131<br />

grande centro, como a Bahia. Outros artistas igualmente foram arregimentados pelo<br />

governador, como demonstra seu diário de governo. Ademais, essa preocupação vinculavase,<br />

também, aos papéis de música. Dom Luiz Antônio registrou no seu diário o envio de<br />

Antônio Manso ao Rio de Janeiro para adquirir partituras, tanto para a ópera como para o<br />

coro da Sé (Nery, 2006, 56min 30s). Ainda segundo Nery (2006), em inúmeras ocasiões o<br />

governador se referiu a atualização do repertório que se executava tanto na igreja como<br />

no teatro. Destacava o Morgado, sempre como autoelogio, que algumas peças ou óperas<br />

foram cantadas em Lisboa com pouca distância de tempo. Fez alusão no seu diário, por<br />

exemplo, de execuções de músicas compostas por David Perez e de um Te Deum que, segundo<br />

suas próprias palavras, “foi apresentado diante do Rei no ano novo” (apud Nery,<br />

2006, 56min).<br />

Justamente nesse sentido o prestígio de Manso da Mota consolidou-se junto ao<br />

governador, pois para a autoridade a música do mestre mineiro era “provida das melhores<br />

solfas de bom gosto do tempo presente” (apud Duprat, 1995, p. 51). Assegurava, ainda,<br />

que tal música era “de violinos”. Em outras palavras, o músico de Sabará representava<br />

uma mudança no sentido do gosto da época, que pouco a pouco se distanciava do “stile<br />

antico” em prol de um “profanismo, influência do melodrama italiano, texto em português,<br />

primórdios do estilo galante” (Duprat, 1995, p. 51). E essa postura do Morgado de Mateus<br />

confirma a disposição do governador em estabelecer um padrão estético referenciado na<br />

corte portuguesa e, sempre, objetivando o estabelecimento dos paradigmas do Iluminismo<br />

católico, como ele próprio afirma para justificar a imponência das festas públicas e religiosas:<br />

“não só para cumprir com o seu afeto e com o muito que deve ao seu senhor, mas<br />

também para imprimir nos corações desse povo a veneração e a obediência ao seu soberano<br />

e fazer adiantar o conhecimento do seu real nome que nessas remotas partes em<br />

muitos indivíduos era ainda ignorado” (apud Duprat, 1995, p. 56-57). Em síntese, o Morgado<br />

de Mateus sempre tinha em mente edificar pelas festas, como propunham inúmeros protocolos<br />

das doutrinas iluministas que se espalhavam pela Europa.<br />

Em que pese a determinação do governador, a partir de 1772, a ópera paulistana<br />

foi vitimada pela apatia da comunidade, como já dissemos, distante das possibilidades<br />

críticas encontradas em outros centros. O fato é que no costume da época a ópera vivia<br />

de assinaturas dos camarotes. Na falta crônica de signatários o financiamento das récitas<br />

comprometeu-se, como relatou em seu diário: “acabaram os operários de computar trinta<br />

óperas que tinham permitido fazer aos partidários [assinantes] dos camarotes durante<br />

um ano. E não pagando uns os partidos e outros deixam os camarotes e não querem<br />

alugar mais, ficaram os operários impossibilitados de continuar nessa terra” (Nery, 2006,<br />

1h 9min 23s).<br />

No entanto, a convicção do governador de inocular as “boas” regras da civilidade<br />

revelou-se mais intensa nesse momento de depressão. Diante do impasse do êxodo do<br />

público criou uma intendência para o divertimento da ópera, concretizada na “portaria<br />

sobre o divertimento da ópera”, assinada no dia 20 de novembro de 1772. Nomeou para<br />

o cargo de Intendente o Juiz de Fora de Santos, José Gomes Pinto de Morais, obrigandolhe<br />

a realizar impreterivelmente “nos dias determinados as óperas estabelecidas, ordenando<br />

nessa matéria o que lhe parecer mais conveniente” (apud Bellotto, 1979, p.<br />

248). Entre outras obrigações, o Intendente “tinha autorização para punir os músicos e<br />

atores que não cumprissem seus deveres” (apud Bellotto, 1979, p. 248).<br />

Assim, foi no âmbito da “Intendência do divertimento da ópera” que o Morgado<br />

de Mateus estabeleceu uma política intervencionista direta para sustentar a casa de ópera<br />

e frear a decadência que vinha se consubstanciando pelo desleixo do povo paulistano.<br />

Chegou a ordenar ao Juiz de Fora, agora intendente, que formalizasse um contrato com<br />

os músicos, “na forma que se pratica no Rio de Janeiro”, onde “os operários serão obrigados<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


132<br />

a fazer trinta óperas dentro de um ano, das quais oito serão novas. Estas vão ser feitas no<br />

domingo à noite, iniciando no inalterado ponto das oito horas ainda que sua excelência<br />

não se ache em seu camarote” (Nery, 2006, 1h 9min 30s). A determinação de restabelecer<br />

a atividade desdobrou-se, também, para a determinação de enviar às principais famílias<br />

da cidade um mapa dos camarotes “sugerindo” que cada uma escolhesse e pagasse pelo<br />

lugar, dando, até mesmo, a oportunidade de que cada signatário pudesse pagar em crédito<br />

pela referida assinatura (Nery, 2006, 1h 10min). Ou seja, Dom Luiz Antônio estava determinado,<br />

pela razão ou pela força, a promover a ópera e assim, como disse, continuar o<br />

projeto de inocular civilidade promovendo a convivência do povo pela formação de uma<br />

opinião crítica forjada no teatro, evidentemente mediada pelos desígnios do poder<br />

estabelecido.<br />

Em síntese, pode-se dizer que no campo das artes Dom Luiz Antônio teve uma<br />

atuação destacável. Sua preocupação com os protocolos dos espetáculos públicos, forjados<br />

na sua consciência do poder edificante que deles emanavam, o levou a promover ações<br />

que, pelas conjunturas da terra, tinham uma execução extremamente mais complexa se<br />

comparadas com as que ocorriam nos principais polos urbanos da Colônia, como Salvador<br />

ou o Rio de Janeiro. A mobilização era diuturna e por vezes autoritária, porém sempre<br />

orientada à concretização da ação lúdica como alavanca da civilidade. Ademais, não se<br />

esquecia da devoção religiosa, e com igual brio tratou de promover a suntuosidade dos<br />

eventos, pois entendia a religião como o elo que sacramentava o poder régio, logo o seu<br />

próprio poder. Enfim, o governador era fiel ao binômio fundamental do iluminismo católico<br />

português: a cruz e a espada.<br />

Nessa senda, não se furtou ao debate que envolvia as configurações da arte nos<br />

espaços públicos. E por esse espírito tenaz não tardou a ver sua estrela cair. Já desgastado<br />

por contrariedades acumuladas nas incontáveis insistências de estratégias militares que<br />

deveras contrariaram o Marquês de Lavradio e a própria Coroa, o Morgado guardou em<br />

sua algibeira o desconforto da elite da terra que em muitas ocasiões se viu oprimida pelos<br />

modelos de sociabilidade que o governante tratou de impor (Bellotto, 1979, p. 252 e ss.).<br />

Um evento que lhe causou grande dano, por exemplo, foi um problema recorrente<br />

à primeira metade do século: a disposição eclesiástica de manter suas zonas de<br />

influência. E esse problema teve como pivô justamente a determinação de manter a sua<br />

casa de ópera. Para isso, promoveu o “operário” Antônio Manso ao cargo de mestre-decapela,<br />

contrariando a determinação eclesiástica de prover o cargo, o que se somava a<br />

conflitos como a indisposição do governador de dividir seu palácio com a sede episcopal<br />

(Bellotto, 1979, p. 316). A indisposição entre as duas principais autoridades, o que é simbólico,<br />

selou os autos que caíram sobre o governador. Acusaram-lhe de gastos indevidos<br />

e enriquecimento ilícito; e a casa de ópera tornou-se, então, parte do seu “tendão de<br />

Aquiles”. Ironicamente, a sua determinação em trazer o principal signo de civilidade tornouse<br />

um dos cravos que o crucificou!<br />

Porém, para a nossa história foi essa determinação do governador que desvelou<br />

mais intensamente a importância da ópera na configuração do modelo de sociabilização<br />

iluminista, que chegou ao Brasil. O fato de Morgado de Mateus extrapolar os costumes<br />

coevos e impulsionar a ópera por incentivos econômicos e anímicos institucionais, mantendo<br />

na sua mão a iniciativa de fomentar os espetáculos, torna o caso ainda mais significante.<br />

Ao contrário do que ocorreu em outras praças, Dom Luiz Antônio construiu o<br />

teatro dentro de seu palácio e não só se satisfez com determinar a programação, como<br />

seus congêneres, mas tratou o assunto dentro do âmbito privado. Inusitadamente contratou<br />

músicos com dinheiro próprio ou do erário, cuidando pessoalmente da constituição<br />

do corpo de comediantes e músicos. Na iminência de falência praticamente obrigou as<br />

famílias de posse da terra a cumprirem com a sua obrigação de levar ao povo e a elas<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


133<br />

próprias os índices de civilidade que ele vislumbrava como necessários para a ruptura da<br />

cadeia de indigência que mediava o povo paulista. Como um autêntico déspota esclarecido,<br />

despegou-se da subordinação que lhe era imposta e assumiu o papel messiânico para iluminar,<br />

ou “facilitar”, como disse, a inserção dos índices de civilidade e promover, essa foi<br />

a sua palavra, a “convivência” do seu povo...<br />

Enfim, o âmago da exacerbação de Dom Luiz Antônio estava na compreensão<br />

de que o despotismo esclarecido era responsável pela correção da “humanidade impossível”.<br />

Para tanto, o remédio que tombaria os usos e costumes seria, entre outros, mas<br />

principalmente, a catarse dramática. Destarte, o Morgado de Mateus não poupou argumentos<br />

e coerções para tornar o espetáculo do poder, como a ópera, a tração retroativa<br />

para inocular o discurso costurado por códigos e práxis que afirmava a autoridade régia<br />

na inteligência coletiva do povo e assim projetar o bem comum.<br />

Por essa senda, ademais, podemos entender o envolvimento dos governadores<br />

na criação e sustentação dos “negócios” da ópera: a ação velava a construção de vias de<br />

acessos ideológicas que facilitaria as formas de governar nos domínios lusitanos. Nessa<br />

articulação que redefinia os espaços da formação crítica, a Igreja foi um primeiro obstáculo.<br />

Porém, distante de inibi-la, pois a base do Iluminismo português era uma base religiosa, a<br />

estratégia foi determinar as fronteiras de sua atuação, tanto administrativamente como<br />

ideologicamente. E justamente tal ato, ou seja, compartimentar as zonas de influência,<br />

impulsionava a aventura da ópera, o que, sublinhamos, obedecia aos protocolos mais<br />

ortodoxos do iluminismo europeu.<br />

No Brasil, onde esse controle da influência religiosa era extremamente mais<br />

complexo, a ópera acabou identificando-se, ainda mais fortemente, com o desejo dos<br />

agentes ilustrados e deles exigiu atenção, ou os melhores esforços, como vimos no caso<br />

do Governador paulista. Ademais, o problema da formação social no Brasil se expandia<br />

para além do átrio das igrejas, o que reforçava a correção dos costumes pelo modelo de<br />

intervenção persuasiva das formas de espetáculo do poder. Portanto, nesse vórtice da<br />

humanidade impossível, o esforço para a alteração do espaço público – definindo agora a<br />

casa de ópera como um elemento de intervenção ideológica na formação da consciência<br />

coletiva – tornou-se um dos pólos fundamentais das reformas para alavancar a economia<br />

da Colônia. E essa realocação das vias de acesso à apologia régia, antes somente nas<br />

mãos da Igreja, foi construída como a ponte comunicativa com a opinião pública, permitindo<br />

aos governos locais um espaço laico obediente, já que a casa da ópera só se sustentava<br />

pelo apoio institucional. Esse clientelismo era o que vinculava a ópera com a fruição<br />

ideológica, pois o estanco das ideias, exercido pela censura oficial, afirmava a autoridade<br />

régia ao mesmo tempo em que direcionava a elevação crítica necessária para o<br />

desenvolvimento de uma sociedade burguesa. Logo, a energia gasta nessa estratégia<br />

forjava-se no propósito de Pombal e sua percepção da ópera como “escola onde os povos<br />

aprendem as máximas sãs da Política, da Moral, do Amor à Pátria, do Valor, do Zelo, da<br />

Fidelidade […]”.<br />

Assim, a reforma dos meios de diálogo entre o governo e a população não só<br />

era oportuna como urgente. Isso porque, as questões complicadas não eram apenas o<br />

poder e a mentalidade forjadas numa religiosidade heterodoxa ou o encontro das etnias.<br />

Amalgamava o processo social o deslocamento vertiginoso do poder econômico do campo<br />

para as cidades. Como diz Raymundo Faoro, esse deslocamento era ocasionado por um<br />

modelo econômico refratário à economia latifundiária em detrimento da atividade comercial<br />

articulada desde as cidades. Assim, no modelo burguês que a Metrópole impulsionava,<br />

“a terra deveria ser objeto de negócios, sem entraves alheios ao mercado ou<br />

impedimentos economicamente irracionais” (Faoro, 2000, vol. 2, p. 22). A base de<br />

articulação foi justamente o impulso a uma política de crédito sustentada não no<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


134<br />

beneplácito régio, mas nos fundos da nova esfera dos comerciantes, que lentamente se<br />

transformavam em comissários (intermediários entre os produtores e os exportadores) e<br />

financistas (Faoro, 2000, vol. 2, p. 23). Ademais, a “guerra” velada tratava de impulsionar<br />

uma dinâmica produtiva dividindo o grande latifúndio improdutivo para incorporar mais<br />

gente à cadeia produtiva; o que, ironicamente, manteve o sistema de produção escravagista.<br />

Assim, a própria elite da terra, antes orgulhosa do acúmulo territorial, aos poucos<br />

se distanciou da agricultura e se refugiou no emprego público ou no sistema financeiro,<br />

criando novos campos sociais que formaram, desde o início do século XIX, a nobreza que<br />

sustentou o Império brasileiro. Esse processo aqueceu-se, ademais, no caldeirão de uma<br />

sociedade refratária às estruturas estamentais rígidas, inflada por uma Igreja pouco<br />

ortodoxa e muitas vezes resistente ao controle centralizador do Padroado.<br />

Esse desenvolvimento da burguesia não poderia ocorrer sem a formação de<br />

uma crítica que pudesse compreender, até mesmo para equilibrar-se precariamente, os<br />

estatutos e códigos jurídicos. Dessa forma, a nova ordem social não poderia mais ser<br />

vivenciada apenas na determinação da vontade privada, como nos séculos anteriores. A<br />

socialização burguesa, que se consubstanciava na afirmação da urbanidade como opção<br />

desenvolvimentista, instava conjugar a questão do desenvolvimento econômico pelos<br />

caminhos de uma civilidade cujos paradigmas apontavam para a formação de uma opinião<br />

pública laica, urbana e letrada. É justamente essa senda que “exigiu” a separação dos<br />

domínios laicos e religiosos, obrigando à modificação do espaço público. E a casa de ópera<br />

tornou-se um signo dessa nova civilidade, assim como o salão doméstico, amparado na<br />

modinha.<br />

Essa separação do jugo místico religioso, mesmo que parcial, velada ou simuladamente,<br />

configurou o principal símbolo de desenvolvimento: o universo urbano. Dessa<br />

forma, conjugando tanto o desejo da burguesia como o desígnio do despotismo de controlar<br />

via catarse os códigos e práxis dessa nova civilidade através do espetáculo de poder,<br />

a ópera tornou-se a principal ferramenta de intervenção persuasiva. Nascia um natural<br />

contraponto à Igreja, cujo discurso, ao contrário da ópera, não distinguia ambientes, ou<br />

seja, o rural e o urbano. Ademais, a religião mostrou-se incapaz de combater superstições<br />

que se perpetuavam na diversidade da devoção, sempre exercida nos vórtices das inúmeras<br />

etnias que formavam o caldo cultural brasileiro. Na ópera, a ação normativa era bem<br />

mais simples e, invariavelmente, regida pelas mãos das autoridades régias. Essa separação<br />

de liturgias, dizemos novamente, era a essência do Iluminismo.<br />

Porém essa estratégia de alteração dos padrões de formação crítica era de execução<br />

extremamente mais difícil do que na Metrópole. Isso porque o poder do mundo<br />

rural não desapareceu e o vigor de seus interesses não se desfez em prol de uma política<br />

de elevação da capacidade de operação de cunho racionalista que favorecia os desejos de<br />

desenvolvimento econômico de base burguesa, como pretendia o despotismo esclarecido<br />

de Pombal. Esse conflito estabeleceu-se paradoxalmente, pois o poder continuava na<br />

mão da elite agrária, porém mediada por uma política institucional que necessitava fomentar<br />

a participação econômica mais decidida de uma parcela maior da população,<br />

vinculada a um modelo burguês urbano. Ao articular a vida socioeconômica nos perímetros<br />

das cidades e vilas, o impulso de desenvolvimento de uma mentalidade mais exigente de<br />

ordenação legal fomentava conflitos a cada dia mais balizados pela discussão política.<br />

Ademais, esse novo princípio de desenvolvimento exigia uma ordem legalista, como já<br />

dissemos, consubstanciada na discussão de novos conceitos através de um acesso mais<br />

amplo a ideias letradas.<br />

A ópera possibilitava a fruição dessa mentalidade, que justamente se afirmava<br />

pela burocratização do Estado, a partir da segunda metade do século XVIII. No entanto,<br />

criando novos sistemas de convivências que redefiniam a discussão sobre o espaço público<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


135<br />

e os paradigmas que o regiam, ampliavam-se os espaços de negociação e conflitos. Para<br />

minimizar o surgimento de interesses contrários à Coroa, a intervenção ideológica que<br />

legitimava e fazia reconhecer o prestígio do poder incrustava a autoridade como mediadora<br />

dos discursos que visavam modelar as relações entre as pessoas e dessas com o poder.<br />

Dessa forma, justifica-se a proximidade das autoridades na propagação das ideias<br />

absolutistas via espetáculo operístico, pois, nesse espaço, o paradigma era convencer<br />

pela persuasão; o que não diminuía a disposição de “convencer” pela violência institucional.<br />

E nesse sentido a escolha dos temas das óperas e as formas de representá-los estava na<br />

mesma dimensão do esforço para a criação e manutenção física do teatro; o que justifica<br />

o reduzido número de títulos executados no Brasil.<br />

Segundo autores como Décio de Almeida Prado (1993) coexistiam nas casas de<br />

ópera brasileiras uma diversidade de gêneros: “iam da comédia seiscentista espanhola<br />

(O Conde de Alarcos, de Mira de Amescua; Amor e obrigação, de Antonio de Solís) à<br />

ópera setecentista italiana (Ézio em Roma, Zenóbia no Oriente, de Metastasio), da comédia<br />

(Sganarelo, baseada em Moliére) à tragédia clássica francesa (Zaíra, de Voltaire)” (Prado,<br />

1993). No entanto, devemos sublinhar, primeiramente, que o termo ópera não significava,<br />

como alerta Décio de Almeida Prado, um gênero inteiramente cantado.<br />

A palavra ópera não deve despertar excessivas reminiscências europeias. No<br />

contexto nacional, como no português, aplicava-se, se não a todas, a qualquer<br />

peça que contivesse números de canto, executados de conformidade com os recursos<br />

musicais de cada cidade. Os “dramas para música” de Metastasio prestavam-se,<br />

de resto, a tratamentos mais livres quanto à proporção entre o cantado<br />

e o falado, podendo ser lidos ou como libretos de ópera (e dezenas de compositores<br />

valiam-se do mesmo texto) ou como tragédias de fundo histórico (e<br />

final geralmente feliz), centradas sobre heróis da Antiguidade clássica, cujos nomes<br />

ligavam-se não raro aos de uma cidade ou região Catone in Utica, Adriano<br />

in Siria — que figuravam menos como entidades geográficas precisas que como<br />

cenários de instantes cruciais de suas vidas. O coro não tinha muita importância<br />

no desenvolvimento do enredo, as personagens eram poucas, seis ou sete, a<br />

ação relativamente concentrada no espaço e no tempo. Essa economia de meios,<br />

mais próxima da disciplina neoclássica que das elaboradas fantasias mitológicas<br />

da ópera barroca do período anterior, facilitava evidentemente a montagem do<br />

espetáculo (Prado, 1993).<br />

Ainda segundo Décio de Almeida Prado, a ópera no Brasil trazia uma particularidade<br />

interessante, herdada logicamente da cultura portuguesa: ela era transformada<br />

em teatro de cordel. Nesse novo gênero, as obras sofriam traduções, adaptações, enfim,<br />

modificações que consideravam estruturas particulares de recepção.<br />

A surpresa desvanece assim que se verifica, como fez um estudioso moderno,<br />

que as peças representadas possuíam um denominador comum bem próximo<br />

do Brasil, via Portugal: “todas elas são de teatro de cordel”, constatou Carlos<br />

Francisco de Moura. Mais ainda: todas haviam sido publicadas ou republicadas<br />

recentemente em Lisboa. Participavam, portanto, do repertório corrente em<br />

Portugal e desse ângulo devem ser analisadas. A expressão “teatro de cordel”,<br />

pouco significando do ponto de vista literário, como se tem notado, porque<br />

comportava de tudo, nem por isso deixava de corresponder a uma determinada<br />

realidade dramática. Essa identidade de palco, constituída por usos e costumes<br />

teatrais, alterava não pouco as características nacionais e as particularmente<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


136<br />

estilísticas dos textos, tendendo a uniformizá-los. Um exemplo curioso desse fenômeno<br />

de contaminação literária acha-se no próprio repertório cuiabano. Pelo<br />

género e pelo título, dir-se-ia, nada de mais lusitano que o entremez O saloio<br />

cidadão. Mas trata se, efetivamente, de uma adaptação livre de Le bourgeois<br />

gentilhomme, de Moliére, devida provavelmente à pena incansável de Nicolau<br />

Luís, homem de teatro em atividade nos palcos lisboetas na segunda metade do<br />

século XVIII. A ele são creditadas perto de cinquenta de tais transcrições<br />

anônimas, entre as quais umas cinco ou seis das encenadas em Cuiabá, inclusive<br />

a tragédia Inês de Castro. “que segue de perto o texto de Vélez de Guevara, Reinar<br />

después de morir. Garrett resumiu sem piedade o processo de produção<br />

deste repertório híbrido: “traduziam em português as óperas de Metastasio,<br />

metiam-lhe graciosos — chamava se a isto acomodar ao gosto português; e<br />

meio rezado, meio cantarolado, lá se ia representando.<br />

Esse é um fenômeno bastante peculiar da mentalidade iluminista baseada na<br />

edificação do bem comum através da vulgarização dos valores havidos como civilizatórios,<br />

velando, evidentemente, uma apologia da ideologia dominante, aqui no caso o despotismo<br />

do Iluminismo Católico português. Nesse sentido, ganhava importância a direcionalidade<br />

da mensagem através da forte retroação. E é justamente nesse aspecto que um autor da<br />

era joanina foi resgatado e encontrou uma ressonância que uniu tanto o gosto público<br />

como os desejos da afirmação ideológica: Antônio José da Silva (1705 – 1739).<br />

Nas relações elaboradas por Curt Lange, Ayres de Andrade e Nireu Cavalcanti,<br />

circunscritas nas casas de ópera de Vila Rica e Rio de Janeiro (Budasz, 2006, p. 24-29), são<br />

citadas apresentações de Os encantos de Medeia (1735) e O precipício de Faefonte (1738).<br />

Boccannera Júnior (1924 apud Leão, 2004, p. 101) revela que no Teatro Guadalupe da Bahia<br />

encenava-se com frequência Labirinto de Creta (1736) e Guerras de Alecrim e Manjerona<br />

(1737). No acervo da família Pompeu de Pina, administradora secular da casa de ópera de<br />

Pirenópolis (GO), ainda em atividade, sobreviveram ao tempo algumas óperas do Judeu, entre<br />

elas Guerras... e Anfitrião ou Júpiter e Alcmena (1736). Da mesma forma, o dramaturgo<br />

satírico era representado em São Paulo na década de 1770, segundo relata Rui Viera Nery<br />

apoiado no códice “Diário de Governo” do Morgado de Mateus (2006). Enfim, o singspiel<br />

do Judeu era uma constante nas casas de óperas brasileiras e sua representação certamente<br />

ultrapassava em muito os indícios que as parcas fontes documentais nos revelam.<br />

O regozijo do público pelas sátiras sociais do Judeu era o que ajustava, também,<br />

sua legitimidade ideológica. Era revigorante e simbólico, na nova ordem política, as críticas<br />

à aristocracia decaída vertidas em textos como Guerras do Alecrim e Manjerona, onde<br />

até mesmo a linguagem gongórica usada pela criadagem era uma crítica mordaz à ilusão<br />

e pretensão de uma casta de fantasia, absolutamente falida, mas que mantinha a pose e<br />

a posse através dos títulos e clientelismos tradicionais nos regimes anteriores à segunda<br />

metade do século XVIII. Assim, numa sociedade que almejava a consolidação social pela<br />

virtude e não pelo sangue, o enredo de Guerras... ganhava uma retroação política e social<br />

forte. Ou seja, nesse vórtice de desacreditar a antiga nobreza encontravam-se não só a<br />

nova política pombalina, mas os desejos de letrados e funcionários régios recém elevados,<br />

assim como da própria burguesia.<br />

Outro aspecto é a identidade ambígua do Judeu. Essa ambiguidade constrói-se<br />

no fato de que a mensagem iluminista era vertida numa linguagem teatral indiscutivelmente<br />

barroca:<br />

Fazendo do teatro a analogia predileta do mundo como engano e ilusão, a obra<br />

de “O Judeu” concretiza alegorias no palco. Teatralidade de imagens, valorizada<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


137<br />

pela ideia de que o ‘engenho’ típico do artista é a imaginação, e de que esta<br />

atividade é nitidamente distinta daquela que produz conceitos e noções […], o<br />

teatro que abriga a obra de Antônio José é pródigo em efeitos, fantasmagorias,<br />

transformações, metamorfoses. Anjos e diabos entram em cena e dialogam;<br />

“são menos abstratas do que as anchietanas”. Elementos caricatos, grotescos e<br />

irônicos infiltram-se na cena. O palco enche-se de efeitos proporcionados por<br />

uma maquinaria que põe em cena toda uma parafernália de palácios, jardins,<br />

nuvens, mares e fontes, para figurar no palco o contramundo visível. O teatro<br />

torna-se o campo para as invenções tecnológicas da época. O cenário é<br />

reconhecido como pintura e suas trocas ou mudanças são visíveis e carregadas<br />

de teatralidade. Bonecos e atores contracenam. O carnaval, com a sua abolição<br />

da hierarquia social, ainda que temporária, configura o riso, o deboche, colocando<br />

o mundo às avessas, ao valorizar as “permutações do alto (céus, partes altas do<br />

corpo) e do baixo (terra, partes baixas do corpo), da face e do traseiro”, conforme<br />

Cafezeiro (1996, p. 83), um elemento configurado nas óperas do autor.<br />

Ao contrário do que afirma Lorenzo Mammi, para quem essa referência barroca<br />

era contraditória, pois não “consegue cortar o cordão umbilical que a liga à religião, ao<br />

teatro jesuítico, aos mistérios processionais” (2001, p. 39), Raimundo Leão (2006) aponta<br />

que, tal paradoxo ganhou relevância na forma comunicativa do despotismo católico ao<br />

criar um elo comunicativo que permitiu por um discurso ainda barroco inocular uma<br />

mensagem de cunho reformista consolidada numa filosofia imperceptível para a grande<br />

parte da população. Em outras palavras, sem rupturas drásticas com a consciência pública<br />

dominante, o teatro de Antônio José permitiu uma crítica irônica em que a graça estava<br />

na suspensão pelo ridículo revelado dos misticismos e prejuízos de castas. As alegorias<br />

formavam, então, uma razão contrária aos modelos de sociabilização dos regimes<br />

anteriores, baseados na concentração do poder numa aristocracia rural e “atrasada”:<br />

Luz e trevas animam a cena. Intensificam-se as lutas para afastar o humano da<br />

ortodoxia da Igreja, deixando-o iluminar-se pelos métodos pregados pela<br />

epistemologia científica. É nesse universo que a identidade de “O Judeu” se forma,<br />

se dá a conhecer e provoca o presente, espelhando as condições de deslocamento<br />

cultural e discriminação social às quais são submetidos trabalhadores, intelectuais<br />

e artistas, pelas emanações do fundamentalismo político e religioso, escudadas<br />

na razão louca que nos põem em permanente estado de alerta e de tensão<br />

emergencial, tal o grau de intolerância, preconceito e negação do diferente. Esse<br />

outro, negado em sua alteridade, é condenado a viver na indeterminação. No<br />

entanto, mostra-se como sujeito múltiplo, para além da identidade monolítica<br />

que o pensamento hegemônico configura. (Leão, 2006, p. 104)<br />

Outro gênero importante explorado pelo teatro pombalino é a ópera séria,<br />

principalmente de Metastasio, a própria afirmação do despotismo. Suas alegorias induziam<br />

o encontro das virtudes ordenadoras do mundo com a autoridade régia. A razão, único<br />

caminho da justiça, mas igualmente forja da benevolência, era o centro de gravidade dos<br />

enredos de Metastasio. Dessa forma, sua presença nos palcos brasileiros é uma projeção<br />

dos modelos de divertimento culto estimulados desde os tempos Pombal.<br />

Assim, pelo alto grau de identidade com o regime, suas peças eram as preferidas<br />

de governadores e letrados. Assim como em Portugal, Metastasio e Carlo Goldoni eram<br />

representados tanto em funções de gala, com música de grandes autores como David<br />

Perez e Nicòllo Jommelli, como em funções ordinárias, adaptados e até mesmo repre-<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


138<br />

sentados por bonecos. 6 Ademais, a influência metastasiana foi determinante para o<br />

desenvolvimento do arcadismo crioulo, mais precisamente para Cláudio Manuel da Costa<br />

que traduziu, possivelmente destinando-os à casa de ópera de Vila Rica, dois libretos:<br />

Comédia do mais heroico segredo ou Artaxerxe e Demofonte em Trácia. Ou seja, pelo fenômeno<br />

do intercâmbio e edição em forma de cordel, as óperas de Metastasio travestidas<br />

de linguagem mais apropriada às possibilidades críticas de uma população mais ampla.<br />

Nas realizações das cortesias ocorridas em academias, eventos governamentais,<br />

posses, recepções etc., típicas da consciência teatrocrática do Antigo Regime, as óperas<br />

de Metastasio serviam amiúde, sempre traduzidas para o português, acrescentadas de<br />

passagens (as licenzas) que identificavam diretamente o homenageado:<br />

Para lisonjear o destinatário da dedicatória, também é costume referir-se a exemplos<br />

da antiguidade grega e latina sempre nimbada de glória. Vemos assim Tolentino<br />

comparar o Visconde de Vila Nova da Cerveira, ministro de D. Maria I, com<br />

Cícero “lendo poetas e filósofos” embora “encarregado dos importantes negócios<br />

da República”. Por sua parte, Couto Guerreiro dá exemplos de magnanimidade<br />

extraídos das vidas de Alexandre Magno e do rei Artaxerxes, vidas então<br />

conhecidas graças à comédia do abade de Metastasio O mais heroico segredo<br />

ou Artaxerxes, que teve várias edições em poucos anos, assim como, do mesmo,<br />

a ópera Alexandre na Índia. (Maffre, s/d., p. 5)<br />

Por fim resta observar um importante aspecto do surgimento das casas de ópera<br />

no Brasil colonial: a participação ativa de atores saídos das camadas baixas da sociedade,<br />

majoritariamente artistas mulatos. Décio de Almeida Prado (1993) observava que esse<br />

fenômeno foi determinante para o molde no qual os produtores, autores e público estabeleceram<br />

as formas de diálogo através do teatro.<br />

Pelo seu lado mais pobre, mais terra a terra, contentava-se com espetáculos<br />

amadores improvisados, aproveitando-se de que para subir a um estrado e dizer<br />

algumas frases decoradas não era preciso nem mesmo aquele mínimo de exercício<br />

técnico imprescindível na pintura e na música. Esse hábito popular nos vinha<br />

através das naus portuguesas, seja nas quinhentistas, em que padres jesuítas<br />

encenavam vidas de santos e autos sacramentais durante as calmarias, seja, duzentos<br />

anos mais tarde, nas embarcações setecentistas, como maneira fortuita<br />

de preencher as horas vazias.<br />

No entanto, esse pode ter sido um elemento primordial para uma renovação<br />

das estrutras de linguagem, pois a intersecção das convenções e das possibilidades de<br />

fruição estética dos agentes que edificavam o divertimento possibilitaram aberturas significativas<br />

aos modelos importados. Nesse caso é sintomática, por exemplo, a presença<br />

de mulheres nos elencos das casas de óperas crioulas. Problema sempre latente na censura<br />

lusitana, constituído até mesmo em proibições régias como aconteceu em tempos de<br />

Dona Maria, a ópera brasileira, principalmente em Vila Rica e no Rio de Janeiro foi flexível<br />

à presença feminina. Além do apelo ao imaginário masculino, identificando o arquétipo<br />

licencioso da mulher mestiça com o estigma afetivo da arte melodramática, a presença<br />

...........................................................................<br />

6 Rogério Budasz (2006, p. 25) indica que libretos de Metastasio produzidos no Teatro do Bairro Alto de Lisboa,<br />

foram encenados como teatro de bonecos, “traduzidos para o português e sujeitos a cortes e adaptações –<br />

geralmente inclusão de personagens cômicos – tais como Achille in Sciro, Adriano in Síria, Didone, La Semiramide<br />

riconosciuta, Zenobia e La isola desabitada”.<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


139<br />

da mulher consolidava as doutrinas do teatro iluminista que clamava pela identificação<br />

do teatro com a natureza, logo contrário a personagens travestidos.<br />

Esse fenômeno consolida-se justamente nas possibilidades críticas e estruturais<br />

de execução e recepção dessa ópera. Adaptando libretos e música à instrumentação disponível,<br />

a cantores, assim como às vias de acesso à legitimidade para preservação do espaço,<br />

a ópera nacional tornou-se um laboratório de identidades que juntavam letrados<br />

como Cláudio Manuel da Costa e elencos de mulatos, entre compositores e atores. Todo<br />

esse conjunto amalgamado por um fluxo de experiências que não deixava de considerar<br />

que a ópera existia como afirmação de poder monárquico, imbuída de um caráter civilizador<br />

direcionado. Como escola de princípios, era forjada por política de Estado e cuja<br />

assistência era uma questão primordial para a representação social da elite, pois não só<br />

celebrava os valores monárquicos, como era fundamental para a visibilidade social na<br />

trama das redes de influência e consolidação do poder local.<br />

Concluindo, representando as diversas camadas do mundo livre, a casa de ópera<br />

transformou-se num espaço de negociações e conflitos, onde participavam os governantes,<br />

os letrados, a burguesia e toda a humanidade que, não esqueçamos, era julgada de “impossível”.<br />

Forjavam-se nesse caldeirão não só as bases das relações humanas, mas, também,<br />

os paradigmas críticos que vinham nos entreatos de uma opinião pública que lentamente<br />

se distanciava do jugo totalitário da Igreja. Assim, ao mesmo tempo em que a ópera<br />

deixava fluir as formas típicas do iluminismo europeu nos libretos de uma nova classe<br />

de intelectuais, possibilitava o encontro com compositores e cantores elevados de estamentos<br />

sociais marginados de voz. Todo esse jogo determinou e simbolizou esse novo<br />

ambiente onde lentamente desenvolvia-se uma opinião pública, comum. O outro lado<br />

desse processo será ampliar essa formação do espaço público crítico aos ambientes domésticos,<br />

através do salão e seu culto à modinha.<br />

Referências bibliográficas<br />

Andrade, Ayres de. Francisco Manuel e seu tempo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,<br />

1967.<br />

Bellotto, Heloísa Liberalli. Autoridade e conflito no Brasil colonial: o governo do<br />

Morgado de Mateus em São Paulo: 1765 – 1775. São Paulo: Conselho Estadual de Artes<br />

e Ciências Humanas, 1979. (Textos e Documentos n. 36)<br />

Brito, Manuel Carlos de. Estudos de História da Música em Portugal. Lisboa: Editorial<br />

Estampa, 1989.<br />

Budasz, Rogério. “Perspectivas para o estudo da ópera e teatro musical no Brasil do<br />

período colonial ao Primeiro Reinado”. In: Encontro de Musicologia Histórica, n. VI,<br />

2004, Juiz de Fora. Anais. Juiz de Fora: Centro Cultural Pró-Música, 2006.<br />

Cafezeiro, Edwaldo e Gadelha, Carmem. História do teatro brasileiro: de Anchieta a<br />

Nelson Rodrigues. Rio de Janeiro: <strong>UFRJ</strong>, 1996.<br />

Carvalho, Mário Vieira de. Pensar é Morrer ou O Teatro de São Carlos; na mudança de<br />

sistemas sócio-comunicativos desde fins do século XVIII aos nossos dias. Lisboa:<br />

Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1993. (Série Temas Portugueses)<br />

Carvalho, Mário Vieira de. Razão e Sentimento na Comunicação Musical; estudo sobre<br />

a dialéctica do Iluminismo. Lisboa: Relógio D’Água, 1999.<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


140<br />

Duprat, Régis. Música na Sé de São Paulo colonial. São Paulo: Editora Paulus, 1995.<br />

Faoro, Raymundo. Os donos do poder; formação do patronato político brasileiro. 10ª<br />

ed., v. 1 e 2. São Paulo: Globo/Publifolha, 2000. (Grandes nomes do pensamento<br />

brasileiro).<br />

Nery, Rui Vieira. “A Música na Estratégia Colonial Iluminista: o Morgado de Mateus em<br />

São Paulo (1765-1774)”. Conferência. São Paulo: Instituto de Estudos Avançados –<br />

Universidade de São Paulo, 28 de agosto de 2006. Vídeo (1h 50min). Disponível em<br />

, acessado em 17 de julho de 2010.<br />

Nery, Rui Vieira. “Espaço Profano e Espaço Sagrado na Música Luso-Brasileira do Século<br />

XVIII”. Revista Música, São Paulo, v. 11, p. 11-28, 2006.<br />

Prado, Décio de Almeida. “O teatro no Brasil colonial”. São Paulo: Memorial da America<br />

Latina/Unicamp, 1993. Disponível em , acessado em 9 de julho de 2010.<br />

Petrone, Pasquale. “Povoamento e caminhos no século XVI e XVII”. In: Azevedo, Aroldo.<br />

A Baixada Santista; Aspectos geográficos. São Paulo: Editora da Universidade de São<br />

Paulo, 1965.<br />

Torrão Filho, Amílcar. “Em utilidade do bem comum: usos e conflitos no espaço público<br />

de São Paulo”. In: Politeia: História e Sociedade, Vitória da Conquista, v. 6, n. 1, p. 149-<br />

175, 2006.<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


141<br />

As óperas de Antônio José da Silva<br />

e Antônio Teixeira: atribuição de autoria<br />

e reconhecimento de modelos estéticos<br />

da produção lírica luso-brasileira<br />

do século XVIII<br />

Márcio Páscoa<br />

Universidade do Estado do Amazonas<br />

O paço ducal de Vila Viçosa, em Portugal, possui em seu acervo, um conjunto<br />

musical manuscrito sobre texto de Antônio José da Silva (1705–1739), ali intitulado Alecrim<br />

e Mangerona. Está identificado em suas folhas pela cota A.M.G-7 em concordância com<br />

o catálogo de José Augusto Alegria onde foi-lhe atribuída a designação de G prática 7<br />

(Alegria, 1989, p. 165). O conjunto é composto de cadernos correspondentes às partes separadas<br />

de instrumentos e vozes. Estão presentes partes instrumentais designadas em<br />

página de rosto por violino primo, violino 2º, viola obligata, Basso e, sem folha de rosto, páginas<br />

para Trombe 1ª e 2ª. Das partes vocais constam apenas as de Sevadilha, Clóris e<br />

Nise.<br />

O conjunto das partes instrumentais inclui árias, para além das personagens femininas,<br />

pertencentes aos demais personagens da trama: Fuas, Gilvaz, Semicúpio e Lancerote.<br />

A essas partes vocais perdidas, até o momento, podem-se somar partes de oboé e<br />

saltério indicadas na carátula da parte do baixo contínuo, mas inexistentes no conjunto<br />

deste espécime. A totalidade das partes de cordas indica ainda assim a presença parcial<br />

de árias previstas no libreto original. Publicado pela primeira vez em 1737, ano em que se<br />

estreou no Teatro do Bairro Alto, em Lisboa, o texto conservava o título de Guerras do<br />

Alecrim e Mangerona, contendo em seu bojo duas partes, a guisa de atos, sendo que a<br />

primeira está composta de quatro cenas e a segunda por sete cenas. Subtitulava-se desde<br />

o princípio de Ópera Joco-séria, alusiva ao caráter da restante obra deste mesmo autor.<br />

As árias previstas, somando-se ao coro final e a um recitado, alcançam a conta de 21 números<br />

musicais. Destes, apenas 17 se encontram no conjunto manuscrito de Vila Viçosa.<br />

Não é possível saber se um dia já existiram tais árias faltantes, mas há indícios neste sentido.<br />

No manuscrito musical A.M.G-7 há uma indicação anotada ao fim do dueto entre<br />

Sevadilha e Lancerote “Moça tonta, descuidada”, em que se lê: “D.Fuas/Minuet/Já que a<br />

fortuna”. Entretanto, mais abaixo há a indicação “Segue D. Nize”. A música que se segue é<br />

de fato a ária desta personagem feminina, “Suponha, senhor, que nunca me viu”. A indicação<br />

da ária de Fuas, “Já que a fortuna”, confirmada no libreto original como um minuete,<br />

consiste, entretanto numa anotação feita por mão diferente da cópia da música. Essa<br />

anotação aparece no lugar aludido, nas partes de violino primeiro e segundo, e do basso,<br />

mas não na da viola. A inserção da ária pode ter sido feita quando as apresentações baseadas<br />

nesta cópia musical já estavam em andamento e deve ter existido em folhas avulsas,<br />

agora perdidas. Outra possibilidade é a de que os músicos que se valeram do atual A.M.G-<br />

7, dispunham de uma cópia reduzida do conjunto mais completo da ópera e obtiveram<br />

avulsamente esta ária de Fuas, quando da montagem. As mãos que anotaram a indicação<br />

podem ter sido dos executantes que usaram tais partes cavas. Não só a letra parece di-<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


142<br />

ferente em alguns pontos, como na parte do segundo violino a indicação atribui o mencionado<br />

minuete vocal a D. Gilvaz, confusão que tanto pode evidenciar mãos diferentes e<br />

atribuição errônea, como eventual troca de personagem para tal música, ainda que pouco<br />

provável neste caso. Também é meramente especulável que a música perdida desta ária<br />

reencontrada ou refeita ao tempo da montagem que se valeu deste manuscrito, pertença<br />

ao autor predominante do corpus musical A.M.G-7.<br />

As partes de instrumento que contêm folha de rosto, exceção da parte de Trombe,<br />

indicam: “Muzica/Senhor Antônio Teixeira”, constante de maneira igual nas partes de violino<br />

e com o tratamento abreviado na parte de viola (Sr.), sendo que no baixo surge em<br />

italiano: “Muzica/Dal Signore Antônio Teixeira”. Somente nesta folha consta a indicação<br />

da instrumentação completa a que corresponde o manuscrito: “Alecrim e Mangerona/<br />

con Violini, Saltério, Oboe, Trombe, Viola e/ Basso”.<br />

A credibilidade da autoria tem por fiador o enciclopedista Diogo Barbosa Machado.<br />

A primeira menção biográfica sobre Antônio Teixeira vem publicada ainda em vida<br />

do compositor, na Bibliotheca lusitana que o dicionarista começou a editar em 1741,<br />

quando o músico devia ter 37 anos, o que mostra a consideração a que tinha alcançado<br />

nos meios intelectuais de que participava, dilatada por uma lista, ainda que um tanto genérica,<br />

de obras musicais de sua lavra.<br />

Antônio Teixeira, nasceo em Lisboa, e na Paroquial Igreja de Nossa Senhora da<br />

Encarnaçaõ foy bautizado a 14 de Mayo de 1707, sendo filho de Manoel Teixeira,<br />

e Vicencia da Silva. Quando contava nove annos de idade, foy mandado por ordem<br />

Real aprender a Arte de Contraponto em Roma, e como fosse dotado de<br />

engenho perspicaz, sahio igualmente destro na composiçaõ da Musica, como<br />

no toque do cravo. Restituído à pátria a 11 de Junho de 1728, em premio na sua<br />

applicaçaõ, foy eleito Capellaõ Cantor da Santa Igreja Patriarcal, e Examinador<br />

dos Ordinandos e canto chão em todo o Patriarcado. São innumeraveis as obras<br />

musicaes, que tem composto, merecendo entre ellas distincçaõ.<br />

Te Deum laudamus, a vinte vozes com todo o gênero de instrumentos músicos,<br />

que cantou no último dia do anno de 1732, na acçaõ de Graças, que se rende a<br />

Deos Nosso Senhor pelos benefícios recebidos naquelle anno, cuja funçaõ se<br />

celebra em a Casa professa de Saõ Roque, e a Ella assistem as Pessoas Reaes,<br />

com toda a Corte<br />

Te Deum laudamus a nove vozes.<br />

Psalmos, Offertorios, Lamentações, Motetes, a quatro, e oito vozes, com instrumentos,<br />

e sem elles.<br />

Miserere, a oito vozes sem instrumentos.<br />

Sete Operas a seis vozes com instrumentos, que se representarão com grande<br />

applauso dos Expectadores.<br />

Missa a oito vozes. Outra a quatro. Psalmos de Vesperas, a quatro para a Igreja<br />

de Santo Antônio dos Portugueses em Roma. (Machado, 1759, p. 61)<br />

O dicionário elaborado por José Mazza, ao final daquele século, repercute as<br />

informações de Barbosa Machado, de forma resumida, sem acréscimos, entretanto<br />

consagrando-o como “excelente compositor”, certamente de cima da trajetória que agora<br />

se podia observar mais completa. Sobre Teixeira, diz que era<br />

Presbítero natural de Lx.ª filho de Manoel Teixeira e Vicencia da Silva, Mestre do<br />

Seminario real de Muzica, excelente Compozitor, e Organista da Patriarcal, onde<br />

foi cappelão Cantor, era examinador do Canto chão do Patriarcado, Compos hum<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


143<br />

Te Deum a 5 coros com todo o genero de instrumentos, compos outro a nove<br />

vozes, sete operas, salmos, Mizereres, Lamentações, e outras mais, faleseo no<br />

seculo de 700. (Mazza, 1944, p. 45)<br />

A repetição das informações parece refletir a provável perda de documentos<br />

com o terremoto de 1755, o que deve ter impedido o acesso a quaisquer dados para além<br />

daqueles inicialmente divulgados por Barbosa Machado. Joaquim Vasconcellos, escrevendo<br />

biografias de músicos portugueses, em 1870, repetiu ainda mais uma vez as informações<br />

do autor da Bibliotheca lusitana, dando unicamente esta fonte como referência<br />

em seu verbete sobre Antônio Teixeira (Vasconcellos, 1870, vol. 2, p.198-199).<br />

Somente Ernesto Vieira, em 1900, levantou novos elementos sobre a trajetória<br />

do compositor. Vieira, desconfiando da pouca idade do bolsista de Dom João V, acreditava<br />

que as datas de nascimento ou a da ida para os estudos em Roma deviam ser diferentes<br />

(Vieira, 1900, vol. 2, p. 347). Vieira transcreve a entrada biográfica redigida por Machado<br />

e acrescenta que Teixeira deveria já ser<br />

compositor considerado, pois foi incumbido de escrever a música para uma cantata,<br />

cujo folheto se imprimiu e tem este título “Gli sposi fortunati, componimento<br />

da cantarsi nella sala dell’Illustrissima ed Ecceletissima Signora D. Antonia Gioacchina<br />

de Menezes de Lavra, nel Carnevale dell’anno 1732". (Vieira, 1900, vol.<br />

2, p. 348)<br />

Do rol de composições arroladas na Bibliotheca lusitana, Vieira menciona apenas<br />

o célebre Te Deum, pois justifica que “das suas composições, que Barbosa Machado diz<br />

terem sido innumeráveis [sic] nunca vi senão a cantata que existe na Bibliotheca Nacional”<br />

(Vieira, 1900, vol. 2, p. 348). Trata-se esta da “Cantata concertata a 3 voci con violini,<br />

Obué, Flauti, Trombe, e Corni da Caccia, Gloria, Fama, Virtú, del sigre. Antônio Teixeira”.<br />

Vieira ressalva que não sabe se esta obra era do mencionado Antônio Teixeira ou de um<br />

homônimo seu, que na condição de padre, foi autor de música sacra que se encontrava<br />

no Archivo da Sé, em Lisboa, do qual destaca um Ecce sacerdos, e uma composição datada<br />

de 1770 (Vieira, 1900, vol. 2, p. 348).<br />

A identificação da obra operística de Antônio Teixeira surgiu quando Luis de<br />

Freitas Branco, revelou nas páginas do periódico Século, em 1947, a existência dos manuscritos<br />

de Vila Viçosa, dos quais aquele sob a cota A.M.G-7. Logo na década seguinte sairia<br />

à luz nova edição da obra de Antônio José da Silva, constante no Theatro Cômico Portuguez,<br />

agora sob o nome de Obras completas, que incluiam ainda Glosa ao Soneto de Camões<br />

“Alma minha gentil, que te partiste” e as Obras do diabinho da mão furada, além da<br />

transcrição de documentos. Realizada, portanto, em 1957, pela Livraria e Editoria Sá da<br />

Costa, aos cuidados de José Pereira Tavares, que fez notas diversas e o prefácio, a edição<br />

passava a ser a primeira que informava a associação das peças de Antônio José da Silva<br />

com o trabalho musical de Antônio Teixeira (Silva, 1957, vol. 1, p. XXXI-XXXIII).<br />

Na mesma ocasião já se informava também a existência, em Vila Viçosa, de trechos<br />

musicais relativos a As variedades de Proteu, com a especulação sobre a autoria<br />

pertencer ao mesmo compositor que as folhas manuscritas do A.M.G-7 revelavam (Silva,<br />

1957, vol. 1, p. XXXI-XXXIII). Essas partituras nem, tampouco, o conjunto musical de árias<br />

e recitativos de Precipício de Faetonte – que figurou a partir de 2000 nos ficheiros da<br />

biblioteca de manuscritos musicais da Universidade de Coimbra sob a cota de MM876 –<br />

chegaram a ser publicadas.<br />

Partindo, portanto, da ideia de que a ópera Alecrim e mangerona, com atribuição,<br />

é confiavelmente de Antônio Teixeira, faz-se necessário verificar os elementos constitutivos<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


144<br />

utilizados pelo autor e como ele os aplica, do ponto de vista técnico e estético na música<br />

que compõe.<br />

Inicialmente, deve-se levar em conta as composições que apresentam partes<br />

completas, quais sejam as árias para os papéis femininos. De modo secundário, mas não<br />

menos importantes, aquelas em que estando ausente a linha vocal, sabe-se o seu lugar<br />

de entrada na estrutura de acordo com as indicações anotadas pelo copista das partes de<br />

primeiro e segundo violinos.<br />

Dos 19 números musicais, três revelaram-se espúrios, por causa de evidências<br />

musicais ou textuais, isoladas ou conjuntas. Dos 16 restantes, observa-se a predominância<br />

da ária da capo em cinco partes e com grau menor, mas igualmente relevante, o minuete<br />

vocal e o rondó. Excluindo-se o recitativo, são dez árias a solo e sete seções em conjunto:<br />

dois duetos, um trio, um quarteto, um quinteto, e o coro final a seis vozes. Com exceção<br />

deste último, todas as estruturas dos conjuntos se baseiam na ideia da estrutura da capo.<br />

Em quase todas essas árias há uma introdução instrumental onde o tema a ser<br />

desenvolvido pela linha vocal é exposto sob a ideia de antecedente e consequente ou a<br />

partir de uma melodia ou motivo que são usados para a construção do tema.Quando isso<br />

acontece, é bastante comum que o autor o faça repetindo o consequente. A ária “Senhora<br />

que o velho quer levantar”, traz este procedimento.<br />

Figura 1. Introdução da ária “Senhora que o velho quer levantar”, A.M.G-7 vv.<br />

Após essa primeira etapa de exposição, acrescenta um motivo rítmico-melódico<br />

que fará repetir cadencialmente, proporcionando modulação e gerando a ideia de se<br />

tratar de uma consequente do primeiro grupo de compassos. Tais compassos podem<br />

funcionar como temas-motivos isoladamente, e ele os usará assim ou como um conjunto<br />

organizado de ideias musicais dentro da racionalidade tonal.<br />

Na observância do conjunto, a segunda seção é uma ampliação modulada da<br />

primeira, ou seja, a variação melódica que permite a progressão tonal é duplamente<br />

repetida, como uma ampliação exponencial do tema-motivo inicial. Por vezes há também<br />

um tema-motivo de características mais cordais que melódicas, usado nesta ária em<br />

consonância com a ideia de simetria melódica e já numa terceira ideia motívico-melódica<br />

que facilita o retorno à tonalidade para fazer a entrada vocal.<br />

A síntese seguinte pertence à exposição melódica da introdução na ária Senhora,<br />

que o velho, onde A e B são temas-motivos e C é um terceiro material motívico, derivado<br />

ou não dos anteriores, que se presta à modulação e modificação.<br />

A [a (2 comp.) + b (4 comp,)] + B [a (2c) + b (4c.) :] + (C)[c (2c.: +1)]<br />

(Mi m) – (Si m) – Mod [(Ré m) – (Lá m) – (Sol M)] – (Mi m)<br />

I V (VII – IV – (RM) – I) I<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


Figura 2. Compassos 7-18 da ária “Senhora que o velho quer levantar”, A.M.G-7vv.<br />

145<br />

Evidentemente o autor pode estabelecer em outras árias modulação mais longa<br />

entre o Primeiro e o Quinto graus, mas independente disto, Teixeira comumente estabelece<br />

a linha do canto em perfeita observância às melodias criadas na introdução. Desse modo,<br />

o texto fica claramente disposto como se segue:<br />

(A) = (a+a’ ou ab(c)+ab(d))<br />

a Senhora, que o velho<br />

Se quer levantar (x2)<br />

b Coitada de mim<br />

Que eu ouvi escarrar X 2<br />

Falar e tossir<br />

(c) Senhora... não ouve<br />

Falar e tossir, etc… Terceiro tema-motivo com Modulação<br />

Ritornello<br />

a Senhora, que o velho<br />

Se quer levantar (x2)<br />

b Coitada de mim<br />

Que eu ouvi escarrar (Novo material melódico, que descarta c e parte<br />

de b) X2<br />

Falar e tossir<br />

B Senhor, vá-se embora (seção B flutuante sobre material prévio de a, b ou c)<br />

Vá já para fora<br />

Senão o papão<br />

Nos há de engolir<br />

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146<br />

O plano da ária fica estabelecido em A (a-a’ = a+b+(c)) - B (x) – A (da capo) tornando-se<br />

uma ária da capo em cinco partes. Dentro de A opera-se uma ida à tonalidade relativa, obtida ao<br />

final de a e que permanece pelo ritornello, recomeçando a’ tal como no princípio. A disposição<br />

de material textual truncado, como exemplificado (“Senhora... não ouve... falar e<br />

tossir” etc.) também caracteriza o trecho posterior à exposição textual e é ponto de livre elaboração<br />

do compositor nas duas vezes em que surge, sendo verificavel em diversas outras<br />

árias suas exclusivamente neste momento, ao contrário do que fizeram outros conhecidos<br />

autores da época em Portugal, como Francisco Antônio de Almeida, David Perez etc.<br />

Dentre as variantes possíveis está o procedimento verificado na ária de Dona<br />

Clóris Dirás ao meu bem, em que os versos são repetidos, de maneira fragmentária, antes<br />

da exposição a ter transitado ao a’. Teixeira pode ter exagerado as repetições aqui para<br />

dar simetria a uma construção baseada na força retórica. Diferente das demais árias,<br />

mesmo aquelas de As variedades de Proteo (exceto “Se amor, se a parca irada”, ária de<br />

Proteu) e Precipício de Faetonte, esta não começa por introdução instrumental, mas pela<br />

linha vocal sem acompanhamento. Dona Clóris manda que Semicúpio leve uma mensagem<br />

ao seu pretendente, de teor vital para o desfecho da peça.<br />

Dirás ao meu bem<br />

Que não desconfie<br />

Que adore, que espere<br />

Que não desespere<br />

Que á sua fineza<br />

Constante serei<br />

Que firme eu também<br />

A tanta fineza<br />

Amante, constante<br />

Extremos farei<br />

Como nas demais árias, Antônio José da Silva escreveu em versos pentassilábicos<br />

e aqui especialmente o pé do verso com o verbo na conjugação majestática: “dirás”. A dupla<br />

repetição desta palavra envolve cadência de quinta justa que antecede a entrada do<br />

acompanhamento instrumental e confere força de ordem ao enunciado de Dona Clóris.<br />

Aqui o uso da retórica musical é quem dá a gravidade, a solenidade da mensagem verbal.<br />

Percebe-se que isto condicionou o compositor à elaboração das demais passagens usando<br />

repetição exagerada dos versos, sempre de modo fragmentário, usando o significado de<br />

fazer lembrar o conteúdo da mensagem ao portador, valendo-se das muitas variantes<br />

afetivas propostas pela construção musical. Recorde-se que Benedetto Marcello, no seu<br />

célebre Il teatro alla moda discorria de modo satírico e sarcástico o procedimento de repetir<br />

duas ou mais vezes os versos fragmentados, ao longo do poema da ária (Marcello,<br />

172?, p. 20). Teixeira, porém, evita outro ponto satirizado por Marcello, o do abundante e<br />

indiscriminado uso de melismas sobre quaisquer palavras, sem atender ao sentido textual<br />

e musical. O compositor português estabeleceu aqui melismas vocais sobre a sílaba forte<br />

da palavra “desespere”, por mais de uma vez e somente sobre esta palavra, ao longo de<br />

continuadas sextinas ou misturando-as habilidosamente a pares de colcheias e semi-colcheias<br />

para criar variedade rítmica (Marcello, 172?, p. 20).<br />

A palavra aqui carrega o afeto principal da ária, aludindo à impaciência dos amantes,<br />

as incertezas da reciprocidade e da consumação, com a atmosfera sensual, sedutora,<br />

proposta pela construção ritmico-melódica. Muito adequadamente, Teixeira também sugere<br />

pontos de cadência sobre algumas repetições de “Dirás, dirás...” obviamente iden-<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


Figura 3. Compassos 7-10 da ária “Dirás ao meu bem”.<br />

147<br />

tificadas pela consecutiva pausa geral. Repousa aí mais um exemplo de domínio retórico<br />

que o autor luso parecia manejar com destreza e que constitui uma de suas características.<br />

Outro exemplo bastante interessante do uso retórico-afetivo está presente na ária<br />

de Sevadilha, intitulada “Se um tonto jarreta”. Trata-se de mais uma estrutura da capo a<br />

cinco partes. O texto contém as passagens “ou é para rir, ou é para chorar”, que Teixeira<br />

distribuiu usando praticamente o mesmo material para os afetos opostos. Na primeira<br />

vez, sob colcheias intercaladas com pausa do mesmo valor em progressão de tendência<br />

diatônica, construiu a ideia do riso, e na segunda, com intervalos de tendência cromática<br />

e melodia cortada por uma pausa de colcheia a cada três notas, a do choro.<br />

O riso fica bem evidenciado se a interpretação ao gosto da época desempenhar<br />

as colcheias de maneira bem curta e com um stacatto, conforme sugerem algumas anotações<br />

nas partes cavas (o sinal aparece de maneira irregular no conjunto das notas aludidas).<br />

Por sua vez, a progressão descendente cromática era desde muito convencionada como<br />

desfalecimento, lamentação ou o choro aqui aludido, em cujas intermitentes pausas a<br />

cada três notas fica sugerido o soluço.<br />

Este padrão de notas – anacruse em colcheia, seguida de colcheia na cabeça do tempo<br />

e colcheia na parte fraca do tempo – que se encontra na base do efeito retórico aqui descrito,<br />

parece estar estreitamente ligado à elaboração do tema introduzido pelas cordas. É<br />

comum em obras do período galante que a ária se inicie por um movimento melódico de<br />

anacruse, muito geralmente num intervalo de quinta ou quarta para o primeiro grau. No<br />

caso desta ária o movimento faz parte do tema e a sua repetição após pausa de colcheia<br />

é a sua consequente motívica. Obviamente, como é uso em Teixeira, passa a ser repetido,<br />

Figura 4. Compassos 14-18 da ária “Se um tonto jarreta”, A.M.G-7 vv.<br />

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148<br />

ampliando a noção sensorial e retórica. O intervalo da anacruse de entrada foge do comum<br />

uso do movimento de quinta, quarta ou mesmo terça, para forjar uma ideia de harmonia<br />

Figura 5. Compassos 1-4 da ária “Se um tonto jarreta”, A.M.G-7 vv.<br />

extática nos dois primeiros compassos, talvez pelo diminuto tamanho do trecho.<br />

Pode-se arguir também que pesou nesta ideia o fato de tal escolha ser mais<br />

tendente à boa prosódia. A elaboração ajusta-se perfeitamente na versificação de versos<br />

pentassilábicos, com os sabidos acentos de 2ª e 5ª sílabas.<br />

Figura 6. Compassos 8-11 da ária “Se um tonto jarreta”, A.M.G-7 vv.<br />

Teixeira, entretanto não fez nenhuma outra ária com melodismo tão fragmentário<br />

e mesmo assim obtém a finalização com a duplicação da consequente, conforme se vê no<br />

exemplo em que a segunda linha dos versos vai repetida.<br />

Estes procedimentos de simetria, duplicação da segunda parte ou consequente<br />

textual-musical compõem uma espécie de assinatura, de que ainda fazem partes outros<br />

muitos procedimentos como o domínio retórico com prevalência de um motivo.<br />

O conjunto das demais árias chama atenção também pela riqueza de escrita rítmica.<br />

Estão presentes numa mesma estrutura colcheias iguais, pontuadas, ritmos lombardos,<br />

tercinas, sextinas e algumas misturas destas formulações entre si em pequenas<br />

células.<br />

Constam do conjunto, entretanto, duas árias que não dizem respeito ao texto<br />

de Guerras do alecrim e mangerona. Para Sevadilha, há uma ária intitulada “Eu nunca fiz<br />

cazo d’amantes”, e outra para Gilvaz, nomeada “Não me xameis tirano”, de acordo com as<br />

partes dos violinos, da viola e do Basso, sendo que nesta há a indicação de Nova por uma<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


149<br />

outra mão na cabeça da folha. Trata-se de uma composição a C cortado, em Fá Maior,<br />

contando 57 compassos, ainda que a parte de violino 2 tenha entretanto apenas 53 compassos<br />

escritos. Na parte de violino 1, lê-se ao final o nome de Pietro Guglielmi, sugerindo<br />

que se trate de uma composição deste autor italiano que se tornou bastante frequente<br />

no repertório visto em Lisboa no último terço do século XVIII. “Não me xameis tirano” seria<br />

então uma contrafacta de “Non mi rendete infido”, da ópera Alceste de Pietro Alessandro<br />

Guglielmi (1728–1804), estreada em Milão a 26 de dezembro de 1768 (Cranmer,<br />

2009, p. 116). A ópera sobrevive em dois conjuntos manuscritos, sendo que um deles pertence<br />

ao arquivo musical do Palácio da Ajuda, em Lisboa, um dos mais significativos acervos<br />

de espécimes musicais do gênero lírico para a segunda metade do século XVIII. Como nos<br />

demais casos dos personagens masculinos, esta ária também não possui uma parte vocal<br />

no A.M.G-7. “Não me xameis tirano” parece ter sido incluída no manuscrito musical em<br />

substituição à “Borboleta namorada”, texto original de Antônio José da Silva para o personagem<br />

Gilvaz, por causa de sua posição entre as demais árias.<br />

Por sua vez, a segunda ária espúria parece ter vindo substituir o dueto “Meu<br />

franguinho topetudo”, entre a mesma Sevadilha e Semicúpio. É uma composição a 3/8<br />

em Dó Maior, com distribuição para cordas e sopros. A parte de trombe traz indicação de<br />

“15, Sevadilha na Ópera da Estalajadeira// in C sol ut = Eu nunca fiz cazo/ cuja Ária está<br />

atrás da folha seguinte/ logo depois do Coro Final”. Embora a posição da cópia nas demais<br />

partes instrumentais esteja corretamente alinhada com as restantes árias, possível sugestão<br />

de que as partes de trombe surgiram posteriormente pode significar apenas um problema<br />

de uso do papel, de cópia ou de acréscimo na orquestração.<br />

A menção à Ópera da Estalajadeira remete a alguma versão em circulação de<br />

La locandiera, texto do dramaturgo Carlo Goldoni (1707–1793). Há incerto número de<br />

publicações desta peça traduzida, adaptada para o português ou que a ela se referem<br />

pelo tema, pelos personagens ou situações. Uma vez que o texto da ária não está presente<br />

no original italiano, deve-se considerá-la um enxerto às traduções e adaptações da época.<br />

Mesmo assim, também não foi possível localizar nenhum libreto, folheto ou versão similar<br />

da peça, em português, no qual estivesse inserido, mas a situação onde ela devia ser inserida<br />

é clara. Segundo o original de Goldoni, a estalajadeira Mirandolina, diz, na cena IX do<br />

primeiro ato, não pensar em casamento e nem precisar dos eventuais pretendentes que<br />

por ali passam pela sua estalagem. Na versão portuguesa publicada em 1765, intitulada A<br />

locandiera, levada com sucesso, segundo a carátula, no Teatro da Rua dos Condes, a passagem<br />

agora acomodada próxima ao final de uma grande cena primeira, parece esclarecedora.<br />

Nela a protagonista Mirandolina afirma que “dos outros [amantes] que me<br />

perseguem, não faço eu cazo” (Anônimo, 1765, p. 7) A ária pode ter sido acomodada próxima<br />

a este ponto, em substituição a ele ou, ainda, em outras versões derivadas disso,<br />

conforme a prática corrente.<br />

Resta ainda mais uma ária possivelmente espúria, sobre texto de “De um amigo<br />

e de uma ingrata”. Sua estrutura obedece a modelos baseados na forma sonata, portanto<br />

de uma época bem posterior à maioria do conjunto nesta ópera. Como o manuscrito do<br />

A.M.G-7 aponta para uma divisão em três atos, ao contrário de duas partes conforme<br />

previsto nas publicações de Guerras do Alecrim e Mangerona ao longo do século XVIII, e<br />

como a ária em questão foi colocada ao final do então segundo ato deste manuscrito musical,<br />

deve ter certamente obedecido a propósitos dramatúrgicos que acharam por bem<br />

“atualizar” a obra naquele ponto importante da peça.<br />

Ao lado da partitura de Alecrim e Mangerona, existe outro espécime atualmente<br />

identificado pela cota A.M.G-6 que se compõe de cadernos avulsos para instrumentos e<br />

vozes em cujas carátulas se intitulam todos As Variedades de Proteo. Nenhum dos cadernos<br />

atribui autoria à música neles contida. Tais cadernos são para violino primo, violino secundo<br />

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150<br />

[sic], violleta, basso, oboés 1º e 2º, trompa 1ª e secunda [sic], além de partes vocais para<br />

Proteo, Ponto, Dórida, Caranguejo, Políbio, Nereo e Marezia.<br />

Tal conjunto musical de Vila Viçosa abrange a totalidade das árias previstas nas<br />

edições de As Variedades de Proteu desde 1737, exceto pela exclusão de três delas, pertencentes<br />

a Cirene, a Dórida e ao Rei do Ponto, pelo que enxertou-se em seu lugar no<br />

A.M.G-6 um trio com texto não pertencente ao original e música provavelmente posterior<br />

à estreia. No caso das exclusões tratam-se das árias: “Não tenhas por delírios meus temores”<br />

(Dórida), “Refreia o pranto, Dórida” (Rei) e “Fortuna que inconstante” (Cirene).<br />

No lugar do que seria o único solo do monarca, a oitava seção musical da peça, surge o<br />

terceto “Que medo, que susto”, contando com a participação dos três personagens que<br />

tiveram solos subtraídos e cuja colocação dramatúrgica da seção musical se adapta ao<br />

ponto em que estava a “cantoria” do Rei.<br />

O conjunto das árias revela uma prevalência do formato da capo a cinco partes,<br />

exceto os solos de Caranguejo, que são em forma de rondó, como o foi também o primeiro<br />

de Semicúpio em Alecrim e Mangerona, criando assim uma associação de identidade<br />

para os personagens graciosos masculinos. Há também o minueto vocal, “Toda minha alma”,<br />

para o personagem Proteu, que, assim como o minueto previsto para Fuas no A.M.G-<br />

7, destina-se ao canto do amante que pretende ser bem sucedido em seus intentos. Tais<br />

minuetos podem ser outra marca identitária de Teixeira, em vista das comuns barcarolas<br />

e arietas de cariz modal nos demais autores líricos do tempo. No caso dos rondós, a associação<br />

parece ser mais comum com os demais exemplos da época.<br />

Na escolha de andamentos, apenas quatro Andantes estão grafados, e ainda<br />

assim não o foram por todas as partes; ao contrário, as indicações aparecem isoladamente,<br />

ora na parte do violino primo, ora na do secundo ou na da violeta. Sem contar o coro de<br />

entrada, repetido à saída, há doze “cantorias” que não tiveram atribuição de andamento.<br />

Pelas características da escrita pode-se, entretanto prever o afeto adequado e a velocidade<br />

para a obtenção de uma interpretação coerente em todas elas. Isto reforçaria a ideia de<br />

que o aspecto retórico conduziria escolhas interpretativas a andamentos, dentre outras<br />

coisas, a aspectos da declamação musical<br />

Também em As Variedades de Proteo observa-se a prevalência do mesmo modelo<br />

estrutural do A.M.G-7. A ária “Na onda repetida”, de Políbio (Ato 1), possui vinte e<br />

três compassos de introdução instrumental. A diposição de texto e música fica como sugere<br />

a síntese (Esquema 1).<br />

A estruturação melódica de Teixeira também obedece a duas de suas premissas<br />

mais importantes, a simetria da construção musical e a qualidade retórica da música. Para<br />

o primeiro caso basta olhar a elaboração do primeiro verso “Na onda repetida”, conforme<br />

figura 7.<br />

Todas as seções musicais de As Variedades de Proteu remetem aos procedimentos<br />

que conferem a autoria ao compositor de quase todas as seções de Alecrim e<br />

mangerona. Mesmo o caso de “Que medo, que susto”, o trio enxertado no lugar das três<br />

árias suprimidas, obedece aos modelos em questão e ainda que o texto seja diferente, o<br />

uso de versos pentassilábicos com acentos de segunda e quinta sílabas indica proximidade<br />

grande com Antônio José da Silva, autor de ambos os libretos.<br />

O caso do manuscrito MM876, Precipícios de Faetonte, entretanto, é diferente.<br />

Há 19 seções musicais, das 33 previstas no texto de Antônio José da Silva, sendo que sobreviveram<br />

apenas nove árias, pois as restantes são coros ou recitados secos. O conjunto<br />

das partes reúne apenas violino primeiro, violino segundo, oboés e baixo instrumental.<br />

Não existe nenhuma parte vocal, com exceção de uma parte de quarteto, e apenas o título<br />

das árias ou a atribuição de conjunto (dueto, terceto, coro) permite deduzir a correspondência<br />

com o texto de Antônio José da Silva.<br />

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Esquema 1.<br />

151<br />

No que diz respeito aos modelos composicionais adotados, apenas quatro seções<br />

parecem ter proximidade com a autoria de Antônio Teixeira. São elas o quarteto “Não podem<br />

os deuses dois finos afectos” e as árias “Naquela deidade galharda”, “Nas pupilas dos<br />

meus olhos” e “Se quer adorar-me da mágica fuja”, respectivamente para os personagens<br />

Mecenas, Faetonte e a graciosa Chirinola.<br />

Todas as demais parecem ser de fatura muito posterior à obra lírica conhecida<br />

de Antônio Teixeira. A presença de ligaduras da mão do copista e abundantes marcas de f<br />

e p por mão diferente, quase certamente o copista principal, parecem determinar que a<br />

cópia iniciou-se bem mais tarde que os dois manuscritos de Vila Viçosa.<br />

A parte do quarteto inclusive possui o nome de alguns intérpretes no lugar dos<br />

personagens. São eles Antonico, Vitorino, Santos e Rei. Com exceção deste último, que é<br />

de fato um personagem, os demais interpretaram respectivamente Ismene, Albano e Faetonte,<br />

segundo a ordem da parte mais aguda para a mais grave, cabendo a parte de baixo<br />

ao Rei.<br />

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152<br />

Figura 7. Compassos 14-19 da ária “Na onda repetida”, A.M.G-6.<br />

Eles podem ser Antônio José da Serra, Vitorino José Leite e José dos Santos, respectivamente<br />

atuantes em partes femininas, de galan e gracioso de meio caráter, no Teatro<br />

do Salitre entre 1788 e 1792 (Brito, 1989, p. 107-108); Victorino entretanto aparece<br />

mormente em partes de primeira dama.<br />

Os manuscritos de Alecrim e Mangerona e As Variedades de Proteu podem também<br />

remeter ao repertório do mesmo teatro que usou as partes para Precipícios de Faetonte,<br />

mas são cópias mais antigas.<br />

As ligaduras e sinais de f e p de mão posterior em Alecrim e mangerona indicam,<br />

ao lado das inserções do aludido material de Guglielmi e da ária em forma sonata, que<br />

deve ter sido copiado a cerca de 1770, vindo a ser usado por algumas décadas dada quantidade<br />

de copistas que ali atuaram.<br />

Quanto ao A.M.G-6, As Variedades de Proteu, o manuscrito encontra-se muito<br />

pouco usado, se comparado aos demais, embora tenha partes que foram recobertas a<br />

tinta posterior ou mesmo substituídas. Deve ser o mais antigo dos três conjuntos e sua<br />

cópia pode ter começado alguns anos antes de Alecrim e mangerona, A.M.G-7. Mas não<br />

muito antes, pois o único quarteto da peça já não foi copiado na íntegra, dispensando a<br />

parte b e portanto sem indicação de da capo. Esse procedimento verificável em obras cujos<br />

autores aboliram as indicações de da capo e dal segno, em favor de uma elaboração<br />

próxima da ideia da coda, foi-se tornando comum no último terço do século XVIII, dada a<br />

influência estética do modelo da forma-sonata sobre a elaboração vocal. Além disso, o<br />

procedimento é o mesmo que se observa na integral do conjunto de Precipícios de Faetonte<br />

acima indicado.<br />

Há indícios, ainda, de que tais manuscritos possam ter circulado pelo Brasil.<br />

Desde a década de 1760 que há registros de apresentação das óperas de Antônio José da<br />

Silva pelo Brasil. Ñão é sabida a autoria da música para tais casos, mas a de Antônio Teixeira<br />

não era desconhecida no ambiente colonial. Quando Salvador José de Almeida Faria,<br />

professor de José Maurício Nunes Garcia, faleceu no Rio de Janeiro, em 1799, havia um Te<br />

Deum do autor português, quiçá o hoje célebre a 20 vozes, no seu espólio (Cavalcanti,<br />

2004, p. 185-186).<br />

A grande disseminação de tais títulos de Antônio José da Silva é certamente responsável<br />

pela prática frequente de encenação de excertos da sua obra em Pirenópolis, interior<br />

de Goiás, até os dias atuais. A encenação parece ter sempre envolvido significativa<br />

presença de música, proveniente de coleção privada de manuscritos musicais mormente<br />

do século XIX. A autoria de tal música também é desconhecida, mas dos quatro conjuntos<br />

relativos a Guerras do Alecrim e Mangerona, As Variedades de Proteu, Anfitrião e Encantos<br />

de Medeia, poucas árias destas últimas parecem ser do século XVIII, havendo ao menos<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


153<br />

dentre estas ainda um número diminuto, seguramente uma e talvez mais um par, que podem<br />

vir a ser atribuídas a Antônio Teixeira, ou ambiente estético relacionável, sendo a<br />

grande maioria da composição do século XIX, em datas diferentes pelo que se deduz das<br />

muitas mãos que copiaram a música. A inacessibilidade do acervo em que estão contidos<br />

tais manuscritos impede um exame mais criterioso, de cunho científico-musicológico, para<br />

que se pudesse avaliar sua dimensão e importância para a região e mesmo para a cultura<br />

luso-brasileira.<br />

Ainda assim, alguns elementos podem ser deduzidos a partir da formação do acervo.<br />

Sabe-se que foi constituído de três núcleos originários distintos, incluindo a Igreja<br />

Matriz e a banda local. Em 1800, José Joaquim Pereira da Veiga (1772–1840), recém-ordenado<br />

padre, assumia funções em Meia Ponte (Pirenópolis). Trouxe consigo do Rio de<br />

Janeiro, onde estudou, vários “dramas” (Mendonça, 1981, p. 101), e para a execução musical<br />

de suas árias criou em 1805 um quarteto de cordas (Mendonça, 1981, p. 101). Os<br />

dramas em questão eram Alecrim e Mangerona, Aspásia, Adriano, Artaxerxes e Ésio em<br />

Roma, dentre outros (Gaioso, 2004, p. 22). A autoria da música trazida é incerta e é muito<br />

provável que o material subsistente pertencesse no todo ou em parte já ao século XIX.<br />

Isso porque se sabe que José Inácio do Nascimento, um dos membros do quarteto do padre<br />

Pereira da Veiga, compôs ainda em 1842 árias para Ésio em Roma (Gaioso, 2004, p.<br />

22). Como o hábito de realizar as óperas do acervo de Pirenópolis atravessou o tempo e<br />

chegou aos dias atuais, é crível que o material musical setecentesco tenha sido substituído<br />

gradativamente. As folhas desse acervo, que contêm o baixo instrumental das árias “Suponha,<br />

senhor”, de Dona Nize, e “Viste, ó Clóris”, de Dom Gil, contêm no seu rodapé a seguinte<br />

menção: “Reprezentada no anno de 1846. Ópera de Custódio Roiz de Morais”. A<br />

atribuição pode servir à ideia de autoria ou de propriedade. Há ainda o nome de Manoel<br />

Moreira de Mello inscrito na parte de primeiro violino da citada ária de Dom Gil. O conjunto<br />

conta até mesmo com uma ária para a personagem Fagundes, para quem Antônio José<br />

da Silva não elaborou trechos cantados.<br />

A autoria e os modelos estilísticos de tais manuscritos, dos quais a música popular<br />

urbana parece ter parte, ainda que apontem para uma preservação do texto de Antônio<br />

José da Silva, se distanciam da obra de Antônio Teixeira.<br />

Mesmo no caso de Vila Viçosa, não parecem ainda bem claros os motivos porque<br />

a música de Teixeira teria sobrevivido em manuscritos tão tardios, se considerarmos a volatilidade<br />

do gosto e as rápidas mudanças estéticas durante o século XVIII. As Variedades<br />

de Proteu e Alecrim e Mangerona, foram aparentemente copiados a partir de mais ou<br />

menos 1760 e 1770, respectivamente, possivelmente às portas do momento histórico<br />

musical de maior mudança para o gênero lírico daquele século. Eles parecem ter sido usados<br />

por décadas seguidas e é possível que tenham atravessado ao século XIX nesta condição.<br />

Também não se sabe o que proporcionou uma rápida mudança de música como<br />

se observa nos manuscritos goianos de meados do século XIX. A composição musical para<br />

o texto de Antônio José da Silva parece ter sido retomada, provavelmente a partir dos<br />

últimos dez ou doze anos do século XVIII, conforme se pode deduzir do manuscrito de<br />

Precipícios de Faetonte, reforçada pelo conjunto de manuscritos de Pirenópolis sobre as<br />

quatro peças citadas do Judeu. A provável presença de contrafacta em alguns destes casos,<br />

mais seguramente no MM876, deve ocupar certa importância nos estudos, pois pode<br />

atestar a necessidade de atualização do gosto e os novos padrões, ou pelo menos mais<br />

atuais, em voga nas audiências.<br />

Quanto aos manuscritos de Pirenópolis, se foram ainda que parcialmente copiados<br />

no Rio de Janeiro, por onde os espécimes de Vila Viçosa podem ter circulado<br />

(Cranmer), devem apontar para uma mudança de gosto que alcança, também, o Brasil<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


154<br />

colonial, ainda que as datas mais prováveis da formação repertorial do acervo da antiga<br />

Meia Ponte fiquem melhor acomodadas ao período de 1817 a 1840, quando o Padre Pereira<br />

da Veiga esteve comprovadamente aos serviços daquela comunidade e com o<br />

mencionado material trazido do Rio de Janeiro.<br />

A saliente e ainda pouco conhecida produção de teatro musical em língua portuguesa<br />

que parece convergir para o fim do século XVIII parece ligada a motivos diversos<br />

em que se sobressai a tendência paneuropeia de ópera em língua vernácula e de assunto<br />

cotidiano com personagens de identificação popular, assim como num plano mais lusobrasileiro,<br />

enxerga-se uma tendência nacionalista que ora parece imitar, ora reagir, fortemente<br />

a modelos italianos. Nesse sentido, a manutenção de autores lusófonos, como<br />

Antônio José da Silva e Antônio Teixeira, nos palcos tardo-setecentistas poderia tanto significar<br />

um indício da forte retroação conseguida no Brasil, como pode apontar para a busca<br />

de elementos tradicionais e nacionais, em meio à fixação de um teatro lusófono num<br />

mercado dominantemente de lavra italiana.<br />

Referências bibliográficas<br />

[Anônimo] Comédia nova intitulada A locandiera, ornada segundo o gosto dos Cômicos<br />

Theatros Portuguezes. A qual se representou com grande aceitação no Theatro da Rua<br />

dos Condes... Lisboa: Oficina de Francisco Borges de Sousa, 1765.<br />

Alegria, José Augusto. Biblioteca do Palácio Real de Vila Viçosa: catálogo dos fundos<br />

musicais. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989.<br />

Brito, Manuel Carlos de. Opera in Portugal in the Eighteenth Century. Cambridge:<br />

Cambridge Press., 1989.<br />

Cavalcanti, Nireu. O Rio de Janeiro setecentista: a vida e a construção da cidade da<br />

invasão francesa até a chegada da Corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.<br />

Cranmer, David. “Os manuscritos de música teatral no Paço Ducal de Vila Viçosa – a<br />

ligação brasileira”. In: Callipole, Revista de Cultura, n. 17. Ed. Câmara Municipal de Vila<br />

Viçosa, 2009.<br />

Gaioso, Marshal. Da Missa ao Divino Espírito Santo ao Credo de São José do Tocantins,<br />

um episódio da música colonial em Goiás. Goiânia: Agepel, 2004.<br />

Machado, Diogo Barbosa, Bibliotheca Lusitana: histórica, crítica e cronológica. Na qual<br />

se comprehende a notícia dos authores Portuguezes, e das Obras, que compuseraõ<br />

desde o tempo da promulgaçaõ da Ley da Graça até o tempo prezente. Tomo IV. Lisboa:<br />

Oficina de Antônio Isidoro da Fonseca, 1759.<br />

[Marcello, Benedetto]. Il teatro alla moda. [Veneza], s/ed., 172?.<br />

Mazza, José. Dicionario biografico de Musicos Portugueses. Lisboa: Ocidente, xxiii–xxvi,<br />

1944–1945.<br />

Mendonça, Belkiss Spencière Carneiro de. A música em Goiás. 2ª ed. Goiânia: UFG,<br />

1981.<br />

Silva, Antônio José da (O Judeu). Obras completas. Prefácio e notas de José Pereira<br />

Tavares, 4 vols. Lisboa: Livraria e Editora Sá da Costa, 1957.<br />

Vasconcellos, Joaquim de. Os musicos portuguezes. 2 v. Porto: Imprensa Portugueza,<br />

1870.<br />

VIEIRA, Ernesto. Diccionário biográphico de músicos portuguezes. 2 v. Lisboa:<br />

Typographia Mattos Moreira & Pinheiro, 1900.<br />

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155<br />

O repertório músico-teatral<br />

na Casa da Ópera do Rio de Janeiro,<br />

1778 a 1813<br />

David Cranmer<br />

Universidade Nova de Lisboa<br />

A data incerta é, mas, ao que parece, já na década de 1760, surgiu, no Rio de Janeiro,<br />

um novo teatro; era o terceiro a ser construído nesta cidade, e veio a ser denominado<br />

por “Ópera Nova”, para o distinguir do segundo teatro, que assim passou a ser a “Ópera<br />

Velha”. Até a década de 1770, são bastante reduzidos os nossos conhecimentos acerca do<br />

repertório destes dois teatros.<br />

Terá sido a Ópera Nova que o Morgado de Mateus visitou, em meados de 1765,<br />

presenciando récitas de Precipícios de Faetonte, com texto de António José da Silva (o<br />

“Judeu”), e quatro óperas com texto de Pietro Metastasio, presumivelmente em tradução<br />

portuguesa: Dido desprezada, Ciro reconhecido, Alexandre na Índia e Adriano na Síria<br />

(Budasz, 2008, cronologia). O viajante francês, Louis Antoine de Bougainville, refere-se<br />

genericamente a representações de obras de Metastasio e outros mestres italianos durante<br />

a sua estadia em julho de 1767, sem especificar em que teatro (Budasz, 2008, cronologia).<br />

Foi durante uma representação de Os encantos de Medeia, de António José da Silva, em<br />

1775, que a Ópera Velha pegou fogo, deixando a Ópera Nova como a única “Casa da Ópera”<br />

da cidade. 1<br />

Moreira de Azevedo, em O Rio de Janeiro: sua história, monumentos, homens<br />

notáveis, usos e curiosidades, publicado originalmente em 1877, faz referência a representações<br />

de várias obras, sem mencionar a data (nem a sua fonte), mas que, do contexto,<br />

supõe-se ser de depois de 1773: “Subiram à cena nesse palco as mais populares peças dos<br />

repertórios de Moliére e de Antônio José, e a Inês de Castro, o Convidado de Pedra, a Astúcia<br />

de Escapim, mágicas e cantorias” (Moreira de Azevedo, 1969, p. ii e 156). A Inês de<br />

Castro em questão terá sido, provavelmente, a “comédia” sobre este tema Só o amor faz<br />

impossíveis, de Manuel José de Paiva, sob o pseudónimo de Sylvestre Sylverio da Sylveira<br />

e Silva, o Convidado de Pedra e a Astúcia de Escapim terão sido de Goldoni e Molière respectivamente.<br />

Segundo Moreira de Azevedo, que mais uma vez não indica a sua fonte, durante<br />

o Vice-reinado de Luís de Vasconcelos e Sousa (de 1778 a 1790), enquanto Manuel Luiz<br />

Ferreira o geria, a Casa de Ópera prosperou, com a criação de uma companhia lírica e<br />

representações de Chiquinha, isto é La Cecchina o sia la buona figluola, de Piccinni, Piedade<br />

de amor (La pietà di amore, de Giuseppe Millico) e L’italiana in Londres (L’italiana in Londra,<br />

de Cimarosa) (Moreira de Azevedo, 1969, p. ii e 156).<br />

A fonte original desta informação foi entretanto descoberta por Nireu Cavalcanti,<br />

tendo sido publicada na íntegra por Rogério Budasz em Teatro e Música na América Portuguesa<br />

(Budasz, 2008, p. 248-249). O documento em questão é constituído pelas memórias<br />

de Manuel Joaquim de Meneses, com o título Companhias líricas no Teatro do Rio<br />

de Janeiro antes da chegada da Corte Portuguesa em 1808, elaboradas em cerca de 1850,<br />

e é conservado hoje em dia no Arquivo Histórico do Museu Histórico Nacional, no Rio de<br />

...........................................................................<br />

1 Em 1769, segundo Budasz (2008), cronologia. Agradeço a Lino de Almeida Cardoso a correcção.<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


156<br />

Janeiro. Para além dos títulos referidos por Moreira de Azevedo, o manuscrito cita mais<br />

uma ópera – A italiana em Argel, o que ou diz respeito a uma ópera completamente desconhecida,<br />

ou mais plausivelmente é um simples lapso. 2<br />

No entanto, Meneses acrescenta mais dados, não só títulos, mas igualmente<br />

importantes práticas de execução.<br />

Alem das pessas liricas propriam.te ditas, todos | sabem q. as antigas comedias,<br />

eraõ intercalladas de árias, e duetos, taes como as de Antonio Jose, Labirintho<br />

de Creta: Variedades de | Protheo, Precipicios de Faetonte, Alecrim e Mangerona,<br />

Encantos | de Circe, &c.a, e de outros authores como a denominada D. João de<br />

Alvarado. (apud Budasz, 2008, p. 243)<br />

Ao referir Encantos de Circe, Meneses queria dizer Encantos de Medeia, que é<br />

da autoria de António José da Silva, ou esqueceu-se que a referida ópera portuguesa era<br />

de outro autor desconhecido. 3 Quanto a D. João de Alvarado, comédia atribuída ao dramaturgo<br />

lisboeta Nicolau Luís da Silva, voltarei na devida altura à questão da sua música.<br />

Segundo Meneses, nos anos que se seguiram, foram representadas as óperas<br />

“Nina, Desertor Frances, e Desertor Hespanhol” (Budasz, 2008, p. 249), a primeira de Paisiello,<br />

a segunda de Gazzaniga e a última de compositor desconhecido. Com o regresso da<br />

cantora Joaquina Lapinha de Portugal, para onde se tinha deslocado desde 1791 até 1805,<br />

a Casa da Ópera entrou numa nova fase, com representações de Semiramis, Julieta e Romeu,<br />

Barbeiro de Sevilha, Ouro não compra amor ou Louco em Veneza” (Budasz, 2008, p.<br />

249). Semiramis pode ter sido de Nasolini, Bianchi, Borghi ou talvez Marcos Portugal, 4 Julieta<br />

e Romeu de Zingarelli, Barbeiro de Sevilha de Paisiello, Ouro não compra amor de<br />

Marcos Portugal, sendo desconhecido o autor de Louco em Veneza.<br />

Para a última fase da Casa da Ópera, de 1808 até a inauguração do Teatro de São<br />

João, a 12 de outubro de 1813, a melhor fonte de informação é a Cronologia da Ópera no<br />

Brasil – século XIX (Rio de Janeiro), publicada online por Paulo Kühl, em 2003. Citando<br />

sempre a sua fonte, lembra-nos não apenas de Le due gemelle, de José Maurício Nunes<br />

Garcia, supostamente representada em 1809, 5 e as óperas de Marcos Portugal, L’oro non<br />

compra amore e Artaserse, postas em cena respectivamente em 1811 e 1812, mas também<br />

uma série de obras ocasionais, com música composta por José Maurício ou Fortunato<br />

Mazziotti, conforme o caso, para celebrar aniversários ou dias onomásticos da rainha D.<br />

Maria I ou do Príncipe Regente, D. João.<br />

A escassa documentação que possuímos deixa-nos, portanto, com uma visão<br />

bastante limitada do repertório da Casa da Ópera, conduzindo facilmente a supor que as<br />

representações líricas tenham sido bastante raras. A nossa interpretação, pelo contrário,<br />

é que a documentação é de tal maneira fragmentária que nos fornece um panorama bastante<br />

incompleto do que poderia ter sido um teatro bastante activo. A questão que se le-<br />

...........................................................................<br />

2 As óperas conhecidas com o título L’italiana in Algeri, de Luigi Mosca (1808) e de Rossini (1813), são obviamente<br />

fora da questão durante o Vice-reinado de Luís de Vasconcelos e Sousa.<br />

3 O texto desta ópera foi publicado no tomo II das edições de Operas Portuguezas de 1746 e 1753, assim como<br />

no tomo IV das do Theatro Comico Portuguez de 1759-61 e 1788-92. Ver Cranmer, 2009a.<br />

4 As óperas em questão são, por ordem cronológica de estreia absoluta, Nasolini, La morte di Semiramide (Pádua,<br />

1790), Bianchi, La vendetta di Nino (Nápoles, 1790), Borghi, La morte di Semiramide (Milão 1791) e Portugal, La<br />

morte di Semiramide (Lisboa, 1801). As óperas de Nasolini, Bianchi e Borghi circularam largamente nas décadas<br />

de 1790 e 1800. Representou-se a ópera de Bianchi no Teatro de S. João do Porto na temporada de 1798–1799<br />

e a de Borghi no Teatro de S. Carlos, em Lisboa, em 1799. Desconhece-se qualquer representação de La morte di<br />

Semiramide de Marcos Portugal a não ser com Angelica Catalani como protagonista.<br />

5 A questão da sua representação é bastante polémica. Não se sabe ao certo quando foi estreada ou mesmo se<br />

chegou a ser.<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


157<br />

vanta, como consequência, é a de que fontes existirão que nos pudessem fornecer mais<br />

dados.<br />

Tão cedo como 1964, Francisco Curt Lange apontou, de facto, outro caminho.<br />

No Boletín Interamericano de Música, publicou um artigo ilustrado com, entre outras<br />

imagens, a página de rosto, em manuscrito, da parte de baixo da tragédia Zara. Nesta página<br />

consta a indicação: “Reprezentada no Teatro do Rio de Janeiro em 18 de Novembro<br />

de 1778”. Numa outra página da mesma fonte, não publicada na altura, mas entretanto<br />

reproduzida em Teatro e Música na América Portuguesa (Budasz, 2008, p. 101), existe<br />

uma ária com o nome da intérprete – “Sra. Paula”, que nos permite caracterizar a escrita<br />

musical do seu copista:<br />

1) as claves de fá, à excepção da do primeiro sistema, terminam numa espécie<br />

de pequeno gancho;<br />

2) os sustenidos inclinam-se para a direita;<br />

3) no segundo sistema, onde entra a cantora, consta a indicação “voz”, em que o o<br />

e o z estão escritos com um único movimento da pena, sem a levantar do papel;<br />

4) a barra final é constituída por uma barra dupla, mais três barras, cada vez mais<br />

pequenas, terminando num floreado. 6<br />

Acontece que num outro manuscrito, de um Demofoonte, conservado a quase<br />

8 mil quilómetros do Rio de Janeiro, no Paço Ducal de Vila Viçosa (com a cota G prática<br />

51), encontramos uma grafia musical idêntica: claves de fá maioritariamente com um pequeno<br />

gancho, sustenidos inclinados para a direita, “voz” com o o e z escritos num único<br />

movimento da pena, e a barra final com os mesmos contornos. A cantora neste caso é<br />

indicada como “Sra. Joaquina”.<br />

Esse último facto é tão importante como a grafia do copista, pois quer a Sra.<br />

Paula, de Zara, quer a Sra. Joaquina de Demofoonte, constam da lista de cantores referidos<br />

por Meneses, nas suas Memórias, como sendo do tempo do vice-reinado de Luís de<br />

Vasconcelos e Sousa:<br />

entre os cantores daquelle tempo distinguia hum de | nome Pedro, vindo de<br />

Portugal, q. era ao m.mo tempo excellente | actor dramatico, e poeta, compositor<br />

de alguns entremeses jocosos: | eraõ seus companheiros M.el Rois Silva, Lobato,<br />

Ladisláo Benave- | nuto, comico bufo, Jose Ignacio se S.a Costa, e outros. [...]<br />

Entre as cantoras, distinguia-se Joaquina da Lapa, que pas- | sou a Europa [...]<br />

eraõ suas companheiras, | Luisa, Paula, e outras, todas brasileiras, bem como os<br />

cantores, a excepção de Pedro. (Budasz, 2008, p. 248)<br />

No manuscrito de Demofoonte, um pastiche, com texto apenas parcialmente<br />

de Metastasio, encontramos os nomes de Sra. Joaquina (Joaquina Lapinha), Sr. Manoelinho<br />

(Manuel Rodrigues da Silva), Sr. Pedro (Pedro António Pereira), Sra. Paula, Sra. Luísa, e<br />

uma Sra. Ignacia, não referida por Meneses. Não pode haver a mais pequena dúvida de<br />

que a proveniência desse material seja a Ópera Nova do Rio de Janeiro.<br />

Meneses informa-nos igualmente dos cantores que actuaram a partir de cerca<br />

de 1805,<br />

até q. chegando de Portugal Joaquina da Lapa, deo novo | impulso ao theatro.<br />

Alem della existiaõ as cantoras Fran.ca de Paula, | Maria Jacintha, Genoveva, Ig-<br />

...........................................................................<br />

6 As fotografias originais que Curt Lange tirou encontram-se no Acervo Curt Lange, na Biblioteca da UFMG, em<br />

Belo Horizonte. Perderam-se os manuscritos originais.<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


158<br />

nes, e Maria Candida: entre os cantores, | M.el Rois Silva, Ladisláo, Luiz Ignacio,<br />

e Geraldo, musico eminente | q. ainda existe, e o celebre baixo profundo João<br />

dos Reis. (Budasz, 2008, p. 248)<br />

Esses nomes também se encontram em alguns dos manuscritos no Arquivo<br />

Musical no Paço Ducal em Vila Viçosa. A existência nesse Arquivo de fontes provenientes<br />

do Rio de Janeiro não constitui em si uma novidade. Já se sabia, por exemplo, das obras<br />

ocasionais de José Maurício Nunes Garcia, Ulissea e O Triunfo da América, para além do<br />

final do entremez Manoel Mendes, cujo texto literário é de António Xavier Ferreira de<br />

Azevedo. No entanto, investigações realizadas por nós ao longo de vários anos, baseadas<br />

numa análise criteriosa dos manuscritos, revela que várias dezenas de obras conservadas<br />

neste espólio têm a sua origem na Casa de Ópera do Rio de Janeiro ou, pelo menos, passaram<br />

por lá, vindas originalmente de teatros lisboetas, especialmente do Teatro do Salitre<br />

ou do Teatro de São Carlos, para além do Teatro Real de Salvaterra. As investigações em<br />

Vila Viçosa ainda estão longe de concluídas, mas os dados são suficientemente seguros<br />

para se poder propor acrescentar um número considerável de obras ao repertório músicoteatral<br />

conhecido da Ópera Nova. 7<br />

Em primeiro lugar, no entanto, convém fazer referência aos manuscritos conservadas<br />

em Vila Viçosa que correspondem às obras mencionadas por Meneses. No que<br />

diz respeito ao repertório do vice-reinado de Luís de Vasconcelos e Sousa, existem as partituras<br />

e algumas partes cavas das óperas italianas La pietà di amore (G prática 23 e 117.63)<br />

e de L’italiana in Londra (G prática 35, 90f, 91i e 117.9). O material pertencente às óperas<br />

portuguesas de António José da Silva, Guerras do alecrim e mangerona e Variedades de<br />

Proteu (respectivamente, G prática 7 e 6) também terá sido usado no Rio. Existem igualmente<br />

fragmentos da música para D. João de Alvarado, criado de si mesmo (G prática 86b<br />

e 117.23). Na edição impressa desta comédia, não existe qualquer indício do uso da música,<br />

mas, como já foi referido, Meneses lembra-nos que “as antigas comedias, eraõ intercalladas<br />

de árias, e duetos”, sendo a existência destes fragmentos testemunho dessa prática. Quanto<br />

ao período posterior, existe igualmente em Vila Viçosa material usado no Rio pertencente<br />

a Il barbiere di Siviglia de Paisello (partitura e partes cavas, G prática 27) e de Il disertor<br />

francese (apenas partes cavas, G prática 8 e 117.6), este último com a data de 1800. Encontra-se<br />

ainda neste Arquivo a partitura do Acto II de L’oro non compra amore (G prática<br />

39), sem nada, contudo, que indique o seu uso no Rio.<br />

Para além destas obras, encontramos material, sobretudo partes cavas e muitas<br />

vezes incompleto, de um leque bastante variado de obras músico-teatrais, não só óperas,<br />

comédias e tragédias, mas também entremezes e farças, 8 obras ocasionais e números<br />

soltos:<br />

1º Óperas italianas: La Zaira, de Bernardo José de Souza Queiroz (só as partes<br />

cavas, G prática 45, 91f e 117.17, pois a partitura encontra-se na Biblioteca da Ajuda,<br />

cota 48-II-36 e 37); Il fanatico in Berlina, La modista raggiratrice e La molinara<br />

o sia l’amor contrastato, de Paisiello (respectivamente, G prática 34 e<br />

117.77; 61 e 117.11; e 28, 62, 90a e 117.12); Argenide ossia il ritorno di Serse e<br />

As damas trocadas (tradução portuguesa de Le donne cambiate), de Marcos<br />

...........................................................................<br />

7 Fruto desta investigação é o “Elenco provisório” (Cranmer, 2009b), um inventário das cotas relevantes da<br />

secção G prática, que, em grande parte, substitui o catálogo confuso e incompleto do Cónego Alegria (Alegria,<br />

1988).<br />

8 A ortografia da época “farça” é usada para designar um género específico, em um acto, em voga em Portugal<br />

e no Brasil entre a década de 1790 e cerca de 1830. Distingue-se assim da farsa dos séculos XVI e XVII, de Gil<br />

Vicente, Francisco Manuel de Melo e outros, bem como do uso moderno da ortografia actual.<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


159<br />

Portugal (respectivamente, G prática 44, 90b, 91a, b, c, 117.15; e 46, 89d, i,<br />

117.16,); Il seraglio d’Osmano (G prática 22 e 117.67), de Gazzaniga; e L’isola<br />

d’Alcina, de autor desconhecido (G prática 68).<br />

2º Adaptações populares de Metastasio: Demetrio, de David Perez, em tradução<br />

portuguesa com três cenas cómicas acrescentadas (G prática 85), e versões anónimas<br />

de L’olimpiade (G prática 117.13) e Dido [desamparada] (G prática 88c e<br />

117.5), para além do Demofoonte já referido.<br />

3º Conjuntos de árias, duetos, coros etc. para inserção em comédias e tragédias<br />

portuguesas: O capitão Belisário (G prática 117.20), A mulher amorosa (G prática<br />

117.30), A esposa persiana (G prática 117.25), O convidado de pedra (G prática<br />

117.21), Olinta (G prática 117.31), todas sem atribuição, e Eurene [perseguida e<br />

triunfante], cujos números têm atribuições a Traetta, Perez, Guglielmi e Piccinni<br />

(G prática 117.51).<br />

4º Entremezes e farças: O gato por lebre, com música de António José do Rego<br />

(G prática 12 e 117.27), A dama astuciosa, de José Palomino (G prática 83 e<br />

117.22), O disfarce venturoso, uma versão de Quem busca lã fica tosquiado, de<br />

Marcos Portugal (G prática 47, 86j, 89c, 89s e 117.49), A marujada, de Bernardo<br />

Queiroz (G prática 86h, 86i, 86l e 117.29), e O papalvo logrado, de autor desconhecido<br />

(G prática 91g e 117.32).<br />

5º Obras ocasionais: para além das obras de José Maurício (Ulissea, G prática<br />

13, e O Triunfo da América, G prática 15.1, 15.2, 86g e 117.35), O elogio da Senhora<br />

Rainha, de Marcos Portugal (G prática 42, 84e e 117.73) e três elogios de<br />

Fortunato Mazziotti (de 1811, G prática 43; de 1812, G prática 20 e 117.50; sem<br />

data, G prática 21.1).<br />

6º Números soltos: várias árias anónimas em italiano ou em português, incluindo<br />

as chamadas “ária da perna” (G prática 117.18) e a “ária do papagaio” (117.66),<br />

modinhas e lunduns com acompanhamento orquestral, e um coro marcial de<br />

Fortunato Mazziotti intitulado “A Defesa de Saragoça”, para uso no drama Palafox<br />

em Saragoça, ou, a batalha de 10 de Agosto do anno de 1808 (G prática 84a),<br />

outra peça do dramaturgo António Xavier Ferreira de Azevedo.<br />

A procura de repertório não termina, contudo, em Vila Viçosa. Uma parte cava<br />

solta existente neste arquivo, sem qualquer identificação mas para uma personagem Constância<br />

(G prática 117.47), durante vários anos deixou-nos com um ponto de interrogação,<br />

até um dia ao examinar manuscritos no espólio do falecido maestro Filipe de Sousa, legada<br />

à Fundação Jorge Álvares, encontrámos partes cavas pertencentes à comédia A ciganinha.<br />

Como descobrimos, esta comédia, bem popular nas últimas décadas do século XVIII no<br />

Brasil, mas desconhecida em Portugal, possui uma personagem Constância. As partes estavam<br />

todas presentes excepto a dela, pois é essa que está em Vila Viçosa. Também existem<br />

no referido espólio as partes cavas de Coriolano em Roma, com indícios incontornáveis<br />

do seu uso na Casa de Ópera do Rio de Janeiro.<br />

Como é evidente, não é suficiente meramente descobrir a existência de fontes,<br />

por muito que seja o ponto de partida sine qua non para qualquer investigação. Sendo<br />

assim, gostaria de levantar diversas questões, dando uma resposta em alguns casos, mesmo<br />

que parcial e provisória, ou noutros propondo eventuais métodos de as resolver.<br />

Em primeiro lugar, a questão de cronologia. Com raras excepções, estes manuscritos<br />

não possuem datas. Em alguns casos, referências a cantores específicos ajudam.<br />

Ao que parece, Joaquina Lapinha, por exemplo, é referida como “Joaquina” antes da sua<br />

partida para a Europa e “Lapinha” depois do seu regresso. Um estudo rigoroso dos papéis,<br />

através das marcas de água e a grafia dos copistas ajudará também. De facto, é possível<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


160<br />

identificar um conjunto de copistas activos durante o vice-reinado de Luís de Vasconcelos,<br />

responsáveis sobretudo pelas cópias das comédias e da tragédia Eurene. Outro grupo<br />

está claramente associado a compositores activos no Rio na primeira e segunda décadas<br />

do século XIX. A década de 1790 é mais difícil. Em todo o caso, a reutilização de manuscritos<br />

e a inserção de materiais mais recentes no meio de outros já usados, dificulta bastante o<br />

estabelecimento de uma cronologia coerente. O material de Demofoonte, por exemplo,<br />

fornece evidência de ter sido usado duas vezes de formas diferentes, afectando os<br />

intérpretes envolvidos. O de Guerras do alecrim e manjerona foi usado provavelmente<br />

três vezes, durante um período de 10 ou mais anos entre cerca de 1780 e cerca de 1790,<br />

evidenciando uma clara evolução performativa a favor de uma duração bastante mais reduzida.<br />

Se é possível afirmar a proveniência de alguns dos manuscritos do século XIX,<br />

especialmente os com música composta no Rio, outros, sobretudo os anteriores, são bastante<br />

mais difíceis. Em todo o caso, alguns têm proveniências mistas. A partitura da farça<br />

O gato por lebre, por exemplo, é autógrafa e tem a indicação explícita de ter sido composta<br />

por Rego para o Teatro do Salitre, em Lisboa, em 1804. As partes cavas, no entanto, incluem<br />

a grafia de pelo menos um copista carioca. A partitura de Argenide, de Marcos Portugal,<br />

está sobretudo na mão de copistas lisboetas conhecidos do Teatro de São Carlos, em Lisboa,<br />

mas há determinadas secções introduzidas com a grafia mais uma vez de um copista<br />

carioca. Uma das dificuldades prende-se com a não sobrevivência de manuscritos claramente<br />

atribuíveis a copistas activos no Teatro do Bairro Alto, Teatro do Salitre e Teatro<br />

da Rua dos Condes, com que se pudesse fazer a comparação, esclarecendo o que terá vindo<br />

de Portugal e o que foi copiado localmente no Rio.<br />

Há toda a questão da autoria da música inserida nas comédias e tragédias. Toda<br />

a evidência encontrada até agora aponta para uma tradição de pastiche e contrafacção.<br />

Por exemplo, uma das árias acrescentadas em Guerras do Alecrim e Mangerona, tem um<br />

atribuição a Pietro Guglielmi. De facto, esta ária é um contrafactum, de outra, na sua<br />

ópera Alceste. 9 A ária “Que farei sem o consorte?” em A mulher amorosa, é nada mais<br />

nem menos do que “Que farò senza Euridice?”, do Orfeo, de Gluck, com um novo texto<br />

em português. Já referi que Eurene possui música de pelo menos quatro compositores.<br />

Outra questão que é preciso estabelecer é onde se insere eventualmente a música<br />

encontrada para obras cujos textos impressos não indicam o uso de qualquer música. Um<br />

exemplo que já nos foi possível verificar é A mulher amorosa. Neste caso, à excepção de<br />

uma das “cantorias” (como os números musicais são designados), é fácil descobrir, através<br />

de uma leitura cuidadosa do contexto dramático e literário, onde os números musicais se<br />

inserem. Em um caso – um recitativo acompanhado – o próprio texto encontra-se, de<br />

facto, na edição impressa.<br />

Uma problemática parecida é levantada em casos em que os textos das canções<br />

na edição impressa nada têm a ver com a música que possuímos. A edição impressa de O<br />

gato por lebre, por exemplo, possui o texto de apenas uma canção, que Rego não musicou,<br />

e nenhuma das cantorias compostas por este se encaixa neste momento na peça. No entanto,<br />

não é difícil encontrar lugares apropriados para os números escritos por Rego.<br />

Meneses faz referência a outra questão ainda: a da língua em que se cantava.<br />

Segundo este, na primeira fase, durante o vice-reinado de Luiz de Vasconcelos, as óperas<br />

italianas eram traduzidas por Antonio Nascentes Pinto para português, enquanto no período<br />

após o regresso da Lapinha já se cantava em italiano (Budasz 2008, p. 248-249). Em<br />

vários dos manuscritos em Vila Viçosa encontramos uma mistura das duas línguas. Não<br />

só existem cantorias com o texto italiano riscado e o português inserido, mas também<br />

...........................................................................<br />

9 A ária “Não me chamais tirana” é um contrafactum da ária “Non mi rendete infido” de Alceste.<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


161<br />

manuscritos em que algumas das árias estão em italiano e outras em português. Por enquanto<br />

não podemos definir uma data aproximada sequer a partir de quando se começou<br />

a cantar em italiano. Também não devemos excluir à partida a hipótese de ter havido por<br />

vezes uma mistura, tendo alguns cantores a preferência para o italiano e outros para o<br />

português. Apenas uma análise cuidadosa dos manuscritos esclarecerá esta dúvida.<br />

Por último, gostaria de levantar questões acerca das edições modernas que<br />

podemos querer elaborar com base nestas matérias, pois aqui há outras questões ainda<br />

que entram em jogo. O primeiro é que, em muitos casos, o material que sobreviveu é<br />

bastante fragmentário. De Dido [desamparada], por exemplo, só temos as partes das<br />

trompas e o baixo. De Eurene perseguida e triunfante foi conservada apenas a parte de 2º<br />

violino. E mesmo quando existe a partitura ou as partes cavas todas (ou suficientes para<br />

permitir a reconstituição do resto), no caso de comédias, tragédias, entremezes e farças,<br />

precisamos também do texto da peça em que a música se insere, se queremos encenar<br />

estas obras – e seria triste executá-las apenas em versão de concerto. Já fiz referência a<br />

algumas obras para as quais possuímos uma edição impressa. Noutros casos temos de<br />

procurar os textos em manuscrito, uma tarefa bastante mais difícil, não só por serem<br />

mais raros, mas porque os títulos usados nas partituras e partes cavas nem sempre<br />

correspondem ao do texto literário.<br />

No entanto, vale a pena procurar. Por título de exemplo, existe em Vila Viçosa<br />

música atribuída a Marcos Portugal referente a um entremez intitulado O disfarce<br />

venturoso. Acontece que se encontra em Coimbra um manuscrito do texto do entremez<br />

Quem busca lã fica tosquiado, 10 obra que Marcos Portugal inclui na sua relação autógrafa<br />

como sendo a versão portuguesa da sua farsa italiana L’equivoco in equivoco. Os textos<br />

de quatro das suas cinco cantorias são iguais aos de O disfarce venturoso. Esta descoberta<br />

viabiliza a sua encenação.<br />

Outra questão em relação às edições prende-se com os nossos objectivos em as<br />

realizar, e daí quais os critérios que devemos usar. Para tomar dois casos concretos, numa<br />

edição de Guerras do alecrim e mangerona, devemos manter os números que não<br />

pertencem à versão original (incluindo, por exemplo, a ária de Guglielmi)? Ou devemos<br />

omitir tudo o que não seja plausivelmente de António Teixeira, a quem a música é<br />

atribuída? E, na versão portuguesa do Demetrio de David Perez, devemos excluir as cenas<br />

adicionais cómicas, por uma questão de respeito pelo libretista e pelo compositor, para<br />

além da questão de coerência estilística, ou seguir o objectivo que levou alguém na época<br />

a fazer a versão portuguesa, respeitando antes o gosto dos portugueses daquele tempo,<br />

que exigia absolutamente a inclusão das cenas cómicas?<br />

Nesta tarefa levantei bastantes questões. Foi possível responder, pelo menos<br />

parcialmente, a algumas. Quanto às restantes, constituem um desafio para o futuro.<br />

Referências bibliográficas<br />

Alegria, José Augusto. Biblioteca do Palácio Real de Vila Viçosa: Catálogo dos Fundos<br />

Musicais. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989.<br />

Budasz, Rogério. Teatro e Música na América Portuguesa: convenções, repertório, raça,<br />

gênero e poder. Curitiba: Deartes-UFPR, 2008.<br />

Cranmer, David. Edições setecentistas do Theatro Comico Portuguez, das Operas<br />

...........................................................................<br />

10 Na Sala Dr. Jorge de Faria, na Faculdade de Letras. Possui a cota: JF 5-9-41.<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


162<br />

Portuguezas e das edições avulsas das obras que os constituem. 2009a. Disponível em<br />

.<br />

Cranmer, David. Elenco provisório de espécies de música dramática e instrumental<br />

manuscrita até 1833 existentes no Paço Ducal de Vila Viçosa. 2009b. Disponível em<br />

.<br />

Kühl, Paulo Mugayar. Cronologia da ópera no Brasil: século XIX. 2003. Disponível em<br />

.<br />

Lange, Francisco Curt. “La opera y las casas de opera en el Brasil colonial; Nuevos<br />

aportes sobre la opera en Vila Rica”. In: Boletín Interamericano de Música, n. 44, nov.,<br />

1964, p. 3-11.<br />

Moreira de Azevedo, Manuel Duarte. O Rio de Janeiro: sua história, monumentos,<br />

homens notáveis, usos e curiosidades. 3ª ed., 2 v. Rio de Janeiro: Livraria Brasiliana<br />

Editora, 1969.<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


ÓPERA EM TRANSIÇÃO


165<br />

A República e as mudanças<br />

na cultura musical e músico-teatral<br />

Mário Vieira de Carvalho<br />

Universidade Nova de Lisboa<br />

Tão forte como o impulso destrutivo é, na autêntica historiografia, o impulso da salvação. Mas de<br />

que pode ser salvo algo transcorrido? Não tanto da má reputação e do desprezo em que caiu, mas<br />

mais de um certo modo da sua tradição. O modo como é apreciado como “herança” é mais funesto<br />

do que poderia sê-lo […] o seu desaparecimento.<br />

(Walter Benjamin, “Sobre o conceito de história”. In: Edição Crítica da Obra e do Espólio, 2010, p. 128)*<br />

Procurando dar neste texto sobretudo uma perspectiva de síntese sobre as mudanças<br />

operadas na cultura musical e músico-teatral pela República, há duas ideias fundamentais<br />

a reter: a primeira é a de que essas mudanças ocorrem ao longo de um processo<br />

em que a data de 1910 constitui um indicador importante, mas não verdadeiramente<br />

uma fronteira histórica a separar o anterior do novo regime; a segunda é a de que a necessidade<br />

e a concretização das mudanças, na música e na cultura em geral, tal como<br />

noutras dimensões da vida social, é articulada no quadro de uma rede de relações de natureza<br />

sistémica, que exclui um nexo linear de causa e efeito.<br />

Acrescem, como advertências ao leitor: não se abordará aqui a imensa variedade<br />

da experiência musical: apenas se tomarão em conta alguns aspectos, incidindo muito<br />

especialmente em Lisboa e no Teatro de São Carlos; mais do que apresentar novos factos,<br />

pretende-se reflectir criticamente sobre dados já conhecidos e deixar apontadas pistas<br />

para investigação ulterior.<br />

“Nada temos adiantado desde o século XVIII”<br />

O republicanismo ou o movimento republicano desempenha um papel central,<br />

também na área cultural, desde cerca de 1880 – marcando uma forte presença, por exemplo,<br />

nas comemorações camonianas –, mas o que importa salientar é a polarização política<br />

e ideológica que se gera em torno dele, a energia com que assume a crítica e a necessidade<br />

de uma alternativa ao status quo, transformando-a numa questão de regime, e levandoa<br />

enquanto tal até ao fim, ainda que para alguns quadrantes igualmente críticos e descontentes<br />

tal questão não se colocasse. Por outras palavras: a República é a resposta que<br />

as circunstâncias históricas concretas do País acabam por impor para um diagnóstico em<br />

que convergem perspectivas políticas e ideológicas muito diferenciadas.<br />

“O povo está cansado de ver que nada temos adiantado desde o século XVIII”.<br />

Esta afirmação de Eça de Queirós publicada no Distrito de Évora, de 28 de abril de 1867, é<br />

um bom exemplo desse diagnóstico. 1 Podia ter encabeçado o manifesto inaugural do Par-<br />

...........................................................................<br />

* “So stark wie der destruktive Impuls, so stark ist in der echten Geschichtsschreibung der Impuls der Rettung.<br />

Wovor kann aber etwas Gewesenes gerettet werden? Nicht sowohl vor dem Verruf und der Mißachtung, in die<br />

es geraten ist als vor einer bestimmten Art seiner Überlieferung. Die Art, in der es als “Erbe” gewürdigt wird, ist<br />

unheilvoller als seine Verschollenheit es […] sein könnte.” Cf. Walter Benjamin, Über den Begriff der Geschichte,<br />

ed. Gérard Raulet (Werke und Nachlaß – Kritische Gesamtausgabe, vol. 19), Frankfurt a. M., Suhrkamp, 2010.<br />

1 Cf. J. M. Eça de Queirós, Da colaboração no “Distrito de Évora” (ed. Helena Cidade Moura), 3 vols., Lisboa,<br />

Livros do Brasil, s. d., vol. II, p. 171. Cit. in Mário Vieira de Carvalho, Eça de Queirós e Offenbach: A ácida<br />

gargalhada de Mefistófeles, Lisboa, Colibri, 1999, p. 11-27.<br />

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tido Republicano. Mas, menos importante do que a questão de saber se Eça de Queirós<br />

foi alguma vez republicano é o diagnóstico em si. Não era preciso ser-se republicano para<br />

afirmar que “o povo está cansado de ver que nada temos adiantado desde o século XVIII”.<br />

Foram, porém, os republicanos quem incorporaram, ampliaram e transformaram em acção<br />

prática o processo de mudança, traduzindo-o em mudança de regime.<br />

Como já referi noutra ocasião, nessa frase de Eça de Queirós contêm-se as noções<br />

de peuple de Michelet (1847), de história como processo e como progresso (como a entendiam<br />

Voltaire, Hegel, Marx ou Antero), do século XVIII como época de revolução ou de<br />

rotura em que o terceiro estado (o povo) assume o protagonismo. Eça de Queirós falanos,<br />

assim, de Portugal em 1867 — do Portugal pós-vintista, pós-setembrista e pós-cabralista<br />

— como de um país que ainda não tivesse feito a sua revolução burguesa. Apresentanos<br />

o constitucionalismo e a Regeneração com os traços do “antigo regime”: Nada se<br />

adiantara desde o século XVIII! 2<br />

No seu diagnóstico, Eça de Queirós tem em mente termos de comparação europeus,<br />

a que acede, não por experiência directa, pois ainda nunca saíra do país, mas pela<br />

informação que lhe chega em livros e revistas ou através de outras fontes indirectas (testemunhos<br />

pessoais de amigos etc.). Também a música e a ópera ocupam aí uma área<br />

relevante – uma área a respeito da qual Eça de Queirós deixa igualmente entrever que,<br />

em Portugal, “nada se adiantara desde o século XVIII”. São notórios, por exemplo, os lugares<br />

paralelos entre alguns trechos das crónicas do Distrito de Évora e os textos de Paul Scudo<br />

na Revue des Deux Mondes, que aproximam Eça de Queirós da “actualidade” da cultura<br />

músico-teatral europeia tanto quanto mostram o seu defasamento do “cânone” então<br />

dominante em Portugal. A assimilação, provavelmente através de Antero, do conceito de<br />

“música como linguagem do inexprimível” do romantismo alemão constitui outro exemplo<br />

desse defasamento. 3<br />

“A nossa época é que devia produzir a música”, diz Eça de Queirós, na Gazeta de<br />

Portugal (outubro de 1866). 4 Em Portugal, porém, escreverá depois no Distrito de Évora,<br />

não vê “nem arquitectura, nem música”, assim como também não vê ideias. É no contexto<br />

dessa crítica que ganham particular relevância as suas referências a Mozart. Consciente<br />

ou inconscientemente, elas assinalam a singularidade das suas preferências musicais em<br />

contraste radical com o seu meio. Pois que, ao contrário de Londres, Paris, das principais<br />

cidades germânicas e mesmo italianas, as óperas de Mozart não eram representadas em<br />

Lisboa, não tinham marcado até então o quotidiano cultural português.<br />

Na “Sinfonia de Abertura” fala do D. Juan de Mozart como se fosse a quintessência<br />

da música: “o indefinido daquela alma revelado pela arte, eis aí a música”. 5 Mas como<br />

podia Eça de Queirós sabê-lo de experiência vivida, se nessa altura nunca podia ter assistido<br />

à representação cénica de Don Giovanni num teatro? Decerto, podia ter ouvido trechos<br />

executados ao piano e comentados (eventualmente pelo seu amigo Augusto Machado,<br />

“o Cruges”). Isso não é, porém, comparável a uma forte presença da obra na esfera pública,<br />

através de uma tradição de representações e de adaptações teatrais, ou seja, duma apropriação<br />

efectiva e alargada. O D. Juan de Mozart era um ícone da Europa romântica, uma<br />

referência incontornável do imaginário de escritores, artistas e público culto da época.<br />

Em Paris, a recepção era muito intensa desde 1805, inclusive em versões em língua fran-<br />

...........................................................................<br />

2 Cf. Vieira de Carvalho, loc. cit.<br />

3 Cf. ibidem.<br />

4 Cf. Edição Crítica das Obras de Eça de Queirós, Textos de Imprensa I (da Gazeta de Portugal), ed. Carlos Reis e<br />

Ana Teresa Peixinho, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2004, p. 66-68.<br />

5 Cf. Edição Crítica…, Textos de Imprensa I, p. 72.<br />

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cesa. Em Londres, tornara-se familiar ao público desde 1817, em versões quer italianas,<br />

quer inglesas. Nos países germânicos estava constantemente no cartaz, e a frequência<br />

das produções em língua alemã pode medir-se pelo número de traduções – mais de 60 ao<br />

longo do século XIX, reflectindo mudanças dos contextos ideológicos da recepção.<br />

Também em Itália a obra fazia a sua carreira no século XIX. Se as companhias italianas<br />

contratadas para Lisboa não as incluíam no seu repertório, a única explicação plausível<br />

é a relutância do público português. De 1838 a 1840, na sequência da Revolução de<br />

Setembro, assistiu-se a um esforço de renovação do repertório e da praxis de representação,<br />

que tomava por modelo o Grand Opéra de Paris, designadamente quanto à<br />

coerência do todo e ao aperfeiçoamento do palco ilusionista. O empresário que se encontrava<br />

à frente do São Carlos, o Conde de Farrobo, oriundo da grande burguesia comercial<br />

e cosmopolita, figura “esclarecida” e influente do constitucionalismo, empenha-se nessa<br />

reforma. Deve-se-lhe também, por essa altura (1839), a estreia do Don Giovanni de Mozart<br />

no São Carlos e em Portugal. Por detrás disso, há, sem dúvida, um propósito “educativo”,<br />

dir-se-ia mesmo “iluminista” – no espírito do Setembrismo – como resulta claramente do<br />

extenso artigo publicado no Diário do Governo (5 de janeiro de 1839) a preparar o público<br />

antes da estreia. 6 O artigo, que podia ter sido escrito por alguém com o conhecimento de<br />

causa de João Domingos Bomtempo ou – quem sabe? – do próprio Farrobo, distinto<br />

músico-amador, intérprete e encenador de ópera no seu Teatro privado das Laranjeiras,<br />

exaltava os méritos da ópera de Mozart (dando especial relevo à música) e o significado<br />

da sua estreia em Portugal. Tudo, porém, em vão: o embate com a incompreensão ou<br />

indiferença do público não permitiu que a obra subisse à cena mais de quatro ou cinco<br />

vezes. À data em que Eça de Queirós escrevia – e já haviam passado quase três décadas –<br />

a obra não voltara a ser representada em Lisboa.<br />

Mais significativo ainda é o que se passa com outra das principais óperas de Mozart:<br />

As Bodas de Fígaro. No Distrito de Évora, em 13 janeiro de 1867, Eça de Queirós<br />

compara-as ao Otello de Rossini, uma obra familiar ao público do São Carlos, e observa<br />

que, em Mozart, “a música completa a obra teatral, explica a oculta poesia daquelas almas,”<br />

enquanto Rossini nada teria acrescentado a Shakespeare.<br />

Tal como Don Giovanni, também a ópera Le Nozze di Figaro corria os teatros europeus<br />

desde a viragem do século. Ao tempo em que Eça de Queirós escrevia, mantinhase<br />

provavelmente ainda no cartaz do Théâtre Lyrique, em Paris, onde se transformara<br />

num êxito popular desde 1858, na nova versão francesa de Barbier e Carré. Símbolo indissociável<br />

da revolução burguesa do século XVIII era uma presença constante no repertório,<br />

deixando bem para trás a peça de Beaumarchais que lhe dera origem. Adaptada<br />

e representada em numerosas línguas, constituía outra das grandes referências da cultura<br />

europeia do século XIX.<br />

Em Portugal, porém, nunca seria levada à cena em vida de Eça de Queirós. Se o<br />

Don Giovanni ainda foi representado algumas vezes em duas ou três temporadas do São<br />

Carlos, a partir de 1869 e até final do século, as Bodas só viriam a ser estreadas em Lisboa<br />

após a Segunda Guerra Mundial, em 1945 (em condições, de resto, extremamente precárias).<br />

Por estranha e irónica coincidência, a sua estreia no São Carlos ocorre somente<br />

no ano do centenário do nascimento de Eça de Queirós, que “adorava Mozart em segredo”. 7<br />

Da Flauta Mágica não fala Eça de Queirós nas suas crónicas. Também aqui é<br />

flagrante o contraste entre Lisboa e a recepção europeia da obra. Já para não falar nos<br />

países germânicos, onde atraía público em massa desde finais do século XVIII, são<br />

...........................................................................<br />

6 Cf. Mário Vieira de Carvalho, ‘Pensar é Morrer’ ou O Teatro de São Carlos na mudança de sistemas socio-comunicativos,<br />

Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1993, p. 109-111.<br />

7 Citado in Mário Vieira de Carvalho, Eça de Queirós e Offenbach…, p. 19.<br />

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incontáveis as adaptações em diferentes línguas – por exemplo, em Paris, desde 1801, no<br />

Odéon, com o título Les Mystères d’Isis (um pastiche de Ludwig Wenzel Lachnith que<br />

também incluía trechos do Don Giovanni e das Nozze di Figaro), e desde 1865, no Théâtre<br />

Lyrique, numa versão francesa de Charles Nuitter e Alexandre Beaumont mais conforme<br />

ao libreto original. Contudo, embora tivesse circulado igualmente em versões italianas,<br />

certo é que as companhias contratadas ao longo do século XIX pelos empresários do São<br />

Carlos nunca a levaram à cena neste teatro. Só em 1953 seria aqui estreada por uma companhia<br />

alemã que também trouxe pela primeira vez a Portugal O Rapto no Serralho (Die<br />

Entführung aus dem Serail).<br />

Por sua vez, Cosi fan tutte teve a sua primeira representação em Portugal no<br />

Teatro de São João no Porto em 1816 (única no século XIX), mas só foi estreada no Teatro<br />

de São Carlos em 1958. Finalmente, La Clemenza di Tito foi estreada no Teatro de São<br />

Carlos em 1806 – mais num contexto de revivalismo do modelo virtuosístico da opera<br />

seria e de libretos metastasianos do que por via da “descoberta” do teatro de Mozart, no<br />

que este tinha de mais representativo e característico. 8 Também não voltou à cena senão<br />

no século XX, muito depois da Segunda Guerra Mundial.<br />

Sobretudo quando relacionada com testemunhos que nos deixou da sua<br />

experiência vivida de espectador de ópera, a singularidade da recepção do Don Giovanni<br />

e das Bodas de Fígaro de Mozart em Eça de Queirós, num meio que as desconhece ou se<br />

mantém indiferente a elas, é um sintoma importante da posição de crítico da cultura em<br />

que o escritor se coloca quando afirma que “em Portugal nada temos adiantado desde o<br />

século XVIII”. No meu estudo já acima referido, 9 julgo ter posto suficientemente em<br />

evidência, a propósito do que Eça de Queirós escreve sobre o Fausto de Gounod, no São<br />

Carlos (estreia em 1865), o que o distingue das estratégias de comunicação dominantes<br />

em Lisboa. Eça de Queirós ocupa-se do drama e – na sua apreciação – canto, orquestra,<br />

representação e cena são vistos como um todo que é por aquele inteiramente absorvido.<br />

A música, para ele, está nas personagens, e não fora delas: é, a bem dizer, “esquecida” na<br />

experiência do todo, e quando lhe reserva algumas linhas é ainda para acentuar o que há<br />

nela de gesto dramático. Como já referi, a este respeito, a própria produção do Fausto,<br />

pela coesão das componentes cénico-musicais, era uma excepção relativamente à prática<br />

habitual do S. Carlos, e isso pode ter favorecido os traços específicos da recepção de Eça<br />

de Queirós. Em todo o caso, o confronto com outros cronistas da época evidencia também<br />

aqui o que separa Eça de Queirós desses testemunhos, muito mais preocupados com as<br />

qualidades vocais dos cantores e com a música em si, do que com a ideia de drama como<br />

um todo.<br />

A respeito do Fausto, dizia um dos jornais que, desde havia 25 anos, nunca se<br />

atingira no Teatro de São Carlos um tal grau de coerência do todo, inclusive na mise-enscène.<br />

Ou seja: o jornal remete precisamente para a época da direcção do Conde de Farrobo.<br />

Ligando os dois aspectos – o interesse por Mozart e a recepção da ópera como<br />

um todo – conclui-se que a ausência de Mozart no Portugal romântico não pode ser reduzida<br />

a uma mera e mais ou menos fortuita questão de “gosto”. Trata-se antes de uma<br />

questão estrutural – inerente ao sistema sócio-comunicativo então dominante no Teatro<br />

de São Carlos e aos mecanismos de autorregulação através dos quais este se mantinha<br />

estável, impondo-se a toda e qualquer tentativa de inovação ou mudança. É que as óperas<br />

de Mozart exigiam uma atenção concentrada no desenrolar do todo, do drama, enquanto<br />

a grande tradição da ópera italiana, de Rossini a Verdi, passando por Bellini ou Donizetti,<br />

...........................................................................<br />

8 Continuo a manter esta minha opinião – cf. Vieira de Carvalho, O Teatro de São Carlos…, p. 62.<br />

9 M. Vieira de Carvalho, Eça de Queirós e Offenbach…, p. 11-27.<br />

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169<br />

ou mesmo da ópera francesa (aliás, cantada em italiano) de Meyerbeer ou Auber – independentemente<br />

do génio dramático e das não menores exigências de coesão teatral por que<br />

se batiam os seus autores – se prestava mais facilmente ao isolamento dos “números”, a<br />

uma recepção fragmentária. Por outro lado, face ao paradigma de brilho ou bravura vocais<br />

a que essa tradição habituara os espectadores do São Carlos, dificilmente as óperas de<br />

Mozart podiam suscitar interesse enquanto sequências de “números”, onde, de quando<br />

em quando, se “medisse” o virtuosismo da prima donna: “Ali é que se via a força das<br />

cantoras!” – como dizia o conselheiro Acácio.<br />

Não é por acaso que Eça de Queirós fala de compositores “pensadores” – os excluídos<br />

do repertório do São Carlos – contrapondo-os aos da tradição italiana dominante:<br />

Meyerbeer, Gluck, Mozart, Beethoven, são verdadeiros pensadores. Mas S. Carlos<br />

canta-os? De modo nenhum, a não ser de dois em dois anos Meyerbeer a fugir<br />

e a fingir. De resto, Donizetti e Bellini, todos os sensualistas! Ora aqueles respeitamo-los<br />

como ideias que cantam – estes detestamo-los como erotismos que<br />

arrulham. 10<br />

Sob a aparência de uma oposição entre estilos ou escolas nacionais, o que está<br />

aqui realmente em causa é a crítica de um modelo de comunicação que excluía as ideias,<br />

o drama, e, consequentemente, qualquer investimento intelectual por parte do público.<br />

A excepção do Fausto, reflectida na própria recensão crítica de Eça de Queirós,<br />

confirma a regra de uma prática de representação onde a cena não condizia com o drama<br />

representado; os cenários, ainda que pintados por Rambois e Cinnati ou, mais tarde, por<br />

Manini, não condiziam com os figurinos e os adereços; onde, enfim, o palco era um mero<br />

pódio para os cantores fazerem valer as suas faculdades e destrezas vocais ou, ao menos,<br />

o seu potencial de sedução pessoal. Nos anos 70 e nos 80 do século XIX continuam a<br />

abundar os testemunhos da falta de consistência dos elementos cénicos, que colocava o<br />

São Carlos abaixo do padrão de exigência de outros teatros da capital:<br />

Fora algumas belas telas de Rambois e Cinnati, cada vez mais raras, que miseen-scène!<br />

Tome-se para exemplo o D. Carlos: fatos remendados torpemente,<br />

bastidores roídos da traça, uma velha mesa carunchosa onde o tirano se apoia…<br />

Os coristas agrupados a um canto, na escassez do seu número, elas com os braços<br />

nus mal lavados, eles com as botas enlameadas […] 11<br />

Voltando ao Don Giovanni, na crónica publicada no Diário de Governo de 5 de<br />

janeiro de 1839 tornava-se, porém, bem explícito o equívoco até mesmo daqueles que<br />

queriam promover a obra. Após considerações relativas à moralidade do protagonista<br />

concluía-se:<br />

[M]as todos sabem que não é ao drama que se vai dar attenção no Theatro<br />

Italiano; é só à parte harmonica, e nesta parte D. Giovanne [sic], merece mais<br />

que nenhuma outra Opera. 12<br />

...........................................................................<br />

10 Cf. J. M. Eça de Queirós, Uma Campanha Alegre (ed. Helena Cidade Moura), Lisboa, Livros do Brasil, s. d., p. 230.<br />

11 Cf. Eça de Queirós, Uma Campanha Alegre…, p. 230. Cf. ainda testemunho de Carl Busch citado em Vieira de<br />

Carvalho, O Teatro de São Carlos…, p. 89 e, M. Vieira de Carvalho, “Imagens da alteridade na recepção de Il Guarany<br />

de Carlos Gomes por ocasião da sua estreia em Lisboa em 1880”, in Portugal e o Brasil no advento do Mundo<br />

Moderno – Sextas Jornadas de História Ibero-Americana (ed. Maria do Rosário Pimentel), Lisboa, Edições<br />

Colibri, 2001, p. 315-346 (republicado in M. Vieira de Carvalho, ‘Por lo impossible andamos’ - A ópera como teatro<br />

de Gil Vicente a Stockhausen, Porto, Âmbar, 2005, p. 109-139).<br />

12 Cit. in M. Vieira de Carvalho, O Teatro de São Carlos…, p. 111.<br />

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Assim continuava a ser à data em que Eça de Queirós escrevia as suas crónicas<br />

para a Gazeta de Portugal e o Distrito de Évora ou, mais tarde, As Farpas. Tanto mais contrastante<br />

é, pois, no contexto português, a sua posição. E tanto mais flagrante o divórcio<br />

entre a concepção iluminista da ópera, desenvolvida desde meados do século XVIII em<br />

vários países europeus, e a tradição que se mantinha em Portugal em pleno século XIX –<br />

a ideologia da redução da ópera a “música de ópera”, sem considerar o teatro, o drama.<br />

Ideologia no sentido próprio do termo: aceitar como evidência do senso comum algo que<br />

já fora problematizado havia um século em França, na Inglaterra ou nos países germânicos,<br />

em resultado da emergência da esfera pública burguesa. Em Portugal, mesmo um membro<br />

da elite mais cosmopolita e informada, como aquele que redigiu o artigo laudatório do<br />

Don Giovanni e do seu autor, Mozart, escrevia como se desconhecesse a teoria e a praxis<br />

operísticas desses países, ou considerasse uma fatalidade ser o “Teatro Italiano” a negação<br />

do teatro.<br />

Em Portugal, as estratégias de comunicação na ópera continuavam a ser dominadas<br />

pela estrutura coloquial herdada do antigo regime, a qual não dava tréguas, nem a<br />

Mozart, nem à concepção da ópera como drama.<br />

O modelo de comunicação coloquial<br />

Um debate em torno da ópera ou do teatro lírico como o que foi iniciado em<br />

França em 1752 e deu origem à chamada querelle des bouffons nunca podia ter ocorrido<br />

em Portugal. Centenas de artigos em periódicos, opúsculos e panfletos publicados sobre<br />

o assunto no espaço de três ou quatro anos pressupunham condições estruturais que não<br />

existiam em Portugal. Aqui dominava a esfera pública representativa, marcada por um<br />

estreito controlo das publicações – a necessidade de um imprimatur régio –, e os periódicos<br />

existentes limitavam-se a breves notícias sobre eventos do quotidiano nacional e internacional,<br />

mormente de carácter político, comercial ou militar. A esfera pública burguesa<br />

encontrava-se, entre nós, num estádio ainda demasiado incipiente, que decorria da própria<br />

debilidade do desenvolvimento do capitalismo, da falta de uma burguesia autoconsciente<br />

do seu papel social e bem implantada no terreno. 13<br />

Enquanto a imprensa florescera desde a viragem para o século XVIII em França,<br />

na Alemanha ou em Inglaterra (país em que a censura à imprensa foi abolida em 1695) e<br />

se transformara num espaço de debate das mais variadas temáticas – também as artísticas<br />

– em Portugal persistia a inexistência de uma verdadeira opinião pública. Nem mesmo os<br />

temas considerados próprios de uma conversation amusante, tais como música ou ópera,<br />

ganhavam espaço na esfera pública como alternativa tolerada às questões políticas ou de<br />

Estado. 14<br />

Economia de mercado e esfera pública burguesa eram pressupostos do próprio<br />

processo de autonomia do sistema artístico, da sua diferenciação funcional relativamente<br />

ao cerimonial representativo da corte e ao culto religioso. Momentos como o da querelle<br />

des bouffons marcam um estádio decisivo nesse processo que já vinha tendo expressão<br />

no volume e na intensidade do debate sobre música e ópera, inclusive em publicações especializadas,<br />

que se multiplicam desde o início do século XVIII e onde não raro abundam<br />

as recensões críticas de publicações de música impressa.<br />

...........................................................................<br />

13 Um indicador relevante é, por exemplo, o facto de o número de negociantes nacionais só em 1792 ter ultrapassado<br />

o dos negociantes estrangeiros fixados em Portugal. Cf. Vieira de Carvalho, O Teatro de São Carlos…, p.<br />

50, 52.<br />

14 Sobre a “semântica da interacção” na sociedade da corte e os temas próprios de uma conversation amusante,<br />

excluindo questões políticas ou de Estado, cf. Niklas Luhmann, “Interaktion in Oberschichten: Zur Transformation<br />

ihrer Semantik im 17. und 18. Jahrhundert”, in Gesellschaftstruktur und Semantik. Studien zur Wissenssoziologie<br />

der modernen Gesellschaft (do mesmo), Frankfurt a. M., Suhrkamp, 1993, vol. I, p. 72-161.<br />

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171<br />

As histórias da música tendem a dar uma visão redutora da querelle, circunscrevendo-a<br />

ainda e sempre a uma questão de “gosto”, a uma espécie de birra entre os<br />

partidários da música francesa e os da música italiana. Mas o que está em causa é de<br />

muito maior alcance. Trata-se, na verdade, de um debate em torno de dois modelos de<br />

comunicação da ópera: uns defendem o modelo da “sociedade da corte”, outros o modelo<br />

emergente da esfera pública burguesa. De cada um dos lados, posicionam-se partidários<br />

tanto da música italiana como da música francesa.<br />

No modelo da sociedade da corte, o espectáculo de ópera existia em função do<br />

próprio cerimonial representativo, palco e sala interpenetravam-se, não havia separação<br />

entre “teatro” e “quotidiano”. Todos desempenhavam um papel activo no espectáculo:<br />

não só os artistas, que jamais podiam descurar a exibição das destrezas (os seus títulos de<br />

prestígio e ascensão sociais); mas também os espectadores, por sua vez vinculados à etiqueta<br />

e à hierarquia, que exigiam deles contenance, isto é, que dessem mais atenção à representação<br />

do respectivo cargo ou condição do que à acção ficcional representada no<br />

palco. A verdadeira representação era o próprio cerimonial da corte, a festividade solene<br />

de celebração do poder, do qual a ópera fazia parte como elemento subordinado, essencialmente<br />

decorativo.<br />

Os méritos ou destrezas dos artistas (compositor, libretista, maquinista ou pintor<br />

das cenas, músicos e sobretudo cantores), cada qual expondo o mais possível os artifícios<br />

da oficina músico-teatral, alimentavam, por sua vez, a semântica da interacção entre os<br />

cortesãos – eles próprios, afinal, músicos-amadores ou conhecedores. Ser conhecedor<br />

era um atributo inerente às maneiras, entre as quais se contava precisamente a capacidade<br />

de manter conversations amusantes: por exemplo, sobre música e ópera, um dos temas<br />

de eleição (como decorre das fontes da época).<br />

O criticismo burguês dirigia-se tanto contra esta estrutura de comunicação, onde<br />

o balanço entre o feedback para o representado e o feedback para as destrezas (a oficina)<br />

na arte de representar podia configurar uma estrutura épica, como contra a sua tendencial<br />

degradação numa estrutura coloquial, a variante mais corrente ou generalizada em teatros<br />

públicos na ausência de cerimonial da corte (rei ausente ou oficialmente “incógnito”,<br />

quando presente). Neste caso, as retroacções (feebacks) cumulativos entre as destrezas<br />

ou sedução pessoal dos virtuosi e os espectadores bem como aquilo a que poderíamos<br />

chamar a hiperactividade destes durante o espectáculo – retroagindo uns para os outros<br />

– expulsava do campo da recepção a ópera em si, a acção representada, as personagens,<br />

o drama. Prevalecia uma recepção fragmentária, onde o espectáculo se deslocava para a<br />

sala, já não no contexto do cerimonial representativo da corte, mas sim no contexto de<br />

formas de sociabilidade informais, como aquelas que o Abade António da Costa descreve<br />

por volta de 1753, referindo-se a uma opera seria representada em Roma:<br />

Já não falo no grande rumor que se faz dentro [do palco], porque o de fora é tal<br />

que quase o encobre de todo. […] Ora que ouvi eu aqui? Conheço que não foi<br />

coisa que me desse gosto, antes trago na cabeça um zum zum, de quatro para<br />

cinco horas de rumor de rabecas, rabecões, trompas, etc., gritaria de gente, conversação<br />

contínua, risadas, palmadas, uns a gritar: bravo, bravone! Ah, caro Cafarello!<br />

os que vendem sempre a apregoar ao redor dos camarotes, gritando<br />

desesperados: quem quer vinho, frutas, doces, etc. 15<br />

...........................................................................<br />

15 Cit. in M. Vieira de Carvalho, Razão e sentimento na comunicação musical – Estudos sobre a Dialéctica do<br />

Iluminismo, Lisboa, Relógio d’Água, 1999, p. 41.<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


172<br />

O modelo de comunicação alternativo, incidindo sobre a produção, mediação,<br />

recepção e função da ópera, parte integrante de uma revolução burguesa que se começa<br />

a manifestar nas artes, na cultura, na ideologia, antes de ter expressão política na reforma<br />

e na revolução das instituições políticas, já se encontra delineado nos artigos e opúsculos<br />

da querelle, contemporâneos a esta carta do Abade António da Costa, e pode ser sintetizado<br />

nos seguintes princípios:<br />

- Separação radical entre palco e sala bem como entre teatro e quotidiano (quarta<br />

parede);<br />

- Art caché (arte oculta ou dissimulada): as destrezas visam a ilusão perfeita; a<br />

maior destreza consiste em jouer au naturel, isto é, em dissimular as destrezas<br />

ou o artifício, conferindo ao representado o efeito de realidade ou tranche de<br />

vie;<br />

- A acção representada como aparência do natural anula a “distância” do espectador,<br />

suscita empatia ou identificação emocional;<br />

- A compreensão decorre, não da razão, mas sim do sentimento, a melhor forma<br />

de ensinar a virtude (do coração para o coração);<br />

- Art caché (arte como tranche de vie) não carece de espectadores conhecedores,<br />

está ao alcance de todos (à la portée de tout le monde);<br />

- O rapport d’égalité entre os espectadores, igualizando-os como humanos, obnubila<br />

a hierarquia de cargo ou condição na sala, num efeito paralelo ao do desaparecimento<br />

da hierarquia de faculdades e destrezas no palco (pois que o virtuosismo<br />

do intérprete é também, a bem dizer, “esquecido” na retroacção ou<br />

feedback exclusivos para a personagem e a acção representadas);<br />

- A ópera autonomiza-se da festividade da corte e da sua função cerimonial ou<br />

de divertimento faustoso, e, enquanto arte autónoma, passa a assumir uma<br />

função educativa, instrumento de cidadania e esclarecimento;<br />

- Consequência da autonomia da arte – neste caso, da ópera – é a inversão da<br />

hierarquia entre palco e sala: enquanto no modelo da sociedade da corte dominava<br />

a relação autoritária da sala para com o palco, no modelo burguês pressupõe-se<br />

a autoridade do palco sobre a sala;<br />

- Em vez de mero pretexto para a conversation amusante, que desviava das<br />

questões políticas ou de Estado, a ópera torna-se indestrinçável das grandes<br />

causas ou grande questões, também políticas, que mobilizam a esfera pública.<br />

Essa estrutura de comunicação apresentacional, 16 emergente em meados do<br />

século XVIII da esfera pública burguesa, começa a consolidar-se nos teatros europeus por<br />

...........................................................................<br />

16 Os conceitos de estrutura coloquial e estrutura apresentacional são desenvolvidos a partir de Heinrich Besseler<br />

(“Umgangsmusik und Darbietungsmusik im 16. Jahrhundert” [1959] in Aufsätze zur Musikästhetik und Musikgeschichte,<br />

Leipzig, Reclam, 1978, p. 301-331), que os aplicou a diferentes formas de fazer música: Umgangsmusik<br />

(música coloquial) designa uma participação musical colectiva em que não há uma distinção clara entre competências<br />

musicais activas e passivas, entre artistas e público; Darbietungsmusik (música de apresentação ou apresentacional)<br />

designa formas de fazer música baseadas na distinção entre o desempenho dos músicos e uma audiência<br />

passiva que assiste à realização musical. Nos meus primeiros trabalhos comecei a aplicar esses conceitos à<br />

própria noção de estrutura de comunicação: distinguindo entre Umgangsstruktur (estrutura coloquial: aquela<br />

em que todos os participantes têm um papel activo, independentemente de este se traduzir num comportamento<br />

propriamente musical) e Darbietungsstruktur (estrutura apresentacional: aquela em que há uma divisão radical<br />

de competências entre artistas que actuam e um público imóvel e silencioso que assiste à performance).<br />

Na transposição para a língua portuguesa, usei inicialmente as designações, respectivamente, de estrutura de participação<br />

e estrutura de separação de competências. Em língua inglesa, as categorias de Besseler têm sido, porém,<br />

traduzidas pelos adjectivos colloquial e presentational. No sentido de estabilizar os conceitos, proponho agora<br />

que passem a ser usadas em língua portuguesa as palavras coloquial e apresentacional (este último, decerto, um<br />

neologismo, mas sem a ambiguidade da palavra representação, ou derivados, e mesmo dos neologismos performance<br />

ou performativo, entretanto já inscritos no Dicionário de Língua Portuguesa da Academia das Ciências de Lisboa).<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


173<br />

volta de 1770, cerca de cem anos antes da publicação das crónicas de Eça de Queirós na<br />

Gazeta de Portugal e no Distrito de Évora. O princípio do desaparecimento do cantor na<br />

personagem é formulado por Rousseau (1767), o da subordinação das partes ao todo no<br />

palco de ópera por Gluck (1769), e a concretização prática do modelo apresentacional<br />

testemunhada por Burney nos seus Diários (referindo-se a um espectáculo da Alceste de<br />

Gluck, em Viena, em 1771):<br />

Não basta ao Actor de Ópera ser um excelente Cantor, se ele não for também<br />

excelente na Pantomima; pois que não deve fazer sentir somente o que ele próprio<br />

diz, mas também o que faz dizer à Sinfonia… mesmo guardando silêncio; e,<br />

ocupando-se embora de um papel difícil, se se esquecer por um instante da Personagem<br />

para se ocupar do Cantor, não será senão um Músico em Cena; já não<br />

será Actor. (Rousseau, Dictionnaire de Musique, 1767).<br />

[…] Uma ópera feita como defendo pode ter êxito mesmo quando interpretada<br />

por um cantor mediano. […] um cantor célebre torna-se destruidor do interêt<br />

général, sobretudo quando rodeado de gente mediana, que é por ele aniquilada<br />

[…] todos os cantores, por mais excelentes que sejam, destroem o efeito de conjunto<br />

quando o compositor serve cada um à sua maneira [em vez de fazer a música]<br />

à la manière du poëme […] (Gluck, prefácio a Alceste, 1769).<br />

[…] os que a viram representada […] não podiam tirar os olhos um só momento<br />

do palco, durante todo o espectáculo, tendo a sua atenção tão aguçada e a sua<br />

consternação tão aumentada, que se conservavam em permanente ansiedade,<br />

entre a esperança e o medo dos eventos, até à última cena do drama […] (Burney,<br />

1773, sobre a Alceste, de Gluck, em Vi) 17<br />

Esta mudança de paradigma na estrutura de comunicação – do modelo coloquial<br />

para o modelo apresentacional –, descrita por Hans Robert Jauss como transferência para<br />

a arte do modelo de identificação da religião, estava ainda longe de ter aplicação em<br />

Portugal e nem sequer fora ainda objecto de debate na esfera pública. Um dos precursores<br />

do debate é precisamente Eça de Queirós que, nas suas primeiras crónicas, diagnostica a<br />

persistência do modelo coloquial da sociedade da corte do antigo regime:<br />

Vai-se ao S. Carlos […] porque é obrigação de cada um mostrar-se nas cadeiras,<br />

olhar, aborrecer-se. mover-se compassadamente e sair. […] As famílias que em<br />

S. Carlos têm assinatura, essas, vão conversar, fazer ondear os estofos, mostrar<br />

os falsos penteados, paradear pomposamente. […] Nada do que é humano entra<br />

nesta sociedade frívola. Só sentimentos convencionais e ridículos […] 18<br />

Na sua ficção, um verdadeiro olhar antropológico avant la lettre sobre a sociedade<br />

portuguesa, Eça de Queirós multiplicará os testemunhos quanto a esta maneira de<br />

frequentar ou de estar no teatro. Pedro da Maia divertia-se com “distúrbios no Marrare”,<br />

“façanhas nas esperas de toiros”, “cavalos esfalfados” e “pateadas em S. Carlos”. Alencar<br />

ia observar “do camarote dos Gamas” o curso do idílio entre Pedro e Maria, instalados<br />

numa frisa, e corria ao Café Marrare, a meio do espectáculo, “a berrar a novidade”. Para o<br />

conselheiro Acácio, “Lisboa só era imponente, verdadeiramente imponente, quando<br />

estavam abertas as Câmaras e S. Carlos”. E assim por diante.<br />

...........................................................................<br />

17 Cf. M. Vieira de Carvalho, Razão e sentimento na comunicação musical…, especialmente p. 35-139.<br />

18 Cf. Eça de Queirós, Da colaboração para o Distrito de Évora…, v. I, p. 263.<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


174<br />

Este modelo comunicação generalizava-o Eça de Queirós a todo o teatro: “Vaise<br />

[ao teatro], como ao Passeio, em noites de calor, para estar”. 19 “Passeio” incluía, pois,<br />

a ópera, o teatro em geral, o café, o circo, a praça de touros e também o Parlamento, além<br />

do Passeio Público propriamente dito. 20 Enquanto decorria o espectáculo conversava-se,<br />

entrava-se e saía-se, visitavam-se amigos nos camarotes. Quando a família real chegava,<br />

o espectáculo era interrompido, toda a companhia vinha à boca de cena e cantava o Hino<br />

da Carta. Nas Galas, a Tribuna Real fazia concorrência ao palco propriamente dito, ao<br />

mesmo tempo que era vedado ao público patear ou aplaudir, para se marcar bem o carácter<br />

solene de cerimonial da corte ao qual a performance músico-teatral se subordinava… –<br />

resquício de uma prática da sociedade da corte do antigo regime que Eça de Queirós não<br />

deixa de ridicularizar em As Farpas (outubro de 1871). 21<br />

A ausência da quarta parede e da separação entre teatro e quotidiano bem como<br />

a relação autoritária da sala para com o palco eram evidentes. A estrutura de comunicação<br />

herdada do antigo regime mantinha-se no essencial. Nesta matéria – Eça de Queirós<br />

tinha razão! – em Portugal “nada se adiantara desde o século XVIII”.<br />

O falhanço do programa iluminista em Portugal<br />

Ao contrário de outros países europeus, a hostilidade da Igreja ao teatro (referimo-nos<br />

às formas de teatro profano em vernáculo, excluindo as tragicomédias dos jesuítas<br />

declamadas em latim) marcou persistentemente a própria esfera pública representativa<br />

até meados do século XVIII. O privilégio de 1588 de Filipe II, segundo o qual<br />

todas as representações de comédias em Lisboa só podiam ser autorizadas desde que pagassem<br />

tributo ao Hospital de Todos-os-Santos, é sintomático dessa hostilidade ao teatro,<br />

assim caracterizado como um divertimento suspeito, apenas “tolerado” ou “desculpado”<br />

se parte das suas receitas revertesse para obras de caridade. Não admira, por isso, que a<br />

corte portuguesa se tenha mantido afastada do teatro: com Gil Vicente, nasceu e desapareceu<br />

(para sempre!) o teatro de corte em língua portuguesa. Daí também que a voga<br />

dos espectáculos músico-teatrais e a expansão europeia da ópera italiana desde meados<br />

do século XVII não tenham penetrado na corte portuguesa, que nunca a usou para a<br />

função representativa até ao termo do reinado de João V. Todas as fontes parecem confirmá-lo:<br />

o esplendor da música italiana fazia falta ao monarca para replicar o esplendor<br />

do poder real, mas era exclusivamente na Igreja que exercia essa função. A autocelebração<br />

joanina do poder real confundia-se com o cerimonial religioso – altamente teatralizado, é<br />

certo (em Mafra ou na Patriarcal), mas religioso.<br />

Só com José I, ainda antes da edificação da Ópera do Tejo, é que a música teatral,<br />

a ópera italiana, rompe essa barreira político-ideológica secular. Só então o teatro e o investimento<br />

no teatro (enquanto espaço faustoso adequado à função) se tornam atributos<br />

da representação oficial do poder real. Mas é também na época de José I, após o abalo<br />

social, político e ideológico causado pelo terramoto, que surge o primeiro esboço de um<br />

discurso iluminista sobre teatro, rompendo com a subordinação também secular do sistema<br />

artístico à autoridade teológica:<br />

Os Homens de Negócio da Praça de Lisboa Me representaram […] o grande esplendor<br />

e utilidade, que resulta a todas as Nações do Estabelecimento dos Teatros<br />

públicos, por serem estes […] Escola, onde os Povos aprendem […] civilizando-<br />

...........................................................................<br />

19 Cf. Eça de Queirós, Uma Campanha Alegre…, p. 23.<br />

20 Cf. J.-A. França, O Romantismo em Portugal - Estudo de factos socioculturais , 6 vols., Lisboa, Livros Horizonte,<br />

1974, cit. in M. Vieira de Carvalho, O Teatro de São Carlos…, p. 71-84.<br />

21 Cf. Eça de Queirós, Uma Campanha Alegre…, p. 190-191.<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


175<br />

se e desterrando insensivelmente alguns restos de barbaridade, que neles deixaram<br />

os séculos infelizes da ignorância. 22<br />

Homologado pelo rei em 1771, este alvará resulta de uma representação de 40<br />

grandes negociantes, oriundos de uma burguesia comercial cosmopolita, que pretendia<br />

constituir uma Sociedade para a Sustentação dos Theatros Públicos, mantendo um teatro<br />

de ópera italiana e outro de drama português. Marca a diferença entre a condenação<br />

teológica do teatro como vício e a sua avaliação positiva como escola, como fonte de<br />

saber e “esclarecimento”. Reflecte e assume o discurso iluminista europeu sobre o papel<br />

das artes.<br />

Num sentido semelhante se pronuncia, por exemplo, nos Estados germânicos,<br />

Christoph Martin Wieland (1775):<br />

Na concepção até agora dominante, a ópera é um prazer demasiado caro para a<br />

maioria dos príncipes da Alemanha e até mesmo para as nossas cidades mais<br />

populosas e ricas. Em contrapartida, um Singspiel […] exigiria tão parco investimento<br />

que até uma cidade mediana da Alemanha […] teria meios […] para<br />

oferecer aos seus cidadãos um prazer público da mais elevada natureza e que<br />

decerto não deixaria de ter uma influência muito útil no gosto e nos costumes.<br />

[…] a maioria daqueles que governam contemplam a música, a poesia, o teatro<br />

e as belas-artes apenas como artes de passatempo, cujo fim exclusivo seria fazer<br />

cócegas à vista e ao ouvido […], não veem as forças inexauríveis, inesgotáveis<br />

para o aperfeiçoamento da humanidade que nestas artes se contêm[…] O Singspiel<br />

através da mera reunião da poesia, da música e da acção [actuaria] no sentido<br />

da promoção da humanidade. 23<br />

As diferenças na formulação do programa iluminista para a ópera que estes textos<br />

revelam correspondem, porém, a estádios bem diferentes, quer de desenvolvimento<br />

da esfera pública, quer de desenvolvimento do capitalismo e duma consciência de classe<br />

burguesa.<br />

Em Portugal, fala-se em teatro como escola, mas pretende-se continuar a manter<br />

a ópera italiana enquanto forma de sociabilidade de prestígio. Em parte alguma se<br />

menciona ópera em língua portuguesa. Não se desenvolve uma alternativa ao modelo de<br />

comunicação da sociedade da corte. Pelo contrário, cerca de 20 anos mais tarde, quando<br />

a mesma burguesia cosmopolita, já em época de “viradeira”, é obrigada a justificar o<br />

Teatro de São Carlos (1793) como fonte de receita para a Casa Pia (regresso à condenação<br />

teológica do teatro), o modelo de comunicação que este incorpora, em todo o seu<br />

esplendor, é aquele que a corte já tinha: ópera italiana na presença do rei. A burguesia<br />

portuguesa quer, para ela, um teatro de corte, com todos os respectivos ingredientes,<br />

incluindo – além do espaço faustoso, do rei e da família real – o mais “nobre” e mais caro<br />

de todos: ópera italiana. 24<br />

O contraste com o discurso iluminista que prevalece nos Estados germânicos e a<br />

que Wieland dá voz não podia ser mais flagrante. Na tomada de posição deste, o primeiro<br />

ponto é logo a recusa do modelo da sociedade da corte: por se basear na ópera italiana,<br />

...........................................................................<br />

22 Cf. M. Vieira de Carvalho, O Teatro de São Carlos…, p. 45.<br />

23 Christoph Martin Wieland, Versuch über da deutsche Singspiel und einige dahin einschlagenden Gegenstände<br />

(1775), cit. in M. Vieira de Carvalho, O Teatro de São Carlos…, p. 35.<br />

24 Para uma discussão mais alargada, cf. M. Vieira de Carvalho, “Trevas e Luzes na Ópera do Portugal Setecentista”,<br />

in Razão e sentimento…, p. 141-157. Neste estudo procede-se a uma revisão crítica, à luz da descoberta de<br />

novas fontes primárias, das questões já abordadas, quanto ao século XVIII, in O Teatro de São Carlos…<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


176<br />

um luxo demasiado caro, tanto mais que se esgotava na função de mero passatempo. Em<br />

vez disso, Wieland defende um novo modelo: o do Singspiel, uma alternativa músicoteatral<br />

em língua alemã, que estaria ao alcance dos recursos financeiros mesmo das cidades<br />

medianas e desempenharia um importante papel na formação dos cidadãos em geral, no<br />

aperfeiçoamento ou “promoção da humanidade”, enfim, teria uma função educativa.<br />

Destas duas opostas concepções de ópera e da sua função social bem como dos<br />

sistemas sociais e de poder que com aquelas respectivamente se correlacionam decorrem,<br />

ao longo do século XIX – e Eça de Queirós e a geração de 70 bem podiam verificá-lo –<br />

percursos completamente distintos.<br />

Na Alemanha, em finais do século XVIII, a praxis da ópera italiana já só restava<br />

na corte prussiana. Em 1801 também esta é obrigada a abandonar o antigo conceito de<br />

teatro de corte e a usar somente a ópera alemã para a função de prestígio e representação<br />

do poder real. O modelo de comunicação contra-hegemónico desenvolvido pela burguesia<br />

impõe-se em toda a linha. Entretanto, a expansão da ópera alemã e dos seus centros de<br />

produção é tal que os Estados germânicos, outrora importadores de ópera italiana, se<br />

transformam em exportadores de ópera alemã logo nas primeiras décadas do século XIX.<br />

Algo de semelhante ocorre noutros países, designadamente, centro-europeus e eslavos,<br />

que desenvolvem desde então as suas respectivas tradições de ópera nacional.<br />

Que acontece em Portugal? No Portugal “em que nada se adiantara desde o século<br />

XVIII” persiste o modelo de país “importador” e “colonizado”. Embora primeiro Teatro<br />

do Estado, o Teatro de São Carlos mantém-se no século XIX como “Teatro Italiano”, onde<br />

só actuam companhias italianas e se canta exclusivamente em italiano. Tal como no século<br />

XVIII, para os teatros da corte de João V, José I ou Maria I, os compositores portugueses<br />

têm de continuar a escrever, para o São Carlos, até ao fim da monarquia, sobre libretos<br />

italianos. O próprio programa nacionalista de Alfredo Keil, da Irene à Serrana (1899), passando<br />

por Dona Branca tem de ser concretizado sobre libretos italianos ou traduzidos<br />

para italiano.<br />

Simultaneamente, prevalece o preconceito contra cantores portugueses profissionais<br />

formados no Conservatório: Clementina Cordeiro, a primeira a tentar em meados<br />

do século XIX, é obrigada a abandonar a carreira, dada a manifesta hostilidade do público.<br />

Só os cantores estrangeiros, já “enobrecidos” pelo êxito acumulado obtido nos palcos italianos,<br />

eram respeitados pelo público português. A discriminação social no acesso às<br />

profissões musicais está bem patente no relatório do Director do Conservatório de 1878:<br />

só “filhos de artistas, operários e funcionários subalternos” é que ali procuravam formação<br />

profissional. Os amadores, esses – como Bazilio, Genoveva, Maria Eduarda e outras personagens<br />

de Eça de Queirós – recebiam formação musical em casa, mas não para o exercício<br />

profissional. Viver da música não era próprio das classes elevadas. Viver de uma profissão<br />

ou do seu trabalho não era, aliás, algo que honrasse especialmente os pergaminhos duma<br />

grande família burguesa, como decorre do célebre comentário de Carlos da Maia, ao receber<br />

a sua primeira libra de honorários pelo exercício da medicina…<br />

Extraindo todas as consequências da sua observação crítica da sociedade portuguesa<br />

e do papel que nela desempenhava o São Carlos, Eça de Queirós acaba por concluir<br />

como os iluministas alemães, havia cem anos:<br />

O teatro de São Carlos o que é? o que faz? Não aumenta decerto o nosso património<br />

literário. Faz apenas a popularização da velha escola italiana de música<br />

sensualista, arte de que nada resulta para o País, senão alguns duetos que as<br />

donzelas beliscam ao piano, ou que os sinos tilintam ao levantar da hóstia! Que<br />

educação se tira da Traviata expirante, ou do imbecil Trovador que corre a salvála?<br />

[…] O teatro de S. Carlos não forma bons actores nacionais. Bem ao contrário!<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


177<br />

É uma fábrica de reputação para os artistas estrangeiros. […] Enfim, nem criação<br />

de uma arte, nem formação de artistas, nem elemento de civilização, nem<br />

interesse geral do País. 25<br />

A convergência com o criticismo, entre outros, de Christoph Martin Wieland,<br />

torna-se, porém, ainda mais flagrante quando se trata de definir a função última do Teatro<br />

de São Carlos:<br />

[…] A corte sente a necessidade impreterível de se distrair? Excelentemente!<br />

Que pague e subsidie S. Carlos; que o ilumine, o forre, o tapete à sua custa; que<br />

dê por cada camarote 20$000 réis por noite, por cada stalle 4$000 réis; que o<br />

frequente com ardor, que durma lá, e que seja feliz. Ora que o País pague, não,<br />

corte respeitada e amada, não! Que eu, ele, nós, vós, eles, deitemos no erário<br />

dinheiro para tu te divertires, não, corte reluzente e maravilhosa! Perdoa, mas,<br />

como diria Cipião, não possuirás, ingrata, as nossa placas de 500 réis. A preocupação<br />

do País não é precisamente evitar que a corte boceje. Vinte e cinco<br />

contos anuais é prodigioso – para que a corte tenha onde passar a noite! 26<br />

Em síntese: tal como outrora Wieland, referindo-se à opera italiana dos teatros<br />

de corte alemães, Eça de Queirós denuncia o São Carlos como um luxo caro e um passatempo<br />

frívolo, não lhe reconhece uma função educativa ou civilizadora nem um papel<br />

como “centro de arte nacional” e “escola de artistas”:<br />

[…] o Governo […] não reúne uma única razão para subsidiar o S. Carlos. Nem há<br />

ali um elemento de civilização, nem um centro de arte nacional, nem uma escola<br />

de artistas, nem um aproveitamento geral do País! 27<br />

Deste modo, Eça de Queirós caracteriza lapidarmente o falhanço da reforma<br />

teatral de Garrett (1836) em matéria de ópera ou de cultura músico-teatral. Corrigindo o<br />

retorno ao padrão obscurantista que ainda se manifestara na sequência da Revolução de<br />

1820, 28 essa reforma, de inspiração iluminista, tinha colocado decididamente o teatro na<br />

esfera educativa, definido o Teatro Nacional como Teatro Normal e consagrado o princípio<br />

da responsabilidade do Estado na sua sustentação e inspecção. Deixara, de fora,<br />

inexplicavelmente, a ópera. Nenhuma medida fora tomada para promover uma ópera<br />

nacional ou transformar o São Carlos, enquanto teatro do Estado, num Teatro Nacional<br />

de Ópera.<br />

A recepção de Wagner e as mudanças na estrutura de comunicação<br />

Poderá parecer desproporcionado, num trabalho sobre as mudanças na cultura<br />

musical e músico-teatral operadas pela República, dedicar tanto espaço aos antecedentes<br />

históricos, mas isso era absolutamente indispensável para enfatizar a tese que tenho<br />

...........................................................................<br />

25 Cf. Eça de Queirós, Uma Campanha Alegre…, p. 229-230.<br />

26 Ibidem, p. 231-232.<br />

27 Ibidem, p. 231.<br />

28 Cf. Parecer da Comissão da Fazenda do Soberano Congresso, de 9 de Janeiro de 1822, que serve de fundamento<br />

à recusa de subsídio do Estado para o São Carlos. O parecer retoma, não o discurso iluminista da burguesia<br />

comercial e cosmopolita de 1771 – teatro como “escola”, fonte de “educação” e “esclarecimento” – mas sim a<br />

tradição teológica de condenação do teatro como “vício”. Não admira que esta fosse a ideologia dominante<br />

num Congresso onde a maioria dos eleitos provinha do interior do País… Menos plausível seria ver aqui uma influência<br />

directa de algumas ideias de Rousseau, designadamente, na Lettre à M. d’Alembert (1758). Cf. M. Vieira<br />

de Carvalho, O Teatro de São Carlos…, p. 65.<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


178<br />

defendido em vários estudos precedentes: a da filiação ideológica iluminista dessas mudanças.<br />

Com efeito, na minha perspectiva, a República apresenta-se-nos, nesta área da<br />

cultura, como uma tardia revolução iluminista burguesa, herdeira de um corpo de princípios<br />

que já fora levado à prática, em grande parte dos países europeus, em meados do<br />

século XVIII. Embora reflectido ocasionalmente em várias tentativas ou esboços de reforma<br />

(Sociedade para a Sustentação dos Teatros Públicos, em 1771, Setembrismo, em 1836),<br />

esse programa nunca chegara a ter realização consequente em Portugal. 29<br />

Uma historiografia da música ou da ópera que deixe de fora a investigação dos<br />

sistemas de comunicação em que elas se manifestam e abdique de modelá-los nas suas<br />

relações ou na sua interacção com outros sistemas sócio-comunicativos correlacionados<br />

(por exemplo, estrutura da esfera pública, sistema político) não está em condições de<br />

captar e diferenciar o que há realmente de específico, único, na experiência portuguesa,<br />

desde meados do século XVIII ao dealbar do século XX. Entretanto, a especificidade<br />

identificada nesta área cultural pode contribuir para lançar nova luz sobre os processos<br />

culturais em sentido mais lato bem como sobre as constelações sócio-económicas,<br />

institucionais, ideológicas e políticas que ocorrem no País durante esse período. O que se<br />

entende por iluminismo, romantismo, liberalismo, nacionalismo, republicanismo, as<br />

próprias estruturas da economia e do poder serão diferentemente compreendidas<br />

consoante consideremos, ou não, as “lições” que nos são fornecidas pela história social<br />

da música e da ópera em Portugal.<br />

Eça de Queirós, que nos tem servido de fio condutor, torna transparente nos<br />

seus escritos, quer de ficção, quer de intervenção ou comentário crítico, o tecido de relações<br />

da vida social, cultural e política. Ninguém, como ele, põe em evidência tão lucidamente<br />

o jogo de remissões entre estrutura social, estilos de vida (habitus), ideias, crenças, valores,<br />

motivações, comportamentos. À sua fina observação não podia escapar uma fonte tão<br />

rica de informação sobre o Portugal do seu tempo e, em especial, sobre as camadas sociais<br />

mais poderosas ou próximas do poder, como era a da actividade musical e músico-teatral<br />

– em Lisboa, centrada no São Carlos. Daí a relevância da sua obra, muito especialmente a<br />

literária, como fonte de conhecimento historiográfico – neste caso, da historiografia<br />

musical. Como já escrevi noutra ocasião, é um exemplo de como a objectividade da ficção<br />

se impõe à ficção da objectividade.<br />

O debate de que Eça de Queirós é precursor, nos textos acima mencionados,<br />

intensifica-se na década de 80, coincidindo também com a acrescida expansão da imprensa<br />

periódica. Embora suscitado a propósito dos mais diversos eventos musicais ou músicoteatrais<br />

(por exemplo, a estreia de Il Guarany, de Carlos Gomes, em 1880), esse debate<br />

será sobretudo alimentado pela recepção de Wagner, à qual dediquei boa parte da minha<br />

investigação sobre a história social do São Carlos. O que tentei pôr aí em evidência foi<br />

precisamente a crescente problematização da estrutura de comunicação do São Carlos,<br />

que surge dos mais diversos quadrantes e que incorpora também uma dimensão de oposição<br />

política, ainda que não exclusivamente republicana. Reduzir esse debate a uma disputa<br />

de “gosto” entre “wagnerianos” e “verdianos”, ou adeptos do drama musical alemão<br />

e adeptos da ópera italiana, seria, mais uma vez, tão redutor e simplista como arrumar<br />

em campos opostos, quanto às posições em presença, respectivamente, os republicanos<br />

e os monárquicos.<br />

O que emerge desde a série de artigos publicados por Batalha Reis, em março<br />

de 1883, subsequentes à morte de Wagner, é o crescente número de vozes na imprensa e<br />

...........................................................................<br />

29 Cf. M. Vieira de Carvalho, “A República como Revolução Iluminista e os Rumos da Cultura Musical”, in Razão e<br />

sentimento…, p. 158-174 (publicado originalmente in Congresso “A Vida da República Portuguesa 1890-1990”,<br />

Lisboa, Cooperativa de Estudos e Documentação Universitária Editora, 1991, p. 281-297).<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


179<br />

a consistência dos argumentos que põem em causa cada vez mais radicalmente a instituição<br />

São Carlos e o seu modelo de comunicação. Não admira que a recepção de Wagner sirva<br />

de principal incentivo para o debate, já que todo o projecto wagneriano não era senão a<br />

tentativa de levar às últimas consequências a reforma iluminista da ópera. Bayreuth, com<br />

a sua arquitectura interior em anfiteatro, o fosso da orquestra escondido, o balanço acústico<br />

entre voz e orquestra que permitia captar a palavra cantada, as luzes apagadas durante o<br />

espectáculo, visava estabilizar na praxis da comunicação o efeito que Gluck alcançara na<br />

célebre produção da Alceste, de 1771, em Viena: a recepção da ópera como um todo,<br />

como drama, como teatro. Se Gluck já então se colocara na posição de uma espécie de<br />

Deus ex-macchina que, para além da composição da partitura, também assegurava a<br />

coerência dos elementos cénicos e da performance músico-teatral tendo em vista o aperfeiçoamento<br />

da ilusão (o efeito de realidade), Wagner ia ainda mais longe, ao criar um<br />

dispositivo que lhe permitia controlar também a recepção. Numa sala às escuras, perante<br />

um “palco invisível” (ideal da “ilusão perfeita”, prefiguração do écran cinematográfico) e<br />

com uma orquestra também invisível (prefiguração da “banda sonora”), o público não<br />

podia furtar-se à estrutura de comunicação apresentacional. A “quarta parede” e a subordinação<br />

da sala ao palco radicalizadas pelo dispositivo de Bayreuth pretendiam ga-rantir<br />

o efeito outrora descrito por Burney e, mais tarde, já no século XX, vulgarizado nas talking<br />

pictures ou cinema sonoro. Importa relembrá-lo neste contexto, embora já antes citado:<br />

[Os espectadores] não podiam tirar os olhos um só momento do palco, durante<br />

todo o espectáculo, tendo a sua atenção tão aguçada e a sua consternação tão<br />

aumentada, que se conservavam em permanente ansiedade, entre a esperança<br />

e o medo dos eventos, até à última cena do drama […] 30<br />

Não cabe na economia deste trabalho pormenorizar as diferentes fases do confronto<br />

de ideias suscitado pela recepção de Wagner (remeto para estudos anteriores).<br />

Convém, no entanto, salientar um momento fundamental do processo de mudança, que<br />

ocorre em 1909, um ano antes da implantação da República.<br />

O anúncio da companhia alemã de Munique, que apresentou então em Lisboa,<br />

na íntegra, O Anel do Nibelungo (cantado em alemão), vinha acompanhada de um “regulamento”<br />

em que se estabeleciam determinadas regras quanto às condições em que<br />

deviam decorrer os espectáculos. A intenção declarada era transpor para o São Carlos o<br />

procedimento habitual em Munique e Bayreuth.<br />

A primeira inovação consistiu numa série de conferências proferidas na sala<br />

principal do São Carlos (segundo a imprensa, perante numeroso público) com o intuito de<br />

preparar os espectadores para a obra, iniciá-los na sua substância dramática e musical. A<br />

empresa encarregou António Arroio dessa tarefa, que se fez acompanhar ao piano, para<br />

os exemplos musicais, por Rui Coelho. As conferências foram depois publicadas em sucessivos<br />

números do jornal republicano A Lucta, e o seu conteúdo não deixa dúvidas quanto<br />

à ligação estabelecida por António Arroio entre a substância dramática da obra e a confrontação<br />

política que então se vivia em Portugal (recorde-se o regicídio e a eleição da<br />

primeira vereação republicana na capital, no ano anterior).<br />

Os wagnerianos monárquicos, segundo alguma imprensa, ter-se-iam reunido<br />

em casa de Alexandre Rey Colaço, que assistira, ao piano, Batalha Reis, cujas conferências<br />

são igualmente publicadas na imprensa (Diário de Notícias). Mas, assim como Batalha<br />

...........................................................................<br />

30 Sobre a recepção da crítica iluminista, especialmente de Rousseau, em Wagner, cf. M. Vieira de Carvalho, “Auf<br />

der Spur von Rousseau in der Wagnerschen Dramaturgie”, in Opern und Musikdramen Verdis und Wagners in<br />

Dresden, Dresden, Schriftenreihe der Hochschule für Musik “Carl Maria von Weber”, n. 12, 1988, p. 607-624.<br />

Trad, port. “O rasto de Rousseau na teoria e dramaturgia wagnerianas”, in Razão e sentimento…, p. 216-228.<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


180<br />

Reis não deixara de pôr em evidência, nos seus artigos de 1883, o carácter reformador do<br />

projecto de Wagner e de assumir a crítica das relações de comunicação dominantes (por<br />

maioria de razão aplicável ao São Carlos), assim também na sua explanação do Anel do<br />

Nibelungo, em 1909, ele se detém extensivamente na substância dramática e nos conteúdos<br />

simbólicos, inclusivamente, políticos, da obra. Ou seja: um e outro convergiam na<br />

importância atribuída ao drama, às personagens e aos conflitos humanos que nele se desenrolam,<br />

o que contribuía para suscitar no público a atitude de atenção ao espectáculo<br />

como um todo, rompendo com a habitual recepção fragmentária, focada nos cantores e<br />

em “números” musicais isolados.<br />

No mesmo sentido apontava, aliás, a exigência de só se venderem bilhetes para<br />

a Tetralogia completa (levada à cena sem cortes) e não em separado para cada uma das<br />

“jornadas”.<br />

A companhia alemã, como era anunciado pela empresa, trazia ao São Carlos a<br />

praxis de representação de Munique e Bayreuth (provavelmente a encenação supervisionada<br />

por Cosima Wagner), recebida pela crítica em Lisboa como “a ilusão perfeita”.<br />

Entretanto, invertendo as tradicionais relações de poder no São Carlos, várias<br />

medidas tomadas pela empresa asseguravam a subordinação da sala ao palco:<br />

- Todos os espectáculos começavam pontualmente, sem atender a conveniências<br />

do protocolo oficial;<br />

- Durante a performance era vedada a entrada e a circulação na sala;<br />

- As luzes da sala permaneciam completamente apagadas no decurso do<br />

espectáculo.<br />

Como habitualmente, o rei chegou atrasado à estreia de O Ouro do Reno. Pela<br />

primeira vez, o espectáculo não foi interrompido: a autonomia da performance artística e<br />

a sua coerência interna impuseram-se ao protocolo oficial e ao tradicional cerimonial de<br />

“teatro de corte”. O episódio teve um aproveitamento político na imprensa, considerando<br />

alguns tratar-se de uma vitória da “plateia republicana” sobre os “camarotes monárquicos”.<br />

Assim se consumara a mudança de paradigma no São Carlos: da secular estrutura<br />

de comunicação coloquial, herdada do conceito de “teatro de corte” do Antigo Regime,<br />

para a estrutura de comunicação apresentacional, teorizada havia já cerca de 150 anos<br />

no seio duma esfera pública burguesa cada vez mais poderosa (como aquela que então se<br />

impusera em França, na Alemanha ou em Inglaterra), mas só concretizada em Lisboa –<br />

através da mediação do pensamento e da obra de Wagner – quando também aqui a<br />

opinião pública ganhou em massa crítica e poder contra-hegemónico.<br />

Quando da reabertura do Teatro de São Carlos em 1920, após 8 anos de encerramento,<br />

a estrutura de comunicação apresentacional já se consolidara. As óperas levadas<br />

à cena no São Carlos projectam-se nos movimentos culturais, ideológicos, políticos, como<br />

nunca antes. A assimilação de Parsifal (a ópera mais representada nos anos 20 em Lisboa)<br />

pelas correntes que anseiam por uma solução autoritária (um “salvador”, “redentor-rei”,<br />

“ditador”), enquanto os anarcossindicalistas e o movimento operário se revêm em Siegfried,<br />

é um exemplo da mudança de paradigma: passara a prevalecer a atenção ao drama. A<br />

subordinação da sala ao palco manifestava-se ainda no efeito amplificador recíproco de<br />

solicitações culturais, por um lado, e snobismo, por outro. Agora prevalecia um novo tipo<br />

de espectador, que receava manifestar a sua incompreensão ou desagrado. Parecer culto<br />

era tanto ou mais importante do que sê-lo. 31<br />

...........................................................................<br />

31 Cf. estudo extensivo da recepção de Wagner e do período compreendido entre cerca de 1880 e cerca de 1930,<br />

in M. Vieira de Carvalho, O Teatro de São Carlos…, p. 131-212.<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


181<br />

Os ideais republicanos e as mudanças na cultura da escuta<br />

Falar de opinião pública e poder contra-hegemónico evita que se estabeleça<br />

uma relação linear de causa e efeito entre o republicanismo e as mudanças culturais em<br />

curso. O grande empreendimento do Coliseu dos Recreios em Lisboa, inaugurado em<br />

1890, concebido, financiado e explorado comercialmente por uma sociedade de conhecidos<br />

lojistas republicanos surge, por um lado, como uma alternativa democrática ao São<br />

Carlos, “teatro da corte” e “símbolo da ordem monárquica”. Por outro lado, porém, põe<br />

em evidência as contradições ou a ausência de um programa republicano estruturado<br />

para as artes, mormente as músico-teatrais. Replicando, de certo modo, num octógono a<br />

elipse do São Carlos, as suas ordens de camarotes (de cinco passam para duas) e a própria<br />

tribuna real, a sala do Coliseu – em todo o caso, adequada à variedade de divertimentos<br />

ou recreios, incluindo o circo, a que se destinava – deslocava ainda mais para primeiro<br />

plano o “espectáculo da sala”, não favorecia, designadamente em espectáculos músicoteatrais,<br />

o aperfeiçoamento do palco ilusionista (quarta parede) nem o modelo de identificação.<br />

De qualquer modo, não há que subestimar o Coliseu enquanto poderosa tentativa<br />

de resposta democrática às aspirações culturais e recreativas dos sectores mais desfavorecidos<br />

da população de Lisboa, que constituíam uma importante base social de apoio<br />

à alternativa republicana.<br />

O Coliseu não respondia, porém, às aspirações de uma elite cultivada que se<br />

exercitava na escuta da música instrumental da tradição clássica e romântica, considerando-a<br />

uma das mais elevadas expressões da arte e da cultura. Ainda hoje, após a<br />

remodelação da sala em 1994 (que lhe retirou em larga medida o carácter popular ou populista,<br />

ao dotar as antigas bancadas com cadeiras), se observa, em concertos sinfónicos,<br />

a grande dificuldade em controlar os incidentes perturbadores duma escuta silenciosa e<br />

concentrada. A sala não foi pensada para isso. Assim como o não fora o São Carlos, com a<br />

sua arquitectura típica de teatro italiano e teatro de corte do século XVIII.<br />

Esta dimensão – a da escuta – tem especial relevância, pois está relacionada<br />

com a dificuldade na institucionalização dos concertos públicos, que pressupunham uma<br />

estrutura de comunicação apresentacional. Após uma primeira tentativa falhada de João<br />

Domingos Bomtempo para instituir em Lisboa a modalidade dos concertos públicos, as<br />

várias que se lhe seguiram nunca tiveram a força necessária para se imporem como alternativa<br />

estável ao modelo hegemónico: o do teatro de ópera. Não se trata aqui, mais<br />

uma vez – como usa repetir-se no discurso musicológico – da oposição entre ópera italiana,<br />

por um lado, e música instrumental (sobretudo alemã), por outro, mas sim da hegemonia<br />

efectiva e absorvente da estrutura de comunicação coloquial cunhada pelo “Teatro<br />

Italiano”, a qual contagiava as manifestações musicais no seu todo, também as da música<br />

instrumental, fosse onde fosse que estas acontecessem. Eça de Queirós captou o fenómeno<br />

– parte integrante do habitus (como diria Bourdieu) próprio da “alta sociedade” da época<br />

–, numa das suas páginas mais acutilantes de Os Maias (1888). O que sobressai na atitude<br />

do público é – em vez de reverência e devotio – a relação autoritária para com a<br />

performance musical, a clara prevalência da estrutura de comunicação coloquial:<br />

Da antessala Ega avistou logo ao fundo, no tablado, sobre um mocho muito baixo<br />

que lhe fazia roçar pelo chão as longas abas da casaca – o Cruges, com o nariz<br />

bicudo contra o caderno da sonata, martelando sabiamente o teclado. […]<br />

– O Cruges […] O nome correu entre as senhoras que o não conheciam. E era<br />

composição dele, aquela coisa triste?<br />

– É de Beethoven, srª D. Maria da Cunha, a “Sonata Patética” […]<br />

Uma das Pedrosas não percebera bem o nome da sonata. E a marquesa de Soutal,<br />

muito séria, muito bela, cheirando um frasquinho de sais, disse que era a Sonata<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


182<br />

Pateta. Por toda a bancada foi um rastilho de risos sufocados. […]<br />

[…] por toda a sala, o sussurro crescia. Os encatarroados tossiam livremente.<br />

Dois cavalheiros tinham aberto “A Tarde”. E caído sobre o teclado, com a gola da<br />

casaca fugida para a nuca, o pobre Cruges, suando, estonteado por aquela<br />

desatenção rumorosa, atabalhoava as notas, numa debandada. 32<br />

No mesmo sentido convergem os comentários de alguma imprensa, por exemplo,<br />

quanto à tentativa fracassada de Miguel Ângelo Lambertini de fundar e manter uma<br />

Orquestra – a “Orquestra Sinfónica Portuguesa” – em 1906. Um dos comentários que<br />

sobressai é o do jornal republicano O Mundo, de França Borges:<br />

É preciso que o público vá a estes concertos não por vaidosa ostentação, mas<br />

sim por gosto sincero. […] Não é certamente o público do S. Carlos, lendo, falando,<br />

rindo, fazendo amor, fazendo, enfim, tudo; menos ouvir, que realiza o público<br />

ideal da música de arte. (Mundo, 3/12/1906). 33<br />

Daí merecerem especial relevo os fortes indícios, sobretudo desde cerca de 1881<br />

(com a fundação do Orpheon Portuense por Bernardo Valentim Moreira de Sá), de um<br />

movimento organizado de defesa e promoção da música instrumental que se fundia com<br />

firmes motivações político-ideológicas de oposição ao status quo. Ao contrário dos grandes<br />

negociantes de Lisboa de finais do século XVIII – os quais, inteiramente subordinados à<br />

esfera pública representativa, não tinham uma alternativa para o modelo do teatro de<br />

corte, antes o haviam feito seu no Teatro de São Carlos – agora, um século mais tarde,<br />

graças à vitalidade duma esfera pública burguesa em acelerada expansão, começava a<br />

gerar-se um verdadeiro movimento contra-hegemónico. A “burguesia esclarecida”, sem<br />

dúvida em larga medida polarizada em torno dos ideais republicanos, já não queria “ópera<br />

italiana na presença do rei”, mas sim música instrumental, a qual, como “experiência<br />

artística suprema”, pressupunha o religioso silêncio da audiência (a rigorosa observância<br />

da estrutura apresentacional).<br />

Não é por acaso que Viana da Mota escolhe o nome simbólico de “Bomtempo”<br />

quando se inicia na maçonaria em 1895, nem é por acaso que apadrinha a iniciação de<br />

Moreira de Sá no ano seguinte (este escolhe o nome simbólico de “Beethoven”). Sinais<br />

importantes a considerar são também a recusa de Moreira de Sá em aceitar a condecoração<br />

que lhe fora concedida pelo rei D. Luís e a omissão de dedicatórias à Família Real em obras<br />

de Viana da Mota desde a Sinfonia À Pátria (1895). Deverá igualmente recordar-se a<br />

participação de José Relvas na fundação da Sociedade de Música de Câmara em 1899<br />

(juntamente com Miguel Ângelo Lambertini, Costa Carneiro, Dom Luís da Cunha e Menezes,<br />

Cecil Mackee) e o pólo de intensa actividade camarística da Casa dos Patudos. De resto,<br />

esse movimento contra-hegemónico acaba por ser justificado retrospectivamente pelo<br />

próprio Viana da Mota num texto escrito em 1917 para a revista A Águia, da Renascença<br />

Portuguesa (n os 69 e 70):<br />

O encerramento dos teatros de São Carlos em Lisboa e do São João no Porto,<br />

longe de ter sido um prejuízo, foi um grande benefício para a música em Portugal,<br />

porque nos livrou dessa perniciosa influência e suscitou os concertos sinfónicos,<br />

que sem a falta da ópera não se teriam provavelmente sustentado. 34<br />

...........................................................................<br />

32 Citado in M. Vieira de Carvalho, Eça de Queirós e Offenbach…, p. 56-57.<br />

33 Cit. in M. Vieira de Carvalho, O Teatro de São Carlos…, p. 172.<br />

34 Cit. in M. Vieira de Carvalho, O Teatro de São Carlos…, p. 173.<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


183<br />

É nesta identificação do Teatro de São Carlos bem como do Teatro de São João<br />

com o discurso simbólico duma certa e determinada ordem (aquela ordem monárquica<br />

que mantivera congelado, durante mais de um século, o modelo de teatro de corte do Antigo<br />

Regime), e no assumido propósito de liquidar essa tradição que vejo um dos momentos<br />

mais consequentes do republicanismo e da sua inspiração iluminista burguesa em matéria<br />

de cultura musical. Com a queda da monarquia também cai o teatro de corte, para dar<br />

lugar à sala de concertos burguesa como “lugar de realização da música autónoma”.<br />

Esta mudança de paradigma terá uma enorme importância no desenvolvimento<br />

da música em Portugal. Através dos concertos públicos gera-se uma dinâmica inteiramente<br />

nova na criação e na interpretação musicais: os compositores portugueses são muito<br />

mais solicitados e as suas obras recebidas com uma atenção que outrora só a ópera mobilizava.<br />

Dir-se-ia que a produção e a circulação da música em Portugal ganham densidade<br />

cultural pela sua interacção com outras correntes literárias e artísticas, movimentos<br />

ideológicos e políticos, problemáticas estético-filosóficas. Tudo isso também fazia parte<br />

do ressurgimento com que sonhava Viana da Mota na sua Sinfonia À Pátria (1895) –<br />

ressurgimento onde ecoam premonitoriamente as fanfarras da República…<br />

Finalmente, quanto ao projecto de uma Ópera Nacional, está ainda por encetar<br />

a investigação sistemática das fontes relativas a este período. Deixo aqui registada apenas<br />

uma breve nota para sublinhar que a questão emerge igualmente dos debates na esfera<br />

pública, antes e depois da implantação da República. A pressão da opinião pública leva à<br />

criação em diploma legal (1902) de um Teatro Nacional de Ópera, que se previa vir a ser<br />

instalado no local onde hoje se encontra o edifício do Governo Civil (Convento de São<br />

Francisco), mas cuja construção era deixada à iniciativa privada. Mais uma vez, não se<br />

colocava a hipótese da transformação do próprio Teatro de São Carlos num Teatro Nacional<br />

de Ópera. Também os governos da República nada adiantaram a este respeito: a Comissão<br />

de Reforma do São Carlos (que incluía Viana da Mota e Francisco d’Andrade) não produziu<br />

resultados.<br />

Pouco depois da implantação da República, o projecto é recuperado por Rui<br />

Coelho com a sua ópera O Serão da Infanta (libreto de Teófilo Braga), estreada em 1913,<br />

no São Carlos, com honras oficiais – a primeira de uma série de óperas em língua<br />

portuguesa que comporá ao longo da vida. 35 Também a corrente do Renascimento Musical<br />

(Ivo Cruz, entre outros) promove o uso da língua portuguesa nos géneros de ópera e<br />

oratório. Luís de Freitas Branco, primeiro ligado ao monarquismo e ao Integralismo<br />

Lusitano, depois à Oposição ao Estado Novo, assim como Fernando Lopes-Graça, que se<br />

assume desde cedo como activista político das áreas republicana e comunista, são<br />

igualmente defensores da ópera em língua portuguesa (incluindo traduções de originais<br />

estrangeiros). Enfatizam o critério da coerência do espectáculo de ópera como um todo e<br />

concebem o Teatro de São Carlos como um centro de produção músico-teatral própria,<br />

na base de artistas nacionais ou residentes. A formação de várias companhias de ópera<br />

com artistas nacionais nos anos vinte e trinta (envolvendo ocasionalmente o maestro<br />

Pedro de Freitas Branco) pode também ser referida a este propósito. Em suma: logo a<br />

seguir à implantação da República tudo parecia encaminhar-se para a institucionalização<br />

de uma Ópera Nacional. Paradoxalmente, porém, o “nacionalismo” do Estado Novo não<br />

incluía tal desígnio. Apesar de a ópera D. João IV, de Rui Coelho, ter sido escolhida para a<br />

reabertura do São Carlos em 1940, o desenvolvimento nesse sentido foi bloqueado. A<br />

“Acção Nacional de Ópera”, de Rui Coelho, que pretendia constituir-se como uma estrutura<br />

...........................................................................<br />

35 O Teatro de São Carlos estava encerrado para temporadas regulares desde 1912. Quando reabre em 1920,<br />

apresenta regularmente óperas de Rui Coelho em estreia: Crisfal (1920), Auto Berço (1921), Inês de Castro, A<br />

Freira de Beja e O Cavaleiro das Mãos Irresistíveis (1927).<br />

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184<br />

de produção permanente – de certo modo, uma tentativa paralela à dos Bailados Verde<br />

Gaio (criados, já nos anos 40, por António Ferro) – é um projecto abortado que nunca<br />

receberá o necessário apoio público. O Estado Novo prefere recuperar, para o São Carlos,<br />

o conceito de teatro representativo – “sala de visitas” – , ao serviço da estetização da política.<br />

O modelo inspirador é o do “teatro de corte” do Antigo Regime, do qual não era historicamente<br />

possível, nem conveniente, recuperar a estrutura de comunicação coloquial,<br />

mas já era possível conservar a função. Bem o demonstra a obrigatoriedade do traje de<br />

cerimónia: aos olhos de uma esfera pública refeudalizada, servia para distinguir o escol<br />

do Outro inferior… 36<br />

...........................................................................<br />

36 Cf. M. Vieira de Carvalho, O Teatro de São Carlos…, p. 213-254 (cf. também o original alemão desta obra, mas<br />

remodelado, actualizado e largamente documentado com iconografia: ‘Denken ist Sterben’. Sozialgeschichte<br />

des Opernhauses Lissabon, Kassel, Bärenreiter, 1999). Para um panorama mais detalhado dos desenvolvimentos<br />

da cultura musical nas primeiras décadas do século XX, cf. igualmente do autor, “Snobismo e confrontação<br />

ideológica na cultura musical”, in Portugal Contemporâneo, ed. António Reis, Lisboa, Alfa, 1989 ss., v. III, p. 297-<br />

310. Para o período de 1870-1900, cf. Maria José Artiaga, Continuity and Change in Three Decades of Portuguese<br />

Musical Life (1870-1900), PhD Diss, Royal Holloway, University of London (policopiado).<br />

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185<br />

A “batalha dos símbolos”: ópera no Brasil,<br />

da Monarquia à República *<br />

Maria Alice Volpe<br />

Universidade Federal do Rio Janeiro<br />

O presente trabalho aborda a ópera no Brasil na trama de discursos que concorreram<br />

para os embates identitários no período de transição do regime político, da<br />

Monarquia à República. A legitimação de um novo conjunto de valores sociais, políticos e<br />

culturais foi empreendida em diversas modalidades discursivas, entre as quais a ópera<br />

teria potencialmente uma capacidade comunicativa de difundir as diferentes visões para<br />

além dos setores mobilizados com essas questões. Compreendida como parte integrante<br />

das batalhas ideológica e política, observa-se que a “batalha de símbolos” que se deu no<br />

âmbito da ópera encontrou maior ressonância ao operar sobre os valores identitários já<br />

assimilados ao imaginário nacional durante o período monárquico, do que sobre as tentativas<br />

republicanas de definir o panteão cívico do novo regime. Enquanto essa “batalha de<br />

símbolos” era empreendida nos círculos da elite intelectual e política brasileira, também<br />

se colocava em tensão discursiva com os diversos subgêneros do teatro musicado, uma<br />

vez que resistia em reconhecer nessas práticas socioculturais populares um lugar no imaginário<br />

nacional – contradizendo, portanto, os postulados republicanos de envolvimento<br />

popular na vida política. O foco de análise desse trabalho reside na crítica musical e literária,<br />

pela qual se buscará identificar as questões mais significativas para um redimensionamento<br />

da ópera na história cultural do Brasil no referido período.<br />

Iniciemos a nossa teia de discursos puxando um fio da crônica musical que retrata<br />

vivamente aquele complexo social:<br />

Ante os gravíssimos acontecimentos em nossa vida social e politica, parece que<br />

assunto não deveria haver para esta crônica. Entretanto, assim não é. Apesar da<br />

orchestra dos canhões, granadas e balas em guerra fratricida, a crônica lírica<br />

tem a registrar os Huguenotes, de Meyerbeer, a Traviata, de Verdi, Bocacio e<br />

outras operetas, no Lírico e no Politeama. Apesar dos perigos da guerra civil, ha<br />

assunto para a semana lírica! Isso demonstra até que ponto é privilegiada a natureza<br />

de nossa terra e privilegiada a indole de nosso povo. A anormalidade dos<br />

acontecimentos não influiu na normalidade de nossa vida social e doméstica.<br />

Na política podem as tempestades formar torvelinhos de tufões; na vida social e<br />

na família não há grande mudança de hábitos e costumes. Pelas ruas da cidade<br />

perambulam senhoras e cavalheiros. Vão ás compras e obrigações cotidianas.<br />

Em todos os teatros, em que se faz musica ou representam comédias, mágicas e<br />

operetas, afluem os espectadores com o mesmo entusiasmo do costume. Ha<br />

corridas hípicas, arriscam-se somas loucas, formiga o povo... chega a parecer indiferença<br />

pelos destinos da pátria... É positivamente privilegiada a nossa terra e<br />

privilegiada tambem a indole do povo brasileiro. [...] Como outrora [referindose<br />

à Abolição da Escravatura e à Proclamação da República], o povo assistia aos<br />

acontecimentos, aplaudindo as vitórias e indiferente ás derrotas, assim tambem<br />

agora: [...] abre-se o primeiro ciclo de uma guerra fraticida, e o povo, acostumado<br />

a músicas e flores, olha quase indiferente para tudo isso, com se tratasse de<br />

...........................................................................<br />

* Agradecimento pelo fomento da CAPES (Bolsa de Doutorado no Exterior, 1995-2000) e da Biblioteca Nacional<br />

do Rio de Janeiro (Programa Nacional de Apoio à Pesquisa, Edital de 2009).<br />

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186<br />

simples espetáculo cômico no Lírico, á cata de diversões! E os teatros continuam<br />

a funcionar todas as noites [...] A Traviata permanece em cena, o Abacaxi e outras<br />

peças de diversão, até que uma granada venha dissolver as reuniões de festa<br />

a que nos entregamos! Que privilegiada, a nossa terra, e a indole do povo<br />

brasileiro! 1<br />

O episódio a que se refere a crônica da coluna “Semana Lírica” da Cidade do Rio<br />

– periódico dirigido pelo abolicionista e republicano José do Patrocínio – é a segunda Revolta<br />

da Armada, iniciada a 6 de setembro de 1893, e empreendida por um grupo de altos<br />

oficiais da Marinha que exigiam a convocação de eleição presidencial em cumprimento à<br />

Constituição de 1891. 2 Publicada no final de semana seguinte ao início da Revolta da Armada,<br />

a crônica acima retrata com agudo senso crítico o comportamento político e social<br />

da população do Rio de Janeiro na primeira década da República, trazendo o entorno musico-teatral<br />

à análise histórica empreendida por José Murilho de Carvalho, em Os Bestializados:<br />

O Rio de Janeiro e a República que não foi (1987). O relato da reação da população,<br />

indiferente à aguda crise política e iminente guerra civil, enquanto “inveteradamente”<br />

absorvida pelas diversas modalidades de entretenimento oferecidas pela Capital Federal<br />

– na qual o teatro de música ou de representação estava entre os hábitos sociais assíduos,<br />

ao lado das corridas de cavalo, compras, passeios e diz-que-diz-que nos espaços públicos<br />

– desafia as nossas pretensões, no campo da teoria histórica, de compreender a música<br />

numa teia de discursos dos embates identitários do período em questão.<br />

Entretanto, foi justamente esse alheiamento das questões políticas imediatas,<br />

expresso no comportamento social desse segmento da população que afluía aos teatros<br />

fluminenses, que possibilitou a recorrência, no âmbito musical, de símbolos identitários<br />

forjados em momentos políticos anteriores – o Indianismo e a Paisagem, conforme propusemos<br />

no nosso trabalho de 2001 – e, ao mesmo tempo, a não consagração de símbolos<br />

identitários propostos pela elite intelectual e artística dos círculos republicanos – que<br />

trataremos nesta comunicação. Buscaremos mostrar, neste breve estudo, que a rede de<br />

discursos identitários vinculados à música teatral teve lugar justamente nesse espaço<br />

sociocultural aparentemente “apático”, onde se confluem as análises históricas propostas<br />

por José Murilo de Carvalho, no já referido livro de 1987 e no estudo posterior, que deu<br />

consecução à análise da dimensão simbólica da legitimação do novo regime político, A<br />

formação das almas: o imaginário da República do Brasil (1990). A falta de ressonância<br />

popular nos símbolos escolhidos pela “república musical”, como a denominou Avelino<br />

Pereira em suas propostas músico-teatrais, levou o projeto de restauração do teatro nacional<br />

– refiro-me aqui ao Centro Artístico (1893-1901) – a sua suplantação peremptória<br />

pelas práticas culturais vinculadas às sociabilidades e identidades dos diversos segmentos<br />

da população da Capital Federal.<br />

O Indianismo na música brasileira encontrou aderência, perante o público e a<br />

crítica, como símbolo de identidade nacional justamente no seu período de declínio na<br />

literatura. O sucesso retumbante de Il Guanary (1870) – na recepção europeia pelo exotismo<br />

e na recepção brasileira – plasmado no mito de fundação nacional – motivou uma<br />

série de obras sobre o tema indianista nas décadas subsequentes: a ópera Moema (1895)<br />

de Delgado de Carvalho, o poema sinfônico Marabá (1894) e a ópera Jupyra (1900) de<br />

Francisco Braga. O mito de fundação nacional, embutido no discurso literário e nas belas<br />

artes, teve o seu sistema de submitos gradualmente dissolvido nas referidas obras musicais<br />

ao perpassar a primeira década da República. O Indianismo continuou a reverberar nesse<br />

...........................................................................<br />

1 Charnacé. Cidade do Rio, 10 de setembro de 1893, p. 1, coluna “Semana Lyrica”, grifo nosso.<br />

2 Após a renúncia do primeiro presidente Deodoro da Fonseca, acusava-se Floriano Peixoto (o vice) de permanecer<br />

ilegalmente no cargo.<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


187<br />

imaginário músico-teatral, deseroicizando a figura do português colonizador, suprimindo<br />

o tema da conversão ao catolicismo e constatando o fracasso da união entre o português<br />

e o índio, tanto pela corrupção dos costumes nativos (em Moema), como pela visão pessimista<br />

da miscigenação, simbolizada pela mestiça enjeitada, deslocada socialmente, pois<br />

que não se encaixa nem no mundo dos brancos, nem no mundo dos índios (em Jupyra e<br />

Marabá), terminando simbolicamente por uma morte social (Volpe, 2001).<br />

Ainda que calcado num sistema simbólico do período monárquico, o Indianismo<br />

conseguia catalizar algumas questões sociais importantes debatidas nos anos iniciais do<br />

novo regime. Por outro lado, o Indianismo não enfrentou, no plano das simbologias republicanas,<br />

concorrente que tivesse a legitimidade necessária para o esvaziar em favor de<br />

um sistema simbólico mais oportuno social e politicamente.<br />

As primeiras décadas da República do Brasil (1889-1909) têm sido caracterizadas<br />

pelo ideal cosmopolita de “civilização” e “progresso”, que visava integrar o Brasil no “concerto<br />

das nações”, vale dizer, na economia mundial, o que implicava emulação do estilo<br />

de vida europeu, mais precisamente, parisiense. 3 Entre as vogas culturais importadas da<br />

França, estava o wagnerismo, que conquistava o público e a crítica parisiense e, imediatamente,<br />

fluminense. Defensores dessa corrente estavam entre o grupo de artistas e<br />

intelectuais que intentaram uma proposta simbólica para a República brasileira. Fundaram<br />

o Centro Artístico (1893), 4 cuja proposta tinha como cerne “elevar e dignificar a arte brasileira”<br />

e “ressuscitar o teatro lírico nacional”. Os membros dessa associação estavam engajados<br />

na ideologia de “progresso” artístico e tomaram o wagnerismo e “música do<br />

futuro” no Brasil como a sua panaceia. Trata-se aqui sobretudo de Leopoldo Miguez, Coelho<br />

Neto, Luís de Castro e Rodrigues Barbosa. Outros aderiram topicamente, como Alberto<br />

Nepomuceno e Delgado de Carvalho.<br />

A preocupação central da “inteligência musical” brasileira durante a década de<br />

1890 estava claramente voltada para a atualização da música brasileira com as correntes<br />

europeias, muito mais do que propriamente com a reavaliação dos símbolos de identidade<br />

nacional. Isso se torna muito claro na única associação musical que promoveu alguma<br />

reflexão sobre a música no Brasil, o Centro Artístico. A produção musical promovida pelo<br />

Centro Artístico torna evidente que assuntos e símbolos nacionais não faziam parte da<br />

questão da “ressurreição do teatro nacional” e “dignificar a arte brasileira” significava<br />

emular modelos europeus de “civilização” e “progresso”.<br />

No Prefácio intitulado “Escudo”, ao libreto do Os Saldunes (1900), Coelho Neto<br />

justifica a sua empreitada, invocando a modéstia de um prosador pela ousadia de escrever<br />

poesia, em prol da campanha pela criação do drama lírico no Brasil:<br />

Eu costumo subir ao Parnaso, quando o Ideal me reclama, vestindo a penula<br />

modesta, como simples prosador que sou; quis, porém, não por vaidade, senão<br />

por amor da Arte excelsa, traçar o pallium magnifico dos rimadores e, mal ajustado,<br />

accusando o meu desageitamento em traze-lo, elle reveste-me o corpo,<br />

não encobrindo de todo o grosseiro trajo de prosador, que é o meu. Penetro o<br />

templo de Musagete como supplicante, não como sacerdote; pedindo-lhe que<br />

me auxilie na campanha em que ando tambem empenhado, da creação do<br />

...........................................................................<br />

3 Ver, entre outros, Martins (1978); Sevcenko (1999 [1983]); Needell (1987); e Volpe (2001), especialmente capítulo<br />

2 “The construction of an image: the ‘Capital Federal’”, p. 55-130.<br />

4 O Centro Artístico foi dirigido pelo compositor e regente Leopoldo Miguez e contou com a contribuição de personalidades<br />

como os escritores Coelho Neto e Artur Azevedo, os críticos musicais Luís de Castro e Rodrigues Barbosa,<br />

o compositor e regente Alberto Nepomuceno, o compositor, pianista e editor musical Artur Napoleão, o compositor<br />

diletante Delgado de Carvalho, renomados artistas plásticos como Bernardelli e Amoedo, além de outros membros<br />

da elite brasileira como Antonio Bustamante, o bacharel Silvio Bevilcqua e o dr. Ildefonso Dutra (Azevedo,<br />

1950, p. 51; Azevedo, 1956, p. 97-8, 111-112, 384; Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 16 de maio de 1900, p. 3).<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


188<br />

“Drama Lyrico” no Brazil. Relevaime, pois, a audacia e não tomeis como<br />

atrevimento insolito o que é simplesmente fervoroso enthusiasmo. 5<br />

A publicação d’ Os Saldunes de Coelho Neto em Portugal suscitou inúmeros artigos<br />

na crítica de diversos periódicos, portugueses e brasileiros. Uma das questões<br />

principais foi o seu estilo influenciado pelo “decadentismo” francês. O crítico que assinava<br />

por “Bruno”, realça a “furia de improvisação abundante, a opulencia inexhaurivel de um<br />

vocabulario lucilante de côr, a immensa plasticidade do estylo flexuoso” de Coelho Neto,<br />

o qual, “vencido pelo falso prestigio do boulervard, deixou-se descahir pelos exageros de<br />

expressão e para as originalidades de construcção que contrarião o espirito da lingua e<br />

desarticulão o idioma; enfim, para desorientação verbal que produz páginas esotéricas<br />

voltadas a misterioso enigma de morbida emotividade moderna”. 6<br />

Além do estilo eclético de Coelho Neto, influenciado pelo simbolismo e parnasianismo,<br />

o gosto decadentista por temas esotéricos e mórbidos (Artemis, musicada<br />

por Alberto Nepomuceno) e a adesão a temáticas mitológicas pelos defendores do “Drama<br />

Lírico no Brasil” recebiam apreciação negativa pela crítica brasileira e portuguesa. Algumas<br />

vezes por suas inconsistências mitológicas – libreto de Hostia, musicado por Delgado de<br />

Carvalho – outras por sua inadequação para expressar o caráter nacional na literatura<br />

brasileira – Os Saldunes, musicado por Leopoldo Miguez.<br />

O crítico Oscar Guanabarino aponta detalhadamente os descabimentos do “enredo<br />

archeologico” da balada Hostia, de Coelho Neto, qualificando ironicamente o escritor<br />

como “erudito mythologista” e “erudito orientalista” do “Centro Shakeswagneriano”. 7<br />

No caso de Os Saldunes, a coluna “Theatros e Música” do Jornal do Commercio<br />

transcreve trecho inteiro de comentário do romancista português Carlos Malheiro Dias<br />

sobre Coelho Neto, em artigo sobre a “geração nova no Brasil”, publicado no número especial<br />

da “revista illustrada Brazil-Portugal, commemorativo do Centenario do Descobrimento<br />

(1900), para relembrar o seu retorno à direção acertada da literatura brasileira<br />

no romance Sertão” – e, portanto, o seu desacerto no Saldunes:<br />

Coelho Netto, a meio do perigo de uma desorientação que ameaçava levar o retrocesso<br />

á obra eminentemente progressiva da sua geração em plena luta de<br />

escolas decadentes, lança os fundamentos do romance nacional de costumes e<br />

inicia a obra gloriosa do Sertão, colhendo a caracteristica predomente e definitiva<br />

da raça brazileira, creando o preciosissimo manancial dos costumes, da linguagem,<br />

das lendas e das tradições; fazendo que uma intuição genial, a obra mater<br />

da nacionalisação litteraria; e documentando para todo o sempre o periodo tumultuario<br />

da unificação da raça, erguendo os scenarios magnificentes onde se<br />

derramão os clarões da aurora do povo novo. 8<br />

...........................................................................<br />

5 Coelho Neto, “Escudo”, prefácio ao libretto Os Saldunes (1900), grifos nossos.<br />

6 “Um dos mais insignes prosadores do Brazil contemporaneo, redigindo, em uma furia de improvisação abundante,<br />

chronicas diarias para o jornalismo fluminense, em curto lapso Coelho Netto occupava o primeiro lugar,<br />

pela opulencia inexhaurivel de um vocabulario lucilante de côr e pela immensa plasticidade de um estylo flexuoso<br />

e proprio a frisar o mysterioso enigma de morbida emotividade moderna. […] Vencido, como todos os Brazileiros,<br />

do falso prestigio do boulervard, deixou-se descahir para os exageros de expressão e para as originalidades de<br />

construcção que contrarião o espirito da lingua e desarticulão o idioma./ Começou-se a perceber no espirito e<br />

na factura de Coelho Netto o influxo, escusado, das extravagancias do Sr. Peladan; e escandalisou o Rio um<br />

cantico no gosto e quase que nos vocabulos daquella pagina esoterica, que é rythmada pelo ritornello da fanfarra:<br />

Los a toi./ No volume, agora, de Os Saldunes volve a insistir esta desorientação verbal, nas rubricas e nas notulas<br />

preliminares explicativas. Mas o corpo da obra está felizmente indemne dessa macula: é ele um conjunto perfeito”.<br />

(Voz Publica, Porto, 18 de maio de 1900, grifos nossos)<br />

7 Guanabarino, Oscar. Coluna “Artes & Artistas”, O Paiz, Rio de Janeiro, 3 de novembro de 1898, p. 2.<br />

8 Dias, Carlos Malheiro. Trecho citado em coluna “Theatros e Música”, Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 10<br />

de maio de 1900, p. 3, grifos nossos.<br />

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189<br />

O problema do caráter nacional emergiu com bastante intensidade por ocasião<br />

do IV Centenário do Descobrimento do Brasil (1900), ensejando disputa acirrada entre<br />

Leopoldo Miguez e Francisco Braga, pela encenação de suas óperas, respectivamente<br />

Il Salduni e Jupyra, dentro da programação comemorativa oficial. Tratei detalhadamente<br />

desse problema em trabalho anterior (Volpe, 2004), mas sintetizo aqui o imbroglio que<br />

resultou no cancelamento das duas. A ópera indianista de Braga teria sido “oficialmente<br />

escolhida pela comissão do IV Centenário do Brasil”, conforme carta de F. Braga a F. Buschmann,<br />

9 e a produção do drama lírico de Miguez teria sido prometida para o mesmo fim,<br />

de acordo com a afirmação de Coelho Neto na Gazeta de Notícias e no Jornal do Commercio.<br />

10 Embora um exame das relações interpessoais sugira a tendenciosidade da Associação<br />

do IV Centenário ao suspender o suporte financeiro aos dois espetáculos, uma<br />

análise do contexto mais amplo de significação revela que faltava a ambas as óperas<br />

substância ideológica que ressoasse o discurso das instituições guardiãs das celebrações<br />

da história nacional; faltava igualmente o elogio da colonização portuguesa e o mito de<br />

fundação nacional incólume. A ópera sobre a mestiça deslocada socialmente, Jupyra, foi<br />

encenada em 1900 fora do âmbito da programação comemorativa oficial e a ação lendária,<br />

Os Saldunes, apenas no ano seguinte.<br />

A proposta do Centro Artístico de “criação do Drama Lyrico no Brasil” foi atacada<br />

por diversos ângulos, na imprensa diária, algumas vezes até com o sarcasmo típico nas<br />

polêmicas da época. Argumentos de ordem ideológica, estética e estilística se misturavam<br />

com ataques pessoais.<br />

Lobo Cordeiro aponta o problema identitário fundamental do projeto de criação<br />

do “Drama Lírico no Brasil” nos moldes defendidos pelo círculo wagneriano:<br />

Esta pouca affeição pelo drama lyrico […] aggrava-se quando vemos o poema<br />

de Coelho Netto, aproveitando para assumpto de composição musical um lance<br />

dramatico que, pela geographia e pela ethnographia, não tem nada que ver<br />

com as tradições do espírito melodico do povo a que pertencem o poeta e o<br />

musico. 11<br />

Temos aí a questão identitária que ocupará cada vez mais espaço nas décadas<br />

subsequentes. Soma-se a ela, a “missão civilizatória”, pretendida pelo Centro Artístico,<br />

que se configurava em outros campos como projeto maior da inteligência à época. 12 Alinhados<br />

aos intelectuais que estabeleciam projetos para a “redenção das massas miseráveis”<br />

(Sevcenko, 1999[1983], p. 95), os membros do Centro Artístico se incumbiam de estabelecer<br />

os parâmetros para a “educação do público”. A “missão civilizatória” pretendida<br />

pelo Centro Artístico foi ridicularizada por Oscar Guanabarino até ser, após alguns anos,<br />

cabalmente descartada pelo público. Guanabarino protesta:<br />

[…] um dos sócios da empreza que se denomina Centro Artístico affirmou ter<br />

sido fundada aquella associação – não para servir de campo pratico aos artistas<br />

nacionaes e educal-os em provas publicas, com a critica severa e imparcial da<br />

massa anonyma que, nos theatros, compra o direito de applaudir ou patear –<br />

mas para educar esse mesmo publico, aliás conhecedor de uma vasta litteratura<br />

...........................................................................<br />

9 Carta de F. Braga a F. Buschmann, 20 de fevereiro de 1900, transcrita in Exposição (1968, p. 34).<br />

10 Gazeta de Notícias, de 1º de maio de 1900, parcialmente reimpresso no Jornal do Commercio, Rio de Janeiro,<br />

em 8 de maio de 1900, p. 3.<br />

11 [Cordeiro, Lobo]. ‘Saldunes’ in coluna “Theatros e Música”, Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 10 de maio<br />

de 1900, p. 3, grifos nossos.<br />

12 Sobre a missão civilizatória da inteligência brasileira do período, ver Sevcenko, 1999 [1983].<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


190<br />

dramatica e musical, apresentada por artistas de nomeada universal. Essa pretenção,<br />

ridicula em si, irritou, como era natural, não só o publico em geral, como<br />

a maioria dos socios do Centro, e no jornalismo achou formal protesto nestas<br />

columnas, cujo signatario repudiou desde logo a educação, que se lhe pretendia<br />

dar a titulo de renascimento das artes. 13<br />

E para fundamentar o seu indignado protesto contra a pretensão educativa da<br />

referida associação, Guanabarino desqualifica o próprio círculo de artistas nele envolvido,<br />

qualificando-os “de uns tantos pigmeus que, na opinião desses desvairados, se colocariam<br />

ao lado de Shakespeare e de Wagner”. E, ainda, denuncia a incompetência de Delgado de<br />

Carvalho como orquestrador e instiga que seja revelado o seu colaborador na instrumentação.<br />

Guanabarino fala ironicamente:<br />

Nós, que conhecemos a instrumentação de Berlioz, de Meyerbeer, de Massenet,<br />

de Verdi, de Grieg, de Puccini, de Beethoven, de Bizet, de Gounod e tantos outros<br />

musicos notaveis – nada sabemos, nada ouvimos, e devemos ir aos espectaculos<br />

do Centro para sermos educados pelo Sr. Delgado de Carvalho! 14<br />

Oscar Guanabarino aponta ainda as inconsistências na ação teatral. E entre uma<br />

desqualificação e outra o crítico exclama repetidamente: “E ahi temos a fórma pela qual<br />

o Centro Artistico nos quer educar!” – “E querem nos educar!”<br />

Os preceitos estéticos do drama musical wagneriano também foram questionados,<br />

entre eles, a ideia de “obra de arte total” e a própria relação discursiva entre a<br />

ópera e a plateia. No primeiro aspecto, Lobo Cordeiro afirma:<br />

O drama lyrico (com representar um progresso de concepção de composição) é<br />

– no seu desenho structural e no seu lemma basilar – uma das extravagancias<br />

chimericas do alto e puro genio, mas genio sempre incompleto e fragmentario<br />

de Ricardo Wagner. A fusão de todas as artes na theatral e scenica da peça de<br />

espetaculo não é uma synthese, é um cyncretismo. Sobrenadarão as artes dos<br />

sentidos, a musica, a pintura, as mesmas formulas elementares da coreographia,<br />

da mise-en-scène, da alfaiataria de theatro, etc. Mas, na arte do espírito, a poesia,<br />

perde-se-há por completo. E, perder-se-há até no que nella há já de sensual e de<br />

technico. A musica simples da alliteração e da rima ficará submergida na onda<br />

estrepitante das sonoridades orchestraes. 15<br />

...........................................................................<br />

13 “[…] (cont.) “Educa-se um povo, no terreno das artes, com as grandes producções dos artistas celebres, commentandose<br />

essas mesmas obras, afim de chamar a attenção para os pontos fracos ou para as suas bellezas; mas os araufos do<br />

Centro começaram a sua campanha educadora procurando chamar o ridiculo sobre os fundadores da arte musical,<br />

julgando que por essa fórma destruiam os genios que se impuzeram a muitas gerações, afim de conseguirem a imposição<br />

de uns tantos pygmeus que, na opinião desses desvairados, se collocariam ao lado de Shakespeare e de Wagner<br />

para afastar o publico da admiração votada a Bellini, o inimitado melodista admirado por todo o mundo e pelo proprio<br />

Wagner; a Rossini, que salvou a musica italiana das garras dos cantores que adulteravam tudo para que sobressaissem<br />

as suas qualidades de virtuose; a Verdi, o mais pujante dramatisador da musica, que obrigou toda a Italia a acompanhar<br />

com elle a evolução da sua arte; a Gounod, o musico contemplativo que se immortalizou com o Fausto; a<br />

Meyerbeer, o grandioso autor da Propheta, e por ahi além, no mais ridiculo desrespeito aos maiores vultos que<br />

occupam logar saliente na historia das artes./ Explica-se assim a nossa attitude franca e leal; e sabemos ter ao nosso<br />

lado um grande partido”. (Guanabarino, Oscar. O Paiz, Rio de Janeiro, 3 de novembro de 1898, p. 2, “Artes & Artistas”;<br />

crítica sobre a apresentação da balada Hostia, música de Delgado de Carvalho, libreto de Coelho Neto; grifo nosso.).<br />

14 Guanabarino, Oscar. Coluna “Artes & Artistas”, O Paiz, Rio de Janeiro, 3 de novembro de 1898, p. 2, crítica sobre a<br />

apresentação da balada Hostia, música de Delgado de Carvalho, libreto de Coelho Neto; grifo nosso.<br />

15 [Cordeiro, Lobo]. ‘Saldunes’ in coluna “Theatros e Música”, Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 10 de maio de<br />

1900, p. 3.<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


191<br />

O mesmo crítico faz ainda um balanço negativo da proposta wagneriana e sua<br />

adequabilidade teatral:<br />

Não se crie o poeta ilusões. Todo o poema posto em musica nunca passará de<br />

um libretto. [...] Coelho Netto houve de sacrificar ás exigencias theatraes do<br />

drama lyrico, o que mais uma vez prova o artificioso e falso do systema. 16<br />

A relação entre a ópera e o público, instaurada pelo drama musical wagneriano,<br />

foi sutilmente reprochada por Oscar Guanabarino ao comentar a recepção inicialmente<br />

fria do público na estreia de Il Salduni, “porque Leopoldo Miguez na sua partitura não dá<br />

uma pausa ou uma resolução sobre a tônica, de modo a poder intervir a plateia” 17<br />

Certamente, tratava-se de uma mudança de hábitos, de uma proposta de prática<br />

sociocultural que alijava a participação do público, subtraindo-lhe a espontaneidade de<br />

reações. E não passou despercebida do crítico.<br />

Não há dúvida de que o wagnerismo teve os seus defensores que colocaram a<br />

sua voz na crítica periódica. Esgota-me o tempo aqui para adentrar nos seus argumentos.<br />

Lembro sinteticamente os seus ideais de “progresso” e sua predileção pelo termo “música<br />

do futuro” ao defender o drama musical wagneriano e o poema sinfônico. Esse breve<br />

apanhado, predominantemente das vozes contrárias ao projeto de “criação do Drama<br />

Lírico no Brasil”, conclui agora com a explicação de sua falência, trazendo o comentário<br />

de Oscar Guanabarino sobre a dissolução do Centro Artístico:<br />

Essa associação foi derrocada – não pelo signitário destas linhas, como da a entender<br />

o illustre librettista no final do livro sobre o 4º Centenario, mas pelo bello<br />

sexo fluminense que, não podendo supportar as imposições de uma arte falsa,<br />

pretenciosa e ridícula, reagiu abandonando aquelles espectaculos inexplicáveis<br />

e impassiveis. Daquella febre delirante em que os psychiatras poderiam acham<br />

motivos para serias indagações e novos estudos, sobretudo no tocante á periencephalite<br />

difusa, apresentando os doentes a monomania da grandeza artística;<br />

daquele delírio dizíamos sempre lucriou-a arte alguma coisa – a partitura dos<br />

Saldunes. 18<br />

Alguns anos depois, Coelho Neto, ao ser indagado por João do Rio, em entrevista<br />

em junho de 1907, sobre qual era o volume preferido de sua lavra, o prolífico escritor<br />

responde:<br />

O Pelo Amor! Não se admire. Prefiro o Pelo Amor! por uma questão de momento.<br />

Ainda naquele tempo julgava-me capaz de alguma coisa no Brasil. Foi uma batalha<br />

perdida, mas de que me lembro com saudades, como certos generais velhos<br />

recordam nostálgicos as derrotas. Em todo o caso foi uma perda que acentuou<br />

a cisão e determinou uma corrente literária. 19<br />

...........................................................................<br />

16 [Cordeiro, Lobo]. ‘Saldunes’ in coluna “Theatros e Música”, Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 10 de maio<br />

de 1900, p. 3, grifo nosso.<br />

17 Guanabarino, Oscar. ‘Saldunes’ in coluna “Artes & Artistas”, O Paiz, Rio de Janeiro, 21 de setembro de 1901, p. 2.<br />

18 Guanabarino, Oscar. “Saldunes: Impressões do Libretto”, artigo separado, (anterior à) coluna “Artes & Artistas”,<br />

O Paiz, Rio de Janeiro, 20 de setembro de 1901, p. 2, grifos nossos. (Na primeira página, no topo central,<br />

com retrato de Miguez.)<br />

19 Entrevista de Coelho Neto concedida a João do Rio, em junho de 1907, Coleção Biblioteca Nacional do Rio de<br />

Janeiro; grifo nosso.<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


192<br />

Está enfeixado aí um novo momento na história cultural brasileira, quando a<br />

participação dos valores populares ganhará crescente proeminência. A elite intelectual<br />

buscará o folclore e o movimento nacionalista até adentrarmos o modernismo. E as práticas<br />

socioculturais populares irão se legitimar cada vez mais nos espaços urbanos de sociabilidade,<br />

tendência que deve se realizar de modo predominante na nossa contemporaneidade.<br />

Assim como o seu panteão cívico, o projeto simbólico-musical da Primeira<br />

República caiu no olvido por não encontrar ressonância social. Enquanto o modernismo<br />

não chegava, para fazer a sua releitura primitivista do índio e da paisagem, assistimos a<br />

uma batalha de símbolos cujas tentativas no campo dramático-musical tiveram maior<br />

aderência social nos palcos do teatro musical popular do que na arena da “música do<br />

futuro”. Para a república dramático-musical, a batalha de símbolos foi uma batalha perdida.<br />

Figura 1. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 8 de novembro de 1898, anúncio do Centro Artístico, Artemis, de<br />

Alberto Nepomuceno e Coelho Neto.<br />

Figura 2. Cidade do Rio, Rio de Janeiro, 11 de agosto de 1900, primeira página: Coelho Neto e esposa.<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


Figura 3. O Paiz, Rio de Janeiro, 20 de setembro de 1901, p. 1 (topo central): retrato de Leopoldo Miguez.<br />

193<br />

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Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


194<br />

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Rio de Janeiro, 10 de maio, 1900.<br />

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setembro, 1901.<br />

Guanabarino, Oscar. ‘Saldunes’ in coluna “Artes & Artistas”, O Paiz, Rio de Janeiro, 21 de<br />

setembro de 1901.<br />

Jornal do Commercio. Rio de Janeiro, 8 de maio de 1900.<br />

Jornal do Commercio. Rio de Janeiro, 16 de maio de 1900.<br />

O Paiz, Rio de Janeiro, 20 de setembro de 1901.<br />

Voz Publica. Porto, 18 de maio de 1900.<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


195<br />

Carlos Gomes no contexto<br />

da transição da ópera italiana<br />

Marcos Virmond<br />

Universidade Sagrado Coração, Bauru<br />

Após o silêncio de Gioacchino Rossini, em 1829, o precoce desaparecimento de<br />

Vincenzo Bellini, em 1835, e a morte de Gaetano Donizetti, em 1848, o melodrama lírico<br />

ficou nas mãos de Giuseppe Verdi por um longo tempo. Ainda que renovador, Verdi segue<br />

os modelos do melodrama lírico estabelecidos por esses compositores. Esse modelo<br />

calcava-se nos números operísticos fechados, onde a ária tripartite impera e a presença<br />

da caballeta é indispensável. Entretanto, nos últimos anos da década de sessenta, este<br />

modelo parece ter chegado a um esgotamento e mudanças se impunham. A arte Italiana,<br />

como um todo, parece não suportar mais o isolamento a que foi submetida pela barreira<br />

virtual dos Alpes. Uma nova geração reclama novos ares. O melodrama lírico, uma das<br />

mais bem guardadas relíquias da unificação da Itália, não se exclui dessa necessidade de<br />

renovação. Ademais, Verdi parece modificar seu processo composicional e reduz a<br />

frequencia de novas óperas que produz. É este momento que se desenvolve no período<br />

arbitrariamente compreendido entre 1870 e 1893 e nele serão apresentadas e se consolidarão<br />

profundas modificações no melodrama lírico no que se refere a sua estrutura musical,<br />

no processo composicional e na constituição de seus libretos. Essas modificações<br />

terão reflexos para o surgimento da giovane scuola, estendendo-se sobre a produção<br />

operística até o início do século XX. Mesmo ocorrendo no período pós-romântico da ópera<br />

italiana, essas décadas de agitação cultural melhor se qualificam pela denominação de<br />

período de transição. Atores privilegiados nesse processo são Antônio Carlos Gomes, Amilcare<br />

Ponchielli e Alfredo Catalani. A presente investigação procura demonstrar suas contribuições<br />

na afirmação desse período, procurando recuperar a relevância deles para a<br />

evolução da ópera italiana da segunda metade do século XIX.<br />

Antônio Carlos Gomes parece um compositor fadado à controvérsia. Na juventude<br />

enfrentou dificuldades com a imprensa sobre a fatura de sua Joana de Flandres. Ao<br />

longo de sua carreira da maturidade colhia, na mesma proporção, desafetos e glórias em<br />

seu país natal. Morto, foi guindado à condição de nume estelar da cultura pátria para, em<br />

seguida, ser destronado pelos scapigliatti da Semana de 1922. A depressão da arte lírica<br />

nacional, após o fim das rotineiras temporadas internacionais, traz consigo um paralelo<br />

esquecimento do compositor. Após isto, efemérides e iniciativas de regentes sensíveis,<br />

mas isolados, são os únicos responsáveis por dispersos renascimentos de obras do Gomes.<br />

Mais recentemente, este revival parece interessar ao cenário internacional. Entre outras<br />

iniciativas, Il Guarany é encenado em Bonn (1994) e Washington (1966), Salvator Rosa no<br />

Festival de Martina Franca (2004) e Colombo estréia na Europa em récita no Teatro Bellini<br />

de Catania (2006). Em qualquer dessas récitas, no Brasil ou no exterior, Gomes continua a<br />

ser, impavidamente, o mesmo compositor artesanal e metódico, monolítico em sua proposta<br />

de dar vazão à verve do melodrama que, sabe-se lá como e por que, lhe é inerente<br />

desde a infância. Da mesma forma, a reação da crítica também continua controversa. Críticos<br />

de Washington expressaram-se sobre Il Guarany como um “equívoco”, “banalidade”<br />

ou “bizarrice” puramente baseado em Donizetti e Verdi. Se não bastasse, pesquisadores<br />

de relevo tendem a adotar posições reducionistas sobre Gomes e outros compositores<br />

do período, como é o caso de Ponchielli. Nesse sentido, as afirmações de Malach são<br />

reveladoras do pouco conhecimento que esse autor tem sobre a obra desses compositores:<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


196<br />

“Gomes and Ponchielli […] were little more than Verdian epigones, seeking new and<br />

superficially different ways on manipulating a vocabulary that by 1870 even the great<br />

Verdi had lagerly transcended” (Mallach, 2002, p. 63). E ainda: “While the music of Il<br />

Guarany shows great charm and melodic flair, […] it is also derivative, almost to the point<br />

of parody” (Mallach, 2007, p. 18).<br />

Esses comentários parecem sumarizar uma linha de expressão, tanto nacional<br />

como internacional, totalmente equivocada sobre o que é a obra operística de Gomes.<br />

Revela um absoluto desconhecimento sobre a produção gomesiana, o que até certo ponto<br />

é compreensível, mas encerra uma indisfarçável má vontade para com compositores do<br />

gênero que não sejam os reconhecidos expoentes dos períodos da ópera italiana do século<br />

XIX, começando com Rossini, seus imediatos sucessores Bellini e Donizetti, o mestre longevo<br />

Giuseppe Verdi, os veristas pontuais e imediatos Mascagni e Leoncavallo e terminando<br />

pelo esperado e firme sucessor de Verdi, Giacommo Puccini. Aparentemente, este tipo de<br />

crítica vê o melodrama italiano limitado a esses nomes estelares e os demais se enquadram<br />

irremediavelmente no limbo dos operisti minori. Trata-se de um equívoco imperdoável.<br />

Como dito, este tipo de visão se funda em um desconhecimento da obra desses outros<br />

compositores, aí incluído Gomes. Sua divulgação, tanto em edições atualizadas como em<br />

registros fonográficos, é limitada em poucos casos e inexistente na maioria. Em parte,<br />

essas deficiências podem justificar a análise superficial e o veredito açodado desses críticos.<br />

Felizmente, nas últimas décadas o mundo acadêmico começa a lançar um olhar<br />

investigativo sobre esses compositores e produz uma literatura, ainda incipiente, que<br />

poderá subsidiar um retorno mais concreto dessas obras ao repertório das casas de ópera.<br />

Este também é o caso de Antônio Carlos Gomes, cuja abordagem acadêmica já se mostra<br />

expressiva em Nicolaisen (1980), Conati (1982), Mussomelli (1992), Nogueira (1997),<br />

Budden (2002), Nicolodi (2002), Volpe (2002 e 2004) e Pupo Nogueira (2006). Uma leitura<br />

desses textos revela um Gomes dentro da estética do melodrama italiano da segunda<br />

metade do ottocento, mas com suas características próprias, com seu individualismo<br />

marcado e, sobretudo, sua contribuição para o desenvolvimento do gênero em um período<br />

muito peculiar, o qual se conhece como “período de transição da ópera italiana”. Neste<br />

contexto, o objetivo do presente estudo é analisar e discutir a participação de Antônio<br />

Carlos Gomes e outros compositores no mencionado período.<br />

Carlos Gomes: um brasileiro em Milão<br />

Quando se discute Gomes e sua produção operística da maturidade 1 uma questão<br />

relevante é perguntar-se em que contexto deve se analisar a obra de Antônio Carlos Gomes.<br />

Dentro deste escopo, inserir der Gomes como um compositor da história da música<br />

brasileira é difícil, ainda que possível. Entretanto, tudo indica que sua inclusão como<br />

compositor relevante ao melodrama italiano do século XIX parece mais acertada e mesmo<br />

oportuna. Neste sentido, uma das mais coerentes manifestações sobre esta localização<br />

de Gomes na história da música se faz no texto de Vicenzo Terenzio sobre a história da<br />

música italiana no século XIX em que o autor afirma:<br />

Le sue qualità di schietto melodista e la viva suggestione che egli subì dell’arte<br />

verdiana inducono a inserire la sua produzione teatrale nel quadro del nostro<br />

melodrama ...Non sarebbe giusto, tuttavia, pensare a uma forma di imitazione<br />

passiva. Il linguaggio verdiano si prestava a dar rilievo alla fervida fanatasia del<br />

Gomes […]. (Terezio, 1976, p. 384)<br />

...........................................................................<br />

1 Entende-se por obras do período da maturidade de Gomes Il Guarany, Fosca, Salvator Rosa, Maria Tudor, Lo<br />

Schiavo, Condor e Colombo.<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


197<br />

Verifica-se que Gomes estava em Milão em um momento muito especial da<br />

ópera italiana, o chamado Período de Transição e, levando em consideração o que disse<br />

Terenzio, devemos analisar a participação de Gomes neste momento. Para tal, sugerimos<br />

abordar três grandes tópicos: Que ambiente Antônio Carlos Gomes encontrou em Milão?;<br />

O período de transição (1870-1893); Contribuição de Gomes e seus colegas para a<br />

renovação do melodrama italiano.<br />

Que ambiente Antônio Carlos Gomes encontrou em Milão?<br />

A Itália unificada<br />

Gomes chega em Milão no final de 1863 e inicia seus estudos com pelos menos<br />

dois importantes nomes da música italiana, Lauro Rossi e Alberto Mazzucato. Milão, na<br />

segunda metade do século 19 era uma metrópole. A capital da cultura e da economia<br />

pujante, em contraste com o sul pouco desenvolvido. Somente em 1861, a cidade e as<br />

demais regiões da Itália, a exceção de Roma, constituem o Reino da Itália, o qual será<br />

completado com a anexação de Roma em 1871 e, muito mais tarde, de Trento e de Trieste<br />

em 1918. A constituição do Reino da Itália facilita Milão a consolidar-se como o grande<br />

centro empresarial e econômico do jovem reino. Então, a Itália de Gomes é a de um país<br />

recém unificado e a Milão de Gomes é um caldeirão de ideias, tendências e empreendimentos<br />

de toda a ordem.<br />

A crise do melodrama<br />

Considerando o silêncio de Rossini após a estreia de Guglielmo Tell, em 1829, o<br />

precoce desaparecimento de Bellini, em 1835, e a morte de Donizetti, em 1848, o melodrama<br />

lírico ficou nas mãos de G. Verdi por um longo tempo. A estrutura do bel canto<br />

introduzida por Rossini e desenvolvida por Bellini e Donizete mas também incorporada<br />

por Verdi em suas primeiras fases tem vida longa. Gravitam em torno de Verdi nomes<br />

menores que contribuem para atender uma contínua demanda de óperas novas, mas<br />

sem significativos avanços estéticos, o que seria quase exclusividade de G. Verdi. Entre<br />

eles, Saverio Mercadante, Lauro Rossi, Vaccai e Pacini.<br />

Entretanto, nos últimos anos da década de sessenta, este modelo parece ter<br />

chegado a um esgotamento e mudanças se impunham. A arte Italiana, como um todo,<br />

parece não suportar mais o isolamento a que foi submetida pela barreira física dos Alpes.<br />

Uma nova geração reclama novos ares. O insucesso das revoltas de 1848, por toda a Europa<br />

e a morosidade das modificações sociais, tão caras à causa do risorgimento, auxiliam<br />

em compor um quadro de insatisfação. Essa necessidade de renovação já aparece mesmo<br />

em Verdi, quando os temas de suas óperas, a esta altura, já haviam mudado sensivelmente<br />

do terreno heróico-histórico para a dramaturgia clássica romântica de Hugo e Schiller.<br />

No campo das artes, esta insatisfação se traduz em um grupo de jovens artistas<br />

que seria chamados scapigliatti.<br />

A scapigliatura<br />

O termo scapigliati refere-se a uma condição de “descabelados”. Os scapigliati,<br />

como assim eram chamados os seguidores da scapigliatura, compreendiam literatos,<br />

músicos, artistas plásticos e intelectuais de diferentes qualidades, mas que se concentravam<br />

em contestar o status quo. Tudo poderia e deveria ser diferente. O velho não mais tinha<br />

valor. De fato, foi o primeiro movimento com ambições de vanguarda na recente história<br />

cultural da Itália unificada. Teve duração relativamente efêmera, de 1860 a 1875, e limitouse<br />

a Milão e Turim, mas deixou marcas importantes na vida artística da Itália.<br />

Em linhas gerais, o movimento centrava-se nos seguintes pontos: liberdade de<br />

expressão, quebra das regras acadêmicas antepondo a criatividade à razão, originalidade<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


198<br />

em contraste aos ditames rigorosos do estilo e a quebra das limitações do provincianismo<br />

do norte.<br />

Importantes nomes dessa vertente modificadora foram Tranquilo Crenoma, nas<br />

artes plásticas, Igino Ugo Tarchetti, na literatura, e Emilio Praga, na dramaturgia.<br />

Na música, a scapigliatura não contou expressão importante e seus<br />

representantes mais notáveis são Franco Faccio e Arrigo Boito.<br />

Independentemente desses eventos modificadores, o fato é que esse efervescente<br />

cenário social encontra um Verdi menos produtivo em termos quantitativos. No<br />

contexto da história da ópera italiana, é neste período que segue, que serão apresentadas<br />

e se consolidarão profundas modificações no melodrama lírico no que se refere a sua<br />

estrutura musical e à constituição de seus libretos. Essas modificações serão fundamentais<br />

para o surgimento da giovane scuola, com reflexos em toda a produção operística até o<br />

final do século XIX e nos primeiros decênios do século XX. Tal período se denomina, Período<br />

de Transição.<br />

O Período de Transição<br />

Defini-lo não é tarefa fácil. Considera-se que seria um período de ligação entre<br />

Verdi e Puccini. Poderia ser, também, um período de rejeição aos pressupostos Rossinianos,<br />

com um gradual desaparecimento da ópera de número, a inicial aceitação do modelo da<br />

grand opéra e, finalmente, a permissão da influência da opera lírica francesa sobre o<br />

melodrama italiano.<br />

Uma nota da biografia sobre Filippo Marchetti contém uma possível explicação<br />

para este período e deve ser reproduzida:<br />

Filippo Marchetti (Bolognola, 1831 – Roma, 1902) è stato un compositore importante<br />

in quella fase di passaggio del melodramma italiano compresa fra la<br />

straordinaria stagione romantica dominata dal genio verdiano e la nuova stagione<br />

segnata dalla presenza di Puccini, Giordano, Cilea e Mascagni. (Pellegrino, 2002)<br />

De forma sucinta, Nicolaisen (1980, p. 3) refere-se a este espaço como o Período<br />

em que Verdi escreveu suas três maiores óperas, Aida, Otello e Fastalff. Esta definição<br />

não deixa de ser controversa, uma vez que a figura de Verdi não é, decididamente, a<br />

figura central deste período e, portanto, não poderia se usando como marco de referência<br />

para sua delimitação.<br />

Outra forma de caracterizá-los seria dizer que se trata do período de abertura<br />

da ópera à influência externa ocasionando mudanças estilísticas ao melodrama italiano<br />

do qual Verdi pouco participou, mas não se manteve alheio.<br />

Lauro Machado Coelho (2002) o situa entre a Aida e Cavalleria Rusticana e o reconhece<br />

como um Período intermediário de indecisões, acertos e erros que caracterizam<br />

toda época de transição.<br />

De qualquer forma, trata-se de um período bem definido pelo seu espaço temporal,<br />

por suas características estilísticas, pelo momento histórico, resultando no surgimento<br />

de um novo formato de melodrama. Em torno deste período, caracterizado também<br />

por um relativo recolhimento de Giuseppe Verdi, gravitam alguns compositores emblemáticos<br />

como Fillipo Marchetti, Stefano Gobatti, Alfredo Catalani, Amilcare Ponchielli e<br />

Antônio Carlos Gomes.<br />

A fixação temporal desse período depende dos conceitos de cada autor. As diferentes<br />

opções estão relacionadas a determinadas obras paradigmáticas. Como dito, Nicolaisen<br />

(2002) delimita-o entre 1870 e 1893, com Aida e Fastalff. Coelho (2002) e Cezari<br />

(2000) também consideram Aida como o início, mas o marco do verismo com Cavalleria<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


199<br />

Rusticana seria o final deste período. Uma outra possibilidade, aí incluído os lídimos<br />

representantes da transição, seria iniciar o período com Il Guarany de 1870 e finalizá-lo<br />

com o Condor de 1891.<br />

De qualquer forma, o que mais importa é descrever e discutir os fatos musicais<br />

e estéticos que fazem do Período de Transição um momento único e definido ao longo do<br />

percurso do melodrama italiano do século XIX, o que será discutido a seguir.<br />

Contribuição de Antônio Carlos Gomes e seus colegas<br />

para a renovação do melodrama italiano<br />

O insucesso das revoltas de 1848, por toda a Europa e a morosidade das modificações<br />

sociais, tão caras à causa do risorgimento, 2 auxiliam em compor um quadro de<br />

insatisfação. Uma vez no poder, os antigos revolucionários, como costuma ocorrer, não<br />

conseguem em curto espaço de tempo, que só no discurso político se realiza, as modificações<br />

profundas que levem a um rápido desenvolvimento econômico e social da<br />

Itália. Por um lado, a classe política dominante, para a Itália pós-unificação, preocupa-se<br />

primordialmente em demonstrá-la como nação legítima e alinhada à ordem europeia.<br />

Estas, certamente, não são as preocupações centrais daqueles jovens que lutaram pela<br />

unificação. As gerações mais jovens, inquietas, se revoltam contra toda a ordem estabelecida<br />

e gritam pelo novo.<br />

O melodrama lírico, uma das mais bem guardadas relíquias da unidade italiana,<br />

não se exclui dessa insatisfação e da necessidade renovação. Mais que isto, o tradicional<br />

isolamento cultural a que a península se impunha, está prestes a desmoronar, pois não<br />

faltam vozes internas que desejem ardentemente romper a cúpula que protegia a música<br />

italiana da influência externa.<br />

Em termos gerais, a abertura do melodrama italiano ao mundo exterior se concentra<br />

principalmente na adoção da estética da grand opéra francesa e o período de<br />

transição vai compreender uma releitura dos códigos desse gênero que são, em síntese:<br />

uso de tema histórico, a preocupação com a grandiosidade da encenação, o uso de massas<br />

corais, de cenas rituais, emprego de peças características (polacca, habanera, etc.), a presença<br />

do coup de théâtre, a inserção de balé, características particulares da orques-tração,<br />

o uso de tema recorrentes para unidade dramática, um discurso vocal diferenciado e, por<br />

fim, e muito relevante, a desestruturação da Solita forma<br />

Pode-se passar agora a analisar alguns desses elementos caracterizadores da<br />

grand opéra em sua apropriação pelos compositores italianos, com Gomes incluído, e<br />

identificar sua contribuição para moldar essas características ao gosto e às cores peninsulares.<br />

Os elementos da grand opéra<br />

As características estruturais da grand opéra de Auber e Meyerbeer estão presentes<br />

na ópera da transição (Virmond, 2009).<br />

Um elemento contraditório é que, na Itália, não ocorre com freqüência o uso de<br />

tema histórico, limitando-se a alguns poucos casos como o Ruy Blas de Marchetti I Lituani<br />

de Ponchielli e a Maria Tudor de Gomes. Independentemente, o tema escolhido será tratado<br />

com grandiosidade cênica, garantindo-se a participação de massas corais, sejam em<br />

números isolados, característicos o nos concertatos, como bem se pode verificar em Il<br />

Figliuol Pródigo de Ponchielli, por exemplo.<br />

...........................................................................<br />

2 Movimento político e revolucionário entre 1815 e 1870 que resultou na unificação dos diferentes estados da<br />

península da Itália em um novo país. Foi um dos mais importantes períodos da história italiana e teve como foco<br />

central a revolta contra a opressão estrangeira por parte dos austríacos. Entre as figuras principais desse movimento<br />

salientam-se de Giuseppe Mazzini e Giuseppe Garibaldi.<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


200<br />

As cenas rituais ocupam importante lugar ao longo da ópera. Exemplos disto<br />

são a invocação no terceiro ato de Il Guarany de Carlos Gomes, a cena do templo no<br />

primeiro ato e a cena do julgamento de Aida de G. Verdi e a Scena del Consiglio em Fosca.<br />

O emprego de peças características é fundamental para a criação da cor local e<br />

para garantir a diversidade dos eventos cênicos e musicais. Este é o caso, entre outros<br />

muitos, da Polacca de Cecília em Il Guarany e das canções de brinde em I Lituani de Ponchielli.<br />

O coup de théâtre é aquele momento privilegiado, geralmente curto, de clímax<br />

dramático resolutivo, onde o texto e o desenvolvimento cênico têm características marcantes,<br />

conclusivas, brilhantes, inesperadas, inspiradas, levando a um arrebatamento da<br />

audiência pelo inusitado. Esse modelo é usado em La Gioconda (1876), no momento final<br />

do terceiro ato quando Alvise apresenta o corpo exânime de sua mulher e revela ter sido<br />

ele seu algoz em virtude da traição aos votos do casamento, para duplo espanto de seus<br />

convidados e, pretensamente, da plateia. Da mesma forma, Antonio Scalvini, este um dos<br />

principais scapigliati em Milão, e Carlos D’Ormeville optam por transformar D. Antonio<br />

em um quase homem-bomba ao explodir o castelo ao final de Il Guarany. Na cena final de<br />

Maria Tudor, a agitação da rainha à suspeita levantada por Giovanna de uma possível traição<br />

e a surpresa da revelação de quem realmente foi ao patíbulo3 , é cena que preenche<br />

também os requisitos de coup de théâtre. Mais adiante, vemos em Andrea Chénier (1896)<br />

outro exemplo clássico na exuberante cena final do terceiro ato, quando Gérard se apresenta<br />

e retira a acusação contra Chénier, mas ela é reapresentada por Fouquier, o promotor,<br />

o que termina permitindo a condenação do poeta à guilhotina. Illica e Giacosa preparam<br />

várias situações dessas em Tosca, sendo o assassinato de Scarpia e o falso fuzilamento de<br />

Cavaradossi dois momentos representativos.<br />

O balé, elemento essencial da grand opéra, se faz presente na ópera do período<br />

de transição. Muitas vezes desprovido de interesse para a continuidade da ação dramática,<br />

o balé apresenta o apelo ao grandioso e ao colorido local. Os exemplos são conhecidos e<br />

falam por si. Basta recordar as danças indígenas em Il Guarany, os balés de La Gioconada,<br />

Il Figliuol Prodigo e I Lituani e a Bacanalle em Maria Tudor de Carlos Gomes.<br />

A orquestração<br />

Da leveza da orquestração de Belinni e Donizetti, onde a transparência da frase<br />

é fundamental, admitindo-se apenas o desdobramento das tríades para apoiar e expressão<br />

da frase melódica pelo solista, passa-se a uma orquestração mais densa e valorizadora<br />

dos timbres instrumentais. Esses timbres assumem relevância dramática no contexto do<br />

discurso musical em relação ao discurso literário. Veja o caso de Donizetti no Elixir d’Amore<br />

(Figura 1). Em Gomes, as questões tímbricas serão particularmente importantes para tentar<br />

a “cor local” em Il Guarany. Este é o caso dos instrumentos adicionais para o acompanhamento<br />

do balé no terceiro ato e, no final do segundo ato, o uso de uma banda interna<br />

para executar a música que as instruções da partitura referem como “suono interno<br />

d’instrumenti selvaggi”. Mais adiante, esta preocupação estará presente em Condor (Figura<br />

2), no dobramento dos violoncelos com os fagotes para um efeito eminentemente tímbrico<br />

de urgência e selvageria ao anunciar a invasão do palácio de Odalea pela turba enfurecida.<br />

O uso dos violinos na região aguda e em trêmulo é outra fórmula comum e,<br />

para a época, perigosa, pois que identificava imediatamente o compositor com a estética<br />

...........................................................................<br />

3 Maria combina com D. Gil de trocar o condenado à morte, Fabiano Fabiani, seu amante, por Gilberto. Sob o<br />

capuz ninguém iria notar a diferença. Na verdade, Dom Gil prefere atender ao pedido de seu rei, Felipe II da<br />

Espanha, do que atender aos apelos da Rainha da Inglaterra. Ele não ordena a troca de prisioneiros e, ao final,<br />

quem vai ao patíbulo é Fabiani, para desespero de Maria.<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


Figura 1. Introdução orquestral da frase principal. Na exposição pela voz, a orquestra apoia harmonicamente o<br />

tema – G. Donizetti, L’Elisir d’Amore.<br />

201<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


202<br />

Figura 2. O uso dos fagotes em uníssono com os violoncelos – A. Carlos Gomes, Condor, terceiro ato.<br />

Figura 3. O modelo usado por Gomes ao final de ópera. Violinos em trêmulo no registro agudo – A. Carlos Gomes. Fosca.<br />

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203<br />

wagneriana após a estréia do Lohengrin em Bologna, ocorrida em 1870. Convém recordar<br />

que Verdi já fizera uso dessa mesma fórmula na então longínqua La Travita, de 1853. Entretanto,<br />

o modelo da melodia sobre um fundo de violinos em trêmulo no registro agudo,<br />

principalmente em cenas de consumação de perda, dor, despedida, é constante e eficiente<br />

em Fosca, Salvator Rosa e La Gioconda. Veja-se o caso da Fosca de Gomes (Figura 3).<br />

O uso proeminente do dobramento de frase entre as cordas, as violinatti, é outro<br />

modelo comum ao período. A frase apresentada pelos primeiros violinos era reproduzia<br />

nos segundos violinos uma oitava abaixo, assim como pelas violas na mesma tessitura.<br />

Eventualmente, a frase era distribuída por todas as cordas, à exceção dos contrabaixos.<br />

As madeiras poderiam ser chamadas a dobrar a mesma melodia, também. Este dobramento<br />

aumenta a densidade da frase e empresta grandiosidade tímbrica à frase, alcançando<br />

um grande efeito dramático, sublinhando as intenções do compositor em momentos<br />

climáticos. Catalani e, mais tarde, Mascagni (Figura 4) apresentam exemplos típicos deste<br />

artifício de orquestração.<br />

Figura 4. Emprego das cordas para a exposição da melodia principal. As madeiras também sustentam a mesma<br />

frase e nesse exemplo se encontram condensadas em um único pentagrama – A. Catalani, La Wally (1892).<br />

Temas recorrentes<br />

Essa associação entre discurso dramático e orquestra, por meio dos temas recorrentes,<br />

se apresenta de forma mais elaborada entre os compositores desse período de<br />

transição. Esta preocupação será incessante, quase como uma necessidade para a obtenção<br />

da coesão estilística e da unidade dramática em suas obras. O tema recorrente se dá pela<br />

caracterização que um determinado tema melódico, fragmento rítmico, tonalidade ou<br />

textura tímbrica apresenta com um determinado evento ou condição dramática no contexto<br />

do libreto. Como a própria palavra diz, trata-se de uma reminiscência, isto é, ela<br />

passa a atuar como tema recorrente após o prévio estabelecimento da relação melodia,<br />

rítmica ou tímbrica com o evento associado. Assim, o seu reaparecimento já não requer<br />

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204<br />

nem a participação da voz ou do personagem a que está ligado, ou melhor dito, condicionado.<br />

O tema do amor de Alfredo por Violeta, que recorre no último ato da La Traviata,<br />

é suficiente para evocar essa condição, mesmo que não houvesse interferência do personagem<br />

para corroborar essa associação.<br />

De fato, seu uso não é novidade, pois mesmo Weber em Der Freischütz já fez<br />

uso desses temas. Entretanto, a abordagem dessa fórmula pelos compositores da Transição<br />

é diferenciada e mais sofisticada.<br />

Kimbley (1991) cita um caso representativo da antes mencionada preocupação<br />

com a unidade dramática por partes dos compositores do período em estudo. No final do<br />

segundo ato de La Gioconda, durante o dueto de extremo confronto entre Gioconda e<br />

Enzo, quando esta lhe mostra a barca em que foge Laura, sua rival pelo amor do marinheiro.<br />

Enquanto Enzo responde, incrédulo, a mais esta tentativa de Gioconda em afastá-lo de<br />

Laura, a mesma melodia que Gioconda apresentou sua denúncia acompanha a exposição<br />

de Enzo, criando um confronto adicional, psicológico, mas totalmente fundado em uma<br />

ação musical (Figuras 5 e 6).<br />

Figura 5. No desenvolvimento do dueto, Gioconda revela a fuga de Laura na tentativa de demonstrar que a rival<br />

verdadeiramente não o ama.<br />

Figura 6. Na entrada de Enzo, refutando a possibilidade de traição de Laura, a frase de Gioconda confronta-se com<br />

a exposição de Enzo.<br />

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205<br />

Em verdade, Antônio Carlos Gomes, já utilizara este mesmo expediente em sua<br />

revolucionária Fosca, de 1873. De fato, para esse período de transição, Fosca deve ser<br />

analisada com muita atenção, pois que prenuncia muitas das mudanças que irão marcar<br />

esse período.<br />

Nesta ópera, logo no primeiro ato, Gajolo, o chefe dos piratas refuta a ideia<br />

sugerida por Fosca de aceitar o resgate e não entregar Paulo, o refém. Isto é contra a ética<br />

dos corsários. Enquanto explica isto à irmã, a orquestra retoma o Tema dos Corsários que,<br />

de acordo com a análise de Mário de Andrade (1936), apresenta a altivez desses homens<br />

e que é apresentado logo nos primeiros compassos da abertura da ópera, pelo menos em<br />

suas duas últimas versões (Figura 7) e será repetido outras vezes ao longo da obra quando<br />

surgir este mesmo contexto dramático.<br />

Figura 7. Enquanto Gajolo refuta a ideia de trair a ética do grupo, o Tema dos Corsário é exposto pela orquestra de<br />

forma a complementar o discurso dramático – A. Carlos Gomes, Fosca.<br />

Seria exaustivo apresentar todas as situações em que os compositores da Transição<br />

utilizam este recurso, mas espera-se que esses exemplos permitam fixar a noção do<br />

emprego que eles fizeram deste expediente composicional para obter unidade em suas<br />

obras, além de reforçar seu senso dramático.<br />

O discurso vocal<br />

O tratamento da vocalidade no contexto do Discurso Vocal se altera sensivelmente<br />

devido, em parte, a nova abordagem da orquestração. Tornando-se mais espessa,<br />

mais densa a orquestração, a vocalidade tende a competir com a orquestra. Em muitas<br />

obras desse período, de fato, percebe-se o estabelecimento de uma relação de forças entre<br />

orquestra e cantores, com certa preponderância da orquestra sobre eles. Certamente,<br />

esta dualidade não se restringe a uma modificação do tratamento da linha vocal. Percebese,<br />

antes de tudo, uma preocupação crescente em incorporar a orquestra no discurso<br />

dramático.<br />

A relação entre discurso dramático e musical se acentua e se aproxima. A declamação<br />

dramática, muitas vezes de caráter enérgico, assume preponderância. Esta opção<br />

de tratamento da frase vocal está em consonância com a busca da continuidade do discurso<br />

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206<br />

musical. As cenas de ligação entre as secções não têm mais o caráter contemplativo ou<br />

puramente narrativo de fato ocorrido. Os fatos acontecem em tempo real e, texto e música,<br />

descrevem reações psicológicas coerentes com seu conteúdo dramático. Nela se traduz a<br />

necessidade de expressar algo real, uma seqüência de sentimentos despertados ou<br />

resultantes de um fato. Fosca introduziu muitas novidades no melodrama desse período<br />

e, por isto, pode novamente ser usada para exemplificação do que foi exposto sobre a<br />

mudança na vocalidade.<br />

Na cena final do segundo ato, quando Gajolo, para salvar Fosca da fúria da<br />

populaça, explica que ela é uma louca. A reação dela é muito convincente e o tratamento<br />

musical dado por Gomes, isto é, a declamação musical que ele usa para este segmento é<br />

muito efetivo e característico dessa nova modalidade de tratamento da frase. Fosca se<br />

sente ao mesmo tempo ultrajada com o artifício usado pelo irmão como reconhece sua<br />

loucura por desejar um amor impossível (Figura 8).<br />

Figura 8. A declamação dramática é fruto de uma necessidade de expressar o real – A. Carlos Gomes, Fosca.<br />

Em La Gioconda encontramos um outro exemplo do tratamento dramático de<br />

eventos em tempo real, expresso por uma declamação dramática muito eficaz e<br />

convincente. No quarto ato, após sua ária, Gioconda discute consigo mesma os fatos até<br />

ali ocorridos, suas consequências e as medidas que tomou para resolvê-los ou contornálos<br />

(ecco il velen di Laura). Depois que ela aproxima os dois amantes, Enzo e Laura, e<br />

salva-los pela fuga, pensa que está tudo resolvido. Subitamente, lembra-se da mãe, cega<br />

– mais um encargo em sua agenda repleta de problemas. É algo que chega a ser trivial,<br />

não fosse a enorme carga emocional que esta lembrança lhe desperta. Tanto no primeiro<br />

caso como neste último, a cena é construída por meio de uma declamação dramática em<br />

que o texto musical se coaduna perfeitamente com o texto dramático. Seria conveniente<br />

recordar que, para os compositores da primeira metade do século, um recitativo a seco<br />

ou acompanhado, resolveria a questão (Figura 9).<br />

Figura 9. Inicia-se uma intensa declamação dramática quando Gioconda lembra que ainda não pode matar-se, pois<br />

falta encontrar a mãe, cega – A. Ponchielli, La Gioconda, Quarto ato, cena V.<br />

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207<br />

Ainda dentro de uma nova abordagem da vocalidade, cita-se o uso freqüente<br />

de expansões da frase melódica, em registro médio para o agudo, com conteúdo<br />

fortemente dramático, usualmente com a indicação interpretativa de slancio que pode<br />

ser traduzida por ímpeto, arrojo, ardor – o que efetivamente está contido nesse tipo de<br />

expansão da frase. Um exemplo clássico ocorre, novamente, em Fosca e La Gioconda<br />

(Figura 10):<br />

Figura 10. As duas mulheres, irmanadas pelo amor não correspondido, usam frequentemente a melodia expandida,<br />

com slancio.<br />

A desestruturação da Solita Forma<br />

Os principais constituintes da estrutura do melodrama e seu esquema formal<br />

podem ser visto no Quadro 1.<br />

SCENA ED ARIA SCENA E DUETTO FINALE<br />

ScenaScena Scena<br />

Cantabile Tempo d’attacco Tempo d’attacco<br />

Tempo di mezzo Cantabile Largo concertato<br />

Cabaletta Tempo di mezzo Tempo di mezzo<br />

Cabaletta Stretta concertata<br />

Quadro 1. Principais segmentos da estrutura do melodrama italiano da primeira metade do século XIX.<br />

De acordo com as convenções do melodrama lírico, cada um desses segmentos<br />

tem a sua função e sua constituição formal. A seção inicial, a scena, é construída em forma<br />

de recitativo e destinada ao desenvolvimento rápido da ação dramática. Seguem as<br />

partes mais importantes, do ponto de vista musical, o cantabile e a caballeta. A primeira<br />

peça é exposta em tempo moderado ou mesmo lento e sua construção vocal é, como diz<br />

o nome, de caráter cantabile. A segunda peça, a cabaletta, em tempo rápido, vocalidade<br />

ágil e de conteúdo conclusivo. Entre esses dois segmentos musicalmente mais importantes<br />

coloca-se um momento intermediário, de ligação dramática e de pouco desenvolvimento<br />

musical, o tempo di mezzo.<br />

Os finais de ato, dentro do padrão da Solita forma, sofreram modificações adicionais<br />

nesse período e que, segundo Cesari (2002), são marcantes.<br />

De uma forma ampla, o se apresenta no Quadro 2 é uma proposta classificadora<br />

dos finais de unidades dramáticas, aí já incluída a nova versão dos Finales.<br />

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208<br />

Quadro 2. Identificação e descrição dos diferentes segmentos finais das unidades dramáticas no melodrama<br />

Italiano do século XIX. (Fonte: Virmond, 2007)<br />

Essa discussão será limitada às modificações introduzidas nos Finales. Neste<br />

sentido, uma das importantes contribuições de Ponchielli é a reestruturação desses finais<br />

de ato, no que Luigi Illica chamava de “novo concertato a tutta ribalta”, como cita Nicolaisen<br />

(1980). Ao contrário da estrutura descrita no Quadro 1, essa nova proposta incluía, em<br />

termos gerais, os seguintes aspectos musicais:<br />

- Seção inicial de interesse rítmico<br />

- Seção solística com introdução do tema principal (tenor ou soprano)<br />

- Repetição do tema com suporte adicional<br />

- Seção cadencial com ou sem relação temática ao concertato – peroração final<br />

com retomada temática<br />

Um caso intermediário é o concertato do primeiro ato de Il Guarany, no qual o<br />

padrão do primo ottocento está claramente presente.<br />

Convém, agora, analisar aquelas modificações para os Finales propostas por<br />

Ponchielli, as quais podem ser claramente identificadas em La Gioconda. De início, há<br />

uma seção inicial com caráter eminente rítmico (Figura 12). Segue-se a apresentação de<br />

uma frase por um dos solistas, em de âmbito cantabile, que se firam com o tema principal<br />

do segmento (Figura 13). Posteriormente, há uma repetição, completa ou modificada do<br />

tema principal com suporte coral e dos demais solistas (Figura 14). Por fim, apresenta-se<br />

uma seção cadencial (Figura 15) com ou sem relação ao tema principal, levando à conclusão<br />

do Finale com um dos tipos de fechamento de unidade dramática descritos no Quadro 2<br />

(Figura 16). Usualmente, na época, e esta é uma contribuição da Ponchielli, utilizava-se a<br />

Figura 11. Sequência estrutural do final do segundo ato – A. Carlos Gomes, Il Guarany.<br />

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Figura 11. Sequência estrutural do final do segundo ato – A. Carlos Gomes, Il Guarany (cont.).<br />

209<br />

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210<br />

Figura 11. Sequência estrutural do final do segundo ato – A. Carlos Gomes, Il Guarany (cont.).<br />

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Figura 12. Secção inicial rítmica – A. Ponchielli, La Gioconda, Finale do terceiro ato.<br />

Figura 13. Seção solística – A. Ponchielli, La Gioconda, Finale do terceiro ato.<br />

Figura 14. Repetição da seção solística – A. Ponchielli, La Gioconda, Finale do terceiro ato.<br />

211<br />

peroração final com retomada temática. Este trata-se de uma peroração sinfônica, usualmente<br />

com o tema principal ou um seu desenvolvimento, apresentado em tutti orquestral<br />

com dinâmica fortíssimo. Este fechamento sinfônico é curto, condensado e, de fato,<br />

funciona efetivamente como uma conclusão motívica da cena final.<br />

Na primeira Fosca, de 1873, Carlos Gomes prenuncia este tipo de estruturação<br />

e desenvolvimento de Finale ao fim do segundo ato de sua obra. Há uma introdução de<br />

interesse puramente rítmico na voz de Fosca e na figuração orquestral que acompanha<br />

(Figura 17) e uma seção solística introduzida por Paolo (Figura 18) que é repetida e desenvolvida<br />

por Fosca e retomada pelo coro de forma extensiva.<br />

Há, entretanto, uma segmentação importante entre o início do Finale e sua cadência<br />

final com elementos musicais desprovidos daquela coerência imposta por Ponchielli<br />

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212<br />

Figura 15. Seção cadencial – A. Ponchielli, La Gioconda, Finale do terceiro ato.<br />

Figura 16. Seção final da unidade dramática. Peroração final com retomada temática – A. Ponchielli, La Gioconda,<br />

Finale do terceiro ato.<br />

Figura 17. Seção rítmica – A. Carlos Gomes, Fosca, Finale do segundo ato.<br />

Figura 18. Seção solística – A. Carlos Gomes, Fosca, Finale do segundo ato.<br />

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213<br />

em sua nova estrutura de Finale como no caso de La Gioconda. Contudo, em Salvator Rosa<br />

de 1874, Gomes, introduz esse mesmo sistema que, mais tarde Ponchielli utilizará em<br />

La Gioconda (Figuras 19, 20, 21 e 22). O compositor ainda não consegue uma fluência<br />

estrutural como Ponchielli, mas os elementos essenciais estão presentes. Trata-se de um<br />

meio caminho entre o Finale do segundo ato de Aida (1871) e o de La Gioconda (1876).<br />

Verdi constrói uma impressionante e colorida cena, mas não está atento à unidade estrutural.<br />

Ele, certamente, já tinha abandonado a fórmula antiga do concertato, mas este<br />

final em Aida revela-se mais um agregado de números dentro de um grande número,<br />

incluindo o Balé. No caso do Salvator Rosa, Gomes propõe um início com figuração rítmica<br />

e exposição de um tema solístico que aparece diretamente nas duas vozes principais.<br />

Inclui ainda um segundo tema em cantabile, mas é aquele primeiro que, em verdade,<br />

será usado na repetição com os demais solistas e coro. Por último, a peroração final não<br />

é feita com retomada temática, apenas um fecho de unidade (Figura 22) com desenho<br />

rítmico retomado do que já tinha sido apresentado e uma curta reafirmação tonal. De<br />

qualquer forma, é interessante verificar como este Finale do Salvator Rosa prenuncia de<br />

forma concreta aquilo que Ponchilli mais adiante levará à condição de um paradigma do<br />

período da Transição para os finais de ato.<br />

Apenas para melhor ilustrar esta discussão, citam-se na sequência os exemplos<br />

musicais do Lo Schiavo para que se identifique a adesão de Gomes ao modelo demarcado<br />

por Ponchielli, ainda que de forma mais compacta (Figura 24). Tanto isto é verdade que a<br />

secção solística (Figura 25) é retomada de imediato em uma seção de repetição com sucessivas<br />

entradas do tema principal na voz do tenor (Americo) e, posteriormente, do barítono<br />

(Iberê) com apoio do coro e demais solistas. A seção cadencial é curta e a peroração<br />

final (Figura 26) é extremamente similar ao Finale já mencionado do Salvator Rosa (ver<br />

Figura 23).<br />

Figura 19. Seção rítmica – A. Carlos Gomes, Salvator Rosa, Finale do segundo ato.<br />

Figura 20. Seção solística – A. Carlos Gomes, Salvator Rosa, Finale do segundo ato.<br />

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214<br />

Figura 21. Seção de repetição – A. Carlos Gomes, Salvator Rosa, Finale do segundo ato.<br />

Figura 22. Seção cadencial – A. Carlos Gomes, Salvator Rosa, Finale do segundo ato.<br />

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Figura 23. Peroração final sem retomada temática – A. Carlos Gomes, Salvator Rosa, Finale do segundo ato.<br />

Figura 24. Seção rítmica – A. Carlos Gomes, Lo Schiavo, Finale do segundo ato.<br />

Figura 25. Seção solística – A. Carlos Gomes, Lo Schiavo, Finale do segundo ato.<br />

Figura 26. Peroração final – A. Carlos Gomes, Lo Schiavo, Finale do segundo ato.<br />

215<br />

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216<br />

Assim, esta estruturação do Finale assume característica marcante e específica<br />

desse período dito de transição e enuncia-se como uma das contribuições desses compositores<br />

ao desenvolvimento do melodrama italiano da segunda metade do século XIX.<br />

Uma de suas peculiaridades é o fechamento da unidade dramática, o qual foi<br />

sumarizado no Quadro 2. Entretanto, convém aprofundar a discussão sobre um desses<br />

tipos de finalização, a peroração final com retomada temática, ainda que sem este título,<br />

foi muito bem identificado por Cesari (2002) 4 e também mencionada por Nicolodi (2002).<br />

O que se propõe agora é uma ampliação deste conceito com uma melhor caracterização<br />

de seus componentes. Neste sentido, alguns exemplos podem auxiliar no seu<br />

entendimento.<br />

Novamente, Carlos Gomes e Il Guarany permitem caracterizar este tipo de<br />

fechamento. Exatamente no final do quarto ato se vê o uso de um dos temas principais,<br />

apresentado em dinâmica fortíssima e com pleno significado. Aqui, Gomes renuncia<br />

categoricamente a um final típico de afirmação tonal e usa como fecho a simples mas<br />

poderosa reapresentação do tema da pureza, altivez, bravura e coragem de Pery, isto é,<br />

um modelo exemplar de bon sauvage (Figura 27).<br />

Figura 27. Compassos finais do último ato. Veja-se o uso do motivo de Pery – A. Carlos Gomes, Il Guarany,.<br />

Em La Gioconda identifica-se o modelo mais bem acabado para este tipo de fechamento.<br />

Logo após o coup de théâtre da revelação do corpo de Laura, para comentar e<br />

concluir a cena catastrófica, a orquestra retoma, exatamente, o tema do largo concertato<br />

(Figura 28).<br />

Figura 28. Finale do terceiro ato – A. Ponchielli, La Gioconda.<br />

...........................................................................<br />

4 “Nei Finali concertati la scomparsa della Stretta è compensata dalle cosiddette perorazioni, cioè dalla ripresa<br />

orchestrale, a tutta forza, della frase principale del Largo concertato, che assolve alla medesima funzione di<br />

chiudere l’atto in modo musicalmente eclatante” (Cesari, 2002, p. 6).<br />

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217<br />

Nessa mesma linha, exemplifica-se o final de I Lituani, estreado no Scala em<br />

1874. Após uma muito bem elaborada cena final, do ponto de vista harmônico, Ponchielli<br />

encerra a ópera com poucos compassos em que retoma de forma grandiosa um tema<br />

muito recorrente desde a sinfonia da ópera, o qual pode ser ligado a figura de Walter/<br />

Corrado, o herói que se imola em nome da afirmação da pátria Lituana (Figuras 29 e 30).<br />

Figura 29. Na Sinfonia de I Lituani aparece pela primeira vez o tema relacionado com Walter, que será retomado ao<br />

longo da ópera.<br />

Figura 30. Compassos finais do último ato em que, após a conclusão coral, a orquestra retoma o frase relacionada<br />

com Walter (assai largamente com molt’anima) – A. Ponchielli, I Lituani.<br />

A estrutura da solita forma está praticamente ausente dos finais de ato das óperas<br />

do verismo. Entretanto, Mascagni e Leoncavallo, mesmo longe de Gomes, Ponchielli e<br />

Marchetti, não se furtam a esta fórmula da retomada do tema principal como resumo de<br />

ato, ou mesmo de finalização da ópera, principalmente naquelas de um ato. Esse é o caso<br />

de Cavalleria Rusticana (1890) (Figura 31) e Pagliacci (1893) (Figura 32).<br />

Figura 31. Final da ópera – P. Mascagni, Cavalleria Rusticana.<br />

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218<br />

Figura 32. Final da ópera – R. Leoncavallo, Pagliacci.<br />

O jovem Pucinni, ainda dando seus primeiros passos com Le Villi e Edgard, parece<br />

não ficar alheio a essa possibilidade. No final do primeiro ato de Le Villi (1884) introduz<br />

uma conclusão orquestral de 17 compassos com dinâmica fortissíssimo e textura densa<br />

de orquestra (Figura 33). O desenvolvimento é feito sobre elementos temáticos da<br />

Preghiera (Angiol di Dio), não havendo a reprodução literal de uma frase, como visto no<br />

exemplo citado de Leoncavallo.<br />

Figura 33. Primeiro ato, Preghiera – G. Puccini, Le Villi.<br />

Na Manon Lescaut, sua primeira obra de afirmação no cenário lírico, o compositor<br />

também utiliza o mesmo sistema de final (Figura 34)<br />

Figura 34. Final do terceiro ato – G. Puccini, Manon Lescaut.<br />

Um compositor mais afastado desse grupo, em termos temporais, é Umberto<br />

Giordano. Ele também aproveita este processo de resumo musical para a conclusão de<br />

atos. Suas citações não chegam a ser literais como nos casos antes citados, mas o processo,<br />

em essência, é o mesmo, assim como seu efeito. Em Andrea Chénier (1896), essa agora<br />

quase convenção, aparece tanto no final do terceiro como do quarto ato. No primeiro<br />

caso, a conclusão é curta, mas com tempo dramático muito adequado, pois há uma ligeira<br />

diminuição de intensidade de eventos musicais nos compassos que antecedem esse final,<br />

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219<br />

correspondendo ao momento em que os juízes discutem o veredito. Quando este é dado,<br />

e Chénier é condenado, o fecho orquestral surge de forma justa. Ele não cita temas anteriores,<br />

usa apenas um fragmento de material da longa cena do julgamento, mas o uso<br />

declaratório da orquestra, com instrumentação plena e andamento larghissimo é utilizado<br />

da mesma forma que nos outros exemplos (Figura 66). Ao final da ópera, o mesmo ocorre,<br />

de forma mais extensa e usando material temático mais identificável com o desenvolvimento<br />

do último dueto entre Andrea e Magdalena. A textura orquestral é a mesma<br />

dos demais exemplos e a indicação de andamento, outra vez, pede grandioso (Figura 35).<br />

Figura 35. Final do terceiro ato – U. Giordano, Adrea Chénier.<br />

Figura 36. Final do quarto ato – U. Giordano, Adrea Chénier.<br />

Francesco Ciléa é um compositor ainda mais tardio que Giordano ao período<br />

em discussão, mas fará uso desse procedimento. Isto revela o intenso impacto causado<br />

por esse grupo de compositores (Gomes, Ponchielli e Catalani) iniciais ao período de transição,<br />

cujos resultados ainda podem ser sentidos na virada para o século XX. O exemplo<br />

de Ciléa ocorre ao final de terceiro ato da Adriana Lecouvreur (1902). Após a cena de intensa<br />

dramaticidade em que Adriana recita o monólogo de Fedra, o final do ato ascende<br />

a um grau insuportável de tensão com a afronta dissimulada de Adriana para com a Principessa<br />

di Bouillon. Essa carga emocional se consubstancia e se exorta na conclusão orquestral<br />

do ato, com a retomada do tema do cantabile que acompanha a recitação de Adriana,<br />

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220<br />

agora densamente orquestrada e em dinâmica fortíssimo (Figura 37). Apesar da enorme<br />

distância, 1874-1902, é interessante comparar a similaridade entre esse final, inclusive a<br />

indicação interpretativa (largamente) daquele usado por Ponchielli em La Gioconda.<br />

Figura 37. Final do terceiro ato – F. Cilea, Adriana Lecouvreur.<br />

A quantidade de exemplos poderia ser maior e permite concluir que esta fórmula<br />

para fechos de atos conquistou a preferência dos compositores do período de transição e<br />

se estendeu pela Giovane Scuola e seu efeito dramático é tão efetivo que estendeu-se<br />

até o início do século XX.<br />

Considerações finais<br />

Entre as várias possibilidades de abordagens para se analisar Antônio Carlos<br />

Gomes e sua obra, uma das mais relevantes é considerá-lo como expressivo participantes<br />

da história do melodrama italiano da segunda metade do século<br />

Identifica-se em Antônio Carlos Gomes um artesão atento com o acabamento<br />

de sua fatura, cioso da qualidade de seu produto e, paralelamente, revela-se um compositor<br />

de inequívoca competência técnica em seu metier, contribuindo para o desenvolvimento<br />

do melodrama italiano na segunda metade do século XIX. Juntamente com Ponchielli e<br />

Catalani, formam o grupo mais representativo do período de transição. Nesse sentido,<br />

Gomes e Ponchielli são importantes nomes que contribuíram para o desenvolvimento do<br />

melodrama italiano na segunda metade do século XIX. Se Ponchielli tem sido mais estudado<br />

neste contexto, não se pode negar a capacidade de Gomes em perceber o ambiente de<br />

transformação em que se encontrava e procurar um estilo próprio, o que resultou em<br />

uma obra, talvez irregular, mas sempre evolutiva.<br />

Referências bibliográficas<br />

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de Mestrado. The Hebrew University of Jerusalem, 1999.<br />

Budden, J. The Operas of Verdi. V. 3. Oxford: Clarendon Press, 2002.<br />

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Coelho, L. M. A ópera italiana após 1870. São Paulo: Objetiva, 2002. p. 17-27.<br />

Conati, M. Formação e afirmação de Gomes no panorama da ópera italiana. Notas e<br />

considerações. In: Nelo Vetro, Gaspare. Antônio Carlos Gomes – correspondências<br />

italianas. Rio de Janeiro: Livraria Editora Cátedra – Instituto Nacional do Livro, 1982.<br />

Mallach, A. Pietro Mascagni and his operas. Boston: Northeastern University Press,<br />

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Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


223<br />

A influência do simbolismo nas óperas<br />

de Alberto Nepomuceno<br />

Rodolfo Coelho de Souza<br />

Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto<br />

A despeito de que Nepomuceno é conhecido principalmente pela sua obra<br />

instrumental – sinfônica e de câmera – ou por sua obra vocal de câmera, devemos reconhecer<br />

que a ópera foi o gênero em que empreendeu seus projetos mais ambiciosos e<br />

parte substancial de sua energia criativa. Isso se deveu a dois fatores. O primeiro é que no<br />

Brasil de seu tempo a ópera era o gênero em que um compositor se consagrava. Concertos<br />

de câmera eram raros e concertos sinfônicos mais raros ainda. Aliás, foi justamente devido<br />

ao empenho dos compositores daquela geração, desde Leopoldo Miguez até Francisco<br />

Braga, que o concerto sinfônico passou a ter uma presença significativa na vida cultural<br />

brasileira, ainda que de início quase que restrita só à capital federal e umas poucas cidades<br />

provinciais com maior população e riqueza crescente, como São Paulo. No período em<br />

que viveu no Recife, entre os oito e vinte anos de idade, Nepomuceno estudou com o<br />

maestro e compositor Euclides d’Aquino Fonseca (1854-1929). Em 1883, participou como<br />

violinista da estreia da ópera Leonor de Fonseca. Como todos de sua geração, Euclides<br />

Fonseca também almejava consolidar sua reputação como compositor de óperas. O aluno<br />

seguiria os passos do mestre.<br />

O segundo fator foi Carlos Gomes. A fama conquistada pelo compositor na Itália<br />

graças a Il Guarany estabeleceu um paradigma de carreira de sucesso que a maioria dos<br />

compositores da geração seguinte almejou repetir. Maria Alice Volpe (2004, p. 2) afirma<br />

que “os paradigmas musicais nacionalistas construídos por Carlos Gomes persistiram nessa<br />

época crepuscular [fim do Império e início da República] até o advento do modernismo<br />

brasileiro”. Para Nepomuceno o desafio representado por Carlos Gomes foi palpável e<br />

imediato. Seu primeiro projeto operístico, iniciado em 1887, mas nunca terminado, seguia<br />

a mesma senda aberta em 1870 por Il Guarany de Carlos Gomes. Volpe (2002) demonstra<br />

que a música brasileira respondeu inexoravelmente, naquele período, à hegemonia da<br />

literatura no imaginário da intelectualidade brasileira. Por isso, o romance de José de<br />

Alencar, no qual a ópera de Gomes foi baseada, tornou-se paradigmático para os músicos<br />

da época ao construir uma espécie de mito de conciliação entre as civilizações europeia e<br />

nativa brasileira, servindo de inspiração para uma dezena de óperas compostas no Brasil<br />

de acordo com o modelo indianista de Carlos Gomes.<br />

A Porangaba de Alberto Nepomuceno teria sido mais uma dessas óperas indianistas.<br />

Planejada para ter três atos, utilizava como libreto um poema de Juvenal Galeno<br />

baseado em uma lenda cearense. A composição foi concebida na época de sua viagem<br />

para Roma, onde o compositor começou seus estudos europeus. Parece evidente que<br />

Nepomuceno teve o sonho juvenil de repetir na Itália o sucesso de Carlos Gomes, compondo<br />

uma ópera de feitio semelhante à da mais famosa do seu predecessor. O catálogo<br />

das obras do compositor (Corrêa, 1985) registra que desse projeto teria restado apenas o<br />

manuscrito dos Prelúdios para os atos I e III, uma Marcha dos Índios e um Bailado. O<br />

catálogo afirma que a orquestração teria se extraviado, embora nos pareça mais provável<br />

que ela nunca tivesse sido encetada, assim como a composição da música para as demais<br />

cenas. Mais plausível é que, ao chegar a Roma, Nepomuceno tivesse sido absorvido pelos<br />

estudos no Liceo Musicale Santa Cecília e desviado sua atenção para a música de câmera,<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


224<br />

envolvendo-se no projeto, também inacabado, de compor três quartetos de cordas. Os<br />

quartetos ainda puderam ser completados por musicólogos porque os esboços restantes<br />

são bem mais completos do que os da ópera.<br />

Nepomuceno tinha bastante sensibilidade para as oportunidades. Quando se<br />

envolveu no movimento abolicionista tratou de compor uma Dança de Negros. Quando<br />

se envolveu com os ideais republicanos, compôs hinos e incorporou traços da linguagem<br />

wagneriana para marcar diferenças com a música do período do Império. Se tivesse insistido<br />

na composição de Porangaba teria persistido num anacronismo, ao que Nepomuceno<br />

não era muito propenso. Se há uma acusação sobre os percursos de seu estilo que<br />

parece pertinente é que ele se curvava com muita facilidade a influxos de ocasião, incorporando<br />

com excessiva rapidez a influência dos estilos com que o compositor tomava<br />

contato. Nepomuceno tinha um espírito camaleônico que lhe permitia incorporar, em<br />

pouco tempo, traços estilísticos dos autores que admirou momentaneamente. A longo<br />

prazo, isso dificultou a compreensão de sua obra pelas gerações seguintes, facilitando<br />

que apenas os elementos vistos como precursores do nacionalismo modernista fossem<br />

valorizados pela musicologia do século vinte, em detrimento dos outros aspectos em que<br />

ele visivelmente empenhou mais energia criativa. Nesse sentido, ter deixado inacabada –<br />

ou ao que parece na verdade apenas mal começada – a composição de Porangaba, acabou<br />

sendo um benefício para sua trajetória, pois de outro modo ele poderia ter ficado marcado<br />

como mais um epígono de Carlos Gomes.<br />

Quanto à parceria com Juvenal Galeno, que forneceu o libreto para Porangaba,<br />

registre-se que o poeta, vinte e oito anos mais velho do que Nepomuceno, era naquele<br />

momento a figura mais proeminente das letras do Ceará, terra natal do compositor. Galeno,<br />

considerado pioneiro dos estudos do folclore nordestino, escreveu os versos de Porangaba<br />

sob a influência direta de Gonçalves Dias, que conheceu pessoalmente em 1859 quando<br />

aportou em Fortaleza uma Comissão Científica de Exploração na qual Gonçalves Dias encabeçava<br />

uma missão etnográfica.<br />

Não obstante o projeto de Porangaba ter permanecido incompleto na gaveta<br />

do compositor, o vínculo afetivo de Nepomuceno com a literatura regional nordestina<br />

ficou registrado em sua obra por cinco canções sobre versos de Galeno, entre elas Tu és o<br />

sol (1894), Medroso de amor (1894), Cativeiro (1896) e Cantiga triste (1899). A recorrência<br />

da utilização de versos de Galeno testemunha a relevância que esse poeta conservou no<br />

imaginário do compositor ao longo dos anos. A prova definitiva disso é que a última canção<br />

composta por Nepomuceno, A Jangada, de 1920, utiliza, ainda uma derradeira vez, versos<br />

de Galeno.<br />

Além de Galeno mais dois poetas cearenses figuram no cancioneiro de Nepomuceno,<br />

quais sejam Antonio Salles e Frota Pessoa. Entretanto, exceto naquela última<br />

canção, Nepomuceno jamais se revelou interessado em colocar em música versos inspirados<br />

em temas do folclore nordestino. Entre os autores utilizados em suas dezenas de<br />

canções figuram apenas mais três poetas nordestinos, os maranhenses Gonçalves Dias e<br />

Raimundo Corrêa e o sergipano Hermes Fontes, contudo as poesias escolhidas trazem<br />

sempre o caráter genérico do lirismo romântico, parnasiano ou simbolista, o que permitiria<br />

terem sido compostas em qualquer outro lugar de fala portuguesa. Essa constatação<br />

conflita seriamente com a visão de que a obra de Nepomuceno, como um todo, antecipa<br />

as preocupações folcloristas do nacionalismo modernista.<br />

Afirmamos acima que o espectro de Carlos Gomes projetou uma sombra sobre<br />

os projetos operísticos de Nepomuceno. Isso fica particularmente evidente no caso de O<br />

Garatuja. Assim como Porangaba, esta ópera ficou inacabada. O catálogo de Alvim Corrêa<br />

(1985, p.19) relata que se conhece apenas o manuscrito do Prelúdio e do primeiro ato, supostamente<br />

completado, mas até hoje nunca executado. Note-se, porém, que o Prelúdio<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


225<br />

foi estreado ainda em 1904, pela Orquestra do Instituto Nacional de Música, regida pelo<br />

compositor. Naquele ano, o principal projeto lírico de toda a carreira de Nepomuceno, a<br />

ópera Abul, ainda estava por terminar e de fato sua composição só foi completada no ano<br />

seguinte. A estreia ainda teria que aguardar uma montagem, com cantores italianos, realizada<br />

no Teatro Coliseu de Buenos Aires em 1913. Parece estranho imaginar que Nepomuceno<br />

interrompesse a composição de Abul, bem avançada naquele momento, para<br />

iniciar outro projeto operístico. É possível que O Garatuja tenha sido inicialmente concebido<br />

apenas como um poema sinfônico a partir do romance de Alencar. Por isso, o Prelúdio<br />

teria sido terminado e executado ainda em 1904. O sucesso da obra na estreia pode<br />

ter estimulado o compositor a cogitar transformar do Prelúdio numa eventual abertura<br />

para uma ópera que, entretanto, nunca concluiria.<br />

O aspecto mais intrigante do projeto de O Garutuja é que Nepomuceno tenha<br />

voltado a buscar em um romance de José de Alencar o material temático para o que<br />

haveria de ser sua derradeira ópera. Carlos Gomes utilizara o primeiro romance de Alencar,<br />

de 1853, para forjar seu maior sucesso e Nepomuceno buscava novamente em Alencar,<br />

na primeira parte de Alfarrábios, um romance em forma de trilogia, escrito vinte anos depois,<br />

o enredo para uma ópera. O romance de Alencar de 1873 porta um subtítulo, Crônicas<br />

dos Tempos Coloniais, e tem mais duas partes, O Ermitão da Glória e A Alma do Lázaro. O<br />

interesse pela música colonial brasileira – concretizada na recuperação por Nepomuceno<br />

da Missa de Réquiem do Padre José Maurício Nunes Garcia, aliás estimulada por Taunay<br />

– pode ter suscitado seu interesse por Alfarrábios. Todavia argumentaremos, mais adiante,<br />

que é mais provável que a sedução tenha advindo da própria composição do personagem<br />

do romance. Por outro lado, caso Nepomuceno estivesse de fato buscando um material<br />

que lhe permitisse desenvolver temas do folclore brasileiro, teria sido mais natural que<br />

tivesse utilizado o último romance de Alencar, O Sertanejo, obra de 1875. Sob este ponto<br />

de vista Alfarrábios fornece o menos provável de todos os argumentos. Lembremos ademais<br />

que, em 1904, ao esboçar O Garatuja, a memória da Guerra de Canudos de 1896-97<br />

estava mais vívida do que nunca no imaginário dos brasileiros e a publicação, em 1902,<br />

do romance Os Sertões de Euclides da Cunha tornava o tema ainda mais candente. Sucede,<br />

entretanto, que Nepomuceno já havia escrito duas óperas dramáticas. Certamente o assunto<br />

de O Sertanejo de Alencar não forneceria material adequado para uma comédia. Decidido<br />

em tentar a sorte neste outro gênero, o material encontrado em Alfarrábios pareceu a Nepomuceno<br />

a alternativa adequada, sem mencionar a atração representada pelo nome de Alencar.<br />

Se há no Prelúdio do Garatuja materiais musicais que parecem aludir a fontes<br />

folclóricas brasileiras, creio que é muito mais plausível relacioná-los ao caráter de comédia<br />

que esta ópera pretendia desenhar. A ópera buffa italiana buscara no cancioneiro popular<br />

elementos de estilo que lhe facilitaram encontrar o tom adequado para a comédia.<br />

Nepomuceno conhecia muito bem essa tradição e a prezava. Nas suas canções em que o<br />

texto sugeria um viés cômico, como em Xácara op.20 n.1 (1899) ou nas Trovas op.29 n.1<br />

e 2, ele utilizou ritmos populares de seu tempo, como o fandango (de origem ibérica), a<br />

habanera e o xote (corruptela de schottisch), para atingir esse mesmo fim. Nos anos anteriores<br />

Nepomuceno envolvera-se em ferrenhas polêmicas com o crítico Oscar Guanabarino<br />

a respeito da ópera italiana. Portanto é compreensível que, ao abordar pela primeira<br />

vez o gênero da ópera cômica, ele tivesse presente em sua mente a tradição italiana. O<br />

que transparece no Prelúdio de O Garatuja não seria, portanto, o folclorismo nacionalista<br />

que monopolizou os modernistas, mas sim a fórmula genérica do scherzo, diversas vezes<br />

revisitada por Nepomuceno em suas obras, de modo semelhante a Beethoven ou Verdi<br />

que utilizaram melodias e ritmos populares com o mesmo fim.<br />

O grande paradoxo, que permanece incontestado ainda hoje, é que se nas duas<br />

óperas de Nepomuceno que jamais subiram ao palco ainda se poderia cogitar de moti-<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


226<br />

vações nacionalistas, nas duas outras, terminadas e montadas, não se percebe nenhum<br />

resquício evidente de folclorismo. Por isso, para viabilizar o rótulo de precursor do nacionalismo<br />

a ele atribuído pela historiografia modernista, houve que relegar ao esquecimento<br />

as duas óperas acabadas que, entretanto, dão testemunho de um grande<br />

empenho de se continuar a tradição operística brasileira na geração pós Carlos Gomes.<br />

As duas óperas em questão, Artémis, levada à cena em 1898, e Abul, composta<br />

entre 1899 e 1905, mas só montada em 1913, tem muito em comum, seja na linguagem<br />

musical, seja no enredo dramático. Quanto ao enredo, elas têm um aspecto comum<br />

também a O Garatuja. Os personagens centrais das três óperas são artistas plásticos. O<br />

personagem alcunhado de garatuja, cujo nome de batismo seria na verdade Ivo das Ervas,<br />

é um jovem pretendente a pintor que no final da trama abandona os pincéis para se tornar<br />

escrevente de cartório e agradar o sogro que, em troca, lhe concede a mão da filha. O<br />

enredo do romance, que lembra uma comédia de Martins Pena, sugere personagens<br />

cômicos e situações picarescas. O libreto que foi elaborado pelo próprio Nepomuceno<br />

deveria explorar esse potencial cômico, mas a julgar pelo libreto algo descosido de Abul,<br />

também escrito pelo compositor, dificuldades na adaptação podem explicar, pelo menos<br />

em parte, porque a ópera ficou inacabada. A decisão de Nepomuceno de escrever o libreto<br />

de duas de suas óperas certamente foi influenciada pelo precedente de Richard Wagner.<br />

O wagnerianismo, com todas as suas implicações musicais e literárias, é uma referência<br />

marcante na linguagem de Nepomuceno em geral e sobretudo na operística. Mesmo O<br />

Garatuja, que à primeira vista parece muito distante de Wagner, numa inspeção mais<br />

atenta revela certos paralelismos com Os Mestres Cantores de Nürenberg, não obstante<br />

o caráter naturalista do enredo, vazado de um caráter irônico, que está muito mais próximo<br />

do verismo de Il Pagliacci de Ruggero Leoncavallo do que das mitologias de Wagner.<br />

O pretexto para a ação das outras duas óperas, tanto de Artémis como de Abul,<br />

também gira em torno de artistas plásticos, desta vez escultores. A este respeito há que<br />

se considerar a influência da estreita amizade de Nepomuceno com os irmãos Bernardelli,<br />

artistas plásticos que militaram na Academia Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro.<br />

Os irmãos Bernardelli, Henrique, Félix e Rodolfo, respectivamente pintores os dois primeiros<br />

e escultor o terceiro, patrocinaram a primeira viagem de estudos do compositor à<br />

Itália, quando uma bolsa do governo imperial lhe foi rejeitada e a República ainda não havia<br />

sido instaurada para permitir que esse compromisso fosse resgatado. O modelo de<br />

criação e ensino propagado pela Academia de Belas Artes, baseado na emulação das<br />

obras dos grandes mestres, gerou uma marca profunda no espírito de Nepomuceno.<br />

Podemos reconhecer, até com certa facilidade, como a música de Nepomuceno dialoga,<br />

ao longo de toda sua vida, com as obras referenciais que admirava, de compositores de<br />

sua geração ou das imediatamente anteriores, entre os quais podemos posicionar, com<br />

certeza, Brahms, Wagner, Liszt, Grieg, Fauré e mesmo Debussy. Esse princípio da “imitação<br />

dos grandes mestres,” que chega a representar um maneirismo estilístico para a obra dos<br />

Bernadelli, é também essencial para se compreender a música de Nepomuceno, que ao<br />

contrário de buscar a inovação a partir da negação do passado, como haveria de ser o<br />

mote dos modernistas, acredita na releitura criativa como a fonte maior de inspiração do<br />

artista.<br />

Em Artémis, o personagem principal, Helio, é um escultor que abandona sua família,<br />

obcecado com a perfeição de uma estátua de Artemis que está esculpindo. Em Abul<br />

o tema principal é a religião monoteísta do povo judeu exilado na Babilônia. O personagem<br />

principal, Abul, é filho de Terak, um escultor de ídolos pagãos, a quem o filho rejeita, passando<br />

a desobedecê-lo, movido por uma fé monoteísta que é contrária à idolatria. Em<br />

todas as três óperas acima mencionadas o enredo é fundamentalmente metadiscursivo,<br />

uma vez que se trata de uma obra de arte que coloca em questão os valores éticos das<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


227<br />

próprias obras de arte materializadas como esculturas ou pinturas. Nisso reconhecemos<br />

um traço essencialmente simbolista na concepção de todas elas. É fundamental salientar<br />

que a preocupação metalinguística é pouco relevante para o pensamento modernista,<br />

mas se torna novamente importante nas preocupações do pós-modernismo, o que justifica,<br />

pelo menos em parte, o resgate da obra de Nepomuceno em curso nesta geração, após<br />

décadas de esquecimento pelas gerações modernistas que queriam enterrar todas as<br />

manifestações artísticas que exalassem o que era considerado o mau odor do academicismo.<br />

Essas considerações trazem à baila outro tópico candente na recepção da obra<br />

de Nepomuceno após sua morte: a questão do canto em português. Essa deveria ser uma<br />

questão importante na reavaliação das óperas de Nepomuceno, todavia ela permanece<br />

condicionada pelos interesses da propaganda modernista. Segundo os relatos da historiografia<br />

influenciada pela ideologia modernista, desde Renato Almeida até Luis Heitor<br />

Correa de Azevedo e Vasco Mariz, Nepomuceno foi o compostor da sua geração que<br />

assumiu a bandeira da defesa do canto em português. Alvim Corrêa (1985, p.7) afirma<br />

que, em 1895, Nepomuceno inicia “uma patriótica e árdua campanha pela nacionalização<br />

definitiva de nossa música erudita, ao impor o canto em vernáculo nas nossas salas de<br />

concerto” criando o lema que “não tem pátria um povo que não canta em sua língua.”<br />

Ora, tal uma campanha de fato nunca existiu. O que ocorreu em 1895 foi uma polêmica<br />

jornalística entre o crítico Oscar Guanabarino e o compositor. Avelino Romero Pereira<br />

(2007, p. 113) relata que o motivo da disputa “nasceu de um comentário feito à canção<br />

Por mim?, do francês Gabriel Dufriche, cantada pelo barítono Carlos de Carvalho” que foi<br />

considerada por Guanabarino em sua crítica como uma “pretensa imitação do Amo-te<br />

muito de Nepomuceno”. O fato de um francês escrever sobre versos em português deu<br />

margem a que os contendores reeditassem uma versão tropical da Querelle des Bouffons,<br />

como aquela em que Rousseau defendeu o canto em italiano e Rameau o canto em francês.<br />

Neste caso Nepomuceno defendeu outro crítico, Rodrigues Barbosa, que congratulou o<br />

compositor por usar versos em vernáculo, enquanto Guanabarino assumiu uma posição<br />

que aos modernistas interessou julgar como italianófila. Pereira (2007, p. 120) mostrou<br />

ademais que o lema acima citado não foi criado por Nepomuceno, mas é uma passagem<br />

das notas biográficas de Nepomuceno que Rodrigues Barbosa escreveu. No mais, se por<br />

um lado a canção cantada em português foi de fato o pretexto que detonou a diatribe,<br />

por outro ela logo desandou em ofensas pessoais e numa disputa em que cada lado procurava<br />

pavonear sua erudição. O certo, porém, é que nunca esteve em disputa que uma<br />

ópera pudesse ser cantada em português, uma vez que o próprio Guanabarino argumentava<br />

que o canto em português não era novidade, nem sequer na ópera, lembrando<br />

o precedente de Carlos Gomes e Henrique Alves de Mesquita. Por outro lado Nepomuceno<br />

também nunca se revelou intransigente a esse respeito, nem na teoria nem na prática,<br />

bastando lembrar que escreveu canções sobre poemas em língua estrangeira em diversos<br />

momentos de sua carreira, até perto do fim, quando compôs Le Miracle de la Semence<br />

sobre versos em francês de Jacques d’Avray (pseudônimo de Freitas Valle). Como afirma<br />

Ana Balakian (2000, p. 15) “com o simbolismo, a arte deixou realmente de ser nacional e<br />

assumiu as premissas da cultura ocidental”.<br />

Deixando de lado as hoje irrelevantes questões de plágio levantadas no debate<br />

de Nepomuceno com Guanabarino, salientemos que nessa discussão foram revisitados<br />

alguns argumentos sobre a fonética e a prosódia do italiano que serviram de fundamento<br />

para a comparação com o francês no caso da Querelle e com o português no caso da<br />

Campanha. Essas questões foram retomadas novamente, por exemplo, no Congresso sobre<br />

a Língua Portuguesa Cantada, promovido por Mario de Andrade, que teve recentemente<br />

uma segunda edição, demonstrando que o tema continua longe ter a uma posição con-<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


228<br />

sensual. Outros aspectos importantes podem ser extraídos da revisão daquele debate. É<br />

inegável que Guanabarino se identificava com a posição conservadora dos parnasianos,<br />

ao deixar transparecer que o canto em língua estrangeira seria signo da música culta enquanto<br />

o português, uma língua inculta (certamente uma paráfrase do verso “Última flor<br />

do Lácio, inculta e bela” de Bilac, publicado em 1888) seria menos adequada ao canto.<br />

Nepomuceno, por outro lado, identificava-se com o projeto positivista progressista republicano,<br />

argumentando que o texto cantado devia ser inteligível para o público. Portanto,<br />

em sua opinião, as óperas em língua estrangeira deviam ser traduzidas para a língua local,<br />

como se fazia habitualmente na Europa. Em última instância o debate revela um Nepomuceno<br />

acostumado à visão cosmopolita dos problemas, em vez de, como se propalou,<br />

um compositor entrincheirado em posições nacionalistas, enquanto Guanabarino<br />

meramente resguardava hábitos provincianos. O projeto republicano de identidade<br />

nacional, com que Nepomuceno sintonizava, não implicava na exclusão da cultura universal<br />

e sua substituição por uma cultura regional, pelo contrário, considerava que cabia aos<br />

homens cultos ilustrar o povo através da educação, ao mesmo tempo em que se reforçaria<br />

a identidade nacional pela incorporação de elementos da cultura popular.<br />

Os quatro projetos operísticos de Nepomuceno percorrem todo o espectro de<br />

tendências do movimento romântico brasileiro. O primeiro desses projetos, Porangaba,<br />

situa-se na esteira do nacionalismo indianista da segunda geração romântica da qual<br />

José de Alencar é principal protagonista. Se concretizado naquele momento o projeto padeceria<br />

de um patente anacronismo porque buscava reviver um modelo operístico que o<br />

próprio Carlos Gomes já abandonara. Seu segundo projeto, Artémis, com o subtítulo de<br />

“episódio lírico”, baseou-se num libreto de Coelho Neto e representa uma adesão em<br />

larga escala ao Simbolismo, sintonizado ainda com o gosto parnasiano predominante na<br />

sociedade carioca da época que se torna marcante devido ao texto de Coelho Neto. Seu<br />

terceiro projeto, Abul, é ainda mais abertamente Simbolista, voltado todavia ao gosto<br />

cosmopolita das plateias italiana e argentina. Traz o subtítulo “ação legendária” e tem<br />

como pano de fundo a versão judaico-cristã de um tema filosófico-religioso de conteúdo<br />

similar aos mitos nórdicos das óperas de Wagner, que em última instância são a própria<br />

matriz do movimento Simbolista. O derradeiro projeto, O Garatuja, representaria uma<br />

adesão ao realismo romântico, mas como jamais foi concluído conclui-se que as duas<br />

óperas de Nepomuceno representadas durante sua vida testemunham um compromisso<br />

profundo com o projeto Simbolista. Lembremos ademais que duas das primeiras canções<br />

de Nepomuceno utilizaram poemas em francês de Maeterlinck, o representante de maior<br />

visibilidade do simbolismo entre os poetas de língua francesa em seu tempo. E também<br />

que, em sua última viagem ao continente europeu, Nepomuceno visitou Debussy, seu conhecido<br />

desde a estreia de L’aprés midi d’um faune e dele recebeu uma partitura autografada<br />

de Pélleas et Melisande, ópera que representa a culminação do simbolismo operístico<br />

na França.<br />

Se a campanha pelo canto em português tivesse existido de fato como relatado<br />

pela historiografia modernista, seria natural que as duas óperas levadas à cena por Nepomuceno<br />

previssem apenas execuções em português, mas tal não ocorreu. A primeira<br />

encenação de Artémis no Rio de Janeiro foi de fato cantada em português, mas a partitura<br />

foi publicada em versão bilíngüe português-francês, e em algumas passagens a prosódia<br />

do francês parece se adaptar melhor à música do que a versão em português (Exemplo<br />

1). Seria isso um indicativo de que Nepomuceno pensou a música para o texto em francês,<br />

almejando uma representação europeia? Sérgio Alvim Corrêa (1985, p. 10) relata um encontro<br />

de Nepomuceno com Mahler em 1900, no qual o brasileiro teria pleiteado uma<br />

montagem do Artémis em Viena que, todavia, não aconteceria. Se isso de fato aconteceu<br />

seria natural que existisse uma tradução para o alemão que, entretanto, não se conhece.<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


229<br />

Seja como for, é patente que Nepomuceno não considerava que cantar suas óperas em<br />

português fosse um requisito imprescindível.<br />

Exemplo 1. Fragmento de Artemis em que Helio conversa com sua escultura.<br />

É flagrante nessa passagem que a linha vocal parece mais ajustada ao texto em<br />

francês do que em português. Por exemplo, a palavra Artemis em francês é oxítona, o que<br />

faz a sílaba tônica coincidir com o fim da frase dada pelo acompanhamento pianístico que<br />

converge para a terça Dób-E. Saliente-se, além disso, a linguagem intensamente cromática,<br />

evidentemente inspirada na do Tristão de Wagner. Esse é um signo inquestionável de<br />

uma pertença simbolista.<br />

Do mesmo modo, o Abul parece muito mais afeito à prosódia do italiano do que<br />

à do português. Mas nesse caso não há dúvida de que Nepomuceno considerava prioritárias<br />

as montagens em Buenos Aires e Roma, que aconteceram em italiano. Seu acalentado<br />

sonho de repetir o sucesso de Carlos Gomes na Itália exigia que o libreto fosse compreensível<br />

ao público de Roma. Infelizmente as circunstâncias conspiraram contra seu desejo.<br />

Afinal, Nepomuceno deveria ter imaginado que uma ópera que soava wagneriana e tinha<br />

o handicap de uma ação quase estática, e ainda copiava soluções batidas da Grand Opera<br />

francesa, não poderia agradar aos italianos. Mas talvez ele tivesse confiado que uma certa<br />

semelhança com o Otello de Verdi e os libretos de cunho religioso de Boito fossem suficientes<br />

para despertar a simpatia do público romano. Por outro lado, quanto à montagem<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


230<br />

no Rio de Janeiro, ter sido ela feita em português respondia coerentemente à lógica defendida<br />

por Nepomuceno na polêmica com Guanabarino: uma ópera deveria ser encenada,<br />

sempre que possível, na língua falada pelo público local.<br />

Se, como verificamos acima, o simbolismo de Artémis descende diretamente<br />

do wagnerianismo alemão, a linguagem de Abul, por outro lado, parece prestar tributo a<br />

um gosto francês fin de siècle, talvez até decadentista. O cromatismo wagneriano tornase<br />

abrandado por um diatonismo modal, que revela possíveis influências de Debussy,<br />

Fauré e da Schola Cantorum em geral, instituição por onde passara Nepomuceno durante<br />

seus estudos na França. A passagem transcrita no Exemplo 2 comprova essa intrigante<br />

tendência à hibridação. A tonalidade de Dó oscila entre maior e menor, utilizando acordes<br />

característicos dos dois modos indiscriminadamente. A escala descendente na mão direita<br />

que abre esta passagem apresenta o modo Frígio de Dó sobre um pedal de tônica, com a<br />

quinta justa. O paralelismo no movimento das vozes parece fazer referência à técnica de<br />

Debussy, assim como a progressão por oitas e quinta paralelas na mão esquerda. O Ré<br />

bemol que marca o modo frígio dessa passagem revela-se, no fim do segundo compasso,<br />

como um acorde de sexta napolitana sem inversão (bII) que é imediatamente reinterpretado<br />

como dominante do acorde de Solb maior que se segue.<br />

Exemplo 2. Fragmento de Abul, início da Dança Sacra do terceiro ato.<br />

Como devemos interpretar essa passagem abrupta de Dó para Sol bemol, antípodas<br />

no ciclo das quintas? É plausível fazermos uma associação simbólica a essa passagem,<br />

reconhecendo as duas tonalidades como dois polos de um dualismo antitético, ou seja,<br />

uma representação de luz e trevas, bem e mal, dó menor versus Solb Maior. Trata-se de<br />

uma dança sacra, onde a música coloca em questão a oposição entre sensualidade e ascese<br />

religiosa. Se se trata de uma ópera simbolista é natural que Nepomuceno encontrasse<br />

meios próprios à linguagem musical para representar esses conteúdos conceituais. A<br />

passagem prossegue com uma volta também abrupta à Dó, sem que, entretanto, se ouça<br />

a tônica. A tonalidade se torna perceptível apenas pelo retorno da dominante Sol maior,<br />

precedida por uma subdominante alterada, Fá maior. A passagem que se iniciara em dó<br />

menor devia fazer soar Fá menor, mas o que se ouve é uma subdominante maior, característica<br />

do modo de Dó maior. Essa inesperada e intrigante mistura de modos fazia parte<br />

do vocabulário harmônico francês no final do século. No tratado de harmonia de Koechlin,<br />

adotado no Conservatório de Paris, aparece explicitamente a recomendação de que é<br />

permitida, no modo menor, a alteração cromática da subdominante, substituindo-a pela<br />

subdominante do modo maior. Essa mistura paradoxal de modos gera um efeito de gosto<br />

duvidoso, uma impressão de manipulação arbitrária das alterações cromáticas que é justamente<br />

o que permite a essa linguagem realizar a contrapartida musical dos jogos de<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


231<br />

palavras e significados caros à literatura simbolista. Note-se que no compasso 5 a<br />

subdominante retorna como fá menor, enfatizando a oposição entre as subdominantes<br />

maior e menor.<br />

Flávio Cardoso Oliveira (2005) localizou o romance original sobre o qual<br />

Nepomuceno baseou seu libreto. Trata-se de A Romance of the Faith de Herbert D. Ward.<br />

Ward foi um pastor norte-americano que viveu na Nova Inglaterra e publicou alguns romances<br />

para mocinhas, de conteúdo moralizante, baseados em relatos pseudo-históricos,<br />

ou mais precisamente pseudo-bíblicos. Por que teria Nepomuceno escolhido esse romance<br />

para basear seu libreto? A moda do exotismo religioso era uma recorrência no fim do<br />

século dezenove. Mas a explicação mais plausível é que Nepomuceno tenha recebido<br />

esse romance de presente da cantora Roxy King, americana de nascimento, que cantou o<br />

papel de Hestia na estréia de Artémis. Supõe-se que teria havido uma ligação afetiva<br />

entre eles e que o libreto guarde significados simbólicos dessa relação. Mas há também<br />

muitos elementos em Abul que lembram a Aída e o Otello de Verdi (a cena da preghiera<br />

de Abul no ato II, por exemplo), assim como de Wagner, como o interlúdio e a procissão<br />

do terceiro ato, que parecem fazer referência ao coro dos peregrinos de Tannhauser,<br />

assim como a Danza sacra Del Fuoco parece uma referência às Walquírias.<br />

Referências bibliográficas<br />

Alencar, José. Alfarrábios. Rio de Janeiro: José Olympio, 1951 [1873].<br />

Balakian, Anna. O Simbolismo. São Paulo: Perspectiva, 2000 [1967, 1ª ed. em inglês].<br />

Corrêa, Sérgio Alvim. Alberto Nepomuceno: Catálogo Geral. Rio de Janeiro: Funarte,<br />

1985.<br />

Oliveira, Flávio Cardoso. A Ópera Abul de Nepomuceno e sua Contribuição para o<br />

Patrimônio Musical Brasileiro na Primeira República. Tese de Doutorado. Campinas:<br />

Unicamp, 2005.<br />

Pereira, Avelino Romero. Música, Sociedade e Política: Alberto Nepomuceno e a<br />

República Musical. Rio de Janeiro: Editora da <strong>UFRJ</strong>, 2007.<br />

Volpe, Maria Alice. “Carlos Gomes: A persistência de um paradigma em época de<br />

crepúsculo”. Brasiliana, v. 17, p. 2-11, maio 2004.<br />

Volpe, Maria Alice. “Remaking the Brazilian Myth of National Foundation: Il Guarany”.<br />

Latin American Music Review, v. 2, n. 2, p. 179-194, 2002.<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


ESTILO E RECEPÇÃO


233<br />

A filiação estética dos autores líricos<br />

da Amazônia no Período da Borracha,<br />

a partir de suas óperas<br />

Márcio Páscoa<br />

Universidade do Estado do Amazonas<br />

Entre o último quartel do século XIX e a primeira década do século XX, a economia<br />

da região Norte do Brasil concentrou-se quase totalmente na extração e comercialização<br />

da borracha silvestre, com uma cadeia de interesses diretos e indiretos que estimulou<br />

investimentos, recrutou força de trabalho em outras regiões brasileiras e no exterior, provocando<br />

mudanças absolutas nas capitais de Pará e Amazonas. Naquele momento, a contribuição<br />

da região para o PIB do país aproximava-se da soma de todas as outras.<br />

Tal movimentação econômica tem seus primeiros indícios a partir da criação da<br />

Província do Amazonas (1850), com instalação acontecida em 1852. A ideia então era<br />

promover o desenvolvimento de uma das regiões territoriais mais vastas e pouco habitadas<br />

do país, instalando estrutura administrativa estatal. As receitas da extração de borracha<br />

apareceram lentamente a partir daí, havendo um crescimento exponencial significativo a<br />

partir da década de 1870, com ápice por volta da virada do século XIX para o XX.<br />

Como efeito disso, as capitais do Amazonas e do Pará se desenvolveram enormemente.<br />

As cidades passaram por remodelamento urbano, com influência clara do traçado<br />

cartesiano de Haussmann para Paris no século XIX, em que ruas perpendiculares e<br />

paralelas deram nova organização ao cotidiano, permitindo a implantação rápida e pioneira<br />

de benefícios tecnológicos, como a distribuição pública de luz elétrica, a conseqüente<br />

malha viária de bondes à tração elétrica, sistema de águas e esgoto e o recolhimento de<br />

lixo, sem mencionar serviços como o de limpeza pública. A quantidade de praças e jardins<br />

também cresceu, concomitante ao novo modelo de cidade para qual edifícios públicos de<br />

caráter monumental e referencial arquitetônico foram sendo erguidos. A composição<br />

arquitetônica dos espaços sugere ainda a importância de certos setores e atividades sociais<br />

e culturais.<br />

Excepcionalmente interessante para este último caso é a da concepção dos teatros<br />

das capitais do Pará e do Amazonas. O Teatro da Paz, em Belém, que abriu as portas<br />

em 2 de fevereiro de 1878, foi erigido em inegável estilo italiano, e o prédio, cuja sala acomoda<br />

quase mil lugares, ficou plantado no meio de uma vasta praça ajardinada, em que<br />

se colocaram, coreto, pérgola, e, posteriormente, até mesmo um outro pequeno teatro.<br />

O Teatro Amazonas, inaugurado em 31 de dezembro de 1896 possui, entretanto, estilo<br />

eclético, valendo-se de um conjunto de características revivalistas que remetem a estilos<br />

de épocas diferentes, desde os cânones renascentistas em diante. O acabamento externo<br />

é mais sofisticado e a elaboração do Salão de Honra, ainda que de dimensão menor que<br />

o do vizinho paraense, é muitíssimo mais complexa.<br />

O Teatro Amazonas foi projetado para compor-se diante de uma praça pontuada<br />

ao centro pelo monumento de abertura dos portos da Amazônia à navegação internacional,<br />

marco referencial do crescimento da região. Monumento, calçamento da praça e, acima<br />

de tudo o teatro foram obra de uma equipe de artistas italianos liderados por Giovanni<br />

Capranesi e Domenico De Angelis, que também executaram algumas obras relevantes<br />

em Belém. Especialmente De Angelis, que esteve várias vezes na Amazônia, foi quem<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


234<br />

assinou alguns dos painéis e plafonds de maior valor artístico e histórico do período em<br />

ambas as capitais.<br />

A sofisticação dos teatros das capitais da borracha esteve fundamentada não<br />

apenas no desejo, mas na necessidade de abrigar um volume de visitas de companhias artísticas<br />

nacionais e estrangeiras, bem como a crescente plateia destas urbes.<br />

Os teatros predecessores de Belém e Manaus, antiquados ou precários, chegaram<br />

a abrigar as primeiras temporadas de ópera destas capitais. Tal aspecto antiquado está<br />

sugerido tanto pelas dificuldades em abrigar os novos modelos de espetáculo oitocentista<br />

quanto pelos elementos visuais internos e externos, do mesmo modo que a precariedade<br />

deve-se muito mais à dificuldade de manutenção de empreendimentos privados, como<br />

eram todos.<br />

Belém já tomara contato com modelos diferentes de ópera, e as suas variantes<br />

possíveis de exibição, desde o século XVIII, enquanto Manaus vivenciaria tais experiências<br />

nas últimas décadas do século XIX. As diferenças de população tendem a explicar isso. Por<br />

ser mais antiga e atribuída de maior importância desde o início, Belém no início do século<br />

XIX contava população superior a 20.000 pessoas, número não muito diferente do núcleo<br />

urbano de Manaus ao fim deste mesmo século.<br />

Essa população, constituída principalmente por imigrantes recentes, sobretudo<br />

nordestinos em grande parte fugidos das dificuldades impostas por severos períodos de<br />

seca, foi formada por um contingente estrangeiro bastante significativo. Assim como a<br />

maior parte dos nordestinos, que tendiam a trabalhar diretamente na extração da borracha,<br />

os estrangeiros também parecem ter se concentrado em nichos. A maioria era portuguesa,<br />

que dominou quase de maneira monopolista o comércio varejista e de médio<br />

porte. Ingleses e alemães, ainda que em número bem mais reduzido, também participaram<br />

ativamente, dominando áreas de concessões e serviços públicos, assim como grandes<br />

empreendimentos de navegação e comércio exterior. A presença de sírio-libaneses e judeus<br />

marroquinos pela Amazônia Ocidental, mas especialmente em Manaus, foi igualmente<br />

marcante, grupos geralmente associados ao comércio.<br />

A população cosmopolita desta nova Amazônia, em que ainda estavam incluídos<br />

italianos e um número variado de provenientes da Europa e América do Sul, fez com que<br />

os hábitos, sobretudo das capitais, mudasse bastante. Manaus, que era menor, talvez<br />

tenha sofrido maior impacto, crescendo num processo de cosmopolitismo, que ao fim do<br />

período da borracha, faria a cidade desabar de modo devastador. Belém já trazia algumas<br />

luzes de sua vivência como capital importante do período colonial e nisso o período decadencial<br />

encontrou certa contenção aos inevitáveis estragos. Talvez este mesmo motivo<br />

explique o surgimento de Henrique Eulálio Gurjão (1834-1885).<br />

Nascido na capital do Pará, ele possivelmente foi o mais mitificado dentre os autores<br />

do Norte brasileiro do século XIX. Guilherme de Mello, autor da primeira obra panorâmica<br />

sobre a História da Música no Brasil, escrevendo pouco mais de duas décadas<br />

depois da morte do compositor paraense, considerava-o a síntese de “toda a antiga tradição<br />

musical do Pará” (Mello, 1908, p. 346). O historiador baiano deu diversas informações<br />

que seriam repetidas posteriormente pelos maiores estudiosos da música brasileira. Dele<br />

sabe-se que o compositor nasceu em Belém, a 15 de novembro de 1834, filho de Ana Dorothéa<br />

de Andrade Gurjão e do Major Henrique Pedro Gurjão. Mello afirma que o músico<br />

se valeu de uma pensão provincial, que lhe concedeu a Assembléia do Pará, através da lei<br />

nº 218 de 16 de novembro de 1851, para ir estudar na Europa. Mas os 800$000 réis a que<br />

fazia jus eram insuficientes e foi auxiliado por seus irmãos, Hilário Maximiano Antunes<br />

Gurjão, que se tornara capitão de artilharia, e Francisco Pedro Gurjão, então um chefe de<br />

seção da extinta Tesouraria da Fazenda. Isto deve explicar certo retardo que se verifica na<br />

data de sua partida para Roma, que Mello afirma ter sido em 14 de maio de 1852. Ainda<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


235<br />

segundo o autor baiano, foi na capital italiana que Gurjão estudou com “o maestro Pacini,<br />

autor de um número considerável de óperas, das quais se destacam: Saffo (Nápoles, 1842),<br />

Medea (Palermo, 1843), Niccolo de Lapi (Rio de Janeiro, 1855). 1<br />

Mello informa ainda que Gurjão obteve um diploma de maestro (compositore)<br />

no Instituto Musical de Gênova e menciona apenas duas obras suas dessa época, uma<br />

Ave Maria escrita quando recebeu a notícia da morte de outro irmão seu, o engenheiro<br />

Raimundo Gurjão, e uma “missa a grande instrumental que foi executada no Pará por<br />

ocasião de uma festividade do Espírito Santo” (Mello, 1908, p. 346).<br />

Também provém de Mello a informação de que teria sido sugerida a Gurjão a<br />

execução da Idália no Rio de Janeiro, quando voltou da Itália, deduzindo-se que a sua<br />

única ópera tenha sido composta em solo europeu. A parada na capital brasileira ocorreu<br />

para que o compositor visitasse o irmão militar, a esta altura detentor da patente de<br />

tenente-coronel e residindo no Rio: “Henrique Gurjão havia já escrito a sua mimosa ópera<br />

Idália. O referido oficial pediu-lhe com instância que a levasse à cena ali; o Maestro, porém,<br />

recusou-se, alegando que ela era dedicada aos seus comprovincianos e, por isso, só no<br />

seu torrão natal desejava fazê-lo” (Mello, 1908, p. 347) .<br />

Mello não informa quanto tempo Gurjão passou no Rio de Janeiro, mas afirma que<br />

sua chegada ao Pará deu-se em 14 de novembro de 1861. Diz ainda que ocupou uma cadeira<br />

do magistério público. O historiador dá também alguma nota sobre a produção de<br />

Gurjão, associando algumas peças a eventos e pessoas homenageadas2 , destacando-se<br />

um par de vaudevilles, para o Teatro Providência, que era a principal casa de espetáculos<br />

de Belém antes do Teatro da Paz (Mello, 1908, p. 349), 3 “além de muitas missas para festas,<br />

marchas para bandas marciais e hinos para diversas associações” (Mello, 1908, p. 348).<br />

O último parágrafo do relato sobre Gurjão na primeira obra histórica que o menciona<br />

é sobre a Idalia, em que ele emite opinião, sem que se saiba se ele conhecia a<br />

música por algum meio:<br />

Essa ópera extraordinariamente bela, do estimadíssimo maestro paraense, foi<br />

representada pela primeira vez no Theatro da Paz na noite de 3 de novembro de<br />

1881, tendo ele sido chamado a cena onze vezes para receber as mais estrondosas<br />

provas de admiração e apreço. (Mello, 1908, p. 349)<br />

Nenhuma outra apreciação sobre Gurjão e sua obra seria tão extensa quanto<br />

esta nos subsequentes escritos de história da música brasileira, embora ele ainda tivesse<br />

sido considerado durante certo tempo o primeiro compositor lírico nacional, justificando<br />

uma ordem histórica e cronológica (Cernicchiaro, 1926, p. 302).<br />

A promessa da estreia de Idália aos paraenses só se realizaria em 1881, quando<br />

a economia da borracha já havia erguido o Teatro da Paz e proporcionava temporadas<br />

...........................................................................<br />

1 Mello se engana com a data da estréia de Saffo, que na verdade ocorreu no São Carlos napolitano em 29 de<br />

novembro de 1840, mas erra, sobretudo, com a malograda estréia de Niccolo de Lapi, anunciada de fato para o<br />

Rio de Janeiro, em 1857, mas não executada. A primeira execução conhecida deu-se em Florença, no Teatro Pagliano,<br />

em 1873. Conforme M. Rose; S. R Balthazar & T. Kaufman «Giovani Pacini» Grove Music Online, ed. L.<br />

Macy, acesso em 31 de agosto de 2007, www.grovemusic.com.<br />

2 O galope Hilaridade teria sido oferecido ao maestro Francisco Libânio Colás, sendo executado durante espetáculo<br />

em benefício deste no Teatro da Paz. O Hino do Trabalho foi uma oferta aos artistas e teve lugar na inauguração<br />

de uma Exposição Artística e Industrial, quando foi executado por quatro bandas marciais, aparentemente<br />

também no Pará. Gurjão fez ainda a missa de réquiem com Libera me para o seu irmão Hilário, que alcançara<br />

o posto de general. Constam ainda um Hino Paraense, um hino a Carlos Gomes, nomeia seis Romanzas em<br />

italiano (La partenza, La vedova, Una rimenbranza, Il giuramento e La lontananza), outra em português (Presente<br />

e passado). Vicente Salles faria diversos adendos a esta lista, com especial menção ao nome dos vaudevilles<br />

e à música sacra (1970).<br />

3 Mello não dá o nome das peças, mas informa que uma foi escrita por Marcello Lobato de Castro e a outra por<br />

Luiz Bauna [sic, certamente Baena]. Ambas teriam sido muito aplaudidas.<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


236<br />

artísticas anuais ao público local. O desaparecimento da partitura e partes cavas de Idália<br />

leva a supor que Mello, Cernichiaro e demais historiadores que a ela fazem menção, podem<br />

ter conhecido apenas a versão pianística que Enrico Bernardi fez publicar no Pará em data<br />

próxima à da morte de Gurjão. Mesmo essa edição, hoje muito rara e só recentemente<br />

revista e novamente publicada (Páscoa, 2009), deve ter sido de pequena circulação, porque<br />

após Azevedo (1938) não se leem mais apreciações sobre a ópera de Gurjão. Pode ser<br />

também que Mello tenha escrito mais detidamente sobre Gurjão em parte porque tomou<br />

conhecimento da ruidosa recepção de Idália no Teatro da Paz (Salles, 1994, p. 85-95).<br />

O elenco criador da Idália veio integralmente com a companhia lírica italiana<br />

que desenvolveu temporada no Teatro da Paz àquele ano. A soprano catalã, de nome<br />

italianizado, Giuseppina de Senespleda foi a detentora do papel título. Uma especialista<br />

na Violeta de La traviata, ela, como muitos outros que vieram ao Norte do Brasil naqueles<br />

tempos, teve passagens por teatros de Gênova e da rota portuária mediterrânea. Ao lado<br />

dela destavam o tenor Enrcio Giordano (1851-1903), detentor da parte de Rodolfo, artista<br />

bastante conceituado em seus dias, com passagens pelo Scala milanês e outras casas de<br />

igual porte, o barítono Acchile Medini, no papel de Gonçalvo, um especialista de primo<br />

ottocento, o baixo Celeste Saccardi e os comprimários Giulia Marconi e Alessandro Ziliani<br />

(Páscoa, 2006):<br />

O público encheu literalmente o teatro na saudosa noite da primeira representação<br />

da Idália, 3 de novembro de 1881.<br />

E desde a magnífica ouverture ao último trecho não cessou de aplaudir o seu<br />

maestro que veio ao proscênio 14 vezes receber as mais estrepitosas e solenes<br />

manifestações de apreço, de reconhecimento e de admiração.<br />

O desempenho foi o melhor possível, sendo todos os artistas muitíssimo aplaudidos,<br />

sendo também chamado ao proscênio, nomeadamente o maestro Cimini,<br />

que muito concorreu para o sucesso da Idália no Pará. (Folha do Norte, 28 de<br />

fevereiro de 1915) 4<br />

A edição feita por Bernardi contém 130 páginas de música e não é possível saber<br />

ao certo se a ópera foi transcrita na integralidade, embora os trechos coligidos pareçam<br />

fazer parte de um processo sequencial lógico. Bernardi era bastante experiente e teve envolvimento<br />

direto com o meio musical paraense, não havendo razões para desconfiar do<br />

trabalho de redução. 5<br />

A observação dos elementos constitutivos de Idália mostra que Gurjão teve de<br />

fato escola e professor. Ainda que faltem provas documentais do encontro e envolvimento<br />

com Pacini, um olhar atento nas características musicais de ambos pode fornecer respostas.<br />

As primeiras óperas de Pacini revelam a influência direta de Rossini, como foi<br />

comum a muitos autores de sua época, embora aqui se deva dizer que alguns representantes<br />

de gerações anteriores, como Paisiello e Cimarosa também eram apreciados<br />

pelo compositor. Essa referência identitária em Rossini se reflete em Gurjão, não só por<br />

causa da adoção do protótipo lírico e dos ritmos repetitivos, ou mesmo da abertura sob<br />

influência da Forma Sonata, mas também nos detalhes, como os crescendo instrumentais,<br />

minuciosamente registrados por Bernardi em toda a partitura.<br />

Mesmo os acréscimos de Pacini a este modelo podem ser identificados em Gurjão,<br />

como nos fins de frase pontuados por grupeto, ou ainda no uso do Tempo di mezzo<br />

...........................................................................<br />

4 A romanza da Idália já havia sido executada durante a récita de La favorita, no dia 2 de outubro de 1880, durante<br />

a temporada lírica daquele ano. A ocasião foi um benefício do tenor Lodovico Giraud e da meio-soprano<br />

Climene Kalasch (Constituição, 5 de outubro de 1880)<br />

5 Em Páscoa (2006, apêndice) há biografia de Bernardi com lista de trabalhos para o palco.<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


237<br />

como recurso de interação e a escolha de um movimento lento na abertura para acentuar<br />

contrastes, o que vai se revelar em um expediente dramático ao longo da ópera. Mesmo<br />

quando Pacini emula Bellini, verifica-se isso em Gurjão, com a escolha de melodismo<br />

simples, o consequente abandono de fiorituras rossinianas e, de maneira mais evidente,<br />

na construção da cabaletta, repetida sempre três vezes, que no autor paraense realizarse<br />

com especial tendência por transposições da melodia em oitava ou ao menos através<br />

de dobradura melódica.<br />

A adoção do estilo franco de Bellini, que marcou a segunda fase compositiva de<br />

Pacini, pode também ser arguida como um ponto coincidente que Gurjão manteve com<br />

outros autores de ópera italiana. Mas ainda assim, há outras observações que, somadas<br />

às anteriores, parecem ultrapassar a mera casualidade. Gurjão construiu um claro bloco<br />

A-A’ na cavatina, para então fazer um Tempo di mezzo contrastante, por vezes com menos<br />

interesse melódico, o que pode refletir trecho declamatório, também característico de<br />

alguns momentos de Pacini. Associado ao tipo de cabaletta descrito, a adoção do protótipo<br />

remete ao possível mentor italiano.<br />

Infelizmente, sem a partitura da versão orquestral de Idália, não se podem comprovar<br />

outros elementos, tais como os que Pacini usou no seu período maduro, especialmente<br />

a partir de Saffo, quando os recitativos ficaram mais elaborados e houve a atribuição<br />

de novos efeitos expressivos, englobando construção de atmosfera obtida na orquestra.<br />

Temas em blocos harmônicos como o que figura na abertura de Idália e repete-se no<br />

miolo de cena, já apontado anteriormente, constituem-se em excelente evidência neste<br />

sentido.<br />

E na fase que compreende os anos de 1840 em diante, Pacini também passou a<br />

desenvolver rápidas modulações, a usar tonalidades relativas distantes e a conter a ritmia<br />

exagerada com a valorização das tercinas bellinianas e a aproximação dos tempos lentos<br />

de cantabili de Donizetti. Gurjão também procedeu neste sentido. Em especial, os tempos<br />

lentos são usados pelo paraense para mostrar contraste de tensão/resolução entre os andamentos<br />

externos do plano de cena padrão ou mesmo na troca de cantabili dos duetos,<br />

o que se reflete em sofisticação dramatúrgica e conserva coerência com muitas das escolhas<br />

acima mencionadas. Na volta dos temas do cantabile para a execução da cabaletta,<br />

Gurjão aproxima-se ainda mais de Pacini. O mesmo se dá com certas introduções instrumentais<br />

de cena, em que o desejo parece ser a não fixação da tonalidade.<br />

São, enfim, muitos elementos coincidentes que reunidos revelam um conjunto<br />

de procedimentos e informações capaz de provar a influência direta de Pacini sobre Gurjão,<br />

sobretudo pela afinidade artística e estética, que supera a discussão sobre haver ou não<br />

provas de uma relação direta de convivência e contato periódico.<br />

Apesar de todo este exame relativo a Pacini, há uma clara atmosfera verdiana<br />

em muitos dos trechos de Idália, seja porque Gurjão chegou a conclusões musicais semelhantes<br />

dadas as condições do meio em que estudou, ou porque se sentiu inspirado diretamente<br />

pela muitas óperas que teve a oportunidade de ver e ouvir, afinal a década de<br />

1850, seja em Gênova ou Roma, proporcionou ao jovem estudante paraense um número<br />

vultoso de estreias de Verdi. São especialmente interessantes os temas heroicos na formulação<br />

do protótipo verdiano, que Gurjão usa nas cavatinas, fazendo algum eco a Il trovatore<br />

e outras obras de lustro próximo. Antes de marcá-las como flagrante semelhança,<br />

seria mais honesto lembrar que ao se vincular com mentores da geração precedente e<br />

acompanhar as novidades da cena lírica dos seus anos de amadurecimento, Gurjão pode<br />

ser um exemplar da geração de Verdi e que com ele compartilhou de várias opções na estruturação<br />

e linguagem da ópera em meados do século XIX. 6<br />

...........................................................................<br />

6 Uma apreciação mais detalhada dos aspectos estruturais de Idália encontra-se em Páscoa (2009, p. 305-321).<br />

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238<br />

Ao menos um aluno de Gurjão projetou-se de igual ou superior modo. Nascido<br />

em Belém, a 2 de novembro de 1853, José Cândido da Gama Malcher começou seus estudos<br />

de música ainda no Pará, com o conterrâneo e predecessor nas lides operísticas.<br />

Entretanto, o médico José da Gama Malcher, seu pai, a despeito de ser um reconhecido<br />

melômano, encaminhou o filho para uma formação de profissional liberal, antes<br />

que este pudesse se enveredar pela música. Assim sendo o jovem Malcher foi mandado<br />

para a Universidade de Lehigh, na Pensilvânia, a fim de estudar Engenharia. Oscar Guanabarino,<br />

cronista musical carioca contemporâneo ao compositor, que se ocuparia de<br />

resenhar a sua primeira ópera, Bug Jargal, informa que Gama Malcher foi à Pensilvânia<br />

por volta dos 17 anos, “mas cedendo a sua tendência natural para a música transportouse,<br />

em 1876, para Gênova, matriculando-se um ano mais tarde no Conservatório de Milão”<br />

(O Paíz, 27 de fevereiro de 1891).<br />

Após cumprir o desejo paterno e recebendo o apoio de Gurjão, Malcher seguiu<br />

para a Itália intencionado em aperfeiçoar-se nos assuntos musicais, o que deve ter durado<br />

por volta de quatro anos. Em 1881, é certo, já estava ele de volta a Belém. Identifica-se a<br />

sua participação na vida cultural da cidade desde agosto deste ano pelo menos, quando<br />

foi bastante elogiado por sua execução pianística durante sarau no Club Verdi (Liberal do<br />

Pará, 19 de agosto de 1881).<br />

Havendo seu pai assumido a presidência interina da Província do Pará, o novel<br />

maestro obteve a pauta do Teatro da Paz e uma subvenção dos cofres paraenses com a finalidade<br />

de organizar três temporadas líricas a partir de 1882. Neste ano consumou o desejo<br />

local de acolher o compositor Carlos Gomes, trazido por ocasião da estreia de Salvator Rosa<br />

no Teatro da Paz. A temporada de 1882, a despeito do relativo sucesso e de boas lembranças<br />

por cronistas posteriores, não terminou bem, eivada de problemas. Com a perda do restante<br />

contrato de subvenção e uma indisposição com Carlos Gomes que se iniciara em princípios<br />

do ano seguinte, Malcher retirou-se para a Itália novamente. Chegado em 1883, disposto a<br />

retomar o contato com Michele Saladino que havia sido seu professor em Milão (Il teatro<br />

ilustrato, novembro de 1888, nº 96, p. 176), Malcher envidou esforços para concluir em<br />

1885 a sua primeira ópera, Bug Jargal (O Paíz, 27 de fevereiro de 1891). Seguiram-se seu<br />

casamento com Palmira Belatti e o nascimento do primeiro, de seus onze filhos.<br />

Em 1890, com a queda do Império Brasileiro e a nascente República, Malcher<br />

retorna para realizar como empresário a primeira temporada brasileira deste novo período<br />

no país. Foi assim, no ano de 1890, que se estreou Bug Jargal em Belém, a 17 de outubro,<br />

tendo número elevado, mas impreciso de repetições.<br />

A ópera baseada no primeiro romance de Victor Hugo foi posta em libreto por<br />

Vicenzo Valle (1857-1890), que o músico deve ter contactado em Milão onde o libretista<br />

era conhecido dos jovens compositores ligados à scapigliatura. Valle assinou muitas canções<br />

com o nome de pluma, Innocenza Weill, mas seu maior êxito foi a ópera Labilia<br />

(1890) de Niccola Spinelli, que ganhou o segundo prêmio do célebre Concurso Sonzgno<br />

que vitoriou Cavalleria rusticana, de Mascagni.<br />

A montagem de Bug Jargal ganhou ainda um reforço significativo, com os figurinos<br />

desenhados por Luigi Bartezago (1820-1905), que trabalhara intensamente para o<br />

Scala de Milão durante toda a década de 1870, sendo especialista em temas exóticos. Sobrevivem<br />

dez pranchas assinadas por ele e que expressam nominalmente os personagens<br />

da ópera de Gama Malcher. 7<br />

...........................................................................<br />

7 As pranchas foram conservadas por Gama Malcher, juntamente com um álbum contendo folhetos, programas<br />

de concertos seus e recortes de críticas feitas por si a apresentações realizadas na Itália, de obras de Wagner e<br />

Puccini, publicadas em periódico ainda não identificado. Este material, constante em uma pasta, passou a herdeiros<br />

e deles a um amigo da família, chegando posteriromente às mãos do estudioso Vicente Salles, que por<br />

sua vez o encaminhou ao Museu da Universidade Federal do Pará.<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


239<br />

Após a temporada belenense, a companhia lírica de Malcher seguiu para o sudeste<br />

do país, apresentando-se em São Paulo e depois no Rio de Janeiro, onde se desfez já<br />

no ano de 1891, debaixo de dívidas provocadas pelo não cumprimento do acordo, de<br />

parte dos intermediários da pauta do teatro carioca para onde se dirigiria o grupo (Jornal<br />

do Commercio, 3 de março de 1891). Na ocasião, partitura e partes de Bug Jargal foram<br />

dados em pagamento de impostos ao governo, e o material arrestado foi depositado na<br />

biblioteca do então Instituto de Música, hoje a Biblioteca Alberto Nepomuceno da Escola<br />

de Música da <strong>UFRJ</strong>; somente em 2009 a versão orquestral foi publicada (Páscoa, 2009).<br />

No seu retorno a Belém o compositor obteve por concurso a cadeira de música<br />

do Liceu Paraense, em 1892, e posteriormente ingressou no Instituto Carlos Gomes, conservatório<br />

musical paraense de grande importância, que chegou a dirigir, substituindo a<br />

Enrico Bernardi. Foi nesta etapa que se entregou à segunda ópera, Jara, que concluiu em<br />

1893.<br />

Dentre seus projetos no período esteve também a organização de uma orquestra<br />

sinfônica para divulgar a obra de Beethoven, Wagner, Mascagni e de autores brasileiros,<br />

bem como de um sexteto que se tornou notável pelos nomes que o compunham, pois<br />

eram todos musicistas exponenciais da vida artística paraense, como o violoncelista, e<br />

também compositor lírico, Ettore Bosio.<br />

Ainda em 1895 envolveu-se em mais uma empresa lírica e na ocasião fez estrear<br />

Jara, juntamente com algumas premières importantes para Belém, como foram as de<br />

Mignon e sobretudo de Fosca e de Pagliacci. Jara foi recebida com maior surpresa pela<br />

crítica e público do Pará, sendo muito elogiados os cenários de quem não se sabe ao<br />

certo a autoria. Diferente da primeira ópera, Jara não parece ter sido conservada em<br />

versão pianística, mas apenas em partitura orquestral autógrafa. Esteve por lugar não sabido<br />

durante algumas décadas, mas foi recentemente reencontrada no acervo do Conselho<br />

Estadual de Cultura do Pará, para onde havia sido depositada por doação do filho do<br />

autor; havia sido destinada pelo próprio Malcher ao conservatório, mas com o temporário<br />

encerramento das portas desta instituição em 1908, o material deve ter sido salvaguardado<br />

em outra parte.<br />

A produção de Malcher, que após Jara já possuía novo libreto encomendado,<br />

chegou a incluir duas outras obras líricas, Idílio e Seminarista. A primeira seria estreada<br />

em 1905, na temporada que a companhia de Assis Pacheco e Donato Rotoli fez para reinaugurar<br />

novamente o Teatro da Paz. As partes principais chegaram a ser distribuídas à<br />

soprano Tina Poli Randaccio e ao tenor Ferdinando De Neri, mas por motivos incertos a<br />

peça não foi posta em cena (Folha do Norte, 11 de junho de 1906). 8 Tais peças não estreadas<br />

permanecem hoje extraviadas.<br />

Além destas obras citadas, Gama Malcher produziu um número indefinido de<br />

obras para variada formação, sendo que a maior parte não foi localizada até hoje.<br />

Com a criação do Centro Musical Paraense ocupou, em 1914, o posto de presidente,<br />

ocasião em que era o decano dos compositores paraenses, título que manteve até<br />

o seu falecimento em 17 de janeiro de 1921.(Salles, 1970, p. 187)<br />

Os libretos de Bug Jargal e Jara, este de autoria de Fulvio Folgoni, foram publicados<br />

na Itália, respectivamente em 1890 e 1893. No caso de Bug Jargal foi feita ainda<br />

uma publicação traduzida, posta de modo narrativo e apontando os destaques do espetáculo<br />

que o público devia tomar atenção. Uma tradução de Jara também circulou em<br />

Belém pelas páginas dos peródicos da época em que se estreou.<br />

...........................................................................<br />

8 A irregular frequência do público, o cansaço que muitos membros da empresa alegavam, somados ainda ao<br />

medo por doenças tropicais podem ter concorrido para a temporada abreviada para menos de mês e meio, com<br />

raras reprises e o corte da terceira ópera de Gama Malcher.<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


240<br />

A comparação dos libretos publicados com a partitura mostra que Malcher se<br />

valeu quase livremente deles. No caso de Bug Jargal, Malcher reformulou quase todo o<br />

segundo ato para fazê-lo convergir para uma cena de concertante e coro, não só de maior<br />

impacto dramático que o previsto no libreto, mas dotando a obra de equilíbrio<br />

dramatúrgico. Os atos I e IV começam com desempenhos coletivos (coro) e terminam<br />

com conflitos individuais (duetos) em situação inversa ao dos atos II e III. A ideia foi justamente<br />

controlar as tensões e reviravoltas típicas do melodrama de orientação verdiana,<br />

influenciado pela grand opéra, para o que Malcher inclui além dos coros, bailado e batalha<br />

campal que fez representar por seção de descritivismo orquestral.<br />

Os personagens, de força arquetípica, também parecem obedecer a uma concepção<br />

narratológica em que as tensões vividas em cena equilibram forças em direção ao<br />

final caótico. A primeira dificuldade foi certamente a adaptação do romance que possui<br />

narrador e está repleto de personagens, inclusive um cão de poderes fantásticos.<br />

Valle e Malcher chegaram a uma formulação de seis personagens, sendo que<br />

um deles é uma criação para a ópera. A trama que se passa no Haiti, durante a revolução<br />

negra de 1791, descreve a situação limite da escravidão brutal da colônia francesa e a<br />

forte retroação dos negros rebelados que agem violentamente contra seus algozes. Maria<br />

(soprano) é filha do latifundiário Antonio (baixo) e está noiva de Leopoldo (barítono),<br />

sendo todos colonos franceses. Sua bondade provoca o amor de Bug Jargal (tenor), escravo<br />

e líder negro, e consequentemente o ciúme da escrava Irma (meio-soprano). Completa a<br />

distribuição o líder negro rival de Bug Jargal, chamado Biassu (baixo), tão cruel quanto<br />

sua contraparte branca, o mencionado Antonio.<br />

Irma foi criada para diversos propósitos na ópera e é certamente a concepção<br />

que deu maior número de opções inventivas. A tessitura da parte, por vezes grafada mezzosoprano,<br />

por vezes contralto, na verdade possui desenhos melódicos semelhantes ao das<br />

personagens veristas, com canto farfalhado, às vezes gritado, texto inacabado que denota<br />

pensamentos soltos, ideias sem rumo, instabilidade psicológica. Malcher criou ao menos<br />

um leitmotiv para cada personagem, antecipando aí a concepção pucciniana do recurso<br />

de origem wagneriana. No caso de Irma, o tema condutor das ideias é um ritmo de carimbó,<br />

dança típica do Norte do Brasil, hoje muito associada ao Pará. Também consta para ela<br />

um cantabile acomodado à maneira de um lundu, com os inevitáveis choques dissonantes<br />

que este gênero popular possuia. Irma é dramaturgicamente o elemento exótico, que<br />

carrega a responsabilidade pela cor local, mas é ainda o personagem que detém os mesmos<br />

sortilégios e surpresas do cão Rask, do romance Hugoliano original. A sua composição na<br />

trama amorosa serve, entretanto, para acertar o modelo então em voga; ela ama o<br />

protagonista, que ama Maria, que por sua vez ama Leopoldo. Vocalmente sua concepção<br />

pode remeter a Eboli de Don Carlos e Amneris, de Aida, como fontes diretas, mas no<br />

restante, ela é uma novidade absoluta.<br />

Malcher, entretanto, mesclou por toda a ópera elementos de tendências estéticas<br />

diferentes, quase como uma síntese da produção lírica do século XIX. O primo ottocento<br />

está presente com a canção de Bug Jargal ao final do Ato I, que remete às inúmeras canções<br />

de bardo das óperas de Rossini, Donizetti e Bellini. A lembrar esse último está um bom<br />

punhado de cantabili que na formulação ternária possui a tercina como último tempo do<br />

compasso. No mesmo sentido estão os vários cantabili de melodismo simétrico com<br />

alguma fioritura de cauda e coros em formato de barcarola, a 6/8.<br />

Mas Verdi está muito presente, com a tendência ao ambiente tonal de Ré bemol<br />

em partes importantes, bem como no seu modelo de protótipo lírico aqui adotado. Alguns<br />

planos de cena, que oscilam em sua maioria pelos modelos tradicionais de Donizetti, na<br />

verdade mostram progressão tonal semelhante à de Verdi, que incitava o discorrer de<br />

uma cena para outra com a passagem por mediantes e dominantes que buscavam repouso.<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


241<br />

A consistência ideológica da maior parte dos personagens também parece verdiana, com<br />

a tendência ao cariz de pureza virginal e até mesmo religiosa de Maria, o heroísmo inconformado<br />

e estóico de Bug Jargal, a dubiedade do caráter varonil de Leopoldo e as<br />

posturas monolíticas e temíveis de Antonio e Biassu.<br />

Embora haja ainda a influência wagneriana acima citada – e é comprovada a admiração<br />

de Malcher pelo autor germânico, Bug Jargal parece se inscrever melhor naquilo<br />

que se entende por scapigliatura, que no caso do paraense já dá inúmeros sinais de um<br />

nascente verismo.<br />

A descritividade orquestral acima aludida, não só nas passagens sem canto, mas<br />

justamente na riqueza que o autor constrói com a presença do solista de canto, é uma<br />

marca inconfundível disto. Não se trata da influência da harmonia cromática de Wagner,<br />

mas de um germanismo mais respeitante às influências de Beethoven, cujas sinfonias se<br />

tornavam muito populares na Itália no tempo em que Malcher lá viveu. Muitas das seções<br />

de Bug Jargal também começam com uma previsão de tonalidade pela armadura de<br />

clave, mas que não se confirmam, revelando o caráter aberto da obra, uma espécie de<br />

divagação no planejamento harmônico, tentativa de não se prender excessivamente a<br />

modelos.<br />

Entretanto o ponto de scapigliatura mais flagrante é em tudo que a obra coincide<br />

com o Guarany de Gomes, de quem certamente Malcher é tributário. O tema exótico, o<br />

concertante de caráter religioso, com preghiera, ao final do segundo ato, a abertura de<br />

ato com os indígenas (na caso de Bug Jargal, dos negros rebelados), o dueto amoroso de<br />

tenor e soprano, as figuras do chefe colono e do chefe “selvagem” atribuídas a baixos,<br />

que aliás aparecem e desaparecem na ópera no mesmo ponto dos atos em ambas as<br />

óperas. O melodismo sinuoso e bem cuidado em ambas, poderia ser mais um ponto coincidente,<br />

embora isto seja uma constante na geração que alcançará o verismo, e uma das<br />

características desta etapa. Aliás, o próprio final de Bug Jargal, sem apoteose, vincado no<br />

drama individual humano, é uma escolha naturalista e muito distante de Gomes e seus<br />

precedentes. Malcher consegue relaxar a responsabilidade da parte vocal, equilibrando a<br />

presença orquestral, realizando toda a última cena com pequenos cantabili e uma preghiera,<br />

naquilo que mais se aproxima do que a época chamou de recitativo melódico-dramático.<br />

Jara está ainda mais impregnada de elementos naturalistas, mas não só. Tudo<br />

que em Jara aparentemente é verista, tem contornos tão densos que faz com que a ópera<br />

se aproxime muito do simbolismo. Não é apenas uma narrativa folclórica, porque é baseade<br />

me lenda, mas uma lenda com fortes atributos universais e densidade psicológica. O índio<br />

Begiuchira (tenor), perdido em sua canoa de volta para casa, depara-se com a figura sedutora<br />

de Jara (soprano). Ela promete seu amor, desde que ele a acompanhe ao seu reino<br />

no fundo dos rios. Sabedor do que isso implica, consome-se porque desde esse dia não<br />

consegue mais parar de pensar em tal aparição. Sachena (meio-soprano), sua mãe<br />

preocupa-se e tenta chamá-lo à realidade. Ubira (barítono), outro varão da tribo chega<br />

intempestivamente durante os festejos sazonais e relata os perigos das matas ermas em<br />

que ele mesmo se encontrou poucos momentos antes, aludindo à Jara. Mas Begiuchira já<br />

não se pertence. O conflito de Begiuchira é existencial. A vida se lhe consome em amor<br />

pelas próprias forças da vida. O amor pela Jara não é libertador no sentido em que Bug<br />

Jargal amava Maria porque descobrira nisso uma nova forma de amar e compreender a<br />

humanidade, para além das convenções sociais. O amor de Begiuchira é todo consumição.<br />

Ele sabe que para aceitar este amor, rejeitará o mundo que conhece e as forças da vida.<br />

Mas a libertação também acontece pela aceitação desse amor. Ao se entregar nos braços<br />

de Jara, extingue-se-lhe a vida física, o limite para o mundo de outra dimensão, que lhe<br />

aparece irresístivel nos encantos incomuns de Jara.<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


242<br />

Todo o dilema da ópera se resume ao universo psíquico de Begiuchira no seu<br />

confronto com as forças do Natural e os arquétipos que aí estão envolvidos. Entre a devoção<br />

a duas mulheres, ele oscila pela imagem mítica da mãe, pertencente a um mundo real e<br />

previsível, e a visão onírica, mágica, fantasmagórica da imprevisível mulher, pretensa<br />

amante, que pertence a um mundo idealizado. O temor reverencial da mãe exerce o<br />

domínio da parentela, da tradição social, da convenção do universo real. Este é o domínio<br />

da mulher que gera, da mulher que um dia conteve o homem e o transformou em força<br />

cinética. Sachena é precisamente a força geradora da Terra. Jara completa o ciclo da vida<br />

desse mesmo homem e por ser a mulher receptora, a que extingue a vida do homempoder<br />

cinético, que o recebe nos seus domínios agora fantásticos, mas ainda assim nas<br />

entranhas do planeta, torna-se a antítese de Sachena. Esta, a criatura da força elementar<br />

da terra, a outra, criatura da força elementar do fluxo, da água, onde ocorre a dissipação<br />

e a transformação.<br />

O universo de Jara, de Malcher, excede a descritividade literária de Stradelli,<br />

fonte de quem Malcher é tributário e onde o libreto é calcado, pois Malcher já concebe<br />

um universo psíquico e uma atmosfera dominada pelo aspecto simbólico.<br />

Malcher se valeu de longas passagens orquestrais, algumas próximas de meia<br />

hora, o que muito contrariou o público da época. O libreto também foi muito modificado,<br />

quase totalmente desfigurado. Malcher trocou versos de posição e em tal maneira que a<br />

rima às vezes é branca e em alguns pontos, sem métrica, passa a ideia narrativa. Mas nas<br />

cavatinas – curiosamente ele conservou seções de protótipo lírico tradicional, retorna<br />

aos versos octonários de Stradelli, o ilustrado geógrafo italiano que recolheu e deu forma<br />

narrativa à lenda. Há coros, há bailados, mas há também a tendência à harmonia cromática<br />

e à divagação tonal, há abundância de pentatônicas, de escalas octatônicas, de escalas<br />

expandidas, estruturas palindrômicas.<br />

Na verdade a música sobeja sobre a ação porque a ação da ópera é estática e o<br />

tempo estático é característico da abordagem simbolista, assim como o aprofundamento<br />

da relação entre Homem e Natureza, tão evidentes aqui. Em Jara não há guerras nem<br />

motins, não há os tradicionais duelos nem as disputas de amor e honra; há menos ainda<br />

levantes coletivos contra injustiças sociais. Não há a célebre disputa por valores morais,<br />

por conquistas pessoais ou de causa difusa.<br />

Jara é um colóquio de amor e morte que se dá numa atmosfera de sonho. Jara<br />

é quem o afirma e o coro assim o repete: Amor de Jara é sogno di dormente. A tríade<br />

sonho-amor-morte completa-se no universo simbolista da cultura europeia da virada do<br />

século XIX para o XX. O uso de linguagens particulares, como procedimento compositivo<br />

de autores diversos, especialmente no século XX, realiza-se na adoção de novas sonoridades<br />

pelo uso de vocabulários desconhecidos, da esfera musical como a variedade de escalas<br />

modais que, sobretudo, serviriam como marca identitária nacional e primitiva, mas ainda<br />

na esfera verbal, com o aparelho comunicativo que pressupõe nova musicalidade no dizer<br />

o texto. No caso de Jara há até mesmo cena de diálogo de Ubira com coro que está em<br />

nheengatu, língua geral dos indígenas da Amazônia.<br />

Malcher antecipa o discurso nacionalista que diversos exemplos simbolistas<br />

europeus propuseram a autores brasileiros do século XX.<br />

O simbolismo de Jara é, por um lado, dotado da mesma discussão sobre o papel<br />

do Homem na Terra que já aparecera em Bug Jargal. Mas nesta sua primeira ópera, estão<br />

em jogo as forças de um realismo devedor dos preceitos de Hugo, que em seu prefácio de<br />

Cromwell revelava o paradigma evolutivo do Homem e da sociedade em direção à luta<br />

pela posse da terra e o conflito de interesse antagonizando coletivo e individual, bem<br />

como coletivos entre si. A noção de progresso e evolução levaria aos confrontos e esse<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


243<br />

era o mundo real com os elementos em causa. O Homem, sob a noção de progresso, pretensamente<br />

melhora, ascende, se emancipa no universo da razão.<br />

Jara também discute o papel do Homem na Terra, mas para além dos domínios<br />

da razão, justamente onde ele não pode pretender controle. O universo psíquico dos<br />

sonhos, funde-se em algum momento ao dos sentimentos, onde se acalenta o amor, e à<br />

vertigem incontrolável pelo desenrolar da vida que acaba em morte, que no caso de<br />

Begiuchira se associa ao último prazer prometido.<br />

Ao tempo em que Malcher produzia suas duas masterpieces um novo talento<br />

surgia no Pará. O jovem Octávio Meneleu Campos nascera a 22 de julho de 1872 na rua<br />

Riachuelo, em Belém, obtendo ainda menino os primeiros estímulos à música pela irmã<br />

Isabel, através do piano. Com a passagem do violinista baiano Adelelmo do Nascimento<br />

em princípios da década de 1880 pela capital do Pará, Meneleu Campos recebeu nova<br />

influência e dessa vez direcionando-se ao violino. Adelelmo viu logo o talento precoce e<br />

insistiu com João Marinho de Campos, pai de Meneleu, para que o destinasse a estudos<br />

mais avançados na música (A Província do Pará, 11 de janeiro de 1900). Mas o desejo<br />

paterno quis que ele fosse estudar Direito no Recife, o que de fato veio a acontecer em<br />

1888. Na altura já compunha e com um destes primeiros trabalhos, a valsa Cecy – que ele<br />

logo orquestraria – chamou atenção do estipêndio governamental, pois o governador<br />

Lauro Sodré, em um dos primeiros mandatos republicanos, concedeu bolsa a Meneleu<br />

Campos para ir estudar na Europa. A família reagiu então declinando o favor, para custear<br />

enfim a ida de Meneleu Campos para Milão (Salles, 1972, p. 159-201).<br />

Embarcado para a Itália em 1º de maio de 1891 no vapor Manauense, estudou<br />

com Andrea Guarneri até obter matrícula no Real Conservatório da capital lombarda em<br />

outubro daquele mesmo ano. Naquele renomado estabelecimento de ensino italiano<br />

teve oportunidade de estudar com Vincenzo Ferroni (1858-1934), um dos mais influentes<br />

professores de harmonia da época. Sete anos mais tarde submetia-se a intensa série de<br />

exames que o permitiriam laurear-se em piano, violino e composição (Mello, 1908, p.<br />

330-333).<br />

A repercussão das provas construiria a fama entre seus conterrâneos, que o<br />

receberiam na volta da Europa com deferências de notabilidade. Aquele a quem os jornais<br />

chamavam agora de “orgulho da pátria e da família”vinha para ser o novo diretor do<br />

Conservatório local, recebendo o cargo das mãos de Gama Malcher (A Província do Pará,<br />

12 de janeiro de 1900). Os primeiros tempos passou entre as atividades do conservatório<br />

e a composição. Casado com a italiana Rosetta Basso, enviuvou precocemente em 1902,<br />

o que o levou a uma intensidade de trabalho e uma consequente requisição de licença<br />

sabática a ser vivida em 1903. Aproveitou este período para voltar a Milão e retomar<br />

contato com velhos conhecidos, sendo a primeira oportunidade concreta para a encomenda<br />

e aquisição do libreto de Gli eroi, comprado a Luigi Illica (Salles, 1970, p. 99). Já<br />

fizera uma ópera nos finais do século anterior, chamada Il salvocondotto, mas considerava<br />

um trabalho de juventude. Autor de um catálogo que se enriquecia ano a ano, seu objetivo<br />

era na verdade experimentar o gênero mais em voga do momento e que consagrava<br />

carreiras no mundo mediterrânico-americano.<br />

Embora dedicado ao ofício de ensino na direção do conservatório, o desgaste<br />

político afasta-o do emprego em 1906, mesmo ano em que se casou com Marieta Guedes<br />

da Costa. O retorno à Europa foi imediato. Nesse momento, de certeza, cresceu seu empenho<br />

para a realização de Gli eroi, terminando a composição e tentando viabilizar sua<br />

montagem, o que nunca aconteceria.<br />

Regressou ao Pará em 1908, ano em que o governador Augusto Montenegro extinguia<br />

o Instituto Carlos Gomes, conservatório do Pará. Meneleu Campos intentaria o<br />

ensino particular e mesmo uma escola, mas com o fim do Ciclo da Borracha a debandada<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


244<br />

de recursos provocou também a de pessoas. Em fins de 1909 ele dirigia-se para o Rio de<br />

Janeiro, onde inicialmente seus quartetos e romanzas foram sendo executados por nomes<br />

importantes da música local, como Ernesto Ronchini, Jerônimo Silva, Rubens Tavares e,<br />

sobretudo, Vincenzo Cernicchiaro, que escreveria elogiosamente sobre o paraense no<br />

volume de história da música no Brasil que o italiano editaria na Europa década e meia<br />

depois.<br />

Em dezembro de 1909 seus quartetos de cordas foram executados em São Paulo<br />

e no princípio da década seguinte já se encontrava de volta a Belém para seu ofício<br />

pedagógico no estabelecimento que criara. Cansado da lida, encerrou as portas de sua<br />

escola em 1912 e no ano seguinte dirigia-se mais uma vez à Europa.<br />

Em verdade, depois de breve passagem por Paris, fixou-se por dois anos em<br />

Portugal para cumprir recomendações de tratamento médico para sua filha Sulamita.<br />

Neste meio tempo lecionou piano, solfejo, teoria musical, harmonia e composição, mas<br />

obteve pouco sucesso e acabou por retornar mais uma vez a Belém em 1916. Surgiu nova<br />

fase compositiva em que se fizeram aparentes as influências de Alberto Nepomuceno,<br />

que ele conhecera no Rio de Janeiro e que até executara obras suas. Mas Meneleu Campos<br />

foi escrevendo cada vez menos, nos anos seguintes, ainda que motivado em orquestrar<br />

algumas de suas peças já existentes e empenhado na direção de grupos diversos como<br />

sempre esteve, sendo mesmo capaz de montar um septeto que deixou boas impressões,<br />

além de um orfeão e concertos vocais-sinfônicos (Salles, 1972).<br />

Em 1926 ausentou-se mais uma vez a descanso e estando de repouso em Niterói,<br />

faleceu repentinamente em 20 de março de 1927. O rápido desgaste se deveu em parte<br />

ao seu último grande desgosto, o suicídio de sua filha, desfecho de uma relação amorosa<br />

impossível para os padrões morais da época.<br />

O assunto de Gli eroi é, sobretudo, político e recai na coleção de dramas históricos<br />

que reapareceram com relativa força no início do século XX, dos quais Tosca é bom exemplo.<br />

A ação passa-se em março de 1848 na cidade de Milão e é baseada em fatos reais,<br />

momento em que a Itália, sob domínio estrangeiro, vive uma das páginas mais marcantes<br />

da construção da nacionalidade. O libreto é um dos mais identificados com a personalidade<br />

anárquica e rebelde do seu autor. Diferente de Malcher, Meneleu Campos não modifica<br />

nada, não intervém e aceita passivamente o proposto por Illica. Em quatro atos, recheada<br />

de personagens, a peça é inteiramente descritiva e tem longas falas. O último ato entretanto<br />

é simbolista, ambientado como num sonho, é a experiência de inconsciência no momento<br />

da morte do par amoroso central.<br />

A música foi concebida num contínuo sem paradas até o fim de cada ato. As<br />

melodias surgem ladeadas por recitativos em procedimento que lembra o expediente de<br />

La bohème. A cópia da versão pianística já traz inúmeras ideias de orquestração, especialmente<br />

das cenas de grande aparato. Os motivos musicais são muitos, desde melodias<br />

sedutoras a rufar de tambores, progressões de acordes, atmosferas diversas, em que há<br />

espaço até para o hino de Mameli ao final, com o triunfo italiano. A despeito de alguns<br />

belos momentos do par central, o militar Max, das forças invasoras, e a italiana Alessandra<br />

Dedomini, filha de uma das tradicionais famílias lombardas, que se insurge contra a<br />

ocupação, o quarto ato, com sua propositura inesperada, foi pouco valorizado por Meneleu<br />

Campos. Ele é relativamente breve, comparado aos demais, e mesmo a música de grande<br />

impacto dramático do seu inicio, não vê continuidade atmosférica até o final. Pode ter<br />

sido uma escolha para que se equilibrasse aos demais atos, que na verdade ainda se<br />

tornavam mais longos pela presença de pré-atos com episódios explicativos. Não se sabe<br />

por que Meneleu Campos não interveio no libreto, o que poderia ser salutar a criação artística,<br />

uma vez que o próprio Puccini confiava o refinamento das propostas de Illica ao<br />

seu parceiro Giuseppe Giacosa. Certo germanismo com a ideia de obra de arte monolítica<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


245<br />

parece estar presente. Foram, enfim, muitos os elementos que de certa forma podem ter<br />

contribuído para que Gli eroi não encontrasse suporte para a montagem, independente<br />

dos problemas econômicos da região. Uma vez que Meneleu Campos contactara Franco<br />

Cardinali para o papel principal, é especulável que tenha tentado também teatros, companhias<br />

e empresários estrangeiros. O assunto que possivelmente tenha sofrido certa<br />

resistência fora da Itália por ser «italiano demais», afinal possuía até trechos em dialeto<br />

lombardo, ainda precisava romper com o ar de discurso panfletário, que na estética do<br />

gênero lírico parecia um tanto datado naquela altura.<br />

A completar o panorama de autores brasileiros atuantes no Norte do país durante<br />

o Período da Borracha, está o nome de Elpídio Pereira. Nascido em Caxias, Maranhão, a<br />

16 de outubro de 1872, Elpídio de Britto Pereira teve suas primeiras lições de música com<br />

os mestres de banda da sua cidade natal, inicialmente com o violinista Antonio Cariman e<br />

depois com o clarinetista Antonio Coutinho. Sua família, percebendo o seu interesse e talento,<br />

enviou-o a Lisboa para estudar. Na capital portuguesa, chegado em princípios de<br />

1890, foi matriculado em um colégio, para frequentar o curso preparatório a fim de ingressar<br />

no Conservatório de Paris. Nesta instituição estudou como aluno-ouvinte na classe<br />

de Taudou (harmonia), a mesma onde Francisco Braga era aluno efetivo. Entretanto, manteve<br />

lições com Domenico Ferroni a partir de 1891, fora do Conservatório, para estudar<br />

violino e reforçar seus conhecimentos de harmonia, pois sua intenção maior era a carreira<br />

de compositor.<br />

A situação financeira adversa de sua família o trouxe de volta ao Brasil e, após<br />

passar dois anos e meio, mais diretamente ligado a Belém, transferiu-se para Manaus<br />

onde encontraria inicialmente irmãos e amigos da família, e mais tarde o próprio pai, que<br />

aceitara um cargo em uma companhia de navegação. Mas o seu contato inicial com a capital<br />

do Amazonas se deu em 1892/93, no momento de sua volta ao Brasil, vindo da primeira<br />

viagem de estudos a Paris.<br />

Nesta oportunidade foi convidado por Adelelmo do Nascimento (1852-1898),<br />

para participar com dois números de sua escolha, em um concerto que o baiano, radicado<br />

em Manaus, estava a organizar. O jovem violinista então optou por uma peça de sua autoria,<br />

a Serenade Brasilienne, a primeira de suas composições a ser ouvida no Brasil após<br />

o seu primeiro estágio de instrução musical no exterior.<br />

Neste meio tempo, Elpídio Pereira deu concertos em Belém, São Luiz e Terezina,<br />

com rápida passagem pela terra natal. Nova oportunidade de ir a Manaus aconteceu<br />

quando o empresário Joaquim Franco, que dominava os principais palcos do Norte naquele<br />

momento, recrutou o jovem violinista para fazer parte da orquestra da companhia lírica<br />

destinada a ambas as capitais da borracha.<br />

Estabelecido definitivamente em Manaus, Elpídio Pereira envolveu-se com a<br />

organização de concertos sacros na Catedral, num periodo que deve ter ido de 1895 a<br />

1898 (Pereira, 1957, p. 40). Para além dos concertos, Pereira foi também partícipe de tertúlias.<br />

Ele tomou parte desde o princípio do Club Musical Amazonense, fundado pelo alemão<br />

Max Brunn, que por vezes utilizou-se de sua loja de partituras e instrumentos para os<br />

encontros dos associados. O Club Musical Amazonense era uma sociedade de concertos<br />

que surgiu com o intuito de se dedicar a execuções privadas e envolvia diversos diletantes<br />

e profissionais, brasileiros e estrangeiros, residentes em Manaus.<br />

Mas ainda em Manaus, o compositor maranhense viu-se obrigado, por causa<br />

de um sinistro que destruiu os bens da família, a trabalhar em atividade não relacionada<br />

à música, sendo empregado do setor de cobranças da Casa Marius & Levy. Esta situação<br />

não duraria muito tempo. Com a aposentadoria de Adelelmo do Nascimento do cargo de<br />

professor de música do Gymnasio Amazonense, em 1897, Elpídio Pereira foi chamado<br />

para reger interinamente a cadeira. O musicista privava da intimidade do chefe de gabinete<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


246<br />

do Governador Fileto Pires, o escritor Raul de Azevedo, também maranhense. E foi justamente<br />

este quem propôs a Elpídio Pereira a troca da posição no magistério estadual<br />

por uma bolsa de estudos na Europa.<br />

Assim, em 1898, partia para Paris, a fim de continuar sua instrução, o que durou<br />

até 1902, quando expirou o prazo da bolsa concedida pelo governo amazonense.<br />

Aprofundou estudos de composição com Domenico Ferroni, que se tornou a<br />

sua influência direta neste período e que provavelmente lhe apresentou a obra teórica de<br />

Berlioz e Rossini, que ele já havia usado em uma fase anterior. Elpídio Pereira despediu-se<br />

da capital francesa dando dois concertos na Sala Hoche, onde apresentou peças somente<br />

de sua autoria, regendo a orquestra dos Concerts Lamoureux (Pereira, 1957, p. 1-56). No<br />

retorno para o Amazonas deu ainda um concerto em Lisboa.<br />

O compositor faria concertos com obras suas, em seu favor ou em benefício de<br />

amigos, até 1903, pois passou os anos de 1904 a 1906 percorrendo algumas capitais<br />

brasileiras, onde havia interesse em divulgar sua obra. Segundo Pereira (1957, p. 60), esteve<br />

em Belém, São Luiz, Rio de Janeiro e São Paulo e, na capital carioca, ainda em 1906,<br />

organizou concerto de suas obras, coadjuvado por Francisco Braga e Alberto Nepomuceno<br />

que dirigiu a orquestra (Pereira, 1957, p. 57 64).<br />

Na altura em que voltara a Manaus já intencionava escrever uma ópera (Pereira,<br />

1957, p. 47) e seus trabalhos, marcadamente camerísticos até a virada do século, vinham<br />

ganhando versão orquestral ou sendo originalmente concebidos para forças mais dilatadas.<br />

A promessa do novo governador do Amazonas, Antonio Constantino Nery não<br />

se cumpriu e a nova estada de Pereira em Manaus durou até 1908, quando finalmente<br />

decidiu-se a ir ao Rio de Janeiro em busca de novas oportunidades. Com a crise econômica<br />

da borracha, ficava claro que um retorno a Paris para completar estudos estava tão difícil<br />

quanto a perspectiva de montar a ópera que almejava um dia compor. Ele o sabia bem,<br />

pois em Manaus, além de tocar e promover concertos – incluindo alguns com musicistas<br />

estrangeiros em passagem pela cidade – Pereira recebeu encomendas governamentais<br />

de obras suas e atuou na crítica de ópera, escrevendo em jornal especializado até os derradeiros<br />

espetáculos liricos que se apresentaram no Período da Borracha.<br />

Mais uma vez na capital da república brasileira, o compositor precisou tecer<br />

novos contatos para obter a desejada bolsa para o retorno a Paris, o que de fato aconteceu<br />

entre 1912 e 1913, às custas do Governo Federal. A decisão deveu-se, sobretudo, ao parecer<br />

favorável de Alberto Nepomuceno, então diretor da Escola Nacional de Música. A despeito<br />

do disposto na lei que a outorgara, a subvenção foi paga com atraso nos três anos a que o<br />

artista fazia jus, o que ocasionou certa demora na sua partida do Brasil e consequentes<br />

dificuldades financeiras em Paris.<br />

Chegado em meados de 1913, procurou imediatamente Ferroni, ainda residente<br />

no mesmo lugar. Entretanto, obter um bom professor de composição para encerrar os estudos<br />

com a feitura do drama lírico, como ele mesmo estipulara, não foi tarefa fácil. A<br />

busca inicial foi pelo renomado compositor Vincent d’Indy, que não podendo atendê-lo<br />

em privado, indicou que frequentasse a sua classe de composição na Schola Cantorum,<br />

mas sob a condição de que nos três anos em que estivesse sob sua tutela não compusesse<br />

nada. A exigência não agradou e o compositor brasileiro recorreu mais uma vez ao Ferroni<br />

para obter uma prova, desta vez com Paul Vidal (1863-1931). Este maestro, compositor e<br />

professor do Conservatório de Paris, a despeito do renome que gozava, atendia alunos<br />

menos privilegiados social e financeiramente. Aceitando Pereira como aluno, recomendouo<br />

aos irmãos Eugène e Edouard Adenis para que estes célebres libretistas lhe preparassem<br />

um libreto. Inicialmente o treinamento de Pereira, exigido por Vidal, concentrou-se em<br />

musicar o Horace de Corneille em recitativos. Antes mesmo de acabar a tarefa, Vidal decidira<br />

que o aluno brasileiro podia se voltar para o seu próprio assunto.<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


247<br />

A escolha do tema veio de sugestões de amigos e alguns deles chegaram a lhe<br />

mandar material do Brasil. Na altura, com a República, o país passava por debates de revisionismo<br />

histórico. A ideia de fazer uma ópera sobre Calabar, um português insurrecto<br />

que passou ao lado dos holandeses, deveria ter novos contornos.<br />

Pereira queria expor uma faceta de Calabar como uma espécie de primeiro herói<br />

nacional, mas o personagem era extremamente polêmico e a decisão do compositor de<br />

levar o projeto até o fim certamente custar-lhe-ia a estreia da ópera, que nunca seria<br />

montada.<br />

O trabalho de composição foi rápido e ele mesmo confirmou que o fez “quase<br />

sem repouso, a tal ponto que quase não dava atenção ao que se passava na guerra”<br />

(Idem, p.76). Em fins de março de 1915, ou seja, três meses depois de começado já levava<br />

para Vidal o primeiro ato completo, não só em canto e piano, mas também a orquestração,<br />

que o mestre teria aprovado: “Trés bien Elpides, vous avait fait un beau travail” (Idem).<br />

Por causa dos atrasos no recebimento da bolsa do governo brasileiro, a composição<br />

do segundo ato não veio logo. Neste meio tempo ele se ocupou da composição de<br />

duas outras peças significativas de seu catálogo, a Sonata para violino e piano e o bailado<br />

Yan e Nadine, com libreto de sua própria lavra, planejando retomar Calabar ainda em novembro<br />

de 1915. Mas uma crise de estafa o impediu de continuar o trabalho neste ano.<br />

Somente em janeiro de 1916 terminou a orquestração de Yan e Nadine e voltou à<br />

composição de Calabar.<br />

Com o término da bolsa, o compositor precisou voltar ao Brasil e Calabar, que<br />

teria seu segundo ato orquestrado durante a viagem de retorno, ficou incompleta por<br />

alguns anos. O período que coincide com o fim da I Guerra Mundial foi especialmente<br />

difícil para o autor, que passou por necessidades de toda a ordem. Chegou a visitar a família<br />

em Manaus, mas parecia não haver boas perspectivas em parte alguma. Escrevendo a<br />

Epitácio Pessoa, agora presidente da república, mas a quem se relacionara na estada parisiense<br />

por intermédio de amigos, Elpídio Pereira obteve nomeação para funcionário da<br />

embaixada brasileira em Paris. O retorno à capital francesa serviu de muitas maneiras.<br />

Em um primeiro momento saldou dívidas diversas, depois iniciou o processo de publicação<br />

de algumas de suas obras mais importantes, para, por fim, concluir Calabar, ao que tudo<br />

indica, em 1921.<br />

Se a ópera não lhe trouxe retornos que os esforços envidaram, o bailado, agora<br />

reformulado e com o novo título de Les pommes du voisin, seria estrondoso sucesso no<br />

Teatro Gaité Lyrique, atingindo 76 récitas ao longo de 1926.<br />

Até meados dos anos 30 há registros de que o compositor permaneceu ativo,<br />

ainda que menos produtivo. Suas incumbências diplomáticas cresceram desde então e<br />

durante a Segunda Guerra chegaria ao posto de vice-cônsul em Londres, em breve oportunidade<br />

que os 20 anos de carreira diplomática lhe proporcionaram fora da França. Aposentado,<br />

voltaria ao Rio de Janeiro onde viveu até 1961, ano em que faleceu.<br />

Na capital francesa, o compositor acompanhou algumas execuções líricas marcantes,<br />

como a estréia de Cavalleria rusticana na Opera Comique, ainda em 1891 (Pereira,<br />

1957, p. 27-28), ou as premières de Lohengrin, em 1892 e Parsifal já em 1913, na Opera de<br />

Paris (Pereira, 1957, p. 31). Embora ele tenha assistido a duas estréias de Wagner, e de<br />

admitir que a execução foi “grandiosa do começo ao fim” (Pereira, 1957, p. 32), não parecia<br />

concordar totalmente com a estética do compositor alemão. Sobre Parsifal ele disse: “As<br />

cenas [são] por demais longas, com recitativos que pareciam não ter fim, e por isso cansativas<br />

ao ouvido” (Pereira, 1957), revelando ser este o motivo de grande parte dos frequentadores<br />

ter descido as escadas do teatro no intervalo do primeiro ato visivelmente fatigados.<br />

Ao que parece, o seu apreço era pela atmosfera do lírico, pois dentre as inolvidáveis circunstâncias<br />

de sua trajetória ele nomeia a vesperal lírica de carnaval da Ópera de Paris,<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


248<br />

quando doze horas após o baile que acontecia na mesma casa, os espetáculos retornavam<br />

ao palco. A sua atração pela cena também se desvela ainda a partir de outro de seus episódios<br />

parisienses quando era estudante sob o mecenato do Amazonas. Em 1900, substituiu<br />

um amigo violinista nos ensaios e apresentações da peça L’aiglon, de Edmond Rostand,<br />

que era levada por Sarah Bernhard no teatro de mesmo nome; o pagamento de<br />

cinco francos por ensaio não era “a soma que fazia aceitar a incumbência, mas a<br />

oportunidade […] de apreciar bem de perto a insigne artista francesa na sua dinâmica<br />

atividade” (Pereira, 1957, p. 54).<br />

A música em Calabar é absolutamente característica da produção lírica francesa<br />

dos anos 10. O melodismo é confiado à orquestra e os personagens desempenham em<br />

recitativos e ariosos integralmente, ecoando a recepção wagneriana através do Peleas et<br />

Melisande de Debussy, modelar para toda aquela geração. Cenas curtas e numerosas,<br />

tableaux para destaque temporal e espacial, misticismo e simbologia, além do uso de leitmotiv<br />

são exemplos de como aspectos tradicionais se fundiam às influências wagneristas<br />

em Calabar, a exemplo de outros autores franceses do período.<br />

Do ponto de vista dramático-musical, a procissão da sexta-feira santa, com o<br />

Canto da Verônica, ainda no primeiro ato, é talvez um dos melhores momentos do trabalho,<br />

não só pela concepção, mas pela possibilidade de remeter ideias como pecado, destino,<br />

nacionalismo, dentre outros elementos de discussão interessantes. A opção estética de<br />

Pereira também o compromete em algumas aparentes incongruências. A primeira delas<br />

remete à relação entre música e palavra. Uma vez que o libreto não foi construído em versos<br />

metrificados, a possibilidade do uso de recitativos entremeados a melodismo solto<br />

apoia-se fundamentalmente na adoção do leitmotiv. Mas se até aí Pereira escolheu corretamente,<br />

parece ser problemático o fato de que ele nem sempre tivesse melodias de<br />

reminiscência para ornar as falas. Isso pode ter provocado certo incômodo na recepção à<br />

obra, como se depreende dos relatos do próprio autor sobre o contato desta com o público<br />

seleto de ouvintes da área musical nos concertos que ele promoveu com excertos da<br />

ópera e mesmo na relação com os responsáveis artísticos dos teatros onde buscou a estréia<br />

de Calabar, afinal há trechos longos de declamação em altura definida, apoiada unicamente<br />

em acordes.<br />

Estas audiências informais podem ter sentido também certo descompasso entre<br />

a proposta de teatro trágico, com cenas de discussão de valores éticos, morais e ideológicos,<br />

entre dois personagens como de hábito, e a extensão dos assuntos ao nível da grand<br />

opéra, em que entra e sai do conflito dramático um numeroso contingente de personagens,<br />

vivendo propostas de situações extremas que resultam do conflito político.<br />

Para completar, a personagem Maria, de jovem aldeã quase anônima, convertese<br />

numa quase mártir, morrendo ao final por seu amor, o personagem Calabar, e “roubando-lhe<br />

a cena”.<br />

Na verdade Pereira não teve a oportunidade da estreia e a consequente retroação<br />

que lhe permitisse reflexão e reprocessamento de ideias. Pior, a versão orquestral de Calabar<br />

está desaparecida e não há como saber como o autor orquestrou a obra e que valor<br />

enfim pode ter para o patrimônio musical brasileiro, geral e malfadamente descuidado e<br />

esquecido.<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


249<br />

Referências bibliográficas<br />

Cernichiaro, Vincenzo. Storia della musica nel Brasile: dai tempi coloniali sino ai nostri<br />

giorni (1549-1925). Milão: Riccioni, 1926.<br />

Hugo, Victor. Noventa e Três e Bug Jargal. Barcelos: Civilização Editora, 1991.<br />

Mello, Guilherme. A música no Brasil, desde os tempos coloniaes até o primeiro<br />

decênio da República. Bahia: Tipographia de São Joaquim, 1908.<br />

Páscoa, Márcio. Cronologia Lirica de Belém. Belém: Associação Amigos do Theatro da<br />

Paz, Eletrobrás, 2006.<br />

Páscoa, Márcio. Ópera em Belém. Manaus: Valer, 2009.<br />

Páscoa, Márcio. Ópera em Manaus. Manaus: Valer, 2009.<br />

Pereira, Elpídio. A música, o consulado e eu. Rio de Janeiro: Edição do autor, 1957.<br />

Salles, Vicente. Épocas do Teatro no Grão-Pará: ou, apresentação do teatro de época.<br />

Belém: UFPA, 1994, 2 vols.<br />

Salles, Vicente. A música e tempo no Grão Pará. Belém: Conselho Estadual de Cultura,<br />

1980.<br />

Salles, Vicente. Música e músicos do Pará. Belém: Conselho Estadual de Cultura, 1970.<br />

Stradelli, Ermanno. Eiara: leggenda tupi-guarani. Piacenza: Vincenzo Porta libraio<br />

editore, 1885.<br />

Periódicos<br />

A Província do Pará (Belém), 11 de janeiro de 1900.<br />

A Província do Pará (Belém), 12 de janeiro de 1900.<br />

Folha do Norte (Belém), 28 de fevereiro de 1915.<br />

Folha do Norte (Belém), 11 de junho de 1906.<br />

Il Teatro Illustrato (Milão), 1880-1895.<br />

Liberal do Pará (Belém), 19 de agosto de 1881.<br />

Jornal do Commercio (Rio de Janeiro), 3 de março de 1891.<br />

O Paíz (Rio de Janeiro), 27 de fevereiro de 1891.<br />

Salles, Vicente. Centenário de Meneleu Campos. In: Revista de Cultura do Pará, n. 8 e 9,<br />

jul.-dez. 1972, p. 159-201.<br />

Partituras<br />

Campos, Meneleu. Gli eroi. Márcio Páscoa, ed. Manaus: Valer, 2009.<br />

Gurjão, Henrique Eulálio; Pereira, Elpídio. Idália e Calabar. Márcio Páscoa, ed. Manaus:<br />

Valer, 2009.<br />

Malcher, José Cândido da Gama. Bug Jargal. Márcio Páscoa, ed. Manaus: Valer, 2009.<br />

Malcher, José Cândido da Gama. Jara. Márcio Páscoa, ed. Manaus: Valer, 2009.<br />

Libretos<br />

Illica, Luigi. Gli eroi (manuscrito pertencente à Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro) s.c.<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


250<br />

Malcher, José Cândido da Gama. Jara: leggenda amazônica, opera lirics in tre atti/<br />

parola e musica de maestro Gama Malcher/rappresentata La prima volta nel teatro DA<br />

PAZ AL PARÁ (Brasile) 1895. Milano: Moreo Virginio, 1894.<br />

Valle, Vincenzo. Bug Jargal, melodrama em quatro atos: poesia de Vincenzo Valle,<br />

Música do maestro J.C.Gama Malcher. Pará: Tip. d’O Democrata, 1890.<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


251<br />

As óperas de Sant’Anna Gomes<br />

Marcos Virmond<br />

Universidade Sagrado Coração, Bauru<br />

O irmão de Antônio Carlos Gomes<br />

José Pedro de Sant’Anna Gomes nasceu em Campinas em 1834 e veio a falecer<br />

em 1908, isto é, quase doze anos após a morte de seu irmão mais famoso, o compositor<br />

Antônio Carlos Gomes. Da mesma forma que muitos outros compositores menos visíveis,<br />

a produção musical de Sant’Anna Gomes ainda não foi devidamente explorada. Felizmente,<br />

seus manuscritos se encontram bem preservados no Museu Carlos Gomes, em Campinas,<br />

São Paulo, prontos para uma devida análise e transcrição musicológica que os disponibilize<br />

ao grande público. Entretanto, parte de sua obra de câmara já foi objeto de apreciação<br />

musicológica e apresentada em concertos, através do Projeto Memória Musical<br />

Campineira, de 1992, e nas comemorações do centenário de seu falecimento em 2008<br />

(Stecca, 2008, p. 21).<br />

Sant’Anna era irmão mais velho de Antonio Carlos Gomes e teve com este uma<br />

relação muito afetuosa e parceira durante a vida. A formação e atividades musicais dos irmãos<br />

foram concomitantes e estiveram sob a orientação severa do pai, Manoel Jose<br />

Gomes. Sant’Anna sempre exerceu influência positiva sobre Carlos, tendo estimulado o<br />

irmão em sua decisão de deslocar-se para o Rio de Janeiro para os estudos no Conservatório<br />

Imperial. Posteriormente participou decisivamente, do ponto de vista financeiro, para<br />

que ocorresse a montagem de Il Guarany no Teatro alla Scala, em Milão. Carlos conviveu<br />

com muitas pessoas e personalidades ao longo de sua vida, algumas delas foram muito<br />

amigas e fundamentais para a continuidade de sua luta artística, como André Rebouças,<br />

Teodoro Teixeira Gomes e José Castelães. Entretanto, percebe-se que, ao longo dos anos,<br />

a figura de Sant’Anna Gomes foi a mais importante como um esteio na atribulada vida do<br />

irmão, atuando como conselheiro e incentivador. Próximo à estréia de Il Guarany, Carlos<br />

escreve a Sant’Anna pedindo sua presença, e os qualificativos com que enaltece o irmão<br />

revelam esta relação privilegiada:<br />

Juca,<br />

Aproxima-se o dia fatal. Vem; si tu me faltares e si o successo coroar os meus esforços,<br />

a tua ausência far-me-á receber as ovações do público italiano, com a alma<br />

cheia de tristeza e saudade por ti, meu irmão, meu amigo e sempre generoso<br />

protector. (Boccanera, 1913, p. 27)<br />

No que tange suas atividades individuais, Sant’Anna atuou de forma muita intensa<br />

na vila de São Carlos, depois Campinas, como compositor, regente, instrumentista, professor,<br />

juiz de paz e empresário. Além de substituir o pai em suas responsabilidades musicais<br />

na vila, exerceu por muito tempo a regência da Orquestra do Teatro São Carlos em Campinas,<br />

onde se apresentavam diversas companhias de ópera, em especial as italianas, que<br />

não tinham orquestra própria e trabalhavam com a do teatro. Foi também negociante de<br />

músicas e instrumentos musicais e atuou tambem como professor e violinista, instrumento<br />

com o qual desmonstrou uma intimidade de virtuose.<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


252<br />

No que se refere à composição, Sant’Anna transitou por diversos gêneros e seu<br />

catálogo inclui peças orquestrais, vocais, obras para banda e duas óperas. Alda é a única<br />

ópera que concluiu, mas que continua inédita em termos de apresentação pública. Sua<br />

tentativa anterior, Semira, não foi concluída. Nos últimos anos de sua vida, participou da<br />

composição de uma Pastoral, com texto de Coelho Neto, então professor da escola Culto<br />

à Ciência em Campinas. A peça estreou nessa cidade no natal de 1903 e contou com a<br />

participação de outros nomes conhecidos do período: além de Sant’Anna, que compôs o<br />

Prelúdio, Francisco Braga, participou com a Visitação, Henrique Oswald, Anunciação, e<br />

Alberto Nepomuceno, compôs Natal, trecho que foi regido pelo próprio compositor na<br />

ocasião da estréia.<br />

Em termos de análise musicológica da obra de Sant’Anna Gomes se deve citar<br />

estudos das peças camerísticas (Nogueira, 1992 e 2006), além de algumas obras para<br />

banda (Abreu, 2010). Fora esses estudos, pouco se encontra sobre suas outras obras. De<br />

fato, vários compositores brasileiros permanecem praticamente desconhecidos pela falta<br />

de investimento em pesquisa sobre sua obra, como é o caso de João Gomes de Araújo.<br />

José Pedro Sant’Anna Gomes também se enquadra neste grupo e é relevante que se investigue<br />

melhor sua produção, particularmente com as ferramentas de musicologia histórica,<br />

para que se ofereçam edições críticas aos musicistas e regentes que desejem dar vida a<br />

estas obras. Esta é a única maneira de expor a obra de um artista para que ela se submeta<br />

ao crivo do público, de críticos e musicólogos e se faça um julgamento consciente da sua<br />

produção.<br />

A ópera Semira<br />

Semira é a primeira das óperas de Sant’Anna Gomes. Verifica-se em duas páginas<br />

de cópias de partes instrumentais a data de 15 de janeiro de 1889. A ópera ficou incompleta<br />

e dela se conhece apenas um dueto e duas romanzas. O libreto é do poeta italiano Giuesppe<br />

Emilio Ducati e o enredo versa sobre tema exótico, ambientado no oriente próximo. O<br />

texto dos trechos disponíveis permite inferir uma trama de amores não correspondidos<br />

entre a rainha Semira, o jovem Caled e Zyla. Há ainda a figura de Adim, que parece não ter<br />

pretensões amorosas com a Rainha, mas em sua romanza expressa aspirações de poder<br />

político envolvendo Semira.<br />

A análise dos poucos documentos de Semira revela música de certo interesse. A<br />

estrutura geral e a abordagem estética é a mesma do melodrama italiano do século XIX,<br />

mas deslocada para o momento em que foi escrita. Fora esta ressalva, a música é de boa<br />

qualidade, com desenho melódico equilibrado, chegando a momentos de rara beleza<br />

como o caso da cantilena entoada pelo clarinete na introdução romanza de Zyla, no segundo<br />

ato da ópera (Figura 1) e o desenvolvimento melódico que ocorre durante as frases<br />

de Zyla (Figura 2). Tanto o dueto de Caled e Semira como a romanza de Adim são obras de<br />

boa fatura, ainda que não requintadas do ponto de vista harmônico, muito menos inovadoras<br />

em sua estrutura. Entretanto, o senso dramático para utilizar o discurso musical<br />

comentando o discurso dramático está presente.<br />

Nesse sentido, Semira se diferencia marcadamente da segunda e última experiência<br />

de palco de Sant’Anna Gomes – Alda. Como se verá na continuidade, essa segunda<br />

ópera apresenta dificuldades composicionais importantes e, em um momento, pode-se,<br />

inclusive, questionar se tal diferença em qualidade ocorreu sob a pena de um mesmo<br />

autor.<br />

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Figura 1. Introdução da romanza de Zyla – Sant’Anna Gomes, Semira, 2º Ato.<br />

Figura 2. Romanza de Zyla – Sant’Anna Gomes, Semira, 2º Ato.<br />

253<br />

A ópera Alda<br />

Alda se divide em quatro atos e seu libreto é em italiano, do mesmo poeta de<br />

Semira, Emilio Ducati. Informações na literatura admitem que Carlos Gomes tenha adquirido<br />

este libreto em Milão e posteriormente não tenha se interessado em compor a<br />

música. Como Sant’Anna estava desejoso de compor uma ópera, Carlos Gomes teria enviado<br />

para o irmão em Campinas (Nogueira, 2001, p. 329). Essa hipótese fica mais patente<br />

com notícia vinculada em Le Menestrel (1884) de que Gomes estaria terminando de<br />

compor Lo Schiavo e se preparava para musicar um novo libreto de nome Semira. Os fatos<br />

ficam mais claros com outra notícia do mesmo periódico, já em 1887, que afirma:<br />

O Mundo Artístico, de Buenos Aires, nos faz saber que o Mº Sant’Anna Gomes,<br />

irmão do Mº. Carlos Gomes, autor do aplaudido Guarany, compositor ele mesmo,<br />

escreve nesse momento uma ópera, Simira, sobre libreto do Mº. Emilio Ducati.<br />

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254<br />

A ação se passa na Síria, cerca de mil anos antes da era cristã. (Le Menestrel,<br />

1887, p. 270)<br />

Giuseppe Emilio Ducati foi também responsável pelo texto de algumas canções<br />

de Carlos Gomes (Dolce rimbrovero e Per me solo) e Pietro Mascagni (Risveglio). Ducatti<br />

foi também o libretista de ópera encenada no Teatro Solis de Montevidéu, Manfredo di<br />

Svezzia (1882) do compositor uruguaio Tomás Giribaldi (1847-1930). Em relação à Alda,<br />

no Dictionnaire des Opéras (Clemenet e Larousse) só se encontram duas óperas com o<br />

mesmo título. A primeira é uma ópera cômica em um ato com libreto de Bayard e Duport,<br />

estreada em 1835. A outra tem música de Derkum, representada em Colônia, na Alemanha,<br />

em 1846. Pelo que se depreende dos comentários nesta referência, estas duas obra nada<br />

tem a ver, em termos de enredo, com a Alda de Sant’Anna e Ducatti.<br />

A ópera foi concluída em 1904, mas nunca foi encenada, apesar de o compositor<br />

ter obtido recursos do governo para fazê-lo. A morte o surpreendeu. Por outro lado, seria<br />

interessante verificar como seria recebida esta ópera, uma vez que em 1904, mesmo<br />

Campinas já não apresentava ambiente propício a este gênero de espetáculo, sendo de<br />

maior apelo ao publico as revistas e as operetas (Nogueira, 2001, p. 328).<br />

O libreto de Alda<br />

Alda pode ser melhor estudada pois sua partitura orquestral e uma redução<br />

para canto e piano estão disponíveis. O libreto tem quatro atos e é típico das óperas italianas<br />

da primeira metade do século XIX, com tons exóticos. A trama se desenvolve entre<br />

um grupo de ciganos e nobres perto de um castelo medieval na região de Auvernia e na<br />

cidade de Arles, na França no começo do século XIII. Os personagens são<br />

Falco, um guarda bosques baixo<br />

Barão de Auvernia baixo<br />

Renato, seu filho tenor<br />

Duque de Arles baixo<br />

Lida, sua filha soprano<br />

Sambo, um cigano barítono<br />

Alda, uma cigana soprano<br />

Mansa, dona da hospedaria soprano<br />

Participam ainda um coro de ciganos, servos do Barão, soldados e camponeses.<br />

O enredo de Alda envolve um quarteto amoroso entre a cigana Alda, o filho do Barão de<br />

Auverne, Renato, Sambo, um cigano e Lida, filha do Duque de Arles. Trata-se de um enredo<br />

de amores não correspondidos e relações conflituosas entre ciganos e nobres e um<br />

misterioso fato envolvendo o velho Barão e os ciganos em tempos passados. Como se<br />

percebe, um tema de libreto de ópera bastante deslocado do tempo em que Sant’Anna<br />

Gomes se propõe a compor a música.<br />

O primeiro ato mostra uma hospedaria próxima ao castelo. Falco, um guarda bosque<br />

a serviço do Barão de Alvernia, acompanhado por camponeses, conta a história de uma<br />

bela jovem cigana que se entrega a Renato, o jovem filho do Barão de Alvernia. Em seguida,<br />

entra o Barão que afugenta os camponeses e tem longa conversa com Sambo, que dormitava<br />

em um banco frente à hospedaria. Em linguagem muito indireta, mas que o esperto cigano<br />

muito bem entende, o Barão pede que ele seqüestre a cigana e a mate em troca de<br />

recompensas que mudarão a vida de Sambo. Após a saída do Barão, Sambo entoa uma ária<br />

onde reflete sobre a tentadora oferta, mas ao fim resolve que: “ladrão, ainda que seja, mas<br />

assassino, para vos dar prazer? Nunca! Nem que o Diabo me tivesse em seu poder!”.<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


255<br />

Na última cena, entram Falco e Alda acompanhados de um grupo de bandidos.<br />

Inicialmente, Sambo não reconhece a donzela, mas esta o faz recordar os tempos em que<br />

eram mais jovens e viviam juntos no bando de ciganos. Alda comenta sobre seu inditoso<br />

amor por Renato e Sambo a exorta a unir-se ao seu bando. Isso acontece com a chegada<br />

dos ciganos que reconhecem Alda como sua antiga parceira e a colocam sobre um carro,<br />

ornada como se fosse a rainha do bando. Entoam um rataplan e partem felizes, menos<br />

Alda que ainda pensa em seu fiel amor por Renato.<br />

No segundo ato, na sala do castelo de Arles, entram Renato, o filho do Barão e<br />

Lida, filha do Duque de Arles. O seu casamento será realizado naquela sala. Renato comenta<br />

sobre um pedestal de mármore vazio e Lida replica que se tratava do busto de sua avó<br />

que foi retirado devido a um triste fato do passado. Instada por Renato, Lida conta que<br />

em tenebrosa noite de tempestade, um raio fulminante destruiu a estátua da avó e após<br />

este maléfico dia, o povo dizia vagar um negro fantasma em noites de luar. Lida sai, pois<br />

deve se preparar para a cerimônia. Renato, em uma ária, reflete sobre o fato narrado,<br />

mas logo retoma em sua mente o amor por Alda, resignando-se diante da impossibilidade<br />

de concretizá-lo.<br />

Chegam os convidados em alegre algaravia, entre eles Sambo e Alda. Esta,<br />

escondida sob um véu negro, carrega um punhal que pretende usar na rival e um filtro<br />

letal para aquele que a abandonou. O cortejo nupcial adentra o recinto sob vivas e loas do<br />

coro. O Barão e o Duque dão boas vindas a todos e preparam os noivos para a assinatura<br />

do pacto nupcial. Subitamente, Alda, sobre o pedestal vazio e coberta por negro véu,<br />

lança duro anátema aos noivos, ameaçando matar aquele que o pacto assinar. Todos se<br />

surpreendem e identificam em Alda o fantasma antes referido. Ela se aproxima ameaçadoramente<br />

de Renato, mas é interrompida pelo Barão que desembainha a espada. Alda<br />

puxa o véu e se revela para espanto de todos. Quando o Barão a tenta ferir, Sambo se<br />

interpõem entre eles e Renato pede ao pai que se contenha, o que só faz aumentar o<br />

espanto dos presentes. O Barão a acusa de ser uma feiticeira, ao que Sambo retruca, pedindo<br />

clemência, que se trata apenas de uma demente. Em vão, pois o Duque manda<br />

prendê-la e ordena que morra queimada na fogueira. Renato pede ao Duque que a deixe<br />

livre, ao que se junta Lida. Ele finalmente cede e manda que Alda e Sambo se retirem. O<br />

Barão continua apreensivo e confessa que somente terá paz quando se livrar da bruxa<br />

que enfeitiçou seu filho. Antes de partir, Alda se aproxima de Renato e lhe pede que se encontrem<br />

à meia-noite junto ao Arco de Augusto, ao que o rapaz cede. Sambo e Alda se<br />

retiram sob o olhar amedrontado dos presentes.<br />

O terceiro ato se desenvolve junto a um arco romano próximo ao rio Ródano. É<br />

noite. Alda e Renato se encontram. Alda renova seus votos de amor eterno ao amado e<br />

desculpa-se pelos momentos de ira e vingança. Renato diz que ainda a ama, pois atendeu<br />

seu pedido de encontro. Mas resta Lida, menciona Alda, ao que Renato afirma não ser<br />

mais seu intento casar, pois está disposto a fugir com sua eterna amada. Alda o alerta de<br />

que ela é uma cigana e os ciganos têm o destino amaldiçoado e prediz que seu próprio<br />

futuro é uma fogueira. Pela insistência de Alda para que ele se dê conta das intransponíveis<br />

dificuldades para consumar seu amor, Renato chega a duvidar das intenções da moça. Entretanto,<br />

ela está apenas demonstrando os sacrifícios que os esperam se juntos permanecerem.<br />

Renato, por fim, aceita e combinam se encontrar no mesmo lugar na noite<br />

seguinte. Eles não perceberam que Sambo, agora um pretendente de Alda, está escondido<br />

em ruínas próximas e ouviu os planos dos amantes. Ele vitupera contra Renato, agora seu<br />

rival pelo amor de Alda. Vinda da cidade cavalgando, aparece Lida que é interrompida<br />

por Sambo. Esta lhe pede que informe como chegar ao acampamento cigano. Ele lhe diz<br />

que será seu guia e que tem o poder de ler o futuro nas mãos. Lida se interessa e estendelhe<br />

a mão. Uma vida longa ela terá plena de gáudio, diz ele. Mas, em seguida, mostra-se<br />

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256<br />

assustado ao continuar a leitura. Lisa o insta a dizer a verdade. Hesitante ele revela que as<br />

linhas declaram ser ela traída pelo noivo. Lisa fica muito abalada e Sambo diz que apenas<br />

um filtro mágico poderá fazê-la recuperar o amor de Renato. À parte, Sambo reconhece<br />

que o filtro, em verdade, levará Renato à morte. Após um momento de hesitação, Lida lhe<br />

entrega uma bolsa de moedas de ouro e solicita que ele lhe dê o filtro e Sambo explica que<br />

apenas algumas gotas em um copo de bebida serão suficientes, o resto Satã o fará. Lisa<br />

parte com uma irônica saudação de Sambo que lhe deseja boa viagem e um amor mais feliz.<br />

O último ato mostra um promontório no vale do Ródano e a cena se desenrola<br />

junta a uma frondosa e antiga árvore. Alda, com trajes de peregrina, se encontra sob a<br />

árvore esperando Renato, mas envolta em tristes pensamentos. Ela saiu do acampamento<br />

cigano, mas percebeu que Sambo a seguiu com olhar ciumento. De fato, este a surpreende<br />

junto à arvore. Sambo por fim, em tom suplicante, confessa o amor que lhe devota e pede<br />

que ela não fuja com Renato em busca de um futuro incerto e perigoso. O cigano tenta<br />

de todos os modos demovê-la, mas Alda cada vez mais reafirma seu imutável amor por<br />

Renato. Diz que seria incapaz de traí-lo, ao que Sambo indaga o que ela faria se ele morresse.<br />

Alda com crescente preocupação pergunta o que aquilo quer dizer e Sambo, com<br />

júbilo infernal, conta que Lisa lhe havia pedido um filtro de amor e que ele lhe dera um<br />

frasco de veneno. Alda parte desesperada na tentativa de salvar o amante. Sambo termina<br />

a cena afirmando que ao destino traçado por satanás ninguém pode fugir. Que ele seja<br />

odiado e amaldiçoado, pois um dia o fogo irá unir os dois.<br />

No segundo quadro deste ato, vemos uma vasta sala do palácio do Duque de Arles,<br />

onde se desenrola uma festa. Lida e o Barão conversam com tranquilidade. A futura<br />

nora lhe pergunta se o Barão acredita em filtros. Ele diz que não passam de crendices e<br />

que para excitar o amor basta apenas um filtro, a beleza, o qual, diz ele, Lida o possui. Alda<br />

entra por uma porta lateral. Não lhe importa que seja surpreendida e morta, pois seu<br />

intento é apenas salvar Renato. Ela se esconde no vão da porta quando vê Lida e Renato<br />

se aproximando em amorosa conversa. Lida propõe um brinde e serve duas taças de vinho,<br />

lançando em uma delas o filtro dado por Sambo. No momento que Renato leva a<br />

taça aos lábios, Alda sai do esconderijo e se apossa da taça, dizendo que ele morrerá se<br />

tomar o vinho e que ela veio ali salvá-lo. Lida, apreensiva com a invasão, chama por socorro<br />

e a cena é tomada por todos que se encontravam na festa. O Duque, enfurecido, manda<br />

que os arqueiros prendam Alda e a levem direto para a fogueira. Voltando-se para o Barão,<br />

Alda diz que beberá o licor que iria matar seu filho. De fato, amaldiçoando o Barão, ela<br />

bebe da taça e a joga aos pés do surpreso Barão. Ela cai morta, fulminada. Renato tenta<br />

aproximar-se do corpo, mas surge Sambo que a pega nos braços e sai precipitadamente,<br />

afirmando que agora ela será sua. Todos estão horrorizados com os acontecimentos, o<br />

Barão estremece com o anátema, Renato sente-se torturado pela dor e Lida afirma que<br />

não mais se casará e que um convento a espera.<br />

A música de Alda<br />

Sant’Anna Gomes, como compositor, percorreu diversos gêneros do campo musical.<br />

Entretanto, o conjunto de sua obra, que não é extensa, tem uma forte inclinação<br />

para a música de salão. Neste sentido, chama a atenção o desejo e preocupação do compositor<br />

em ingressar no difícil e trabalhoso gênero operístico, o que fez por duas vezes.<br />

Ainda que sua produção maior tenha qualidade artística compatível com a estética<br />

específica dos gêneros exercitados (hinos, marchas, polcas, valsas, galopes etc),<br />

ficam evidentes as dificuldades de Sant’Anna Gomes quando pretende enfrentar a<br />

composição de uma ópera como Alda.<br />

O material disponível é suficiente para um estudo adequado do ponto de vista<br />

musicológico. Encontra-se no Museu Carlos Gomes do Centro de Ciências, Letras e Artes<br />

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257<br />

de Campinas uma redução para canto e piano realizada por José Brachetto e duas cópias<br />

da partitura de orquestra com caligrafia compatível com a do próprio Sant’Anna Gomes, o<br />

que permite sugerir que estas cópias tenham sido produzidas por ele mesmo para uso em<br />

futura execução. Entretanto, estas cópias, ainda que autógrafas, não parecem ter sido o<br />

material original de gestação da obra, pois, além da caligrafia precisa, típica de uma cópia<br />

para uso, elas não apresentam nenhuma correção, cancelamentos ou ajustes típicos de<br />

um manuscrito autógrafo inicial.<br />

Sobre a música de Sant’Anna Gomes, propõe-se apenas a análise do primeiro<br />

ato, pois se acredita ser suficiente para uma visão do pensamento composicional do autor<br />

para a integralidade da obra. De fato, ao longo dos demais atos, a proposta de Sant’Anna<br />

Gomes em termos composicionais não se modifica. Entretanto, na sequência, serão<br />

discutidas duas soluções de clímax dramático durante o segundo e quarto atos para melhor<br />

ilustrar o manejo de Sant’Anna das ferramentas do drama musical.<br />

A estrutura do primeiro ato se constitui em cinco cenas:<br />

Prelúdio<br />

Cena 1 – coro de introdução e narrativa, 2/4 (Coro e Falco)<br />

Cena 2 – cena e dueto (Barão e Sambo)<br />

Cena 3 – ária (Sambo)<br />

Cena 4 – cena (Alda, Falco e Sambo)<br />

Dueto (Alda e Sambo)<br />

Arioso (Alda)<br />

Cena 5 – coro e cena<br />

Coro rataplan<br />

Finale<br />

A ópera de Sant’Anna Gomes não apresenta uma abertura ou sinfonia, como<br />

poderia se esperar no modelo escolhido pelo irmão de Carlos Gomes. Entretanto, cada<br />

um dos quatro atos é introduzido por um curto prelúdio com limites muito tênues com o<br />

número que segue. Já no primeiro ato verificamos uma curta introdução (Figura 3) de<br />

oito compassos em Ré maior, seguidos por uma ponte cantabile em 6/8 que leva, de forma<br />

pouco equilibrada, ao coro de introdução (Figura 4). O desenvolvimento harmônico é<br />

convencional, pois segue-se a este desenho de três compassos, outros quatro agora na<br />

dominante.<br />

Este curto prelúdio revela, preliminarmente, a simplicidade da proposta de<br />

Sant’Anna Gomes para sua obra e define o corte nitidamente romântico de sua construção,<br />

em descompasso com a época em que foi composta, isto é, pouco antes de 1904.<br />

Após esse curto prelúdio, o primeiro ato inicia com um coro de introdução com<br />

a participação de um grupo de camponeses e Falco, o guarda-bosque do Barão. Trata-se<br />

de uma típica introduzione largamente usada no melodrama italiano desde os primórdios<br />

do século XIX, com as funções de estabelecer o cenário da ação e contextualizar os eventos<br />

que seguem. O coro de introdução atesta a abordagem singela de Sant’Anna, pois o acompanhamento<br />

das vozes muitas vezes se assemelha a um dos exercícios iniciais de piano de<br />

Carl Czerny (Figura 5).<br />

A chegada do Barão leva a uma cena em diálogo com Sambo, o cigano, na qual<br />

o Barão tenta cooptá-lo para seqüestrar e assassinar Alda. Após a saída do Barão, Sambo<br />

reflete sobre a oferta na primeira ária da ópera.<br />

O nível simples e descomprometido de estruturação melódica e harmônica continua<br />

a prevalecer ao longo de todo o ato, ora retomando uma atmosfera de Czerny ora<br />

com o sabor típico de sonatinas de compositores menores do início do século XIX (Figura 6).<br />

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258<br />

Figura 3. Introdução ao primeiro ato – Sant’Anna Gomes, Alda.<br />

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Figura 4. Coro, introdução – Sant’Anna Gomes, Alda, ato 1.<br />

Figura 5. Ária de Sambo – Sant’Anna Gomes, Alda, ato 1.<br />

Figura 6. Frase de Falco, introdução, redução do acompanhamento orquestral – Sant’Anna Gomes, Alda, ato 1.<br />

259<br />

Por fim, chegam Alda e Falco, iniciando-se um longo dueto entre Alda e Sambo<br />

e ao fim do ato temos uma cena com estes solistas e o coro, não faltando um Coro Rataplan,<br />

algo que era usado em algumas óperas até a metade do século XIX, mas que logo caiu em<br />

desuso (Figura 7).<br />

Os demais atos se desenvolvem na mesma estrutura do primeiro ato, isto é, utilizando<br />

um esquema padrão da ópera italiana prévia ao pós-romantismo. Assim, Alda,<br />

termina por constituir-se em uma típica ópera de números. De fato, ao longo dos atos se<br />

identifica uma clara sequência de cenas estanques que são construídas em torno de duetos,<br />

trios, árias, coros e finais (Figura 8).<br />

Ao longo da ópera há falta de continuidade no discurso musical. Uma idéia musical,<br />

por mais simples que seja, não apresenta desenvolvimento que garanta um discurso<br />

unificado. Um exemplo claro disto é o diálogo entre o Barão e Falco, onde o discurso de<br />

encontro, fragmentado por frases curtas com ocorrência constante de cadências conclusivas,<br />

quer retomar a tônica de forma açodada (Figura 9). O novo período, muitas vezes,<br />

também inicia com a mesma tônica, repetindo o mesmo plano harmônico, o que leva a<br />

um passo musical profundamente monótono.<br />

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260<br />

Figura 7. Coro Rataplan – Sant’Anna Gomes, Alda, ato 1.<br />

Figura 8. Ária de Alda – Sant’Anna Gomes, Alda, ato 4.<br />

Como bem define Reynolds (1985), melodia e harmonia, na prática comum, necessitam<br />

criar um sentido de direção e movimento. Boas melodias e progressões harmônicas<br />

devem criar tensão ou suspense que levam a um ponto de relaxamento. Nesse<br />

sentido, Green (1990, p. 63) é mais enfática ainda ao considerar como características do<br />

período romântico, ao qual tardiamente Sant’Anna se filia, o fato de que “o elemento de<br />

suspense é utilizado na postergação das resoluções e o elemento de surpresa deixa a audiência<br />

sufocada através de súbitas e inesperadas mudanças de tonalidade”.<br />

No caso de Sant’Anna Gomes, isto parece não ocorrer. O ritmo harmônico não<br />

cria nenhum suspense, pelo contrário, está sempre levando a uma sensação de conclusão<br />

antecipada, de fragmentação e falta de desenvolvimento lógico do discurso musical.<br />

Mesmo em números fechados, como a ária de Sambo, que poderia indicar maior interesse,<br />

o desenvolvimento melódico ou harmônico não está presente, limitando-se a apresentar<br />

uma sequência de frases curtas em um conjunto que termina por soar desconexo e banal.<br />

Da mesma forma que a ária de Alda não aguça os sentidos, o dueto que se segue entre ele<br />

e Alda reafirma as dificuldades de Sant’Anna Gomes em enfrentar um genero maior do<br />

que suas obras camerísticas. A seção introdutória a esse dueto é lapidar em confirmar<br />

essa dificuldade (Figura 10).<br />

Nos pontos climáticos da Alda essas dificuldades se salientam. Entretanto, como<br />

típica exceção da regra, há aqui e ali breves trechos de maior interesse musical. Isto ocorre<br />

no prelúdio, de caráter pastoral, ainda que similar a muitos outros congêneres no ramo<br />

operístico. No mesmo caso se enquadra a música festiva para a cerimônia de casamento<br />

do quarto ato, escrita para banda (Figura 11), gênero com o qual Sant’Anna tinha mais<br />

intimidade. O tema principal, apresentado nos compassos 3 e 4 da Figura 11, é recorrente<br />

em todo o segmento, o que garante, além do caráter brilhante e festivo, um sentido de<br />

unidade temática as cenas terceira e quarta desse ato.<br />

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Figura 9. Dueto entre Barone e Sambo – Sant’Anna Gomes, Alda, ato 1.<br />

Figura 10. Seção introdutória do Dueto entre Alda e Sambo – Sant’Anna Gomes, Alda, ato 1.<br />

Figura 11. Música para banda – Sant’Anna Gomes, Alda, ato 4.<br />

261<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


262<br />

Interessa ainda discutir duas situações climáticas em Alda e a forma como<br />

Sant’Anna as resolve.<br />

Na cena quinta, do segundo ato, o libretista Ducati propõe um interessante coup<br />

de théatre. Na tentativa de impedir o casamento de Renato com Lida, Alda, imóvel,<br />

esconde-se sob um longo véu negro em um pedestal, à guisa de estátua. No momento da<br />

assinatura do contrato nupcial, emoldurada por um festivo coro, Alda toma vida e, para<br />

espanto e comoção geral, desce do pedestal e vaticina: Não, pelo inferno! Vosso destino<br />

eu revelo. Quem este documento assinar,o amanhã não verá!. Esta súbita mudança de<br />

clima é tratada convenientemente por Sant’Anna, mesmo que de forma básica – uso de<br />

um inesperado acorde de sétima diminuta nos metais que interrompe a marcha do coro<br />

(Figura 12). Não se pode negar que, pelo menos, o tratamento do clímax é convincente.<br />

Outra situação bem conduzida por Sant’Anna Gomes ocorre na quinta cena do<br />

último ato. O casamento interrompido no segundo ato é retomado. Novamente no festivo<br />

ambiente de bodas, Lida verte um líquido na taça de Renato crendo ser um filtro de amor,<br />

mas Alda sabe tratar-se de veneno que Sambo intencionalmente trocara. Alda surge e impede<br />

Renato de tocar no cálice – Pare! Jogue fora o cálice. Com o grito de Lida todos acorrem<br />

à sala e o espanto é geral – Que acontece! Lida aponta Alda e grita – A bruxa! Os presentes<br />

não se intimidam e pedem a morte de Alda – A ré malvada, morra na pira!. Sant’Anna<br />

Gomes consegue uma interessante mudança de ambiente dramático no momento da<br />

súbita entrada de Alda, tanto pela transição para tonalidade menor como pelo surgimento<br />

de ritmo concitado na orquestra (Figura 13).<br />

Considerações finais<br />

José Pedro Sant’Anna Gomes tem parte de sua evidência devida ao irmão Antônio<br />

Carlos Gomes. Evidentemente, mesmo com esta afirmativa, não se pode negar a autonomia<br />

e o empreendedorismo de Sant’Anna Gomes em sua intensa atividade como cidadão<br />

e músico em Campinas. Mesmo com maior tendência ao repertório ligeiro, Sant’Anna<br />

frequentou o sisudo mundo da música sacra e a complexidade da ópera. Alda, sendo a<br />

única ópera que completou, surge como item de interesse para a musicologia, pois que<br />

seu estudo pode estabelecer quais identidades estéticas poderiam existir entre os dois irmãos,<br />

enquanto compositores de óperas, ainda que vivendo e experimentando cenários<br />

culturais extremamente distintos.<br />

O que se depreende da análise do que restou de Semira e da integralidade de<br />

Alda é que o compositor não apresentava fôlego técnico e desenvoltura melódica para<br />

enfrentar um gênero de estrutura tão complexa e extensa como é o caso da ópera. A qualidade<br />

do libreto de Ducati, usualmente criticada, não pode ser imputada como causa da<br />

pouca qualidade da música de Sant’Anna Gomes. O texto é pobre, mas o enredo não é menos<br />

interessante que outros congêneres da época e, mesmo assim, apresenta pelo menos<br />

dois momentos de coup de théatre que fariam a alegria de qualquer compositor mais<br />

gabaritado, inclusive seu próprio irmão.<br />

Por outro lado, não há como negar que a essência da obra de Sant’Anna está no<br />

gênero camerístico de salão, mas a pouca inventividade do compositor em Alda contrasta,<br />

pelo menos, com uma dessas obras. Trata-se de Suspiros (1907), escrita como variações<br />

para quinteto de cordas e soprano ligeiro, com variações sobre um tema, utilizando escrita<br />

de certo virtuosismo, o que dá à peça um caráter operístico, incluindo uma cadenza para<br />

a exibição dos dotes da cantora (Nogueira, 2006, p. 554). Cabe ressaltar que a mesma autora<br />

chama a atenção que, entre as obras de Sant’Anna, Saudade! para cordas, se apresenta<br />

com caráter bem mais diferenciado exatamente por que a melodia foi proposta por<br />

Sant’Anna, mas o arranjo seria da lavra de Carlos Gomes.<br />

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Figura 12. Cena quinta, clímax na cena do casamento – Sant’Anna Gomes, Alda, ato 2.<br />

263<br />

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264<br />

Figura 12. Cena quinta, clímax na cena do casamento – Sant’Anna Gomes, Alda, ato 2 (cont.).<br />

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Figura 13. Cena quinta, clímax final – Sant’Anna Gomes, Alda, ato 4.<br />

265<br />

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266<br />

Figura 13. Cena quinta, clímax final – Sant’Anna Gomes, Alda, ato 4 (cont.).<br />

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267<br />

Assim, pode-se depreender que, se havia uma estreita relação entre os dois<br />

irmãos em termos fraternais, essa mesma associação não ocorreu em termos de estética<br />

musical. Em Alda, a inventividade melódica, o fino senso dramático, o apuro formal e a<br />

variada orquestração do irmão Carlos não foram assimiladas por Sant’Anna, nem por<br />

imitação, uma vez que nada na sua música sequer se aproxima ao menor Gomes, nem<br />

por transmissão, pois que não há referências de que o famoso irmão tenha, em algum<br />

momento, sido tutor musical deste que ficou restrito a Campinas.<br />

Referências bibliográficas<br />

Abreu, A. J. José Pedro de Sant’Anna Gomes e a atividade das bandas de música na<br />

Campinas do século XIX. Dissertação de Mestrado. Universidade Estadual de Campinas,<br />

Instituto de Artes. – Campinas: [s.n.], 2010.<br />

Andrade, M. Pequena História da Música. 8ª ed. São Paulo: Livraria Martins Editora,<br />

1980, p. 166.<br />

Bocannera, Silio. Um artista Brasileiro. Bahia: Thypographia Brasileira, 1913, p. 27.<br />

Clement, F.; Larrousse, P. Dictionnaire des Opéras (Dictionaire lyrique). Paris: Edition<br />

Larousse, s/d.<br />

Le Menestrel, a. 50, n. 31, p. 246, 5-jul., 1884.<br />

Le Menestrel, a. 53, n. 34, p. 270, 30-jul.,1887.<br />

Nogueira, L. W. M. Transcrição de obras cameristicas de Sant’Anna Gomes. Projeto<br />

Memória Musica Campineira, 1992.<br />

Nogueira, L. W. M. Música em Campinas nos últimos anos do império. Campinas:<br />

Editora da Unicamp, Fapesp – CMU Publicações, 2001, p. 359.<br />

Nogueira, L. W. M. A obra camerística de José Pedro de Sant’Anna Gomes (1834-1908).<br />

Anais do XVI Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em<br />

Música (ANPPOM), Brasília, 2006, p, 550-557.<br />

Reynolds, W. H. Common-practice Harmony. Nova York: Longman Inc., 1983, p. 64.<br />

Stecca, J. B. “O resgate das músicas de Sant’Anna Gomes”. In: Maestro José Pedro de<br />

Sant’Anna Gomes – Centenário do falecimento 1908-2008. Campinas: Câmara<br />

Municipal de Campinas, 2008.<br />

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269<br />

Joanna de Flandres de Carlos Gomes:<br />

obra de transição<br />

Lenita W. M. Nogueira<br />

Universidade Estadual de Campinas<br />

Carlos Gomes nasceu no dia 30 de junho de 1836 em Campinas, cidade distante<br />

cem quilômetros da capital paulista. Era filho de Manuel José Gomes, mestre-de-capela<br />

na sua cidade natal entre 1815 e 1868 e seu único professor até sua ida para o Rio de Janeiro<br />

em 1859. Nesta época já havia escrito diversas peças, entre elas as missas de São Sebastião<br />

e a de Nossa Senhora da Conceição. Em uma rápida temporada em São Paulo<br />

compôs uma de suas obras mais famosas, a modinha Quem sabe? com letra de Bittencourt<br />

Sampaio, estudante da tradicional Faculdade de Direito do Largo São Francisco.<br />

Contra a vontade do pai, foi para o Rio de Janeiro em 1859 e matriculou-se no<br />

Imperial Conservatório de Música, onde concluiu seus estudos em 1863. Foi regente e ensaiador<br />

na Ópera Nacional, posto que lhe permitiu entrar em contato com o repertório<br />

de música lírica, em especial a italiana, da qual era grande admirador.<br />

Figura 1. Carlos Gomes por volta de 1873.<br />

Em 1861 conseguiu levar ao palco sua primeira ópera, A Noite do Castelo, recebida<br />

com grande entusiasmo. Baseada em um poema do poeta português Antonio Feliciano<br />

de Castilho, com libreto em português de Antonio José Fernandes, foi dedicada ao imperador<br />

Pedro II. A estreia ocorreu no dia 4 de setembro de 1861, no Teatro Lírico Fluminense,<br />

Rio de Janeiro. E, apesar de integrar o movimento da Ópera Nacional que buscava<br />

a criação de um estilo de ópera brasileiro, o enredo de A Noite do Castelo se passa na Europa<br />

medieval na época das Cruzadas, notando-se alguma semelhança com Lucia de<br />

Lammermoor de Donizetti.<br />

A ópera inicia-se no castelo do conde Orlando; sua filha, Leonor está prestes a<br />

se casar com Fernando. Anteriormente ela havia se comprometido com Henrique, sobrinho<br />

do conde, que se acreditava morto nas cruzadas. Entretanto, isso não era verdade e ele<br />

reaparece exatamente no dia do casamento e, ao perceber que naquela noite seria assinado<br />

o contrato nupcial entre Leonor e Fernando promete vingança. Encontra-se com a<br />

noiva, mas não aceita as suas desculpas. Esta, ao final, perde o juízo (há uma cena de loucura)<br />

e, dentro dos padrões tradicionais da ópera no período, a morte de ambos é o desfecho<br />

da ópera.<br />

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270<br />

No Museu Carlos Gomes existe uma cópia da época, que pertenceu à filha de<br />

Carlos Gomes, Ítala Gomes Vaz de Carvalho. A partir desta partitura foi levada à cena a<br />

única montagem contemporânea desta ópera, que ocorreu em 1974 com a Orquestra<br />

Sinfônica Municipal de Campinas. O manuscrito autógrafo foi doado recentemente ao<br />

Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da Universidade de São Paulo.<br />

Logo após a estreia A Noite do Castelo foi editada em versão para canto e piano<br />

por Raphael Coelho Machado com a indicação “Ópera nacional em 3 actos”. Na sua essência<br />

trata-se de obra de um jovem compositor talentoso, mas que ainda não estava plenamente<br />

amadurecido enquanto operista. A escrita musical ainda é bastante contida e por<br />

vezes chega sugerir a modinha, gênero de canção popular na época. Somente neste aspecto,<br />

e pelo fato de seu libreto ser em português, pode-se aproximar esta obra de uma busca<br />

por padrões nacionais, já que se trata de uma ópera de quadros, com todos os clichês<br />

vigentes na ópera italiana do período. Embora seja melodiosa e tenha alguns trechos inspirados,<br />

A Noite do Castelo não consegue arrebatar, já que a orquestração, embora correta,<br />

é tímida e o trabalho vocal tenha pouco brilho. O conjunto carece de melhor urdimento e<br />

percebe-se que as ousadias que caracterizariam o estilo posterior de Carlos Gomes ainda<br />

estavam em estado embrionário. Isso, entretanto, não deve ser creditado apenas à<br />

imaturidade do compositor, que tanto o enredo como libreto são medíocres e de pífia<br />

inspiração.<br />

Figura 2. Edição para canto e piano, de 1863.<br />

Cerca de dois anos depois, em 15 de setembro de 1863, no mesmo Teatro Lírico<br />

Fluminense no Rio de Janeiro, foi levada à cena Joanna de Flandres, a segunda ópera de<br />

Carlos Gomes. O libreto de Salvador de Mendonça, embora de melhor feitura que o anterior,<br />

também deixa bastante a desejar. A ópera foi dedicada ao maestro Francisco Manuel<br />

da Silva, então diretor do Imperial Conservatório de Música. Embora tenha ficado no esquecimento<br />

por bem mais de um século até sua restauração em 2003 1 , Joanna de Flandres<br />

é, no gênero operístico, imediatamente anterior a Il Guarany e representa uma passagem<br />

importante na produção do compositor.<br />

Ao escolher Joanna de Flandres, uma protagonista perversa e ardilosa, como<br />

personagem principal de sua ópera, Gomes viu-se obrigado a elaborar mais a sua escrita,<br />

...........................................................................<br />

1 A autora desenvolveu um projeto de restauração desta ópera, incluindo grade de orquestra e redução para<br />

canto e piano, concluído em 2003 e financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo –<br />

FAPESP.<br />

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271<br />

apurando sua técnica de composição, tanto orquestral como vocal. Entretanto, esse avanço<br />

não deve ser creditado apenas a seu talento inato, mas é consequência também dos estudos<br />

no conservatório e do intenso trabalho que vinha realizando desde 1860 como<br />

regente da Companhia da Ópera Nacional. O trabalho incluía o estudo de partituras diversas<br />

que deveria ensaiar e reger, reduções das partes orquestrais de óperas para piano, arranjos,<br />

adaptações e a realização das partes cavadas. Essa prática foi um grande aprendizado e<br />

ao escrever Joanna de Flandres já conhecia diversas óperas, bem como as técnicas de orquestração<br />

e escrita vocal.<br />

Joanna de Flandres trabalha com uma orquestração mais densa que A Noite do<br />

Castelo: piccolo, duas flautas, dois oboés, dois clarinetes, dois fagotes, quatro trompas,<br />

dois trompetes, três trombones, oficleide, tímpanos, bumbo, triângulo, harpa, primeiros<br />

e segundos violinos, violas, violoncelos e contrabaixos. As trompas aparecem em diversas<br />

tonalidades, já que eram utilizadas as naturais, às quais eram acoplados tubos que aumentavam<br />

ou diminuíam a sua extensão, conforme a tonalidade desejada. O oficleide,<br />

instrumento de metal hoje em desuso, é bastante encontrado em partituras até o século<br />

XIX, executando partes mais graves. (Seu substituto natural na orquestra é a tuba, mas<br />

como esta teria uma sonoridade mais branda, alguns pesquisadores indicam a utilização<br />

do bombardino.)<br />

Em sua segunda ópera Carlos Gomes continua às voltas com as Cruzadas, já que<br />

o enredo se passa no século XIII e conta a história de como a pérfida Joanna se apropriou<br />

do reino de Flandres quando seu pai, o conde Balduino, foi dado como morto nas Cruzadas.<br />

Ela tem como cúmplice o trovador Raul de Mauléon, com quem resolve se casar. Contudo,<br />

Balduíno, não havia perecido e reaparece inesperadamente durante a cerimônia de casamento.<br />

Joanna, que não estava disposta á devolver o poder ao pai, finge não reconhecêlo,<br />

acusa-o de impostor e manda prendê-lo nas masmorras do castelo, sob os protestos<br />

de sua irmã Margarida. Após uma série de eventos, Raul, cheio de remorsos, mata Joana,<br />

que pede perdão ao pai, e se suicida.<br />

Trata-se de um libreto fantasioso e nada do que nele ocorre parece corresponder<br />

a alguma verdade histórica. A ação ocorre em Lilla (Lille) durante o ano de 1225 e tem<br />

como pano de fundo a revolta dos flamengos contra Joanna. Esta personagem não é uma<br />

criação literária, ela existiu e reinou por algum tempo naquela região, hoje integrada à<br />

Bélgica2 . O enredo da ópera é fictício, embora o pai de Joanna, Balduíno IX (ou Balduino I<br />

de Constantinopla) tenha sido de fato dado como morto durante as Cruzadas em Constantinopla.<br />

Entretanto, uma possível volta desta personagem para reassumir o trono e a<br />

consequente rejeição pela filha, parece não ter qualquer embasamento histórico.<br />

Joanna de Flandres (1188-1244) ou Joanna de Constantinopla, não foi assassinada<br />

e casou-se duas vezes, falecendo sem deixar herdeiros. Foi Condessa de Hainaut, esposa<br />

de Fernando, filho do rei Sancho I de Portugal, e de Tommaso de Saboia, filho de Tommaso<br />

I. Foi sucedida pacificamente no trono por sua irmã Margarida e ambas eram filhas de<br />

Balduino IX e Maia de Champagna. O que foi possível localizar sobre um possível retorno<br />

do conde Balduino foi uma referência a alguém que teria tentado se passar por ele.<br />

A maneira como o perfil da heroína foi engendrado no libreto, entretanto, exigiu<br />

um trabalho composicional bem mais acurado, no qual, mais que possível, foi necessária<br />

uma escrita vocal bem mais elaborada, tanto no que se refere aos solistas como às partes<br />

corais. As personagens principais têm características definidas, sendo que as irmãs Joanna<br />

e Margarida, embora sejam personalidades antagônicas, são sopranos de tessitura semelhante<br />

e a elas ficam reservadas as partes mais complexas, com proeminência para<br />

Joanna. Raul de Mauléon é um tenor que não tem grandes momentos virtuosísticos, o<br />

...........................................................................<br />

2 A região de Flandres fica no norte da Bélgica e teve um grande poderio econômico na Idade Média, quando<br />

agregava ao seu território partes que hoje pertencem à França e à Holanda.<br />

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272<br />

mesmo ocorrendo com Balduino, baixo, e Huberto de Courtray, cavaleiro flamengo e líder<br />

dos conjurados, barítono. Há ainda uma personagem menor, Burg, confidente de Joanna,<br />

tenor, de pouca relevância no contexto. No que se refere às partes corais é interessante<br />

notar que há uma cena na qual são utilizados dois coros, um masculino representando os<br />

flamengos e outro, misto, os franceses.<br />

O manuscrito original de Joanna de Flandres, por razões não esclarecidas, está<br />

dividido em dois arquivos: o primeiro ato, que corresponde a quase metade da partitura,<br />

está no Museu Histórico Nacional e os outros três na Biblioteca Arthur Nepomuceno da<br />

Escola da Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro, ambos na cidade do Rio de<br />

Janeiro.<br />

As cenas foram todas numeradas pelo compositor, mas não existe o número 1:<br />

o Prelúdio, designação do próprio compositor, já traz o número 2. Isso provavelmente<br />

ocorreu porque Carlos Gomes, em razão do tempo, teria deixado para escrever a abertura<br />

após a estreia, como faria também em Il Guarany. Mas naquele ano de 1863 as coisas se<br />

precipitaram e logo após a estreia, por ter sido o aluno mais destacado do Conservatório,<br />

Gomes ganhou uma bolsa de estudos e partiu para Milão logo em seguida, deixando uma<br />

possível abertura de Joanna de Flandres para trás.<br />

Figura 3. Página de rosto da partitura, no topo, a inscrição “N. 2”.<br />

Outro trecho em que há saltos na numeração é no início do terceiro ato, já que<br />

o número 14 também não aparece no manuscrito. Talvez aqui tenha acontecido a mesma<br />

coisa, o compositor teria pensado em escrever uma abertura para o terceiro ato, já que o<br />

número 13, que fecha o segundo ato, é uma Marcha Triunfal perfeitamente concluída,<br />

não havendo quebra no enredo, na continuidade musical ou no manuscrito.<br />

Os manuscritos têm diversos trechos rasurados ou riscados, em sua maioria<br />

correções, algumas provavelmente realizadas pelo próprio Gomes e outras sobre as quais<br />

não temos elementos para fazer qualquer afirmação. Mas podemos fazer algumas ilações<br />

partindo do fato de que pouco antes da estreia o compositor e a produção da ópera<br />

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Figura 4. Página inicial da partitura, com a inscrição “N° 2” no alto, à esquerda.<br />

273<br />

trocaram ofensas que foram publicadas na imprensa carioca. Em uma delas Gomes solicitou<br />

ao regente Nicolau Priol que declarasse em público as correções, cortes e acréscimos que<br />

havia feito na partitura sem sua autorização e se eram mesmo necessárias.<br />

O maestro acabou por abandonar tudo às vésperas da estreia, o mesmo<br />

acontecendo com o tenor, já que os empresários não haviam acertado seu contrato. A<br />

própria empresa começou uma campanha difamatória na imprensa alegando que o<br />

compositor perturbava os trabalhos de preparação do espetáculo. A troca de farpas pela<br />

imprensa continuou com ironias dirigidas ao compositor, com insinuações sobre seus<br />

erros gramaticais, e ao libretista Salvador de Mendonça, chamado de “poeta funileiro”.<br />

Na imprensa um dos detratores assinava anonimamente suas críticas com o pseudônimo<br />

de “Funil” e um certo H.F. publicou uma sátira que apresentava Joanna de Flandres passeando<br />

pela “Rua dos Latoeiros”, ornamentada com objetos como funil, regador e escumadeira.<br />

Depois de dois adiamentos a ópera estreou no dia 15 de setembro de 1863 sob<br />

a regência de Carlo Bosoni. Curiosamente os empresários tentaram “fabricar” o fracasso<br />

da ópera preparando uma vaia, contrataram uma claque e deixaram de vender muitos lugares,<br />

de modo que teatro ficasse vazio e pudessem alegar que o espetáculo não havia<br />

despertado interesse. Para completar, marcaram para a véspera um recital com os cantores<br />

que iriam participar da ópera, de forma que estivessem cansados no dia da estreia. Mas<br />

apesar da confusão e das disputas Joanna de Flandres foi bem recebida e contou com a<br />

presença do imperador Pedro II na estreia.<br />

O manuscrito tem 1054 páginas e cerca de 70 mil compassos o que nos leva a<br />

imaginar quanto tempo não teria sido necessário para sua realização (não entraram nesse<br />

cômputo as partes cavadas). Atualmente computadores e programas de escrita musical<br />

facilitam nosso trabalho e podemos reproduzir música sem dificuldades, mas na época<br />

de Gomes ainda eram utilizadas penas, cuja tinta não durava mais que alguns segundos,<br />

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274<br />

Figura 5. Sátira publicada na imprensa carioca, em 1863; ao fundo, compositor e libretista.<br />

obrigando a sucessivos e repetitivos movimentos para recarregar a pena. Além dos sinais<br />

musicais, ainda era preciso riscar barras de compassos e por vezes até mesmo as pautas.<br />

Para ganhar tempo os compositores e copistas criavam atalhos e abreviaturas e<br />

estes existem fartamente na partitura de Joanna. Decorridos quase cento e cinquenta<br />

anos da estreia (além de dois ou três anos de composição), tais sinais não deixam claras<br />

intenções do compositor. Muitos trechos, por serem repetições, foram deixados em branco,<br />

mas existem sutis diferenças, o que obriga a idas e vindas na partitura e em tais situações<br />

o erro passa ao lado. Sabe-se que o libretista atrasou e, provavelmente para ganhar tempo,<br />

Gomes deixou de anotar diversas indicações, talvez consideradas óbvias ou subentendidas.<br />

Sabendo que qualquer problema poderia ser resolvido durante os ensaios, aos quais ele<br />

estaria presente, deixou lacunas no manuscrito. Isso exigiu dos restauradores atuais a<br />

tomada de decisões de cunho pessoal, que, entretanto, não foram apoiadas apenas na<br />

intuição, mas sim no conhecimento da obra e do estilo do compositor.<br />

O manuscrito autógrafo tem também diversos trechos rasurados e/ou riscados,<br />

indicando correções, acréscimos de articulações e dinâmica, além de cortes de trechos<br />

inteiros. Anotações e cortes podem ter sido realizados por pessoas diferentes, já que aparecem<br />

nas cores preta, vermelha e azul. Existem ainda correções realizadas com a mesma<br />

tinta preta do manuscrito, o que nos leva a supor que foram realizadas pelo próprio compositor.<br />

Mas como são, em sua maioria, riscos e sinais indicativos, não é possível afirmar<br />

isso com segurança.<br />

Conforme dito anteriormente Gomes desentendeu-se com o maestro Nicolau<br />

Priol por este ter teria efetuado cortes na partitura sem sua autorização. Isso nos leva a<br />

imaginar que parte dessas anotações talvez não seja mesmo do compositor e sim de Priol<br />

que acabou abandonando a ópera. A regência coube a Carlos Bosoni, que teria trabalhado<br />

com o mesmo manuscrito já rasurado pelo regente anterior.<br />

Após o Prelúdio (n. 2), a cena inicia-se com a conjuração dos revoltosos fiéis a<br />

Balduíno, que, em uma marcha patriótica, juram defendê-lo.<br />

O tema é apresentado inicialmente pelo líder dos revoltosos, Huberto de Courtray,<br />

barítono, e depois repetido entusiasticamente pelo coro masculino. Aqui já é possível<br />

notar uma orquestração mais densa, distanciada da utilizada em A Noite do Castelo.<br />

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Figura 6. Trecho inicial – A Conjuração.<br />

Figura 7. Trecho do coro dos conjurados.<br />

275<br />

Na sequência a cena muda para os salões do palácio e Joanna, que, avisada de<br />

que tramam contra ela, canta a ária mais conhecida da ópera “Foram-me os anos da<br />

infância”, editada anos atrás (Figura 8).<br />

Como passaria a ser uma característica da obra de Carlos Gomes, há uma súbita<br />

mudança de clima com a entrada de um coro de cavalheiros franceses que repudiam a<br />

revolta popular contra Joanna e esta, em um trecho de grande virtuosidade, exalta a<br />

vingança: “só tu me elevas de infernal prazer! […] Sou tua, és minha!”. Neste trecho também<br />

é possível notar que a estética de A Noite do Castelo estava ficando para trás, já que o<br />

compositor não economizou ornamentos, saltos, vocalizes, notas extremas e ritmos<br />

agitados para que a solista pudesse expressar sua ira (Figura 9).<br />

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276<br />

Figura 8. Ária de Joanna – Foram-me os anos da infância.<br />

Figura 9. Ária de Joanna – Vingança.<br />

Na cena seguinte Joanna está a sós com seu amante e cúmplice Raul e é interessante<br />

notar pela terceira vez a heroína muda de atitude somente nesta cena. Aqui ela<br />

está dialogando de uma maneira aparentemente delicada, mas seu cinismo é visível, há<br />

certo mal-estar entre casal que troca acusações veladas. E mais uma vez Gomes demonstra<br />

como havia aprimorado a qualidade de sua escrita, tanto vocal como orquestral, ao fazer<br />

mais uma mudança no sentido do trecho, passando para uma cena romântica na qual um<br />

dueto de amor bastante longo marca o desenvolvimento de um estilo que Gomes começava<br />

a desenvolver e que teria continuidade em sua obra posterior, em especial na<br />

Fosca (Figura 10).<br />

Após essa cena romântica, Joanna e Raul resolvem se casar, o que dá ensejo a<br />

um segundo dueto, tão longo quanto o primeiro, porém bem mais brilhante. No decorrer<br />

dessa cena, a mais longa de toda a ópera, existe indicação de um corte que vai da página<br />

212 até 232, talvez um dos motivos da rixa entre compositor e maestro. Mas é preciso levar<br />

em consideração que o trecho é, de fato, muito aquém das expectativas no que se refere<br />

à duração de um ato operístico.<br />

Na figura abaixo, no último compasso, há uma indicação “Salto” e uma modificação<br />

posterior feita com papel colado para adaptar o texto de Raul para o salto e a entrada<br />

na página 232 (Figuras 11 e 12).<br />

O casamento é uma típica cena de corte, com brindes e vivas, mas apesar do júbilo,<br />

há certa desconfiança no ar, já que foi tudo definido às pressas e simplesmente comunicado<br />

à corte, além do que Raul era um plebeu sem posses. A festa é interrompida<br />

pela chegada de Balduíno, que se apresenta a Joanna. Ela não só nega conhecê-lo, como<br />

o acusa de impostor, sob o olhar estupefato de sua irmã Margarida. Aqui são utilizados<br />

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Figura 10. Início do dueto de amor.<br />

277<br />

dois coros, um masculino (flamengos) e um misto (os nobres franceses), num interessante<br />

contraponto de ideias e expressões: os flamengos cantam sua revolta, e os franceses, sua<br />

surpresa. O mesmo se dá com solistas: Balduíno expressa seu sofrimento com a longa<br />

ausência e a rejeição da filha, Huberto, sua revolta, e Margarida, compaixão pelo pai. Já<br />

Raul instiga Joanna a calar-se e essa fica num misto de ódio e remorso.<br />

No final há o consenso de que a melhor solução seria levar o caso ao rei da<br />

França, que resolveria a questão. Musicalmente, trata-se de uma cena bastante elaborada,<br />

talvez inspirada no quarteto do Rigoletto (1851) de Giuseppe Verdi. Embora Gomes ainda<br />

não tivesse a maestria do compositor italiano, o conjunto é bem elaborado e o ouvinte<br />

consegue distinguir esses sentimentos díspares.<br />

A partir desse momento há um crescimento de Margarida, que introduz o tema<br />

que vai concluir o primeiro ato, desenvolvido em seguida por solistas e coros. Este trecho<br />

também é bastante longo, resultando em uma ópera muito irregular em termos de<br />

conjunto, pois aqui termina o primeiro ato e já estamos praticamente na metade da obra<br />

(Figura 1B).<br />

O segundo ato inicia-se com uma cena na qual Raul, cheio de remorsos, canta<br />

uma ária bastante conhecida, editada há alguns anos em versão para canto e piano (Figura<br />

14).<br />

Burg, o fiel de Joanna, entra em cena e informa que a tropa o aguarda; Raul,<br />

enfurecido, ordena que ele saia e canta uma cavatina onde afirma seu amor por Joanna,<br />

mas conclui dizendo que, caso ela não ouça a voz da razão e aceite seu pai como conde de<br />

Flandres, “tanto amor há de em ódio se tornar”.<br />

O trecho seguinte é também é bastante conhecido e frequentemente executado.<br />

Trata-se de um solo de flauta dedicado ao famoso flautista belga radicado durante o século<br />

XIX no Rio de Janeiro, Mathieu-André Reichert (1830-1880), que introduz Margarida num<br />

cenário entre ruínas. Ao lado de uma fonte ela relembra sua infância até que chegam<br />

Huberto e os revoltosos, que a saúdam: “Sois de Flandres, a boa estrela, nosso arcanjo<br />

protetor”. Surpresos ouvem uma marcha triunfal e compreendem que a sentença do rei<br />

de França foi favorável a Joanna. Esta ordena que Balduino seja conduzido ao cárcere,<br />

concluindo o segundo ato.<br />

Ao final deste trecho, Gomes, certamente exausto, anotou na partitura: “com<br />

mil demônios acabemos assim” (Figura 15).<br />

Um terno dueto entre Balduíno e Margarida dá início ao terceiro ato, mas são<br />

bruscamente interrompidos pela entrada de Joanna. Ela tenta convencer o pai a assinar<br />

um documento no qual, em troca de sua liberdade, afirmaria que conde de Flandres<br />

estava morto. A recusa de Balduíno dá origem a um interessante terceto, onde<br />

encontramos novamente uma escrita musical na qual estados de espírito opostos são<br />

confrontados (Figura 16).<br />

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278<br />

Figura 11. Da página 212, modificação no último compasso da linha de Raul.<br />

Figura 12. Da página 232, final do trecho cortado, na indicação “qui”.<br />

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Figura 13. Margarida introduz o tema.<br />

Figura 14. Ária de Raul.<br />

Figura 15. Final do ato II, trecho de leitura difícil, com a anotação: “Com mil demônios acabemos assim”.<br />

279<br />

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b


280<br />

Figura 16. Ato III, Trio Joanna, Margarida e Balduíno.<br />

Enquanto Balduíno e Margarida declaram mútuo amor, Joanna destila todo seu<br />

ódio em outro trecho de grande virtuosidade. O ato se encerra quando ela abandona intempestivamente<br />

o cárcere, não sem antes hesitar num passageiro ataque de remorsos,<br />

que em nada afeta seu desejo pelo poder.<br />

O quarto ato acontece no palácio e Raul canta variações sobre a sua ária do segundo<br />

ato. Ao fundo Joanna revela desprezo pela fraqueza de Raul e ao se encontrarem<br />

cantam um dueto no qual ele revela que vinha tendo pesadelos que envolviam a morte<br />

de Balduíno e a ira popular (Figura 17).<br />

Joanna repete o mesmo tema com acento irônico, dizendo que não teve sonhos,<br />

mas vê com júbilo a mesma coisa que Raul, a cabeça do pai rolando no patíbulo. Em um<br />

trecho de bravura Raul faz pesadas acusações: “Ímpia filha, criminosa, teu intento hei de<br />

mudar”, ao que Joanna responde “Tu perjuro, me traíste, mas não podes me abrandar”.<br />

Joanna ordena a seu fiel, Burg, a execução de Raul entregando-lhe um punhal.<br />

Margarida vem implorar pela vida de Balduíno: “Oh, pelos céus, perdoa quem te deu a vida!”,<br />

mas a condessa não se importa com o destino do pai, “que sofra seu destino, sua<br />

sorte”. O som triunfante de uma fanfarra de metais indica que Balduíno foi libertado pelos<br />

revoltosos e vem retomar o seu lugar. As duas irmãs cantam um duo de grande exigência<br />

vocal, no qual Joanna continua jurando vingança, mas já temerosa, e Margarida exulta<br />

com a libertação do pai.<br />

Na cena final da ópera, Raul retorna portando o punhal que arrancara das mãos<br />

de Burg e após breves palavras ele próprio, alheio aos pedidos de clemência e apelos desesperados<br />

de Margarida, apunhala Joanna. Balduíno entra a tempo de escutar a última<br />

ária da filha moribunda, na qual ela pede perdão a ele e a seu povo: (Figura 18).<br />

É ordenada a prisão de Raul, que se adianta e crava em si o punhal, dizendo “Eu<br />

cumprir vou o meu cruel destino!”. Tudo isso numa cena muito rápida, não há muita exploração<br />

destas mortes. A ópera termina com rápido e convencional tutti, que destoa do<br />

conjunto da ópera. Além da música banal, o texto final também é sofrível: “Oh, dia fatal!”.<br />

Ao final da composição, Carlos Gomes, ainda mais exausto com a composição e<br />

certamente aborrecido com os problemas que ela vinha acarretando anotou no manuscrito:<br />

“Fim d’um triunfiasco” (Figura19).<br />

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Figura 17. Ato IV, Dueto Joanna e Raul.<br />

Figura 18. Ária final de Joanna.<br />

Figura 19. Página final do manuscrito, trecho de leitura difícil e a inscrição: “Fim d’um triunfiasco”.<br />

281<br />

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282<br />

Figura 20. Final do manuscrito – detalhe.<br />

Nessa sucinta apresentação encontramos elementos pouco característicos da<br />

ópera do período, quando, em geral, as heroínas sofredoras e fracas predominavam na<br />

cena operística. Joanna de Flandres, na contramão desse padrão, não tem caráter, é má e<br />

dissimulada, prenunciando as futuras malvadas de Gomes como Fosca (1873) e Maria<br />

Tudor (1879). Mas a mulher pura e sofredora, padrão da ópera romântica, está presente<br />

na figura de Margarida, que passa grande parte de suas cenas tempo em sofrimento e<br />

implorando a ajuda divina.<br />

Já Raul de Mauleón é um anti-herói de caráter duvidoso que, ao apresentar-se<br />

na corte como trovador, cai nas graças da condessa. Esta, entretanto, vai usá-lo como<br />

instrumento para chegar a seu intento. Ele se submete e a apoia em seus atos criminosos<br />

na esperança tornar-se rico e poderoso. Ao final é tomado pelo remorso e tenta convencêla<br />

a recuar, mas ao fracassar pratica um gesto operístico incomum ao assassinar<br />

deliberadamente a amada e heroína (que por sua vez havia ordenado sua morte).<br />

Inserida entre o desabrochar de A Noite do Castelo e um dos maiores sucessos<br />

de toda a carreira de Carlos Gomes, Il Guarany, montada na Itália em 1870, a ópera Joanna<br />

de Flandres apresenta-se como uma transição entre a primeira, na qual o compositor<br />

ainda tateava, tanto no aspecto musical como na busca de um estilo pessoal, e a outra,<br />

onde já coloca sua marca pessoal. Neste sentido podemos dizer que se Joanna de Flandres<br />

ainda tem alguns problemas referentes à técnica composicional, se comparada com A<br />

Noite do Castelo é um avanço imenso e já aponta para o arrojo de Il Guarany, embora a<br />

estética desenvolvida na Joanna não tenha sido muito explorada nesta ópera. Ela vai<br />

aparecer com mais ênfase na ópera seguinte, Fosca. Talvez por ter imprimido nesta ópera,<br />

a segunda apresentada na Itália, o estilo tão pessoal que havia esboçado em Joanna de<br />

Flandres, Fosca sempre foi a obra preferida de Carlos Gomes (Figura 20).<br />

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283<br />

Fontes documentais<br />

Museu Histórico Nacional. Rio de Janeiro (1° ato)<br />

Biblioteca Arthur Nepomuceno. Escola de Música da Universidade Federal do Rio de<br />

Janeiro (2º, 3º e 4º atos)<br />

Partitura<br />

Nogueira, Lenita W. M. Joanna de Flandres. Transcrição musicológica coordenada pela<br />

autora com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).<br />

Grade orquestral e redução para canto e piano. Campinas, 2003. (Não editada).<br />

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285<br />

A abertura do drama lírico Pelo amor!<br />

(1897) de Leopoldo Miguez (1850-1902)<br />

André Cardoso<br />

Universidade Federal do Rio de Janeiro<br />

O compositor Leopoldo Miguez (1850–1902) ocupa uma posição singular no panorama<br />

da música brasileira da virada do século XIX para o XX. Sua produção é concentrada<br />

em dois gêneros representativos da estética do século XIX: o poema sinfônico e o drama<br />

musical. O sinfonismo de Miguez é a principal marca de seu trabalho, em especial se confrontado<br />

com o operismo italiano em voga em seu tempo. Facilmente se constata que,<br />

não por acaso, a música de Franz Liszt (1811–1886) e Richard Wagner (1813–1883) fornece<br />

a base estética para sua música que, dentro do contexto sociocultural, representava no<br />

Brasil do final do segundo Império, a face do pioneirismo e da vanguarda. O ímpeto renovador<br />

de Miguez junto ao movimento republicano serve como pano de fundo a uma busca<br />

de uma expressão musical que se contrapunha ao gosto predominante no antigo regime,<br />

e a apologia de Miguez em favor da então música do futuro, revela entre outras coisas,<br />

mas em especial no campo artístico, o anseio por mudanças relevantes no campo político.<br />

A historiografia musical brasileira vem repetindo ao longo das últimas décadas<br />

a afirmação de que a música de Miguez é devedora de Wagner. Não se pode negar de modo<br />

algum que, de fato, a parte principal de sua obra – representada pelos poemas sinfônicos<br />

Parisina, Prometeus e Ave Libertas e pelos dramas musicais Pelo Amor e I Salduni – seja<br />

filiada aos cânones lisztianos e wagnerianos. Ainda assim, a análise um pouco mais cuidadosa<br />

de um conjunto maior de obras da relativamente pequena produção musical de Miguez,<br />

nos revela um compositor mais eclético e que em diferentes momentos de sua carreira<br />

lançou mão de procedimentos composicionais representativos de outras escolas de<br />

composição. Não são encontrados vestígios da música de Wagner, por exemplo, em boa<br />

parte de sua produção para piano solo, onde predominam as chamadas “peças características”<br />

tão a gosto dos salões parisienses e nas quais percebemos o estilo chopiniano,<br />

especialmente nos Noturnos. Sua sonata para violino, composta em 1887, se liga à tradição<br />

da música pura que vem de Mendelssohn e Schumann chegando até Brahms, uma corrente<br />

estética antagônica à música programática. O que dizer então de sua Suite Antiga, composta<br />

como uma recriação de danças barrocas?<br />

De qualquer forma, Leopoldo Miguez se apresenta, de fato, como o maior representante<br />

da corrente wagneriana no Brasil e seu principal conjunto de obras, acima mencionado,<br />

não deixa dúvidas sobre isso. Mesmo alguns de seus contemporâneos e amigos<br />

criticaram os excessos wagnerianos de Miguez. José Rodrigues Barbosa (1857-1939) afirmou<br />

em 1922 que Miguez “fez mal em subordinar-se, por completo, a uma forma musical<br />

que Wagner criou definitivamente” e que o compositor brasileiro foi “um imitador de<br />

Wagner”. Ressalva, porém, que foi um “imitador genial” (Barbosa apud Castagna, 2007,<br />

p. 77).<br />

Fazendo uma rápida revisão da literatura referencial sobre música brasileira constatamos<br />

que o julgamento da produção de Miguez se dá quase que exclusivamente a partir<br />

das premissas ideológicas do modernismo brasileiro. Luiz Heitor Correa de Azevedo,<br />

em texto de 1938, diz: “Leopoldo Miguez, em seu ardoroso proselitismo, assimila tão<br />

bem a técnica wagneriana que toda a partitura dos Saldunes é como que uma edição re-<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


286<br />

sumida e vulgarizada da Tetralogia, em que se pode apontar, página por página, a correlação<br />

com o monumento que subjugara as suas faculdades criadoras” (Azevedo, 1938,<br />

p. 23). Apesar do tom crítico inicial Luiz Heitor mostra certa condescendência dizendo<br />

mais à frente que nem por isso I Salduni “perde as qualidades que possue no mais alto<br />

grau: nobreza, perfeição de forma, teatralidade, colorido orquestral e uma verdadeira e<br />

cálida emoção, onde às vezes trai-se o artista tropical” (Azevedo, 1938, p. 51). Renato Almeida,<br />

por sua vez disse que:<br />

Leopoldo Miguez foi um discípulo de Liszt e de Wagner, sem maior originalidade,<br />

embora com certo caráter. Fez uma música brilhante, com muitas páginas bonitas,<br />

mas sem significação na história da nossa música. [...] aceitou os modelos que<br />

outros fixaram e tudo quanto fez foi uma adaptação, na qual consumiu todas as<br />

forças do seu engenho. […] O seu poema sinfônico foi o poema sinfonico de<br />

Liszt, a sua ópera o drama musical de Wagner. Dess’arte, Leopoldo Miguez como<br />

compositor, não tem significado social na história da nossa música e, se deixou<br />

belas páginas, nenhuma influência exerceram elas sobre a nossa vida artística,<br />

sobre o desenvolvimento da criação musical brasileira. (Almeida, 1942, p. 395)<br />

Bruno Kiefer, compositor e musicólogo de outra geração, segue os passos de<br />

Renato Almeida e afirma que Miguez “compôs uma obra que não trouxe a menor contribuição<br />

para uma música de características brasileiras. A rigor, não foi criador. Dominava<br />

o métier, não há dúvida, mas foi para seguir, como epígono, as pegadas de Liszt e Wagner,<br />

sobretudo deste último” (Kiefer, 1976, p. 127).<br />

Como podemos ver a visão modernista embota uma compreensão mais nuançada<br />

do papel dos compositores românticos brasileiros e chega mesmo a ser incoerente<br />

ao aceitar e legitimar, por exemplo, uma obra como o Requiem do Padre José Maurício<br />

Nunes Garcia (1767-1830), calcada na obra análoga de Mozart. Mas, ao contrário dos<br />

compositores de nosso romantismo musical, a figura de José Maurício era útil aos propósitos<br />

políticos de afirmação da nacionalidade brasileira levados a cabo pelos modernistas.<br />

Em prol da causa os modernistas poderiam, portanto, considerar o mozartiano Requiem<br />

de José Maurício uma obra válida, mas não os lisztianos poemas sinfônicos e as óperas<br />

wagnerianas de Leopoldo Miguez.<br />

Mais arguta e menos reducionista nos parece a opinião de Enio Squeff ao afirmar<br />

que Miguez, apesar de “ter cedido demais ao modelo maior”, no caso a música de Wagner,<br />

“não foi menor compositor por isso” (Squeff, 1982, p. 33). Squeff prossegue dizendo que<br />

“o mundo instável de Wagner – e por extensão de Miguez – é, indiscutivelmente, o mundo<br />

em transformação do capitalismo; mas ao contrário da visão debussista […] à visão ‘wagneriana’<br />

de Miguez impõe-se um ordenamento ideológico”. Conclui, por fim, dizendo que<br />

“o que importa é que Leopoldo Miguez não foi um anacronismo; ligou-se a uma das alternativas<br />

ideológicas que o mundo contemporâneo de então se lhe colocava” (Squeff, 1982,<br />

p. 120).<br />

A visão de Squeff mostra que a contribuição musical de Leopoldo Miguez pode<br />

ser muito mais relevante do que aquela que a historiografia brasileira referencial repete<br />

já há várias gerações, ou seja, a de Miguez como um simples imitador de Liszt e Wagner.<br />

Em Miguez as questões políticas e ideológicas são fundamentais para compreender<br />

sua posição no panorama da música brasileira da virada do século XIX para o XX.<br />

Para Miguez ser moderno naquele momento significava ser republicano, positivista e wagneriano.<br />

Se o Império estava por demais identificado com a música italiana, suas convicções<br />

políticas o levaram naturalmente a adotar uma linguagem musical que se contrapusesse<br />

ao italianismo predominante durante o regime monárquico. Se o positivismo era a ideo-<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


287<br />

logia da jovem República brasileira, o Instituto Nacional de Música deveria adotar os princípios<br />

de “ordem e progresso” estampados na bandeira nacional e se transformar em instituição<br />

modelar. Em seu relatório de viagem à Europa para conhecer as instituições de<br />

ensino musical entre 1895 e 1896, publicado em 1897, Miguez exalta “a ordem e a disciplina”<br />

dos conservatórios alemães e belgas e critica o “conservadorismo impertinente”<br />

e os “antigos e obsoletos métodos” dos italianos. Seu orgulho republicano no relatório fica<br />

igualmente patente quando menciona sua visita ao Musikverein de Viena ocasião em<br />

que pode ver o “manuscrito da Sinfonia Heroica de Beethoven com a dedicatória a Bonaparte<br />

raspada a canivete”, ressaltando que “tal fato tão comentado da vida de Beethoven”<br />

era uma prova de “quanto aquele espírito elevado era republicano” (Vermes, 2004). Com<br />

Miguez à frente o Instituto Nacional de Música se transformaria no bastião da modernidade<br />

musical na última década do século XIX não só através de uma renovada prática pedagógica,<br />

mas também através de iniciativas até então inéditas como a criação de um laboratório<br />

de acústica e um museu instrumental, o que denota uma abordagem mais científica da<br />

música.<br />

As questões político-ideológicas se refletem na prática musical e a música italiana,<br />

considerada decadente e conservadora, vai dando lugar ao repertório “progressista” das<br />

escolas francesa e alemã, com embates entre seus respectivos defensores, representados<br />

na imprensa da época pelos críticos Oscar Guanabarino (1851-1937) e José Rodrigues<br />

Barbosa. É a partir da atuação e postura progressista dos compositores ligados ao INM<br />

que novas obras são apresentadas ao público carioca na transição do século XIX para o<br />

XX. Pelos programas dos concertos dirigidos por Miguez, Alberto Nepomuceno (1864-<br />

1920), Carlos de Mesquita (1864-1953) e Francisco Braga (1868-1945) – à frente de orquestras<br />

como a do Instituto Nacional de Música, do Clube Beethoven, da Sociedade de<br />

Concertos Populares, da Sociedade de Concertos Sinfônicos ou arregimentadas para ocasiões<br />

especiais, como a Exposição Nacional de 1908 – podemos perceber um amplo domínio<br />

do novo repertório austro-germânico, francês e até mesmo russo em detrimento<br />

do italiano (Goldberg, 2006).<br />

Miguez foi figura central da vida musical brasileira nas duas últimas décadas do<br />

século XIX. Sua morte prematura aos 52 anos de certa forma abriu espaço para novas<br />

lideranças. Quem ocupará o espaço deixado por Miguez e emergirá como novo líder da<br />

chamada “República Musical” é exatamente seu sucessor na direção do INM, o compositor<br />

Alberto Nepomuceno.<br />

Pelo Amor!<br />

Para tratar da gênese do drama lírico Pelo Amor! se faz necessário abordar a figura<br />

de Henrique Maximiano Coelho Netto (1864-1934), o escritor que, no final do século<br />

XIX e início do XX se apresenta como libretista de várias óperas de diferentes compositores<br />

brasileiros como Pelo Amor e I Salduni de Leopoldo Miguez, Artemis e Abul de Alberto<br />

Nepomuceno e Hostia de Delgado de Carvalho. Luiz Heitor julgou ser Coelho Netto “o libretista<br />

titulado da nova ópera brasileira” e que a partir de sua “fantasia pujante, inflamada<br />

pelo simbolismo torrencial do drama lírico wagneriano, surgem os melhores poemas de<br />

ópera até hoje escritos no Brasil” (Azevedo, 1938, p. 23).<br />

Em 1897, ano de criação de Pelo Amor, Coelho Netto já era um escritor consagrado,<br />

além de personalidade que desfrutava de grande prestígio no meio intelectual<br />

carioca daquela época. Segundo Coelho Netto a arte dramática no Brasil encontrava-se<br />

em franca decadência em razão do predomínio das “revistas e bambochatas”. Para fazer<br />

frente a esse gênero de espetáculo popular Coelho Netto liderou uma campanha em prol<br />

do que considerava serem ideais artísticos mais elevados. Sua ideia era reunir em grêmios<br />

e associações artistas amadores com a missão de apresentar espetáculos dramáticos e<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


288<br />

sua estratégia foi fomentar acalorados debates na imprensa de modo a fazer valer seus<br />

ideais artísticos. Segundo Danielle Carvalho (2009) é devido à relevância do papel de Coelho<br />

Netto no meio intelectual da época que a imprensa dá atenção ao literato e acolhe seus<br />

artigos. Sob pseudônimo, Coelho Netto lança “ácidas críticas às peças em cena naquele<br />

momento” que, através da pilhéria, tinham como objetivo “agradar os gostos impudicos”.<br />

Coelho Netto rotulou tais espetáculos de “chirinola” que significava uma embrulhada ou<br />

trapalhada. Carvalho conclui, então, que o drama Pelo Amor! de Coelho Netto e Miguez<br />

seria um<br />

exemplo da produção teatral que regeneraria os palcos cariocas, e a aliança entre<br />

a elite e os intelectuais é tomada como o caminho possível para essa regeneração,<br />

uma vez que, conforme acreditava o escritor, os artistas profissionais não<br />

tinham preparo suficiente para levar à cena exemplares do “gênero mais elevado”.<br />

(Carvalho, 2009, p. 212)<br />

O tema de Pelo Amor! remete ao tempo da baixa Idade Média, em fins do século<br />

XIII, onde uma princesa escocesa, através do amor que a liga ao esposo, morto ao cair em<br />

um precipíssio, pressente não só a morte do marido como a desgraça que sobre ela se<br />

abaterá após sua perda. O sentimento que nutre pelo marido acabará por causar um desfecho<br />

trágico em sua vida. A atmosfera tensa que perpassa os dois atos do drama lírico é<br />

reforçada pela música de Leopoldo Miguez através de temas específicos para as principais<br />

personagens, situações dramáticas ou sentimentos, de acordo com os procedimentos do<br />

leitmotiv wagneriano.<br />

Richard Wagner é a maior influência não só na música como também para o autor<br />

do libreto. A lenda de Tristão e Isolda é a grande referência. Segundo Carvalho (2009,<br />

p. 212), assim como na ópera de Wagner, “também em Pelo Amor! está presente o sentimento<br />

amoroso incontrolável que engendra um desfecho funesto ao casal”.<br />

A presença das óperas de Wagner nas temporadas líricas cariocas não foi imediatamente<br />

consolidada. As companhias que vinham da Europa traziam em seu repertório<br />

uma grande maioria de óperas italianas. Wagner era ouvido sobretudo através das sociedades<br />

de concertos que apresentavam trechos sinfônicos. Segundo Luiz Heitor o Lohengrim<br />

de Wagner em sua estreia no Rio de Janeiro em 1883 “fôra ouvido com tédio, por um público<br />

que o lirismo místico do drama invencivelmente adormentava” (Azevedo, 1956, p.<br />

98). Quase uma década depois, em 1892, o Tanhauser “era recebido com entusiasmo e<br />

constituía um acontecimento social e artístico de grande relevância” revelando que “ia<br />

se formando no Brasil, uma forte corrente wagneriana” (Azevedo, 1956, p. 98). O entusiasmo<br />

pela música de Wagner se consubstanciou na criação do Centro Artístico “que<br />

reunia os nomes mais ilustres da época nas letras e nas artes, agrupados sob a bandeira<br />

dos ideais wagnerianos” (Azevedo, 1956, p. 99). Unidos pelo ideal artístico, Coelho Netto<br />

e Miguez criaram Pelo Amor e, segundo informação constante na edição impressa da redução<br />

para canto e piano, o puseram em cena em 24 de agosto de 1897 no Cassino Fluminense,<br />

ou seja, no prédio ao lado da atual Escola de Música da <strong>UFRJ</strong>. Porém, as atividades<br />

do Centro Artístico não conquistaram apenas adeptos. Os principais críticos foram Oscar<br />

Guanabarino e o escritor Arthur Azevedo que, igualmente através dos jornais, lançaram<br />

dúvidas não só sobre o texto da peça e sua relação com a música, como também sobre os<br />

propósitos do Centro Artístico.<br />

Arthur Azevedo (1855-1908) construiu sua fama como uma espécie de sucessor<br />

de Martins Pena (1815-1848) na abordagem da comédia de costumes, através de textos<br />

para o teatro de revista e posicionou-se como o defensor dos artistas profissionais atacados<br />

por Coelho Netto em sua pregação em prol dos “gêneros elevados”. Tal posicionamento<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


289<br />

não deixa de ser revelador de uma disputa que tinha como palco principal a recém-fundada<br />

Academia Brasileira de Letras, à qual ambos pertenciam. Segundo Carvalho<br />

Em resposta a Pelo Amor!, considerado por Netto o modelo de literatura erudita<br />

que deveria ser posto em cena para o enobrecimento da arte dramática na capital<br />

federal, Azevedo escreve Amor ao pêlo!, que, como ele próprio denomina, tratase<br />

de uma “pachouchada” que parodia o intento “elevado” de Netto (Carvalho,<br />

2009, p. 213)<br />

A mesma autora conclui que “o fato de a paródia ter tido muito mais sucesso<br />

junto ao público do que o trágico poema dramático é sintomático” e revela o quanto o<br />

projeto de Coelho Netto “colidia com os interesses dos espectadores” (Carvalho, 2009, p.<br />

213).<br />

Já Rodrigues Barbosa, o representante da “República Musical” na imprensa, não<br />

deixou de socorrer seus colegas e como que respondendo tardiamente às críticas de Guanabarino<br />

e Azevedo afirmou:<br />

Ouvindo a leitura do Pelo Amor! e convidado a escrever para ele alguns números<br />

de canto e de melodrama, Miguez, encantado com a poética de Coelho Neto,<br />

tão espontânea e tão acorde com o seu modo de sentir, escreveu aquela bela<br />

música, sendo para notar que sua musa lhe é tão fiel e a sua expressão tão verdadeira,<br />

que poesia e música se casam intimamente, sem que fosse necessário<br />

repetir no canto uma só palavra para preencher o contorno da frase melódica:<br />

poesia e música caminham em mútuo realce, estreitamente ligadas no mesmo<br />

sentimento. (Barbosa apud Castagna, 2007, p. 74)<br />

Após a morte de Leopoldo Miguez seu colega de INM, o professor Otávio Bevilacqua,<br />

em artigo para a Revista Brasileira de Música intitulado “Leopoldo Miguez e o Instituto<br />

Nacional de Música” se manifestou sobre a representação de Pelo Amor! no Cassino<br />

Fluminense, dizendo que “foi um fato que marcou época” pois “pela primeira vez subiu à<br />

cena com certos requintes de arte, uma obra de autor brasileiro, cantada em português<br />

por amadores e artistas todos do nosso meio”. Na opinião de Bevilacqua a encenação “foi<br />

um acontecimento” e que “o grau de perfeição atingido na execução foi digno de nota, levando-se<br />

em conta o tratar-se de gente, na sua maioria sem prática alguma de cena, de<br />

um conjunto à última hora improvisado” (Bevilacqua, 1940, p. 10).<br />

Abordando a música composta por Leopoldo Miguez para a abertura do drama<br />

de Coelho Netto vemos que a orquestração prevê madeiras a dois e mais um flautim. Para<br />

os metais Miguez determinou quatro trompas, dois trompetes, três trombones e a tuba.<br />

Os tímpanos e um prato de choque formam o naipe de percussão. Nas cordas sobressaem<br />

os divisi nos segundos violinos, violas e violoncelos. É um conjunto menor do que<br />

aquele previsto por Wagner para o Prelúdio de Tristão e Isolda, que incluiu ainda o corninglês,<br />

o clarone, um terceiro fagote, e um terceiro trompete.<br />

Na edição impressa do libreto temos a informação de que a orquestra na estreia<br />

da obra foi composta por “50 professores” sob a regência do compositor (Coelho Netto,<br />

1897). A partir de tal informação e da orquestração prevista chegamos a um efetivo de 21<br />

músicos para os sopros e percussão e 29 para as cordas. Com tal quantitativo podemos<br />

pensar que na estreia da obra Miguez contou com um naipe de cordas formado por 7 primeiros<br />

violinos, 6 segundos violinos, 6 violas, 6 violoncelos e 4 contrabaixos, com possibilidade<br />

de alguma variação. É um efetivo relativamente pequeno para uma obra com<br />

características wagnerianas e muito distante, menos da metade, da quantidade indicada<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


290<br />

por Wagner para a formação do naipe de cordas de seu Tristão, com 16 primeiros e segundos<br />

violinos, 12 violas e violoncelos e 8 contrabaixos (Wagner, 1985). Tal opção pode<br />

ter sido por inúmeras razões: dificuldades em arregimentar tantos músicos, os solistas<br />

amadores cujas vozes não poderiam sobrepujar uma orquestra muito volumosa ou ainda<br />

o tamanho do salão de bailes do Cassino Fluminense que não comportaria uma orquestra<br />

muito grande.<br />

Apesar da diferença no efetivo orquestral podemos perceber claramente já em<br />

alguns poucos compassos da abertura que o modelo é o Prelúdio de Tristão e Isolda de<br />

Wagner. O andamento é o mesmo, Lento na partitura de Miguez e Langsam und schmachtend<br />

na de Wagner. Se na partitura de Miguez falta a indicação de caráter (schmachtend = langoroso<br />

ou languidamente) aparece por sua vez a indicação metronônica de semínima<br />

igual a 72, ausente na de Wagner.<br />

Sem mais detalhes, que superariam o tempo disponível para esta comunicação,<br />

aponto como primeira semelhança a frase inicial a cargo do naipe dos violoncelos sem<br />

acompanhamento, construída também a partir de um grande intervalo ascendente (6a.<br />

em Wagner e 8a. em Miguez) seguido de uma sequência descendente que desemboca<br />

em um acorde nas madeiras que tem a mesma função do famoso acorde de Tristão.<br />

Exemplo 1. Richard Wagner - Abertura de Tristão e Isolda (c. 1-3)<br />

Exemplo 2. Leopoldo Miguez - Abertura de Pelo Amor! (c. 1-4)<br />

Sobre a frase inicial da abertura Rodrigues Barbosa, presente na estreia da obra<br />

no Cassino Fluminense assim se referiu:<br />

O prelúdio do primeiro ato, arquitetado sobre uma frase que traduz a dor de<br />

Malvina, desenvolvida com riqueza de recursos extraordinária, forma o ambiente<br />

espiritual para a compreensão não dos fatos, mas do sentimento que tumultua<br />

no peito amoroso da protagonista. (Barbosa apud Castagna, 2007, p. 74)<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


291<br />

O discurso musical prossegue e podemos perceber outros procedimentos análogos<br />

aos utilizados por Wagner no Prelúdio de Tristão e Isolda; as grandes pausas para<br />

criar tensão dramática, a tensão melódica na forma de síncopes, as volatas nas cordas e<br />

madeiras, o início em andamento lento, a aceleração na parte central e a retomada do<br />

andamento mais lento na recapitulação, o discurso musical contínuo e a harmonia modulante<br />

e sem repouso.<br />

Rodrigues Barbosa, além da abertura, teceu breves comentários sobre os diferentes<br />

números de Pelo Amor!, que aqui reproduzimos:<br />

Ao subir o pano, ouve-se um estribilho (a seco) do bobo nos bastidores. Depois<br />

vem a canção do grilo, onde os efeitos imitativos da orquestra multiplicam-se<br />

com interesse, emoldurando a frase melancólica do canto. Depois de uma ária<br />

pastoril que se ouve ao longe, vem a “Marcha grave” de ritmo solene e que se<br />

desenvolve em admirável progressão de caráter grandioso e nobre. É um trecho<br />

musical que impressiona pela serenidade do seu ritmo e pela majestade que o<br />

domina. Ouve-se depois, ao longe, uma romança de suave frescura, tão comovente<br />

quanto o despertar de um coração que pela primeira vez palpita de<br />

amor, e esse é justamente o sentimento nela cantado. Quando Darthula, de joelhos,<br />

faz uma oração, a orquestra de cordas, em surdina, acompanha com uma<br />

música em que se ouve o trêmulo balbuciar de uma velha no fervor da prece.<br />

Quanta verdade de expressão! A canção do grilo volta ainda e, quando o pano<br />

desce, ouve-se ainda o tristonho estribilho, que deixa no espírito umas névoas<br />

de melancolia e de tristeza, obrigando a recordação daquelas cenas tão comovedoras.<br />

Uma frase intercalada da “Marcha grave”, à entrada da maca conduzindo<br />

o corpo de Armínio, no primeiro ato, e exprimindo a dor deste, forma com um<br />

motivo melodioso, uníssono nas cordas, traduzindo a vida solitária de Samla, a<br />

feiticeira, a principal trama do interessantíssimo prelúdio do segundo ato. Há<br />

depois uma oração, cantada por um quinteto e na qual predomina o caráter súplice<br />

da crente que implora. A batalha do bobo tem, com extrema simplicidade<br />

melódica e rítmica, profundos acentos da melancolia saudosa que faz chorar de<br />

tristeza e consola pela revivescência do passado que é caro, talvez mesmo pela<br />

sua tristeza. A canção de Samla é dessas que se ouvem com o coração e nunca<br />

mais se esquecem; ficam gravadas na alma. Quando a ação dramática chega ao<br />

paroxismo e quando a dor se apodera de todos pelo suicídio de Malvina que se<br />

apunhala, e quando a consternação geral traz o silêncio e todos curvam joelho,<br />

ouve-se lá fora a romança que canta o idílio do primeiro amor, e aquele contraste<br />

violento, de paixões tão opostas e tão verdadeiras, traz à cena do palco maior<br />

intensidade; em cena a dor torna-se mais profunda; lá fora a poesia é mais suave,<br />

mais celestial... (Barbosa apud Castagna, 2007, p. 74 e 75)<br />

A edição proposta para a abertura do drama lírico Pelo Amor!, faz parte de um<br />

projeto de pesquisa que tem por objetivo editorar obras do acervo de manuscritos musicais<br />

da Biblioteca Alberto Nepomuceno da Escola de Música da <strong>UFRJ</strong>. Iniciado em 2003, o projeto<br />

já editorou 17 obras de compositores brasileiros como José Maurício Nunes Garcia,<br />

Leopoldo Miguez, Henrique Oswald e Francisco Braga. Três obras de Miguez e duas de Oswald<br />

foram gravadas em CD pela Orquestra Sinfônica da <strong>UFRJ</strong> com financiamento do Ministério<br />

da Cultura – distribuído aos participantes deste Simpósio. A partitura da Romanza<br />

para orquestra de cordas (1898) de Henrique Oswald (1852-1931) foi publicada no volume<br />

23, número 1 da Revista Brasileira de Música, também distribuída aos presentes.<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


292<br />

A edição da abertura de Pelo Amor! foi baseada no manuscrito autógrafo do<br />

compositor. O conjunto de manuscritos de Miguez chama a atenção pela clareza, detalhamento<br />

e capricho na notação. Luiz Heitor já mencionava esta característica: “Quem examina<br />

as suas partituras, e até mesmo as partes de orquestra que ele próprio copiava, admira-se<br />

da caligrafia regular, claríssima, traçada com requinte de velho guarda-livros, que<br />

enche todas as páginas” (Azevedo, 1956, p. 110). Os manuscritos de Miguez, que se encontram<br />

em sua totalidade na Biblioteca Alberto Nepomuceno, são na verdade as versões finais<br />

de partituras que provavelmente foram esboçadas e escritas em rascunhos e posteriormente<br />

reescritas após minuciosa revisão. Não se encontra na maioria de suas partituras<br />

alterações, rabiscos, supressões ou adições de compassos. A forma metódica como<br />

Miguez produziu suas partituras facilita em muito o trabalho daqueles que se propõe a<br />

editorá-las.<br />

A partitura editorada de Pelo Amor! foi executada pela Orquestra Sinfônica da<br />

<strong>UFRJ</strong> em concerto dirigido pelo maestro Ernani Aguiar na Sala Cecília Meireles em 2008.<br />

Considerações finais<br />

Uma das questões que podem ser colocadas neste simpósio sobre ópera é: se a<br />

ópera foi evento artístico de grande importância na vida musical brasileira, se os compositores<br />

brasileiros de várias gerações se dedicaram a escrever óperas nos mais diversos<br />

estilos, por que não as vemos incluídas nas temporadas dos grandes teatros brasileiros?<br />

É obvio que as respostas são muitas, mas antes que se formulem teorias mirabolantes<br />

colocando questões sociológicas à frente das musicais, faço outra pergunta: onde<br />

estão as partituras e partes orquestrais, reduções de piano e libretos dessas óperas para<br />

os intérpretes? Tomo como exemplo a produção do compositor Henrique Oswald, contemporâneo<br />

de Miguez. Das três óperas por ele produzidas, La Croce d’oro, Le Fate e Il<br />

Néo, as duas primeiras continuam inéditas, em manuscritos guardados no Arquivo Nacional.<br />

Levando em consideração a qualidade do compositor, reconhecida através de sua<br />

produção para piano solo e música de câmara, frequentemente executada, não se pode<br />

supor de antemão que sejam obras que mereçam adormecer por tanto tempo nas gavetas.<br />

Aí entra a responsabilidade não só das instituições que promovem as temporadas de<br />

ópera, mas também dos musicólogos. Nesse sentido se destacam os trabalhos de vários<br />

colegas aqui apresentados. Pudemos constatar nesses cinco dias o avanço na pesquisa do<br />

repertório operístico brasileiro, as diversas iniciativas de edições de partituras e conhecer<br />

de perto a produção de alguns compositores brasileiros contemporâneos. Ao mesmo<br />

tempo a presença de ilustres colegas de outros países como Portugal, Itália, Argentina, Inglaterra<br />

e Estados Unidos nos deu a oportunidade de mais uma vez reconhecer que o<br />

intercâmbio de informações é fundamental, especialmente para o entendimento de um<br />

gênero que atravessa fronteiras. Essa constatação torna ainda mais relevante a escolha<br />

do tema do simpósio, pois saímos com a certeza, pelo interesse que despertou, que a<br />

ópera continua atual.<br />

Referências bibliográficas<br />

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Rosen, Charles. A geração romântica. São Paulo: Edusp, 2000.<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


294<br />

Valoz Júnior, Felipe Ferreira. A contribuição de Leopoldo Miguez para o gênero musical<br />

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Wisnik, José Miguel & Squeff, Ênio. O nacional e o popular na cultura brasileira: música.<br />

São Paulo: Brasiliense, 1982.<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


295<br />

O esvaziamento das tradições operísticas<br />

do século XIX e a influência da mídia nos<br />

novos padrões estéticos<br />

Heliana Farah e Murilo Neves<br />

Universidade Federal do Rio de Janeiro<br />

Diz Theodor Adorno (2002, p. 285) 1 que quando o crítico musical Paul Bekker<br />

estava se aventurando como diretor de casa de ópera, ele pode ter sido o primeiro a falar<br />

de ópera como um museu. “Com efeito, a experiência musical ao vivo hoje em dia, tanto<br />

em casas de ópera como em salas de concerto, é muito próxima de uma ida ao museu.<br />

Em um artigo, Alex Ross (2005) nos lembra que, até o século XIX, aplausos entre os movimentos<br />

de uma sinfonia ou concerto eram não só aceitos como esperados. Ross transcreve<br />

o trecho de um artigo pré-Primeira Guerra da Enciclopédia Britânica, que Howard<br />

Shanet cita na história da New York Philarmonic. Transcrevemos aqui:<br />

O espírito reverencial que aboliu o aplauso na igreja tendeu a espalhar-se para o<br />

teatro e a sala de concerto, sob larga influência da atmosfera quase religiosa das<br />

apresentações de Wagner em Bayreuth.<br />

Alienado de seu poder de manifestação, o público fica limitado a uma experiência<br />

unilateral, cabendo a ele o silêncio respeitoso e o aplauso educado depois da execução.<br />

Na ópera – objeto principal de nosso estudo – o caráter mutilador desta prática é ainda<br />

mais evidente, visto que a história nos mostra um público absolutamente ativo, questionador<br />

e determinante com suas opiniões. O público de ópera sempre foi capaz de decidir<br />

o rumo de uma performance, fosse exigindo quantos bis desejasse de uma determinada<br />

ária através de aplausos intermináveis, fosse impedindo uma récita de continuar<br />

através de vaias insistentes. Podemos aqui lembrar casos como os da estreia de Il Barbiere<br />

di Siviglia de Rossini, Madama Butterfly de Puccini, ou La Traviata de Verdi. Sobre a estreia<br />

de Il Barbiere di Siviglia, como observa Kobbé:<br />

Ao cair a cortina no primeiro ato, Rossini virou-se para o público, deu ligeiramente<br />

de ombros e aplaudiu. O público, apesar de extremamente ofendido com semelhante<br />

demonstração de desprezo por sua opinião, reservou a vingança para<br />

o segundo ato, do qual não foi possível ouvir uma única nota. Kobbé (1991, p.<br />

243)<br />

A manifestação do público, atualmente, foi limitada por parâmetros questionáveis<br />

de educação e comportamento social, e os neófitos hoje em dia são constrangidos a<br />

esperar até que um “iniciado” se manifeste, a fim de evitar uma possível gafe. O respeito<br />

ao artista tornou-se, de alguma forma, maior que o respeito ao público, mesmo que, à<br />

parte qualquer filosofia egocêntrica vinda do artista, este público seja o consumidor final<br />

do produto arte e, portanto, aquele a quem deveria caber o poder máximo de avaliação.<br />

...........................................................................<br />

1 “At the time when music critic Paul Bekker was trying his hand as opera house director, he may have been the<br />

first to have spoken of opera as a museum” (Adorno, 2002, p. 285).<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


296<br />

Longe de querer fazer aqui qualquer juízo de valores sobre códigos de postura e educação,<br />

nossa intenção é ver como um comportamento que foi imposto à revelia do público aos<br />

poucos mudou a própria experiência de ir ao teatro de ópera.<br />

Se tomarmos a carreira da soprano turca Leyla Gencer (1928-2008) como exemplo,<br />

podemos ter uma ideia de como o poder da mídia, alavancado pela grande era das<br />

gravações, tem o poder de alterar e manipular parâmetros. Como outras divas de sua<br />

época, Maria Callas e Joan Sutherland, que tinham por alcunha La Divina e La Stupenda,<br />

respectivamente, Gencer era conhecida como La Turca, La Regina ou, a alcunha que mais<br />

nos interessa aqui, La Regina Pirata. Seu obituário no The New York Times (13-mai., 2008) 2<br />

diz:<br />

Eclipsada por contemporâneas mais conhecidas como [Maria] Callas e Renata<br />

Tebaldi, Ms. Gencer não tinha contrato com uma grande gravadora. Mas sua<br />

voz viajou o mundo muitas vezes em gravações piratas, dando a ela o apelido de<br />

Rainha Pirata.<br />

A revista especializada Ópera International a cita como La Fiancée des Pirates,<br />

ou a noiva dos Piratas, devido ao fato de que as gravadoras sempre a ignoraram. Seu único<br />

registro em estúdio é um recital de árias pela Cetra 3 . Embora ela possua uma grande<br />

legião de fãs, toda sua extensa e variada carreira está documentada apenas em registros<br />

amadores de suas performances ao vivo. Em entrevista a Stefan Zucker no filme Opera<br />

Fanatic, ela diz que nunca agradou aos críticos americanos. Segundo ela, realmente chorava<br />

em cena: cantava e chorava, e vez por outra vinha uma nota pouco ortodoxa. Os críticos<br />

americanos, diz ela, gostam de música “água e sabão”. As reações do público em suas gravações<br />

piratas, no entanto, deixam bem clara a arrebatadora impressão que ela causava<br />

no teatro. Não é difícil imaginar o motivo de não ter muitos registros em estúdio, visto<br />

que as gravações, segundo os critérios do mercado, devem ser o mais perfeitas possível.<br />

O mesmo obituário do New York Times cita uma entrevista de Gencer à revista Opera<br />

News, em que diz que, mesmo sem ter ganho uma única lira com as gravações ao vivo nos<br />

teatros, elas trazem outras compensações:<br />

Todos os jovens me conhecem. Eles me escrevem longas cartas. Eles me dizem:<br />

“É como se estivéssemos no teatro. Nós a vemos. Nós a ouvimos através de<br />

seus discos como se estivéssemos lá.” É um grande milagre!<br />

À medida que grande parte da vida útil de um apreciador de ópera médio desde<br />

o advento dos fonogramas é vivenciada em casa, ouvindo gravações, torna-se inegável –<br />

tanto quanto perigoso – o poder da mídia sobre os padrões estéticos. Achamos fundamental<br />

relatar o caso de Leyla Gencer para deixar claro que, se por acaso não existissem<br />

essas gravações piratas, provavelmente para nossa geração e para as futuras seu nome<br />

seria apenas um mito, sem grandes documentações de sua arte. E, se uma cantora é tão<br />

endeusada pelos que a viam ao vivo, será realmente que as notas “pouco ortodoxas” seriam<br />

motivo suficiente para que não fosse considerada uma referência?<br />

...........................................................................<br />

2 “Pre-empted by better-known contemporaries like Callas and Renata Tebaldi, Ms. Gencer did not have a contract<br />

with a major commercial record label. But her voice traveled the globe many times over in bootleg recordings,<br />

earning her the nickname the Pirate Queen. […] If she “never made a lira” from these recordings, as Ms. Gencer<br />

told Opera News in 2003, they had other compensations. […] “All the young people know me,” she said at the<br />

time. “They write me long letters. They tell me: ‘It’s as if we were in the theater. We see you. We hear you<br />

through your discs as if we were there.’ This is a great miracle!” (Fox, 2008).<br />

3 “Omaggio a Leyla Gencer” Cetra LPO, 2001.<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


297<br />

Norman Lebrecht (2008, p. 19) relata o momento que, segundo ele, suscitou “o<br />

nascimento da gravação como ato musical, separado e distinto da execução ao vivo”. O<br />

pianista Wilhelm Kempff gravava uma bagatela de Beethoven quando esbarrou em uma<br />

tecla:<br />

Tivesse Kempff esbarrado seu dedo enquanto se apresentava num palco, teria<br />

por certo continuado sem problemas, sabendo que poucos na platéia teriam<br />

percebido a falha ou sequer se lembrado dela depois. Numa gravação, contudo,<br />

qualquer imprecisão seria registrada para sempre, tornando-se mais grave e<br />

desagradável a cada nova audição. […] O artista ficava então sujeito a um julgamento<br />

sem tréguas, não podendo se permitir ilusórios desvios de atenção.<br />

(Lebrecht, 2008, p. 19)<br />

Em que os rígidos códigos de conduta impostos ao público moderno, o legado<br />

pirata da soprano turca e a pressão pela precisão nas gravações nos interessam? Podem,<br />

em última análise, revelar sintomas da dissociação entre o gosto do público e os interesses<br />

da mídia. Seriam os novos padrões ditados por um grupo – de musicólogos, maestros, críticos<br />

ou mesmo executivos de teatros ou gravadoras – talvez alheio à tradição da ópera?<br />

Estaria o público obedientemente consumindo e aplaudindo um produto pasteurizado e<br />

retirado de seu contexto? Sem querer invalidar o poder dado aos que ditam as novas regras,<br />

preferimos indagar o porquê de hoje, com todas as facilidades tecnológicas ao nosso<br />

alcance, esses padrões dificilmente são questionados.<br />

Podemos encontrar algumas pistas nos tratados de canto mais recentes. Baseamo-nos<br />

aqui em um comentário de Richard Miller 4 , principal autor da chamada escola<br />

americana de canto, em um de seus livros. O autor admite que para os ouvidos europeus<br />

os padrões americanos dão mais atenção ao timbre do que a qualquer outra coisa. A<br />

igualdade vocal do típico americano incomoda aos europeus por ser considerada por eles<br />

falta de sutileza interpretativa, negligência de colorido vocal e ausência de risco na apresentação.<br />

Miller se justifica argumentando que, na pior das hipóteses, tudo fica realmente<br />

muito chato e parecido. Mas, se for bem executado, confere ao cantor a liberdade de<br />

abordar qualquer repertório. Seria a necessidade moderna de abordar com segurança<br />

toda a gama de repertório disponível uma das responsáveis pela “pasteurização” do canto?<br />

Se existe o movimento de música antiga, que tem a intenção de estudar e tentar<br />

reproduzir a música renascentista, barroca e clássica, nada mais justo que haver pelo menos<br />

uma conscientização similar no tocante à música dos grandes compositores do século<br />

XIX. Sejamos realistas, é ilusão achar que a execução atual da música desse período esteja<br />

fiel à execução da época. Evidentemente existem questões como o gosto atual, e não pretendemos<br />

de maneira nenhuma defender que se deva executar desta ou daquela forma.<br />

Apenas achamos que, da mesma maneira que hoje se busca restaurar a autenticidade na<br />

performance do que se conhece como música antiga, podemos aproveitar o gancho histórico<br />

do movimento para voltar o mesmo olhar para a ópera do século XIX, e mesmo para<br />

a ópera do início do século XX. As gravações da primeira metade do século passado nos<br />

colocam em contato com cantores muito próximos das tradições românticas e não é difícil<br />

perceber diferenças muito grandes entre esses e os registros mais atuais do mesmo reper-<br />

...........................................................................<br />

4 “There is also the European complaint that the American singer gives more attention to the production of tone<br />

than to other equally important aspects of performance. Timbre congruity of the typical American singer disturbs<br />

some European ears. Tonal uniformity is thought to be lacking in interpretative subtlety, and neglectful of vocal<br />

coloration. A common comment is that there is no place for artistic risk-taking in the American approach to<br />

voice performance. The same type of criticism that some European critics bring against major American orchestras<br />

- too mechanically perfect - is leveled at the American singer. […] At it (the American ideal of elite vocalism) best<br />

allows a singer to perform a wide variety of literatures, and liberates him or her for a fuller realization of artistic<br />

and interpretative factors. At its worst, it can be unimaginative and boring” (Miller, 2004, p. 192-193).<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


298<br />

tório. Musicalmente, percebe-se uma liberdade maior dos cantores, seja no uso do tempo<br />

rubato, seja nas ornamentações ou cadências. Vocalmente, percebe-se além de uma dicção<br />

mais clara e vogais mais puras, um uso mais amplo dos diferentes registros vocais, particularmente<br />

nas vozes femininas.<br />

Vemos aparecer dentro das fileiras do movimento de música antiga o interesse<br />

pelas execuções historicamente informadas do período romântico. Mas talvez incorram<br />

em dois equívocos. Elas trazem consigo um sotaque, sedutor, mas alheio ao período.<br />

Além disso, esquecem de recorrer à evidência arrebatadora dos documentos fonográficos.<br />

Talvez em escala mundial, mas certamente em escala local, a quase total alienação aos<br />

padrões estéticos vocais do século retrasado pode ser atribuída a dois motivos: ignorância<br />

ou arrogância.<br />

Se é ignorância, resultante da falta de leitura e audição das gravações mais antigas<br />

podemos facilmente sanar. Ao contrário da Renascença, do Barroco e do Classicismo, no<br />

Romantismo e no Verismo, quando não há gravação original de seus intérpretes, as gravações<br />

são de apenas uma geração posterior. E não seria isso prova muito mais contundente<br />

do que a análise documental da música antiga? E não faltam documentos escritos do século<br />

XIX, talvez apenas não tenham recebido a devida atenção. Não se pode ignorar –<br />

muito menos desprezar – a possibilidade de ter contato com a voz de Francesco Tamagno,<br />

o criador do Otello de Verdi, ou de reconhecer o legato verdiano na voz de Adelina Patti,<br />

considerada sua cantora preferida. Podemos ainda ouvir as gravações de Victor Maurel,<br />

criador de Iago em Otello e dos papéis-títulos na versão definitiva de Simon Boccanegra e<br />

em Falstaff. E para continuar em Falstaff, podemos ouvir gravações de Adelina Stehle, a<br />

primeira Nanetta, Edoardo Garbin, o primeiro Fenton, Antonio Pini-Corsi, o primeiro Ford<br />

e Virginia Guerrini, a primeira Meg. Podemos ouvir as vozes de Rosina Storchio, criadora<br />

de Cio-Cio-San na primeira versão de Madama Butterfly e de Salomea Krusceniski, criadora<br />

do papel na primeira revisão. Temos acesso a registros da voz de Giovanni Zenatello, o<br />

criador de Pinkerton e de Giuseppe de Luca, o criador de Sharpless na mesma ópera. Podemos<br />

ouvir Emmy Destinn, Enrico Caruso e Pasquale Amato, criadores dos papéis de<br />

Minnie, Dick Johnson e Jack Rance em La Fanciulla Del West, Cesira Ferrani, a primeira<br />

Manon Lescaut e primeira Mimì em La Bohème, além de Hariclea Darclée, Emilio de<br />

Marchi e Eugenio Giraldoni, que estrearam Tosca como o papel-título, Cavaradossi e<br />

Scarpia, respectivamente. Podemos ouvir também Gealdine Farrar, a primeira Suor<br />

Angelica, Claudia Muzio e Giulio Crimi, criadores de Giorgetta e Luigi em Il Tabarro. Crimi<br />

estreou também o Rinuccio em Gianni Schicchi ao lado de Florence Easton como Lauretta<br />

e Giuseppe de Luca como Schicchi; os dois últimos também tiveram registros sonoros.<br />

Existem diversas gravações de Tito Schipa e Gilda dalla Rizza, que estrearam La Rondine<br />

nos papéis de Ruggero e Magda. Também registraram suas vozes Rosa Raisa, a primeira<br />

Turandot, Miguel Fleta, o primeiro Calaf, e Maria Zamboni, a primeira Liù. Podemos ouvir<br />

gravações de Giuseppe Borgatti e Mario Sammarco, criadores de Andrea Chénier e Gerard<br />

na ópera de Giordano. O que poderia nos falar mais claramente do estilo verista do que a<br />

gra-vação da ária de Santuzza em Cavalleria Rusticana de Mascagni com Gemma Bellincioni,<br />

criadora do papel, ou Lina Bruna Rasa regida pelo próprio compositor? Grandes demonstrativos<br />

da tradição verista podem ser observados também em gravações de todos<br />

aqueles que compuseram o primeiro elenco de I Pagliacci: Adelina Stehle, já citada como<br />

a primeira Nanetta, e que foi também a primeira Nedda, Victor Maurel (também já citado),<br />

primeiro Tonio, Fiorello Giraud, o primeiro Canio e Mario Ancona, o primeiro Silvio. Podemos<br />

ouvir Hermann Winkelmann, o primeiro Parsifal e único dos criadores de Wagner<br />

a gravar. Podemos ouvir Medea Mei-Finger, criadora do papel de Lisa em A Dama de Espadas<br />

e do papel título em Iolanta de Tchaikowsky. Dos criadores das óperas de Strauss,<br />

há gravações de Margarethe Siems, a criadora de dois papéis bastante diversos – a Ma-<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


299<br />

rechala em Der Rosenkavalier e Zerbinetta em Ariadne auf Naxos, além de Chrysothemis<br />

na Elektra. Criadores também de papéis straussianos que podemos ouvir em registros sonoros<br />

são Ernestine Schumann-Heink, criadora da Klytaemnestra na Elektra, além de Minnie<br />

Nast, Eva Von der Ostens e Karl Scheidemantel, que estrearam, respectivamente, os<br />

papéis de Sophie, Octavian, e Faninal, em Der Rosenkavalier. Temos acesso a gravações de<br />

Ernest van Dick, o primeiro Werther na estréia absoluta da ópera de Massenet (em alemão)<br />

e de Guillaume Ibot e Marie Delna, criadores de Werther e Charlotte na estréia francesa.<br />

Podemos ouvir também Jean-François Delmas, criador de Athanaël em Thaïs, além de<br />

Mary Garden e Jeanne Gerville-Réache, que integraram o elenco de estréia de Pélleas et<br />

Mélisande, como Mélisande e Geneviève respectivamente.<br />

Para além da oportunidade inestimável de ouvir as vozes dos criadores de grande<br />

parte dos papéis emblemáticos do final do século XIX (ainda que não necessariamente<br />

nas partes que criaram), podemos perceber nessas gravações o legado da antiga estética<br />

do canto. Mesmo sendo esses cantores já do final do século XIX (alguns nascidos ainda no<br />

início da segunda metade do século), não podemos negar as evidências da herança presente<br />

nesses registros. Se não possuímos, infelizmente, gravações de Pauline Viardot-<br />

Garcia ou Mathilde Marchesi, diretamente preparadas por Manuel Garcia II, por exemplo,<br />

podemos ao menos ouvir outros grandes cantores que foram por elas preparados.<br />

No campo da documentação escrita temos o relato dos jornais da época, biografias<br />

e autobiografias como a de Caruso e Tetrazzini. Temos críticas, tratados e depoimentos<br />

vindos de fontes diversas e tantos outros documentos escritos de importância.<br />

Podemos observar também os tratados de canto, e apontamos entre os mais importantes<br />

os de Manuel Garcia II, de Mathilde Marchesi e de Giovanni Battista Lamperti (sendo que<br />

também do último temos, além do tratado e de uma publicação de seus ensinamentos<br />

por um de seus pupilos, registros sonoros de alguns de seus alunos). Muito conhecido hoje<br />

em dia é o tratado de Lili Lehmann, cantora muito apreciada por Richard Wagner e que<br />

esteve na primeira produção do ciclo completo Der Ring des Nibelungen em Bayreuth em<br />

1876 como Woglinde, Helmwige e o Pássaro da Floresta. Lehmann apareceu mais tarde<br />

como Brünnhilde no primeiro ciclo apresentado no Metropolitan Opera House de Nova<br />

Iorque em 1889 e repetiu o papel em Bayreuth, em 1896. É oportuno lembrar que esta<br />

cantora sofreu grande influência de Edward Wheeler Scripture e de Henry Holbrooke Curtis<br />

que foram, provavelmente, o ponto de partida da mudança na estética vocal já sentida<br />

no começo do século XX e realmente aprofundada a partir da metade do século. Apesar<br />

da popularidade do tratado da soprano alemã, pouco se divulga os seus registros sonoros.<br />

Existe a possibilidade, devido à maior proximidade que temos com o século XIX<br />

do que com os anteriores (e talvez um recalque ainda não resolvido de ser essa ainda a<br />

música de repertório na maioria das casas de ópera), de haver uma arrogância de achar<br />

que se faz atualmente a música do século XIX melhor do que se fazia na época. Não são<br />

infrequentes as opiniões a respeito da estética da época como cafona, de mau gosto. Por<br />

vezes é até verbalizada uma ideia de que na época não houvesse capacidade para fazer<br />

melhor. Dentro dos padrões do historicamente informado, esse comportamento não faz<br />

o menor sentido, pois se a ideia é o respeito ao estilo do período, não cabem juízos quanto<br />

ao gosto e aos padrões dos intérpretes de uma obra à época de sua criação. Assim sendo,<br />

ao mesmo tempo em que os padrões modernos tentam ser fiéis a uma música da qual só<br />

se tem relatos escritos, buscam “melhorar” outra devidamente documentada sob os padrões<br />

da época de sua criação. Como essa forma de fazer é considerada “melhor”, gravase<br />

assim e essa passa a ser a referência tanto do público como dos novos artistas.<br />

Robert Donington, bastião da música antiga, mesmo deixando claro seu pouco<br />

apreço pela tradição verista, nos mostra como os padrões estéticos vocais de hoje não<br />

são mais os mesmos.<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


300<br />

No presente momento, os excessos do verismo estão (felizmente) fora de moda;<br />

e a dureza germânica foi (infelizmente) substituída por uma tendência, muito<br />

mais destrutiva do bom canto, de cobrir o som. O canto duro era ainda bom<br />

canto: era para frente, e por isso era claro; não era forçado, e por isso podia brilhar<br />

e projetar. 5 (Donington, 1973, p. 65)<br />

E similar depoimento nos dá Adorno ao dizer:<br />

Ainda posso me lembrar da minha infância, quando minha mãe se lamentava<br />

do fim da arte vocal italiana causada pelo estilo wagneriano de canto. Hoje esse<br />

mesmo estilo começa a morrer sendo muito difícil achar cantores hábeis. O conhecido<br />

e pouco criticado sistema de cantores convidados, no qual um punhado<br />

de famosos cantores wagnerianos são emprestados é uma aberração. 6 (Adorno,<br />

2002, p. 584)<br />

O mais perigoso é que essa mudança de padrões, como se pode observar, não<br />

se limita ao campo apenas da execução musical. Ela interfere em questões essenciais como<br />

a própria emissão do som. A execução pura e simples do instrumento voz é afetada,<br />

influenciando, evidentemente, em um fator imprescindível no espaço crucial da ópera: a<br />

acústica na sala de espetáculos ao vivo.<br />

Sabemos que grande parte das obras compostas está gravada, senão em vídeo<br />

pelo menos em áudio. As óperas de repertório contam normalmente com dezenas de<br />

gravações de estúdio diferentes. Se o som da voz humana, como diz Davini (2007, p.101) 7 ,<br />

está se adequando às limitações impostas pela tecnologia que reduzem acusticamente a<br />

riqueza tímbrica dos sons, qual seria, acusticamente falando, o diferencial de assistir ao<br />

vivo a um cantor cujo timbre se reduz àquele da gravação? Vejamos a afirmação do autor:<br />

Una vez que las audiencias se habitúan a los resultados de la grabación digital, la<br />

performance en vivo tiende a decepcionar en términos de perfectibilidad. Como<br />

resultado, cantantes, músicos y directores han sido frecuentemente forzados a<br />

maratones técnicas para poder aproximar sus registros, timbres e intensidades<br />

a los modelos digitales de resolución. (Davini, 2007, p. 101)<br />

A perda é maior se avaliarmos que em casa o som que sai de nosso equipamento<br />

pode ser adequado a produzir a intensidade que desejamos. A técnica vocal do canto lírico<br />

foi desenvolvida exatamente para produzir esse tipo de emoção proveniente da qualidade<br />

de som que resulta de todos os harmônicos que enriquecem a voz. Com o astronômico<br />

custo da produção de óperas de boa qualidade e a disponibilidade das gravações,<br />

quanto tempo durará para que a grande maioria dos teatros deixe de produzi-las se os<br />

cantores não mais possuírem esse diferencial?<br />

...........................................................................<br />

5 “At the present time, the verismo excesses are (fortunately) out of fashion; and the germanic hardness has<br />

(unfortunately) been replaced by a tendency, far more destructive of good singing, to cover the sound. The hard<br />

singing was still good singing: it was forward, and therefore it was bright; it was unforced, and therefore it could<br />

ring and carry” (Donnington, 1973, p. 65, tradução nossa).<br />

6 “[…] I can still remember quite well from my childhood how my mother lamented the demise of Italian vocal art<br />

that was caused by the wagnerian style of singing. Today that stile is itself begining to die out; its excedingly<br />

difficult to locate any singers who are up to it. The well-known and hypocritically criticized system of guests<br />

singers, by which a handful of the most famous Wagner singers are lent around, so to speak, from one new<br />

production to the next, is just an aberration” (Adorno, 2002, p. 584, tradução nossa).<br />

7 “Una vez que las audiencias se habitúan a los resultados de la grabación digital, la performance en vivo tiende<br />

a decepcionar en términos de perfectibilidad. Como resultado, cantantes, músicos y directores han sido<br />

frecuentemente forzados a maratones técnicas para poder aproximar sus registros, timbres e intensidades a los<br />

modelos digitales de resolución” (Davini, 2007, p. 101).<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


301<br />

Na esperança de informar os que desconhecem a estética romântica e verista é<br />

que propomos uma visão histórica da estética vocal do século XIX. Porque se nós, hoje,<br />

achamos os românticos extremamente arrogantes de se apoderar da música anterior a<br />

eles e executá-la como lhes convinha, na realidade estamos fazendo muito pior. Antes do<br />

período deles não havia música antiga. Ouvia-se quase que exclusivamente a música composta<br />

em sua época: não era uma atitude aceitável recorrer à música de gerações anteriores<br />

senão para estudo. Vimos inclusive o Messiah de Handel ganhando de uma nova “leitura”<br />

de Mozart para ser apreciado por um público posterior. Então podemos entender que,<br />

até que nascesse a consciência de buscar uma fidelidade histórica, levasse certo tempo.<br />

Nós hoje temos a consciência histórica, e aliada a ela a veemência da documentação em<br />

registros sonoros. Vamos atribuir a omissão à estética da época a quê?<br />

Referências bibliográficas<br />

Adorno, Theodor. “Opera and the Long-Playing Record”. [1969] In: Essays on music.<br />

Londres: University of California Press, 2002.<br />

Adorno, Theodor. “Wagner’s Relevance for today”. [1963] In: Essays on music. Londres:<br />

University of California Press, 2002.<br />

Davini, Silvia Adriana. Cartografías de la voz en el teatro contemporáneo. Bernal:<br />

Universidad Nacional de Quilmes Editorial, 2007.<br />

Donington, Robert. A performer’s guide to barroque music. Londres: Faber and Faber,<br />

1973.<br />

Fox, Margalit. “Leyla Gencer, Turkish-Born Soprano and a Popular Star of La Scala, Dies”<br />

The New York Times, 13-mai., 2008. Disponível em: http://www.nytimes.com/ 2008/05/<br />

13/arts/music/13gencer.html, acessado em 21-jan., 2010.<br />

Kobbé, Gustave. O livro Completo da Ópera. Trad. Clóvis. Marques. Org. Conde de<br />

Harewood. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1991.<br />

Lebrecht, Norman. Maestros, obras-primas e loucura. Trad. Rafael Sando. Rio de<br />

Janeiro: Record, 2008.<br />

Miller, Richard. Solutions for Singers. Nova York: Oxford University Press, 2004.<br />

Ross, Alex. “Applause, the rest is noise”. Disponível em: http://www.therestisnoise.com/<br />

2005/02/applause_a_rest.html. Acessado em 20-jan., 2010.<br />

Zucker, Stephen. Opera Fanatic. Documentário. Dir. Jan Schmidt-Garre. Prod. Pars<br />

media. DVD, 93 min., NTSC 4:3 Letterbox. Berlim: Arthaus Musik, 2000.<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


TRAJETÓRIAS


303<br />

Óperas em português: ideologias e<br />

contradições em cena<br />

Vanda Bellard Freire<br />

Universidade Federal do Rio de Janeiro<br />

Óperas em português e o sentimento nacional<br />

O interesse pela temática da ópera, sobretudo da ópera em português, tem estado<br />

em minhas pesquisas há algum tempo, envolvendo sobretudo o contato com documentos<br />

e partituras do século XIX. As seguintes observações sobre o tema resultam,<br />

em parte, de mais de dez anos de trabalho junto ao acervo de obras raras da Biblioteca Alberto<br />

Nepomuceno da <strong>UFRJ</strong>, do qual fazem parte cerca de 14 mil manuscritos musicais, a<br />

maioria proveniente do século XIX.<br />

Essa tarefa desenvolveu-se em articulação com diferentes projetos de pesquisa,<br />

sob minha responsabilidade: Ópera Brasileira em Língua Portuguesa, O Real Theatro de<br />

São João e o Imperial Theatro de São Pedro de Alcântara, Ópera e Música de Salão no Rio<br />

de Janeiro Oitocentista, Óperas e Mágicas em teatros e salões do Rio de Janeiro e de Lisboa<br />

(1870-1930), Teatro Musical no Rio de Janeiro e em Lisboa (1870-1930) – um estudo<br />

social e Registro Patrimonial de Manuscritos do Arquivo de Obras Raras da Biblioteca da<br />

Escola de Música da <strong>UFRJ</strong>. O tema da ópera em português perpassa todos esses projetos.<br />

A tarefa que desenvolvi nesse Arquivo, desde 1989, articulando-se com essas<br />

pesquisas sob minha responsabilidade, ofereceu à biblioteca subsídios à organização e<br />

catalogação do acervo, bem como contribuiu, através da digitalização de manuscritos<br />

(mais de 20 mil páginas digitalizadas). A íntima interação com esse material, através de<br />

procedimentos de pesquisa, permitiu a construção de conhecimentos de interesse para a<br />

musicologia no Brasil e em Portugal.<br />

Decorreram desse trabalho alguns levantamentos e catálogos, parcialmente publicados,<br />

que expandem as informações levantadas originalmente junto aos manuscritos,<br />

com informações primárias de diferentes documentos (periódicos, libretos, cartazes e<br />

programas de teatro, entre outros). Os principais levantamentos ou catálogos gerados<br />

nesse processo foram: “Ópera Brasileira em Língua Portuguesa”, “Teatros do Rio de Janeiro<br />

do Século XIX” (originalmente atribuída ao Teatro São João e ao Theatro São Pedro de Alcântara),<br />

“Coleção Guilherme de Mello”, “Levantamento Geral de Manuscritos da Biblioteca<br />

Alberto Nepomuceno”, “Mágicas no Brasil e Portugal”.<br />

Entre as coleções ou conjuntos de manuscritos que sofreram organização minuciosa,<br />

através das pesquisas citadas acima, destacamos a coleção de obras do Padre José<br />

Maurício Nunes da Silva, com insubstituível respaldo do Catálogo de obras do Padre<br />

elaborado pela professora Cleofe Person de Mattos, e a Coleção Guilherme de Mello,<br />

constituída de música de salão do século XIX, contendo exemplares atribuídos ao século<br />

XVIII.<br />

Há particular interesse para as observações aqui apresentadas o conjunto intitulado<br />

Ópera Brasileira em Língua Portuguesa e a coleção de obras atribuídas, originariamente,<br />

aos Teatros São João e São Pedro de Alcântara e que hoje, após a pesquisa desenvolvida<br />

sobre essa coleção, foi considerada como oriunda de vários “Teatros do Rio de<br />

Janeiro do Século XIX”, pois, segundo a investigação sobre esse conjunto de obras, esta é<br />

a origem mais provável.<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


304<br />

Paralelamente a esse extenso trabalho e às pesquisas a ele correlatas, as pesquisas<br />

que tenho coordenado têm empreendido um extenso levantamento em periódicos,<br />

principalmente oitocentistas, que tem contribuído significativamente para a elucidação<br />

de inúmeros aspectos pertinentes ao acervo em questão e para a musicologia brasileira.<br />

Já foram consultados e fichados, pela equipe de pesquisa sob minha coordenação,<br />

mais de 5.000 exemplares de periódicos do século XIX, dos quais resultam extensos bancos<br />

de dados que sistematizam as informações recolhidas. Esses dados fazem contraponto às<br />

informações obtidas nos manuscritos musicais, libretos e outros documentos, permitindo<br />

uma visualização mais profunda da trama social da época.<br />

Dessas frentes de trabalho decorrem, assim, as observações sobre óperas em<br />

português abordadas nesta exposição. A ênfase é dada ao Rio de Janeiro, nos séculos XIX,<br />

XX e XXI, restringindo-se ao círculo social de maior poder econômico, âmbito da ópera<br />

nessa cidade.<br />

Óperas em português<br />

A produção de óperas em português é mais extensa do que comumente se imagina<br />

e, embora seja habitualmente relacionada à proposta da Imperial Academia de Música<br />

e Ópera Nacional (meados do século XIX), na verdade antecede, em muito, a essa proposta<br />

e se desdobra até a atualidade.<br />

O levantamento “Ópera Brasileira em Língua Portuguesa”, já citado, relaciona<br />

332 títulos de óperas em português, produzidas do século XVIII à atualidade. Esse<br />

levantamento obviamente não é completo. A distribuição desses títulos através do tempo,<br />

em corte longitudinal, revela o seguinte traçado:<br />

- Século XVIII 6%<br />

- Século XIX (primeira metade) 5%<br />

- Século XIX (segunda metade) 25 %<br />

- Século XX (primeira metade) 36 %<br />

- Século XX (primeira metade) 18 %<br />

- Século XXI (primeiros anos) 10 %<br />

Observa-se, pelo perfil acima, que a produção mais intensa de óperas em português<br />

ocorre na primeira metade do século XX, sendo que, no século XXI, apesar de apenas<br />

uma década haver transcorrido, essa produção já se mostra significativa. Por outro lado,<br />

a produção do século XVIII aparece muito pequena, mas o fato de as pesquisas que coordeno<br />

não focalizarem o referido século certamente responde pela minimização desse<br />

percentual. É interessante observar que um brevíssimo levantamento de óperas em português,<br />

em Portugal, feito ao longo da pesquisa, apontou 39 títulos, o que revela, nesse esboço<br />

de levantamento, um caminho interessante a ser aprofundado por pesquisas futuras.<br />

Segundo Kiefer (1976) e diversos outros autores mais recentes, as primeiras óperas<br />

em português remontam ao século XVIII. Destacam-se, nesse período, as óperas do<br />

Judeu. Posteriormente, o Theatro São João foi inaugurado em 1813, no Rio de Janeiro,<br />

com uma ópera em português, e outras, também em vernáculo, foram encenadas na primeira<br />

metade do século XIX.<br />

A formalização, em meados do século passado, de um movimento visando à<br />

institucionalização da produção de óperas em português (a Imperial Academia de Música<br />

e Ópera Nacional), foi, sem dúvida, importante, e propiciou a canalização de recursos<br />

provenientes de extrações de loterias, com a finalidade de subvencionar o empreendimento.<br />

Não é, contudo, o marco inicial da produção de óperas em Português (informação<br />

esta que não é nova, mas que ainda é fruto de desconhecimento frequente).<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


305<br />

É importante observar que, com população predominantemente constituída de<br />

escravos e de analfabetos, e só tendo conhecido, ao longo do século XIX, condições razoáveis<br />

de higiene e de saneamento, a ópera e o luxo dos teatros do Rio de Janeiro floresceram<br />

no ambiente carioca oitocentista, associando a ópera às elites e á nobreza. É um espetáculo<br />

ligado à nobreza e à alta burguesia que se esboça nesse período. É “o passatempo de gente<br />

escolhida” (periódico A Actualidade, de 12 de fevereiro de 1859). Está ligada ao poder:<br />

simboliza, sublinha e valida esse poder. As citações a seguir ilustram essa observação:<br />

o Rio de Janeiro atravessa boa parte do século XIX sem iluminação nas ruas e<br />

sem sistema de esgotos, sendo os dejetos domésticos depositados em praça<br />

pública, mas, desde 1813, pouco depois da chegada da corte portuguesa, já se<br />

inaugurava o primeiro grande teatro de ópera – o Real Theatro de São João,<br />

com o costumeiro luxo na arquitetura e na decoração: veludos, dourados, sanefas<br />

etc. (Freire, 1995, p. 106-107)<br />

A criação da Imperial Academia de Música e Ópera Nacional não foi um movimento<br />

isolado ou desconectado da trama social da época. Todo o século XIX, segundo autores<br />

como Ianni (1994), foi atravessado por manifestações de caráter modernista e nacionalista,<br />

que se relacionam também à produção operística.<br />

A questão nacional é um tema constante no pensamento brasileiro. Diz respeito<br />

a como se cria e recria a nação, em cada época, conjuntura ou ocasião. [...] pode-se<br />

refletir sobre o Império e a República como formas históricas diferentes<br />

da nação. (Ianni, 1994, p. 8-9, grifo nosso).<br />

Essas manifestações ideológicas aparecem em documentos diversos, mesmo<br />

antes da independência do Brasil, e estão presentes nos jornais, desde o início do século<br />

XIX, persistindo ao longo de todo o período. Ou seja, o discurso modernista e nacionalista<br />

sublinha todas (ou quase todas) as grandes causas do século XIX e XX, seja a Guerra do<br />

Paraguai, seja a abolição da escravatura, seja o movimento republicano, entre outros.<br />

Foi sob o patrocínio da Imperial Academia de Música e Ópera Nacional que se<br />

iniciou a carreira profissional ou, pelo menos, teve início uma carreira com maior visibilidade,<br />

de vários compositores. Damos como exemplos os compositores Carlos Gomes (A<br />

Noite do Castelo, 1861 e Joanna de Flandres, 1863) e Elias Álvares Lobo (A Louca, 1861).<br />

Carlos Gomes estreou com uma ópera em português, em 4 de setembro de 1861, “A Noite<br />

do Castelo”, no Theatro Lyrico Fluminense, que lhe valeu a condecoração da ordem da<br />

Rosa, concedida pelo Imperador. Joanna de Flandres, encenada no mesmo teatro, também<br />

sob o manto da Ópera Nacional, tinha igualmente seu texto em português, e seu sucesso<br />

valeu a Carlos Gomes a nomeação para mestre da Capela Imperial (Carvalho, 1935).<br />

A ópera, gênero musical a que Carlos Gomes mais se dedicou, foi, sem dúvida, o<br />

preferido das classes sociais dominantes do Rio de Janeiro oitocentista, “o passatempo<br />

de gente escolhida”, como assinala o periódico A Actualidade, do Rio de Janeiro, já citado.<br />

A defesa da ópera nacional, com texto em português, não era, contudo, unânime, envolvendo<br />

controvérsias sobre a pertinência do canto em português e sobre o destino de verbas<br />

para a ópera brasileira ou para companhias italianas.<br />

[…] não faltou quem na organização e na existencia da Opera Nacional motejasse<br />

e tentasse vilipendiar tanto a ideia como sua realização […]. tão digna do apoio<br />

e da proteção de todos os Brazileiros amigos de sua patria, visto que ella vinha<br />

[…] estabelecer o cunho de sua arte, imprimindo-lhe ou fazendo de envolver o<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


306<br />

genero, o typo caracteristico da musica nacional [...] o que dá a nacionalidade é<br />

a linguagem de que se usa, em que está escripto o libreto e a partitura, e não o<br />

facto accidentalissimo do artista que canta essa partitura […]. (Jornal do<br />

Commercio, 1861)<br />

A defesa da ópera nacional, com texto em português, não era, portanto unânime.<br />

A controvérsia em torno da ópera chegava à Câmara, envolvendo o debate sobre verbas<br />

de apoio à ópera brasileira ou às companhias italianas. O interesse pelo canto em português<br />

aparece, contudo, desde o início do século XIX, em diversos momentos, como ilustram os<br />

exemplos a seguir.<br />

Em 1852, Raphael Coelho Machado publicou um Breve Tratado de Harmonia<br />

(Magaldi, 1995), provavelmente escrito anos antes, que dedicava um capítulo ao canto<br />

em português, evidenciando a preocupação com uso do nosso idioma cantado, antes da<br />

criação da Imperial Academia.<br />

Em 1857, A Revista Literária e Recreativa, além de discutir a necessidade de edificar<br />

um teatro apropriado para a Ópera Nacional, afirmava que já se provou que “a língua<br />

que falam os brasileiros e portugueses pode prestar-se, e presta-se realmente e de facto,<br />

a todas as variedades da musica lyrica theatral”.<br />

Complementando essa exemplificação, transcrevemos abaixo um comentário<br />

contido no periódico A Actualidade, de 24-nov., 1860, que, saudando a Ópera Nacional,<br />

observa: “irrogam uma injúria atroz à lingua portuguesa aquelles que dizem que ella não<br />

se presta bem ao canto. Depois da Italiana, nenhuma conhecemos que lhe leve a palma<br />

da clareza e suavidade dos sons, na facilidade e melodia da prosa”.<br />

O debate sobre o canto em português e sobre as verbas para a ópera prolifera<br />

nos periódicos. Em 1º de agosto de 1859, o jornal A Actualidade, discutiu a proposta do<br />

“Sr. Deputado Pacheco” para elevação, ao dobro, do número de loterias destinadas a subvencionar<br />

a empresa lírica, e lembra que “as loterias concedidas ao theatro lyrico e a<br />

opera nacional forão uma das mais valentes armas, de que se servio essa opposição [partidos<br />

políticos de oposição] para combater o gabinete de 4 de maio”.<br />

A ópera não era, portanto, somente o “passatempo” das elites, mas movimentava<br />

quantias vultosas, na forma de subvenções, e gerava debates políticos na câmara, no senado<br />

e nos jornais:<br />

Não nos digão que o ministerio não tem que ver com o theatro lyrico. Esse estabelecimento,<br />

que tem custado ao Estado boas centenas de contos de réis e a<br />

quem ainda dá elle cerca de 120:000 $ 000 por anno além do edifício, que representa<br />

um avultadíssimo capital, além das alfaias, do guarda-roupa, que não custarão<br />

ahi qualquer migalha. Este estabelecimento, para o qual se vai levantar<br />

um monumento, que custará seus 2 000:000 $ 000, não pode ser considerado<br />

senão como a mais mimosa e a mais bem dotada das repartições do serviço público.<br />

(A Actualidade, 1º-ago., 1859)<br />

Ao longo do ano de 1859, o mesmo periódico prosseguiu, em diversos números,<br />

discutindo as subvenções ao teatro lírico, o apoio às companhias italianas (em detrimento<br />

das nacionais), questionando o canto em língua estrangeira e a concorrência desigual à<br />

ópera nacional.<br />

Em 7 de julho de 1860, ao discutir as subvenções e loterias que patrocinavam o<br />

teatro lírico, A Actualidade afirmava que esse apoio ocorria “porque entendia-se que o<br />

Brasil próspero não podia deixar de possuir um theatro de canto em italiano [e que] o<br />

theatro lyrico era uma necessidade da conciliação: convinha distrahir o público das<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


307<br />

questões políticas” (grifos nossos). Ou seja, o viés político/ideológico relativo à ópera<br />

transparece nessa afirmativa, mesmo quando o discurso advoga a necessidade de “distrair”<br />

o público das questões políticas.<br />

As divergências sobre o canto em português atravessaram, portanto, o século<br />

XIX e penetraram no século seguinte. Alberto Nepomuceno, na transição entre esses dois<br />

séculos, destaca-se como um dos nomes que batalharam pelo canto em português, embora<br />

também tenha produzido obras em outros idiomas. Segundo Romero (2007), Joaquim<br />

Rodrigues Barbosa, ao anunciar o programa de concerto de apresentação de Nepomuceno,<br />

após seus estudos na Alemanha, dava destaque aos versos em língua portuguesa, afirmando<br />

que “apesar de sua longa residência na Europa, tem um amor imenso à sua pátria<br />

e às coisas de sua terra [...] acredita que a nossa língua é muito musical e tem todas as qualidades<br />

para adaptar-se ao canto” (Romero, 2007, p. 108). Essa convicção custou, a Nepomuceno,<br />

confrontos diversos, que evidenciam a controvérsia, ainda ao tempo de Nepomuceno,<br />

sobre o canto em português, controvérsia essa que a ópera já refletia há tempos.<br />

A ópera foi, sem dúvida, um evento de grande importância no ambiente carioca<br />

oitocentista, assim como os debates sobre o uso do idioma português no canto. O espaço<br />

ocupado nos jornais da época é um dos importantes testemunhos a esse respeito. Além<br />

disso, a importância da ópera pode ser rastreada nas melodias das modinhas e no repertório<br />

das igrejas, e no fato de ter gerado grande parte do repertório pianístico do século<br />

XIX, no Rio de Janeiro (reduções, fantasias, arranjos etc.). Esse repertório derivado da<br />

ópera ecoou nos salões cariocas em todo aquele período, ao som das vozes e dos pianos<br />

de músicos amadores e profissionais, apresentando-se lado a lado.<br />

Observamos, assim, que o emprego do português vernáculo aconteceu, efetivamente,<br />

como um gesto político, a partir de meados do século XIX (embora a produção<br />

de óperas em português seja muito anterior a esse momento). Cabe lembrar, mais uma<br />

vez, que o uso do texto de óperas em português não foi uma “criação” do movimento pela<br />

Ópera Nacional e que o nacionalismo faz parte do ideário da época, não só no Brasil,<br />

como tema intelectual, político e estético (Burke, 2010), como podemos observar na citação<br />

a seguir, extraída do Jornal do Commercio, de 7 de julho de 1861:<br />

O dia de hoje recorda o acontecimento mais notável dos fatos do Brazil, commemorando<br />

a fundação da nossa nacionalidade. […] A constituição jurada em 1825,<br />

no conceito de nação, encerra a resolução dos problemas sociaes, monumento<br />

de sabedoria política levantado pelo patriotismo de nossos pais […]. Os seus<br />

preceitos são os dogmas da religião política do Brazil, que o santo amor da pátria<br />

tem gravado com buril eterno no coração de seus filhos. Saudamos o anniversario<br />

do dia grandioso de que datão [datam] a independencia e a nacionalidade brazileira,<br />

e […] enviamos ao céo os nossos mais sinceros votos pela prosperidade da<br />

pátria. (grifos nossos)<br />

Revela-se, portanto, na leitura de documentos oitocentistas, inclusive de periódicos,<br />

a atualidade e a importância do nacionalismo, como tema relevante à época, expressando<br />

uma vertente ideológica do período, que, paralelamente a outras, também transparece,<br />

subjacente às óperas: liberalismo e nacionalismo, expressos no orgulho pela independência<br />

e pela afirmação da nacionalidade; positivismo e conservadorismo, expressos<br />

nos “dogmas da religião política” e no “santo amor à pátria”; nos “votos de prosperidade<br />

à pátria”, além da inspiração positivista, transparece, através do desejo de progresso, um<br />

ideal de modernidade...<br />

Em torno do ideário nacionalista/progressista/modernista se encontram as duas<br />

tendências políticas contraditórias, dominantes à época – o liberalismo e o conserva-<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


308<br />

dorismo. As diferenças ideológicas entre essas duas correntes se diluíam, aparentemente,<br />

no discurso pela liberdade, pela afirmação nacional e na expectativa quanto ao progresso<br />

da nação… E essa afirmação passava, também, pelo teatro de ópera. Foi nesse pano de<br />

fundo que emergiu, no Rio de Janeiro, o movimento pela institucionalização da ópera nacional.<br />

Óperas em português, música, ideologias<br />

Observamos que não somente no idioma se dava a consumação de “brasilidade”<br />

nas óperas, expressando o ideal nacionalista. Luiz Heitor Correia de Azevedo (1987) assinala<br />

indícios de “brasilidade” nas duas primeiras óperas de Carlos Gomes, escritas em português,<br />

convergindo, em sua opinião, com os comentários feitos, na época, pelo Jornal do<br />

Commercio, referindo-se à Joanna de Flandres:<br />

a melodia […] tem momentos de abandono em que deixa os céus mediterrâneos<br />

pela ardência dos trópicos e evoca […] qualquer coisa que está bem próxima de<br />

nós, bem no centro de nossa sensibilidade musical: qualquer coisa que, sem ritmos<br />

sincopados, sem sétimas abaixadas, parece-nos […] música do Brasil. (Azevedo,<br />

1987, p. 99-100)<br />

A despeito das evidências do uso de fórmulas comuns às óperas italianas, Luiz<br />

Heitor refere-se, ainda, a “certo jeito das modinhas do tempo”, apontando, assim, características<br />

do cancioneiro brasileiro permeadas às da ópera italiana, na produção de Carlos<br />

Gomes.<br />

Nacionalismo, no século XIX, se expressava nesse jogo entre modelos europeus<br />

(sobretudo italianos), “perfumes” melódicos e harmônicos brasileiros, “jeito” de modinhas,<br />

texto em português. Assim se afirmava a nacionalidade, em meados do século XIX, e Carlos<br />

Gomes, talvez mais veementemente que outros músicos de sua época, assim o fez.<br />

Squeff e Wisnik (2001, p. 22) divergem de Azevedo (1987) e não reconhecem<br />

brasilidade na música de Carlos Gomes, pois consideram que o compositor “valeu-se de<br />

aspectos literários para engrossar a filosofia nacionalista do Segundo Império”. Segundo<br />

eles, Carlos Gomes corresponde a “algum tipo de nacionalismo” pelo uso de temas literários<br />

ou personagens nacionais, embora faça música predominantemente europeia, configurando<br />

“não apenas a fórmula do sucesso, mas pior, da conciliação”. Seu apelo ao “exótico”,<br />

segundo o gosto e o modismo da época, seria a chave para conciliar as fórmulas<br />

musicais da ópera italiana com a temática nacional, gerando um “nacionalismo alienado”,<br />

que “renega a realidade, mesmo quando pode interferir nela” (Squeff e Wisnik, 2001, p.<br />

30).<br />

Carvalho (1935) relata o empenho de Carlos Gomes em conseguir, na Itália, instrumentos<br />

de percussão que lhe assegurassem a sonoridade necessária à ambientação da<br />

temática indígena, e contesta aqueles que acusaram o compositor de só escrever música<br />

italiana, assinalando que suas melodias têm um sabor que evoca nossas selvas, cheias da<br />

luz fulgurante e do ruído misterioso de nossa natureza. E conclui afirmando que a música<br />

de Carlos Gomes tem, como qualidade essencial, ser a música mais genuinamente brasileira<br />

que jamais se escrevera.<br />

Nogueira (2006) considera que a obra de Carlos Gomes revela um conflito (ideológico<br />

e musical) entre procedimentos estéticos desenvolvidos na ópera italiana à época<br />

da unificação da Itália e a “necessidade estética do compositor de avançar com outras<br />

tendências, de estar atento, enfim, ao mundo da criação musical do final do século XIX”<br />

(p.31). A análise de Nogueira valoriza o processo de síntese de diferentes características<br />

ou de hibridização na obra do compositor.<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


309<br />

Consideramos que essas interpretações divergentes sobre a ópera de Carlos Gomes<br />

refletem diferentes concepções e diferentes momentos, sendo, de certa forma, aplicáveis<br />

às demais óperas do período, nas quais a música sublinha, por contraste ou por afinidade,<br />

significados subjacentes, muitas vezes contraditórios entre si, participando, assim,<br />

de sua elaboração, de sua disseminação e de sua permanência. Significados são entendidos<br />

neste trabalho como remissão a “outra coisa que” (Castoriadis, 1991 apud Freire, 1994),<br />

expressando valores vigentes à época.<br />

Entendemos que, assim, as óperas em português, sobretudo no século XIX e início<br />

do século XX, expõem, nos diversos espaços (palcos dos teatros, plateia, camarotes<br />

etc.), concepções ideológicas divergentes, associadas a hibridismos musicais diversos e a<br />

libretos que veiculam significados igualmente contraditórios. Esses hibridismos celebram<br />

sínteses entre aspectos diversos, amalgamando contradições e contrastes.<br />

Essas contradições e contrastes transparecem nos personagens, como no caso<br />

de índios que se comportam segundo valores europeus, nos enredos das óperas, como,<br />

por exemplo, em óperas ambientadas em acontecimentos históricos da Europa, bem como<br />

nas músicas, que hibridizam elementos de diferentes gêneros, estilos e procedências. A<br />

maioria do povo, contudo, não participa desse processo, já que não frequenta o teatro,<br />

pois, no Rio de Janeiro oitocentista os espetáculos de ópera são acessíveis apenas ao público<br />

restrito, de melhor poder econômico.<br />

As óperas de Carlos Gomes fornecem bons exemplos dessas contradições. Nas<br />

primeiras óperas em português, A Noite do Castelo e Joanna de Flandres, a temática é<br />

estrangeira (Cruzadas), com modelagem geral de inspiração italiana e com traços melódicos<br />

e harmônicos “dos trópicos”. Em Il Guarany, apesar da temática nacional, o texto original<br />

é em italiano (há versão posterior em português). Convivem traços musicais de brasilidade<br />

com modelos musicais da ópera italiana. A temática indígena, que seria o aval de O Guarani<br />

como nacionalista, é contraditória, pois opera a entrega do índio ao branco, em imolação<br />

voluntária (mito sacrificial), simbolizando a tensão dialética entre colonizador/colonizado,<br />

culminando com o sacrifício sublime e espontâneo do último (Bosi, 1992).<br />

Assim, as óperas oitocentistas em português (não só as de Carlos Gomes) processam<br />

um jogo dialético: ora a temática estrangeira domina, ainda que cantada em idioma<br />

nacional; ora a temática nacional, permeada de contradições, submete-se ao idioma<br />

estrangeiro. O mesmo ocorre nas construções musicais: tensão dialética entre fórmulas<br />

italianas e formas de expressão musical típicas do Brasil, como a modinha, prevalecendo,<br />

porém, o domínio do colonizador...<br />

A proposta de nacionalismo musical do movimento modernista, no início do<br />

século XX, repetiu no nível simbólico o mesmo jogo: o folclore nacional, absorvido pela<br />

linguagem musical “universal”, repete o rito sacrificial do colonizado, segundo avaliação<br />

de Bosi (1992).<br />

Observa-se, assim, nesse jogo contraditório de concepções, musicais e<br />

ideológicas, o encontro ou a hibridização de diferentes significados (Freire, 1994): significados<br />

residuais, provenientes dos modelos musicais europeus, aqui imitados; de significados<br />

atuais, presente nos “jeitos” de modinhas, e outros “jeitos” aqui delineados; e<br />

significados latentes, que só iriam se explicitar, aprofundar ou desenvolver posteriormente,<br />

como, por exemplo, no movimento nacionalista, desencadeado pela Semana de Arte Moderna,<br />

que, como se vê, não era absolutamente novo.<br />

O desejo de afirmação nacional aparece, portanto, subjacente a toda essa produção,<br />

articulando a valorização de elementos da cultura local com a imitação de elementos<br />

estrangeiros. Essa afirmação envolve expectativas de modernidade e de modernização,<br />

ideologias também importantes na sociedade brasileira oitocentista e que estão<br />

subjacentes à produção de óperas em português, estendendo-se ao século XX.<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


310<br />

Esse processo de construção de identidade passa por duas etapas não necessariamente<br />

sucessivas: uma de imitação, em que a simples cópia do modelo europeu<br />

é uma forma de afirmação, uma forma de se dizer no mesmo nível que a<br />

metrópole; outra de síntese, de elaboração conjunta de elementos musicais,<br />

segundo articulações de sentido aqui engendradas e articulações de sentido<br />

originárias da Europa. (Freire, 1995, p. 107-108)<br />

Esse jogo dialético é descrito por Mattos (1986 apud Freire, 1995) como duas faces<br />

de uma mesma moeda – um jogo de imitação, ou de ênfase nas semelhanças com a<br />

metrópole, a partir do qual os homens livres do Império se reconhecessem e se fizessem<br />

reconhecer como membros do “mundo civilizado”, animado pelo ideal de progresso; e<br />

um jogo de diferenças, que consiste em distinguir o Império Brasileiro das nações mais<br />

civilizadas da Europa, pelo modo pacífico como se constituiu, pela peculiaridade de sua<br />

posição geográfica, pelo seu exotismo etc.<br />

Cunha (1987, p. 187), analisando a ópera O Escravo, da qual há versão em português,<br />

enfatiza esse jogo dialético, apontando o retorno ao “exotismo”, bem como o uso<br />

de “acentos rítmicos”, contornos melódicos peculiares, “instrumental selvagem”, configurando<br />

a presença de “estranhezas rítmicas e temas de sabor agreste e mesmo selvagem<br />

que nada têm a ver com a música da Europa e muito menos com a italiana.” O mesmo autor<br />

identifica, nessa ópera, traços de verismo, junto a traços “patrióticos”. Segundo o mesmo<br />

autor, a característica marcante de O Escravo é “a beleza e variedade das melodias,<br />

com acompanhamentos que, na maioria, fogem ao tradicionalismo lírico italiano pela<br />

originalidade da concepção” (p. 189).<br />

Divergindo de Cunha, que exalta características nacionais em Carlos Gomes, no<br />

jogo dialético acima mencionado, Squeff e Wisnik (2001), referindo-se a O Escravo, destacam<br />

que a crítica internacional apenas assinalou “cor local” no prelúdio do quarto ato, na<br />

Alvorada, com o gorjeio dos pássaros etc., ressaltando, contudo, a inclusão, no final do<br />

prelúdio, de uma alusão remota ao Hino Nacional brasileiro: “O compositor não acede<br />

que suas obras devam ser nacionais no sentido radical de ir ao folclore – mas que têm que<br />

ser tematicamente nacionalistas. Inclusive na alusão deliberada a temas incorporados ao inconsciente<br />

coletivo e que se mantêm conceitualmente vivos” (Squeff e Wisnik, 2001, p. 23).<br />

Os mesmos autores consideram que Carlos Gomes esquivou-se de comprometerse,<br />

efetivamente, com questões relativas à escravidão negra e ao colonialismo, optando<br />

por colocar índios, e não negros, como escravos, na ópera. O compositor teria evitado,<br />

segundo Squeff e Wisnik, posicionar-se como “acusador de uma sociedade que não cessar<br />

de explorar a mão de obra escrava – caso do Brasil; e como crítico das sociedades européias<br />

em geral, quase todas elas com inequívoca vocação colonialista, não disfarçadamente racistas”<br />

(Squeff e Wisnik, 2001, p. 26).<br />

À proclamação da República, em 1889, corresponderam mudanças ideológicas<br />

na sociedade e no Imperial Conservatório, que passou, com o novo regime, a denominarse<br />

Instituto Nacional de Música e a buscar novas prioridades estéticas. O italianismo que<br />

dominara todo o cenário musical oitocentista foi sendo parcialmente substituído, sem,<br />

contudo, desaparecer, e sem que haja unanimidade quanto a essa troca, por modelos<br />

franceses e germânicos. Aliás, as elites da cidade do Rio de Janeiro aspiravam a um afrancesamento,<br />

que se expressa de muitas formas nos primeiros tempos da República, e tem<br />

um de seus pontos máximos na campanha “o Rio civiliza-se”, desencadeada no início do<br />

século XX, gerando muitas demolições e alargamento de ruas e avenidas, à busca de se<br />

aproximar de modelos urbanísticos parisienses.<br />

Carvalho (1935), referindo-se à frustrada nomeação de Carlos Gomes para o<br />

Conservatório de Música do Rio de Janeiro, nos primeiros tempos da república, considera<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


311<br />

que o maestro foi banido, apesar de constituir gloria nacional indiscutível, porque, segundo<br />

ela, o compositor não era considerado wagneriano por Dr. Luiz de Castro, Rodrigues Barbosa<br />

e Leopoldo Miguez, entre outros. E conclui afirmando que não se fazia grande questão<br />

de música brasileira, preferiam-se, ao invés, bons copistas “teutões”. A estética germânica<br />

é valorizada por Miguez, primeiro diretor do recém criado Instituto.<br />

Novos tempos se anunciavam, e a ópera, como uma das instâncias expressivas<br />

da sociedade, também transforma os significados que processa, pelo menos em parte.<br />

Novos tempos: teatro e cinema, óperas e filmes<br />

Com a chegada de novos tempos (primeiros tempos da República), a ópera, que<br />

teve forte uso emblemático pelo poder monárquico, entrou em decadência juntamente<br />

com o declínio do regime monárquico e com o início do cinema (Freire, 2004). Lembramos<br />

que em 1896 foi produzido o primeiro filme no Rio de Janeiro (Capellaro; Ferreira, 1996).<br />

No ano, portanto, da morte do compositor, iniciava-se a produção de filmes na<br />

cidade, mas já tramitava, desde meados do século XIX, uma ascensão de outros gêneros<br />

de entretenimento para a população, alguns deles predecessores do cinema, que apontavam<br />

para uma substituição de meios de comunicação e de expressão, com evidente declínio<br />

da ópera. Em setembro de 1861, época do primeiro sucesso operístico de Carlos<br />

Gomes (A noite do Castelo), já figurava no Jornal do Commercio um anúncio do “gabinete<br />

optico”, exibindo “vistas” de países da Europa e alusivas a alguns eventos importantes da<br />

época.<br />

Lanternas mágicas, cosmoramas, agioscópios e outros espetáculos visuais, com<br />

emprego de novas tecnologias, substituiriam, sorrateiramente, a ópera, na preferência<br />

do público. É preciso notar que esses meios de entretenimento tinham um apelo estético<br />

e ideológico fundamentalmente diferente da ópera, pois, ao contrário dela, que, numa<br />

concepção fortemente moldada pelo romantismo, veiculava sempre conteúdos idealizados<br />

e distantes da realidade do momento, o cinematógrafo e seus antecessores sempre tenderam<br />

a privilegiar a atualidade. A realidade atual não era importante na literatura romântica,<br />

inclusive nos libretos de ópera, em que os sentimentos conflituosos tendiam a<br />

ser tratados como paixões, destituídos de implicações sociais. A representação se dava no<br />

âmbito dos conflitos pessoais menores, resolvidos, na trama, pela punição dos transgressores.<br />

No cinema, gradativamente, novos significados ganharam importância. No processo<br />

de transição de modelos estéticos, há que se registrar a grande quantidade de óperas,<br />

operetas e outros gêneros dramático-musicais – filmados nos primeiros tempos do cinematógrafo<br />

– cedendo lugar, gradativamente, a documentários e a outros filmes de ambientação<br />

contemporânea. O exemplo a seguir ilustra essa situação:<br />

UM FILME IMPORTANTE. A empresa S. Lazzaro empreendeu extrair uma fita de<br />

O Guarani, a mais popular das óperas de Carlos Gomes. […] A partitura sofreu ligeiros<br />

cortes, apenas os indispensáveis para organizar o filme, cujo desdobramento<br />

não poderia ter a duração de toda a ópera. Os artistas que cantam<br />

no palco, por trás do pano branco, não sacrificaram, por sua vez, a música de<br />

Carlos Gomes, e o público manifestou o seu agrado pelos mais entusiásticos<br />

aplausos. A empresa já está cuidando da montagem da Cavalleria e de outras<br />

óperas. (Gazeta de Notícias, 19-abr., 1911)<br />

A “crise” da ópera é evidente, e pode ser ilustrada pelo comentário de um articulista<br />

da Revista Fon-Fon, de 30 de novembro de 1907, que declarava que: “O [Teatro]<br />

Lírico já tem um falante [cinematógrafo], que, em breve, se aperfeiçoado, matará a própria<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


312<br />

Ópera” (apud Araújo, 1985). Além da “crise” do gênero operístico, a “crise” do teatro, em<br />

geral, é assinalada por muitos comentaristas nos jornais do final do século XIX e início do<br />

século XX. Essas “crises”, contudo, eram na verdade decorrentes do confronto entre duas<br />

culturas ou duas tradições, a “erudita” e a “popular”, e não o fim da música, da ópera ou<br />

do teatro, tal como lastimado por diversos intelectuais da época.<br />

Carlos Gomes morreu sem pressentir que, poucos anos depois, os principais<br />

teatros de ópera do Rio de Janeiro, inclusive o Teatro São Pedro de Alcântara e o Teatro Lírico,<br />

seriam transformados em cines-teatro, apresentando espetáculos mistos de palco e<br />

tela para poderem sobreviver.<br />

O cinema absorveu não só o teatro de ópera, pois são muitas as óperas e operetas<br />

filmadas nesses primeiros tempos do cinema, no Rio de Janeiro, mas também absorveu<br />

em grande parte as manifestações do “teatro ligeiro”, como os espetáculos de “revista”<br />

que, permeados de humor, passavam em revista os fatos políticos e sociais do momento.<br />

Foram muitas as peças de revista apresentadas no novo cinematógrafo, numa prova inequívoca<br />

da mudança que se processava nos meios de comunicação.<br />

Apesar das mudanças, contudo, o viés nacionalista penetrou o século XX, com<br />

outros matizes. A Semana de Arte Moderna, realizada em 1922, manteve esse viés e o<br />

reforçou com um ideário articulado por intelectuais da época. O nacionalismo oitocentista<br />

tinha semelhanças com as concepções da Semana de Arte Moderna e do início do século<br />

XX, embora cada um tivesse suas peculiaridades, pois nenhuma concepção é atemporal<br />

ou isenta de historicidade. Alguns traços desses nacionalismos perduraram ao longo do<br />

século XX, com diferentes nuances, inclusive nas óperas.<br />

As óperas em português do século XIX e da primeira metade do século XX expressam,<br />

de forma semelhante, ideais e significados contraditórios. Há mais elementos de<br />

continuidade que de ruptura, entre elas. De certa forma, a ideologia nacionalista está<br />

subjacente em vários aspectos que se contrapõem dialeticamente, apesar de novos significados<br />

e novas linguagens musicais se fazerem presentes: liberdade e independência<br />

versus submissão; idealização romântica versus realismo; modernismo versus conservadorismo;<br />

afirmação de identidade diferenciada versus busca de igualar-se ao estrangeiro.<br />

Assim como o século XIX foi “costurado” por ideais conflitantes de independência,<br />

de progresso, de modernismo, de nacionalismo, a música, e, sobretudo, a ópera, também<br />

fez parte deste “alinhavo” ideológico e conflituoso da época. Squeff e Wisnik (2001, p. 25)<br />

consideram que, em certo sentido, a ópera para o Brasil representou quase o inverso do<br />

que foi para a Europa, pois, enquanto em países como Itália e Alemanha, a ópera acompanha<br />

a unificação nacional, no Brasil é apenas a extensão de um espetáculo dramático<br />

que pouco ou nada tem a ver com a realidade do país, explorado em vários níveis e<br />

inconsciente de suas possibilidades como nação. Embora não seja esse o objetivo da<br />

observação dos dois autores, ela reforça a interpretação de conflito ideológico conduzida<br />

nesta exposição.<br />

Na concepção de nacionalismo elaborada no movimento modernista do início<br />

do século XX, sobretudo por Mário de Andrade, foi formulada uma versão do nacionalismo<br />

musical que resultaria da absorção do folclore pela música “universal”. Passou-se, assim,<br />

a considerar a Semana como o marco do nacionalismo e do modernismo, como a “inventora”<br />

dessas concepções na arte brasileira, configurando uma ruptura com concepções<br />

anteriores. A realidade, contudo, não é bem essa, pois muitos elementos do pensamento<br />

e da estética dos séculos anteriores persistiram no ideário modernista e posteriormente<br />

a ele, como vestígios do passado, envoltos em novos significados e conflitos.<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


313<br />

Considerações finais<br />

Ao longo do século XX, as significações ideológicas ligadas à ópera se transformaram.<br />

Óperas em outro idioma ainda são compostas no início do século XX, mas gradativamente<br />

passam a ser concebidas quase exclusivamente em português. Textos em<br />

outros idiomas, como latim ou grego, são utilizados, muitas vezes em busca de um efeito<br />

sonoro especial.<br />

Significados antigos persistem subjacentes a muitas delas, como resíduos. O viés<br />

nacional transparece em muitas óperas compostas a partir do século XX, tendo como tema<br />

personagens ou passagens da história do Brasil. Damos como exemplos: Castro Alves<br />

(de José Siqueira, s.d.), Farrapos (de Roberto Eggers, 1936), A Descoberta do Brasil (de<br />

Eleazar de Carvalho, 1939), A Cabanagem (de Manoel Belarmino da Costa, 1949), Anita<br />

Garibaldi (de H. Geyer, 1950), A Lenda do Bicho Turuna (Lindemberg Cardoso, 1974), Domitila<br />

(de João Guilherme Ripper, 2000), Olga (de Jorge Antunes, 2006), entre outras. A<br />

temática histórica, contudo, cede muitas vezes importância, no drama, aos conflitos e<br />

paixões pessoais, tal como nas óperas do século anterior, embora em algumas, como<br />

Olga, de Jorge Antunes, o conteúdo político prevaleça.<br />

As óperas passam, assim, gradativamente a expressar as ideologias e estéticas<br />

dos séculos XX e XXI: expressionismo, impressionismo, existencialismo, minimalismo, vanguardismo<br />

e outras, sobrepostas a resíduos do passado. Temas da contemporaneidade e<br />

da atualidade política são expostos, por vezes mais cruamente, em cena. Novos recursos<br />

dramáticos, composicionais e sonoros são incorporados (Jorge Antunes e Jocy de Oliveira<br />

são exemplos importantes). A formação instrumental e o elenco são frequentemente<br />

reduzidos, muitas vezes como forma de torná-las viáveis, economicamente.<br />

Talvez por esses motivos, as óperas do século XIX e do início do século XX ainda<br />

são as que têm maior receptividade pelo público “cativo” do gênero, que busca reencontrar<br />

as mesmas fórmulas estéticas, as mesmas árias famosas, e nem sempre aprecia as inovações.<br />

Apresentamos, a seguir, alguns exemplos de Óperas brasileiras do século XX,<br />

cujo enredo resumido permite entrever algumas concepções subjacentes, aliando significados<br />

residuais, atuais e latentes:<br />

Sonho de uma Noite de Luar (1916-1917), de J. Otaviano Gonçalves. O enredo<br />

trata de um homem que, relendo velhas cartas de amor, evoca a figura infantil de sua<br />

amada Edel. Na exaltação em que se encontra vê surgir Edel, com 15 anos, como a conhecera,<br />

e têm um longo colóquio. Logo em seguida, a verdadeira Edel, muito sacrificada<br />

pelas lutas da vida, vem visitá-lo e, em vão, tentam reacender a chama do amor entre eles.<br />

Sóror Madalena (1926), de Alberto Costa, conta a história de uma freira, num<br />

hospital, que visita, numa noite de carnaval, o homem agonizante que no passado a seduziu<br />

e abandonou. Ele lhe pede perdão e, antes que morra, ela o beija na boca. Depois, arrependida,<br />

corre a pedir perdão a Deus na capela, e o Senhor lhe dá o sinal de que perdoou<br />

sua fraqueza.<br />

Um Homem Só (1962), de Camargo Guarnieri. Trata de um funcionário público<br />

solitário, procurando sentido para sua vida, em diversas situações, sem encontrar resposta:<br />

em conversas com uma catadora de papéis; com um psicanalista; em visita a uma igreja,<br />

onde tampouco encontra consolo; no encontro com Rita, uma jovem desgastada pela<br />

vida, que passa a noite com ele, mas depois recusa uma relação permanente. Por fim encontra<br />

a morte e, num cortejo fúnebre, é acompanhado por todos aqueles que nunca o<br />

souberam compreender.<br />

Olga (2006), de Jorge Antunes, conta a história da revolucionária Olga Benário<br />

Prestes e seu romance com Luis Carlos Prestes, com final trágico da heroína em campos<br />

de concentração alemães.<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


314<br />

A presença de diferentes recursos composicionais e sonoros na ópera Olga serve,<br />

aqui, para ilustrar as novas tendências estéticas presentes nas óperas mais recentes: “[...]<br />

usa linguagem musical moderna [...] adota melodias neotonais mescladas a música experimental<br />

[...] inserções eletroacústicas, referências ao folclore nordestino e citações da<br />

ópera Tristão e Isolda, de Richard Wagner, entre outros elementos” (Folha de São Paulo<br />

apud Hartkopf, 2010).<br />

Nos quatro exemplos, persistem algumas fórmulas que embalaram as óperas<br />

oitocentistas, como o drama dos amores impossíveis, o desajuste à realidade social, a culpa<br />

e a punição pela transgressão de normas sociais, etc. Embora com outra roupagem,<br />

com uso de novas linguagens musicais e com temáticas atuais, as óperas dos séculos XX e<br />

XXI muitas vezes perpetuam, de certa forma, a essência do gênero, que garantiu seu sucesso<br />

no século XIX.<br />

O “mundo da ópera” corresponde, originalmente, a um universo político e ideológico<br />

que não é exatamente o do final do século XIX, nem o do século XX ou XXI. Contudo,<br />

a magia de suas melodias e histórias fantásticas exerce, até hoje, um encanto sedutor sobre<br />

os ouvintes.<br />

Talvez você já faça parte de outro mundo, mas se a loucura das histéricas pôde<br />

passar da fogueira à ópera, e durar ainda através do extraordinário esplendor<br />

de suas vozes, sem dúvida se escondem, também, nos recantos de sua cabeça,<br />

os grandes mitos impensados dos quais você é, sem saber, prisioneiro. A ópera<br />

é a síntese desses mitos; melhor do que qualquer livro ela soube expô-los em<br />

toda sua grandeza passada. Ela os faz viver, sobreviver, ressuscitar; mantém no<br />

prazer cego as duras leis familiares e políticas. É preciso saber olhar esses mitos<br />

no fundo de seu olhar deslumbrante. (Clément, 1993, p. 243)<br />

A ópera oitocentista deixou, sem dúvida, suas reverberações não só nos teatros<br />

do Rio de Janeiro, onde ainda se apresentam algumas poucas óperas a cada ano, mas,<br />

também, nos ecos nos pianos e nas vozes das classes mais aquinhoadas, através das melodias<br />

das óperas arranjadas para uso doméstico. Nos cursos de música do Rio de Janeiro,<br />

os de canto e de piano ocuparam, durante muito tempo, no século XX, um lugar de destaque,<br />

como reflexo remoto da importância dada à ópera no anterior, mas esse interesse<br />

entra em declínio, no final do século XX. Mudou a sociedade, mudou o país, mudou o<br />

mundo. A ópera é um espetáculo indelevelmente ligado a um mundo que não existe<br />

mais, mas ainda tem seu fascínio, ainda que sob novos valores e formas.<br />

Referências bibliográficas<br />

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Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


317<br />

O teatro lírico no Brasil meridional:<br />

origens e percursos<br />

Ezio da Rocha Bittencourt<br />

Universidade Federal do Mato Grosso do Sul<br />

Origens do teatro lírico no Brasil Meridional (séculos XVIII e XIX)<br />

As mais antigas apresentações líricas que faço registro na então Capitania do<br />

Rio Grande de São Pedro do Sul datam de 1760, na localidade de São Borja, como ponto<br />

alto das celebrações à coroação de Carlos III, de Espanha. Pouco após a Guerra Guaranítica,<br />

em região ocupada pelo exército de D. Pedro Cevallos e então pertencente à Castela, índios<br />

guaranis, orientados por padres jesuítas espanhóis levaram a feito as óperas Rei Orontes<br />

do Egito, Felipe V, Pastores do Nascimento do Deus Menino e O Nascimento (Andreotti,<br />

1995, p. 22-23). A Reconquista portuguesa da Vila de Rio Grande em 1776, após os treze<br />

anos de domínio espanhol, foi igualmente comemorada com diversos festejos que incluíram<br />

trechos de óperas em italiano apresentados por militares da Coroa lusa. 1<br />

Em finais do século XVIII surgiram no Rio Grande do Sul (RS) e na Região Platina<br />

as primeiras casas de espetáculos denominadas de Casas-da-Ópera ou Casas-da-Comédia<br />

que passaram a albergar as representações cênicas. O termo “ópera” abrangia tanto as<br />

comédias quanto os dramas e até verdadeiras peças líricas, ou mais comumente, alguns<br />

trechos, “cortinas operísticas ”, todas estas manifestações entremeadas por músicas. Nestes<br />

ambientes o repertório deixou progressivamente de ter influência medieval e adotou modelos<br />

napolitanos da “opera-buffa” tão em voga na Lisboa Setecentista.<br />

Com a instalação da Corte Portuguesa no Rio de Janeiro em 1808 e a construção<br />

do Real Teatro de São João (1813), o país recebeu os primeiros elencos profissionais estrangeiros<br />

que impulsionaram a ópera no Brasil, atendendo, inicialmente, às necessidades<br />

culturais desta fidalguia europeia recentemente instalada na nova capital do Império Lusitano.<br />

Em verdade foi o compositor Marcos Portugal quem introduziu no país, o gosto pela<br />

ópera italiana, da qual ele próprio era legítimo representante. Era o mais importante músico<br />

português de sua época, tinha estudado em Nápoles onde se tornou amigo de Cimarosa.<br />

Chegou ao Brasil em 1811 sendo nomeado mestre-de-capela da Capela Real recémcriada<br />

por D. João VI. Estilisticamente sua produção pertence ao Rococó e à Itália. Escreveu<br />

músicas sacras para a Capela Real, modinhas populares e várias óperas destinadas a divertir<br />

a Corte. Nas décadas de 1810 e 1820 a figura dominante de Marcos Portugal e a extraordinária<br />

presença da ópera italiana se infiltraram na produção dos músicos deste período<br />

e colaboraram decisivamente no sucesso da vertente lírica peninsular no país ao longo<br />

desse século.<br />

O gosto pela ópera italiana serviu igualmente para manter o interesse do público<br />

brasileiro pela música durante o Primeiro Reinado e a Regência, períodos em que a vida<br />

musical brasileira carecia de instituições de peso que pudessem, verdadeiramente,<br />

organizá-la. Na Corte, o Imperial Teatro São Pedro de Alcântara (1826), que sucedeu o<br />

Real Teatro, tornou-se o centro das atividades operísticas no país e o compositor Gioacchino<br />

Rossini (1792-1868) o grande responsável pela manutenção da chama musical na capital<br />

durante boa parte da primeira metade do século XIX. Aliás, musicalmente, este período<br />

...........................................................................<br />

1 Essa informação foi obtida por Francisco Riopardense de Macedo em manuscritos existentes na Biblioteca de<br />

Évora, em Portugal (Macedo, 1971).<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


318<br />

pertenceu grandemente ao compositor. Óperas como Il barbiere di Seviglia, La Cenerentola;<br />

L’italiana in Algeri; La gazza ladra, gozaram de enorme popularidade à época.<br />

O prestígio da ópera italiana foi tão importante que chegou a influenciar as modinhas,<br />

canções brasileiras sentimentais ou tristes, e mesmo contaminar a música sacra.<br />

Vasco Mariz em sua História da música no Brasil revela que trechos de óperas italianas<br />

eram adaptados e executados frequentemente, nas igrejas e que esta prática perdurou<br />

até a primeira metade do século XX no país (Mariz, 1981, p. 49).<br />

A ópera revelou-se igualmente um tema literário observado nas obras de vários<br />

literatos brasileiros, sendo inclusive recorrente nas criações de José de Alencar e de Machado<br />

de Assis – autores seduzidos também pelo teatro e pela vida mundana em geral.<br />

José de Alencar em Cinco Minutos faz referência à opera Il Trovador, de Verdi:<br />

A todo momento parecia-me ouvir na brisa da noite essa frase do Trovador, tão<br />

cheia de melancolia e de sentimento, que resumia para mim toda uma história.<br />

Desde então não se representava uma só vez esta ópera que eu não fosse ao<br />

teatro, ao menos para ter o prazer de ouvi-la repetir. A princípio, por uma intuição<br />

natural, julguei que ela devia, como eu, admirar essa sublime harmonia de Verdi,<br />

que devia também ir sempre ao teatro. (Alencar, 1997)<br />

A frase da ópera verdiniana que o personagem se apropria a fim de exprimir seu<br />

desespero ante ao desconhecimento da identidade da mulher pela qual está apaixonado<br />

é “Nem sequer um nome!”. Ele se vale da ópera, de sua dramaticidade e melodia, para<br />

melhor manifestar o sentimento de aflição que o invadia.<br />

Em Encarnação, Alencar retrata a personagem Julieta que, no foyer do Teatro Lírico,<br />

canta a ária da Lucia de Lammemoor, de Donizetti, seduzindo o personagem Hermano.<br />

Outra personagem, Amália, é igualmente marcada pelas melodias operísticas que<br />

recorda. Na obra Pata da gazela a ópera Lucia de Lammemoor é mais uma vez mencionada,<br />

sendo apontada como “o mais sublime poema de melancolia, que já se escreveu na língua<br />

dos anjos”.<br />

Machado de Assis, tanto na literatura quanto no jornalismo, enfoca igualmente<br />

muitas noitadas do Teatro Lírico retratando, inclusive, artistas da época: sopranos, tenores,<br />

barítono que povoavam os espetáculos operísticos do Rio de Janeiro nos finais do<br />

Oitocentos como as italianas Candiani e Zecchini. Em Memórias póstumas de Brás Cubas,<br />

a filha do personagem Damasceno canta, ao piano, uma ária de Ernani, de Verdi. Em A semana,<br />

Machado de Assis faz referência às óperas Tannhäuser e Lohengrin, de Wagner e<br />

Les Huguenots, de Meyerbeer. Depreende-se então que a ópera ocupava uma posição de<br />

destaque na vida brasileira, invadindo a literatura e povoando as crônicas.<br />

Dos finais do século XVIII e por toda a primeira metade do século XIX o gênero<br />

ópera observou um extraordinário crescimento na Europa, superior então a todas as épocas<br />

precedentes. O período registra as últimas composições de Mozart, as de Weber e do jovem<br />

Wagner, na Alemanha e na Áustria; as de Rossini, Donizetti, Bellini e do jovem Verdi, na<br />

Itália. Foram esses autores os maiores expoentes musicais surgidos nesta época marcada<br />

por uma grande difusão das manifestações artísticas das nações europeias entre si. Uma conseqüência<br />

destes contatos foi o surgimento do Romantismo em vários domínios da arte,<br />

por volta de 1800, nas Grã-Bretanha, França, Alemanha, sobretudo. No Brasil, este movimento<br />

chegou somente em finais da década de 1830 e afetou primeiramente a literatura.<br />

Em termos operísticos, no conjunto das tendências criadoras do Romantismo<br />

musical brasileiro, o movimento mais importante foi, sem dúvida, aquele que buscou na<br />

década de 1850 a criação da “ópera brasileira”, nacionalizada tanto pelos temas apresentados<br />

quanto pela utilização de libretos em língua portuguesa. Foi neste período que<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


319<br />

o sentimento nativista amadureceu no teatro lírico brasileiro. Deve-se mencionar que a<br />

primeira ópera brasileira escrita em português foi Marília de Itamaracá (1854), composta<br />

pelo alemão Adolf Maersch residente no Rio, com libreto de Simoni.<br />

Em 1857 foi criada a Imperial Academia de Música e Ópera Nacional. Na direção<br />

da instituição estava o espanhol José Zapata y Amat. Entusiasta do gênero zarzuela, que<br />

por esta época vinha passando por um reflorescimento na Espanha, Amat empreendeu<br />

uma campanha para que o gênero fosse transplantado para o Brasil como modelo a ser<br />

seguido pelos compositores nacionais. No mesmo ano de sua fundação, a instituição promoveu<br />

a encenação de uma zarzuela traduzida em português intitulada A estréia de uma<br />

artista, que alcançou grande sucesso e estimulou o projeto. Em 14 meses, Amat conseguiu<br />

levar a cena 62 zarzuelas, óperas cômicas italianas e a ópera Norma, de Bellini, todas traduzidas<br />

para o português. Em 1860, a Ópera Lírica Nacional substituiu a Imperial Academia.<br />

Buscou-se então dar estímulo à elaboração de uma ópera “genuinamente brasileira”. Surgiram<br />

algumas peças: a ópera-cômica A noite de São João (1860), de Elias Álvares Lobo<br />

com libreto de José de Alencar foi a primeira ópera de música e libreto de autores nacionais;<br />

A noite no castelo (1861), de Carlos Gomes, libreto de Antônio José Fernandes dos Reis,<br />

Joanna de Flandres (1863), de Carlos Gomes com libreto de Salvador de Mendonça; O vagabundo<br />

(1863), de Henrique Alves de Mesquita. Algumas óperas e muitas zarzuelas foram<br />

igualmente traduzidas para o idioma português neste período. Contam-se, igualmente,<br />

adaptações de obras francesas em português.<br />

Sob o Segundo Reinado algumas instituições culturais promoveram um período<br />

excepcional na vida musical brasileira marcado por estímulos a produção nacional e pela<br />

representação de óperas de compositores e libretistas brasileiros com textos em português.<br />

Talvez este período tenha sido o de maior brilho exterior da música brasileira e, sem dúvida,<br />

o auge da produção operística de autores nacionais. O imperador D. Pedro II foi,<br />

notadamente, um dos chefes de Estado brasileiros mais afeiçoados às artes e em especial<br />

a música, exercendo o papel de mecenas de vários artistas enviados à Europa para aperfeiçoamento,<br />

a suas expensas. O mesmo pode-se dizer do apreço musical de D. Pedro I ele<br />

próprio músico e compositor, assim como seu pai D. João VI grande responsável pelo<br />

desenvolvimento cultural da capital do país nas primeiras décadas do século XIX.<br />

Todavia, apesar dos esforços empregados, faltaram reais condições para que a<br />

ópera nacional pudesse encontrar espaço e se afirmar em um universo musicalmente italiano<br />

no qual estava emerso o país e onde o interesse econômico dos empresários das<br />

grandes companhias líricas (estrangeiras e italianas, sobretudo) e dos teatros ditava o<br />

tom. Outrossim, somava-se a real dificuldade de cantores líricos lusófonos. Não existia no<br />

país um quadro significativo de cantores brasileiros de qualidade que conseguissem garantir<br />

a boa encenação de uma ópera, o que obrigava recorrer a elencos estrangeiros que, na<br />

sua grande maioria, não dominavam o idioma português. Foi o que aconteceu com a<br />

ópera Joanna de Flandres de Carlos Gomes, representada, em 1863, no Rio de Janeiro. Os<br />

artistas eram todos italianos, não entendiam o idioma nacional e a plateia não pode nem<br />

sequer verificar em que língua eles cantavam devido à péssima pronúncia. Outra questão<br />

importante era que as óperas consagradas do repertório estrangeiro eram mais lucrativamente<br />

rendosas que as criações nacionais com libretos por vezes deficitários, e compositores<br />

desprovidos de uma sólida tradição musical como os italianos. Assim, face às<br />

inúmeras dificuldades encontradas, naufragou a tentativa da “ópera nacional” iniciada<br />

em 1852 e a ópera italiana continuou serena em seu longo reinado nos palcos brasileiros. 2<br />

...........................................................................<br />

2 Este movimento buscou a autoafirmação nacional através da valorização da língua portuguesa; dos temas históricos<br />

brasileiros para óperas e cantatas, com tendências indianistas e antiescravistas. Esses aspectos não eram, necessariamente,<br />

coincidentes entre si. A música, entretanto, continuava sendo grandemente de inspiração europeia (Kiefer,<br />

1977, p. 77-78).<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


320<br />

Desta feita, foram as companhias estrangeiras, notadamente as italianas e mais<br />

raramente as francesas e as espanholas, que dominaram a cena operística da Corte e de<br />

outros centros urbanos do país durante o século XIX. Conforme Bruno Kiefer, “a ópera italiana<br />

impregnava os ouvidos de todo mundo, mas sobretudo da classe mais abastada que<br />

vivia em função de padrões e da transplantação sumária da cultura europeia” (Kiefer,<br />

1977, p. 82). O bel canto italiano gozava de uma popularidade tão grande no país que<br />

quase fazia parte da estrutura mental do brasileiro. Segundo o registro de peças líricas representadas<br />

na Corte elaborado por Ayres de Andrade, observa-se um predomínio quase<br />

que absoluto das óperas italianas A título de exemplo, no ano de 1859, realizou-se um total<br />

de 73 espetáculos com 17 óperas, todas italianas e predominando composições de<br />

Donizetti e Verdi. No ano seguinte, foram produzidas somente 31 récitas onde igualmente<br />

estes autores imperaram (Andrade, 1967).<br />

Conforme alguns autores, o movimento em prol da ópera nacional falhou, ou<br />

no mínimo, não alcançou todos os objetivos desejados, importantes foram seus frutos.<br />

Dentre eles Carlos Gomes (1836-1896) tornou-se o mais notável, sendo o primeiro compositor<br />

brasileiro cuja obra alcançou verdadeiramente larga repercussão na Europa. Seu<br />

sucesso internacional debutou em 1870 com a estréia no Teatro Alla Scala, de Milão de<br />

sua terceira peça lírica, uma ópera-baile em 4 atos intitulada Il Guarany baseada no romance<br />

homônimo de José de Alencar, de 1857, obra-prima do romantismo indianista que<br />

busca as origens da nacionalidade brasileira. Escrita em italiano ela possui libreto de Antonio<br />

Scalvini concluído por Carlo D’Ormeville. Sucesso junto ao público milanês, ela foi<br />

encenada 12 vezes no ano de sua estreia sendo no ano seguinte incluída no repertório do<br />

Scala. Foi igualmente encenada em vários teatros da península e em outros países da Europa.<br />

Assim, o reconhecimento internacional da música brasileira nasceu por intermédio<br />

da ópera. O compositor tinha como principais modelos Bellini, Donizetti e, sobretudo,<br />

Verdi.<br />

Il Guarany narra a história de amor entre dois jovens: o índio Peri e a jovem<br />

branca Cecília. Ela se desenrola no litoral do Rio de Janeiro, por volta de 1560, na época<br />

da colonização. Em sua urdidura, Cecília, filha do fidalgo português D. Antônio de Mariz,<br />

desperta a paixão em quatro homens: no espanhol Gonzales, no português D. Álvaro, no<br />

Cacique Aimoré e no jovem guarani Peri. Após várias aventuras, lutas entre caçadores de<br />

índios e tribos de nativos, intrigas, tentativas de rapto, aprisionamentos, e outros qüiprocós<br />

que bem caracterizam o melodrama romântico, os jovens amantes encontram-se e selam<br />

a nova união. No final da peça somente Peri e Cecília sobrevivem aos morticínios.<br />

O personagem Peri, é o índio idealizado (nobre, fiel, bravo e cortês), a representação<br />

do brasileiro original; Cecília veicula a imagem feminina ideal (bela, meiga e<br />

delicada); Gonzales é o inimigo, o espanhol ávido de ganho; D. Mariz é o fidalgo de moral<br />

imaculada preocupado com o bom casamento de sua filha; D. Álvaro personifica o cavalheiro<br />

irrepreensível. O amor puro surgido de um encontro casual, a amizade transformada<br />

em paixão que transpõe as barreiras étnicas e culturais existentes entre os amantes marca<br />

o enredo da ópera. Valendo-se do romanesco, ela pode ser vista também como uma<br />

narrativa da dizimação indígena que marcou o processo de colonização portuguesa da<br />

América. Ela igualmente deixa ver as disputas territoriais e econômicas entre os reinos<br />

ibéricos pelas novas terras descobertas; revela a dureza dos princípios da colonização.<br />

Temas envolvidos diretamente com a formação do país e que fazem desta obra um marco<br />

na fundação da nacionalidade brasileira. Daí, um dos motivos de seu imenso sucesso no<br />

Brasil, tanto sob a forma literária original de Alencar, quanto na adaptação lírica de Gomes.<br />

Assim, é correto afirmar que Il Guarany é a ópera nacional dos brasileiros. Ela exerce uma<br />

função comparável àquela das óperas de Glinka para os russos, das de Smetana para os<br />

tchecos, ou da Freischütz, de Weber, para os alemães, por exemplo.<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


321<br />

Todavia, musicalmente, Il Guarany é uma ópera grandemente filiada à tradição<br />

italiana que dominava o gênero nesta época. Conforme o musicólogo Franco Abbiati, ela<br />

é um “melodrama romântico admirável e sólido […], uma obra sincera e cordial,<br />

italianíssima, ou melhor, verdíssima em tudo: libreto e música, drama e canto, corte cênico<br />

e tradicionalismo formal” (Abbiati, 1960, p. 237). A personalidade do autor revela-se,<br />

todavia, em numerosos trechos, manifestando-se mais visivelmente em sua célebre<br />

Sinfonia. Esta criação é sem dúvidas, a mais célebre ópera de Gomes e do repertório<br />

nacional de todos os tempos. Foi graças ao libreto em italiano e a composição melódica<br />

consonante aos ditames da Península Itálica, que o músico brasileiro pode penetrar no<br />

concorrido e seleto templo maior da ópera e, destarte, receber o reconhecimento mundial<br />

de sua obra.<br />

Se a carreira brasileira de Gomes é marcada por várias modinhas, valsas,<br />

mazurcas, transcrições de temas folclóricos negros (notadamente de lundus) e óperas em<br />

português, seu aperfeiçoamento na Itália – espécie de Meca operística dos países latinos<br />

– acentuou sobremaneira o modelo italiano em sua produção lírica. 3 Ao Il Guarany,<br />

seguiram outras óperas onde a filiação ao melodismo italiano é notória, Salvador Rosa<br />

(1874), Maria Tudor (1879), Lo Schiavo (1889), Condor (1891). Uma exceção à regra foi<br />

sua quarta ópera, Fosca (1873), em que o autor introduziu alguns leitmotivs, à maneira<br />

wagneriana o que provocou o protesto dos partidários da corrente italiana que batiam-se<br />

contra as influências germânicas no gênero lírico. Assim, se após 1870 Gomes dedicou-se<br />

ao melodrama italiano, sua obra não deixou de transparecer certos traços brasileiros que<br />

caracterizaram sua formação anterior.<br />

Todavia, deve-se admitir que na produção lírica de Carlos Gomes, assim como<br />

de outros músicos eruditos e operístas nacionais do período, observa-se uma arte<br />

majoritariamente europeia, mesmo que os nacionalistas se interessassem pelas coisas<br />

do Brasil. Se musicalmente o compositor não renovou a tradição europeia, o fato de cantar<br />

o índio brasileiro, mesmo que em italiano, e revelar a exuberância da natureza tropical do<br />

país em grandiosos cenários, forneceu uma projeção internacional à jovem nação que<br />

construía sua identidade. E aqui cabe lembrar que o nacionalismo do século XIX<br />

diferenciava-se do nacionalismo andradino do século XX. Sobre seu caráter oitocentista,<br />

esclarece Alberto Pacheco e Adriana Kayama:<br />

Os nativistas do século XIX não pretendiam uma ruptura estética com os moldes<br />

musicais europeus. Resumidamente, podemos dizer que, neste século,<br />

consideravam como nacionalista a música composta com texto em português.<br />

Também era tida como nacional a música em língua estrangeira, mas com libreto<br />

cujo tema fosse nativista; ou mesmo qualquer produção musical que<br />

impressionasse a Europa e afirmasse a grandeza do Brasil, mostrando que os<br />

músicos brasileiros de então eram capazes de produzir música de grande<br />

qualidade. (Pacheco, 2007, p. 28)<br />

No século XIX podem-se definir três grandes escolas operísticas, ou seja, a original<br />

italiana, a alemã que se opunha à fundadora, e a francesa que buscava fugir das influências<br />

das duas precedentes. Na vertente italiana Gioacchino Rossini (1792-1868), na primeira<br />

metade do século, e Giuseppe Verdi (1813-1901), na segunda, eram os principais<br />

compositores. Na escola alemã fundada por Wolfgang Mozart (1756-1791) e mais tarde<br />

Karl Maria Von Weber (1786-1826), Richard Wagner (1813-1883) era o expoente maior<br />

deste século. Já o modelo francês de ópera foi construído por Hector Berlioz (1803-1869),<br />

...........................................................................<br />

3 O aperfeiçoamento de Gomes na Itália deu-se a partir de 1864, sob o patrocínio do Imperador D. Pedro II.<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


322<br />

Charles Gounod (1818-1893), Jacques Offenbach (1819-1880) e Georges Bizet (1838-1875).<br />

Se tradicionalmente as óperas eram escritas na língua italiana, as escolas alemã e francesa<br />

impuseram-na os idiomas de seus países. Igualmente as melodias italianas foram abandonadas<br />

em proveito de uma musicalidade representativa desses países. No gosto brasileiro<br />

predominou, todavia, as composições italianas de grande invenção melódica e destaque<br />

para o canto. Conforme Fernando de Azevedo:<br />

Entre as duas principais orientações na composição de óperas dessa época – a<br />

que nos vinha da Itália, como herança de Verdi e outros compositores da península,<br />

representada por Mascagni, Leoncavallo, Puccini, e a outra que tem sua<br />

origem em Wagner e Strauss, e na qual prevalece a música de programa em que<br />

a orquestra tem o papel primordial, – foi aquela, a orientação italiana, que exerceu<br />

maior influência nos compositores de óperas nacionais. (Azevedo, 1940, p. 474)<br />

Cabe destacar que a produção operística de Richard Wagner foi introduzida no<br />

país em 1883, quando foi encenada pela primeira vez a ópera Tannhäuser, uma das mais<br />

célebres e exemplo do nacionalismo romântico alemão. Se Weber organizou a ópera alemã<br />

oitocentista inspirando-se no medievo e na mitologia germânica, Wagner foi seu legítimo<br />

herdeiro, marcando com sua “arte integral” a música deste século XIX.<br />

Contrapondo-se ao apreço generalizado pela ópera, as plateias nacionais, praticamente,<br />

ignoravam os grandes compositores de música erudita. Todavia, a partir da segunda<br />

metade do século XIX assistiu-se uma lenta, mas progressiva, diversificação do repertório<br />

importado, devido a ação das sociedades musicais que se faziam fundar não somente<br />

na Corte mas em várias cidades do país estimulando a arte musical e alargando o<br />

repertório habitualmente conhecido. Começaram então a se desenvolver concertos musicais<br />

com repertório mais erudito e que fugia do melodismo das óperas italianas. A música<br />

culta alemã principiou a ser introduzida e, gradativamente, ganhou espaço na cena<br />

brasileira. 4<br />

No século XIX muitos conjuntos profissionais de ópera se apresentaram no Rio<br />

Grande do Sul. Mais do que em qualquer outra forma teatral, foi neste gênero que a presença<br />

fundadora italiana se fez mais fortemente marcante. Italianos formavam a maior<br />

parte das companhias, dos diretores artísticos, dos cantores, e quase todo o repertório<br />

executado. A primeira companhia que tenho notícia a apresentar ao público sulino peças<br />

operísticas em sua integralidade foi a Lírica Italiana, dirigida por Domingos Calcagno, que<br />

ocupou o Teatro Sete de Setembro, da cidade de Rio Grande, em março e em novembro<br />

de 1854, levando a cena, entre outras, Norma, de Bellini e Ernani, de Verdi. 5 Foi, entretanto,<br />

a partir da década de 1860 que a Província mais meridional do Império do Brasil passou a<br />

receber mais sistematicamente estes conjuntos e a beneficiar da encenação de óperas<br />

completas. 6 Se vários foram os conjuntos operísticos que realizaram espetáculo nos teatros<br />

do Sul, somente um conjunto francês quebrou o monopólio italiano neste século: a Companhia<br />

Lírica Francesa Verneuil, mas cujo repertório, apesar de algumas óperas, centrava-se<br />

no gênero opereta.<br />

...........................................................................<br />

4 Em finais do século XIX autores como Schubert, Mendelssohn e Schumann, entre outros começaram a ser<br />

divulgados no país.<br />

5 Bittencourt, 1998, p. 13, 15. M. P. F. J. Fatos e Coisas de Antanho. Jornal Rio Grande. Rio Grande, 25-mar., 1942;<br />

17-nov., 1944.<br />

6 Dentre eles cito a Companhia Lírica Italiana; Companhia Lírica Italiana Cavedagni; Companhia Lírica Italiana<br />

Narizano; Companhia Lírica Italiana Lambiase; Companhia Lírica Italiana Tartini; Companhia Lírica Italiana Mattia-<br />

Pezzoni; Grande Companhia Lírica Italiana Guelfo Poltromieri; Companhia Lírica Italiana De Mattia; Companhia<br />

Lírica Italiana Sanzone; Companhia Lírica Italiana Cartocci & Cia.<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


323<br />

Das peças líricas mais representadas na segunda metade do Oitocentos nos teatros<br />

sulinos destacaram-se Ernani (1844) e Trovador (1853), ambas de Giuseppe Verdi,<br />

mas também Norma (1831), de Vincenzo Bellini e Lucia de Lammermoor (1835), de Gaetano<br />

Donizetti.<br />

Se, como já foi dito, a primeira metade do século XIX pertenceu, musicalmente,<br />

a Gioachino Rossini, a segunda correspondeu a Giuseppe Verdi. A música rossiniana é repleta<br />

de melodias brilhantes e aparentemente fáceis, adaptadas à sociedade da época da<br />

Restauração. Vincenzo Bellini é, classificado por alguns como um sub-Rossini da sociedade<br />

parisiense, de forte invenção melódica, mas de pouca harmonia. Verdi, um dos mais populares<br />

operístas da história da música, fixou para seus contemporâneos e para a posteridade<br />

a imagem de uma riqueza inesgotável de melodias dramáticas, tipicamente italianas.<br />

Assim, não poderia ser outro o compositor, a não ser Verdi, o mais encenado<br />

nesta segunda metade do século XIX no Rio Grande do Sul. Sua vastíssima produção de<br />

grande dramaticidade coloca em evidência sua predileção por temas históricos e literários.<br />

Igualmentre importante, a produção de Donizetti, Bellini e Rossini, autores também marcados<br />

pela literatura e pela história. 7 Além dos supracitados, outros compositores italianos<br />

foram percebidos: Puccini, Boito, Giordano, Petrella, Ponchielli, Paganini, Mascagni, Leoncavallo,<br />

sobretudo, que imprimiram no gosto operístico do público sulino a marca das<br />

melodias italianas.<br />

Segundando, a grande distância, os compositores italianos observo certos autores<br />

franceses como Charles Gounod; Daniel Auber e Georges Bizet; além de Jacques Offenbach;<br />

Giacomo Meyerbeer e Franz Von Suppé. 8<br />

Dos compositores brasileiros marcaram presença Carlos Gomes com a ópera Il<br />

Guarany (1870) e Delgado de Carvalho com Moema (1894) encenada pela primeira vez<br />

no sul em 1896. 9<br />

Um dos primeiros artistas profissionais a se apresentarem nos teatros do Rio<br />

Grande do Sul com um repertório operístico foi o casal de italianos Tereza Questa e Paulo<br />

Rondelli que realizaram vários espetáculos no Teatro Pedro II, de Porto Alegre, em 1850,<br />

executando trechos seletos de Verdi e Donizetti: os dois compositores mais populares da<br />

época. Em 1855 estes mesmos artistas, auxiliados pelo cantor Leguori, realizaram outras<br />

récitas no pequeno teatro executando além dos autores supracitados, árias de óperas de<br />

Bellini.<br />

A Grande Lírica Italiana, que já havia conquistado as plateias de Buenos Aires e<br />

de Montevidéu, estreou no dia 26 de setembro de 1877 no Teatro São Pedro, da capital da<br />

Província, executando Macbeth, Il Trovatore, Ballo in Maschera, Ernani, Aída, de Verdi,<br />

Ruy Blas, de Filipo Marchetti, La Favorita, de Donizetti, Fausto, de Gounod e Il Guarany,<br />

de Carlos Gomes, apontado pela crítica como “o grande brasileiro vitoriado nos centros<br />

mais cultos do mundo civilizado!”. Esta é a primeira ocorrência que possuo do Il Guarany,<br />

nos palcos do Rio Grande do Sul. 10 Devido a desentendimentos entre seus componentes o<br />

conjunto se desfez. Em 19 de outubro estreou no Sete de Abril, de Pelotas a Companhia<br />

...........................................................................<br />

7 De Verdi figuraram nos palcos sulinos numerosas criações: Ernani, Trovador, Belisario, Os lombardos, I due<br />

foscari, Atila, Traviata, Nabucodonossor, Luisa Miller, Macbeth, Rigoletto, Ballo in maschera, Aida, Força do<br />

destino. Também de relevância a produção de Donizetti (Linda di Chamounix, Lucia di Lammemoor, Don Pasquale,<br />

Norma, Elisir d’amore, Lucrezia Borgia, Favorita, Maria de Rohan); de Rossini (Guilherme Tell, O barbeiro de<br />

Sevilha, Semiramides) e de Bellini (Sonambula, Norma, Os puritanos).<br />

8 Charles Gounod (Faust); Daniel Auber (Fra Diavolo) e Georges Bizet (Carmen); além de Jacques Offenbach (Os<br />

contos de Hoffman, uma ópera fantástica); Giacomo Meyerbeer (L’africaine, Os huguenotes); Franz Von Suppé<br />

(Boccacio).<br />

9 Não confundir com a ópera Moema (1889), de Assis Pacheco.<br />

10 Mesmo se o levantamento da programação dos teatros sulinos não está completo, apresentando inclusive<br />

muitas lacunas, posso afirmar que a ópera Il Guarany foi encenada no RS, no mínimo, nos anos de 1877, 1881,<br />

1894, 1896, 1904, 1905, 1907, 1908, 1910, 1913, 1920, 1921, 1926, 1928, 1929, 1931 e 1939.<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


324<br />

Lírica Italiana, da empresa Narizano que acredito ter sido organizada com elementos oriundos<br />

da antiga formação. Executando o mesmo repertório, a Narizano deu seis récitas<br />

nesta cidade. Dirigindo-se à cidade de Rio Grande, apresentou-se no popular Anfiteatro<br />

Abano Pereira em 30 de outubro com a ópera Fausto, do francês Charles Gounod. Por<br />

não ter hasteado a bandeira nacional, logo ao subir o pano de boca, a companhia estrangeira<br />

sofreu uma vigorosa pateada 11 provinda do público das bancadas indignado com o<br />

descaso à nação brasileira. O protesto foi acompanhado do exterior do edifício por pedradas<br />

e pauladas no tabuado e no telhado de zinco, desferidas por cerca de mais de trezentas<br />

pessoas que rodeavam a construção. “Era um barulho infernal”, pronunciava o Diário do<br />

Rio Grande, de 1º de novembro deste ano. O subdelegado teve que intervir ordenando a<br />

suspensão do espetáculo. No dia seguinte a companhia embarcou no vapor Cervantes<br />

deixando a cidade. 12<br />

Tal como essa companhia, muitas outras que excursionaram pelo Rio Grande do<br />

Sul eram provenientes dos teatros platinos ou direcionavam-se a estas casas de espetáculos<br />

após suas temporadas na Corte e em outras grandes cidades do Império do Brasil. Buenos<br />

Aires era a capital latino-americana da ópera e foi nesta cidade onde melhor se desenvolveu<br />

o teatro lírico com a formação de um público fiel e temporadas operísticas ininterruptas.<br />

Nos seus primeiros anos de funcionamento o portenho Teatro Colón foi uma sucursal do<br />

Teatro Alla Scala, de Milão, o qual ditava o modelo a ser seguido. 13 A proximidade do Rio<br />

Grande do Sul daquela capital metropolitana facilitou assim o contato das plateias sulinas<br />

com o universo da ópera. Deve-se ter presente, entretanto, que o público das cidades<br />

gaúchas não possuía a mesma tradição e as exigências do portenho. No Rio Grande do<br />

Sul, as temporadas operísticas nunca apresentaram a mesma continuidade observada na<br />

capital Argentina; muito ao contrário, houve anos em que a ópera esteve completamente<br />

ausente dos palcos regionais. Uma análise comparativa entre a movimentação teatral do<br />

Teatro Colón elaborada por Roberto Caamaño e a percebida nas cenas do Rio Grande do<br />

Sul, revela que o público sul-rio-grandense, mostrou-se bem mais conservador que o<br />

portenho em relação aos programas operísticos, não aceitando com a mesma abertura<br />

de espírito as mudanças do gênero lírico e suas novas correntes. (Caamaño, 1956, p. 87)<br />

Em verdade, as plateias sulinas contentavam-se com os malabarismos vocais dos cantores,<br />

com as exibições de virtuosidade na voz e associavam ópera, essencialmente, com a vertente<br />

italiana.<br />

A Companhia Lírica Italiana De Mattia, frequentou o palco do Teatro São Pedro,<br />

de Porto Alegre de 27 de outubro de 1894 a janeiro do próximo ano. Sob a regência do<br />

maestro Provesi, ela executou um repertório operístico conhecido, com peças de Verdi,<br />

Ponchielli, Mascagni, Donizetti, Gounod etc. A novidade coube a Les Huguenots, de Giacomo<br />

Meyerbeer, que pode ser considerado o criador da grande ópera francesa, misturando<br />

o estilo melódico italiano, a ópera literária francesa e o romantismo alemão, e<br />

cujo objetivo era sempre o forte efeito teatral. Pronunciando-se sobre esta obra, a crítica<br />

local disse que era uma criação de envergadura sendo seu prelúdio “tecido sobre o célebre<br />

Coro Luterano, ainda hoje cantado pelo Protestantismo em seus severos templos, era,<br />

sem dúvida alguma, a mais bela, a mais imponente parte da grande composição musical,<br />

pois ali apareciam extraordinárias revelações do quanto valia o talento da privilegiada<br />

mentalidade alemã” (Damasceno, 1956, p. 277). A ideia da superioridade germânica espe-<br />

...........................................................................<br />

11 Expressão utilizada na época, que nomeia batida com os pés no chão em sinal de reprovação ou desagrado. É<br />

interessante ressaltar que esta era uma prática muito comum nos teatros, sobretudo do século XIX, inclusive na<br />

Europa. Conforme consta, as óperas Carmem, de Georges Bizet e Maria Tudor, de Carlos Gomes quando estrearam<br />

no Scala, de Milão, não agradaram a assistência e foram fragorosamente “pateadas”.<br />

12 Diário do Rio Grande, 30-out., 1877.<br />

13 E aqui deve ser lembrado que Milão era a capital mundial da ópera, com um público sofisticado e importantes<br />

editores de música.<br />

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325<br />

cificamente, e norte-europeia de maneira mais geral, depreendida dessa observação está<br />

completamente de acordo com as correntes de pensamento que na Belle Époque apregoavam<br />

a posição de destaque da civilização europeia no mundo. Em Pelotas, a De Mattia<br />

proporcionou 13 récitas à plateia do Sete de Abril e, em Rio Grande atuou em fevereiro<br />

de 1895. No dia 8 promoveu a primeira audição local da ópera La Gioconda, de Ponchielli<br />

que, composta em 1876, ainda não havia sido executada na cidade. 14<br />

Analisando a produção musical, sobretudo a europeia, de 1789 a 1848, o historiador<br />

Eric Hobsbawm classifica este período como sendo de um extraordinário florescimento<br />

artístico; meio século alicerçado sobretudo no Romantismo e que incluiu na<br />

ópera nomes como Bellini, Donizetti, Verdi, Wagner, e outros jamais superados (Hobsbawm,<br />

1977, p. 298). Se na área musical o repertório já era basicamente internacional, no<br />

período de 1870 a 1914 outras formas de criações artísticas se tornaram mais do que nunca<br />

internacionalizadas. Esse recorte temporal não deve, portanto, ser estudado em termos de<br />

suas realizações. Ele deve ser apreendido não a partir de sua produção, mas do desenvolvimento<br />

de seu consumo, que foi notável. Nas palavras do autor, “o nítido aumento do tamanho<br />

e da riqueza de uma classe média urbana [mundial] capaz de dar mais atenção à cultura,<br />

bem como a grande extensão da classe média baixa e de setores das classes trabalhadores<br />

instruídos e com sede de cultura, teria sido suficiente para garantir esse desenvolvimento”<br />

(Hobsbawm, 1988, p.310). 15 Já Arno Mayer afirma que até 1914, “mesmo a nação mais<br />

industrializada e imperialista da Europa contava com uma cultura oficial [establishment]<br />

singularmente tradicional” uma vez que “as revoluções industriais compactas não conseguiram<br />

incitar novas visões, símbolos e cânones” (Mayer, 1990, p. 212-193).<br />

Entre 1875 e 1914 o moderno repertório operístico internacional ainda estava<br />

sendo elaborado e centrava-se em compositores como Puccini, Mascagni, Leoncavallo,<br />

Strauss, Wagner e Janecek. A análise da movimentação teatral no Rio Grande do Sul revela,<br />

então, que os programas executados estavam em sintonia com as tendências percebidas<br />

na Europa concernentes aos compositores italianos, mas completamente em defasagem<br />

às demais correntes. O alemão Wagner, o austríaco Strauss ou o tcheco Janecek estavam<br />

ausentes dos repertórios apresentados ao público sulino. Para compreender esta situação<br />

de bipolaridade, basta lembrar que os conjuntos operísticos estrangeiros que se apresentavam<br />

nos teatros do Sul eram quase que absolutamente italianos e, por evidência, divulgavam<br />

o repertório da Península. Não possuo nenhum registro de companhias de óperas<br />

alemãs que tivessem se exibido nestes espaços.<br />

A ópera no Rio Grande do Sul em princípios do século XX<br />

(décadas de 1900 e 1910)<br />

Nas duas primeiras décadas do século XX as companhias operísticas oriundas da<br />

Península Itálica tornaram-se absolutas nas cenas do Rio Grande do Sul. 16 Observo que<br />

neste período o gosto do público gaúcho recaiu sobre peças do repertório verista tais<br />

como La Bohème e Tosca, de Giacomo Puccini; Cavalaria Rusticana, de Pietro Mascagni e<br />

Palhaços, de Rugiero Leoncavallo que figuram como as óperas mais encenadas. Entretanto<br />

Verdi, com seu imenso repertório e, sobretudo, com Aida, La traviata, Rigoletto e Trovador,<br />

...........................................................................<br />

14 Damasceno, 1956, p. 277. Echenique, 1934, p. 72-73. Diário do Rio Grande, 9-fev., 1895.<br />

15 Na Alemanha, por exemplo, o número de teatros triplicou entre 1870 e 1896 passando de 200 a 600 casas do<br />

gênero (Hobsbawm, 1988, p. 310).<br />

16 Frequentaram os teatros do Estado neste período os seguintes grupos: Companhia Lírica Italiana Reiter &<br />

Provesi; Companhia Lírica Italiana Roberto Mario; Companhia Lírica Italiana Schiaffino; Companhia Lírica Italiana<br />

Bannochi; Companhia Lírica Garbini-Dal Negro; Companhia Lírica Tornesi; Companhia Lírica Italiana Maranti-<br />

Bessona; Companhia Lírica Italiana Tuffaneli-Zonzini; Companhia Lírica Italiana Tuffaneli-Schiaffino; Companhia<br />

Lírica Italiana Riva-Morini; Companhia Lírica Italiana Schiavazzi-Selingardi; Companhia Lírica Italiana La Mura;<br />

Companhia Lírica Italiana Galli Curci-Hipolito Lazaro; Companhia Lírica Rottoli-Billoro.<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


326<br />

continuou a responder pelo compositor mais executado, sendo seguido por Puccini.<br />

Nestes decênios de 1900 e 1910, compositores como Puccini, Leoncavallo e Mascagni,<br />

sem maior expressividade no século anterior, vão ganhar posição de destaque no<br />

universo operístico dos teatros do Rio Grande do Sul. 17<br />

Se para a ópera nacional o período não foi favorável – observo somente a encenação<br />

da já tradicional Il Guarany e alguns trechos de Lo Schiavo, ambas de Carlos Gomes<br />

– o mesmo não pode ser dito para ópera regional. Aliás, este período foi excepcional<br />

em termos de criações de compositores sul-rio-grandenses, a saber: Sandro (1902), de<br />

Murilo Furtado (1873-1958) com libreto em italiano de Arturo Evangelisti e Carmela (1902),<br />

de Araújo Viana (1871-1916) com libreto de Leopoldo Brígido passado para o italiano por<br />

Ettore Malagutti. Sandro é uma violenta história de um crime passional; uma espécie de<br />

continuação da Cavalaria Rusticana, de Mascagni um dos compositores de maior influência<br />

no autor gaúcho. Carmela, por sua vez, possui uma urdidura de amor e morte. Tanto Furtado<br />

quanto Viana haviam se aperfeiçoado na Itália e ambas as peças lá decorriam: a primeira<br />

na Sicília e a segunda numa aldeia de pescadores em Sorrento. A influência dos cânones<br />

italianos é igualmente marcante. No decênio seguinte surgiu O rei Galaor (1913),<br />

do mesmo Araújo Viana com libreto em português de Eugênio de Castro, que alcançou<br />

grande sucesso neste mesmo ano na então capital do país, Rio de Janeiro. Aliás, Araújo<br />

Viana tornou-se um nome de destaque na ópera brasileira graças, sobretudo, a Carmela. 18<br />

Athos Damasceno afirma que depois de Il Guarany foi Carmela a ópera nacional mais encenada<br />

no país: cinco vezes em Porto Alegre e outras tantas nas cidades de Pelotas, Rio<br />

Grande, e no Rio de Janeiro, totalizando doze representações. Essas óperas escritas no começo<br />

do século XX, numa língua estrangeira e sob o influxo musical da Itália, são exemplos<br />

bem representativos da influência hegemônica do modelo operístico italiano nos compositores<br />

do gênero do Rio Grande do Sul. Elas revelam um transplante cultural e confirmam<br />

o ainda vivo neocolonialismo e a dependência brasileira da Europa e seus padrões<br />

artísticos de expressão neste período histórico de acentuado europeísmo. Esta posição<br />

cultural da Belle Époque brasileira muito contrasta com o nacionalismo musical do século<br />

XIX e sua tentativa da fundação da ópera brasileira, assim como com o posterior nacionalismo<br />

modernista andradiano.<br />

Nos palcos do Rio Grande do Sul, após um ano sem temporada lírica na capital<br />

do Estado, a empresa Reiter & Provesi, ocupou o Teatro São Pedro de maio a julho de<br />

1904. Estreou dia 8 com a ópera La Bohème, de Puccini, um autor dotado de lirismo refinado<br />

e grande sensibilidade musical, apesar do excessivo sentimentalismo e sensacionalismo<br />

que marcam suas obras. Em Pelotas a companhia apresentou como novidade,<br />

I Puritani, conforme observamos no Diário do Rio Grande, de 4 e 6 de setembro de 1904:<br />

“a última ópera de Bellini, representada em Paris às vésperas de seus funerais” e, igualmente<br />

marcada pela forte invenção melódica, característica de seu autor. Atuando no<br />

mês de setembro no teatro Sete, de Rio Grande, o conjunto agradou na execução de, entre<br />

outras, das já consagradas La Bohème e da monumental Aída, de Verdi. 19<br />

Em excursão pelo Estado em 1907, a Companhia Lírica Italiana Tuffanelli-Zonzini,<br />

procedente de Buenos Aires, apresentou-se ao público porto-alegrense de 22 de agosto a<br />

...........................................................................<br />

17 Puccini (Tosca, La bohème, Manon Lescault); Leoncavallo (Os palhaços, Zaza, Zingaros) e Mascagni (Cavalaria<br />

Rusticana, Iris). Outros operistas italianos que passaram igualmente a adquirir uma maior importância foram<br />

Almicare Ponchielli (La Gioconda), Umberto Giordano (Andrea Chernier) e Felipo Marchetti (Ruy Blas). Nas<br />

franjas do repertório italiano, o francês se fez representar através de autores como Auber (Fra Diavolo), Bizet<br />

(Carmen); Gounod (Faust); Meyerbeer (Os huguenotes, Dinorah); Ambroise Thomas (Mignon) e Massenet<br />

(Manon).<br />

18 Damasceno informa que Carmela foi encenada por cinco vezes em 1906, no Teatro São Pedro de Alcântara, no<br />

Rio de Janeiro, sob a direção do famoso maestro e compositor Francisco Braga, numa adaptação em português<br />

do poeta Osório Duque Estrada (Damasceno, 1956, p. 376).<br />

19 Moritz, 1975, p. 164. Echenique, 1934, p. 78. Diário do Rio Grande, 6-set., 1904.<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


327<br />

29 de setembro, estreando no Teatro São Pedro com a ópera Tosca, de Puccini. Além das<br />

tradicionais peças italianas e da ópera Il Guarany, de Carlos Gomes, o conjunto montou<br />

Carmela, do músico rio-grandense Araújo Vianna, a pedido de estudantes locais, e assistida<br />

por seu autor, então presente ao espetáculo. Conforme Moritz, “ao terminar o primeiro<br />

ato, os artistas foram ovacionados e receberam uma chuva de confetes e serpentinas”.<br />

Em Rio Grande a companhia realizou sua primeira récita no Teatro Sete de Setembro em<br />

8 de outubro com Lucia di Lammermoor, obra de Gaetano Donizetti, caracterizada por<br />

uma impressionante força dramática.<br />

A Companhia Lírica Italiana Schiafini (ou Schiffino ou Schiaffino) vinda do Teatro<br />

Victoria, de Buenos Aires, ocupou o palco do São Pedro da segunda quinzena de abril a<br />

começos de maio de 1908 trazendo um longo repertório de 22 títulos e realizando 28 récitas.<br />

No programa Aida, Otelo, Traviata, Baile de máscaras, Trovador, Rigoletto, Força do<br />

destino, de Verdi; Lucia di Lamemoor, de Donizetti; Barbeiro de Sevilha, de Rossini; Tosca<br />

e Bohème, de Puccini; Gioconda, de Ponchieli; Palhaços, de Leoncavallo; Cavalaria Rusticana,<br />

de Mascagni; Mefistófeles, de Ariago Boito; Manon Lecault, de Puccini. Do repertório<br />

francês representaram Fausto, de Gounod; Manon, de Massenet e pela primeira<br />

vez Mignon, de Ambroise Thomas. O conjunto encenou também Sandro, de Murilo Furtado;<br />

Salvador Rosa e Il Guarany, de Carlos Gomes. Após a temporada na capital do Estado,<br />

a Schiafini apresentou-se no Teatro Sete de Abril, de Pelotas e no Politeama Rio-Grandense,<br />

de Rio Grande.<br />

Uma das mais célebres companhias líricas a frequentar os teatros do Estado foi<br />

a Galli-Curci e Lazaro. Em excursão pela América do Sul, o conjunto capitaneado pela soprano<br />

coloratura Amelita Galli-Curci e pelo tenor Hypólito Lazaro – artistas renomados<br />

internacionalmente20 – após temporada no Teatro Colón, da capital portenha, estreou no<br />

Teatro São Pedro, de Porto Alegre, em 6 de novembro de 1915 com a ópera Il Rigoletto,<br />

de Verdi. Com estrondoso sucesso, levou também à cena várias composições do repertório<br />

italiano tradicional: Bohème, O barbeiro de Sevilha, Traviata, Os puritanos, Cavalaria, Palhaços,<br />

Sonambula, Tosca, Lucia. Somente Dinorah, de Meyerbeer distanciava-se da escola<br />

italiana. Do teatro da Praça da Matriz realizou três récitas populares no Cine-Teatro Apolo,<br />

seguindo após para Pelotas onde, no Sete de Abril, deu seis espetáculos. Em Rio Grande,<br />

a companhia exibiu-se nos dias 29 e 30 de novembro no Politeama Rio-Grandense encenando<br />

La Traviata e Il Rigoletto, respectivamente. Deixando a cidade, dirigiu-se a Bagé,<br />

e após para Montevideo e Livramento. 21<br />

...........................................................................<br />

20 A italiana Amelita Galli-Curci (1882-1963) era natural de Milão onde iniciou seus estudos. Soprano ágil, com timbre<br />

puro e cristalino impressionava também por sua segurança vocal, musicalidade e estilo impecáveis. Descoberta por<br />

Pietro Mascagni, estreou no papel de Gilda na ópera Il Rigoletto, em 1906 sem qualquer formação profissional. Após<br />

tornar-se nome conhecido na cena lírica europeia, excursionou pela América do Sul em 1915. A partir de 1916 passou<br />

a integrar a Chigago Opera Company. Em 1920 estreou no Metropolitan Opera House, de New York. Foi uma das<br />

primeiras cantoras líricas a atingir fama internacional, graças às suas gravações. Hypólito Lázaro era espanhol, natural<br />

de Barcelona. Tendo iniciado sua carreira na opereta em 1909, transferiu-se para Milão onde aperfeiçoou sua arte.<br />

Após exibir-se em teatros italianos e no Cairo, triunfou em 1912 no Covent Garden, de Londres e em Gênova. Em 1913<br />

consagrou-se no Scala, de Milão como grande intérprete mascagniano. Seu repertório, todavia, abrangia vários estilos.<br />

Para o próprio compositor Pietro Mascagni, Lázaro era “superior ao imortal Gayarre e bem melhor que Caruso”.<br />

Considerado um dos cantores prediletos de Giacomo Puccini, foi apontado pelo grande maestro Arturo Toscanini (lêse<br />

New York Philharmonic) como “o rei dos tenores” (Ópera Collection, 1996; Moritz, 1975, p. 187; Andreotti, 2001, p.<br />

124-125 ).<br />

21 Comentando os dotes vocais de Galli-Curci, o cronista do jornal O Tempo revela que foi “uma delícia acompanharlhe<br />

os vôos canoros, fluentes e doces por vezes, caprichosos de outras, borboleteando numa tessitura quase intérmina,<br />

tal a facilidade com que ela ascendia às mais altas notas”. No papel de Violeta, da Traviata, conquistou o público. Ao<br />

término da cavatina do primeiro ato, “o auditório não mais reprimiu os aplausos, que vinha sopitando e irrompeu uma<br />

salva de palmas calorosa e prolongada, justa homenagem à artista que tão finamente detalhava filigranas vocais. E<br />

repetiu-se, avolumou-se essa homenagem no correr da ópera, até ser uma ovação brilhante ao terminar a partitura”.<br />

Lázaro, “mercê de sua voz insinuante, que agradou pelo timbre e pela finura com que foi manejada” igualmente<br />

motivou aclamações (Moritz, 1975, p. 187-190. Echenique, 1934, p. 83-84. Rio Grande. Rio Grande, 1º-nov., 1915. O<br />

Tempo. Rio Grande, 29 e 30-nov. e 1º-dez., 1915).<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


328<br />

Em menos de um ano da apresentação de Galli-Curci-Lazaro, o RS receberia a visita<br />

de outra cantora mundialmente aclamada: Adelina Agostinelli. 22 A soprano italiana<br />

exibiu-se no Politeama Rio-Grandense em 1916 integrando o quadro de cantores da Companhia<br />

Lírica Italiana Rottoli & Billoro. Vinda igualmente de Buenos Aires, a troupe desembarcou<br />

no porto da cidade de Rio Grande em 29 de agosto. Composto por 85 elementos<br />

e orquestra própria este conjunto artístico contava com a regência do conhecido maestro<br />

De Angelis, do Alla Scala. Dia 1º de setembro deu-se sua estréia com a ópera Fedora, de<br />

Giordano, peça na qual Agostinelli havia debutado na cena lírica. Seguiram-se La bohème,<br />

de Puccini (3-set.) e Manon, de Massenet (5-set.). Da cidade marítima, Agostinelli seguiu<br />

para Pelotas apresentando-se no Teatro Sete de Abril e depois para Porto Alegre atuando<br />

nos teatros São Pedro e Apollo. Além das óperas supracitadas, encenou também Il<br />

Trovatore, de Verdi, obtendo grande sucesso junto ao público sulino.<br />

A ópera no Rio Grande do Sul durante o entre-guerras (décadas de 1920 e 1930)<br />

No período do entre-guerras, além das já habituais companhias italianas que<br />

dominavam a vida operística no sul do país, observo um conjunto nacional: a Companhia<br />

Lírica do Teatro Municipal de São Paulo (1929) e outro conjunto formado por artistas italianos<br />

e brasileiros: a Companhia Lírica Ítalo-Brasileira (1928). Na década de 1930 foi organizado<br />

um grupo regional denominado de Orfeão Rio-Grandense que realizou vários<br />

espetáculos no Teatro São Pedro com um repertório de óperas italianas tradicionais. Além<br />

destes, também ocuparam os teatros gaúchos várias companhias estrangeiras, majoritariamente,<br />

provenientes da Itália. 23<br />

Observo nestas décadas de 1920 e 1930 uma continuidade do repertório registrado<br />

desde a segunda metade do século XIX, centrado em autores italianos, a saber:<br />

Verdi, Puccini, Mascagni, Leoncavallo, Bellini, Boito, Ponchielli, Donizetti, Giordano, Rossini;<br />

seguido de Bizet, Gounod, Massenet e Meyerbeer. Todavia, algumas peças até então pouco<br />

representadas ou completamente inéditas às plateias sulinas ganharam espaço. Foi o caso<br />

de Otelo, uma das últimas óperas de Verdi; Mme. Butterfly e Il Fabaro de Puccini; Loreley,<br />

de Alfredo Catalani, mas também de obras de outros compositores não italianos como<br />

Pescadores de pérolas, de Bizet e Lohengrin, de Richard Wagner.<br />

Conforme Hobsbawm, de 1914 até 1945, o repertório operístico internacional<br />

continuaria essencialmente o mesmo remarcado desde 1875, ou seja, centrado em Puccini,<br />

Leoncavallo, Richard Strauss, Mascagni, etc., que seriam o que havia de mais vanguardista<br />

no gênero (Hobsbawm, 1995, p. 181).<br />

A ópera brasileira continuava a ocupar uma posição extremamente limitada nos<br />

teatros estudados. 24 De Antônio Carlos Gomes, foram encenadas Il Guarany, Lo Schiavo, e<br />

...........................................................................<br />

22 Adelina Agostinelli (1882-1954) era Natural de Bergamo e principiou sua carreira em teatros da Itália tendo<br />

cantado por repetidas vezes no teatro Alla Scala de Milão. Nesta casa contracenou com os mais notáveis tenores<br />

de sua época, dentre eles, Enrico Caruso e Titto Ruffo. Atuou igualmente em vários países da Europa, nos<br />

Estados Unidos e na América Latina. Fixou residência em Buenos Aires onde, a partir de 1929, dedicou-se ao<br />

ensino, formando gerações de cantores (Ópera Collection, 1996; Andreotti, 2001, p. 125-126).<br />

23 Companhia Lírica Italiana Marranti; Companhia Lírica Italiana Billoro-Cavallaro; Companhia Lírica Italiana Dora<br />

Solima; Companhia Lírica Italiana Garofalo-Garavaglia; Companhia Lírica de Jorge Alberto, Riva & Cia.; Companhia<br />

Lírica de Segreto, Bonacchi e Piergilli; e algumas outras mais, chamadas de simplesmente “Companhia<br />

Lírica Italiana”.<br />

24 Se raras eram as peças operísticas brasileiras observadas nos teatros do Rio Grande do Sul desde o século XIX<br />

até o ano de 1940, várias eram as composições nacionais. A título de informação e consulta segue uma lista<br />

parcial dessas criações. Ano/Local/Compositor/Ópera. 1860/R. J./Elias Alvares Lôbo/A noite de São João. 1861/<br />

R. J./A.Carlos Gomes/A noite do castelo. 1862/R. J./Domingos José Ferreira/A corte de Mônaco. 1863/R. J./A.<br />

Carlos Gomes/Joana de Flandres. 1863/R. J./Henrique Alves de Mesquita/O vagabundo. 1870/Milão/A. Carlos<br />

Gomes/Il Guarany. 1873/Milão/A. Carlos Gomes/Fosca. 1874/Gênova/A. C. Gomes/SalvadorRosa. 1879/Milão/<br />

A. Carlos Gomes/Maria Tudor. 1881/Belém/Henrique Eulálio Gurjão/Idália. 1888/Milão/João Gomes de Araújo/Carmosina.<br />

1889/R. J. /A. Carlos Gomes/Lo schiavo. 1889/S. P./Assis Pacheco/Moema. 1890/Belém/João Cândido<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


329<br />

Fosca, todas peças já conhecidas. Outra ópera nacional levada a feito, esta então inédita<br />

às plateias sulinas, foi Maria Petrowna (1929), de João Gomes de Araújo com libreto em<br />

italiano de Ferdinando Fontana, compositor que estudou também na Itália. A ação se<br />

passa em Nápoles e na Rússia Setecentista. Roberto Eggers, por sua vez, respondeu pelos<br />

autores regionais com a ópera Farrapos (1936) com libreto de Faria Correa, baseada na<br />

história do Rio Grande do Sul. Obra escrita em português, de temática regionalista e musicalidade<br />

que busca inspiração no folclore sulino. A ação se desenrola no ano de 1835 e<br />

visava consagrar os heróis civis e militares da epopeia gaúcha. Destarte, o bairrismo –<br />

uma faceta do ufanismo patriótico que caracteriza este período histórico – marca presença<br />

na ópera regional. 25<br />

Em 1921, a Companhia Lírica Italiana Marranti realizou temporada nos palcos<br />

do RS. Com um elenco composto por 18 cantores, orquestra com 25 músicos, corpo de<br />

baile com 8 dançarinos e 25 coristas, diretor, ensaiador, coreógrafo, maquinistas etc., a<br />

companhia estreou em 30 de abril, em Pelotas, inaugurando o amplo e luxuoso Teatro<br />

Guarani. Como não poderia deixar de ser, foi escolhida para a ocasião a obra mais famosa<br />

do compositor Carlos Gomes. Ao Il Guarany, seguiram-se peças de Verdi, Ponchielli, Leoncavallo,<br />

Puccini, Mascagni, Boito, Bizet, Gounod e dos autores do Bel Canto: Bellini, Rossini<br />

e Donizetti. De 20 de maio a 1º de junho a Marranti ocupou o velho casarão da Praça da<br />

Matriz em Porto Alegre, dirigindo-se após a Rio Grande. No Politeama Rio-Grandense,<br />

abriu sua temporada em 3 de junho com La Gioconda, de Ponchielli e, nas noites seguintes:<br />

Lucia di Lammermoor, de Donizetti; Il Rigoletto, de Verdi; e Tosca, de Puccini. Bagé também<br />

foi incluso nesta excursão. 26<br />

Procedente do Teatro Urquiza, de Montevidéu e antes deste, do Politeama de<br />

Buenos Aires, a Companhia Lírica Billoro-Cavallaro exibiu-se às plateias porto-alegrenses<br />

em junho e julho de 1928, executando um repertório, preponderantemente italiano. Com<br />

a sensual Carmem, a mais famosa obra do compositor francês Georges Bizet, o conjunto<br />

estreou no amplo Politeama, de Rio Grande em 4 de agosto. No dia seguinte foi a vez de<br />

Il Rigoletto, que encerrou a curtíssima temporada na cidade. Ao lado de seu estilo romântico,<br />

Giuseppe Verdi colocou nesta criação de 1851, fortes elementos realistas que chocaram<br />

a sociedade de então e inovaram a ópera. Pela primeira vez, um corcunda assumia o<br />

personagem principal de uma peça lírica. 27<br />

da Gama Malcher/Bug-jargal. 1891/Milão/A. Carlos Gomes/Condor ou Odaléia. 1892/R. J./A. Carlos Gomes/<br />

Colombo. 1894/R. J. /Delgado de Carvalho/Moema;. 1895/Belém/João Cândido da Gama Malcher/Iara. 1896/R.<br />

J./Leopoldo Miguez/Os saldunes. 1897/R. J./Leopoldo Miguez/Pelo amor!. 1897/R. J./Assis Pacheco/Flora. 1898/<br />

R. J./Alberto Nepomuceno/Ártemis. 1898/R. J./Delgado de Carvalho/Hóstia. 1900/R. J./ Assis Pacheco/ Estela<br />

ou dor!. 1900/R. J./Francisco Braga/Jupira; 1902/P. Alegre/Araújo Viana/Carmela. 1902/P. Alegre/Murilo Furtado/Sandro;<br />

1903/Campinas/(4 compositores, não nominados)/Pastoral. 1904/R. J./Abdon Milanes/Primízie; 1906/<br />

S. P./João Gomes Jr./Foscarina; 1908/S. P./João Gomes de Araújo/Helena; 1911/S. P./João G. Jr/La Boscaiola;<br />

1912/Curitiba/Augusto Stresser/Sideria; 1913/Buenos Aires/Alberto Nepomuceno/Abdul; 1913/R. J./Araújo<br />

Viana/Rei Galaor; 1917/R. J./H. Villa-Lôbos/Izath; 1917/Belém/Alípio César Pinto da Silva/Notte bizzarra. 1922/<br />

R. J./João Otavino Gonçales/Poema da vida; 1922/R. J./João G. Jr./Dom Casmurro. 1923/R. J./Júlio Reis/Heliofar.<br />

1924/S. P./Carlos de Campos/A bela adormecida. 1924/R. J./Francisco Mignone/O contratador de diamantes.<br />

1925/R. J./Assis Republicano/O bandeirante. 1926/S. P./Carlos de Campos/Um caso singular. 1926/R. J./Alberto<br />

Costa/Sóror Madalena. 1928/R. J./Francisco Mignone/L‘Innocente. 1929/S. P./João G. de Araújo/Maria Petrovna;<br />

1935/P. Alegre/Vitor Ribeiro Neves/Ponaim; 1936/P. Alegre/Roberto Eggers/Farrapos; 1937/R. J./João Otavino<br />

Gonçales/Iracema; 1939/R. J./ Eleazar de Carvalho/A descoberta do Brasil. Fora do recorte temporal desta tese,<br />

destaco as seguintes óperas: 1941/R. J./Eleazar de Carvalho/Tiradentes. 1941/R. J./Oscar Lorenzo Fernandez/<br />

Malazarte; 1950/R. J./Henrique Oswald/Il Neo. 1950/R. J./Iberê Lemos/A ceia dos cardeais. 1950/Blumenau/<br />

Heinz Geyer/Anita Garibaldi. 1952/R. J./Camargo Guarnieri/Pedro Malazarte.<br />

25 Neste trabalho não me proponho a apontar os autores e as peças que não foram encenados no Rio Grande do<br />

Sul, mas somente aqueles que marcaram presença nos teatros sul-rio-grandenses. Entretanto, excepcionalmente,<br />

gostaria de mencionar a obra operística de Heitor Villa-Lobos, um dos mais importantes compositores brasileiros<br />

modernos. Cabe a observação de que suas óperas compostas antes de 1940, ou seja, Izaht (1918); Zoé<br />

(1919); Jesus (1919) e Malazarte (1921) não foram encenadas nos teatros pesquisados.<br />

26 Duval, 1945, p. 59; Moritz, 1975, p. 195-197; Rio Grande. Rio Grande, 11-mai., 1921. Eco do Sul. Rio Grande, 3<br />

e 4-jun., 1921. Coleção de Prospectos, pasta 8, 6-jun., 1921.<br />

27 Moritz, 1975, p. 203. Rio Grande, 4 e 7-ago., 1928. Coleção de Prospectos, pasta 9, 4-ago., 1928.<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


330<br />

A Companhia Lírica Popolare Italiana Garofalo-Garavaglia realizou temporada<br />

de 9 récitas no então já centenário Teatro Sete de Setembro, de Rio Grande em agosto de<br />

1935. Com espetáculos diários, chegou a oferecer nos dias 10 e 11 duas sessões. Na bagagem<br />

a companhia trazia, exclusivamente, óperas italianas: de Verdi (La Traviata, Il Rigoletto,<br />

Il Trovatore), Puccini (Tosca, Mme. Butterfly, La Bohème), Leoncavallo (I Pagliacci) e Mascagni<br />

(Cavaleria Rusticana). A estreia foi dia 6 com La Traviata, outra importante ópera<br />

verista criada por Verdi e onde uma meretriz centra as atenções. 28<br />

O Teatro Sete de Setembro albergou igualmente a companhia da soprano lírica<br />

italiana Dora Solima, que fez seu début em 30 de agosto de 1936 com La Traviata. Solima<br />

no papel da rameira, “revelou-se uma grande artista, dona de uma voz admirável, e cantou<br />

com sentimento dando vida extraordinária, como convinha à personagem de Violeta Valery.<br />

Soube tirar partido dos seus recursos vocais. Isso, aliás, valendo-lhe o prestígio que<br />

logo firmou entre a plateia”. Elogios também foram pronunciados ao tenor Abelle de Angeli,<br />

ao barítono José Callini, à cenografia, ao guarda-roupa e a orquestra de cerca de 20<br />

músicos regida pelo maestro Ferdinando Allita. Também compunham esta tournée as<br />

óperas Lucia di Lammermoor, Il Barbiere di Siviglia, I Pagliacci e La Bohème. 29<br />

Em 1930 fundou-se na cidade de Porto Alegre, o Orfeão Rio-Grandense, instituição<br />

destinada, inicialmente, ao canto coral e que em poucos anos já se apresentava<br />

no palco do Teatro São Pedro, encenando óperas completas. Ele realizou espetáculos nos<br />

anos de 1934, 1935 e 1936 alcançando grande popularidade junto ao público citadino.<br />

Seu repertório compunha-se de óperas consagradas e pertencentes ao universo italiano.<br />

Além de Verdi e Donizetti, incluíam autores veristas: Puccini e Mascagni. Na temporada<br />

de 1935 o Orfeão representou Mme. Butterfly, La bohème, Tosca, de Puccini e La traviata,<br />

Trovador, Rigoletto, de Verdi.<br />

A ópera em recitais de canto<br />

Se as companhias profissionais italianas que se apresentavam no Rio Grande do<br />

Sul com certa constância, e permaneciam em temporadas de às vezes semanas ou mesmo<br />

meses, privilegiavam o repertório italiano tradicional que sempre lhes garantiu rendosas<br />

bilheterias, os pequenos recitais de canto ofereciam espaço às novas tendências que floresceram<br />

ou que estavam despontando em outros países da Europa. Esses encontros não<br />

desprezavam, entretanto, as consagradas árias italianas. Nestes espetáculos, que marcaram<br />

igualmente a história da música no extremo sul do Brasil, desenvolveu-se uma cultura<br />

operística “alternativa” a ordem estabelecida e que se contrapunha às peças já clássicas e<br />

inúmeras vezes reprisadas nos grandes teatros regionais. 30<br />

Todavia, deve-se ter presente que os recitais de canto, embora fossem observados<br />

de forma espaçada desde a segunda metade do Oitocentos nos teatros do RS, eles só adquiriram<br />

importância e maior freqüência a partir da década de 1910 e, sobretudo, na década<br />

de 1920 devido, em parte, ao surgimento de uma série de Conservatórios de Música<br />

na região que estimulou o gosto pelo canto. E que, na maior parte dos casos, os recitais<br />

de canto não estavam centrados em repertórios operísticos e nem tampouco apresentavam<br />

peças líricas em sua integralidade. Esses encontros englobavam árias de óperas,<br />

...........................................................................<br />

28 Rio Grande, 6 e 7-ago., 1935. Coleção de Prospectos, pasta 1, 9-ago., 1935. Bittencourt, 1998.<br />

29 Rio Grande, 29 e 31-ago., 1936. Coleção de Prospectos, pasta 2, 29 e 30-ago., 1936.<br />

30 Dentre os compositores e trechos de óperas executados nestes espetáculos e que não encontravam espaço<br />

nos programas das grandes companhias faço registro de Wagner (Tannhäuser, Tristão e Isolda, Rienzi, Navio<br />

fantasma, O crepúsculo dos Deuses e Os mestres cantores de Nürenberg); Mozart (A flauta mágica, As bodas de<br />

Figaro, Rapto do serralho, Idomeneo e a pequena ópera-bufa Bastien et Bastienne); Flotow (Martha); Humperdink<br />

(com a feerie Haensel und Gretel); Gluck (Orfeu e Eurídice, Alceste); Beethoven (Fidelio) e Strauss, dentro do<br />

universo germânico. Massenet (Thaïs), Délibes (Lakmé) e Saint-Saëns respondem pelos autores franceses e<br />

Tchaikowisky (A dama de espadas) pela moderna ópera russa. Registro igualmente a ópera Simon Boccanegra,<br />

que embora pertença a Verdi, nunca foi encenada pelos elencos profissionais.<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


331<br />

lieder, volkslieder, cantatas, poemas sinfônicos, poesias musicais... e mesmo cantos populares<br />

e folclóricos.<br />

Isso posto, acerca desses recitais ecléticos de canto tecerei breves parágrafos<br />

debruçando-me somente nos registros do século XX.<br />

Nas primeiras décadas do século passado, os recitais de canto já tinham adquirido<br />

prestígio junto ao público sulino. Nesse período, merece destaque as várias audições das<br />

cantoras Olyntha Braga e Izabel de Verney Campello, ambas gaúchas, assim como as<br />

apresentações da soprano brasileira Hedy Iracema que já havia atuado como prima-dona<br />

da Ópera de Stuttgart. Outro artista de relevância no canto neste período foi o baixo<br />

alemão Hans Edgar Obersteller que se exibiu no Teatro São Pedro, da capital em 1915. O<br />

famoso cantor que em sua carreira internacional contava com apresentações no Covent<br />

Garden, na Ópera de Munique, no Colón e, sobretudo, nos festivais de Bayreuth, realizou<br />

em Porto Alegre cinco recitais executando um longo programa centrado em compositores<br />

germânicos e incluindo árias de óperas, Lieder e Volklieder (canções do folclore germânico).<br />

Durante o entre-guerras os recitais de canto tornaram-se mais frequentes. Nos<br />

espetáculos de canto figuraram as sempre apreciadas árias de Rossini, Donizetti, Verdi,<br />

Puccini, Bellini, Cimarosa, Bizet, Wagner, Mozart, Gluck, Beethoven, Weber e Carlos Gomes.<br />

Ao lado deste repertório operístico eclético, outros compositores mereceram especial<br />

atenção nos programas de recitais de voz, notadamente, os românticos: Schumann, Wolf,<br />

Schubert, Mendelssohn, Flotow, Strauss; os clássicos Händel, Lotti e Caccini; o barroco<br />

Scarlatti; os academicistas franceses Massenet e Franck; e os nacionalistas russos<br />

Tchaikowski e Rimsky-Korsakoff. Destaque também para o compositor russo dos começos<br />

do século XX, Rachmaninoff que se constituiu no autor mais moderno executado, mesmo<br />

que sua produção fosse fortemente influenciada pelo Romantismo de Liszt e de Chopin.<br />

Dos compositores brasileiros destaco algumas canções de Alberto Nepomuceno e de Ernani<br />

Braga, ambos pertencentes a segunda geração de autores nacionalistas, assim como algumas<br />

peças do sul-rio-grandense Heckel Tavares, também desta mesma fase.<br />

O primeiro grande concertista de canto a se apresentar ao público gaúcho na<br />

década de 1920, foi o tenor alemão Karl Jörn, que ocupou o Teatro São Pedro, de Porto<br />

Alegre em agosto deste ano. Nos quatro saraus que realizou, dedicou especial atenção a<br />

Wagner (Tannhäuser, Lohengrin, Stolzing, Rienzi, Loge etc.). Ofereceu, igualmente, à plateia<br />

do sul uma série de lieder de Schubert, Schumann, Wolf e de Strauss; trechos de<br />

composições do brasileiro Nepomuceno, e cortina lírica com peças de Mozart, Bizet, Verdi<br />

e Puccini.<br />

A cantora lírica pelotense Zola Amaro, conhecida da cena nacional e internacional,<br />

31 exibiu-se, em 1923, em teatros de sua terra natal ao lado do barítono Andino<br />

Abreu. Em Porto Alegre, no Teatro São Pedro, interpretou uma série de árias de óperas<br />

veristas e também O sonho de Elsa, de Wagner e A casinha pequenina, grande sucesso de<br />

Ernani Braga. Retornou dois anos mais tarde a este palco com a Morte de Isolda, do mesmo<br />

Wagner. Apresentou-se também no Teatro Sete de Abril, de Pelotas e, em fins de maio,<br />

cantou pela primeira vez ao público da cidade de Rio Grande. Acompanhada ao piano<br />

pelo maestro local Angelo Celega, a intérprete executou alguns trechos das óperas Andréa<br />

...........................................................................<br />

31 Natural de Pelotas, Zola Amaro (1891-1944) iniciou-se no canto lírico, por influência do tenor Enrico Caruso<br />

que conheceu em viagem a Buenos Aires. Instalando-se na capital portenha aperfeiçoou seus estudos. Estreou<br />

em Bahia Blanca, Argentina em 1919. Consagrou-se no Costanzi, de Roma tendo se exibido também em outros<br />

teatros da Itália. Em 1920 atuou no Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Retornando à Europa cantou no São<br />

Carlos, de Nápoles; La Fenice, de Veneza; Scala, de Milão, assim como em Turim, Palermo, Catânia, Trieste,<br />

Florença, Bolonha, Udine, Pesaro e em Cremona. Posteriormente apresentou-se no Covent Garden, de Londres;<br />

no Real, de Madri; em Haia, Amsterdam, Roterdam e na Grécia. No Scala, cantou sob a regência do célebre<br />

maestro Arturo Toscanini (1867-1957). Foi a primeira brasileira a pisar o palco deste grande templo da ópera<br />

mundial. Fez uma longa carreira de concertista, manteve-se ativa até a sua morte em 1944, ano em que realizou<br />

récita no Teatro São Pedro (Enciclopédia, p. 29-30. Moritz, 1975, p. 191-192. Campos, 1998).<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


332<br />

Chenier, Lohengrin, e Norma. O recital foi um sucesso; aclamada pelo público rio-grandino,<br />

voltaria a esta cidade no mês de novembro, realizando récita no palco do Cine-Teatro Carlos<br />

Gomes. Também nesta casa fez recital em outubro de 1929. 32<br />

Após apresentar-se no mês de março em Porto Alegre, proporcionando ao público<br />

do Teatro São Pedro uma soirée fortemente marcada por canções brasileiras, a soprano<br />

Iracema Follador ocupou o palco do Teatro Sete de Setembro, de Rio Grande em 19<br />

de maio de 1925, conquistando o público local com suas interpretações. Executou algumas<br />

árias operísticas: Thaïs, de Massenet; Mignon, de Ambroise Thomas; Andréa Chenier, de<br />

Umberto Giordano. A escolha das partituras nacionais recaiu sobre As Trovas, de Alberto<br />

Nepomuceno e A Eterna Canção, de Araújo Vianna. 33<br />

Depois de excursionar pelas repúblicas do Prata, a já conhecida do público sulino<br />

Julieta Telles de Menezes fez-se ouvir em 1928 na cidade de Rio Grande. Abolindo o tradicional<br />

repertório operístico, escolheu para seu sarau peças de Pergolesi, Sarri, Cesti,<br />

Schumann, Debussy, Dalcroze. A última parte do espetáculo foi destinada à música erudita<br />

nacional: Amor, de Araújo Vianna; Cantigas, de Alberto Nepomuceno; Sinos da Aldeia,<br />

de Heitor Villa-Lobos; Canção de Rua, de J. Octaviano; Toada Para Você, de Lorenzo Fernandez<br />

e do acalanto popular Tutú Marambá, de Luciano Gallet. Acompanhada ao piano<br />

pelo maestro Angelo Celega, a concertista venceu, brilhantemente, este repertório eclético,<br />

demonstrando sua versatilidade e maestria no domínio da modulação da voz frente às<br />

mais variadas exigências das partituras escolhidas. No Teatro São Pedro, da capital gaúcha<br />

Menezes realizou neste ano dois recitais nos quais, igualmente, destinou parte a composições<br />

de autores brasileiros. 34 A música brasileira começava assim a se afirmar nos repertórios<br />

dos recitais eruditos.<br />

Em 1933, excursionaria pelo Estado aquela que pode ser considerada a mais célebre<br />

soprano brasileira: Bidu Sayão. 35 Mundialmente reconhecida a diva apresentou-se<br />

primeiramente no Teatro Sete de Setembro, de Rio Grande, em 29 de setembro executando<br />

um repertório bem amplo que incluiu obras de: Cesti, Gluck, Mozart; Chopin, De Falla,<br />

Liodow, Auber, Nin, Rossini, e Donizetti. Em português, interpretou dois números: Canto<br />

da Saudade e Casinha Pequenina, sucessos de Ernani Braga. Seguindo para a cidade de<br />

Pelotas, realizou dois recitais no Teatro Guarani. Em Porto Alegre executou três aplaudidas<br />

apresentações cantando páginas de Bach, Gluck, Mozart, Bellini, Donizetti e Braga.<br />

Retornou ao Sul do país no ano seguinte, para mais uma promissora tournée. Em Rio<br />

Grande, ocupou novamente o teatro Sete de Setembro em 3 de novembro. Acompanhada<br />

por músicos locais e pelo pianista e compositor gaúcho Radamés Gnatalli, a soprano carioca<br />

demonstrou o virtuosismo de sua voz executando um longo e eclético programa que<br />

incluiu autores como Grétry, Pasiello, Mozart, Rossini, Verdi, Delibez, Liadoff, Giordano,<br />

Leroux, Liszt e o brasileiro Alberto Costa. No teatro São Pedro, da capital do Estado, Sayão<br />

executou diversos compositores, entretanto destacavam-se árias de óperas de Mozart: A<br />

flauta mágica, As bodas de Fígaro, O rapto do serralho, Idomeneo, além de Alleluia, do<br />

repertório sacro do autor. 36<br />

...........................................................................<br />

32 Caro, 1975, p. 320. Echenique, 1934, p. 89. Rio Grande, 25 e 26-mai., 1925. Bittencourt, 1998.<br />

33 Iracema Follador foi aluna da célebre cantora sul-rio-grandense Amália Iracema, cf. Caro, 1975, p. 320. Rio<br />

Grande, 19 e 20-mai., 1925.<br />

34 Rio Grande, 11 e 15-out., 1928. Caro, 1975, p. 323.<br />

35 Bidu Sayão nasceu no Rio de Janeiro, em 11 de maio de 1902, onde principiou seus estudos e audições. Sua<br />

carreira internacional teve início em 1926, no Costanzi, de Roma, tendo cantado também no São Carlos, de<br />

Nápoles; no Scala, de Milão; em Turim e Lisboa. No começo dos anos 30 fez sucesso no Opéra e no Opéra-<br />

Comique, de Paris. Em 1935 debutou nos Estados Unidos da América, após se exibir em Buenos Aires. Em fevereiro<br />

de 1937 foi contratada para compor o elenco permanente do Metropolitan Opera House, de New York,<br />

cidade onde passou a concentrar definitivamente sua carreira. Faleceu em 1999 (Enciclopédia, 1998, p.703).<br />

36 Rio Grande, 29 e 30-set. e 2-out., 1933; 3-nov., 1934. Coleção de Prospectos, pasta 1, 28-set., 1933. Caro,<br />

1975, p. 329-330.<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


333<br />

Outro nome de destaque no canto nesta década de 1930 nos teatros sulinos foi<br />

a soprano polonesa Wanda Werminska, prima-dona da Ópera de Varsóvia, que realizou<br />

recital no Teatro Sete de Setembro, de Rio Grande, em 13 de agosto de 1934. Em uma única<br />

apresentação ela seduziu o público e a imprensa locais. No programa trechos das óperas<br />

Tosca e Mme. Butterfly (Puccini) e Carmem (Bizet). Também Saudade e Mazurka, de Chopin;<br />

Margareta, de Schubert; Wals, de Rózycki; Menina Alegre, de Frydmann, Canções<br />

espanholas, de Delibez, Dama de Espadas, de Tchaikowsky, algumas canções cracovianas,<br />

além de Canção, do brasileiro Marcelo Tupinambá. Apresentando-se no Teatro São Pedro,<br />

de Porto Alegre interpretou árias de Alceste, de Gluck, da Dama de Espadas, de Tchaikowsky,<br />

a Habanera da famosa ópera de Bizet e uma série de canções de seu país. 37<br />

Em 1937, já então contratada do Metropolitan Opera de New York, a soprano<br />

Bidú Sayão retornou ao Rio Grande do Sul, realizansdo seus últimos recitais na região.<br />

Após apresentar-se nas cidades de Porto Alegre e de Pelotas, exibiu-se à plateia do Politeama<br />

Rio-Grandense, de Rio Grande em 7 de agosto. Acompanhada ao piano por Werther<br />

Politano, a consagrada cantora abriu o espetáculo com árias escolhidas da ópera A Flauta<br />

Mágica, de Mozart. Seguiram-se: La Farfalletta (Bellini), La Pastoreila (Rossini), La Traviata<br />

(Verdi), Le Rossignol (Saint-Saens), Tristesse (Chopin), Rêve d’amour (Liszt), Le Rossignol et<br />

la Rose (R. Korsakoff), The Kuckoo (Lisa Lehemann), La Girometta (Libella), Leclet de Rire<br />

(Amba). Do repertório nacional figuraram trechos da ópera Il Guarany, de Carlos Gomes e<br />

Canção de Ninar, de P. Barroso. 38<br />

Considerações finais<br />

A análise do repertório lírico executado nos principais teatros do Rio Grande do<br />

Sul, da segunda metade do século XIX até 1940, revela que o gênero ópera foi grandemente<br />

tributário dos programas apresentados pelas companhias líricas italianas que realizavam<br />

temporadas nas cidades da região. Ele estava alicerçado nas criações italianas oitocentistas,<br />

notadamente, no Romantismo e no Verismo (Realismo lírico). O repertório francês de<br />

ópera se fazia também remarcar, embora se limitasse a alguns poucos autores. Destacaramse<br />

compositores do bel canto como Verdi, Donizetti, Bellini, Rossini, Puccini; os representantes<br />

da Grande ópera francesa como Meyerbeer, Gounod, Massenet. Também os<br />

autores veristas como Mascagni, Leoncavallo, Puccini, Bizet e, de certa forma, Verdi com<br />

seu “realismo romântico”. 39<br />

Outros músicos pertencentes a diferentes períodos da história da ópera encontravam<br />

espaço somente nos pequenos recitais de canto. Suas obras foram, portanto, parcialmente<br />

conhecidas; não sendo encenadas. Estes espetáculos limitavam-se a execução<br />

de seus trechos mais significativos. Foi desta maneira “breve” e superficial que importantes<br />

operístas do Classicismo como Gluck, Mozart; do Romantismo como Beethoven, Flotow,<br />

Humperdink, Wagner o criador do “drama musical”; do Pós-romantismo como Richard<br />

Strauss; da escola francesa dos finais do século XIX como Délibes, Saint-Saëns, foram apresentados<br />

às plateias do Sul.<br />

O estudo da programação operística dos teatros sulinos revela também que<br />

outros compositores determinantes na formação e na evolução do gênero lírico como os<br />

fundadores Peri e Monteverdi; os italianos Scarlatti, Pergolesi, Cimarosa, Paisiello, Cherubin;<br />

os franceses Lully, Ramaeu, Berlioz, Debussy, os alemães Händel, Haydn, Schönberg; o<br />

húngaro Béla Bartók, entre tantos mais, estavam completamente ausentes dos palcos da<br />

...........................................................................<br />

37 Rio Grande, 11, 13 e 14-ago., 1933. Caro, 1975, p. 329.<br />

38 Caro, 1975, p. 332. Rio Grande, 7 e 9-ago., 1937.<br />

39 La traviata (1853) de Verdi, baseada no romance de Alexandre Dumas Filho – que aliás estreou como peça<br />

teatral neste mesmo ano – é uma criação sensível, íntima, de um impressionante realismo, que a conecta com<br />

esta corrente lírica.<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


334<br />

região. Nenhum registro de criações do Renascimento, do Barroco, do Rococó. Reitero<br />

que as poucas peças do Classicismo só são observadas nos recitais de canto. Dos modernos<br />

autores que nos começos do século XX vitalizaram a ópera, como os alemães Kurt Weill,<br />

Carl Orff, o russo Serge Prokofiev, igualmente, não possuo nenhum espetáculo registrado.<br />

Assim, acredito ser correto afirmar que a presença ópera nos teatros do extremosul<br />

do Brasil acompanha o percurso do desenvolvimento do gênero lírico em muitos países,<br />

notadamente nos de formação latina. Ela nasceu sob o signo do Romantismo italiano e<br />

jamais se distanciou consideravelmente de sua bella Península natal.<br />

Na década de 1930, Bidú Sayão (1902-1999), a mais célebre cantora lírica brasileira, apresentou-se, por repetidas<br />

vezes, nos teatros do Rio Grande do Sul.<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


335<br />

O compositor Carlos Gomes (1836-1896) foi o operista brasileiro mais executado no Rio Grande do Sul. Sua ópera<br />

Il Guarany apresenta-se como o maior sucesso nacional do gênero; uma presença constante nos repertórios das<br />

companhias italianas que excursionavam pelos teatros sulinos; uma espécie de homenagem ao público do país que<br />

as acolhia.<br />

Desde o século XIX, as companhias de ópera italianas marcavam presença nos palcos do Rio Grande do Sul<br />

garantindo para si a hegemonia do gênero lírico e o predomínio do repertório italiano. Uma das mais importantes<br />

cantoras a frequentar os palcos regionais foi a soprano italiana Amelita Galli-Curci (1882-1963), em finais de 1915.<br />

Nesta foto, Galli-Curci interpreta a personagem Violeta, da ópera La Traviata, de Verdi, um dos grandes sucessos do<br />

compositor.<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


336<br />

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(Pasta 2); Sociedade União Operária – 1: 1921-48 (Pasta 6); Politeama Rio-Grandense –<br />

1: 1919-25 (Pasta 8); Politeama Rio-Grandense – 2: 1926-28 (Pasta 9); Politeama Rio-<br />

Grandense – 3: 1929-34 (Pasta 10); Politeama Rio-Grandense – 4: 1935-53 (Pasta 11);<br />

Teatros e Companhias (Pasta 19).<br />

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2004.<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


339<br />

A ópera Jupyra no contexto geral<br />

de Francisco Braga<br />

Rubens Russomano Ricciardi<br />

Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto<br />

Uma criança órfã, Antônio Francisco Braga 1 (Rio de Janeiro, 1868-1945), em 1876,<br />

passou a viver no Asilo dos Meninos Desvalidos. Reconhecendo seu talento para a música,<br />

o dr. Daniel de Almeida, diretor do asilo, fez com que Francisco Braga ingressasse como<br />

aluno no Imperial Conservatório de Música. Pouco tempo depois, o jovem músico já dirigia<br />

a banda do Asilo. Em 1886, concluiu o curso de clarineta na classe de Antônio Luiz de<br />

Moura (Rio de Janeiro, 1820-1889), tendo estudado também composição (harmonia e<br />

contraponto) com o então jovem professor Carlos Marciano de Mesquita (Rio de Janeiro,<br />

1864 – Paris, 1953), que fora aluno, em Paris, de grandes nomes da época, como Jules<br />

Massenet (composição, contraponto e fuga), Cásar Frank (órgão) e Émile Durant (harmonia).<br />

A esse período remontam já as primeiras composições de Francisco Braga, como<br />

peças para banda e música de câmara.<br />

Em 1887, a abertura Fantasia (1886), sua primeira composição sinfônica, é estreada<br />

no então Imperial Teatro São Pedro de Alcântara, no Rio de Janeiro (onde hoje se<br />

situa o Teatro João Caetano), sob regência de seu professor, Carlos de Mesquita, no primeiro<br />

dos Concertos Populares, a primeira série de concertos sinfônicos públicos do Rio de Janeiro,<br />

idealizada pelo próprio Mesquita. Em 1888, em carta endereçada ao diretor do<br />

asilo, Francisco Braga pede seu desligamento como interno, por ter atingido a maioridade,<br />

mas se mantém vinculado à instituição, agora como professor de música.<br />

Em 1889, por ocasião da Proclamação da República, foi aberto concurso para<br />

escolha de um hino que homenageasse a data. Francisco Braga é um dos 36 inscritos. Em<br />

janeiro de 1890, são executados os trabalhos dos concorrentes do concurso, em espetáculo<br />

realizado no Teatro Lírico do Rio de Janeiro (próximo à atual rua 13 de maio, infelizmente<br />

já há muito demolido), com a presença do marechal Deodoro da Fonseca. A regência esteve<br />

a cargo do próprio Carlos de Mesquita, então um dos músicos mais influentes do<br />

Brasil, que também havia sido membro do júri. Foram selecionados quatro hinos, e, dentre<br />

eles, o de Francisco Braga. No entanto, o grande premiado foi Leopoldo Miguez (Niterói,<br />

1850 – Rio de Janeiro, 1902). Francisco Braga, por sua vez, é contemplado com uma viagem<br />

de estudos à França, como bolsista do Estado.<br />

Em fevereiro de 1890, segue para Europa, onde permanecerá por 10 anos. Inicialmente<br />

em Paris, submeteu-se a um concurso para ingressar como aluno do Conservatório<br />

de Música. Seguindo os conselhos de seu professor Carlos de Mesquita, Francisco Braga<br />

optou por ser também aluno de Massenet, com quem passou a estudar composição.<br />

Compõs várias pequenas peças camerísticas, bem ao gosto francês da época. Em 1892,<br />

...........................................................................<br />

1 Destaca-se, dentre as informações biográficas sobre Francisco Braga, a Cronologia elaborada em Pequeno,<br />

Mercedes Reis. Exposição Comemorativa do Centenário do Nascimento de Francisco Braga (1868-1945). Rio de<br />

Janeiro: Biblioteca Nacional, 1968, p. 11-19. Temos ainda a coleção de cartas e cartões postais de Francisco<br />

Braga à família de Francisco e Victória Buschmann. São documentos datados desde o final do século XIX até<br />

bem próximo à morte de Braga. Destacam-se, em especial, as cartas escritas a Francisco Buschmann (dinamarquês<br />

de nascimento, residiu no Brasil antes de se radicar na Alemanha, tendo sido o mecenas de Francisco<br />

Braga na Europa) e a seus filhos Johannes (cujo apelido era Didi) e Carolina (cujo apelido era Mimica, a última<br />

sobrevivente da família Buschmann a manter correspondência com Francisco Braga). Essa coleção está depositada<br />

na Divisão de Manuscritos da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, sob o nº 50.3.8, da qual extraímos os<br />

diversos textos redigidos por Francisco Braga aqui transcritos.<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


340<br />

graças à solicitação do próprio Massenet, consegue uma prorrogação do prazo de sua<br />

permanência em Paris, a fim de não interromper seus estudos. Ainda na capital francesa,<br />

inicia-se a fase mais produtiva de sua carreira como compositor. Francisco Braga começa<br />

a compor suas obras sinfônicas de maior importância, como Paysage (1892) e Cauchemar<br />

(1895). Ambas as obras foram estreadas no Rio de Janeiro, sob regência do violinista e<br />

cronista Vincenzo Cernicchiaro (Torraca, Itália – 1858 – Rio de Janeiro, 1928), respectivamente<br />

no Teatro São Pedro de Alcântara (1892) e no Cassino Fluminense (1895).<br />

A 5 de fevereiro de 1895, Francisco Braga se apresenta no Salle D’Harcourt, num<br />

concerto intitulado Festival Brésilien. Além de seus próprios trabalhos de música de câmara,<br />

são apresentadas também obras de outros compositores brasileiros, como Carlos Gomes,<br />

Francisco Valle, Alberto Nepomuceno e ainda seu ex-professor, Carlos de Mesquita, agora<br />

também radicado em Paris, que passa a ser seu parceiro em projetos de realização de<br />

concertos.<br />

No ano seguinte, a 4 de fevereiro de 1896, Francisco Braga e Carlos de Mesquita<br />

dividem a regência no grande Concert Brésilien, um projeto ainda mais ambicioso, desta<br />

vez na Galerie des Champs-Elysées, com uma orquestra de 60 músicos e vários solistas,<br />

como Marie Dalzen, Zocchi, Clemence Hémar (cantores), Mathilde Sinay, Andréa Vhery e<br />

Oliveira Guimarães (pianistas). São apresentadas neste concerto, com mais de 4 horas de<br />

duração, 14 obras sinfônicas, concertantes e trechos operísticos de Carlos Gomes (de<br />

Odalea, Lo Schiavo e Il Guarany) – obras sugeridas pelo próprio compositor, que manteve<br />

correspondência com Francisco Braga -; Franz Liszt (Fantaisie Hongroise para piano e orquestra);<br />

Carlos de Mesquita (Prélude, 1er Episode Symphonique, Chanson à deux – nº1<br />

des Aquarelles, Etude de Concert em Ré, e trechos da ópera La Esméralda); Alberto Nepomuceno<br />

(Intermezzo); Frédéric François Chopin (Nocturne en Mi b); Louis Moreau Gottschalk<br />

(Tremolo – Etude de Concert); Antoine François Marmontel (Tarantelle); Alexandre Levy<br />

(com a estréia européia do Samba, da Suite Brésilienne) e do próprio Francisco Braga<br />

(Paysage – esquisse symphonique, Cauchemar – scherzo symphonique, Gavotte<br />

Marionettes, Prière e Menuet – essas três últimas para orquestra de cordas, compostas as<br />

duas primeiras em 1892, e a terceira em 1894). No entanto, há uma carta de Carlos Gomes<br />

a Francisco Braga, datada de 18 de fevereiro de 1896, onde o compositor campineiro lamenta<br />

o insucesso deste concerto.<br />

Logo em seguida, Francisco Braga vai para Viena e Dresden, onde é acolhido<br />

pela família do dinamarquês Francisco Buschmann, que passa a ser seu mecenas. Naquele<br />

ano de 1896, e, ainda no ano seguinte, o jovem compositor vai a Bayreuth, para ouvir, por<br />

várias vezes, as óperas de Richard Wagner. Apesar da proximidade com Massenet, seu<br />

professor em Paris, Francisco Braga optou por ter em Wagner seu maior Vorbild como<br />

poética musical de seu tempo.<br />

A 11 de agosto de 1896, Francisco Braga escreve de Bayreuth a Johannes Buschmann<br />

(Didi), 2 filho de Francisco e Victória Buschmann:<br />

por ora tenho a cabeça no poder de Wagner e não penso senão no que ouvi e<br />

no que vou ouvir. Hoje, p. ex. com o Sigfried. Creio que sáhio meio amalucado<br />

do theatro. Sabes que horas são? Acabo de abrir o famoso chronometro, tão<br />

appetitoso e bom, e constato que são 2 horas justas da tarde. Siegfried começa<br />

às 4 horas. Vou fazer a barba, e as 3.35 lá estou com os ouvidos à espera de novas<br />

sensações. Ah! Didi, se soubesses como é bonito tudo isto!? 3<br />

...........................................................................<br />

2 Johannes Buschmann era chamado carinhosamente por Francisco Braga pelo apelido de Didi. Violoncelista<br />

amador, Didi era um apaixonado por música e ópera. Àquela altura ele residia em Lisboa.<br />

3 Em todos os textos de Francisco Braga aqui transcritos mantivemos a ortografia e gramática originais.<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


341<br />

A 30 de julho de 1897, em nova carta a Didi, Francisco Braga mais uma vez se<br />

ocupa de Wagner: “Já estou aqui [em Bayreuth] há 4 dias, e já ouvi Parsifal duas vezes,<br />

ouvindo mais uma vez hoje – Que monumento, meu Didi! que sublime concepção!” Logo<br />

em seguida, Francisco Braga narra com detalhes as performances dos principais cantores<br />

– o que sempre se configurava como um dos assuntos prediletos em suas cartas a Didi,<br />

como por exemplo: “Marie Brenna é Anna v. Mildenburg; esta última possuindo uma voz<br />

volumosa e bella, bella ella mesma, e de formas soberbas. A interpretação que dá Marie<br />

Brenna na scena em que ella seduz Parsifal, é voluptuosa, embriagante, demasiadamente<br />

captivante. É grande artista”. A 2 de agosto de 1897, Francisco Braga escreve a Didi sobre<br />

um determinado cantor, outro exemplo de suas observações sobre detalhes da atuação<br />

de cantores em Bayreuth: “Alois Burgsteller, o bello Siefried do anno passado, que tinha<br />

uma soberba cabelleira natural, tingi-os, de maneira que agora está louro e melhor pa o<br />

papel, mas o homem não é tão bonito como antes”.<br />

Francisco Braga havia ouvido “mais uma vez a trilogia Der Ring des Nibelungen,<br />

isto é, o Vorabend – Rheingold”. No mesmo dia, escreve de Bayreuth também a Francisco<br />

Buschmann com o mesmo entusiasmo em relação ao Theatro de Wagner e outras possibilidades<br />

de assistir suas óperas: “Acabo n’este momento de achar uma deliciosa excellente,<br />

gostosa e comfortavel cadeira nº72 e sem pagar mais do preço regular. No bilheteiro,<br />

onde eu tinha pedido há alguns dias, guardaram-me e assim assisto a Nibelungen. Eu já<br />

estava resolvido ir a Munich ouvir Tristan, que se canta no dia 5 [de agosto de 1897] sob<br />

direcção de Richard Strauss”.<br />

Wagner preenchia decididamente os anseios do jovem Francisco Braga em busca<br />

de uma linguagem musical: “Acabei de assistir a serie do Ring des Nibelungen. Cada vez<br />

esta poderosa força do geneo do grande Wagner se incute no meu espírito mais extraordinariamente.<br />

Sahi do theatro com uma emoção considerável. Que música divina!”<br />

(Bayreuth, carta a Didi, 6 de agosto de 1897).<br />

Mas o que lhe fascinava em Wagner não eram os contrastes dramáticos, a alternância<br />

de atmosferas, o princípio de inovação ou ousadia estrutural, mas sim um certo<br />

lirismo melodioso romântico. Na visão de mundo de Francisco Braga, a categoria do “sublime”<br />

era a que de longe maior admiração e respeito lhe causava, diante da qual nem sequer<br />

se fazia necessária uma ideia nova de ruptura ou contraste. A busca por categorias<br />

como a “pureza da arte”, o “belo sagrado” ou a “delicadeza do êxtase” acabou impregnando<br />

toda a obra de Francisco Braga, desde a juventude até os anos mais tardios. Não raramente,<br />

sua personalidade até parecia ingênua, como podemos observar em sua carta à Família<br />

Buschmann, escrita de Bayreuth, a 4 de agosto de 1897: “...gosamos de uma temperatura<br />

fresca de um sol resplendissant, e de um céo azul como os olhos dos cabellos de ouro das<br />

virgens scandinavas”. Em várias outras cartas observamos sempre a mesma e insistente<br />

perspectiva do êxtase e do sublime:<br />

O tempo decididamente não gosta de gente que vem ouvir Parsifal. Durante as<br />

últimas representações choveu a cantaros, depois tudo se serenou. Agora começa<br />

novamente a ficar máu, e com certeza amanhã temos aguaceiro. É que há indivíduos<br />

que vêm profanar o templo sagrado da arte. Os céus castigam, pondoos<br />

na chuva. (Bayreuth, 7 de agosto de 1897)<br />

Eu hontem pensei que o tempo ficasse ruim. Qual! A noite esteve poética, com<br />

um luar adorável. Então pelas 9 horas fui até o theatro, e do plateau gosei dos<br />

suaves raios da lua, e por muito tempo fiquei em êxtase, ouvindo as vozes<br />

interiores de minh’alma, que me diziam... Hoje está um bello dia. (Bayreuth, 8<br />

de agosto de 1897).<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


342<br />

Em março de 1897, Cauchemar e Paysage foram apresentadas mais uma vez,<br />

agora no Teatro Gewerbehaus, em Dresden. Remonta também àquela estada de Francisco<br />

Braga na capital da Saxônia o início dos trabalhos mais intensivos na Jupyra. O compositor<br />

partiu então para a Ilha de Capri (Itália), em novembro de 1897. Até 1900, ano de seu retorno<br />

definitivo ao Brasil, Francisco Braga se ocupará do projeto mais importante de sua<br />

vida: a composição da ópera Jupyra.<br />

Desde 1892, o compositor cogitava a hipótese de compor uma ópera, e, por carta,<br />

solicitou um libreto a seu amigo carioca, o cronista, teatrólogo, jurista, professor e jornalista,<br />

Luiz Gastão de Escragnolle Doria (Rio de Janeiro, 1870-1948), uma figura de destaque<br />

na vida cultural do Rio de Janeiro da época, embora não há como lhe atribuir qualquer<br />

talento especial como autor literário. Francisco Braga assim descreveu suas necessidades<br />

em relação ao libreto: “o assunto brasileiro é quase em mim uma idéia fixa;<br />

para começar, peço-lhe somente um ato, mas um pouco descritivo, para dar lugar à sinfonia”.<br />

Escolheu-se como tema “Jupyra”, o terceiro conto do livro Histórias e tradições da<br />

Província de Minas Gerais (1872), de autoria do poeta e ficcionista Bernardo Joaquim da<br />

Silva Guimarães (Ouro Preto, 1825-1884). Para que pudesse ser posto em música, o conto<br />

de Bernardo Guimarães foi adaptado em forma de libreto por Escragnolle Doria, e, logo<br />

em seguida, traduzido para o italiano por Antonio Menotti Buja (Lecci, Itália, 1877 – Nápoles,<br />

1940). Hoje, passados mais de cem anos e com o devido distanciamento crítico,<br />

não há como negar toda uma fragilidade literária que acabou configurando o libreto da<br />

ópera. Se por um lado, Escragnolle Doria não logrou uma tensão que permitisse à ação<br />

dramática uma estruturação efetiva, o conto original está longe de se situar entre as principais<br />

criações literárias de Bernardo Guimarães.<br />

Segundo Alfredo Bosi (1994, p. 140-144), o regionalismo daquele escritor romântico<br />

mineiro “mistura elementos tomados à narrativa oral, os causos e as estórias de Minas<br />

Gerais e Goiás, com uma boa dose de idealização”. Assim como acontece com a maior<br />

parte dos sertanistas, há, em Bernardo Guimarães “a dificuldade na superação em termos<br />

artísticos do impasse criado pelo encontro do homem culto, portador de padrões psíquicos<br />

e respostas verbais peculiares a seu meio, com uma comunidade rústica, onde é infinitamente<br />

menor a distância entre o natural e o cultural”. Ainda, segundo Bosi:<br />

as várias formas de sertanismo (romântico, naturalista, acadêmico, e, até, modernista),<br />

que têm sulcado as nossas letras desde os meados do século XIX, nasceram<br />

do contato de uma cultura citadina e letrada com a matéria bruta do Brasil rural,<br />

provinciano e arcaico. Como o escritor não pode fazer folclore puro, limita-se a<br />

projetar os próprios interesses ou frustrações na sua viagem literária à roda do<br />

campo. Do enxerto resulta quase sempre uma prosa híbrida onde não alcançam<br />

o ponto de fusão artístico o espelhamento da vida agreste e os modelos ideológicos<br />

e estéticos do prosador. (Bosi, 1994, p. 141)<br />

O talento literário de Bernardo Guimarães foi criticado em seu tempo, não obstante<br />

o lugar de destaque que hoje ocupa no romantismo brasileiro e o sucesso que alcançaram<br />

romances seus, como O Seminarista (1872) e A Escrava Isaura (1875). Segundo<br />

Monteiro Lobato:<br />

lê-lo é ir para o mato, para a roça, mas uma roça adjetivada por menina do Sião,<br />

onde os prados são amenos, os vergéis floridos, os rios caudalosos, as matas viridentes,<br />

os píncaros altíssimos, os sabiás sonorosos, as rolinhas meigas. Bernardo<br />

descreve a natureza como um cego que ouvisse cantar e reproduzisse as paisagens<br />

com os qualificativos surrados do mau contador. Não existe nele o vinco enérgico<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


343<br />

da impressão pessoal. Nossas desajeitadíssimas caipiras são sempre lindas morenas<br />

cor de jambo. Bernardo falsifica o nosso mato. (Bosi, 1994, p. 142)<br />

Basta pensarmos numa personagem como Rosalia, a boa moça branca e rival<br />

da índia Jupyra, para entendermos a colocação de Monteiro Lobato. Já a personagem Jupyra,<br />

a infeliz e vingativa protagonista no contexto literário de Bernardo Guimarães, talvez<br />

seja um entre os mais representativos exemplos, na caracterização de uma natural má<br />

índole, contrastante a uma bondade natural (prolongamento do bom selvagem, herança<br />

já de um José de Alencar) também presente em outras obras suas. Não é por menos que<br />

num diálogo da cena IX, Rosalia chama Jupyra de Razza abbieta, razza ville! (raça abjeta,<br />

raça vil). Seria néscio, no entanto, segundo Alfredo Bosi, falar em preconceito como atitude<br />

etnicamente responsável. Pelo contrário, em Rosaura – a enjeitada (1883), obra da maturidade,<br />

Bernardo Guimarães chegou a dizer: “em nossa terra é uma sandice querer a<br />

gente gloriar-se de ser descendente de ilustres avós; é como dizia um velho tio meu: no<br />

Brasil ninguém pode gabar-se de que entre seus avós não haja quem não tenha puxado<br />

flecha ou tocado marimba” (Bosi, 1994, p. 144), referindo-se assim à grande maioria mestiça<br />

da população brasileira composta por descendentes de índios e negros, mesclados<br />

com europeus. E no libreto da Jupyra, do mesmo modo, há o confronto entre personagens<br />

de origens étnicas diversas. A breve e trágica história se passa no século XIX, na região da<br />

Vila de Campanha do Rio Verde, no centro-sul da Província de Minas Gerais.<br />

O coro inicial anuncia que o amor é volúvel, que muda como a lua e o vento. Jupyra,<br />

uma jovem e humilde índia, está apaixonada por Carlito, com quem vinha tendo um caso<br />

amoroso. No entanto, Quirino se declara a Jupyra, e pelo seu amor seria capaz de qualquer<br />

ato. Mas Jupyra não corresponde aos desejos de Quirino e se sente feliz por amar Carlito, imaginando<br />

que seu amor fosse correspondido. Carlito, por sua vez, já estava enjoado dos amores<br />

com Jupyra e queria se livrar dela, mas não pretendia, no entanto, causar constrangimentos.<br />

E, por isso, dissimulava. Perguntado por Jupyra se ele ainda a amava, Carlito responde tão<br />

somente: “pergunte aos meus amigos”. Carlito se encontra com Rosalia, moça branca e bonita,<br />

e há toda uma cena amorosa entre os dois, com juras românticas eternas. Esse encontro<br />

é presenciado por Jupyra, que vê e ouve tudo escondida. Jupyra entra em desespero<br />

quando houve Carlito contar a Rosalia que tudo que ele havia tido com uma índia (no caso,<br />

com ela, Jupyra) nada mais seria que um passatempo. Jupyra se sente rejeitada, e em<br />

um novo encontro com Quirino lhe dá um punhal e lhe pede que mate Carlito, pois assim<br />

Quirino poderia tê-la como recompensa. Carlito se despede de Rosalia para ir caçar, no<br />

momento em que Rosalia lhe adverte de um sonho terrível que havia tido. Jupyra declara<br />

seu ódio a Rosalia, mas esta a despreza. Carlito é seguido por Quirino pela floresta. Por<br />

fim, Quirino aparece com a faca ensanguentada e é amaldiçoado por Rosalia. Jupyra, ao<br />

ver o corpo de Carlito boiando no Rio Verde, se atira de uma ponte para a morte.<br />

Francisco Braga evoca um único canto popular na Jupyra: o inequívoco dolce no<br />

tema da abertura, depois recapitulado na Coda final, lembrando o modo mixolídio, com a<br />

7 a menor, tão típico do nordeste brasileiro. Mas na obra de Francisco Braga jamais se<br />

consolidou qualquer neofolclorismo, tal como nas gerações modernas seguintes. A linguagem<br />

musical de Francisco Braga contém, portanto, uma síntese de várias correntes<br />

musicais românticas européias de sua época, que remontam desde a influência direta de<br />

seu professor Massenet, em Paris, mesclada com certos recursos típicos do verismo de<br />

algumas óperas italianas – lembrando aqui que Verdi era seu compositor italiano predileto 4<br />

...........................................................................<br />

4 Em carta a Francisco Buschmann, escrita do Rio de Janeiro, a 18 de setembro de 1902, Francisco Braga assim se<br />

refere à ópera italiana de seu tempo: “Não sei, mas os italianos, sua escola, suas operas, fazem-me mal, acho-os<br />

falsos em tudo. Salva-se, dos modernos, o principe – G. Verdi. Este foi artista sincero. Mas toda esta sucea de<br />

Puccini e Leoncavallo e Mascagni e Franchetti, e não sei quem mais ainda, são uns pedantes, falsos prophetas.”<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


344<br />

– e, principalmente, acolhendo também o sinfonismo contraponstístico de Wagner, sobre<br />

o qual o compositor carioca edifica sua linguagem operística eminentemente melódica e<br />

romântica.<br />

A 29 de dezembro de 1897, da Ilha de Capri, Francisco Braga escreve à Família<br />

Buschamnn agradecendo o envio de presentes de natal. Em especial, refere-se a uma<br />

obra de Wagner que ele necessitava estudar por ocasião da composição de sua ópera Jupyra:<br />

“Quanto à partitura do Götterdämmerung como o Álbum vieram preencher duas<br />

lacunas há muito ambicionadas”. Outra partitura que lhe serviu de referência para seu<br />

trabalho diário na Jupyra foi Die Meistersinger von Nürnberg, na versão reduzida para<br />

canto e piano.<br />

Empolgado com a composição da ópera Jupyra, Francisco Braga, em sua estada<br />

na Ilha de Capri, já vislumbrava, a 12 de fevereiro de 1898, uma rápida possibilidade de<br />

estréia: “Por aqui continua tudo como sempre, pois esta ilha é uma maravilha, um encanto<br />

de belleza! Tenho trabalhado bastante na minha Jupyra, que, se Deus quiser verá a scena<br />

este 1898”. O próprio compositor já descrevia seu processo criativo em carta a Scragnolle<br />

Doria: “ardo de impaciência a tal ponto que tenho momentos de febre quando me sento<br />

ao piano e ensaio certas scenas da nossa Jupyra... De improviso, componho, canto palavras<br />

sem nexo, imagino acentuações dramáticas, enfim, um horror, uma alucinação”. A 16 de<br />

abril de 1898, Francisco Braga já cogitava também a possibilidade de edição, mesmo a<br />

partitura da Jupyra ainda não estando concluída: “não posso ainda ir-me, pois não estive<br />

ainda com o homem da Ricordi. É necessário ainda muito trabalho, por as cousas em<br />

ordem para a execução, se bem que só possa passar a metade; o que há ainda a fazer é<br />

forte! Não se pode precipitar assim os acontecimentos. Mas vae indo”. Entretanto, essas<br />

possíveis tratativas com a editora de música Ricordi jamais se concretizariam. Ainda da<br />

Ilha de Capri, a 20 de junho de 1898, Francisco Braga escreve ao seu mecenas, o velho<br />

Buschmann, já satisfeito com os primeiros resultados de sua composição: “A Jupyra que,<br />

cada vez fica mais bella, lhe envia saudações amistosas”. Em 1898, um ano dos mais produtivos<br />

em toda sua vida, Francisco Braga, além de se concentrar intensamente na composição<br />

da Jupyra, consegue levar a cabo a composição de várias outras obras, incluindose<br />

o Episódio Sinfônico e o poema sinfônico Marabá, este último trabalho inspirado em<br />

mais um texto do seu libretista Escragnolle Doria.<br />

No início de 1899, Francisco Braga volta à Alemanha, mesmo com a partitura da<br />

ópera ainda não estando totalmente concluída. Em Dresden, a 17 de janeiro de 1899, em<br />

nova carta a Buschmann, ele relata o estágio em que o trabalho se encontrava naquele<br />

momento e começa a se preocupar com as incertezas sobre o destino da Jupyra: “Actualmente<br />

trabalho na orchestração final da minha obra. Sobre a execução não posso ainda<br />

dizer nada, pois vivo ainda de esperança, mas...?” Francisco Braga começa a se deparar<br />

com as enormes dificuldades em viabilizar a estréia da Jupyra na Europa, como podemos<br />

observar de sua carta de 7 de fevereiro de 1899. Ele havia optado pela composição da Jupyra<br />

em italiano, mas como tentava vender sua ópera na Alemanha, verificou a dura necessidade<br />

de traduzir o libreto para o Alemão e ainda ter que adaptá-lo à partitura:<br />

Aqui estou de volta por alguns dias. Já estive com o Possart 5 , intendente do<br />

Theatro real de Munich, que é bem amável, apezar da pose pedantesca que toma<br />

quando dá as suas audiências. Paletot completamente abotoada e a mão direita<br />

sobre o primeiro botão, mas dentro do paletot, com um gesto napoleônico.<br />

Mas o essencial é que é distinto e gentilíssimo. Conversamos uns 12 minutos so-<br />

...........................................................................<br />

5 Ernst von Possart (Berlim, 1841-1921), ator, diretor de cena e intendente de grande influência na produção<br />

operística na Alemanha de seu tempo.<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


345<br />

bre a minha pretensão, e elle disse-me: Faça traduzir o seo Dramma em alemão,<br />

e volte aqui, mas faça tudo isso breve e bem! Já vê que não vae muito mal. Aqui<br />

em Dresden está o [Ludwig] Hartmann que traduziu o Pallazzo de Leoncavallo, a<br />

quem escrevi, e que me respondeo de vir vê-lo. E cá me acho. Esta tarde sou<br />

esperado em casa de Hartmann. Eu pensei que as cousas fossem mais faceis,<br />

apezar que não teem sido muito complicadas. Que Deus me ajude.<br />

Nos primeiros momentos deste empreendimento, Francisco Braga estava ainda<br />

esperançoso com o projeto da estreia da Jupyra na Alemanha, junto à Ópera de Munique.<br />

É o que observamos de sua carta de 20 de março de 1899, também endereçada a<br />

Buschmann:<br />

No dia 24 [de março de 1899] o illustre Possart vêm a Dresde, e o meo traductor<br />

Ludwig Hartmann prometteu-me interessar-se pela Jupyra, e falar ao Possart<br />

que é também seu amigo. O Hartmann está muito satisfeito com o trabalho, e<br />

disse-me que cada vez lhe agrada mais a musica. Juntamente lhe envio o<br />

[Dresdner] Neueste Nachrichten que traz uma pequena notícia. Ludwig Hartmann<br />

é o crítico de artes d’esse jornal. Sabbado esteve aqui, e tem já a metade da obra<br />

traduzida. Diz elle que a musica ganha muito com o texto alemão. Veremos o<br />

que será com o Possart. O Hartmann, segundo me disse o editor Bock, quando<br />

se interessa faz muito pela pessoa. É curioso! Só o fato d’elle aceitar a tradução<br />

o que fez depois de ter ouvido toda a opera, eu no Piano e elle com a partitura<br />

de orchestra. Assim mesmo pedio-me que deixasse a musica em sua casa que<br />

queria estudal-a bem, para dar-me dois dias depois, uma resposta decisiva. Naturalmente<br />

gostou. Pois o Bock ficou me olhando como se eu fosse um bicho!<br />

Logo em seguida, em abril de 1899, Francisco Braga se encontra novamente<br />

com o intendente do Teatro de Munique:<br />

O Possart esteve aqui e repetio o que tinha dito em Munich: que quando tudo<br />

fosse prompto entregasse a elle. No próximo sabbado parto para München,<br />

pois tudo estará prompto graças a Deus, n’aquella epocha. Não sei se valerá a<br />

pena uma grande e dispendiosa viagem para ouvir a insignificante obra de um<br />

principiante. Em todo o caso é gentil a idéia que muito me lisongea. O Hartmann<br />

mesmo é quem quer ser o portador da obra ao Possart. Veremos em que dará<br />

essa innocente tentativa de artista ambicioso de glórias?!<br />

No entanto, Francisco Braga mantinha seu entusiasmo sob severa parcimônia,<br />

pois lhe parecia claro que as chances não eram grandes em ver a Jupyra estreada em<br />

Munique. A 13 de abril de 1899, ainda em Dresden, há um novo relato sobre seus planos:<br />

Devo partir para Munich desde que fôr cantada a ópera de Vogl, que creio será<br />

no dia 24 ou 26 [de abril de 1899]. Segundo as decisões [de Possart], ruins ou<br />

bôas, devo seguir para a Italia para tratar das representações futuras da Jupyra.<br />

Talvez depois da opera ser representada em Munich (se o fôr) fará o seu giro pela<br />

Alemanha... Mas qual! Tudo isto não depende de mim, não vale a pena armar<br />

castellos, somente pelo prazer de os desarmar depois.<br />

O compositor carioca passaria ainda por difíceis momentos de angústia e longa<br />

indefinição. A 18 de maio de 1899, escreve de Munique a Francisco Buschmann:<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


346<br />

Eu aqui estou desde 5 a feira última; já o manuscripto está em mãos do Intendente<br />

[Possart]; eu estou esperando a decisão que me foi marcada para 15 dias depois;<br />

e desde que tenha uma bôa notícia lhe communicarei. Não tive occasião de<br />

executar eu mesmo o trabalho. Foi, como de costume, submettido à commissão<br />

de que fazem parte os célebres Levi 6 e Fischer 7 !?? Será o que Deus quiser.<br />

A decisão se adiava. A 2 de junho de 1899, Francisco Braga relatava que ainda<br />

esperava pela decisão, se sua ópera Jupyra seria ou não programada pelo Teatro de Ópera<br />

de Munique, pois segundo soube pelo intendente Possart, a partitura ainda estaria “em<br />

mãos do Kapellmeister Fischer”. Enfim, apesar de não receber qualquer confirmação,<br />

Francisco Braga, a 4 de julho de 1899, ainda relutava em desistir de uma estreia na Europa,<br />

mesmo tendo, como diz:<br />

a cabeça estonteada com a demora da decisão que deve fixar o destino de minha<br />

Jupyra. Até agora nada, e é entretanto necessário que seja já, pois eu desejava<br />

que no próximo anno, a minha opera fosse cantada no Rio de Janeiro por ocasião<br />

das festas do 4º centenário da descoberta do Brazil, e para isso convem ser primeiro<br />

cantada n’um theatro europeo. Minha gente aqui me diz que tome cuidado<br />

com o Possart, que é um hypocrita – um typo. Tenho receio que me façam perder<br />

o tempo inutilmente, para dar-me depois uma resposta negativa, e ter eu de recomeçar<br />

a experiência em outra parte.<br />

A ilusão, no entanto, se tornou ainda maior, pois Hermann Levi (já doente, pouco<br />

antes de morrer), ciente do talento do jovem compositor carioca e das inegáveis virtudes<br />

musicais da Jupyra, dá um parecer favorável à montagem inédita da ópera pelo Teatro de<br />

Munique. 8 Este novo fato renovou as esperanças de Francisco Braga. De Partenkirchen,<br />

na região de Munique, a 22 de agosto de 1899, ele escreve a Buschmann, após receber<br />

uma carta do Levi, para aqui voltei com a Jupyra, a minha carina caboclinha, às<br />

ordens do amavel e celebre Director do Theatro de München. 9 Pedio-me esperar<br />

até quinta-feira. É curioso este homem! Me recebe sempre com tanta distinção,<br />

como se eu fosse já qualquer coisa neste mundo! Enfim, seja o que Deus quiser!<br />

A espera de poucos dias, porém, se transformou uma vez mais numa longa indefinição<br />

que duraria ainda três meses, até novembro de 1899. Eis que Francisco Braga<br />

observava impassível as chances cada vez menores de sua ópera Jupyra ser executada na<br />

...........................................................................<br />

6 Hermann Levi (Gieâen, 1839 – Garmisch-Partenkirchen, 1900), famoso regente alemão em seu tempo – tendo<br />

sido ainda tradutor de libretos de Lorenzo da Ponte das óperas de Mozart para o alemão. Apesar da origem<br />

judaica, uma vez convertido ao cristianismo, foi indicado por Wagner para reger em Bayreuth a estréia de Parsifal<br />

(1882). Após a morte de Wagner foi também o principal diretor dos festivais de Bayreuth ao lado da viúva<br />

Cosima. Levi atuou ainda como regente titular em várias casas de óperas: Saarbrücken, Mannheim, Rotterdam,<br />

Karlsruhe e finalmente em Munique (onde pouco antes de morrer teve este contato com Francisco Braga). Além<br />

da ligação com Wagner, Levi foi amigo por algum tempo também de Brahms. A ruptura entre os dois ocorreu<br />

após as duras críticas de Brahms às composições de Levi, que o levou a destruir todos seus manuscritos, restando<br />

de sua pena apenas algumas poucas obras impressas.<br />

7 Franz Fischer (1849-1918), violoncelista e regente (assistente de Levi) em Munique e em Bayreuth.<br />

8 Este parecer de Hermann Levi sobre a Jupyra foi traduzido e publicado no Jornal do Comércio do Rio de Janeiro,<br />

de 16 de outubro de 1899.<br />

9 Por “Director do Theatro de München” devemos entender hoje “diretor artístico” ou “regente titular”. Já as<br />

funções mais administrativas eram exercidas pelo “intendente”, não obstante este profissional volta e meia ter<br />

a possibilidade de influenciar diretamente os rumos dos projetos artísticos. Ao que tudo indica, foi isso que<br />

aconteceu em relação à possibilidade do Teatro de Munique (hoje Bayerische Staatsoper) programar a Jupyra,<br />

pois o regente titular, Hermann Levi, chegou a aprovar a inclusão da ópera no repertório, mas o intendente<br />

Possart acabou se tornando um obstáculo, inviabilizando o projeto.<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


347<br />

Europa. Triste fato este, que persiste até os nossos dias, pois fora o Rio de Janeiro (onde a<br />

ópera fora estreada em 1900) e São Paulo (e nesta cidade tão somente graças às recentes<br />

iniciativas da OSESP, que remontam ao recente ano de 1997), esta obra maior de Francisco<br />

Braga, um dos pontos culminantes do romantismo musical brasileiro, jamais fora executada<br />

em qualquer outro lugar do planeta. Seria este o inexorável destino da Jupyra, apreciada<br />

pela música, mas rejeitada pelo libreto?<br />

Em Dresden, a 21 de novembro de 1899, Francisco Braga confirma finalmente a<br />

possibilidade da estréia da Jupyra no Brasil. Nota-se também, pelo conteúdo da carta<br />

logo abaixo transcrita, que se alimentava certo espírito de rivalidade entre ele e Leopoldo<br />

Miguez. É notória a satisfação de Francisco Braga ao constatar que o projeto – de uma<br />

ópera com temática francesa – proposto pelo compositor de Niterói, fora preterido em<br />

favor de sua Jupyra, pela “nacionalidade” desta:<br />

Hontem recebi uma carta do Rio de Janeiro, do amigo Snr. João Vianna que, enviado<br />

da diretoria do comité das festas commemorativas do 4º Centenário da<br />

descoberta do Brazil, me pede insistentemente para que a Jupyra seja executada<br />

durante os mesmos festejos, por uma companhia de 1 a ordem. A directoria tendo<br />

se dirigido ao Miguez, para que fosse composta uma ópera de assumpto nacional,<br />

o maestro respondeu não haver tempo, e offereceu a sua nova ópera Saldumes<br />

cujo assumpto porém é gaulez. A vista da nacionalidade da Jupyra foi ella<br />

escolhida. Hontem mesmo respondi por telegramma, como me havia pedido o<br />

Snr. João Vianna. Todas as despesas correm por parte do comité, eu tenho como<br />

gratificação os meus direitos de autor, e, um benefício!<br />

Iniciava-se então um novo, mas não menos difícil processo de ajustes para a estréia<br />

da Jupyra no Rio de Janeiro, mas desta vez a decisão de apresentar a ópera pelo menos<br />

já estava aparentemente assegurada. Francisco Braga, ainda em Dresden, em dezembro<br />

de 1899, relata que<br />

não sei ainda quando, e se irei mesmo eu dirigir as representações da Jupyra.<br />

Tudo isto depende de dinheiro. A companhia será de 1 a ordem e o emprezario é<br />

o Sanzone que costuma ir todos os annos [ao Brasil]. Elle deve vir me procurar,<br />

pois foi pessoalmente procurar o Rochinha 10 , que deu-lhe uma carta de apresentação<br />

para mim! A todo o momento espero uma carta do homem ou eu<br />

mesmo irei à Milão pois os trabalhos de cópias devem ser feitos aqui na Europa.<br />

Não deixa de ser curioso o fato de que estas partes cavadas, copiadas na Itália,<br />

no início de 1900, serviram basicamente como material para as raríssimas execuções orquestrais<br />

da Jupyra ao longo do século XX, até nossa edição pela OSESP. Já há muito estas<br />

partes copiadas – e não com muito capricho! – se encontravam em péssimo estado de<br />

conservação.<br />

Apesar das tratativas com o Rio de Janeiro, Francisco Braga ainda mantinha as<br />

últimas esperanças de uma execução européia da Jupyra. Uma vez malogrado o projeto<br />

em Munique, os seus manuscritos – tanto a partitura sinfônica como a versão para canto<br />

e piano – permaneciam agora sob a guarda de terceiros junto à Ópera de Dresden, mas a<br />

definição também não vinha, o que causava a justificada preocupação de Francisco Braga.<br />

Nos primeiros dias de 1900, ele escreve que “não há meios de obter uma resposta do<br />

...........................................................................<br />

10 Rochinha era o apelido de José de Souza Rocha, a quem Francisco Braga dedica a Jupyra. O Rochinha foi sempre<br />

o melhor amigo do compositor, um companheiro inseparável desde a infância, quando foram colegas no<br />

Asilo dos Meninos Desvalidos.<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


348<br />

Schuch, 11 sobre a Jupyra que já lá está há 2 meses. Nunca o vejo”. Em Dresden, a 8 de<br />

janeiro de 1900, Francisco Braga relata que “hoje fui procurar o illustre E. von Schuch para<br />

saber qual o destinho que está reservado à minha ópera, devo voltar amanhã”.<br />

Pouco depois, a 2 de fevereiro de 1900, ainda em Dresden, Francisco Braga continuava<br />

relatando as simultâneas tratativas em Dresden e junto ao empresário italiano<br />

Sanzone:<br />

Tudo continua sobre a Jupyra estacionário. Quando estive com o Schuch só pude<br />

obter o contemplal-o durante 6 minutos, se tanto […] que esperasse mais um<br />

pouco, que actualmente havia muito trabalho, os concertos […] novas óperas<br />

[…] etc. Felizmente fiz o conhecimento do ensaiador dos coros, Dr. Walther Rabl, 12<br />

moço ainda, muito amável que me disse haver realmente muito trabalho, e que<br />

as minhas partituras, orchestra e piano-canto, achavam-se em seu poder, e prometteu-me<br />

lembrar de vez em quando ao Schuch. E assim vae vagando o barco<br />

das minhas illusões por esses mares fóra... O imprezario Sanzone escreveu-me,<br />

é provável que eu vá brevemente até Milão entrar em negociações com elle, e<br />

dar-lhe uma audição da Jupyra. Por ora nada está decidido, espero a resposta<br />

que elle deve mandar sobre o que lhe escrevi.<br />

Diante de tantas dificuldades, Francisco Braga, a 25 de março de 1900, escreve a<br />

seu amigo Corbiniano Villaça, que residia em Paris, cogitando a hipótese de Jupyra ser estreada<br />

na capital francesa, mas novamente não houve êxito neste empreendimento.<br />

Por fim, o impasse só se resolve a 13 de maio de 1900. Francisco Braga recebe<br />

então boas notícias de seu amigo José de Souza Rocha (o Rochinha), do Rio de Janeiro,<br />

que já havia se encontrado com Sanzone. O empresário italiano se desculpou por não ter<br />

tido tempo de se encontrar pessoalmente com Francisco Braga, na Europa, mas assegurava<br />

que manteria sua promessa, não só de promover a estréia da Jupyra por ocasião dos festejos<br />

do 4º Centenário, no Rio de Janeiro, como convidaria o próprio compositor para<br />

atuar como regente junto à sua Companhia Lírica. Logo em seguida, em junho de 1900,<br />

Francisco Braga vai a Milão, organiza os detalhes da produção e parte de Gênova para o<br />

Rio de Janeiro – a bordo do vapor italiano Duchessa di Genova – a 8 de julho de 1900, juntamente<br />

com toda a Companhia Lírica de Sanzone. A chegada ao Rio de Janeiro ocorreu<br />

no dia 25 daquele mês.<br />

Passadas as primeiras semanas de volta à sua cidade natal, Francisco Braga constatou<br />

que, por fim, a ópera de Leopoldo Miguez não havia sido de fato preterida em favor<br />

da Jupyra – a comissão dos festejos optou sim por apresentar ambas as óperas – e manda<br />

as primeiras notícias a Buschmann, a 27 de agosto de 1900: “ando como um doido nesta<br />

cidade. Manifestações, jantares, festas etc., mas ainda não consegui organizar as minhas<br />

festas e nem a Jupyra entrou em ensaios, porque o imprezario reserva para o fim da<br />

estação. A ópera do Miguez vae antes”.<br />

A 13 de setembro de 1900, já radicado definitivamente no Rio de Janeiro, Francisco<br />

Braga relatava a Buschmann suas últimas novidades. Simultaneamente à apresentação<br />

da Jupyra, o compositor, sempre muito ativo, preparava também dois concertos<br />

sinfônicos sob sua direção, para apresentar ao público carioca o que havia de melhor em<br />

...........................................................................<br />

11 Trata-se de Ernst Edler von Schuch (Graz, 1846 – Dresden, 1914), famoso regente austríaco que desde 1889 foi<br />

diretor artístico da Ópera de Dresden, tendo aí permanecido fielmente como músico por mais de 42 anos.<br />

12 Walther Rabl (Viena, 1873-1940) foi regente (com especial destaque para estréias mundiais de obras de Gustav<br />

Mahler e Richard Strauâ, entre outros contemporâneos), compositor, pianista e professor de canto (coro-repetição<br />

para cantores).<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


349<br />

sua produção europeia nos últimos 10 anos. Francisco Braga estava enfim feliz pela calorosa<br />

recepção de seus conterrâneos:<br />

Começaram os ensaios da Jupyra, mas a opera do Miguez será cantada antes,<br />

creio na próxima semana. Ainda não dei os meus dois concertos porque o theatro<br />

S. Pedro está em obras, e só ficará prompto no fim deste mez. No lyrico é impossível<br />

porque há ou ensaios ou matinéz, sem falarmos das representações regulares.<br />

Já tenho orchestra de 60 professores tudo organizado, só me falta o theatro,<br />

isto é, que elle fique concertado. A companhia tem sido muito feliz; amanha temos<br />

a Tosca de Puccini que obterá certamente um enorme triumpho. Não tenho<br />

mãos à medir de tanta destinação que tenho recebido; é raro o dia que não sou<br />

obsequiado, convidado. Nem Castro Urso 13 foi tão popular!<br />

A ópera Jupyra é finalmente estreada no Teatro Lírico do Rio de Janeiro, sob direção<br />

do compositor, nos dias 7 e 8 de outubro de 1900, com relativo sucesso, mas não o<br />

suficiente para que fosse programada com freqüência nos anos seguintes. É muito difícil<br />

precisar hoje até que ponto houve de fato uma qualidade de execução à altura das exigências<br />

artísticas e técnicas da partitura, mesmo no caso das récitas promovidas por uma<br />

companhia italiana de ópera. Por certo, os artistas nacionais daquela época não se encontravam<br />

ainda em condições técnicas e artísticas de executar obras tão complexas como<br />

a Jupyra – e assim ficavam os compositores na dependência das companhias estrangeiras 14 .<br />

Em carta a Carolina Buschmann (Mimica), filha de Francisco Buschmann, redigida no Rio<br />

de Janeiro, a 5 de janeiro de 1924, Francisco Braga confessava uma certa decepção em relação<br />

à atuação dos cantores por ocasião de uma execução da Jupyra por um elenco brasileiro:<br />

“Cantaram também o anno passado a Jupyra. Fizeram-me uma grande ovação, jogaram-me<br />

flores, mas não me agradou a interpretação dos artistas”.<br />

Nos dias 18 e 25 de novembro de 1900, no Teatro Lírico – uma vez que o Teatro<br />

São Pedro não ficou pronto – Francisco Braga apresentava-se com grande orquestra regendo<br />

suas obras sinfônicas compostas na Europa.<br />

Logo em seguida, Francisco Braga idealizou e organizou outro empreendimento<br />

de vulto: uma turnê por São Paulo, Campinas e Santos, com uma orquestra de 60 músicos.<br />

Começa uma nova fase em sua vida, agora ciente da dura realidade que envolve as precárias<br />

instituições musicais no Brasil, como podemos observar em carta redigida em São Paulo,<br />

a 12 de janeiro de 1901:<br />

Escrevo-lhe de S. Paulo, onde estou com uma orchestra de 60 professores dando<br />

3 concertos. Imagine que despesa colossal!? Destes artistas, 30 vindos do Rio,<br />

contractados por 15 dias! Daqui vou à Campinas e à Santos. O que será o fim de<br />

tudo isto? Não estamos ainda em condições d’estes luxos europeus, bem o sei,<br />

mas é necessário ousar para obter qualquer cousa n’este paiz de politicos e<br />

politiqueiros. Tenho sido muito festejado em toda parte, mas não é com elogios<br />

que se compram os melões.<br />

Pouco depois, de volta ao Rio de Janeiro, Francisco Braga prossegue com novas<br />

séries de concertos sinfônicos. A 3 de março de 1901, no Theatro Sant’anna, rege um con-<br />

...........................................................................<br />

13 Castro Urso era um tipo popular de rua muito conhecido no Brasil da segunda metade do século XIX.<br />

14 O mesmo valia em realação ao repertório europeu executado no Brasil: “Poucos concertos, mas no horizonte<br />

muitas companhias estrangeiras de drama, opereta e opera, inclusive uma allemã que traz todas as obras de<br />

Wagner, dizem ser de primeirissima. Oxalá seja tudo isso de verdade, e com a interpretação pura e tradicional<br />

que só esses artistas europeus sabem dar às obras primas dos mestres da música” (Francisco Braga em carta à<br />

Mimica. Rio de Janeiro, abril de 1910).<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


350<br />

certo todo dedicado a árias de Verdi, e apresenta também sua própria composição Elegia.<br />

Já no recém-reformado Teatro São Pedro de Alcântara, Francisco Braga se apresenta mais<br />

uma vez diante de uma grande orquestra, nos dias 26 de maio, 2, 9 e 16 de junho de 1901.<br />

No repertório constavam, além de obras próprias (entre outras, Marabá, Dai-me as pétalas<br />

de rosa, Oh! Se te amei, Minueto e Cauchemar), composições de autores clássicos e românticos,<br />

como Mozart, Beethoven, Carl Maria von Weber, Schubert, Wagner, Gounod, Tchaicovsky,<br />

Carlos Gomes e Westhout.<br />

A partir de 1902 – após a morte de Leopoldo Miguez – Francisco Braga assume<br />

o trabalho como professor (composição, contraponto e fuga) no então Instituto Nacional<br />

de Música (hoje Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro), cargo que<br />

exercerá até o fim de sua vida. Ainda naquele ano, Francisco Braga, após o sucesso da Jupyra<br />

com a Companhia Lírica de Sanzone, já planejava a composição de uma segunda<br />

ópera – mas o projeto jamais viria a se concretizar. Do Rio de Janeiro, a 18 de setembro de<br />

1902, Francisco Braga escreve a Buschmann:<br />

Continuo esperançado, muitíssimo mais animado, tanto que já estou preparando<br />

um novo Drama lyrico, tirado do bello livro de Visconde de Taunnay – Innocencia<br />

– para ver se, de volta da minha viagem à Europa, faço-o representar aqui pela<br />

troupe do Sanzone; (fante de mieux) o único meio que tenho de ser ouvido na<br />

minha cidade natal.<br />

Remonta a estes primeiros anos do século XX o período em que Francisco Braga<br />

foi professor de Heitor Villa-Lobos (Rio de Janeiro, 1887-1959). Mas ainda não se sabe ao<br />

certo, durante quanto tempo exatamente e sob quais circunstâncias. Os raros depoimentos<br />

de Villa-Lobos sobre Francisco Braga, no entanto, indicam uma certa estima que o discípulo<br />

reverenciou ao seu mestre. Mas com certeza, o tempo em que Villa-Lobos estudou com<br />

Francisco Braga não foi demasiado longo, pois os diferentes rumos artísticos não viabilizaram<br />

uma convivência duradoura ou mesmo uma relação mais aprofundada entre os<br />

dois compositores. Talvez houvesse um conflito de gerações, entre o romantismo e a modernidade.<br />

Em 1905, Francisco Braga compõe obras camerísticas, como Impressões da Roça,<br />

além de outros trabalhos importantes, como o melodrama Contratador de Diamantes,<br />

com texto de Affonso Arinos, terminando-o no ano seguinte, quando compunha então<br />

sua obra mais conhecida, encomendada pelo prefeito Pereira Passos 15 , o belíssimo Hino à<br />

Bandeira, com poema de Olavo Bilac.<br />

Remonta aos primeiros anos, como professor no Instituto Nacional de Música,<br />

a estreita amizade e também as parcerias, em diversos projetos, de Francisco Braga com<br />

outros grandes compositores brasileiros da época, como Alberto Nepomuceno (Fortaleza,<br />

1864 – Rio de Janeiro, 1920) e Henrique Oswald (Rio de Janeiro, 1852 – 1931). Naqueles<br />

anos, Francisco Braga foi também amigo próximo, mestre e principal conselheiro de Glauco<br />

Velasquez (Rio de Janeiro, 1884-1914).<br />

A 14 de julho de 1909, Francisco Braga dirige o concerto de inauguração do<br />

Teatro Municipal do Rio de Janeiro, estreando seu poema sinfônico Insônia – também<br />

inspirado em poema de Escragnolle Dória. Muito provavelmente, aquele foi um momento<br />

...........................................................................<br />

15 Francisco Braga admirava profundamente o prefeito Pereira Passos, como podemos observar de uma carta<br />

sua à Mimica Buschmann, de 12 de julho de 1903. “Temos o homem! É dizer que o Prefeito tão activo, tão<br />

empreendedor, tão moderno, é velho de 72 annos! Mas é vêl-o como é bello e rijo!”. Os elogios do compositor<br />

são principalmente para a renovação urbanística que o prefeito levou a cabo na cidade do Rio de Janeiro, mas<br />

nota-se que não havia qualquer preocupação com a preservação do patrimônio histórico colonial: “calçadas<br />

largas, abaixo as velhas taperas, rasgam-se os horizontes, projetam-se maravilhas […] Flores e musica por toda<br />

parte: já os operários trabalham; o Rio faz a sua toillete secular”.<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


351<br />

de maior glória na carreira do compositor. No entanto, os tempos já não eram mais de<br />

entusiasmo pessoal, pelo que podemos observar de uma carta sua à Mimica, redigida no<br />

Rio de Janeiro, a 24 de julho de 1909. Francisco Braga se queixa da política cultural ou<br />

mesmo da cultura política no Brasil:<br />

Inaugurou-se o theatro Municipal com uma brilhante assistência de casacas novas<br />

e toilettes caríssimas, sem gosto nem elegância, com raríssimas excepções; o<br />

programa foi inteiramente nacional – o Hymno Nacional, um discurso pelo poeta<br />

official Olavo Bilac; o meu novo poema [sinfônico] Insomnia, com grande orchestra,<br />

uma comedia de Coelho Netto, terminando com a opera Moema de<br />

Delgado de Carvalho 16 . Foi uma festa fria, convencional, estúpida. Continuamos<br />

indifferentes às cousas artísticas; muito snobismo e nada mais. O theatro é bonito,<br />

porém exagerado na sua ornamentação, com muitos mármores variados e muito<br />

ouro, a platea é suave de tons, e muito sympathica. Há muita riqueza. Eu preferiria<br />

mais sobriedade, e linhas mais severas, mais arte. Custou perto de 12.000 contos.<br />

Todos os theatros, de resto, trabalham, avultam para elles, os forasteiros, que os<br />

nacionaes só o que ficar das sobras de suas fartas e sumptuosas receitas. Somente<br />

aos políticos é dado confiar no futuro, sonhar com glórias e fortuna; às outras<br />

classes o esquecimento e a indifferença. É um paiz para os nacionaes que abraçam<br />

as duas carreiras exclusivamente previligiadas e altamente lucrativas – política e<br />

militar.<br />

Em 1912, Francisco Braga funda a Sociedade de Concertos Sinfônicos, e durante<br />

vinte anos, se manterá à frente da orquestra desta sociedade, como diretor artístico e<br />

principal regente. Naquele instante, toda a principal parte de sua obra já havia sido composta,<br />

e se registra, a partir de então, tão somente acontecimentos que não vão alterar<br />

substancialmente sua carreira de compositor.<br />

Destaca-se ainda o trabalho numa segunda ópera (entre 1911 e 1924), Anita<br />

Garibaldi, ainda inédita e desconhecida 17 , e alguns concertos de importância histórica,<br />

como por ocasião da apresentação de sua obra sinfônica Marabá, em 1920, no Teatro<br />

Municipal do Rio de Janeiro, sob regência de Richard Strauss (Munique, 1864 – Garmisch-<br />

Partenkirchen, 1949), ou em 1944, quando o Episódio Sinfônico foi regido por Erich Kleiber<br />

(Viena, 1890 – Zurique, 1956), também no Rio de Janeiro.<br />

E cabe aqui, talvez, uma última e rápida hipótese de trabalho. Justamente no<br />

momento em que as novas correntes modernistas despontavam na Europa, e, já havia toda<br />

uma superação dos ideais românticos, como em Schönberg, Bartók, Debussy e Stravinsky,<br />

entre outros, Francisco Braga, no Brasil, por sua vez, tendo sido desde a juventude um<br />

compositor eminentemente romântico, nunca chegou a se tornar moderno, mantendose<br />

fiel, até sua morte, às normas poético-estilísticas das últimas gerações românticas do<br />

final do século XIX. Há ainda muito por se estudar, para a compreensão deste fato, sobre<br />

os motivos que o levaram, assim como no caso de Henrique Oswald, à não adesão aos desafios<br />

poéticos dos novos tempos – caminhos estes que seu ex-aluno Villa-Lobos não hesitou<br />

em abraçar desde a década de 10 daquele novo século, alguns anos antes mesmo<br />

da Semana de Arte Moderna de 1922. É certo, contudo, que os rumos às novas linguagens<br />

...........................................................................<br />

16 Trata-se de Joaquim Torres Delgado de Carvalho (Rio de Janeiro, 1872-1921). Sua ópera Moema havia sido<br />

estreada com grande êxito no Teatro Lírico do Rio de Janeiro, em 1894.<br />

17 A 5 de janeiro de 1924, do Rio de Janeiro, Francisco Braga escreve a Mimica: “Já tenho prompta a Annita<br />

Garibaldi. É um trabalho que certamente agradará, se bem que technicamente diffícil”. No entanto, parece que<br />

o trabalho não chegou a ser concluído totalmente. A 28 de dezembro de 1926, Francisco Braga já se queixa da<br />

falta tempo para a composição: “Quem vae soffrendo com esse acumulo de trabalho é a minha pobre Annita<br />

Garibaldi, que vae crescendo como as crianças sem pão e sem sol!”<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


352<br />

tomados pelos compositores modernos não agradaram a Francisco Braga. Ele não soube<br />

como continuar inventivo, no momento em que o lirismo sublime do romantismo já não<br />

mais se enquadrava no novo Zeitgeist. Enfim, o velho Francisco Braga não foi capaz de<br />

exercer um distanciamento crítico diante de sua pertença histórica, não compreendendo<br />

os novos contextos filosóficos e estéticos da modernidade. Em carta a Mimica, que se<br />

encontrava na Europa, de 27 de dezembro de 1925, Francisco Braga, estando no Rio de<br />

Janeiro, demonstra todo o seu conservadorismo ao renegar os valores da nova geração –<br />

o que faz dele infelizmente mais um desmentido pela história. Com certeza, ele se refere<br />

aqui principalmente a Villa-Lobos:<br />

Temos actualmente, aqui, uns tres ou quatro músicos futuristas; typos grotescos<br />

e que surpreendem pela ignorância e audácia! É pena, pois são rapazes de talento!<br />

Por ahi devem existir muitos desses artistas, já cançados das formas antiquadas<br />

da música (como lhes chamam) e que; na ancia da celebridade, escrevem<br />

tudo o que de mais extravagante em matéria de combinação de sons e<br />

rythmos lhe passa pelo cérebro doentio. Naturalmente essa nevrose passará,<br />

quando surgir o verdadeiro músico, (como de tempos em tempos), dentre os<br />

milhares que os séculos conheceram e que já nos esquecemos os nomes. Marcaram<br />

epocha: Palestrina, Bach, Scarlatti, Rameau, Haydn, Mozart, Beethoven,<br />

Wagner, Berlioz, Brahms etc.<br />

Durante as últimas décadas de vida, Francisco Braga será ainda professor de<br />

teoria musical de alguns compositores brasileiros de destacada importância, como Lorenzo<br />

Fernandez (Rio de Janeiro, 1897-1948) e Cláudio Santoro (Manaus, 1919 – Brasília, 1989).<br />

Em 1944, um ano antes de sua morte, doa toda sua produção musical à Sociedade de<br />

Concertos Sinfônicos, mais tarde, por sorte, incorporada à Biblioteca Alberto Nepomuceno<br />

da EM-<strong>UFRJ</strong>.<br />

Por fim, gostaríamos de agradecer a toda a equipe da Biblioteca Alberto Nepomuceno<br />

da EM-<strong>UFRJ</strong>, pela imprescindível colaboração e auxílio no acesso aos manuscritos<br />

musicais de Francisco Braga. Em especial, gostaríamos de agradecer também à bibliógrafa<br />

Mercedes Reis Pequeno, pelas informações valiosas sobre o acesso às fontes primárias<br />

utilizadas nesta pesquisa.<br />

Jupyra, fontes para a edição de Rubens Russomano Riccciardi, Editora da OSESP<br />

– Criadores do Brasil<br />

Todas as fontes aqui utilizadas encontram-se depositadas na Biblioteca Alberto<br />

Nepomuceno da EM-<strong>UFRJ</strong>:<br />

Fonte A – Partitura autógrafa (concluída em 1899).<br />

Fonte B – <strong>Versão</strong> manuscrita para canto e piano (1899)<br />

Fonte C – Partes cavadas em cópias manuscritas (a maior parte de 1900)<br />

Fonte D – <strong>Versão</strong> impressa pela gráfica C. G. Röder, Leipzig (Alemanha), para<br />

canto e piano. Edição do autor, 18 com revisão de Baby Monteiro de Barros (1922).<br />

Observações para a presente edição da partitura da Jupyra:<br />

1) Da fonte A – base para esta presente edição - não consta o Prelúdio, cuja<br />

partitura foi reconstituída a partir da fonte C.<br />

...........................................................................<br />

18 A iniciativa dessa edição foi do próprio compositor, que contou com a colaboração de grande rol de amigos,<br />

aguns deles importantes personalidades do Rio de Janeiro daquela época.<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


353<br />

2) A fonte B não foi utilizada, uma vez que a fonte D é versão posterior.<br />

3) Fora o Prelúdio, a fonte C não foi utilizada.<br />

4) A fonte D nos foi de grande importância, pois se trata da última versão, devidamente<br />

aprimorada pelo próprio compositor. Assim sendo, a totalidade das<br />

linhas do canto, assim como as indicações de andamento, dinâmica, articulação<br />

e fraseado, foram extraídas e importadas integralmente desta fonte para a presente<br />

partitura sinfônica. 5) Como em A não há indicações de dinâmica, fraseado<br />

ou articulação efetuadas por extenso, optamos pela realização prática com a<br />

homogeneidade destas indicações em todas as partes orquestrais, a partir de<br />

uma postura hermenêutica, tomando como referência decisiva a última versão<br />

do compositor (D), pois nosso objetivo principal foi a viabilidade de performance.<br />

Referências bibliográficas<br />

Braga, Francisco. Jupyra: Ópera em 1 ato. Edição com revisão musicológica de Rubens<br />

Russomano Ricciardi. São Paulo: Editora da OSESP – Criadores do Brasil, 1997–2002.<br />

Bosi, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1994.<br />

Pequeno, Mercedes Reis. Cronologia. In: Exposição Comemorativa do Centenário do<br />

Nascimento de Francisco Braga (1868-1945). Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1968,<br />

p. 11-19.<br />

Coleção de cartas e cartões postais de Francisco Braga à família de Francisco e Victória<br />

Buschmann. Divisão de Manuscritos da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro, n. 50.3.8.<br />

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355<br />

Damião Barbosa de Araújo e A Intriga<br />

Amorosa: estilo e questões cronológicas no<br />

contexto da sua produção lírica<br />

Pablo Sotuyo Blanco<br />

Universidade Federal da Bahia<br />

Damião Barbosa de Araújo foi o primeiro mestre-de-capela não sacerdote da Sé<br />

da Bahia já referido na história da música local e um dos mais importantes e habilidosos<br />

músicos convidados pelo Príncipe Regente D. João (durante a sua passagem pela Bahia<br />

em inícios de 1808) para integrar a sua nova Capela Real no Rio de Janeiro. Assim, de 1808<br />

a 1821 trabalhou na Corte Portuguesa no Rio de Janeiro integrando a Capela Real e a Real<br />

Câmara e compondo obras para diversas ocasiões na Corte e fora dela. Embora seja mais<br />

conhecido pela música religiosa, também compôs música secular (sinfônica e de câmera)<br />

com ou sem vozes. Desta sua fase carioca ainda restam alguns aspectos muito pouco documentados<br />

da sua vida profissional como, por exemplo, o de ter sido “mestre de uma<br />

banda de menores” (Azevedo, 1956, p. 24), as relações profissionais e pessoais que teria<br />

estabelecido, dentre os mais relevantes.<br />

O que motiva o presente trabalho é a tentativa de elucidar problemas ainda não<br />

resolvidos em torno da obra “A Intriga Amorosa”, cuja autoria (a partir da documentação<br />

até hoje localizada) lhe fora atribuída inicialmente por Sacramento Blake em 1893, secundada<br />

por Vieira em 1900 e por Mello em 1908, dentre outros. Ainda, a data da sua<br />

eventual estreia (se aconteceu e quando, segundo qual fonte for observada) pode variar<br />

significativamente, levantando questões relativas à cronologia da sua produção, do ponto<br />

de vista estilístico.<br />

A Intriga Amorosa: dados disponíveis<br />

Sacramento Blake descreveu A Intriga Amorosa como uma “composição para<br />

canto, com letra italiana” (Blake, 1893, p. 159), mas não especificamente como ópera,<br />

ópera buffa ou mesmo como burletta. No entanto, Mello informa que “como regente da<br />

orchestra do theatro [Damião Barbosa de Araújo] compoz uma ópera no genero buffo<br />

[...] que foi levada a scena na antiga Casa da Opera, sita no largo de Guadelupe” em Salvador”<br />

(Mello, 1908, p. 253).<br />

Embora Ernesto Vieira (1900, p. 43-44) afirme nunca ter sido estreada, e Pinheiro<br />

Chagas (1909, p. 68) negue a estreia d’A Intriga Amorosa, ainda definindo-a como uma<br />

burletta, autores como Querino (1911), Diniz (1970), Pimentel (1979), Stevenson (1992) e<br />

Béhague (2010) repetiram as afirmações de Blake e de Mello, fortalecendo assim a tradição<br />

da sua estreia, eventualmente tratando o seu gênero de forma pouco precisa.<br />

É do nosso parecer que teria sido muito difícil para Damião estrear dita obra em<br />

Salvador nas datas referidas na bibliografia porque ele deixou a Bahia em fevereiro de<br />

1808, indo para o Rio de Janeiro com D. João (Sotuyo Blanco, 2007). Assim sendo, a única<br />

e pequena chance disso ter acontecido estaria entre duas possibilidades: a tal estreia em<br />

Salvador ter acontecido durante janeiro ou nos vinte primeiros dias de fevereiro de 1808,<br />

isto é, antes dele viajar ao Rio com o Príncipe Regente, ou a referida apresentação ter<br />

ocorrido depois da sua partida de Salvador.<br />

No primeiro caso, a estreia poderia ser considerada como um dos eventos públicos<br />

que o futuro D. João VI teria testemunhado durante a sua passagem pela Bahia (de<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


356<br />

22 de janeiro, aproximadamente, a 20 de fevereiro de 1808) e que o motivaram a convidar<br />

Damião a ir ao Rio de Janeiro trabalhar na nova Capela Real.<br />

Embora não se possuam evidências da existência dessa obra (enquanto ópera<br />

integralmente composta por Damião), os dois números musicais localizados (a ária de<br />

Dardane “Tra mille idee gioconde” e a cavatina de Aladina “Non è colpa innamorarsi”)<br />

junto ao restante da sua produção lírica parecem indicar uma continuidade nessas atividades<br />

ligadas aos palcos, iniciadas no Teatro de Guadelupe (Mello, 1908), não apenas<br />

durante o período em que morou no Rio de Janeiro, mas também a posteriori, isto é, depois<br />

do seu retorno à Bahia (Sotuyo Blanco 2008).<br />

Como já expusemos em foro científico anterior A Intriga Amorosa pode ter sido<br />

o nome dado a alguma produção local, na Bahia ou no Rio, de L’intrigo amoroso, de Ferdinando<br />

Paer (Parma, 1º de junho de 1771 – Paris, 3 de maio de 1839), composta sobre o<br />

libreto de Giovanni Bertati (Figura 1), estreada em Veneza a 4 de dezembro de 1795 e<br />

apresentada no Teatro Régio de São Carlos, em Lisboa, em 1798 (Bertati, 1798), sobre<br />

cujo libreto Damião teria sido solicitado de compor, pelo menos, os dois números musicais<br />

localizados (ária e cavatina) para serem inseridos como substitutos dos compostos por<br />

Paer. Assim, óperas de Paer não só foram conhecidas pelo público carioca (cf. Lange, 1964;<br />

Andrade, 1967; Kühl, 2003 e Cavalcanti, 2004) mas eventualmente também por Damião,<br />

já que La Griselda foi encenada em 1815 e Camilla em 1818, ambas no Rio de Janeiro,<br />

coincidindo dessa maneira com o período em que Damião morou naquela cidade e<br />

trabalhou no âmbito musical da Corte.<br />

À observação cronológica, a partir da compilação feita pelos autores antes mencionados,<br />

percebe-se que, do ponto de vista estético e estilístico, a efetiva apresentação e<br />

consequente consumo lírico-cênico viveria, no Rio de Janeiro, uma transição na construção<br />

do “gosto” que vai de Cimarosa a Rossini, com documentadas apresentações de obras de<br />

Paer (Tabela 1) .<br />

Diferentemente do observado para o Rio de Janeiro, a documentação até hoje<br />

disponível apresenta muito poucos detalhes relativos às apresentações no Teatro São<br />

João da Bahia (inaugurado em 1812), além de não se dispor, ainda, de documentação relativa<br />

ao Teatro de Guadelupe, anterior ao Teatro São João (cf. Bocannera Jr, 2008; Robatto<br />

et al, 2007).<br />

Segundo informou Robatto, além dos “documentos inéditos referentes à criação<br />

e aos primeiros anos de funcionamento do Teatro São João (1806-1830)” (Robatto et al,<br />

2007), recentemente foi disponibilizado pelo Arquivo Público do Estado da Bahia um novo<br />

conjunto documental que pareceria completar a vida do Teatro São João desde meados<br />

do século XIX até início do século XX. Além das óperas, peças e apresentações com danças<br />

sem indicação de nome, dentre outros “benefícios” indicados nos documentos, poucas<br />

obras são nominalmente referidas, como são os casos das comédias “Palafox” (em<br />

Zaragoza) e “Ditosa Experiência”, apresentadas no Teatro São João da Bahia em 1812 e,<br />

no ano seguinte, repete-se a comédia “Palafox” aparecendo também referências aos<br />

entremezes “da Castanheira” e “do Velho guerreiro”.<br />

Não foram ainda localizados registros relativos a nada parecido com A Intriga<br />

Amorosa, L’Intrigo Amoroso, ou similares, nem apareceu ainda o nome de Ferdinando<br />

Paer entre os compositores. No entanto, o nome de Damião Barbosa de Araújo foi<br />

localizado apenas em relação ao pagamento feito pelo uso do teatro numa noite de 1844<br />

(Figura 2).<br />

Ária de Dardane – “Tra mille idee gioconde”<br />

Uma cópia manuscrita desta ária, segundo composta por Paer, se encontra<br />

localizada na Biblioteca do Conservatório de Milão e catalogada no RISM A/II sob o número<br />

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Figura 1. Folha de rosto do libreto<br />

de Bertati publicado em Lisboa por<br />

Simão Tadeu Ferreira no ano de<br />

1798.<br />

Tabela 1. Resumo cronológico das apresentações no Rio de Janeiro entre<br />

1808 e 1826.<br />

Figura 2. Demonstrativo de Receita do Teatro São João da Bahia de 1844. 1<br />

Tabela 2. Versões do início do texto da Ária de Dardane em português e italiano.<br />

357<br />

de registro 852.030.218. Quando comparada com o documento autógrafo de Damião,<br />

constatou-se que ambas as versões da ária são composições diferentes, não apenas pela<br />

mudança de tonalidade – de Lá para Fá – ou de orquestração – pela troca dos oboés pelas<br />

flautas e pelo acréscimo de clarins e tímpano) – mas pela diferença no contorno melódico<br />

do soprano solista e da orquestra (Exemplos 1a, 1b, 1c e 1d) embora compartilhem o<br />

mesmo texto (Tabela 2) e o uso de práticas e recursos de representação musical estilisticamente<br />

semelhantes.<br />

Cavatina de Aladina – “Non è colpa innamorarsi”<br />

No fim da Cena V do Ato I do referido libreto de Bertati encontra-se o texto que<br />

Damião utilizou na sua cavatina Non è colpa innamorarsi, a cargo de Aladina (escrava de<br />

Jusuf, Sultão de Bagdá), encerrando o diálogo que, nessa cena, aconteceu entre ela e<br />

Dardane, a favorita do Sultão (Bertati, 1798, p. 24-25).<br />

...........................................................................<br />

1 APEB - Seção de Arquivos Coloniais e Provinciais, Inventário dos Documentos do Governo da Província, 2ª<br />

Parte. Maço 4072 pasta 104. “Demonstrativo de receita e despesa...” Reprodução fotográfica do Prof. Dr. Lucas<br />

Robatto.<br />

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358<br />

Exemplo 1a. Introdução da ária de Dardane de Barbosa de Araújo (ms. SAV-FGM 6.08).<br />

Exemplo 1b. Início da ária de Dardane de Barbosa de Araújo (ms. SAV-FGM 6.08).<br />

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Exemplo 1c. Ária de Dardane (ms de F. Paer – gentileza Conservatório de Milão).<br />

Exemplo 1d. Ficha de catalogação resumida do RISM A/II 852.030.218 incluindo incipit do soprano.<br />

359<br />

Sem diferenças literárias entre partitura e libreto (Tabela 3), a primeira folha do<br />

manuscrito musical informa claramente “Cavatina / Non è Colpa inanorarse [sic] / p.a Piano<br />

e Voz / p.r Damião” (Exemplo 2a).<br />

Embora não tenha sido possível, até hoje, obter cópia da partitura de Paer para<br />

estudos comparativos, nem constar registro desta cavatina no RISM A/II, o seu estilo musical<br />

(Exemplo 2b) pode-se vincular claramente com o exposto na ária de Dardane.<br />

Elementos estilísticos da ária e da cavatina<br />

Dentre os diversos aspectos da prática musical relacionáveis ao estilo musical<br />

operístico em uso no final do século XVIII e inicio do XIX, podem-se identificar alguns recursos<br />

musicais como a representação musical do texto, como no caso da “tormenta” sonora<br />

no verso “quando si turba il cielo vedo oscurarsi il giorno” (Exemplo 3a) da ária de<br />

Dardane, assim como o recitativo seco utilizado na cavatina ou o tipo de contorno melódico<br />

utilizado no inicio do canto na cavatina, (Exemplo 3b).<br />

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360<br />

Tabela 3. Início da cavatina Non è colpa innamorarsi em italiano e português.<br />

Exemplo 2a. Frontispício da cavatina de Aladina de Barbosa de Araújo (ms. SAV-FGM 6.25).<br />

Exemplo 2b. Inicio da cavatina de Barbosa de Araújo (ms. SAV-FGM 6.25).<br />

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Exemplo 3. Representação musical do verso “quando si turba il cielo vedo oscurarsi il giorno” (Dardane).<br />

Exemplo 3b. Primeira aparição do recitativo seco na cavatina de Aladina; o inicio do canto na cavatina de Aladina.<br />

361<br />

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362<br />

A constatação do uso desses recursos musicais, característicos do estilo musical<br />

lírico-vocal e/ou operístico em uso no final do século XVIII e início do XIX, seria consistente<br />

com uma visão “evolutiva” do processo de assimilação de práticas e estilos na cronologia<br />

da obra de Damião, se tivessem sido compostas antes da ida dele para o Rio de Janeiro<br />

em fevereiro de 1808. No entanto, como explicar o aparente “retrocesso” estilístico se<br />

tais composições forem posteriores?<br />

Procuraremos estudar ditas obras e os possíveis contextos para assim tentar<br />

responder a tais questões.<br />

A caligrafia musical de Damião Barbosa de Araújo<br />

No intuito de tentar dirimir quando os supracitados documentos musicais foram<br />

escritos, procurar-se-á observar as características da caligrafia do compositor e as eventuais<br />

mudanças no passar do tempo. Dentre os documentos autógrafos das obras datadas ou<br />

datáveis de Damião Barbosa de Araújo, dispõem-se de 13 obras que perpassam 40 anos<br />

da vida do compositor, entre os 30 e os 70 anos de vida, aproximadamente, segundo descrito<br />

na Tabela 4.<br />

Do estudo comparativo geral desses documentos pode-se observar que existem<br />

dois tipos caligráficos que permanecem e se intercalam em todos os documentos estudados.<br />

Um primeiro tipo caligráfico mais arredondado e verticalizado, com traço mais<br />

cheio de tinta, correspondente a um tipo de escrita mais calma; e um outro mais esticado,<br />

espichado de traço mais fino e até inclinado à direita, correspondente a um outro tipo de<br />

escrita mais rápida, sendo ambos oriundos da mesma mão. Nos exemplos 17 a 22 ficam<br />

expostos os diversos detalhes observados em cada uma delas, tais como claves, figuras<br />

(cabeças das notas, pausas e ligaduras), e texto (andamento etc.). Exemplos 19. Tipos autógrafos<br />

arredondados (escrita calma) – Figuras, pausas e ligaduras.<br />

Destarte, quando observada a escrita constante nos documentos da ária de Dardane<br />

e da Cavatina de Aladina resulta que, enquanto a ária de Dardane apresenta uma escrita<br />

mista, com elementos de ambos os tipos caligráficos acima notados (Exemplos 23a<br />

e 23b), a cavatina de Aladina, não só apresenta uma escrita exclusivamente rápida, mas<br />

chama à atenção a clave de dó no inicio da partitura, cujo formato não corresponde a nenhum<br />

dos outros presentes no restante da produção musical autógrafa de Damião Barbosa<br />

de Araújo (Exemplos 24a e 24b).<br />

Tabela 4. Obras datáveis e datadas de Damião Barbosa de Araújo com indicação da idade do compositor (em grifo –<br />

período na Corte).<br />

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Exemplo 17a.<br />

e”1808d”1821.<br />

Exemplo 17b.<br />

1828.<br />

Exemplo 17c.<br />

e”1839 d”1843.<br />

Exemplos 17. Tipos autógrafos arredondados (escrita calma) – Claves.<br />

Exemplo 18a. 1821.<br />

Exemplo18b. 1825.<br />

Exemplos 18. Tipos autógrafos esticados (escrita rápida) – Claves.<br />

363<br />

Exemplo17d.<br />

1849.<br />

Exemplo 19a. e”1808d”1821.<br />

Exemplo 19b. 1828.<br />

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364<br />

Exemplo 19c. e”1839d”1843.<br />

Exemplo 19d. 1849.<br />

Exemplo 20a. e”1821.<br />

Exemplo 20b. 1825.<br />

Exemplos 20. Tipos autógrafos esticados (escrita rápida) – Figuras (cabeças das notas, pausas e ligaduras).<br />

Exemplo 21a. e”1808d”1821.<br />

Exemplo 21b. e”1844.<br />

Exemplo 21c. 1849.<br />

Exemplos 21. Tipos autógrafos arredondados (escrita calma) – Texto.<br />

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Exemplo 22b.<br />

1825.<br />

Exemplo 22c. 1828.<br />

Exemplo 22a. e”1821.<br />

365<br />

Exemplos 22. Tipos autógrafos esticados (escrita rápida)<br />

– Texto.<br />

Exemplo 23a. Ária de Dardane – escrita mista (calma e<br />

rápida).<br />

Exemplo 23b. Ária de Dardane – escrita mista (calma e rápida).<br />

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366<br />

Exemplo 24a. Cavatina de Aladina – Escrita rápida.<br />

Exemplo 24b. Comparação de claves na cavatina de Aladina e na ária de Dardane.<br />

Considerações caligráficas<br />

O grau e nível de elaboração de ambos documentos musicais aqui estudados,<br />

incluindo o tipo de escrita, é consistente com trabalhos “em progresso”, presente na maior<br />

parte dos manuscritos do compositor dirigidos ao cenário lírico-musical (i.e. Dueto do Barão<br />

Enganado – da Cenerentola de Rossini [e”1821] ou Os dois rivais desafiados por amor<br />

[1825]).<br />

Ainda não foram identificados documentos musicais datados (ou datáveis) de<br />

Damião anteriores a sua ida para o Rio de Janeiro. Segundo foi referido acima, a historiografia<br />

afirma que Damião já desenvolvia atividades musicais no Teatro de Guadelupe na<br />

Bahia até a sua viagem para o Rio de Janeiro. Neste sentido, talvez a clave de dó no início<br />

da cavatina seja o único elemento que, por discordante com o restante da documentação,<br />

possa ser atribuído à fase baiana anterior à Corte no Rio.<br />

No entanto, apenas a partir do estudo da caligrafia não se pode concluir qual é<br />

a correspondência entre as composições e fase da vida de Damião. Embora a clave de dó<br />

na cavatina de Aladina permita algumas especulações e hipóteses de trabalho futuro, a<br />

ária de Dardane não apresenta diferenças caligráficas significativas com o restante da<br />

produção musical de Damião. Ergo, ou a cavatina de Aladina e a ária de Dardane foram<br />

compostas e/ou estreadas em fases diferentes da vida de Damião ou ambas o foram em<br />

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367<br />

1808 ainda em Salvador (constituindo assim os seus documentos musicais mais antigos)<br />

ou posteriormente, seja no Rio ou depois que retornou à Bahia em 1821? Talvez algum<br />

tipo de resposta possa ser encontrada no estudo da instrumentação da ária de Dardane.<br />

A instrumentação da ária de Dardane<br />

A partir da instrumentação constante no ms., podem-se perceber alguns detalhes<br />

importantes à datação da obra. De todos os instrumentos utilizados por Damião (segundo<br />

consta nas partituras) os que se encontravam em processo de desenvolvimento ainda a<br />

início do século XIX eram as clarinetas (Tabela 5).<br />

Segundo Rice a clarineta encontrava-se desde a segunda metade do século XVIII<br />

em processo de ampliação dos seus recursos através do incremento de chaves que permitiriam<br />

a produção de maior número de notas até ser capaz de emitir o total cromático de<br />

forma timbricamente aceitável e uniforme (Rice, 1984). Neste sentido a análise da escrita<br />

musical na parte das clarinetas permitiria definir para que tipo de instrumento a parte teria<br />

sido escrita, sobretudo no que diz respeito ao seu âmbito e à efetiva possibilidade de<br />

tocar ou não certas notas, assim como à evolução das características do timbre dessas<br />

mesmas notas.<br />

Tabela 5. Instrumentação utilizada por Damião Barbosa de Araújo na ária de Dardane.<br />

Assim sendo, a revisão da literatura mostra que, no final do século XVIII, a clarineta<br />

de quatro chaves não podia tocar o Dó sustenido (ou Ré bemol) da oitava central<br />

(Exemplos 25 e 26). Por sua vez, a clarineta de 5 chaves só tinha chave para incluir o referido<br />

dó sustenido em situação de trinado, porém o seu timbre ainda não era completamente<br />

homogêneo com o restante do registro do instrumento (Exemplo 27).<br />

Só a partir do acréscimo da 6ª chave na clarineta da virada do século XVIII para<br />

o XIX este instrumento conseguiu produzir o dó#/réb com segurança e afinação. Como<br />

informa Léfevre (1802, p. 5, tradução nossa): “No que diz respeito à sexta chave que eu<br />

acrescentei, se trata apenas de colocar o dedo mindinho da mão esquerda na chave e terse-á<br />

o dó sustenido ou o Ré bemol” (Exemplo 28).<br />

Detalhes genéticos na escrita da parte de clarineta<br />

No manuscrito da ária, Damião acrescentou a 2ª clarineta fazendo oitavas num<br />

solo da 1ª onde aparece um dos primeiros dó# sem nenhum tipo de reforço instrumental<br />

(Exemplo 29).<br />

Dentre os aspectos que surgem da observação do Exemplo 29, podemos listar<br />

os seguintes: primeiro, a tinta e o traço parecem ser do mesmo momento da cópia; segun-<br />

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368<br />

Exemplo 25. Posições da clarineta de 4 chaves (Anônimo. Principes de clarinette. Paris: Girard, ca.1775) – sem<br />

chave para o dó#/réb.<br />

Exemplo 26. Valentin Roeser. Gamme de la Clarinette [de 4 chaves]. Plate V. Paris: Le Menu, ca. 1769. – sem chave<br />

para o dó#/réb.<br />

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Exemplo 27. Digitações da clarineta de 5 chaves (Blasius, 1796) – com chave de trinado para o dó#.<br />

Exemplo 28. Explicação de Léfevre (1802) acerca do acréscimo da 6ª chave.<br />

369<br />

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370<br />

Exemplo 29. Início das clarinetas em Dó no ms da ária de Dardane de Damião Barbosa de Araújo – c. 1-21.<br />

do, o uso do dó# num acréscimo em oitavas na passagem a solo fica claramente identificado<br />

pela direção das hastes das notas (ficam ambas as vozes com as hastes para baixo e com<br />

as barras misturadas no meio, evidenciando nessa escrita não muito “ortodoxa”, a intervenção<br />

do compositor, ampliando a textura do solo de clarineta; terceiro, posteriormente,<br />

ele usa o mesmo recurso; porém, desta vez, bem escrito, aparentemente pensando nas<br />

duas vozes no momento da primeira escrita, sem misturar, apenas dobrando à oitava<br />

com as flautas; e quarto, no último caso, ele já reforça a clarineta 2ª com o fagote na mesma<br />

altura, mas começando a linha no ré bemol e fazendo-a durar uma mínima em andamento<br />

de andante.<br />

Baseados no fato da tinta ser a mesma e dos itens 3º e 4º, poder-se-ia afirmar<br />

que ele pensou numa clarineta de 6 chaves?<br />

Exemplo 30a. Clarinetas em Dó no ms da ária de Dardane de Damião Barbosa de Araújo – c. 55-59.<br />

Exemplo 30b. Clarinetas em Dó no ms da ária de Dardane de Damião Barbosa de Araújo – c. 115-119.<br />

Embora fosse possível na clarineta de 5 chaves tocar o dó# (ou réb) usando posição<br />

de “forquilha”, 2 o timbre diferenciado nestas notas (beirando a comicidade) não as<br />

faria aconselháveis a tal passagem. De fato, o aspecto tímbrico só seria resolvido com a<br />

clarineta de 6 chaves, a que teria chegado ao Brasil com a Corte Portuguesa em 1808 e da<br />

que só temos certeza que foram utilizadas quando José Maurício Nunes Garcia regeu o<br />

Réquiem de W. A. Mozart em 1819 (cf. Silveira, 2010).<br />

...........................................................................<br />

2 Agradecemos aos Profs. Dr. Fernando Silveira, da UNIRIO e Dr. Joel da Silva Barbosa, da UFBA, que muito<br />

gentilmente discutiram conosco tais questões performativas relativas à clarineta.<br />

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371<br />

Por outro lado, se considerarmos o caráter confessional do texto da ária de Dardane,<br />

parece ser muito arriscado apresentar esta ária sem um instrumento de 6 chaves<br />

para a 2ª clarineta, já que parece que o seu objetivo não seria obter o estranhamento (ou<br />

riso) do público e sim a sua cumplicidade emocional.<br />

Assim, o ms da ária de Dardane de Damião Barbosa de Araújo com o qual estamos<br />

trabalhando pode tanto ser: a) uma cópia feita pelo próprio compositor de um outro ms.<br />

anterior, ainda não localizado; ou b) um ms. original produzido pelo compositor no Rio de<br />

Janeiro ou posteriormente na Bahia, isto é, com posterioridade ao ano de 1808.<br />

Considerações finais<br />

Os elementos até aqui relacionados, levantam dúvidas e não respondem positivamente<br />

nenhuma das questões pesquisadas. Em alguns dos casos, no estado atual do<br />

conhecimento, os dados entram em conflito entre si, sem solução aparente.<br />

De início, o fato das duas partituras aproveitarem trechos do mesmo Dramma<br />

Giocoso escrito por Bertati, pode não resultar conclusivo o suficiente como para definir<br />

qual seria o seu objetivo musical, dentre as que poder-se-iam levantar três hipóteses: remanescentes<br />

de uma criação completa de Damião Barbosa de Araújo; números musicais<br />

originais a guisa de enxertos dirigidos a uma produção não documentada de L’Intrigo<br />

Amoroso de Paer em território brasileiro e duas obras líricas independentes, uma para canto<br />

e piano e outra para canto e orquestra cujos textos foram extraídos do mesmo libreto.<br />

O estudo da caligrafia apenas levantou suspeitas com relação a cópia da cavatina<br />

ser anterior à viagem ao Rio, a partir do desenho da única clave de dó. Por sua vez, o estudo<br />

da orquestração levantou a questão de uma clarineta de 6 chaves ser eventualmente<br />

requerida e esta não estar disponível no Brasil antes da chegada da Corte, o que faria do<br />

ms. da ária de Dardane ser posterior a 1808, ou até posterior a 1819. As duas observações<br />

anteriores parecem colocar ambas obras em aparente conflito cronológico, geográfico e<br />

biográfico. Este conflito só parece se reconciliar (ou se agravar) quando observado o estilo<br />

de ambas.<br />

Numa conceituação evolutiva linear na abordagem da obra musical de Damião<br />

Barbosa de Araújo, o estilo de ambas, tão ligado às práticas musicais de finais do século<br />

XVIII, poderia apoiar a suposição de Damião ter composto A Intriga Amorosa antes de ter<br />

sido tão influenciado pelo lirismo de Rossini. Porém, se tal composição e a eventual estreia<br />

tivessem acontecido depois de Damião ter sido influenciado pela música de Rossini, seria<br />

necessário abandonar o conceito evolutivo linear na cronologia das obras de Damião,<br />

substituindo-o pelo da incidência econômica do mercado lírico na produção musical do<br />

compositor, eventualmente requerido a criar excertos líricos especialmente elaborados<br />

para uma produção da ópera L´Intrigo Amoroso de Ferdinando Paer no Brasil ainda não<br />

documentada. Essa mudança conceitual também permitiria explicar facilmente o aparente<br />

“retrocesso” estilístico na música deste compositor brasileiro, mas contradiria os dados<br />

fornecidos por Blake e Mello.<br />

Finalmente, o número de questões ainda em aberto, assim como o grau de especulação<br />

ao que estamos expondo a construção do conhecimento em torno de um possível<br />

e verossímil processo histórico em torno da vida e obra musical de Damião Barbosa de<br />

Araújo, parece ser comum a vários outros temas de pesquisa musicológica no Brasil.<br />

Talvez este estudo nos obrigue finalmente a assumir a necessidade – mancomunada<br />

com a efetiva participação de profissionais da Ciência da Informação – de fortalecermos<br />

o processo de “coleta de dados primários” de forma sistemática (estadual ou<br />

regionalmente) e coordenada (em nível regional ou nacional) para assim, em breve tempo,<br />

possuirmos o conjunto de dados que permita desenvolver uma musicologia histórica com<br />

clara noção dos limites documentais no Brasil.<br />

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372<br />

Referências bibliográficas<br />

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passado musical do Rio de Janeiro à luz de novos documentos. 2 vols. Rio de Janeiro:<br />

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373<br />

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375<br />

Emílio Soares e a ópera: ressonâncias<br />

românticas na Itabira do século XXI<br />

André Guerra Cotta<br />

Universidade Federal Fluminense, Rio das Ostras<br />

O poeta Carlos Drummond de Andrade (Itabira, 1902 – Rio de Janeiro, 1987) registrou<br />

no poema “Criação” (1998, p. 34-35), um lendário episódio da Itabira do Matto<br />

Dentro – como era chamada a cidade em meados do século XIX – ligado à fundação da<br />

Sociedade Musical Euterpe Itabirana. Segundo sustenta a tradição local, a fundação da<br />

hoje chamada “Banda Euterpe” ocorreu em 22 de novembro de 1863, tendo como seu<br />

fundador Emílio Soares. 1 Começa o poeta anunciando que “a alma dos pobres se vai sem<br />

música, mas a dos grandes é exigente”, contando que a recém criada Banda Euterpe, chamada<br />

pelo monsenhor 2 para fazer as honras a um falecido ilustre, não tinha ainda as<br />

partes musicais para a execução do Libera me, o responsório para encomendação fúnebre<br />

tradicionalmente executado nas exéquias de personalidades e ilustres. Depois de pedir as<br />

partes emprestadas à banda rival – Banda Henrique Dias, cujo único registro encontrado<br />

por nós até o momento é este verso drummondiano 3 – e receber uma resposta negativa,<br />

Emílio Soares, regente e fundador da nova banda, fecha-se em seu quarto e compõe de<br />

próprio punho nova música para aquele responsório fúnebre, 4 começando a ensaiá-la<br />

com os músicos ainda na madrugada, acordando toda a cidade com estrondo. Deste modo,<br />

bem cedo, a exausta banda toca com orgulho o “Libera-Mé” – é como grafa Drummond,<br />

certamente apoiado na prosódia característica dos itabiranos – (cf. Figura 2), “favo da<br />

noite, glória de Emilio, dádiva ao morto”. O poema se encerra com os seguintes versos:<br />

Jamais um grande se foi sem música<br />

e jamais teve outra, ungindo os ares,<br />

como esta, grave, de Emílio Soares.<br />

No arquivo da Banda Euterpe, sob o código de referência SMEI095, encontramse<br />

muitas partes manuscritas de um Libera me de autoria de Emílio Soares de Gouveia<br />

Horta Júnior, muito provavelmente a obra mencionada no poema. Certa imprecisão harmônica,<br />

a simplicidade do acompanhamento e a brevidade deste responsório sugerem<br />

que pode mesmo se tratar daquela composição, feita num arroubo de urgência, na calada<br />

de uma madrugada itabirana de 1863. É bastante provável que Drummond tenha ouvido<br />

este responsório fúnebre em sua juventude, na Itabira das primeiras décadas do século<br />

XX, pois, a despeito de sua simplicidade, esta música se traduz perfeitamente nas palavras<br />

da estrofe final do poema, acima citada, como uma música “grave”. A Figura 1 mostra os<br />

...........................................................................<br />

1 Não há documentação que o registre formalmente, mas a tradição oral sustenta que esse dia – também, significativamente,<br />

o dia dos músicos e dia de Santa Cecília – marca a fundação da Sociedade Musical Euterpe Itabirana.<br />

2 Muito provavelmente tratava-se do monsenhor José Felicíssimo do Nascimento (Ouro Preto, 1806 – Itabira,<br />

1884), religioso e político mineiro, vigário da Matriz de Itabira em meados do século XIX e fundador do primeiro<br />

hospital da localidade, em 1859 (cf. Veiga, 1998, p. 393; Ferreira, 1999, p. 205-206).<br />

3 Existe uma conhecida tradição brasileira de nomear deste modo bandas civis, homenageando o soldado negro<br />

Henrique Dias, conhecido combatente das Batalhas dos Guararapes, no século XVII, conhecido como o “pai das<br />

milícias negras” no Brasil.<br />

4 O texto do Libera me é extraído do IX Responsório do Ofício de Defuntos, podendo ser utilizado apenas parcialmente.<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


376<br />

primeiros compassos do Libera me, em edição moderna. Pode-se observar no trecho a vigorosa<br />

melodia em sol menor, cantada no registro agudo de um baixo vocal, acompanhado<br />

pelos metais. 5<br />

O fato de não haver parte autógrafa é lamentável, mas o grande número de cópias,<br />

a própria heterogeneidade do material e o seu desgaste são indícios de que essa música<br />

foi muito tocada ao longo dos anos, daí que as partes tenham sido copiadas e recopiadas,<br />

à medida que iam se tornando pouco legíveis e desgastadas. O detalhe apresentado<br />

na Figura 2, de uma parte de sax em si bemol, copiada por José Amâncio Ferreira, o Mestre<br />

“Zéca” Amâncio, em agosto de 1884, traz o título indicativo de “Libera Mé” (indicando<br />

a pronúncia aberta do “e”, tal como no poema de Drummond).<br />

Já o detalhe da Figura 3 traz a indicação de autoria, no canto superior direito:<br />

“Pr . H. J. or ” (isto é, “Por Horta Júnior”), em cópia de Joaquim Domingos Ferreira Prado,<br />

feita em Itabira, em fevereiro de 1890.<br />

Emílio Soares de Gouveia Horta Júnior<br />

As fontes do arquivo da Euterpe Itabirana como o poema drummondiano conheci<br />

ainda em meados dos anos 1990, na mesma época em que me deparei, pela primeira vez,<br />

com a figura de Emílio Soares, retratado no primeiro dos quadros da sala da Euterpe<br />

Itabirana. Ainda hoje lá estão estes quadros, representando, lado a lado, cada um de seus<br />

diretores desde a época de sua fundação. 6 Pouco tempo depois, foi possível estudar mais<br />

especificamente a música na história itabirana, no âmbito do projeto de pesquisa Música<br />

e músicos na Itabira do Matto Dentro (século XIX), realizado entre 1999 e 2000 através de<br />

uma Bolsa Vitae de Artes. Nessa oportunidade, foi possível realizar pesquisas sistemáticas<br />

no Arquivo Público Itabirano e também edições de obras do arquivo da Banda Euterpe,<br />

selecionadas levando também em conta as entrevistas realizadas com os cidadãos itabiranos<br />

ligados à vida cultural e musical da cidade. Entre as fontes da Euterpe, há material<br />

de três Novenas de São Sebastião de autoria de Emílio Soares, obras que, segundo alguns<br />

dos entrevistados de então, fizeram um grande sucesso até meados do século XX, sendo<br />

aguardadas com grande expectativa nos meses que as antecediam. 7 Os livros da Irmandade<br />

do Santíssimo Sacramento de Itabira registravam a presença de Emílio Soares de Gouveia<br />

Horta Júnior como irmão e como músico, em meados do século XIX. Além destes registros<br />

locais, um conjunto de partes autógrafas de uma Novena de São Sebastião de sua autoria,<br />

existente na Coleção Francisco Curt Lange do Museu da Inconfidência de Ouro Preto (código<br />

MIOP-CFCL-095), 8 mostrava que Emílio tinha uma atividade política significativa, chegando<br />

a ser Deputado Provincial entre os anos de 1863-1864. O frontispício indica:<br />

Novena de S. Sebastião | Composta pelo Autor o Il.mo Sr. Deputado Pr.[rovinci]al<br />

| Emílio Soares de Gouvea Horta Júnior | Acompanhada de V.[iolin]os, Violeta,<br />

Clarineta, Pistons, trompas, trombone | Oficleid [sic], Violoncelo, Bombo e Pratos<br />

| Cidade da Itabira, 15 de Janeiro de 1863<br />

...........................................................................<br />

5 Aqui, em edição baseada nas partes copiadas por Major Francisco Justiniano Carneiro (Itabira, 1881), José<br />

Amâncio Ferreira (o Mestre “Zéca Amâncio”; Itabira, 1884) e Joaquim Domingos F. Prado (Itabira, 1890). Nas<br />

partes copiadas por este último consta, sempre no canto superior direito, a indicação “P r H. J or ”, como mostra a<br />

Figura 3. Há também cópia dessa obra na Coleção Dom Oscar, do Museu da Música de Mariana (código<br />

CDO.02.222).<br />

6 A instalação de tais retratos foi obra de um dos diretores da Banda Euterpe, sr. João Evangelista Malta, carinhosamente<br />

apelidado de Zezito Malta, que o fez por volta dos anos 1980.<br />

7 Como já mencionamos brevemente em Cotta, 2001, p. 88. Este fato foi particularmente ressaltado pela sra.<br />

Maria da Conceição Sampaio, professora aposentada, entrevistada em abril de 2000. Ela havia presenciado<br />

várias destas novenas em meados do século XX e se recordava de trechos das jaculatórias, em português, chegando<br />

a cantarolá-los durante a entrevista. Segundo a entrevistada, também havia expectativa para saber quem<br />

seriam os solistas, geralmente pessoas da comunidade.<br />

8 Trata-se da mesma Novena em sol menor existente no arquivo da Banda Euterpe, código SMEI085.<br />

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Figura 1. Compassos iniciais do Libera me, de Horta Júnior.<br />

Figura 2. Detalhe de parte de saxofone do Libera me (cópia de Mestre Zéca Amâncio – Itabira, 1881. SMEI 095).<br />

Figura 3. Detalhe de parte de trompete do Libera me, com a indicação de autoria (cópia de Joaquim Domingos<br />

Ferreira Prado – Itabira, 1890. SMEI 095).<br />

377<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


378<br />

Assim, deparava-me com a presença constante de Emílio na vida musical de Itabira<br />

e do Estado e com a existência de cópias e autógrafos de obras de sua autoria em<br />

outros acervos mineiros. 9 Tal como a grande maioria dos compositores brasileiros dos séculos<br />

XVIII e XIX, Emílio compôs basicamente música para a liturgia católica, sobretudo<br />

Missas e Ladainhas, além do mencionado Responsório Fúnebre, e também obras para<br />

litúrgicas, como música para Novenas e Solos ao Pregador. Posteriormente, em projeto<br />

ligado ao Museu da Música de Mariana, coube-me editar duas obras de características<br />

marcadamente operísticas, justamente um Solo ao Pregador e um Hino a Santa Cecília,<br />

ambas compostas em Ouro Preto e Itabira, em 1864. Tais obras surpreendem pela riqueza<br />

da orquestração, mas sobretudo pela beleza e dificuldade técnica da escrita vocal, sendo,<br />

neste sentido, pouco comparáveis à simplicidade do Libera me itabirano, como veremos.<br />

Aos poucos, a importância do compositor e do cidadão Emílio Soares de Gouveia<br />

Horta Júnior se comprovava nos registros encontrados. Os passos realizados em seguida<br />

em outros projetos de pesquisa e edição, assim como a colaboração de colegas e interessados,<br />

levaram-nos a desvendar as informações obtidas e a preencher as lacunas. E as lacunas<br />

permaneciam, uma vez que, apesar dos dados pontuais encontrados, havia grande<br />

dificuldade de obter referências biográficas precisas, mesmo dados básicos, como local,<br />

data de nascimento e falecimento, muito menos encontramos informação biográfica sistematizada<br />

(como já relatado em Cotta: 2002, 97 passim). A própria tradição oral de Itabira<br />

sustentava que Emílio não era itabirano, mas não se sabia de onde teria vindo. Mesmo<br />

consultas aos censos populacionais realizados nos municípios mineiros no início e em<br />

meados do século XIX, existentes no Arquivo Público Mineiro, nada esclareceram. Pesava<br />

ainda o curioso fato de que, a partir da década de 1890, Emílio praticamente desapareceu<br />

dos registros itabiranos, nada sendo possível apurar sobre seu destino após a temporada<br />

em Itabira e Ouro Preto, assim como sobre um possível falecimento.<br />

Os dados a que tivemos acesso diziam que estudou no Colégio do Caraça (talvez<br />

sua primeira formação musical), que em Itabira atuou como professor de latim e matemática<br />

e como Chefe da Guarda Municipal. Também, como já mencionado, ali fundou a Sociedade<br />

Musical Euterpe Itabirana, em 1963, e foi deputado provincial por Itabira e região,<br />

entre os anos de 1863 e 1865. Há, no Arquivo Público Mineiro, atas da Assembleia Provincial,<br />

que funcionava em Ouro Preto, então capital da província, nas quais se registra a<br />

participação de Emílio como deputado. Contudo, não era possível saber qual teria sido<br />

seu destino depois que deixou Itabira, embora tudo indicasse que ele teria se transferido<br />

de Itabira para outra localidade e não ali falecido. Como já mencionamos em trabalho anterior<br />

(Cotta, 2001, p. 89), Lange deixou notas de pesquisa de campo feitas quando passou<br />

por Itabira em 1956, segundo as quais Emilio teria se mudado para Conselheiro Lafaiete<br />

(MG), onde teria falecido “na miséria, pedindo esmolas”. 10 Esta surpreendente possibilidade,<br />

certamente baseada em testemunhos de seus interlocutores itabiranos àquela<br />

época, permaneceu sem qualquer comprovação. 11 É importante ressaltar que nas mesmas<br />

notas de Lange consta a seguinte frase: “diz-se que é o autor das Novenas de São Sebastião”.<br />

Este é mais um indício de que, ainda no final da década de 1950 as Novenas de São Sebastião<br />

estavam na ordem do dia, na história oral contada pelos itabiranos. Contudo, a fi-<br />

...........................................................................<br />

9 Inclusive em acervos de grande importância, como é o caso do arquivo da Lira Sanjoanense, onde havia uma<br />

Missa nº 2, que Aluízio Viegas doou ao Acervo da Euterpe Itabirana por ocasião dos 140 anos da Banda Euterpe,<br />

em novembro de 2003, hoje arquivada sob o código SMEI-201.<br />

10 Trata-se da pasta 10.3.07, intitulada “Minas Gerais | Informações gerais” (título datilografado. Abaixo, manuscrito<br />

por Lange em tinta vermelha: “Brasil”). Dossiê pertencente à Subsérie 10.3 – Estudos e transcrições de<br />

arquivos históricos, do Acervo Curt Lange-UFMG. Como já mencionei em trabalho anterior descrição do dossiê<br />

(Cotta, 2001, p. 77 passim) e a transcrição integral do trecho acima mencionado<br />

11 Agradeço a Aluízio Viegas e a Alex Assis Milagre (recentemente falecido, em 2009) as tentativas frustradas de<br />

encontrar indícios da passagem de Emílio por Conselheiro Lafaiete.<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


379<br />

gura de Emílio Soares, como compositor e como cidadão, sua origem e seu destino, continuavam<br />

desconhecidos.<br />

Ouro Preto e os Solos ao Pregador<br />

Na Coleção Dom Oscar do Museu da Música de Mariana existe parte autógrafa<br />

de um Solo ao Pregador de autoria de Emílio, para Soprano solo e orquestra, hoje sob<br />

código de referência CDO.06.022 (antigo OP-ON5). Esta obra, como já mencionado, foi<br />

editada e gravada em 2002, através do projeto Acervo da Música Brasileira (Fundarq,<br />

Bureau Cultural, Petrobrás), graças ao qual, é possível acessar, em formatos digitais, tanto<br />

fac-símiles das fontes manuscritas como um trecho de sua gravação em áudio, no sítio<br />

web do Museu da Música de Mariana (www.mmmariana.com.br). Como se pode verificar,<br />

o frontispício 12 da parte vocal de CDO.06.022 informa que se trata de uma “Aria ao Pregador<br />

| Expressamente composta e dedicada | Ao | Sr. Francisco Vicente Costa | Para uso de<br />

sua filha | Por | E. S. de G. Horta J. or | Para grande orchestra | O. P. 31 de julho | de 1864”.<br />

Figura 4. Naipe de cordas, compassos iniciais da Ária ao Pregador Maria Mater Gratiae.<br />

Esta obra, de grande dificuldade técnica para o soprano solista, tem matizes claramente<br />

operísticos, como se pode ver pelos compassos iniciais da partitura, 13 na orquestração<br />

brilhante, marcada pelo uso expressivo de trêmolos de arco nas cordas (contrastando<br />

com leves e ágeis arpejos nas clarinetas) que preparam o tema da introdução<br />

instrumental, representada na Figura 4. 14<br />

Contrastando com a simplicidade do Libera me, esta obra apresenta uma escrita<br />

orquestra orquestral bastante sofisticada e uma parte vocal extremamente difícil do ponto<br />

de vista técnico (observe-se que as partes instrumentais não são autógrafas, mas a parte<br />

vocal sim). A escrita é exuberante, para um soprano solo que se sobrepõe ao peso de uma<br />

orquestra romântica (composta por 2 flautas, 2 clarinetas, 2 fagotes, 2 trompas, 1 clarim,<br />

2 trompetes, 2 trombones, além do naipe das cordas). A obra tem evidentes características<br />

emprestadas da ópera romântica como uma orquestração típica do gênero e o uso de cadências<br />

para a conclusão das seções, com o detalhe de que tais cadências – altamente<br />

difíceis do ponto de vista técnico e muito expressivas – foram escritas pelo autor, como<br />

...........................................................................<br />

12 O link direto para acessar o facsímile é http://www.mmmariana.com.br/cd4_man_mus9_paginas/opon5<br />

_c1_02_frontispicio.htm.<br />

13 O link direto para acessar a partitura é http://www.mmmariana.com.br/cd4_paginasmus9_partituras<br />

_main.htm.<br />

14 Como não caberia aqui inserir exemplos mais completos da orquestração, remetemos o leitor ao já citado sítio<br />

do Museu da Música de Mariana para acessar o material completo.<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


380<br />

mostram as Figuras 5 e 6 (trechos do facsímile e da edição, respectivamente, do compasso<br />

56, com uma cadência sobre a palavra “gratiae”).<br />

Figura 5. Compasso 56 da Ária ao Pregador Maria Mater Gratiae, facsímile.<br />

Figura 6. Compasso 56 da Ária ao Pregador Maria Mater Gratiae, edição.<br />

Toda a riqueza de detalhes da orquestração, ou seja, o uso alternado de trêmolos<br />

de arco e motivos arpejados nas cordas, a melodia dos violinos primeiros elidindo com os<br />

arpejos das clarinetas, o uso de dobramento dos arpejos das clarinetas pelas flautas, obtendo<br />

um colorido timbrístico singular, a ornamentação da parte vocal, além das mencionadas<br />

cadências, escritas pelo autor, revelam um compositor de grande domínio técnico,<br />

desde as primeiras notas até a cadência final sobre a palavra amen, em nada se assemelhando<br />

esta obra, a princípio, ao mítico e singelo Libera me itabirano (salvo, talvez,<br />

pela força expressiva do solo vocal). Há outros Solos ao Pregador de autoria de Emílio em<br />

acervos como a Coleção Francisco Curt Lange do Museu da Inconfidência de Ouro Preto<br />

(MIOP), a Coleção Dom Oscar do Museu da Música de Mariana (CDO-MMM) e na própria<br />

Sociedade Musical Euterpe Itabirana, mas este se reveste de especial importância pela<br />

sua qualidade musical e também por evidências relacionadas à sua biografia, como veremos.<br />

Por outro lado, a sua feição operística, marcadamente na segunda parte da obra, 15<br />

faz lembrar os depoimentos itabiranos sobre a Novena de São Sebastião, pois, como se<br />

pode notar, o texto litúrgico é mero pretexto para uma grande expressividade e virtuosismo<br />

do solo vocal.<br />

Em 1864, quando foi então composto este Solo ao Pregador, Emílio era cidadão<br />

atuante em Itabira e região, assim como na capital da província, onde era Deputado Provincial.<br />

Nesta altura, sua presença nos livros da Irmandade do Santíssimo Sacramento de<br />

Itabira é constante e também nas atas da Assembleia Provincial em Ouro Preto. Contudo,<br />

Figura 7. Cadência final da Ária ao Pregador Maria Mater Gratiae sobre a palavra amen, edição.<br />

...........................................................................<br />

15 Sugerimos que o leitor ouça esta obra na versão disponibilizada no sítio do Museu da Música de Mariana, sob<br />

a regência de Carlos Alberto Pinto Fonseca, e com a interpretação particularmente brilhante da solista Luciana<br />

Monteiro. Cf. http://mmmariana.com.br/cd4_audio/43_Maria%20Mater%20gratiae.mp3 (segunda parte).<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


381<br />

pouco tempo depois, por volta de 1870, seu nome praticamente desaparece dos registros<br />

documentais itabiranos, não constando nem mesmo nos livros das Irmandades religiosas<br />

daquela cidade, e dos registros ouropretanos. Segundo as já mencionadas notas de pesquisa<br />

de Curt Lange, Emílio teria se transferido para Conselheiro Lafaiete (MG) onde teria<br />

falecido em situação de miséria, mas essa possibilidade parecia um tanto implausível<br />

para alguém que, certamente, pelas posições sociais ocupadas, pela capacidade e formação,<br />

teria condições de se sustentar em um padrão mediano sem maiores dificuldades.<br />

Itabira e as Novenas de São Sebastião<br />

Na memória itabirana a presença de Emílio ficou marcada sobretudo pelo mencionado<br />

episódio da criação do Libera me e da fundação da Banda Euterpe, mas não há<br />

dúvida de que também permanece na memória local a sua música para as festas das Novenas<br />

de São Sebastião, como atestam ainda hoje alguns de seus cidadãos mais longevos.<br />

No arquivo da Banda Euterpe existem três “Novenas de São Sebastião” de autoria de<br />

Emílio, a saber:<br />

Tabela 1. Novenas de São Sebastião de Emilio S. G. H. Júnior na SMEI.<br />

Embora não sejam tão virtuosísticas como a Ária ao Pregador Maria Mater Gratiae,<br />

de 1864, as Novenas de Emílio guardam algumas semelhanças com aquela obra, sobretudo<br />

o caráter operístico, que é ressaltado pelos entrevistados e confirmado pelas<br />

partes existentes. O estudo destas partes mostra a notável presença de solos, sobretudo<br />

nas Jaculatórias (versos em vernáculo), alternando com o coro a quatro vozes. As Figuras<br />

7 a 10 mostram dois breves solos, para soprano e tenor, cada um, sobre duas das jaculatórias<br />

da Novena de São Sebastião, “Ó mártir celeste” e “Ó Sebastião poderoso”, edição<br />

baseada em fontes do arquivo da Sociedade Música Euterpe Itabirana existentes sob o<br />

código SMEI163, que tem material bastante heterogêneo, com datas que vão desde a década<br />

de 1880 até a década de 1910.<br />

Como se pode ver, embora não constituam obra tão elaborada quanto a ária de<br />

1864, seus solos são razoavelmente bem trabalhados do ponto de vista da prosódia e da<br />

relação entre expressão melódica e texto, daí, talvez, que tenham marcado tanto a memória<br />

do público das Novenas de São Sebastião em Itabira.<br />

É também notável que o material existente no arquivo da Sociedade Musical<br />

Euterpe Itabirana referente às Novenas de São Sebastião compõe-se, além de cópias do<br />

final do século XIX, de muitas cópias produzidas nas primeiras décadas do século XX,<br />

indicando que este repertório foi continuamente executado pelo menos até a década de<br />

1940 (cf. Tabela 1). E é relevante, igualmente, o já mencionado fato de que Lange recebeu,<br />

no final da década de cinquenta, em sua única visita a Itabira, a informação de que Emílio<br />

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382<br />

Figura 8. Jaculatória da Novena em Sol Maior (SMEI 010/163), “Ó Mártir celeste”.<br />

Figura 9. Jaculatória da Novena em Sol Maior (SMEI 010/163), “Ó Mártir celeste” (continuação).<br />

seria (“diz-se que é”) o autor das Novenas de São Sebastião. Naquela altura, ao que parece,<br />

já não se executava a música para as Novenas, pelo menos não a música do tempo de<br />

Emílio, em latim, com coro, solistas e orquestra. Mesmo assim, pode-se notar que ela se<br />

fazia presente na memória e na tradição oral do lugar, como ainda está, embora certamente<br />

em menor proporção, uma vez que a maior parte das pessoas daquela geração já faleceu.<br />

Considerações finais<br />

Sabidamente a influência da ópera (sobretudo italiana) na música sacra ocorreu<br />

em outras regiões do estado de Minas Gerais e do Brasil ao longo do século XIX. Aluízio<br />

Viegas confirma, por exemplo, a existência de grande acervo de edições impressas de<br />

ópera em São João del Rei, pertencente ao Maestro Ribeiro Bastos, composto de edições<br />

de meados do século XIX, adquirido pela professora de canto Janice Mendonça de Almeida<br />

na década de 1970. 16 Tal fenômeno merece certamente maior atenção, pois a influência<br />

...........................................................................<br />

16 Informação oral obtida em entrevista pelo autor deste trabalho, em julho de 2010.<br />

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Figura 10. Jaculatória da Novena em Sol Maior (SMEI 010/163), “Ó Sebastião poderoso”.<br />

Figura 11. Jaculatória da Novena em Sol Maior (SMEI 010/163), “Ó Sebastião poderoso” (continuação).<br />

383<br />

da ópera na música sacra católica certamente parece remontar, no caso do Brasil, ao século<br />

XVIII, e muito provavelmente o caso de Emílio seja mais efeito de um longo processo<br />

que um fenômeno particular. Embora as Novenas sejam uma manifestação paralitúrgica<br />

de grande complexidade, cujo estudo envolve necessariamente o contexto sociocultural<br />

no qual se realizam – uma abordagem etnomusicológica propriamente dita – a análise,<br />

edição e execução das composições de Emílio para as Novenas de São Sebastião podem<br />

ajudar a compreender o que as tornou tão marcante para a memória musical itabirana.<br />

Certamente o estudo da recepção de tais obras será muito importante, embora de difícil<br />

realização, dada a distância temporal dos eventos em relação a nós.<br />

Finalmente, cabem algumas palavras sobre o “desaparecimento” de Emílio dos<br />

registros itabiranos, uma vez que há alguns novos dados, chegados recentemente às mãos<br />

do autor deste trabalho pela iniciativa voluntária de Humberto Rodrigues de Sá, trineto<br />

de Emílio Soares de Gouveia Horta Júnior. Interessado em conhecer melhor a história de<br />

seu antepassado, este nosso novo colaborador passou a buscar informações sobre ele,<br />

chegando ao sítio web do Museu da Música de Mariana, onde, com surpresa, encontrou<br />

trechos de composições de seu trisavô (as já mencionados Ária ao Pregador e Hino a Santa<br />

Cecília).<br />

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384<br />

Figuras 12 e 13. Lápide de Emílio Soares, em Juiz de Fora. (Fotos de Humberto Rodrigues de Sá, publicadas sob<br />

autorização).<br />

Entrando em contato com o autor deste trabalho em meados de 2009, o sr.<br />

Humberto esclareceu, naquela ocasião, que Emílio falecera em Juiz de Fora, em 30 de<br />

março de 1907, resolvendo assim a intrigante questão, cuja resposta procurávamos há<br />

mais de dez anos (cf. Figuras 12 e 13). Desde então nosso colaborador vem levantando<br />

uma série de dados que a brevidade desde artigo não permitiria detalhar, mas destaquemos<br />

a rara publicação póstuma de Proverbios Latinos traduzidos por Emílio, publicada por iniciativa<br />

de seu filho, Pedro de Gouveia Horta, em Juiz de Fora (Horta [Júnior], 1925).<br />

Interessa particularmente o fato de que esta publicação contém uma nota biográfica<br />

sobre Emílio, elaborada pelo jornalista Albino Esteves, 17 intitulada “Algumas palavras”.<br />

Cabe a observação de que nem a publicação, nem a nota biográfica indicam o adjetivo<br />

“Júnior”, porém, podemos afirmar que se trata do mesmo Emílio Soares de Gouveia<br />

Horta Júnior. 18 Ocorre que a forma de grafar um nome tão longo varia muito nas próprias<br />

partes musicais, aparecendo como “Emilio Soares”, “Emilio Soares Horta” (cf. Rezende,<br />

1989, p. 625 e 729), “Emilio Soares Júnior”, 19 “G. Horta J. or ”, “Horta J. or ” ou “H. J. or ” (estas<br />

últimas são as mais comuns). Raramente há registros com a forma completa do nome,<br />

como no frontispício autógrafo existente na Coleção Francisco Curt Lange, acima mencionado.<br />

Entretanto, ainda que haja tanta variação, é pouco provável que houvesse dois<br />

compositores homônimos, pai e filho, nas Minas Gerais oitocentistas, ou mesmo um compositor<br />

com nome similar, de modo que, embora seja necessário continuar as pesquisas<br />

para nos certificarmos totalmente, tudo indica tratar esta nota do mesmo Emílio Soares<br />

dos versos drummondianos.<br />

A nota biográfica esclarece que Emílio nasceu em Cocais (MG), 20 em 19 de abril<br />

de 1839 (portanto, estava com 68 anos de idade, em 1907, quando veio a falecer), e joga<br />

algumas luzes sobre a sua trajetória inicial. Segundo Esteves, estudou no Seminário de<br />

...........................................................................<br />

17 Curiosamente, a nota biográfica traz indicada ao final a data de 31 de maio de 1926, embora a folha de rosto<br />

da publicação indique o ano de 1925.<br />

18 Esclarece o sr. Humberto que há quatro pessoas de sua família com o nome de Emílio Soares de Gouveia<br />

Horta: o pai do compositor (Tenente-coronel, 1813-18??), o compositor (1839-1907, que adotava o indicativo<br />

“Júnior”, embora não estivesse assim registrado), um neto do compositor (1907-1991, nascido no ano de seu<br />

falecimento e que recebeu o mesmo nome em sua homenagem, também sem o “Júnior”) e um bisneto, nascido<br />

em 1945 (este último, o único efetivamente registrado como Emílio Soares de Gouveia Horta Júnior).<br />

19 Assim é identificado o autor em cópia de sua Novena do Espírito Santo, existente no Arquivo Eclesiástico da<br />

Arquidiocese de Diamantina, Minas Gerais.<br />

20 Cocais, Distrito do Município de Barão de Cocais, no século XIX denominado como São João do Morro Grande.<br />

(cf. Barbosa, p. 41 e 89).<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


385<br />

Mariana e depois no “Seminário do Caraça”, 21 pois, “era a sua intenção ordenar-se, tendo<br />

mesmo chegado a pregar em Santa Bárbara, na Festa de S. Sebastião, autorizado pelo Bispo<br />

de Mariana” (Esteves, 1926). Todavia, a carreira eclesiástica de Emílio não se concretizou,<br />

na medida em que escolheu outros caminhos que o levaram a ser, nas palavras de Esteves,<br />

“o estimado velhinho que era Emilio Horta, o respeitável chefe de família em quem sobejavam<br />

as finas qualidades da antiga têmpera dos ‘chapéus-de-couro’ a par de uma erudição<br />

elevada”. O jornalista menciona, por outro lado, “o perfil austero do professor de centenas<br />

de homens de alto relevo na política, no magistério, no sacerdócio, como Affonso Pena,<br />

D. Silvério Gomes Pimenta, e muitos outros, quase todos já desaparecidos também” (Esteves,<br />

1926).<br />

O autor ainda acrescenta que Emílio Soares dirigiu colégios em Santa Bárbara,<br />

Sete Lagoas e Curvelo, tendo lecionado em várias instituições educacionais em Minas Gerais<br />

e no Rio de Janeiro. A informação de que Emílio esteve no Estado do Rio de Janeiro (talvez<br />

na capital) abre novas perspectivas para a pesquisa em torno de sua formação musical.<br />

Especificamente sobre sua atuação em Itabira, a nota biográfica menciona apenas<br />

que lá foi “professor de humanidades” e exerceu o cargo de “promotor público”, mas<br />

acrescenta que ocupou muitos “postos de destaque” no Estado (antigamente, Província)<br />

de Minas Gerais, tais como Chefe de Seção da Secretaria de Governo, Secretaria da Chefia<br />

de Polícia, Secretaria de Obras Públicas, aposentando-se como Secretário Geral de Instrução<br />

Pública. 22 O jornalista esclarece também que Emílio foi filiado ao Partido Republicano<br />

e ativo propagandista da abolição no Brasil.<br />

Sobre a sua faceta de compositor e músico, registra Esteves somente que “deixou<br />

vários trabalhos musicais e sacros, notadamente um Te-Deum, que foi premiado, por<br />

ocasião de terminada a Guerra do Paraguai”. Esta é uma das últimas obras de Emílio das<br />

quais se tem notícia. 23 A outra é um Hino a Tiradentes, que teria sido composto sobre<br />

poema de Bernardo Guimarães em 1882 (cf. Guimarães, s/d.) – esta, diga-se de passagem,<br />

a única obra propriamente profana de sua autoria de que sem tem notícia. Antes de concluir<br />

este trabalho, gostaríamos de apresentar uma breve relação das obras de Emilio<br />

Soares de Gouveia Horta Júnior das quais se tem conhecimento, tabela 2.<br />

É possível que outras obras de sua autoria ainda sejam encontradas, assim como<br />

é também plausível conjeturar que algumas tenham se perdido para sempre, como frequentemente<br />

ocorreu com fontes musicais manuscritas do século XIX no Brasil. Contudo,<br />

é uma obra considerável, ainda mais tendo em conta que Emílio não se dedicou exclusivamente<br />

à música, tendo como atividade principal, ao que tudo indica, o magistério e,<br />

em segundo plano, a administração pública. A propósito, cabe aprofundar os estudos sobre<br />

esta talvez ainda pouco destacada figura da vida cultural das Minas oitocentistas, inclusive<br />

no que diz respeito às funções que as suas atividades musicais – seja a composição<br />

de obras sacras, seja a regência/direção de bandas civis – desempenharam. Sem dúvida<br />

alguma, a atividade musical de Emílio está também vinculada à esfera política, marcadamente<br />

no caso do desaparecido Hino a Tiradentes e mesmo no responsório fúnebre<br />

composto para um “dos grandes” cidadãos da Itabira do Matto Dentro. Além disso, como<br />

...........................................................................<br />

21 Observe-se que o Colégio do Caraça não é um seminário, embora tenha abrigado o Seminário Maior de Mariana<br />

entre os anos de 1854 e 1882 (cf. Andrade, 2000, p. 19).<br />

22 Cf. Arquivo Público Mineiro, Coleção Leis Mineiras (1835-1889): Lei 3322, que autoriza a aposentadoria de<br />

Emílio em 1885. (cf. http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/modules/publicos_docs/viewcat.php?cid=4368)<br />

23 Um Te Deum de “Emílio Soares Horta”, provavelmente o mesmo, também é mencionado por Rezende (1989,<br />

p. 625), que afirma existir no arquivo da Sociedade Musical Santa Cecília de Sabará material desta obra, datado<br />

de 1884 (não especificando tratar-se de partes ou partitura, manuscrito ou impresso). Também Lange (1966, p.<br />

148) faz referência a esse documento. O autor deste trabalho já fez algumas visitas à Banda Santa Cecília, porém<br />

até o momento não foi possível, apesar da boa vontade de seus diretores, especialmente do Sr. Carlos Umbelino,<br />

ter acesso ao material, tampouco obter informação precisa sobre a existência da obra no acervo.<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


386<br />

Tabela 2. Obras de Emilio Soares de Gouveia Horta Júnior.<br />

mostra o frontispício da Ária ao Pregador, a prática das dedicatórias de obras musicais –<br />

tema ainda pouco estudado no Brasil – relaciona-se com um jogo de sociabilidades no<br />

qual a música pode desempenhar um papel especial.<br />

Restam ainda muitas lacunas na biografia deste notável personagem da vida<br />

musical mineira, mas agora ao menos conhecemos suas datas e locais de nascimento e<br />

falecimento. Não resta dúvida que a música era apenas uma de suas várias facetas. Porém,<br />

ainda que como uma atividade secundária, a música fez parte expressiva de sua produção<br />

e talvez seja a atividade que mais fortemente tenha deixado traços de sua presença na<br />

história e na cultura brasileiras, sobrevivendo até os dias hoje. Contudo, talvez a maior lacuna<br />

seja quanto à formação musical de Emílio, pois certamente não teria sido apenas<br />

em sua formação no Seminário de Mariana, ou ainda na fase caracense, que obtivera o<br />

domínio composicional demonstrado na Ária ao Pregador de 1864. Aprofundar tal estudo,<br />

entender como Emílio obteve tal expertise na escritura orquestral e vocal – e, claro, como<br />

recebeu as notáveis influências da ópera italiana – enfim, conhecer melhor este compositor<br />

e sua obra certamente contribuirá para uma melhor compreensão do processo de construção<br />

da identidade cultural das classes dominantes do Brasil do século XIX, para o conhecimento<br />

da vida musical de então, assim como de suas ressonâncias ainda presentes no<br />

século XXI.<br />

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387<br />

Referências bibliográficas<br />

Andrade, Carlos Drummond de. Boitempo. 5ª ed. 2 v. Rio de Janeiro: Record, 1998.<br />

Andrade, Mariza Guerra de. A educação exilada. Colégio do Caraça. Belo Horizonte:<br />

Autêntica, 2000.<br />

Barbosa, Waldemar de Almeida. Dicionário Histórico Geográfico de Minas Gerais. Belo<br />

Horizonte: Itatiaia, 1995.<br />

Cotta, André Guerra. “Os descobrimentos do Brasil: dos arquivos musicais a outras<br />

histórias da música”. Encontro de Musicologia Histórica, 4, p. 72-95, Juiz de Fora, 21 a<br />

23-jul., 2000. In: Anais... Juiz de Fora: Centro Cultural Pró-Música, Rio de Janeiro:<br />

Fundação Biblioteca Nacional, 2001.<br />

Cotta, André Guerra. “A música em Itabira do Matto Dentro: reflexões sobre uma<br />

pesquisa de campo e leituras de fontes secundárias”. Encontro de Musicologia<br />

Histórica, 5, p. 77-108, Juiz de Fora, 21 a 23-jul., 2002. In: Anais... Juiz de Fora: Centro<br />

Cultural Pró-Música: 2004.<br />

Esteves, Albino. “Algumas palavras” [Nota biográfica]. 1926. In: Horta [Júnior], Emílio<br />

Soares de Gouveia. Provérbios Latinos (Traducção livre). Juiz de Fora: Off. Graphica Luz,<br />

1925.<br />

Ferreira, Diva. Memórias. Itabira – Minas. Belo Horizonte: O Lutador, 1999.<br />

Guimarães, Armelim. A cabeça de Tiradentes. Disponível em: , Acessado em 22-jan.,<br />

2011.<br />

Horta [Júnior], Emílio Soares de Gouveia. Provérbios Latinos (Traducção livre). Juiz de<br />

Fora: Off. Graphica Luz, 1925.<br />

Lange, Francisco Curt. “A música na Vila Real do Sabará”. Estudos Históricos, p. 97-198.<br />

Marília: Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, 1966.<br />

Rezende, Maria da Conceição. A música na História de Minas Colonial. Belo Horizonte:<br />

Itatiaia; Brasília: INL, 1989.<br />

Veiga, José Pedro Xavier da. Efemérides Mineiras. 1664-1897. Belo Horizonte: Fundação<br />

João Pinheiro, 1998.<br />

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389<br />

Chagas: gênese de uma ópera singular<br />

Alexandre Schubert<br />

Universidade Federal do Rio de Janeiro<br />

Neste trabalho serão abordados aspectos do singular processo composicional<br />

da ópera Chagas, desde sua concepção até a apresentação no Palácio das Artes, em Belo<br />

Horizonte. Na segunda parte há um breve comentário sobre Turandot, de Puccini, e Lulu,<br />

de Alban Berg, óperas deixadas inconclusas por seus autores, que tiveram suas complementações<br />

realizadas a posteriori. Depois, falaremos sobre o início do processo composicional<br />

realizado por Silvio Barbato e discorreremos sobre a apresentação de trechos<br />

da ópera Chagas em Roma. A continuação do processo composicional realizado por mim,<br />

após o trágico desaparecimento de Barbato, é descrita posteriormente, assim como as<br />

adaptações que foram feitas no libreto. Abordaremos ainda aspectos musicais da caracterização<br />

de diversos personagens da ópera Chagas, assim como as apresentações da<br />

ópera completa, ocorridas em Belo Horizonte. Na última parte serão feitas as considerações<br />

finais, ressaltando a importância da montagem de óperas contemporâneas brasileiras.<br />

Turandot e Lulu<br />

Dentre o repertório de óperas do século XX, destacam-se dois exemplos que, a<br />

cada especificidade, tiveram a conclusão do trabalho composicional feita por mãos diferentes<br />

daquelas que o haviam iniciado: trata-se de Turandot, de Giacomo Puccini, e de<br />

Lulu, de Alban Berg.<br />

Turandot, ópera em três atos, com libreto de Giuseppe Adami e Renato Simoni,<br />

baseado em uma fábula do Conde Carlo Guzzi, foi deixada inacabada em sua última cena,<br />

devido à morte de Puccini, em 1924. Pouco antes de falecer, Puccini previu que a ópera<br />

não seria terminada e em conversa com um amigo revelou que desejaria apresenta-la incompleta,<br />

devendo uma pessoa chegar ao proscênio e falar que no momento da interrupção<br />

da música havia falecido o autor. Foi o que aconteceu. Na estreia da ópera, no<br />

Teatro Scala de Milão, no dia 25 de abril de 1926, Toscanini, que regia a apresentação,<br />

após súbita interrupção, dirigiu-se à plateia, profundamente comovido: “Nesse ponto o<br />

Maestro deixou cair a pena” (Newman, 1957). Entretanto, Franco Alfano, aluno de Puccini,<br />

concluiu a partitura da última cena, baseando-se em esboços deixados pelo compositor.<br />

Alfano fez duas versões, a pedido da editora Ricordi, sendo a última versão normalmente<br />

usada nas apresentações da ópera. Luciano Berio, em 2001 (Ircam, 2011), fez uma nova<br />

versão, também baseada em esboços de Puccini, porém usando uma linguagem musical<br />

expandida.<br />

Alban Berg deixou a orquestração do terceiro ato de sua segunda ópera, Lulu,<br />

incompleta. Baseada em textos de Franz Wedekind, a linguagem musical de Lulu é inteiramente<br />

serial. Após a morte de Berg, sua viúva não permitiu que ninguém completasse<br />

a orquestração do ato que faltava, pois Schönberg se recusara a terminá-la. Somente<br />

quarenta anos depois, o compositor Friedrich Cerha dedicou-se a realizar o trabalho. A<br />

ópera pôde, assim, ser encenada em sua versão completa, estreando em 24 de fevereiro<br />

de 1979, em Paris, com a regência de Pierre Boulez (Reverdy, 1983).<br />

Verifica-se nos dois exemplos citados a mesma situação: as óperas permanecem<br />

parcialmente inacabadas na parte final (a última cena de Turandot, a orquestração do<br />

terceiro ato de Lulu) devido ao falecimento do autor e são concluídas por diferentes<br />

pessoas. No caso da ópera Chagas, ocorre uma situação singular, pois grande parte da<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


390<br />

música ainda não havia sido composta quando Barbato desapareceu no acidente1 aéreo,<br />

e os trechos já existentes não se encontravam escritos em uma ordem linear. Assim, a<br />

conclusão da ópera realizada por mim, tendo em vista a apresentação a ser realizada no<br />

Palácio das Artes, em Belo Horizonte, contém características diferenciadas dos exemplos<br />

apresentados.<br />

A versão “Roma”<br />

Assim que concluiu sua ópera O cientista, Barbato procurou-me, pois começaria<br />

um novo projeto de composição. Seria uma ópera sobre a vida de Carlos Chagas, ilustre<br />

cientista brasileiro, descobridor da “doença de Chagas” e de seu vetor, o barbeiro, que a<br />

propaga pelos sertões do Brasil e do mundo. Na época, trabalhávamos juntos na confecção<br />

das partituras de suas composições. Foi assim com o balé Terra Brasilis e com O cientista.<br />

Normalmente, Barbato trazia os trechos manuscritos, mesmo que ainda incompletos, e<br />

eu fazia a partitura, usando programas de edição no computador. Ele, então, fazia as<br />

revisões e indicava a instrumentação a ser realizada.<br />

Para Chagas o processo composicional iniciou-se com um coro, que seria posteriormente<br />

usado no Hino Pontifício da versão “Roma”. 2 Os trechos sucederam-se. Barbato<br />

compôs o coro “Inicial”, o “Dueto Carlos Chagas Sertaneja”, o “Vocalise da Sertaneja”, o<br />

coro dos “Desesperançados”, a ária de Chagas Filho, além de dois trechos orquestrais, o<br />

“Xaxado” e o “Intermezzo do Vaticano”. A “Ave Maria”, incluída na ópera, foi dedicada à<br />

viúva de Carlos Chagas Filho, dona Anah Chagas e fazia parte de uma “Missa”, também<br />

composta em homenagem a dona Anah.<br />

Para a apresentação em Roma, ocorrida no dia 1º de novembro de 2008, na Sala<br />

Palestrina da Embaixada do Brasil, foi incluída uma narração, escrita pelo libretista, Renato<br />

Icarahy, que apresentava, dessa forma, o enredo da ópera, intercalado com as partes musicais.<br />

A orquestração era constituída por cordas (primeiros e segundos violinos, violas,<br />

violoncelos e contrabaixos), madeiras aos pares (flautas, oboés, clarinetas e fagotes) e<br />

duas trompas. Os solistas foram Sebastião Teixeira, barítono, e Luiza Francesconi, mezzosoprano.<br />

A regência ficou sob a responsabilidade do próprio maestro Silvio Barbato.<br />

Continuação da composição de Chagas<br />

O trágico desaparecimento de Silvio Barbato interrompeu o projeto da ópera. A<br />

retomada do projeto deveu-se principalmente a Helena Severo, produtora e amiga de<br />

Barbato, e a seus filhos, Elisa e Daniel, que incentivaram a continuidade da composição<br />

da ópera. Fui procurado por Helena Severo e aceitei o desafio de completar o trabalho.<br />

Manuscritos<br />

Em um primeiro momento pesquisamos, no material manuscrito de Barbato,<br />

possíveis trechos que pertencessem à obra. Verificamos que havia pequenos fragmentos<br />

melódicos sem, no entanto, configurarem trechos completos. Pouco pôde ser aproveitado<br />

na partitura final. Apenas a “Ária do Padre Sacramento”, cuja música é idêntica ao<br />

“Intermezzo do Vaticano”, foi inteiramente usada, bastando adaptar a letra do libreto à<br />

melodia. Outros fragmentos foram inseridos nos seguintes trechos:<br />

...........................................................................<br />

1 Silvio Barbato estava no voo da Air France com destino a Paris que desapareceu no Oceano Atlântico em 1º de<br />

junho de 2009.<br />

2 Chama-se versão Roma os trechos da ópera Chagas inteiramente compostas por Silvio Barbato. A versão inclui<br />

trechos do primeiro e do segundo ato, incluindo coros, árias e duetos, que foram apresentados sob a forma de<br />

concerto em Roma. Essa apresentação foi gravada em um cd, com patrocínio da Fiocruz.<br />

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Figura 1. Programa do concerto realizado em Roma.<br />

391<br />

a) Segunda seção do “Coro dos Trabalhadores” (nº 5 da partitura final).<br />

Melodia do tenor (compassos 80 a 88) – essa melodia foi resgatada pelo libretista,<br />

Renato Icarahy, que se lembrava de quando Barbato, ao piano, mostrou para ele<br />

em uma reunião. Icarahy enviou-me a melodia por correio eletrônico assegurando<br />

que ela pertencia ao Coro dos Trabalhadores da Estrada de Ferro.<br />

b) Introdução da “Ária de Carlos Chagas Pai adulto” (nº 16). Parte mais completa,<br />

pois apresentava harmonização (compassos 1 a 7). Encontra-se na Figura 2 o<br />

manuscrito de Barbato e, na Figura 3, como foi utilizado na partitura final.<br />

Figura 2. Manuscrito de Silvio Barbato.<br />

Além desses trechos, utilizei no “Prelúdio para Chagas” temas de Barbato, extraídos<br />

da ópera (<strong>Versão</strong> Roma e fragmentos).<br />

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392<br />

Figura 3. Uso do mesmo fragmento na versão final.<br />

O Libreto<br />

O libreto de Chagas, escrito por Renato Icarahy, teve várias adaptações. Tivemos<br />

que pensar, conjuntamente, em soluções diversas para se encontrar um formato que viabilizasse<br />

a montagem em Belo Horizonte. Haveria pouco tempo para a composição, 3 pois<br />

era preciso que os cantores estivessem com a partitura vocal em agosto. No começo de<br />

outubro seria a estreia. Dessa forma, vários trechos tiveram que ser cortados, sem prejuízo<br />

para o entendimento da ópera.<br />

Foram privilegiados os trechos que permitiam uma continuidade do fluxo histórico,<br />

na medida em que o enredo abrangia um grande período temporal, indo da infância<br />

de Carlos Chagas, em Minas Gerais, até a reabertura do processo de Galileu Galilei, no Vaticano,<br />

feita por seu filho adulto.<br />

Não seria possível a inclusão de mais coros, como no projeto original de Barbato,<br />

porque o coro não poderia ter um grande número de componentes, não sendo possível,<br />

dessa forma, ser dividido em subgrupos, o que facilitaria os ensaios. Escrevi, então, apenas<br />

três coros: o “Coro dos trabalhadores da estrada de ferro”, com sua repetição no final do<br />

primeiro ato; o primeiro número do segundo ato, com o coro fora da cena, acompanhando<br />

o recitativo de Miguel Couto e Íris; e a cena do “delírio”, em que ocorre o “julgamento” de<br />

Chagas, também no segundo ato.<br />

Outra característica do libreto é a quantidade de personagens superior a de<br />

cantores, sendo necessário que o mesmo cantor interpretasse mais de um personagem.<br />

...........................................................................<br />

3 O processo de composição das novas partes, que resultou em aproximadamente 50 minutos do total de uma<br />

hora e meia de música, começou em meados de julho de 2009.<br />

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393<br />

O tempo para a troca de figurinos dos cantores solistas teve que ser levado em conta durante<br />

o processo composicional. Dessa forma, os papéis ficaram assim divididos:<br />

a) Barítono – Carlos Chagas, Carlos Chagas Filho adulto;<br />

b) Tenor – Carlos Chagas jovem, Carlos Chagas Filho jovem, Jeca-Tatu;<br />

c) Mezzo-soprano – Sertaneja, Íris;<br />

d) Baixo – Padre Sacramento, Miguel Couto, Juiz, Epitácio Pessoa, Papa.<br />

Desses personagens, somente havia música escrita por Barbato para Carlos Chagas<br />

adulto, para Carlos Chagas Filho adulto (partes de barítono), para Sertaneja e a Ave<br />

Maria (partes de mezzo-soprano).<br />

Relação das partes de Chagas<br />

A ópera foi concebida em números: coros, árias, ensembles, recitativos, trechos<br />

orquestrais. Abaixo, encontra-se a relação das partes da ópera, com as respectivas autorias.<br />

Prelúdio para Chagas<br />

Silvio Barbato e Alexandre Schubert<br />

Ato 1<br />

Quadro 1<br />

I – Coro dos Escravos<br />

Silvio Barbato<br />

Quadro 2<br />

II – Recitativo e Dueto: Chagas Pai Jovem e Padre Sacramento<br />

Alexandre Schubert<br />

III – Ária: Padre Sacramento<br />

Silvio Barbato<br />

IV – Dueto: Chagas consigo mesmo<br />

Alexandre Schubert<br />

Quadro 3<br />

V – Coro dos Trabalhadores da Estrada de Ferro<br />

Alexandre Schubert e Silvio Barbato<br />

VI – Recitativo e Vocalise<br />

Silvio Barbato<br />

VII – Dueto: Carlos Chagas e Sertaneja<br />

Silvio Barbato<br />

VIII – Recitativo e Dueto<br />

Alexandre Schubert<br />

IX – Ária: Jeca-Tatu<br />

Alexandre Schubert<br />

X – Xaxado<br />

Silvio Barbato<br />

XI – Terceto e Coro dos Trabalhadores (II)<br />

Alexandre Schubert<br />

Ato 2<br />

Quadro 1<br />

XII – Dueto: Miguel Couto e Iris (Coro atrás do palco)<br />

Alexandre Schubert<br />

XIII – Recitativo e Terceto<br />

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394<br />

Alexandre Schubert<br />

XIV – Ária: Iris<br />

Alexandre Schubert<br />

XV – Recitativo e Concertato (“delírio”)<br />

Alexandre Schubert<br />

XVI – Ária: Chagas Pai<br />

Silvio Barbato e Alexandre Schubert<br />

Quadro 2<br />

XVII – Recitativo: Chagas Pai e Presidente<br />

Alexandre Schubert<br />

XVIII – Coro dos Desesperançados<br />

Silvio Barbato<br />

XIX – Recitativo: Presidente e Chagas<br />

Alexandre Schubert<br />

Quadro 3<br />

XX – Recitativo e Dueto<br />

Alexandre Schubert<br />

XXI – Recitativo e Dueto: Chagas Pai e Filho<br />

Alexandre Schubert<br />

XXII – Dueto<br />

Alexandre Schubert<br />

XXIII – Ave Maria<br />

Silvio Barbato<br />

XXIV – Intermezzo no Vaticano<br />

Silvio Barbato<br />

Quadro 4<br />

XXV – Recitativo: Papa e Carlos Chagas Filho Adulto<br />

Alexandre Schubert<br />

XXVI – Ária Chagas Filho Adulto<br />

Silvio Barbato<br />

XXVII – Hino Pontifício<br />

Silvio Barbato<br />

Concepção musical dos personagens<br />

Para cada personagem em que ainda não havia música escrita procurou-se estabelecer<br />

procedimentos composicionais específicos que os caracterizassem.<br />

Padre Sacramento – tem o papel de mestre e incentivador da carreira científica<br />

de Carlos Chagas. Harmonia quartal com alternância rítmica de 6/8 e 3/4. A harmonização<br />

em quartas justas superpostas, ou com as inversões harmônicas correspondentes é um<br />

procedimento usual em minhas composições, mas raramente presente na música de Silvio<br />

Barbato. Na ópera, esse tipo de harmonia está associado a ideias científicas, complexas,<br />

ou aos personagens cientistas, médicos e professores.<br />

Carlos Chagas pai adulto – para quem foi usada, além da harmonia quartal,<br />

uma escrita textural contrapontística. A ideia era expressar a forma complexa de pensar<br />

do personagem.<br />

Jeca-tatu – o personagem representa a sabedoria popular. É expansivo, divertido,<br />

essencial para a descoberta do vetor da Doença de Chagas. Foi usada uma linguagem harmônica<br />

modal, principalmente os modos lídio e mixolídio, associados à música do sertão<br />

nordestino. Ritmos sincopados e a instrumentação, que inclui triângulo e caixa-clara, contribuem<br />

para a criação da ambiência rural do Brasil.<br />

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Figura 4. Harmonia quartal associada ao Padre Sacramento.<br />

Figura 5. Linha em contraponto à melodia de Carlos Chagas.<br />

395<br />

Íris – usou-se linguagem tonal, triádica, que seria facilmente compreendido pelo<br />

filho, Carlos Chagas Filho, que no começo do segundo ano é ainda uma criança.<br />

Carlos Chagas Filho – o personagem passa por três etapas de vida na ópera:<br />

criança (cena da Gripe espanhola e do delírio), adolescente (quando discute com a mãe<br />

sobre a importância da carreira de seu pai e sua escolha em seguir seus passos) e adulto<br />

(quando era presidente da Pontifícia Academia de Ciências do Vaticano e, em audiência<br />

com o Papa, reabre o processo de revisão da condenação de Galileu Galilei).<br />

No primeiro momento, demonstra grande receio diante da possibilidade de condenação<br />

de seu pai. Suas intervenções são sempre em figuras rítmicas rápidas e linhas<br />

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396<br />

Figura 6. Modalismo associado ao Jeca-tatu.<br />

Figura 7. Harmonia triádica associada a Íris.<br />

Figura 8. Harmonia mista de Carlos Chagas Filho adulto.<br />

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Figura 9. Notas pedais nas cordas e nos tímpanos; glockenspiel e tantam acompanham o Papa.<br />

397<br />

melódicas angulosas (ver Figura 7, compassos 2 e 3). Quando adolescente, mantém uma<br />

postura revoltada, de contestação. São criados recitativos ágeis, com grande flexibilidade<br />

dos acordes de acompanhamento. A linguagem harmônica é mista, variando-se o uso de<br />

tríades com harmonias quartais. Na maturidade, se mantém a linguagem mista. Ressaltase<br />

que irá diferir da linguagem usada por Barbato na Ária final, que é totalmente triádica.<br />

Papa – em linguagem modal. A instrumentação torna-se essencial para a caracterização<br />

do personagem: pedais nas cordas e nos tímpanos, criando-se um halo, uma<br />

atmosfera mística, o uso do tantam, e do glockenspiel, pontuando as intervenções do canto.<br />

Estreia em Belo Horizonte<br />

Terminada a partitura vocal, se iniciou imediatamente o trabalho de orquestração.<br />

A versão que seria apresentada em Belo Horizonte exigia uma orquestra sinfônica<br />

completa, incluindo cordas, harpa, madeiras aos pares, quatro trompas, dois trompetes,<br />

três trombones e um amplo naipe de percussão. 4 A orquestração foi concluída praticamente<br />

às vésperas do primeiro ensaio. Não foi feita nenhuma mudança na orquestração<br />

da versão Roma, pois não queríamos mudar a escrita original de Barbato.<br />

Os solistas para as apresentações em Belo Horizonte foram:<br />

Barítono – Sebastião Teixeira<br />

Mezzo-soprano – Luciana Costa e Silva<br />

Tenor – Raoni Hübner<br />

Baixo – Maurício Luz<br />

A ópera foi apresentada nos dias 5 e 6 de outubro de 2009, no Grande Teatro do<br />

Palácio das Artes. A regência ficou sob a responsabilidade do maestro André Cardoso. O<br />

coro da Companhia Versátil foi preparado por Jésus Figueiredo. A direção e a concepção<br />

cênica ficaram a cargo de Moacyr Góes. A cenografia foi feita por Paulo Flaksman e os elementos<br />

de multimídia foram desenvolvidos por Tainá Diniz e por Paulo Galvão. Os figurinos<br />

foram assinados pela Bia Salgado e a iluminação pela Adriana Ortiz. A coordenação do<br />

projeto foi realizada por Helena Severo.<br />

...........................................................................<br />

4 Teve-se à disposição para a apresentação em Belo Horizonte, a Orquestra Sinfônica de Minas Gerais, sediada<br />

no Palácio das Artes.<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>


398<br />

Desde o princípio, o projeto foi patrocinado pela Fundação Oswaldo Cruz, demonstrando<br />

que é possível a união da ciência e da arte para a realização de projetos culturais<br />

no Brasil. O apoio da Fundação Clóvis Salgado também foi essencial para a montagem da ópera.<br />

Considerações finais<br />

Apresentamos, neste trabalho, alguns aspectos do processo composicional da<br />

ópera Chagas, com todas as suas peculiaridades. Diferentemente de outros exemplos de<br />

óperas concluídas por outros autores, Chagas apresentava mais de 50% incompleta. Existiam<br />

apenas trechos musicais de momentos específicos, não lineares, escritos por Barbato,<br />

o maior desafio foi alinhavá-los com os trechos novos, para que não se perdesse o fluxo<br />

dramático-musical. O resultado foi apresentado no palco do Palácio das Artes, em Belo<br />

Horizonte. É importante ressaltar esse aspecto, pois montagens de óperas brasileiras contemporâneas<br />

em palcos tradicionais não são comuns.<br />

Novas montagens de Chagas são esperadas em diversas cidades do Brasil, o que<br />

irá contribuir para a divulgação do gênero operístico nacional, além da proposta educativa<br />

de apresentar a vida e as realizações dos ilustres cientistas retratados na ópera.<br />

Referências bibliográficas<br />

Ircam. Sítio da Base de Documentation sur la musique contemporaine – BRAHMS,<br />

disponível em http://brahms.ircam.fr/works/work/19426/, acessado em 2-fev., 2011.<br />

Newman, Ernst. História das grandes óperas e de seus compositores. Porto Alegre:.<br />

Editora Globo, 1957, v. IV.<br />

Revardy, Michèle. “Alban Berg”. In: Massin, Jean & Massin, Brigitte. História da Música<br />

Ocidental. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1983.<br />

Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>

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