Versão Digital - UFRJ
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SÉRIE SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA <strong>UFRJ</strong>
MARIA ALICE VOLPE (org.)<br />
SÉRIE SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA <strong>UFRJ</strong><br />
Rio de Janeiro, 2012<br />
Universidade Federal do Rio de Janeiro<br />
Escola de Música<br />
Programa de Pós-graduação em Música
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO<br />
Carlos Antônio Levi da Conceição<br />
Reitor<br />
Antônio José Ledo Alves da Cunha<br />
Vice-reitor<br />
Debora Foguel<br />
Pró-reitora de Pós-graduação e Pesquisa<br />
CENTRO DE LETRAS E ARTES<br />
Flora de Paoli<br />
Decana<br />
ESCOLA DE MÚSICA<br />
André Cardoso<br />
Diretor<br />
Marcos Nogueira<br />
Vice-diretor<br />
Afonso Barbosa Oliveira - Diretor Adjunto de Ensino de Graduação<br />
Celso Ramalho - Coordenadora do Curso de Licenciatura<br />
João Vidal - Diretor Adjunto do Setor Artístico Cultural<br />
Miriam Grosman - Diretora Adjunta dos Cursos de Extensão<br />
Marcos Nogueira - Coordenador do Programa de Pós-graduação em Música<br />
Maria Alice Volpe - Editora-chefe<br />
Revisão e copidesque: Mônica Machado e Viviane Vasconcelos<br />
Projeto gráfico, editoração e tratamento de imagens: Márcia Carnaval<br />
Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong><br />
Volume 1: Atualidade da Ópera<br />
Maria Alice Volpe (org.)<br />
Conselho Editorial<br />
André Cardoso<br />
Diósnio Machado Neto<br />
Marcos Nogueira<br />
Maria Alice Volpe<br />
Mário Vieira de Carvalho<br />
Copyright © 2012 by Autores<br />
Catalogação: Biblioteca Alberto Nepomuceno/EM/<strong>UFRJ</strong><br />
500 Exemplares
APRESENTAÇÃO<br />
Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong><br />
Maria Alice Volpe<br />
PREFÁCIO<br />
Maria Alice Volpe<br />
AGRADECIMENTOS<br />
TRÂNSITOS CULTURAIS<br />
A ópera na história e na atualidade: uma perspectiva sociológica<br />
Mário Vieira de Carvalho<br />
Manuscript collections of Italian opera<br />
Philip Gossett<br />
Fantasias operísticas italianas na América Latina<br />
Benjamin Walton<br />
Viaggi dell’opera verso il Rio de la Plata in tempi di migrazioni<br />
Annibale Cetrangolo<br />
Lídia de Oxum: a ópera negra da Bahia<br />
Ilza Nogueira<br />
Dulcineia e Trancoso – uma ópera armorial<br />
Eli-Eri Moura<br />
Uma visão atual da ópera no Brasil: procedimentos cênico-musicais<br />
em Dom Casmurro e n’A Tempestade<br />
Ronaldo Miranda<br />
ESTUDO INTERDISCIPLINAR<br />
Literatura e música: o romance e a ópera no Brasil Oitocentista<br />
Marcus Vinicius Nogueira Soares<br />
ÓPERA NA AMÉRICA PORTUGUESA<br />
O palimpsesto iluminista: a ressignificação dos modelos operísticos<br />
por um estudo de repertório da Casa da Ópera de São Paulo<br />
Diósnio Machado Neto<br />
As óperas de Antônio José da Silva e Antônio Teixeira:<br />
atribuição de autoria e reconhecimento de modelos estéticos<br />
da produção lírica luso-brasileira do século XVIII<br />
Márcio Páscoa<br />
O repertório músico-teatral na Casa da Ópera do Rio de Janeiro,<br />
1778 a 1813<br />
David Cranmer<br />
7<br />
8<br />
9<br />
11<br />
19<br />
31<br />
41<br />
65<br />
85<br />
95<br />
111<br />
123<br />
141<br />
155
ÓPERA EM TRANSIÇÃO<br />
A República e as mudanças na cultura musical e músico-teatral<br />
Mário Vieira de Carvalho<br />
A “batalha dos símbolos”: ópera no Brasil, da Monarquia à República<br />
Maria Alice Volpe<br />
Carlos Gomes no contexto da transição da ópera italiana<br />
Marcos Virmond<br />
A influência do simbolismo nas óperas de Alberto Nepomuceno<br />
Rodolfo Coelho de Souza<br />
ESTILO E RECEPÇÃO<br />
A filiação estética dos autores líricos da Amazônia<br />
no Período da Borracha, a partir de suas óperas<br />
Márcio Páscoa<br />
As óperas de Sant’Anna Gomes<br />
Marcos Virmond<br />
Joanna de Flandres de Carlos Gomes: obra de transição<br />
Lenita W. M. Nogueira<br />
A abertura do drama lírico Pelo amor! (1897)<br />
de Leopoldo Miguez (1850-1902)<br />
André Cardoso<br />
O esvaziamento das tradições operísticas do século XIX<br />
e a influência da mídia nos novos padrões estéticos<br />
Heliana Farah e Murilo Neves<br />
TRAJETÓRIAS<br />
Óperas em português: ideologias e contradições em cena<br />
Vanda Bellard Freire<br />
O teatro lírico no Brasil meridional: origens e percursos<br />
Ezio da Rocha Bittencourt<br />
A ópera Jupyra no contexto geral de Francisco Braga<br />
Rubens Russomano Ricciardi<br />
Damião Barbosa de Araújo e A Intriga Amorosa:<br />
estilo e questões cronológicas no contexto da sua produção lírica<br />
Pablo Sotuyo Blanco<br />
Emílio Soares e a ópera: ressonâncias românticas na Itabira do século XXI<br />
André Guerra-Cotta<br />
Chagas: gênese de uma ópera singular<br />
Alexandre Schubert<br />
165<br />
185<br />
195<br />
223<br />
233<br />
251<br />
269<br />
285<br />
295<br />
303<br />
317<br />
339<br />
355<br />
375<br />
389
A Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong> é composta por<br />
coletâneas temáticas vinculadas ao evento científico de mesmo nome e tem por<br />
objetivo publicar as conferências dos especialistas convidados desenvolvidas em<br />
forma de capítulo. Essa política editorial proporciona textos enriquecidos pela<br />
interlocução com a comunidade científica em versão expandida e depurada por<br />
novo processo de revisão. As temáticas são tratadas de modo intra e interdisciplinar<br />
e dividem-se em tópicos que refletem diversos segmentos da área. Cada volume<br />
oferece uma visão abrangente do estado atual de conhecimento sobre o assunto. A<br />
colaboração de especialistas oriundos de instituições com diversidade geográfica<br />
intensifica o diálogo da comunidade nacional e internacional, de modo a favorecer<br />
a inserção dos estudos brasileiros na musicologia internacional.<br />
A Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong> está dedicada aos<br />
conferencistas convidados e os Anais aos trabalhos selecionados mediante<br />
submissão.<br />
O Conselho Editorial empenha-se em contribuir para a catalisação do avanço<br />
do conhecimento científico na área e para a sistematização e aprofundamento da<br />
temática escolhida para cada volume.<br />
7<br />
APRESENTAÇÃO<br />
Maria Alice Volpe<br />
Editora
8<br />
PREFÁCIO<br />
Os estudos de ópera têm constituído locus privilegiado das inovações<br />
ocorridas recentemente na musicologia, possibilitando abordagens diversificadas,<br />
desde estudos de sociologia, política, ideologia, história e crítica cultural, vocalidade<br />
e corpo, até discussões sobre novas proposições analíticas para um gênero dramáticomusical<br />
que deve ser compreendido, sobretudo, como espetáculo.<br />
A ópera exerceu hegemonia na cultura musical de diversos países desde o<br />
século XVII até início do século XX e constituiu campo de experimentação importante<br />
para o desenvolvimento do discurso musical. Gênero dramático-musical de amplas<br />
possibilidades sociocomunicativas, a plasticidade de suas convenções ensejou no<br />
palco as diversas questões de seu tempo. Suas representações e circundante crítica<br />
nos periódicos constituíram verdadeiros fóruns de formação da opinião pública.<br />
Enquanto espetáculo e ritual, sua prática social foi marcante na determinação das<br />
características do espaço público. Os modelos comunicativos que surgiram no seu<br />
âmbito forjaram os mecanismos de comunicação com as grandes massas, anteriores<br />
ao advento do cinema. Ao reunir e transcender os limites dos gêneros, musicais e<br />
cênicos, a ópera potencializou e consolidou a capacidade da música enquanto arte<br />
de forte catarse comunicativa.<br />
No Brasil, o crescente cultivo da ópera, com sua diversidade de escolas e<br />
subgêneros, refletiu ideologias e atendeu a modos de sociabilidade cada vez mais<br />
secularizados. No decorrer do século XIX, a ópera tornou-se instância indispensável<br />
para o reconhecimento de compositores perante o grande público. A partir do século<br />
XX a ópera teve que competir com outras modalidades de arte e entretenimento,<br />
tornando-se tópico interessante para discussão de seu lugar na atualidade.<br />
O presente volume Atualidade da Ópera oferece um amplo espectro dos<br />
estudos recentes sobre a ópera no Brasil e sua relação com outras áreas culturais da<br />
Europa e América Latina, contribuindo para a crescente reflexão sobre os discursos<br />
históricos construídos sobre a música de tradição européia. A interlocução entre os<br />
estudos aqui apresentados busca ampliar o espaço para as diversas tendências de<br />
análise e crítica, incentivando um encontro teórico-analítico que norteie o impulso<br />
historiográfico futuro.<br />
Maria Alice Volpe
9<br />
AGRADECIMENTOS<br />
Aos membros do Conselho Editorial<br />
E aos apoios de<br />
Faperj<br />
Capes<br />
Banco do Brasil<br />
Fundação Universitária José Bonifácio
TRÂNSITOS CULTURAIS
11<br />
A ópera na história e na atualidade:<br />
uma perspectiva sociológica<br />
Mário Vieira de Carvalho<br />
Universidade Nova de Lisboa<br />
Introdução<br />
Numa abordagem sociológica, o social na música é o comunicativo. A comunicação<br />
musical estrutura-se em sistemas que emergem do todo social como sistemas sociais<br />
de comunicação dotados de certo grau de autonomia, isto é, de autorreferencialidade e<br />
autorregulação. Esses sistemas sociocomunicativos são imanentes à produção, praxis de<br />
execução, mediação e recepção musicais; são imanentes à música, aos comportamentos<br />
ou formas de vida em que ela se manifesta.<br />
Tomando a ópera, na história e na atualidade, como sistema de comunicação,<br />
trata-se de analisar 1) a estrutura do sistema: os elementos que o constituem e os processos<br />
de autorregulação que lhe são inerentes, os tipos de retroações (feedbacks) em presença;<br />
2) a funcionalidade do sistema: as relações com o seu meio social (inputs e outputs trocados<br />
com outros sistemas sociais: sistemas de poder, econômicos etc.); 3) a dinâmica das relações<br />
entre estrutura e função: as mudanças do sistema de comunicação ópera nas suas<br />
relações com diferentes contextos ou environments socioculturais também em mudança.<br />
Nesta intervenção proponho-me à discussão algumas reflexões sobre modelos<br />
de comunicação músico-teatrais na história e na atualidade, a partir de uma breve alusão<br />
retrospectiva a duas experiências históricas paradigmáticas opostas: a de Portugal e a dos<br />
estados germânicos.<br />
Dois modelos opostos de cultura músico-teatral<br />
Em matéria de cultura músico-teatral, Portugal e os estados germânicos encontravam-se<br />
numa situação muito semelhante no início do século XVIII. Eram ambos importadores<br />
de ópera italiana. Portugal continuaria a ser importador desse modelo até o final<br />
da monarquia, em 1910, e nunca desenvolveria, até hoje, uma estratégia consistente de<br />
institucionalização de ópera ou de teatro lírico em língua portuguesa, nem de criação de<br />
estruturas de produção estáveis que promovessem o emprego artístico local nesse domínio<br />
de atividade artística (envolvendo o canto lírico e todas as demais atividades artísticas e<br />
profissionais inerentes à produção de ópera). Os estados germânicos tornar-se-iam, logo<br />
desde o início do século XVIII, exportadores de ópera alemã (composta em sua própria<br />
língua nacional), num processo que tem continuado em franca expansão planetária até<br />
aos nossos dias. Tanto maior é o contraste quanto é certo que a língua portuguesa é hoje<br />
falada por mais de 250 milhões de pessoas, enquanto o alemão é falado por cerca de 100<br />
milhões.<br />
Aspetos estruturais e ideológicos, que se reconduzem ao desenvolvimento sócioeconômico,<br />
às transformações da esfera pública e mesmo a fatores religiosos (conforme<br />
a teoria de Max Weber sobre a relação entre a religião luterana e o espírito do capitalismo)<br />
são algumas das condicionantes que estão, certamente, na origem de percursos tão díspares.<br />
Hoje, há cerca de cinquenta teatros de ópera em pleno funcionamento na Alemanha;<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
12<br />
teatros que abrem diariamente as suas portas ao público ao longo de todo o ano e onde<br />
as diferentes produções do seu respectivo repertório, sempre em permanente renovação,<br />
vão se alternando em cartaz. Pelo contrário, em Portugal, a ópera cinge-se agora apenas<br />
a escassos espetáculos, sobretudo no Teatro de São Carlos, e continua a basear-se na<br />
importação de know how do exterior (mormente, na área do canto lírico). 1<br />
O programa da burguesia esclarecida germânica, baseado na função educativa<br />
atribuída às artes e, nesse caso, à ópera, em contraposição à função de prestígio e<br />
divertimento, traduziu-se numa rede de interações que importa ter em conta. A ideia de<br />
que cada cidade de certa dimensão devia ter ópera em língua alemã (para “promoção da<br />
humanidade” – Christoph Martin Wieland, 1775) favoreceu o aparecimento de múltiplos<br />
centros de produção, estimulando o emprego artístico local em larga escala. A distribuição<br />
regional desses centros associada à ideia de que a ópera não era um “luxo” da corte ou de<br />
uma elite política, financeira e cultural restrita, antes devia ser colocada ao alcance de<br />
todos, foi historicamente determinante para o alargamento a novos públicos. A<br />
necessidade de responder às solicitações das companhias e dos públicos locais levou à<br />
expansão e diversificação do repertório em língua alemã (quer em originais, quer em<br />
traduções) bem como suscitou o aparecimento de uma cultura autóctone de produção<br />
músico-teatral (libretistas, compositores, intérpretes, especialistas em artes cênicas etc.).<br />
Daí a necessidade de escolas, academias e outros estabelecimentos de formação artística,<br />
que foram desenvolvendo o ensino e a investigação nesses diferentes domínios e em<br />
áreas de saber afins (desde a filosofia às tecnologias de palco). A massa crítica técnicoprofissional<br />
gerada e a densidade da esfera pública burguesa contribuíram, por sua vez,<br />
desde cedo, para a constituição de um campo ou sistema artístico forte, com capacidade<br />
de autorreferência e autorregulação, que subtraiu as artes e, neste caso, a ópera, à sua<br />
dependência imediata da função de representação do poder ou de mero divertimento.<br />
As transformações na teoria e praxis decorrentes da rede de interações assim constituídas<br />
conferiram à ópera alemã um dinamismo e uma capacidade de inovação que a tornaram<br />
extremamente influente além-fronteiras.<br />
A rede de atividades ligadas à ópera atuou, por sua vez, como fator de desenvolvimento<br />
socioeconômico. Com efeito, o investimento público que apóia o funcionamento<br />
das várias dezenas de teatros de ópera na Alemanha não reverte somente para a finalidade<br />
cultural, reflete-se também na dinâmica econômica, quer pelo emprego que gera diretamente<br />
(artístico, técnico, administrativo etc.), quer pela repercussão indireta no tecido<br />
das atividades econômicas (fornecedores de materiais para espetáculos, empresas de<br />
produção de conteúdos culturais em suportes audiovisuais, turismo, hotelaria etc.), quer<br />
ainda pelo peso que tem nas exportações, seja de know how artístico, seja no campo da<br />
chamada “indústria cultural”. Quando o já referido Christoph Martin Wieland escrevia,<br />
em 1775, que a ópera não tinha de ser um “luxo”, que antes podia estar ao alcance de<br />
todos e que teria uma função educativa, não podia prever todo esse imenso potencial<br />
que ela viria a adquirir: potencial de emancipação e valorização de forças produtivas na-<br />
...........................................................................<br />
1 Sobre os sistemas sociocomunicativos da ópera em Portugal, do século XVIII ao XX, ver análise detalhada em<br />
“Trevas e Luzes na Ópera de Portugal Setecentista” in M. Vieira de Carvalho, Razão e sentimento na comunicação<br />
musical. Estudos sobre a Dialéctica do Iluminismo, Lisboa, Relógio d’Agua, p. 141-157. Esse estudo<br />
corresponde a uma versão atualizada de parte do primeiro capítulo da monografia que aborda a ópera em<br />
Portugal dos séculos XVIII a XX: ‘Pensar é morrer’ ou O Teatro de São Carlos na mudança de sistemas sóciocomunicativos,<br />
Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1993 (o original alemão, de 1984, tese policopiada,<br />
foi publicado em versão remodelada e acompanhada de iconografia, com o título ‘Denken ist Sterben’.<br />
Sozialgeschichte des Opernhauses Lissabon, Kassel, Bärenreiter, 1999). A relação com as transformações da<br />
esfera pública na Europa é abordada em “A ópera, a esfera pública e a mudança de sistemas sociocomunicativos”,<br />
in M. Vieira de Carvalho, Por lo impossible andamos – A ópera como teatro de Gil Vicente a Stockhausen, Porto,<br />
Âmbar, 2005, p. 37-60. Ver também, neste volume, o meu artigo “A República e as mudanças na cultura musical<br />
e músico-teatral”.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
13<br />
cionais. A ópera, afinal, não só não era um luxo, como podia ser até um fator de criação<br />
de riqueza. Um eventual colapso dos teatros de ópera alemães não significaria hoje apenas<br />
uma catástrofe cultural. Seria também uma catástrofe econômica...<br />
O papel das políticas públicas<br />
A estrutura de muito longa duração que, por contraste, tem prevalecido em<br />
Portugal 2 foi recentemente comprovada por mais um episódio. Entre 2006 e 2009, o Teatro<br />
Nacional de São Carlos funcionou segundo um novo quadro legal, que previa a criação de<br />
um Estúdio de Ópera para profissionalização de artistas líricos portugueses ou residentes<br />
em Portugal e procurava lançar as bases de uma estrutura de produção residente que<br />
pudesse assegurar um aumento exponencial do número de espetáculos, o alargamento a<br />
novos públicos, promovendo simultaneamente o canto lírico em língua portuguesa, numa<br />
perspectiva moderna de valorização da ópera como teatro. Sem prejuízo de se manterem<br />
as temporadas internacionais: produção local e star system deviam articular-se de forma<br />
equilibrada que favorecesse cada vez mais o desenvolvimento e expansão de uma cultura<br />
músico-teatral com uma forte componente de artistas nacionais (ou residentes em<br />
Portugal) e um papel mais relevante da língua portuguesa. Na verdade, o artigo 2º dos Estatutos,<br />
na parte relativa ao Teatro de São Carlos, previa nomeadamente:<br />
c) A promoção da internacionalização, tanto através de coproduções como através<br />
da valorização da produção própria, visando a afirmação de um projecto de<br />
uma identidade artística susceptíveis de projecção e de potencial atractivo internacionais;<br />
d) A criação e manutenção de um estúdio de ópera que proporcione oportunidades<br />
de profissionalização a jovens artistas e técnicos e se constitua como<br />
pólo de inovação no repertório, na prática de encenação e de representação, incluindo<br />
produção músico-teatral em língua portuguesa;<br />
e) A formação de novos públicos, designadamente através de produções itinerantes<br />
e de um programa educativo, sobretudo dirigido ao público infantojuvenil;<br />
f) A preservação da herança cultural, recuperando e divulgando o património<br />
músico-teatral de origem nacional ou conservado em Portugal;<br />
g) A encomenda a autores portugueses de novas obras musicais ou músico-teatrais<br />
e a sua produção ou programação; […] 3<br />
Em 2006, o aparelho produtivo do Teatro de São Carlos (Orquestra Sinfônica,<br />
Coro, pessoal técnico e administrativo, num total de cerca de 400 trabalhadores) estava<br />
inteiramente subordinado ao star system e, por isso, escandalosamente subaproveitado.<br />
Com um financiamento público anual no montante de 14 milhões euros, o Teatro de Ópera<br />
custava ao Estado 40 mil euros por dia, mas permanecia fechado durante mais de<br />
300 dias por ano. Não ia além de 27 mil espectadores anuais, o que significa que o custo<br />
ao Estado de cada espectador por espetáculo rondava os 500 euros, e o de um assinante<br />
(por oito óperas) equivalia a seis meses de salário mínimo nacional! Tomando como<br />
exemplo a Ópera de Paris (Bastilha), no mesmo ano, o esforço do Estado também era<br />
considerável, mas nada que se comparasse ao “luxo” de Lisboa: 100 euros, para cada es-<br />
...........................................................................<br />
2 Ver caracterização pormenorizada neste volume, “A República e as mudanças na cultura musical e músicoteatral”.<br />
3 Na definição do novo quadro legal – Decreto-Lei nº 160, de 27 de abril de 2007 – eu próprio tive então uma<br />
intervenção decisiva, na medida em que exercia as funções de Secretário de Estado da Cultura do XVII Governo<br />
Constitucional e tinha poderes delegados da Ministra da Cultura, Isabel Pires de Lima, para tutelar a área das<br />
Artes do Espetáculo (funções que exerci entre 14 de março de 2005 e 30 de janeiro de 2008).<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
14<br />
pectador por espetáculo; 20 dias de salário mínimo nacional para o assinante de oito óperas.<br />
Número de espectadores por ano: perto de um milhão.<br />
Ou seja, considerando, além disso, o mais elevado nível de vida em França, era<br />
enorme o diferencial entre os custos sociais da ópera, respectivamente em Lisboa e em<br />
Paris, e tanto maior também o diferencial entre a sua repercussão cultural e até econômica.<br />
O financiamento público de 100 milhões de euros em Paris, para quase um milhão de espectadores,<br />
tinha um efeito reprodutivo indireto na própria economia, enquanto o financiamento<br />
de 14 milhões em Lisboa se traduzia em ônus financeiro, pois que, para<br />
além de servir para subsidiar uma elite muito restrita oriunda das classes mais abastadas<br />
(com meios para pagar 50 euros por um bilhete ou 400 por uma assinatura), 4 não tinha qualquer<br />
efeito relevante no desenvolvimento cultural e socioeconômico do país. Quanto ao<br />
número de espectadores, para se obter em Lisboa um efeito reprodutivo (do investimento<br />
público) proporcional ao de Paris, a atividade do Teatro de São Carlos teria de quase<br />
quadruplicar: passar de apenas 27 mil para cerca de 120 mil espectadores por ano.<br />
Na temporada de 2009-2010, após apenas dois anos de combinação de residência<br />
e star system, sob a direção artística do dr. Christoph Dammann, que cessara funções na<br />
Ópera de Colônia, para assumir o cargo equivalente em Lisboa, os números passaram a<br />
ser completamente diferentes: aumento de 50% do número de espectáculos; 83 mil<br />
espectadores (mais do triplo do número de espectadores de 2006); custo ao Estado de<br />
cada espectador por espetáculo: 156 euros; custo ao Estado de cada assinante de oito<br />
óperas: cerca de dois meses de salário mínimo nacional.<br />
Outro indicador particularmente relevante: enquanto, no triênio de 2003-2006,<br />
as atuações em palco de artistas portugueses ou residentes em Portugal se contavam<br />
apenas por algumas dezenas, nas temporadas de 2007-2010 ascenderam a cerca de um<br />
milhar.<br />
A orientação fundamental foi a de valorizar a recepção do espetáculo como um<br />
todo, sua eficácia teatral (incluindo, naturalmente, a dimensão teatral das componentes<br />
musicais), na base de uma abordagem crítica e inovadora dos conteúdos dramatúrgicos.<br />
Dir-se-ia que tal revolução seria recebida com entusiasmo. E o foi, em termos<br />
de adesão de novos públicos, mas um grupo mais restrito de assinantes e um ou dois<br />
críticos fanáticos do star system desencadearam uma campanha tão exaltada na rádio e<br />
na imprensa que o novo director artístico foi obrigado a rescindir o contrato, seguindose-lhe<br />
também, pouco depois, o demissão do diretor do Estúdio de Ópera, o brasileiro<br />
André Heller-Lopes, que exercera igualmente com a maior competência as suas funções.<br />
O episódio suscita uma ampla discussão. Uma questão que logo se coloca é a de<br />
saber qual é o papel das políticas públicas: financiar, sobretudo, a importação de “bens e<br />
serviços” culturais? Ou promover, sobretudo, o investimento reprodutivo, criando condições<br />
estruturais para o desenvolvimento sustentável de uma cultura músico-teatral local,<br />
que venha a tornar-se parte ativa no intercâmbio internacional? A resposta implica perceber<br />
a relevância da Ópera para a Economia e a relevância da Economia para a Ópera.<br />
Num mundo globalizado multicultural, a interseção entre cultura e economia leva-nos a<br />
identificar fundamentalmente dois sistemas em presença: o hegemônico, baseado no<br />
star system; e o contra-hegemônico, baseado em alternativas locais (ver Figuras 1 e 2).<br />
O primeiro tem como parceiro de comunicação típico o “melômano”, impõe<br />
uma “monocultura” à escala global e se assenta em mecanismos de autorregulação que<br />
excluem alternativas locais. Enquanto ramo da indústria cultural, promove a ópera como<br />
mercadoria de prestígio, mas a sua hegemonia não resulta exclusivamente da dinâmica<br />
...........................................................................<br />
4 Os 14 milhões de financiamento do Estado é que permitiam estes preços. Caso contrário, para o mesmo número<br />
de espectadores, cada entrada avulsa poderia ascender a cerca de 550 ou 600 euros.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
de mercado, antes é em larga medida suportada por uma ideologia de dominação que leva<br />
os próprios Estados a considerarem-se na obrigação de a apoiar financeiramente como<br />
“serviço público” de cultura.<br />
Em contrapartida, a alternativa contra-hegemônica estimula, também no campo<br />
do teatro lírico, a diversidade das expressões culturais e favorece as conexões estruturais<br />
entre diferentes sistemas de comunicação. A autorregulação destes sistemas de comunicação<br />
contra-hegemônicos, que inclui alternativas locais, visa aprofundar a dialética<br />
entre o local e o universal. Resiste à dominação de uma monocultura que faz estiolar todas<br />
as outras e dá lugar a uma verdadeira esfera pública intercultural, onde o próprio star<br />
system pode continuar a ser um dos interlocutores (mas apenas um entre muitos) (Figura 2).<br />
Uma estratégia contra-hegemônica no teatro lírico baseia-se na abertura radical<br />
a novos públicos, na recepção do espetáculo como um todo, na reintegração da ópera no<br />
domínio global do teatro, na inovação dramatúrgica e cênica, na redescoberta das obras<br />
do grande repertório como verdadeiro teatro por música para um público atual – e essa<br />
foi sem dúvida uma constante da tradição de produção da ópera nos Estados germânicos<br />
15<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
16<br />
(desde o século XVIII). Essa é também a chave para a sustentabilidade da produção local.<br />
Há que “defender a ópera contra os seus entusiastas”, 5 contra aqueles que a esvaziam do<br />
teatro e a transformam num pretexto para o consumo vazio de grandes vozes, reificadas<br />
como um fim em si, sem relação com a dramaturgia – modelo de comunicação<br />
predominante no star system.<br />
Não se trata de impor um sistema de comunicação a outro ou outros, mas sim<br />
de promover o equilíbrio entre eles, pondo em causa a hegemonia do star system como<br />
cânone. Isto leva-nos a outra questão: o problema de interpretação e encenação de ópera.<br />
O problema da interpretação e o papel da musicologia<br />
Qual é a versão ou interpretação autêntica? Não há um ponto de vista absoluto,<br />
fora do espaço e do tempo, que permita estabelecer a versão ou interpretação autêntica<br />
da obra. Não há um ponto de vista único que permita fixar o sentido da obra. Há, sim,<br />
uma reabertura permanente do processo de sentido, o qual é necessariamente contextual,<br />
vinculado às condições concretas locais de produção, performance e recepção.<br />
O encenador alemão Peter Konwitschny (n. 1945), atualmente encenador<br />
residente e chefe de dramaturgia na Ópera de Leipzig, é um dos melhores exemplos de<br />
uma abordagem das obras que não as deixa fecharem-se sobre si próprias como peças de<br />
museu emudecidas, esvaziadas de teatro, sem nada para comunicar de humanamente<br />
interpelante para um público dos nossos dias.<br />
Konwitschny acentua o papel decisivo da música como ponto de partida: tem<br />
de ser interpretada autonomamente, eventualmente em contradição com o texto, e corporalmente,<br />
como um movimento que se expande e se contrai no espaço. A mimesis é entendida<br />
não como mera imitação, mas mais como experiência de um déficit que nos confronta<br />
com a vida real, evocando ex negativo promessas de felicidade não realizadas (inclui,<br />
por isso, uma dimensão de conhecimento social). Há, por isso, uma permanente exploração<br />
de tensões nas suas encenações: tensão entre música e cena, que não duplica aquela;<br />
tensão entre ilusão e desconstrução da ilusão; tensão entre o mundo do autor e o mundo<br />
atual do espectador (separação de horizontes e não “fusão de horizontes” no sentido da<br />
hermenêutica de Gadamer); tensão entre a necessidade de mudança e a impossibilidade<br />
de mudança.<br />
Neste sentido, Konwitschny realiza a síntese entre a herança de Walter Felsenstein<br />
(ópera como teatro, unidade de canto e representação, incorporação plena da personagem<br />
pelo cantor, interação entre cantores como portadores da ação e não subordinação destes<br />
às entradas dadas pelo maestro) e a herança de Brecht (montagem, efeitos de estranhamento,<br />
imagens dialéticas, gesto de mostrar). Konwitschny procura recuperar, como<br />
ele próprio afirma, a ideia de teatro como Politikum (tal como na Grécia antiga), isto é,<br />
como um evento socialmente relevante: “o que é importante para as pessoas tem de ser<br />
discutido coletivamente”. 6<br />
Qual é o papel da musicologia? No plano da investigação filológica, estabelecer<br />
a edição crítica da partitura, as suas variantes, identificar os problemas colocados pelas<br />
fontes. No plano da investigação histórico-sociológica e estética, estudar a obra na sua<br />
...........................................................................<br />
5 Título, parafraseando Adorno, que dei a uma comunicação para a qual remeto: “Defender a ópera contra os<br />
seus entusiastas: ‘Musiktheater’ de Walter Felsenstein a Peter Konwitschny”, in IX Colóquio de Outono – Estudos<br />
Performativos: Global Performance / Political Performance (eds. Ana Gabriela Macedo, Carlos Mendes de<br />
Sousa, Vítor Moura), V. N. Famalicão, Centro de Estudos Humanísticos da Universidade do Minho: Ed. Húmus,<br />
2010, p. 257-272.<br />
6 Sobre a teoria da interpretação musical e músico-teatral, ver discussão aprofundada in M. Vieira de Carvalho,<br />
“A partitura como espírito sedimentado: Em torno da teoria da interpretação musical de Adorno”, in Theoria<br />
Aesthetica (ed. Rodrigo Duarte), Porto Alegre, Escritos Editora, 2005, p. 203-224; e ainda “Defesa da ópera contra<br />
os seus entusiastas”, acima citado.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
17<br />
estrutura e na sua substância dramático-musical, incluindo a recepção. No plano da dramaturgia<br />
musical, contribuir para o conceito da encenação e para as opções de interpretação<br />
(inclusive no âmbito das equipas de produção).<br />
Não compete à musicologia estabelecer o cânone da produção, da interpretação<br />
e da realização da obra. Não pode haver um cânone de excelência ou de qualidade preestabelecido,<br />
válido para todos os lugares e circunstâncias.<br />
O conceito de integridade do espetáculo tem necessariamente de prevalecer<br />
sobre qualquer preconceito quanto ao que seja considerado “integridade” da obra. Cada<br />
nova produção de uma obra vale por si e não pode deixar de ser aferida pelo sistema de<br />
comunicação e pelo contexto sociocultural específicos da sua realização. A obra não existe<br />
como algo congelado numa partitura. Obra e partitura não são idênticas. Aquela é sempre<br />
de novo reconstruída a partir desta (cf. Adorno). Nesse sentido, aquilo a que chamamos<br />
obra representada num espetáculo é um sistema de comunicação emergente – emergente<br />
de conexões estruturais entre vários sistemas ou subsistemas, nomeadamente: a estrutura<br />
técnico-material ou financeira; a equipa de produção, tendo como figuras centrais o<br />
encenador e o chefe de orquestra; os intérpretes; o contexto sociocultural e os seus interlocutores<br />
institucionais (incluindo os meios de comunicação e os críticos); a investigação<br />
musicológica, que assume as várias responsabilidades acima referidas; e, é claro, a<br />
partitura, como ponto de partida.<br />
Na minha perspectiva é necessária uma reflexão crítica que continue a aprofundar<br />
a teoria da interpretação musical e, em especial, a teoria da interpretação músicoteatral.<br />
A ideia fundamental de que parto é a de que o espetáculo de ópera não é para<br />
servir as expectativas do musicólogo, mas sim as do público. O papel do musicólogo é investigar<br />
as fontes e fornecer material fidedigno àqueles que vão produzir e encenar o espetáculo.<br />
O papel dos artistas é transformar esse material numa experiência de comunicação<br />
atual para um público atual – em que não se trata apenas de música, mas também<br />
de teatro e de eficácia teatral. Na fase da produção e da encenação, o papel do musicólogo<br />
passará a ser então o de coadjuvar os intérpretes na reconstrução da partitura, tendo em<br />
vista fundamentar uma determinada concepção das personagens ou dos conflitos em<br />
jogo, isto é, um determinado universo cênico. Não cabe à musicologia “matar o teatro”,<br />
mas sim ajudar a dar-lhe vida para um público do nosso tempo.<br />
Finalmente, apelo à continuação do desenvolvimento de um espaço de cooperação<br />
luso-brasileiro e lusófono, em que também no domínio do teatro lírico possa vir a<br />
desenvolver-se uma alternativa contra-hegemônica. Não é só no domínio da música popular<br />
ou do fado que a palavra cantada em língua portuguesa pode fazer o seu curso. Pode<br />
e deve também fazê-lo como palavra cênica. A ópera e a “música teatral” têm sido<br />
investigadas na perspectiva histórica, quer no Brasil, quer em Portugal. As abordagens<br />
têm incidido sobre compositores, intérpretes, obras, instituições e recepção. Têm-se<br />
traduzido em edições críticas, monografias e outros trabalhos. Menos investigadas têm<br />
sido as relações luso-brasileiras neste domínio, mormente na era pós-colonial: que companhias,<br />
artistas, empresários, obras circularam entre os dois países, com especial relevo<br />
para repertório em língua portuguesa; que formas de cooperação ou intercâmbio se desenvolveram.<br />
Está ainda por fazer um balanço crítico da investigação já realizada, mas o que<br />
importa, sobretudo, é continuar a expandir a intensa cooperação científica já em curso,<br />
estendê-la decididamente à cooperação artística e definir estratégias para o futuro. Cabenos<br />
refletir sobre o contributo que os investigadores e os artistas portugueses e brasileiros,<br />
conjuntamente, podem dar não só para o estudo das relações luso-brasileiras neste<br />
domínio, mas também para a sua promoção. É preciso ligar a investigação à atividade artística,<br />
e desse modo contribuir, tanto para fazer reviver um patrimônio cultural comum,<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
18<br />
como também para promover projetos inovadores no campo da criação, interpretação,<br />
produção e difusão músico-teatrais, envolvendo os dois países.<br />
Julgo que estamos em condições de dar um grande impulso aos estudos comparativos<br />
que tomem em consideração a ópera e outros gêneros músico-teatrais numa<br />
abordagem histórico-antropológica e histórico-sociológica inclusiva – isto é, aberta<br />
também a manifestações músico-teatrais de origem popular ou tradicional –, na qual os<br />
diferentes sistemas de comunicação sejam analisados nas suas conexões estruturais com<br />
contextos em mudança. Desses estudos deveriam sair propostas fundamentadas que<br />
ajudassem à definição de políticas públicas em ambos os países e no âmbito da CPLP –<br />
políticas públicas que visassem potenciar reciprocamente o valor cultural e o valor econômico<br />
da ópera e de outros gêneros músico-teatrais como fatores de emancipação social<br />
e humana (Figura 4).<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
Manuscript collections of Italian opera<br />
19<br />
Philip Gossett<br />
University of Chicago<br />
For many years, the principal activity of scholars of Italian opera was the<br />
establishment of “authentic” texts (by which was meant any and every version of an opera<br />
for which the composer himself had direct responsibility) and the publication of critical<br />
editions of a repertory that had seemed before to resist such attempts. 1 It was only by<br />
recognizing that composers treated their operas with some flexibility that it became<br />
possible to reject the notion of a Fassung letzter Hand and to insist instead that it was the<br />
function of a critical edition to make available all versions traceable to the composer of<br />
each work. In some cases, place was found even for versions that became inevitably<br />
associated with a title, even if the composer himself was not responsible for devising<br />
them. 2 The success of this operation is clear: more than 30 volumes devoted to Rossini’s<br />
music are currently available, another 15 of works by Verdi, and growing collections of<br />
the music of Bellini and Donizetti. These have not gained universal acceptance in opera<br />
houses (the hold of custom on operatic singers and impresarios remains very strong), but<br />
they certainly have developed a notable constituency of performers, as well as finally<br />
giving these works the kind of musicological respectability that scholars have demanded.<br />
As long as the preparation of such editions of nineteenth-century Italian opera<br />
was the principal goal of musical scholarship pertaining to this repertory, it was clear that<br />
scholars needed primarily to obtain the autograph manuscripts of composers, as well as<br />
manuscript copies, printed editions, and printed librettos that reflected precisely the most<br />
authentic sources. These sources still have a fundamental significance for all those who<br />
care about this repertory. 3 But it should come as no surprise that new questions are<br />
confronting us today as we think about this repertory, new approaches that are becoming<br />
ever more important to younger scholars. While one of my primary goals remains to<br />
complete the textual work that has only been partially accomplished, and as I will suggest<br />
later in this paper the collection of operatic materials in Rio de Janeiro promises to be of<br />
great importance to this effort, other goals are developing, no less interesting and no less<br />
significant for our knowledge of the operatic repertory. Important scholars are concerned<br />
now with the performers, particularly the singers, associated with this music, both in Italy<br />
...........................................................................<br />
1 The first series of critical editions of nineteenth-century Italian opera involved the works of Gioachino Rossini.<br />
It was issued by the Fondazione Rossini of Pesaro, with Ricordi of Milan, as Edizione critica delle opere di Gioachino<br />
Rossini, beginning in 1979. Since 2007, Bärenreiter-Verlag of Kassel has continued the series as Works of Gioachino<br />
Rossini. This project was followed by The Works of Giuseppe Verdi, issued by The University of Chicago Press,<br />
with Ricordi, beginning in 1983. Of later date are publication efforts associated with Gaetano Donizetti (selected<br />
works, beginning in 1991) and Vincenzo Bellini (beginning in 2003).<br />
2 I think particularly of the critical edition of Rossini’s Il barbiere di Siviglia, Patricia Brauner, ed., in Works of<br />
Gioachino Rossini (Bärenreiter-Verlag: Kassel, etc., 2008), which includes pieces from early versions of the opera<br />
not supervised by the composer himself. For a discussion of the theoretical basis for these editions, see Philip<br />
Gossett, Divas and Scholars (The University of Chicago Press: Chicago, 2006), available also in Italian translation<br />
as Dive e maestri (Il Saggiatore: Milan, 2009).<br />
3 Indeed, fundamental to the work on Rossini’s Petite Messe solennelle, Patricia Brauner and Philip Gossett,<br />
eds., for Works of Gioachino Rossini (Bärenreiter-Verlag: Kassel, etc., 2009) was the discovery of a new manuscript<br />
of the Mass, in private hands. Carlida Steffan has been commissioned to produce the new edition of the Soirées<br />
musicales with a lead time of more than five years so that she can try to locate additional autograph sources.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
20<br />
and abroad. 4 While I would be hesitant to grant as much artistic significance to an Erminia<br />
Frezzolini or a Napoleone Moriani as to a Giuseppe Verdi, to an Isabella Colbran or an<br />
Andrea Nozzari as to a Gioachino Rossini, to a Maria Malibran5 or a Rosine Stolz as to a<br />
Gaetano Donizetti, there can be little doubt that composers worked closely with singers<br />
and sought to make their performing capabilities the measure by which their compositional<br />
art would be judged. It is no surprise that in preparing his Macbeth in 1847, Verdi involved<br />
directly Felice Varesi in the title role and Mariana Barbieri-Nini as Lady, even asking them<br />
to look at their solo music ahead of time and to provide judgments as to whether it suited<br />
properly their vocal proclivities. 6 If not, the composer was prepared to adapt his music to<br />
their capabilities or to modify it as appropriate. Perhaps the composer’s failure to do the<br />
same for Varesi when preparing La traviata was partially responsible for the failure of the<br />
first version of that opera in 1853. 7<br />
By studying the art of individual singers, one can understand better the limits<br />
within which composers were operating. Even though Verdi may have had some doubts<br />
ultimately about the French baritone Victor Maurel, for whom he prepared three roles<br />
(the revised Simon Boccanegra, Iago, and Falstaff), he knew that Maurel’s art was<br />
exceptional. Even when Maurel may have exaggerated (introducing, for example, multiple<br />
reprises of “Quando ero paggio”– the last of which he often sang in his native French), 8<br />
the composer remained relatively loyal to him, knowing that the success of his opera<br />
depended on Maurel’s brilliance. Both Verdi and Muzio may have complained quite bitterly<br />
about Jenny Lind’s “old-fashioned” approach to vocality in the 1847 I masnadieri for London<br />
and Lind herself (as Roberta Marvin has shown9 ) may have had little patience for the new<br />
vocal art he exemplified, still, the composer modified many vocal details in his score so<br />
that it gave Lind a better chance to shine. That was what the public demanded, and he<br />
knew that the public ultimately would determine the fate of any opera.<br />
Among the newer questions being asked today are those that deal with the use<br />
the public around the world made of the musical repertory, especially of opera. 10 While<br />
such questions, which can be grouped generically under the heading of “reception theory,”<br />
...........................................................................<br />
4 Let me cite, in particular, the work of Hilary Poriss, Changing the Score: Arias, Prima Donnas, and the Authority<br />
of Performance (Oxford University Press: New York, 2009), as well as the collection of essays, Roberta Montemorra<br />
Marvin and Prof. Poriss, eds., Fashions and Legacies of Nineteenth-Century Italian Opera (Cambridge University<br />
Press: Cambridge, 2009). There are several articles by Mary Ann Smart which address the problem, including<br />
“The Lost Voice of Rosine Stolz” in Cambridge Opera Journal 6 (1994), 31-50 and “Verdi Sings Erminia Frezzolini”<br />
in Verdi Newsletter 24 (1997), 13-22. See also, Susan Rutherford, The Prima Donna and Opera, 1815-1930<br />
(Cambridge University Press: Cambridge, 2006), and Céline Frigau’s master’s thesis for Paris VIII, 2006 (Une voix,<br />
un geste, un corps : Giuditta Pasta en scène : opinions de spectateurs dans La Pasta nell’Otello, Luigi Morando<br />
de Rizzoni, Vérone, 1830) and her doctoral dissertation of 2010, which deals with performers at the Théâtre-<br />
Italien in Paris during the first half of the nineteenth century.<br />
5 An important series of essays concerning Maria Malibran was recently published, the fruit of research into this<br />
illustrious singer, daughter of the important tenor, Emanuel García: Malibran: Storia e leggenda, canto e belcanto<br />
nel primo Ottocento italiano, Piero Mioli, ed. (Pàtron editore: Bologna, 2010).<br />
6 For further information, see the Preface to the critical edition of Macbeth, David Lawton, ed., in The Works of<br />
Giuseppe Verdi, Series I, vol. 10 (The University of Chicago Press: Chicago, and Casa Ricordi—BMG Ricordi:<br />
Milan, 2006).<br />
7 See the Preface to the critical edition of La traviata, Fabrizio Della Seta, ed., in The Works of Giuseppe Verdi,<br />
Series I, vol. 19 (The University of Chicago Press: Chicago, and Casa Ricordi—BMG Ricordi: Milan, 1996).<br />
8 A recording on Columbia Records, IRCC, N. 4-B (labeled as 1904, but supposedly reflecting a recording sesseion<br />
actually held in London in 1907), demonstrates this: he sings the short aria twice in the original Italian (“Quand’ero<br />
paggio”), then once in his native French (“Quand j’étais page”), accessed on YouTube, 2 June 2011.<br />
9 See the Preface to the critical edition of I masnadieri, Roberta Montemorra Marvin, ed., in The Works of<br />
Giuseppe Verdi, Series I, vol. 11 (The University of Chicago Press: Chicago, and Casa Ricordi—BMG Ricordi:<br />
Milan, 2000).<br />
10 For a particularly astute treatment of the situation in Germany, see Gundula Kreuzer, Verdi and the Germans:<br />
From Unification to the Third Reich (Cambridge University Press: Cambridge, 2010). An important study is about<br />
to be issued by George Martin, entitled Verdi in America: Oberto through Rigoletto (University of Rochester<br />
Press: Rochester, N.Y., forthcoming).<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
21<br />
may not lead to responses that will change the nature of the edited texts, they do help us<br />
understand a great deal about how music was received. The work of Roberta Marvin with<br />
Victorian parodies of Verdian operas, of Emilio Sala with the boulevard theaters in Paris,<br />
of Jeanice Brooks with collections of music in English parlors, of Thomas Christensen with<br />
four-hand arrangements, all this work and much else has enormous resonance today. 11<br />
Many parts of the Rio collection must be understood in these terms. Although a more<br />
profound knowledge of the publishing history associated with Ricordi, Schott, Heugel, or<br />
Novello may have little relevance to the problem of establishing a text for compositions<br />
which exist in autograph manuscripts, it does provide the context in which operas were<br />
received and treasured by large parts of the musical world (even in the form of pianistic<br />
potpourris or arrangement for various instruments), particularly by those individuals that<br />
did not come to know opera primarily from formal performances in theaters devoted to<br />
the operatic repertory. And at a moment when access to theaters was limited to a few<br />
individuals who had the possibility of living and working in major metropolises and no<br />
recordings could substitute – however inadequately – for the pleasure of attending<br />
performances, printed vocal scores or extracts had a significant role to play in spreading<br />
the word about a new work that was worthy of public knowledge. 12 No one, to my<br />
knowledge, has attempted to study publications and extracts made in South America<br />
with questions of this kind in mind. 13<br />
In this context, information about the spread of Italian opera in countries other<br />
than the central European countries (Italy, France, Germany, and Austria) and England<br />
begins to take on a very different level of interest. We know, of course, that the repertory<br />
of Italian opera had enormous resonance in Scandinavia, in Russia, in the Iberian peninsula,<br />
in the Americas (both North and – as the Rio collection demonstrates – South) and<br />
continues to have an important hold on the imagination of audiences in these countries.<br />
When operas are performed regularly, of course, there must be sources that are used by<br />
performers to permit their activities. In some cases, these scores were made available by<br />
an Italian commercial publisher, Ricordi, who had important centers of activity in many<br />
countries (in South America, the most important single city for Ricordi’s distribution was<br />
Buenos Aires). But after much of Ricordi’s performance material was destroyed in a<br />
bombardment of Milan in 1944, the company called back material that had been deposited<br />
in many other countries; as a result, much of that material is no longer to be found in the<br />
countries in which it had been used. Nor does Ricordi seem to have kept today this older<br />
material: it has been replaced by newer products, as demanded by performers. 14<br />
Of great interest to scholars, though, is evidence pertaining to complete<br />
manuscripts that were prepared earlier in the history of the works, during the nineteenth<br />
...........................................................................<br />
11 Roberta Marvin has published several articles on this subject, but in particular see her Verdi and the Victorians.<br />
(Boydell & Brewer: Woodbridge, forthcoming). Emilio Sala has written several articles about Verdi and the<br />
Boulevard theaters in Paris: see, in particular, “Verdi e il teatro di boulevard parigino degli anni 1847-1849,” in<br />
eds., Pierluigi Petrobelli and Fabrizio Della Seta, La realizzazione scenica dello spettacolo verdiano: Atti del<br />
Congresso internazionale di studi, Parma, Teatro Regio—Conservatorio di Musica “A. Boito,” 18-20 settembre<br />
1994 (Parma, 1996), 187-214. Jeanice Brooks is currently engaged in ongoing research into collections of music<br />
used in nineteenth-century England, of which a few articles have appeared, such as “Les collections féminines<br />
d’albums de partitions dans l’Angleterre au début du XIXe siècle”, in Christine Ballman and Valérie Dufour, eds.,<br />
‘La la la Maistre Henri’: Mélanges de musicologie offerts à Henri Vanhulst (Brepols: Turnhout, 2009), 351-65.<br />
See also Thomas Christensen, “Four-Hand Piano Transcriptions and Geographies of Nineteenth-Century Musical<br />
Reception”. Journal of the American Musicological Society 52 (1999), 255-98.<br />
12 For a discussion of Italian theaters in this period, see Carlotta Sorba, Teatri: L’Italia del melodrama nell’età del<br />
Risorgimento (Il Mulino: Bologna, 2001).<br />
13 I do want to acknowledge, however, the work of Benjamin Walton of Jesus College, Cambridge University, who<br />
is actively involved in research on the spread of Italian opera in South America.<br />
14 I make these remarks on the basis of personal contacts at Casa Ricordi of Milan, going back to the early 1970s,<br />
particularly with Fausto Broussard, who was present in the Ricordi Archives during the 1950s, shortly after<br />
these events occurred.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
22<br />
century, and still found in collections around the world. Many of these collections are<br />
very important and quite well known. Thus, King Frederick VI of Denmark, in approximately<br />
1820, ordered a significant collection of Italian manuscripts sent to him as representative<br />
of works that could be performed in his realm: this collection is still found in the Royal<br />
Library in Copenhagen. And the collection includes many works that are known from very<br />
few other sources, since it features works popular during the 1810s. In some cases these<br />
manuscripts have textual importance: they include, for example, some little known works<br />
by Rossini, such as Ciro in Babilonia, Adelaide di Borgogna, and Edoardo e Cristina. No<br />
one has yet made a complete study of these sources, so we cannot say very much about<br />
their significance as a group, but the Rossini operas, at least, have all been photocopied<br />
and are being used currently for textual work on these titles. 15<br />
In Russia, on the other hand, there has been relatively little study of Italian<br />
manuscripts, even though we know that several important Italian composers spent<br />
considerable periods of time working with Russian theaters, composers such as Giovanni<br />
Paisiello, Domenico Cimarosa, Alessandro Nini, and Giuseppe Verdi. In many cases<br />
important sources (some of them autograph) exist in the archives of the Marinsky Theater<br />
and in other Russian libraries. Indeed in the case of an opera first performed at the Marinsky<br />
Theater, such as Verdi’s La forza del destino of 1861-1862, the theater’s well-known<br />
tendency to have kept everything has proven invaluable. 16 On many of the performing<br />
parts we find entries in Verdi’s own hand, annotations written while he was rehearsing<br />
the music with individual singers. 17 It is only from these performing materials, for example,<br />
that we learn that the famous Prayer that forms part of the Scena Osteria in Act II was<br />
originally accompanied only by an arpeggiating clarinet and by pizzicato bass notes in the<br />
violoncelli and contrabbassi. In the printed edition of the opera and the autograph<br />
manuscript, however, there are also wind parts duplicating the choral material of the<br />
Prayer. Because of the nature of the parts, we know for certain that these doubling wind<br />
parts were added during the rehearsal period, presumably to keep singers in tune on<br />
what is a long passage with very little accompaniment. 18 This clearly has significant<br />
ramifications for today’s editions and for possible interpretations of them in contemporary<br />
performance.<br />
Unfortunately, few collections of this importance exist in Italy itself. That lack is<br />
in part a product of the conditions that prevailed in opera archives and of the many fires<br />
that destroyed whatever collections might have once existed, but it is also in part related<br />
to the nature of the social structures that grew up around the performance of opera in<br />
nineteenth-century Italy. One of the ways in which publishers succeeded in rendering<br />
their calling economically viable during this period was to make available performing<br />
materials exclusively by rental agreements, whereby theaters needed to work through<br />
publishers to obtain materials from which to perform. 19 During the first two decades of<br />
the nineteenth century Italian publishers did not even print entire vocal scores of operas.<br />
When it became clear that foreign publishers, particularly those working in Germany,<br />
Austria, and France, were dominating this market, Italian publishers soon began to catch<br />
up. While during the 1810s they published only favorite extracts from new operas, by the<br />
...........................................................................<br />
15 Let me thank Knud Arne Jürgesen, who facilitated my work with these sources.<br />
16 My use of the library was considerably assisted by the kind permissions obtained from the musical director,<br />
Valery Gergiev. I also wish to thank the staff of the Archive for its many kindnesses.<br />
17 Thus, Verdi himself added the revised cabaletta of Don Carlos’ third-act aria, “Urna fatal,” in the vocal part of<br />
Don Carlos. Originally the vocal part had only an earlier version of this cabaletta.<br />
18 The wind parts originally had rests in these measures. The doubling wind parts were added by means of<br />
collettes in the parts, some of which were pasted in on all four sides, so that it is impossible to read what was<br />
originally present, but some of which were pasted in on only two sides, so that it is simple to read the rests that<br />
were originally in the parts.<br />
19 The process is well described in Claudio Sartori, Casa Ricordi 1808-1858 (Ricordi: Milan, 1958).<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
23<br />
mid-1820s they had begun to compete with foreign publishers by producing complete<br />
vocal scores. One publisher in Rome, Ratti, Cencetti & Comp., which began life (as did<br />
many other publishers in Italy) as a copying house for manuscripts, decided to issue several<br />
Rossini operas in printed full scores, but they did a particularly poor job of it, producing<br />
scores that had all the worst character of Ratti and Cencetti’s manuscripts and none of<br />
the qualities we expect in fine printed full scores, and so their experiment did not catch<br />
on. 20 Thus, the way was left clear for the continued practice of publishers in Milan (Ricordi<br />
and Lucca), Florence (Cipriani and others), and Naples (Giuseppe, then Bernardo Girard,<br />
Clausetti, and Fabricatore) to print complete vocal scores and to rent complete manuscripts<br />
and performing materials.<br />
At first the performing materials were entirely handwritten. Later, when it became<br />
clear that it was more economically efficient to make some performing materials available<br />
in printed scores (particularly when multiple copies were needed for the strings or for the<br />
chorus), companies such as Ricordi began to produce selected parts in printed copies<br />
while continuing to make manuscript materials when only single parts were needed (an<br />
oboe part or one of the trombone parts). Only when some of Verdi’s works began to be<br />
demanded by many, many theaters at once (works such as Rigoletto, La traviata, or Un<br />
ballo in maschera) did Ricordi prepare entire sets of parts in printed editions. 21 They even<br />
tried, with La traviata, to produce a printed edition of the full score, but the resulting<br />
score was sufficiently defective that the company soon returned to the old-fashioned<br />
mode of providing full scores only in manuscript copies. 22 It was not until the mid-1880s,<br />
with Otello, that Ricordi began seriously to issue printed full scores, at first only for rental,<br />
then for sale.<br />
It is clear, however, that if this material was all expected to be returned to Ricordi<br />
after its use in a given season, ready to be rented to another opera house, the houses<br />
themselves would not have kept important archives. And, indeed, that was what Ricordi<br />
was counting upon: if opera houses did not maintain an archive, they would come back<br />
again and again to Ricordi to rent materials, and so the fortune of the editorial house and<br />
its directors was made. Whether Ricordi over time actually kept materials from the early<br />
or middle years of the nineteenth century is difficult to determine, since the Ricordi archive<br />
as we know it today is only a fragment of what it once was. As World War II got under way,<br />
the directors of Ricordi made the decision to transport the autograph manuscripts, of<br />
which the company owns many, from the archive to a safe destination outside the center<br />
of Milan. But the remainder of the archive was just sitting there; so, when American<br />
planes bombed the center of Milan in 1944, they destroyed the archive as it was then<br />
known. I knew personally some of the people who worked with Ricordi in those years and<br />
they report that items in the archive were “carbonized”: when the fires had dissipated,<br />
they could still tell what had been there, but when they touched a manuscript or a set of<br />
parts, it dissolved into dust. And so, nowhere in Italy (not even in the major collections of<br />
musical manuscripts in the conservatories of Naples, Milan, Rome, or Bologna) can one<br />
today normally locate sets of materials from the nineteenth century. 23<br />
...........................................................................<br />
20 For further information about this publisher, see Bianca Maria Antolini and Annalisa Bini, Editori e librai musicali<br />
a Roma nella prima metà dell’Ottocento (Torre d’Orfeo: Roma, 1988). See also the entry under Ratti and Cencetti<br />
in Bianca Maria Antolini, ed., Dizionario degli editori musicali italiani, 1750-1930 (Edizioni ETS: Pisa, 2000).<br />
21 The history can be followed very nicely in Luke Jensen, Giuseppe Verdi and Giovanni Ricordi, with Notes on<br />
Francesco Lucca: From “Oberto” to “La Traviata” (Garland Publishing Inc.: New York and London, 1989).<br />
22 This edition is discussed in detail by Fabrizio Della Seta in the Preface and Critical Commetnary to the critical<br />
edition of La traviata (see Note 7).<br />
23 There are important exceptions, of course. At the library of the Naples Conservatory, for example, are found<br />
manuscript parts from local churches, including the parts for Rossini’s Messa di Gloria, with important annotations<br />
by the composer. The piece is currently being edited by Martina Grempler.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
24<br />
That is why collections outside Italy have proven so important. The archives of<br />
the Marinsky theater in St. Petersburg is one important location. Another is the Paris<br />
Opéra, which has always had a saving mentality (in English we talk about “pack rats” as<br />
saving everything, so that it is still possible today to examine performing materials from<br />
operas that were given at the Opéra from the eighteenth century and the nineteenth<br />
centuries. For some operas, such as Le comte Ory, for which practically no autograph<br />
manuscripts exist, the new critical edition of the opera depends on the original performing<br />
materials (especially on a score prepared by copyists at the Opéra, but also on the early<br />
performing parts, which must be carefully differentiated from later materials). 24 The same<br />
was true for Guillaume Tell and it will undoubtedly be true for the other operas by Rossini<br />
written for the Paris Opéra. For the Donizetti and Verdi operas prepared for the Opéra, we<br />
have – by and large – the original autograph manuscripts, so the materials at the Opéra´have<br />
slightly less importance, but they nonetheless continue to answer many questions that<br />
the autograph manuscripts leave unanswered (what some of these are I will discuss in a<br />
few moments).<br />
The scholar M. Elizabeth C. Bartlet, who died tragically of breast cancer a few<br />
years ago, knew more about French archives than anyone else in the world. She herself<br />
did critical editions of Jean-Philippe Rameau’s Platée and Rossini’s Guillaume Tell. 25 She<br />
also was certain that materials must have still existed from the archives of the Opéracomique<br />
and the Théâtre Italien, despite the fire that consumed much of the Italian theater<br />
in 1837. Beth, who was a very strong and persistent scholar, made such a pain-in-the-neck<br />
of herself during the 1970s that the staff of the Bibliothèque Nationale, Départment de la<br />
Musique, finally allowed her access to uncatalogued parts of the collection. It was there<br />
that Dr. Bartlet discovered the performing materials pertaining to Rossini’s Il viaggio a<br />
Reims, the first traces we had seen for this unknown and unpublished opera. From her<br />
discoveries, the effort to reconstruct that masterpiece of Rossini’s maturity took wing. 26<br />
Another significant collection of this kind existed for many years in the archives<br />
of Covent Garden in London. Although the theater often insisted that they had nothing, it<br />
wasn’t true: they had a remarkable collection of performing materials, now deposited at<br />
the British Library. The person who particularly insisted that these be made public was<br />
Will Crutchfield, who found important original Donizetti manuscripts in the archive. But<br />
the original performing parts of Verdi’s I masnadieri, which had its first performance at<br />
Covent Garden, were used extensively by Roberta Marvin when she prepared the critical<br />
edition of that opera. These parts showed, for example, that the original prima donna,<br />
Jenny Lind, ornamented the repetition of the cabaletta theme so extensively that it was<br />
necessary to cancel Verdi’s instrumental parts doubling the melody for that repetition.<br />
Since the opera had been performed at Covent Garden only in that original season, there<br />
was no question about the proper dating of these annotations. 27<br />
Still, with all of these discoveries, nothing prepared me for what I would find in<br />
the conservatory library at Rio de Janeiro. Although some of the materials do come from<br />
...........................................................................<br />
24 This edition is being prepared by Damien Colas for Works of Gioachino Rossini (Bärenreiter-Verlag: Kassel,<br />
etc., in preparation). It is hoped that the Colas edition, which has already been successfully performed in Zürich,<br />
with Cecilia Bartoli as the Comtesse Adele, will be in print before the end of 2011.<br />
25 The editions appeared, respectively, in the Opera Omnia of Jean-Philipp Rameau, Series 4, vol. 10 (Bonneuil-<br />
Matours, Socieìteì Jean-Philippe Rameau: France, 2005) and the Edizione critica delle opere di Gioachino Rossini,<br />
Series I, vol. 39 (Fondazione Rossini: Pesaro, 1992).<br />
26 For further information about the discovery and reconstruction of Il viaggio a Reims, see Divas and Scholars,<br />
152-8. A critical edition of the opera, Janet Johnson, ed., was published as Series I, vol. 35 in the Edizione critica<br />
delle opere di Gioachino Rossini (Fondazione Rossini: Pesaro, 1999).<br />
27 This history is described in the Preface to the critical edition of I masnadieri, Roberta Montemorra Marvin, ed.<br />
(see Note 9).<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
25<br />
the Ricordi archives and should therefore have been returned to the company after<br />
performances in Rio had taken place, the city was far enough away from Milan as to make<br />
it difficult if not impossible for the Milanese publisher to pursue any action against an<br />
opera house in Rio. And most materials in the archive do not come from Milan at all, but<br />
seem to have been acquired from copying houses and publishers in Naples, companies<br />
which may have had less control over their materials than the Milanese publisher tried, at<br />
least, to exert.<br />
I had only three days to examine the collection, so this is very much a preliminary<br />
report, but suffice it to say that I assembled over forty pages of notes in my computer,<br />
enough to give me a fairly good idea of what is to be found in this collection, which has<br />
been expertly catalogued through the efforts of the director of the library, Dolores Brandão,<br />
and its cataloguer, Maria Luisa Nery de Carvalho. 28 Still, a preliminary report is better than<br />
none, and I hope it will be useful for all of you to know something about the treasures<br />
here in Rio. I know it will be useful for those actively involved in making critical editions of<br />
operas that have not yet been published in the collected works of Rossini and Verdi, not to<br />
mention Donizetti and Bellini.<br />
Let me begin by discussing the complete manuscripts in the collection. None of<br />
them seems to be very early. I do not know the history of these manuscripts except that<br />
they were in a theatrical archive, from whence they came into the possession of the<br />
Conservatory, which already in the nineteenth century became the Instituto Nacional de<br />
Música. 29 They are now housed in the Biblioteca Alberto Nepomuceno of the Federal<br />
University of Rio de Janeiro . We can judge the dating of these complete manuscripts by<br />
those situations in which the names of copyists or publishing houses are included.<br />
Unfortunately, in most cases these indications are found on labels pasted into the scores,<br />
which is a less reliable kind of information than those occasions in which copyists identified<br />
themselves directly by annotating manuscripts in their own handwriting. Still, any<br />
manuscript that is identified with a label specifying that it is from the publishing house of<br />
“Giovanni Ricordi” must date from before 1854, the date of Giovanni’s death. At that<br />
point the company passed into the hands of his son Tito Ricordi (and it was thereafter,<br />
until Tito’s death resulted in the assumption of power by his son, Giulio, known as “Tito di<br />
Giovanni Ricordi”). Thus, the mostly complete manuscript copy of Verdi’s Ernani found in<br />
the Rio collection (it lacks Act II) is identified on a pasted label as coming from ‘Tito di<br />
Giovanni Ricordi,” and the first indicated performance for which the manuscript was used,<br />
written by hand on the score, was in Turin in 1861. Several of the printed performance<br />
parts, however, associated with this title, still bear “Giovanni Ricordi” indications, so it<br />
seems likely that Tito continued to use materials that his father had had prepared earlier.<br />
Whether that means that the score is earlier than 1854 cannot yet be determined. There<br />
are also important groups of scores from a competitor of Ricordi’s in Milan, Francesco<br />
Lucca, whose business flourished from the 1840s throughout the 1860s. He provided the<br />
score of Verdi’s Macbeth, a fine manuscript of the first (1847) version of the opera.<br />
Likewise, for the many complete manuscripts prepared in Naples, we can be<br />
pretty sure that none of these sources date from the 1820s, because none is identified as<br />
being associated with a publisher of this period, such as Giuseppe Girard. Only his son’s<br />
...........................................................................<br />
28 To both of them my heartfelt thanks for all their kindnesses in making the collection available to me over three<br />
long days, including a Saturday and a Sunday, when the library officially should have been closed. Equally I wish<br />
to thank Maria Alice Volpe for having organized this conference, having invited me to participate, and having<br />
assisted me in a host of ways.<br />
29 Benjamin Walton (see Note 3) seems to be primarily interested in very early musical sources, of which Rio has<br />
few. This, however, seems to me an error: we should be grateful for the sources Rio does have and try to<br />
understand what they can tell us.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
26<br />
name is found, Bernardo Girard, as are the names of other companies that did not exist in<br />
the 1820s, such as Clausetti (who ultimately became a partner of Ricordi’s) or Fabricatore.<br />
The Fratelli Fabricatore and Bernardo Girard were important sources for manuscripts and<br />
parts in Rio, and many scores (such as several of the music for Giovanni Pacini) have their<br />
labels, often with double addresses, such as the following from Girard: “Deposito per la<br />
vendita delle proprie edizioni, e di quelle di fondo estero, Largo S. Ferdinando n. 49, /<br />
Copisteria e Archivio di Spartiti manoscritti per uso di rappresentazione, Largo del Castello<br />
n. 73,” clearly differentiating the publisher’s activities as a purveyor of printed editions<br />
and of copies for performance.<br />
Just by way of indicating something of the scope of the collection, it should be<br />
said that there exist some thirteen manuscripts of operas (either complete or of at least a<br />
full act) by Rossini. Not all are usable. There are manuscripts, for example, of Act I of one<br />
of Rossini’s early operas (from 1812), Ciro in Babilonia and of practically the whole of his<br />
later, largely pastiche opera, Edoardo e Cristina, of which autograph manuscripts do not<br />
seem to survive, and so these sources are potentially very useful. But they are in such very<br />
bad shape (worms, in particular, seem to have delighted in eating their paper and paste)<br />
that it is hard to know how it would be possible to employ them effectively. <strong>Digital</strong> copies<br />
could help: work with the originals would clearly be impossible, for every turn of a page<br />
would destroy more of the volumes. 30<br />
While these scores do not always provide significant information for textual<br />
purposes, they do tell important stories. We know, for example, that the censors were not<br />
happy with a chorus in L’Italiana in Algeri of 1813. It was hard enough to stomach Isabella’s<br />
Rondò, “Pensa alla patria,” which was often changed to “Pensa allo sposo” or “Pensa allo<br />
scampo,” but what was truly unacceptable was the text of the preceding chorus, where<br />
Rossini set the text “Quanto vaglian gl’Italiani, nel cimento si vedrà.” In the Rio manuscript<br />
this text has been modified to “Che l’ardir non torna vano nel cimento si vedrà.” The idea<br />
of what Italians are worth disappears altogether. This manuscript is actually entitled not<br />
L’Italiana in Algeri but instead Il naufragio felice, a title in which the opera was known in<br />
Naples. This comes as no surprise since the manuscript was prepared in the copy-house<br />
of “B. Girard,” as written into the source. (Other operas exist in versions modified for<br />
Naples: one source in Rio for Verdi’s Ernani is known, for example, under its Neapolitan<br />
name, as Elvira d’Aragona). There are many indications, though, that the copy of L’Italiana<br />
in Algeri represents a fairly late version of the opera. Rossini wrote L’Italiana in Algeri<br />
without trombones (he did not start using three trombones in his operas until several<br />
years later, in Naples), yet this copy of his score has parts for three trombones. If we look<br />
at copies of the opera found in the library of the Naples Conservatory, we find that some<br />
later copies also have added parts for three trombones, but early copies have no such<br />
parts. In short, this is a dead give-away that the manuscript is a late copy, certainly no<br />
earlier than the 1830s.<br />
I was not surprised to see that the copies of French operas written by Italian<br />
composers in the Rio collection are all to be found in Italian translation. We knew that<br />
these translations were widely used by theaters throughout the world. What surprised<br />
me, on the other hand, was that some of the translations did not agree with what I have<br />
always taken to be the “standard” translations (those preserved in the Ricordi printed<br />
editions and performed continuously until our own time). Thus, even though the translation<br />
of Guillaume Tell as Guglielmo Tell comes from the workshop of Giovanni Ricordi, the last<br />
words of Tell’s response to the Fisherman’s initial song (“Il chante et l’Hélvétie / Pleure,<br />
...........................................................................<br />
30 The library is very kindly providing me with just such digital copies, which allow access to the manuscripts as<br />
they exist today and do not create further damage with each use.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
27<br />
pleure sa liberté”) is rendered not as in the perfectly horrible standard Italian translation<br />
(“Ah-i, quanto piangerà”), which was developed to avoid the word ‘liberté,” but with the<br />
verse “Pasce, pasce una speme il cor”: hardly very elegant, it at least avoids the terrible<br />
“Ah-i” of the standard translation. The Rio manuscript, therefore, is not only important in<br />
itself, but it also raises again the whole issue of how these operas were performed around<br />
the world (and there are complete manuscripts of Rossini’s Moïse and Donizetti’s Les<br />
martyrs, La favorite, and Dom Sébastien, all in Italian, that will require similar study). 31<br />
Add to what I have already mentioned, five complete manuscripts to operas by<br />
Bellini, nineteen to operas by Donizetti, seven of Mercadante’s most mature operas, eleven<br />
of Pacini’s operas, and several operas by Verdi, especially works from the 1840s, and you<br />
can get a hint at the importance of the Rio collection of complete manuscripts, which<br />
rivals most other collections in the world, including in Italy. Remember, too, that many of<br />
these manuscripts contain handwritten annotations, for example, of the ornamentation<br />
employed by singers; as such they contribute in a fundamental way to our knowledge of<br />
nineteenth-century performance practice.<br />
But what is truly remarkable in the Rio collection is not even the complete manuscripts.<br />
It is the evidence provided by the performance materials that accompanied the<br />
manuscripts. To find performance materials anywhere is rare enough (as I said before, we<br />
are fortunate that such collections as those of the Marinsky Theater in St. Petersburg, the<br />
Paris Opéra, and Covent Garden still exist). In Italy such materials are almost impossible<br />
to find. (One exception is the Teatro La Fenice of Venice, which unusually and uniquely<br />
preserved the complete original performing materials for Semiramide. 32 ) There is practically<br />
no opera represented by a complete score in Rio that does not have associated with it a<br />
full set of parts. And these parts have, most of the time, been annotated with indications<br />
of cuts, modifications, etc. That strongly suggests that the operas were actually performed<br />
from this material before it was deposited in the library.<br />
Now, why should this be so important? For operas for which we have complete<br />
manuscripts or even autographs, why should we need also to have access to parts used by<br />
the musicians? Those who have worked preparing critical editions of this repertory know<br />
the answer. While full scores tell us a great deal, they do not tell us everything we (and the<br />
musicians for whom we work) need to know. One simple example should make this clear.<br />
Normally each individual instrument is not given a separate staff in the complete manuscripts.<br />
The two flutes, or the flute and the ottavino, are placed on a single staff; the two<br />
oboes are on a single staff; the three trombones are on a single staff. Sometimes composers<br />
are explicit: they will mark a line “Solo” or “a 2” or even “a 3” in order to communicate specifically<br />
their intentions. More often than not, however, they leave us guessing.<br />
Now, it is sometimes not hard to guess what they have in mind. If the clarinets<br />
are doubling the oboes, there is one melodic line on each staff, the dynamic level is “piano,”<br />
and on the oboe staff the composer has written “Solo,” it seems likely that only Ob I should<br />
be playing and that, even if nothing is said about the clarinets, Cl I alone should play. But<br />
unfortunately matters are not always so simple. We know, for example, that the Italians<br />
tended to use three similar trombones, whereas the French preferred a clearer<br />
...........................................................................<br />
31 I have discussed the problem of translations in Chapter 11 of Divas and Scholars, “Words and Music: Texts and<br />
Translations”, p. 364-406.<br />
32 These turned out to be fundamental for work on the critical edition of the opera, Philip Gossett and Alberto<br />
Zedda, eds., Series I, vol. 34 in the Edizione critica delle opere di Gioachino Rossini (Fondazione Rossini: Pesaro,<br />
2001). Not only did the parts contain information about instruments not included in Rossini’s autograph<br />
manuscript, but found among them was the autograph of Rossini’s spartitino for the opera, a manuscript<br />
containing many of the orchestral parts there was simply insufficient space for the composer to include in the<br />
basic autograph manuscript. I wish to thank, in particular, Patricia Brauner and Mauro Bucarelli for having brought<br />
this spartitino to my attention.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
28<br />
differentiation of three quite independent instruments with different ranges. This works fine<br />
when there are three notes on the staff, and we assign them to Trn I, Trn II, and Trn III accordingly,<br />
but what if there are only two notes on the staff or only one? How many instruments<br />
should play and what parts should they play. Silence. The full autograph allows us to<br />
guess, but it doesn’t tell us explicitly what to do. Here the performance material becomes<br />
crucial. If the notes are found in a part, at least the musician or editor or publisher who<br />
prepared the material believed that the note so indicated should be played by that part<br />
(and normally separate parts were prepared for each oboe or the two clarinets were<br />
placed on two separate staves, or there were separate parts for Trns I and II together and<br />
for Trn III, etc.). So, instead of simply guessing who should play what note, we have at least<br />
some contemporary evidence about the matter.<br />
This proved fundamental in our work with Semiramide, for example, an opera<br />
that uses four separate horns, but in which the autograph is not always clear about what<br />
each part should play. In some cases there were so many parts that not even the larger<br />
paper Rossini used for his score was adequate to contain all this information, so that<br />
Rossini had to write additional parts on separate “spartitini,” as we call them, some of<br />
which were subsequently lost. Thus, it is only from the performance material that we can<br />
reconstruct what actually was performed at the theater.<br />
I have emphasized the problem of the trombones because the handling of Trn II<br />
is particularly tricky. That Trn I should play the upper note of, say, an octave, is clear, just as<br />
Trn III should presumably play the lower note. But what should Trn II do? Should it play<br />
the upper part, the lower part, or simply drop out? What we know from contemporary<br />
evidence is that it did none of the above: it tended to jump around, playing notes that<br />
were comfortably within its register. And so on one octave Trn II plays with Trn I, but on<br />
the next octave it may be playing with Trn III. Thus, our critical editions sometimes seem<br />
to have the peculiar appearance of I and II playing together on the first and third beats of<br />
the measure and II and III playing together on the second and fourth beats: if we do<br />
something of this kind, it is because that is the information we gather from qualified<br />
performance materials of the period.<br />
The Rio parts, of course, cannot pretend to have been used for the earliest<br />
performances of any of these operas, so that we cannot be certain that what they reveal<br />
is what the composer may have had in mind. Yet, they are closer to this reality than pure<br />
guesswork on the part of the editors. Thus, in many cases they will prove invaluable to<br />
those who are preparing critical editions of the repertory of nineteenth-century Italian<br />
opera. I would not want to do a critical edition of Verdi’s I Lombardi, to take one example,<br />
without consulting closely the materials in the Rio collection, some of which stems from<br />
Giovanni Ricordi in Milan (hence pre-1854) and some of which comes from Ricordi’s<br />
Neapolitan colleague, Clausetti.<br />
I could go on about other uncertainties in the autograph manuscripts (ambiguities<br />
about signs of dynamic level, about the length of slurs, etc.) for which performing materials<br />
offer additional information, but I think the example I have given is clear enough.<br />
There is yet another way in which these materials prove fundamental. Ricordi<br />
and other publishers, faced with the growing popularity of Verdi’s operas, in particular,<br />
began to change their procedures. First, instead of preparing all performance materials<br />
by hand, they began to print parts where multiple copies were needed for a performance,<br />
especially choral parts and string parts. But finding this material is a nightmare. There are<br />
a few collections with some of it, but frequently we have had to admit defeat: no copies<br />
had been located in any library or theater collection of parts known before the publication<br />
of the edition. From now on such judgments cannot be made without consulting the Rio<br />
collection, which has many printed parts: for I Lombardi, for example, there are printed<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
29<br />
choral parts and string parts. Later, faced with performances of Verdi’s operas in many<br />
theaters simultaneously, Ricordi began to print parts for every instrument. Some of these<br />
parts are found in the Rio collection. For La traviata, for example, there are printed choral<br />
parts, as well as printed orchestral parts for arpa, triangolo, and nacchere e tamburelli.<br />
It is surprising, however, that in some cases editors preferred to avoid the Ricordi<br />
printed parts and continued to provide manuscript parts. This is the case with Un ballo in<br />
maschera of 1859, for which Ricordi prepared a complete set of printed parts (one set<br />
was purchased many years ago by the New York collector James Fuld, who—on his death—<br />
willed it to the Pierpont Morgan Library). 33 So it came as a surprise to find in the Rio<br />
collection not only a complete manuscript of Un ballo in maschera, as the opera was<br />
known after 1859, but also a relatively complete set of manuscript performance materials<br />
(bearing at one point the date of April 1864). I will certainly want the editors of this volume,<br />
which has yet to be published in The Works of Giuseppe Verdi, to consult not only the<br />
printed Ricordi parts, but also these Rio manuscript parts, even if we have no certain<br />
indication of their provenance.<br />
What I have written thus far only begins to suggest the riches of this collection.<br />
I was particularly surprised to find a series of parts for La pie voleuse. This is a version of<br />
Rossini’s two act semiserious opera La gazza ladra of the carnival season of 1817, first<br />
performed at the Teatro alla Scala of Milan. But the opera soon returned during the 1820s<br />
to Paris, from whence the subject first became known as a play by the name of La pie<br />
voleuse, as an opéra-comique, with music by Rossini, but with the musical numbers<br />
connected by spoken dialogue. This is the version represented by these parts, which were<br />
prepared through the “Magasin de Musique / de M. r / D’Harmeville / Directeur du 15. e<br />
Arrondissement,” that is, they are Parisian parts that somehow made their way to Rio in a<br />
version that was certainly never performed in Rio, but may nonetheless represent the<br />
earliest single group of parts in the Rio collection.<br />
Let me report finally on the wonderful band parts found among material in Rio. We<br />
know well that from the late 1810s through the 1850s composers tended to write music<br />
for a “banda sul palco.” The band parts in the Rio collection indicate without doubt that<br />
the banda really was sul palco, as other sources have hinted. 34 The band parts for Verdi’s I<br />
Lombardi are small in format, just the size necessary to attach them to an instrument<br />
which is being walked across the stage.<br />
...........................................................................<br />
33 Before his death, Mr. Fuld kindly made a photocopy of the entire set of parts available to the editors of the<br />
forthcoming critical edition of Un ballo in maschera, Ilaria Narici and Andreas Giger.<br />
34 Particularly clear is a manuscript associated with costuming at the Théâtre Italien of Paris for performances<br />
there of Rossini’s La donna del lago in 1824, which includes costumes for members of the band. This manuscript<br />
is discussed in the Preface to the critical edition of the opera, ed. H. Colin Slim in the Edizione critica delle opera<br />
di Gioachino Rossiini (Fondazione Rossini: Pesaro, 1990), xxvii-xxx.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
31<br />
Fantasias operísticas italianas<br />
na América Latina *<br />
Benjamin Walton<br />
Universidade de Cambridge<br />
O assunto ópera nas Américas surgiu várias vezes nas páginas do Allgemeine<br />
musikalische Zeitung, durante meados da década de 1830; e, em janeiro de 1836, o<br />
correspondente da revista Livorno apresentou uma atualização. Ele começou relembrando<br />
algumas viagens anteriores pela América, principalmente a de Lorenzo da Ponte, então<br />
em meados dos seus 80 anos de idade, a Nova York, e a viagem de Manuel García e família<br />
para os Estados Unidos e México. Também mencionou uma então recente visita a<br />
Milão por um empresário mexicano para contratar um contralto, um baixo e um diretor<br />
musical. Porém, o foco principal do relatório era uma lista detalhada de toda uma companhia<br />
que recentemente partira para Havana. Aí se incluíam uma prima donna soprano,<br />
um primo contralto que também era primeiro músico, mais dois primi contralti, duas<br />
seconde donne, sete primi tenori, dois primi bassi cantanti, um primo basso generico, uma<br />
série de primi e bassi secondi, três coristas, um diretor de música, um diretor de coros, um<br />
copista e ponto, ainda os principais membros de uma orquestra completa: músicos de<br />
cordas e de sopro, um trompetista e um harpista. Havia ainda um suplemento completo<br />
de bailarinas e mímicos, com seus mestres de dança, assim como pintor, maquinista, alfaiates<br />
de ambos os sexos, um médico e um cozinheiro. Todos eram italianos arregimentados<br />
durante o verão anterior em Milão e Bolonha por um empresário de Berlim, Franz Brichta;<br />
a companhia completa totalizava 70 pessoas. A epidemia da cólera atingiu a região enquanto<br />
aguardavam o navio em Livorno. Quando da partida, somavam 67 membros; perderam<br />
um dos tenores, um alfaiate e o infortunado médico (“Theatralische Sommer-Stagione”,<br />
1836, colunas 63-64).<br />
“Se levarmos em consideração”, concluiu o relatório, “que ano após ano, a Itália<br />
fornece cantores para não apenas os seus inúmeros teatros, mas também os de Lisboa,<br />
Madrid, Barcelona, Cádiz, Sevilha, Porto, as ilhas de Maiorca e a América, muitos dos<br />
quais também cantam em vários teatros na Inglaterra, França e Alemanha, e que ainda há<br />
um grande número deles sem qualquer compromisso, temos de nos maravilhar com essa<br />
imensa assembleia; mas, claro, nos campos de Espéria” – isto é, na Itália – “todos cantam,<br />
mesmo quando falam!” (col. 64).<br />
De certa forma, isso não era novidade: já no século XVIII a ópera italiana fora apresentada<br />
em toda a Europa e também desde o Vice-Reino de Lima até a corte Imperial da China,<br />
onde o imperador Qianlong teria sido tão seduzido por La buona figliuola, de Piccinni, que<br />
ele arrumou um grupo de músicos chineses especialmente treinados para executar essa obra<br />
em um teatro especialmente construído para isso (Ginguené, 1800, p. 10-11). 1 O espanto da<br />
...........................................................................<br />
* A pedido do autor, o texto está aqui publicado na tradução para o português, realizada por Maria Alice Volpe<br />
e Régis Duprat.<br />
1 “Esse príncipe havia se emocionado deliciosamente ao constituir uma trupe de músicos incumbidos apenas de<br />
tocar a música dessa peça; pois ele havia feito construir por hábeis operários do país uma espécie de teatro, e<br />
que sobre as muralhas ele havia feito pintar todas as cenas de La Cecchina, a fim de poder vê-la e ouvi-la ao<br />
mesmo tempo”. Tradução livre, do original “Ce prince en avait été si délicieusement ému, qu’il avait établi une<br />
troupe de musiciens chargés seulement de jouer la musique de cette pièce; qu’enfin il avait fait bâtir par d’habiles<br />
ouvriers du pays une espèce de théâtre, et que sur les murailles il avait fait peindre toutes les scènes de la<br />
Cecchina, afin de pouvoir la voir et l’entendre à la fois”. Sou grato a David Irving por chamar minha atenção para<br />
esta referência. Sobre a ópera em Lima no século XVIII, ver Villena, 1945 e Estenssoro, 1989.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
32<br />
retórica do correspondente de AMZ, diante da disseminação de cantores italianos em<br />
toda a Europa e através do Atlântico, sinaliza a possibilidade de que o tipo de viagem<br />
planejada para Havana em 1830 foi diferente de tudo o que havia ocorrido antes; e mesmo<br />
do ponto de vista do historiador posterior, tal evento poderia marcar o verdadeiro início<br />
da globalização da ópera italiana.<br />
Tal afirmação pode parecer desnecessariamente exagerada. Afinal, deixando de<br />
lado esse bando de cantores e dançarinos vinculados a Cuba, muitas óperas fora da Europa<br />
nos anos anteriores a 1850 envolviam um número muito menor de intérpretes –<br />
frequentemente pequeno para realizar um bom trabalho – em produções improvisadas,<br />
em teatros inadequados. Donna Gabaccia (2000, p. 43) estima que, enquanto artistas da<br />
“arte elevada”, ou seja, cantores de ópera e outros músicos, representaram a mais alta<br />
categoria da emigração italiana de elite no início do século XIX, apenas cerca de 2% deles<br />
chegou às Américas. 2 Trata-se de um número suficientemente pequeno, de fato, que<br />
pode ser quase calculável ou pelo menos rastreável pelos nomes dos empresários ou dos<br />
cantores principais de cada companhia. É o caso do grupo que acompanhou o baixo<br />
rossiniano Filippo Galli para o México nos anos posteriores a Garcías, por exemplo, ou a<br />
companhia de Giovanni Montresor em Nova York e Filadélfia, no mesmo período, recrutada<br />
por Da Ponte que acabou por unir forças com uma companhia Brichta anterior em Havana. 3<br />
Mais ao sul, quase tudo irradiava a partir do ponto focal do Rio de Janeiro, o<br />
centro da ópera da América do Sul desde que a corte portuguesa se transferira para lá fugindo<br />
de Napoleão, em 1808, e construiu uma casa de ópera como réplica do São Carlos<br />
de Lisboa. Foi do Rio que o espanhol Pablo Rosquellas reuniu uma companhia para apresentar<br />
as primeiras óperas italianas em Buenos Aires, em 1825 (Gesualdo, 1962; Bourligueux,<br />
1992). E foi também do Rio que, alguns anos mais tarde, outra companhia, liderada<br />
por Domenico Pizzoni, iniciaria sua circunavegação do globo, trazendo a ópera italiana<br />
para as recém-independentes Montevidéu, Santiago e Lima, perfazendo a rota nesta sequência,<br />
e, eventualmente, alcançando lugares além das Américas ainda não conquistados<br />
pela ópera na primeira metade daquele século. 4 Significativo começo, sem dúvida, mas<br />
nada comparável à explosão da ópera e casas de ópera na Europa, inclusive na própria<br />
Itália.<br />
A ideia de globalização, entretanto, traz em seu bojo um conjunto de ideias sobre<br />
a liberalização do comércio e redes de comunicação que pode parecer envolver a ópera<br />
apenas tangencialmente. No entanto, é notável que em sua recente pesquisa panorâmica<br />
do século XIX, o historiador da globalização Jürgen Osterhammel (2009, p. 28) não só<br />
destaque a ópera como a forma de arte característica da época, mas também chame a<br />
atenção para o fato de que, em suas palavras, “a ópera globalizou-se precocemente”. Essa<br />
precocidade é uma qualidade relativa, é claro, e no debate em curso sobre os princípios<br />
da globalização está bem delineada nos títulos dos capítulos centrais de um livro recente<br />
sobre “A globalização na história do mundo” por Peter N. Stearns (2010): “1000 da era<br />
cristã como o ponto de viragem: o nascimento da globalização?”; “1500 como o ponto de<br />
viragem: o nascimento da globalização?”, “a década de 1850 como o ponto de viragem: o<br />
nascimento da globalização?”<br />
...........................................................................<br />
2 Tal figura é inevitavelmente aproximada, dada a dificuldade de coleta de dados; a principal fonte de Gabbaccia<br />
provém das biografias em Imperatori, 1956.<br />
3 Sobre a turnê Galli para o México, 1831-1835, ver Vogeley, 1996 e Reyes de la Maza, 1969. Sobre Montresor e<br />
Brichta, ver Preston, 1993, cap. 3.<br />
4 A companhia não executou nenhuma ópera completa em Montevidéu, mas ofereceu trechos de óperas de<br />
Rossini, em 1829 e 1830 (ver Ayestarán, 1953, p. 303 e ss.), pois, em seguida, apareceram em Santiago, em<br />
1830-1831, e em Lima, em 1831-1832, antes de ir para Macau, na China.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
33<br />
Fiquemos com o último desses referenciais, por razões óbvias – o que nos termos<br />
de Stearns não seria de modo algum muito recuado temporalmente. A ópera posterior a<br />
1850 se encaixa suficientemente bem no relato da crescente integração global facilitada<br />
pelo desenvolvimento dos meios de transporte, especialmente os navios a vapor, e pela<br />
comunicação rápida possibilitada pelo telégrafo. Contudo, em resposta à observação de<br />
Osterhammel, quero considerar a possibilidade de que as viagens das décadas de 1820,<br />
1830 e 1840 criaram uma ideia antecipada de ópera global, baseada mormente no que<br />
Roland Robertson chamou de “uma intensificação da consciência do mundo como um<br />
todo” (Robertson, 1992, p. 8). Essa variante anterior, eu diria tão importante e merecedora<br />
de tanta atenção quanto o circuito de ópera movido pelos navios a vapor que se desenvolveria<br />
mais tarde no mesmo século; na verdade é uma parte geradora da história posterior.<br />
Nesse contexto, a viagem daquela companhia de ópera, robustamente composta<br />
por 70 membros, para Havana não se revela apenas algo maravilhoso por si só; tão notável<br />
foi o fato que a turnê foi relatada em um dos principais periódicos alemães de música<br />
como parte de uma excursão de “ópera italiana”. O jornalismo ajudou a mapear e, assim,<br />
dar existência ao crescente âmbito da ópera na medida em que ela se disseminou ao<br />
redor do globo, de tal modo que as estatísticas sobre o número de intérpretes deixam evidentemente<br />
de indicar. E, como resultado, a própria ópera italiana é transformada, ao receber<br />
um novo conjunto de contextos e significados como uma ideia global.<br />
Aplicar a concepção de ópera global a 20 ou 30 anos atrás, é mover a sua origem<br />
da modernidade tecnológica do navio a vapor para a modernidade mais cataclísmica das<br />
guerras napoleônicas e suas consequências, quer sob a forma de chegada da corte portuguesa<br />
ao Rio ou as guerras de independência que ocorreram em diversas partes do<br />
continente americano. Tal reformulação serve ainda para separar decisivamente a ópera<br />
globalizada das grandes levas de emigração italiana para as Américas, que ocorrerão no<br />
final do século: mais de sete milhões de pessoas, entre 1876 e 1914. Por essa época, e<br />
paralelamente ao seu apelo tradicional de elite, a ópera italiana tinha garantido um contexto<br />
já preparado da diáspora italiana, dulcificado pela nostalgia da pátria. Estimativas<br />
sobre a emigração na primeira metade do século são mais difíceis de encontrar, mas no<br />
caso da América do Sul, os italianos foram, sem dúvida, superados numericamente por<br />
grupos de outras nacionalidades, o que resulta em que a ópera italiana durante as décadas<br />
de 1820 e 1830 certamente não era um produto ligado a qualquer concepção de origem<br />
nacional e muito menos a um público definido nacionalmente.<br />
Voltando-se para um caso específico pode-se esclarecer esse ponto: Woodbine<br />
Parish, o britânico encarregado dos negócios em Buenos Aires no momento da primeira<br />
mania operática naquela cidade, durante os últimos anos da década de 1820, estimava<br />
que, em 1832, de uma população total de 81 mil habitantes na cidade, 15 a 20 mil eram<br />
estrangeiros – vale dizer, da Europa ou da América do Norte – e que dois terços destes<br />
eram britânicos e franceses (1839, p. 30). 5 Como resultado, a ópera italiana – cantada por<br />
uma mistura de cantores italianos, espanhóis e argentinos – era oferecida para uma<br />
audiência visivelmente composta pela elite local governante e pelos ricos comerciantes<br />
do norte da Europa. Para esses grupos, a ópera se denotava tão europeia – uma reminiscência<br />
da ópera em Paris ou Londres para os comerciantes e, de uma forma diferente,<br />
para os argentinos também – quanto qualquer outro produto do norte da Europa a ser<br />
emparelhado com demais bens importados de luxo, moda e misteres da época. “As pessoas<br />
de Buenos Aires”, escreveu um viajante, “estão fazendo rápidos avanços ao copiar os bri-<br />
...........................................................................<br />
5 Sobre uma história mais ampla da emigração italiana para a Argentina, ver Devoto, 2006.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
34<br />
tânicos, tanto no seu mobiliário e na decoração de suas casas como nas atrações da mesa”<br />
(Andrews, 1827, vol. 1, p. 19). Ao assistir à ópera, o mesmo autor observou isso como “o<br />
espelho, em cada país, da moda e do gosto em voga” (p. 17), e os públicos locais em Buenos<br />
Aires parecem tê-lo visto do mesmo modo: um espelho faceado firmemente para o<br />
Nordeste, através do Atlântico.<br />
Sem dúvida, é tão problemático generalizar sobre esse público de Buenos Aires<br />
como qualquer outro. Entretanto, é evidente que a ópera foi tomando forma ali, como no<br />
resto do continente, em uma nova esfera pública, após a independência, promovida pela<br />
explosão da imprensa jornalística. 6 E nesse contexto a ópera servia tipicamente como<br />
marca não apenas da “civilização” como também mais especificamente de um conjunto<br />
alternativo de valores estéticos e éticos ao domínio espanhol anterior. A alta cultura da<br />
ópera italiana poderia, portanto, ser colocada em clara oposição às sainetes e tonadillas<br />
espanholas, herdadas de épocas anteriores, que foram repetidamente condenadas pelo<br />
jornal governista, o Argos de Buenos Aires, como indecentes e maçantes (ver, por exemplo,<br />
a crítica teatral de 12 de outubro de 1825). Como resultado, a ópera tornou-se circunscrita<br />
a certos quadrantes dentro de uma busca mais ampla de civilização europeia não espanhola,<br />
de maneira a tornar praticamente irrelevante qualquer qualidade especificamente<br />
italiana.<br />
As primeiras representações de Rossini em Buenos Aires, por exemplo, foram<br />
em concerto, em outubro de 1822, pelo adolescente compositor argentino Juan Pedro de<br />
Esnaola, recém-retornado de Paris; e seu desempenho foi comentado na Argos (5 de<br />
outubro de 1822) nos seguintes termos:<br />
Todos os presentes deram uma prova indiscutível de seu bom gosto no prazer e<br />
profundo silêncio com que ouviram as diferentes peças sublimes de música vocal<br />
e instrumental. O auditório aplaudiu particularmente o jovem D. Juan Pedro<br />
Esnaola pelo brilho de sua execução de várias composições difíceis para voz e<br />
piano. 7<br />
Em outras palavras, as peças importavam menos que a negociação de dificuldade<br />
por um premiado músico local e a exibição de decoro da audiência. Se isso também soa<br />
como se a revista tivesse sido escrita com olhar para além do público local, isso é confirmado<br />
pelos objetivos proferidos pela organização responsável por Argos, a Sociedade Literária<br />
de Buenos Aires: “dar conhecimento às nações estrangeiras do estado do país e de seu progresso,<br />
difundir a ilustração e organizar a opinião” (apud Shumway, 1991, p. 87).<br />
Abordei em outro estudo como esses primeiros anos da ópera italiana em Buenos<br />
Aires se ajustam ao grandiloquente sonho de civilização do primeiro presidente do país,<br />
Bernardino Rivadavia. De maior interesse aqui, entretanto, é a maneira com que a recepção<br />
da ópera italiana se tornou partícipe ao projeto de levar a cidade a uma fantasia de<br />
civilização global e, ao mesmo tempo, deixou qualquer ideia de “Itália” mais ou menos<br />
velada. O mesmo pensamento pode ser reformulado de uma maneira diferente: na<br />
...........................................................................<br />
6 Discordâncias sobre o papel do jornalismo impresso na formação da esfera pública na pós-independência da<br />
América do Sul continuam a ressoar na esteira de Comunidades Imaginadas, de Benedict Anderson; ver, por<br />
exemplo, Uribe-Uran, 2000 e Guerra, 2003. No caso da ópera, no entanto, é difícil separar a chegada das companhias<br />
itinerantes da circulação dos jornais da pós-independência, tanto dentro como além dos centros urbanos<br />
específicos.<br />
7 “Todos los concurentes dieron pruebas indudables de su buen gusto en el placer y profundo silencio con que<br />
escucharon diferentes piezas sublimes de música vocal y instrumental. El auditorio aplaudió particularmente al<br />
jóven D. Juan Pedro Esnaola por la brillantez con que desempeñó varias composiciones difíciles de canto y piano”,<br />
em tradução livre.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
35<br />
ausência de qualquer concepção particular da Itália na América do Sul, naquela época, a<br />
ópera italiana em si viria para preencher essa lacuna. Garantido o prestígio por meio de<br />
performances em Paris ou Londres, a ópera veio a substituir uma ideia de Itália ou a constituir<br />
a personificação de uma espécie de italianità que não seria disponível de nenhuma<br />
outra forma.<br />
A presença de um contingente europeu entre esse público de ópera, por sua<br />
vez, significava que o ideal fantástico da ópera italiana conjecturado em algumas dessas<br />
primeiras críticas também poderia ser alcançado com bastante facilidade. Para cada comentário<br />
como aquele encontrado no periódico de Buenos Aires, El Centinela (2 de março<br />
de 1823), sobre uma apresentação de excertos do Barbeiro de Sevilha, de Rossini, pela<br />
companhia Rosquellas – “finalmente temos ouvido alguma coisa em Buenos Aires que se<br />
aproxima da perfeição no canto e que dá uma ideia completa da beleza da música italiana” 8<br />
– há uma falsa alternativa de um viajante europeu, como a de que o teatro em Buenos<br />
Aires “pode ser colocado em pé de igualdade com um dos estabelecimentos mais inferiores<br />
de Londres” (De Bonelli, 1854, vol. 2, p. 312); ou que no mesmo local “os artistas estavam,<br />
talvez, um pouco acima da mediocridade” (Andrews, 1827, p. 17); e mesmo, desta vez sobre<br />
o Rio, em 1828, que “uma detestável companhia italiana, com uma orquestra ainda mais<br />
execrável, assassinava Rossini três vezes por semana” (Jacquemont, 1835, vol. 1, p. 70).<br />
Em ambas as cidades – as duas mais importantes em termos de ópera ao sul de<br />
Havana – um meio termo entre os dois extremos retóricos pode ser rastreado na leitura<br />
dos jornais locais direcionados principalmente para os comerciantes ingleses ou franceses,<br />
ao lado de notícias – incluindo notícias de ópera – de sua terra. Frequentemente contextualizariam<br />
apresentações através da referência a cantores em Londres ou Paris, e mesmo<br />
na Itália, mas normalmente viriam em defesa da experiência local. O crítico do jornal<br />
francês publicado no Rio, L’Indépendant, por exemplo, escreveu, em 28 abril de 1827,<br />
reconhecendo que a voz do então principal tenor Victor Isotta carecia de força e flexibilidade,<br />
mas ponderou, “nós também sabemos que, se a voz de Isotta […] pudesse acrescentar<br />
força e flexibilidade ao seu timbre encantador, ele estaria cantando em La Fenice<br />
ou em La Scala; portanto, quedamo-nos satisfeitos”. 9<br />
Seria simplista colocar essas avaliações muito rigidamente em um continuum<br />
do real ao fantástico; e seria tão falso sugerir que os críticos locais nunca teriam sido rígidos<br />
sobre a qualidade das apresentações quanto sugerir que os visitantes não ficaram,<br />
por vezes, notavelmente impressionados. Contudo, tomadas coletivamente em seus padrões<br />
relativamente previsíveis, torna-se claro que para além de qualquer opinião específica<br />
expressa por um crítico particular, a importância dessas declarações impressas<br />
reside ainda na confirmação da existência da ópera em um determinado local, seja bom<br />
ou ruim. Afinal, dispor de uma casa de ópera de segunda categoria ainda constituía um<br />
vínculo junto ao circuito mais amplo da ópera. Dito de outra forma, a realidade potencialmente<br />
decepcionante da ópera italiana no século XIX sempre pareceu reter os contornos<br />
de sua fantasia norteadora, quer seja em relação à participação na civilização global,<br />
para a imaginação do cantar perfeito, ou uma ainda mais vaga e mais fluida qualidade<br />
italiana, do tipo que pairou nesse relato de um viajante para Lima no início dos anos 1830<br />
(Ruschenberger, 1835, vol. 2, p. 94):<br />
...........................................................................<br />
8 “Por fin hémos oido en BA algo que se aproxîma á la perfeccion del canto, y que dá una idéa completa de la<br />
belleza de la música italiana”, em tradução livre.<br />
9 “[…] nous savons aussi qui se la voix d’Isotta … unissait à son timbre délicieux la force et la flexibilité, Isotta<br />
chanterait à la Phenice ou à la Scala, et nous ici, nous prenons le parti d’en être satisfaits”, em tradução livre.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
36<br />
A Companhia de Ópera Italiana, que de lá partiu em 1832, difundiu um gosto<br />
quase universal pela música italiana; e agora cada jovem sintonizado com a moda<br />
canta e toca as melhores peças de Rossini e Paccini [sic], e muitos aprenderam a<br />
ler italiano.<br />
Corro o risco aqui de mistificar a indefinição da “italianidade” na ópera da<br />
América do Sul mais do que seria credível. Já na década de 1820, havia exilados italianos<br />
em posições de influência em Buenos Aires e em outros lugares, 10 e certamente com o<br />
passar do tempo vários escritores se esforçaram para educar seus públicos sobre o<br />
embasamento da música ouvida na casa da ópera de várias maneiras, seja pela publicação<br />
de extratos de Vie de Rossini, de Stendhal, ou, no tempo em que a companhia de Brichta<br />
chegava a Havana, no final da década de 1830, por meio da exploração das diferenças<br />
entre Rossini, querido dos anos 1820, e outros compositores.<br />
No pólo oposto de tais discussões estava, geralmente, o mais jovem<br />
contemporâneo de Rossini, Vincenzo Bellini, e cada um tinha seus partidários. No primeiro<br />
periódico musical da Argentina, o Boletín Musical (1837), por exemplo, Bellini, em geral,<br />
tinha vantagem e recebia elogios por suas qualidades românticas numa linguagem que o<br />
associava intimamente à melancolia estética da “Joven Generación” argentina, o grupo<br />
político e literário formado em oposição à ditadura populista pós-rivadaviana de Manuel<br />
de Rosas. 11 Enquanto isso, em Montevidéu, local escolhido como exílio para muitas figuraschave<br />
da Generación, o jornal El Iniciador publicou um artigo em 1º de agosto de 1838<br />
(“Bellini em face de Rossini”) que associava o revolucionário Rossini diretamente à excitação<br />
da era napoleônica, mas que, mais de uma vez, celebrou os arroubos angelicais de Bellini<br />
como autêntico sucessor de Rossini. O artigo foi escrito por Miguel Cané, ele mesmo um<br />
argentino que se mudou para Montevidéu em 1835, e um dos editores do jornal. E as<br />
respectivas caracterizações eram familiares o suficiente, mas não deixaram de servir para<br />
lançar uma luz interessante para um artigo publicado anteriormente no Boletín, de 17 de<br />
setembro de 1837, sobre “o gosto musical de Napoleão”, que termina com uma nota prórossiniana:<br />
Nós também, como o primeiro cônsul, e como o povo, amamos a música monótona,<br />
isto é, a música simples no canto e no acompanhamento. Pelo que amamos<br />
a música de Rossini acima de todas as músicas: é a gloriosa música do<br />
povo e este título o coloca acima de todos os músicos do mundo. 12<br />
Tais posições diferentes podem parecer não mais do que uma postura artística,<br />
ecoando debates franceses e italianos do início da década. E mais ainda desde que um<br />
artigo comparando os dois compositores em El Iniciador apareceu em resposta a um artigo<br />
anterior (3 de março de 1838), sob o mesmo título, no La Moda (sucessor do Boletín)<br />
de Buenos Aires, que havia sugerido que Bellini nunca escapara à sombra de Rossini. As<br />
duas revistas compartilhavam vários autores e pode-se facilmente traduzir esses artigos<br />
...........................................................................<br />
10 Ver, por exemplo, Pietro [Pedro] de Angelis, levado a Buenos Aires por Rivadavia, e editor de ambos Crónica<br />
Política y Literária de Buenos Aires (1827) e El Lucero (1829–1832), ambos distribuem notícias da Europa sobre<br />
Rossini.<br />
11 Sobre o lugar de Bellini no Boletín e as possíveis ligações entre a revista e o Generación, ver o excelente ensaio<br />
introdutório à edição fac-símile da revista (Plesch, 2006, p. 25ff). Sobre o Generación, ver particularmente<br />
Shumway, 1991, caps. 5 e 6.<br />
12 “Nosotros tambien, como el primer Cónsul, y como el pueblo, amamos la música monotona; es decir la música<br />
simple en el canto como en el acompañamiento. Por lo cual amamos la música de Rossini sobre todas las músicas:<br />
es el glorioso músico del pueblo, y este título lo realza sobre todos los músicos del mundo”, em tradução<br />
livre.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
37<br />
como expressões públicas do debate em curso, repetindo argumentos semelhantes da<br />
França ou Itália do início da década. 13<br />
No entanto, dado o clima da época, não é necessário ler muito nas entrelinhas<br />
para perceber, no final da década de 1830, como o popular Rossini da era napoleônica<br />
também pôde se mover facilmente para o papel de um Rossini do regime argentino<br />
opressivamente populista, para ser então rejeitado por Cané em El Iniciador através da<br />
imagem de um Bellini mais irreal. O mesmo tipo de segmentação podia ser visto nas<br />
apresentações musicais: Bellini era conhecido principalmente através de excertos<br />
impressos no Boletín ou La Moda destinados às apresentações semiprivadas dos salões; 14<br />
Rossini mantivera o seu lugar, ao longo dos anos 1830, no repertório padrão das<br />
apresentações públicas das bandas militares de Buenos Aires, tendo os motes musicais<br />
do Tancredi ou de A Italiana a acompanhar os incontáveis desfiles e festivais vespertinos<br />
(Plesch, 1999).<br />
Para dar um único e eloquente exemplo: em março de 1839, exatamente no<br />
momento em que o Uruguai declarou guerra contra o regime argentino, apoiado pelo<br />
governo no exílio em Montevidéu, Rosas retornou a sua residência em Buenos Aires.<br />
Uma multidão de cerca de uma centena de pessoas apareceu para dar as boas vindas,<br />
empurraram um piano até o local e fizeram uma serenata ao seu líder por uma hora ou<br />
mais, primeiro com o hino nacional e com slogans desejando a morte do líder uruguaio,<br />
Fructuoso Rivera, antes de romper no dueto do segundo ato de Tancredi de Rossini, “Ah si<br />
de mali miei”, seguido por um dueto de L’Italiana e uma variedade de outras canções, algumas<br />
operísticas e outras não (British Packet, 13 de março de 1839). Poucas semanas<br />
depois, na Sexta-Feira Santa, as bandas da Marinha e da Guarda da Argentina se reuniram<br />
na ponte levadiça do forte no centro da cidade para tocar mais trechos de Tancredi para<br />
milhares de habitantes da cidade reunidos, antes que quatro bonecos de Judas em trajes<br />
militares fossem suspensos na forca e esquartejados. Em seguida os marinheiros marcharam<br />
até a Praça da Vitória e continuaram a tocar enquanto outro boneco de Judas em<br />
uma gaiola foi dilacerado por moleques de rua (British Packet, 13 de abril de 1839).<br />
Não é fácil estabelecer qualquer associação direta; e ao longo de toda a década<br />
de 1830 Rossini se manteve como o compositor mais tocado no teatro de Montevidéu.<br />
Enquanto isso, as óperas de Bellini permaneceram não encenadas e, portanto, em grande<br />
parte, imaginadas; embora segmentos individuais fossem realizados no palco por membros<br />
da família italiana Piacentini, que havia chegado em Montevidéu alguns anos antes como<br />
uma trupe composta por pai e três filhas. 15 Então, com o surto da guerra em 1839 – que<br />
iria durar mais de uma década – a encenação de óperas em Montevidéu passou por um<br />
período mais ou menos inativo (como já acontecera em Buenos Aires alguns anos antes),<br />
até que um novo repertório chegasse na década de 1850, incluindo representações<br />
completas de várias óperas de Bellini.<br />
Foi durante esse mesmo período negro da década de 1840, no entanto, que<br />
grandes planos foram elaborados para uma nova casa de ópera em Montevidéu, finalmente<br />
inaugurada em 1856, o Teatro Solís, que ainda hoje está de pé. 16 O projeto da casa atenta<br />
para a sua posição simbólica entre as áreas antigas e novas da capital e também à sua<br />
superioridade sobre qualquer outra casa de ópera do continente; caracteristicamente,<br />
...........................................................................<br />
13 O primeiro artigo no Boletín (28 de agosto de 1837) reimprimiu parte de um trecho do parisiense Revue des<br />
Deux Mondes, intitulado “Rossini y Bellini”.<br />
14 O Boletín incluiu uma série de “cuadrillas del Pirata (de Bellini)” em 7 de outubro de 1837; La Moda imprimiu,<br />
tanto uma valsa para piano sobre um “motivo de Bellini”, como também um minueto por Esnaola “à la Bellini”.<br />
15 Ver, por exemplo, o concerto benefício de Justina Piacentini em 26 de setembro de 1836, que incluiu “Casta diva”.<br />
16 Sobre a história do Teatro Solís, ver Salgado, 2003.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
38<br />
isso é articulado explicitamente na descrição constante no manuscrito dos planos do<br />
arquiteto imaginando a visão do teatro visto por um viajante, recém-chegado à cidade,<br />
talvez ao desembarcar provindo de Londres ou Paris – Montevidéu mais uma vez como<br />
parte da civilização global (Antonio, 1841, p. 10). E a dimensão do edifício foi igualmente<br />
ambiciosa, com capacidade para mais de 1.500 pessoas ou, dependendo da estimativa,<br />
algo entre 1/12 e 1/25 de toda a população da cidade. 17<br />
Talvez, os cálculos tenham sido simplesmente realistas: no momento em que<br />
esses planos foram elaborados em 1841, a população de Montevidéu havia mais do que<br />
quadruplicado em uma década e esse aumento foi, em parte, devido à chegada de um<br />
grande número de imigrantes italianos. Entre eles se incluíam alguns trabalhadores, mas<br />
também trabalhadores qualificados, como o arquiteto do próprio Solís, Carlo Zucchi, e a<br />
família Piacentini, juntamente com exilados políticos, como Giovanni Battista Cuneo –<br />
envolvidos com El Iniciador – e Giuseppe Garibaldi, que tinha chegado em 1837 do Rio de<br />
Janeiro e formou fortes alianças com os exilados argentinos. Ambos Cuneo e Garibaldi se<br />
envolveram na guerra; o afamado Garibaldi formando a sua Legião Italiana, e levando-a<br />
para a batalha contra as tropas de Rosas. Como resultado, a campanha uruguaia se tornou<br />
uma causa célebre para os liberais europeus, gerando panfletos ao gosto de Alexandre<br />
Dumas (1850). Lucy Riall também sugeriu (2007, p. 42) que a crença de Garibaldi no<br />
significado da escrita biográfica e do jornalismo polêmico pode ter-se originado<br />
diretamente de seus contatos com os exilados argentinos. Certamente a publicidade de<br />
seu sucesso militar no Uruguai se deu em grande parte através da reportagem jornalística<br />
de Cuneo, a ponto de que, nas palavras de Riall, “o heroísmo de Garibaldi e a Legião<br />
Italiana como um todo foi identificado com italianità” (p. 45).<br />
É uma ligação mais concreta entre um determinado conjunto de valores e uma<br />
noção de “italianidade” do que qualquer coisa que ofereci até agora em relação à música.<br />
E não há dúvida de que os europeus davam mais atenção aos jornais de notícias sobre as<br />
façanhas de Garibaldi do que às histórias de viagens de cantores de ópera italiana, ainda<br />
que maravilhosas. No entanto, é difícil resistir à suposição de que uma legião italiana de<br />
Garibaldi também deveria ter a sua própria banda militar e que ela talvez também tenha<br />
tocado Rossini. Difícil também, a partir desse ponto de vista, duvidar se já não havia algo<br />
de marcial codificado na música, na medida em que tinha extrapolado as casas de ópera<br />
e entrado nos quartéis de Buenos Aires ou Montevidéu, assim como os ouvintes de Rossini<br />
na Itália e na França já haviam reconhecido, logo de início, os sons das bandas militares<br />
napoleônicas penetrando as casas de ópera.<br />
Aqui devemos fazer uma pausa teórica. Primeiro, porque ao buscar elidir a música<br />
com a nova italianidade garibaldiana, repentinamente nos damos conta de que estamos<br />
fazendo ressurgir aquela fantasia trivial do historiador da ópera: a união da música e do<br />
heroísmo, a ópera como trilha sonora para a ação patriótica. E nós estamos, afinal, à<br />
beira da década de 1840, com todas as tentações de coros patrióticos de Verdi e do Risorgimento.<br />
Também quero fazer aqui uma pausa cautelosa porque tal elisão é apenas um<br />
truque de prestidigitação: a partir das bandas documentadas de Rosas para uma banda<br />
imaginária de Garibaldi. Qualquer que fosse o repertório executado pela banda de Garibaldi,<br />
a música de Rossini havia se tornado nessa época também a música da Argentina,<br />
e da Argentina de Rosas, totalmente contra toda e qualquer missão rivadaviana civilizadora<br />
e eurófila. Ao tornar-se global, em outras palavras, a ópera italiana também havia se<br />
...........................................................................<br />
17 Esse cálculo é complicado pela variedade de diferentes estimativas da população de Montevidéu nesse momento.<br />
Muitas fontes impressas contemporâneas sugerem uma estimativa entre 10 a 18 mil, mas um estudo<br />
mais detalhado, de 1843, sugeriu que havia 40 mil pessoas na cidade, 6 mil das quais eram italianos (ver Devoto,<br />
2006, p. 32 e nota 13 anterior).<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
39<br />
tornado recentemente nacional, enquanto a natureza de suas possibilidades e significados<br />
acabou por ser tão mutável como sempre foi.<br />
O que foi feito das outras fantasias operísticas alternativas? Na América Latina,<br />
pelo menos, o fascínio belliniano continuou, por mais tempo do que em outros lugares, e<br />
de maneiras interessantes. Em certa medida, porém, a aproximação da era dos navios a<br />
vapor, da comunicação mais rápida e de maior migração a partir de 1850 traz consigo as<br />
preocupações familiares da globalização e, de certo modo em extinção, com o espaço<br />
para contestar as ideias de italianità encolhendo rapidamente. Alternativamente, podese<br />
dizer que quando da mudança daquela era para o mundo pós-1850, como no caso de<br />
Garibaldi no Uruguai, as fantasias rossiniana e belliniana completaram o seu efeito e poderiam<br />
logo dar lugar a um novo conjunto de imaginações por volta dos anos 1860, diretamente<br />
da nova nação italiana, que poderia então ser levada mundo afora, particularmente<br />
pelas ondas de emigrantes que também fugiram da Itália real na década de<br />
1880 e 1890 e buscaram, mais uma vez, cantores de ópera para lhes cantar, a milhares de<br />
quilômetros de distância.<br />
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Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
Viaggi dell’opera verso il Rio de la Plata<br />
in tempi di migrazioni<br />
41<br />
Annibale Cetrangolo<br />
Università Ca’Foscari, Venezia<br />
Una premessa<br />
La diffusione dell’opera nella società di Buenos Aires determinò che quello lirico<br />
fosse l’ideale culturale egemone della comunità. Il melodramma, durante la rifondazione<br />
della società rioplatense, fu investito di una funzione extramusicale.<br />
Al di là del piacere estetico, la classe dirigente ebbe perfetta coscienza che l’opera<br />
era rito civile utile a conseguire la coesione interna e imprescindibile per la degna rappresentazione<br />
esteriore del paese. Il genere si associò comunque con Italia, il luogo di provenienza<br />
della maggior parte degli stranieri che arrivavano in Argentina.<br />
Le difficoltà di appropriarsi del genere da parte dell’elite di potere coincise, intorno<br />
al 1910, con una visione meno cordiale dello straniero. Il migrante italiano, specificamente,<br />
che prima era considerato elemento essenziale per il progresso del paese, fu bollato di<br />
arretrato invasore dell’ambito urbano. Si rimproverò agli stranieri di essere ingrati con la<br />
terra che gli accoglieva mentre si costatava che, malgrado tutto, quei contadini arrivati<br />
continuavano ad essere i proprietari di emblemi culturali invidiati come l’opera. Il melodramma<br />
fu per ciò un altro dei terreni di battaglia. Pari passo che si sospettavano le difficoltà<br />
di argentinizzare il genere lirico, si cominciava a capire, rassegnati, che il progetto di europeizzare<br />
il paese era in salita: non bastava vendere mucche per accedere gli oggetti pregiati. La<br />
frenesia che gli argentini impegnarono nell’intento di appropriazioni di oggetti culturali<br />
stranieri investiti di prestigio come l’opera e la risentita delusione provata al capire l’impossibilità<br />
di tale impresa portò al rifiuto del melodramma e dei suoi agenti. Tanta passione<br />
mostra l’importanza che acquistano gli oggetti muniti di valore rappresentativo nella contingenza<br />
dell’accoglienza e del rifiuto delle culture.<br />
Anche in Brasile<br />
Il Brasile, di forma analoga ai vicini del Rio de la Plata, ricevette ingenti flussi<br />
migratori provenienti dall’Europa e dell’Italia in particolar modo. Questo fenomeno comune<br />
a queste nazioni atlantiche del Sudamerica, si articola, però, in territori con storie diverse.<br />
Risulta di grande utilità il confronto di questi diversi sviluppi, tale operazione permetterà<br />
di arrivare ad interpretazioni più raffinate delle attuali. L’apparenza mostra a chiara luce le<br />
analogie: anche a Rio il melodramma fu considerato come viatico imprescindibile per<br />
l’appartenenza al “mondo civile”. Scrive Rogerio Budasz che il teatro d’opera a Rio fu<br />
legittimato dalla corte Bragança come scuola di civiltà e risultò nelle mani del potere,<br />
addirittura strumento di propaganda politica. 1 E, se scuola doveva essere, l’insegnamento<br />
...........................................................................<br />
1 Budasz, R. Teatro e Música na América Portuguesa. Ópera e teatro musical no Brasil (1700-1822). Convenções,<br />
repertório, gênero e poder, Deartes Ufpr, p. 181.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
42<br />
tecnico del mettier acquistava un’importanza che il palazzo non poteva trascurare. Come<br />
in Argentina e in tanti altri luoghi del globo, anche in Brasile la promozione degli stili<br />
europei in campo musicale si articolarono con i tentativi nazionalisti di appropriazione<br />
del genere. Sempre Budasz indica che in Brasile si alternarono i vettori di stimolo ai modelli<br />
didattici europei – nel 1843 già funzionava un conservatorio che rispettava quei paradigmi<br />
– con prove di timida brasilianizzazione del genere. Infatti, essendo l’opera spettacolo<br />
politico “não tardaria muito até que aparecessem compositores sintoniçados com as açoes<br />
ao mesmo tempo modernizantes e nacionalistas de dom Pedro II, que se envolvessem no<br />
projeto de criação de uma ópera nacional”. I fenomeni brasiliano e argentino si mostrano<br />
analoghi: per decenni i compositori rioplatensi impegnati nella composizione di opere su<br />
temi storici o nativisti lo faranno su testi e convenzioni melodrammatiche italiani e anche<br />
il tentativo brasiliano vorrà essere nazionale “mas não excessivamente nacional”. 2 Le azioni<br />
degli intelettuali brasiliani che accompagnarono queste operazioni liriche furono molto<br />
simili a quelle dei colleghi argentini. In Brasile si elaborarono miti fondatori intorno ad<br />
alcuni compositori e si determinarono parametri per misurare una “brasilidade” in funzione<br />
di certe tematiche, di certi paessaggi e dell’accoglienza di certe musiche tradizionali. 3 .<br />
Anche in Brasile, come in Argentina e altrove, il prodotto lirico non doveva essere, nota<br />
sempre Budasz, “eccesivamente nazionale”, cioè non eccesivamente diverso del modello.<br />
Era necessario, cioè, che quelle opere potessero presentarsi in Europa come parenti dei<br />
melodrammi parigini o milanesi; parenti venuti dalla campagna forse, ma parenti dopo<br />
tutto. La solita forma e i suoi derivati, l’articolazione scenica, la “posizione”, la misura e<br />
l’accento del verso e addirittura, in tanti casi, la lingua italiana, assicuravano un saldo<br />
substrato condiviso con il modello europeo capace di soportare senza sussulti le pittoresche<br />
variazioni al tema che tanto anelavano i nazionalisti.<br />
Tutti questi sviluppi ribadiscono tante caratteristiche comuni degli sviluppi argentino<br />
e brasiliano, ma ci sono, come si annotò prima, differenze di sostanza: in Brasile<br />
l’opera ricevete quell’investitura politica che ho descritto, da un impero e non da una repubblica<br />
liberale. Quella repubblica rioplatense era, come le altre ispanoamericane, tanto<br />
bramosa di allontanarsi culturalmente della vecchia metropoli coloniale quanto precaria<br />
istituzionalmente. Questo segna sostanziali differenze già in partenza col Brasile: in quei<br />
poveri teatri, a dispetto dell’ingenuo orgoglio con il quale oggi si presentano, le primizie<br />
rossiniane furono qualche sparuto Barbiere di Siviglia o L’Italiana in Algeri rappresentati<br />
appena nel 1825. Che differenza con Rio! La corte Bragança, prima di quella data aveva<br />
mostrato nella sua nuova sede Tancredi, Aureliano in Palmira, Il Barbiere, L’Italiana in<br />
Algeri, Elisabetta, Regina d’Inghilterra, Adelaide di Borgogna, L’Inganno felice. 4 Negli<br />
anni successivi Berlioz penserà seriamente di trasferirsi a Rio e lo stesso Wagner fu invitato<br />
all’impero.<br />
Per i brasiliani, inoltre, Lisbona rappresenta emblema ben diverso che Madrid<br />
per gli argentini. Per i nazionalisti come Ricardo Rojas o Leopoldo Lugones la Patria si costruisce<br />
contro gli stranieri ma non contro gli spagnoli in un’operazione carica di tensioni e<br />
veemenze. Riconoscere un continuum luso brasiliano per certi studiosi brasiliani, invece,<br />
risulta riflessione matura e serena che muove da un punto di partenza assolutamente<br />
diverso, forse opposto, “menos ufanista”, quello di riconoscere “práticas e experiências<br />
comuns, permutas transformações, adaptações e readaptações”. 5<br />
...........................................................................<br />
2 Budasz, R., op. cit., p. 183.<br />
3 Budasz, R., op. cit., p. 113.<br />
4 Budasz, R., op. cit., p. 10.<br />
5 Budasz, R., op. cit., p. 113.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
43<br />
Per concludere, anche le distanze che l’intellighenzia brasiliana prenderà rispetto<br />
all’opera italiana nel ‘900 risulteranno da motivazioni molto diverse rispetto agli analoghi<br />
rifiuti del quartiere aristocratico di Buenos Aires.<br />
Analogie e differenze dovranno mettersi a fuoco considerando non soltanto le<br />
istanze dell’Ottocento ma anche confrontando le situazioni precedenti, quelle che hanno<br />
legato le terre americane controllate dal Portogallo e dalla Spagna intorno alla circolazione<br />
del melodramma e dei suoi operatori.<br />
II Notizie e proposte<br />
Considero necessario includere in questo testo proposte operative giacché trovo<br />
irripetibile quest’occasione per comunicare con i colleghi del Brasile. È questa, infatti, la<br />
sede più adatta per poter dialogare e fondare delle collaborazioni tra la ricerca brasiliana<br />
ed il gruppo internazionale che rappresenta l’IMLA.<br />
1. Antecedenti<br />
Ai tempi della fondazione dell’IMLA, negli anni ‘80, assieme a Francisco Curt<br />
Lange abbiamo individuato un grave ostacolo che si poneva davanti allo studio delle<br />
migrazioni musicali europee verso l’America Latina durane il periodo coloniale, argomento<br />
che allora ci occupava. Era necessario per studiare il trapianto delle musiche europee<br />
oltreoceano, risolvere un problema a monte: l’assoluta precarietà che allora incombeva<br />
sui contatti scientifici tra studiosi spagnoli, italiani e portoghesi. Sebbene oggi, a pochi decenni<br />
di distanza risulti singolare, era frequente che un italiano studiasse la musica composta<br />
nella Napoli retta dai Borboni spagnoli con scarse informazioni sul mondo culturale<br />
iberico o, viceversa, che uno spagnolo analizzasse l’arrivo dell’opera a Madrid o Barcellona<br />
ignorando gli studi italiani sul melodramma del Settecento. Il Portogallo musicale, per<br />
conto suo era conosciuto malissimo in Italia: persone che sedevano su cattedre universitarie<br />
riuscirono a pubblicare edizioni critiche di melodrammi senza aver consultato gli esemplari<br />
di quelle opere che si conservano in fondi fondamentali come quello dell’Ajuda. Inoltre,<br />
dal punto di osservazione dell’Europa musicologica, salvo scarse eccezioni, occuparsi di<br />
musicologia storica latinoamericana durante l’Ancien Regime era attività segnata quasi<br />
da pittoreschismo. Ricordo in quel contesto, come una nostra speciale riuscita, l’aver festeggiato<br />
gli ottanta anni di Lange con il primo contatto istituzionale tra le musicologie di<br />
Portogallo, Spagna ed Italia: fu in occasione del Convegno su Domenico Zipoli che organizzò<br />
l’IMLA a Prato nel 1987.<br />
Successive preoccupazioni scientifiche dell’IMLA, focalizzate su quelle migrazioni<br />
di massa verso le Americhe che si verificarono tra la fine dell’Ottocento e l’inizio del Novecento,<br />
trovarono nel flessibile oggetto lirico una materia ideale per l’analisi delle migrazioni<br />
culturali. Il positivo sviluppo scientifico delle musicologie dei paesi mediterranei<br />
nel post franchismo e, soprattutto l’espansione degli studi migratori a tutti i rami delle<br />
scienze umane, hanno reso consapevoli gli addetti ai lavori dell’impossibilità di studiare<br />
fenomeni culturali così fluidi come i prodotti musicali senza considerare l’incidenza dei<br />
movimenti di persone e oggetti, nell’attualità illustri studiosi europei e nordamericani<br />
considerano imprescindibile lo studio dei movimenti dell’opera verso il Nuovo Mondo.<br />
Anni fa, John Rosselli dell’Università del Sussex considerò necessario l’esame degli archivi<br />
di Buenos Aires per scrivere i suoi fondamentali testi su impresari e cantanti lirici e in<br />
questa stessa sede, la presenza della massima autorità rossiniana, Philip Gossett, è la più<br />
contundente dimostrazione di quanto la più alta ricerca scientifica consideri lo studio dei<br />
fondi extraeuropei ineludibili per la comprensione della musica europea. Le brillanti<br />
scoperte di Benjamin Walton sugli itinerari dell’opera realizzati grazie all’attenta lettura di<br />
periodici conservati in fondi latinoamericani mostrano da parte sua quanto la ricerca locale<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
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abbia trascurato lo studio dei propri materiali in funzione di una provinciale considerazione<br />
dell’opera come genere subalterno.<br />
Nell’immediato futuro si presenta una nuova occasione di collaborazione intorno<br />
allo studio della ricezione dell’opera italiana nelle Americhe, scopo centrale della rete<br />
International Relationships between Italy and Iberoamerica (RIIA), uno study group<br />
dell’International Musicological Society che coordina l’IMLA. La Tavola Rotonda organizzata<br />
da quella nostra equipe durante il Convegno IMS di Zurigo del 2007 fu l’occasione di<br />
conoscere i colleghi brasiliani con i quali adesso condivido questa sede, tra i quali la Prof.<br />
Volpe, che devo ringraziare per la mia presenza qui. Il miglior risultato di questi sforzi sarebbe<br />
poter contare in una rappresentazione della musicologia brasiliana nella Tavola<br />
Rotonda dello study group, Roma 2012.<br />
A continuazione presento alcuni casi di ricerca lirica che ho intrapreso in questi<br />
anni e che mostro nella loro incompiutezza come occasioni e inviti alla necessaria collaborazione<br />
con gli studiosi brasiliani.<br />
2. Casi<br />
Alcuni esempi possono mostrare brevemente la necessità di questi studi in rete.<br />
Viggiano<br />
Grazie al confronto di testimonianze raccolte a Buenos Aires con documenti<br />
conservati nel porto della città argentina e nell’Archivio di Stato di Potenza ho potuto ricostruire<br />
il viaggio atlantico di musicisti di strada, tra i quali degli arpisti, provenienti anche<br />
dalla zona di Viggiano, in Basilicata. E’ stato così possibile dimostrare la presenza a Buenos<br />
Aires di quegli ambulanti che Roberto Leydi aveva indicato come importanti vie di penetrazione<br />
del melodramma e che Henri Malot aveva raccontato nel suo famosissimo romanzo<br />
Sans Famille.<br />
Ho trovato, infatti, che, negli ultimi anni dell’Ottocento, 428 musicanti della Regione<br />
Basilicata avevano richiesto il passaporto per migrare. Di questi, una percentuale<br />
altissima risiedeva a Viggiano e in paesi molto vicini come Marsico Vetere o Tramutola in<br />
una distribuzione che è la seguente:<br />
Mi domando quanti di loro avevano Buenos Aires come destinazione e se qualcuno<br />
è arrivato effettivamente nella città. Nei documenti argentini non è semplice identificare<br />
un’origine precisa: i documenti indicavano appena, e confusamente, la nazionalità<br />
e il porto d’imbarco, inoltre i migranti, un po’ per pudore e un po’ per farsi capire meglio,<br />
invece di menzionare il piccolo centro urbano di provenienza, indicavano all’ufficiale che<br />
li riceveva la regione di origine oppure il nome di qualche centro importante della zona<br />
d’origine. Ad ogni modo, tra 1892 e 1916, duecento nove persone fecero ingresso nel<br />
porto di Buenos Aires dichiarandosi “musicanti”. Quasi tutti erano viaggiatori che pro-<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
45<br />
venivano da porti italiani (143 da Genova e 14 da Napoli). Soltanto tre si erano imbarcati<br />
a Barcellona.<br />
Combinando i dati degli archivi europei con quelli sudamericani non sembra<br />
azzardato dedurre che anche a Buenos Aires approdarono ambulanti originari dalla zona<br />
di Viggiano. Certo è che se fosse possibile identificare quei viaggiatori come arpisti, i dubbi<br />
sarebbero minori ma le fonti non aiutano. I registri d’ingresso argentini quando registrano<br />
le professioni degli arrivati non scendono in particolari sul tipo di attività musicale di quei<br />
migranti, e d’altra parte questa volta non ci soccorre l’ausilio della letteratura locale. Infatti,<br />
nei testi argentini contemporanei di queste migrazioni come la saga emblematica nazionale,<br />
il Martin Fierro, si trovano frequenti riferimenti a italiani che suonano l’organetto a<br />
manovella ma non ci sono riferimenti ad arpisti. Scrive Hernández:<br />
Allí un gringo con un órgano<br />
Y una mona que bailaba<br />
Haciéndonos rair estaba<br />
Cuando le tocó el arreo,<br />
¡Tan grande el gringo y tan feo!<br />
Lo viera cómo lloraba.<br />
I riferimenti con tono squalificante che identificano quel tipo di suonatore ambulante<br />
con gli italiani sono così numerosi nella letteratura di quegli anni, che si deduce<br />
l’abituale impiego nella società della parola “organillero” per denigrare i migranti peninsulari.<br />
Molto spesso l’identificazione fu più precisa: quel personaggio del musicante fu<br />
sovente caratterizzato come napoletano. Tenendo conto che “napoletano” non indicava<br />
soltanto chi proveniva dalla città partenopea ma più genericamente dall’antico Regno di<br />
Napoli, e dato che la Basilicata era regione apparteneva a quel reame, l’ipotesi delle migrazioni<br />
di ambulanti di Viggiano a Buenos Aires torna a rifiorire come possibile.<br />
Un contatto personale mi fu di particolare aiuto. Ebbi modo di conoscere uno<br />
degli ultimi costruttori di organetti a Buenos Aires, Osvaldo La Salvia, il quale sorprendentemente<br />
mi manifestò che la sua famiglia era originaria di… Tramutola! La conversazione<br />
con La Salvia ha spiegato, sebbene di maniera iperbolica, il rebus del passaggio dall’arpa<br />
all’organetto. Il nostro interlocutore ci racconta che il suo avo, appena arrivato dall’Italia<br />
suonava in realtà l’arpa ma che il mitico Juan Moreira tagliò le corde dello strumento con<br />
il suo facón e così il povero musicante dovette ripiegare sull’organetto. Questa colorita<br />
storia, come in dettaglio spiego altrove 6 , è la mitizzazione di una tragedia sociale: la miseria<br />
dilagante nel sud d’Italia sostituì il fenomeno della forzata migrazione di un gruppo<br />
famigliare in cerca di fortuna con una realtà ancora più cruda: un vero e proprio commercio<br />
minorile. Nella prima situazione, i bambini accompagnano i genitori. Erano gli adulti a<br />
suonare strumenti come l’arpa e gli infanti giravano con il cappello richiedendo un soldo<br />
ai transeunti, al massimo suonavano qualche tamburello. La seconda situazione invece<br />
vede lo sfruttamento dei bimbi. Loro erano consegnati ad un “protettore” che li costringeva<br />
a mendicare per le strade, e, ovviamente, non erano capaci di suonare strumenti tranne<br />
quelli meccanici come l’organetto.<br />
Tornando all’archivio lucano sono stato in grado d’identificare numerosi musicanti<br />
di Tramutola di cognome La Salvia o derivati che chiedono alle autorità salvacondotto per<br />
viaggiare. Molti di loro indicano come destinazione di viaggio il Sudamerica.<br />
...........................................................................<br />
6 Cetrangolo, A. E., Dell’arpa de Viggiano all’organito porteño. In: Etno-folk, Revista de etnomusicologia, nº 14-<br />
15 giugno-novembre 2009, p. 596-621.<br />
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Cognome Nome Richiesta Destino dichiarato<br />
Salvia Luigi 1868 Argentina, Buenos Aires<br />
La Salvia Domenico 1862 Algeria<br />
La Salvia Antonio 1863 Argentina, Buenos Aires<br />
La Salvia Antonio 1864 America<br />
La Salvia Benedetto 1865 Spagna<br />
La Salvia Nicola María 1868 Brasile, Rio de Janeiro<br />
La Salvia Benedetto 1868 Egitto, Alessandria<br />
Lasalvia Domenico 1868 Argentina, Buenos Aires<br />
Lasalvia Michele 1868 Argentina, Buenos Aires<br />
Lasalvia Giuseppe 1868 Argentina, Buenos Aires<br />
Lasalvia Francesco 1868 Argentina, Buenos Aires<br />
Lasalvia Benedetto 1870 Egitto<br />
Lasalvia Vincenzo 1870 Argentina, Buenos Aires<br />
Gli estremi del viaggio sembrano così stabiliti e confermano la trasferta a Buenos<br />
Aires di queste famiglie. Si noti che, accanto ai La Salvia, altre famiglie di costruttori di<br />
organetti risiedevano a Buenos Aires. Anch’essi erano originari della stessa zona e<br />
procedevano proprio da Viggiano. Si trattava della famiglia De Cunto che aveva negozio<br />
nel centro della città. Ma se sono chiari la partenza e l’arrivo della traversata, cosa succedeva<br />
nei porti intermedi?<br />
Questa inchiesta risulta incompleta senza l’esame degli archivi dei porti brasiliani.<br />
Ci fu in Brasile un fenomeno analogo? Si trovano famiglie portatrici di quei cognomi “caldi”?<br />
Ci furono fabbriche di organetti a Rio vincolate a italiani procedenti della Basilicata? Trovo,<br />
innanzitutto, già una traccia: tra i personaggi identificati a Potenza scopro dei musicanti<br />
migranti che dichiarano di avere precisamente il Brasile come meta definitiva: così Vincenzo<br />
Nicola De Cunto, nato a Viggiano, che dichiara nel 1865 di voler raggiungere Río de Janeiro,<br />
e Nicola María La Salvia che, tre anni dopo, manifesta di volersi spostare nella stessa città<br />
carioca. 7<br />
Settecento<br />
Un altro stimolo alla collaborazione con gli studiosi brasiliani riguarda i viaggi<br />
che musica e musicisti hanno realizzato nel XVIII secolo. Uno di questi movimenti musicali<br />
mi portò a inseguire le musiche di Giacomo Facco fino al Portogallo di Joao V 8 . Il musicista<br />
che era oggetto dei miei interessi aveva composto melodrammi in occasione del doppio<br />
matrimonio celebrato nel 1729 tra i figli del monarca lusitano con gli eredi di Filippo V di<br />
Spagna. La considerazione che di Facco aveva la corte Bragança fu tale che il fastoso<br />
resoconto dell’evento pubblicato a Lisbona 9 non dimenticò di menzionare la partecipazione<br />
di Facco sebbene trascuri il nome del maestro di musica di uno delle contraenti, la Principessa<br />
Maria Barbara di Bragança, nientemeno che Domenico Scarlatti. Diversi personaggi<br />
che talvolta indirettamente avevano a che vedere con Giacomo Facco, hanno attirato<br />
allora la mia curiosità. Il primo fu Antonio José Da Silva. Di Da Silva avevo notizie soprattutto<br />
attraverso Lange il quale, affidandomi copie da lui conseguite a Vila Viçosa, mi spinse a<br />
restaurare ed eseguire le musiche che furono composte per il suo teatro de bonecos. O<br />
...........................................................................<br />
7 ASP, código: 186515038.<br />
8 Cetrangolo, A. E., Esordi del melodramma in Spagna, Portogallo e America. Giacomo Facco e le cerimonnie del<br />
1729, Olschki, Firenze, 1992.<br />
9 Da Natividade, J., Fasto de Hymeneo ou Historia Panegyrica dos desposorios dos Fidelissimos Reys de Portugal<br />
nossos Senhores, D. Joseph I e D. Maria Anna Vitoria de Borbon, que dedica e consagra à mesma Fidelissima<br />
Majestade, dà Rainha nossa Senhora. Fr. Joseph Da Natividade, Prégador Géral da Ordem dos Prégadores, na<br />
província de Portugal, Oficina de Manoel Soares, Lisbona, 1752.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
47<br />
Judeu, nella ricerca su Facco, si mostrava come un ideale antagonista del mio personaggio<br />
centrale: i suoi spettacoli di teatro musicale sembravano avversare emblematicamente<br />
gli spettacoli di corte come quelli che Facco presentava, tanto è vero che, dopo che l’italiano<br />
mostrò con gran pompa il suo Júpiter y Anfitrión, Da Silva scrisse il suo Amphitrião. In un<br />
senso molto diverso, un personaggio che centrò il mio più vivo interesse in quegl’anni fu il<br />
poliedrico Conte di Ericeira. Ericeira, sebbene nobile, era sedotto da un universo più aperto<br />
rispetto alla soffocante corte Bragança, e nel mio libretto funzionava come trait d’union<br />
tra Da Silva ed il Marchese de los Balbases, protettore di Facco e ambasciatore straordinario<br />
di Filippo V di Spagna a Lisbona. L’ideale cast di quel melodramma – ovviamente serio, se<br />
si tiene conto del tremendo rogo con che conclude la partecipazione in scena del povero<br />
Da Silva – si completava nel mio racconto con l’attuazione di musicisti che non conoscevo<br />
prima: gli italiani residenti in Portogallo Avondano e Mazza.<br />
Sebbene uno dei miei primi lavori in Italia si era già centrato sull’itinerario di<br />
musicisti emigrati nelle Americhe10 , successivamente a quell’interesse per Facco sono<br />
tornato sull’argomento percorrendo un tratto di quel trasloco artistico, quello che, partendo<br />
da Novi Ligure proseguiva verso Lisbona fino ad arrivare a Buenos Aires11 . È chiaro che<br />
urge giustificare un così curioso punto d’inizio di quel viaggio: per ché Novi Ligure? Va<br />
presto detto, Novi era la patria di quei musicisti che avevo conosciuto a Lisbona e che<br />
erano riusciti ad attirare la mia curiosità. Rogerio Budasz12 s’interrogò sull’arrivo di cantanti<br />
d’opera in Portogallo e sugli strumentisti Mazza e Avondano s’interessarono diversi studiosi<br />
lusitani, fondamentalmente Manuel Carlos de Brito. Di questi ultimi personaggi si<br />
conoscevano, però, soltanto dati delle loro attività in Portogallo: non sono mai stati studiati<br />
in Italia e della loro vicenda nella penisola non rimane traccia. Il mio lavoro dunque fu<br />
quello di realizzare un esame degli archivi parrocchiali di Novi per stabilire dati anagrafici<br />
certi e ricostruire legami famigliari, cosa fondamentale giacché, al meno per il caso dei<br />
Mazza che passarono in Portogallo, era chiaro il reciproco vincolo di sangue.<br />
Mazza<br />
Contemporaneamente all’arrivo di cantanti d’opera in Portogallo che hanno<br />
interessato anche Rogerio Budasz 13 e che procedevano dall’Italia, arrivarono anche<br />
strumentisti, fondamentalmente violinisti. Molti di loro procedono da un piccolo centro<br />
vicino Genova, Novi. Si tratta di Pietro Avondano e dell’importante famiglia Mazza. Su di<br />
loro ha scritto tempo fa Manuel Carlos de Brito e personalmente me ne sono occupato di<br />
recente in un testo pubblicato a Madrid 14 dopo aver fatto uno spoglio negli archivi di Novi<br />
per ricostruire i legami famigliari. Ebbene un personaggio di questa famiglia, Bartolomeo<br />
Mazza, violinista e compositore, si trasferì a Buenos Aires in una nave nella quale viaggiavano<br />
anche italiani che avrebbero contribuito notevolmente alla rivoluzione indipendentista<br />
del Rio de la Plata. Un dato notevole sottolinea ancora il bisogno di studi congiunti<br />
che coinvolgano la musicologia del Brasile: quando Mazza arriva a Buenos Aires gli viene<br />
commissionata la composizione di un’opera. Forse si tratta della prima opera composta<br />
nella regione. L’opera aveva come titolo niente meno che Las Variedades de Proteo, uno<br />
dei titoli più celebri del carioca Antonio Jose da Silva. Mazza aveva conosciuto il testo dai<br />
...........................................................................<br />
10 Cetrangolo, A. E., Napoli, Madrid, Messico e Buenos Aires: alcuni dati su musicisti pugliesi in America Latina<br />
nel Settecento in: Musicisti nati in Puglia ed emigrazione musicale tra Seicento e Settecento. Atti del Convegno<br />
Internazionale di Studi Lecce, 6-8 dicembre 1985, La Torre d’Orfeo, Roma, 1988, p. 337-358.<br />
11 Cetrangolo, A. E., Familias de músicos lígures migran hacia Oeste: nuevos datos sobre los Avondano y los<br />
Mazza in Concordis Modulationis Ordo, Ismael Fernández de la Cuesta. In Honorem, Inter-American Music Review,<br />
vol. XVIII, 1-2, 2008, p. 247-264.<br />
12 Budasz, R., op. cit., p. 8.<br />
13 Budasz, R., op. cit., p. 8.<br />
14 Cetrangolo, A. E., Familias de músicos lígures… cit.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
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suoi parenti residenti in Portogallo? Aveva invece soggiornato in Brasile prima del suo<br />
arrivo a Buenos Aires?<br />
Tutto questo accadde mesi dopo le festività in onore delle nozze tra l’infante<br />
Don Pedro e la Principessa Donna Maria, che hanno motivato le costruzione carioche effimere<br />
che Budasz menziona. Avrà partecipato Mazza a quelle feste? La verità è che lui è<br />
coinvolto subito dopo, a Buenos Aires, nelle analoghe celebrazione encomiastiche dovute<br />
all’esaltazione al trono di Carlo III. 15<br />
Il cognome Mazza richiamava anche un personaggio di enorme importanza per<br />
la storia della musica sudamericana, Bartolomeo Mazza, chi viaggiò a Buenos Aires e morì<br />
a Lima. Fu, molto probabilmente il primo compositore moderno a scrivere un’opera nel<br />
Rio de la Plata. Mazza s’imbarcò a Cadice nel 1752 nel Nuestra Señora del Rosario e condivise<br />
la sua traversata atlantica con italiani che avrebbero posto il seme dell’insurrezione<br />
liberale del Rio de la Plata: il commerciante ligure Domenico Francesco Belgrano ed il<br />
medico veneziano Angelo Veneziano Castelli. I figli di Belgrano e Castelli sarebbero diventati<br />
determinanti nelle lotte indipendentiste del Rio de la Plata contro i Borboni spagnoli.<br />
Ebbene, i risultati di quel lavoro di ricerca a Novi hanno permesso di ricostruire<br />
un albero genealogico dove furono individuati non solo i personaggi che compaiono nei<br />
documenti portoghesi, si stabilì anche il loro rapporto parentale diretto con Bartolomeo<br />
Mazza. Grazie ai documenti di parrocchia fu possibile stabile molte delle date di nascita di<br />
questi musicisti, tra gli altri quella di Bartolomeo, e fu anche chiarito il rapporto di Romão<br />
Mazza, attivo in Portogallo con la sua famiglia di Novi. Fu stabilita anche la corretta grafia<br />
del cognome di questi artisti, cioè Mazza e non Massa.<br />
Attraverso la vicenda di questi musicisti è possibile intuire il nuovo scenario sociopolitico<br />
che tanto avrebbe modificato i meccanismi di produzione artistica, cioè la committenza<br />
e l’impresa. Bartolomeo Mazza, infatti, è chiaro esempio del musicista dei nuovi<br />
tempi, quello che si lancia alla terra sconosciuta senza protezioni tentando un’impresa<br />
personale.<br />
Nella nuova terra, terra di contrabbandieri spregiudicati, Mazza incontra altri<br />
personaggi impavidi come il flautista impresario Domenico Saccomano di Bari. Entrambi<br />
condivisero una rischiosa impresa che vide la fugace costruzione del primo spazio di opera<br />
imprenditoriale a Buenos Aires. L’attività fu mal vista dalle autorità ecclesiastiche, il che<br />
ricorda le censure dell’Ancien Regime, ma il negozio fu disturbato anche, segno invece dei<br />
nuovi tempi, da una litigiosa cantante che portò Saccomano nei tribunali.<br />
Diversi particolari di queste vicende richiamano con forza il bisogno dello spoglio<br />
dei fondi brasiliani.<br />
Infatti, gli studi che hanno trattato la materia16 , non molti in realtà, insistono<br />
sulla pratica di rappresentare a Buenos Aires opere con marionette, come quelle che Antonio<br />
José da Silva aveva utilizzato nella sua sala di Lisbona; si menziona anche sovente che<br />
i cantanti di Saccomano provenivano dal Brasile, cosa che confermerebbe il cognome<br />
della cantante che litiga con Saccomano: Mascarenhas.<br />
Ma ancora di più attira potentemente l’attenzione il titolo dell’opera che presenta<br />
Mazza a Buenos Aires in occasione delle celebrazioni locali in onore d Carlo III, niente<br />
meno che Las Variedades de Proteo, con tutta possibilità quel testo di Da Silva, che Antonio<br />
Teixeira aveva musicato nel teatro del Bairro Alto.<br />
Le domande che s’impongono dunque sono: arrivarono i musicisti Mazza, parenti<br />
di Bartolomeo in Brasile? Bartolomeo ebbe conoscenza del testo di Da Silva in Portogallo<br />
...........................................................................<br />
15 Budasz, R., op. cit., p. 28.<br />
16 Così Trenti Rocamora, J. L., El teatro en la América colonial, Huarpes, Buenos Aires, 1950, e Gesualdo, Vicente,<br />
Historia de la música en la Argentina, Beta, Buenos Aires, 1961.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
49<br />
o in Brasile? Esistono documenti brasiliani che provino la presenza di Saccomano e Mazza<br />
in Brasile?<br />
Ottocento<br />
Il periodo delle grandi migrazioni europee verso le Americhe è, come già s’annunciò,<br />
argomento centrale delle attuali attività dell’IMLA. Strategia fondamentale di questi<br />
studi è l’elaborazione di una banca dati raccoglitrice d’informazioni varie relative all’attività<br />
lirica di quegli anni. Quel contenitore ospita dati desunti tanto dallo spoglio di pubblicazioni<br />
periodiche come di cronologie di teatri lirici italiani, spagnoli, uruguaiani ed argentini. I<br />
materiali sono organizzati tramite due sentieri: quello dei nominativi degli operatori artistici<br />
e quello dei titoli dei melodrammi. Grazie alla fusione all’interno di questo strumento dei<br />
dati che provengono da luoghi diversi, è possibile stabilire relazioni fino adesso sconosciute,<br />
che potrebbero essere utilmente arricchite con l’aggiunta d’informazioni brasiliane.<br />
Il caso Bernardi<br />
La Base Dati Imla portò recentemente tra gli interessi di primo piano una figura<br />
dimenticata: Enrico Bernardi. Questo risultato è dovuto alla prossimità che nell’elenco informatico<br />
hanno trovato dati di provenienza diversa: quelli, scarsissimi della letteratura<br />
musicologica argentina, quelli sostanziosi desunti dalla lettura che membri dell’Imla hanno<br />
realizzato su periodici veneziani e quelli che ha raccolto Márcio Páscoa sul Teatro di Belém.<br />
Di Bernardi si era interessato, nel 1988, Juan María Veniard 17 chi menzionava,<br />
studiando Arturo Berutti, Enrique (sic) Bernardi, 18 compositore dell’opera Juan Moreira,<br />
che avrebbe svolto qualche attività a Buenos Aires, nel malfamato Teatro Doria, e anche<br />
nell’allora appena fondata città argentina di La Plata. Sulle vicende di Bernardi precedenti<br />
quel soggiorno argentino, apparentemente breve, Veniard dà alcune notizie della sua<br />
traiettoria in Brasile oltre che in Italia, sua Patria.<br />
Sono stato attratto dalla personalità di questo italiano in quanto, sebbene rimane<br />
esigua traccia della sua musica scritta, quel melodramma sul mitico personaggio della<br />
pampa ben potrebbe significare l’esordio della serie delle opere composte in Argentina<br />
intorno la figura emblematica del gaucho. Certo, l’operazione era carica di un’indubbia<br />
valenza extramusicale. Attraverso l’opera, genere culturale che allora godeva del più alto<br />
prestigio, l’elite locale anelava a costruire un repertorio nazionale lirico, ed in questa<br />
strategia la figura mitizzata dell’uomo della campagna risultava indispensabile. In tale<br />
contesto sorprende lo stridente disinteresse che su Bernardi hanno dimostrato gli storici<br />
della musica locale, soprattutto se si ricorda che non pochi di loro hanno considerato il<br />
proprio lavoro come un’occasione per “contribuir a la creación del ser nacional”. Si sprecava<br />
così, come direbbe Hobsbawm, una magnifica opportunità per partecipare a “The Invention<br />
of Tradition”. Significativamente, nemmeno la “patriottica” Enciclopedia de música argentina<br />
di Rodolfo Arizaga dedicò una voce alla figura di Bernardi. Trovo probabile che<br />
abbia contribuito a tali silenzi una ferita narcisista all’onore nazionale, cioè l’indissimulabile<br />
nazionalità dell’autore dell’operazione. Mentre sovente furono “argentinizzati”, anche nel<br />
loro nome, musicisti peninsulari attivi in Argentina come Vittorio De Rubertis, Sante Discepolo,<br />
Giovanni Grazioso Panizza o Pietro Melani, l’operazione con quel Bernardi, di fugace<br />
residenza nel paese, era impossibile. Risultava dunque intollerabile per quell’intellighenzia<br />
...........................................................................<br />
17 Veniard, J. M., Arturo Berutti, un argentino en el mundo de la ópera, Instituto Nacional de Musicología “Carlos<br />
Vega”, Buenos Aires, 1988.<br />
18 Il cognome Bernardi è molto diffuso in Italia, soprattutto a Milano e nel veneziano. Sarà necessario evitare di<br />
conffodere questo musicista con un suo collega, attivo in quegli anni nel Veneto. Infatti, G. B. Bernardi è autore<br />
di una romanza di fortuna, “Non ti scordar”, che fu pubblicata a Padova intorno il 1885. Questo è indicato da La<br />
Gazzetta di Venezia, 2 de diciembre de 1886.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
50<br />
argentina che era impegnata nella costruzione di emblemi nazionali, riconoscere che non<br />
solo fu una troupe di genovesi – i Podestà – a portare al teatro la figura del gaucho, ma che<br />
fu ancora un italiano il primo a cantare in un melodramma la vicenda del personaggio<br />
emblematico della Patria.<br />
Ho cercato informazioni di Bernardi fuori dell’Argentina. Dalla base dati Imla<br />
risulta che Enrico Bernardi nacque a Milano nel 1838 e morì nella stessa città nel 1900. Il<br />
musicista fu trombonista e anche compositore.<br />
I cataloghi italiani elencano programmi della Scala che tra 1857 fino il 1862<br />
mostrano il suo nome, a volte scritto “Enrico De Bernardi”. Fino il 1857, il nostro, compare<br />
nelle liste assieme ad un altro trombonista dello stesso cognome di nome Luigi, forse suo<br />
padre. Dai documenti risulta che Bernardi suona in spettacoli che si presentano anche in<br />
un’altra celebre sala milanese: il Regio Teatro alla Canobbiana. 19<br />
La sua attività compositiva è molto estesa e varia sebbene tradisce una predilezione<br />
per la danza. Le sue prime musiche per la scena – un balletto del titolo Le illusioni<br />
d’un pittore presentato nel Teatro della Canobbiana di Milano – sono del 1854. Tre anni<br />
dopo, sempre alla Canobbiana in collaborazione con Luigi Madoglio compone un’”azione<br />
coreografica in sei quadri di Agrippa Pinzuti” del titolo Juanita. Per la stessa sala firma<br />
Una colpa: azione mimica in sei quadri di Federico Fusco. In quel periodo – Bernardi ne è<br />
un esempio – è preponderante negli argomenti per balletti la tematica feèrica e un po’gotica,<br />
così per la Scala compose Zeliska nel 1860, un “balletto fantastico danzante in 3 atti”<br />
essendo ancora Fusco il coreografo dell’occasione. Nell’importante cronologia del Teatro<br />
alla Scala pubblicata in quegli anni20 , sebbene quella fonte citi come produzioni scaligere<br />
due balletti che sono di Bernardi Marco Visconti ed il già menzionato Zeliska, il testo<br />
segnala come unico responsabile degli spettacoli al coreografo Federico Fusco. In quella<br />
fonte si menziona addirittura il nome del pittore delle scene – Filippo Peroni – ma non<br />
quello di Bernardi. Quell’omissione è dovuta forse al carattere esordiente del nostro come<br />
compositore. Bernardi, per la Scala, era innanzitutto un membro dell’orchestra del Teatro<br />
e nel teatro lirico si praticava allora, come anche oggi, una consuetudine scortese: quella<br />
di non considerare artisti di primo piano i componenti dei corpi stabili come l’orchestra ed<br />
il coro. Sono certo che nel ’60 Bernardi era ancora trombonista della Scala giacché trovo il<br />
suo nome in un programma che elenca con dettaglio i nomi degli strumentisti<br />
dell’orchestra. 21 Quei due balletti di Bernardi, comunque, meritarono repliche altrove e i<br />
programmi di sala corrispondenti confermano la sua paternità. Zeliska fu presentato sette<br />
anni dopo al San Carlo di Napoli dove furono inserite anche un paio di danze di Luigi<br />
Madoglio e Giuseppe Giaquinto, Marco Visconti si presentò al Regio di Torino, a Firenze e<br />
Roma. Quest’ultimo balletto si basava nel celebre testo di Tommaso Grossi, Marco Visconti:<br />
...........................................................................<br />
19 Queste le presentazioni che, secondo l’Istituto Centrale per il Catalogo Unico delle Biblioteche Italiane, mostrano<br />
programmi con partecipazione orchestrale milanese di Enrico Bernardi: 1854: Il trovatore, Marco Visconti (di<br />
Domenico Bolognese), 1855: Giovanna De Guzman, I Lombardi alla prima crociata, Ines di Mendoza (di Francesco<br />
Chiaromonte), 1856: Fanciulla delle Asturie (di Benedetto Secchi), 1857: Giovanna De Guzman, Jone (di Errico<br />
Petrella), Nabucco; 1858: Il duca di Scilla (di Errico Petrella), L’ Uscocco (di Francesco Petroncini), Pelagio (di<br />
Mercadante), Simon Boccanegra, Vasconcello (di Angelo Villanis), 1859: Fausta (di Donizetti), Il crociato in Egitto<br />
(di Meyerbeer), Maria de’Ricci (di Ferdinando Asioli), Marta, 1860: Corrado Console di Milano (di Paolo Giorza),<br />
Giuditta (di Achille Peri), Il carnevale di Venezia ovvero Le precauzioni (di Errico Petrella), 1861: I Capuleti ed i<br />
Montecchi, Preziosa (di Ruggero Manna), Tutti in maschera (di Carlo Pedrotti), 1862 Gemma di Vergy.<br />
20 Teatro alla Scala, cronologia di tutti gli spettacoli rappresentati in questo teatro dal giorno del solenne suo<br />
aprimento sino ad oggi con Introduzione ed annotazioni compilate da Luigi Romani, Tip. di Luigi di Giacomo<br />
Pirola, Milano, 1862.<br />
21 Si tratta di una Gemma di Vergy che si presentò nella primavera del 1862, cioè due anni dopo la Zeliska di<br />
Bernardi. Il nome del nostro musicista è compreso nel lungo elenco degli operatori musicali che lavorarono in<br />
quella recita. Il libretto si trova nella Biblioteca del Conservatorio di musica Giuseppe Verdi, Milano - MI [fondo/<br />
segnatura] Libretti K.2 con il numero di catalogo Biblioteca del Conservatorio di musica Giuseppe Verdi, Milano<br />
- MI [fondo/segnatura] Libretti K.2. Il numero di catalogo era BI90132200923.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
51<br />
storia del Trecento, cavata dalle cronache di quel tempo che ispirò anche un melodramma<br />
famoso di Enrico Petrella. Nel 1868 Bernardi presentò un “ballo grande” nel Teatro Ciniselli<br />
dal titolo Gretchen. La musica era stata scritta in collaborazione con Giuseppe Scaramelli.<br />
Scaramelli era autore del primo ballabile e dell’atto secondo. Il balletto comprendeva uno<br />
scottisch e anche una scena fantastica delle Willi. Impossibile non ricordare che questo<br />
brano collegava all’ambiente scenico che il futuro collaboratore di Bernardi, lo scrittore<br />
Fontana, avrebbe sfruttato per la prima opera di Puccini. Gretchen fu presentato a La Fenice<br />
nella Quaresima del 187222 . Arrivò, invece, alla Scala nella Quaresima del 1885 e<br />
questa volta il nome di Bernardi fu pienamente riconosciuto dal teatro come quello di un<br />
compositore23 . Un altro ballo romantico fantastico in sei atti del nome La Fata nix per le<br />
coreografie di Luigi Danesi salì alle scene del Teatro Apollo di Roma nel 1871. La musica<br />
era di Bernardi in collaborazione con altri compositori come Paolo Giorza, Gustavo Rosari<br />
e Leopoldo Angeli. Nella Quaresima del 1872. La Fata nix arrivò alla Fenice, dunque in<br />
contemporanea con la riposizione di Gretchen. Nello stesso 1872 Bernardi presentò il<br />
“ballo storico” Cola di Rienzi con la coreografia di Giovanni Pogna. L’anno successivo Bernardi<br />
tornò al mondo delle fate ed esibì Lo specchio infernale: ballo fantastico in sei quadri<br />
e sette scene del coreografo Luigi Bonesi Da rappresentarsi nel Teatro della Concordia in<br />
Cremona, pel Carnevale.<br />
La disseminazione del nome di Benardi arrivò a luoghi più intimi: molte delle<br />
danze dei suoi balletti, come quelle del famoso Cola di Rienzi24 si ascoltavano nelle case<br />
italiane tramite le abituali trascrizioni per pianoforte. Bernardi le pubblicò indistintamente<br />
con Lucca, Ricordi e Sonzogno e non solo. Nello stesso anno lo stesso editore presentò anche<br />
una “Polka” e un “Valzer dei Cavalieri” del balletto Ate. Tanto quest’ultimo ballo come<br />
Cola di Rienzi erano musiche che sulla scena furono danzate con coreografie di Giovanni<br />
Pogna.<br />
Oltre a queste musiche che il pubblico conosceva dal teatro, Bernardi scrisse<br />
altri brani dedicati al salotto famigliare. Seguì spesso la moda dei balli che allora facevano<br />
furore come uno “Schottisch” dedicato all’attrice Elvira Raspini25 . Due anni dopo, Lucca<br />
stampa il galop “Colpa” dedicato al Maestro della Banda Civica, Gustavo Rossari. Evidentemente<br />
lo stesso editore pensava al mercato francese quando nella copertina di un certo<br />
brano si legge: “Rêve de bonheur, mazurka pour piano par Henri Bernardi”. Nel 1878<br />
Sonzogno gli pubblica la polka “Bordeaux”. Nel 1878 e anche nel 1884, Lucca edita due<br />
titoli di Bernardi: “Grand pot pourri caratteristico: partenza in tramvai – ritorno in Ferrovia”<br />
e “A estrada de Ferro de Bragança, galop dedicato a Ao Illmo Sr. Manuel Jose e Silva Potector<br />
de tudos os artistas”. Tanto quel pot pourri come quel galop riflettono la sensibilità tipica<br />
che per i moderni trasporti di locomozione mostrava la società e che raccoglieva la musica<br />
più leggera. I brani del milanese sono pubblicati contemporaneamente alla più celebre<br />
musica di locomozione: “Funiculì, Funiculà”, che è del 1880. Ricordi pubblicò nel 1886, un<br />
brano che sembrava, come il precedente galop, arrivare dall’estero. Infatti, titolo e autore<br />
sono indicati così “Onca, valsa para piano por Henrique Bernardi” 26 . All’elenco possono<br />
aggiungersi molte altre danze di Bernardi che portano nomi suggestivi come il galop<br />
...........................................................................<br />
22 La Casa di Carlo Goldoni, a Venezia, conserva una copia del libretto di Gretchen per l’edizione lagunare. Il<br />
numero di catalogo è il seguente: BI98102900002.<br />
23 Gretchen: ballo romantico-fantastico in 8 quadri, del Cav. Luigi Danesi; riprodotto da Cesare Coppini; con<br />
musica dei maestri Enrico Bernardi ed Angelo Venanzi. Biblioteca comunale - Palazzo Sormani – Milano. codice<br />
IT\ICCU\LO1\1201808.<br />
24 Lucca pubblicò nel 1873 brani come il “Galop pirrico”, la “Marcia trionfale” del secondo atto e anche un<br />
esotico “Ballabile dei Saraceni.<br />
25 Ricordi, Milano, 1858.<br />
26 Il pezzo è dedicato “Ao exmo. se.r Manoel A. V. de Andrade”. Biblioteca del Conservatorio di musica Giuseppe<br />
Verdi, Milano - MI [fondo/segnatura] 1.A.59.37.<br />
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52<br />
“Sciabolate”, la polka “Passarin” o la mazurka “Sottovoce”. Sovente queste musiche furono<br />
pubblicate in forma di raccolte come un Album musicale che pubblicò il giornale Il Gazzettino<br />
Rosa per omaggiare i suoi abbonati nel 186927 .<br />
Talvolta le pagine sono servite a Bernardi per commemorazioni funebri come<br />
due pezzi del 1873 in memoria di Alessandro Manzoni e di Francesco Lucca. 28 Una certa riduzione<br />
per pianoforte mostra che Bernardi compose anche un Requiem dedicato a Mario<br />
Tiberini29 . Inoltre il brano dedicato a Manzoni reca un’informazione supplementare: l’edizione<br />
menziona Bernardi come “direttore proprietario del corpo di musica di Porta Garibaldi.”<br />
Altri sforzi di Bernardi celebrano cerimonie più leggere come certe musiche di<br />
circostanza che furono dedicate all’Esposizione Nazionale di Milano del 188130 . Esse<br />
risultarono pretesto per inserire il piatto forte di Bernardi: una serie di danze. Questa la<br />
lista: “Introduzione, Suono festivo che annunzia l’arrivo delle Regioni Italiane, Canto del<br />
Meneghino, Piemonte-polka & Polka, Venezia e Napoli - valzer, Napoli-canzone napoletana,<br />
Toscana e Romagna - polka”. Più interessante per il suo carattere transoceanico è un certo<br />
notturno che pubblica Lucca, Saudade do Parà31 .<br />
Dall’inizio della sua carriera Bernardi mostrò grande sensibilità per gli eventi<br />
politici a lui contemporanei ed il suo esordio compositivo coincide con l’epopea del 1861.<br />
Un suo brano di banda precede di poco quell’anno: già nel 1859 Ricordi pubblica Della<br />
gloria e giunto il dì: marcia sopra motivi popolari/composta e ridotta per banda militare<br />
da E. Bernardi. Proprio nel 1861 Bernardi scrive, nel fervore degli eventi, la marcia<br />
“Volturno” per Lucca e che è dedicata “ai militi della 2.a Legione della Guardia Nazionale<br />
di Milano”. Quella musica fu eseguita dalla Banda Garibaldi. Un’ode del titolo “Il 9 gennajo<br />
a Vittorio Emanuele” con versi di Vittore Trevisan che incominciano con “Sperse le schiere”<br />
fu pubblicata dall’Editoria Musicale nella versione per canto e piano. Evidentemente, ai<br />
fini di queste ricerche è del maggiore interesse ritrovare negli scaffali delle biblioteche italiane<br />
una musica per pianoforte che Bernardi pubblicò a Buenos Aires. Si tratta della Marcia<br />
Porta Pia32 che fu distribuita nella colonia argentina di Buenos Aires come supplemento<br />
straordinario del giornale Il vessillo dell’arte del 28 settembre del 1891. In quel momento<br />
Bernardi era in Argentina.<br />
Come non poteva essere diversamente, Bernardi si esercitò in diverse occasioni<br />
come autore di teatro lirico. Il milanese presentò nel 1875 un’opera comica che intonava<br />
versi di Fontana, il Marchionn di gamb avert: opera buffa in tre atti con un cast composito33 ,<br />
che si esibì in prima al milanese Teatro del Castello il 14 luglio di quell’anno34 . Il libretto era<br />
del famoso poeta Ferdinando Fontana, uno “scapigliato” come Ghislanzoni e si basava su<br />
di un testo del 1816 del più famoso poeta dialettale milanese, Carlo Porta. A Milano tutti<br />
conoscevano quei versi che con spavaldo realismo iniziavano:<br />
...........................................................................<br />
27 Biblioteca del Civico Istituto musicale L. Folcioni, Crema – CR, codice IT\ICCU\DE\90131101188.<br />
28 Ad Alessandro Manzoni: per le sue esequie celebratesi a Milano il giorno 29 maggio 1873: preludio funebre,<br />
del maestro Enrico Bernardi direttore proprietario del corpo di musica di Porta Garibaldi / riduzione per pianoforte<br />
solo,: F. Lucca, Milano [1873], Biblioteca del Conservatorio di musica Giuseppe Verdi, Milano, segnatura: 1. A.<br />
59.25 e Alla memoria di Francesco Lucca: preludio funebre / di E. Bernardi; riduzione per pianoforte solo: F.<br />
Lucca, Milano [1873]. Biblioteca del Conservatorio di musica Giuseppe Verdi, Milano, segnatura: 1. A. 59.24.<br />
29 Requiem a Mario Tiberini: elegia, di E. Bernardi; riduzione per pianoforte dell’autore: F. Lucca, Milano, 1882.<br />
30 L’ Esposizione Nazionale del 1881 in Milano: ricordo musicale per pianoforte, di Enrico Bernardi, Editoria<br />
Musicale, Milano, 1881.<br />
31 Una copia nella Biblioteca del Conservatorio di musica Giuseppe Verdi, Milano - MI [fondo/segnatura] 1.A.59.33.<br />
32 Tip. del Vessillo dell’arte, Buenos Aires, 1891.<br />
33 Alessandro Bottero (Marchione), L. Binda (Santina Sgalisa), Eduardo Caracciolo (Scavion), Giuseppe Capello<br />
(Sgonfion), A. Guenoi (Marchesa Fariani); Gaetano Galli (Commissario).<br />
34 Manferrari, U., Dizionario universale delle opere melodrammatiche, Sansoni Antiquariato, (Tip. già G. Civelli),<br />
Firenze, 1954.<br />
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Moros dannaa, tradii de la morosa,<br />
pien de loeuj, de fastidi e pien de corna 35<br />
Quel contatto di Bernardi con Fontana è rilevante in attenzione alle relazioni tra<br />
Milano e ambienti lontani. Il poeta, un milanese come Bernardi, fu un curioso personaggio<br />
che a causa delle sue idee repubblicane dovette migrare in Svizzera dove morì nel 1919. I<br />
versi di Fontana erano molto conosciuti soprattutto quando accompagnavano musiche<br />
più leggere. Le operette viennesi si cantavano in Italia nella sua versione tradotta e Fontana<br />
firmò molte canzoni con il famosissimo Paolo Tosti come: “E morto Pulcinella!”, “Allora ed<br />
oggi!!” e “Senza di te”. La sua collaborazione con Bernardi avrà certamente contribuito<br />
alla notorietà del compositore. Lo scrittore collaborava con altri colleghi come Luigi Illica<br />
con chi scrisse qualche commedia comeINarbonnerie-Latour, ed era in contatto con<br />
Amilcare Ponchielli. Ponchielli, per conto suo, fu il tramite tra Fontana ed il giovane Puccini.<br />
Ma Fontana, poeta delle prime fatiche liriche del compositore toscano – Le villi ed Edgar<br />
– e dell’Asrael di Alberto Franchetti fu anche librettista della Maria Petrowna di João<br />
Gomes de Araújo.<br />
Bernardi fece incursione anche nella composizione dei melodrammi seri. Il primo<br />
di questi lavori, che preparava il ben diverso esordio del genere lirico gauchesco in Argentina,<br />
fu Faustina dramma lirico in un prologo e tre atti che l’autore compose nel 1868<br />
per presentarlo nel Teatro Sociale di Lodi. Faustina intonava un libretto di Giovanni Inverni<br />
e nel giugno del 1869 si cantò nel Teatro Ciniselli con il titolo I Romani nelle Gallie 36 . Dieci<br />
anni dopo, il compositore, nelle stesse scene di Lodi mostrò un titolo molto più pretenzioso<br />
che merita un’attenzione speciale: Patria!... dramma lirico in 4 atti/versi di Ferdinando<br />
Pagavini che fu rappresentato per la prima volta al Teatro Sociale di Lodi la sera del 5<br />
febbrajo 1879. Anche se il cast era esiguo comprendeva due parti per soprano, una<br />
drammatica, il ruolo di Dolores e una leggera, la parte di Raffaela. 37 L’opera si basava su di<br />
una famosa pièce del “maestro del “drammone” ottocentesco, Victorien Sardou”. Il testo<br />
aveva interessato lo stesso Verdi e la possibilità di una collaborazione con il compositore<br />
lusingava molto lo scrittore francese, ma Verdi, dopo un’attenta valutazione della cosa,<br />
come racconta Budden, scartò l’idea 38 . Il compositore, sebbene considerò la creazione di<br />
Sardou, Patrie! “bel dramma, vasto, potente e soprattutto scenico” e foriero di nuove<br />
“situazioni” trovò un ostacolo il ruolo che avrebbe dovuto assumere la prima donna:<br />
“Peccato che la parte della donna sia di necessità odiosa.” In una lettera a Giulio Ricordi<br />
Verdi è molto più lapidario, di quel testo “non vi è da far musica. Vi sono due, tre o quattro<br />
pezzi belli e fatti, ma l’opera non v’è…” Ricorda Budden che lo stesso Verdi: “Si offri di<br />
ottenere da Sardou l’autorizzazione perché fosse il giovane Faccio, in vece sua, a musicarla,<br />
ma non era questo che il drammaturgo voleva, e così per il momento la faccenda non<br />
procedette oltre. Alla fine la Patrie! dello scrittore francese fu trasformata in opera da<br />
Lauro Rossi con il titolo di La contessa di Mons. (1874). 39 Il libretto allora fu di Marco<br />
...........................................................................<br />
35 Amanti dannati, traditi dalla morosa / pieni di tedio, fastidi e pieni di corna. Beretta, C., Letteratura dialettale<br />
milanese. Itinerario antologico-critico dalle origini ai nostri giorni, Hoepli, Milano, 2003, p. 84.<br />
36 Il cast era il seguente: Giuseppe Vagner (Trimalcione, nobile patrizio e Diavolo, patrizio romano), Eusebio<br />
Torriani (Guilerno, schiavo), Giuseppina Levi (Enoria, schiavo), Raffaele Angelini (Clodio, Mercante di Schiavi),<br />
Enrico Geminiani (Faustina, patrizia romana), Francesco Zucchi (Montelibano, gladiatore), Alessandro Trabattoni<br />
(un eunoco servo di Siomar).<br />
37 Il cast era il seguente: il baritono Vincenzo Greco (Conte di Rysoor), il soprano Ginevra Colombo (Dolores), il<br />
tenore Carlo Pizzorni (Karloo), il basso Lorenzo Meneghello (Duca d’Alba), il soprano Giulia Welmi (Raffaella), il<br />
basso Marco Pavesi (Rincon) e il tenore Luigi Minotti (Noircames).<br />
38 Budden, J., Le opere di Verdi, vol III, p. 174, EDT, Torino, 1988 [The Operas of Verdi, Cassel, Londra, 1981], p.<br />
173.<br />
39 Budden, J., op. cit., p. 174.<br />
53<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
54<br />
D’Arienzo. Una volta arrivato, in questo modo travagliato, allo scenario lirico, il testo di<br />
Sardou diventò altre volte melodramma. Il lavoro di Bernardi su quel testo rifiutato da<br />
Verdi succedette così di cinque anni il lavoro del compatriota Rossi ma ancora nel 1886<br />
Patrie! divenne, grazie a Émile Paladilhe un dramma lirico in cinque atti cantato in francese.<br />
Il New York Times, del 26 dicembre del 1886, pochi giorni prima della presentazione dell’<br />
opera di Paladilhe, mostra di ignorare i melodrammi di Rossi e Bernardi e non prevede un<br />
grande futuro per l’operazione di Paladilhe: “The play is very scenic and highly spectacular<br />
but I do not think it will be a success, because it wants as a whole, the soul of music. 40 ”<br />
Malgrado questa infausta profezia l’opera del francese riscosse un buon successo e dopo<br />
la prima che ebbe luogo all’Opèra il 30 dicembre del 1886 fu rappresentata sovente prima<br />
della Grande Guerra.<br />
Nell’ambito del teatro musicale più lieve, il poliedrico Bernardi compose El granduca<br />
de Gerolstein: operetta buffa con prosa in dialetto: rappresentata al Teatro Milanese<br />
per la prima volta il 3 gennaio 1871/poesia di Cletto Arrighi. Lo spettacolo, come era abituale<br />
nel genere, riuniva ruoli cantati e recitati41 . Va detto che il sopranome Cletto Arrighi<br />
nascondeva l’identità di Carlo Righetti. Lo stesso anno presenta A Zig-zag. Rivista fantasmagorica<br />
del triennio 1871-3 e nel 1877 la rivista d’indubbio tono leggero, Minimpipi.<br />
Di tutt’altro carattere altre preoccupazioni del milanese: Bernardi, mentre suonava<br />
alla Scala dedicò fatiche alla didattica del flicorno basso42 e pubblicò anche uno schema<br />
didattico organologico43 .<br />
Grazie alla proficua lettura di pubblicazioni periodiche veneziane ho imparato<br />
che Bernardi fu ben noto a Venezia essendo celebrato come direttore della banda cittadina,<br />
quella che si esibiva regolarmente a Piazza San Marco. Da quei dati si conferma che Bernardi<br />
era soprattutto famoso in funzione della sua musica ballabile: la banda, anche se diretta<br />
da altri musicisti, eseguiva spesso galops e polke estratte dai suoi balletti Cola di Rienzi,<br />
Fata Nix e Ate. Ma sempre dalla lettura dello stesso giornale, si evince che i veneziani potevano<br />
seguire anche la fortuna dei suoi melodrammi. Infatti, La Gazzetta di Venezia<br />
pubblica notizie provenienti da Trieste di questo tenore: “ L’opera Patria!, del maestro<br />
Bernardi, nuova per Trieste, ha ottenuto l’altra sera un ottimo successo”. 44<br />
Bernardi fu anche direttore di orchestra, soprattutto di opera, e qualche dato<br />
proveniente dalle fonti italiane può dare idea dell’ambiente musicale che frequentava. Il<br />
musicista diresse sovente nel nord Italia soprattutto a Milano – alla Scala – e Torino. Il suo<br />
repertorio come direttore comprese opere famose del repertorio ma anche titoli marginali<br />
e sembra e la sua attività in tal ruolo sia stata particolarmente intensa dopo il 1872. A Torino<br />
presentò L’Ombra di Flotow e a Milano diresse Reginella di Gaetano Braga, Luce di<br />
Stefano Gobatti, Arrigo II di Antonino Palmintieri, La Valle d’Andorra di Halèvy ma anche<br />
Semiramide e La Gioconda. Una produzione scaligera di Aida, a ridosso della prima italiana<br />
dell’opera, lo trova nel ruolo di “regista supervisore”, niente meno che accanto a Francesco<br />
Faccio. Alla Fenice invece, come responsabile principale della produzione, si presentò nelle<br />
recite straordinarie del 1877 con una compagnia di canto di primissima linea e fu così che<br />
il milanese diresse l’indiscussa diva di quegli anni, Adelina Patti. Il programma di quella<br />
stagione comprendeva, tra dicembre e marzo, diversi titoli ma sicuramente la Patti fu<br />
diretta da Bernardi in La Traviata, Faust ed Il barbiere di Siviglia45 . L’attività di direttore lo<br />
trova anche in luoghi di minore importanza e così Bernardi fu spesso attivo sul podio del<br />
...........................................................................<br />
40 Sardou’s “Patrie” as an opera in: The New York Times, 26 dicembre del 1886.<br />
41 Biblioteche della Fondazione Giorgio Cini, Venezia - VE [fondo/segnatura] Rolandi - BER-BERN:<br />
IT\ICCU\DE\98103003824.<br />
42 F. Lucca, Milano, 1862.<br />
43 Gio. Canti, Milano, [s.d].<br />
44 23 de mayo de 1881.<br />
45 A cura di M. Girardi e F. Rossi, Albrizzi, Venezia, 1989.<br />
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55<br />
Teatro Concordi della città di Padova, da dove scrivo. Qui, tra il Natale del 1881 e il carnevale<br />
successivo presentò Les Huguenots con buon successo e celebre cast. Scrive il giornale<br />
veneziano: “A Padova ebbero prospere sorti gli Ugonotti, e si distinsero specialmente il<br />
soprano Bulicioff, e il tenore Novelli e il maestro concertatore Bernardi. 46 Leggendo con<br />
un po’ di attenzione si può capire che sebbene il critico scrivente era, all’occorrenza, capace<br />
di severità – bolla il coro di mediocre – loda il “chiarissimo” lavoro di Bernardi:<br />
L’orchestra è diretta dal chiarissimo maestro concertatore Bernardi Enrico […].<br />
Le masse corali vennero applaudite nel famoso ra-ta-plan. Nel capo d’opera dalla<br />
congiura sono rimaste nella mediocrità. Il complesso lascia di che dire […]. 47<br />
Ancora, in La Gazzetta di Venezia si legge dell’attività di Bernardi fuori dell’Italia.<br />
Il dato del periodico permette così d’identificare il musico attivo a Venezia e Padova con<br />
lo stesso oscuro personaggio che dirigeva a La Plata, e che collaborava anche con cantanti<br />
importanti e addirittura con il più celebre compositore brasiliano, Carlos Gomes. Il periodico<br />
scrive delle attività musicali di Bernardi a Pernambuco, questo pochi mesi dopo di quel<br />
Meyerbeer padovano. Lo spettacolo in tournée è di altissimo prestigio si annuncia e non<br />
soltanto perché della compagnia partecipa Libia Drog, che è il centro della notizia, ma<br />
anche perché dirigono due maestri che garantiscono il successo: Bernardi e Gomes, citati<br />
ambedue in rapporto di paritaria importanza (!).<br />
Notizie teatrali – Siamo lieti di registrare che la nostra concittadina Lidia Drog,<br />
artista di canto distintissima per voce bella, fresca e poderosa e per ottimo<br />
metodo di canto, meriti che acquistano particolare risalto della rara bellezza del<br />
viso e della figura, ha sollevato, al teatro S. Isabella di Pernambuco, un vero entusiasmo,<br />
in seguito al successo costante che la signorina Drog seppe ottenere<br />
in parecchie opere. – Lo spettacolo importantissimo, il che risulta non solo dai<br />
nomi degli artisti, tutti pregevoli, ma anche dai maestri che concertano e dirigono<br />
gli spettacoli, essendovi colà i maestri Bernardi e Gomez, imprime al successo<br />
della signorina Drog un vero valore artistico, e ci è caro rivelarlo. 48<br />
Il periodico non esagerava rispetto alla Drog. La cantante era un soprano molto<br />
noto, di attività internazionale nei più alti scenari: aveva cantato con divi come Francesco<br />
Tamagno nel primo teatro di New York. 49 L’artista era, infatti, molto conosciuta fuori d’Italia<br />
e la tournée brasiliana era moneta corrente per un’artista che, come ci risulta dal Data<br />
Base IMLA, si era presentata in Europa da Las Palmas a Bucarest e – assieme allo spagnolo<br />
Andrés Antón – in teatri d’America come il Guzmán di Caracas e le principali scene<br />
messicane ed è più che probabile che il maestro abbia accompagnato alla cantante in<br />
altre trasferte. 50 Trovare dunque il nome di Bernardi associato alla Drog prova di rimbalzo<br />
l’importanza del nostro direttore d’orchestra.<br />
L’elenco che fino adesso ho potuto ricostruire, sicuramente parziale, mostra una<br />
intensissima attività di Bernardi nelle diverse attività che ha svolto nel mondo musicale.<br />
La sua carriera lo mostra, soprattutto, inserito proficuamente nel competitivo ambiente<br />
dello spettacolo italiano di quegli anni, un ambiente affollato di personalità di primissimo<br />
...........................................................................<br />
46 28 de diciembre 1881.<br />
47 3 de enero de 1882.<br />
48 3 de septiembre de 1882.<br />
49 Precisamente si dice che la Drog rovinò il debutto del gran tenor al Metropolitan di New York al dimenticare il<br />
testo di “Selva opaca” nel Guglielmo Tell.<br />
50 Data base Imla Mig. Cd Rom, coordinamento, D. Pala, direzione scientifica, A. E. Cetrangolo.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
56<br />
rango. Questo percorso italiano di Bernardi trova il musicista in collaborazione con le<br />
figure più note dell’ambiente artistico a lui contemporaneo. Bernardi ha diviso la scena<br />
con persone come Franco Faccio e Adelina Patti e abitava in una città che era un vero palcoscenico.<br />
Milano allora ospitava una ragnatela di personaggi e in quella rete Enrico Bernardi<br />
è sempre coinvolto. Fu amico di Carlos Gomes che risiedeva nella città e, del collega<br />
brasiliano, sovente diresse le opere. Nel 1884 si trovava a Milano oltre che Gomes anche<br />
un altro compositore, suo compatriota: João Gomes de Araújo e Milano era tanto la città<br />
di Bernardi come di Ferdinando Fontana, librettista di Bernardi, di Gomes de Araujo e perfino<br />
di Gomes e Puccini. L’ambiente meneghino risulta fertile per i contatti transatlantici<br />
come mostrano le collaborazioni dei brasiliani Gomes e Gomes de Araújo con il librettista<br />
di Aida, Antonio Ghislanzoni, ancora un lombardo.<br />
La presenza di quella compagnia italiana a Pernambuco, documentata dai periodici<br />
italiani, stimola lo studio delle fonti brasiliane, attività già in corso grazie all’utile raccolta<br />
di dati che sull’Ópera de Belém do Pará ha svolto Márcio Páscoa. 51 Da questa fonte<br />
apprendo che a Bernardi fu affidata nel 1880, la prima stagione lirica dello stupendo Teatro<br />
da Paz nella quale cantava la Drog. Bernardi, anni dopo, avrebbe avuto analogo onore<br />
inaugurando quel Teatro Amazonas, che il cinema ha reso ancora più famoso. Un altro<br />
dato mostra la rilevanza di Bernardi e della considerazione che di lui aveva Carlos Gomes:<br />
l’ìtaliano diresse la prima assoluta nella regione dell’opera brasiliana più famosa, Il Guarany.<br />
In quell’occasione, l’entusiasmo del pubblico di fronte all’opera del suo compatriota fu<br />
enorme, e secondo quanto si legge nei giornali locali, di fronte all’impossibilità di acclamare<br />
Gomes di persona per osannarlo, gli spettatori in delirio omaggiavano – anche nei finali<br />
d’atto – il direttore d’orchestra Bernardi, simulando fosse Gomes. Bernardi era<br />
rappresentante del Genio assente: “Após o primeiro ato, como o público não podía vitoriar<br />
pessoalmente a Carlos Gomes, chaumou à cena o maestro Bernardi, regente da orquestra,<br />
simulou que tinha em sua presença o imortal paulista e vitoriou-o estrondosamente.” 52<br />
Questo crescendo di foga culminò nel parossismo al finale dell’opera: “até que ao fim da<br />
peça a assistência já estava a delirar atirando ao palco as mais diversas oferendas, flores,<br />
poesias, hinos, presentes, etc.” 53<br />
Bernardi fu allora considerato, al di là dei propri valori musicali, come il sacerdote<br />
di una liturgia musicale patria. In quella stagione del 1880 il milanese presentò un<br />
programma completamente italiano. Ernani, Un Ballo in Maschera, Il Trovatore, Rigoletto,<br />
Norma, Lucrezia Borgia, Ruy Blas.<br />
Due anni dopo, Bernardi tornò a dirigere nello stesso teatro ma questa volta<br />
condividendo la responsabilità della stagione del teatro con lo stesso Gomes. Il brasiliano<br />
fu ricevuto come era facile supporre con una foga “feérica, apoteótica” 54 . Nel 1882, e<br />
questo conferma quell’annuncio del giornale veneziano, viaggia la Drog e la sua presenza<br />
nel cast fa supporre che la compagnia di canto sia stata più che degna. L’orchestra era<br />
completamente formata da italiani e nel suo organico c’erano due strumentisti che forse<br />
erano parenti di Enrico Bernardi. 55 Nel 1882 si presenta una stagione che segue lo schema<br />
del 1880, cioè tutto italiano con una prima locale di Gomes: Salvator Rosa. Bernardi dirige<br />
anche in quell’occasione, con Gomes presente, musiche del brasiliano.<br />
Anche l’importante stagione del 1883, praticamente organizzata da Gomes, vede<br />
la partecipazione di Bernardi come direttore delle opere. La critica locale anche se spesso<br />
si mostra poco soddisfatta con la compagnia di canto, loda la direzione intelligente del<br />
...........................................................................<br />
51 Páscoa, M., Cronología lírica de Belém, Asociaçãon Amigos do Teatro da Paz, Belém, 2006.<br />
52 O Liberal do Pará, 10 de agosto de 1880, cit. da Páscoa, M., op. cit., p. 18.<br />
53 O Liberal do Pará, op. cit.<br />
54 Páscoa, M., op. cit., p. 35.<br />
55 Infatti Márcio Páscoa include i nominativi nei membri di quell’orchestra e li si leggono che un cornista ed un<br />
trombonista si chiamano rispettivamente Aristide e Simone Bernardi. Páscoa, M., op. cit., p. 38.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
57<br />
“distinto maestro Bernardi”. 56 Páscoa ipotizza che tra il 17 ed il 26 giugno si sia presentato,<br />
in mezzo ad altre prime, Patria! di Bernardi nel teatro. 57 L’esperienza di Gomes come organizzatore<br />
teatrale fu fallimentare ed il brasiliano, invece di continuare con l’anelata tournée<br />
brasiliana tornò in Italia. Tutto diverso l’avvenire di Bernardi. Il riconoscimento, l’accoglienza<br />
locali e le possibilità di lavoro stavano convincendo il milanese di congedarsi della<br />
banda di Piazza San Marco e pensare di più a Belém dove dal 1883 fisserà dimora partecipando<br />
attivamente alla vita musicale del luogo. La scena lirica del Teatro da Paz accoglierà<br />
ancora Bernardi come direttore d’orchestra della stagione 1896 con il ritorno della Drog.<br />
Quel dilatato periodo di residenza sudamericana e quel lasso di tempo tra 1883 e 1896 è<br />
quanto attira la mia attenzione. Fu allora che il musico visse a Buenos Aires? Evidentemente<br />
il milanese non avrà avuto vita molto sedentaria se è vero che “Voltou a digressões durante<br />
os anos de 1890, retornando a Belém para suceder Gomes na direção do conservatório<br />
local.” 58<br />
In funzione delle nuove informazioni brasiliane sarà d’uopo tornare all’esame di<br />
dati su Buenos Aires: altre cronologie del Data Base, altre pubblicazioni periodiche.<br />
Rispetto alle cronologie teatrali ho compilato un elenco di opere rappresentate<br />
a Buenos Aries basandomi su pubblicazioni giornalistiche in quanto nessuno studioso locale<br />
aveva realizzato lavori analoghi per questo periodo59 e i fondi della città hanno conservato<br />
materiale teatrale molto scarso. Riguardo l’esame delle pubblicazioni periodiche invece,<br />
risultano preziosi i lavori che giovani studiosi argentini stanno svolgendo su fondi<br />
locali. 60<br />
Risulta da queste indagini che Bernardi svolse un ruolo di prim’ordine nella capitale<br />
argentina durante 1890. Infatti il milanese si presentò come direttore nella massima<br />
sala lirica di Buenos Aires, il Teatro Ópera, e fu, in conseguenza anche in Argentina, inserito<br />
nell’ambiente più prestigioso giacché faceva parte della compagnia dell’onnipossente Angelo<br />
Ferrari. Bernardi collaborava, assieme ad Arnaldo Conti, con un grande maestro di<br />
quegli anni, niente meno che Marino Mancinelli. È abbastanza possibile che a Buenos Aires<br />
Bernardi fosse considerato di fama superiore a Conti giacchè nelle promozioni il suo<br />
nome compare prima di quello del collega e, tra l’altro, non come “sustituto” ma sotto la<br />
dicitura “otro director”. Quella stagione dell’Ópera ospitava artisti di calibro internazionale<br />
che Bernardi ha potuto frequentare, talvolta dirigere, come Adalgisa Gabbi, Elvira<br />
Colonnese, Zina Dalty ed Amelia Stahl e soprattutto comprendeva un gruppo maschile<br />
d’importanza storica. Infatti, il cast poteva vantare tre dei più famosi tenori del momento<br />
– Tamagno, De Lucia e De Marchi –, per non parlare dei due baritoni: Maurel e Kaschmann.<br />
Le vicende successive di Bernardi, almeno quelle che conosco fino adesso, mostrano<br />
un’attività meno brillante, almeno a giudicare dalle sedi: dirige a La Plata nel 1891 e,<br />
tra marzo e maggio del 1894, a Buenos Aires nel Teatro Doria. Il Doria, che le cattive lingue<br />
chiamavano “la ópera barata”, era una sala frequentata dai lavoratori immigranti. La<br />
stagione di questo teatro, tipica produzione di repertorio, quel 1894 presentava una<br />
compagnia capeggiata da Carlos de Mattia e che comprendeva: La Forza del Destino, Il<br />
Trovatore, Aida, Cavalleria Rusticana, La Favorita, Il Guarany, Un Ballo in Maschera, Fausto,<br />
Norma, La Gioconda, Rigoletto, Ernani e Lucrezia Borgia. È evidente che quella serie di<br />
...........................................................................<br />
56 Liberal do Pará, 1 maggio 1883, citato da Páscoa, M., op. cit., p. 42.<br />
57 Páscoa, M., op. cit., p. 46.<br />
58 Páscoa, M., op. cit., p. 244.<br />
59 Tranne che per una sala marginale, il Teatro Doria: Dillon, César A. y Juan Andrés Sala, El teatro musical en<br />
Buenos Aires. Teatro Doria – Teatro Marconi, Gaglianone, Buenos Aires, 1997.<br />
60 Si tratta di lavori che su fonti poco studiate come il periodico El Mundo del Arte stanno sviluppando Ignacio<br />
Weber del Proyecto Ubacyt La música en la prensa periodica argentina e Marina Pruski, Elias Joel Kelly, Pablo<br />
Palomino, Walter Palotta, Esteban Pizá y Jorge Gustavo Torres, partecipanti del seminario Migraciones artísticas<br />
en el Río de la Plata organizzato dall’IMLA, il Cemla e L’Unsam, che ho tenuto a Buenos Aires nel 2010.<br />
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58<br />
titoli ben avrebbero potuto conformare una stagione tipica del Teatro da Paz. Ancora di<br />
più, due dei cantanti che Bernardi diresse al Doria, il baritono Fortunato Cecchini ed il<br />
tenore Egisto Guardenti, furono attivi anche al Teatro da Paz e specialmente interessante<br />
è il caso di Guardenti: il tenore ha cantato, diretto sempre dal maestro milanese, il ruolo<br />
di Pery nella più celebre opera brasiliana, tanto nel Doria come a Belem.<br />
Bernardi, come in Italia, risulta essere stato conosciuto in Argentina anche come<br />
compositore poliedrico giacché scrive con successo tanto musica da ballo per il Jardín Arcadia,<br />
un luogo alla moda, 61 come una Messa per voci bianche e quartetto d’archi, filarmonica<br />
e flauto che si presentò nella cattedrale di La Plata. 62 In poco tempo, dunque, il<br />
maestro era riuscito ad inserirsi nell’ambiente locale e il cronista del brano sacro platense<br />
annota che “musica ed esecuzione nulla lasciarono a desiderare” e che si aspetta di “applaudire<br />
presto il bravo Maestro in qualche nuova opera” già che “egli va giustamente annoverato<br />
fra i migliori compositori”. 63<br />
Forse Bernardi, in tutto si è fermato quattro o cinque anni in Argentina componendo<br />
e dirigendo durante parecchie stagioni. Ma sono altre le attività di Bernardi che lo<br />
rendono così interessante per la ricerca sudamericana: il milanese non soltanto fu il responsabile<br />
della prima argentina di un titolo celebre del repertorio lirico ma compose in quella<br />
terra anche un melodramma molto curioso. I due eventi artistici sono fortemente intrecciati<br />
tra di loro come cercherò di spiegare di seguito.<br />
Bernardi fondatore dell’ópera nacional?<br />
Sia detto subito che la presenza di Bernardi in Argentina fu contemporanea di<br />
un fenomeno che colpiva la società argentina: il successo straordinario della versione teatrale<br />
del Juan Moreira, la storia di un gaucho mitico che era stato portato alle scene da<br />
artisti di circo immigrati. Il milanese approfittò quell’occasione che travalicava il fenomeno<br />
artistico. Al suo arrivo a Buenos Aires fu testimone non della creazione di un personaggio<br />
teatrale ma di un tipo, e questo tipo nacque intorno al paradigma che personificava<br />
l’identità nazionale. José Podestà, figlio dei genovesi Pietro Podestà e María Teresa Torterolo<br />
elaborò un carattere per il suo teatro circense. Il suo Juan Moreira era personalissimo ed<br />
originale, anche se costruito sul protagonista di un romanzo di Eduardo Gutiérrez che a<br />
sua volta si era ispirato su un famoso fuorilegge vissuto poco tempo prima. Il grande studioso<br />
di teatro Mariano Bosch, che visse durante il successo di Podestà, sottolinea infatti<br />
che quella dell’attore fu “creación de la nada”. Chiunque dopo di lui abbia voluto evocare<br />
quell’emblema, ha dovuto fare i conti con il modello coniato da Podestà, cioè l’eroe di<br />
“luengas barbas negras i melena aceitada, chambergo con barbijo i echado para atrás<br />
como descubriendo el letrero de guapo que tenia en los ojos i la frente, tipo noble sin<br />
miedo, atropellador, cantor i poeta, gran jinete”. Il risultato fu che il Moreira di Podestà<br />
risultò più vero che il personaggio del romanzo e più vero che il Moreira in carne ed ossa.<br />
Scrive Bosch che Podestà “tan real lo creó, que despuès de su interpretación, cualquier<br />
otro Moreira seria apócrifo; hasta el propio Moreira que vivió, si resucitara.” Attraverso la<br />
segnalazione di Bosch, si conferma ancora una volta, che tra mito e realtà non corre buon<br />
sangue. Sembra dunque che le liturgie possono organizzarsi soltanto intorno ad una falsificazione<br />
e, come famosamente pronunciò il pioniere di questi studi, le nazioni possono<br />
soltanto crearsi sugli errori. La verità svelata dal “progresso degli studi storici rappresenta<br />
spesso un pericolo per le nazionalità.” 64<br />
...........................................................................<br />
61 Veniard, J. M., La Música Nacional Argentina, Instituto Nacional de Musicología “Carlos Vega, Buenos Aires,<br />
1986, p. 196.<br />
62 Cronica locale in El Mundo del Arte, 18 diciembre di 1981, p. 10.<br />
63 Cronica locale in El Mundo del Arte, 18 diciembre di 1891, p. 10.<br />
64 Renan, E., Che cos’è una nazione? Conferenza tenuta alla Sorbona l’11 marzo 1882. Donzelli, Roma, 1993, p. 6.<br />
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59<br />
Il gaucho di Podestà, ebbe, sempre secondo Bosch, una nobiltà e una valenza di<br />
rivendicazione sociale, di protesta contra l’ingiustizia arbitraria, che riunì l’adesione<br />
entusiasta del pubblico. Al di là dell’ambito del circo, del mondo dell’arte, Moreira fu così<br />
“drama de carácter social.” 65<br />
Altri Moreira<br />
Dalla lettura dei periodici di quegli anni risulta che una miriade di spettacoli di<br />
vario tipo, seguendo il modello di Podestà, drammatizzarono le vicende del gaucho Juan<br />
Moreira cavalcando un successo nato nella modestia del circo.<br />
S’impara da quelle fonti che tra le diverse trascrizioni sceniche del Juan Moreira<br />
ve ne fu una molto particolare. Sulle scene del teatro Doria salì una versione teatrale in<br />
italiano. Il cronista di El Mundo del Arte, periodico bilingue vicino alla comunità peninsulare,<br />
segnalava che “I costumi erano perfettamente imitati; gli artisti si sforzarono, e riuscirono<br />
ad essere dei buoni gauchos…italiani” 66 . La stessa rivista fornisce il nome del responsabile<br />
delle versioni italiane del Juan Moreira e de altre pièces d’ambientazione rurale: “Molta<br />
gente, mi dicono, va alle rappresentazioni della “Figlia del Gaucho” dramma criollo italianizzato,<br />
dal sig. Gismano, lo stesso autore che con bastante fortuna italianizzó il “Juan<br />
Moreira”, e che ridusse per le scene “L’Orfana del Ghetto”. Davvero che l’operosità del Sig.<br />
Gismano è straordinaria…”. 67 Nello stesso anno la compagine si presenta a Mendoza.<br />
José Francisco Navarrete informa che in questo modo il Juan Moreira fu conosciuto in italiano<br />
in città. Soltanto trent’anni dopo, quando l’interesse per queste rappresentazioni<br />
era già spento e Mendoza s’entusiasmava per certe presenze in città tanto reali come<br />
virtuali – Arthur Rubinstein e Charlie Chaplin – poté conoscere il Moreira portato in città<br />
dal proprio José Podestà. Si trattava di una delle ultime fatiche della sua carriera. Il racconto<br />
di Navarrete è prezioso perché ci informa di quella pioniera Compañía Dramática Italiana<br />
G. Modena, diretta da Rómulo F. Lotti. Il gruppo si congedò del pubblico del Teatro<br />
Municipal, prima di proseguire per il Cile con il Juan Moreira che Gismondi aveva scritto<br />
espressamente per la compagnia. Si noti come l’autore della nota accusa Gismondi di<br />
essersi “appropriato” del testo:<br />
En la función de despedida estrenaron el “grandioso drama criollo en seis cuadros,<br />
escrito ex profeso para la compañía por el Sr. D. Gismano ¡Juan Moreira”! Así, este autor<br />
italiano se apoderaba de un texto, al que con seguridad había accedido en Buenos Aires,<br />
y lo daba a conocer en Mendoza pero en idioma italiano. 68<br />
Questa operazione di Gismondi sarà sicuramente un passo che porterà ad<br />
un’azione ancora più sorprendente: la trasposizione lirica della storia del famoso gaucho.<br />
Della cosa si dà notizia nella stessa nota perché si dice che “A proposito di Juan Moreira è<br />
ormai noto che se n’è fatto un libretto d’opera, che un maestro molto conosciuto nella<br />
capitale e nella Plata, sta musicando” 69 . La nota del periodico nasconde nel mistero il<br />
nome tanto del librettista come del compositore. L’arcano dura poco. Nello stesso numero<br />
del periodico s’informa che “i versi sono di un nostro collaboratore e la musica del Cav.<br />
Enrico Bernardi. Il cronista manifesta che ha avuto occasione di ascoltare il primo atto<br />
dell’opera e ci informa delle sue impressioni che, giacché la musica non si conserva, sono<br />
...........................................................................<br />
65 Bosch, M. G., Historia de los orígenes del Teatro Nacional Argentino y la época de Pablo Podestá, Talleres<br />
Gráficos Argentinos L. J. Rosso, Buenos Aires, 1929, p. 42.<br />
66 Battaglia, R., Platea e Palcoscenico. Teatro Doria. Juan Moreira; L’Ebreo Errante in El Mundo del Arte, 1 gennaio<br />
1892.<br />
67 Brontolon, T., [Battaglia, R.], Platea e Palcosecnico. Teatro Doria in El Mundo del Arte, 20 febbraio 1892, p. 2.<br />
68 Navarrete, J. F., Cubillos y el ciclo de la gauchesca en Mendoza in Tendencias criticas en el teatro, a cura de<br />
Osvaldo Pellettieri, Galerna, Buenos Aires 2001, p. 267.<br />
69 Battaglia, R., Platea e Palcoscenico. Teatro Doria. Juan Moreira; L’ebreo Errante in El Mundo del Arte, 1 gennaio,<br />
1892, p. 2.<br />
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preziose: “mantenendo in parte quel cachet tipico melanconico proprio del ritmo gaucho<br />
vi si allontana giustamente quando deve esprimere la forte passione, e si slancia vigorosamente<br />
italiana”. Come dire, va bene la malinconica campagna argentina ma senza il<br />
nostro sangue l’opera non funziona70 . Il giornalista ci racconta che il Juan Moreira di Bernardi<br />
ospita un coro di gauchos, il brindisi, una canzone napoletana, un walzer ed il concertato<br />
finale che ha delle “frasi melodiche facili e felicissime” “ 71 . Possiamo dunque farci un’idea<br />
di questa pampa che tanto concede al golfo di Sorrento e ai boschi viennesi. La frase finale<br />
dell’articolo dà un colpo di grazia: Juan Moreira avrà ottimo successo anche se eseguito<br />
da una compagnia italiana. Si scrive, anticipando difese ad attacchi possibili: “sarebbe<br />
strano che le opere potessero eseguirsi bene solo dagli elementi ai quali appartiene per<br />
nazionalità il soggetto del quale si tratta”.<br />
Simili aperture alla libertà creativa intorno alla figura del gaucho, sembrano cozzare<br />
con richieste di segno opposto. È necessario “fare” il Juan Moreira con meno fronzoli e<br />
con più purezza di pampa. Il cronista che si nasconde sotto lo pseudonimo Todero Brontolón<br />
si fa eco di una richiesta di El Diario: “Ni andaluces, ni velas de baño, ni alamares, ni bordados<br />
de seda verde…hay que hacer más rural a Juan Moreira”. 72<br />
Dunque El Mundo del Arte tra informazioni in contagocce sul Juan Moreira, che<br />
significativamente s’incrociano con la singolare operazione di Gismondi, anche se ci informa<br />
sull’autore della musica, non chiarisce chi è il librettista, a cui soltanto allude con quel<br />
“nostro collaboratore”.<br />
A questo punto bisogna chiarire un punto. Il finale del primo degli articoli di El<br />
Mundo del Arte su Juan Moreira dà una notizia come coda: “A proposito di Juan Moreira<br />
è ormai noto che se n’è fatto un libretto d’opera…”. Questo testo chiude la notizia sulle<br />
attività di Gismondi come autore del Juan Moreira in italiano. Si evince con chiarezza<br />
dalle righe precedenti che quell’operazione consistete nello scrivere una versione parlata<br />
in italiano su Juan Moreira ed il periodico non indica, come invece legge Veniard, che Gismondi<br />
sia l’autore di quel libretto che si menziona alla fine dell’articolo.<br />
Veniard fonde nella stessa citazione due diversi articoli della rivista quello del<br />
primo gennaio (I versi sono di un nostro collaboratore” e quello del 20 febbraio (“Teatro<br />
Doria…Molta gente va, …alle rappresentazioni della “Figlia del Gaucho” dramma criollo<br />
italianizzato, dal Sig. Gismano, lo stesso autore che con bastante fortuna italianizzo il “Juan<br />
Moreira”), facendo diventare consequenziale l’incoraggiamento al “bravo signor Gismano”<br />
rispetto all’anonima composizione del libretto. 73<br />
In realtà sembra chiaro che al Doria si recitò e al Nacional si cantò. In effetti,<br />
quando il periodico fa la sua cronaca sullo spettacolo del Doria utilizza sempre il verbo<br />
“recitare”e così l’autore del pezzo, Brontolón, critica l’operazione del Doria: “Il Juan Moreira<br />
deve essere recitato in idioma del paese”. Della stessa maniera manca allusione alcuna a<br />
uno spettacolo lirico nella presentazione mendozina che racconta Navarrete.<br />
...........................................................................<br />
70 Il tema della pampa come paesaggio noioso e poco stimolante all’arte fu argomento di famosa polemica tra il<br />
pittore Eduardo Schiaffino e lo scrittore Rafael Obligado. Scrive Schiaffino: “el paisaje toca los límites de la<br />
mayor pobreza, y las costumbres achatadas por el servilismo, desteñidas por el cosmopolitismo, van perdiendo<br />
gradualmente toda originalidad, sin que se pueda prever aún cuál será el carácter definitivo que afectará nuestra<br />
campaña…. la línea está ausente en la campaña de Buenos Aires, [...] no hay nada imprevisto, triunfa y domina<br />
lo que es chato”, Schiaffino, Eduardo, Pro-Patria. Contribución del ingenio argentino para la reconstrucción de<br />
la “Rosales”. Buenos Aires, José Antonio Berra Impresor, 1893. Perfino i compositori d’opera come Eduardo<br />
García Mansilla, iscritti nel più radicale movimento nazionalista, perciperono inadeguata alla tensione drammatica<br />
la scena della pampa e l’”arricchirono”, all’occorrenza d’improbabili palme tropicali, cf. Cetrangolo, A. E., El<br />
melodrama italiano en Argentina entre 1880 y 1920, Tesi Dottorale, relatore Prof. Enrique Cámara de Landa,<br />
Università di Valladolid, 2010, p. 670.<br />
71 La nostra música in El mundo del Arte, 1 gennaio 1892, p. 10.<br />
72 Brontolon, T., Platea e palcoscenico. Jardín Florida in El mundo del Arte, 20 de febrero de 1892, p. 2.<br />
73 Veniard, J. M., Arturo Berutti, un argentino en el mundo de la ópera, Instituto Nacional de Musicologia, Buenos<br />
Aires, p. 198.<br />
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61<br />
Comunque credo molto possibile che la pièce parlata in italiano di Gismano sia<br />
stata la base del libretto di Bernardi. È possibilissimo che quel passaggio da pièce a libretto<br />
lo abbia fatto lo stesso Gismano ed è molto possibile che invece abbia ragione Veniard<br />
quando suppone Gismano sia Amilcare Evaristo Gismondi. Gismondi era un genovese<br />
nato nel 1853 che si trasferì a Buenos Aires dopo aver studiato musica con Tito Maffei e<br />
pubblicato qualche musica sua con Ricordi. In Argentina si è occupato di commercio e di<br />
industria. Fu il primo a impiantare una fabbrica di olio nel paese. Si dedica al giornalismo<br />
collaborando con La Patria degli Italiani, La Nación e La Prensa firmando con lo pseudonimo<br />
di Mefistófeles. Gismondi fu tra i critici musicali più importanti di allora a Buenos<br />
Aires. Viveva in centro, a Cangallo 1848. 74 Quando Puccini visitò Buenos Aires nel 1905<br />
Gismondi accompagnò e organizzò festeggiamenti in onore del compositore. L’Archivio<br />
Ricordi conserva importante documentazione fotografica di Gismondi.<br />
In una curiosa risurrezione nel Plata della secolare questione della verosimiglianza<br />
nell’opera, il cronista di El Mundo del Arte informa che si compone un melodramma su<br />
Juan Moreira anche se certi impresari locali criticano l’operazione perché il famoso gaucho<br />
“non era cantante” 75 . Lo stesso periodico dà un’informazione che trovo preziosa: il Juan<br />
Moreira lirico ha dei punti di contatto con Cavalleria Rusticana e questo ci porta subito ad<br />
altre attività di Bernardi<br />
Bernardi Pirata?<br />
Non credo che tale associazione del cronista sia affatto casuale: il celebre titolo<br />
di Mascagni era stato presentato in prima assoluta a Roma, nel maggio del 1890, cioè<br />
meno di due anni prima del racconto argentino. Certamente la nuova opera, anche se<br />
d’un compositore novello aveva provocato grande impressione nella città come in tutto il<br />
mondo e si sapeva di produzioni storiche come quella di Budapest diretta da Mahler.<br />
Quando il cronista di El Mundo del Arte scrive, Cavalleria era già stata presentata a Buenos<br />
Aires, precisamente al teatro Nacional nel febbraio del 1891, cioè anticipando di pochi<br />
mesi la prima – nella stessissima sala – del Juan Moreira. Ancora di più, quella versione<br />
dell’opera di Mascagni fu oggetto di uno scandalo i cui echi arrivarono perfino in Italia in<br />
quanto a Buenos Aires era stata utilizzata un’orchestrazione falsa, quasi sicuramente<br />
confezionata in loco. Credo molto possibile che l’autore di quella strumentazione apocrifa<br />
sia stato Bernardi, che fu il direttore di Cavalleria Rusticana in quella prima “imperfetta”.<br />
È comprensibile che quel “contributo” che Mascagni non aveva mai desiderato, e dunque<br />
forzatamente anonimo, abbia spinto Bernardi a tentare un’altra creazione che invece<br />
potesse firmare con nome e cognome. Quasi svelandolo, la rivista argentina si riferisce al<br />
nascente Juan Moreira come la Cavalleria Nazionale.<br />
La rivista pubblica inoltre una parte dell’opera nuova, si tratta niente meno che<br />
di un … “brindisi” particolarmente simile a quello di Mascagni il che ben potrebbe<br />
confermare la parentela tra Giovanni Moreira (sic) y Turiddu. L’invito Bernardi:<br />
Beviamo amici, colmo il bicchier<br />
Beviamo amici che il liquor ci scaccia<br />
i funesti pensier<br />
Ben ricorda la famosa promozione etilica di Mascagni dove ci propone di bere:<br />
...........................................................................<br />
74 Dizionario biografico degli italiani al Plata, a cura degli editori, Barozzi, Baldissini & Cia. Buenos Aires, 1899, p.<br />
173, 174.<br />
75 El Mundo del Arte, 23 novembre di 1891, p. 2.<br />
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62<br />
Intanto amici, qua, beviamone un bicchiere.<br />
[…] il vino ch’è sincero<br />
E che annega l’umor nero,<br />
Pochi anni dopo, persuasi di stare “facendo patria”, alcuni compositori argentini<br />
percorrerranno con perseveranza il sentiero di cantare liricamente le vicende del gaucho.<br />
Il più famoso di questi tentativi, Pampa di Arturo Berutti, intonerà, nel 1897, certi versi<br />
italici – remotissimi discendenti delle arie di paragone metastasiana – che difficilmente si<br />
potrebbero ascoltare tra le immensità della pampa:<br />
Tuona il cielo romba e cade<br />
Sulla Pampa la tempesta,<br />
e il dolor martella, e invade<br />
la mia testa.<br />
In fine<br />
Per concludere, aggiungo la semplice menzione di alcune preoccupazioni, alcuni<br />
dei tanti fili sciolti che aspettano di essere legati ai risultati della ricerca brasiliana. L’esame<br />
di quei argomenti molto potrebbe contribuire a capire meglio l’impiego degli emblemi<br />
lirici nell’incontro di culture diverse che la migrazione provoca.<br />
Così trovo molto interessante la possibilità di approfondire l’analisi di certe prassi<br />
legate alla diffusione del teatro musicale attraverso l’utilizzo delle marionette. Questa<br />
specifica attività drammatica, comune in Brasile e nell’ambiente rioplatense, sembra molto<br />
intensa rispetto alle intonazioni su testi di Antonio José da Silva.<br />
Analogamente si potrebbe seguire anche la traccia della specifica disseminazione<br />
attraverso la letteratura de cordel che secondo David Cranmer costituisce un discrimine<br />
anche per quanto riguarda il repertorio. 76<br />
Un altro sentiero da seguire è certo quello delle committenze in tempi di ancien<br />
regime. Le cerimonie ufficiali sono sicuramente fertili occasioni di collaborazione negli<br />
studi perché allora hanno stimolato la creazione di prodotti musicali. È il caso delle<br />
esaltazioni al trono dei monarchi iberici che hanno provocato occasioni festive anche<br />
nelle colonie americane e le celebrazioni anche periferiche organizzate in circostanza dei<br />
matrimoni tra principi Bragança e Borboni di Spagna o di Napoli. L’arduo compito di spoglio<br />
dei documenti conservati nei diversi archivi delle vecchie metropoli o delle antiche colonie<br />
è soltanto possibile attraverso un lavoro in rete. Il caso già evidenziato dei matrimoni<br />
incrociati tra i quattro futuri regnanti di Spagna e Portogallo celebrato nel 1729 è solo uno<br />
di una serie di eventi che meritano speciale attenzione nella ricerca della committenza<br />
musicale. Altri eventi di quel tipo come l’acclamazione di Don Josè nel 1750 o quella di<br />
Carlos III che Buenos Aires celebrò nel 1760, risultano essenziali per gli sviluppi lirici. Come<br />
fu indicato prima, in quest’ultima occasione Bartolomeo Mazza scrisse un’opera su testo<br />
di Da Silva e nello stesso anno, ma in Brasile, un’altra di queste feste stimolò altre musiche<br />
per il teatro: si tratta di festeggiare nella città carioca il matrimonio principesco tra Donna<br />
Maria e suo zio Don Pedro. Questa produzione è del massimo interesse: in ambito più che<br />
ufficiale, i funzionari di giustizia locali scelgono per omaggiare la dinastia un titolo di Da<br />
Silva. Si trattava dunque di un’opera di quel judeu che vent’anni prima era stato condannato<br />
a morte dal nonno della sposa; inoltre il testo scelto per l’occasione riproponeva il mito di<br />
Amphitrione la stessa storia che era stata intonata da Giacomo Facco per il matrimonio<br />
...........................................................................<br />
76 Cranmer, D., Eighteen-century opera and comedy, manoscritto, 2008, che cita Budasz, R., op. cit. p. 80.<br />
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63<br />
dei genitori di Donna Maria.<br />
Trasversale ai territori dei Bragança e Borboni tanto in Europa come nelle<br />
Americhe è l’attività di teatro musicale dei gesuiti che si produceva abitualmente nei collegi<br />
della Compagnia del Gesù come festa finale degli studi.<br />
Le confraternite religiose che tanto hanno interessato Francisco Curt Lange hanno<br />
conformato una densa rete che legava Napoli, Lima, Buenos Aires e Rio. Le loro promozioni<br />
certo, si riferiscono al prodotto musicale religioso, ma converrà che anche lo studioso<br />
degli sviluppi lirici riesca a monitorare queste reti da vicino: l’operista Pergolesi compose<br />
il suo Stabat Mater incaricato dalla napoletana Confraternita dei Sette Dolori, un’importante<br />
istituzione che aveva ramificazioni tanto italiane quanto americane.<br />
L’attività del data base IMLA ha mostrato, come fu detto nel caso dei musicisti di<br />
Viggiano e anche rispetto alle attività di Enrico Bernardi, l’utilità di seguire il percorso<br />
degli operatori musicali. Lo studio di personaggi come quella rissosa Mascarenhas, la diva<br />
brasiliana attiva a Buenos Aires e Lima, ben potrebbe essere foriera d’importanti informazioni<br />
sulla diffusione dei repertori.<br />
Studiando i letterati vincolati al teatro musicale sarà della maggiore utilità intensificare<br />
gli studi comparativi. Si tratterebbe di approfondire per esempio, i contatti di Metastasio,<br />
poeta cesareo, con José Basilio da Gama, contatti che conosco grazie a Rogerio<br />
Budasz77 , senza dimenticare la produzione del peruviano de las Llamosas che presentò<br />
con successo le sue pièces teatrali alla corte di Madrid.<br />
Nel Settecento, i consuoceri João V e Filippo V non conobbero le rispettive capitali.<br />
In occasione di quelle nozze principesche semplicemente si scambiarono le principesse, e<br />
tornarono alle rispettive corti senza attraversare la frontiera luso-ispana di Caia, mancando<br />
così di partecipare al matrimonio delle proprie figlie. La scienza musicologica adesso dovrà<br />
invece superare quelle barriere e studiare i fenomeni da ambedue i punti di vista.<br />
...........................................................................<br />
77 Budasz, R., op. cit.<br />
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Lídia de Oxum: a ópera negra da Bahia<br />
65<br />
Ilza Nogueira<br />
Universidade Federal da Paraíba<br />
Lídia de Oxum é um dos últimos trabalhos de Lindembergue Cardoso (30 de junho<br />
de 1939 – 23 de maio de 1989), realizado no curto período de março a junho de 1988.<br />
Concebida para a ocasião do centenário da abolição da escravatura (13 de maio de 1988),<br />
a ópera só foi estreada em junho de 1995, 1 no contexto da celebração do tricentenário da<br />
morte de Zumbi (Alagoas, 1655 – Viçosa, 20 de novembro de 1695), o último líder do<br />
Quilombo. O libreto é um drama lírico do poeta e jornalista baiano Ildásio Tavares (25 de<br />
janeiro de 1940 – 31 de outubro de 2010). 2 Obá de Xangô e ogã do terreiro Axé Opô<br />
Afonjá 3 , Ildásio foi um grande conhecedor da cultura religiosa afrobaiana. Lídia de Oxum<br />
é uma elaboração do seu musical “O Barão de Santo Amaro”, escrito em 1978 e nunca encenado,<br />
pela alusão identificável aos governantes da ditadura.<br />
Este trabalho pretende apresentar a ópera de uma forma abrangente e que,<br />
principalmente, reflita as referências culturais utilizadas com a finalidade da caracterização,<br />
já que Lídia de Oxum pode ser considerado um trabalho que retoma, na distância de mais<br />
de um século, o modelo do romance de costumes que marcou a literatura brasileira do final<br />
do século XIX – centrado na caracterização de tipos sociais, usos, costumes, convenções,<br />
paisagens, cenas, épocas e lugares da realidade. Portanto, transformada em enredos imaginários,<br />
abundantes em conflitos entre o indivíduo e os padrões sociais.<br />
O drama lírico será referido apenas para que possamos demonstrar como e<br />
quanto a música de Lindembergue Cardoso projeta as ideias implícitas e explícitas do texto.<br />
Nesse sentido, pode-se observar o compositor enfatizando-as por meio da aderência<br />
– com referências localizadas na época e no espaço geográfico do argumento –, tanto<br />
quanto, ao contrário, salientando-as com a divergência cultural; recontextualizando-as<br />
em ambientes sonoros estranhos, respectivos à linguagem musical contemporânea do<br />
compositor.<br />
Finalmente, pretendemos também situar Lídia de Oxum no contexto estilístico<br />
do conjunto da obra de Lindembergue Cardoso. Para este objetivo, baseamo-nos no artigo<br />
“Lindembergue Cardoso: aspectos de uma obra plural”, de nossa autoria. 4<br />
O argumento<br />
A ação da ópera se situa na penúltima década do século XIX, no Recôncavo<br />
Baiano, nas proximidades do município de Santo Amaro da Purificação. Teodoro Aragão,<br />
o Barão do Santo Amaro, é proprietário do Engenho Corrente. Em sua personalidade<br />
extremamente autoritária, ostentando poder, arrogância e prepotência, Teodoro re-<br />
...........................................................................<br />
1 Salvador, Bahia. Teatro Castro Alves, 29 de junho a 3 de julho de 1995. A montagem, dirigida por Paulo Dourado,<br />
foi levada posteriormente a São Paulo – durante o Festival Internacional de Artes Cênicas, no Teatro Municipal,<br />
19 de outubro de 1995 – e a Brasília – durante a Semana Internacional de Cultura, no Teatro Nacional. Uma<br />
nova montagem foi realizada em Salvador no ano seguinte, ao ar livre – no Parque do Abaeté, 11 e 12 de maio<br />
de 1996), dirigida por Ildásio Tavares.<br />
2 Lídia de Oxum in “Coleção Dramaturgia da Bahia”, Salvador, Secretaria de Cultura e Turismo, 2004, p. 101-141.<br />
3 O terreiro Axé Opô Afonjá, no bairro de São Gonçalo do Retiro (Salvador, BA), é o mais antigo de que se tem notícia<br />
(1910). Xangô é o senhor desse terreiro. O título “obá” é honorífico, concedido a doze amigos e protetores<br />
do terreiro aos quais está entregue o destino civil do mesmo. O “ogã” é um ministro leigo do orixá; não entra em<br />
transe, permanece consciente durante as seções de “trabalhos”.<br />
4 Nogueira, Ilza. “Lindembergue Cardoso: aspectos de uma obra plural”. Artigo no prelo (Per Musi – Revista Acadêmica<br />
de Música, nº 25, jan.-jun., 2012).<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
66<br />
presenta a aristocracia açucareira, lusodescendente e escravocrata. Lourenço é o primogênito<br />
do Barão que, havendo concluído os estudos de Direito em Coimbra, regressa à<br />
Bahia depois de longa ausência, quando os negros escravos conspiram uma rebelião pela<br />
sua liberdade. Leitor e admirador da poesia de Castro Alves, contaminado pelas ideias<br />
libertárias da época, Lourenço abraça a causa abolicionista, contra os escravocratas liderados<br />
por seu pai. Pede ao escravo Romão, um companheiro de infância, que o conduza<br />
ao Engenho Esperança, quartel-general do movimento, a fim de se inteirar do levante. A<br />
visita é marcada para a “noite de Olubajé”, uma cerimônia de candomblé em homenagem<br />
a Omolu. 5 Nessa noite, Lourenço se encanta por Lídia de Oxum, 6 a bela mestiça filha do<br />
mulato Bonfim, dono do engenho e chefe da conspiração.<br />
Numa conversa com Romão, Lourenço ouve do amigo a surpreendente revelação<br />
de que seu avô era filho de uma escrava dos seus bisavós. A consciência dessa realidade<br />
impele o jovem advogado à luta ao lado dos negros. Romão e Lourenço participam de<br />
uma reunião estratégica no Engenho Esperança, para planejar a rebelião e, nessa ocasião,<br />
são surpreendidos com a notícia de que os senhores de engenho já se aproximam armados.<br />
As suspeitas de traição incidem sobre Lourenço; entretanto, quando esclarecida a inocência<br />
do jovem, decidem embrenhar-se no canavial para um ataque de tocaia, do qual Lourenço<br />
participa. Durante o combate, chega um emissário da coroa anunciando a assinatura da<br />
Lei Áurea. Os negros comemoram, mas um deles, Tomás de Ogum, 7 líder da revolta e antigo<br />
admirador de Lídia, rebela-se, incrédulo: “Mil anos se passarão/Por cima desse decreto,/Sem<br />
existir igualdade,/Que não se faz num papel./Para mim continua a guerra,/<br />
Uma guerra sem quartel.”<br />
Dividida entre o amor antigo de Tomás e a paixão súbita por Lourenço, Lídia vive<br />
o dilema do conflito de identidade, expresso nesse desabafo ao seu pai: “Oxum, minha<br />
mãe, valei-me,/Tomás é preto, meu pai,/Lourenço é branco e a família/Me tratar bem<br />
nunca vai./Meu lugar é com os negros,/Sou mulata da Bahia”. 8<br />
O drama lírico<br />
Concepção estrutural<br />
O drama lírico é estruturado em sete cenas distribuídas em dois atos. As quatro<br />
cenas do I Ato apresentam os personagens principais, caracterizados em função de uma<br />
problematização sócio-racial em torno de classe opressora contra a classe oprimida sob<br />
jugo e submissão. Centralizada na ópera, a cena final desse ato é a cerimônia festiva do<br />
Olubajé, ícone da identidade cultural afrobaiana. O primeiro ato conclui, portanto, com<br />
uma representação apoteótica dessa cultura, daquilo que a caracteriza como fundamen-<br />
...........................................................................<br />
5 Omolu, Olu ou Obaluaiyê é considerado o “senhor da vida na terra”. Orixá poderoso, guerreiro, caçador, destruidor<br />
e implacável, é extremamente temido e respeitado por enviar as doenças como castigo ou para garantir<br />
uma renovação da vida. Da mesma forma que traz as enfermidades, Omolu traz também a cura. Sua figura<br />
misteriosa (cujo rosto, sob o filá de palha da costa, ninguém vê) esconde os segredos da restauração da vida.<br />
Olubajé é uma cerimônia que se realiza anualmente no mês de agosto, com a finalidade de agradar o orixá com<br />
sua comida predileta, para pedir-lhe saúde e longevidade. No ritual, iguarias típicas servidas sobre folhas de<br />
mamona são oferecidas aos convidados pelos filhos de santo. Como a semente da mamona – o rícino – é tóxica<br />
e mortal, a comida ritual sobre as folhas da “planta assassina” representa, portanto, a vida sobre a morte.<br />
Enquanto servem-na, dançando curvados para frente (a dança do orixá), os filhos de santo cantam “Aiyê ajeum<br />
bó, Olubajé ajeum bó”, incitando os convidados a comerem e saírem. Uma interpretação (mais que uma tradução<br />
literal) de Ildásio Tavares para esse texto em iorubá arcaico é: “Mundo, coma e saia/ coma a comida do<br />
santo (Olu ou Omolu) e saia” (Aiyê = mundo; ajeum = comida; bó = sair).<br />
6 Oxum, orixá feminino, é a rainha de todos os rios e cachoeiras. Considerada a deusa mais bela e sensual do<br />
candomblé; é vaidosa, veste-se de amarelo ouro e traz na mão direita um espelho.<br />
7 Para a compreensão da personagem Tomás de Ogum, deve-se considerar o perfil dos filhos desse orixá guerreiro,<br />
violento, conquistador e implacável, admirado pela bravura e temível pelo seu carácter devastador.<br />
8 Vale lembrar que uma das características que compõem o perfil dos filhos de Oxum é a de não se desesperarem<br />
por paixões impossíveis; por mais que gostem de uma pessoa, o seu amor-próprio é muito maior. Por trás<br />
da sua imagem doce, esconde-se uma forte determinação.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
67<br />
talmente mística, crente e ritualística: o candomblé. 9 E através do ritual, apresenta-se o<br />
tripé da cultura afrodescendente na Bahia: a culinária, a dança e a expressão musical percussiva<br />
e vocal.<br />
Enquanto o I Ato tem caráter contemplativo, concentrando-se em delinear os<br />
personagens em seus respectivos nichos culturais, o II Ato é essencialmente ativo, desencadeando<br />
os acontecimentos e ações que fundamentam o drama: a preparação da rebelião<br />
e o combate entre negros e brancos, interrompido pela notícia da abolição da escravatura.<br />
Sem a efetivação do romance entre Lourenço e Lídia, o final da ópera é sugestivo da continuidade<br />
de um status quo fundamentado em segregação e inconfiabilidade. A saudação<br />
a Ogum, “Ogun yê!”, emitida pelo rebelde Tomás como um “grito de guerra”, dá origem<br />
ao apoteótico grand finale dançante em estilo “afoxé”.<br />
Concepção estética<br />
A concepção estética do drama lírico mistura a simplicidade da poesia popular<br />
de tradição cordelista à estrutura métrica e de rima mais elaborada da poesia clássica. Os<br />
versos livres ou as estrofes simples que caracterizam o cordel (tipo redondilhas) se encontram<br />
nos trechos atribuídos às personagens negras; na ária de Lídia, por exemplo, observa-se<br />
o esquema da redondilha maior, isto é, 7 sílabas com rimas alternadas (Figura 1).<br />
Figura 1. Texto da ária de Lídia.<br />
A metrificação poética mais elaborada caracteriza as falas das personagens que<br />
representam a classe social lusodescendente, a exemplo, a estrutura de métrica mista<br />
com rimas interpoladas da ária de Lourenço (Figura 2).<br />
Figura 2. Texto da ária de Lourenço.<br />
...........................................................................<br />
9 Falando-se em identidade cultural afrobaiana, uma digressão a suas origens étnicas é oportuna, pois poderá<br />
esclarecer as raízes de diferenças observadas entre os cultos de origem africana na Bahia e em outras regiões do<br />
Brasil. Até a segunda metade do século XVIII, os escravos trazidos para a Bahia vinham da África centro-ocidental;<br />
eram banto, matriz importante na formação da religiosidade negro-baiana. A palavra candomblé, por exemplo,<br />
é de origem banto. Ao contrário da região Sudeste do Brasil, onde o mercado escravo banto teve continuidade,<br />
ao longo do século XIX, o tráfico na Bahia deslocou-se para as regiões iorubá (ao sul e centro da atual República<br />
de Benim, parte da República do Togo e todo o sudoeste da atual Nigéria). Kètu, Egba, Egbado e Sabé são<br />
alguns dos segmentos iorubanos ou nagô que vieram para a Bahia; todos eles – com destaque para os Kètu –<br />
contribuíram, decisivamente, para instalar aqui uma espécie de hegemonia cultural nagô na Bahia, ao longo da<br />
segunda metade do século XIX. Inicialmente aliados aos jeje (como eram denominados pelos iorubá os povos<br />
do leste, como os axanti, ewe, fanti, fon, gan, mina e mahin), os nagô competiram com eles e depois os superaram<br />
em Salvador. O Recôncavo, entanto, é tido como terra de jeje. O candomblé baiano hoje é considerado uma<br />
religião de matriz jeje-nagô.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
68<br />
Figura 2. Texto da ária de Lourenço (cont.)<br />
Essa realização poética se reflete na mistura eclética da música de Lindembergue<br />
Cardoso, em que se mesclam tradições operísticas centro-europeias, a canção popular<br />
brasileira e as tradições folclóricas da Bahia: a afrobaiana litorânea e a sertaneja interiorana.<br />
A concepção cênica<br />
Na partitura, orientações sobre a composição do cenário, localização e movimentação<br />
das personagens são econômicas, mas suficientemente sugestivas. A maioria<br />
delas introduz as cenas; no entanto, algumas se encontram no seu desenvolvimento. Paulo<br />
Dourado, diretor geral, da primeira montagem, explicou-se: “Nossa proposta é uma encenação<br />
em que o teatro busque uma identidade através da música”. 10 Se a música ditou<br />
a identidade da concepção teatral e a identidade da concepção musical fundamentada<br />
no drama lírico é essencialmentalmente baseada na cultura afrobaiana, era de se esperar<br />
que a teatralização do argumento usasse e abusasse do elemento coreográfico, uma vez<br />
que os conceitos de música e dança se encontram mais que intimamente relacionados na<br />
cultura em questão, de forma que um implica necessariamente no outro. A grande quantidade<br />
de danças indicadas na partitura, elaboradas em longas coreografias na montagem<br />
de Paulo Dourado, 11 é um dos aspectos marcantes da pregnância da identidade cultural. É<br />
com cantos e dança que a cultura afrodescendente cultua os seus deuses, presta reverência<br />
à natureza e brinda a vida. Na força da dança, Lídia de Oxum tem um expressivo diferencial<br />
do conceito tradicional do gênero. No entanto, como disse o coreógrafo Carlos Moraes, 12<br />
mais que um traço de excepcionalidade, a dança nessa ópera é uma marca decisiva na<br />
narrativa, influindo em toda a mis-en-scène. A concepção da Cena 4 do primeiro Ato – O<br />
ritual do Olubajé –, epicentro da ópera, de que parte o eixo das narrativas dramática e<br />
musical, pode ser entendida como uma grande coreografia, na qual a ação é retida para<br />
focalizar o encontro do par amoroso Lourenço e Lídia.<br />
A concepção musical<br />
Lindembergue Cardoso não deixou referências à concepção musical de sua ópera;<br />
não nutria esperanças de uma encenação após uma tentativa fracassada de que integrasse<br />
as comemorações do centenário da abolição da escravatura. Por isso Lindembergue se<br />
desestimulou a escrever uma abertura, é o que nos informa a viúva do compositor. Ildásio<br />
Tavares, tendo acompanhado a composição da música muito próximamente, inclusive<br />
fornecendo a Lindembergue os materiais musicais oriundos do candomblé e até mesmo<br />
sugerindo-lhe o perfil da ária do Barão Teodoro, foi quem se expressou sobre a concepção<br />
musical da ópera, por ocasião da estreia. Segundo ele, a proposta musical para Lídia de<br />
Oxum era a realização de uma “antiópera neobarroca e brasileira” (Tavares, 1995), valorizando<br />
o recitativo musical (Sprechgesang) e a recitação falada. Subentende-se, portanto,<br />
que essa concepção “antioperística” se refira, principalmente, à tradição novecentista<br />
...........................................................................<br />
10 In Tribuna da Bahia, Caderno 2, capa, 20 de abril de 1995.<br />
11 Em geral, a música concebida para as danças consta de poucos compassos para a orquestra com indicação de<br />
repetição ad libitum, aos quais se adiciona a percussão étnica do palco improvisando.<br />
12 In Bahia Hoje, 8 de maio de 1996.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
69<br />
italiana. Segundo informa o autor do texto, Lídia não deveria ser um pretexto para a exibição<br />
de atributos vocais; no entanto, pretendia referir-se às distintas expressões idiomáticas<br />
do gênero. Assim, encontramos na ópera algumas referências ao belcanto (ampla<br />
extensão, com exploração do registro agudo e grandes intervalos), trechos em estilo arioso,<br />
recitativo secco e recitativo accompagnato, respondendo à funcionalidade do momento:<br />
seja a caracterização da personagem, a construção da dramaticidade, a rápida evolução<br />
da ação, ou, ao contrário, a necessária retenção do tempo nos trechos de natureza reflexiva<br />
ou contemplativa.<br />
Como disse o diretor da primeira montagem, Paulo Dourado: “Em Lídia de Oxum,<br />
a música está construída em função de uma ação dramática”. 13 Isso pode ser observado<br />
em vários aspectos, principalmente no tratamento compositivo do texto, que enfatiza o<br />
recitativo secco e o canto silábico, que utiliza bastante a voz falada, e cuja adaptação à<br />
linha melódica, seja da voz solista ou do coro, projeta-se sobre uma textura orquestral<br />
funcionalmente acompanhante.<br />
A orquestração, geralmente subjacente à concepção vocal, chama a atenção<br />
pelos trechos concebidos em função de efeitos dramáticos, simbólicos, imagéticos e descritivos,<br />
direcionando o processo perceptivo para a compreensão de mensagens subliminares<br />
no texto. Podemos lembrar, por exemplo, o caráter paródico, caricato, portanto, do estilo<br />
marcial da ária do Barão Teodoro, ou a utilização do repente nordestino para, através da<br />
referência explícita à tradição cordelista, satirizar a relação ilícita entre o bisavô de Lourenço<br />
e a negra Luzia. Outro aspecto característico da concepção orquestral é o trabalho motívico<br />
relacionado aos protagonistas do drama, indicativo, portanto, e também cumpridor de<br />
função estruturalizante de um discurso musical que se faz orgânico por meio dessas peças<br />
referenciais reiterativas. A simplicidade da orquestração é maior do que aquela que configura<br />
a formação da orquestra: 2 (picc.). 2. 2. 2 / 2. 2. 2. 1 / perc. (6); cordas. Nela sobressai<br />
o naipe de percussão, com seis integrantes e 16 timbres, 14 podendo ser considerado o<br />
carro-chefe da concepção orquestral. Em trechos como o do Exemplo 1, a percussão<br />
modela o uso dos instrumentos de sopro ou corda em efeitos de caráter essencialmente<br />
percussivo.<br />
Em alguns tutti orquestrais homorrítmicos, como se pode observar no Exemplo<br />
2, sopros e cordas aderem à percussão, intensificando-a com sonoridades complexas, algumas<br />
vezes aleatórias, sendo formadas com alturas indeterminadas em regiões indicadas.<br />
Os instrumentos étnicos no palco (agogô e atabaques) complementam o cenário<br />
coreográfico das danças afrobaianas na senzala e no terreiro de candomblé (Exemplo 3);<br />
devem improvisar sempre, seja quando tocam a sós ou junto à textura escrita da percussão<br />
na orquestra.<br />
Integrando o cenário, a percussão tem função representativa, portanto, é funcional<br />
na definição da ambiência ambivalente entre o universo das culturas afro (dominante<br />
na obra) e eurodescendente (representada em menor parte da obra). Chama atenção a<br />
caracterização musical desses dois universos culturais nos acompanhamentos às ações<br />
vocais dos respectivos personagens.<br />
Além da farta exploração dos timbres da percussão étnica, reforçados pelos diversos<br />
tipos de tambores na orquestra, outros aspectos caracterizam o universo da etnia<br />
negra, como 1) a elocução do texto preferencialmente em recitativo parlando, em métrica<br />
livre, no trecho de um diálogo entre Bonfim, Lídia e Tomás de Ogum (Exemplo 4).<br />
...........................................................................<br />
13 Ver Nota 6.<br />
14 Agogôs (no palco e na orquestra), atabaques (no palco e na orquestra), bumbo, bongôs (2), caxixi, chocalho,<br />
coco, caixa clara, pratos suspensos, (2) pratos, reco-reco, surdo, timpani (2), tomtom (4), triângulo, woodblock.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
70<br />
Exemplo 1. Instrumentos de sopro em efeitos percussivos.<br />
2) Acompanhamentos concebidos em longos ostinati rítmicos, como no trecho<br />
em que as cordas acompanham o dueto entre o escravo Romão e Lourenço (Exemplo 5),<br />
o branco que prega a igualdade racial. Neste exemplo, é interessante notar que a expressão<br />
vocal do Romão se faz na forma ariosa e a de Lourenço, em recitativo, intercambiando os<br />
estilos definidos para as personagens negras e brancas na grande maioria da obra; essa<br />
observação, que pode não corresponder à intenção composicional, é significativa no contexto<br />
do viés analítico-semiológico.<br />
3) Utilização de padrões rítmico-melódicos tradicionais, como na imitação do<br />
toque do berimbau, pontuando o diálogo entre Romão e Lourenço (Exemplo 6) ou na estória<br />
da negra Luzia, narrada no estilo de um desafio de violeiros, sobre o padrão do coco<br />
15 (Exemplo 7).<br />
Nesse contexto de caracterização musical do universo negro, a ária de Lídia no<br />
final do I Ato se reveste de excepcionalidade. Centralizada na ópera, destaca-se principal-<br />
...........................................................................<br />
15 O padrão do coco é o das danças de umbigada (de provável origem banto), que corresponde, na montagem<br />
original, à concepção cênica da dança erótica entre a escrava Luzia e o bisavô de Lourenço.<br />
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Exemplo 2. Sopros e cordas intensificam a percussão com sonoridades complexas.<br />
Exemplo 3. Entrosamento da percussão no cenário com o naipe da orquestra.<br />
71<br />
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72<br />
Exemplo 4. Estilo vocal característico do universo étnico afrodescendente.<br />
mente pelo lirismo dramático, explorando a região aguda. Uma estrutura musical simples<br />
corresponde ao modelo também simples da redondilha maior: cada estrofe de quatro<br />
versos é adaptada a um período musical de duas frases, repetido uma terça menor abaixo.<br />
Ao jogo de rimas alternadas corresponde, então, uma espécie de “rima musical”: os versos<br />
1 e 3 têm a mesma frase, assim como os versos 2 e 4. Muito do caráter lírico-dramático<br />
deve-se às oitavas ascendentes que concluem a segunda frase. A modulação de Fá# maior<br />
para Sol maior na terceira estrofe, leva ao extremo agudo (Si), enfatizando a dramatização<br />
na confissão do medo do amor (Exemplo 8).<br />
Quanto aos aspectos que caracterizam o universo da etnia branca, destacam-se<br />
as referências às tradições operísticas oitocentistas centro-europeias ou à música da<br />
sociedade burguesa do Brasil império. Podemos citar: 1) a elocução do texto preferencialmente<br />
em estilo arioso, com linhas melódicas caracterizadas por gestos amplos ascententes-descendentes,<br />
como pode-se verificar nos trechos correspondentes aos Exemplos<br />
9, 10 e 11; 2) A concepção de motivos condutores no acompanhamento orquestral,<br />
asso-ciados às interlocuções das personagens; no motivo de Lourenço (Exemplo 12), no<br />
motivo da mãe de Lourenço (Exemplo 13) e no motivo marcial do Barão Teodoro (Exemplo<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
73<br />
14); e 3) O uso de padrões derivados da tradição musical de salão ao final do segundo<br />
reinado, a exemplo, o dueto entre as mulheres da família Aragão, concebido em “tempo<br />
de valsa brasileira” (Exemplo 15).<br />
Exemplo 5. Acompanhamento orquestral característico do universo étnico afrodescendente.<br />
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74<br />
Exemplo 6. Imitação do toque do berimbau.<br />
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Exemplo 7. Coco.<br />
Exemplo 8. Ária de Lídia.<br />
75<br />
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76<br />
Exemplo 8. Ária de Lídia (cont.)<br />
Exemplo 9. Ária de Lourenço.<br />
Exemplo 10. Dueto da mãe e da irmã de Lourenço.<br />
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Exemplo 11. Ária do Barão Teodoro.<br />
Exemplo 12. Motivo de Lourenço.<br />
Exemplo 13. Motivo da mãe de Lourenço.<br />
77<br />
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78<br />
Exemplo 14. Motivo do Barão Teodoro<br />
Identidade autoral x identidade cultural<br />
Identidade autoral<br />
Lídia de Oxum apresenta a maioria dos aspectos que caracterizam, indiscutível<br />
e preponderantemente, a obra de Lindembergue Cardoso sob o ponto de vista ideológicoestético.<br />
Em primeiro lugar, podemos citar a intimidade com a música folclórica e popular<br />
brasileira, notada em todas as fases da sua produção musical: do início à maturidade profissional.<br />
Essa intimidade chega a ponto de suas alusões estilísticas ao popular ou ao folclore<br />
apresentarem um grau de autenticidade tal que poderíamos apostar tratar-se de uma<br />
citação. Dois trechos da ópera exemplificam esse aspecto. Um deles é a ária de Tomás de<br />
Ogum, onde o compositor indica, na partitura, “Canção à moda popular” (Exemplo 16). O<br />
cantor é essencialmente acompanhado pelas cordas, os metais articulam pequenos elos<br />
motívicos ascendentes entre as frases e uma bateria (tambor surdo no pulso e caixa clara<br />
no soluço do contratempo) sustentam a base rítmica característica: um padrão estrutural<br />
clássico do estilo.<br />
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Exemplo 15. Duteto da mãe e da irmã de Lourenço.<br />
O outro trecho é o já mencionado e demonstrado desafio, que diz respeito à estória<br />
da negra Luzia, sobre o modo misto nordestino e o ritmo do coco (Exemplo 7); e a<br />
cadência típica do duo de flautas em terças paralelas (Exemplo 17).<br />
Outro aspecto característico da obra integral de Lindembergue Cardoso é a convivência<br />
próxima do religioso com o profano; hinos que se referem à Bahia católica (o Hino<br />
ao Senhor do Bonfim foi utilizado em sua Rapsódia Baiana) tanto quanto os cânticos<br />
dos rituais do candomblé baiano (como o Hino a Oxalá, tema central de sua peça Oniçá<br />
Orê) são evocados num discurso em que religiosidade e “mundanidade” se alternam.<br />
Centrada na cultura afrobaiana, em que as fronteiras entre os universos religioso e profano<br />
são particularmente obscuras, a ópera é farta em referências aos ritmos, timbres e cantos<br />
afrodescendentes, aos ijexás e afoxés, ritualísticos, semânticos e ambivalentes no que diz<br />
respeito à funcionalidade nos âmbitos religioso e profano. Na ópera, é na diferenciação<br />
entre o ritmo calmo do ijexá, marcado pelos atabaques, e o andamento vivo do afoxés –<br />
onde também o agogô entra em cena – que se distinguem as representações do universo<br />
religioso (na cena da cerimônia de Olubajé) e profano (o lazer dançante na senzala e a<br />
celebração festiva da liberdade oficializada).<br />
Outra característica ideológico-estética na obra de Lindembergue Cardoso é abertura<br />
à interação criativa do(s) intérprete(s); na ópera, o trecho que acompanha as expressões<br />
de dúvida sobre uma possível traição à rebelião negra tem uma concepção textural<br />
inteiramente deixada ao caos de um improviso orquestral dirigido, com sugestão de atividade<br />
em notação gráfica e indicação de dinâmica (Exemplo 18).<br />
A atitude heterodoxa no uso de sistemas musicais tradicionais, outra característica<br />
da estética do compositor, também se encontra na ópera. Enquanto a concepção<br />
melódica das árias é eminentemente tonal, não se pode dizer o mesmo do acompanhamento<br />
harmônico, o qual pode evocar, temporariamente, um centro tonal irrespectivo<br />
da linha melódica, de forma a promover uma dose de ambiguidade, de estranhamento,<br />
que, em determinados momentos, se resolve. Pode-se dizer que melodia e acompanhamento<br />
saem e entram em fase harmônica, ciclicamente, como num trecho da ária de<br />
Lídia (Exemplo 19).<br />
79<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
80<br />
Exemplo 16. Ária de Tomás de Ogum.<br />
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Exemplo 16. Ária de Tomás de Ogum (cont.).<br />
81<br />
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82<br />
Exemplo 17. Cadência do desafio.<br />
Exemplo 18. Improviso orquestral dirigido.<br />
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83<br />
No contexto harmônico respectivo a Sol-maior/ Mi menor, a melodia vocal tem<br />
um acompanhamento instrumental que, inicialmente, refere-se ao contexto de Mi bemol<br />
maior, para concluir em fase com a voz. Isso determina os estranhamentos harmônicos<br />
Mib/Mi natural, Fá natural/Fá #, Si b/Si natural, que turvam a definição tonal do trecho,<br />
até que, finalmente se esclareça o contexto de Sol Maior.<br />
Se as noções de ambiguidade, estranhamento e indeterminação se encaixam<br />
perfeitamente numa ambientação musical para essa personagem, deve-se salientar que<br />
essas características são inerentes à linguagem do compositor, de uma forma geral.<br />
Identidade cultural<br />
Considerando o aspecto da identidade cultural da ópera, devemos lembrar, de<br />
antemão, que Lindembergue Cardoso e Ildásio Tavares, nascidos respectivamente em<br />
1939 e 1940, foram parte da juventude estudantil da década de 1960, que se iniciou profissionalmente<br />
na década de 1970, nos “anos de ferro” da política nacional e no movimento<br />
internacional da contracultura, de contestação dos valores centrais do mundo ocidental.<br />
Foram parte de uma juventude de espírito libertário, inovadora de estilos, constituída de<br />
arautos da cultura underground, alternativa, marginal, focada principalmente nas transformações<br />
da consciência, dos valores e do comportamento. Na época de sua formação<br />
intelectual e ideológica, o mundo ao redor digeria os critérios-chave da estética moderna:<br />
o novo, a ruptura e a vanguarda. Devemos também acrescentar o fato de que Lídia de Oxum,<br />
embora concebida no final da década de 1980, tem um antecedente ideológico nos<br />
anos 70: o musical “O Barão de Santo Amaro”, em que o autor usa do artifício paródico<br />
para denunciar os abusos de poder e prepotência da ditadura militar da época.<br />
Talvez possamos estabelecer uma relação entre esse contexto que circunscreve<br />
o período de formação ética e ideológica dos autores e a proposta estética idealizada<br />
para Lídia de Oxum: “antiópera neobarroca e brasileira”, segundo Ildásio Tavares. Quanto<br />
à conceituação antioperística, Lídia é discutível do ponto de vista musicológico, principalmente<br />
considerando-se o perfil dos gêneros multimidiáticos em evolução a partir dos<br />
anos 1980 (época em que foi concebida) em direção ao contexto ideológico do pós-modernismo,<br />
o qual Lídia de Oxum visita confortavelmente. O que se pode dizer da pretensão<br />
“antioperística” – que poderíamos, sem titubear, atribuir antes a Ildásio Tavares que ao<br />
compositor – é que, certamente, reverberando ainda valores dos anos 1960–1970 (principalmente<br />
a ruptura com as concepções estéticas imediatamente anteriores), não se concretizou<br />
na música de Lindembergue Cardoso. Já nos anos 1980, o compositor se distanciava<br />
dos critérios-chave da estética moderna – o novo, a ruptura e a vanguarda – e certamente<br />
observava a chegada do pós-modernismo com a satisfação de poder, então, aberta e<br />
francamente, sem pressões de recusa ou aceitação, embalar-se nas culturas de suas origens<br />
étnicas – sertaneja e afrobaiana –, as quais, convivendo com ideologias de época e seus<br />
desdobramentos estéticos, sempre estiveram presentes em sua criação. Pode-se dizer,<br />
inclusive, que a música de Lindembergue Cardoso já sintomatiza os problemas advindos<br />
da globalização e sintoniza-se nas tendências estéticas pós-modernas instituídas a partir<br />
dos anos 1990, quando inovação e originalidade já não são palavras de ordem, e o olhar<br />
voltado para o passado, com a retomada de modelos da tradição, é encorajado. Se, de<br />
um lado, pode-se reconhecer na arte de Lindembergue Cardoso a resistência à globalização<br />
pela recorrência, cada vez maior, às identidades locais, de outro lado, nela verificam-se<br />
também a pluralização de referenciais e a descentralização de sistemas e procedimentos<br />
composicionais, aspectos que integram a ideologia pós-moderna.<br />
No que diz respeito à pregnância de brasilidade, se há pontos de contato entre<br />
as concepções do libretista e do compositor (adoção de regionalismos e vernáculo), também<br />
se pode detectar a diferença. Se no libreto, como ressalta seu autor, a grande tragédia<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
84<br />
representada é “o abismo de identidade dos personagens, que se agrava após a abolição”<br />
(cf. Bahia Hoje, 1995), a música de Lindembergue Cardoso, certamente, reflete outra<br />
realidade, que se refere ao contexto sócio-histórico da época em que foi concebida, ou<br />
seja, a grande virada de identidade cultural que se reconhece na Bahia contemporânea: a<br />
de que o colonizado, finalmente, colonizou o colonizador.<br />
Exemplo 19. Ária de Lídia (trecho).<br />
Referências bibliográficas<br />
“Começam os ensaios da ópera”. Bahia Hoje, Caderno A, capa, 24 de maio de 1995.<br />
“Dança é diferencial na ópera Lídia de Oxum”. Bahia Hoje, 8 de maio de 1996.<br />
“Salvador monta primeira ópera negra do Brasil”. Tribuna da Bahia, Caderno 2, capa, 20<br />
de abril de 1995.<br />
Tavares, Ildásio. “A ópera é dos operários”. Tribuna da Bahia, Caderno 2, p. 5, 4 de julho<br />
de 1995.<br />
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Dulcineia e Trancoso – uma ópera armorial<br />
85<br />
Eli-Eri Moura<br />
Universidade Federal da Paraíba<br />
A ópera Dulcineia e Trancoso, com música de minha autoria e libreto de W. J.<br />
Solha, 1 foi estreada no dia 18 de dezembro de 2009, no Teatro de Santa Isabel, na cidade<br />
do Recife, Pernambuco. Composta durante o período exato de três meses, de 9 de setembro<br />
a 9 de dezembro de 2009, a obra foi comissionada por Ana Lúcia Altino e Rafael Garcia<br />
(casal a quem é dedicada) para ser apresentada durante o XII Virtuosi Festival Internacional<br />
de Música, evento tradicional dirigido pela mesma dupla, que ocorre todo mês de dezembro<br />
em Pernambuco. A estreia contou com um elenco de solistas de primeira grandeza,<br />
interpretando os oito personagens do drama: Gabriella Pace, soprano (Dulcineia); André<br />
Vidal, tenor (Trancoso); Felipe Oliveira, barítono (Dono do Circo); Sávio Sperandio, baixo<br />
(Cervantes); Flávio Leite, tenor (Ariano); Saulo Javan, barítono (Bozo); e Adriana Clis, mezzo<br />
(A Morte e A Compadecida). A direção musical coube ao maestro Rafael Garcia, que regeu<br />
a Orquestra Jovem de Pernambuco (com um setup instrumental modesto, em função do<br />
tamanho do fosso do Teatro de Santa Isabel 2 ) e um coro local de vinte vozes (SCTB), especialmente<br />
formado para a ocasião. Ainda participaram do projeto seis bailarinos dirigidos<br />
por Maria Paula Costa Rego. A direção cênica ficou a cargo de Luiz Carlos Vasconcelos e o<br />
cenário virtual (criado através de projeções e animações) a cargo de Marcelo Garcia. Em<br />
virtude da exiguidade do tempo para compor a obra, a orquestração foi dividida entre<br />
mim e meus colegas compositores Marcílio Onofre e Carlos Anísio.<br />
O dado curioso inicial, relacionado à composição de Dulcineia e Trancoso, diz<br />
respeito à natureza da encomenda: “escrever a primeira ópera armorial”. A ideia surgiu,<br />
na verdade, a partir do sucesso de outro projeto armorial – o Concerto Duplo Armorialis<br />
para viola, violoncelo e orquestra, também comissionado a mim pelos diretores do Festival<br />
Virtuosi, para um concerto comemorativo dos 80 anos do escritor paraibano Ariano Suassuna,<br />
em dezembro de 2007. O que achei intrigante foi o fato de me requererem obras<br />
em linguagens e estilos aos quais nunca me dediquei na realidade, a não ser em eventuais<br />
projetos de música incidental para teatro e filme. No entanto, mesmo devoto da chamada<br />
música contemporânea de concerto, dois fatores me levaram a aceitar o desafio. Primeiro,<br />
a música associada ao Movimento Armorial sempre esteve em meus ouvidos, seja através<br />
das manifestações folclóricas que a inspiraram, uma vez que fui criado em uma cidade do<br />
interior do Nordeste (Campina Grande, na Paraíba), seja através do contato próximo com<br />
os principais protagonistas dessa música, como o renomado Quinteto Armorial, 3 que atuou<br />
no Departamento de Artes da Universidade Federal da Paraíba (em Campina Grande), on-<br />
...........................................................................<br />
1 Waldemar José Solha (Sorocaba, 1941) é escritor, poeta, dramaturgo, ator e artista plástico. Reside na Paraíba<br />
desde 1962. Autor de livros como Israel Rêmora, A Verdadeira Estória de Jesus, A Batalha de Oliveiros e História<br />
Universal da Angústia, já ganhou numerosas distinções, dentre as quais o Prêmio João Cabral de Melo Neto<br />
(2005) e o Prêmio Graciliano Ramos (2006). Em 2006 foi finalista do Prêmio Jabuti de Literatura. Tive a honra de<br />
dividir com Solha, que considero um dos maiores escritores brasileiros da atualidade, mais de dez parcerias em<br />
peças de teatro e musicais.<br />
2 Duas flautas (segunda flauta dobrando flautim), um oboé, dois clarinetes (segundo clarinete dobrando clarone),<br />
um fagote, duas trompas, um trompete, um trombone, uma tuba, dois percussionistas, piano, cordas (mínimo:<br />
quatro primeiros violinos, quatro segundos violinos, três violas, três violoncelos e dois contrabaixos).<br />
3 Em especial, seus integrantes Antônio José Madureira, Antônio Nóbrega (com quem estudei violino ainda garoto),<br />
Fernando Barbosa, Edílson Eulálio e Fernando Pintassilgo.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
86<br />
de fui aluno, no final da década de 1970. Segundo, sempre foi minha crença que todo<br />
compositor deve desenvolver seu métier dominando uma frente ampla de linguagens,<br />
mesmo que só a título de exercício composicional. Reforça meu pensamento o fato de<br />
vivermos atualmente uma realidade de imensa diversidade de mídias que exigem linguagens<br />
musicais muito específicas – do jingle publicitário à música acusmática, da música<br />
incidental à música abstrata –, uma realidade que força o compositor a desenvolver muitas<br />
vezes o que chamo de camaleonismo composicional, necessário para atender as mais<br />
diversas demandas do mercado.<br />
Quanto a ser a “primeira ópera armorial”, essa é uma questão em aberto, evidentemente.<br />
Sabe-se que em 11 de maio de 1961, o compositor paraibano José Siqueira<br />
(1907–1985) estreou a sua ópera A Compadecida (1959), sobre a peça O Auto da Compadecida,<br />
de Ariano Suassuna, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Escrita onze anos<br />
antes da articulação do Movimento Armorial, A Compadecida (de acordo com relatos de<br />
quem viu a partitura, ainda não publicada, no acervo particular da família do compositor)<br />
é típica da linguagem folclorista de José Siqueira, utilizando-se de temas extraídos diretamente<br />
da música nordestina para caracterizar seus personagens – um traço que a distancia,<br />
em parte, dos ideais armoriais. 4 Sendo a primeira ópera armorial ou não, Dulcineia<br />
e Trancoso causou impacto em virtude de um contexto específico de tempo e espaço,<br />
conforme a visão do crítico musical Carlos Eduardo Amaral.<br />
A estreia de Dulcineia e Trancoso […] não constituiu um marco despercebido<br />
nas artes pernambucanas tão somente pelo fato de ter sido a primeira ópera escrita<br />
a partir das diretrizes do Movimento Armorial (ainda que tenha saudavelmente<br />
evitado a linha estética arraigada pelos grupos musicais armoriais dos<br />
anos 1970), mas sobretudo por ter sido a primeira ópera composta para ser encenada<br />
no Teatro de Santa Isabel desde o final do século XIX, quando Euclides<br />
Fonseca (1854–1929) deu importantes contribuições para o gênero em Pernambuco.<br />
Dulcineia e Trancoso […] também fez história por se tornar a segunda<br />
ópera brasileira contemporânea apresentada no Recife, depois de O Cientista,<br />
de Sílvio Barbato […], em 2007. (Amaral, 2010, p. 33)<br />
Tendo Ariano Suassuna como seu maior articulador, o Movimento Armorial foi<br />
inaugurado em 18 de outubro de 1970, com a realização de um concerto e de uma exposição<br />
de artes plásticas, na Igreja de São Pedro dos Clérigos, no Recife. No que diz respeito<br />
especificamente à arte musical, seu cânon central foi a criação de uma música de concerto<br />
“erudita popular nordestina”. O próprio Ariano dizia estar à “procura de uma composição<br />
nordestina renovadora, de uma música erudita brasileira de raízes populares, de um som<br />
brasileiro, criado para um conjunto de câmera, apto a tocar a música europeia, é claro –<br />
principalmente a ibérica mais antiga, tão importante para nós, mas principalmente apto<br />
a expressar o que a cultura brasileira tem de singular, de próprio e de não europeu” (Suassuna,<br />
1974). Já em 1951, Ariano discutia sobre os caminhos, relacionados de alguma forma<br />
à música popular, que os compositores poderiam explorar.<br />
Partindo da simples imitação das formas populares, passará ela por uma fase de<br />
transposições, para chegar finalmente à recriação, sua forma mais alta. A imitação<br />
é, no caso, o campo do compositor popular; e a transposição o de uma espécie<br />
...........................................................................<br />
4 Durante 45 anos, até a encenação de O Cientista, de Sílvio Barbato (1959–2009), em 2006, A Compadecida<br />
deteve o “título” de última ópera a ser criada no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, e a última em português<br />
ali encenada, até Dom Casmurro (criada em São Paulo), do compositor Ronaldo Miranda, na década de 1980.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
87<br />
intermediária, importantíssima para a criação de uma música nacional. (Suassuna,<br />
1951, p. 44-45)<br />
Esses princípios são muito próximos aos da música nacionalista orientada por<br />
Mário de Andrade, que já na Semana de Arte Moderna de 1922 propôs estágios para a<br />
criação de uma linguagem musical simultaneamente brasileira e moderna, implicando<br />
em diferentes tipos de recontextualização da música popular – desde a adoção fiel de<br />
melodias folclóricas até uma música refletindo o inconsciente nacional, aquela que seria<br />
verdadeiramente nacionalista em espírito (caso da música de Villa-Lobos). O compositor<br />
potiguar Antonio José Madureira, que veio a se tornar um dos ícones da música armorial,<br />
aponta, no entanto, diferenças com o movimento defendido por Suassuna.<br />
Na música, Ariano Suassuna teve um papel muito importante, porque, para mim,<br />
mostrou qual a diferença da música erudita do movimento nacionalista e o que<br />
seria uma música erudita partindo das raízes populares do Nordeste. A nacionalista<br />
parte de uma estrutura já estabelecida, europeia, levando elementos da<br />
cultura popular. A armorial é o inverso: mergulha na música autêntica do Nordeste<br />
e traz alguns elementos da cultura erudita para si. (apud Nóbrega, 2007)<br />
Ademais, nota-se na práxis musical armorial traços que a caracterizam de forma<br />
marcante e a distanciam do movimento nacionalista anterior, dentre eles: uma abordagem<br />
timbrística diferenciada, através da inclusão de novas sonoridades rústicas, primitivas,<br />
ásperas, que trouxe para a sala de concerto instrumentos da tradição popular (rabeca,<br />
viola de arame, marimba, pífanos etc.); a ênfase na relação com a cantoria de viola, o cavalo<br />
marinho, o maracatu e outros folguedos típicos do Nordeste, em especial, dos estados<br />
de Pernambuco, da Paraíba e do Rio Grande do Norte; o uso de supostos elementos da<br />
música antiga (medieval, renascentista e barroca) da Península Ibérica; a aplicação de<br />
determinados procedimentos, desenvolvidos principalmente por Antonio José Madureira<br />
(que, a meu ver, tornaram-se clichês do movimento), como a recorrência de pequenos<br />
fragmentos melódicos, a citação e gradual transformação de temas de cunho folclórico, e<br />
o uso bastante particular dos modos nordestinos, resultando muitas vezes em uma música<br />
cíclica e até certo ponto estática. Tais traços são bem nítidos na música de Antonio José<br />
Madureira, em especial a interpretada pelo Quinteto Armorial, liderado por ele, e de<br />
outros compositores do movimento, como Cussy de Almeida, Clóvis Pereira, Antonio Nóbrega,<br />
Capiba e Jarbas Maciel, dentre outros, além de nomes mais recentes, como o do<br />
potiguar Danilo Guanais.<br />
Os dois primeiros traços citados e em especial o depoimento de Antonio José<br />
Madureira me conduzem a uma pequena reflexão: a de que no patamar da música contemporânea<br />
de concerto, mesmo em uma esfera distinta de linguagem musical, também<br />
tenho aplicado princípios que tangenciam alguns dos pressupostos da música armorial.<br />
Minha pesquisa composicional nesse patamar tem visado desenvolver uma linguagem<br />
baseada em novas relações entre a chamada música de concerto e elementos etnomusicais<br />
brasileiros, buscando alternativas para a produção de uma música que seja regionalmente<br />
contextualizada, mas que transcenda os ideais da chamada música nacionalista – aquela<br />
que, baseada numa estética apregoada por Mário de Andrade, é emblemática de grande<br />
parte da produção brasileira nos séculos XX e XXI. A busca de alternativas se dá na abordagem<br />
das relações em si entre o contextual e o estrutural. Em outras palavras, na interação<br />
entre referências culturais e sistemas composicionais abstratos. Sob meu ponto de vista,<br />
em muito da música que emprega elementos regionais, estes são sugados pelo sistema.<br />
Em vários casos, o sistema concerne práticas harmônicas já estabelecidas, apenas ajustadas<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
88<br />
para abrigar as referências culturais. Dessa forma, o sistema, incorporando o conjunto de<br />
normatizações, convenções e relações, corporifica o todo, e, assim, tem primazia sobre a<br />
cultura. Consequentemente, o todo, ao ser operacionalizado, não se desintegra, se mantém<br />
estável; e atributos musicais, como coesão, consistência, unidade (próprios de sistemas<br />
baseados principalmente na tonalidade), sobrepõem-se sobre as idiossincrasias culturais<br />
como os fatores qualitativos do discurso. Como resultado, os elementos culturais tendem<br />
a ficar na superfície da música, estratificados nos parâmetros das alturas e do ritmo, muitas<br />
vezes gerando apenas um caráter exótico. Achando, pessoalmente, esse caminho já<br />
exaurido (ao menos, no patamar citado), tenho procurado a direção oposta: implementar<br />
a cultura como ponto de partida, de tal forma que sistemas composicionais emerjam sinergicamente<br />
a partir dos elementos etnomusicais. Nesse contexto, os ingredientes culturais<br />
devem estar na base, no início do processo composicional, influenciando a escolha<br />
da matéria prima, dos procedimentos e das estruturas, e funcionando como um fator<br />
causal. Grosso modo, a cultura deverá formar o ambiente, e rotinas sistêmicas devem<br />
emergir em função dela. Nessa abordagem, as referências culturais corporificam o todo e<br />
este, ao ser operacionalizado, mantém-se consistente, perene, enquanto o sistema composicional<br />
torna-se aberto, flexível, passível de transformações. Associada a esse propósito<br />
há a ideia de que uma profunda interação com elementos de uma cultura musical local<br />
ocorra de forma estrutural, envolvendo não apenas alturas e ritmos, mas também outros<br />
parâmetros, a exemplo de timbre, textura, densidade e registro, como elementos constitutivos<br />
do cosmos composicional. O processo composicional que chamo de Desfragmentação<br />
é um modelo catalisador dessas ideias, e aparece em peças como Circumsonantis<br />
para quarteto de cordas, baseada na capoeira, e Noite dos Tambores Silenciosos<br />
para orquestra sinfônica, baseada no maracatu de Pernambuco.<br />
O libreto de Dulcineia e Trancoso sintetiza – como uma grande homenagem – o<br />
universo ficcional do mentor intelectual do Movimento Armorial, Ariano Suassuna. Solha<br />
(2010) diz que “como a ideia era a criação de uma ópera armorial, a primeira coisa que<br />
me ocorreu foi pensar numa história a partir do romance A Pedra do Reino, do Ariano,<br />
considerada por ele mesmo como sua obra mais importante”. No libreto, o autor desdobra<br />
as ideias do escritor paraibano e “abre” a Pedra do Reino (que não ocorre no romance),<br />
revelando a catedral que conteria o Rei Dom Sebastião. 5 O libretista organiza o enredo em<br />
um único ato, dividido em dez cenas, criando diversas situações e plots sobrepostos.<br />
Sabendo que a arte circense é uma das paixões de Ariano, ele parte da ideia de que tudo,<br />
na verdade, é um espetáculo de um circo fantástico, mágico, presidido pelo seu Dono,<br />
conforme descrição a seguir.<br />
Cena 1 – Dono do Circo, Ariano e Cervantes<br />
Com a Pedra do Reino ao fundo, o espetáculo é aberto pelo Dono do Circo,<br />
“uma espécie de Deus, espécie de Lux in Tenebris no mau sentido”, segundo Solha (2009,<br />
p. 3). Na história do picadeiro surgem dois profetas: o próprio Ariano Suassuna e seu ídolo,<br />
Miguel de Cervantes Saavedra. Os dois profetizam (cada um cantando em sua própria<br />
...........................................................................<br />
5 Sabe-se que o jovem rei português foi morto na batalha de Alcácer-Quibir, no Marrocos, em 1578, em uma<br />
cruzada cristã. Desde então, transformou-se em personagem de uma lenda em Portugal, segundo a qual ele<br />
teria sido alçado aos céus durante a citada batalha para um dia voltar como redentor, a fim de instaurar o Quinto<br />
Império (de justiça e fartura) contra os espanhóis. Séculos depois, na década de 1830, no Brasil, ocorrem manifestações<br />
coletivas de um messianismo associado ao rei português, rotuladas de sebastianismo, precisamente<br />
em São José do Belmonte, sertão de Pernambuco, a 470 quilômetros do Recife, onde duas rochas conhecidas<br />
como Pedra Bonita erguem-se a 30 e 33 metros respectivamente. Em 1836, João Antônio dos Santos prega que<br />
Dom Sebastião está encantado na Pedra Bonita e precisa ser libertado para implantar um reino de prosperidade<br />
e liberdade. Dois anos depois, seu cunhado João Ferreira se autointitula rei e proclama que a Pedra só se desencantaria<br />
quando lavada com sangue, o que foi feito com sacrifícios humanos. O massacre da Pedra do Reino<br />
ocorreu entre 14 e 16 de maio de 1838, matando 53 pessoas, incluindo mulheres e crianças.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
89<br />
língua) que dez dragões virão destruir a Pedra num banho de sangue, o que fará acontecer<br />
o milagre: a Pedra se abrirá para surgir de dentro dela uma catedral grandiosa e Dom Sebastião<br />
acompanhado de sua corte (reis, rainhas e príncipes... dos maracatus). O Dono do<br />
Circo ainda esclarece: os dragões são, na verdade, retroescavadeiras.<br />
Cena 2 – Trancoso e Bozo<br />
O Dono do Circo apresenta Trancoso (um ator que interpreta Dom Pixote) e Bozo<br />
(outro ator que interpreta São Chupança), os quais comentam sobre a profecia. Nas<br />
palavras de Solha:<br />
Ah, claro que nesse circo fabuloso em que Cervantes nos visita, não poderia faltar<br />
a imensa figura de seu superstar Dom Quixote, aqui, na verdade, Pixote,<br />
dançando um xote, acompanhado pelo indefectível Sancho Pança, na verdade<br />
São Chupança. Tal Quixote-Pixote, no entanto, não poderia limitar sua referência<br />
à Espanha, daí que nosso herói não é mais do que uma performance do ator<br />
Trancoso, nome que nos remete a Gonçalo Fernandes Trancoso, o pioneiro da<br />
contística lusitana, célebre por suas estórias fantasiosas, donde o rótulo de História<br />
de Trancoso para todo relato de sertanejo, que não passe de flagrante<br />
mentira, como toda esta ópera. (Solha, 2009, p. 3)<br />
Cena 3 – A Morte<br />
O Dono do Circo apresenta a vilã, A Morte, cuja missão é destruir a Pedra para acabar<br />
com o fanatismo. Trancoso sonha com Dulcineia. A Morte avisa: vai dinamitar a Pedra<br />
do Reino e desmantelá-la com suas escavadeiras sombrias. O Coro do Povo responde<br />
com fé.<br />
Cena 4 – A Compadecida<br />
Ocorre uma revelação a Trancoso, que Solha descreve:<br />
[…] e eis que Trancoso, em lugar de botar na cabeça a bacia de barbeiro (que é o<br />
elmo de Quixote), põe, por engano, o chapéu de Lampião, com o que imediatamente<br />
entra em transe […] e o que vê e vemos com ele? A fabulosa Pedra se<br />
abrindo, revelando a maravilhosa Catedral que há dentro dela, da qual saem a<br />
Compadecida e seu coro de anjos para falar com nosso ator. E o que ela quer<br />
com ele? Que lidere o povo contra a Morte e suas tropas [levando-o para proteger<br />
a Pedra], prometendo-lhe, em troca, Dulcineia! (Solha, 2009, p. 3)<br />
Cena 5 – Dulcineia<br />
Ariano e Cervantes entram com Dulcineia, que se pergunta por que foi a escolhida.<br />
Para ser desviada de seus pensamentos acerca de seu futuro sombrio, Dulcineia é<br />
distraída com um Frevo.<br />
Cena 6 – Encontro de Dulcineia e Trancoso<br />
Trancoso e Dulcineia finalmente se encontram. Solha (2009, p. 3): “Não há dúvida<br />
de que o encontro dos dois é uma tremenda maldade criadora de Ariano para o Dono do<br />
Circo, pois o casal é logo levado à Morte, a fim de que o sangue dos dois banhe a Pedra<br />
que, finalmente, deve se escancarar para o Milagre”.<br />
Cena 7 – Lampião e Maria Bonita<br />
No meio da história, Cervantes tem um transe profético (a prefiguração da tragédia):<br />
Lampião e Maria Bonita (que são, na verdade, os modelos de Trancoso e Dulcineia)<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
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atravessam de barco o rio São Francisco, onde cruzam com uma jazz-band que vem em<br />
outra embarcação na direção oposta – há uma jam session no meio do São Francisco.<br />
Poucos dias depois, Lampião e Maria Bonita são mortos e degolados na Grota dos Angicos.<br />
Cena 8 - A batalha<br />
Ocorre a batalha de Trancoso (liderando o povo) pela Pedra do Reino contra a<br />
Morte, as dragas e as tropas – a batalha é perdida.<br />
Cena 9 - O fuzilamento<br />
No alto da Pedra surgem Trancoso e Dulcineia acorrentados como Prometeu.<br />
Entre eles está Bozo, preso. O Dono do Circo anuncia o pelotão de fuzilamento. Bozo se<br />
queixa – queria uma grande ária. Dulcineia e Trancoso proferem suas últimas palavras. O<br />
fuzilamento é ordenado pela Morte. Trancoso, Dulcineia e Bozo morrem.<br />
Cena 10 - A ressurreição<br />
Finalmente, com o sangue de Trancoso, Dulcineia e Bozo, a Pedra do Reino se<br />
abre, e de lá surgem três Bonecos de Olinda: Trancoso com a faixa “El Rei Dom Sebastião<br />
Trancoso”; Dulcineia Primeira, como Rainha; e Bozo (um boneco pequeno) como Bufão,<br />
dançando maracatu. Vão começar o reinado da grandiosa nação brasileira (e o ciclo<br />
reinicia...).<br />
Ressalte-se que, além da homenagem a Ariano, o enredo de Solha traz em seu<br />
bojo um expressivo número de elementos que referenciam uma arte popular reverenciada<br />
pelo próprio Ariano, uma poética que sempre impregnou o Movimento Armorial em geral:<br />
a Literatura (ou Folheto) de Cordel, própria da Cantoria de Viola. Dentre tais elementos,<br />
sobressaem o espírito profético, o universo mágico, fantástico, o componente épico e espetacular,<br />
o mito, a lenda, o messianismo, o herói, o sacrifício, o milagre, a efusão religiosa,<br />
o humor e a tragédia.<br />
No ambiente imaginário, irreal, apresentado pelo libreto de Solha, proponho<br />
um universo sonoro em que culturas musicais distintas convivem, confrontam-se e se<br />
fundem. E evidenciam traços característicos da tradição operística, referências da música<br />
medieval-renascentista da Península Ibérica, e referências regionais – que incluem maracatu,<br />
frevo, cantoria de viola, xote, baião, caboclinhos, valsa, terno de pífanos etc. –<br />
além de música circense. Há também uma carga de alusões musicais por trás da ópera –<br />
concernente a estilos, não a obras específicas – que permeia compositores tão díspares<br />
quanto Mozart, Verdi, Mahler, Del Tredici, Bernstein e Juan Del Encina, dentre outros,<br />
num diálogo com o armorial. No que concerne os elementos armoriais em si, procurei<br />
evitar o uso explícito de certos clichês melódico-harmônicos muito óbvios do Movimento.<br />
O maior desafio, talvez, foi encontrar o equilíbrio entre esses elementos – incluindo as<br />
referências folclóricas rurais nordestinas, a música secular medieval-renascentista, a música<br />
circense – e a tradição lírica, cuja impostação vocal do bel canto foi respeitada. Não tentei<br />
limar ou modificar esse aspecto para adequá-lo às características armoriais; pelo contrário,<br />
procurei fazer com que ambos dialogassem para enriquecimento do próprio discurso narrativo<br />
e musical.<br />
Minha solução foi articular formalmente o discurso criando uma colagem em<br />
dois níveis, que amparasse simultaneamente seccionamento e continuidade. Em um nível<br />
há a compartimentação sequencial e sobreposta dos conteúdos (de ordem primária, motívico-temática<br />
em especial), de acordo com determinados critérios de ordenamento e<br />
recorrência. Em outro nível há o intercambiamento entre tais conteúdos e diversas caracterizações,<br />
gerando, inclusive, mutações nos primeiros. O objetivo desse intercambiamento<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
91<br />
foi criar uma teia pré-composicional, na qual fosse possível combinar e recombinar, entre<br />
os conteúdos, múltiplas funções e qualidades, tais como: tipos de música (de cunho folclórico,<br />
com evocação de música antiga, com evocação de música circense, de tradição<br />
lírica); desdobramento da narrativa (por meio de diálogos, de descrições, de reflexões);<br />
contorno dramático-musical (para implementar estabilidade, flutuação tensional, instabilidade);<br />
articulação discursiva (através de falas, árias [duetos, trios...], segmentos vocais<br />
vários, inserções orquestrais, quasi-recitativos); elaboração musical (envolvendo simplicidade,<br />
complexidade) etc. Assim, um mesmo material temático e seu desenvolvimento,<br />
ao mesmo tempo que mantivessem seus papéis tradicionais de implementação de coesão<br />
linear e de agentes do discurso musical, poderiam, por exemplo, carregar em determinado<br />
instante música de cunho folclórico, descritiva, estável, em dueto, envolvendo certo grau<br />
de simplicidade e, em outro instante, poderiam carregar música de tradição lírica, reflexiva,<br />
de flutuação tensional, num trio, envolvendo complexidade etc. Nesse contexto, evitouse<br />
a tipificação musical dos personagens (com exceção d’A Morte) e do coro, de tal forma<br />
que os diversos materiais temáticos pudessem também intercambiar livremente entre<br />
eles.<br />
A ópera é governada por uma harmonia abertamente triádica, organizada sobre<br />
uma plataforma tonal e outra modal, as quais se inter-relacionam. Na segunda plataforma<br />
são usados os modos Lócrio, Frígio, Mixolídio (Nordestino), Lídio (Nordestino), Dórico<br />
(Nordestino Menor) e de Tons Inteiros. Dentre os vários tipos de relações e caminhos tonais<br />
sedimentados (sobre os dois tipos de organização de alturas), três se destacam: por<br />
terças (relações de mediantes cromáticas); por quartas; e de acordo com os graus (completos<br />
ou parciais) do modo Lócrio. Essas relações são projetadas tanto em larga escala,<br />
estabelecendo as áreas e os centros tonais da ópera, quanto em pequena escala, definindo<br />
as simples progressões tonais. A Figura 1 mostra um resumo das áreas tonais principais<br />
distribuídas nas dez cenas de Dulcineia e Trancoso, destacando tais relações. Note-se que<br />
certo grau de simetria reflexiva é aplicado ao desenho tonal, considerando as Cenas 5 e 6<br />
como eixo central. As citadas relações também estão presentes nos grandes eixos tonais<br />
da obra: 1) o centro tonal inicial e final de Lá em relação ao de Fá, no meio (terça); 2) o<br />
centro Lá em relação ao de Mib, simetricamente localizado nas Cenas 3 e 8 (trítono da<br />
“dominante” lócria); os centros Fá, Sib e Mib na segunda metade (quartas).<br />
Figura 1. Áreas tonais principais distribuídas nas dez cenas de Dulcineia e Trancoso.<br />
Naturalmente, num plano prático, tais relações são aplicadas visando criar passagens,<br />
tanto de larga quanto de pequena escala, com menor direcionamento (caso das<br />
relações de mediante cromática) e com maior direcionamento e empuxo tonais (caso dos<br />
caminhos por quartas), de acordo com as necessidades dos fluxos textuais e musicais.<br />
Mas há também um uso até certo ponto simbólico, com a aplicação dos caminhos pautados<br />
nos graus do modo Lócrio, em especial os que formam o intervalo de trítono (I e V graus<br />
do modo) – como acontece na Cena 3 (dedicada ao personagem Morte), onde as áreas<br />
tonais seguem as notas de um acorde diminuto, e na segunda metade da ópera (em que<br />
a parte trágica do enredo é desencadeada), onde os grandes centros tonais (exceto Fá#)<br />
seguem os graus de uma escala Lócria de Lá desordenada.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
92<br />
A exemplo da colagem intercambiante de funções e estruturas que ocorre no<br />
desenho formal, algumas interações acontecem também entre os elementos melódicoharmônicos.<br />
Por exemplo, a passagem tonal apresentada na Figura 2 (cantada pela<br />
Compadecida, na Cena 4) tem em seu baixo e nas fundamentais dos acordes de sua<br />
progressão harmônica uma escala completa (desordenada) do modo Frígio em Ré.<br />
Figura 2. Trecho da Cena 4, cantado pela Compadecida. Pauta inferior mostra modo Frígio em Ré (desordenado).<br />
Já a Figura 3 mostra uma passagem modal em Dórico (cantada pela Morte, na<br />
Cena 3), compassos 137-146, sucedida por uma tonal que tem na melodia o modo Lócrio<br />
em Ré, compassos 147 em diante.<br />
Figura 3. Trecho da Cena 3, cantado pela Morte.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
Figura 3. Trecho da Cena 3, cantado pela Morte (cont.).<br />
Tais interações tiveram por propósito criar uma espécie de narrativa subliminar<br />
harmônica capaz de carregar com fluidez e coerência tonais os distintos conteúdos<br />
propostos no universo sonoro de Dulcineia e Trancoso.<br />
Em última instância, os procedimentos e elementos de tal universo sonoro,<br />
descritos aqui, objetivaram transcender, em parte, as práticas musicais mais desgastadas<br />
do Movimento em questão, desenvolvidas ao longo das últimas décadas, mas sem perder<br />
a essência do espírito Armorial.<br />
Referências bibliográficas<br />
Amaral, C. E. “Ópera Recifense”. Revista Continente. Recife, ano X, p. 33-35, maio, 2010.<br />
Nóbrega, A. P. “A Música no Movimento Armorial”. In: Anais do XVII Congresso da<br />
ANPPOM. São Paulo, 2007.<br />
Solha, W. J. “Opera Dulcineia e Trancoso” (texto no programa de concertos do XII<br />
Virtuosi Festival Internacional de Música). Recife, dezembro, 2009.<br />
Solha, W. J. Publicação eletrônica [mensagem pessoal]. Mensagem recebida por<br />
em 3 de agosto, 2010.<br />
Suassuna, A. “Notas sobre a música de Capiba”. In: Ferreira, A. É de Tororó. Rio de<br />
Janeiro, Livraria Editora da Casa do Estudante do Brasil, 1951, p. 44-45.<br />
Suassuna, A. “O Quinteto e o Movimento Armorial”. In: Quinteto Armorial – Do<br />
Romance ao Galope Nordestino. Texto na contracapa do LP. Manaus: Sonopress Rimo<br />
da Amazônia, Discos Marcus Pereira, 1974.<br />
93<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
95<br />
Uma visão atual da ópera no Brasil:<br />
procedimentos cênico-musicais<br />
em Dom Casmurro e n’A Tempestade<br />
Ronaldo Miranda<br />
Universidade de São Paulo<br />
A ópera brasileira, em termos de criação musical, teve o seu momento de maior<br />
esplendor na segunda metade do século XIX, com a produção de Antônio Carlos Gomes<br />
(Campinas, 1836 – Belém, 1896), compositor que foi sem dúvida o maior operista do continente<br />
americano.<br />
O autor de Lo Schiavo, Il Guarany e Colombo, contudo, constituiu-se num fenômeno<br />
relativamente isolado e sem continuidade. Os grandes compositores que o sucederam<br />
não se dedicaram com a mesma intensidade ao gênero lírico, preferindo abordar<br />
outras formas de expressão musical e muito raramente se aventurando no terreno da<br />
ópera. Essa constatação pode ser aplicada às figuras de Leopoldo Miguez, Alberto Nepomuceno<br />
e Francisco Braga, este talvez o responsável pela mais importante obra do gênero,<br />
na virada do século: a ópera Jupyra, composta no ano de 1900, sobre libreto de Escragnolle<br />
Doria, a partir de um argumento de Bernardo Guimarães.<br />
Glauco Velásquez deixou inacabada sua ópera Soeur Béatrice, a partir da peça<br />
de Maurice Maeterlinck, o dramaturgo belga eleito por Claude Debussy em sua incursão<br />
no gênero lírico, através de Pelléas et Mélisande.<br />
Em pleno século XX, nosso esfuziante Francisco Mignone não negou suas origens<br />
italianas, mas percorreu um caminho bastante irregular entre sua primeira ópera, O Contratador<br />
de Diamantes, de 1921, e a última, O Sargento de Milícias, composta em 1978.<br />
No ano de 1928, a segunda ópera de Mignone, L’Innocente, que teve libreto em<br />
italiano – tal como a primeira –, despertou controvérsias profundas entre os críticos brasileiros.<br />
Luiz Heitor Correa de Azevedo considerou-a “verdadeiramente notável e marcante”<br />
(Azevedo, 1938), mas Mário de Andrade foi ríspido e nada condescendente com a obra e<br />
com o autor, que, nessa época, tinha apenas 31 anos de idade. Concentrando-se no distanciamento<br />
que esta ópera mantinha em relação a um contexto musical brasileiro, Mário<br />
de Andrade escreveu:<br />
É muito doloroso, no momento decisivo de normalização étnica em que estamos,<br />
ver um artista nacional se perder em tentativas inúteis. Porque em música italiana,<br />
Francisco Mignone será apenas mais um, numa escola brilhante, rica, numerosa,<br />
que ele não aumenta […] O Inocente pertence à Itália. A música brasileira<br />
fica na mesma, antes e depois dessa ópera. (Andrade, 1976)<br />
Quarenta e oito anos se passaram até que Mignone escrevesse sua terceira ópera,<br />
O Chalaça, com libreto de Mello Nóbrega, finalmente em língua portuguesa. Concebida<br />
em apenas um ato, O Chalaça estreou na Sala Cecília Meireles em 1976, com regência de<br />
Mário Tavares e direção de Osvaldo Loureiro. Cantores favoritos do compositor, Paulo<br />
Fortes e Glória Queiroz viveram os papéis principais, representando respectivamente o<br />
personagem título, o Chalaça, e Domitila, a Marquesa de Santos.<br />
Em bela crítica no Jornal do Brasil, Edino Krieger saudou favoravelmente o novo<br />
trabalho de Mignone, considerando-o uma obra “leve, mas consistente, que se mantém<br />
de pé tanto musicalmente quanto cenicamente, da primeira à última nota” (Krieger, 1989).<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
96<br />
Figura polêmica, de talento arrebatador, nosso grande Heitor Villa-Lobos fez<br />
algumas incursões no gênero lírico, mas não foi nesse terreno que obteve o sucesso retumbante,<br />
que o coloca hoje entre os compositores mais destacados do século XX. Sua<br />
ópera mais importante talvez tenha sido Yerma, composta em Paris entre os anos de<br />
1955 e 1956, a partir da peça homônima de Federico Garcia Lorca. Ouvida pela primeira<br />
vez após a morte do autor, no ano de 1971, na Ópera de Santa Fé, Yerma chegou ao Brasil<br />
em 1983, em encenação de Adolfo Celi, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro. O espetáculo<br />
foi saudado por Luiz Paulo Horta, no Jornal do Brasil, com uma boa crítica, ressalvando-se<br />
porém a constatação de um certo clima “monocórdio”, que se instala sobretudo<br />
no primeiro ato (Horta, 1989). Outros trabalhos villalobianos no gênero operístico<br />
são Izath, A Menina das Nuvens e Magdalena, esta última estreada em Los Angeles, no<br />
ano de 1948, com direção cênica de Jules Dassin.<br />
Entre o Malazarte de Oscar Lorenzo Fernandez e o Pedro Malazarte de Mozart<br />
Camargo Guarnieri, a ópera brasileira foi pouco ouvida na primeira metade do século XX. Camargo<br />
voltou ao gênero no ano de 1960, trocando a comédia pelo drama. Compôs Um<br />
Homem Só, belo drama lírico em um ato, a partir de um libreto de Gianfrancesco Guarnieri.<br />
O espetáculo de estreia foi dirigido por Ziembinski, voltando à cena, em 1976, numa nova<br />
versão encenada por Gianni Ratto.<br />
Entre as experiências mais recentes, na criação operística nacional, vale citar<br />
Balada para Matraga, composta em 1985 pelo compositor Rufo Herrera, argentino radicado<br />
em Minas Gerais, a partir do original de Guimarães Rosa, A Hora e a Vez de Augusto<br />
Matraga; Maroquinhas Fru-Fru, escrita em 1976 por Ernst Mahle, alemão radicado em<br />
Piracicaba, a partir da peça homônima de Maria Clara Machado; A Peste e o Intrigante,<br />
ópera infantil de Mário Ficarelli, baseada em Monteiro Lobato e destinada, em 1986, aos<br />
alunos do Conservatório de Tatuí; e Qorpo Santo, de Jorge Antunes, estreada em Brasília<br />
no ano de 1983, com uma visão do compositor sobre a vida do dramaturgo gaúcho José<br />
Joaquim de Campos Leão, o Qorpo Santo.<br />
Na década de 80, duas compositoras – Jocy de Oliveira e Cirlei de Hollanda – entram<br />
em cena nesse processo de consolidação de uma nova linguagem para a ópera no<br />
Brasil. Jocy de Oliveira estreou em 1987, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro,<br />
sua ópera Fata Morgana, contando apenas com a meio-soprano Ana Maria Kiefer e o<br />
violinista Ayrton Pinto, mas utilizando uma variada gama de recursos visuais. Essa característica<br />
de projetar na ópera um espetáculo de perfil multimedia permaneceu em todas<br />
as suas criações subsequentes do gênero. No ano de 1989, Cirlei de Hollanda foi a responsável<br />
pelo espetáculo inaugural do Centro Cultural Banco do Brasil no Rio de Janeiro: sua<br />
ópera Judas em Sábado de Aleluia transpôs para o gênero lírico, com agilidade e competência,<br />
o universo teatral de Martins Penna.<br />
No apagar das luzes do século XX, precisamente em 1998, estreia Alma, ópera<br />
que Cláudio Santoro concluiu em Teresópolis, no ano de 1985. Baseada em Os Condenados,<br />
de Oswald de Andrade, Alma só foi encenada nove anos após a morte do grande compositor<br />
amazonense, em Brasília, em 1989.<br />
No ano 2000, João Guilherme Ripper recebe de André Heller, no Rio de Janeiro<br />
e em São Paulo, a primeira encenação de uma ópera de sua autoria: Domitila. Concentrada<br />
em um ato e contando apenas com uma soprano, um pianista, um clarinetista e um violoncelista,<br />
esta ópera foi a segunda escrita por Ripper, que antes abordou também A Hora<br />
e a Vez de Augusto Matraga, de Guimarães Rosa, em obra ainda inédita.<br />
Foi, contudo, no ano de 2003, no pequeno teatro do Centro Cultural Banco do<br />
Brasil em São Paulo, que João Guilherme Ripper apresentou sua mais bem sucedida incursão<br />
no gênero lírico: a ópera O Anjo Negro. Contando com um valoroso elenco e um<br />
pequeno conjunto instrumental, com regência de Abel Rocha e direção cênica de André<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
97<br />
Heller, O Anjo Negro mostrou plenamente a poderosa força dramática do compositor,<br />
transformando a peça homônima de Nelson Rodrigues numa grande ópera.<br />
O ano de 2006 marcou a estreia de Olga, de Jorge Antunes, sobre libreto de Gerson<br />
Valle. Preparada ao longo de muitos anos, essa densa e eclética criação de Antunes<br />
ganhou vida cênica pelas mãos de William Pereira, responsável pela bela montagem desta<br />
ópera no Teatro Municipal de São Paulo.<br />
É nesse contexto que se inserem minhas duas óperas – Dom Casmurro e A Tempestade,<br />
ambas encenadas em São Paulo. Dom Casmurro foi escrita a partir da Bolsa<br />
Vitae de Artes, entre os anos de 1988 e 1992, quando ocorreu sua estreia no Teatro Municipal<br />
paulistano. A Tempestade foi composta, no tempo recorde de oito meses, por encomenda<br />
da Banda Sinfônica do Estado de São Paulo, estreando em setembro de 2006 no<br />
Teatro São Pedro.<br />
A origem de Dom Casmurro remonta, na verdade, ao ano de 1976, quando eu<br />
concluía meu Curso de Graduação em Composição na Escola de Música da <strong>UFRJ</strong>. Apresentei<br />
nessa época alguns esboços do primeiro ato, como meu trabalho final de composição em<br />
música dramática, já contando com a colaboração do libretista Orlando Codá. Esse trabalho<br />
inicial, porém, resultou apenas numa abordagem juvenil do romance machadiano. Foi<br />
preciso esperar 12 anos, de 1976 a 1988, para que o projeto ganhasse substância dramática<br />
e musical, encontrando uma realidade possível a partir da Bolsa Vitae. Quando obtive a<br />
bolsa, a partir de 1988, libreto e partitura foram reformulados e concluídos num período<br />
de quatro anos: o libretista Orlando Codá atuou comigo nos primeiros 12 meses e em seguida<br />
trabalhei praticamente sozinho nos três últimos anos, face às dimensões gigantescas<br />
dessa ópera de três atos, com música de duas horas e quinze minutos de duração,<br />
consubstanciada numa partitura orquestral de quase mil páginas.<br />
O primeiro problema enfrentado foi comprovar o caráter operístico de Dom<br />
Casmurro. Nesse sentido, encontrei defensores ardorosos em Maria Augusta Wurthmann<br />
Ribeiro, com sua dissertação de Mestrado, de 1981, na ECA/USP, orientada pelo prof. Jacó<br />
Guinsburg (Ribeiro, 1981), bem como no teórico americano Herbert Lindenberger, que<br />
conclui o capítulo “Ópera em romances” de seu livro Opera – the extravagant art com um<br />
epílogo intitulado “A ‘Opera Mundi’ de Dom Casmurro”, ressaltando o tom operístico do<br />
livro de Machado de Assis (Lindenberger, 1984). Tais autores reforçam minha ideia de que<br />
Dom Casmurro é um romance não só teatralizável como totalmente adequado ao gênero<br />
lírico. O aspecto descritivo e a densidade psicológica da narrativa não chegam a inviabilizar<br />
os fortes componentes dramáticos da obra, que se identificam por completo com o universo<br />
operístico: um triângulo amoroso, uma suspeita de traição, uma paixão avassaladora<br />
(que atravessa obstáculos para que o amor se consuma), intrigas familiares e um final<br />
totalmente infeliz.<br />
A teatralização do romance Dom Casmurro, através da ópera, foi objeto de minha<br />
tese de Doutorado na ECA/USP, desenvolvida entre os anos de 1992 e 1997, sob a orientação<br />
de Eudinyr Fraga. Várias questões referentes às relações entre ópera e literatura foram<br />
levantadas nesse trabalho (Miranda, 1997).<br />
Transpor uma obra de arte de um gênero para outro não é tarefa fácil. E, quase<br />
sempre, quem se arrisca a fazer uma adaptação – principalmente quando se trata de<br />
adaptar um consagrado título literário – arrisca-se a ser alvo de críticas e a ter o seu trabalho<br />
comparado (e diminuído) em relação ao original abordado. No entanto, se efetivamente<br />
a maioria das adaptações são inferiores aos seus originais, há também honrosas<br />
exceções, mormente no gênero lírico, onde encontramos transposições que podem ser<br />
consideradas artisticamente equivalentes à matriz adaptada ou, até mesmo, superiores,<br />
em casos de flagrante desnível do romance ou da peça de teatro original.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
98<br />
Um belo caso de equivalência, por exemplo, pode ser exemplificado com o Otelo,<br />
de Verdi, sobre libreto de Arrigo Boito, se comparado ao Otelo original de William Shakespeare.<br />
Joseph Kermann, professor da Universidade da Califórnia em Berkeley, ressalta a<br />
habilidade de Boito, ao suprimir e deslocar – em seu libreto – várias cenas do original shakespeareano<br />
(Kermann, 1988). Kermann assinala que, ao contrário de Pelleas et Mélisande,<br />
de Debussy – ópera que, segundo ele, segue quase ipsis verbis, e com eficiência, o texto<br />
de Maurice Maeterlinck – o Otelo, de Verdi e Boito, não se prende à peça original: a forma<br />
da ópera não é a de sua matriz teatral, a começar pela supressão do 1º ato pelo libretista,<br />
que abre a 1ª cena do Otelo operístico com a Tempestade que inicia o 2º ato shakespeareano.<br />
Kermann observa que, nessa ópera, Shakespeare teve que se dobrar a uma<br />
bela concepção do teatro musicado, em que compositor e libretista cristalizaram situações<br />
emocionais com regularidade, em seções ou tableaux líricos (sem pausas nem interrupções),<br />
ficando a música à vontade para “contribuir de forma mais forte e inequívoca<br />
para o drama”.<br />
Outra bela adaptação de Shakespeare para o palco, nos moldes de um musical<br />
da Broadway, West Side Story transpôs o cenário de Romeu e Julieta da cidade de Verona<br />
para a Nova York dos anos 50. O espetáculo teve quatro grandes autores: Jerome Robbins<br />
(autor da ideia e da coreografia), Arthur Laurents (responsável pela adaptação teatral e<br />
pelo texto falado), Stephen Sondheim (autor do texto cantado) e Leonard Bernstein (autor<br />
da música). Segundo Joan Peyser, Arthur Laurents negou-se a escrever a letra das canções,<br />
afirmando que “em nenhuma circunstância serviria como libretista para uma grande ópera<br />
de Bernstein”. Em outras palavras, expressou sua veemente relutância em desempenhar<br />
o papel secundário de um Boito para Verdi, “mesmo que isso pudesse resultar num Otelo”.<br />
Em relação às óperas francamente superiores aos originais adaptados, podemos<br />
citar a Carmem, de Bizet, com libreto de Meilhac e Halévy (muito mais reluzente do que a<br />
novela de Prosper Mérimée em que se baseou), bem como La Bohème e Tosca, de Puccini<br />
– ambas com libreto de Giacosa e Illica – a primeira composta a partir de um livro bem<br />
simples de Henry Muger (Scènes de la vie de Bohème) e a segunda baseada numa apagada<br />
peça de Victorien Sardou (La Tosca).<br />
Catherine Clément, com sua linguagem poética e psicanalítica, enaltece as duas<br />
óperas de Puccini, que possuem atmosferas bastante diversas. Em seu livro, A ópera ou a<br />
derrota das mulheres, dedica um capítulo à Tosca, com o subtítulo de Os pés ligeiros da<br />
paixão. Eis um de seus comentários:<br />
Tosca, a vertigem. A vertigem de uma voz a quem acontecem coisas de ópera<br />
em uma ópera. Uma única voz de mulher, pressionada pelos homens, Tosca ou<br />
a corrida louca do canto e do ciúme, os pés ligeiros da paixão. Ela não para de<br />
correr, de entrar, de sair, ofegante, apressada. E quando porventura ela não está<br />
no palco sua voz de cantora enche o espaço de fora e tudo se imobiliza subitamente,<br />
ternamente, como se ela suspendesse por um tempo o drama político<br />
e as intrigas dos homens que a cercam. (Clément, 1993)<br />
Já em relação à La Bohème, a autora francesa destaca a inocência, o imobilismo<br />
e a juventude. No subcapítulo que se intitula Pierrô lunar (numa comparação da figura de<br />
Mimi com o Pierrot da canção francesa Au Clair de la lune), a escritora continua com seu<br />
discurso poético:<br />
[…] Momentos de calma: a ópera permite que o coração respire. La Bohème<br />
passa da tristeza à alegria, da zombaria de caserna à emoção poderosa, da juventude<br />
que vive seus dias mais belos à angústia que vislumbra a velhice que<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
99<br />
virá […] Puccini jamais deixa de ressaltar como a morte é cotidiana. Quando alguém<br />
morre, é um dia como qualquer outro […] É claro que uma mulher perde<br />
a vida. Mas é como se ninguém tivesse culpa, como se nada houvesse, com esse<br />
frio que congela todo mundo, e ao qual essa moça não resiste […] La Bohème é<br />
a morte natural, a ausência total do drama cristão, o coração limpo para sempre<br />
do que há de trágico no amor. (Clément, 1993)<br />
Talvez a opinião mais sintética e precisa sobre essas duas óperas de Puccini seja<br />
a do escritor inglês W. H. Auden, ele próprio um autor de libretos, além de ensaísta e crítico<br />
literário:<br />
Considero La Bohème inferior à Tosca não porque a música seja menos bela,<br />
mas porque os personagens, especialmente Mimi, são demasiadamente passivos:<br />
há um hiato inábil entre a determinação com que os personagens cantam e a indeterminação<br />
com que agem. (Auden, 1993)<br />
Sempre direto e perspicaz, Auden não se acanha em opinar que Rossini obteve<br />
melhor resultado do que Mozart, ao adaptar para o gênero lírico o personagem Fígaro,<br />
de Beaumarchais, citando a ópera mozartiana As Bodas de Fìgaro como uma das adaptações<br />
não tão bem sucedidas. Auden afirma, categoricamente:<br />
Mozart é um compositor melhor do que Rossini, mas, a meu ver, o Fígaro de As<br />
Bodas é menos satisfatório do que o Fígaro de O Barbeiro e a culpa, creio eu, cabe<br />
a Da Ponte, cujo Fígaro (conforme o libreto) é um personagem por demais<br />
interessante para ser musicado, de modo que, ao lado do Fígaro que canta, sentimos<br />
a presença de um Fígaro que pensa com seus botões. O Barbeiro de Sevilha,<br />
por outro lado, que não é propriamente uma pessoa mas um xereta musical,<br />
encaixa-se perfeitamente na música, sem tirar nem por. (Auden, 1993)<br />
Uma opinião que sintetiza com bastante propriedade essa questão das adaptações<br />
no gênero lírico é a de David Hamilton:<br />
Comparar libretos de ópera, retirados de obras-primas da literatura ou do teatro,<br />
com suas fontes (ressaltando frequentemente o desnível dessas adaptações) é<br />
um exercício amado por críticos e acadêmicos. Na verdade, essas comparações<br />
podem ter encorajado a máxima circunspecção observada por alguns compositores<br />
do século XX ao tornarem mais literais suas adaptações de originais<br />
teatrais, considerando – entre outros títulos – Salomé e Electra, de Strauss, Pelléas,<br />
de Debussy, e as óperas de Alban Berg. Essas comparações, contudo, implicam<br />
que as fontes literárias (como voz narrativa e desenvolvimento) são transferíveis<br />
para o palco musical, enquanto ignoram o potencial da música para criar, entre<br />
outras coisas, modos alternativos de expressividade ou poderosas conexões entre<br />
elementos da narrativa. (Hamilton, 1996)<br />
David Hamilton conclui que, ao contrário dos críticos, o público não costuma<br />
comparar as óperas com suas fontes literárias e, sim, comparar as óperas com outras<br />
óperas. Para utilizar um modismo contemporâneo, musicar um texto é realmente transcriálo,<br />
ou seja, recriá-lo dentro de um código completamente diferente.<br />
Foi dentro desse espírito, descrito por Hamilton, que me aventurei a adaptar<br />
para a ópera o romance Dom Casmurro, de Machado de Assis. Estava convencido do espí-<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
100<br />
rito operístico do romance machadiano e creio que consegui teatralizá-lo através da música,<br />
contando com a preciosa colaboração do libretista Orlando Codá. A ação dramática está<br />
dividida em três atos, com duração média de 45 minutos cada um. Tal como no livro de<br />
Machado de Assis, o primeiro ato começa com Dom Casmurro narrando sua vida, já completamente<br />
solitário e metódico em sua triste velhice. O personagem apelidado Dom<br />
Casmurro, cujo nome é Bento Santiago, torna-se, no decorrer da ópera, o narrador da história.<br />
Apenas na primeira e na última cena, ele é ele mesmo, em tempo real.<br />
Em linhas gerais, o primeiro ato retrata a juventude de Bentinho (como era<br />
chamado Bento Santiago pela família) e seu amor por Capitu, sua vizinha na rua de<br />
Matacavalos. Sua mãe, Dona Glória, quer cumprir a promessa de mandá-lo ao Seminário.<br />
A todo momento, o agregado da família, José Dias, uma espécie de preceptor de Bentinho,<br />
lembra à Dona Glória sua promessa de fazer de seu filho um sacerdote. A família toda<br />
participa desse contexto, inclusive Tio Cosme, Prima Justina e o Pai de Capitu, o Senhor<br />
Pádua. Bentinho troca juras de amor com Capitu, prometendo-lhe que não vai ser padre,<br />
mas ninguém consegue demover sua mãe do propósito. O primeiro ato termina com a<br />
partida de Bentinho para o Seminário: toda a família reunida, muitos adeuses, muitas recomendações<br />
e, à parte, trocas juras de amor do jovem Bento com Capitu.<br />
O segundo ato passa-se predominantemente no Seminário. Já o Prelúdio orquestral<br />
oscila entre um neorromantismo mahleriano e sugestões do modalismo gregoriano.<br />
Em cena aberta, a ambientação sonora prevê cânticos litúrgicos para coro masculino<br />
e para coro infantil, incluindo o tradicional Veni creator spitritus. É introduzido o<br />
personagem de Escobar, amigo dileto de Bentinho. Desenvolve-se liricamente a amizade<br />
dos dois jovens. Para quebrar o clima litúrgico e monocórdio do Seminário, Bentinho sonha<br />
com as francesas da rua do Ouvidor e o sonho se materializa em cena coral, projetada<br />
com muita habilidade pelo libretista Orlando Codá. Há também a visita de Escobar à família<br />
de Bentinho, quando se introduz a personagem de Sancha, futura mulher de Escobar.<br />
De volta ao Seminário, Bentinho, com a ajuda de Escobar, consegue convencer José Dias<br />
a tirá-lo daquele lugar, propondo que Dona Glória ordene um substituto em seu lugar.<br />
Pela primeira vez Bentinho vira o patrão de José Dias e o agregado acaba lhe obedecendo.<br />
O ato termina com o casamento de Bentinho e Capitu, na mesma capela do Seminário.<br />
Como sempre, Dom Casmurro, o narrador, pontua a história, reforçando a ação dramática,<br />
fornecendo informações e preenchendo lacunas dos acontecimentos não encenados.<br />
O terceiro ato se passa na Casa da Glória, de frente para o mar da Baía de Guanabara,<br />
onde vão morar Bentinho e Capitu depois de casados. Escobar, que também deixara<br />
o Seminário e havia se casado com Sancha, visita sempre o casal. Aos poucos a presença<br />
constante de Escobar vai despertando os ciúmes de Bentinho. Escobar morre afogado,<br />
por ter insistido em nadar em dia de ressaca, com o mar bravio. Na véspera do afogamento,<br />
há um dueto de bravura dos dois amigos, quando Bentinho tenta demover Escobar da<br />
ideia perigosa de nadar em águas tão agitadas.<br />
Ao descrever o enterro do amigo, Dom Casmurro lembra que Capitu olhava<br />
para o corpo de Escobar com “olhos tristes de viúva”. Os ciúmes de Bentinho progressivamente<br />
aumentam. Por fim, nasce Ezequiel primeiro e único filho de Bentinho e Capitu<br />
e, à medida que ele cresce, vai ficando cada vez mais parecido com a figura de Escobar.<br />
Bentinho enlouquece de ciúmes e se separa de Capitu. Na briga final do casal, literalmente<br />
a acusa de adultério, o que ela nega com veemência.<br />
O final da história é contado por Dom Casmurro. Na penúltima cena, ele reencontra<br />
o filho, já adulto. Ezequiel chega da Europa e pede dinheiro ao pai para empreender<br />
uma expedição arquelógica à Palestina. Bento Santiago vê, no filho adulto, a imagem exata<br />
do amigo Escobar. Eles se despedem. No recitativo final, Dom Casmurro narra laconicamente<br />
a morte de Ezequiel: “Não houve lepra, mas houve tifo. Ezequiel lá ficou. Foi<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
101<br />
enterrado na Terra Santa...” Constatando que está completamente só e que, pouco a pouco,<br />
vai voltando à sua rotina de vida, ele termina exclamando: “Que a Terra lhes seja leve”.<br />
A música que compus para Dom Casmurro procura alternar a linguagem, deixando<br />
em geral os procedimentos atonais para os recitativos do personagem título e as<br />
cores do neotonalismo para os momentos líricos, as situações amorosas e as cenas familiares.<br />
Há quem tenha visto semelhanças com a textura do primeiro movimento das<br />
Bachianas nº 5 de Villa-Lobos no arioso que Capitu canta, na Cena 5 do primeiro ato, ou<br />
certa influência de George Gershwin no dueto de bravura que se segue entre o par romântico<br />
central da ópera. Já o maestro David Machado detinha-se em comentários sobre<br />
a 4ª cena do segundo ato, de caráter estático e interiorizado. Segundo ele, a música ali<br />
refletia um pouco da linguagem de Stravinsky e Alban Berg. Posso assegurar, no entanto,<br />
que essas possíveis influências ou semelhanças não foram intencionais. Já as citações no<br />
estilo de Richard Wagner, ao final do 2º ato e ao meio do terceiro, foram feitas propositalmente,<br />
para sublinhar a admiração textual de Machado de Assis pelo mestre de<br />
Bayreuth. No próprio romance, Dom Casmurro narra sua noite de núpcias com imagens<br />
da Primeira Epístola de São Pedro (sobre o casamento) e do Cântico dos Cânticos de Salomão,<br />
“como se música e texto houvessem nascido juntos, à maneira de uma ópera de<br />
Wagner” (Assis, 1988).<br />
Em vista dessa observação, o libretista Orlando Codá reuniu, a meu pedido, pequenas<br />
citações dessas duas fontes (A Epístola de São Pedro e os Cânticos de Salomão) para<br />
a cena final do segundo ato, que representa o casamento de Bentinho e Capitu. Tais textos<br />
foram por mim musicados à maneira de Wagner, em uma grande seção musical, inserida<br />
na parte central do Gloria in Excelsis Deo com que termino a música do segundo ato.<br />
No decorrer do terceiro ato, procurei estabelecer através da música, uma forte<br />
atmosfera de drama, paixão e angústia, que caracterizam os vários momentos da ação<br />
dramática. Aqui não estamos mais no universo inocente e juvenil do primeiro ato, nem<br />
no clima litúrgico, intimista e, por fim, exultante, do segundo ato. O terceiro ato de Dom<br />
Casmurro caminha progressivamente para a tragédia: tal como no romance, o desfecho<br />
trágico de repente se precipita.<br />
Um dos recursos operísticos que projetei conscientemente foi dar a maior densidade<br />
dramática possível ao dueto de bravura entre Bentinho e Escobar, na véspera do<br />
afogamento. Tendo no palco, respectivamente, um barítono e um tenor, lembrei-me – ao<br />
compor esta cena – do exepcional dueto de Iago e Otelo, com a mesma formação vocal.<br />
Não me lembrei, nem por um minuto, da música específica que Verdi criou para essa<br />
situação, mas sim da força expressiva daquele momento. Acho que consegui a intensidade<br />
pretendida, e acabei – talvez – imprimindo certo tom verdiano à textura musical que criei<br />
para o dueto em questão.<br />
Ainda no terreno da técnica composicional, os leitmotivs, ou motivos condutores,<br />
foram abundantemente por mim utilizados na criação de Dom Casmurro. Passam<br />
das vozes para a orquestra, de um personagem para o outro, de uma para outra cena,<br />
bem como percorrem diversas situações, acentuando um personagem ou uma ideia, bem<br />
como deslocando-se de contexto, no decorrer da ação dramática. As árias, os duetos e os<br />
ensembles nunca estão isolados, mas sempre inseridos, quase que ininterruptamente, na<br />
sequência dos acontecimentos musicais.<br />
A repercussão crítica de Dom Casmurro foi maior nos anos que se seguiram à<br />
estreia da ópera do que propriamente no momento de sua apresentação. Zito Baptista<br />
Filho, em sua coluna Discos Clássicos, de O Globo, assim saudou a primeira transmissão<br />
radiofônica da ópera no Rio de Janeiro, em dezembro de 1992:<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
102<br />
A música de Ronaldo Miranda, já destacado por premiações em obras de piano<br />
e câmara, tem as influências esperadas da arte italiana, francesa e alemã. Ela<br />
cresce expressivamente de ato para ato. Um texto de Machado de Assis seria<br />
impensável cantado em outro idioma. E o cuidado no trabalhar esse texto mostra<br />
o quanto compositor e libretista respeitam e se encantam com a linguagem incomparável<br />
do escritor. (Baptista Filho, 1992)<br />
Vera Lúcia Mello, produtora da Rádio Cultura FM de São Paulo e responsável<br />
pelo programa Ópera Completa, ressaltou a questão do risco e da responsabilidade autoral<br />
na questão da adaptação de romance tão festejado quanto Dom Casmurro. Eis parte do<br />
seu depoimento, dois anos após a estreia da ópera:<br />
Surpreendente transpor Dom Casmurro para o palco lírico! A riqueza da observação<br />
psicológica de Machado de Assis, sua lucidez e ironia, a qualidade literária<br />
de sua escrita em ópera! Cumprir tal tarefa hercúlea é um enorme desafio.<br />
Para nós, brasileiros, só teria um paralelo na transposição de Otelo de Shakespeare<br />
por Boito e Verdi. Além das dificuldades implícitas à adaptação significa<br />
também enfrentar preconceitos – por conservadorismo ou ousadia – o risco de<br />
se expor à crítica por tocar no mito. (Melo, 1994)<br />
O compositor e musicólogo Rodolfo Coelho de Souza, em extenso depoimento,<br />
também escrito no ano de 1994, demonstra uma visão bastante pessoal da linguagem<br />
musical de Dom Casmurro, afirmando:<br />
No primeiro e segundo atos, melodias e harmonias mais tonais e transparentes,<br />
com frequentes ressonâncias com elementos da tradição popular, facilitam ao<br />
compositor desenhar o quadro social no qual se forja a personalidade do futuro<br />
“Casmurro”. No segundo ato, já presenciamos certos recursos de modalismo,<br />
que introduzem um estranhamento, certa volta a um exótico mais primitivo […]<br />
e que sugerem um tipo de conflito psicológico regressivo no personagem. Esse<br />
conflito desemboca coerentemente no terceiro ato, na paranoia acusatória e na<br />
reclusão depressiva do personagem […], conforme a ambiguidade da narrativa<br />
machadiana, que é expressa pelo compositor através da técnica do leitmotiv,<br />
apoiada num quase atonalismo wagneriano, extremamente cambiante na polarização<br />
tonal, sem fazer uso, porém, do excesso de cromatismo. Nesse sentido,<br />
principalmente, no terceiro ato, Dom Casmurro filia-se a uma ascendência da<br />
ópera francesa, realizada magistralmente no Werther de Massenet, com o qual<br />
o Casmurro de Miranda guarda relevantes paralelismos técnico-estilísticos. (Souza,<br />
1994)<br />
O crítico Luiz Paulo Horta, que, na estreia da ópera, mostrou-se bastante incomodado<br />
com a inteligibilidade do canto em português, voltou a comentar Dom Casmurro,<br />
com maior ênfase, em artigo na revista Piracema, tecendo os seguintes comentários:<br />
Depois de tentar a mão tanto na música vocal como na instrumental, um de<br />
nossos melhores compositores jovens – Ronaldo Miranda – saiu-se com um ensaio<br />
serissimo de “operização” do Dom Casmurro […] Havia, realmente, na versão<br />
levada à cena, desequilíbrios entre instrumentação e capacidade vocal (não é<br />
sempre que se dispõe, por aqui, de vozes poderosas). O texto, por causa disso,<br />
quase deixou de ser ouvido; e isso tirava à ópera o seu principal encanto: a deli-<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
103<br />
ciosa dicção que ela encontrou para a história machadiana posta em música<br />
[…]. À primeira vista, o Dom Casmurro, esta suma do romance carioca, não se<br />
prestaria à “operização”. É obra intimista, de um quase filósofo, trabalhando um<br />
personagem introvertido. Mas, para tudo isso, a ópera tem solução. Quando<br />
acertarem finalmente as questões de montagem, esse Dom Casmurro operístico<br />
poderá ser ouvido não só como um passeio por climas da sociedade imperial,<br />
mas também como um exercício precioso no lirismo melódico que Villa-Lobos<br />
provou ser um dos componentes essenciais da alma brasileira. (Horta, 1994)<br />
Tendo assistido à última récita de Dom Casmurro, no Municipal paulista, quando a<br />
ópera já estava totalmente amadurecida e grande parte dos problemas referentes ao equilíbrio<br />
das vozes já havia sido solucionada, Jorge Coli, professor da Unicamp, foi o mais ardoroso<br />
defensor da minha adaptação do romance machadiano para o gênero lírico. Coli escreveu,<br />
ainda no ano de 1994, um extenso depoimento para minha tese de Doutorado, intitulando-o<br />
A ópera e D. Casmurro de Ronaldo Miranda. Trata-se verdadeiramente de um<br />
longo texto, nas dimensões de um artigo, do qual transcrevo apenas alguns momentos:<br />
[…] Dom Casmurro de Ronaldo Miranda torna-se uma experiência muito animadora.<br />
Porque o autor enfrenta as questões específicas do gênero, que fazem<br />
com que ele possa reivindicar – e isto sem preconceito algum – o epíteto de<br />
operista, na medida em que escreve uma obra cujo ponto de partida é, fundamentalmente,<br />
a ideia do espetáculo […] Música que não se pensa jamais voltada<br />
para si mesma. Música que, por felicidade, não hesita em retomar belos contornos<br />
melódicos, para nos fazer acreditar no amor, na amargura, nos ciúmes. Que<br />
faz explodir a orquestra em espasmos, que insiste em ritmos ou cantilenas. E a<br />
força efetivamente emocional do espetáculo é indiscutível – o final, concentrado<br />
na solidão de Bentinho, cerra gargantas e corações. Devemos ser, e somos, propriamente<br />
tomados pela tragédia a que assistimos […]. Dom Casmurro, a ópera,<br />
liga-se àquela que é a característica mais fundamental do gênero: a de ao mesmo<br />
tempo contar uma história e fazer com que o ouvinte experimente, de um modo<br />
denso e veemente, tudo o que habita dentro do peito dos seres que vão sendo<br />
criados diante de nós, sem que saibamos distinguir o que é música, o que é sentimento<br />
[…]. Torniamo all’antico e faremo cosa nuova. O mestre de Falstaff nunca<br />
abandonou suas certezas. Voluntariamente ou não, Ronaldo Miranda procedeu<br />
a um retorno às fontes mais verdadeiras da ópera, esquecidas tantas vezes. Ele<br />
não perdeu de vista de que se tratava de problemas não propriamente musicais,<br />
mas que pertencem à complexidade de um gênero muito intrincado. D. Casmurro<br />
é música impura, impuríssima, como diria José Dias. Música generosa, no sentido<br />
de que sai de si. Como foram as de Wagner ou Puccini, Verdi ou Gluck, Mozart<br />
ou Monteverdi. (Coli, 1994)<br />
Dom Casmurro estreou no dia 19 de maio de 1992, no Teatro Municipal de São<br />
Paulo, por sugestão e projeto da empresária Gaby Leib e iniciativa de Emílio Kalil, recebendo<br />
um total de cinco récitas. O numeroso elenco foi encabeçado pelo barítono Paulo Fortes,<br />
que viveu o papel título. Bentinho e Capitu foram protagonizados pelo barítono Francisco<br />
Frias e pela soprano Celine Imbert. Escobar foi interpretado pelo tenor Mazias de Oliveira,<br />
Dona Glória pela meio-soprano Sílvia Tessuto, José Dias pelo barítono Jeller Felipe e Prima<br />
Justina pela soprano Patrícia Endo. David Machado foi o regente e Marcelo Marchioro o<br />
diretor cênico, contando com cenários de Felipe Crescenti e figurinos de Leda Senise. Par-<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
104<br />
ticiparam da performance a Orquestra Sinfônica Municipal de São Paulo, o Coral Lírico e o<br />
Coral Infantil ECO.<br />
Quatorze anos separam minha primeira ópera, Dom Casmurro, da segunda, A<br />
Tempestade, baseada na peça homônima de William Shakespeare, e estreada em setembro<br />
de 2006, no Teatro São Pedro, em São Paulo.<br />
A Tempestade surgiu a partir de uma encomenda da Banda Sinfônica do Estado<br />
de São Paulo, através do maestro Abel Rocha, diretor musical da instituição, e de Clodoaldo<br />
Medina, diretor executivo do Centro de Estudos Musicais Tom Jobim. A encomenda me<br />
foi feita ao final de 2005 e a nova ópera precisaria estar pronta em menos de um ano.<br />
De imediato, ficou claro que não seria possível pensar na adaptação de um novo<br />
romance, pois não haveria tempo suficiente para teatralizá-lo. A matriz deveria ser uma<br />
peça de teatro, já com os diálogos prontos e as situações cênicas determinadas. Também<br />
não haveria tempo para chamar um libretista e, assim sendo, eu mesmo empreendi essa<br />
tarefa, tal como o fizeram Cirlei de Hollanda no Judas em Sábado de Aleluia, de Martins<br />
Penna, e João Guilherme Ripper, no Anjo Negro, de Nelson Rodrigues. Meu trabalho,<br />
nesse sentido, constituiu-se em consultar três traduções da peça shakespeareana para o<br />
português, bem como o original em inglês e a versão para o italiano. A partir dessas consultas,<br />
criei coragem e encurtei a ação dramática, colocando todo o conteúdo da peça<br />
num espetáculo operístico de duas horas de duração, em dois atos. Foi preciso suprimir<br />
cenas e personagens, sem prejudicar o fio condutor da história, bem como criar árias,<br />
duetos, ensembles e leitmotivs, para contar em música essa maravilhosa fábula shakespeareana.<br />
Uma forte razão para a escolha de A Tempestade como tema de minha segunda<br />
ópera foi uma versão teatral dessa obra, empreendida por Giorgio Strehler para o Piccolo<br />
Teatro di Milano. Assisti a essa montagem no Theatre National de l’Odéon, em Paris, no<br />
ano de 1983 e fiquei simplesmente maravilhado com o poder de sedução cênica e o simbolismo<br />
da obra, capaz de tocar – com extrema leveza e ironia – nos sentimentos humanos<br />
mais profundos. A encenação despojada de Strehler, apoiada em esplêndidos atores e<br />
numa iluminação perfeita, realçava ainda mais as qualidades do texto de Shakespeare e a<br />
mensagem humanística da obra. Movido por essas lembranças e pela releitura da peça,<br />
resolvi enfrentar o desafio e partir para a ação. Resumi os cinco atos da peça em apenas<br />
dois: o primeiro ficou com uma hora e dez minutos, e o segundo com cerca de 50 minutos.<br />
Deusas da mitologia e figuras femininas (entre os espíritos do ar) foram cortadas, bem<br />
como os nobres Adrian e Francisco, que pouco participaram da ação dramática.<br />
Para o personagem de Ariel, o espírito do ar, segui a tradição de apresentá-lo<br />
com uma intérprete feminina. Giorgio Strehler, em sua versão de La Tempesta, em 1983,<br />
convidou para esse papel nada menos do que a atriz Giulia Lazzarini, gloriosa figura da<br />
cena teatral italiana e uma espécie de Fernanda Montenegro de lá. Era fantástico vê-la<br />
atuando literalmente no ar, flutuando e quase voando através de um cabo de aço. Retratei<br />
então o personagem de Ariel na voz de uma meio-soprano, tal como o Cherubino de<br />
Mozart. Já o papel principal da ópera – referente à figura de Próspero, o Duque de Milão,<br />
exilado e possuidor de amplos poderes mágicos – foi escrito para um barítono agudo,<br />
possuidor de grande extensão vocal. Miranda, filha de Próspero, foi destinada a uma<br />
soprano lírico, enquanto Ferdinando, o Príncipe de Nápoles, foi retratado na voz de tenor.<br />
Caliban, ser maligno e deformado, é outro barítono em cena. Na verdade, como todo o<br />
elenco é masculino, há coleções de barítonos e tenores em cena, representando a corte<br />
de Nápoles e a tripulação do navio naufragado numa ilha deserta.<br />
Com direção cênica e cenários de William Pereira, figurinos de Fábio Namatame<br />
e iluminação de Caetano Vilela, A Tempestade teve regência de Abel Rocha, que escalou<br />
o seguinte elenco para esta produção da Banda Sinfônica do Estado de São Paulo: Homero<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
105<br />
Velho (como Próspero), Rosana Lamosa (como Miranda), Fernando Portari (como o Príncipe<br />
Ferdinando), Regina Elena Mesquita (como Ariel), Sebastião Teixeira (como Caliban),<br />
Carlos Eduardo Marcos (como o Rei Alonso), Eduardo Janho-Abumrad (como o Conselheiro<br />
Gonzalo), Jordi Quelart (como Antônio), Márcio Marangon (como Sebastian), Paulo Queiroz<br />
(como Trínculo), Sandro Bodillon (como Stephano), Rubens Medina (como o Contramestre),<br />
Yuri Jaruskevicius (como o Capitão), e Ossiandro Brito, Nick Vila Maior e Osvaldo<br />
Hernán (como Marinheiros e Espíritos).<br />
Tal como na peça shakespeareana, a ópera A Tempestade começa com a cena<br />
que literalmente representa o seu título, uma terrível tormenta em mar aberto. Em poucos<br />
compassos, uma densa introdução orquestral antecede a entrada das vozes angustiadas<br />
da corte e da tripulação do navio. A música está totalmente fora da tonalidade e os intervalos<br />
angulosos, de segundas e sétimas, traduzem a tensão e o drama, que se consumam<br />
no naufrágio inevitável.<br />
Na segunda cena, já em terra firme, Miranda pede a Próspero, seu pai, que<br />
acalme os mares, com o seu poder mágico. Ele a tranquiliza e, em seguida, lhe relata toda<br />
a sua história, contando-lhe quem eles são de fato e como chegaram àquela ilha. Miranda<br />
adormece. Na cena três, Ariel faz um relatório completo ao seu amo, Próspero, sobre<br />
como armou a tempestade e como estão os nobres náufragos. Próspero dá novas tarefas<br />
a Ariel. A quarta cena marca a aparição de Caliban, ser maligno e filho da bruxa Sícorax,<br />
que inicialmente enfrenta Próspero, mas em seguida lhe obedece, com medo de seus poderes<br />
mágicos. Na cena seguinte, Ariel faz com que o Príncipe Ferdinando – sonhador e<br />
perdido na ilha – encontre casualmente Miranda. Os dois jovens imediatamente se apaixonam.<br />
Próspero interfere e finge estar contrariado, enfrentando Ferdinando e obrigandoo<br />
a trabalhar na ilha. Na sexta cena, o Rei Alonso descansa, imaginando que seu filho, Ferdinando,<br />
está morto. O Conselheiro Gonzalo o consola. Enquanto o Rei dorme, Sebastian<br />
e Antonio tentam matá-lo, mas suas espadas se paralisam no ar, pelo poder de Ariel. A sétima<br />
cena é totalmente burlesca, num trio grotesco entre o monstrinho Caliban, o bufão<br />
da corte – Trínculo – e o provedor da adega real, Stephano, este completamente bêbado.<br />
A oitava cena marca o final do Primeiro Ato, num dueto entre Miranda e Ferdinando, que<br />
trocam declarações de amor. Próspero encerra a narrativa, afirmando que muita coisa<br />
ainda está para acontecer.<br />
O segundo ato começa com uma breve Abertura da banda sinfônica. Na primeira<br />
cena, o trio formado por Caliban, Trínculo e Stephano planeja a morte de Próspero. Os<br />
três estão completamente bêbados. Na cena dois, Ariel e os espíritos do ar preparam um<br />
banquete para os náufragos, que se encantam com a música que ouvem de longe e não<br />
sabem de onde ela vem. Repentinamente, Ariel aparece em forma de harpia e acusa os<br />
nobres de terem usurpado o Ducado de Próspero, informando-os de que o Duque se encontra<br />
nesta ilha. Todos pensam que se trata de mera alucinação, mas Alonso, o Rei, é<br />
tomado de culpa e remorso. A terceira cena mostra um casamento simbólico de Ferdinando<br />
e Miranda, sob as bênçãos de Próspero, que aceita o jovem Príncipe como genro. Os espíritos<br />
do ar abençoam a união, trazendo as bênçãos de Íris, Juno e Ceres. Ariel chega repentinamente,<br />
para avisar seu amo de que Caliban, Stephano e Trínculo pretendem atacálo.<br />
Na cena seguinte, Próspero enfrenta os três bufões com a ajuda dos espíritos que se<br />
transformam em cães ferozes. Na cena cinco, Próspero abdica de seus poderes sobrenaturais<br />
e apresenta-se aos nobres, estáticos e imobilizados, dentro de um círculo mágico.<br />
Eles custam a crer que estão diante do Duque de Milão, mas, finalmente, o reconhecem.<br />
Próspero perdoa todos eles e convida-os para pernoitarem em sua gruta. No dia<br />
seguinte partirão para Nápoles e Milão. Próspero voltará a ser o Duque. Chegam Miranda<br />
e Ferdinando. O Rei Alonso transborda de felicidade ao ver que seu filho está vivo. Miranda<br />
se encanta com a corte e exclama: “Ó admirável mundo novo, que tem gente tão bela...<br />
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Que maravilha! Que lindas pessoas eu vejo! Como é bonita a humanidade…”. A sexta e última<br />
cena é dedicada ao monólogo final de Próspero, transformado numa grande ária.<br />
Ele fala em partir para recomeçar vida nova, como um homem comum, despojando-se<br />
mais uma vez de todos os seus poderes mágicos. Entra em cena todo o elenco que repete<br />
num grande coral a frase de Miranda sobre o Admirável Mundo Novo.<br />
Embora haja poucos momentos de livre atonalismo, a linguagem neotonal caracteriza<br />
a maior parte da música de A Tempestade. Há múltiplas influências na partitura e<br />
motivos condutores para caracterizar personagens ou situações dramáticas. Os temas<br />
são recorrentes, vão e voltam às vezes em cenas semelhantes, às vezes em cenas diversas.<br />
As atmosferas musicais se alternam bastante, da seresta brasileira de sabor urbano à tarantela<br />
italiana, cantada por Stephano e Antonio, quando conspiram contra o Rei. Afinal<br />
de contas, são napolitanos e milaneses que estão em cena. No caso da seresta urbana, o<br />
tema mais pungente é cantado no Primeiro Ato pelo Príncipe Ferdinando, em sua ária<br />
“De onde vem essa música?”, e pelo próprio Próspero, na penúltima cena da ópera, quando<br />
se despede emocionado de seu fiel Ariel: “Ah, meu querido Ariel/ Cuide dos ventos ainda<br />
uma vez.../ Depois voe com eles, pra onde quiser/ Até um dia, Adeus!”.<br />
No decorrer do Segundo Ato, há várias pequenas citações de Félix Mendelssohn,<br />
autor que tem uma estreita relação com William Shakespeare, pois colocou em música<br />
outra peça admirável do dramaturgo inglês: o Sonho de uma Noite de Verão. Usei diversos<br />
temas de Mendelssohn em situações as mais variadas possíveis. São eles a Canção sem<br />
Palavras op. 38 n. 2, uma das estrofes da Marcha Nupcial (única melodia efetivamente<br />
retirada do Sonho de uma Noite de Verão), o refrão do Rondó Capriccioso e um curtíssimo<br />
segmento do Concerto n. 2 para Piano e Orquestra. No total, essas referências não ultrapassam<br />
cinco minutos de música, embora sejam bem perceptíveis, cada uma delas, no<br />
momento em que são ouvidas.<br />
Talvez o momento mais pregnante da música de A Tempestade seja o dueto de<br />
amor de Miranda e Ferdinando, ao final do Primeiro Ato. Impregnada de generoso melodismo,<br />
esta cena tornou-se a preferida dos críticos e do público. Lauro Machado Coelho<br />
ressalta o dueto de amor em questão em sua crítica no Estado de São Paulo. Eis parte do<br />
seu comentário:<br />
obra:<br />
A um apólogo de sentido universal e intemporal, como ‘The Tempest’, cai muito<br />
bem a ambientação inequivocamente brasileira criada pela música de Ronaldo<br />
Miranda... Há momentos climáticos em que desabrocham números formalmente<br />
construídos, de cantilena elaborada e melodicamente atraente. Um dos mais<br />
felizes é o dueto de amor de Ferdinando e Miranda, no final do primeiro ato,<br />
que Portari e Rosana Lamosa, em grande forma vocal, executaram com apaixonado<br />
envolvimento. (Coelho, 2006)<br />
Já Clóvis Marques, no site Opinião e Notícia, ressaltou a comunicabilidade da<br />
Conto moral ou fábula política em tom de féerie, A Tempestade, última peça de<br />
William Shakespeare, ganhou pelas mãos de Ronaldo Miranda uma adaptação<br />
operística alegre e comunicativa. […] A música de Miranda tem um pendor para<br />
a expressão solar, o elã e a melodia fluente que dilui as tinturas escuras ou oníricas<br />
dessa especulação sobre o poder e a traição, a pequenez humana e a grandeza<br />
do perdão. Mas também é verdade que A Tempestade é uma obra de claridade<br />
e confiança na capacidade do homem de se reiventar na união, com boa dose<br />
de humor. (Marques, 2006)<br />
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Finalmente, Jorge Coli, mais uma vez, reafirmou opinião positiva e eloquente<br />
sobre minha linguagem operística, afirmando em texto publicado na Folha de São Paulo:<br />
Ronaldo Miranda teve uma experiência prévia no campo da ópera: um excepcional<br />
Dom Casmurro, de 1992, então protagonizado por Paulo Fortes. A excelente<br />
Banda Sinfônica do Estado de São Paulo encomendou agora a ele A Tempestade,<br />
inspirada em Shakespeare. A partitura é impulsionada pelo fluxo poético,<br />
é convincente, cuidada e justa nos detalhes. Maravilhoso o modo como a orquestração,<br />
baseada nos instrumentos de sopro que constituem a banda sinfônica,<br />
se casa com as vozes, aclimatando personagens, sejam eles cômicos,<br />
aéreos, exaltados ou violentos. (Coli, 2006)<br />
O diretor cênico William Pereira, apesar de ter contado com um orçamento exíguo,<br />
muito contribuiu para a delicadeza e sensibilidade da montagem operística de A<br />
Tempestade em suas três récitas no Teatro São Pedro. Eis o início e o fim do seu depoimento<br />
no programa do espetáculo:<br />
Sempre quis encenar A Tempestade de Shakespeare – e já havia me debruçado<br />
sobre a peça, desde os meus tempos de estudante no Departamento de Teatro<br />
da ECA/USP. A última peça do Bardo me fascina, talvez por ser em certos aspectos<br />
uma obra a ser desvendada, tamanhos são os símbolos, desafios, leituras que<br />
esse texto abriga e as infinitas possibilidades que ele aponta ao encenador. […]<br />
Vejo A Tempestade como um microcosmo do próprio fazer-teatral. A ilha de<br />
Próspero é o mundo, próprio palco, e é nesse espaço “mágico”, “encantando”,<br />
que toda a ação se desenrola, tendo como filtro, como diapasão, o Homem, o<br />
Humano, tão caro a Shakespeare e ao Renascimento. […] Nessa ilha-palco […]<br />
habitam Ariel – o espírito do ar (a inspiração?) – e Caliban – ser fantástico, meio<br />
humano, meio animalesco, que simboliza os instintos animais do homem. E entre<br />
esses dois pólos elementares – Água e Ar, Terra e Fogo – Próspero, o Humano,<br />
encenará seu rito de passagem que culminará no perdão aos antigos inimigos e<br />
na promessa de um “admirável mundo novo” […] Quando fui convidado para<br />
encenar a ópera de Ronaldo Miranda com a Banda Sinfônica do Estado de São<br />
Paulo, retomei essa antiga paixão que é A Tempestade de Shakespeare – agora<br />
uma paixão maior, duplicada em forma de música, composta por um dos maiores<br />
compositores eruditos do país. Retomo, melhor, recupero um universo, um texto,<br />
uma concepção, um sonho antigo, uma fascinação e encantamento que o tempo<br />
só aumentou. Transpor o universo shakespeareano em notas musicais é o meu<br />
desafio. Desafio apaixonante. O resto não é mais silêncio... O resto é música!<br />
(Pereira, 2006)<br />
Apoiado pelo excelente elenco, muito bem escolhido e extremamente bem ensaiado<br />
pelo maestro Abel Rocha, William Pereira deu o melhor de si, dentro dos recursos<br />
de que dispunha. Assim como acrescentei o coral O Brave New World ao monólogo de<br />
Próspero, para terminar a ópera, William encenou lindamente a cena final e, após o coral,<br />
enquanto apenas os instrumentos da Banda Sinfônica concluem a partitura, retomando a<br />
atmosfera do tema inicial da Tempestade, todos os cantores-atores se unem para remontar<br />
simbolicamente o navio. Enquanto a cortina se fecha, nobres e plebeus tomam posse da<br />
nave e partem juntos para o “Admirável Mundo Novo”.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
108<br />
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Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
109<br />
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Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
ESTUDO INTERDISCIPLINAR
111<br />
Literatura e música: o romance e a ópera<br />
no Brasil Oitocentista<br />
Marcus Vinicius Nogueira Soares<br />
Universidade do Estado do Rio de Janeiro<br />
Para lidar com as possíveis relações entre Literatura e Música, optei por uma<br />
abordagem mais propriamente histórica e que se refere à importância da música no<br />
contexto da produção literária brasileira do século XIX. Qualquer pessoa que se embrenhe<br />
na pesquisa da literatura desse período, ou mesmo que dela se aproxime desinteressadamente,<br />
pelo puro prazer da leitura, se depara a todo tempo com textos que remetem<br />
à música, seja pela exploração mais acentuada dos elementos sonoros e rítmicos<br />
do texto, seja pela presença de incontáveis alusões ao universo da arte musical – como títulos<br />
de obras, nomes de compositores, cantores e instrumentistas, trechos de libretos<br />
operísticos e até termos técnicos. É claro que, por um lado, cabe aqui o argumento de que<br />
toda essa musicalidade não se restringe ao contexto brasileiro, mas, sim, ao território<br />
mais amplo do romantismo e, como tal, perceptível nas produções europeias e de outros<br />
países do continente americano. Por outro, nunca será demais recordar o caráter multifacetado<br />
de um movimento cultural que rompeu com o padrão milenar dos classicismos<br />
em favor das diferenças individuais e, consequentemente, nacionais.<br />
Nesse sentido, a relação tipicamente romântica entre música e literatura, que<br />
vê na junção dessas duas artes forte componente de sublimação, na medida em que a primeira<br />
poderia contribuir para a elevação estética da segunda, ganha contornos específicos<br />
ao cruzar o Atlântico e aportar em solo brasileiro. É o que tentarei desenvolver a seguir,<br />
através da produção de três autores, Martins Pena, Joaquim Manuel de Macedo e José de<br />
Alencar, em que as duas primeiras suscitam uma abordagem mais histórica, uma vez que<br />
buscam enquadrar, dramatúrgica e literariamente, determinado modo social de recepção<br />
da música, particularmente da ópera, e a terceira que nos sugere uma perspectiva mais<br />
formal, estética, ligada à concepção dos gêneros em jogo, e que procurarei tratar a partir<br />
das implicações entre a materialidade dos meios envolvidos na comunicação artística e<br />
os seus modos de recepção.<br />
Pena e Macedo: a dessublimação da ópera<br />
Como primeiro exemplo significativo, saliento não um texto propriamente literário,<br />
mas uma peça teatral: refiro-me a O diletante, 1 de Martins Pena. Escrita em 1844 e<br />
encenada em fevereiro de 1845, trata-se de uma comédia sobre um rico proprietário, José<br />
Antônio, cuja paixão pela música, especificamente pela ópera italiana – “arte divina”<br />
(Pena, 1966, p. 225), como ele mesmo diz –, em especial por Norma, de Bellini e Romani,<br />
fundamenta e determina todas as suas relações familiares e sociais: Josefina, a filha para<br />
quem a ópera era apenas um motivo para ir ao teatro, apesar de “louquinha”, cantava<br />
bem; a esposa, ao contrário, sofrivelmente; o abastado fazendeiro paulista, Marcelo, com<br />
quem José Antônio gostaria de casar a filha, preferia o fado à ópera, gênero que o<br />
provinciano só conheceu na noite anterior, quando dormiu na apresentação de Norma;<br />
sendo assim, se o futuro genro não mostrava nenhuma inclinação para a arte lírica, quem<br />
seria o tenor para assumir o papel de Pollione no terceto da música do “sublimíssimo<br />
...........................................................................<br />
1 Palavra de origem italiana com a qual se designavam, no século XIX, os amantes de ópera.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
112<br />
gênio” italiano, partitura que José Antônio acabara de comprar com a esperança de<br />
executá-la em casa? Nesse momento, entra em cena Gaudêncio, o segundo pretendente<br />
de Josefina, que, ao se fingir de cantor, caiu nas graças do velho diletante. Depois de várias<br />
peripécias, descobre-se que Gaudêncio tem mulher, Perpétua, e dois filhos; além<br />
disso, vem à tona que Perpétua seria a irmã de Marcelo que fora raptada por um pérfido<br />
sedutor, coincidentemente o próprio Gaudêncio. Numa cena que me parece a mais instigante<br />
de toda a peça, Perpétua, acompanhada de seus dois filhos, se dirige à casa da<br />
família para conversar com Josefina. É quando Antônio presencia o seguinte quadro: Perpétua<br />
e Josefina dialogando perante as duas crianças ajoelhadas. A sua atitude não poderia<br />
ser outra:<br />
José Antônio, caminhando para frente – Bravo! Bravíssimo! (as duas surpreendem-se;<br />
os pequenos conservam-se de joelhos.) Continuem, que eu acompanho.<br />
(Vai para o piano)<br />
Perpétua – Ah!<br />
Josefina – Continuar o quê, senhor?<br />
José Antônio – Pois não é o dueto de Norma que estavam cantando?<br />
Josefina – Qual dueto! Que loucura!<br />
José Antônio, caminhando para ela – Ó filha, pois eu pensei que ias cantar. Vi estes<br />
dois pequenos de joelhos, julguei que tu ias fazer de Norma e ali a senhora<br />
de Adalgisa...<br />
Josefina – E não se enganou de todo. Somente trocou os nomes: aqui a Adalgisa<br />
sou eu, e a senhora Norma, porque é a traída e abandonada pelo falso...<br />
José Antônio – Pollione?<br />
Josefina – Qual Pollione! Pelo Dr. Gaudêncio!<br />
José Antônio – Hem? O que estás dizendo? (Pena, 1966, p. 243)<br />
Não é surpreendente que José Antônio interpretasse a cena como se fosse um<br />
dueto de Norma, afinal é o que se espera da reação de um homem cujo quadro de referências<br />
é operístico, no sentido em que ele empresta ao gênero, ou seja, como forma de<br />
arte sublime, uma vez que transcende o aqui e agora da vida cotidiana. Surpreendente<br />
mesmo é a reação de Josefina que, ao não descartar plenamente a interpretação de José<br />
Antônio, entende a ópera do compositor italiano não como manifestação dessa sublimidade,<br />
mas, ao contrário, como possível instrumento de reflexão das mazelas do cotidiano<br />
em geral e das suas próprias em particular. A “ópera trágica” de Bellini, com suas<br />
melodias fortemente expressivas e o seu conteúdo político de valor libertário, na possível<br />
analogia entre a Gália ocupada pelos romanos e a Itália pelos austríacos, transforma-se,<br />
em solo brasileiro, numa comédia de costumes dessublimada, circunscrita à capacidade<br />
de expressar os conflitos comezinhos do dia a dia.<br />
É mais ou menos nesse sentido que a música, e de novo a ópera, reaparece, só<br />
que agora em um texto literário, mais propriamente no segundo romance daquele que é<br />
considerado por muitos o primeiro romancista brasileiro, Joaquim Manuel de Macedo.<br />
Depois de estrear com A moreninha, em 1844, Macedo publica, no ano seguinte, O moço<br />
loiro. 2 Já no primeiro capítulo, dois personagens, Antônio e Otávio, adentram o restaurante<br />
de um hotel. O segundo, há dez meses fora do Rio de Janeiro, tem vivo interesse em assistir<br />
a uma novidade, o “Teatro Italiano”, por sinal, expressão que dá nome ao capítulo. Naquela<br />
noite seria a estreia de Ana Bolena, de Donizetti e Romani. No meio de um diálogo<br />
...........................................................................<br />
2 Embora me reporte aqui só ao segundo romance de Macedo, já no primeiro, A moreninha, a ópera, no caso, O<br />
barbeiro de Sevilha, de Rossini e Sterbini, aparece na articulação textual e de recepção da narrativa de 1844,<br />
como analisa Gimenez (2007).<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
113<br />
sobre compra de bilhetes, Antônio lança a seguinte indagação a Otávio: “Ora, dize lá; tu<br />
és Candianista, ou Delmastriasta?” (Macedo, 2003, p. 14). Se Otávio não entende de imediato<br />
a pergunta, afinal se não conhecia o tal “teatro”, muito menos as referidas expressões,<br />
o mesmo não vale para todos que se encontram presentes no restaurante. A expectativa<br />
pela resposta detona discursos acalorados contra ou favor das duas prima-donas do momento:<br />
Augusta Candiani e Clara Delmastro. Mais tarde, na hora do espetáculo, não será<br />
diferente no interior do teatro de São Pedro de Alcântara. Posicionando-se à esquerda ou<br />
à direita do palco, como nas assembleias francesas revolucionárias, os diletantes partidários<br />
de cada cantora instauram uma algazarra que chega ao ponto de tornar inaudível a própria<br />
apresentação.<br />
É interessante notar as circunstâncias históricas que envolvem os acontecimentos<br />
relatados nesse primeiro capítulo. Como informa o narrador, a história tem o seu início<br />
no dia 6 de agosto de 1844. Como se sabe, foi o ano em que a cidade do Rio de Janeiro retomou<br />
as atividades operísticas, suspensas doze anos antes, exatamente por conta dos<br />
graves conflitos que vinham ocorrendo entre espectadores nas plateias dos teatros e que<br />
culminou com o episódio de 28 de setembro de 1831, quando a sala do Teatro foi transformada<br />
“numa praça de guerra” (Andrade, 1967, p. 194). O retorno dos espetáculos líricos<br />
tem, nesse sentido, certo ar de novidade, como revela a atitude de Otávio; talvez o<br />
próprio Macedo se encontrasse em situação análoga a do personagem, já que, nascido<br />
em 1820, no município de Itaboraí, provavelmente não deve ter visto alguma récita antes<br />
da interrupção mencionada.<br />
Além disso, mais uma vez, como na peça de Martins Pena, a viagem transatlântica<br />
parece realizar transfiguração dessublimadora: a terrível história da segunda esposa de<br />
Henrique VIII, injustamente condenada por adultério, é convertida, nos teatros cariocas,<br />
em pano de fundo de conflitos entre “candianistas” gagos e “ultradelmastristas” surdos, 3<br />
em cenário cuja única opção a um não diletante como Otávio era flertar com as jovens<br />
damas da corte. Menos do que a fruição da ópera, o que se vê aqui representado é um<br />
quadro historicamente configurado de recepção.<br />
Apesar dos exemplos, ambos da década de 1840, aqui citados, serem representativos<br />
do processo de dessublimação, este outro, por sua vez, não corresponde ao<br />
único modo de apropriação literária da música no contexto oitocentista. A obra de José<br />
de Alencar vai instaurar uma nova trilha e, mais uma vez, o caminho será percorrido através<br />
da ópera. Já posso adiantar que, diferentemente de Pena e Macedo, Alencar não vai<br />
enquadrar a ópera no contexto exclusivamente social. Embora essa contextualização não<br />
esteja alijada do modo como o autor de Iracema encara o melodrama italiano, e não só o<br />
italiano, como também o francês, ela me parece secundária na concepção alencariana:<br />
nessa, a ópera é um modelo de arte e, como tal, um manancial de formas e temas para a<br />
elaboração de romances.<br />
Nesse ponto de nosso argumento, creio que seria importante intercalar uma reflexão<br />
um pouco mais conceitual, relacionada à teoria dos gêneros, pois, se os textos de<br />
Pena e Macedo remetem a estereótipos sociais de recepção da ópera, o romance alencariano<br />
aponta para questões de ordem estética, como já assinalava, e que cabe agora desenvolver.<br />
4 Volto, assim, aos termos iniciais do debate: literatura e música.<br />
...........................................................................<br />
3 A cena aqui é literal, já que Otávio acaba se acomodando na plateia exatamente entre um espectador gago e<br />
outro surdo.<br />
4 Cumpre ressalvar que, embora esses estereótipos se aproximem da classificação proposta por Giron (2004, p.<br />
119), na qual haveria três diferentes tipos de receptores de ópera nesse período, “o diletante, o partidista e o<br />
folhetinista”, e que Pena e Macedo estariam satirizando os dois primeiros respectivamente, o que proponho<br />
sobre a obra de Alencar não alude a qualquer forma de tematização do terceiro, nem como estereótipo a ser<br />
satirizado, nem como autorreflexão do gênero, a despeito de seu trabalho como folhetinista. Como se verá, a<br />
questão é estética, logo, literária. Na verdade, caberia um item a mais na tipologia de Giron: o romancista.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
114<br />
Literatura e música: romance e ópera<br />
Em geral, o ponto de interseção que é mais destacado, quando as duas artes são<br />
comparadas, diz respeito à dimensão sonora. Contudo, se hoje a aproximação depende<br />
de estudos de caráter interdisciplinar, de um lado através da Literatura Comparada, de<br />
outro por meio da Musicologia, isso só se deu devido à ruptura ocorrida em determinado<br />
momento histórico. Como lembra Segismundo Spina (2002, p. 15),<br />
A poesia primitiva não é exclusivamente a poesia dos povos pré-letrados, mas a<br />
poesia que está ligada ao canto, indiferenciada, anônima e coletiva. É a poesia<br />
no seu estágio ancilar, isto é, subordinada à música e às vezes à coreografia, mais<br />
especialmente àquela.<br />
Do ponto de vista que se tornou hegemônico, pelo menos para os estudos literários,<br />
na descrição do processo de formação da cultura ocidental, a identificação da chamada<br />
“poesia primitiva” encontra as suas primeiras formulações na Grécia antiga. Para<br />
Aristóteles (1981, p. 22), em sua Arte Poética, ritmo e melodia, juntamente com a natureza<br />
imitativa do homem, são elementos que estão na própria origem da poesia:<br />
Por serem naturais em nós a tendência para a imitação, a melodia e o ritmo –<br />
que os metros são parte dos ritmos é fato evidente – primitivamente, os bem<br />
dotados para eles, progredindo a pouco e pouco, fizeram nascer de suas improvisações<br />
a poesia.<br />
Bem mais tarde, Jean-Jacques Rousseau (1983, p. 186 e 187), no Ensaio sobre a<br />
origem das línguas, sempre interessado no comércio entre as duas artes, retoma as ponderações<br />
aristotélicas quando sugere que “a princípio não houve outra música além da<br />
melodia, nem outra melodia que não o som variado da palavra; os acentos formavam o<br />
canto, e as quantidades, a medida; falava-se tanto pelos sons e pelo ritmo quanto pelas<br />
articulações e pelas vozes”. Citando o geógrafo grego Estrabão, continua Rousseau: “outrora<br />
dizer e cantar eram o mesmo, o que mostra, acrescenta [Estrabão], que a poesia é a fonte<br />
da eloquência”. Embora, para o pensador genebrino, não se trate de uma relação de<br />
causalidade – afinal, poesia e eloquência possuiriam origem comum –, o que importa<br />
aqui é o reconhecimento de indistinção fundamental, de uma indiferença primitiva, perceptível<br />
historicamente. Além disso, é importante entender o sentido de “ritmo” utilizado<br />
por Rousseau e que se coaduna com aquele empregado pela Retórica quando alude à noção<br />
de numerus, ou seja, “de uma sucessão regulamentada (nas línguas clássicas) de sílabas<br />
longas e breves, dentro da compositio” (Lausberg, 2004, p. 267) que, na poesia, encontra<br />
a sua unidade no verso, no retorno regular de iguais cadências rítmicas, e, na prosa, na<br />
ausência de retorno. Dito de outra maneira, a medida do verso, o seu ritmo, é a sua unidade<br />
métrica, a quantidade de sílabas longas e breves ou, no caso das línguas neolatinas,<br />
de sílabas fortes e fracas, que estabelecem a sua extensão, o seu limite.<br />
Nesse sentido, quando a percepção do que hoje chamamos de literatura consistia,<br />
pelo menos até o século XVIII, em um tipo de experiência eminentemente rítmica do verso,<br />
era possível referir-se ao extrato sonoro do fenômeno literário: na situação primitiva,<br />
como se viu, de modo estrito; em momentos históricos posteriores, de forma ainda bastante<br />
evidente, uma vez que o vínculo se manteve, até certo ponto, presente. Contudo, a<br />
questão se complexifica quando a literatura se transforma naquilo que o seu nome designa:<br />
arte da escrita e da leitura; quer dizer, quando a escrita deixa de ser atividade secundária<br />
ligada ao mero registro documental e se converte em meio privilegiado de transmissão e<br />
recepção de textos, o que se deu a partir do advento dos tipos móveis e da imprensa no<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
115<br />
final do século XV, invenção que permitiu a substituição gradativa dos antigos manuscritos<br />
por material impresso e criação de novos suportes de publicação que, por sua agilidade<br />
técnica, tornaram possível a proliferação até então inimaginável de textos escritos. É no<br />
bojo desses acontecimentos que se desenvolve um gênero literário: o romance. Como<br />
ressalta Bakhtin (1988, p. 188), “ao lado dos grandes gêneros, só o romance é mais jovem<br />
do que a escritura e os livros, e só ele está organicamente adaptado às novas formas da<br />
percepção silenciosa, ou seja, à leitura”. Cabe acrescentar que, ao contrário dos “grandes<br />
gêneros” (a epopeia, a tragédia e a lírica), que valorizaram o verso como unidade rítmica,<br />
o romance vai privilegiar a prosa, ou seja, a variedade do numerus que prescinde de medida.<br />
Assim, tanto pelo ritmo que privilegia quanto pelo modo de recepção que requer, o da<br />
leitura silenciosa, o romance instaura um novo paradigma que é o da própria literatura<br />
enquanto arte, da arte cuja autonomia depende de sua realidade estritamente escrita, e<br />
não de uma possível dimensão sonora, como se prescrevia nas poéticas do passado.<br />
Não é à toa que determinados historiadores literários entendem que não é conceitualmente<br />
adequado empregar o termo literatura, designando uma mesma experiência<br />
estética e cultural desde os gregos. Paul Zumthor, por exemplo, no clássico A letra e a voz:<br />
a “literatura” medieval, grafa o vocábulo entre aspas, uma vez que, para ele, a experiência<br />
moderna de literatura não coincide com aquela que se desenvolveu na Idade Média, pois<br />
lá se tratava ainda de uma prática oral, “vocal” na acepção de Zumthor, 5 que se deu através<br />
do canto e da performance propriamente dita, ou seja, por meio da presença física dos<br />
agentes envolvidos no processo comunicativo, enquanto na modernidade, o corpo humano<br />
deixa de ser veículo de constituição de sentido e fonte do mesmo, consequentemente<br />
toda materialidade decorrente do envolvimento corporal – voz, gesto etc. – desaparece<br />
em favor da virtualidade do ato silencioso de leitura. 6<br />
Sendo assim, não me parece evidente aproximar literatura e música pela suposta<br />
afinidade sonora entre ambas; se, em determinado momento histórico, a afinidade era<br />
intrínseca, com a autonomização do campo literário ela deixa de ser, permanecendo, em<br />
alguns casos, como resquício de uma origem comum, principalmente na sobrevivência<br />
do metro na poesia, e, em outros, como afinidade a ser buscada, como princípio de determinada<br />
proposta criativa individual ou coletiva, como ocorreu no Romantismo e no<br />
Simbolismo literários.<br />
Ora, voltando a José de Alencar, nunca é demais recordar que ele foi escritor de<br />
romances no século em que o gênero atingia o seu apogeu, tornando-se hegemônico na<br />
medida em que se disseminava por todos os meios materiais disponíveis à época (livro,<br />
jornal etc.). Sob esse prisma, o escritor cearense, como boa parte dos escritores do período,<br />
nasceu e se desenvolveu dentro da cultura impressa. 7 Contudo, a que se deve o vivo interesse<br />
do autor de Iracema pela ópera? De imediato, como prática cultural, afinal, em cenário<br />
onde mais de cem récitas eram realizadas em um único ano, era impossível não ser<br />
...........................................................................<br />
5 Zumthor (1993, p. 21) prefere a expressão “vocalidade” ao invés da “oralidade”: enquanto esta se relaciona à<br />
voz como mera “portadora da linguagem”, aquela alude à “historicidade de uma voz”, portanto, ao seu uso, ao<br />
modo de realização material em dado momento.<br />
6 É o que constata Gumbrecht (1998, p. 75): “O corpo humano não era [na Modernidade] mais o veículo de<br />
constituição do sentido; o corpo fora visivelmente separado do veículo de sentido, o livro, pela introdução de<br />
uma máquina, a prensa de impressão. Ao mesmo tempo [...] o corpo era também liberado de sua função de<br />
fonte de sentido”.<br />
7 Nesse ponto, deixo em suspenso, por economia, a discussão sobre a possível precariedade das condições de<br />
desenvolvimento da cultura impressa no Brasil do século XIX; razão pela qual não vou tratar aqui a hipótese que<br />
alguns críticos sustentam de que o amplo interesse dos escritores oitocentistas pela ópera se deva, apenas, à<br />
deficiência ou quase inexistência de um público letrado, o que teria favorecido a produção de formas culturais<br />
cujo meio de transmissão fosse eminentemente oral ou diretamente influenciado pela oralidade, como no caso<br />
da literatura. Seja como for, acredito que tal hipótese não se coaduna com as motivações da obra de José de<br />
Alencar.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
116<br />
contaminado, positiva ou negativamente, pelos melodramas europeus, como vimos nos<br />
exemplos de Pena e Macedo. Entretanto, no caso alencariano, esse envolvimento vem<br />
acompanhado de determinada concepção de arte que cumpre entender: no que segue,<br />
tentarei confrontar o que até agora apresentei sobre o romance com uma breve reflexão<br />
sobre a ópera na tentativa de analisar a concepção alencariana.<br />
Alencar e a sublimação da ópera<br />
Nesse sentido, é possível dizer, de imediato, que a relação de José de Alencar com<br />
a ópera é, no mínimo, seminal; não seria excessivo afirmar que ela está na origem do próprio<br />
artista que viu nos grandes dramas encenados nos teatros da corte o modelo da arte<br />
sublime.<br />
Alencar vai manifestar esse entusiasmo logo nas suas primeiras produções, no<br />
caso, folhetinescas: primeiramente, na série com que inaugura a sua carreira como escritor<br />
público, intitulada “Álbum”, impressa no Diário do Rio de Janeiro, em 1854; imediatamente<br />
depois, ainda no mesmo ano de 1854, na bem conhecida “Ao correr da pena”, iniciada no<br />
Correio Mercantil e concluída no seu retorno ao Diário do Rio de Janeiro, em 1855. Comentando<br />
os espetáculos líricos, fazendo apologia das principais divas do bel canto que<br />
estrelavam as companhias italianas e francesas em suas temporadas na capital do Império<br />
e, claro, admirando os mais prestigiados compositores da terra de Dante (Rossini, Bellini,<br />
Donizetti e Verdi, entre outros) e alguns franceses (Meyerbeer, Auber, Gounod etc.), os<br />
seus folhetins testemunham um Alencar (2004, p. 54) embevecido com o gênero musical<br />
que era quase toda a música realizada no Brasil em meados do século XIX, como se pode<br />
depreender do artigo de 15 de outubro de 1854 de “Ao correr da pena”:<br />
Para fazer diversão à música italiana, ofereceram-nos, sábado da semana passada,<br />
no Teatro de São Pedro, um outro benefício de música alemã clássica, no<br />
qual os entendedores tiveram ocasião de apreciar coros magníficos a três e quatro<br />
vozes, e de gozar belas recordações dos antigos maestros, hoje tão esquecidos<br />
por causa das melodias de Rossini e Donizetti e das sublimes e originais inspirações<br />
de Verdi e Meyerbeer.<br />
Não é difícil perceber que a música era, para o jovem folhetinista Alencar, ópera.<br />
Na arena literária, a repercussão dessa influência vai se manifestar prontamente.<br />
Logo no seu primeiro romance, Cinco minutos, de 1856, uma frase – “non ti scordar di<br />
me” – retirada de Il trovatore, de Verdi e Cammarano, torna-se o elo da relação entre os<br />
protagonistas cuja história segue de perto outra obra do operista italiano, com texto de<br />
Francesco Piave, La traviata. No romance seguinte, O guarani, de 1857, óperas ou passagens<br />
delas não são aludidas no corpo do texto, o que não é de se estranhar, considerando<br />
que os conflitos se desenrolam no início do século XVII, em cenário inóspito; entretanto,<br />
toda a narrativa é transformada em libreto por Antonio Scalvini com o mesmo título,<br />
cabendo a composição musical, talvez a mais famosa de todo o repertório brasileiro, a<br />
Carlos Gomes, em 1870. Há, em Lucíola, encontros fortuitos entre os protagonistas, durante<br />
eventos operísticos, que determinam a condução da trama. Em relação à Iracema, Joaquim<br />
Nabuco (1978, p. 187) sugeriu, maliciosamente, no calor da famosa polêmica entre ambos,<br />
certa homologia estrutural com a Norma, de Bellini e Romani, quando utilizou a expressão<br />
“Norma tupi” para designar a protagonista da lenda alencariana de 1865. Por sinal, a<br />
mesma ópera do compositor siciliano reaparece em forte cena de Senhora, de 1875, para<br />
acender em Aurélia, quando ela executa uma de suas árias ao piano, o desejo de vingança;<br />
há, ainda, o diálogo entre o último romance do escritor cearense, Encarnação, e Lucia di<br />
Lammermoor, de Donizetti e Cammarano, no qual se percebe como a concepção alen-<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
117<br />
cariana de arte se aproxima dos modelos operísticos; por fim, vale destacar o libreto escrito<br />
pelo próprio Alencar, A Noite de São João, musicado por Elias Álvaro Lobo e encenado<br />
em 1860; isso sem contar as narrativas onde óperas são apenas mencionadas como em A<br />
pata da gazela, Sonhos d’ouro e O tronco do Ipê.<br />
Considerando a importância da ópera na produção literária do período, especialmente<br />
na de Alencar, caberia a seguinte pergunta: que quadro de referências artísticas<br />
e culturais, além daquele estabelecido por Martins Pena e Macedo, é possível configurar<br />
a partir da presença da ópera na literatura brasileira oitocentista? Ainda: por que a maior<br />
estima pela ópera e não pela música romântica de concerto como a de Liszt, Chopin,<br />
Schumann, Mendelssohn e Berlioz, entre outros?<br />
O próprio Alencar nos fornece as primeiras pistas. Antes mesmo de se tornar<br />
romancista, no decorrer da famosa polêmica sobre a epopeia de Gonçalves de Magalhães,<br />
A confederação dos tamoios, de 1856, 8 polêmica que, além de Alencar, contou ainda com<br />
a participação, na bancada adversária, de Araújo Porto Alegre e D. Pedro II, o autor de Iracema,<br />
imbuído da concepção lamartiniana da unidade das artes, ou como ele mesmo escreve,<br />
“da união da poesia, da música e da pintura” (Alencar, 1953, p. 25), 9 apresentou<br />
quatro grupos de artistas para exemplificá-la, organizando-os segundo as afinidades criativas<br />
que ele julgava existir entre os escolhidos de cada agrupamento, como se segue: Homero,<br />
Miguel Ângelo e Rossini; Virgílio, Ticiano e Donizetti; Shakespeare, Veronese e Meyerbeer;<br />
Píndaro, Rafael e Verdi. Na poesia, o destaque coube a três autores da antiguidade<br />
clássica (Homero, Virgílio e Píndaro) e um renascentista (Shakespeare); nas artes plásticas,<br />
todos os nomes citados são de criadores renascentistas; por fim, na música, a lista inclui<br />
apenas operistas românticos. Considerando apenas os representantes da poesia e da música,<br />
são as ausências que chamam a atenção: assim como não há romancistas, também<br />
não há compositores de música de concerto. Além disso, é importante ressaltar que a<br />
ópera já seria o resultado dessa união e, nesse sentido, ela não deveria apenas ocupar<br />
uma posição nessas tríades. Tratemos um pouco mais de perto essa questão.<br />
Como o próprio Alencar assinala, a reflexão sobre a unidade das artes advém de<br />
Lamartine, mais propriamente do segundo prefácio a Les Meditations, intitulado “Les<br />
destinées de la poésie”. Embora Lamartine discorra exclusivamente sobre poesia e apenas<br />
mencione de passagem o autor Do contrato social, a ideia da unificação das três artes<br />
aparece no pensamento de Rousseau (1961 apud Starobinski, 2010, p. 23) sobre a ópera,<br />
no verbete correspondente no seu Dictionnaire de musique:<br />
As partes constitutivas de uma ópera são o poema, a música e a cenografia. Pela<br />
poesia se fala ao espírito; pela música, ao ouvido; pela pintura, aos olhos, e o todo<br />
deve somar-se para comover o coração e levar ao mesmo tempo, através de<br />
diversos órgãos, a mesma impressão até ele. 10<br />
Alencar explora, assim como Lamartine, a noção rousseauniana como forma de<br />
assegurar um lugar privilegiado à poesia e, mais ainda, como ideal a ser visado por todo e<br />
qualquer poema que se pretenda grandioso – o que não teria ocorrido, segundo Alencar,<br />
...........................................................................<br />
8 Trata-se da polêmica que foi desencadeada a partir das fortes críticas publicadas, em 1856, no Diário do Rio de<br />
janeiro, pelo jovem Alencar, ao referido poema daquele que era considerado, à época, o introdutor do romantismo<br />
no Brasil e, principalmente, o fundador da Literatura Nacional, Domingos José Gonçalves de Magalhães.<br />
9 Concepção que Alencar (1967, p. 185) vai retomar mais tarde, em 1872, quando da publicação de Sonhos<br />
d’ouro. Reportando-se à capacidade artística de Ricardo, protagonista da história, o narrador escreve: “Deus<br />
criou três linguagens para o artista: a linguagem da forma, a pintura; a linguagem dos sons, a música; e a linguagem<br />
da palavra, a poesia, de todas a mais sublime porque fala não só ao coração, como à inteligência”.<br />
10 Como ressalta Starobinski, essa definição de Rousseau é resultado de suas leituras de Les Caractères de La<br />
Bruyère.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
118<br />
com a epopeia de Magalhães. Acrescente a isso o fato de que Alencar (1953, p. 24) lançava<br />
mão das reflexões lamartinianas como reiteração de determinado princípio poético que<br />
nos parece fundamental: “A descrição dos rapsodes gregos, que eram ao mesmo tempo<br />
poetas, músicos e atores, descrição que li quando ainda pouco me ocupava de literatura,<br />
ficou impressa para sempre no meu espírito como a verdadeira imagem da poesia”. Ora,<br />
não estaria na própria invenção da ópera o mesmo resgate dessa imagem original, na<br />
retomada do drama clássico a busca pelo reestabelecimento da unidade primitiva? Caberia,<br />
então, afirmar que a tarefa romântica encontra um precedente no gênero musical surgido<br />
no século XVII?<br />
Antes de tudo, é preciso ter cuidado com certas aproximações. Afinal, esses<br />
“renascimentos” encontravam-se disseminados, antes ou depois da emergência da ópera,<br />
no quinhentismo português, nos dramas shakespearianos, no Século de Ouro espanhol<br />
ou no classicismo francês, e não foi à toa que, junto do modelo de unidade grego, resgatouse,<br />
também, a mitologia, como atestam Eurídice, de Jacopo Peri, 11 e Orfeu, de Monteverdi,<br />
entre outros, o que em certa medida limitaria a novidade do empreendimento, pelo menos<br />
fora do campo estritamente musical. Contudo, a grande novidade da ópera reside no fato<br />
de que, na sua tentativa de retomada da unidade primordial, ela o fez através de uma<br />
espécie de reconstituição do drama grego e, nesse sentido, a reintrodução da música foi<br />
fundamental, na medida em que se aproximou da desejada unidade enquanto a falta de<br />
um ou de outro elemento teria inviabilizado essa aproximação em outros campos artísticos.<br />
Assim, retornando às perguntas formuladas acima, de fato, estando na constituição<br />
do gênero o referido resgate, a ópera poderia ser tomada como precedente artístico<br />
do romantismo em geral, razão pela qual ela se desenvolve de maneira bastante<br />
acentuada exatamente no período romântico, atingindo o seu auge com Wagner. Todavia,<br />
no caso de Alencar, a questão é outra, sendo ele um romancista: por que a ópera se converte<br />
em modelo para composição de seus romances? A pergunta se complexifica quando<br />
lembramos o percurso histórico aqui apresentado relativo aos dois gêneros, pois se a<br />
ópera extrapola, em certa medida, por conta mesmo da unidade que almeja, os limites<br />
materiais da arte a qual está previamente ligada, ou seja, a música, o romance é o gênero<br />
por excelência do que se passou a entender por literatura no contexto da modernidade;<br />
em outras palavras, o romance é o gênero que estabelece as condições de autonomia da<br />
experiência literária, ou seja, de uma arte da escrita, enquanto a ópera parece refratária a<br />
qualquer forma de autonomização.<br />
Sob esse prisma, quando Alencar traz a ópera para o interior de sua concepção<br />
de arte, o que ele parece ressaltar, além do aspecto sublime – também valorizado, como<br />
se viu, pela personagem diletante de Martins Pena, embora não pela sua peça – é a possibilidade<br />
de reintrodução do corpo no circuito comunicativo através da voz materializada<br />
pela recordação da cena operística. Quer dizer, o romance alencariano recusa a dicção<br />
puramente literária do gênero em favor da experiência totalizadora da arte romântica<br />
representada pela ópera. Entende-se, assim, o contraste entre a recepção dessublimadora<br />
e prosaica da ópera por parte de Pena e, principalmente, de Macedo, e o tratamento poético,<br />
sublimador e transcendente, conferido por Alencar ao melodrama, mesmo, e talvez<br />
só por isso, quando ele se encontra às voltas com temas cotidianos.<br />
Para finalizar, e para que fique mais claro o que acabei de afirmar, tomarei como<br />
exemplo o seu primeiro romance já aqui mencionado: Cinco minutos. Em forma de carta,<br />
o narrador relata à sua prima como, chegando cinco minutos atrasado ao largo do Rossio,<br />
atual Praça Tiradentes, com intuito de tomar o ônibus das seis horas para o bairro do Andaraí,<br />
acabou pegando o das sete e conheceu a mulher com quem acabaria se casando,<br />
...........................................................................<br />
11 O que se percebe, também, no subtítulo: “Tragédia em homenagem ao ideal antigo”.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
119<br />
Carlota. O encontro dentro do veículo é, no mínimo, curioso: ele se senta ao lado de uma<br />
mulher toda vestida de seda, cujo rosto estava coberto por um véu. Os corpos se tocam,<br />
as mãos se apertam e o narrador, através de várias inferências de natureza axiológica,<br />
procura deduzir da beleza ou feiura da figura enigmática. Absorvido por todo esse enleio<br />
amoroso, o narrador não se dá conta do momento em que ela sai do ônibus:<br />
Senti a sua mão apertar a minha mais estreitamente; vi uma sombra passar<br />
diante de meus olhos no meio do ruge-ruge de um vestido, e quando dei acordo<br />
de mim, o carro rodava e eu tinha perdido a minha visão.<br />
Ressoava-me ainda ao ouvido uma palavra murmurada, ou antes suspirada quase<br />
imperceptivelmente:<br />
– Non ti scordar di me! ...<br />
Lancei-me fora do ônibus; caminhei à direita e à esquerda; andei como um louco<br />
até nove horas da noite.<br />
Nada! (Alencar, 1967, p. 5)<br />
Após o episódio, o narrador, sempre atento à possibilidade de encontrá-la, no<br />
entanto só possui um elemento capaz de identificá-la: a voz. É quando, em um baile,<br />
surge uma nova pista: “quase não dava fé do que se passava junto de mim, quando senti<br />
um leque tocar meu braço, e uma voz que vivia no meu coração, uma voz que cantava<br />
dentro de minha alma, murmurou: – Non ti scordar di me!...” (Alencar, 1967, p. 6). A voz<br />
não era propriamente da pessoa que ele procurava, mas, sim – e algo que ele só vai descobrir<br />
mais adiante –, da mãe da sua desconhecida. Não creio que seja demais especular<br />
que, do ponto de vista de um possível efeito de leitura do romance, Alencar esteja aí<br />
lidando com um horizonte de expectativa bastante claro naquele momento: o leitor de<br />
romance era, também, um espectador de óperas. Assim, a frase lançada de Il trovatore,<br />
de Verdi e Cammarano, no início de um relato escrito, não funciona apenas como mera<br />
alusão a ser buscada por aquele que lê, mas como elemento constitutivo da articulação<br />
que o texto infringe ao leitor, na medida em que requer desse a recordação de um quadro<br />
de referências prévio à leitura, de um quadro moldado pela experiência estética, e até<br />
afetiva, por ele vivenciada nas salas de concertos – é claro que estou sempre me referindo<br />
aqui ao possível leitor de 1856.<br />
Isso fica ainda mais evidente no terceiro encontro entre os personagens que se<br />
dá exatamente no teatro, durante a encenação de La traviata, do mesmo Verdi. Após<br />
avistar mãe e filha, o narrador consegue o bilhete do camarote ao lado e, no decorrer do<br />
último ato da ópera, se dirige a Carlota: “– Não me esqueço” (Alencar, 1967, p. 8). À reação<br />
supostamente fria de Carlota segue o discurso revoltado do narrador contra a vaidade<br />
feminina: “Enquanto eu proferia estas palavras, repassadas de todo o fel que tinha no coração,<br />
a Charton modulava com a sua voz sentimental essa linda ária final da Traviata,<br />
interrompida por ligeiros acessos de uma tosse seca” (Alencar, 1967, p. 8). A oração final<br />
empresta a todo o período uma ambiguidade significativa que pode ser tomada como<br />
sintoma da articulação a que me refiro e da destreza com que Alencar a incorpora na letra<br />
do texto: a frase não deixa claro de onde provém a tosse que “interrompe” a ária, se de<br />
Carlota ou da própria Charton. Mesmo reconhecendo Carlota como a responsável pelo<br />
ato, enfrentar a ambiguidade implica o entendimento de um recurso formal de identificação<br />
por meio da sobreposição de signos de diferentes artes, cujo alcance estaria na<br />
realização de tão desejada unidade: a articulação da ópera no romance se coaduna com<br />
a tentativa de produzir no leitor o efeito que uma ópera produziria, dramatúrgica e musicalmente,<br />
em seu expectador, superando, assim, o limite material da escrita e da “percepção<br />
silenciosa” requerida pela leitura. Nesse sentido, o romance alencariano vai de<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
120<br />
encontro à cultura impressa que lhe deu origem e ao próprio gênero, assim como se volta<br />
contra a distância instaurada pela ausência do corpo do circuito comunicativo; no drama<br />
musical, ao contrário, vida e obra se combinam, e vozes são repercutidas, como as de<br />
Marguerite Gautier, Violeta, Charton e Carlota. 12<br />
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Aristóteles. “Arte poética”. In: Aristóteles, Horácio e Longino. A poética clássica.<br />
Tradução de Jaime Bruna. São Paulo: Cultrix/Edusp, 1981.<br />
Bakhtin, Mikhail. “Epos e romance (sobre a metodologia do estudo do romance)”.<br />
Tradução de Aurora Bernardini et al. In: Questões de literatura e de estética: a teoria do<br />
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Giron, Luís Antônio. A minoridade crítica: a ópera e o teatro nos folhetins da corte:<br />
1826-1861. São Paulo: Edusp; Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.<br />
Gumbrecht, Hans Ulrich. “O corpo versus a imprensa: os meios de comunicação no<br />
início do período moderno, mentalidades no Reino de Castela e uma outra história das<br />
formas literárias”. Tradução de Lawrence Pereira. In: Modernização dos sentidos. São<br />
Paulo: Editora 34, 1998.<br />
Lausberg, Heinrich. Elementos de retórica literária. Tradução de R. M. Rosado<br />
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Macedo, Joaquim Manuel de. O moço loiro. São Paulo: Ática, 2003.<br />
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Jerusa Pires Ferreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.<br />
...........................................................................<br />
12 Lembro que La traviata é baseada em A dama das camélias (1848), de Alexandre Dumas Filho, texto com o<br />
qual Alencar dialoga tanto em Cinco minutos, quanto nas peças As asas de um anjo (1859) e A expiação (1868),<br />
bem como em Lucíola, romance de 1862.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
ÓPERA NA AMÉRICA PORTUGUESA
123<br />
O palimpsesto iluminista: a ressignificação<br />
dos modelos operísticos por um estudo de<br />
repertório da Casa da Ópera de São Paulo<br />
Diósnio Machado Neto<br />
Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto<br />
Desde a década de 1750, como vimos referindo, as esferas constituintes da malha<br />
social, como a educação, a economia, a religião e, também, as formas de vivência lúdica,<br />
foram submetidas a conflitos e acomodações cuja base era a intersecção das possibilidades<br />
críticas do indivíduo com um ideal de bem comum, mediado pelo poder absolutista. Assim,<br />
trazendo à razão como justificativa, a ação tratava de mediar novas configurações da<br />
crítica individual, compartimentando o discurso da Igreja a questões místicas.<br />
Para tanto, tratou de desenvolver, por uma censura rígida do poder temporal, a<br />
“utilidade do bem comum” através de uma laicização da compreensão da Natureza e, por<br />
essa, inocular uma compreensão da própria condição humana e sua relação de dependência<br />
com uma ordem estabelecida e representada na figura do déspota. Para impulsionar<br />
essa sociedade a uma consciência virtuosa, o redimensionamento do espaço público,<br />
alterando tanto o ambiente doméstico como o público, era primordial, pois nele se consubstanciariam<br />
os mais altos valores humanos que combateriam a corrupção e, indiretamente,<br />
levariam o Reino e sua população ao desenvolvimento e equilíbrio necessários<br />
para a plenitude da vida. Como já observamos, era uma ordem geométrica.<br />
Sem entrar nos méritos complexos dessas cadeias de conflitos e negociações,<br />
podemos dizer que eles são inerentes à política baseada no acúmulo do capital mercantil,<br />
pretendido por Pombal. Torrão Filho indica que esse processo é marcado pela ampliação<br />
do espaço de discussão privada que se articula, antes de qualquer coisa, nas pequenas dimensões<br />
sociais. Citando Habermas, Torrão Filho forja a ideia desse lento desenvolvimento<br />
da crítica ao redor de um “debate público das pessoas privadas reunidas num espaço<br />
público” (Habermas, 1984 apud Torrão Filho, 2006, p. 153). Esse debate é justamente<br />
consequência do modelo que, ambiguamente, tratava de centralizar o poder, mas ao<br />
mesmo tempo incentivar a iniciativa privada através do desenvolvimento de sua capacidade<br />
de discernimento do “bem” comum. E a ambiguidade, como afirma o autor está<br />
“no interior da família patriarcal burguesa, que não exclui ninguém, mas exige formação<br />
cultural e propriedade para a participação política” (p. 152).<br />
Nesse projeto, tanto o salão familiar como a ópera elevaram-se como espaço de<br />
ruptura do discurso da velha ordem patrimonialista estamental. Apesar da aparente insignificância<br />
diante de um sistema social tão enraizado, essa modificação dos espaços lúdicos<br />
auxiliou uma alteração da sensibilidade social no Brasil. Veremos como esse redimensionamento<br />
deslocou o centro de gravidade da valoração moral, atuando na formação de<br />
uma opinião pública que, tradicionalmente regida pela preponderância do ato privado,<br />
que desconsiderava estatutos, contratos e até mesmo uma moral religiosa, passou a conceber,<br />
mesmo que timidamente, uma relação social fundada numa res publica regida justamente<br />
por um universo de letras e normas, contratos e negociações.<br />
A ópera como elemento esclarecedor<br />
Vivido no tripé da devoção religiosa (Coroa, Ordinário e Santo Ofício) a Real Mesa<br />
Censória constrangia, nos finais da década de 1740, o melodrama da tradição vicentina<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
124<br />
ou de sátira social como drama jocoso de Antônio José da Silva. Entre outros fenômenos,<br />
tal postura oficial e vigilante de uma moral casta e proselitiva impedia a introdução plena<br />
dos padrões dramáticos iluministas (Carvalho, 1993, p. 49).<br />
Exemplar dessa mentalidade foi o estabelecimento das imposições comportamentais<br />
e estéticas para a continuidade das funções no Pátio das Comédias, cujas verbas<br />
se revertiam para o Hospital da Santa Casa de Misericórdia. Para “evitar maiores danos<br />
circunstancia a que atenderão sempre as leis que até dissimulam algumas coisas de pecado<br />
público” (apud Brito, 1989, p. 98), em 1730 estipularam-se normas que incidiam sobre o<br />
conteúdo das comédias e as qualidades do público. Tal fato só foi possível diante da determinação<br />
firme do Rei de proibir as comédias em Portugal, após a apresentação de pareceres<br />
de trinta teólogos que não viam constrição moral no ato da promoção das comédias<br />
(Brito, 1989, p. 99). O libelo liberatório foi justamente promovido por um dos principais<br />
membros da elite “ilustrada”, Francisco Xavier de Menezes, o 4º Conde de Ericeira. Outro<br />
fato igualmente revelador foi a suspensão dos espetáculos teatrais pelo impacto místico<br />
que acometeu Dom João V após a decaída de sua saúde. El-Rei foi “aconselhado por um<br />
frade, Frei Gaspar da Encarnação, e apoiado pela Rainha D. Mariana da Áustria, a qual<br />
como exemplo de ocupação mais segura fazia frequentes visitas às igrejas” (Brito, 1989,<br />
p. 103).<br />
Dessa forma, a introdução da ópera italiana e dos gêneros de teatro musical<br />
burguês nos vários círculos da sociedade não freava a aptidão e a disposição consuetudinária<br />
do clero, assim como os preconceitos da mentalidade religiosa inoculada pela tradição<br />
devota de grande parte da nobreza e da própria realeza. No entanto, a ópera bufa<br />
patrocinada pela Câmara Real, a ópera séria frequentada pela nobreza na Academia da<br />
Trindade, e o desenvolvimento do teatro musical de matriz popular, no Teatro do Bairro<br />
Alto pelas óperas de Antônio José da Silva, indicavam já uma mudança trazida pelos ares<br />
das formas de sociabilidade do mercantilismo que se desenvolvia em Portugal. Promovido<br />
pelas arcas de mercadores estrangeiros de grosso calibre, os agentes do divertimento público<br />
venciam espontaneamente as barreiras dogmáticas e estimulavam as apropriações<br />
reformadoras dos costumes.<br />
Para Manuel Carlos de Brito, todo esse fenômeno por si só foi suficiente para<br />
inocular uma renovação no espírito obscurantista e introduzir os modelos melodramáticos<br />
do Iluminismo (Brito, 1989, p. 100). Rui Vieira Nery corrobora a tese:<br />
No seu conjunto, os espetáculos públicos dos Teatros da Trindade e da Rua dos<br />
Condes, por um lado, e do Bairro Alto, por outro, demonstram uma vontade de<br />
apropriação, por parte da sociedade civil, de uma operática italiana que penetra<br />
em Portugal pelos círculos exclusivos da Corte, correspondendo a uma estratégia<br />
deliberada de renovação política, ideológica e artística promovida pelo próprio<br />
monarca, e fora até então fundamentalmente canalizada para a órbita litúrgica<br />
[…] Há indícios de que as óperas italianas da Trindade e da Rua dos Condes seriam<br />
frequentadas principalmente pela aristocracia cortesã, sabendo-se, nomeadamente,<br />
de sessões privadas integralmente contratadas por senhoras nobres<br />
para os seus convidados, enquanto o Teatro do Bairro Alto atrairia um público<br />
de extração majoritariamente burguesa, naturalmente avesso ao uso da língua<br />
italiana e mais sensível à sátira social e às graças por vezes um pouco brejeiras<br />
dos textos do judeu. No entanto, os dois espaços teatrais não terão sido por certo<br />
estanques do ponto de vista sociológico, e mais importante do que a imposição<br />
de quaisquer modelos explicativos apriorísticos é a constatação dessa componente<br />
civilista que lhes é comum e que só será partilhada pela corte já no reinado<br />
de Dom José I (Nery, 1999, p. 94).<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
125<br />
Mário Vieira de Carvalho, entretanto, discorda da tese. Para ele o fato da introdução<br />
de modelos discursivos alinhados em outros centros com os movimentos ilustrados<br />
não é suficiente para consolidar o movimento no teatro cantado português. Mesmo<br />
considerando o surgimento de um teatro de crítica social, como o teatro de bonifrates de<br />
Antônio José da Silva, e a recepção de inúmeras obras de Metastasio, 1 como um avanço<br />
contra a prevalência da moral religiosa na determinação e constituição da linguagem teatral,<br />
Carvalho desconsidera-o como signo do Iluminismo. Para ele, o Iluminismo trazia<br />
protocolos e estruturas de recepção que não ocorriam plenamente nas formas de sociabilidade<br />
da nobreza e da burguesia introduzida na relação com o teatro musical.<br />
Segundo Carvalho, o que era fundamental para a ópera na opinião dos iluministas,<br />
entre eles Rousseau, André Grétry e Charles Burney, era a “retroação forte”. Esta ocorreria<br />
quando o envolvimento do público com a ação dramática levasse à transcendência da<br />
consciência da “farsa” teatral para presenciar a própria vida fluindo diante de seus olhos.<br />
A sedução provocada pela ação dramática deveria eliminar simbolicamente, com todos<br />
os recursos possíveis, a parede entre o palco e a plateia. Dessa forma, a mensagem edificante<br />
seria inoculada pela fruição estética e a naturalidade pela qual o discurso artístico<br />
era exercido tanto pelo autor como pelos atores (Carvalho, 1999, p. 62).<br />
Para criar essa “ilusão” alguns elementos do teatro musical aristocrático deveriam<br />
ser rechaçados. A primeira questão era negar o caráter fantasioso, a “poética do<br />
maravilhoso”, da tradição operística que vinha do seiscentos: “despertar, não ‘étonnement<br />
puérile, sobre o ‘maravilhoso’ e o ‘jamais vu’, mas sim interesse através da imitação da<br />
natureza, da verossimilhança da ação e da mais perfeita ilusão” (Carvalho, 1999, p. 36). O<br />
bel canto seria justamente o exemplo da artificialidade que criticavam os iluministas. A<br />
virtuosidade do canto ornamentado era um princípio da ópera barroca, diametralmente<br />
oposto ao desejado por um teatro cujo objetivo era edificar. Ele representava a mácula da<br />
individualidade, do egocentrismo, dos prejuízos opressores das oligarquias dominantes,<br />
o que Rousseau chamava de despojos do homem histórico-social, cujo processo alienava<br />
o homem de sua “verdadeira essência, pois seduzido pelas luzes da ribalta, ele se produz<br />
enquanto espetáculo […] o indivíduo passa a agir segundo as imposições da ‘opinião<br />
pública’” (Freitas, 2003, p. 33). Ademais, essa “exibição do eu opõe à virtuosidade o<br />
envolvimento no drama representado e, ao propósito de provocar espanto, a ilusão. O<br />
ator devia desaparecer no que representava e, deste modo, levar também o espectador a<br />
envolver-se no que era representado. A arte não era para ser mostrada: a maior arte consistia<br />
em ocultar a arte, em apresentá-la como “natureza’” (Carvalho, 1999, p. 43). Essa<br />
seria a única maneira de realizar o projeto iluminista, em que o teatro assume um papel<br />
pedagógico, “cujo núcleo é o conceito de ‘catharsis’” (Freitas, 2003, p. 33).<br />
Para Carvalho, as relações de comunicação para desenvolver um modelo de<br />
identificação entre o público e a obra versavam então sobre a “redução da complexidade<br />
de recepção […] reduzir a complexidade do texto musical foi um artifício para realizar a<br />
superação da exibição do eu e equilibrar a retroação palco/plateia” (Carvalho, 1999, p.<br />
59). Para tanto era necessário reduzir o espaço de intervenção virtuosística do cantor e<br />
...........................................................................<br />
1 Manuel Carlos de Brito (1989, p. 105) relaciona as óperas de Metastasio apresentadas no Teatro da Academia<br />
da Trindade. Entre 1736 e 1742, quando foram suspensas as atividades teatrais, praticamente em todos os anos<br />
houve récitas de óperas do abade italiano, entre elas: Alessandro nell’Indie; Artaserse; Demofonte; L´Olimpiade;<br />
Il Siroe; La Clemenza de Tito; L’Émira; Demétrio; Catone in Utica; Ezio e Didone abbandonata. Na maior parte<br />
das apresentações a música era de Schiassi, que até mesmo permaneceu um tempo em Lisboa. Como afirma<br />
Carvalho, Metastasio representava alguns valores tangentes tanto à monarquia como à religião, principalmente<br />
a “gravidade e caráter exemplar das ações” (Carvalho, 1993, p. 32). Ademais, podemos acrescentar que em<br />
Metastasio a simbologia salvacionista do poder temporal era sempre sufragada pela benevolência espiritual e<br />
realizada nos protocolos da razão onde o poder do soberano era traçado em linhas heroicas. Esse programa<br />
ideológico constituía um capital simbólico fundamental que era importante inocular na consolidação do regalismo<br />
que pretendiam as monarquias setecentistas.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
126<br />
dessa forma aumentar a prevalência do compositor, um “Deus ex-macchina da racionalização<br />
total” (Carvalho, 1999, p. 61).<br />
A racionalização imarcescível da criação, no entanto, estava na proporção inversa<br />
da recepção, pois, aumentando a complexidade da máquina teatral, a ilusão se realizaria<br />
conduzindo “à percepção de um artifício altamente complexo como ‘simples natureza’”.<br />
(Carvalho, 1999). A estrutura de representação justamente buscava induzir a visão de um<br />
sistema espontâneo, “a supressão da racionalidade através da completa entrega à ilusão”<br />
(Carvalho, 1999, p. 61). O desenvolvimento da técnica de atuação, da cenografia, do vestuário<br />
etc., necessários para efetivar a “ilusão”, era inversamente proporcional à resistência<br />
das formas fechadas do discurso musical, como a aria-da-capo, vista nas óperas de Gluck.<br />
Nesse mesmo princípio da ilusão desdobrou-se um esforço para modificar a<br />
mentalidade da recepção. Era necessária, nesse “novo” sistema, a apreensão total do espectador,<br />
o que contrariava o espírito peregrino da recepção teatral nos modelos seiscentistas...<br />
O teatro não poderia ser um mero divertimento, uma “exibição do eu”, um deleite<br />
para os sentidos primários. A pretensão do teatro iluminista pressupunha a atenção<br />
comovida, o envolvimento sincero, a superação da mentalidade que buscava a “satisfação<br />
da vista e do ouvido”; enfim, o teatro não deveria ser um mero interlúdio para a convivência<br />
social.<br />
Sintetizando em poucas linhas, para Carvalho o teatro frequentado pela nobreza,<br />
principalmente promovendo as óperas de Metastasio, “em vez de tender à difusão das<br />
Luzes, a ópera séria tendia, antes, simplesmente, a favorecer o desenvolvimento da convivência<br />
social” (Carvalho, 1993, p. 33). Igualmente problemático seria o teatro do Bairro<br />
Alto. Mesmo considerando pontos de tangência com o modelo da opéra-comique francesa,<br />
do singspiel alemão ou da ballad opera inglesa, o teatro burguês de Lisboa carecia de um<br />
importante princípio ativo da pedagogia social do teatro iluminista: o envolvimento do<br />
ator no personagem que acabava suprimindo a farsa da dramatização, desvelando a vida<br />
real na identificação do espectador com “outro” vivido, e não representado. O fato do<br />
modelo do Teatro do Bairro Alto concretizar-se em bonecos eliminava completamente<br />
esse princípio básico, na opinião de Mário Vieira de Carvalho. Para o autor, a sátira social,<br />
a crítica do cotidiano, a exposição do conflito entre as classes, até mesmo a utilização<br />
caricaturesca dos motivos mitológicos e das fórmulas da ópera séria italiana, presentes<br />
principalmente nas óperas de Antônio José da Silva, era não mais que um momento do<br />
conflito inicial entre as Luzes e o obscurantismo da herança teatral religiosa (Carvalho,<br />
1993, p. 36).<br />
Importante transformação ocorreu com a subida ao trono do Príncipe do Brasil,<br />
Dom José I. Seu gosto pela ópera italiana o transformou em um dos principais mecenas<br />
do gênero. No início de seu reinado, construiu a Ópera do Tejo, considerada pelos contemporâneos<br />
um dos mais imponentes teatros de ópera da Europa. Infelizmente ele não resistiu<br />
ao terremoto, assim como o arroubo mecênico inicial. Durante os oito anos seguintes ao<br />
terremoto, as atividades operísticas foram interrompidas. O retorno, no entanto, consubstanciou<br />
um importante signo das transformações articuladas por Pombal: a<br />
incorporação da burguesia comercial nos círculos de sociabilidade da Ópera, antes restrita<br />
à nobreza.<br />
A primeira grande transformação foi, como explica Mário Vieira de Carvalho,<br />
admitir o teatro como elemento primordial na formação de redes de sociabilidade. Aqui,<br />
o teatro integrava um “processo de promoção e nobilitação gradual” (Carvalho, 1993, p.<br />
45). Tanto a burguesia como a nobreza dialogavam concreta e simbolicamente, não só<br />
pelos corredores dos camarotes, mas representando reciprocamente os valores de cada<br />
qual, de forma que uma síntese social era, em tese, assentada pela ação pedagógica do<br />
teatro.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
127<br />
Assim, contribuindo para impulsionar as mudanças nas estruturas de dominação<br />
econômico-políticas pela apologia ao despotismo esclarecido, a capacidade que a ópera<br />
assumia em aglutinar o escol social acabava inoculando novas formas de conhecimento e<br />
gerenciamento da realidade, que mesmo na preservação da matriz religiosa flexibilizava<br />
as operações dos padrões e conceitos da vida cotidiana, até mesmo dentro da mentalidade<br />
devota. Dessa forma, a retroação tornava-se um importante elemento de nivelamento<br />
das consciências. Tão importante foi esse aspecto que, em 1771, o consulado pombalino<br />
reconheceu na ópera o papel pedagógico idealizado pelos iluministas:<br />
Eu El-Rei faço saber […] que os homens de negócios da Praça de Lisboa Me representarão,<br />
que o grande esplendor e utilidade, que resulta a todas as Nações<br />
do Estabelecimento dos Teatros públicos, por serem estes, quando são bem regulados,<br />
escola onde os povos aprendem as máximas sãs da Política, da Moral,<br />
do Amor à Pátria, do Valor, do Zelo, da Fidelidade, com quem devem servir os<br />
seus Soberanos, civilizando-se e desterrando insensivelmente alguns restos de<br />
barbaridade, que neles deixaram os séculos infelizes de ignorância. (Benavides,<br />
1883 apud Carvalho, 1993, p. 45)<br />
Essa declaração traz explícito o corpo conceitual do despotismo esclarecido: a<br />
utilidade da ação pública e especialmente do teatro; a civilização pela educação; o fim<br />
comum que é o Estado e esse o único caminho para o bem comum; a aliança com a burguesia<br />
comercial; e a projeção do futuro glorioso superando os “séculos infelizes de ignorância”,<br />
sustentada na querela primordial do Iluminismo: o debate entre modernos e<br />
antigos. Como sintetiza Mário Vieira de Carvalho, “o teatro, até então somente tolerado<br />
ou, sobretudo, reprimido, quando não ele próprio repressivo (o dos jesuítas), passava a<br />
ser considerado escola dos povos contra a ignorância. Era a primeira vez que surgia em<br />
Portugal um discurso iluminista sobre o teatro. Provinha da burguesia e o Rei homologavao”<br />
(Carvalho, 1993, p. 46).<br />
O papel apologético da ópera, sobretudo na divulgação dos ideais do projeto<br />
pombalino, era outra questão importante. Como vimos, através da Real Mesa Censória o<br />
consulado de Pombal controlava firmemente os parâmetros e paradigmas da atividade<br />
cultural portuguesa e, além disso, promovia suas ações e doutrinas. Dessa forma, a conjuntura<br />
política era um componente primordial dos pareceres dos deputados da Real<br />
Mesa e não raras vezes o órgão censor imprimia o selo da ambiguidade, induzidos pelas<br />
mudanças da marcha ordinária do governo.<br />
Ademais ocorreu toda uma transformação no sistema comunicativo do teatro<br />
musical, alinhando-se, então, com as características iluministas cobradas por Mário Vieira<br />
de Carvalho. A primeira a se destacar era a nova forma de retroação marcada pela mudança<br />
da atitude de recepção. Cabe dizer que alterar os libretos não causava constrangimento<br />
aos editores ou tradutores. Considerável número de libretos publicados com a autorização<br />
da Real Mesa Censória era “adulterado”, até mesmo introduzindo-se novos personagens<br />
ou trechos poéticos que buscavam identificar o herói literário com o Soberano, as “licenzes”,<br />
ou os valores promovidos por este, como a religião católica (Carvalho, 1993, p. 192). Tanto<br />
Brito como Carvalho destacam que o teatro da ópera séria tornou-se lugar do mais completo<br />
silêncio, superando a balbúrdia apontada por tantos nativos e estrangeiros: “as récitas<br />
tinham lugar entre as sete da tarde e dez da noite, e a elas se assistia em silêncio absoluto”<br />
(Brito, 1989, p. 115). Carvalho diz que isso indicava uma assimilação dos protocolos iluministas,<br />
no que diz respeito à consciência edificante do espetáculo teatral. Aponta, no<br />
entanto, outros fenômenos: a intenção declarada de promover a ilusão, alguns espetáculos<br />
contavam com mulheres ou castratis que “pareciam autênticas senhoras”; o número de<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
128<br />
vezes que a ópera era repetida, em que “num modelo de representação ou separação de<br />
competências (eliminação de estruturas de ‘exibição do eu’, silêncio, atenção dos<br />
espectadores centrada no palco), a assimilação do ‘drama’ e das suas implicações morais<br />
e políticas era, naturalmente, favorecida pela repetição de cada obra”.<br />
Mário Vieira de Carvalho, no entanto, aponta para singularidades do modelo da<br />
corte de Dom José. Primeiro diz que o projeto de desenvolvimento de um teatro iluminista,<br />
baseado principalmente no desenvolvimento do discurso burguês ocorre ao “inverso”,<br />
ou seja, não nos braços do teatro nativo, mas na ópera séria italiana, o que subvertia<br />
os princípios declarados pelos movimentos em outros países.<br />
A função institucional declarada [difusão das luzes] e a ‘dissimulada’ [sociabilidade]<br />
vão ter, porém, na prática uma eficácia inversa: o que a burguesia consegue<br />
é assegurar a sociabilidade, mas não organizar o teatro de acordo com os<br />
princípios do Iluminismo. O estatuto da sociedade por ações já era bastante<br />
revelador a este respeito: o teatro melhor apetrechado (Condes) destinava-se à<br />
ópera italiana, o pior e mais barato (Bairro Alto) ao teatro declamado português.<br />
Sobretudo não havia qualquer menção relativa a uma especial promoção do<br />
teatro português ou ao desenvolvimento de um teatro musical português (semelhante<br />
ao singspiel). (Carvalho, 1993, p. 46)<br />
Dessa forma, Vieira de Carvalho considerava que a burguesia não desenvolveu<br />
nada mais do que a sociabilidade, constrangendo o principal elemento da estética iluminista,<br />
ou seja, a manifestação nacional, espontânea que libertaria a burguesia da exibição<br />
do eu, mesmo que fosse no ato social e não musical.<br />
No entanto, esse é um problema complexo, pois o sentido metafórico do movimento<br />
iluminista glosou ideias que, consubstanciadas em estratégias políticas, repercutiram<br />
em diferentes classes sociais, estratégias de governo, formas de uso e vias de<br />
acesso. Dessa forma, mesmo considerando a autoridade que nega todos os adjetivos do<br />
Iluminismo, consideramo-los tão amplos que mesmo dizendo o que eram, eram-lhe negadas<br />
a essência por serem.<br />
De qualquer forma é necessário frisar que a ópera determinou uma mudança<br />
significativa nas formas de relacionamento vertical e horizontal da população e seus<br />
domínios de entendimento da realidade. Independentemente se foi a ópera séria que<br />
melhor articulou as ideias iluministas, o que seria uma contradição só mesmo possível<br />
nas particularidades da mentalidade portuguesa, o fato desse princípio inocular os valores<br />
sociais espalhou-se por todo o Reino. Veremos, em seu tempo, que o governador de São<br />
Paulo, assim como seus congêneres pelo Brasil, incentivou a ópera com despesas muitas<br />
vezes pagas pelo próprio bolso. Ademais, criaram-se modelos de comunicação híbridos,<br />
permitindo a atuação de mulheres ou, como no caso na casa de ópera de São Paulo, representando<br />
no mesmo palco tanto ópera séria italiana como exemplares do teatro<br />
português, como clamava Mário Vieira de Carvalho para selar a estampa iluminista na<br />
vida teatral da corte.<br />
No Brasil, refletindo o laço colonial, o teatro com música esteve sempre presente<br />
acompanhando o desenvolvimento dos núcleos populacionais. Como em Portugal, até<br />
meados do século XVIII o teatro religioso era preponderante, principalmente o teatro<br />
jesuítico. No entanto, nas festas cívicas representava-se em espaço público as chamadas<br />
comédias, que eram basicamente peças alegóricas que dramatizavam simbolicamente os<br />
valores fundamentais para a afirmação da autoridade monárquica, aludindo sempre as<br />
duas devoções: Deus e o Rei.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
129<br />
Através de uma efervescência oficial no fomento da ópera construiu relações<br />
intensas entre os agentes régios e os empresários do divertimento teatral, principalmente<br />
a partir da década de 1760. O sistema contratualista igualmente regeu as relações entre<br />
os agentes régios e os empresários que buscavam explorar o teatro. Nessa senda, revelase<br />
particularmente o mecenato de dois governantes emergentes no cenário político português:<br />
o Morgado de Mateus e do Vice-Rei do Brasil, Dom Luís de Vasconcelos e Souza,<br />
o Marquês de Lavradio, que governou de 1769 a 1778.<br />
Sobre o Marquês de Lavradio, Ayres de Andrade (1967, p. 67) mostra por farta<br />
documentação que o empresário que substitui o Padre Ventura, o comediante músico<br />
Manuel Luís Ferreira, tornou-se um homem de forte inserção social adquirido nos protocolos<br />
cortesãos, forjando um clientelismo típico do Antigo Regime.<br />
Sem estender a análise desse mecenato, cabe dizer que tanto era o vínculo de<br />
Manuel Luís com o poder que, na opinião de seus contemporâneos, o antigo comediante<br />
não passava de um “alcoviteiro” a serviço do Marquês de Lavradio. A tendenciosa detração<br />
no mínimo sublinhava o vínculo, velando favores escusos, já que o músico-empresário se<br />
estabeleceu de tal forma que monopolizou as funções lírico-teatrais do Rio de Janeiro e<br />
sua influência transpassou o governo de Lavradio. De forma única na história da música<br />
colonial, um músico, feito empresário, recebeu inúmeras comendas, sendo até mesmo<br />
nomeado moço da câmara do Príncipe Regente Dom João VI e Coronel de Milícias do<br />
Quarto Regimento (Andrade, 1967, p. 65).<br />
No entanto, o caso mais intenso de relação de um governador com o “divertimento<br />
da ópera”, segundo as fontes disponíveis, ocorreu em São Paulo, no governo de<br />
Dom Luiz Alberto Botelho de Souza Mourão, o Morgado de Mateus. Esse governador impulsionou<br />
o “divertimento da ópera” por um envolvimento pessoal singular conferindo a<br />
ela até mesmo um caráter revelador de sua visão de mundo em que a arte, de um modo<br />
geral, figurava num papel central de representação e afirmação do poder. 2 E esse desejo<br />
não era constrangido pela visão da inviabilidade cultural da Capitania de São Paulo. A inexistência<br />
de círculos mais ilustrados e padrões de sociabilidade era o que o estimulava,<br />
como ele próprio diz revelando o cunho iluminista que encontrava simbolizado na ópera:<br />
“que com estes meios [a ópera] facilita a civilidade e a convivência desses povos” (Nery,<br />
2006, 44min).<br />
Enfim, enfrentando diversos obstáculos, o governador tratou de organizar uma<br />
inserção de ideias ilustradas que visavam modificar as estruturas da opinião pública,<br />
primordial para o estabelecimento de uma via desenvolvimentista exigida pelo despotismo<br />
pombalino. Assim, além de estimular uma interiorização do conhecimento científico<br />
através de prospecções marcadas pelo signo da ciência possível, promoveu ferramentas<br />
para a inserção do povo de São Paulo nos índices culturais do Iluminismo católico, em que<br />
a renovação de habitus era entendida como a ponte primordial para o desenvolvimento<br />
e consolidação do absolutismo português.<br />
...........................................................................<br />
2 Grande parte do envolvimento de Dom Luiz Alberto com a ópera foi preservado graças ao hábito raro no universo<br />
dos governadores portugueses de registrar o cotidiano de suas atividades em um diário. Belloto (1979) afirma que<br />
somente existe um congênere, feito por um governador das Índias, porém longe da riqueza de detalhes do memorial<br />
do Morgado de Mateus. Em seu “diário de viagem” relatou não só efemérides das atividades operísticas, como os<br />
títulos das obras e as questões sobre a recepção, como os muitos conflitos e dificuldades que envolviam a colocação<br />
em cena das peças lírico-teatrais. Cabe ainda dizer que o códice referido tem um caminho sinuoso. Primeiro porque o<br />
próprio governador fez duas cópias. Uma enviava para a sua esposa em Portugal, como forma de proteção circunstanciada.<br />
A outra, uma espécie de rascunho, ficava em sua posse. O conjunto de manuscritos pertenceu primeiro aos<br />
fundos da Casa de Mateus, em Portugal. Posteriormente foi adquirido pela Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.<br />
Fizemos inúmeras tentativas de localizar esse documento, porém foram sempre infrutíferas. No entanto, o conhecimento<br />
do teor desse diário nos chegou através de Rui Vieira Nery que conseguiu uma cópia dele através da historiadora<br />
Heloísa Bellotto. Em que pese o musicólogo português ainda não ter publicado nenhum trabalho a respeito, promoveu<br />
uma conferência sobre essas memórias em 2006, no Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São<br />
Paulo (Nery, 2006). Referendados nessa conferência, disponibilizada on-line, constituímos nossas fontes sobre o caso.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
130<br />
A primeira ação do Morgado de Mateus foi montar uma estrutura física e humana<br />
para a ópera paulistana, repetindo, evidentemente, o modelo europeu. Para tanto, e já<br />
demonstrando a organicidade do espaço, anexou a casa da ópera ao seu palácio de<br />
governo. Ao que tudo indica foi em 1767 que se iniciou a construção. Segundo nos relata<br />
Nery (2006), o diário do Governador demonstra sua “obsessão” pela obra, chegando a<br />
inspecionar os trabalhos e relatar detalhadamente o seu progresso: “andam trabalhando<br />
com grande força num excelente teatro que por delegação de Sua Excelência3 se está<br />
fazendo em um dos quartos do colégio [dos jesuítas], onde ele instalou seu palácio de<br />
governo” (Dom Luiz Antônio, 1767 apud Nery, 2006, 42min). A inauguração, que<br />
primeiramente deveria ocorrer na Páscoa, deu-se em 6 de junho de 1767, ou seja, no dia<br />
do natalício de Dom José I. Na ocasião foi apresentada a ópera de Antônio José da Silva,<br />
Anfitrião ou Júpiter e Alcmena.<br />
Figura 1. Casa da ópera de São Paulo (esq. da foto), anexa à Igreja da Companhia de Jesus. 4<br />
Nessas primeiras funções, a música era executada pela gente da terra, usando,<br />
por exemplo, meninos cantores que aprendiam música nos antigos aldeamentos jesuíticos,<br />
em que pese a expulsão, mantiveram a tradição de ensino da arte. 5 Posteriormente, o<br />
Governador contratou pessoalmente o músico mineiro Antônio Manso da Mota, confiando-lhe<br />
a tarefa de organizar integralmente as récitas.<br />
Esse aspecto é importante de se destacar: a preocupação de Dom Luiz Antônio<br />
pela atualização da sua casa de ópera, concretizada na contratação de um músico de um<br />
...........................................................................<br />
3 Num estilo clássico, as memórias do governador sempre estão escritas na terceira pessoa.<br />
4 Disponível em , acessado em 2 de janeiro<br />
de 2008.<br />
5 Pasquale Petrone afirma que missões como as que existiam em São Miguel Paulista mantinham viva a tradição.<br />
Diz que a música dos índios animava as festas religiosas das aldeias, atraindo a população vizinha (Petrone,<br />
1995, p. 331). Na festa que se realizou em São Borja, ainda sob domínio espanhol na década de 1760, podemos<br />
ver a expectativa da população diante da apresentação dos artistas “da terra”: “[…] entraron [os ameríndios das<br />
missões jesuítas de Trinidad, Martyres, y San Thomé] en el Pueblo al son de sus Clarines, Chirimias, y cajas,<br />
todos en ordem, causando grande movimiento, y alegria en todos los Militares, y vivenderos” (Instituto de<br />
Estudos Brasileiros, Coleção Lamego, cód. 68, doc. 1). Sobre essa última memória podemos destacar dois aspectos:<br />
primeiro é a dimensão do grupo musical, 170 integrantes entre cantores e instrumentistas de vários<br />
naipes; e, segundo, a laudatória, que sublinhava a qualidade dos grupos vocais dos ameríndios, equiparando-os<br />
aos das melhores catedrais da Espanha.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
131<br />
grande centro, como a Bahia. Outros artistas igualmente foram arregimentados pelo<br />
governador, como demonstra seu diário de governo. Ademais, essa preocupação vinculavase,<br />
também, aos papéis de música. Dom Luiz Antônio registrou no seu diário o envio de<br />
Antônio Manso ao Rio de Janeiro para adquirir partituras, tanto para a ópera como para o<br />
coro da Sé (Nery, 2006, 56min 30s). Ainda segundo Nery (2006), em inúmeras ocasiões o<br />
governador se referiu a atualização do repertório que se executava tanto na igreja como<br />
no teatro. Destacava o Morgado, sempre como autoelogio, que algumas peças ou óperas<br />
foram cantadas em Lisboa com pouca distância de tempo. Fez alusão no seu diário, por<br />
exemplo, de execuções de músicas compostas por David Perez e de um Te Deum que, segundo<br />
suas próprias palavras, “foi apresentado diante do Rei no ano novo” (apud Nery,<br />
2006, 56min).<br />
Justamente nesse sentido o prestígio de Manso da Mota consolidou-se junto ao<br />
governador, pois para a autoridade a música do mestre mineiro era “provida das melhores<br />
solfas de bom gosto do tempo presente” (apud Duprat, 1995, p. 51). Assegurava, ainda,<br />
que tal música era “de violinos”. Em outras palavras, o músico de Sabará representava<br />
uma mudança no sentido do gosto da época, que pouco a pouco se distanciava do “stile<br />
antico” em prol de um “profanismo, influência do melodrama italiano, texto em português,<br />
primórdios do estilo galante” (Duprat, 1995, p. 51). E essa postura do Morgado de Mateus<br />
confirma a disposição do governador em estabelecer um padrão estético referenciado na<br />
corte portuguesa e, sempre, objetivando o estabelecimento dos paradigmas do Iluminismo<br />
católico, como ele próprio afirma para justificar a imponência das festas públicas e religiosas:<br />
“não só para cumprir com o seu afeto e com o muito que deve ao seu senhor, mas<br />
também para imprimir nos corações desse povo a veneração e a obediência ao seu soberano<br />
e fazer adiantar o conhecimento do seu real nome que nessas remotas partes em<br />
muitos indivíduos era ainda ignorado” (apud Duprat, 1995, p. 56-57). Em síntese, o Morgado<br />
de Mateus sempre tinha em mente edificar pelas festas, como propunham inúmeros protocolos<br />
das doutrinas iluministas que se espalhavam pela Europa.<br />
Em que pese a determinação do governador, a partir de 1772, a ópera paulistana<br />
foi vitimada pela apatia da comunidade, como já dissemos, distante das possibilidades<br />
críticas encontradas em outros centros. O fato é que no costume da época a ópera vivia<br />
de assinaturas dos camarotes. Na falta crônica de signatários o financiamento das récitas<br />
comprometeu-se, como relatou em seu diário: “acabaram os operários de computar trinta<br />
óperas que tinham permitido fazer aos partidários [assinantes] dos camarotes durante<br />
um ano. E não pagando uns os partidos e outros deixam os camarotes e não querem<br />
alugar mais, ficaram os operários impossibilitados de continuar nessa terra” (Nery, 2006,<br />
1h 9min 23s).<br />
No entanto, a convicção do governador de inocular as “boas” regras da civilidade<br />
revelou-se mais intensa nesse momento de depressão. Diante do impasse do êxodo do<br />
público criou uma intendência para o divertimento da ópera, concretizada na “portaria<br />
sobre o divertimento da ópera”, assinada no dia 20 de novembro de 1772. Nomeou para<br />
o cargo de Intendente o Juiz de Fora de Santos, José Gomes Pinto de Morais, obrigandolhe<br />
a realizar impreterivelmente “nos dias determinados as óperas estabelecidas, ordenando<br />
nessa matéria o que lhe parecer mais conveniente” (apud Bellotto, 1979, p.<br />
248). Entre outras obrigações, o Intendente “tinha autorização para punir os músicos e<br />
atores que não cumprissem seus deveres” (apud Bellotto, 1979, p. 248).<br />
Assim, foi no âmbito da “Intendência do divertimento da ópera” que o Morgado<br />
de Mateus estabeleceu uma política intervencionista direta para sustentar a casa de ópera<br />
e frear a decadência que vinha se consubstanciando pelo desleixo do povo paulistano.<br />
Chegou a ordenar ao Juiz de Fora, agora intendente, que formalizasse um contrato com<br />
os músicos, “na forma que se pratica no Rio de Janeiro”, onde “os operários serão obrigados<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
132<br />
a fazer trinta óperas dentro de um ano, das quais oito serão novas. Estas vão ser feitas no<br />
domingo à noite, iniciando no inalterado ponto das oito horas ainda que sua excelência<br />
não se ache em seu camarote” (Nery, 2006, 1h 9min 30s). A determinação de restabelecer<br />
a atividade desdobrou-se, também, para a determinação de enviar às principais famílias<br />
da cidade um mapa dos camarotes “sugerindo” que cada uma escolhesse e pagasse pelo<br />
lugar, dando, até mesmo, a oportunidade de que cada signatário pudesse pagar em crédito<br />
pela referida assinatura (Nery, 2006, 1h 10min). Ou seja, Dom Luiz Antônio estava determinado,<br />
pela razão ou pela força, a promover a ópera e assim, como disse, continuar o<br />
projeto de inocular civilidade promovendo a convivência do povo pela formação de uma<br />
opinião crítica forjada no teatro, evidentemente mediada pelos desígnios do poder<br />
estabelecido.<br />
Em síntese, pode-se dizer que no campo das artes Dom Luiz Antônio teve uma<br />
atuação destacável. Sua preocupação com os protocolos dos espetáculos públicos, forjados<br />
na sua consciência do poder edificante que deles emanavam, o levou a promover ações<br />
que, pelas conjunturas da terra, tinham uma execução extremamente mais complexa se<br />
comparadas com as que ocorriam nos principais polos urbanos da Colônia, como Salvador<br />
ou o Rio de Janeiro. A mobilização era diuturna e por vezes autoritária, porém sempre<br />
orientada à concretização da ação lúdica como alavanca da civilidade. Ademais, não se<br />
esquecia da devoção religiosa, e com igual brio tratou de promover a suntuosidade dos<br />
eventos, pois entendia a religião como o elo que sacramentava o poder régio, logo o seu<br />
próprio poder. Enfim, o governador era fiel ao binômio fundamental do iluminismo católico<br />
português: a cruz e a espada.<br />
Nessa senda, não se furtou ao debate que envolvia as configurações da arte nos<br />
espaços públicos. E por esse espírito tenaz não tardou a ver sua estrela cair. Já desgastado<br />
por contrariedades acumuladas nas incontáveis insistências de estratégias militares que<br />
deveras contrariaram o Marquês de Lavradio e a própria Coroa, o Morgado guardou em<br />
sua algibeira o desconforto da elite da terra que em muitas ocasiões se viu oprimida pelos<br />
modelos de sociabilidade que o governante tratou de impor (Bellotto, 1979, p. 252 e ss.).<br />
Um evento que lhe causou grande dano, por exemplo, foi um problema recorrente<br />
à primeira metade do século: a disposição eclesiástica de manter suas zonas de<br />
influência. E esse problema teve como pivô justamente a determinação de manter a sua<br />
casa de ópera. Para isso, promoveu o “operário” Antônio Manso ao cargo de mestre-decapela,<br />
contrariando a determinação eclesiástica de prover o cargo, o que se somava a<br />
conflitos como a indisposição do governador de dividir seu palácio com a sede episcopal<br />
(Bellotto, 1979, p. 316). A indisposição entre as duas principais autoridades, o que é simbólico,<br />
selou os autos que caíram sobre o governador. Acusaram-lhe de gastos indevidos<br />
e enriquecimento ilícito; e a casa de ópera tornou-se, então, parte do seu “tendão de<br />
Aquiles”. Ironicamente, a sua determinação em trazer o principal signo de civilidade tornouse<br />
um dos cravos que o crucificou!<br />
Porém, para a nossa história foi essa determinação do governador que desvelou<br />
mais intensamente a importância da ópera na configuração do modelo de sociabilização<br />
iluminista, que chegou ao Brasil. O fato de Morgado de Mateus extrapolar os costumes<br />
coevos e impulsionar a ópera por incentivos econômicos e anímicos institucionais, mantendo<br />
na sua mão a iniciativa de fomentar os espetáculos, torna o caso ainda mais significante.<br />
Ao contrário do que ocorreu em outras praças, Dom Luiz Antônio construiu o<br />
teatro dentro de seu palácio e não só se satisfez com determinar a programação, como<br />
seus congêneres, mas tratou o assunto dentro do âmbito privado. Inusitadamente contratou<br />
músicos com dinheiro próprio ou do erário, cuidando pessoalmente da constituição<br />
do corpo de comediantes e músicos. Na iminência de falência praticamente obrigou as<br />
famílias de posse da terra a cumprirem com a sua obrigação de levar ao povo e a elas<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
133<br />
próprias os índices de civilidade que ele vislumbrava como necessários para a ruptura da<br />
cadeia de indigência que mediava o povo paulista. Como um autêntico déspota esclarecido,<br />
despegou-se da subordinação que lhe era imposta e assumiu o papel messiânico para iluminar,<br />
ou “facilitar”, como disse, a inserção dos índices de civilidade e promover, essa foi<br />
a sua palavra, a “convivência” do seu povo...<br />
Enfim, o âmago da exacerbação de Dom Luiz Antônio estava na compreensão<br />
de que o despotismo esclarecido era responsável pela correção da “humanidade impossível”.<br />
Para tanto, o remédio que tombaria os usos e costumes seria, entre outros, mas<br />
principalmente, a catarse dramática. Destarte, o Morgado de Mateus não poupou argumentos<br />
e coerções para tornar o espetáculo do poder, como a ópera, a tração retroativa<br />
para inocular o discurso costurado por códigos e práxis que afirmava a autoridade régia<br />
na inteligência coletiva do povo e assim projetar o bem comum.<br />
Por essa senda, ademais, podemos entender o envolvimento dos governadores<br />
na criação e sustentação dos “negócios” da ópera: a ação velava a construção de vias de<br />
acessos ideológicas que facilitaria as formas de governar nos domínios lusitanos. Nessa<br />
articulação que redefinia os espaços da formação crítica, a Igreja foi um primeiro obstáculo.<br />
Porém, distante de inibi-la, pois a base do Iluminismo português era uma base religiosa, a<br />
estratégia foi determinar as fronteiras de sua atuação, tanto administrativamente como<br />
ideologicamente. E justamente tal ato, ou seja, compartimentar as zonas de influência,<br />
impulsionava a aventura da ópera, o que, sublinhamos, obedecia aos protocolos mais<br />
ortodoxos do iluminismo europeu.<br />
No Brasil, onde esse controle da influência religiosa era extremamente mais<br />
complexo, a ópera acabou identificando-se, ainda mais fortemente, com o desejo dos<br />
agentes ilustrados e deles exigiu atenção, ou os melhores esforços, como vimos no caso<br />
do Governador paulista. Ademais, o problema da formação social no Brasil se expandia<br />
para além do átrio das igrejas, o que reforçava a correção dos costumes pelo modelo de<br />
intervenção persuasiva das formas de espetáculo do poder. Portanto, nesse vórtice da<br />
humanidade impossível, o esforço para a alteração do espaço público – definindo agora a<br />
casa de ópera como um elemento de intervenção ideológica na formação da consciência<br />
coletiva – tornou-se um dos pólos fundamentais das reformas para alavancar a economia<br />
da Colônia. E essa realocação das vias de acesso à apologia régia, antes somente nas<br />
mãos da Igreja, foi construída como a ponte comunicativa com a opinião pública, permitindo<br />
aos governos locais um espaço laico obediente, já que a casa da ópera só se sustentava<br />
pelo apoio institucional. Esse clientelismo era o que vinculava a ópera com a fruição<br />
ideológica, pois o estanco das ideias, exercido pela censura oficial, afirmava a autoridade<br />
régia ao mesmo tempo em que direcionava a elevação crítica necessária para o<br />
desenvolvimento de uma sociedade burguesa. Logo, a energia gasta nessa estratégia<br />
forjava-se no propósito de Pombal e sua percepção da ópera como “escola onde os povos<br />
aprendem as máximas sãs da Política, da Moral, do Amor à Pátria, do Valor, do Zelo, da<br />
Fidelidade […]”.<br />
Assim, a reforma dos meios de diálogo entre o governo e a população não só<br />
era oportuna como urgente. Isso porque, as questões complicadas não eram apenas o<br />
poder e a mentalidade forjadas numa religiosidade heterodoxa ou o encontro das etnias.<br />
Amalgamava o processo social o deslocamento vertiginoso do poder econômico do campo<br />
para as cidades. Como diz Raymundo Faoro, esse deslocamento era ocasionado por um<br />
modelo econômico refratário à economia latifundiária em detrimento da atividade comercial<br />
articulada desde as cidades. Assim, no modelo burguês que a Metrópole impulsionava,<br />
“a terra deveria ser objeto de negócios, sem entraves alheios ao mercado ou<br />
impedimentos economicamente irracionais” (Faoro, 2000, vol. 2, p. 22). A base de<br />
articulação foi justamente o impulso a uma política de crédito sustentada não no<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
134<br />
beneplácito régio, mas nos fundos da nova esfera dos comerciantes, que lentamente se<br />
transformavam em comissários (intermediários entre os produtores e os exportadores) e<br />
financistas (Faoro, 2000, vol. 2, p. 23). Ademais, a “guerra” velada tratava de impulsionar<br />
uma dinâmica produtiva dividindo o grande latifúndio improdutivo para incorporar mais<br />
gente à cadeia produtiva; o que, ironicamente, manteve o sistema de produção escravagista.<br />
Assim, a própria elite da terra, antes orgulhosa do acúmulo territorial, aos poucos<br />
se distanciou da agricultura e se refugiou no emprego público ou no sistema financeiro,<br />
criando novos campos sociais que formaram, desde o início do século XIX, a nobreza que<br />
sustentou o Império brasileiro. Esse processo aqueceu-se, ademais, no caldeirão de uma<br />
sociedade refratária às estruturas estamentais rígidas, inflada por uma Igreja pouco<br />
ortodoxa e muitas vezes resistente ao controle centralizador do Padroado.<br />
Esse desenvolvimento da burguesia não poderia ocorrer sem a formação de<br />
uma crítica que pudesse compreender, até mesmo para equilibrar-se precariamente, os<br />
estatutos e códigos jurídicos. Dessa forma, a nova ordem social não poderia mais ser<br />
vivenciada apenas na determinação da vontade privada, como nos séculos anteriores. A<br />
socialização burguesa, que se consubstanciava na afirmação da urbanidade como opção<br />
desenvolvimentista, instava conjugar a questão do desenvolvimento econômico pelos<br />
caminhos de uma civilidade cujos paradigmas apontavam para a formação de uma opinião<br />
pública laica, urbana e letrada. É justamente essa senda que “exigiu” a separação dos<br />
domínios laicos e religiosos, obrigando à modificação do espaço público. E a casa de ópera<br />
tornou-se um signo dessa nova civilidade, assim como o salão doméstico, amparado na<br />
modinha.<br />
Essa separação do jugo místico religioso, mesmo que parcial, velada ou simuladamente,<br />
configurou o principal símbolo de desenvolvimento: o universo urbano. Dessa<br />
forma, conjugando tanto o desejo da burguesia como o desígnio do despotismo de controlar<br />
via catarse os códigos e práxis dessa nova civilidade através do espetáculo de poder,<br />
a ópera tornou-se a principal ferramenta de intervenção persuasiva. Nascia um natural<br />
contraponto à Igreja, cujo discurso, ao contrário da ópera, não distinguia ambientes, ou<br />
seja, o rural e o urbano. Ademais, a religião mostrou-se incapaz de combater superstições<br />
que se perpetuavam na diversidade da devoção, sempre exercida nos vórtices das inúmeras<br />
etnias que formavam o caldo cultural brasileiro. Na ópera, a ação normativa era bem<br />
mais simples e, invariavelmente, regida pelas mãos das autoridades régias. Essa separação<br />
de liturgias, dizemos novamente, era a essência do Iluminismo.<br />
Porém essa estratégia de alteração dos padrões de formação crítica era de execução<br />
extremamente mais difícil do que na Metrópole. Isso porque o poder do mundo<br />
rural não desapareceu e o vigor de seus interesses não se desfez em prol de uma política<br />
de elevação da capacidade de operação de cunho racionalista que favorecia os desejos de<br />
desenvolvimento econômico de base burguesa, como pretendia o despotismo esclarecido<br />
de Pombal. Esse conflito estabeleceu-se paradoxalmente, pois o poder continuava na<br />
mão da elite agrária, porém mediada por uma política institucional que necessitava fomentar<br />
a participação econômica mais decidida de uma parcela maior da população,<br />
vinculada a um modelo burguês urbano. Ao articular a vida socioeconômica nos perímetros<br />
das cidades e vilas, o impulso de desenvolvimento de uma mentalidade mais exigente de<br />
ordenação legal fomentava conflitos a cada dia mais balizados pela discussão política.<br />
Ademais, esse novo princípio de desenvolvimento exigia uma ordem legalista, como já<br />
dissemos, consubstanciada na discussão de novos conceitos através de um acesso mais<br />
amplo a ideias letradas.<br />
A ópera possibilitava a fruição dessa mentalidade, que justamente se afirmava<br />
pela burocratização do Estado, a partir da segunda metade do século XVIII. No entanto,<br />
criando novos sistemas de convivências que redefiniam a discussão sobre o espaço público<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
135<br />
e os paradigmas que o regiam, ampliavam-se os espaços de negociação e conflitos. Para<br />
minimizar o surgimento de interesses contrários à Coroa, a intervenção ideológica que<br />
legitimava e fazia reconhecer o prestígio do poder incrustava a autoridade como mediadora<br />
dos discursos que visavam modelar as relações entre as pessoas e dessas com o poder.<br />
Dessa forma, justifica-se a proximidade das autoridades na propagação das ideias<br />
absolutistas via espetáculo operístico, pois, nesse espaço, o paradigma era convencer<br />
pela persuasão; o que não diminuía a disposição de “convencer” pela violência institucional.<br />
E nesse sentido a escolha dos temas das óperas e as formas de representá-los estava na<br />
mesma dimensão do esforço para a criação e manutenção física do teatro; o que justifica<br />
o reduzido número de títulos executados no Brasil.<br />
Segundo autores como Décio de Almeida Prado (1993) coexistiam nas casas de<br />
ópera brasileiras uma diversidade de gêneros: “iam da comédia seiscentista espanhola<br />
(O Conde de Alarcos, de Mira de Amescua; Amor e obrigação, de Antonio de Solís) à<br />
ópera setecentista italiana (Ézio em Roma, Zenóbia no Oriente, de Metastasio), da comédia<br />
(Sganarelo, baseada em Moliére) à tragédia clássica francesa (Zaíra, de Voltaire)” (Prado,<br />
1993). No entanto, devemos sublinhar, primeiramente, que o termo ópera não significava,<br />
como alerta Décio de Almeida Prado, um gênero inteiramente cantado.<br />
A palavra ópera não deve despertar excessivas reminiscências europeias. No<br />
contexto nacional, como no português, aplicava-se, se não a todas, a qualquer<br />
peça que contivesse números de canto, executados de conformidade com os recursos<br />
musicais de cada cidade. Os “dramas para música” de Metastasio prestavam-se,<br />
de resto, a tratamentos mais livres quanto à proporção entre o cantado<br />
e o falado, podendo ser lidos ou como libretos de ópera (e dezenas de compositores<br />
valiam-se do mesmo texto) ou como tragédias de fundo histórico (e<br />
final geralmente feliz), centradas sobre heróis da Antiguidade clássica, cujos nomes<br />
ligavam-se não raro aos de uma cidade ou região Catone in Utica, Adriano<br />
in Siria — que figuravam menos como entidades geográficas precisas que como<br />
cenários de instantes cruciais de suas vidas. O coro não tinha muita importância<br />
no desenvolvimento do enredo, as personagens eram poucas, seis ou sete, a<br />
ação relativamente concentrada no espaço e no tempo. Essa economia de meios,<br />
mais próxima da disciplina neoclássica que das elaboradas fantasias mitológicas<br />
da ópera barroca do período anterior, facilitava evidentemente a montagem do<br />
espetáculo (Prado, 1993).<br />
Ainda segundo Décio de Almeida Prado, a ópera no Brasil trazia uma particularidade<br />
interessante, herdada logicamente da cultura portuguesa: ela era transformada<br />
em teatro de cordel. Nesse novo gênero, as obras sofriam traduções, adaptações, enfim,<br />
modificações que consideravam estruturas particulares de recepção.<br />
A surpresa desvanece assim que se verifica, como fez um estudioso moderno,<br />
que as peças representadas possuíam um denominador comum bem próximo<br />
do Brasil, via Portugal: “todas elas são de teatro de cordel”, constatou Carlos<br />
Francisco de Moura. Mais ainda: todas haviam sido publicadas ou republicadas<br />
recentemente em Lisboa. Participavam, portanto, do repertório corrente em<br />
Portugal e desse ângulo devem ser analisadas. A expressão “teatro de cordel”,<br />
pouco significando do ponto de vista literário, como se tem notado, porque<br />
comportava de tudo, nem por isso deixava de corresponder a uma determinada<br />
realidade dramática. Essa identidade de palco, constituída por usos e costumes<br />
teatrais, alterava não pouco as características nacionais e as particularmente<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
136<br />
estilísticas dos textos, tendendo a uniformizá-los. Um exemplo curioso desse fenômeno<br />
de contaminação literária acha-se no próprio repertório cuiabano. Pelo<br />
género e pelo título, dir-se-ia, nada de mais lusitano que o entremez O saloio<br />
cidadão. Mas trata se, efetivamente, de uma adaptação livre de Le bourgeois<br />
gentilhomme, de Moliére, devida provavelmente à pena incansável de Nicolau<br />
Luís, homem de teatro em atividade nos palcos lisboetas na segunda metade do<br />
século XVIII. A ele são creditadas perto de cinquenta de tais transcrições<br />
anônimas, entre as quais umas cinco ou seis das encenadas em Cuiabá, inclusive<br />
a tragédia Inês de Castro. “que segue de perto o texto de Vélez de Guevara, Reinar<br />
después de morir. Garrett resumiu sem piedade o processo de produção<br />
deste repertório híbrido: “traduziam em português as óperas de Metastasio,<br />
metiam-lhe graciosos — chamava se a isto acomodar ao gosto português; e<br />
meio rezado, meio cantarolado, lá se ia representando.<br />
Esse é um fenômeno bastante peculiar da mentalidade iluminista baseada na<br />
edificação do bem comum através da vulgarização dos valores havidos como civilizatórios,<br />
velando, evidentemente, uma apologia da ideologia dominante, aqui no caso o despotismo<br />
do Iluminismo Católico português. Nesse sentido, ganhava importância a direcionalidade<br />
da mensagem através da forte retroação. E é justamente nesse aspecto que um autor da<br />
era joanina foi resgatado e encontrou uma ressonância que uniu tanto o gosto público<br />
como os desejos da afirmação ideológica: Antônio José da Silva (1705 – 1739).<br />
Nas relações elaboradas por Curt Lange, Ayres de Andrade e Nireu Cavalcanti,<br />
circunscritas nas casas de ópera de Vila Rica e Rio de Janeiro (Budasz, 2006, p. 24-29), são<br />
citadas apresentações de Os encantos de Medeia (1735) e O precipício de Faefonte (1738).<br />
Boccannera Júnior (1924 apud Leão, 2004, p. 101) revela que no Teatro Guadalupe da Bahia<br />
encenava-se com frequência Labirinto de Creta (1736) e Guerras de Alecrim e Manjerona<br />
(1737). No acervo da família Pompeu de Pina, administradora secular da casa de ópera de<br />
Pirenópolis (GO), ainda em atividade, sobreviveram ao tempo algumas óperas do Judeu, entre<br />
elas Guerras... e Anfitrião ou Júpiter e Alcmena (1736). Da mesma forma, o dramaturgo<br />
satírico era representado em São Paulo na década de 1770, segundo relata Rui Viera Nery<br />
apoiado no códice “Diário de Governo” do Morgado de Mateus (2006). Enfim, o singspiel<br />
do Judeu era uma constante nas casas de óperas brasileiras e sua representação certamente<br />
ultrapassava em muito os indícios que as parcas fontes documentais nos revelam.<br />
O regozijo do público pelas sátiras sociais do Judeu era o que ajustava, também,<br />
sua legitimidade ideológica. Era revigorante e simbólico, na nova ordem política, as críticas<br />
à aristocracia decaída vertidas em textos como Guerras do Alecrim e Manjerona, onde<br />
até mesmo a linguagem gongórica usada pela criadagem era uma crítica mordaz à ilusão<br />
e pretensão de uma casta de fantasia, absolutamente falida, mas que mantinha a pose e<br />
a posse através dos títulos e clientelismos tradicionais nos regimes anteriores à segunda<br />
metade do século XVIII. Assim, numa sociedade que almejava a consolidação social pela<br />
virtude e não pelo sangue, o enredo de Guerras... ganhava uma retroação política e social<br />
forte. Ou seja, nesse vórtice de desacreditar a antiga nobreza encontravam-se não só a<br />
nova política pombalina, mas os desejos de letrados e funcionários régios recém elevados,<br />
assim como da própria burguesia.<br />
Outro aspecto é a identidade ambígua do Judeu. Essa ambiguidade constrói-se<br />
no fato de que a mensagem iluminista era vertida numa linguagem teatral indiscutivelmente<br />
barroca:<br />
Fazendo do teatro a analogia predileta do mundo como engano e ilusão, a obra<br />
de “O Judeu” concretiza alegorias no palco. Teatralidade de imagens, valorizada<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
137<br />
pela ideia de que o ‘engenho’ típico do artista é a imaginação, e de que esta<br />
atividade é nitidamente distinta daquela que produz conceitos e noções […], o<br />
teatro que abriga a obra de Antônio José é pródigo em efeitos, fantasmagorias,<br />
transformações, metamorfoses. Anjos e diabos entram em cena e dialogam;<br />
“são menos abstratas do que as anchietanas”. Elementos caricatos, grotescos e<br />
irônicos infiltram-se na cena. O palco enche-se de efeitos proporcionados por<br />
uma maquinaria que põe em cena toda uma parafernália de palácios, jardins,<br />
nuvens, mares e fontes, para figurar no palco o contramundo visível. O teatro<br />
torna-se o campo para as invenções tecnológicas da época. O cenário é<br />
reconhecido como pintura e suas trocas ou mudanças são visíveis e carregadas<br />
de teatralidade. Bonecos e atores contracenam. O carnaval, com a sua abolição<br />
da hierarquia social, ainda que temporária, configura o riso, o deboche, colocando<br />
o mundo às avessas, ao valorizar as “permutações do alto (céus, partes altas do<br />
corpo) e do baixo (terra, partes baixas do corpo), da face e do traseiro”, conforme<br />
Cafezeiro (1996, p. 83), um elemento configurado nas óperas do autor.<br />
Ao contrário do que afirma Lorenzo Mammi, para quem essa referência barroca<br />
era contraditória, pois não “consegue cortar o cordão umbilical que a liga à religião, ao<br />
teatro jesuítico, aos mistérios processionais” (2001, p. 39), Raimundo Leão (2006) aponta<br />
que, tal paradoxo ganhou relevância na forma comunicativa do despotismo católico ao<br />
criar um elo comunicativo que permitiu por um discurso ainda barroco inocular uma<br />
mensagem de cunho reformista consolidada numa filosofia imperceptível para a grande<br />
parte da população. Em outras palavras, sem rupturas drásticas com a consciência pública<br />
dominante, o teatro de Antônio José permitiu uma crítica irônica em que a graça estava<br />
na suspensão pelo ridículo revelado dos misticismos e prejuízos de castas. As alegorias<br />
formavam, então, uma razão contrária aos modelos de sociabilização dos regimes<br />
anteriores, baseados na concentração do poder numa aristocracia rural e “atrasada”:<br />
Luz e trevas animam a cena. Intensificam-se as lutas para afastar o humano da<br />
ortodoxia da Igreja, deixando-o iluminar-se pelos métodos pregados pela<br />
epistemologia científica. É nesse universo que a identidade de “O Judeu” se forma,<br />
se dá a conhecer e provoca o presente, espelhando as condições de deslocamento<br />
cultural e discriminação social às quais são submetidos trabalhadores, intelectuais<br />
e artistas, pelas emanações do fundamentalismo político e religioso, escudadas<br />
na razão louca que nos põem em permanente estado de alerta e de tensão<br />
emergencial, tal o grau de intolerância, preconceito e negação do diferente. Esse<br />
outro, negado em sua alteridade, é condenado a viver na indeterminação. No<br />
entanto, mostra-se como sujeito múltiplo, para além da identidade monolítica<br />
que o pensamento hegemônico configura. (Leão, 2006, p. 104)<br />
Outro gênero importante explorado pelo teatro pombalino é a ópera séria,<br />
principalmente de Metastasio, a própria afirmação do despotismo. Suas alegorias induziam<br />
o encontro das virtudes ordenadoras do mundo com a autoridade régia. A razão, único<br />
caminho da justiça, mas igualmente forja da benevolência, era o centro de gravidade dos<br />
enredos de Metastasio. Dessa forma, sua presença nos palcos brasileiros é uma projeção<br />
dos modelos de divertimento culto estimulados desde os tempos Pombal.<br />
Assim, pelo alto grau de identidade com o regime, suas peças eram as preferidas<br />
de governadores e letrados. Assim como em Portugal, Metastasio e Carlo Goldoni eram<br />
representados tanto em funções de gala, com música de grandes autores como David<br />
Perez e Nicòllo Jommelli, como em funções ordinárias, adaptados e até mesmo repre-<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
138<br />
sentados por bonecos. 6 Ademais, a influência metastasiana foi determinante para o<br />
desenvolvimento do arcadismo crioulo, mais precisamente para Cláudio Manuel da Costa<br />
que traduziu, possivelmente destinando-os à casa de ópera de Vila Rica, dois libretos:<br />
Comédia do mais heroico segredo ou Artaxerxe e Demofonte em Trácia. Ou seja, pelo fenômeno<br />
do intercâmbio e edição em forma de cordel, as óperas de Metastasio travestidas<br />
de linguagem mais apropriada às possibilidades críticas de uma população mais ampla.<br />
Nas realizações das cortesias ocorridas em academias, eventos governamentais,<br />
posses, recepções etc., típicas da consciência teatrocrática do Antigo Regime, as óperas<br />
de Metastasio serviam amiúde, sempre traduzidas para o português, acrescentadas de<br />
passagens (as licenzas) que identificavam diretamente o homenageado:<br />
Para lisonjear o destinatário da dedicatória, também é costume referir-se a exemplos<br />
da antiguidade grega e latina sempre nimbada de glória. Vemos assim Tolentino<br />
comparar o Visconde de Vila Nova da Cerveira, ministro de D. Maria I, com<br />
Cícero “lendo poetas e filósofos” embora “encarregado dos importantes negócios<br />
da República”. Por sua parte, Couto Guerreiro dá exemplos de magnanimidade<br />
extraídos das vidas de Alexandre Magno e do rei Artaxerxes, vidas então<br />
conhecidas graças à comédia do abade de Metastasio O mais heroico segredo<br />
ou Artaxerxes, que teve várias edições em poucos anos, assim como, do mesmo,<br />
a ópera Alexandre na Índia. (Maffre, s/d., p. 5)<br />
Por fim resta observar um importante aspecto do surgimento das casas de ópera<br />
no Brasil colonial: a participação ativa de atores saídos das camadas baixas da sociedade,<br />
majoritariamente artistas mulatos. Décio de Almeida Prado (1993) observava que esse<br />
fenômeno foi determinante para o molde no qual os produtores, autores e público estabeleceram<br />
as formas de diálogo através do teatro.<br />
Pelo seu lado mais pobre, mais terra a terra, contentava-se com espetáculos<br />
amadores improvisados, aproveitando-se de que para subir a um estrado e dizer<br />
algumas frases decoradas não era preciso nem mesmo aquele mínimo de exercício<br />
técnico imprescindível na pintura e na música. Esse hábito popular nos vinha<br />
através das naus portuguesas, seja nas quinhentistas, em que padres jesuítas<br />
encenavam vidas de santos e autos sacramentais durante as calmarias, seja, duzentos<br />
anos mais tarde, nas embarcações setecentistas, como maneira fortuita<br />
de preencher as horas vazias.<br />
No entanto, esse pode ter sido um elemento primordial para uma renovação<br />
das estrutras de linguagem, pois a intersecção das convenções e das possibilidades de<br />
fruição estética dos agentes que edificavam o divertimento possibilitaram aberturas significativas<br />
aos modelos importados. Nesse caso é sintomática, por exemplo, a presença<br />
de mulheres nos elencos das casas de óperas crioulas. Problema sempre latente na censura<br />
lusitana, constituído até mesmo em proibições régias como aconteceu em tempos de<br />
Dona Maria, a ópera brasileira, principalmente em Vila Rica e no Rio de Janeiro foi flexível<br />
à presença feminina. Além do apelo ao imaginário masculino, identificando o arquétipo<br />
licencioso da mulher mestiça com o estigma afetivo da arte melodramática, a presença<br />
...........................................................................<br />
6 Rogério Budasz (2006, p. 25) indica que libretos de Metastasio produzidos no Teatro do Bairro Alto de Lisboa,<br />
foram encenados como teatro de bonecos, “traduzidos para o português e sujeitos a cortes e adaptações –<br />
geralmente inclusão de personagens cômicos – tais como Achille in Sciro, Adriano in Síria, Didone, La Semiramide<br />
riconosciuta, Zenobia e La isola desabitada”.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
139<br />
da mulher consolidava as doutrinas do teatro iluminista que clamava pela identificação<br />
do teatro com a natureza, logo contrário a personagens travestidos.<br />
Esse fenômeno consolida-se justamente nas possibilidades críticas e estruturais<br />
de execução e recepção dessa ópera. Adaptando libretos e música à instrumentação disponível,<br />
a cantores, assim como às vias de acesso à legitimidade para preservação do espaço,<br />
a ópera nacional tornou-se um laboratório de identidades que juntavam letrados<br />
como Cláudio Manuel da Costa e elencos de mulatos, entre compositores e atores. Todo<br />
esse conjunto amalgamado por um fluxo de experiências que não deixava de considerar<br />
que a ópera existia como afirmação de poder monárquico, imbuída de um caráter civilizador<br />
direcionado. Como escola de princípios, era forjada por política de Estado e cuja<br />
assistência era uma questão primordial para a representação social da elite, pois não só<br />
celebrava os valores monárquicos, como era fundamental para a visibilidade social na<br />
trama das redes de influência e consolidação do poder local.<br />
Concluindo, representando as diversas camadas do mundo livre, a casa de ópera<br />
transformou-se num espaço de negociações e conflitos, onde participavam os governantes,<br />
os letrados, a burguesia e toda a humanidade que, não esqueçamos, era julgada de “impossível”.<br />
Forjavam-se nesse caldeirão não só as bases das relações humanas, mas, também,<br />
os paradigmas críticos que vinham nos entreatos de uma opinião pública que lentamente<br />
se distanciava do jugo totalitário da Igreja. Assim, ao mesmo tempo em que a ópera<br />
deixava fluir as formas típicas do iluminismo europeu nos libretos de uma nova classe<br />
de intelectuais, possibilitava o encontro com compositores e cantores elevados de estamentos<br />
sociais marginados de voz. Todo esse jogo determinou e simbolizou esse novo<br />
ambiente onde lentamente desenvolvia-se uma opinião pública, comum. O outro lado<br />
desse processo será ampliar essa formação do espaço público crítico aos ambientes domésticos,<br />
através do salão e seu culto à modinha.<br />
Referências bibliográficas<br />
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1967.<br />
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Morgado de Mateus em São Paulo: 1765 – 1775. São Paulo: Conselho Estadual de Artes<br />
e Ciências Humanas, 1979. (Textos e Documentos n. 36)<br />
Brito, Manuel Carlos de. Estudos de História da Música em Portugal. Lisboa: Editorial<br />
Estampa, 1989.<br />
Budasz, Rogério. “Perspectivas para o estudo da ópera e teatro musical no Brasil do<br />
período colonial ao Primeiro Reinado”. In: Encontro de Musicologia Histórica, n. VI,<br />
2004, Juiz de Fora. Anais. Juiz de Fora: Centro Cultural Pró-Música, 2006.<br />
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a dialéctica do Iluminismo. Lisboa: Relógio D’Água, 1999.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
140<br />
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175, 2006.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
141<br />
As óperas de Antônio José da Silva<br />
e Antônio Teixeira: atribuição de autoria<br />
e reconhecimento de modelos estéticos<br />
da produção lírica luso-brasileira<br />
do século XVIII<br />
Márcio Páscoa<br />
Universidade do Estado do Amazonas<br />
O paço ducal de Vila Viçosa, em Portugal, possui em seu acervo, um conjunto<br />
musical manuscrito sobre texto de Antônio José da Silva (1705–1739), ali intitulado Alecrim<br />
e Mangerona. Está identificado em suas folhas pela cota A.M.G-7 em concordância com<br />
o catálogo de José Augusto Alegria onde foi-lhe atribuída a designação de G prática 7<br />
(Alegria, 1989, p. 165). O conjunto é composto de cadernos correspondentes às partes separadas<br />
de instrumentos e vozes. Estão presentes partes instrumentais designadas em<br />
página de rosto por violino primo, violino 2º, viola obligata, Basso e, sem folha de rosto, páginas<br />
para Trombe 1ª e 2ª. Das partes vocais constam apenas as de Sevadilha, Clóris e<br />
Nise.<br />
O conjunto das partes instrumentais inclui árias, para além das personagens femininas,<br />
pertencentes aos demais personagens da trama: Fuas, Gilvaz, Semicúpio e Lancerote.<br />
A essas partes vocais perdidas, até o momento, podem-se somar partes de oboé e<br />
saltério indicadas na carátula da parte do baixo contínuo, mas inexistentes no conjunto<br />
deste espécime. A totalidade das partes de cordas indica ainda assim a presença parcial<br />
de árias previstas no libreto original. Publicado pela primeira vez em 1737, ano em que se<br />
estreou no Teatro do Bairro Alto, em Lisboa, o texto conservava o título de Guerras do<br />
Alecrim e Mangerona, contendo em seu bojo duas partes, a guisa de atos, sendo que a<br />
primeira está composta de quatro cenas e a segunda por sete cenas. Subtitulava-se desde<br />
o princípio de Ópera Joco-séria, alusiva ao caráter da restante obra deste mesmo autor.<br />
As árias previstas, somando-se ao coro final e a um recitado, alcançam a conta de 21 números<br />
musicais. Destes, apenas 17 se encontram no conjunto manuscrito de Vila Viçosa.<br />
Não é possível saber se um dia já existiram tais árias faltantes, mas há indícios neste sentido.<br />
No manuscrito musical A.M.G-7 há uma indicação anotada ao fim do dueto entre<br />
Sevadilha e Lancerote “Moça tonta, descuidada”, em que se lê: “D.Fuas/Minuet/Já que a<br />
fortuna”. Entretanto, mais abaixo há a indicação “Segue D. Nize”. A música que se segue é<br />
de fato a ária desta personagem feminina, “Suponha, senhor, que nunca me viu”. A indicação<br />
da ária de Fuas, “Já que a fortuna”, confirmada no libreto original como um minuete,<br />
consiste, entretanto numa anotação feita por mão diferente da cópia da música. Essa<br />
anotação aparece no lugar aludido, nas partes de violino primeiro e segundo, e do basso,<br />
mas não na da viola. A inserção da ária pode ter sido feita quando as apresentações baseadas<br />
nesta cópia musical já estavam em andamento e deve ter existido em folhas avulsas,<br />
agora perdidas. Outra possibilidade é a de que os músicos que se valeram do atual A.M.G-<br />
7, dispunham de uma cópia reduzida do conjunto mais completo da ópera e obtiveram<br />
avulsamente esta ária de Fuas, quando da montagem. As mãos que anotaram a indicação<br />
podem ter sido dos executantes que usaram tais partes cavas. Não só a letra parece di-<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
142<br />
ferente em alguns pontos, como na parte do segundo violino a indicação atribui o mencionado<br />
minuete vocal a D. Gilvaz, confusão que tanto pode evidenciar mãos diferentes e<br />
atribuição errônea, como eventual troca de personagem para tal música, ainda que pouco<br />
provável neste caso. Também é meramente especulável que a música perdida desta ária<br />
reencontrada ou refeita ao tempo da montagem que se valeu deste manuscrito, pertença<br />
ao autor predominante do corpus musical A.M.G-7.<br />
As partes de instrumento que contêm folha de rosto, exceção da parte de Trombe,<br />
indicam: “Muzica/Senhor Antônio Teixeira”, constante de maneira igual nas partes de violino<br />
e com o tratamento abreviado na parte de viola (Sr.), sendo que no baixo surge em<br />
italiano: “Muzica/Dal Signore Antônio Teixeira”. Somente nesta folha consta a indicação<br />
da instrumentação completa a que corresponde o manuscrito: “Alecrim e Mangerona/<br />
con Violini, Saltério, Oboe, Trombe, Viola e/ Basso”.<br />
A credibilidade da autoria tem por fiador o enciclopedista Diogo Barbosa Machado.<br />
A primeira menção biográfica sobre Antônio Teixeira vem publicada ainda em vida<br />
do compositor, na Bibliotheca lusitana que o dicionarista começou a editar em 1741,<br />
quando o músico devia ter 37 anos, o que mostra a consideração a que tinha alcançado<br />
nos meios intelectuais de que participava, dilatada por uma lista, ainda que um tanto genérica,<br />
de obras musicais de sua lavra.<br />
Antônio Teixeira, nasceo em Lisboa, e na Paroquial Igreja de Nossa Senhora da<br />
Encarnaçaõ foy bautizado a 14 de Mayo de 1707, sendo filho de Manoel Teixeira,<br />
e Vicencia da Silva. Quando contava nove annos de idade, foy mandado por ordem<br />
Real aprender a Arte de Contraponto em Roma, e como fosse dotado de<br />
engenho perspicaz, sahio igualmente destro na composiçaõ da Musica, como<br />
no toque do cravo. Restituído à pátria a 11 de Junho de 1728, em premio na sua<br />
applicaçaõ, foy eleito Capellaõ Cantor da Santa Igreja Patriarcal, e Examinador<br />
dos Ordinandos e canto chão em todo o Patriarcado. São innumeraveis as obras<br />
musicaes, que tem composto, merecendo entre ellas distincçaõ.<br />
Te Deum laudamus, a vinte vozes com todo o gênero de instrumentos músicos,<br />
que cantou no último dia do anno de 1732, na acçaõ de Graças, que se rende a<br />
Deos Nosso Senhor pelos benefícios recebidos naquelle anno, cuja funçaõ se<br />
celebra em a Casa professa de Saõ Roque, e a Ella assistem as Pessoas Reaes,<br />
com toda a Corte<br />
Te Deum laudamus a nove vozes.<br />
Psalmos, Offertorios, Lamentações, Motetes, a quatro, e oito vozes, com instrumentos,<br />
e sem elles.<br />
Miserere, a oito vozes sem instrumentos.<br />
Sete Operas a seis vozes com instrumentos, que se representarão com grande<br />
applauso dos Expectadores.<br />
Missa a oito vozes. Outra a quatro. Psalmos de Vesperas, a quatro para a Igreja<br />
de Santo Antônio dos Portugueses em Roma. (Machado, 1759, p. 61)<br />
O dicionário elaborado por José Mazza, ao final daquele século, repercute as<br />
informações de Barbosa Machado, de forma resumida, sem acréscimos, entretanto<br />
consagrando-o como “excelente compositor”, certamente de cima da trajetória que agora<br />
se podia observar mais completa. Sobre Teixeira, diz que era<br />
Presbítero natural de Lx.ª filho de Manoel Teixeira e Vicencia da Silva, Mestre do<br />
Seminario real de Muzica, excelente Compozitor, e Organista da Patriarcal, onde<br />
foi cappelão Cantor, era examinador do Canto chão do Patriarcado, Compos hum<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
143<br />
Te Deum a 5 coros com todo o genero de instrumentos, compos outro a nove<br />
vozes, sete operas, salmos, Mizereres, Lamentações, e outras mais, faleseo no<br />
seculo de 700. (Mazza, 1944, p. 45)<br />
A repetição das informações parece refletir a provável perda de documentos<br />
com o terremoto de 1755, o que deve ter impedido o acesso a quaisquer dados para além<br />
daqueles inicialmente divulgados por Barbosa Machado. Joaquim Vasconcellos, escrevendo<br />
biografias de músicos portugueses, em 1870, repetiu ainda mais uma vez as informações<br />
do autor da Bibliotheca lusitana, dando unicamente esta fonte como referência<br />
em seu verbete sobre Antônio Teixeira (Vasconcellos, 1870, vol. 2, p.198-199).<br />
Somente Ernesto Vieira, em 1900, levantou novos elementos sobre a trajetória<br />
do compositor. Vieira, desconfiando da pouca idade do bolsista de Dom João V, acreditava<br />
que as datas de nascimento ou a da ida para os estudos em Roma deviam ser diferentes<br />
(Vieira, 1900, vol. 2, p. 347). Vieira transcreve a entrada biográfica redigida por Machado<br />
e acrescenta que Teixeira deveria já ser<br />
compositor considerado, pois foi incumbido de escrever a música para uma cantata,<br />
cujo folheto se imprimiu e tem este título “Gli sposi fortunati, componimento<br />
da cantarsi nella sala dell’Illustrissima ed Ecceletissima Signora D. Antonia Gioacchina<br />
de Menezes de Lavra, nel Carnevale dell’anno 1732". (Vieira, 1900, vol.<br />
2, p. 348)<br />
Do rol de composições arroladas na Bibliotheca lusitana, Vieira menciona apenas<br />
o célebre Te Deum, pois justifica que “das suas composições, que Barbosa Machado diz<br />
terem sido innumeráveis [sic] nunca vi senão a cantata que existe na Bibliotheca Nacional”<br />
(Vieira, 1900, vol. 2, p. 348). Trata-se esta da “Cantata concertata a 3 voci con violini,<br />
Obué, Flauti, Trombe, e Corni da Caccia, Gloria, Fama, Virtú, del sigre. Antônio Teixeira”.<br />
Vieira ressalva que não sabe se esta obra era do mencionado Antônio Teixeira ou de um<br />
homônimo seu, que na condição de padre, foi autor de música sacra que se encontrava<br />
no Archivo da Sé, em Lisboa, do qual destaca um Ecce sacerdos, e uma composição datada<br />
de 1770 (Vieira, 1900, vol. 2, p. 348).<br />
A identificação da obra operística de Antônio Teixeira surgiu quando Luis de<br />
Freitas Branco, revelou nas páginas do periódico Século, em 1947, a existência dos manuscritos<br />
de Vila Viçosa, dos quais aquele sob a cota A.M.G-7. Logo na década seguinte sairia<br />
à luz nova edição da obra de Antônio José da Silva, constante no Theatro Cômico Portuguez,<br />
agora sob o nome de Obras completas, que incluiam ainda Glosa ao Soneto de Camões<br />
“Alma minha gentil, que te partiste” e as Obras do diabinho da mão furada, além da<br />
transcrição de documentos. Realizada, portanto, em 1957, pela Livraria e Editoria Sá da<br />
Costa, aos cuidados de José Pereira Tavares, que fez notas diversas e o prefácio, a edição<br />
passava a ser a primeira que informava a associação das peças de Antônio José da Silva<br />
com o trabalho musical de Antônio Teixeira (Silva, 1957, vol. 1, p. XXXI-XXXIII).<br />
Na mesma ocasião já se informava também a existência, em Vila Viçosa, de trechos<br />
musicais relativos a As variedades de Proteu, com a especulação sobre a autoria<br />
pertencer ao mesmo compositor que as folhas manuscritas do A.M.G-7 revelavam (Silva,<br />
1957, vol. 1, p. XXXI-XXXIII). Essas partituras nem, tampouco, o conjunto musical de árias<br />
e recitativos de Precipício de Faetonte – que figurou a partir de 2000 nos ficheiros da<br />
biblioteca de manuscritos musicais da Universidade de Coimbra sob a cota de MM876 –<br />
chegaram a ser publicadas.<br />
Partindo, portanto, da ideia de que a ópera Alecrim e mangerona, com atribuição,<br />
é confiavelmente de Antônio Teixeira, faz-se necessário verificar os elementos constitutivos<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
144<br />
utilizados pelo autor e como ele os aplica, do ponto de vista técnico e estético na música<br />
que compõe.<br />
Inicialmente, deve-se levar em conta as composições que apresentam partes<br />
completas, quais sejam as árias para os papéis femininos. De modo secundário, mas não<br />
menos importantes, aquelas em que estando ausente a linha vocal, sabe-se o seu lugar<br />
de entrada na estrutura de acordo com as indicações anotadas pelo copista das partes de<br />
primeiro e segundo violinos.<br />
Dos 19 números musicais, três revelaram-se espúrios, por causa de evidências<br />
musicais ou textuais, isoladas ou conjuntas. Dos 16 restantes, observa-se a predominância<br />
da ária da capo em cinco partes e com grau menor, mas igualmente relevante, o minuete<br />
vocal e o rondó. Excluindo-se o recitativo, são dez árias a solo e sete seções em conjunto:<br />
dois duetos, um trio, um quarteto, um quinteto, e o coro final a seis vozes. Com exceção<br />
deste último, todas as estruturas dos conjuntos se baseiam na ideia da estrutura da capo.<br />
Em quase todas essas árias há uma introdução instrumental onde o tema a ser<br />
desenvolvido pela linha vocal é exposto sob a ideia de antecedente e consequente ou a<br />
partir de uma melodia ou motivo que são usados para a construção do tema.Quando isso<br />
acontece, é bastante comum que o autor o faça repetindo o consequente. A ária “Senhora<br />
que o velho quer levantar”, traz este procedimento.<br />
Figura 1. Introdução da ária “Senhora que o velho quer levantar”, A.M.G-7 vv.<br />
Após essa primeira etapa de exposição, acrescenta um motivo rítmico-melódico<br />
que fará repetir cadencialmente, proporcionando modulação e gerando a ideia de se<br />
tratar de uma consequente do primeiro grupo de compassos. Tais compassos podem<br />
funcionar como temas-motivos isoladamente, e ele os usará assim ou como um conjunto<br />
organizado de ideias musicais dentro da racionalidade tonal.<br />
Na observância do conjunto, a segunda seção é uma ampliação modulada da<br />
primeira, ou seja, a variação melódica que permite a progressão tonal é duplamente<br />
repetida, como uma ampliação exponencial do tema-motivo inicial. Por vezes há também<br />
um tema-motivo de características mais cordais que melódicas, usado nesta ária em<br />
consonância com a ideia de simetria melódica e já numa terceira ideia motívico-melódica<br />
que facilita o retorno à tonalidade para fazer a entrada vocal.<br />
A síntese seguinte pertence à exposição melódica da introdução na ária Senhora,<br />
que o velho, onde A e B são temas-motivos e C é um terceiro material motívico, derivado<br />
ou não dos anteriores, que se presta à modulação e modificação.<br />
A [a (2 comp.) + b (4 comp,)] + B [a (2c) + b (4c.) :] + (C)[c (2c.: +1)]<br />
(Mi m) – (Si m) – Mod [(Ré m) – (Lá m) – (Sol M)] – (Mi m)<br />
I V (VII – IV – (RM) – I) I<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
Figura 2. Compassos 7-18 da ária “Senhora que o velho quer levantar”, A.M.G-7vv.<br />
145<br />
Evidentemente o autor pode estabelecer em outras árias modulação mais longa<br />
entre o Primeiro e o Quinto graus, mas independente disto, Teixeira comumente estabelece<br />
a linha do canto em perfeita observância às melodias criadas na introdução. Desse modo,<br />
o texto fica claramente disposto como se segue:<br />
(A) = (a+a’ ou ab(c)+ab(d))<br />
a Senhora, que o velho<br />
Se quer levantar (x2)<br />
b Coitada de mim<br />
Que eu ouvi escarrar X 2<br />
Falar e tossir<br />
(c) Senhora... não ouve<br />
Falar e tossir, etc… Terceiro tema-motivo com Modulação<br />
Ritornello<br />
a Senhora, que o velho<br />
Se quer levantar (x2)<br />
b Coitada de mim<br />
Que eu ouvi escarrar (Novo material melódico, que descarta c e parte<br />
de b) X2<br />
Falar e tossir<br />
B Senhor, vá-se embora (seção B flutuante sobre material prévio de a, b ou c)<br />
Vá já para fora<br />
Senão o papão<br />
Nos há de engolir<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
146<br />
O plano da ária fica estabelecido em A (a-a’ = a+b+(c)) - B (x) – A (da capo) tornando-se<br />
uma ária da capo em cinco partes. Dentro de A opera-se uma ida à tonalidade relativa, obtida ao<br />
final de a e que permanece pelo ritornello, recomeçando a’ tal como no princípio. A disposição<br />
de material textual truncado, como exemplificado (“Senhora... não ouve... falar e<br />
tossir” etc.) também caracteriza o trecho posterior à exposição textual e é ponto de livre elaboração<br />
do compositor nas duas vezes em que surge, sendo verificavel em diversas outras<br />
árias suas exclusivamente neste momento, ao contrário do que fizeram outros conhecidos<br />
autores da época em Portugal, como Francisco Antônio de Almeida, David Perez etc.<br />
Dentre as variantes possíveis está o procedimento verificado na ária de Dona<br />
Clóris Dirás ao meu bem, em que os versos são repetidos, de maneira fragmentária, antes<br />
da exposição a ter transitado ao a’. Teixeira pode ter exagerado as repetições aqui para<br />
dar simetria a uma construção baseada na força retórica. Diferente das demais árias,<br />
mesmo aquelas de As variedades de Proteo (exceto “Se amor, se a parca irada”, ária de<br />
Proteu) e Precipício de Faetonte, esta não começa por introdução instrumental, mas pela<br />
linha vocal sem acompanhamento. Dona Clóris manda que Semicúpio leve uma mensagem<br />
ao seu pretendente, de teor vital para o desfecho da peça.<br />
Dirás ao meu bem<br />
Que não desconfie<br />
Que adore, que espere<br />
Que não desespere<br />
Que á sua fineza<br />
Constante serei<br />
Que firme eu também<br />
A tanta fineza<br />
Amante, constante<br />
Extremos farei<br />
Como nas demais árias, Antônio José da Silva escreveu em versos pentassilábicos<br />
e aqui especialmente o pé do verso com o verbo na conjugação majestática: “dirás”. A dupla<br />
repetição desta palavra envolve cadência de quinta justa que antecede a entrada do<br />
acompanhamento instrumental e confere força de ordem ao enunciado de Dona Clóris.<br />
Aqui o uso da retórica musical é quem dá a gravidade, a solenidade da mensagem verbal.<br />
Percebe-se que isto condicionou o compositor à elaboração das demais passagens usando<br />
repetição exagerada dos versos, sempre de modo fragmentário, usando o significado de<br />
fazer lembrar o conteúdo da mensagem ao portador, valendo-se das muitas variantes<br />
afetivas propostas pela construção musical. Recorde-se que Benedetto Marcello, no seu<br />
célebre Il teatro alla moda discorria de modo satírico e sarcástico o procedimento de repetir<br />
duas ou mais vezes os versos fragmentados, ao longo do poema da ária (Marcello,<br />
172?, p. 20). Teixeira, porém, evita outro ponto satirizado por Marcello, o do abundante e<br />
indiscriminado uso de melismas sobre quaisquer palavras, sem atender ao sentido textual<br />
e musical. O compositor português estabeleceu aqui melismas vocais sobre a sílaba forte<br />
da palavra “desespere”, por mais de uma vez e somente sobre esta palavra, ao longo de<br />
continuadas sextinas ou misturando-as habilidosamente a pares de colcheias e semi-colcheias<br />
para criar variedade rítmica (Marcello, 172?, p. 20).<br />
A palavra aqui carrega o afeto principal da ária, aludindo à impaciência dos amantes,<br />
as incertezas da reciprocidade e da consumação, com a atmosfera sensual, sedutora,<br />
proposta pela construção ritmico-melódica. Muito adequadamente, Teixeira também sugere<br />
pontos de cadência sobre algumas repetições de “Dirás, dirás...” obviamente iden-<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
Figura 3. Compassos 7-10 da ária “Dirás ao meu bem”.<br />
147<br />
tificadas pela consecutiva pausa geral. Repousa aí mais um exemplo de domínio retórico<br />
que o autor luso parecia manejar com destreza e que constitui uma de suas características.<br />
Outro exemplo bastante interessante do uso retórico-afetivo está presente na ária<br />
de Sevadilha, intitulada “Se um tonto jarreta”. Trata-se de mais uma estrutura da capo a<br />
cinco partes. O texto contém as passagens “ou é para rir, ou é para chorar”, que Teixeira<br />
distribuiu usando praticamente o mesmo material para os afetos opostos. Na primeira<br />
vez, sob colcheias intercaladas com pausa do mesmo valor em progressão de tendência<br />
diatônica, construiu a ideia do riso, e na segunda, com intervalos de tendência cromática<br />
e melodia cortada por uma pausa de colcheia a cada três notas, a do choro.<br />
O riso fica bem evidenciado se a interpretação ao gosto da época desempenhar<br />
as colcheias de maneira bem curta e com um stacatto, conforme sugerem algumas anotações<br />
nas partes cavas (o sinal aparece de maneira irregular no conjunto das notas aludidas).<br />
Por sua vez, a progressão descendente cromática era desde muito convencionada como<br />
desfalecimento, lamentação ou o choro aqui aludido, em cujas intermitentes pausas a<br />
cada três notas fica sugerido o soluço.<br />
Este padrão de notas – anacruse em colcheia, seguida de colcheia na cabeça do tempo<br />
e colcheia na parte fraca do tempo – que se encontra na base do efeito retórico aqui descrito,<br />
parece estar estreitamente ligado à elaboração do tema introduzido pelas cordas. É<br />
comum em obras do período galante que a ária se inicie por um movimento melódico de<br />
anacruse, muito geralmente num intervalo de quinta ou quarta para o primeiro grau. No<br />
caso desta ária o movimento faz parte do tema e a sua repetição após pausa de colcheia<br />
é a sua consequente motívica. Obviamente, como é uso em Teixeira, passa a ser repetido,<br />
Figura 4. Compassos 14-18 da ária “Se um tonto jarreta”, A.M.G-7 vv.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
148<br />
ampliando a noção sensorial e retórica. O intervalo da anacruse de entrada foge do comum<br />
uso do movimento de quinta, quarta ou mesmo terça, para forjar uma ideia de harmonia<br />
Figura 5. Compassos 1-4 da ária “Se um tonto jarreta”, A.M.G-7 vv.<br />
extática nos dois primeiros compassos, talvez pelo diminuto tamanho do trecho.<br />
Pode-se arguir também que pesou nesta ideia o fato de tal escolha ser mais<br />
tendente à boa prosódia. A elaboração ajusta-se perfeitamente na versificação de versos<br />
pentassilábicos, com os sabidos acentos de 2ª e 5ª sílabas.<br />
Figura 6. Compassos 8-11 da ária “Se um tonto jarreta”, A.M.G-7 vv.<br />
Teixeira, entretanto não fez nenhuma outra ária com melodismo tão fragmentário<br />
e mesmo assim obtém a finalização com a duplicação da consequente, conforme se vê no<br />
exemplo em que a segunda linha dos versos vai repetida.<br />
Estes procedimentos de simetria, duplicação da segunda parte ou consequente<br />
textual-musical compõem uma espécie de assinatura, de que ainda fazem partes outros<br />
muitos procedimentos como o domínio retórico com prevalência de um motivo.<br />
O conjunto das demais árias chama atenção também pela riqueza de escrita rítmica.<br />
Estão presentes numa mesma estrutura colcheias iguais, pontuadas, ritmos lombardos,<br />
tercinas, sextinas e algumas misturas destas formulações entre si em pequenas<br />
células.<br />
Constam do conjunto, entretanto, duas árias que não dizem respeito ao texto<br />
de Guerras do alecrim e mangerona. Para Sevadilha, há uma ária intitulada “Eu nunca fiz<br />
cazo d’amantes”, e outra para Gilvaz, nomeada “Não me xameis tirano”, de acordo com as<br />
partes dos violinos, da viola e do Basso, sendo que nesta há a indicação de Nova por uma<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
149<br />
outra mão na cabeça da folha. Trata-se de uma composição a C cortado, em Fá Maior,<br />
contando 57 compassos, ainda que a parte de violino 2 tenha entretanto apenas 53 compassos<br />
escritos. Na parte de violino 1, lê-se ao final o nome de Pietro Guglielmi, sugerindo<br />
que se trate de uma composição deste autor italiano que se tornou bastante frequente<br />
no repertório visto em Lisboa no último terço do século XVIII. “Não me xameis tirano” seria<br />
então uma contrafacta de “Non mi rendete infido”, da ópera Alceste de Pietro Alessandro<br />
Guglielmi (1728–1804), estreada em Milão a 26 de dezembro de 1768 (Cranmer,<br />
2009, p. 116). A ópera sobrevive em dois conjuntos manuscritos, sendo que um deles pertence<br />
ao arquivo musical do Palácio da Ajuda, em Lisboa, um dos mais significativos acervos<br />
de espécimes musicais do gênero lírico para a segunda metade do século XVIII. Como nos<br />
demais casos dos personagens masculinos, esta ária também não possui uma parte vocal<br />
no A.M.G-7. “Não me xameis tirano” parece ter sido incluída no manuscrito musical em<br />
substituição à “Borboleta namorada”, texto original de Antônio José da Silva para o personagem<br />
Gilvaz, por causa de sua posição entre as demais árias.<br />
Por sua vez, a segunda ária espúria parece ter vindo substituir o dueto “Meu<br />
franguinho topetudo”, entre a mesma Sevadilha e Semicúpio. É uma composição a 3/8<br />
em Dó Maior, com distribuição para cordas e sopros. A parte de trombe traz indicação de<br />
“15, Sevadilha na Ópera da Estalajadeira// in C sol ut = Eu nunca fiz cazo/ cuja Ária está<br />
atrás da folha seguinte/ logo depois do Coro Final”. Embora a posição da cópia nas demais<br />
partes instrumentais esteja corretamente alinhada com as restantes árias, possível sugestão<br />
de que as partes de trombe surgiram posteriormente pode significar apenas um problema<br />
de uso do papel, de cópia ou de acréscimo na orquestração.<br />
A menção à Ópera da Estalajadeira remete a alguma versão em circulação de<br />
La locandiera, texto do dramaturgo Carlo Goldoni (1707–1793). Há incerto número de<br />
publicações desta peça traduzida, adaptada para o português ou que a ela se referem<br />
pelo tema, pelos personagens ou situações. Uma vez que o texto da ária não está presente<br />
no original italiano, deve-se considerá-la um enxerto às traduções e adaptações da época.<br />
Mesmo assim, também não foi possível localizar nenhum libreto, folheto ou versão similar<br />
da peça, em português, no qual estivesse inserido, mas a situação onde ela devia ser inserida<br />
é clara. Segundo o original de Goldoni, a estalajadeira Mirandolina, diz, na cena IX do<br />
primeiro ato, não pensar em casamento e nem precisar dos eventuais pretendentes que<br />
por ali passam pela sua estalagem. Na versão portuguesa publicada em 1765, intitulada A<br />
locandiera, levada com sucesso, segundo a carátula, no Teatro da Rua dos Condes, a passagem<br />
agora acomodada próxima ao final de uma grande cena primeira, parece esclarecedora.<br />
Nela a protagonista Mirandolina afirma que “dos outros [amantes] que me<br />
perseguem, não faço eu cazo” (Anônimo, 1765, p. 7) A ária pode ter sido acomodada próxima<br />
a este ponto, em substituição a ele ou, ainda, em outras versões derivadas disso,<br />
conforme a prática corrente.<br />
Resta ainda mais uma ária possivelmente espúria, sobre texto de “De um amigo<br />
e de uma ingrata”. Sua estrutura obedece a modelos baseados na forma sonata, portanto<br />
de uma época bem posterior à maioria do conjunto nesta ópera. Como o manuscrito do<br />
A.M.G-7 aponta para uma divisão em três atos, ao contrário de duas partes conforme<br />
previsto nas publicações de Guerras do Alecrim e Mangerona ao longo do século XVIII, e<br />
como a ária em questão foi colocada ao final do então segundo ato deste manuscrito musical,<br />
deve ter certamente obedecido a propósitos dramatúrgicos que acharam por bem<br />
“atualizar” a obra naquele ponto importante da peça.<br />
Ao lado da partitura de Alecrim e Mangerona, existe outro espécime atualmente<br />
identificado pela cota A.M.G-6 que se compõe de cadernos avulsos para instrumentos e<br />
vozes em cujas carátulas se intitulam todos As Variedades de Proteo. Nenhum dos cadernos<br />
atribui autoria à música neles contida. Tais cadernos são para violino primo, violino secundo<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
150<br />
[sic], violleta, basso, oboés 1º e 2º, trompa 1ª e secunda [sic], além de partes vocais para<br />
Proteo, Ponto, Dórida, Caranguejo, Políbio, Nereo e Marezia.<br />
Tal conjunto musical de Vila Viçosa abrange a totalidade das árias previstas nas<br />
edições de As Variedades de Proteu desde 1737, exceto pela exclusão de três delas, pertencentes<br />
a Cirene, a Dórida e ao Rei do Ponto, pelo que enxertou-se em seu lugar no<br />
A.M.G-6 um trio com texto não pertencente ao original e música provavelmente posterior<br />
à estreia. No caso das exclusões tratam-se das árias: “Não tenhas por delírios meus temores”<br />
(Dórida), “Refreia o pranto, Dórida” (Rei) e “Fortuna que inconstante” (Cirene).<br />
No lugar do que seria o único solo do monarca, a oitava seção musical da peça, surge o<br />
terceto “Que medo, que susto”, contando com a participação dos três personagens que<br />
tiveram solos subtraídos e cuja colocação dramatúrgica da seção musical se adapta ao<br />
ponto em que estava a “cantoria” do Rei.<br />
O conjunto das árias revela uma prevalência do formato da capo a cinco partes,<br />
exceto os solos de Caranguejo, que são em forma de rondó, como o foi também o primeiro<br />
de Semicúpio em Alecrim e Mangerona, criando assim uma associação de identidade<br />
para os personagens graciosos masculinos. Há também o minueto vocal, “Toda minha alma”,<br />
para o personagem Proteu, que, assim como o minueto previsto para Fuas no A.M.G-<br />
7, destina-se ao canto do amante que pretende ser bem sucedido em seus intentos. Tais<br />
minuetos podem ser outra marca identitária de Teixeira, em vista das comuns barcarolas<br />
e arietas de cariz modal nos demais autores líricos do tempo. No caso dos rondós, a associação<br />
parece ser mais comum com os demais exemplos da época.<br />
Na escolha de andamentos, apenas quatro Andantes estão grafados, e ainda<br />
assim não o foram por todas as partes; ao contrário, as indicações aparecem isoladamente,<br />
ora na parte do violino primo, ora na do secundo ou na da violeta. Sem contar o coro de<br />
entrada, repetido à saída, há doze “cantorias” que não tiveram atribuição de andamento.<br />
Pelas características da escrita pode-se, entretanto prever o afeto adequado e a velocidade<br />
para a obtenção de uma interpretação coerente em todas elas. Isto reforçaria a ideia de<br />
que o aspecto retórico conduziria escolhas interpretativas a andamentos, dentre outras<br />
coisas, a aspectos da declamação musical<br />
Também em As Variedades de Proteo observa-se a prevalência do mesmo modelo<br />
estrutural do A.M.G-7. A ária “Na onda repetida”, de Políbio (Ato 1), possui vinte e<br />
três compassos de introdução instrumental. A diposição de texto e música fica como sugere<br />
a síntese (Esquema 1).<br />
A estruturação melódica de Teixeira também obedece a duas de suas premissas<br />
mais importantes, a simetria da construção musical e a qualidade retórica da música. Para<br />
o primeiro caso basta olhar a elaboração do primeiro verso “Na onda repetida”, conforme<br />
figura 7.<br />
Todas as seções musicais de As Variedades de Proteu remetem aos procedimentos<br />
que conferem a autoria ao compositor de quase todas as seções de Alecrim e<br />
mangerona. Mesmo o caso de “Que medo, que susto”, o trio enxertado no lugar das três<br />
árias suprimidas, obedece aos modelos em questão e ainda que o texto seja diferente, o<br />
uso de versos pentassilábicos com acentos de segunda e quinta sílabas indica proximidade<br />
grande com Antônio José da Silva, autor de ambos os libretos.<br />
O caso do manuscrito MM876, Precipícios de Faetonte, entretanto, é diferente.<br />
Há 19 seções musicais, das 33 previstas no texto de Antônio José da Silva, sendo que sobreviveram<br />
apenas nove árias, pois as restantes são coros ou recitados secos. O conjunto<br />
das partes reúne apenas violino primeiro, violino segundo, oboés e baixo instrumental.<br />
Não existe nenhuma parte vocal, com exceção de uma parte de quarteto, e apenas o título<br />
das árias ou a atribuição de conjunto (dueto, terceto, coro) permite deduzir a correspondência<br />
com o texto de Antônio José da Silva.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
Esquema 1.<br />
151<br />
No que diz respeito aos modelos composicionais adotados, apenas quatro seções<br />
parecem ter proximidade com a autoria de Antônio Teixeira. São elas o quarteto “Não podem<br />
os deuses dois finos afectos” e as árias “Naquela deidade galharda”, “Nas pupilas dos<br />
meus olhos” e “Se quer adorar-me da mágica fuja”, respectivamente para os personagens<br />
Mecenas, Faetonte e a graciosa Chirinola.<br />
Todas as demais parecem ser de fatura muito posterior à obra lírica conhecida<br />
de Antônio Teixeira. A presença de ligaduras da mão do copista e abundantes marcas de f<br />
e p por mão diferente, quase certamente o copista principal, parecem determinar que a<br />
cópia iniciou-se bem mais tarde que os dois manuscritos de Vila Viçosa.<br />
A parte do quarteto inclusive possui o nome de alguns intérpretes no lugar dos<br />
personagens. São eles Antonico, Vitorino, Santos e Rei. Com exceção deste último, que é<br />
de fato um personagem, os demais interpretaram respectivamente Ismene, Albano e Faetonte,<br />
segundo a ordem da parte mais aguda para a mais grave, cabendo a parte de baixo<br />
ao Rei.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
152<br />
Figura 7. Compassos 14-19 da ária “Na onda repetida”, A.M.G-6.<br />
Eles podem ser Antônio José da Serra, Vitorino José Leite e José dos Santos, respectivamente<br />
atuantes em partes femininas, de galan e gracioso de meio caráter, no Teatro<br />
do Salitre entre 1788 e 1792 (Brito, 1989, p. 107-108); Victorino entretanto aparece<br />
mormente em partes de primeira dama.<br />
Os manuscritos de Alecrim e Mangerona e As Variedades de Proteu podem também<br />
remeter ao repertório do mesmo teatro que usou as partes para Precipícios de Faetonte,<br />
mas são cópias mais antigas.<br />
As ligaduras e sinais de f e p de mão posterior em Alecrim e mangerona indicam,<br />
ao lado das inserções do aludido material de Guglielmi e da ária em forma sonata, que<br />
deve ter sido copiado a cerca de 1770, vindo a ser usado por algumas décadas dada quantidade<br />
de copistas que ali atuaram.<br />
Quanto ao A.M.G-6, As Variedades de Proteu, o manuscrito encontra-se muito<br />
pouco usado, se comparado aos demais, embora tenha partes que foram recobertas a<br />
tinta posterior ou mesmo substituídas. Deve ser o mais antigo dos três conjuntos e sua<br />
cópia pode ter começado alguns anos antes de Alecrim e mangerona, A.M.G-7. Mas não<br />
muito antes, pois o único quarteto da peça já não foi copiado na íntegra, dispensando a<br />
parte b e portanto sem indicação de da capo. Esse procedimento verificável em obras cujos<br />
autores aboliram as indicações de da capo e dal segno, em favor de uma elaboração<br />
próxima da ideia da coda, foi-se tornando comum no último terço do século XVIII, dada a<br />
influência estética do modelo da forma-sonata sobre a elaboração vocal. Além disso, o<br />
procedimento é o mesmo que se observa na integral do conjunto de Precipícios de Faetonte<br />
acima indicado.<br />
Há indícios, ainda, de que tais manuscritos possam ter circulado pelo Brasil.<br />
Desde a década de 1760 que há registros de apresentação das óperas de Antônio José da<br />
Silva pelo Brasil. Ñão é sabida a autoria da música para tais casos, mas a de Antônio Teixeira<br />
não era desconhecida no ambiente colonial. Quando Salvador José de Almeida Faria,<br />
professor de José Maurício Nunes Garcia, faleceu no Rio de Janeiro, em 1799, havia um Te<br />
Deum do autor português, quiçá o hoje célebre a 20 vozes, no seu espólio (Cavalcanti,<br />
2004, p. 185-186).<br />
A grande disseminação de tais títulos de Antônio José da Silva é certamente responsável<br />
pela prática frequente de encenação de excertos da sua obra em Pirenópolis, interior<br />
de Goiás, até os dias atuais. A encenação parece ter sempre envolvido significativa<br />
presença de música, proveniente de coleção privada de manuscritos musicais mormente<br />
do século XIX. A autoria de tal música também é desconhecida, mas dos quatro conjuntos<br />
relativos a Guerras do Alecrim e Mangerona, As Variedades de Proteu, Anfitrião e Encantos<br />
de Medeia, poucas árias destas últimas parecem ser do século XVIII, havendo ao menos<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
153<br />
dentre estas ainda um número diminuto, seguramente uma e talvez mais um par, que podem<br />
vir a ser atribuídas a Antônio Teixeira, ou ambiente estético relacionável, sendo a<br />
grande maioria da composição do século XIX, em datas diferentes pelo que se deduz das<br />
muitas mãos que copiaram a música. A inacessibilidade do acervo em que estão contidos<br />
tais manuscritos impede um exame mais criterioso, de cunho científico-musicológico, para<br />
que se pudesse avaliar sua dimensão e importância para a região e mesmo para a cultura<br />
luso-brasileira.<br />
Ainda assim, alguns elementos podem ser deduzidos a partir da formação do acervo.<br />
Sabe-se que foi constituído de três núcleos originários distintos, incluindo a Igreja<br />
Matriz e a banda local. Em 1800, José Joaquim Pereira da Veiga (1772–1840), recém-ordenado<br />
padre, assumia funções em Meia Ponte (Pirenópolis). Trouxe consigo do Rio de<br />
Janeiro, onde estudou, vários “dramas” (Mendonça, 1981, p. 101), e para a execução musical<br />
de suas árias criou em 1805 um quarteto de cordas (Mendonça, 1981, p. 101). Os<br />
dramas em questão eram Alecrim e Mangerona, Aspásia, Adriano, Artaxerxes e Ésio em<br />
Roma, dentre outros (Gaioso, 2004, p. 22). A autoria da música trazida é incerta e é muito<br />
provável que o material subsistente pertencesse no todo ou em parte já ao século XIX.<br />
Isso porque se sabe que José Inácio do Nascimento, um dos membros do quarteto do padre<br />
Pereira da Veiga, compôs ainda em 1842 árias para Ésio em Roma (Gaioso, 2004, p.<br />
22). Como o hábito de realizar as óperas do acervo de Pirenópolis atravessou o tempo e<br />
chegou aos dias atuais, é crível que o material musical setecentesco tenha sido substituído<br />
gradativamente. As folhas desse acervo, que contêm o baixo instrumental das árias “Suponha,<br />
senhor”, de Dona Nize, e “Viste, ó Clóris”, de Dom Gil, contêm no seu rodapé a seguinte<br />
menção: “Reprezentada no anno de 1846. Ópera de Custódio Roiz de Morais”. A<br />
atribuição pode servir à ideia de autoria ou de propriedade. Há ainda o nome de Manoel<br />
Moreira de Mello inscrito na parte de primeiro violino da citada ária de Dom Gil. O conjunto<br />
conta até mesmo com uma ária para a personagem Fagundes, para quem Antônio José<br />
da Silva não elaborou trechos cantados.<br />
A autoria e os modelos estilísticos de tais manuscritos, dos quais a música popular<br />
urbana parece ter parte, ainda que apontem para uma preservação do texto de Antônio<br />
José da Silva, se distanciam da obra de Antônio Teixeira.<br />
Mesmo no caso de Vila Viçosa, não parecem ainda bem claros os motivos porque<br />
a música de Teixeira teria sobrevivido em manuscritos tão tardios, se considerarmos a volatilidade<br />
do gosto e as rápidas mudanças estéticas durante o século XVIII. As Variedades<br />
de Proteu e Alecrim e Mangerona, foram aparentemente copiados a partir de mais ou<br />
menos 1760 e 1770, respectivamente, possivelmente às portas do momento histórico<br />
musical de maior mudança para o gênero lírico daquele século. Eles parecem ter sido usados<br />
por décadas seguidas e é possível que tenham atravessado ao século XIX nesta condição.<br />
Também não se sabe o que proporcionou uma rápida mudança de música como<br />
se observa nos manuscritos goianos de meados do século XIX. A composição musical para<br />
o texto de Antônio José da Silva parece ter sido retomada, provavelmente a partir dos<br />
últimos dez ou doze anos do século XVIII, conforme se pode deduzir do manuscrito de<br />
Precipícios de Faetonte, reforçada pelo conjunto de manuscritos de Pirenópolis sobre as<br />
quatro peças citadas do Judeu. A provável presença de contrafacta em alguns destes casos,<br />
mais seguramente no MM876, deve ocupar certa importância nos estudos, pois pode<br />
atestar a necessidade de atualização do gosto e os novos padrões, ou pelo menos mais<br />
atuais, em voga nas audiências.<br />
Quanto aos manuscritos de Pirenópolis, se foram ainda que parcialmente copiados<br />
no Rio de Janeiro, por onde os espécimes de Vila Viçosa podem ter circulado<br />
(Cranmer), devem apontar para uma mudança de gosto que alcança, também, o Brasil<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
154<br />
colonial, ainda que as datas mais prováveis da formação repertorial do acervo da antiga<br />
Meia Ponte fiquem melhor acomodadas ao período de 1817 a 1840, quando o Padre Pereira<br />
da Veiga esteve comprovadamente aos serviços daquela comunidade e com o<br />
mencionado material trazido do Rio de Janeiro.<br />
A saliente e ainda pouco conhecida produção de teatro musical em língua portuguesa<br />
que parece convergir para o fim do século XVIII parece ligada a motivos diversos<br />
em que se sobressai a tendência paneuropeia de ópera em língua vernácula e de assunto<br />
cotidiano com personagens de identificação popular, assim como num plano mais lusobrasileiro,<br />
enxerga-se uma tendência nacionalista que ora parece imitar, ora reagir, fortemente<br />
a modelos italianos. Nesse sentido, a manutenção de autores lusófonos, como<br />
Antônio José da Silva e Antônio Teixeira, nos palcos tardo-setecentistas poderia tanto significar<br />
um indício da forte retroação conseguida no Brasil, como pode apontar para a busca<br />
de elementos tradicionais e nacionais, em meio à fixação de um teatro lusófono num<br />
mercado dominantemente de lavra italiana.<br />
Referências bibliográficas<br />
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Mazza, José. Dicionario biografico de Musicos Portugueses. Lisboa: Ocidente, xxiii–xxvi,<br />
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1870.<br />
VIEIRA, Ernesto. Diccionário biográphico de músicos portuguezes. 2 v. Lisboa:<br />
Typographia Mattos Moreira & Pinheiro, 1900.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
155<br />
O repertório músico-teatral<br />
na Casa da Ópera do Rio de Janeiro,<br />
1778 a 1813<br />
David Cranmer<br />
Universidade Nova de Lisboa<br />
A data incerta é, mas, ao que parece, já na década de 1760, surgiu, no Rio de Janeiro,<br />
um novo teatro; era o terceiro a ser construído nesta cidade, e veio a ser denominado<br />
por “Ópera Nova”, para o distinguir do segundo teatro, que assim passou a ser a “Ópera<br />
Velha”. Até a década de 1770, são bastante reduzidos os nossos conhecimentos acerca do<br />
repertório destes dois teatros.<br />
Terá sido a Ópera Nova que o Morgado de Mateus visitou, em meados de 1765,<br />
presenciando récitas de Precipícios de Faetonte, com texto de António José da Silva (o<br />
“Judeu”), e quatro óperas com texto de Pietro Metastasio, presumivelmente em tradução<br />
portuguesa: Dido desprezada, Ciro reconhecido, Alexandre na Índia e Adriano na Síria<br />
(Budasz, 2008, cronologia). O viajante francês, Louis Antoine de Bougainville, refere-se<br />
genericamente a representações de obras de Metastasio e outros mestres italianos durante<br />
a sua estadia em julho de 1767, sem especificar em que teatro (Budasz, 2008, cronologia).<br />
Foi durante uma representação de Os encantos de Medeia, de António José da Silva, em<br />
1775, que a Ópera Velha pegou fogo, deixando a Ópera Nova como a única “Casa da Ópera”<br />
da cidade. 1<br />
Moreira de Azevedo, em O Rio de Janeiro: sua história, monumentos, homens<br />
notáveis, usos e curiosidades, publicado originalmente em 1877, faz referência a representações<br />
de várias obras, sem mencionar a data (nem a sua fonte), mas que, do contexto,<br />
supõe-se ser de depois de 1773: “Subiram à cena nesse palco as mais populares peças dos<br />
repertórios de Moliére e de Antônio José, e a Inês de Castro, o Convidado de Pedra, a Astúcia<br />
de Escapim, mágicas e cantorias” (Moreira de Azevedo, 1969, p. ii e 156). A Inês de<br />
Castro em questão terá sido, provavelmente, a “comédia” sobre este tema Só o amor faz<br />
impossíveis, de Manuel José de Paiva, sob o pseudónimo de Sylvestre Sylverio da Sylveira<br />
e Silva, o Convidado de Pedra e a Astúcia de Escapim terão sido de Goldoni e Molière respectivamente.<br />
Segundo Moreira de Azevedo, que mais uma vez não indica a sua fonte, durante<br />
o Vice-reinado de Luís de Vasconcelos e Sousa (de 1778 a 1790), enquanto Manuel Luiz<br />
Ferreira o geria, a Casa de Ópera prosperou, com a criação de uma companhia lírica e<br />
representações de Chiquinha, isto é La Cecchina o sia la buona figluola, de Piccinni, Piedade<br />
de amor (La pietà di amore, de Giuseppe Millico) e L’italiana in Londres (L’italiana in Londra,<br />
de Cimarosa) (Moreira de Azevedo, 1969, p. ii e 156).<br />
A fonte original desta informação foi entretanto descoberta por Nireu Cavalcanti,<br />
tendo sido publicada na íntegra por Rogério Budasz em Teatro e Música na América Portuguesa<br />
(Budasz, 2008, p. 248-249). O documento em questão é constituído pelas memórias<br />
de Manuel Joaquim de Meneses, com o título Companhias líricas no Teatro do Rio<br />
de Janeiro antes da chegada da Corte Portuguesa em 1808, elaboradas em cerca de 1850,<br />
e é conservado hoje em dia no Arquivo Histórico do Museu Histórico Nacional, no Rio de<br />
...........................................................................<br />
1 Em 1769, segundo Budasz (2008), cronologia. Agradeço a Lino de Almeida Cardoso a correcção.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
156<br />
Janeiro. Para além dos títulos referidos por Moreira de Azevedo, o manuscrito cita mais<br />
uma ópera – A italiana em Argel, o que ou diz respeito a uma ópera completamente desconhecida,<br />
ou mais plausivelmente é um simples lapso. 2<br />
No entanto, Meneses acrescenta mais dados, não só títulos, mas igualmente<br />
importantes práticas de execução.<br />
Alem das pessas liricas propriam.te ditas, todos | sabem q. as antigas comedias,<br />
eraõ intercalladas de árias, e duetos, taes como as de Antonio Jose, Labirintho<br />
de Creta: Variedades de | Protheo, Precipicios de Faetonte, Alecrim e Mangerona,<br />
Encantos | de Circe, &c.a, e de outros authores como a denominada D. João de<br />
Alvarado. (apud Budasz, 2008, p. 243)<br />
Ao referir Encantos de Circe, Meneses queria dizer Encantos de Medeia, que é<br />
da autoria de António José da Silva, ou esqueceu-se que a referida ópera portuguesa era<br />
de outro autor desconhecido. 3 Quanto a D. João de Alvarado, comédia atribuída ao dramaturgo<br />
lisboeta Nicolau Luís da Silva, voltarei na devida altura à questão da sua música.<br />
Segundo Meneses, nos anos que se seguiram, foram representadas as óperas<br />
“Nina, Desertor Frances, e Desertor Hespanhol” (Budasz, 2008, p. 249), a primeira de Paisiello,<br />
a segunda de Gazzaniga e a última de compositor desconhecido. Com o regresso da<br />
cantora Joaquina Lapinha de Portugal, para onde se tinha deslocado desde 1791 até 1805,<br />
a Casa da Ópera entrou numa nova fase, com representações de Semiramis, Julieta e Romeu,<br />
Barbeiro de Sevilha, Ouro não compra amor ou Louco em Veneza” (Budasz, 2008, p.<br />
249). Semiramis pode ter sido de Nasolini, Bianchi, Borghi ou talvez Marcos Portugal, 4 Julieta<br />
e Romeu de Zingarelli, Barbeiro de Sevilha de Paisiello, Ouro não compra amor de<br />
Marcos Portugal, sendo desconhecido o autor de Louco em Veneza.<br />
Para a última fase da Casa da Ópera, de 1808 até a inauguração do Teatro de São<br />
João, a 12 de outubro de 1813, a melhor fonte de informação é a Cronologia da Ópera no<br />
Brasil – século XIX (Rio de Janeiro), publicada online por Paulo Kühl, em 2003. Citando<br />
sempre a sua fonte, lembra-nos não apenas de Le due gemelle, de José Maurício Nunes<br />
Garcia, supostamente representada em 1809, 5 e as óperas de Marcos Portugal, L’oro non<br />
compra amore e Artaserse, postas em cena respectivamente em 1811 e 1812, mas também<br />
uma série de obras ocasionais, com música composta por José Maurício ou Fortunato<br />
Mazziotti, conforme o caso, para celebrar aniversários ou dias onomásticos da rainha D.<br />
Maria I ou do Príncipe Regente, D. João.<br />
A escassa documentação que possuímos deixa-nos, portanto, com uma visão<br />
bastante limitada do repertório da Casa da Ópera, conduzindo facilmente a supor que as<br />
representações líricas tenham sido bastante raras. A nossa interpretação, pelo contrário,<br />
é que a documentação é de tal maneira fragmentária que nos fornece um panorama bastante<br />
incompleto do que poderia ter sido um teatro bastante activo. A questão que se le-<br />
...........................................................................<br />
2 As óperas conhecidas com o título L’italiana in Algeri, de Luigi Mosca (1808) e de Rossini (1813), são obviamente<br />
fora da questão durante o Vice-reinado de Luís de Vasconcelos e Sousa.<br />
3 O texto desta ópera foi publicado no tomo II das edições de Operas Portuguezas de 1746 e 1753, assim como<br />
no tomo IV das do Theatro Comico Portuguez de 1759-61 e 1788-92. Ver Cranmer, 2009a.<br />
4 As óperas em questão são, por ordem cronológica de estreia absoluta, Nasolini, La morte di Semiramide (Pádua,<br />
1790), Bianchi, La vendetta di Nino (Nápoles, 1790), Borghi, La morte di Semiramide (Milão 1791) e Portugal, La<br />
morte di Semiramide (Lisboa, 1801). As óperas de Nasolini, Bianchi e Borghi circularam largamente nas décadas<br />
de 1790 e 1800. Representou-se a ópera de Bianchi no Teatro de S. João do Porto na temporada de 1798–1799<br />
e a de Borghi no Teatro de S. Carlos, em Lisboa, em 1799. Desconhece-se qualquer representação de La morte di<br />
Semiramide de Marcos Portugal a não ser com Angelica Catalani como protagonista.<br />
5 A questão da sua representação é bastante polémica. Não se sabe ao certo quando foi estreada ou mesmo se<br />
chegou a ser.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
157<br />
vanta, como consequência, é a de que fontes existirão que nos pudessem fornecer mais<br />
dados.<br />
Tão cedo como 1964, Francisco Curt Lange apontou, de facto, outro caminho.<br />
No Boletín Interamericano de Música, publicou um artigo ilustrado com, entre outras<br />
imagens, a página de rosto, em manuscrito, da parte de baixo da tragédia Zara. Nesta página<br />
consta a indicação: “Reprezentada no Teatro do Rio de Janeiro em 18 de Novembro<br />
de 1778”. Numa outra página da mesma fonte, não publicada na altura, mas entretanto<br />
reproduzida em Teatro e Música na América Portuguesa (Budasz, 2008, p. 101), existe<br />
uma ária com o nome da intérprete – “Sra. Paula”, que nos permite caracterizar a escrita<br />
musical do seu copista:<br />
1) as claves de fá, à excepção da do primeiro sistema, terminam numa espécie<br />
de pequeno gancho;<br />
2) os sustenidos inclinam-se para a direita;<br />
3) no segundo sistema, onde entra a cantora, consta a indicação “voz”, em que o o<br />
e o z estão escritos com um único movimento da pena, sem a levantar do papel;<br />
4) a barra final é constituída por uma barra dupla, mais três barras, cada vez mais<br />
pequenas, terminando num floreado. 6<br />
Acontece que num outro manuscrito, de um Demofoonte, conservado a quase<br />
8 mil quilómetros do Rio de Janeiro, no Paço Ducal de Vila Viçosa (com a cota G prática<br />
51), encontramos uma grafia musical idêntica: claves de fá maioritariamente com um pequeno<br />
gancho, sustenidos inclinados para a direita, “voz” com o o e z escritos num único<br />
movimento da pena, e a barra final com os mesmos contornos. A cantora neste caso é<br />
indicada como “Sra. Joaquina”.<br />
Esse último facto é tão importante como a grafia do copista, pois quer a Sra.<br />
Paula, de Zara, quer a Sra. Joaquina de Demofoonte, constam da lista de cantores referidos<br />
por Meneses, nas suas Memórias, como sendo do tempo do vice-reinado de Luís de<br />
Vasconcelos e Sousa:<br />
entre os cantores daquelle tempo distinguia hum de | nome Pedro, vindo de<br />
Portugal, q. era ao m.mo tempo excellente | actor dramatico, e poeta, compositor<br />
de alguns entremeses jocosos: | eraõ seus companheiros M.el Rois Silva, Lobato,<br />
Ladisláo Benave- | nuto, comico bufo, Jose Ignacio se S.a Costa, e outros. [...]<br />
Entre as cantoras, distinguia-se Joaquina da Lapa, que pas- | sou a Europa [...]<br />
eraõ suas companheiras, | Luisa, Paula, e outras, todas brasileiras, bem como os<br />
cantores, a excepção de Pedro. (Budasz, 2008, p. 248)<br />
No manuscrito de Demofoonte, um pastiche, com texto apenas parcialmente<br />
de Metastasio, encontramos os nomes de Sra. Joaquina (Joaquina Lapinha), Sr. Manoelinho<br />
(Manuel Rodrigues da Silva), Sr. Pedro (Pedro António Pereira), Sra. Paula, Sra. Luísa, e<br />
uma Sra. Ignacia, não referida por Meneses. Não pode haver a mais pequena dúvida de<br />
que a proveniência desse material seja a Ópera Nova do Rio de Janeiro.<br />
Meneses informa-nos igualmente dos cantores que actuaram a partir de cerca<br />
de 1805,<br />
até q. chegando de Portugal Joaquina da Lapa, deo novo | impulso ao theatro.<br />
Alem della existiaõ as cantoras Fran.ca de Paula, | Maria Jacintha, Genoveva, Ig-<br />
...........................................................................<br />
6 As fotografias originais que Curt Lange tirou encontram-se no Acervo Curt Lange, na Biblioteca da UFMG, em<br />
Belo Horizonte. Perderam-se os manuscritos originais.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
158<br />
nes, e Maria Candida: entre os cantores, | M.el Rois Silva, Ladisláo, Luiz Ignacio,<br />
e Geraldo, musico eminente | q. ainda existe, e o celebre baixo profundo João<br />
dos Reis. (Budasz, 2008, p. 248)<br />
Esses nomes também se encontram em alguns dos manuscritos no Arquivo<br />
Musical no Paço Ducal em Vila Viçosa. A existência nesse Arquivo de fontes provenientes<br />
do Rio de Janeiro não constitui em si uma novidade. Já se sabia, por exemplo, das obras<br />
ocasionais de José Maurício Nunes Garcia, Ulissea e O Triunfo da América, para além do<br />
final do entremez Manoel Mendes, cujo texto literário é de António Xavier Ferreira de<br />
Azevedo. No entanto, investigações realizadas por nós ao longo de vários anos, baseadas<br />
numa análise criteriosa dos manuscritos, revela que várias dezenas de obras conservadas<br />
neste espólio têm a sua origem na Casa de Ópera do Rio de Janeiro ou, pelo menos, passaram<br />
por lá, vindas originalmente de teatros lisboetas, especialmente do Teatro do Salitre<br />
ou do Teatro de São Carlos, para além do Teatro Real de Salvaterra. As investigações em<br />
Vila Viçosa ainda estão longe de concluídas, mas os dados são suficientemente seguros<br />
para se poder propor acrescentar um número considerável de obras ao repertório músicoteatral<br />
conhecido da Ópera Nova. 7<br />
Em primeiro lugar, no entanto, convém fazer referência aos manuscritos conservadas<br />
em Vila Viçosa que correspondem às obras mencionadas por Meneses. No que<br />
diz respeito ao repertório do vice-reinado de Luís de Vasconcelos e Sousa, existem as partituras<br />
e algumas partes cavas das óperas italianas La pietà di amore (G prática 23 e 117.63)<br />
e de L’italiana in Londra (G prática 35, 90f, 91i e 117.9). O material pertencente às óperas<br />
portuguesas de António José da Silva, Guerras do alecrim e mangerona e Variedades de<br />
Proteu (respectivamente, G prática 7 e 6) também terá sido usado no Rio. Existem igualmente<br />
fragmentos da música para D. João de Alvarado, criado de si mesmo (G prática 86b<br />
e 117.23). Na edição impressa desta comédia, não existe qualquer indício do uso da música,<br />
mas, como já foi referido, Meneses lembra-nos que “as antigas comedias, eraõ intercalladas<br />
de árias, e duetos”, sendo a existência destes fragmentos testemunho dessa prática. Quanto<br />
ao período posterior, existe igualmente em Vila Viçosa material usado no Rio pertencente<br />
a Il barbiere di Siviglia de Paisello (partitura e partes cavas, G prática 27) e de Il disertor<br />
francese (apenas partes cavas, G prática 8 e 117.6), este último com a data de 1800. Encontra-se<br />
ainda neste Arquivo a partitura do Acto II de L’oro non compra amore (G prática<br />
39), sem nada, contudo, que indique o seu uso no Rio.<br />
Para além destas obras, encontramos material, sobretudo partes cavas e muitas<br />
vezes incompleto, de um leque bastante variado de obras músico-teatrais, não só óperas,<br />
comédias e tragédias, mas também entremezes e farças, 8 obras ocasionais e números<br />
soltos:<br />
1º Óperas italianas: La Zaira, de Bernardo José de Souza Queiroz (só as partes<br />
cavas, G prática 45, 91f e 117.17, pois a partitura encontra-se na Biblioteca da Ajuda,<br />
cota 48-II-36 e 37); Il fanatico in Berlina, La modista raggiratrice e La molinara<br />
o sia l’amor contrastato, de Paisiello (respectivamente, G prática 34 e<br />
117.77; 61 e 117.11; e 28, 62, 90a e 117.12); Argenide ossia il ritorno di Serse e<br />
As damas trocadas (tradução portuguesa de Le donne cambiate), de Marcos<br />
...........................................................................<br />
7 Fruto desta investigação é o “Elenco provisório” (Cranmer, 2009b), um inventário das cotas relevantes da<br />
secção G prática, que, em grande parte, substitui o catálogo confuso e incompleto do Cónego Alegria (Alegria,<br />
1988).<br />
8 A ortografia da época “farça” é usada para designar um género específico, em um acto, em voga em Portugal<br />
e no Brasil entre a década de 1790 e cerca de 1830. Distingue-se assim da farsa dos séculos XVI e XVII, de Gil<br />
Vicente, Francisco Manuel de Melo e outros, bem como do uso moderno da ortografia actual.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
159<br />
Portugal (respectivamente, G prática 44, 90b, 91a, b, c, 117.15; e 46, 89d, i,<br />
117.16,); Il seraglio d’Osmano (G prática 22 e 117.67), de Gazzaniga; e L’isola<br />
d’Alcina, de autor desconhecido (G prática 68).<br />
2º Adaptações populares de Metastasio: Demetrio, de David Perez, em tradução<br />
portuguesa com três cenas cómicas acrescentadas (G prática 85), e versões anónimas<br />
de L’olimpiade (G prática 117.13) e Dido [desamparada] (G prática 88c e<br />
117.5), para além do Demofoonte já referido.<br />
3º Conjuntos de árias, duetos, coros etc. para inserção em comédias e tragédias<br />
portuguesas: O capitão Belisário (G prática 117.20), A mulher amorosa (G prática<br />
117.30), A esposa persiana (G prática 117.25), O convidado de pedra (G prática<br />
117.21), Olinta (G prática 117.31), todas sem atribuição, e Eurene [perseguida e<br />
triunfante], cujos números têm atribuições a Traetta, Perez, Guglielmi e Piccinni<br />
(G prática 117.51).<br />
4º Entremezes e farças: O gato por lebre, com música de António José do Rego<br />
(G prática 12 e 117.27), A dama astuciosa, de José Palomino (G prática 83 e<br />
117.22), O disfarce venturoso, uma versão de Quem busca lã fica tosquiado, de<br />
Marcos Portugal (G prática 47, 86j, 89c, 89s e 117.49), A marujada, de Bernardo<br />
Queiroz (G prática 86h, 86i, 86l e 117.29), e O papalvo logrado, de autor desconhecido<br />
(G prática 91g e 117.32).<br />
5º Obras ocasionais: para além das obras de José Maurício (Ulissea, G prática<br />
13, e O Triunfo da América, G prática 15.1, 15.2, 86g e 117.35), O elogio da Senhora<br />
Rainha, de Marcos Portugal (G prática 42, 84e e 117.73) e três elogios de<br />
Fortunato Mazziotti (de 1811, G prática 43; de 1812, G prática 20 e 117.50; sem<br />
data, G prática 21.1).<br />
6º Números soltos: várias árias anónimas em italiano ou em português, incluindo<br />
as chamadas “ária da perna” (G prática 117.18) e a “ária do papagaio” (117.66),<br />
modinhas e lunduns com acompanhamento orquestral, e um coro marcial de<br />
Fortunato Mazziotti intitulado “A Defesa de Saragoça”, para uso no drama Palafox<br />
em Saragoça, ou, a batalha de 10 de Agosto do anno de 1808 (G prática 84a),<br />
outra peça do dramaturgo António Xavier Ferreira de Azevedo.<br />
A procura de repertório não termina, contudo, em Vila Viçosa. Uma parte cava<br />
solta existente neste arquivo, sem qualquer identificação mas para uma personagem Constância<br />
(G prática 117.47), durante vários anos deixou-nos com um ponto de interrogação,<br />
até um dia ao examinar manuscritos no espólio do falecido maestro Filipe de Sousa, legada<br />
à Fundação Jorge Álvares, encontrámos partes cavas pertencentes à comédia A ciganinha.<br />
Como descobrimos, esta comédia, bem popular nas últimas décadas do século XVIII no<br />
Brasil, mas desconhecida em Portugal, possui uma personagem Constância. As partes estavam<br />
todas presentes excepto a dela, pois é essa que está em Vila Viçosa. Também existem<br />
no referido espólio as partes cavas de Coriolano em Roma, com indícios incontornáveis<br />
do seu uso na Casa de Ópera do Rio de Janeiro.<br />
Como é evidente, não é suficiente meramente descobrir a existência de fontes,<br />
por muito que seja o ponto de partida sine qua non para qualquer investigação. Sendo<br />
assim, gostaria de levantar diversas questões, dando uma resposta em alguns casos, mesmo<br />
que parcial e provisória, ou noutros propondo eventuais métodos de as resolver.<br />
Em primeiro lugar, a questão de cronologia. Com raras excepções, estes manuscritos<br />
não possuem datas. Em alguns casos, referências a cantores específicos ajudam.<br />
Ao que parece, Joaquina Lapinha, por exemplo, é referida como “Joaquina” antes da sua<br />
partida para a Europa e “Lapinha” depois do seu regresso. Um estudo rigoroso dos papéis,<br />
através das marcas de água e a grafia dos copistas ajudará também. De facto, é possível<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
160<br />
identificar um conjunto de copistas activos durante o vice-reinado de Luís de Vasconcelos,<br />
responsáveis sobretudo pelas cópias das comédias e da tragédia Eurene. Outro grupo<br />
está claramente associado a compositores activos no Rio na primeira e segunda décadas<br />
do século XIX. A década de 1790 é mais difícil. Em todo o caso, a reutilização de manuscritos<br />
e a inserção de materiais mais recentes no meio de outros já usados, dificulta bastante o<br />
estabelecimento de uma cronologia coerente. O material de Demofoonte, por exemplo,<br />
fornece evidência de ter sido usado duas vezes de formas diferentes, afectando os<br />
intérpretes envolvidos. O de Guerras do alecrim e manjerona foi usado provavelmente<br />
três vezes, durante um período de 10 ou mais anos entre cerca de 1780 e cerca de 1790,<br />
evidenciando uma clara evolução performativa a favor de uma duração bastante mais reduzida.<br />
Se é possível afirmar a proveniência de alguns dos manuscritos do século XIX,<br />
especialmente os com música composta no Rio, outros, sobretudo os anteriores, são bastante<br />
mais difíceis. Em todo o caso, alguns têm proveniências mistas. A partitura da farça<br />
O gato por lebre, por exemplo, é autógrafa e tem a indicação explícita de ter sido composta<br />
por Rego para o Teatro do Salitre, em Lisboa, em 1804. As partes cavas, no entanto, incluem<br />
a grafia de pelo menos um copista carioca. A partitura de Argenide, de Marcos Portugal,<br />
está sobretudo na mão de copistas lisboetas conhecidos do Teatro de São Carlos, em Lisboa,<br />
mas há determinadas secções introduzidas com a grafia mais uma vez de um copista<br />
carioca. Uma das dificuldades prende-se com a não sobrevivência de manuscritos claramente<br />
atribuíveis a copistas activos no Teatro do Bairro Alto, Teatro do Salitre e Teatro<br />
da Rua dos Condes, com que se pudesse fazer a comparação, esclarecendo o que terá vindo<br />
de Portugal e o que foi copiado localmente no Rio.<br />
Há toda a questão da autoria da música inserida nas comédias e tragédias. Toda<br />
a evidência encontrada até agora aponta para uma tradição de pastiche e contrafacção.<br />
Por exemplo, uma das árias acrescentadas em Guerras do Alecrim e Mangerona, tem um<br />
atribuição a Pietro Guglielmi. De facto, esta ária é um contrafactum, de outra, na sua<br />
ópera Alceste. 9 A ária “Que farei sem o consorte?” em A mulher amorosa, é nada mais<br />
nem menos do que “Que farò senza Euridice?”, do Orfeo, de Gluck, com um novo texto<br />
em português. Já referi que Eurene possui música de pelo menos quatro compositores.<br />
Outra questão que é preciso estabelecer é onde se insere eventualmente a música<br />
encontrada para obras cujos textos impressos não indicam o uso de qualquer música. Um<br />
exemplo que já nos foi possível verificar é A mulher amorosa. Neste caso, à excepção de<br />
uma das “cantorias” (como os números musicais são designados), é fácil descobrir, através<br />
de uma leitura cuidadosa do contexto dramático e literário, onde os números musicais se<br />
inserem. Em um caso – um recitativo acompanhado – o próprio texto encontra-se, de<br />
facto, na edição impressa.<br />
Uma problemática parecida é levantada em casos em que os textos das canções<br />
na edição impressa nada têm a ver com a música que possuímos. A edição impressa de O<br />
gato por lebre, por exemplo, possui o texto de apenas uma canção, que Rego não musicou,<br />
e nenhuma das cantorias compostas por este se encaixa neste momento na peça. No entanto,<br />
não é difícil encontrar lugares apropriados para os números escritos por Rego.<br />
Meneses faz referência a outra questão ainda: a da língua em que se cantava.<br />
Segundo este, na primeira fase, durante o vice-reinado de Luiz de Vasconcelos, as óperas<br />
italianas eram traduzidas por Antonio Nascentes Pinto para português, enquanto no período<br />
após o regresso da Lapinha já se cantava em italiano (Budasz 2008, p. 248-249). Em<br />
vários dos manuscritos em Vila Viçosa encontramos uma mistura das duas línguas. Não<br />
só existem cantorias com o texto italiano riscado e o português inserido, mas também<br />
...........................................................................<br />
9 A ária “Não me chamais tirana” é um contrafactum da ária “Non mi rendete infido” de Alceste.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
161<br />
manuscritos em que algumas das árias estão em italiano e outras em português. Por enquanto<br />
não podemos definir uma data aproximada sequer a partir de quando se começou<br />
a cantar em italiano. Também não devemos excluir à partida a hipótese de ter havido por<br />
vezes uma mistura, tendo alguns cantores a preferência para o italiano e outros para o<br />
português. Apenas uma análise cuidadosa dos manuscritos esclarecerá esta dúvida.<br />
Por último, gostaria de levantar questões acerca das edições modernas que<br />
podemos querer elaborar com base nestas matérias, pois aqui há outras questões ainda<br />
que entram em jogo. O primeiro é que, em muitos casos, o material que sobreviveu é<br />
bastante fragmentário. De Dido [desamparada], por exemplo, só temos as partes das<br />
trompas e o baixo. De Eurene perseguida e triunfante foi conservada apenas a parte de 2º<br />
violino. E mesmo quando existe a partitura ou as partes cavas todas (ou suficientes para<br />
permitir a reconstituição do resto), no caso de comédias, tragédias, entremezes e farças,<br />
precisamos também do texto da peça em que a música se insere, se queremos encenar<br />
estas obras – e seria triste executá-las apenas em versão de concerto. Já fiz referência a<br />
algumas obras para as quais possuímos uma edição impressa. Noutros casos temos de<br />
procurar os textos em manuscrito, uma tarefa bastante mais difícil, não só por serem<br />
mais raros, mas porque os títulos usados nas partituras e partes cavas nem sempre<br />
correspondem ao do texto literário.<br />
No entanto, vale a pena procurar. Por título de exemplo, existe em Vila Viçosa<br />
música atribuída a Marcos Portugal referente a um entremez intitulado O disfarce<br />
venturoso. Acontece que se encontra em Coimbra um manuscrito do texto do entremez<br />
Quem busca lã fica tosquiado, 10 obra que Marcos Portugal inclui na sua relação autógrafa<br />
como sendo a versão portuguesa da sua farsa italiana L’equivoco in equivoco. Os textos<br />
de quatro das suas cinco cantorias são iguais aos de O disfarce venturoso. Esta descoberta<br />
viabiliza a sua encenação.<br />
Outra questão em relação às edições prende-se com os nossos objectivos em as<br />
realizar, e daí quais os critérios que devemos usar. Para tomar dois casos concretos, numa<br />
edição de Guerras do alecrim e mangerona, devemos manter os números que não<br />
pertencem à versão original (incluindo, por exemplo, a ária de Guglielmi)? Ou devemos<br />
omitir tudo o que não seja plausivelmente de António Teixeira, a quem a música é<br />
atribuída? E, na versão portuguesa do Demetrio de David Perez, devemos excluir as cenas<br />
adicionais cómicas, por uma questão de respeito pelo libretista e pelo compositor, para<br />
além da questão de coerência estilística, ou seguir o objectivo que levou alguém na época<br />
a fazer a versão portuguesa, respeitando antes o gosto dos portugueses daquele tempo,<br />
que exigia absolutamente a inclusão das cenas cómicas?<br />
Nesta tarefa levantei bastantes questões. Foi possível responder, pelo menos<br />
parcialmente, a algumas. Quanto às restantes, constituem um desafio para o futuro.<br />
Referências bibliográficas<br />
Alegria, José Augusto. Biblioteca do Palácio Real de Vila Viçosa: Catálogo dos Fundos<br />
Musicais. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989.<br />
Budasz, Rogério. Teatro e Música na América Portuguesa: convenções, repertório, raça,<br />
gênero e poder. Curitiba: Deartes-UFPR, 2008.<br />
Cranmer, David. Edições setecentistas do Theatro Comico Portuguez, das Operas<br />
...........................................................................<br />
10 Na Sala Dr. Jorge de Faria, na Faculdade de Letras. Possui a cota: JF 5-9-41.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
162<br />
Portuguezas e das edições avulsas das obras que os constituem. 2009a. Disponível em<br />
.<br />
Cranmer, David. Elenco provisório de espécies de música dramática e instrumental<br />
manuscrita até 1833 existentes no Paço Ducal de Vila Viçosa. 2009b. Disponível em<br />
.<br />
Kühl, Paulo Mugayar. Cronologia da ópera no Brasil: século XIX. 2003. Disponível em<br />
.<br />
Lange, Francisco Curt. “La opera y las casas de opera en el Brasil colonial; Nuevos<br />
aportes sobre la opera en Vila Rica”. In: Boletín Interamericano de Música, n. 44, nov.,<br />
1964, p. 3-11.<br />
Moreira de Azevedo, Manuel Duarte. O Rio de Janeiro: sua história, monumentos,<br />
homens notáveis, usos e curiosidades. 3ª ed., 2 v. Rio de Janeiro: Livraria Brasiliana<br />
Editora, 1969.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
ÓPERA EM TRANSIÇÃO
165<br />
A República e as mudanças<br />
na cultura musical e músico-teatral<br />
Mário Vieira de Carvalho<br />
Universidade Nova de Lisboa<br />
Tão forte como o impulso destrutivo é, na autêntica historiografia, o impulso da salvação. Mas de<br />
que pode ser salvo algo transcorrido? Não tanto da má reputação e do desprezo em que caiu, mas<br />
mais de um certo modo da sua tradição. O modo como é apreciado como “herança” é mais funesto<br />
do que poderia sê-lo […] o seu desaparecimento.<br />
(Walter Benjamin, “Sobre o conceito de história”. In: Edição Crítica da Obra e do Espólio, 2010, p. 128)*<br />
Procurando dar neste texto sobretudo uma perspectiva de síntese sobre as mudanças<br />
operadas na cultura musical e músico-teatral pela República, há duas ideias fundamentais<br />
a reter: a primeira é a de que essas mudanças ocorrem ao longo de um processo<br />
em que a data de 1910 constitui um indicador importante, mas não verdadeiramente<br />
uma fronteira histórica a separar o anterior do novo regime; a segunda é a de que a necessidade<br />
e a concretização das mudanças, na música e na cultura em geral, tal como<br />
noutras dimensões da vida social, é articulada no quadro de uma rede de relações de natureza<br />
sistémica, que exclui um nexo linear de causa e efeito.<br />
Acrescem, como advertências ao leitor: não se abordará aqui a imensa variedade<br />
da experiência musical: apenas se tomarão em conta alguns aspectos, incidindo muito<br />
especialmente em Lisboa e no Teatro de São Carlos; mais do que apresentar novos factos,<br />
pretende-se reflectir criticamente sobre dados já conhecidos e deixar apontadas pistas<br />
para investigação ulterior.<br />
“Nada temos adiantado desde o século XVIII”<br />
O republicanismo ou o movimento republicano desempenha um papel central,<br />
também na área cultural, desde cerca de 1880 – marcando uma forte presença, por exemplo,<br />
nas comemorações camonianas –, mas o que importa salientar é a polarização política<br />
e ideológica que se gera em torno dele, a energia com que assume a crítica e a necessidade<br />
de uma alternativa ao status quo, transformando-a numa questão de regime, e levandoa<br />
enquanto tal até ao fim, ainda que para alguns quadrantes igualmente críticos e descontentes<br />
tal questão não se colocasse. Por outras palavras: a República é a resposta que<br />
as circunstâncias históricas concretas do País acabam por impor para um diagnóstico em<br />
que convergem perspectivas políticas e ideológicas muito diferenciadas.<br />
“O povo está cansado de ver que nada temos adiantado desde o século XVIII”.<br />
Esta afirmação de Eça de Queirós publicada no Distrito de Évora, de 28 de abril de 1867, é<br />
um bom exemplo desse diagnóstico. 1 Podia ter encabeçado o manifesto inaugural do Par-<br />
...........................................................................<br />
* “So stark wie der destruktive Impuls, so stark ist in der echten Geschichtsschreibung der Impuls der Rettung.<br />
Wovor kann aber etwas Gewesenes gerettet werden? Nicht sowohl vor dem Verruf und der Mißachtung, in die<br />
es geraten ist als vor einer bestimmten Art seiner Überlieferung. Die Art, in der es als “Erbe” gewürdigt wird, ist<br />
unheilvoller als seine Verschollenheit es […] sein könnte.” Cf. Walter Benjamin, Über den Begriff der Geschichte,<br />
ed. Gérard Raulet (Werke und Nachlaß – Kritische Gesamtausgabe, vol. 19), Frankfurt a. M., Suhrkamp, 2010.<br />
1 Cf. J. M. Eça de Queirós, Da colaboração no “Distrito de Évora” (ed. Helena Cidade Moura), 3 vols., Lisboa,<br />
Livros do Brasil, s. d., vol. II, p. 171. Cit. in Mário Vieira de Carvalho, Eça de Queirós e Offenbach: A ácida<br />
gargalhada de Mefistófeles, Lisboa, Colibri, 1999, p. 11-27.<br />
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tido Republicano. Mas, menos importante do que a questão de saber se Eça de Queirós<br />
foi alguma vez republicano é o diagnóstico em si. Não era preciso ser-se republicano para<br />
afirmar que “o povo está cansado de ver que nada temos adiantado desde o século XVIII”.<br />
Foram, porém, os republicanos quem incorporaram, ampliaram e transformaram em acção<br />
prática o processo de mudança, traduzindo-o em mudança de regime.<br />
Como já referi noutra ocasião, nessa frase de Eça de Queirós contêm-se as noções<br />
de peuple de Michelet (1847), de história como processo e como progresso (como a entendiam<br />
Voltaire, Hegel, Marx ou Antero), do século XVIII como época de revolução ou de<br />
rotura em que o terceiro estado (o povo) assume o protagonismo. Eça de Queirós falanos,<br />
assim, de Portugal em 1867 — do Portugal pós-vintista, pós-setembrista e pós-cabralista<br />
— como de um país que ainda não tivesse feito a sua revolução burguesa. Apresentanos<br />
o constitucionalismo e a Regeneração com os traços do “antigo regime”: Nada se<br />
adiantara desde o século XVIII! 2<br />
No seu diagnóstico, Eça de Queirós tem em mente termos de comparação europeus,<br />
a que acede, não por experiência directa, pois ainda nunca saíra do país, mas pela<br />
informação que lhe chega em livros e revistas ou através de outras fontes indirectas (testemunhos<br />
pessoais de amigos etc.). Também a música e a ópera ocupam aí uma área<br />
relevante – uma área a respeito da qual Eça de Queirós deixa igualmente entrever que,<br />
em Portugal, “nada se adiantara desde o século XVIII”. São notórios, por exemplo, os lugares<br />
paralelos entre alguns trechos das crónicas do Distrito de Évora e os textos de Paul Scudo<br />
na Revue des Deux Mondes, que aproximam Eça de Queirós da “actualidade” da cultura<br />
músico-teatral europeia tanto quanto mostram o seu defasamento do “cânone” então<br />
dominante em Portugal. A assimilação, provavelmente através de Antero, do conceito de<br />
“música como linguagem do inexprimível” do romantismo alemão constitui outro exemplo<br />
desse defasamento. 3<br />
“A nossa época é que devia produzir a música”, diz Eça de Queirós, na Gazeta de<br />
Portugal (outubro de 1866). 4 Em Portugal, porém, escreverá depois no Distrito de Évora,<br />
não vê “nem arquitectura, nem música”, assim como também não vê ideias. É no contexto<br />
dessa crítica que ganham particular relevância as suas referências a Mozart. Consciente<br />
ou inconscientemente, elas assinalam a singularidade das suas preferências musicais em<br />
contraste radical com o seu meio. Pois que, ao contrário de Londres, Paris, das principais<br />
cidades germânicas e mesmo italianas, as óperas de Mozart não eram representadas em<br />
Lisboa, não tinham marcado até então o quotidiano cultural português.<br />
Na “Sinfonia de Abertura” fala do D. Juan de Mozart como se fosse a quintessência<br />
da música: “o indefinido daquela alma revelado pela arte, eis aí a música”. 5 Mas como<br />
podia Eça de Queirós sabê-lo de experiência vivida, se nessa altura nunca podia ter assistido<br />
à representação cénica de Don Giovanni num teatro? Decerto, podia ter ouvido trechos<br />
executados ao piano e comentados (eventualmente pelo seu amigo Augusto Machado,<br />
“o Cruges”). Isso não é, porém, comparável a uma forte presença da obra na esfera pública,<br />
através de uma tradição de representações e de adaptações teatrais, ou seja, duma apropriação<br />
efectiva e alargada. O D. Juan de Mozart era um ícone da Europa romântica, uma<br />
referência incontornável do imaginário de escritores, artistas e público culto da época.<br />
Em Paris, a recepção era muito intensa desde 1805, inclusive em versões em língua fran-<br />
...........................................................................<br />
2 Cf. Vieira de Carvalho, loc. cit.<br />
3 Cf. ibidem.<br />
4 Cf. Edição Crítica das Obras de Eça de Queirós, Textos de Imprensa I (da Gazeta de Portugal), ed. Carlos Reis e<br />
Ana Teresa Peixinho, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2004, p. 66-68.<br />
5 Cf. Edição Crítica…, Textos de Imprensa I, p. 72.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
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cesa. Em Londres, tornara-se familiar ao público desde 1817, em versões quer italianas,<br />
quer inglesas. Nos países germânicos estava constantemente no cartaz, e a frequência<br />
das produções em língua alemã pode medir-se pelo número de traduções – mais de 60 ao<br />
longo do século XIX, reflectindo mudanças dos contextos ideológicos da recepção.<br />
Também em Itália a obra fazia a sua carreira no século XIX. Se as companhias italianas<br />
contratadas para Lisboa não as incluíam no seu repertório, a única explicação plausível<br />
é a relutância do público português. De 1838 a 1840, na sequência da Revolução de<br />
Setembro, assistiu-se a um esforço de renovação do repertório e da praxis de representação,<br />
que tomava por modelo o Grand Opéra de Paris, designadamente quanto à<br />
coerência do todo e ao aperfeiçoamento do palco ilusionista. O empresário que se encontrava<br />
à frente do São Carlos, o Conde de Farrobo, oriundo da grande burguesia comercial<br />
e cosmopolita, figura “esclarecida” e influente do constitucionalismo, empenha-se nessa<br />
reforma. Deve-se-lhe também, por essa altura (1839), a estreia do Don Giovanni de Mozart<br />
no São Carlos e em Portugal. Por detrás disso, há, sem dúvida, um propósito “educativo”,<br />
dir-se-ia mesmo “iluminista” – no espírito do Setembrismo – como resulta claramente do<br />
extenso artigo publicado no Diário do Governo (5 de janeiro de 1839) a preparar o público<br />
antes da estreia. 6 O artigo, que podia ter sido escrito por alguém com o conhecimento de<br />
causa de João Domingos Bomtempo ou – quem sabe? – do próprio Farrobo, distinto<br />
músico-amador, intérprete e encenador de ópera no seu Teatro privado das Laranjeiras,<br />
exaltava os méritos da ópera de Mozart (dando especial relevo à música) e o significado<br />
da sua estreia em Portugal. Tudo, porém, em vão: o embate com a incompreensão ou<br />
indiferença do público não permitiu que a obra subisse à cena mais de quatro ou cinco<br />
vezes. À data em que Eça de Queirós escrevia – e já haviam passado quase três décadas –<br />
a obra não voltara a ser representada em Lisboa.<br />
Mais significativo ainda é o que se passa com outra das principais óperas de Mozart:<br />
As Bodas de Fígaro. No Distrito de Évora, em 13 janeiro de 1867, Eça de Queirós<br />
compara-as ao Otello de Rossini, uma obra familiar ao público do São Carlos, e observa<br />
que, em Mozart, “a música completa a obra teatral, explica a oculta poesia daquelas almas,”<br />
enquanto Rossini nada teria acrescentado a Shakespeare.<br />
Tal como Don Giovanni, também a ópera Le Nozze di Figaro corria os teatros europeus<br />
desde a viragem do século. Ao tempo em que Eça de Queirós escrevia, mantinhase<br />
provavelmente ainda no cartaz do Théâtre Lyrique, em Paris, onde se transformara<br />
num êxito popular desde 1858, na nova versão francesa de Barbier e Carré. Símbolo indissociável<br />
da revolução burguesa do século XVIII era uma presença constante no repertório,<br />
deixando bem para trás a peça de Beaumarchais que lhe dera origem. Adaptada<br />
e representada em numerosas línguas, constituía outra das grandes referências da cultura<br />
europeia do século XIX.<br />
Em Portugal, porém, nunca seria levada à cena em vida de Eça de Queirós. Se o<br />
Don Giovanni ainda foi representado algumas vezes em duas ou três temporadas do São<br />
Carlos, a partir de 1869 e até final do século, as Bodas só viriam a ser estreadas em Lisboa<br />
após a Segunda Guerra Mundial, em 1945 (em condições, de resto, extremamente precárias).<br />
Por estranha e irónica coincidência, a sua estreia no São Carlos ocorre somente<br />
no ano do centenário do nascimento de Eça de Queirós, que “adorava Mozart em segredo”. 7<br />
Da Flauta Mágica não fala Eça de Queirós nas suas crónicas. Também aqui é<br />
flagrante o contraste entre Lisboa e a recepção europeia da obra. Já para não falar nos<br />
países germânicos, onde atraía público em massa desde finais do século XVIII, são<br />
...........................................................................<br />
6 Cf. Mário Vieira de Carvalho, ‘Pensar é Morrer’ ou O Teatro de São Carlos na mudança de sistemas socio-comunicativos,<br />
Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1993, p. 109-111.<br />
7 Citado in Mário Vieira de Carvalho, Eça de Queirós e Offenbach…, p. 19.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
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incontáveis as adaptações em diferentes línguas – por exemplo, em Paris, desde 1801, no<br />
Odéon, com o título Les Mystères d’Isis (um pastiche de Ludwig Wenzel Lachnith que<br />
também incluía trechos do Don Giovanni e das Nozze di Figaro), e desde 1865, no Théâtre<br />
Lyrique, numa versão francesa de Charles Nuitter e Alexandre Beaumont mais conforme<br />
ao libreto original. Contudo, embora tivesse circulado igualmente em versões italianas,<br />
certo é que as companhias contratadas ao longo do século XIX pelos empresários do São<br />
Carlos nunca a levaram à cena neste teatro. Só em 1953 seria aqui estreada por uma companhia<br />
alemã que também trouxe pela primeira vez a Portugal O Rapto no Serralho (Die<br />
Entführung aus dem Serail).<br />
Por sua vez, Cosi fan tutte teve a sua primeira representação em Portugal no<br />
Teatro de São João no Porto em 1816 (única no século XIX), mas só foi estreada no Teatro<br />
de São Carlos em 1958. Finalmente, La Clemenza di Tito foi estreada no Teatro de São<br />
Carlos em 1806 – mais num contexto de revivalismo do modelo virtuosístico da opera<br />
seria e de libretos metastasianos do que por via da “descoberta” do teatro de Mozart, no<br />
que este tinha de mais representativo e característico. 8 Também não voltou à cena senão<br />
no século XX, muito depois da Segunda Guerra Mundial.<br />
Sobretudo quando relacionada com testemunhos que nos deixou da sua<br />
experiência vivida de espectador de ópera, a singularidade da recepção do Don Giovanni<br />
e das Bodas de Fígaro de Mozart em Eça de Queirós, num meio que as desconhece ou se<br />
mantém indiferente a elas, é um sintoma importante da posição de crítico da cultura em<br />
que o escritor se coloca quando afirma que “em Portugal nada temos adiantado desde o<br />
século XVIII”. No meu estudo já acima referido, 9 julgo ter posto suficientemente em<br />
evidência, a propósito do que Eça de Queirós escreve sobre o Fausto de Gounod, no São<br />
Carlos (estreia em 1865), o que o distingue das estratégias de comunicação dominantes<br />
em Lisboa. Eça de Queirós ocupa-se do drama e – na sua apreciação – canto, orquestra,<br />
representação e cena são vistos como um todo que é por aquele inteiramente absorvido.<br />
A música, para ele, está nas personagens, e não fora delas: é, a bem dizer, “esquecida” na<br />
experiência do todo, e quando lhe reserva algumas linhas é ainda para acentuar o que há<br />
nela de gesto dramático. Como já referi, a este respeito, a própria produção do Fausto,<br />
pela coesão das componentes cénico-musicais, era uma excepção relativamente à prática<br />
habitual do S. Carlos, e isso pode ter favorecido os traços específicos da recepção de Eça<br />
de Queirós. Em todo o caso, o confronto com outros cronistas da época evidencia também<br />
aqui o que separa Eça de Queirós desses testemunhos, muito mais preocupados com as<br />
qualidades vocais dos cantores e com a música em si, do que com a ideia de drama como<br />
um todo.<br />
A respeito do Fausto, dizia um dos jornais que, desde havia 25 anos, nunca se<br />
atingira no Teatro de São Carlos um tal grau de coerência do todo, inclusive na mise-enscène.<br />
Ou seja: o jornal remete precisamente para a época da direcção do Conde de Farrobo.<br />
Ligando os dois aspectos – o interesse por Mozart e a recepção da ópera como<br />
um todo – conclui-se que a ausência de Mozart no Portugal romântico não pode ser reduzida<br />
a uma mera e mais ou menos fortuita questão de “gosto”. Trata-se antes de uma<br />
questão estrutural – inerente ao sistema sócio-comunicativo então dominante no Teatro<br />
de São Carlos e aos mecanismos de autorregulação através dos quais este se mantinha<br />
estável, impondo-se a toda e qualquer tentativa de inovação ou mudança. É que as óperas<br />
de Mozart exigiam uma atenção concentrada no desenrolar do todo, do drama, enquanto<br />
a grande tradição da ópera italiana, de Rossini a Verdi, passando por Bellini ou Donizetti,<br />
...........................................................................<br />
8 Continuo a manter esta minha opinião – cf. Vieira de Carvalho, O Teatro de São Carlos…, p. 62.<br />
9 M. Vieira de Carvalho, Eça de Queirós e Offenbach…, p. 11-27.<br />
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ou mesmo da ópera francesa (aliás, cantada em italiano) de Meyerbeer ou Auber – independentemente<br />
do génio dramático e das não menores exigências de coesão teatral por que<br />
se batiam os seus autores – se prestava mais facilmente ao isolamento dos “números”, a<br />
uma recepção fragmentária. Por outro lado, face ao paradigma de brilho ou bravura vocais<br />
a que essa tradição habituara os espectadores do São Carlos, dificilmente as óperas de<br />
Mozart podiam suscitar interesse enquanto sequências de “números”, onde, de quando<br />
em quando, se “medisse” o virtuosismo da prima donna: “Ali é que se via a força das<br />
cantoras!” – como dizia o conselheiro Acácio.<br />
Não é por acaso que Eça de Queirós fala de compositores “pensadores” – os excluídos<br />
do repertório do São Carlos – contrapondo-os aos da tradição italiana dominante:<br />
Meyerbeer, Gluck, Mozart, Beethoven, são verdadeiros pensadores. Mas S. Carlos<br />
canta-os? De modo nenhum, a não ser de dois em dois anos Meyerbeer a fugir<br />
e a fingir. De resto, Donizetti e Bellini, todos os sensualistas! Ora aqueles respeitamo-los<br />
como ideias que cantam – estes detestamo-los como erotismos que<br />
arrulham. 10<br />
Sob a aparência de uma oposição entre estilos ou escolas nacionais, o que está<br />
aqui realmente em causa é a crítica de um modelo de comunicação que excluía as ideias,<br />
o drama, e, consequentemente, qualquer investimento intelectual por parte do público.<br />
A excepção do Fausto, reflectida na própria recensão crítica de Eça de Queirós,<br />
confirma a regra de uma prática de representação onde a cena não condizia com o drama<br />
representado; os cenários, ainda que pintados por Rambois e Cinnati ou, mais tarde, por<br />
Manini, não condiziam com os figurinos e os adereços; onde, enfim, o palco era um mero<br />
pódio para os cantores fazerem valer as suas faculdades e destrezas vocais ou, ao menos,<br />
o seu potencial de sedução pessoal. Nos anos 70 e nos 80 do século XIX continuam a<br />
abundar os testemunhos da falta de consistência dos elementos cénicos, que colocava o<br />
São Carlos abaixo do padrão de exigência de outros teatros da capital:<br />
Fora algumas belas telas de Rambois e Cinnati, cada vez mais raras, que miseen-scène!<br />
Tome-se para exemplo o D. Carlos: fatos remendados torpemente,<br />
bastidores roídos da traça, uma velha mesa carunchosa onde o tirano se apoia…<br />
Os coristas agrupados a um canto, na escassez do seu número, elas com os braços<br />
nus mal lavados, eles com as botas enlameadas […] 11<br />
Voltando ao Don Giovanni, na crónica publicada no Diário de Governo de 5 de<br />
janeiro de 1839 tornava-se, porém, bem explícito o equívoco até mesmo daqueles que<br />
queriam promover a obra. Após considerações relativas à moralidade do protagonista<br />
concluía-se:<br />
[M]as todos sabem que não é ao drama que se vai dar attenção no Theatro<br />
Italiano; é só à parte harmonica, e nesta parte D. Giovanne [sic], merece mais<br />
que nenhuma outra Opera. 12<br />
...........................................................................<br />
10 Cf. J. M. Eça de Queirós, Uma Campanha Alegre (ed. Helena Cidade Moura), Lisboa, Livros do Brasil, s. d., p. 230.<br />
11 Cf. Eça de Queirós, Uma Campanha Alegre…, p. 230. Cf. ainda testemunho de Carl Busch citado em Vieira de<br />
Carvalho, O Teatro de São Carlos…, p. 89 e, M. Vieira de Carvalho, “Imagens da alteridade na recepção de Il Guarany<br />
de Carlos Gomes por ocasião da sua estreia em Lisboa em 1880”, in Portugal e o Brasil no advento do Mundo<br />
Moderno – Sextas Jornadas de História Ibero-Americana (ed. Maria do Rosário Pimentel), Lisboa, Edições<br />
Colibri, 2001, p. 315-346 (republicado in M. Vieira de Carvalho, ‘Por lo impossible andamos’ - A ópera como teatro<br />
de Gil Vicente a Stockhausen, Porto, Âmbar, 2005, p. 109-139).<br />
12 Cit. in M. Vieira de Carvalho, O Teatro de São Carlos…, p. 111.<br />
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Assim continuava a ser à data em que Eça de Queirós escrevia as suas crónicas<br />
para a Gazeta de Portugal e o Distrito de Évora ou, mais tarde, As Farpas. Tanto mais contrastante<br />
é, pois, no contexto português, a sua posição. E tanto mais flagrante o divórcio<br />
entre a concepção iluminista da ópera, desenvolvida desde meados do século XVIII em<br />
vários países europeus, e a tradição que se mantinha em Portugal em pleno século XIX –<br />
a ideologia da redução da ópera a “música de ópera”, sem considerar o teatro, o drama.<br />
Ideologia no sentido próprio do termo: aceitar como evidência do senso comum algo que<br />
já fora problematizado havia um século em França, na Inglaterra ou nos países germânicos,<br />
em resultado da emergência da esfera pública burguesa. Em Portugal, mesmo um membro<br />
da elite mais cosmopolita e informada, como aquele que redigiu o artigo laudatório do<br />
Don Giovanni e do seu autor, Mozart, escrevia como se desconhecesse a teoria e a praxis<br />
operísticas desses países, ou considerasse uma fatalidade ser o “Teatro Italiano” a negação<br />
do teatro.<br />
Em Portugal, as estratégias de comunicação na ópera continuavam a ser dominadas<br />
pela estrutura coloquial herdada do antigo regime, a qual não dava tréguas, nem a<br />
Mozart, nem à concepção da ópera como drama.<br />
O modelo de comunicação coloquial<br />
Um debate em torno da ópera ou do teatro lírico como o que foi iniciado em<br />
França em 1752 e deu origem à chamada querelle des bouffons nunca podia ter ocorrido<br />
em Portugal. Centenas de artigos em periódicos, opúsculos e panfletos publicados sobre<br />
o assunto no espaço de três ou quatro anos pressupunham condições estruturais que não<br />
existiam em Portugal. Aqui dominava a esfera pública representativa, marcada por um<br />
estreito controlo das publicações – a necessidade de um imprimatur régio –, e os periódicos<br />
existentes limitavam-se a breves notícias sobre eventos do quotidiano nacional e internacional,<br />
mormente de carácter político, comercial ou militar. A esfera pública burguesa<br />
encontrava-se, entre nós, num estádio ainda demasiado incipiente, que decorria da própria<br />
debilidade do desenvolvimento do capitalismo, da falta de uma burguesia autoconsciente<br />
do seu papel social e bem implantada no terreno. 13<br />
Enquanto a imprensa florescera desde a viragem para o século XVIII em França,<br />
na Alemanha ou em Inglaterra (país em que a censura à imprensa foi abolida em 1695) e<br />
se transformara num espaço de debate das mais variadas temáticas – também as artísticas<br />
– em Portugal persistia a inexistência de uma verdadeira opinião pública. Nem mesmo os<br />
temas considerados próprios de uma conversation amusante, tais como música ou ópera,<br />
ganhavam espaço na esfera pública como alternativa tolerada às questões políticas ou de<br />
Estado. 14<br />
Economia de mercado e esfera pública burguesa eram pressupostos do próprio<br />
processo de autonomia do sistema artístico, da sua diferenciação funcional relativamente<br />
ao cerimonial representativo da corte e ao culto religioso. Momentos como o da querelle<br />
des bouffons marcam um estádio decisivo nesse processo que já vinha tendo expressão<br />
no volume e na intensidade do debate sobre música e ópera, inclusive em publicações especializadas,<br />
que se multiplicam desde o início do século XVIII e onde não raro abundam<br />
as recensões críticas de publicações de música impressa.<br />
...........................................................................<br />
13 Um indicador relevante é, por exemplo, o facto de o número de negociantes nacionais só em 1792 ter ultrapassado<br />
o dos negociantes estrangeiros fixados em Portugal. Cf. Vieira de Carvalho, O Teatro de São Carlos…, p.<br />
50, 52.<br />
14 Sobre a “semântica da interacção” na sociedade da corte e os temas próprios de uma conversation amusante,<br />
excluindo questões políticas ou de Estado, cf. Niklas Luhmann, “Interaktion in Oberschichten: Zur Transformation<br />
ihrer Semantik im 17. und 18. Jahrhundert”, in Gesellschaftstruktur und Semantik. Studien zur Wissenssoziologie<br />
der modernen Gesellschaft (do mesmo), Frankfurt a. M., Suhrkamp, 1993, vol. I, p. 72-161.<br />
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As histórias da música tendem a dar uma visão redutora da querelle, circunscrevendo-a<br />
ainda e sempre a uma questão de “gosto”, a uma espécie de birra entre os<br />
partidários da música francesa e os da música italiana. Mas o que está em causa é de<br />
muito maior alcance. Trata-se, na verdade, de um debate em torno de dois modelos de<br />
comunicação da ópera: uns defendem o modelo da “sociedade da corte”, outros o modelo<br />
emergente da esfera pública burguesa. De cada um dos lados, posicionam-se partidários<br />
tanto da música italiana como da música francesa.<br />
No modelo da sociedade da corte, o espectáculo de ópera existia em função do<br />
próprio cerimonial representativo, palco e sala interpenetravam-se, não havia separação<br />
entre “teatro” e “quotidiano”. Todos desempenhavam um papel activo no espectáculo:<br />
não só os artistas, que jamais podiam descurar a exibição das destrezas (os seus títulos de<br />
prestígio e ascensão sociais); mas também os espectadores, por sua vez vinculados à etiqueta<br />
e à hierarquia, que exigiam deles contenance, isto é, que dessem mais atenção à representação<br />
do respectivo cargo ou condição do que à acção ficcional representada no<br />
palco. A verdadeira representação era o próprio cerimonial da corte, a festividade solene<br />
de celebração do poder, do qual a ópera fazia parte como elemento subordinado, essencialmente<br />
decorativo.<br />
Os méritos ou destrezas dos artistas (compositor, libretista, maquinista ou pintor<br />
das cenas, músicos e sobretudo cantores), cada qual expondo o mais possível os artifícios<br />
da oficina músico-teatral, alimentavam, por sua vez, a semântica da interacção entre os<br />
cortesãos – eles próprios, afinal, músicos-amadores ou conhecedores. Ser conhecedor<br />
era um atributo inerente às maneiras, entre as quais se contava precisamente a capacidade<br />
de manter conversations amusantes: por exemplo, sobre música e ópera, um dos temas<br />
de eleição (como decorre das fontes da época).<br />
O criticismo burguês dirigia-se tanto contra esta estrutura de comunicação, onde<br />
o balanço entre o feedback para o representado e o feedback para as destrezas (a oficina)<br />
na arte de representar podia configurar uma estrutura épica, como contra a sua tendencial<br />
degradação numa estrutura coloquial, a variante mais corrente ou generalizada em teatros<br />
públicos na ausência de cerimonial da corte (rei ausente ou oficialmente “incógnito”,<br />
quando presente). Neste caso, as retroacções (feebacks) cumulativos entre as destrezas<br />
ou sedução pessoal dos virtuosi e os espectadores bem como aquilo a que poderíamos<br />
chamar a hiperactividade destes durante o espectáculo – retroagindo uns para os outros<br />
– expulsava do campo da recepção a ópera em si, a acção representada, as personagens,<br />
o drama. Prevalecia uma recepção fragmentária, onde o espectáculo se deslocava para a<br />
sala, já não no contexto do cerimonial representativo da corte, mas sim no contexto de<br />
formas de sociabilidade informais, como aquelas que o Abade António da Costa descreve<br />
por volta de 1753, referindo-se a uma opera seria representada em Roma:<br />
Já não falo no grande rumor que se faz dentro [do palco], porque o de fora é tal<br />
que quase o encobre de todo. […] Ora que ouvi eu aqui? Conheço que não foi<br />
coisa que me desse gosto, antes trago na cabeça um zum zum, de quatro para<br />
cinco horas de rumor de rabecas, rabecões, trompas, etc., gritaria de gente, conversação<br />
contínua, risadas, palmadas, uns a gritar: bravo, bravone! Ah, caro Cafarello!<br />
os que vendem sempre a apregoar ao redor dos camarotes, gritando<br />
desesperados: quem quer vinho, frutas, doces, etc. 15<br />
...........................................................................<br />
15 Cit. in M. Vieira de Carvalho, Razão e sentimento na comunicação musical – Estudos sobre a Dialéctica do<br />
Iluminismo, Lisboa, Relógio d’Água, 1999, p. 41.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
172<br />
O modelo de comunicação alternativo, incidindo sobre a produção, mediação,<br />
recepção e função da ópera, parte integrante de uma revolução burguesa que se começa<br />
a manifestar nas artes, na cultura, na ideologia, antes de ter expressão política na reforma<br />
e na revolução das instituições políticas, já se encontra delineado nos artigos e opúsculos<br />
da querelle, contemporâneos a esta carta do Abade António da Costa, e pode ser sintetizado<br />
nos seguintes princípios:<br />
- Separação radical entre palco e sala bem como entre teatro e quotidiano (quarta<br />
parede);<br />
- Art caché (arte oculta ou dissimulada): as destrezas visam a ilusão perfeita; a<br />
maior destreza consiste em jouer au naturel, isto é, em dissimular as destrezas<br />
ou o artifício, conferindo ao representado o efeito de realidade ou tranche de<br />
vie;<br />
- A acção representada como aparência do natural anula a “distância” do espectador,<br />
suscita empatia ou identificação emocional;<br />
- A compreensão decorre, não da razão, mas sim do sentimento, a melhor forma<br />
de ensinar a virtude (do coração para o coração);<br />
- Art caché (arte como tranche de vie) não carece de espectadores conhecedores,<br />
está ao alcance de todos (à la portée de tout le monde);<br />
- O rapport d’égalité entre os espectadores, igualizando-os como humanos, obnubila<br />
a hierarquia de cargo ou condição na sala, num efeito paralelo ao do desaparecimento<br />
da hierarquia de faculdades e destrezas no palco (pois que o virtuosismo<br />
do intérprete é também, a bem dizer, “esquecido” na retroacção ou<br />
feedback exclusivos para a personagem e a acção representadas);<br />
- A ópera autonomiza-se da festividade da corte e da sua função cerimonial ou<br />
de divertimento faustoso, e, enquanto arte autónoma, passa a assumir uma<br />
função educativa, instrumento de cidadania e esclarecimento;<br />
- Consequência da autonomia da arte – neste caso, da ópera – é a inversão da<br />
hierarquia entre palco e sala: enquanto no modelo da sociedade da corte dominava<br />
a relação autoritária da sala para com o palco, no modelo burguês pressupõe-se<br />
a autoridade do palco sobre a sala;<br />
- Em vez de mero pretexto para a conversation amusante, que desviava das<br />
questões políticas ou de Estado, a ópera torna-se indestrinçável das grandes<br />
causas ou grande questões, também políticas, que mobilizam a esfera pública.<br />
Essa estrutura de comunicação apresentacional, 16 emergente em meados do<br />
século XVIII da esfera pública burguesa, começa a consolidar-se nos teatros europeus por<br />
...........................................................................<br />
16 Os conceitos de estrutura coloquial e estrutura apresentacional são desenvolvidos a partir de Heinrich Besseler<br />
(“Umgangsmusik und Darbietungsmusik im 16. Jahrhundert” [1959] in Aufsätze zur Musikästhetik und Musikgeschichte,<br />
Leipzig, Reclam, 1978, p. 301-331), que os aplicou a diferentes formas de fazer música: Umgangsmusik<br />
(música coloquial) designa uma participação musical colectiva em que não há uma distinção clara entre competências<br />
musicais activas e passivas, entre artistas e público; Darbietungsmusik (música de apresentação ou apresentacional)<br />
designa formas de fazer música baseadas na distinção entre o desempenho dos músicos e uma audiência<br />
passiva que assiste à realização musical. Nos meus primeiros trabalhos comecei a aplicar esses conceitos à<br />
própria noção de estrutura de comunicação: distinguindo entre Umgangsstruktur (estrutura coloquial: aquela<br />
em que todos os participantes têm um papel activo, independentemente de este se traduzir num comportamento<br />
propriamente musical) e Darbietungsstruktur (estrutura apresentacional: aquela em que há uma divisão radical<br />
de competências entre artistas que actuam e um público imóvel e silencioso que assiste à performance).<br />
Na transposição para a língua portuguesa, usei inicialmente as designações, respectivamente, de estrutura de participação<br />
e estrutura de separação de competências. Em língua inglesa, as categorias de Besseler têm sido, porém,<br />
traduzidas pelos adjectivos colloquial e presentational. No sentido de estabilizar os conceitos, proponho agora<br />
que passem a ser usadas em língua portuguesa as palavras coloquial e apresentacional (este último, decerto, um<br />
neologismo, mas sem a ambiguidade da palavra representação, ou derivados, e mesmo dos neologismos performance<br />
ou performativo, entretanto já inscritos no Dicionário de Língua Portuguesa da Academia das Ciências de Lisboa).<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
173<br />
volta de 1770, cerca de cem anos antes da publicação das crónicas de Eça de Queirós na<br />
Gazeta de Portugal e no Distrito de Évora. O princípio do desaparecimento do cantor na<br />
personagem é formulado por Rousseau (1767), o da subordinação das partes ao todo no<br />
palco de ópera por Gluck (1769), e a concretização prática do modelo apresentacional<br />
testemunhada por Burney nos seus Diários (referindo-se a um espectáculo da Alceste de<br />
Gluck, em Viena, em 1771):<br />
Não basta ao Actor de Ópera ser um excelente Cantor, se ele não for também<br />
excelente na Pantomima; pois que não deve fazer sentir somente o que ele próprio<br />
diz, mas também o que faz dizer à Sinfonia… mesmo guardando silêncio; e,<br />
ocupando-se embora de um papel difícil, se se esquecer por um instante da Personagem<br />
para se ocupar do Cantor, não será senão um Músico em Cena; já não<br />
será Actor. (Rousseau, Dictionnaire de Musique, 1767).<br />
[…] Uma ópera feita como defendo pode ter êxito mesmo quando interpretada<br />
por um cantor mediano. […] um cantor célebre torna-se destruidor do interêt<br />
général, sobretudo quando rodeado de gente mediana, que é por ele aniquilada<br />
[…] todos os cantores, por mais excelentes que sejam, destroem o efeito de conjunto<br />
quando o compositor serve cada um à sua maneira [em vez de fazer a música]<br />
à la manière du poëme […] (Gluck, prefácio a Alceste, 1769).<br />
[…] os que a viram representada […] não podiam tirar os olhos um só momento<br />
do palco, durante todo o espectáculo, tendo a sua atenção tão aguçada e a sua<br />
consternação tão aumentada, que se conservavam em permanente ansiedade,<br />
entre a esperança e o medo dos eventos, até à última cena do drama […] (Burney,<br />
1773, sobre a Alceste, de Gluck, em Vi) 17<br />
Esta mudança de paradigma na estrutura de comunicação – do modelo coloquial<br />
para o modelo apresentacional –, descrita por Hans Robert Jauss como transferência para<br />
a arte do modelo de identificação da religião, estava ainda longe de ter aplicação em<br />
Portugal e nem sequer fora ainda objecto de debate na esfera pública. Um dos precursores<br />
do debate é precisamente Eça de Queirós que, nas suas primeiras crónicas, diagnostica a<br />
persistência do modelo coloquial da sociedade da corte do antigo regime:<br />
Vai-se ao S. Carlos […] porque é obrigação de cada um mostrar-se nas cadeiras,<br />
olhar, aborrecer-se. mover-se compassadamente e sair. […] As famílias que em<br />
S. Carlos têm assinatura, essas, vão conversar, fazer ondear os estofos, mostrar<br />
os falsos penteados, paradear pomposamente. […] Nada do que é humano entra<br />
nesta sociedade frívola. Só sentimentos convencionais e ridículos […] 18<br />
Na sua ficção, um verdadeiro olhar antropológico avant la lettre sobre a sociedade<br />
portuguesa, Eça de Queirós multiplicará os testemunhos quanto a esta maneira de<br />
frequentar ou de estar no teatro. Pedro da Maia divertia-se com “distúrbios no Marrare”,<br />
“façanhas nas esperas de toiros”, “cavalos esfalfados” e “pateadas em S. Carlos”. Alencar<br />
ia observar “do camarote dos Gamas” o curso do idílio entre Pedro e Maria, instalados<br />
numa frisa, e corria ao Café Marrare, a meio do espectáculo, “a berrar a novidade”. Para o<br />
conselheiro Acácio, “Lisboa só era imponente, verdadeiramente imponente, quando<br />
estavam abertas as Câmaras e S. Carlos”. E assim por diante.<br />
...........................................................................<br />
17 Cf. M. Vieira de Carvalho, Razão e sentimento na comunicação musical…, especialmente p. 35-139.<br />
18 Cf. Eça de Queirós, Da colaboração para o Distrito de Évora…, v. I, p. 263.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
174<br />
Este modelo comunicação generalizava-o Eça de Queirós a todo o teatro: “Vaise<br />
[ao teatro], como ao Passeio, em noites de calor, para estar”. 19 “Passeio” incluía, pois,<br />
a ópera, o teatro em geral, o café, o circo, a praça de touros e também o Parlamento, além<br />
do Passeio Público propriamente dito. 20 Enquanto decorria o espectáculo conversava-se,<br />
entrava-se e saía-se, visitavam-se amigos nos camarotes. Quando a família real chegava,<br />
o espectáculo era interrompido, toda a companhia vinha à boca de cena e cantava o Hino<br />
da Carta. Nas Galas, a Tribuna Real fazia concorrência ao palco propriamente dito, ao<br />
mesmo tempo que era vedado ao público patear ou aplaudir, para se marcar bem o carácter<br />
solene de cerimonial da corte ao qual a performance músico-teatral se subordinava… –<br />
resquício de uma prática da sociedade da corte do antigo regime que Eça de Queirós não<br />
deixa de ridicularizar em As Farpas (outubro de 1871). 21<br />
A ausência da quarta parede e da separação entre teatro e quotidiano bem como<br />
a relação autoritária da sala para com o palco eram evidentes. A estrutura de comunicação<br />
herdada do antigo regime mantinha-se no essencial. Nesta matéria – Eça de Queirós<br />
tinha razão! – em Portugal “nada se adiantara desde o século XVIII”.<br />
O falhanço do programa iluminista em Portugal<br />
Ao contrário de outros países europeus, a hostilidade da Igreja ao teatro (referimo-nos<br />
às formas de teatro profano em vernáculo, excluindo as tragicomédias dos jesuítas<br />
declamadas em latim) marcou persistentemente a própria esfera pública representativa<br />
até meados do século XVIII. O privilégio de 1588 de Filipe II, segundo o qual<br />
todas as representações de comédias em Lisboa só podiam ser autorizadas desde que pagassem<br />
tributo ao Hospital de Todos-os-Santos, é sintomático dessa hostilidade ao teatro,<br />
assim caracterizado como um divertimento suspeito, apenas “tolerado” ou “desculpado”<br />
se parte das suas receitas revertesse para obras de caridade. Não admira, por isso, que a<br />
corte portuguesa se tenha mantido afastada do teatro: com Gil Vicente, nasceu e desapareceu<br />
(para sempre!) o teatro de corte em língua portuguesa. Daí também que a voga<br />
dos espectáculos músico-teatrais e a expansão europeia da ópera italiana desde meados<br />
do século XVII não tenham penetrado na corte portuguesa, que nunca a usou para a<br />
função representativa até ao termo do reinado de João V. Todas as fontes parecem confirmá-lo:<br />
o esplendor da música italiana fazia falta ao monarca para replicar o esplendor<br />
do poder real, mas era exclusivamente na Igreja que exercia essa função. A autocelebração<br />
joanina do poder real confundia-se com o cerimonial religioso – altamente teatralizado, é<br />
certo (em Mafra ou na Patriarcal), mas religioso.<br />
Só com José I, ainda antes da edificação da Ópera do Tejo, é que a música teatral,<br />
a ópera italiana, rompe essa barreira político-ideológica secular. Só então o teatro e o investimento<br />
no teatro (enquanto espaço faustoso adequado à função) se tornam atributos<br />
da representação oficial do poder real. Mas é também na época de José I, após o abalo<br />
social, político e ideológico causado pelo terramoto, que surge o primeiro esboço de um<br />
discurso iluminista sobre teatro, rompendo com a subordinação também secular do sistema<br />
artístico à autoridade teológica:<br />
Os Homens de Negócio da Praça de Lisboa Me representaram […] o grande esplendor<br />
e utilidade, que resulta a todas as Nações do Estabelecimento dos Teatros<br />
públicos, por serem estes […] Escola, onde os Povos aprendem […] civilizando-<br />
...........................................................................<br />
19 Cf. Eça de Queirós, Uma Campanha Alegre…, p. 23.<br />
20 Cf. J.-A. França, O Romantismo em Portugal - Estudo de factos socioculturais , 6 vols., Lisboa, Livros Horizonte,<br />
1974, cit. in M. Vieira de Carvalho, O Teatro de São Carlos…, p. 71-84.<br />
21 Cf. Eça de Queirós, Uma Campanha Alegre…, p. 190-191.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
175<br />
se e desterrando insensivelmente alguns restos de barbaridade, que neles deixaram<br />
os séculos infelizes da ignorância. 22<br />
Homologado pelo rei em 1771, este alvará resulta de uma representação de 40<br />
grandes negociantes, oriundos de uma burguesia comercial cosmopolita, que pretendia<br />
constituir uma Sociedade para a Sustentação dos Theatros Públicos, mantendo um teatro<br />
de ópera italiana e outro de drama português. Marca a diferença entre a condenação<br />
teológica do teatro como vício e a sua avaliação positiva como escola, como fonte de<br />
saber e “esclarecimento”. Reflecte e assume o discurso iluminista europeu sobre o papel<br />
das artes.<br />
Num sentido semelhante se pronuncia, por exemplo, nos Estados germânicos,<br />
Christoph Martin Wieland (1775):<br />
Na concepção até agora dominante, a ópera é um prazer demasiado caro para a<br />
maioria dos príncipes da Alemanha e até mesmo para as nossas cidades mais<br />
populosas e ricas. Em contrapartida, um Singspiel […] exigiria tão parco investimento<br />
que até uma cidade mediana da Alemanha […] teria meios […] para<br />
oferecer aos seus cidadãos um prazer público da mais elevada natureza e que<br />
decerto não deixaria de ter uma influência muito útil no gosto e nos costumes.<br />
[…] a maioria daqueles que governam contemplam a música, a poesia, o teatro<br />
e as belas-artes apenas como artes de passatempo, cujo fim exclusivo seria fazer<br />
cócegas à vista e ao ouvido […], não veem as forças inexauríveis, inesgotáveis<br />
para o aperfeiçoamento da humanidade que nestas artes se contêm[…] O Singspiel<br />
através da mera reunião da poesia, da música e da acção [actuaria] no sentido<br />
da promoção da humanidade. 23<br />
As diferenças na formulação do programa iluminista para a ópera que estes textos<br />
revelam correspondem, porém, a estádios bem diferentes, quer de desenvolvimento<br />
da esfera pública, quer de desenvolvimento do capitalismo e duma consciência de classe<br />
burguesa.<br />
Em Portugal, fala-se em teatro como escola, mas pretende-se continuar a manter<br />
a ópera italiana enquanto forma de sociabilidade de prestígio. Em parte alguma se<br />
menciona ópera em língua portuguesa. Não se desenvolve uma alternativa ao modelo de<br />
comunicação da sociedade da corte. Pelo contrário, cerca de 20 anos mais tarde, quando<br />
a mesma burguesia cosmopolita, já em época de “viradeira”, é obrigada a justificar o<br />
Teatro de São Carlos (1793) como fonte de receita para a Casa Pia (regresso à condenação<br />
teológica do teatro), o modelo de comunicação que este incorpora, em todo o seu<br />
esplendor, é aquele que a corte já tinha: ópera italiana na presença do rei. A burguesia<br />
portuguesa quer, para ela, um teatro de corte, com todos os respectivos ingredientes,<br />
incluindo – além do espaço faustoso, do rei e da família real – o mais “nobre” e mais caro<br />
de todos: ópera italiana. 24<br />
O contraste com o discurso iluminista que prevalece nos Estados germânicos e a<br />
que Wieland dá voz não podia ser mais flagrante. Na tomada de posição deste, o primeiro<br />
ponto é logo a recusa do modelo da sociedade da corte: por se basear na ópera italiana,<br />
...........................................................................<br />
22 Cf. M. Vieira de Carvalho, O Teatro de São Carlos…, p. 45.<br />
23 Christoph Martin Wieland, Versuch über da deutsche Singspiel und einige dahin einschlagenden Gegenstände<br />
(1775), cit. in M. Vieira de Carvalho, O Teatro de São Carlos…, p. 35.<br />
24 Para uma discussão mais alargada, cf. M. Vieira de Carvalho, “Trevas e Luzes na Ópera do Portugal Setecentista”,<br />
in Razão e sentimento…, p. 141-157. Neste estudo procede-se a uma revisão crítica, à luz da descoberta de<br />
novas fontes primárias, das questões já abordadas, quanto ao século XVIII, in O Teatro de São Carlos…<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
176<br />
um luxo demasiado caro, tanto mais que se esgotava na função de mero passatempo. Em<br />
vez disso, Wieland defende um novo modelo: o do Singspiel, uma alternativa músicoteatral<br />
em língua alemã, que estaria ao alcance dos recursos financeiros mesmo das cidades<br />
medianas e desempenharia um importante papel na formação dos cidadãos em geral, no<br />
aperfeiçoamento ou “promoção da humanidade”, enfim, teria uma função educativa.<br />
Destas duas opostas concepções de ópera e da sua função social bem como dos<br />
sistemas sociais e de poder que com aquelas respectivamente se correlacionam decorrem,<br />
ao longo do século XIX – e Eça de Queirós e a geração de 70 bem podiam verificá-lo –<br />
percursos completamente distintos.<br />
Na Alemanha, em finais do século XVIII, a praxis da ópera italiana já só restava<br />
na corte prussiana. Em 1801 também esta é obrigada a abandonar o antigo conceito de<br />
teatro de corte e a usar somente a ópera alemã para a função de prestígio e representação<br />
do poder real. O modelo de comunicação contra-hegemónico desenvolvido pela burguesia<br />
impõe-se em toda a linha. Entretanto, a expansão da ópera alemã e dos seus centros de<br />
produção é tal que os Estados germânicos, outrora importadores de ópera italiana, se<br />
transformam em exportadores de ópera alemã logo nas primeiras décadas do século XIX.<br />
Algo de semelhante ocorre noutros países, designadamente, centro-europeus e eslavos,<br />
que desenvolvem desde então as suas respectivas tradições de ópera nacional.<br />
Que acontece em Portugal? No Portugal “em que nada se adiantara desde o século<br />
XVIII” persiste o modelo de país “importador” e “colonizado”. Embora primeiro Teatro<br />
do Estado, o Teatro de São Carlos mantém-se no século XIX como “Teatro Italiano”, onde<br />
só actuam companhias italianas e se canta exclusivamente em italiano. Tal como no século<br />
XVIII, para os teatros da corte de João V, José I ou Maria I, os compositores portugueses<br />
têm de continuar a escrever, para o São Carlos, até ao fim da monarquia, sobre libretos<br />
italianos. O próprio programa nacionalista de Alfredo Keil, da Irene à Serrana (1899), passando<br />
por Dona Branca tem de ser concretizado sobre libretos italianos ou traduzidos<br />
para italiano.<br />
Simultaneamente, prevalece o preconceito contra cantores portugueses profissionais<br />
formados no Conservatório: Clementina Cordeiro, a primeira a tentar em meados<br />
do século XIX, é obrigada a abandonar a carreira, dada a manifesta hostilidade do público.<br />
Só os cantores estrangeiros, já “enobrecidos” pelo êxito acumulado obtido nos palcos italianos,<br />
eram respeitados pelo público português. A discriminação social no acesso às<br />
profissões musicais está bem patente no relatório do Director do Conservatório de 1878:<br />
só “filhos de artistas, operários e funcionários subalternos” é que ali procuravam formação<br />
profissional. Os amadores, esses – como Bazilio, Genoveva, Maria Eduarda e outras personagens<br />
de Eça de Queirós – recebiam formação musical em casa, mas não para o exercício<br />
profissional. Viver da música não era próprio das classes elevadas. Viver de uma profissão<br />
ou do seu trabalho não era, aliás, algo que honrasse especialmente os pergaminhos duma<br />
grande família burguesa, como decorre do célebre comentário de Carlos da Maia, ao receber<br />
a sua primeira libra de honorários pelo exercício da medicina…<br />
Extraindo todas as consequências da sua observação crítica da sociedade portuguesa<br />
e do papel que nela desempenhava o São Carlos, Eça de Queirós acaba por concluir<br />
como os iluministas alemães, havia cem anos:<br />
O teatro de São Carlos o que é? o que faz? Não aumenta decerto o nosso património<br />
literário. Faz apenas a popularização da velha escola italiana de música<br />
sensualista, arte de que nada resulta para o País, senão alguns duetos que as<br />
donzelas beliscam ao piano, ou que os sinos tilintam ao levantar da hóstia! Que<br />
educação se tira da Traviata expirante, ou do imbecil Trovador que corre a salvála?<br />
[…] O teatro de S. Carlos não forma bons actores nacionais. Bem ao contrário!<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
177<br />
É uma fábrica de reputação para os artistas estrangeiros. […] Enfim, nem criação<br />
de uma arte, nem formação de artistas, nem elemento de civilização, nem<br />
interesse geral do País. 25<br />
A convergência com o criticismo, entre outros, de Christoph Martin Wieland,<br />
torna-se, porém, ainda mais flagrante quando se trata de definir a função última do Teatro<br />
de São Carlos:<br />
[…] A corte sente a necessidade impreterível de se distrair? Excelentemente!<br />
Que pague e subsidie S. Carlos; que o ilumine, o forre, o tapete à sua custa; que<br />
dê por cada camarote 20$000 réis por noite, por cada stalle 4$000 réis; que o<br />
frequente com ardor, que durma lá, e que seja feliz. Ora que o País pague, não,<br />
corte respeitada e amada, não! Que eu, ele, nós, vós, eles, deitemos no erário<br />
dinheiro para tu te divertires, não, corte reluzente e maravilhosa! Perdoa, mas,<br />
como diria Cipião, não possuirás, ingrata, as nossa placas de 500 réis. A preocupação<br />
do País não é precisamente evitar que a corte boceje. Vinte e cinco<br />
contos anuais é prodigioso – para que a corte tenha onde passar a noite! 26<br />
Em síntese: tal como outrora Wieland, referindo-se à opera italiana dos teatros<br />
de corte alemães, Eça de Queirós denuncia o São Carlos como um luxo caro e um passatempo<br />
frívolo, não lhe reconhece uma função educativa ou civilizadora nem um papel<br />
como “centro de arte nacional” e “escola de artistas”:<br />
[…] o Governo […] não reúne uma única razão para subsidiar o S. Carlos. Nem há<br />
ali um elemento de civilização, nem um centro de arte nacional, nem uma escola<br />
de artistas, nem um aproveitamento geral do País! 27<br />
Deste modo, Eça de Queirós caracteriza lapidarmente o falhanço da reforma<br />
teatral de Garrett (1836) em matéria de ópera ou de cultura músico-teatral. Corrigindo o<br />
retorno ao padrão obscurantista que ainda se manifestara na sequência da Revolução de<br />
1820, 28 essa reforma, de inspiração iluminista, tinha colocado decididamente o teatro na<br />
esfera educativa, definido o Teatro Nacional como Teatro Normal e consagrado o princípio<br />
da responsabilidade do Estado na sua sustentação e inspecção. Deixara, de fora,<br />
inexplicavelmente, a ópera. Nenhuma medida fora tomada para promover uma ópera<br />
nacional ou transformar o São Carlos, enquanto teatro do Estado, num Teatro Nacional<br />
de Ópera.<br />
A recepção de Wagner e as mudanças na estrutura de comunicação<br />
Poderá parecer desproporcionado, num trabalho sobre as mudanças na cultura<br />
musical e músico-teatral operadas pela República, dedicar tanto espaço aos antecedentes<br />
históricos, mas isso era absolutamente indispensável para enfatizar a tese que tenho<br />
...........................................................................<br />
25 Cf. Eça de Queirós, Uma Campanha Alegre…, p. 229-230.<br />
26 Ibidem, p. 231-232.<br />
27 Ibidem, p. 231.<br />
28 Cf. Parecer da Comissão da Fazenda do Soberano Congresso, de 9 de Janeiro de 1822, que serve de fundamento<br />
à recusa de subsídio do Estado para o São Carlos. O parecer retoma, não o discurso iluminista da burguesia<br />
comercial e cosmopolita de 1771 – teatro como “escola”, fonte de “educação” e “esclarecimento” – mas sim a<br />
tradição teológica de condenação do teatro como “vício”. Não admira que esta fosse a ideologia dominante<br />
num Congresso onde a maioria dos eleitos provinha do interior do País… Menos plausível seria ver aqui uma influência<br />
directa de algumas ideias de Rousseau, designadamente, na Lettre à M. d’Alembert (1758). Cf. M. Vieira<br />
de Carvalho, O Teatro de São Carlos…, p. 65.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
178<br />
defendido em vários estudos precedentes: a da filiação ideológica iluminista dessas mudanças.<br />
Com efeito, na minha perspectiva, a República apresenta-se-nos, nesta área da<br />
cultura, como uma tardia revolução iluminista burguesa, herdeira de um corpo de princípios<br />
que já fora levado à prática, em grande parte dos países europeus, em meados do<br />
século XVIII. Embora reflectido ocasionalmente em várias tentativas ou esboços de reforma<br />
(Sociedade para a Sustentação dos Teatros Públicos, em 1771, Setembrismo, em 1836),<br />
esse programa nunca chegara a ter realização consequente em Portugal. 29<br />
Uma historiografia da música ou da ópera que deixe de fora a investigação dos<br />
sistemas de comunicação em que elas se manifestam e abdique de modelá-los nas suas<br />
relações ou na sua interacção com outros sistemas sócio-comunicativos correlacionados<br />
(por exemplo, estrutura da esfera pública, sistema político) não está em condições de<br />
captar e diferenciar o que há realmente de específico, único, na experiência portuguesa,<br />
desde meados do século XVIII ao dealbar do século XX. Entretanto, a especificidade<br />
identificada nesta área cultural pode contribuir para lançar nova luz sobre os processos<br />
culturais em sentido mais lato bem como sobre as constelações sócio-económicas,<br />
institucionais, ideológicas e políticas que ocorrem no País durante esse período. O que se<br />
entende por iluminismo, romantismo, liberalismo, nacionalismo, republicanismo, as<br />
próprias estruturas da economia e do poder serão diferentemente compreendidas<br />
consoante consideremos, ou não, as “lições” que nos são fornecidas pela história social<br />
da música e da ópera em Portugal.<br />
Eça de Queirós, que nos tem servido de fio condutor, torna transparente nos<br />
seus escritos, quer de ficção, quer de intervenção ou comentário crítico, o tecido de relações<br />
da vida social, cultural e política. Ninguém, como ele, põe em evidência tão lucidamente<br />
o jogo de remissões entre estrutura social, estilos de vida (habitus), ideias, crenças, valores,<br />
motivações, comportamentos. À sua fina observação não podia escapar uma fonte tão<br />
rica de informação sobre o Portugal do seu tempo e, em especial, sobre as camadas sociais<br />
mais poderosas ou próximas do poder, como era a da actividade musical e músico-teatral<br />
– em Lisboa, centrada no São Carlos. Daí a relevância da sua obra, muito especialmente a<br />
literária, como fonte de conhecimento historiográfico – neste caso, da historiografia<br />
musical. Como já escrevi noutra ocasião, é um exemplo de como a objectividade da ficção<br />
se impõe à ficção da objectividade.<br />
O debate de que Eça de Queirós é precursor, nos textos acima mencionados,<br />
intensifica-se na década de 80, coincidindo também com a acrescida expansão da imprensa<br />
periódica. Embora suscitado a propósito dos mais diversos eventos musicais ou músicoteatrais<br />
(por exemplo, a estreia de Il Guarany, de Carlos Gomes, em 1880), esse debate<br />
será sobretudo alimentado pela recepção de Wagner, à qual dediquei boa parte da minha<br />
investigação sobre a história social do São Carlos. O que tentei pôr aí em evidência foi<br />
precisamente a crescente problematização da estrutura de comunicação do São Carlos,<br />
que surge dos mais diversos quadrantes e que incorpora também uma dimensão de oposição<br />
política, ainda que não exclusivamente republicana. Reduzir esse debate a uma disputa<br />
de “gosto” entre “wagnerianos” e “verdianos”, ou adeptos do drama musical alemão<br />
e adeptos da ópera italiana, seria, mais uma vez, tão redutor e simplista como arrumar<br />
em campos opostos, quanto às posições em presença, respectivamente, os republicanos<br />
e os monárquicos.<br />
O que emerge desde a série de artigos publicados por Batalha Reis, em março<br />
de 1883, subsequentes à morte de Wagner, é o crescente número de vozes na imprensa e<br />
...........................................................................<br />
29 Cf. M. Vieira de Carvalho, “A República como Revolução Iluminista e os Rumos da Cultura Musical”, in Razão e<br />
sentimento…, p. 158-174 (publicado originalmente in Congresso “A Vida da República Portuguesa 1890-1990”,<br />
Lisboa, Cooperativa de Estudos e Documentação Universitária Editora, 1991, p. 281-297).<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
179<br />
a consistência dos argumentos que põem em causa cada vez mais radicalmente a instituição<br />
São Carlos e o seu modelo de comunicação. Não admira que a recepção de Wagner sirva<br />
de principal incentivo para o debate, já que todo o projecto wagneriano não era senão a<br />
tentativa de levar às últimas consequências a reforma iluminista da ópera. Bayreuth, com<br />
a sua arquitectura interior em anfiteatro, o fosso da orquestra escondido, o balanço acústico<br />
entre voz e orquestra que permitia captar a palavra cantada, as luzes apagadas durante o<br />
espectáculo, visava estabilizar na praxis da comunicação o efeito que Gluck alcançara na<br />
célebre produção da Alceste, de 1771, em Viena: a recepção da ópera como um todo,<br />
como drama, como teatro. Se Gluck já então se colocara na posição de uma espécie de<br />
Deus ex-macchina que, para além da composição da partitura, também assegurava a<br />
coerência dos elementos cénicos e da performance músico-teatral tendo em vista o aperfeiçoamento<br />
da ilusão (o efeito de realidade), Wagner ia ainda mais longe, ao criar um<br />
dispositivo que lhe permitia controlar também a recepção. Numa sala às escuras, perante<br />
um “palco invisível” (ideal da “ilusão perfeita”, prefiguração do écran cinematográfico) e<br />
com uma orquestra também invisível (prefiguração da “banda sonora”), o público não<br />
podia furtar-se à estrutura de comunicação apresentacional. A “quarta parede” e a subordinação<br />
da sala ao palco radicalizadas pelo dispositivo de Bayreuth pretendiam ga-rantir<br />
o efeito outrora descrito por Burney e, mais tarde, já no século XX, vulgarizado nas talking<br />
pictures ou cinema sonoro. Importa relembrá-lo neste contexto, embora já antes citado:<br />
[Os espectadores] não podiam tirar os olhos um só momento do palco, durante<br />
todo o espectáculo, tendo a sua atenção tão aguçada e a sua consternação tão<br />
aumentada, que se conservavam em permanente ansiedade, entre a esperança<br />
e o medo dos eventos, até à última cena do drama […] 30<br />
Não cabe na economia deste trabalho pormenorizar as diferentes fases do confronto<br />
de ideias suscitado pela recepção de Wagner (remeto para estudos anteriores).<br />
Convém, no entanto, salientar um momento fundamental do processo de mudança, que<br />
ocorre em 1909, um ano antes da implantação da República.<br />
O anúncio da companhia alemã de Munique, que apresentou então em Lisboa,<br />
na íntegra, O Anel do Nibelungo (cantado em alemão), vinha acompanhada de um “regulamento”<br />
em que se estabeleciam determinadas regras quanto às condições em que<br />
deviam decorrer os espectáculos. A intenção declarada era transpor para o São Carlos o<br />
procedimento habitual em Munique e Bayreuth.<br />
A primeira inovação consistiu numa série de conferências proferidas na sala<br />
principal do São Carlos (segundo a imprensa, perante numeroso público) com o intuito de<br />
preparar os espectadores para a obra, iniciá-los na sua substância dramática e musical. A<br />
empresa encarregou António Arroio dessa tarefa, que se fez acompanhar ao piano, para<br />
os exemplos musicais, por Rui Coelho. As conferências foram depois publicadas em sucessivos<br />
números do jornal republicano A Lucta, e o seu conteúdo não deixa dúvidas quanto<br />
à ligação estabelecida por António Arroio entre a substância dramática da obra e a confrontação<br />
política que então se vivia em Portugal (recorde-se o regicídio e a eleição da<br />
primeira vereação republicana na capital, no ano anterior).<br />
Os wagnerianos monárquicos, segundo alguma imprensa, ter-se-iam reunido<br />
em casa de Alexandre Rey Colaço, que assistira, ao piano, Batalha Reis, cujas conferências<br />
são igualmente publicadas na imprensa (Diário de Notícias). Mas, assim como Batalha<br />
...........................................................................<br />
30 Sobre a recepção da crítica iluminista, especialmente de Rousseau, em Wagner, cf. M. Vieira de Carvalho, “Auf<br />
der Spur von Rousseau in der Wagnerschen Dramaturgie”, in Opern und Musikdramen Verdis und Wagners in<br />
Dresden, Dresden, Schriftenreihe der Hochschule für Musik “Carl Maria von Weber”, n. 12, 1988, p. 607-624.<br />
Trad, port. “O rasto de Rousseau na teoria e dramaturgia wagnerianas”, in Razão e sentimento…, p. 216-228.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
180<br />
Reis não deixara de pôr em evidência, nos seus artigos de 1883, o carácter reformador do<br />
projecto de Wagner e de assumir a crítica das relações de comunicação dominantes (por<br />
maioria de razão aplicável ao São Carlos), assim também na sua explanação do Anel do<br />
Nibelungo, em 1909, ele se detém extensivamente na substância dramática e nos conteúdos<br />
simbólicos, inclusivamente, políticos, da obra. Ou seja: um e outro convergiam na<br />
importância atribuída ao drama, às personagens e aos conflitos humanos que nele se desenrolam,<br />
o que contribuía para suscitar no público a atitude de atenção ao espectáculo<br />
como um todo, rompendo com a habitual recepção fragmentária, focada nos cantores e<br />
em “números” musicais isolados.<br />
No mesmo sentido apontava, aliás, a exigência de só se venderem bilhetes para<br />
a Tetralogia completa (levada à cena sem cortes) e não em separado para cada uma das<br />
“jornadas”.<br />
A companhia alemã, como era anunciado pela empresa, trazia ao São Carlos a<br />
praxis de representação de Munique e Bayreuth (provavelmente a encenação supervisionada<br />
por Cosima Wagner), recebida pela crítica em Lisboa como “a ilusão perfeita”.<br />
Entretanto, invertendo as tradicionais relações de poder no São Carlos, várias<br />
medidas tomadas pela empresa asseguravam a subordinação da sala ao palco:<br />
- Todos os espectáculos começavam pontualmente, sem atender a conveniências<br />
do protocolo oficial;<br />
- Durante a performance era vedada a entrada e a circulação na sala;<br />
- As luzes da sala permaneciam completamente apagadas no decurso do<br />
espectáculo.<br />
Como habitualmente, o rei chegou atrasado à estreia de O Ouro do Reno. Pela<br />
primeira vez, o espectáculo não foi interrompido: a autonomia da performance artística e<br />
a sua coerência interna impuseram-se ao protocolo oficial e ao tradicional cerimonial de<br />
“teatro de corte”. O episódio teve um aproveitamento político na imprensa, considerando<br />
alguns tratar-se de uma vitória da “plateia republicana” sobre os “camarotes monárquicos”.<br />
Assim se consumara a mudança de paradigma no São Carlos: da secular estrutura<br />
de comunicação coloquial, herdada do conceito de “teatro de corte” do Antigo Regime,<br />
para a estrutura de comunicação apresentacional, teorizada havia já cerca de 150 anos<br />
no seio duma esfera pública burguesa cada vez mais poderosa (como aquela que então se<br />
impusera em França, na Alemanha ou em Inglaterra), mas só concretizada em Lisboa –<br />
através da mediação do pensamento e da obra de Wagner – quando também aqui a<br />
opinião pública ganhou em massa crítica e poder contra-hegemónico.<br />
Quando da reabertura do Teatro de São Carlos em 1920, após 8 anos de encerramento,<br />
a estrutura de comunicação apresentacional já se consolidara. As óperas levadas<br />
à cena no São Carlos projectam-se nos movimentos culturais, ideológicos, políticos, como<br />
nunca antes. A assimilação de Parsifal (a ópera mais representada nos anos 20 em Lisboa)<br />
pelas correntes que anseiam por uma solução autoritária (um “salvador”, “redentor-rei”,<br />
“ditador”), enquanto os anarcossindicalistas e o movimento operário se revêm em Siegfried,<br />
é um exemplo da mudança de paradigma: passara a prevalecer a atenção ao drama. A<br />
subordinação da sala ao palco manifestava-se ainda no efeito amplificador recíproco de<br />
solicitações culturais, por um lado, e snobismo, por outro. Agora prevalecia um novo tipo<br />
de espectador, que receava manifestar a sua incompreensão ou desagrado. Parecer culto<br />
era tanto ou mais importante do que sê-lo. 31<br />
...........................................................................<br />
31 Cf. estudo extensivo da recepção de Wagner e do período compreendido entre cerca de 1880 e cerca de 1930,<br />
in M. Vieira de Carvalho, O Teatro de São Carlos…, p. 131-212.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
181<br />
Os ideais republicanos e as mudanças na cultura da escuta<br />
Falar de opinião pública e poder contra-hegemónico evita que se estabeleça<br />
uma relação linear de causa e efeito entre o republicanismo e as mudanças culturais em<br />
curso. O grande empreendimento do Coliseu dos Recreios em Lisboa, inaugurado em<br />
1890, concebido, financiado e explorado comercialmente por uma sociedade de conhecidos<br />
lojistas republicanos surge, por um lado, como uma alternativa democrática ao São<br />
Carlos, “teatro da corte” e “símbolo da ordem monárquica”. Por outro lado, porém, põe<br />
em evidência as contradições ou a ausência de um programa republicano estruturado<br />
para as artes, mormente as músico-teatrais. Replicando, de certo modo, num octógono a<br />
elipse do São Carlos, as suas ordens de camarotes (de cinco passam para duas) e a própria<br />
tribuna real, a sala do Coliseu – em todo o caso, adequada à variedade de divertimentos<br />
ou recreios, incluindo o circo, a que se destinava – deslocava ainda mais para primeiro<br />
plano o “espectáculo da sala”, não favorecia, designadamente em espectáculos músicoteatrais,<br />
o aperfeiçoamento do palco ilusionista (quarta parede) nem o modelo de identificação.<br />
De qualquer modo, não há que subestimar o Coliseu enquanto poderosa tentativa<br />
de resposta democrática às aspirações culturais e recreativas dos sectores mais desfavorecidos<br />
da população de Lisboa, que constituíam uma importante base social de apoio<br />
à alternativa republicana.<br />
O Coliseu não respondia, porém, às aspirações de uma elite cultivada que se<br />
exercitava na escuta da música instrumental da tradição clássica e romântica, considerando-a<br />
uma das mais elevadas expressões da arte e da cultura. Ainda hoje, após a<br />
remodelação da sala em 1994 (que lhe retirou em larga medida o carácter popular ou populista,<br />
ao dotar as antigas bancadas com cadeiras), se observa, em concertos sinfónicos,<br />
a grande dificuldade em controlar os incidentes perturbadores duma escuta silenciosa e<br />
concentrada. A sala não foi pensada para isso. Assim como o não fora o São Carlos, com a<br />
sua arquitectura típica de teatro italiano e teatro de corte do século XVIII.<br />
Esta dimensão – a da escuta – tem especial relevância, pois está relacionada<br />
com a dificuldade na institucionalização dos concertos públicos, que pressupunham uma<br />
estrutura de comunicação apresentacional. Após uma primeira tentativa falhada de João<br />
Domingos Bomtempo para instituir em Lisboa a modalidade dos concertos públicos, as<br />
várias que se lhe seguiram nunca tiveram a força necessária para se imporem como alternativa<br />
estável ao modelo hegemónico: o do teatro de ópera. Não se trata aqui, mais<br />
uma vez – como usa repetir-se no discurso musicológico – da oposição entre ópera italiana,<br />
por um lado, e música instrumental (sobretudo alemã), por outro, mas sim da hegemonia<br />
efectiva e absorvente da estrutura de comunicação coloquial cunhada pelo “Teatro<br />
Italiano”, a qual contagiava as manifestações musicais no seu todo, também as da música<br />
instrumental, fosse onde fosse que estas acontecessem. Eça de Queirós captou o fenómeno<br />
– parte integrante do habitus (como diria Bourdieu) próprio da “alta sociedade” da época<br />
–, numa das suas páginas mais acutilantes de Os Maias (1888). O que sobressai na atitude<br />
do público é – em vez de reverência e devotio – a relação autoritária para com a<br />
performance musical, a clara prevalência da estrutura de comunicação coloquial:<br />
Da antessala Ega avistou logo ao fundo, no tablado, sobre um mocho muito baixo<br />
que lhe fazia roçar pelo chão as longas abas da casaca – o Cruges, com o nariz<br />
bicudo contra o caderno da sonata, martelando sabiamente o teclado. […]<br />
– O Cruges […] O nome correu entre as senhoras que o não conheciam. E era<br />
composição dele, aquela coisa triste?<br />
– É de Beethoven, srª D. Maria da Cunha, a “Sonata Patética” […]<br />
Uma das Pedrosas não percebera bem o nome da sonata. E a marquesa de Soutal,<br />
muito séria, muito bela, cheirando um frasquinho de sais, disse que era a Sonata<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
182<br />
Pateta. Por toda a bancada foi um rastilho de risos sufocados. […]<br />
[…] por toda a sala, o sussurro crescia. Os encatarroados tossiam livremente.<br />
Dois cavalheiros tinham aberto “A Tarde”. E caído sobre o teclado, com a gola da<br />
casaca fugida para a nuca, o pobre Cruges, suando, estonteado por aquela<br />
desatenção rumorosa, atabalhoava as notas, numa debandada. 32<br />
No mesmo sentido convergem os comentários de alguma imprensa, por exemplo,<br />
quanto à tentativa fracassada de Miguel Ângelo Lambertini de fundar e manter uma<br />
Orquestra – a “Orquestra Sinfónica Portuguesa” – em 1906. Um dos comentários que<br />
sobressai é o do jornal republicano O Mundo, de França Borges:<br />
É preciso que o público vá a estes concertos não por vaidosa ostentação, mas<br />
sim por gosto sincero. […] Não é certamente o público do S. Carlos, lendo, falando,<br />
rindo, fazendo amor, fazendo, enfim, tudo; menos ouvir, que realiza o público<br />
ideal da música de arte. (Mundo, 3/12/1906). 33<br />
Daí merecerem especial relevo os fortes indícios, sobretudo desde cerca de 1881<br />
(com a fundação do Orpheon Portuense por Bernardo Valentim Moreira de Sá), de um<br />
movimento organizado de defesa e promoção da música instrumental que se fundia com<br />
firmes motivações político-ideológicas de oposição ao status quo. Ao contrário dos grandes<br />
negociantes de Lisboa de finais do século XVIII – os quais, inteiramente subordinados à<br />
esfera pública representativa, não tinham uma alternativa para o modelo do teatro de<br />
corte, antes o haviam feito seu no Teatro de São Carlos – agora, um século mais tarde,<br />
graças à vitalidade duma esfera pública burguesa em acelerada expansão, começava a<br />
gerar-se um verdadeiro movimento contra-hegemónico. A “burguesia esclarecida”, sem<br />
dúvida em larga medida polarizada em torno dos ideais republicanos, já não queria “ópera<br />
italiana na presença do rei”, mas sim música instrumental, a qual, como “experiência<br />
artística suprema”, pressupunha o religioso silêncio da audiência (a rigorosa observância<br />
da estrutura apresentacional).<br />
Não é por acaso que Viana da Mota escolhe o nome simbólico de “Bomtempo”<br />
quando se inicia na maçonaria em 1895, nem é por acaso que apadrinha a iniciação de<br />
Moreira de Sá no ano seguinte (este escolhe o nome simbólico de “Beethoven”). Sinais<br />
importantes a considerar são também a recusa de Moreira de Sá em aceitar a condecoração<br />
que lhe fora concedida pelo rei D. Luís e a omissão de dedicatórias à Família Real em obras<br />
de Viana da Mota desde a Sinfonia À Pátria (1895). Deverá igualmente recordar-se a<br />
participação de José Relvas na fundação da Sociedade de Música de Câmara em 1899<br />
(juntamente com Miguel Ângelo Lambertini, Costa Carneiro, Dom Luís da Cunha e Menezes,<br />
Cecil Mackee) e o pólo de intensa actividade camarística da Casa dos Patudos. De resto,<br />
esse movimento contra-hegemónico acaba por ser justificado retrospectivamente pelo<br />
próprio Viana da Mota num texto escrito em 1917 para a revista A Águia, da Renascença<br />
Portuguesa (n os 69 e 70):<br />
O encerramento dos teatros de São Carlos em Lisboa e do São João no Porto,<br />
longe de ter sido um prejuízo, foi um grande benefício para a música em Portugal,<br />
porque nos livrou dessa perniciosa influência e suscitou os concertos sinfónicos,<br />
que sem a falta da ópera não se teriam provavelmente sustentado. 34<br />
...........................................................................<br />
32 Citado in M. Vieira de Carvalho, Eça de Queirós e Offenbach…, p. 56-57.<br />
33 Cit. in M. Vieira de Carvalho, O Teatro de São Carlos…, p. 172.<br />
34 Cit. in M. Vieira de Carvalho, O Teatro de São Carlos…, p. 173.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
183<br />
É nesta identificação do Teatro de São Carlos bem como do Teatro de São João<br />
com o discurso simbólico duma certa e determinada ordem (aquela ordem monárquica<br />
que mantivera congelado, durante mais de um século, o modelo de teatro de corte do Antigo<br />
Regime), e no assumido propósito de liquidar essa tradição que vejo um dos momentos<br />
mais consequentes do republicanismo e da sua inspiração iluminista burguesa em matéria<br />
de cultura musical. Com a queda da monarquia também cai o teatro de corte, para dar<br />
lugar à sala de concertos burguesa como “lugar de realização da música autónoma”.<br />
Esta mudança de paradigma terá uma enorme importância no desenvolvimento<br />
da música em Portugal. Através dos concertos públicos gera-se uma dinâmica inteiramente<br />
nova na criação e na interpretação musicais: os compositores portugueses são muito<br />
mais solicitados e as suas obras recebidas com uma atenção que outrora só a ópera mobilizava.<br />
Dir-se-ia que a produção e a circulação da música em Portugal ganham densidade<br />
cultural pela sua interacção com outras correntes literárias e artísticas, movimentos<br />
ideológicos e políticos, problemáticas estético-filosóficas. Tudo isso também fazia parte<br />
do ressurgimento com que sonhava Viana da Mota na sua Sinfonia À Pátria (1895) –<br />
ressurgimento onde ecoam premonitoriamente as fanfarras da República…<br />
Finalmente, quanto ao projecto de uma Ópera Nacional, está ainda por encetar<br />
a investigação sistemática das fontes relativas a este período. Deixo aqui registada apenas<br />
uma breve nota para sublinhar que a questão emerge igualmente dos debates na esfera<br />
pública, antes e depois da implantação da República. A pressão da opinião pública leva à<br />
criação em diploma legal (1902) de um Teatro Nacional de Ópera, que se previa vir a ser<br />
instalado no local onde hoje se encontra o edifício do Governo Civil (Convento de São<br />
Francisco), mas cuja construção era deixada à iniciativa privada. Mais uma vez, não se<br />
colocava a hipótese da transformação do próprio Teatro de São Carlos num Teatro Nacional<br />
de Ópera. Também os governos da República nada adiantaram a este respeito: a Comissão<br />
de Reforma do São Carlos (que incluía Viana da Mota e Francisco d’Andrade) não produziu<br />
resultados.<br />
Pouco depois da implantação da República, o projecto é recuperado por Rui<br />
Coelho com a sua ópera O Serão da Infanta (libreto de Teófilo Braga), estreada em 1913,<br />
no São Carlos, com honras oficiais – a primeira de uma série de óperas em língua<br />
portuguesa que comporá ao longo da vida. 35 Também a corrente do Renascimento Musical<br />
(Ivo Cruz, entre outros) promove o uso da língua portuguesa nos géneros de ópera e<br />
oratório. Luís de Freitas Branco, primeiro ligado ao monarquismo e ao Integralismo<br />
Lusitano, depois à Oposição ao Estado Novo, assim como Fernando Lopes-Graça, que se<br />
assume desde cedo como activista político das áreas republicana e comunista, são<br />
igualmente defensores da ópera em língua portuguesa (incluindo traduções de originais<br />
estrangeiros). Enfatizam o critério da coerência do espectáculo de ópera como um todo e<br />
concebem o Teatro de São Carlos como um centro de produção músico-teatral própria,<br />
na base de artistas nacionais ou residentes. A formação de várias companhias de ópera<br />
com artistas nacionais nos anos vinte e trinta (envolvendo ocasionalmente o maestro<br />
Pedro de Freitas Branco) pode também ser referida a este propósito. Em suma: logo a<br />
seguir à implantação da República tudo parecia encaminhar-se para a institucionalização<br />
de uma Ópera Nacional. Paradoxalmente, porém, o “nacionalismo” do Estado Novo não<br />
incluía tal desígnio. Apesar de a ópera D. João IV, de Rui Coelho, ter sido escolhida para a<br />
reabertura do São Carlos em 1940, o desenvolvimento nesse sentido foi bloqueado. A<br />
“Acção Nacional de Ópera”, de Rui Coelho, que pretendia constituir-se como uma estrutura<br />
...........................................................................<br />
35 O Teatro de São Carlos estava encerrado para temporadas regulares desde 1912. Quando reabre em 1920,<br />
apresenta regularmente óperas de Rui Coelho em estreia: Crisfal (1920), Auto Berço (1921), Inês de Castro, A<br />
Freira de Beja e O Cavaleiro das Mãos Irresistíveis (1927).<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
184<br />
de produção permanente – de certo modo, uma tentativa paralela à dos Bailados Verde<br />
Gaio (criados, já nos anos 40, por António Ferro) – é um projecto abortado que nunca<br />
receberá o necessário apoio público. O Estado Novo prefere recuperar, para o São Carlos,<br />
o conceito de teatro representativo – “sala de visitas” – , ao serviço da estetização da política.<br />
O modelo inspirador é o do “teatro de corte” do Antigo Regime, do qual não era historicamente<br />
possível, nem conveniente, recuperar a estrutura de comunicação coloquial,<br />
mas já era possível conservar a função. Bem o demonstra a obrigatoriedade do traje de<br />
cerimónia: aos olhos de uma esfera pública refeudalizada, servia para distinguir o escol<br />
do Outro inferior… 36<br />
...........................................................................<br />
36 Cf. M. Vieira de Carvalho, O Teatro de São Carlos…, p. 213-254 (cf. também o original alemão desta obra, mas<br />
remodelado, actualizado e largamente documentado com iconografia: ‘Denken ist Sterben’. Sozialgeschichte<br />
des Opernhauses Lissabon, Kassel, Bärenreiter, 1999). Para um panorama mais detalhado dos desenvolvimentos<br />
da cultura musical nas primeiras décadas do século XX, cf. igualmente do autor, “Snobismo e confrontação<br />
ideológica na cultura musical”, in Portugal Contemporâneo, ed. António Reis, Lisboa, Alfa, 1989 ss., v. III, p. 297-<br />
310. Para o período de 1870-1900, cf. Maria José Artiaga, Continuity and Change in Three Decades of Portuguese<br />
Musical Life (1870-1900), PhD Diss, Royal Holloway, University of London (policopiado).<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
185<br />
A “batalha dos símbolos”: ópera no Brasil,<br />
da Monarquia à República *<br />
Maria Alice Volpe<br />
Universidade Federal do Rio Janeiro<br />
O presente trabalho aborda a ópera no Brasil na trama de discursos que concorreram<br />
para os embates identitários no período de transição do regime político, da<br />
Monarquia à República. A legitimação de um novo conjunto de valores sociais, políticos e<br />
culturais foi empreendida em diversas modalidades discursivas, entre as quais a ópera<br />
teria potencialmente uma capacidade comunicativa de difundir as diferentes visões para<br />
além dos setores mobilizados com essas questões. Compreendida como parte integrante<br />
das batalhas ideológica e política, observa-se que a “batalha de símbolos” que se deu no<br />
âmbito da ópera encontrou maior ressonância ao operar sobre os valores identitários já<br />
assimilados ao imaginário nacional durante o período monárquico, do que sobre as tentativas<br />
republicanas de definir o panteão cívico do novo regime. Enquanto essa “batalha de<br />
símbolos” era empreendida nos círculos da elite intelectual e política brasileira, também<br />
se colocava em tensão discursiva com os diversos subgêneros do teatro musicado, uma<br />
vez que resistia em reconhecer nessas práticas socioculturais populares um lugar no imaginário<br />
nacional – contradizendo, portanto, os postulados republicanos de envolvimento<br />
popular na vida política. O foco de análise desse trabalho reside na crítica musical e literária,<br />
pela qual se buscará identificar as questões mais significativas para um redimensionamento<br />
da ópera na história cultural do Brasil no referido período.<br />
Iniciemos a nossa teia de discursos puxando um fio da crônica musical que retrata<br />
vivamente aquele complexo social:<br />
Ante os gravíssimos acontecimentos em nossa vida social e politica, parece que<br />
assunto não deveria haver para esta crônica. Entretanto, assim não é. Apesar da<br />
orchestra dos canhões, granadas e balas em guerra fratricida, a crônica lírica<br />
tem a registrar os Huguenotes, de Meyerbeer, a Traviata, de Verdi, Bocacio e<br />
outras operetas, no Lírico e no Politeama. Apesar dos perigos da guerra civil, ha<br />
assunto para a semana lírica! Isso demonstra até que ponto é privilegiada a natureza<br />
de nossa terra e privilegiada a indole de nosso povo. A anormalidade dos<br />
acontecimentos não influiu na normalidade de nossa vida social e doméstica.<br />
Na política podem as tempestades formar torvelinhos de tufões; na vida social e<br />
na família não há grande mudança de hábitos e costumes. Pelas ruas da cidade<br />
perambulam senhoras e cavalheiros. Vão ás compras e obrigações cotidianas.<br />
Em todos os teatros, em que se faz musica ou representam comédias, mágicas e<br />
operetas, afluem os espectadores com o mesmo entusiasmo do costume. Ha<br />
corridas hípicas, arriscam-se somas loucas, formiga o povo... chega a parecer indiferença<br />
pelos destinos da pátria... É positivamente privilegiada a nossa terra e<br />
privilegiada tambem a indole do povo brasileiro. [...] Como outrora [referindose<br />
à Abolição da Escravatura e à Proclamação da República], o povo assistia aos<br />
acontecimentos, aplaudindo as vitórias e indiferente ás derrotas, assim tambem<br />
agora: [...] abre-se o primeiro ciclo de uma guerra fraticida, e o povo, acostumado<br />
a músicas e flores, olha quase indiferente para tudo isso, com se tratasse de<br />
...........................................................................<br />
* Agradecimento pelo fomento da CAPES (Bolsa de Doutorado no Exterior, 1995-2000) e da Biblioteca Nacional<br />
do Rio de Janeiro (Programa Nacional de Apoio à Pesquisa, Edital de 2009).<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
186<br />
simples espetáculo cômico no Lírico, á cata de diversões! E os teatros continuam<br />
a funcionar todas as noites [...] A Traviata permanece em cena, o Abacaxi e outras<br />
peças de diversão, até que uma granada venha dissolver as reuniões de festa<br />
a que nos entregamos! Que privilegiada, a nossa terra, e a indole do povo<br />
brasileiro! 1<br />
O episódio a que se refere a crônica da coluna “Semana Lírica” da Cidade do Rio<br />
– periódico dirigido pelo abolicionista e republicano José do Patrocínio – é a segunda Revolta<br />
da Armada, iniciada a 6 de setembro de 1893, e empreendida por um grupo de altos<br />
oficiais da Marinha que exigiam a convocação de eleição presidencial em cumprimento à<br />
Constituição de 1891. 2 Publicada no final de semana seguinte ao início da Revolta da Armada,<br />
a crônica acima retrata com agudo senso crítico o comportamento político e social<br />
da população do Rio de Janeiro na primeira década da República, trazendo o entorno musico-teatral<br />
à análise histórica empreendida por José Murilho de Carvalho, em Os Bestializados:<br />
O Rio de Janeiro e a República que não foi (1987). O relato da reação da população,<br />
indiferente à aguda crise política e iminente guerra civil, enquanto “inveteradamente”<br />
absorvida pelas diversas modalidades de entretenimento oferecidas pela Capital Federal<br />
– na qual o teatro de música ou de representação estava entre os hábitos sociais assíduos,<br />
ao lado das corridas de cavalo, compras, passeios e diz-que-diz-que nos espaços públicos<br />
– desafia as nossas pretensões, no campo da teoria histórica, de compreender a música<br />
numa teia de discursos dos embates identitários do período em questão.<br />
Entretanto, foi justamente esse alheiamento das questões políticas imediatas,<br />
expresso no comportamento social desse segmento da população que afluía aos teatros<br />
fluminenses, que possibilitou a recorrência, no âmbito musical, de símbolos identitários<br />
forjados em momentos políticos anteriores – o Indianismo e a Paisagem, conforme propusemos<br />
no nosso trabalho de 2001 – e, ao mesmo tempo, a não consagração de símbolos<br />
identitários propostos pela elite intelectual e artística dos círculos republicanos – que<br />
trataremos nesta comunicação. Buscaremos mostrar, neste breve estudo, que a rede de<br />
discursos identitários vinculados à música teatral teve lugar justamente nesse espaço<br />
sociocultural aparentemente “apático”, onde se confluem as análises históricas propostas<br />
por José Murilo de Carvalho, no já referido livro de 1987 e no estudo posterior, que deu<br />
consecução à análise da dimensão simbólica da legitimação do novo regime político, A<br />
formação das almas: o imaginário da República do Brasil (1990). A falta de ressonância<br />
popular nos símbolos escolhidos pela “república musical”, como a denominou Avelino<br />
Pereira em suas propostas músico-teatrais, levou o projeto de restauração do teatro nacional<br />
– refiro-me aqui ao Centro Artístico (1893-1901) – a sua suplantação peremptória<br />
pelas práticas culturais vinculadas às sociabilidades e identidades dos diversos segmentos<br />
da população da Capital Federal.<br />
O Indianismo na música brasileira encontrou aderência, perante o público e a<br />
crítica, como símbolo de identidade nacional justamente no seu período de declínio na<br />
literatura. O sucesso retumbante de Il Guanary (1870) – na recepção europeia pelo exotismo<br />
e na recepção brasileira – plasmado no mito de fundação nacional – motivou uma<br />
série de obras sobre o tema indianista nas décadas subsequentes: a ópera Moema (1895)<br />
de Delgado de Carvalho, o poema sinfônico Marabá (1894) e a ópera Jupyra (1900) de<br />
Francisco Braga. O mito de fundação nacional, embutido no discurso literário e nas belas<br />
artes, teve o seu sistema de submitos gradualmente dissolvido nas referidas obras musicais<br />
ao perpassar a primeira década da República. O Indianismo continuou a reverberar nesse<br />
...........................................................................<br />
1 Charnacé. Cidade do Rio, 10 de setembro de 1893, p. 1, coluna “Semana Lyrica”, grifo nosso.<br />
2 Após a renúncia do primeiro presidente Deodoro da Fonseca, acusava-se Floriano Peixoto (o vice) de permanecer<br />
ilegalmente no cargo.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
187<br />
imaginário músico-teatral, deseroicizando a figura do português colonizador, suprimindo<br />
o tema da conversão ao catolicismo e constatando o fracasso da união entre o português<br />
e o índio, tanto pela corrupção dos costumes nativos (em Moema), como pela visão pessimista<br />
da miscigenação, simbolizada pela mestiça enjeitada, deslocada socialmente, pois<br />
que não se encaixa nem no mundo dos brancos, nem no mundo dos índios (em Jupyra e<br />
Marabá), terminando simbolicamente por uma morte social (Volpe, 2001).<br />
Ainda que calcado num sistema simbólico do período monárquico, o Indianismo<br />
conseguia catalizar algumas questões sociais importantes debatidas nos anos iniciais do<br />
novo regime. Por outro lado, o Indianismo não enfrentou, no plano das simbologias republicanas,<br />
concorrente que tivesse a legitimidade necessária para o esvaziar em favor de<br />
um sistema simbólico mais oportuno social e politicamente.<br />
As primeiras décadas da República do Brasil (1889-1909) têm sido caracterizadas<br />
pelo ideal cosmopolita de “civilização” e “progresso”, que visava integrar o Brasil no “concerto<br />
das nações”, vale dizer, na economia mundial, o que implicava emulação do estilo<br />
de vida europeu, mais precisamente, parisiense. 3 Entre as vogas culturais importadas da<br />
França, estava o wagnerismo, que conquistava o público e a crítica parisiense e, imediatamente,<br />
fluminense. Defensores dessa corrente estavam entre o grupo de artistas e<br />
intelectuais que intentaram uma proposta simbólica para a República brasileira. Fundaram<br />
o Centro Artístico (1893), 4 cuja proposta tinha como cerne “elevar e dignificar a arte brasileira”<br />
e “ressuscitar o teatro lírico nacional”. Os membros dessa associação estavam engajados<br />
na ideologia de “progresso” artístico e tomaram o wagnerismo e “música do<br />
futuro” no Brasil como a sua panaceia. Trata-se aqui sobretudo de Leopoldo Miguez, Coelho<br />
Neto, Luís de Castro e Rodrigues Barbosa. Outros aderiram topicamente, como Alberto<br />
Nepomuceno e Delgado de Carvalho.<br />
A preocupação central da “inteligência musical” brasileira durante a década de<br />
1890 estava claramente voltada para a atualização da música brasileira com as correntes<br />
europeias, muito mais do que propriamente com a reavaliação dos símbolos de identidade<br />
nacional. Isso se torna muito claro na única associação musical que promoveu alguma<br />
reflexão sobre a música no Brasil, o Centro Artístico. A produção musical promovida pelo<br />
Centro Artístico torna evidente que assuntos e símbolos nacionais não faziam parte da<br />
questão da “ressurreição do teatro nacional” e “dignificar a arte brasileira” significava<br />
emular modelos europeus de “civilização” e “progresso”.<br />
No Prefácio intitulado “Escudo”, ao libreto do Os Saldunes (1900), Coelho Neto<br />
justifica a sua empreitada, invocando a modéstia de um prosador pela ousadia de escrever<br />
poesia, em prol da campanha pela criação do drama lírico no Brasil:<br />
Eu costumo subir ao Parnaso, quando o Ideal me reclama, vestindo a penula<br />
modesta, como simples prosador que sou; quis, porém, não por vaidade, senão<br />
por amor da Arte excelsa, traçar o pallium magnifico dos rimadores e, mal ajustado,<br />
accusando o meu desageitamento em traze-lo, elle reveste-me o corpo,<br />
não encobrindo de todo o grosseiro trajo de prosador, que é o meu. Penetro o<br />
templo de Musagete como supplicante, não como sacerdote; pedindo-lhe que<br />
me auxilie na campanha em que ando tambem empenhado, da creação do<br />
...........................................................................<br />
3 Ver, entre outros, Martins (1978); Sevcenko (1999 [1983]); Needell (1987); e Volpe (2001), especialmente capítulo<br />
2 “The construction of an image: the ‘Capital Federal’”, p. 55-130.<br />
4 O Centro Artístico foi dirigido pelo compositor e regente Leopoldo Miguez e contou com a contribuição de personalidades<br />
como os escritores Coelho Neto e Artur Azevedo, os críticos musicais Luís de Castro e Rodrigues Barbosa,<br />
o compositor e regente Alberto Nepomuceno, o compositor, pianista e editor musical Artur Napoleão, o compositor<br />
diletante Delgado de Carvalho, renomados artistas plásticos como Bernardelli e Amoedo, além de outros membros<br />
da elite brasileira como Antonio Bustamante, o bacharel Silvio Bevilcqua e o dr. Ildefonso Dutra (Azevedo,<br />
1950, p. 51; Azevedo, 1956, p. 97-8, 111-112, 384; Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 16 de maio de 1900, p. 3).<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
188<br />
“Drama Lyrico” no Brazil. Relevaime, pois, a audacia e não tomeis como<br />
atrevimento insolito o que é simplesmente fervoroso enthusiasmo. 5<br />
A publicação d’ Os Saldunes de Coelho Neto em Portugal suscitou inúmeros artigos<br />
na crítica de diversos periódicos, portugueses e brasileiros. Uma das questões<br />
principais foi o seu estilo influenciado pelo “decadentismo” francês. O crítico que assinava<br />
por “Bruno”, realça a “furia de improvisação abundante, a opulencia inexhaurivel de um<br />
vocabulario lucilante de côr, a immensa plasticidade do estylo flexuoso” de Coelho Neto,<br />
o qual, “vencido pelo falso prestigio do boulervard, deixou-se descahir pelos exageros de<br />
expressão e para as originalidades de construcção que contrarião o espirito da lingua e<br />
desarticulão o idioma; enfim, para desorientação verbal que produz páginas esotéricas<br />
voltadas a misterioso enigma de morbida emotividade moderna”. 6<br />
Além do estilo eclético de Coelho Neto, influenciado pelo simbolismo e parnasianismo,<br />
o gosto decadentista por temas esotéricos e mórbidos (Artemis, musicada<br />
por Alberto Nepomuceno) e a adesão a temáticas mitológicas pelos defendores do “Drama<br />
Lírico no Brasil” recebiam apreciação negativa pela crítica brasileira e portuguesa. Algumas<br />
vezes por suas inconsistências mitológicas – libreto de Hostia, musicado por Delgado de<br />
Carvalho – outras por sua inadequação para expressar o caráter nacional na literatura<br />
brasileira – Os Saldunes, musicado por Leopoldo Miguez.<br />
O crítico Oscar Guanabarino aponta detalhadamente os descabimentos do “enredo<br />
archeologico” da balada Hostia, de Coelho Neto, qualificando ironicamente o escritor<br />
como “erudito mythologista” e “erudito orientalista” do “Centro Shakeswagneriano”. 7<br />
No caso de Os Saldunes, a coluna “Theatros e Música” do Jornal do Commercio<br />
transcreve trecho inteiro de comentário do romancista português Carlos Malheiro Dias<br />
sobre Coelho Neto, em artigo sobre a “geração nova no Brasil”, publicado no número especial<br />
da “revista illustrada Brazil-Portugal, commemorativo do Centenario do Descobrimento<br />
(1900), para relembrar o seu retorno à direção acertada da literatura brasileira<br />
no romance Sertão” – e, portanto, o seu desacerto no Saldunes:<br />
Coelho Netto, a meio do perigo de uma desorientação que ameaçava levar o retrocesso<br />
á obra eminentemente progressiva da sua geração em plena luta de<br />
escolas decadentes, lança os fundamentos do romance nacional de costumes e<br />
inicia a obra gloriosa do Sertão, colhendo a caracteristica predomente e definitiva<br />
da raça brazileira, creando o preciosissimo manancial dos costumes, da linguagem,<br />
das lendas e das tradições; fazendo que uma intuição genial, a obra mater<br />
da nacionalisação litteraria; e documentando para todo o sempre o periodo tumultuario<br />
da unificação da raça, erguendo os scenarios magnificentes onde se<br />
derramão os clarões da aurora do povo novo. 8<br />
...........................................................................<br />
5 Coelho Neto, “Escudo”, prefácio ao libretto Os Saldunes (1900), grifos nossos.<br />
6 “Um dos mais insignes prosadores do Brazil contemporaneo, redigindo, em uma furia de improvisação abundante,<br />
chronicas diarias para o jornalismo fluminense, em curto lapso Coelho Netto occupava o primeiro lugar,<br />
pela opulencia inexhaurivel de um vocabulario lucilante de côr e pela immensa plasticidade de um estylo flexuoso<br />
e proprio a frisar o mysterioso enigma de morbida emotividade moderna. […] Vencido, como todos os Brazileiros,<br />
do falso prestigio do boulervard, deixou-se descahir para os exageros de expressão e para as originalidades de<br />
construcção que contrarião o espirito da lingua e desarticulão o idioma./ Começou-se a perceber no espirito e<br />
na factura de Coelho Netto o influxo, escusado, das extravagancias do Sr. Peladan; e escandalisou o Rio um<br />
cantico no gosto e quase que nos vocabulos daquella pagina esoterica, que é rythmada pelo ritornello da fanfarra:<br />
Los a toi./ No volume, agora, de Os Saldunes volve a insistir esta desorientação verbal, nas rubricas e nas notulas<br />
preliminares explicativas. Mas o corpo da obra está felizmente indemne dessa macula: é ele um conjunto perfeito”.<br />
(Voz Publica, Porto, 18 de maio de 1900, grifos nossos)<br />
7 Guanabarino, Oscar. Coluna “Artes & Artistas”, O Paiz, Rio de Janeiro, 3 de novembro de 1898, p. 2.<br />
8 Dias, Carlos Malheiro. Trecho citado em coluna “Theatros e Música”, Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 10<br />
de maio de 1900, p. 3, grifos nossos.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
189<br />
O problema do caráter nacional emergiu com bastante intensidade por ocasião<br />
do IV Centenário do Descobrimento do Brasil (1900), ensejando disputa acirrada entre<br />
Leopoldo Miguez e Francisco Braga, pela encenação de suas óperas, respectivamente<br />
Il Salduni e Jupyra, dentro da programação comemorativa oficial. Tratei detalhadamente<br />
desse problema em trabalho anterior (Volpe, 2004), mas sintetizo aqui o imbroglio que<br />
resultou no cancelamento das duas. A ópera indianista de Braga teria sido “oficialmente<br />
escolhida pela comissão do IV Centenário do Brasil”, conforme carta de F. Braga a F. Buschmann,<br />
9 e a produção do drama lírico de Miguez teria sido prometida para o mesmo fim,<br />
de acordo com a afirmação de Coelho Neto na Gazeta de Notícias e no Jornal do Commercio.<br />
10 Embora um exame das relações interpessoais sugira a tendenciosidade da Associação<br />
do IV Centenário ao suspender o suporte financeiro aos dois espetáculos, uma<br />
análise do contexto mais amplo de significação revela que faltava a ambas as óperas<br />
substância ideológica que ressoasse o discurso das instituições guardiãs das celebrações<br />
da história nacional; faltava igualmente o elogio da colonização portuguesa e o mito de<br />
fundação nacional incólume. A ópera sobre a mestiça deslocada socialmente, Jupyra, foi<br />
encenada em 1900 fora do âmbito da programação comemorativa oficial e a ação lendária,<br />
Os Saldunes, apenas no ano seguinte.<br />
A proposta do Centro Artístico de “criação do Drama Lyrico no Brasil” foi atacada<br />
por diversos ângulos, na imprensa diária, algumas vezes até com o sarcasmo típico nas<br />
polêmicas da época. Argumentos de ordem ideológica, estética e estilística se misturavam<br />
com ataques pessoais.<br />
Lobo Cordeiro aponta o problema identitário fundamental do projeto de criação<br />
do “Drama Lírico no Brasil” nos moldes defendidos pelo círculo wagneriano:<br />
Esta pouca affeição pelo drama lyrico […] aggrava-se quando vemos o poema<br />
de Coelho Netto, aproveitando para assumpto de composição musical um lance<br />
dramatico que, pela geographia e pela ethnographia, não tem nada que ver<br />
com as tradições do espírito melodico do povo a que pertencem o poeta e o<br />
musico. 11<br />
Temos aí a questão identitária que ocupará cada vez mais espaço nas décadas<br />
subsequentes. Soma-se a ela, a “missão civilizatória”, pretendida pelo Centro Artístico,<br />
que se configurava em outros campos como projeto maior da inteligência à época. 12 Alinhados<br />
aos intelectuais que estabeleciam projetos para a “redenção das massas miseráveis”<br />
(Sevcenko, 1999[1983], p. 95), os membros do Centro Artístico se incumbiam de estabelecer<br />
os parâmetros para a “educação do público”. A “missão civilizatória” pretendida<br />
pelo Centro Artístico foi ridicularizada por Oscar Guanabarino até ser, após alguns anos,<br />
cabalmente descartada pelo público. Guanabarino protesta:<br />
[…] um dos sócios da empreza que se denomina Centro Artístico affirmou ter<br />
sido fundada aquella associação – não para servir de campo pratico aos artistas<br />
nacionaes e educal-os em provas publicas, com a critica severa e imparcial da<br />
massa anonyma que, nos theatros, compra o direito de applaudir ou patear –<br />
mas para educar esse mesmo publico, aliás conhecedor de uma vasta litteratura<br />
...........................................................................<br />
9 Carta de F. Braga a F. Buschmann, 20 de fevereiro de 1900, transcrita in Exposição (1968, p. 34).<br />
10 Gazeta de Notícias, de 1º de maio de 1900, parcialmente reimpresso no Jornal do Commercio, Rio de Janeiro,<br />
em 8 de maio de 1900, p. 3.<br />
11 [Cordeiro, Lobo]. ‘Saldunes’ in coluna “Theatros e Música”, Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 10 de maio<br />
de 1900, p. 3, grifos nossos.<br />
12 Sobre a missão civilizatória da inteligência brasileira do período, ver Sevcenko, 1999 [1983].<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
190<br />
dramatica e musical, apresentada por artistas de nomeada universal. Essa pretenção,<br />
ridicula em si, irritou, como era natural, não só o publico em geral, como<br />
a maioria dos socios do Centro, e no jornalismo achou formal protesto nestas<br />
columnas, cujo signatario repudiou desde logo a educação, que se lhe pretendia<br />
dar a titulo de renascimento das artes. 13<br />
E para fundamentar o seu indignado protesto contra a pretensão educativa da<br />
referida associação, Guanabarino desqualifica o próprio círculo de artistas nele envolvido,<br />
qualificando-os “de uns tantos pigmeus que, na opinião desses desvairados, se colocariam<br />
ao lado de Shakespeare e de Wagner”. E, ainda, denuncia a incompetência de Delgado de<br />
Carvalho como orquestrador e instiga que seja revelado o seu colaborador na instrumentação.<br />
Guanabarino fala ironicamente:<br />
Nós, que conhecemos a instrumentação de Berlioz, de Meyerbeer, de Massenet,<br />
de Verdi, de Grieg, de Puccini, de Beethoven, de Bizet, de Gounod e tantos outros<br />
musicos notaveis – nada sabemos, nada ouvimos, e devemos ir aos espectaculos<br />
do Centro para sermos educados pelo Sr. Delgado de Carvalho! 14<br />
Oscar Guanabarino aponta ainda as inconsistências na ação teatral. E entre uma<br />
desqualificação e outra o crítico exclama repetidamente: “E ahi temos a fórma pela qual<br />
o Centro Artistico nos quer educar!” – “E querem nos educar!”<br />
Os preceitos estéticos do drama musical wagneriano também foram questionados,<br />
entre eles, a ideia de “obra de arte total” e a própria relação discursiva entre a<br />
ópera e a plateia. No primeiro aspecto, Lobo Cordeiro afirma:<br />
O drama lyrico (com representar um progresso de concepção de composição) é<br />
– no seu desenho structural e no seu lemma basilar – uma das extravagancias<br />
chimericas do alto e puro genio, mas genio sempre incompleto e fragmentario<br />
de Ricardo Wagner. A fusão de todas as artes na theatral e scenica da peça de<br />
espetaculo não é uma synthese, é um cyncretismo. Sobrenadarão as artes dos<br />
sentidos, a musica, a pintura, as mesmas formulas elementares da coreographia,<br />
da mise-en-scène, da alfaiataria de theatro, etc. Mas, na arte do espírito, a poesia,<br />
perde-se-há por completo. E, perder-se-há até no que nella há já de sensual e de<br />
technico. A musica simples da alliteração e da rima ficará submergida na onda<br />
estrepitante das sonoridades orchestraes. 15<br />
...........................................................................<br />
13 “[…] (cont.) “Educa-se um povo, no terreno das artes, com as grandes producções dos artistas celebres, commentandose<br />
essas mesmas obras, afim de chamar a attenção para os pontos fracos ou para as suas bellezas; mas os araufos do<br />
Centro começaram a sua campanha educadora procurando chamar o ridiculo sobre os fundadores da arte musical,<br />
julgando que por essa fórma destruiam os genios que se impuzeram a muitas gerações, afim de conseguirem a imposição<br />
de uns tantos pygmeus que, na opinião desses desvairados, se collocariam ao lado de Shakespeare e de Wagner<br />
para afastar o publico da admiração votada a Bellini, o inimitado melodista admirado por todo o mundo e pelo proprio<br />
Wagner; a Rossini, que salvou a musica italiana das garras dos cantores que adulteravam tudo para que sobressaissem<br />
as suas qualidades de virtuose; a Verdi, o mais pujante dramatisador da musica, que obrigou toda a Italia a acompanhar<br />
com elle a evolução da sua arte; a Gounod, o musico contemplativo que se immortalizou com o Fausto; a<br />
Meyerbeer, o grandioso autor da Propheta, e por ahi além, no mais ridiculo desrespeito aos maiores vultos que<br />
occupam logar saliente na historia das artes./ Explica-se assim a nossa attitude franca e leal; e sabemos ter ao nosso<br />
lado um grande partido”. (Guanabarino, Oscar. O Paiz, Rio de Janeiro, 3 de novembro de 1898, p. 2, “Artes & Artistas”;<br />
crítica sobre a apresentação da balada Hostia, música de Delgado de Carvalho, libreto de Coelho Neto; grifo nosso.).<br />
14 Guanabarino, Oscar. Coluna “Artes & Artistas”, O Paiz, Rio de Janeiro, 3 de novembro de 1898, p. 2, crítica sobre a<br />
apresentação da balada Hostia, música de Delgado de Carvalho, libreto de Coelho Neto; grifo nosso.<br />
15 [Cordeiro, Lobo]. ‘Saldunes’ in coluna “Theatros e Música”, Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 10 de maio de<br />
1900, p. 3.<br />
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O mesmo crítico faz ainda um balanço negativo da proposta wagneriana e sua<br />
adequabilidade teatral:<br />
Não se crie o poeta ilusões. Todo o poema posto em musica nunca passará de<br />
um libretto. [...] Coelho Netto houve de sacrificar ás exigencias theatraes do<br />
drama lyrico, o que mais uma vez prova o artificioso e falso do systema. 16<br />
A relação entre a ópera e o público, instaurada pelo drama musical wagneriano,<br />
foi sutilmente reprochada por Oscar Guanabarino ao comentar a recepção inicialmente<br />
fria do público na estreia de Il Salduni, “porque Leopoldo Miguez na sua partitura não dá<br />
uma pausa ou uma resolução sobre a tônica, de modo a poder intervir a plateia” 17<br />
Certamente, tratava-se de uma mudança de hábitos, de uma proposta de prática<br />
sociocultural que alijava a participação do público, subtraindo-lhe a espontaneidade de<br />
reações. E não passou despercebida do crítico.<br />
Não há dúvida de que o wagnerismo teve os seus defensores que colocaram a<br />
sua voz na crítica periódica. Esgota-me o tempo aqui para adentrar nos seus argumentos.<br />
Lembro sinteticamente os seus ideais de “progresso” e sua predileção pelo termo “música<br />
do futuro” ao defender o drama musical wagneriano e o poema sinfônico. Esse breve<br />
apanhado, predominantemente das vozes contrárias ao projeto de “criação do Drama<br />
Lírico no Brasil”, conclui agora com a explicação de sua falência, trazendo o comentário<br />
de Oscar Guanabarino sobre a dissolução do Centro Artístico:<br />
Essa associação foi derrocada – não pelo signitário destas linhas, como da a entender<br />
o illustre librettista no final do livro sobre o 4º Centenario, mas pelo bello<br />
sexo fluminense que, não podendo supportar as imposições de uma arte falsa,<br />
pretenciosa e ridícula, reagiu abandonando aquelles espectaculos inexplicáveis<br />
e impassiveis. Daquella febre delirante em que os psychiatras poderiam acham<br />
motivos para serias indagações e novos estudos, sobretudo no tocante á periencephalite<br />
difusa, apresentando os doentes a monomania da grandeza artística;<br />
daquele delírio dizíamos sempre lucriou-a arte alguma coisa – a partitura dos<br />
Saldunes. 18<br />
Alguns anos depois, Coelho Neto, ao ser indagado por João do Rio, em entrevista<br />
em junho de 1907, sobre qual era o volume preferido de sua lavra, o prolífico escritor<br />
responde:<br />
O Pelo Amor! Não se admire. Prefiro o Pelo Amor! por uma questão de momento.<br />
Ainda naquele tempo julgava-me capaz de alguma coisa no Brasil. Foi uma batalha<br />
perdida, mas de que me lembro com saudades, como certos generais velhos<br />
recordam nostálgicos as derrotas. Em todo o caso foi uma perda que acentuou<br />
a cisão e determinou uma corrente literária. 19<br />
...........................................................................<br />
16 [Cordeiro, Lobo]. ‘Saldunes’ in coluna “Theatros e Música”, Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 10 de maio<br />
de 1900, p. 3, grifo nosso.<br />
17 Guanabarino, Oscar. ‘Saldunes’ in coluna “Artes & Artistas”, O Paiz, Rio de Janeiro, 21 de setembro de 1901, p. 2.<br />
18 Guanabarino, Oscar. “Saldunes: Impressões do Libretto”, artigo separado, (anterior à) coluna “Artes & Artistas”,<br />
O Paiz, Rio de Janeiro, 20 de setembro de 1901, p. 2, grifos nossos. (Na primeira página, no topo central,<br />
com retrato de Miguez.)<br />
19 Entrevista de Coelho Neto concedida a João do Rio, em junho de 1907, Coleção Biblioteca Nacional do Rio de<br />
Janeiro; grifo nosso.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
192<br />
Está enfeixado aí um novo momento na história cultural brasileira, quando a<br />
participação dos valores populares ganhará crescente proeminência. A elite intelectual<br />
buscará o folclore e o movimento nacionalista até adentrarmos o modernismo. E as práticas<br />
socioculturais populares irão se legitimar cada vez mais nos espaços urbanos de sociabilidade,<br />
tendência que deve se realizar de modo predominante na nossa contemporaneidade.<br />
Assim como o seu panteão cívico, o projeto simbólico-musical da Primeira<br />
República caiu no olvido por não encontrar ressonância social. Enquanto o modernismo<br />
não chegava, para fazer a sua releitura primitivista do índio e da paisagem, assistimos a<br />
uma batalha de símbolos cujas tentativas no campo dramático-musical tiveram maior<br />
aderência social nos palcos do teatro musical popular do que na arena da “música do<br />
futuro”. Para a república dramático-musical, a batalha de símbolos foi uma batalha perdida.<br />
Figura 1. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 8 de novembro de 1898, anúncio do Centro Artístico, Artemis, de<br />
Alberto Nepomuceno e Coelho Neto.<br />
Figura 2. Cidade do Rio, Rio de Janeiro, 11 de agosto de 1900, primeira página: Coelho Neto e esposa.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
Figura 3. O Paiz, Rio de Janeiro, 20 de setembro de 1901, p. 1 (topo central): retrato de Leopoldo Miguez.<br />
193<br />
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Jornal do Commercio. Rio de Janeiro, 16 de maio de 1900.<br />
O Paiz, Rio de Janeiro, 20 de setembro de 1901.<br />
Voz Publica. Porto, 18 de maio de 1900.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
195<br />
Carlos Gomes no contexto<br />
da transição da ópera italiana<br />
Marcos Virmond<br />
Universidade Sagrado Coração, Bauru<br />
Após o silêncio de Gioacchino Rossini, em 1829, o precoce desaparecimento de<br />
Vincenzo Bellini, em 1835, e a morte de Gaetano Donizetti, em 1848, o melodrama lírico<br />
ficou nas mãos de Giuseppe Verdi por um longo tempo. Ainda que renovador, Verdi segue<br />
os modelos do melodrama lírico estabelecidos por esses compositores. Esse modelo<br />
calcava-se nos números operísticos fechados, onde a ária tripartite impera e a presença<br />
da caballeta é indispensável. Entretanto, nos últimos anos da década de sessenta, este<br />
modelo parece ter chegado a um esgotamento e mudanças se impunham. A arte Italiana,<br />
como um todo, parece não suportar mais o isolamento a que foi submetida pela barreira<br />
virtual dos Alpes. Uma nova geração reclama novos ares. O melodrama lírico, uma das<br />
mais bem guardadas relíquias da unificação da Itália, não se exclui dessa necessidade de<br />
renovação. Ademais, Verdi parece modificar seu processo composicional e reduz a<br />
frequencia de novas óperas que produz. É este momento que se desenvolve no período<br />
arbitrariamente compreendido entre 1870 e 1893 e nele serão apresentadas e se consolidarão<br />
profundas modificações no melodrama lírico no que se refere a sua estrutura musical,<br />
no processo composicional e na constituição de seus libretos. Essas modificações<br />
terão reflexos para o surgimento da giovane scuola, estendendo-se sobre a produção<br />
operística até o início do século XX. Mesmo ocorrendo no período pós-romântico da ópera<br />
italiana, essas décadas de agitação cultural melhor se qualificam pela denominação de<br />
período de transição. Atores privilegiados nesse processo são Antônio Carlos Gomes, Amilcare<br />
Ponchielli e Alfredo Catalani. A presente investigação procura demonstrar suas contribuições<br />
na afirmação desse período, procurando recuperar a relevância deles para a<br />
evolução da ópera italiana da segunda metade do século XIX.<br />
Antônio Carlos Gomes parece um compositor fadado à controvérsia. Na juventude<br />
enfrentou dificuldades com a imprensa sobre a fatura de sua Joana de Flandres. Ao<br />
longo de sua carreira da maturidade colhia, na mesma proporção, desafetos e glórias em<br />
seu país natal. Morto, foi guindado à condição de nume estelar da cultura pátria para, em<br />
seguida, ser destronado pelos scapigliatti da Semana de 1922. A depressão da arte lírica<br />
nacional, após o fim das rotineiras temporadas internacionais, traz consigo um paralelo<br />
esquecimento do compositor. Após isto, efemérides e iniciativas de regentes sensíveis,<br />
mas isolados, são os únicos responsáveis por dispersos renascimentos de obras do Gomes.<br />
Mais recentemente, este revival parece interessar ao cenário internacional. Entre outras<br />
iniciativas, Il Guarany é encenado em Bonn (1994) e Washington (1966), Salvator Rosa no<br />
Festival de Martina Franca (2004) e Colombo estréia na Europa em récita no Teatro Bellini<br />
de Catania (2006). Em qualquer dessas récitas, no Brasil ou no exterior, Gomes continua a<br />
ser, impavidamente, o mesmo compositor artesanal e metódico, monolítico em sua proposta<br />
de dar vazão à verve do melodrama que, sabe-se lá como e por que, lhe é inerente<br />
desde a infância. Da mesma forma, a reação da crítica também continua controversa. Críticos<br />
de Washington expressaram-se sobre Il Guarany como um “equívoco”, “banalidade”<br />
ou “bizarrice” puramente baseado em Donizetti e Verdi. Se não bastasse, pesquisadores<br />
de relevo tendem a adotar posições reducionistas sobre Gomes e outros compositores<br />
do período, como é o caso de Ponchielli. Nesse sentido, as afirmações de Malach são<br />
reveladoras do pouco conhecimento que esse autor tem sobre a obra desses compositores:<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
196<br />
“Gomes and Ponchielli […] were little more than Verdian epigones, seeking new and<br />
superficially different ways on manipulating a vocabulary that by 1870 even the great<br />
Verdi had lagerly transcended” (Mallach, 2002, p. 63). E ainda: “While the music of Il<br />
Guarany shows great charm and melodic flair, […] it is also derivative, almost to the point<br />
of parody” (Mallach, 2007, p. 18).<br />
Esses comentários parecem sumarizar uma linha de expressão, tanto nacional<br />
como internacional, totalmente equivocada sobre o que é a obra operística de Gomes.<br />
Revela um absoluto desconhecimento sobre a produção gomesiana, o que até certo ponto<br />
é compreensível, mas encerra uma indisfarçável má vontade para com compositores do<br />
gênero que não sejam os reconhecidos expoentes dos períodos da ópera italiana do século<br />
XIX, começando com Rossini, seus imediatos sucessores Bellini e Donizetti, o mestre longevo<br />
Giuseppe Verdi, os veristas pontuais e imediatos Mascagni e Leoncavallo e terminando<br />
pelo esperado e firme sucessor de Verdi, Giacommo Puccini. Aparentemente, este tipo de<br />
crítica vê o melodrama italiano limitado a esses nomes estelares e os demais se enquadram<br />
irremediavelmente no limbo dos operisti minori. Trata-se de um equívoco imperdoável.<br />
Como dito, este tipo de visão se funda em um desconhecimento da obra desses outros<br />
compositores, aí incluído Gomes. Sua divulgação, tanto em edições atualizadas como em<br />
registros fonográficos, é limitada em poucos casos e inexistente na maioria. Em parte,<br />
essas deficiências podem justificar a análise superficial e o veredito açodado desses críticos.<br />
Felizmente, nas últimas décadas o mundo acadêmico começa a lançar um olhar<br />
investigativo sobre esses compositores e produz uma literatura, ainda incipiente, que<br />
poderá subsidiar um retorno mais concreto dessas obras ao repertório das casas de ópera.<br />
Este também é o caso de Antônio Carlos Gomes, cuja abordagem acadêmica já se mostra<br />
expressiva em Nicolaisen (1980), Conati (1982), Mussomelli (1992), Nogueira (1997),<br />
Budden (2002), Nicolodi (2002), Volpe (2002 e 2004) e Pupo Nogueira (2006). Uma leitura<br />
desses textos revela um Gomes dentro da estética do melodrama italiano da segunda<br />
metade do ottocento, mas com suas características próprias, com seu individualismo<br />
marcado e, sobretudo, sua contribuição para o desenvolvimento do gênero em um período<br />
muito peculiar, o qual se conhece como “período de transição da ópera italiana”. Neste<br />
contexto, o objetivo do presente estudo é analisar e discutir a participação de Antônio<br />
Carlos Gomes e outros compositores no mencionado período.<br />
Carlos Gomes: um brasileiro em Milão<br />
Quando se discute Gomes e sua produção operística da maturidade 1 uma questão<br />
relevante é perguntar-se em que contexto deve se analisar a obra de Antônio Carlos Gomes.<br />
Dentro deste escopo, inserir der Gomes como um compositor da história da música<br />
brasileira é difícil, ainda que possível. Entretanto, tudo indica que sua inclusão como<br />
compositor relevante ao melodrama italiano do século XIX parece mais acertada e mesmo<br />
oportuna. Neste sentido, uma das mais coerentes manifestações sobre esta localização<br />
de Gomes na história da música se faz no texto de Vicenzo Terenzio sobre a história da<br />
música italiana no século XIX em que o autor afirma:<br />
Le sue qualità di schietto melodista e la viva suggestione che egli subì dell’arte<br />
verdiana inducono a inserire la sua produzione teatrale nel quadro del nostro<br />
melodrama ...Non sarebbe giusto, tuttavia, pensare a uma forma di imitazione<br />
passiva. Il linguaggio verdiano si prestava a dar rilievo alla fervida fanatasia del<br />
Gomes […]. (Terezio, 1976, p. 384)<br />
...........................................................................<br />
1 Entende-se por obras do período da maturidade de Gomes Il Guarany, Fosca, Salvator Rosa, Maria Tudor, Lo<br />
Schiavo, Condor e Colombo.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
197<br />
Verifica-se que Gomes estava em Milão em um momento muito especial da<br />
ópera italiana, o chamado Período de Transição e, levando em consideração o que disse<br />
Terenzio, devemos analisar a participação de Gomes neste momento. Para tal, sugerimos<br />
abordar três grandes tópicos: Que ambiente Antônio Carlos Gomes encontrou em Milão?;<br />
O período de transição (1870-1893); Contribuição de Gomes e seus colegas para a<br />
renovação do melodrama italiano.<br />
Que ambiente Antônio Carlos Gomes encontrou em Milão?<br />
A Itália unificada<br />
Gomes chega em Milão no final de 1863 e inicia seus estudos com pelos menos<br />
dois importantes nomes da música italiana, Lauro Rossi e Alberto Mazzucato. Milão, na<br />
segunda metade do século 19 era uma metrópole. A capital da cultura e da economia<br />
pujante, em contraste com o sul pouco desenvolvido. Somente em 1861, a cidade e as<br />
demais regiões da Itália, a exceção de Roma, constituem o Reino da Itália, o qual será<br />
completado com a anexação de Roma em 1871 e, muito mais tarde, de Trento e de Trieste<br />
em 1918. A constituição do Reino da Itália facilita Milão a consolidar-se como o grande<br />
centro empresarial e econômico do jovem reino. Então, a Itália de Gomes é a de um país<br />
recém unificado e a Milão de Gomes é um caldeirão de ideias, tendências e empreendimentos<br />
de toda a ordem.<br />
A crise do melodrama<br />
Considerando o silêncio de Rossini após a estreia de Guglielmo Tell, em 1829, o<br />
precoce desaparecimento de Bellini, em 1835, e a morte de Donizetti, em 1848, o melodrama<br />
lírico ficou nas mãos de G. Verdi por um longo tempo. A estrutura do bel canto<br />
introduzida por Rossini e desenvolvida por Bellini e Donizete mas também incorporada<br />
por Verdi em suas primeiras fases tem vida longa. Gravitam em torno de Verdi nomes<br />
menores que contribuem para atender uma contínua demanda de óperas novas, mas<br />
sem significativos avanços estéticos, o que seria quase exclusividade de G. Verdi. Entre<br />
eles, Saverio Mercadante, Lauro Rossi, Vaccai e Pacini.<br />
Entretanto, nos últimos anos da década de sessenta, este modelo parece ter<br />
chegado a um esgotamento e mudanças se impunham. A arte Italiana, como um todo,<br />
parece não suportar mais o isolamento a que foi submetida pela barreira física dos Alpes.<br />
Uma nova geração reclama novos ares. O insucesso das revoltas de 1848, por toda a Europa<br />
e a morosidade das modificações sociais, tão caras à causa do risorgimento, auxiliam<br />
em compor um quadro de insatisfação. Essa necessidade de renovação já aparece mesmo<br />
em Verdi, quando os temas de suas óperas, a esta altura, já haviam mudado sensivelmente<br />
do terreno heróico-histórico para a dramaturgia clássica romântica de Hugo e Schiller.<br />
No campo das artes, esta insatisfação se traduz em um grupo de jovens artistas<br />
que seria chamados scapigliatti.<br />
A scapigliatura<br />
O termo scapigliati refere-se a uma condição de “descabelados”. Os scapigliati,<br />
como assim eram chamados os seguidores da scapigliatura, compreendiam literatos,<br />
músicos, artistas plásticos e intelectuais de diferentes qualidades, mas que se concentravam<br />
em contestar o status quo. Tudo poderia e deveria ser diferente. O velho não mais tinha<br />
valor. De fato, foi o primeiro movimento com ambições de vanguarda na recente história<br />
cultural da Itália unificada. Teve duração relativamente efêmera, de 1860 a 1875, e limitouse<br />
a Milão e Turim, mas deixou marcas importantes na vida artística da Itália.<br />
Em linhas gerais, o movimento centrava-se nos seguintes pontos: liberdade de<br />
expressão, quebra das regras acadêmicas antepondo a criatividade à razão, originalidade<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
198<br />
em contraste aos ditames rigorosos do estilo e a quebra das limitações do provincianismo<br />
do norte.<br />
Importantes nomes dessa vertente modificadora foram Tranquilo Crenoma, nas<br />
artes plásticas, Igino Ugo Tarchetti, na literatura, e Emilio Praga, na dramaturgia.<br />
Na música, a scapigliatura não contou expressão importante e seus<br />
representantes mais notáveis são Franco Faccio e Arrigo Boito.<br />
Independentemente desses eventos modificadores, o fato é que esse efervescente<br />
cenário social encontra um Verdi menos produtivo em termos quantitativos. No<br />
contexto da história da ópera italiana, é neste período que segue, que serão apresentadas<br />
e se consolidarão profundas modificações no melodrama lírico no que se refere a sua<br />
estrutura musical e à constituição de seus libretos. Essas modificações serão fundamentais<br />
para o surgimento da giovane scuola, com reflexos em toda a produção operística até o<br />
final do século XIX e nos primeiros decênios do século XX. Tal período se denomina, Período<br />
de Transição.<br />
O Período de Transição<br />
Defini-lo não é tarefa fácil. Considera-se que seria um período de ligação entre<br />
Verdi e Puccini. Poderia ser, também, um período de rejeição aos pressupostos Rossinianos,<br />
com um gradual desaparecimento da ópera de número, a inicial aceitação do modelo da<br />
grand opéra e, finalmente, a permissão da influência da opera lírica francesa sobre o<br />
melodrama italiano.<br />
Uma nota da biografia sobre Filippo Marchetti contém uma possível explicação<br />
para este período e deve ser reproduzida:<br />
Filippo Marchetti (Bolognola, 1831 – Roma, 1902) è stato un compositore importante<br />
in quella fase di passaggio del melodramma italiano compresa fra la<br />
straordinaria stagione romantica dominata dal genio verdiano e la nuova stagione<br />
segnata dalla presenza di Puccini, Giordano, Cilea e Mascagni. (Pellegrino, 2002)<br />
De forma sucinta, Nicolaisen (1980, p. 3) refere-se a este espaço como o Período<br />
em que Verdi escreveu suas três maiores óperas, Aida, Otello e Fastalff. Esta definição<br />
não deixa de ser controversa, uma vez que a figura de Verdi não é, decididamente, a<br />
figura central deste período e, portanto, não poderia se usando como marco de referência<br />
para sua delimitação.<br />
Outra forma de caracterizá-los seria dizer que se trata do período de abertura<br />
da ópera à influência externa ocasionando mudanças estilísticas ao melodrama italiano<br />
do qual Verdi pouco participou, mas não se manteve alheio.<br />
Lauro Machado Coelho (2002) o situa entre a Aida e Cavalleria Rusticana e o reconhece<br />
como um Período intermediário de indecisões, acertos e erros que caracterizam<br />
toda época de transição.<br />
De qualquer forma, trata-se de um período bem definido pelo seu espaço temporal,<br />
por suas características estilísticas, pelo momento histórico, resultando no surgimento<br />
de um novo formato de melodrama. Em torno deste período, caracterizado também<br />
por um relativo recolhimento de Giuseppe Verdi, gravitam alguns compositores emblemáticos<br />
como Fillipo Marchetti, Stefano Gobatti, Alfredo Catalani, Amilcare Ponchielli e<br />
Antônio Carlos Gomes.<br />
A fixação temporal desse período depende dos conceitos de cada autor. As diferentes<br />
opções estão relacionadas a determinadas obras paradigmáticas. Como dito, Nicolaisen<br />
(2002) delimita-o entre 1870 e 1893, com Aida e Fastalff. Coelho (2002) e Cezari<br />
(2000) também consideram Aida como o início, mas o marco do verismo com Cavalleria<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
199<br />
Rusticana seria o final deste período. Uma outra possibilidade, aí incluído os lídimos<br />
representantes da transição, seria iniciar o período com Il Guarany de 1870 e finalizá-lo<br />
com o Condor de 1891.<br />
De qualquer forma, o que mais importa é descrever e discutir os fatos musicais<br />
e estéticos que fazem do Período de Transição um momento único e definido ao longo do<br />
percurso do melodrama italiano do século XIX, o que será discutido a seguir.<br />
Contribuição de Antônio Carlos Gomes e seus colegas<br />
para a renovação do melodrama italiano<br />
O insucesso das revoltas de 1848, por toda a Europa e a morosidade das modificações<br />
sociais, tão caras à causa do risorgimento, 2 auxiliam em compor um quadro de<br />
insatisfação. Uma vez no poder, os antigos revolucionários, como costuma ocorrer, não<br />
conseguem em curto espaço de tempo, que só no discurso político se realiza, as modificações<br />
profundas que levem a um rápido desenvolvimento econômico e social da<br />
Itália. Por um lado, a classe política dominante, para a Itália pós-unificação, preocupa-se<br />
primordialmente em demonstrá-la como nação legítima e alinhada à ordem europeia.<br />
Estas, certamente, não são as preocupações centrais daqueles jovens que lutaram pela<br />
unificação. As gerações mais jovens, inquietas, se revoltam contra toda a ordem estabelecida<br />
e gritam pelo novo.<br />
O melodrama lírico, uma das mais bem guardadas relíquias da unidade italiana,<br />
não se exclui dessa insatisfação e da necessidade renovação. Mais que isto, o tradicional<br />
isolamento cultural a que a península se impunha, está prestes a desmoronar, pois não<br />
faltam vozes internas que desejem ardentemente romper a cúpula que protegia a música<br />
italiana da influência externa.<br />
Em termos gerais, a abertura do melodrama italiano ao mundo exterior se concentra<br />
principalmente na adoção da estética da grand opéra francesa e o período de<br />
transição vai compreender uma releitura dos códigos desse gênero que são, em síntese:<br />
uso de tema histórico, a preocupação com a grandiosidade da encenação, o uso de massas<br />
corais, de cenas rituais, emprego de peças características (polacca, habanera, etc.), a presença<br />
do coup de théâtre, a inserção de balé, características particulares da orques-tração,<br />
o uso de tema recorrentes para unidade dramática, um discurso vocal diferenciado e, por<br />
fim, e muito relevante, a desestruturação da Solita forma<br />
Pode-se passar agora a analisar alguns desses elementos caracterizadores da<br />
grand opéra em sua apropriação pelos compositores italianos, com Gomes incluído, e<br />
identificar sua contribuição para moldar essas características ao gosto e às cores peninsulares.<br />
Os elementos da grand opéra<br />
As características estruturais da grand opéra de Auber e Meyerbeer estão presentes<br />
na ópera da transição (Virmond, 2009).<br />
Um elemento contraditório é que, na Itália, não ocorre com freqüência o uso de<br />
tema histórico, limitando-se a alguns poucos casos como o Ruy Blas de Marchetti I Lituani<br />
de Ponchielli e a Maria Tudor de Gomes. Independentemente, o tema escolhido será tratado<br />
com grandiosidade cênica, garantindo-se a participação de massas corais, sejam em<br />
números isolados, característicos o nos concertatos, como bem se pode verificar em Il<br />
Figliuol Pródigo de Ponchielli, por exemplo.<br />
...........................................................................<br />
2 Movimento político e revolucionário entre 1815 e 1870 que resultou na unificação dos diferentes estados da<br />
península da Itália em um novo país. Foi um dos mais importantes períodos da história italiana e teve como foco<br />
central a revolta contra a opressão estrangeira por parte dos austríacos. Entre as figuras principais desse movimento<br />
salientam-se de Giuseppe Mazzini e Giuseppe Garibaldi.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
200<br />
As cenas rituais ocupam importante lugar ao longo da ópera. Exemplos disto<br />
são a invocação no terceiro ato de Il Guarany de Carlos Gomes, a cena do templo no<br />
primeiro ato e a cena do julgamento de Aida de G. Verdi e a Scena del Consiglio em Fosca.<br />
O emprego de peças características é fundamental para a criação da cor local e<br />
para garantir a diversidade dos eventos cênicos e musicais. Este é o caso, entre outros<br />
muitos, da Polacca de Cecília em Il Guarany e das canções de brinde em I Lituani de Ponchielli.<br />
O coup de théâtre é aquele momento privilegiado, geralmente curto, de clímax<br />
dramático resolutivo, onde o texto e o desenvolvimento cênico têm características marcantes,<br />
conclusivas, brilhantes, inesperadas, inspiradas, levando a um arrebatamento da<br />
audiência pelo inusitado. Esse modelo é usado em La Gioconda (1876), no momento final<br />
do terceiro ato quando Alvise apresenta o corpo exânime de sua mulher e revela ter sido<br />
ele seu algoz em virtude da traição aos votos do casamento, para duplo espanto de seus<br />
convidados e, pretensamente, da plateia. Da mesma forma, Antonio Scalvini, este um dos<br />
principais scapigliati em Milão, e Carlos D’Ormeville optam por transformar D. Antonio<br />
em um quase homem-bomba ao explodir o castelo ao final de Il Guarany. Na cena final de<br />
Maria Tudor, a agitação da rainha à suspeita levantada por Giovanna de uma possível traição<br />
e a surpresa da revelação de quem realmente foi ao patíbulo3 , é cena que preenche<br />
também os requisitos de coup de théâtre. Mais adiante, vemos em Andrea Chénier (1896)<br />
outro exemplo clássico na exuberante cena final do terceiro ato, quando Gérard se apresenta<br />
e retira a acusação contra Chénier, mas ela é reapresentada por Fouquier, o promotor,<br />
o que termina permitindo a condenação do poeta à guilhotina. Illica e Giacosa preparam<br />
várias situações dessas em Tosca, sendo o assassinato de Scarpia e o falso fuzilamento de<br />
Cavaradossi dois momentos representativos.<br />
O balé, elemento essencial da grand opéra, se faz presente na ópera do período<br />
de transição. Muitas vezes desprovido de interesse para a continuidade da ação dramática,<br />
o balé apresenta o apelo ao grandioso e ao colorido local. Os exemplos são conhecidos e<br />
falam por si. Basta recordar as danças indígenas em Il Guarany, os balés de La Gioconada,<br />
Il Figliuol Prodigo e I Lituani e a Bacanalle em Maria Tudor de Carlos Gomes.<br />
A orquestração<br />
Da leveza da orquestração de Belinni e Donizetti, onde a transparência da frase<br />
é fundamental, admitindo-se apenas o desdobramento das tríades para apoiar e expressão<br />
da frase melódica pelo solista, passa-se a uma orquestração mais densa e valorizadora<br />
dos timbres instrumentais. Esses timbres assumem relevância dramática no contexto do<br />
discurso musical em relação ao discurso literário. Veja o caso de Donizetti no Elixir d’Amore<br />
(Figura 1). Em Gomes, as questões tímbricas serão particularmente importantes para tentar<br />
a “cor local” em Il Guarany. Este é o caso dos instrumentos adicionais para o acompanhamento<br />
do balé no terceiro ato e, no final do segundo ato, o uso de uma banda interna<br />
para executar a música que as instruções da partitura referem como “suono interno<br />
d’instrumenti selvaggi”. Mais adiante, esta preocupação estará presente em Condor (Figura<br />
2), no dobramento dos violoncelos com os fagotes para um efeito eminentemente tímbrico<br />
de urgência e selvageria ao anunciar a invasão do palácio de Odalea pela turba enfurecida.<br />
O uso dos violinos na região aguda e em trêmulo é outra fórmula comum e,<br />
para a época, perigosa, pois que identificava imediatamente o compositor com a estética<br />
...........................................................................<br />
3 Maria combina com D. Gil de trocar o condenado à morte, Fabiano Fabiani, seu amante, por Gilberto. Sob o<br />
capuz ninguém iria notar a diferença. Na verdade, Dom Gil prefere atender ao pedido de seu rei, Felipe II da<br />
Espanha, do que atender aos apelos da Rainha da Inglaterra. Ele não ordena a troca de prisioneiros e, ao final,<br />
quem vai ao patíbulo é Fabiani, para desespero de Maria.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
Figura 1. Introdução orquestral da frase principal. Na exposição pela voz, a orquestra apoia harmonicamente o<br />
tema – G. Donizetti, L’Elisir d’Amore.<br />
201<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
202<br />
Figura 2. O uso dos fagotes em uníssono com os violoncelos – A. Carlos Gomes, Condor, terceiro ato.<br />
Figura 3. O modelo usado por Gomes ao final de ópera. Violinos em trêmulo no registro agudo – A. Carlos Gomes. Fosca.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
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wagneriana após a estréia do Lohengrin em Bologna, ocorrida em 1870. Convém recordar<br />
que Verdi já fizera uso dessa mesma fórmula na então longínqua La Travita, de 1853. Entretanto,<br />
o modelo da melodia sobre um fundo de violinos em trêmulo no registro agudo,<br />
principalmente em cenas de consumação de perda, dor, despedida, é constante e eficiente<br />
em Fosca, Salvator Rosa e La Gioconda. Veja-se o caso da Fosca de Gomes (Figura 3).<br />
O uso proeminente do dobramento de frase entre as cordas, as violinatti, é outro<br />
modelo comum ao período. A frase apresentada pelos primeiros violinos era reproduzia<br />
nos segundos violinos uma oitava abaixo, assim como pelas violas na mesma tessitura.<br />
Eventualmente, a frase era distribuída por todas as cordas, à exceção dos contrabaixos.<br />
As madeiras poderiam ser chamadas a dobrar a mesma melodia, também. Este dobramento<br />
aumenta a densidade da frase e empresta grandiosidade tímbrica à frase, alcançando<br />
um grande efeito dramático, sublinhando as intenções do compositor em momentos<br />
climáticos. Catalani e, mais tarde, Mascagni (Figura 4) apresentam exemplos típicos deste<br />
artifício de orquestração.<br />
Figura 4. Emprego das cordas para a exposição da melodia principal. As madeiras também sustentam a mesma<br />
frase e nesse exemplo se encontram condensadas em um único pentagrama – A. Catalani, La Wally (1892).<br />
Temas recorrentes<br />
Essa associação entre discurso dramático e orquestra, por meio dos temas recorrentes,<br />
se apresenta de forma mais elaborada entre os compositores desse período de<br />
transição. Esta preocupação será incessante, quase como uma necessidade para a obtenção<br />
da coesão estilística e da unidade dramática em suas obras. O tema recorrente se dá pela<br />
caracterização que um determinado tema melódico, fragmento rítmico, tonalidade ou<br />
textura tímbrica apresenta com um determinado evento ou condição dramática no contexto<br />
do libreto. Como a própria palavra diz, trata-se de uma reminiscência, isto é, ela<br />
passa a atuar como tema recorrente após o prévio estabelecimento da relação melodia,<br />
rítmica ou tímbrica com o evento associado. Assim, o seu reaparecimento já não requer<br />
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nem a participação da voz ou do personagem a que está ligado, ou melhor dito, condicionado.<br />
O tema do amor de Alfredo por Violeta, que recorre no último ato da La Traviata,<br />
é suficiente para evocar essa condição, mesmo que não houvesse interferência do personagem<br />
para corroborar essa associação.<br />
De fato, seu uso não é novidade, pois mesmo Weber em Der Freischütz já fez<br />
uso desses temas. Entretanto, a abordagem dessa fórmula pelos compositores da Transição<br />
é diferenciada e mais sofisticada.<br />
Kimbley (1991) cita um caso representativo da antes mencionada preocupação<br />
com a unidade dramática por partes dos compositores do período em estudo. No final do<br />
segundo ato de La Gioconda, durante o dueto de extremo confronto entre Gioconda e<br />
Enzo, quando esta lhe mostra a barca em que foge Laura, sua rival pelo amor do marinheiro.<br />
Enquanto Enzo responde, incrédulo, a mais esta tentativa de Gioconda em afastá-lo de<br />
Laura, a mesma melodia que Gioconda apresentou sua denúncia acompanha a exposição<br />
de Enzo, criando um confronto adicional, psicológico, mas totalmente fundado em uma<br />
ação musical (Figuras 5 e 6).<br />
Figura 5. No desenvolvimento do dueto, Gioconda revela a fuga de Laura na tentativa de demonstrar que a rival<br />
verdadeiramente não o ama.<br />
Figura 6. Na entrada de Enzo, refutando a possibilidade de traição de Laura, a frase de Gioconda confronta-se com<br />
a exposição de Enzo.<br />
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205<br />
Em verdade, Antônio Carlos Gomes, já utilizara este mesmo expediente em sua<br />
revolucionária Fosca, de 1873. De fato, para esse período de transição, Fosca deve ser<br />
analisada com muita atenção, pois que prenuncia muitas das mudanças que irão marcar<br />
esse período.<br />
Nesta ópera, logo no primeiro ato, Gajolo, o chefe dos piratas refuta a ideia<br />
sugerida por Fosca de aceitar o resgate e não entregar Paulo, o refém. Isto é contra a ética<br />
dos corsários. Enquanto explica isto à irmã, a orquestra retoma o Tema dos Corsários que,<br />
de acordo com a análise de Mário de Andrade (1936), apresenta a altivez desses homens<br />
e que é apresentado logo nos primeiros compassos da abertura da ópera, pelo menos em<br />
suas duas últimas versões (Figura 7) e será repetido outras vezes ao longo da obra quando<br />
surgir este mesmo contexto dramático.<br />
Figura 7. Enquanto Gajolo refuta a ideia de trair a ética do grupo, o Tema dos Corsário é exposto pela orquestra de<br />
forma a complementar o discurso dramático – A. Carlos Gomes, Fosca.<br />
Seria exaustivo apresentar todas as situações em que os compositores da Transição<br />
utilizam este recurso, mas espera-se que esses exemplos permitam fixar a noção do<br />
emprego que eles fizeram deste expediente composicional para obter unidade em suas<br />
obras, além de reforçar seu senso dramático.<br />
O discurso vocal<br />
O tratamento da vocalidade no contexto do Discurso Vocal se altera sensivelmente<br />
devido, em parte, a nova abordagem da orquestração. Tornando-se mais espessa,<br />
mais densa a orquestração, a vocalidade tende a competir com a orquestra. Em muitas<br />
obras desse período, de fato, percebe-se o estabelecimento de uma relação de forças entre<br />
orquestra e cantores, com certa preponderância da orquestra sobre eles. Certamente,<br />
esta dualidade não se restringe a uma modificação do tratamento da linha vocal. Percebese,<br />
antes de tudo, uma preocupação crescente em incorporar a orquestra no discurso<br />
dramático.<br />
A relação entre discurso dramático e musical se acentua e se aproxima. A declamação<br />
dramática, muitas vezes de caráter enérgico, assume preponderância. Esta opção<br />
de tratamento da frase vocal está em consonância com a busca da continuidade do discurso<br />
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206<br />
musical. As cenas de ligação entre as secções não têm mais o caráter contemplativo ou<br />
puramente narrativo de fato ocorrido. Os fatos acontecem em tempo real e, texto e música,<br />
descrevem reações psicológicas coerentes com seu conteúdo dramático. Nela se traduz a<br />
necessidade de expressar algo real, uma seqüência de sentimentos despertados ou<br />
resultantes de um fato. Fosca introduziu muitas novidades no melodrama desse período<br />
e, por isto, pode novamente ser usada para exemplificação do que foi exposto sobre a<br />
mudança na vocalidade.<br />
Na cena final do segundo ato, quando Gajolo, para salvar Fosca da fúria da<br />
populaça, explica que ela é uma louca. A reação dela é muito convincente e o tratamento<br />
musical dado por Gomes, isto é, a declamação musical que ele usa para este segmento é<br />
muito efetivo e característico dessa nova modalidade de tratamento da frase. Fosca se<br />
sente ao mesmo tempo ultrajada com o artifício usado pelo irmão como reconhece sua<br />
loucura por desejar um amor impossível (Figura 8).<br />
Figura 8. A declamação dramática é fruto de uma necessidade de expressar o real – A. Carlos Gomes, Fosca.<br />
Em La Gioconda encontramos um outro exemplo do tratamento dramático de<br />
eventos em tempo real, expresso por uma declamação dramática muito eficaz e<br />
convincente. No quarto ato, após sua ária, Gioconda discute consigo mesma os fatos até<br />
ali ocorridos, suas consequências e as medidas que tomou para resolvê-los ou contornálos<br />
(ecco il velen di Laura). Depois que ela aproxima os dois amantes, Enzo e Laura, e<br />
salva-los pela fuga, pensa que está tudo resolvido. Subitamente, lembra-se da mãe, cega<br />
– mais um encargo em sua agenda repleta de problemas. É algo que chega a ser trivial,<br />
não fosse a enorme carga emocional que esta lembrança lhe desperta. Tanto no primeiro<br />
caso como neste último, a cena é construída por meio de uma declamação dramática em<br />
que o texto musical se coaduna perfeitamente com o texto dramático. Seria conveniente<br />
recordar que, para os compositores da primeira metade do século, um recitativo a seco<br />
ou acompanhado, resolveria a questão (Figura 9).<br />
Figura 9. Inicia-se uma intensa declamação dramática quando Gioconda lembra que ainda não pode matar-se, pois<br />
falta encontrar a mãe, cega – A. Ponchielli, La Gioconda, Quarto ato, cena V.<br />
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207<br />
Ainda dentro de uma nova abordagem da vocalidade, cita-se o uso freqüente<br />
de expansões da frase melódica, em registro médio para o agudo, com conteúdo<br />
fortemente dramático, usualmente com a indicação interpretativa de slancio que pode<br />
ser traduzida por ímpeto, arrojo, ardor – o que efetivamente está contido nesse tipo de<br />
expansão da frase. Um exemplo clássico ocorre, novamente, em Fosca e La Gioconda<br />
(Figura 10):<br />
Figura 10. As duas mulheres, irmanadas pelo amor não correspondido, usam frequentemente a melodia expandida,<br />
com slancio.<br />
A desestruturação da Solita Forma<br />
Os principais constituintes da estrutura do melodrama e seu esquema formal<br />
podem ser visto no Quadro 1.<br />
SCENA ED ARIA SCENA E DUETTO FINALE<br />
ScenaScena Scena<br />
Cantabile Tempo d’attacco Tempo d’attacco<br />
Tempo di mezzo Cantabile Largo concertato<br />
Cabaletta Tempo di mezzo Tempo di mezzo<br />
Cabaletta Stretta concertata<br />
Quadro 1. Principais segmentos da estrutura do melodrama italiano da primeira metade do século XIX.<br />
De acordo com as convenções do melodrama lírico, cada um desses segmentos<br />
tem a sua função e sua constituição formal. A seção inicial, a scena, é construída em forma<br />
de recitativo e destinada ao desenvolvimento rápido da ação dramática. Seguem as<br />
partes mais importantes, do ponto de vista musical, o cantabile e a caballeta. A primeira<br />
peça é exposta em tempo moderado ou mesmo lento e sua construção vocal é, como diz<br />
o nome, de caráter cantabile. A segunda peça, a cabaletta, em tempo rápido, vocalidade<br />
ágil e de conteúdo conclusivo. Entre esses dois segmentos musicalmente mais importantes<br />
coloca-se um momento intermediário, de ligação dramática e de pouco desenvolvimento<br />
musical, o tempo di mezzo.<br />
Os finais de ato, dentro do padrão da Solita forma, sofreram modificações adicionais<br />
nesse período e que, segundo Cesari (2002), são marcantes.<br />
De uma forma ampla, o se apresenta no Quadro 2 é uma proposta classificadora<br />
dos finais de unidades dramáticas, aí já incluída a nova versão dos Finales.<br />
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208<br />
Quadro 2. Identificação e descrição dos diferentes segmentos finais das unidades dramáticas no melodrama<br />
Italiano do século XIX. (Fonte: Virmond, 2007)<br />
Essa discussão será limitada às modificações introduzidas nos Finales. Neste<br />
sentido, uma das importantes contribuições de Ponchielli é a reestruturação desses finais<br />
de ato, no que Luigi Illica chamava de “novo concertato a tutta ribalta”, como cita Nicolaisen<br />
(1980). Ao contrário da estrutura descrita no Quadro 1, essa nova proposta incluía, em<br />
termos gerais, os seguintes aspectos musicais:<br />
- Seção inicial de interesse rítmico<br />
- Seção solística com introdução do tema principal (tenor ou soprano)<br />
- Repetição do tema com suporte adicional<br />
- Seção cadencial com ou sem relação temática ao concertato – peroração final<br />
com retomada temática<br />
Um caso intermediário é o concertato do primeiro ato de Il Guarany, no qual o<br />
padrão do primo ottocento está claramente presente.<br />
Convém, agora, analisar aquelas modificações para os Finales propostas por<br />
Ponchielli, as quais podem ser claramente identificadas em La Gioconda. De início, há<br />
uma seção inicial com caráter eminente rítmico (Figura 12). Segue-se a apresentação de<br />
uma frase por um dos solistas, em de âmbito cantabile, que se firam com o tema principal<br />
do segmento (Figura 13). Posteriormente, há uma repetição, completa ou modificada do<br />
tema principal com suporte coral e dos demais solistas (Figura 14). Por fim, apresenta-se<br />
uma seção cadencial (Figura 15) com ou sem relação ao tema principal, levando à conclusão<br />
do Finale com um dos tipos de fechamento de unidade dramática descritos no Quadro 2<br />
(Figura 16). Usualmente, na época, e esta é uma contribuição da Ponchielli, utilizava-se a<br />
Figura 11. Sequência estrutural do final do segundo ato – A. Carlos Gomes, Il Guarany.<br />
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Figura 11. Sequência estrutural do final do segundo ato – A. Carlos Gomes, Il Guarany (cont.).<br />
209<br />
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210<br />
Figura 11. Sequência estrutural do final do segundo ato – A. Carlos Gomes, Il Guarany (cont.).<br />
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Figura 12. Secção inicial rítmica – A. Ponchielli, La Gioconda, Finale do terceiro ato.<br />
Figura 13. Seção solística – A. Ponchielli, La Gioconda, Finale do terceiro ato.<br />
Figura 14. Repetição da seção solística – A. Ponchielli, La Gioconda, Finale do terceiro ato.<br />
211<br />
peroração final com retomada temática. Este trata-se de uma peroração sinfônica, usualmente<br />
com o tema principal ou um seu desenvolvimento, apresentado em tutti orquestral<br />
com dinâmica fortíssimo. Este fechamento sinfônico é curto, condensado e, de fato,<br />
funciona efetivamente como uma conclusão motívica da cena final.<br />
Na primeira Fosca, de 1873, Carlos Gomes prenuncia este tipo de estruturação<br />
e desenvolvimento de Finale ao fim do segundo ato de sua obra. Há uma introdução de<br />
interesse puramente rítmico na voz de Fosca e na figuração orquestral que acompanha<br />
(Figura 17) e uma seção solística introduzida por Paolo (Figura 18) que é repetida e desenvolvida<br />
por Fosca e retomada pelo coro de forma extensiva.<br />
Há, entretanto, uma segmentação importante entre o início do Finale e sua cadência<br />
final com elementos musicais desprovidos daquela coerência imposta por Ponchielli<br />
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212<br />
Figura 15. Seção cadencial – A. Ponchielli, La Gioconda, Finale do terceiro ato.<br />
Figura 16. Seção final da unidade dramática. Peroração final com retomada temática – A. Ponchielli, La Gioconda,<br />
Finale do terceiro ato.<br />
Figura 17. Seção rítmica – A. Carlos Gomes, Fosca, Finale do segundo ato.<br />
Figura 18. Seção solística – A. Carlos Gomes, Fosca, Finale do segundo ato.<br />
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213<br />
em sua nova estrutura de Finale como no caso de La Gioconda. Contudo, em Salvator Rosa<br />
de 1874, Gomes, introduz esse mesmo sistema que, mais tarde Ponchielli utilizará em<br />
La Gioconda (Figuras 19, 20, 21 e 22). O compositor ainda não consegue uma fluência<br />
estrutural como Ponchielli, mas os elementos essenciais estão presentes. Trata-se de um<br />
meio caminho entre o Finale do segundo ato de Aida (1871) e o de La Gioconda (1876).<br />
Verdi constrói uma impressionante e colorida cena, mas não está atento à unidade estrutural.<br />
Ele, certamente, já tinha abandonado a fórmula antiga do concertato, mas este<br />
final em Aida revela-se mais um agregado de números dentro de um grande número,<br />
incluindo o Balé. No caso do Salvator Rosa, Gomes propõe um início com figuração rítmica<br />
e exposição de um tema solístico que aparece diretamente nas duas vozes principais.<br />
Inclui ainda um segundo tema em cantabile, mas é aquele primeiro que, em verdade,<br />
será usado na repetição com os demais solistas e coro. Por último, a peroração final não<br />
é feita com retomada temática, apenas um fecho de unidade (Figura 22) com desenho<br />
rítmico retomado do que já tinha sido apresentado e uma curta reafirmação tonal. De<br />
qualquer forma, é interessante verificar como este Finale do Salvator Rosa prenuncia de<br />
forma concreta aquilo que Ponchilli mais adiante levará à condição de um paradigma do<br />
período da Transição para os finais de ato.<br />
Apenas para melhor ilustrar esta discussão, citam-se na sequência os exemplos<br />
musicais do Lo Schiavo para que se identifique a adesão de Gomes ao modelo demarcado<br />
por Ponchielli, ainda que de forma mais compacta (Figura 24). Tanto isto é verdade que a<br />
secção solística (Figura 25) é retomada de imediato em uma seção de repetição com sucessivas<br />
entradas do tema principal na voz do tenor (Americo) e, posteriormente, do barítono<br />
(Iberê) com apoio do coro e demais solistas. A seção cadencial é curta e a peroração<br />
final (Figura 26) é extremamente similar ao Finale já mencionado do Salvator Rosa (ver<br />
Figura 23).<br />
Figura 19. Seção rítmica – A. Carlos Gomes, Salvator Rosa, Finale do segundo ato.<br />
Figura 20. Seção solística – A. Carlos Gomes, Salvator Rosa, Finale do segundo ato.<br />
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214<br />
Figura 21. Seção de repetição – A. Carlos Gomes, Salvator Rosa, Finale do segundo ato.<br />
Figura 22. Seção cadencial – A. Carlos Gomes, Salvator Rosa, Finale do segundo ato.<br />
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Figura 23. Peroração final sem retomada temática – A. Carlos Gomes, Salvator Rosa, Finale do segundo ato.<br />
Figura 24. Seção rítmica – A. Carlos Gomes, Lo Schiavo, Finale do segundo ato.<br />
Figura 25. Seção solística – A. Carlos Gomes, Lo Schiavo, Finale do segundo ato.<br />
Figura 26. Peroração final – A. Carlos Gomes, Lo Schiavo, Finale do segundo ato.<br />
215<br />
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216<br />
Assim, esta estruturação do Finale assume característica marcante e específica<br />
desse período dito de transição e enuncia-se como uma das contribuições desses compositores<br />
ao desenvolvimento do melodrama italiano da segunda metade do século XIX.<br />
Uma de suas peculiaridades é o fechamento da unidade dramática, o qual foi<br />
sumarizado no Quadro 2. Entretanto, convém aprofundar a discussão sobre um desses<br />
tipos de finalização, a peroração final com retomada temática, ainda que sem este título,<br />
foi muito bem identificado por Cesari (2002) 4 e também mencionada por Nicolodi (2002).<br />
O que se propõe agora é uma ampliação deste conceito com uma melhor caracterização<br />
de seus componentes. Neste sentido, alguns exemplos podem auxiliar no seu<br />
entendimento.<br />
Novamente, Carlos Gomes e Il Guarany permitem caracterizar este tipo de<br />
fechamento. Exatamente no final do quarto ato se vê o uso de um dos temas principais,<br />
apresentado em dinâmica fortíssima e com pleno significado. Aqui, Gomes renuncia<br />
categoricamente a um final típico de afirmação tonal e usa como fecho a simples mas<br />
poderosa reapresentação do tema da pureza, altivez, bravura e coragem de Pery, isto é,<br />
um modelo exemplar de bon sauvage (Figura 27).<br />
Figura 27. Compassos finais do último ato. Veja-se o uso do motivo de Pery – A. Carlos Gomes, Il Guarany,.<br />
Em La Gioconda identifica-se o modelo mais bem acabado para este tipo de fechamento.<br />
Logo após o coup de théâtre da revelação do corpo de Laura, para comentar e<br />
concluir a cena catastrófica, a orquestra retoma, exatamente, o tema do largo concertato<br />
(Figura 28).<br />
Figura 28. Finale do terceiro ato – A. Ponchielli, La Gioconda.<br />
...........................................................................<br />
4 “Nei Finali concertati la scomparsa della Stretta è compensata dalle cosiddette perorazioni, cioè dalla ripresa<br />
orchestrale, a tutta forza, della frase principale del Largo concertato, che assolve alla medesima funzione di<br />
chiudere l’atto in modo musicalmente eclatante” (Cesari, 2002, p. 6).<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
217<br />
Nessa mesma linha, exemplifica-se o final de I Lituani, estreado no Scala em<br />
1874. Após uma muito bem elaborada cena final, do ponto de vista harmônico, Ponchielli<br />
encerra a ópera com poucos compassos em que retoma de forma grandiosa um tema<br />
muito recorrente desde a sinfonia da ópera, o qual pode ser ligado a figura de Walter/<br />
Corrado, o herói que se imola em nome da afirmação da pátria Lituana (Figuras 29 e 30).<br />
Figura 29. Na Sinfonia de I Lituani aparece pela primeira vez o tema relacionado com Walter, que será retomado ao<br />
longo da ópera.<br />
Figura 30. Compassos finais do último ato em que, após a conclusão coral, a orquestra retoma o frase relacionada<br />
com Walter (assai largamente com molt’anima) – A. Ponchielli, I Lituani.<br />
A estrutura da solita forma está praticamente ausente dos finais de ato das óperas<br />
do verismo. Entretanto, Mascagni e Leoncavallo, mesmo longe de Gomes, Ponchielli e<br />
Marchetti, não se furtam a esta fórmula da retomada do tema principal como resumo de<br />
ato, ou mesmo de finalização da ópera, principalmente naquelas de um ato. Esse é o caso<br />
de Cavalleria Rusticana (1890) (Figura 31) e Pagliacci (1893) (Figura 32).<br />
Figura 31. Final da ópera – P. Mascagni, Cavalleria Rusticana.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
218<br />
Figura 32. Final da ópera – R. Leoncavallo, Pagliacci.<br />
O jovem Pucinni, ainda dando seus primeiros passos com Le Villi e Edgard, parece<br />
não ficar alheio a essa possibilidade. No final do primeiro ato de Le Villi (1884) introduz<br />
uma conclusão orquestral de 17 compassos com dinâmica fortissíssimo e textura densa<br />
de orquestra (Figura 33). O desenvolvimento é feito sobre elementos temáticos da<br />
Preghiera (Angiol di Dio), não havendo a reprodução literal de uma frase, como visto no<br />
exemplo citado de Leoncavallo.<br />
Figura 33. Primeiro ato, Preghiera – G. Puccini, Le Villi.<br />
Na Manon Lescaut, sua primeira obra de afirmação no cenário lírico, o compositor<br />
também utiliza o mesmo sistema de final (Figura 34)<br />
Figura 34. Final do terceiro ato – G. Puccini, Manon Lescaut.<br />
Um compositor mais afastado desse grupo, em termos temporais, é Umberto<br />
Giordano. Ele também aproveita este processo de resumo musical para a conclusão de<br />
atos. Suas citações não chegam a ser literais como nos casos antes citados, mas o processo,<br />
em essência, é o mesmo, assim como seu efeito. Em Andrea Chénier (1896), essa agora<br />
quase convenção, aparece tanto no final do terceiro como do quarto ato. No primeiro<br />
caso, a conclusão é curta, mas com tempo dramático muito adequado, pois há uma ligeira<br />
diminuição de intensidade de eventos musicais nos compassos que antecedem esse final,<br />
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219<br />
correspondendo ao momento em que os juízes discutem o veredito. Quando este é dado,<br />
e Chénier é condenado, o fecho orquestral surge de forma justa. Ele não cita temas anteriores,<br />
usa apenas um fragmento de material da longa cena do julgamento, mas o uso<br />
declaratório da orquestra, com instrumentação plena e andamento larghissimo é utilizado<br />
da mesma forma que nos outros exemplos (Figura 66). Ao final da ópera, o mesmo ocorre,<br />
de forma mais extensa e usando material temático mais identificável com o desenvolvimento<br />
do último dueto entre Andrea e Magdalena. A textura orquestral é a mesma<br />
dos demais exemplos e a indicação de andamento, outra vez, pede grandioso (Figura 35).<br />
Figura 35. Final do terceiro ato – U. Giordano, Adrea Chénier.<br />
Figura 36. Final do quarto ato – U. Giordano, Adrea Chénier.<br />
Francesco Ciléa é um compositor ainda mais tardio que Giordano ao período<br />
em discussão, mas fará uso desse procedimento. Isto revela o intenso impacto causado<br />
por esse grupo de compositores (Gomes, Ponchielli e Catalani) iniciais ao período de transição,<br />
cujos resultados ainda podem ser sentidos na virada para o século XX. O exemplo<br />
de Ciléa ocorre ao final de terceiro ato da Adriana Lecouvreur (1902). Após a cena de intensa<br />
dramaticidade em que Adriana recita o monólogo de Fedra, o final do ato ascende<br />
a um grau insuportável de tensão com a afronta dissimulada de Adriana para com a Principessa<br />
di Bouillon. Essa carga emocional se consubstancia e se exorta na conclusão orquestral<br />
do ato, com a retomada do tema do cantabile que acompanha a recitação de Adriana,<br />
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agora densamente orquestrada e em dinâmica fortíssimo (Figura 37). Apesar da enorme<br />
distância, 1874-1902, é interessante comparar a similaridade entre esse final, inclusive a<br />
indicação interpretativa (largamente) daquele usado por Ponchielli em La Gioconda.<br />
Figura 37. Final do terceiro ato – F. Cilea, Adriana Lecouvreur.<br />
A quantidade de exemplos poderia ser maior e permite concluir que esta fórmula<br />
para fechos de atos conquistou a preferência dos compositores do período de transição e<br />
se estendeu pela Giovane Scuola e seu efeito dramático é tão efetivo que estendeu-se<br />
até o início do século XX.<br />
Considerações finais<br />
Entre as várias possibilidades de abordagens para se analisar Antônio Carlos<br />
Gomes e sua obra, uma das mais relevantes é considerá-lo como expressivo participantes<br />
da história do melodrama italiano da segunda metade do século<br />
Identifica-se em Antônio Carlos Gomes um artesão atento com o acabamento<br />
de sua fatura, cioso da qualidade de seu produto e, paralelamente, revela-se um compositor<br />
de inequívoca competência técnica em seu metier, contribuindo para o desenvolvimento<br />
do melodrama italiano na segunda metade do século XIX. Juntamente com Ponchielli e<br />
Catalani, formam o grupo mais representativo do período de transição. Nesse sentido,<br />
Gomes e Ponchielli são importantes nomes que contribuíram para o desenvolvimento do<br />
melodrama italiano na segunda metade do século XIX. Se Ponchielli tem sido mais estudado<br />
neste contexto, não se pode negar a capacidade de Gomes em perceber o ambiente de<br />
transformação em que se encontrava e procurar um estilo próprio, o que resultou em<br />
uma obra, talvez irregular, mas sempre evolutiva.<br />
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Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
223<br />
A influência do simbolismo nas óperas<br />
de Alberto Nepomuceno<br />
Rodolfo Coelho de Souza<br />
Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto<br />
A despeito de que Nepomuceno é conhecido principalmente pela sua obra<br />
instrumental – sinfônica e de câmera – ou por sua obra vocal de câmera, devemos reconhecer<br />
que a ópera foi o gênero em que empreendeu seus projetos mais ambiciosos e<br />
parte substancial de sua energia criativa. Isso se deveu a dois fatores. O primeiro é que no<br />
Brasil de seu tempo a ópera era o gênero em que um compositor se consagrava. Concertos<br />
de câmera eram raros e concertos sinfônicos mais raros ainda. Aliás, foi justamente devido<br />
ao empenho dos compositores daquela geração, desde Leopoldo Miguez até Francisco<br />
Braga, que o concerto sinfônico passou a ter uma presença significativa na vida cultural<br />
brasileira, ainda que de início quase que restrita só à capital federal e umas poucas cidades<br />
provinciais com maior população e riqueza crescente, como São Paulo. No período em<br />
que viveu no Recife, entre os oito e vinte anos de idade, Nepomuceno estudou com o<br />
maestro e compositor Euclides d’Aquino Fonseca (1854-1929). Em 1883, participou como<br />
violinista da estreia da ópera Leonor de Fonseca. Como todos de sua geração, Euclides<br />
Fonseca também almejava consolidar sua reputação como compositor de óperas. O aluno<br />
seguiria os passos do mestre.<br />
O segundo fator foi Carlos Gomes. A fama conquistada pelo compositor na Itália<br />
graças a Il Guarany estabeleceu um paradigma de carreira de sucesso que a maioria dos<br />
compositores da geração seguinte almejou repetir. Maria Alice Volpe (2004, p. 2) afirma<br />
que “os paradigmas musicais nacionalistas construídos por Carlos Gomes persistiram nessa<br />
época crepuscular [fim do Império e início da República] até o advento do modernismo<br />
brasileiro”. Para Nepomuceno o desafio representado por Carlos Gomes foi palpável e<br />
imediato. Seu primeiro projeto operístico, iniciado em 1887, mas nunca terminado, seguia<br />
a mesma senda aberta em 1870 por Il Guarany de Carlos Gomes. Volpe (2002) demonstra<br />
que a música brasileira respondeu inexoravelmente, naquele período, à hegemonia da<br />
literatura no imaginário da intelectualidade brasileira. Por isso, o romance de José de<br />
Alencar, no qual a ópera de Gomes foi baseada, tornou-se paradigmático para os músicos<br />
da época ao construir uma espécie de mito de conciliação entre as civilizações europeia e<br />
nativa brasileira, servindo de inspiração para uma dezena de óperas compostas no Brasil<br />
de acordo com o modelo indianista de Carlos Gomes.<br />
A Porangaba de Alberto Nepomuceno teria sido mais uma dessas óperas indianistas.<br />
Planejada para ter três atos, utilizava como libreto um poema de Juvenal Galeno<br />
baseado em uma lenda cearense. A composição foi concebida na época de sua viagem<br />
para Roma, onde o compositor começou seus estudos europeus. Parece evidente que<br />
Nepomuceno teve o sonho juvenil de repetir na Itália o sucesso de Carlos Gomes, compondo<br />
uma ópera de feitio semelhante à da mais famosa do seu predecessor. O catálogo<br />
das obras do compositor (Corrêa, 1985) registra que desse projeto teria restado apenas o<br />
manuscrito dos Prelúdios para os atos I e III, uma Marcha dos Índios e um Bailado. O<br />
catálogo afirma que a orquestração teria se extraviado, embora nos pareça mais provável<br />
que ela nunca tivesse sido encetada, assim como a composição da música para as demais<br />
cenas. Mais plausível é que, ao chegar a Roma, Nepomuceno tivesse sido absorvido pelos<br />
estudos no Liceo Musicale Santa Cecília e desviado sua atenção para a música de câmera,<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
224<br />
envolvendo-se no projeto, também inacabado, de compor três quartetos de cordas. Os<br />
quartetos ainda puderam ser completados por musicólogos porque os esboços restantes<br />
são bem mais completos do que os da ópera.<br />
Nepomuceno tinha bastante sensibilidade para as oportunidades. Quando se<br />
envolveu no movimento abolicionista tratou de compor uma Dança de Negros. Quando<br />
se envolveu com os ideais republicanos, compôs hinos e incorporou traços da linguagem<br />
wagneriana para marcar diferenças com a música do período do Império. Se tivesse insistido<br />
na composição de Porangaba teria persistido num anacronismo, ao que Nepomuceno<br />
não era muito propenso. Se há uma acusação sobre os percursos de seu estilo que<br />
parece pertinente é que ele se curvava com muita facilidade a influxos de ocasião, incorporando<br />
com excessiva rapidez a influência dos estilos com que o compositor tomava<br />
contato. Nepomuceno tinha um espírito camaleônico que lhe permitia incorporar, em<br />
pouco tempo, traços estilísticos dos autores que admirou momentaneamente. A longo<br />
prazo, isso dificultou a compreensão de sua obra pelas gerações seguintes, facilitando<br />
que apenas os elementos vistos como precursores do nacionalismo modernista fossem<br />
valorizados pela musicologia do século vinte, em detrimento dos outros aspectos em que<br />
ele visivelmente empenhou mais energia criativa. Nesse sentido, ter deixado inacabada –<br />
ou ao que parece na verdade apenas mal começada – a composição de Porangaba, acabou<br />
sendo um benefício para sua trajetória, pois de outro modo ele poderia ter ficado marcado<br />
como mais um epígono de Carlos Gomes.<br />
Quanto à parceria com Juvenal Galeno, que forneceu o libreto para Porangaba,<br />
registre-se que o poeta, vinte e oito anos mais velho do que Nepomuceno, era naquele<br />
momento a figura mais proeminente das letras do Ceará, terra natal do compositor. Galeno,<br />
considerado pioneiro dos estudos do folclore nordestino, escreveu os versos de Porangaba<br />
sob a influência direta de Gonçalves Dias, que conheceu pessoalmente em 1859 quando<br />
aportou em Fortaleza uma Comissão Científica de Exploração na qual Gonçalves Dias encabeçava<br />
uma missão etnográfica.<br />
Não obstante o projeto de Porangaba ter permanecido incompleto na gaveta<br />
do compositor, o vínculo afetivo de Nepomuceno com a literatura regional nordestina<br />
ficou registrado em sua obra por cinco canções sobre versos de Galeno, entre elas Tu és o<br />
sol (1894), Medroso de amor (1894), Cativeiro (1896) e Cantiga triste (1899). A recorrência<br />
da utilização de versos de Galeno testemunha a relevância que esse poeta conservou no<br />
imaginário do compositor ao longo dos anos. A prova definitiva disso é que a última canção<br />
composta por Nepomuceno, A Jangada, de 1920, utiliza, ainda uma derradeira vez, versos<br />
de Galeno.<br />
Além de Galeno mais dois poetas cearenses figuram no cancioneiro de Nepomuceno,<br />
quais sejam Antonio Salles e Frota Pessoa. Entretanto, exceto naquela última<br />
canção, Nepomuceno jamais se revelou interessado em colocar em música versos inspirados<br />
em temas do folclore nordestino. Entre os autores utilizados em suas dezenas de<br />
canções figuram apenas mais três poetas nordestinos, os maranhenses Gonçalves Dias e<br />
Raimundo Corrêa e o sergipano Hermes Fontes, contudo as poesias escolhidas trazem<br />
sempre o caráter genérico do lirismo romântico, parnasiano ou simbolista, o que permitiria<br />
terem sido compostas em qualquer outro lugar de fala portuguesa. Essa constatação<br />
conflita seriamente com a visão de que a obra de Nepomuceno, como um todo, antecipa<br />
as preocupações folcloristas do nacionalismo modernista.<br />
Afirmamos acima que o espectro de Carlos Gomes projetou uma sombra sobre<br />
os projetos operísticos de Nepomuceno. Isso fica particularmente evidente no caso de O<br />
Garatuja. Assim como Porangaba, esta ópera ficou inacabada. O catálogo de Alvim Corrêa<br />
(1985, p.19) relata que se conhece apenas o manuscrito do Prelúdio e do primeiro ato, supostamente<br />
completado, mas até hoje nunca executado. Note-se, porém, que o Prelúdio<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
225<br />
foi estreado ainda em 1904, pela Orquestra do Instituto Nacional de Música, regida pelo<br />
compositor. Naquele ano, o principal projeto lírico de toda a carreira de Nepomuceno, a<br />
ópera Abul, ainda estava por terminar e de fato sua composição só foi completada no ano<br />
seguinte. A estreia ainda teria que aguardar uma montagem, com cantores italianos, realizada<br />
no Teatro Coliseu de Buenos Aires em 1913. Parece estranho imaginar que Nepomuceno<br />
interrompesse a composição de Abul, bem avançada naquele momento, para<br />
iniciar outro projeto operístico. É possível que O Garatuja tenha sido inicialmente concebido<br />
apenas como um poema sinfônico a partir do romance de Alencar. Por isso, o Prelúdio<br />
teria sido terminado e executado ainda em 1904. O sucesso da obra na estreia pode<br />
ter estimulado o compositor a cogitar transformar do Prelúdio numa eventual abertura<br />
para uma ópera que, entretanto, nunca concluiria.<br />
O aspecto mais intrigante do projeto de O Garutuja é que Nepomuceno tenha<br />
voltado a buscar em um romance de José de Alencar o material temático para o que<br />
haveria de ser sua derradeira ópera. Carlos Gomes utilizara o primeiro romance de Alencar,<br />
de 1853, para forjar seu maior sucesso e Nepomuceno buscava novamente em Alencar,<br />
na primeira parte de Alfarrábios, um romance em forma de trilogia, escrito vinte anos depois,<br />
o enredo para uma ópera. O romance de Alencar de 1873 porta um subtítulo, Crônicas<br />
dos Tempos Coloniais, e tem mais duas partes, O Ermitão da Glória e A Alma do Lázaro. O<br />
interesse pela música colonial brasileira – concretizada na recuperação por Nepomuceno<br />
da Missa de Réquiem do Padre José Maurício Nunes Garcia, aliás estimulada por Taunay<br />
– pode ter suscitado seu interesse por Alfarrábios. Todavia argumentaremos, mais adiante,<br />
que é mais provável que a sedução tenha advindo da própria composição do personagem<br />
do romance. Por outro lado, caso Nepomuceno estivesse de fato buscando um material<br />
que lhe permitisse desenvolver temas do folclore brasileiro, teria sido mais natural que<br />
tivesse utilizado o último romance de Alencar, O Sertanejo, obra de 1875. Sob este ponto<br />
de vista Alfarrábios fornece o menos provável de todos os argumentos. Lembremos ademais<br />
que, em 1904, ao esboçar O Garatuja, a memória da Guerra de Canudos de 1896-97<br />
estava mais vívida do que nunca no imaginário dos brasileiros e a publicação, em 1902,<br />
do romance Os Sertões de Euclides da Cunha tornava o tema ainda mais candente. Sucede,<br />
entretanto, que Nepomuceno já havia escrito duas óperas dramáticas. Certamente o assunto<br />
de O Sertanejo de Alencar não forneceria material adequado para uma comédia. Decidido<br />
em tentar a sorte neste outro gênero, o material encontrado em Alfarrábios pareceu a Nepomuceno<br />
a alternativa adequada, sem mencionar a atração representada pelo nome de Alencar.<br />
Se há no Prelúdio do Garatuja materiais musicais que parecem aludir a fontes<br />
folclóricas brasileiras, creio que é muito mais plausível relacioná-los ao caráter de comédia<br />
que esta ópera pretendia desenhar. A ópera buffa italiana buscara no cancioneiro popular<br />
elementos de estilo que lhe facilitaram encontrar o tom adequado para a comédia.<br />
Nepomuceno conhecia muito bem essa tradição e a prezava. Nas suas canções em que o<br />
texto sugeria um viés cômico, como em Xácara op.20 n.1 (1899) ou nas Trovas op.29 n.1<br />
e 2, ele utilizou ritmos populares de seu tempo, como o fandango (de origem ibérica), a<br />
habanera e o xote (corruptela de schottisch), para atingir esse mesmo fim. Nos anos anteriores<br />
Nepomuceno envolvera-se em ferrenhas polêmicas com o crítico Oscar Guanabarino<br />
a respeito da ópera italiana. Portanto é compreensível que, ao abordar pela primeira<br />
vez o gênero da ópera cômica, ele tivesse presente em sua mente a tradição italiana. O<br />
que transparece no Prelúdio de O Garatuja não seria, portanto, o folclorismo nacionalista<br />
que monopolizou os modernistas, mas sim a fórmula genérica do scherzo, diversas vezes<br />
revisitada por Nepomuceno em suas obras, de modo semelhante a Beethoven ou Verdi<br />
que utilizaram melodias e ritmos populares com o mesmo fim.<br />
O grande paradoxo, que permanece incontestado ainda hoje, é que se nas duas<br />
óperas de Nepomuceno que jamais subiram ao palco ainda se poderia cogitar de moti-<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
226<br />
vações nacionalistas, nas duas outras, terminadas e montadas, não se percebe nenhum<br />
resquício evidente de folclorismo. Por isso, para viabilizar o rótulo de precursor do nacionalismo<br />
a ele atribuído pela historiografia modernista, houve que relegar ao esquecimento<br />
as duas óperas acabadas que, entretanto, dão testemunho de um grande<br />
empenho de se continuar a tradição operística brasileira na geração pós Carlos Gomes.<br />
As duas óperas em questão, Artémis, levada à cena em 1898, e Abul, composta<br />
entre 1899 e 1905, mas só montada em 1913, tem muito em comum, seja na linguagem<br />
musical, seja no enredo dramático. Quanto ao enredo, elas têm um aspecto comum<br />
também a O Garatuja. Os personagens centrais das três óperas são artistas plásticos. O<br />
personagem alcunhado de garatuja, cujo nome de batismo seria na verdade Ivo das Ervas,<br />
é um jovem pretendente a pintor que no final da trama abandona os pincéis para se tornar<br />
escrevente de cartório e agradar o sogro que, em troca, lhe concede a mão da filha. O<br />
enredo do romance, que lembra uma comédia de Martins Pena, sugere personagens<br />
cômicos e situações picarescas. O libreto que foi elaborado pelo próprio Nepomuceno<br />
deveria explorar esse potencial cômico, mas a julgar pelo libreto algo descosido de Abul,<br />
também escrito pelo compositor, dificuldades na adaptação podem explicar, pelo menos<br />
em parte, porque a ópera ficou inacabada. A decisão de Nepomuceno de escrever o libreto<br />
de duas de suas óperas certamente foi influenciada pelo precedente de Richard Wagner.<br />
O wagnerianismo, com todas as suas implicações musicais e literárias, é uma referência<br />
marcante na linguagem de Nepomuceno em geral e sobretudo na operística. Mesmo O<br />
Garatuja, que à primeira vista parece muito distante de Wagner, numa inspeção mais<br />
atenta revela certos paralelismos com Os Mestres Cantores de Nürenberg, não obstante<br />
o caráter naturalista do enredo, vazado de um caráter irônico, que está muito mais próximo<br />
do verismo de Il Pagliacci de Ruggero Leoncavallo do que das mitologias de Wagner.<br />
O pretexto para a ação das outras duas óperas, tanto de Artémis como de Abul,<br />
também gira em torno de artistas plásticos, desta vez escultores. A este respeito há que<br />
se considerar a influência da estreita amizade de Nepomuceno com os irmãos Bernardelli,<br />
artistas plásticos que militaram na Academia Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro.<br />
Os irmãos Bernardelli, Henrique, Félix e Rodolfo, respectivamente pintores os dois primeiros<br />
e escultor o terceiro, patrocinaram a primeira viagem de estudos do compositor à<br />
Itália, quando uma bolsa do governo imperial lhe foi rejeitada e a República ainda não havia<br />
sido instaurada para permitir que esse compromisso fosse resgatado. O modelo de<br />
criação e ensino propagado pela Academia de Belas Artes, baseado na emulação das<br />
obras dos grandes mestres, gerou uma marca profunda no espírito de Nepomuceno.<br />
Podemos reconhecer, até com certa facilidade, como a música de Nepomuceno dialoga,<br />
ao longo de toda sua vida, com as obras referenciais que admirava, de compositores de<br />
sua geração ou das imediatamente anteriores, entre os quais podemos posicionar, com<br />
certeza, Brahms, Wagner, Liszt, Grieg, Fauré e mesmo Debussy. Esse princípio da “imitação<br />
dos grandes mestres,” que chega a representar um maneirismo estilístico para a obra dos<br />
Bernadelli, é também essencial para se compreender a música de Nepomuceno, que ao<br />
contrário de buscar a inovação a partir da negação do passado, como haveria de ser o<br />
mote dos modernistas, acredita na releitura criativa como a fonte maior de inspiração do<br />
artista.<br />
Em Artémis, o personagem principal, Helio, é um escultor que abandona sua família,<br />
obcecado com a perfeição de uma estátua de Artemis que está esculpindo. Em Abul<br />
o tema principal é a religião monoteísta do povo judeu exilado na Babilônia. O personagem<br />
principal, Abul, é filho de Terak, um escultor de ídolos pagãos, a quem o filho rejeita, passando<br />
a desobedecê-lo, movido por uma fé monoteísta que é contrária à idolatria. Em<br />
todas as três óperas acima mencionadas o enredo é fundamentalmente metadiscursivo,<br />
uma vez que se trata de uma obra de arte que coloca em questão os valores éticos das<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
227<br />
próprias obras de arte materializadas como esculturas ou pinturas. Nisso reconhecemos<br />
um traço essencialmente simbolista na concepção de todas elas. É fundamental salientar<br />
que a preocupação metalinguística é pouco relevante para o pensamento modernista,<br />
mas se torna novamente importante nas preocupações do pós-modernismo, o que justifica,<br />
pelo menos em parte, o resgate da obra de Nepomuceno em curso nesta geração, após<br />
décadas de esquecimento pelas gerações modernistas que queriam enterrar todas as<br />
manifestações artísticas que exalassem o que era considerado o mau odor do academicismo.<br />
Essas considerações trazem à baila outro tópico candente na recepção da obra<br />
de Nepomuceno após sua morte: a questão do canto em português. Essa deveria ser uma<br />
questão importante na reavaliação das óperas de Nepomuceno, todavia ela permanece<br />
condicionada pelos interesses da propaganda modernista. Segundo os relatos da historiografia<br />
influenciada pela ideologia modernista, desde Renato Almeida até Luis Heitor<br />
Correa de Azevedo e Vasco Mariz, Nepomuceno foi o compostor da sua geração que<br />
assumiu a bandeira da defesa do canto em português. Alvim Corrêa (1985, p.7) afirma<br />
que, em 1895, Nepomuceno inicia “uma patriótica e árdua campanha pela nacionalização<br />
definitiva de nossa música erudita, ao impor o canto em vernáculo nas nossas salas de<br />
concerto” criando o lema que “não tem pátria um povo que não canta em sua língua.”<br />
Ora, tal uma campanha de fato nunca existiu. O que ocorreu em 1895 foi uma polêmica<br />
jornalística entre o crítico Oscar Guanabarino e o compositor. Avelino Romero Pereira<br />
(2007, p. 113) relata que o motivo da disputa “nasceu de um comentário feito à canção<br />
Por mim?, do francês Gabriel Dufriche, cantada pelo barítono Carlos de Carvalho” que foi<br />
considerada por Guanabarino em sua crítica como uma “pretensa imitação do Amo-te<br />
muito de Nepomuceno”. O fato de um francês escrever sobre versos em português deu<br />
margem a que os contendores reeditassem uma versão tropical da Querelle des Bouffons,<br />
como aquela em que Rousseau defendeu o canto em italiano e Rameau o canto em francês.<br />
Neste caso Nepomuceno defendeu outro crítico, Rodrigues Barbosa, que congratulou o<br />
compositor por usar versos em vernáculo, enquanto Guanabarino assumiu uma posição<br />
que aos modernistas interessou julgar como italianófila. Pereira (2007, p. 120) mostrou<br />
ademais que o lema acima citado não foi criado por Nepomuceno, mas é uma passagem<br />
das notas biográficas de Nepomuceno que Rodrigues Barbosa escreveu. No mais, se por<br />
um lado a canção cantada em português foi de fato o pretexto que detonou a diatribe,<br />
por outro ela logo desandou em ofensas pessoais e numa disputa em que cada lado procurava<br />
pavonear sua erudição. O certo, porém, é que nunca esteve em disputa que uma<br />
ópera pudesse ser cantada em português, uma vez que o próprio Guanabarino argumentava<br />
que o canto em português não era novidade, nem sequer na ópera, lembrando<br />
o precedente de Carlos Gomes e Henrique Alves de Mesquita. Por outro lado Nepomuceno<br />
também nunca se revelou intransigente a esse respeito, nem na teoria nem na prática,<br />
bastando lembrar que escreveu canções sobre poemas em língua estrangeira em diversos<br />
momentos de sua carreira, até perto do fim, quando compôs Le Miracle de la Semence<br />
sobre versos em francês de Jacques d’Avray (pseudônimo de Freitas Valle). Como afirma<br />
Ana Balakian (2000, p. 15) “com o simbolismo, a arte deixou realmente de ser nacional e<br />
assumiu as premissas da cultura ocidental”.<br />
Deixando de lado as hoje irrelevantes questões de plágio levantadas no debate<br />
de Nepomuceno com Guanabarino, salientemos que nessa discussão foram revisitados<br />
alguns argumentos sobre a fonética e a prosódia do italiano que serviram de fundamento<br />
para a comparação com o francês no caso da Querelle e com o português no caso da<br />
Campanha. Essas questões foram retomadas novamente, por exemplo, no Congresso sobre<br />
a Língua Portuguesa Cantada, promovido por Mario de Andrade, que teve recentemente<br />
uma segunda edição, demonstrando que o tema continua longe ter a uma posição con-<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
228<br />
sensual. Outros aspectos importantes podem ser extraídos da revisão daquele debate. É<br />
inegável que Guanabarino se identificava com a posição conservadora dos parnasianos,<br />
ao deixar transparecer que o canto em língua estrangeira seria signo da música culta enquanto<br />
o português, uma língua inculta (certamente uma paráfrase do verso “Última flor<br />
do Lácio, inculta e bela” de Bilac, publicado em 1888) seria menos adequada ao canto.<br />
Nepomuceno, por outro lado, identificava-se com o projeto positivista progressista republicano,<br />
argumentando que o texto cantado devia ser inteligível para o público. Portanto,<br />
em sua opinião, as óperas em língua estrangeira deviam ser traduzidas para a língua local,<br />
como se fazia habitualmente na Europa. Em última instância o debate revela um Nepomuceno<br />
acostumado à visão cosmopolita dos problemas, em vez de, como se propalou,<br />
um compositor entrincheirado em posições nacionalistas, enquanto Guanabarino<br />
meramente resguardava hábitos provincianos. O projeto republicano de identidade<br />
nacional, com que Nepomuceno sintonizava, não implicava na exclusão da cultura universal<br />
e sua substituição por uma cultura regional, pelo contrário, considerava que cabia aos<br />
homens cultos ilustrar o povo através da educação, ao mesmo tempo em que se reforçaria<br />
a identidade nacional pela incorporação de elementos da cultura popular.<br />
Os quatro projetos operísticos de Nepomuceno percorrem todo o espectro de<br />
tendências do movimento romântico brasileiro. O primeiro desses projetos, Porangaba,<br />
situa-se na esteira do nacionalismo indianista da segunda geração romântica da qual<br />
José de Alencar é principal protagonista. Se concretizado naquele momento o projeto padeceria<br />
de um patente anacronismo porque buscava reviver um modelo operístico que o<br />
próprio Carlos Gomes já abandonara. Seu segundo projeto, Artémis, com o subtítulo de<br />
“episódio lírico”, baseou-se num libreto de Coelho Neto e representa uma adesão em<br />
larga escala ao Simbolismo, sintonizado ainda com o gosto parnasiano predominante na<br />
sociedade carioca da época que se torna marcante devido ao texto de Coelho Neto. Seu<br />
terceiro projeto, Abul, é ainda mais abertamente Simbolista, voltado todavia ao gosto<br />
cosmopolita das plateias italiana e argentina. Traz o subtítulo “ação legendária” e tem<br />
como pano de fundo a versão judaico-cristã de um tema filosófico-religioso de conteúdo<br />
similar aos mitos nórdicos das óperas de Wagner, que em última instância são a própria<br />
matriz do movimento Simbolista. O derradeiro projeto, O Garatuja, representaria uma<br />
adesão ao realismo romântico, mas como jamais foi concluído conclui-se que as duas<br />
óperas de Nepomuceno representadas durante sua vida testemunham um compromisso<br />
profundo com o projeto Simbolista. Lembremos ademais que duas das primeiras canções<br />
de Nepomuceno utilizaram poemas em francês de Maeterlinck, o representante de maior<br />
visibilidade do simbolismo entre os poetas de língua francesa em seu tempo. E também<br />
que, em sua última viagem ao continente europeu, Nepomuceno visitou Debussy, seu conhecido<br />
desde a estreia de L’aprés midi d’um faune e dele recebeu uma partitura autografada<br />
de Pélleas et Melisande, ópera que representa a culminação do simbolismo operístico<br />
na França.<br />
Se a campanha pelo canto em português tivesse existido de fato como relatado<br />
pela historiografia modernista, seria natural que as duas óperas levadas à cena por Nepomuceno<br />
previssem apenas execuções em português, mas tal não ocorreu. A primeira<br />
encenação de Artémis no Rio de Janeiro foi de fato cantada em português, mas a partitura<br />
foi publicada em versão bilíngüe português-francês, e em algumas passagens a prosódia<br />
do francês parece se adaptar melhor à música do que a versão em português (Exemplo<br />
1). Seria isso um indicativo de que Nepomuceno pensou a música para o texto em francês,<br />
almejando uma representação europeia? Sérgio Alvim Corrêa (1985, p. 10) relata um encontro<br />
de Nepomuceno com Mahler em 1900, no qual o brasileiro teria pleiteado uma<br />
montagem do Artémis em Viena que, todavia, não aconteceria. Se isso de fato aconteceu<br />
seria natural que existisse uma tradução para o alemão que, entretanto, não se conhece.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
229<br />
Seja como for, é patente que Nepomuceno não considerava que cantar suas óperas em<br />
português fosse um requisito imprescindível.<br />
Exemplo 1. Fragmento de Artemis em que Helio conversa com sua escultura.<br />
É flagrante nessa passagem que a linha vocal parece mais ajustada ao texto em<br />
francês do que em português. Por exemplo, a palavra Artemis em francês é oxítona, o que<br />
faz a sílaba tônica coincidir com o fim da frase dada pelo acompanhamento pianístico que<br />
converge para a terça Dób-E. Saliente-se, além disso, a linguagem intensamente cromática,<br />
evidentemente inspirada na do Tristão de Wagner. Esse é um signo inquestionável de<br />
uma pertença simbolista.<br />
Do mesmo modo, o Abul parece muito mais afeito à prosódia do italiano do que<br />
à do português. Mas nesse caso não há dúvida de que Nepomuceno considerava prioritárias<br />
as montagens em Buenos Aires e Roma, que aconteceram em italiano. Seu acalentado<br />
sonho de repetir o sucesso de Carlos Gomes na Itália exigia que o libreto fosse compreensível<br />
ao público de Roma. Infelizmente as circunstâncias conspiraram contra seu desejo.<br />
Afinal, Nepomuceno deveria ter imaginado que uma ópera que soava wagneriana e tinha<br />
o handicap de uma ação quase estática, e ainda copiava soluções batidas da Grand Opera<br />
francesa, não poderia agradar aos italianos. Mas talvez ele tivesse confiado que uma certa<br />
semelhança com o Otello de Verdi e os libretos de cunho religioso de Boito fossem suficientes<br />
para despertar a simpatia do público romano. Por outro lado, quanto à montagem<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
230<br />
no Rio de Janeiro, ter sido ela feita em português respondia coerentemente à lógica defendida<br />
por Nepomuceno na polêmica com Guanabarino: uma ópera deveria ser encenada,<br />
sempre que possível, na língua falada pelo público local.<br />
Se, como verificamos acima, o simbolismo de Artémis descende diretamente<br />
do wagnerianismo alemão, a linguagem de Abul, por outro lado, parece prestar tributo a<br />
um gosto francês fin de siècle, talvez até decadentista. O cromatismo wagneriano tornase<br />
abrandado por um diatonismo modal, que revela possíveis influências de Debussy,<br />
Fauré e da Schola Cantorum em geral, instituição por onde passara Nepomuceno durante<br />
seus estudos na França. A passagem transcrita no Exemplo 2 comprova essa intrigante<br />
tendência à hibridação. A tonalidade de Dó oscila entre maior e menor, utilizando acordes<br />
característicos dos dois modos indiscriminadamente. A escala descendente na mão direita<br />
que abre esta passagem apresenta o modo Frígio de Dó sobre um pedal de tônica, com a<br />
quinta justa. O paralelismo no movimento das vozes parece fazer referência à técnica de<br />
Debussy, assim como a progressão por oitas e quinta paralelas na mão esquerda. O Ré<br />
bemol que marca o modo frígio dessa passagem revela-se, no fim do segundo compasso,<br />
como um acorde de sexta napolitana sem inversão (bII) que é imediatamente reinterpretado<br />
como dominante do acorde de Solb maior que se segue.<br />
Exemplo 2. Fragmento de Abul, início da Dança Sacra do terceiro ato.<br />
Como devemos interpretar essa passagem abrupta de Dó para Sol bemol, antípodas<br />
no ciclo das quintas? É plausível fazermos uma associação simbólica a essa passagem,<br />
reconhecendo as duas tonalidades como dois polos de um dualismo antitético, ou seja,<br />
uma representação de luz e trevas, bem e mal, dó menor versus Solb Maior. Trata-se de<br />
uma dança sacra, onde a música coloca em questão a oposição entre sensualidade e ascese<br />
religiosa. Se se trata de uma ópera simbolista é natural que Nepomuceno encontrasse<br />
meios próprios à linguagem musical para representar esses conteúdos conceituais. A<br />
passagem prossegue com uma volta também abrupta à Dó, sem que, entretanto, se ouça<br />
a tônica. A tonalidade se torna perceptível apenas pelo retorno da dominante Sol maior,<br />
precedida por uma subdominante alterada, Fá maior. A passagem que se iniciara em dó<br />
menor devia fazer soar Fá menor, mas o que se ouve é uma subdominante maior, característica<br />
do modo de Dó maior. Essa inesperada e intrigante mistura de modos fazia parte<br />
do vocabulário harmônico francês no final do século. No tratado de harmonia de Koechlin,<br />
adotado no Conservatório de Paris, aparece explicitamente a recomendação de que é<br />
permitida, no modo menor, a alteração cromática da subdominante, substituindo-a pela<br />
subdominante do modo maior. Essa mistura paradoxal de modos gera um efeito de gosto<br />
duvidoso, uma impressão de manipulação arbitrária das alterações cromáticas que é justamente<br />
o que permite a essa linguagem realizar a contrapartida musical dos jogos de<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
231<br />
palavras e significados caros à literatura simbolista. Note-se que no compasso 5 a<br />
subdominante retorna como fá menor, enfatizando a oposição entre as subdominantes<br />
maior e menor.<br />
Flávio Cardoso Oliveira (2005) localizou o romance original sobre o qual<br />
Nepomuceno baseou seu libreto. Trata-se de A Romance of the Faith de Herbert D. Ward.<br />
Ward foi um pastor norte-americano que viveu na Nova Inglaterra e publicou alguns romances<br />
para mocinhas, de conteúdo moralizante, baseados em relatos pseudo-históricos,<br />
ou mais precisamente pseudo-bíblicos. Por que teria Nepomuceno escolhido esse romance<br />
para basear seu libreto? A moda do exotismo religioso era uma recorrência no fim do<br />
século dezenove. Mas a explicação mais plausível é que Nepomuceno tenha recebido<br />
esse romance de presente da cantora Roxy King, americana de nascimento, que cantou o<br />
papel de Hestia na estréia de Artémis. Supõe-se que teria havido uma ligação afetiva<br />
entre eles e que o libreto guarde significados simbólicos dessa relação. Mas há também<br />
muitos elementos em Abul que lembram a Aída e o Otello de Verdi (a cena da preghiera<br />
de Abul no ato II, por exemplo), assim como de Wagner, como o interlúdio e a procissão<br />
do terceiro ato, que parecem fazer referência ao coro dos peregrinos de Tannhauser,<br />
assim como a Danza sacra Del Fuoco parece uma referência às Walquírias.<br />
Referências bibliográficas<br />
Alencar, José. Alfarrábios. Rio de Janeiro: José Olympio, 1951 [1873].<br />
Balakian, Anna. O Simbolismo. São Paulo: Perspectiva, 2000 [1967, 1ª ed. em inglês].<br />
Corrêa, Sérgio Alvim. Alberto Nepomuceno: Catálogo Geral. Rio de Janeiro: Funarte,<br />
1985.<br />
Oliveira, Flávio Cardoso. A Ópera Abul de Nepomuceno e sua Contribuição para o<br />
Patrimônio Musical Brasileiro na Primeira República. Tese de Doutorado. Campinas:<br />
Unicamp, 2005.<br />
Pereira, Avelino Romero. Música, Sociedade e Política: Alberto Nepomuceno e a<br />
República Musical. Rio de Janeiro: Editora da <strong>UFRJ</strong>, 2007.<br />
Volpe, Maria Alice. “Carlos Gomes: A persistência de um paradigma em época de<br />
crepúsculo”. Brasiliana, v. 17, p. 2-11, maio 2004.<br />
Volpe, Maria Alice. “Remaking the Brazilian Myth of National Foundation: Il Guarany”.<br />
Latin American Music Review, v. 2, n. 2, p. 179-194, 2002.<br />
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ESTILO E RECEPÇÃO
233<br />
A filiação estética dos autores líricos<br />
da Amazônia no Período da Borracha,<br />
a partir de suas óperas<br />
Márcio Páscoa<br />
Universidade do Estado do Amazonas<br />
Entre o último quartel do século XIX e a primeira década do século XX, a economia<br />
da região Norte do Brasil concentrou-se quase totalmente na extração e comercialização<br />
da borracha silvestre, com uma cadeia de interesses diretos e indiretos que estimulou<br />
investimentos, recrutou força de trabalho em outras regiões brasileiras e no exterior, provocando<br />
mudanças absolutas nas capitais de Pará e Amazonas. Naquele momento, a contribuição<br />
da região para o PIB do país aproximava-se da soma de todas as outras.<br />
Tal movimentação econômica tem seus primeiros indícios a partir da criação da<br />
Província do Amazonas (1850), com instalação acontecida em 1852. A ideia então era<br />
promover o desenvolvimento de uma das regiões territoriais mais vastas e pouco habitadas<br />
do país, instalando estrutura administrativa estatal. As receitas da extração de borracha<br />
apareceram lentamente a partir daí, havendo um crescimento exponencial significativo a<br />
partir da década de 1870, com ápice por volta da virada do século XIX para o XX.<br />
Como efeito disso, as capitais do Amazonas e do Pará se desenvolveram enormemente.<br />
As cidades passaram por remodelamento urbano, com influência clara do traçado<br />
cartesiano de Haussmann para Paris no século XIX, em que ruas perpendiculares e<br />
paralelas deram nova organização ao cotidiano, permitindo a implantação rápida e pioneira<br />
de benefícios tecnológicos, como a distribuição pública de luz elétrica, a conseqüente<br />
malha viária de bondes à tração elétrica, sistema de águas e esgoto e o recolhimento de<br />
lixo, sem mencionar serviços como o de limpeza pública. A quantidade de praças e jardins<br />
também cresceu, concomitante ao novo modelo de cidade para qual edifícios públicos de<br />
caráter monumental e referencial arquitetônico foram sendo erguidos. A composição<br />
arquitetônica dos espaços sugere ainda a importância de certos setores e atividades sociais<br />
e culturais.<br />
Excepcionalmente interessante para este último caso é a da concepção dos teatros<br />
das capitais do Pará e do Amazonas. O Teatro da Paz, em Belém, que abriu as portas<br />
em 2 de fevereiro de 1878, foi erigido em inegável estilo italiano, e o prédio, cuja sala acomoda<br />
quase mil lugares, ficou plantado no meio de uma vasta praça ajardinada, em que<br />
se colocaram, coreto, pérgola, e, posteriormente, até mesmo um outro pequeno teatro.<br />
O Teatro Amazonas, inaugurado em 31 de dezembro de 1896 possui, entretanto, estilo<br />
eclético, valendo-se de um conjunto de características revivalistas que remetem a estilos<br />
de épocas diferentes, desde os cânones renascentistas em diante. O acabamento externo<br />
é mais sofisticado e a elaboração do Salão de Honra, ainda que de dimensão menor que<br />
o do vizinho paraense, é muitíssimo mais complexa.<br />
O Teatro Amazonas foi projetado para compor-se diante de uma praça pontuada<br />
ao centro pelo monumento de abertura dos portos da Amazônia à navegação internacional,<br />
marco referencial do crescimento da região. Monumento, calçamento da praça e, acima<br />
de tudo o teatro foram obra de uma equipe de artistas italianos liderados por Giovanni<br />
Capranesi e Domenico De Angelis, que também executaram algumas obras relevantes<br />
em Belém. Especialmente De Angelis, que esteve várias vezes na Amazônia, foi quem<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
234<br />
assinou alguns dos painéis e plafonds de maior valor artístico e histórico do período em<br />
ambas as capitais.<br />
A sofisticação dos teatros das capitais da borracha esteve fundamentada não<br />
apenas no desejo, mas na necessidade de abrigar um volume de visitas de companhias artísticas<br />
nacionais e estrangeiras, bem como a crescente plateia destas urbes.<br />
Os teatros predecessores de Belém e Manaus, antiquados ou precários, chegaram<br />
a abrigar as primeiras temporadas de ópera destas capitais. Tal aspecto antiquado está<br />
sugerido tanto pelas dificuldades em abrigar os novos modelos de espetáculo oitocentista<br />
quanto pelos elementos visuais internos e externos, do mesmo modo que a precariedade<br />
deve-se muito mais à dificuldade de manutenção de empreendimentos privados, como<br />
eram todos.<br />
Belém já tomara contato com modelos diferentes de ópera, e as suas variantes<br />
possíveis de exibição, desde o século XVIII, enquanto Manaus vivenciaria tais experiências<br />
nas últimas décadas do século XIX. As diferenças de população tendem a explicar isso. Por<br />
ser mais antiga e atribuída de maior importância desde o início, Belém no início do século<br />
XIX contava população superior a 20.000 pessoas, número não muito diferente do núcleo<br />
urbano de Manaus ao fim deste mesmo século.<br />
Essa população, constituída principalmente por imigrantes recentes, sobretudo<br />
nordestinos em grande parte fugidos das dificuldades impostas por severos períodos de<br />
seca, foi formada por um contingente estrangeiro bastante significativo. Assim como a<br />
maior parte dos nordestinos, que tendiam a trabalhar diretamente na extração da borracha,<br />
os estrangeiros também parecem ter se concentrado em nichos. A maioria era portuguesa,<br />
que dominou quase de maneira monopolista o comércio varejista e de médio<br />
porte. Ingleses e alemães, ainda que em número bem mais reduzido, também participaram<br />
ativamente, dominando áreas de concessões e serviços públicos, assim como grandes<br />
empreendimentos de navegação e comércio exterior. A presença de sírio-libaneses e judeus<br />
marroquinos pela Amazônia Ocidental, mas especialmente em Manaus, foi igualmente<br />
marcante, grupos geralmente associados ao comércio.<br />
A população cosmopolita desta nova Amazônia, em que ainda estavam incluídos<br />
italianos e um número variado de provenientes da Europa e América do Sul, fez com que<br />
os hábitos, sobretudo das capitais, mudasse bastante. Manaus, que era menor, talvez<br />
tenha sofrido maior impacto, crescendo num processo de cosmopolitismo, que ao fim do<br />
período da borracha, faria a cidade desabar de modo devastador. Belém já trazia algumas<br />
luzes de sua vivência como capital importante do período colonial e nisso o período decadencial<br />
encontrou certa contenção aos inevitáveis estragos. Talvez este mesmo motivo<br />
explique o surgimento de Henrique Eulálio Gurjão (1834-1885).<br />
Nascido na capital do Pará, ele possivelmente foi o mais mitificado dentre os autores<br />
do Norte brasileiro do século XIX. Guilherme de Mello, autor da primeira obra panorâmica<br />
sobre a História da Música no Brasil, escrevendo pouco mais de duas décadas<br />
depois da morte do compositor paraense, considerava-o a síntese de “toda a antiga tradição<br />
musical do Pará” (Mello, 1908, p. 346). O historiador baiano deu diversas informações<br />
que seriam repetidas posteriormente pelos maiores estudiosos da música brasileira. Dele<br />
sabe-se que o compositor nasceu em Belém, a 15 de novembro de 1834, filho de Ana Dorothéa<br />
de Andrade Gurjão e do Major Henrique Pedro Gurjão. Mello afirma que o músico<br />
se valeu de uma pensão provincial, que lhe concedeu a Assembléia do Pará, através da lei<br />
nº 218 de 16 de novembro de 1851, para ir estudar na Europa. Mas os 800$000 réis a que<br />
fazia jus eram insuficientes e foi auxiliado por seus irmãos, Hilário Maximiano Antunes<br />
Gurjão, que se tornara capitão de artilharia, e Francisco Pedro Gurjão, então um chefe de<br />
seção da extinta Tesouraria da Fazenda. Isto deve explicar certo retardo que se verifica na<br />
data de sua partida para Roma, que Mello afirma ter sido em 14 de maio de 1852. Ainda<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
235<br />
segundo o autor baiano, foi na capital italiana que Gurjão estudou com “o maestro Pacini,<br />
autor de um número considerável de óperas, das quais se destacam: Saffo (Nápoles, 1842),<br />
Medea (Palermo, 1843), Niccolo de Lapi (Rio de Janeiro, 1855). 1<br />
Mello informa ainda que Gurjão obteve um diploma de maestro (compositore)<br />
no Instituto Musical de Gênova e menciona apenas duas obras suas dessa época, uma<br />
Ave Maria escrita quando recebeu a notícia da morte de outro irmão seu, o engenheiro<br />
Raimundo Gurjão, e uma “missa a grande instrumental que foi executada no Pará por<br />
ocasião de uma festividade do Espírito Santo” (Mello, 1908, p. 346).<br />
Também provém de Mello a informação de que teria sido sugerida a Gurjão a<br />
execução da Idália no Rio de Janeiro, quando voltou da Itália, deduzindo-se que a sua<br />
única ópera tenha sido composta em solo europeu. A parada na capital brasileira ocorreu<br />
para que o compositor visitasse o irmão militar, a esta altura detentor da patente de<br />
tenente-coronel e residindo no Rio: “Henrique Gurjão havia já escrito a sua mimosa ópera<br />
Idália. O referido oficial pediu-lhe com instância que a levasse à cena ali; o Maestro, porém,<br />
recusou-se, alegando que ela era dedicada aos seus comprovincianos e, por isso, só no<br />
seu torrão natal desejava fazê-lo” (Mello, 1908, p. 347) .<br />
Mello não informa quanto tempo Gurjão passou no Rio de Janeiro, mas afirma que<br />
sua chegada ao Pará deu-se em 14 de novembro de 1861. Diz ainda que ocupou uma cadeira<br />
do magistério público. O historiador dá também alguma nota sobre a produção de<br />
Gurjão, associando algumas peças a eventos e pessoas homenageadas2 , destacando-se<br />
um par de vaudevilles, para o Teatro Providência, que era a principal casa de espetáculos<br />
de Belém antes do Teatro da Paz (Mello, 1908, p. 349), 3 “além de muitas missas para festas,<br />
marchas para bandas marciais e hinos para diversas associações” (Mello, 1908, p. 348).<br />
O último parágrafo do relato sobre Gurjão na primeira obra histórica que o menciona<br />
é sobre a Idalia, em que ele emite opinião, sem que se saiba se ele conhecia a<br />
música por algum meio:<br />
Essa ópera extraordinariamente bela, do estimadíssimo maestro paraense, foi<br />
representada pela primeira vez no Theatro da Paz na noite de 3 de novembro de<br />
1881, tendo ele sido chamado a cena onze vezes para receber as mais estrondosas<br />
provas de admiração e apreço. (Mello, 1908, p. 349)<br />
Nenhuma outra apreciação sobre Gurjão e sua obra seria tão extensa quanto<br />
esta nos subsequentes escritos de história da música brasileira, embora ele ainda tivesse<br />
sido considerado durante certo tempo o primeiro compositor lírico nacional, justificando<br />
uma ordem histórica e cronológica (Cernicchiaro, 1926, p. 302).<br />
A promessa da estreia de Idália aos paraenses só se realizaria em 1881, quando<br />
a economia da borracha já havia erguido o Teatro da Paz e proporcionava temporadas<br />
...........................................................................<br />
1 Mello se engana com a data da estréia de Saffo, que na verdade ocorreu no São Carlos napolitano em 29 de<br />
novembro de 1840, mas erra, sobretudo, com a malograda estréia de Niccolo de Lapi, anunciada de fato para o<br />
Rio de Janeiro, em 1857, mas não executada. A primeira execução conhecida deu-se em Florença, no Teatro Pagliano,<br />
em 1873. Conforme M. Rose; S. R Balthazar & T. Kaufman «Giovani Pacini» Grove Music Online, ed. L.<br />
Macy, acesso em 31 de agosto de 2007, www.grovemusic.com.<br />
2 O galope Hilaridade teria sido oferecido ao maestro Francisco Libânio Colás, sendo executado durante espetáculo<br />
em benefício deste no Teatro da Paz. O Hino do Trabalho foi uma oferta aos artistas e teve lugar na inauguração<br />
de uma Exposição Artística e Industrial, quando foi executado por quatro bandas marciais, aparentemente<br />
também no Pará. Gurjão fez ainda a missa de réquiem com Libera me para o seu irmão Hilário, que alcançara<br />
o posto de general. Constam ainda um Hino Paraense, um hino a Carlos Gomes, nomeia seis Romanzas em<br />
italiano (La partenza, La vedova, Una rimenbranza, Il giuramento e La lontananza), outra em português (Presente<br />
e passado). Vicente Salles faria diversos adendos a esta lista, com especial menção ao nome dos vaudevilles<br />
e à música sacra (1970).<br />
3 Mello não dá o nome das peças, mas informa que uma foi escrita por Marcello Lobato de Castro e a outra por<br />
Luiz Bauna [sic, certamente Baena]. Ambas teriam sido muito aplaudidas.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
236<br />
artísticas anuais ao público local. O desaparecimento da partitura e partes cavas de Idália<br />
leva a supor que Mello, Cernichiaro e demais historiadores que a ela fazem menção, podem<br />
ter conhecido apenas a versão pianística que Enrico Bernardi fez publicar no Pará em data<br />
próxima à da morte de Gurjão. Mesmo essa edição, hoje muito rara e só recentemente<br />
revista e novamente publicada (Páscoa, 2009), deve ter sido de pequena circulação, porque<br />
após Azevedo (1938) não se leem mais apreciações sobre a ópera de Gurjão. Pode ser<br />
também que Mello tenha escrito mais detidamente sobre Gurjão em parte porque tomou<br />
conhecimento da ruidosa recepção de Idália no Teatro da Paz (Salles, 1994, p. 85-95).<br />
O elenco criador da Idália veio integralmente com a companhia lírica italiana<br />
que desenvolveu temporada no Teatro da Paz àquele ano. A soprano catalã, de nome<br />
italianizado, Giuseppina de Senespleda foi a detentora do papel título. Uma especialista<br />
na Violeta de La traviata, ela, como muitos outros que vieram ao Norte do Brasil naqueles<br />
tempos, teve passagens por teatros de Gênova e da rota portuária mediterrânea. Ao lado<br />
dela destavam o tenor Enrcio Giordano (1851-1903), detentor da parte de Rodolfo, artista<br />
bastante conceituado em seus dias, com passagens pelo Scala milanês e outras casas de<br />
igual porte, o barítono Acchile Medini, no papel de Gonçalvo, um especialista de primo<br />
ottocento, o baixo Celeste Saccardi e os comprimários Giulia Marconi e Alessandro Ziliani<br />
(Páscoa, 2006):<br />
O público encheu literalmente o teatro na saudosa noite da primeira representação<br />
da Idália, 3 de novembro de 1881.<br />
E desde a magnífica ouverture ao último trecho não cessou de aplaudir o seu<br />
maestro que veio ao proscênio 14 vezes receber as mais estrepitosas e solenes<br />
manifestações de apreço, de reconhecimento e de admiração.<br />
O desempenho foi o melhor possível, sendo todos os artistas muitíssimo aplaudidos,<br />
sendo também chamado ao proscênio, nomeadamente o maestro Cimini,<br />
que muito concorreu para o sucesso da Idália no Pará. (Folha do Norte, 28 de<br />
fevereiro de 1915) 4<br />
A edição feita por Bernardi contém 130 páginas de música e não é possível saber<br />
ao certo se a ópera foi transcrita na integralidade, embora os trechos coligidos pareçam<br />
fazer parte de um processo sequencial lógico. Bernardi era bastante experiente e teve envolvimento<br />
direto com o meio musical paraense, não havendo razões para desconfiar do<br />
trabalho de redução. 5<br />
A observação dos elementos constitutivos de Idália mostra que Gurjão teve de<br />
fato escola e professor. Ainda que faltem provas documentais do encontro e envolvimento<br />
com Pacini, um olhar atento nas características musicais de ambos pode fornecer respostas.<br />
As primeiras óperas de Pacini revelam a influência direta de Rossini, como foi<br />
comum a muitos autores de sua época, embora aqui se deva dizer que alguns representantes<br />
de gerações anteriores, como Paisiello e Cimarosa também eram apreciados<br />
pelo compositor. Essa referência identitária em Rossini se reflete em Gurjão, não só por<br />
causa da adoção do protótipo lírico e dos ritmos repetitivos, ou mesmo da abertura sob<br />
influência da Forma Sonata, mas também nos detalhes, como os crescendo instrumentais,<br />
minuciosamente registrados por Bernardi em toda a partitura.<br />
Mesmo os acréscimos de Pacini a este modelo podem ser identificados em Gurjão,<br />
como nos fins de frase pontuados por grupeto, ou ainda no uso do Tempo di mezzo<br />
...........................................................................<br />
4 A romanza da Idália já havia sido executada durante a récita de La favorita, no dia 2 de outubro de 1880, durante<br />
a temporada lírica daquele ano. A ocasião foi um benefício do tenor Lodovico Giraud e da meio-soprano<br />
Climene Kalasch (Constituição, 5 de outubro de 1880)<br />
5 Em Páscoa (2006, apêndice) há biografia de Bernardi com lista de trabalhos para o palco.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
237<br />
como recurso de interação e a escolha de um movimento lento na abertura para acentuar<br />
contrastes, o que vai se revelar em um expediente dramático ao longo da ópera. Mesmo<br />
quando Pacini emula Bellini, verifica-se isso em Gurjão, com a escolha de melodismo<br />
simples, o consequente abandono de fiorituras rossinianas e, de maneira mais evidente,<br />
na construção da cabaletta, repetida sempre três vezes, que no autor paraense realizarse<br />
com especial tendência por transposições da melodia em oitava ou ao menos através<br />
de dobradura melódica.<br />
A adoção do estilo franco de Bellini, que marcou a segunda fase compositiva de<br />
Pacini, pode também ser arguida como um ponto coincidente que Gurjão manteve com<br />
outros autores de ópera italiana. Mas ainda assim, há outras observações que, somadas<br />
às anteriores, parecem ultrapassar a mera casualidade. Gurjão construiu um claro bloco<br />
A-A’ na cavatina, para então fazer um Tempo di mezzo contrastante, por vezes com menos<br />
interesse melódico, o que pode refletir trecho declamatório, também característico de<br />
alguns momentos de Pacini. Associado ao tipo de cabaletta descrito, a adoção do protótipo<br />
remete ao possível mentor italiano.<br />
Infelizmente, sem a partitura da versão orquestral de Idália, não se podem comprovar<br />
outros elementos, tais como os que Pacini usou no seu período maduro, especialmente<br />
a partir de Saffo, quando os recitativos ficaram mais elaborados e houve a atribuição<br />
de novos efeitos expressivos, englobando construção de atmosfera obtida na orquestra.<br />
Temas em blocos harmônicos como o que figura na abertura de Idália e repete-se no<br />
miolo de cena, já apontado anteriormente, constituem-se em excelente evidência neste<br />
sentido.<br />
E na fase que compreende os anos de 1840 em diante, Pacini também passou a<br />
desenvolver rápidas modulações, a usar tonalidades relativas distantes e a conter a ritmia<br />
exagerada com a valorização das tercinas bellinianas e a aproximação dos tempos lentos<br />
de cantabili de Donizetti. Gurjão também procedeu neste sentido. Em especial, os tempos<br />
lentos são usados pelo paraense para mostrar contraste de tensão/resolução entre os andamentos<br />
externos do plano de cena padrão ou mesmo na troca de cantabili dos duetos,<br />
o que se reflete em sofisticação dramatúrgica e conserva coerência com muitas das escolhas<br />
acima mencionadas. Na volta dos temas do cantabile para a execução da cabaletta,<br />
Gurjão aproxima-se ainda mais de Pacini. O mesmo se dá com certas introduções instrumentais<br />
de cena, em que o desejo parece ser a não fixação da tonalidade.<br />
São, enfim, muitos elementos coincidentes que reunidos revelam um conjunto<br />
de procedimentos e informações capaz de provar a influência direta de Pacini sobre Gurjão,<br />
sobretudo pela afinidade artística e estética, que supera a discussão sobre haver ou não<br />
provas de uma relação direta de convivência e contato periódico.<br />
Apesar de todo este exame relativo a Pacini, há uma clara atmosfera verdiana<br />
em muitos dos trechos de Idália, seja porque Gurjão chegou a conclusões musicais semelhantes<br />
dadas as condições do meio em que estudou, ou porque se sentiu inspirado diretamente<br />
pela muitas óperas que teve a oportunidade de ver e ouvir, afinal a década de<br />
1850, seja em Gênova ou Roma, proporcionou ao jovem estudante paraense um número<br />
vultoso de estreias de Verdi. São especialmente interessantes os temas heroicos na formulação<br />
do protótipo verdiano, que Gurjão usa nas cavatinas, fazendo algum eco a Il trovatore<br />
e outras obras de lustro próximo. Antes de marcá-las como flagrante semelhança,<br />
seria mais honesto lembrar que ao se vincular com mentores da geração precedente e<br />
acompanhar as novidades da cena lírica dos seus anos de amadurecimento, Gurjão pode<br />
ser um exemplar da geração de Verdi e que com ele compartilhou de várias opções na estruturação<br />
e linguagem da ópera em meados do século XIX. 6<br />
...........................................................................<br />
6 Uma apreciação mais detalhada dos aspectos estruturais de Idália encontra-se em Páscoa (2009, p. 305-321).<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
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Ao menos um aluno de Gurjão projetou-se de igual ou superior modo. Nascido<br />
em Belém, a 2 de novembro de 1853, José Cândido da Gama Malcher começou seus estudos<br />
de música ainda no Pará, com o conterrâneo e predecessor nas lides operísticas.<br />
Entretanto, o médico José da Gama Malcher, seu pai, a despeito de ser um reconhecido<br />
melômano, encaminhou o filho para uma formação de profissional liberal, antes<br />
que este pudesse se enveredar pela música. Assim sendo o jovem Malcher foi mandado<br />
para a Universidade de Lehigh, na Pensilvânia, a fim de estudar Engenharia. Oscar Guanabarino,<br />
cronista musical carioca contemporâneo ao compositor, que se ocuparia de<br />
resenhar a sua primeira ópera, Bug Jargal, informa que Gama Malcher foi à Pensilvânia<br />
por volta dos 17 anos, “mas cedendo a sua tendência natural para a música transportouse,<br />
em 1876, para Gênova, matriculando-se um ano mais tarde no Conservatório de Milão”<br />
(O Paíz, 27 de fevereiro de 1891).<br />
Após cumprir o desejo paterno e recebendo o apoio de Gurjão, Malcher seguiu<br />
para a Itália intencionado em aperfeiçoar-se nos assuntos musicais, o que deve ter durado<br />
por volta de quatro anos. Em 1881, é certo, já estava ele de volta a Belém. Identifica-se a<br />
sua participação na vida cultural da cidade desde agosto deste ano pelo menos, quando<br />
foi bastante elogiado por sua execução pianística durante sarau no Club Verdi (Liberal do<br />
Pará, 19 de agosto de 1881).<br />
Havendo seu pai assumido a presidência interina da Província do Pará, o novel<br />
maestro obteve a pauta do Teatro da Paz e uma subvenção dos cofres paraenses com a finalidade<br />
de organizar três temporadas líricas a partir de 1882. Neste ano consumou o desejo<br />
local de acolher o compositor Carlos Gomes, trazido por ocasião da estreia de Salvator Rosa<br />
no Teatro da Paz. A temporada de 1882, a despeito do relativo sucesso e de boas lembranças<br />
por cronistas posteriores, não terminou bem, eivada de problemas. Com a perda do restante<br />
contrato de subvenção e uma indisposição com Carlos Gomes que se iniciara em princípios<br />
do ano seguinte, Malcher retirou-se para a Itália novamente. Chegado em 1883, disposto a<br />
retomar o contato com Michele Saladino que havia sido seu professor em Milão (Il teatro<br />
ilustrato, novembro de 1888, nº 96, p. 176), Malcher envidou esforços para concluir em<br />
1885 a sua primeira ópera, Bug Jargal (O Paíz, 27 de fevereiro de 1891). Seguiram-se seu<br />
casamento com Palmira Belatti e o nascimento do primeiro, de seus onze filhos.<br />
Em 1890, com a queda do Império Brasileiro e a nascente República, Malcher<br />
retorna para realizar como empresário a primeira temporada brasileira deste novo período<br />
no país. Foi assim, no ano de 1890, que se estreou Bug Jargal em Belém, a 17 de outubro,<br />
tendo número elevado, mas impreciso de repetições.<br />
A ópera baseada no primeiro romance de Victor Hugo foi posta em libreto por<br />
Vicenzo Valle (1857-1890), que o músico deve ter contactado em Milão onde o libretista<br />
era conhecido dos jovens compositores ligados à scapigliatura. Valle assinou muitas canções<br />
com o nome de pluma, Innocenza Weill, mas seu maior êxito foi a ópera Labilia<br />
(1890) de Niccola Spinelli, que ganhou o segundo prêmio do célebre Concurso Sonzgno<br />
que vitoriou Cavalleria rusticana, de Mascagni.<br />
A montagem de Bug Jargal ganhou ainda um reforço significativo, com os figurinos<br />
desenhados por Luigi Bartezago (1820-1905), que trabalhara intensamente para o<br />
Scala de Milão durante toda a década de 1870, sendo especialista em temas exóticos. Sobrevivem<br />
dez pranchas assinadas por ele e que expressam nominalmente os personagens<br />
da ópera de Gama Malcher. 7<br />
...........................................................................<br />
7 As pranchas foram conservadas por Gama Malcher, juntamente com um álbum contendo folhetos, programas<br />
de concertos seus e recortes de críticas feitas por si a apresentações realizadas na Itália, de obras de Wagner e<br />
Puccini, publicadas em periódico ainda não identificado. Este material, constante em uma pasta, passou a herdeiros<br />
e deles a um amigo da família, chegando posteriromente às mãos do estudioso Vicente Salles, que por<br />
sua vez o encaminhou ao Museu da Universidade Federal do Pará.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
239<br />
Após a temporada belenense, a companhia lírica de Malcher seguiu para o sudeste<br />
do país, apresentando-se em São Paulo e depois no Rio de Janeiro, onde se desfez já<br />
no ano de 1891, debaixo de dívidas provocadas pelo não cumprimento do acordo, de<br />
parte dos intermediários da pauta do teatro carioca para onde se dirigiria o grupo (Jornal<br />
do Commercio, 3 de março de 1891). Na ocasião, partitura e partes de Bug Jargal foram<br />
dados em pagamento de impostos ao governo, e o material arrestado foi depositado na<br />
biblioteca do então Instituto de Música, hoje a Biblioteca Alberto Nepomuceno da Escola<br />
de Música da <strong>UFRJ</strong>; somente em 2009 a versão orquestral foi publicada (Páscoa, 2009).<br />
No seu retorno a Belém o compositor obteve por concurso a cadeira de música<br />
do Liceu Paraense, em 1892, e posteriormente ingressou no Instituto Carlos Gomes, conservatório<br />
musical paraense de grande importância, que chegou a dirigir, substituindo a<br />
Enrico Bernardi. Foi nesta etapa que se entregou à segunda ópera, Jara, que concluiu em<br />
1893.<br />
Dentre seus projetos no período esteve também a organização de uma orquestra<br />
sinfônica para divulgar a obra de Beethoven, Wagner, Mascagni e de autores brasileiros,<br />
bem como de um sexteto que se tornou notável pelos nomes que o compunham, pois<br />
eram todos musicistas exponenciais da vida artística paraense, como o violoncelista, e<br />
também compositor lírico, Ettore Bosio.<br />
Ainda em 1895 envolveu-se em mais uma empresa lírica e na ocasião fez estrear<br />
Jara, juntamente com algumas premières importantes para Belém, como foram as de<br />
Mignon e sobretudo de Fosca e de Pagliacci. Jara foi recebida com maior surpresa pela<br />
crítica e público do Pará, sendo muito elogiados os cenários de quem não se sabe ao<br />
certo a autoria. Diferente da primeira ópera, Jara não parece ter sido conservada em<br />
versão pianística, mas apenas em partitura orquestral autógrafa. Esteve por lugar não sabido<br />
durante algumas décadas, mas foi recentemente reencontrada no acervo do Conselho<br />
Estadual de Cultura do Pará, para onde havia sido depositada por doação do filho do<br />
autor; havia sido destinada pelo próprio Malcher ao conservatório, mas com o temporário<br />
encerramento das portas desta instituição em 1908, o material deve ter sido salvaguardado<br />
em outra parte.<br />
A produção de Malcher, que após Jara já possuía novo libreto encomendado,<br />
chegou a incluir duas outras obras líricas, Idílio e Seminarista. A primeira seria estreada<br />
em 1905, na temporada que a companhia de Assis Pacheco e Donato Rotoli fez para reinaugurar<br />
novamente o Teatro da Paz. As partes principais chegaram a ser distribuídas à<br />
soprano Tina Poli Randaccio e ao tenor Ferdinando De Neri, mas por motivos incertos a<br />
peça não foi posta em cena (Folha do Norte, 11 de junho de 1906). 8 Tais peças não estreadas<br />
permanecem hoje extraviadas.<br />
Além destas obras citadas, Gama Malcher produziu um número indefinido de<br />
obras para variada formação, sendo que a maior parte não foi localizada até hoje.<br />
Com a criação do Centro Musical Paraense ocupou, em 1914, o posto de presidente,<br />
ocasião em que era o decano dos compositores paraenses, título que manteve até<br />
o seu falecimento em 17 de janeiro de 1921.(Salles, 1970, p. 187)<br />
Os libretos de Bug Jargal e Jara, este de autoria de Fulvio Folgoni, foram publicados<br />
na Itália, respectivamente em 1890 e 1893. No caso de Bug Jargal foi feita ainda<br />
uma publicação traduzida, posta de modo narrativo e apontando os destaques do espetáculo<br />
que o público devia tomar atenção. Uma tradução de Jara também circulou em<br />
Belém pelas páginas dos peródicos da época em que se estreou.<br />
...........................................................................<br />
8 A irregular frequência do público, o cansaço que muitos membros da empresa alegavam, somados ainda ao<br />
medo por doenças tropicais podem ter concorrido para a temporada abreviada para menos de mês e meio, com<br />
raras reprises e o corte da terceira ópera de Gama Malcher.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
240<br />
A comparação dos libretos publicados com a partitura mostra que Malcher se<br />
valeu quase livremente deles. No caso de Bug Jargal, Malcher reformulou quase todo o<br />
segundo ato para fazê-lo convergir para uma cena de concertante e coro, não só de maior<br />
impacto dramático que o previsto no libreto, mas dotando a obra de equilíbrio<br />
dramatúrgico. Os atos I e IV começam com desempenhos coletivos (coro) e terminam<br />
com conflitos individuais (duetos) em situação inversa ao dos atos II e III. A ideia foi justamente<br />
controlar as tensões e reviravoltas típicas do melodrama de orientação verdiana,<br />
influenciado pela grand opéra, para o que Malcher inclui além dos coros, bailado e batalha<br />
campal que fez representar por seção de descritivismo orquestral.<br />
Os personagens, de força arquetípica, também parecem obedecer a uma concepção<br />
narratológica em que as tensões vividas em cena equilibram forças em direção ao<br />
final caótico. A primeira dificuldade foi certamente a adaptação do romance que possui<br />
narrador e está repleto de personagens, inclusive um cão de poderes fantásticos.<br />
Valle e Malcher chegaram a uma formulação de seis personagens, sendo que<br />
um deles é uma criação para a ópera. A trama que se passa no Haiti, durante a revolução<br />
negra de 1791, descreve a situação limite da escravidão brutal da colônia francesa e a<br />
forte retroação dos negros rebelados que agem violentamente contra seus algozes. Maria<br />
(soprano) é filha do latifundiário Antonio (baixo) e está noiva de Leopoldo (barítono),<br />
sendo todos colonos franceses. Sua bondade provoca o amor de Bug Jargal (tenor), escravo<br />
e líder negro, e consequentemente o ciúme da escrava Irma (meio-soprano). Completa a<br />
distribuição o líder negro rival de Bug Jargal, chamado Biassu (baixo), tão cruel quanto<br />
sua contraparte branca, o mencionado Antonio.<br />
Irma foi criada para diversos propósitos na ópera e é certamente a concepção<br />
que deu maior número de opções inventivas. A tessitura da parte, por vezes grafada mezzosoprano,<br />
por vezes contralto, na verdade possui desenhos melódicos semelhantes ao das<br />
personagens veristas, com canto farfalhado, às vezes gritado, texto inacabado que denota<br />
pensamentos soltos, ideias sem rumo, instabilidade psicológica. Malcher criou ao menos<br />
um leitmotiv para cada personagem, antecipando aí a concepção pucciniana do recurso<br />
de origem wagneriana. No caso de Irma, o tema condutor das ideias é um ritmo de carimbó,<br />
dança típica do Norte do Brasil, hoje muito associada ao Pará. Também consta para ela<br />
um cantabile acomodado à maneira de um lundu, com os inevitáveis choques dissonantes<br />
que este gênero popular possuia. Irma é dramaturgicamente o elemento exótico, que<br />
carrega a responsabilidade pela cor local, mas é ainda o personagem que detém os mesmos<br />
sortilégios e surpresas do cão Rask, do romance Hugoliano original. A sua composição na<br />
trama amorosa serve, entretanto, para acertar o modelo então em voga; ela ama o<br />
protagonista, que ama Maria, que por sua vez ama Leopoldo. Vocalmente sua concepção<br />
pode remeter a Eboli de Don Carlos e Amneris, de Aida, como fontes diretas, mas no<br />
restante, ela é uma novidade absoluta.<br />
Malcher, entretanto, mesclou por toda a ópera elementos de tendências estéticas<br />
diferentes, quase como uma síntese da produção lírica do século XIX. O primo ottocento<br />
está presente com a canção de Bug Jargal ao final do Ato I, que remete às inúmeras canções<br />
de bardo das óperas de Rossini, Donizetti e Bellini. A lembrar esse último está um bom<br />
punhado de cantabili que na formulação ternária possui a tercina como último tempo do<br />
compasso. No mesmo sentido estão os vários cantabili de melodismo simétrico com<br />
alguma fioritura de cauda e coros em formato de barcarola, a 6/8.<br />
Mas Verdi está muito presente, com a tendência ao ambiente tonal de Ré bemol<br />
em partes importantes, bem como no seu modelo de protótipo lírico aqui adotado. Alguns<br />
planos de cena, que oscilam em sua maioria pelos modelos tradicionais de Donizetti, na<br />
verdade mostram progressão tonal semelhante à de Verdi, que incitava o discorrer de<br />
uma cena para outra com a passagem por mediantes e dominantes que buscavam repouso.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
241<br />
A consistência ideológica da maior parte dos personagens também parece verdiana, com<br />
a tendência ao cariz de pureza virginal e até mesmo religiosa de Maria, o heroísmo inconformado<br />
e estóico de Bug Jargal, a dubiedade do caráter varonil de Leopoldo e as<br />
posturas monolíticas e temíveis de Antonio e Biassu.<br />
Embora haja ainda a influência wagneriana acima citada – e é comprovada a admiração<br />
de Malcher pelo autor germânico, Bug Jargal parece se inscrever melhor naquilo<br />
que se entende por scapigliatura, que no caso do paraense já dá inúmeros sinais de um<br />
nascente verismo.<br />
A descritividade orquestral acima aludida, não só nas passagens sem canto, mas<br />
justamente na riqueza que o autor constrói com a presença do solista de canto, é uma<br />
marca inconfundível disto. Não se trata da influência da harmonia cromática de Wagner,<br />
mas de um germanismo mais respeitante às influências de Beethoven, cujas sinfonias se<br />
tornavam muito populares na Itália no tempo em que Malcher lá viveu. Muitas das seções<br />
de Bug Jargal também começam com uma previsão de tonalidade pela armadura de<br />
clave, mas que não se confirmam, revelando o caráter aberto da obra, uma espécie de<br />
divagação no planejamento harmônico, tentativa de não se prender excessivamente a<br />
modelos.<br />
Entretanto o ponto de scapigliatura mais flagrante é em tudo que a obra coincide<br />
com o Guarany de Gomes, de quem certamente Malcher é tributário. O tema exótico, o<br />
concertante de caráter religioso, com preghiera, ao final do segundo ato, a abertura de<br />
ato com os indígenas (na caso de Bug Jargal, dos negros rebelados), o dueto amoroso de<br />
tenor e soprano, as figuras do chefe colono e do chefe “selvagem” atribuídas a baixos,<br />
que aliás aparecem e desaparecem na ópera no mesmo ponto dos atos em ambas as<br />
óperas. O melodismo sinuoso e bem cuidado em ambas, poderia ser mais um ponto coincidente,<br />
embora isto seja uma constante na geração que alcançará o verismo, e uma das<br />
características desta etapa. Aliás, o próprio final de Bug Jargal, sem apoteose, vincado no<br />
drama individual humano, é uma escolha naturalista e muito distante de Gomes e seus<br />
precedentes. Malcher consegue relaxar a responsabilidade da parte vocal, equilibrando a<br />
presença orquestral, realizando toda a última cena com pequenos cantabili e uma preghiera,<br />
naquilo que mais se aproxima do que a época chamou de recitativo melódico-dramático.<br />
Jara está ainda mais impregnada de elementos naturalistas, mas não só. Tudo<br />
que em Jara aparentemente é verista, tem contornos tão densos que faz com que a ópera<br />
se aproxime muito do simbolismo. Não é apenas uma narrativa folclórica, porque é baseade<br />
me lenda, mas uma lenda com fortes atributos universais e densidade psicológica. O índio<br />
Begiuchira (tenor), perdido em sua canoa de volta para casa, depara-se com a figura sedutora<br />
de Jara (soprano). Ela promete seu amor, desde que ele a acompanhe ao seu reino<br />
no fundo dos rios. Sabedor do que isso implica, consome-se porque desde esse dia não<br />
consegue mais parar de pensar em tal aparição. Sachena (meio-soprano), sua mãe<br />
preocupa-se e tenta chamá-lo à realidade. Ubira (barítono), outro varão da tribo chega<br />
intempestivamente durante os festejos sazonais e relata os perigos das matas ermas em<br />
que ele mesmo se encontrou poucos momentos antes, aludindo à Jara. Mas Begiuchira já<br />
não se pertence. O conflito de Begiuchira é existencial. A vida se lhe consome em amor<br />
pelas próprias forças da vida. O amor pela Jara não é libertador no sentido em que Bug<br />
Jargal amava Maria porque descobrira nisso uma nova forma de amar e compreender a<br />
humanidade, para além das convenções sociais. O amor de Begiuchira é todo consumição.<br />
Ele sabe que para aceitar este amor, rejeitará o mundo que conhece e as forças da vida.<br />
Mas a libertação também acontece pela aceitação desse amor. Ao se entregar nos braços<br />
de Jara, extingue-se-lhe a vida física, o limite para o mundo de outra dimensão, que lhe<br />
aparece irresístivel nos encantos incomuns de Jara.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
242<br />
Todo o dilema da ópera se resume ao universo psíquico de Begiuchira no seu<br />
confronto com as forças do Natural e os arquétipos que aí estão envolvidos. Entre a devoção<br />
a duas mulheres, ele oscila pela imagem mítica da mãe, pertencente a um mundo real e<br />
previsível, e a visão onírica, mágica, fantasmagórica da imprevisível mulher, pretensa<br />
amante, que pertence a um mundo idealizado. O temor reverencial da mãe exerce o<br />
domínio da parentela, da tradição social, da convenção do universo real. Este é o domínio<br />
da mulher que gera, da mulher que um dia conteve o homem e o transformou em força<br />
cinética. Sachena é precisamente a força geradora da Terra. Jara completa o ciclo da vida<br />
desse mesmo homem e por ser a mulher receptora, a que extingue a vida do homempoder<br />
cinético, que o recebe nos seus domínios agora fantásticos, mas ainda assim nas<br />
entranhas do planeta, torna-se a antítese de Sachena. Esta, a criatura da força elementar<br />
da terra, a outra, criatura da força elementar do fluxo, da água, onde ocorre a dissipação<br />
e a transformação.<br />
O universo de Jara, de Malcher, excede a descritividade literária de Stradelli,<br />
fonte de quem Malcher é tributário e onde o libreto é calcado, pois Malcher já concebe<br />
um universo psíquico e uma atmosfera dominada pelo aspecto simbólico.<br />
Malcher se valeu de longas passagens orquestrais, algumas próximas de meia<br />
hora, o que muito contrariou o público da época. O libreto também foi muito modificado,<br />
quase totalmente desfigurado. Malcher trocou versos de posição e em tal maneira que a<br />
rima às vezes é branca e em alguns pontos, sem métrica, passa a ideia narrativa. Mas nas<br />
cavatinas – curiosamente ele conservou seções de protótipo lírico tradicional, retorna<br />
aos versos octonários de Stradelli, o ilustrado geógrafo italiano que recolheu e deu forma<br />
narrativa à lenda. Há coros, há bailados, mas há também a tendência à harmonia cromática<br />
e à divagação tonal, há abundância de pentatônicas, de escalas octatônicas, de escalas<br />
expandidas, estruturas palindrômicas.<br />
Na verdade a música sobeja sobre a ação porque a ação da ópera é estática e o<br />
tempo estático é característico da abordagem simbolista, assim como o aprofundamento<br />
da relação entre Homem e Natureza, tão evidentes aqui. Em Jara não há guerras nem<br />
motins, não há os tradicionais duelos nem as disputas de amor e honra; há menos ainda<br />
levantes coletivos contra injustiças sociais. Não há a célebre disputa por valores morais,<br />
por conquistas pessoais ou de causa difusa.<br />
Jara é um colóquio de amor e morte que se dá numa atmosfera de sonho. Jara<br />
é quem o afirma e o coro assim o repete: Amor de Jara é sogno di dormente. A tríade<br />
sonho-amor-morte completa-se no universo simbolista da cultura europeia da virada do<br />
século XIX para o XX. O uso de linguagens particulares, como procedimento compositivo<br />
de autores diversos, especialmente no século XX, realiza-se na adoção de novas sonoridades<br />
pelo uso de vocabulários desconhecidos, da esfera musical como a variedade de escalas<br />
modais que, sobretudo, serviriam como marca identitária nacional e primitiva, mas ainda<br />
na esfera verbal, com o aparelho comunicativo que pressupõe nova musicalidade no dizer<br />
o texto. No caso de Jara há até mesmo cena de diálogo de Ubira com coro que está em<br />
nheengatu, língua geral dos indígenas da Amazônia.<br />
Malcher antecipa o discurso nacionalista que diversos exemplos simbolistas<br />
europeus propuseram a autores brasileiros do século XX.<br />
O simbolismo de Jara é, por um lado, dotado da mesma discussão sobre o papel<br />
do Homem na Terra que já aparecera em Bug Jargal. Mas nesta sua primeira ópera, estão<br />
em jogo as forças de um realismo devedor dos preceitos de Hugo, que em seu prefácio de<br />
Cromwell revelava o paradigma evolutivo do Homem e da sociedade em direção à luta<br />
pela posse da terra e o conflito de interesse antagonizando coletivo e individual, bem<br />
como coletivos entre si. A noção de progresso e evolução levaria aos confrontos e esse<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
243<br />
era o mundo real com os elementos em causa. O Homem, sob a noção de progresso, pretensamente<br />
melhora, ascende, se emancipa no universo da razão.<br />
Jara também discute o papel do Homem na Terra, mas para além dos domínios<br />
da razão, justamente onde ele não pode pretender controle. O universo psíquico dos<br />
sonhos, funde-se em algum momento ao dos sentimentos, onde se acalenta o amor, e à<br />
vertigem incontrolável pelo desenrolar da vida que acaba em morte, que no caso de<br />
Begiuchira se associa ao último prazer prometido.<br />
Ao tempo em que Malcher produzia suas duas masterpieces um novo talento<br />
surgia no Pará. O jovem Octávio Meneleu Campos nascera a 22 de julho de 1872 na rua<br />
Riachuelo, em Belém, obtendo ainda menino os primeiros estímulos à música pela irmã<br />
Isabel, através do piano. Com a passagem do violinista baiano Adelelmo do Nascimento<br />
em princípios da década de 1880 pela capital do Pará, Meneleu Campos recebeu nova<br />
influência e dessa vez direcionando-se ao violino. Adelelmo viu logo o talento precoce e<br />
insistiu com João Marinho de Campos, pai de Meneleu, para que o destinasse a estudos<br />
mais avançados na música (A Província do Pará, 11 de janeiro de 1900). Mas o desejo<br />
paterno quis que ele fosse estudar Direito no Recife, o que de fato veio a acontecer em<br />
1888. Na altura já compunha e com um destes primeiros trabalhos, a valsa Cecy – que ele<br />
logo orquestraria – chamou atenção do estipêndio governamental, pois o governador<br />
Lauro Sodré, em um dos primeiros mandatos republicanos, concedeu bolsa a Meneleu<br />
Campos para ir estudar na Europa. A família reagiu então declinando o favor, para custear<br />
enfim a ida de Meneleu Campos para Milão (Salles, 1972, p. 159-201).<br />
Embarcado para a Itália em 1º de maio de 1891 no vapor Manauense, estudou<br />
com Andrea Guarneri até obter matrícula no Real Conservatório da capital lombarda em<br />
outubro daquele mesmo ano. Naquele renomado estabelecimento de ensino italiano<br />
teve oportunidade de estudar com Vincenzo Ferroni (1858-1934), um dos mais influentes<br />
professores de harmonia da época. Sete anos mais tarde submetia-se a intensa série de<br />
exames que o permitiriam laurear-se em piano, violino e composição (Mello, 1908, p.<br />
330-333).<br />
A repercussão das provas construiria a fama entre seus conterrâneos, que o<br />
receberiam na volta da Europa com deferências de notabilidade. Aquele a quem os jornais<br />
chamavam agora de “orgulho da pátria e da família”vinha para ser o novo diretor do<br />
Conservatório local, recebendo o cargo das mãos de Gama Malcher (A Província do Pará,<br />
12 de janeiro de 1900). Os primeiros tempos passou entre as atividades do conservatório<br />
e a composição. Casado com a italiana Rosetta Basso, enviuvou precocemente em 1902,<br />
o que o levou a uma intensidade de trabalho e uma consequente requisição de licença<br />
sabática a ser vivida em 1903. Aproveitou este período para voltar a Milão e retomar<br />
contato com velhos conhecidos, sendo a primeira oportunidade concreta para a encomenda<br />
e aquisição do libreto de Gli eroi, comprado a Luigi Illica (Salles, 1970, p. 99). Já<br />
fizera uma ópera nos finais do século anterior, chamada Il salvocondotto, mas considerava<br />
um trabalho de juventude. Autor de um catálogo que se enriquecia ano a ano, seu objetivo<br />
era na verdade experimentar o gênero mais em voga do momento e que consagrava<br />
carreiras no mundo mediterrânico-americano.<br />
Embora dedicado ao ofício de ensino na direção do conservatório, o desgaste<br />
político afasta-o do emprego em 1906, mesmo ano em que se casou com Marieta Guedes<br />
da Costa. O retorno à Europa foi imediato. Nesse momento, de certeza, cresceu seu empenho<br />
para a realização de Gli eroi, terminando a composição e tentando viabilizar sua<br />
montagem, o que nunca aconteceria.<br />
Regressou ao Pará em 1908, ano em que o governador Augusto Montenegro extinguia<br />
o Instituto Carlos Gomes, conservatório do Pará. Meneleu Campos intentaria o<br />
ensino particular e mesmo uma escola, mas com o fim do Ciclo da Borracha a debandada<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
244<br />
de recursos provocou também a de pessoas. Em fins de 1909 ele dirigia-se para o Rio de<br />
Janeiro, onde inicialmente seus quartetos e romanzas foram sendo executados por nomes<br />
importantes da música local, como Ernesto Ronchini, Jerônimo Silva, Rubens Tavares e,<br />
sobretudo, Vincenzo Cernicchiaro, que escreveria elogiosamente sobre o paraense no<br />
volume de história da música no Brasil que o italiano editaria na Europa década e meia<br />
depois.<br />
Em dezembro de 1909 seus quartetos de cordas foram executados em São Paulo<br />
e no princípio da década seguinte já se encontrava de volta a Belém para seu ofício<br />
pedagógico no estabelecimento que criara. Cansado da lida, encerrou as portas de sua<br />
escola em 1912 e no ano seguinte dirigia-se mais uma vez à Europa.<br />
Em verdade, depois de breve passagem por Paris, fixou-se por dois anos em<br />
Portugal para cumprir recomendações de tratamento médico para sua filha Sulamita.<br />
Neste meio tempo lecionou piano, solfejo, teoria musical, harmonia e composição, mas<br />
obteve pouco sucesso e acabou por retornar mais uma vez a Belém em 1916. Surgiu nova<br />
fase compositiva em que se fizeram aparentes as influências de Alberto Nepomuceno,<br />
que ele conhecera no Rio de Janeiro e que até executara obras suas. Mas Meneleu Campos<br />
foi escrevendo cada vez menos, nos anos seguintes, ainda que motivado em orquestrar<br />
algumas de suas peças já existentes e empenhado na direção de grupos diversos como<br />
sempre esteve, sendo mesmo capaz de montar um septeto que deixou boas impressões,<br />
além de um orfeão e concertos vocais-sinfônicos (Salles, 1972).<br />
Em 1926 ausentou-se mais uma vez a descanso e estando de repouso em Niterói,<br />
faleceu repentinamente em 20 de março de 1927. O rápido desgaste se deveu em parte<br />
ao seu último grande desgosto, o suicídio de sua filha, desfecho de uma relação amorosa<br />
impossível para os padrões morais da época.<br />
O assunto de Gli eroi é, sobretudo, político e recai na coleção de dramas históricos<br />
que reapareceram com relativa força no início do século XX, dos quais Tosca é bom exemplo.<br />
A ação passa-se em março de 1848 na cidade de Milão e é baseada em fatos reais,<br />
momento em que a Itália, sob domínio estrangeiro, vive uma das páginas mais marcantes<br />
da construção da nacionalidade. O libreto é um dos mais identificados com a personalidade<br />
anárquica e rebelde do seu autor. Diferente de Malcher, Meneleu Campos não modifica<br />
nada, não intervém e aceita passivamente o proposto por Illica. Em quatro atos, recheada<br />
de personagens, a peça é inteiramente descritiva e tem longas falas. O último ato entretanto<br />
é simbolista, ambientado como num sonho, é a experiência de inconsciência no momento<br />
da morte do par amoroso central.<br />
A música foi concebida num contínuo sem paradas até o fim de cada ato. As<br />
melodias surgem ladeadas por recitativos em procedimento que lembra o expediente de<br />
La bohème. A cópia da versão pianística já traz inúmeras ideias de orquestração, especialmente<br />
das cenas de grande aparato. Os motivos musicais são muitos, desde melodias<br />
sedutoras a rufar de tambores, progressões de acordes, atmosferas diversas, em que há<br />
espaço até para o hino de Mameli ao final, com o triunfo italiano. A despeito de alguns<br />
belos momentos do par central, o militar Max, das forças invasoras, e a italiana Alessandra<br />
Dedomini, filha de uma das tradicionais famílias lombardas, que se insurge contra a<br />
ocupação, o quarto ato, com sua propositura inesperada, foi pouco valorizado por Meneleu<br />
Campos. Ele é relativamente breve, comparado aos demais, e mesmo a música de grande<br />
impacto dramático do seu inicio, não vê continuidade atmosférica até o final. Pode ter<br />
sido uma escolha para que se equilibrasse aos demais atos, que na verdade ainda se<br />
tornavam mais longos pela presença de pré-atos com episódios explicativos. Não se sabe<br />
por que Meneleu Campos não interveio no libreto, o que poderia ser salutar a criação artística,<br />
uma vez que o próprio Puccini confiava o refinamento das propostas de Illica ao<br />
seu parceiro Giuseppe Giacosa. Certo germanismo com a ideia de obra de arte monolítica<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
245<br />
parece estar presente. Foram, enfim, muitos os elementos que de certa forma podem ter<br />
contribuído para que Gli eroi não encontrasse suporte para a montagem, independente<br />
dos problemas econômicos da região. Uma vez que Meneleu Campos contactara Franco<br />
Cardinali para o papel principal, é especulável que tenha tentado também teatros, companhias<br />
e empresários estrangeiros. O assunto que possivelmente tenha sofrido certa<br />
resistência fora da Itália por ser «italiano demais», afinal possuía até trechos em dialeto<br />
lombardo, ainda precisava romper com o ar de discurso panfletário, que na estética do<br />
gênero lírico parecia um tanto datado naquela altura.<br />
A completar o panorama de autores brasileiros atuantes no Norte do país durante<br />
o Período da Borracha, está o nome de Elpídio Pereira. Nascido em Caxias, Maranhão, a<br />
16 de outubro de 1872, Elpídio de Britto Pereira teve suas primeiras lições de música com<br />
os mestres de banda da sua cidade natal, inicialmente com o violinista Antonio Cariman e<br />
depois com o clarinetista Antonio Coutinho. Sua família, percebendo o seu interesse e talento,<br />
enviou-o a Lisboa para estudar. Na capital portuguesa, chegado em princípios de<br />
1890, foi matriculado em um colégio, para frequentar o curso preparatório a fim de ingressar<br />
no Conservatório de Paris. Nesta instituição estudou como aluno-ouvinte na classe<br />
de Taudou (harmonia), a mesma onde Francisco Braga era aluno efetivo. Entretanto, manteve<br />
lições com Domenico Ferroni a partir de 1891, fora do Conservatório, para estudar<br />
violino e reforçar seus conhecimentos de harmonia, pois sua intenção maior era a carreira<br />
de compositor.<br />
A situação financeira adversa de sua família o trouxe de volta ao Brasil e, após<br />
passar dois anos e meio, mais diretamente ligado a Belém, transferiu-se para Manaus<br />
onde encontraria inicialmente irmãos e amigos da família, e mais tarde o próprio pai, que<br />
aceitara um cargo em uma companhia de navegação. Mas o seu contato inicial com a capital<br />
do Amazonas se deu em 1892/93, no momento de sua volta ao Brasil, vindo da primeira<br />
viagem de estudos a Paris.<br />
Nesta oportunidade foi convidado por Adelelmo do Nascimento (1852-1898),<br />
para participar com dois números de sua escolha, em um concerto que o baiano, radicado<br />
em Manaus, estava a organizar. O jovem violinista então optou por uma peça de sua autoria,<br />
a Serenade Brasilienne, a primeira de suas composições a ser ouvida no Brasil após<br />
o seu primeiro estágio de instrução musical no exterior.<br />
Neste meio tempo, Elpídio Pereira deu concertos em Belém, São Luiz e Terezina,<br />
com rápida passagem pela terra natal. Nova oportunidade de ir a Manaus aconteceu<br />
quando o empresário Joaquim Franco, que dominava os principais palcos do Norte naquele<br />
momento, recrutou o jovem violinista para fazer parte da orquestra da companhia lírica<br />
destinada a ambas as capitais da borracha.<br />
Estabelecido definitivamente em Manaus, Elpídio Pereira envolveu-se com a<br />
organização de concertos sacros na Catedral, num periodo que deve ter ido de 1895 a<br />
1898 (Pereira, 1957, p. 40). Para além dos concertos, Pereira foi também partícipe de tertúlias.<br />
Ele tomou parte desde o princípio do Club Musical Amazonense, fundado pelo alemão<br />
Max Brunn, que por vezes utilizou-se de sua loja de partituras e instrumentos para os<br />
encontros dos associados. O Club Musical Amazonense era uma sociedade de concertos<br />
que surgiu com o intuito de se dedicar a execuções privadas e envolvia diversos diletantes<br />
e profissionais, brasileiros e estrangeiros, residentes em Manaus.<br />
Mas ainda em Manaus, o compositor maranhense viu-se obrigado, por causa<br />
de um sinistro que destruiu os bens da família, a trabalhar em atividade não relacionada<br />
à música, sendo empregado do setor de cobranças da Casa Marius & Levy. Esta situação<br />
não duraria muito tempo. Com a aposentadoria de Adelelmo do Nascimento do cargo de<br />
professor de música do Gymnasio Amazonense, em 1897, Elpídio Pereira foi chamado<br />
para reger interinamente a cadeira. O musicista privava da intimidade do chefe de gabinete<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
246<br />
do Governador Fileto Pires, o escritor Raul de Azevedo, também maranhense. E foi justamente<br />
este quem propôs a Elpídio Pereira a troca da posição no magistério estadual<br />
por uma bolsa de estudos na Europa.<br />
Assim, em 1898, partia para Paris, a fim de continuar sua instrução, o que durou<br />
até 1902, quando expirou o prazo da bolsa concedida pelo governo amazonense.<br />
Aprofundou estudos de composição com Domenico Ferroni, que se tornou a<br />
sua influência direta neste período e que provavelmente lhe apresentou a obra teórica de<br />
Berlioz e Rossini, que ele já havia usado em uma fase anterior. Elpídio Pereira despediu-se<br />
da capital francesa dando dois concertos na Sala Hoche, onde apresentou peças somente<br />
de sua autoria, regendo a orquestra dos Concerts Lamoureux (Pereira, 1957, p. 1-56). No<br />
retorno para o Amazonas deu ainda um concerto em Lisboa.<br />
O compositor faria concertos com obras suas, em seu favor ou em benefício de<br />
amigos, até 1903, pois passou os anos de 1904 a 1906 percorrendo algumas capitais<br />
brasileiras, onde havia interesse em divulgar sua obra. Segundo Pereira (1957, p. 60), esteve<br />
em Belém, São Luiz, Rio de Janeiro e São Paulo e, na capital carioca, ainda em 1906,<br />
organizou concerto de suas obras, coadjuvado por Francisco Braga e Alberto Nepomuceno<br />
que dirigiu a orquestra (Pereira, 1957, p. 57 64).<br />
Na altura em que voltara a Manaus já intencionava escrever uma ópera (Pereira,<br />
1957, p. 47) e seus trabalhos, marcadamente camerísticos até a virada do século, vinham<br />
ganhando versão orquestral ou sendo originalmente concebidos para forças mais dilatadas.<br />
A promessa do novo governador do Amazonas, Antonio Constantino Nery não<br />
se cumpriu e a nova estada de Pereira em Manaus durou até 1908, quando finalmente<br />
decidiu-se a ir ao Rio de Janeiro em busca de novas oportunidades. Com a crise econômica<br />
da borracha, ficava claro que um retorno a Paris para completar estudos estava tão difícil<br />
quanto a perspectiva de montar a ópera que almejava um dia compor. Ele o sabia bem,<br />
pois em Manaus, além de tocar e promover concertos – incluindo alguns com musicistas<br />
estrangeiros em passagem pela cidade – Pereira recebeu encomendas governamentais<br />
de obras suas e atuou na crítica de ópera, escrevendo em jornal especializado até os derradeiros<br />
espetáculos liricos que se apresentaram no Período da Borracha.<br />
Mais uma vez na capital da república brasileira, o compositor precisou tecer<br />
novos contatos para obter a desejada bolsa para o retorno a Paris, o que de fato aconteceu<br />
entre 1912 e 1913, às custas do Governo Federal. A decisão deveu-se, sobretudo, ao parecer<br />
favorável de Alberto Nepomuceno, então diretor da Escola Nacional de Música. A despeito<br />
do disposto na lei que a outorgara, a subvenção foi paga com atraso nos três anos a que o<br />
artista fazia jus, o que ocasionou certa demora na sua partida do Brasil e consequentes<br />
dificuldades financeiras em Paris.<br />
Chegado em meados de 1913, procurou imediatamente Ferroni, ainda residente<br />
no mesmo lugar. Entretanto, obter um bom professor de composição para encerrar os estudos<br />
com a feitura do drama lírico, como ele mesmo estipulara, não foi tarefa fácil. A<br />
busca inicial foi pelo renomado compositor Vincent d’Indy, que não podendo atendê-lo<br />
em privado, indicou que frequentasse a sua classe de composição na Schola Cantorum,<br />
mas sob a condição de que nos três anos em que estivesse sob sua tutela não compusesse<br />
nada. A exigência não agradou e o compositor brasileiro recorreu mais uma vez ao Ferroni<br />
para obter uma prova, desta vez com Paul Vidal (1863-1931). Este maestro, compositor e<br />
professor do Conservatório de Paris, a despeito do renome que gozava, atendia alunos<br />
menos privilegiados social e financeiramente. Aceitando Pereira como aluno, recomendouo<br />
aos irmãos Eugène e Edouard Adenis para que estes célebres libretistas lhe preparassem<br />
um libreto. Inicialmente o treinamento de Pereira, exigido por Vidal, concentrou-se em<br />
musicar o Horace de Corneille em recitativos. Antes mesmo de acabar a tarefa, Vidal decidira<br />
que o aluno brasileiro podia se voltar para o seu próprio assunto.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
247<br />
A escolha do tema veio de sugestões de amigos e alguns deles chegaram a lhe<br />
mandar material do Brasil. Na altura, com a República, o país passava por debates de revisionismo<br />
histórico. A ideia de fazer uma ópera sobre Calabar, um português insurrecto<br />
que passou ao lado dos holandeses, deveria ter novos contornos.<br />
Pereira queria expor uma faceta de Calabar como uma espécie de primeiro herói<br />
nacional, mas o personagem era extremamente polêmico e a decisão do compositor de<br />
levar o projeto até o fim certamente custar-lhe-ia a estreia da ópera, que nunca seria<br />
montada.<br />
O trabalho de composição foi rápido e ele mesmo confirmou que o fez “quase<br />
sem repouso, a tal ponto que quase não dava atenção ao que se passava na guerra”<br />
(Idem, p.76). Em fins de março de 1915, ou seja, três meses depois de começado já levava<br />
para Vidal o primeiro ato completo, não só em canto e piano, mas também a orquestração,<br />
que o mestre teria aprovado: “Trés bien Elpides, vous avait fait un beau travail” (Idem).<br />
Por causa dos atrasos no recebimento da bolsa do governo brasileiro, a composição<br />
do segundo ato não veio logo. Neste meio tempo ele se ocupou da composição de<br />
duas outras peças significativas de seu catálogo, a Sonata para violino e piano e o bailado<br />
Yan e Nadine, com libreto de sua própria lavra, planejando retomar Calabar ainda em novembro<br />
de 1915. Mas uma crise de estafa o impediu de continuar o trabalho neste ano.<br />
Somente em janeiro de 1916 terminou a orquestração de Yan e Nadine e voltou à<br />
composição de Calabar.<br />
Com o término da bolsa, o compositor precisou voltar ao Brasil e Calabar, que<br />
teria seu segundo ato orquestrado durante a viagem de retorno, ficou incompleta por<br />
alguns anos. O período que coincide com o fim da I Guerra Mundial foi especialmente<br />
difícil para o autor, que passou por necessidades de toda a ordem. Chegou a visitar a família<br />
em Manaus, mas parecia não haver boas perspectivas em parte alguma. Escrevendo a<br />
Epitácio Pessoa, agora presidente da república, mas a quem se relacionara na estada parisiense<br />
por intermédio de amigos, Elpídio Pereira obteve nomeação para funcionário da<br />
embaixada brasileira em Paris. O retorno à capital francesa serviu de muitas maneiras.<br />
Em um primeiro momento saldou dívidas diversas, depois iniciou o processo de publicação<br />
de algumas de suas obras mais importantes, para, por fim, concluir Calabar, ao que tudo<br />
indica, em 1921.<br />
Se a ópera não lhe trouxe retornos que os esforços envidaram, o bailado, agora<br />
reformulado e com o novo título de Les pommes du voisin, seria estrondoso sucesso no<br />
Teatro Gaité Lyrique, atingindo 76 récitas ao longo de 1926.<br />
Até meados dos anos 30 há registros de que o compositor permaneceu ativo,<br />
ainda que menos produtivo. Suas incumbências diplomáticas cresceram desde então e<br />
durante a Segunda Guerra chegaria ao posto de vice-cônsul em Londres, em breve oportunidade<br />
que os 20 anos de carreira diplomática lhe proporcionaram fora da França. Aposentado,<br />
voltaria ao Rio de Janeiro onde viveu até 1961, ano em que faleceu.<br />
Na capital francesa, o compositor acompanhou algumas execuções líricas marcantes,<br />
como a estréia de Cavalleria rusticana na Opera Comique, ainda em 1891 (Pereira,<br />
1957, p. 27-28), ou as premières de Lohengrin, em 1892 e Parsifal já em 1913, na Opera de<br />
Paris (Pereira, 1957, p. 31). Embora ele tenha assistido a duas estréias de Wagner, e de<br />
admitir que a execução foi “grandiosa do começo ao fim” (Pereira, 1957, p. 32), não parecia<br />
concordar totalmente com a estética do compositor alemão. Sobre Parsifal ele disse: “As<br />
cenas [são] por demais longas, com recitativos que pareciam não ter fim, e por isso cansativas<br />
ao ouvido” (Pereira, 1957), revelando ser este o motivo de grande parte dos frequentadores<br />
ter descido as escadas do teatro no intervalo do primeiro ato visivelmente fatigados.<br />
Ao que parece, o seu apreço era pela atmosfera do lírico, pois dentre as inolvidáveis circunstâncias<br />
de sua trajetória ele nomeia a vesperal lírica de carnaval da Ópera de Paris,<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
248<br />
quando doze horas após o baile que acontecia na mesma casa, os espetáculos retornavam<br />
ao palco. A sua atração pela cena também se desvela ainda a partir de outro de seus episódios<br />
parisienses quando era estudante sob o mecenato do Amazonas. Em 1900, substituiu<br />
um amigo violinista nos ensaios e apresentações da peça L’aiglon, de Edmond Rostand,<br />
que era levada por Sarah Bernhard no teatro de mesmo nome; o pagamento de<br />
cinco francos por ensaio não era “a soma que fazia aceitar a incumbência, mas a<br />
oportunidade […] de apreciar bem de perto a insigne artista francesa na sua dinâmica<br />
atividade” (Pereira, 1957, p. 54).<br />
A música em Calabar é absolutamente característica da produção lírica francesa<br />
dos anos 10. O melodismo é confiado à orquestra e os personagens desempenham em<br />
recitativos e ariosos integralmente, ecoando a recepção wagneriana através do Peleas et<br />
Melisande de Debussy, modelar para toda aquela geração. Cenas curtas e numerosas,<br />
tableaux para destaque temporal e espacial, misticismo e simbologia, além do uso de leitmotiv<br />
são exemplos de como aspectos tradicionais se fundiam às influências wagneristas<br />
em Calabar, a exemplo de outros autores franceses do período.<br />
Do ponto de vista dramático-musical, a procissão da sexta-feira santa, com o<br />
Canto da Verônica, ainda no primeiro ato, é talvez um dos melhores momentos do trabalho,<br />
não só pela concepção, mas pela possibilidade de remeter ideias como pecado, destino,<br />
nacionalismo, dentre outros elementos de discussão interessantes. A opção estética de<br />
Pereira também o compromete em algumas aparentes incongruências. A primeira delas<br />
remete à relação entre música e palavra. Uma vez que o libreto não foi construído em versos<br />
metrificados, a possibilidade do uso de recitativos entremeados a melodismo solto<br />
apoia-se fundamentalmente na adoção do leitmotiv. Mas se até aí Pereira escolheu corretamente,<br />
parece ser problemático o fato de que ele nem sempre tivesse melodias de<br />
reminiscência para ornar as falas. Isso pode ter provocado certo incômodo na recepção à<br />
obra, como se depreende dos relatos do próprio autor sobre o contato desta com o público<br />
seleto de ouvintes da área musical nos concertos que ele promoveu com excertos da<br />
ópera e mesmo na relação com os responsáveis artísticos dos teatros onde buscou a estréia<br />
de Calabar, afinal há trechos longos de declamação em altura definida, apoiada unicamente<br />
em acordes.<br />
Estas audiências informais podem ter sentido também certo descompasso entre<br />
a proposta de teatro trágico, com cenas de discussão de valores éticos, morais e ideológicos,<br />
entre dois personagens como de hábito, e a extensão dos assuntos ao nível da grand<br />
opéra, em que entra e sai do conflito dramático um numeroso contingente de personagens,<br />
vivendo propostas de situações extremas que resultam do conflito político.<br />
Para completar, a personagem Maria, de jovem aldeã quase anônima, convertese<br />
numa quase mártir, morrendo ao final por seu amor, o personagem Calabar, e “roubando-lhe<br />
a cena”.<br />
Na verdade Pereira não teve a oportunidade da estreia e a consequente retroação<br />
que lhe permitisse reflexão e reprocessamento de ideias. Pior, a versão orquestral de Calabar<br />
está desaparecida e não há como saber como o autor orquestrou a obra e que valor<br />
enfim pode ter para o patrimônio musical brasileiro, geral e malfadamente descuidado e<br />
esquecido.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
249<br />
Referências bibliográficas<br />
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Páscoa, Márcio. Cronologia Lirica de Belém. Belém: Associação Amigos do Theatro da<br />
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Páscoa, Márcio. Ópera em Belém. Manaus: Valer, 2009.<br />
Páscoa, Márcio. Ópera em Manaus. Manaus: Valer, 2009.<br />
Pereira, Elpídio. A música, o consulado e eu. Rio de Janeiro: Edição do autor, 1957.<br />
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Stradelli, Ermanno. Eiara: leggenda tupi-guarani. Piacenza: Vincenzo Porta libraio<br />
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A Província do Pará (Belém), 12 de janeiro de 1900.<br />
Folha do Norte (Belém), 28 de fevereiro de 1915.<br />
Folha do Norte (Belém), 11 de junho de 1906.<br />
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Liberal do Pará (Belém), 19 de agosto de 1881.<br />
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Gurjão, Henrique Eulálio; Pereira, Elpídio. Idália e Calabar. Márcio Páscoa, ed. Manaus:<br />
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Malcher, José Cândido da Gama. Jara. Márcio Páscoa, ed. Manaus: Valer, 2009.<br />
Libretos<br />
Illica, Luigi. Gli eroi (manuscrito pertencente à Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro) s.c.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
250<br />
Malcher, José Cândido da Gama. Jara: leggenda amazônica, opera lirics in tre atti/<br />
parola e musica de maestro Gama Malcher/rappresentata La prima volta nel teatro DA<br />
PAZ AL PARÁ (Brasile) 1895. Milano: Moreo Virginio, 1894.<br />
Valle, Vincenzo. Bug Jargal, melodrama em quatro atos: poesia de Vincenzo Valle,<br />
Música do maestro J.C.Gama Malcher. Pará: Tip. d’O Democrata, 1890.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
251<br />
As óperas de Sant’Anna Gomes<br />
Marcos Virmond<br />
Universidade Sagrado Coração, Bauru<br />
O irmão de Antônio Carlos Gomes<br />
José Pedro de Sant’Anna Gomes nasceu em Campinas em 1834 e veio a falecer<br />
em 1908, isto é, quase doze anos após a morte de seu irmão mais famoso, o compositor<br />
Antônio Carlos Gomes. Da mesma forma que muitos outros compositores menos visíveis,<br />
a produção musical de Sant’Anna Gomes ainda não foi devidamente explorada. Felizmente,<br />
seus manuscritos se encontram bem preservados no Museu Carlos Gomes, em Campinas,<br />
São Paulo, prontos para uma devida análise e transcrição musicológica que os disponibilize<br />
ao grande público. Entretanto, parte de sua obra de câmara já foi objeto de apreciação<br />
musicológica e apresentada em concertos, através do Projeto Memória Musical<br />
Campineira, de 1992, e nas comemorações do centenário de seu falecimento em 2008<br />
(Stecca, 2008, p. 21).<br />
Sant’Anna era irmão mais velho de Antonio Carlos Gomes e teve com este uma<br />
relação muito afetuosa e parceira durante a vida. A formação e atividades musicais dos irmãos<br />
foram concomitantes e estiveram sob a orientação severa do pai, Manoel Jose<br />
Gomes. Sant’Anna sempre exerceu influência positiva sobre Carlos, tendo estimulado o<br />
irmão em sua decisão de deslocar-se para o Rio de Janeiro para os estudos no Conservatório<br />
Imperial. Posteriormente participou decisivamente, do ponto de vista financeiro, para<br />
que ocorresse a montagem de Il Guarany no Teatro alla Scala, em Milão. Carlos conviveu<br />
com muitas pessoas e personalidades ao longo de sua vida, algumas delas foram muito<br />
amigas e fundamentais para a continuidade de sua luta artística, como André Rebouças,<br />
Teodoro Teixeira Gomes e José Castelães. Entretanto, percebe-se que, ao longo dos anos,<br />
a figura de Sant’Anna Gomes foi a mais importante como um esteio na atribulada vida do<br />
irmão, atuando como conselheiro e incentivador. Próximo à estréia de Il Guarany, Carlos<br />
escreve a Sant’Anna pedindo sua presença, e os qualificativos com que enaltece o irmão<br />
revelam esta relação privilegiada:<br />
Juca,<br />
Aproxima-se o dia fatal. Vem; si tu me faltares e si o successo coroar os meus esforços,<br />
a tua ausência far-me-á receber as ovações do público italiano, com a alma<br />
cheia de tristeza e saudade por ti, meu irmão, meu amigo e sempre generoso<br />
protector. (Boccanera, 1913, p. 27)<br />
No que tange suas atividades individuais, Sant’Anna atuou de forma muita intensa<br />
na vila de São Carlos, depois Campinas, como compositor, regente, instrumentista, professor,<br />
juiz de paz e empresário. Além de substituir o pai em suas responsabilidades musicais<br />
na vila, exerceu por muito tempo a regência da Orquestra do Teatro São Carlos em Campinas,<br />
onde se apresentavam diversas companhias de ópera, em especial as italianas, que<br />
não tinham orquestra própria e trabalhavam com a do teatro. Foi também negociante de<br />
músicas e instrumentos musicais e atuou tambem como professor e violinista, instrumento<br />
com o qual desmonstrou uma intimidade de virtuose.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
252<br />
No que se refere à composição, Sant’Anna transitou por diversos gêneros e seu<br />
catálogo inclui peças orquestrais, vocais, obras para banda e duas óperas. Alda é a única<br />
ópera que concluiu, mas que continua inédita em termos de apresentação pública. Sua<br />
tentativa anterior, Semira, não foi concluída. Nos últimos anos de sua vida, participou da<br />
composição de uma Pastoral, com texto de Coelho Neto, então professor da escola Culto<br />
à Ciência em Campinas. A peça estreou nessa cidade no natal de 1903 e contou com a<br />
participação de outros nomes conhecidos do período: além de Sant’Anna, que compôs o<br />
Prelúdio, Francisco Braga, participou com a Visitação, Henrique Oswald, Anunciação, e<br />
Alberto Nepomuceno, compôs Natal, trecho que foi regido pelo próprio compositor na<br />
ocasião da estréia.<br />
Em termos de análise musicológica da obra de Sant’Anna Gomes se deve citar<br />
estudos das peças camerísticas (Nogueira, 1992 e 2006), além de algumas obras para<br />
banda (Abreu, 2010). Fora esses estudos, pouco se encontra sobre suas outras obras. De<br />
fato, vários compositores brasileiros permanecem praticamente desconhecidos pela falta<br />
de investimento em pesquisa sobre sua obra, como é o caso de João Gomes de Araújo.<br />
José Pedro Sant’Anna Gomes também se enquadra neste grupo e é relevante que se investigue<br />
melhor sua produção, particularmente com as ferramentas de musicologia histórica,<br />
para que se ofereçam edições críticas aos musicistas e regentes que desejem dar vida a<br />
estas obras. Esta é a única maneira de expor a obra de um artista para que ela se submeta<br />
ao crivo do público, de críticos e musicólogos e se faça um julgamento consciente da sua<br />
produção.<br />
A ópera Semira<br />
Semira é a primeira das óperas de Sant’Anna Gomes. Verifica-se em duas páginas<br />
de cópias de partes instrumentais a data de 15 de janeiro de 1889. A ópera ficou incompleta<br />
e dela se conhece apenas um dueto e duas romanzas. O libreto é do poeta italiano Giuesppe<br />
Emilio Ducati e o enredo versa sobre tema exótico, ambientado no oriente próximo. O<br />
texto dos trechos disponíveis permite inferir uma trama de amores não correspondidos<br />
entre a rainha Semira, o jovem Caled e Zyla. Há ainda a figura de Adim, que parece não ter<br />
pretensões amorosas com a Rainha, mas em sua romanza expressa aspirações de poder<br />
político envolvendo Semira.<br />
A análise dos poucos documentos de Semira revela música de certo interesse. A<br />
estrutura geral e a abordagem estética é a mesma do melodrama italiano do século XIX,<br />
mas deslocada para o momento em que foi escrita. Fora esta ressalva, a música é de boa<br />
qualidade, com desenho melódico equilibrado, chegando a momentos de rara beleza<br />
como o caso da cantilena entoada pelo clarinete na introdução romanza de Zyla, no segundo<br />
ato da ópera (Figura 1) e o desenvolvimento melódico que ocorre durante as frases<br />
de Zyla (Figura 2). Tanto o dueto de Caled e Semira como a romanza de Adim são obras de<br />
boa fatura, ainda que não requintadas do ponto de vista harmônico, muito menos inovadoras<br />
em sua estrutura. Entretanto, o senso dramático para utilizar o discurso musical<br />
comentando o discurso dramático está presente.<br />
Nesse sentido, Semira se diferencia marcadamente da segunda e última experiência<br />
de palco de Sant’Anna Gomes – Alda. Como se verá na continuidade, essa segunda<br />
ópera apresenta dificuldades composicionais importantes e, em um momento, pode-se,<br />
inclusive, questionar se tal diferença em qualidade ocorreu sob a pena de um mesmo<br />
autor.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
Figura 1. Introdução da romanza de Zyla – Sant’Anna Gomes, Semira, 2º Ato.<br />
Figura 2. Romanza de Zyla – Sant’Anna Gomes, Semira, 2º Ato.<br />
253<br />
A ópera Alda<br />
Alda se divide em quatro atos e seu libreto é em italiano, do mesmo poeta de<br />
Semira, Emilio Ducati. Informações na literatura admitem que Carlos Gomes tenha adquirido<br />
este libreto em Milão e posteriormente não tenha se interessado em compor a<br />
música. Como Sant’Anna estava desejoso de compor uma ópera, Carlos Gomes teria enviado<br />
para o irmão em Campinas (Nogueira, 2001, p. 329). Essa hipótese fica mais patente<br />
com notícia vinculada em Le Menestrel (1884) de que Gomes estaria terminando de<br />
compor Lo Schiavo e se preparava para musicar um novo libreto de nome Semira. Os fatos<br />
ficam mais claros com outra notícia do mesmo periódico, já em 1887, que afirma:<br />
O Mundo Artístico, de Buenos Aires, nos faz saber que o Mº Sant’Anna Gomes,<br />
irmão do Mº. Carlos Gomes, autor do aplaudido Guarany, compositor ele mesmo,<br />
escreve nesse momento uma ópera, Simira, sobre libreto do Mº. Emilio Ducati.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
254<br />
A ação se passa na Síria, cerca de mil anos antes da era cristã. (Le Menestrel,<br />
1887, p. 270)<br />
Giuseppe Emilio Ducati foi também responsável pelo texto de algumas canções<br />
de Carlos Gomes (Dolce rimbrovero e Per me solo) e Pietro Mascagni (Risveglio). Ducatti<br />
foi também o libretista de ópera encenada no Teatro Solis de Montevidéu, Manfredo di<br />
Svezzia (1882) do compositor uruguaio Tomás Giribaldi (1847-1930). Em relação à Alda,<br />
no Dictionnaire des Opéras (Clemenet e Larousse) só se encontram duas óperas com o<br />
mesmo título. A primeira é uma ópera cômica em um ato com libreto de Bayard e Duport,<br />
estreada em 1835. A outra tem música de Derkum, representada em Colônia, na Alemanha,<br />
em 1846. Pelo que se depreende dos comentários nesta referência, estas duas obra nada<br />
tem a ver, em termos de enredo, com a Alda de Sant’Anna e Ducatti.<br />
A ópera foi concluída em 1904, mas nunca foi encenada, apesar de o compositor<br />
ter obtido recursos do governo para fazê-lo. A morte o surpreendeu. Por outro lado, seria<br />
interessante verificar como seria recebida esta ópera, uma vez que em 1904, mesmo<br />
Campinas já não apresentava ambiente propício a este gênero de espetáculo, sendo de<br />
maior apelo ao publico as revistas e as operetas (Nogueira, 2001, p. 328).<br />
O libreto de Alda<br />
Alda pode ser melhor estudada pois sua partitura orquestral e uma redução<br />
para canto e piano estão disponíveis. O libreto tem quatro atos e é típico das óperas italianas<br />
da primeira metade do século XIX, com tons exóticos. A trama se desenvolve entre<br />
um grupo de ciganos e nobres perto de um castelo medieval na região de Auvernia e na<br />
cidade de Arles, na França no começo do século XIII. Os personagens são<br />
Falco, um guarda bosques baixo<br />
Barão de Auvernia baixo<br />
Renato, seu filho tenor<br />
Duque de Arles baixo<br />
Lida, sua filha soprano<br />
Sambo, um cigano barítono<br />
Alda, uma cigana soprano<br />
Mansa, dona da hospedaria soprano<br />
Participam ainda um coro de ciganos, servos do Barão, soldados e camponeses.<br />
O enredo de Alda envolve um quarteto amoroso entre a cigana Alda, o filho do Barão de<br />
Auverne, Renato, Sambo, um cigano e Lida, filha do Duque de Arles. Trata-se de um enredo<br />
de amores não correspondidos e relações conflituosas entre ciganos e nobres e um<br />
misterioso fato envolvendo o velho Barão e os ciganos em tempos passados. Como se<br />
percebe, um tema de libreto de ópera bastante deslocado do tempo em que Sant’Anna<br />
Gomes se propõe a compor a música.<br />
O primeiro ato mostra uma hospedaria próxima ao castelo. Falco, um guarda bosque<br />
a serviço do Barão de Alvernia, acompanhado por camponeses, conta a história de uma<br />
bela jovem cigana que se entrega a Renato, o jovem filho do Barão de Alvernia. Em seguida,<br />
entra o Barão que afugenta os camponeses e tem longa conversa com Sambo, que dormitava<br />
em um banco frente à hospedaria. Em linguagem muito indireta, mas que o esperto cigano<br />
muito bem entende, o Barão pede que ele seqüestre a cigana e a mate em troca de<br />
recompensas que mudarão a vida de Sambo. Após a saída do Barão, Sambo entoa uma ária<br />
onde reflete sobre a tentadora oferta, mas ao fim resolve que: “ladrão, ainda que seja, mas<br />
assassino, para vos dar prazer? Nunca! Nem que o Diabo me tivesse em seu poder!”.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
255<br />
Na última cena, entram Falco e Alda acompanhados de um grupo de bandidos.<br />
Inicialmente, Sambo não reconhece a donzela, mas esta o faz recordar os tempos em que<br />
eram mais jovens e viviam juntos no bando de ciganos. Alda comenta sobre seu inditoso<br />
amor por Renato e Sambo a exorta a unir-se ao seu bando. Isso acontece com a chegada<br />
dos ciganos que reconhecem Alda como sua antiga parceira e a colocam sobre um carro,<br />
ornada como se fosse a rainha do bando. Entoam um rataplan e partem felizes, menos<br />
Alda que ainda pensa em seu fiel amor por Renato.<br />
No segundo ato, na sala do castelo de Arles, entram Renato, o filho do Barão e<br />
Lida, filha do Duque de Arles. O seu casamento será realizado naquela sala. Renato comenta<br />
sobre um pedestal de mármore vazio e Lida replica que se tratava do busto de sua avó<br />
que foi retirado devido a um triste fato do passado. Instada por Renato, Lida conta que<br />
em tenebrosa noite de tempestade, um raio fulminante destruiu a estátua da avó e após<br />
este maléfico dia, o povo dizia vagar um negro fantasma em noites de luar. Lida sai, pois<br />
deve se preparar para a cerimônia. Renato, em uma ária, reflete sobre o fato narrado,<br />
mas logo retoma em sua mente o amor por Alda, resignando-se diante da impossibilidade<br />
de concretizá-lo.<br />
Chegam os convidados em alegre algaravia, entre eles Sambo e Alda. Esta,<br />
escondida sob um véu negro, carrega um punhal que pretende usar na rival e um filtro<br />
letal para aquele que a abandonou. O cortejo nupcial adentra o recinto sob vivas e loas do<br />
coro. O Barão e o Duque dão boas vindas a todos e preparam os noivos para a assinatura<br />
do pacto nupcial. Subitamente, Alda, sobre o pedestal vazio e coberta por negro véu,<br />
lança duro anátema aos noivos, ameaçando matar aquele que o pacto assinar. Todos se<br />
surpreendem e identificam em Alda o fantasma antes referido. Ela se aproxima ameaçadoramente<br />
de Renato, mas é interrompida pelo Barão que desembainha a espada. Alda<br />
puxa o véu e se revela para espanto de todos. Quando o Barão a tenta ferir, Sambo se<br />
interpõem entre eles e Renato pede ao pai que se contenha, o que só faz aumentar o<br />
espanto dos presentes. O Barão a acusa de ser uma feiticeira, ao que Sambo retruca, pedindo<br />
clemência, que se trata apenas de uma demente. Em vão, pois o Duque manda<br />
prendê-la e ordena que morra queimada na fogueira. Renato pede ao Duque que a deixe<br />
livre, ao que se junta Lida. Ele finalmente cede e manda que Alda e Sambo se retirem. O<br />
Barão continua apreensivo e confessa que somente terá paz quando se livrar da bruxa<br />
que enfeitiçou seu filho. Antes de partir, Alda se aproxima de Renato e lhe pede que se encontrem<br />
à meia-noite junto ao Arco de Augusto, ao que o rapaz cede. Sambo e Alda se<br />
retiram sob o olhar amedrontado dos presentes.<br />
O terceiro ato se desenvolve junto a um arco romano próximo ao rio Ródano. É<br />
noite. Alda e Renato se encontram. Alda renova seus votos de amor eterno ao amado e<br />
desculpa-se pelos momentos de ira e vingança. Renato diz que ainda a ama, pois atendeu<br />
seu pedido de encontro. Mas resta Lida, menciona Alda, ao que Renato afirma não ser<br />
mais seu intento casar, pois está disposto a fugir com sua eterna amada. Alda o alerta de<br />
que ela é uma cigana e os ciganos têm o destino amaldiçoado e prediz que seu próprio<br />
futuro é uma fogueira. Pela insistência de Alda para que ele se dê conta das intransponíveis<br />
dificuldades para consumar seu amor, Renato chega a duvidar das intenções da moça. Entretanto,<br />
ela está apenas demonstrando os sacrifícios que os esperam se juntos permanecerem.<br />
Renato, por fim, aceita e combinam se encontrar no mesmo lugar na noite<br />
seguinte. Eles não perceberam que Sambo, agora um pretendente de Alda, está escondido<br />
em ruínas próximas e ouviu os planos dos amantes. Ele vitupera contra Renato, agora seu<br />
rival pelo amor de Alda. Vinda da cidade cavalgando, aparece Lida que é interrompida<br />
por Sambo. Esta lhe pede que informe como chegar ao acampamento cigano. Ele lhe diz<br />
que será seu guia e que tem o poder de ler o futuro nas mãos. Lida se interessa e estendelhe<br />
a mão. Uma vida longa ela terá plena de gáudio, diz ele. Mas, em seguida, mostra-se<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
256<br />
assustado ao continuar a leitura. Lisa o insta a dizer a verdade. Hesitante ele revela que as<br />
linhas declaram ser ela traída pelo noivo. Lisa fica muito abalada e Sambo diz que apenas<br />
um filtro mágico poderá fazê-la recuperar o amor de Renato. À parte, Sambo reconhece<br />
que o filtro, em verdade, levará Renato à morte. Após um momento de hesitação, Lida lhe<br />
entrega uma bolsa de moedas de ouro e solicita que ele lhe dê o filtro e Sambo explica que<br />
apenas algumas gotas em um copo de bebida serão suficientes, o resto Satã o fará. Lisa<br />
parte com uma irônica saudação de Sambo que lhe deseja boa viagem e um amor mais feliz.<br />
O último ato mostra um promontório no vale do Ródano e a cena se desenrola<br />
junta a uma frondosa e antiga árvore. Alda, com trajes de peregrina, se encontra sob a<br />
árvore esperando Renato, mas envolta em tristes pensamentos. Ela saiu do acampamento<br />
cigano, mas percebeu que Sambo a seguiu com olhar ciumento. De fato, este a surpreende<br />
junto à arvore. Sambo por fim, em tom suplicante, confessa o amor que lhe devota e pede<br />
que ela não fuja com Renato em busca de um futuro incerto e perigoso. O cigano tenta<br />
de todos os modos demovê-la, mas Alda cada vez mais reafirma seu imutável amor por<br />
Renato. Diz que seria incapaz de traí-lo, ao que Sambo indaga o que ela faria se ele morresse.<br />
Alda com crescente preocupação pergunta o que aquilo quer dizer e Sambo, com<br />
júbilo infernal, conta que Lisa lhe havia pedido um filtro de amor e que ele lhe dera um<br />
frasco de veneno. Alda parte desesperada na tentativa de salvar o amante. Sambo termina<br />
a cena afirmando que ao destino traçado por satanás ninguém pode fugir. Que ele seja<br />
odiado e amaldiçoado, pois um dia o fogo irá unir os dois.<br />
No segundo quadro deste ato, vemos uma vasta sala do palácio do Duque de Arles,<br />
onde se desenrola uma festa. Lida e o Barão conversam com tranquilidade. A futura<br />
nora lhe pergunta se o Barão acredita em filtros. Ele diz que não passam de crendices e<br />
que para excitar o amor basta apenas um filtro, a beleza, o qual, diz ele, Lida o possui. Alda<br />
entra por uma porta lateral. Não lhe importa que seja surpreendida e morta, pois seu<br />
intento é apenas salvar Renato. Ela se esconde no vão da porta quando vê Lida e Renato<br />
se aproximando em amorosa conversa. Lida propõe um brinde e serve duas taças de vinho,<br />
lançando em uma delas o filtro dado por Sambo. No momento que Renato leva a<br />
taça aos lábios, Alda sai do esconderijo e se apossa da taça, dizendo que ele morrerá se<br />
tomar o vinho e que ela veio ali salvá-lo. Lida, apreensiva com a invasão, chama por socorro<br />
e a cena é tomada por todos que se encontravam na festa. O Duque, enfurecido, manda<br />
que os arqueiros prendam Alda e a levem direto para a fogueira. Voltando-se para o Barão,<br />
Alda diz que beberá o licor que iria matar seu filho. De fato, amaldiçoando o Barão, ela<br />
bebe da taça e a joga aos pés do surpreso Barão. Ela cai morta, fulminada. Renato tenta<br />
aproximar-se do corpo, mas surge Sambo que a pega nos braços e sai precipitadamente,<br />
afirmando que agora ela será sua. Todos estão horrorizados com os acontecimentos, o<br />
Barão estremece com o anátema, Renato sente-se torturado pela dor e Lida afirma que<br />
não mais se casará e que um convento a espera.<br />
A música de Alda<br />
Sant’Anna Gomes, como compositor, percorreu diversos gêneros do campo musical.<br />
Entretanto, o conjunto de sua obra, que não é extensa, tem uma forte inclinação<br />
para a música de salão. Neste sentido, chama a atenção o desejo e preocupação do compositor<br />
em ingressar no difícil e trabalhoso gênero operístico, o que fez por duas vezes.<br />
Ainda que sua produção maior tenha qualidade artística compatível com a estética<br />
específica dos gêneros exercitados (hinos, marchas, polcas, valsas, galopes etc),<br />
ficam evidentes as dificuldades de Sant’Anna Gomes quando pretende enfrentar a<br />
composição de uma ópera como Alda.<br />
O material disponível é suficiente para um estudo adequado do ponto de vista<br />
musicológico. Encontra-se no Museu Carlos Gomes do Centro de Ciências, Letras e Artes<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
257<br />
de Campinas uma redução para canto e piano realizada por José Brachetto e duas cópias<br />
da partitura de orquestra com caligrafia compatível com a do próprio Sant’Anna Gomes, o<br />
que permite sugerir que estas cópias tenham sido produzidas por ele mesmo para uso em<br />
futura execução. Entretanto, estas cópias, ainda que autógrafas, não parecem ter sido o<br />
material original de gestação da obra, pois, além da caligrafia precisa, típica de uma cópia<br />
para uso, elas não apresentam nenhuma correção, cancelamentos ou ajustes típicos de<br />
um manuscrito autógrafo inicial.<br />
Sobre a música de Sant’Anna Gomes, propõe-se apenas a análise do primeiro<br />
ato, pois se acredita ser suficiente para uma visão do pensamento composicional do autor<br />
para a integralidade da obra. De fato, ao longo dos demais atos, a proposta de Sant’Anna<br />
Gomes em termos composicionais não se modifica. Entretanto, na sequência, serão<br />
discutidas duas soluções de clímax dramático durante o segundo e quarto atos para melhor<br />
ilustrar o manejo de Sant’Anna das ferramentas do drama musical.<br />
A estrutura do primeiro ato se constitui em cinco cenas:<br />
Prelúdio<br />
Cena 1 – coro de introdução e narrativa, 2/4 (Coro e Falco)<br />
Cena 2 – cena e dueto (Barão e Sambo)<br />
Cena 3 – ária (Sambo)<br />
Cena 4 – cena (Alda, Falco e Sambo)<br />
Dueto (Alda e Sambo)<br />
Arioso (Alda)<br />
Cena 5 – coro e cena<br />
Coro rataplan<br />
Finale<br />
A ópera de Sant’Anna Gomes não apresenta uma abertura ou sinfonia, como<br />
poderia se esperar no modelo escolhido pelo irmão de Carlos Gomes. Entretanto, cada<br />
um dos quatro atos é introduzido por um curto prelúdio com limites muito tênues com o<br />
número que segue. Já no primeiro ato verificamos uma curta introdução (Figura 3) de<br />
oito compassos em Ré maior, seguidos por uma ponte cantabile em 6/8 que leva, de forma<br />
pouco equilibrada, ao coro de introdução (Figura 4). O desenvolvimento harmônico é<br />
convencional, pois segue-se a este desenho de três compassos, outros quatro agora na<br />
dominante.<br />
Este curto prelúdio revela, preliminarmente, a simplicidade da proposta de<br />
Sant’Anna Gomes para sua obra e define o corte nitidamente romântico de sua construção,<br />
em descompasso com a época em que foi composta, isto é, pouco antes de 1904.<br />
Após esse curto prelúdio, o primeiro ato inicia com um coro de introdução com<br />
a participação de um grupo de camponeses e Falco, o guarda-bosque do Barão. Trata-se<br />
de uma típica introduzione largamente usada no melodrama italiano desde os primórdios<br />
do século XIX, com as funções de estabelecer o cenário da ação e contextualizar os eventos<br />
que seguem. O coro de introdução atesta a abordagem singela de Sant’Anna, pois o acompanhamento<br />
das vozes muitas vezes se assemelha a um dos exercícios iniciais de piano de<br />
Carl Czerny (Figura 5).<br />
A chegada do Barão leva a uma cena em diálogo com Sambo, o cigano, na qual<br />
o Barão tenta cooptá-lo para seqüestrar e assassinar Alda. Após a saída do Barão, Sambo<br />
reflete sobre a oferta na primeira ária da ópera.<br />
O nível simples e descomprometido de estruturação melódica e harmônica continua<br />
a prevalecer ao longo de todo o ato, ora retomando uma atmosfera de Czerny ora<br />
com o sabor típico de sonatinas de compositores menores do início do século XIX (Figura 6).<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
258<br />
Figura 3. Introdução ao primeiro ato – Sant’Anna Gomes, Alda.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
Figura 4. Coro, introdução – Sant’Anna Gomes, Alda, ato 1.<br />
Figura 5. Ária de Sambo – Sant’Anna Gomes, Alda, ato 1.<br />
Figura 6. Frase de Falco, introdução, redução do acompanhamento orquestral – Sant’Anna Gomes, Alda, ato 1.<br />
259<br />
Por fim, chegam Alda e Falco, iniciando-se um longo dueto entre Alda e Sambo<br />
e ao fim do ato temos uma cena com estes solistas e o coro, não faltando um Coro Rataplan,<br />
algo que era usado em algumas óperas até a metade do século XIX, mas que logo caiu em<br />
desuso (Figura 7).<br />
Os demais atos se desenvolvem na mesma estrutura do primeiro ato, isto é, utilizando<br />
um esquema padrão da ópera italiana prévia ao pós-romantismo. Assim, Alda,<br />
termina por constituir-se em uma típica ópera de números. De fato, ao longo dos atos se<br />
identifica uma clara sequência de cenas estanques que são construídas em torno de duetos,<br />
trios, árias, coros e finais (Figura 8).<br />
Ao longo da ópera há falta de continuidade no discurso musical. Uma idéia musical,<br />
por mais simples que seja, não apresenta desenvolvimento que garanta um discurso<br />
unificado. Um exemplo claro disto é o diálogo entre o Barão e Falco, onde o discurso de<br />
encontro, fragmentado por frases curtas com ocorrência constante de cadências conclusivas,<br />
quer retomar a tônica de forma açodada (Figura 9). O novo período, muitas vezes,<br />
também inicia com a mesma tônica, repetindo o mesmo plano harmônico, o que leva a<br />
um passo musical profundamente monótono.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
260<br />
Figura 7. Coro Rataplan – Sant’Anna Gomes, Alda, ato 1.<br />
Figura 8. Ária de Alda – Sant’Anna Gomes, Alda, ato 4.<br />
Como bem define Reynolds (1985), melodia e harmonia, na prática comum, necessitam<br />
criar um sentido de direção e movimento. Boas melodias e progressões harmônicas<br />
devem criar tensão ou suspense que levam a um ponto de relaxamento. Nesse<br />
sentido, Green (1990, p. 63) é mais enfática ainda ao considerar como características do<br />
período romântico, ao qual tardiamente Sant’Anna se filia, o fato de que “o elemento de<br />
suspense é utilizado na postergação das resoluções e o elemento de surpresa deixa a audiência<br />
sufocada através de súbitas e inesperadas mudanças de tonalidade”.<br />
No caso de Sant’Anna Gomes, isto parece não ocorrer. O ritmo harmônico não<br />
cria nenhum suspense, pelo contrário, está sempre levando a uma sensação de conclusão<br />
antecipada, de fragmentação e falta de desenvolvimento lógico do discurso musical.<br />
Mesmo em números fechados, como a ária de Sambo, que poderia indicar maior interesse,<br />
o desenvolvimento melódico ou harmônico não está presente, limitando-se a apresentar<br />
uma sequência de frases curtas em um conjunto que termina por soar desconexo e banal.<br />
Da mesma forma que a ária de Alda não aguça os sentidos, o dueto que se segue entre ele<br />
e Alda reafirma as dificuldades de Sant’Anna Gomes em enfrentar um genero maior do<br />
que suas obras camerísticas. A seção introdutória a esse dueto é lapidar em confirmar<br />
essa dificuldade (Figura 10).<br />
Nos pontos climáticos da Alda essas dificuldades se salientam. Entretanto, como<br />
típica exceção da regra, há aqui e ali breves trechos de maior interesse musical. Isto ocorre<br />
no prelúdio, de caráter pastoral, ainda que similar a muitos outros congêneres no ramo<br />
operístico. No mesmo caso se enquadra a música festiva para a cerimônia de casamento<br />
do quarto ato, escrita para banda (Figura 11), gênero com o qual Sant’Anna tinha mais<br />
intimidade. O tema principal, apresentado nos compassos 3 e 4 da Figura 11, é recorrente<br />
em todo o segmento, o que garante, além do caráter brilhante e festivo, um sentido de<br />
unidade temática as cenas terceira e quarta desse ato.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
Figura 9. Dueto entre Barone e Sambo – Sant’Anna Gomes, Alda, ato 1.<br />
Figura 10. Seção introdutória do Dueto entre Alda e Sambo – Sant’Anna Gomes, Alda, ato 1.<br />
Figura 11. Música para banda – Sant’Anna Gomes, Alda, ato 4.<br />
261<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
262<br />
Interessa ainda discutir duas situações climáticas em Alda e a forma como<br />
Sant’Anna as resolve.<br />
Na cena quinta, do segundo ato, o libretista Ducati propõe um interessante coup<br />
de théatre. Na tentativa de impedir o casamento de Renato com Lida, Alda, imóvel,<br />
esconde-se sob um longo véu negro em um pedestal, à guisa de estátua. No momento da<br />
assinatura do contrato nupcial, emoldurada por um festivo coro, Alda toma vida e, para<br />
espanto e comoção geral, desce do pedestal e vaticina: Não, pelo inferno! Vosso destino<br />
eu revelo. Quem este documento assinar,o amanhã não verá!. Esta súbita mudança de<br />
clima é tratada convenientemente por Sant’Anna, mesmo que de forma básica – uso de<br />
um inesperado acorde de sétima diminuta nos metais que interrompe a marcha do coro<br />
(Figura 12). Não se pode negar que, pelo menos, o tratamento do clímax é convincente.<br />
Outra situação bem conduzida por Sant’Anna Gomes ocorre na quinta cena do<br />
último ato. O casamento interrompido no segundo ato é retomado. Novamente no festivo<br />
ambiente de bodas, Lida verte um líquido na taça de Renato crendo ser um filtro de amor,<br />
mas Alda sabe tratar-se de veneno que Sambo intencionalmente trocara. Alda surge e impede<br />
Renato de tocar no cálice – Pare! Jogue fora o cálice. Com o grito de Lida todos acorrem<br />
à sala e o espanto é geral – Que acontece! Lida aponta Alda e grita – A bruxa! Os presentes<br />
não se intimidam e pedem a morte de Alda – A ré malvada, morra na pira!. Sant’Anna<br />
Gomes consegue uma interessante mudança de ambiente dramático no momento da<br />
súbita entrada de Alda, tanto pela transição para tonalidade menor como pelo surgimento<br />
de ritmo concitado na orquestra (Figura 13).<br />
Considerações finais<br />
José Pedro Sant’Anna Gomes tem parte de sua evidência devida ao irmão Antônio<br />
Carlos Gomes. Evidentemente, mesmo com esta afirmativa, não se pode negar a autonomia<br />
e o empreendedorismo de Sant’Anna Gomes em sua intensa atividade como cidadão<br />
e músico em Campinas. Mesmo com maior tendência ao repertório ligeiro, Sant’Anna<br />
frequentou o sisudo mundo da música sacra e a complexidade da ópera. Alda, sendo a<br />
única ópera que completou, surge como item de interesse para a musicologia, pois que<br />
seu estudo pode estabelecer quais identidades estéticas poderiam existir entre os dois irmãos,<br />
enquanto compositores de óperas, ainda que vivendo e experimentando cenários<br />
culturais extremamente distintos.<br />
O que se depreende da análise do que restou de Semira e da integralidade de<br />
Alda é que o compositor não apresentava fôlego técnico e desenvoltura melódica para<br />
enfrentar um gênero de estrutura tão complexa e extensa como é o caso da ópera. A qualidade<br />
do libreto de Ducati, usualmente criticada, não pode ser imputada como causa da<br />
pouca qualidade da música de Sant’Anna Gomes. O texto é pobre, mas o enredo não é menos<br />
interessante que outros congêneres da época e, mesmo assim, apresenta pelo menos<br />
dois momentos de coup de théatre que fariam a alegria de qualquer compositor mais<br />
gabaritado, inclusive seu próprio irmão.<br />
Por outro lado, não há como negar que a essência da obra de Sant’Anna está no<br />
gênero camerístico de salão, mas a pouca inventividade do compositor em Alda contrasta,<br />
pelo menos, com uma dessas obras. Trata-se de Suspiros (1907), escrita como variações<br />
para quinteto de cordas e soprano ligeiro, com variações sobre um tema, utilizando escrita<br />
de certo virtuosismo, o que dá à peça um caráter operístico, incluindo uma cadenza para<br />
a exibição dos dotes da cantora (Nogueira, 2006, p. 554). Cabe ressaltar que a mesma autora<br />
chama a atenção que, entre as obras de Sant’Anna, Saudade! para cordas, se apresenta<br />
com caráter bem mais diferenciado exatamente por que a melodia foi proposta por<br />
Sant’Anna, mas o arranjo seria da lavra de Carlos Gomes.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
Figura 12. Cena quinta, clímax na cena do casamento – Sant’Anna Gomes, Alda, ato 2.<br />
263<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
264<br />
Figura 12. Cena quinta, clímax na cena do casamento – Sant’Anna Gomes, Alda, ato 2 (cont.).<br />
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Figura 13. Cena quinta, clímax final – Sant’Anna Gomes, Alda, ato 4.<br />
265<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
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Figura 13. Cena quinta, clímax final – Sant’Anna Gomes, Alda, ato 4 (cont.).<br />
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Assim, pode-se depreender que, se havia uma estreita relação entre os dois<br />
irmãos em termos fraternais, essa mesma associação não ocorreu em termos de estética<br />
musical. Em Alda, a inventividade melódica, o fino senso dramático, o apuro formal e a<br />
variada orquestração do irmão Carlos não foram assimiladas por Sant’Anna, nem por<br />
imitação, uma vez que nada na sua música sequer se aproxima ao menor Gomes, nem<br />
por transmissão, pois que não há referências de que o famoso irmão tenha, em algum<br />
momento, sido tutor musical deste que ficou restrito a Campinas.<br />
Referências bibliográficas<br />
Abreu, A. J. José Pedro de Sant’Anna Gomes e a atividade das bandas de música na<br />
Campinas do século XIX. Dissertação de Mestrado. Universidade Estadual de Campinas,<br />
Instituto de Artes. – Campinas: [s.n.], 2010.<br />
Andrade, M. Pequena História da Música. 8ª ed. São Paulo: Livraria Martins Editora,<br />
1980, p. 166.<br />
Bocannera, Silio. Um artista Brasileiro. Bahia: Thypographia Brasileira, 1913, p. 27.<br />
Clement, F.; Larrousse, P. Dictionnaire des Opéras (Dictionaire lyrique). Paris: Edition<br />
Larousse, s/d.<br />
Le Menestrel, a. 50, n. 31, p. 246, 5-jul., 1884.<br />
Le Menestrel, a. 53, n. 34, p. 270, 30-jul.,1887.<br />
Nogueira, L. W. M. Transcrição de obras cameristicas de Sant’Anna Gomes. Projeto<br />
Memória Musica Campineira, 1992.<br />
Nogueira, L. W. M. Música em Campinas nos últimos anos do império. Campinas:<br />
Editora da Unicamp, Fapesp – CMU Publicações, 2001, p. 359.<br />
Nogueira, L. W. M. A obra camerística de José Pedro de Sant’Anna Gomes (1834-1908).<br />
Anais do XVI Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em<br />
Música (ANPPOM), Brasília, 2006, p, 550-557.<br />
Reynolds, W. H. Common-practice Harmony. Nova York: Longman Inc., 1983, p. 64.<br />
Stecca, J. B. “O resgate das músicas de Sant’Anna Gomes”. In: Maestro José Pedro de<br />
Sant’Anna Gomes – Centenário do falecimento 1908-2008. Campinas: Câmara<br />
Municipal de Campinas, 2008.<br />
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Joanna de Flandres de Carlos Gomes:<br />
obra de transição<br />
Lenita W. M. Nogueira<br />
Universidade Estadual de Campinas<br />
Carlos Gomes nasceu no dia 30 de junho de 1836 em Campinas, cidade distante<br />
cem quilômetros da capital paulista. Era filho de Manuel José Gomes, mestre-de-capela<br />
na sua cidade natal entre 1815 e 1868 e seu único professor até sua ida para o Rio de Janeiro<br />
em 1859. Nesta época já havia escrito diversas peças, entre elas as missas de São Sebastião<br />
e a de Nossa Senhora da Conceição. Em uma rápida temporada em São Paulo<br />
compôs uma de suas obras mais famosas, a modinha Quem sabe? com letra de Bittencourt<br />
Sampaio, estudante da tradicional Faculdade de Direito do Largo São Francisco.<br />
Contra a vontade do pai, foi para o Rio de Janeiro em 1859 e matriculou-se no<br />
Imperial Conservatório de Música, onde concluiu seus estudos em 1863. Foi regente e ensaiador<br />
na Ópera Nacional, posto que lhe permitiu entrar em contato com o repertório<br />
de música lírica, em especial a italiana, da qual era grande admirador.<br />
Figura 1. Carlos Gomes por volta de 1873.<br />
Em 1861 conseguiu levar ao palco sua primeira ópera, A Noite do Castelo, recebida<br />
com grande entusiasmo. Baseada em um poema do poeta português Antonio Feliciano<br />
de Castilho, com libreto em português de Antonio José Fernandes, foi dedicada ao imperador<br />
Pedro II. A estreia ocorreu no dia 4 de setembro de 1861, no Teatro Lírico Fluminense,<br />
Rio de Janeiro. E, apesar de integrar o movimento da Ópera Nacional que buscava<br />
a criação de um estilo de ópera brasileiro, o enredo de A Noite do Castelo se passa na Europa<br />
medieval na época das Cruzadas, notando-se alguma semelhança com Lucia de<br />
Lammermoor de Donizetti.<br />
A ópera inicia-se no castelo do conde Orlando; sua filha, Leonor está prestes a<br />
se casar com Fernando. Anteriormente ela havia se comprometido com Henrique, sobrinho<br />
do conde, que se acreditava morto nas cruzadas. Entretanto, isso não era verdade e ele<br />
reaparece exatamente no dia do casamento e, ao perceber que naquela noite seria assinado<br />
o contrato nupcial entre Leonor e Fernando promete vingança. Encontra-se com a<br />
noiva, mas não aceita as suas desculpas. Esta, ao final, perde o juízo (há uma cena de loucura)<br />
e, dentro dos padrões tradicionais da ópera no período, a morte de ambos é o desfecho<br />
da ópera.<br />
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270<br />
No Museu Carlos Gomes existe uma cópia da época, que pertenceu à filha de<br />
Carlos Gomes, Ítala Gomes Vaz de Carvalho. A partir desta partitura foi levada à cena a<br />
única montagem contemporânea desta ópera, que ocorreu em 1974 com a Orquestra<br />
Sinfônica Municipal de Campinas. O manuscrito autógrafo foi doado recentemente ao<br />
Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da Universidade de São Paulo.<br />
Logo após a estreia A Noite do Castelo foi editada em versão para canto e piano<br />
por Raphael Coelho Machado com a indicação “Ópera nacional em 3 actos”. Na sua essência<br />
trata-se de obra de um jovem compositor talentoso, mas que ainda não estava plenamente<br />
amadurecido enquanto operista. A escrita musical ainda é bastante contida e por<br />
vezes chega sugerir a modinha, gênero de canção popular na época. Somente neste aspecto,<br />
e pelo fato de seu libreto ser em português, pode-se aproximar esta obra de uma busca<br />
por padrões nacionais, já que se trata de uma ópera de quadros, com todos os clichês<br />
vigentes na ópera italiana do período. Embora seja melodiosa e tenha alguns trechos inspirados,<br />
A Noite do Castelo não consegue arrebatar, já que a orquestração, embora correta,<br />
é tímida e o trabalho vocal tenha pouco brilho. O conjunto carece de melhor urdimento e<br />
percebe-se que as ousadias que caracterizariam o estilo posterior de Carlos Gomes ainda<br />
estavam em estado embrionário. Isso, entretanto, não deve ser creditado apenas à<br />
imaturidade do compositor, que tanto o enredo como libreto são medíocres e de pífia<br />
inspiração.<br />
Figura 2. Edição para canto e piano, de 1863.<br />
Cerca de dois anos depois, em 15 de setembro de 1863, no mesmo Teatro Lírico<br />
Fluminense no Rio de Janeiro, foi levada à cena Joanna de Flandres, a segunda ópera de<br />
Carlos Gomes. O libreto de Salvador de Mendonça, embora de melhor feitura que o anterior,<br />
também deixa bastante a desejar. A ópera foi dedicada ao maestro Francisco Manuel<br />
da Silva, então diretor do Imperial Conservatório de Música. Embora tenha ficado no esquecimento<br />
por bem mais de um século até sua restauração em 2003 1 , Joanna de Flandres<br />
é, no gênero operístico, imediatamente anterior a Il Guarany e representa uma passagem<br />
importante na produção do compositor.<br />
Ao escolher Joanna de Flandres, uma protagonista perversa e ardilosa, como<br />
personagem principal de sua ópera, Gomes viu-se obrigado a elaborar mais a sua escrita,<br />
...........................................................................<br />
1 A autora desenvolveu um projeto de restauração desta ópera, incluindo grade de orquestra e redução para<br />
canto e piano, concluído em 2003 e financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo –<br />
FAPESP.<br />
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apurando sua técnica de composição, tanto orquestral como vocal. Entretanto, esse avanço<br />
não deve ser creditado apenas a seu talento inato, mas é consequência também dos estudos<br />
no conservatório e do intenso trabalho que vinha realizando desde 1860 como<br />
regente da Companhia da Ópera Nacional. O trabalho incluía o estudo de partituras diversas<br />
que deveria ensaiar e reger, reduções das partes orquestrais de óperas para piano, arranjos,<br />
adaptações e a realização das partes cavadas. Essa prática foi um grande aprendizado e<br />
ao escrever Joanna de Flandres já conhecia diversas óperas, bem como as técnicas de orquestração<br />
e escrita vocal.<br />
Joanna de Flandres trabalha com uma orquestração mais densa que A Noite do<br />
Castelo: piccolo, duas flautas, dois oboés, dois clarinetes, dois fagotes, quatro trompas,<br />
dois trompetes, três trombones, oficleide, tímpanos, bumbo, triângulo, harpa, primeiros<br />
e segundos violinos, violas, violoncelos e contrabaixos. As trompas aparecem em diversas<br />
tonalidades, já que eram utilizadas as naturais, às quais eram acoplados tubos que aumentavam<br />
ou diminuíam a sua extensão, conforme a tonalidade desejada. O oficleide,<br />
instrumento de metal hoje em desuso, é bastante encontrado em partituras até o século<br />
XIX, executando partes mais graves. (Seu substituto natural na orquestra é a tuba, mas<br />
como esta teria uma sonoridade mais branda, alguns pesquisadores indicam a utilização<br />
do bombardino.)<br />
Em sua segunda ópera Carlos Gomes continua às voltas com as Cruzadas, já que<br />
o enredo se passa no século XIII e conta a história de como a pérfida Joanna se apropriou<br />
do reino de Flandres quando seu pai, o conde Balduino, foi dado como morto nas Cruzadas.<br />
Ela tem como cúmplice o trovador Raul de Mauléon, com quem resolve se casar. Contudo,<br />
Balduíno, não havia perecido e reaparece inesperadamente durante a cerimônia de casamento.<br />
Joanna, que não estava disposta á devolver o poder ao pai, finge não reconhecêlo,<br />
acusa-o de impostor e manda prendê-lo nas masmorras do castelo, sob os protestos<br />
de sua irmã Margarida. Após uma série de eventos, Raul, cheio de remorsos, mata Joana,<br />
que pede perdão ao pai, e se suicida.<br />
Trata-se de um libreto fantasioso e nada do que nele ocorre parece corresponder<br />
a alguma verdade histórica. A ação ocorre em Lilla (Lille) durante o ano de 1225 e tem<br />
como pano de fundo a revolta dos flamengos contra Joanna. Esta personagem não é uma<br />
criação literária, ela existiu e reinou por algum tempo naquela região, hoje integrada à<br />
Bélgica2 . O enredo da ópera é fictício, embora o pai de Joanna, Balduíno IX (ou Balduino I<br />
de Constantinopla) tenha sido de fato dado como morto durante as Cruzadas em Constantinopla.<br />
Entretanto, uma possível volta desta personagem para reassumir o trono e a<br />
consequente rejeição pela filha, parece não ter qualquer embasamento histórico.<br />
Joanna de Flandres (1188-1244) ou Joanna de Constantinopla, não foi assassinada<br />
e casou-se duas vezes, falecendo sem deixar herdeiros. Foi Condessa de Hainaut, esposa<br />
de Fernando, filho do rei Sancho I de Portugal, e de Tommaso de Saboia, filho de Tommaso<br />
I. Foi sucedida pacificamente no trono por sua irmã Margarida e ambas eram filhas de<br />
Balduino IX e Maia de Champagna. O que foi possível localizar sobre um possível retorno<br />
do conde Balduino foi uma referência a alguém que teria tentado se passar por ele.<br />
A maneira como o perfil da heroína foi engendrado no libreto, entretanto, exigiu<br />
um trabalho composicional bem mais acurado, no qual, mais que possível, foi necessária<br />
uma escrita vocal bem mais elaborada, tanto no que se refere aos solistas como às partes<br />
corais. As personagens principais têm características definidas, sendo que as irmãs Joanna<br />
e Margarida, embora sejam personalidades antagônicas, são sopranos de tessitura semelhante<br />
e a elas ficam reservadas as partes mais complexas, com proeminência para<br />
Joanna. Raul de Mauléon é um tenor que não tem grandes momentos virtuosísticos, o<br />
...........................................................................<br />
2 A região de Flandres fica no norte da Bélgica e teve um grande poderio econômico na Idade Média, quando<br />
agregava ao seu território partes que hoje pertencem à França e à Holanda.<br />
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mesmo ocorrendo com Balduino, baixo, e Huberto de Courtray, cavaleiro flamengo e líder<br />
dos conjurados, barítono. Há ainda uma personagem menor, Burg, confidente de Joanna,<br />
tenor, de pouca relevância no contexto. No que se refere às partes corais é interessante<br />
notar que há uma cena na qual são utilizados dois coros, um masculino representando os<br />
flamengos e outro, misto, os franceses.<br />
O manuscrito original de Joanna de Flandres, por razões não esclarecidas, está<br />
dividido em dois arquivos: o primeiro ato, que corresponde a quase metade da partitura,<br />
está no Museu Histórico Nacional e os outros três na Biblioteca Arthur Nepomuceno da<br />
Escola da Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro, ambos na cidade do Rio de<br />
Janeiro.<br />
As cenas foram todas numeradas pelo compositor, mas não existe o número 1:<br />
o Prelúdio, designação do próprio compositor, já traz o número 2. Isso provavelmente<br />
ocorreu porque Carlos Gomes, em razão do tempo, teria deixado para escrever a abertura<br />
após a estreia, como faria também em Il Guarany. Mas naquele ano de 1863 as coisas se<br />
precipitaram e logo após a estreia, por ter sido o aluno mais destacado do Conservatório,<br />
Gomes ganhou uma bolsa de estudos e partiu para Milão logo em seguida, deixando uma<br />
possível abertura de Joanna de Flandres para trás.<br />
Figura 3. Página de rosto da partitura, no topo, a inscrição “N. 2”.<br />
Outro trecho em que há saltos na numeração é no início do terceiro ato, já que<br />
o número 14 também não aparece no manuscrito. Talvez aqui tenha acontecido a mesma<br />
coisa, o compositor teria pensado em escrever uma abertura para o terceiro ato, já que o<br />
número 13, que fecha o segundo ato, é uma Marcha Triunfal perfeitamente concluída,<br />
não havendo quebra no enredo, na continuidade musical ou no manuscrito.<br />
Os manuscritos têm diversos trechos rasurados ou riscados, em sua maioria<br />
correções, algumas provavelmente realizadas pelo próprio Gomes e outras sobre as quais<br />
não temos elementos para fazer qualquer afirmação. Mas podemos fazer algumas ilações<br />
partindo do fato de que pouco antes da estreia o compositor e a produção da ópera<br />
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Figura 4. Página inicial da partitura, com a inscrição “N° 2” no alto, à esquerda.<br />
273<br />
trocaram ofensas que foram publicadas na imprensa carioca. Em uma delas Gomes solicitou<br />
ao regente Nicolau Priol que declarasse em público as correções, cortes e acréscimos que<br />
havia feito na partitura sem sua autorização e se eram mesmo necessárias.<br />
O maestro acabou por abandonar tudo às vésperas da estreia, o mesmo<br />
acontecendo com o tenor, já que os empresários não haviam acertado seu contrato. A<br />
própria empresa começou uma campanha difamatória na imprensa alegando que o<br />
compositor perturbava os trabalhos de preparação do espetáculo. A troca de farpas pela<br />
imprensa continuou com ironias dirigidas ao compositor, com insinuações sobre seus<br />
erros gramaticais, e ao libretista Salvador de Mendonça, chamado de “poeta funileiro”.<br />
Na imprensa um dos detratores assinava anonimamente suas críticas com o pseudônimo<br />
de “Funil” e um certo H.F. publicou uma sátira que apresentava Joanna de Flandres passeando<br />
pela “Rua dos Latoeiros”, ornamentada com objetos como funil, regador e escumadeira.<br />
Depois de dois adiamentos a ópera estreou no dia 15 de setembro de 1863 sob<br />
a regência de Carlo Bosoni. Curiosamente os empresários tentaram “fabricar” o fracasso<br />
da ópera preparando uma vaia, contrataram uma claque e deixaram de vender muitos lugares,<br />
de modo que teatro ficasse vazio e pudessem alegar que o espetáculo não havia<br />
despertado interesse. Para completar, marcaram para a véspera um recital com os cantores<br />
que iriam participar da ópera, de forma que estivessem cansados no dia da estreia. Mas<br />
apesar da confusão e das disputas Joanna de Flandres foi bem recebida e contou com a<br />
presença do imperador Pedro II na estreia.<br />
O manuscrito tem 1054 páginas e cerca de 70 mil compassos o que nos leva a<br />
imaginar quanto tempo não teria sido necessário para sua realização (não entraram nesse<br />
cômputo as partes cavadas). Atualmente computadores e programas de escrita musical<br />
facilitam nosso trabalho e podemos reproduzir música sem dificuldades, mas na época<br />
de Gomes ainda eram utilizadas penas, cuja tinta não durava mais que alguns segundos,<br />
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274<br />
Figura 5. Sátira publicada na imprensa carioca, em 1863; ao fundo, compositor e libretista.<br />
obrigando a sucessivos e repetitivos movimentos para recarregar a pena. Além dos sinais<br />
musicais, ainda era preciso riscar barras de compassos e por vezes até mesmo as pautas.<br />
Para ganhar tempo os compositores e copistas criavam atalhos e abreviaturas e<br />
estes existem fartamente na partitura de Joanna. Decorridos quase cento e cinquenta<br />
anos da estreia (além de dois ou três anos de composição), tais sinais não deixam claras<br />
intenções do compositor. Muitos trechos, por serem repetições, foram deixados em branco,<br />
mas existem sutis diferenças, o que obriga a idas e vindas na partitura e em tais situações<br />
o erro passa ao lado. Sabe-se que o libretista atrasou e, provavelmente para ganhar tempo,<br />
Gomes deixou de anotar diversas indicações, talvez consideradas óbvias ou subentendidas.<br />
Sabendo que qualquer problema poderia ser resolvido durante os ensaios, aos quais ele<br />
estaria presente, deixou lacunas no manuscrito. Isso exigiu dos restauradores atuais a<br />
tomada de decisões de cunho pessoal, que, entretanto, não foram apoiadas apenas na<br />
intuição, mas sim no conhecimento da obra e do estilo do compositor.<br />
O manuscrito autógrafo tem também diversos trechos rasurados e/ou riscados,<br />
indicando correções, acréscimos de articulações e dinâmica, além de cortes de trechos<br />
inteiros. Anotações e cortes podem ter sido realizados por pessoas diferentes, já que aparecem<br />
nas cores preta, vermelha e azul. Existem ainda correções realizadas com a mesma<br />
tinta preta do manuscrito, o que nos leva a supor que foram realizadas pelo próprio compositor.<br />
Mas como são, em sua maioria, riscos e sinais indicativos, não é possível afirmar<br />
isso com segurança.<br />
Conforme dito anteriormente Gomes desentendeu-se com o maestro Nicolau<br />
Priol por este ter teria efetuado cortes na partitura sem sua autorização. Isso nos leva a<br />
imaginar que parte dessas anotações talvez não seja mesmo do compositor e sim de Priol<br />
que acabou abandonando a ópera. A regência coube a Carlos Bosoni, que teria trabalhado<br />
com o mesmo manuscrito já rasurado pelo regente anterior.<br />
Após o Prelúdio (n. 2), a cena inicia-se com a conjuração dos revoltosos fiéis a<br />
Balduíno, que, em uma marcha patriótica, juram defendê-lo.<br />
O tema é apresentado inicialmente pelo líder dos revoltosos, Huberto de Courtray,<br />
barítono, e depois repetido entusiasticamente pelo coro masculino. Aqui já é possível<br />
notar uma orquestração mais densa, distanciada da utilizada em A Noite do Castelo.<br />
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Figura 6. Trecho inicial – A Conjuração.<br />
Figura 7. Trecho do coro dos conjurados.<br />
275<br />
Na sequência a cena muda para os salões do palácio e Joanna, que, avisada de<br />
que tramam contra ela, canta a ária mais conhecida da ópera “Foram-me os anos da<br />
infância”, editada anos atrás (Figura 8).<br />
Como passaria a ser uma característica da obra de Carlos Gomes, há uma súbita<br />
mudança de clima com a entrada de um coro de cavalheiros franceses que repudiam a<br />
revolta popular contra Joanna e esta, em um trecho de grande virtuosidade, exalta a<br />
vingança: “só tu me elevas de infernal prazer! […] Sou tua, és minha!”. Neste trecho também<br />
é possível notar que a estética de A Noite do Castelo estava ficando para trás, já que o<br />
compositor não economizou ornamentos, saltos, vocalizes, notas extremas e ritmos<br />
agitados para que a solista pudesse expressar sua ira (Figura 9).<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
276<br />
Figura 8. Ária de Joanna – Foram-me os anos da infância.<br />
Figura 9. Ária de Joanna – Vingança.<br />
Na cena seguinte Joanna está a sós com seu amante e cúmplice Raul e é interessante<br />
notar pela terceira vez a heroína muda de atitude somente nesta cena. Aqui ela<br />
está dialogando de uma maneira aparentemente delicada, mas seu cinismo é visível, há<br />
certo mal-estar entre casal que troca acusações veladas. E mais uma vez Gomes demonstra<br />
como havia aprimorado a qualidade de sua escrita, tanto vocal como orquestral, ao fazer<br />
mais uma mudança no sentido do trecho, passando para uma cena romântica na qual um<br />
dueto de amor bastante longo marca o desenvolvimento de um estilo que Gomes começava<br />
a desenvolver e que teria continuidade em sua obra posterior, em especial na<br />
Fosca (Figura 10).<br />
Após essa cena romântica, Joanna e Raul resolvem se casar, o que dá ensejo a<br />
um segundo dueto, tão longo quanto o primeiro, porém bem mais brilhante. No decorrer<br />
dessa cena, a mais longa de toda a ópera, existe indicação de um corte que vai da página<br />
212 até 232, talvez um dos motivos da rixa entre compositor e maestro. Mas é preciso levar<br />
em consideração que o trecho é, de fato, muito aquém das expectativas no que se refere<br />
à duração de um ato operístico.<br />
Na figura abaixo, no último compasso, há uma indicação “Salto” e uma modificação<br />
posterior feita com papel colado para adaptar o texto de Raul para o salto e a entrada<br />
na página 232 (Figuras 11 e 12).<br />
O casamento é uma típica cena de corte, com brindes e vivas, mas apesar do júbilo,<br />
há certa desconfiança no ar, já que foi tudo definido às pressas e simplesmente comunicado<br />
à corte, além do que Raul era um plebeu sem posses. A festa é interrompida<br />
pela chegada de Balduíno, que se apresenta a Joanna. Ela não só nega conhecê-lo, como<br />
o acusa de impostor, sob o olhar estupefato de sua irmã Margarida. Aqui são utilizados<br />
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Figura 10. Início do dueto de amor.<br />
277<br />
dois coros, um masculino (flamengos) e um misto (os nobres franceses), num interessante<br />
contraponto de ideias e expressões: os flamengos cantam sua revolta, e os franceses, sua<br />
surpresa. O mesmo se dá com solistas: Balduíno expressa seu sofrimento com a longa<br />
ausência e a rejeição da filha, Huberto, sua revolta, e Margarida, compaixão pelo pai. Já<br />
Raul instiga Joanna a calar-se e essa fica num misto de ódio e remorso.<br />
No final há o consenso de que a melhor solução seria levar o caso ao rei da<br />
França, que resolveria a questão. Musicalmente, trata-se de uma cena bastante elaborada,<br />
talvez inspirada no quarteto do Rigoletto (1851) de Giuseppe Verdi. Embora Gomes ainda<br />
não tivesse a maestria do compositor italiano, o conjunto é bem elaborado e o ouvinte<br />
consegue distinguir esses sentimentos díspares.<br />
A partir desse momento há um crescimento de Margarida, que introduz o tema<br />
que vai concluir o primeiro ato, desenvolvido em seguida por solistas e coros. Este trecho<br />
também é bastante longo, resultando em uma ópera muito irregular em termos de<br />
conjunto, pois aqui termina o primeiro ato e já estamos praticamente na metade da obra<br />
(Figura 1B).<br />
O segundo ato inicia-se com uma cena na qual Raul, cheio de remorsos, canta<br />
uma ária bastante conhecida, editada há alguns anos em versão para canto e piano (Figura<br />
14).<br />
Burg, o fiel de Joanna, entra em cena e informa que a tropa o aguarda; Raul,<br />
enfurecido, ordena que ele saia e canta uma cavatina onde afirma seu amor por Joanna,<br />
mas conclui dizendo que, caso ela não ouça a voz da razão e aceite seu pai como conde de<br />
Flandres, “tanto amor há de em ódio se tornar”.<br />
O trecho seguinte é também é bastante conhecido e frequentemente executado.<br />
Trata-se de um solo de flauta dedicado ao famoso flautista belga radicado durante o século<br />
XIX no Rio de Janeiro, Mathieu-André Reichert (1830-1880), que introduz Margarida num<br />
cenário entre ruínas. Ao lado de uma fonte ela relembra sua infância até que chegam<br />
Huberto e os revoltosos, que a saúdam: “Sois de Flandres, a boa estrela, nosso arcanjo<br />
protetor”. Surpresos ouvem uma marcha triunfal e compreendem que a sentença do rei<br />
de França foi favorável a Joanna. Esta ordena que Balduino seja conduzido ao cárcere,<br />
concluindo o segundo ato.<br />
Ao final deste trecho, Gomes, certamente exausto, anotou na partitura: “com<br />
mil demônios acabemos assim” (Figura 15).<br />
Um terno dueto entre Balduíno e Margarida dá início ao terceiro ato, mas são<br />
bruscamente interrompidos pela entrada de Joanna. Ela tenta convencer o pai a assinar<br />
um documento no qual, em troca de sua liberdade, afirmaria que conde de Flandres<br />
estava morto. A recusa de Balduíno dá origem a um interessante terceto, onde<br />
encontramos novamente uma escrita musical na qual estados de espírito opostos são<br />
confrontados (Figura 16).<br />
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278<br />
Figura 11. Da página 212, modificação no último compasso da linha de Raul.<br />
Figura 12. Da página 232, final do trecho cortado, na indicação “qui”.<br />
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Figura 13. Margarida introduz o tema.<br />
Figura 14. Ária de Raul.<br />
Figura 15. Final do ato II, trecho de leitura difícil, com a anotação: “Com mil demônios acabemos assim”.<br />
279<br />
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b
280<br />
Figura 16. Ato III, Trio Joanna, Margarida e Balduíno.<br />
Enquanto Balduíno e Margarida declaram mútuo amor, Joanna destila todo seu<br />
ódio em outro trecho de grande virtuosidade. O ato se encerra quando ela abandona intempestivamente<br />
o cárcere, não sem antes hesitar num passageiro ataque de remorsos,<br />
que em nada afeta seu desejo pelo poder.<br />
O quarto ato acontece no palácio e Raul canta variações sobre a sua ária do segundo<br />
ato. Ao fundo Joanna revela desprezo pela fraqueza de Raul e ao se encontrarem<br />
cantam um dueto no qual ele revela que vinha tendo pesadelos que envolviam a morte<br />
de Balduíno e a ira popular (Figura 17).<br />
Joanna repete o mesmo tema com acento irônico, dizendo que não teve sonhos,<br />
mas vê com júbilo a mesma coisa que Raul, a cabeça do pai rolando no patíbulo. Em um<br />
trecho de bravura Raul faz pesadas acusações: “Ímpia filha, criminosa, teu intento hei de<br />
mudar”, ao que Joanna responde “Tu perjuro, me traíste, mas não podes me abrandar”.<br />
Joanna ordena a seu fiel, Burg, a execução de Raul entregando-lhe um punhal.<br />
Margarida vem implorar pela vida de Balduíno: “Oh, pelos céus, perdoa quem te deu a vida!”,<br />
mas a condessa não se importa com o destino do pai, “que sofra seu destino, sua<br />
sorte”. O som triunfante de uma fanfarra de metais indica que Balduíno foi libertado pelos<br />
revoltosos e vem retomar o seu lugar. As duas irmãs cantam um duo de grande exigência<br />
vocal, no qual Joanna continua jurando vingança, mas já temerosa, e Margarida exulta<br />
com a libertação do pai.<br />
Na cena final da ópera, Raul retorna portando o punhal que arrancara das mãos<br />
de Burg e após breves palavras ele próprio, alheio aos pedidos de clemência e apelos desesperados<br />
de Margarida, apunhala Joanna. Balduíno entra a tempo de escutar a última<br />
ária da filha moribunda, na qual ela pede perdão a ele e a seu povo: (Figura 18).<br />
É ordenada a prisão de Raul, que se adianta e crava em si o punhal, dizendo “Eu<br />
cumprir vou o meu cruel destino!”. Tudo isso numa cena muito rápida, não há muita exploração<br />
destas mortes. A ópera termina com rápido e convencional tutti, que destoa do<br />
conjunto da ópera. Além da música banal, o texto final também é sofrível: “Oh, dia fatal!”.<br />
Ao final da composição, Carlos Gomes, ainda mais exausto com a composição e<br />
certamente aborrecido com os problemas que ela vinha acarretando anotou no manuscrito:<br />
“Fim d’um triunfiasco” (Figura19).<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
Figura 17. Ato IV, Dueto Joanna e Raul.<br />
Figura 18. Ária final de Joanna.<br />
Figura 19. Página final do manuscrito, trecho de leitura difícil e a inscrição: “Fim d’um triunfiasco”.<br />
281<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
282<br />
Figura 20. Final do manuscrito – detalhe.<br />
Nessa sucinta apresentação encontramos elementos pouco característicos da<br />
ópera do período, quando, em geral, as heroínas sofredoras e fracas predominavam na<br />
cena operística. Joanna de Flandres, na contramão desse padrão, não tem caráter, é má e<br />
dissimulada, prenunciando as futuras malvadas de Gomes como Fosca (1873) e Maria<br />
Tudor (1879). Mas a mulher pura e sofredora, padrão da ópera romântica, está presente<br />
na figura de Margarida, que passa grande parte de suas cenas tempo em sofrimento e<br />
implorando a ajuda divina.<br />
Já Raul de Mauleón é um anti-herói de caráter duvidoso que, ao apresentar-se<br />
na corte como trovador, cai nas graças da condessa. Esta, entretanto, vai usá-lo como<br />
instrumento para chegar a seu intento. Ele se submete e a apoia em seus atos criminosos<br />
na esperança tornar-se rico e poderoso. Ao final é tomado pelo remorso e tenta convencêla<br />
a recuar, mas ao fracassar pratica um gesto operístico incomum ao assassinar<br />
deliberadamente a amada e heroína (que por sua vez havia ordenado sua morte).<br />
Inserida entre o desabrochar de A Noite do Castelo e um dos maiores sucessos<br />
de toda a carreira de Carlos Gomes, Il Guarany, montada na Itália em 1870, a ópera Joanna<br />
de Flandres apresenta-se como uma transição entre a primeira, na qual o compositor<br />
ainda tateava, tanto no aspecto musical como na busca de um estilo pessoal, e a outra,<br />
onde já coloca sua marca pessoal. Neste sentido podemos dizer que se Joanna de Flandres<br />
ainda tem alguns problemas referentes à técnica composicional, se comparada com A<br />
Noite do Castelo é um avanço imenso e já aponta para o arrojo de Il Guarany, embora a<br />
estética desenvolvida na Joanna não tenha sido muito explorada nesta ópera. Ela vai<br />
aparecer com mais ênfase na ópera seguinte, Fosca. Talvez por ter imprimido nesta ópera,<br />
a segunda apresentada na Itália, o estilo tão pessoal que havia esboçado em Joanna de<br />
Flandres, Fosca sempre foi a obra preferida de Carlos Gomes (Figura 20).<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
283<br />
Fontes documentais<br />
Museu Histórico Nacional. Rio de Janeiro (1° ato)<br />
Biblioteca Arthur Nepomuceno. Escola de Música da Universidade Federal do Rio de<br />
Janeiro (2º, 3º e 4º atos)<br />
Partitura<br />
Nogueira, Lenita W. M. Joanna de Flandres. Transcrição musicológica coordenada pela<br />
autora com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).<br />
Grade orquestral e redução para canto e piano. Campinas, 2003. (Não editada).<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
285<br />
A abertura do drama lírico Pelo amor!<br />
(1897) de Leopoldo Miguez (1850-1902)<br />
André Cardoso<br />
Universidade Federal do Rio de Janeiro<br />
O compositor Leopoldo Miguez (1850–1902) ocupa uma posição singular no panorama<br />
da música brasileira da virada do século XIX para o XX. Sua produção é concentrada<br />
em dois gêneros representativos da estética do século XIX: o poema sinfônico e o drama<br />
musical. O sinfonismo de Miguez é a principal marca de seu trabalho, em especial se confrontado<br />
com o operismo italiano em voga em seu tempo. Facilmente se constata que,<br />
não por acaso, a música de Franz Liszt (1811–1886) e Richard Wagner (1813–1883) fornece<br />
a base estética para sua música que, dentro do contexto sociocultural, representava no<br />
Brasil do final do segundo Império, a face do pioneirismo e da vanguarda. O ímpeto renovador<br />
de Miguez junto ao movimento republicano serve como pano de fundo a uma busca<br />
de uma expressão musical que se contrapunha ao gosto predominante no antigo regime,<br />
e a apologia de Miguez em favor da então música do futuro, revela entre outras coisas,<br />
mas em especial no campo artístico, o anseio por mudanças relevantes no campo político.<br />
A historiografia musical brasileira vem repetindo ao longo das últimas décadas<br />
a afirmação de que a música de Miguez é devedora de Wagner. Não se pode negar de modo<br />
algum que, de fato, a parte principal de sua obra – representada pelos poemas sinfônicos<br />
Parisina, Prometeus e Ave Libertas e pelos dramas musicais Pelo Amor e I Salduni – seja<br />
filiada aos cânones lisztianos e wagnerianos. Ainda assim, a análise um pouco mais cuidadosa<br />
de um conjunto maior de obras da relativamente pequena produção musical de Miguez,<br />
nos revela um compositor mais eclético e que em diferentes momentos de sua carreira<br />
lançou mão de procedimentos composicionais representativos de outras escolas de<br />
composição. Não são encontrados vestígios da música de Wagner, por exemplo, em boa<br />
parte de sua produção para piano solo, onde predominam as chamadas “peças características”<br />
tão a gosto dos salões parisienses e nas quais percebemos o estilo chopiniano,<br />
especialmente nos Noturnos. Sua sonata para violino, composta em 1887, se liga à tradição<br />
da música pura que vem de Mendelssohn e Schumann chegando até Brahms, uma corrente<br />
estética antagônica à música programática. O que dizer então de sua Suite Antiga, composta<br />
como uma recriação de danças barrocas?<br />
De qualquer forma, Leopoldo Miguez se apresenta, de fato, como o maior representante<br />
da corrente wagneriana no Brasil e seu principal conjunto de obras, acima mencionado,<br />
não deixa dúvidas sobre isso. Mesmo alguns de seus contemporâneos e amigos<br />
criticaram os excessos wagnerianos de Miguez. José Rodrigues Barbosa (1857-1939) afirmou<br />
em 1922 que Miguez “fez mal em subordinar-se, por completo, a uma forma musical<br />
que Wagner criou definitivamente” e que o compositor brasileiro foi “um imitador de<br />
Wagner”. Ressalva, porém, que foi um “imitador genial” (Barbosa apud Castagna, 2007,<br />
p. 77).<br />
Fazendo uma rápida revisão da literatura referencial sobre música brasileira constatamos<br />
que o julgamento da produção de Miguez se dá quase que exclusivamente a partir<br />
das premissas ideológicas do modernismo brasileiro. Luiz Heitor Correa de Azevedo,<br />
em texto de 1938, diz: “Leopoldo Miguez, em seu ardoroso proselitismo, assimila tão<br />
bem a técnica wagneriana que toda a partitura dos Saldunes é como que uma edição re-<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
286<br />
sumida e vulgarizada da Tetralogia, em que se pode apontar, página por página, a correlação<br />
com o monumento que subjugara as suas faculdades criadoras” (Azevedo, 1938,<br />
p. 23). Apesar do tom crítico inicial Luiz Heitor mostra certa condescendência dizendo<br />
mais à frente que nem por isso I Salduni “perde as qualidades que possue no mais alto<br />
grau: nobreza, perfeição de forma, teatralidade, colorido orquestral e uma verdadeira e<br />
cálida emoção, onde às vezes trai-se o artista tropical” (Azevedo, 1938, p. 51). Renato Almeida,<br />
por sua vez disse que:<br />
Leopoldo Miguez foi um discípulo de Liszt e de Wagner, sem maior originalidade,<br />
embora com certo caráter. Fez uma música brilhante, com muitas páginas bonitas,<br />
mas sem significação na história da nossa música. [...] aceitou os modelos que<br />
outros fixaram e tudo quanto fez foi uma adaptação, na qual consumiu todas as<br />
forças do seu engenho. […] O seu poema sinfônico foi o poema sinfonico de<br />
Liszt, a sua ópera o drama musical de Wagner. Dess’arte, Leopoldo Miguez como<br />
compositor, não tem significado social na história da nossa música e, se deixou<br />
belas páginas, nenhuma influência exerceram elas sobre a nossa vida artística,<br />
sobre o desenvolvimento da criação musical brasileira. (Almeida, 1942, p. 395)<br />
Bruno Kiefer, compositor e musicólogo de outra geração, segue os passos de<br />
Renato Almeida e afirma que Miguez “compôs uma obra que não trouxe a menor contribuição<br />
para uma música de características brasileiras. A rigor, não foi criador. Dominava<br />
o métier, não há dúvida, mas foi para seguir, como epígono, as pegadas de Liszt e Wagner,<br />
sobretudo deste último” (Kiefer, 1976, p. 127).<br />
Como podemos ver a visão modernista embota uma compreensão mais nuançada<br />
do papel dos compositores românticos brasileiros e chega mesmo a ser incoerente<br />
ao aceitar e legitimar, por exemplo, uma obra como o Requiem do Padre José Maurício<br />
Nunes Garcia (1767-1830), calcada na obra análoga de Mozart. Mas, ao contrário dos<br />
compositores de nosso romantismo musical, a figura de José Maurício era útil aos propósitos<br />
políticos de afirmação da nacionalidade brasileira levados a cabo pelos modernistas.<br />
Em prol da causa os modernistas poderiam, portanto, considerar o mozartiano Requiem<br />
de José Maurício uma obra válida, mas não os lisztianos poemas sinfônicos e as óperas<br />
wagnerianas de Leopoldo Miguez.<br />
Mais arguta e menos reducionista nos parece a opinião de Enio Squeff ao afirmar<br />
que Miguez, apesar de “ter cedido demais ao modelo maior”, no caso a música de Wagner,<br />
“não foi menor compositor por isso” (Squeff, 1982, p. 33). Squeff prossegue dizendo que<br />
“o mundo instável de Wagner – e por extensão de Miguez – é, indiscutivelmente, o mundo<br />
em transformação do capitalismo; mas ao contrário da visão debussista […] à visão ‘wagneriana’<br />
de Miguez impõe-se um ordenamento ideológico”. Conclui, por fim, dizendo que<br />
“o que importa é que Leopoldo Miguez não foi um anacronismo; ligou-se a uma das alternativas<br />
ideológicas que o mundo contemporâneo de então se lhe colocava” (Squeff, 1982,<br />
p. 120).<br />
A visão de Squeff mostra que a contribuição musical de Leopoldo Miguez pode<br />
ser muito mais relevante do que aquela que a historiografia brasileira referencial repete<br />
já há várias gerações, ou seja, a de Miguez como um simples imitador de Liszt e Wagner.<br />
Em Miguez as questões políticas e ideológicas são fundamentais para compreender<br />
sua posição no panorama da música brasileira da virada do século XIX para o XX.<br />
Para Miguez ser moderno naquele momento significava ser republicano, positivista e wagneriano.<br />
Se o Império estava por demais identificado com a música italiana, suas convicções<br />
políticas o levaram naturalmente a adotar uma linguagem musical que se contrapusesse<br />
ao italianismo predominante durante o regime monárquico. Se o positivismo era a ideo-<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
287<br />
logia da jovem República brasileira, o Instituto Nacional de Música deveria adotar os princípios<br />
de “ordem e progresso” estampados na bandeira nacional e se transformar em instituição<br />
modelar. Em seu relatório de viagem à Europa para conhecer as instituições de<br />
ensino musical entre 1895 e 1896, publicado em 1897, Miguez exalta “a ordem e a disciplina”<br />
dos conservatórios alemães e belgas e critica o “conservadorismo impertinente”<br />
e os “antigos e obsoletos métodos” dos italianos. Seu orgulho republicano no relatório fica<br />
igualmente patente quando menciona sua visita ao Musikverein de Viena ocasião em<br />
que pode ver o “manuscrito da Sinfonia Heroica de Beethoven com a dedicatória a Bonaparte<br />
raspada a canivete”, ressaltando que “tal fato tão comentado da vida de Beethoven”<br />
era uma prova de “quanto aquele espírito elevado era republicano” (Vermes, 2004). Com<br />
Miguez à frente o Instituto Nacional de Música se transformaria no bastião da modernidade<br />
musical na última década do século XIX não só através de uma renovada prática pedagógica,<br />
mas também através de iniciativas até então inéditas como a criação de um laboratório<br />
de acústica e um museu instrumental, o que denota uma abordagem mais científica da<br />
música.<br />
As questões político-ideológicas se refletem na prática musical e a música italiana,<br />
considerada decadente e conservadora, vai dando lugar ao repertório “progressista” das<br />
escolas francesa e alemã, com embates entre seus respectivos defensores, representados<br />
na imprensa da época pelos críticos Oscar Guanabarino (1851-1937) e José Rodrigues<br />
Barbosa. É a partir da atuação e postura progressista dos compositores ligados ao INM<br />
que novas obras são apresentadas ao público carioca na transição do século XIX para o<br />
XX. Pelos programas dos concertos dirigidos por Miguez, Alberto Nepomuceno (1864-<br />
1920), Carlos de Mesquita (1864-1953) e Francisco Braga (1868-1945) – à frente de orquestras<br />
como a do Instituto Nacional de Música, do Clube Beethoven, da Sociedade de<br />
Concertos Populares, da Sociedade de Concertos Sinfônicos ou arregimentadas para ocasiões<br />
especiais, como a Exposição Nacional de 1908 – podemos perceber um amplo domínio<br />
do novo repertório austro-germânico, francês e até mesmo russo em detrimento<br />
do italiano (Goldberg, 2006).<br />
Miguez foi figura central da vida musical brasileira nas duas últimas décadas do<br />
século XIX. Sua morte prematura aos 52 anos de certa forma abriu espaço para novas<br />
lideranças. Quem ocupará o espaço deixado por Miguez e emergirá como novo líder da<br />
chamada “República Musical” é exatamente seu sucessor na direção do INM, o compositor<br />
Alberto Nepomuceno.<br />
Pelo Amor!<br />
Para tratar da gênese do drama lírico Pelo Amor! se faz necessário abordar a figura<br />
de Henrique Maximiano Coelho Netto (1864-1934), o escritor que, no final do século<br />
XIX e início do XX se apresenta como libretista de várias óperas de diferentes compositores<br />
brasileiros como Pelo Amor e I Salduni de Leopoldo Miguez, Artemis e Abul de Alberto<br />
Nepomuceno e Hostia de Delgado de Carvalho. Luiz Heitor julgou ser Coelho Netto “o libretista<br />
titulado da nova ópera brasileira” e que a partir de sua “fantasia pujante, inflamada<br />
pelo simbolismo torrencial do drama lírico wagneriano, surgem os melhores poemas de<br />
ópera até hoje escritos no Brasil” (Azevedo, 1938, p. 23).<br />
Em 1897, ano de criação de Pelo Amor, Coelho Netto já era um escritor consagrado,<br />
além de personalidade que desfrutava de grande prestígio no meio intelectual<br />
carioca daquela época. Segundo Coelho Netto a arte dramática no Brasil encontrava-se<br />
em franca decadência em razão do predomínio das “revistas e bambochatas”. Para fazer<br />
frente a esse gênero de espetáculo popular Coelho Netto liderou uma campanha em prol<br />
do que considerava serem ideais artísticos mais elevados. Sua ideia era reunir em grêmios<br />
e associações artistas amadores com a missão de apresentar espetáculos dramáticos e<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
288<br />
sua estratégia foi fomentar acalorados debates na imprensa de modo a fazer valer seus<br />
ideais artísticos. Segundo Danielle Carvalho (2009) é devido à relevância do papel de Coelho<br />
Netto no meio intelectual da época que a imprensa dá atenção ao literato e acolhe seus<br />
artigos. Sob pseudônimo, Coelho Netto lança “ácidas críticas às peças em cena naquele<br />
momento” que, através da pilhéria, tinham como objetivo “agradar os gostos impudicos”.<br />
Coelho Netto rotulou tais espetáculos de “chirinola” que significava uma embrulhada ou<br />
trapalhada. Carvalho conclui, então, que o drama Pelo Amor! de Coelho Netto e Miguez<br />
seria um<br />
exemplo da produção teatral que regeneraria os palcos cariocas, e a aliança entre<br />
a elite e os intelectuais é tomada como o caminho possível para essa regeneração,<br />
uma vez que, conforme acreditava o escritor, os artistas profissionais não<br />
tinham preparo suficiente para levar à cena exemplares do “gênero mais elevado”.<br />
(Carvalho, 2009, p. 212)<br />
O tema de Pelo Amor! remete ao tempo da baixa Idade Média, em fins do século<br />
XIII, onde uma princesa escocesa, através do amor que a liga ao esposo, morto ao cair em<br />
um precipíssio, pressente não só a morte do marido como a desgraça que sobre ela se<br />
abaterá após sua perda. O sentimento que nutre pelo marido acabará por causar um desfecho<br />
trágico em sua vida. A atmosfera tensa que perpassa os dois atos do drama lírico é<br />
reforçada pela música de Leopoldo Miguez através de temas específicos para as principais<br />
personagens, situações dramáticas ou sentimentos, de acordo com os procedimentos do<br />
leitmotiv wagneriano.<br />
Richard Wagner é a maior influência não só na música como também para o autor<br />
do libreto. A lenda de Tristão e Isolda é a grande referência. Segundo Carvalho (2009,<br />
p. 212), assim como na ópera de Wagner, “também em Pelo Amor! está presente o sentimento<br />
amoroso incontrolável que engendra um desfecho funesto ao casal”.<br />
A presença das óperas de Wagner nas temporadas líricas cariocas não foi imediatamente<br />
consolidada. As companhias que vinham da Europa traziam em seu repertório<br />
uma grande maioria de óperas italianas. Wagner era ouvido sobretudo através das sociedades<br />
de concertos que apresentavam trechos sinfônicos. Segundo Luiz Heitor o Lohengrim<br />
de Wagner em sua estreia no Rio de Janeiro em 1883 “fôra ouvido com tédio, por um público<br />
que o lirismo místico do drama invencivelmente adormentava” (Azevedo, 1956, p.<br />
98). Quase uma década depois, em 1892, o Tanhauser “era recebido com entusiasmo e<br />
constituía um acontecimento social e artístico de grande relevância” revelando que “ia<br />
se formando no Brasil, uma forte corrente wagneriana” (Azevedo, 1956, p. 98). O entusiasmo<br />
pela música de Wagner se consubstanciou na criação do Centro Artístico “que<br />
reunia os nomes mais ilustres da época nas letras e nas artes, agrupados sob a bandeira<br />
dos ideais wagnerianos” (Azevedo, 1956, p. 99). Unidos pelo ideal artístico, Coelho Netto<br />
e Miguez criaram Pelo Amor e, segundo informação constante na edição impressa da redução<br />
para canto e piano, o puseram em cena em 24 de agosto de 1897 no Cassino Fluminense,<br />
ou seja, no prédio ao lado da atual Escola de Música da <strong>UFRJ</strong>. Porém, as atividades<br />
do Centro Artístico não conquistaram apenas adeptos. Os principais críticos foram Oscar<br />
Guanabarino e o escritor Arthur Azevedo que, igualmente através dos jornais, lançaram<br />
dúvidas não só sobre o texto da peça e sua relação com a música, como também sobre os<br />
propósitos do Centro Artístico.<br />
Arthur Azevedo (1855-1908) construiu sua fama como uma espécie de sucessor<br />
de Martins Pena (1815-1848) na abordagem da comédia de costumes, através de textos<br />
para o teatro de revista e posicionou-se como o defensor dos artistas profissionais atacados<br />
por Coelho Netto em sua pregação em prol dos “gêneros elevados”. Tal posicionamento<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
289<br />
não deixa de ser revelador de uma disputa que tinha como palco principal a recém-fundada<br />
Academia Brasileira de Letras, à qual ambos pertenciam. Segundo Carvalho<br />
Em resposta a Pelo Amor!, considerado por Netto o modelo de literatura erudita<br />
que deveria ser posto em cena para o enobrecimento da arte dramática na capital<br />
federal, Azevedo escreve Amor ao pêlo!, que, como ele próprio denomina, tratase<br />
de uma “pachouchada” que parodia o intento “elevado” de Netto (Carvalho,<br />
2009, p. 213)<br />
A mesma autora conclui que “o fato de a paródia ter tido muito mais sucesso<br />
junto ao público do que o trágico poema dramático é sintomático” e revela o quanto o<br />
projeto de Coelho Netto “colidia com os interesses dos espectadores” (Carvalho, 2009, p.<br />
213).<br />
Já Rodrigues Barbosa, o representante da “República Musical” na imprensa, não<br />
deixou de socorrer seus colegas e como que respondendo tardiamente às críticas de Guanabarino<br />
e Azevedo afirmou:<br />
Ouvindo a leitura do Pelo Amor! e convidado a escrever para ele alguns números<br />
de canto e de melodrama, Miguez, encantado com a poética de Coelho Neto,<br />
tão espontânea e tão acorde com o seu modo de sentir, escreveu aquela bela<br />
música, sendo para notar que sua musa lhe é tão fiel e a sua expressão tão verdadeira,<br />
que poesia e música se casam intimamente, sem que fosse necessário<br />
repetir no canto uma só palavra para preencher o contorno da frase melódica:<br />
poesia e música caminham em mútuo realce, estreitamente ligadas no mesmo<br />
sentimento. (Barbosa apud Castagna, 2007, p. 74)<br />
Após a morte de Leopoldo Miguez seu colega de INM, o professor Otávio Bevilacqua,<br />
em artigo para a Revista Brasileira de Música intitulado “Leopoldo Miguez e o Instituto<br />
Nacional de Música” se manifestou sobre a representação de Pelo Amor! no Cassino<br />
Fluminense, dizendo que “foi um fato que marcou época” pois “pela primeira vez subiu à<br />
cena com certos requintes de arte, uma obra de autor brasileiro, cantada em português<br />
por amadores e artistas todos do nosso meio”. Na opinião de Bevilacqua a encenação “foi<br />
um acontecimento” e que “o grau de perfeição atingido na execução foi digno de nota, levando-se<br />
em conta o tratar-se de gente, na sua maioria sem prática alguma de cena, de<br />
um conjunto à última hora improvisado” (Bevilacqua, 1940, p. 10).<br />
Abordando a música composta por Leopoldo Miguez para a abertura do drama<br />
de Coelho Netto vemos que a orquestração prevê madeiras a dois e mais um flautim. Para<br />
os metais Miguez determinou quatro trompas, dois trompetes, três trombones e a tuba.<br />
Os tímpanos e um prato de choque formam o naipe de percussão. Nas cordas sobressaem<br />
os divisi nos segundos violinos, violas e violoncelos. É um conjunto menor do que<br />
aquele previsto por Wagner para o Prelúdio de Tristão e Isolda, que incluiu ainda o corninglês,<br />
o clarone, um terceiro fagote, e um terceiro trompete.<br />
Na edição impressa do libreto temos a informação de que a orquestra na estreia<br />
da obra foi composta por “50 professores” sob a regência do compositor (Coelho Netto,<br />
1897). A partir de tal informação e da orquestração prevista chegamos a um efetivo de 21<br />
músicos para os sopros e percussão e 29 para as cordas. Com tal quantitativo podemos<br />
pensar que na estreia da obra Miguez contou com um naipe de cordas formado por 7 primeiros<br />
violinos, 6 segundos violinos, 6 violas, 6 violoncelos e 4 contrabaixos, com possibilidade<br />
de alguma variação. É um efetivo relativamente pequeno para uma obra com<br />
características wagnerianas e muito distante, menos da metade, da quantidade indicada<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
290<br />
por Wagner para a formação do naipe de cordas de seu Tristão, com 16 primeiros e segundos<br />
violinos, 12 violas e violoncelos e 8 contrabaixos (Wagner, 1985). Tal opção pode<br />
ter sido por inúmeras razões: dificuldades em arregimentar tantos músicos, os solistas<br />
amadores cujas vozes não poderiam sobrepujar uma orquestra muito volumosa ou ainda<br />
o tamanho do salão de bailes do Cassino Fluminense que não comportaria uma orquestra<br />
muito grande.<br />
Apesar da diferença no efetivo orquestral podemos perceber claramente já em<br />
alguns poucos compassos da abertura que o modelo é o Prelúdio de Tristão e Isolda de<br />
Wagner. O andamento é o mesmo, Lento na partitura de Miguez e Langsam und schmachtend<br />
na de Wagner. Se na partitura de Miguez falta a indicação de caráter (schmachtend = langoroso<br />
ou languidamente) aparece por sua vez a indicação metronônica de semínima<br />
igual a 72, ausente na de Wagner.<br />
Sem mais detalhes, que superariam o tempo disponível para esta comunicação,<br />
aponto como primeira semelhança a frase inicial a cargo do naipe dos violoncelos sem<br />
acompanhamento, construída também a partir de um grande intervalo ascendente (6a.<br />
em Wagner e 8a. em Miguez) seguido de uma sequência descendente que desemboca<br />
em um acorde nas madeiras que tem a mesma função do famoso acorde de Tristão.<br />
Exemplo 1. Richard Wagner - Abertura de Tristão e Isolda (c. 1-3)<br />
Exemplo 2. Leopoldo Miguez - Abertura de Pelo Amor! (c. 1-4)<br />
Sobre a frase inicial da abertura Rodrigues Barbosa, presente na estreia da obra<br />
no Cassino Fluminense assim se referiu:<br />
O prelúdio do primeiro ato, arquitetado sobre uma frase que traduz a dor de<br />
Malvina, desenvolvida com riqueza de recursos extraordinária, forma o ambiente<br />
espiritual para a compreensão não dos fatos, mas do sentimento que tumultua<br />
no peito amoroso da protagonista. (Barbosa apud Castagna, 2007, p. 74)<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
291<br />
O discurso musical prossegue e podemos perceber outros procedimentos análogos<br />
aos utilizados por Wagner no Prelúdio de Tristão e Isolda; as grandes pausas para<br />
criar tensão dramática, a tensão melódica na forma de síncopes, as volatas nas cordas e<br />
madeiras, o início em andamento lento, a aceleração na parte central e a retomada do<br />
andamento mais lento na recapitulação, o discurso musical contínuo e a harmonia modulante<br />
e sem repouso.<br />
Rodrigues Barbosa, além da abertura, teceu breves comentários sobre os diferentes<br />
números de Pelo Amor!, que aqui reproduzimos:<br />
Ao subir o pano, ouve-se um estribilho (a seco) do bobo nos bastidores. Depois<br />
vem a canção do grilo, onde os efeitos imitativos da orquestra multiplicam-se<br />
com interesse, emoldurando a frase melancólica do canto. Depois de uma ária<br />
pastoril que se ouve ao longe, vem a “Marcha grave” de ritmo solene e que se<br />
desenvolve em admirável progressão de caráter grandioso e nobre. É um trecho<br />
musical que impressiona pela serenidade do seu ritmo e pela majestade que o<br />
domina. Ouve-se depois, ao longe, uma romança de suave frescura, tão comovente<br />
quanto o despertar de um coração que pela primeira vez palpita de<br />
amor, e esse é justamente o sentimento nela cantado. Quando Darthula, de joelhos,<br />
faz uma oração, a orquestra de cordas, em surdina, acompanha com uma<br />
música em que se ouve o trêmulo balbuciar de uma velha no fervor da prece.<br />
Quanta verdade de expressão! A canção do grilo volta ainda e, quando o pano<br />
desce, ouve-se ainda o tristonho estribilho, que deixa no espírito umas névoas<br />
de melancolia e de tristeza, obrigando a recordação daquelas cenas tão comovedoras.<br />
Uma frase intercalada da “Marcha grave”, à entrada da maca conduzindo<br />
o corpo de Armínio, no primeiro ato, e exprimindo a dor deste, forma com um<br />
motivo melodioso, uníssono nas cordas, traduzindo a vida solitária de Samla, a<br />
feiticeira, a principal trama do interessantíssimo prelúdio do segundo ato. Há<br />
depois uma oração, cantada por um quinteto e na qual predomina o caráter súplice<br />
da crente que implora. A batalha do bobo tem, com extrema simplicidade<br />
melódica e rítmica, profundos acentos da melancolia saudosa que faz chorar de<br />
tristeza e consola pela revivescência do passado que é caro, talvez mesmo pela<br />
sua tristeza. A canção de Samla é dessas que se ouvem com o coração e nunca<br />
mais se esquecem; ficam gravadas na alma. Quando a ação dramática chega ao<br />
paroxismo e quando a dor se apodera de todos pelo suicídio de Malvina que se<br />
apunhala, e quando a consternação geral traz o silêncio e todos curvam joelho,<br />
ouve-se lá fora a romança que canta o idílio do primeiro amor, e aquele contraste<br />
violento, de paixões tão opostas e tão verdadeiras, traz à cena do palco maior<br />
intensidade; em cena a dor torna-se mais profunda; lá fora a poesia é mais suave,<br />
mais celestial... (Barbosa apud Castagna, 2007, p. 74 e 75)<br />
A edição proposta para a abertura do drama lírico Pelo Amor!, faz parte de um<br />
projeto de pesquisa que tem por objetivo editorar obras do acervo de manuscritos musicais<br />
da Biblioteca Alberto Nepomuceno da Escola de Música da <strong>UFRJ</strong>. Iniciado em 2003, o projeto<br />
já editorou 17 obras de compositores brasileiros como José Maurício Nunes Garcia,<br />
Leopoldo Miguez, Henrique Oswald e Francisco Braga. Três obras de Miguez e duas de Oswald<br />
foram gravadas em CD pela Orquestra Sinfônica da <strong>UFRJ</strong> com financiamento do Ministério<br />
da Cultura – distribuído aos participantes deste Simpósio. A partitura da Romanza<br />
para orquestra de cordas (1898) de Henrique Oswald (1852-1931) foi publicada no volume<br />
23, número 1 da Revista Brasileira de Música, também distribuída aos presentes.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
292<br />
A edição da abertura de Pelo Amor! foi baseada no manuscrito autógrafo do<br />
compositor. O conjunto de manuscritos de Miguez chama a atenção pela clareza, detalhamento<br />
e capricho na notação. Luiz Heitor já mencionava esta característica: “Quem examina<br />
as suas partituras, e até mesmo as partes de orquestra que ele próprio copiava, admira-se<br />
da caligrafia regular, claríssima, traçada com requinte de velho guarda-livros, que<br />
enche todas as páginas” (Azevedo, 1956, p. 110). Os manuscritos de Miguez, que se encontram<br />
em sua totalidade na Biblioteca Alberto Nepomuceno, são na verdade as versões finais<br />
de partituras que provavelmente foram esboçadas e escritas em rascunhos e posteriormente<br />
reescritas após minuciosa revisão. Não se encontra na maioria de suas partituras<br />
alterações, rabiscos, supressões ou adições de compassos. A forma metódica como<br />
Miguez produziu suas partituras facilita em muito o trabalho daqueles que se propõe a<br />
editorá-las.<br />
A partitura editorada de Pelo Amor! foi executada pela Orquestra Sinfônica da<br />
<strong>UFRJ</strong> em concerto dirigido pelo maestro Ernani Aguiar na Sala Cecília Meireles em 2008.<br />
Considerações finais<br />
Uma das questões que podem ser colocadas neste simpósio sobre ópera é: se a<br />
ópera foi evento artístico de grande importância na vida musical brasileira, se os compositores<br />
brasileiros de várias gerações se dedicaram a escrever óperas nos mais diversos<br />
estilos, por que não as vemos incluídas nas temporadas dos grandes teatros brasileiros?<br />
É obvio que as respostas são muitas, mas antes que se formulem teorias mirabolantes<br />
colocando questões sociológicas à frente das musicais, faço outra pergunta: onde<br />
estão as partituras e partes orquestrais, reduções de piano e libretos dessas óperas para<br />
os intérpretes? Tomo como exemplo a produção do compositor Henrique Oswald, contemporâneo<br />
de Miguez. Das três óperas por ele produzidas, La Croce d’oro, Le Fate e Il<br />
Néo, as duas primeiras continuam inéditas, em manuscritos guardados no Arquivo Nacional.<br />
Levando em consideração a qualidade do compositor, reconhecida através de sua<br />
produção para piano solo e música de câmara, frequentemente executada, não se pode<br />
supor de antemão que sejam obras que mereçam adormecer por tanto tempo nas gavetas.<br />
Aí entra a responsabilidade não só das instituições que promovem as temporadas de<br />
ópera, mas também dos musicólogos. Nesse sentido se destacam os trabalhos de vários<br />
colegas aqui apresentados. Pudemos constatar nesses cinco dias o avanço na pesquisa do<br />
repertório operístico brasileiro, as diversas iniciativas de edições de partituras e conhecer<br />
de perto a produção de alguns compositores brasileiros contemporâneos. Ao mesmo<br />
tempo a presença de ilustres colegas de outros países como Portugal, Itália, Argentina, Inglaterra<br />
e Estados Unidos nos deu a oportunidade de mais uma vez reconhecer que o<br />
intercâmbio de informações é fundamental, especialmente para o entendimento de um<br />
gênero que atravessa fronteiras. Essa constatação torna ainda mais relevante a escolha<br />
do tema do simpósio, pois saímos com a certeza, pelo interesse que despertou, que a<br />
ópera continua atual.<br />
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Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
295<br />
O esvaziamento das tradições operísticas<br />
do século XIX e a influência da mídia nos<br />
novos padrões estéticos<br />
Heliana Farah e Murilo Neves<br />
Universidade Federal do Rio de Janeiro<br />
Diz Theodor Adorno (2002, p. 285) 1 que quando o crítico musical Paul Bekker<br />
estava se aventurando como diretor de casa de ópera, ele pode ter sido o primeiro a falar<br />
de ópera como um museu. “Com efeito, a experiência musical ao vivo hoje em dia, tanto<br />
em casas de ópera como em salas de concerto, é muito próxima de uma ida ao museu.<br />
Em um artigo, Alex Ross (2005) nos lembra que, até o século XIX, aplausos entre os movimentos<br />
de uma sinfonia ou concerto eram não só aceitos como esperados. Ross transcreve<br />
o trecho de um artigo pré-Primeira Guerra da Enciclopédia Britânica, que Howard<br />
Shanet cita na história da New York Philarmonic. Transcrevemos aqui:<br />
O espírito reverencial que aboliu o aplauso na igreja tendeu a espalhar-se para o<br />
teatro e a sala de concerto, sob larga influência da atmosfera quase religiosa das<br />
apresentações de Wagner em Bayreuth.<br />
Alienado de seu poder de manifestação, o público fica limitado a uma experiência<br />
unilateral, cabendo a ele o silêncio respeitoso e o aplauso educado depois da execução.<br />
Na ópera – objeto principal de nosso estudo – o caráter mutilador desta prática é ainda<br />
mais evidente, visto que a história nos mostra um público absolutamente ativo, questionador<br />
e determinante com suas opiniões. O público de ópera sempre foi capaz de decidir<br />
o rumo de uma performance, fosse exigindo quantos bis desejasse de uma determinada<br />
ária através de aplausos intermináveis, fosse impedindo uma récita de continuar<br />
através de vaias insistentes. Podemos aqui lembrar casos como os da estreia de Il Barbiere<br />
di Siviglia de Rossini, Madama Butterfly de Puccini, ou La Traviata de Verdi. Sobre a estreia<br />
de Il Barbiere di Siviglia, como observa Kobbé:<br />
Ao cair a cortina no primeiro ato, Rossini virou-se para o público, deu ligeiramente<br />
de ombros e aplaudiu. O público, apesar de extremamente ofendido com semelhante<br />
demonstração de desprezo por sua opinião, reservou a vingança para<br />
o segundo ato, do qual não foi possível ouvir uma única nota. Kobbé (1991, p.<br />
243)<br />
A manifestação do público, atualmente, foi limitada por parâmetros questionáveis<br />
de educação e comportamento social, e os neófitos hoje em dia são constrangidos a<br />
esperar até que um “iniciado” se manifeste, a fim de evitar uma possível gafe. O respeito<br />
ao artista tornou-se, de alguma forma, maior que o respeito ao público, mesmo que, à<br />
parte qualquer filosofia egocêntrica vinda do artista, este público seja o consumidor final<br />
do produto arte e, portanto, aquele a quem deveria caber o poder máximo de avaliação.<br />
...........................................................................<br />
1 “At the time when music critic Paul Bekker was trying his hand as opera house director, he may have been the<br />
first to have spoken of opera as a museum” (Adorno, 2002, p. 285).<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
296<br />
Longe de querer fazer aqui qualquer juízo de valores sobre códigos de postura e educação,<br />
nossa intenção é ver como um comportamento que foi imposto à revelia do público aos<br />
poucos mudou a própria experiência de ir ao teatro de ópera.<br />
Se tomarmos a carreira da soprano turca Leyla Gencer (1928-2008) como exemplo,<br />
podemos ter uma ideia de como o poder da mídia, alavancado pela grande era das<br />
gravações, tem o poder de alterar e manipular parâmetros. Como outras divas de sua<br />
época, Maria Callas e Joan Sutherland, que tinham por alcunha La Divina e La Stupenda,<br />
respectivamente, Gencer era conhecida como La Turca, La Regina ou, a alcunha que mais<br />
nos interessa aqui, La Regina Pirata. Seu obituário no The New York Times (13-mai., 2008) 2<br />
diz:<br />
Eclipsada por contemporâneas mais conhecidas como [Maria] Callas e Renata<br />
Tebaldi, Ms. Gencer não tinha contrato com uma grande gravadora. Mas sua<br />
voz viajou o mundo muitas vezes em gravações piratas, dando a ela o apelido de<br />
Rainha Pirata.<br />
A revista especializada Ópera International a cita como La Fiancée des Pirates,<br />
ou a noiva dos Piratas, devido ao fato de que as gravadoras sempre a ignoraram. Seu único<br />
registro em estúdio é um recital de árias pela Cetra 3 . Embora ela possua uma grande<br />
legião de fãs, toda sua extensa e variada carreira está documentada apenas em registros<br />
amadores de suas performances ao vivo. Em entrevista a Stefan Zucker no filme Opera<br />
Fanatic, ela diz que nunca agradou aos críticos americanos. Segundo ela, realmente chorava<br />
em cena: cantava e chorava, e vez por outra vinha uma nota pouco ortodoxa. Os críticos<br />
americanos, diz ela, gostam de música “água e sabão”. As reações do público em suas gravações<br />
piratas, no entanto, deixam bem clara a arrebatadora impressão que ela causava<br />
no teatro. Não é difícil imaginar o motivo de não ter muitos registros em estúdio, visto<br />
que as gravações, segundo os critérios do mercado, devem ser o mais perfeitas possível.<br />
O mesmo obituário do New York Times cita uma entrevista de Gencer à revista Opera<br />
News, em que diz que, mesmo sem ter ganho uma única lira com as gravações ao vivo nos<br />
teatros, elas trazem outras compensações:<br />
Todos os jovens me conhecem. Eles me escrevem longas cartas. Eles me dizem:<br />
“É como se estivéssemos no teatro. Nós a vemos. Nós a ouvimos através de<br />
seus discos como se estivéssemos lá.” É um grande milagre!<br />
À medida que grande parte da vida útil de um apreciador de ópera médio desde<br />
o advento dos fonogramas é vivenciada em casa, ouvindo gravações, torna-se inegável –<br />
tanto quanto perigoso – o poder da mídia sobre os padrões estéticos. Achamos fundamental<br />
relatar o caso de Leyla Gencer para deixar claro que, se por acaso não existissem<br />
essas gravações piratas, provavelmente para nossa geração e para as futuras seu nome<br />
seria apenas um mito, sem grandes documentações de sua arte. E, se uma cantora é tão<br />
endeusada pelos que a viam ao vivo, será realmente que as notas “pouco ortodoxas” seriam<br />
motivo suficiente para que não fosse considerada uma referência?<br />
...........................................................................<br />
2 “Pre-empted by better-known contemporaries like Callas and Renata Tebaldi, Ms. Gencer did not have a contract<br />
with a major commercial record label. But her voice traveled the globe many times over in bootleg recordings,<br />
earning her the nickname the Pirate Queen. […] If she “never made a lira” from these recordings, as Ms. Gencer<br />
told Opera News in 2003, they had other compensations. […] “All the young people know me,” she said at the<br />
time. “They write me long letters. They tell me: ‘It’s as if we were in the theater. We see you. We hear you<br />
through your discs as if we were there.’ This is a great miracle!” (Fox, 2008).<br />
3 “Omaggio a Leyla Gencer” Cetra LPO, 2001.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
297<br />
Norman Lebrecht (2008, p. 19) relata o momento que, segundo ele, suscitou “o<br />
nascimento da gravação como ato musical, separado e distinto da execução ao vivo”. O<br />
pianista Wilhelm Kempff gravava uma bagatela de Beethoven quando esbarrou em uma<br />
tecla:<br />
Tivesse Kempff esbarrado seu dedo enquanto se apresentava num palco, teria<br />
por certo continuado sem problemas, sabendo que poucos na platéia teriam<br />
percebido a falha ou sequer se lembrado dela depois. Numa gravação, contudo,<br />
qualquer imprecisão seria registrada para sempre, tornando-se mais grave e<br />
desagradável a cada nova audição. […] O artista ficava então sujeito a um julgamento<br />
sem tréguas, não podendo se permitir ilusórios desvios de atenção.<br />
(Lebrecht, 2008, p. 19)<br />
Em que os rígidos códigos de conduta impostos ao público moderno, o legado<br />
pirata da soprano turca e a pressão pela precisão nas gravações nos interessam? Podem,<br />
em última análise, revelar sintomas da dissociação entre o gosto do público e os interesses<br />
da mídia. Seriam os novos padrões ditados por um grupo – de musicólogos, maestros, críticos<br />
ou mesmo executivos de teatros ou gravadoras – talvez alheio à tradição da ópera?<br />
Estaria o público obedientemente consumindo e aplaudindo um produto pasteurizado e<br />
retirado de seu contexto? Sem querer invalidar o poder dado aos que ditam as novas regras,<br />
preferimos indagar o porquê de hoje, com todas as facilidades tecnológicas ao nosso<br />
alcance, esses padrões dificilmente são questionados.<br />
Podemos encontrar algumas pistas nos tratados de canto mais recentes. Baseamo-nos<br />
aqui em um comentário de Richard Miller 4 , principal autor da chamada escola<br />
americana de canto, em um de seus livros. O autor admite que para os ouvidos europeus<br />
os padrões americanos dão mais atenção ao timbre do que a qualquer outra coisa. A<br />
igualdade vocal do típico americano incomoda aos europeus por ser considerada por eles<br />
falta de sutileza interpretativa, negligência de colorido vocal e ausência de risco na apresentação.<br />
Miller se justifica argumentando que, na pior das hipóteses, tudo fica realmente<br />
muito chato e parecido. Mas, se for bem executado, confere ao cantor a liberdade de<br />
abordar qualquer repertório. Seria a necessidade moderna de abordar com segurança<br />
toda a gama de repertório disponível uma das responsáveis pela “pasteurização” do canto?<br />
Se existe o movimento de música antiga, que tem a intenção de estudar e tentar<br />
reproduzir a música renascentista, barroca e clássica, nada mais justo que haver pelo menos<br />
uma conscientização similar no tocante à música dos grandes compositores do século<br />
XIX. Sejamos realistas, é ilusão achar que a execução atual da música desse período esteja<br />
fiel à execução da época. Evidentemente existem questões como o gosto atual, e não pretendemos<br />
de maneira nenhuma defender que se deva executar desta ou daquela forma.<br />
Apenas achamos que, da mesma maneira que hoje se busca restaurar a autenticidade na<br />
performance do que se conhece como música antiga, podemos aproveitar o gancho histórico<br />
do movimento para voltar o mesmo olhar para a ópera do século XIX, e mesmo para<br />
a ópera do início do século XX. As gravações da primeira metade do século passado nos<br />
colocam em contato com cantores muito próximos das tradições românticas e não é difícil<br />
perceber diferenças muito grandes entre esses e os registros mais atuais do mesmo reper-<br />
...........................................................................<br />
4 “There is also the European complaint that the American singer gives more attention to the production of tone<br />
than to other equally important aspects of performance. Timbre congruity of the typical American singer disturbs<br />
some European ears. Tonal uniformity is thought to be lacking in interpretative subtlety, and neglectful of vocal<br />
coloration. A common comment is that there is no place for artistic risk-taking in the American approach to<br />
voice performance. The same type of criticism that some European critics bring against major American orchestras<br />
- too mechanically perfect - is leveled at the American singer. […] At it (the American ideal of elite vocalism) best<br />
allows a singer to perform a wide variety of literatures, and liberates him or her for a fuller realization of artistic<br />
and interpretative factors. At its worst, it can be unimaginative and boring” (Miller, 2004, p. 192-193).<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
298<br />
tório. Musicalmente, percebe-se uma liberdade maior dos cantores, seja no uso do tempo<br />
rubato, seja nas ornamentações ou cadências. Vocalmente, percebe-se além de uma dicção<br />
mais clara e vogais mais puras, um uso mais amplo dos diferentes registros vocais, particularmente<br />
nas vozes femininas.<br />
Vemos aparecer dentro das fileiras do movimento de música antiga o interesse<br />
pelas execuções historicamente informadas do período romântico. Mas talvez incorram<br />
em dois equívocos. Elas trazem consigo um sotaque, sedutor, mas alheio ao período.<br />
Além disso, esquecem de recorrer à evidência arrebatadora dos documentos fonográficos.<br />
Talvez em escala mundial, mas certamente em escala local, a quase total alienação aos<br />
padrões estéticos vocais do século retrasado pode ser atribuída a dois motivos: ignorância<br />
ou arrogância.<br />
Se é ignorância, resultante da falta de leitura e audição das gravações mais antigas<br />
podemos facilmente sanar. Ao contrário da Renascença, do Barroco e do Classicismo, no<br />
Romantismo e no Verismo, quando não há gravação original de seus intérpretes, as gravações<br />
são de apenas uma geração posterior. E não seria isso prova muito mais contundente<br />
do que a análise documental da música antiga? E não faltam documentos escritos do século<br />
XIX, talvez apenas não tenham recebido a devida atenção. Não se pode ignorar –<br />
muito menos desprezar – a possibilidade de ter contato com a voz de Francesco Tamagno,<br />
o criador do Otello de Verdi, ou de reconhecer o legato verdiano na voz de Adelina Patti,<br />
considerada sua cantora preferida. Podemos ainda ouvir as gravações de Victor Maurel,<br />
criador de Iago em Otello e dos papéis-títulos na versão definitiva de Simon Boccanegra e<br />
em Falstaff. E para continuar em Falstaff, podemos ouvir gravações de Adelina Stehle, a<br />
primeira Nanetta, Edoardo Garbin, o primeiro Fenton, Antonio Pini-Corsi, o primeiro Ford<br />
e Virginia Guerrini, a primeira Meg. Podemos ouvir as vozes de Rosina Storchio, criadora<br />
de Cio-Cio-San na primeira versão de Madama Butterfly e de Salomea Krusceniski, criadora<br />
do papel na primeira revisão. Temos acesso a registros da voz de Giovanni Zenatello, o<br />
criador de Pinkerton e de Giuseppe de Luca, o criador de Sharpless na mesma ópera. Podemos<br />
ouvir Emmy Destinn, Enrico Caruso e Pasquale Amato, criadores dos papéis de<br />
Minnie, Dick Johnson e Jack Rance em La Fanciulla Del West, Cesira Ferrani, a primeira<br />
Manon Lescaut e primeira Mimì em La Bohème, além de Hariclea Darclée, Emilio de<br />
Marchi e Eugenio Giraldoni, que estrearam Tosca como o papel-título, Cavaradossi e<br />
Scarpia, respectivamente. Podemos ouvir também Gealdine Farrar, a primeira Suor<br />
Angelica, Claudia Muzio e Giulio Crimi, criadores de Giorgetta e Luigi em Il Tabarro. Crimi<br />
estreou também o Rinuccio em Gianni Schicchi ao lado de Florence Easton como Lauretta<br />
e Giuseppe de Luca como Schicchi; os dois últimos também tiveram registros sonoros.<br />
Existem diversas gravações de Tito Schipa e Gilda dalla Rizza, que estrearam La Rondine<br />
nos papéis de Ruggero e Magda. Também registraram suas vozes Rosa Raisa, a primeira<br />
Turandot, Miguel Fleta, o primeiro Calaf, e Maria Zamboni, a primeira Liù. Podemos ouvir<br />
gravações de Giuseppe Borgatti e Mario Sammarco, criadores de Andrea Chénier e Gerard<br />
na ópera de Giordano. O que poderia nos falar mais claramente do estilo verista do que a<br />
gra-vação da ária de Santuzza em Cavalleria Rusticana de Mascagni com Gemma Bellincioni,<br />
criadora do papel, ou Lina Bruna Rasa regida pelo próprio compositor? Grandes demonstrativos<br />
da tradição verista podem ser observados também em gravações de todos<br />
aqueles que compuseram o primeiro elenco de I Pagliacci: Adelina Stehle, já citada como<br />
a primeira Nanetta, e que foi também a primeira Nedda, Victor Maurel (também já citado),<br />
primeiro Tonio, Fiorello Giraud, o primeiro Canio e Mario Ancona, o primeiro Silvio. Podemos<br />
ouvir Hermann Winkelmann, o primeiro Parsifal e único dos criadores de Wagner<br />
a gravar. Podemos ouvir Medea Mei-Finger, criadora do papel de Lisa em A Dama de Espadas<br />
e do papel título em Iolanta de Tchaikowsky. Dos criadores das óperas de Strauss,<br />
há gravações de Margarethe Siems, a criadora de dois papéis bastante diversos – a Ma-<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
299<br />
rechala em Der Rosenkavalier e Zerbinetta em Ariadne auf Naxos, além de Chrysothemis<br />
na Elektra. Criadores também de papéis straussianos que podemos ouvir em registros sonoros<br />
são Ernestine Schumann-Heink, criadora da Klytaemnestra na Elektra, além de Minnie<br />
Nast, Eva Von der Ostens e Karl Scheidemantel, que estrearam, respectivamente, os<br />
papéis de Sophie, Octavian, e Faninal, em Der Rosenkavalier. Temos acesso a gravações de<br />
Ernest van Dick, o primeiro Werther na estréia absoluta da ópera de Massenet (em alemão)<br />
e de Guillaume Ibot e Marie Delna, criadores de Werther e Charlotte na estréia francesa.<br />
Podemos ouvir também Jean-François Delmas, criador de Athanaël em Thaïs, além de<br />
Mary Garden e Jeanne Gerville-Réache, que integraram o elenco de estréia de Pélleas et<br />
Mélisande, como Mélisande e Geneviève respectivamente.<br />
Para além da oportunidade inestimável de ouvir as vozes dos criadores de grande<br />
parte dos papéis emblemáticos do final do século XIX (ainda que não necessariamente<br />
nas partes que criaram), podemos perceber nessas gravações o legado da antiga estética<br />
do canto. Mesmo sendo esses cantores já do final do século XIX (alguns nascidos ainda no<br />
início da segunda metade do século), não podemos negar as evidências da herança presente<br />
nesses registros. Se não possuímos, infelizmente, gravações de Pauline Viardot-<br />
Garcia ou Mathilde Marchesi, diretamente preparadas por Manuel Garcia II, por exemplo,<br />
podemos ao menos ouvir outros grandes cantores que foram por elas preparados.<br />
No campo da documentação escrita temos o relato dos jornais da época, biografias<br />
e autobiografias como a de Caruso e Tetrazzini. Temos críticas, tratados e depoimentos<br />
vindos de fontes diversas e tantos outros documentos escritos de importância.<br />
Podemos observar também os tratados de canto, e apontamos entre os mais importantes<br />
os de Manuel Garcia II, de Mathilde Marchesi e de Giovanni Battista Lamperti (sendo que<br />
também do último temos, além do tratado e de uma publicação de seus ensinamentos<br />
por um de seus pupilos, registros sonoros de alguns de seus alunos). Muito conhecido hoje<br />
em dia é o tratado de Lili Lehmann, cantora muito apreciada por Richard Wagner e que<br />
esteve na primeira produção do ciclo completo Der Ring des Nibelungen em Bayreuth em<br />
1876 como Woglinde, Helmwige e o Pássaro da Floresta. Lehmann apareceu mais tarde<br />
como Brünnhilde no primeiro ciclo apresentado no Metropolitan Opera House de Nova<br />
Iorque em 1889 e repetiu o papel em Bayreuth, em 1896. É oportuno lembrar que esta<br />
cantora sofreu grande influência de Edward Wheeler Scripture e de Henry Holbrooke Curtis<br />
que foram, provavelmente, o ponto de partida da mudança na estética vocal já sentida<br />
no começo do século XX e realmente aprofundada a partir da metade do século. Apesar<br />
da popularidade do tratado da soprano alemã, pouco se divulga os seus registros sonoros.<br />
Existe a possibilidade, devido à maior proximidade que temos com o século XIX<br />
do que com os anteriores (e talvez um recalque ainda não resolvido de ser essa ainda a<br />
música de repertório na maioria das casas de ópera), de haver uma arrogância de achar<br />
que se faz atualmente a música do século XIX melhor do que se fazia na época. Não são<br />
infrequentes as opiniões a respeito da estética da época como cafona, de mau gosto. Por<br />
vezes é até verbalizada uma ideia de que na época não houvesse capacidade para fazer<br />
melhor. Dentro dos padrões do historicamente informado, esse comportamento não faz<br />
o menor sentido, pois se a ideia é o respeito ao estilo do período, não cabem juízos quanto<br />
ao gosto e aos padrões dos intérpretes de uma obra à época de sua criação. Assim sendo,<br />
ao mesmo tempo em que os padrões modernos tentam ser fiéis a uma música da qual só<br />
se tem relatos escritos, buscam “melhorar” outra devidamente documentada sob os padrões<br />
da época de sua criação. Como essa forma de fazer é considerada “melhor”, gravase<br />
assim e essa passa a ser a referência tanto do público como dos novos artistas.<br />
Robert Donington, bastião da música antiga, mesmo deixando claro seu pouco<br />
apreço pela tradição verista, nos mostra como os padrões estéticos vocais de hoje não<br />
são mais os mesmos.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
300<br />
No presente momento, os excessos do verismo estão (felizmente) fora de moda;<br />
e a dureza germânica foi (infelizmente) substituída por uma tendência, muito<br />
mais destrutiva do bom canto, de cobrir o som. O canto duro era ainda bom<br />
canto: era para frente, e por isso era claro; não era forçado, e por isso podia brilhar<br />
e projetar. 5 (Donington, 1973, p. 65)<br />
E similar depoimento nos dá Adorno ao dizer:<br />
Ainda posso me lembrar da minha infância, quando minha mãe se lamentava<br />
do fim da arte vocal italiana causada pelo estilo wagneriano de canto. Hoje esse<br />
mesmo estilo começa a morrer sendo muito difícil achar cantores hábeis. O conhecido<br />
e pouco criticado sistema de cantores convidados, no qual um punhado<br />
de famosos cantores wagnerianos são emprestados é uma aberração. 6 (Adorno,<br />
2002, p. 584)<br />
O mais perigoso é que essa mudança de padrões, como se pode observar, não<br />
se limita ao campo apenas da execução musical. Ela interfere em questões essenciais como<br />
a própria emissão do som. A execução pura e simples do instrumento voz é afetada,<br />
influenciando, evidentemente, em um fator imprescindível no espaço crucial da ópera: a<br />
acústica na sala de espetáculos ao vivo.<br />
Sabemos que grande parte das obras compostas está gravada, senão em vídeo<br />
pelo menos em áudio. As óperas de repertório contam normalmente com dezenas de<br />
gravações de estúdio diferentes. Se o som da voz humana, como diz Davini (2007, p.101) 7 ,<br />
está se adequando às limitações impostas pela tecnologia que reduzem acusticamente a<br />
riqueza tímbrica dos sons, qual seria, acusticamente falando, o diferencial de assistir ao<br />
vivo a um cantor cujo timbre se reduz àquele da gravação? Vejamos a afirmação do autor:<br />
Una vez que las audiencias se habitúan a los resultados de la grabación digital, la<br />
performance en vivo tiende a decepcionar en términos de perfectibilidad. Como<br />
resultado, cantantes, músicos y directores han sido frecuentemente forzados a<br />
maratones técnicas para poder aproximar sus registros, timbres e intensidades<br />
a los modelos digitales de resolución. (Davini, 2007, p. 101)<br />
A perda é maior se avaliarmos que em casa o som que sai de nosso equipamento<br />
pode ser adequado a produzir a intensidade que desejamos. A técnica vocal do canto lírico<br />
foi desenvolvida exatamente para produzir esse tipo de emoção proveniente da qualidade<br />
de som que resulta de todos os harmônicos que enriquecem a voz. Com o astronômico<br />
custo da produção de óperas de boa qualidade e a disponibilidade das gravações,<br />
quanto tempo durará para que a grande maioria dos teatros deixe de produzi-las se os<br />
cantores não mais possuírem esse diferencial?<br />
...........................................................................<br />
5 “At the present time, the verismo excesses are (fortunately) out of fashion; and the germanic hardness has<br />
(unfortunately) been replaced by a tendency, far more destructive of good singing, to cover the sound. The hard<br />
singing was still good singing: it was forward, and therefore it was bright; it was unforced, and therefore it could<br />
ring and carry” (Donnington, 1973, p. 65, tradução nossa).<br />
6 “[…] I can still remember quite well from my childhood how my mother lamented the demise of Italian vocal art<br />
that was caused by the wagnerian style of singing. Today that stile is itself begining to die out; its excedingly<br />
difficult to locate any singers who are up to it. The well-known and hypocritically criticized system of guests<br />
singers, by which a handful of the most famous Wagner singers are lent around, so to speak, from one new<br />
production to the next, is just an aberration” (Adorno, 2002, p. 584, tradução nossa).<br />
7 “Una vez que las audiencias se habitúan a los resultados de la grabación digital, la performance en vivo tiende<br />
a decepcionar en términos de perfectibilidad. Como resultado, cantantes, músicos y directores han sido<br />
frecuentemente forzados a maratones técnicas para poder aproximar sus registros, timbres e intensidades a los<br />
modelos digitales de resolución” (Davini, 2007, p. 101).<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
301<br />
Na esperança de informar os que desconhecem a estética romântica e verista é<br />
que propomos uma visão histórica da estética vocal do século XIX. Porque se nós, hoje,<br />
achamos os românticos extremamente arrogantes de se apoderar da música anterior a<br />
eles e executá-la como lhes convinha, na realidade estamos fazendo muito pior. Antes do<br />
período deles não havia música antiga. Ouvia-se quase que exclusivamente a música composta<br />
em sua época: não era uma atitude aceitável recorrer à música de gerações anteriores<br />
senão para estudo. Vimos inclusive o Messiah de Handel ganhando de uma nova “leitura”<br />
de Mozart para ser apreciado por um público posterior. Então podemos entender que,<br />
até que nascesse a consciência de buscar uma fidelidade histórica, levasse certo tempo.<br />
Nós hoje temos a consciência histórica, e aliada a ela a veemência da documentação em<br />
registros sonoros. Vamos atribuir a omissão à estética da época a quê?<br />
Referências bibliográficas<br />
Adorno, Theodor. “Opera and the Long-Playing Record”. [1969] In: Essays on music.<br />
Londres: University of California Press, 2002.<br />
Adorno, Theodor. “Wagner’s Relevance for today”. [1963] In: Essays on music. Londres:<br />
University of California Press, 2002.<br />
Davini, Silvia Adriana. Cartografías de la voz en el teatro contemporáneo. Bernal:<br />
Universidad Nacional de Quilmes Editorial, 2007.<br />
Donington, Robert. A performer’s guide to barroque music. Londres: Faber and Faber,<br />
1973.<br />
Fox, Margalit. “Leyla Gencer, Turkish-Born Soprano and a Popular Star of La Scala, Dies”<br />
The New York Times, 13-mai., 2008. Disponível em: http://www.nytimes.com/ 2008/05/<br />
13/arts/music/13gencer.html, acessado em 21-jan., 2010.<br />
Kobbé, Gustave. O livro Completo da Ópera. Trad. Clóvis. Marques. Org. Conde de<br />
Harewood. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1991.<br />
Lebrecht, Norman. Maestros, obras-primas e loucura. Trad. Rafael Sando. Rio de<br />
Janeiro: Record, 2008.<br />
Miller, Richard. Solutions for Singers. Nova York: Oxford University Press, 2004.<br />
Ross, Alex. “Applause, the rest is noise”. Disponível em: http://www.therestisnoise.com/<br />
2005/02/applause_a_rest.html. Acessado em 20-jan., 2010.<br />
Zucker, Stephen. Opera Fanatic. Documentário. Dir. Jan Schmidt-Garre. Prod. Pars<br />
media. DVD, 93 min., NTSC 4:3 Letterbox. Berlim: Arthaus Musik, 2000.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
TRAJETÓRIAS
303<br />
Óperas em português: ideologias e<br />
contradições em cena<br />
Vanda Bellard Freire<br />
Universidade Federal do Rio de Janeiro<br />
Óperas em português e o sentimento nacional<br />
O interesse pela temática da ópera, sobretudo da ópera em português, tem estado<br />
em minhas pesquisas há algum tempo, envolvendo sobretudo o contato com documentos<br />
e partituras do século XIX. As seguintes observações sobre o tema resultam,<br />
em parte, de mais de dez anos de trabalho junto ao acervo de obras raras da Biblioteca Alberto<br />
Nepomuceno da <strong>UFRJ</strong>, do qual fazem parte cerca de 14 mil manuscritos musicais, a<br />
maioria proveniente do século XIX.<br />
Essa tarefa desenvolveu-se em articulação com diferentes projetos de pesquisa,<br />
sob minha responsabilidade: Ópera Brasileira em Língua Portuguesa, O Real Theatro de<br />
São João e o Imperial Theatro de São Pedro de Alcântara, Ópera e Música de Salão no Rio<br />
de Janeiro Oitocentista, Óperas e Mágicas em teatros e salões do Rio de Janeiro e de Lisboa<br />
(1870-1930), Teatro Musical no Rio de Janeiro e em Lisboa (1870-1930) – um estudo<br />
social e Registro Patrimonial de Manuscritos do Arquivo de Obras Raras da Biblioteca da<br />
Escola de Música da <strong>UFRJ</strong>. O tema da ópera em português perpassa todos esses projetos.<br />
A tarefa que desenvolvi nesse Arquivo, desde 1989, articulando-se com essas<br />
pesquisas sob minha responsabilidade, ofereceu à biblioteca subsídios à organização e<br />
catalogação do acervo, bem como contribuiu, através da digitalização de manuscritos<br />
(mais de 20 mil páginas digitalizadas). A íntima interação com esse material, através de<br />
procedimentos de pesquisa, permitiu a construção de conhecimentos de interesse para a<br />
musicologia no Brasil e em Portugal.<br />
Decorreram desse trabalho alguns levantamentos e catálogos, parcialmente publicados,<br />
que expandem as informações levantadas originalmente junto aos manuscritos,<br />
com informações primárias de diferentes documentos (periódicos, libretos, cartazes e<br />
programas de teatro, entre outros). Os principais levantamentos ou catálogos gerados<br />
nesse processo foram: “Ópera Brasileira em Língua Portuguesa”, “Teatros do Rio de Janeiro<br />
do Século XIX” (originalmente atribuída ao Teatro São João e ao Theatro São Pedro de Alcântara),<br />
“Coleção Guilherme de Mello”, “Levantamento Geral de Manuscritos da Biblioteca<br />
Alberto Nepomuceno”, “Mágicas no Brasil e Portugal”.<br />
Entre as coleções ou conjuntos de manuscritos que sofreram organização minuciosa,<br />
através das pesquisas citadas acima, destacamos a coleção de obras do Padre José<br />
Maurício Nunes da Silva, com insubstituível respaldo do Catálogo de obras do Padre<br />
elaborado pela professora Cleofe Person de Mattos, e a Coleção Guilherme de Mello,<br />
constituída de música de salão do século XIX, contendo exemplares atribuídos ao século<br />
XVIII.<br />
Há particular interesse para as observações aqui apresentadas o conjunto intitulado<br />
Ópera Brasileira em Língua Portuguesa e a coleção de obras atribuídas, originariamente,<br />
aos Teatros São João e São Pedro de Alcântara e que hoje, após a pesquisa desenvolvida<br />
sobre essa coleção, foi considerada como oriunda de vários “Teatros do Rio de<br />
Janeiro do Século XIX”, pois, segundo a investigação sobre esse conjunto de obras, esta é<br />
a origem mais provável.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
304<br />
Paralelamente a esse extenso trabalho e às pesquisas a ele correlatas, as pesquisas<br />
que tenho coordenado têm empreendido um extenso levantamento em periódicos,<br />
principalmente oitocentistas, que tem contribuído significativamente para a elucidação<br />
de inúmeros aspectos pertinentes ao acervo em questão e para a musicologia brasileira.<br />
Já foram consultados e fichados, pela equipe de pesquisa sob minha coordenação,<br />
mais de 5.000 exemplares de periódicos do século XIX, dos quais resultam extensos bancos<br />
de dados que sistematizam as informações recolhidas. Esses dados fazem contraponto às<br />
informações obtidas nos manuscritos musicais, libretos e outros documentos, permitindo<br />
uma visualização mais profunda da trama social da época.<br />
Dessas frentes de trabalho decorrem, assim, as observações sobre óperas em<br />
português abordadas nesta exposição. A ênfase é dada ao Rio de Janeiro, nos séculos XIX,<br />
XX e XXI, restringindo-se ao círculo social de maior poder econômico, âmbito da ópera<br />
nessa cidade.<br />
Óperas em português<br />
A produção de óperas em português é mais extensa do que comumente se imagina<br />
e, embora seja habitualmente relacionada à proposta da Imperial Academia de Música<br />
e Ópera Nacional (meados do século XIX), na verdade antecede, em muito, a essa proposta<br />
e se desdobra até a atualidade.<br />
O levantamento “Ópera Brasileira em Língua Portuguesa”, já citado, relaciona<br />
332 títulos de óperas em português, produzidas do século XVIII à atualidade. Esse<br />
levantamento obviamente não é completo. A distribuição desses títulos através do tempo,<br />
em corte longitudinal, revela o seguinte traçado:<br />
- Século XVIII 6%<br />
- Século XIX (primeira metade) 5%<br />
- Século XIX (segunda metade) 25 %<br />
- Século XX (primeira metade) 36 %<br />
- Século XX (primeira metade) 18 %<br />
- Século XXI (primeiros anos) 10 %<br />
Observa-se, pelo perfil acima, que a produção mais intensa de óperas em português<br />
ocorre na primeira metade do século XX, sendo que, no século XXI, apesar de apenas<br />
uma década haver transcorrido, essa produção já se mostra significativa. Por outro lado,<br />
a produção do século XVIII aparece muito pequena, mas o fato de as pesquisas que coordeno<br />
não focalizarem o referido século certamente responde pela minimização desse<br />
percentual. É interessante observar que um brevíssimo levantamento de óperas em português,<br />
em Portugal, feito ao longo da pesquisa, apontou 39 títulos, o que revela, nesse esboço<br />
de levantamento, um caminho interessante a ser aprofundado por pesquisas futuras.<br />
Segundo Kiefer (1976) e diversos outros autores mais recentes, as primeiras óperas<br />
em português remontam ao século XVIII. Destacam-se, nesse período, as óperas do<br />
Judeu. Posteriormente, o Theatro São João foi inaugurado em 1813, no Rio de Janeiro,<br />
com uma ópera em português, e outras, também em vernáculo, foram encenadas na primeira<br />
metade do século XIX.<br />
A formalização, em meados do século passado, de um movimento visando à<br />
institucionalização da produção de óperas em português (a Imperial Academia de Música<br />
e Ópera Nacional), foi, sem dúvida, importante, e propiciou a canalização de recursos<br />
provenientes de extrações de loterias, com a finalidade de subvencionar o empreendimento.<br />
Não é, contudo, o marco inicial da produção de óperas em Português (informação<br />
esta que não é nova, mas que ainda é fruto de desconhecimento frequente).<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
305<br />
É importante observar que, com população predominantemente constituída de<br />
escravos e de analfabetos, e só tendo conhecido, ao longo do século XIX, condições razoáveis<br />
de higiene e de saneamento, a ópera e o luxo dos teatros do Rio de Janeiro floresceram<br />
no ambiente carioca oitocentista, associando a ópera às elites e á nobreza. É um espetáculo<br />
ligado à nobreza e à alta burguesia que se esboça nesse período. É “o passatempo de gente<br />
escolhida” (periódico A Actualidade, de 12 de fevereiro de 1859). Está ligada ao poder:<br />
simboliza, sublinha e valida esse poder. As citações a seguir ilustram essa observação:<br />
o Rio de Janeiro atravessa boa parte do século XIX sem iluminação nas ruas e<br />
sem sistema de esgotos, sendo os dejetos domésticos depositados em praça<br />
pública, mas, desde 1813, pouco depois da chegada da corte portuguesa, já se<br />
inaugurava o primeiro grande teatro de ópera – o Real Theatro de São João,<br />
com o costumeiro luxo na arquitetura e na decoração: veludos, dourados, sanefas<br />
etc. (Freire, 1995, p. 106-107)<br />
A criação da Imperial Academia de Música e Ópera Nacional não foi um movimento<br />
isolado ou desconectado da trama social da época. Todo o século XIX, segundo autores<br />
como Ianni (1994), foi atravessado por manifestações de caráter modernista e nacionalista,<br />
que se relacionam também à produção operística.<br />
A questão nacional é um tema constante no pensamento brasileiro. Diz respeito<br />
a como se cria e recria a nação, em cada época, conjuntura ou ocasião. [...] pode-se<br />
refletir sobre o Império e a República como formas históricas diferentes<br />
da nação. (Ianni, 1994, p. 8-9, grifo nosso).<br />
Essas manifestações ideológicas aparecem em documentos diversos, mesmo<br />
antes da independência do Brasil, e estão presentes nos jornais, desde o início do século<br />
XIX, persistindo ao longo de todo o período. Ou seja, o discurso modernista e nacionalista<br />
sublinha todas (ou quase todas) as grandes causas do século XIX e XX, seja a Guerra do<br />
Paraguai, seja a abolição da escravatura, seja o movimento republicano, entre outros.<br />
Foi sob o patrocínio da Imperial Academia de Música e Ópera Nacional que se<br />
iniciou a carreira profissional ou, pelo menos, teve início uma carreira com maior visibilidade,<br />
de vários compositores. Damos como exemplos os compositores Carlos Gomes (A<br />
Noite do Castelo, 1861 e Joanna de Flandres, 1863) e Elias Álvares Lobo (A Louca, 1861).<br />
Carlos Gomes estreou com uma ópera em português, em 4 de setembro de 1861, “A Noite<br />
do Castelo”, no Theatro Lyrico Fluminense, que lhe valeu a condecoração da ordem da<br />
Rosa, concedida pelo Imperador. Joanna de Flandres, encenada no mesmo teatro, também<br />
sob o manto da Ópera Nacional, tinha igualmente seu texto em português, e seu sucesso<br />
valeu a Carlos Gomes a nomeação para mestre da Capela Imperial (Carvalho, 1935).<br />
A ópera, gênero musical a que Carlos Gomes mais se dedicou, foi, sem dúvida, o<br />
preferido das classes sociais dominantes do Rio de Janeiro oitocentista, “o passatempo<br />
de gente escolhida”, como assinala o periódico A Actualidade, do Rio de Janeiro, já citado.<br />
A defesa da ópera nacional, com texto em português, não era, contudo, unânime, envolvendo<br />
controvérsias sobre a pertinência do canto em português e sobre o destino de verbas<br />
para a ópera brasileira ou para companhias italianas.<br />
[…] não faltou quem na organização e na existencia da Opera Nacional motejasse<br />
e tentasse vilipendiar tanto a ideia como sua realização […]. tão digna do apoio<br />
e da proteção de todos os Brazileiros amigos de sua patria, visto que ella vinha<br />
[…] estabelecer o cunho de sua arte, imprimindo-lhe ou fazendo de envolver o<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
306<br />
genero, o typo caracteristico da musica nacional [...] o que dá a nacionalidade é<br />
a linguagem de que se usa, em que está escripto o libreto e a partitura, e não o<br />
facto accidentalissimo do artista que canta essa partitura […]. (Jornal do<br />
Commercio, 1861)<br />
A defesa da ópera nacional, com texto em português, não era, portanto unânime.<br />
A controvérsia em torno da ópera chegava à Câmara, envolvendo o debate sobre verbas<br />
de apoio à ópera brasileira ou às companhias italianas. O interesse pelo canto em português<br />
aparece, contudo, desde o início do século XIX, em diversos momentos, como ilustram os<br />
exemplos a seguir.<br />
Em 1852, Raphael Coelho Machado publicou um Breve Tratado de Harmonia<br />
(Magaldi, 1995), provavelmente escrito anos antes, que dedicava um capítulo ao canto<br />
em português, evidenciando a preocupação com uso do nosso idioma cantado, antes da<br />
criação da Imperial Academia.<br />
Em 1857, A Revista Literária e Recreativa, além de discutir a necessidade de edificar<br />
um teatro apropriado para a Ópera Nacional, afirmava que já se provou que “a língua<br />
que falam os brasileiros e portugueses pode prestar-se, e presta-se realmente e de facto,<br />
a todas as variedades da musica lyrica theatral”.<br />
Complementando essa exemplificação, transcrevemos abaixo um comentário<br />
contido no periódico A Actualidade, de 24-nov., 1860, que, saudando a Ópera Nacional,<br />
observa: “irrogam uma injúria atroz à lingua portuguesa aquelles que dizem que ella não<br />
se presta bem ao canto. Depois da Italiana, nenhuma conhecemos que lhe leve a palma<br />
da clareza e suavidade dos sons, na facilidade e melodia da prosa”.<br />
O debate sobre o canto em português e sobre as verbas para a ópera prolifera<br />
nos periódicos. Em 1º de agosto de 1859, o jornal A Actualidade, discutiu a proposta do<br />
“Sr. Deputado Pacheco” para elevação, ao dobro, do número de loterias destinadas a subvencionar<br />
a empresa lírica, e lembra que “as loterias concedidas ao theatro lyrico e a<br />
opera nacional forão uma das mais valentes armas, de que se servio essa opposição [partidos<br />
políticos de oposição] para combater o gabinete de 4 de maio”.<br />
A ópera não era, portanto, somente o “passatempo” das elites, mas movimentava<br />
quantias vultosas, na forma de subvenções, e gerava debates políticos na câmara, no senado<br />
e nos jornais:<br />
Não nos digão que o ministerio não tem que ver com o theatro lyrico. Esse estabelecimento,<br />
que tem custado ao Estado boas centenas de contos de réis e a<br />
quem ainda dá elle cerca de 120:000 $ 000 por anno além do edifício, que representa<br />
um avultadíssimo capital, além das alfaias, do guarda-roupa, que não custarão<br />
ahi qualquer migalha. Este estabelecimento, para o qual se vai levantar<br />
um monumento, que custará seus 2 000:000 $ 000, não pode ser considerado<br />
senão como a mais mimosa e a mais bem dotada das repartições do serviço público.<br />
(A Actualidade, 1º-ago., 1859)<br />
Ao longo do ano de 1859, o mesmo periódico prosseguiu, em diversos números,<br />
discutindo as subvenções ao teatro lírico, o apoio às companhias italianas (em detrimento<br />
das nacionais), questionando o canto em língua estrangeira e a concorrência desigual à<br />
ópera nacional.<br />
Em 7 de julho de 1860, ao discutir as subvenções e loterias que patrocinavam o<br />
teatro lírico, A Actualidade afirmava que esse apoio ocorria “porque entendia-se que o<br />
Brasil próspero não podia deixar de possuir um theatro de canto em italiano [e que] o<br />
theatro lyrico era uma necessidade da conciliação: convinha distrahir o público das<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
307<br />
questões políticas” (grifos nossos). Ou seja, o viés político/ideológico relativo à ópera<br />
transparece nessa afirmativa, mesmo quando o discurso advoga a necessidade de “distrair”<br />
o público das questões políticas.<br />
As divergências sobre o canto em português atravessaram, portanto, o século<br />
XIX e penetraram no século seguinte. Alberto Nepomuceno, na transição entre esses dois<br />
séculos, destaca-se como um dos nomes que batalharam pelo canto em português, embora<br />
também tenha produzido obras em outros idiomas. Segundo Romero (2007), Joaquim<br />
Rodrigues Barbosa, ao anunciar o programa de concerto de apresentação de Nepomuceno,<br />
após seus estudos na Alemanha, dava destaque aos versos em língua portuguesa, afirmando<br />
que “apesar de sua longa residência na Europa, tem um amor imenso à sua pátria<br />
e às coisas de sua terra [...] acredita que a nossa língua é muito musical e tem todas as qualidades<br />
para adaptar-se ao canto” (Romero, 2007, p. 108). Essa convicção custou, a Nepomuceno,<br />
confrontos diversos, que evidenciam a controvérsia, ainda ao tempo de Nepomuceno,<br />
sobre o canto em português, controvérsia essa que a ópera já refletia há tempos.<br />
A ópera foi, sem dúvida, um evento de grande importância no ambiente carioca<br />
oitocentista, assim como os debates sobre o uso do idioma português no canto. O espaço<br />
ocupado nos jornais da época é um dos importantes testemunhos a esse respeito. Além<br />
disso, a importância da ópera pode ser rastreada nas melodias das modinhas e no repertório<br />
das igrejas, e no fato de ter gerado grande parte do repertório pianístico do século<br />
XIX, no Rio de Janeiro (reduções, fantasias, arranjos etc.). Esse repertório derivado da<br />
ópera ecoou nos salões cariocas em todo aquele período, ao som das vozes e dos pianos<br />
de músicos amadores e profissionais, apresentando-se lado a lado.<br />
Observamos, assim, que o emprego do português vernáculo aconteceu, efetivamente,<br />
como um gesto político, a partir de meados do século XIX (embora a produção<br />
de óperas em português seja muito anterior a esse momento). Cabe lembrar, mais uma<br />
vez, que o uso do texto de óperas em português não foi uma “criação” do movimento pela<br />
Ópera Nacional e que o nacionalismo faz parte do ideário da época, não só no Brasil,<br />
como tema intelectual, político e estético (Burke, 2010), como podemos observar na citação<br />
a seguir, extraída do Jornal do Commercio, de 7 de julho de 1861:<br />
O dia de hoje recorda o acontecimento mais notável dos fatos do Brazil, commemorando<br />
a fundação da nossa nacionalidade. […] A constituição jurada em 1825,<br />
no conceito de nação, encerra a resolução dos problemas sociaes, monumento<br />
de sabedoria política levantado pelo patriotismo de nossos pais […]. Os seus<br />
preceitos são os dogmas da religião política do Brazil, que o santo amor da pátria<br />
tem gravado com buril eterno no coração de seus filhos. Saudamos o anniversario<br />
do dia grandioso de que datão [datam] a independencia e a nacionalidade brazileira,<br />
e […] enviamos ao céo os nossos mais sinceros votos pela prosperidade da<br />
pátria. (grifos nossos)<br />
Revela-se, portanto, na leitura de documentos oitocentistas, inclusive de periódicos,<br />
a atualidade e a importância do nacionalismo, como tema relevante à época, expressando<br />
uma vertente ideológica do período, que, paralelamente a outras, também transparece,<br />
subjacente às óperas: liberalismo e nacionalismo, expressos no orgulho pela independência<br />
e pela afirmação da nacionalidade; positivismo e conservadorismo, expressos<br />
nos “dogmas da religião política” e no “santo amor à pátria”; nos “votos de prosperidade<br />
à pátria”, além da inspiração positivista, transparece, através do desejo de progresso, um<br />
ideal de modernidade...<br />
Em torno do ideário nacionalista/progressista/modernista se encontram as duas<br />
tendências políticas contraditórias, dominantes à época – o liberalismo e o conserva-<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
308<br />
dorismo. As diferenças ideológicas entre essas duas correntes se diluíam, aparentemente,<br />
no discurso pela liberdade, pela afirmação nacional e na expectativa quanto ao progresso<br />
da nação… E essa afirmação passava, também, pelo teatro de ópera. Foi nesse pano de<br />
fundo que emergiu, no Rio de Janeiro, o movimento pela institucionalização da ópera nacional.<br />
Óperas em português, música, ideologias<br />
Observamos que não somente no idioma se dava a consumação de “brasilidade”<br />
nas óperas, expressando o ideal nacionalista. Luiz Heitor Correia de Azevedo (1987) assinala<br />
indícios de “brasilidade” nas duas primeiras óperas de Carlos Gomes, escritas em português,<br />
convergindo, em sua opinião, com os comentários feitos, na época, pelo Jornal do<br />
Commercio, referindo-se à Joanna de Flandres:<br />
a melodia […] tem momentos de abandono em que deixa os céus mediterrâneos<br />
pela ardência dos trópicos e evoca […] qualquer coisa que está bem próxima de<br />
nós, bem no centro de nossa sensibilidade musical: qualquer coisa que, sem ritmos<br />
sincopados, sem sétimas abaixadas, parece-nos […] música do Brasil. (Azevedo,<br />
1987, p. 99-100)<br />
A despeito das evidências do uso de fórmulas comuns às óperas italianas, Luiz<br />
Heitor refere-se, ainda, a “certo jeito das modinhas do tempo”, apontando, assim, características<br />
do cancioneiro brasileiro permeadas às da ópera italiana, na produção de Carlos<br />
Gomes.<br />
Nacionalismo, no século XIX, se expressava nesse jogo entre modelos europeus<br />
(sobretudo italianos), “perfumes” melódicos e harmônicos brasileiros, “jeito” de modinhas,<br />
texto em português. Assim se afirmava a nacionalidade, em meados do século XIX, e Carlos<br />
Gomes, talvez mais veementemente que outros músicos de sua época, assim o fez.<br />
Squeff e Wisnik (2001, p. 22) divergem de Azevedo (1987) e não reconhecem<br />
brasilidade na música de Carlos Gomes, pois consideram que o compositor “valeu-se de<br />
aspectos literários para engrossar a filosofia nacionalista do Segundo Império”. Segundo<br />
eles, Carlos Gomes corresponde a “algum tipo de nacionalismo” pelo uso de temas literários<br />
ou personagens nacionais, embora faça música predominantemente europeia, configurando<br />
“não apenas a fórmula do sucesso, mas pior, da conciliação”. Seu apelo ao “exótico”,<br />
segundo o gosto e o modismo da época, seria a chave para conciliar as fórmulas<br />
musicais da ópera italiana com a temática nacional, gerando um “nacionalismo alienado”,<br />
que “renega a realidade, mesmo quando pode interferir nela” (Squeff e Wisnik, 2001, p.<br />
30).<br />
Carvalho (1935) relata o empenho de Carlos Gomes em conseguir, na Itália, instrumentos<br />
de percussão que lhe assegurassem a sonoridade necessária à ambientação da<br />
temática indígena, e contesta aqueles que acusaram o compositor de só escrever música<br />
italiana, assinalando que suas melodias têm um sabor que evoca nossas selvas, cheias da<br />
luz fulgurante e do ruído misterioso de nossa natureza. E conclui afirmando que a música<br />
de Carlos Gomes tem, como qualidade essencial, ser a música mais genuinamente brasileira<br />
que jamais se escrevera.<br />
Nogueira (2006) considera que a obra de Carlos Gomes revela um conflito (ideológico<br />
e musical) entre procedimentos estéticos desenvolvidos na ópera italiana à época<br />
da unificação da Itália e a “necessidade estética do compositor de avançar com outras<br />
tendências, de estar atento, enfim, ao mundo da criação musical do final do século XIX”<br />
(p.31). A análise de Nogueira valoriza o processo de síntese de diferentes características<br />
ou de hibridização na obra do compositor.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
309<br />
Consideramos que essas interpretações divergentes sobre a ópera de Carlos Gomes<br />
refletem diferentes concepções e diferentes momentos, sendo, de certa forma, aplicáveis<br />
às demais óperas do período, nas quais a música sublinha, por contraste ou por afinidade,<br />
significados subjacentes, muitas vezes contraditórios entre si, participando, assim,<br />
de sua elaboração, de sua disseminação e de sua permanência. Significados são entendidos<br />
neste trabalho como remissão a “outra coisa que” (Castoriadis, 1991 apud Freire, 1994),<br />
expressando valores vigentes à época.<br />
Entendemos que, assim, as óperas em português, sobretudo no século XIX e início<br />
do século XX, expõem, nos diversos espaços (palcos dos teatros, plateia, camarotes<br />
etc.), concepções ideológicas divergentes, associadas a hibridismos musicais diversos e a<br />
libretos que veiculam significados igualmente contraditórios. Esses hibridismos celebram<br />
sínteses entre aspectos diversos, amalgamando contradições e contrastes.<br />
Essas contradições e contrastes transparecem nos personagens, como no caso<br />
de índios que se comportam segundo valores europeus, nos enredos das óperas, como,<br />
por exemplo, em óperas ambientadas em acontecimentos históricos da Europa, bem como<br />
nas músicas, que hibridizam elementos de diferentes gêneros, estilos e procedências. A<br />
maioria do povo, contudo, não participa desse processo, já que não frequenta o teatro,<br />
pois, no Rio de Janeiro oitocentista os espetáculos de ópera são acessíveis apenas ao público<br />
restrito, de melhor poder econômico.<br />
As óperas de Carlos Gomes fornecem bons exemplos dessas contradições. Nas<br />
primeiras óperas em português, A Noite do Castelo e Joanna de Flandres, a temática é<br />
estrangeira (Cruzadas), com modelagem geral de inspiração italiana e com traços melódicos<br />
e harmônicos “dos trópicos”. Em Il Guarany, apesar da temática nacional, o texto original<br />
é em italiano (há versão posterior em português). Convivem traços musicais de brasilidade<br />
com modelos musicais da ópera italiana. A temática indígena, que seria o aval de O Guarani<br />
como nacionalista, é contraditória, pois opera a entrega do índio ao branco, em imolação<br />
voluntária (mito sacrificial), simbolizando a tensão dialética entre colonizador/colonizado,<br />
culminando com o sacrifício sublime e espontâneo do último (Bosi, 1992).<br />
Assim, as óperas oitocentistas em português (não só as de Carlos Gomes) processam<br />
um jogo dialético: ora a temática estrangeira domina, ainda que cantada em idioma<br />
nacional; ora a temática nacional, permeada de contradições, submete-se ao idioma<br />
estrangeiro. O mesmo ocorre nas construções musicais: tensão dialética entre fórmulas<br />
italianas e formas de expressão musical típicas do Brasil, como a modinha, prevalecendo,<br />
porém, o domínio do colonizador...<br />
A proposta de nacionalismo musical do movimento modernista, no início do<br />
século XX, repetiu no nível simbólico o mesmo jogo: o folclore nacional, absorvido pela<br />
linguagem musical “universal”, repete o rito sacrificial do colonizado, segundo avaliação<br />
de Bosi (1992).<br />
Observa-se, assim, nesse jogo contraditório de concepções, musicais e<br />
ideológicas, o encontro ou a hibridização de diferentes significados (Freire, 1994): significados<br />
residuais, provenientes dos modelos musicais europeus, aqui imitados; de significados<br />
atuais, presente nos “jeitos” de modinhas, e outros “jeitos” aqui delineados; e<br />
significados latentes, que só iriam se explicitar, aprofundar ou desenvolver posteriormente,<br />
como, por exemplo, no movimento nacionalista, desencadeado pela Semana de Arte Moderna,<br />
que, como se vê, não era absolutamente novo.<br />
O desejo de afirmação nacional aparece, portanto, subjacente a toda essa produção,<br />
articulando a valorização de elementos da cultura local com a imitação de elementos<br />
estrangeiros. Essa afirmação envolve expectativas de modernidade e de modernização,<br />
ideologias também importantes na sociedade brasileira oitocentista e que estão<br />
subjacentes à produção de óperas em português, estendendo-se ao século XX.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
310<br />
Esse processo de construção de identidade passa por duas etapas não necessariamente<br />
sucessivas: uma de imitação, em que a simples cópia do modelo europeu<br />
é uma forma de afirmação, uma forma de se dizer no mesmo nível que a<br />
metrópole; outra de síntese, de elaboração conjunta de elementos musicais,<br />
segundo articulações de sentido aqui engendradas e articulações de sentido<br />
originárias da Europa. (Freire, 1995, p. 107-108)<br />
Esse jogo dialético é descrito por Mattos (1986 apud Freire, 1995) como duas faces<br />
de uma mesma moeda – um jogo de imitação, ou de ênfase nas semelhanças com a<br />
metrópole, a partir do qual os homens livres do Império se reconhecessem e se fizessem<br />
reconhecer como membros do “mundo civilizado”, animado pelo ideal de progresso; e<br />
um jogo de diferenças, que consiste em distinguir o Império Brasileiro das nações mais<br />
civilizadas da Europa, pelo modo pacífico como se constituiu, pela peculiaridade de sua<br />
posição geográfica, pelo seu exotismo etc.<br />
Cunha (1987, p. 187), analisando a ópera O Escravo, da qual há versão em português,<br />
enfatiza esse jogo dialético, apontando o retorno ao “exotismo”, bem como o uso<br />
de “acentos rítmicos”, contornos melódicos peculiares, “instrumental selvagem”, configurando<br />
a presença de “estranhezas rítmicas e temas de sabor agreste e mesmo selvagem<br />
que nada têm a ver com a música da Europa e muito menos com a italiana.” O mesmo autor<br />
identifica, nessa ópera, traços de verismo, junto a traços “patrióticos”. Segundo o mesmo<br />
autor, a característica marcante de O Escravo é “a beleza e variedade das melodias,<br />
com acompanhamentos que, na maioria, fogem ao tradicionalismo lírico italiano pela<br />
originalidade da concepção” (p. 189).<br />
Divergindo de Cunha, que exalta características nacionais em Carlos Gomes, no<br />
jogo dialético acima mencionado, Squeff e Wisnik (2001), referindo-se a O Escravo, destacam<br />
que a crítica internacional apenas assinalou “cor local” no prelúdio do quarto ato, na<br />
Alvorada, com o gorjeio dos pássaros etc., ressaltando, contudo, a inclusão, no final do<br />
prelúdio, de uma alusão remota ao Hino Nacional brasileiro: “O compositor não acede<br />
que suas obras devam ser nacionais no sentido radical de ir ao folclore – mas que têm que<br />
ser tematicamente nacionalistas. Inclusive na alusão deliberada a temas incorporados ao inconsciente<br />
coletivo e que se mantêm conceitualmente vivos” (Squeff e Wisnik, 2001, p. 23).<br />
Os mesmos autores consideram que Carlos Gomes esquivou-se de comprometerse,<br />
efetivamente, com questões relativas à escravidão negra e ao colonialismo, optando<br />
por colocar índios, e não negros, como escravos, na ópera. O compositor teria evitado,<br />
segundo Squeff e Wisnik, posicionar-se como “acusador de uma sociedade que não cessar<br />
de explorar a mão de obra escrava – caso do Brasil; e como crítico das sociedades européias<br />
em geral, quase todas elas com inequívoca vocação colonialista, não disfarçadamente racistas”<br />
(Squeff e Wisnik, 2001, p. 26).<br />
À proclamação da República, em 1889, corresponderam mudanças ideológicas<br />
na sociedade e no Imperial Conservatório, que passou, com o novo regime, a denominarse<br />
Instituto Nacional de Música e a buscar novas prioridades estéticas. O italianismo que<br />
dominara todo o cenário musical oitocentista foi sendo parcialmente substituído, sem,<br />
contudo, desaparecer, e sem que haja unanimidade quanto a essa troca, por modelos<br />
franceses e germânicos. Aliás, as elites da cidade do Rio de Janeiro aspiravam a um afrancesamento,<br />
que se expressa de muitas formas nos primeiros tempos da República, e tem<br />
um de seus pontos máximos na campanha “o Rio civiliza-se”, desencadeada no início do<br />
século XX, gerando muitas demolições e alargamento de ruas e avenidas, à busca de se<br />
aproximar de modelos urbanísticos parisienses.<br />
Carvalho (1935), referindo-se à frustrada nomeação de Carlos Gomes para o<br />
Conservatório de Música do Rio de Janeiro, nos primeiros tempos da república, considera<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
311<br />
que o maestro foi banido, apesar de constituir gloria nacional indiscutível, porque, segundo<br />
ela, o compositor não era considerado wagneriano por Dr. Luiz de Castro, Rodrigues Barbosa<br />
e Leopoldo Miguez, entre outros. E conclui afirmando que não se fazia grande questão<br />
de música brasileira, preferiam-se, ao invés, bons copistas “teutões”. A estética germânica<br />
é valorizada por Miguez, primeiro diretor do recém criado Instituto.<br />
Novos tempos se anunciavam, e a ópera, como uma das instâncias expressivas<br />
da sociedade, também transforma os significados que processa, pelo menos em parte.<br />
Novos tempos: teatro e cinema, óperas e filmes<br />
Com a chegada de novos tempos (primeiros tempos da República), a ópera, que<br />
teve forte uso emblemático pelo poder monárquico, entrou em decadência juntamente<br />
com o declínio do regime monárquico e com o início do cinema (Freire, 2004). Lembramos<br />
que em 1896 foi produzido o primeiro filme no Rio de Janeiro (Capellaro; Ferreira, 1996).<br />
No ano, portanto, da morte do compositor, iniciava-se a produção de filmes na<br />
cidade, mas já tramitava, desde meados do século XIX, uma ascensão de outros gêneros<br />
de entretenimento para a população, alguns deles predecessores do cinema, que apontavam<br />
para uma substituição de meios de comunicação e de expressão, com evidente declínio<br />
da ópera. Em setembro de 1861, época do primeiro sucesso operístico de Carlos<br />
Gomes (A noite do Castelo), já figurava no Jornal do Commercio um anúncio do “gabinete<br />
optico”, exibindo “vistas” de países da Europa e alusivas a alguns eventos importantes da<br />
época.<br />
Lanternas mágicas, cosmoramas, agioscópios e outros espetáculos visuais, com<br />
emprego de novas tecnologias, substituiriam, sorrateiramente, a ópera, na preferência<br />
do público. É preciso notar que esses meios de entretenimento tinham um apelo estético<br />
e ideológico fundamentalmente diferente da ópera, pois, ao contrário dela, que, numa<br />
concepção fortemente moldada pelo romantismo, veiculava sempre conteúdos idealizados<br />
e distantes da realidade do momento, o cinematógrafo e seus antecessores sempre tenderam<br />
a privilegiar a atualidade. A realidade atual não era importante na literatura romântica,<br />
inclusive nos libretos de ópera, em que os sentimentos conflituosos tendiam a<br />
ser tratados como paixões, destituídos de implicações sociais. A representação se dava no<br />
âmbito dos conflitos pessoais menores, resolvidos, na trama, pela punição dos transgressores.<br />
No cinema, gradativamente, novos significados ganharam importância. No processo<br />
de transição de modelos estéticos, há que se registrar a grande quantidade de óperas,<br />
operetas e outros gêneros dramático-musicais – filmados nos primeiros tempos do cinematógrafo<br />
– cedendo lugar, gradativamente, a documentários e a outros filmes de ambientação<br />
contemporânea. O exemplo a seguir ilustra essa situação:<br />
UM FILME IMPORTANTE. A empresa S. Lazzaro empreendeu extrair uma fita de<br />
O Guarani, a mais popular das óperas de Carlos Gomes. […] A partitura sofreu ligeiros<br />
cortes, apenas os indispensáveis para organizar o filme, cujo desdobramento<br />
não poderia ter a duração de toda a ópera. Os artistas que cantam<br />
no palco, por trás do pano branco, não sacrificaram, por sua vez, a música de<br />
Carlos Gomes, e o público manifestou o seu agrado pelos mais entusiásticos<br />
aplausos. A empresa já está cuidando da montagem da Cavalleria e de outras<br />
óperas. (Gazeta de Notícias, 19-abr., 1911)<br />
A “crise” da ópera é evidente, e pode ser ilustrada pelo comentário de um articulista<br />
da Revista Fon-Fon, de 30 de novembro de 1907, que declarava que: “O [Teatro]<br />
Lírico já tem um falante [cinematógrafo], que, em breve, se aperfeiçoado, matará a própria<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
312<br />
Ópera” (apud Araújo, 1985). Além da “crise” do gênero operístico, a “crise” do teatro, em<br />
geral, é assinalada por muitos comentaristas nos jornais do final do século XIX e início do<br />
século XX. Essas “crises”, contudo, eram na verdade decorrentes do confronto entre duas<br />
culturas ou duas tradições, a “erudita” e a “popular”, e não o fim da música, da ópera ou<br />
do teatro, tal como lastimado por diversos intelectuais da época.<br />
Carlos Gomes morreu sem pressentir que, poucos anos depois, os principais<br />
teatros de ópera do Rio de Janeiro, inclusive o Teatro São Pedro de Alcântara e o Teatro Lírico,<br />
seriam transformados em cines-teatro, apresentando espetáculos mistos de palco e<br />
tela para poderem sobreviver.<br />
O cinema absorveu não só o teatro de ópera, pois são muitas as óperas e operetas<br />
filmadas nesses primeiros tempos do cinema, no Rio de Janeiro, mas também absorveu<br />
em grande parte as manifestações do “teatro ligeiro”, como os espetáculos de “revista”<br />
que, permeados de humor, passavam em revista os fatos políticos e sociais do momento.<br />
Foram muitas as peças de revista apresentadas no novo cinematógrafo, numa prova inequívoca<br />
da mudança que se processava nos meios de comunicação.<br />
Apesar das mudanças, contudo, o viés nacionalista penetrou o século XX, com<br />
outros matizes. A Semana de Arte Moderna, realizada em 1922, manteve esse viés e o<br />
reforçou com um ideário articulado por intelectuais da época. O nacionalismo oitocentista<br />
tinha semelhanças com as concepções da Semana de Arte Moderna e do início do século<br />
XX, embora cada um tivesse suas peculiaridades, pois nenhuma concepção é atemporal<br />
ou isenta de historicidade. Alguns traços desses nacionalismos perduraram ao longo do<br />
século XX, com diferentes nuances, inclusive nas óperas.<br />
As óperas em português do século XIX e da primeira metade do século XX expressam,<br />
de forma semelhante, ideais e significados contraditórios. Há mais elementos de<br />
continuidade que de ruptura, entre elas. De certa forma, a ideologia nacionalista está<br />
subjacente em vários aspectos que se contrapõem dialeticamente, apesar de novos significados<br />
e novas linguagens musicais se fazerem presentes: liberdade e independência<br />
versus submissão; idealização romântica versus realismo; modernismo versus conservadorismo;<br />
afirmação de identidade diferenciada versus busca de igualar-se ao estrangeiro.<br />
Assim como o século XIX foi “costurado” por ideais conflitantes de independência,<br />
de progresso, de modernismo, de nacionalismo, a música, e, sobretudo, a ópera, também<br />
fez parte deste “alinhavo” ideológico e conflituoso da época. Squeff e Wisnik (2001, p. 25)<br />
consideram que, em certo sentido, a ópera para o Brasil representou quase o inverso do<br />
que foi para a Europa, pois, enquanto em países como Itália e Alemanha, a ópera acompanha<br />
a unificação nacional, no Brasil é apenas a extensão de um espetáculo dramático<br />
que pouco ou nada tem a ver com a realidade do país, explorado em vários níveis e<br />
inconsciente de suas possibilidades como nação. Embora não seja esse o objetivo da<br />
observação dos dois autores, ela reforça a interpretação de conflito ideológico conduzida<br />
nesta exposição.<br />
Na concepção de nacionalismo elaborada no movimento modernista do início<br />
do século XX, sobretudo por Mário de Andrade, foi formulada uma versão do nacionalismo<br />
musical que resultaria da absorção do folclore pela música “universal”. Passou-se, assim,<br />
a considerar a Semana como o marco do nacionalismo e do modernismo, como a “inventora”<br />
dessas concepções na arte brasileira, configurando uma ruptura com concepções<br />
anteriores. A realidade, contudo, não é bem essa, pois muitos elementos do pensamento<br />
e da estética dos séculos anteriores persistiram no ideário modernista e posteriormente<br />
a ele, como vestígios do passado, envoltos em novos significados e conflitos.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
313<br />
Considerações finais<br />
Ao longo do século XX, as significações ideológicas ligadas à ópera se transformaram.<br />
Óperas em outro idioma ainda são compostas no início do século XX, mas gradativamente<br />
passam a ser concebidas quase exclusivamente em português. Textos em<br />
outros idiomas, como latim ou grego, são utilizados, muitas vezes em busca de um efeito<br />
sonoro especial.<br />
Significados antigos persistem subjacentes a muitas delas, como resíduos. O viés<br />
nacional transparece em muitas óperas compostas a partir do século XX, tendo como tema<br />
personagens ou passagens da história do Brasil. Damos como exemplos: Castro Alves<br />
(de José Siqueira, s.d.), Farrapos (de Roberto Eggers, 1936), A Descoberta do Brasil (de<br />
Eleazar de Carvalho, 1939), A Cabanagem (de Manoel Belarmino da Costa, 1949), Anita<br />
Garibaldi (de H. Geyer, 1950), A Lenda do Bicho Turuna (Lindemberg Cardoso, 1974), Domitila<br />
(de João Guilherme Ripper, 2000), Olga (de Jorge Antunes, 2006), entre outras. A<br />
temática histórica, contudo, cede muitas vezes importância, no drama, aos conflitos e<br />
paixões pessoais, tal como nas óperas do século anterior, embora em algumas, como<br />
Olga, de Jorge Antunes, o conteúdo político prevaleça.<br />
As óperas passam, assim, gradativamente a expressar as ideologias e estéticas<br />
dos séculos XX e XXI: expressionismo, impressionismo, existencialismo, minimalismo, vanguardismo<br />
e outras, sobrepostas a resíduos do passado. Temas da contemporaneidade e<br />
da atualidade política são expostos, por vezes mais cruamente, em cena. Novos recursos<br />
dramáticos, composicionais e sonoros são incorporados (Jorge Antunes e Jocy de Oliveira<br />
são exemplos importantes). A formação instrumental e o elenco são frequentemente<br />
reduzidos, muitas vezes como forma de torná-las viáveis, economicamente.<br />
Talvez por esses motivos, as óperas do século XIX e do início do século XX ainda<br />
são as que têm maior receptividade pelo público “cativo” do gênero, que busca reencontrar<br />
as mesmas fórmulas estéticas, as mesmas árias famosas, e nem sempre aprecia as inovações.<br />
Apresentamos, a seguir, alguns exemplos de Óperas brasileiras do século XX,<br />
cujo enredo resumido permite entrever algumas concepções subjacentes, aliando significados<br />
residuais, atuais e latentes:<br />
Sonho de uma Noite de Luar (1916-1917), de J. Otaviano Gonçalves. O enredo<br />
trata de um homem que, relendo velhas cartas de amor, evoca a figura infantil de sua<br />
amada Edel. Na exaltação em que se encontra vê surgir Edel, com 15 anos, como a conhecera,<br />
e têm um longo colóquio. Logo em seguida, a verdadeira Edel, muito sacrificada<br />
pelas lutas da vida, vem visitá-lo e, em vão, tentam reacender a chama do amor entre eles.<br />
Sóror Madalena (1926), de Alberto Costa, conta a história de uma freira, num<br />
hospital, que visita, numa noite de carnaval, o homem agonizante que no passado a seduziu<br />
e abandonou. Ele lhe pede perdão e, antes que morra, ela o beija na boca. Depois, arrependida,<br />
corre a pedir perdão a Deus na capela, e o Senhor lhe dá o sinal de que perdoou<br />
sua fraqueza.<br />
Um Homem Só (1962), de Camargo Guarnieri. Trata de um funcionário público<br />
solitário, procurando sentido para sua vida, em diversas situações, sem encontrar resposta:<br />
em conversas com uma catadora de papéis; com um psicanalista; em visita a uma igreja,<br />
onde tampouco encontra consolo; no encontro com Rita, uma jovem desgastada pela<br />
vida, que passa a noite com ele, mas depois recusa uma relação permanente. Por fim encontra<br />
a morte e, num cortejo fúnebre, é acompanhado por todos aqueles que nunca o<br />
souberam compreender.<br />
Olga (2006), de Jorge Antunes, conta a história da revolucionária Olga Benário<br />
Prestes e seu romance com Luis Carlos Prestes, com final trágico da heroína em campos<br />
de concentração alemães.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
314<br />
A presença de diferentes recursos composicionais e sonoros na ópera Olga serve,<br />
aqui, para ilustrar as novas tendências estéticas presentes nas óperas mais recentes: “[...]<br />
usa linguagem musical moderna [...] adota melodias neotonais mescladas a música experimental<br />
[...] inserções eletroacústicas, referências ao folclore nordestino e citações da<br />
ópera Tristão e Isolda, de Richard Wagner, entre outros elementos” (Folha de São Paulo<br />
apud Hartkopf, 2010).<br />
Nos quatro exemplos, persistem algumas fórmulas que embalaram as óperas<br />
oitocentistas, como o drama dos amores impossíveis, o desajuste à realidade social, a culpa<br />
e a punição pela transgressão de normas sociais, etc. Embora com outra roupagem,<br />
com uso de novas linguagens musicais e com temáticas atuais, as óperas dos séculos XX e<br />
XXI muitas vezes perpetuam, de certa forma, a essência do gênero, que garantiu seu sucesso<br />
no século XIX.<br />
O “mundo da ópera” corresponde, originalmente, a um universo político e ideológico<br />
que não é exatamente o do final do século XIX, nem o do século XX ou XXI. Contudo,<br />
a magia de suas melodias e histórias fantásticas exerce, até hoje, um encanto sedutor sobre<br />
os ouvintes.<br />
Talvez você já faça parte de outro mundo, mas se a loucura das histéricas pôde<br />
passar da fogueira à ópera, e durar ainda através do extraordinário esplendor<br />
de suas vozes, sem dúvida se escondem, também, nos recantos de sua cabeça,<br />
os grandes mitos impensados dos quais você é, sem saber, prisioneiro. A ópera<br />
é a síntese desses mitos; melhor do que qualquer livro ela soube expô-los em<br />
toda sua grandeza passada. Ela os faz viver, sobreviver, ressuscitar; mantém no<br />
prazer cego as duras leis familiares e políticas. É preciso saber olhar esses mitos<br />
no fundo de seu olhar deslumbrante. (Clément, 1993, p. 243)<br />
A ópera oitocentista deixou, sem dúvida, suas reverberações não só nos teatros<br />
do Rio de Janeiro, onde ainda se apresentam algumas poucas óperas a cada ano, mas,<br />
também, nos ecos nos pianos e nas vozes das classes mais aquinhoadas, através das melodias<br />
das óperas arranjadas para uso doméstico. Nos cursos de música do Rio de Janeiro,<br />
os de canto e de piano ocuparam, durante muito tempo, no século XX, um lugar de destaque,<br />
como reflexo remoto da importância dada à ópera no anterior, mas esse interesse<br />
entra em declínio, no final do século XX. Mudou a sociedade, mudou o país, mudou o<br />
mundo. A ópera é um espetáculo indelevelmente ligado a um mundo que não existe<br />
mais, mas ainda tem seu fascínio, ainda que sob novos valores e formas.<br />
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Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
317<br />
O teatro lírico no Brasil meridional:<br />
origens e percursos<br />
Ezio da Rocha Bittencourt<br />
Universidade Federal do Mato Grosso do Sul<br />
Origens do teatro lírico no Brasil Meridional (séculos XVIII e XIX)<br />
As mais antigas apresentações líricas que faço registro na então Capitania do<br />
Rio Grande de São Pedro do Sul datam de 1760, na localidade de São Borja, como ponto<br />
alto das celebrações à coroação de Carlos III, de Espanha. Pouco após a Guerra Guaranítica,<br />
em região ocupada pelo exército de D. Pedro Cevallos e então pertencente à Castela, índios<br />
guaranis, orientados por padres jesuítas espanhóis levaram a feito as óperas Rei Orontes<br />
do Egito, Felipe V, Pastores do Nascimento do Deus Menino e O Nascimento (Andreotti,<br />
1995, p. 22-23). A Reconquista portuguesa da Vila de Rio Grande em 1776, após os treze<br />
anos de domínio espanhol, foi igualmente comemorada com diversos festejos que incluíram<br />
trechos de óperas em italiano apresentados por militares da Coroa lusa. 1<br />
Em finais do século XVIII surgiram no Rio Grande do Sul (RS) e na Região Platina<br />
as primeiras casas de espetáculos denominadas de Casas-da-Ópera ou Casas-da-Comédia<br />
que passaram a albergar as representações cênicas. O termo “ópera” abrangia tanto as<br />
comédias quanto os dramas e até verdadeiras peças líricas, ou mais comumente, alguns<br />
trechos, “cortinas operísticas ”, todas estas manifestações entremeadas por músicas. Nestes<br />
ambientes o repertório deixou progressivamente de ter influência medieval e adotou modelos<br />
napolitanos da “opera-buffa” tão em voga na Lisboa Setecentista.<br />
Com a instalação da Corte Portuguesa no Rio de Janeiro em 1808 e a construção<br />
do Real Teatro de São João (1813), o país recebeu os primeiros elencos profissionais estrangeiros<br />
que impulsionaram a ópera no Brasil, atendendo, inicialmente, às necessidades<br />
culturais desta fidalguia europeia recentemente instalada na nova capital do Império Lusitano.<br />
Em verdade foi o compositor Marcos Portugal quem introduziu no país, o gosto pela<br />
ópera italiana, da qual ele próprio era legítimo representante. Era o mais importante músico<br />
português de sua época, tinha estudado em Nápoles onde se tornou amigo de Cimarosa.<br />
Chegou ao Brasil em 1811 sendo nomeado mestre-de-capela da Capela Real recémcriada<br />
por D. João VI. Estilisticamente sua produção pertence ao Rococó e à Itália. Escreveu<br />
músicas sacras para a Capela Real, modinhas populares e várias óperas destinadas a divertir<br />
a Corte. Nas décadas de 1810 e 1820 a figura dominante de Marcos Portugal e a extraordinária<br />
presença da ópera italiana se infiltraram na produção dos músicos deste período<br />
e colaboraram decisivamente no sucesso da vertente lírica peninsular no país ao longo<br />
desse século.<br />
O gosto pela ópera italiana serviu igualmente para manter o interesse do público<br />
brasileiro pela música durante o Primeiro Reinado e a Regência, períodos em que a vida<br />
musical brasileira carecia de instituições de peso que pudessem, verdadeiramente,<br />
organizá-la. Na Corte, o Imperial Teatro São Pedro de Alcântara (1826), que sucedeu o<br />
Real Teatro, tornou-se o centro das atividades operísticas no país e o compositor Gioacchino<br />
Rossini (1792-1868) o grande responsável pela manutenção da chama musical na capital<br />
durante boa parte da primeira metade do século XIX. Aliás, musicalmente, este período<br />
...........................................................................<br />
1 Essa informação foi obtida por Francisco Riopardense de Macedo em manuscritos existentes na Biblioteca de<br />
Évora, em Portugal (Macedo, 1971).<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
318<br />
pertenceu grandemente ao compositor. Óperas como Il barbiere di Seviglia, La Cenerentola;<br />
L’italiana in Algeri; La gazza ladra, gozaram de enorme popularidade à época.<br />
O prestígio da ópera italiana foi tão importante que chegou a influenciar as modinhas,<br />
canções brasileiras sentimentais ou tristes, e mesmo contaminar a música sacra.<br />
Vasco Mariz em sua História da música no Brasil revela que trechos de óperas italianas<br />
eram adaptados e executados frequentemente, nas igrejas e que esta prática perdurou<br />
até a primeira metade do século XX no país (Mariz, 1981, p. 49).<br />
A ópera revelou-se igualmente um tema literário observado nas obras de vários<br />
literatos brasileiros, sendo inclusive recorrente nas criações de José de Alencar e de Machado<br />
de Assis – autores seduzidos também pelo teatro e pela vida mundana em geral.<br />
José de Alencar em Cinco Minutos faz referência à opera Il Trovador, de Verdi:<br />
A todo momento parecia-me ouvir na brisa da noite essa frase do Trovador, tão<br />
cheia de melancolia e de sentimento, que resumia para mim toda uma história.<br />
Desde então não se representava uma só vez esta ópera que eu não fosse ao<br />
teatro, ao menos para ter o prazer de ouvi-la repetir. A princípio, por uma intuição<br />
natural, julguei que ela devia, como eu, admirar essa sublime harmonia de Verdi,<br />
que devia também ir sempre ao teatro. (Alencar, 1997)<br />
A frase da ópera verdiniana que o personagem se apropria a fim de exprimir seu<br />
desespero ante ao desconhecimento da identidade da mulher pela qual está apaixonado<br />
é “Nem sequer um nome!”. Ele se vale da ópera, de sua dramaticidade e melodia, para<br />
melhor manifestar o sentimento de aflição que o invadia.<br />
Em Encarnação, Alencar retrata a personagem Julieta que, no foyer do Teatro Lírico,<br />
canta a ária da Lucia de Lammemoor, de Donizetti, seduzindo o personagem Hermano.<br />
Outra personagem, Amália, é igualmente marcada pelas melodias operísticas que<br />
recorda. Na obra Pata da gazela a ópera Lucia de Lammemoor é mais uma vez mencionada,<br />
sendo apontada como “o mais sublime poema de melancolia, que já se escreveu na língua<br />
dos anjos”.<br />
Machado de Assis, tanto na literatura quanto no jornalismo, enfoca igualmente<br />
muitas noitadas do Teatro Lírico retratando, inclusive, artistas da época: sopranos, tenores,<br />
barítono que povoavam os espetáculos operísticos do Rio de Janeiro nos finais do<br />
Oitocentos como as italianas Candiani e Zecchini. Em Memórias póstumas de Brás Cubas,<br />
a filha do personagem Damasceno canta, ao piano, uma ária de Ernani, de Verdi. Em A semana,<br />
Machado de Assis faz referência às óperas Tannhäuser e Lohengrin, de Wagner e<br />
Les Huguenots, de Meyerbeer. Depreende-se então que a ópera ocupava uma posição de<br />
destaque na vida brasileira, invadindo a literatura e povoando as crônicas.<br />
Dos finais do século XVIII e por toda a primeira metade do século XIX o gênero<br />
ópera observou um extraordinário crescimento na Europa, superior então a todas as épocas<br />
precedentes. O período registra as últimas composições de Mozart, as de Weber e do jovem<br />
Wagner, na Alemanha e na Áustria; as de Rossini, Donizetti, Bellini e do jovem Verdi, na<br />
Itália. Foram esses autores os maiores expoentes musicais surgidos nesta época marcada<br />
por uma grande difusão das manifestações artísticas das nações europeias entre si. Uma conseqüência<br />
destes contatos foi o surgimento do Romantismo em vários domínios da arte,<br />
por volta de 1800, nas Grã-Bretanha, França, Alemanha, sobretudo. No Brasil, este movimento<br />
chegou somente em finais da década de 1830 e afetou primeiramente a literatura.<br />
Em termos operísticos, no conjunto das tendências criadoras do Romantismo<br />
musical brasileiro, o movimento mais importante foi, sem dúvida, aquele que buscou na<br />
década de 1850 a criação da “ópera brasileira”, nacionalizada tanto pelos temas apresentados<br />
quanto pela utilização de libretos em língua portuguesa. Foi neste período que<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
319<br />
o sentimento nativista amadureceu no teatro lírico brasileiro. Deve-se mencionar que a<br />
primeira ópera brasileira escrita em português foi Marília de Itamaracá (1854), composta<br />
pelo alemão Adolf Maersch residente no Rio, com libreto de Simoni.<br />
Em 1857 foi criada a Imperial Academia de Música e Ópera Nacional. Na direção<br />
da instituição estava o espanhol José Zapata y Amat. Entusiasta do gênero zarzuela, que<br />
por esta época vinha passando por um reflorescimento na Espanha, Amat empreendeu<br />
uma campanha para que o gênero fosse transplantado para o Brasil como modelo a ser<br />
seguido pelos compositores nacionais. No mesmo ano de sua fundação, a instituição promoveu<br />
a encenação de uma zarzuela traduzida em português intitulada A estréia de uma<br />
artista, que alcançou grande sucesso e estimulou o projeto. Em 14 meses, Amat conseguiu<br />
levar a cena 62 zarzuelas, óperas cômicas italianas e a ópera Norma, de Bellini, todas traduzidas<br />
para o português. Em 1860, a Ópera Lírica Nacional substituiu a Imperial Academia.<br />
Buscou-se então dar estímulo à elaboração de uma ópera “genuinamente brasileira”. Surgiram<br />
algumas peças: a ópera-cômica A noite de São João (1860), de Elias Álvares Lobo<br />
com libreto de José de Alencar foi a primeira ópera de música e libreto de autores nacionais;<br />
A noite no castelo (1861), de Carlos Gomes, libreto de Antônio José Fernandes dos Reis,<br />
Joanna de Flandres (1863), de Carlos Gomes com libreto de Salvador de Mendonça; O vagabundo<br />
(1863), de Henrique Alves de Mesquita. Algumas óperas e muitas zarzuelas foram<br />
igualmente traduzidas para o idioma português neste período. Contam-se, igualmente,<br />
adaptações de obras francesas em português.<br />
Sob o Segundo Reinado algumas instituições culturais promoveram um período<br />
excepcional na vida musical brasileira marcado por estímulos a produção nacional e pela<br />
representação de óperas de compositores e libretistas brasileiros com textos em português.<br />
Talvez este período tenha sido o de maior brilho exterior da música brasileira e, sem dúvida,<br />
o auge da produção operística de autores nacionais. O imperador D. Pedro II foi,<br />
notadamente, um dos chefes de Estado brasileiros mais afeiçoados às artes e em especial<br />
a música, exercendo o papel de mecenas de vários artistas enviados à Europa para aperfeiçoamento,<br />
a suas expensas. O mesmo pode-se dizer do apreço musical de D. Pedro I ele<br />
próprio músico e compositor, assim como seu pai D. João VI grande responsável pelo<br />
desenvolvimento cultural da capital do país nas primeiras décadas do século XIX.<br />
Todavia, apesar dos esforços empregados, faltaram reais condições para que a<br />
ópera nacional pudesse encontrar espaço e se afirmar em um universo musicalmente italiano<br />
no qual estava emerso o país e onde o interesse econômico dos empresários das<br />
grandes companhias líricas (estrangeiras e italianas, sobretudo) e dos teatros ditava o<br />
tom. Outrossim, somava-se a real dificuldade de cantores líricos lusófonos. Não existia no<br />
país um quadro significativo de cantores brasileiros de qualidade que conseguissem garantir<br />
a boa encenação de uma ópera, o que obrigava recorrer a elencos estrangeiros que, na<br />
sua grande maioria, não dominavam o idioma português. Foi o que aconteceu com a<br />
ópera Joanna de Flandres de Carlos Gomes, representada, em 1863, no Rio de Janeiro. Os<br />
artistas eram todos italianos, não entendiam o idioma nacional e a plateia não pode nem<br />
sequer verificar em que língua eles cantavam devido à péssima pronúncia. Outra questão<br />
importante era que as óperas consagradas do repertório estrangeiro eram mais lucrativamente<br />
rendosas que as criações nacionais com libretos por vezes deficitários, e compositores<br />
desprovidos de uma sólida tradição musical como os italianos. Assim, face às<br />
inúmeras dificuldades encontradas, naufragou a tentativa da “ópera nacional” iniciada<br />
em 1852 e a ópera italiana continuou serena em seu longo reinado nos palcos brasileiros. 2<br />
...........................................................................<br />
2 Este movimento buscou a autoafirmação nacional através da valorização da língua portuguesa; dos temas históricos<br />
brasileiros para óperas e cantatas, com tendências indianistas e antiescravistas. Esses aspectos não eram, necessariamente,<br />
coincidentes entre si. A música, entretanto, continuava sendo grandemente de inspiração europeia (Kiefer,<br />
1977, p. 77-78).<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
320<br />
Desta feita, foram as companhias estrangeiras, notadamente as italianas e mais<br />
raramente as francesas e as espanholas, que dominaram a cena operística da Corte e de<br />
outros centros urbanos do país durante o século XIX. Conforme Bruno Kiefer, “a ópera italiana<br />
impregnava os ouvidos de todo mundo, mas sobretudo da classe mais abastada que<br />
vivia em função de padrões e da transplantação sumária da cultura europeia” (Kiefer,<br />
1977, p. 82). O bel canto italiano gozava de uma popularidade tão grande no país que<br />
quase fazia parte da estrutura mental do brasileiro. Segundo o registro de peças líricas representadas<br />
na Corte elaborado por Ayres de Andrade, observa-se um predomínio quase<br />
que absoluto das óperas italianas A título de exemplo, no ano de 1859, realizou-se um total<br />
de 73 espetáculos com 17 óperas, todas italianas e predominando composições de<br />
Donizetti e Verdi. No ano seguinte, foram produzidas somente 31 récitas onde igualmente<br />
estes autores imperaram (Andrade, 1967).<br />
Conforme alguns autores, o movimento em prol da ópera nacional falhou, ou<br />
no mínimo, não alcançou todos os objetivos desejados, importantes foram seus frutos.<br />
Dentre eles Carlos Gomes (1836-1896) tornou-se o mais notável, sendo o primeiro compositor<br />
brasileiro cuja obra alcançou verdadeiramente larga repercussão na Europa. Seu<br />
sucesso internacional debutou em 1870 com a estréia no Teatro Alla Scala, de Milão de<br />
sua terceira peça lírica, uma ópera-baile em 4 atos intitulada Il Guarany baseada no romance<br />
homônimo de José de Alencar, de 1857, obra-prima do romantismo indianista que<br />
busca as origens da nacionalidade brasileira. Escrita em italiano ela possui libreto de Antonio<br />
Scalvini concluído por Carlo D’Ormeville. Sucesso junto ao público milanês, ela foi<br />
encenada 12 vezes no ano de sua estreia sendo no ano seguinte incluída no repertório do<br />
Scala. Foi igualmente encenada em vários teatros da península e em outros países da Europa.<br />
Assim, o reconhecimento internacional da música brasileira nasceu por intermédio<br />
da ópera. O compositor tinha como principais modelos Bellini, Donizetti e, sobretudo,<br />
Verdi.<br />
Il Guarany narra a história de amor entre dois jovens: o índio Peri e a jovem<br />
branca Cecília. Ela se desenrola no litoral do Rio de Janeiro, por volta de 1560, na época<br />
da colonização. Em sua urdidura, Cecília, filha do fidalgo português D. Antônio de Mariz,<br />
desperta a paixão em quatro homens: no espanhol Gonzales, no português D. Álvaro, no<br />
Cacique Aimoré e no jovem guarani Peri. Após várias aventuras, lutas entre caçadores de<br />
índios e tribos de nativos, intrigas, tentativas de rapto, aprisionamentos, e outros qüiprocós<br />
que bem caracterizam o melodrama romântico, os jovens amantes encontram-se e selam<br />
a nova união. No final da peça somente Peri e Cecília sobrevivem aos morticínios.<br />
O personagem Peri, é o índio idealizado (nobre, fiel, bravo e cortês), a representação<br />
do brasileiro original; Cecília veicula a imagem feminina ideal (bela, meiga e<br />
delicada); Gonzales é o inimigo, o espanhol ávido de ganho; D. Mariz é o fidalgo de moral<br />
imaculada preocupado com o bom casamento de sua filha; D. Álvaro personifica o cavalheiro<br />
irrepreensível. O amor puro surgido de um encontro casual, a amizade transformada<br />
em paixão que transpõe as barreiras étnicas e culturais existentes entre os amantes marca<br />
o enredo da ópera. Valendo-se do romanesco, ela pode ser vista também como uma<br />
narrativa da dizimação indígena que marcou o processo de colonização portuguesa da<br />
América. Ela igualmente deixa ver as disputas territoriais e econômicas entre os reinos<br />
ibéricos pelas novas terras descobertas; revela a dureza dos princípios da colonização.<br />
Temas envolvidos diretamente com a formação do país e que fazem desta obra um marco<br />
na fundação da nacionalidade brasileira. Daí, um dos motivos de seu imenso sucesso no<br />
Brasil, tanto sob a forma literária original de Alencar, quanto na adaptação lírica de Gomes.<br />
Assim, é correto afirmar que Il Guarany é a ópera nacional dos brasileiros. Ela exerce uma<br />
função comparável àquela das óperas de Glinka para os russos, das de Smetana para os<br />
tchecos, ou da Freischütz, de Weber, para os alemães, por exemplo.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
321<br />
Todavia, musicalmente, Il Guarany é uma ópera grandemente filiada à tradição<br />
italiana que dominava o gênero nesta época. Conforme o musicólogo Franco Abbiati, ela<br />
é um “melodrama romântico admirável e sólido […], uma obra sincera e cordial,<br />
italianíssima, ou melhor, verdíssima em tudo: libreto e música, drama e canto, corte cênico<br />
e tradicionalismo formal” (Abbiati, 1960, p. 237). A personalidade do autor revela-se,<br />
todavia, em numerosos trechos, manifestando-se mais visivelmente em sua célebre<br />
Sinfonia. Esta criação é sem dúvidas, a mais célebre ópera de Gomes e do repertório<br />
nacional de todos os tempos. Foi graças ao libreto em italiano e a composição melódica<br />
consonante aos ditames da Península Itálica, que o músico brasileiro pode penetrar no<br />
concorrido e seleto templo maior da ópera e, destarte, receber o reconhecimento mundial<br />
de sua obra.<br />
Se a carreira brasileira de Gomes é marcada por várias modinhas, valsas,<br />
mazurcas, transcrições de temas folclóricos negros (notadamente de lundus) e óperas em<br />
português, seu aperfeiçoamento na Itália – espécie de Meca operística dos países latinos<br />
– acentuou sobremaneira o modelo italiano em sua produção lírica. 3 Ao Il Guarany,<br />
seguiram outras óperas onde a filiação ao melodismo italiano é notória, Salvador Rosa<br />
(1874), Maria Tudor (1879), Lo Schiavo (1889), Condor (1891). Uma exceção à regra foi<br />
sua quarta ópera, Fosca (1873), em que o autor introduziu alguns leitmotivs, à maneira<br />
wagneriana o que provocou o protesto dos partidários da corrente italiana que batiam-se<br />
contra as influências germânicas no gênero lírico. Assim, se após 1870 Gomes dedicou-se<br />
ao melodrama italiano, sua obra não deixou de transparecer certos traços brasileiros que<br />
caracterizaram sua formação anterior.<br />
Todavia, deve-se admitir que na produção lírica de Carlos Gomes, assim como<br />
de outros músicos eruditos e operístas nacionais do período, observa-se uma arte<br />
majoritariamente europeia, mesmo que os nacionalistas se interessassem pelas coisas<br />
do Brasil. Se musicalmente o compositor não renovou a tradição europeia, o fato de cantar<br />
o índio brasileiro, mesmo que em italiano, e revelar a exuberância da natureza tropical do<br />
país em grandiosos cenários, forneceu uma projeção internacional à jovem nação que<br />
construía sua identidade. E aqui cabe lembrar que o nacionalismo do século XIX<br />
diferenciava-se do nacionalismo andradino do século XX. Sobre seu caráter oitocentista,<br />
esclarece Alberto Pacheco e Adriana Kayama:<br />
Os nativistas do século XIX não pretendiam uma ruptura estética com os moldes<br />
musicais europeus. Resumidamente, podemos dizer que, neste século,<br />
consideravam como nacionalista a música composta com texto em português.<br />
Também era tida como nacional a música em língua estrangeira, mas com libreto<br />
cujo tema fosse nativista; ou mesmo qualquer produção musical que<br />
impressionasse a Europa e afirmasse a grandeza do Brasil, mostrando que os<br />
músicos brasileiros de então eram capazes de produzir música de grande<br />
qualidade. (Pacheco, 2007, p. 28)<br />
No século XIX podem-se definir três grandes escolas operísticas, ou seja, a original<br />
italiana, a alemã que se opunha à fundadora, e a francesa que buscava fugir das influências<br />
das duas precedentes. Na vertente italiana Gioacchino Rossini (1792-1868), na primeira<br />
metade do século, e Giuseppe Verdi (1813-1901), na segunda, eram os principais<br />
compositores. Na escola alemã fundada por Wolfgang Mozart (1756-1791) e mais tarde<br />
Karl Maria Von Weber (1786-1826), Richard Wagner (1813-1883) era o expoente maior<br />
deste século. Já o modelo francês de ópera foi construído por Hector Berlioz (1803-1869),<br />
...........................................................................<br />
3 O aperfeiçoamento de Gomes na Itália deu-se a partir de 1864, sob o patrocínio do Imperador D. Pedro II.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
322<br />
Charles Gounod (1818-1893), Jacques Offenbach (1819-1880) e Georges Bizet (1838-1875).<br />
Se tradicionalmente as óperas eram escritas na língua italiana, as escolas alemã e francesa<br />
impuseram-na os idiomas de seus países. Igualmente as melodias italianas foram abandonadas<br />
em proveito de uma musicalidade representativa desses países. No gosto brasileiro<br />
predominou, todavia, as composições italianas de grande invenção melódica e destaque<br />
para o canto. Conforme Fernando de Azevedo:<br />
Entre as duas principais orientações na composição de óperas dessa época – a<br />
que nos vinha da Itália, como herança de Verdi e outros compositores da península,<br />
representada por Mascagni, Leoncavallo, Puccini, e a outra que tem sua<br />
origem em Wagner e Strauss, e na qual prevalece a música de programa em que<br />
a orquestra tem o papel primordial, – foi aquela, a orientação italiana, que exerceu<br />
maior influência nos compositores de óperas nacionais. (Azevedo, 1940, p. 474)<br />
Cabe destacar que a produção operística de Richard Wagner foi introduzida no<br />
país em 1883, quando foi encenada pela primeira vez a ópera Tannhäuser, uma das mais<br />
célebres e exemplo do nacionalismo romântico alemão. Se Weber organizou a ópera alemã<br />
oitocentista inspirando-se no medievo e na mitologia germânica, Wagner foi seu legítimo<br />
herdeiro, marcando com sua “arte integral” a música deste século XIX.<br />
Contrapondo-se ao apreço generalizado pela ópera, as plateias nacionais, praticamente,<br />
ignoravam os grandes compositores de música erudita. Todavia, a partir da segunda<br />
metade do século XIX assistiu-se uma lenta, mas progressiva, diversificação do repertório<br />
importado, devido a ação das sociedades musicais que se faziam fundar não somente<br />
na Corte mas em várias cidades do país estimulando a arte musical e alargando o<br />
repertório habitualmente conhecido. Começaram então a se desenvolver concertos musicais<br />
com repertório mais erudito e que fugia do melodismo das óperas italianas. A música<br />
culta alemã principiou a ser introduzida e, gradativamente, ganhou espaço na cena<br />
brasileira. 4<br />
No século XIX muitos conjuntos profissionais de ópera se apresentaram no Rio<br />
Grande do Sul. Mais do que em qualquer outra forma teatral, foi neste gênero que a presença<br />
fundadora italiana se fez mais fortemente marcante. Italianos formavam a maior<br />
parte das companhias, dos diretores artísticos, dos cantores, e quase todo o repertório<br />
executado. A primeira companhia que tenho notícia a apresentar ao público sulino peças<br />
operísticas em sua integralidade foi a Lírica Italiana, dirigida por Domingos Calcagno, que<br />
ocupou o Teatro Sete de Setembro, da cidade de Rio Grande, em março e em novembro<br />
de 1854, levando a cena, entre outras, Norma, de Bellini e Ernani, de Verdi. 5 Foi, entretanto,<br />
a partir da década de 1860 que a Província mais meridional do Império do Brasil passou a<br />
receber mais sistematicamente estes conjuntos e a beneficiar da encenação de óperas<br />
completas. 6 Se vários foram os conjuntos operísticos que realizaram espetáculo nos teatros<br />
do Sul, somente um conjunto francês quebrou o monopólio italiano neste século: a Companhia<br />
Lírica Francesa Verneuil, mas cujo repertório, apesar de algumas óperas, centrava-se<br />
no gênero opereta.<br />
...........................................................................<br />
4 Em finais do século XIX autores como Schubert, Mendelssohn e Schumann, entre outros começaram a ser<br />
divulgados no país.<br />
5 Bittencourt, 1998, p. 13, 15. M. P. F. J. Fatos e Coisas de Antanho. Jornal Rio Grande. Rio Grande, 25-mar., 1942;<br />
17-nov., 1944.<br />
6 Dentre eles cito a Companhia Lírica Italiana; Companhia Lírica Italiana Cavedagni; Companhia Lírica Italiana<br />
Narizano; Companhia Lírica Italiana Lambiase; Companhia Lírica Italiana Tartini; Companhia Lírica Italiana Mattia-<br />
Pezzoni; Grande Companhia Lírica Italiana Guelfo Poltromieri; Companhia Lírica Italiana De Mattia; Companhia<br />
Lírica Italiana Sanzone; Companhia Lírica Italiana Cartocci & Cia.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
323<br />
Das peças líricas mais representadas na segunda metade do Oitocentos nos teatros<br />
sulinos destacaram-se Ernani (1844) e Trovador (1853), ambas de Giuseppe Verdi,<br />
mas também Norma (1831), de Vincenzo Bellini e Lucia de Lammermoor (1835), de Gaetano<br />
Donizetti.<br />
Se, como já foi dito, a primeira metade do século XIX pertenceu, musicalmente,<br />
a Gioachino Rossini, a segunda correspondeu a Giuseppe Verdi. A música rossiniana é repleta<br />
de melodias brilhantes e aparentemente fáceis, adaptadas à sociedade da época da<br />
Restauração. Vincenzo Bellini é, classificado por alguns como um sub-Rossini da sociedade<br />
parisiense, de forte invenção melódica, mas de pouca harmonia. Verdi, um dos mais populares<br />
operístas da história da música, fixou para seus contemporâneos e para a posteridade<br />
a imagem de uma riqueza inesgotável de melodias dramáticas, tipicamente italianas.<br />
Assim, não poderia ser outro o compositor, a não ser Verdi, o mais encenado<br />
nesta segunda metade do século XIX no Rio Grande do Sul. Sua vastíssima produção de<br />
grande dramaticidade coloca em evidência sua predileção por temas históricos e literários.<br />
Igualmentre importante, a produção de Donizetti, Bellini e Rossini, autores também marcados<br />
pela literatura e pela história. 7 Além dos supracitados, outros compositores italianos<br />
foram percebidos: Puccini, Boito, Giordano, Petrella, Ponchielli, Paganini, Mascagni, Leoncavallo,<br />
sobretudo, que imprimiram no gosto operístico do público sulino a marca das<br />
melodias italianas.<br />
Segundando, a grande distância, os compositores italianos observo certos autores<br />
franceses como Charles Gounod; Daniel Auber e Georges Bizet; além de Jacques Offenbach;<br />
Giacomo Meyerbeer e Franz Von Suppé. 8<br />
Dos compositores brasileiros marcaram presença Carlos Gomes com a ópera Il<br />
Guarany (1870) e Delgado de Carvalho com Moema (1894) encenada pela primeira vez<br />
no sul em 1896. 9<br />
Um dos primeiros artistas profissionais a se apresentarem nos teatros do Rio<br />
Grande do Sul com um repertório operístico foi o casal de italianos Tereza Questa e Paulo<br />
Rondelli que realizaram vários espetáculos no Teatro Pedro II, de Porto Alegre, em 1850,<br />
executando trechos seletos de Verdi e Donizetti: os dois compositores mais populares da<br />
época. Em 1855 estes mesmos artistas, auxiliados pelo cantor Leguori, realizaram outras<br />
récitas no pequeno teatro executando além dos autores supracitados, árias de óperas de<br />
Bellini.<br />
A Grande Lírica Italiana, que já havia conquistado as plateias de Buenos Aires e<br />
de Montevidéu, estreou no dia 26 de setembro de 1877 no Teatro São Pedro, da capital da<br />
Província, executando Macbeth, Il Trovatore, Ballo in Maschera, Ernani, Aída, de Verdi,<br />
Ruy Blas, de Filipo Marchetti, La Favorita, de Donizetti, Fausto, de Gounod e Il Guarany,<br />
de Carlos Gomes, apontado pela crítica como “o grande brasileiro vitoriado nos centros<br />
mais cultos do mundo civilizado!”. Esta é a primeira ocorrência que possuo do Il Guarany,<br />
nos palcos do Rio Grande do Sul. 10 Devido a desentendimentos entre seus componentes o<br />
conjunto se desfez. Em 19 de outubro estreou no Sete de Abril, de Pelotas a Companhia<br />
...........................................................................<br />
7 De Verdi figuraram nos palcos sulinos numerosas criações: Ernani, Trovador, Belisario, Os lombardos, I due<br />
foscari, Atila, Traviata, Nabucodonossor, Luisa Miller, Macbeth, Rigoletto, Ballo in maschera, Aida, Força do<br />
destino. Também de relevância a produção de Donizetti (Linda di Chamounix, Lucia di Lammemoor, Don Pasquale,<br />
Norma, Elisir d’amore, Lucrezia Borgia, Favorita, Maria de Rohan); de Rossini (Guilherme Tell, O barbeiro de<br />
Sevilha, Semiramides) e de Bellini (Sonambula, Norma, Os puritanos).<br />
8 Charles Gounod (Faust); Daniel Auber (Fra Diavolo) e Georges Bizet (Carmen); além de Jacques Offenbach (Os<br />
contos de Hoffman, uma ópera fantástica); Giacomo Meyerbeer (L’africaine, Os huguenotes); Franz Von Suppé<br />
(Boccacio).<br />
9 Não confundir com a ópera Moema (1889), de Assis Pacheco.<br />
10 Mesmo se o levantamento da programação dos teatros sulinos não está completo, apresentando inclusive<br />
muitas lacunas, posso afirmar que a ópera Il Guarany foi encenada no RS, no mínimo, nos anos de 1877, 1881,<br />
1894, 1896, 1904, 1905, 1907, 1908, 1910, 1913, 1920, 1921, 1926, 1928, 1929, 1931 e 1939.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
324<br />
Lírica Italiana, da empresa Narizano que acredito ter sido organizada com elementos oriundos<br />
da antiga formação. Executando o mesmo repertório, a Narizano deu seis récitas<br />
nesta cidade. Dirigindo-se à cidade de Rio Grande, apresentou-se no popular Anfiteatro<br />
Abano Pereira em 30 de outubro com a ópera Fausto, do francês Charles Gounod. Por<br />
não ter hasteado a bandeira nacional, logo ao subir o pano de boca, a companhia estrangeira<br />
sofreu uma vigorosa pateada 11 provinda do público das bancadas indignado com o<br />
descaso à nação brasileira. O protesto foi acompanhado do exterior do edifício por pedradas<br />
e pauladas no tabuado e no telhado de zinco, desferidas por cerca de mais de trezentas<br />
pessoas que rodeavam a construção. “Era um barulho infernal”, pronunciava o Diário do<br />
Rio Grande, de 1º de novembro deste ano. O subdelegado teve que intervir ordenando a<br />
suspensão do espetáculo. No dia seguinte a companhia embarcou no vapor Cervantes<br />
deixando a cidade. 12<br />
Tal como essa companhia, muitas outras que excursionaram pelo Rio Grande do<br />
Sul eram provenientes dos teatros platinos ou direcionavam-se a estas casas de espetáculos<br />
após suas temporadas na Corte e em outras grandes cidades do Império do Brasil. Buenos<br />
Aires era a capital latino-americana da ópera e foi nesta cidade onde melhor se desenvolveu<br />
o teatro lírico com a formação de um público fiel e temporadas operísticas ininterruptas.<br />
Nos seus primeiros anos de funcionamento o portenho Teatro Colón foi uma sucursal do<br />
Teatro Alla Scala, de Milão, o qual ditava o modelo a ser seguido. 13 A proximidade do Rio<br />
Grande do Sul daquela capital metropolitana facilitou assim o contato das plateias sulinas<br />
com o universo da ópera. Deve-se ter presente, entretanto, que o público das cidades<br />
gaúchas não possuía a mesma tradição e as exigências do portenho. No Rio Grande do<br />
Sul, as temporadas operísticas nunca apresentaram a mesma continuidade observada na<br />
capital Argentina; muito ao contrário, houve anos em que a ópera esteve completamente<br />
ausente dos palcos regionais. Uma análise comparativa entre a movimentação teatral do<br />
Teatro Colón elaborada por Roberto Caamaño e a percebida nas cenas do Rio Grande do<br />
Sul, revela que o público sul-rio-grandense, mostrou-se bem mais conservador que o<br />
portenho em relação aos programas operísticos, não aceitando com a mesma abertura<br />
de espírito as mudanças do gênero lírico e suas novas correntes. (Caamaño, 1956, p. 87)<br />
Em verdade, as plateias sulinas contentavam-se com os malabarismos vocais dos cantores,<br />
com as exibições de virtuosidade na voz e associavam ópera, essencialmente, com a vertente<br />
italiana.<br />
A Companhia Lírica Italiana De Mattia, frequentou o palco do Teatro São Pedro,<br />
de Porto Alegre de 27 de outubro de 1894 a janeiro do próximo ano. Sob a regência do<br />
maestro Provesi, ela executou um repertório operístico conhecido, com peças de Verdi,<br />
Ponchielli, Mascagni, Donizetti, Gounod etc. A novidade coube a Les Huguenots, de Giacomo<br />
Meyerbeer, que pode ser considerado o criador da grande ópera francesa, misturando<br />
o estilo melódico italiano, a ópera literária francesa e o romantismo alemão, e<br />
cujo objetivo era sempre o forte efeito teatral. Pronunciando-se sobre esta obra, a crítica<br />
local disse que era uma criação de envergadura sendo seu prelúdio “tecido sobre o célebre<br />
Coro Luterano, ainda hoje cantado pelo Protestantismo em seus severos templos, era,<br />
sem dúvida alguma, a mais bela, a mais imponente parte da grande composição musical,<br />
pois ali apareciam extraordinárias revelações do quanto valia o talento da privilegiada<br />
mentalidade alemã” (Damasceno, 1956, p. 277). A ideia da superioridade germânica espe-<br />
...........................................................................<br />
11 Expressão utilizada na época, que nomeia batida com os pés no chão em sinal de reprovação ou desagrado. É<br />
interessante ressaltar que esta era uma prática muito comum nos teatros, sobretudo do século XIX, inclusive na<br />
Europa. Conforme consta, as óperas Carmem, de Georges Bizet e Maria Tudor, de Carlos Gomes quando estrearam<br />
no Scala, de Milão, não agradaram a assistência e foram fragorosamente “pateadas”.<br />
12 Diário do Rio Grande, 30-out., 1877.<br />
13 E aqui deve ser lembrado que Milão era a capital mundial da ópera, com um público sofisticado e importantes<br />
editores de música.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
325<br />
cificamente, e norte-europeia de maneira mais geral, depreendida dessa observação está<br />
completamente de acordo com as correntes de pensamento que na Belle Époque apregoavam<br />
a posição de destaque da civilização europeia no mundo. Em Pelotas, a De Mattia<br />
proporcionou 13 récitas à plateia do Sete de Abril e, em Rio Grande atuou em fevereiro<br />
de 1895. No dia 8 promoveu a primeira audição local da ópera La Gioconda, de Ponchielli<br />
que, composta em 1876, ainda não havia sido executada na cidade. 14<br />
Analisando a produção musical, sobretudo a europeia, de 1789 a 1848, o historiador<br />
Eric Hobsbawm classifica este período como sendo de um extraordinário florescimento<br />
artístico; meio século alicerçado sobretudo no Romantismo e que incluiu na<br />
ópera nomes como Bellini, Donizetti, Verdi, Wagner, e outros jamais superados (Hobsbawm,<br />
1977, p. 298). Se na área musical o repertório já era basicamente internacional, no<br />
período de 1870 a 1914 outras formas de criações artísticas se tornaram mais do que nunca<br />
internacionalizadas. Esse recorte temporal não deve, portanto, ser estudado em termos de<br />
suas realizações. Ele deve ser apreendido não a partir de sua produção, mas do desenvolvimento<br />
de seu consumo, que foi notável. Nas palavras do autor, “o nítido aumento do tamanho<br />
e da riqueza de uma classe média urbana [mundial] capaz de dar mais atenção à cultura,<br />
bem como a grande extensão da classe média baixa e de setores das classes trabalhadores<br />
instruídos e com sede de cultura, teria sido suficiente para garantir esse desenvolvimento”<br />
(Hobsbawm, 1988, p.310). 15 Já Arno Mayer afirma que até 1914, “mesmo a nação mais<br />
industrializada e imperialista da Europa contava com uma cultura oficial [establishment]<br />
singularmente tradicional” uma vez que “as revoluções industriais compactas não conseguiram<br />
incitar novas visões, símbolos e cânones” (Mayer, 1990, p. 212-193).<br />
Entre 1875 e 1914 o moderno repertório operístico internacional ainda estava<br />
sendo elaborado e centrava-se em compositores como Puccini, Mascagni, Leoncavallo,<br />
Strauss, Wagner e Janecek. A análise da movimentação teatral no Rio Grande do Sul revela,<br />
então, que os programas executados estavam em sintonia com as tendências percebidas<br />
na Europa concernentes aos compositores italianos, mas completamente em defasagem<br />
às demais correntes. O alemão Wagner, o austríaco Strauss ou o tcheco Janecek estavam<br />
ausentes dos repertórios apresentados ao público sulino. Para compreender esta situação<br />
de bipolaridade, basta lembrar que os conjuntos operísticos estrangeiros que se apresentavam<br />
nos teatros do Sul eram quase que absolutamente italianos e, por evidência, divulgavam<br />
o repertório da Península. Não possuo nenhum registro de companhias de óperas<br />
alemãs que tivessem se exibido nestes espaços.<br />
A ópera no Rio Grande do Sul em princípios do século XX<br />
(décadas de 1900 e 1910)<br />
Nas duas primeiras décadas do século XX as companhias operísticas oriundas da<br />
Península Itálica tornaram-se absolutas nas cenas do Rio Grande do Sul. 16 Observo que<br />
neste período o gosto do público gaúcho recaiu sobre peças do repertório verista tais<br />
como La Bohème e Tosca, de Giacomo Puccini; Cavalaria Rusticana, de Pietro Mascagni e<br />
Palhaços, de Rugiero Leoncavallo que figuram como as óperas mais encenadas. Entretanto<br />
Verdi, com seu imenso repertório e, sobretudo, com Aida, La traviata, Rigoletto e Trovador,<br />
...........................................................................<br />
14 Damasceno, 1956, p. 277. Echenique, 1934, p. 72-73. Diário do Rio Grande, 9-fev., 1895.<br />
15 Na Alemanha, por exemplo, o número de teatros triplicou entre 1870 e 1896 passando de 200 a 600 casas do<br />
gênero (Hobsbawm, 1988, p. 310).<br />
16 Frequentaram os teatros do Estado neste período os seguintes grupos: Companhia Lírica Italiana Reiter &<br />
Provesi; Companhia Lírica Italiana Roberto Mario; Companhia Lírica Italiana Schiaffino; Companhia Lírica Italiana<br />
Bannochi; Companhia Lírica Garbini-Dal Negro; Companhia Lírica Tornesi; Companhia Lírica Italiana Maranti-<br />
Bessona; Companhia Lírica Italiana Tuffaneli-Zonzini; Companhia Lírica Italiana Tuffaneli-Schiaffino; Companhia<br />
Lírica Italiana Riva-Morini; Companhia Lírica Italiana Schiavazzi-Selingardi; Companhia Lírica Italiana La Mura;<br />
Companhia Lírica Italiana Galli Curci-Hipolito Lazaro; Companhia Lírica Rottoli-Billoro.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
326<br />
continuou a responder pelo compositor mais executado, sendo seguido por Puccini.<br />
Nestes decênios de 1900 e 1910, compositores como Puccini, Leoncavallo e Mascagni,<br />
sem maior expressividade no século anterior, vão ganhar posição de destaque no<br />
universo operístico dos teatros do Rio Grande do Sul. 17<br />
Se para a ópera nacional o período não foi favorável – observo somente a encenação<br />
da já tradicional Il Guarany e alguns trechos de Lo Schiavo, ambas de Carlos Gomes<br />
– o mesmo não pode ser dito para ópera regional. Aliás, este período foi excepcional<br />
em termos de criações de compositores sul-rio-grandenses, a saber: Sandro (1902), de<br />
Murilo Furtado (1873-1958) com libreto em italiano de Arturo Evangelisti e Carmela (1902),<br />
de Araújo Viana (1871-1916) com libreto de Leopoldo Brígido passado para o italiano por<br />
Ettore Malagutti. Sandro é uma violenta história de um crime passional; uma espécie de<br />
continuação da Cavalaria Rusticana, de Mascagni um dos compositores de maior influência<br />
no autor gaúcho. Carmela, por sua vez, possui uma urdidura de amor e morte. Tanto Furtado<br />
quanto Viana haviam se aperfeiçoado na Itália e ambas as peças lá decorriam: a primeira<br />
na Sicília e a segunda numa aldeia de pescadores em Sorrento. A influência dos cânones<br />
italianos é igualmente marcante. No decênio seguinte surgiu O rei Galaor (1913),<br />
do mesmo Araújo Viana com libreto em português de Eugênio de Castro, que alcançou<br />
grande sucesso neste mesmo ano na então capital do país, Rio de Janeiro. Aliás, Araújo<br />
Viana tornou-se um nome de destaque na ópera brasileira graças, sobretudo, a Carmela. 18<br />
Athos Damasceno afirma que depois de Il Guarany foi Carmela a ópera nacional mais encenada<br />
no país: cinco vezes em Porto Alegre e outras tantas nas cidades de Pelotas, Rio<br />
Grande, e no Rio de Janeiro, totalizando doze representações. Essas óperas escritas no começo<br />
do século XX, numa língua estrangeira e sob o influxo musical da Itália, são exemplos<br />
bem representativos da influência hegemônica do modelo operístico italiano nos compositores<br />
do gênero do Rio Grande do Sul. Elas revelam um transplante cultural e confirmam<br />
o ainda vivo neocolonialismo e a dependência brasileira da Europa e seus padrões<br />
artísticos de expressão neste período histórico de acentuado europeísmo. Esta posição<br />
cultural da Belle Époque brasileira muito contrasta com o nacionalismo musical do século<br />
XIX e sua tentativa da fundação da ópera brasileira, assim como com o posterior nacionalismo<br />
modernista andradiano.<br />
Nos palcos do Rio Grande do Sul, após um ano sem temporada lírica na capital<br />
do Estado, a empresa Reiter & Provesi, ocupou o Teatro São Pedro de maio a julho de<br />
1904. Estreou dia 8 com a ópera La Bohème, de Puccini, um autor dotado de lirismo refinado<br />
e grande sensibilidade musical, apesar do excessivo sentimentalismo e sensacionalismo<br />
que marcam suas obras. Em Pelotas a companhia apresentou como novidade,<br />
I Puritani, conforme observamos no Diário do Rio Grande, de 4 e 6 de setembro de 1904:<br />
“a última ópera de Bellini, representada em Paris às vésperas de seus funerais” e, igualmente<br />
marcada pela forte invenção melódica, característica de seu autor. Atuando no<br />
mês de setembro no teatro Sete, de Rio Grande, o conjunto agradou na execução de, entre<br />
outras, das já consagradas La Bohème e da monumental Aída, de Verdi. 19<br />
Em excursão pelo Estado em 1907, a Companhia Lírica Italiana Tuffanelli-Zonzini,<br />
procedente de Buenos Aires, apresentou-se ao público porto-alegrense de 22 de agosto a<br />
...........................................................................<br />
17 Puccini (Tosca, La bohème, Manon Lescault); Leoncavallo (Os palhaços, Zaza, Zingaros) e Mascagni (Cavalaria<br />
Rusticana, Iris). Outros operistas italianos que passaram igualmente a adquirir uma maior importância foram<br />
Almicare Ponchielli (La Gioconda), Umberto Giordano (Andrea Chernier) e Felipo Marchetti (Ruy Blas). Nas<br />
franjas do repertório italiano, o francês se fez representar através de autores como Auber (Fra Diavolo), Bizet<br />
(Carmen); Gounod (Faust); Meyerbeer (Os huguenotes, Dinorah); Ambroise Thomas (Mignon) e Massenet<br />
(Manon).<br />
18 Damasceno informa que Carmela foi encenada por cinco vezes em 1906, no Teatro São Pedro de Alcântara, no<br />
Rio de Janeiro, sob a direção do famoso maestro e compositor Francisco Braga, numa adaptação em português<br />
do poeta Osório Duque Estrada (Damasceno, 1956, p. 376).<br />
19 Moritz, 1975, p. 164. Echenique, 1934, p. 78. Diário do Rio Grande, 6-set., 1904.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
327<br />
29 de setembro, estreando no Teatro São Pedro com a ópera Tosca, de Puccini. Além das<br />
tradicionais peças italianas e da ópera Il Guarany, de Carlos Gomes, o conjunto montou<br />
Carmela, do músico rio-grandense Araújo Vianna, a pedido de estudantes locais, e assistida<br />
por seu autor, então presente ao espetáculo. Conforme Moritz, “ao terminar o primeiro<br />
ato, os artistas foram ovacionados e receberam uma chuva de confetes e serpentinas”.<br />
Em Rio Grande a companhia realizou sua primeira récita no Teatro Sete de Setembro em<br />
8 de outubro com Lucia di Lammermoor, obra de Gaetano Donizetti, caracterizada por<br />
uma impressionante força dramática.<br />
A Companhia Lírica Italiana Schiafini (ou Schiffino ou Schiaffino) vinda do Teatro<br />
Victoria, de Buenos Aires, ocupou o palco do São Pedro da segunda quinzena de abril a<br />
começos de maio de 1908 trazendo um longo repertório de 22 títulos e realizando 28 récitas.<br />
No programa Aida, Otelo, Traviata, Baile de máscaras, Trovador, Rigoletto, Força do<br />
destino, de Verdi; Lucia di Lamemoor, de Donizetti; Barbeiro de Sevilha, de Rossini; Tosca<br />
e Bohème, de Puccini; Gioconda, de Ponchieli; Palhaços, de Leoncavallo; Cavalaria Rusticana,<br />
de Mascagni; Mefistófeles, de Ariago Boito; Manon Lecault, de Puccini. Do repertório<br />
francês representaram Fausto, de Gounod; Manon, de Massenet e pela primeira<br />
vez Mignon, de Ambroise Thomas. O conjunto encenou também Sandro, de Murilo Furtado;<br />
Salvador Rosa e Il Guarany, de Carlos Gomes. Após a temporada na capital do Estado,<br />
a Schiafini apresentou-se no Teatro Sete de Abril, de Pelotas e no Politeama Rio-Grandense,<br />
de Rio Grande.<br />
Uma das mais célebres companhias líricas a frequentar os teatros do Estado foi<br />
a Galli-Curci e Lazaro. Em excursão pela América do Sul, o conjunto capitaneado pela soprano<br />
coloratura Amelita Galli-Curci e pelo tenor Hypólito Lazaro – artistas renomados<br />
internacionalmente20 – após temporada no Teatro Colón, da capital portenha, estreou no<br />
Teatro São Pedro, de Porto Alegre, em 6 de novembro de 1915 com a ópera Il Rigoletto,<br />
de Verdi. Com estrondoso sucesso, levou também à cena várias composições do repertório<br />
italiano tradicional: Bohème, O barbeiro de Sevilha, Traviata, Os puritanos, Cavalaria, Palhaços,<br />
Sonambula, Tosca, Lucia. Somente Dinorah, de Meyerbeer distanciava-se da escola<br />
italiana. Do teatro da Praça da Matriz realizou três récitas populares no Cine-Teatro Apolo,<br />
seguindo após para Pelotas onde, no Sete de Abril, deu seis espetáculos. Em Rio Grande,<br />
a companhia exibiu-se nos dias 29 e 30 de novembro no Politeama Rio-Grandense encenando<br />
La Traviata e Il Rigoletto, respectivamente. Deixando a cidade, dirigiu-se a Bagé,<br />
e após para Montevideo e Livramento. 21<br />
...........................................................................<br />
20 A italiana Amelita Galli-Curci (1882-1963) era natural de Milão onde iniciou seus estudos. Soprano ágil, com timbre<br />
puro e cristalino impressionava também por sua segurança vocal, musicalidade e estilo impecáveis. Descoberta por<br />
Pietro Mascagni, estreou no papel de Gilda na ópera Il Rigoletto, em 1906 sem qualquer formação profissional. Após<br />
tornar-se nome conhecido na cena lírica europeia, excursionou pela América do Sul em 1915. A partir de 1916 passou<br />
a integrar a Chigago Opera Company. Em 1920 estreou no Metropolitan Opera House, de New York. Foi uma das<br />
primeiras cantoras líricas a atingir fama internacional, graças às suas gravações. Hypólito Lázaro era espanhol, natural<br />
de Barcelona. Tendo iniciado sua carreira na opereta em 1909, transferiu-se para Milão onde aperfeiçoou sua arte.<br />
Após exibir-se em teatros italianos e no Cairo, triunfou em 1912 no Covent Garden, de Londres e em Gênova. Em 1913<br />
consagrou-se no Scala, de Milão como grande intérprete mascagniano. Seu repertório, todavia, abrangia vários estilos.<br />
Para o próprio compositor Pietro Mascagni, Lázaro era “superior ao imortal Gayarre e bem melhor que Caruso”.<br />
Considerado um dos cantores prediletos de Giacomo Puccini, foi apontado pelo grande maestro Arturo Toscanini (lêse<br />
New York Philharmonic) como “o rei dos tenores” (Ópera Collection, 1996; Moritz, 1975, p. 187; Andreotti, 2001, p.<br />
124-125 ).<br />
21 Comentando os dotes vocais de Galli-Curci, o cronista do jornal O Tempo revela que foi “uma delícia acompanharlhe<br />
os vôos canoros, fluentes e doces por vezes, caprichosos de outras, borboleteando numa tessitura quase intérmina,<br />
tal a facilidade com que ela ascendia às mais altas notas”. No papel de Violeta, da Traviata, conquistou o público. Ao<br />
término da cavatina do primeiro ato, “o auditório não mais reprimiu os aplausos, que vinha sopitando e irrompeu uma<br />
salva de palmas calorosa e prolongada, justa homenagem à artista que tão finamente detalhava filigranas vocais. E<br />
repetiu-se, avolumou-se essa homenagem no correr da ópera, até ser uma ovação brilhante ao terminar a partitura”.<br />
Lázaro, “mercê de sua voz insinuante, que agradou pelo timbre e pela finura com que foi manejada” igualmente<br />
motivou aclamações (Moritz, 1975, p. 187-190. Echenique, 1934, p. 83-84. Rio Grande. Rio Grande, 1º-nov., 1915. O<br />
Tempo. Rio Grande, 29 e 30-nov. e 1º-dez., 1915).<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
328<br />
Em menos de um ano da apresentação de Galli-Curci-Lazaro, o RS receberia a visita<br />
de outra cantora mundialmente aclamada: Adelina Agostinelli. 22 A soprano italiana<br />
exibiu-se no Politeama Rio-Grandense em 1916 integrando o quadro de cantores da Companhia<br />
Lírica Italiana Rottoli & Billoro. Vinda igualmente de Buenos Aires, a troupe desembarcou<br />
no porto da cidade de Rio Grande em 29 de agosto. Composto por 85 elementos<br />
e orquestra própria este conjunto artístico contava com a regência do conhecido maestro<br />
De Angelis, do Alla Scala. Dia 1º de setembro deu-se sua estréia com a ópera Fedora, de<br />
Giordano, peça na qual Agostinelli havia debutado na cena lírica. Seguiram-se La bohème,<br />
de Puccini (3-set.) e Manon, de Massenet (5-set.). Da cidade marítima, Agostinelli seguiu<br />
para Pelotas apresentando-se no Teatro Sete de Abril e depois para Porto Alegre atuando<br />
nos teatros São Pedro e Apollo. Além das óperas supracitadas, encenou também Il<br />
Trovatore, de Verdi, obtendo grande sucesso junto ao público sulino.<br />
A ópera no Rio Grande do Sul durante o entre-guerras (décadas de 1920 e 1930)<br />
No período do entre-guerras, além das já habituais companhias italianas que<br />
dominavam a vida operística no sul do país, observo um conjunto nacional: a Companhia<br />
Lírica do Teatro Municipal de São Paulo (1929) e outro conjunto formado por artistas italianos<br />
e brasileiros: a Companhia Lírica Ítalo-Brasileira (1928). Na década de 1930 foi organizado<br />
um grupo regional denominado de Orfeão Rio-Grandense que realizou vários<br />
espetáculos no Teatro São Pedro com um repertório de óperas italianas tradicionais. Além<br />
destes, também ocuparam os teatros gaúchos várias companhias estrangeiras, majoritariamente,<br />
provenientes da Itália. 23<br />
Observo nestas décadas de 1920 e 1930 uma continuidade do repertório registrado<br />
desde a segunda metade do século XIX, centrado em autores italianos, a saber:<br />
Verdi, Puccini, Mascagni, Leoncavallo, Bellini, Boito, Ponchielli, Donizetti, Giordano, Rossini;<br />
seguido de Bizet, Gounod, Massenet e Meyerbeer. Todavia, algumas peças até então pouco<br />
representadas ou completamente inéditas às plateias sulinas ganharam espaço. Foi o caso<br />
de Otelo, uma das últimas óperas de Verdi; Mme. Butterfly e Il Fabaro de Puccini; Loreley,<br />
de Alfredo Catalani, mas também de obras de outros compositores não italianos como<br />
Pescadores de pérolas, de Bizet e Lohengrin, de Richard Wagner.<br />
Conforme Hobsbawm, de 1914 até 1945, o repertório operístico internacional<br />
continuaria essencialmente o mesmo remarcado desde 1875, ou seja, centrado em Puccini,<br />
Leoncavallo, Richard Strauss, Mascagni, etc., que seriam o que havia de mais vanguardista<br />
no gênero (Hobsbawm, 1995, p. 181).<br />
A ópera brasileira continuava a ocupar uma posição extremamente limitada nos<br />
teatros estudados. 24 De Antônio Carlos Gomes, foram encenadas Il Guarany, Lo Schiavo, e<br />
...........................................................................<br />
22 Adelina Agostinelli (1882-1954) era Natural de Bergamo e principiou sua carreira em teatros da Itália tendo<br />
cantado por repetidas vezes no teatro Alla Scala de Milão. Nesta casa contracenou com os mais notáveis tenores<br />
de sua época, dentre eles, Enrico Caruso e Titto Ruffo. Atuou igualmente em vários países da Europa, nos<br />
Estados Unidos e na América Latina. Fixou residência em Buenos Aires onde, a partir de 1929, dedicou-se ao<br />
ensino, formando gerações de cantores (Ópera Collection, 1996; Andreotti, 2001, p. 125-126).<br />
23 Companhia Lírica Italiana Marranti; Companhia Lírica Italiana Billoro-Cavallaro; Companhia Lírica Italiana Dora<br />
Solima; Companhia Lírica Italiana Garofalo-Garavaglia; Companhia Lírica de Jorge Alberto, Riva & Cia.; Companhia<br />
Lírica de Segreto, Bonacchi e Piergilli; e algumas outras mais, chamadas de simplesmente “Companhia<br />
Lírica Italiana”.<br />
24 Se raras eram as peças operísticas brasileiras observadas nos teatros do Rio Grande do Sul desde o século XIX<br />
até o ano de 1940, várias eram as composições nacionais. A título de informação e consulta segue uma lista<br />
parcial dessas criações. Ano/Local/Compositor/Ópera. 1860/R. J./Elias Alvares Lôbo/A noite de São João. 1861/<br />
R. J./A.Carlos Gomes/A noite do castelo. 1862/R. J./Domingos José Ferreira/A corte de Mônaco. 1863/R. J./A.<br />
Carlos Gomes/Joana de Flandres. 1863/R. J./Henrique Alves de Mesquita/O vagabundo. 1870/Milão/A. Carlos<br />
Gomes/Il Guarany. 1873/Milão/A. Carlos Gomes/Fosca. 1874/Gênova/A. C. Gomes/SalvadorRosa. 1879/Milão/<br />
A. Carlos Gomes/Maria Tudor. 1881/Belém/Henrique Eulálio Gurjão/Idália. 1888/Milão/João Gomes de Araújo/Carmosina.<br />
1889/R. J. /A. Carlos Gomes/Lo schiavo. 1889/S. P./Assis Pacheco/Moema. 1890/Belém/João Cândido<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
329<br />
Fosca, todas peças já conhecidas. Outra ópera nacional levada a feito, esta então inédita<br />
às plateias sulinas, foi Maria Petrowna (1929), de João Gomes de Araújo com libreto em<br />
italiano de Ferdinando Fontana, compositor que estudou também na Itália. A ação se<br />
passa em Nápoles e na Rússia Setecentista. Roberto Eggers, por sua vez, respondeu pelos<br />
autores regionais com a ópera Farrapos (1936) com libreto de Faria Correa, baseada na<br />
história do Rio Grande do Sul. Obra escrita em português, de temática regionalista e musicalidade<br />
que busca inspiração no folclore sulino. A ação se desenrola no ano de 1835 e<br />
visava consagrar os heróis civis e militares da epopeia gaúcha. Destarte, o bairrismo –<br />
uma faceta do ufanismo patriótico que caracteriza este período histórico – marca presença<br />
na ópera regional. 25<br />
Em 1921, a Companhia Lírica Italiana Marranti realizou temporada nos palcos<br />
do RS. Com um elenco composto por 18 cantores, orquestra com 25 músicos, corpo de<br />
baile com 8 dançarinos e 25 coristas, diretor, ensaiador, coreógrafo, maquinistas etc., a<br />
companhia estreou em 30 de abril, em Pelotas, inaugurando o amplo e luxuoso Teatro<br />
Guarani. Como não poderia deixar de ser, foi escolhida para a ocasião a obra mais famosa<br />
do compositor Carlos Gomes. Ao Il Guarany, seguiram-se peças de Verdi, Ponchielli, Leoncavallo,<br />
Puccini, Mascagni, Boito, Bizet, Gounod e dos autores do Bel Canto: Bellini, Rossini<br />
e Donizetti. De 20 de maio a 1º de junho a Marranti ocupou o velho casarão da Praça da<br />
Matriz em Porto Alegre, dirigindo-se após a Rio Grande. No Politeama Rio-Grandense,<br />
abriu sua temporada em 3 de junho com La Gioconda, de Ponchielli e, nas noites seguintes:<br />
Lucia di Lammermoor, de Donizetti; Il Rigoletto, de Verdi; e Tosca, de Puccini. Bagé também<br />
foi incluso nesta excursão. 26<br />
Procedente do Teatro Urquiza, de Montevidéu e antes deste, do Politeama de<br />
Buenos Aires, a Companhia Lírica Billoro-Cavallaro exibiu-se às plateias porto-alegrenses<br />
em junho e julho de 1928, executando um repertório, preponderantemente italiano. Com<br />
a sensual Carmem, a mais famosa obra do compositor francês Georges Bizet, o conjunto<br />
estreou no amplo Politeama, de Rio Grande em 4 de agosto. No dia seguinte foi a vez de<br />
Il Rigoletto, que encerrou a curtíssima temporada na cidade. Ao lado de seu estilo romântico,<br />
Giuseppe Verdi colocou nesta criação de 1851, fortes elementos realistas que chocaram<br />
a sociedade de então e inovaram a ópera. Pela primeira vez, um corcunda assumia o<br />
personagem principal de uma peça lírica. 27<br />
da Gama Malcher/Bug-jargal. 1891/Milão/A. Carlos Gomes/Condor ou Odaléia. 1892/R. J./A. Carlos Gomes/<br />
Colombo. 1894/R. J. /Delgado de Carvalho/Moema;. 1895/Belém/João Cândido da Gama Malcher/Iara. 1896/R.<br />
J./Leopoldo Miguez/Os saldunes. 1897/R. J./Leopoldo Miguez/Pelo amor!. 1897/R. J./Assis Pacheco/Flora. 1898/<br />
R. J./Alberto Nepomuceno/Ártemis. 1898/R. J./Delgado de Carvalho/Hóstia. 1900/R. J./ Assis Pacheco/ Estela<br />
ou dor!. 1900/R. J./Francisco Braga/Jupira; 1902/P. Alegre/Araújo Viana/Carmela. 1902/P. Alegre/Murilo Furtado/Sandro;<br />
1903/Campinas/(4 compositores, não nominados)/Pastoral. 1904/R. J./Abdon Milanes/Primízie; 1906/<br />
S. P./João Gomes Jr./Foscarina; 1908/S. P./João Gomes de Araújo/Helena; 1911/S. P./João G. Jr/La Boscaiola;<br />
1912/Curitiba/Augusto Stresser/Sideria; 1913/Buenos Aires/Alberto Nepomuceno/Abdul; 1913/R. J./Araújo<br />
Viana/Rei Galaor; 1917/R. J./H. Villa-Lôbos/Izath; 1917/Belém/Alípio César Pinto da Silva/Notte bizzarra. 1922/<br />
R. J./João Otavino Gonçales/Poema da vida; 1922/R. J./João G. Jr./Dom Casmurro. 1923/R. J./Júlio Reis/Heliofar.<br />
1924/S. P./Carlos de Campos/A bela adormecida. 1924/R. J./Francisco Mignone/O contratador de diamantes.<br />
1925/R. J./Assis Republicano/O bandeirante. 1926/S. P./Carlos de Campos/Um caso singular. 1926/R. J./Alberto<br />
Costa/Sóror Madalena. 1928/R. J./Francisco Mignone/L‘Innocente. 1929/S. P./João G. de Araújo/Maria Petrovna;<br />
1935/P. Alegre/Vitor Ribeiro Neves/Ponaim; 1936/P. Alegre/Roberto Eggers/Farrapos; 1937/R. J./João Otavino<br />
Gonçales/Iracema; 1939/R. J./ Eleazar de Carvalho/A descoberta do Brasil. Fora do recorte temporal desta tese,<br />
destaco as seguintes óperas: 1941/R. J./Eleazar de Carvalho/Tiradentes. 1941/R. J./Oscar Lorenzo Fernandez/<br />
Malazarte; 1950/R. J./Henrique Oswald/Il Neo. 1950/R. J./Iberê Lemos/A ceia dos cardeais. 1950/Blumenau/<br />
Heinz Geyer/Anita Garibaldi. 1952/R. J./Camargo Guarnieri/Pedro Malazarte.<br />
25 Neste trabalho não me proponho a apontar os autores e as peças que não foram encenados no Rio Grande do<br />
Sul, mas somente aqueles que marcaram presença nos teatros sul-rio-grandenses. Entretanto, excepcionalmente,<br />
gostaria de mencionar a obra operística de Heitor Villa-Lobos, um dos mais importantes compositores brasileiros<br />
modernos. Cabe a observação de que suas óperas compostas antes de 1940, ou seja, Izaht (1918); Zoé<br />
(1919); Jesus (1919) e Malazarte (1921) não foram encenadas nos teatros pesquisados.<br />
26 Duval, 1945, p. 59; Moritz, 1975, p. 195-197; Rio Grande. Rio Grande, 11-mai., 1921. Eco do Sul. Rio Grande, 3<br />
e 4-jun., 1921. Coleção de Prospectos, pasta 8, 6-jun., 1921.<br />
27 Moritz, 1975, p. 203. Rio Grande, 4 e 7-ago., 1928. Coleção de Prospectos, pasta 9, 4-ago., 1928.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
330<br />
A Companhia Lírica Popolare Italiana Garofalo-Garavaglia realizou temporada<br />
de 9 récitas no então já centenário Teatro Sete de Setembro, de Rio Grande em agosto de<br />
1935. Com espetáculos diários, chegou a oferecer nos dias 10 e 11 duas sessões. Na bagagem<br />
a companhia trazia, exclusivamente, óperas italianas: de Verdi (La Traviata, Il Rigoletto,<br />
Il Trovatore), Puccini (Tosca, Mme. Butterfly, La Bohème), Leoncavallo (I Pagliacci) e Mascagni<br />
(Cavaleria Rusticana). A estreia foi dia 6 com La Traviata, outra importante ópera<br />
verista criada por Verdi e onde uma meretriz centra as atenções. 28<br />
O Teatro Sete de Setembro albergou igualmente a companhia da soprano lírica<br />
italiana Dora Solima, que fez seu début em 30 de agosto de 1936 com La Traviata. Solima<br />
no papel da rameira, “revelou-se uma grande artista, dona de uma voz admirável, e cantou<br />
com sentimento dando vida extraordinária, como convinha à personagem de Violeta Valery.<br />
Soube tirar partido dos seus recursos vocais. Isso, aliás, valendo-lhe o prestígio que<br />
logo firmou entre a plateia”. Elogios também foram pronunciados ao tenor Abelle de Angeli,<br />
ao barítono José Callini, à cenografia, ao guarda-roupa e a orquestra de cerca de 20<br />
músicos regida pelo maestro Ferdinando Allita. Também compunham esta tournée as<br />
óperas Lucia di Lammermoor, Il Barbiere di Siviglia, I Pagliacci e La Bohème. 29<br />
Em 1930 fundou-se na cidade de Porto Alegre, o Orfeão Rio-Grandense, instituição<br />
destinada, inicialmente, ao canto coral e que em poucos anos já se apresentava<br />
no palco do Teatro São Pedro, encenando óperas completas. Ele realizou espetáculos nos<br />
anos de 1934, 1935 e 1936 alcançando grande popularidade junto ao público citadino.<br />
Seu repertório compunha-se de óperas consagradas e pertencentes ao universo italiano.<br />
Além de Verdi e Donizetti, incluíam autores veristas: Puccini e Mascagni. Na temporada<br />
de 1935 o Orfeão representou Mme. Butterfly, La bohème, Tosca, de Puccini e La traviata,<br />
Trovador, Rigoletto, de Verdi.<br />
A ópera em recitais de canto<br />
Se as companhias profissionais italianas que se apresentavam no Rio Grande do<br />
Sul com certa constância, e permaneciam em temporadas de às vezes semanas ou mesmo<br />
meses, privilegiavam o repertório italiano tradicional que sempre lhes garantiu rendosas<br />
bilheterias, os pequenos recitais de canto ofereciam espaço às novas tendências que floresceram<br />
ou que estavam despontando em outros países da Europa. Esses encontros não<br />
desprezavam, entretanto, as consagradas árias italianas. Nestes espetáculos, que marcaram<br />
igualmente a história da música no extremo sul do Brasil, desenvolveu-se uma cultura<br />
operística “alternativa” a ordem estabelecida e que se contrapunha às peças já clássicas e<br />
inúmeras vezes reprisadas nos grandes teatros regionais. 30<br />
Todavia, deve-se ter presente que os recitais de canto, embora fossem observados<br />
de forma espaçada desde a segunda metade do Oitocentos nos teatros do RS, eles só adquiriram<br />
importância e maior freqüência a partir da década de 1910 e, sobretudo, na década<br />
de 1920 devido, em parte, ao surgimento de uma série de Conservatórios de Música<br />
na região que estimulou o gosto pelo canto. E que, na maior parte dos casos, os recitais<br />
de canto não estavam centrados em repertórios operísticos e nem tampouco apresentavam<br />
peças líricas em sua integralidade. Esses encontros englobavam árias de óperas,<br />
...........................................................................<br />
28 Rio Grande, 6 e 7-ago., 1935. Coleção de Prospectos, pasta 1, 9-ago., 1935. Bittencourt, 1998.<br />
29 Rio Grande, 29 e 31-ago., 1936. Coleção de Prospectos, pasta 2, 29 e 30-ago., 1936.<br />
30 Dentre os compositores e trechos de óperas executados nestes espetáculos e que não encontravam espaço<br />
nos programas das grandes companhias faço registro de Wagner (Tannhäuser, Tristão e Isolda, Rienzi, Navio<br />
fantasma, O crepúsculo dos Deuses e Os mestres cantores de Nürenberg); Mozart (A flauta mágica, As bodas de<br />
Figaro, Rapto do serralho, Idomeneo e a pequena ópera-bufa Bastien et Bastienne); Flotow (Martha); Humperdink<br />
(com a feerie Haensel und Gretel); Gluck (Orfeu e Eurídice, Alceste); Beethoven (Fidelio) e Strauss, dentro do<br />
universo germânico. Massenet (Thaïs), Délibes (Lakmé) e Saint-Saëns respondem pelos autores franceses e<br />
Tchaikowisky (A dama de espadas) pela moderna ópera russa. Registro igualmente a ópera Simon Boccanegra,<br />
que embora pertença a Verdi, nunca foi encenada pelos elencos profissionais.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
331<br />
lieder, volkslieder, cantatas, poemas sinfônicos, poesias musicais... e mesmo cantos populares<br />
e folclóricos.<br />
Isso posto, acerca desses recitais ecléticos de canto tecerei breves parágrafos<br />
debruçando-me somente nos registros do século XX.<br />
Nas primeiras décadas do século passado, os recitais de canto já tinham adquirido<br />
prestígio junto ao público sulino. Nesse período, merece destaque as várias audições das<br />
cantoras Olyntha Braga e Izabel de Verney Campello, ambas gaúchas, assim como as<br />
apresentações da soprano brasileira Hedy Iracema que já havia atuado como prima-dona<br />
da Ópera de Stuttgart. Outro artista de relevância no canto neste período foi o baixo<br />
alemão Hans Edgar Obersteller que se exibiu no Teatro São Pedro, da capital em 1915. O<br />
famoso cantor que em sua carreira internacional contava com apresentações no Covent<br />
Garden, na Ópera de Munique, no Colón e, sobretudo, nos festivais de Bayreuth, realizou<br />
em Porto Alegre cinco recitais executando um longo programa centrado em compositores<br />
germânicos e incluindo árias de óperas, Lieder e Volklieder (canções do folclore germânico).<br />
Durante o entre-guerras os recitais de canto tornaram-se mais frequentes. Nos<br />
espetáculos de canto figuraram as sempre apreciadas árias de Rossini, Donizetti, Verdi,<br />
Puccini, Bellini, Cimarosa, Bizet, Wagner, Mozart, Gluck, Beethoven, Weber e Carlos Gomes.<br />
Ao lado deste repertório operístico eclético, outros compositores mereceram especial<br />
atenção nos programas de recitais de voz, notadamente, os românticos: Schumann, Wolf,<br />
Schubert, Mendelssohn, Flotow, Strauss; os clássicos Händel, Lotti e Caccini; o barroco<br />
Scarlatti; os academicistas franceses Massenet e Franck; e os nacionalistas russos<br />
Tchaikowski e Rimsky-Korsakoff. Destaque também para o compositor russo dos começos<br />
do século XX, Rachmaninoff que se constituiu no autor mais moderno executado, mesmo<br />
que sua produção fosse fortemente influenciada pelo Romantismo de Liszt e de Chopin.<br />
Dos compositores brasileiros destaco algumas canções de Alberto Nepomuceno e de Ernani<br />
Braga, ambos pertencentes a segunda geração de autores nacionalistas, assim como algumas<br />
peças do sul-rio-grandense Heckel Tavares, também desta mesma fase.<br />
O primeiro grande concertista de canto a se apresentar ao público gaúcho na<br />
década de 1920, foi o tenor alemão Karl Jörn, que ocupou o Teatro São Pedro, de Porto<br />
Alegre em agosto deste ano. Nos quatro saraus que realizou, dedicou especial atenção a<br />
Wagner (Tannhäuser, Lohengrin, Stolzing, Rienzi, Loge etc.). Ofereceu, igualmente, à plateia<br />
do sul uma série de lieder de Schubert, Schumann, Wolf e de Strauss; trechos de<br />
composições do brasileiro Nepomuceno, e cortina lírica com peças de Mozart, Bizet, Verdi<br />
e Puccini.<br />
A cantora lírica pelotense Zola Amaro, conhecida da cena nacional e internacional,<br />
31 exibiu-se, em 1923, em teatros de sua terra natal ao lado do barítono Andino<br />
Abreu. Em Porto Alegre, no Teatro São Pedro, interpretou uma série de árias de óperas<br />
veristas e também O sonho de Elsa, de Wagner e A casinha pequenina, grande sucesso de<br />
Ernani Braga. Retornou dois anos mais tarde a este palco com a Morte de Isolda, do mesmo<br />
Wagner. Apresentou-se também no Teatro Sete de Abril, de Pelotas e, em fins de maio,<br />
cantou pela primeira vez ao público da cidade de Rio Grande. Acompanhada ao piano<br />
pelo maestro local Angelo Celega, a intérprete executou alguns trechos das óperas Andréa<br />
...........................................................................<br />
31 Natural de Pelotas, Zola Amaro (1891-1944) iniciou-se no canto lírico, por influência do tenor Enrico Caruso<br />
que conheceu em viagem a Buenos Aires. Instalando-se na capital portenha aperfeiçoou seus estudos. Estreou<br />
em Bahia Blanca, Argentina em 1919. Consagrou-se no Costanzi, de Roma tendo se exibido também em outros<br />
teatros da Itália. Em 1920 atuou no Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Retornando à Europa cantou no São<br />
Carlos, de Nápoles; La Fenice, de Veneza; Scala, de Milão, assim como em Turim, Palermo, Catânia, Trieste,<br />
Florença, Bolonha, Udine, Pesaro e em Cremona. Posteriormente apresentou-se no Covent Garden, de Londres;<br />
no Real, de Madri; em Haia, Amsterdam, Roterdam e na Grécia. No Scala, cantou sob a regência do célebre<br />
maestro Arturo Toscanini (1867-1957). Foi a primeira brasileira a pisar o palco deste grande templo da ópera<br />
mundial. Fez uma longa carreira de concertista, manteve-se ativa até a sua morte em 1944, ano em que realizou<br />
récita no Teatro São Pedro (Enciclopédia, p. 29-30. Moritz, 1975, p. 191-192. Campos, 1998).<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
332<br />
Chenier, Lohengrin, e Norma. O recital foi um sucesso; aclamada pelo público rio-grandino,<br />
voltaria a esta cidade no mês de novembro, realizando récita no palco do Cine-Teatro Carlos<br />
Gomes. Também nesta casa fez recital em outubro de 1929. 32<br />
Após apresentar-se no mês de março em Porto Alegre, proporcionando ao público<br />
do Teatro São Pedro uma soirée fortemente marcada por canções brasileiras, a soprano<br />
Iracema Follador ocupou o palco do Teatro Sete de Setembro, de Rio Grande em 19<br />
de maio de 1925, conquistando o público local com suas interpretações. Executou algumas<br />
árias operísticas: Thaïs, de Massenet; Mignon, de Ambroise Thomas; Andréa Chenier, de<br />
Umberto Giordano. A escolha das partituras nacionais recaiu sobre As Trovas, de Alberto<br />
Nepomuceno e A Eterna Canção, de Araújo Vianna. 33<br />
Depois de excursionar pelas repúblicas do Prata, a já conhecida do público sulino<br />
Julieta Telles de Menezes fez-se ouvir em 1928 na cidade de Rio Grande. Abolindo o tradicional<br />
repertório operístico, escolheu para seu sarau peças de Pergolesi, Sarri, Cesti,<br />
Schumann, Debussy, Dalcroze. A última parte do espetáculo foi destinada à música erudita<br />
nacional: Amor, de Araújo Vianna; Cantigas, de Alberto Nepomuceno; Sinos da Aldeia,<br />
de Heitor Villa-Lobos; Canção de Rua, de J. Octaviano; Toada Para Você, de Lorenzo Fernandez<br />
e do acalanto popular Tutú Marambá, de Luciano Gallet. Acompanhada ao piano<br />
pelo maestro Angelo Celega, a concertista venceu, brilhantemente, este repertório eclético,<br />
demonstrando sua versatilidade e maestria no domínio da modulação da voz frente às<br />
mais variadas exigências das partituras escolhidas. No Teatro São Pedro, da capital gaúcha<br />
Menezes realizou neste ano dois recitais nos quais, igualmente, destinou parte a composições<br />
de autores brasileiros. 34 A música brasileira começava assim a se afirmar nos repertórios<br />
dos recitais eruditos.<br />
Em 1933, excursionaria pelo Estado aquela que pode ser considerada a mais célebre<br />
soprano brasileira: Bidu Sayão. 35 Mundialmente reconhecida a diva apresentou-se<br />
primeiramente no Teatro Sete de Setembro, de Rio Grande, em 29 de setembro executando<br />
um repertório bem amplo que incluiu obras de: Cesti, Gluck, Mozart; Chopin, De Falla,<br />
Liodow, Auber, Nin, Rossini, e Donizetti. Em português, interpretou dois números: Canto<br />
da Saudade e Casinha Pequenina, sucessos de Ernani Braga. Seguindo para a cidade de<br />
Pelotas, realizou dois recitais no Teatro Guarani. Em Porto Alegre executou três aplaudidas<br />
apresentações cantando páginas de Bach, Gluck, Mozart, Bellini, Donizetti e Braga.<br />
Retornou ao Sul do país no ano seguinte, para mais uma promissora tournée. Em Rio<br />
Grande, ocupou novamente o teatro Sete de Setembro em 3 de novembro. Acompanhada<br />
por músicos locais e pelo pianista e compositor gaúcho Radamés Gnatalli, a soprano carioca<br />
demonstrou o virtuosismo de sua voz executando um longo e eclético programa que<br />
incluiu autores como Grétry, Pasiello, Mozart, Rossini, Verdi, Delibez, Liadoff, Giordano,<br />
Leroux, Liszt e o brasileiro Alberto Costa. No teatro São Pedro, da capital do Estado, Sayão<br />
executou diversos compositores, entretanto destacavam-se árias de óperas de Mozart: A<br />
flauta mágica, As bodas de Fígaro, O rapto do serralho, Idomeneo, além de Alleluia, do<br />
repertório sacro do autor. 36<br />
...........................................................................<br />
32 Caro, 1975, p. 320. Echenique, 1934, p. 89. Rio Grande, 25 e 26-mai., 1925. Bittencourt, 1998.<br />
33 Iracema Follador foi aluna da célebre cantora sul-rio-grandense Amália Iracema, cf. Caro, 1975, p. 320. Rio<br />
Grande, 19 e 20-mai., 1925.<br />
34 Rio Grande, 11 e 15-out., 1928. Caro, 1975, p. 323.<br />
35 Bidu Sayão nasceu no Rio de Janeiro, em 11 de maio de 1902, onde principiou seus estudos e audições. Sua<br />
carreira internacional teve início em 1926, no Costanzi, de Roma, tendo cantado também no São Carlos, de<br />
Nápoles; no Scala, de Milão; em Turim e Lisboa. No começo dos anos 30 fez sucesso no Opéra e no Opéra-<br />
Comique, de Paris. Em 1935 debutou nos Estados Unidos da América, após se exibir em Buenos Aires. Em fevereiro<br />
de 1937 foi contratada para compor o elenco permanente do Metropolitan Opera House, de New York,<br />
cidade onde passou a concentrar definitivamente sua carreira. Faleceu em 1999 (Enciclopédia, 1998, p.703).<br />
36 Rio Grande, 29 e 30-set. e 2-out., 1933; 3-nov., 1934. Coleção de Prospectos, pasta 1, 28-set., 1933. Caro,<br />
1975, p. 329-330.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
333<br />
Outro nome de destaque no canto nesta década de 1930 nos teatros sulinos foi<br />
a soprano polonesa Wanda Werminska, prima-dona da Ópera de Varsóvia, que realizou<br />
recital no Teatro Sete de Setembro, de Rio Grande, em 13 de agosto de 1934. Em uma única<br />
apresentação ela seduziu o público e a imprensa locais. No programa trechos das óperas<br />
Tosca e Mme. Butterfly (Puccini) e Carmem (Bizet). Também Saudade e Mazurka, de Chopin;<br />
Margareta, de Schubert; Wals, de Rózycki; Menina Alegre, de Frydmann, Canções<br />
espanholas, de Delibez, Dama de Espadas, de Tchaikowsky, algumas canções cracovianas,<br />
além de Canção, do brasileiro Marcelo Tupinambá. Apresentando-se no Teatro São Pedro,<br />
de Porto Alegre interpretou árias de Alceste, de Gluck, da Dama de Espadas, de Tchaikowsky,<br />
a Habanera da famosa ópera de Bizet e uma série de canções de seu país. 37<br />
Em 1937, já então contratada do Metropolitan Opera de New York, a soprano<br />
Bidú Sayão retornou ao Rio Grande do Sul, realizansdo seus últimos recitais na região.<br />
Após apresentar-se nas cidades de Porto Alegre e de Pelotas, exibiu-se à plateia do Politeama<br />
Rio-Grandense, de Rio Grande em 7 de agosto. Acompanhada ao piano por Werther<br />
Politano, a consagrada cantora abriu o espetáculo com árias escolhidas da ópera A Flauta<br />
Mágica, de Mozart. Seguiram-se: La Farfalletta (Bellini), La Pastoreila (Rossini), La Traviata<br />
(Verdi), Le Rossignol (Saint-Saens), Tristesse (Chopin), Rêve d’amour (Liszt), Le Rossignol et<br />
la Rose (R. Korsakoff), The Kuckoo (Lisa Lehemann), La Girometta (Libella), Leclet de Rire<br />
(Amba). Do repertório nacional figuraram trechos da ópera Il Guarany, de Carlos Gomes e<br />
Canção de Ninar, de P. Barroso. 38<br />
Considerações finais<br />
A análise do repertório lírico executado nos principais teatros do Rio Grande do<br />
Sul, da segunda metade do século XIX até 1940, revela que o gênero ópera foi grandemente<br />
tributário dos programas apresentados pelas companhias líricas italianas que realizavam<br />
temporadas nas cidades da região. Ele estava alicerçado nas criações italianas oitocentistas,<br />
notadamente, no Romantismo e no Verismo (Realismo lírico). O repertório francês de<br />
ópera se fazia também remarcar, embora se limitasse a alguns poucos autores. Destacaramse<br />
compositores do bel canto como Verdi, Donizetti, Bellini, Rossini, Puccini; os representantes<br />
da Grande ópera francesa como Meyerbeer, Gounod, Massenet. Também os<br />
autores veristas como Mascagni, Leoncavallo, Puccini, Bizet e, de certa forma, Verdi com<br />
seu “realismo romântico”. 39<br />
Outros músicos pertencentes a diferentes períodos da história da ópera encontravam<br />
espaço somente nos pequenos recitais de canto. Suas obras foram, portanto, parcialmente<br />
conhecidas; não sendo encenadas. Estes espetáculos limitavam-se a execução<br />
de seus trechos mais significativos. Foi desta maneira “breve” e superficial que importantes<br />
operístas do Classicismo como Gluck, Mozart; do Romantismo como Beethoven, Flotow,<br />
Humperdink, Wagner o criador do “drama musical”; do Pós-romantismo como Richard<br />
Strauss; da escola francesa dos finais do século XIX como Délibes, Saint-Saëns, foram apresentados<br />
às plateias do Sul.<br />
O estudo da programação operística dos teatros sulinos revela também que<br />
outros compositores determinantes na formação e na evolução do gênero lírico como os<br />
fundadores Peri e Monteverdi; os italianos Scarlatti, Pergolesi, Cimarosa, Paisiello, Cherubin;<br />
os franceses Lully, Ramaeu, Berlioz, Debussy, os alemães Händel, Haydn, Schönberg; o<br />
húngaro Béla Bartók, entre tantos mais, estavam completamente ausentes dos palcos da<br />
...........................................................................<br />
37 Rio Grande, 11, 13 e 14-ago., 1933. Caro, 1975, p. 329.<br />
38 Caro, 1975, p. 332. Rio Grande, 7 e 9-ago., 1937.<br />
39 La traviata (1853) de Verdi, baseada no romance de Alexandre Dumas Filho – que aliás estreou como peça<br />
teatral neste mesmo ano – é uma criação sensível, íntima, de um impressionante realismo, que a conecta com<br />
esta corrente lírica.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
334<br />
região. Nenhum registro de criações do Renascimento, do Barroco, do Rococó. Reitero<br />
que as poucas peças do Classicismo só são observadas nos recitais de canto. Dos modernos<br />
autores que nos começos do século XX vitalizaram a ópera, como os alemães Kurt Weill,<br />
Carl Orff, o russo Serge Prokofiev, igualmente, não possuo nenhum espetáculo registrado.<br />
Assim, acredito ser correto afirmar que a presença ópera nos teatros do extremosul<br />
do Brasil acompanha o percurso do desenvolvimento do gênero lírico em muitos países,<br />
notadamente nos de formação latina. Ela nasceu sob o signo do Romantismo italiano e<br />
jamais se distanciou consideravelmente de sua bella Península natal.<br />
Na década de 1930, Bidú Sayão (1902-1999), a mais célebre cantora lírica brasileira, apresentou-se, por repetidas<br />
vezes, nos teatros do Rio Grande do Sul.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
335<br />
O compositor Carlos Gomes (1836-1896) foi o operista brasileiro mais executado no Rio Grande do Sul. Sua ópera<br />
Il Guarany apresenta-se como o maior sucesso nacional do gênero; uma presença constante nos repertórios das<br />
companhias italianas que excursionavam pelos teatros sulinos; uma espécie de homenagem ao público do país que<br />
as acolhia.<br />
Desde o século XIX, as companhias de ópera italianas marcavam presença nos palcos do Rio Grande do Sul<br />
garantindo para si a hegemonia do gênero lírico e o predomínio do repertório italiano. Uma das mais importantes<br />
cantoras a frequentar os palcos regionais foi a soprano italiana Amelita Galli-Curci (1882-1963), em finais de 1915.<br />
Nesta foto, Galli-Curci interpreta a personagem Violeta, da ópera La Traviata, de Verdi, um dos grandes sucessos do<br />
compositor.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
336<br />
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1: 1919-25 (Pasta 8); Politeama Rio-Grandense – 2: 1926-28 (Pasta 9); Politeama Rio-<br />
Grandense – 3: 1929-34 (Pasta 10); Politeama Rio-Grandense – 4: 1935-53 (Pasta 11);<br />
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2004.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
339<br />
A ópera Jupyra no contexto geral<br />
de Francisco Braga<br />
Rubens Russomano Ricciardi<br />
Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto<br />
Uma criança órfã, Antônio Francisco Braga 1 (Rio de Janeiro, 1868-1945), em 1876,<br />
passou a viver no Asilo dos Meninos Desvalidos. Reconhecendo seu talento para a música,<br />
o dr. Daniel de Almeida, diretor do asilo, fez com que Francisco Braga ingressasse como<br />
aluno no Imperial Conservatório de Música. Pouco tempo depois, o jovem músico já dirigia<br />
a banda do Asilo. Em 1886, concluiu o curso de clarineta na classe de Antônio Luiz de<br />
Moura (Rio de Janeiro, 1820-1889), tendo estudado também composição (harmonia e<br />
contraponto) com o então jovem professor Carlos Marciano de Mesquita (Rio de Janeiro,<br />
1864 – Paris, 1953), que fora aluno, em Paris, de grandes nomes da época, como Jules<br />
Massenet (composição, contraponto e fuga), Cásar Frank (órgão) e Émile Durant (harmonia).<br />
A esse período remontam já as primeiras composições de Francisco Braga, como<br />
peças para banda e música de câmara.<br />
Em 1887, a abertura Fantasia (1886), sua primeira composição sinfônica, é estreada<br />
no então Imperial Teatro São Pedro de Alcântara, no Rio de Janeiro (onde hoje se<br />
situa o Teatro João Caetano), sob regência de seu professor, Carlos de Mesquita, no primeiro<br />
dos Concertos Populares, a primeira série de concertos sinfônicos públicos do Rio de Janeiro,<br />
idealizada pelo próprio Mesquita. Em 1888, em carta endereçada ao diretor do<br />
asilo, Francisco Braga pede seu desligamento como interno, por ter atingido a maioridade,<br />
mas se mantém vinculado à instituição, agora como professor de música.<br />
Em 1889, por ocasião da Proclamação da República, foi aberto concurso para<br />
escolha de um hino que homenageasse a data. Francisco Braga é um dos 36 inscritos. Em<br />
janeiro de 1890, são executados os trabalhos dos concorrentes do concurso, em espetáculo<br />
realizado no Teatro Lírico do Rio de Janeiro (próximo à atual rua 13 de maio, infelizmente<br />
já há muito demolido), com a presença do marechal Deodoro da Fonseca. A regência esteve<br />
a cargo do próprio Carlos de Mesquita, então um dos músicos mais influentes do<br />
Brasil, que também havia sido membro do júri. Foram selecionados quatro hinos, e, dentre<br />
eles, o de Francisco Braga. No entanto, o grande premiado foi Leopoldo Miguez (Niterói,<br />
1850 – Rio de Janeiro, 1902). Francisco Braga, por sua vez, é contemplado com uma viagem<br />
de estudos à França, como bolsista do Estado.<br />
Em fevereiro de 1890, segue para Europa, onde permanecerá por 10 anos. Inicialmente<br />
em Paris, submeteu-se a um concurso para ingressar como aluno do Conservatório<br />
de Música. Seguindo os conselhos de seu professor Carlos de Mesquita, Francisco Braga<br />
optou por ser também aluno de Massenet, com quem passou a estudar composição.<br />
Compõs várias pequenas peças camerísticas, bem ao gosto francês da época. Em 1892,<br />
...........................................................................<br />
1 Destaca-se, dentre as informações biográficas sobre Francisco Braga, a Cronologia elaborada em Pequeno,<br />
Mercedes Reis. Exposição Comemorativa do Centenário do Nascimento de Francisco Braga (1868-1945). Rio de<br />
Janeiro: Biblioteca Nacional, 1968, p. 11-19. Temos ainda a coleção de cartas e cartões postais de Francisco<br />
Braga à família de Francisco e Victória Buschmann. São documentos datados desde o final do século XIX até<br />
bem próximo à morte de Braga. Destacam-se, em especial, as cartas escritas a Francisco Buschmann (dinamarquês<br />
de nascimento, residiu no Brasil antes de se radicar na Alemanha, tendo sido o mecenas de Francisco<br />
Braga na Europa) e a seus filhos Johannes (cujo apelido era Didi) e Carolina (cujo apelido era Mimica, a última<br />
sobrevivente da família Buschmann a manter correspondência com Francisco Braga). Essa coleção está depositada<br />
na Divisão de Manuscritos da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, sob o nº 50.3.8, da qual extraímos os<br />
diversos textos redigidos por Francisco Braga aqui transcritos.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
340<br />
graças à solicitação do próprio Massenet, consegue uma prorrogação do prazo de sua<br />
permanência em Paris, a fim de não interromper seus estudos. Ainda na capital francesa,<br />
inicia-se a fase mais produtiva de sua carreira como compositor. Francisco Braga começa<br />
a compor suas obras sinfônicas de maior importância, como Paysage (1892) e Cauchemar<br />
(1895). Ambas as obras foram estreadas no Rio de Janeiro, sob regência do violinista e<br />
cronista Vincenzo Cernicchiaro (Torraca, Itália – 1858 – Rio de Janeiro, 1928), respectivamente<br />
no Teatro São Pedro de Alcântara (1892) e no Cassino Fluminense (1895).<br />
A 5 de fevereiro de 1895, Francisco Braga se apresenta no Salle D’Harcourt, num<br />
concerto intitulado Festival Brésilien. Além de seus próprios trabalhos de música de câmara,<br />
são apresentadas também obras de outros compositores brasileiros, como Carlos Gomes,<br />
Francisco Valle, Alberto Nepomuceno e ainda seu ex-professor, Carlos de Mesquita, agora<br />
também radicado em Paris, que passa a ser seu parceiro em projetos de realização de<br />
concertos.<br />
No ano seguinte, a 4 de fevereiro de 1896, Francisco Braga e Carlos de Mesquita<br />
dividem a regência no grande Concert Brésilien, um projeto ainda mais ambicioso, desta<br />
vez na Galerie des Champs-Elysées, com uma orquestra de 60 músicos e vários solistas,<br />
como Marie Dalzen, Zocchi, Clemence Hémar (cantores), Mathilde Sinay, Andréa Vhery e<br />
Oliveira Guimarães (pianistas). São apresentadas neste concerto, com mais de 4 horas de<br />
duração, 14 obras sinfônicas, concertantes e trechos operísticos de Carlos Gomes (de<br />
Odalea, Lo Schiavo e Il Guarany) – obras sugeridas pelo próprio compositor, que manteve<br />
correspondência com Francisco Braga -; Franz Liszt (Fantaisie Hongroise para piano e orquestra);<br />
Carlos de Mesquita (Prélude, 1er Episode Symphonique, Chanson à deux – nº1<br />
des Aquarelles, Etude de Concert em Ré, e trechos da ópera La Esméralda); Alberto Nepomuceno<br />
(Intermezzo); Frédéric François Chopin (Nocturne en Mi b); Louis Moreau Gottschalk<br />
(Tremolo – Etude de Concert); Antoine François Marmontel (Tarantelle); Alexandre Levy<br />
(com a estréia européia do Samba, da Suite Brésilienne) e do próprio Francisco Braga<br />
(Paysage – esquisse symphonique, Cauchemar – scherzo symphonique, Gavotte<br />
Marionettes, Prière e Menuet – essas três últimas para orquestra de cordas, compostas as<br />
duas primeiras em 1892, e a terceira em 1894). No entanto, há uma carta de Carlos Gomes<br />
a Francisco Braga, datada de 18 de fevereiro de 1896, onde o compositor campineiro lamenta<br />
o insucesso deste concerto.<br />
Logo em seguida, Francisco Braga vai para Viena e Dresden, onde é acolhido<br />
pela família do dinamarquês Francisco Buschmann, que passa a ser seu mecenas. Naquele<br />
ano de 1896, e, ainda no ano seguinte, o jovem compositor vai a Bayreuth, para ouvir, por<br />
várias vezes, as óperas de Richard Wagner. Apesar da proximidade com Massenet, seu<br />
professor em Paris, Francisco Braga optou por ter em Wagner seu maior Vorbild como<br />
poética musical de seu tempo.<br />
A 11 de agosto de 1896, Francisco Braga escreve de Bayreuth a Johannes Buschmann<br />
(Didi), 2 filho de Francisco e Victória Buschmann:<br />
por ora tenho a cabeça no poder de Wagner e não penso senão no que ouvi e<br />
no que vou ouvir. Hoje, p. ex. com o Sigfried. Creio que sáhio meio amalucado<br />
do theatro. Sabes que horas são? Acabo de abrir o famoso chronometro, tão<br />
appetitoso e bom, e constato que são 2 horas justas da tarde. Siegfried começa<br />
às 4 horas. Vou fazer a barba, e as 3.35 lá estou com os ouvidos à espera de novas<br />
sensações. Ah! Didi, se soubesses como é bonito tudo isto!? 3<br />
...........................................................................<br />
2 Johannes Buschmann era chamado carinhosamente por Francisco Braga pelo apelido de Didi. Violoncelista<br />
amador, Didi era um apaixonado por música e ópera. Àquela altura ele residia em Lisboa.<br />
3 Em todos os textos de Francisco Braga aqui transcritos mantivemos a ortografia e gramática originais.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
341<br />
A 30 de julho de 1897, em nova carta a Didi, Francisco Braga mais uma vez se<br />
ocupa de Wagner: “Já estou aqui [em Bayreuth] há 4 dias, e já ouvi Parsifal duas vezes,<br />
ouvindo mais uma vez hoje – Que monumento, meu Didi! que sublime concepção!” Logo<br />
em seguida, Francisco Braga narra com detalhes as performances dos principais cantores<br />
– o que sempre se configurava como um dos assuntos prediletos em suas cartas a Didi,<br />
como por exemplo: “Marie Brenna é Anna v. Mildenburg; esta última possuindo uma voz<br />
volumosa e bella, bella ella mesma, e de formas soberbas. A interpretação que dá Marie<br />
Brenna na scena em que ella seduz Parsifal, é voluptuosa, embriagante, demasiadamente<br />
captivante. É grande artista”. A 2 de agosto de 1897, Francisco Braga escreve a Didi sobre<br />
um determinado cantor, outro exemplo de suas observações sobre detalhes da atuação<br />
de cantores em Bayreuth: “Alois Burgsteller, o bello Siefried do anno passado, que tinha<br />
uma soberba cabelleira natural, tingi-os, de maneira que agora está louro e melhor pa o<br />
papel, mas o homem não é tão bonito como antes”.<br />
Francisco Braga havia ouvido “mais uma vez a trilogia Der Ring des Nibelungen,<br />
isto é, o Vorabend – Rheingold”. No mesmo dia, escreve de Bayreuth também a Francisco<br />
Buschmann com o mesmo entusiasmo em relação ao Theatro de Wagner e outras possibilidades<br />
de assistir suas óperas: “Acabo n’este momento de achar uma deliciosa excellente,<br />
gostosa e comfortavel cadeira nº72 e sem pagar mais do preço regular. No bilheteiro,<br />
onde eu tinha pedido há alguns dias, guardaram-me e assim assisto a Nibelungen. Eu já<br />
estava resolvido ir a Munich ouvir Tristan, que se canta no dia 5 [de agosto de 1897] sob<br />
direcção de Richard Strauss”.<br />
Wagner preenchia decididamente os anseios do jovem Francisco Braga em busca<br />
de uma linguagem musical: “Acabei de assistir a serie do Ring des Nibelungen. Cada vez<br />
esta poderosa força do geneo do grande Wagner se incute no meu espírito mais extraordinariamente.<br />
Sahi do theatro com uma emoção considerável. Que música divina!”<br />
(Bayreuth, carta a Didi, 6 de agosto de 1897).<br />
Mas o que lhe fascinava em Wagner não eram os contrastes dramáticos, a alternância<br />
de atmosferas, o princípio de inovação ou ousadia estrutural, mas sim um certo<br />
lirismo melodioso romântico. Na visão de mundo de Francisco Braga, a categoria do “sublime”<br />
era a que de longe maior admiração e respeito lhe causava, diante da qual nem sequer<br />
se fazia necessária uma ideia nova de ruptura ou contraste. A busca por categorias<br />
como a “pureza da arte”, o “belo sagrado” ou a “delicadeza do êxtase” acabou impregnando<br />
toda a obra de Francisco Braga, desde a juventude até os anos mais tardios. Não raramente,<br />
sua personalidade até parecia ingênua, como podemos observar em sua carta à Família<br />
Buschmann, escrita de Bayreuth, a 4 de agosto de 1897: “...gosamos de uma temperatura<br />
fresca de um sol resplendissant, e de um céo azul como os olhos dos cabellos de ouro das<br />
virgens scandinavas”. Em várias outras cartas observamos sempre a mesma e insistente<br />
perspectiva do êxtase e do sublime:<br />
O tempo decididamente não gosta de gente que vem ouvir Parsifal. Durante as<br />
últimas representações choveu a cantaros, depois tudo se serenou. Agora começa<br />
novamente a ficar máu, e com certeza amanhã temos aguaceiro. É que há indivíduos<br />
que vêm profanar o templo sagrado da arte. Os céus castigam, pondoos<br />
na chuva. (Bayreuth, 7 de agosto de 1897)<br />
Eu hontem pensei que o tempo ficasse ruim. Qual! A noite esteve poética, com<br />
um luar adorável. Então pelas 9 horas fui até o theatro, e do plateau gosei dos<br />
suaves raios da lua, e por muito tempo fiquei em êxtase, ouvindo as vozes<br />
interiores de minh’alma, que me diziam... Hoje está um bello dia. (Bayreuth, 8<br />
de agosto de 1897).<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
342<br />
Em março de 1897, Cauchemar e Paysage foram apresentadas mais uma vez,<br />
agora no Teatro Gewerbehaus, em Dresden. Remonta também àquela estada de Francisco<br />
Braga na capital da Saxônia o início dos trabalhos mais intensivos na Jupyra. O compositor<br />
partiu então para a Ilha de Capri (Itália), em novembro de 1897. Até 1900, ano de seu retorno<br />
definitivo ao Brasil, Francisco Braga se ocupará do projeto mais importante de sua<br />
vida: a composição da ópera Jupyra.<br />
Desde 1892, o compositor cogitava a hipótese de compor uma ópera, e, por carta,<br />
solicitou um libreto a seu amigo carioca, o cronista, teatrólogo, jurista, professor e jornalista,<br />
Luiz Gastão de Escragnolle Doria (Rio de Janeiro, 1870-1948), uma figura de destaque<br />
na vida cultural do Rio de Janeiro da época, embora não há como lhe atribuir qualquer<br />
talento especial como autor literário. Francisco Braga assim descreveu suas necessidades<br />
em relação ao libreto: “o assunto brasileiro é quase em mim uma idéia fixa;<br />
para começar, peço-lhe somente um ato, mas um pouco descritivo, para dar lugar à sinfonia”.<br />
Escolheu-se como tema “Jupyra”, o terceiro conto do livro Histórias e tradições da<br />
Província de Minas Gerais (1872), de autoria do poeta e ficcionista Bernardo Joaquim da<br />
Silva Guimarães (Ouro Preto, 1825-1884). Para que pudesse ser posto em música, o conto<br />
de Bernardo Guimarães foi adaptado em forma de libreto por Escragnolle Doria, e, logo<br />
em seguida, traduzido para o italiano por Antonio Menotti Buja (Lecci, Itália, 1877 – Nápoles,<br />
1940). Hoje, passados mais de cem anos e com o devido distanciamento crítico,<br />
não há como negar toda uma fragilidade literária que acabou configurando o libreto da<br />
ópera. Se por um lado, Escragnolle Doria não logrou uma tensão que permitisse à ação<br />
dramática uma estruturação efetiva, o conto original está longe de se situar entre as principais<br />
criações literárias de Bernardo Guimarães.<br />
Segundo Alfredo Bosi (1994, p. 140-144), o regionalismo daquele escritor romântico<br />
mineiro “mistura elementos tomados à narrativa oral, os causos e as estórias de Minas<br />
Gerais e Goiás, com uma boa dose de idealização”. Assim como acontece com a maior<br />
parte dos sertanistas, há, em Bernardo Guimarães “a dificuldade na superação em termos<br />
artísticos do impasse criado pelo encontro do homem culto, portador de padrões psíquicos<br />
e respostas verbais peculiares a seu meio, com uma comunidade rústica, onde é infinitamente<br />
menor a distância entre o natural e o cultural”. Ainda, segundo Bosi:<br />
as várias formas de sertanismo (romântico, naturalista, acadêmico, e, até, modernista),<br />
que têm sulcado as nossas letras desde os meados do século XIX, nasceram<br />
do contato de uma cultura citadina e letrada com a matéria bruta do Brasil rural,<br />
provinciano e arcaico. Como o escritor não pode fazer folclore puro, limita-se a<br />
projetar os próprios interesses ou frustrações na sua viagem literária à roda do<br />
campo. Do enxerto resulta quase sempre uma prosa híbrida onde não alcançam<br />
o ponto de fusão artístico o espelhamento da vida agreste e os modelos ideológicos<br />
e estéticos do prosador. (Bosi, 1994, p. 141)<br />
O talento literário de Bernardo Guimarães foi criticado em seu tempo, não obstante<br />
o lugar de destaque que hoje ocupa no romantismo brasileiro e o sucesso que alcançaram<br />
romances seus, como O Seminarista (1872) e A Escrava Isaura (1875). Segundo<br />
Monteiro Lobato:<br />
lê-lo é ir para o mato, para a roça, mas uma roça adjetivada por menina do Sião,<br />
onde os prados são amenos, os vergéis floridos, os rios caudalosos, as matas viridentes,<br />
os píncaros altíssimos, os sabiás sonorosos, as rolinhas meigas. Bernardo<br />
descreve a natureza como um cego que ouvisse cantar e reproduzisse as paisagens<br />
com os qualificativos surrados do mau contador. Não existe nele o vinco enérgico<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
343<br />
da impressão pessoal. Nossas desajeitadíssimas caipiras são sempre lindas morenas<br />
cor de jambo. Bernardo falsifica o nosso mato. (Bosi, 1994, p. 142)<br />
Basta pensarmos numa personagem como Rosalia, a boa moça branca e rival<br />
da índia Jupyra, para entendermos a colocação de Monteiro Lobato. Já a personagem Jupyra,<br />
a infeliz e vingativa protagonista no contexto literário de Bernardo Guimarães, talvez<br />
seja um entre os mais representativos exemplos, na caracterização de uma natural má<br />
índole, contrastante a uma bondade natural (prolongamento do bom selvagem, herança<br />
já de um José de Alencar) também presente em outras obras suas. Não é por menos que<br />
num diálogo da cena IX, Rosalia chama Jupyra de Razza abbieta, razza ville! (raça abjeta,<br />
raça vil). Seria néscio, no entanto, segundo Alfredo Bosi, falar em preconceito como atitude<br />
etnicamente responsável. Pelo contrário, em Rosaura – a enjeitada (1883), obra da maturidade,<br />
Bernardo Guimarães chegou a dizer: “em nossa terra é uma sandice querer a<br />
gente gloriar-se de ser descendente de ilustres avós; é como dizia um velho tio meu: no<br />
Brasil ninguém pode gabar-se de que entre seus avós não haja quem não tenha puxado<br />
flecha ou tocado marimba” (Bosi, 1994, p. 144), referindo-se assim à grande maioria mestiça<br />
da população brasileira composta por descendentes de índios e negros, mesclados<br />
com europeus. E no libreto da Jupyra, do mesmo modo, há o confronto entre personagens<br />
de origens étnicas diversas. A breve e trágica história se passa no século XIX, na região da<br />
Vila de Campanha do Rio Verde, no centro-sul da Província de Minas Gerais.<br />
O coro inicial anuncia que o amor é volúvel, que muda como a lua e o vento. Jupyra,<br />
uma jovem e humilde índia, está apaixonada por Carlito, com quem vinha tendo um caso<br />
amoroso. No entanto, Quirino se declara a Jupyra, e pelo seu amor seria capaz de qualquer<br />
ato. Mas Jupyra não corresponde aos desejos de Quirino e se sente feliz por amar Carlito, imaginando<br />
que seu amor fosse correspondido. Carlito, por sua vez, já estava enjoado dos amores<br />
com Jupyra e queria se livrar dela, mas não pretendia, no entanto, causar constrangimentos.<br />
E, por isso, dissimulava. Perguntado por Jupyra se ele ainda a amava, Carlito responde tão<br />
somente: “pergunte aos meus amigos”. Carlito se encontra com Rosalia, moça branca e bonita,<br />
e há toda uma cena amorosa entre os dois, com juras românticas eternas. Esse encontro<br />
é presenciado por Jupyra, que vê e ouve tudo escondida. Jupyra entra em desespero<br />
quando houve Carlito contar a Rosalia que tudo que ele havia tido com uma índia (no caso,<br />
com ela, Jupyra) nada mais seria que um passatempo. Jupyra se sente rejeitada, e em<br />
um novo encontro com Quirino lhe dá um punhal e lhe pede que mate Carlito, pois assim<br />
Quirino poderia tê-la como recompensa. Carlito se despede de Rosalia para ir caçar, no<br />
momento em que Rosalia lhe adverte de um sonho terrível que havia tido. Jupyra declara<br />
seu ódio a Rosalia, mas esta a despreza. Carlito é seguido por Quirino pela floresta. Por<br />
fim, Quirino aparece com a faca ensanguentada e é amaldiçoado por Rosalia. Jupyra, ao<br />
ver o corpo de Carlito boiando no Rio Verde, se atira de uma ponte para a morte.<br />
Francisco Braga evoca um único canto popular na Jupyra: o inequívoco dolce no<br />
tema da abertura, depois recapitulado na Coda final, lembrando o modo mixolídio, com a<br />
7 a menor, tão típico do nordeste brasileiro. Mas na obra de Francisco Braga jamais se<br />
consolidou qualquer neofolclorismo, tal como nas gerações modernas seguintes. A linguagem<br />
musical de Francisco Braga contém, portanto, uma síntese de várias correntes<br />
musicais românticas européias de sua época, que remontam desde a influência direta de<br />
seu professor Massenet, em Paris, mesclada com certos recursos típicos do verismo de<br />
algumas óperas italianas – lembrando aqui que Verdi era seu compositor italiano predileto 4<br />
...........................................................................<br />
4 Em carta a Francisco Buschmann, escrita do Rio de Janeiro, a 18 de setembro de 1902, Francisco Braga assim se<br />
refere à ópera italiana de seu tempo: “Não sei, mas os italianos, sua escola, suas operas, fazem-me mal, acho-os<br />
falsos em tudo. Salva-se, dos modernos, o principe – G. Verdi. Este foi artista sincero. Mas toda esta sucea de<br />
Puccini e Leoncavallo e Mascagni e Franchetti, e não sei quem mais ainda, são uns pedantes, falsos prophetas.”<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
344<br />
– e, principalmente, acolhendo também o sinfonismo contraponstístico de Wagner, sobre<br />
o qual o compositor carioca edifica sua linguagem operística eminentemente melódica e<br />
romântica.<br />
A 29 de dezembro de 1897, da Ilha de Capri, Francisco Braga escreve à Família<br />
Buschamnn agradecendo o envio de presentes de natal. Em especial, refere-se a uma<br />
obra de Wagner que ele necessitava estudar por ocasião da composição de sua ópera Jupyra:<br />
“Quanto à partitura do Götterdämmerung como o Álbum vieram preencher duas<br />
lacunas há muito ambicionadas”. Outra partitura que lhe serviu de referência para seu<br />
trabalho diário na Jupyra foi Die Meistersinger von Nürnberg, na versão reduzida para<br />
canto e piano.<br />
Empolgado com a composição da ópera Jupyra, Francisco Braga, em sua estada<br />
na Ilha de Capri, já vislumbrava, a 12 de fevereiro de 1898, uma rápida possibilidade de<br />
estréia: “Por aqui continua tudo como sempre, pois esta ilha é uma maravilha, um encanto<br />
de belleza! Tenho trabalhado bastante na minha Jupyra, que, se Deus quiser verá a scena<br />
este 1898”. O próprio compositor já descrevia seu processo criativo em carta a Scragnolle<br />
Doria: “ardo de impaciência a tal ponto que tenho momentos de febre quando me sento<br />
ao piano e ensaio certas scenas da nossa Jupyra... De improviso, componho, canto palavras<br />
sem nexo, imagino acentuações dramáticas, enfim, um horror, uma alucinação”. A 16 de<br />
abril de 1898, Francisco Braga já cogitava também a possibilidade de edição, mesmo a<br />
partitura da Jupyra ainda não estando concluída: “não posso ainda ir-me, pois não estive<br />
ainda com o homem da Ricordi. É necessário ainda muito trabalho, por as cousas em<br />
ordem para a execução, se bem que só possa passar a metade; o que há ainda a fazer é<br />
forte! Não se pode precipitar assim os acontecimentos. Mas vae indo”. Entretanto, essas<br />
possíveis tratativas com a editora de música Ricordi jamais se concretizariam. Ainda da<br />
Ilha de Capri, a 20 de junho de 1898, Francisco Braga escreve ao seu mecenas, o velho<br />
Buschmann, já satisfeito com os primeiros resultados de sua composição: “A Jupyra que,<br />
cada vez fica mais bella, lhe envia saudações amistosas”. Em 1898, um ano dos mais produtivos<br />
em toda sua vida, Francisco Braga, além de se concentrar intensamente na composição<br />
da Jupyra, consegue levar a cabo a composição de várias outras obras, incluindose<br />
o Episódio Sinfônico e o poema sinfônico Marabá, este último trabalho inspirado em<br />
mais um texto do seu libretista Escragnolle Doria.<br />
No início de 1899, Francisco Braga volta à Alemanha, mesmo com a partitura da<br />
ópera ainda não estando totalmente concluída. Em Dresden, a 17 de janeiro de 1899, em<br />
nova carta a Buschmann, ele relata o estágio em que o trabalho se encontrava naquele<br />
momento e começa a se preocupar com as incertezas sobre o destino da Jupyra: “Actualmente<br />
trabalho na orchestração final da minha obra. Sobre a execução não posso ainda<br />
dizer nada, pois vivo ainda de esperança, mas...?” Francisco Braga começa a se deparar<br />
com as enormes dificuldades em viabilizar a estréia da Jupyra na Europa, como podemos<br />
observar de sua carta de 7 de fevereiro de 1899. Ele havia optado pela composição da Jupyra<br />
em italiano, mas como tentava vender sua ópera na Alemanha, verificou a dura necessidade<br />
de traduzir o libreto para o Alemão e ainda ter que adaptá-lo à partitura:<br />
Aqui estou de volta por alguns dias. Já estive com o Possart 5 , intendente do<br />
Theatro real de Munich, que é bem amável, apezar da pose pedantesca que toma<br />
quando dá as suas audiências. Paletot completamente abotoada e a mão direita<br />
sobre o primeiro botão, mas dentro do paletot, com um gesto napoleônico.<br />
Mas o essencial é que é distinto e gentilíssimo. Conversamos uns 12 minutos so-<br />
...........................................................................<br />
5 Ernst von Possart (Berlim, 1841-1921), ator, diretor de cena e intendente de grande influência na produção<br />
operística na Alemanha de seu tempo.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
345<br />
bre a minha pretensão, e elle disse-me: Faça traduzir o seo Dramma em alemão,<br />
e volte aqui, mas faça tudo isso breve e bem! Já vê que não vae muito mal. Aqui<br />
em Dresden está o [Ludwig] Hartmann que traduziu o Pallazzo de Leoncavallo, a<br />
quem escrevi, e que me respondeo de vir vê-lo. E cá me acho. Esta tarde sou<br />
esperado em casa de Hartmann. Eu pensei que as cousas fossem mais faceis,<br />
apezar que não teem sido muito complicadas. Que Deus me ajude.<br />
Nos primeiros momentos deste empreendimento, Francisco Braga estava ainda<br />
esperançoso com o projeto da estreia da Jupyra na Alemanha, junto à Ópera de Munique.<br />
É o que observamos de sua carta de 20 de março de 1899, também endereçada a<br />
Buschmann:<br />
No dia 24 [de março de 1899] o illustre Possart vêm a Dresde, e o meo traductor<br />
Ludwig Hartmann prometteu-me interessar-se pela Jupyra, e falar ao Possart<br />
que é também seu amigo. O Hartmann está muito satisfeito com o trabalho, e<br />
disse-me que cada vez lhe agrada mais a musica. Juntamente lhe envio o<br />
[Dresdner] Neueste Nachrichten que traz uma pequena notícia. Ludwig Hartmann<br />
é o crítico de artes d’esse jornal. Sabbado esteve aqui, e tem já a metade da obra<br />
traduzida. Diz elle que a musica ganha muito com o texto alemão. Veremos o<br />
que será com o Possart. O Hartmann, segundo me disse o editor Bock, quando<br />
se interessa faz muito pela pessoa. É curioso! Só o fato d’elle aceitar a tradução<br />
o que fez depois de ter ouvido toda a opera, eu no Piano e elle com a partitura<br />
de orchestra. Assim mesmo pedio-me que deixasse a musica em sua casa que<br />
queria estudal-a bem, para dar-me dois dias depois, uma resposta decisiva. Naturalmente<br />
gostou. Pois o Bock ficou me olhando como se eu fosse um bicho!<br />
Logo em seguida, em abril de 1899, Francisco Braga se encontra novamente<br />
com o intendente do Teatro de Munique:<br />
O Possart esteve aqui e repetio o que tinha dito em Munich: que quando tudo<br />
fosse prompto entregasse a elle. No próximo sabbado parto para München,<br />
pois tudo estará prompto graças a Deus, n’aquella epocha. Não sei se valerá a<br />
pena uma grande e dispendiosa viagem para ouvir a insignificante obra de um<br />
principiante. Em todo o caso é gentil a idéia que muito me lisongea. O Hartmann<br />
mesmo é quem quer ser o portador da obra ao Possart. Veremos em que dará<br />
essa innocente tentativa de artista ambicioso de glórias?!<br />
No entanto, Francisco Braga mantinha seu entusiasmo sob severa parcimônia,<br />
pois lhe parecia claro que as chances não eram grandes em ver a Jupyra estreada em<br />
Munique. A 13 de abril de 1899, ainda em Dresden, há um novo relato sobre seus planos:<br />
Devo partir para Munich desde que fôr cantada a ópera de Vogl, que creio será<br />
no dia 24 ou 26 [de abril de 1899]. Segundo as decisões [de Possart], ruins ou<br />
bôas, devo seguir para a Italia para tratar das representações futuras da Jupyra.<br />
Talvez depois da opera ser representada em Munich (se o fôr) fará o seu giro pela<br />
Alemanha... Mas qual! Tudo isto não depende de mim, não vale a pena armar<br />
castellos, somente pelo prazer de os desarmar depois.<br />
O compositor carioca passaria ainda por difíceis momentos de angústia e longa<br />
indefinição. A 18 de maio de 1899, escreve de Munique a Francisco Buschmann:<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
346<br />
Eu aqui estou desde 5 a feira última; já o manuscripto está em mãos do Intendente<br />
[Possart]; eu estou esperando a decisão que me foi marcada para 15 dias depois;<br />
e desde que tenha uma bôa notícia lhe communicarei. Não tive occasião de<br />
executar eu mesmo o trabalho. Foi, como de costume, submettido à commissão<br />
de que fazem parte os célebres Levi 6 e Fischer 7 !?? Será o que Deus quiser.<br />
A decisão se adiava. A 2 de junho de 1899, Francisco Braga relatava que ainda<br />
esperava pela decisão, se sua ópera Jupyra seria ou não programada pelo Teatro de Ópera<br />
de Munique, pois segundo soube pelo intendente Possart, a partitura ainda estaria “em<br />
mãos do Kapellmeister Fischer”. Enfim, apesar de não receber qualquer confirmação,<br />
Francisco Braga, a 4 de julho de 1899, ainda relutava em desistir de uma estreia na Europa,<br />
mesmo tendo, como diz:<br />
a cabeça estonteada com a demora da decisão que deve fixar o destino de minha<br />
Jupyra. Até agora nada, e é entretanto necessário que seja já, pois eu desejava<br />
que no próximo anno, a minha opera fosse cantada no Rio de Janeiro por ocasião<br />
das festas do 4º centenário da descoberta do Brazil, e para isso convem ser primeiro<br />
cantada n’um theatro europeo. Minha gente aqui me diz que tome cuidado<br />
com o Possart, que é um hypocrita – um typo. Tenho receio que me façam perder<br />
o tempo inutilmente, para dar-me depois uma resposta negativa, e ter eu de recomeçar<br />
a experiência em outra parte.<br />
A ilusão, no entanto, se tornou ainda maior, pois Hermann Levi (já doente, pouco<br />
antes de morrer), ciente do talento do jovem compositor carioca e das inegáveis virtudes<br />
musicais da Jupyra, dá um parecer favorável à montagem inédita da ópera pelo Teatro de<br />
Munique. 8 Este novo fato renovou as esperanças de Francisco Braga. De Partenkirchen,<br />
na região de Munique, a 22 de agosto de 1899, ele escreve a Buschmann, após receber<br />
uma carta do Levi, para aqui voltei com a Jupyra, a minha carina caboclinha, às<br />
ordens do amavel e celebre Director do Theatro de München. 9 Pedio-me esperar<br />
até quinta-feira. É curioso este homem! Me recebe sempre com tanta distinção,<br />
como se eu fosse já qualquer coisa neste mundo! Enfim, seja o que Deus quiser!<br />
A espera de poucos dias, porém, se transformou uma vez mais numa longa indefinição<br />
que duraria ainda três meses, até novembro de 1899. Eis que Francisco Braga<br />
observava impassível as chances cada vez menores de sua ópera Jupyra ser executada na<br />
...........................................................................<br />
6 Hermann Levi (Gieâen, 1839 – Garmisch-Partenkirchen, 1900), famoso regente alemão em seu tempo – tendo<br />
sido ainda tradutor de libretos de Lorenzo da Ponte das óperas de Mozart para o alemão. Apesar da origem<br />
judaica, uma vez convertido ao cristianismo, foi indicado por Wagner para reger em Bayreuth a estréia de Parsifal<br />
(1882). Após a morte de Wagner foi também o principal diretor dos festivais de Bayreuth ao lado da viúva<br />
Cosima. Levi atuou ainda como regente titular em várias casas de óperas: Saarbrücken, Mannheim, Rotterdam,<br />
Karlsruhe e finalmente em Munique (onde pouco antes de morrer teve este contato com Francisco Braga). Além<br />
da ligação com Wagner, Levi foi amigo por algum tempo também de Brahms. A ruptura entre os dois ocorreu<br />
após as duras críticas de Brahms às composições de Levi, que o levou a destruir todos seus manuscritos, restando<br />
de sua pena apenas algumas poucas obras impressas.<br />
7 Franz Fischer (1849-1918), violoncelista e regente (assistente de Levi) em Munique e em Bayreuth.<br />
8 Este parecer de Hermann Levi sobre a Jupyra foi traduzido e publicado no Jornal do Comércio do Rio de Janeiro,<br />
de 16 de outubro de 1899.<br />
9 Por “Director do Theatro de München” devemos entender hoje “diretor artístico” ou “regente titular”. Já as<br />
funções mais administrativas eram exercidas pelo “intendente”, não obstante este profissional volta e meia ter<br />
a possibilidade de influenciar diretamente os rumos dos projetos artísticos. Ao que tudo indica, foi isso que<br />
aconteceu em relação à possibilidade do Teatro de Munique (hoje Bayerische Staatsoper) programar a Jupyra,<br />
pois o regente titular, Hermann Levi, chegou a aprovar a inclusão da ópera no repertório, mas o intendente<br />
Possart acabou se tornando um obstáculo, inviabilizando o projeto.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
347<br />
Europa. Triste fato este, que persiste até os nossos dias, pois fora o Rio de Janeiro (onde a<br />
ópera fora estreada em 1900) e São Paulo (e nesta cidade tão somente graças às recentes<br />
iniciativas da OSESP, que remontam ao recente ano de 1997), esta obra maior de Francisco<br />
Braga, um dos pontos culminantes do romantismo musical brasileiro, jamais fora executada<br />
em qualquer outro lugar do planeta. Seria este o inexorável destino da Jupyra, apreciada<br />
pela música, mas rejeitada pelo libreto?<br />
Em Dresden, a 21 de novembro de 1899, Francisco Braga confirma finalmente a<br />
possibilidade da estréia da Jupyra no Brasil. Nota-se também, pelo conteúdo da carta<br />
logo abaixo transcrita, que se alimentava certo espírito de rivalidade entre ele e Leopoldo<br />
Miguez. É notória a satisfação de Francisco Braga ao constatar que o projeto – de uma<br />
ópera com temática francesa – proposto pelo compositor de Niterói, fora preterido em<br />
favor de sua Jupyra, pela “nacionalidade” desta:<br />
Hontem recebi uma carta do Rio de Janeiro, do amigo Snr. João Vianna que, enviado<br />
da diretoria do comité das festas commemorativas do 4º Centenário da<br />
descoberta do Brazil, me pede insistentemente para que a Jupyra seja executada<br />
durante os mesmos festejos, por uma companhia de 1 a ordem. A directoria tendo<br />
se dirigido ao Miguez, para que fosse composta uma ópera de assumpto nacional,<br />
o maestro respondeu não haver tempo, e offereceu a sua nova ópera Saldumes<br />
cujo assumpto porém é gaulez. A vista da nacionalidade da Jupyra foi ella<br />
escolhida. Hontem mesmo respondi por telegramma, como me havia pedido o<br />
Snr. João Vianna. Todas as despesas correm por parte do comité, eu tenho como<br />
gratificação os meus direitos de autor, e, um benefício!<br />
Iniciava-se então um novo, mas não menos difícil processo de ajustes para a estréia<br />
da Jupyra no Rio de Janeiro, mas desta vez a decisão de apresentar a ópera pelo menos<br />
já estava aparentemente assegurada. Francisco Braga, ainda em Dresden, em dezembro<br />
de 1899, relata que<br />
não sei ainda quando, e se irei mesmo eu dirigir as representações da Jupyra.<br />
Tudo isto depende de dinheiro. A companhia será de 1 a ordem e o emprezario é<br />
o Sanzone que costuma ir todos os annos [ao Brasil]. Elle deve vir me procurar,<br />
pois foi pessoalmente procurar o Rochinha 10 , que deu-lhe uma carta de apresentação<br />
para mim! A todo o momento espero uma carta do homem ou eu<br />
mesmo irei à Milão pois os trabalhos de cópias devem ser feitos aqui na Europa.<br />
Não deixa de ser curioso o fato de que estas partes cavadas, copiadas na Itália,<br />
no início de 1900, serviram basicamente como material para as raríssimas execuções orquestrais<br />
da Jupyra ao longo do século XX, até nossa edição pela OSESP. Já há muito estas<br />
partes copiadas – e não com muito capricho! – se encontravam em péssimo estado de<br />
conservação.<br />
Apesar das tratativas com o Rio de Janeiro, Francisco Braga ainda mantinha as<br />
últimas esperanças de uma execução européia da Jupyra. Uma vez malogrado o projeto<br />
em Munique, os seus manuscritos – tanto a partitura sinfônica como a versão para canto<br />
e piano – permaneciam agora sob a guarda de terceiros junto à Ópera de Dresden, mas a<br />
definição também não vinha, o que causava a justificada preocupação de Francisco Braga.<br />
Nos primeiros dias de 1900, ele escreve que “não há meios de obter uma resposta do<br />
...........................................................................<br />
10 Rochinha era o apelido de José de Souza Rocha, a quem Francisco Braga dedica a Jupyra. O Rochinha foi sempre<br />
o melhor amigo do compositor, um companheiro inseparável desde a infância, quando foram colegas no<br />
Asilo dos Meninos Desvalidos.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
348<br />
Schuch, 11 sobre a Jupyra que já lá está há 2 meses. Nunca o vejo”. Em Dresden, a 8 de<br />
janeiro de 1900, Francisco Braga relata que “hoje fui procurar o illustre E. von Schuch para<br />
saber qual o destinho que está reservado à minha ópera, devo voltar amanhã”.<br />
Pouco depois, a 2 de fevereiro de 1900, ainda em Dresden, Francisco Braga continuava<br />
relatando as simultâneas tratativas em Dresden e junto ao empresário italiano<br />
Sanzone:<br />
Tudo continua sobre a Jupyra estacionário. Quando estive com o Schuch só pude<br />
obter o contemplal-o durante 6 minutos, se tanto […] que esperasse mais um<br />
pouco, que actualmente havia muito trabalho, os concertos […] novas óperas<br />
[…] etc. Felizmente fiz o conhecimento do ensaiador dos coros, Dr. Walther Rabl, 12<br />
moço ainda, muito amável que me disse haver realmente muito trabalho, e que<br />
as minhas partituras, orchestra e piano-canto, achavam-se em seu poder, e prometteu-me<br />
lembrar de vez em quando ao Schuch. E assim vae vagando o barco<br />
das minhas illusões por esses mares fóra... O imprezario Sanzone escreveu-me,<br />
é provável que eu vá brevemente até Milão entrar em negociações com elle, e<br />
dar-lhe uma audição da Jupyra. Por ora nada está decidido, espero a resposta<br />
que elle deve mandar sobre o que lhe escrevi.<br />
Diante de tantas dificuldades, Francisco Braga, a 25 de março de 1900, escreve a<br />
seu amigo Corbiniano Villaça, que residia em Paris, cogitando a hipótese de Jupyra ser estreada<br />
na capital francesa, mas novamente não houve êxito neste empreendimento.<br />
Por fim, o impasse só se resolve a 13 de maio de 1900. Francisco Braga recebe<br />
então boas notícias de seu amigo José de Souza Rocha (o Rochinha), do Rio de Janeiro,<br />
que já havia se encontrado com Sanzone. O empresário italiano se desculpou por não ter<br />
tido tempo de se encontrar pessoalmente com Francisco Braga, na Europa, mas assegurava<br />
que manteria sua promessa, não só de promover a estréia da Jupyra por ocasião dos festejos<br />
do 4º Centenário, no Rio de Janeiro, como convidaria o próprio compositor para<br />
atuar como regente junto à sua Companhia Lírica. Logo em seguida, em junho de 1900,<br />
Francisco Braga vai a Milão, organiza os detalhes da produção e parte de Gênova para o<br />
Rio de Janeiro – a bordo do vapor italiano Duchessa di Genova – a 8 de julho de 1900, juntamente<br />
com toda a Companhia Lírica de Sanzone. A chegada ao Rio de Janeiro ocorreu<br />
no dia 25 daquele mês.<br />
Passadas as primeiras semanas de volta à sua cidade natal, Francisco Braga constatou<br />
que, por fim, a ópera de Leopoldo Miguez não havia sido de fato preterida em favor<br />
da Jupyra – a comissão dos festejos optou sim por apresentar ambas as óperas – e manda<br />
as primeiras notícias a Buschmann, a 27 de agosto de 1900: “ando como um doido nesta<br />
cidade. Manifestações, jantares, festas etc., mas ainda não consegui organizar as minhas<br />
festas e nem a Jupyra entrou em ensaios, porque o imprezario reserva para o fim da<br />
estação. A ópera do Miguez vae antes”.<br />
A 13 de setembro de 1900, já radicado definitivamente no Rio de Janeiro, Francisco<br />
Braga relatava a Buschmann suas últimas novidades. Simultaneamente à apresentação<br />
da Jupyra, o compositor, sempre muito ativo, preparava também dois concertos<br />
sinfônicos sob sua direção, para apresentar ao público carioca o que havia de melhor em<br />
...........................................................................<br />
11 Trata-se de Ernst Edler von Schuch (Graz, 1846 – Dresden, 1914), famoso regente austríaco que desde 1889 foi<br />
diretor artístico da Ópera de Dresden, tendo aí permanecido fielmente como músico por mais de 42 anos.<br />
12 Walther Rabl (Viena, 1873-1940) foi regente (com especial destaque para estréias mundiais de obras de Gustav<br />
Mahler e Richard Strauâ, entre outros contemporâneos), compositor, pianista e professor de canto (coro-repetição<br />
para cantores).<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
349<br />
sua produção europeia nos últimos 10 anos. Francisco Braga estava enfim feliz pela calorosa<br />
recepção de seus conterrâneos:<br />
Começaram os ensaios da Jupyra, mas a opera do Miguez será cantada antes,<br />
creio na próxima semana. Ainda não dei os meus dois concertos porque o theatro<br />
S. Pedro está em obras, e só ficará prompto no fim deste mez. No lyrico é impossível<br />
porque há ou ensaios ou matinéz, sem falarmos das representações regulares.<br />
Já tenho orchestra de 60 professores tudo organizado, só me falta o theatro,<br />
isto é, que elle fique concertado. A companhia tem sido muito feliz; amanha temos<br />
a Tosca de Puccini que obterá certamente um enorme triumpho. Não tenho<br />
mãos à medir de tanta destinação que tenho recebido; é raro o dia que não sou<br />
obsequiado, convidado. Nem Castro Urso 13 foi tão popular!<br />
A ópera Jupyra é finalmente estreada no Teatro Lírico do Rio de Janeiro, sob direção<br />
do compositor, nos dias 7 e 8 de outubro de 1900, com relativo sucesso, mas não o<br />
suficiente para que fosse programada com freqüência nos anos seguintes. É muito difícil<br />
precisar hoje até que ponto houve de fato uma qualidade de execução à altura das exigências<br />
artísticas e técnicas da partitura, mesmo no caso das récitas promovidas por uma<br />
companhia italiana de ópera. Por certo, os artistas nacionais daquela época não se encontravam<br />
ainda em condições técnicas e artísticas de executar obras tão complexas como<br />
a Jupyra – e assim ficavam os compositores na dependência das companhias estrangeiras 14 .<br />
Em carta a Carolina Buschmann (Mimica), filha de Francisco Buschmann, redigida no Rio<br />
de Janeiro, a 5 de janeiro de 1924, Francisco Braga confessava uma certa decepção em relação<br />
à atuação dos cantores por ocasião de uma execução da Jupyra por um elenco brasileiro:<br />
“Cantaram também o anno passado a Jupyra. Fizeram-me uma grande ovação, jogaram-me<br />
flores, mas não me agradou a interpretação dos artistas”.<br />
Nos dias 18 e 25 de novembro de 1900, no Teatro Lírico – uma vez que o Teatro<br />
São Pedro não ficou pronto – Francisco Braga apresentava-se com grande orquestra regendo<br />
suas obras sinfônicas compostas na Europa.<br />
Logo em seguida, Francisco Braga idealizou e organizou outro empreendimento<br />
de vulto: uma turnê por São Paulo, Campinas e Santos, com uma orquestra de 60 músicos.<br />
Começa uma nova fase em sua vida, agora ciente da dura realidade que envolve as precárias<br />
instituições musicais no Brasil, como podemos observar em carta redigida em São Paulo,<br />
a 12 de janeiro de 1901:<br />
Escrevo-lhe de S. Paulo, onde estou com uma orchestra de 60 professores dando<br />
3 concertos. Imagine que despesa colossal!? Destes artistas, 30 vindos do Rio,<br />
contractados por 15 dias! Daqui vou à Campinas e à Santos. O que será o fim de<br />
tudo isto? Não estamos ainda em condições d’estes luxos europeus, bem o sei,<br />
mas é necessário ousar para obter qualquer cousa n’este paiz de politicos e<br />
politiqueiros. Tenho sido muito festejado em toda parte, mas não é com elogios<br />
que se compram os melões.<br />
Pouco depois, de volta ao Rio de Janeiro, Francisco Braga prossegue com novas<br />
séries de concertos sinfônicos. A 3 de março de 1901, no Theatro Sant’anna, rege um con-<br />
...........................................................................<br />
13 Castro Urso era um tipo popular de rua muito conhecido no Brasil da segunda metade do século XIX.<br />
14 O mesmo valia em realação ao repertório europeu executado no Brasil: “Poucos concertos, mas no horizonte<br />
muitas companhias estrangeiras de drama, opereta e opera, inclusive uma allemã que traz todas as obras de<br />
Wagner, dizem ser de primeirissima. Oxalá seja tudo isso de verdade, e com a interpretação pura e tradicional<br />
que só esses artistas europeus sabem dar às obras primas dos mestres da música” (Francisco Braga em carta à<br />
Mimica. Rio de Janeiro, abril de 1910).<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
350<br />
certo todo dedicado a árias de Verdi, e apresenta também sua própria composição Elegia.<br />
Já no recém-reformado Teatro São Pedro de Alcântara, Francisco Braga se apresenta mais<br />
uma vez diante de uma grande orquestra, nos dias 26 de maio, 2, 9 e 16 de junho de 1901.<br />
No repertório constavam, além de obras próprias (entre outras, Marabá, Dai-me as pétalas<br />
de rosa, Oh! Se te amei, Minueto e Cauchemar), composições de autores clássicos e românticos,<br />
como Mozart, Beethoven, Carl Maria von Weber, Schubert, Wagner, Gounod, Tchaicovsky,<br />
Carlos Gomes e Westhout.<br />
A partir de 1902 – após a morte de Leopoldo Miguez – Francisco Braga assume<br />
o trabalho como professor (composição, contraponto e fuga) no então Instituto Nacional<br />
de Música (hoje Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro), cargo que<br />
exercerá até o fim de sua vida. Ainda naquele ano, Francisco Braga, após o sucesso da Jupyra<br />
com a Companhia Lírica de Sanzone, já planejava a composição de uma segunda<br />
ópera – mas o projeto jamais viria a se concretizar. Do Rio de Janeiro, a 18 de setembro de<br />
1902, Francisco Braga escreve a Buschmann:<br />
Continuo esperançado, muitíssimo mais animado, tanto que já estou preparando<br />
um novo Drama lyrico, tirado do bello livro de Visconde de Taunnay – Innocencia<br />
– para ver se, de volta da minha viagem à Europa, faço-o representar aqui pela<br />
troupe do Sanzone; (fante de mieux) o único meio que tenho de ser ouvido na<br />
minha cidade natal.<br />
Remonta a estes primeiros anos do século XX o período em que Francisco Braga<br />
foi professor de Heitor Villa-Lobos (Rio de Janeiro, 1887-1959). Mas ainda não se sabe ao<br />
certo, durante quanto tempo exatamente e sob quais circunstâncias. Os raros depoimentos<br />
de Villa-Lobos sobre Francisco Braga, no entanto, indicam uma certa estima que o discípulo<br />
reverenciou ao seu mestre. Mas com certeza, o tempo em que Villa-Lobos estudou com<br />
Francisco Braga não foi demasiado longo, pois os diferentes rumos artísticos não viabilizaram<br />
uma convivência duradoura ou mesmo uma relação mais aprofundada entre os<br />
dois compositores. Talvez houvesse um conflito de gerações, entre o romantismo e a modernidade.<br />
Em 1905, Francisco Braga compõe obras camerísticas, como Impressões da Roça,<br />
além de outros trabalhos importantes, como o melodrama Contratador de Diamantes,<br />
com texto de Affonso Arinos, terminando-o no ano seguinte, quando compunha então<br />
sua obra mais conhecida, encomendada pelo prefeito Pereira Passos 15 , o belíssimo Hino à<br />
Bandeira, com poema de Olavo Bilac.<br />
Remonta aos primeiros anos, como professor no Instituto Nacional de Música,<br />
a estreita amizade e também as parcerias, em diversos projetos, de Francisco Braga com<br />
outros grandes compositores brasileiros da época, como Alberto Nepomuceno (Fortaleza,<br />
1864 – Rio de Janeiro, 1920) e Henrique Oswald (Rio de Janeiro, 1852 – 1931). Naqueles<br />
anos, Francisco Braga foi também amigo próximo, mestre e principal conselheiro de Glauco<br />
Velasquez (Rio de Janeiro, 1884-1914).<br />
A 14 de julho de 1909, Francisco Braga dirige o concerto de inauguração do<br />
Teatro Municipal do Rio de Janeiro, estreando seu poema sinfônico Insônia – também<br />
inspirado em poema de Escragnolle Dória. Muito provavelmente, aquele foi um momento<br />
...........................................................................<br />
15 Francisco Braga admirava profundamente o prefeito Pereira Passos, como podemos observar de uma carta<br />
sua à Mimica Buschmann, de 12 de julho de 1903. “Temos o homem! É dizer que o Prefeito tão activo, tão<br />
empreendedor, tão moderno, é velho de 72 annos! Mas é vêl-o como é bello e rijo!”. Os elogios do compositor<br />
são principalmente para a renovação urbanística que o prefeito levou a cabo na cidade do Rio de Janeiro, mas<br />
nota-se que não havia qualquer preocupação com a preservação do patrimônio histórico colonial: “calçadas<br />
largas, abaixo as velhas taperas, rasgam-se os horizontes, projetam-se maravilhas […] Flores e musica por toda<br />
parte: já os operários trabalham; o Rio faz a sua toillete secular”.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
351<br />
de maior glória na carreira do compositor. No entanto, os tempos já não eram mais de<br />
entusiasmo pessoal, pelo que podemos observar de uma carta sua à Mimica, redigida no<br />
Rio de Janeiro, a 24 de julho de 1909. Francisco Braga se queixa da política cultural ou<br />
mesmo da cultura política no Brasil:<br />
Inaugurou-se o theatro Municipal com uma brilhante assistência de casacas novas<br />
e toilettes caríssimas, sem gosto nem elegância, com raríssimas excepções; o<br />
programa foi inteiramente nacional – o Hymno Nacional, um discurso pelo poeta<br />
official Olavo Bilac; o meu novo poema [sinfônico] Insomnia, com grande orchestra,<br />
uma comedia de Coelho Netto, terminando com a opera Moema de<br />
Delgado de Carvalho 16 . Foi uma festa fria, convencional, estúpida. Continuamos<br />
indifferentes às cousas artísticas; muito snobismo e nada mais. O theatro é bonito,<br />
porém exagerado na sua ornamentação, com muitos mármores variados e muito<br />
ouro, a platea é suave de tons, e muito sympathica. Há muita riqueza. Eu preferiria<br />
mais sobriedade, e linhas mais severas, mais arte. Custou perto de 12.000 contos.<br />
Todos os theatros, de resto, trabalham, avultam para elles, os forasteiros, que os<br />
nacionaes só o que ficar das sobras de suas fartas e sumptuosas receitas. Somente<br />
aos políticos é dado confiar no futuro, sonhar com glórias e fortuna; às outras<br />
classes o esquecimento e a indifferença. É um paiz para os nacionaes que abraçam<br />
as duas carreiras exclusivamente previligiadas e altamente lucrativas – política e<br />
militar.<br />
Em 1912, Francisco Braga funda a Sociedade de Concertos Sinfônicos, e durante<br />
vinte anos, se manterá à frente da orquestra desta sociedade, como diretor artístico e<br />
principal regente. Naquele instante, toda a principal parte de sua obra já havia sido composta,<br />
e se registra, a partir de então, tão somente acontecimentos que não vão alterar<br />
substancialmente sua carreira de compositor.<br />
Destaca-se ainda o trabalho numa segunda ópera (entre 1911 e 1924), Anita<br />
Garibaldi, ainda inédita e desconhecida 17 , e alguns concertos de importância histórica,<br />
como por ocasião da apresentação de sua obra sinfônica Marabá, em 1920, no Teatro<br />
Municipal do Rio de Janeiro, sob regência de Richard Strauss (Munique, 1864 – Garmisch-<br />
Partenkirchen, 1949), ou em 1944, quando o Episódio Sinfônico foi regido por Erich Kleiber<br />
(Viena, 1890 – Zurique, 1956), também no Rio de Janeiro.<br />
E cabe aqui, talvez, uma última e rápida hipótese de trabalho. Justamente no<br />
momento em que as novas correntes modernistas despontavam na Europa, e, já havia toda<br />
uma superação dos ideais românticos, como em Schönberg, Bartók, Debussy e Stravinsky,<br />
entre outros, Francisco Braga, no Brasil, por sua vez, tendo sido desde a juventude um<br />
compositor eminentemente romântico, nunca chegou a se tornar moderno, mantendose<br />
fiel, até sua morte, às normas poético-estilísticas das últimas gerações românticas do<br />
final do século XIX. Há ainda muito por se estudar, para a compreensão deste fato, sobre<br />
os motivos que o levaram, assim como no caso de Henrique Oswald, à não adesão aos desafios<br />
poéticos dos novos tempos – caminhos estes que seu ex-aluno Villa-Lobos não hesitou<br />
em abraçar desde a década de 10 daquele novo século, alguns anos antes mesmo<br />
da Semana de Arte Moderna de 1922. É certo, contudo, que os rumos às novas linguagens<br />
...........................................................................<br />
16 Trata-se de Joaquim Torres Delgado de Carvalho (Rio de Janeiro, 1872-1921). Sua ópera Moema havia sido<br />
estreada com grande êxito no Teatro Lírico do Rio de Janeiro, em 1894.<br />
17 A 5 de janeiro de 1924, do Rio de Janeiro, Francisco Braga escreve a Mimica: “Já tenho prompta a Annita<br />
Garibaldi. É um trabalho que certamente agradará, se bem que technicamente diffícil”. No entanto, parece que<br />
o trabalho não chegou a ser concluído totalmente. A 28 de dezembro de 1926, Francisco Braga já se queixa da<br />
falta tempo para a composição: “Quem vae soffrendo com esse acumulo de trabalho é a minha pobre Annita<br />
Garibaldi, que vae crescendo como as crianças sem pão e sem sol!”<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
352<br />
tomados pelos compositores modernos não agradaram a Francisco Braga. Ele não soube<br />
como continuar inventivo, no momento em que o lirismo sublime do romantismo já não<br />
mais se enquadrava no novo Zeitgeist. Enfim, o velho Francisco Braga não foi capaz de<br />
exercer um distanciamento crítico diante de sua pertença histórica, não compreendendo<br />
os novos contextos filosóficos e estéticos da modernidade. Em carta a Mimica, que se<br />
encontrava na Europa, de 27 de dezembro de 1925, Francisco Braga, estando no Rio de<br />
Janeiro, demonstra todo o seu conservadorismo ao renegar os valores da nova geração –<br />
o que faz dele infelizmente mais um desmentido pela história. Com certeza, ele se refere<br />
aqui principalmente a Villa-Lobos:<br />
Temos actualmente, aqui, uns tres ou quatro músicos futuristas; typos grotescos<br />
e que surpreendem pela ignorância e audácia! É pena, pois são rapazes de talento!<br />
Por ahi devem existir muitos desses artistas, já cançados das formas antiquadas<br />
da música (como lhes chamam) e que; na ancia da celebridade, escrevem<br />
tudo o que de mais extravagante em matéria de combinação de sons e<br />
rythmos lhe passa pelo cérebro doentio. Naturalmente essa nevrose passará,<br />
quando surgir o verdadeiro músico, (como de tempos em tempos), dentre os<br />
milhares que os séculos conheceram e que já nos esquecemos os nomes. Marcaram<br />
epocha: Palestrina, Bach, Scarlatti, Rameau, Haydn, Mozart, Beethoven,<br />
Wagner, Berlioz, Brahms etc.<br />
Durante as últimas décadas de vida, Francisco Braga será ainda professor de<br />
teoria musical de alguns compositores brasileiros de destacada importância, como Lorenzo<br />
Fernandez (Rio de Janeiro, 1897-1948) e Cláudio Santoro (Manaus, 1919 – Brasília, 1989).<br />
Em 1944, um ano antes de sua morte, doa toda sua produção musical à Sociedade de<br />
Concertos Sinfônicos, mais tarde, por sorte, incorporada à Biblioteca Alberto Nepomuceno<br />
da EM-<strong>UFRJ</strong>.<br />
Por fim, gostaríamos de agradecer a toda a equipe da Biblioteca Alberto Nepomuceno<br />
da EM-<strong>UFRJ</strong>, pela imprescindível colaboração e auxílio no acesso aos manuscritos<br />
musicais de Francisco Braga. Em especial, gostaríamos de agradecer também à bibliógrafa<br />
Mercedes Reis Pequeno, pelas informações valiosas sobre o acesso às fontes primárias<br />
utilizadas nesta pesquisa.<br />
Jupyra, fontes para a edição de Rubens Russomano Riccciardi, Editora da OSESP<br />
– Criadores do Brasil<br />
Todas as fontes aqui utilizadas encontram-se depositadas na Biblioteca Alberto<br />
Nepomuceno da EM-<strong>UFRJ</strong>:<br />
Fonte A – Partitura autógrafa (concluída em 1899).<br />
Fonte B – <strong>Versão</strong> manuscrita para canto e piano (1899)<br />
Fonte C – Partes cavadas em cópias manuscritas (a maior parte de 1900)<br />
Fonte D – <strong>Versão</strong> impressa pela gráfica C. G. Röder, Leipzig (Alemanha), para<br />
canto e piano. Edição do autor, 18 com revisão de Baby Monteiro de Barros (1922).<br />
Observações para a presente edição da partitura da Jupyra:<br />
1) Da fonte A – base para esta presente edição - não consta o Prelúdio, cuja<br />
partitura foi reconstituída a partir da fonte C.<br />
...........................................................................<br />
18 A iniciativa dessa edição foi do próprio compositor, que contou com a colaboração de grande rol de amigos,<br />
aguns deles importantes personalidades do Rio de Janeiro daquela época.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
353<br />
2) A fonte B não foi utilizada, uma vez que a fonte D é versão posterior.<br />
3) Fora o Prelúdio, a fonte C não foi utilizada.<br />
4) A fonte D nos foi de grande importância, pois se trata da última versão, devidamente<br />
aprimorada pelo próprio compositor. Assim sendo, a totalidade das<br />
linhas do canto, assim como as indicações de andamento, dinâmica, articulação<br />
e fraseado, foram extraídas e importadas integralmente desta fonte para a presente<br />
partitura sinfônica. 5) Como em A não há indicações de dinâmica, fraseado<br />
ou articulação efetuadas por extenso, optamos pela realização prática com a<br />
homogeneidade destas indicações em todas as partes orquestrais, a partir de<br />
uma postura hermenêutica, tomando como referência decisiva a última versão<br />
do compositor (D), pois nosso objetivo principal foi a viabilidade de performance.<br />
Referências bibliográficas<br />
Braga, Francisco. Jupyra: Ópera em 1 ato. Edição com revisão musicológica de Rubens<br />
Russomano Ricciardi. São Paulo: Editora da OSESP – Criadores do Brasil, 1997–2002.<br />
Bosi, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1994.<br />
Pequeno, Mercedes Reis. Cronologia. In: Exposição Comemorativa do Centenário do<br />
Nascimento de Francisco Braga (1868-1945). Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1968,<br />
p. 11-19.<br />
Coleção de cartas e cartões postais de Francisco Braga à família de Francisco e Victória<br />
Buschmann. Divisão de Manuscritos da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro, n. 50.3.8.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
355<br />
Damião Barbosa de Araújo e A Intriga<br />
Amorosa: estilo e questões cronológicas no<br />
contexto da sua produção lírica<br />
Pablo Sotuyo Blanco<br />
Universidade Federal da Bahia<br />
Damião Barbosa de Araújo foi o primeiro mestre-de-capela não sacerdote da Sé<br />
da Bahia já referido na história da música local e um dos mais importantes e habilidosos<br />
músicos convidados pelo Príncipe Regente D. João (durante a sua passagem pela Bahia<br />
em inícios de 1808) para integrar a sua nova Capela Real no Rio de Janeiro. Assim, de 1808<br />
a 1821 trabalhou na Corte Portuguesa no Rio de Janeiro integrando a Capela Real e a Real<br />
Câmara e compondo obras para diversas ocasiões na Corte e fora dela. Embora seja mais<br />
conhecido pela música religiosa, também compôs música secular (sinfônica e de câmera)<br />
com ou sem vozes. Desta sua fase carioca ainda restam alguns aspectos muito pouco documentados<br />
da sua vida profissional como, por exemplo, o de ter sido “mestre de uma<br />
banda de menores” (Azevedo, 1956, p. 24), as relações profissionais e pessoais que teria<br />
estabelecido, dentre os mais relevantes.<br />
O que motiva o presente trabalho é a tentativa de elucidar problemas ainda não<br />
resolvidos em torno da obra “A Intriga Amorosa”, cuja autoria (a partir da documentação<br />
até hoje localizada) lhe fora atribuída inicialmente por Sacramento Blake em 1893, secundada<br />
por Vieira em 1900 e por Mello em 1908, dentre outros. Ainda, a data da sua<br />
eventual estreia (se aconteceu e quando, segundo qual fonte for observada) pode variar<br />
significativamente, levantando questões relativas à cronologia da sua produção, do ponto<br />
de vista estilístico.<br />
A Intriga Amorosa: dados disponíveis<br />
Sacramento Blake descreveu A Intriga Amorosa como uma “composição para<br />
canto, com letra italiana” (Blake, 1893, p. 159), mas não especificamente como ópera,<br />
ópera buffa ou mesmo como burletta. No entanto, Mello informa que “como regente da<br />
orchestra do theatro [Damião Barbosa de Araújo] compoz uma ópera no genero buffo<br />
[...] que foi levada a scena na antiga Casa da Opera, sita no largo de Guadelupe” em Salvador”<br />
(Mello, 1908, p. 253).<br />
Embora Ernesto Vieira (1900, p. 43-44) afirme nunca ter sido estreada, e Pinheiro<br />
Chagas (1909, p. 68) negue a estreia d’A Intriga Amorosa, ainda definindo-a como uma<br />
burletta, autores como Querino (1911), Diniz (1970), Pimentel (1979), Stevenson (1992) e<br />
Béhague (2010) repetiram as afirmações de Blake e de Mello, fortalecendo assim a tradição<br />
da sua estreia, eventualmente tratando o seu gênero de forma pouco precisa.<br />
É do nosso parecer que teria sido muito difícil para Damião estrear dita obra em<br />
Salvador nas datas referidas na bibliografia porque ele deixou a Bahia em fevereiro de<br />
1808, indo para o Rio de Janeiro com D. João (Sotuyo Blanco, 2007). Assim sendo, a única<br />
e pequena chance disso ter acontecido estaria entre duas possibilidades: a tal estreia em<br />
Salvador ter acontecido durante janeiro ou nos vinte primeiros dias de fevereiro de 1808,<br />
isto é, antes dele viajar ao Rio com o Príncipe Regente, ou a referida apresentação ter<br />
ocorrido depois da sua partida de Salvador.<br />
No primeiro caso, a estreia poderia ser considerada como um dos eventos públicos<br />
que o futuro D. João VI teria testemunhado durante a sua passagem pela Bahia (de<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
356<br />
22 de janeiro, aproximadamente, a 20 de fevereiro de 1808) e que o motivaram a convidar<br />
Damião a ir ao Rio de Janeiro trabalhar na nova Capela Real.<br />
Embora não se possuam evidências da existência dessa obra (enquanto ópera<br />
integralmente composta por Damião), os dois números musicais localizados (a ária de<br />
Dardane “Tra mille idee gioconde” e a cavatina de Aladina “Non è colpa innamorarsi”)<br />
junto ao restante da sua produção lírica parecem indicar uma continuidade nessas atividades<br />
ligadas aos palcos, iniciadas no Teatro de Guadelupe (Mello, 1908), não apenas<br />
durante o período em que morou no Rio de Janeiro, mas também a posteriori, isto é, depois<br />
do seu retorno à Bahia (Sotuyo Blanco 2008).<br />
Como já expusemos em foro científico anterior A Intriga Amorosa pode ter sido<br />
o nome dado a alguma produção local, na Bahia ou no Rio, de L’intrigo amoroso, de Ferdinando<br />
Paer (Parma, 1º de junho de 1771 – Paris, 3 de maio de 1839), composta sobre o<br />
libreto de Giovanni Bertati (Figura 1), estreada em Veneza a 4 de dezembro de 1795 e<br />
apresentada no Teatro Régio de São Carlos, em Lisboa, em 1798 (Bertati, 1798), sobre<br />
cujo libreto Damião teria sido solicitado de compor, pelo menos, os dois números musicais<br />
localizados (ária e cavatina) para serem inseridos como substitutos dos compostos por<br />
Paer. Assim, óperas de Paer não só foram conhecidas pelo público carioca (cf. Lange, 1964;<br />
Andrade, 1967; Kühl, 2003 e Cavalcanti, 2004) mas eventualmente também por Damião,<br />
já que La Griselda foi encenada em 1815 e Camilla em 1818, ambas no Rio de Janeiro,<br />
coincidindo dessa maneira com o período em que Damião morou naquela cidade e<br />
trabalhou no âmbito musical da Corte.<br />
À observação cronológica, a partir da compilação feita pelos autores antes mencionados,<br />
percebe-se que, do ponto de vista estético e estilístico, a efetiva apresentação e<br />
consequente consumo lírico-cênico viveria, no Rio de Janeiro, uma transição na construção<br />
do “gosto” que vai de Cimarosa a Rossini, com documentadas apresentações de obras de<br />
Paer (Tabela 1) .<br />
Diferentemente do observado para o Rio de Janeiro, a documentação até hoje<br />
disponível apresenta muito poucos detalhes relativos às apresentações no Teatro São<br />
João da Bahia (inaugurado em 1812), além de não se dispor, ainda, de documentação relativa<br />
ao Teatro de Guadelupe, anterior ao Teatro São João (cf. Bocannera Jr, 2008; Robatto<br />
et al, 2007).<br />
Segundo informou Robatto, além dos “documentos inéditos referentes à criação<br />
e aos primeiros anos de funcionamento do Teatro São João (1806-1830)” (Robatto et al,<br />
2007), recentemente foi disponibilizado pelo Arquivo Público do Estado da Bahia um novo<br />
conjunto documental que pareceria completar a vida do Teatro São João desde meados<br />
do século XIX até início do século XX. Além das óperas, peças e apresentações com danças<br />
sem indicação de nome, dentre outros “benefícios” indicados nos documentos, poucas<br />
obras são nominalmente referidas, como são os casos das comédias “Palafox” (em<br />
Zaragoza) e “Ditosa Experiência”, apresentadas no Teatro São João da Bahia em 1812 e,<br />
no ano seguinte, repete-se a comédia “Palafox” aparecendo também referências aos<br />
entremezes “da Castanheira” e “do Velho guerreiro”.<br />
Não foram ainda localizados registros relativos a nada parecido com A Intriga<br />
Amorosa, L’Intrigo Amoroso, ou similares, nem apareceu ainda o nome de Ferdinando<br />
Paer entre os compositores. No entanto, o nome de Damião Barbosa de Araújo foi<br />
localizado apenas em relação ao pagamento feito pelo uso do teatro numa noite de 1844<br />
(Figura 2).<br />
Ária de Dardane – “Tra mille idee gioconde”<br />
Uma cópia manuscrita desta ária, segundo composta por Paer, se encontra<br />
localizada na Biblioteca do Conservatório de Milão e catalogada no RISM A/II sob o número<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
Figura 1. Folha de rosto do libreto<br />
de Bertati publicado em Lisboa por<br />
Simão Tadeu Ferreira no ano de<br />
1798.<br />
Tabela 1. Resumo cronológico das apresentações no Rio de Janeiro entre<br />
1808 e 1826.<br />
Figura 2. Demonstrativo de Receita do Teatro São João da Bahia de 1844. 1<br />
Tabela 2. Versões do início do texto da Ária de Dardane em português e italiano.<br />
357<br />
de registro 852.030.218. Quando comparada com o documento autógrafo de Damião,<br />
constatou-se que ambas as versões da ária são composições diferentes, não apenas pela<br />
mudança de tonalidade – de Lá para Fá – ou de orquestração – pela troca dos oboés pelas<br />
flautas e pelo acréscimo de clarins e tímpano) – mas pela diferença no contorno melódico<br />
do soprano solista e da orquestra (Exemplos 1a, 1b, 1c e 1d) embora compartilhem o<br />
mesmo texto (Tabela 2) e o uso de práticas e recursos de representação musical estilisticamente<br />
semelhantes.<br />
Cavatina de Aladina – “Non è colpa innamorarsi”<br />
No fim da Cena V do Ato I do referido libreto de Bertati encontra-se o texto que<br />
Damião utilizou na sua cavatina Non è colpa innamorarsi, a cargo de Aladina (escrava de<br />
Jusuf, Sultão de Bagdá), encerrando o diálogo que, nessa cena, aconteceu entre ela e<br />
Dardane, a favorita do Sultão (Bertati, 1798, p. 24-25).<br />
...........................................................................<br />
1 APEB - Seção de Arquivos Coloniais e Provinciais, Inventário dos Documentos do Governo da Província, 2ª<br />
Parte. Maço 4072 pasta 104. “Demonstrativo de receita e despesa...” Reprodução fotográfica do Prof. Dr. Lucas<br />
Robatto.<br />
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358<br />
Exemplo 1a. Introdução da ária de Dardane de Barbosa de Araújo (ms. SAV-FGM 6.08).<br />
Exemplo 1b. Início da ária de Dardane de Barbosa de Araújo (ms. SAV-FGM 6.08).<br />
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Exemplo 1c. Ária de Dardane (ms de F. Paer – gentileza Conservatório de Milão).<br />
Exemplo 1d. Ficha de catalogação resumida do RISM A/II 852.030.218 incluindo incipit do soprano.<br />
359<br />
Sem diferenças literárias entre partitura e libreto (Tabela 3), a primeira folha do<br />
manuscrito musical informa claramente “Cavatina / Non è Colpa inanorarse [sic] / p.a Piano<br />
e Voz / p.r Damião” (Exemplo 2a).<br />
Embora não tenha sido possível, até hoje, obter cópia da partitura de Paer para<br />
estudos comparativos, nem constar registro desta cavatina no RISM A/II, o seu estilo musical<br />
(Exemplo 2b) pode-se vincular claramente com o exposto na ária de Dardane.<br />
Elementos estilísticos da ária e da cavatina<br />
Dentre os diversos aspectos da prática musical relacionáveis ao estilo musical<br />
operístico em uso no final do século XVIII e inicio do XIX, podem-se identificar alguns recursos<br />
musicais como a representação musical do texto, como no caso da “tormenta” sonora<br />
no verso “quando si turba il cielo vedo oscurarsi il giorno” (Exemplo 3a) da ária de<br />
Dardane, assim como o recitativo seco utilizado na cavatina ou o tipo de contorno melódico<br />
utilizado no inicio do canto na cavatina, (Exemplo 3b).<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
360<br />
Tabela 3. Início da cavatina Non è colpa innamorarsi em italiano e português.<br />
Exemplo 2a. Frontispício da cavatina de Aladina de Barbosa de Araújo (ms. SAV-FGM 6.25).<br />
Exemplo 2b. Inicio da cavatina de Barbosa de Araújo (ms. SAV-FGM 6.25).<br />
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Exemplo 3. Representação musical do verso “quando si turba il cielo vedo oscurarsi il giorno” (Dardane).<br />
Exemplo 3b. Primeira aparição do recitativo seco na cavatina de Aladina; o inicio do canto na cavatina de Aladina.<br />
361<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
362<br />
A constatação do uso desses recursos musicais, característicos do estilo musical<br />
lírico-vocal e/ou operístico em uso no final do século XVIII e início do XIX, seria consistente<br />
com uma visão “evolutiva” do processo de assimilação de práticas e estilos na cronologia<br />
da obra de Damião, se tivessem sido compostas antes da ida dele para o Rio de Janeiro<br />
em fevereiro de 1808. No entanto, como explicar o aparente “retrocesso” estilístico se<br />
tais composições forem posteriores?<br />
Procuraremos estudar ditas obras e os possíveis contextos para assim tentar<br />
responder a tais questões.<br />
A caligrafia musical de Damião Barbosa de Araújo<br />
No intuito de tentar dirimir quando os supracitados documentos musicais foram<br />
escritos, procurar-se-á observar as características da caligrafia do compositor e as eventuais<br />
mudanças no passar do tempo. Dentre os documentos autógrafos das obras datadas ou<br />
datáveis de Damião Barbosa de Araújo, dispõem-se de 13 obras que perpassam 40 anos<br />
da vida do compositor, entre os 30 e os 70 anos de vida, aproximadamente, segundo descrito<br />
na Tabela 4.<br />
Do estudo comparativo geral desses documentos pode-se observar que existem<br />
dois tipos caligráficos que permanecem e se intercalam em todos os documentos estudados.<br />
Um primeiro tipo caligráfico mais arredondado e verticalizado, com traço mais<br />
cheio de tinta, correspondente a um tipo de escrita mais calma; e um outro mais esticado,<br />
espichado de traço mais fino e até inclinado à direita, correspondente a um outro tipo de<br />
escrita mais rápida, sendo ambos oriundos da mesma mão. Nos exemplos 17 a 22 ficam<br />
expostos os diversos detalhes observados em cada uma delas, tais como claves, figuras<br />
(cabeças das notas, pausas e ligaduras), e texto (andamento etc.). Exemplos 19. Tipos autógrafos<br />
arredondados (escrita calma) – Figuras, pausas e ligaduras.<br />
Destarte, quando observada a escrita constante nos documentos da ária de Dardane<br />
e da Cavatina de Aladina resulta que, enquanto a ária de Dardane apresenta uma escrita<br />
mista, com elementos de ambos os tipos caligráficos acima notados (Exemplos 23a<br />
e 23b), a cavatina de Aladina, não só apresenta uma escrita exclusivamente rápida, mas<br />
chama à atenção a clave de dó no inicio da partitura, cujo formato não corresponde a nenhum<br />
dos outros presentes no restante da produção musical autógrafa de Damião Barbosa<br />
de Araújo (Exemplos 24a e 24b).<br />
Tabela 4. Obras datáveis e datadas de Damião Barbosa de Araújo com indicação da idade do compositor (em grifo –<br />
período na Corte).<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
Exemplo 17a.<br />
e”1808d”1821.<br />
Exemplo 17b.<br />
1828.<br />
Exemplo 17c.<br />
e”1839 d”1843.<br />
Exemplos 17. Tipos autógrafos arredondados (escrita calma) – Claves.<br />
Exemplo 18a. 1821.<br />
Exemplo18b. 1825.<br />
Exemplos 18. Tipos autógrafos esticados (escrita rápida) – Claves.<br />
363<br />
Exemplo17d.<br />
1849.<br />
Exemplo 19a. e”1808d”1821.<br />
Exemplo 19b. 1828.<br />
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364<br />
Exemplo 19c. e”1839d”1843.<br />
Exemplo 19d. 1849.<br />
Exemplo 20a. e”1821.<br />
Exemplo 20b. 1825.<br />
Exemplos 20. Tipos autógrafos esticados (escrita rápida) – Figuras (cabeças das notas, pausas e ligaduras).<br />
Exemplo 21a. e”1808d”1821.<br />
Exemplo 21b. e”1844.<br />
Exemplo 21c. 1849.<br />
Exemplos 21. Tipos autógrafos arredondados (escrita calma) – Texto.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
Exemplo 22b.<br />
1825.<br />
Exemplo 22c. 1828.<br />
Exemplo 22a. e”1821.<br />
365<br />
Exemplos 22. Tipos autógrafos esticados (escrita rápida)<br />
– Texto.<br />
Exemplo 23a. Ária de Dardane – escrita mista (calma e<br />
rápida).<br />
Exemplo 23b. Ária de Dardane – escrita mista (calma e rápida).<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
366<br />
Exemplo 24a. Cavatina de Aladina – Escrita rápida.<br />
Exemplo 24b. Comparação de claves na cavatina de Aladina e na ária de Dardane.<br />
Considerações caligráficas<br />
O grau e nível de elaboração de ambos documentos musicais aqui estudados,<br />
incluindo o tipo de escrita, é consistente com trabalhos “em progresso”, presente na maior<br />
parte dos manuscritos do compositor dirigidos ao cenário lírico-musical (i.e. Dueto do Barão<br />
Enganado – da Cenerentola de Rossini [e”1821] ou Os dois rivais desafiados por amor<br />
[1825]).<br />
Ainda não foram identificados documentos musicais datados (ou datáveis) de<br />
Damião anteriores a sua ida para o Rio de Janeiro. Segundo foi referido acima, a historiografia<br />
afirma que Damião já desenvolvia atividades musicais no Teatro de Guadelupe na<br />
Bahia até a sua viagem para o Rio de Janeiro. Neste sentido, talvez a clave de dó no início<br />
da cavatina seja o único elemento que, por discordante com o restante da documentação,<br />
possa ser atribuído à fase baiana anterior à Corte no Rio.<br />
No entanto, apenas a partir do estudo da caligrafia não se pode concluir qual é<br />
a correspondência entre as composições e fase da vida de Damião. Embora a clave de dó<br />
na cavatina de Aladina permita algumas especulações e hipóteses de trabalho futuro, a<br />
ária de Dardane não apresenta diferenças caligráficas significativas com o restante da<br />
produção musical de Damião. Ergo, ou a cavatina de Aladina e a ária de Dardane foram<br />
compostas e/ou estreadas em fases diferentes da vida de Damião ou ambas o foram em<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
367<br />
1808 ainda em Salvador (constituindo assim os seus documentos musicais mais antigos)<br />
ou posteriormente, seja no Rio ou depois que retornou à Bahia em 1821? Talvez algum<br />
tipo de resposta possa ser encontrada no estudo da instrumentação da ária de Dardane.<br />
A instrumentação da ária de Dardane<br />
A partir da instrumentação constante no ms., podem-se perceber alguns detalhes<br />
importantes à datação da obra. De todos os instrumentos utilizados por Damião (segundo<br />
consta nas partituras) os que se encontravam em processo de desenvolvimento ainda a<br />
início do século XIX eram as clarinetas (Tabela 5).<br />
Segundo Rice a clarineta encontrava-se desde a segunda metade do século XVIII<br />
em processo de ampliação dos seus recursos através do incremento de chaves que permitiriam<br />
a produção de maior número de notas até ser capaz de emitir o total cromático de<br />
forma timbricamente aceitável e uniforme (Rice, 1984). Neste sentido a análise da escrita<br />
musical na parte das clarinetas permitiria definir para que tipo de instrumento a parte teria<br />
sido escrita, sobretudo no que diz respeito ao seu âmbito e à efetiva possibilidade de<br />
tocar ou não certas notas, assim como à evolução das características do timbre dessas<br />
mesmas notas.<br />
Tabela 5. Instrumentação utilizada por Damião Barbosa de Araújo na ária de Dardane.<br />
Assim sendo, a revisão da literatura mostra que, no final do século XVIII, a clarineta<br />
de quatro chaves não podia tocar o Dó sustenido (ou Ré bemol) da oitava central<br />
(Exemplos 25 e 26). Por sua vez, a clarineta de 5 chaves só tinha chave para incluir o referido<br />
dó sustenido em situação de trinado, porém o seu timbre ainda não era completamente<br />
homogêneo com o restante do registro do instrumento (Exemplo 27).<br />
Só a partir do acréscimo da 6ª chave na clarineta da virada do século XVIII para<br />
o XIX este instrumento conseguiu produzir o dó#/réb com segurança e afinação. Como<br />
informa Léfevre (1802, p. 5, tradução nossa): “No que diz respeito à sexta chave que eu<br />
acrescentei, se trata apenas de colocar o dedo mindinho da mão esquerda na chave e terse-á<br />
o dó sustenido ou o Ré bemol” (Exemplo 28).<br />
Detalhes genéticos na escrita da parte de clarineta<br />
No manuscrito da ária, Damião acrescentou a 2ª clarineta fazendo oitavas num<br />
solo da 1ª onde aparece um dos primeiros dó# sem nenhum tipo de reforço instrumental<br />
(Exemplo 29).<br />
Dentre os aspectos que surgem da observação do Exemplo 29, podemos listar<br />
os seguintes: primeiro, a tinta e o traço parecem ser do mesmo momento da cópia; segun-<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
368<br />
Exemplo 25. Posições da clarineta de 4 chaves (Anônimo. Principes de clarinette. Paris: Girard, ca.1775) – sem<br />
chave para o dó#/réb.<br />
Exemplo 26. Valentin Roeser. Gamme de la Clarinette [de 4 chaves]. Plate V. Paris: Le Menu, ca. 1769. – sem chave<br />
para o dó#/réb.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
Exemplo 27. Digitações da clarineta de 5 chaves (Blasius, 1796) – com chave de trinado para o dó#.<br />
Exemplo 28. Explicação de Léfevre (1802) acerca do acréscimo da 6ª chave.<br />
369<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
370<br />
Exemplo 29. Início das clarinetas em Dó no ms da ária de Dardane de Damião Barbosa de Araújo – c. 1-21.<br />
do, o uso do dó# num acréscimo em oitavas na passagem a solo fica claramente identificado<br />
pela direção das hastes das notas (ficam ambas as vozes com as hastes para baixo e com<br />
as barras misturadas no meio, evidenciando nessa escrita não muito “ortodoxa”, a intervenção<br />
do compositor, ampliando a textura do solo de clarineta; terceiro, posteriormente,<br />
ele usa o mesmo recurso; porém, desta vez, bem escrito, aparentemente pensando nas<br />
duas vozes no momento da primeira escrita, sem misturar, apenas dobrando à oitava<br />
com as flautas; e quarto, no último caso, ele já reforça a clarineta 2ª com o fagote na mesma<br />
altura, mas começando a linha no ré bemol e fazendo-a durar uma mínima em andamento<br />
de andante.<br />
Baseados no fato da tinta ser a mesma e dos itens 3º e 4º, poder-se-ia afirmar<br />
que ele pensou numa clarineta de 6 chaves?<br />
Exemplo 30a. Clarinetas em Dó no ms da ária de Dardane de Damião Barbosa de Araújo – c. 55-59.<br />
Exemplo 30b. Clarinetas em Dó no ms da ária de Dardane de Damião Barbosa de Araújo – c. 115-119.<br />
Embora fosse possível na clarineta de 5 chaves tocar o dó# (ou réb) usando posição<br />
de “forquilha”, 2 o timbre diferenciado nestas notas (beirando a comicidade) não as<br />
faria aconselháveis a tal passagem. De fato, o aspecto tímbrico só seria resolvido com a<br />
clarineta de 6 chaves, a que teria chegado ao Brasil com a Corte Portuguesa em 1808 e da<br />
que só temos certeza que foram utilizadas quando José Maurício Nunes Garcia regeu o<br />
Réquiem de W. A. Mozart em 1819 (cf. Silveira, 2010).<br />
...........................................................................<br />
2 Agradecemos aos Profs. Dr. Fernando Silveira, da UNIRIO e Dr. Joel da Silva Barbosa, da UFBA, que muito<br />
gentilmente discutiram conosco tais questões performativas relativas à clarineta.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
371<br />
Por outro lado, se considerarmos o caráter confessional do texto da ária de Dardane,<br />
parece ser muito arriscado apresentar esta ária sem um instrumento de 6 chaves<br />
para a 2ª clarineta, já que parece que o seu objetivo não seria obter o estranhamento (ou<br />
riso) do público e sim a sua cumplicidade emocional.<br />
Assim, o ms da ária de Dardane de Damião Barbosa de Araújo com o qual estamos<br />
trabalhando pode tanto ser: a) uma cópia feita pelo próprio compositor de um outro ms.<br />
anterior, ainda não localizado; ou b) um ms. original produzido pelo compositor no Rio de<br />
Janeiro ou posteriormente na Bahia, isto é, com posterioridade ao ano de 1808.<br />
Considerações finais<br />
Os elementos até aqui relacionados, levantam dúvidas e não respondem positivamente<br />
nenhuma das questões pesquisadas. Em alguns dos casos, no estado atual do<br />
conhecimento, os dados entram em conflito entre si, sem solução aparente.<br />
De início, o fato das duas partituras aproveitarem trechos do mesmo Dramma<br />
Giocoso escrito por Bertati, pode não resultar conclusivo o suficiente como para definir<br />
qual seria o seu objetivo musical, dentre as que poder-se-iam levantar três hipóteses: remanescentes<br />
de uma criação completa de Damião Barbosa de Araújo; números musicais<br />
originais a guisa de enxertos dirigidos a uma produção não documentada de L’Intrigo<br />
Amoroso de Paer em território brasileiro e duas obras líricas independentes, uma para canto<br />
e piano e outra para canto e orquestra cujos textos foram extraídos do mesmo libreto.<br />
O estudo da caligrafia apenas levantou suspeitas com relação a cópia da cavatina<br />
ser anterior à viagem ao Rio, a partir do desenho da única clave de dó. Por sua vez, o estudo<br />
da orquestração levantou a questão de uma clarineta de 6 chaves ser eventualmente<br />
requerida e esta não estar disponível no Brasil antes da chegada da Corte, o que faria do<br />
ms. da ária de Dardane ser posterior a 1808, ou até posterior a 1819. As duas observações<br />
anteriores parecem colocar ambas obras em aparente conflito cronológico, geográfico e<br />
biográfico. Este conflito só parece se reconciliar (ou se agravar) quando observado o estilo<br />
de ambas.<br />
Numa conceituação evolutiva linear na abordagem da obra musical de Damião<br />
Barbosa de Araújo, o estilo de ambas, tão ligado às práticas musicais de finais do século<br />
XVIII, poderia apoiar a suposição de Damião ter composto A Intriga Amorosa antes de ter<br />
sido tão influenciado pelo lirismo de Rossini. Porém, se tal composição e a eventual estreia<br />
tivessem acontecido depois de Damião ter sido influenciado pela música de Rossini, seria<br />
necessário abandonar o conceito evolutivo linear na cronologia das obras de Damião,<br />
substituindo-o pelo da incidência econômica do mercado lírico na produção musical do<br />
compositor, eventualmente requerido a criar excertos líricos especialmente elaborados<br />
para uma produção da ópera L´Intrigo Amoroso de Ferdinando Paer no Brasil ainda não<br />
documentada. Essa mudança conceitual também permitiria explicar facilmente o aparente<br />
“retrocesso” estilístico na música deste compositor brasileiro, mas contradiria os dados<br />
fornecidos por Blake e Mello.<br />
Finalmente, o número de questões ainda em aberto, assim como o grau de especulação<br />
ao que estamos expondo a construção do conhecimento em torno de um possível<br />
e verossímil processo histórico em torno da vida e obra musical de Damião Barbosa de<br />
Araújo, parece ser comum a vários outros temas de pesquisa musicológica no Brasil.<br />
Talvez este estudo nos obrigue finalmente a assumir a necessidade – mancomunada<br />
com a efetiva participação de profissionais da Ciência da Informação – de fortalecermos<br />
o processo de “coleta de dados primários” de forma sistemática (estadual ou<br />
regionalmente) e coordenada (em nível regional ou nacional) para assim, em breve tempo,<br />
possuirmos o conjunto de dados que permita desenvolver uma musicologia histórica com<br />
clara noção dos limites documentais no Brasil.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
372<br />
Referências bibliográficas<br />
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passado musical do Rio de Janeiro à luz de novos documentos. 2 vols. Rio de Janeiro:<br />
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Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
375<br />
Emílio Soares e a ópera: ressonâncias<br />
românticas na Itabira do século XXI<br />
André Guerra Cotta<br />
Universidade Federal Fluminense, Rio das Ostras<br />
O poeta Carlos Drummond de Andrade (Itabira, 1902 – Rio de Janeiro, 1987) registrou<br />
no poema “Criação” (1998, p. 34-35), um lendário episódio da Itabira do Matto<br />
Dentro – como era chamada a cidade em meados do século XIX – ligado à fundação da<br />
Sociedade Musical Euterpe Itabirana. Segundo sustenta a tradição local, a fundação da<br />
hoje chamada “Banda Euterpe” ocorreu em 22 de novembro de 1863, tendo como seu<br />
fundador Emílio Soares. 1 Começa o poeta anunciando que “a alma dos pobres se vai sem<br />
música, mas a dos grandes é exigente”, contando que a recém criada Banda Euterpe, chamada<br />
pelo monsenhor 2 para fazer as honras a um falecido ilustre, não tinha ainda as<br />
partes musicais para a execução do Libera me, o responsório para encomendação fúnebre<br />
tradicionalmente executado nas exéquias de personalidades e ilustres. Depois de pedir as<br />
partes emprestadas à banda rival – Banda Henrique Dias, cujo único registro encontrado<br />
por nós até o momento é este verso drummondiano 3 – e receber uma resposta negativa,<br />
Emílio Soares, regente e fundador da nova banda, fecha-se em seu quarto e compõe de<br />
próprio punho nova música para aquele responsório fúnebre, 4 começando a ensaiá-la<br />
com os músicos ainda na madrugada, acordando toda a cidade com estrondo. Deste modo,<br />
bem cedo, a exausta banda toca com orgulho o “Libera-Mé” – é como grafa Drummond,<br />
certamente apoiado na prosódia característica dos itabiranos – (cf. Figura 2), “favo da<br />
noite, glória de Emilio, dádiva ao morto”. O poema se encerra com os seguintes versos:<br />
Jamais um grande se foi sem música<br />
e jamais teve outra, ungindo os ares,<br />
como esta, grave, de Emílio Soares.<br />
No arquivo da Banda Euterpe, sob o código de referência SMEI095, encontramse<br />
muitas partes manuscritas de um Libera me de autoria de Emílio Soares de Gouveia<br />
Horta Júnior, muito provavelmente a obra mencionada no poema. Certa imprecisão harmônica,<br />
a simplicidade do acompanhamento e a brevidade deste responsório sugerem<br />
que pode mesmo se tratar daquela composição, feita num arroubo de urgência, na calada<br />
de uma madrugada itabirana de 1863. É bastante provável que Drummond tenha ouvido<br />
este responsório fúnebre em sua juventude, na Itabira das primeiras décadas do século<br />
XX, pois, a despeito de sua simplicidade, esta música se traduz perfeitamente nas palavras<br />
da estrofe final do poema, acima citada, como uma música “grave”. A Figura 1 mostra os<br />
...........................................................................<br />
1 Não há documentação que o registre formalmente, mas a tradição oral sustenta que esse dia – também, significativamente,<br />
o dia dos músicos e dia de Santa Cecília – marca a fundação da Sociedade Musical Euterpe Itabirana.<br />
2 Muito provavelmente tratava-se do monsenhor José Felicíssimo do Nascimento (Ouro Preto, 1806 – Itabira,<br />
1884), religioso e político mineiro, vigário da Matriz de Itabira em meados do século XIX e fundador do primeiro<br />
hospital da localidade, em 1859 (cf. Veiga, 1998, p. 393; Ferreira, 1999, p. 205-206).<br />
3 Existe uma conhecida tradição brasileira de nomear deste modo bandas civis, homenageando o soldado negro<br />
Henrique Dias, conhecido combatente das Batalhas dos Guararapes, no século XVII, conhecido como o “pai das<br />
milícias negras” no Brasil.<br />
4 O texto do Libera me é extraído do IX Responsório do Ofício de Defuntos, podendo ser utilizado apenas parcialmente.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
376<br />
primeiros compassos do Libera me, em edição moderna. Pode-se observar no trecho a vigorosa<br />
melodia em sol menor, cantada no registro agudo de um baixo vocal, acompanhado<br />
pelos metais. 5<br />
O fato de não haver parte autógrafa é lamentável, mas o grande número de cópias,<br />
a própria heterogeneidade do material e o seu desgaste são indícios de que essa música<br />
foi muito tocada ao longo dos anos, daí que as partes tenham sido copiadas e recopiadas,<br />
à medida que iam se tornando pouco legíveis e desgastadas. O detalhe apresentado<br />
na Figura 2, de uma parte de sax em si bemol, copiada por José Amâncio Ferreira, o Mestre<br />
“Zéca” Amâncio, em agosto de 1884, traz o título indicativo de “Libera Mé” (indicando<br />
a pronúncia aberta do “e”, tal como no poema de Drummond).<br />
Já o detalhe da Figura 3 traz a indicação de autoria, no canto superior direito:<br />
“Pr . H. J. or ” (isto é, “Por Horta Júnior”), em cópia de Joaquim Domingos Ferreira Prado,<br />
feita em Itabira, em fevereiro de 1890.<br />
Emílio Soares de Gouveia Horta Júnior<br />
As fontes do arquivo da Euterpe Itabirana como o poema drummondiano conheci<br />
ainda em meados dos anos 1990, na mesma época em que me deparei, pela primeira vez,<br />
com a figura de Emílio Soares, retratado no primeiro dos quadros da sala da Euterpe<br />
Itabirana. Ainda hoje lá estão estes quadros, representando, lado a lado, cada um de seus<br />
diretores desde a época de sua fundação. 6 Pouco tempo depois, foi possível estudar mais<br />
especificamente a música na história itabirana, no âmbito do projeto de pesquisa Música<br />
e músicos na Itabira do Matto Dentro (século XIX), realizado entre 1999 e 2000 através de<br />
uma Bolsa Vitae de Artes. Nessa oportunidade, foi possível realizar pesquisas sistemáticas<br />
no Arquivo Público Itabirano e também edições de obras do arquivo da Banda Euterpe,<br />
selecionadas levando também em conta as entrevistas realizadas com os cidadãos itabiranos<br />
ligados à vida cultural e musical da cidade. Entre as fontes da Euterpe, há material<br />
de três Novenas de São Sebastião de autoria de Emílio Soares, obras que, segundo alguns<br />
dos entrevistados de então, fizeram um grande sucesso até meados do século XX, sendo<br />
aguardadas com grande expectativa nos meses que as antecediam. 7 Os livros da Irmandade<br />
do Santíssimo Sacramento de Itabira registravam a presença de Emílio Soares de Gouveia<br />
Horta Júnior como irmão e como músico, em meados do século XIX. Além destes registros<br />
locais, um conjunto de partes autógrafas de uma Novena de São Sebastião de sua autoria,<br />
existente na Coleção Francisco Curt Lange do Museu da Inconfidência de Ouro Preto (código<br />
MIOP-CFCL-095), 8 mostrava que Emílio tinha uma atividade política significativa, chegando<br />
a ser Deputado Provincial entre os anos de 1863-1864. O frontispício indica:<br />
Novena de S. Sebastião | Composta pelo Autor o Il.mo Sr. Deputado Pr.[rovinci]al<br />
| Emílio Soares de Gouvea Horta Júnior | Acompanhada de V.[iolin]os, Violeta,<br />
Clarineta, Pistons, trompas, trombone | Oficleid [sic], Violoncelo, Bombo e Pratos<br />
| Cidade da Itabira, 15 de Janeiro de 1863<br />
...........................................................................<br />
5 Aqui, em edição baseada nas partes copiadas por Major Francisco Justiniano Carneiro (Itabira, 1881), José<br />
Amâncio Ferreira (o Mestre “Zéca Amâncio”; Itabira, 1884) e Joaquim Domingos F. Prado (Itabira, 1890). Nas<br />
partes copiadas por este último consta, sempre no canto superior direito, a indicação “P r H. J or ”, como mostra a<br />
Figura 3. Há também cópia dessa obra na Coleção Dom Oscar, do Museu da Música de Mariana (código<br />
CDO.02.222).<br />
6 A instalação de tais retratos foi obra de um dos diretores da Banda Euterpe, sr. João Evangelista Malta, carinhosamente<br />
apelidado de Zezito Malta, que o fez por volta dos anos 1980.<br />
7 Como já mencionamos brevemente em Cotta, 2001, p. 88. Este fato foi particularmente ressaltado pela sra.<br />
Maria da Conceição Sampaio, professora aposentada, entrevistada em abril de 2000. Ela havia presenciado<br />
várias destas novenas em meados do século XX e se recordava de trechos das jaculatórias, em português, chegando<br />
a cantarolá-los durante a entrevista. Segundo a entrevistada, também havia expectativa para saber quem<br />
seriam os solistas, geralmente pessoas da comunidade.<br />
8 Trata-se da mesma Novena em sol menor existente no arquivo da Banda Euterpe, código SMEI085.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
Figura 1. Compassos iniciais do Libera me, de Horta Júnior.<br />
Figura 2. Detalhe de parte de saxofone do Libera me (cópia de Mestre Zéca Amâncio – Itabira, 1881. SMEI 095).<br />
Figura 3. Detalhe de parte de trompete do Libera me, com a indicação de autoria (cópia de Joaquim Domingos<br />
Ferreira Prado – Itabira, 1890. SMEI 095).<br />
377<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
378<br />
Assim, deparava-me com a presença constante de Emílio na vida musical de Itabira<br />
e do Estado e com a existência de cópias e autógrafos de obras de sua autoria em<br />
outros acervos mineiros. 9 Tal como a grande maioria dos compositores brasileiros dos séculos<br />
XVIII e XIX, Emílio compôs basicamente música para a liturgia católica, sobretudo<br />
Missas e Ladainhas, além do mencionado Responsório Fúnebre, e também obras para<br />
litúrgicas, como música para Novenas e Solos ao Pregador. Posteriormente, em projeto<br />
ligado ao Museu da Música de Mariana, coube-me editar duas obras de características<br />
marcadamente operísticas, justamente um Solo ao Pregador e um Hino a Santa Cecília,<br />
ambas compostas em Ouro Preto e Itabira, em 1864. Tais obras surpreendem pela riqueza<br />
da orquestração, mas sobretudo pela beleza e dificuldade técnica da escrita vocal, sendo,<br />
neste sentido, pouco comparáveis à simplicidade do Libera me itabirano, como veremos.<br />
Aos poucos, a importância do compositor e do cidadão Emílio Soares de Gouveia<br />
Horta Júnior se comprovava nos registros encontrados. Os passos realizados em seguida<br />
em outros projetos de pesquisa e edição, assim como a colaboração de colegas e interessados,<br />
levaram-nos a desvendar as informações obtidas e a preencher as lacunas. E as lacunas<br />
permaneciam, uma vez que, apesar dos dados pontuais encontrados, havia grande<br />
dificuldade de obter referências biográficas precisas, mesmo dados básicos, como local,<br />
data de nascimento e falecimento, muito menos encontramos informação biográfica sistematizada<br />
(como já relatado em Cotta: 2002, 97 passim). A própria tradição oral de Itabira<br />
sustentava que Emílio não era itabirano, mas não se sabia de onde teria vindo. Mesmo<br />
consultas aos censos populacionais realizados nos municípios mineiros no início e em<br />
meados do século XIX, existentes no Arquivo Público Mineiro, nada esclareceram. Pesava<br />
ainda o curioso fato de que, a partir da década de 1890, Emílio praticamente desapareceu<br />
dos registros itabiranos, nada sendo possível apurar sobre seu destino após a temporada<br />
em Itabira e Ouro Preto, assim como sobre um possível falecimento.<br />
Os dados a que tivemos acesso diziam que estudou no Colégio do Caraça (talvez<br />
sua primeira formação musical), que em Itabira atuou como professor de latim e matemática<br />
e como Chefe da Guarda Municipal. Também, como já mencionado, ali fundou a Sociedade<br />
Musical Euterpe Itabirana, em 1963, e foi deputado provincial por Itabira e região,<br />
entre os anos de 1863 e 1865. Há, no Arquivo Público Mineiro, atas da Assembleia Provincial,<br />
que funcionava em Ouro Preto, então capital da província, nas quais se registra a<br />
participação de Emílio como deputado. Contudo, não era possível saber qual teria sido<br />
seu destino depois que deixou Itabira, embora tudo indicasse que ele teria se transferido<br />
de Itabira para outra localidade e não ali falecido. Como já mencionamos em trabalho anterior<br />
(Cotta, 2001, p. 89), Lange deixou notas de pesquisa de campo feitas quando passou<br />
por Itabira em 1956, segundo as quais Emilio teria se mudado para Conselheiro Lafaiete<br />
(MG), onde teria falecido “na miséria, pedindo esmolas”. 10 Esta surpreendente possibilidade,<br />
certamente baseada em testemunhos de seus interlocutores itabiranos àquela<br />
época, permaneceu sem qualquer comprovação. 11 É importante ressaltar que nas mesmas<br />
notas de Lange consta a seguinte frase: “diz-se que é o autor das Novenas de São Sebastião”.<br />
Este é mais um indício de que, ainda no final da década de 1950 as Novenas de São Sebastião<br />
estavam na ordem do dia, na história oral contada pelos itabiranos. Contudo, a fi-<br />
...........................................................................<br />
9 Inclusive em acervos de grande importância, como é o caso do arquivo da Lira Sanjoanense, onde havia uma<br />
Missa nº 2, que Aluízio Viegas doou ao Acervo da Euterpe Itabirana por ocasião dos 140 anos da Banda Euterpe,<br />
em novembro de 2003, hoje arquivada sob o código SMEI-201.<br />
10 Trata-se da pasta 10.3.07, intitulada “Minas Gerais | Informações gerais” (título datilografado. Abaixo, manuscrito<br />
por Lange em tinta vermelha: “Brasil”). Dossiê pertencente à Subsérie 10.3 – Estudos e transcrições de<br />
arquivos históricos, do Acervo Curt Lange-UFMG. Como já mencionei em trabalho anterior descrição do dossiê<br />
(Cotta, 2001, p. 77 passim) e a transcrição integral do trecho acima mencionado<br />
11 Agradeço a Aluízio Viegas e a Alex Assis Milagre (recentemente falecido, em 2009) as tentativas frustradas de<br />
encontrar indícios da passagem de Emílio por Conselheiro Lafaiete.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
379<br />
gura de Emílio Soares, como compositor e como cidadão, sua origem e seu destino, continuavam<br />
desconhecidos.<br />
Ouro Preto e os Solos ao Pregador<br />
Na Coleção Dom Oscar do Museu da Música de Mariana existe parte autógrafa<br />
de um Solo ao Pregador de autoria de Emílio, para Soprano solo e orquestra, hoje sob<br />
código de referência CDO.06.022 (antigo OP-ON5). Esta obra, como já mencionado, foi<br />
editada e gravada em 2002, através do projeto Acervo da Música Brasileira (Fundarq,<br />
Bureau Cultural, Petrobrás), graças ao qual, é possível acessar, em formatos digitais, tanto<br />
fac-símiles das fontes manuscritas como um trecho de sua gravação em áudio, no sítio<br />
web do Museu da Música de Mariana (www.mmmariana.com.br). Como se pode verificar,<br />
o frontispício 12 da parte vocal de CDO.06.022 informa que se trata de uma “Aria ao Pregador<br />
| Expressamente composta e dedicada | Ao | Sr. Francisco Vicente Costa | Para uso de<br />
sua filha | Por | E. S. de G. Horta J. or | Para grande orchestra | O. P. 31 de julho | de 1864”.<br />
Figura 4. Naipe de cordas, compassos iniciais da Ária ao Pregador Maria Mater Gratiae.<br />
Esta obra, de grande dificuldade técnica para o soprano solista, tem matizes claramente<br />
operísticos, como se pode ver pelos compassos iniciais da partitura, 13 na orquestração<br />
brilhante, marcada pelo uso expressivo de trêmolos de arco nas cordas (contrastando<br />
com leves e ágeis arpejos nas clarinetas) que preparam o tema da introdução<br />
instrumental, representada na Figura 4. 14<br />
Contrastando com a simplicidade do Libera me, esta obra apresenta uma escrita<br />
orquestra orquestral bastante sofisticada e uma parte vocal extremamente difícil do ponto<br />
de vista técnico (observe-se que as partes instrumentais não são autógrafas, mas a parte<br />
vocal sim). A escrita é exuberante, para um soprano solo que se sobrepõe ao peso de uma<br />
orquestra romântica (composta por 2 flautas, 2 clarinetas, 2 fagotes, 2 trompas, 1 clarim,<br />
2 trompetes, 2 trombones, além do naipe das cordas). A obra tem evidentes características<br />
emprestadas da ópera romântica como uma orquestração típica do gênero e o uso de cadências<br />
para a conclusão das seções, com o detalhe de que tais cadências – altamente<br />
difíceis do ponto de vista técnico e muito expressivas – foram escritas pelo autor, como<br />
...........................................................................<br />
12 O link direto para acessar o facsímile é http://www.mmmariana.com.br/cd4_man_mus9_paginas/opon5<br />
_c1_02_frontispicio.htm.<br />
13 O link direto para acessar a partitura é http://www.mmmariana.com.br/cd4_paginasmus9_partituras<br />
_main.htm.<br />
14 Como não caberia aqui inserir exemplos mais completos da orquestração, remetemos o leitor ao já citado sítio<br />
do Museu da Música de Mariana para acessar o material completo.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
380<br />
mostram as Figuras 5 e 6 (trechos do facsímile e da edição, respectivamente, do compasso<br />
56, com uma cadência sobre a palavra “gratiae”).<br />
Figura 5. Compasso 56 da Ária ao Pregador Maria Mater Gratiae, facsímile.<br />
Figura 6. Compasso 56 da Ária ao Pregador Maria Mater Gratiae, edição.<br />
Toda a riqueza de detalhes da orquestração, ou seja, o uso alternado de trêmolos<br />
de arco e motivos arpejados nas cordas, a melodia dos violinos primeiros elidindo com os<br />
arpejos das clarinetas, o uso de dobramento dos arpejos das clarinetas pelas flautas, obtendo<br />
um colorido timbrístico singular, a ornamentação da parte vocal, além das mencionadas<br />
cadências, escritas pelo autor, revelam um compositor de grande domínio técnico,<br />
desde as primeiras notas até a cadência final sobre a palavra amen, em nada se assemelhando<br />
esta obra, a princípio, ao mítico e singelo Libera me itabirano (salvo, talvez,<br />
pela força expressiva do solo vocal). Há outros Solos ao Pregador de autoria de Emílio em<br />
acervos como a Coleção Francisco Curt Lange do Museu da Inconfidência de Ouro Preto<br />
(MIOP), a Coleção Dom Oscar do Museu da Música de Mariana (CDO-MMM) e na própria<br />
Sociedade Musical Euterpe Itabirana, mas este se reveste de especial importância pela<br />
sua qualidade musical e também por evidências relacionadas à sua biografia, como veremos.<br />
Por outro lado, a sua feição operística, marcadamente na segunda parte da obra, 15<br />
faz lembrar os depoimentos itabiranos sobre a Novena de São Sebastião, pois, como se<br />
pode notar, o texto litúrgico é mero pretexto para uma grande expressividade e virtuosismo<br />
do solo vocal.<br />
Em 1864, quando foi então composto este Solo ao Pregador, Emílio era cidadão<br />
atuante em Itabira e região, assim como na capital da província, onde era Deputado Provincial.<br />
Nesta altura, sua presença nos livros da Irmandade do Santíssimo Sacramento de<br />
Itabira é constante e também nas atas da Assembleia Provincial em Ouro Preto. Contudo,<br />
Figura 7. Cadência final da Ária ao Pregador Maria Mater Gratiae sobre a palavra amen, edição.<br />
...........................................................................<br />
15 Sugerimos que o leitor ouça esta obra na versão disponibilizada no sítio do Museu da Música de Mariana, sob<br />
a regência de Carlos Alberto Pinto Fonseca, e com a interpretação particularmente brilhante da solista Luciana<br />
Monteiro. Cf. http://mmmariana.com.br/cd4_audio/43_Maria%20Mater%20gratiae.mp3 (segunda parte).<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
381<br />
pouco tempo depois, por volta de 1870, seu nome praticamente desaparece dos registros<br />
documentais itabiranos, não constando nem mesmo nos livros das Irmandades religiosas<br />
daquela cidade, e dos registros ouropretanos. Segundo as já mencionadas notas de pesquisa<br />
de Curt Lange, Emílio teria se transferido para Conselheiro Lafaiete (MG) onde teria<br />
falecido em situação de miséria, mas essa possibilidade parecia um tanto implausível<br />
para alguém que, certamente, pelas posições sociais ocupadas, pela capacidade e formação,<br />
teria condições de se sustentar em um padrão mediano sem maiores dificuldades.<br />
Itabira e as Novenas de São Sebastião<br />
Na memória itabirana a presença de Emílio ficou marcada sobretudo pelo mencionado<br />
episódio da criação do Libera me e da fundação da Banda Euterpe, mas não há<br />
dúvida de que também permanece na memória local a sua música para as festas das Novenas<br />
de São Sebastião, como atestam ainda hoje alguns de seus cidadãos mais longevos.<br />
No arquivo da Banda Euterpe existem três “Novenas de São Sebastião” de autoria de<br />
Emílio, a saber:<br />
Tabela 1. Novenas de São Sebastião de Emilio S. G. H. Júnior na SMEI.<br />
Embora não sejam tão virtuosísticas como a Ária ao Pregador Maria Mater Gratiae,<br />
de 1864, as Novenas de Emílio guardam algumas semelhanças com aquela obra, sobretudo<br />
o caráter operístico, que é ressaltado pelos entrevistados e confirmado pelas<br />
partes existentes. O estudo destas partes mostra a notável presença de solos, sobretudo<br />
nas Jaculatórias (versos em vernáculo), alternando com o coro a quatro vozes. As Figuras<br />
7 a 10 mostram dois breves solos, para soprano e tenor, cada um, sobre duas das jaculatórias<br />
da Novena de São Sebastião, “Ó mártir celeste” e “Ó Sebastião poderoso”, edição<br />
baseada em fontes do arquivo da Sociedade Música Euterpe Itabirana existentes sob o<br />
código SMEI163, que tem material bastante heterogêneo, com datas que vão desde a década<br />
de 1880 até a década de 1910.<br />
Como se pode ver, embora não constituam obra tão elaborada quanto a ária de<br />
1864, seus solos são razoavelmente bem trabalhados do ponto de vista da prosódia e da<br />
relação entre expressão melódica e texto, daí, talvez, que tenham marcado tanto a memória<br />
do público das Novenas de São Sebastião em Itabira.<br />
É também notável que o material existente no arquivo da Sociedade Musical<br />
Euterpe Itabirana referente às Novenas de São Sebastião compõe-se, além de cópias do<br />
final do século XIX, de muitas cópias produzidas nas primeiras décadas do século XX,<br />
indicando que este repertório foi continuamente executado pelo menos até a década de<br />
1940 (cf. Tabela 1). E é relevante, igualmente, o já mencionado fato de que Lange recebeu,<br />
no final da década de cinquenta, em sua única visita a Itabira, a informação de que Emílio<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
382<br />
Figura 8. Jaculatória da Novena em Sol Maior (SMEI 010/163), “Ó Mártir celeste”.<br />
Figura 9. Jaculatória da Novena em Sol Maior (SMEI 010/163), “Ó Mártir celeste” (continuação).<br />
seria (“diz-se que é”) o autor das Novenas de São Sebastião. Naquela altura, ao que parece,<br />
já não se executava a música para as Novenas, pelo menos não a música do tempo de<br />
Emílio, em latim, com coro, solistas e orquestra. Mesmo assim, pode-se notar que ela se<br />
fazia presente na memória e na tradição oral do lugar, como ainda está, embora certamente<br />
em menor proporção, uma vez que a maior parte das pessoas daquela geração já faleceu.<br />
Considerações finais<br />
Sabidamente a influência da ópera (sobretudo italiana) na música sacra ocorreu<br />
em outras regiões do estado de Minas Gerais e do Brasil ao longo do século XIX. Aluízio<br />
Viegas confirma, por exemplo, a existência de grande acervo de edições impressas de<br />
ópera em São João del Rei, pertencente ao Maestro Ribeiro Bastos, composto de edições<br />
de meados do século XIX, adquirido pela professora de canto Janice Mendonça de Almeida<br />
na década de 1970. 16 Tal fenômeno merece certamente maior atenção, pois a influência<br />
...........................................................................<br />
16 Informação oral obtida em entrevista pelo autor deste trabalho, em julho de 2010.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
Figura 10. Jaculatória da Novena em Sol Maior (SMEI 010/163), “Ó Sebastião poderoso”.<br />
Figura 11. Jaculatória da Novena em Sol Maior (SMEI 010/163), “Ó Sebastião poderoso” (continuação).<br />
383<br />
da ópera na música sacra católica certamente parece remontar, no caso do Brasil, ao século<br />
XVIII, e muito provavelmente o caso de Emílio seja mais efeito de um longo processo<br />
que um fenômeno particular. Embora as Novenas sejam uma manifestação paralitúrgica<br />
de grande complexidade, cujo estudo envolve necessariamente o contexto sociocultural<br />
no qual se realizam – uma abordagem etnomusicológica propriamente dita – a análise,<br />
edição e execução das composições de Emílio para as Novenas de São Sebastião podem<br />
ajudar a compreender o que as tornou tão marcante para a memória musical itabirana.<br />
Certamente o estudo da recepção de tais obras será muito importante, embora de difícil<br />
realização, dada a distância temporal dos eventos em relação a nós.<br />
Finalmente, cabem algumas palavras sobre o “desaparecimento” de Emílio dos<br />
registros itabiranos, uma vez que há alguns novos dados, chegados recentemente às mãos<br />
do autor deste trabalho pela iniciativa voluntária de Humberto Rodrigues de Sá, trineto<br />
de Emílio Soares de Gouveia Horta Júnior. Interessado em conhecer melhor a história de<br />
seu antepassado, este nosso novo colaborador passou a buscar informações sobre ele,<br />
chegando ao sítio web do Museu da Música de Mariana, onde, com surpresa, encontrou<br />
trechos de composições de seu trisavô (as já mencionados Ária ao Pregador e Hino a Santa<br />
Cecília).<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
384<br />
Figuras 12 e 13. Lápide de Emílio Soares, em Juiz de Fora. (Fotos de Humberto Rodrigues de Sá, publicadas sob<br />
autorização).<br />
Entrando em contato com o autor deste trabalho em meados de 2009, o sr.<br />
Humberto esclareceu, naquela ocasião, que Emílio falecera em Juiz de Fora, em 30 de<br />
março de 1907, resolvendo assim a intrigante questão, cuja resposta procurávamos há<br />
mais de dez anos (cf. Figuras 12 e 13). Desde então nosso colaborador vem levantando<br />
uma série de dados que a brevidade desde artigo não permitiria detalhar, mas destaquemos<br />
a rara publicação póstuma de Proverbios Latinos traduzidos por Emílio, publicada por iniciativa<br />
de seu filho, Pedro de Gouveia Horta, em Juiz de Fora (Horta [Júnior], 1925).<br />
Interessa particularmente o fato de que esta publicação contém uma nota biográfica<br />
sobre Emílio, elaborada pelo jornalista Albino Esteves, 17 intitulada “Algumas palavras”.<br />
Cabe a observação de que nem a publicação, nem a nota biográfica indicam o adjetivo<br />
“Júnior”, porém, podemos afirmar que se trata do mesmo Emílio Soares de Gouveia<br />
Horta Júnior. 18 Ocorre que a forma de grafar um nome tão longo varia muito nas próprias<br />
partes musicais, aparecendo como “Emilio Soares”, “Emilio Soares Horta” (cf. Rezende,<br />
1989, p. 625 e 729), “Emilio Soares Júnior”, 19 “G. Horta J. or ”, “Horta J. or ” ou “H. J. or ” (estas<br />
últimas são as mais comuns). Raramente há registros com a forma completa do nome,<br />
como no frontispício autógrafo existente na Coleção Francisco Curt Lange, acima mencionado.<br />
Entretanto, ainda que haja tanta variação, é pouco provável que houvesse dois<br />
compositores homônimos, pai e filho, nas Minas Gerais oitocentistas, ou mesmo um compositor<br />
com nome similar, de modo que, embora seja necessário continuar as pesquisas<br />
para nos certificarmos totalmente, tudo indica tratar esta nota do mesmo Emílio Soares<br />
dos versos drummondianos.<br />
A nota biográfica esclarece que Emílio nasceu em Cocais (MG), 20 em 19 de abril<br />
de 1839 (portanto, estava com 68 anos de idade, em 1907, quando veio a falecer), e joga<br />
algumas luzes sobre a sua trajetória inicial. Segundo Esteves, estudou no Seminário de<br />
...........................................................................<br />
17 Curiosamente, a nota biográfica traz indicada ao final a data de 31 de maio de 1926, embora a folha de rosto<br />
da publicação indique o ano de 1925.<br />
18 Esclarece o sr. Humberto que há quatro pessoas de sua família com o nome de Emílio Soares de Gouveia<br />
Horta: o pai do compositor (Tenente-coronel, 1813-18??), o compositor (1839-1907, que adotava o indicativo<br />
“Júnior”, embora não estivesse assim registrado), um neto do compositor (1907-1991, nascido no ano de seu<br />
falecimento e que recebeu o mesmo nome em sua homenagem, também sem o “Júnior”) e um bisneto, nascido<br />
em 1945 (este último, o único efetivamente registrado como Emílio Soares de Gouveia Horta Júnior).<br />
19 Assim é identificado o autor em cópia de sua Novena do Espírito Santo, existente no Arquivo Eclesiástico da<br />
Arquidiocese de Diamantina, Minas Gerais.<br />
20 Cocais, Distrito do Município de Barão de Cocais, no século XIX denominado como São João do Morro Grande.<br />
(cf. Barbosa, p. 41 e 89).<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
385<br />
Mariana e depois no “Seminário do Caraça”, 21 pois, “era a sua intenção ordenar-se, tendo<br />
mesmo chegado a pregar em Santa Bárbara, na Festa de S. Sebastião, autorizado pelo Bispo<br />
de Mariana” (Esteves, 1926). Todavia, a carreira eclesiástica de Emílio não se concretizou,<br />
na medida em que escolheu outros caminhos que o levaram a ser, nas palavras de Esteves,<br />
“o estimado velhinho que era Emilio Horta, o respeitável chefe de família em quem sobejavam<br />
as finas qualidades da antiga têmpera dos ‘chapéus-de-couro’ a par de uma erudição<br />
elevada”. O jornalista menciona, por outro lado, “o perfil austero do professor de centenas<br />
de homens de alto relevo na política, no magistério, no sacerdócio, como Affonso Pena,<br />
D. Silvério Gomes Pimenta, e muitos outros, quase todos já desaparecidos também” (Esteves,<br />
1926).<br />
O autor ainda acrescenta que Emílio Soares dirigiu colégios em Santa Bárbara,<br />
Sete Lagoas e Curvelo, tendo lecionado em várias instituições educacionais em Minas Gerais<br />
e no Rio de Janeiro. A informação de que Emílio esteve no Estado do Rio de Janeiro (talvez<br />
na capital) abre novas perspectivas para a pesquisa em torno de sua formação musical.<br />
Especificamente sobre sua atuação em Itabira, a nota biográfica menciona apenas<br />
que lá foi “professor de humanidades” e exerceu o cargo de “promotor público”, mas<br />
acrescenta que ocupou muitos “postos de destaque” no Estado (antigamente, Província)<br />
de Minas Gerais, tais como Chefe de Seção da Secretaria de Governo, Secretaria da Chefia<br />
de Polícia, Secretaria de Obras Públicas, aposentando-se como Secretário Geral de Instrução<br />
Pública. 22 O jornalista esclarece também que Emílio foi filiado ao Partido Republicano<br />
e ativo propagandista da abolição no Brasil.<br />
Sobre a sua faceta de compositor e músico, registra Esteves somente que “deixou<br />
vários trabalhos musicais e sacros, notadamente um Te-Deum, que foi premiado, por<br />
ocasião de terminada a Guerra do Paraguai”. Esta é uma das últimas obras de Emílio das<br />
quais se tem notícia. 23 A outra é um Hino a Tiradentes, que teria sido composto sobre<br />
poema de Bernardo Guimarães em 1882 (cf. Guimarães, s/d.) – esta, diga-se de passagem,<br />
a única obra propriamente profana de sua autoria de que sem tem notícia. Antes de concluir<br />
este trabalho, gostaríamos de apresentar uma breve relação das obras de Emilio<br />
Soares de Gouveia Horta Júnior das quais se tem conhecimento, tabela 2.<br />
É possível que outras obras de sua autoria ainda sejam encontradas, assim como<br />
é também plausível conjeturar que algumas tenham se perdido para sempre, como frequentemente<br />
ocorreu com fontes musicais manuscritas do século XIX no Brasil. Contudo,<br />
é uma obra considerável, ainda mais tendo em conta que Emílio não se dedicou exclusivamente<br />
à música, tendo como atividade principal, ao que tudo indica, o magistério e,<br />
em segundo plano, a administração pública. A propósito, cabe aprofundar os estudos sobre<br />
esta talvez ainda pouco destacada figura da vida cultural das Minas oitocentistas, inclusive<br />
no que diz respeito às funções que as suas atividades musicais – seja a composição<br />
de obras sacras, seja a regência/direção de bandas civis – desempenharam. Sem dúvida<br />
alguma, a atividade musical de Emílio está também vinculada à esfera política, marcadamente<br />
no caso do desaparecido Hino a Tiradentes e mesmo no responsório fúnebre<br />
composto para um “dos grandes” cidadãos da Itabira do Matto Dentro. Além disso, como<br />
...........................................................................<br />
21 Observe-se que o Colégio do Caraça não é um seminário, embora tenha abrigado o Seminário Maior de Mariana<br />
entre os anos de 1854 e 1882 (cf. Andrade, 2000, p. 19).<br />
22 Cf. Arquivo Público Mineiro, Coleção Leis Mineiras (1835-1889): Lei 3322, que autoriza a aposentadoria de<br />
Emílio em 1885. (cf. http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/modules/publicos_docs/viewcat.php?cid=4368)<br />
23 Um Te Deum de “Emílio Soares Horta”, provavelmente o mesmo, também é mencionado por Rezende (1989,<br />
p. 625), que afirma existir no arquivo da Sociedade Musical Santa Cecília de Sabará material desta obra, datado<br />
de 1884 (não especificando tratar-se de partes ou partitura, manuscrito ou impresso). Também Lange (1966, p.<br />
148) faz referência a esse documento. O autor deste trabalho já fez algumas visitas à Banda Santa Cecília, porém<br />
até o momento não foi possível, apesar da boa vontade de seus diretores, especialmente do Sr. Carlos Umbelino,<br />
ter acesso ao material, tampouco obter informação precisa sobre a existência da obra no acervo.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
386<br />
Tabela 2. Obras de Emilio Soares de Gouveia Horta Júnior.<br />
mostra o frontispício da Ária ao Pregador, a prática das dedicatórias de obras musicais –<br />
tema ainda pouco estudado no Brasil – relaciona-se com um jogo de sociabilidades no<br />
qual a música pode desempenhar um papel especial.<br />
Restam ainda muitas lacunas na biografia deste notável personagem da vida<br />
musical mineira, mas agora ao menos conhecemos suas datas e locais de nascimento e<br />
falecimento. Não resta dúvida que a música era apenas uma de suas várias facetas. Porém,<br />
ainda que como uma atividade secundária, a música fez parte expressiva de sua produção<br />
e talvez seja a atividade que mais fortemente tenha deixado traços de sua presença na<br />
história e na cultura brasileiras, sobrevivendo até os dias hoje. Contudo, talvez a maior lacuna<br />
seja quanto à formação musical de Emílio, pois certamente não teria sido apenas<br />
em sua formação no Seminário de Mariana, ou ainda na fase caracense, que obtivera o<br />
domínio composicional demonstrado na Ária ao Pregador de 1864. Aprofundar tal estudo,<br />
entender como Emílio obteve tal expertise na escritura orquestral e vocal – e, claro, como<br />
recebeu as notáveis influências da ópera italiana – enfim, conhecer melhor este compositor<br />
e sua obra certamente contribuirá para uma melhor compreensão do processo de construção<br />
da identidade cultural das classes dominantes do Brasil do século XIX, para o conhecimento<br />
da vida musical de então, assim como de suas ressonâncias ainda presentes no<br />
século XXI.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
387<br />
Referências bibliográficas<br />
Andrade, Carlos Drummond de. Boitempo. 5ª ed. 2 v. Rio de Janeiro: Record, 1998.<br />
Andrade, Mariza Guerra de. A educação exilada. Colégio do Caraça. Belo Horizonte:<br />
Autêntica, 2000.<br />
Barbosa, Waldemar de Almeida. Dicionário Histórico Geográfico de Minas Gerais. Belo<br />
Horizonte: Itatiaia, 1995.<br />
Cotta, André Guerra. “Os descobrimentos do Brasil: dos arquivos musicais a outras<br />
histórias da música”. Encontro de Musicologia Histórica, 4, p. 72-95, Juiz de Fora, 21 a<br />
23-jul., 2000. In: Anais... Juiz de Fora: Centro Cultural Pró-Música, Rio de Janeiro:<br />
Fundação Biblioteca Nacional, 2001.<br />
Cotta, André Guerra. “A música em Itabira do Matto Dentro: reflexões sobre uma<br />
pesquisa de campo e leituras de fontes secundárias”. Encontro de Musicologia<br />
Histórica, 5, p. 77-108, Juiz de Fora, 21 a 23-jul., 2002. In: Anais... Juiz de Fora: Centro<br />
Cultural Pró-Música: 2004.<br />
Esteves, Albino. “Algumas palavras” [Nota biográfica]. 1926. In: Horta [Júnior], Emílio<br />
Soares de Gouveia. Provérbios Latinos (Traducção livre). Juiz de Fora: Off. Graphica Luz,<br />
1925.<br />
Ferreira, Diva. Memórias. Itabira – Minas. Belo Horizonte: O Lutador, 1999.<br />
Guimarães, Armelim. A cabeça de Tiradentes. Disponível em: , Acessado em 22-jan.,<br />
2011.<br />
Horta [Júnior], Emílio Soares de Gouveia. Provérbios Latinos (Traducção livre). Juiz de<br />
Fora: Off. Graphica Luz, 1925.<br />
Lange, Francisco Curt. “A música na Vila Real do Sabará”. Estudos Históricos, p. 97-198.<br />
Marília: Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, 1966.<br />
Rezende, Maria da Conceição. A música na História de Minas Colonial. Belo Horizonte:<br />
Itatiaia; Brasília: INL, 1989.<br />
Veiga, José Pedro Xavier da. Efemérides Mineiras. 1664-1897. Belo Horizonte: Fundação<br />
João Pinheiro, 1998.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
389<br />
Chagas: gênese de uma ópera singular<br />
Alexandre Schubert<br />
Universidade Federal do Rio de Janeiro<br />
Neste trabalho serão abordados aspectos do singular processo composicional<br />
da ópera Chagas, desde sua concepção até a apresentação no Palácio das Artes, em Belo<br />
Horizonte. Na segunda parte há um breve comentário sobre Turandot, de Puccini, e Lulu,<br />
de Alban Berg, óperas deixadas inconclusas por seus autores, que tiveram suas complementações<br />
realizadas a posteriori. Depois, falaremos sobre o início do processo composicional<br />
realizado por Silvio Barbato e discorreremos sobre a apresentação de trechos<br />
da ópera Chagas em Roma. A continuação do processo composicional realizado por mim,<br />
após o trágico desaparecimento de Barbato, é descrita posteriormente, assim como as<br />
adaptações que foram feitas no libreto. Abordaremos ainda aspectos musicais da caracterização<br />
de diversos personagens da ópera Chagas, assim como as apresentações da<br />
ópera completa, ocorridas em Belo Horizonte. Na última parte serão feitas as considerações<br />
finais, ressaltando a importância da montagem de óperas contemporâneas brasileiras.<br />
Turandot e Lulu<br />
Dentre o repertório de óperas do século XX, destacam-se dois exemplos que, a<br />
cada especificidade, tiveram a conclusão do trabalho composicional feita por mãos diferentes<br />
daquelas que o haviam iniciado: trata-se de Turandot, de Giacomo Puccini, e de<br />
Lulu, de Alban Berg.<br />
Turandot, ópera em três atos, com libreto de Giuseppe Adami e Renato Simoni,<br />
baseado em uma fábula do Conde Carlo Guzzi, foi deixada inacabada em sua última cena,<br />
devido à morte de Puccini, em 1924. Pouco antes de falecer, Puccini previu que a ópera<br />
não seria terminada e em conversa com um amigo revelou que desejaria apresenta-la incompleta,<br />
devendo uma pessoa chegar ao proscênio e falar que no momento da interrupção<br />
da música havia falecido o autor. Foi o que aconteceu. Na estreia da ópera, no<br />
Teatro Scala de Milão, no dia 25 de abril de 1926, Toscanini, que regia a apresentação,<br />
após súbita interrupção, dirigiu-se à plateia, profundamente comovido: “Nesse ponto o<br />
Maestro deixou cair a pena” (Newman, 1957). Entretanto, Franco Alfano, aluno de Puccini,<br />
concluiu a partitura da última cena, baseando-se em esboços deixados pelo compositor.<br />
Alfano fez duas versões, a pedido da editora Ricordi, sendo a última versão normalmente<br />
usada nas apresentações da ópera. Luciano Berio, em 2001 (Ircam, 2011), fez uma nova<br />
versão, também baseada em esboços de Puccini, porém usando uma linguagem musical<br />
expandida.<br />
Alban Berg deixou a orquestração do terceiro ato de sua segunda ópera, Lulu,<br />
incompleta. Baseada em textos de Franz Wedekind, a linguagem musical de Lulu é inteiramente<br />
serial. Após a morte de Berg, sua viúva não permitiu que ninguém completasse<br />
a orquestração do ato que faltava, pois Schönberg se recusara a terminá-la. Somente<br />
quarenta anos depois, o compositor Friedrich Cerha dedicou-se a realizar o trabalho. A<br />
ópera pôde, assim, ser encenada em sua versão completa, estreando em 24 de fevereiro<br />
de 1979, em Paris, com a regência de Pierre Boulez (Reverdy, 1983).<br />
Verifica-se nos dois exemplos citados a mesma situação: as óperas permanecem<br />
parcialmente inacabadas na parte final (a última cena de Turandot, a orquestração do<br />
terceiro ato de Lulu) devido ao falecimento do autor e são concluídas por diferentes<br />
pessoas. No caso da ópera Chagas, ocorre uma situação singular, pois grande parte da<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
390<br />
música ainda não havia sido composta quando Barbato desapareceu no acidente1 aéreo,<br />
e os trechos já existentes não se encontravam escritos em uma ordem linear. Assim, a<br />
conclusão da ópera realizada por mim, tendo em vista a apresentação a ser realizada no<br />
Palácio das Artes, em Belo Horizonte, contém características diferenciadas dos exemplos<br />
apresentados.<br />
A versão “Roma”<br />
Assim que concluiu sua ópera O cientista, Barbato procurou-me, pois começaria<br />
um novo projeto de composição. Seria uma ópera sobre a vida de Carlos Chagas, ilustre<br />
cientista brasileiro, descobridor da “doença de Chagas” e de seu vetor, o barbeiro, que a<br />
propaga pelos sertões do Brasil e do mundo. Na época, trabalhávamos juntos na confecção<br />
das partituras de suas composições. Foi assim com o balé Terra Brasilis e com O cientista.<br />
Normalmente, Barbato trazia os trechos manuscritos, mesmo que ainda incompletos, e<br />
eu fazia a partitura, usando programas de edição no computador. Ele, então, fazia as<br />
revisões e indicava a instrumentação a ser realizada.<br />
Para Chagas o processo composicional iniciou-se com um coro, que seria posteriormente<br />
usado no Hino Pontifício da versão “Roma”. 2 Os trechos sucederam-se. Barbato<br />
compôs o coro “Inicial”, o “Dueto Carlos Chagas Sertaneja”, o “Vocalise da Sertaneja”, o<br />
coro dos “Desesperançados”, a ária de Chagas Filho, além de dois trechos orquestrais, o<br />
“Xaxado” e o “Intermezzo do Vaticano”. A “Ave Maria”, incluída na ópera, foi dedicada à<br />
viúva de Carlos Chagas Filho, dona Anah Chagas e fazia parte de uma “Missa”, também<br />
composta em homenagem a dona Anah.<br />
Para a apresentação em Roma, ocorrida no dia 1º de novembro de 2008, na Sala<br />
Palestrina da Embaixada do Brasil, foi incluída uma narração, escrita pelo libretista, Renato<br />
Icarahy, que apresentava, dessa forma, o enredo da ópera, intercalado com as partes musicais.<br />
A orquestração era constituída por cordas (primeiros e segundos violinos, violas,<br />
violoncelos e contrabaixos), madeiras aos pares (flautas, oboés, clarinetas e fagotes) e<br />
duas trompas. Os solistas foram Sebastião Teixeira, barítono, e Luiza Francesconi, mezzosoprano.<br />
A regência ficou sob a responsabilidade do próprio maestro Silvio Barbato.<br />
Continuação da composição de Chagas<br />
O trágico desaparecimento de Silvio Barbato interrompeu o projeto da ópera. A<br />
retomada do projeto deveu-se principalmente a Helena Severo, produtora e amiga de<br />
Barbato, e a seus filhos, Elisa e Daniel, que incentivaram a continuidade da composição<br />
da ópera. Fui procurado por Helena Severo e aceitei o desafio de completar o trabalho.<br />
Manuscritos<br />
Em um primeiro momento pesquisamos, no material manuscrito de Barbato,<br />
possíveis trechos que pertencessem à obra. Verificamos que havia pequenos fragmentos<br />
melódicos sem, no entanto, configurarem trechos completos. Pouco pôde ser aproveitado<br />
na partitura final. Apenas a “Ária do Padre Sacramento”, cuja música é idêntica ao<br />
“Intermezzo do Vaticano”, foi inteiramente usada, bastando adaptar a letra do libreto à<br />
melodia. Outros fragmentos foram inseridos nos seguintes trechos:<br />
...........................................................................<br />
1 Silvio Barbato estava no voo da Air France com destino a Paris que desapareceu no Oceano Atlântico em 1º de<br />
junho de 2009.<br />
2 Chama-se versão Roma os trechos da ópera Chagas inteiramente compostas por Silvio Barbato. A versão inclui<br />
trechos do primeiro e do segundo ato, incluindo coros, árias e duetos, que foram apresentados sob a forma de<br />
concerto em Roma. Essa apresentação foi gravada em um cd, com patrocínio da Fiocruz.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
Figura 1. Programa do concerto realizado em Roma.<br />
391<br />
a) Segunda seção do “Coro dos Trabalhadores” (nº 5 da partitura final).<br />
Melodia do tenor (compassos 80 a 88) – essa melodia foi resgatada pelo libretista,<br />
Renato Icarahy, que se lembrava de quando Barbato, ao piano, mostrou para ele<br />
em uma reunião. Icarahy enviou-me a melodia por correio eletrônico assegurando<br />
que ela pertencia ao Coro dos Trabalhadores da Estrada de Ferro.<br />
b) Introdução da “Ária de Carlos Chagas Pai adulto” (nº 16). Parte mais completa,<br />
pois apresentava harmonização (compassos 1 a 7). Encontra-se na Figura 2 o<br />
manuscrito de Barbato e, na Figura 3, como foi utilizado na partitura final.<br />
Figura 2. Manuscrito de Silvio Barbato.<br />
Além desses trechos, utilizei no “Prelúdio para Chagas” temas de Barbato, extraídos<br />
da ópera (<strong>Versão</strong> Roma e fragmentos).<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
392<br />
Figura 3. Uso do mesmo fragmento na versão final.<br />
O Libreto<br />
O libreto de Chagas, escrito por Renato Icarahy, teve várias adaptações. Tivemos<br />
que pensar, conjuntamente, em soluções diversas para se encontrar um formato que viabilizasse<br />
a montagem em Belo Horizonte. Haveria pouco tempo para a composição, 3 pois<br />
era preciso que os cantores estivessem com a partitura vocal em agosto. No começo de<br />
outubro seria a estreia. Dessa forma, vários trechos tiveram que ser cortados, sem prejuízo<br />
para o entendimento da ópera.<br />
Foram privilegiados os trechos que permitiam uma continuidade do fluxo histórico,<br />
na medida em que o enredo abrangia um grande período temporal, indo da infância<br />
de Carlos Chagas, em Minas Gerais, até a reabertura do processo de Galileu Galilei, no Vaticano,<br />
feita por seu filho adulto.<br />
Não seria possível a inclusão de mais coros, como no projeto original de Barbato,<br />
porque o coro não poderia ter um grande número de componentes, não sendo possível,<br />
dessa forma, ser dividido em subgrupos, o que facilitaria os ensaios. Escrevi, então, apenas<br />
três coros: o “Coro dos trabalhadores da estrada de ferro”, com sua repetição no final do<br />
primeiro ato; o primeiro número do segundo ato, com o coro fora da cena, acompanhando<br />
o recitativo de Miguel Couto e Íris; e a cena do “delírio”, em que ocorre o “julgamento” de<br />
Chagas, também no segundo ato.<br />
Outra característica do libreto é a quantidade de personagens superior a de<br />
cantores, sendo necessário que o mesmo cantor interpretasse mais de um personagem.<br />
...........................................................................<br />
3 O processo de composição das novas partes, que resultou em aproximadamente 50 minutos do total de uma<br />
hora e meia de música, começou em meados de julho de 2009.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
393<br />
O tempo para a troca de figurinos dos cantores solistas teve que ser levado em conta durante<br />
o processo composicional. Dessa forma, os papéis ficaram assim divididos:<br />
a) Barítono – Carlos Chagas, Carlos Chagas Filho adulto;<br />
b) Tenor – Carlos Chagas jovem, Carlos Chagas Filho jovem, Jeca-Tatu;<br />
c) Mezzo-soprano – Sertaneja, Íris;<br />
d) Baixo – Padre Sacramento, Miguel Couto, Juiz, Epitácio Pessoa, Papa.<br />
Desses personagens, somente havia música escrita por Barbato para Carlos Chagas<br />
adulto, para Carlos Chagas Filho adulto (partes de barítono), para Sertaneja e a Ave<br />
Maria (partes de mezzo-soprano).<br />
Relação das partes de Chagas<br />
A ópera foi concebida em números: coros, árias, ensembles, recitativos, trechos<br />
orquestrais. Abaixo, encontra-se a relação das partes da ópera, com as respectivas autorias.<br />
Prelúdio para Chagas<br />
Silvio Barbato e Alexandre Schubert<br />
Ato 1<br />
Quadro 1<br />
I – Coro dos Escravos<br />
Silvio Barbato<br />
Quadro 2<br />
II – Recitativo e Dueto: Chagas Pai Jovem e Padre Sacramento<br />
Alexandre Schubert<br />
III – Ária: Padre Sacramento<br />
Silvio Barbato<br />
IV – Dueto: Chagas consigo mesmo<br />
Alexandre Schubert<br />
Quadro 3<br />
V – Coro dos Trabalhadores da Estrada de Ferro<br />
Alexandre Schubert e Silvio Barbato<br />
VI – Recitativo e Vocalise<br />
Silvio Barbato<br />
VII – Dueto: Carlos Chagas e Sertaneja<br />
Silvio Barbato<br />
VIII – Recitativo e Dueto<br />
Alexandre Schubert<br />
IX – Ária: Jeca-Tatu<br />
Alexandre Schubert<br />
X – Xaxado<br />
Silvio Barbato<br />
XI – Terceto e Coro dos Trabalhadores (II)<br />
Alexandre Schubert<br />
Ato 2<br />
Quadro 1<br />
XII – Dueto: Miguel Couto e Iris (Coro atrás do palco)<br />
Alexandre Schubert<br />
XIII – Recitativo e Terceto<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
394<br />
Alexandre Schubert<br />
XIV – Ária: Iris<br />
Alexandre Schubert<br />
XV – Recitativo e Concertato (“delírio”)<br />
Alexandre Schubert<br />
XVI – Ária: Chagas Pai<br />
Silvio Barbato e Alexandre Schubert<br />
Quadro 2<br />
XVII – Recitativo: Chagas Pai e Presidente<br />
Alexandre Schubert<br />
XVIII – Coro dos Desesperançados<br />
Silvio Barbato<br />
XIX – Recitativo: Presidente e Chagas<br />
Alexandre Schubert<br />
Quadro 3<br />
XX – Recitativo e Dueto<br />
Alexandre Schubert<br />
XXI – Recitativo e Dueto: Chagas Pai e Filho<br />
Alexandre Schubert<br />
XXII – Dueto<br />
Alexandre Schubert<br />
XXIII – Ave Maria<br />
Silvio Barbato<br />
XXIV – Intermezzo no Vaticano<br />
Silvio Barbato<br />
Quadro 4<br />
XXV – Recitativo: Papa e Carlos Chagas Filho Adulto<br />
Alexandre Schubert<br />
XXVI – Ária Chagas Filho Adulto<br />
Silvio Barbato<br />
XXVII – Hino Pontifício<br />
Silvio Barbato<br />
Concepção musical dos personagens<br />
Para cada personagem em que ainda não havia música escrita procurou-se estabelecer<br />
procedimentos composicionais específicos que os caracterizassem.<br />
Padre Sacramento – tem o papel de mestre e incentivador da carreira científica<br />
de Carlos Chagas. Harmonia quartal com alternância rítmica de 6/8 e 3/4. A harmonização<br />
em quartas justas superpostas, ou com as inversões harmônicas correspondentes é um<br />
procedimento usual em minhas composições, mas raramente presente na música de Silvio<br />
Barbato. Na ópera, esse tipo de harmonia está associado a ideias científicas, complexas,<br />
ou aos personagens cientistas, médicos e professores.<br />
Carlos Chagas pai adulto – para quem foi usada, além da harmonia quartal,<br />
uma escrita textural contrapontística. A ideia era expressar a forma complexa de pensar<br />
do personagem.<br />
Jeca-tatu – o personagem representa a sabedoria popular. É expansivo, divertido,<br />
essencial para a descoberta do vetor da Doença de Chagas. Foi usada uma linguagem harmônica<br />
modal, principalmente os modos lídio e mixolídio, associados à música do sertão<br />
nordestino. Ritmos sincopados e a instrumentação, que inclui triângulo e caixa-clara, contribuem<br />
para a criação da ambiência rural do Brasil.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
Figura 4. Harmonia quartal associada ao Padre Sacramento.<br />
Figura 5. Linha em contraponto à melodia de Carlos Chagas.<br />
395<br />
Íris – usou-se linguagem tonal, triádica, que seria facilmente compreendido pelo<br />
filho, Carlos Chagas Filho, que no começo do segundo ano é ainda uma criança.<br />
Carlos Chagas Filho – o personagem passa por três etapas de vida na ópera:<br />
criança (cena da Gripe espanhola e do delírio), adolescente (quando discute com a mãe<br />
sobre a importância da carreira de seu pai e sua escolha em seguir seus passos) e adulto<br />
(quando era presidente da Pontifícia Academia de Ciências do Vaticano e, em audiência<br />
com o Papa, reabre o processo de revisão da condenação de Galileu Galilei).<br />
No primeiro momento, demonstra grande receio diante da possibilidade de condenação<br />
de seu pai. Suas intervenções são sempre em figuras rítmicas rápidas e linhas<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
396<br />
Figura 6. Modalismo associado ao Jeca-tatu.<br />
Figura 7. Harmonia triádica associada a Íris.<br />
Figura 8. Harmonia mista de Carlos Chagas Filho adulto.<br />
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Figura 9. Notas pedais nas cordas e nos tímpanos; glockenspiel e tantam acompanham o Papa.<br />
397<br />
melódicas angulosas (ver Figura 7, compassos 2 e 3). Quando adolescente, mantém uma<br />
postura revoltada, de contestação. São criados recitativos ágeis, com grande flexibilidade<br />
dos acordes de acompanhamento. A linguagem harmônica é mista, variando-se o uso de<br />
tríades com harmonias quartais. Na maturidade, se mantém a linguagem mista. Ressaltase<br />
que irá diferir da linguagem usada por Barbato na Ária final, que é totalmente triádica.<br />
Papa – em linguagem modal. A instrumentação torna-se essencial para a caracterização<br />
do personagem: pedais nas cordas e nos tímpanos, criando-se um halo, uma<br />
atmosfera mística, o uso do tantam, e do glockenspiel, pontuando as intervenções do canto.<br />
Estreia em Belo Horizonte<br />
Terminada a partitura vocal, se iniciou imediatamente o trabalho de orquestração.<br />
A versão que seria apresentada em Belo Horizonte exigia uma orquestra sinfônica<br />
completa, incluindo cordas, harpa, madeiras aos pares, quatro trompas, dois trompetes,<br />
três trombones e um amplo naipe de percussão. 4 A orquestração foi concluída praticamente<br />
às vésperas do primeiro ensaio. Não foi feita nenhuma mudança na orquestração<br />
da versão Roma, pois não queríamos mudar a escrita original de Barbato.<br />
Os solistas para as apresentações em Belo Horizonte foram:<br />
Barítono – Sebastião Teixeira<br />
Mezzo-soprano – Luciana Costa e Silva<br />
Tenor – Raoni Hübner<br />
Baixo – Maurício Luz<br />
A ópera foi apresentada nos dias 5 e 6 de outubro de 2009, no Grande Teatro do<br />
Palácio das Artes. A regência ficou sob a responsabilidade do maestro André Cardoso. O<br />
coro da Companhia Versátil foi preparado por Jésus Figueiredo. A direção e a concepção<br />
cênica ficaram a cargo de Moacyr Góes. A cenografia foi feita por Paulo Flaksman e os elementos<br />
de multimídia foram desenvolvidos por Tainá Diniz e por Paulo Galvão. Os figurinos<br />
foram assinados pela Bia Salgado e a iluminação pela Adriana Ortiz. A coordenação do<br />
projeto foi realizada por Helena Severo.<br />
...........................................................................<br />
4 Teve-se à disposição para a apresentação em Belo Horizonte, a Orquestra Sinfônica de Minas Gerais, sediada<br />
no Palácio das Artes.<br />
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da <strong>UFRJ</strong>
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Desde o princípio, o projeto foi patrocinado pela Fundação Oswaldo Cruz, demonstrando<br />
que é possível a união da ciência e da arte para a realização de projetos culturais<br />
no Brasil. O apoio da Fundação Clóvis Salgado também foi essencial para a montagem da ópera.<br />
Considerações finais<br />
Apresentamos, neste trabalho, alguns aspectos do processo composicional da<br />
ópera Chagas, com todas as suas peculiaridades. Diferentemente de outros exemplos de<br />
óperas concluídas por outros autores, Chagas apresentava mais de 50% incompleta. Existiam<br />
apenas trechos musicais de momentos específicos, não lineares, escritos por Barbato,<br />
o maior desafio foi alinhavá-los com os trechos novos, para que não se perdesse o fluxo<br />
dramático-musical. O resultado foi apresentado no palco do Palácio das Artes, em Belo<br />
Horizonte. É importante ressaltar esse aspecto, pois montagens de óperas brasileiras contemporâneas<br />
em palcos tradicionais não são comuns.<br />
Novas montagens de Chagas são esperadas em diversas cidades do Brasil, o que<br />
irá contribuir para a divulgação do gênero operístico nacional, além da proposta educativa<br />
de apresentar a vida e as realizações dos ilustres cientistas retratados na ópera.<br />
Referências bibliográficas<br />
Ircam. Sítio da Base de Documentation sur la musique contemporaine – BRAHMS,<br />
disponível em http://brahms.ircam.fr/works/work/19426/, acessado em 2-fev., 2011.<br />
Newman, Ernst. História das grandes óperas e de seus compositores. Porto Alegre:.<br />
Editora Globo, 1957, v. IV.<br />
Revardy, Michèle. “Alban Berg”. In: Massin, Jean & Massin, Brigitte. História da Música<br />
Ocidental. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1983.<br />
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